Você está na página 1de 1342

ATOS

[Clique em CONTEÚDO]

Original em inglês:
New Testament Commentary: Acts

Author: Simon J. Kistemaker

TRADUTOR: CARLOS BIAGINI

Baker Book House

Grand Rapids, Michigan, 1990


Atos (Simon J. Kistemaker) 2
CONTEÚDO

Abreviaturas
Prefácio
Introdução
A. Título
B. Fontes
C. Discursos
D. Historicidade
E. Escritor, data e lugar
F. Teologia
G. Características
H. Texto
I. Propósito
J. Temas
K. Esboço

I. ANTES DO PENTECOSTES (At 1:1-26)


1. Antes do Pentecostes (Atos 1)
A. Antes da ascensão de Jesus (At 1:1–8)
1. Introdução (At 1:1–5)
2. Propósito (At 1:6–8)
B. A ascensão de Jesus (At 1:9–11)
C. Depois da ascensão de Jesus (At 1:12–14)
D. A eleição de Matias (At 1:15–26)
1. O cumprimento das Escrituras (At 1:15–20)
2. Os requisitos para o apostolado (At 1:21–22)
3. A eleição divina (At 1:23–26)
II. A IGREJA EM JERUSALÉM (At 2:1 – 8:1)
2. A igreja em Jerusalém, parte 1 (At 2:1–47)
A. Pentecostes (At 2:1–47)
1. Derramamento do Espírito (At 2:1–13)
Atos (Simon J. Kistemaker) 3
a. O derramamento (At 2:1–4)
b. A concorrência (At 2:5–11)
c. As zombarias (At 2:12–13)
2. O sermão de Pedro (At 2:14–41)
a. A explicação do ocorrido (At 2:14–21)
b. A Palavra de Deus cumprida (At 2:22–24)
c. A profecia de Davi (At 2:25–28)
d. Deus cumpre Sua promessa (At 2:29–36)
e. Uma reação genuína (At 2:37–41)
3. A comunidade cristã (At 2:42–47)
a. Em adoração (At 2:42–43)
b. Na comunidade (At 2:44–47)
B. O PODER DO NOME DE JESUS (At 3:1–5:16)
3. A igreja em Jerusalém, parte 2 (At 3:1–26)
1. A cura do paralítico (At 3:1–10)
a. O cenário (At 3:1–5)
b. O milagre (At 3:6–10)
2. Discurso de Pedro (At 3:11–26)
a. A explicação (At 3:11–16)
b. A exortação (At 3:17–23)
c. A promessa (At 3:24–26)
4. A igreja em Jerusalém, parte 3 (At 4:1–37)
3. Diante do Sinédrio (At 4:1–22)
a. A detenção (At 4:1–4)
b. O juízo (At 4:5–7)
c. A defesa (At 4:8–12)
d. A deliberação (At 4:13–17)
e. A absolvição (At 4:18–22)
4. As orações da igreja (At 4:23–31)
a. A reunião (At 4:23–24a)
b. A oração (At 4:24b–28)
c. A petição e a resposta (At 4:29–31)
Atos (Simon J. Kistemaker) 4
5. O amor dos santos (At 4:32–37)
a. A comunidade de bens (At 4:32–35)
b. O exemplo de Barnabé (At 4:36–37)
5. A igreja em Jerusalém, parte 4 (At 5:1–42)
6. O engano de Ananias (At 5:1–11)
a. Ananias (At 5:1–6)
b. Safira (At 5:7–11)
7. Os milagres de cura (At 5:12–16)
C. A Perseguição (At 5:17–42)
1. A Detenção e a libertação (At 5:17–20)
2. A liberdade e a consternação (At 5:21–26)
3. A acusação e a resposta (At 5:27–32)
a. A acusação (At 5:27–28)
b. A resposta (At 5:29–32)
4. A sabedoria e a persuasão (At 5:33–40)
a. A reação (At 5:33–34)
b. A sabedoria (At 5:35–39)
c. A persuasão (At 5:40)
5. O regozijo (At 5:41–42)
6. A igreja em Jerusalém, parte 5 (At 6:1–15)
D. O ministério e a morte de Estêvão (At 6:1–8a)
1. A escolha de sete homens (At 6:1–7)
a. O problema e sua solução (At 6:1–4)
b. Posta em ação e resultados (At 6:5–7)
2. A detenção de Estêvão (At 6:8–15)
a. A oposição (At 6:8–10)
b. A detenção e o testemunho (At 6:11–15)
7. A igreja em Jerusalém, parte 6 (At 7:1–8:1a)
3. O discurso de Estêvão (At 7:1–53)
a. Abraão (At 7:1–8)
b. José (At 7:9–16)
c. A preparação de Moisés (At 7:17–22)
Atos (Simon J. Kistemaker) 5
d. A partida de Moisés (At 7:23–29)
e. A missão de Moisés (At 7:30–36)
f. O ensino de Moisés (At 7:37–43)
g. O tabernáculo (At 7:44–50)
h. A aplicação (At 7:51–53)
4. A morte de Estêvão (At 7:54 – 81a)
III. A IGREJA NA PALESTINA (At 8:1b – 11:18)
8. A igreja na Palestina, parte 1 (At 8:1b–40)
A. A perseguição (At 8:1b–3)
B. O ministério de Filipe (At 8:4–40)
1. Em Samaria (At 8:4–25)
a. Proclamando a Cristo (At 8:4–8)
b. Convertendo a Simão (At 8:9–13)
c. Com Pedro e João (At 8:14–17)
d. Opondo-se a Simão (At 8:18–23)
e. Conclusão (At 8:24–25)
2. Ao etíope (At 8:26–40)
a. Viajando (At 8:26–29)
b. Lendo (At 8:30–33)
c. Explicando (At 8:34–35)
d. Batizando (At 8:36–40)
9. A igreja na Palestina, parte 2 (At 9:1–43)
C. A conversão de Paulo (At 9:1–31)
1. Paulo em caminho para Damasco (At 9:1–9)
a. O objetivo (At 9:1–3)
b. O encontro (At 9:4–6)
c. O efeito (At 9:7–9)
2. Paulo em Damasco (At 9:10–25)
a. O chamado (At 9:10–12)
b. A objeção (At 9:13–14)
c. A ordem (At 9:15–16)
d. A resposta (At 9:17–19a)
Atos (Simon J. Kistemaker) 6
e. A propagação (At 9:19b–22)
f. O complô (At 9:23–25)
3. Paulo em Jerusalém (At 9:26–30)
4. Conclusão (At 9:31)
D. O ministério de Pedro (At 9:32–11:18)
1. Milagre em Lida (At 9:32–35)
2. Milagre em Jope (At 9:36–43)
10. A igreja na Palestina, parte 3 (At 10:1–48)
3. O chamado a Pedro (At 10:1–8)
a. As circunstâncias (At 10:1–3)
b. A mensagem (At 10:4–6)
c. A ação (At 10:7–8)
4. A visão de Pedro (At 10:9–23a)
a. A visão (At 10:9–13)
b. As instruções (At 10:14–16)
c. O chamado (At 10:17–20)
d. A recepção (At 10:21–23a)
5. A visita de Pedro a Cesareia (At 10:23b–48)
a. A chegada (At 10:23b–29)
b. A explicação (At 10:30–33)
c. O sermão (At 10:34–43)
d. A reação (At 10:44–48)
IV. A IGREJA NA PALESTINA (At 8:1b – 11:18)
11. A igreja na Palestina, parte 4 (At 11:1–18) e
A igreja em transição, parte 1 (At 11:19–30)
6. A explicação de Pedro (At 11:1–18)
a. A crítica (At 11:1–3)
b. A visão (At 11:4–10)
c. A visita (At 11:11–14)
d. Conclusão (At 11:15–18)
A. O ministério de Barnabé (At 11:19–30)
1. A extensão do evangelho (At 11:19–21)
Atos (Simon J. Kistemaker) 7
2. A missão de Barnabé (At 11:22–24)
3. Os cristãos em Antioquia (At 11:25–26)
4. Predição e cumprimento (At 11:27–30)
12. A igreja em transição, parte 2 (At 12:1–25)
B. Pedro escapa da prisão (At 12:1–19)
1. Preso por Herodes (At 12:1–5)
2. Libertado por um anjo (At 12:6–11)
3. A igreja em oração (At 12:12–17)
4. A reação de Herodes (At 12:18–19)
C. Morte de Herodes Agripa I (At 12:20–25)
13. A igreja em transição, parte 3 (At 13:1–3) e A
primeira viagem missionária, parte 1 (At 13:4–52)
D. Barnabé e Paulo são comissionados (At 13:1–3)
V. A PRIMEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA (At 13:4 – 14:28)
A. Chipre (At 13:4–12)
1. A sinagoga dos judeus (At 13:4–5)
2. Barjesus (At 13:6–12)
B. Antioquia da Pisídia (At 13:13–52)
1. O convite (At 13:13–15)
2. História do Antigo Testamento (At 13:16–22)
3. A Vinda de Jesus (At 13:23–25)
4. A morte e a ressurreição (At 13:26–31)
5. As boas novas de Jesus (At 13:32–41)
6. O convite é renovado (At 13:42–45)
7. Resultados e oposição (At 13:46–52)
14. A primeira viagem missionária, parte 2 (At 14:1–28)
C. Icônio (At 14:1–7)
1. A mensagem é proclamada (At 14:1–3)
2. A divisão (At 14:4–5)
3. A fuga (At 14:6–7)
D. Listra e Derbe (At 14:8–20a)
1. O milagre (At 14:8–10)
Atos (Simon J. Kistemaker) 8
2. A resposta da multidão (At 14:11–13)
3. A reação dos apóstolos (At 14:14–18)
4. A violência (At 14:19–20a)
E. Antioquia da Síria (At 14:20b–28)
1. As igrejas se fortalecem (At 14:20b–25)
2. Relatório a Antioquia (At 14:26–28)
VI. O CONCÍLIO DE JERUSALÉM (At 15:1–35)
15. O Concílio de Jerusalém (At 15:1–35) e A segunda
viagem missionária, parte 1 (At 15:36–41)
A. A cronologia
B. O debate (At 15:1–21)
1. A controvérsia (At 15:1–5)
2. O discurso de Pedro (At 15:6–11)
3. Barnabé e Paulo (At 15:12)
4. O discurso de Tiago (At 15:13–21)
C. A carta (At 15:22–35)
1. Os mensageiros (At 15:22)
2. A mensagem (At 15:23–29)
3. O efeito (At 15:30–35)
VII. A SEGUNDA VIAGEM MISSIONÁRIA (At 15:36–18:22)
A. Voltam a visitar as igrejas (At 15:36–16:5)
1. A separação (At 15:36–41)
16. A segunda viagem missionária, parte 2 (At 16:1–40)
2. Derbe e Listra (At 16:1–5)
B. Macedônia (At 16:6–17:15)
1. O chamado macedônico (At 16:6–10)
2. Filipos (At 16:11–40)
a. A chegada (At 16:11–12a)
b. A adoração (At 16:12b–15)
c. O exorcismo (At 16:16–18)
d. A detenção (At 16:19–21)
e. Os açoites (At 16:22–24)
Atos (Simon J. Kistemaker) 9
f. O terremoto (At 16:25–30)
g. A salvação (At 16:31–34)
h. A partida (At 16:35–40)
17. A segunda viagem missionária, parte 3 (At 17:1–34)
3. Tessalônica (At 17:1–9)
a. A proclamação (At 17:1–4)
b. A reação (At 17:5–9)
4. Bereia (At 17:10–15)
C. Grécia (At 17:16–18:17)
1. Atenas (At 17:16–34)
a. O cenário (At 17:16–18)
b. A solicitude (At 17:19–21)
c. A introdução (At 17:22–23)
d. O conteúdo (At 17:24–28)
e. A aplicação (At 17:29–31)
f. A reação (At 17:32–34)
18. A segunda viagem missionária, parte 4 (At 18:1–22) e
A terceira viagem missionária, parte 1 (At 18:23–28)
2. Corinto (At 18:1–17)
a. O fabricante de tendas (At 18:1–3)
b. O pregador (At 18:4–8)
c. O visionário (At 18:9–11)
d. O acusado (At 18:12–17)
D. A volta a Antioquia (At 18:18–22)
VIII. A TERCEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA (At 18:23–21:16)
A. A Éfeso (Hch 18:23–28)
19. A terceira viagem misionária, parte 2 (At 19:1–41)
B. Em Éfeso (At 19:1–41)
1. O batismo de João (At 19:1–7)
2. O ministério de Paulo (At 19:8–12)
3. O nome de Jesus (At 19:13–20)
4. O plano de Paulo (At 19:21–22)
Atos (Simon J. Kistemaker) 10
5. A ofensa de Demétrio (At 19:23–41)
a. A ofensa (At 19:23–27)
b. O tumulto (At 19:28–31)
c. A confusão (At 19:32–34)
d. O discurso (At 19:35–41)
20. A terceira viagem missionária, parte 3 (At 20:1–38)
C. A Jerusalém (At 20:1–21:16)
1. Através da Macedônia (At 20:1–6)
2. Em Trôade (At 20:7–12)
3. Em Mileto (At 20:13–38)
a. A viagem (At 20:13–16)
b. A declaração (At 20:17–21)
c. O testemunho (At 20:22–24)
d. A advertência (At 20:25–31)
e. A encomenda (At 20:32–35)
f. A partida (At 20:36–38)
21. A terceira viagem missionária, parte 4 (At 21:1–16) e
Em Jerusalém e em Cesareia, parte 1 (At 21:17–40)
4. A viagem (At 21:1–16)
a. A Tiro (At 21:1–6)
b. Em Cesareia (At 21:7–9)
1) A profecia (At 21:10–11)
2) A resposta (At 21:12–14)
c. A Jerusalém (At 21:15–16)
IX. EM JERUSALÉM E EM CESAREIA (At 21:17–26:32)
A. Em Jerusalém (At 21:17–23:22)
1. A chegada de Paulo (At 21:17–26)
a. A recepção (At 21:17–19)
b. A advertência (At 21:20–25)
c. O voto (At 21:26)
2. A detenção de Paulo (At 21:27–36)
a. A acusação (At 21:27–29)
Atos (Simon J. Kistemaker) 11
b. A confusão (At 21:30–32)
c. A intervenção (At 21:33–36)
3. O discurso de Paulo (At 21:37–22:21)
a. A solicitude (At 21:37–40)
22. Em Jerusalém e em Cesareia, parte 2 (At 22:1–30)
b. A educação (At 22:1–5)
c. A conversão (At 22:6–11)
d. A restauração (At 22:12-16)
e. A missão (At 22:17–21)
4. O juízo contra Paulo (At 22:22–23:11)
a. A apelação (At 22:22–29)
b. A acusação (At 22:30)
23. Em Jerusalém e em Cesareia, parte 3 (At 23:1–35)
c. O comparecimento (At 23:1–5)
d. A assembleia (At 23:6–8)
e. O resgate (At 23:9–11)
5. A proteção de Paulo (At 23:12–22)
a. O complô (At 23:12–15)
b. O complô é descoberto (At 23:16-22)
B. Em Cesareia (At 23:23–26:32)
1. Paulo é transferido (At 23:23–35)
a. A ordem (At 23:23–24)
b. A carta (At 23:25–30)
c. A chegada (At 23:31–35)
24. Em Jerusalém e em Cesareia, parte 4 (At 24:1–27)
2. Paulo diante de Félix (At 24:1–27)
a. A introdução (At 24:1–4)
b. A acusação (At 24:5–9)
c. A resposta (At 24:10–16)
d. Os fatos (At 24:17-21)
e. A suspensão e demora (At 24:22–27)
Atos (Simon J. Kistemaker) 12
25. Em Jerusalém e em Cesareia, parte 5 (At 25:1–27)
3. Paulo diante de Festo (At 25:1–12)
a. Jerusalém (At 25:1–5)
b. Cesareia (At 25:6–8)
c. A apelação (At 25:9–12)
4. Paulo e Agripa II (At 25:13–27)
a. Os visitantes identificados (At 25:13–14a)
b. O problema explicado (At 25:14b–22)
c. Paulo apresentado (At 25:23–27)
26. Em Jerusalém e em Cesareia, parte 6 (At 26:1–32)
5. O discurso de Paulo (At 26:1–32)
a. A permissão (At 26:1)
b. O reconhecimento (At 26:2–3)
c. Os antecedentes (At 26:4–8)
d. O propósito (At 26:9–11)
e. A conversão (At 26:12–14)
f. A comissão (At 26:15–18)
g. O testemunho (At 26:19–23)
h. A persuasão (At 26:24–29)
i. A conclusão (At 26:30–32)
X. VIAGEM A E PERMANÊNCIA EM ROMA (At 27:1 – 28:31)
27. Viagem a e permanência em Roma, parte 1 (At 27:1–44)
A. De Cesareia a Malta (At 27:1–44)
1. A Creta (At 27:1–12)
a. Abordando o navio (At 27:1–2)
b. Navegação até Creta (At 27:3–8)
c. Esperando em Creta (At 27:9–12)
2. A tempestade (At 27:13–44)
a. O Nordeste (At 27:13–20)
b. A revelação (At 27:21–26)
c. A sondagem (At 27:27–32)
d. O alento (At 27:33–38)
Atos (Simon J. Kistemaker) 13
e. O naufrágio (At 27:39–44)
28. Viagem a e permanência em Roma, parte 2 (At 28:1–31)
B. De Malta a Roma (At 28:1–31)
1. Em Malta (At 28:1–10)
a. Expressões de amabilidade (At 28:1–6)
b. A amabilidade é retribuída (At 28:7–10)
2. A Roma (At 28:11–16)
3. Prisão em Roma (At 28:17–31)
a. A declaração de Paulo (At 28:17–20)
b. A reação dos judeus (At 28:21–22)
c. A explicação de Paulo (At 28:23–28)
d. A conclusão (At 28:30–31)

Bibliografia Seleta
Atos (Simon J. Kistemaker) 14
ABREVIATURAS

ASV American Standard Version


AUSS Andrews University Seminary Studies
Bauer Walter Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich, y F. W. Danker, A
Greek-English Lexicon of the New Testament, 2a. edición
BEB Baker Encyclopedia of the Bible
Beginnings F. J. Foakes Jackson and Kirsopp Lake eds., The
Beginnings of Christianity
BF British and Foreign Bible Society, The New Testament, 2a. edición
Bib Bíblica
BJ Bíblia de Jerusalém
BibRes Biblical Research
BibToday The Bible Today
BibTr Bible Translator
BJRUL Bulletin of John Rylands University Library of Manchester
BS Biblioteca Sacra
BZ Biblische Zeitschrift
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CJT Canadian Journal of Theology
I Clem. Primera Epístola de Clemente
ConcJourn Concordia Journal
ConcThMonth Concordia Theological Monthly
CT Christianity Today
DHH Dios Habla Hoy
EDT Evangelical Dictionary of Theology
EphThL Efemerides teológicae lovaniensis
Esd. Esdras
EvQ Evangelical Quarterly
ExpT Expository Times
GTJ Grace Theological Journal
Atos (Simon J. Kistemaker) 15
HTR Harvard Theological Review
IDB Interpreter’s Dictionary of the Bible
Interp Interpretation
ISBE International Standard Bible Encyclopedia, ed. rev.
IsrExJ Israel Exploration Journal
JBL Journal of Biblical Literature
JETS Journal of the Evangelical Theological Society
JJS Journal of Jewish Studies
JSNT Journal for the Study of the New Testament
Jth. Judit
JTS Journal of Theologial Studies
Jub. Jubilees
KJV Versión King James (= Versión autorizada)
LB Living Bible
LCL Edición de Loeb Classical Library
lit. literal, literalmente
LXX Septuaginta
Macc. Macabeos
Majority Text Arthur L. Farstad y Zane Hodges, The Greek New
Testament: According to the Majority Text
Merk Agustín Merk, ed., Novum Testamentum Graece et Latine, 9a.
ed. MLB The Modern Language Bible
Moffatt The Bible — A New Translation, James Moffatt
NAB New American Bible
NASB New American Standard Bible
NEB New English Bible
NedTTs Nederlands theologisch tijdschrift
Neotest Neotestamentica
Nes-Al Eberhard Nestle y Kurt Aland, Novum Testamentum Graece,
26a. edición
NIDNTT Nuevo Diccionario Internacional de Teología del Nuevo
Testamento NVI Nueva Versión Internacional
Atos (Simon J. Kistemaker) 16
NKJV New King James Version
NovT Novum Testamentum
n.s. serie nueva
NTS New Testament Studies
NIV New International Version
NVI Nova Versão Internacional
PEQ Palestine Exploration Quarterly
Phillips The New Testament in Modern English, J. B. Phillips
RefThR Reformed Theological Review
RelStudRev Religious Studies Review
ResQ Restoration Quarterly
IQS Manual of Discipline
RB Revue biblique
RevThom Revue thomiste
RSPT Revue des sciences philosophiques et théologiques
RSV Revised Standard Version
RV Revised Version
SB H. L. Strack y P. Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament
aus Talmud und Midrasch
SEB Simple English Bible
SecCent Second Century
Sir. Sirach
Talmud Talmud babilónico
TDNT Theological Dictionary of the New Testament
Thayer Joseph H. Thayer, Greek-English Lexicon of the New
Testament
TheolZeit Theologische Zeitschrift
Tob. Tobías
TynB Tyndale Bulletin
VigChr Vigiliae christianae
VoxRef Vox Reformata
Wis. Wisdom of Solomon
Atos (Simon J. Kistemaker) 17
WTJ Westminster Theological Journal
ZNW Zeitschrift für die Neutestamentliche Wissenschaft
ZPEB Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible
Atos (Simon J. Kistemaker) 18
PREFÁCIO

Com este volume completa-se a sequência dos quatro Evangelhos e


Atos no Comentário do Novo Testamento. Meu predecessor, o Dr.
William Hendriksen escreveu o comentário ao Evangelho de Lucas e eu
tenho o especial privilégio de apresentar a nossos leitores o de Atos.
Embora eu tenha adotado o formato do Hendriksen, é evidente que difiro
dele em estilo e apresentação.
Ao trabalhar no comentário de Atos, sempre tive em mente as
necessidades do pastor e do mestre das Escrituras. Por isso procurei dar
uma adequada descrição dos tempos históricos, as influências culturais e
os aspectos geográficos mencionados pelo escritor de Atos. Com
frequência, e por questão de limitações de espaço, vi-me forçado a
resumir as alegações por escrito em assuntos históricos, culturais e
linguísticos. Estes temas deixei para serem tratados com maior
profundidade pelas publicações eruditas. Minha preocupação foi
permanecer no texto e explicá-lo o mais claramente possível.
As seções Palavras, frases e construções gregas, dão uma ajuda
básica para a melhor compreensão do texto. Foram situadas de forma
separada para que o leitor que não tem um conhecimento do grego não se
sinta desanimado e para que o pastor e o mestre que conhecem a
gramática grega recebam a assistência adequada para compreender
melhor esta porção das Escrituras.
Interessa-nos ajudar o leitor a receber luz nos aspectos doutrinais e
práticos de determinadas passagens. Embora Lucas tenha escrito uma
história da igreja e não um discurso doutrinal, Atos possui uma decidida
ênfase teológica; por esta razão, resumi a teologia de Atos na Seção F da
Introdução e em seções separadas através deste comentário.
Estou dando aos leitores minha própria tradução de Atos. Onde
quer que o considerei pertinente, conservei a interpretação do Texto
ocidental (como por exemplo, na porção de At 24:6–8); onde não foi
necessário, prescindi dele.
Atos (Simon J. Kistemaker) 19
Espero que este comentário seja uma bênção para o pastor e o
estudante da Bíblia na proclamação e ensino das riquezas da Palavra de
Deus.

Primavera de 1990

Simón J. Kistemaker
Atos (Simon J. Kistemaker) 20
INTRODUÇÃO

Em longitude, Atos supera a quase todos os livros do cânon do


Novo Testamento. Com seus vinte e oito capítulos e seus 1.007
versículos, constitui uma ponte iniludível entre os Evangelhos e as
Epístolas. Sem dúvida que sem Atos, o cânon estaria incompleto. É a
continuação dos relatos dos Evangelhos e estabelece a base para a
literatura epistolar.

A. Título

O título de Atos, agregado provavelmente no século II, é


problemático em vários aspectos. Algumas traduções usam a designação
Atos dos Apóstolos, a qual é respaldada pelos pais da igreja primitiva. 1
Mas, além de dar uma lista dos doze apóstolos no capítulo 1, Lucas trata
só os ministérios de Pedro e de Paulo. Claro, João acompanha Pedro ao
templo “na tarde a orar” (At 3:1) e a Samaria (At 8:14), mas Lucas não
registra nem palavras nem fatos específicos de João. Obviamente, este
título descritivo do livro é muito amplo. A sugestão de recorrer ao nome
Atos de Pedro e Paulo tampouco foi acolhida favoravelmente porque
Lucas também relata os ministérios de Estêvão, Filipe, Barnabé, Silas e
Timóteo.
Uma tentativa de designar este livro Os Atos do Espírito Santo
também falhou em conseguir apoio. 2 Não obstante a ênfase de Lucas no
derramamento do Espírito Santo em Jerusalém (At 2:1–4), Samaria (At
8:17), Cesareia (At 10:44–46) e Éfeso (At 19:6), o conteúdo do livro é
muito mais amplo que o que o título sugerido comunica. Ainda mais, no

1
Irineu Contra heresias 3.13.3; Clemente de Alexandria Stromata 5.82; Tertuliano O jejum 10. Os
códices Sinaítico, Vaticano e Beza também usam estas formas. Alguns manuscritos de menor
importância dizem: “Acts of the Holy Apostles” e “Acts of the Holy Apostles of Luke the Evangelist”.
2
Cf. John Alberto Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols.
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 512.
Atos (Simon J. Kistemaker) 21
primeiro versículo de Atos, Lucas sugere que o que ele está escrevendo é
uma continuação de seu Evangelho. Diz que sua primeira obra é um livro
de “todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar” (At 1:1). Por
implicação está dizendo que em Atos Jesus continua sua obra. A ênfase,
então, não cai tanto no Espírito Santo como no que Jesus faz para
desenvolver a igreja em Jerusalém, Samaria, Ásia Menor, Grécia e Itália.
Mas ainda há outra sugestão: chamar o livro simplesmente Atos. 3 A
brevidade deste título é atrativa. No entanto, embora evite as objeções
que se levantam com relação aos outros nomes, Atos carece de sentido
descritivo e inclusive de colorido. Antigos escritores usaram com
frequência a expressão Atos para descrever as obras de conotados heróis,
incluindo Ciro e Alexandre, o Grande. 4 Portanto, o título de Atos, curto
ou longo, cria também problemas.
A sequência Lucas–Atos saída da mão de Lucas pode comparar-se
com a sequência das duas cartas de Paulo aos coríntios. A diferença, no
entanto, é que os cristãos no século I localizaram o “primeiro livro” de
Lucas com os Evangelhos e Atos o consideraram uma história da igreja;
por tal motivo, colocaram-no na categoria de livros históricos. Em
resumo, Atos relata a história da igreja primitiva.

B. Fontes

1. Seletividade

É Lucas um historiador que apresenta uma descrição completa do


desenvolvimento da igreja primitiva? Não, porque oferece somente um
quadro do crescimento da igreja que nasce em Jerusalém e se move em
direção norte e oeste. Relata o que ocorre na Palestina, Síria, Ásia
Menor, Macedônia e Grécia, e Roma, mas omite o que acontece no resto
3
NIV, SEB.
4
Xenofonte Ciropedia 1.2.16; Diógenes Laercio 2.3; Diódoro de Sicilia 16.1.1; Josefo Antigüedades
14.4.3 [68].
Atos (Simon J. Kistemaker) 22
do mundo. Passa por alto uma série de nomes de países que inclui numa
lista que aparece em At 2:9–11. Pessoas daqueles países tinham vindo a
Jerusalém para celebrar a festa do Pentecostes, ouviram a proclamação
do evangelho e voltaram aos seus países de origem. Mas ao descrever o
desenvolvimento da igreja, Lucas segue uma rota que o leva aos países
localizados a norte e a oeste de Jerusalém, deixando de lado o que
acontece nos países do sul e do este de Israel.
Além disso, de todo o material disponível, Lucas seleciona só certos
fatos, e quando os descreve o faz de forma deliberadamente breve. Por
exemplo, a forma em que relata a morte de Ananias e Safira (At 5:1–11)
dá origem a numerosas perguntas por causa, precisamente, de sua
brevidade; conta que Pedro, como dirigente da igreja de Jerusalém,
simplesmente se retira a outro lugar (At 12:17); e diz que na conclusão
do segunda viagem missionária de Paulo, este “subiu para saudar a
igreja”. Por implicação, entende-se que se trata de Jerusalém (At 18:22).
Os historiadores no mundo antigo “foram compelidos a fixar limites bem
estritos ao material narrativo que chegou a eles pela tradição oral e
outras fontes escritas”. 5

2. Tradição

Lucas teve que ser breve à vista da riqueza do material e a longitude


do período que abrange. Se localizarmos a ascensão de Jesus (descrita
em At 1:9–11) no ano 30 d.C. e a libertação de Paulo da casa onde estava
detido ao redor do ano 63 d.C. resulta que Atos cobre um período de
trinta e três anos. É interessante que Lucas relata que Jesus começou Seu
ministério público quando tinha ao redor de 30 anos de idade (Lc. 3:23),
e que durou três anos. Assim, o período que cobre é também de trinta e

5
Martin Hengel, Acts and the History of Earliest Christianity, trad. por John Bowden (Filadélfia:
Fortress, 1980), p. 10.
Atos (Simon J. Kistemaker) 23
três anos. Por conseguinte, Lucas e Atos cobrem um período de sessenta
e seis anos.
Devido ao fato de que Lucas e Atos são um relato contínuo, as
palavras de introdução a um também são aplicáveis ao outro. Lucas
escreve que a informação foi dada “por testemunhas oculares e ministros
da palavra” (Lc 1:2). Assim que enquanto reuniu seu material para o
Evangelho dos apóstolos e outras testemunhas oculares, os dados para a
composição de Atos ele os obteve de Pedro, Paulo, Tiago, Silas e
Timóteo. Em Atos revela, pelo uso dos pronomes nós e nossos, que ele
mesmo foi uma testemunha ocular. 6 Indica que estava em Jerusalém
quando Paulo foi detido e que se reuniu ali com Tiago e os anciãos (At
21:17–18). Podemos assumir que durante a prisão de Paulo, teve
suficiente tempo para reunir material de testemunhas oculares que lhe
falaram do nascimento e crescimento da igreja de Jerusalém e como se
foi estendendo sua influência. De Pedro e de Paulo pôde conseguir
numerosos relatos que colocou numa sequência mais ou menos
cronológica. Teve Lucas acesso a documentos escritos? Estiveram
disponíveis de forma escrita os sermões de Pedro, Estêvão, Paulo e
outros? Não temos evidência que tenha contado com este tipo de fontes e
qualquer estudioso que tente afirmar o contrário deverá necessariamente
trabalhar sobre hipótese. 7 O Evangelho de Lucas pode ser comparado
com os outros Evangelhos canônicos, mas Atos como relato histórico é
único no Novo Testamento: é o único livro de história da igreja primitiva
no cânon.

6
Veja-se At 16:10–17; 20:5–21:18; 27:1–28:16. Estas passagens se referem ao segundo e à terceira
viagem missionária de Paulo como a sua travessia a Roma.
7
Jacques Dupont conclui que: “Apesar das investigações tão cuidadosas e detalhadas que se têm feito,
não foi possível individualizar nenhuma das fontes usadas pelo escritor de Atos de uma forma que
pudesse satisfazer as diferentes posições dos críticos”. The Source of the Acts, trad. por Kathleen Pond
(Nova York: Herder e Herder, 1964), p. 166.
Atos (Simon J. Kistemaker) 24
3. Testemunhas oculares

Quando Lucas ouviu as testemunhas oculares que lhe falaram dos


eventos que ocorreram começando com as aparições e a ascensão de
Jesus, certamente tomou nota por escrito. Posteriormente editou essas
notas conseguidas através de entrevistas pessoais. 8 Menciona muitas
pessoas de uma forma tal que sugere um conhecimento pessoal deles.
Segundo a tradição respaldada pelo prólogo antimarcionita da segunda
metade do século II e por Eusébio, Lucas é oriundo de Antioquia da
Síria. 9 Ali desenvolveu amizade com Barnabé, a quem os apóstolos
tinham enviado para ajudar a nascente igreja de Antioquia (At 11:22).
Descreve a Barnabé como “um bom homem, cheio do Espírito Santo”
(At 11:24). Por sua conexão com Antioquia, descreve Nicolau como um
cidadão de Antioquia e convertido ao judaísmo (At 6:5). Além disso, dá
alguns detalhes relacionados com os profetas e mestres de Antioquia:
Barnabé, Simão chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, aquele que
tinha sido criado com Herodes o tetrarca, e Saulo (At 13:1). É possível
que em Antioquia ele se encontrou com Judas, chamado Barsabás, e com
Silas (At 15:22, 32); embora seja seguro que chegou a conhecer Silas em
Filipos (At 16:19–40). Ali também conheceu Lídia, a vendedora de
púrpura de Tiatira (At 16:14).
Em Cesareia, hospedou-se na casa de Filipe o evangelista (At 21:8;
e veja-se At 6:5). É lógico pensar que deste recebeu informação a
respeito dos começos e desenvolvimento da igreja em Samaria (At 8:5–
25), a conversão do eunuco etíope (At 8:26–40) e a aceitação da família
de Cornélio na igreja em Cesareia (At 10:1–11:18). Em Jerusalém travou
amizade com João Marcos, cuja mãe, Maria, tinha uma casa grande (At
12:12). Possivelmente ali conheceu Rode, a menina faxineira que se
menciona em At 2:13.
8
Colin J. Hemer, “Luke, the Historian”, BJRUL 60 (1977–78): 49. Veja-se seu Book of Acts in the
Setting of Hellenistic History, ed. por Conrad H. Gempf (Tubingen: Mohr, 1989), pp. 335–36.
9
Eusébio História Eclesiástica 3.4.6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 25
Em Atos, Lucas cita pelo nome a mais de cem pessoas e inclusive a
alguns acrescenta seus títulos. Por exemplo, assinala que Sérgio Paulo
era procônsul em Chipre (At 13:7) e que Gálio era procônsul em Acaia
(At 18:12). 10 Inscrições arqueológicas dão fé da veracidade destes
títulos. Se na atualidade muitos funcionários de nossos governos
permanecem em seus cargos por não mais de um ano ou dois, temos que
reconhecer que só um historiador muito sagaz é capaz de levar um
controle tão preciso sobre esta matéria. Na verdade, Lucas aparece como
um historiógrafo especialmente meticuloso.
Em numerosas ocasiões, ao mencionar as cidades ou províncias de
origem, Lucas revela os lugares onde certas pessoas viviam: Áquila,
originário do Ponto, com Priscila sua mulher, tinham sido forçados a sair
de Roma e se estabeleceram em Corinto (At 18:1–2). Tício Justo vivia
porta contígua à sinagoga de Corinto (At 18:7); Crispo era o principal
daquela sinagoga (At 18:8; veja-se também 1Co 1:14); e Sóstenes foi o
sucessor de Crispo (At 18:17; 1Co. 1:1). Descreve com luxo de detalhes
a Apolo, oriundo de Alexandria e homem erudito (At 18:24–26). Conta
que em Trôade conheceu Sópatro, filho de Pirro, oriundo de Bereia, a
Aristarco e a Segundo de Tessalônica, a Gaio e a Timóteo de Derbe, a
Tíquico e a Trófimo, da província da Ásia (At 20:4).
Especialmente detalhada é a informação geográfica que dá,
sobretudo a que tem relação com as viagens de Paulo; cita não menos de
cem nomes de lugares em Atos. Como companheiro de Paulo no final da
terceira viagem missionária, menciona todos os lugares ao longo da rota
entre a Grécia e Jerusalém e o tempo que permaneceram em cada lugar.
Paulo passou três meses na Grécia (At 20:3), cinco dias viajando a
Trôade, e sete permaneceu ali (At 20:6). No primeiro dia da semana,
Paulo adorou com seus companheiros em Trôade (At 20:7), foi a pé a

10
Kirsopp Lake, “The Chronology of Acts”, Beginnings, vol. 5, pp. 445–74. “Parece que o período
normal de serviço era de um ano, mas dois não era fora do normal” (p. 463). Veja-se também A. N.
Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963; reimpresión Grand
Rapids: Baker, 1978), pp. 99–107.
Atos (Simon J. Kistemaker) 26
Assôs enquanto outros o faziam em bote. Escreveu detalhes da viagem
cada dia enquanto iam pela costa oeste da Ásia Menor rumo aos portos
de Tiro, Ptolemaida e Cesareia (At 20:15, 16; 21:1–8). De novo oferece
uma detalhada referência ao tempo em que Paulo esteve em Jerusalém e
a detenção, sua viagem durante a noite a Cesareia e sua captura ali (Atos
21–26). Por último, com muitos termos náuticos, climáticos e
geográficos faz um relato fidedigno da viagem de Paulo a Roma (Atos
27–28). 11
Em resumo, a apresentação de Lucas quanto a dados históricos e
geográficos é excepcional. Fica claro que em muitos episódios que inclui
em seu livro, ele mesmo é testemunha ocular. E onde não esteve
presente, consultou com pessoas que estiveram na cena e pôde dar um
relato absolutamente confiável das coisas que realmente ocorreram. 12
Lucas começa o livro de Atos com o pronome Eu da primeira
pessoa do singular (At 1:1). Na segunda metade do livro usa a primeira
pessoa do plural nós. Pelo fato de que o estilo é o mesmo do princípio ao
fim do livro, chegamos à conclusão que os pronomes pessoais se referem
ao escritor deste livro. Ainda mais, os primeiros receptores de Atos eram
amigos de Paulo e seu companheiro na obra, Lucas (Cl 4:14; 2Tm 4:11;
Fm 24) e puderam certificar a veracidade dos informes tanto histórica
como geograficamente. Os membros das igrejas de Éfeso e Colossos
conheceriam os nomes dos lugares que Lucas menciona com relação às
viagens de Paulo ao longo das costas oeste e sul da Ásia Menor. Teriam
rejeitado o livro como fraudulento se Lucas tivesse apresentado ficção
em lugar de fatos reais. Os críticos afirmam que o escritor de Atos
decidiu usar o pronome “nós” “para deixar claro que ele mesmo formou

11
Angus Acworth, “Where Was St. Paul Shipwrecked? A Reexamination of the Evidence”, JTS n.s.
24 (1973): 190–93; e Colin J. Hemer, “Euraquilo and Melita”, JTS n.s. 26 (1975); 100–111. Consulte-
se também Colin J. Hemer, “First Person Narrative in Acts 27–28”, TynB 36 (1985); 79–109.
12
Consulte-se W. Ward Gasque, “The Historical Value of the Book of Acts. The Perspective of
British Scholarship”, TheolZeit 28 (1972); 177–96. Veja-se também W. Ward Gasque, “The Historical
Value of the Book of Acts. An Essay in the History of New Testament Criticism”, EvQ 41 (1969): 68–
88.
Atos (Simon J. Kistemaker) 27
13
parte das viagens de Paulo”. Não se pôde provar que o próprio Lucas
não tenha sido uma testemunha ocular do que conta.
Chegamos à conclusão, portanto, que Lucas dependeu não só de
fontes escritas mas também da tradição oral, que recebeu de pessoas que
tiveram um conhecimento pessoal dos acontecimentos que tinham
ocorrido.

C. Discursos

Lucas pode expressar-se num excelente grego, mas em Atos varia


na seleção de palavras com referência ao lugar. Reflete a dicção, o
vocabulário e a cultura da região que descreve. Assim que, nos capítulos
onde descreve a Palestina (Atos 1–15), seu grego tem um interessante
colorido aramaico. A segunda parte do livro (Atos 16–28) pinta um
ambiente gentílico e é escrito num grego fluido que, por momentos,
rivaliza com o grego clássico. Por exemplo, das sessenta e sete vezes que
no Novo Testamento aparece o modo optativo, dezessete encontram-se
em Atos. Estas dezessete citações aparecem principalmente na segunda
parte do livro e com frequência provêm dos lábios de pessoas que
conhecem o grego muito bem. 14

1. Classificação

Atos está cheio de discursos diretos que constituem perto da metade


de todo o livro. Contando tanto os breves como os extensos,

13
Martin Dibelius, Studies in the Acts of the Apostles (Londres: SCM, 1956), p. 105. Veja-se também
Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble y Gerald Shinn
(Filadelfia: Westminster, 1971), p. 85. Haenchen chama o uso de “nós” em Atos, “o embelezamento
de último minuto do autor”. Consulte-se Hanz Conselmann, Acts of the Apostles, trad. por James
Limburg, A. Thomas Kraabel, e Donald H. Juel (1963; Filadélfia: Fortress, 1987), p. xxxix.
14
Filósofos gregos em Atenas (At 17:18), Paulo no areópago (At 17:27 [duas vezes]), o governador
Festo (At 25:16 [duas vezes], o discurso de Paulo diante do rei Agripa (At 26:29). Os outros casos
estão em At 5:24; 8:20, 31; 10:17; 17:11; 20:16; 21:33; 24:19; 27:12, 39.
Atos (Simon J. Kistemaker) 28
encontramos pelo menos vinte e seis discursos. Por um lado são
pronunciados pelos apóstolos e os dirigentes cristãos, e pelo outro, pelos
não cristãos (judeus e gentios). Lucas apresenta oito discursos atos por
Pedro, 15 um longo sermão de Estêvão diante do Sinédrio (At 7:2–53),
uma breve explicação de Cornélio (At 10:30–33), um curto discurso de
Tiago no Concílio de Jerusalém (At 15:13–21), o conselho a Paulo feito
por Tiago e os anciãos em Jerusalém (At 21:20–25), e nove sermões e
discursos de Paulo. 16 Os outros discursos foram pronunciados por
Gamaliel, o fariseu (At 5:35–39), Demétrio, o ourives (At 19:25–27), o
escrivão de Éfeso (At 19:35–40), Tértulo, o advogado (At 24:2–8), e
Festo, o governador (At 25:24–27). 17 Além disso, Lucas registra o texto
de duas cartas: uma do Concílio de Jerusalém dirigida às igrejas
gentílicas (At 15:23–29), e a outra, escrita por Cláudio Lísias ao
governador Félix (At 23:27–30).
Estes discursos dão ao livro de Atos uma fascinação muito especial,
porque quando as pessoas falam, aprendemos algo a respeito de suas
respectivas personalidades. Lucas descreve as pessoas tais como são, de
modo que quando lemos os seus discursos, podemos conhecê-las. Ele
escutou a Paulo proclamar as Boas Novas em Filipos, seu discurso aos
anciãos de Éfeso, seu discurso em Jerusalém, sua defesa diante de Félix
e sua defesa diante de Festo e Agripa. É possível presumir que foi
diretamente de Paulo que Lucas recebesse o estilo do sermão que aquele
pregou em Antioquia da Pisídia tanto como seu discurso no Areópago.
De Pedro obteve informação sobre seus discursos breves no cenáculo, no
Pentecostes, perto do Pórtico de Salomão, diante do Sinédrio, e no
Concílio de Jerusalém. Talvez Paulo e outras testemunhas proveram a
informação relacionada com o discurso de Estêvão diante do Sinédrio.

15
At 1:16–22; 2:14–36, 38–39; 3:12–26; 4:8–12, 19–20; 5:29–32; 10:34–43; 11:5–17; 15:7–11.
16
At 13:16–41; 14:15–17; 17:22–31; 20:18–35; 22:1–21; 24:10–21; 26:2–23, 25–27; 27:21–26;
28:17–20.
17
H. J. Cadbury, “The Speeches in Acts”, Beginnings, vol. 5, p. 403. Veja-se também John Navonne,
“Speeches in Hechos”, BibToday 65 (1973); 1114–17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 29
Se obteve sua informação de testemunhas oculares, reproduz Lucas
os discursos com a fidelidade com que eles e outros o fizeram? Como é
de supor-se, o contexto revela que os discursos são apresentados de
forma resumida. Mas são estes resumos ajustados aos fatos, ou foram
postos como uma criação literária nos lábios dos oradores? Alguns
estudiosos são da opinião de que são criação do escritor de Atos. Para
reforçar sua opinião, trazem a lume o historiador grego Tucídides e
afirmam que Lucas adotou sua metodologia. Tucídides afirmou que ao
compor seus discursos “se ajustou o mais que pôde ao sentido geral do
que na verdade se disse”. 18 A aparente intenção deste antigo escritor é
deixar estabelecido que os discursos que ele escreveu eram
historicamente exatos e não produtos de sua própria imaginação. Mesmo
quando as palavras do Tucídides foram tema de muito debate, 19
prevalece a tendência de dar a esta declaração um valor relativo. A tarefa
do antigo historiador foi fazer uma relação dos acontecimentos tal como
ocorreram. Falou de fatos, não de ficção.
Se pusermos atenção às próprias palavras de Lucas no prefácio de
seu Evangelho, dar-nos-emos conta que relata as coisas que ocorreram e
que se aceitou como verdadeiras (Lc 1:1). Assim, no começo de seus
escritos, informa ao leitor que seus relatos, no papel de historiador,
ajustam-se à verdade dos fatos.
O assunto que preocupa os estudiosos é se nesta recontagem
histórica está se fazendo uma apresentação verídica. São os discursos
que ele mesmo não ouviu com seus próprios ouvidos reproduzidos com
exatidão? Esta pergunta pode ser respondida lendo e comparando os
discursos de Pedro com os escritos de Pedro e os discursos de Paulo com
as epístolas que ele escreveu.
18
Tucídides História da guerra do Peloponeso 1.22.1.
19
Veja-se Dibelius, Studies in the Acts of the Apostles, p. 141, expressa dúvidas; e W. Ward Gasque
aceita a afirmação como autêntica, em “The Speeches of Acts: Dibelius Reconsidered”, New
Dimensions in New Testament Study, ed. Richard N. Longenecker e Merrill C. Tenney (Grand Rapids:
Zondervan, 1974), pp. 243–44. Compare-se T. F. Glasson, “Speeches in Acts and Thucydides”, ExpT
76 (1964–65): 165.
Atos (Simon J. Kistemaker) 30
2. Pedro

Nas discursos breves de Pedro, Lucas apresenta de forma


consistente as construções gramaticais do grego que parecem revelar a
pouca habilidade do orador para falar correntemente e de forma correta.
Em traduções literais, as construções incoerentes são óbvias. A seguir
temos dois exemplos, o primeiro tomado da ocasião em que Pedro se
dirige aos judeus no templo; e o segundo, do sermão que Pedro pregou
na casa de Cornélio:
“Pela fé em o nome de Jesus, é que esse mesmo nome fortaleceu a
este homem que agora vedes e reconheceis; sim, a fé que vem por meio
de Jesus deu a este saúde perfeita na presença de todos vós.” [At 3:16]. 20
“Esta é a palavra que Deus enviou aos filhos de Israel, anunciando-
lhes o evangelho da paz, por meio de Jesus Cristo. Este é o Senhor de
todos. Vós conheceis a palavra que se divulgou por toda a Judéia, tendo
começado desde a Galiléia, depois do batismo que João pregou” [At
10:36–37]. 21
Estas orações torcidas se parecem com alguns dos versículos nos
escritos de Pedro, nos quais é preciso suprir palavras para completar as
cláusulas que permitam ter uma imagem correta do que Pedro quis dizer.
No seguinte exemplo, usamos letra itálico para maior clareza: “Se
alguém fala, fale como oráculos de Deus; se alguém ministra, ministre
como da força que Deus dá” [1Pe 4:11, TB]
Um exemplo tomado da segunda epístola de Pedro demonstra a
dificuldade do escritor em expressar-se com clareza e correção:
“Pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus e a
terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste; pelas quais
coisas pereceu o mundo de então, coberto com as águas do dilúvio” [2Pe
3:5b–6, RC].
20
Para a análise sobre uma possível tradução de um texto aramaico, consulte-se F. J. Foakes Jackson e
Kirsopp Lake, “The Internal Evidence in Acts”, Beginnings, vol. 2, pp. 141–42.
21
Consulte-se Max Wilcox, The Semitisms of Acts (Oxford: Clarendon, 1965), pp. 151–53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 31
Outro aspecto que revela esta mesma semelhança são as palavras
que Pedro escolhe em seus sermões e cartas. Ao examiná-las,
encontramos alguns exemplos que não só no grego mas também na
tradução são chocantes:

Atos 1 Pedro

entregue pelo determinado segundo a presciência de


conhecimento de Deus conselho e antecipado de Deus
[At 2:23] [1Pe 1:2]

por Juiz de vivos e mortos para julgar os vivos e os


[At 10:42] mortos [1Pe 4:5]

Quando Pedro fala com a família de Cornélio, diz a seus ouvintes


gentios que “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10:34). Logo repete
este mesmo pensamento embora de forma levemente diferente quando
fala no Concílio de Jerusalém em favor de admitir aos gentios como
membros da igreja. Aí diz que Deus “não estabeleceu distinção alguma
entre nós e eles” (At 15:9). Finalmente, em 1 Pedro ele escreve que Deus
“sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um” (1Pe
1:17). Além disso, quando proclama as Boas Novas à multidão no
Pórtico de Salomão, dá instruções às pessoas para que se arrependam a
fim de apressar a vinda de Cristo (At 3:19–21). Esse mesmo sentimento
o expressa numa breve frase que encontramos em 2 Pedro: “que pessoas
vos convém ser em santo trato e piedade, aguardando e apressando-vos
para a vinda do Dia de Deus” (2Pe 3:11b–12a, RC).
Temos que admitir que os paralelos e semelhanças que notamos nos
discursos e nas cartas de Pedro não são mais que palha no vento. 22 E nos

22
Cadbury expressa cepticismo com relação a estes paralelos. “The Speeches in Acts”, Beginnings,
vol. 5, p. 413.
Atos (Simon J. Kistemaker) 32
damos conta que o vocabulário de Lucas é muito mais amplo e extenso
em seu alcance que as palavras que usamos para estas comparações. No
entanto, nestes discursos Pedro se apresenta tal como o conhecemos
pelos Evangelhos e as epístolas.

3. Paulo

Em suas epístolas, Paulo faz referência aos nomes e circunstâncias


que Lucas menciona em Atos. Lucas descreve o primeiro encontro de
Paulo com o fabricante de tendas Áquila e sua esposa Priscila (At 18:2).
Em várias de suas cartas, Paulo menciona pelo nome esta fiel casal (Rm
16:3; 1Co 16:19; 2Tm 4:19). Lucas menciona os nomes de Crispo,
Sóstenes e Apolo com referência a Corinto (At 18:8, 17, 24). E com
frequência aparecem também estes nomes nas epístolas de Paulo. 23
Em Atos, Lucas conta como Paulo escolheu Silas e Timóteo para
que o acompanhassem como colaboradores (At 15:40; 16:1–3). Em suas
cartas às igrejas, Paulo os reconhece como pregadores do evangelho
(2Co 1:19; 1Ts 1:1; 2Ts 1:1). Alguns dos outros nomes mencionados
tanto em Atos como nas epístolas de Paulo são Barnabé, Tiago, Marcos,
Tíquico, Aristarco e Trófimo.
Além disso, Paulo lembra a Timóteo as coisas que lhe ocorreram
em Antioquia da Pisídia, em Icônio e em Listra (2Tm 3:11): as
perseguições e apedrejamentos que teve que suportar nestes lugares (At.
13:14, 50–51; 14:4–6, 19; veja-se também 2Co 11:25). E em suas cartas
aos tessalonicenses, enfaticamente faz referência às perseguições que os
crentes tinham tido que suportar de seus próprios concidadãos, aqueles
que tinham sido incitados pelos judeus do lugar. Estes judeus tiveram
êxito em expulsá-lo da cidade de Tessalônica e em bloquear seus
esforços por levar a mensagem de salvação aos gentios (1Tes 2:14–16;
veja-se At 17:1–9). Concluímos desta análise que há conexão entre os

23
1Co. 1:1, 12, 14; 3:4, 5, 6, 22; 4:6; 16:12; Tt 3:13.
Atos (Simon J. Kistemaker) 33
relatos de Atos e as referências cruzadas às epístolas de Paulo. Paulo,
então, corrobora a evidência histórica que Lucas apresenta em Atos.
É possível detectar aspectos deste ensino epistolar nos sermões e
discursos de Paulo. Quando pregou na sinagoga de Antioquia da Pisídia,
ele terminou seu sermão mencionando a doutrina da justificação: “E, por
meio dele, todo o que crê é justificado de todas as coisas das quais vós
não pudestes ser justificados pela lei de Moisés” (At 13:39). A doutrina
da justificação Paulo a expõe em suas epístolas aos romanos, aos gálatas,
e aos efésios. 24 No ensino de seus sermões e cartas esta doutrina é
fundamental. Parece que o sermão que Paulo pregou em Antioquia da
Pisídia serviu de modelo para o ensino do evangelho em outros lugares
mas que Lucas não registrou resumos de sermões.
As palavras de despedida que Paulo dirige aos anciãos de Éfeso nas
praias de Mileto têm uma quantidade de frases que aparecem também em
suas epístolas. Eis aqui algumas como ilustração:

servindo ao Senhor com servindo ao Senhor [Rm 12:11] com


toda humildade [At 20:19] toda humildade e mansidão [Ef 4:2]

contanto que acabe a acabei a carreira [2Tm 4:7]


minha carreira [At 20:24]

o ministério que recebi atenta para o ministério que


do Senhor [At 20:24] recebeste no Senhor [Cl 4:17]

Embora Lucas apresenta uma quantidade de sermões e discursos de


Paulo, parece não ter conhecimento das epístolas paulinas. Em nenhum
lugar relata que Paulo escreveu cartas às igrejas. Apesar disso, podemos

24
Rm. 3:20–21, 28; Gl. 3:16; Ef. 2:9. Ao rejeitar que tenha sido Lucas o escritor de Atos, Jürgen
Roloff diz que em geral os discursos que o escritor põe nos lábios de Paulo não têm nada em comum
com a teologia paulina e as características de suas epístolas. Die Apostelgeschichte, série Das Neue
Testament Deutsch, vol. 5 (Gotinga: Vandenhoeck y Ruprecht, 1981), p. 3. Veja-se Hemer, Book of
Acts, p. 426.
Atos (Simon J. Kistemaker) 34
supor que Lucas estava consciente da existência e influência destes
escritos na igreja. Como podemos explicar este fenômeno tão peculiar?
A resposta deveria ser buscada nos respectivos propósitos de Paulo e de
Lucas. Paulo escreveu epístolas teológicas e pastorais para corrigir,
repreender, exortar e ensinar. Normalmente a origem de suas cartas
estava nas controvérsias ou perguntas que surgiam nas igrejas. O
propósito de Lucas ao escrever Atos, no entanto, é diferente. Ele escreve
para apresentar um relato histórico do nascimento, desenvolvimento e
crescimento da igreja. Sem a presença de Atos, teria havido um vazio no
cânon do Novo Testamento; por isso é que Atos é a ponte entre os quatro
Evangelhos e as epístolas de Paulo, Pedro, João, Tiago, Judas e a
Epístola aos Hebreus. (Apocalipse serve como pedra-chave das
Escrituras.) Devido ao seu propósito de apresentar a história da nascente
igreja, Lucas se separa das epístolas teológicas de Paulo e prefere dar um
dado cronológico do ministério do apóstolo.

4. Estêvão

O discurso mais longo em Atos é aquele que Estêvão pronunciou


diante dos membros do Sinédrio (At 7:2–53). Nele Estêvão traça a
história do povo de Israel desde o tempo de Abraão até o do templo de
Salomão. Mas o discurso é muito mais que uma crônica de
acontecimentos históricos. Bem como o escritor da Epístola aos Hebreus,
Estêvão se revela como um perito teólogo que conhece bem as
Escrituras, e que pode delinear com certeza as conclusões implícitas
nelas. Diz que Deus não é um Deus confinado a um templo feito por
mãos humanas: que Deus Se revelou a Si mesmo a Abraão na
Mesopotâmia, a José no Egito, e a Moisés na sarça ardendo. Prova que
os judeus não podem restringir a habitação de Deus ao templo de
Jerusalém.
Atos (Simon J. Kistemaker) 35
Em seu discurso Estêvão desenvolve os temas teológicos de Deus, a
adoração, a lei, a aliança, e a pessoa e mensagem do Messias. Através da
obra do Messias, a casa de Israel está em condições de adorar a Deus em
verdade e em justiça. Estêvão evita mencionar o nome de Jesus, mas
ensina que Deus levantou o Salvador da casa de Israel.
Não é possível assegurar de quem recebeu Lucas a substância do
discurso de Estêvão. Supomos que teve acesso a ele através de Paulo e
daqueles membros do próprio Sinédrio que chegaram a ser cristãos. A
Lucas chegou através de uma tradição mista: oral e escrita. Com
referência a Atos 7, um estudo da palavra escolhida, referências ao
templo e a Moisés e a ausência da típica construção de Lucas são fatores
que indicam que o discurso de Estêvão não se originou na mente de
Lucas.
Com efeito, as palavras promessa e aflição têm seu próprio
significado no contexto de Atos 7 e não correspondem a seu uso no resto
do livro. Logo, a forma em que Estêvão se refere a Moisés e ao templo
correspondem só a este discurso particular. Não há nada em Atos que
Lucas tenha escrito de forma similar. Finalmente, no discurso de Estêvão
há pelo menos vinte e três palavras que não se tornam a encontrar nem
em Atos nem em nenhum outro livro do Novo Testamento; também
estão ausentes do discurso de Estêvão numerosas formas literárias,
peculiares tanto ao Evangelho de Lucas como a Atos. 25 Não podemos
presumir que Lucas tenha apresentado um relato ao pé da letra do
sermão de Estêvão, mas estamos completamente seguros que permite
que o orador original, a saber, o próprio Estêvão, seja ouvido em
palavras e conceitos que pertenceram a ele, o primeiro mártir do
cristianismo.
Inferimos também que como um historiador fiel, Lucas incorporou
o discurso de Estêvão neste lugar de Atos para preparar o leitor para a
25
Martin H. Scharlemann, “Stephen’s Speech: A Lucan Creation?” ConcJourn 4 (1978); 57. Veja-se
também A. F. J. Klijn, “Stephen’s Speech-Acts VII. 2–53”, NTS 4 (1957–58); 25–31; L. W. Barnard,
“Saint Stephen and Early Alexandrian Christianity”, NTS 7 (1960–61); 31.
Atos (Simon J. Kistemaker) 36
perseguição que se seguiria por ocasião da morte de Estêvão e para a
extensão da igreja para além dos limites de Jerusalém. Foi Estêvão e não
Lucas quem proveu o ímpeto para fomentar o desenvolvimento da igreja.
Lucas, portanto, está escrevendo fatos reais baseados em acontecimentos
históricos. 26 Lucas é um historiador que, à maneira do Tucídides, registra
o mais exatamente que pode o sentido de tudo o que o orador na verdade
disse.

D. Historicidade

Em seu Evangelho, Lucas provê umas poucas referências de tempo


para demonstrar que a mensagem de seu Evangelho está baseado em
fatos históricos:
“Nos dias de Herodes, rei da Judeia” [Lc 1:5].
“Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto” [Lc
2:1].
“No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio
Pilatos governador da Judeia, Herodes, tetrarca da Galileia, seu irmão
Filipe, tetrarca da região da Itureia e Traconites, e Lisânias, tetrarca de
Abilene” [Lc 3:1]

A história de Lucas carece de algumas datas exatas. No entanto, a


precisão histórica está mais implicitamente pronunciada em Atos que em
seu Evangelho. Em Atos podemos determinar algumas referências de
tempo. O próprio livro parece ter sido escrito como uma cronologia de
eventos que, com poucas exceções, seguem uma ordenada sequência.

26
Compare-se Martin H. Scharlemann, Stephen: A Singular Saint, Analecta bíblica 34 (Roma:
Instituto Bíblico, 1968), pp. 52–56; John J. Kilgallen, The Stephen Speech: A Literary and
Redactional Study of Acts 7, 2–53, Analecta bíblica 67 (Roma: Instituto Bíblico, 1976), p. 113.
Atos (Simon J. Kistemaker) 37
1. Ascensão e Pentecostes
De fontes históricas e arqueológicas podemos recolher suficiente
informação relacionada com a vida de Paulo que nos permite elaborar
uma cronologia para Atos. No entanto, os eruditos diferem quanto a
valorizar estes dados e frequentemente mostram pouca unanimidade a
respeito. Começamos com os primeiros versículos de Atos que relatam
as aparições de Jesus durante o período de quarenta dias antes de Sua
ascensão. Sua ressurreição, Suas aparições, e Sua ascensão
presumivelmente tiveram lugar na primavera do ano 30 d.C. O
derramamento do Espírito Santo no Pentecostes ocorreu dez dias depois
de Sua ascensão.

2. Paulo em Damasco
Os primeiros capítulos não proveem referências a eventos que
permitam verificar datas. Não é senão até a fuga de Paulo acima das
muralhas da cidade de Damasco que podemos encontrar uma tentativa de
evidência cronológica (At 9:23–25; 2Co 11:32–33). Aretas IV, rei dos
nabateus, governou Damasco por uns poucos anos do 37 a 40 d.C.; “não
se sabe se pela força ou por um favor imperial”. 27 No entanto, em
Damasco não se encontraram moedas reais da era de Calígula (37–41
d.C.) nem de Cláudio (41–54 d.C.). Este fato sugere que Damasco foi
governada pelos nabateus a começos do 37 d.C. e, consequentemente,
podemos assumir que Paulo escapou de Damasco nesse ano.

3. A fome em Jerusalém
Em Atos 11:27–28, Lucas registra uma profecia de Ágabo segundo
a qual “haveria uma grande fome sobre todo o mundo romano”. E ele
afirma que “isto ocorreu durante o reinado de [o imperador] Cláudio”. A

27
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C.–135 d.C.), rev.
e ed. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, pp. 129–30.
Atos (Simon J. Kistemaker) 38
expressão sobre todo o mundo romano não deveria ser tomada
literalmente, pois então Antioquia, que enviou ajuda a Jerusalém (At
11:29) também teria estado sob o açoite da fome. No entanto, no Novo
Testamento o termo grego oikoumenē (todo el mundo habitado) é usado
com frequência como uma mera generalização. (Por exemplo, Paulo e
Silas são acusados de “transtornar o mundo inteiro” [At 17:6] quando, na
verdade, eles estão pregando o evangelho na Macedônia.) Portanto,
assumimos que Lucas sabia que os efeitos da fome eram mais severos
num lugar que em outro. 28
A informação que podemos obter dos escritores dos primeiros
séculos da era cristã parece sugerir que a fome teve lugar na segunda
metade da quinta década, por volta de 46 d.C. Naquele ano, a rainha Mãe
Helena de Adiabene (um estado a leste do rio Tigre na antiga Assíria) e
seu filho, o rei Izates, ambos convertidos ao judaísmo, vieram a
Jerusalém. Ao serem informados da severa fome que havia naquela
cidade, compraram trigo do Egito e figos de Chipre para os famintos
habitantes de Jerusalém. 29
Também os cristãos em Antioquia demonstraram seu preocupado
amor pelos irmãos crentes da igreja mãe em Jerusalém, comissionando a
Barnabé e a Saulo (Paulo) para levar-lhes ajuda (At 11:29–30).

4. A libertação de Pedro
Lucas se informa deste episódio no contexto da fundação e o
desenvolvimento da igreja antioquiana. Logo continua sua sequência
cronológica e relata a morte do apóstolo Tiago (At 12:2), o
28
Conzelmann opina que “Lucas não notou a inconsistência de que Antioquia também pôde ter estado
afetada pela fome”. Acts of the Apostles, p. 90 n. 7. Para um comentário no mesmo sentido, veja-se
Gerd Luedemann, Paul, Apostle to the Gentiles: Studies in Chronology, trad. por F. Stanley Jones
(Filadélfia: Fortress, 1984), p. 11.
29
Veja-se especialmente a Josefo Antiguidades 3.15.3 [320]; 20.2.5 [51–52]; 20.5.2 [101]; e consulte-
se de Suetônio Cláudio 18:2; de Tácito, Anais 12:43; de Dion Cássio, História romana 60:11; e de
Eusébio, História eclesiástica 2.8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 39
encarceramento e a libertação de Pedro (At 12:3–17), e a morte do rei
Herodes Agripa I (At 12:21–23).
Herodes Agripa I passou algum tempo em Roma, onde
aparentemente chegou a travar amizade com Gaio Calígula, quem depois
da morte de Tibério em 37 d.C. chegou a ser imperador. Calígula lhe deu
as tetrarquias da Itureia, Traconites e Abilene: uma área a leste e a norte
da Galileia. 30 Também lhe concedeu o direito de ser chamado rei. Tendo
acusado falsamente de conspiração diante do imperador a seu tio
Antipas, contribuiu para a queda deste obtendo sua tetrarquia, Galileia e
Pereia no ano 39 d.C. 31 Quando o imperador Calígula foi assassinado em
41 d.C., Agripa estava em Roma, travando amizade com Cláudio, o novo
imperador, e recebendo deste o direito de governar sobre a Judeia e
Samaria. O território de Agripa chegou a ser muito mais grande que o de
seu falecido avô, Herodes, o Grande. 32
Em Jerusalém, Agripa mandou matar Tiago e logo prendeu Pedro
com a intenção de matá-lo também uma vez passada a festa da Páscoa
(At 12:2–4). Depois da libertação de Pedro da prisão, Agripa foi a
Cesareia e ali recebeu uma delegação de Tiro e de Sidom. Esta delegação
veio para superar uma disputa com Agripa; eles buscavam a
reconciliação porque dependiam de Agripa para lhes vender grãos (At
12:20). Lucas escreve que “um dia assinalado, Herodes, vestido de
roupas reais, sentou-se no tribunal” (At 12:21). E Josefo, cujos relatos
destes acontecimentos são muito similares aos de Atos, diz:
“Depois que se completou o terceiro ano de seu reinado sobre a
totalidade da Judeia [44 d.C.], Agripa veio para a cidade de Cesareia,
que antes tinha sido conhecida com o nome de Torre de Estratão. Aqui
celebrou espetáculos em honra de César, visto que soube que estes

30
Josefo Guerra judaica 2.9.6 [181]; Antiguidades 18.6.10 [237].
31
Josefo Guerra judaica 2.9.6 [181–83]; Antiguidades 18.7.1–2 [240–56].
32
Josefo Guerra judaica 2.11.5 [214–15]; Antiguidades 19.5.1 [274–75] e 19.8.2 [351].
Atos (Simon J. Kistemaker) 40
tinham sido instituídos como uma forma de festival em favor do bem-
estar de César.” 33
Estes jogos tinham lugar em 5 de março (data do aniversário da
cidade de Cesareia) ou em primeiro de agosto (conhecido como o mês do
imperador). 34 Aqui o rei foi aclamado como um deus e não como um
homem. Como resultado disso, a divina justiça lhe mandou uma morte
repentina.
Destas duas data (5 de março e primeiro de agosto), prefere-se a
segunda por duas razões. Primeiro, Agripa deliberadamente atacou a dois
servos de Deus, matando a Tiago e encarcerando a Pedro. Quando os
guardas não puderam explicar o escape de Pedro, Agripa os submeteu ao
juízo rápido e ordenou sua morte (At 12:19). Além disso, quando chegou
a Cesareia, provocou a ira de Deus, enfrentou o juízo imediato e morreu
em meio de atrozes dores. Segundo, a delegação de Tiro e Sidom
buscava paz para comprar grão. Agosto era o tempo para negociar, pois a
colheita de trigo tinha chegado a seu fim em junho e julho.
Concluímos, então, que Pedro foi solto da prisão durante a festa da
Páscoa (abril) do ano 44 d.C. e que Agripa morreu em agosto desse
mesmo ano. Se fixássemos a data dos jogos em Cesareia cinco meses
antes, quer dizer, em 5 de março, teríamos que dizer então que o
encarceramento e a libertação de Pedro ocorreram durante a primavera
do ano 43 d.C. 35

5. Primeira viagem missionária


Depois do intervalo entre a libertação de Pedro e a morte de Agripa,
Lucas menciona a volta de Barnabé e Saulo (Paulo) a Antioquia (At

33
Josefo Antiguidades 19.8.2 [343] (LCL). Compare-se Guerra judaica 2.11.6 [219].
34
Consulte-se Lake, “The Chronology of Acts”, Beginnings, vol. 5, p. 452. Veja-se também Cláudio 2
de Suetônio.
35
Consulte-se F. F. Bruce, “Chronological Questions”, BJRUL 68 (1985–86); 277. Compare-se F. F.
Bruce, The Book of Acts, ed, rev. New International Commentary on the New Testament (Grand
Rapids: Eerdmans, 1988), pp. 241–42.
Atos (Simon J. Kistemaker) 41
12:25). A igreja antioquiana ordenou estes homens como missionários
aos gentios e os mandou para Chipre. Ali conheceram procônsul Sérgio
Paulo, quem abraçou o cristianismo (At 13:7, 12). Evidência
arqueológica descoberta em Quitraia, a norte de Chipre, aponta a Quinto
Sérgio Paulo, quem foi procônsul durante o reinado de Cláudio (41–54
d.C.). Devido ao fato de que normalmente os procônsules serviam só um
ano em determinada região, esta pessoa em particular pôde ter estado em
serviço pelo ano 46 d.C., no começo da primeira viagem missionária do
apóstolo.

6. Segunda viagem missionária


A segunda viagem missionária de Paulo deve ver-se à luz de dois
eventos: a expulsão dos judeus de Roma por Cláudio (At 18:2), e a
apresentação de Paulo diante do tribunal do procônsul Gálio (At 18:12).
Estima-se em pelo menos quarenta mil o número de judeus que
viviam em Roma durante a metade do século I. Quando os cristãos
começaram a alcançar os judeus que viviam em Roma com a mensagem
do evangelho, as reações não se fizeram esperar e os tumultos cobriram
as ruas. Suetônio, um historiador romano conta que Cláudio “expulsou
os judeus porque estavam fazendo tumultos contínuos, instigados por
Cresto”. 36 Não conhecendo bem o nome grego Christos, escreveu-o mal;
e como tampouco conhecia cristianismo, pensou que este “Cresto” era
aquele que em pessoa dirigia as revoltas.
Suetônio não oferece data deste episódio. Orósio, escritor do século
V, diz que a expulsão ocorreu no nono ano do reinado de Cláudio.37 Se
Orósio estiver certo, o nono ano do reinado de Cláudio corresponde ao
ano 49 d.C. Este dado compagina com a cronologia da segunda viagem

36
Judaeos impulsore Chresto assidue tumultuantes expulit; Suetonio Claudio 25.4. Veja-se também
Dion Cássio Roman History 60.6.6.
37
Paulo Orosio, The Seven Books of History Against the Pagans, serie “Pais da igreja”, trad. por Roy
J. Deferrari (Washington, D.C.: Catholic University Press, 1964), p. 297.
Atos (Simon J. Kistemaker) 42
missionária de Paulo. Orósio diz que ele recebeu esta informação de
Josefo; embora este evento não apareça nos escritos existentes de Josefo.
Embora a informação de Orósio não possa ser verificada, o dado em si é
digno de crédito levando em conta que Paulo chega a Corinto ao redor
do ano 50 d.C. 38
Enquanto Paulo permaneceu em Corinto, “levantaram-se os judeus,
concordemente, contra Paulo e o levaram ao tribunal” de Gálio, o
procônsul (At 18:12). Paulo tinha encontrado uma feroz oposição entre
os judeus, que lhe negavam a entrada na sinagoga local. Com um grupo
de seguidores coríntios, Paulo fundou uma igreja e permaneceu na
cidade um ano e meio. Durante esse tempo, Gálio se trasladou a Acaia
como procônsul. Inscrições encontradas revelam que serviu nesse posto
nos anos 51–52 d.C., possivelmente desde julho de 51 até junho de 52.
“É quase seguro, então, que os dezoito meses que Paulo passou em
Corinto transcorreram do outono de 50 d.C. até a primavera ou
princípios do verão de 52 (de acordo com o Texto ocidental de Atos
18:2, ele esteve presente no festival em Jerusalém pouco depois de ter
saído de Corinto.) 39

7. Encarceramento de Paulo
Ao retornar a Jerusalém na conclusão de seu terceiro viagem
missionária, Paulo foi detento em Cesareia durante dois anos (At 24:27).
O governador Félix, casado com a judia Drusila, falou em várias
ocasiões com Paulo, porém não o libertou; de modo que seguia na prisão
quando Félix foi sucedido pelo governador Festo.

38
Luedemann afirma que o decreto de Cláudio foi emitido no ano 41 d.C.; Paul, Apostle to the
Gentiles, p. 170. Mas E. M. Smallwood, The Jews under Roman Rule (Leiden: Brill, 1976), pp. 210–
16, sugere que Cláudio ditou duas vezes o mesmo decreto: no ano 41 e no ano 49.
39
Bruce, “Chronological Questions”, p. 283. Compare-se Colin J. Hemer, “Observations on Pauline
Chronology”, em Pauline Studies, ed. por Donald A. Hagner e Murray J. Harris (Exeter: Paternoster;
Grand Rapids, Eerdmans, 1980), pp. 6–9.
Atos (Simon J. Kistemaker) 43
Josefo registra dados muito interessantes a respeito de Drusila.
Tinha nascido em Roma no ano 38 d.C. Era a terceira filha e a mais nova
de Herodes Agripa I. Quando Agripa morreu em 44 d.C., Drusila, que
tinha seis anos de idade já tinha sido dada em casamento a Epifânio, o
filho de Antíoco, rei de Comagene. 40 Epifânio não quis submeter-se à
circuncisão e como resultado, rejeitou o casamento, pelo que seu irmão
Agripa II a deu em casamento a Azizo, rei de Emesa, no norte da Síria. 41
Isto ocorreu quando ela possuía quatorze anos. No ano seguinte, o
governador Félix a persuadiu a abandonar Azizo para casar-se com ele.
Suetônio nota que Drusila chegou a ser a terceira esposa de Félix. 42 Félix
e Drusila tiveram um filho, Agripa, quem morreu na erupção do vulcão
Vesúvio no ano 79 d.C. Pensamos que Paulo tenha falado ao governador
e a sua esposa a respeito de Jesus Cristo (presumivelmente na segunda
metade da década VI, certamente depois do ano 54 d.C.).
No ano 52 d.C. Félix chegou a ser procurador da Judeia depois que
Cláudio destituiu Ventídio Cumano. Josefo assinala que isto teve lugar
no décimo segundo ano do reinado de Cláudio. 43 Quanto tempo esteve
Félix no poder? A julgar por um comentário de Tácito (segundo o qual
Palas, seu influente irmão e protetor de Félix diante da corte de Nero,
caiu em desgraça no ano 55 d.C.), 44 alguns eruditos afirmam que o
governo de Félix transcorreu de 52 a 55 e que a queda de Palas fez com
que fosse chamado a Roma (At 24:27). 45 Mas à luz de uma série de
outros fatores, parece-nos que seu tempo de governador foi mais
prolongado. Primeiro, em seu discurso diante de Félix, o advogado
Tértulo o elogiou por dar aos judeus “uma paz permanente” (At 24:2).
Paulo, de forma parecida, nota que tinha sido governador por “um bom
número de anos” (At 24:10). Logo, manteve a Paulo durante dois anos
40
Josefo Antiguidades 19.9.1 [354–55].
41
Josefo Antiguidades 20.7.1 [137–39].
42
Suetônio Cláudio 28.
43
Josefo Antiguidades 20.7.1 [137]; compare-se Tácito Anais 12.54.7.
44
Tácito Anais 13.14.1.
45
Haenchen, Acts, p. 71; Conzelmann, Acts of the Apostles, pp. 194–95.
Atos (Simon J. Kistemaker) 44
na prisão em Cesareia. É difícil referir-nos a um período de três anos
como um longo período que produziu paz permanente, especialmente
quando o juízo inicial contra Paulo diante dele não ocorreu como se
esperava, no começo de seu cativeiro. Finalmente, a queda de Palas não
pode necessariamente interpretar-se como o afastamento de sua
influência na corte de Nero. Palas conservou uma influência
considerável devido a sua riqueza, da qual Nero se apropriou em 62 d.C.
quando o assassinou. 46
Não podemos precisar a data em que Félix foi chamado a Roma e a
chegada de Pórcio Festo a Cesareia (At 25:1). Mas dois fatores sugerem
que foi entre o ano 59 e o 60 d.C. Primeiro, começaram a circular na
Judeia moedas destacando o quinto ano do reinado de Nero (58/59 d.C.).
É de supor que a introdução destas moedas tem uma relação direta com a
chegada do novo governador, Festo. 47 Segundo, Félix assumiu
oficialmente no ano 52 d.C. e o sucessor de Festo, Albino, chegou a ser
governador no ano 62. Portanto, os governos de Félix e Festo encheram
um período de dez anos. Josefo menciona uma quantidade de
acontecimentos relacionados com Félix, mas quase nenhum relacionado
com Festo. Deixa a inconfundível impressão que o período de Festo no
poder foi curto, talvez não mais que três anos, devido ao fato de ter
morrido estando em posse do cargo.48
Admitindo que Josefo não oferece referências quanto a tempo,
inclinamo-nos a dizer que o governo de Félix durou sete anos e o de
Festo três. Para ser precisos, Festo chegou a ser procurador em 59 d.C. 49
Por contraste, se Félix foi chamado por Nero a Roma no verão de 55
d.C., nove meses depois que este chegou a ser imperador, os numerosos
episódios que Josefo registrou da administração de Nero teriam que
46
Tácito Anais 14.65.1.
47
Consulte-se Smallwood, The Jews under Roman Rule, p. 269 n. 40.
48
Josefo Guerra judaica 2.12.8–13.1 [247–71]; Antiguidades 20.8.9–11 [182–96]. Consulte-se Robert
Jewett, A Chronology of Paul’s Life (Filadelfia: Fortress, 1979), pp. 43–44.
49
Hemer, Book of Acts, p. 171. Schürer opta por el año 60 d.C. History of the Jewish People, vol. 1, p.
465 n. 42.
Atos (Simon J. Kistemaker) 45
50
caber neste período de nove meses. E isto se vê como muito
improvável. Por este motivo é que optamos por lapso de sete anos.
A apenas semanas de ter atracado em Cesareia, o novo governador
Festo buscou o conselho de Agripa II com relação a Paulo o prisioneiro
(At 25:1, 6, 13–22), fez arranjos para que este abordasse um navio e o
enviou a Roma. Em outubro de 59 Paulo sofreu o naufrágio na ilha de
Malta e em fevereiro do ano seguinte seguiu sua viagem a Roma. Ali, em
qualidade de prisioneiro, passou dois anos vivendo numa casa alugada.
Foi libertado no ano 62 d.C.

8. Cronologia
Baseado em uns poucos dados e algumas hipótese, me he ousado a
estruturar a seguinte lista cronológica:

Acontecimento Ano
Nascimento de Paulo 5 d.C.
Pentecostes 30
Conversão de Paulo 35
Fuga de Damasco 37
Morte de Agripa I 44
Ajuda a necessitados de Jerusalém 46
Primeira viagem missionária 46–48
Concílio de Jerusalém 49
Expulsão dos judeus de Roma 49
Segunda viagem missionária 50–52
Terceira viagem missionária 52–55
Paulo na Macedônia 56–57
Arresto e encarceramento 57–59
Navegação e naufrágio 59
Prisão domiciliária em Roma 60–62
50
Josefo, Guerra judaica 2.13.1–7 [250–70]; Antiguidades 20.8.1–8 [148–81].
Atos (Simon J. Kistemaker) 46
A Espanha, Creta, Macedônia 63–67
Arresto e encarceramento 67
Morte de Paulo 67–68

E. Escritor, data e lugar

1. Quem escreveu Atos?


A igreja do século I e a maior parte do II guarda silêncio sobre a
autoria de Atos. No ano 175 d.C., o Cânon Muratoriano registra estas
palavras: “No entanto, os Atos de todos os Apóstolos foram escritos num
volume. Lucas o dedica ao excelentíssimo Teófilo”. Desta era data o
prólogo antimarcionita a Lucas, segundo o qual Lucas mesmo escreveu
os Atos dos Apóstolos. Ao redor do ano 185 d.C. Irineu se pronuncia de
forma similar. E no começo do século III, Clemente de Alexandria,
Orígenes e Tertuliano declaram que Lucas é o escritor tanto do
Evangelho que leva seu nome como de Atos. Portanto, a evidência
externa é unânime e bastante contundente ao declarar que Lucas é o
escritor de Atos.
Como se faz evidente no prólogo antimarcionita, o qual foi escrito
entre os anos 160 e 180 d.C., a tradição revela certos aspectos da vida de
Lucas:
Lucas é um sírio, natural de Antioquia, médico de profissão. Foi
discípulo dos apóstolos e posteriormente acompanhou a Paulo até o
martírio deste. Serviu ao Senhor sem perturbação, sem esposa, sem
filhos, e aos oitenta e quatro anos de idade descansou em Bitínia, cheio
do Espírito Santo.
Paulo também faz notar que Lucas era médico de profissão (Cl
4:14). De uma análise do vocabulário usado tanto em seu Evangelho
como em Atos, podemos inferir que o escritor pôde ter sido um médico
Atos (Simon J. Kistemaker) 47
51
cuja profissão se reflete em seus escritos. Tanto Eusébio como
Jerônimo testificam que Lucas é oriundo de Antioquia. Em Atos, o
escritor aparece como propenso a mencionar Antioquia. Das quinze
vezes que Antioquia da Síria aparece no Novo Testamento, quatorze
estão em Atos. 52 Para Lucas, Antioquia é importante porque aqui a igreja
teve a visão de enviar missionários ao mundo greco-romano. Se vivia em
Antioquia, teve que ter conhecido Barnabé (At 11:22), Paulo (At 11:26)
e Pedro (Gl 2:11). E indubitavelmente foi nesta cidade onde escutou a
mensagem do evangelho, experimentou a conversão e chegou a ser um
discípulo dos apóstolos.
O Evangelho de Lucas e Atos estão intimamente relacionados
quanto a que ambos estão dedicados a Teófilo (Lc 1:3; At 1:1). A
expressão excelentíssimo Teófilo parece sugerir que Teófilo pertencia à
alta classe social (cf. At 23:26; 24:3; 26:25). Além disso, o versículo
introdutório de Atos (1:1) sugere que o segundo livro é uma continuação
do primeiro (o Evangelho).
O nome Lucas, porém, não aparece nem no Evangelho nem em
Atos. O Evangelho chegou a ser conhecido como “o Evangelho segundo
Lucas”, embora os mais importantes manuscritos omitam o nome de
Lucas no título de Atos. Isto, contudo, não é obstáculo se considerarmos
que nenhum dos evangelistas menciona seu próprio nome nos
Evangelhos que escreveram.
Lucas foi seguidor de Paulo, o que podemos saber das passagens
em que se fala de “nós” na segunda parte de Atos (16:10–17; 20:5–
21:18; 27:1–28:16). Esteve com Paulo em sua segunda viagem
missionária, acompanhou-o da Macedônia até Jerusalém na conclusão da
terceira viagem, aparentemente permaneceu na Judeia e Cesareia
enquanto Paulo estava na prisão, e finalmente viajou com ele a Roma.

51
Consulte-se H. J. Cadbury, The Style & Literary Method of Luke, 2 vols. (Cambridge: Harvard
University Press, 1919–20).
52
At 6:5; 11:19, 20, 22, 26 (duas vezes), 27; 13:1; 14:26; 15:22, 23, 30, 35; 18:22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 48
Em suas epístolas, o próprio Paulo dá testemunho do fato de que foi seu
companheiro e colaborador (Cl 4:14; 2Tm 4:11; Fm 24).
Entre os colaboradores de Paulo estão Timóteo, Silas, Tito, Demas,
Crescente e Lucas, mas como escritor de Atos teríamos que excluir a
todos, exceto Lucas. Crescente é quase desconhecido (2Tm 4:10);
Demas foi companheiro de Paulo (Cl 4:14; Fm. 24), porém mais tarde o
abandonou (2Tm 4:10). Embora Tito tenha acompanhado Paulo e
Barnabé a Jerusalém e haja trabalhado nas igrejas de Corinto, Creta e
Dalmácia, não é mencionado nas saudações dos companheiros que Paulo
escreve em suas epístolas. Os nomes de Silas e Timóteo aparecem nas
passagens dos Atos onde se escreve “nós”, mas ambos estão
mencionados em terceira pessoa. Por um processo de eliminação,
chegamos à conclusão de que Lucas é a pessoa mais provável em
escrever os livros que lhe são atribuídos.

2. Quando foi escrito Atos?


A data mais anterior possível de composição é 62 d.C. que é o ano
quando Paulo foi libertado de sua prisão em Roma e é a última referência
a tempo (“dois anos inteiros” [At 28:30]) em Atos. A data mais tardia é
96, que foi o ano quando Clemente de Roma conheceu Atos. A data de
composição, portanto, localiza-se nesse período de trinta e quatro anos. 53
Eruditos que respaldam a teoria da última data, assinalam três
pontos: Primeiro, a descrição que Lucas faz em At 19:43–44 e 21:20–24,
da queda e destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. Segundo isto, a
composição da sequência Lucas - Atos deveria ser localizada depois da
devastação de Jerusalém. Segundo, o Evangelho de Marcos, escrito ao
redor do ano 65 d.C. é básico para o Evangelho de Lucas. Como
resultado, o Evangelho de Lucas e Atos devem ter sido escritos depois
que apareceu o Evangelho de Marcos, o que pôde ter ocorrido entre os

53
J. C. O’Neill põe a data de composição bem avançada no segundo século, mas esta opinião carece
de respaldo. The Theology of Acts in its Historical Setting (Londres: SPCK, 1970), pp. 21, 26.
Atos (Simon J. Kistemaker) 49
70 e os 80. E terceiro, Lucas se baseou nos escritos do historiador judeu
Josefo, quem completou sua obra Guerra Judaica a princípios dos
setenta e sua Antiguidades ao redor de 93 d.C.
As objeções à uma data posterior ao ano 70 d.C. são numerosas e de
grande peso e minam seriamente a teoria da data posterior. A seguir
vamos enumerar e analisar estas objeções:
1. Proporcionalmente, em Atos, Lucas dedica mais espaço a Paulo
que a qualquer outra pessoa. Isto é facilmente compreensível, visto que
foi seu companheiro de viagem e colaborador. No entanto, Lucas
interrompe a cronologia da vida de Paulo com a mensagem de que o
apóstolo passou dois anos sob prisão domiciliária em Roma (At 28:30).
Não dá nenhum dado sobre outras viagens de Paulo, seu segundo arresto
e prisão em Roma (onde Lucas esteve presente [2Tm 4:11]), e sobre a
morte do apóstolo.
O argumento segundo o qual Lucas tentou escrever um terceiro
livro para completar uma trilogia é pura especulação, sem respaldo
algum nem na antiguidade nem na história. Se, de acordo com as
epístolas pastorais, Paulo visitou Éfeso depois de sua prisão em Roma
(1Tm. 3:14), Lucas não teria descrito a emotiva despedida dos anciãos
daquela cidade (At 20:25, 38) sem alguma nota esclarecedora
adicional. 54 E se na verdade Paulo visitou a Espanha (Rm 15:24, 28),
como Clemente de Roma parece afirmar quando escreve que Paulo
“chegou aos limites do Ocidente”, 55 não há dúvida de que Lucas o teria
destacado antes de concluir Atos, para assinalar que o mandamento de
Jesus (de dar testemunho até os confins da terra) tinha sido cumprido. Se
Lucas esteve com Paulo na prisão, teríamos que esperar que ele também

54
Conzelmann procura resolver este problema dizendo que “o texto [de Atos 20:25] exclui a
possibilidade de que [Paulo] tivesse sido deixado livre de seu encarceramento em Roma (e tenha
podido fazer outra visita a leste). Isto também está de acordo com as Pastorais, que reconhecem só um
encarceramento de Paulo”; Acts of the Apostles, p. 174. Mas Eusébio escreve que Paulo foi deixado
em liberdade depois de seu primeiro encarceramento em Roma. Veja-se sua História Rclesiástica
2.22.2–3.
55
I Clem. 5.7 (LCL). Veja-se também o Cânon Muratoriano, linhas 34–39.
Atos (Simon J. Kistemaker) 50
soubesse da morte do apóstolo. Entretanto, não diz nada de seu arresto,
prisão e execução.
2. A última palavra (no grego) no Livro de Atos é “sem
impedimento”. Isto é, que em Roma Paulo pregou o evangelho do reino
de Deus e a mensagem de Jesus Cristo “com toda a liberdade e sem
impedimento” (At 28:31, TB). Por implicação, Lucas diz aos leitores que
o governo romano nem lhe proibiu a proclamação do evangelho nem a
fundação de uma igreja. Lucas termina seu segundo livro com uma nota
cheia de alegria: o estado não põe objeções à obra da igreja. Com isso
mostra as condições sociais e políticas de Roma nos tempos em que
Paulo foi deixado em liberdade. Enquanto Paulo estava em Roma sob
custódia, os oficiais romanos o protegeram de qualquer dano físico (At
21:30–36). Deram-lhe uma oportunidade para que se defendesse e lhe
permitiram explicar a mensagem do evangelho (At 22:1–21). Foram
amáveis e cuidadosos com ele durante a viagem a Roma (27:43) e
durante seu arresto domiciliar na cidade imperial (At 28:30–31). Na
verdade, Roma não estorvou o progresso do evangelho naqueles anos.
As coisas mudaram quando Nero começou a perseguir os cristãos depois
do incêndio da cidade no ano 64 d.C.
Se Lucas tivesse escrito Atos durante os anos setenta, teria
aparecido faltando com seu sentido de integridade histórica ao não
mencionar aquela cruel perseguição instigada por Nero. “Qualquer
cristão que dali em diante tivesse escrito com o otimismo com que se
escreveu Atos 28, teria requerido uma inconsciência próxima ao infra-
humano”. 56
3. O livro de Atos reflete uma teologia que nos lembra as três
primeiras décadas depois do Pentecostes. Consideremos os seguintes
pontos: Primeiro, Lucas identifica Jesus como Jesus de Nazaré (At 3:6;
4:10; 6:14; 10:38–40; 22:8; 26:9), e fala dos conversos como
“discípulos” em Jerusalém, Damasco, Jope, Antioquia, Listra e Éfeso.

56
Pierson Parker, “The ‘Former Treatise’ and the Date of Acts”, JBL 84 (1965); 53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 51
Segundo, a própria igreja estava formada por numerosas congregações
que se reuniam em diversos lares. “Cada grupo chegou a ser conhecido
como uma ekklēsia numa região determinada”. 57 E terceiro, o conteúdo
de Atos não mostra nenhuma preocupação teológica ou eclesiástica que
ocupava a igreja da última década do século I.
4. Às vezes, os relatos históricos de Atos têm certo paralelo com os
escritos de Josefo. Isto não significa que Lucas tenha dependido deste
para documentar-se sobre detalhes históricos. Pelo contrário, uma
comparação de paralelos entre ambos escritores indica claramente que os
dois se baseavam em tradições independentes. Por exemplo, ambos
fazem referência ao revolucionário egípcio que levou os seus seguidores
ao deserto. Lucas diz que foram quatro mil terroristas (At 21:38), mas
Josefo diz que o egípcio tinha um exército de trinta mil homens, dos
quais quatrocentos morreram e duzentos foram levados presos. Em outra
parte, escreve que a maioria das forças egípcias foram mortas ou feitas
prisioneiras. 58 Com relação a estas cifras, a fidelidade histórica de Josefo
é definitivamente questionada. Em conclusão, uma cuidadosa análise dos
escritos de Josefo mostra que Lucas não dependeu dele para seu trabalho
histórico.
5. Se Lucas escreveu seu Evangelho depois do ano 70 d.C., então
suas palavras a respeito da destruição de Jerusalém (Lc 19:43–44;
21:20–24) são história descritiva. Se aceitarmos que as palavras da
profecia de Jesus a respeito de Jerusalém ele as recebeu da tradição (Lc
1:2), e presumimos que ele conhecia seu cumprimento, então pôde ter
escrito seu livro depois do desastre de Jerusalém. Mas se esta hipótese
fosse verdade, teríamos esperado maiores detalhes com relação ao fato
histórico tão importante como foi a destruição de Jerusalém.
Mas neste ponto seus escritos estão desprovidos de qualquer
indicação que pudesse fazer crer que está apresentando um fato histórico

57
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 741.
58
Josefo, Guerra judaica 2.13.5 [261–63]; Antiguidades 20.8.6 [169–71].
Atos (Simon J. Kistemaker) 52
em lugar de uma profecia. Se cremos que Jesus disse palavras de genuína
profecia com referência a Jerusalém uns quarenta anos antes de sua
destruição, então podemos localizar a composição tanto do Evangelho
como de Atos antes do ano 70 d.C.
Se os eruditos pudessem expressar genuína unanimidade quanto a
atribuir datas exatas de composição dos outros Evangelhos sinóticos, não
teriam dificuldade em atribuir uma data ao Evangelho de Lucas e aos
Atos. Mas esta falta de consenso nos faz pensar que é bem possível a
data mais anterior para os escritos de Lucas. Aceitamos como autêntica
profecia as palavras registradas no discurso sobre a destruição de
Jerusalém, tal como o disse o próprio Jesus (Mt 24; Mc 13; Lc 19:41–44;
21:5–36). E para a composição de Atos, sugerimos uma data anterior a
19 de julho do ano 64, que foi quando Roma foi incendiada e começou a
perseguição desatada por Nero contra os cristãos. Uma data posterior ao
verão do ano 64 teria feito que Lucas desse outra terminação ao seu
livro.

3. Onde foi escrito Atos?


Não temos nenhuma informação que nos permita saber onde foi
que Lucas escreveu Atos. Tinha já algumas partes escritas antes de
acompanhar Paulo em sua viagem a Roma? Pôde guardar seus
documentos durante o naufrágio em Malta? Terminou o livro em Roma,
durante os dois anos em que Paulo permaneceu sob arresto domiciliário?
Podemos fazer-nos uma infinidade de perguntas, mas as respostas nunca
serão definitivas. Alguns eruditos apontam Acaia como um lugar
possível de composição, enquanto outros apontam Roma.
Atos (Simon J. Kistemaker) 53
F. Teologia

Mesmo pensando que Lucas serviu a Paulo como seu fiel


companheiro, em seus escritos parece não estar a par das epístolas que o
apóstolo enviou a várias igrejas e pessoas. Pelo tempo em que Lucas
escreveu Atos, Paulo já tinha escrito várias de suas cartas, que tinham
começado a circular na igreja primitiva. As epístolas aos gálatas e aos
tessalonicenses ele as escreveu durante sua segunda viagem missionária,
e 1 e 2 Coríntios e Romanos a fins de sua terceira viagem missionária.
As chamadas cartas da prisão (Colossenses, Filemom, Efésios e
Filipenses) ele as escreveu em Roma enquanto estava sob prisão
domiciliar. Dali recomendou com insistência aos receptores destas cartas
que as dessem a conhecer em outras igrejas (veja-se Cl 4:16; 1Ts 5:27).
Lucas, então, deve ter conhecido as epístolas paulinas. Mas em Atos, seu
propósito é escrever como um historiador mais que como um teólogo.
Isto não significa, porém, que este livro careça de teologia. Antes,
encontramos uma série de assuntos teológicos expostos nos vários
discursos que Lucas registrou.

1. Deus em palavra e ação


No Pentecostes, Pedro enfatiza a obra de Deus em Jesus Cristo.
Deus respaldou a Jesus de Nazaré, quem foi morto de acordo com o
propósito e presciência de Deus, mas Deus O ressuscitou dentre os
mortos, exaltou-O a um lugar de honra no céu, e O fez Senhor e Cristo
(At 2:22–24, 32–36). No Pórtico de Salomão, Pedro afirma
categoricamente que o Deus dos patriarcas tinha glorificado a Jesus e o
havia devolvido à vida (At 3:13–15). Jesus veio, disse Pedro, como o
cumprimento da promessa de que Deus levantaria um profeta como
Moisés (At 3:22). Pedro e outros apóstolos repetiram estes temas
teológicos diante dos membros do Sinédrio (At 4:10; 5:30–32).
Atos (Simon J. Kistemaker) 54
Na casa de Cornélio, Pedro testificou que Deus o havia
comissionado para ir aos gentios (At 10:28). Assegurou à sua audiência
que Deus não mostra favoritismo, que ungiu a Jesus com o Espírito
Santo, levantou-o dentre os mortos, fez com que fosse visto por
testemunhas a quem o próprio Deus tinha escolhido, e O pôs como juiz
de vivos e mortos (At 10:34–42; veja-se At 15:7–10).
No sermão que pronunciou na sinagoga judaica em Antioquia da
Pisídia, Paulo reitera os temas da graça, promessa e propósito da eleição
de Deus (At 13:17–37). Sua dissertação no Areópago centraliza-se no
Deus Criador, Desenhista, e Juiz em Cristo (At 17:24–31). E em seu
sermão de despedida dos anciãos de Éfeso refere-se ao propósito de
Deus e à igreja (At 20:27–28).
Com relação à obra de Deus para a salvação do homem pecador,
Leão Morris observa: “Uma das coisas em que Lucas é sobremaneira
claro é que este não deve ser considerado somente outro movimento
humano. Não devemos pensar que alguns galileus faladores conseguiram
persuadir o povo e a fazer-se frente com eles. Antes, foi um ato da
grandeza divina: Deus enviou Jesus para ser o Salvador. Não poderíamos
entender este movimento a menos que aceitemos que Deus está nele”. 59
Deus salva uma pessoa de acordo com Seu plano destinado. Por isso os
gentios a quem Deus na eternidade tinha destinado à vida eterna
receberam com alegria o evangelho de Paulo e Barnabé, e creram (At
13:48). Quando Paulo sacudiu o pó de suas vestes em sinal de protesto
contra os judeus e se preparou para sair de Corinto, o Senhor lhe mandou
ficar ali porque tinha muito povo nessa cidade (At 18:6–10). Por esses
dias, este povo ainda não tinha recebido o dom da salvação embora
cressem que pertenciam a Deus.
Através de Atos, Lucas usa reiteradamente as expressões a palavra
de Deus (treze vezes), a palavra do Senhor (dez vezes), ou simplesmente
a palavra (treze vezes). Duas vezes usa a frase a palavra de sua graça,

59
Leon Morris, New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p. 150.
Atos (Simon J. Kistemaker) 55
uma vez o termo descritivo a palavra de sua salvação e uma vez
também a palavra do evangelho. No total, há quarenta referências à
Palavra de Deus. 60 Estes termos denotam a revelação de Deus feita
plenamente em Seu Filho Jesus Cristo. Os termos, então, referem-se ao
evangelho de Cristo.
Jesus mandou os Seus apóstolos com a mesma mensagem que Ele
mesmo proclamou durante Seu ministério terrestre. Para ilustrar isso, em
seu Evangelho Lucas fala que nas horas do entardecer do dia da
ressurreição Jesus abriu as Escrituras diante de Seus discípulos. Ensinou-
lhes que tudo devia ser cumprido de acordo com o que estava escrito a
respeito dEle na Lei de Moisés, nos Profetas, e nos Salmos (Lc 24:44).
Jesus Se referiu às três partes da literatura hebraica e, por implicação, a
todo o Antigo Testamento. Quando Pedro pronunciou seus sermões no
Pentecostes e no Pórtico de Salomão, ele igualmente citou estas três
partes da Palavra de Deus para provar que Jesus certamente tinha
cumprido todas as Escrituras.

2. Jesus Cristo
Em seus discursos, Pedro alude à humanidade de Jesus. Apresenta-
O como um homem que realizou milagres e maravilhas (At 2:22) e que
foi conhecido como Jesus de Nazaré (At 4:10). Jesus demonstrou a
realidade de Seu corpo humano depois da ressurreição ao comer e beber
com os apóstolos (At 10:41). Logo se refere à divindade de Jesus
chamando-O o Santo e o Justo (At 3:14). Também é possível encontrar
esta referência nos discursos de Estêvão e Paulo, respectivamente (At
7:52; 17:31; 22:14). 61
Entre os vários nomes que se dão a Jesus em Atos podemos
mencionar os seguintes: “Senhor” (At 1:24; 2:36; 10:36), “Cristo” (At

60
Ibid., p. 219.
61
Guthrie, New Testament Theology, p. 231. Veja-se também F. F. Bruce, “The Theology of Acts”,
TSF Bulletin 10 (1987): 15.
Atos (Simon J. Kistemaker) 56
2:36; 3:20; 5:42; 8:5; 17:3; 18:5), “servo” (At 3:13, 26; 4:27, 30),
“profeta” (At 3:22), “Príncipe e Salvador” (At 5:31), “Filho do homem”
(At 7:56), “Filho de Deus” (At 9:20) e muitos outros. Em geral, Lucas
aplica estes nomes a Jesus na primeira metade de seu livro, porém não na
segunda. Cremos que, na primeira, estes nomes refletem o ambiente
aramaico em que se originam; e, na segunda, que eram novos para as
audiências gentílicas que Paulo teve em suas viagens missionários.
Segundo Lucas, o ponto focal no ministério de Jesus é trazer
salvação a Seu povo. Em seu Evangelho, descreve o que Jesus começou
a fazer e a ensinar, e em Atos continua referindo-se à obra de salvação
que Jesus realizou. Ao enfatizar o conceito salvação, Lucas descreve
Jesus, o doador da salvação, como a figura central de sua teologia. 62

3. O Espírito Santo
Um tema destacado em Atos é o Espírito Santo. Prometido por
Jesus antes de Sua ascensão, derramado no dia do Pentecostes,
prometido a todas as nações e dado como um dom a todo aquele que for
batizado, a pessoa e obra do Espírito Santo são claramente evidentes
onde quer que seja em Atos. O Espírito deu aos crentes a capacidade de
falar em outras línguas (At 2:4, 11; 10:46; 19:6). Além disso, encheu os
crentes quando oraram unânimes depois da libertação de Pedro e João
(At 4:31). Estêvão foi cheio de fé e do Espírito Santo e por isso pregou
com valentia o evangelho aos judeus helenistas na sinagoga de Jerusalém
(At 6:5, 8–10). O Espírito Santo foi derramado aos samaritanos para
indicar que a muralha de separação entre judeus cristãos e samaritanos
cristãos tinha sido definitivamente derrubada (At 8:14–17). O mesmo
ocorreu com a audiência de gentios na casa de Cornélio (At 10:44).
Como resultado disso, os crentes judeus de Jerusalém tiveram que aceitar
a palavra de Pedro no sentido de que Deus lhes deu o mesmo dom tal

62
I. Howard Marshall, Luke: Historian and Theologian (Grand Rapids: Zondervan, 1971), p. 94.
Consulte-se Robert H. Smith, “The Theology of Acts”, ConcThMonth 42 (1971): 531.
Atos (Simon J. Kistemaker) 57
como o tinha dado àqueles que creram no Senhor Jesus Cristo em
Jerusalém (At 11:17). Finalmente, o Espírito desceu sobre os discípulos
de João Batista em Éfeso de maneira que eles também chegaram a ser
parte da comunhão cristã (At 19:1–7).
O Espírito Santo falou através do profeta Ágabo e predisse uma
grande fome (At 11:28) e a detenção de Paulo (At 21:10–11). O Espírito
chamou a Paulo e Barnabé para que fossem missionários ao mundo
greco-romano (At 13:1–2) e dirigiu a Paulo e seus companheiros ir à
Macedônia em lugar de à província da Ásia e Bitínia (At 16:6–7). O
Espírito é identificado com o Pai (At 1:4–5) e com Jesus (At 16:7).
Implicitamente, Lucas estava ensinando a doutrina da Trindade. O
Espírito Santo também falou através das Escrituras do Antigo
Testamento. Pedro disse que as Escrituras deviam ser cumpridas, porque
“por boca de Davi” o Espírito Santo deu uma profecia que, com efeito,
se referia a Judas (At 1:16). Logo, note-se que a oração da igreja de
Jerusalém revela a mesma fraseologia: “Tu falaste pelo Espírito Santo
por boca do teu servo, nosso pai Davi” (At 4:25, NVI). Finalmente,
dirigindo-se aos judeus de Roma, Paulo diz que o Espírito falou com
nossos pais por meio do profeta Isaías (At 28:25). A presença do Espírito
Santo foi evidente nos tempos dos santos do Antigo Testamento, mas
também foi nos tempos do Concílio de Jerusalém. Na carta às igrejas
gentílicas, os membros daquele Concilio testificaram que sua decisão
pareceu bem ao Espírito Santo (At 15:28). Em resumo, o Espírito guia e
governa a igreja.

4. A igreja
Embora a palavra ekklēsia (igreja) apareça apenas três vezes nos
quatro Evangelhos (Mt 16:18; 18:17 [duas vezes]), em Atos encontra-se
vinte e três vezes. Lucas a usa no singular para expressar a unidade do
corpo. O plural aparece com referência às igrejas na Síria e na Cilícia (At
15:41) e a visita de Paulo às igrejas gentílicas quando entregou a carta do
Atos (Simon J. Kistemaker) 58
Concílio de Jerusalém (At 16:5). Para Lucas, a igreja de Jerusalém é e
continua sendo a igreja mãe que dá liderança e direção às igrejas em
desenvolvimento em Samaria, Cesareia, Antioquia, e outros lugares. A
igreja de Jerusalém joga um papel importante quando o Concílio se
reúne (At 15:4, 12, 22). No final de sua terceira viagem missionária,
Paulo rende um relatório a Tiago e aos anciãos da igreja de Jerusalém
(At 21:17–19). Lucas, então, destaca a importância desta igreja.
O fundamento da igreja é o ensino da ressurreição de Jesus; os
apóstolos proclamam este ensino em qualquer lugar, tanto aos judeus
como aos gentios. A doutrina da ressurreição de Cristo chegou a ser o
princípio fundamental da igreja. Pedro a proclama diante das multidões
reunidas nos pátios do templo, diante dos membros do Sinédrio e na casa
de Cornélio. Nenhum outro ensino divide mais os crentes dos não
crentes que a doutrina da ressurreição. Tanto os cristãos judeus como os
cristãos gentios confessam com alegria que Jesus tinha morrido e que
havia ressuscitado da morte, enquanto os que se opõem ao evangelho
rejeitavam com veemência este ensino. O ponto crucial no discurso de
Paulo no Areópago veio quando introduziu a doutrina da ressurreição
dos mortos (At 17:32). Alguns zombam de seu ensino enquanto muito
poucos a aceitam. Mais tarde, quando Paulo se dirige ao governador
Festo e ao rei Agripa e menciona a ressurreição de Cristo, Festo lhe diz:
“Estás louco, Paulo! As muitas letras te fazem delirar!” (At 26:24).
Em Atos, a confraternidade na igreja depende da fé de cada um em
Jesus Cristo, do arrependimento, a remissão dos pecados, o batismo, e o
fato de que o Espírito Santo habita nela (At 2:38–39). Pertencer à igreja
leva à atividade de ser instruído no ensino apostólico, a participação na
adoração, na comunhão, e estar dedicado à oração (At 2:42). O amor
pelo próximo alcança seu nível máximo quando os membros derrotam a
pobreza dentro da confraternidade da igreja (At 4:34). Os diáconos
ajudam na distribuição do alimento aos necessitados (At 6:1–6) e os
anciãos se preocupam com as necessidades espirituais da igreja (At
Atos (Simon J. Kistemaker) 59
14:23; 20:28). Os apóstolos se ocupam na oração e no ensino da Palavra
de Deus.

5. Escatologia
O Evangelho de Lucas inclui o discurso de Jesus a respeito da
destruição de Jerusalém e a consumação no final do tempo cósmico (Lc
19:42–44; 21:5–36). Mas em Atos, Lucas se permite referir-se ao fim
dos tempos. Para ele, o progresso do evangelho é de suprema
importância. Na verdade, a descrição que faz da ascensão de Jesus revela
que Jesus voltará da mesma forma como Ele subiu (At 1:11; cf. 3:19–
20); e tanto Pedro como Paulo chamam a atenção sobre o dia do juízo
(At 10:42; 17:31). Mas a natureza histórica de Atos não se presta ao
assunto doutrinal do retorno de Jesus, a ressurreição geral dos crentes, o
dia do juízo, a vida vindoura, o céu e o inferno. Lucas escreve a história
do nascimento, desenvolvimento e progresso da igreja do Novo
Testamento. Em resumo, ele não escreve Atos como um mero livro de
história, e sim como um livro que abre janelas teológicas para o futuro.
Afirma que o evangelho de Cristo avançou de Jerusalém para Roma, via
Antioquia. E vê que desde esta cidade imperial, as Boas Novas são
espalhadas até os limites da terra (At 1:8). A conclusão de Atos é
dirigida para o futuro, porque “o evangelho não pode ser detido”. 63

G. Características

Uma das características no estilo de Lucas é a forma em que


escreve a história da igreja. Forma um álbum cheio de fotografias, por
assim dizer, e nos dá um rápido comentário enquanto explica cada uma
separadamente.
Enquanto vai de um quadro ao seguinte, passa por alto detalhes que
dão origem a não poucas perguntas. Eis aqui umas poucas: Onde
63
F.F. Bruce, “The Holy Spirit in the Acts of the Apostles”, Interp 27 (1973): 183.
Atos (Simon J. Kistemaker) 60
realizaram sua obra missionária os outros apóstolos? Quando foi
proclamado o evangelho em Alexandria, Egito, à comunidade judaica
composta por aproximadamente um milhão de pessoas? Que tarefa
realizou em sua terra natal o eunuco etíope? O que aconteceu a Cornélio
de Cesareia? Se Paulo passou três anos de sua vida pastoreando a igreja
em Éfeso (At 20:31), por que não diz Lucas nada com relação ao
crescimento e desenvolvimento dessa igreja?
A passo rápido, Lucas leva o leitor através da galeria histórica da
igreja primitiva. Passa por alto detalhes e com frequência resume
brevemente os acontecimentos que ocorreram. Estes resumos, porém,
são extremamente importantes porque em sua brevidade comunicam o
propósito de sua obra, que não é outra senão apresentar um relato da
mensagem de salvação. 64 Lucas estampa este pensamento no último
versículo de Atos: é a obra da pregação do reino de Deus e o ensino das
coisas que têm que ver com o Senhor Jesus Cristo (At 28:31). Atos,
então, é a continuação da obra que Jesus começou a fazer e a ensinar na
terra (At 1:1).

Continuação do Evangelho

A conexão estreita entre o Evangelho de Lucas e Atos é óbvia não


só na dedicação a Teófilo, no relato da aparição de Jesus, e na repetição
do da ascensão. Também se faz evidente quando examinamos de perto o
paralelismo do último segmento de Lucas 24 e a primeira metade de
Atos 1, que descrevem a ascensão de Jesus. Estas duas passagens
revelam uma inter-relação evidente. 65
Destacam os seguintes pontos:

64
W. C. van Unnik, “The ‘Book of Acts’ in the Confirmation of the Gospel”, NovT 4 (1960): 58.
65
Consulte-se M. D. Goulder, Type and History in Acts (Londres: SPCK, 1964), pp. 16–17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 61
Lucas 24:42–53 Atos 1:4–14

Jesus come peixe, 42–43 come com seus apóstolos, 4

promessa do Pai, 49 promessa do Pai, 4

revestidos de poder, 49 recebereis poder, 8

testemunhas destas coisas, 48 minhas testemunhas, 8

perto de Betânia, 50 o monte das Oliveiras, 12

foi tomado acima no céu, 51 foi tomado acima, 9

os discípulos voltam para os discípulos voltam para


Jerusalém, 52 Jerusalém, 12

louvando a Deus, 53 perseveravam em oração, 14

Também aparecem em Atos algumas características do Evangelho


de Lucas. Por exemplo, o interesse do escritor nas pessoas é evidente em
seu Evangelho. Menciona mais gente por seu nome que qualquer outro
evangelista. Cita os nomes dos maridos junto com suas esposas (Zacarias
e Isabel, José e Maria), com frequência refere-se a outras pessoas à parte
dos judeus (a viúva de Sarepta, Naamã o sírio, os samaritanos), e
descreve inclusive atividades sociais (as refeições nos lares de Maria e
Marta, Lázaro e os fariseus). O mesmo é verdade com relação a Atos,
onde inclui mais de cem nomes pessoais. Refere-se a maridos e suas
esposas (Ananias e Safira, Áquila e Priscila), e destaca a inclusão de
samaritanos e gentios, como também menciona inumeráveis vínculos
sociais.
Atos (Simon J. Kistemaker) 62
2. Repetição
Atos é notável por seus paralelismos e suas reiterações. Fatos
importantes na vida de Pedro se repetem nos relatos relacionados com a
vida de Paulo. Pedro curou o paralítico na porta do templo de Jerusalém
(At 3:1–10); Paulo cura um paralítico em Listra (At 14:8–10). Pedro
ressuscita Dorcas em Jope (At 9:36–42) e Paulo devolve a vida a Êutico
em Trôade (At 20:9–12). Preso em Jerusalém, Pedro é libertado por um
anjo (At 12:3–11); e Paulo, encarcerado em Filipos, fica livre de suas
cadeias quando um terremoto sacode a prisão (At 16:26–30).
O sermão que Paulo pregou na sinagoga em Antioquia da Pisídia
(At 13:16–41) tem vários paralelos no sermão de Pedro no Pentecostes
(At 2:14–36). Na verdade, tanto Pedro como Paulo citam a mesma
passagem do Antigo Testamento (Sl 16:10) para provar a ressurreição de
Jesus. E ambos os sermões concluem com uma ênfase no perdão de
pecados através de Jesus Cristo (At 2:38; 13:38).
Em três ocasiões Lucas relata a experiência da conversão de Paulo:
quando ocorre o acontecimento (At 9:1–19), durante o discurso de Paulo
em Jerusalém (At 22:3–16), e na audiência de Paulo diante do rei Agripa
(At 26:12–18). Em três ocasiões alude à visão que teve Pedro no terraço
em Jope (At 10:9–16; 10:28; 11:5–10). Em duas ocasiões Pedro se dirige
ao Sinédrio e lhes diz que ele deve obedecer a Deus do que aos homens
(At 4:19; 5:29). E duas vezes Paulo apela à sua qualidade de cidadão
romano (At 16:37–38; 22:25–28). Estes são uns poucos exemplos da
característica tão peculiar em Lucas que encontramos em Atos. Mediante
a repetição do mesmo assunto ou dito, busca enfatizar e adiantar a causa
do evangelho.

3. Estilo e linguagem
Lucas é um hábil escritor que, comparado com outros autores
gregos, merece nosso respeito e admiração por escrever um livro que em
estilo, seleção de palavras, gramática e vocabulário ganhou um lugar
Atos (Simon J. Kistemaker) 63
entre o grego koinê e os do período clássico. Além de um excelente
grego (incluindo o uso do optativo e numerosos casos de construção
genitiva absoluta), 66 Lucas registra em seu livro vários aramaísmos.
Alguns são nomes de lugares e de indivíduos: Aceldama (At 1:19),
Barsabás (At 1:23), Tabita (At 9:36, 40), Barjesus (At 13:6).
Talvez devido ao fato de que Lucas foi recolhendo os relatos que
lhe deram verbalmente, com frequência ajusta seu estilo à forma popular
do grego em lugar do grego literário. Como resultado disso, em vários
lugares a sintaxe numa frase ou cláusula falta de claridade e precisão. 67
A seguir há alguns exemplos de tradução literal do grego:
“Então o chefe da guarda foi com os oficiais e os trouxe sem
violência, porque temiam ser apedrejados pelo povo” (At 5:26). O
sentido da última cláusula é “porque tinham medo de que o povo os
apedrejasse a eles”.
“Porque de muitos que tinham espíritos imundos, saíam estes dando
grandes vozes; e muitos paralíticos e [muitos daqueles que eram] coxos
eram curados” (At 8:7). O sentido da primeira parte desta frase é,
“espíritos imundos chiando fortemente saíam de muitas pessoas”.
“Vós sabeis como já faz algum tempo que Deus escolheu que os
gentios ouvissem por minha boca a palavra do evangelho e cressem” (At
15:7). Pedro é quem fala e o que ele procura dizer é: “Vós sabeis que nos
primeiros tempos Deus me escolheu dentre vós para que por meus lábios
os gentios pudessem ouvir a mensagem do evangelho e cressem”.
Estes exemplos são uns poucos dos muitos que se encontram
através de todo o livro. Em algumas frases, Lucas se esquece de dar o
sujeito da frase, o que projeta obscuridade à ideia. Por exemplo, “E dali,
com a morte de seu pai, Deus o trouxe para esta terra em que vós agora
66
J. de Zwaan tabula sessenta e três vezes o uso correto do genitivo absoluto em Atos, doze que são
duvidosos e vinte que ele considera como errados. “The Use of the Greek Language in Acts”,
Beginnings, vol. 2, p. 42.
67
Para uma lista completa de irregularidades na sintaxe grega, veja-se F. W. Grosheide, De
Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2 vols. (Amsterdam: Van
Bottenburg, 1948), vol. 2, p. xxv.
Atos (Simon J. Kistemaker) 64
habitais. Nela, não lhe deu herança” (At 7:4–5). O sujeito destas duas
orações é Deus, que o tradutor tem que incorporar para tornar claro o
sentido.
Não podemos explicar por que Lucas, quem dá provas de que é
capaz de escrever num grego excelente, apresenta uma gramática
incompleta e defeituosa. Tais irregularidades parecessem refletir as
fontes que consultou para a composição de seu livro. No entanto, mesmo
levando em conta a importância destas peculiaridades, a estatura de Atos
não se vê diminuída. O livro em si mesmo é uma obra de arte literária
que bem ganho tem-se um lugar entre os clássicos.

H. Texto

O leitor que comparar as diferentes versões da Bíblia descobrirá


sem muito esforço diferenças na linguagem. Por exemplo, as duas
versões de Almeida (a Revista e Corrigida 1998 e a Atualizada 1999)
apresentam um texto mais longo e diverso. Deste modo transmitem a
totalidade do texto que em outras versões foi resumido ou simplesmente
eliminado. 68 Alguns tradutores omitiram completa ou parcialmente estes
versículos porque os melhores manuscritos do grego, conhecidos como o
texto alexandrino, não os têm. Eles seguiram este texto assumindo que é
autêntico e veraz. As diferenças nas traduções dependem muito do Texto
ocidental, do qual o Código Beza é o mais representativo. Este texto
varia em numerosos aspectos, dos quais sua longitude é a característica
mais proeminente. Bruce M. Metzger, seguindo Albert C. Clark, escreve:
“O Texto ocidental é aproximadamente dez por cento mais longo que o
Texto alexandrino e, além disso, tem mais colorido e enfatiza o
circunstancial, enquanto que o texto mais breve é geralmente mais opaco
e em certos lugares ainda escuro”. 69 Por exemplo, Lucas conta que em
68
Eis aqui uma breve lista: At 2:30b; 8:37; 9:5b–6a; 15:18, 34; 24:6b–8a; 28:16b, 29.
69
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corrigida (Londres
e Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 260; Albert C. Clark, The Acts of the Apostles: A
Atos (Simon J. Kistemaker) 65
Éfeso Paulo alugou o salão de conferências de Tirano e cada dia
ensinava ali (At 19:9). Neste ponto, o Códice Beza acrescenta uma nota
muito interessante, segundo a qual Paulo falava “desde a quinta até a
hora décima”, quer dizer, das 11 da manhã até as 4 da tarde, no calor do
dia. Mesmo aceitando esta adição como genuína, os tradutores
duvidaram em incorporá-la no texto.
Se observarmos com cuidado a longa lista dos numerosos
agregados breves que o Códice Beza faz ao texto tradicional, obteremos
a clara impressão de que o Texto ocidental passa a um lugar secundário.
Eis aqui umas poucas ilustrações:
Simão o mago “não deixou de chorar copiosamente” (At 8:24).
Pedro e o anjo “desceram sete degraus” (At 12:10).
O carcereiro “assegurando o resto” dos prisioneiros diante dele,
tirou Paulo e a Silas fora da cela (At 16:30). 70
Não obstante, em alguns versículos do Texto ocidental a pergunta
sobre a genuinidade do texto é real. Um exemplo tem que ver com a
adição do pronome nós do Códice Beza em At 11:27–28: “Naqueles dias
uns profetas desceram de Jerusalém a Antioquia. E havia ali muita
alegria; e quando todos nós estivemos reunidos, [e] levantando-se um
deles, chamado Ágabo, dava a entender pelo Espírito, que viria uma
grande fome em toda a terra habitada”. Se adotássemos o Texto
ocidental (a porção em itálico) neste versículo, teríamos o primeiro
“nós”, o que daria respaldo adicional ao fato de que Lucas, uma
testemunha ocular, era um nativo de Antioquia.
Qual é a origem do Texto ocidental? A fins do século XIX (1895), o
erudito alemão Friedrich Blass propôs que Lucas fez uma cópia do
rascunho original de Atos e alterou várias frases, apagando inclusive
algumas orações. O primeiro rascunho é o Texto ocidental e a cópia

Critical Edition with Introduction and Notes on Selected Passages (1933; Oxford: Clarendon, 1970),
p. xxxii.
70
Consulte-se F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and
Commentary, 3ª. ed. rev. e aumentada (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 107.
Atos (Simon J. Kistemaker) 66
alterada e resumida é o Texto alexandrino. Outra teoria é que nos
primeiros séculos, os escribas introduziram frases explicativas e
acrescentaram orações completas derivadas da tradição oral. James
Hardy Ropes diz que “o Texto ‘ocidental’ foi feito antes, e talvez muito
antes, do ano 150, por um cristão que falava grego e que também
conhecia um pouco de hebraico, no Oriente, talvez na Síria ou na
Palestina … A ajuda dos revisores foi para melhorar o texto, não restituí-
lo à sua forma original, e aquele crente viveu não longe do tempo em que
o cânon do Novo Testamento em seu núcleo ficou definitivamente
estruturado”. 71
Nenhuma das hipótese que se sugeriram provou ser convincente ou
tomou uma posição principal.
Em geral, os eruditos adotam o texto alexandrino e seguem a regra
que diz que é preferível o texto mais curto: os escribas parecem tender a
fazer adições ao texto, evidentemente para melhorá-lo, mais que para
resumi-lo. Isto não significa que o grupo de testemunhas ocidentais tenha
perdido credibilidade; ao contrário, cada versículo deve ser julgado à luz
de seus próprios méritos.
Eruditos que investigaram o texto ocidental de Atos descobriram
evidência de antissemitismo. 72 Além disso, F. F. Bruce comenta que se
dissermos que o Texto alexandrino é superior ao ocidental “isto não
supõe que o texto [alexandrino] seja equivalente ao texto original”. 73
Pelo contrário, o papiro manuscrito P45 do século III muito bem poderia
ser mais velho tanto do Texto alexandrino como do ocidental.

71
James Hardy Ropes, “The Text of Acts”, Beginnings, vol. 3, p. ccxliv–cclv. Para uma investigação
ampla das várias hipóteses, veja-se Metzger, Textual Commentary, pp. 260–70.
72
Consulte-se Eldon J. Epp, The Theological Tendency of Codex Bezae Cantabrigiensis in Acts
(Cambridge: Cambridge University Press, 1966), p. 64.
73
F. F. Bruce, “Acts of the Apostles”, ISBE, vol. 1, p. 35; seu Atos (texto grego), p. 109.
Atos (Simon J. Kistemaker) 67
I. Propósito

Foi o propósito de Lucas escrever Atos como uma história da igreja


primitiva? Como já notamos, seria difícil crer nisso, porque a obra não é
uma crônica construída cuidadosamente sobre acontecimentos históricos.
Na verdade, Lucas traça o nascimento, crescimento e desenvolvimento
da igreja, mas estritamente falando, Atos não é, em si, um livro de
história. Até o título de Atos falha em mostrar que é um livro de história.
É conhecido como “Atos dos Apóstolos”.
Aceitando que Lucas escreveu um livro sobre os começos da
história da igreja, ele nunca foi considerado como um pai da história da
igreja; sim, é reconhecido como evangelista. Eusébio escreveu história
da igreja e por tais obras é reconhecido como um historiador. Lucas, pelo
contrário, como um dos quatro Evangelistas apresenta as boas novas de
Jesus Cristo. 74 Dedica seu Evangelho a Teófilo com o propósito de dar a
ele a segurança quanto às coisas que lhe ensinou (Lc. 1:4). Ensina ao seu
amigo Teófilo os ditos e feitos do Senhor Jesus Cristo. Tendo
completado o Evangelho, escreve Atos e o dedica também a Teófilo.
Quer-lhe dizer que a mensagem do evangelho não pode ser
restringida a Israel, porque o evangelho que Jesus proclamou primeiro
aos judeus deve ser proclamado em todo o mundo.
O propósito de Atos, então, é convencer a Teófilo que ninguém
pode impedir a marcha vitoriosa do evangelho de Cristo. Por essa razão,
conta-lhe do progresso das Boas Novas de Jerusalém a Roma. Faz isso
em harmonia com a Grande Comissão que Jesus deu a Seus seguidores
(Mt 28:19). Em Atos, mostra-lhe que os apóstolos, sim, esforçar-se-ão
para cumprir o mandato de Jesus (compare com At 1:8). Demonstra o
desejo de Deus de que o evangelho se estenda, para o qual envia o
Espírito Santo para ajudar neste propósito. Em seu primeiro livro, Lucas
revela que Jesus é o Messias predito no Antigo Testamento pelos

74
van Unnik, “The ‘Book of Acts’ the Confirmation of the Gospel”, p. 42.
Atos (Simon J. Kistemaker) 68
profetas e quem viria para que se cumprissem as promessas messiânicas.
No segundo, descreve a forma em que o evangelho entra no mundo e
como o nome de Jesus é proclamado a todas as nações. 75
Assim como Lucas teve que ser seletivo com seu material quando
escreveu o Evangelho, da mesma maneira teve que sê-lo na seleção dos
elementos que necessitou para a composição de Atos. Faz um desenho
do progresso do evangelho, e por isso dedica muito tempo e energia à
visita de Pedro a Cesareia. Dedica um capítulo e meio à visita de Pedro à
casa de Cornélio (At 10:1–11:18). Para ele, um cristão gentio, este é o
ponto na história no qual os gentios recebem as boas novas de salvação e
chegam a ser parte da comunidade de crentes.
Também, e de uma forma muito elaborada, Lucas descreve a
viagem de Paulo a Roma, para o qual utiliza perto de dois capítulos (At
27 e 28). Seu propósito é delinear a intenção de Satanás para frustrar a
missão de Paulo à igreja romana. Quando Paulo chegou à cidade
imperial, durante dois anos a casa que alugou foi o quartel general da
igreja nascente. Dali saíram missionários para todo mundo imperial
romano. De forma conclusiva Lucas cumpriu o propósito de seu livro ao
terminá-lo com sua referência ao trabalho de Paulo em Roma.

J. Temas

Atos trata uma quantidade de temas que o escritor entretece na


estrutura do livro. É possível identificar cada um e ao fazê-lo, ter mais
clara a intenção de Lucas ao escrever Atos.
1. O tema do Espírito Santo é resumido em At 1:8 - “mas recebereis
poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas
tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins
da terra”. No Pentecostes é derramado o Espírito Santo sobre os judeus

75
Consulte-se Jacques Dupont, The Salvation of the Gentiles: Essays on the Acts of the Apostles, trad.
por John R. Keating (Nova York: Paulist, 1979), p. 33.
Atos (Simon J. Kistemaker) 69
em Jerusalém. Os samaritanos o recebem quando Pedro e João os
visitam, oram por eles e lhes impõem as mãos. Logo, o Espírito Santo
instrui Pedro a acompanhar os servos de Cornélio, viaje a Cesareia, e
pregue o evangelho aos gentios, representados por Cornélio e sua
família. O Espírito Santo desce também sobre eles. Por último, em
Éfeso, Paulo encontra discípulos de João Batista, os quais não têm
notícias da vinda do Espírito. Quando Paulo impõe suas mãos sobre estes
discípulos, também eles recebem o dom do Espírito Santo.
2. O seguinte assunto é o tema missionário. Pedro e os Onze
proclamam o evangelho em Jerusalém principalmente aos judeus que
falam o aramaico. Estêvão prega as Boas Novas na Sinagoga dos libertos
a judeus cuja língua mãe é o grego. Filipe vai a Samaria onde prega a
palavra e batiza. Quando os apóstolos chegam a aceitar os samaritanos
como membros da igreja, Filipe viaja para Gaza e explica ao eunuco
etíope o significado de Isaías 53. Depois de batizá-lo, continua pregando
em numerosos lugares ao longo da costa do Mediterrâneo até que chega
a Cesareia. Pedro estende seu ministério para além da cidade de
Jerusalém e viaja a Lida e a Jope para fortalecer as igrejas ali
estabelecidas. De Jope viaja a Cesareia para ensinar o evangelho na casa
de Cornélio e receber aos gentios no seio da igreja.
Paulo, convertido em caminho para Damasco, prega nas sinagogas
locais dessa cidade, vai a Jerusalém, onde debate com os judeus de fala
grega, viaja a Tarso via Cesareia e supõe-se que inicia igrejas na Cilícia
e na Síria do Norte. Barnabé é enviado a Antioquia para organizar uma
igreja formada por cristãos tanto judeus como gentios. Ele e Paulo são
enviados a Chipre e à Ásia Menor para pregar aos gentios. Em sua
segunda viagem missionária, Paulo estende seu ministério até cruzar o
Mar Egeu e começa a obra na Europa (Macedônia e Grécia). Durante sua
terceira viagem missionária, escreve uma carta à igreja em Roma na qual
expressa aos crentes dali seu desejo de visitá-los. Depois de dois anos na
prisão, chega à cidade imperial.
Atos (Simon J. Kistemaker) 70
3. A autoridade dos apóstolos e da igreja de Jerusalém é outro tema
de Atos. Os apóstolos são peças-chave para a organização da igreja em
Jerusalém, ensinam ao povo a doutrina apostólica, recebem donativos
para os pobres, e nomeiam sete homens para fiscalizar a distribuição de
alimentos. Também fiscalizam o expansão da igreja entre os samaritanos
em Samaria e dos gentios em Cesareia. A igreja de Jerusalém nomeia
Barnabé para ir a Antioquia e esta igreja provê liderança ao Concílio de
Jerusalém. Por último, na conclusão de cada excursão missionária, Paulo
visita Jerusalém para informar à igreja a respeito do trabalho realizado.
4. O tema da oposição à expansão do evangelho é evidente do
principio ao fim do livro. Os zombadores do Pentecostes acusam os
apóstolos de estarem bêbados. O Sinédrio prende Pedro e João por
pregarem no Pórtico de Salomão. Ananias e Safira buscam minar a
integridade da igreja através do engano. Os apóstolos são presos,
encarcerados, livrados por um anjo e açoitados por ordem do Sinédrio.
Estêvão é apedrejado e morto; mas Paulo, depois de experimentar um
ataque similar em Listra, sobrevive. Paulo e Silas, açoitados e
encarcerados em Filipos, são expulsos de Tessalônica e Bereia. Mas
onde quer que os apóstolos encontram oposição, o evangelho é pregado e
florescem as igrejas. Os esforços de Satanás por bloquear a divulgação
do evangelho não só são fúteis; sem lugar a dúvida, ajudam o
crescimento da igreja.
5. Um último tema é a defesa do evangelho. Jesus preveniu os Seus
discípulos que seriam arrastados diante dos concílios, açoitados nas
sinagogas, e levados diante de governadores e reis. Disse-lhes que não
tivessem medo, porque Deus lhes daria Seu Espírito que falaria por eles
e através deles (Mt 10:17–20). Pedro se dirige a uma multidão de vários
milhares de judeus no Pentecostes com o resultado de que três mil se
arrependem, creem e são batizados. Pondo-se no meio e enfrentando os
membros do Sinédrio, Pedro e João defendem a causa do evangelho.
Falam com tal convicção que os membros do Sinédrio devem reconhecer
que os homens tinham sido discípulos de Jesus. Pedro repreende Simão,
Atos (Simon J. Kistemaker) 71
o mago por desejar comprar o dom do Espírito Santo e Paulo se opõe ao
engano de Barjesus. Habilmente Paulo defende o evangelho diante dos
filósofos atenienses e procura persuadir dois governadores (Félix e
Festo) e o rei Agripa a que decidam tornar-se cristãos. De uma das
epístolas de Paulo aprendemos que, enquanto em Roma está sob prisão
domiciliar, é o instrumento para que se converta o guarda do palácio do
César com sua família (Fp 1:13; 4:22). Lucas apresenta tanto Pedro
como Paulo como defensores do evangelho de Cristo.

K. Esboço

Primeiro, aqui temos um esboço de Atos de dez pontos que, por sua
ordem tão simples, não apresenta dificuldades aos estudantes que
queiram aprendê-lo de cor:

At 1:1–26 Antes de Pentecostes


At 2:1–8:1a A igreja em Jerusalém
At 8:1b–11:18 A igreja na Palestina
At 11:19–13:3 A igreja em Antioquia
At 13:4–14:28 A primeira viagem missionária
At 15:1–35 O Concílio em Jerusalém
At 15:36–18:22 A segunda viagem missionária
At 18:23–21:16 A terceira viagem missionária
At 21:17–26:32 Em Jerusalém e Cesareia
At 27:1–28:31 Viagem a e permanência em Roma

Segundo, a seguir temos um esboço completo, com todos os seus


detalhes:
Atos (Simon J. Kistemaker) 72
I. At 1:1–26 - Antes do Pentecostes
At 1:1–8 - Antes da ascensão de Jesus
Introdução - At 1:1–5
Propósito - At 1:6–8
At 1:9–11 - A ascensão de Jesus
At 1:12–14 - Depois da ascensão de Jesus
At 1:15–26 - A eleição de Matias
Cumprem-se as Escrituras - At 1:15–20
Requisitos apostólicos - At 1:21–22
Eleição divina - At 1:23–26
II. At 2:1–8:1a - A igreja em Jerusalém
At 2:1–47 - Pentecostes
Derramamento do Espírito - At 2:1–13
O sermão de Pedro - At 2:14–21
A comunidade cristã - At 2:42–47
At 3:1–5:16 - O poder do nome de Jesus
Cura do paralítico - At 3:1–10
Discurso de Pedro - At 3:11–26
Diante do Sinédrio - At 4:1–22
Orações da igreja - At 4:23–31
Amor dos santos - At 4:32–37
Engano de Ananias - At 5:1–11
Milagres de cura - At 5:12–16
At 5:17–42 - Perseguição
Arresto e libertação - At 5:17–20
Liberdade e consternação - At 5:21–26
Acusação e resposta - At 5:27–32
Sabedoria e persuasão - At 5:33–40
Regozijo - At 5:41–42
At 6:1–8:1a - Ministério e morte de Estêvão
Eleição de sete homens - At 6:1–7
Arresto de Estêvão - At 6:8–15
Atos (Simon J. Kistemaker) 73
Discurso de Estêvão - At 7:1–53
Morte de Estêvão - At 7:54–8:1a
III. At 8:1b–11:18 - A igreja na Palestina
At 8:1b–3 - Perseguição
At 8:4–40 - Ministério de Filipe
Em Samaria - At 8:4–25
Ao etíope - At 8:26–40
At 9:1–31 - Conversão de Paulo
Paulo em caminho para Damasco - At 9:1–9
Paulo em Damasco - At 9:10–25
Paulo em Jerusalém - At 9:26–30
Conclusão - At 9:31
At 9:32–11:18 - Ministério de Pedro
Milagre em Lida - At 9:32–35
Milagre em Jope - At 9:36–43
Chamado de Pedro - At 10:1–8
Visão de Pedro - At 10:9–23a
Visita de Pedro a Cesareia - At 10:23b–48
Explicação de Pedro - At 11:1–18
IV. At 11:19–13:3 - A igreja em transição
At 11:19–30 - Ministério de Barnabé
Extensão do Evangelho - At 11:19–21
Missão de Barnabé - At 11:22–24
Cristãos em Antioquia - At 11:25–26
Predição e cumprimento - At 11:27–30
At 12:1–19 - Pedro escapa da prisão
Detido por Herodes - At 12:1–5
Libertado por um anjo - At 12:6–11
A igreja em oração - At 12:12–17
Reação de Herodes - At 12:18–19
At 12:20–25 - Morte de Herodes Agripa I
At 13:1–3 - Comissiona-se a Paulo e a Barnabé
Atos (Simon J. Kistemaker) 74
V. At 13:4–14:28 - Primeira viagem missionária
At 13:4–12 - Chipre
Sinagoga judaica - At 13:4–5
Barjesus - At 13:6–12
At 13:13–52 - Antioquia da Pisídia
Convite - At 13:13–15
História do Antigo Testamento - At 13:16–22
Vinda de Jesus - At 13:23–25
Morte e ressurreição - At 13:26–31
Boas Novas de Jesus - At 13:32–41
Renova-se o convite - At 13:42–45
Efeito e oposição - At 13:46–52
At 14:1–7 - Icônio
A mensagem é proclamada - At 14:1–3
Divisão - At 14:4–5
Fuga - At 14:6–7
At 14:8–20a - Listra e Derbe
Milagre - At 14:8–10
Resposta - At 14:11–13
Reação - At 14:14–18
Violência - At 14:19–20a
At 14:20b–28 - Antioquia da Síria
As igrejas se fortalecem - At 14:20b–25
Relatório a Antioquia - At 14:26–28
VI. At 15:1–35 - O Concílio de Jerusalém
A cronologia
At 15:1–21 - O debate
A controvérsia - At 15:1–5
O discurso de Pedro - At 15:6–11
Barnabé e Paulo - At 15:12
O discurso de Tiago - At 15:13–21
At 15:22–35 - A carta
Atos (Simon J. Kistemaker) 75
Os mensageiros - At 15:22
A mensagem - At 15:23–29
O efeito - At 15:30–35
VII. At 15:36–18:22 - Segunda viagem missionária
At 15:36–16:5 - Voltam a visitar as igrejas
Separação - At 15:36–41
Derbe e Listra - At 16:1–5
At 16:6–17:15 - Macedônia
Chamado macedônico - At 16:6–10
Filipos - At 16:11–40
Tessalônica - At 17:1–9
Bereia - At 17:10–15
At 17:16–18:17 - Grécia
Atenas - At 17:16–34
Corinto - At 18:1–17
At 18:18–22 - Retorno a Antioquia
VIII. At 18:23–21:16 - Terceira viagem missionária
At 18:23–28 - A Éfeso
Em Éfeso
O batismo de João - At 19:1–7
O ministério de Paulo - At 19:8–12
O nome de Jesus - At 19:13–20
O plano de Paulo - At 19:21–22
A ofensa de Demétrio - At 19:23–41
At 20:1–21:16 - A Jerusalém
Através da Macedônia - At 20:1–6
Em Trôade - At 20:7–12
Em Mileto - At 20:13–38
A viagem - At 21:1–16
IX. At 21:17–26:32 - Em Jerusalém e Cesareia
At 21:17–23:22 - Em Jerusalém
Chegada de Paulo - At 21:17–26
Atos (Simon J. Kistemaker) 76
Prisão de Paulo - At 21:27–36
Discurso de Paulo - At 21:37–22:21
Juízo a Paulo - At 22:22–23:11
Proteção de Paulo - At 23:12–22
At 23:23–26:32 - Em Cesareia
Paulo é transferido - At 23:23–35
Paulo diante de Félix - At 24:1–27
Paulo diante de Festo - At 25:1–12
Paulo e Agripa II - At 25:13–27
Defesa de Paulo - At 26:1–32
X. At 27:1–28:31 - Viaje a e permanência em Roma
At 27:1–44 - De Cesareia a Malta
A Creta - At 27:1–12
A tempestade - At 27:13–44
At 28:1–16 - De Malta a Roma
Em Malta - At 28:1–10
A Roma - At 28:11–16
At 28:17–31 - Prisão em Roma
Atos (Simon J. Kistemaker) 77

I. ANTES DO PENTECOSTES
(AT 1:1-26)
Atos (Simon J. Kistemaker) 78
ATOS 1
A. Antes da ascensão de Jesus (At 1:1–8)

1. Introdução (At 1:1–5)

Na primeira frase deste livro, Lucas deixa claramente estabelecido


que ele é o escritor do terceiro Evangelho. Tanto seu Evangelho como os
Atos ele os dedica a Teófilo, um gentio convertido ao cristianismo.
Embora Lucas evite mencionar o seu próprio nome, o estilo, o
vocabulário, e a seleção de palavras apontam para uma só pessoa como
escritora de ambos os livros.
Os primeiros dois versículos de Atos servem de ponte entre o relato
do Evangelho sobre a vida e ministério de Jesus e os fatos históricos da
nascente igreja. Na verdade, o Evangelho de Lucas e Atos são um só
livro em duas partes; Atos é a continuação do Evangelho.
1. O primeiro livro, Teófilo, escrevi a respeito de tudo o que Jesus
começou a fazer e a ensinar.
Observe os seguintes pontos:
a. O Evangelho. Lucas refere-se ao terceiro Evangelho como “o
primeiro livro”. 76 No grego, a expressão anterior ou primeiro significa o
primeiro de dois ou mais assuntos. Neste caso, Lucas escreve só dois
livros, o Evangelho e Atos. Faz uma distinção entre os dois documentos
ao chamar o primeiro deles o “primeiro”. Perguntar se foi planejado um
terceiro volume a respeito da história da igreja depois da libertação de
Paulo da casa onde estava preso em Roma seria mera especulação e uma
tentativa completamente fútil.
b. O nome. Lucas dedica seu Evangelho e Atos a Teófilo. Este
nome significa “amigo de Deus” e é usado tanto por judeus como por

76
Bauer (p. 477) dá três exemplos do Heródoto, Platão e Filo que são similares no uso de palavras à
primeira frase em At 1:1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 79
77
gentios. No prólogo do Evangelho, Lucas chama Teófilo
“excelentíssimo”, expressão que também se usa com relação aos
governadores romanos Félix e Festo (veja-se At 23:26; 24:3; 26:25).
Supõe-se que Teófilo pertence à classe social educada e governante. É
um homem temente a Deus que assiste aos cultos de adoração numa
sinagoga judaica mas que se opõe a ser circuncidado. Portanto, não se
procura um converso ao judaísmo, e sim, como Cornélio, o centurião
romano (At 10:1–2), adora ao Senhor e Deus. Ao dedicar seu Evangelho
a Teófilo (Lc 1:3), Lucas o apresenta ao Senhor Jesus Cristo em palavras
e obras. E embora em Atos não oferece maiores detalhes a respeito dele,
supomos que ao ler o Evangelho é que Teófilo chega a ser cristão.
c. A pessoa. “A respeito de tudo o que Jesus começou a fazer e a
ensinar”. Não obstante que o Evangelho de Lucas é mais extenso que os
outros três Evangelhos, Lucas não pretende ter recolhido tudo o que
Jesus disse e fez (compare-se Jo. 21:25). Usa o adjetivo tudo para incluir
tudo o que mencionou a respeito de Jesus no terceiro Evangelho. Nos
primeiros onze versículos do capítulo 1, o sujeito predominante é
Jesus. 78 Com a cláusula “tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar”,
Lucas sugere que seu relato em Atos é uma continuação do que Jesus
disse e fez conforme o registrado no Evangelho. Ele escreve a respeito
de Jesus, o sujeito tanto do Evangelho como de Atos.
2. Até o dia em que foi recebido acima, depois de ter dado
mandamentos pelo Espírito Santo aos apóstolos que tinha escolhido.
Neste versículo, Lucas apresenta três diferentes temas:
a. A ascensão. Dos quatro evangelistas, só Lucas faz um relato
descritivo da ascensão de Jesus. Conclui seu Evangelho com um breve
resumo deste acontecimento (Lc 24:50–53), volta ao assunto no primeiro
capítulo de Atos (At 1:2), e apresenta mais tarde no mesmo capítulo,

77
Consulte-se SB, vol. 2, p. 588. Veja-se Antiguidades de Josefo 17.4.2 [78]; 18.5.3 [124], quem
afirma que o nome Teófilo pertence ao povo judeu.
78
Em Atos, Jesus é também o sujeito de numerosas outras passagens (p. ex. At 2:33; 7:55, 59; 9:5,
10–16, 34; 10:13–15; 16:7; 18:9; 20:35; 22:7–10, 18–21; 23:11; 26:14–17).
Atos (Simon J. Kistemaker) 80
uma descrição mais detalhada do mesmo (vv. 9–11). Com a narração que
faz da ascensão, o Evangelho e Atos ficam unidos, visto que este a
começa onde aquele a termina.
No Novo Testamento, o verbo grego traduzido como “foi tomado
acima” frequentemente descreve a ascensão de Jesus ao céu. 79 Sem a
frase qualificativa acima no céu, o próprio verbo “testifica da
familiaridade da igreja apostólica com a Ascensão como um
acontecimento real e reconhecido na vida do Senhor”. 80 Aqui Lucas
menciona brevemente a ascensão e assim resume um assunto que
ampliará mais tarde neste mesmo capítulo.
b. A instrução. Lucas escreve, “depois de ter dado mandamentos
pelo Espírito Santo aos apóstolos que tinha escolhido”. Indiretamente,
está relacionando a ascensão de Jesus com um elemento da Grande
Comissão. Antes de subir ao céu, Jesus deu instruções aos onze
discípulos para que fizessem discípulos de todas as nações, ensinando-os
“a guardar todas as coisas que vos mandei” (Mt. 28:20). Durante o
transcurso dos quarenta dias entre Sua ressurreição e Sua ascensão, Jesus
instruiu os Seus discípulos no ensino do evangelho. De acordo com isso,
preparou-os para a tremenda tarefa que os aguardava no dia do
Pentecostes e depois.
No grego, a frase pelo Espírito Santo pode ser tomada tanto com
relação às palavras precedentes: ter dado mandamentos, como com o
verbo seguinte: que tinha escolhido. Em vista da ênfase de Lucas a
respeito da obra do Espírito no capítulo 1, os eruditos preferem
relacionar a frase com as palavras precedentes. Donald Guthrie escreve:
“Lucas mostra com toda clareza que ele vê seu livro como o resultado
das revelações do Espírito do Senhor ressuscitado aos apóstolos”. 81 O
79
Cf. Mc. 16:19; At. 1:2, 11, 22; 1 Ti. 3:16. Consulte-se Burghard Siede, NIDNTT, vol. 3, p. 749;
Gerhard Delling, TDNT, vol. 4. p. 8. Também Jacques Dupont, “’Anelēmphthē (Act i.2)”, NTS 8
(1962): 154–57.
80
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 2.
81
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 536.
Atos (Simon J. Kistemaker) 81
Espírito Santo habitava em Jesus, porque Jesus soprou sobre Seus
discípulos e lhes deu o Espírito Santo (Jo 20:22). Em Seu ministério, Ele
dirigiu os Seus apóstolos através do Espírito Santo (veja-se, p. ex., At
16:7). O Espírito de Jesus é o Espírito Santo.
c. A eleição. “Os apóstolos que tinha escolhido”. Lucas usa o termo
apóstolos, visto que em Atos ele caracteriza os crentes como discípulos,
e os apóstolos como mestres. Na verdade, estes discípulos recebem
instrução do ensino dos apóstolos (At 2:42); também, os apóstolos de
Jesus ensinam com autoridade em nome de Jesus Cristo. 82 O próprio
Jesus escolheu doze apóstolos (os onze mais Matias) e os enviou como
Seus embaixadores a proclamar o evangelho e a realizar milagres em Seu
nome. O Espírito Santo confirmou a eleição destes doze, ao enchê-los no
dia do Pentecostes (At 2:4).
3. A eles também, depois de ter padecido, apresentou-se vivo com
muitas provas indubitáveis, aparecendo a eles durante os quarenta dias e
lhes falando a respeito do reino de Deus.
Numa breve cláusula, “depois de ter padecido”, Lucas resume os
acontecimentos da Semana da Paixão que havia descrito em detalhe no
Evangelho. Para ele, uma prova suficiente de que Jesus vive é uma
referência a suas aparições depois de ter ressuscitado. De acordo com o
relato dos quatro Evangelhos, Atos, e a primeira epístola de Paulo aos
coríntios, Jesus se apareceu dez vezes no período que vai entre no
domingo da Ressurreição e o Dia da Ascensão. Ele o fez perante:
1. As mulheres na tumba (Mt 28:9–10)
2. Maria Madalena (Mc 16:9–11; Jo 20:11–18)
3. Os dois homens a caminho de Emaús (Mc 16:12; Lc. 24:13–32)
4. Pedro em Jerusalém (Lc 24:34; 1Co 15:5)
5. Dez discípulos (Lc 24:36–43; Jo 20:19–23)
6. Onze discípulos (Jo 20:24–29; 1Co 15:5)
7. Os sete discípulos que pescam na Galileia (Jo 21:1–23)
82
Para um estudo completo do conceito apóstolo, veja-se especialmente Karl Heinrich Rengstorf,
TDNT, vol. I pp. 407–45; Dietrich Müller, NIDNTT, vol. I, pp. 128–35.
Atos (Simon J. Kistemaker) 82
8. Onze discípulos na Galileia (Mt 28:16–20; Mc 16:14–18)
9. Quinhentas pessoas (presumivelmente na Galileia; 1Co 15:6)
10. Tiago, o irmão do Senhor (1Co 15:7)
A última aparição de Jesus ocorreu quando subiu ao céu do Monte
das Oliveiras, perto de Jerusalém.
Todas estas aparições mostram, conforme diz Lucas, que “depois de
ter padecido, [Jesus] apresentou-se vivo, com muitas provas
indubitáveis”. A obra que Jesus começou a fazer durante o Seu
ministério terrestre continua, porque Jesus vive.
A ascensão de Jesus teve lugar no quadragésimo dia depois de Sua
ressurreição e dez antes de Pentecostes, palavra que em grego quer dizer
“quinquagésimo”. Durante esses quarenta dias, Jesus instruiu os Seus
discípulos a respeito das coisas relacionadas com “o reino de Deus”.
Com esta resumida afirmação, Lucas volta a chamar a atenção de seus
leitores a seu Evangelho. O Evangelho de Lucas registra mais de trinta
vezes a expressão reino de Deus; em Atos também aparece várias vezes
(At 1:6; 8:12; 14:22; 19:8; 20:25; 28:23, 31). Por comparação, Mateus
desenvolve o conceito do reino e usa a expressão reino dos céus (ou, de
Deus) ao menos cinquenta vezes.
Qual é a mensagem do reino de Deus? Este modismo resume o
coração do ensino de Jesus. O reino é o governo de Deus nos corações e
vidas de Seu povo, aqueles que como cidadãos deste reino recebem a
remissão de pecados e a vida eterna. 83 Ainda mais, para os apóstolos, a
frase o reino de Deus significava pregar as boas novas da morte e
ressurreição de Jesus e fazer discípulos de todas as nações. “Infere-se
que a igreja pode adotar a mensagem de Jesus, tal como está registrada
nos Evangelhos, e torná-la parte de si mesma”. 84

83
Consulte-se John Calvin, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. por David W. Torrance e
Thomas F. Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. I, pp. 24–25.
84
I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: An Introduction y Commentary, série de comentários
do Novo Testamento de Tyndale (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), pp. 57–
58.
Atos (Simon J. Kistemaker) 83
4, 5. E estando juntos, mandou-lhes: “Não saiam de Jerusalém, mas
esperem a promessa de meu Pai, da qual me ouviram falar. Porque João
batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro
de poucos dias.
As traduções variam a respeito da primeira parte deste versículo.
Algumas dizem: “Enquanto comia com eles, deu-lhes esta ordem …”
(NIV). Esta ideia se obtém da palavra grega sunalizomenos. É
interessante notar que esta expressão encontra-se só uma vez no Novo
Testamento, portanto deve ser traduzida com sumo cuidado. O sentido
primário do termo grego é “comendo [sal] com alguém”. Embora tenham
surgido algumas objeções a esta forma de traduzir a primeira parte do
versículo, parece ter certo respaldo nas palavras de Pedro: “A este
ressuscitou Deus no terceiro dia e concedeu que fosse manifesto, não a
todo o povo, mas às testemunhas que foram anteriormente escolhidas por
Deus, isto é, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que
ressurgiu dentre os mortos” (At 10:40–41, RA). Em outras palavras,
Jesus comeu com Seus discípulos como uma prova visível de que não
era um fantasma mas um ser humano de carne e ossos (veja-se Lc 24:36–
43). Ao comer com Seus discípulos, Jesus estava lhes demonstrando a
realidade de Sua ressurreição.
“Não saiam de Jerusalém, mas esperem a promessa de meu Pai”.
Esta ordem que Jesus deu a Seus apóstolos devemos vê-la à luz de seu
contexto histórico. Depois de Sua ressurreição, Jesus lhes disse que
voltassem para a Galileia (Mt 28:10; Mc 16:7). Eles obedeceram
prontamente por duas razões: Primeiro, porque poderiam ver mais uma
vez a Jesus na Galileia, como lhes havia dito. E segundo, porque não
tinham nenhum desejo de permanecer em Jerusalém, o lugar onde os
judeus tinham dado morte a Jesus. No entanto, no Domingo de
Ressurreição Jesus já lhes havia dito que, começando em Jerusalém, eles
proclamariam arrependimento e perdão em Seu nome a todas as nações.
Disse-lhes: “Eu envio sobre vós o que prometeu meu Pai; mas
Atos (Simon J. Kistemaker) 84
permanecei na cidade até que sejais revestidos de poder do alto” (Lc
24:49, C.N.T.).
Durante o Seu ministério, Jesus ensinou a Seus discípulos que Seu
Pai enviaria o Espírito. 85 No Pentecostes, Pedro declara que o dom do
Espírito Santo se origina no Pai (cf. At 2:33). Jesus aponta ao Pai e não a
Si mesmo, porque, como o Espírito Santo, Ele foi enviado pelo Pai.
Como porta-voz do Pai, Jesus promete o dom do Espírito (Jo 14:26).
Devido ao fato de que os discípulos tinham estado com Jesus desde
seu batismo (cf. At 1:22), conheciam as palavras ditas por João Batista a
respeito de Jesus. João disse que embora ele batizava com água, Jesus
batizaria com o Espírito Santo e com fogo (Mt 3:11; Lc 3:16). Jesus
lembrou a Seus discípulos as palavras de João: “Porque João certamente
batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro
de poucos dias”. Mais tarde, Pedro repetiu esta frase palavra por palavra
quando informou aos judeus cristãos em Jerusalém sobre sua visita à
casa de Cornélio (At 11:16). Fixe-se que Jesus não diz que Ele batizaria
os apóstolos com o Espírito; mas que seriam batizados e Deus o Pai é o
agente implicado em todo este processo.
O tempo entre a ascensão de Jesus e o derramamento do Espírito
Santo no Pentecostes é breve, só dez dias. Nas palavras de Jesus, o lapso
é de “poucos dias”. Nesse tempo, os discípulos devem encher a vaga
deixada por Judas Iscariotes com uma pessoa que tivesse estado com
Jesus desde o tempo em que o Senhor foi batizado por João. A reiterada
referência a João Batista neste capítulo indica os começos da era do
Novo Testamento.

Considerações doutrinais em At 1:3


Como precursor de Jesus, João Batista proclama que “o reino dos
céus se aproximou” (Mt 3:2). Ao começar o Seu ministério, Jesus prega
a mesma mensagem (Mt 4:17), porque anuncia que o reino de Deus é
85
Mt. 10:20; Jo. 14:16–17, 26; 15:26; 16:7–8, 12–13.
Atos (Simon J. Kistemaker) 85
uma realidade. Aos fariseus, Jesus informa dizendo: “O reino de Deus
está entre vós” (Lc 17:21).
Qual é o efeito do reino de Deus? Primeiro, Jesus quebranta o poder
de Satanás, o príncipe deste mundo. Figurativamente, entra na casa de
Satanás, amarra-o e saqueia suas posses (veja-se Mt 12:29). Jesus então
declara que viu a Satanás caindo do céu como um raio (Lc 10:18), o que
implica que Satanás cedeu o lugar a Jesus. O reino pertence ao Pai, a
quem Cristo apresentará quando submeter ao seu controle todos os Seus
inimigos (1Co 15:24–28).
Jesus dá aos Seus seguidores autoridade para opor-se às forças de
Satanás, para anunciar o reino de Deus, e aplicar os princípios do reino
quanto a retidão, justiça, amor, misericórdia e paz. A mensagem do reino
inclui a remissão de pecados, o dom da vida eterna, a declaração da
autoridade de Jesus sobre qualquer coisa no céu e na terra, e a promessa
de que Jesus está perto de Seu povo até o fim dos tempos (Mt 28:19–20).
Sem dúvida, Jesus é o centro do reino de Deus, porque Ele é Rei dos reis
e Senhor dos senhores (Ap 19:16).

Palavras, frases e construções gregas em At 1:1–4


Versículo 1.
πρῶτον — em seu Evangelho e em Atos, “Lucas não usa πρότερος
[anterior] (adjetivo ou advérbio), assim que πρῶτος [primeiro] em Atos
1:1 com λόγος [relato] não implica τριτος [terceiro]”. 86

Versículo 3
διʼ ἡμερῶν — o caso genitivo denota tempo. A preposição parece
significar “depois” numa construção que é idiomática (cf. Mt 26:61; At
24:17; Gl 2:1).

86
A. T. Robertson, Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 663.
Atos (Simon J. Kistemaker) 86
Versículo 4
συναλιζόμενος — no grego helenista o verbo συναλίζω soletrado
com um α longo significa “eu reúno”, mas com um α breve significa “Eu
como [sal] com outro”. 87 O uso do singular em lugar do plural no
particípio resultaria estranho se significasse “reunir”. Por este motivo,
muitos tradutores se inclinam por comer.

2. Propósito (At 1:6–8)

Na primeira seção deste capítulo, Lucas escreve dois versículos de


introdução (vv. 1–2) que são evidentemente históricos. Logo faz
referência ao período de quarenta dias durante os quais Jesus Se mostrou
aos Seus seguidores e instruiu Seus discípulos (vv. 3–5). Em seguida
refere-se a uma pergunta específica dos onze discípulos e acrescenta a
imediata resposta de Jesus, que na verdade indica o propósito de Lucas
de escrever Atos.
6. Assim que quando se reuniram, perguntavam-lhe: Senhor,
restaura neste tempo o reino a Israel?
Antes da ascensão de Jesus, quando os apóstolos perceberam que
muito em breve as aparições de Jesus chegariam a seu fim, fizeram-lhe
uma pergunta relacionada com o futuro. Como no grego o verbo
perguntar indica repetição, entendemos que os discípulos unanimemente
expuseram o assunto que os preocupava: “Senhor, restauras o reino a
Israel neste tempo?”
Como podemos interpretar essa pergunta? A explicação mais
comum é que os discípulos ainda estão pensando em termos de um reino
político da nação de Israel, no qual Jesus seria o rei terrestre. Durante o
ministério de Jesus, a mãe de Tiago e João pediu que seus filhos
recebessem um lugar especial em Seu reino. Um pouco antes da entrada

87
Consulte-se Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr.
(Londres e Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), pp. 278–79.
Atos (Simon J. Kistemaker) 87
triunfal de Jesus em Jerusalém, ela Lhe perguntou se seus filhos
poderiam sentar-se um à Sua esquerda e o outro à Sua direita em Seu
reino (Mt 20:21). Não obstante a ênfase de Jesus num reino espiritual, no
momento da ascensão os discípulos expressam seu ardente desejo de ser
libertados da opressão estrangeira e Lhe rogam que restaure o reino a
Israel. Para eles, Jesus é seu soberano Senhor.
Ainda se esta explicação fosse válida, devemos examinar
cuidadosamente a petição dos apóstolos. Em primeiro lugar, eles
duvidavam que Jesus nesse tempo restaurasse o reino de Israel. Em Sua
resposta, Jesus não fala de restauração, mas sim de tempo. Diz-lhes:
“Não cabe a vós saber os tempos ou as estações, que o Pai fixou por sua
própria autoridade” (v. 7). Logo, se interpretarmos o texto no sentido de
que se está falando da restauração espiritual de Israel, Jesus dá a
entender que com sua referência a Israel, os discípulos são muito
limitantes. O evangelho de salvação é para todas as nações. Por isso
Jesus lhes diz que serão Suas testemunhas em Jerusalém, na Judeia e
Samaria, e até o fim da terra (v. 8). 88 Em conclusão, à luz da resposta de
Jesus é possível e inclusive plausível dar uma interpretação espiritual à
pergunta dos apóstolos.
7. E lhes disse: Não cabe a vós saber os tempos ou as estações que o
Pai fixou por sua própria autoridade.
Os apóstolos descobrem sua curiosidade com relação ao futuro.
Mas o futuro pertence a Deus, não a eles. Eles deveriam ter lembrado a
observação tão pertinente que fez Moisés: “As coisas secretas pertencem
ao Senhor nosso Deus; mas as reveladas são para nós e para nossos
filhos para sempre” (Dt 29:29). Cada um de nós temos um desejo inato
de poder abrir a cortina que separa o futuro do presente. Mas porque não
temos essa habilidade, necessitamos ajuda. Mas nem sequer Jesus pode
nos revelar o fim dos tempos. Ele diz: “Mas daquele dia e hora ninguém
sabe, nem mesmo os anjos que estão no céu, nem o Filho, mas
88
Consulte-se F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe
Testament, 2 vol. (Amsterdam: Van Bottemberg, 1942), vol. 1, p. 17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 88
unicamente o Pai” (Mc 13:32). Jesus não diz que ignoram o futuro; diz
que os discípulos não têm direito de saber o que está reservado para eles.
“Não cabe toca a vós saber”. Cortesmente, Jesus repreende a Seus
discípulos por sua limitada compreensão da amplitude do reino de Deus.
Ele não quer reprovar, e sim ensinar. 89 O Pai está no controle completo
do calendário dos acontecimentos do mundo e Ele trará tudo ao seu
destino final.
Jesus ensina que os discípulos devem evitar explorar os tempos e as
estações desconhecidos do futuro. Em contraste com os profetas do
Antigo Testamento que olharam o horizonte dos tempos e predisseram o
futuro, os apóstolos do Novo Testamento são testemunhas da vida de
Jesus de Nazaré e falam no tempo presente. Em resumo, os discípulos
testificam do passado (ou seja, a vida de Cristo) em vez de profetizar a
respeito do futuro. 90
“Os tempos ou as estações que o Pai fixou por sua própria
autoridade”. Devido ao fato de que Deus determinou a ordem dos
acontecimentos, nada pode ocorrer por acaso. Como o expressou o
teólogo do século XVI Zacarias Ursinus: “Todas as coisas, na verdade,
vêm a nós não por acaso mas por sua mão paternal”. 91
Note-se que Jesus diz “o Pai” e não “meu Pai”. Com isso parece
sugerir que também os apóstolos chamam a Deus seu Pai. Com Cristo,
são filhos de Deus e podem estar seguros que Deus está no controle
completo de tudo.
8. Mas recebereis poder quando tiver vindo sobre vós o Espírito
Santo, e me sereis testemunhas em Jerusalém, em toda Judeia e em
Samaria, e até os limites da terra.
Aqui, Lucas apresenta o tema de todo o livro. Esta passagem
contém a promessa do Pentecostes e o mandato de ser testemunhas de

89
Compare-se John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols.
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 514.
90
Consulte-se Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 4.
91
Catecismo de Heidelberg, resposta 27.
Atos (Simon J. Kistemaker) 89
Jesus nas seguintes áreas geográficas: Jerusalém, Judeia e Samaria, e
todo mundo.
a. A promessa. Jesus e os discípulos estão num inconfundível
paralelo ao momento de começar seus respectivos ministérios. Quando
Jesus foi batizado, o Espírito Santo desceu sobre Ele e O fortaleceu para
fazer frente ao poder de Satanás (veja-se Mt 3:16). Antes que os
apóstolos estivessem capacitados a assumir sua tremenda
responsabilidade de construir a igreja de Cristo e conquistar as fortalezas
de Satanás, eles recebem o poder do Espírito Santo. No Domingo de
Ressurreição no cenáculo, Jesus soprou sobre os apóstolos e disse:
“Recebei o Espírito Santo” (Jo 20:22). Mas imediatamente antes, disse-
lhes: “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21).
O Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Por exemplo, Jesus
informa aos discípulos em Seu discurso de despedida: “Mas quando vier
o Consolador, a quem eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da
verdade, o qual procede do Pai, ele dará testemunho de mim” (Jo.
15:26). O Espírito Santo, então, não é uma força inanimada, mas é a
terceira pessoa da Trindade. E a promessa do Espírito origina-se com o
Pai: “Eis aqui, eu enviarei a promessa de meu Pai sobre vós” (Lc
24:49a).
b. O mandato. Só através da plenitude da pessoa e o poder do
Espírito Santo, podem os discípulos ser testemunhas de Cristo Jesus.
Porém não só os discípulos recebem o dom do Espírito, mas também,
como Lucas o assinala em Atos, numerosas pessoas são cheias com o
Espírito Santo e chegam a ser testemunhas de Cristo. “Uma testemunha
efetiva só pode estar onde o Espírito está, e onde o Espírito está, a
testemunha efetiva sempre O seguirá”. 92 A palavra de Jesus: “Recebereis
poder” aplica-se primeiro aos doze apóstolos e logo a todos os crentes
que são efetivamente testemunhas de Cristo Jesus.

92
David John Williams, Acts, série Good News Commentaries (San Francisco: Harper and Row,
1985), p. 8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 90
“Ser-me-eis testemunhas”. Em Atos, o termo testemunhas tem um
significado duplo. Primeiro, refere-se à pessoa que observou um fato ou
acontecimento. E segundo, refere-se à pessoa que apresenta um
testemunho por meio do qual defende e promove uma causa. De acordo
com isso, os apóstolos escolhem Matias para que suceda a Judas
Iscariotes porque como testemunha ocular, tinha seguido a Jesus desde
os tempos de seu batismo por João até o momento da ascensão. Portanto,
Jesus encarrega a Matias proclamar a mensagem de Sua ressurreição (At
1:21–22). 93
No sentido estrito da palavra, a palavra testemunha não se aplica a
Paulo e a Barnabé, os quais durante sua primeira viagem missionária
proclamaram a mensagem da ressurreição de Jesus às pessoas de
Antioquia da Pisídia (At 13:31). Paulo e Barnabé declaram que eles não
são testemunhas, e sim anunciam as Boas Novas. 94 No dia do
Pentecostes Jesus envia os doze apóstolos como verdadeiras testemunhas
de tudo o que Ele havia dito e feito.
Estes doze viram e ouviram Jesus e agora falam com outros dEle
(compare-se 1Jo. 1:1). Cheios do Espírito Santo, começam a proclamar
as Boas Novas em Jerusalém (veja-se Lc 24:47). Logo pregam o
evangelho nas regiões da Judeia e Samaria, e até chegam a Roma. Roma
era a capital do império de onde saíam todos os caminhos, como os raios
de uma roda, e chegavam a todos os rincões do mundo até então
conhecido (cf. Is 5:26: “o extremo da terra”). No terceiro Evangelho,
Lucas dirige a atenção a Jerusalém, onde Jesus sofre, morre, ressuscita
da morte, e ascende. Em Atos, enfoca a atenção sobre Roma, como o
destino do evangelho de Cristo. De Roma, as Boas Novas alcançam a
todo mundo.

93
O substantivo grego para “testemunha” aparece treze vezes em Atos (At 1:8, 22; 2:32; 3:15; 5:32;
6:13; 7:58; 10:39, 41; 13:31; 22:15, 20; 26:16). É interessante notar que das trinta e quatro vezes que
aparece no Novo Testamento, Atos tem o maior número, seguido por nove nas epístolas de Paulo e
cinco em Apocalipse.
94
Consulte-se Hermann Strathmann, TDNT, vol. 4, p. 493; Lothar Coenen, NIDNTT, vol. 3, p. 1044.
Atos (Simon J. Kistemaker) 91
Palavras, frases e construções gregas em At 1:6 e 8
Versículo 6
εἰ — quando esta partícula é usada para introduzir uma pergunta
direta, não é traduzida.
μὲν οὗν — em Atos, esta combinação aparece com frequência, não
para mostrar contraste, senão para introduzir uma nova seção da
narrativa, com o significado de “assim então”. 95

Versículo 8
ἐπελθόντος — o particípio ativo aoristo no caso genitivo é parte da
construção genitiva absoluta. A forma composta do particípio é diretiva
devido à repetição de ἐπί (sobre).
Ἰουδαία … Σαμαρεία “estas duas províncias romanas são distintas,
mas adjacentes”. 96

B. A ascensão de Jesus (At 1:9–11)

A ascensão de Jesus aos céus é um acontecimento histórico. Os


cristãos o lembram no décimo quarto dia depois de Semana Santa, um
dia quinta-feira, e dez dias antes do Pentecostes. Na verdade, algumas
igrejas até celebram um serviço ao Dia da Ascensão para celebrar a
tomada de posse do trono de Cristo Jesus. E em sua adoração, confessam
pessoalmente que Jesus “está sentado à destra de Deus Pai Todo-
poderoso” (Credo dos Apóstolos).
9. E tendo dito estas coisas, foi levantado enquanto eles olhavam.
Uma nuvem o ocultou de seus olhos.

95
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
187.
96
Robertson, Grammar, p. 787.
Atos (Simon J. Kistemaker) 92
Lucas registra o fato da ascensão de Jesus em tão poucas palavras
que é surpreendente. Na conclusão de seu Evangelho diz que Jesus levou
os Seus discípulos aos arredores de Betânia, a menos de quatro
quilômetros de Jerusalém (Lc 24:50; Jo 11:18). Em Atos, diz que o lugar
exato da ascensão foi o Monte das Oliveiras (At 1:12). No Evangelho,
diz que “e elevando suas mãos, abençoou-os [aos discípulos]. E
enquanto os abençoava se separou deles e foi levado ao céu” (Lc 24:50–
51). Mas o relato de Atos só diz: “E tendo [Jesus] dito estas coisas, foi
levantado enquanto eles olhavam”.
a. “Foi levantado enquanto eles olhavam”. Embora no v. 9 Lucas
omita referir-se ao céu, nos vv. 10 e 11, usa quatro vezes a expressão ao
céu. Por que faz a omissão no v. 9? É evidente que Lucas não enfoca a
ascensão do ponto de vista de Jesus mas da perspectiva dos discípulos. 97
Eles estão vendo a ascensão de Jesus da terra ao céu. Devem notar de
que as periódicas visitas do Cristo ressuscitado cessaram com sua
ascensão que marca o fim do tempo em que Ele esteve fisicamente
presente com Seus seguidores. Por isso, nos seguintes capítulos de Atos,
Jesus aparece a Seus apóstolos em visões (p. ex. At 18:9). Note-se que a
construção passiva do verbo foi levantado dá a entender que Deus Pai é
quem leva Jesus ao céu (veja-se v. 2). Esta construção gramatical indica
que a tarefa de Jesus na terra terminou.
b. “E uma nuvem o ocultou de seus olhos”. Não devemos falar da
ascensão em termos de física ou cosmologia, porque a Escritura não quer
nos dar uma lição com relação à localização do céu. “O movimento para
cima é quase a única forma possível de ilustrar uma remoção
completa”. 98 O que interessa a Lucas é que Jesus deixa o cenário deste
mundo e entra na glória celestial. Por outras passagens das Escrituras
sabemos que uma nuvem ocultou a glória celestial do Pai. Uma nuvem
brilhante cobriu Moisés e Elias quando apareceram falando com Jesus na

97
Consulte-se David E. Holwerda, “Ascension” ISBE, vol. 1, p. 311.
98
Guthrie, New Testament Theology, p. 395.
Atos (Simon J. Kistemaker) 93
transfiguração. E desta nuvem os discípulos ouviram a voz de Deus (Mt
17:5; 2Pe 1:7; compare-se também com Êx 40:34–35). 99
10, 11. E, estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto Jesus
subia, eis que dois varões vestidos de branco se puseram ao lado deles e
lhes disseram: Varões galileus, por que estais olhando para as alturas?
Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes
subir.
Podemos fazer as seguintes observações sobre esta passagem:
a. Os discípulos. Embora evidentemente Lucas não seja uma
testemunha ocular da ascensão de Jesus, dá uma vívida descrição do fato.
Descreve os apóstolos admirados olhando para cima. Em seu Evangelho,
afirma que os discípulos adoraram a Jesus e voltaram para Jerusalém
com grande alegria (Lc 24:52). Mas em Atos, dirige a atenção ao seu
olhar surpreso ao céu (veja-se também v. 11). Descreve a emoção que
experimenta o ser humano diante da despedida. No entanto, se há algo de
tristeza neste caso, dissipa-se com a aparição dos dois anjos.
b. Os anjos. Enquanto os discípulos continuam olhando para o céu,
de repente dois homens vestidos de branco aparecem junto a eles.
Obviamente, são anjos enviados por Deus. Observe-se a semelhança aos
dois anjos vestidos de branco que apareceram na tumba vazia no
Domingo de Ressurreição às mulheres e Maria Madalena (Lc 24:4; Jo
20:12). A cor branca simboliza a pureza e a alegria.
Os anjos foram enviados não para repreender, e sim para revelar.
Daí que perguntem: “Varões galileus, por que estais aqui olhando para o
céu?” Podemos supor que os onze discípulos são da Galileia com Judas
Iscariotes como a exceção. Os anjos chamam os apóstolos galileus para
lembrá-los de seu companheirismo com Jesus e seu ministério terrestre
na Galileia. Os anjos vieram para transformar a possível tristeza em
alegria; para assegurar aos discípulos que embora Jesus tenha ascendido,

99
Veja-se George E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p.
334.
Atos (Simon J. Kistemaker) 94
do céu Ele os dirigirá para que cumpram a tarefa; e para lhes dizer que
Cristo voltará no tempo assinalado.
c. Jesus. Como o próprio Jesus prometeu aos apóstolos que Ele
estaria com eles até o fim dos tempos (Mt 28:20), assim os anjos
reafirmam a continuidade desta relação com Jesus. Dizem-lhes que “este
próprio Jesus que foi tirado de vós ao céu, voltará da mesma maneira em
que o vistes ir ao céu”. Os anjos na verdade não estão dizendo nada
novo, e sim afirmam e repetem o que Jesus lhes tinha ensinado durante o
Seu ministério. No final dos tempos, havia lhes dito, “[os homens] verão
o Filho do homem que virá numa nuvem com poder e grande glória” (Lc
21:27). Os anjos põem em equilíbrio a ascensão de Jesus e Sua volta.
Assim como ascendeu, assim voltará. Jesus voltará fisicamente, com o
mesmo corpo glorificado com o que foi ao céu. É consequente com Seu
caráter e Sua palavra que Ele atenda a Sua igreja tanto em matéria de
crescimento como na preparação de um lugar para Seus seguidores (Jo
14:2–3).

Considerações doutrinais em At 1:9–11

Depois da ascensão de Jesus, os discípulos “voltaram para


Jerusalém com grande alegria” (Lc 24:52). Embora Lucas não entre em
detalhes quanto ao incentivo para aquele regozijo, não é difícil para nós
encontrar várias razões para que o crente se alegre com a ascensão de
Cristo.
Primeiro, a entrada de Jesus ao céu com um corpo humano
glorificado é nossa garantia de que nós seremos igualmente glorificados
e com corpo e alma entraremos na presença de Deus. No céu, “o pó da
terra [Gn 2:7] está sobre o trono da majestade nas alturas” onde Cristo
está sentado à destra do próprio Deus. 100

100
Alexander Ross, “Ascension of Christ”, EDT, p. 87.
Atos (Simon J. Kistemaker) 95
Segundo, à destra de Deus o Pai, Jesus é nosso advogado para
defender nossa causa (1Jo 2:1). Quando oramos a Deus em nome de
Jesus, Ele aperfeiçoa nossas orações e as apresenta ao Pai. Jesus conhece
nosso anelo de estar com Ele, de nossas necessidades diárias, e de nossos
pecados. Fala em nosso favor ao Pai e obtém nossa salvação. Durante
Sua ausência física, concede-nos o dom do Espírito Santo para nos guiar
e nos dirigir em nosso viver diário.
Terceiro, a ascensão de Jesus e Sua presença à destra de Deus
marca a tomada de posse de seu trono real. Dali, governa este mundo,
embora este não queira reconhecer Sua soberania. Quando Cristo “tiver
posto todos os seus inimigos debaixo de seus pés” (1Co 15:25), Ele dará
o reino ao seu Pai e então virá o fim. 101

Palavras, frases e construções gregas em At 1:10–11

Versículo 10
παρειοτήκεισαν — este verbo composto de παρίστημι (eu me paro
ao lado) está no mais-que-perfeito, mas é equivalente ao tempo
imperfeito. 102

Versículo 11
ὅν τρόπον — literalmente quer dizer “de que maneira”. Esta
construção “representa uma frase adverbial tal como ἐκεῖνον τρόπον ὅν
…, naquela maneira em que”. 103

101
Compare-se Bruce M. Metzger, “The Meaning of Christ’s Ascension”, CT 10 (Maio 27,
1966):863–64; veja-se também C.F.D. Moule, “The Ascension — Acts 1:9”: ExpT 68 (1957):205–9.
102
Consulte-se Robertson, Grammar, p. 904.
103
C.F.D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge University
Press, 1960), p. 132.
Atos (Simon J. Kistemaker) 96
C. Depois da ascensão de Jesus (At 1:12–14)

Em obediência às instruções de Jesus (At 1:4; Lc. 24:29), os


apóstolos esperam dez dias em Jerusalém a chegada do Espírito Santo.
Durante este tempo de espera, se reúnem diariamente num grande
aposento para orar e preparar-se para o cumprimento da tarefa que os
espera.
12. Então, voltaram para Jerusalém, do monte chamado Olival, que
dista daquela cidade tanto como a jornada de um sábado.
Lucas chama a atenção de seus leitores não aos anjos mas aos
apóstolos que voltam para Jerusalém. Esta cidade tem grande
importância na história do Novo Testamento, porque perto dela Jesus
morreu na cruz e Se levantou da morte. Dali, num sentido mais amplo,
subiu ao céu. E foi onde o Espírito Santo veio sobre os apóstolos.
Jesus subiu ao céu do Monte das Oliveiras. Lucas não especifica o
lugar preciso do qual Jesus partiu, mas o topo deste colina está 60 metros
mais alto que a cidade de Jerusalém (compare Zc 14:4; Mc 11:1), de
onde a vista da cidade é magnífica.
Ao escrever a Teófilo, quem era gentio, Lucas supõe que aquele
conhece a lei e os costumes judaicos, embora talvez não conheça tanto a
topografia palestina. Emprega a expressão popular jornada de um
sábado para indicar distância em lugar de tempo, porque um judeu tinha
permissão de caminhar de Jerusalém uma distância de 1,2 quilômetros
no sábado. 104 Jesus não ascendeu num sábado e sim numa quinta-feira,
que é o dia quarenta depois da Semana Santa (veja-se v. 3).
13. Quando ali entraram, subiram para o cenáculo onde se reuniam
Pedro, João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago,
filho de Alfeu, Simão, o Zelote, e Judas, filho de Tiago.
Os apóstolos voltam para Jerusalém e se congregam no cenáculo
onde acostumavam reunir-se. Lucas assinala que este é o aposento,

104
SB, vol. 2, pp. 590–94. Compare-se Êx. 16:29; Nm. 35:5; Js. 3:4.
Atos (Simon J. Kistemaker) 97
possivelmente o mesmo lugar onde Jesus e Seus discípulos celebraram a
Santa Ceia. No entanto, não há segurança disso já que Lucas usa uma
palavra diferente para referir-se ao quarto da Santa Ceia: chama-o “o
grande quarto do nível superior” (Lc 22:12). De acordo com o relato de
Atos, os discípulos vêm a seu quarto; a palavra em grego significa “sob o
teto”, isto é, na parte de cima. Fazem-no pela escada que se encontra na
parte exterior da casa. Ao que parece, um quarto na parte superior
protegia os ocupantes de interferências externas, pelo que era o lugar
ideal para que os discípulos orassem ali. Embora se saiba que a igreja
primitiva se reunia para orar na casa da mãe de João Marcos (At 12:12)
Lucas não contribui com provas que nos permitam supor que isto é o
mesmo lugar. Os apóstolos continuam reunidos ali até que assumem sua
tarefa o dia do Pentecostes.
Quem são os apóstolos? Os escritores dos Evangelhos sinóticos
deram uma lista (Mt 10:2–4; Mc 3:16–19; Lc 6:14–16), embora na
opinião de Lucas seja necessária outra lista sem o nome de Judas
Iscariotes. Isto implica que os apóstolos devem nomear alguém em lugar
de Judas para manter o número dos doze. Ele nomeia os apóstolos numa
sequência diferente das listas anteriores: Pedro, João, Tiago e André.
Note-se que embora Pedro e André sejam irmãos, aparecem separados
pelos nomes de João e Tiago. Logo estão Filipe e Tomé, Bartolomeu e
Mateus. Os últimos três têm descrições adicionais: Tiago, filho de Alfeu;
Simão, chamado Zelote e Judas, filho de Tiago. A última pessoa também
é conhecida como Tadeu (Mt 10:3; Mc 3:18).
14. Todos estes perseveravam unânimes em oração, com as
mulheres, com Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos dele.
a. Em oração. Na primeira parte deste versículo, Lucas menciona
dois assuntos importantes: Primeiro, os apóstolos estão continuamente
em oração. Esta é uma característica fundamental dos apóstolos e dos
primitivos cristãos. Depois do Pentecostes, os crentes se unem em oração
(At 2:42) e os apóstolos fazem saber que sua tarefa é “dedicar-se à
oração e ao ministério da palavra” (At 6:4). Em seus escritos animam os
Atos (Simon J. Kistemaker) 98
crentes a “orar sem cessar” (1Ts 5:17). Logo, os apóstolos oram “com
um mesmo espírito” (BJ). Elevam suas orações de forma unânime e
manifestam uma perfeita unidade, a que chega a ser uma característica
distintiva da primitiva igreja. 105 É de supor que os apóstolos oram pelo
derramamento do Espírito Santo, cuja vinda Jesus prometeu
repetidamente durante o Seu ministério.
b. Os crentes. Quão crentes permanecem juntos em Jerusalém
constituem o núcleo da igreja cristã. Este núcleo está formado por
homens e mulheres, que se unem ao redor de 120 pessoas (v. 15). Supõe-
se que as mulheres a quem se refere Lucas são aquelas (Maria Madalena,
Joana, Susana e algumas outras) que acompanhavam a Jesus durante Seu
ministério e o sustentavam financeiramente (Lc 8:2–3). Ele O haviam
seguido da Galileia em sua última visita a Jerusalém; permaneciam a
certa distância da cruz de Jesus quando Ele morreu (Lc 23:49; Jo 19:25);
faziam o necessário para preparar Sua sepultura (Lc 23:55–56; 24:1); e
deram a notícia da ressurreição aos discípulos (Lc 24:9–10).
Lucas também se refere a Maria, a mãe de Jesus. Nos primeiros
dois capítulos de seu Evangelho, faz de Maria uma figura central. 106
Indubitavelmente, ela é uma pessoa de grande influência que, com seus
filhos, creu em Jesus. O termo irmãos denota não só filhos nascidos de
José num casamento anterior, mas também filhos nascidos de José e
Maria depois do nascimento de Jesus. Eles são Tiago, José, Simão e
Judas (Mt 13:55; Mc 6:3). Pelos Evangelhos sabemos que os próprios
irmãos de Jesus recusaram crer nEle, até os últimos seis meses de Seu
ministério (Jo 7:5; veja-se também Mc 3:21). Depois da ressurreição,
creram nEle. Assim, lemos que durante os quarenta dias prévios à
ascensão, Jesus apareceu privadamente a Tiago para lhe provar a

105
Consulte-se Williams, Acts, p. 12; Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 39.
106
O nome de Maria aparece dezenove vezes no Novo Testamento, dos quais cinco correspondem a
Mateus (1:16, 18, 20; 2:11; 13:55), uma a Marcos (6:3), doze a Lucas (1:27, 30, 34, 38, 39, 41, 46, 56;
2:5, 16, 19, 34), e uma a Atos (1:14). Maria não só deu à luz seu Filho, mas também esteve presente
no nascimento da igreja.
Atos (Simon J. Kistemaker) 99
realidade de Sua ressurreição (1Co 15:7). Tiago pôs sua fé em Jesus.
Posteriormente chegou a ser dirigente da igreja de Jerusalém e escreveu
uma carta aos cristãos da dispersão (Tg 1:1). E por último, Judas, que se
chamou irmão de Tiago, também escreveu uma epístola canônica (Jd 1).

Palavras, frases e construções gregas em At 1:13–14


Versículo 13
καταμένοντες — com o ativo imperfeito ἦσαν esta construção está
no passado perifrástico e expressa continuidade. O composto neste
gerúndio sugere a ideia do perfectivo.
ζηλωτής — Simão é um zelote. Os Evangelhos de Mateus e Marcos
o chamam um Καναναῖος. Esta palavra não é equivalente de “cananeu”,
mas antes, deriva de uma forma aramaica que significa “zelote” (Mt
10:4; Mc 3:18).

Versículo 14
προσκαρτεροῦντες — esta é parte da construção do passado
perifrástico. O gerúndio composto é perfectivo e tem sua raiz no verbo
καρτερέω (eu sou forte, firme).
ὁμοθυμαδόν — como um advérbio, esta palavra vem de ὁμοῦ
(juntos) e o substantivo θυμός (paixão, ardor).

D. Eleição de Matias (At 1:15–26)

1. Cumprimento das Escrituras (At 1:15–20)

Pela enumeração que Paulo faz das aparições de Jesus depois de


Sua ressurreição, sabemos que foi visto por mais de quinhentas pessoas
ao mesmo tempo (1Co 15:6). Esta aparição pôde ter tido lugar na
Atos (Simon J. Kistemaker) 100
Galileia (Mt 28:10, 16–20). Em Jerusalém, porém, havia 120 crentes que
antes de Pentecostes começaram a reunir-se com os apóstolos.
15-17. Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos (ora,
compunha-se a assembléia de umas cento e vinte pessoas) e disse: Irmãos,
convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu
anteriormente por boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles
que prenderam Jesus, porque ele era contado entre nós e teve parte neste
ministério.
Entre a ascensão de Jesus e o Pentecostes os crentes de Jerusalém se
reúnem não só para orar senão para pensar na situação da vacante
deixada por Judas. Lucas refere-se a este período em termos gerais:
“naqueles dias”. Diz que Pedro é o porta-voz dos apóstolos em sua
comunicação com os crentes. 107 Lucas acrescenta uma nota explicativa
na qual diz literalmente: “Havia no mesmo [lugar] uma multidão de
nomes de aproximadamente cento e vinte”. Os nomes pertencem a
pessoas que são verdadeiros crentes.
Nos primeiros doze capítulos de Atos, Pedro é o líder
inquestionável na igreja de Jerusalém. Aqui começa seu ministério
apostólico. Falando francamente, fala com a multidão e dirige sua
atenção ao cumprimento das Escrituras. Diz-lhes: “Varões e irmãos,” 108
que é uma expressão bastante familiar. Começa suas palavras dizendo
que era necessário que as Escrituras se cumprissem. Pedro baseia seus
comentários na Palavra de Deus e dá a entender que as Escrituras são
autênticas e que inexoravelmente devem cumprir-se. Relaciona a Palavra
escrita com o Espírito Santo, quem por boca de Davi expressou faz
muito tempo a respeito de Judas” (NVI). A Escritura, então, é o produto

107
Ao menos duas traduções têm a expressão discípulo. Os tradutores, contudo, preferem o melhor
texto grego que usa a expressão irmãos. Para evitar a confusão causada pela repetição desta palavra no
versículo anterior (v. 14), onde a referência é aos irmãos de Jesus, os copistas adotaram a expressão
discípulos.
108
No texto grego, esta forma de começar um discurso aparece treze vezes, todas em Atos (1:16; 2:29,
37; 7:2; 13:15, 26, 38; 15:7, 13; 22:1; 23:1, 6; 28:17). Uma forma equivalente em linguagem moderna
seria: “Irmãs e irmãos”, ou “Senhoras e senhores”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 101
do Espírito, como Pedro eloquentemente o deixa estabelecido numa de
suas epístolas (2Pe 1:20–21). Afirma que o Espírito Se comunica
conosco através da boca de Davi, o escritor de numerosos salmos.
A que se refere quando fala de cumprimento? Pedro aponta a Judas,
“quem foi o guia dos que prenderam a Jesus”. Ele mesmo lembra
vividamente a noite em que Jesus foi traído e seu próprio pecado de
negação de Jesus. Não obstante, articula brevemente a acusação contra
Judas, quem com toda intenção traiu a seu Senhor. “Era contado entre
nós e tinha parte neste ministério”. Quase como uma ocorrência tardia,
Pedro faz notar que Judas pertenceu ao círculo dos doze discípulos
durante o ministério terrestre de Jesus. Ao longo deste período, foi um
dos doze escolhidos por Jesus depois que teve passado uma noite em
oração (Lc 6:12–16). Além disso, “Pedro refere-se a Judas como tendo
obtido, mediante a eleição de Jesus, um lugar no ministério
apostólico”. 109 Judas, então, foi escolhido divinamente para ocupar um
lugar entre os apóstolos e servir a Cristo no ministério.
18, 19. (Ora, este homem adquiriu um campo com o preço da
iniquidade; e, precipitando-se, rompeu-se pelo meio, e todas as suas
entranhas se derramaram; e isto chegou ao conhecimento de todos os
habitantes de Jerusalém, de maneira que em sua própria língua esse
campo era chamado Aceldama, isto é, Campo de Sangue.)
Antes de continuar o discurso de Pedro segundo o qual a Escritura
devia cumprir-se “por boca de Davi a respeito de Judas” (v. 16), dá uma
explicação relacionada com a morte deste. Provê informação
suplementar mais que contraditória ao que Mateus diz a respeito do
falecimento de Judas (Mt 27:3–10). Mateus registra o fato de que Judas,
depois que devolveu as trinta moedas de prata aos principais sacerdotes e
aos anciãos, enforcou-se. Os principais sacerdotes decidiram usar o
dinheiro para comprar o campo do oleiro, para usá-lo como sepultura dos
estrangeiros.

109
J. I. Packer, NIDNTT vol. 1, p. 478.
Atos (Simon J. Kistemaker) 102
Numa breve recontagem, Lucas descreve Judas como o comprador
desse campo. Porque os principais sacerdotes consideraram a
recompensa de Judas como preço de sangue, recusaram aceitar as trinta
moedas de prata. Pertenciam a Judas. Então temos que, indiretamente,
foi ele quem comprou o campo do oleiro. Isto é o que Lucas parece ter
em mente quando escreve: “Este pois, com a recompensa de sua
iniquidade, comprou um campo”.
“Caindo de cabeça, arrebentou-se pela metade, e todas suas vísceras
se derramaram”. Embora Lucas não diz que se enforcou (Mt 27:5),
infere-se que a queda de cabeça foi o resultado se tivesse estado
suspenso no ar. A corda pôde ter-se quebrado pelo peso do corpo, ou
pôde ter sido cortada por alguém. Não é tão remota a possibilidade de
que enquanto caía, o corpo tivesse se chocado com um objeto cortante
que o arrebentou. Também inferimos que morreu no campo que os
principais sacerdotes compraram. Lucas assinala que os habitantes de
Jerusalém ouviram de sua horrível morte e chamaram aquele campo “em
sua própria língua, Aceldama, que quer dizer, campo de sangue”. Do
ponto de vista de Mateus, o sangue que foi derramada pertenceu a Jesus.
Por tal razão, o sumo sacerdote chamou as trinta moedas de prata “preço
de sangue” (Mt 27:6). Note-se, porém, que enquanto Mateus escreve
para uma audiência judaica, Lucas o faz para gentios cristãos. Portanto,
os relatos de Mateus e de Lucas não são discrepantes. 110 Mateus e Lucas
são como dois repórteres que descrevem um fato noticioso de diferentes
perspectivas para diferentes audiências.
20. Porque está escrito no Livro dos Salmos: Fique deserta a sua
morada; e não haja quem nela habite; e: Tome outro o seu encargo.
Consideremos os seguintes pontos:
a. O cenário. Lucas volta ao discurso de Pedro e apresenta duas
citações dos salmos que Pedro faz para respaldar sua afirmação. A
primeira é do Salmo 69:25 e a segunda é do Salmo 109:8. Pedro introduz
110
Consulte-se A. B. Gordon, “The Fate of Judas According to Acts 1:18”, EvQ 43 (1971); 97–100;
Max Wilcox, “The Judas-Tradition in Acts 1:15–26”. NTS 19 (1973): 438–52.
Atos (Simon J. Kistemaker) 103
a citação do Antigo Testamento com a frase tão conhecida está escrito;
quer dizer, as Escrituras mantiveram sua vigência, são absolutamente
confiáveis, e devem ser cumpridas.
Os salmos eram bem conhecidos pelos judeus e os primeiros
cristãos. Eram cantados nas sinagogas locais durante os cultos de
adoração e por isso eram aprendidos de cor. Os cristãos davam uma
interpretação messiânica a muitos dos salmos, especialmente quando se
davam conta que o próprio Jesus tinha citado e aplicado algum deles em
particular. Na verdade, quando Jesus purificou o Templo, citou o Salmo
69:9a: “O zelo de tua casa me consumiu” (Jo 2:17).
Paulo cita o Salmo 69:9b e o aplica a Cristo: “Os vitupérios dos que
te vituperavam caíram sobre mim” (Rm 15:3). 111 Este salmo em
particular pertence à categoria que fala dos sofrimentos do Messias. “Os
salmos de paixão são a parte do Antigo Testamento mais frequentemente
citada no Novo Testamento, e depois do Salmo 22 não há outro que seja
citado mais vezes que o Salmo 69”.112 Nem todos os versículos deste
salmo são messiânicos. Alguns descrevem os inimigos de Deus a
respeito dos quais o salmista pronuncia uma maldição. Mas toma um
destes versos e o aplica a Judas. O Salmo 109:8 também contém uma
maldição que Pedro aplica igualmente a Judas.
b. O significado. A fraseologia destas citações é levemente
diferente do texto do Antigo Testamento. Em lugar de usar o singular
“seu” e “lugar”, o salmista usa o plural “seus” e “tendas” (“Fique deserta
a sua morada, e não haja quem habite as suas tendas” [Sl 69:25]).
Pronuncia uma maldição contra os inimigos de Deus e sugere que a
expressão lugar inclui todas as posses materiais que um homem pode ter.
Por contraste, Pedro aplica a expressão a Judas, sua família e suas posses
terrestres, tudo o que é maldito. Logo pensa no lugar apostólico que

111
Paulo cita Sl. 69:22–23 em Rm. 11:9–10. Além disso, há pelo menos doze alusões no Novo
Testamento a versículos do Salmo 69.
112
Franz Delitzsch, Biblical Commentary on the Psalms, trad. por Francis Bolton, 3 vols. (1877;
Grand Rapids: Eerdmans, 1955), vol. 2, p. 277.
Atos (Simon J. Kistemaker) 104
Judas ocupou durante o ministério de Jesus e cita o Salmo 109:8: “Que
tome outro seu ofício”.
O próprio ofício apostólico não é afetado pela morte de Judas visto
que é dado a outra pessoa. Com esta citação, Pedro indica que o círculo
dos doze apóstolos deve ser restaurado. O sucessor de Judas Iscariotes
deve preencher o ofício apostólico e como pessoa deve ser radicalmente
diferente do traidor. Deve ser capaz de reunir os requisitos apostólicos
que enumera na última parte de seu discurso.

Palavras, frases e construções gregas em At 1:15–20


Versículo 15
ὀνομάτων — literalmente esta palavra significa “nomes” mas é
traduzida “pessoas” e assim refere-se tanto a homens como a mulheres.

Versículo 16
ἔδει — o ativo imperfeito do indicativo do verbo incompleto δεῖ (é
necessário) expressa, neste texto, divina necessidade. 113
ὁδηγοῦ — com o particípio γενομένου, esta é uma construção
genitiva absoluta. O tempo aoristo do particípio denota ação individual
que ocorre subsequentemente à ação do verbo principal.

Versículo 17
κατηριθμημένος — este particípio perfeito passivo do verbo
καταριθμέω (eu fui contado com) é uma construção perifrástica para
mostrar duração de tempo. A palavra aparece uma vez no Novo
Testamento.

113
Consulte-se R.C. Trench, Synonyms of the New Testament (1854: Grand Rapids: Eerdmans, 1953),
p. 392.
Atos (Simon J. Kistemaker) 105
Versículo 18
ἐκ μισθοῦ τῆς ἀδικίας — “com o salário que causou sua
iniquidade”. Aqui temos a construção genitiva genuína (cf. 2Pe 2:13,
15).
πρηνής — “de cabeça”. Alguns eruditos sugerem a tradução
inchado. 114

Versículo 19
τῂ ἰδί διαλέκτῳ — o adjetivo quer dizer “privado”, e o substantivo,
“idioma”. Esta é uma referência à língua aramaica falada em Jerusalém e
transliterada ao grego com a palavra Ἀκελδαμάκ.

Versículo 20
ἐπισκοπήν — del verbo ἐπισκοπέω (yo superviso), el sustantivo
significa supervisión en el cumplimiento del oficio apostólico.
ἔτερος — la palabra denota otra de forma diferente.

2. Requisitos para o apostolado (At 1:21–22)

Quais são os requisitos para o apostolado? Pedro os define


brevemente e espera que um candidato que os reunir seja eleito para
encher a vacante deixada por Judas.
21, 22. É necessário, pois, que, dos homens que nos acompanharam
todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós, começando no batismo
de João, até ao dia em que dentre nós foi levado às alturas, um destes se
torne testemunha conosco da sua ressurreição.
Ao citar as palavras do salmista, “Que tome outro seu ofício”,
Pedro está expressando o desejo de que, sem dúvida, Deus escolherá o
sucessor. Quando diz que é necessário escolher um apóstolo, revela a

114
Bauer, pp. 700–701. Consulte-se Metzger, Textual Commentary, pp. 286–87.
Atos (Simon J. Kistemaker) 106
vontade de Deus neste sentido (cf. v. 16). Pedro e seus ouvintes não
agem segundo seu próprio parecer, mas em obediência à palavra e
vontade de Deus (Sl 109:8).
a. “É necessário, pois, que, dos homens que nos acompanharam
todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós”. Como Jesus escolheu
os doze discípulos, que formaram um paralelo com as doze tribos de
Israel, assim os onze apóstolos tiveram que escolher mediante a sorte
uma pessoa adicional para restaurar o círculo apostólico. 115 O número
doze denota perfeição e no Novo Testamento aparece numerosas vezes
com relação aos discípulos, às tribos de Israel, Jerusalém e ao dia do
juízo. 116 Diga-se de passagem, por ocasião da morte do apóstolo Tiago
não se escolheu um sucessor (At 12:2) porque por aquele tempo a igreja
estava já bem estabelecida e Paulo chegou a ser um apóstolo “como um
abortivo” (1Co 15:8).
Durante Seu ministério, Jesus teve mais discípulos que os doze que
tinha escolhido. Uma vez comissionou a setenta e dois (ou setenta) para
uma missão comparável à dos doze discípulos (Lc 10:1, 17; veja-se
também Mt 10:5).
b. “…dos homens que nos acompanharam todo o tempo que o
Senhor Jesus andou entre nós”. Ainda quando os Evangelistas relatam
que Jesus chamou Mateus (Mt 9:9) e talvez a outros numa data posterior,
pelo menos a metade dos doze discípulos logo tinha começado a seguir a
Jesus antes de Seu batismo (veja-se Jo 1:35–51).
O título Senhor Jesus aparece frequentemente em Atos (4:33;
11:20; 16:31; 20:21, 24, 35). Descreve o ministério terrestre de Jesus e
serve como uma confissão de fé (1Co 12:3). A frase [Jesus] entrava e
saía é um semitismo típico da língua nativa de Pedro. Sem dúvida, Lucas

115
Veja-se Richard N. Longenecker, The Acts of the Apostles, vol. 9 de The Expositor’s Bible
Commentary, ed. por Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1981), p. 265.
116
P. ex., Mt. 11:1; 19:28; Jo. 6:70; At. 6:2; Ap. 7:5–8; 21:12, 14, 16, 21.
Atos (Simon J. Kistemaker) 107
apresenta fielmente o discurso de Pedro em lugar de uma versão mais ou
menos livre. 117
c. “Começando no batismo de João, até ao dia em que dentre nós
[Jesus] foi levado às alturas”. Eis aqui uma clara referência aos começos
do evangelho apostólico (Mt 3:1; Mc 1:1; Lc 3:1). 118 Por exemplo, na
casa de Cornélio, Pedro também começa sua apresentação do evangelho
com o batismo de Jesus (At 10:37). O evangelho apostólico apresenta o
batismo de João como o começo do ministério de Jesus. E esse
ministério se prolongou até o dia de Sua ascensão.
d. “[É necessário então que um] seja feita testemunha conosco, de
sua ressurreição”. As qualidades para o apostolado são duas: o candidato
a apóstolo deve ter sido ensinado por Jesus do tempo de Seu batismo até
Sua ascensão; e também deve ter sido uma testemunha de Sua
ressurreição. Estritamente falando, nenhum discípulo esteve presente
quando Jesus ressuscitou. Mas Jesus Se apresentou a eles e a muitas
outras pessoas e assim foi a evidência física de Sua ressurreição. O termo
testemunha tem um duplo significado: refere-se a algo que uma pessoa
observou, e se refere ao ato de testificar num caso (compare o v. 8). Os
apóstolos tinham visto o Cristo ressuscitado; agora eles vão contar ao
mundo este acontecimento de redenção. A doutrina da ressurreição de
Cristo é fundamental na pregação tanto de Pedro como de Paulo; por isso
seus sermões culminam proclamando o dogma cristão: “Creio na
ressurreição do corpo” (Credo Apostólico).

117
Consulte-se Herman N. Ridderbos The Speeches of Peter in the Acts of the Apostles (Londres:
Tyndale, 1962), p. 9.
118
Consulte-se Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 521. A narração sobre o nascimento
nos primeiros dois capítulos dos Evangelhos de Mateus e Lucas refere-se a um tempo que não foi
parte do ministério oficial de Jesus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 108
Palavras, frases e construções gregas em At 1:21–22
Versículo 21
ἐν παντὶ χρόνῳ — “o contexto sugere com firmeza o tempo todo e
não em cada ocasião”. 119

Versículo 22
τῆς ἀναστάσεως αὑτοῦ — “de sua ressurreição”. O genitivo é tanto
subjetivo como objetivo.
γενέσθαι — o aoristo meio infinitivo, introduzido por δεῖ (é
necessário), é uma afirmação indireta. Esta longa oração (vv. 21–22) é
um exemplo do excelente estilo grego.
Entre os numerosos discípulos de Jesus, só dois são candidatos para
preencher o lugar que Judas deixou vacante. Supõe-se que a escassez de
candidatos deve-se a que relativamente poucos podem reunir os
requisitos. No entanto, os apóstolos só necessitavam uma pessoa para
restabelecer o círculo.

3. Eleição divina (At 1:23–26)

23-25. Então, propuseram dois: José, chamado Barsabás,


cognominado Justo, e Matias. E, orando, disseram: Tu, Senhor, que
conheces o coração de todos, revela-nos qual destes dois tens escolhido
para preencher a vaga neste ministério e apostolado, do qual Judas se
transviou, indo para o seu próprio lugar.
Depois que Pedro formula as condições para o apostolado, outros
respondem e propõem os nomes de dois: José e Matias. José é conhecido
também por seu nome latino de Justo (compare At 18:7; Cl 4:11) e como
o filho de Saiba (o ancião) ou de Sabath. Ou o nome de seu pai era Sabas
ou José nasceu no sábado. Provavelmente Judas Barsabás (At 15:22) era

119
Moule, Idiom-Book, pp. 94–95.
Atos (Simon J. Kistemaker) 109
seu irmão. O segundo candidato é Matias. Seu nome é diminutivo de
Matatias (dom do Yahveh).
Os crentes não estão em condições de fazer uma decisão por sua
conta. Sabem que se requer não duas mas uma pessoa para preencher o
vazio deixado por Judas e completar assim o número de doze membros
do apostolado. Originalmente, Jesus tinha nomeado doze; agora é
necessário escolher um de dois candidatos. Portanto, oram: “Senhor, Tu
conheces o coração de cada um. Mostra-nos a qual destes dois escolheste
para assumir este ministério apostólico.”
A decisão, então, não é feita pelos apóstolos, mas pelo próprio
Senhor. A expressão Senhor refere-se tanto a Deus como a Jesus. Até se
Lucas tivesse escrito: “Deus, que conhece o coração” (At 15:8), o
próprio contexto mostra que Pedro está se referindo ao Senhor Jesus (v.
21). Além disso, a expressão verbal escolheste que encontramos no v. 2
tem Jesus como sujeito. 120
Os apóstolos formulam e aplicam as exigências aos dois candidatos,
mas o Senhor conhece seus corações e escolhe o sucessor para assumir o
cargo do ministério apostólico de Judas Iscariotes. Os crentes concluem
sua oração com as palavras: “do qual Judas se transviou, indo para o seu
próprio lugar”. Estas palavras dão a entender que Judas deixou seu ofício
apostólico para assumir seu lugar no serviço de Satanás.
26. E os lançaram em sortes, vindo a sorte recair sobre Matias,
sendo-lhe, então, votado lugar com os onze apóstolos.
Os apóstolos recorrem ao costume do Antigo Testamento de lançar
sortes para conhecer a vontade de Deus. “A sorte se lança no regaço, mas
do SENHOR procede toda decisão.” [Pv. 16:33]
A prática de lançar sortes era comum nos tempos do Antigo
Testamento. No Novo, os Evangelistas contam que os soldados lançaram
sortes sobre a roupa de Jesus (Mt 27:35; Mc 15:24; Lc 23:34; Jo 19:24).
Depois do derramamento do Espírito Santo no Pentecostes, aquela
120
Veja-se F. F. Bruce, The Book of Acts ed. rev. série New International Commentary of the New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 47.
Atos (Simon J. Kistemaker) 110
prática cessou. No período entre a ascensão de Jesus e Pentecostes os
apóstolos fixam as condições para o apostolado, oram pedindo direção
divina e lançam sortes para averiguar a eleição de Deus.
“A sorte caiu sobre Matias”. Lucas não nos diz de que forma os
discípulos lançaram sortes, só diz que Matias foi o eleito do Senhor. O
Senhor o escolheu como antes tinha escolhido os doze. Por tal razão não
se efetuou a cerimônia de impor as mãos sobre ele (veja-se At 6:6).
Embora Matias tenha preenchido a vacante no círculo dos doze
apóstolos, não voltamos a ouvir dele no resto do Novo Testamento. 121
O apostolado como tal é um assunto fascinante. Paulo falha em
reunir os requisitos para o apostolado, não obstante ele chega a ser
apóstolo aos gentios. Seguido por Pedro, Paulo é o apóstolo mais
proeminente na igreja primitiva. No entanto, Paulo não pode ocupar o
lugar deixado por Judas porque seu apostolado é completamente
diferente. A diferença entre Paulo e os Doze é óbvia: Paulo submete seu
trabalho ao escrutínio dos apóstolos (veja-se Gl 1:18; 2:1–2, 7–10). Não
obstante, ele e os apóstolos compartilham uma tarefa comum, pois Jesus
Cristo mesmo os comissionou. 122

Considerações práticas em At 1:26


Deve uma igreja recorrer à sorte para escolher seus líderes? Nos
tempos do Antigo Testamento, o sumo sacerdote usava o Urim e o
Tumim para tomar decisões pelos israelitas (Êx. 28:30). Parece que o
Urim e o Tumim eram pequenas pedrinhas que davam ao sumo sacerdote
uma resposta positiva ou negativa a determinado assunto. Lançar sortes
era comum entre os israelitas. Faziam-no para distribuir a terra e

121
Nos primeiros cinco séculos circularam tradições sem confirmar a respeito de Matias. Assim,
Eusébio (300 d.C.) cria que Matias tinha sido um dos setenta (-dois) discípulos a quem Jesus
comissionou (Lc. 10:17). História Eclesiástica 1.12.3 (LCL). Veja-se também David W. Wead
“Matthias”, ISBE vol. 3, p. 288.
122
Consulte-se William Childs Robinson, “Apostle” ISBE, vol. 1, pp. 192–95; Karl Heinrich
Rengstorf, TDNT, vol. 1, pp. 420–45.
Atos (Simon J. Kistemaker) 111
determinar sua herança (veja-se Nm 26:55; Js 14:2; 15:1; 1Cr 6:54); para
descobrir o pecado de Acã (Js 7:16–18); para escolher a Saul como rei de
Israel (1Sm 10:20–21); e para determinar o número e o tempo em que os
sacerdotes e levitas deviam servir no templo (Ne 10:34; 11:1).
A última vez que nas Escrituras faz-se referência ao costume de
lançar sortes pelo povo de Deus é precisamente no caso de Matias
quando é eleito para tomar o lugar de Judas. Note-se que, segundo o
Novo Testamento, nem nos tempos do ministério de Jesus nem depois do
derramamento do Espírito Santo usou-se o ato de lançar sortes. Além
disso, a primitiva igreja não dá evidências de ter eleito seus dirigentes
dessa forma. Precisamente devido ao fato de que o Novo Testamento e a
igreja nascente guardam silêncio sobre tal matéria, os crentes devem
exercer cautela e não adotar uma prática que não tem apoio firme.

Palavras, frases e construções gregas em At 1:24–26


Versículo 24
ἀνάδειξον — O aoristo imperativo ativo do verbo ἀναδείκνυμι (eu
levanto para que todos vejam; nomeio) mostra um só caso.
ἐξελέξω — este é o aoristo médio indicativo da segunda pessoa do
singular do verbo ἐκλέγομαι (eu escolho).

Versículo 25
λαβεῖν — de λαμβάνω (eu tomo, recebo), este segundo aoristo do
infinitivo expressa propósito.
τὸν τόπον τὸν ἴδιον — note-se o uso enfático dos artigos
definitivos. O adjetivo aparece no final da frase para lhe dar ênfase. A
própria frase é um eufemismo para morte.
Atos (Simon J. Kistemaker) 112
Versículo 26
ἔδωκαν — em lugar do verbo βάλλω (eu lanço) o aoristo indicativo
de δίδωμι (eu dou) aparece para expressar um modismo hebraico.
συγκατεψηφίσθη — as duas preposições σύν (com) e κατά (sob)
com o substantivo ψῆφος (calhau) sugere o lançar sortes através de pôr
juntos alguns calhaus.

Resumo de Atos 1
Nos primeiros dois versículos, Lucas faz uma introdução que serve
como ponte entre seu Evangelho e Atos. Registra que Jesus apareceu aos
apóstolos durante quarenta dias e lhes deu instruções como preparação
para a tarefa que teriam que assumir. Estas instruções eram que
esperassem em Jerusalém pelo dom do Espírito Santo. Os discípulos
perguntam a Jesus quando restauraria o reino a Israel. Jesus lhes
responde que o Pai sabe o tempo e a data para o estabelecimento do
reino, e que eles receberão poder para ser Suas testemunhas de Jerusalém
até os limites da terra.
Jesus ascende enquanto os apóstolos O olham. Então dois anjos lhes
anunciam que Jesus voltará na mesma forma em que ascendeu. Do
Monte das Oliveiras os apóstolos voltam a Jerusalém, reúnem-se num
cenáculo, e demonstram unidade em orar constantemente unidos junto
com algumas mulheres, Maria, a mãe de Jesus, e os irmãos de Jesus.
Pedro dirige-se a um grupo de uns cento e vinte crentes e lhes fala
do cumprimento das Escrituras com relação a Judas. Declara-lhes a
necessidade de escolher alguém para preencher a vacante e reunir os
requisitos do apostolado. O grupo propõe dois nomes, em oração pedem
ao Senhor que escolha um deles, e lançam sortes. Matias é o eleito e é
agregado ao número dos onze apóstolos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 113

II. A IGREJA EM JERUSALÉM


(AT 2:1 – 8:1)
Atos (Simon J. Kistemaker) 114
ATOS 2
A IGREJA EM JERUSALÉM, parte 1 (At 2:1–47)
A. Pentecostes (At 2:1–47)

1. Derramamento do Espírito (At 2:1–13)

Embora Atos seja um livro histórico, Lucas omite referências a


datas exatas. Geralmente, os estudiosos estão de acordo em que na
cronologia de Atos a festa do Pentecostes do ano 30 d.C. foi celebrada na
última semana de maio. 123 A palavra Pentecostes deriva de uma palavra
grega que significa “quinquagésimo”. Os judeus celebravam o
Pentecostes como a Festa das Semanas no quinquagésimo dia depois da
Páscoa (Lv 23:15–16; Dt 16:9–12). Também se chamava a Festa da
Colheita (Êx 23:16). Os judeus consideravam o Pentecostes o festival da
colheita, tempo em que apresentavam os primeiros frutos da colheita de
trigo (Nm 28:26). Depois da destruição do templo no ano 70 d.C.
mudaram este festival para comemorar o dia em que receberam o
Decálogo no Monte Sinai. Para isso baseavam-se na referência
cronológica de Êxodo 19:1.124 Presumivelmente os judeus agiram em
reação à observância cristã do Pentecostes.

123
Veja-se W. Ralph Thompson, “Cronology of the New Testament”, ZPEB, vol. 1, p. 821. Consulte-
se também Harold W. Hoehner, Chronological Aspects of the Life of Christ (Grand Rapids:
Zondervan, 1976), p. 143.
124
Veja-se SB, vol. 2, p. 601; Arthur F. Glasser, “Pentecost”, ISBE, vol. 3, p. 759; James D.G. Dunn,
NIDNTT, vol. 2, pp. 784–87. Tendo em conta as evidências da literatura intertestamentária (Jub. 6:17
e Qumran) alguns estudiosos pensam que a mudança à comemoração do recebimento do Decálogo é
pré-cristão.
Atos (Simon J. Kistemaker) 115
a. O derramamento (At 2:1–4)

1. Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no


mesmo lugar.
Em resposta à ordem de Jesus (At 1:4), os apóstolos esperam o dom
do Espírito Santo pacientemente e em oração em Jerusalém. O texto
grego começa com a palavra e; isso indica que o acontecimento do
Pentecostes está estreitamente ligado à ascensão de Jesus. Uma tradução
literal do texto grego diz: “Quando o dia do Pentecostes se cumpriu”.
Quer dizer, quando se chegou ao dia número cinquenta, o período de
espera completou-se. Para os apóstolos, uma nova era começava.
Quantas pessoas estavam reunidas no dia do Pentecostes? Nós
supomos que nos 120 estavam incluídos todos os crentes (At 1:15). No
entanto, há algumas objeções a esta interpretação. O último versículo do
capítulo anterior (At 1:26) menciona os apóstolos; no capítulo dois, não
são os 120 mas o centro da atenção está ocupado por Pedro e os Onze (v.
14); e na conclusão do sermão de Pedro a multidão dirige-se aos
apóstolos e não aos 120 (v. 37). Por outro lado, não podemos limitar o
adjetivo todos aos doze apóstolos quando o contexto do capítulo
precedente enfatiza a harmonia cristã como um elemento básico.
Portanto, interpretamos o adjetivo de tal modo a incluir todos os crentes
mencionados no capítulo anterior.
Onde estavam os crentes? Lucas é bastante parco ao dizer que
estavam “no mesmo lugar”. Se supusermos que esse lugar era o cenáculo
(At 1:13), teríamos que nos perguntar se aquele quarto poderia acomodar
120 pessoas. Mas Lucas diz que eles estavam sentados numa casa (v. 2)
e não nas cercanias do templo. 125 Temos que admitir que é difícil obter
certeza a respeito, porém nos inclinamos a pensar que o lugar de reunião
estava perto do templo, onde os apóstolos regularmente adoravam a
Deus (cf. Lc 24:53).
125
Consulte-se Richard N. Longenecker, The Acts of the Apostles, en vol. 9 de The Expositor’s Bible
Commentary, ed. Frank E. Gaebelin, 12 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1981), p. 269.
Atos (Simon J. Kistemaker) 116
2-4. De repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e
encheu toda a casa onde estavam assentados. E apareceram, distribuídas
entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles.
Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras
línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem.
Note-se os seguintes três pontos:
a. O vento. Em horas da manhã do dia do Pentecostes, de repente as
pessoas ouvem o som de um forte vento que soprava dos céus. Um
aspecto importante na vinda do Espírito Santo é a subitaneidade de sua
aparição. Embora, tal como foram instruídos, os discípulos tenham
ficado em Jerusalém precisamente esperando o derramamento do
Espírito, sua repentina manifestação surpreende a todos. Os crentes em
Cristo experimentarão idêntica situação quando repentinamente Jesus
voltar. Não obstante os sinais dos tempos, Jesus disse aos Seus que Sua
volta será surpreendente e inesperada.
Lucas diz que há som como de um vento forte ao sopro. Ele não diz
que o vento tenha estado produzindo os efeitos por todos conhecidos.
Lendo outra parte das Escrituras sabemos que tanto no hebraico como no
grego é uma e a mesma palavra a que representa o duplo significado de
vento e espírito (Ez 37:9, 14; Jo 3:8). Nós ouvimos e sentimos o efeito
do vento, porém não podemos vê-lo. Assim é com o Espírito. O Espírito
Santo vem do céu de Deus, não do céu atmosférico, com o som de um
forte vento. E enche a casa onde os crentes estão sentados e clamando
por Sua vinda (cf. At 4:31).
Vemos o significado do vento no relato de Lucas. O vento
simboliza o Espírito Santo, quem enche a casa onde os crentes estão
sentados. O som do vento assinala poder celestial, e sua repentina
aparição nos fala do começo de um acontecimento sobrenatural.
b. O fogo. “E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de
fogo, e pousou uma sobre cada um deles”. Este é o cumprimento da
descrição que João Batista faz do poder de Jesus: “Ele lhes batizará no
Espírito Santo e fogo” (Mt 3:11; Lc 3:16). Com frequência no Antigo
Atos (Simon J. Kistemaker) 117
Testamento o fogo é simbólico da presença de Deus, especialmente com
relação à santidade, o juízo e a graça. Por exemplo, Moisés ouviu a voz
de Deus na sarça ardendo dizendo-lhe que tirasse suas sandálias (Êx 3:2–
5); o fogo consumiu o sacrifício de Elias no Monte Carmelo (1Rs 18:38);
e um carro de fogo levou Elias ao céu (2Rs 2:11). 126
Os crentes reunidos em Jerusalém não só ouvem a vinda do Espírito
Santo, mas também o veem tomar forma do que parecesse ser línguas de
fogo. O fogo, símbolo da divina presença, toma a forma de línguas que
não saem da boca dos crentes, mas repousam sobre suas cabeças.
Portanto, não devemos confundir estas línguas com as “outras línguas”
mencionadas no versículo seguinte (v. 4), onde Lucas introduz o milagre
de falar em línguas.
O Espírito Santo faz-se visível com esta manifestação externa e
repousa sobre cada um dos crentes. Não se procura uma ilusão ótica,
porque Lucas claramente assinala que viram línguas de fogo. A vinda do
Espírito dá cumprimento à profecia de João Batista de que os discípulos
seriam batizados com o Espírito Santo e com fogo. 127 Assim, a vinda do
Espírito Santo anuncia uma nova era, porque deve habitar com os
homens não temporariamente senão para sempre.
c. As línguas. “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a
falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem”.
O texto grego indica que a plenitude com o Espírito ocorreu de uma vez
por todas; quer dizer, o Espírito não veio e foi embora, mas permaneceu,
como é evidente no relato de Lucas. Quando Pedro se dirige ao Sinédrio,
ele está cheio do Espírito (At 4:8; e veja-se também 4:31). Depois de sua
conversão, Saulo recebe o Espírito Santo (At 9:17; cf. At 13:9, 52). O
derramamento do Espírito não é repetitivo porque o Espírito Santo
permanece com a pessoa que foi cheia. Além disso, vai alcançando em

126
Consulte-se Friedrich Lang, TDNT, vol. 6, pp. 934–47; Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 1, pp. 653–
57.
127
James D.G. Dunn, Baptism in the Holy Spirit, Studies in Biblical Theology, 2ª. série 15 (Londres:
SCM, 1970), p. 40.
Atos (Simon J. Kistemaker) 118
círculos concêntricos aos samaritanos (At 8:17), aos gentios (At 10:44–
46), e aos discípulos de João Batista (At 19:1–6). Isto ocorre em perfeita
harmonia com e em cumprimento do mandamento de Jesus dado aos
apóstolos de ser testemunhas em Jerusalém, em toda Judeia e Samaria, e
até os limites da terra (At 1:8).
O que efeito produz o Espírito Santo em todos os crentes? Lucas diz
que “todos foram cheios”. Não devemos limitar o adjetivo todos aos
apóstolos, porque Pedro em seu sermão fala do cumprimento da profecia
de Joel e diz que: “Vossos filhos e vossas filhas profetizarão” (v. 17; Jl
2:28). E quando mais tarde Pedro e João fizeram notar aos crentes o que
os sumos sacerdotes disseram, todos foram cheios do Espírito Santo (At
4:31). O efeito do fato de que o Espírito Santo habita na pessoa é que o
Espírito toma plena posse do crente individualmente.
O cristão que é cheio com o Espírito chega a ser o porta-voz do
Espírito. No caso dos crentes em Jerusalém, falaram em outras línguas
provando assim que o Espírito Santo os controla e os capacita. A palavra
língua é equivalente ao conceito linguagem falada. Isto se torna evidente
no comentário de Lucas que “cada um os ouvia falar na sua própria
língua” (v. 6); as multidões perguntam, “Como os ouvimos falar, cada
um em nossa própria língua materna?” (v. 8); e dizem: “Como os
ouvimos falar em nossas próprias línguas as grandezas de Deus?” (v.
11). As línguas que os crentes falam são idiomas falados em regiões da
Pérsia no este até Roma no oeste. Não podemos tomar como iguais o que
ocorreu no Pentecostes e as línguas faladas na igreja de Corinto. Os que
falam em outras línguas no Pentecostes não falam para a edificação da
igreja (diferente do falar em êxtase [1Co 14]). Conquanto na igreja de
Corinto o falar em êxtase precisa ser interpretado, no Pentecostes os
ouvintes não precisam ter intérpretes porque eles ouvem e podem
entender em seus próprios idiomas. 128 A habilidade de falar em línguas

128
Veja-se William G. MacDonald, “Glossolalia in the New Testament”, em Speaking in Tongues: A
Guide to Research on Glossolalia, ed. Watson E. Mills (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), p. 134.
Atos (Simon J. Kistemaker) 119
vem de dentro da pessoa e é uma manifestação interna do Espírito Santo;
o vento e o fogo são manifestações externas.

Considerações doutrinais em At 2:2 e 4


Versículo 2
Aqui encontramos o pleno cumprimento da promessa que Jesus fez
aos apóstolos: “Vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro de
poucos dias” (At 1:5, TB). No dia do Pentecostes, o Espírito encheu a
cada um dos que estavam na casa sentados, de maneira que 120 foram
batizados espiritualmente (vv. 2, 4). É muito interessante um estudo do
batismo do Espírito em Atos. “Em qualquer lugar que se menciona o
batismo no Espírito depois de Pentecostes, nunca é uma experiência de
crentes que foram batizados antes no Espírito, e sim que se procura
novos crentes que foram trazidos à fé de Cristo”. 129
Depois do derramamento do Espírito Santo sobre os judeus em
Jerusalém, Jesus estendeu Sua igreja acrescentando os samaritanos, os
quais receberam o Espírito (At 8:16–17). Logo convidou os gentios a
incorporar-se nela. Isto ocorreu quando Pedro pregou o evangelho na
casa de Cornélio e o Espírito Santo se derramou sobre eles (At 10:44–
45).
Finalmente, foram acrescentados à igreja os discípulos de João
Batista, os quais não tinham ouvido o evangelho e não sabiam nada a
respeito do Espírito Santo. Paulo os batizou em nome de Jesus e o
Espírito Santo veio também sobre eles (At 19:6).
Pedro disse à multidão em Jerusalém: “Arrependei-vos, e cada um
de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos
pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2:38). O estudo de
Atos nos permite chegar à conclusão de que o batismo em água e o
batismo no Espírito ocorrem normalmente de forma simultânea.

129
George E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 345.
Atos (Simon J. Kistemaker) 120
Versículo 4
Embora alguns estudiosos afirmem que o milagre de falar em
línguas tem que ver mais com os que ouvem que com os que falam, esta
opinião falha em fazer justiça àqueles que, cheios do Espírito Santo,
falaram em línguas. O contexto do acontecimento do Pentecostes destaca
os comentários dos que ouviram os apóstolos falarem em seus idiomas
nativos, mas devemos atender a um par de perguntas. Por exemplo, se
dissermos que os crentes, pelo poder do Espírito, falaram com as pessoas
em seus próprios idiomas, por que Pedro lhes falou num só idioma (v.
14)? Logo, se a multidão entendeu o idioma de Pedro, teríamos que
supor que estavam também capacitados para conversar sobre grego, em
aramaico, ou em ambos os idiomas. Além disso, a expressão outras
línguas não se aplica a Judeia (v. 9), porque ali se falava aramaico e
grego. Por último, se cada um dos presentes pôde ouvir a respeito “das
maravilhas de Deus” em sua própria língua nativa, por que alguns
zombaram dos apóstolos dizendo que estavam bêbados? (v. 13). 130
Devido ao relato sintético do Pentecostes, restam algumas perguntas
específicas sem responder. Do que nos é dito, só podemos tirar algumas
conclusões gerais.
O Espírito Santo unifica os crentes de diferentes regiões do mundo
através do milagre de falar com as pessoas no idioma da fé. Permite que
os ouvintes superem a confusão de línguas de Babel (Gn 11:1–9) ao
chamá-los a responder ao evangelho com arrependimento e fé. Em meio
de uma multidão de incrédulos que zombam do milagre do Pentecostes,
três mil pessoas se arrependem, são batizadas e se unem à igreja (v. 41).

130
Consulte-se Richard B. Rackman, The Acts of the Apostles: An Exposition, serie de Westminster
Commentaries (1901; reimpressão: Grand Rapids, Baker, 1964), p. 21. F. W. Grosheide, De
Handelingen der Apostelen, série Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2 vols. (Amsterdam: Van
Bottenburg, 1942), vol. 1, pp. 61–63.
Atos (Simon J. Kistemaker) 121
Palavras, frases e construções gregas em At 2:1–4
Versículo 1
ἐν τῷ — com o presente médio do infinitivo esta construção denota
tempo e se refere ao dia do Pentecostes durante o qual desceu o Espírito
Santo.

Versículo 2
φερομένης πνοῆς — do verbo φέρω (eu levo, suporto), o gerúndio
médio pode ser uma construção genitiva absoluta ou um particípio
descritivo (com o substantivo πνοῆς) dependente de ἦχος (som).

Versículo 4
ἐπλήσθησαν — o aoristo passivo indicativo de πίμπλημι (eu encho)
complementa os outros dois verbos que expressam o conceito de encher:
συμπληροῦσθαι (v. 1) e ἑπλήρωσεν (v. 2).
ἑτέραις — em seu contexto, este adjetivo tem o significado de
diferente. Contrasta o uso de ἑτέροις no versículo 40.
Entre os judeus que viviam na dispersão, muitos decidiram trasladar
sua residência a Jerusalém por propósitos religiosos ou educacionais.
Assim, de numerosos países chegaram para residir ali temporal ou
permanentemente. Além disso, um bom número de peregrinos tinha
vindo para celebrar a festa judaica das colheitas chamada Pentecostes
(compare At 20:16; 1Co 16:8).

b. A concorrência (At 2:5–11)

5, 6. Ora, estavam habitando em Jerusalém judeus, homens


piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu. Quando, pois, se fez
ouvir aquela voz, afluiu a multidão, que se possuiu de perplexidade,
porquanto cada um os ouvia falar na sua própria língua.
Atos (Simon J. Kistemaker) 122
a. “Estavam habitando em Jerusalém judeus, homens piedosos”.
Notamos que o evangelho veio primeiro aos judeus, não aos gentios, tal
como Jesus disse aos discípulos ao instruí-los e enviá-los em sua viagem
missionária: “Não tomeis rumo aos gentios … mas, de preferência,
procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10:5–6). Judeus
tementes a Deus vindos de longe habitavam na cidade santa. “Muitos
judeus piedosos da dispersão desejavam, em seus últimos dias, pisar no
solo da terra santa e ser sepultados ali”. 131
No Novo Testamento, o termo grego que se traduz por “piedosos” é
descritivo só de judeus: Simeão (Lc 2:25), Ananias (At 22:12), e os
homens que sepultaram Estêvão (At 8:2). São os que obedecem fiel e
reverentemente a lei de Deus.
b. “De todas as nações debaixo do céu”. Estes judeus representam o
mundo em sua expressão mais ampla. chegaram a Jerusalém procedentes
de todas as nações do mundo civilizado daquele tempo. Em versículos
subsequentes, Lucas provê uma lista daquelas nações (vv. 9–11).
c. “Quando, pois, se fez ouvir aquela voz, afluiu a multidão, que se
possuiu de perplexidade”. Ouviu a multidão o ruído do vento
tempestuoso, ou o som produzido pelos apóstolos falando diversos
idiomas? Supomos que o termo ruído refere-se ao produzido por um
vento tempestuoso (v. 2) e não ao falar dos crentes. Parece que vemos as
pessoas reunindo-se em grupos para procurar determinar a origem do
ruído. E à medida que se aproximam ao lugar onde estão os crentes,
ouvem-nos falar em diversas línguas. Tudo isso dá como resultado uma
natural confusão e perplexidade.
d. “Porquanto cada um os ouvia falar na sua própria língua”. Lucas
indica que as pessoas não só ouviram as vozes dos crentes, mas também
cada judeu presente ouviu seu próprio idioma. Na verdade, diz que cada
um seguia ouvindo enquanto os que falavam continuavam fazendo-o.

131
Everett F. Harrison, The Apostolic Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), p. 49.
Atos (Simon J. Kistemaker) 123
É de supor que os judeus piedosos eram ao menos bilíngues, se não
trilíngues. Se viviam em Jerusalém, falavam o aramaico. Se tinham
vindo de alguma parte do Império romano, a oeste ou a norte de Israel,
possivelmente falariam o grego. Mas também teriam aprendido o idioma
nativo dos países onde viviam. E eis aqui que agora ouvem pessoas
falarem aqueles idiomas que nunca tinham vivido nesses países, mas que
eram galileus. Lucas reporta só o fato de que os crentes falavam, porém
não nos diz o que falavam. A substância do sermão do Pentecostes
pronunciado por Pedro Lucas nos apresenta em versículos subsequentes.
7, 8. Estavam, pois, atônitos e se admiravam, dizendo: Vede! Não
são, porventura, galileus todos esses que aí estão falando? E como os
ouvimos falar, cada um em nossa própria língua materna?
A linguagem é o veículo de comunicação e em cada pessoa o é seu
idioma nativo. Quando os estrangeiros residentes em Jerusalém escutam
o idioma que aprenderam nos países onde nasceram e cresceram, estão
totalmente assombrados. As barreiras linguísticas que impedem uma
eficaz comunicação são derrubadas quando o Espírito Santo capacita os
crentes para transmitir a revelação de Deus a numerosos idiomas.
A multidão detecta que aqueles que falam não são estrangeiros mas
galileus. Talvez os reconhecem como seguidores de Jesus, ou no melhor
dos casos, suas vestes mostram que são galileus. 132 Aos olhos dos judeus
de Jerusalém, Galileia era uma região da Palestina muito atrasada
culturalmente e habitada por pessoas carentes de educação. Apesar disso,
estes galileus comunicam a verdade de Deus em numerosos idiomas.
Ao falar, os crentes estão mostrando a sua audiência que louvam a
Deus em todos os idiomas e dialetos do mundo. Estão provando que a
revelação de Deus não está restringida a um idioma em particular mas
sim transcende todas as variações do discurso humano. Contudo,
devemos observar que Deus não repete este milagre de falar em idiomas
estrangeiros. Por exemplo, não lemos em nenhuma parte que Paulo ou

132
Cf. Mt. 26:73; Mc. 14:70; Lc. 22:59.
Atos (Simon J. Kistemaker) 124
Barnabé se dirigiram aos cidadãos de Listra em seu próprio idioma (At
14:11).
Quando os crentes se dirigem à multidão em idiomas conhecidos,
os judeus estrangeiros que vivem em Jerusalém perguntam: “Como é
então que lhes ouvimos nós falar cada um em nossa língua na qual
nascemos?” Ao falar em outros idiomas, os crentes estão dando
evidência do milagre que está operando o Espírito Santo. Os que
escutam em seu próprio idioma ou dialeto estão atônitos e se perguntam
insistentemente como é isto possível. Esta pergunta é fundamental
porque a expõem duas vezes depois que Lucas introduziu o conceito (vv.
6, 8, 11). Ao ouvir seu idioma ou dialeto nativos, eles ficam aptos para
aceitar a Cristo e seu evangelho quando Pedro prega o sermão do
Pentecostes.
Estes estrangeiros representam os países onde nasceram. Depois do
cativeiro de Babilônia, nem todos os judeus voltaram para a Palestina.
Muitos ficaram na Pérsia e Mesopotâmia. Outros foram deportados de
Babilônia para a Ásia Menor durante os terceiro e quarto século antes de
Cristo. E outros se estabeleceram no Egito, especialmente na cidade de
Alexandria, ou foram para o oeste, a Roma. 133 Os judeus viviam em
qualquer lugar que, do leste a oeste no Império romano porque eram um
povo em dispersão.
9-11. Partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, Judeia e
Capadócia, do Ponto e da província da Ásia, Frígia e Panfília, Egito e das
partes da Líbia próximas a Cirene; visitantes vindos de Roma, tanto
judeus como convertidos ao judaísmo; cretenses e árabes. Nós os ouvimos
declarar as maravilhas de Deus em nossa própria língua! [NVI].
Lucas enumera quinze nações do mundo civilizado em seus dias.
Começa com as nações do Este (Pártia, Média, Elão, Mesopotâmia);
logo passa pela Judeia para a Ásia Menor (Capadócia, Ponto, Ásia,
Frígia, Panfília), dali a África (Egito, Cirene) e finalmente a Roma, Creta

133
Consulte-se F. F. Bruce, New Testament History (1969; Garden City, N.Y.: Doubleday, 1971), pp.
135–37.
Atos (Simon J. Kistemaker) 125
134
e Arábia. Por quê enumera estas nações e a outras não, como a Grécia,
Macedônia, Chipre, é uma pergunta que não tem resposta. Lucas parece
querer agrupar as nações em categorias linguísticas, porque seu objetivo
neste relato do Pentecostes é enfatizar que as Boas Novas transcendem
as barreiras do idioma. 135
a. “Partos, medos e elamitas”. Estes povos pertenciam a diferentes
nações que falavam também diferentes idiomas. Os partos viviam ao sul
do Mar Cáspio, na região hoje conhecida como o Irã. Nos tempos
apostólicos este povo nunca tinha sido conquistado pelos exércitos
romanos, falavam um dialeto persa, e permitiam aos judeus praticar sua
religião. Os medos, com os persas tinham consolidado um império,
(refira-se a Et 1:3, 18–19; Dn 5:28; 6:8, 12, 15; 8:20), residiam a
sudoeste do mar Cáspio. Os elamitas ocupavam a terra que estava
diretamente a norte do Golfo Pérsico até a leste do rio Tigre. Chegaram a
ser parte do império persa, mas conservaram sua própria língua.
b. “Habitantes da Mesopotâmia”. Viviam entre os rios Tigre e
Eufrates. Os judeus que vieram a Jerusalém procedentes da
Mesopotâmia realmente residiam em Babilônia, para onde tinham sido
enviados como exilados séculos atrás. Visitavam Jerusalém mas
continuavam sendo residentes de Mesopotâmia, que é o moderno Iraque.
El griego sugiere que el término residentes también debe incluir a
gentes de Judea, Capadocia, Ponto, Asia, Frigia, Panfília, Egipto y Libia.
Estas personas, entonces, habían venido a la fiesta de Pentecostés en
Jerusalén, pero esperaban regresar a sus lugares de residencia.
c. “Judeia”. A presença da Judeia nesta lista é problemática.
Obviamente, não cabe localizá-la entre Mesopotâmia e Capadócia. Com
frequência, Lucas refere-se a Judeia como a terra dos judeus. Talvez tem

134
Consulte-se G. D. Kilpatrick, “A Jewish Background to Acts 2:9–11?” JJS 26 (1975); 48–49.
135
J. A. Brinkman, “The Literary Background of the ‘Catalogue of the Nations’ (Hch. 2, 9–11)”, CBQ
25 (1963):418–27; Bruce M. Metzger, “Ancient Astrological Geography and Acts 2:9–11”, en
Apostolic History and the Gospel, ed. por W. Ward Gasque y Ralph P. Martin (Exeter: Paternoster;
Grand Rapids: Eerdmans, 1970), pp. 123–33.
Atos (Simon J. Kistemaker) 126
em mente o território que Davi e Salomão controlavam, do Eufrates no
norte até a fronteira com o Egito no sul. 136 Isto facilita o problema
porque então inclui a Síria, a qual não aparece na lista. Além disso, aos
olhos dos judeus, Jerusalém era a capital não só da Judeia, mas também
de todos os lugares onde os judeus estivessem residindo. Os judeus que
vieram da Judeia dificilmente poderiam ter passado inadvertidos. 137
d. “Capadócia, do Ponto e da província da Ásia”. Seguindo com sua
lista, Lucas menciona as áreas da Ásia Menor. Capadócia estava
localizada ao norte da Síria e Mesopotâmia e se estendia até a costa
sudeste do mar Negro. Ponto com Bitínia formavam uma província
romana situada ao longo das costas sudoestes do mar Negro. Ásia era o
nome da província romana no ocidente da Ásia Menor. Para ilustrar,
Pedro dirige sua primeira epístola aos judeus cristãos espalhados através
do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia (1Pe 1:1).
Eram milhares os judeus que viviam na Ásia Menor. Por isso,
Lucas acrescenta os nomes provinciais de Frígia e Panfília, localizadas
no sudoeste e parte sul da Ásia Menor, respectivamente. Josefo, o
historiador judeu diz que no século II a.C., o governador sírio Antíoco III
deportou duas mil famílias judias de Frígia. 138 Durante suas viagens
missionários, Paulo viajou através da Panfília (At 13:13) e Frígia (At
16:6; 18:23).
e. “Egito”. No século I da era cristã, a população judaica no Egito
alcançava o milhão de pessoas. A maioria deles vivia na cidade costeira
de Alexandria. 139 Nesta cidade, os judeus tinham traduzido as Escrituras
do Antigo Testamento do hebraico ao grego. Ao ocidente do Egito, Líbia
tinha aberto suas fronteiras ao povo judeu se estabeleceram em sua
cidade capital, Cirene (At 6:9; 11:20; 13:1; Mt 27:32). 140
136
F. F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on the New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 56.
137
SB, vol. 2, p. 611.
138
Josefo Antiguidades 12.3.4 [147].
139
Josefo Antiguidades 14.7.2 [118]; Guerra Judaica 2.18.8 [110–18].
140
Cf. Josefo Antiguidades 14.7.2 [116–18].
Atos (Simon J. Kistemaker) 127
f. “Visitantes vindos de Roma”. Lucas é específico e deixa de usar a
palavra residentes para falar de “visitantes”.
Estes judeus não são necessariamente cidadãos romanos, e sim
judeus e convertidos ao judaísmo que vivem em Roma. Nos tempos dos
apóstolos os judeus em Roma alcançam dezenas de milhares. Ali
propagam o judaísmo e como resultado disso faziam numerosos
prosélitos. Entre estes conversos havia também muitos que temiam a
Deus, que obedeciam a lei de Moisés, contudo não se submeteram ao rito
da circuncisão (veja-se At 10:1 e Lc 7:5).
g. “Cretenses e árabes”. Como uma ideia tardia, Lucas menciona a
outros dois grupos: os cretenses e os árabes. Creta é uma ilha no
Mediterrâneo localizada ao sul da Grécia. Paulo viu as costas de Creta
em sua viagem a Itália (At 27:7) e visitou a ilha quando Tito fundou uma
igreja ali (Tt 1:5). Os árabes que vieram a Jerusalém para a festa do
Pentecostes presumivelmente eram judeus que viviam em Nebateia. Os
nabateus eram habitantes do deserto que viviam numa região que corria
em direção sudoeste de Damasco ao Egito. Petra, situada ao sudeste da
Palestina, era sua capital. Paulo passou algum tempo no reino nabateu da
Arábia (Gl 1:17).
h. “Nós os ouvimos declarar as maravilhas de Deus em nossa
própria língua!” Cheios do Espírito Santo, os crentes proclamam os
milagres que Deus tem feito. Supomos que declaram especialmente as
maravilhas de Deus quanto à ressurreição e ascensão de Jesus. Lucas
afirma que os judeus devotos que residem ou visitam Jerusalém ouvem
destas maravilhas em seus próprios idiomas.

Considerações doutrinais em At 2:5–11


A igreja do Novo Testamento começa com os 120 que esperam a
vinda do Espírito Santo. Quando Ele vem, abre as comportas ao dirigir-
se aos judeus “de todas as nações debaixo do céu” (v. 5). Em todos os
idiomas daquelas nações, o Espírito Santo através da boca de Seu povo
Atos (Simon J. Kistemaker) 128
apresenta a mensagem das maravilhas que Deus tem feito. Destes
milhares de judeus vindos de diferentes lugares, Deus acrescenta à Sua
igreja três mil pessoas. A verdade de Deus não está mais confinada à
cidade de Jerusalém. No dia do Pentecostes, a igreja chega a ser
universal.
Pelo Antigo Testamento sabemos que os judeus estavam reunidos
em Jerusalém para celebrar a festa das colheitas. No Novo, Deus através
do derramamento do Espírito Santo e a missão da igreja recolhe os
primeiros frutos de sua colheita espiritual. Henry Alford, o poeta e
comentarista britânico do século XIX, pôs esta verdade numa canção:
Toda a terra é a semeadura de Deus,
Os frutos para o seu louvor se produzirão;
O trigo e o joio juntos se semearão.
Como a alegria e a tristeza crescerão:
Primeiro a folha, depois a espiga,
Depois o grão pleno aparecerá:
Senhor da ceifa, permite que nós
Grão puro e saudável possamos ser.
(Tradução livre)
Notamos que Lucas não dá indicação de que esteja a par da
interpretação rabínica relacionada com a comemoração ordenada pela
Lei com relação ao Pentecostes. Por comentários feitos por rabinos
duzentos anos depois do derramamento do Espírito Santo no dia do
Pentecostes, sabemos que Deus promulgou a Lei no monte Sinai em
setenta idiomas, mas que só os israelitas ouviram a voz de Deus. 141
Mesmo se víssemos uma semelhança entre a tradição rabínica dos
setenta idiomas no monte Sinai e o relato de Lucas sobre as numerosas
línguas que se falaram no Pentecostes, não encontramos base para crer
que com o advento do Espírito Deus deu uma nova lei. 142 Em lugar

141
Para ter uma lista de referência, consulte-se SB, vol. 2, pp. 604–5.
142
Veja-se Ernest Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble e
Gerald Shinn (Filadelfia: Westminster, 1971), p. 174. Consúltese también a David John Williams,
Acts, série Good News Commentaries (San Francisco: Harper y Row, 1985), p. 27.
Atos (Simon J. Kistemaker) 129
disso, Deus apresentou o dom do Espírito não só aos 120 ali reunidos,
mas também a cada crente. Como disse Pedro: “Arrependei-vos, e cada
um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos
vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (v. 38).

Palavras, frases e construções gregas em At 2:5–9


Versículo 5
κατοικοῦντες — este particípio ativo presente do verbo composto
κατά (desço) e οἰκέω (eu habito) é com o ativo imperfeito ἦσαν (eles
estavam) uma construção perifrástica que expressa duração. A forma
composta com a preposição κατά denota permanência. Por contraste,
παρά com o verbo ἰκέω aponta aos estrangeiros que vivem
temporariamente em qualquer parte.

Versículo 6
γενομένης — com o substantivo φωνῆς, este aoristo médio do
particípio forma a construção genitiva absoluta.
συνεχύθη — de συγχύν(ν)ω (confundo), este verbo aparece
repetidamente em Atos (At 2:6; 9:22; 19:32; 21:27, 31), mas em
nenhuma outra parte do Novo Testamento. Literalmente, o verbo
significa “derramar juntos [na mente]”, e deste modo causar confusão.
ἤκουον — o ativo imperfeito de ἀκούω (eu ouço) expressa ação
contínua.

Versículo 8
ἡμεῖς — como um pronome pessoal, enfatiza o sujeito do verbo
ἀκούομεν (ouvimos). Palavra por palavra, o versículo completo é
enfático.
Atos (Simon J. Kistemaker) 130
Versículo 9
οἱ κατοικοῦντες — Este gerúndio articular pertence aos nove países
ou regiões que vão da Mesopotâmia a Líbia.
Ἰουδαίαν — como um adjetivo com o substantivo entendido γῆν
(terra), esta palavra deve ser entendida no sentido mais amplo de toda a
nação judaica. No entanto, a combinação τε καί (y) vincula-o
estreitamente a Capadócia, o que é muito pouco usual. Ainda mais, como
um substantivo, Ἰουδαίαν deveria estar precedido pelo artigo definido
τήν. Por que os habitantes da Judeia “se maravilharam ao ouvir os
apóstolos falando em sua própria língua”? 143 Ao longo dos séculos, os
escritores têm proposto conjetura (como Armênia, Bitínia e Cilícia); no
entanto, a evidência do manuscrito para Ἰουδαίαν é excepcionalmente
forte.

c. As zombarias (At 2:12–13)

12, 13. Todos, atônitos e perplexos, interpelavam uns aos outros:


Que quer isto dizer? Outros, porém, zombando, diziam: Estão
embriagados!
Lucas resume seu relato sobre a reação da multidão dizendo que
estavam atônitos”. No versículo 7 usa a mesma palavra, mas agora
acrescenta a expressão perplexos. Diz que as pessoas continuam
confundidas, porque não podem explicar o milagre do qual estão sendo
testemunhas. Esta gente piedosa se pergunta, uns aos outros, o que
significa tudo isso (compare-se At 17:20).
Mas nem todos os ouvintes estão perplexos. Lucas diz que certo
grupo ridiculariza os apóstolos e os que estão com eles. Descreve-os
como incrédulos que se opõem ao avanço da igreja de Cristo. Podem ser
comparados com “o mundo [o qual] começa a ridicularizar; logo passa a

143
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the New Testament, 3ª. ed. corrigida (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 293.
Atos (Simon J. Kistemaker) 131
questionar (At 4:7); a ameaçar (At 4:7); a encarcerar (At 5:18); a
infligir castigo (At 5:40); e a matar (At 7:58)”. 144 Esta é a estratégia
invariável do diabo contra Jesus e Seus seguidores. Deus realiza milagres
que todos veem e ouvem, e mesmo assim os incrédulos recusam aceitar a
verdade. Zombam do que é santo e endurecem seus corações.
Os zombadores declaram que os apóstolos estão intoxicados de
tanto beber vinho. Atacam Pedro e seus companheiros com um
argumento que é ridículo: a hora do dia para ver as pessoas sob a
influência do álcool não é no seu começo. Pedro refuta suas acusações
chamando a atenção à hora do dia: “Ainda são nove horas da manhã!”
(v. 15, NVI).
A festa do Pentecostes é a festa da colheita de trigo e não de uvas.
A colheita da uva tem lugar no fim do verão. Portanto, a palavra vinho
refere-se não a vinho novo mas a um vinho doce da colheita do ano
anterior.

Palavras, frases e construções gregas em At 2:12–13


Versículo 12
διηπόρουν — de διαπορέω (estou perplexo), este composto mostra
intensidade (“completamente perplexo”), duração (tempo imperfeito), e
suporte para o verbo precedente (“maravilhado”).
ἄλλος πρὸς ἄλλον — um modismo que é reflexivo e equivalente ao
pronome ἀλλήλων.

Versículo 13
ἕτεροι — este adjetivo não é um sinônimo de ἄλλοι nesta frase.
Aqui se refere a um grupo de pessoas completamente diferentes daquelas
que estavam maravilhados e perplexos.

144
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. por Andrew R. Fausset, 5 vols.
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 526.
Atos (Simon J. Kistemaker) 132
διαχλευάζοντες — este gerúndio de um verbo composto indica ação
intensa e continuada. Descreve a maneira de zombar dos apóstolos.
μεμεστωμένοι — o verbo μεστόω (cheio) neste contexto refere-se a
vinho. Note-se que o meio perfeito neste particípio denota um ato que
começou no passado e tem efeito no presente. Com o verbo ser, a
construção é o perifrástico perfeito.

2. O sermão de Pedro (At 2:14–41)

a. Explicação do ocorrido (At 2:14–21)

Depois de enumerar as nações do mundo e de descrever a reação da


multidão ao milagre do Pentecostes, Lucas centraliza sua atenção no
sermão que Pedro prega naquela manhã. O próprio sermão é um modelo
para outros sermões e discursos registrados em Atos. Pedro começa
explicando o próprio acontecimento e citando a profecia de Joel. Logo
prega o evangelho de Cristo mediante a referência ao sofrimento, morte,
ressurreição e exaltação de Jesus. Por último, exorta a multidão a
arrepender-se para ser batizados.
Alguns estudiosos são da opinião que o sermão de Pedro é mais um
discurso teológico escrito por Lucas que um relato histórico do discurso
do apóstolo. 145 Sabemos que Lucas não estava em Jerusalém no dia do
Pentecostes, mas que recebeu a informação de “testemunhas oculares e
ministros da palavra” (Lc 1:2). É provável que Pedro tenha servido de
informante de Lucas dando-lhe o modelo e a fraseologia do sermão. Na
verdade, “tanto o modelo como a teologia básica são mais antigos que
Lucas e provavelmente se localizem nos primeiros dias da igreja”. 146

145
Entre outros, Richard F. Zehnle, Peter’s Pentecost Discourse: Tradition and Lukan
Reinterpretation in Peter’s Speeches of Acts 2 and 3, Série Society of Biblical Monograph 15, ed.
Robert A. Kraft (Nashville: Abingdon, 1971), pp. 136–38.
146
I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: An Intoduction y Commentaries, série Tyndale New
Testament Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 72.
Atos (Simon J. Kistemaker) 133
14, 15. Então Pedro levantou-se com os Onze e, em alta voz, dirigiu-
se à multidão: “Homens da Judéia e todos os que vivem em Jerusalém,
deixem-me explicar-lhes isto! Ouçam com atenção: estes homens não
estão bêbados, como vocês supõem. Ainda são nove horas da manhã!
[NVI]
a. O líder. Imediatamente depois da ascensão de Jesus, Pedro
assume a liderança no grupo dos 120 crentes. De novo, no dia do
Pentecostes, quando todas as pessoas estavam perplexas pelo milagre de
falar em outros idiomas, projeta-se Pedro diante da multidão como o
líder dos doze apóstolos. Nos primeiros dias, as multidões deviam ouvir
a Jesus. Agora vêm os apóstolos e Pedro dá-se conta que a tarefa de
exercer a liderança pertence a ele. Respaldado por seus companheiros
apóstolos e cheio com o Espírito Santo, levanta-se diante de milhares de
judeus na área do templo. Com plena confiança e arrojo dirige-se a eles.
“Então Pedro levantou-se com os Onze”. A pressão do incerto e a
curiosidade empurram aos apóstolos a dar um passo adiante e explicar o
significado do fato do Pentecostes. Assim, o inculto e comum pescador
chamado Simão Pedro encontra um lugar do qual alcançar à multidão
com a potência de sua voz. O verbo levantou-se não significa que ele se
levantou de estar sentado mas quer dizer que enfrentou a multidão. A
presença dos outros apóstolos perto sua amostra às gente que Pedro fala
em nome de todos eles.
Para os apóstolos, o milagre de falar em diversos idiomas passou
(compare At 10:46; 19:6). Depois do Pentecostes, eles proclamam o
evangelho de Cristo em sua língua vernácula. Assim, Pedro pronuncia
seu sermão num idioma. Supomos que falou em seu nativo aramaico,
língua que a grande maioria das pessoas ali reunidas entendiam. Isto se
deduz ao ler o v. 37, onde se diz que na conclusão do sermão, a multidão
reagiu compungida.
b. A audiência. “Compatriotas judeus, e todos os que vivem em
Jerusalém”. À medida que vai desenvolvendo seu sermão, Pedro se vai
sentindo mais cômodo com sua audiência. Começa com o vocativo tão
Atos (Simon J. Kistemaker) 134
comum: “Homens da Judeia” (v. 14); logo apela a seu orgulho religioso
e lhes diz: “Varões israelitas” (v. 22); e finalmente os trata de “Irmãos”
(v. 29). 147 Mas também se dirige a todos os que vieram que outros
lugares e residem agora em Jerusalém. Embora não mencione os
convertidos, é indubitável que também os inclui. (Embora não se refira
especificamente às mulheres, não as está desprezando, sobretudo se
levar-se em conta que por aqueles dias o costume era que a expressão
irmãos incluísse também as irmãs.) Pede-lhes muita atenção porque vai
explicar tudo o que eles viram e ouviram.
c. O contra-ataque. Pedro contradiz os incrédulos com um
comentário que apela ao senso comum. Apontando aos apóstolos, diz:
“Estes homens não estão bêbados como supõem. São somente as nove da
manhã!” A tradução literal diria: “É apenas a terceira hora do dia”.
Notemos que antigamente se dividia o tempo entre o amanhecer e o
anoitecer em doze períodos. Isto significa que tais períodos eram mais
curtos no inverno e mais longos no verão. Portanto, se o Pentecostes era
celebrado na última semana de maio, a “terceira hora” não eram as nove
mas só as oito da manhã. 148 E a esta hora do dia, 120 pessoas não iam
estar bêbadas. Especialmente se fosse sábado e dia em festa, o judeu não
se servia sua primeira comida senão próximo ao meio-dia. 149
16-18. Mas o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta
Joel: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu
Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão,
vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus
servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles
dias, e profetizarão.
Pedro começa seu sermão citando passagens do Antigo Testamento.
Põe em prática o que Jesus lhes tinha ensinado, de que primeiro citassem
147
Consulte-se R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg,
1944), p. 71.
148
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. por David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1, p. 56.
149
Josefo Vida 54 [279].
Atos (Simon J. Kistemaker) 135
as Escrituras e logo mostrassem seu cumprimento e aplicação. Pedro cita
o profeta Joel, quem predisse o derramamento do Espírito Santo, e lhes
explica que a profecia foi cumprida. Em poucas palavras indica que a era
dos últimos dias chegou. Exemplifica o cumprimento da profecia de Joel
ao falar com profunda convicção à multidão, proclamando o evangelho
de Cristo, e demonstrando com provas visíveis que ele está cheio com o
Espírito Santo.
Os judeus presentes no Pentecostes sabem que Joel tinha
profetizado a vinda do dia do Senhor “nos últimos dias”. Nestes últimos
dias de cumprimento, Deus concede Sua bênção a Seu povo que se
arrepende de seus pecados. Estes dias inauguram a era messiânica na
qual Deus derrama Seu Espírito sobre o Seu povo.
“Derramarei do meu Espírito sobre toda a carne”. Na profecia de
Joel, a expressão toda a carne inclui tanto a homens como a mulheres, a
jovens e também a anciãos. De igual maneira, em Atos Lucas não faz
distinção entre homens e mulheres. Ambos sofrem a perseguição (At
8:3); ambos se unem à igreja (At 17:4, 12); e ambos ensinam (At
18:26). 150
“Vossos filhos e vossas filhas profetizarão”. Qual é o significado do
verbo profetizar? No ambiente do Antigo Testamento significa predizer
o futuro. No acontecimento do Pentecostes, não parece que se está
predizendo o futuro. Outra interpretação é que profetizar equivale a
pregar. Por último, “profetizar pode significar ocupar-se no louvor a
Deus (veja-se 1Cr 25:3)”. 151 Na igreja primitiva, os profetas instruíam e
exortavam o povo de Deus. Segundo Lucas, Filipe o evangelista “tinha
quatro filhas solteiras que profetizavam” (At 21:9).
“Vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos”. Deus Se
revela a Si mesmo mediante profecia, em visões, e em sonhos, tal como

150
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 162.
151
Harrison, The Apostolic Church, p. 51. Veja-se Gary V. Smith, “Prophet”, ISBE, vol. 3, p. 1004.
Atos (Simon J. Kistemaker) 136
152
a Escritura repetidamente dá fé sobre isso. Com o derramamento do
Espírito Santo, todos os crentes sem distinção de sexo, idade, situação
social, recebem a sabedoria e habilidade de conhecer a Deus, de tal
modo que já não será necessário que cada um ensine a seu próximo a
respeito do Senhor (Jr 31:34; Hb 8:11).
“Até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do
meu Espírito”. A referência a servos ou escravos significa que Deus
concede Seu Espírito a todas as classes sociais. Note-se que Deus refere-
se a eles como Seus quando diz “meus servos [escravos]”. Muitos destes
escravos não eram judeus mas gentios.
Escravos gentios, tanto homens como mulheres, recebem o Espírito
Santo e conhecem o Senhor. Isto é evidente especialmente nas epístolas
do Novo Testamento (compare-se Ef 6:5–9; Cl 3:22–4:1; 1Tm 6:1–2; Tt
2:9–10; 1Pe 2:18–21). Deus derrama de Seu Espírito sobre os servos, de
modo que eles também podem compartilhar dos dons do Espírito.
19-21. Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais embaixo na terra:
sangue, fogo e vapor de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em
sangue, antes que venha o grande e glorioso Dia do Senhor. E acontecerá
que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo.
a. Mostrarei prodígios em cima no céu e sinais embaixo na terra”.
Embora Lucas diga que Pedro cita a profecia de Joel, não apresenta sua
aplicação. Não diz que esta profecia se cumpriu ao momento da morte de
Jesus quando as trevas cobriram a terra durante três horas (Mt. 27:45).
Nesse lapso o sol não foi visível e os sinais da natureza foram um
eloquente testemunho da morte de Cristo.
Além disso, Lucas não diz que no Pentecostes Deus cumpriu a
profecia de Joel com relação aos sinais e prodígios. Relata que o
derramamento do Espírito Santo ocorreu em Jerusalém (At 2:1–4), em
Samaria (At 8:17), em Cesareia (At 10:44) e em Éfeso (At 19:6). Mas

152
O Antigo Testamento está cheio de exemplos de profecias e sonhos. No Novo Testamento para
algumas citações sobre sonhos, veja-se Mt. 1:20; 2:12; 27:19. Em Atos, há numerosas referências a
visões (At 9:10, 12; 10:3; 12:9; 18:9).
Atos (Simon J. Kistemaker) 137
em nenhuma destas ocasiões as pessoas viram os sinais da natureza
como Joel as predisse.
E como ponto final, Lucas também faz caso omisso com relação ao
cumprimento da profecia de Joel a respeito de sinais e maravilhas. Joel
prediz que todas estas coisas terão lugar “antes que venha o grande e
glorioso dia do Senhor”. No entanto, além do anúncio dos anjos por
ocasião da ascensão de Jesus (At 1:11), Lucas não enfatiza nos Atos dos
Apóstolos a doutrina da volta de Cristo. 153 Embora os crentes o dia do
Pentecostes tivessem estado esperando a eventual volta de Jesus, Lucas
enfatiza Sua morte, ressurreição, e exaltação (vv. 22–36), porém não Sua
volta. Só diz o que Pedro cita da profecia de Joel. De qualquer maneira,
cumpre o propósito de seu escrito, que é mostrar que os apóstolos são
testemunhas de Jerusalém até os confins da terra (At 1:8). Por outro lado,
nos escritos de Pedro para o final de sua vida, este claramente delineia a
volta de Cristo como uma das doutrinas cardeais da igreja (1Pe 5:4; 2Pe
3:4, 10–13). Muito apropriadamente, Pedro refere-se à volta de Cristo
como o “dia do Senhor”; isto é, o dia do juízo. Para o incrédulo, este dia
significa castigo eterno, mas para o cristão, significa salvação na
presença do Senhor.
b. “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”. Pedro
usa o último versículo de seu citação da profecia de Joel como uma
introdução a sua explicação do evangelho de Cristo (vv. 22–36). Paulo
usa o mesmo texto quando fala da salvação (Rm 10:13). 154
A forma deste versículo de Joel em particular indica que Pedro já
não está falando com a multidão como um todo. Antes, confronta o
indivíduo que o escuta com o evangelho de Cristo e lhe diz que deve
invocar o nome do Senhor. A estas alturas do sermão, os ouvintes
entendem o termo Senhor como equivalente a Deus; contudo, na

153
Veja-se Herman N. Ridderbos, The Speeches of Peter in the Acts of the Apostles (Londres:
Tyndale, 1962), p. 15.
154
São numerosas as referências que no Novo Testamento encontramos à profecia de Joel; a maioria
estão no livro de Apocalipse, onde aparecem em doze ocasiões. Veja-se Nes-Al, p. 767.
Atos (Simon J. Kistemaker) 138
conclusão de seu sermão, Pedro claramente deixa estabelecido que Deus
tem feito a Jesus “Senhor e Cristo” (v. 36). Quando o crente clama no
nome do Senhor (compare At 9:14), ele está invocando a Cristo.
Deus abre o caminho de salvação a todos, tanto judeus como
gentios. Sua promessa está dirigida ao indivíduo e exige deste uma
resposta igualmente individual. 155 Estes crentes, como membros do
corpo de Cristo, constituem a igreja cristã.

Considerações doutrinais em At 2:17–21


Depois da criação e da encarnação do Filho, o derramamento do
Espírito Santo no Pentecostes é o terceiro ato maior levado a cabo por
Deus. Pelo Antigo Testamento sabemos que o Espírito esteve presente
antes do Pentecostes mas sempre de forma temporal e para propósitos
especiais. Por exemplo, o Espírito Santo repousou sobre Eldade e
Medade no campo de Israel e os capacitou para que profetizassem (Nm
11:26; compare-se com 1Sm 10:6, 10). Os discípulos de Jesus sabiam
pela leitura dos profetas que Deus haveria de derramar Seu Espírito
sobre o Messias e sobre a casa de Israel (Is 11:2; 44:3; Ez 39:29; Jl 2:28–
32). Com efeito, Deus deu o Espírito a Jesus sem limite (Jo 3:34) e
também encheu com o Espírito Santo a João Batista e a seus pais (Lc
1:15, 41, 67).
Depois de Sua ressurreição e antes de Sua ascensão, Jesus soprou
sobre Seus discípulos e lhes disse: “Recebam o Espírito Santo. Se
perdoarem os pecados de alguém, estarão perdoados; se não os
perdoarem, não estarão perdoados” (Jo 20:22–23, NVI). E logo, no dia
do Pentecostes, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, as mulheres e
Maria, os irmãos de Jesus, e outros, no total 120 pessoas (At 1:12–15;
2:4, 17).

155
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 139
Deus deu o Espírito Santo para que estivesse com a igreja de Jesus
Cristo para sempre. Quando Jesus reuniu Seus doze discípulos começou
a formar Sua igreja (Mt 16:18) diferente do judaísmo. Enquanto que
Jesus ainda não tinha sido glorificado, o Espírito Santo não viria, porque
o próprio Jesus era a divina presença no meio deles (Jo 7:39). Mas
quando Jesus foi glorificado, Ele soprou sobre eles o Espírito Santo
como uma antecipação do que havia de ocorrer no Pentecostes. No lapso
entre a ascensão de Jesus e o Pentecostes, eles experimentaram a
presença do Espírito Santo. Com o derramamento no Pentecostes, a
igreja assumiu sua própria identidade separada do judaísmo.
Em harmonia com a ordem que Jesus deu aos apóstolos de começar
em Jerusalém, Pedro proclamou o evangelho de Cristo primeiro na
cidade Santa. Mais tarde pregou as Boas Novas em Samaria e Cesareia, e
nestes lugares também foi derramado o Espírito Santo. O resultado foi
que desde este começo, a igreja de Cristo é uma igreja universal, porque
cada cristão confessa estas palavras:

“Creio no Espírito Santo; na santa igreja universal, e na comunhão


dos santos.” — Credo Apostólico.

Palavras, frases e construções gregas em At 2:17 e 21


Versículo 17
ἐκχέω ἀπό — “Derramarei de”. Normalmente, o verbo toma um
objeto direto em lugar de uma frase preposicional. No entanto, a
presença da preposição é o resultado de uma tradução literal do texto
hebraico ao grego.
ἐνυπνίοις ἐνυπνιασθήσονται — “sonharão sonhos”. Aqui temos a
construção do infinitivo absoluto transmitida ao grego. No hebraico, esta
construção indica ênfase.
Atos (Simon J. Kistemaker) 140
Versículo 21
πᾶς ὅς — “todo aquele que”. O pronome relativo não tem
antecedente. Portanto, com o adjetivo πᾶς serve como sujeito da frase. O
adjetivo inclui a todos, sem discriminação.

b. A Palavra de Deus cumprida (At 2:22–24)

Depois de citar o Antigo Testamento (Jl 2:28–32) que explica o


milagre do Pentecostes que as pessoas viram, Pedro está preparado para
pregar o evangelho de Cristo. Quer que todos saibam que com o
derramamento do Espírito Santo chegou a era messiânica.
22. Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno,
varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais,
os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós
mesmos sabeis.
a. “Varões israelitas, atendei a estas palavras”. Primeiro, Pedro se
localiza num terreno comum, porque tanto o orador como seus ouvintes
aceitam as Escrituras como a Palavra de Deus. Logo, ele se dirige a seu
auditório com as palavras varões israelitas. Esta forma de expressar-se
não tem conotações nacionalistas nem pretende deixar de fora os gentios.
Tampouco representa machismo nem chauvinismo masculino, nem são
uma variação da saudação, “compatriotas judeus” (v. 14). A palavra
Israel neste contexto é um termo religioso que lembra ao auditório a
aliança feita por Deus com Seu povo. E que tanto Pedro como seus
ouvintes são participantes dessa aliança. 156 Com esta saudação, Pedro se
aproxima mais de seus ouvintes e o usa para apresentar a Jesus de
Nazaré.
b. “Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com
milagres, prodígios e sinais”. Pedro usa o nome de Jesus e o lugar de Sua

156
Refira-se a Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 73; Lenski, Acts, p. 80.
Atos (Simon J. Kistemaker) 141
157
residência que são conhecidos das pessoas. Jesus era conhecido por
este nome (Mt 26:71; Lc 18:37; Jo 18:5, 7). De acordo com o letreiro na
cruz, este era o nome de Jesus (Jo 19:19). Pedro descreve Jesus como um
homem confirmado por Deus através de sua vida terrestre, como é
evidente pelos milagres, sinais e prodígios que realizou. A palavra
confirmado descreve a Jesus como uma pessoa enviada por Deus e que
fala em nome de Deus. Ninguém no auditório que tenha conhecido a
vida de Jesus pode negar as maravilhas de dar vista aos cegos, ressuscitar
os mortos, e pregar o evangelho do reino (cf. Mt 11:5; Lc 7:22). De fato,
estes milagres, prodígios e sinais demonstram aos ouvintes que a era
messiânica chegou, porque Jesus é o Messias.
c. “[Estes sinais] os quais o próprio Deus realizou por intermédio
dele entre vós, como vós mesmos sabeis”. Na proclamação do
evangelho, Pedro põe a ênfase em Deus. 158 Diz que Deus respaldou a
Jesus (v. 22), realizou milagres através dEle (v. 22), entregou-o à morte
(v. 23), ressuscitou-o (vv. 24, 32), e fê-lo Senhor e Cristo (v. 36). Esta
ênfase descansa num terreno comum porque estes judeus tementes a
Deus (v. 5) reconhecem que Jesus não pôde ter feito tudo o que fez se
Deus não tivesse estado com Ele (cf. Jo 3:2; 10:38). Por isso Pedro
observa: “Como vós mesmos sabeis”.
23. Sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de
Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos.
Notemos os seguintes dois pontos:
a. O propósito de Deus. Pedro assume que a audiência está em
pleno conhecimento do juízo e morte de Jesus Cristo. Neste versículo
usa o pronome pessoal vós para fazer com que seus ouvintes sintam a
responsabilidade que têm pela crucificação de Jesus. No entanto, fala-
lhes de um ponto de vista divino: Deus está no controle completo da

157
Veja-se também At 3:6; 4:10; 6:14; 22:8; 24:5; 26:9. No grego, a frase difere ligeiramente em At
10:38.
158
Consulte-se Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 142
situação, mesmo quando os judeus tenham levado Jesus a juízo e os
soldados lhe deram morte.
Pedro diz que a morte de Jesus ocorreu de acordo com o
“determinado desígnio e presciência de Deus”. A expressão determinado
desígnio sugere um plano que foi determinado e que é claramente
definido. O autor deste determinado desígnio é o próprio Deus (veja-se
4:28). Pedro dissipa qualquer dúvida com relação a se Deus pôde ter
agido precipitadamente em formular seu propósito e entregar Jesus ao
povo judeu. E acrescenta o termo presciência. Com esta palavra, aponta
à onisciência de Deus pela qual cada parte de Seu plano está em Seu
pleno e antecipado conhecimento (1Pe 1:2). Em sua primeira epístola,
Pedro escreve que “[Jesus] conhecido antes da criação do mundo” (1Pe
1:20, NVI). E finalmente, através de todos os profetas do Antigo
Testamento, Deus anunciou que Cristo teria que sofrer (At 3:18).
b. A responsabilidade do homem. Pedro faz a seus ouvintes
responsáveis pela morte de Jesus. Para eles, o messianismo ao que Jesus
apropria e Sua morte na cruz são irreconciliáveis, opostos e
contraditórios entre si. 159 Ellos saben que es maldito [por Dios] “todo
aquel que es colgado en un madero” (Dt. 21:23; Gl 3:13). Pero Pedro
rechaza este punto de vista apuntando hacia el determinado consejo y el
anticipado conocimiento de Dios.
Aquí hay una tensión no resuelta entre la determinación de Dios de
que su Hijo muriera y la responsabilidad del hombre por perpetrar la
acción (véase Hch 3:17–18; 4:27–28; 13:27). Dios mismo entregó a
Jesús a los judíos, quienes lo llevaron a la muerte clavándolo en una
cruz. Los judíos no pueden exonerarse de culpa achacando la muerte de
Jesús a los romanos, a quienes llaman “hombres malvados”, porque ellos
mismos fueron quienes contrataron a los romanos. Pedro enseña que los
judíos deben reconocer su responsabilidad por la muerte de Jesús (Hch

159
Günter Dulon, NIDNTT, vol. 1, p. 473.
Atos (Simon J. Kistemaker) 143
3:15; 4:10; 5:30; 10:39). Deben ver todos los aspectos del plan de Dios.
Por eso les dice,
24. ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da
morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela.
Pedro afirma o fato da ressurreição de Cristo. De forma positiva
afirma que Deus levantou Jesus da morte. Enuncia a doutrina apostólica
da ressurreição, um tema que se repete muito nos Atos. 160 Deus levou a
cabo Seu plano em etapas predeterminadas: primeiro a morte de Cristo e
posterior a ela, Sua ressurreição.
Deus levantou Jesus “rompendo os grilhões da morte”. Uma leitura
literal para agonia é “dores de parto”. Mas o que significa deixar livre a
Jesus das dores de parto de morte? Alguns intérpretes sugeriram que
Pedro, falando aramaico, usou outra palavra para dores de parto, tal
como cordas. 161 Eles argumentam que o salmista fala de “ligaduras de
morte” (Sl 18:4; 116:3; e veja-se 2Sm 22:6). Não podemos determinar
qual foi a palavra em aramaico que Pedro usou. O grego, porém, tem a
expressão dores de parto, que aparece no discurso de Jesus relacionado
com o fim do mundo (Mt 24:8; Mc 13:8). Esta expressão é uma figura
literária que não deve ser forçada (compare-se a frase as portas do
inferno [Hades] em Mt 16:18). Deus libertou Jesus da agonia que
acompanha a morte.
E Pedro dá as razões para a libertação de Jesus da agonia da morte:
“porquanto não era possível fosse ele retido por ela”. Deus pronunciou a
maldição da morte sobre a raça humana quando Adão caiu em pecado
(Gn 3:17–18; veja-se também Gn 2:17). Mas Jesus, que não pecou, mas
que levou sobre Si os pecados do mundo (Jo 1:29), tirou o aguilhão da
morte (1Co 15:55–56) quando Ele morreu na cruz. Portanto, a morte não
voltou a ter poder algum sobre Ele.

160
Veja-se também At 2:32; 3:15; 5:30; 10:40; 13:30, 34, 37; 17:31.
161
Consulte-se Robert G. Bratcher, “’Having Loosed the Pangs of Death’ ” BibTr 10 (1959): 18–20;
Haenchen, Acts, p. 180.
Atos (Simon J. Kistemaker) 144
A morte não pode reter sua vítima —
Jesus, meu Salvador.
— Roberto Lowry

Palavras, frases e construções gregas em At 2:23–24


Versículo 23
βουλῇκαὶ προγνώσει — estes dois substantivos estão precedidos
por um artigo definido, τῇ, e portanto estão estreitamente conectados.
βουλῇ (propósito) é qualificado pelo gerúndio passivo ὡρισμένῃ (do
verbo ὁρίζω [fixo limites; determino]).
ἔκδοτον — este é um adjetivo verbal de ἐκδίδωμι (eu rendo) que
expressa a construção passiva foi entregue; Deus é o agente implicado.
διὰ χειρός — literalmente, isto é “de mãos dadas [de]”. É uma típica
construção hebraica traduzida ao grego.

Versículo 24
ὠδῖνας — “dores de parto”. O texto grego não tem variantes para
esta palavra. No entanto, no hebraico o Texto Massorético usa ḥeḇel
(ligadura) em lugar de ḥēḇel (dores de parto), Sl. 18:6 e 116:3. A
Septuaginta [Sl 18:6 = 17:6 e 116:3 = 114:3] usa ὠδῖνες. O texto da
Septuaginta e as palavras de Pedro são muito anteriores ao relativamente
tardio adjetivo vocálico assinalado pelo Texto Massorético e, portanto,
são preferíveis.

c. A profecia de Davi (At 2:25–28)

25-28. Porque a respeito dele diz Davi: Diante de mim via sempre o
Senhor, porque está à minha direita, para que eu não seja abalado. Por
isso, se alegrou o meu coração, e a minha língua exultou; além disto,
também a minha própria carne repousará em esperança, porque não
deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja
Atos (Simon J. Kistemaker) 145
corrupção. Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, encher-me-ás de
alegria na tua presença.
Aqui temos a segunda de três citações que Pedro faz do Antigo
Testamento em seu sermão do Pentecostes. Segue a tradução do grego de
Salmo 16:8–11, a qual aqui difere pouco do texto hebraico. Pedro cita o
salmo para respaldar seu ensino de que Deus levantou Jesus da morte
ficando assim cumprida a profecia de Davi com relação a Cristo e Sua
ressurreição. Também Paulo cita um versículo deste salmo quando prega
em Antioquia da Pisídia e vê o cumprimento da ressurreição de Jesus no
Salmo 16:10: “Não permitirás que o teu Santo sofra decomposição” (At
13:35, NVI).
a. “Diante de mim via sempre o Senhor, porque está à minha
direita, para que eu não seja abalado”. Davi se revela como uma pessoa
que põe toda sua confiança em Deus. Fala como um filho de Deus que
sabe que Deus nunca está longe dele. De fato, Davi vê o Senhor diante
dele; o texto hebraico diz: “Ao Senhor pus continuamente diante de
mim” (Sl. 16:8). Deus está à direita de Davi e precisamente esta
proximidade do Senhor faz com que Davi esteja tranquilo. A cláusula
“está à minha direita” (Sl 73:23; 109:31; 110:5; 121:5) descreve a Deus
como o protetor de Davi.
b. “Por isso, se alegrou o meu coração, e a minha língua exultou”.
Devido à estreita relação que Davi tem com Deus e à confiança posta
nEle, seu coração está cheio de alegria e felicidade. Expressa seus
sentimentos cantando canções de louvor. Faz referência a seu coração, o
centro de seu ser. Crê com o coração e confessa com a boca (Rm 10:10).
E continua dizendo: “E até minha carne [corpo] descansará em
esperança”. A leitura do hebraico em Salmo 16:9b diz: “meu corpo
também repousará confiantemente”. Davi sabe que fisicamente ele está
seguro até diante da morte. Põe sua esperança em Deus. Eis aqui a razão:
c. “Porque não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que
o teu Santo veja corrupção”. Embora na primeira parte deste versículo
Davi esteja se referindo a si mesmo (v. 27; Sl 16:10), na segunda parte
Atos (Simon J. Kistemaker) 146
está profetizando a respeito do Messias e Sua ressurreição. Diz que sua
confiança é que a tumba não marcará o fim de sua comunhão com Deus.
Continuará desfrutando da vida na presença do Senhor. Este pensamento
o repete no versículo seguinte: “Fez-me conhecer os caminhos da vida”
(v. 28; Sl 16:11). Várias versões transliteram o termo grego hades. 162
Este é o termo para o hebraico Sheol, que significa “fossa” ou
“sepulcro”. Em seu sermão, Pedro emprega a palavra hades não no
sentido de “morada da morte”, e sim como tumba. Até na tumba Deus
não abandona Seus filhos, mas lhes dá a segurança da ressurreição. A
frase, “Nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”, é a convicção de
Davi com relação à afirmação de Deus.
Paulo provê uma análise lógica das palavras de Davi e as aplica a
Cristo. Diz: “Tendo, pois, Davi servido ao propósito de Deus em sua
geração, adormeceu, foi sepultado com os seus antepassados e seu corpo
se decompôs. Mas aquele a quem Deus ressuscitou não sofreu
decomposição” (At 13:36–37, NVI). A explicação que dá Pedro à
afirmação de Davi é ainda mais explícita (vv. 29–32). Aponta à
evidência da tumba de Davi em Jerusalém, pelo contrário que a tumba de
Cristo está vazia porque Deus O levantou dos mortos. E Pedro mesmo
pode dar fé acerca deste fato.
d. “Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, encher-me-ás de
alegria na tua presença”. Na parte final deste salmo, Davi recorre ao
mecanismo literário de contraste: negativo e positivo, morte e vida,
corrupção e presença de Deus. Note-se também o contraste entre “me” e
“teu Santo”. Até se a segunda parte do versículo 27 (Sl 16:10) se
aplicasse ao próprio Davi, o fato de Pedro chamá-lo profeta aponta não
ao salmista, e sim a Cristo. Contudo, no último versículo deste salmo
Davi fala de si mesmo; resume assim sua comunhão íntima com Deus.
Davi reconhece que Deus lhe deu divina revelação que o instrui
para conhecer os caminhos da vida. Afirma: “Fizeste-me conhecer os

162
P. ex., NKJV, BJ, RSV, NASB.
Atos (Simon J. Kistemaker) 147
caminhos da vida”. Para Davi, a Palavra de Deus é uma lâmpada para
seus pés e uma luz para seu caminho (Sl 119:105). Ele sabe que o
próprio Deus é a fonte de vida, pelo qual está em condições de desfrutar
de uma vida plena na presença de Deus. A alegria de Davi consiste em
caminhar continuamente nos caminhos da vida numa comunhão estreita
com seu Senhor.
A frase em tua presença é uma fonte de alegria, porque a presença
de Deus é luz de luzes. 163 Nas palavras do apóstolo João, “e nossa
comunhão verdadeiramente é com o Pai, e com seu Filho Jesus Cristo.
Estas coisas vos escrevemos, para que vossa alegria seja cumprida” (1Jo
1:3–4).

Considerações doutrinais em At 2:25–28


Os escritores do Antigo Testamento sabem que ninguém pode
escapar do poder da morte, e que todos descerão à tumba no tempo
assinalado. Também sabem que Deus tem poder sobre a morte e que na
presença de Deus eles têm vida eterna. De acordo com isso, Jó
confiantemente afirma que embora a morte destrua sua pele na tumba,
ele verá a Deus em sua carne (Jó 19:25–27). Pleno de esperança, Davi
afirma que ele verá o rosto de Deus e que tem acesso a Ele depois da
morte (Sl 11:7; 16:9–11; 17:15). E Asafe confessa que ele sempre está
com Deus, quem o levará à Sua glória. Mesmo quando lhe falta seu ser
físico, Deus é sua porção para sempre (Sl 73:23–26).
Os primitivos cristãos aplicaram Salmo 16:10 a Cristo: “Porque não
deixarás minha alma no Sheol, nem permitirá que teu Santo veja
corrupção”. Interpretam as palavras de Davi como querendo dizer que o
sepulcro não poderá destruir o corpo de Cristo. No hebraico, a palavra
destruir (šāẖaṭ) tem a mesma raiz que sepulcro (šāẖaṭ). “A tumba ou

163
Consulte-se Franz Delitzch, Biblical Commentary on the Psalms, trad. por Francis Bolton, 3 vols.
(1877; Grand Rapids: Eerdmans, 1955), vol. 1, p. 229.
Atos (Simon J. Kistemaker) 148
164
sepulcro é o lugar onde o corpo é destruído”. O corpo de Cristo não
viu corrupção, mas foi glorificado em Sua ressurreição. Portanto, a
promessa de Deus se cumpriu não em Davi, mas em Cristo.

Palavras, frases e construções gregas em At 2:25 e 27


Versículo 25
είς αὑτόν — com o acusativo, a preposição é comparável ao dativo
de referência, “com relação a”. 165
διὰ παντός — literalmente, a expressão significa “através de todo [o
tempo]” com o substantivo χρόνος agregado.

Versículo 27
εἰς — com o acusativo a preposição tem o sentido de ἐν com o
dativo “na tumba”.
ὅσιον — este adjetivo aparece oito vezes no Novo Testamento,
cinco das quais são citações. Usado com relação a Deus, quer dizer que
Ele é santo em seu juízo (Ap 16:5). Jesus é o Santo (hebraico: ḥāsîd), a
quem Deus levantou dos mortos. 166

d. Deus cumpre Sua promessa (At 2:29–36)

29, 30. Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente a respeito do


patriarca Davi que ele morreu e foi sepultado, e o seu túmulo permanece

164
Friedeman Merkel, NIDNTT, vol. 1, p. 470. Haenchen e Longenecker observam que Lucas omite
em seu Evangelho o clamor de Jesus: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Sl. 22:1);
mas inclui a referência de Jesus ao paraíso (Lc. 23:43) e as palavras, “Pai, em tuas mãos encomendo o
meu espírito” (v. 46). O paralelismo com o Salmo 16:8 é grande. Haenchen, Acts, p. 181;
Longenecker, Acts, pp. 281–82.
165
Consulte-se H. E. Dana e Julio R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927;
Nueva York: Macmillan, 1967), p. 103.
166
Compare-se R. C. Trench, Synonyms of the New Testament (1854: Grand Rapids: Eerdmans, 1953),
p. 329.
Atos (Simon J. Kistemaker) 149
entre nós até hoje. Sendo, pois, profeta e sabendo que Deus lhe havia
jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu trono.
Pedro dirige-se à multidão chamando-os “irmãos”. Na reunião dos
120 crentes, ele usou a mesma forma (At 1:16). Depois de citar o Salmo
16, familiar a seu auditório por seu uso nas sinagogas locais, identifica-
se a si mesmo com seus ouvintes para o qual emprega o termo irmãos. 167
a. O patriarca. Ao mencionar a Davi e chamá-lo de “patriarca”,
Pedro efetivamente está se dirigindo aos judeus; o nome Davi lhes
lembra da época de ouro de Israel. Davi morreu e foi sepultado em
Jerusalém e sua tumba esteve ali até o tempo dos apóstolos. 168 Ninguém
objeta as referências que faz Pedro, porque quanto diz é irrefutável.
Todos visitaram a tumba de Davi; portanto, Pedro pode falar com toda
confiança deste fato histórico.
No entanto, Pedro não está interessado tanto na história da morte de
Davi e seu sepultamento como na interpretação do Salmo 16:10. Deus
fez uma aliança eterna com os israelitas; prometeu a Davi o Seu amor
fiel (Is. 55:3). E Davi morreu. Pedro o chama patriarca e desta maneira o
põe no mesmo nível que Abraão, Isaque, Jacó e as cabeças das doze
tribos de Israel. O corpo de Davi sepultado numa tumba é muda
evidência a Pedro e a seus contemporâneos que a citação deste salmo em
particular (Sl 16:10) está ainda por cumprir-se.
b. O profeta. O próprio Davi não consegue cumprir as palavras do
Salmo 16:10, mas fala profeticamente a respeito de outro mais. Davi é
rei de Israel; contudo age como profeta. De fato, com o resto dos
profetas do Antigo Testamento ele está “investigando, atentamente, qual
a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de
Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os
167
A saudação irmãos (literalmente “varões [e] irmãos”) aparece só em discursos em que judeus falam
com judeus (At 1:16; 2:29, 37; 7:2; 13:15, 26, 38; 15:7, 13; 22:1; 23:1, 5, 6; 28:17).
168
Veja-se Ne. 3:16. Josefo afirma que a tumba de Davi era um edifício com vários aposentos e
abóbadas para sepultar os reis. Antiguidades 13.8.4 [249]; 16.7.1 [179]; Guerra Judaica 1.2.5 [61]. A
tumba permaneceu inviolada durante a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. e ainda se falava dela
nos tempos do imperador romano Adriano (117–38 d.C.).
Atos (Simon J. Kistemaker) 150
sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam” (1Pe
1:11). No Salmo 16 Davi olha para frente, ao Cristo ressuscitado. Para a
composição deste salmo, Davi recebe uma revelação de Deus e profetiza
a respeito do Messias.
“[Davi] sabia que Deus tinha prometido com juramento”. O uso do
juramento não é só garantia da fidelidade a uma declaração; jurar
significa que o que foi afirmado jamais poderá ser mudado. 169 Romper
um juramento é perjúrio. Por isso, quando Deus promete com juramento
que Ele fará algo, Ele está obrigado a cumprir Sua promessa.
O que foi o que Deus prometeu a Davi com juramento? Ele “poria a
um dos descendentes [de Davi] em seu trono”. O Antigo Testamento
claramente afirma que Deus fez juramento com a sucessão de Davi. Eis
aqui um versículo que afirma isso:
“O SENHOR jurou a Davi com firme juramento e dele não se
apartará: Um rebento da tua carne farei subir para o teu trono. Se os teus
filhos guardarem a minha aliança e o testemunho que eu lhes ensinar,
também os seus filhos se assentarão para sempre no teu trono.” [Sl
132:11–12] 170
Esta passagem amostra a cláusula condicional na promessa de Deus
a Davi, pela qual os descendentes de Davi estavam obrigados a guardar a
aliança de Deus e obedecer Seus preceitos. O Messias, a descendência de
Davi, guarda a aliança e cumpre a lei (Mt 5:17; Rm 10:4). Cristo ocupa o
trono de Davi para sempre (Lc 1:32–33), não num reino terrestre mas em
um reino eterno e espiritual (Jo 18:36). Além disso, note-se que com Seu
juramento, Deus jurou em favor do sucessor de Davi, com o qual está
querendo dizer que o Messias é o cumprimento da promessa. 171
31. Prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem foi
deixado na morte, nem o seu corpo experimentou corrupção.

169
F. Charles Fensham, “Oath”, ISBE, vol. 3, p. 573.
170
Veja-se também 2Sm. 7:12–16; Sl. 89:3–4, 35–36.
171
Consulte-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 73.
Atos (Simon J. Kistemaker) 151
Nos versículos 30 e 31, os termos profeta, soube, olhando adiante e
falou estão intimamente relacionados. Referem-se à função profética de
Davi e o descrevem observando o horizonte do futuro e predizendo a
ressurreição do Messias. Profeticamente, Davi sabia que o Messias
ressuscitaria da tumba e que teria vida eterna. 172 Portanto, Pedro diz que
Davi falou da ressurreição do Messias no Salmo 16:10, “Porque não
deixará minha alma na tumba, nem permitirá que o teu Santo veja
corrupção”. Pedro vê o cumprimento deste salmo e, como resultado,
muda os tempos dos verbos do futuro ao passado: “[Cristo] nem foi
abandonado à tumba, nem seu corpo viu a corrupção” (veja-se v. 27).
Portanto, vê a ressurreição de Cristo à vida eterna como a consumação
do reino espiritual de Davi no qual Cristo é rei para sempre. Ele põe a
ênfase não em Davi, o escritor do salmo, mas em Cristo, que deu pleno
cumprimento às suas palavras. Ainda mais, Pedro assegura que a
evidência é irrefutável. Faz a seguinte observação:
32, 33. A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos
testemunhas. Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a
promessa do Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis.
Nestes dois versículos, Pedro destaca os atos redentores da
ressurreição e ascensão de Cristo, em conjunção com o derramamento do
Espírito Santo. De fato, menciona as três Pessoas da Trindade: o Pai,
Jesus, e o Espírito Santo. Três vezes em seu sermão do Pentecostes
assinala enfaticamente a Jesus como este Jesus (veja-se vv. 23, 32, 36)
para lembrar a seus ouvintes seu conhecimento de e relação com Jesus
de Nazaré (v. 22). Mais uma vez Pedro enfatiza o tema da igreja cristã
primitiva: a ressurreição da morte (v. 24; e veja-se At 13:30, 33–34, 37;
17:31).

172
“Devemos indicar à igreja cristã que o ponto de vista exposto por Pedro estabelece que o status
profético de Davi lhe permitiu ter uma clara previsão da ressurreição de Cristo”. Walter C. Kaiser, Jr.,
“The Promise to David in Psalm 16 and Its Application in Acts 2:25–33 y 13:32–37”, JETS 23 (1980):
229; também publicado em The Uses of the Old Testament in the New (Chicago: Moody, 1985), p. 40.
Atos (Simon J. Kistemaker) 152
Nos versículos 32 e 33, Pedro faz uma diferença entre as
testemunhas apostólicas (“todos nós somos testemunhas”) que viram
Jesus ressuscitado e a multidão que observa o fenômeno do Pentecostes
(“isto que vedes e ouvis”). Em outro contexto, Pedro afirma que Jesus
apareceu só àquelas testemunhas “escolhidas de antemão por Deus” (At
10:41). Pelo contrário, a multidão no Pentecostes não tinha visto Jesus
ressuscitado, mas viram e ouviram os sinais visíveis e audíveis da
presença do Espírito Santo.
Devido ao fato de que o auditório de Pedro não tinha visto Jesus
durante o período de quarenta dias entre Sua ressurreição e Sua
ascensão, necessitavam provas de que o que se proclamava da parte das
testemunhas era verdade. Queriam saber, portanto, a relação entre a
ressurreição de Jesus e a vinda do Espírito Santo. Para responder a estas
perguntas, Pedro alude à ascensão de Jesus e menciona o lugar de Cristo
à destra de Deus (compare-se At 5:31). Os cristãos mais adiante
incorporaram estas verdades no Credo Apostólico e confessaram que
Cristo Jesus subiu ao céu, e está sentado à destra de Deus Pai Todo-
poderoso.
Daquela posição de exaltação, Jesus cumpriu a promessa de que o
Pai enviaria o Espírito Santo (veja-se Jo 7:39; 14:26; 15:26). As palavras
de Jesus com relação à vinda do Espírito se cumprem no dia do
Pentecostes. Assim, cada pessoa que se encontrava na área do templo em
Jerusalém pôde ver a evidência do derramamento do Espírito. Por isso,
os ouvintes deviam saber que Jesus, sentado à destra de Deus, tem a
autoridade de comissionar o Espírito para vir e viver nos corações dos
crentes.
Pedro se aproxima no final de seu sermão e se prepara para
responder a pergunta da multidão. “Que quer isto dizer?” (v. 12). Isto é,
que o Espírito Santo prometido por Jesus como um dom do Pai veio pela
autoridade de Jesus de enviá-lo. Pedro afirma aos ouvintes que Jesus
ascendeu e ocupou seu lugar de honra ao lado de Deus o Pai. Diz:
Atos (Simon J. Kistemaker) 153
34, 35. Porque Davi não subiu aos céus, mas ele mesmo declara:
Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu
ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés.
Pedro menciona de novo o nome de Davi para estabelecer o vínculo
entre Salmo 16:8–11 e Salmo 110:1. Se alguém no auditório de Pedro
questionasse que o primeiro destes salmos refere-se a Cristo, a citação do
segundo salmo prova sem lugar a dúvida que Jesus ascendeu e tomou
posse de seu trono no céu. Os judeus interpretavam as Escrituras com a
regra hermenêutica da analogia verbal. Isto é, se duas passagens tiverem
uma analogia verbal (como no caso destas duas citações do Saltério),
então uma das passagens deve ser interpretado como a outra. Os judeus
consideravam o Salmo 110 como messiânico, e portanto deviam
interpretar a passagem do Salmo 16 messianicamente.
Salmo 110:1 não se aplica a Davi e sim a Cristo (veja-se Mt 22:41–
46). Em sua discussão com os fariseus, Jesus demonstra que neste salmo
Davi fala da exaltação de Cristo no céu e da autoridade confiada a Ele. 173
Él reina y no tendrá la victoria completa sino hasta que todos sus
enemigos sean puestos como estrado de sus pies.
36. Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a
este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.
Aqui Pedro chega à conclusão de seu sermão. Profere uma
admoestação que dirige a cada pessoa que pertence à casa de Israel e lhes
diz que Jesus é Senhor e Cristo.
Observemos os seguintes pontos:
a. Todo o Israel. Nesta conclusão, Pedro apela a todo o povo que
diz ser israelita. Ele o faz porque Israel como nação se considera o povo
de Deus. Repetidamente Deus disse aos descendentes de Abraão, “Eu
serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (veja-se Jr 31:33). Além
disso, quando Jesus enviou os Seus discípulos em sua primeira excursão
missionária, deu-lhes instruções de não ir aos gentios: “mas, de

173
Consulte-se Longenecker, Acts, pp. 279–80.
Atos (Simon J. Kistemaker) 154
preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel” (veja-se Mt
10:6). Cristo dirige Seu evangelho primeiro aos judeus, logo aos
samaritanos (At 8:4–25), e finalmente aos gentios (At 10:24–48). No dia
do Pentecostes, o auditório judeu deve ter ficado plenamente convencida
da verdade do evangelho.
b. Deus. Qual é a substância desta verdade? Pedro diz: “Este Jesus,
a quem vocês crucificaram, Deus lhe tem feito Senhor e Cristo”. Ao
longo do sermão, Pedro fala de Deus como o principal interlocutor e ator
(vv. 17, 22–24, 30, 32, 36). Ao concluir, Pedro desvia a atenção à
deidade de Jesus Cristo, a quem coloca no mesmo nível que Deus. E o
faz com plena consciência do credo monoteísta do povo judeu: “Ouve,
Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR”. (Dt 6:4). Fala-lhes
da deidade de Jesus Cristo e faz ressaltar o fato de que embora os judeus
tenham crucificado a Jesus (v. 23), Deus o fez Senhor e Cristo. Quando
afirma que Deus fez a Jesus Senhor e Cristo, não está aderindo à
interpretação de que Deus exaltou a Jesus depois de Sua morte na cruz.
Muito pelo contrário, o Novo Testamento alude à exaltação de Jesus
mesmo antes de ter sido crucificado no Calvário. 174 Naturalmente, os
títulos Senhor e Cristo são usados depois da ressurreição e ascensão de
Jesus, quando os apóstolos chegam a ser conscientes do significado
destes acontecimentos redentores.
c. Senhor e Cristo. Aqui está o ponto. Durante o Seu ministério
terrestre, Jesus nunca Se referiu a Si mesmo como o Cristo. Só no juízo
respondeu afirmativamente a pergunta do sumo sacerdote quanto a
messianismo (Mc 14:61–62). No entanto, já no primeiro sermão de um
de seus apóstolos, Pedro chama Jesus Senhor e Cristo. 175 Considerando
que no Antigo Testamento o termo Senhor refere-se a Deus, no Novo
174
Veja-se especialmente Mt. 22:44 (e paralelos); 26:64. Consulte-se Harrison, The Apostolic Church,
pp. 51–52.
175
A literatura é abundante. Consulte-se, por exemplo, Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 515;
Richard N. Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity, Studies in Biblical Theology,
2ª. série 17 (Londres: SCM, 1970), p. 129; Vincent Taylor, The Names of Jesus (Londres: Macmillan,
1953), p. 43.
Atos (Simon J. Kistemaker) 155
Testamento os escritores chamam Jesus tanto Senhor como Cristo. Foi a
igreja primitiva que deu origem a estes termos e os aplicaram a Jesus? 176
Dificilmente. Note-se que o anjo que proclamou o nascimento de Jesus
disse aos pastores nos campos de Belém que “[Jesus] é Cristo o Senhor”
(Lc 2:11). As palavras de Pedro estabelecem claramente que Deus, não a
igreja cristã, fez a Jesus Senhor e Cristo. Isto é, que como resultado da
morte e ressurreição de Jesus, Deus declara que sem lugar a dúvida Jesus
é o Cristo, e que também é o Senhor soberano (compare-se Rm 1:4).

Considerações doutrinais em At 2:36


Neste versículo, os dois títulos, Senhor e Cristo têm uma tremenda
importância. O versículo indica que o próprio Deus deu estes títulos a
Jesus. O título Senhor, então, pertence a Jesus em lugar de a Deus Pai,
pelo que os escritores do Novo Testamento declaram que todo joelho se
dobrará diante dEle e toda língua confessará que ele é o Rei dos reis e
Senhor dos senhores (veja-se Fp 2:9–11; Ap 17:14; 19:16). Além disso,
antes de Sua ascensão ao céu, Jesus revelou Seu status real quando disse:
“Toda o poder me é dado no céu e na terra” (Mt 28:18).
Em seu sermão, Pedro fala a respeito de Jesus de Nazaré, a quem os
judeus crucificaram. Faz referência a acontecimentos históricos bem
conhecidos por todo seu auditório e por isso vincula os nomes Jesus e
Cristo (v. 31). 177
Pedro diz enfaticamente “este Jesus” (vv. 32, 36), que é exaltado à
posição da mais alta honra. Jesus está sentado à destra de Deus o Pai (v.
33), pois Ele é o Cristo, o Filho de Deus.

176
Para um estudo sobre este assunto, leia-se Wilhelm Bousset, Kyrios Christos: A History of the
Belief in Christ from the Beginnings of Christianity to Irenaeus, trad. por John E. Steely (Nashville:
Abingdon, 1970), p. 146. Consulte-se também Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament,
trad. por Kendrick Grobel, 2 vols. (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1951), vol. 1, p. 51.
177
Consulte-se Guthrie, New Testament Theology, p. 246.
Atos (Simon J. Kistemaker) 156
Palavras, frases e construções gregas em At 2:30–36
Versículo 30
ὅρκῳ ὥμοσεν — “[Ele] jurou com juramento”. Embora a forma é
redundante, seu uso no dativo talvez reflita a construção infinitiva
absoluta no hebraico.
καθίσαι — o aoristo ativo infinitivo de καθίζω (me sento; sentado)
deveria ser tomado como um verbo transitivo e não intransitivo. O objeto
direto é “um de seus descendentes”.

Versículo 32
τοῦτον τὸν Ἰησοῦν — o pronome demonstrativo que precede o
artigo definido e o substantivo denotam ênfase. Veja-se também o
versículo 36.
ἡμεῖς — este pronome pessoal foi usado para pôr ênfase entre o
adjetivo πάντες (todos) e o verbo ἐσμεν (somos). O contraste implícito
com ἡμεῖς (vós) no versículo seguinte (v. 33) é aparente.

Versículo 33
τῇ δεξιᾷ — o substantivo destra deve ser entendido. O dativo pode
ser ou instrumental (“pela mão direita”), locativo (“à mão direita”), ou
diretor (“rumo à mão direita”). 178
τε — este particípio adjunto conecta a cláusula com o aoristo
passivo do particípio ὑψωθείς (exaltado) e a cláusula com o aoristo ativo
do particípio λαβών (recebido).

178
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
190.
Atos (Simon J. Kistemaker) 157
Versículo 36
ἀσφαλῶς — usado figurativamente, o advérbio significa “para além
de toda dúvida”. Aparece primeiro na frase para ênfase.
πᾶς οἶκος Ἰσραήλ — “há só uma ‘casa de Israel’ ”. 179 Esta
construção, portanto, significa “toda a casa de Israel”.
Lucas apresenta um resumo do sermão de Pedro. No entanto, o
leitor pode sentir o dramático efeito produzido pela reação do auditório à
pregação da Palavra. O povo está profundamente perturbado e pergunta a
Pedro e a seus companheiros: “O que faremos?”

e. Uma reação genuína (At 2:37–41)

37. Ouvindo eles estas coisas, compungiu-se-lhes o coração e


perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos?
a. “Ouvindo eles estas coisas”. As palavras de Pedro tocam o
coração do povo. O sermão lhes faz lembrar sua rebeldia para ouvir a
Jesus e aceitá-Lo como o Messias. A acusação de que foram eles aqueles
que mataram a Jesus é justificada e transpassa suas consciências.
b. “Compungiu-se-lhes o coração”. A expressão compungir-se de
fato sugere que seus corações foram tocados pelo sentido de culpa de
maneira que se sentem terrivelmente perturbados. Os que receberam a
revelação de Deus deram-se conta de sua culpabilidade. Por tal razão
clamam: “Que faremos, irmãos?” No dia do Pentecostes eles veem a
evidência do derramamento do Espírito Santo, escutam a exposição de
Pedro, e se dão conta que pecaram contra Deus ao ter rejeitado o Seu
Filho. Agora se aproximam dos convertidos em seguidores de Jesus e
pedem ajuda aos apóstolos.
c. “Perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos”. Dirigem-se a
Pedro e aos que estavam com ele usando a mesma expressão que Pedro

179
A.T. Robertson, Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 772.
Atos (Simon J. Kistemaker) 158
tinha usado para dirigir-se a eles: “Irmãos” (v. 29). Estabeleceu-se um
sentimento mútuo de parentesco espiritual. Com a pergunta: “Que
faremos?” estão indo à própria fonte que provê a necessária informação.
É a mesma pergunta que a multidão fez a João Batista no Jordão (Lc
3:10; veja-se também At 16:30; 22:10). Esta pergunta implica que eles
não podem livrar-se da culpa e por isso necessitavam ajuda. 180 Em
resposta às palavras de Deus, eles expressam fé em Jesus e indiretamente
suplicam aos apóstolos que os guiem a Deus.
38, 39. Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja
batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e
recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós outros é a promessa,
para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para
quantos o Senhor, nosso Deus, chamar.
Observemos os seguintes pontos:
a. O arrependimento. As pessoas perguntam a Pedro e a outros
apóstolos como podem receber a remissão de seus pecados e encontrar a
salvação. O que lhes responde Pedro? Não lhes faz nenhuma
recriminação. Em lugar disso, usa a mesma palavra dita por João Batista
no Jordão e por Jesus durante seu ministério: “Arrependei-vos” (veja-se
Mt 3:2; 4:17). O imperativo arrependei-vos implica que devem dar as
costas ao mal que vieram perpetrando, desenvolver um profundo
aborrecimento pelos pecados passados, experimentar uma volta radical
em suas vidas, e seguir os ensinos de Jesus. 181
O arrependimento significa que a mente do homem muda
completamente, de tal maneira que ele de forma consciente se afasta do
pecado (At 3:19). 182 O arrependimento faz com que a pessoa pense e aja
em harmonia com os ensinamentos de Jesus. O resultado de tudo isso é
que ele rompe com a incredulidade e pela fé aceita a Palavra de Deus.

180
Veja-se Lenski, Acts, p. 104.
181
Thayer, p. 405; Bauer, p. 512. Consulte-se também Jürgen Goetzmann, NIDNTT, vol. 1. p. 358.
182
De acordo com o Louis Berkhof, o verdadeiro arrependimento abrange três elementos: intelecto,
emoção e volição. Consulte-se Teologia Sistemática (Grand Rapids: T.E.L.L, 1969), p. 580.
Atos (Simon J. Kistemaker) 159
b. O batismo. Pedro continua e diz: “Cada um de vós seja
batizado”. Em grego, o imperativo do verbo arrepender-se está-se no
plural; Pedro se dirige a todos aqueles cujas consciências os levam a
arrepender-se. Mas o verbo batizar-se está no singular para enfatizar a
natureza individual do batismo. Um cristão deve ser batizado para ser
um seguidor de Jesus Cristo, mas o batismo é o sinal que indica que uma
pessoa pertence ao povo de Deus.
Arrependimento, batismo e fé estão vinculados teologicamente.
Quando o crente que se arrepende é batizado, está fazendo uma aliança
de fé. Aceita a Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador e sabe que
através do sangue de Cristo os seus pecados lhe são perdoados. De fato,
Pedro instrui as pessoas que o batismo deve ser feito “em nome de Jesus
Cristo para perdão de seus pecados”. O perdão de pecados ocorre só
através de Cristo como resultado de Sua morte e ressurreição (veja-se
Rm 6:1–4). Como o precursor de Jesus, João Batista pregou o
arrependimento dos pecados e logo batizou As pessoas que se
arrependiam (Mc 1:4).
c. O nome. Pedro afirma que o crente deve ser batizado “em nome
de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados”. A instrução parece
ser contrária às palavras da Grande Comissão, na qual Jesus diz aos
apóstolos que batizem os crentes em nome do Triúno Deus (Mt 28:19–
20). Note-se, primeiro, que o termo nome inclui a total revelação com
relação a Jesus Cristo (veja-se também At 8:12; 10:48; 19:5). Quer dizer,
este termo aponta à Sua pessoa e obra e ao povo que Ele redime. Em
outras palavras, Pedro não está contradizendo a fórmula batismal de
Jesus; em lugar disso, está enfatizando a única função e lugar que Jesus
tem com relação ao batismo e a remissão dos pecados. Logo, usa o nome
duplo de Cristo Jesus para indicar que Jesus de Nazaré certamente é o
Messias. Assim como Jesus cumpre as profecias quanto à vinda do
Messias, assim o batismo em Seu nome é o cumprimento do batismo de
João (veja-se At 19:1–7). O batismo de João foi com água unicamente,
Atos (Simon J. Kistemaker) 160
mas o de Jesus é com água e no Espírito Santo (cf. Mt 3:11; Mc 1:8; Lc
3:16; Jo 1:33; At 1:5).
d. O dom. “E recebereis o dom do Espírito Santo”. No contexto da
igreja primitiva, este versículo resultou ser nenhuma contradição com as
palavras de João Batista, quem disse: “Eu os batizo com água, mas ele
[Jesus] os batizará com o Espírito Santo” (Mc 1:8, NVI). No século I, os
cristãos viram o batismo de João como a sombra e o de Jesus como a
realidade. Por conseguinte, a pessoa que tinha sido batizada em nome de
Jesus comprometia sua fidelidade a Cristo, particularmente com a
confissão Jesus é o Senhor (Rm 10:9; 1Co 12:3). 183
O que é este dom do Espírito? Pedro usa o substantivo dom no
singular, não no plural. Por contraste, Paulo escreve à igreja de Corinto a
respeito dos dons do Espírito Santo, entre os quais estão sabedoria,
conhecimento, fé, cura, profecia, línguas, e interpretação (1Co 12:8–11,
28–31; 14:1–2). Mas às pessoas que estava presentes no Pentecostes
Pedro lhe diz que o crente batizado receberá o dom do Espírito Santo. A
expressão dom aparece na passagem a respeito do derramamento do
Espírito aos samaritanos; Simão o mago procurou comprar este dom com
dinheiro (At 8:20). O termo também se encontra no relato sobre a visita
de Pedro a Cornélio, quem com sua casa recebeu o dom do Espírito
Santo (At 10:45; veja-se também At 11:17). Destas passagens, podemos
aprender que este dom refere-se ao poder do Espírito Santo ao habitar na
pessoa. Note-se, no entanto, que em At 2:38–41 Lucas não diz que os
convertidos tenham falado em línguas (At 2:4) ou que os apóstolos
tenham imposto as mãos sobre os convertidos para que recebessem o
Espírito Santo (At 8:17). Deduz-se, em consequência, que “falar em
línguas e impor as mãos não foram reconhecidos como pré-requisitos
para receber o Espírito”. 184

183
Marshall, Acts, p. 81.
184
Longenecker, Acts, p. 284.
Atos (Simon J. Kistemaker) 161
O contexto do relato do Pentecostes indica que o dom do Espírito
não depende do batismo. As duas cláusulas “seja batizado” e “recebereis
o dom do Espírito Santo” são afirmações separadas. Num estudo
detalhado deste ponto, Ned B. Stonehouse diz: “Pode-se chegar
confiantemente à conclusão de que Atos 2:38 não deve entender-se como
um ensino a respeito de que o dom do Espírito estava condicionado ao
batismo”. 185 Um estudo do batismo e o dom do Espírito Santo em Atos
revela que ambos estão relacionados, porém não necessariamente segue
um ao outro. Portanto, no versículo 38 Pedro instrui as pessoas a se
arrepender e ser batizado; logo acrescenta a promessa (no tempo futuro)
que “recebereis o dom do Espírito Santo”.
e. A promessa. No seguinte versículo (v. 39) Pedro diz a seus
ouvintes que “para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para
todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso
Deus, chamar”.
Qual é o significado da palavra promessa? Lucas, quem recolhe as
palavras de Pedro, não dá detalhes. O artigo definido que precede o
substantivo promessa parece indicar que Pedro tem em mente a
promessa específica da vinda do Espírito Santo. A promessa refere-se à
profecia de Joel 2:28–32, a qual teve seu cumprimento no dia do
Pentecostes. Antes de Sua ascensão, Jesus diz aos apóstolos que “não se
ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, a
qual, disse ele, de mim ouvistes” (At 1:4; veja-se também Lc 24:49). E o
Cristo exaltado derrama o prometido Espírito Santo que Ele recebeu de
Deus o Pai (At 2:33). 186
La frase para vós é a promessa e para vossos filhos é um eco da
promessa de Deus a Abraão de ser um Deus para ele e para seus
descendentes por gerações (Gn. 17:7). Do mesmo modo, a promessa do
Espírito Santo vai para além dos judeus e seus filhos que estavam

185
Ned B. Stonehouse, “Repentance, Baptism and the Gift of the Holy Spirit”, WTJ 13 (1950–51); 14.
186
MacDonald, “Glossolalia in the New Testament”, p. 130.
Atos (Simon J. Kistemaker) 162
presentes em Jerusalém no Pentecostes. Desde o momento de sua
chegada, o Espírito Santo fica no meio do povo de Deus até o fim dos
tempos. O Espírito guia os crentes a Cristo Jesus e vive em seus
corações, porque seus corpos físicos são o Seu templo (1Co 6:19).
“E para todos os que estão longe, a quantos chamar o Senhor nosso
Deus”. Pedro e seus irmãos judeus consideravam-se o povo da aliança
com Deus e por isso, os primeiros em receber a bênção da salvação. Mas
através da obra de Cristo os gentios também são incluídos na aliança de
Deus. O próprio Pedro vem a notar o significado das palavras que ele usa
no Pentecostes quando informa aos judeus de Jerusalém a respeito de sua
visita a Cornélio em Cesareia. Conclui ali dizendo: “Se Deus lhes
concedeu o mesmo dom que a nós nos outorgou quando cremos no
Senhor Jesus, quem era eu para que pudesse resistir a Deus?” (At 11:17).
Anos mais tarde, Paulo escreve aos membros gentios da igreja a respeito
de sua exclusão da aliança e diz: “Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que
antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo” (Ef 2:13,
e veja-se também v. 17).
Dois comentários à maneira de conclusão. Primeiro, o termo longe
refere-se tanto a tempo como a lugar. A promessa de Deus se estende
através de gerações até o fim do mundo. Alcança também as pessoas de
toda nação, tribo, raça e língua, onde quer que estejam sobre a face da
terra. As palavras de Pedro estão em completa harmonia com as que
disse Jesus: “Fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19). E
segundo, Deus é soberano ao chamar Seu povo para Si. A salvação se
origina nEle e Ele a concede a todos aqueles que Ele, em Sua soberana
graça, chamará. Estas palavras de Pedro têm seu contraparte na profecia
de Joel: “E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (v. 21;
Jl. 2:32).
40, 41. Com muitas outras palavras dava testemunho, e exortava-os,
dizendo: Salvai-vos desta geração perversa. Os que receberam a sua
palavra foram batizados, e foram admitidas naquele dia quase três mil
pessoas.
Atos (Simon J. Kistemaker) 163
Chegamos à conclusão do acontecimento do Pentecostes. Mesmo
quando Lucas apresenta uma breve afirmação, imaginamos que Pedro
continuou falando depois de ter concluído seu sermão.
a. “Com muitas outras palavras dava testemunho, e exortava-os”,
escreve Lucas. Parece que os judeus fizeram muitas perguntas
relacionadas com a mensagem de Pedro. Aqui se usa a palavra outras
que no idioma grego fica primeiro na frase para enfatizar o sentido.
Lucas deixa a impressão que Pedro observou aos que perguntavam a
examinar cuidadosamente as evidências que lhes apresentou. De fato, o
tempo do verbo exortava em grego indica que Pedro vez após vez
insistia com seus ouvintes com este rogo: “Salvai-vos desta geração
perversa”. A solicitude é um eco de uma linha no hino de Moisés,
conhecido ao auditório devido ao fato de que se usava muito nos
serviços de adoração na sinagoga:
Eles agiram com corrupção para [Deus];
por sua vergonha já não são mais seus filhos,
mas uma geração torcida e perversa.
[Dt. 32:5, tradução livre. Itálico acrescentado].

Qual é o povo desta geração torcida e perversa? Obviamente, trata-


se dos líderes religiosos que durante o juízo de Jesus incitaram a
multidão a gritar: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Lc 23:21). Os sacerdotes e
os escribas desejavam ter o completo controle do povo judeu. Mas
quando Jesus ensinou as Escrituras com autoridade, eles se opuseram a
Ele abertamente e no fim chegaram a matá-Lo.
Numa cultura cristianizada não é fácil entender a agonia mental dos
judeus no Pentecostes quando decidiram romper com o poder e a
autoridade de seus dirigentes espirituais. Pela fé, eles aceitaram a Cristo
e aderiram aos Seus ensinos. E deram este passo porque Pedro
claramente lhes disse que a liderança dos sacerdotes e escribas era
corrupta (cf. Fp 2:15). Insistia em que deviam livrar-se daquela gente
Atos (Simon J. Kistemaker) 164
187
perversa para ser salvos. Ao batizar-se, os crentes judeus externaram
seu rechaço à autoridade da hierarquia religiosa; seguiram então a Jesus
Cristo, e desta maneira se prepararam para enfrentar o ódio e o desdém
de seus antigos dirigentes e mestres.
b. “Os que lhe aceitaram a palavra [de Pedro] foram batizados”. O
texto indica claramente que nem todos os que escutaram as palavras de
Pedro creram. Mas os que aceitaram sua mensagem solicitaram o
batismo. Devido ao fato de que este versículo falha em prover
informação a respeito do modo do batismo, a idade das pessoas que
foram batizadas, e o lugar onde ocorreram os batismos, é preferível não
ser dogmáticos a respeito.
c. “Havendo um acréscimo naquele dia de quase três mil pessoas”.
Antes de Pentecostes, o número de crentes alcançava a 120 pessoas (At
1:15), mas a partir do derramamento do Espírito Santo o Senhor
acrescentou umas três mil pessoas, supomos que homens e mulheres.
Este aumento é assombroso e indubitavelmente causou uma série de
problemas de tipo administrativo, como se faz evidente com o descuido
das viúvas que falavam grego (At 6:1). O crescimento da igreja continua
imperturbável 188 de maneira que se calcule conservadoramente que em
Jerusalém antes da perseguição que se seguiu por ocasião da morte de
Estêvão (At 8:1b) havia 20 mil cristãos.

Considerações práticas em At 2:40–41


Em numerosas igrejas se exige dos candidatos a membros ter um
adequado conhecimento das Escrituras e uma habilidade para articular as
doutrinas da igreja antes de ser batizados e aceitos como parte da igreja.
Admitindo que conhecer as Escrituras e a doutrina é desejável para os
membros das igrejas (de tal modo que sejam capazes de responder a
perguntas sobre sua fé cristã), devemos perguntar-nos se as Escrituras

187
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 84.
188
Compare At 2:47; 4:4; 5:14; 6:1, 7; 9:31, 35, 42; 11:21, 24; 14:1, 21; 16:5; 17:12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 165
disserem algo a respeito de aceitar os candidatos a membros. A resposta
deveria ser afirmativa.
Comecemos com a assim chamada Grande Comissão (Mt 28:19–
20). Literalmente, Jesus diz: “Portanto, tendo ido, fazei discípulos a
todas as nações ao batizá-las em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, e ao ensiná-las a guardar todas as coisas que vos mandei”. O
processo de fazer discípulos, então, é cumprido em duas etapas:
primeiro, batizando o candidato; e segundo, doutrinando-o.
Agora, note-se que Pedro segue as diretivas de Jesus. Ele sai no dia
do Pentecostes, faz discípulos ao pregar a Palavra, e imediatamente
batiza estes crentes. Logo, ele mesmo e outros apóstolos continuam
ensinando-lhes o evangelho de Cristo (At 2:42) de forma muito regular.
Os judeus que escutavam a Pedro no dia do Pentecostes conheciam o
Antigo Testamento, porém não podia esperar um conhecimento parecido
dos gentios. Richard B. Rackham diz: “Surpreende-nos a rapidez com
que os gentios foram batizados, como no caso do carcereiro de Filipos,
ou até um prosélito como o eunuco etíope”. 189
O Novo Testamento parecesse indicar que quando um crente aceita
a Cristo Jesus como seu Senhor e Salvador depois de ouvir o evangelho,
deve receber a oportunidade para batizar-se. Mas o batismo deve ser
seguido de um diligente e sustentado estudo das Escrituras pelo resto da
vida terrestre.

Palavras, frases e construções gregas em At 2:37–39


Versículo 37
κατενύγησαν — um verbo composto de κατανύσσομαι (estou
compungido). O composto é perfectivo; em sua forma é um segundo
aoristo passivo.

189
Rackham, Acts, p. 33.
Atos (Simon J. Kistemaker) 166
τε — a partícula adjuntiva une estreitamente os dois verbos
compungido e disse.
λοιπούς — traduzido “o resto de” ou “outros”, este adjetivo é
omitido no texto ocidental do Códice Beza.

Versículo 38
ἐπί — esta preposição precede no fim o nome e é sinônimo de ἐν
(em). Veja-se os exemplos em At 3:6; 4:10, 17, 18; 5:28, 40.
είς — recalcando mais o resultado que o propósito, esta palavra tem
o sentido de “com vista a” ou “com o resultado de”. 190
τοῦ ἁγίου πνεύματος — esta cláusula é um genitivo aposicional
com τὴν δωρεάν e significa “o dom, isto é, o Espírito Santo”. 191

Versículo 39
εἰς μακράν — o substantivo feminino ὁδόν (caminho) deve ser
entendido. A expressão parece ser um semitismo.
ὑμῖν — este dativo de possessão com o verbo ser pode ser traduzido
“vocês têm a promessa”. 192

3. A comunidade cristã (At 2:42–47)

a. Em adoração (At 2:42–43)

Lucas descreve a beleza da igreja crescendo e desenvolvendo-se.


Pinta a espontaneidade, dedicação e devoção dos primeiros cristãos com

190
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 70.
191
Veja-se Hanna, Grammatical Aid, p. 191.
192
Consulte-se Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and
Other Early Christian Literature, trad. y rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press,
1961), #189.2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 167
relação a Deus nos serviços de adoração. Na última seção deste capítulo,
descreve a igreja em sua adoração formal e informal e sua influência na
comunidade. 193
42. Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao
partir do pão e às orações [NVI].
Ponhamos atenção aos seguintes componentes:
a. Ensinando. A frase “e se dedicavam ao ensino dos apóstolos”
aponta ao ardor e dedicação destes primeiros convertidos ao
cristianismo. Com toda decisão e firmeza buscaram os apóstolos para
que lhes instruíssem no evangelho de Cristo, porque Jesus tinha
ordenado ao seu grupo de seguidores a ser mestres destes aprendizes
(Mt. 28:20).
Durante Seu ministério terrestre, Jesus ensinou com autoridade e
“não como os mestres da lei” (Mc 1:22). Antes de Sua ascensão, Ele
delegou esta autoridade a Seus apóstolos, que falaram em Seu nome.
Note-se o duplo significado do termo ensino. Num sentido amplo, a
palavra refere-se às boas novas de tudo o que Jesus disse e fez. E num
sentido restringido, os apóstolos estavam ocupados no trabalho de
ensinar um evangelho oral aos convertidos, a quem Lucas chama em
Atos discípulos (ou aprendizes). 194 Supomos que este ensino foi dado
especialmente em serviços de adoração públicos, onde os apóstolos
ensinaram este evangelho em suas pregações.
b. Comunhão. Três palavras seguem ao termo ensino. A primeira,
comunhão, descreve o entusiasmo com que os crentes demonstraram
numa adoração unida, nas comidas, e no compartilhar de seus bens
materiais (v. 44). Os cristãos demonstraram de forma visível sua unidade
em Jesus Cristo, nos serviços de adoração, onde se chamavam uns aos
outros irmãos e irmãs.

193
Faltam as pautas para dividir estes versículos em seções ou parágrafos. Os eruditos não mostram
unanimidade.
194
Veja-se, p. ex., At 6:1, 2, 7; 9:1, 10, 19, 25, 26, 38; 11:26, 29; 13:52.
Atos (Simon J. Kistemaker) 168
c. Partir do pão. É esta uma referência à uma comida num lugar
privado (veja-se Lc 24:30, 35), ou a um serviço de comunhão? Não é
fácil encontrar a resposta correta. 195 O contexto, porém, parece sugerir
que se refere à celebração da Ceia do Senhor. No grego, o artigo definido
precede o substantivo pão o que indicaria que os cristãos participavam
do pão afastado para o sacramento da comunhão (cf. At 20:11; 1Co
10:16). Além disso, o ato de partir o pão era seguido pelo ato das orações
(presumivelmente durante os cultos de adoração públicos). As palavras
partir do pão aparecem na sequência de ensino, comunhão e orações nos
cultos de adoração. Portanto, podemos entender o termo como uma
anterior descrição para a celebração da Santa Ceia. Na liturgia da igreja
cristã, esta celebração foi e continua sendo acompanhada pelo ensino do
evangelho e pelas orações.
d. As orações. Literalmente o texto fala das “orações”. Note-se que
Lucas também usa aqui o artigo definido para descrever orações
específicas feitas na adoração; talvez incluem as orações formais que os
judeus costumavam oferecer no templo (At 3:1). Em resumo, os quatro
elementos que Lucas menciona neste versículo (v. 42) aparecem
relacionados à adoração pública: o ensino apostólico e a pregação, a
comunhão dos crentes uns com os outros, a celebração da Ceia do
Senhor, e as orações em comunidade.
43. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram
feitos por intermédio dos apóstolos.
Um sentido de temor reverencial encheu os corações dos crentes
porque experimentavam a proximidade de Deus no meio deles. O grego
sugere que o temor se manteve sem diminuir (veja-se At 5:5, 11; 19:17).
Era produzido pelas “muitos prodígios e sinais” feitos pelos apóstolos
(At 5:12).
Jesus deu aos apóstolos autoridade para realizar milagres (cf. Mt.
10:8). Repetidamente os apóstolos exerceram este poder tanto em
195
Alford insiste em que a interpretação dada “como a celebração da Ceia do Senhor, tanto nos
primeiros tempos como nos modernos é a que prevalece.” Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 29.
Atos (Simon J. Kistemaker) 169
resposta à fé desta gente para aumentar essa fé. Os resultados foram
duplos: os crentes estavam conscientes da presença sagrada de Deus
entre eles e numerosos convertidos foram acrescentados à igreja (v. 47).
As palavras muitos prodígios e sinais são um eco da profecia de Joel e
constituem seu cumprimento (At 2:19; Jl 2:30).

Palavras, frases e construções gregas em At 2:42


ἦσαν — o uso do tempo imperfeito para expressar continuidade é
evidente neste versículo e no resto da passagem. Para a construção
perifrástica do passado de ἦσαν e o gerúndio ativo προσκαρτεροῦντες
veja-se a explicação em At 1:14.
τοῦ ἄρτου — aqui o artigo definido especifica o substantivo, porém
no versículo 46 está ausente.

b. Na comunidade (At 2:44–47)

Nestes poucos versículos finais do capítulo, Lucas é mais geral em


sua descrição das atividades que têm lugar nas vida dos primeiros
crentes. Os cristãos expressam suas crenças espirituais mediante acione
espontâneas.
44, 45. Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em
comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto
entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
Esta é a primeira vez em Atos que Lucas chama os membros da
igreja “os crentes”. Devido à falta de um termo definido (por exemplo,
cristãos [veja-se At 11:26]), ele escreve: “todos os que tinham crido”. Os
incrédulos que rejeitam aceitar a Jesus pela fé são excluídos e não têm
parte nenhuma na comunidade cristã. Fé em Jesus é o requisito principal
para pertencer à igreja cristã. Só quem crê nEle pode compartilhar na
unidade que se faz visível na adoração e na vida em comunidade.
“Tinham tudo em comum”. Quando os israelitas viajaram através
do deserto por quarenta anos, Deus lhes proveu dia após dia do que
Atos (Simon J. Kistemaker) 170
necessitavam para subsistir. Todos estavam no mesmo nível econômico;
nem se era mais rico, nem se era mais pobre. 196 Quando chegaram à
Terra Prometida, cada um recebeu sua herança. Com o correr do tempo,
começaram a observar e experimentar riqueza e pobreza em suas
comunidades. Esta diferença tornou-se cada vez mais evidente ao longo
dos séculos, porque o povo judeu rejeitou observar as estipulações de
Deus com relação a cuidar dos pobres e ser generoso com eles (Dt 15:1–
11; Mq 2:1–2).
Jesus pregou o evangelho e disse, “Bem-aventurados os pobres,
porque deles é o reino de Deus” (Lc 6:20; Mt. 5:3). Desafiou o jovem
rico a vender todas a suas posses e dar o dinheiro aos pobres (Mt 19:21).
Depois do Pentecostes, os novos convertidos em Jerusalém “tinham
tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o
produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade”. O
compartilhar coisas materiais não foi necessariamente um despojo das
riquezas de ninguém. Em lugar disso, foi uma atitude completamente
voluntária dos donos de pôr suas posses à disposição de todos os crentes
que tivessem necessidades econômicas. 197 A aspiração dos primeiros
cristãos foi abolir a pobreza de tal modo que os necessitados, como uma
classe social, não existisse mais entre eles (At 4:34a). Lucas não provê
informação no sentido que os ricos vendessem todas as suas posses. Pelo
contrário, alude ao estabelecimento de um fundo geral graças ao qual os
pobres foram sustentados e no qual os ricos puseram o dinheiro ganho
pela venda de propriedades (At 4:34b–35; 6:1). Como já se disse, os que
venderam suas posses fizeram-no sobre uma base completamente
voluntária (At 5:4).

196
David M. Howard, Jr., “Poverty”, ISBE, vol. 3, p. 922.
197
No século I, a comunidade de Qumran promoveu a prática de compartilhar bens. Em harmonia
com as palavras de Salmo 37:14, “o pobre e o necessitado”, os residentes de Qumran se viram eles
mesmos como “a Congregação dos Pobres”. Consulte-se David E. Holwerda, “Poor”, ISBE, vol. 3, p.
908.
Atos (Simon J. Kistemaker) 171
46, 47a. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam
pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza
de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo.
Lucas continua descrevendo a vida na comunidade cristã. Ele
prefacia a descrição das atividades dos crentes com a expressão dia a
dia. Os cristãos em Jerusalém vão ao templo, aquele que para eles é a
casa de Deus. Eles se consideram a si mesmos judeus que viram o
cumprimento das Escrituras do Antigo Testamento através da vida,
morte e ressurreição de Jesus Cristo. Reúnem-se nos pátios do templo,
presumivelmente na área conhecida como o Pórtico de Salomão (At
3:11; 5:12) onde oram e louvam. Desfrutam de uma completa unidade
num contexto que se compara com a chegada da primavera com sua
impressionante explosão de cores, esplendor e perfeita harmonia. Da
parte do povo judeu em geral como de seus dirigentes religiosos em
particular, os cristãos ainda não receberam nenhum tipo de oposição.
Suas vidas são exemplares, tanto que através de sua conduta eles podem
guiar outros a Cristo.
Diariamente se reúnem em suas casas para comer o pão e reafirmar
a unidade que possuem em Cristo. Naturalmente, comer pão nas casas
dificilmente pôde ter sido de interesse noticioso, visto que é costume e
de esperar. No entanto, Lucas compara a unidade e harmonia dos crentes
no templo com sua solidariedade nas comidas comuns em lares
particulares. Os cristãos “comiam juntos com alegria e sinceridade de
coração”. Embora Lucas não dê mais explicação sobre isso, a prática de
ter comidas comuns é comparável às festas de amor mencionadas direta
e indiretamente por Paulo em sua carta à igreja de Corinto (1Co 11:20–
22), por Pedro (2Pe 2:13) e por Judas (Jd 12). 198 Walter Bauer explica a
festa de amor como “uma comida em comum servida pelos primitivos
cristãos em conexão com os cultos da igreja e com o propósito de
fomentar a expressão do amor fraternal”. 199 Em Jerusalém, os crentes
198
Consulte-se C.N.T. sobre 2Pe. 2:13 e Jd. 12.
199
Bauer, p. 6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 172
desfrutam destas comidas “diariamente” (v. 46a), como Lucas o indica
no grego. Por conseguinte, devemos distinguir as comidas em comum
com a celebração da Ceia do Senhor (v. 42).
Lucas enfatiza a unidade, a harmonia, a alegria e a sinceridade dos
crentes. Estes elementos são frutos do Espírito Santo, quem está agindo
nos corações e vidas dos primeiros cristãos. Em Atos, Lucas
repetidamente menciona o regozijo alegria ou a alegria, muitas vezes
com relação à influência do Espírito Santo (veja-se, p. ex., At 8:8, 39;
13:48, 52; 15:3; 16:34). Por outro lado, a expressão sinceridade aparece
só uma vez no Novo Testamento. Deriva-se de uma palavra que significa
terreno suave, claro, sem nenhuma pedra que desfigure a superfície do
solo. 200
“Louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo”. A
primeira frase relaciona a Deus e a outro ao povo. Estruturalmente,
ambas as frases são parte do versículo anterior (v. 46) no qual Lucas
descreve as atividades diárias dos crentes. Que testemunho de verdadeiro
cristianismo! Estes crentes vivem uma vida de louvor a Deus e como
resultado, são reconhecidos pelo povo. São expoentes do poder do
evangelho e da presença do Espírito Santo. São testemunhos vivos para
Cristo. Aqui está trabalhando a igreja missionária: o povo observa a
conduta cristã dos convertidos falando em favor da igreja e são atraídos a
Cristo. 201
47b. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam
sendo salvos.
Lucas conclui esta seção dizendo que o Senhor acrescentava novos
conversos à igreja. Note-se, primeiro, que usa o título o Senhor para
Jesus, não para Deus. Logo, o Senhor Jesus continua Seu trabalho de

200
Thayer, p. 88.
201
Seguindo o texto grego literalmente, a Vulgata diz habentes gratiam ad omnem plebem (tendo
caridade para todo o povo). Esta tradução dá ao texto uma interpretação ativa em lugar de passivo e
ajuste a primeira parte do v. 47, “louvando a Deus”. Veja-se também F. P. Cheetham, “Acts ii.47:
echontes charin pros holom ton laon, ExpT 74 (1963): 214–15.
Atos (Simon J. Kistemaker) 173
estender a comunidade cristã. Dos habitantes de Jerusalém toma três mil
pessoas, converte-os e os acrescenta como crentes à igreja. Lucas refere-
se aos convertidos como “os que iam sendo salvos”. Quer dizer, o
Senhor é o agente no trabalho de salvar o Seu povo, para o cumprimento
da profecia de Joel: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor, será
salvo” (v. 21; Jl 2:32). E finalmente, note-se a palavra diariamente. Este
termo deve ser tomado com a frase descritiva “os que se salvavam”.
Aqui não está implícita a ideia de um processo de salvação gradual de
indivíduos crentes, e sim indica que o milagre da salvação ocorre
diariamente. Também hoje em dia o Senhor continua acrescentando a
Sua igreja e chamando pessoas a adquirir sua cidadania espiritual na
cidade chamada Sião. Com John Newton, humildemente mas num tom
de vitória, os crentes cantam,
Salvador, se da cidade de Sião
Eu, por graça, um membro sou,
Deixa que o mundo se mofe ou se entristeça,
Eu me gloriarei em teu Nome:
desvanece-se o prazer mundano,
Toda sua jactância, pompas e ostentação;
Alegria sólida e tesouro perdurável
Ninguém conhece senão os filhos de Sião.

Considerações práticas em At 2:42–45


Versículo 42
Do começo até o presente, a igreja cristã empregou catecismos para
seu ministério educacional. Estes catecismos são resumos breves da fé
cristã apresentados em forma de pergunta e respostas. Ensinam o á-bê-cê
da doutrina e explicam o significado do Credo Apostólico, os
sacramentos, os Dez Mandamentos, e a Ceia do Senhor. Em 1529,
Martinho Lutero escreveu seu Pequeno Catecismo para ensinar às
crianças as doutrinas elementares da igreja. Lutero disse: “provoquei
Atos (Simon J. Kistemaker) 174
uma mudança tal, que agora, meninas e meninos de quinze anos sabem
mais da doutrina cristã que todos os teólogos das grandes universidades
antes sabiam”. Em 1537 João Calvino escreveu um catecismo em francês
para instruir ao povo nas verdades das Escrituras. Na Alemanha,
Zacharias Ursinus e Kaspar Olevianus escreveram o Catecismo de
Heidelberg (1563), que foi chamado como o documento mais doce da
Reforma. E em 1647 na Inglaterra se publicaram os catecismos de
Westminster (o Breve e o Maior). Estes e muitos outros catecismos
foram e são ferramentas valiosas no ensino ao povo de Deus do
conhecimento doutrinal. Respaldam a recomendação de Pedro:
“Estejam sempre preparados para responder a qualquer pessoa que
lhes pedir a razão da esperança que há em vocês” (1Pe 3:15, NVI).

Versículos 44–45
Os membros da igreja de Jerusalém mostraram uma espontaneidade
única em cuidar dos pobres. Fizeram-no em obediência a Cristo e aos
apóstolos, os quais lhes ensinaram: “lembrai-vos dos pobres” (veja-se,
por exemplo, Gl 2:10). Embora os apóstolos nunca disseram a ninguém
que vendesse suas propriedades para sustentar os necessitados,
recalcaram a alegria do dar voluntário. Assim, Paulo escreveu: “Cada um
dê como propôs em seu coração; não com tristeza, nem por necessidade,
porque Deus ama ao doador alegre” (2Co 9:7).
A igreja instituiu o diaconato com o propósito de atender às
necessidades dos pobres, porque, como Jesus disse, “Os pobres sempre
os tereis convosco” (Jo 12:8). A igreja não está para promover o
comunitarismo de coisas, antes, enfatiza o mandato bíblico de ajudar os
necessitados. “Assim que, conforme tenhamos oportunidade, façamos o
bem a todos, e principalmente aos da família da fé [cristã]” (Gl 6:10).
Atos (Simon J. Kistemaker) 175
Palavras, frases e construções gregas em At 2:44–47
Versículo 44
ἐπὶ τὸ αὑτό — esta frase também aparece em At 1:15; 2:1, 44; 1Co
11:20; 14:23. Significa “em conjunto”. “[A frase] parece ter adquirido
um sentido semi-técnico como ἐν ἐκκλησία (‘na comunhão da igreja’). 202

Versículo 45
τὰ κτήματα — estas palavras se referem a propriedades e terras; τὰς
ὑπάρξεις são posses, coisas e riqueza. Os verbos ἐπίπρασκον (imperfeito
ativo de πιπράσκω [eu vendo]) e διεμέριζον (imperfeito ativo do verbo
composto διαμερίζω [eu reparto]) descreve a atividade continuada de
vender e repartir.

Versículo 47
προσετίθει — de προστίθημι (eu acrescento), este verbo ativo
imperfeito conota repetição, quer dizer, ação continuada no tempo
passado.
τοὺς σῳζομένους — o artigo definido com o gerúndio passivo de
σῴζω (eu salvo) é uma descrição para convertidos recentes. A tradução
literal é, “aqueles que iam sendo salvos”. No entanto, alguns tradutores
dão sua própria interpretação do particípio grego: “aqueles que se
haviam de salvar” (RC 1960), “os que iam sendo salvos” (RA), “os que
se deviam salvar” (BJ).

202
F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed.
rev. e ampl. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 155. Veja-se também Metzger, Textual Commentary,
pp. 304–5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 176
Resumo de Atos 2
Manifestado por sinais visíveis e audíveis, o Espírito Santo é
derramado no dia do Pentecostes. Enche as pessoas que se encontram
reunidas e as faz falar em outros idiomas. Numerosos judeus piedosos de
muitas nações permanecem em Jerusalém. Ouvem o ruído do vento,
reúnem-se e escutam os galileus falando em seus próprios idiomas
nativos. Alguns vieram do Este (Pártia, Média, Elão, e Mesopotâmia),
outros da Ásia Menor e da África, e ainda outros são visitantes de Roma.
Esta gente não sai de seu assombro e perguntam o que significa esse
fenômeno.
Alguns zombadores declaram que os apóstolos estão bêbados, mas
Pedro se dirige à multidão e rebate os zombadores. Diz que se cumpriu a
profecia de Joel com relação à vinda do Espírito Santo. Prova com os
Salmos que Jesus, crucificado pelos judeus, foi ressuscitado por Deus e
agora está sentado à Sua destra nos céus. Desde sua posição exaltada,
enviou o Espírito Santo. E pode fazê-lo porque Deus o fez Senhor e
Cristo.
As pessoas sentem-se curvadas pelo sentimento de culpa, pelo que
pedem conselho. Pedro os admoesta a arrepender-se e batizar-se. Três
mil pessoas aceitam a mensagem de Pedro, são batizados e são
acrescentados ao número inicial de crentes (120 pessoas). Os convertidos
são instruídos no ensino dos apóstolos, na adoração, e participam da
comunhão. Compartilham suas posses materiais, louvam a Deus e
desfrutam da simpatia de todo o povo. A igreja continua crescendo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 177

O PODER DO NOME DE JESUS


(AT 3:1 – 5:16)
Atos (Simon J. Kistemaker) 178
ATOS 3
A IGREJA EM JERUSALÉM, parte 2 (At 3:1–26)
1. A cura do paralítico (At 3:1–10)
No capítulo anterior, Lucas afirma de forma direta que os apóstolos
realizaram muitas maravilhas e sinais miraculosos (At 2:43). Quais são
estes milagres que fizeram todos terem grande temor? Lucas descreve
um deles, ou seja, a cura do mendigo paralítico. Este milagre foi feito em
resposta à fé do mendigo (v. 16) e foi seguido de um sermão de Pedro
dirigido à multidão. Resultou num incremento no número de membros
da igreja a cinco mil homens, sem contar as mulheres (At 4:4).

a. O cenário (At 3:1–5)

1. Certo dia Pedro e João estavam subindo ao templo na hora da


oração, às três horas da tarde [NVI].
a. “Pedro e João”. Lucas continua enfocando sua atenção em Pedro,
quem é o porta-voz dos doze apóstolos. Mas agora acrescenta o nome de
João, o filho de Zebedeu. Durante o ministério de Jesus, Pedro e João
pertenciam ao chamado círculo íntimo dos discípulos. Estiveram com
Jesus na transfiguração (Mt 17:1); Jesus instruiu estes dois discípulos a
preparar o lugar onde se teria que celebrar a Páscoa (Lc 22:8); e também
os levou com Ele ao jardim do Getsêmani (Mc 14:33).
Lucas conta que os apóstolos em Jerusalém comissionaram Pedro e
João para dar instruções à igreja crescente em Samaria (At 8:14). Além
do mais, Paulo considera Pedro e João como colunas da comunidade
cristã (Gl 2:9). Estes dois apóstolos indubitavelmente foram líderes da
igreja, até se, como o diz Lucas, Pedro era aquele que falava e João só
escutava. Além disso, os apóstolos continuaram com a prática de sair de
dois em dois (veja-se Mc 6:7).
Atos (Simon J. Kistemaker) 179
b. “Subiam ao templo” [RA]. A NVI acrescenta certo dia, que não
aparece no texto grego. 203 Note-se que a expressão verbal subiam está no
passado progressivo, o que indica que eles costumavam subir ao templo
para orar. Os apóstolos permaneceram em Jerusalém, obviamente com o
propósito de ensinar a multidão de crentes (veja-se At 2:41–44, 47).
Mantiveram a tradição de orar no templo em horários fixos. 204 Os
primeiros cristãos consideravam-se a si mesmos judeus que não puderam
romper com o tempo tradicional de oração no templo.
c. “Na hora da oração, às três horas da tarde”. Segundo o Talmude,
as pessoas ofereciam suas orações no templo três vezes por dia: cedo de
manhã, de tarde e ao pôr-se o sol. 205 Enquanto os sacerdotes ofereciam
sacrifícios, os judeus oravam. De fato, o tempo para o sacrifício era o
tempo para a oração. Pedro e João iam à reunião das três da tarde, e
entraram em complexo do templo porém não ao santuário. Já nos tempos
de Davi, o povo judeu acostumava orar três vezes por dia. Davi escreve,
“Eu, porém, invocarei a Deus, e o SENHOR me salvará. À tarde,
pela manhã e ao meio-dia, farei as minhas queixas e lamentarei; e ele
ouvirá a minha voz.” [Salmos 55:16–17]
2. Era levado um homem, coxo de nascença, o qual punham
diariamente à porta do templo chamada Formosa, para pedir esmola aos
que entravam.
Lucas diz que o paralítico devia ser transportado ao templo, onde
pedia esmola. Naqueles dias não era comum que os impedidos
recebessem preparação para trabalhar e ganhar a vida, assim que o mais
lógico era que se tornassem esmoleiros (veja-se Jo 9:1, 8). Assim, pois,
familiares e amigos o levavam diariamente até uma das portas do templo
que o povo usava para entrar para orar. Os fiéis certamente sentiriam

203
A NEB, SEB e DHH também se traduzem assim. O texto grego tem o termo agora ou y. O Códice
Beza usa a frase temporal e nestes dias.
204
O verbo subir é o verbo normal para descrever à uma pessoa que vai a Jerusalém ou a alguém que
vai ao templo.
205
Berachoth 1.1–2; 4.1. Josefo diz que os sacrifícios eram oferecidos duas vezes por dia: “de manhã
e à hora nona”. Antiguidades 14.4.3 [65] (LCL).
Atos (Simon J. Kistemaker) 180
peso de consciência ao ver o paralítico pedindo dinheiro de modo que
lhe dariam algo. Sem dúvida, o lugar para deixar o paralítico tinha sido
escolhido com muita astúcia.
Os eruditos não puderam estabelecer com plena certeza em que
lugar do templo encontrava-se a porta conhecida como Formosa. Os
registros da área do templo depois da destruição de Jerusalém no ano 70
d.C. se perderam. Kirsopp Lake diz: “Houve não só uma completa
destruição dos edifícios, mas também houve um completo caos na
tradição em Jerusalém”. 206 De qualquer maneira, oferecem-se três teorias
a respeito do assunto. São elas:
1. A chamada porta de Shushan na muralha leste do templo, e
próxima ao Pórtico de Salomão (At 3:11) ao lado de fora do Átrio dos
Gentios.
2. A porta de Nicanor localizada a leste do Átrio das mulheres
servia de acesso ao Átrio das mulheres desde o Átrio dos gentios. Devido
ao fato de que as portas do átrio foram feitas de cobre de Corinto e
“excederam muito em valor às laminadas de prata e engastadas em
ouro”, 207 a declaração de Pedro de que não tinha nem prata nem ouro (At
3:6) é bastante apropriada.
3. A porta de Nicanor, situada entre o Átrio das mulheres e o Átrio
dos homens. (Esta informação procede de literatura rabínica.) No
entanto, dificilmente poderia ser esta a porta chamada Formosa. Lucas
diz que depois que o inválido foi curado, acompanhou os apóstolos
dentro do templo (v. 8).
A maioria dos eruditos aceita a segunda teoria e considera que a
porta chamada Formosa foi a porta de Nicanor feita de bronze de
Corinto. 208 O nome tem sua origem no fato que um judeu alexandrino

206
Kirsopp Lake, “Localities in and near Jerusalem Mentioned in Acts”, Beginnings, vol. 5, p. 486.
207
Josefo Guerra Judaica 5.5.3 [201] (LCL).
208
Para maior informação, consulte-se Joachim Jeremias, TDNT, vol. 3, p. 173 n. 5; Gottlob Schrenk,
TDNT, vol. 3, p. 236; David F. Payne, “Gate”, ISBE, vol. 2, pp. 408–9.
Atos (Simon J. Kistemaker) 181
chamado Nicanor deu de presente para o templo aquela bela porta
recoberta de bronze.
Dia a dia o mendigo se sentava à porta do templo a esperar as
esmolas monetárias dos que iam adorar. Este homem não era um
membro da comunidade cristã; se tivesse sido, certamente teria recebido
ajuda dos crentes. Lembre-se que Deus havia dito aos israelitas que não
haveria pobres entre eles (Dt 15:4, e veja-se vv. 7–8). Mas os judeus
passaram por alto o mandamento de Deus e chegaram a considerar uma
virtude dar esmolas aos mendigos (p. ex. veja-se Mt 6:1–2).
3-5. Vendo ele a Pedro e João, que iam entrar no templo, implorava
que lhe dessem uma esmola. Pedro, fitando-o, juntamente com João,
disse: Olha para nós. Ele os olhava atentamente, esperando receber
alguma coisa.
No preciso momento em que os dois apóstolos se preparam para
entrar na área do templo, o mendigo lhes pede uma esmola. Para ele,
trata-se de adoradores anônimos. Espera que, pedindo-lhes misericórdia,
eles se detenham e lhe deem algo. Mas em lugar de lhe dar umas
moedas, Pedro fixa sua atenção nele e lhe fala. Lucas diz que João
também fixa seus olhos nele.
Notamos duas coisas no v. 4. Primeiro, Pedro não demonstra
interesse na condição do homem, quer dizer, não lhe interessa que seja
um mendigo. Ele o olhe com o fim de obter sua restauração física. Logo,
Pedro e João não querem realizar um milagre de cura sem a participação
do afetado. Os apóstolos têm o Espírito Santo que os guia para
determinar se o homem tem fé ou não. E embora Lucas não o diga neste
versículo, em seu seguinte sermão Pedro afirma sem lugar a dúvida que
o homem foi curado pela fé (v. 16). O mendigo tinha mais de 40 anos de
idade (veja-se At 4:22) e presumivelmente tinha ouvido de Jesus, e
possivelmente também a Pedro pregando na área do templo. Obedece ao
que Pedro lhe diz e olha aos apóstolos “esperando receber algo deles”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 182
Palavras, frases e construções gregas em At 3:1–5
Versículo 1
ἱερόν — esta palavra refere-se ao complexo total do templo, tanto
os edifícios como o terreno, porquanto ναός significa o próprio
santuário.
ἐπί — “na expressão de tempo aqui, [a preposição] indica um
período mais definido que o que o simples acusativo teria expresso”. 209

Versículo 2
ὑπάρχων — como um presente ativo do particípio, esta palavra é o
equivalente do presente ativo do particípio ὤν do verbo ser ou estar.
ἐτίθουν — note-se o uso frequente do tempo imperfeito nesta
passagem (vv. 1–5). O imperfeito expressa repetição.
καθʼ ἡμέραν — “diariamente”. Lucas tem uma evidente inclinação
ao uso desta frase preposicional porque a usa cinco vezes em seu
Evangelho e sete em Atos. Contrariamente, nas epístolas paulinas só
aparece duas vezes e uma em Mateus e Marcos. Com uma leve variação,
Hebreus a tem quatro vezes.
τοῦαἰτεῖν — o infinitivo com o artigo definido no caso genitivo
expressa propósito.

Versículo 5
ἐπεῖχεν — uma forma composta de ἐπί (em) e ἔχω (eu tenho,
manter) no tempo imperfeito necessita o complemento τοὺς ὀφθαλμούς
(ele manteve seus olhos [neles]).
προσδοκῶν — o presente ativo do particípio denota modo ou
maneira.
209
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
192. Veja-se também A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of
Historical Research (Nashville: Broadman, 1934), p. 602.
Atos (Simon J. Kistemaker) 183
b. O milagre (At 3:6–10)

6. E disse Pedro: Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isso te
dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda [RC].
Pedro continua sendo o porta-voz enquanto João se mantém em
silêncio. E enquanto o mendigo segue expectante pelo que espera
receber, Pedro lhe diz: “Não tenho prata nem ouro”; quer dizer, entre
minhas posses, não há dinheiro. O dinheiro, produto da venda de
propriedades e outros bens, não pertencia a ele (veja-se At 2:44–45;
4:34–35; 5:1–2). No serviço de Cristo, Pedro não era um homem
acomodado (veja-se Mt 10:9–10). Vivia segundo o mandamento do
Senhor, que disse: “… os que anunciam o evangelho, que vivam do
evangelho” (1Co 9:14).
O que Pedro dá ao paralítico é tremendamente mais valioso que
qualquer quantidade de prata e ouro. Cura-o em nome de Jesus de
Nazaré e lhe ordena que caminhe. Depois de quarenta anos de estar
aleijado, este pobre homem se prepara para usar suas pernas. Pedro
clama no nome do Senhor para mostrar que o poder restaurador de Jesus,
conhecido a todos em Israel, flui ao paralítico através dele. Por isso, não
é Pedro quem concede a restauração e sim Jesus.
O uso do termo nome é significativo porque compreende a total
revelação da pessoa mencionada. Assim, o nome Jesus refere-se ao seu
nascimento, ministério, sofrimento, morte, ressurreição, e ascensão.
Logo, o nome Cristo aponta ao Messias, o exaltado Filho de Deus. Além
disso, para melhor identificação acrescenta-se a menção de Nazaré. Este
foi o nome que Pilatos mandou escrever no letreiro que puseram na cruz
de Jesus (Jo 19:19). Por último, a frase nome de Jesus (Cristo) aparece
repetidamente em Atos. 210
Ser curado em nome de Jesus de Nazaré demanda fé por parte do
inválido. Pedro lhe manda caminhar, porém não poderá fazê-lo a menos
210
At 2:38; 3:6; 4:10, 18, 30; 5:40; 8:12, 16; 9:27; 10:48; 16:18; 19:5, 13, 17; 21:13; 26:9. Além disso,
há numerosas referências implícitas a Jesus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 184
que ponha sua fé em Jesus. O Novo Testamento nos ensina que os
milagres ocorrem em conexão com a fé. 211
7, 8. E, tomando-o pela mão direita, o levantou; imediatamente, os
seus pés e tornozelos se firmaram; de um salto se pôs em pé, passou a
andar e entrou com eles no templo, saltando e louvando a Deus.
Quando Pedro toma o paralítico pela mão direita para ajudá-lo a
pôr-se em pé, estava seguindo o mesmo procedimento que Jesus praticou
quando curou de febre a sogra de Pedro: “Então ele aproximou-se, e
tomou de mãos dadas e a levantou; e imediatamente lhe deixou a febre, e
ela os servia” (Mc 1:31). Em ambos os casos, o milagre ocorre depois
que os pacientes recebem ajuda ao estender a mão para eles. Note-se que
Lucas, sendo médico, diz com toda exatidão que Pedro tomou a mão
direita do homem. O homem instantaneamente sente a força em seus pés
e tornozelos e sabe que ocorreu o milagre. O advérbio imediatamente
não deixa dúvidas de que o milagre tinha ocorrido.
O homem saltou e, pela primeira vez em sua vida, pôde endireitar-
se. Que sensação de alegria e felicidade! Embora nunca tenha podido
caminhar, tentou-o e o obteve sem dificuldade. Seu caminhar se
transformou em saltos e saltos porque percebe que Deus fez um milagre
em sua vida. Começa a pronunciar palavras de louvores e graças a Deus
e quis acompanhar os apóstolos ao interior do templo para orar com eles
também. (O lugar onde seus familiares e amigos o punham dia a dia para
pedir esmolas não era considerado um pátio do templo.) Agora ele entra
nos pátios do templo para expressar sua gratidão a Deus (cf. Lc 17:15).
É notável a semelhança entre este milagre e a cura do paralítico de
Listra, realizada por Paulo. Lucas nos diz que Paulo olhou diretamente
ao homem e ao ver que tinha fé para ser curado, disse-lhe que ficasse
sobre seus pés, com o resultado de que o homem saltou e começou a
caminhar (At 14:9–10).

211
Consulte-se João Calvino, Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F. Torrance, 2
vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1, p. 94.
Atos (Simon J. Kistemaker) 185
Significativa é a referência indireta na inauguração da era
messiânica. Profetizando o tempo da vinda do Messias, Isaías disse:
“Então os olhos dos cegos serão abertos e os ouvidos dos surdos se
abrirão. Então o coxo saltará como um cervo, e a língua do mudo
cantará.” [Is 35:5–6a. Itálico acrescentado]
Jesus inaugurou a era messiânica quando fez o cego ver, o coxo
andar, quando purificou os leprosos, e fez os surdos ouvirem; quando
ressuscitou os mortos e pregou o evangelho aos pobres (Mt 11:5; Lc
7:22). Depois do Pentecostes, esta era messiânica continua, como Pedro
o indica ao curar milagrosamente o paralítico em nome de Jesus de
Nazaré.
9, 10. Viu-o todo o povo a andar e a louvar a Deus, e reconheceram
ser ele o mesmo que esmolava, assentado à Porta Formosa do templo; e se
encheram de admiração e assombro por isso que lhe acontecera.
Não sabemos quanto tempo permaneceram orando no templo os
apóstolos e o homem que tinha sido curado. Lucas descreve a reação do
povo que foi testemunha do milagre do paralítico, quem começou a
caminhar, a saltar, e a louvar a Deus.
Estes são os fatos:
a. Por muitos anos, as pessoas conheciam o pobre homem sentado
mendigando na porta chamada Formosa. Sabiam que seu mal era
congênito, o que significa que nunca tinha caminhado.
b. Reconhecem-no ao vê-lo caminhar e saltar, cheio de alegria.
Ouvem-no louvando a Deus por lhe haver curado.
c. Enchem-se de assombro e espanto como reação a um belo ato de
Deus. Como Jesus fez milagres quando esteve entre eles, agora Seus
apóstolos os realizam em Seu nome. Assim, o que Jesus começou
durante Seu ministério terrestre é agora continuado através de Seus
seguidores imediatos. Maravilhada e surpreendida, a multidão abre-se
para a mensagem das boas novas de Cristo Jesus, que Pedro está
proclamando.
Atos (Simon J. Kistemaker) 186
Considerações doutrinais em At 3:6
Nossos nomes têm o propósito de distinguir-nos de outras pessoas.
Ter os mesmos nomes às vezes se presta a confusões e até a
desconfortos. Porém nossos nomes pessoais não revelam muito a
respeito de nosso ser, características, e habilidades. As Escrituras nos
ensinam que quando Deus dá nome às pessoas, esses nomes descrevem
suas personalidades. Por exemplo, Deus chama Abrão de Abraão, que
quer dizer “pai de muitas nações” (Gn 17:5). O anjo do Senhor instrui a
José a pôr o nome Jesus ao filho de Maria, “porque ele salvará o seu
povo dos pecados deles” (Mt 1:21). O nome Jesus revela Seu caráter e
Sua missão. Adotando a forma humana, Jesus como Filho de Deus tem
poder para perdoar pecados.
Os discípulos de Jesus profetizam, expulsam demônios, e realizam
milagres em Seu nome (Mt 7:22; Mc 9:39; Lc 10:17). Eles receberam
autoridade para pregar arrependimento e perdão em nome de Jesus (Lc
24:47) e para agir em Seu nome. Quando Deus derrama o Espírito Santo
nesse nome (Jo 14:26), os apóstolos recebem poder divino e autoridade
para realizar milagres (At 3:6; 14:10).
Estamos nós capacitados a profetizar e realizar exorcismos e
milagres usando o nome Jesus? Embora os apóstolos tenham recebido
poderes milagrosos, o Novo Testamento indica que Jesus não nos deu
mandamentos de expulsar demônios, curar os doentes e ressuscitar os
mortos em Seu nome. O que Jesus nos diz é usar a fórmula em nome de
Jesus quando quer que oremos a Deus o Pai (Jo 14:13–14; 15:16; 16:23–
24). Esta fórmula não será meramente uma conclusão formal e habitual
em nossas orações. Significa que como seguidores de Cristo pedimos a
Deus para nos abençoar em glorificar o nome de Deus, estender Seu
reino e fazer Sua vontade (Mt 6:9–10). Quando nós oramos em harmonia
com a prescrição que Jesus nos deu, Deus ouvirá e responderá as nossas
orações. 212
212
Hans Bietenhard, NIDNTT vol. 2, p. 653; Gerald F. Hawthorne, “Name”, ISBE, vol. 3, p. 483.
Atos (Simon J. Kistemaker) 187
Palavras, frases e construções gregas em At 3:7–10
Versículo 7
πιάσας — o aoristo ativo do particípio de πιάζω (eu tomo de) é
seguido do acusativo αὑτόν como objeto direto e o genitivo τῆς δεξιᾶς
χειρός, o qual é partitivo.

Versículo 8
ἐξαλλόμενος — o presente meio (depoente) do particípio do verbo
composto ἐξάλλομαι (eu salto) descreve continuidade, intensidade e
direção. O verbo principal ἔστη está no aoristo para indicar uma só vez.
Mas περιεπάτει, está no imperfeito ativo: o homem não deixou de andar.

Versículo 10
ἐπεγίνωσκον — o tempo imperfeito neste verbo composto significa
que “eles começaram a reconhecê-lo”. 213 A preposição ἐπί tem uma
conotação diretiva mais que intensiva (compare-se At 4:13). 214
συμβεβηκότι — no tempo perfeito do verbo συμβαίνω (eu
encontro, ocorre), este particípio ativo é traduzido como mais-que-
perfeito. O importante não é a ação, que pertence ao passado, mas a
condição de continuidade do milagre.

213
Robertson, Grammar, p. 885.
214
Consulte-se F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and
Commentary, 3ª. ed. rev. e aum. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 137.
Atos (Simon J. Kistemaker) 188
2. Discurso de Pedro (At 3:11–26)

a. A explicação (At 3:11–16)

Pedro é um verdadeiro missionário de Jesus. Vê uma oportunidade


para testificar de seu Senhor e a aproveita. Realiza um milagre, observa
seu efeito, e imediatamente se dirige às pessoas que se reuniram. Sabe
que seu auditório está “maravilhado e cheio de assombro”, tem uma
atitude positiva para com ele e querem ouvir uma explicação.
11. Apegando-se ele a Pedro e a João, todo o povo correu atônito
para junto deles no pórtico chamado de Salomão.
Lucas não dá detalhes a respeito do culto de oração no Pátio dos
homens. Supomos que quando Pedro e João iam passando pelo Átrio das
mulheres e a porta chamada Formosa rumo ao Átrio dos homens, o
paralítico que foi curado não lhes permitiu sair da vista. Não há que
pensar que o coxo impediu os apóstolos de caminhar. Melhor dizendo,
manteve-se perto deles e fez notar à multidão que os discípulos de Jesus
tinham sido instrumentos para sua cura.
O foco de atenção está, por isso, em Pedro e João. Lucas escreve:
“Todo o povo, atônito, concorreu a eles”. Quando os apóstolos passaram
através do Átrio dos gentios ao Pórtico de Salomão, uma multidão
começou a rodeá-los. Crê-se que o Pórtico de Salomão, localizado no
lado leste do templo, foi parte do templo de Salomão. Mas esta hipótese
está baseada mais numa lembrança romântica daquele grande rei que em
evidências efetivas. Os planos do piso dos respectivos templos de
Salomão e Herodes diferem grandemente, até o ponto onde não é
possível a identificação dos lugares exatos. 215
Havia um pórtico de três filas de colunas que alcançavam uma
altura pouco mais de 8 metros. “As fileiras de colunas estavam a 10

215
Josefo Antiguidades 15.11.3–5 [391–420]; 20.9.7 [219–23]. Consulte-se William S. LaSor,
“Jerusalem”, ISBE, vol. 2, p. 1028.
Atos (Simon J. Kistemaker) 189
metros uma da outra no corredor lateral e a 15 metros no corredor
central”. 216 No total, havia 162 colunas. O pórtico estava coberto por um
teto de cedro, e o próprio lugar constituía um amplo salão que podia
abrigar a inumeráveis pessoas. Este foi o lugar onde Jesus se reuniu com
os líderes judeus quando veio a Jerusalém para a celebração da Festa da
dedicação (Jo. 10:22). E foi aqui, precisamente, onde a multidão, curiosa
e assombrada, reuniu-se em volta de Pedro e João para saber o que tinha
ocorrido com o paralítico.
12. À vista disto, Pedro se dirigiu ao povo, dizendo: Israelitas, por
que vos maravilhais disto ou por que fitais os olhos em nós como se pelo
nosso próprio poder ou piedade o tivéssemos feito andar?
Pedro tem um auditório preparado para escutar sua explicação. O
povo está assombrada pelo milagre que acaba de ocorrer. Não há
cepticismo; a zombaria que se ouviu no dia do Pentecostes agora está
ausente (cf. At 2:13). Por tudo isso, Pedro tem uma oportunidade
excepcional de proclamar o evangelho. Como em seu sermão no
Pentecostes, primeiro explica as circunstâncias em que ocorreu o
milagre, logo põe os seus ouvintes a par da morte e ressurreição de Jesus
Cristo, e finalmente os chama ao arrepender-se mediante a fé.
a. “Israelitas”. Pedro volta a usar a forma familiar que usou em seu
sermão do Pentecostes para começar seu sermão (At 2:22) porque está
falando com cidadãos judeus que conhecem o Antigo Testamento e que
não ignoram os milagres realizados por Jesus. Fala-lhes como o povo de
Deus e lhes diz que não devem surpreender-se pelo milagre que veem no
paralítico. Por implicação, lembra-lhes as obras de Jesus de Nazaré, cujo
poder continua agindo em Seus seguidores imediatos.
b. “Por que vos maravilhais disto ou por que fitais os olhos em nós
como se pelo nosso próprio poder ou piedade o tivéssemos feito andar?”
Pedro reprova seu auditório judeu e os admoesta que não olharem o que
os homens fazem e sim ao poder de Deus. Lucas estabelece um paralelo

216
Harold Stigers, “Temple, Jerusalem”, ZPEB, vol. 5, p. 651.
Atos (Simon J. Kistemaker) 190
com o povo de Listra, que creram que Paulo e Barnabé eram deuses
depois que curaram um paralítico (At 14:8–18). Naturalmente, o povo de
Jerusalém não pretendia adorar a Pedro e João, mas criam que eles
tinham um poder neles mesmos que lhes havia permitido fazer caminhar
o homem coxo. Pedro lhes diz que não devem ver o que os homens
fazem e sim a glória de Deus.
13. O Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus de nossos pais,
glorificou a seu Servo Jesus, a quem vós traístes e negastes perante
Pilatos, quando este havia decidido soltá-lo.
Lucas apresenta só um extrato do sermão de Pedro. De qualquer
maneira, o que diz mostra claramente que Pedro apela aos motivos
religiosos de seus ouvintes. Depois de dirigir-se a eles como:
“Israelitas”, faz notar que Deus é o Deus dos patriarcas Abraão, Isaque e
Jacó. Ao dizer isso, Pedro está tocando uma parte básica do fundamento
religioso de Israel. Deus Se revelou a Si mesmo aos antepassados dos
quais Abraão, Isaque e Jacó são as três primeiras gerações. Aqui
encontramos as mesmas palavras que Deus falou com Moisés da sarça
ardendo: “Eu sou o Deus de teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e
Deus de Jacó” (Êx 3:6, 15). 217 Jesus também pronunciou estas mesmas
palavras quando Ele, em Seu discurso aos saduceus a respeito da
doutrina da ressurreição, disse-lhes que Deus é um Deus dos vivos e não
de mortos (Mt 22:32; Mc 12:26–27; Lc 20:37–38). Por último, Estêvão
as menciona em seu discurso diante do Sinédrio (At 7:32). As palavras
são santificadas por seu uso reverencial. Definitivamente, Deus é o Deus
dos antepassados de Israel (cf. Mt 8:11; At 22:14).
Pedro continua e diz: “O Deus de nossos pais glorificou a seu servo
Jesus”. Diz-lhes que Jesus Se encontra na linha dos patriarcas e dos
antepassados espirituais do povo judeu. Deus glorificou a Jesus, a quem
Pedro deliberadamente chama “servo” para lembrar a seus ouvintes a
profecia de Isaías com relação aos sofrimentos e glória do servo do

217
Estas palavras formam a linha de abertura das bem conhecidas Dezoito Bênçãos Judaicas.
Atos (Simon J. Kistemaker) 191
Senhor (Is 52:13–53:12). Eles precisam saber que Jesus cumpriu esta
profecia messiânica (cf. Mt. 12:18). Jesus é o servo de Deus (veja-se v.
26; 4:27, 30). 218 Durante seu ministério ele se referiu ao cumprimento da
profecia de Isaías (Is. 53:12; Lc 22:37). Jesus é o servo sofredor, mas
Deus O glorificou; isto é, Ele foi ressuscitado e exaltado e posto “muito
sublime” (Is 52:13).
Por que Jesus foi exaltado? Porque, diz Pedro a seus compatriotas,
“a quem vós traístes e negastes perante Pilatos, quando este havia
decidido soltá-lo”. Põe o peso da culpa onde corresponde. Os judeus são
responsáveis pela morte do servo de Deus, a quem Deus glorificou
ressuscitando-O da morte. Subsequentemente, Ele subiu ao céu para
ocupar Seu lugar à destra de Deus.
Na presença de Pôncio Pilatos, os judeus repudiaram o servo de
Deus, quem tinha vindo a Seu próprio povo (Jo 1:11). E mesmo quando
Pilatos queria deixar Jesus livre porque não encontrou base alguma para
decidir contra Ele (Lc 23:4, 14), eles puseram Pilatos numa difícil prova.
Primeiro o forçaram a manter sua lealdade a César e a seguir o fizeram
ceder a suas demandas de crucificar a Jesus (Jo 19:12–16).
14, 15. Mas vós negastes o Santo e o Justo e pedistes que se vos desse
um homem homicida. E matastes o Príncipe da vida, ao qual Deus
ressuscitou dos mortos, do que nós somos testemunhas [RC].
Os judeus deviam ter sabido pela leitura do Antigo Testamento que
o Messias é chamado Santo. Por exemplo, em seu sermão do Pentecostes
(At 2:27) Pedro lhes lembrou deste fato citando o Salmo 16:10: “Nem
permitirás que o teu santo veja corrupção”. Esclareceu que Davi não
estava falando de si mesmo mas de Cristo (cf. Is 41:14). E o povo sabia
pelos profetas que o Messias é o Justo. Assim, Isaías escreveu: “Por seu

218
Para uma completa análise do tema servant of God veja-se Joachim Jeremías, TDNT, vol. 5, pp.
684–717; Otto Michel, NIDNTT, vol. 3, pp. 607–13; e Richard T. France, “The Servant of the Lord in
the Teaching of Jesus”, TynB 19 (1968); 26–52.
Atos (Simon J. Kistemaker) 192
conhecimento justificará meu servo justo a muitos, e levará as
iniquidades deles” (Is 53:11; e veja-se Jr 23:5; 33:15; Zc 9:9). 219
Pedro lembra ao seu auditório a história recente e reitera a acusação
contra ele pelo repúdio e a morte de Jesus. Eles foram os que se puseram
diante de Pôncio Pilatos e pediram a morte de Jesus. Eles pediram que se
desse liberdade a Barrabás, um revoltoso e assassino (Mc 15:7). De fato,
a decisão que Pilatos pôs diante dos judeus foi clara: ou soltava a Jesus,
quem tinha sido encontrado inocente, ou soltava a Barrabás, um
alvoroçador e homicida (Lc 23:13–19). Até a esposa de Pilatos disse a
seu marido que não tivesse nada a ver com aquele Jesus, porque era
inocente (Mt 27:19).
“Matastes o Príncipe da vida”. A acusação de Pedro está dirigida
certeiramente à consciência de seu auditório. Note-se que ele não joga a
culpa a Pôncio Pilatos, quem mandou os soldados que crucificaram a
Jesus. Culpa o povo judeu o qual, incitado pelos chefes dos sacerdotes e
os anciãos, exigiram a morte de Jesus. Declara-lhes que também eles são
assassinos. Eis aqui o cru contraste e a profundidade de seu crime:
pedem a Pilatos que solte a Barrabás, o assassino (v. 14) e que dê morte
ao Autor da vida (v. 15). Mas Jesus é o Doador da vida (Jo 10:28) e,
portanto, é a fonte da vida. O termo grego traduzido por “príncipe”
também pode significar “autor” (At 5:31; e veja-se também Hb 2:10;
12:2). O homem mortal, no entanto, é incapaz de matar o Autor da vida,
quem ressuscitou da tumba.
“Deus ressuscitou [a Jesus] dos mortos”. Um tema característico
que os apóstolos Pedro e Paulo usam em seus sermões aparece nesta
sequência: vós, os judeus, matastes a Jesus; Deus O levantou da morte; e
nós, os apóstolos, somos testemunhas disso. 220 Se Deus levantou Jesus
dentre os mortos, então, por implicação, Ele também pode dar vida a

219
Referências no Novo Testamento a Jesus como o Santo estão em Mc. 1:24; Jo. 6:69; e como o
Justo, At. 7:52; 22:14; 1Jo. 2:1. Consulte-se Herman N. Ridderbos, The Speeches of Peter in the Acts
of the Apostles (Londres: Tyndale, 1962), p. 22.
220
Compare estas referências: At. 2:23–24; 4:10; 5:30–32; 10:39–41; 13:28–31.
Atos (Simon J. Kistemaker) 193
Seus assassinos. Em outras palavras, o anúncio triunfante de Pedro:
“Deus ressuscitou [a Jesus] dos mortos”, estende-se até alcançar os
acusados. Quando eles veem o erro de seu caminho e se voltam para
Deus em arrependimento e fé, Deus está disposto a perdoá-los e os
restaurar como Seu povo e lhes dar vida eterna. Os apóstolos são
testemunhas da ressurreição de Cristo e proclamam as boas novas de
vida e cura em Seu nome.
16. Pela fé em o nome de Jesus, é que esse mesmo nome fortaleceu a
este homem que agora vedes e reconheceis; sim, a fé que vem por meio de
Jesus deu a este saúde perfeita na presença de todos vós.
Fé no nome de Jesus é o requisito básico que Pedro põe diante de
seus ouvintes. Pela fé em Jesus ressuscitado e glorificado os apóstolos
podem operar milagres. Note-se que as expressões fé e seu nome
aparecem duas vezes neste versículo. Vamos analisar estes dois
conceitos:
a. Fé. A pergunta que nos temos que fazer é se Pedro fala da fé dos
apóstolos ou da fé do paralítico. A resposta, naturalmente, é que ambos
os apóstolos e o mendigo tiveram fé. Pedro e João efetuaram o milagre
só porque criam com uma fé absoluta que Jesus lhes daria o poder de
curar. Podemos entender que o mendigo também creu que o Senhor o
curaria, mesmo quando Lucas não nos diz nada a respeito de sua fé no
momento em que o milagre produziu-se (vv. 3–7). Esta fé, como Pedro
deixa claro, vem através de Jesus. Só através dEle a fé é eficaz, como
faz-se evidente na cura do mendigo: “Sim, a fé que vem por meio de
Jesus deu a este saúde perfeita”. Fé e o nome de Jesus são os dois lados
da mesma moeda que representa a cura. Em resumo, fé é a forma e o
nome de Jesus é a causa da restauração do homem. 221
b. Nome. No grego, o versículo 16 adoece de polimento e
equilíbrio. Como um sumário apresentado por Lucas, reflete a ênfase de
Pedro no nome de Jesus, o qual menciona repetidamente e inclusive

221
Consulte-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 99.
Atos (Simon J. Kistemaker) 194
personifica. Literalmente, o texto diz: “É o nome de Jesus que fortaleceu
a este homem a quem vós vedes e conheceis”. Quando Pedro disse ao
paralítico “Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda” (v.
6), ele não se limita a pronunciar uma fórmula mágica que causa o
milagre. Pelo contrário, pela fé no nome de Jesus ele confiou que o
divino poder de Jesus fluiria através de si para curar o paralítico. Os sete
filhos de Ceva sem fé invocaram o nome de Jesus e não obtiveram nada,
pelo contrário receberam um severo golpe do espírito imundo que
procuraram expulsar (At 19:13–16). No entanto, quando os setenta e dois
discípulos comissionados por Jesus voltaram a Ele, alegraram-se e
disseram: “Senhor, até os demônios se nos sujeitam em teu nome” (Lc
10:17).
Fé no nome de Jesus demanda uma reação de parte do mendigo,
quem estende sua mão direita para Pedro e percebe que seus pés e
tornozelos estão fortes. Com esta evidência, que pode ser vista por todos
os presentes, Pedro está agora a ponto de pedir aos judeus que ponham
sua fé em Jesus.

Considerações práticas em At 3:16


Através da história da igreja, o dom de cura nunca esteve ausente.
Os nomes de Francisco de Assis, Martinho Lutero e João Wesley, sem
mencionar cristãos de nossos dias destacam-se quanto ao ministério de
cura. Entre os dons do Espírito Santo está o dom de cura (1Co 12:9, 28).
Paulo, no entanto, enfaticamente pergunta: “Têm todos dons de curar?”
(1Co 12:30). O próprio Paulo realizou milagres de cura durante suas
viagens missionárias, porém não há indicação de que tenha curado
Epafrodito, quem numa ocasião esteve tão doente que quase morreu (Fp
2:27). Abertamente, Paulo admite que ele “deixou a Trófimo doente em
Mileto” (2Tm 4:20). E ele mesmo teve que suportar um espinho na
carne, o qual Deus não tirou dele (2Co 12:7–9). Assim, o próprio Paulo
Atos (Simon J. Kistemaker) 195
não pôde fazer uso do dom de cura nas ocasiões que quis e em qualquer
lugar em que ele esteve.
Tiago nos instrui a chamar os anciãos da igreja quando estivermos
doentes. Estes anciãos orarão e ungirão com óleo em nome do Senhor
(At 5:14). Ele diz que “a oração de fé curará o doente” (v. 15), o que
significa que os requisitos para que o Senhor responda são a fé e
oração. 222 Às vezes os milagres de cura não ocorrem, especialmente
quando Deus quer fortalecer nossa fé para Sua glória. Tal como ensinam
as Escrituras, Deus responde a oração a seu tempo e em sua própria
forma. Por isso disse a Paulo: “A minha graça te basta, porque o meu
poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12:9).

Palavras, frases e construções gregas em At 3:11–16


Versículo 11
κρατοῦντος δὲ αὑτοῦ — o gerúndio ativo com o pronome no caso
genitivo forma a construção genitiva absoluta.
ὁ λαός — tanto no Evangelho de Lucas como em Atos, esta é uma
expressão favorita. Das 143 vezes que aparece este substantivo no Novo
Testamento, 84 estão nos escritos de Lucas. O substantivo é coletivo;
tem um verbo no singular (συνέδραμεν, aoristo ativo de συντρέχω [eu
corro juntos]); e forma um adjetivo composto (ἔκθαμβοι, completamente
atônitos) no plural.

Versículo 12
ἡμῖν — por sua posição nesta frase, o pronome pessoal é enfático.
Está no dativo plural como um objeto indireto e é explicado por
particípio ativo perfeito πεποιηκόσιν (de ποιέω [eu faço, fazer]) no
dativo.

222
Para un análisis más profundo sobre este asunto, remítase a C.N.T. I–III Juan, serie de Comentarios
del Nuevo Testamento (Grand Rapids: Baker, 1986), pp. 175–177.
Atos (Simon J. Kistemaker) 196
τοῦπεριπατεῖν — com o artigo definido no genitivo o infinitivo
presente ativo expressa propósito.

Versículo 14
τὸν ἅγιον καὶ δίκαιον — com um artigo definido são aplicados dois
epítetos à uma pessoa. 223 Note-se o contraste entre esta frase e ἄνδρα
φονέα (assassino).

Versículo 16
ἡ πίστις — o contexto geral deste substantivo indica que tanto os
apóstolos como o paralítico puseram sua fé em Cristo Jesus.
ἀπέναντι — um advérbio composto de três preposições (ἀπό, ἐν, e
ἀντί) tem o significado secundário à vista de em lugar de “oposto”.

b. A exortação (At 3:17–23)

Pedro pôs a descoberto a miserável situação de seus ouvintes, que


agora veem sua culpa diante de Deus. Embora eles apresentassem
desculpas e circunstâncias atenuantes, a culpa de ter matado a Jesus, o
Autor da vida, mantém-se. Pedro se dirige a eles com palavras afetuosas
e com um interesse e preocupação pastoral. Ele mesmo se situa a nível
deles e lhes dá palavras de consolo.
17, 18. E agora, irmãos, eu sei que o fizestes por ignorância, como
também as vossas autoridades; mas Deus, assim, cumpriu o que dantes
anunciara por boca de todos os profetas: que o seu Cristo havia de
padecer.
Permita-me fazer as seguintes observações:
a. Ignorância. Depois de explicar os acontecimentos do passado
recente que são conhecidos cada ouvinte em seu auditório, Pedro volta à

223
Consulte-se Robertson, Grammar, p. 785.
Atos (Simon J. Kistemaker) 197
situação presente. Em tom gentil pergunta: «O que faremos com seu
pecado?» Pelo fato de o povo olhar a Pedro em busca de ajuda, tem em
suas mãos uma magnífica oportunidade para guiá-los ao arrependimento
e fé em Jesus Cristo. Como um pastor admite que seus ouvintes, aos
quais tratou de “irmãos”, cometeram seu crime por ignorância. Pecaram
sem intenção, sendo arrastados por um espírito de chusma desmedida
que os fez gritar: “Crucifica-o!” Se eles tivessem pecado com soberba,
teriam cometido blasfêmia. Deus diz que Ele não perdoa ao homem que
peca com soberba (veja-se Nm 15:30–31). Alguém que peca com
soberba está, na verdade, cometendo pecado contra o Espírito Santo (Mt
12:31–32). O povo judeu, contudo, pecou ingenuamente devido à sua
cegueira espiritual.
Os judeus não se deram conta que Jesus de Nazaré veio para eles
como seu Messias. Nem entenderam a Escritura, que falava de um Servo
sofredor, quer dizer, o Messias. Em seu sermão aos judeus em Antioquia
da Pisídia, Paulo diz que o povo de Jerusalém e seus governantes não
reconheceram a Jesus (At 13:27). Não obstante, sua culpa, que pode ser
tirada só pelo arrependimento e pelo perdão amoroso de Cristo, mantém-
se. O amor de Cristo está presente. Até na cruz, Jesus orou pelas pessoas
que O matavam: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc
23:34).
Nestas palavras, Pedro também inclui aos dirigentes dos judeus: “E
agora, irmãos, eu sei que o fizestes por ignorância, como também as
vossas autoridades”. Esta afirmação geral não quer dizer que cada um
dos dirigentes judeus agiu por ignorância. Lembre-se que Jesus ensinou a
doutrina do pecado contra o Espírito Santo quando os fariseus e os
mestres da lei disseram que Ele e estava expulsando demônios em nome
de Belzebu, o príncipe dos demônios (veja-se Mt 12:24; Mc 3:22; Lc
11:15).
b. Cumprimento. Pedro repete as palavras que Jesus havia dito
primeiro aos dois homens de Emaús, e mais tarde no cenáculo quando
Atos (Simon J. Kistemaker) 198
abriu as Escrituras e disse aos discípulos que o Cristo tinha que sofrer e
entrar em Sua glória (veja-se Lc 24:26–27, 45–46).
Pedro baseia seu sermão no Antigo Testamento e diz ao seu
auditório que Jesus é o cumprimento da profecia. Na verdade, está
afirmando isso quando diz que “Deus, assim, cumpriu o que dantes
anunciara por boca de todos os profetas”. Deus fala através de Seus
servos os profetas, mas Sua palavra é cumprida mediante Jesus Cristo,
Seu Filho. Deus, então, provê continuidade em Sua revelação. Faz saber
que a comunidade cristã vive na era do cumprimento. 224 Assim, os
primeiros cristãos veem no Antigo Testamento a humilhação e o
sofrimento de Cristo que conduzem à glória.
Os profetas no Antigo Testamento profetizaram que o “Cristo havia
de sofrer” (cf. Is 50:6; 53:3–12; 1Pe 1:10–12). Porque conheciam os
escritos dos profetas, devem ter sabido destes fatos. Jesus disse aos
homens em caminho para Emaús que eles eram “tardios de coração para
crer em tudo o que os profetas disseram” (Lc. 24:25); e no cenáculo
Jesus abriu o entendimento de Seus discípulos para que pudessem
entender as Escrituras (Lc. 24:45).
Agora Pedro segue o exemplo que Jesus deu e instrui os seus
ouvintes no ensino com relação aos sofrimentos do Messias. Diz-lhes
que Jesus sofreu e morreu na cruz, porque os judeus O entregaram para
ser crucificado. Também lhes mostra o caminho do arrependimento, o
voltar-se para Deus, a remissão de pecados e uma vida renovada e
refrescante.
19, 20. Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para serem apagados os
vossos pecados, de sorte que da presença do Senhor venham tempos de
refrigério, e que envie aquele que já vos foi indicado, Jesus o Cristo [TB].
a. “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos”. Aqui está a resposta a
pergunta: «O que faremos com seu pecado?» Sobre a base da evidência

224
Consulte-se Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), pp.
736–37. E consulte-se George E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans,
1974), pp. 330–31.
Atos (Simon J. Kistemaker) 199
bíblica que Deus cumpriu as profecias messiânicas, Pedro chama seus
ouvintes a arrepender-se (cf. At 2:38). Eles devem renunciar a sua antiga
forma de vida e mudar sua maneira de pensar para que já não sigam seus
velhos caminhos mas escutem obedientemente a Palavra de Deus que se
cumpriu em Jesus Cristo. O arrependimento afeta a totalidade da
existência do homem; chega até o mais profundo de seu ser e toca todas
as suas relações externas com Deus e com seus vizinhos. O
arrependimento é afastar do pecado; a fé é voltar-se para Deus. 225 Pedro
diz às pessoas que se voltem para Deus, o que em linguagem simples e
clara é: arrependam-se e creiam.
b. “Para serem apagados os vossos pecados”. Pedro lhes apresenta
um quadro dos pecados do homem gravados numa quadro-negro que
pode ser apagado. Admitindo que falta em dizer quem limpa o quadro-
negro, nós sabemos que só Deus, através de Jesus Cristo, perdoa os
pecados. Talvez esta seja a típica forma hebraica de expressar um
pensamento sem usar o nome de Deus. Pedro alude ao batismo, que é o
símbolo do lavamento para a limpeza dos pecados. Note-se que usa a
palavra pecados no plural para abranger a totalidade dos pecados dos
crentes. Quando Deus perdoa os pecados do homem, fica restaurada a
relação entre Ele e o homem. Isto significa que o homem inicia um novo
período em sua vida. Pedro expressa este pensamento em termos bem
característicos. Diz:
c. “De sorte que da presença do Senhor venham tempos de
refrigério”. 226 Esta é, verdadeiramente, uma cláusula muito interessante,
que literalmente diz: “para que pudessem vir tempos de descanso da
presença do Senhor”.

225
James D. G. Dunn, Baptism in the Holy Spirit, Studies in Biblical Theology, 2ª. série 15 (Londres:
SCM, 1970), p. 91. Véase también su artículo “Repentance”, em Baker’s Dictionary of Christian
Ethics, ed. por Carl F. H. Henry (Grand Rapids: Baker, 1973), pp. 578–79.
226
A divisão de versículos difere no grego e nas traduções. Algumas destas incluem uma cláusula com
o versículo 19, e outras com o seguinte.
Atos (Simon J. Kistemaker) 200
O que quer dizer Pedro com isso? A palavra descanso aparece só
uma vez no Novo Testamento e uma no texto da Septuaginta
correspondente ao Antigo Testamento (Êx 8:15; 8:11, LXX). Os
estudiosos não puderam estabelecer com certeza o significado da
palavra. A seguir algumas sugestões de seu significado:
1. Os tempos de descanso são “a era da salvação, a qual é prometida
à nação de Israel se ela se arrepender”. 227
2. A frase tempos de fortaleza espiritual “refere-se ao futuro e à
volta de Jesus”. 228 À luz do contexto, alguns comentaristas pensam que a
frase descreve a iminente volta de Cristo.
3. Devido ao fato de que a frase tempos de descanso está
diretamente relacionada com o arrependimento e a volta a Deus, refere-
se a tempos que estão no futuro imediato, não remoto. 229
À vista da incerteza que rodeia esta frase, evitaremos ser
dogmáticos em nossa análise. A palavra tempos está no plural e significa
lapsos nos quais os crentes perdoados e restaurados experimentam a
refrescante proximidade do Senhor. Além disso, devemos perguntar-nos
se o termo Senhor significa Jesus ou é o nome do Antigo Testamento
para Deus. O sujeito da cláusula seguinte é Deus. Isto é evidente, por
exemplo, na seguinte tradução: “deste modo venham da face do Senhor
os tempos de refrigério. Então enviará ele o Cristo que vos foi destinado”
(BJ). 230
d. “E que envie aquele que já vos foi indicado, Jesus o Cristo”. Em
resposta ao arrependimento do homem e sua volta para Deus, Deus envia
o Seu Cristo. Mas quando vem Cristo? Por certo, Cristo veio para o Seu
povo, mas este O rejeitou e O matou. Agora, ele vem a todo aquele que
O escuta através da pregação da Palavra de Deus. E no final dos tempos,
227
Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, p. 686. E consulte-se Eduard Schweizer, TDNT, vol. 9, pp. 664–65.
228
David John Williams, Acts, série Good News Commentaries (San Francisco: Harper y Row, 1985),
p. 55. Veja-se também Lake y Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 37.
229
Consulte-se R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg,
1944), p. 142.
230
Cf. NAB, DHH, MLB, Moffatt.
Atos (Simon J. Kistemaker) 201
Deus enviará de novo a Cristo Jesus à terra. Mas, qual é o contexto no
qual fala Pedro?
Ele se dirige aos judeus, os quais, embora não tenham aceitado o
Cristo anunciado por Deus quando Ele viveu entre eles, agora recebem a
oportunidade de reconhecê-Lo como seu Messias. Em Sua graça e amor,
Deus lhes dá uma nova oportunidade de conhecer a Cristo. Se o
rejeitarem desta segunda vez, não poderão arrepender-se quando Jesus
voltar à terra. Seu arrependimento, portanto, apressará a volta de Cristo.
Pedro corrobora este pensamento em sua epístola, quando diz: “Que
pessoas vos convém ser em santo trato e piedade, aguardando e
apressando-vos para a vinda do Dia de Deus” (2Pe 3:11–12, RC).
21. É necessário que ele permaneça no céu até que chegue o tempo
em que Deus restaurará todas as coisas, como falou há muito tempo, por
meio dos seus santos profetas.
a. “É necessário que permaneça no céu”. Em seu sermão sobre o
fim dos tempos, Jesus disse aos discípulos que ninguém, senão o Pai,
conhece o tempo exato de Sua vinda (Mt. 24:36). Portanto, Deus o Pai
determina quando Jesus voltará para restaurar todas as coisas. Enquanto
isso o evangelho de Cristo é pregado na terra, Jesus permanece no céu,
de onde dirige o desenvolvimento da Sua igreja e do Seu reino. Ele não
voltará senão até que “este evangelho do reino [tenha sido] pregado em
todo mundo, como testemunho a todas as nações, e então virá o fim” (Mt
24:14).
b. “Até que chegue o tempo em que Deus restaurará todas as
coisas”. O que quer dizer Pedro com estas palavras? No contexto da
passagem, ele se dirige ao povo judeu que olha para frente para o tempo
da restauração de todas as coisas, tal como os profetas do Antigo
Testamento escreveram. Os tempos de descanso que vêm como o
resultado do arrependimento e a fé são prenúncios do tempo da completa
restauração. Embora os tempos de refrigério sejam periódicos e
Atos (Simon J. Kistemaker) 202
231
subjetivos, o tempo da restauração é permanente e objetivo. Segundo
Paulo, a restauração será completada quando todas as coisas fiquem
sujeitas a Cristo Jesus e quando Ele entregar o reino a Seu Pai (1Co
15:24).
c. “Como falou há muito tempo, por meio dos seus santos profetas”.
Pedro dá veracidade à sua declaração recorrendo novamente às profecias
do Antigo Testamento (veja-se também 1Pe 1:10–12; 2Pe 1:19–21).
Note-se que chama os profetas de santos porque eles comunicam a
revelação divina. Num sentido, repete a fraseologia do versículo 18,
onde diz que “Deus cumpriu assim as coisas que antes tinha anunciado
por boca de todos os profetas”. Deus fez promessas através de Seus
porta-vozes, os profetas. O que disseram os profetas?
22, 23. Disse, na verdade, Moisés: O Senhor Deus vos suscitará
dentre vossos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em
tudo quanto vos disser. Acontecerá que toda alma que não ouvir a esse
profeta será exterminada do meio do povo.
a. “Disse, na verdade, Moisés”. Dentre os profetas do Antigo
Testamento, Pedro escolhe o exemplo de Moisés. Ninguém pode
contradizer o status profético de Moisés, porque foi o próprio Deus quem
o deu (Dt 18:18). Da sarça ardendo, Deus chamou Moisés para ser Seu
profeta (Êx 3:4); outros profetas receberam um chamado similar (veja-se
1Sm 3:1–14; Is 6:1–13; Jr 1:4–19; Ez 1:1–3). Moisés, então, é o primeiro
na linha dos profetas e o maior deles.
b. “O Senhor Deus vos suscitará dentre vossos irmãos um profeta”.
Pedro cita uma passagem muita conhecida do Antigo Testamento. Faz
um resumo das palavras ditas por Moisés e registradas em Deuteronômio
18:15–20. Os Evangelhos aludem a esta mesma porção em numerosas
ocasiões 232 e o próprio Estêvão em seu discurso diante do Sinédrio a cita

231
Consulte-se Albrecht Oepke, TDNT, vol. 1, p. 391; Hans-Georg Link, NIDNTT, vol. 3, p. 148; John
Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. por Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo: Clark,
1877), vol. 2, p. 545.
232
Veja-se Mt. 17:5; Mc. 9:4, 7; Lc. 7:39; 24:25; Jo. 1:21; 5:46.
Atos (Simon J. Kistemaker) 203
parcialmente (At 7:37). As traduções tanto do hebraico como da
Septuaginta diferem quanto à sua fraseologia, embora o significado
continue sendo quase idêntico.
c. “Dentre vossos irmãos um profeta semelhante a mim”. Em
cumprimento das profecias do Antigo Testamento, Cristo é um profeta
como Moisés, fala as palavras que Deus lhe deu, e chama o povo judeu a
escutar obedientemente tudo o que ele tem a lhes dizer. A conclusão é
que todo aquele que recusar ouvir a Jesus “será cortado de seu povo” (cf.
Lv 23:29).
É Cristo como Moisés? Moisés diz que Deus levantará um profeta
como ele. Os judeus consideravam Moisés o maior profeta sobre a terra,
porque Deus falou com face a face (veja-se Nm 12:8). Também tinham
conhecimento deste eloquente testemunho relacionado com Moisés:
“Nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, com
quem o SENHOR houvesse tratado face a face, no tocante a todos os
sinais e maravilhas que, por mando do SENHOR, fez na terra do Egito, a
Faraó, a todos os seus oficiais e a toda a sua terra; e no tocante a todas as
obras de sua poderosa mão e aos grandes e terríveis feitos que operou
Moisés à vista de todo o Israel.” [Dt 34:10–12].
Mas Cristo ultrapassou a Moisés em todo sentido. O escritor de
Hebreus o afirma sucintamente quando diz que Moisés foi um servo na
casa de Deus, mas Cristo é um filho sobre a casa de Deus (At 3:5–6).
Moisés instituiu a primeira aliança para a nação de Israel (Êx 24:3–8),
mas esta aliança veio a ficar obsoleta (Hb 8:13) quando Cristo instituiu a
nova aliança em Seu sangue para as pessoas de todas as nações (Mt
26:28; 1Co 11:25). É evidente a semelhança de Cristo e Moisés nas
palavras “dentre vossos irmãos um profeta semelhante a mim”. Cristo é
um profeta que, como Moisés, humanamente falando é um descendente
de Abraão e, por isso, membro da nação israelita. Os judeus que ouvem
Pedro devem reconhecer que Cristo indubitavelmente foi o cumprimento
das palavras proféticas de Moisés.
Atos (Simon J. Kistemaker) 204
d. “A ele ouvireis em tudo quanto vos disser”. Com esta profecia,
Pedro parecia estar dizendo aos ouvintes israelitas que se eles crerem e
obedecem as palavras de Moisés, também devem crer e obedecer a Jesus.
Moisés profetizou a respeito do Cristo, e Cristo falou a respeito de
Moisés (Jo 5:45–46). O povo judeu esperava a vinda de “o Profeta”,
como o repetiram vez após vez durante o ministério de Jesus (veja-se Jo
1:21, 25; 7:40). E muitas vezes chamaram Jesus profeta ou o Profeta. 233
e. “Toda alma que não ouvir a esse profeta será exterminada do
meio do povo”. Aqui temos os típicos dois lados da moeda. Por um lado,
Deus dá a ordem de obedecer; por outro, indica quais são as
consequências da desobediência. Chama os israelitas para ouvir as
palavras de Moisés que falam do Cristo. Ordena-lhes escutar a
mensagem de Cristo. Mas Deus encontrou má vontade quando Seu povo
recusava obedecer a Jesus durante Seu ministério terrestre. Agora de
novo lhes fala por boca de um dos apóstolos de Cristo. Se os israelitas
continuarem em sua atitude de desobediência, serão desarraigados do
povo de Deus.

Considerações práticas em At 3:22b


Os verbos ouvir e escutar parecessem ser sinônimos, mas cada um
tem seu próprio sentido. Ouvir, entre outros significados, quer dizer
“perceber com o ouvido”. Escutar significa “prestar atenção sincera”.
Devido à multiplicidade de ruídos que são gerados ao nosso redor, com
frequência temos problemas para nos concentrar em escutar. Quer dizer,
nossas mentes possuem uma misteriosa habilidade para ouvir sem reagir
a isso. As crianças mostram esta facilidade de ouvir sem escutar quando,
chegada a hora de ir para a cama, os pais anunciam a ordem de preparar-
se para a cama, mas as crianças não dão ouvidos. E quando as crianças
não atendem às lembranças persistentes da parte dos pais, muitas vezes

233
Veja-se Mt. 21:11; Lc. 7:16, 39; 24:19; Jo. 6:14.
Atos (Simon J. Kistemaker) 205
suas pais lhes dizem: “Você me ouviu?” Claro que ouviram, porém não
quiseram escutar.
O mesmo ocorre diariamente em nossa vida de adultos. Ao nos falar
de Seu Filho, Deus nos diz: “A ele ouvireis em tudo quanto vos disser”.
Prometemos fazê-lo, mas quando fazemos um exame de consciência,
temos que confessar que embora Jesus nos fale quando lemos as
Escrituras, falhamos em Lhe obedecer e nos comportar como resultado.
Lembremos, portanto, que Deus falou dos céus durante a transfiguração
de Jesus e disse: “Este é meu Filho amado, em quem tenho
complacência; a ele ouvi” (Mt 17:5).

Palavras, frases e construções gregas em At 3:17–23


Versículo 17
καὶ νο͂ν — Pedro faz uma transição de sua explicação de
acontecimentos passados à realidade presente.
κατὰ ἄγνοιαν — em lugar de um particípio, Lucas usa uma frase
preposicional para expressar atitude: por ignorância.

Versículo 20
ὅπως ἄν — a combinação de advérbio e partícula introduz, no
versículo precedente (v. 19), uma cláusula de propósito, baseada no
aoristo imperativo ativo μετανοήσατε (arrependei-vos) e ἐπιοτρέψατε
(convertei-vos).
καιροί — este substantivo está estreitamente relacionado a χρόνων
(v. 21) e como este, não tem o artigo definido. Nos versículos 21 e 22, os
substantivos são virtualmente sinônimos.

Versículo 23
ἀκούοῃ τοῦ προφήτου — como uma prótase numa frase
condicional, o verbo está no aoristo subjuntivo ativo. O aoristo denota
Atos (Simon J. Kistemaker) 206
ação única. Seguido pelo caso genitivo no substantivo προφήτου, o
verbo tem o seguinte significado: “toda alma que não escutar àquele
profeta” (quer dizer, “que recusar ainda escutar o profeta quando
falar”). 234

c. A promessa (At 3:24–26)

Os últimos três versículos do sermão de Pedro constituem a


conclusão de sua exposição. Neles, lembra ao seu auditório as bênçãos
da aliança que herdaram através de Abraão, seu pai espiritual. Agora,
através de Jesus Cristo, Deus continua os abençoando.
24. E todos os profetas, a começar com Samuel, assim como todos
quantos depois falaram, também anunciaram estes dias.
A linha de raciocínio que Pedro traça estabelece que todos os
profetas, desde Moisés até Samuel e todos quantos os seguiram, falaram
a respeito da vinda do Messias. Depois de citar a profecia de Moisés nos
versículos precedentes, Pedro menciona Samuel. No período entre
Moisés e Samuel, os profetas não profetizaram com relação ao Cristo.
Por esta razão, Pedro omite esse período e continua com Samuel, quem
nos escritos judaicos era conhecido como o mestre dos profetas (cf. At
13:20; 1Sm 3:19); 235 no entanto, as Escrituras não dão indicação alguma
de que Samuel tenha profetizado ou ensinado aos profetas. Se tomarmos
o nome Samuel para nos referir ao período que cobre o tempo dos livros
atribuídos a ele, encontramos algumas alusões proféticas ao Messias. Por
exemplo, o profeta Natã informa a Davi que de sua descendência Deus
levantará um reino para sempre (2Sm 7:12–14; At 2:30; Hb 1:5). Davi
mesmo, a quem Samuel ungiu como rei sobre Israel, é um precursor de
Jesus, rei dos judeus (Mt 2:2; 27:37). 236

234
Hanna, Grammatical Aid, p. 193.
235
Refira-se SB, vol. 2, p. 627; Lenski, Acts, p. 147.
236
Referências ao reinado de Davi podem encontrar-se em 1Sm. 13:14; 15:28; 16:13; 28:17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 207
“Todos os profetas … falaram, também anunciaram estes dias”. A
comunidade cristã primitiva investigou atentamente as profecias do
Antigo Testamento para comprovar que Jesus de Nazaré as tinha
cumprido. Em seus sermões e epístolas, Pedro e Paulo repetidamente
citam estas profecias para mostrar que Jesus é, sem lugar a dúvida, o
Messias prometido.
Guia-nos, ó Rei eterno
Cesse a feroz luta do pecado
A santidade se sussurra,
O doce amém de paz;
Não com o som de espada
Ou toque de tambor,
Mas com obra amorosa
O reino do Senhor virá.
— Ernest W. Shurtleff
25. Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu
com vossos pais, dizendo a Abraão: Na tua descendência, serão
abençoadas todas as nações da terra.
Que Lucas nos dá um resumo do sermão de Pedro é especialmente
evidente neste versículo. A conexão entre este e o versículo precedente é
a frase herdeiros dos profetas. 237 Quem são estes herdeiros? Pedro diz a
seus ouvintes: “Vós sois”. Segundo Paulo, a mesma palavra de Deus foi
confiada ao povo judeu (Rm 3:2). A frase herdeiros dos profetas, então,
dá a entender que os judeus foram os receptores das profecias que em
último termo procedem de Deus na forma da Escritura. Além disso, os
judeus são herdeiros da aliança que Deus fez com Abraão e seus
descendentes (Gn 15:18; 17:2, 4, 7; Rm 9:4), o qual foi confirmado pela
nação de Israel nos dias de Moisés (Êx 24:3–8). Portanto, Pedro procede
dos tempos de Moisés até o período mais cedo em que Deus fez a aliança

237
A tradução “filhos dos profetas” é uma frase comum na tradução da Septuaginta de 1Rs. 20:35;
2Rs. 2:3, 5, 7. Consulte-se Adolf Deissmann, Bible Studies (reimp.: Winona Lake, Ind.: Alpha, 1979),
p. 163.
Atos (Simon J. Kistemaker) 208
com Abraão e prometeu a ele e à sua descendência bênçãos
incalculáveis. Deus selou Suas palavras com uma aliança que haveria de
transcender os séculos e que viria a beneficiar a todos os descendentes
espirituais de Abraão.
Deus disse a Abraão: “Na tua descendência, serão abençoadas todas
as nações da terra”. Em grego, a palavra descendência é “semente” (no
singular) e assim, chama a atenção a uma pessoa, ou seja, a Cristo. Paulo
usa a mesma palavra (semente) no singular quando escreve: “Ora a
Abraão foram feitas as promessas, e à sua semente. Não diz: E às
sementes, como falando de muitos; mas, como de um: E à tua semente, a
qual é Cristo” [Gl 3:16, TB].
Em suas conversas teológicas, tanto Pedro como Paulo chamam a
atenção à pessoa de Jesus Cristo. Pedro cita diretamente da Septuaginta,
que descreve a cena de Abraão oferecendo Isaque no monte Moriá (Gn
22:18). 238 Seus ouvintes se consideram “herdeiros da aliança” que Deus
fez com Israel e pensam que os gentios não têm nenhuma participação
nele. 239 Mas a bem-conhecida citação do Antigo Testamento inclui todas
as nações da terra. Pedro não as elabora, mesmo quando as palavras da
Grande Comissão “fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19), estão
registradas de forma indelével em sua memória. Ele, contudo, faz saber a
seus ouvintes que Jesus veio para abençoar a eles primeiro, porque o
evangelho deve ser proclamado primeiro aos membros da casa de Israel
(Mt 10:6; Rm 1:16; 2:10).
26. Deus suscitou ao seu Servo, e a vós primeiramente vo-lo enviou
para vos abençoar, apartando a cada um de vós das suas iniquidades
[TB].
a. Servo. “Deus suscitou ao seu Servo”. Deus determinou que Jesus
Cristo tomasse o lugar de Abraão para que se cumprissem as palavras

238
Cf. também Gn. 12:3; 18:18; 26:4; 28:14. Para uma referência no Novo Testamento, veja-se Gl.
3:8.
239
Gerhard Schneider, Die Apostelgeschichte, serie Herders Theologischer Kommentar zum Neuen
Testament, 2 vols. (Freiburg: Herder, 1980), vol. 1, p. 330.
Atos (Simon J. Kistemaker) 209
ditas a Abraão: “Na tua descendência [isto é, Cristo], serão abençoadas
todas as nações da terra” (v. 25; cf. Gn 12:3). Portanto, o verbo suscitou
não se refere à ressurreição, e sim à designação de Cristo para servir
como a descendência de Abraão (cf. v. 22). Note-se que Pedro de novo
(veja-se v. 13) chama Jesus o servo de Deus, o que parece ser uma forma
corrente de chamá-Lo (At 4:27, 30). Pedro obtém esta terminologia do
Antigo Testamento e identifica a Jesus com o servo sofredor de Isaías. 240
b. [Ele] vo-lo enviou. “Primeiramente vo-lo enviou para vos
abençoar”. A missão de Cristo é abençoar em palavras e atos os
descendentes espirituais de Abraão. Note-se que Pedro, usando o verbo
abençoar, vincula a Jesus Cristo com a citação a respeito de Abraão. A
quem abençoa Jesus primeiro? O texto claramente estabelece que Ele vai
primeiro aos judeus: “[Deus] primeiramente vo-lo enviou”. Por isso
Pedro prega seu sermão ao auditório judeu no Pórtico de Salomão. Neste
momento, Pedro não entra em muitos detalhes a respeito de que a
rejeição de Cristo pelos judeus implica por outro lado uma abertura para
os gentios. Isto é o que disse Paulo aos judeus de Antioquia da Pisídia:
“Cumpria que a vós outros, em primeiro lugar, fosse pregada a palavra
de Deus; mas, posto que a rejeitais e a vós mesmos vos julgais indignos
da vida eterna, eis aí que nos volvemos para os gentios” (At 13:46).
Qual é a bênção que Jesus concede? Pedro diz: “a vós
primeiramente vo-lo enviou para vos abençoar, apartando a cada um de
vós das suas iniquidades”. A bênção, então, é o arrependimento e a
salvação. Esta é uma repetição do mandamento de Pedro pronunciado
antes (v. 19), com a diferença de que entendemos que Cristo é chave no
processo de converter do mal. Note-se que Pedro fala francamente
quando diz aos judeus que Cristo os faz voltar-se “de suas iniquidades”.
Ele é o Salvador de Seu povo.

240
Veja-se Is. 52:13–53:12. Consulte-se também Guthrie, New Testament Theology, p. 461. Para um
estudo adicional, veja-se Richard N. Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity,
Studies in Biblical Theology, 2a. série 17 (Londres: SCM, 1970), p. 105.
Atos (Simon J. Kistemaker) 210
Palavras, frases e construções gregas em At 3:24 e 26
Versículo 24
κατήγγειλαν — embora o versículo inclui dois verbos, ἐλάλησαν (o
aoristo ativo de λαλέω [eu falo] tem ὅσοι (quantos) como sujeito;
κατήγγειλαν (aoristo ativo de καταγγέλλω [eu proclamo]) é o verbo
principal precedido por καί (também).

Versículo 26
εὑλογοῦντα — o gerúndio ativo é “usado como um futuro no
sentido de propósito” (enviar). 241
ἐν τῷ ἀποστρέφειν — o infinitivo presente ativo precedido da
preposição e o artigo definido no caso dativo expressa duração; também
é transitivo com ἕκαστον (cada) como objeto direto; e por último, a
construção é instrumental, porque o sujeito implícito do infinitivo é
Cristo.

Resumo de Atos 3
Pedro e João vão juntos ao templo à hora fixada para a oração. Ali,
na porta chamada Formosa, Pedro cura um paralítico. A multidão fica
atônita e se reúne em torno dos apóstolos e do homem curado. Pedro
aproveita a oportunidade e prega um sermão. Diz à multidão que ele não
tem nenhum poder em si mesmo de curar, mas que o homem foi curado
em nome de Cristo Jesus.
Lembra-lhes que eles mataram a Jesus, mas que Deus O levantou da
morte. Consola-os e os admoesta a arrepender-se para que sejam
perdoados e recebam a Cristo. Instrui-os nas profecias do Antigo
Testamento através de tomar um exemplo do testemunho de Moisés.
Diz-lhes que todos os profetas falam de Cristo e que as bênçãos da

241
Robertson, Grammar, p. 891.
Atos (Simon J. Kistemaker) 211
aliança prometidas aos descendentes de Abraão vêm agora através de
Jesus Cristo, quem os faz voltar-se de seus maus caminhos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 212
ATOS 4
A IGREJA EM JERUSALÉM, parte 3 (At 4:1–37)
3. Diante do Sinédrio (At 4:1–22)

a. A detenção (At 4:1–4)

Quando a multidão se amontoou em torno de Jesus, as autoridades o


mantiveram sob estreita vigilância. De igual maneira reagiram “os
sacerdotes, o chefe da guarda do templo e os saduceus”, quando Pedro e
João falaram a uma grande multidão na área do templo. Quem são estas
pessoas e que autoridade têm de prender Pedro e João?
Os sacerdotes estavam organizados em vinte e quatro divisões que
serviam no templo sob um sistema de turnos (cf. Lc 1:8). 242 Os
sacerdotes e os levitas ministravam durante os sacrifícios da manhã e da
tarde. O chefe da guarda do templo era um sacerdote encarregado da
força de vigilância, e sua autoridade estava imediatamente abaixo do
sumo sacerdote; 243 o termo de seu serviço era indefinido e ininterrupto; e
sua responsabilidade era de manter a ordem no templo e as cercanias.
Com frequência, Lucas refere-se ao chefe da guarda do templo e aos
oficiais (At 5:24, 26; Lc 22:4, 52).
Os saduceus eram descendentes de sacerdotes, presumivelmente da
linha do sumo sacerdote Zadoque (Ez 40:46; 44:15–16; 48:11). Tendo
formado um partido que controlava o templo e o sumo sacerdócio,
tinham alcançado um enorme poder político. Aceitavam como

242
Consulte-se a Josefo, Antiguidades 7.14.7 [363–65]; e veja-se Emil Schürer, The History of the
Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C.–135 d.C.), ed. e rev. por Geza Vermes e Fergus
Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 247.
243
Veja-se Josefo Guerra judaica 2.17.2 [409]; 6.5.3 [294]; Antiguidades 20.6.2 [131]; 9.3 [208]. E
consulte-se também SB, vol. 2, pp. 628–31.
Atos (Simon J. Kistemaker) 213
autorizados somente os cinco livros de Moisés; o resto do Antigo
Testamento tinha para eles apenas um valor secundário. Por isso
negavam as doutrinas relacionadas com o Messias, os anjos, os
demônios, a imortalidade e a ressurreição. 244
1. Enquanto Pedro e João falavam ao povo, sobrevieram-lhes os
sacerdotes, o capitão do templo e os saduceus [TB].
No dia do Pentecostes, uma imensa multidão escutou o sermão de
Pedro. Os sacerdotes, os guardas do templo, e os saduceus que
normalmente se refreavam de fazer qualquer presença sobre as grandes
multidões nos pátios do templo durante os dias em festa, foram alertados
quando as pessoas rodearam a Pedro e João no Pórtico de Salomão.
Mesmo quando a cura do paralítico não tenha tido maior importância
para aqueles líderes religiosos, a publicidade que se originou com o fato
e o sermão de Pedro, sim, os preocuparam, pelo que decidiram
interromper o ensino dos apóstolos.
Lucas apresenta um resumo do sermão que Pedro pregou no templo
e escreve que tanto este como João falavam com a multidão. Embora
afirme que o orador é Pedro, indiretamente sugere que João também
falou (cf. vv. 13, 17–20).
Para evitar que os apóstolos seguissem sua comunicação com a
multidão, os sacerdotes, a guarda do templo e os saduceus decidiram
prendê-los. A presença destes três grupos de pessoas para prender duas
pessoas demonstra ou incapacidade para controlar à multidão ou medo
aos comandos militares romanos estacionados no templo. Mas neste
caso, a multidão agiu ordenada e pacificamente, em contraste com a
ocasião em que Paulo foi detido décadas mais tarde (veja-se At 21:27–
40). No entanto, os sacerdotes, a guarda do templo e os saduceus
objetavam duas coisas: o mero fato de que Pedro e João estivessem
ensinando a multidão; e o conteúdo de seu ensino, especialmente aquilo
referente à doutrina da ressurreição.

244
Para maior informação, veja-se Donald A. Hagner, “Sadducees”, ZPEB, vol. 5, pp. 211–16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 214
2. Eles estavam muito perturbados porque os apóstolos estavam
ensinando o povo e proclamando em Jesus a ressurreição dos mortos
[NVI].
a. O ensino. Na cultura daqueles dias, o título rabi implicava um
grande respeito. Esta palavra hebraica significa “meu grande” com a
palavra mestre entendida. “Nos evangelhos, este termo é usado
repetidamente em contextos onde o respeito (sincero ou não) é
extremo”. 245 Esperava-se que um mestre em Israel fosse uma pessoa
educada (veja-se v. 13), que possuía suas correspondentes credenciais.
Embora Jesus não tenha tido uma preparação formal, foi aceito como um
mestre devido ao fato de que falava com autoridade (Mt 7:29; Mc 1:22).
Contudo, os líderes religiosos questionaram a fonte de Sua autoridade
(Mt 21:23; Jo 2:18). Segundo eles, um mestre deve ter a capacidade de
responder a perguntas sobre doutrina e lei e deve ter seu correspondente
grupo de discípulos. Jesus, a respeito destas duas exigências, qualificou-
se perfeitamente, porque pôde interpretar as Escrituras até o extremo que
ninguém ousava rebatê-Lo (Mt 22:46). E também teve um grupo de doze
discípulos. Na opinião dos sacerdotes, no entanto, os apóstolos
certamente careciam das credenciais necessárias. Além disso, com o
poder e a força natural de sua mensagem, os apóstolos estavam
danificando sua influência e autoridade (dos sacerdotes). Ainda mais,
eram uma ameaça para os líderes religiosos desse tempo.
b. A doutrina. Outra objeção ao ensino de Pedro e João veio dos
saduceus, os quais rejeitavam a doutrina da ressurreição (At 23:8; Mt
22:23). Por contraste, os fariseus ensinavam esta doutrina, e em sua
oposição aos saduceus, desfrutavam do respaldo que recebiam da
comunidade cristã. 246 Alguns dos fariseus, como Nicodemos e José de
Arimateia, chegaram a ser seguidores de Jesus, e o ilustríssimo rabino

245
Wilber T. Dayton, “Teaching of Jesus”, ZPEB, vol. 5, p. 607.
246
Veja-se Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, serie Westminster
Commentaries (1901; reimpressão, Grand Rapids: Baker, 1964), p. 45.
Atos (Simon J. Kistemaker) 215
Gamaliel persuadiu o Sinédrio a que deixasse livre os apóstolos (At
5:34–40).
Os apóstolos pregam a doutrina da ressurreição com referência a
Jesus. Para os saduceus, os discípulos estão empenhados numa
impossibilidade. Seja como for, depois que os líderes judeus se
desfizeram de Jesus de Nazaré, cravando-O numa cruz, Seus seguidores
começam a falar de Sua ressurreição. E embora nenhum dos líderes
religiosos voltou a ver Jesus, de repente, umas sete semanas mais tarde,
uma multidão escutou em Jerusalém os discípulos proclamando a
doutrina da ressurreição (At 2:24, 32). E agora de novo dois deles
pregam a respeito daquela doutrina com referência a Jesus.
Por implicação, Pedro e João ensinam que como Jesus tinha sido
ressuscitado da morte, assim todos os que puserem sua confiança nEle
experimentarão a ressurreição do corpo (cf. Jo 5:28–29; 1Co 15:12–18).
A doutrina da ressurreição é básica em Atos; em seus sermões e
discursos, Pedro e Paulo proclamam esta doutrina a judeus e a gentios. 247
Ser testemunha da ressurreição de Jesus é um dos requisitos para o
apostolado (At 1:22).
3, 4. E os prenderam, recolhendo-os ao cárcere até ao dia seguinte,
pois já era tarde. Muitos, porém, dos que ouviram a palavra a aceitaram,
subindo o número de homens a quase cinco mil.
Atos é um livro que registra numerosas primeiras experiências. Por
exemplo, a cura do paralítico (At 3:6–7), a morte de um mártir (At 7:60),
a grande perseguição (At 8:1–4), e a ressurreição do Dorcas (At 9:40).
Aqui, Lucas descreve a primeira prisão. Os guardas do templo
apreendem Pedro e João. Devido ao avançado da hora são levados ao
cárcere em lugar de à corte para a formulação das correspondentes
acusações. Supomos que no momento da detenção tenham sido mais das
quatro da tarde, porque depois dos sacrifícios da tarde, os guardas

247
Veja-se At 2:24, 32; 3:15; 4:10; 10:40; 13:30, 33, 34, 37; 17:31.
Atos (Simon J. Kistemaker) 216
fechariam as portas. Lucas só diz que os apóstolos foram postos em
custódia e não explica sobre o lugar nem condições.
Mas o importante aqui não é o encarceramento dos apóstolos, mas
os efeitos de seu ensino. “[Pelo fato de que] a palavra de Deus não está
presa” (2Tm 2:9) a igreja continua crescendo. Sem dúvida que o milagre
feito por Deus permitiu que multidões viessem a Cristo depois de ouvir
um sermão. 248 O grego indica que a membresia total da igreja de
Jerusalém “chegou a ser” de cinco mil homens.
Além disso, Lucas diz especificamente que “subindo o número de
homens a quase cinco mil” (itálico acrescentado). Supõe-se que está
falando de membros masculinos da igreja, os que com frequência eram
contados como cabeças de famílias. (Onde quer que se encontre no Novo
Testamento a palavra homens deve ser tomada literalmente [compare Mt
14:21; Mc 8:9].) Em outro capítulo, Lucas menciona que “a multidão dos
que criam no Senhor, tanto homens como mulheres, crescia cada vez
mais” (At 5:14, RC). Segundo uma estimativa, vinte mil cristãos viviam
em Jerusalém antes da perseguição que se seguiu por ocasião da morte
de Estêvão (At 8:1–4). Vemos, então, que a igreja continua crescendo e
que Cristo vive em e no meio de Seu povo.

Comentários adicionais sobre os saduceus


O partido dos saduceus floresceu por mais de dois séculos, desde a
época dos macabeus aproximadamente no ano 150 a.C. até o tempo da
destruição de Jerusalém e o término do sacerdócio no ano 70 d.C. A
informação de que dispomos provém primariamente do Novo
Testamento e de Josefo, quem, sendo membro do partido dos fariseus,
escreve dessa perspectiva. Os partidos dos fariseus e dos saduceus se
formaram durante a era dos macabeus. Os fariseus eram numerosos e
populares; pelo contrário os saduceus, não obstante que formavam um

248
Consulte-se João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance y
Thomas F. Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1. p. 113.
Atos (Simon J. Kistemaker) 217
partido de minoria, eram ricos e tinham poder político. Os saduceus
controlavam o sacerdócio em Jerusalém e tinham o respaldo das
autoridades romanas. O sacerdócio cessou quando as forças romanas
destruíram Jerusalém. Os saduceus desapareceram da cena.
Não é possível saber com certeza a origem do nome saduceus. Uma
teoria diz que provém da palavra grega saddouk, que é o equivalente de
“filho de Zadoque”. Zadoque foi um sacerdote durante o tempo de Davi
e de Salomão (2Sm 8:17; 15:24–36; 1Rs 1:32; 2:35). Em anos
posteriores, os filhos de Zadoque formaram um grupo especial de
sacerdotes que mantiveram sua fé em Deus (Ez 40:45–46; 44:15–17;
48:11). Também são mencionados na literatura intertestamentária e o
Qumran. A comunidade Qumran, no entanto, estava oposta ao partido
dos saduceus. Além disso, não foi possível verificar a evidência para
estabelecer um vínculo entre o sacerdócio do período macabeu e os
filhos de Zadoque.
Os saduceus aparecem várias vezes na cena do Novo Testamento.
Escutam a pregação de João Batista, quem os chama “raça de víboras”
(Mt 3:7). Pedem a Jesus que lhes mostre sinal do céu (Mt 16:1) e Jesus
previne os Seus discípulos de guardar-se da levedura (doutrina) dos
saduceus (Mt 16:6). Perguntam a Jesus a respeito da ressurreição,
doutrina que eles rejeitam (Mt 22:23). Jesus lhes responde com uma
citação de um dos livros de Moisés (Êx 3:6), visto que eles aceitavam só
estes livros como autorizados. opõem-se aos apóstolos, lançam-nos ao
cárcere, e os levam a juízo diante do Sinédrio (At 4:1–21; 5:17–18;
23:6–8).
Sempre que os saduceus percebiam uma ameaça contra sua
autoridade, reagem com crueldade. Assim, o sumo sacerdote Caifás, um
dos saduceus, ele o faz com o argumento de que convém que um homem
morra pelo povo em lugar de que “toda a nação pereça” (Jo 11:50;
18:14) e condenou a Jesus (Mt 26:57–66). Porque lhes era impossível
competir com o rápido crescimento da igreja, os sacerdotes e os
saduceus prenderam os apóstolos. E por último, o sumo sacerdote
Atos (Simon J. Kistemaker) 218
saduceu Anás condenou à morte a Tiago, irmão de Jesus e escritor da
epístola que leva seu nome. 249

Palavras, frases e construções gregas em At 4:1


ἱερεῖς — dois códices (B e C) usam a expressão ἀρχιερεῖς (sumos
sacerdotes). A palavra sacerdote aparece só 31 vezes no Novo
Testamento; pelo contrário, a expressão sumos sacerdotes aparece 122
vezes. “Parece que os escribas substituíram a palavra usada mais
frequentemente pela outra que vice-versa, especialmente quando a
modificação contribuía em sublinhar o sério da perseguição”. 250

b. O juízo (At 4:5–7)

Lucas não está interessado nos detalhes relacionados com os


apóstolos na prisão nem com o paradeiro do mendigo ao qual eles
curaram. Descreve o juízo que tem lugar no dia seguinte, quando os
saduceus e a família do sumo sacerdote reúnem o Sinédrio.
5, 6. No dia seguinte, reuniram-se em Jerusalém as autoridades, os
anciãos e os escribas com o sumo sacerdote Anás, Caifás, João, Alexandre
e todos os que eram da linhagem do sumo sacerdote.
a. “No dia seguinte”. Como no caso de Jesus, o corpo governante
chamado o Sinédrio apressadamente se reuniu para o juízo. Por lei, o
Sinédrio se reunia no período entre os sacrifícios da manhã e da tarde.
Devido ao fato de que os apóstolos foram presos no final da tarde, o
juízo foi posposto até o dia seguinte. De acordo com isso, no dia seguinte
este corpo se constituiu na corte suprema de Israel. Estava constituída
pelos governantes (que estavam investidos de autoridade), os anciãos
(que proviam conselho) e os mestres da lei (que formulavam doutrina).

249
Consulte-se Josefo, Antiguidades 20.9.1 (197–200).
250
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 316.
Atos (Simon J. Kistemaker) 219
O Sinédrio não podia aplicar a pena capital, exceto nos casos em
que um gentio entrasse no átrio interior do templo. Um elemento
indicador da autoridade do Sinédrio o constitui uma inscrição que data
dos tempos de Cristo: “Nenhum gentio poderá entrar até a varanda ao
redor do santuário nem à parte interior dela. Seja ele quem for,
surpreendido ficará exposto a ser castigado com a pena de morte”. 251 As
mortes de Estêvão (At 7:58) e de Tiago, o irmão de Jesus, não são
normativas. Portanto, os apóstolos poderiam ser julgados, porém não
executados.
b. “As autoridades, os anciãos e os escribas”. A membresia do
Sinédrio incluía setenta e uma pessoas, um número estabelecido depois
da corte mosaica dos setenta (Nm 11:16–17). Embora os anciãos fossem
respeitados por seus conselhos e os mestres por seu conhecimento da lei
de Moisés, os líderes deste corpo governante eram os saduceus, com o
sumo sacerdote servindo como presidente (e o membro número setenta e
um). No juízo contra Jesus, Caifás era o chefe do Sinédrio e no juízo
contra Paulo, presidia o sumo sacerdote Ananias (At 23:2). No juízo
contra Pedro e João, o sumo sacerdote e os membros de sua família eram
figuras proeminentes.
c. “[Eles] reuniram-se em Jerusalém”. Supõe-se que o sumo
sacerdote convocou o Sinédrio chamando para reunir-se todos os seus
membros. Isto se pôde fazer sem dificuldade porque todos residiam em
Jerusalém, onde se efetuava a reunião. Josefo, o historiador judeu diz
que o Sinédrio tinha como lugar de reunião o setor oeste da área do
templo. 252
d. “O sumo sacerdote Anás, Caifás, João, Alexandre e todos os que
eram da linhagem do sumo sacerdote”. Segundo os Evangelhos, Caifás
era o sumo sacerdote (Mt 26:3, 57; Jo 11:47–53; 18:13, 14, 24, 28).
Anás, no entanto, havia servido como sumo sacerdote quase por uma

251
Harold Stigers, “Temple, Jerusalem”, ZPEB, vol. 5, p. 650.
252
Josefo Guerra judaica 5.4.2 [142–46].
Atos (Simon J. Kistemaker) 220
década (6–15 d.C.), mas tinha sido deposto pelo imperador romano
Valério. Anás era uma pessoa de muita influência que pertencia ao
partido dos saduceus e foi relutante a ceder autoridade. No entanto,
assegurou-se que membros de sua família continuassem o sucedendo, o
que lhe permitiu estender seu poder e, ao mesmo tempo, conservar seu
título de sumo sacerdote (Lc 3:2; Jo 18:13, 24). Cinco de seus filhos,
assim como seu genro Caifás e um neto foram sumos sacerdotes em
intervalos sucessivos. Desta maneira a família de Anás manteve e
consolidou seu poder no Sinédrio. 253
No ano 15 d.C. seu filho Eleazar sucedeu-o no cargo de sumo
sacerdote, onde permaneceu por três anos. Seu genro Caifás exerceu o
cargo por dezoito anos (18–36 d.C.). Depois dele veio outro filho, João
(ou Jônatas) 254 seguido por Alexandre. Infelizmente não se sabe nada
mais a respeito de João, Alexandre, “e todos os que eram da família dos
sumos sacerdotes”. Talvez o termo linhagem dos sumos sacerdotes não
deveria ser restringida à família de Anás, antes, deveria incluir influentes
famílias sacerdotais cujos membros ocuparam postos de liderança no
serviço do templo e no Sinédrio. A informação de Lucas a respeito da
presença da família do sumo sacerdote na reunião do Sinédrio indica que
a oposição aos apóstolos veio principalmente dos saduceus.
7. E pondo-os no meio deles, perguntavam: Com que poder, ou em
que nome fizestes vós isto? [TB]
Pedro e João foram levados pelos guardas do templo até o lugar
onde se reunia o Sinédrio. Não se sabe se o homem que tinha sido curado
passou a noite com os apóstolos no cárcere, mas segundo Lucas (vv. 10,
14), estava junto aos apóstolos durante o juízo. Puseram os três no centro
de um semicírculo de assentos elevados que eram ocupados pelos

253
Josefo Antiguidades 20.9.1 [197–203].
254
Josefo escreve que o governador Vitélio “destituiu de seu sagrado ofício de sumo sacerdote a José
de apelido Caifás, e nomeou em seu lugar a Jônatas, filho de Anás o sumo sacerdote”. Antiguidades
18.4.3 [95] (LCL). O texto ocidental (o Códice D e as antigas versões latinas do manuscrito grego)
dizem Jônatas em lugar de “João”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 221
membros do Sinédrio. Os assentos estavam distribuídos de tal maneira
que graças à posição semicircular, os integrantes do tribunal podiam ver
uns aos outros.255 Eles estavam sentados, mas os acusados deviam
permanecer de pé, enfrentando os governantes da nação aqueles que
desde seus assentos os olhavam para baixo.
Só umas poucas semanas antes, o Sinédrio se reuniu em casa de
Anás para levar a cabo o juízo de Jesus, tendo Caifás como o oficial
presidente do tribunal. Os líderes no Sinédrio tinham procurado livrar-se
de Jesus de Nazaré mediante o expediente de crucificá-Lo. Mas o nome
de Jesus reapareceu quando Seus discípulos o usaram na cura do
paralítico. Os líderes recusaram reconhecer a Jesus e, em vez disso,
perguntaram com que poder ou em que nome os apóstolos tinham levado
a cabo o milagre de cura (veja-se Mt 21:23).
No grego, a ênfase cai no substantivo vós, que é a última palavra da
frase e por isso recebe toda a força. Os apóstolos são apontados como se,
com a cumplicidade do paralítico, tivessem cometido um crime. O
tribunal está procurando conhecer os fatos do caso, mesmo quando os
tenham recebido já da parte de outras pessoas. Querem conhecer a fonte
de poder dos apóstolos para realizar milagres e inclusive o nome da
pessoa que investiu os apóstolos com este poder. Note-se que não
questionam dos apóstolos seu direito de ensinar em público. Tampouco
perguntam a respeito da doutrina da ressurreição, o que poderia ser
muito arriscado na presença dos fariseus, os quais defendiam tal ensino
(cf. At 22:30–23:10). O que querem saber é de quem aqueles pescadores
galileus receberam o poder para realizar milagres.

255
Mishnah, Sinédrio 4.3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 222
Palavras, frases e construções gregas em At 4:5 e 7
Versículo 5
τοὺς ἄρχοντας — os três grupos integrantes do Sinédrio são as
autoridades, os anciãos e os escribas. Note-se que cada substantivo está
precedido de um artigo definido. A primeira parte componente, “as
autoridades”, equivale a “os sumos sacerdotes” (cf. com Mc 14:53). Os
anciãos ocupam uma posição venerável como representantes de Israel
(veja-se Êx 3:16). E os escribas são os eruditos nas Escrituras.

Versículo 7
ἐπυνθάνοντο — do verbo πυνθάνομαι (eu inquiro), este médio
imperfeito (depoente) denota repetição da ação.
ποίᾳ — o pronome interrogativo comunica força qualitativa: “com
o que classe de poder?”
ὑμεῖς — último na frase, o pronome é enfático. Corresponde com o
pronome pessoal ἡμεῖς (v. 9).

c. A defesa (At 4:8–12)

8-10. Então Pedro, cheio do Espírito Santo, lhes disse: Autoridades


do povo e anciãos, se nós hoje somos inquiridos sobre o benefício feito a
um enfermo, como foi ele curado; seja notório a todos vós e a todo o povo
de Israel que em o nome de Jesus Cristo o Nazareno, a quem vós
crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, neste nome está
este enfermo aqui são diante de vós [TB].
a. “Então Pedro, cheio do Espírito Santo, lhes disse”. No dia do
Pentecostes Pedro e os outros receberam o Espírito Santo, que continuou
neles. Contudo, em algumas ocasiões especiais o Espírito capacitava os
apóstolos a falar corajosamente, porque Jesus havia dito aos Seus
apóstolos: “E, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que
haveis de falar, porque, naquela hora, vos será concedido o que haveis de
Atos (Simon J. Kistemaker) 223
dizer, visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é
quem fala em vós” (Mt 10:19–20). Pedro experimentou o cumprimento
das palavras de Jesus quando se levantou diante do Sinédrio.
b. “Autoridades do povo e anciãos”. Mesmo quando Lucas diz que
o grupo estava formado por autoridades, anciãos e mestres da lei, Pedro
dirige-se somente às autoridades e aos anciãos. Aparentemente eram só
estes dois grupos os que exerciam a liderança e formulavam as perguntas
(cf. v. 23; At 23:14; 25:15).
c. “Se nós hoje somos inquiridos sobre o benefício feito a um
enfermo, como foi ele curado”. Habilmente Pedro mudou o juízo de uma
possível investigação criminal a uma interrogação a respeito de um ato
de misericórdia. O verbo interrogar significa que Pedro considera o
juízo como uma investigação e então o põe de uma forma positiva. “Se
nós hoje somos inquiridos” significa que esta investigação é um fato que
ocorre no próprio momento. Além disso, também indica que Pedro está
no controle total da situação. Diz-lhes que ele e João fizeram uma boa
obra, o que implica que ninguém pode acusá-los por ajudar um homem
que foi paralítico desde seu nascimento.
d. “[perguntam] como foi ele curado”. No grego, o verbo curar
também pode traduzir-se por “salvar” (veja-se v. 12). No caso do
paralítico, a cura física é óbvia; sabemo-lo porque mediante sua fé em
Jesus também alcançou a salvação.
Pedro se dá conta que os membros do Sinédrio estão interessados
na forma em que se realizou o milagre de cura. Em resposta a suas
perguntas, dá-lhes uma resposta direta e fala da fonte do poder de cura e
do nome no qual ele e João levaram a cabo o milagre. Sem temor aos
mesmos juízes que condenaram a Jesus e o entregaram a Pôncio Pilatos,
Pedro lhes fala francamente, dizendo que o homem foi curado em nome
de Jesus de Nazaré. A palavra nome aponta à completa revelação com
Atos (Simon J. Kistemaker) 224
relação a Jesus. Esta palavra aparece repetidamente nos discursos de
Pedro, precisamente porque ele o proclama a todo o povo.256
e. “Seja notório a todos vós e a todo o povo de Israel”. A frase seja
notório é similar à ordem ponham atenção a minhas palavras (veja-se At
2:14; 13:38; 28:28). Desta maneira, Pedro amplia seu auditório para
incluir o Sinédrio e toda a nação israelita. Mais uma vez, e habilmente,
muda o enfoque da interrogação do paralítico que foi curado a Jesus,
quem o curou. O nome de Jesus Cristo deve ser dado a conhecer a toda
pessoa em Israel.
f. “Que em o nome de Jesus Cristo de Nazaré”. Note-se que Pedro
pronuncia as mesmas palavras que usou quando curou o paralítico na
porta chamada Formosa (At 3:6). Ele se dá conta que embora o nome de
Jesus resulte ofensivo para os governantes e anciãos que o tinham
condenado, de qualquer maneira foram eles que expuseram a pergunta a
respeito da forma como os apóstolos curaram o paralítico. Dá-lhes uma
resposta honesta e simples, mas eles não podem entender que Jesus,
morto numa cruz, tem poder para realizar um indiscutível milagre de
cura. 257 Mas este é, precisamente, o ponto que Pedro procura enfatizar.
Deliberadamente usa o duplo nome para assinalar a vida terrestre de
Jesus e a divina missão de Cristo (o Messias). Para fazer completa a
identificação, acrescenta o lugar de residência de Jesus pelo qual foi
conhecido: “de Nazaré”.
g. “A quem vós crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dentre os
mortos”. Em seus sermões e discursos, de forma imperturbável Pedro
repete à sua audiência israelita a mesma coisa: “vós crucificastes, e a
quem Deus ressuscitou dentre os mortos” (cf. At 2:23–24; 3:15; 5:30).
Pedro lança a culpa da morte de Jesus aos do Sinédrio. No entanto, ele
não fica na ignomínia de condenar à morte a um inocente, mas vai para
além, até a ressurreição a vida de Jesus. A mensagem da ressurreição é
256
Veja-se Herman N. Ridderbos, The Speeches of Peter in the Acts of the Apostles (Londres:
Tyndale, 1962), p. 29.
257
Consulte-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 115.
Atos (Simon J. Kistemaker) 225
fundamental na pregação apostólica e aqui Pedro a proclama diante da
corte suprema de Israel.
h. “[Pelo poder de Jesus] está este enfermo aqui são diante de vós”.
Pode-se imaginar a Pedro apontando diretamente o homem mendigo,
quem é um testemunho vivo do poder de Jesus. Desde que os milagres
que Jesus fez durante Seu ministério são bem conhecidos através de todo
Israel, os membros do Sinédrio não podem negar a obra contínua do
Jesus ressuscitado. Quando Jesus Se levantou da tumba, o chefe dos
sacerdotes subornou os soldados da guarda para que dissessem: “Vieram
de noite os discípulos dele e o roubaram enquanto dormíamos” (Mt
28:13). Mas seu engano não se pode comparar com o glorioso poder de
Jesus demonstrado na cura do paralítico. O homem aí de pé é um
testemunho vivo de Cristo ressuscitado. Jesus recebe o crédito por este
milagre de cura.
11. Este Jesus é pedra rejeitada por vós, os construtores, a qual se
tornou a pedra angular.
Como em todos os seus discursos, Pedro baseia sua mensagem em
passagens tiradas do Antigo Testamento. Aqui cita de um salmo muito
conhecido, cantado pelos peregrinos em suas viagens a Jerusalém para
participar nas festas religiosas (Sl 118:22). Com esta citação, Pedro
lembra aos principais sacerdotes e aos fariseus as palavras que lhes havia
dito Jesus na última semana de Seu ministério. Jesus citou Sl 118:22–23
e aplicou as palavras deste salmo a seus ouvintes, dizendo: “Portanto eu
lhes digo que o Reino de Deus será tirado de vocês e será dado a um
povo que dê os frutos do Reino. Aquele que cair sobre esta pedra será
despedaçado, e aquele sobre quem ela cair será reduzido a pó” (Mt
21:43–44, NVI). Quando Jesus pronunciou aquelas palavras, os
principais sacerdotes e os fariseus deram-se conta que se estava dirigindo
a eles. Agora Pedro lhes diz a mesma coisa. Os membros do Sinédrio são
os edificadores espirituais da casa de Deus, pelo qual eles devem
escolher as pedras. Rejeitam uma das pedras, a que consideram não apta;
mas Deus, quem é o arquiteto, toma esta mesma pedra e a torna a pedra
Atos (Simon J. Kistemaker) 226
do ângulo do edifício. A citação deste salmo é uma gráfica ilustração de
Jesus Cristo, quem, tal como Pedro o diz em sua epístola, é “pedra viva,
desprezada certamente pelos homens, mas para Deus escolhida e
preciosa” (1Pe 2:4; veja-se também vv. 6–8). 258
Os membros do Sinédrio devem aceitar que eles são os edificadores
espirituais da casa de Deus, da qual Deus tem feito a Jesus Cristo a pedra
angular. Não podem livrar-se do nome de Jesus, nome que está
inextricavelmente vinculado com o Israel espiritual. Jesus cumpriu a
citação do salmo que O apresenta como a pedra angular (Sl 118:22).
Como resultado, os sinedristas não podem esquivar o poder e o nome de
Jesus Cristo. A salvação encontra-se somente nEle.
12. Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não há
outro nome dado entre os homens, em que devamos ser salvos [TB].
Observemos o seguinte:
a. Proclama-se salvação. “Não há salvação em nenhum outro”. Este
versículo está entre os mais conhecidos e apreciados de Atos. Pedro
apela à sua audiência imediata, mas ao mesmo tempo dirige-se a todo o
povo que busca salvação. 259 Dirige-se a homens eruditos e influentes do
Sinédrio, cujo trabalho consiste em mostrar ao povo de Israel o caminho
da salvação. O que fizeram dizendo que realizaram obras que talvez lhes
alcançaria a salvação. Pedro, pelo contrário, prega que a salvação pode-
se obter única e exclusivamente através do nome de Jesus Cristo. A
salvação que ele prega compreende não só a cura física mas também a
espiritual. 260 A evidência da salvação física está aí, à vista, na pessoa do
homem que tinha sido um paralítico. Mas eles devem entender que o
bem-estar espiritual inclui o perdão dos pecados e uma relação
restaurada com Deus. Ninguém no grupo diante de Pedro é capaz de
258
Veja-se C.N.T. sobre Pedro e Judas, pp. 103–107.
259
Colin Brown diz que em Atos 4:12 Pedro “faz uma declaração universal e absoluta em prol da
mensagem cristã de salvação”, NIDNTT, vol. 3, p. 213.
260
Consulte-se Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble e
Gerald Shinn (Filadelfia: Westminster, 1971), p. 217. Veja-se também C. K. Barrett, “Salvation
Proclaimed: XII. Acts 4:8–12”, ExpT 94 (1982): 68–71.
Atos (Simon J. Kistemaker) 227
assinalar uma pessoa que possa conceder a salvação, porque cada um
necessita dela. Portanto, devem notar que podem chegar a ter paz com
Deus somente através de Jesus Cristo.
b. O nome. “Abaixo do céu não há outro nome dado entre os
homens”. O nome Jesus revela a missão de Salvador, porque o nome
significa “ele salvará a seu povo dos pecados deles” (Mt 1:21). Quer
dizer, ele cura o povo fisicamente dos efeitos do pecado, mas mais que
isso, tira o próprio pecado de tal maneira que as pessoas podem enfrentar
o juízo de Deus como se nunca tivessem pecado. Jesus os torna
espiritualmente completos ao restaurá-los a uma verdadeira relação com
Deus o Pai. Jesus diz: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14:6).
Só Jesus tem a capacidade de prover a remissão pelos pecados. “Todos
os que nele crerem, receberão perdão de pecados por seu nome” (At
10:43).
Pedro recorre não a um exagero mas a uma linguagem descritiva
quando diz que abaixo do céu não há outro nome que o nome de Jesus.
Em nenhuma parte do mundo poderia o homem encontrar outro nome
(quer dizer, a outra uma pessoa) que ofereça a salvação que Jesus provê.
Outras religiões além do cristianismo falham porque oferecem salvação
por meio das obras e não pela graça. O nome Jesus foi dado aos homens
pelo próprio Deus para mostrar que a salvação tem sua origem
precisamente nEle.
c. Salvação para o crente. “[Não há outro nome] em que devamos
ser salvos”. O texto no grego é específico. Não diz que nós podemos ser
salvos, porque isto indicaria que o homem tem a habilidade inerente de
alcançar a salvação. Não diz que temos permissão de ser salvos, porque
então a cláusula sugeriria incerteza. O texto é categórico. Diz: “em que
devamos ser salvos”. A palavra devamos revela uma divina necessidade
Atos (Simon J. Kistemaker) 228
estabelecida por Deus de acordo com Seu plano e decreto, para nos
salvar através da pessoa e obra de Jesus Cristo. 261
Além disso, esta palavra significa que o homem está sob obrigação
moral de responder ao chamado de crer em Jesus Cristo e assim ganhar a
salvação. Ele não tem nenhuma possibilidade de alcançar a salvação
senão através do Filho de Deus.

Considerações doutrinais em At 4:11


Alguns tradutores escolheram a expressão cabeça do ângulo para a
citação em Salmo 118:22, a que também se encontra no grego. 262 Outras
traduções usam a expressão: pedra angular 263 Nos tempos antigos, a
pedra angular era parte dos fundamentos sobre os quais descansava toda
a estrutura de um edifício ou uma casa. Nós usamos esta expressão
quando faz-se a dedicação de um edifício e pomos a pedra angular em
seu sítio respectivo. Figurativamente, a palavra refere-se aos elementos
básicos de um sistema (quer dizer, seu fundamento). À expressão pedra
principal 264 é dada também no sentido da pedra mais alta localizada no
arco de uma porta, ou a pedra que mantém unida a fileira mais alta de
pedras.
O uso de qualquer destas expressões não é importante quando se
está falando de Cristo. O Messias é primeira e a última pedra da casa de
Deus. Os rabinos entendiam que as passagens do Antigo Testamento que
falam da pedra angular (Sl 118:22; Is 8:14 [pedra]; 28:16) referem-se ao
Messias. E os escritores do Novo Testamento, seguindo o exemplo de
Jesus (Mt. 21:42), aplicaram o termo a Cristo (Rm 9:33; Ef 2:20; 1Pe
2:6). 265

261
Thayer, p. 126; Bauer, p. 172; Walter Grundmann, TDNT, vol. 2, p. 24; Erick Tiedtke y Hans-
Georg Link, NIDNTT, vol. 2, p. 666.
262
Veja-se KJV, RV, ASV, RSV, Moffatt, Phillips.
263
P. ex. NKJV, NASB, NAB, SEB.
264
Cf. BibToday.
265
Edward Mack, “Cornerstone”, ISBE, vol. 1, p. 784.
Atos (Simon J. Kistemaker) 229
Palavras, frases e construções gregas em At 4:9–12
Versículo 9
εἰ — a partícula seguida por um verbo no modo indicativo introduz
uma condição simples que expressa realidade.
ἀνθρώπου — o caso genitivo é objetivo: “um benefício [feito] a um
homem doente”. 266

Versículo 10
γνωστὸν ἔστω — a combinação de um adjetivo e um imperativo
aparece quatro vezes em Atos (At 2:14; 4:10; 13:38; 28:28). Com o
imperativo presente, Pedro dá a seus ouvintes uma ordem suave: “Seja
notório”.

Versículo 11
οὗτος — o pronome demonstrativo refere-se a Jesus, mesmo
quando na cláusula anterior o mesmo pronome aplica-se ao paralítico.

Versículo 12
ἕτερον — “o ponto de ἕτερον é que nenhum outro nome que o de
Jesus” é o que significa. 267
ἐν ἀνθρώποις — algumas versões traduzem entre os homens; com o
verbo dar a preposição ἐν com o dativo é equivalente a είς com o
acusativo (“aos homens”). 268

266
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 500.
267
Ibid., p. 749.
268
Consulte-se C. F. D. Moule, An Idiom-Book of the New Testament Greek 2a. ed. (Cambridge:
Cambridge University Press, 1960), p. 76.
Atos (Simon J. Kistemaker) 230
d. A deliberação (At 4:13-17)

Em seu discurso diante do Sinédrio, Pedro demonstra que ele está


em total domínio da situação. Fala sem agitar-se e abertamente insiste
com os membros da corte a aceitar a Cristo Jesus como seu Salvador.
Seu auditório está pasmado e ninguém quer fazer outras perguntas.
13. Ao verem a intrepidez de Pedro e João, sabendo que eram
homens iletrados e incultos, admiraram-se; e reconheceram que haviam
eles estado com Jesus.
a. Percepção. “Ao verem a intrepidez de Pedro e João”. Lucas usa o
verbo grego deste versículo em tempo imperfeito para mostrar o efeito
continuado de uma ação. Assim, os governantes continuam enfeitiçados
pela valentia de Pedro e João, os quais abrindo suas bocas expuseram a
verdade ousada e francamente. Eles não podiam notar, contudo, que o
Espírito Santo dava habilidade e valentia aos apóstolos para falar (v. 8).
b. Estranha realidade. Como era possível que uns pescadores
comuns e ordinários da Galileia dirigissem tão acabado discurso diante
dos membros da Corte Suprema? Citavam e aplicavam as Escrituras;
pregavam com toda eloquência; e tudo isso sem ter recebido nenhum
tipo de educação teológica formal da parte de reconhecidos mestres. Sua
dicção galileia e sua aparência, sem dúvida revelavam a Pedro e João
como membros da classe iletrada. Isso não significa, entretanto, que não
tenham sabido ler e escrever. O que sabiam fica demonstrado por seus
escritos. No entanto, não tinham educação teológica formal. Lucas diz
que eles eram considerados como “incultos e inexperientes”; quer dizer,
não demonstravam ser peritos em teologia, mas pareciam ser homens
quaisquer. 269
c. Reconhecimento. “[Os líderes] sabendo que eram homens
iletrados e incultos, admiraram-se; e reconheceram que haviam eles
estado com Jesus”. Os membros da corte começaram a ver semelhança

269
Consulte-se Bauer, p. 370; Thayer, p. 297.
Atos (Simon J. Kistemaker) 231
entre Jesus e os apóstolos. Os mestres judeus (muitos dos quais
pertenciam ao Sinédrio) maravilharam-se quando Jesus ensinou
abertamente no templo durante a Festa dos tabernáculos. Perguntaram-
se: “Como foi que este homem adquiriu tanta instrução, sem ter
estudado?” (Jo 7:15, NVI). Além disso, Pedro e outro dos discípulos de
Jesus tinham estado no juízo contra Jesus no pátio do sumo sacerdote, e
“o outro discípulo … era conhecido do sumo sacerdote” (Jo 18:16).
O sumo sacerdote e os outros membros da corte estavam atônitos e
viram a óbvia relação entre Jesus e Seus discípulos (veja-se Mt 26:71; Lc
22:56). O iletrado Jesus, perito em expor as Escrituras, tinha adestrado
os Seus discípulos para que continuassem a obra interrompida por Sua
morte prematura. 270 Os do Sinédrio tinham tirado Jesus da terra
crucificando-O; mas agora se defrontavam com os porta-vozes de Jesus,
os quais possuíam a mesma coragem que tinha demonstrado seu mestre.
Além disso, embora os membros da corte evitaram usar o nome Jesus
durante o juízo, agora tiveram que reconhecer a Jesus por Seus
discípulos. Por isso dirigiram toda sua raiva contra Pedro e João, Seus
seguidores.
14. Vendo com eles o homem que fora curado, nada tinham que
dizer em contrário.
Os membros do Sinédrio não puderam fazer nada, porque diante
deles estava a evidência incontestável do mendigo curado. O homem
estava junto aos apóstolos como uma prova viva do milagre de cura que
tinha tido lugar no templo no dia anterior. Lucas pinta o homem de pé;
quer dizer, parado sobre tornozelos e pés firmes. Mais adiante acrescenta
a informação de que o mendigo tinha mais de quarenta anos (v. 22).
Os membros do Sinédrio estavam perplexos, porque na verdade não
tinham um caso. Davam-se conta que Pedro tinha derrubado o juízo
numa indagação a respeito de um homem que tinha sido curado. E a
pessoa em questão apresentava viva evidência permanecendo de pé ao
270
Cf. Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The Expanding Church, 2a. ed. (Grand Rapids:
Zondervan, Academie Books, 1986), p. 93. E veja-se também Rackham, Acts, p. 59.
Atos (Simon J. Kistemaker) 232
lado dos apóstolos. Em duas palavras, os acusadores não tinham nada
que dizer. Jesus havia cumprido Sua promessa feita a Seus discípulos:
“Pois eu lhes darei palavras e sabedoria a que nenhum dos seus
adversários será capaz de resistir ou contradizer” (Lc 21:15, NIV).
15, 16. E, mandando-os sair do Sinédrio, consultavam entre si,
dizendo: Que faremos com estes homens? Pois, na verdade, é manifesto a
todos os habitantes de Jerusalém que um sinal notório foi feito por eles, e
não o podemos negar.
A corte sente-se desorientada e necessita tempo para refletir.
Portanto, sugere-se um recesso para consulta (cf. At 5:34). O oficial que
preside a sessão ordena aos apóstolos e ao mendigo sair do recinto. Não
é possível determinar quanto tempo tomou o recesso, mas pelo verbo
consultar podemos deduzir que se falou bastante depois das portas
fechadas. É possível que Lucas tenha recebido sua informação de alguma
testemunha presencial (cf. Lc 1:2) que era ou chegou a ser um seguidor
de Jesus. Por exemplo, Nicodemos, “o qual era um deles” (Jo. 7:50),
pôde ter sido a testemunha que deu a Lucas a informação relacionada
com a discussão.
A pergunta: “Que faremos com estes homens?” revela perplexidade
e incapacidade para agir. Discutiam se deveriam soltar os detentos ou
aplicar-lhes alguma sanção. Para eles, soltá-los significava perder
prestígio. Por outro lado, castigá-los por realizar um milagre significaria
correr o risco de despertar a fúria do povo, porque “é manifesto a todos
os habitantes de Jerusalém que um sinal notório foi feito por eles [os
apóstolos]”. Como resultado deste milagre e a pregação de Pedro, a
igreja cristã aumentou em Jerusalém a uns cinco mil homens (v. 4).
O tribunal chegou a uma só conclusão: “Não o podemos negar [o
milagre]”. Em suas confrontações com Jesus, os dirigentes judeus não
puderam apresentar nem provar nenhuma acusação contra Ele. Seus
discípulos também os deixaram sem evidência que provasse algum mau
proceder. Diante desta situação, o Sinédrio é forçado a deixar os
apóstolos em liberdade.
Atos (Simon J. Kistemaker) 233
17. Todavia, para impedir que isso se espalhe ainda mais entre o
povo, precisamos adverti-los de que não falem com mais ninguém sobre
esse nome [NVI].
Depois de sopesar as consequências de qualquer decisão que
tomassem, os membros do Sinédrio resolvem deixar os apóstolos em
liberdade. Puseram-lhes, porém, como condição evitar tudo o que
pudesse influenciar o povo. Note-se, primeiro, que mostraram seu
desprezo pela fé cristã chamando-a “isso”. Segundo, sua pergunta inicial
foi: “Com que poder ou em nome de quem fizestes isto?” (v. 7). Mas a
discussão se centralizou, primeiro no nome e logo no poder. Embora se
dão conta que os apóstolos estiveram com Jesus, recusam mencionar seu
nome. Terceiro, decidem que o nome de Jesus não deve continuar sendo
divulgado e que se deve ordenar aos discípulos que “não falem com mais
ninguém sobre esse nome”. A palavra mais pode entender-se tanto em
termos de grau como de alcance. O crescimento e desenvolvimento da
igreja de Jerusalém fazem preferível interpretar o termo no sentido de
grau. E quarto, os membros do Sinédrio entendem perfeitamente que a
revelação do nome de Jesus constitui a mensagem que os apóstolos
proclamam. 271 Mostram sua aversão para com Jesus ao proibir os
apóstolos de mencionar o Seu nome. E como líderes espirituais de Israel,
rejeitam o conselho de Pedro de encontrar salvação só no nome de Jesus
(v. 12). Embora saibam que não podem castigar a Pedro e João por sua
coragem de pregar a respeito de Jesus, estão decididos a deter a
divulgação do nome de Jesus.

Considerações práticas em At 4:13–17


Deus usa dois pescadores galileus para confundir os proeminentes
juízes da corte suprema de Israel. No salão da justiça, Pedro proclama o
evangelho de Cristo e diz aos dirigentes religiosos e políticos de seu

271
Veja-se F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe
Testament, 2 vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, p. 138.
Atos (Simon J. Kistemaker) 234
tempo que não podem encontrar a salvação senão através do nome de
Cristo Jesus. Este nome foi dado por Deus aos homens de todo o mundo.
A pessoa amaldiçoa, ou ignora, ou adora o nome de Jesus. No serviço a
Satanás, milhões usam este nome para amaldiçoar; incontáveis pessoas
procuram passar por alto este nome, porque creem equivocadamente que
Jesus não existe; e multidões de toda nação e língua louvam o glorioso
nome de Jesus em adorações audíveis ou em orações silenciosas, com
cantos de alegria, e através da palavra falada.
Às vezes, até os próprios cristãos se esquecem do nome de Jesus
fora das quatro paredes de seus templos. E agem como se Jesus não
tivesse participação alguma no mundo no qual eles vivem. Mas Jesus
redimiu o mundo e tudo o que nele há. Este mundo redimido, por isso, é
o ambiente no qual o crente expressa sua gratidão a Jesus. O nome de
Jesus deve ser ouvido em todas as áreas da vida: no salão de justiça e no
palácio de governo; nas salas de aulas das escolas, colégios e
universidades; nos centros comerciais e na indústria; em todos os lugares
do trabalho de cada dia. Deus pôs gente simples em lugares estratégicos
e quer que deem a conhecer o nome de Jesus e Sua mensagem.

Palavras, frases e construções gregas em At 4:13


καταλαβόμενοι — como um segundo aoristo médio do verbo
composto καταλαμβάνω (eu agarro), este particípio necessita a palavra
mente para completar o pensamento.
ἀγράμματοί καί ἰδιῶται — A. T. Robertson tem um comentário
interessante sobre estes dois substantivos que descrevem a Pedro e a
João como homens “iletrados e do vulgo”. Diz ele: “Não é necessário
insistir muito nisso, mas é evidente que 2 Pedro e Apocalipse são
justamente os dois livros do Novo Testamento nos quais o choque com o
grego é mais forte e nos quais se aprecia maior afinidade com o koinê de
alguns papiros pouco cultos. Uma das teorias a respeito da relação entre
1 Pedro e 2 Pedro é que Silvano (1Pe 5:12), foi o escriba de Pedro na
Atos (Simon J. Kistemaker) 235
primeira epístola, e por tal razão o grego é suave e fácil, enquanto em 2
Pedro temos o grego um tanto inculto e não revisado do próprio Pedro.
Esta teoria se baseia no suposto da autenticidade de 2 Pedro, o que foi
muito discutido. Em Atos Lucas também melhora o grego de Pedro em
seus discursos.” 272
ἐπεγίνωσκον — todos os verbos finitos neste versículo estão no
tempo imperfeito, exceto para εἰσιν, a qual é parte de uma declaração
indireta. O imperfeito amostra ação contínua no tempo passado. O verbo
significa “reconhecer” e não “admitir”. 273
ἦσαν — devido ao fato de que o verbo εἰμί está incompleto e carece
dos tempos aoristo, perfeito e mais-que-perfeito, o imperfeito é
pressionado para servir como mais-que-perfeito, “foi”.

e. A absolvição (At 4:18–22)

Pedro e João estão cheios do Espírito Santo, quem os capacita a


falar diante do Sinédrio, refutar os adversários, e proclamar as Boas
Novas. Os membros do Sinédrio, pelo contrário, perderam sua
compostura e estão em perigo de perder a batalha.
18-20. Então, chamando-os novamente, ordenaram-lhes que não
falassem nem ensinassem em nome de Jesus. Mas Pedro e João
responderam: Julguem os senhores mesmos se é justo aos olhos de Deus
obedecer aos senhores e não a Deus. Pois não podemos deixar de falar do
que vimos e ouvimos [NVI].
a. “Chamando-os”. Os membros do Sinédrio urdiram uma trama
para livrá-los do ridículo e dar à sessão do tribunal um aspecto de
legalidade. Ordenam aos apóstolos voltar para a sala e então com
severidade lhes ordenaram que não digam uma palavra mais a respeito
de Jesus ou seguir ensinando em Seu nome. Não lhes anunciam nenhuma
penalidade em caso de desobediência, mas se os apóstolos recusam

272
Robertson, Grammar, pp. 415–16.
273
Veja-se Thayer, p. 237; Bauer, p. 291.
Atos (Simon J. Kistemaker) 236
obedecer a ordem, estariam expondo-se a ser acusados de rebeldia. 274
Não lhes proíbem realizar milagres em nome de Jesus.
b. “Julguem os senhores mesmos”. Tanto Pedro como João reagem
ao veredito e com firmeza apelam à autoridade mais alta que governa
tanto os membros do Sinédrio como a eles mesmos. Apelam a Deus e
desafiam o tribunal a examinar seu veredito para ver se está ou não de
acordo com a lei de Deus. Perguntam então aos juízes: “Julguem os
senhores mesmos se é justo aos olhos de Deus obedecer aos senhores e
não a Deus”. Isto implica que o veredito é contrário à vontade de Deus,
embora o próprio Sinédrio creia que não o é. Os aguerridos apóstolos
estão preparados para aceitar um veredito, qualquer que seja, mas que
não esteja contra a vontade de Deus. 275 Eles afirmam que os juízes
devem apresentar-se diante da presença de Deus e aprovar um veredito
justo. “A única coisa que os sinedristas devem temer é que o divino Juiz
desaprove suas injustiças”. 276
c. “Obedecer aos senhores e não a Deus”. Neste breve relato, Lucas
omite detalhes relacionados com a vontade de Deus. Poderíamos
perguntar: «Como podia saber a corte se seu veredito forçava os
apóstolos a desobedecer a Deus?» Note-se que um pouco depois, o
honorável fariseu Gamaliel dirige-se a seus colegas no Sinédrio para lhes
dizer que deixem livres os apóstolos. Diz-lhes: “Portanto, neste caso eu
os aconselho: deixem esses homens em paz e soltem-nos. Se o propósito
ou atividade deles for de origem humana, fracassará; se proceder de
Deus, vocês não serão capazes de impedi-los, pois se acharão lutando
contra Deus” (At 5:38–39, NVI). Pedro e João persistem em manter sua
lealdade a Deus em lugar de aos homens, porque sabem que estão sob a
divina autoridade para obedecer-lhe. Exortam os membros do Sinédrio a
274
Consulte-se I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: An Introduction and Commentary, série
Tyndale New Testament Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p.
102.
275
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo:
Clark, 1877), vol. 2, p. 552.
276
R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p. 172.
Atos (Simon J. Kistemaker) 237
fazer o mesmo, porque toda autoridade provém de Deus. Em outra
ocasião, Pedro e seus colegas apóstolos estabeleceram o mesmo
princípio: “Devemos obedecer a Deus antes que aos homens” (At 5:29).
d. “Não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos”. Aqui
está a explicação da cláusula precedente, “Julguem os senhores mesmos
se é justo aos olhos de Deus obedecer aos senhores e não a Deus”. Bem
como os profetas do Antigo Testamento que não puderam deixar de
proclamar a palavra de Deus que lhes tinha sido dada (veja-se Jr 20:9;
Am 3:8; Jon 3:1–3), assim os apóstolos deviam ensinar tudo o que Jesus
lhes tinha mandado (Mt. 28:20). Eles obedecem a Jesus, quem lhes tinha
encarregado ser “testemunhas em Jerusalém, em toda Judeia e Samaria, e
até o fim da terra” (At 1:8). Cheios do Espírito Santo, os apóstolos
devem comunicar e ensinar as boas novas de Cristo Jesus.
21, 22. Depois, ameaçando-os mais ainda, os soltaram, não tendo
achado como os castigar, por causa do povo, porque todos glorificavam a
Deus pelo que acontecera. Ora, tinha mais de quarenta anos aquele em
quem se operara essa cura milagrosa.
Os juízes no Sinédrio não podem contradizer os argumentos dos
apóstolos pelo que rejeitam o caso sem absolver a Pedro e João. Eles
recusam fazer caso às palavras dos apóstolos e, em lugar disso, proferem
surdas ameaças contra eles. Eles percebem que os apóstolos ganharam a
batalha, ao impor sua decisão de obedecer a Deus e não aos homens. Os
juízes não puderam urdir nenhum castigo que pudesse dar como
resultado deter seu trabalho. Têm medo do furor do povo de Jerusalém
que enquanto isso louva a Deus pelo milagre que ocorreu no meio deles.
O pecado tem efeitos ofuscantes no juízo do homem, o que é
evidente nas palavras e atos do Sinédrio. Os apóstolos desafiam seus
juízes a examinar o veredito na presença de Deus, porque eles são
responsáveis diante dEle; enquanto isso, o povo de Jerusalém louva a
Deus pelo milagre que tem feito. De dentro da corte tanto como de fora
dela, os juízes recebem o conselho de olhar a Deus, mas eles, cegos pelo
pecado, rejeitam a exortação e preferem continuar vivendo em escuridão.
Atos (Simon J. Kistemaker) 238
A ênfase nesta passagem não está nem nos apóstolos nem no
Sinédrio, em vez disso Lucas a põe em Deus, quem deseja a obediência e
recebe com agrado os louvores dos homens. Por conseguinte, o louvor
não é porque os apóstolos falam com toda valentia aos setenta e um
membros do Sinédrio. É verdade que eles ganham o pleito nos tribunais
e por isso recuperam sua liberdade, mas o louvor pertence a Deus. Ele
enviou Seu Espírito Santo e fez com que o povo se alegre pelo que
sucedeu. 277
Ninguém pode pôr em dúvida a evidência do milagre. Lucas dá a
razão para isso quando diz que “tinha mais de quarenta anos aquele em
quem se operara essa cura milagrosa”. O homem tinha nascido paralítico
(At 3:2); nunca tinha podido caminhar. Portanto, sendo que as pessoas o
conheciam por anos, não podiam deixar de reconhecer que um milagre
foi operado. A evidência é irrefutável.

Considerações práticas em At 4:18–22


Somos cidadãos do reino de Deus aqui no mundo, e ao mesmo
tempo a maioria de nós somos cidadãos do país de nossa residência.
Como cristãos, esforçamo-nos em obedecer as leis do reino de Deus e de
Sua palavra sabemos que devemos ser obedientes às autoridades por Ele
estabelecidas (Rm 13:1; 1Pe 2:17). Mas quando a lei de Deus e as leis do
homem entram em conflito, enfrentamos um problema. Conhecemos a
afirmação dos apóstolos: “obedecer a Deus antes que aos homens”.
Sabemos que Deus demanda obediência incondicional. Por isso, quando
a intenção de alguma lei civil é contrária à lei de Deus, devemos fazer
manifestas nossas objeções às autoridades governamentais. Por exemplo,
se a lei proíbe aos cristãos pregar e ensinar o evangelho de Cristo, não é
possível obedecer esta lei, mas pelo contrário, devem abrir caminho para
evitar esta proibição.

277
Grosheide, Handelingen der Apostolen, vol. 1, p. 140.
Atos (Simon J. Kistemaker) 239
Numa democracia, os cristãos publicamente devem rejeitar as leis
que tentam forçá-los a desobedecer a Deus. Há muitos passos que se
podem dar: protestar por escrito aos membros do congresso; fazer
anúncios para advertir o público sobre tais leis; organizar movimentos de
oposição, votar contra propostas inaceitáveis, votar para mudar as
autoridades que propugnam tais leis e trabalhar para pôr em seu lugar
legisladores cristãos.
Quando for possível, os cristãos devem recorrer a persuasões de
tipo moral e cívico, a resistência passiva, porém não a força. Devem
refrear-se de tomar a lei em suas próprias mãos. Em lugar disso deverão
usar todos os recursos legais disponíveis para mudar aquilo que se opõe
à lei de Deus. E quando os cristãos estiverem dispostos a obedecer a
mais alta lei, devem estar preparados para pagar o preço, que muitas
vezes se traduz em perseguição. E ao pagar este preço, devem lembrar as
palavras alentadoras de Jesus: “Regozijai-vos se e alegrai-vos, porque é
grande vosso galardão nos céus” (Mt 5:12).

Palavras, frases e construções gregas em At 4:18–22


Versículo 18
τὸ καθόλου — o artigo definido precede o advérbio καθόλου
(completamente, [não] totalmente) como se fora um substantivo. O
artigo não está traduzido. Para uma construção parecida, veja-se τὸ πῶς
no versículo 21.278
μὴ φθέγγεσθαι — a proibição negativa destaca o presente indicativo
do verbo φθέγγομαι (literalmente: eu produzo um som). O substantivo
derivativo é φθόγγος (som).
ἐπὶ τῷ ὀνόματι — veja-se a explicação de At 2:38.

278
Consulte-se Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and
Other Early Christian Literature, trad. y rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press,
1961), #399.3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 240
Versículo 19
εἰ — o particípio introduz um assunto indireto que significa “de
qualquer maneira”.
κρίνατε — o imperativo ativo aoristo de κρίνω (eu julgo) comunica
o conceito de uma ação única.

Versículo 20
οὑ δυνάμεθα … μὴ λαλεῖν — num sentido, as duas negativas se
cancelam uma à outra e apresentam assim um sentido positivo: “Não
podemos deixar de dizer”. 279

Versículo 21
εὑρίσκοντες — este gerúndio ativo de εὑρίσκω (eu acho) expressa
uma conotação causal que explica a ação do verbo precedente principal
ἀπέλυσαν (deixaram-nos ir porque …).
τὸ πῶς — o artigo definido introduz um assunto indireto que
começa com o advérbio πῶς (como). O artigo definido não deve ser
traduzido.

Versículo 22
ἑτῶν … πλειόνων — este é o genitivo de definição, e assim no caso
de τῆς ἰάσεως (de cura). 280
γεγόνει — o tempo mais-que-perfeito ativo de γίνομαι (eu sou,
chegar a ser) com frequência reduz o acréscimo.

279
Ibid, #431.1.
280
Moule, Idiom-Book, p. 38. Veja-se também Robertson, Grammar, p. 498.
Atos (Simon J. Kistemaker) 241
4. As orações da igreja (At 4:23–31)

Embora Lucas não proporcione detalhes a respeito da igreja de


Jerusalém durante a detenção e juízo contra Pedro e João, não se requer
muita imaginação para saber que os crentes estavam em oração contínua.
Oravam pela segurança dos apóstolos, que falassem com valentia, e por
seu imediata libertação.

a. A reunião (At 4:23–24a)

23, 24a. Uma vez soltos, procuraram os irmãos e lhes contaram


quantas coisas lhes haviam dito os principais sacerdotes e os anciãos.
Ouvindo isto, unânimes, levantaram a voz a Deus.
Lucas diz que logo que ficaram em liberdade, os apóstolos correram
para reunir-se com “os irmãos”. Quais eram os irmão? Não podemos
dizer que constituem toda a igreja de Jerusalém, porque teríamos que
pensar em termos de uns cinco mil homens (v. 4). Ao escrever isso,
talvez Lucas tem em mente o grupo original que costumava reunir-se no
cenáculo depois da ascensão de Jesus (veja-se At 1:13–15).
Eis aqui em termos práticos a comunhão dos santos. Os que
estavam orando pela libertação dos presos recebem agora um relatório
completo e detalhado, dado pelos agora expressos. Pedro e João contam
a seus amigos o que tinha ocorrido no tribunal, e as perguntas que os
principais sacerdotes e os anciãos lhes fizeram, e a ameaça que lhes
proferiram. Todos os outros apóstolos estavam interessados em conhecer
as implicações do veredito que Pedro e João receberam.
Note-se que Lucas menciona unicamente os principais sacerdotes e
os anciãos, que representam o Sinédrio e o partido dos saduceus.
Imaginamos que foram estes os que formularam as perguntas durante o
juízo. Em Atos, esta é a primeira vez que Lucas usa a expressão plural
principais sacerdotes, a que inclui as pessoas que pertenciam à família
Atos (Simon J. Kistemaker) 242
do sumo sacerdote (veja-se v. 6) e a outros, incluindo o capitão da
guarda do templo. 281
Note-se que também Lucas diz que os apóstolos informaram a
respeito das perguntas e ameaças da parte dos principais sacerdotes e
anciãos, porém não dizem nada sobre sua própria defesa. Os dirigentes
da igreja de Jerusalém, portanto, olham ao futuro e veem o perigo que os
confronta do próprio Sinédrio. Seu único recurso é refugiar-se em Deus
mediante a oração.
Do amor divino, quem me apartará?
Escondido em Cristo, quem me tocará?
Se Deus justificar, quem condenará?
Cristo por mim advoga, quem me acusará?
— Enrique Turrall

Unidos, os dirigentes da igreja oram a Deus, como o fizeram depois


da ascensão de Jesus (At 1:14). Encontram as forças e a valentia na
íntima comunhão com Deus; porque reconhecem que Deus governa
neste mundo e que Ele desfará as ameaças dos fariseus.

b. A oração (At 4:24b–28)

24b. E disseram: Tu, Soberano Senhor, que fizeste o céu, a terra, o


mar e tudo o que neles há.
A oração que Lucas transcreve é tipicamente judaica e é modelada
sobre a petição feita por Ezequias quando o exército assírio sitiou
Jerusalém (Is 37:16–20). 282 Os dirigentes da igreja de Jerusalém agora

281
O plural principais sacerdotes aparece frequentemente em Atos. Veja-se 5:24; 9:14, 21; 22:30;
23:14; 25:15; 26:10, 12. Consulte-se também a Jürgen Baehr, NIDNTT, vol. 3, p. 40; Joachim
Jeremias, Jerusalem in the Time of Jesus (Filadélfia: Fortress, 1969), p. 179; e Schürer, History of the
Jewish People, vol. 2, pp. 233–36.
282
Embora o termo grego despotēs (soberano Senhor) é aplicado indistintamente a Deus e a Cristo,
não se deve fazer nenhuma distinção. Os cristãos primitivos não distinguiam entre Deus e Cristo
quando usavam a expressão kyrios (Senhor).
Atos (Simon J. Kistemaker) 243
oram e se dirigem a Deus como o Soberano Senhor (veja-se Lc 2:29; 2Pe
2:1; Jd 4; Ap 6:10). Ele é quem governa soberanamente sobre tudo o que
tem feito. Ele é o Criador do universo e o mestre de todos os Seus
servidores (note-se o termo servo no versículo seguinte [v. 25]).
Quando os apóstolos oram, reconhecem a Deus como o criador do
“céu, a terra, o mar e tudo o que neles há”. De fato, citam do Antigo
Testamento, onde há numerosos lugares em que se registram estas
palavras (Êx 20:11; Ne 9:6; Sl 146:6; Is 37:16). Eles conhecem a
verdade fundamental que Deus, quem criou o céu, a terra, o mar e tudo o
mais, tem o direito soberano de governar Sua criação. 283 Deus governa
em Sua criação; portanto, jamais o homem poderá elevar-se contra o
Soberano Senhor.
25. que disseste por intermédio do Espírito Santo, por boca de Davi,
nosso pai, teu servo: Por que se enfureceram os gentios, e os povos
imaginaram coisas vãs?
As traduções diferem quanto à forma da introdução desta citação do
Salmo 2:1–2.284 A diferença na tradução se deriva do texto grego que
nesta formulação parece ter vários substantivos soltos. A versão que
omite a frase pelo Espírito Santo não está baseada nas mais antigas e
confiáveis prova textuais. 285 Os tradutores preferiram manter a frase,
porque mesmo quando o grego pudesse ser confuso, o sentido da frase é
claro. O texto diz que Deus falou pelo Espírito Santo (cf. com 1Pe 1:11;
2Pe 1:21) através da boca de Davi. Uma frase similar, mas em grego
simples aparece em At 1:16. Os primeiros cristãos tinham a inclinação

283
Veja-se Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 85.
284
Veja-se KJV. A NASB tem, “quem pelo Espírito Santo, pela boca de nosso pai, teu servo, disse”, e
assinala numa nota à margem que a palavra por não aparece no grego.
285
Metzger analisa esta frase difícil em detalhe e conclui em que “o mais antigo texto disponível” é
considerado “mais aproximado do que o autor escreveu originalmente que qualquer outra forma de
texto existente”. Textual Commentary, pp. 321–23.
Atos (Simon J. Kistemaker) 244
286
de referir-se a Davi e recorrer a citações do Saltério. Na fórmula
introdutória, Davi é chamado “nosso pai, teu servo”.
A citação do Salmo 2:1–2 é apta à situação porque os apóstolos
sentem o poder da hierarquia religiosa e das autoridades judaicas como
uma tenaz que se fecha sobre eles. Com o salmista perguntam: “Por que
se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram coisas vãs?” O texto
segue a tradução da Septuaginta, e por isso difere levemente da tradução
que segue o texto hebraico: “Por que se enfurecem as nações?” A ênfase
cai na palavra vãs, quer dizer, por que as nações conspiram em vão. Os
inimigos de Deus creem que venceram a igreja de Deus. Crucificam a
Jesus e põem no cárcere os apóstolos. Fazem-no impunemente e mesmo
assim sua ação é inútil. Assim como Davi suportou a perseguição às
mãos de Saul e experimentou o cuidado protetor de Deus, os apóstolos
sabem que o Senhor não os abandonará (Mt 28:20b). O Salmo 2 revela
as expressões completamente insensatas das nações amotinando-se
contra Deus. Todos os seus esforços em tal sentido são definitivamente
frustrados. O reino do Filho de Deus será para sempre.
26. Levantaram-se os reis da terra, e as autoridades ajuntaram-se à
uma contra o Senhor e contra o seu Ungido.
Davi é um tipo de Cristo. Ele vê as rugidoras nações de seu tempo
conspirando e amotinando-se contra Deus; opõem-se ao Senhor Deus e
se declaram inimigas de Seu ungido. Davi é o rei que foi ungido pelo
profeta Samuel, como Deus o disse. Desta maneira Davi chega a ser o
ungido do Senhor. Quando as nações conspiram contra Davi, estão
conspirando contra Deus. Quando os reis se levantam contra Davi, estão
se levantando contra Deus. E claro, todos os seus esforços se verificam
inúteis. Davi, no entanto, é só um sinal que aponta a Cristo. Davi fala
profeticamente a respeito de Jesus Cristo, quem é o Rei e o Ungido.

286
Em Atos, o nome Davi aparece onze vezes (1:16; 2:25, 29, 34; 4:25; 7:45; 13:22 [duas vezes], 34,
36; 15:16). E as citações diretas do Saltério são 2:1–2 (At. 4:25–26); 2:7 (At. 13:33); 16:8–11 (At.
2:25–28); 16:10 (At. 13:35); 69:25 (At. 1:20); 109:8 (At. 1:20); 110:1 (At. 2:34–35); 146:5–6 (At.
4:24). É difícil saber quantos destes salmos foram compostos por Davi.
Atos (Simon J. Kistemaker) 245
Os apóstolos veem em Cristo, a quem Deus ungiu e instalou como
rei de seu santo monte Sião (Sl 2:2, 6) o cumprimento deste salmo em
particular (Sl 2). Da metade do século I antes de Cristo, o Salmo 2 foi
interpretado como referindo-se ao Messias. Por exemplo, o contexto dos
Salmos de Salomão 17:26 tem uma referência messiânica ao Salmo
2:9 287 Nos Rolos do mar Morto há um documento que data daqueles
tempos que inclui o Salmo 2 numa coleção de passagens messiânicas do
Antigo Testamento. 288
No Novo Testamento, naturalmente, este salmo em particular é
considerado messiânico e é citado frequentemente (veja-se At 13:33; Hb
1:5; 5:5; Ap 2:26–27; 19:15).
27. Porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu
santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios
e gente de Israel.
Os próprios apóstolos dão uma interpretação corrente a esta citação
do salmo porque eles veem seu cumprimento na vida de Jesus. A seguir
temos um gráfica em paralelo da profecia e seu cumprimento:

Salmo 2:1–2 Atos 4:27 [NVI]


se enfurecem os gentios (rugidores) reuniram-se com os gentios

os povos imaginam coisas vãs e com o povo de Israel

os reis Herodes e Pôncio Pilatos

da terra nesta cidade

contra contra

287
Consulte-se James H. Charlesworth ed., The Old Testament Pseudepigrapha, 2 vols. (Garden City,
N.Y.: Doubleday, 1983), vol. 2, p. 643.
288
Y.Yadin, “A Midrash on 2 Sam. 7 and Ps. 1–2 (4 Q Florilegium)”. IsrExJ 9 (1959): 97.
Atos (Simon J. Kistemaker) 246
o Senhor e contra o teu santo servo Jesus

o seu Ungido a quem ungiste.

De fato, dizem os primeiros cristãos, a verdade é que Jesus cumpriu


as palavras messiânicas do Salmo 2, como qualquer um que foi
testemunha do juízo e da morte de Jesus pode testemunhar. Durante o
ministério de Jesus, Herodes Antipas era tetrarca da Galileia e Pereia e o
povo o reconhecia como rei (Mt 14:9; Mc 6:14, 22, 25–27). O
governador que representava a autoridade de Roma era Pôncio Pilatos,
nomeado por Tibério César. Dos quatro evangelistas, só Lucas faz
referência ao incidente que protagoniza o juiz Pôncio Pilatos ao enviar a
Jesus a Herodes Antipas, que se encontrava em Jerusalém pelos dias do
juízo a Jesus. Herodes se alegrou de ver Jesus, porque esperava que
operasse um milagre em sua presença. Quando Jesus não satisfez o seu
desejo, enviou-o de volta a Pilatos. Lucas termina o relato deste episódio
com as seguintes palavras: “Naquele mesmo dia, Herodes e Pilatos se
reconciliaram, pois, antes, viviam inimizados um com o outro” (Lc
23:12).
Até se pudéssemos identificar a Pilatos com os gentios, só como
uma inferência poderíamos ver Herodes e Israel como “o povo” 289 No
texto grego este termo aparece como um plural para corresponder às
palavras do Salmo 2. Note-se também que os apóstolos chamam Jesus
servo, que parece ser uma forma bastante comum de referir-se a Jesus e
que reflete as bem conhecidas passagens em Isaías (Is 52:13–15; 53:1–
12). De fato, no contexto de seu sermão no Pórtico de Salomão, Pedro se
refere em duas ocasiões a Jesus como “servo” (At 3:13, 26). Na oração
da igreja de Jerusalém este termo também se aplica a Jesus (vv. 27, 30).
Deus ungiu a Jesus com o Espírito Santo no momento de Seu batismo no

289
Consulte-se Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 799.
Atos (Simon J. Kistemaker) 247
rio Jordão (cf. At 10:38; Is 61:1; Mt 3:16). Assim, em cumprimento da
profecia, os gentios e o povo de Israel ficam contra Deus e Seu ungido.
28. Para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito
predeterminaram.
Os apóstolos veem o cumprimento do Salmo 2 de uma perspectiva
divina. Eles veem que Deus predestinou com sua “mão e propósito” a
ação tomada pelo povo que trouxe Jesus ao juízo e à morte. Repetem a
observação feita por Pedro em seu discurso do Pentecostes: “Sendo este
[Jesus] entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o
matastes, crucificando-o por mãos de iníquos” (At 2:23; veja-se também
At 3:18).
Os apóstolos reafirmam a doutrina da predestinação, o que fazem
especificamente em suas orações. “Este é o único lugar no Novo
Testamento onde o verbo destinado (proōrizō) aparece fora das epístolas
paulinas”. 290 Deus permitiu que Herodes, Pilatos, e o povo fizessem
juízo contra Seu Filho e O matassem. Note-se a ordem das palavras no v.
28. Os judeus e os gentios fizeram (e só isso) o que Deus com Seu poder
(primeiro) e conforme Sua vontade (segundo) tenha destinado. Ele não
forçou os adversários de Jesus a envolver-se em atos de violência contra
Sua vontade, porque a evidência mostra que eles assumiram toda a
responsabilidade. Em vez disso, Deus lhes permitiu conspirar contra Ele
e desta maneira poderia obter a salvação para o Seu povo.

Palavras, frases e construções gregas em At 4:25 e 27


Versículo 25
ὁ … εἰπών — a frase foi construída num grego bastante complicado
comparada com o mesmo pensamento expresso tão delicadamente em At
1:16. Ao longo dos séculos, foram sugeridas numerosas emendas, que
vão da eliminação da frase pelo Espírito Santo até assumir a presença de
290
Guthrie, New Testament Theology, p. 618. Veja-se George E. Ladd, A Theology of the New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 330.
Atos (Simon J. Kistemaker) 248
um texto original aramaico que diz: “que nosso pai Davi, teu servo, disse
por boca do Espírito Santo”. 291

Versículo 27
ἐπιʼ ἀληθείας — esta frase expressa realidade “em vez de mera
aparência”. Significa “de acordo com a verdade”. 292

c. A petição e a resposta (At 4:29–31)

29, 30. Agora, Senhor, olha para as suas ameaças e concede aos teus
servos que anunciem com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto
estendes a mão para fazer curas, sinais e prodígios por intermédio do
nome do teu santo Servo Jesus.
Estranhamente, a comunidade de crentes não diz nem uma palavra
de gratidão a Deus por libertar Pedro e João da prisão e do tribunal. Pelo
contrário, pede ao Senhor rebater a ameaça do Sinédrio concedendo a
seus servos “toda intrepidez” para proclamar o evangelho de Cristo. Não
pede proteção da perseguição que inevitavelmente seguirá à proclamação
das Boas Novas. Eles percebem que Deus está no controle de cada
situação, tal como o declararam com o Salmo 2. Estão seguros que ele
não permitirá que seu plano e propósito seja frustrado pelos governantes
do povo.
A palavra intrepidez aparece três vezes neste capítulo (At 4:13, 29,
293
31), e o conceito é proeminente em Atos. Os apóstolos sabem que
devem pedir a Deus intrepidez cada vez que vão proclamar Sua palavra.
Eles se dão conta que quando se ativa o dom da intrepidez o resultado é
assombro (v. 13), rixa e divisão (At 14:1–4). Quando o Senhor concede

291
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
195.
292
Bauer, p. 36.
293
Veja-se também At 2:29; 28:31. O verbo falar francamente, abertamente aparece (em várias
formas de tradução) em At 9:27 (valorosamente); At 26:26 (com toda confiança).
Atos (Simon J. Kistemaker) 249
este dom a Seus servos, habilita-os a falar com eloquência e eficácia num
meio hostil. Confirma sua solicitude dando-lhes a capacidade de curar o
doente e “levar a cabo sinais miraculosos e maravilhas”. 294
Embora o Sinédrio se despeça de Pedro e a João com a proibição de
falar ou ensinar a ninguém no nome de Cristo Jesus (v. 18), não lhes
proíbem realizar milagres de curas. Se tivessem dito aos apóstolos não
curar os doentes, teriam negado o milagre de cura que o mendigo
experimentava. Incapazes de desconhecer aquele testemunho vivo, só
negaram aos apóstolos a liberdade de falar no nome de Jesus.
Estes, no entanto, rogavam a Deus que curasse a todos os afligidos.
Pedem a Ele que deixasse agir Seu poder restaurador através de estender
a mão e tocar os doentes. É Deus, em todo caso, e não os homens, quem
realiza os milagres. Milagres e maravilhas são sinais que confirmam a
pregação das Boas Novas. Ocorrem no nome de Jesus Cristo e ajudam a
proclamação desse nome. Assim, os adversários não podem negar a
evidência dos milagres. A oração dos apóstolos finaliza com a frase:
“por intermédio do nome do teu santo Servo Jesus” (v. 30).
31. Tendo eles orado, tremeu o lugar onde estavam reunidos; todos
ficaram cheios do Espírito Santo e, com intrepidez, anunciavam a palavra
de Deus.
Nem todas as orações recebem uma resposta imediata, mas neste
caso Deus fortalece a fé dos crentes dando indicação de que os ouviu.
Isto nos lembra a experiência de Paulo e Silas no cárcere de Filipos.
Enquanto eles oravam e cantavam hinos de louvor a Deus no meio da
noite, de repente um violento tremor sacudiu os alicerces da prisão (At
16:26). De forma semelhante, Deus mostrou Sua divina aprovação aos
apóstolos, fazendo tremer a casa onde estavam reunidos e para obter tal
efeito, parece que usou um tremor. Deus deu aos apóstolos um sinal que
assim como tinha sacudido a casa com um tremor assim teria que mover
ao mundo com o evangelho de Cristo.

294
Heinrich Schlier, TDNT, vol. 5, p. 882. Consulte-se Hans-Christoph Hahn, NIDNTT, vol. 2, p. 736.
Atos (Simon J. Kistemaker) 250
Observemos o paralelo entre o Pentecostes e este acontecimento.
No dia do Pentecostes, um vento violento soprou e encheu a casa onde
os crentes estavam sentados (At 2:2). Em seguida, viram-se línguas
como de fogo que posaram sobre cada um deles; “ficaram cheios do
Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito
lhes concedia que falassem” (At 2:4). Depois da libertação de Pedro e
João, os cristãos oraram. Então o lugar onde se encontravam reunidos
tremeu; “todos ficaram cheios do Espírito Santo e, com intrepidez,
anunciavam a palavra de Deus”.
As diferenças entre ambos acontecimentos são: a) o sopro do vento
versus o tremor do lugar onde estavam reunidos; b) a manifestação
externa de línguas de fogo num caso e a manifestação interna de
intrepidez no outro; por último, c) a habilidade de falar outros idiomas
no Pentecostes e a intrepidez ao falar da palavra de Deus agora.
As semelhanças são chamativas: o Espírito Santo vem em resposta
à oração (At 1:14; 4:24–30); o Espírito enche a todos os presentes (At
2:4; 4:31); e todos proclamam as maravilhas da palavra de Deus (At
2:11; 4:31). Os crentes recebem um novo derramamento do Espírito
Santo, que os enche de intrepidez de maneira que proclamam as Boas
Novas. Lucas não diz aos que expuseram os discípulos com grande
intrepidez a palavra de Deus; talvez foi primeiro em seu próprio círculo e
logo, em aberta oposição com a ameaça feita pelo Sinédrio, a outros.
Desta maneira, o termo intrepidez é extremamente significativo e
muito apropriadamente descreve o falar dos apóstolos e de seus
colaboradores. Eles são os que proclamam a “palavra de Deus”, a qual,
no contexto de Atos é um sinônimo do evangelho de Jesus Cristo. Lucas
nos dá um vislumbre de sua intrepidez quando escreve mais adiante: “E
todos os dias, no templo e pelas casas, não cessavam de ensinar e pregar
a Jesus Cristo” (At 5:42).
Atos (Simon J. Kistemaker) 251
Palavras, frases e construções gregas em At 4:29–31
Versículo 29
καὶ τὰ νῦν — esta frase aparece só em Atos (At 4:29; 5:38; 20:32;
27:22) e significa “na presente situação”.
ἔπιδε — o aoristo imperativo ativo do verbo composto ἐφοράω (eu
olho, considero). O verbo é diretor.
πάσης — substantivo que carece do artigo definido, este adjetivo
quer dizer “tudo”, quer dizer, “com toda franqueza”. 295

Versículo 30
ἐν τῷ — a preposição ἐν seguida pelo artigo definido τῷ e o
presente do infinitivo é uma das construções favoritas de Lucas. Esta
combinação vale para ambos os infinitivos: ἐκτείνειν e γίνεσθαι. 296

Versículo 31
δεηθέντων — o aoristo particípio passivo com o pronome αὑτῶν
forma a construção genitiva absoluta. O particípio se deriva do verbo
δέομαι (eu peço, rogar).
ἐσαλεύθη — de σαλεύω (mover), este verbo é mais fraco em seu
significado que o verbo σείω (eu faço tremer, agitar). O aoristo passivo
implica que Deus é o agente.
ἐλάλουν — note que Lucas usa o tempo imperfeito para indicar a
ação contínua do verbo no passado. Com este verbo Lucas descreve a
ação de falar.
τὸν λόγον τοῦ θεοῦ — “a palavra de Deus”. Em Atos, esta
construção pode denotar o uso do genitivo tanto subjetivo como

295
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #275.3.
296
Robertson, Grammar, p. 417.
Atos (Simon J. Kistemaker) 252
objetivo; a palavra que pertence a Deus, e a palavra que é falada para
Deus.

5. O amor dos santos (At 4:32–37)

Lucas descreve como os membros da igreja de Jerusalém viviam


juntos, em unidade. Era evidente a harmonia que prevalecia entre os
irmãos, e os apóstolos continuavam pregando a ressurreição de Cristo
Jesus. Juntos eles cuidavam de todas as necessidades espirituais e
materiais dos crentes, de tal modo que a pobreza foi eficazmente abolida
dentre eles.

a. A comunidade de bens (At 4:32-35)

32. Da multidão dos que creram era um o coração e a alma.


Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que
possuía; tudo, porém, lhes era comum.
a. “Da multidão dos que creram era um o coração e a alma”. Eis
aqui um quadro eloquente da extraordinária unidade da comunidade
cristã primitiva. Apesar da oposição do Sinédrio (ou talvez devido a ela),
os crentes dão forma a uma comunidade em que é “um o coração e a
alma”. Os crentes, cujo número era de uns cinco mil homens (v. 4),
mantêm a unanimidade devido à presença do Espírito Santo em seu
meio, a pregação da Palavra de Deus, e a disposição de compartilhar
seus bens uns com os outros. Ainda se fôssemos capazes de explicar a
unidade da comunidade cristã, teríamos que reconhecer que este
fenômeno num grupo tão grande de pessoas é realmente único. 297
La frase um o coração e a alma é tipicamente hebraica. Em
Deuteronômio a encontramos com bastante frequência 298 e é parte do
resumo do Decálogo: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu
297
Consulte-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 128.
298
Veja-se Dt. 6:5; 10:12; 11:13; 13:3; 26:16; 30:2, 6, 10.
Atos (Simon J. Kistemaker) 253
coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento” (Mc 12:30). Os
primeiros cristãos expressavam seu amor de forma horizontal para com
seus irmãos e irmãs necessitados. Assim davam cumprimento à segunda
parte desta síntese: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc
12:31).
b. “Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas
que possuía; tudo, porém, lhes era comum”. Enfaticamente, Lucas diz
que ninguém na comunidade alegava ser dono de suas posses. O termo
ninguém sublinha a unidade prevalecente na igreja de Jerusalém. Num
sentido, Lucas repete o que já disse que ocorreu como resultado do
sermão de Pedro no Pentecostes: “Todos os que creram estavam juntos e
tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens,
distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha
necessidade” (At 2:44–45).
Mais uma vez ele ilustra a unidade entre os cristãos primitivos,
preocupando-se com o cuidado dos pobres entre eles. Fazem-no
compartilhando suas posses materiais e demonstrando sua boa vontade
ao não guardar como exclusivamente suas aquelas coisas. Estão bem
conscientes da instrução divina de que não houvesse pobre entre o povo
de Deus (cf. Dt 15:4). Isto é, devido às abundantes bênçãos de Deus para
com Seu povo, a comunidade cristã devia abolir a pobreza.
Note-se que os apóstolos recomendam o compartilhar voluntário
das posses, não a abolição do direito de propriedade. Como uma
comunidade, os cristãos são diferentes da comunidade chamada Qumran,
que estava localizada perto da costa noroeste do mar Morto. Os essênios
que viviam nessa comunidade renunciavam ao direito de propriedade
particular, estabeleciam um fundo comum, e todos os membros da
comunidade recebiam uma soma igual para atender a suas
necessidades. 299 Os cristãos em Jerusalém, contudo, viviam sob o

299
Josefo Guerra judaica 2.8.3 [122–23]. Entre os Rolos do mar Morto veja-se IQS 1.11–13. Para
informação adicional, consulte-se Haenchen, Acts, pp. 234–35; e Richard N. Longenecker, The Acts of
Atos (Simon J. Kistemaker) 254
princípio de compartilhar voluntariamente suas posses para fortalecer a
unidade e harmonia da comunidade. Os essênios agiam em resposta a
uma regra humana de compulsão; os cristãos agiam em obediência à lei
do amor de Deus. Os cristãos praticavam o uso comum de suas posses,
não a co-propriedade.
33. Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da
ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça.
As necessidades materiais e as espirituais caminham juntas. A
comunidade inteira se ocupa na ajuda material mútua, enquanto os
apóstolos anunciam o evangelho de Cristo. Especialmente depois da
confirmação de Deus em resposta a suas orações, os apóstolos não
podem guardar silêncio e pregam com ousadia a ressurreição do Senhor.
Lucas diz que a pregação fazia-se com grande poder. A expressão com
grande poder não se refere aos milagres de cura e sim à plenitude do
Espírito Santo que fazia com que os apóstolos pregassem corajosamente
(cf. v. 30). A comunidade demonstra um vibrante poder ao respaldar os
apóstolos, que decididamente se esquecem das ameaças do Sinédrio.
Mais uma vez, Lucas recalca um dos temas básicos da pregação
apostólica: “os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor
Jesus” (veja-se At 1:22; 3:15, 26; 4:2, 10). Eles tinham estado
pessoalmente com Jesus depois de Sua ressurreição; Ele é seu Senhor,
como Lucas o assinala. Em obediência a Seu Senhor, os apóstolos dão
testemunho de Sua ressurreição (At 2:36).
A parte final deste versículo (v. 33) provê um equilíbrio entre as
expressões com grande poder e com abundante graça. Qual é o
significado de “graça”? Alguns tradutores entendem o termo no sentido
de “a superabundante bênção de Deus” sobre todos os crentes. Esta é
uma interpretação livre do texto, particularmente porque este não inclui a
palavra Deus. Outros tradutores interpretam o termo graça como
“favor”, no sentido que os residentes de Jerusalém viam com simpatia os

the Apostles, no vol. 9 de The Expositor’s Bible Commentary, ed. Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand
Rapids: Zondervan, 1981), pp. 311–12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 255
300
cristãos. É evidente que os habitantes de Jerusalém observavam os
cristãos provendo para as necessidades de toda sua comunidade de tal
maneira que não havia pobreza entre eles; ouviam os apóstolos pregar a
doutrina da ressurreição de Cristo; e eram testemunhas do inerente poder
que tinham pela presença do Espírito Santo. Não há dúvidas de que o
público em geral formou uma impressão favorável da comunidade cristã
(cf. At 2:47; 4:21; 5:13).
34, 35. Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que
possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores
correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía
a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade.
Aqui Lucas dá um pouco mais de detalhes a respeito da igreja que
os que deu com relação à comunidade que se formou imediatamente
depois do Pentecostes (At 2:44–45). Ali ele diz que os cristãos tinham
todas as coisas em comum e vendiam suas posses e bens para dar de
comer aos pobres. Aqui ele afirma que a pobreza foi eliminada e que à
medida que as necessidades se apresentam, os crentes que têm
propriedades as vendem e trazem o produto aos apóstolos para distribuí-
lo entre os necessitados. Observemos três aspectos do desenvolvimento
da comunidade cristã: primeiro, a venda de terras e casas ocorre só
quando havia necessidade; segundo, os crentes estabeleceram um fundo
para ajudar as pessoas necessitadas; e terceiro, os apóstolos tinham a
responsabilidade de distribuir os valores reunidos.
É bem pouco o que sabemos sobre a igreja em Jerusalém no período
entre o Pentecostes e a perseguição que se seguiu por ocasião da morte
de Estêvão (At 8:1). Enquanto alguns crentes tinham posses, outros não
as tinham. Mas ninguém na comunidade tinha necessidade, porque os
ricos vendiam suas terras ou casas e generosamente davam o produto aos
apóstolos. Com uma membresia em constante aumento, também cresceu

300
As diversas versões da Bíblia em idioma português usam estas duas ideias: umas, como a “Nova
Versão Internacional”, diz que “grandiosa graça estava sobre todos eles [os apóstolos]” e “eram muito
bem vistos”; outras, como a NTLH dizem que “Deus derramava muitas bênçãos sobre todos”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 256
o trabalho diaconal dos apóstolos. Tinha chegado o momento para
escolher homens qualificados para distribuir o dinheiro aos necessitados
naquela igreja em desenvolvimento.

Palavras, frases e construções gregas em At 4:32–35


Versículo 32
ἔλεγεν — note-se o uso do tempo imperfeito nos versículos 32–35.
O imperfeito revela ação repetida. Note-se também que οὑδὲ εἶς como
sujeito do verbo é mais enfático que o simples οὑδείς (ninguém).

Versículo 33
ἀπεδίδουν — do verbo composto ἀποδίδωμι (eu devolvo), o tempo
imperfeito mostra ação repetida no passado e significa que os apóstolos
pagavam uma dívida.
μεγάλῃ — uma vez no dativo com δυνάμει (poder) e uma vez com
χάρις (graça, favor) no nominativo. A partícula anexa τε vincula as duas
cláusulas intimamente.

Versículos 34–35
πωλοῦντες — o particípio do presente ativo significa repetição;
assim também o tempo imperfeito de ἔφερον (continuam trazendo) e
ἐτίθουν (continuaram pondo).
καθότι ἄν —esta construção aparece duas vezes no Novo
Testamento, ambas em Atos (At 2:45; 4:35). Expressa a ideia
comparativa. A partícula ἄν com o tempo imperfeito de εἶοχεν revela uso
repetitivo. 301

301
Consulte-se Robertson, Grammar, p. 967.
Atos (Simon J. Kistemaker) 257
b. O exemplo de Barnabé (At 4:36–37)

Depois de descrever a generosidade da comunidade cristã em geral,


Lucas nos dá um exemplo específico e descreve um fato na vida de
Barnabé. Ao longo da primeira metade de Atos, Barnabé cumpre o papel
de colaborador, mediador e animador. Aqui, Lucas o apresenta com
relação à ajuda aos necessitados.
36, 37. José, a quem os apóstolos deram o sobrenome de Barnabé,
que quer dizer filho de exortação, levita, natural de Chipre, como tivesse
um campo, vendendo-o, trouxe o preço e o depositou aos pés dos
apóstolos.
Como era costume nos tempos do Novo Testamento, Barnabé tinha
o nome de José, o que certamente era usado por seus familiares. No
Novo Testamento não é conhecido por esse nome; em Atos e nas
epístolas de Paulo ele é Barnabé. Lucas nos diz que os apóstolos lhe
puseram o nome Barnabé; talvez quando foi batizado recebeu um nome
que foi aceito tanto por ele mesmo como pela comunidade cristã. Lucas
também nos dá o significado do nome, que quer dizer filho de
consolação. Em outras palavras, o nome descreve o caráter desta pessoa.
O difícil para nós é traçar a origem do nome Barnabé a uma
significativa expressão aramaica. Naturalmente, a palavra em aramaico
bar significa “filho”. Mas o nome Nabé é desconhecido. Adolf
Deissmann tentou encontrar uma solução usando uma variante da
palavra Nabé. Ele sugere que aceitemos a hipótese filho de Nebo. 302
Outros sugerem a variante filho de um profeta. Mas nenhuma destas
sugestões nos servem de base para “filho de consolação” e não resolvem
a questão básica. Mantém-se o fato de que não foi o pai de Barnabé e
sim o próprio Barnabé conhecido como um consolador. Reconhecemos
que o problema é insolúvel, pelo que só resta entender que o nome foi
posto devido ao seu caráter.

302
Adolf Deissmann, Bible Study (reimpressão; Winona Lake, Ind.: Alpha, 1979), pp. 309–10.
Atos (Simon J. Kistemaker) 258
Barnabé era um levita que havia nascido em Chipre, uma ilha na
parte oriental do mediterrâneo. É possível que tenha vindo a Jerusalém
porque seu primo Marcos e sua tia Maria (a mãe de Marcos) viviam ali
(At 12:12; e Cl 4:10).
Embora a lei de Moisés proibisse que os levitas tivessem
propriedades (Nm 18:20; Dt 10:9), não há confirmação de que os levitas
na dispersão tenham seguido observando esta ordenança. Barnabé pôde
ter chegado a ter essa propriedade através de seu casamento e,
conhecendo as estipulações mosaicas, tenha querido vendê-la. O ponto é
que ele vendeu o campo, que pôde ter estado nas subúrbios de Jerusalém,
e deu o produto aos apóstolos para que se distribuísse entre os pobres.
Ele foi um de muitos que venderam suas posses para atender às
necessidades dos pobres. Mas Lucas destaca a Barnabé pela posição de
liderança que havia de desempenhar mais adiante.

Palavras, frases e construções gregas em At 4:36


ἀπό — com frequência, esta preposição toma o lugar de ὑπό
(por). 303 Com o genitivo expressa mediação.
τῷ γένει —“por raça”. O dativo, como um dativo de referência,
denota maneira.

Resumo de Atos 4
Pedro e João são presos, passam uma noite no cárcere, e no dia
seguinte comparecem diante do Sinédrio.
Os governantes, anciãos e mestres da lei se reúnem para interrogá-
los a respeito da cura que eles efetuaram no dia anterior.
Cheio do Espírito Santo, Pedro se dirige corajosamente a eles e lhes
informa que a cura ocorreu por um ato de boa vontade no nome de Jesus
de Nazaré. Lembra-lhes que foram eles que crucificaram a Jesus, mas

303
Veja-se Bauer, p. 88.
Atos (Simon J. Kistemaker) 259
que Deus O levantou dentre os mortos. Acrescenta que Jesus é a pedra
reprovada pelos homens mas escolhida para ser a cabeça do ângulo; em
nenhum outro, senão nEle, há salvação.
Os do Sinédrio se dão conta da valentia dos apóstolos, notam que
estiveram com Jesus e reconhecem o milagre que fizeram. Proíbem os
apóstolos de falar e ensinar no nome de Jesus. No entanto, Pedro rejeita
o veredito e lhes diz que eles mesmos julguem se deviam obedecer aos
homens em lugar de a deus. Depois que são observados de que não
devem pregar, são deixados livres.
Os crentes se reúnem para orar. Referindo-se às Escrituras, pedem a
Deus que lhes permita pregar a Palavra com valentia. Deus lhes responde
a oração com o sinal externo de um tremor e com o sinal interno da
plenitude do Espírito Santo.
A comunidade de crentes demonstra unidade. Compartilham suas
posses e eliminam a pobreza. Os apóstolos pregam com ousadia a
Palavra de Deus, recebem recursos das propriedades que foram vendidas
e distribuem o dinheiro entre os necessitados. Barnabé vende um terreno
e traz o produto aos apóstolos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 260
ATOS 5
A IGREJA EM JERUSALÉM, parte 4 (At 5:1–42)
6. O engano de Ananias (At 5:1–11)

Depois de nos apresentar o proceder exemplar de Barnabé, Lucas


descreve a ambiciosa conduta de Ananias e Safira. Sem introdução
alguma, relata a história de um homem que com sua mulher decide
vender um campo. Toma o dinheiro e o dá aos apóstolos, dizendo que
esse é o total do produto da venda da propriedade. No entanto, sub-
repticiamente guardam para si parte do dinheiro. A ação não pode ser
qualificada senão como um roubo a Deus (cf. Js 7:1).

a. Ananias (At 5:1–6)

1, 2. Entretanto, certo homem, chamado Ananias, com sua mulher


Safira, vendeu uma propriedade, mas, em acordo com sua mulher, reteve
parte do preço e, levando o restante, depositou-o aos pés dos apóstolos.
Primeiro, Lucas diz que o homem chama-se Ananias, nome judeu
um tanto comum nos Atos e que provavelmente significa “o Senhor é
benigno”. 304 Lucas registra que também o nome pertence a um cristão de
Damasco que é enviado por Jesus a ministrar a Saulo (At 9:10–17) e de
um sumo sacerdote que presidiu o juízo contra Paulo em Jerusalém (At
22:30–23:5).
Logo, o nome Safira aparece uma só vez nas Escrituras, e significa
“bela”. Como o de seu marido, Ananias, este é um nome aramaico.
Ambos pertencem à comunidade cristã em Jerusalém e juntos buscam

304
David Miall Edwards enumera onze pessoas que compartilham o nome Ananias em Atos (At 5:1;
9:10; 23:2) e na literatura apócrifa (Tob. 5:12; Jt. 8:1; 1 Esd. 5:16; 9:21). Veja-se “Ananias” em ISBE,
vol. 1, pp. 120–21; e refira-se a D. Edmond Hiebert, “Ananias”, ZPEB, vol. 1, pp. 153–54.
Atos (Simon J. Kistemaker) 261
louvor e estima da parte dos membros da comunidade. No entanto,
expressamente elaboram um plano para ficar com parte do produto da
venda de sua propriedade, porque amavam mais o dinheiro que a Deus.
Vendem sua propriedade, recebem o dinheiro, guardam para si uma
porção e dão o resto aos apóstolos para que seja distribuído entre os
pobres.
Lucas não dá detalhes, mas apresenta os traços gerais do fato. 305 O
que destaca, no entanto, é a intenção. Quando Ananias chega onde os
apóstolos e lhes entrega o dinheiro, tal como Barnabé o fez
anteriormente, a congregação de forma audível ou silenciosa o louva e o
põe ao mesmo nível que Barnabé. Mesmo quando os crentes não se
apercebem do que está passando, Pedro recebe Satanás agindo no
coração de Ananias.
3, 4. Então, disse Pedro: Ananias, por que encheu Satanás teu
coração, para que mentisses ao Espírito Santo, reservando parte do valor
do campo? Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não
estaria em teu poder? Como, pois, assentaste no coração este desígnio?
Não mentiste aos homens, mas a Deus.
É possível encontrar no Antigo Testamento certos paralelos com
este relato. Na pureza do Paraíso, Satanás entrou para tentar Eva a pecar
contra Deus (Gn 3:1). Seu pecado afetou toda a raça humana. Quando os
israelitas se consagraram a Deus, observando o rito da circuncisão e
celebrando a festa da Páscoa (Js 5:1–12), o pecado de Acã de roubar a
Deus tinha o efeito de destruir a pureza moral de Israel. E assim seu
pecado afetou cada israelita. O engano de Ananias igualmente pôde ter
destruído a pureza da igreja nascente, a qual se manifestava através da
unidade, o amor, e a harmonia. Estes três exemplos nos servem de
advertência.

305
I. Howard Marshall sugere que Ananias e Safira, sentenciados de pecar contra o Espírito Santo,
morrem de um shock por “ter quebrado um tabu”. The Acts of the Apostles: An Introduction and
Commentary, série Tyndale New Testament Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids:
Eerdmans, 1980), p. 111.
Atos (Simon J. Kistemaker) 262
Guiado pelo Espírito Santo, Pedro recebe Satanás operando no
coração de Ananias e por isso lhe faz algumas pergunta certeiras e
categóricas.
a. “Ananias, por que encheu Satanás teu coração?” Por sua própria
experiência, Pedro sabe como Satanás o persuadiu a negar a Jesus três
vezes (Lc 22:31–32) e que pôs no coração de Judas Iscariotes a
determinação de trair o Mestre (Lc 22:3; Jo. 13:2, 27). Dá-se conta que
Satanás tem muito interesse em entorpecer o crescimento da igreja
através de entrar no coração de um crente. De passagem, quando Satanás
vem a um crente para fazê-lo pecar, toda a responsabilidade recai na
pessoa se permitir a Satanás entrar em sua vida. 306 O crente deve estar
prevenido contra o poder do diabo e resisti-lo pela fé (1Pe 5:8–9).
b. “para que mentisses ao Espírito Santo?” Com esta pergunta,
Pedro põe em evidência o coração do pecado de Ananias. Mesmo
aceitando o fato que Satanás influi no coração de cada um de vez em
quando, no caso de Ananias Satanás encheu completamente seu coração.
Como resultado disso, Ananias mentiu ao Espírito Santo, expulsou Deus
de sua vida e pecou conscientemente. 307 Seu pecado, então, não é só uma
mentira, mas sim um engano total. Ele quer que a igreja creia que ele
está doando dinheiro para agradar a Deus. Sua mentira, como o diz
Pedro, não é aos homens, mas sim a Deus (v. 4). Ananias age como se
cresse que Deus não está a par das atividades diárias da igreja e, como
resultado, não tem ideia de seu plano enganoso.
c. “reservando parte do valor do campo?” Como Paulo informa aos
cristãos de Corinto, “Deus ama ao doador alegre” (2Co 9:7); quer dizer,
Deus Se alegra quando um crente dá de coração. Deus deseja que todos
os Seus filhos deem generosamente e não pela força. Faz alguns anos,
assisti a um culto de adoração durante o qual os diáconos passaram os

306
Consulte-se Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p.
136.
307
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance y Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1, pp. 133–34.
Atos (Simon J. Kistemaker) 263
pratos recebendo a oferta. Uma mulher que estava precisamente diante
de mim tomou o prato da mão do diácono e com toda delicadeza lhe
perguntou se podia trocar uma cédula que tinha em sua mão. Quando o
diácono o fez, ela pôs no prato a quantidade que se tinha proposto dar e
conservou o resto. Ela, sem dúvida, foi uma doadora alegre que
contribuiu com o que propôs em seu coração. Igualmente, Ananias pôde
ter guardado parte do produto da venda. Mas porque procurou enganar a
Deus, Pedro teve que lhe fazer mais algumas perguntas.
d. “Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido, não
estaria em teu poder?” Estas perguntas revelam que os primeiros cristãos
não praticavam a possessão comunitária das propriedades, mas sim só
compartilhavam seus bens para eliminar a pobreza entre os crentes (cf.
At 2:44–45; 4:32, 34–35).
A resposta de Ananias a Pedro deve ter sido afirmativa. Como a
parte culpada, Ananias não pode dizer uma palavra. Guarda silêncio
(compare-se Mt 22:12) porque cometeu um grave pecado contra Deus e
agora enfrenta o castigo.
O pecado é um mistério que faz com que o homem aja
irracionalmente. Se Ananias tivesse sido honesto e franco, ele deveria ter
sabido que a propriedade e, depois de sua venda, o dinheiro pertencia a
ele enquanto estivesse em sua possessão. Ele pôde ter feito com ele o
que lhe tivesse agradado e não teria tido que dar contas a ninguém. 308 No
entanto, deixou que Satanás enchesse seu coração, recusou adorar a Deus
e pelo contrário fez do dinheiro o objeto de sua adoração. Embora
estivesse servindo a seu ídolo, ele ainda desejava o louvor do povo de
Deus por sua aparente generosidade fingida. Deve ter sabido que o
homem não pode servir a dois senhores, a Deus e ao Dinheiro (Mt 6:24;
Lc 16:13).
e. Como, pois, assentaste no coração este desígnio? Não mentiste
aos homens, mas a Deus”. Alguns antigos manuscritos substituem as

308
B. J. Capper, “The Interpretation of Acts 5:4”, JSNT 19 (1983); 117–31.
Atos (Simon J. Kistemaker) 264
palavras este desígnio por “isso”. Ananias cometeu uma maldade aos
olhos de Deus e do homem. Ele devia ter sabido que Deus é verdade e
luz e que a mentira tem sua origem no diabo.
Pedro chega à conclusão de que Ananias procurou mentir ao
homem, mas terminou mentindo a Deus. O homem sempre está diante de
Deus, quem tudo vê (veja-se Pv 15:3). Pedro não faz distinção entre
Deus e o Espírito Santo. No versículo 3, afirma que Ananias mentiu ao
Espírito Santo, e no versículo seguinte diz que a mentira foi a Deus.
Pedro, portanto, identifica o Espírito Santo com Deus. Num versículo
mais adiante (v. 9), faz referência ao Espírito do Senhor. Para ele, então,
o Espírito Santo é Deus; é a terceira pessoa da Trindade: Pai, Filho, e
Espírito Santo.
5, 6. Ouvindo estas palavras, Ananias caiu e expirou, sobrevindo
grande temor a todos os ouvintes. Levantando-se os moços, cobriram-lhe
o corpo e, levando-o, o sepultaram.
a. “Ouvindo estas palavras, Ananias caiu e expirou”. O grego indica
que enquanto Ananias escutava as palavras que falava Pedro, caiu ao
solo e expirou. Aqui temos um caso em que o juízo de Deus é executado
imediatamente. Há outros casos nas Escrituras em que os pecadores são
castigados com a morte súbita. Por exemplo, quando Nadabe e Abiú, os
filhos de Arão ofereceram fogo estranho ao Senhor, Deus lançou contra
eles fogo que os queimou, e morreram imediatamente (Lv 10:1–2).
Quando Uzá procurou sujeitar a arca de Deus que tinha sido posta numa
carreta em vez de ser trasladada pelos sacerdotes, e estendeu a mão para
ela, Deus o castigou de maneira que morreu ali mesmo, ao lado da arca
(2Sm 6:7). O veredito de Deus contra Ananias (e Safira) também
resultou numa execução sumária. Em cada exemplo, a pena capital
aplicada por decisão divina transmite uma verdade fundamental: o povo
de Deus deve saber que existe para servir a Ele e não o contrário.
Foi Deus, não Moisés, quem matou os filhos de Arão (Lv 10:2) e
foi Deus, não Davi, quem executou Uzá (2Sm 6:7). Portanto, Deus usa
Pedro como seu porta-voz, mas é o próprio Deus quem executa a pena de
Atos (Simon J. Kistemaker) 265
morte contra Ananias. No caso do Safira, Pedro dita o veredito que Deus
executa (v. 9). A ênfase no relato da morte de Ananias não cai em certos
fatores físicos e psicológicos que resultam num ataque de coração, mas
na execução do veredito de Deus (cf. Is 11:4).
b. “sobrevindo grande temor a todos os ouvintes”. Deus quer que
sua igreja se mantenha pura e sem mancha. Ele tira a culpa pelo pecado
de Ananias, tirando ele e sua esposa do meio da comunidade dos cristãos
primitivos. Se Deus tivesse deixado este pecado sem seu castigo, a igreja
não teria tido defesa contra a acusação de que Deus tolerava um engano
contra Ele e contra Seu povo. Agora, no começo de Seu ministério, a
igreja está livre de tal acusação.
Com frequência Lucas descreve o medo e o pavor do povo (At
2:43; 5:11; 19:17). Os crentes que viram a morte de Ananias ficaram
cheios de temor, e outros que ouviram a notícia por boca destas
testemunhas foram também presa de um santo pavor. Todos entenderam
aquela verdade de que “a vingança de Deus é terrível contra os
enganadores”. 309
c. “Levantando-se os moços”. A Escritura não nos diz que os jovens
tenham tido um ofício especial ou que a tarefa de sepultamento tenha
sido confiada a eles. Na primeira epístola de Pedro encontramos outra
passagem que usa a expressão jovens. Ali Pedro exorta os jovens a “estar
sujeitos aos anciãos” (1Pe 5:5; e 1Tm 5:1; Tt 2:1–6).
Os costumes e práticas daqueles tempos diferem do que é
convencional no dia de hoje (em climas frios). Devido ao calor em
Israel, os sepultamentos tinham lugar no mesmo dia que a pessoa morria.
Especialmente quando um corpo estava sob juízo divino, era sepultado
imediatamente (cf. Lv 10:4 [o contexto amplo]; Dt 21:23; Mt 27:57–59;
Jo 19:31; Gl 3:13). Ainda mais, o cadáver de alguém condenado por
Deus profanava o santuário onde se reuniam os crentes. Os apóstolos

309
Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble y Gerald Shinn
(Philadelphia: Westminster, 1971), p. 241.
Atos (Simon J. Kistemaker) 266
pediram aos jovens para tirar dali o corpo e prepará-lo para ser
sepultado. Os jovens envolveram o corpo de Ananias e o sepultaram,
provavelmente numa tumba lavrada na rocha nas subúrbios de
Jerusalém. É provável que cobrissem a tumba com uma pedra. 310

Considerações doutrinais em At 5:1–6


Dois assuntos no relato sobre a morte de Ananias exigem uma
análise. Primeiro, por que não se deu a Ananias a oportunidade de
arrepender-se? Lembre-se que quando Pedro confrontou Simão, o mago,
quem lhes ofereceu dinheiro para comprar o poder do Espírito Santo,
mandou que se arrependesse (At 8:22; também At 2:38). Atrevemo-nos a
pensar que talvez Ananias fosse um judeu que conhecia as Escrituras
desde sua infância e mais tarde em sua vida chegou a conhecer a verdade
quando foi batizado em nome de Jesus. Por contraste, Simão vivia em
completa escuridão espiritual ao ser um praticante da feitiçaria. Ele foi
batizado porque creu (At 8:13) mesmo quando sua fé não era genuína.
Quando quis comprar o poder do Espírito, Pedro o repreendeu e o
chamou para que se arrependesse a fim de ser libertado das garras de
Satanás.
Tanto Ananias como Safira mentiram ao Espírito Santo (vv. 3–4) e
se puseram de acordo para tentar o Espírito de Deus (v. 9). Embora não
blasfemaram contra o Espírito, eles deliberadamente tentaram o Espírito
Santo. E como os israelitas que tentaram a Deus pereceram no deserto,
assim Ananias e sua mulher sofreram as mesmas consequências. O autor
da Epístola aos Hebreus comentando sobre a morte de um blasfemo,
pergunta: “De quanto mais severo castigo julgais vós será considerado
digno aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da
aliança com o qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça?” (Hb
10:29). E conclui dizendo que “horrível coisa é cair nas mãos do Deus

310
Para maior informação, consulte-se W. Harold Mare, “Burial”, ZPEB, vol. 1, pp. 672–74; J. Barton
Payne, “Burial”, ISBE, vol. 1, pp. 556–61.
Atos (Simon J. Kistemaker) 267
vivo” (v. 31). Ananias e Safira insultaram o Espírito Santo, e O tentaram.
Como resultado disso, pereceram.
Tomemos uma simples ilustração do diário viver como paralelo da
disciplina aplicada por Deus a Ananias e Safira. Quando um pai enfrenta
a tarefa de disciplinar um de seus filhos que praticou o mal, as outras
crianças da família que observam a ação disciplinadora guardam
silêncio. Sabem que a disciplina é necessária e justificada. Também
sabem que há tempo para falar e tempo para calar. Quando a disciplina
está sendo aplicada, é tempo de emudecer.
Consideremos um segundo assunto. Por que os apóstolos não
notificaram a Safira da morte e sepultamento de Ananias? Não temos a
resposta exata a esta pergunta, porque o relato não nos dá toda a
informação a respeito. No entanto, podemos entender que quando a
congregação deu-se conta que Deus tinha castigado a Ananias com uma
morte repentina, eles sabiam que o corpo da pessoa amaldiçoada por
Deus devia ser tirado e sepultado esse mesmo dia. (Dt 21:23). No caso
dos filhos de Arão, Nadabe e Abiú, que morreram no altar, Moisés
ordenou a suas primos que tirassem os corpos, “até com suas túnicas” e
os sepultassem (Lv 10:5). Não se permitiu a Arão e a seus filhos Eleazar
e Itamar fazer luto pelos mortos. Além disso deve lembrar-se que
qualquer que tocasse um cadáver era considerado imundo por sete dias
(Nm 19:11).
Os jovens retiraram o corpo de Ananias do lugar para eliminar o
perigo de contaminação. Sabendo que o juízo de Deus tinha caído, não
fizeram nenhuma tentativa de luto nem notificaram os seus parentes
próximos. Ao sepultar a Ananias o mais breve possível, livraram o lugar
da maldição que tinha caído sobre Ananias.
Atos (Simon J. Kistemaker) 268
Palavras, frases e construções gregas em At 5:2–6
Versículo 2
ἐνοσφίσατο — do verbo νοσφίζω (eu ponho à parte), esta forma
média do aoristo significa “malversar”.
συνειδυίης — junto com o substantivo γυναικός (esposa), o
particípio ativo perfeito de σύνοιδα (eu compartilho conhecimento),
trasladado ao tempo presente, está no caso genitivo e forma a construção
genitiva absoluta. O composto denota compartilhar responsabilidade.

Versículo 3
ψεύσασθαι — o infinitivo médio do aoristo do verbo ψεύδομαι (eu
minto) expressa resultado. 311

Versículo 4
οὑχί — aqui a partícula negativa introduz uma pergunta retórica que
demanda uma resposta afirmativa. A partícula controla os dois verbos
ἔμενεν (conservar) e ὕπῆρχεν (foi). O tempo aoristo do primeiro verbo é
terminante.
τί ὅτι — esta é uma forma abreviada de τί γέγονεν ὅτι (por que
ocorreu isso?) ou simplesmente “por que?” (veja-se v. 9).

Versículo 6
συνέστειλαν — o aoristo ativo de συστέλλω (eu levanto junto com)
tem várias interpretações: “eu cubro, envolvo”; “eu empacoto, dobro,
agarro”; e “eu levo, tiro”. 312

311
H. E. Dana e Julius R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927; Nova
York; Macmillan, 1967), pp. 215, 285.
312
Bauer, p. 795.
Atos (Simon J. Kistemaker) 269
b. Safira (At 5:7–11)

7, 8. Quase três horas depois, entrou a mulher de Ananias, não


sabendo o que ocorrera. Então, Pedro, dirigindo-se a ela, perguntou-lhe:
Dize-me, vendestes por tanto aquela terra? Ela respondeu: Sim, por
tanto.
O relato que Lucas faz é, na verdade, muito esquemático; no
entanto, provê suficientes detalhes para seguir a sequência sem maior
dificuldade. Safira fica inquieta pela ausência de seu marido. Não se sabe
quão longe estava sua casa do lugar onde se reuniam os apóstolos. A
coisa é que três horas depois, ela aparece diante dos apóstolos. Ninguém
lhe disse nada sobre o trágico fim de seu marido; ela mesma, cegada pelo
pecado, não se separa do caminho de engano que junto com aquele
decidiram andar.
Quando se dirige a Pedro, aparentemente para lhe perguntar onde
estava Ananias, o apóstolo pede que lhe responda uma pergunta. “Dize-
me”, diz-lhe e menciona uma cifra, “vendestes por tanto aquela terra?”
Talvez a bolsa com o dinheiro que seu marido tinha levado estava aí,
sobre a mesa, e Pedro apontava a ela. Já Safira se deu conta da ausência
de seu marido. Ainda assim, é difícil crer que tanto este fato como a
pergunta de Pedro lhe tenham feito refletir no pecado que eles tinham
cometido. Sua cegueira espiritual fez com que se mantivesse em sua
atitude pecadora. Por isso afirma que essa é, precisamente, a soma que
ela e seu marido receberam pela venda da propriedade. Com essa
resposta, ela está demonstrando não só persistência no pecado, mas
também nenhuma atitude de admitir sua culpa. Com sua resposta, sela
sua própria condenação.
9. Tornou-lhe Pedro: Por que entrastes em acordo para tentar o
Espírito do Senhor? Eis aí à porta os pés dos que sepultaram o teu
marido, e eles também te levarão.
O que experiência mais triste, especialmente para Pedro, quem se
dá conta que marido e mulher entraram em acordo para perpetrar uma
Atos (Simon J. Kistemaker) 270
mentira. Faz uma pergunta a Safira, embora não espera uma resposta.
Sua pergunta é, na verdade, equivalente a uma afirmação definitiva.
Note-se que a pergunta aponta ao coração do pecado cometido: “Por que
entrastes em acordo para tentar o Espírito do Senhor?”
Deus deu a seu povo o mandamento: “Não tentarás o SENHOR, teu
Deus, como o tentaste em Massá” (Dt 6:16). O clássico exemplo de
tentação ao Espírito do Senhor é aquele dos israelitas no deserto de
Massá e Meribá. Dez vezes tentaram a Deus pelo que se fizeram
credores à pena de morte, a qual foi aplicada enquanto ainda
permaneciam no deserto (por exemplo, Nm 14:21–23; Sl 95:7–11; Hb
3:16–19). Quando foi tentado por Satanás, quem lhe disse que saltasse
do alto do templo, Jesus também recorreu ao mandamento de não tentar
ao Senhor Deus (Mt 4:7).
Sabemos que Lucas apresenta uma síntese dos comentários de
Pedro. Escutando o apóstolo, é provável que Safira tenha suspeitado que
seu marido tinha morrido e que seu corpo tinha sido retirado para seu
sepultamento. Pedro lhe diz, usando uma descritiva figura hebraica, que
os pés dos jovens que sepultaram Ananias estão aí, à porta. O termo pés
é um modismo no qual parte do corpo representa toda a pessoa. Assim,
os homens que serviram de cortejo mortuário para seu marido
retornaram. Pedro completa a frase, dizendo: “Eles também te levarão”.
É Pedro o executor de Safira? Claro que não. Pedro pronuncia o veredito
e Deus executa o castigo. O caso de Safira difere do de seu marido em
que no caso de Ananias, Pedro não pronuncia juízo. Note-se, no entanto,
que informa a Safira que aqueles homens a levarão a sepultar. Deixa a
Deus a execução da pena de morte.
10. No mesmo instante, caiu ela aos pés de Pedro e expirou.
Entrando os moços, acharam-na morta e, levando-a, sepultaram-na junto
do marido.
Na primeira parte deste versículo, Lucas enfatiza a iminência da
morte de Safira. Informa-lhe da tarefa dos jovens e ela cai morta a seus
pés. De fato Isaías profetiza a respeito do Messias e O projeta em toda
Atos (Simon J. Kistemaker) 271
Sua terrível magnificência: “com o espírito de seus lábios matará o
ímpio” (At 11:4). Os jovens devem repetir o que já tinham feito fazia só
umas horas: tiram Safira e a sepultam junto a seu marido. De novo,
Lucas não menciona nada a respeito de honras fúnebres ou notificação
aos parentes. O resultado disso é que os crentes viram o juízo de Deus
caindo sobre os ímpios. E porque se dão conta que foi a obra de Deus
para disciplinar, guardaram silêncio. O efeito positivo de tudo é que
Deus quer uma igreja que se conserve como um baluarte de fato e
integridade e na qual a mentira e a hipocrisia não tenham lugar.
11. E sobreveio grande temor a toda a igreja e a todos quantos
ouviram a notícia destes acontecimentos.
Façamos as seguintes observações:
a. Temor. Mais uma vez, Lucas usa a expressão grande temor (v.
5), o que claramente se refere a um estado de medo. A intervenção
divina para deter o engano na igreja primitiva espanca forte nos corações
de cada membro dela. Todos os que ouviram da morte de Ananias e
Safira certamente tomaram nota do juízo de Deus. Os crentes devem
saber que Deus não condena a riqueza nem as pessoas que possuem
riquezas. Deus castiga àqueles que enganosamente procuram tentá-Lo ao
pretender ser generosos quando na verdade estão defraudando a Deus.
b. Igreja. Esta é a primeira vez em Atos que Lucas emprega o termo
igreja. Significativamente, a palavra aparece só em duas passagens nos
quatro Evangelhos (Mt 16:18; 18:17). Antes e imediatamente depois do
Pentecostes, ele usa frases descritivas para referir-se ao conceito igreja:
os irmãos (At 1:15), os que tinham crido (At 2:44; 4:32), seu número (At
2:41, 47; 4:4; 5:14) e “os irmãos” (At 4:23). Nos primeiros tempos da
igreja cristã, os crentes comumente chamavam seu lugar de reunião “a
sinagoga” (veja-se o texto grego de Tg 2:2). Só em anos posteriores,
quando a divisão entre judeus e cristãos chegou a ser permanente, os
judeus foram exclusivamente à sinagoga e os cristãos à igreja. 313
313
Em Atos, Lucas emprega a palavra ekklēsia (igreja) vinte e três vezes: (At 5:11; 7:38; 8:1, 3; 9:31;
11:22, 26; 12:1, 5; 13:1; 14:23, 27; 15:3, 4, 22, 41; 16:5; 18:22; 19:32, 39, 41; 20:17, 28.
Atos (Simon J. Kistemaker) 272
Posteriormente, a expressão igreja comunicou o sentido que tanto
cristãos como judeus eram o verdadeiro povo de Deus.314 Lucas escreve
que toda a igreja foi presa de medo. Pelo grego entendemos que o
adjetivo toda abrange a todos os crentes que pertencem à igreja universal
que está em Jerusalém, Judeia e em qualquer lugar.
c. A notícia. De boca em boca, a notícia relacionada com a morte de
Ananias e Safira se difunde por todas as partes, levando a mensagem que
Deus não tolera o engano nem a falsidade na igreja. A notícia, portanto,
inclui uma advertência a todos os que estivessem pensando infiltrar-se na
assembleia dos crentes com o fim de enganar. O repentino juízo de Deus
serviu como dissuasivo e guardou a igreja como um refúgio de verdade e
integridade.

Palabras, frases y construcciones griegas en Hch 5:7–9


Versículo 7
ὡρῶν τριῶν — “três horas”. Com frequência, Lucas menciona
números com a partícula ὡς (como de) para estabelecer uma
aproximação. O caso genitivo é descritivo.

Versículo 8
ἀπεκρίθη — usualmente, a expressão aparece completa: “ele
respondeu e disse”. Mas de vez em quando se omite o verbo dizer. A
construção significa “dirigir-se”. De qualquer maneira, não é remota a
possibilidade de que Safira tenha perguntado a Pedro por seu marido.
τοσούτου ἀπέδοσθε — com o verbo, o caso genitivo do adjetivo tal
denota o genitivo de preço. O verbo é o aoristo meio de ἀποδίδωμι (eu

314
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 54.
Atos (Simon J. Kistemaker) 273
devolvo) e significa “deste por seu próprio interesse”, quer dizer, “você
vendeu”. 315

Versículo 9
ὑμῖν — embora Pedro fale só com o Safira, dirige-se a ela no plural
(“vós”) para incluir seu esposo.
ἰδού — esta partícula é o imperativo meio do aoristo de εἶδον (eu
vi). Aqui “não é só uma profecia, mas um pronunciamento do juízo
divino e sua imediata execução”. 316

7. Os milagres de cura (At 5:12–16)

Aqui temos o terceiro resumo que Lucas inclui em sua narração


(compare At 2:42–47 e 4:32–35) e que apresenta algumas similitudes
com os outros dois. Lucas parece recorrer novamente a suas afirmações
de tipo geral que resultam um tanto contraditórias, como é evidente nos
versículos 13 e 14. A fluidez do pensamento neste resumo não é natural.
Isto fez com que alguns eruditos se sintam tentados a reordenar a
sequência dos versículos para dar consistência ao tema dos apóstolos
realizando milagres de cura no meio do povo. Assim, começaram o
parágrafo com o versículo 12b, que é seguido pelos versículos 13 e 14. O
versículo 12a foi posto como um prefácio ao versículo 15 com o qual se
tentou obter certa continuidade. 317 Outros tradutores consideram os
versículos 12b–14 um comentário parentético. 318 No entanto, devemos
nos perguntar se é realmente necessária a reordenação de versículos ou é
preferível deixá-los em sua forma parentética. Diante do temor de

315
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville, Broadman, 1934), p. 810.
316
Haenchen, Acts, p. 239.
317
Como por exemplo, BJ, Phillips, e Moffatt.
318
Algumas versões unem o versículo 12a ao versículo 11 para formar a conclusão do relato
concernente a Ananias e Safira. O versículo 12b, então, constitui o começo de um novo parágrafo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 274
encontrar-se com dificuldades, muitos tradutores preferiram conservar o
texto tal como o temos aqui.
12, 13. Muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos
dos apóstolos. E costumavam todos reunir-se, de comum acordo, no
Pórtico de Salomão. Mas, dos restantes, ninguém ousava ajuntar-se a eles;
porém o povo lhes tributava grande admiração.
Lucas continua a narração pondo sua atenção nos outros apóstolos,
além de Pedro e João. O versículo 12a diz literalmente, “E pela mão dos
apóstolos se faziam muitos sinais e prodígios no povo”. Sabemos que
estes, em obediência ao mandamento de Cristo curavam os doentes
pondo as mãos sobre eles. 319 Além disso, sabemos que a tradução literal
tem um típico modismo hebraico que não precisa ser traduzido. A
expressão pela mão de refere-se aos apóstolos; nesta frase Lucas põe
toda a ênfase neles. No entanto, não são os apóstolos que curam os
doentes, e sim Deus; os apóstolos são, na verdade, os instrumentos nas
mãos de Deus. Também, Lucas parece querer dissipar a ideia de que
Pedro age como um criador de milagres, como se o resto dos apóstolos
não contassem absolutamente. Todos tinham recebido autoridade de
Jesus para pregar e curar, e sobre todos tinha sido derramado o Espírito
Santo.
a. “Muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos
dos apóstolos”. Temos aqui uma implícita referência aos apóstolos. A
frase muitos sinais e prodígios é uma repetição de At 2:43, 320 onde de
forma resumida Lucas menciona a obra feita pelos apóstolos. Ele diz que
os apóstolos realizavam estes sinais e milagres no povo. Com a palavra
povo o autor tem em mente o povo de Israel. Os habitantes de Jerusalém
observavam o poder de cura demonstrado nas maravilhas que os
apóstolos realizavam.
b. “E costumavam todos reunir-se, de comum acordo, no Pórtico de
Salomão”. A quem inclui a expressão todos? Está dizendo Lucas que
319
Veja-se At 3:7; 9:41; 28:8; e também Mc. 16:18.
320
Também At. 2:19, 22; 4:30; 6:8; 7:36; 14:3; 15:12; 2Co. 12:12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 275
todos os apóstolos, com um mesmo coração e um mesmo pensamento
reuniam-se na espaçosa área do templo conhecida como o pórtico de
Salomão (veja-se At 3:11)? 321 Ou quer dizer que a maioria de cinco mil
crentes (At 4:3) estavam com os apóstolos no recinto do templo? Os
estudiosos em geral se inclinam para a segunda interpretação, devido ao
fato de que o fluir da frase é mais natural; no entanto, o problema de
interpretação quase não começa com o versículo 12. O seguinte, quer
dizer, o 13, também apresenta algumas ambiguidades.
c. “Mas, dos restantes, ninguém ousava ajuntar-se a eles; porém o
povo lhes tributava grande admiração”. A pergunta que surge é, a quem
se refere o pronome eles? Se os crentes estão separados dos apóstolos,
então Lucas tem em mente os apóstolos quando usa a expressão eles.
Segundo esta interpretação, os apóstolos permanecem sozinhos na área
do templo e o povo de Jerusalém os admira (compare v. 26). Os crentes
têm medo das autoridades pelo que guardam uma prudente distância dos
apóstolos. Mas a verdade é justamente o contrário, pois não encontramos
indicação alguma de que os crentes estivessem temerosos (veja-se At
4:24–30).
Uma segunda interpretação é que a expressão ninguém (ou outros)
refere-se aos não crentes ou aos “de fora”. No Novo Testamento, o termo
geralmente descreve os incrédulos (por exemplo, Lc 8:10; Ef 2:3; 1Ts
4:13; 5:6). 322 Esta interpretação, então, assinala às três categorias de
gente em Jerusalém: os cristãos, os incrédulos, e os fiéis judeus que
tinham uma inclinação favorável para com o evangelho. Por causa do
repentino juízo contra Ananias e Safira, os não crentes estão relutantes a
unir-se à igreja, mas o povo judeu que ama a Deus segue tendo os

321
Uma versão diz, “Os apóstolos estavam juntos no pórtico de Salomão”. Everett F. Harrison está de
acordo que “somente os apóstolos estavam no pórtico de Salomão”. Interpreting Acts: The Expanding
Church, 2ª. ed. (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p. 105.
322
Em duas passagens, o termo outros refere-se a crentes (Ap. 11:13; 12:17). Walther Günther e
Hartmut Krienke, NIDNTT, vol. 3, p. 253.
Atos (Simon J. Kistemaker) 276
cristãos na mais alta estima (At 4:21). O pronome eles refere-se aos
cristãos.
Uma terceira explicação tem que ver com os que temem unir-se à
comunidade cristã como “simpatizantes não membros”. 323 Respaldaram
os cristãos e tiveram um grande respeito por eles, mas seguem
duvidando quanto a chegar a ser parte dos crentes. As expressões dos
demais e o povo são virtualmente sinônimos. Em conclusão, embora a
eleição continue sendo difícil, os eruditos preferem a segunda
interpretação.
14. E crescia mais e mais a multidão de crentes, tanto homens como
mulheres, agregados ao Senhor.
Notemos três assuntos:
Primeiro, Lucas perdeu a conta do número de crentes em Jerusalém.
Depois da cura do paralítico, ele estima que a membresia alcança a uns
cinco mil homens (At 4:3). Agora, diz que “crescia mais e mais a
multidão de crentes, tanto homens como mulheres, agregados ao
Senhor”. Apesar do medo dos não crentes, o Espírito Santo trabalha no
coração de homens e mulheres. O crescimento da igreja continua
imbatível. As mortes de Ananias e Safira fazem com que os não crentes
não queiram unir-se à igreja, mas ao mesmo tempo um grande número
de verdadeiros convertidos devem fortalecer a comunidade cristã. De
fato, Lucas abandonou seu desejo de ser preciso e agora fala de
multidões de pessoas que chegam a ser membros da igreja.
Segundo, observamos que Lucas especificamente fala de mulheres
que se unem à igreja. No cenáculo, antes de Pentecostes, ele registra a
presença de mulheres, entre as quais está Maria, mãe de Jesus (At 1:14).
Em sua última recontagem da membresia da igreja, especificamente fala
só de cinco mil homens, e não de mulheres (At 4:3). Contudo, nos
seguintes capítulos, refere-se tanto a homens como a mulheres (por
exemplo: At 8:3, 12; 9:2; 13:50).

323
D. R. Schwartz, “Non-Joining Sympathizers (Acts 5:13–14)”, Bib 64 (1983): 550–55.
Atos (Simon J. Kistemaker) 277
Terceiro, o grego permite duas traduções: tanto “No entanto, cada
vez mais crentes no Senhor, tanto homens como mulheres, eram
acrescentados como membros” (os itálicos são nossos), ou “E os crentes
aumentavam acrescentando-se ao Senhor, multidões tanto de homens
como de mulheres” (os itálicos são nossos). Devido ao fato de que o
verbo crer usualmente tem um objeto direto (neste caso, “o Senhor”) e
porque por sua posição no grego recebe a ênfase, a primeira tradução é a
melhor.
15. A ponto de levarem os enfermos até pelas ruas e os colocarem
sobre leitos e macas, para que, ao passar Pedro, ao menos a sua sombra se
projetasse nalguns deles.
Como está este versículo 15 relacionado com a passagem
precedente? Alguns estudiosos ou reordenaram este parágrafo ou
consideram os versículos 12b–14 uma afirmação parentética (veja-se v.
12). Outros tradutores tomam os versículos 14 e 15 juntos e assim veem
que um versículo dependa do outro. 324 Tem certo mérito esta
combinação, porque o fato de as pessoas trazerem seus doentes nas ruas
(v. 15) deriva-se do fato que eles creem no Senhor (v. 14). A ênfase,
então, cai no verbo crer. Esta gente que crê no Senhor confia em que Ele
curará os doentes. O contexto parece indicar que sua fé não se baseava
só nos milagres que os apóstolos faziam. 325
Aqui vemos o princípio segundo o qual Deus realiza milagres em
resposta a e para o aumento da fé. Onde não há fé não há milagres. O
ponto é que na mesma forma em que Jesus realizou milagres na Galileia
e Jerusalém, assim Seus discípulos o fazem agora por Sua autoridade;
isto é, as pessoas que há puseram sua confiança em Jesus vêm aos
apóstolos para alcançar cura. E claro, os apóstolos, tanto em seu ensino
como em sua pregação os guiam a Jesus.

324
Veja-se RSV, NASB, NKJV.
325
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, p. 167.
Atos (Simon J. Kistemaker) 278
As pessoas trazem os seus doentes às ruas principais e às praças do
centro da cidade completamente seguros que os milagres de cura
ocorrerão. Aqui não há magia: os doentes são curados pela fé no Senhor.
Utilizando colchonetes e esteiras, os doentes esperam a passagem de
Pedro; conformam-se com que sua sombra caia sobre eles. Uma sombra
é produzida por um objeto que bloqueia a luz, mas de maneira nenhuma
é parte desse objeto. Estes doentes nem sequer vão tocar o vestido ou um
lenço de Pedro (compare com At 19:12) nem vão procurar tocar o bordo
de seu manto (veja-se Mc 6:56). Os crentes confiam que a sombra de
Pedro será suficiente para curar os doentes. O texto, na verdade, diz:
“para que, ao passar Pedro, ao menos a sua sombra se projetasse nalguns
deles”. O anterior significa que nem todos os que estivessem deitados na
rua seriam alcançados pela sombra de Pedro. Neste ponto, o chamado
Texto ocidental dos manuscritos gregos tem uma frase explicativa
adicional: “Para que eles fossem libertados de qualquer mal-estar que
tivessem”.
Da cultura na qual viveu, Lucas toma o conceito segundo o qual um
objeto tem um poder inerente. 326 Mas neste caso parece que não se
procura um comportamento supersticioso das pessoas, porque o Senhor
pode curar uma pessoa tocando nela, falando a ela, ou fazendo com que
uma sombra caia sobre ela. Henry Alford se pergunta e diz,
Não poderia, o “Espírito Criador” agir com qualquer instrumento,
ou sem nenhum, conforme lhe agradasse? E o que é uma mão ou uma
voz, mais que uma sombra, exceto que a analogia de um instrumento
comum é uma maior ajuda à fé do recebedor? Onde a fé não é requerida
dessa ajuda, o instrumento menos provável foi usado. 327
Para compreender a importância cultural do conceito sombra,
considerem-se as palavras de Gabriel a Maria: “O poder do Altíssimo te

326
P. W. van der Horst, “Peter’s Shadow: The Religio-Historical Background of Acts 5:15”, NTS 23
(1977); 204–12.
327
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed. 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 279
cobrirá” (Lc 1:35). Uma sombra, então, é mais que suficiente para que
Deus estenda Seu poder restaurador ao homem. Na cura de um doente,
Deus demanda fé. A fé está presente aqui, porque o versículo 14 nos diz
que as multidões de homens e mulheres criam no Senhor. E estas
multidões naturalmente que não estão restringidas aos numerosos
habitantes de Jerusalém.
16. Afluía também muita gente das cidades vizinhas a Jerusalém,
levando doentes e atormentados de espíritos imundos, e todos eram
curados.
Notemos pelo menos dois paralelos. Primeiro detectamos o paralelo
com o ministério de cura de Jesus. Quando a multidão ouvia das curas,
dirigia-se a Jesus da Galileia, Judeia, Jerusalém, Idumeia e regiões para
além do Jordão, incluindo Tiro e Sidom (Mc 3:7–8). Os Evangelhos
falam de multidões que vinham a Jesus para ouvi-Lo e dos doentes que
esperavam ser tocados por Ele (veja-se Lc 6:17–19). Agora, os apóstolos
veem que lhes ocorre a mesma coisa, quando multidões vêm de todas as
partes com familiares e amigos que estão doentes. A influência da igreja
cristã se estende para além dos limites da cidade de Jerusalém.
O segundo paralelo é a cura do paralítico à porta chamada Formosa
(At 3:1–10). Esta cura provoca a animosidade do sumo sacerdote e dos
saduceus, que expressam seu mal-estar, encarcerando a Pedro e a João e
levando-os a juízo no dia seguinte (At 4:1–7). Aqui, os membros do
Sinédrio não tentam restringir o ministério de cura dos apóstolos. A
única ordem que lhes dão é que não sigam falando e ensinando no nome
de Jesus (At 4:18). Conquanto a cura do paralítico é um fato isolado, as
curas levadas a cabo por todos os apóstolos às pessoas das regiões ao
redor de Jerusalém são incontáveis. 328 A reação dos saduceus fica
perfeitamente clara na sequência da narração. Os apóstolos são
encarcerados e levados a juízo pelo Sinédrio. E os membros do Sinédrio
dão rédea solta a sua raiva desejando lhes matar (At 5:33).

328
Consulte-se Haenchen, Acts, p. 245.
Atos (Simon J. Kistemaker) 280
Lucas diz que as pessoas não somente trazia os doentes, mas
também os que eram atormentados por espíritos imundos (veja-se Lc
6:18). Faz-se distinção aqui entre aquelas pessoas que sofriam por
enfermidades comuns e os que estavam possessos por demônios. Só os
autores dos Evangelhos e de Atos mencionam pessoas atormentadas por
espíritos imundos em Jerusalém, Judeia, Galileia, Decápolis, Samaria,
Filipos e Éfeso. 329 O resto do Novo Testamento guarda silêncio a
respeito desta enfermidade. Durante o ministério de Jesus e por espaço
de várias décadas, as forças do mal fizeram-se muito evidentes em
especial em pessoas que eram afligidas por possessão demoníaca (ver,
por exemplo, At 8:7; 16:16; 19:15; Mt 8:16; 10:1). Consequentemente,
como Jesus, os apóstolos se defrontaram com as forças do mal naquelas
pessoas que eram atormentadas por espíritos imundos. Lucas conclui seu
resumo dizendo que todos os doentes que eram atormentados por
espíritos imundos tinham sido curados.

Palavras, frases e construções gregas em At 5:14–16


Versículo 14
προσετίθεντο — o tempo imperfeito indica ação continuada no
tempo passado. A voz passiva implica que Deus é o agente, porque Deus
acrescenta o seu povo à igreja. Portanto, o verbo não deveria ser tomado
com o dativo τῷ κυρίῳ (ao Senhor), o qual é uma redundância. Pelo
contrário, o gerúndio ativo πιοτεύοντες controla o caso dativo.

Versículo 15
ἵνα κἄν —esta combinação aparece só duas vezes no Novo
Testamento (aqui e em Mc 6:56, onde os doentes tentavam tocar a borda

329
Veja-se Guthrie, New Testament Theology, p. 137.
Atos (Simon J. Kistemaker) 281
do manto de Jesus). “Em ambos os casos deve detectar-se uma cláusula
condicional implícita. 330
ἐρχομένου — devido ao caso genitivo neste gerúndio médio e no
próprio substantivo Πέτρου, e devido à sua posição na frase, esta é a
construção genitiva absoluta.

Versículo 16
συνήρχετο — o meio imperfeito no singular, dependente de seu
sujeito singular τὸ πλῆθος (a multidão), é seguida por φέροντες
(levando), que é um gerúndio ativo plural.
πέριξ — um advérbio obviamente derivado da preposição περί (ao
redor) encontra-se só aqui.

C. A perseguição (At 5:17–42)

A narrativa em Atos está cheia de recorrências. Na última parte do


capítulo 5, Lucas apresenta um relato que em vários aspectos é uma
repetição de At 4:1–21. Diz que mais uma vez o partido dos saduceus
opõe-se ao crescimento da igreja cristã. Agora, entretanto, a reação dos
saduceus é mais severa e sua oposição se intensifica. Têm a todos os
apóstolos encarcerados.

1. A detenção e a libertação (At 5:17–20)

17, 18. Levantando-se, porém, o sumo sacerdote e todos os que


estavam com ele, isto é, a seita dos saduceus, tomaram-se de inveja,
prenderam os apóstolos e os recolheram à prisão pública.
A cura de muitos habitantes em Jerusalém e arredores deu origem a
grandes titulares na imprensa diária, por assim dizer. Milhares andavam

330
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 139.
Atos (Simon J. Kistemaker) 282
após os apóstolos, os quais os atendiam nas ruas, nas praças, e na área do
templo conhecida como o pórtico de Salomão. A reunião de tanta gente
não pôde passar desapercebida ao sumo sacerdote e a outros do Sinédrio.
Eles, então, percebiam que vinha sobre eles um problema que não
puderam resolver quando proibiram a Pedro e a João ensinar no nome de
Jesus.
O texto grego diz: “Então o sumo sacerdote levantou-se”. Quer
dizer, entrou em ação porque para ele, o movimento dirigido pelos
apóstolos já tinha crescido muito. Assumimos que o sumo sacerdote é
Anás e não Caifás, seu genro (veja-se sobre At 4:6), e que outros do
Sinédrio são membros das famílias dos sumos sacerdotes e do partido
dos saduceus. O termo partido é usado como uma tradução da palavra
grega hairesis da qual se derivou heresia e herético. Em Atos, este termo
pode ter tanto uma conotação favorável como desfavorável;331 aqui tem
uma conotação positiva, porque o partido dos saduceus era, com efeito, o
partido político governante em Israel. O sumo sacerdote e seus colegas
não só eram os supervisores espirituais que controlavam os serviços e
recintos do templo. Também eram os governantes políticos aqueles que
exerciam liderança no Sinédrio (veja-se o comentário sobre At 4:1–2; e
veja-se At 23:6–8) e temiam os distúrbios locais. Por esta razão,
opuseram-se tão tenazmente a que os apóstolos reunissem em sua volta
as multidões, especialmente nos recintos do templo, que era para eles
setor de seu pleno domínio, controle e influência (cf. At 5:12). Lucas,
por isso, acrescenta a nota: “tomaram-se de inveja”.
Originou-se a inveja do sumo sacerdote Anás e dos dirigentes
saduceus num zelo por Deus e por seu povo? Claro que não, porque sua
inveja é pessoal e vingativa. Por exemplo, o fato de que Anás
conservasse sua condição de sumo sacerdote quando Caifás foi proposto
projeta a tremenda ambição daquele. O poder e a autoridade dos líderes

331
Compare o texto grego em Atos 15:5; 24:5, 14; 26:5; 28:22; veja-se também 1 Cor. 11:19; Gl.
5:20; 2 Pê. 2:1. Veja-se Gerhard Nordholt, NIDNTT, vol. 1, p. 535.
Atos (Simon J. Kistemaker) 283
políticos e religiosos está sendo desafiada pelos apóstolos. Portanto, é
preciso agir rápido.
O sumo sacerdote e seu partido ordena ao capitão da guarda do
templo e a seus oficiais para prender os apóstolos (veja-se v. 26).
Supomos que dão a ordem pela tarde, porque os apóstolos depois de sua
apreensão passam a noite no cárcere público. Este cárcere que pertence
ao estado difere do lugar onde Pedro e João tinham passado a noite
durante sua prisão anterior (At 4:3). Agora estão num cárcere público
compartilhando um canto com ladrões e assassinos. (É interessante que a
palavra em grego para público também pode tomar-se adverbialmente
para que signifique: “os apóstolos foram postos publicamente no
cárcere”.) Nos tempos do Novo Testamento, os prisioneiros eram
mantidos em cárceres públicos por um período limitado de tempo
enquanto esperavam o juízo e a sentença. “Sob o sistema legal romano
estar preso não significava uma forma de castigo”. 332
19, 20. Mas, de noite, um anjo do Senhor abriu as portas do cárcere
e, conduzindo-os para fora, lhes disse: Ide e, apresentando-vos no templo,
dizei ao povo todas as palavras desta Vida.
Lucas nos conta da libertação noturna dos apóstolos da parte de um
anjo, mas omite os detalhes. Parece reservá-los para o paralelismo que
faz com a libertação de Pedro (At 12:4–10). Diz que um anjo do Senhor
deu liberdade aos apóstolos, embora ironicamente os saduceus que os
tinham detido negam a existência dos anjos (veja-se At 23:8). Lucas
simplesmente escreve, “um anjo do Senhor” e não “o anjo do Senhor”,
quem é com frequência mencionado no Antigo Testamento como “a
ajuda personificada de Deus a Israel” (p. ex., veja-se Êx 14:19; Nm
22:22; Jz 6:11–24). 333 Lucas também usa a expressão um anjo do Senhor
em seus relatos da narração de Estêvão sobre a história de Israel (At
7:30), o encontro de Filipe com o eunuco etíope (At 8:26), a libertação

332
Gary L. Knapp, “Prison”, ISBE, vol. 3, p. 975.
333
Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 1, p. 101.
Atos (Simon J. Kistemaker) 284
de Pedro do cárcere (At 12:7–10), e a morte do rei Herodes (At
12:23). 334
De forma sobrenatural, Deus intervém enviando um anjo com a
dupla missão de abrir as portas da prisão pública para deixar livres os
apóstolos e para dar instruções de continuar pregando a mensagem da
salvação. Parte do milagre é a forma em que o anjo abre as portas sem
que o guarda se previna disso. Instrui os apóstolos para ir aos átrios do
templo, mais provavelmente ao pórtico de Salomão e “anunciem ao povo
todas as palavras desta vida”. Sua tarefa de pregar e ensinar ao povo
deve continuar em Jerusalém. Os apóstolos estão livres do cárcere para
proclamar a palavra de vida.
O texto grego diz: “No templo falar com o povo todas as palavras
desta vida”. O que quer dizer com a expressão esta vida? Quando as
multidões abandonaram a Jesus durante Seu ministério, Ele perguntou
aos doze apóstolos: “Querem vós também retirar-vos?” Então Pedro
tomou a palavra e disse: “A quem iremos? Tu tens as palavras da vida
eterna” (Jo 6:67–68). Estas palavras, então, transmitem a mensagem de
salvação: vida eterna mediante a ressurreição de Jesus Cristo (cf. At
3:15; Fp 2:16). Os saduceus rejeitavam a doutrina da ressurreição,
contudo os apóstolos publicamente a proclamam como “a mensagem
completa desta vida nova” (NVI).

Palavras, frases e construções gregas em At 5:17–20


Versículo 17
ἀναστάς — este aoristo particípio ativo do verbo ἀνίστημι (eu
levanto) na forma intransitiva aparece frequentemente no Novo
Testamento (dezessete vezes no singular), e seu significado básico foi
debilitado. Geralmente indica “o começo de uma ação”. 335

334
Veja-se também Mt. 1:20–24; 2:13, 19; 28:2; Lc. 1:11; 2:9; At. 27:23).
335
Bauer, p. 70.
Atos (Simon J. Kistemaker) 285
ἡ οὗσα αἵρεσις — o gerúndio de εἰμί realmente significa
“existindo”; quer dizer, “o partido existente”.

Versículos 19–20
διὰ νυκτός — a preposição διά (através) acrescenta pouco à
tradução durante a noite (cf. Jo 3:2).
τῆς ζωῆς ταύτης — a NTLH tem a leitura esta nova vida. A palavra
vida em aramaico e siríaco é o equivalente de “salvação” (veja-se At
3:26).

2. A liberdade e a consternação (At 5:21–26)

21a. Ao amanhecer, eles entraram no pátio do templo, como haviam


sido instruídos, e começaram a ensinar o povo [NVI].
Depois de terem sido tirados do cárcere, os apóstolos tiveram tempo
para preparar-se para a tarefa que o anjo lhes tinha dado. Ao clarear a
alvorada, quando o povo costumava ir ao templo para suas orações
matutinas, os apóstolos os estavam esperando para lhes falar da nova
vida em Jesus Cristo. Mostraram coragem e ousadia ao voltar ao lugar
onde o sumo sacerdote e seus colegas sacerdotes exerciam sua
autoridade. Mas o fizeram em obediência à ordem divina que receberam.
A maioria dos tradutores põem o verbo na segunda parte da frase,
assim: “[eles] começaram a ensinar”. No grego, o verbo está no tempo
imperfeito, que pode referir à iniciação de um ato. Também pode
significar a continuação de um processo; isto é, que os apóstolos
continuavam ensinando o evangelho.336 Em suas orações, pedem que
Deus lhes conceda a habilidade de ensinar o evangelho com todo ânimo
(At 4:29); cheios com o Espírito Santo “com intrepidez, anunciavam a

336
Duas versões no inglês refletem isto: “eles … continuavam seu ensino” (New English Bible) e
“reataram seu ensino” (NAB).
Atos (Simon J. Kistemaker) 286
palavra de Deus” (At 4:31). Portanto, o que vemos é a continuação da
pregação e ensino do evangelho de Cristo pelos apóstolos.
21b. Quando chegaram o sumo sacerdote e os seus companheiros,
convocaram o Sinédrio — toda a assembléia dos líderes religiosos de
Israel — e mandaram buscar os apóstolos na prisão [NVI].
A maioria dos tradutores começam um novo parágrafo com o
versículo 21b porque em contexto, o verbo vieram significa que o sumo
sacerdote veio não ao templo, mas ao salão da corte suprema, chamado o
Sinédrio. Neste versículo a ênfase não está no verbo vir e sim no verbo
convocar.
Com um sutil toque de humor, Lucas diz que o sumo sacerdote
convocou o Sinédrio a um juízo precipitado e envia oficiais ao cárcere
para que tragam os apóstolos a comparecer. O relato o faz da perspectiva
divina, pelo qual põe de manifesto que todas as tentativas do homem
para opor-se à ação de Deus se mostraram inúteis. Assim, o sumo
sacerdote envia mensageiros que convocam os membros o mais rápido
possível. Mas os apóstolos já se encontram ensinando as pessoas no
recinto do templo.
Lucas escreve “o Sinédrio — toda a assembléia dos líderes
religiosos de Israel”. Aqui provê uma explicação, talvez para indicar que,
diferente do anterior juízo contra Pedro e João (At 4:5–22), agora se
encontra presente a assembleia em pleno.337 O Sinédrio é o concílio
governante não só sobre Jerusalém mas também sobre tudo Israel.
Obedecendo uma ordem do sumo sacerdote e seus colegas, os
oficiais da polícia do templo vão ao cárcere público para trazer os
apóstolos diante do Sinédrio. Poderíamos nos perguntar como foi que

337
Bauer, p. 156 interpreta o “concílio dos anciãos” como o “Sinédrio em Jerusalém”. No entanto,
Gerhard Schneider pensa que se tratava de um senado (ou concílio) próximo ao Sinédrio. Die
Apostelgeschichte, série Herders Theologischer Kommentar zum Neuen Testament, 2 vols. (Freiburg:
Herder, 1980), vol. 1, p. 390. Para mais informação a respeito do Sinédrio, veja-se 4:5–6; veja-se
também Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D.
135), rev. e ed. Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, pp. 210–
18; Donald A. Hagner, “Sanhedrin”, ZPEB, vol. 5, p. 271.
Atos (Simon J. Kistemaker) 287
nenhum dos membros do sacerdócio que serviam no templo naquela
manhã se precaveu da presença dos apóstolos nos átrios do templo.
Lucas não diz nada a respeito, salvo que o capitão da guarda do templo
ignorava sobre a liberdade dos apóstolos (v. 24). O salão do Sinédrio
estava na ala oeste do templo propriamente dito, e o pórtico de Salomão
estava no este. A localização da prisão pública é desconhecida.
22, 23. Mas os guardas, indo, não os acharam no cárcere; e, tendo
voltado, relataram, dizendo: Achamos o cárcere fechado com toda a
segurança e as sentinelas nos seus postos junto às portas; mas, abrindo-as,
a ninguém encontramos dentro.
É de supor que ainda é um pouco cedo quando os oficiais chegam
ao cárcere. Pedem ao carcereiro entregar-lhes os apóstolos para os
processar, mas ao investigar encontram as portas fechadas e as sentinelas
cuidando celas vazias. E claro, os apóstolos não estão ali. Presas de
grande consternação, voltam então ao Sinédrio, onde contam aos
surpreendidos membros do tribunal supremo que apesar de que por
segurança as portas do cárcere tinham sido fechadas com chave e que
apesar de que as sentinelas permaneceram em seus postos fielmente, as
celas onde estavam os apóstolos não abrigavam a ninguém.
24. Quando o capitão do templo e os principais sacerdotes ouviram
estas informações, ficaram perplexos a respeito deles e do que viria a ser
isto.
A pessoa responsável pela segurança dos prisioneiros é o capitão da
guarda do templo (veja-se At 4:1). Ele é membro de uma proeminente
família sacerdotal que serve permanentemente no templo e está isento do
plano de rotação que outros sacerdotes devem seguir. É um servidor do
Sinédrio (cf. Lc 22:4, 52). O relato que ouviram os deixa perplexos e
sem a capacidade de encontrar uma explicação racional para o escape
dos apóstolos. Enquanto isso, toda a assembleia do Sinédrio espera na
sala, mas os sumos sacerdotes que convocaram a reunião são incapazes
de apresentar os apóstolos. Perguntam-se o que fazer em tal situação. O
Sinédrio discute, embora ninguém tampouco pode explicar os detalhes
Atos (Simon J. Kistemaker) 288
que os oficiais lhes contaram. Nenhum percebe que é Deus que está
protegendo os apóstolos e os está usando para promover o crescimento
de sua igreja.
25. Nesse ínterim, alguém chegou e lhes comunicou: Eis que os
homens que recolhestes no cárcere, estão no templo ensinando o povo.
Deus está guiando e dirigindo o desenvolvimento destes
acontecimentos. Em Sua providência, um mensageiro corre do templo
até o salão onde está reunido o Sinédrio. Talvez seja um sacerdote ou um
levita que já sabe da detenção dos apóstolos e do juízo preparado para
essa manhã. Na confusão que reinava na sala do Sinédrio, permitem-lhe
apresentar-se diante deles. Em meio de grande excitação, diz: “Eis que
os homens que recolhestes no cárcere, estão no templo ensinando o
povo”. A inquietude surpreende a todo o mundo. O sumo sacerdote e
seus colegas percebem que os apóstolos tiveram que receber algum tipo
de ajuda exterior para sair do cárcere. Isto significa que são sustentados
por alguém que evidentemente opõe-se à autoridade do sumo sacerdote.
Naturalmente, este e seus colegas sabem que os apóstolos têm o respaldo
público (veja-se At 4:21). Talvez conjeturam que mesmo entre os
membros do Sinédrio haja fariseus que têm uma disposição favorável a
eles e suas causas. Bem poderiam ser Nicodemos e José de Arimateia.
Os importantes do Sinédrio não sabem o que fazer, sobretudo
porque tinham dado ordens aos apóstolos que não falem nem ensinem no
nome de Jesus. No entanto, eles continuam fazendo isso e justamente ali,
em pleno setor do templo. O atrevimento dos apóstolos é algo incrível
para eles. Os apóstolos não escaparam para esconder-se, mas o fazem
para ensinar abertamente, nos átrios do templo. Claro, que agora que já
sabem onde estão os rebeldes, é possível que possam fazer algo para sair
bem da situação.
26. Nisto, indo o capitão e os guardas, os trouxeram sem violência,
porque temiam ser apedrejados pelo povo.
O capitão da guarda do templo precisava guardar as aparências. Por
isso, logo que ouve as notícias, toma seus oficiais, vai voando aos átrios
Atos (Simon J. Kistemaker) 289
do templo e encontra os apóstolos ensinando o povo. O texto grego põe o
verbo trazer no imperfeito para descrever a situação delicada. O capitão
sabe que não pode deter os apóstolos pela força porque o povo os tem
em alta estima e estão dispostos a protegê-los, apedrejando os guardas.
Os membros da guarda do templo assim como os altos membros do
Sinédrio são movidos pelo medo e não pela admiração e assombro diante
dos milagres divinos. Lembre-se que o chefe dos sacerdotes e os anciãos
também tiveram temor do povo quando Jesus lhes perguntou se o
batismo de João era do céu ou dos homens. Eles sabiam que não podiam
admitir que o batismo era “do céu”, porque se o fizessem deviam aceitar
João como um profeta. E tampouco podiam dizer que era “dos homens”
porque temiam o povo (veja-se Mt 21:25–26). Durante o ministério de
Jesus e logo na prisão dos apóstolos, os sumos sacerdotes e os anciãos
deixaram em evidência que o temor tinha consumido sua autoridade. O
capitão e seus homens temiam que se fizessem o menor uso da força,
seriam atacados pela multidão. Por outro lado, os apóstolos
acompanharam os oficiais voluntariamente procurando não ser
provocadores. Eles sabiam que Deus, que os libertou da prisão, também
os protegerá na sala do tribunal.

Palavras, frases e construções gregas em At 5:21–26


Versículo 21
ἐδίασκον — este imperfeito ativo é ou inicial (eles começaram a
ensinar) ou reiterativo (eles continuavam ensinando). Eu prefiro esta
última forma porque está em harmonia com a ordem divina que os
apóstolos receberam.
τὸ συνέδριον καί — a conjunção é explicativa e significa “quer
dizer”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 290
Versículo 24
διηπόρουν — veja-se At 2:12 se desejar-se uma explicação deste
verbo. O verbo introduz uma pergunta indireta que representa um
optativo potencial (γένοιτο) com a partícula ἄν. 338 A pergunta direta é:
“O que acontecerá?”, ou “Como vai sair isto?”

Versículo 26
ἦγεν — o uso do ativo imperfeito do verbo ἄγω (eu dirijo, trazer) é
descritivo; quer dizer, descreve uma ação em progresso.
μὴ λιθασθῶσιν —“por temor a que o povo os apedrejasse”. Esta
cláusula de propósito negativo introduzida pelo verbo temer depende
mais em οὑ μετὰ βίας que no verbo ἐφοβοῦντο (tinham medo). 339

3. A acusação e a resposta (At 5:27–32)

Agora se encontram diante da corte suprema de Israel em plenário


não só Pedro e João mas todos os apóstolos. Ali de pé, têm muito
presentes as palavras de Jesus de que não deviam preocupar-se com o
que dirão ao tribunal. O Espírito Santo lhes dará as palavras que devem
dizer nesse momento (Mt 10:19–20).

a. A acusação (At 5:27–28)

27, 28. Trouxeram-nos, apresentando-os ao Sinédrio. E o sumo


sacerdote interrogou-os, dizendo: Expressamente vos ordenamos que não
ensinásseis nesse nome; contudo, enchestes Jerusalém de vossa doutrina; e
quereis lançar sobre nós o sangue desse homem.
Os membros do Sinédrio estão sentados num semicírculo enquanto
os apóstolos permanecem de pé diante deles. Para Pedro e João, isto é
338
Robertson, Grammar, p. 940.
339
Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 55.
Atos (Simon J. Kistemaker) 291
uma repetição do que já tinham passado, mas para o resto dos apóstolos
é sua primeira experiência. O sumo sacerdote, como oficial presidente da
assembleia, dirige-se a eles. Aparentemente não está interessado em
saber como conseguiram escapar do cárcere não obstante que este fato
lhes tinha provocado não muita confusão há pouco. Ele e outros
membros enfocam sua atenção na ordem que tinham dado ao libertar
Pedro e a João. Embora seja verdade que na ocasião anterior eles tiveram
que ver só com dois apóstolos, não é menos certo que se entendia que a
ordem compreende a toda a igreja. Os crentes, entretanto, oraram
pedindo coragem para proclamar o evangelho, e, “cheios com o Espírito
Santo” [eles] começaram a comunicar a palavra de Deus com denodo”
(At 4:31). O anterior significa que desobedeceram a ordem do Sinédrio,
pelo que agora são acusados de desobediência.
Este é o assunto que eles expõem: “Expressamente vos ordenamos
que não ensinásseis nesse nome”. Note-se que o sumo sacerdote
intencionalmente esquiva o nome Jesus (veja-se também At 4:17) e
depreciativamente refere-se a ele como “esse homem”. 340 Mas agora se
cuida de dizer que tinha dado tais ordens com ameaças, quando os
membros do Sinédrio não podiam castigar os apóstolos. Sabe que assim
como suas ameaças eram palavras sem poder, também o eram suas
ordens. Parece estar pelejando uma batalha que tem de antemão perdida,
porque o que se está fazendo publicamente é justamente o contrário ao
que ele ordenou. Sabe que os apóstolos inundaram Jerusalém com os
ensinamentos de Jesus em aberto desafio a suas ordens; sem dúvida que
ele é incapaz de fazê-los desistir de seguir ensinando no nome de Jesus.
E reconhece que o Sinédrio não tem ensino algum que pudesse opor-se
às doutrinas de Cristo. Em sua frustração, expõe duas acusações
adicionais:

340
Já durante seu ministério, os líderes judeus tinham esquivado o nome de Jesus, referindo-se a ele
como “este enganador” e “este homem”. Veja-se Mt. 27:63; Jo. 9:16, 24; 11:47.
Atos (Simon J. Kistemaker) 292
1. “Enchestes Jerusalém de vossa doutrina”. O sumo sacerdote
continua evitando pronunciar o nome de Jesus; antes, afirma que os
ensinos se originam com os apóstolos. Mas estes reiteradamente têm dito
que eles não agem em seu próprio nome, e sim receberam autoridade de
Jesus (veja-se At 3:6, 16; 4:10).
2. “[Vós] quereis lançar sobre nós o sangue desse homem”. Com
suas próprias palavras está admitindo ter assassinado um inocente. O
sumo sacerdote não pode evitar a evidência de que o Sinédrio desejou a
morte de Jesus, mesmo quando Pôncio Pilatos não encontrou base para
condená-Lo (Lc 23:22). A referência ao sangue de Cristo é um claro eco
da resposta que o povo judeu deu à afirmação de Pilatos: “Estou inocente
do sangue deste justo ; fique o caso convosco!” (Mt 27:24). A multidão,
então, respondeu: “Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!”
(v. 25). Agora os membros do Sinédrio se dão conta que devem arcar
com a responsabilidade por ter derramado sangue inocente. Não
obstante, o sumo sacerdote opõe-se com energia à lembrança que
repetidamente Pedro lhe faz no sentido que foram as autoridades
judaicas e o povo ao qual eles instigaram os que levaram Jesus à morte,
cravando-O numa cruz. 341 A evidência contra os membros da corte
judaica é esmagador, mas o sumo sacerdote acusa os apóstolos de querer
lançar sobre ele e seus colegas do Sinédrio a responsabilidade pela morte
de Jesus.

Palavras, frases e construções gregas em At 5:28


οὑ — esta partícula negativa no começo da frase é parte de uma
questão retórica que supõe uma resposta afirmativa. Sua omissão muda a
oração a uma afirmação positiva. Bruce M. Metzger crê que a partícula
“é um agregado de algum escriba, ocasionada pela influência do verbo

341
Cf. At. 2:23; 3:13–15; 4:10–11.
Atos (Simon J. Kistemaker) 293
342
ἐπηρώτησεν no versículo 27”. Ele e vários outros tradutores preferem
omitir esta partícula.
παραγγελίᾳ παρηγγείλαμεν — a combinação de um substantivo e
um verbo da mesma família reflete a construção absoluta infinitiva do
hebraico. A construção é enfática e significa “estritamente lhes
ordenamos”. 343
βούλεσθε — embora apareça com menos frequência no Novo
Testamento que o verbo θέλω (eu desejo), este verbo expressa não um
futuro simples, mas sim um propósito.

b. A resposta (At 5:29–32)

Pedro foi o porta-voz do grupo de crentes de que Jesus subiu ao


céu. Ele é quem fala com os fiéis no cenáculo (At 1:15–22), à multidão
no Pentecostes (At 2:14–39), à multidão no pórtico de Salomão (At
3:12–26), e ao Sinédrio (At 4:8–12). De novo é ele quem se dirige à
assembleia em plenário.
29, 30. Então, Pedro e os demais apóstolos afirmaram: Antes,
importa obedecer a Deus do que aos homens. O Deus de nossos pais
ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, pendurando-o num madeiro.
Pedro começa dando resposta à primeira acusação do sumo
sacerdote: a desobediência à ordem do Sinédrio. E seu argumento é o
mesmo que usou diante do Sinédrio na última vez que se dirigiu a eles.
Naquela ocasião, ele lhes pediu que decidissem por si mesmos: “Julguem
os senhores mesmos se é justo aos olhos de Deus obedecer aos senhores
e não a Deus” (At 4:19, NVI). Agora, ele diz sem rodeios que os
apóstolos devem obedecer a Deus antes que aos homens. O Sinédrio é o
guia espiritual de Israel e para eles não deveria haver opção. Sua resposta

342
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 331.
343
Veja-se Moule, Idiom-Book, p. 178.
Atos (Simon J. Kistemaker) 294
unânime a uma pergunta com relação à obediência deve ser: “A Deus!”
Deus é o governante absoluto no céu e na terra.
Quando Pedro com o assentimento dos apóstolos diz que eles
obedecem a Deus antes que aos homens, o que está na verdade fazendo é
anular a crítica de que eles desobedeceram. Além disso, por sua própria
história nacional os membros do Sinédrio sabem da validez do princípio
de obedecer a Deus antes que aos homens. 344 Por exemplo, as parteiras
israelitas obedeceram a Deus antes que a Faraó (Êx 1:17); Ezequias
escutou ao Senhor e não ao rei da Assíria (2Rs 19:14–37). A Escritura
ensina que Deus abençoa a obediência mas aborrece a desobediência.
Portanto, os apóstolos devem obedecer a Deus e não as ordens do sumo
sacerdote.
Logo, Pedro responde às acusações do sumo sacerdote com relação
à morte de Jesus. Diz: “O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a
quem vós matastes, pendurando-o num madeiro”. Habilmente dá sua
resposta ao tribunal: as boas novas de que Jesus vive porque Deus O
levantou dentre os mortos. Note-se que se refere a Deus como “o Deus
de nossos pais”. Com estas palavras traz à lembrança de seus ouvintes a
Moisés, a quem Deus disse que dissesse aos israelitas no Egito: “O Deus
de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó,
me enviou a vós” (Êx 3:15). Com esta referência indireta à passagem
registrada por Moisés, Pedro lhes está demonstrando unidade e
continuidade com seus compatriotas israelitas. Com toda coragem fala
de Jesus, porque a esperança e a consolação de Israel foram envoltas
com a vinda do Messias, a quem Deus tinha enviado em Jesus Cristo.
Na corte, Pedro lembra aos membros do Sinédrio que eles são
responsáveis pela morte de Jesus ao tê-Lo pendurado “num madeiro”.
Escolhe cuidadosamente as palavras desta última frase porém não
precisamente porque queria descrever a morte de Jesus por crucificação
em termos poéticos. Ao contrário, emprega estas palavras porque

344
Consulte-se Harrison, Interpreting Acts, p. 108.
Atos (Simon J. Kistemaker) 295
procedem diretamente do Antigo Testamento. Quando as autoridades
judaicas planejaram a morte de Jesus, incitaram a multidão a gritar:
“Crucifica-o!” Eles conheciam as palavras do Antigo Testamento e
consequentemente queriam que Deus o amaldiçoara, em conformidade
com o mandato divino: “Maldito todo aquele que é pendurado num
madeiro” (Dt 21:23; Gl 3:13; veja-se também At 10:39; 13:29; 1Pe
2:24). Em resumo, eles procuraram usar a Deus para seus próprios
propósitos ímpios, negando a Jesus qualquer vestígio de divina graça e
favor. Diziam que a maldição de Deus devia cair sobre Ele por ter
morrido na cruz do Calvário; segundo eles, Ele não estava apto para
viver neste mundo e, devido à maldição de Deus, o céu tampouco O
receberia. Pedro, portanto, deliberadamente traz à memória do sumo
sacerdote e outros do Sinédrio as palavras das Escrituras que eles tinham
em mente quando pediram a Pilatos que crucificasse a Jesus.
31. Deus o exaltou, colocando-o à sua direita como Príncipe e
Salvador, para dar a Israel arrependimento e perdão de pecados [NVI].
O sujeito do versículo 30 e deste é Deus. Ao fazer insistência neste
sujeito, Pedro está dizendo claramente aos membros do Sinédrio que eles
cometeram um crime contra o Todo-poderoso, quem levantou Jesus da
morte e O exaltou à posição mais privilegiada no céu, precisamente, à
direita de Deus. Eles mataram a Jesus, mas Deus O ressuscitou dos
mortos (veja-se At 2:24; 3:15; 4:10). Eles O condenaram, crucificando-
O, mas Deus O exaltou à mais alta posição (veja-se At 2:33). Deus está
operando na morte, ressurreição e ascensão de Jesus.
Num sentido, Pedro está repetindo partes do sermão que tinha
pregado no Pentecostes. Nesse dia ele disse à sua audiência que Jesus
tinha subido ao céu para tomar Seu lugar junto a Deus o Pai em
cumprimento da profecia messiânica de Salmo 110:1 (At 2:34–35).
Agora diz aos membros do Sinédrio que eles mataram o Messias, a quem
Deus levantou à vida e Lhe deu um lugar junto a Ele no céu. Quer dizer,
eles são culpados tanto diante de Deus como diante de Jesus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 296
Pedro refere-se a Jesus como a Príncipe e Salvador. Diz Príncipe
por sua exaltada posição e Seu estado de “Príncipe da vida” (At 3:15). O
termo Salvador aparece só duas vezes em Atos: aqui e em At 13:23.
Estas descrições são importantes. Com elas, Pedro informa a seus
ouvintes que este Príncipe não é somente um governante, quem sobre a
base de Sua exaltada posição e divina autoridade exige a obediência do
homem. É também Salvador, por quem o homem deve ser salvo. Numa
ocasião anterior, Pedro aconselhou aos governantes e anciãos de Israel
que a salvação pode ser recebida só através do nome de Jesus (At 4:12).
Agora, mais diretamente, informa-lhes que Jesus é Salvador “para dar a
Israel [pela vontade de Deus] arrependimento e perdão de pecados”.
Embora a salvação compreende uma mudança total da mentalidade do
pecador, declara que tanto o arrependimento como o perdão de pecados
são dons de Deus. Os dois conceitos, arrependimento e perdão de
pecados são as partes componentes das boas novas pregadas por João
Batista (Mc 1:4), Jesus (Mt 4:17), e os apóstolos (Lc 24:47; At 2:38;
13:38). Naturalmente, a importância do nome de Jesus é que Ele salva o
Seu povo dos pecados deles (Mt 1:21). 345
No cenário do Sinédrio, Pedro enfatiza que tanto o arrependimento
como o perdão dos pecados são dons de Deus a Israel. Uns poucos anos
mais tarde, os gentios também recebem a remissão de pecados (At
10:43) para validar a afirmação angélica segundo a qual “as boas novas
de grande alegria serão para todo o povo” (Lc 2:10). Pedro já mostrou
sua unidade e continuidade com seus compatriotas judeus ao falar do
Deus de seus pais. Agora revela que, através de Jesus, Deus proveu
salvação para Seu povo Israel. Assim, Deus oferece Seus dons até aos
membros do Sinédrio que precisam ser absolvidos de seu crime
aborrecível.

345
Para um estudo mais profundo das palavras Príncipe e Salvador, consulte-se de Richard N.
Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity, Studies in Biblical Theology, 2ª. série 17
(Londres: SCM; 1970), pp. 55–58, 141–44.
Atos (Simon J. Kistemaker) 297
32. Ora, nós somos testemunhas destes fatos, e bem assim o Espírito
Santo, que Deus outorgou aos que lhe obedecem.
Notemos os seguintes pontos:
a. Testemunhas. Na verdade, Pedro está repetindo as palavras ditas
por Jesus a Seus discípulos no cenáculo na noite do domingo da
ressurreição. Ali, Jesus lhes explicou as Escrituras; abriu suas mentes
para que pudessem entender o cumprimento messiânico de tais
Escrituras; mostrou-lhes a importância de Seu sofrimento, morte, e
ressurreição; falou-lhes sobre pregar em Seu nome o arrependimento e
perdão de pecados; comissionou-os como testemunhas destas coisas; e
lhes mandou esperar em Jerusalém até que recebessem poder do alto, o
qual é o dom do Espírito Santo (Lc 24:44–49). Pedro faz eco das
palavras de Jesus, especialmente quando diz que os apóstolos são
testemunhas destas coisas. Ele e os apóstolos são testemunhas oculares
do que falam com todos a respeito da pessoa e obra de Jesus Cristo. 346
b. O Espírito Santo. Pedro não diz que os apóstolos estão no mesmo
nível que o Espírito Santo em testificar de Jesus. Claro que não o estão.
Em suas epístolas, Pedro esclarece esta matéria quando escreve que nas
Escrituras o Espírito Santo apontou o tempo e as circunstâncias do
sofrimento de Cristo e as glórias que lhe seguiriam (1Pe 1:11; veja-se
também 2Pe 1:21). O Espírito Santo capacitou os apóstolos para que
testificassem para Jesus e trabalha através deles (Mt 10:20; Jo 14:26;
15:26–27).
c. O dom. O Espírito Santo é o dom de Deus para Seu povo. Todo
aquele que põe sua confiança em Jesus, arrepende-se, é batizado e
perdoado, recebe o Espírito Santo (At 2:38–39). Pedro explicitamente
estabelece que Deus dá o Espírito “aos que lhe obedecem”. Pedro chama
o sumo sacerdote e outros membros do Sinédrio à obediência, fé, e
arrependimento. Se eles recusam aceitar a Jesus como seu Salvador, não

346
Veja-se também At 1:8, 22; 1Pe. 5:1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 298
recebem o dom do Espírito Santo. E então a culpa por seu crime
permanecerá com eles para sempre.
Pedro usa a palavra obediência, a qual repete do começo de sua
defesa: “Devemos obedecer a Deus antes que aos homens” (v. 29). O
termo que emprega, entretanto, não somente implica que seus ouvintes
sejam persuadidos a acatar voluntariamente as ordens de alguém. Isso é
bom em si mesmo. Mas a palavra significa que obedientemente e sem
tardança a pessoa cumpra essas ordens. 347 Isto é o que Pedro pede a seu
auditório. Se os sinedristas obedecessem a Jesus, então experimentariam
a obra do Espírito Santo.

Considerações doutrinais em At 5:27–32


No século XVI, o reformador João Knox cunhou este lema: “Com
Deus, o homem sempre é maioria”. Não sabemos como viu Knox a
Pedro e sua vida, mas pela Escritura sabemos que Pedro demonstrando
uma grande coragem enfrentou os setenta e um membros da corte
suprema de Israel. Ele nunca recebeu treinamento algum em matéria de
defesa legal, porém com toda sabedoria respondeu as acusações que se
lhe apresentaram. Ao dirigir-se ao Sinédrio, experimentou o poder do
Espírito Santo que lhe permitiu formular com eficácia sua posição.
O sumo sacerdote deu-se conta que ao ensinar o evangelho de Jesus
Cristo, os apóstolos diziam continuamente às pessoas de Jerusalém que o
Sinédrio era culpado de derramar sangue inocente. O evangelho,
portanto, punha-os sob juízo e os chamava ao arrependimento, à fé, à
obediência. Se tivessem escutado a palavra dos apóstolos, teriam tido
que abandonar o sacerdócio. Enfrentavam, então, uma decisão crucial:
pôr-se a favor de Jesus ou contra Ele. O escritor de Atos diz que “um
grande número de sacerdotes obedecia à fé” (At 6:7, NVI).

347
Cf. John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols.
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 562.
Atos (Simon J. Kistemaker) 299
Palavras, frases e construções gregas em At 5:29–32
Versículo 29
οἱ ἀπόστολοι — a palavra ἄλλοι (outros) está implícita; 348 assim,
“Pedro e os outros apóstolos”.
πειθαρχεῖν δεῖ —“é necessário obedecer”. Neste caso, as palavras
significam divina necessidade. O composto se deriva de πείθομαι (estou
persuadido) e ἀρχή (um líder): “obedecer a um governante”. 349 Em seu
discurso, Pedro usa o verbo duas vezes (veja-se v. 32).

Versículo 30
διεχειρίσασθε — este verbo no meio aoristo aparece uma só vez no
Novo Testamento. A forma composta é perfectiva, “pôr as mãos
violentas sobre”.
κρεμάσαντες — um particípio aoristo que expressa meios ou
maneira: “pendurando-o num madeiro”.

Versículo 31
τῇ δεξιᾷ — o caso dativo pode ser ou forma ou lugar: “com sua
destra” ou “à sua destra”. Os tradutores estão divididos neste ponto da
gramática. Veja-se At 2:33.
τοῦ δοῦναι — o infinitivo ativo aoristo de δίδωμι (eu dou) com o
artigo definido no caso genitivo denota propósito.

Versículo 32
τῶν ῥημάτων —literalmente, o substantivo significa “palavras” mas
o contexto exige a tradução coisas.

348
Robertson, Grammar, p. 747.
349
Thayer, p. 497.
Atos (Simon J. Kistemaker) 300
4. A sabedoria e a persuasão (At 5:33–40)

Muitos na sala reagiram negativamente à resposta de Pedro,


enquanto outros simpatizaram com a causa dos crentes. E podemos supor
que ainda outros, como Nicodemos, eram seguidores de Jesus. Como
resultado, o sumo sacerdote não pôde contar com todo o apoio dos
membros do Sinédrio.

a. A reação (At 5:33–34)

33, 34. Eles, porém, ouvindo, se enfureceram e queriam matá-los.


Mas, levantando-se no Sinédrio um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da
lei, acatado por todo o povo, mandou retirar os homens, por um pouco.
Os apóstolos que proclamam o evangelho de Cristo podem dizer:
“Para estes somos cheiro de morte; para aqueles, fragrância de vida”
(2Co 2:16, NVI). Quando os judeus no Pentecostes vêm a Pedro depois
de seu sermão, fazem-no compungidos e arrependidos (At 2:37). Quando
os saduceus no Sinédrio ouvem as palavras de Pedro afligem-se, porém
não de arrependimento, mas de raiva. Estão tão furiosos que de boa
vontade matariam os apóstolos (cf. At 7:54). Recusam aceitar o
evangelho que os chama a obedecer a Deus e, pelo contrário, querem
varrer da face da terra os seguidores de Jesus. Mesmo quando sabem que
não têm poder para levar a cabo uma condenação à morte, buscarão a
maneira de matá-los (veja-se At 7:57–58). Executaram a Jesus com a
ajuda do governador romano; agora querem eliminar Seus discípulos.
Durante o ministério de Jesus, Seus oponentes foram os fariseus e
os intérpretes da lei. Os saduceus quase nunca vinham a Ele com suas
perguntas (Mt 22:23). No tempo após Pentecostes, entretanto, sentem-se
ameaçados pela crescente influência dos apóstolos. A oposição dos
fariseus, ao contrário, é atenuada. Na verdade, alguns destes veem nos
cristãos um aliado, porque pregam a doutrina da ressurreição. Eles, que
sustentam essa doutrina, opõem-se aos saduceus, que não a aceitam;
Atos (Simon J. Kistemaker) 301
portanto, sentem-se felizes com o respaldo que recebem neste sentido da
parte da comunidade cristã. 350 No Sinédrio, os fariseus mantêm o
equilíbrio do poder e inclusive um deles, Gamaliel, dá um conselho que
favorece aos apóstolos.
“Um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei”. Gamaliel tinha
nascido numa família de mestres da lei mosaica. Era filho do rabi
Simeão e neto do influente rabi Hillel, quem tinha fundado uma escola
para fariseus. Gamaliel chegou a ser um dirigente dessa escola, que era
conhecida por sua tendência mais liberal que seu rival, a escola do rabi
Shammai. Gamaliel era um homem tolerante e cauteloso e também
servia no Sinédrio como um dos sábios.351 Paulo foi um de seus
discípulos, porque quando se identifica, diz ser educado e treinado na lei
por Gamaliel (At 22:3). Paulo, não obstante, adotou uma atitude
intolerante para com os primeiros completamente de acordo com seus
mestres e seguem um curso contrário ao que foi ensinado. “[Gamaliel
era] acatado por todo o povo”. Na literatura judaica, Gamaliel é
mencionado repetidamente como Rabban Gamaliel o Ancião (para
distingui-lo de seu neto Gamaliel II) por ter dado sábios conselhos com
relação a assuntos relacionados com o relaxamento da observância do
sábado e a proteção da mulher em caso de divórcio. Os judeus iam a ele
para ser guiados, especialmente no Sinédrio. Seu período de influência
foi aproximadamente entre os anos 25 e 50 d.C. 352 Lucas, quem
possivelmente obteve a substância do discurso de Pedro através de um
membro do concílio simpatizante com os apóstolos, apresenta a
Gamaliel como um eminente líder no juízo dos apóstolos.

350
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; reimp. Grand Rapids: Baker, 1964), p. 45.
351
Ronald F. Youngblood, “Gamaliel”, ISBE, vol. 2, pp. 393–94.
352
Consulte-se SB, vol. 2, pp. 636–39.
Atos (Simon J. Kistemaker) 302
Palavras, frases e construções gregas em At 5:33–34
διεπρίοντο — o passivo imperfeito de διαπρίω (eu parto em dois)
significa ação continuada em tempo passado. O composto é diretor.
βραχύ — usada adverbialmente, esta palavra expressa tempo (um
momento), não lugar ou quantidade.

b. A sabedoria (At 5:35–39)

Gamaliel pediu que a assembleia fizesse a sessão privadamente,


portanto ordenou que os apóstolos saíssem da sala por um momento (cf.
At 4:15). Em seguida, ele dirige-se ao concílio para expor seu ponto de
vista.
35, 36. Então lhes disse: Israelitas, considerem cuidadosamente o que
pretendem fazer a esses homens. Há algum tempo, apareceu Teudas,
reivindicando ser alguém, e cerca de quatrocentos homens se juntaram a
ele. Ele foi morto, todos os seus seguidores se dispersaram e acabaram em
nada [NVI].
Note-se que Gamaliel separa a sua intenção das intenções do sumo
sacerdote e de seus associados saduceus. E isso se observa porque não
usa a primeira pessoa do plural nós para incluir-se a si mesmo em suas
decisões. Em lugar disso, dirige-se a eles na segunda pessoa do plural
vós, deixando em evidência que ele não é parte das ações da assembleia,
mas cumpre como assessor. Vê como alguns estão furiosos ao ponto de
até chegarem a cometer homicídio, o que ele, um homem de moderação,
não pode aceitar. Portanto, com palavras tranquilas e dois exemplos
tomados da história recente, tenta conter os excessos do Sinédrio. 353
a. Teudas. Gamaliel menciona Teudas (o nome talvez seja uma
contração do Teodoro, Teodato, ou Teodósio), um líder político que
atraiu a seu lado a quatrocentos homens que se transformaram em seus
seguidores. Mas ele foi morto e aquele grupo se dispersou. Lucas não dá

353
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 152.
Atos (Simon J. Kistemaker) 303
datas relacionadas com o exemplo. Supõe-se que tenha apresentado os
casos em sua sequência histórica e que isso ocorreu antes do
levantamento encabeçado por Judas, o galileu no ano 6 d.C. (v. 37).
Josefo inclui em sua obra um relato a respeito de um tal Teudas, quem se
autoproclamou profeta, que persuadiu uma grande massa de gente a
juntar suas posses e segui-lo ao Jordão; prometeu-lhes guiá-los através
do rio como por terra seca. Ali Cúspio Fado, procurador da Judeia (44–
46 d.C.) e seus soldados o mataram e com ele a um grupo de seus
seguidores. 354
Alguns estudiosos objetam que Lucas mencione um acontecimento
que ocorreu mais de uma década depois de Gamaliel ter-se dirigido ao
Sinédrio. Mas devido ao fato de que Josefo não escreveu este relato
senão até o 93 d.C., Lucas não teve acesso às Antiguidades de Flávio
Josefo. À parte da data, o relato de Josefo difere significativamente do
exemplo apresentado por Gamaliel diante do Sinédrio; portanto, não é
remota a possibilidade que outra pessoa do mesmo nome tenha dirigido
uma rebelião que teve lugar antes do tempo de Judas, o galileu. 355
Com este exemplo Gamaliel dá a entender que assim como Teudas
teve uns quatrocentos seguidores que, com sua morte, dispersaram-se
assim Jesus tem também os Seus. Jesus, contudo, já foi crucificado pelo
que, está implícito nas palavras de Gamaliel, que é questão de tempo
para que Seus seguidores debandem.
37. Depois desse, levantou-se Judas, o galileu, nos dias do
recenseamento, e levou muitos consigo; também este pereceu, e todos
quantos lhe obedeciam foram dispersos.
b. Judas. Durante o reinado do imperador Augusto, levantou-se um
censo ao menos em duas ocasiões: um foi no ano 6 a.C. (Lc 2:2) e o
outro foi no ano 6 d.C. Toda vez que levar a cabo um censo não só

354
Josefo, Antiguidades 20.5.1 [97].
355
SB, vol. 2, p. 640. Uma situação análoga de duas sublevações separadas teve lugar na Irlanda em
1848 e em 1891. Em ambas as rebeliões o líder foi um certo William O’Brien. Veja-se Grosheide,
Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 184 n. 3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 304
incluía contar à população, mas também pagar os impostos ao governo
de Roma, os judeus se sentiram ressentidos com quem levavam a cabo
aquela tarefa. No segundo censo tiveram lugar revoltas contra o
pagamento de impostos a Roma. Judas, nativo de Gamala em Gaulaniti
(nas Alturas de Golã) rebelou-se, fez com que o povo se rebelasse, e
conseguiu o respaldo dos judeus. Mas Judas foi morto quando as forças
romanas esmagaram sua revolta e dispersaram seus seguidores. 356 Um
resultado da rebelião de Judas foi o nascimento do partido dos zelotes, ao
qual ao menos um dos doze discípulos, Simão Zelote, pertencia (Mt
10:4).
O segundo exemplo de Gamaliel, então, não é tão surpreendente
como sua primeira ilustração; enquanto os seguidores de Teudas foram
dispersos, alguns daqueles que seguiram a Judas chegaram a ser os
zelotes, que formaram parte do espectro político da Judeia no século I.
Num sentido similar, Jesus morreu, mas Seus discípulos chegaram a
alterar a configuração religiosa de Israel.
Com o segundo exemplo, Gamaliel observa a seus colegas: tolerem
os cristãos assim como toleram os zelotes.
38, 39. Agora vos digo: Não vos metais com esses homens, mas
deixai-os; porque se este conselho ou esta obra for de homens, se desfará;
mas se é de Deus, não podereis desfazê-la, para que não sejais,
porventura, achados até pelejando contra Deus [TB].
Gamaliel aplica seus exemplos a este caso e sugere aos membros do
Sinédrio que deixem os apóstolos tranquilos e lhes deem a liberdade.
Aconselha-lhes que não se coloquem com eles e os faz ver que sua
participação na morte de Jesus descansa agora sobre suas consciências, o
que os faz sentir culpados. Diz-lhes que soltem os apóstolos, tal como o
fizeram com Pedro e João pouco antes.
Usando duas frases condicionais, convence os seus ouvintes que se
este novo movimento é humano, cairá. Mas se sua origem é divina, não
356
Josefo Antiguidades 17.13.5 [354]; 18.1.1 [1]. Ele dá a data exata do censo como “o ano trinta e
sete depois da derrota de Antônio por César”, o que é o ano 6 d.C. (veja-se 18.2.1 [26]).
Atos (Simon J. Kistemaker) 305
poderão lutar contra Deus. No grego, estas duas frases revelam uma
ênfase diferente. A primeira expressa certa insegurança em Gamaliel:
“Se este conselho ou esta obra for de homens, se desfará”. Os exemplos
providos pela própria história de seu povo demonstram que os
movimentos originados no homem mais cedo ou mais tarde cairão, e
causam mais dano que bem.
De tudo o que Gamaliel ouviu em Jerusalém, ele não está de
maneira nenhuma convencido que esta nova religião seja de origem
humana tanto em propósito como em atividade. Sabe que os próprios
apóstolos repetidamente ensinam primeiro, que sua religião é o
cumprimento das Escrituras e segundo, que eles devem obedecer a Deus
antes que aos homens (vv. 29, 32). Portanto, na segunda frase
condicional, Gamaliel expressa uma realidade ou fato simples: “Mas se é
de Deus, não podereis desfazê-la, para que não sejais, porventura,
achados até pelejando contra Deus”. A implicação que Gamaliel faz aqui
é que o cristianismo se origina com Deus. Portanto, persuade os
membros da corte a deixarem os apóstolos livres.
O Texto ocidental do manuscrito grego expande os versículos 38 e
39 através de acrescentar-lhes palavras e frases e um interessante
comentário ao conselho de Gamaliel. Eis aqui esta tradução com os
acrescentados em itálico:
Por isso no presente caso, irmãos, digo-lhes: afastem-se destes
homens e deixem-nos ir, e não sujem as mãos; porque se este é um plano
ou empresa de homens, cairá, mas se for de Deus, não poderão destruí-
los: nem vocês, nem reis, nem tiranos. Portanto, afastem-se destes
homens, não seja que se achem opondo-se a Deus. 357
A última cláusula “para que não sejais, porventura, achados até
pelejando contra Deus”, é uma oração que está separada da anterior.
Gamaliel recorre ao expediente de proferir uma advertência quando pede
a seus irmãos judeus reconhecer uma verdade que conhecem das

357
Metzger, Textual Commentary, p. 335.
Atos (Simon J. Kistemaker) 306
Escrituras: “Não pelejeis contra o SENHOR, Deus de vossos pais,
porque não sereis bem sucedidos” (2Cr 13:12; cf. também Pv 21:30).

Palavras, frases e construções gregas em At 5:35–39


Versículo 35
προσέχετε ἑαυτοῖς ἐπί —o imperativo presente com o pronome
reflexivo no caso dativo (“ponde atenção a vós mesmos”) está seguida
por ἐπί, que significa “no caso de” ou “contra”.
μέλλετε — com o infinitivo presente, é o equivalente ao tempo
futuro (compare At 9:43).

Versículo 36
διελύθησαν — o composto tem uma conotação perfectiva: “perder
completamente” ou “dissolver”.

Versículos 38–39
ἐὰν ᾖ — esta frase condicional com o subjuntivo presente denota
insegurança. O uso de εἰ com o indicativo presente ἐστιν expressa
certeza. A. T. Robertson diz: “Gamaliel dá ao cristianismo o benefício da
dúvida. Assume que o movimento é de Deus e põe em condicional a
frase alternativa “se for de homens”. Isto naturalmente não dá certeza de
que Gamaliel tenha sido um cristão ou alguém que buscasse sê-lo.
Simplesmente estava assinalando um ponto objetivo contra os
358
saduceus”.

358
Robertson, Grammar, p. 1018.
Atos (Simon J. Kistemaker) 307
c. A persuasão (At 5:40)

40. Chamando os apóstolos, açoitaram-nos e, ordenando-lhes que


não falassem em o nome de Jesus, os soltaram.
O prudente conselho de Gamaliel acalmou a seus colegas.
Persuade-os a deixarem em liberdade os apóstolos (veja-se At 4:21).
Note-se que ele, um fariseu, é capaz de exercer uma eficaz liderança no
Sinédrio dominado pelos saduceus. Sua sabedoria, conhecimento da lei
de Moisés e o respeito da população judaica fazem dele um porta-voz
formidável cujo conselho é prontamente aceito.
O sumo sacerdote e seus colegas chamam os apóstolos. Em lugar de
pressioná-los com ameaças como o tinham feito anteriormente, açoitam-
nos. De acordo com a lei de Moisés, um homem que é achado culpado
de um crime deve receber um açoite. O juiz ordena ao réu que se coloque
no solo de cabeça para baixo e assim, diante de sua presença, é açoitado.
Os açoites que recebe o culpado são determinados pelo juiz, mas em
nenhum caso devem exceder a quarenta (Dt 25:2–3). Paulo diz que ele
foi açoitado cinco vezes e que recebeu da parte dos judeus os estipulados
quarenta açoites menos um (2Co 11:24). Outros concílios menores
castigavam os violadores da lei com os açoites aplicados na sinagoga
(Mt 10:17).
Os açoites eram administrados na parte superior do corpo do réu
com um látego feito de pele de bezerro. Um terço das chicotadas eram
dadas no peito e os outros dois terços nas costas. O réu permanecia de pé
mas numa posição dobrada e aquele que administrava o castigo
colocava-se numa pedra mais acima que ele. Os golpes eram
acompanhados com a recitação de versículos de admoestação e
consolação das Escrituras. 359
O tribunal deixa os apóstolos em liberdade, com a recomendação de
que “não falassem mais no nome de Jesus” (veja-se At 4:18). Os

359
H. Cohn, “Flogging”, Encyclopaedia Judaica, vol. 6, p. 1350.
Atos (Simon J. Kistemaker) 308
membros do Sinédrio reconhecem sua incapacidade para deter o
crescimento da igreja, porque demonstram sua impotência submetendo
os apóstolos ao castigo dos açoites.

5. O regozijo (At 5:41–42)

As reações dos apóstolos parecem contrárias às emoções humanas


comuns e correntes. Quando no momento da ascensão Jesus deixou os
Seus discípulos, eles voltaram para Jerusalém “com grande alegria” (Lc
24:52). Quando os apóstolos são açoitados, abandonam o Sinédrio
prazerosos. Os seguidores de Jesus olham à vida sob uma perspectiva
divina e dizem que sofrer por Cristo é uma honra.
41. E eles se retiraram do Sinédrio regozijando-se por terem sido
considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome.
Ao ordenar o Sinédrio que os apóstolos fossem açoitados, o povo
deveria vê-los como criminosos que tinham quebrantado a lei, melhor
dizendo, a ordem de não falar nem ensinar no nome de Jesus. Os açoites
marcavam os apóstolos como infratores da lei e aquilo era sinal de
desonra.
Mas eles não se sentiram envergonhados por aquele castigo.
Lembraram as bem-aventuranças de Jesus de rejubilar-se e alegrar-se
sempre que as pessoas os insultassem e instigassem a perseguição contra
eles. Disse Jesus: “Grande é o vosso galardão nos céus” (Mt 5:12). Anos
mais tarde, Pedro mesmo deu ânimo aos cristãos na Ásia Menor:
“Alegrai-vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de
Cristo” (1Pe 4:13; veja-se também 2Ts 1:4). Em sua epístola aos
Romanos, Paulo também informa a seus leitores que os cristãos se
alegram em seus sofrimentos (Rm 5:3). Enfim, os cristãos são triunfantes
e estão cheios de alegria quando sofrem pelo nome de Jesus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 309
É significativa neste versículo a expressão nome e, por isso,
algumas traduções a escrevem com maiúscula. 360 Compreende a verdade
de Deus revelada em Jesus Cristo como Salvador do mundo. Nesta
forma abreviada, “esse Nome” a referência obviamente é a Jesus, a Sua
pessoa e a Sua obra, e às boas novas que Seu povo proclama (veja-se At
9:16; 3Jo 7). A propósito, os cristãos primitivos com frequência
empregavam termos resumidos para identificar o cristianismo, p. ex., “O
Caminho” [At 9:2; 19:9, 23; 22:4; 24:14, 22]).
42. Todos os dias, no templo e de casa em casa, não deixavam de
ensinar e proclamar que Jesus é o Cristo [NVI].
Os apóstolos tiveram sua boa experiência na corte e venceram. Ao
obedecer o mandamento do Senhor de dar ao povo a plena mensagem da
salvação (v. 20), desobedecem a ordem do Sinédrio. De fato, voltam ao
mesmo lugar onde tinham sido presos e continuaram ensinando, como se
nada acontecera, nos átrios do templo, provavelmente no pórtico de
Salomão. E o fazem sabendo que o sumo sacerdote não os pode fazer
calar. Cada dia encontram-se nos átrios do templo com uma multidão à
qual dão massivamente a mensagem. Mas também dirigem seus esforços
evangelísticos às pessoas e, por conseguinte, às famílias de casa em casa.
Séculos antes, Jeremias profetizou palavra de Deus dizendo: “Não
ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão,
dizendo: Conhece ao SENHOR, porque todos me conhecerão, desde o
menor até ao maior deles” [Jr 31:34].
Esta profecia chega a cumprir-se em Jerusalém. Em toda a cidade as
pessoas sabem que Jesus é o Cristo, quem cumpriu as profecias
messiânicas das Escrituras (At 2:36).

Considerações doutrinais em At 5:41–42


Nas palavras de um de seus bem conhecidos hinos, Isaque Watts faz
uma importante pergunta:

360
Como a própria NVI.
Atos (Simon J. Kistemaker) 310
Sou eu soldado de Jesus?
Um servo do Senhor?
E temerei levar a cruz sofrendo por seu amor?
Os apóstolos não só proclamaram o nome de Jesus nos átrios do
templo e de casa em casa, mas ainda agradeceram a Deus por lhes haver
achados dignos de sofrer por Seu nome. Isto naturalmente não significa
que o cristão busque ser perseguido ou reprimido, porque sofrer por
alcançar uma recompensa ativa o ego do homem e isso não tem nenhum
valor aos olhos de Deus. Tampouco o cristão deve evitar a todo custo
sofrer por Cristo, porque isso seria um alegrar-se e estar prazeroso,
porque sua recompensa será grande nos céus. A adversidade é, muitas
vezes, a ferramenta de Deus para fortalecer a fé e confiança do crente.
As provas do cristão hoje em dia são momentâneas e não podem ser
comparadas com a glória eterna que o espera no céu (2Co 4:17).

Palavras, frases e construções gregas em At 5:41–42


Versículo 41
μὲν οὗν — esta combinação expressa uma ideia de resumo e
transição. Não indica contraste, porque δέ não está. Uma tradução
simples é “e assim”. 361 Algumas versões em português a omitem.
ἐπορεύοντο — o meio imperfeito é descritivo e durativo. Deveria
ser tomado com o gerúndio regozijando-se.
ὑπέρ — com o caso genitivo, esta preposição significa “pelo amor
de”

Versículo 42
οὑκ ἐπαύοντο — no meio imperfeito, este verbo mostra ação
contínua no tempo passado e controla dois particípios para suplementar

361
Moule, Idiom-Book, p. 162.
Atos (Simon J. Kistemaker) 311
seu significado. Eles estão διδάσκοντες (ensinando) e εὑαγγελιζόμενοι
(proclamando as boas novas).

Resumo de Atos 5
Ananias procura enganar o Espírito Santo, é repreendido por Pedro,
e é castigado por Deus com a morte súbita. Sua esposa, Safira, quem
participou do engano, é interrogada por Pedro e tem um destino similar
ao de seu esposo. A repentina morte destas duas pessoas provoca muito
temor tanto na igreja como no povo que sabe do caso.
Os apóstolos realizam numerosos milagres curando os doentes e os
possessos de demônios. Até a sombra de Pedro ao projetar-se sobre os
corpos doentes é suficiente para curá-los.
O sumo sacerdote e seus colegas se enchem de inveja pelo que
prendem os apóstolos e os colocam na prisão. Um anjo os liberta durante
a noite e lhes dá ordens de seguir pregando as Boas Novas nos átrios do
templo. Fazem isso no dia seguinte. Quando os oficiais enviados pelo
sumo sacerdote chegam à prisão para tirar os apóstolos e levá-los à sala
onde o Sinédrio está reunido, encontram-se com as celas vazias. Buscam
os apóstolos no templo e dali os levam a tribunal que deveria julgá-los.
O sumo sacerdote os acusa de desobedecer a ordem estrita que lhes tinha
dado de não ensinar no nome de Jesus, mas Pedro, com os demais
apóstolos, defende suas atividades e proclama a Cristo e Sua
ressurreição. Os membros do Sinédrio estão furiosos até o ponto de
querer matar os apóstolos, mas Gamaliel intervém com um sábio
conselho. Persuade-os de deixar os apóstolos livres. Depois de ser
submetidos a açoites, os apóstolos voltam ao templo e continuam
ensinando e proclamando o evangelho de Jesus Cristo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 312
ATOS 6
A IGREJA EM JERUSALÉM, parte 5 (At 6:1–15)
D. O ministério e a morte de Estêvão (At 6:1–8:1a)

1. A escolha de sete homens (At 6:1–7)

Lucas introduz uma nova fase no desenvolvimento da igreja. Seu


incessante crescimento cria problemas administrativos que afetam a
unidade da igreja. Os doze apóstolos estão dedicados ao ensino da
doutrina cristã (At 2:42) e à evangelização nos bairros de Jerusalém.
Além disso, têm a responsabilidade de distribuir a ajuda que foi posta em
suas mãos para aliviar as necessidades dos pobres. Mas agora se
apresenta um novo problema entre os crentes de fala grega, cujas viúvas
estão sendo adiadas na distribuição diária de alimentos.

a. O problema e sua solução (At 6:1–4)

1. Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos,


houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas
deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária.
a. “Naqueles dias”. Não é possível determinar o ano exato ou a
ocasião a que Lucas se refere. Evidentemente está escrevendo a respeito
do tempo que se seguiu ao juízo contra os apóstolos e seu esforço
concertado para pregar e ensinar o evangelho por toda Jerusalém. O
resultado deste trabalho tão intenso é que a membresia da igreja cresceu
a passos largos. Não é possível estabelecer o número de cristãos que
pertenciam à igreja de Jerusalém. Da cifra final que Lucas nos dá
podemos supor que provavelmente dobrou seu tamanho: “cinco mil
homens” (At 4:4; veja-se também At 5:14).
Atos (Simon J. Kistemaker) 313
As estatísticas com relação ao número de habitantes de Jerusalém
durante o primeiro século são só estimativas. Há cifras tanto procedentes
de antigas fontes como providas por estudiosos modernos; mas entre
ambas há importantes disparidades que vão de três milhões a vinte
mil. 362 William S. LaSor afirma: “As cifras de procedência antiga,
embora pareçam incríveis, com frequência não estão mais erradas que os
cálculos feitos pelos especialistas”. 363
Note-se que Lucas identifica aos crentes como discípulos. Nos
tempos em que Jesus realizou seu ministério, os Doze mais os setenta
eram conhecidos como discípulos. Agora estes doze apóstolos chegaram
a ser os mestres e os novos convertidos são seus discípulos (p. ex. At 6:1,
2, 7; 9:1, 10, 19).
b. “Houve murmuração dos judeus de fala grega contra os das fala
aramaica”. Pelo relato do Pentecostes sabemos que judeus devotos
tinham vindo da dispersão para estabelecer-se em Jerusalém (At 2:5–11).
Muitos deles eram gente já anciã que desejavam passar os últimos dias
de suas vidas na cidade santa. Pelo fato de ter vivido em outros sítios sua
língua materna era o grego, não o arameu ou o hebraico (que era o
idioma que falavam os judeus de Jerusalém). Não poucos aceitaram o
evangelho de Jesus Cristo e chegaram a ser parte da igreja. No entanto,
antes de chegar a ser cristãos, cada grupo tinha sua própria sinagoga e
quando chegaram a ser discípulos, tanto os de língua grega como os de
língua aramaica continuaram tendo suas próprias assembleias. Além
disso, cada grupo usava sua própria Bíblia; os judeus de fala grega
estavam acostumadas à a Septuaginta (uma tradução grega das Escrituras
hebraicas) enquanto que os judeus que falavam hebraico liam o Antigo
Testamento no hebraico original. Aqui temos, então, a origem de uma
divisão que partiu com as diferenças linguísticas e culturais.

362
Josefo Guerra judaica 2.14.3 [280]; Joachim Jeremías, Jerusalem in the Time of Jesus (Filadelfia:
Fortress, 1969), p. 84.
363
William S. LaSor, “Jerusalem”, ISBE, vol. 2, p. 1014.
Atos (Simon J. Kistemaker) 314
O termo traduzido “judeus de fala grega” [NVI] aparece no texto
grego como “helenistas”. Este termo deu origem a muito debate entre os
estudiosos dos primeiros tempos do cristianismo até nossos dias. Se
descontarmos as variantes textuais, encontramos o termo três vezes em
Atos. Em At 6:1, os tradutores corretamente lhe dão o significado de
judeus cristãos de língua grega. O termo também aparece em At 9:29,
onde significa judeus que falavam grego, mas que não eram cristãos. Em
At 11:20 refere-se às pessoas que não eram nem judias nem gregas, cuja
língua nativa era o grego. Os estudiosos geralmente concluem em que o
significado da expressão helenistas deve ser determinado pelo contexto
em que é usado. 364
c. “As viúvas deles estavam sendo esquecidas”. Os cristãos de
Jerusalém que falavam aramaico eram a maioria e crentes que falavam
grego formavam a minoria. Embora a harmonia e a unidade eram as
características da igreja cristã, as diferenças linguísticas e culturais
causavam uma separação inevitável. As viúvas do grupo minoritário
sentiram-se especialmente deixadas de lado e abandonadas. “Estavam
sendo esquecidas na distribuição diária de alimento” [NVI] e já não
podiam voltar para a sinagoga em busca de ajuda. A forma em que está
escrito o texto estabelece só o fato de que as viúvas dos judeus de fala
grega eram desatendidas; não implica que os apóstolos tenham sido
culpados de tal descuido.
Devido a suas muitas responsabilidades, os apóstolos não podiam
atender às necessidades econômicas de todas as viúvas. A evidência é
clara em assinalar que estavam ocupados demais. Isto nos faz lembrar a
situação de Moisés quando julgava o povo de Israel. Seu sogro, Jetro,
aconselhou-o a prover-se de homens capazes para que servissem como
juízes para o povo (Êx 18:17–26). Isto aliviou a carga de Moisés. Os

364
Literatura representativa sobre este ponto inclui H. J. Cadbury, “The Hellenists”, Beginnings, vol.
5, pp. 59–74; E. C. Blackman, “The Hellenists of Acts 6:1”, ExpT 48 (1937): 524–25; C. F. D. Moule,
“Once More, Who Were the Hellenists”, ExpT 70 (1959); 100–102.
Atos (Simon J. Kistemaker) 315
apóstolos também deram-se à tarefa de encontrar uma solução ao
problema do cuidado dos necessitados.
2-4. Então, os doze convocaram a comunidade dos discípulos e
disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para
servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa
reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos
deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério
da palavra.
Ponhamos atenção aos seguintes pontos:
a. Os Doze. Esta é a única vez em Atos que Lucas usa o termo
descritivo os Doze para referir-se aos apóstolos. 365 Lucas usa esta
expressão para indicar que junto ao corpo dos doze apóstolos há outro
corpo de sete administradores que atendem às necessidades da crescente
igreja. Até agora os Doze tiveram toda a responsabilidade tanto de
atender às necessidades espirituais como às físicas dos crentes. Mas
chegou o momento de pedir ajuda.
Chamam então a toda a comunidade cristã para fazer uma
importante decisão. É muito provável que nem todos tenham estado
presentes, porque sendo assim, o procedimento ter-se-ia complicado
muito. Os Doze estão a cargo da reunião e apresentam aos crentes o
ponto que os preocupa: “Não é razoável que nós abandonemos a palavra
de Deus para servir às mesas”. Sua tarefa prioritária era ensinar e pregar
o evangelho de salvação. Devido à sua posição de líderes, os apóstolos
assumiram também a tarefa de atender aos necessitados. Mas este
trabalho secundário não deve deter a pregação da palavra de Deus.
Devem dedicar-se à oração e ao ministério da palavra (v. 4).
Os Doze então, com a ajuda da comunidade de crentes, encontram a
solução: escolher a alguns homens para ajudarem no serviço das mesas.
O sentido da palavra mesas se relaciona com a frase distribuição diária,
a qual se refere tanto a compartilhar alimento como atribuir somas de

365
Em seu Evangelho, o termo aparece seis vezes (At 8:1; 9:1, 12; 18:31; 22:3, 47).
Atos (Simon J. Kistemaker) 316
366
dinheiro para a compra dos alimentos. Sem dúvida, na igreja há
homens qualificados para realizar esta tarefa. Por isso os apóstolos
propõem que se escolha sete.
b. Sete homens. Façamos algumas considerações. Primeiro, o
número sete representa o número de plenitude. Os apóstolos sugerem o
número, a igreja seleciona a sete homens e os apóstolos os ordenam.
Segundo, nesta passagem, Lucas se abstém de usar o termo diácono
embora diga que os apóstolos ordenaram a sete homens para o ofício
especial de ministrar aos pobres (veja-se também Fp 1:1; 1Tm 3:8–13).
Terceiro, os escolhidos deviam reunir dois requisitos: deviam ter uma
boa reputação e deviam estar cheios do Espírito Santo e de sabedoria.
Naturalmente, para a tarefa de distribuir alimentos e dinheiro a pessoa
que o fizer deve ter uma reputação que esteja acima de qualquer
recriminação e uma recomendação que seus pares ou superiores
pudessem fazer dele com todo prazer (cf. At 10:22; 16:2; 22:12).
Também, para ajudar os necessitados a pessoa deve estar cheia do
Espírito Santo e ser muito sábia (veja-se Nm 27:16–18).
Para o Espírito Santo não há separação alguma entre o religioso e o
secular; Ele é dado igualmente aos apóstolos como aos sete homens
escolhidos. Na verdade, Estêvão e Filipe não só distribuem o alimento e
dirigem as finanças, mas também pregam a Palavra e realizam milagres
(vv. 8–10; At 8:6).
c. Oração. “E, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao
ministério da palavra”. A tarefa que os apóstolos devem fazer é,
primeiro, ser constantes na oração. Esta é exatamente a forma em que
Lucas projeta os apóstolos e a igreja (ver At 1:14; 2:42; 4:24). E
segundo, é ensinar e pregar o evangelho de Cristo (ver At 5:20, 42).

366
Consulte-se Kirsopp Lake, “The Communism of Acts ii and iv–vi and the Appointment of the
Seven”, Beginnings, vol. 5, pp. 148–49. E veja-se SB, vol. 2, pp. 641–47. Outras interpretações para a
expressão mesa se referem à mesa dos cambistas e a mesa do Senhor. Mas estas não se ajustam ao
contexto.
Atos (Simon J. Kistemaker) 317
Considerações práticas em At 6:1 e 4
Versículo 1
O Novo Testamento, para não mencionar o Antigo, tem muito a
dizer a respeito da posição e sorte das viúvas em Israel. Na Palestina do
primeiro século, muitas delas tiveram que suportar pobreza, não obstante
que as autoridades judaicas tinham feito provisão para seu sustento
(veja-se, p. ex., Mc 12:42–44). Na igreja, o princípio prevalecia que
entre os crentes não devia haver nenhuma pessoa em necessidade. Note-
se que Tiago põe o cuidado pelos órfãos e as viúvas dentro do que é uma
religião pura e sem mancha (Tg 1:27). Paulo também dita normas e
regulações a respeito: para as viúvas que na verdade necessitam atenção
diária; para as que não têm filhos nem netos que possam sustentá-las;
para as que têm sessenta anos ou mais; para as jovens que ainda devem
voltar a casar-se; e para as mulheres cristãs que devem ajudá-las (1Tm
5:3–16).

Versículo 4
Cem anos atrás, os pastores costumavam pôr as iniciais V.D.M.
depois de seu nome. Não se procurava a abreviação de um grau
acadêmico mas uma descrição de seu trabalho. As iniciais correspondem
às palavras latinas Verbi Domini Minister, quer dizer, ministro da
Palavra do Senhor. Estritamente falando, um pastor não é um ministro da
igreja mesmo quando ele seja ordenado por esse corpo. Não é um
ministro de uma congregação local, mesmo quando um concílio fiscalize
seu trabalho e pague seu salário. Um pastor é, antes de mais nada, um
ministro do evangelho de Cristo, porque Jesus o envia a ensinar e a
pregar as Boas Novas (Mt 28:19–20). O pastor, então, é um servo da
Palavra de Deus. Como Paulo o diz: “Como ouvirão sem haver quem
lhes pregue [a Palavra]? (Rm 10:14). Mas se o pastor é um servo da
Palavra, então ele deverá dedicar-se completamente à tarefa de
Atos (Simon J. Kistemaker) 318
proclamar as boas notícias do evangelho. Deve cuidar-se das atrações
que queiram desviá-lo de seu ministério. A dedicação genuína à oração e
a pregação coroarão seu trabalho com incontáveis bênçãos.

Palavras, frases e construções gregas em At 6:1–4


Versículo 1
πληθυνόντων — junto com o substantivo μαθητῶν (discípulos) no
caso genitivo, aqui temos uma construção genitiva absoluta.
πρός — em contexto, a preposição significa “contra”. Sugere um
enfoque indireto mais que o direto ἀντί (face a face).

Versículo 2
ἀρεστόν — o adjetivo verbal do verbo ἀρέσκω (agrado; veja-se v.
5), com a partícula negativa οὑκ (não) significa “não é conveniente”. 367
καταλείψαντας — do verbo composto diretor καταλείπω (ponho-me
de lado, renuncio) o particípio ativo aoristo denota forma. Tanto o
pronome ἡμᾶς (o sujeito do infinitivo) como o infinitivo presente
διακονεῖν (servir) compreende a construção principal do verbo.

Versículo 4
τῇ —notem-se os dois artigos definidos que precedem os
substantivos προσευχῇ (oração) e διακονίᾳ (ministério). Ambos os
artigos significam que o escritor assinala para o serviço de oração e
pregação.
προσκαρτερήσομεν — veja-se At 1:14 para ter uma explicação do
verbo. O pronome ἡμεῖς expressa ênfase. A posição do pronome ao
princípio da frase e a posição do verbo no final denotam ênfase.

367
Bauer, p. 105.
Atos (Simon J. Kistemaker) 319
b. Posta em ação e resultados (At 6:5–7)

5, 6. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão,


homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão,
Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos perante os
apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos.
Os apóstolos propõem e a igreja aprova a sugestão. A palavra
agradou denota uma harmonia fundamental entre os apóstolos e a
comunidade cristã. As queixas e as irritações a respeito da má
administração ficaram superadas. Como resultado disso, a igreja põe
mãos à obra de buscar os sete homens mais capacitados. Não sabemos
sobre que base é feita a busca nem com que regras. Lucas não diz nada
quanto a lançar sortes (cf. At 1:26), mas o verbo eleger indica que de
algum modo foi feita uma seleção, baseada nas regras estabelecidas
pelos apóstolos. Diga-se de passagem, Cristo escolheu os doze apóstolos
(incluindo Matias; veja-se At 1:24), mas é a igreja a que agora escolhe os
sete que os apóstolos instalam em seus cargos.
Quem são eles? Todos os nomes são de origem grega. Embora
alguns judeus nativos tinham nomes gregos, como é o caso dos apóstolos
Filipe e André, 368 os estudiosos se inclinam pela explicação de que os
sete eram judeus helenistas cuja língua nativa era o grego. O primeiro
nome é Estêvão, que significa “coroa”. Num sentido, ele recebeu a coroa
de justiça quando morre como um mártir da fé. Estêvão reúne os
requisitos estipulados pelos apóstolos, porque Lucas diz dele que é um
homem “cheio de fé e do Espírito Santo”. É conhecido por sua fé, como
o demonstra em seu ensino e pregação. O seguinte [escolhido] é Filipe,
mais tarde conhecido como o evangelista (At 21:8). Logo seguem os
nomes do Prócoro, Nicanor, Timão, e Pármenas, a respeito dos quais
nada sabemos. O último é Nicolau, nativo de Antioquia e um gentio
convertido primeiro ao judaísmo e agora ao cristianismo. É possível que
368
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 63.
Atos (Simon J. Kistemaker) 320
Lucas tenha um interesse especial nele, porque, de acordo com a
tradição, ele mesmo nasceu e se criou como um gentio em Antioquia
chegando posteriormente a abraçar a fé cristã. 369 Aqui temos, então, sete
helenistas, dos quais seis são descendentes de judeus. O sétimo é
Nicolau, um gentio e prosélito. Com frequência, Nicolau foi identificado
como o pai dos nicolaítas, que são mencionados em Apocalipse 2:6, 15.
“Os nicolaítas sem dúvida que derivam seu nome de algum Nicolau, se
deste ou de outro sua identidade deve ser incerta”. 370 O fato de que todos
os candidatos sejam helenistas indubitavelmente apaziguou o setor de
fala grega da igreja de Jerusalém.
O grupo é apresentado aos apóstolos, os quais dão sua aprovação à
seleção feita pela igreja. Logo oram por eles e pedem a aprovação e
bênção divinas sobre o trabalho que os espera como administradores.
Depois de orar, os apóstolos ordenam os sete mediante a imposição das
mãos. Assim, adotam a prática que Moisés inaugurou ao ordenar os
levitas para serviços especiais e ao comissionar Josué como seu sucessor
(Nm 8:10; 27:23). Nos tempos do Novo Testamento, não só os apóstolos
aderem ao rito de impor as mãos ao comissionar pessoas qualificadas,
mas também a igreja em Antioquia escuta obediente ao Espírito Santo e
impõe as mãos sobre Barnabé e Paulo (At 13:2–3; veja-se também 1Tm
5:22).371
7. Assim, a palavra de Deus se espalhava. Crescia rapidamente o
número de discípulos em Jerusalém; também um grande número de
sacerdotes obedecia à fé [NVI].
Ao longo de seu livro, Lucas registra alguns resumos que
descrevem o crescimento fenomenal da igreja primitiva. Por exemplo, na
conclusão de seu relato sobre o Pentecostes diz que o Senhor

369
Consulte-se F. F. Bruce, The Book of Acts, ed. rev., série New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 121.
370
Ibid.
371
Além de serviços especiais de dedicação, a prática no Novo Testamento também está relacionada
com a bênção de crianças (Mc. 10:16); curas (Mc. 1:41; At. 28:8), o receber o Espírito Santo (At.
8:17; 19:6), e o receber os dons espirituais (1Tm. 4:14; 2Tm. 1:6).
Atos (Simon J. Kistemaker) 321
acrescentava cada dia mais gente até chegar a três mil crentes (At 2:41,
47). 372 Literalmente, o texto grego diz: “a palavra de Deus continuava
crescendo”. Isto não significa, naturalmente, que as Escrituras do Novo
Testamento crescessem com a adição de novos livros, e sim o próprio
evangelho chegava a ser parte da vida espiritual do povo. Em outras
palavras, o efeito da palavra proclamada era crescentemente óbvio nas
vidas dos habitantes de Jerusalém. Como um resultado direto da
proclamação e o ensino, ao qual os apóstolos estavam agora dedicados
em oração e ministração da Palavra, cada vez mais gente cria e se unia à
igreja.
Lucas acrescenta uma observação mais a este resumo: “Também
um grande número de sacerdotes obedecia à fé”. O historiador judeu
Josefo conta que em seus dias havia quatro tribos sacerdotais e que cada
uma tinha um número aproximado dos cinco mil membros. “Estes
oficiavam alternadamente por um período fixo de dias.” 373 Num dia
qualquer, portanto, havia uns cinco mil sacerdotes em Jerusalém.
Obviamente, um grande número deles, persuadidos pela pregação do
evangelho, uniram-se à igreja. Note-se que Lucas usa o termo fé como
sinônimo do evangelho de Cristo (cf. At 13:8). Este termo significa a fé
objetiva encarnada em ensino doutrinal e não a fé subjetiva dos crentes.
De fato, Lucas emprega várias expressões para descrever o cristianismo
neste período formativo da igreja: o Nome (At 5:41), o Caminho (At
9:2), e a Fé (At 6:7).

Considerações doutrinais em At 6:5–7


Embora o termo diácono (um que serve) não aparece nos primeiros
seis versículos deste capítulo, a palavra grega diakonia aparece duas

372
Veja-se também At 4:4; 5:14; 6:1; 9:31; 12:24; 16:5; 19:20; 28:31.
373
Josefo Contra Apion 2.8 [108] (LCL). Cf. também Ed. 2:36–39 e Ne. 7:39–42, onde se dá uma lista
de 4.289 sacerdotes que retornam do exílio. Nos séculos seguintes àquele retorno, este número
aumentou substancialmente.
Atos (Simon J. Kistemaker) 322
vezes e é traduzida “distribuição” (v. 1) e “ministério” (v. 4). O contexto
revela que os sete homens são servidores no nome de Cristo; quer dizer,
são diáconos que ajudam os necessitados. Em anos posteriores, Paulo
delineia o papel do diácono (1Tm 3:8–13). Mas em Atos, tanto Estêvão
como Filipe pregam. De fato, Filipe é chamado “o evangelista” (At
21:8). Ambos realizam milagres (At 6:8; 8:6), e inclusive Filipe batiza
(ao etíope, At 8:38).
É diferente o trabalho do diácono do de ensinar e pregar? Claro que
sim. Além do ministério da pregação e de cura de Estêvão e de Filipe, a
razão fundamental para a escolha destes sete homens é aliviar as
necessidades dos pobres. Em Atos, proveem às viúvas dos de fala grega
para suas necessidades diárias; para isso tiram das mãos dos apóstolos tal
responsabilidade. Isto ajuda os apóstolos para que se dediquem
completamente à tarefa de orar e pregar. A tarefa principal dos diáconos,
então, é servir aos pobres no nome de Cristo. Graças ao fato de Paulo
mencionar os anciãos e diáconos na igreja de Filipos (Fp 1:1) e instruir
Timóteo a respeito dos supervisores e diáconos (1Tm 3:1–13), sabemos
que a igreja em geral reconhece os dois ofícios de ancião e de diácono.
Os pais da igreja dos séculos I e II verificam a existência destes oficiais e
até se referem aos sete homens de Atos 6 como diáconos. Na história da
igreja, o termo diácono foi interpretado de diversas maneiras. Um estudo
deste tipo, contudo, pertence a outras disciplinas e não à exegese.

2. A detenção de Estêvão (At 6:8–15)

Como é característico em seus relatos, Lucas enumera fatos que


levam à qualificação primeiro. Nos capítulos 6 e 7, ele destaca o
ministério breve do primeiro mártir, Estêvão. Como a igreja continua
desenvolvendo-se entre os judeus de fala grega, o primeiro pregador
helenista é Estêvão. Embora breve, o ministério de Estêvão é um
prelúdio do de Paulo, quem num sentido assume o trabalho que fica
interrompido pela morte de Estêvão. Este encontra grande oposição
Atos (Simon J. Kistemaker) 323
numa sinagoga local de judeus de fala grega. Depois de sua conversão e
volta a Jerusalém, Paulo também teve debates com os judeus de fala
grega que procuraram matá-lo (At 9:29).

a. A oposição (At 6:8–10)

8. Estêvão, cheio de graça e poder, fazia prodígios e grandes sinais


entre o povo.
Não sabemos praticamente nada da vida de Estêvão, exceto que era
um judeu helenista que tinha chegado a abraçar a fé cristã. Lucas o
descreve como um homem de fé e cheio do Espírito Santo. Estêvão foi
conhecido por sua sabedoria e por seu discurso diante do Sinédrio
aparece como uma pessoa educada. Presumivelmente assistiu a alguma
escola teológica judaica em Jerusalém ou Alexandria. 374
Estêvão é um homem “cheio de graça e de poder”. Com as palavras
graça e poder, Lucas relaciona a obra de misericórdia, de cura, ensino e
pregação de Estêvão com a dos apóstolos. Num contexto anterior,
escreve que os apóstolos continuaram proclamando a ressurreição de
Jesus “com grande poder” e que experimentaram “abundante graça” (At
4:33). Deus, então, abençoa a obra de Estêvão da mesma forma em que
abençoou o trabalho dos apóstolos. Lucas raramente qualifica os
milagres e maravilhas feitas pelos apóstolos. Porém no caso de Estêvão,
afirma que as maravilhas e sinais são grandes. No grego, o tempo indica
que Estêvão continuou as fazendo. Não está claro se ele já havia
realizado milagres antes de ser ordenado pelos apóstolos, mas é provável
que assim tenha sido. Inferimos que “os prodígios e grandes sinais”
descrevem, precisamente, o ministério de cura de Estêvão.
Especialmente por estes milagres ele foi uma bênção para o povo. E
apesar disso, dentro de pouco seus compatriotas o mataram.

374
Consulte-se Richard B. Rackman, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster
Commentaries (1901; reimpressão, Grand Rapids: Baker, 1964), p. 88.
Atos (Simon J. Kistemaker) 324
9, 10. Contudo, levantou-se oposição dos membros da chamada
sinagoga dos Libertos, dos judeus de Cirene e de Alexandria, bem como
das províncias da Cilícia e da Ásia. Esses homens começaram a discutir
com Estêvão, mas não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito com que
ele falava [NVI].
A oposição vem não pelos milagres que fazia, mas por sua
pregação. Lucas não diz nada a respeito de seu trabalho de diácono, mas
faz insistência em seu ministério de cura e em seu debate com os judeus
de fala grega. Parece indicar que este talentoso homem de Deus servia
em outras capacidades além de atender às mesas. Ele ia à sinagoga local
de seus compatriotas.
Façamos as seguintes considerações:
a. Sinagoga. A oposição que Estêvão enfrentou vinho dos membros
da chamada Sinagoga dos Libertos. O termo libertos refere-se a um
grupo de judeus prisioneiros de guerra dos romanos os quais sob a
liderança do geral Pompeu foram capturados no ano 63 a.C. Nos anos
seguintes estes prisioneiros foram deixados em liberdade e
estabeleceram uma colônia junto ao rio Tibre em Roma. Mais tarde, seus
descendentes foram expulsos de Roma e se supõe que muitos deles
tenham encontrado refúgio em Jerusalém, onde levantaram uma
sinagoga. 375 Os estudiosos estão divididos sobre a veracidade de uma
inscrição em idioma grego, fazendo referência a esta sinagoga,
desenterrada em 1913–14 em Jerusalém. 376
Além disso, diferem quanto à interpretação da frase Sinagoga dos
Libertos. Está querendo dizer Lucas que os libertos tinham uma sinagoga
tal como os outros grupos de Cirene, Alexandria, Cilícia, e Ásia tinham?
Se assim tivesse sido, então haveria cinco sinagogas diferentes. 377 O
contrário, o texto grego indica uma divisão entre os judeus de Cirene e
375
Tácito Anais 2.85; Josefo, Antiguidades 18.3.5 [83].
376
Consulte-se Herman Strathmann, TDNT, vol. 3, p. 265.
377
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C.–135 d.C), ed.
e rev. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 428. E veja-
se SB, vol. 2, pp. 661–65. A literatura rabínica menciona a sinagoga dos alexandrinos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 325
de Alexandria (duas cidades em Líbia e Egito, respectivamente) e da
Cilícia e Ásia (duas províncias na Ásia Menor). Isto significa que havia
duas sinagogas (os libertos, os cirênios, e os alexandrinos num grupo e
os cilicianos e os asiáticos no outro). 378 Esta última interpretação é
interessante porque é respaldada pelo texto grego. Também, as
diferenças geográficas, culturais e mesmo linguísticas entre os judeus do
Norte da África (Cirene, Alexandria) e da Ásia Menor (Cilícia, Ásia)
eram o suficientemente grandes como para não lhes permitir reunir-se
num só lugar.
b. Cidades e províncias. Os judeus helenistas chegaram de
diferentes lugares do império romano. Cirene era a capital da província
da Cirenaica (moderna Líbia) no Norte da África. Cirene, porto
localizado numa área rica na produção de grão e gado, servia como
cruzamento de caminhos para o tráfico por mar e terra e chegou a ser
famoso como um centro comercial. Desenvolveu-se como uma colônia
grega com uma importante população judaica. Do Novo Testamento
aprendemos que muitos destes judeus vieram a ser residentes de
Jerusalém (At 2:10; Mt 27:32; Mc 15:21; Lc 23:26). 379
Alexandria era a capital do antigo Egito e, depois de Roma, o centro
administrativo mais importante do mundo Mediterrâneo. Era famosa por
sua cultura e suas atrações literárias centralizadas num museu, biblioteca
e escolas. Através dos séculos, milhares de judeus se estabeleceram aqui,
assumindo muitos deles posições de liderança no exército como no
governo civil. Os judeus alexandrinos falavam grego, pelo que
eventualmente necessitavam uma tradução do Antigo Testamento nesse
idioma (a Septuaginta). 380

378
I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: Introduction and Commentary, série Tyndale New
Testament Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 129. Mas
Alford põe aos libertos separadamente e ele vê três diferentes sinagogas. Alford’s Greek Testament,
vol. 2, p. 65.
379
William S. LaSor, “Cyrene”, ISBE, vol. 1, pp. 844–45.
380
Consulte-se E. M. Blaiklock, “Alexandria”, ZPEB, vol. 1, pp. 100–103.
Atos (Simon J. Kistemaker) 326
Tanto Cilícia como a Ásia eram províncias romanas na Ásia Menor
(moderna Turquia), onde se falava grego. Cilícia estava localizada ao
longo das costas do Mediterrâneo, na parte sudeste da Ásia Menor. Entre
suas cidades estava Tarso, lugar de nascimento de Paulo. Aqui vivia um
considerável número de judeus, alguns dos quais vieram a ser membros
das igrejas cristãs (At 15:41). A província da Ásia, na costa ocidental da
Ásia Menor, tinha Éfeso como sua cidade principal. A área tinha
numerosos assentamentos judaicos e em muitos deles tinham sido
estabelecidas igrejas (p. ex., as sete igrejas da Ásia mencionadas no Ap
1:11).
c. Debate. “Começaram a discutir com Estêvão”. Mesmo quando
Lucas apresenta a Estêvão algo assim como um precursor de Paulo, não
oferece nenhuma indicação de que este tenha estado presente entre os
judeus de fala grega da Cilícia que discutiam com ele. É possível que
assistisse aos cultos na Sinagoga dos Libertos; mas lembre-se que estava
presente quando os judeus lhe atiram pedras e matam a Estêvão (At
7:58).
Estes judeus, vindos de vários lugares da dispersão, não puderam
refutá-lo. Eles não estavam discutindo a respeito dos milagres de cura ou
do respaldo que lhes dava o povo do lugar. Em sentido figurado eram os
guardiões das muralhas de Sião e muito vigilantes defensores da lei de
Moisés, o templo, e as observâncias religiosas; portanto, o debate se
centralizava em assuntos doutrinais e de adoração. Lucas diz só que
Estêvão falava com sabedoria e com o Espírito. Isto é suficiente por
agora, porque no capítulo 7 Lucas reconta o conteúdo do sermão de
Estêvão. Aqui Lucas repete o requisito apostólico estabelecido para os
sete homens escolhidos para atender aos ofícios administrativos: “que
sejam cheios do Espírito e de sabedoria” (v. 3). Em Estêvão teve
cumprimento a promessa de Jesus de dar a Seus seguidores palavras de
sabedoria de tal modo que nenhum de seus inimigos poderia refutá-lo
(Lc 21:15; cf. com Mt 10:20). Note-se também que o termo sabedoria
aparece só quatro vezes em Atos, duas em conexão com Estêvão (vv. 3,
Atos (Simon J. Kistemaker) 327
10) e duas em seu discurso diante do Sinédrio (At 7:10, 22). Com o
Espírito de Deus e a sabedoria do alto, Estêvão foi capaz de debater com
seus inimigos nas sinagogas judaicas. E cheio com o Espírito pôde
refutar os argumentos que tinham levantado contra ele e sua
interpretação das Escrituras. Se os judeus de fala grega se deram conta
que estavam opondo-se ao Espírito Santo, teriam sabido que estavam
livrando uma batalha que de maneira nenhuma poderiam ganhar.

Palavras, frases e construções gregas em At 6:8–11


Versículo 8
ἐποίει — o imperfeito denota ação contínua. Não é um imperfeito
inicial, “ele começou a fazer”, mas sim um imperfeito progressivo, “ele
se manteve fazendo”.
μεγάλα — este adjetivo com os substantivos prodígios e sinais
aparece só aqui. Não é usado para descrever os milagres de Jesus ou dos
apóstolos.

Versículo 9
τῆς λεγομένης — “os assim chamados”. O substantivo Λιβερτίνων
(Libertos) está seguido pela conjunção καί, que no contexto quer dizer
“isto é”.
τῶν — este artigo definido aparece duas vezes nesta frase. A. T.
Robertson diz que “o uso de τῶν duas vezes divide as sinagogas em dois
grupos (homens da Cilícia e Ásia por um lado, e homens de Alexandria,
Cirene e os Libertos, do outro)”. 381

381
A. T. Robertson, Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 788.
Atos (Simon J. Kistemaker) 328
Versículos 10–11
O texto Ocidental tem vários agregados a estes dois versículos. A
seguir aparece a tradução com os acrescentados em itálico:
Aqueles que não podendo resistir a sabedoria que havia nele e o
Espírito Santo pelo qual falava, foram refutados por ele com toda
ousadia. Portanto, não puderam confrontar a verdade, … 382

b. A detenção e o testemunho (At 6:11–15)

Satanás opõe-se ao povo de Deus tanto enganando como por meio


da violência. No caso de Estêvão ele emprega ambos os métodos.
Primeiro, traz um falso testemunho contra Estêvão diante do Sinédrio e
logo instiga as pessoas para que o apedrejem e o matem.
11. Então, subornaram homens que dissessem: Temos ouvido este
homem proferir blasfêmias contra Moisés e contra Deus.
Quem são estes insidiosos que instigam a alguns homens para que
deem um falso testemunho? Os opositores de Estêvão são helenistas que
vieram da dispersão; talvez procuram superar o que eles percebem como
o estigma da cultura grega e, por extensão, o liberalismo. Em Jerusalém,
querem provar sua lealdade à lei e aos costumes judaicos. Por isso,
consideram suspeito a qualquer um que parecesse desviar das regras e
regulações estritas. Não está claro por que razão estes fanáticos
buscaram pessoas que testificassem falsamente (veja-se v. 13) em lugar
de usar suas próprias alegações contra as palavras de Estêvão. Estêvão é
um verdadeiro discípulo de Jesus. Ao confrontar as acusações falsas, não
está acima de seu Mestre, quem também teve que escutar acusações que
trouxeram contra Ele falsos acusadores (veja-se Mt 26:59–66 e
passagens paralelas). A acusação contra Estêvão é dupla: “Temos ouvido
este homem proferir blasfêmias contra Moisés e contra Deus”. Este é um

382
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek of the New Testament, 3ª. ed. corr.
(Londres e Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 340.
Atos (Simon J. Kistemaker) 329
assunto sério, porque a pena para quem blasfema o nome de Deus é a
morte por apedrejamento (veja-se Lv 24:16; compare Jo 10:33). A
palavra Moisés refere-se aos cinco livros de Moisés; quer dizer, a Lei. As
acusações de deslealdade à lei e blasfêmia contra o nome de Deus surtem
efeito quanto a provocar o povo de Jerusalém. Apesar de todas as curas
efetuadas por Estêvão, as pessoas são o suficientemente inconstantes
para crer nas falsas acusações e voltar-se contra ele.
12. Sublevaram o povo, os anciãos e os escribas e, investindo, o
arrebataram, levando-o ao Sinédrio.
Os instigadores têm êxito em obter o respaldo do povo, dos anciãos
de Israel e dos escribas. Supomos que Estêvão ensinou que os crentes
podem adorar a Deus em qualquer parte porque Deus não habita em
casas feitas por homens (veja-se At 7:48–49). Para estes judeus
fanáticos, esta declaração é equivalente a uma blasfêmia. Com a
multidão instigada, as autoridades civis (os anciãos) e os mestres da lei
(os escribas) veem a oportunidade para arrastá-lo diante de um tribunal.
Sem dúvida, vários destes anciãos são membros do Sinédrio.
O povo já não está em favor de Estêvão; por isso os membros do
Sinédrio não têm medo de um levantamento. Assim, Estêvão é detido,
talvez pelo chefe da guarda e seus oficiais, e é levado diante do Sinédrio.
É a terceira vez que a corte suprema de Israel traz a juízo os seguidores
de Jesus; primeiro a Pedro e João, logo os Doze, e agora Estêvão.
13, 14. Apresentaram testemunhas falsas, que depuseram: Este
homem não cessa de falar contra o lugar santo e contra a lei; porque o
temos ouvido dizer que esse Jesus, o Nazareno, destruirá este lugar e
mudará os costumes que Moisés nos deu.
Lucas nos apresenta seu relato com um estilo telescópico. Devemos
entender que o Sinédrio necessita algum tempo para convocar um juízo
contra Estêvão. Além disso, os próprios helenistas necessitam tempo
para preparar as testemunhas falsas e apresentar suas acusações que
toquem o coração religioso de Israel: o lugar santo e a lei (cf. At 21:28).
Segundo a lei de Moisés, qualquer acusação contra um indivíduo deve
Atos (Simon J. Kistemaker) 330
ser sustentada pelo testemunho combinado de duas ou três testemunhas
(Dt 17:6–7). Por isso, no juízo contra Jesus, as testemunhas falsas não
puderam entrar em acordo, de modo que eram despedidos até que dois
deles apresentaram-se dizendo que Jesus havia dito que Ele destruiria o
templo e o reconstruiria em três dias (Mt 26:60–61; 27:40; veja-se
também Jo 2:19).
As testemunhas no juízo contra Estêvão apresentam-se com uma
acusação inventada de que Estêvão nunca deixa de falar contra a lei de
Moisés e contra o templo e tudo o que compreendia. A frase, “este
homem não cessa de falar” é, obviamente, um exagero, porque Estêvão
proclama as Boas Novas e as acompanha com grandes milagres. As
testemunhas, contudo, apresentam-no como um revolucionário que está
subvertendo a religião judaica. O enfático “este lugar” refere-se ao
templo e seu serviço e não a toda a cidade de Jerusalém. O lugar de
reunião do Sinédrio “pôde ter estado situado na área do templo no lado
ocidental da muralha circundante”. 383 E a acusação de que Estêvão
falava contra a Lei (o Antigo Testamento) tem todos os reflexos de um
exagero. O próprio Jesus ensinou que Ele não veio para abolir a Lei e os
Profetas, mas para cumpri-los (Mt 5:17).
Contra Estêvão as testemunhas usaram a mesma acusação que Jesus
ouviu durante Seu juízo e em Sua crucificação. Dizem tê-lo ouvido dizer
que este Jesus de Nazaré destruiria o templo e mudaria os costumes
judaicos que se originavam com Moisés. Primeiro, note-se que as
testemunhas usam o pronome esse antes do nome Jesus de Nazaré para
expressar seu desprezo por Jesus. Logo, põem-se a correr o rumor
referente às palavras de Jesus. Se eles se referiram ao desafio que Jesus
fez a Seus oponentes de que destruíssem o templo, obviamente não O
tinham compreendido. Jesus falava do Seu corpo e acrescentou que
ressuscitaria da tumba em três dias (Jo 2:19). No entanto, os acusadores
de Estêvão distorceram as palavras de Jesus e seu significado. Em um de

383
Metzger, Textual Commentary, p. 341.
Atos (Simon J. Kistemaker) 331
Seus discursos, Jesus predisse a queda de Jerusalém e seu templo (Mt
24:2, 15; Lc 19:43–44), mas Ele falava profeticamente a respeito da
destruição de Jerusalém que ocorreu no ano 70 d.C. É difícil comprovar
se os acusadores de Estêvão estão se referindo ao discurso de Jesus sobre
as últimas coisas. Nesse discurso, Jesus simplesmente predisse a queda
de Jerusalém.
A acusação seguinte é que Jesus falou contra os costumes que
Moisés tinha transmitido. As testemunhas falam generalidades porém
não dão detalhes. Aparentemente, uma simples referência a mudar os
costumes judaicos é suficiente evidência para etiquetar a qualquer um
como violador da lei. Jesus Se opôs às tradições que anulavam os claros
ensinos das Escrituras (Mt 15:6), mas sempre ensinou o cumprimento da
Palavra de Deus. À mulher samaritana Jesus revelou que na era
messiânica os verdadeiros adoradores não teriam que ir ao templo
samaritano no Monte Gerizim ou ao templo em Jerusalém. Os
verdadeiros adoradores adoram o Pai em qualquer lugar, em espírito e
em verdade (Jo 4:21–24). Cremos que Estêvão também proclamou estas
boas novas ao povo de Jerusalém para que fosse libertado de incômodos
costumes e tradições (refira-se a At 21:21).
15. Todos os que estavam assentados no Sinédrio, fitando os olhos
em Estêvão, viram o seu rosto como se fosse rosto de anjo.
O estar de pé no semicírculo, de cara aos membros do Sinédrio,
sentados em filas a uma altura maior intimidaria a qualquer. Porém não
foi assim com Pedro, quem nas duas vezes que teve que defrontar-se
com o Sinédrio foi cheio do Espírito Santo, falou com toda coragem em
sua própria defesa, e de fato se apropriou da situação (At 4:8–12; 5:29–
32).
Agora chega a vez de Estêvão. Todos os que estão diante dele o
olham com olhos atentos. Um resplendor divino parece envolvê-lo.
Lucas escreve que o rosto de Estêvão era “como se fosse rosto de anjo”.
Inferimos que Lucas recebeu detalhes deste juízo da parte de uma
testemunha ocular, como o apóstolo Paulo, quem em seu discurso à
Atos (Simon J. Kistemaker) 332
multidão em Jerusalém admitiu livremente ter tomado parte na morte de
Estêvão (At 22:20).
Paulo, então, era um daqueles que viram a transformação facial de
Estêvão. Mas apesar desse resplendor sobrenatural que o envolvia, os
membros do Sinédrio não quiseram escutar seu chamado a que
atendessem ao evangelho de Cristo.

Palavras, frases e construções gregas em At 6:11–15


Versículo 11
ὑπέβαλον — o verbo composto consistente de ὑπό (sob) e βάλλω
(eu lanço) tem um significado sinistro: instigar com propósitos ímpios.
ἀκηκόαμεν — o ativo perfeito de ἀκούω (eu ouço) é o perfeito de
ação frequente (veja-se v. 14). O verbo manda o caso genitivo para
denotar o ato de ouvir. Por contraste, o caso acusativo denota a ação de
entender. 384
είς — o significado remoto desta preposição é “contra”. Veja-se
este significado em Lucas 12:10; 15:18.

Versículo 14
καταλύσει — “ele destruirá”. Note-se o tempo futuro neste verbo e
em ἀλλάξει (ele mudará). Esta afirmação indireta tem a intenção de
referir-se às próprias palavras ditas por Jesus. De acordo com suas
próprias crenças, os acusadores não teriam nada que temer: Jesus tinha
morrido e não tinha ressuscitado dentre os mortos.

384
Consulte-se Robertson, Grammar, p. 506. Veja-se a ampla discussão em Palavras, frases e
construções gregas em At 9:7.
Atos (Simon J. Kistemaker) 333
Versículo 15
ἑστῶτος ἐν μέσῳ αὑτῶν — “de pé no meio”. O texto Ocidental
acrescenta esta frase como um comentário explicativo.

Resumo de Atos 6
Os cristãos judeus de fala grega em Jerusalém fazem ouvir suas
queixas contra os crentes de fala aramaica porque na distribuição diária
de alimentos suas viúvas estão sendo mal-atendidas. Os apóstolos
chamam os crentes a uma reunião congregacional e sugerem uma
distribuição do trabalho: sete varões que sejam cheios do Espírito e
sabedoria assumirão a responsabilidade das necessidades físicas dos
pobres, dedicando-se à oração e à pregação, satisfazendo assim as
necessidades espirituais do povo. São selecionados e como resultado
disso, a igreja continuou crescendo; até vários sacerdotes se unem à
igreja.
Um dos sete escolhidos é Estêvão, quem além de seu novo trabalho
administrativo realiza grandes milagres no povo e dentro da Sinagoga
dos libertos, onde prega a Palavra de Deus. Judeus de fala grega vindos
da África do Norte (incluindo o Egito) e Ásia Menor escutam-no mas
são incapazes de opor-se a ele. No entanto, instigam a multidão para que
reajam de forma adversa contra Estêvão, quem é detido e levado a juízo
diante do Sinédrio. Testemunhas falsas apresentam acusações contra ele,
dizendo que blasfemou contra a Lei e contra Deus. Enquanto permanece
diante dos membros do Sinédrio, seu rosto brilha, como o rosto de um
anjo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 334
ATOS 7
A IGREJA EM JERUSALÉM, parte 6 (At 7:1–8:1a)
3. O discurso de Estêvão (At 7:1–53)
Resplandecendo seu rosto com um brilho angélico, Estêvão
responde a seus adversários recitando-lhes a história de Israel. Começa
com o patriarca Abraão, segue com José e os começos da nação israelita
no Egito e assinala a preparação, missão e ensinos de Moisés. Diz que a
história de Israel está marcada pela desobediência. Menciona a
construção do tabernáculo e do templo e cita da profecia de Isaías para
mostrar que Deus não pode ser confinado a um templo (Is 66:1–2).
Conclui seu discurso chamando a atenção à resistência de Israel a Deus e
à Sua palavra.
É este discurso uma resposta adequada às acusações levantadas
contra ele? Do ponto de vista de Estêvão, a resposta seria afirmativa,
porque como judeu, Estêvão apela à herança histórica das Escrituras que
ele com seus compatriotas têm em comum. Por conseguinte, e ao
mencionar a Abraão, o pai dos crentes, está declarando sua unidade
básica com seus irmãos judeus. A audiência desfruta com o relato da
história passada que se origina com Abraão. 385

a. Abraão (At 7:1–8)

1, 2. Então, lhe perguntou o sumo sacerdote: Porventura, é isto


assim? Estêvão respondeu: Varões irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória
apareceu a Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia, antes de
habitar em Harã.

385
Para recontagens similares, veja-se Js. 24; Ne. 9:5–37; Sl. 78; 105; 106; Hb. 11.
Atos (Simon J. Kistemaker) 335
Depois que os helenistas apresentaram suas acusações e as
testemunhas falsas suas enganosas acusações, o sumo sacerdote pede a
Estêvão que diga ao auditório a verdade.
Este dirige-se a eles como: “Varões irmãos e pais”. No fim de sua
terceira viagem missionária, Paulo usa as mesmas palavras quando fala
com os judeus em Jerusalém (At 22:1). Em vários sentidos, então, o
discurso de Estêvão forma uma ponte entre os de Pedro e os de Paulo. 386
Não sabemos quem pôde lembrar exatamente as palavras de Estêvão.
Indubitavelmente Lucas recebeu esta versão pela via da tradição oral ou
escrita e com bastante fidelidade nos transmite a essência. 387
Estêvão não apenas considera os membros do Sinédrio seus irmãos
espirituais, mas também além disso mostra profundo respeito por sua
idade e sua investidura. Chama-os “pais” não porque deseje adulá-los,
mas porque quer mostrar seu respeito pela autoridade. Não quer que se
distraiam, pelo que lhes pede que escutem atentamente quanto tem a
dizer.
A primeira acusação contra Estêvão é que blasfemou contra Moisés
e contra Deus (At 6:11). Estêvão enfrenta diretamente esta acusação
quando começa a recitar a história de Israel, dizendo: “O Deus da glória
apareceu a Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia”. Esta
afirmação introdutória corresponde ao relato de Moisés segundo o qual
Deus habitou entre os israelitas na tenda da congregação e onde sua
glória encheu o lugar (Êx 25:8; 40:34–35). Satisfaz plenamente as
expectativas judaicas ao mostrar uma profunda reverência para com
Deus, Sua glória divina, o tabernáculo, e Moisés. 388 Estêvão é um com o
povo de Israel. Note-se, entretanto, que seu discurso começa e termina
com uma referência indireta e direta, respectivamente, à habitação de
386
Consulte-se Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, serie Comentários
Westminster (1901; reimpres. Grand Rapids: Baker, 1964), p. 92.
387
Consulte-se J. Julius Scott, Jr., “Stephen’s Speech: A Possible Model for Luke’s Historical
Method?” JETS 17 (1974); 91–97; Martin H. Scharlemann, “Acts 7:2–53. Stephen’s Speech: A Lucan
Creation?” ConcJourn 4 (1978); 52–57.
388
Cf. Sl. 29:1–2; 1Co. 2:8; Tg. 2:1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 336
Deus (veja-se vv. 44–50). Ao fazer isto, Estêvão está enfatizando que
Deus não está restringido a um lugar em particular, como é evidente na
aparição a Abraão em Ur dos caldeus.
A residência de Abraão na Mesopotâmia está registrada no primeiro
livro de Moisés (Gn 11:31). Abraão, com sua esposa Sara, seus pais e
irmãos, viviam em Ur. Naqueles dias, Ur era uma cidade próspera
localizada na margem do rio Eufrates (hoje em dia, o sul do Iraque).
Deus chamou Abraão em Ur (Gn 15:7; Ne 9:7). Aqui seus antepassados,
incluindo seu pai, Tera, adoravam seus próprios deuses (Js 24:2).
Abraão, sua esposa, seu pai, e seu sobrinho Ló saíram para Canaã, mas
se estabeleceram em Harã, que era uma cidade proeminente na parte
norte da Mesopotâmia. Ali morreu Tera e ali Deus voltou a chamar
Abraão para que seguisse seu caminho para Canaã.
3, 4. E [Deus] lhe disse: Sai da tua terra e da tua parentela e vem
para a terra que eu te mostrarei. Então, saiu da terra dos caldeus e foi
habitar em Harã. E dali, com a morte de seu pai, Deus o trouxe para esta
terra em que vós agora habitais.
Aqui nos encontramos com a primeira de várias dificuldades
históricas que aparecem no relato feito por Estêvão. Chamou Deus a
Abraão duas vezes, uma em Ur dos caldeus e a outra em Harã? Estêvão
afirma que Deus chamou Abraão na Mesopotâmia, mas o relato histórico
de Gênesis diz que Tera, Abraão, Sara, e Ló saíram para Canaã (Gn
11:31). Vieram até Harã, onde Tera morreu (v. 32). Então Deus falou
com Abraão e lhe disse que deixasse o país e sua parentela e fosse para a
terra que lhe havia de mostrar (Gn 12:1). Por conseguinte, Deus chamou
Abraão duas vezes. Estêvão, no entanto, segue a interpretação muito
aceita em seu dia, de que Deus instruiu a Abraão para que deixasse
Caldeia e fosse para Canaã. 389
O segundo assunto tem que ver com o momento em que Abraão
deixou Harã. Ele o fez antes ou depois da morte de seu pai? Se Abraão

389
Veja-se Filo, On Abraham 71; Josefo, Antiguidades 1.7.1 [154].
Atos (Simon J. Kistemaker) 337
saiu quando tinha 75 anos de idade, então Tera tinha 145. Mas Tera
viveu outros 60 anos, alcançando uma idade de 205 anos (Gn 11:26, 32;
12:4). Como poderemos resolver esta aparente discrepância? Alguns
estudiosos tentaram reverter a ordem dos filhos de Tera: Abraão, Naor, e
Harã. Dizem que Abraão foi o filho mais novo de Tera e que nasceu 60
anos depois de Harã, a quem consideram o primogênito. Esta teoria
parece improvável porque Tera teria tido 130 anos quando nasceu
Abraão, mas Abraão encontra “incrível que ele mesmo procriasse um
filho aos 99 anos (Gn 17:1, 17)”390 Outros estudiosos sugerem que
Estêvão usou um texto grego que diz o mesmo que o Pentateuco
samaritano, segundo o qual Tera morreu quando tinha 145 anos. Mas
devido ao fato de que não existe nenhum manuscrito grego que confirme
isso, não passa de ser uma teoria. 391
Qual é a solução a este problema? Como no caso do chamado de
Deus a Abraão, Estêvão segue uma interpretação popular de seu tempo
que não leva em conta detalhes de precisão matemática. “Estas
discrepâncias entre Atos e o Antigo Testamento não são mais que a
interpretação natural de um leitor comum”. 392 A referência de Estêvão à
morte de Tera em Harã não deve ser tomada como uma cronologia.
Pode-se entendê-la como uma nota biográfica que proporciona a
informação de que Abraão sai para Canaã sem seu pai, quem morreu em
Harã. Note-se que nesta referência ao relato de Abraão e Tera, Estêvão
não está interessado em cifras específicas. O ponto que ele quer destacar
é que Deus chamou Abraão para a terra na qual os compatriotas judeus
de Estêvão vivem agora.

390
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed. 4 vols.
(1877; Grand Rapids; Guardian, 1976), vol. 2, p. 69.
391
Consulte-se E. Richard, “Acts 7: An Investigation of the Samaritan Evidence”, CBQ 39 (1977):
190–208.
392
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 70. Veja-se também Richard N. Longenecker, The Acts of
the Apostles, no vol. 9 de Expositor’s Bible Commentary, ed. Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand
Rapids: Zondervan, 1981), p. 340. Tanto Filo (Migration of Abraham 176–77) como Josefo
(Antiguidades 1.7.1 [154]) respaldam a interpretação popular de Estêvão.
Atos (Simon J. Kistemaker) 338
De cor, Estêvão cita quase palavra por palavra da tradução grega do
Antigo Testamento (Gn 12:1). Diz: “E [Deus] lhe disse: Sai da tua terra e
da tua parentela e vem para a terra que eu te mostrarei”. Estêvão omite a
frase “e da casa de seu pai” que aparece na Septuaginta. Deus disse a
Abraão que abandonasse a seus parentes e saísse rumo à terra que o
próprio Deus tinha escolhido, ou seja, a sulina Canaã.
5. Nela, não lhe deu herança, nem sequer o espaço de um pé; mas
prometeu dar-lhe a posse dela e, depois dele, à sua descendência, não
tendo ele filho.
Repetidamente Deus promete a Abraão que daria a terra de Canaã a
ele e a seus descendentes numa possessão perpétua. 393 Abraão era um
nômade que movia seu gado de lugar em lugar em Canaã em busca de
pastos, porém não era dono da terra. Quando Sara morreu, ele comprou
uma cova em Macpela (Gn 23:17–18). Ele não poderia dizer que Deus
lhe tinha dado esta cova, porque Abraão pagou por ela uma soma
determinada de dinheiro. A promessa que ele recebeu da parte de Deus
foi que a terra de Canaã seria para sua numerosa descendência (Gn 48:4).
Mas tanto seu filho Isaque como seu neto Jacó, viveram em tendas sem
ser donos da terra que ocupavam. Estes três patriarcas foram herdeiros
da Terra Prometida, mas tudo o que possuíram foi a promessa de Deus
(Hb 11:9). Estêvão diz que Abraão não foi dono nem sequer de um
pedaço de terra para assentar um pé (cf. Dt 2:5). Embora tivesse a
promessa que Deus lhe daria Canaã à sua descendência, continuava sem
ter filhos. Antes de fazer uma aliança com ele, e mesmo antes de que
Abraão se circuncidasse, quando os cananeus viviam na terra, Deus lhe
fez uma promessa (Gn 12:6). Com todo rigor, Deus provou sua fé. E a
seu tempo, quando saíram do Egito, Deus deu a terra aos israelitas.
6, 7. E falou Deus que a sua descendência seria peregrina em terra
estrangeira, onde seriam escravizados e maltratados por quatrocentos
anos; eu, disse Deus, julgarei a nação da qual forem escravos; e, depois
disto, sairão daí e me servirão neste lugar.
393
Gn. 12:7; 13:15, 17; 15:18; 17:8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 339
Aí, de pé diante do Sinédrio, Estêvão recorre à memória para
referir-se às Escrituras. Mais uma vez traz à tona a história de Abraão
(Gn 15:13–14). Exceto por umas pequenas variantes, cita diretamente da
Septuaginta. A permanência de Israel no Egito não ocorreu por decisão
dos patriarcas; como Estêvão afirma, Deus predisse que os israelitas
seriam submetidos à escravidão no Egito por quatrocentos anos. Não
obstante a promessa de Deus de dar Canaã aos descendentes de Abraão,
por quatro séculos os israelitas tiveram que viver como estrangeiros em
terra estranha. E, acima disso, como escravos. Estêvão não menciona o
nome Egito, talvez por deferência aos judeus helenistas que procediam
de Alexandria.
O número de anos que Israel passou no Egito foi 400, segundo a
palavra de Deus a Abraão (Gn 15:13). Moisés escreve que o tempo total
que esteve Israel ali foram 430 anos (Êx 12:40–41; veja-se também Gl
3:17). Obviamente, 400 é um número redondo, enquanto 430 é mais
específico. 394 Estêvão não está interessado em cifras precisas. De cor cita
o texto do Gênesis com o propósito de assinalar que Deus castigaria os
opressores de Seu povo. Com esta cláusula faz lembrar as dez pragas
sobre o Egito e a subsequente libertação do povo de Deus. As palavras
proféticas de Deus contidas em Gênesis estão, então, cumpridas no relato
registrado em Êxodo.
A última parte do versículo 7 difere de sua fonte no Antigo
Testamento. Estêvão diz: “E, depois disto, sairão daí e me servirão [a
Deus] neste lugar”. Mas o texto do Antigo Testamento diz: “E depois
sairão com grandes riquezas” (Gn 15:14b). Quando os israelitas
deixaram o Egito, saíram com muitas posses das que despojaram aos
egípcios (Êx 12:36). Mas Estêvão faz caso omisso da cláusula que tem
que ver com os bens materiais. Pelo contrário, acrescenta uma cláusula
modificada de Êxodo 3:12 onde Deus informa a Moisés no deserto do

394
A exegese rabínica explica que o período de 430 anos se estendeu do nascimento de Isaque até o
dia em que se inicia o êxodo. SB, vol. 2, pp. 668–71.
Atos (Simon J. Kistemaker) 340
Sinai que quando ele tirou o povo fora do Egito, “vós [me] adorareis
neste monte”. Mas Estêvão muda as palavras neste monte por “neste
lugar”, e assim aponta ao templo de Jerusalém em lugar do monte Sinai.
Note-se que Estêvão começa a responder as acusações das
testemunhas falsas de que ele está falando contra o santo lugar e que
Jesus destruiria “este lugar” (At 6:13–14). Estêvão demonstra que para
ele a adoração a Deus é sagrada, porque a palavra grega para adoração
significa um dever religioso externo que é realizado num marco formal e
que inclui a um compromisso interno.
8. Deu-lhe [a Abraão] a aliança da circuncisão; assim Abraão gerou
a Isaque e o circuncidou ao oitavo dia; e Isaque gerou a Jacó, e Jacó aos
doze patriarcas [TB].
a. A aliança. Depois de uma breve nota à presença de Israel no
Egito, Estêvão volta seu apelo a Abraão e os dias prévios ao nascimento
de Isaque. Nesse tempo, Deus apareceu ao pai dos crentes e fez uma
aliança com ele que foi selado com o sangue da circuncisão (Gn. 17:9–
14).
O propósito de Estêvão ao introduzir precisamente aqui o conceito
de aliança é mostrar que se trata de algo anterior ao templo e à lei e,
portanto, é básico na religião de Israel. Desta maneira ele se defende da
acusação de que blasfemou contra a lei e contra Deus. Ao estabelecer
uma aliança com Abraão e seus descendentes, Deus declara Seu amor
perdurável para com Seu povo. 395 No registro histórico de Deus
confirmando Sua aliança com Abraão, nove vezes refere-se a este ponto
como “minha aliança” (Gn 17:2–21). Deus o inicia e o mantém através
das gerações como uma aliança eterna.
b. A circuncisão. A circuncisão é o sinal externo da aliança que
Deus fez com Abraão e seus descendentes. Deus exige consagração total
daqueles que se circuncidam, incluindo Estêvão e seu auditório do
Sinédrio. Assim como Abraão circuncidou o seu filho Isaque ao oitavo
395
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas Torrance,
2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1, p. 179.
Atos (Simon J. Kistemaker) 341
dia, os judeus circuncidam os seus filhos varões através das gerações.
Esta aliança, simbolizada no rito da circuncisão, é a segurança para
Israel. Não é o templo (que, como nos dias do exílio pode deixar de
existir) mas sim a aliança o que permanece para sempre. 396
c. Serviço. “Assim Abraão gerou a Isaque”. Alguns tradutores
eliminaram que texto a palavra assim. Mas esta palavra é importante
porque assinala a relação da aliança que Abraão tem com Deus. Abraão
deve circuncidar o seu filho com quem Deus continua a mesma aliança
(Gn 17:12, 21). Abraão e seus descendentes (Isaque, Jacó e os doze
patriarcas) estão obrigados a guardar a aliança através de viver uma vida
irrepreensível diante da presença de Deus (Gn 17:1). Note-se que Abraão
e sua descendência devem servir e adorar a Deus sem a ajuda de um
tabernáculo ou um templo. A aliança, portanto, substitui o templo e seus
serviços. Tanto Estêvão como seus ouvintes estão numa relação de
aliança com Deus. Para eles a aliança eterna que lhes chegou através de
Abraão e os patriarcas é básico. A acusação de blasfêmia contra Estêvão
não tem sentido, porque Estêvão demonstra que ele guardou a aliança
através de amar e servir a Deus. 397

Considerações doutrinais em At 7:2–8


Terá tido o sumo sacerdote necessidade de interromper a Estêvão
para fazer responder às acusações apresentadas contra ele? Certamente
que não, porque Estêvão, à sua maneira, foi respondendo a todas as
acusações.
Ao longo de seu discurso, Estêvão rejeitou as acusações de
blasfêmia através de revelar sua profunda reverência para com Deus e
seu alto respeito por Sua palavra. Refere-se ao Deus da glória (v. 2) e

396
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, p. 215. Veja-se também Gleason L. Archer, Jr.,
“Covenant”, EDT, pp. 276–78.
397
Consulte-se R. C. H. Lenski, The Interprepetation of the Acts of the Apostles (Columbus:
Wartburg, 1944), p. 267.
Atos (Simon J. Kistemaker) 342
cita o mandamento de Deus a Abraão de deixar Mesopotâmia para ir a
Canaã (v. 3). Menciona a promessa de Deus de dar a Abraão e seus
descendentes a terra de Canaã (v. 5). Cita a palavra profética de Deus a
respeito da permanência de Israel no Egito e as pragas (vv. 6–7). Por
último, destaca o estabelecimento da aliança da circuncisão de Deus com
Abraão e sua origem (v. 8).
Embora o mais provável seja que Estêvão, um judeu de fala grega
não usa o texto hebraico mas a tradução conhecida como Septuaginta,
suas citações são fidedignas e bem escolhidas. Conhece as Escrituras e
tem uma rara habilidade para interpretar sua mensagem.
Um dos temas na primeira parte de seu discurso é a onipresença de
Deus. Quer dizer, Deus Se revela a Si mesmo em diversos lugares que
estão fora da Terra Prometida. Em Ur dos Caldeus dá a Abraão a
promessa de uma numerosa descendência; de Ur e de Harã o envia a
Canaã. No Egito Deus castiga os opressores de Israel e dirige a
descendência de Jacó à liberdade. Pelo fato de que a presença de Deus é
universal, Ele pode ser adorado em qualquer lugar. Portanto, o templo
em Jerusalém não é o único lugar onde o povo de Deus pode ser
adorado. E o cristianismo não está limitado ao templo de Jerusalém.
Estêvão pronuncia seu discurso num tempo em que os judeus de
fala grega estão alcançando grande influência na igreja (At 6:1–7) e
quando os samaritanos estão por aceitar à fé (At 8:4–25). Em resumo,
Estêvão fala num momento em que o evangelho se difunde em círculos
cada vez mais amplos.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:1–8


Versículo 1
εἰ — numa pergunta direta, esta partícula não é traduzida.
ταῦτα οὕτως ἔχει — este é um modismo que significa “são estas
coisas verdade?” Compare At 17:11 e 24:9. No singular, o sujeito plural
neutro é seguido por um verbo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 343
Versículo 2
πρὶν ἥ — esta combinação é a mesma como πρίν (antes) “e
prepondera no Koinê”. 398
κατοικῆσαι — o infinitivo ativo aoristo do verbo composto
κατοικέω (eu habito, estabelecer-se) difere do verbo composto παροικέω
(habitar como um estrangeiro). Veja-se a diferença nos vv. 2, 4 e 6.

Versículo 4
μετῴκισεν — o ativo aoristo de μετοικίζω (eu os traslado). O
sujeito deste verbo é ὁ θεός.
είς — a segunda vez que esta preposição aparece no versículo 4
deveria ter sido ἐν (em). Tem um sentido bairrista e é είς (em)
possivelmente por atração. 399

Versículo 5
καί — o segundo καί é adversativo e tem o significado de mas.
οὑκ — normalmente a partícula negativa com um particípio é μή;
οὑκ anula os verbos no modo indicativo. A expressão aparece na
Septuaginta (cf. 1Cr 2:30, 32).

Versículos 6–7
ἔσται — este e os outros tempos futuros nos versículos 6 e 7 têm
um significado progressivo.
ἀλλοτρίᾳ — “estrangeiro”. Este é um substituto para οὑκ ἰδίᾳ (não
pertence a alguém) de Gênesis 15:13 (LXX). Veja-se também Êxodo
2:22 (LXX).

398
Bauer, p. 701.
399
C. F. D. Moule. An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 68. Veja-se também Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New
Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p. 200.
Atos (Simon J. Kistemaker) 344
ἐὰν δουλεύσουσιν — note-se que a partícula introduz um indicativo
ativo futuro em lugar de um presente ou um subjuntivo aoristo. Compare
ἄν σοι δείξω (te mostrarei) no versículo 3.

Versículo 8
καὶ οὕτως — “e assim”. Kirsopp Lake e H. J. Cadbury dizem:
“Possivelmente o ‘assim’ seja enfático e significa ‘assim, apesar de que
ainda não houve um lugar santo, as condições essenciais para a religião
de Israel se cumpriram’ ”. 400

b. José (At 7:9–16)

O seguinte exemplo da história de Israel é José. Estêvão não


menciona Isaque e sua referência a Jacó é com relação a José no Egito.
As inclusões e omissões que faz Estêvão em sua recontagem histórica,
então, refletem seu desejo de mostrar aos membros do Sinédrio que Deus
cuidou dos patriarcas em terra estranha.
9, 10. Os patriarcas, tendo inveja de José, venderam-no para o Egito;
mas Deus era com ele, e livrou-o de todas as suas tribulações, e deu-lhe
graça e sabedoria perante Faraó, rei do Egito, que o constituiu
governador do Egito e de toda a sua casa [TB].
Jacó considerava José seu primogênito porque foi o primeiro filho
que teve com Raquel (Gn 30:24). Jacó amava a Raquel, não a Leia. Em
sua opinião, Raquel era sua primeira esposa. Por isso, José recebeu
presentes e favores de seu pai, o que fez com que seus irmãos o
desprezassem. Nos anos mais tarde, José recebeu uma dupla porção de
sua herança quando, no nome de seus filhos Manassés e Efraim, Jacó lhe
deu uma dupla porção na terra de Canaã (Gn. 48:5; 1Cr. 5:2).

400
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 72.
Atos (Simon J. Kistemaker) 345
O termo patriarcas aplicado aos filhos de Jacó era usual no período
intertestamentário. 401 Mas estes filhos não demonstraram nenhuma
dignidade patriarcal quando decidiram lançar o seu irmão num poço; e
logo, por vinte peças de prata eles o venderam como escravo a uns
ismaelitas que o levaram ao Egito; finalmente, tomaram sua túnica de
cores, lubrificaram-na com sangue de um cabrito e a apresentaram a Jacó
(Gn 37:12–36). O paralelo entre a venda de José e a traição de Jesus é
óbvio. Os patriarcas venderam o seu próprio irmão a estrangeiros; os
judeus entregaram Jesus aos romanos.
Estêvão abrevia os detalhes, concentrando-se no positivo: “Deus era
com ele, e livrou-o de todas as suas tribulações”. Deus cuidou de José,
quem estava sozinho em terra estranha. Note-se que nos versículos 9 a
15, o nome o Egito aparece seis vezes. 402 A presença de Deus naquele
país foi real, como José o pôde testificar. Deus o abençoou ao livrá-lo da
tentação na casa do Potifar e de um longo período na prisão (Gn 39:2,
21, 23). Deus fez com que ganhasse o favor do faraó e lhe deu sabedoria
divina para interpretar os sonhos e lhe sugerir soluções para a fome que
se aproximava (Gn. 41:25–36). Deus pôs José como governador sobre o
Egito e o palácio do Faraó (Gn 41:37–43; e veja-se Sl 105:20–22).
Estêvão diz que Deus fez de José o segundo em poder no Egito, depois
de Faraó, o mais alto oficial do palácio, e seu conselheiro-chefe (Gn
45:8). Tudo isso indica, em consequência, que Deus estava no controle
do governo na terra de Faraó.
11, 12. Sobreveio, porém, fome em todo o Egito; e, em Canaã, houve
grande tribulação, e nossos pais não achavam mantimentos. Mas, tendo
ouvido Jacó que no Egito havia trigo, enviou, pela primeira vez, os nossos
pais.

401
Veja-se IV MAC. 16:25 e o título do livro “The Testaments of the Twelve Patriarchs”.
402
Sugeriu-se que a ênfase no Egito é para destacar a Alexandria, o lugar de nascença de Estêvão.
David John Williams, Acts, series Good News Commentary (San Francisco: Harper y Row, 1985), p.
120.
Atos (Simon J. Kistemaker) 346
A fome predita por José quando interpretou os sonhos de Faraó
chegou a ser uma realidade afetando não só o Egito mas também a sua
vizinha Canaã. Em Sua providência, Deus enviou José ao Egito para que
salvasse as vidas de seu pai, seus irmãos e suas famílias (Gn 45:5, 7). A
expressão grande tribulação descreve os sofrimentos e a morte de
multidão de pessoas e animais quando por um período de sete anos não
houve colheita alguma. Estêvão simplesmente afirma que os parentes de
José em Canaã não puderam encontrar comida nem para eles nem para
seus animais. O tempo no verbo grego indica que eles continuavam
buscando comida, mas sem nenhum resultado.
O Egito depende das águas do Nilo e não da precipitação pluvial
para o crescimento de suas semeaduras. A Palestina, pelo contrário,
recebe suas precipitações que lhe trazem as nuvens procedentes do
Mediterrâneo. Uma seca como aquela raramente ocorre em ambos os
países ao mesmo tempo, mas nos dias de José, os habitantes do Egito,
Canaã e todas as outras terras (Gn 41:54) sofreram a fome. “Fontes
egípcias se referem a numerosas ocasiões em que habitantes de outras
nações, ou toda uma nação, buscaram ajuda no Egito durante períodos de
fome. Pensando nisso como antecedente, a fome de sete anos nos dias de
José tem um respaldo histórico evidente. 403
Graças à sabedoria que Deus tinha dado a José, o trigo foi
armazenado no Egito durante sete anos antecipando o começo da fome.
Quando Jacó se inteirou que os celeiros no Egito estavam cheios e que os
egípcios proviam de grão o seu povo e a todos as nações circunvizinhas,
enviou os seus filhos para comprar o grão (Gn 41:56–57; 42:1–3). Não
está claro por que Estêvão considerou necessário referir-se às duas
visitas dos irmãos de José, mas esta referência parece carecer de sentido
tipológico algum. Na verdade, não há suficiente informação no discurso
de Estêvão para estabelecer um paralelo entre as duas visitas dos irmãos

403
Gerhard F. Hasel, “Famine”, ISBE, vol. 2, p. 281.
Atos (Simon J. Kistemaker) 347
404
de José e a primeira e segunda vinda de Cristo (Hb 9:28). Nós,
portanto, devemos pôr toda a ênfase na mensagem central desta
passagem: Deus salva o Seu povo de uma morte segura em Canaã
mediante o recurso de prover-lhe alimento do Egito.
13, 14. Na segunda vez, José se fez reconhecer por seus irmãos, e se
tornou conhecida de Faraó a família de José. Então, José mandou chamar
a Jacó, seu pai, e toda a sua parentela, isto é, setenta e cinco pessoas.
Estêvão omite qualquer detalhe quanto a Benjamim, o irmão de
José e diz só que José deu-se a conhecer a seus irmãos. Quando foi
vendido como escravo ao Egito, José tinha dezessete anos de idade (Gn
37:2). Vinte anos mais tarde (Gn 41:46, 53), seus irmãos não o
reconheceram. José vestia roupa egípcia, falava através de um intérprete,
e estava rapado como os egípcios. Quando depois de ter transcorrido
dois anos da fome José revelou sua identidade aos filhos de Jacó, tinha
trinta e nove (cf. Gn 45:6). Devido à autoridade e influência que tinha, os
membros de sua família foram apresentados a Faraó, quem os convidou
a que junto com seu pai se estabelecessem no Egito. Embora a fome
fosse durar ainda outros cinco anos, Jacó e sua família puderam instalar-
se no fértil delta do Nilo (Gósen; Gn 46:28). Aqui seus rebanhos teriam
suficiente alimento para sobreviver enquanto José proveu alimentação
para todos os membros de toda a família de seu pai. Como o disse a seus
irmãos: “Deus me enviou adiante de vós, para conservar vossa sucessão
na terra e para vos preservar a vida por um grande livramento” (Gn
45:7).
Há alguma discrepância entre o relato do Antigo Testamento, que
diz que eram setenta as pessoas que formavam a família de Jacó, e o
Novo Testamento, que fala de setenta e cinco? 405 Os estudiosos
ofereceram várias soluções a este problema, mas a melhor veio da
tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, que diz que os que

404
Lake e Cadbury são da opinião que tal semelhança é possível sobre a base de “um contraste
comum na primitiva literatura patrística”. Beginnings, vol. 4, p. 73.
405
Veja-se Gn. 46:27; Êx. 1:5; Dt. 10:22; At. 7:14.
Atos (Simon J. Kistemaker) 348
entraram no Egito com Jacó somavam sessenta e seis. O texto exclui a
Jacó e a José e acrescenta nove filhos de José, o que faz um total de
setenta e cinco. O registro dado na Bíblia hebraica e suas traduções é de
sessenta e seis pessoas, mais Jacó, José, e dois filhos de José, tudo o que
soma setenta. 406
15, 16. Jacó desceu ao Egito, e ali morreu ele e também nossos pais; e
foram transportados para Siquém e postos no sepulcro que Abraão ali
comprara a dinheiro aos filhos de Hamor.
Os judeus davam grande importância ao fato de que Jacó e seus
filhos foram sepultados em Canaã. Jacó deu instruções a José para que o
sepultasse na tumba de Macpela, perto de Manre, em Canaã (Gn 50:5,
13). Por sua vez, José disse aos descendentes de Jacó que tirassem seus
ossos do Egito (Gn 50:25; Êx 13:19). Séculos mais tarde, os israelitas o
enterraram na terra que Jacó havia comprado dos filhos de Hamor (Js
24:32).
A Bíblia não provê informação a respeito da morte e sepultura dos
irmãos de José. 407 Assumimos que a razão pela qual José fosse sepultado
em Siquém é que esta terra foi herdada por seus descendentes (Js 24:32).
Portanto, José foi sepultado em sua própria herança.
“[Seus corpos] foram transportados para Siquém e postos no
sepulcro que Abraão ali comprara a dinheiro aos filhos de Hamor”.
Encontramos aqui uma inconsistência: Abraão comprou a cova de
Macpela de Efrom o hitita por quatrocentos siclos de prata (Gn 23:15). E
Jacó comprou um pedaço de terra dos filhos do Hamor em Siquém por
cem peças de prata (Gn 33:19). Antes de seguir mais adiante, no entanto,
vejamos de novo os versículos precedentes (vv. 14–15).

406
Josefo segue o texto hebraico (Antiguidades 2.7.4 [183]; 6.5.6 [89]). Mas Filo menciona tanto a
versão hebraica como a grega, e procura reconciliar a diferença a que nos estamos referindo
(Migration of Abraham 199–201 [36]).
407
Josefo diz que os irmãos de José foram sepultados em Hebrom. Antiguidades 2.8.2 [199].
Consulte-se também Jub. 46:8 e The Testament of the Twelve Patriarchs.
Atos (Simon J. Kistemaker) 349
Estêvão e sua audiência conheciam as Escrituras o suficientemente
bem como para que uma simples referência lhes permitisse lembrar todo
o relato. Quando Estêvão diz, “seus corpos”, os membros do Sinédrio
sabiam que ele tinha em mente a Jacó e a José e que estes dois foram
sepultados em lugares diferentes: Jacó na cova de Macpela que tinha
comprado e José no pedaço de terra que tinha comprado em Siquém. O
nome Abraão no versículo 16b traz à mente a cova de Macpela em
Hebrom, onde Jacó foi sepultado. E Siquém é o lugar onde os israelitas
enterraram os ossos de José. Os dois relatos foram incluídos numa breve
frase. 408

Considerações práticas em At 7:9–16


A ninguém gosta de meter-se em problemas. Às vezes nos
aconselha evitar as aflições a todo custo. Embora é preciso reconhecer
que muitos destes problemas são de nossa própria elaboração, às vezes
somos espancados por adversidades que estão totalmente fora de nosso
controle. A repentina morte de um familiar ou de um amigo, a perda de
um trabalho e a consequente baixa nos ganhos regulares, perseguições,
dificuldades de diversos tipo, pobreza, são todas situações que às vezes
nos parecem provas mandadas por Deus. Aos dezessete anos de idade,
José foi vendido como escravo, levado ao Egito, tentado por uma
sedutora mulher, encarcerado, e abandonado. Mas Deus estava com ele.
E essa segurança foi suficiente para que o jovem fugisse da tentação,
graças ao qual foi cheio de sabedoria divina para aconselhar a Faraó,
para que sua fé fora firme no meio da idolatria egípcia e finalmente
poder perdoar a seus irmãos.
José, portanto, entendeu que Deus o tinha enviado ao Egito para
salvar a seus familiares da inanição e que as adversidades que teve que

408
Consulte-se F. F. Bruce, The Book of Acts, ed. rev., série New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 137 n. 35; R. A. Koivisto, “Stephen’s Speech: A
Theology of Errors?” GTJ 8 (1987); 101–14.
Atos (Simon J. Kistemaker) 350
confrontar tinham sido divinamente desenhadas para fazer cumprir os
propósitos de Deus: a salvação de seu povo (Gn 50:20). As provas que
procedem da mão de Deus, então, são uma fonte de inenarráveis
bênçãos. O autor do conhecido hino: “Quão firme alicerce” captou esta
verdade de uma forma admirável, quando escreveu:
Não temas nada, contigo Eu estou;
teu Deus Eu sou sozinho, tua ajuda serei;
tua força e firmeza em minha destra estarão,
e nela sustento e poder te darei.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:11–13


Versículo 11
οὑχ ηὕρισκον — aqui o indicativo imperfeito expressa
impossibilidade permanente: “foi impossível encontrar alimento”.
χορτάσματα — este substantivo no plural neutro significa
“forragem” e é sinônimo de χόρτος (pasto). Também pode significar
alimento “para pessoas ou animais”. 409

Versículos 12–13
είς — como uma preposição com um sentido de localização, toma o
lugar de ἐν (em), que com efeito é a preposição que aparece em Gênesis
42:2 (LXX). 410
ἀνεγνωρίσθη — esta forma composta é intensiva. É preferível à
forma simples pela garantia que lhe dão os melhores manuscritos em
grego.

409
Thayer, p. 670.
410
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. E rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#205.
Atos (Simon J. Kistemaker) 351
c. A preparação de Moisés (At 7:17–22)

Até aqui, Estêvão demonstrou eloquentemente que ele não


blasfemou contra Deus nem desonrou Seu nome. Agora se prepara para
responder às acusações de que blasfemou contra Moisés. Note-se que ele
dedica grande parte de seu discurso a falar da vida, missão e ensino de
Moisés.
17-19. Como, porém, se aproximasse o tempo da promessa que Deus
jurou a Abraão, o povo cresceu e se multiplicou no Egito, até que se
levantou ali outro rei, que não conhecia a José. Este outro rei tratou com
astúcia a nossa raça e torturou os nossos pais, a ponto de forçá-los a
enjeitar seus filhos, para que não sobrevivessem.
A nova fase na história do povo de Deus é o cumprimento da
promessa que Deus fez quatrocentos anos antes a Abraão. Esta
promessa, naturalmente, está relacionada com a numerosa descendência
de Abraão e a herança de Canaã (Gn 15:5, 7). Deus permite que
transcorram quatro séculos durante os quais a família de Jacó cresceu e
chegou a formar uma nação (cf. Êx 1:7). (Moisés revela que nos dias do
êxodo havia seiscentos mil homens a pé, sem contar as mulheres e
crianças [Êx 12:37; Nm 1:46; veja-se também Sl 105:24]. Estudiosos
ainda discutem sobre a população estimada; uma possibilidade é que o
total tenha sido de aproximadamente um milhão e meio.) Deus fixa o
tempo para o crescimento da nação e seu eventual êxodo do Egito.
O tempo entre a morte de José e a aparição daquele faraó que não
conhecia José se calcula em uns duzentos anos. José alcançou a idade de
110 anos (Gn 50:26), e quando Moisés tinha 80 anos, guiou os israelitas
para fora do Egito e os livrou do reinado do faraó. O faraó que já não
teve consideração por José nem se preocupou com os seus descendentes
pertenceu à décima oitava dinastia. Chamava-se Tutmés I. Foi
extremamente cruel e ditou o decreto para destruir todos os meninos
nascidos nas famílias hebraicas (Êx 1:22). Note-se que Arão, o irmão
mais velho de Moisés, nasceu antes que se publicasse tal decreto. Tutmés
Atos (Simon J. Kistemaker) 352
I subiu ao trono, aparentemente, antes do nascimento de Moisés
(aproximadamente no 1530 a.C.). 411
Moisés revela que este faraó pôs os israelitas sob o regime de
trabalhos forçados na construção das cidades de Pitom e Ramessés (Êx
1:11). Estêvão diz que Faraó se aproveitou do povo judeu, porque os
trabalhos forçados causaram a morte de incontáveis escravos judeus.
Faraó queria controlar o crescimento da população, mas Deus frustrou
seus propósitos ao dar aos israelitas um fenomenal crescimento
numérico. Os egípcios foram cruéis com os escravos não só por obrigá-
los a fazer qualquer tipo de trabalho, mas por ordenar às parteiras que
matassem a todos os meninos que nascessem dentro do povo de Israel
(Êx 1:15–16). Mas apesar de tudo isso, os hebreus continuaram
aumentando em número. Como uma última medida, Faraó ordenou que
todos os meninos israelitas fossem afogados no Nilo (Êx 1:22).
Cabem aqui duas observações. Primeiro, a destruição dos meninos
no Egito tem seu paralelo com a morte das crianças em Belém quando
nasceu Jesus (Mt 2:16). 412 As vidas de Moisés e de Jesus foram salvas, e
Moisés serve como um tipo de Cristo. Segundo, através da contínua
crueldade de Faraó contra os israelitas, Deus os preparou para sua
liberdade e o êxodo e lhes deu o desejo de viajar até a Terra Prometida.
20-22. Por esse tempo, nasceu Moisés, que era formoso aos olhos de
Deus. Por três meses, foi ele mantido na casa de seu pai; quando foi
exposto, a filha de Faraó o recolheu e criou como seu próprio filho. E
Moisés foi educado em toda a ciência dos egípcios e era poderoso em
palavras e obras.
Naqueles dias tão críticos nasceu Moisés, na família de um levita
(Êx 2:1–2). A família incluía dois irmãos mais velhos: Miriã e Arão. O
Antigo Testamento tanto como o escritor aos Hebreus afirmam que
Moisés era bonito (Êx 2:2; Hb 11:23). A tradução literal, “[Moisés] era

411
William H. Shea, “Exodus, Date of the”, ISBE, vol. 2, p. 233.
412
Consulte-se W. H. Gispen, Bible Student’s Commentary: Exodus, trad. por Ed van der Maas
(Grand Rapids: Zondervan; St. Catharines: Paideia, 1982), p. 37.
Atos (Simon J. Kistemaker) 353
uma criança bela a Deus”, talvez seja um modismo semítico que
signifique “extremamente atrativo”.413 Outras versões dizem que “não
era uma criança comum”.
Os pais de Moisés aceitaram a este belo menino como um presente
de Deus e, portanto, não pensaram em abandoná-lo. Durante três meses o
protegeram e ocultaram da vista e ouvidos dos soldados de Faraó. Mas
chegou o tempo em que era preciso tomar uma decisão. Seus pais, então,
confeccionaram um cesto feito de papiro e o calafetaram com breu;
puseram o menino dentro e o esconderam entre os juncos do rio. Logo
instruíram a Miriã para ficar cuidando de Moisés. É interessante que o
nome Moisés soa como uma palavra no hebraico que significa
“resgatado [das águas]”.
A filha de Faraó veio ao rio para tomar um banho. Quando seus
assistentes viram a criança, tiraram-na da água e a trouxeram para a
princesa. Ela o adotou como seu filho e o levou ao palácio real (Êx
2:10).414 Vemos a providência de Deus protegendo a Moisés em dias
quando outras crianças israelitas morriam pela crueldade de Faraó.
Moisés veio a ser parte da família de Faraó quando a princesa o adotou.
Embora o Antigo Testamento não diga nada sobre a preparação que
Moisés recebeu na corte real, Estêvão segue a tradição e diz que Moisés
recebeu uma educação “em toda a ciência dos egípcios”. 415 Nos antigos
tempos, o Egito foi um grande centro de estudo, conhecimento e
sabedoria (cf. 1Rs 4:30). Moisés provavelmente estudou filosofia,
matemática, literatura e retórica. Estas disciplinas o tornavam apto para
desempenhar um papel de liderança. Estêvão é breve e vai ao ponto. Só
diz que Moisés “era poderoso em palavras e obras”.
Naturalmente, como líder dos israelitas, Moisés repetidamente
demonstra sua habilidade para falar bem na presença de Faraó ou de
dirigir-se ao povo de Israel. Sua autoavaliação de que era pesado de
413
Moule, Idiom-Book, p. 46.
414
Josefo Antiguidades 2.9.7 [232].
415
Filo Life of Moses 1.20–22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 354
língua para falar (Êx 4:10) deve ser entendida como uma desculpa para
ser relevado da tarefa que Deus estava pondo sobre ele. O Antigo
Testamento revela que não foi Arão, e sim Moisés quem falou
eloquentemente e realizou numerosos milagres. Sem dúvida que Moisés
foi poderoso em palavras e obras.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:17–22


Versículo 17
καθώς — este composto não é traduzido literalmente (“assim
como”) mas é considerado como um advérbio temporal (“quando”).
ὡμολόγησεν — na igreja primitiva, o verbo ὁμολογεῖν recebe o
significado técnico de fazer confissão. Os escribas estavam dispostos a
alterar seu significado para ἐπαγγελεῖν (prometer) ou ὀμνύειν (jurar). No
entanto, ὁμολογεῖν neste contexto significa “prometer”. 416

Versículo 19
τοῦ ποιεῖν — o artigo definido singular no caso genitivo com o
infinitivo presente normalmente expressa propósito. Aqui, a intenção
parece ser resultado: “para fazer”. 417 Além disso, a combinação εἰς com
o infinitivo presente ζῳογονεῖσθαι nesta frase expressa um resultado
hipotético.

Versículos 21–22
ἐκτεθέντος αὑτοῦ — o caso genitivo tanto no particípio passivo
aoristo como no pronome significa a construção absoluta genitiva.

416
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 345. Veja-se também Blass y Debrunner, Greek
Grammar, #187.
417
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 1090.
Atos (Simon J. Kistemaker) 355
είς — com αὑτόν como um acusativo pregado, esta frase
preposicional significa “como filho”.
πασῃ σοφίᾳ — com o substantivo sabedoria no abstrato, o adjetivo
precedente pode significar tanto “cada” como “tudo”. 418

d. A partida de Moisés (At 7:23–29)

O seguinte parágrafo no discurso de Estêvão mostra a idade de


Moisés e sua incapacidade para ser um líder. Embora tenha quarenta
anos, ainda não está preparado para assumir um papel de dirigente.
Necessita mais tempo para preparar-se para a missão que Deus lhe deu.
23-25. Ao completar quarenta anos, Moisés decidiu visitar seus
irmãos israelitas. Ao ver um deles sendo maltratado por um egípcio, saiu
em defesa do oprimido e o vingou, matando o egípcio. Ele pensava que
seus irmãos compreenderiam que Deus o estava usando para salvá-los,
mas eles não o compreenderam [NVI].
a. “Ao completar quarenta anos, Moisés”. O Antigo Testamento não
nos diz que idade tinha Moisés quando fugiu a Midiã. Só nos diz que
tinha crescido (Êx 2:11; veja-se também Hb 11:24). No entanto, sabemos
que tinha 80 quando se apresentou diante do faraó com seu irmão Arão
(Êx 7:7), e que tinha 120 anos quando morreu (Dt 34:7). A tradição
judaica diz que aos 40 anos fugiu do Egito, que viveu em Midiã outros
40, e que guiou o povo israelita outros 40. de acordo com isso, sua vida
se divide em três períodos iguais de 40 anos cada um. 419
b. “Decidiu visitar seus irmãos israelitas”. O escritor de Hebreus
explica que Moisés não quis ser conhecido como filho da filha de Faraó,
mas lançou sua sorte com o povo de Deus, que era brutalmente
maltratado pelo faraó (Hb 11:24–25). Moisés se identificou com os
descendentes de Abraão, o povo da aliança com Deus. Apesar de sua
educação no palácio de Faraó, ele era um israelita de coração. Por isso,

418
Robertson, Grammar, p. 772.
419
SB, vol. 2, pp. 679–80. Algumas fontes dizem que Moisés tinha vinte anos quando fugiu do Egito.
Atos (Simon J. Kistemaker) 356
aos quarenta anos, decidiu visitar seus compatriotas. Quando decidiu
identificar-se com seus escravizados e oprimidos compatriotas, não só
declarou ser descendente físico de Abraão, mas também declarou ser seu
descendente espiritual por sua fé em Deus (cf. Hb 11:26). 420 O texto
grego diz literalmente, “subiu em seu coração o visitar seus irmãos, os
filhos de Israel”. Quer dizer que era Deus quem estava agindo em seu
coração, de maneira que decidiu lançar sua sorte com os israelitas. E
assim, a palavra visitar neste versículo significa mais que uma reunião
social; implica ajudar a alguém em necessidade.
c. “Ao ver um deles sendo maltratado por um egípcio”. Quando
deixou o palácio real para unir-se aos seus, estava expondo-se à fúria de
Faraó por romper os vínculos com a família egípcia em favor de
identificar-se com os hebreus. Além disso, também correu o risco de ser
mal interpretado pelos israelitas, que o viam como a um membro da
família real.
Quando viu um egípcio maltratando um israelita, foi em ajuda
deste, espancando o egípcio opressor até lhe causar a morte. O Texto
Ocidental dos manuscritos gregos, seguindo o relato do Antigo
Testamento, acrescenta que Moisés o enterrou na areia (Êx 2:12). À
parte da questão de se Moisés teve alguma justificação para tomar a lei
em suas próprias mãos, o fato provou que se autodesqualificou para
assumir a posição de líder. Era necessário ainda que Moisés aprendesse a
lição de mansidão (Nm 12:3) antes de chegar a ser um líder eficaz.
d. “Mas ele pensava que seus irmãos compreenderiam que Deus
lhes daria liberdade por sua mão”. 421 Moisés era da opinião de que Deus
o tinha escolhido para libertar os israelitas e que estes o reconheceriam
como seu líder. Ele era uma pessoa amadurecida que tinha recebido uma
excelente educação na cultura egípcia. Tinha uma genuína fé no Deus de
Israel, quem tinha prometido libertar Seu povo da escravidão

420
Consulte-se C.N.T. Hebreus.
421
Josefo Antiguidades 2.9.2–3 [205–15].
Atos (Simon J. Kistemaker) 357
quatrocentos anos depois de ter dado a Abraão a promessa que herdaria a
Terra Prometida (Gn 15:13). Os israelitas guardavam este conhecimento,
talvez através da tradição oral, e esperavam pacientemente pela
liberdade. No entanto, mesmo quando Moisés tenha estado a par desta
profecia divina, seus compatriotas não o aceitavam como seu libertador.
Estêvão diz, “eles não o compreenderam”.
26-29. No dia seguinte, Moisés dirigiu-se a dois israelitas que
estavam brigando, e tentou reconciliá-los, dizendo: ‘Homens, vocês são
irmãos; por que ferem um ao outro?’ Mas o homem que maltratava o
outro empurrou Moisés e disse: ‘Quem o nomeou líder e juiz sobre nós?
Quer matar-me como matou o egípcio ontem?’ Ouvindo isso, Moisés
fugiu para Midiã, onde ficou morando como estrangeiro e teve dois filhos
[NVI].
a. “No dia seguinte”. O dia seguinte provou ser um dia decisivo
para Moisés. Ao retornar onde estavam os israelitas, estava indicando
que seu rompimento com a família real era permanente. Esperava que
seus compatriotas o aceitassem como o líder provido por Deus para os
libertar da cruel escravidão. No entanto, estava muito errado. Quando
voltou onde estavam seus irmãos, viu dois deles pelejando e com
vontades de ferir-se um ao outro. Tratou de intervir como um
pacificador, dizendo: “Homens, vocês são irmãos; por que ferem um ao
outro?”
Neste ponto, Estêvão não segue o texto do Antigo Testamento mas
está dando o significado da pergunta original de Moisés: “Por que
espancas o teu próximo?” (Êx 2:13). Note-se que Moisés enfatiza o
conceito irmãos não no sentido de que estes dois homens pertencessem à
uma mesma família, e sim que eram membros da mesma raça, a
hebraica. Moisés, portanto, chamou sua atenção para sua nacionalidade.
Quando lhes perguntou por que estavam espancando um ao outro,
indiretamente estava referindo-se às feridas que tinham recebido os
israelitas da mão dos capatazes egípcios. Além disso, inadvertidamente
chamou a atenção a seu próprio ataque forte e fatal contra um egípcio.
Atos (Simon J. Kistemaker) 358
b. “Quem o nomeou líder e juiz sobre nós?” Em lugar de alcançar a
harmonia com os homens a quem estava procurando ajudar, encontrou o
repúdio e o desprezo. O israelita que estava espancando o seu
compatriota buscou pôr Moisés de lado, não física e sim verbalmente,
com um ataque que o fez sentir medo. Com atrevimento desafiou a
autoridade de Moisés de vir aos israelitas como um governante ou um
juiz. Com esta pergunta, aquele hebreu que se ab-rogou a si mesmo o
direito de falar pelos demais, rejeitou a Moisés como o homem chamado
por Deus para libertar o Seu povo. A rejeição foi tanto física como
espiritual. O israelita, reconhecendo em Moisés evidências da cultura
egípcia, não quis reconhecer nele um israelita. E em sua cegueira
espiritual, fechou seus olhos ao plano de Deus para sua salvação.
c. “Quer matar-me como matou o egípcio ontem?” Para as palavras
do israelita, Estêvão está citando exatamente a Septuaginta. A reação que
o israelita esperava provocar em Moisés, naturalmente que deveria ser
negativa. Moisés se desesperou. Sabia que não podia voltar à corte do
faraó depois de ter rompido com a família real. Sabia que quando o faraó
ouvisse da morte do egípcio, procuraria matá-lo também (Êx 2:15). Por
outro lado, não encontraria refúgio entre seus próprios irmãos. A rejeição
rude daquele israelita assim o sugeria. Não ficava outra alternativa que
fugir e buscar refúgio em terras estranhas.
d. “Moisés fugiu para Midiã, onde ficou morando como
estrangeiro”. Devido ao fato de que os midianitas eram nômades, gente
que andava por onde quer que fosse em busca de bons pastos para seu
gado, não é possível definir com exatidão as fronteiras de Midiã. A
maioria dos estudiosos a localiza no lado leste do golfo de Aqaba, na
atual Arábia Saudita. Talvez se estendia até ou incluía a península de
Sinai, porque Moisés pastoreou os rebanhos de Jetro até o lado mais
longínquo do deserto, perto de Horebe (Sinai). As Escrituras chamam
Jetro, o sogro de Moisés, sacerdote de Midiã (Êx 3:1). Este foi o lugar ao
Atos (Simon J. Kistemaker) 359
qual Moisés fugiu e no qual viveu como estrangeiro por quarenta
anos. 422
e. “E teve dois filhos”. Intencionalmente Estêvão acrescenta que
Moisés teve dois filhos. No contexto histórico ao qual Estêvão se refere,
Moisés fugiu a Midiã, foi recebido no lar de Jetro, casou com Zípora,
uma das sete filhas de Jetro, mas teve um só filho (Êx 2:16–22). Por um
escrito posterior que descreve o êxodo, sabemos que Moisés teve dois
filhos: Gérson e Eliézer. Estêvão traz à memória esta última passagem
porque dá uma explicação dos nomes dos filhos de Moisés: Gérson
significa “forasteiro”, e Eliézer, “meu Deus é [minha] ajuda” (Êx 18:3–
4). Durante os quarenta anos que viveu em Midiã, Moisés nunca chegou
a considerar-se midianita. Como o demonstram os nomes de seus filhos,
manteve-se como estrangeiro que pôs sua confiança no Deus de Israel.

Considerações doutrinais em At 7:23–29


Prestemos atenção às seguintes três observações:

a. Tipo. O paralelo entre Moisés e Cristo é chamativo. Moisés, o


líder de Israel, foi destinado a libertar seu povo da escravidão no Egito.
Jesus foi enviado por Deus para libertar Seu povo da escravidão do
pecado e da morte. Moisés, hebreu, veio como tal diante de seu próprio
povo, mas encontrou a rejeição terminante, o que fez com que fugisse a
Midiã. Jesus nasceu em Belém, mas quando se apresentou a ensinar a
seu próprio povo, não somente foi rejeitado mas além disso O mataram
(cf. Jo 1:11). Moisés foi exaltado por Deus, quem o comissionou no
deserto para guiar os israelitas para fora do Egito, terra do cativeiro, para
a liberdade na Terra Prometida. Deus também exaltou a Jesus,
levantando-O da morte. Jesus liberta o Seu povo da escravidão do
pecado e da morte espiritual concedendo-lhes a liberdade e o reino dos
céus. A diferença neste paralelismo é que Moisés veio para Israel como
422
Consulte-se Robert L. Alden, “Midian, Midianites”, ZPEB, vol. 4, pp. 220–22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 360
um servo em nome de Deus, pelo contrário, em Jesus o próprio Deus
vem ao Seu povo e o salva.
Estêvão explica que Moisés é um tipo e precursor de Cristo (v. 37)
e cita uma profecia dada a Moisés. Disse a Moisés que Deus levantaria
um profeta como ele dentre seus irmãos (Dt 18:15, 18). E Jesus cumpriu
esta profecia.

b. Rejeição. Estêvão mostra claramente que os israelitas rejeitaram


a Moisés como seu libertador, e assim ele assinala um tema que é
relevante para Israel. O tema da rejeição aparece não só no discurso de
Estêvão (vv. 27, 35, 39), mas também existe ao longo de toda a história
de Israel. O povo judeu se destaca por rejeitar a graça de Deus. Em suas
palavras, Estêvão busca lembrar sua audiência desta característica
negativa que obstruiu as relações de Israel com Deus.

c. Honra a Moisés. Nesta parte de seu discurso, Estêvão não deixa


dúvidas de que sente um grande respeito por Moisés. Portanto, as
acusações de seus oponentes, que dizem que ele blasfemou o nome de
Moisés, são absolutamente sem fundamento.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:23–27

Versículo 23
ἐπληροῦτο αὑτῷ — este é um verbo favorito de Lucas em seus
escritos. Note-se o tempo imperfeito na voz passiva (“ia sendo cumprido
nele”). A forma verbal transmite um sentido de aproximação.
ἀνέβη — esta é uma típica construção semítica: “o pôs em seu
coração” (por exemplo, a Septuaginta de Is 65:16; Jr 3:16; Ez 38:10). O
sujeito do verbo é o infinitivo ἐπισκέψασθαι (visitar).
Atos (Simon J. Kistemaker) 361
Versículo 24
ἠμύνατο — do verbo ἀμύνομαι, que aparece só uma vez em todo o
Novo Testamento. Na voz média, é traduzido “assistir [a um amigo]”. 423

Versículos 26–27
συνήλλασσεν — este é o imperfeito ativo de συναλλάσσω (eu
reconcilio). O imperfeito é conativo: “ele procurava reconciliá-los”.
ἀπώσατο — de ἀπωθέω (eu lanço de lado), a forma é o meio
aoristo: “lançou a Moisés do meio”. Veja-se também o versículo 39.

e. A missão de Moisés (At 7:30–36)

Aqui, Estêvão diz que o segundo período de quarenta anos na vida


de Moisés chegou ao seu fim. Os últimos quarenta compreendem a tarefa
de guiar o povo de Israel para fora do Egito, através do mar Vermelho e
pelo deserto. Moisés necessitava quarenta anos de educação no palácio
de Faraó e quarenta mais de treinamento no deserto antes de estar
adequadamente preparado para servir a Deus. (Curiosamente, vários
outros líderes passaram também tempo no deserto em preparação para
um dedicado serviço [por exemplo, Davi, Elias, João Batista, Jesus, e
Paulo].)
30-32. Decorridos quarenta anos, apareceu-lhe, no deserto do monte
Sinai, um anjo, por entre as chamas de uma sarça que ardia. Moisés,
porém, diante daquela visão, ficou maravilhado e, aproximando-se para
observar, ouviu-se a voz do Senhor: Eu sou o Deus dos teus pais, o Deus
de Abraão, de Isaque e de Jacó. Moisés, tremendo de medo, não ousava
contemplá-la.
Estêvão segue relatando a história de Moisés através de citações
que tira do livro de Êxodo. Parece saber o relato de cor, porque em
numerosos lugares cita da Septuaginta palavra por palavra. Eis aqui um
423
Robertson, Grammar, p. 805.
Atos (Simon J. Kistemaker) 362
homem que conhece as Escrituras e que sabe como expô-las. Aqui conta
a missão de Moisés.
a. “Decorridos quarenta anos, apareceu-lhe, no deserto do monte
Sinai, um anjo”. À idade de oitenta, depois de ter vivido com Jetro por
quarenta anos, Moisés leva os rebanhos de Jetro à parte sul da Península
de Sinai, perto do monte Sinai (veja-se Êx 3:12; 19:11–13; Dt 1:6).
Enquanto está ali, vê um arbusto que se queimava mas que não se
consome (Êx 3:2). 424 Ao se aproximar para ver de perto este espetáculo
estranho, ouviu a voz de Deus. Estêvão explica que o anjo é o Senhor (v.
31), quer dizer, o próprio Deus (vv. 32, 35; Êx 3:2, 7). Alguns intérpretes
entendem que o anjo é a pré-encarnação do Filho de Deus. Por exemplo,
João Calvino diz que Deus nunca se comunica com o homem senão
através de Cristo. 425 Mas neste contexto, a evidência é insuficiente para
chegar à conclusão de que Estêvão está se referindo a Cristo. Antes,
dizemos que “o anjo leva a autoridade e a presença do próprio Deus”. 426
Deus apareceu na chama de uma sarça ardente, em conformidade
com muitas outras aparições no fogo. De maneira que durante as noites
em que os israelitas viajavam pelo deserto, Deus Se manifestava a eles
como uma coluna de fogo (Êx 13:21); e no momento em que deu a lei a
Moisés, Deus desceu sobre o Monte Sinai em fogo (Êx 19:18; cf.
também 1Rs 18:24, 38).
b. “Moisés, porém, diante daquela visão, ficou maravilhado”. Deus
abriu a curiosidade de Moisés, e quando este se aproxima da sarça
ardente, fala. Cruzando rapidamente os séculos, Deus Se identificou
como o Deus de três patriarcas: Abraão, Isaque, e Jacó. A aliança que fez
com Abraão e as promessas que fez ao patriarca foram verdadeiras. Deus
cumpriria Sua palavra e redimiria o Seu povo Israel da escravidão. Não

424
As igrejas presbiterianas tomaram seu símbolo do arbusto em chamas deste texto. Para o lema,
usaram as palavras do latim nec tamen consumebatur (“porém, não se consumia”).
425
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 190. Veja-se também John Albert Bengel, Gnomon of the
New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 576.
426
Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 75.
Atos (Simon J. Kistemaker) 363
admira que Moisés está estupefato e não se atreveu a olhar o arbusto.
Mais tarde volta a ser presa de um imenso temor quando Deus lhe falou
no monte Sinai (Hb 12:21). É consciente que está diante da própria
presença de Deus. Contudo, Deus chama Moisés, comissionando-o para
assumir a tarefa de tirar Israel fora do Egito.
33, 34. Disse-lhe o Senhor: Tira a sandália dos pés, porque o lugar
em que estás é terra santa. Vi, com efeito, o sofrimento do meu povo no
Egito, ouvi o seu gemido e desci para libertá-lo. Vem agora, e eu te
enviarei ao Egito.
a. Santidade. Moisés deu-se conta que está diante da presença do
santo Deus, cuja presença santificou mesmo a terra onde Moisés está
(veja-se Js. 5:15). Moisés está no santuário de Deus, por assim dizer, e
por isso deve tirar as sandálias dos pés. Os orientais ainda usam esta
prática ao entrar em seus templos, santuários, e inclusive a seus próprios
lares. São extremamente zelosos em guardar o que é sagrado e limpo.
Estêvão altera um pouco a sequência que nos dá o Êxodo deste
encontro. Diz que Deus primeiro disse a Moisés que tirasse seus sapatos
e logo Se revelou como o Deus dos patriarcas (Êx 3:5–6). A sequência,
na verdade, não tem que ver com a importância do acontecimento. Deus
mostra a Moisés que até a área do deserto onde há um arbusto que arde é
santa quando Deus está presente. E Estêvão usa este fato para dizer ao
Sinédrio que a sagrada presença de Deus não está limitada ao templo de
Jerusalém.
Note-se que antes que o arbusto começasse a arder, a terra onde
estava não era mais santa que qualquer outro lugar da península do Sinai.
O espaço ocupado pelo arbusto em chamas chegou a ser santo só
enquanto a glória de Deus esteve ali. 427 Qualquer lugar da terra é santo,
então, quando Deus se reúne com o homem que O adora.
b. A comissão. Moisés passou quarenta anos em Midiã pastoreando
rebanhos enquanto os israelitas sofriam as crueldades dos egípcios que

427
Consulte-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 194.
Atos (Simon J. Kistemaker) 364
os mantinham como escravos. Embora ele pôde escapar rumo à
liberdade, os israelitas não puderam fazê-lo, mas pelo contrário
adoeceram em sua miserável condição. Sem dúvida, muitas vezes
Moisés pensava no povo de Deus e na promessa de sua libertação.
Quando Deus lhe disse que Ele sabia muito bem dos sofrimentos de Seu
povo por ter ouvido seus lamentos, estava revelando a Moisés que Sua
aliança e promessas feitas a Abraão seguiam vigentes. Deus falou com
palavras humanas e em terminologia hebraica quando disse que
realmente tinha visto a miséria dos israelitas e realmente tinha ouvido
seus gritos clamando por libertação. Além disso, disse que tinha descido
para libertá-los. E comissionou o Seu servo Moisés para que os
libertasse: “Vem agora, e eu te enviarei ao Egito”. O tempo para a
redenção de Israel tinha chegado e Deus escolheu Moisés como o
homem para atacar esta tarefa. A breve ordem: “Vem agora”, significava
que Moisés devia sair de Midiã e voltar para seu povo, a esse mesmo
povo que o tinha rejeitado. Já não devia temer dos egípcios que queriam
matá-lo, porque Deus lhe revelou que todos tinham morrido (Êx 4:19).
35, 36. Este é o mesmo Moisés que tinham rejeitado com estas
palavras: ‘Quem o nomeou líder e juiz?’ Ele foi enviado pelo próprio
Deus para ser líder e libertador deles, por meio do anjo que lhe tinha
aparecido na sarça. Ele os tirou de lá, fazendo maravilhas e sinais no
Egito, no mar Vermelho e no deserto durante quarenta anos [NVI].
a. “Este é o mesmo Moisés”. Estêvão já não reconta a história de
Moisés como tal. Começa a interpretar a importância do acontecimento:
Moisés voltou para o mesmo povo que quarenta anos atrás o tinha
rejeitado com a pergunta: “Quem o nomeou líder e juiz?” Estêvão chama
a atenção para Moisés como uma pessoa ao usar o pronome
demonstrativo este para descrever a Moisés. Enfatiza o tema da rejeição
para a qual a história de Israel no deserto reconhece. O paralelismo entre
Moisés rejeitado pelos israelitas e Jesus repudiado pelos judeus é
evidente.
Atos (Simon J. Kistemaker) 365
b. “Ele foi enviado pelo próprio Deus para ser líder e libertador
deles”. O israelita que quarenta anos atrás perguntou a Moisés: “Quem o
nomeou líder e juiz sobre nós?” (v. 27, NVI) representa toda a nação de
Israel rejeitando a graça de Deus. Não obstante a rejeição de Israel,
Deus enviou Moisés com poder e autoridade como um “líder e
libertador”. Note-se a diferença nas palavras, porque libertador veio a
ocupar o lugar que tinha a palavra “juiz”. Um juiz é capaz de libertar
uma pessoa de um adversário que levantou acusações contra ela. Um
libertador redime uma nação da opressão de outra nação. 428
Note-se que os termos líder e libertador apontam realmente a
Cristo. Primeiro, Moisés foi o governador de Israel como o pai desta
nação. Os apóstolos proclamaram a Jesus “Príncipe”, que em grego é
uma palavra relacionada com “governador” (p. ex., At 5:31). Logo, os
israelitas sabiam que Deus os redimiria do jugo dos egípcios (Êx 6:6),
porque Deus é o redentor de Israel (Sl 19:14; 78:35).
Quando Estêvão pronuncia a expressão redentor no Sinédrio, ele
toca o mais profundo anelo de seus contemporâneos. Este anelo é
expresso eloquentemente pelos dois homens em caminho para Emaús:
“Nós esperávamos que fosse ele [Jesus] quem havia de redimir a Israel”
(Lc 24:21; e cf. At 2:38). Ao chamar Moisés “líder e libertador”, Estêvão
diz a seus ouvintes que neste duplo aspecto, Moisés é tipo de Cristo. 429
c. “Por meio do anjo”. Deus comissionou a Moisés quando lhe
falou da sarça ardendo. E lhe deu poder e autoridade divinos para dirigir-
se a Faraó e aos anciãos de Israel. Moisés recebeu poder para realizar
prodígios e sinais como as dez pragas no Egito, o cruzamento do Mar
Vermelho e a morte do exército de Faraó, e o cuidado protetor para com
os israelitas no deserto durante quarenta anos. A expressão prodígios e
sinais inequivocamente assinala a Jesus, quem durante Seu ministério

428
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 577.
429
Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, p. 199.
Atos (Simon J. Kistemaker) 366
terrestre demonstrou com palavras e atos que Deus O havia
comissionado para redimir o Seu povo.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:30–36


Versículo 30
ἐτῶν — o genitivo absoluto aparece com frequência neste capítulo
(p. ex., vv. 21, 31).
ἄγγελος — aqui o substantivo não tem o artigo definido e a
qualificação τοῦ κυρίου (veja-se At 5:19; Êx 3:2 [LXX]). O anjo é a voz
do Senhor (v. 31), de Deus (v. 32), e do Senhor (v. 33).

Versículo 31
ἐθαύμαζεν — o tempo imperfeito é descritivo.
κατανοῆσαι — este infinitivo ativo aoristo revela o tempo perfeito
da forma composta. Descreve “a terminação de um processo mental”. 430

Versículo 34
ἰδὼν εἶδον — duas formas, uma um particípio aoristo e a outra o
ativo aoristo de ὁράω (vejo), é um semitismo que reflete a construção
infinitiva absoluta do hebraico. Expressa ênfase.
ἀποστείλω — embora se espera o futuro indicativo (eu enviarei),
aparece o subjuntivo extraordinário com significado futurista. 431

430
James Hope Moulton, A Grammar of New Testament Greek, vol. 1, Prolegomena, 2a. ed.
(Edimburgo: Clark, 1906), p. 117. Veja-se também Hanna, Grammatical Aid, p. 201.
431
Moule, Idiom-Book, p. 22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 367
Versículo 35
τοῦτον — este pronome demonstrativo referente a Moisés aparece
seis vezes nesta passagem (vv. 35–40). Para maior ênfase, está no
começo de cada frase (vv. 35 [duas vezes], 36, 37, 38).
λυτρωτήν — nós não devemos traduzir este substantivo “libertador”
sem considerar o significado de λυτρόω (libero pagando um resgate). Na
Bíblia, o substantivo é usado duas vezes significando Deus (Sl 19:14;
78:35 [LXX]), uma vez para Moisés (At 7:35), mas nunca para Jesus.
ἀπέσταλκεν — em inglês, o tempo perfeito não pode ser expresso
no contexto desta oração. As traduções têm o tempo passado simples
“enviou”. No entanto, o perfeito mostra resultado permanente.
σὺν χειρί — literalmente, “com a mão”, a expressão é uma tradução
direta do hebraico. Significa “com a ajuda”.

Versículo 36
ἐξήγαγεν πσιήσας — o tempo aoristo do particípio não deve ser
tomado tão estritamente, porque também se aplica aos milagres e sinais
que Moisés realizou durante os quarenta anos de viagem pelo deserto. O
tempo aoristo do verbo ἐξήγαγεν é culminativo e refere-se a toda a
viagem.

f. O ensino de Moisés (At 7:37-43)

Se alguém entre os que escutam a Estêvão não entende que há um


paralelismo direto entre Moisés e Jesus, que ouça a profecia que Deus
deu a Moisés. Nela se compara Moisés com outro profeta que Deus
levantaria dentre os judeus. Ao citar esta profecia, Estêvão diz:
37. Este é aquele Moisés que disse aos israelitas: ‘Deus lhes levantará
dentre seus irmãos um profeta como eu’ [NVI].
Em seu comentário aos membros do Sinédrio, Estêvão é enfático.
Diz-lhes que este Moisés a respeito do qual ele esteve lhes falando é o
Atos (Simon J. Kistemaker) 368
homem que deu aos israelitas uma profecia divina que revela a vinda do
Profeta. Por certo, a forma em que está escrita esta profecia não tem o
artigo definido antes do termo profeta. Mas pelo Novo Testamento e por
outras fontes (a literatura dos samaritanos, dos judeus e do Qumran)
sabemos que o povo nos dias de Jesus estava esperando a vinda do
Profeta (p. ex., Jo 1:19–21; 7:40). 432 Além disso, nos átrios do templo
Pedro proclamou o cumprimento desta profecia de Moisés (At 3:22).
Portanto, todos os membros do Sinédrio sabiam que ninguém mais que
Jesus de Nazaré tinha vindo como o profeta anunciado por Moisés.
38. Ele estava na congregação, no deserto, com o anjo que lhe falava
no monte Sinai e com os nossos antepassados, e recebeu palavras vivas,
para transmiti-las a nós [NVI].
a. “Ele estava na congregação”. Mais uma vez Estêvão insiste em
que Moisés é aquele que revela a lei de Deus. O que fez Moisés? Serviu
como mediador entre Deus e o povo de Israel quando Deus lhes deu os
Dez Mandamentos no deserto, no Monte Sinai (Êx 20:1–17). Moisés
estava na congregação.
Aqui, o grego usa a palavra ekklēsia, que literalmente significa
“igreja”. 433 Naturalmente, o termo descreve o povo de Israel reunido em
assembleia no Monte Sinai para ouvir a Deus quando dava o Decálogo
(veja-se Dt 4:10). Traduções modernas, no entanto, usam as expressões
assembleia ou congregação. F. F. Bruce diz que “assim como Moisés
esteve com a ἐκκλησία então, Cristo está com Sua ἐκκλησία agora, e
continua sendo uma ἐκκλησία peregrina, ‘a assembleia no deserto’ ”. 434
Moisés não recebeu a lei no tabernáculo quando Deus habitou entre os
israelitas, mas recebeu o Decálogo no cimo do monte Sinai. Note-se que
antes Deus havia comissionado a Moisés perto desta mesma montanha
(Êx 3:1).

432
Joachim Jeremias, TDNT, vol. 4, pp. 859–63; Longenecker, Acts, p. 343; Donald Guthrie, New
Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 269.
433
Veja-se KJV, ASV.
434
Bruce, Book of the Acts, p. 142 n. 57.
Atos (Simon J. Kistemaker) 369
b. “O anjo que lhe falava … e com os nossos antepassados”. O
relato do Antigo Testamento revela que o próprio Deus falou com os
israelitas do monte Sinai (Êx 20:1; Dt 5:4). Posteriormente, o próprio
Deus deu a Moisés as tábuas de pedra nas quais tinha escrito os Dez
Mandamentos (Êx 31:18; Dt 9:10). Mas a tradição judaica, a que Estêvão
transmite ao Sinédrio, ensinou que um anjo serviu como mediador entre
Deus e o homem e assim transmitiu sua lei ao povo. 435
c. “Recebeu palavras de vida para transmiti-las a nós”. Moisés
recebeu numerosos mandamentos (em adição aos do Decálogo) os quais
ensinou ao povo. Estêvão os chama “oráculos vivos”. O termo oráculo
refere-se a uma breve frase e descreve adequadamente as ordens
individuais que Deus lhe deu. Quando Estêvão diz que estes são oráculos
vivos, demonstra à sua audiência que tem o maior respeito pela lei de
Moisés. A palavra vivo não deve ser interpretada como Deus tendo dado
estas leis em voz audível ou que as próprias leis são vivificantes. 436 É
evidente que as coisas não ocorreram assim. Estes oráculos não são
fósseis que o tempo preservou incrustados nas rochas. Ao contrário,
Moisés disse aos israelitas que a lei de Deus é sua vida, pelo qual eles
estão em condições de viver plenamente sua vida terrestre (Dt 30:19–20;
32:46–47). Vez após vez as Escrituras afirmam que a Palavra de Deus é
uma palavra viva (p. ex., Hb 4:12).
39. A quem nossos pais não quiseram obedecer; antes, o repeliram e,
no seu coração, voltaram para o Egito.
Aos rebeldes israelitas no deserto Estêvão chama “nossos pais” dos
quais ele e seus ouvintes são os descendentes físicos. Nossos pais, diz,
não quiseram obedecer a Moisés e ao ensino da lei. Não é que Estêvão
queira recitar a história do peregrinar de Israel pelo deserto, mas quer
deixar claro que o povo rejeitou a liderança de Moisés e considerou
seriamente voltar ao Egito. Estêvão se refere ao momento em que os
doze espiões voltaram de explorar a Canaã. Embora dois deles, Calebe e
435
Veja-se especialmente SB, vol. 3, pp. 554–56. Cf. 7:53; Gl. 3:19; Hb. 2:2.
436
Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 77.
Atos (Simon J. Kistemaker) 370
Josué, exortassem ao povo a entrar e tomar posse da terra, os outros dez
deram as notícias alarmantes dizendo que Canaã estava habitada por
gigantes. Era tanto o seu temor que disseram que era melhor voltar ao
Egito, designando para isso um novo capitão (Nm 14:4).
A rejeição de Israel para com Moisés é um tema principal no
discurso de Estêvão (veja-se vv. 27, 35). Naturalmente, os israelitas não
voltaram ao Egito, mas salvo Josué e Calebe, todos os que tinham mais
de vinte anos morreram no deserto. De novo encontramos aqui o
surpreendente paralelo entre Moisés rejeitado por Israel no deserto, e
Jesus rejeitado pelos judeus. Os membros do Sinédrio eram fisicamente
descendentes dos israelitas que repudiaram a Moisés e manifestaram seu
desejo de voltar para o Egito.
40, 41. Disseram a Arão: ‘Faça para nós deuses que nos conduzam,
pois a esse Moisés que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe
aconteceu!’ Naquela ocasião fizeram um ídolo em forma de bezerro.
Trouxeram-lhe sacrifícios e fizeram uma celebração em honra ao que
suas mãos tinham feito [NVI].
Foram os israelitas enganados momentaneamente pelos dez
espiões? Não, diz Estêvão, porque desde o princípio eles rejeitaram a
Deus, como a história claramente o assinala. Apesar de tudo aquilo,
Deus fez por Seu povo – todos os milagres realizados no Egito, o
cruzamento do Mar Vermelho, o maná de cada dia e a água para beber,
protegeu-os do sol durante o dia com uma nuvem, e com uma coluna de
fogo protegendo os de noite – entretanto, os israelitas pediram a Arão
que lhes fizesse ídolos que os guiassem.
Estêvão cita quase palavra por palavra da tradução grega do Antigo
Testamento. Enquanto Moisés estava no monte Sinai recebendo a lei, o
povo diz a Arão: “Faça para nós deuses que nos conduzam, pois a esse
Moisés que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu!” (cf.
Êx 32:1, 23). Com isso deixam de manifesto que não puseram sua fé no
Deus de Israel, e sim querem adorar os ídolos do Egito. Rejeitam o único
e verdadeiro Deus, preferindo imagens feitas pela mão de homem e
Atos (Simon J. Kistemaker) 371
consentem em que estes objetos sem vida os guiem. Note-se que o que
eles estão pedindo são “deuses” mesmo quando o que fazem é um só
ídolo, um bezerro de ouro.
Além disso, os israelitas renunciam a Moisés como seu líder com as
depreciativas palavras: “a esse Moisés que nos tirou do Egito”. Eles
sabem que Moisés subiu ao monte Sinai para receber a lei das mãos de
Deus, mas exclamam com impaciência: “Não sabemos o que lhe
aconteceu!” Setenta anciãos de Israel, Arão, e seus filhos Nadabe e Abiú
subiram com Moisés ao monte Sinai. Ali viram a Deus e comeram uma
comida de aliança em Sua presença (Êx 24:9–11). Todas estas pessoas
eram testemunhas que podiam falar da glória de Deus e da missão de
Moisés, mas o povo recusou aceitar seu testemunho.
Neste estado de ânimo, os israelitas deliberadamente quebrantaram
a aliança que Deus fez com eles (Êx 24:1–8) e com Abraão, seu pai
espiritual (Gn 17:7). Desprezaram as ricas promessas que Deus lhes fez e
rejeitaram aceitar e guardar Sua lei. Não podia ser mais patético o
contraste entre Moisés recebendo os Dez Mandamentos no alto do monte
Sinai e Israel adorando um bezerro de ouro aos pés da montanha.
Com esta ilustração da história judaica, Estêvão reconstrói um
capítulo que seus contemporâneos gostariam de esquecer. Põe diante
deles o relato de um incidente no qual se mostra o pecado mais
descarado de Israel: a rejeição do Senhor Deus, e sua substituição por um
bezerro de ouro. 437
“Naquela ocasião fizeram um ídolo em forma de bezerro”. Não
Arão, a quem eles escolheram como líder para substituir a Moisés, mas
sim o próprio povo fez um ídolo na forma de um bezerro. De fato, o
bezerro como macho foi símbolo de fertilidade. Os estudiosos assumem
que os israelitas o fizeram de madeira e o recobriram de ouro, porque

437
Consulte o Talmude babilônico, p. ex., Shabbath 17a, Megillah 25b, Sopherim 35a. Veja-se
também A. Pelletier, “Valeur Évocatrice d’un Démarquage Chrétien de la Septante”, Bib 48 (1967):
388–94.
Atos (Simon J. Kistemaker) 372
Moisés queimou o ídolo no fogo e logo o moeu até reduzi-lo a pó (Êx.
32:20).
“Trouxeram-lhe sacrifícios e fizeram uma celebração em honra ao
que suas mãos tinham feito”. Os israelitas deliberadamente
transgrediram a lei de Deus que diz que não tenham outros deuses diante
dEle, que não façam para si imagem de coisa alguma, e que não se
inclinem a ela e a adorem (Êx 20:1–4; Dt. 5:7–8). Ofereceram
holocaustos, e apresentaram ofertas de paz a este ídolo e passaram um
tempo comendo, bebendo, e alegrando-se (Êx 32:6). No grego, o verbo
alegrar-se indica que a celebração se prolongou por algum tempo.
42, 43. Mas Deus se afastou e os entregou ao culto da milícia celestial,
como está escrito no Livro dos Profetas: Ó casa de Israel, porventura, me
oferecestes vítimas e sacrifícios no deserto, pelo espaço de quarenta anos,
e, acaso, não levantastes o tabernáculo de Moloque e a estrela do deus
Renfã, figuras que fizestes para as adorar? Por isso, vos desterrarei para
além da Babilônia.
Notem-se os seguintes pontos:
a. O juízo de Deus. Neste ponto, Estêvão deixa de seguir a
sequência histórica do pecado de Israel para fazer algumas observações
apropriadas. “Deus se afastou”, diz-lhes. Esta cláusula, contudo, não se
deve entender como que simplesmente Deus foi embora aborrecido.
Embora o estava, Ele se vinga trazendo desastre sobre aqueles que
pecaram contra Ele (cf. Js 24:20; Is 63:10). Porque embora ele fosse bom
com Seu povo, agora lhes nega Suas bênçãos e lhes dá as costas. 438
“[Deus] os entregou ao culto da milícia celestial”. Temos aqui um
paralelismo com a descrição de Paulo a respeito das pessoas que
persistem no pecado. Deus os deixa em seu pecado até que destruam
suas vidas, como justo juízo por sua desobediência (Rm 1:24, 26, 28). A
milícia celestial representa os corpos celestes (o sol, a lua, as estrelas)
que Israel adorou primeiro em segredo e mais tarde abertamente. Em

438
Thayer, p. 590. Bauer (p. 771) sugere o “sentido não literal … Deus deixou os israelitas que fossem
após os corpos celestes, para que os servissem como a seus deuses”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 373
lugar de adorar o Criador, os israelitas puseram seus olhos naquelas
esferas criadas e se inclinaram diante delas em adoração. 439
b. Registro histórico. Estêvão vai agora aos escritos dos doze
profetas menores, que no cânon do Antigo Testamento os judeus os
tinham como um só livro. Estêvão cita quase palavra por palavra da
tradução grega de Amós 5:25–27. 440 Nesta passagem, o profeta revela o
desgosto de Deus com Israel, primeiro durante a travessia do deserto e
logo durante o período dos reis de Israel e Judá até o exílio a Babilônia.
Deus faz uma pergunta retórica à qual os israelitas terão que
responder negativamente. “Ó casa de Israel, porventura, me oferecestes
vítimas e sacrifícios no deserto, pelo espaço de quarenta anos”
Naturalmente, o povo ofereceu sacrifícios no deserto, como é evidente a
partir da instituição do sacerdócio araônico. No entanto, durante a
travessia pelo deserto a adoração foi muito deficiente que não houve
verdadeira adoração.
Os israelitas que tinham vinte anos ou mais não serviram a Deus
com dedicação e amor devido ao fato de que seus corações não estavam
em conformidade com Deus. Adoraram os ídolos em lugar de adorar a
Deus. Amós dá a entender a seus contemporâneos que Deus poderia
estar sem sacrifícios, como ocorreu no tempo do êxodo. Portanto, o
simples fato de dar suas ofertas não impediria que fossem exilados a
Babilônia. 441 O anterior implica que os sacrifícios dos ouvintes de
Estêvão não livrariam o templo de Jerusalém de uma eventual destruição
(cf. Lc. 19:42–44). A adoração a Deus não depende de sacrifícios.
c. Adoração às estrelas. “Antes, tomastes o tabernáculo de
Moloque e a estrela do vosso deus Renfã, figuras que vós fizestes para as
adorar” [v. 43, RC]. O texto grego difere em sua redação de Amós 5:26

439
Veja-se Dt. 4:19; 17:3; 2Rs. 21:3, 5; 23:11; Jr. 7:18; 8:2; 19:13; Sf. 1:5.
440
Veja-se E. Richard, The Creative Use of Amos by the Author of Acts, NovT 24 (1982): 37–53.
441
As interpretações de Amós 5:25–27 são numerosas e variadas. Eu segui a sugerida por J.
Ridderbos, De Kleine Propheten: Hosea, Joël, Amos, 2a. ed., série KorteVerklaring der Heilige
Schrift (Kampen: Kok, 1952), p. 224.
Atos (Simon J. Kistemaker) 374
ao dizer “… levaste o tabernáculo de teu Moloque e Quium, teus ídolos,
a estrela de teus deuses que lhes fizeram”.
Só nos interessa assinalar a diferença na redação desta passagem e
não entrar na discussão das diferenças. O texto grego menciona dois
nomes, Moloque e Renfã. Estes dois nomes aparecem só uma vez cada
um no Novo Testamento. Moloque era o “deus cananita-fenício do céu e
do sol”, 442 ou o planeta Vênus. 443 Renfã (com muitas variações na forma
de escrever-se) é outro nome para Saturno. Em resumo, ambos os nomes
falam da adoração aos corpos celestes.
A adoração dos israelitas tinha degenerado a ponto de inclinar-se
diante das estrelas do céu. Talvez essa prática já a mantiveram durante os
quarenta anos que passaram no deserto, porque o texto diz que
levantaram santuário a Moloque. Há um paralelo entre os adoradores de
ídolos levando o tabernáculo de deuses pagãos e os levitas levando o
tabernáculo do Senhor no deserto.
d. Sentença divina. Na última frase da citação de Amós, “Eu os
transportarei para além de Damasco” (segundo a Bíblia Hebraica e a
Septuaginta), Estêvão aproxima-se ao texto de um ponto de vista
histórico. Muda a palavra Damasco por “Babilônia” com o que
demonstra obviamente que tem em mente o exílio do reino de Judá a
Babilônia (cf. 2Cr 36:15–21).

Considerações práticas em At 7:39–43


Durante Seu ministério, Jesus disse com frequência a seus
seguidores que os campos espirituais estavam amadurecidos para a ceifa,
mesmo quando os obreiros fossem poucos (Mt 9:37; Lc 10:2; Jo 4:35).
Durante e depois do Pentecostes estas palavras provaram ser verdadeiras
quando milhares e milhares aceitaram a Jesus como seu Senhor. A igreja
cresceu, espalhando-se de Jerusalém a Samaria e até os confins da terra.

442
Bauer, p. 526.
443
Veja-se J. Gray, “Molech, Moloch”, IDB, vol. 3, p. 422b.
Atos (Simon J. Kistemaker) 375
Jesus nos instruiu a orar para que o Senhor da colheita envie
trabalhadores para fazer a colheita. E muitos crentes respondem ao
chamado de servir ao Senhor. Incontáveis pessoas ao redor do mundo
pregam e ensinam o evangelho de Cristo a milhões. Mesmo quando este
evangelho já tenha dado a volta ao globo e tenha sido proclamado em
todos os maiores idiomas, a população mundial cresce mais rapidamente
que o que o faz a igreja de Cristo. Milhões ainda não ouviram as boas
novas de salvação em Cristo.
Há missionários que trabalharam e trabalham em alguns países do
mundo sem resultados perceptíveis. Devem enfrentar a rejeição por
pessoas que pertencem a outras religiões que desfrutam da proteção e
respaldo dos governantes dessas nações. Experimentaram a oposição de
Satanás que tem a meta de erradicar a influência do evangelho.
Aparentemente, estão sós servindo ao Senhor. George Duffield e George
J. Webb compuseram letra e música, respectivamente, de um hino que
em alguns países hispano-americanos foi conhecido como “a Marselhesa
evangélica”:

Estai por Cristo firmes! Soldados da cruz;


Elevai hoje a bandeira, em nome de Jesus.
É vossa a vitória, com Ele como capitão,
Por Ele serão vencidas, as hostes de Satã.
Estejam por Cristo firmes! Hoje chama à lide;
Com Ele, pois, à luta, soldados todos, ide!
Provai que sois valentes lutando contra o mal;
Se é forte o inimigo, Jesus é sem igual.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:41–43


Versículo 41
εὑφραίνοντο — o passivo imperfeito de εὑφραίνομαι (eu me
alegro) mostra ação contínua no passado. A causa do regozijo une na
Atos (Simon J. Kistemaker) 376
frase preposicional ἐν τοῖς ἔργοις (nas obras), a qual tem uma conotação
causal.

Versículo 42
ἔστρεψεν — de στρέφω (eu me volto), o ativo aoristo carece de um
objeto direto. O verbo é intransitivo, não reflexivo, e significa “desviar-
se”.

Versículo 43
τὴν σκηνήν — note-se a mesma expressão no versículo seguinte (v.
44), onde significa o tabernáculo do Senhor.
ἐπέκεινα — este advérbio é utilizado como uma preposição para
querer dizer “para além”. Se deriva de ἐπὶ ἐκεῖνα [μέρη] “àquelas
partes”.

g. O tabernáculo (At 7:44–50)

Nesta parte de seu discurso, Estêvão habilmente refuta uma das


acusações levantadas contra ele: “tu ensinas que Jesus, o Nazareno
destruirá o templo” (cf. At 6:14). Demonstra-lhes que embora Israel
tenha tido um tabernáculo e agora tem um templo, Deus não está
restringido a uma estrutura feita por mãos humanas.
44. Nossos pais tiveram no deserto o tabernáculo do testemunho,
como ordenou o que falou a Moisés, dizendo que o fizesse conforme o
modelo que tinha visto [TB].
a. “Nossos pais tiveram no deserto o tabernáculo do testemunho”.
Em seu discurso Estêvão usa oito vezes a expressão nossos pais. 444 O
termo ele o aplica a seus antepassados e aos de seu auditório, dos filhos
de Jacó até os israelitas que conquistaram Canaã. Apesar da

444
At. 7:11, 12, 15, 19, 38, 39, 44, 45.
Atos (Simon J. Kistemaker) 377
desobediência de seus pais às instruções de Deus, Estêvão os chama
respeitosamente “nossos pais”. Na aplicação de seu discurso (vv. 51–53),
ele se separa a si mesmo deles e seus ouvintes, quando diz “vossos pais,
também vós” (vv. 51–52).
Aqui, Estêvão fala dos israelitas que construíram o tabernáculo no
deserto. Esta estrutura ele a chama “o tabernáculo do testemunho”, que
na verdade significa o tabernáculo que contém o testemunho das duas
tábuas de pedra nas quais Deus tinha escrito os Dez Mandamentos. 445
Nos livros de Moisés, esta tenda é também conhecida como “a tenda da
congregação” (veja-se Êx 27:21). Seguindo a redação da Septuaginta na
tradução de Êxodo 27:21, Estêvão usa o termo tabernáculo de
testemunho para chamar a atenção mais uma vez à lei de Moisés (At
6:11, 13; 7:38). Além disso, ele esclarece o ponto que Deus queria viver
com seu povo no deserto. Para isso, Deus lhes deu uma estrutura na qual
os israelitas poderiam lhe adorar e onde ele tinha colocado o testemunho
do Decálogo. De fato, os israelitas tinham recebido um grande privilégio,
porque agora têm uma estrutura visível com o testemunho da lei de
Deus.
b. “que fora feito segundo a ordem de Deus a Moisés [NVI]”. O
plano de construir um tabernáculo não se originou no homem, mas em
Deus, quem chamou Moisés ao alto do monte Sinai. Ali, Deus lhe
revelou o modelo em detalhe para a construção do tabernáculo (Êx 25:9,
40; 26:30; 27:8; Hb 8:5). Mostrou Deus a Moisés um tabernáculo já
feito, do qual este tirou o plano, ou só existia na mente de Deus?
Simplesmente não sabemos o que Moisés viu quando esteve com Deus
no monte Sinai. Sabemos que Cristo Jesus, como sumo sacerdote, entrou
no tabernáculo celestial que é maior e mais perfeito com relação àquele
que Moisés fez no deserto (cf. Hb 8:2; 9:11, 24). Mas onde a Escritura
guarda silêncio, nós devemos mostrar reserva respeitosa. 446 Deus deu a
445
Veja-se Êx. 31:18; 32:15; 34:29. Para o termo arca do testemunho veja-se Êx. 25:22; 26:33–34;
refira-se também a Nm. 1:50; 17:7 para as palavras tabernáculo do testemunho.
446
Veja-se C.N.T. sobre Hb. 8:2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 378
Moisés todas as instruções a respeito da edificação do tabernáculo e
inclusive mostrou os trabalhadores que Ele tinha escolhido para levar a
cabo a obra (Êx 31:1–6). Enquanto Deus instruía a Moisés sobre o
tabernáculo e seus trabalhadores, os israelitas se dedicavam a adorar um
bezerro de ouro. A mensagem implícita das palavras de Estêvão dá a
entender ao Sinédrio que embora Deus queira que Seu povo O adore,
Israel lhe dá as costas numa atitude de incredulidade. Ele também alude
ao fato de que Israel carecia de um santuário até Moisés construir uma
estrutura mutável chamada o tabernáculo. Isto é igual a dizer que, de
acordo com as Escrituras, a adoração de Deus não está limitada a um
tabernáculo ou a um templo.
45. O qual também nossos pais, com Josué, tendo-o recebido, o
levaram, quando tomaram posse das nações que Deus expulsou da
presença deles, até aos dias de Davi.
Por trinta e oito anos, e à medida que os israelitas avançavam rumo
à Terra Prometida, os levitas levaram o tabernáculo de lugar em lugar
pelo deserto. Todos os israelitas maiores de vinte anos morreram nesse
deserto, mas o tabernáculo foi passando de geração a geração.
Respeitosamente, Estêvão também chama a esta geração “nossos pais”.
Eles foram o povo que, sob a liderança de Josué, passou o tabernáculo
através do rio Jordão (Js 3:14–17) levando-o até a própria Canaã, onde,
depois de expulsar os cananeus, o instalaram em Siló (Js 18:1).
Estêvão volta às Escrituras quando diz que Deus expulsou os
cananeus (Js 23:9; 24:18). Por conseguinte, ele dá a Deus toda a honra e
o respeito devidos a quem conquistou a Terra Prometida. Deus cumpriu
Sua promessa da aliança com Abraão e os patriarcas que ele faria habitar
a sua descendência em Canaã (Gn 17:8; Dt 32:49).
O tabernáculo foi desenhado de tal maneira que poderia ser
transportado durante a viagem pelo deserto. Portanto, tinha a aparência
de temporalidade embora sempre restava a esperança que seria
substituído por um edifício permanente. Como o mostra a história de
Israel, o tabernáculo permaneceu em Siló até o tempo de Samuel (1Sm
Atos (Simon J. Kistemaker) 379
4:3). Logo a arca de Deus foi levada ao campo de batalha, capturada
pelos filisteus, e devolvida aos israelitas. O povo de Quiriate-Jearim
levou a arca à casa de Abinadabe (1Sm 7:1), onde permaneceu até o
tempo em que Davi chegou a ser rei. Durante o período dos juízes, os
israelitas demonstraram muito pouco interesse em adorar ao Senhor. 447 A
arca estava num lugar (Quiriate-Jearim; veja-se 2Sm 6:3) e o tabernáculo
em outro (Nobe; veja-se 1Sm 21:1). Davi levou a arca a Jerusalém e a
colocou numa tenda que ele fez expressamente para esse propósito (2Sm
6:17) enquanto o tabernáculo foi colocado em Gibeão (1Cr 16:39).
Gibeão estava a 7,5 quilômetros a noroeste de Jerusalém.
46, 47. Este achou graça diante de Deus e lhe suplicou a faculdade de
prover morada para o Deus de Jacó. Mas foi Salomão quem lhe edificou a
casa.
a. “Este achou graça diante de Deus”. Quando Davi levou a arca a
Jerusalém, expressou ao profeta Natã seu desejo de construir um templo
para Deus (2Sm 7:1–2; 1Cr 17:1). Mas Deus instruiu a Natã para que
dissesse a Davi que a casa de Deus deveria ser construída por um de seus
filhos (2Sm 7:13; 1Rs 8:17–19). O salmista também revela que Davi
queria construir uma casa para o Deus de Jacó (Sl 132:4–5). Na verdade,
Estêvão faz referência às palavras do salmista.
Deus não permitiu a Davi que Lhe construísse um templo porque
foi guerreiro que tinha derramado muito sangue (1Cr 22:8; 28:3). Quer
dizer, Davi foi impuro por ter sido sanguinário. No entanto, passou Davi
o resto de sua vida produtiva preparando a construção do templo. Juntou
prata, ouro e móveis e os dedicou para o uso da casa de Deus (1Rs 7:51).
Embora Deus favorecesse muito a Davi, não lhe deu a honra de
construir-Lhe o templo. Esta negativa, num sentido, indica que a
adoração a Deus pode ter lugar sem um templo permanente. Se este
edifício tivesse sido essencial, Deus não teria demorado sua
construção. 448
447
Charles L. Feinberg, “Tabernacle”, ZPEB, vol. 5, p. 578.
448
Consulte-se Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 232.
Atos (Simon J. Kistemaker) 380
Se Deus tivesse desejado a construção de um templo, Ele o teria
feito saber de algum modo. A ideia se originou com Davi e Deus lhe deu
sua aprovação.
b. “Morada para o Deus de Jacó”. Algumas traduções dizem “para
que ele pudesse prover uma habitação para a casa de Jacó”. 449 A palavra
casa em lugar de “Deus” tem o respaldo de excelentes manuscritos
gregos, mas a evidência textual para ambas as palavras está dividida. Das
duas, casa de Jacó é a mais difícil de explicar. 450 É significante a norma
tradicional que a forma mais difícil de ler mais provavelmente seja a
original. Mas mesmo assim, ainda cabe perguntar-se que significado tem
a palavra casa neste contexto. O fluxo de pensamento, especialmente
com referência ao versículo seguinte (v. 47), parece favorecer a forma o
Deus de Jacó.
c. “Mas foi Salomão quem lhe edificou a casa”. Salomão, o filho de
Davi, homem de paz, construiu o templo de Jerusalém. Quando o
edifício ficou terminado, Salomão deu-se conta que Deus não podia ser
restringido aos muros feitos pelos homens (1Rs 8:27; 2Cr 2:6). Salomão
confessou que o templo que ele construiu era só um lugar onde o povo
poderia oferecer seus sacrifícios. Nem mesmo os céus, disse, podem
conter a Deus.
Aproximando-se da conclusão de seu discurso, Estêvão o resumiu
dizendo que a adoração de Deus não pode estar confinada a um lugar em
particular. Disse:
48-50. Entretanto, não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos
humanas; como diz o profeta: O céu é o meu trono, e a terra, o estrado
dos meus pés; que casa me edificareis, diz o Senhor, ou qual é o lugar do
meu repouso? Não foi, porventura, a minha mão que fez todas estas
coisas?
Vamos deter-nos nas seguintes observações:

449
Por exemplo BJ e NAB. Algumas edições em grego do Novo Testamento preferem a redação a
casa de Jacó; veja-se Nes-Al (25th ed.), BF (2ª. ed.), Sociedades Bíblicas Unidas (3ª. ed.).
450
Para uma análise detalhada, veja-se Metzger, Textual Commentary, pp. 351–53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 381
a. O contraste Quão grande é o seu Deus? Esta é, na verdade, a
pergunta que Estêvão faz aos membros do Sinédrio. Naturalmente, Deus
que criou o universo não pode ser confinado a um edifício localizado em
Jerusalém. As Escrituras ensinam claramente esta verdade. 451 Em sua
enfática afirmação “não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos”,
Estêvão contrasta os extremos. Põe a Deus o Criador e Sustentador do
universo sobre qualquer humano que faça um templo para Ele. Devido
ao fato de que Deus está em todo lugar, Ele não necessita um só lugar
em particular onde seja adorado.
b. O propósito. Na verdade, no Antigo Testamento Deus
repetidamente fala a respeito do lugar onde Ele poria o Seu nome. 452 O
nome de Deus significa Sua presença, a qual está garantida no templo,
embora o próprio Deus transcende toda a criação. 453 No tempo do exílio,
o templo de Salomão estava em ruínas. Mesmo assim o povo continuava
adorando em Babilônia e outros lugares onde viviam como exilados.
Além disso, o Lugar Santíssimo no templo que Herodes construiu estava
vazio porque a arca da aliança e seu conteúdo tinham sido ou destruídos
ou se perderam (Jr 3:16). Note-se, no entanto, o propósito deste templo.
Quando Jesus o purificou por ter sido convertidos seus átrios em “cova
de ladrões”, ele disse que Deus queria que o templo fora uma casa de
oração para todas as nações (Mc 11:17; Is 56:7).
c. A profecia. Em lugar de citar as palavras da oração de Salomão
(1Rs 8:27), Estêvão volta para a profecia de Isaías:
“O céu é o meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés; que casa
me edificareis vós? E qual é o lugar do meu repouso? Porque a minha
mão fez todas estas coisas” [Is 66:1–2]
Como o faz em todas as demais referências ao Antigo Testamento,
Estêvão cita aqui quase palavra por palavra o texto da Septuaginta,
aquele que é virtualmente idêntico com a Bíblia hebraica.
451
Veja-se, p. ex., 2Cr. 2:6; Sl. 139:7–16; Is. 66:1–2; Jr. 23:24; At. 17:24.
452
Dt. 12:5, 11, 21; 14:23; 1Rs. 3:2; 14:21; 2Cr. 12:13.
453
Consulte-se Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2. p. 650.
Atos (Simon J. Kistemaker) 382
A profecia de Isaías está imediatamente depois de uma passagem na
qual o profeta fala de um novo céu e uma nova terra. Fala agora de juízo
e pergunta onde construirão os israelitas uma casa para Deus ou onde
terá um lugar de repouso. Deus diz que Ele habita no céu e na terra e que
todas as coisas foram feitas por Ele. Ao fazer esta pergunta, Deus está
sugerindo que o templo será destruído, mas a adoração continuará. Quem
são os verdadeiros adoradores? Deus diz: “Eu me agrado nos humildes e
nos que se arrependem, nos que me temem e me obedecem” (Is 66:2b,
trad. livre). 454
d. A prova. O que é que Estêvão está tratando de particularizar
quando cita a profecia de Isaías? Em seu sermão, e para provar que Deus
não está limitado a um determinado lugar de adoração tem feito
referência a Abraão, a José, e a Moisés. Assim, a profecia de Isaías, que
registra palavras ditas pelo próprio Deus, revela claramente que Deus é
infinito e onipresente. Por que, então, reagiram os membros do Sinédrio
tão violentamente contra estas palavras das Escrituras? Na mente do
judeu Israel é o centro de todas as nações; o centro de Israel era
Jerusalém, a cidade de Deus; e o centro de Jerusalém era o templo onde
Deus habitava. Qualquer pessoa que tentasse diminuir esta crença,
mesmo citando as Escrituras para respaldar seus argumentos, corria o
risco de ser apedrejado. Estêvão, no entanto, não se opõe ao próprio
templo mas à indevida importância que os judeus de seu tempo davam à
adoração no templo.

Considerações práticas em At 7:44–50


“Creio numa santa igreja universal”. Esta é uma das afirmações no
Credo Apostólico ao qual apontam os cristãos de todo o mundo. A igreja

454
T. C. G. Thornton sugere que um estudo aramaico relacionado com o Targum Jonathan vá a Is.
66:1 como uma profecia a respeito da destruição do templo de Salomão. Se esta interpretação foi
conhecida no século I, Estêvão pôde ter usado a profecia de Isaías para predizer a destruição do
templo de Herodes. “Stephen’s Use of Isaiah 66:1”, JTS 25 (1974): 432–34.
Atos (Simon J. Kistemaker) 383
é universal; quer dizer, onde quer que haja crentes que se reúnem em o
nome de Cristo, ali está presente a igreja. Em alguns lugares, o crentes se
reúnem em magníficas catedrais ou impressionantes edifícios. Às vezes,
os cristãos se reúnem para adorar em quartos alugados, em locais
comerciais, e nas casas. Em países onde ainda perseguem as pessoas por
causa de sua fé, os crentes se congregam secretamente em bosques e
covas. Mas em qualquer lugar em que dois ou três se reúnam para adorar
o nome de Cristo, ali está Ele, no meio deles (Mt 18:20).
A liturgia e o estilo de adoração diferem em geral de um lugar a
outro. Algumas igrejas eliminaram todo acompanhamento musical;
outras fazem uso do órgão ou o piano para o canto congregacional e
outras incorporaram ao louvor o violão, a bateria e outros instrumentos
nativos. A variedade de instrumentos musicais usados no louvor a Deus
é de algum modo resumida no último salmo do Saltério (Sl. 150), onde o
salmista menciona a harpa, a lira, o tamboril, os instrumentos de corda, a
flauta e o címbalo.
Na igreja cristã, o denominador comum que une todos os crentes na
adoração é este: adoram a Deus em espírito e em verdade (Jo 4:24). Isto
significa que no culto de adoração, Deus é o anfitrião que convida os
crentes a vir diante de Sua presença. Para dizê-lo de uma forma
diferente, Cristo como o noivo e a igreja como a noiva se unem em
prazerosa celebração.
À Tua igreja, ó Deus, dá vida,
Teu poder nela esteja,
E cultiva em nossas almas
Por Tua obra muita fé.
Renovamos nossos votos
De viver, Senhor, por Ti;
Libertam-nos Tua palavra
E Teu sangue carmesim.
— Milburn Price
Atos (Simon J. Kistemaker) 384
Palavras, frases e construções gregas em At 7:46 e 48
Versículo 46
εὑρεῖν — este é o infinitivo ativo aoristo do verbo εὑρίσκω (eu
encontro). No aoristo expressa uma só ação. O verbo não transmite o
sentido de descobrir algo, e sim de obtê-lo. 455

Versículo 48
οὑχ — embora esta partícula anule o verbo κατοικεῖ (ele habita),
aparece primeiro na frase para dar-lhe ênfase. Além disso, está separada
do verbo pelo sujeito da frase (“o Altíssimo”) e uma frase preposicional
(“em [casas] feitas por mãos humanas”). O resultado é uma enfática
negação. 456
O verbo κατοικεῖ é um composto em termos de perfeição e
transmite o sentido de permanência. Veja-se também At 17:24, onde
Paulo usa virtualmente a mesma frase.

h. A aplicação (At 7:51–53)

Como todo orador público sabe, o apoio ou rejeição da audiência


não necessariamente se expressa de forma verbal. Estêvão começa seu
discurso com as palavras Varões irmãos e pais. Mas à medida que vai
desenvolvendo suas ideias e começa a falar do templo de Jerusalém, seus
ouvintes começam a adquirir uma atitude cada vez mais hostil até que
recusam ouvir a palavra de Deus. Embora em todo seu discurso não
mencione o nome de Jesus, dá-se conta que os judeus já tiraram sua
própria conclusão com respeito aos seus critérios sobre a adoração no
templo. Dá-se conta que sua audiência o está forçando a terminar suas
palavras. Portanto e de forma abrupta, muda de estilo: enfrenta

455
Bauer, p. 325.
456
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #433.1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 385
diretamente os membros do Sinédrio com uma conclusão direta; e
utilizando uma linguagem gráfica mostra-lhes que estão fora da aliança
de Deus.
51. Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos,
vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais,
também vós o fazeis.
a. “Homens de dura cerviz”. Estêvão escolhe cuidadosamente as
palavras que vai dizer aos membros da corte suprema que o escuta. E
opta por uma expressão que Deus usou para descrever os israelitas
rebeldes quando adoraram o bezerro de ouro que às vezes é traduzida:
«Duros de cerviz» (cf. Êx 33:3, 5). 457 E seu auditório não teve nenhuma
dificuldade em entender aquela frase e localizá-la em seu contexto
histórico. A expressão duros de cerviz tem sua origem no mundo
camponês daqueles dias, quando os bois ou cavalos recusavam sujeitar-
se se ao jugo que seus amos lhes punham. A expressão é sinônimo de
“desobediência”.
b. “Incircuncisos de coração e de ouvidos”. Esta expressão é ainda
mais direta que a anterior. Porque para os judeus, o termo incircunciso
refere-se a toda aquela gente que não está compreendida dentro da
aliança feita com Abraão. Na comunidade judaica, todo menino era
circuncidado ao oitavo dia e entrava assim na aliança. Desta maneira,
dizer aos judeus que eram uns incircuncisos equivalia a tratá-los como
gentios. Claro, Estêvão está usando as palavras que o próprio Deus
empregou para descrever os israelitas no deserto e que os próprios
profetas usaram quando os judeus foram levados ao exílio. 458 Deus
insistia com os israelitas para que circuncidassem seus corações (Dt
10:16; 30:6; Jr 4:4), o que significa que deveriam escutar em obediência
os mandamentos de Deus.
Com estas figuras tomadas do Antigo Testamento, Estêvão afirma
que seus ouvintes estão fora da aliança porque ao recusar escutar a
457
Veja-se também Êx. 32:9; 34:9; Dt. 9:6, 13; 10:16; 31:27.
458
Lv. 26:41; Jr. 9:25–26; Ez. 44:7, 9.
Atos (Simon J. Kistemaker) 386
459
Palavra de Deus não cumpriram suas obrigações. Têm o sinal externo
em seus corpos, porém não têm o sinal interno, que é um coração
obediente, regenerado pelo Espírito Santo (Rm 2:28–30).
c. “Vós sempre resistis ao Espírito Santo”. Com forte ênfase,
Estêvão se dirige a seus ouvintes com o pronome pessoal vós. De novo
alude ao Antigo Testamento, onde Isaías diz que apesar do amor e a
misericórdia de Deus, o Seu povo se rebelou e zangou o Espírito Santo
(Is 63:10; veja-se também Sl 106:33). Os judeus sabiam que se eles se
rebelassem contra o Espírito de Deus, estavam pecando gravemente. Se
tal coisa ocorria, Deus Se voltaria contra eles e seria seus inimigo.
d. “Assim como fizeram vossos pais, também vós o fazeis”. As
referências ao Espírito Santo no Antigo Testamento são poucas em
comparação com as do Novo Testamento. Isto não significa de modo
alguém que o Espírito tenha estado inativo. As Escrituras ensinam que o
Espírito de Deus estava ativo na época do Antigo Testamento nos filhos
da promessa (refira-se a Gl 4:28–29) e nos profetas (1Pe 1:10–11). Tanto
os antepassados como os dirigentes dos dias de Estêvão continuamente
resistiam ao Espírito Santo.
52, 53. Qual dos profetas vossos pais não perseguiram? Eles
mataram os que anteriormente anunciavam a vinda do Justo, do qual vós
agora vos tornastes traidores e assassinos, vós que recebestes a lei por
ministério de anjos e não a guardastes.
a. “Qual dos profetas vossos pais não perseguiram?” Note-se que
aqui Estêvão faz uma diferença marcada entre ele e seus ouvintes e os
antepassados judeus. Conquanto cedo em seu discurso ele de forma
muito respeitosa se incluiu ao usar a expressão nossos pais, agora em
tom de recriminação lhes diz “vossos pais”. Está denunciando as ações
dos antepassados, os quais persistiram em perseguir e até em matar os
profetas que Deus lhes tinha enviado. Um claro exemplo disso é o
profeta Elias, quem se queixou diante de Deus de que seus compatriotas

459
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 213.
Atos (Simon J. Kistemaker) 387
tinham matado a todos os profetas e que agora o queriam matar (1Rs
19:10, 14; e cf. 2Cr 36:16; Ne 9:26; Jr 2:30).
Os crimes cometidos pelos israelitas enchem um vergonhoso
capítulo na história do povo de Israel, até o ponto em que as gerações
posteriores não podiam jactar-se inequivocamente de seus antepassados
(veja-se também Mt 5:12; 23:31). Daí que Estêvão pergunta
retoricamente se os membros do Sinédrio poderiam indicar a um só
profeta que não tenha sido perseguido por seus pais. A resposta é: a
nenhum. Muitos profetas tiveram uma morte de mártir no serviço ao qual
Deus os havia chamado.
b. “Eles mataram os que anteriormente anunciavam a vinda do
Justo”. Os profetas, naturalmente, anunciaram a vinda do Messias, a
esperança e salvação de Israel. Entre eles estava Zacarias, o filho de
Joiada, cujo sangue foi derramado nos pátios do templo (2Cr 24:21; Mt
23:35). Os judeus (como no refrão) não somente morderam a mão de
quem lhes dava de comer, mas a cortaram. Mataram os mensageiros que
lhes traziam as boas novas a respeito de seu Libertador. Estêvão chama a
este Libertador o Justo. Chama Jesus o Justo de acordo com a mensagem
dos profetas que caracterizaram o Messias como o servo justo de Deus
(Is 53:11; Jr 23:5; 33:15; Zc 9:9; veja-se também At 3:14; 22:14). É
provável que o termo Justo tenha sido um título messiânico. 460
c. “do qual vós agora vos tornastes traidores e assassinos”. Eis aqui
a razão por que Estêvão se separa de seus ouvintes. Eles se localizam na
linha dos matadores, mas ele se localiza na linha dos profetas. Eles
traíram e mataram a Jesus de Nazaré, em vez disso ele testifica em favor
de Jesus. Da mesma forma em que Pedro lhes lembrou de seu crime
(veja-se At 3:14), Estêvão claramente acusa o Sinédrio de trair a Jesus
através de Judas Iscariotes e de matá-lo com a ajuda dos soldados
romanos. Os juízes da corte suprema de Israel deram morte ao servo
justo de Deus.

460
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 83.
Atos (Simon J. Kistemaker) 388
d. “Vós que recebestes a lei por ministério de anjos”. Estes juízes
que ocuparam a cadeira do juízo conheciam a lei de Deus registrada no
Antigo Testamento. Eles deram sua aprovação ao veredito de culpado
contra Jesus, e agora estão reunidos para julgar o próprio Estêvão.
O povo judeu tinha recebido a lei de Moisés, diz Estêvão, por
mediação de anjos (veja-se v. 38; Gl 3:19; Hb 2:2). Embora o relato
histórico registrado em Êxodo 20:1 revela que Deus deu os Dez
Mandamentos pessoalmente, a tradição judaica ensinava que os anjos
foram intermediários enviados por Deus para transmitir a lei ao homem.
Apesar da santidade da lei de Deus, os judeus recusaram obedecê-la.
Sem rodeios, Estêvão acusa o Sinédrio da desobediência.
Nunca poderemos saber se Estêvão tinha planejado dizer algo mais.
Seu longo discurso terminou de repente quando os distinguidos membros
da corte suprema arremeteram contra ele e o arrastaram fora para o
matarem. Estêvão, no entanto, purificou-se das falsas acusações que as
testemunhas tinham levado contra ele. Ele não pregou o evangelho de
Cristo como o fez Pedro em algumas ocasiões anteriores (At 4:8–12;
5:29–32). Mas apontando vários paralelos, ele apontou
inquestionavelmente a Cristo.

Assuntos mais destacados no discurso de Estêvão em At 7:1–51


Estêvão responde aos seus acusadores num estilo narrativo antes
que ponto por ponto. A sequência histórica é Abraão, José, Moisés e a
construção do templo. Seguindo este estilo narrativo ele vai tecendo seus
argumentos que refutam as acusações apresentadas contra ele. Eis aqui
os assuntos:
a. Deus. Estêvão começa seu discurso com as palavras o Deus da
glória. Diz que Deus chamou Abraão, era com José, comissionou a
Moisés, abençoou os israelitas com os Dez Mandamentos e favoreceu a
Davi. À medida que foi desenvolvendo suas ideias, demonstra seu amor
Atos (Simon J. Kistemaker) 389
e profunda reverência para com Deus. Com isso, as acusações de
blasfêmia contra o nome de Deus perdem sua base.
b. A adoração. Abraão adorou a Deus na Mesopotâmia, Harã e
Canaã. José serviu a Deus no Egito, tal como Moisés. A adoração não
está restringida a um lugar ou edifício em particular, porque o povo de
Deus O adora em diversos lugares e por séculos mesmo sem contar com
um edifício para isso. E quando construiu-se o tabernáculo, não ficou
estacionado numa só parte, tenha sido no deserto ou em Israel. Estêvão
afirma que nem sequer o templo pode conter a Deus. Portanto, apresenta
uma argumentação razoável a respeito da adoração que anula as
acusações de seus oponentes de que tinha falado contra o templo.
c. A lei. A maior parte de seu sermão está dedicado a Moisés. Diz
que Moisés recebeu a lei no monte Sinai; mostra que Deus deseja
obediência à Sua lei, mas que os israelitas recusaram obedecê-la. Além
disso, quando Deus enviou os profetas a Israel com profecias referentes
ao Messias, eles os perseguiram e os mataram. Não foi Estêvão, quem
expõe magistralmente a Palavra de Deus, e sim os judeus que rejeitaram
a lei.
d. A aliança. Deus fez uma aliança com Abraão e sua descendência
espiritual. Deus cumpriu Sua promessa, dando descendência ao patriarca
e a Terra Prometida à nação de Israel. Os israelitas falharam em cumprir
sua parte da aliança ao não querer obedecer a Palavra de Deus. Da
mesma maneira, os contemporâneos de Estêvão tinham corações e
ouvidos incircuncisos e resistiram ao Espírito Santo. Para eles, a aliança
com Deus tinha perdido toda importância.
e. Jesus. Embora nunca tenha mencionado a Jesus, contudo Estêvão
traça um paralelismo inconfundível entre Moisés e Cristo. Usa
expressões que falam da pessoa e obra do Messias: o governante e
libertador (v. 35), o Profeta (v. 37), e o Justo (v. 52). Assim como José e
Moisés foram rejeitados por sua própria gente, assim Jesus foi rejeitado
pelos judeus. Assim como os judeus mataram os profetas, também
traíram e mataram a Jesus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 390
Estêvão finaliza seu discurso lembrando a seus ouvintes que eles
receberam a lei mas que recusaram obedecê-la. As palavras parecem
repetitivas e, portanto, supérfluas. Talvez nós teríamos esperado que
Estêvão suplicasse aos seus ouvintes que cressem em Cristo. Porém não
foi assim. Como tão bem o anotasse John Albert Bengel, “quem crê em
Cristo, aceita a lei; quem rejeita a Cristo, rejeita a lei”. 461 Em conclusão,
segundo os judeus, qualquer pessoa que quebranta a lei é posto no
mesmo nível de um gentio.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:51–53


Versículo 51
ὑμεῖς — note-se que este pronome pessoal aparece duas vezes no
caso nominativo e uma no genitivo. O escritor usa os pronomes para dar
ênfase à frase.

Versículo 52
τίνα — o pronome interrogativo é seguido do genitivo partitivo.
τῆς ἐλεύσεως —o substantivo deriva do verbo ἔρχομαι (eu venho).
Como o termo ὁ ἐρχόμενος (aquele que vem) é messiânico, assim
também o é este substantivo. Aparece uma só vez no Novo Testamento.

Versículo 53
οἵτινες — no Novo Testamento o pronome relativo indefinido com
frequência tem uma conotação causal. Aqui também a causa está
implícita. 462
εἰς — esta preposição é similar a ἐν (por) no sentido instrumental.

461
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 583.
462
Consulte-se Robertson, Grammar, p. 728.
Atos (Simon J. Kistemaker) 391
4. A morte de Estêvão (At 7:54 – 8:1a)

Se o Sinédrio em sessão representa a corte suprema de Israel, então


falhou em cumprir o procedimento normal e simplesmente não
administrou justiça a Estêvão. De fato, não se pronunciou nenhum
veredito e a sentença de morte que a corte ditou foi ilegal. Só os romanos
podiam aplicar a pena de morte (Jo 18:31). Mas movidos por uma ira
cega, os membros do Sinédrio mataram a Estêvão sem nenhum reflexo
de legalidade.
54. Ouvindo eles isto, enfureciam-se no seu coração e rilhavam os
dentes contra ele.
Se lemos o discurso de Estêvão, especialmente a conclusão, é-nos
difícil entender a reação do Sinédrio. No entanto, devemos pôr atenção à
narrativa do ponto de vista cultural num ambiente judaico.
a. “Ouvindo eles isto”. Estêvão tinha sido trazido diante do tribunal
porque se alegava que tinha falado contra a lei. Porém com sua defesa,
citando a história de Israel e resumindo seu discurso dizendo que os
membros do Sinédrio eram culpados de quebrantar a lei, transformou-se
no acusador e seus ouvintes nos acusados. 463 Quando Pedro se dirigiu ao
Sinédrio numa ocasião anterior, ele também fez com que os papéis se
invertessem (At 4:12).
b. “Enfureciam-se no seu coração”. O juízo de Estêvão produziu
inicialmente a mesma reação que se viu no juízo dos apóstolos (At 5:33).
Naquela ocasião, Pedro e seus companheiros dirigiram-se ao Sinédrio e
quando tiveram terminado sua defesa, os juízes estavam furiosos.
Queriam matar os apóstolos, mas foram persuadidos por Gamaliel, quem
os aconselhou que seria melhor agirem de outra maneira. No caso
presente, os judeus começaram a ranger os dentes para demonstrar seu
rancor e desprezo (cf. Sl. 35:16). A ira os consumia de tal maneira que os
incitou ao assassinato.

463
Consulte-se Lenski, Acts, p. 301; e veja-se Williams, Acts, p. 132.
Atos (Simon J. Kistemaker) 392
55, 56. Mas Estêvão, cheio do Espírito Santo, fitou os olhos no céu e
viu a glória de Deus e Jesus, que estava à sua direita, e disse: Eis que vejo
os céus abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus.
Observemos os seguintes assuntos:
a. A fé. No meio da tormenta que açoitava o salão onde estava
reunido o Sinédrio, Estêvão parecia ser uma ilha de serenidade. De novo
Lucas diz que Estêvão estava cheio do Espírito Santo (veja-se At 6:5,
10), quem o leva a fixar os olhos no céu. É interessante destacar que
Lucas emprega as mesmas palavras para a frase fitou os olhos no céu que
as que usa para descrever os apóstolos olhando ao céu no momento em
que Jesus ascendia (At 1:10).
Deus permite a Estêvão ver Sua glória, não em visão, porém de
fato. No princípio do juízo, o rosto de Estêvão resplandecia como o rosto
de um anjo (At 6:15). No fim do mesmo, ele vê a glória de Deus.
Embora a Escritura diga que ninguém pode ver a glória de Deus e
continuar vivendo, a glória de Deus com frequência Se revelou ao
homem (cf. Sl. 63:2; Is 6:1; Jo 12:41).
Além de ver a glória de Deus, Estêvão vê a Jesus de pé, não sentado
mas de pé, à direita de Deus. Não é necessário insistir muito no fato de
que estava de pé e não sentado. 464 A posição de pé possivelmente sugere
que Jesus está dando as boas-vindas no céu a Estêvão (veja-se 1Rs 2:19).
A expressão “à direita de Deus”, ou “à destra de Deus” sugere a última
honra dada a Jesus no momento de Sua ascensão.
O juízo de Estêvão é parecido ao de Jesus. Quando Jesus
compareceu diante do Sinédrio, o sumo sacerdote lhe perguntou se ele
era o Filho de Deus. Jesus lhe respondeu afirmativamente e acrescentou
que seus ouvintes veriam “o Filho do Homem assentado à direita do
Todo-Poderoso” (Mt 26:64; veja-se também Hb 1:3, 13).
b. O cumprimento. “Eis que vejo os céus abertos e o Filho do
Homem, em pé à destra de Deus”. Estêvão está convidando o seu
464
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 219. Note-se também que no Ap. 5:6 Jesus aparece de pé,
em lugar de sentado em seu trono celestial.
Atos (Simon J. Kistemaker) 393
auditório a olhar ao céu e ver Jesus em pessoa ocupando seu lugar de
honra. Chama Jesus “o Filho do homem”, que é o título que Jesus usou
exclusivamente para Si mesmo para revelar que Ele era o cumprimento
da profecia messiânica que fala a respeito do governo do Filho do
homem (Dn 7:13–14). Segundo os relatos dos Evangelhos, o povo nunca
se refere a ou se dirige a Jesus utilizando esse nome. O uso que faz
Estêvão desta forma é a exceção à regra. Por que usa este título?
Certamente porque reconhece plenamente que Jesus como Filho do
homem cumpriu a profecia messiânica (Dn 7:13–14) e que Lhe foi dada
toda autoridade, poder e domínio tanto no céu como na terra (Mt
28:18). 465
c. O efeito. O efeito do convite que Estêvão lhes fez de que
olhassem ao céu não era um temor reverencial nos membros do Sinédrio,
e sim raiva e ódio. Os judeus consideram que Estêvão estava
blasfemando. Da mesma maneira que o sumo sacerdote no juízo a Jesus
rasgou suas vestes e exclamou “Blasfemou!” (Mt 26:65), assim os
membros do Sinédrio consideraram que Estêvão estava blasfemando o
nome de Deus. Em vista de seu credo hebraico “Ouve, Israel, o
SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6:4), Estêvão já não
ensina o monoteísmo. No entanto, quando disse que via Jesus de pé à
destra de Deus, eles interpretaram suas palavras como que Jesus é Deus.
Portanto, estava blasfemando.
Em conformidade com a lei de Moisés, todo blasfemo do nome de
Deus devia morrer; isso significava que os membros da assembleia
deviam apedrejá-lo até a morte (Lv 24:16). Em resumo, os integrantes da
corte suprema de Israel dizem que as acusações de blasfêmia, que os
judeus helenistas tinham apresentado contra Estêvão tinham provado ser
verdadeiras agora que Estêvão diz que Jesus é Deus.
d. Os céus. Onde está o céu? Se nos propomos ver Estêvão com os
olhos da imaginação ali de pé no salão do Sinédrio, notaremos que ele

465
Consulte-se Bruce, Book of Acts, p. 154.
Atos (Simon J. Kistemaker) 394
estaria vendo o céu azul. A menos que a reunião tenha sido trasladada
para fora, do que não há evidência alguma. Como, então, explicamos a
aparição de Jesus a Estêvão? Deus abriu seus olhos de tal modo que ele
pôde ver os céus e lhe deu a capacidade de vê-Lo ali mesmo, próximo a
Estêvão. De alguma maneira encontramos aqui um paralelismo com a
experiência da conversão de Paulo no caminho para Damasco. Paulo
ouviu a voz de Jesus mas seus acompanhantes, em vez disso ouviram
somente o som (At 9:7; cf. também 2Rs 6:17). Os céus, então, estão
sobre e ao redor de nós numa dimensão que não somos capazes de ver.
Quando Deus abre os olhos dos crentes, como alguns cristãos
experimentaram no leito de morte, permite-lhes ver os céus.
57, 58. Eles, porém, clamando em alta voz, taparam os ouvidos e,
unânimes, arremeteram contra ele. E, lançando-o fora da cidade, o
apedrejaram. As testemunhas deixaram suas vestes aos pés de um jovem
chamado Saulo.
A cena é quase cômica. Os distinguidos senhores encontram-se
gritando a todo pulmão, e ao mesmo tempo colocam seus dedos em seus
ouvidos para não escutar o ruído ao redor. Mas estes homens estão
descarregando sua ira contra Estêvão, e indicam que não querem ouvir
Estêvão, tampando os ouvidos. Como juízes que são, esquecem de dar
seu veredito, e com isso todo o juízo perde o sentido.
Tomam então o acusado e o levam fora dos muros da cidade. Ali
recolhem pedras e passam a matá-lo. Note-se que o procedimento segue
sua forma legal: a vítima deve ser morta nas subúrbios da cidade para
tirar o mal do meio de Israel; 466 as testemunhas que se apresentaram
contra o acusado devem lançar as primeiras pedras (Dt 17:7). As pedras
abundam em Israel, e por essa razão nos tempos antigos a morte por
apedrejamento era comum para castigar os transgressores tanto por
adorar a outros deuses como por blasfemar e cometer adultério. 467

466
Veja-se especialmente Dt. 13:5; 19:19; 21:21, 23; 24:7.
467
Consulte-se James C. Moyer, “Stoning”, ZPEB, vol. 5, p. 524.
Atos (Simon J. Kistemaker) 395
As duas ou três testemunhas que testificaram contra Estêvão (Dt
17:6–7) agora tomam pedras e começam a lançar-lhe. Põem de lado suas
capas para ter maior liberdade de movimento. As roupas eles as deixam
aos pés de um jovem chamado Saulo. Esta é a primeira vez que aparece
na Bíblia o nome Saulo, e é vinculado com a morte de Estêvão. Saulo era
um estudante de teologia, cujo mestre Gamaliel servia como membro do
Sinédrio (At 5:34; 22:3). Saulo não só estava aí de pé, observando a
execução, mas também sentia prazer na morte de Estêvão (At 8:1a). A
frase um jovem faz supor que se procurava uma pessoa entre vinte e
quatro e quarenta anos. 468 Provavelmente Saulo, ou Paulo, tenha tido uns
trinta anos de idade.
A questão da legalidade na morte de Estêvão é difícil. Segundo
todas as aparências, sua morte é o resultado de uma ação do povo que os
romanos não previram. No entanto, o governador romano pôde efetuar
uma investigação pois os judeus não podiam condenar a ninguém à pena
de morte (Jo 18:31).469 Aquele poder pertencia exclusivamente ao
governador romano. Para ilustrar este ponto: Josefo diz que o procurador
romano (governador) Copônio, enviado a Judeia pelo imperador, foi
“investido por Augusto com plenos poderes, incluindo a aplicação da
pena capital”.
Se assumirmos que Estêvão morreu no ano 35 d.C., concluímos que
Pôncio Pilatos ainda era o governador da Judeia. Por esses dias, os
problemas de Pilatos, resultado da matança de numerosos samaritanos no
Monte Gerizim eram suficientemente sérios para fazê-lo voltar para
Roma (36 d.C.) a pedido do governador da Síria. 470 No meio deste clima
político, os judeus certamente não temeriam que a morte de Estêvão
provocaria repercussões em Roma. A verdade é que no último ano em
seu posto Pilatos tinha perdido influência e autoridade na Judeia.

468
Bauer, p. 534.
469
Josefo Guerra judaica 2.8.1 [117].
470
Josefo Antiguidades 18.4.1–2 [85–89].
Atos (Simon J. Kistemaker) 396
Note-se que já quando os apóstolos compareceram, os membros do
Sinédrio se encheram de tal maneira de ira que quiseram matá-los (At
5:33). Ao contrário, quando Paulo no final de sua terceira viagem
missionária foi atacado por uma multidão na área do templo, os
comandantes das tropas romanas o protegeram (At 21:30–36). Isso
ocorreu durante o tempo do governador Félix quem tinha o completo
controle da Judeia. Mas quando o governador Festo morreu e seu
sucessor, Albino, ainda não tinha chegado a Jerusalém, os judeus,
dirigidos pelo sumo sacerdote Anás, mataram a Tiago, o irmão de Jesus
no ano 62 d.C. 471 Concluímos, portanto, que o Sinédrio executou a
Estêvão porque naqueles dias não tinham nada que temer de um fraco
governador romano. Além disso, Pilatos vivia em Cesareia, que estava
localizada a uma distância de dois dias de viagem de Jerusalém.
59, 60. Enquanto apedrejavam Estêvão, este orava: “Senhor Jesus,
recebe o meu espírito”. Então caiu de joelhos e bradou: “Senhor, não os
consideres culpados deste pecado”. E, tendo dito isso, adormeceu [NVI].
8:1. E Saulo estava ali, consentindo na morte de Estêvão [NVI].
a. “Enquanto apedrejavam Estêvão”. Uma após outra, as pedras
espancam o indefeso Estêvão. À medida que o anjo da morte o chama,
ele pronuncia uma oração muito similar àquela que Jesus fez na cruz:
“Senhor Jesus, recebe o meu espírito”. Jesus disse a seu Pai: “Pai, nas
tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 23:46). Mas Estêvão ora a Jesus
e se identifica inteiramente com quem já viu como o Filho do homem de
pé junto a Deus (v. 56). Enquanto Estêvão ora, Jesus Se estende ao
primeiro mártir da fé cristã e recebe seu espírito. Estêvão, por assim
dizer, olha a Jesus e se encomenda a Ele.
Nos momentos de sua morte, enquanto se ajoelhava para orar,
Estêvão pronunciou praticamente as mesmas palavras que disse Jesus
quando foi crucificado: “Senhor, não os consideres culpados deste
pecado” (veja-se Lc 23:24). Mas a sequência destas duas frases foi

471
Josefo Antiguidades 20.9.1 [200]; veja-se Eusébio História Eclesiástica 2.23.21.
Atos (Simon J. Kistemaker) 397
invertida. Estêvão primeiro ora que Jesus aceite seu espírito e logo que
não leve em conta o pecado de seus inimigos de assassinar um inocente.
Dirige-se ao Senhor. Este título, no contexto da passagem, faz referência
não a Deus e sim a Jesus. Em sua oração, Estêvão também põe Jesus no
nível de Deus e assim ora a Ele diretamente. Um assunto mais
relacionado com estas orações: Mesmo quando a redação entre as
orações de Jesus e de Estêvão seja diferente, o sentimento que ambos
expressam é o mesmo. O que significativa é a identificação de Estêvão
com Jesus!
A descrição que Lucas faz da morte de Estêvão é concisa, embora
apesar disso dá ao leitor suficiente informação a respeito de Estêvão.
Lucas apresenta um quadro de serenidade no meio da violência quando
escreve que Estêvão dormiu. Ao longo de seu relato, mantém a Estêvão
no centro do quadro.
b. “E Saulo estava ali, consentindo na morte de Estêvão”. A
primeira frase do seguinte capítulo e versículo (At 8:1a) serve de ponte
entre o relato anterior e o que vem a seguir. Pela segunda vez (veja-se v.
58), Lucas apresenta Saulo (Paulo), a quem agora descreve como uma
pessoa que está de acordo com a morte de Estêvão. O escritor sugere que
esta morte vem a ser um ponto decisivo para Saulo (At 22:20). Paulo é o
sucessor de Estêvão em levar o evangelho aos judeus de fala grega e aos
gentios. Em sua vida como missionário, Paulo teria que sofrer por Cristo
dez vezes mais do que sofreu Estêvão (2Co 11:23–29). Ao refletir sobre
a morte de Estêvão e a aprovação de Saulo a ela, Agostinho faz este
agudo comentário:
Se Estêvão não tivesse orado
A igreja não teria tido a um Paulo.

Palavras, frases e construções gregas em At 7:54–60


Versículos 54–55
διεπρίοντο — para uma nota explicativa veja-se At 5:33.
Atos (Simon J. Kistemaker) 398
πνεύματος ἁγίου — embora o comentário de que Estêvão está cheio
do Espírito Santo também apareça em At 6:5, aqui o escritor menciona
as três Pessoas da Trindade: Deus, Jesus, e o Espírito Santo.
ἐκ δεξιῶν — este modismo é explicado em At 2:33.

Versículo 56
διηνοιγμένους — o tempo perfeito neste particípio denota um efeito
duradouro: os céus permanecem abertos para Estêvão. O uso do passivo
implica que Deus é o agente em abrir os céus. E a forma composta do
particípio significa que os céus estão completamente abertos para
Estêvão. Só em At 2:34 e aqui, aparece o substantivo plural τοὺς
οὑρανούς (os céus). Em outra parte de Atos, Lucas sempre usa o
substantivo singular céu. O plural é um hebraísmo.

Versículos 59–60
ἐλιθοβόλουν — o tempo imperfeito (veja-se também v. 58)
descreve o processo de lançar pedras.
Κύριε Ἰησοῦ — Estêvão ora, “Senhor Jesus”. Ao dirigir-se a Jesus
em oração, ele está afirmando a deidade de Cristo.
μὴ στήσῃς — este é um mandato negativo que põe o subjuntivo
aoristo em lugar do imperativo aoristo. O aoristo denota uma só ação
com resultados duradouros.
ἐκοιμήθη — do verbo κοιμάω (eu durmo), que no passivo significa
“Eu caio no sonho”. O aoristo é ingressivo. O uso deste verbo aponta
indiretamente à ressurreição do corpo.

Resumo de Atos 7
De pé diante do Sinédrio, Estêvão começa seu discurso dirigindo-se
de forma respeitosa aos membros da corte. Continua citando passagens
da história de Israel e menciona Abraão. O patriarca foi chamado por
Atos (Simon J. Kistemaker) 399
Deus para que abandonasse Mesopotâmia e se estabelecesse em Canaã,
porém no fim de sua vida não foi dono nem de um metro de terreno.
Deus lhe disse que seus descendentes seriam escravos durante
quatrocentos anos, e depois disso sairiam rumo a Canaã para adorar a
Deus ali. Deus deu a Abraão a aliança da circuncisão.
José foi vendido como escravo e levado ao Egito, mas mais tarde
chegou a ser governante daquela nação. Durante uma fome, Jacó e sua
família foram viver no Egito. Embora tenha morrido ali, foi sepultado
em Canaã. Seus descendentes continuaram aumentando em número e
receberam um duro tratamento. Foram forçados a abandonar seus filhos
recém-nascidos. Moisés nasceu e foi deixado por ali, onde a filha do
faraó pudesse achá-lo. Foi educado na corte de Faraó, visitou seus
companheiros, matou um egípcio, e fugiu para Midiã.
Depois de ter passado quarenta anos em Midiã, Deus o chamou
dentre as chamas de um arbusto que não se consumia e o enviou de volta
ao Egito para libertar Seu povo da opressão. Depois de realizar vários
milagres, tirou e guiou os israelitas para fora do Egito, através do Mar
Vermelho, ao deserto. Moisés testificou de Cristo, quem havia de vir
como profeta. Enquanto recebia a lei no Monte Sinai, os israelitas
fizeram um ídolo na forma de um bezerro de ouro e o adoraram. Deus
disse a Moisés que construísse o tabernáculo segundo o modelo que lhe
tinha mostrado. O tabernáculo permaneceu com os israelitas até que
Salomão construiu o templo.
Estêvão reprova a atitude dos membros do Sinédrio, os quais
obstinadamente resistem ao Espírito Santo. Lembra-lhes da história
infame de Israel ao perseguir e até matar os profetas e lhes diz que eles
são como seus antepassados. Os judeus se enfurecem, ouvem Estêvão
dizer que ele estava vendo Jesus no céu, à destra de Deus, tiram-no fora
da cidade e começam a apedrejá-lo. Nos momentos em que morria,
Estêvão pede a Jesus que receba seu espírito e perdoe os seus inimigos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 400

III. A IGREJA NA PALESTINA


(AT 8:1B – 11:18)
Atos (Simon J. Kistemaker) 401
ATOS 8
A IGREJA NA PALESTINA, Parte 1 (At 8:1b–40)
A. A perseguição (At 8:1b–3)

Pelo Antigo Testamento sabemos que Jerusalém é uma cidade para


a qual todos os judeus queriam ir. Na verdade, o último versículo na
Bíblia hebraica registra o decreto de Ciro permitindo aos judeus subir a
Jerusalém (2Cr 36:23). 472 Mas assim como no Antigo Testamento as
pessoas eram atraídos à cidade santa, no Novo Testamento eles são
enviados de Jerusalém a todo mundo. Para dizê-lo de outra maneira, no
Antigo Testamento Jerusalém se constitui numa força centrípeta para os
judeus; no Novo Testamento, pelo contrário, exerce uma força centrífuga
sobre os crentes.
Jesus disse aos apóstolos que fossem por todo mundo e fizessem
discípulos em todas as nações (Mt 28:19–20). Em Jerusalém fielmente
proclamaram o evangelho de Cristo com todo entusiasmo, de maneira
que o número de crentes chegasse aos milhares. No entanto, a igreja não
podia ficar limitada a Jerusalém, porque Jesus tinha instruído os
apóstolos a ser testemunhas em Jerusalém, Judeia, Samaria e até os
confins do mundo (At 1:8). Na providência de Deus, a perseguição que
se seguiu por ocasião da morte de Estêvão forçou os crentes a Judeia e a
Samaria, e inclusive até a Fenícia, Chipre, e Antioquia (At 11:19). Estes
cristãos testificaram a grande quantidade de pessoas, com o resultado de
que a igreja continuou crescendo (At 11:20–21).
1b. Naquele dia, levantou-se grande perseguição contra a igreja em
Jerusalém; e todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da
Judéia e Samaria.

472
As traduções da Bíblia seguem à a Septuaginta quanto à sequência dos livros. A Bíblia hebraica
começa com o Gênesis e termina com 2 Crônicas.
Atos (Simon J. Kistemaker) 402
A morte de Estêvão marca o ponto decisivo na igreja de Jerusalém.
De repente, um de seus líderes é acusado pelos judeus de fala grega e é
preso. É levado para comparecer diante da corte suprema de Israel e daí
é levado à morte sem que tenha sido ditado um veredito contra ele. Num
tempo, os habitantes de Jerusalém tinham tido uma atitude favorável
para com os cristãos, mas agora se tornam hostis a ponto de persegui-los.
a. “Naquela dia”. Esta frase indica o dia durante o qual a
perseguição se desatou contra os cristãos. Esta perseguição durou por
algum tempo, porque Saulo foi de casa em casa em busca dos crentes. A
palavra perseguição aparece em Atos só duas vezes (aqui e em At
13:50). Lucas acrescenta o adjetivo descritivo grande para distinguir este
começo da perseguição que tinham experimentado os apóstolos e
Estêvão.
b. “Todos, exceto os apóstolos, foram dispersos”. Quais deles estão
incluídos no termo todos? Podemos considerar três interpretações.
A primeira é que, literalmente, todos os crentes sofreram a
perseguição e foram tirados de Jerusalém. Mas até se cada um tenha
experimentado seus efeitos, alguns cristãos permaneceram na cidade. O
texto indica que os apóstolos ficaram ali. 473 Além disso, supomos que
Maria, a mãe de Jesus, continuou vivendo com o apóstolo João. A mãe
de João Marcos, que tinha uma casa muito grande, também ficou ali ou
muito em breve voltou (At 12:12). 474
Uma segunda possibilidade é que pelo fato de que os judeus
helenistas trouxeram Estêvão, um judeu de fala grega a juízo, esta gente
agora se voltou contra os cristãos judeus e os forçou a deixar a cidade.
Uma terceira possibilidade é que embora os cristãos de fala grega
recebessem a perseguição mais séria, os crentes de fala aramaica não
estavam isentos. O sumo sacerdote e seus associados crucificaram a
Jesus, capturaram a Pedro e a João, submeteram a açoites os apóstolos, e
473
Eusébio História Eclesiástica 5.18.14.
474
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, série Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, p. 249.
Atos (Simon J. Kistemaker) 403
mataram a Estêvão. Portanto, podemos supor que os líderes do Sinédrio,
tanto religiosos como civis influíram tanto na perseguição dos cristãos
hebreus como em sua expulsão de Jerusalém.
Além disso, quando Saulo (Paulo) ia de casa em casa perseguindo
os crentes, provavelmente não fazia distinção entre os de fala grega e os
das fala aramaica. Em conclusão, não devemos interpretar o adjetivo
todos tão estritamente. Depois da perseguição, a vida na igreja de
Jerusalém voltou gradualmente à normalidade, como o reflete a
sequência histórica de Atos (p. ex., veja-se At 9:26).
É normal que aqueles que primeiro caem presos numa perseguição
são os dirigentes. Não foi este o caso na perseguição contra a igreja. Os
apóstolos permaneceram em Jerusalém para dar ânimo aos crentes que
ficaram ali tanto como aos que foram dispersos. A expressão dispersos é
importante para os judeus que viviam na dispersão, porque o exílio e as
subsequentes perseguições afetaram de forma direta suas vidas. Agora a
igreja está entrando numa era de dispersão (cf. Tg 1:1 e 1Pe 1:1). Os
profetas do Antigo Testamento ensinaram que quando um judeu vivia na
dispersão (por exemplo, durante o exílio em Babilônia), ele estava
recebendo o justo castigo por sua desobediência anterior. Pelo contrário,
a igreja do Novo Testamento considerou a dispersão dos judeus como
“uma decisão divina para que se estabelecesse um ponto de partida a fim
de levar o evangelho a territórios estrangeiros”. 475
2, 3. Alguns homens piedosos sepultaram Estêvão e fizeram grande
pranto sobre ele. Saulo, porém, assolava a igreja, entrando pelas casas; e,
arrastando homens e mulheres, encerrava-os no cárcere.
a. Tempos. Quando Lucas diz que alguns homens devotos
sepultaram Estêvão, está insinuando que isso teve lugar poucas horas
depois de sua morte. Quer dizer, a perseguição ainda não tinha
começado, pelo que os cristãos tementes a Deus puderam atender os
ofícios de sepultamento de Estêvão e fazer luto por ele. O enterro eles o

475
George A. Van Alstine, “Dispersion”, ISBE, vol. 1, p. 968.
Atos (Simon J. Kistemaker) 404
fizeram no mesmo dia, porque os judeus não permitiriam que um
cadáver profanasse a terra. Mesmo quando alguns judeus eram
reconhecidos como piedosos (At 2:5), 476 não se esperava que
lamentassem a morte de Estêvão. Por conseguinte, atrevo-me a pensar
que imediatamente depois da execução, cristãos de bom coração
fizeram-se cargo do corpo de Estêvão para lhe dar sepultura.
b. Costumes. O Talmude ensina que por nenhum criminoso
executado pela via do apedrejamento devia ser feito luto. 477 No entanto,
o mais provável é que neste caso o costume não tenha sido observado
devido ao fato de que a morte de Estêvão não teve nenhum reflexo de
legalidade. Não se sabe onde foi sepultado Estêvão, porque os
criminosos em geral eram lançados numa fossa comum. O próprio Jesus
foi sepultado numa tumba particular, o que indica que os cristãos
desfrutavam de algum grau de liberdade. A morte de Estêvão, o primeiro
mártir cristão, foi pranteada e lamentada sem temores nem reservas.
c. Perseguidor. “Saulo, porém, assolava a igreja”. Esta é a terceira
vez que Lucas menciona a Saulo (At 7:58; 8:1a, 3). Embora fosse um
discípulo de Gamaliel, Saulo não desfrutava da moderação de seu
mestre. Pelo contrário, Lucas o apresenta como um homem (talvez de
uns trinta anos de idade) decidido a eliminar a igreja de Jesus Cristo. 478
Em seus discursos Paulo diz que, cegado pelo zelo, perseguiu
numerosas pessoas. Quando eram condenados à morte, ele dava sua
aprovação (At 26:10). Portanto, sua participação na execução de Estêvão
foi só o princípio de uma sangrenta carreira.
Lucas apresenta Saulo como o inquisidor de Jerusalém que buscava
destruir a igreja atacando como uma besta selvagem suas indefesas
presas. Ao ir casa pelas casas, Saulo vai espantando os cristãos,
colocando-os no cárcere. Continuamente arrasta homens e mulheres à

476
Veja-se também At 22:12, onde Paulo diz de Ananias de Damasco que era um judeu piedoso.
Ananias observava a lei e era um discípulo de Jesus.
477
Sinédrio 6.6; veja-se também SB, vol. 2, p. 686.
478
Cf. At 9:1, 21; 22:4, 19; 26:10–11; Gl. 1:13, 23.
Atos (Simon J. Kistemaker) 405
prisão, de onde os apresenta diante de algum tribunal, talvez nas
sinagogas locais (Mt 10:17), onde recebiam seu castigo. Note-se que
antes da detenção de Estêvão, só os saduceus se opunham aos apóstolos
(At 4:1). Com a morte de Estêvão, os fariseus se uniram na perseguição
contra a igreja, como é evidente pelas ações de Paulo.

Palavras, frases e construções gregas em At 8:1b–3


Versículo 1b
διωγμός — do verbo διώκω (eu persigo), o substantivo com a
terminação -μος denota ação em processo de realizar-se.
διεσπάρησαν —este é um verbo composto com significado
diretor. 479 A forma é aoristo passivo de διασπείρω (eu espalho por todas
as partes).
τῆς — note-se que um artigo definido precede os dois substantivos
Judeia e Samaria. Por causa de sua proximidade, estas duas províncias
estão vinculadas.

Versículos 2–3
κοπετόν — o nome derivado de κόπτομαι (eu me castigo) descreve
ao parente que espanca seu peito em sinal de dor.
ἐλυμαίνετο — o tempo imperfeito descreve ação contínua no tempo
passado. O imperfeito é inceptivo: “começou a destruir”.

479
A. T. Robertson, Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 581.
Atos (Simon J. Kistemaker) 406
B. O ministério de Filipe (At 8:4–40)

1. Em Samaria (At 8:4–25)

Dos sete homens nomeados pelos apóstolos para ministrar às viúvas


em Jerusalém, Estêvão e Filipe são os únicos cujas atividades são
relatadas por Lucas. Ambos eram judeus de língua grega que anunciaram
o evangelho de Cristo aos judeus que não falavam o aramaico. Estêvão
foi aos judeus helenistas em Jerusalém (At 6:9–10), enquanto Filipe foi a
Samaria.
Quando a perseguição expulsou os cristãos de Jerusalém, eles foram
às comunidades rurais da Judeia e Samaria. Ali testificaram de Jesus
Cristo e deram a conhecer o evangelho.

a. Proclamando a Cristo (At 8:4–8)

4, 5. Entrementes, os que foram dispersos iam por toda parte


pregando a palavra. Filipe, descendo à cidade de Samaria, anunciava-lhes
a Cristo.
“O sangue dos mártires é a semente da igreja”. Este provérbio que
perdurou através do tempo provou ser verdade para os cristãos que foram
perseguidos a partir da morte de Estêvão. Eles deixaram Jerusalém e
foram de lugar em lugar pelos campos da Judeia e de Samaria. Onde
quer que chegavam, pregavam as Boas Novas e logo fundavam igrejas.
Enquanto os judeus estavam acostumados a evitar qualquer contato
com os samaritanos, Jesus permaneceu com eles dois dias, proclamando
o evangelho e ganhou numerosos aderentes à fé (Jo 4:39–42). Depois da
morte de Estêvão, os cristãos judeus de Jerusalém foram aos samaritanos
levando-lhes a mensagem de salvação. Um destes foi Filipe (não o
apóstolo), o diácono que também é chamado evangelista (At 21:8). Os
apóstolos ficaram em Jerusalém enquanto Filipe viajava até uma
importante cidade de Samaria. Filipe pôde relacionar-se com os
Atos (Simon J. Kistemaker) 407
samaritanos, os quais adoravam no Monte Gerizim. A ambos, a ele e aos
samaritanos, estava proibido adorar no templo de Jerusalém (Jo 4:20).
Expulso de Jerusalém, Filipe sabia que Deus não está limitado a um
lugar em particular, mas pode ser adorado em qualquer lugar.
Os tradutores tiveram problemas para escolher a forma correta do
versículo 5. Evidências textuais respaldam fortemente a forma “Filipe
desceu à cidade de Samaria”. Mas a maioria prefere a forma “Filipe
desceu a uma cidade de Samaria”. A capital, Samaria, rebatizada com o
nome do Sebaste por Herodes, o Grande, era uma cidade gentílica dos
tempos apostólicos. O contexto histórico parece estar a favor de uma
cidade menos importante, talvez Siquém (ou Sicar), localizada perto do
poço de Jacó. 480 Lucas, no entanto, não dá o nome da cidade, o que nos
impede de comprovar sua identidade.
Filipe pregava Cristo, diz Lucas, aos samaritanos. Já não estavam
excluídos das Boas Novas (Mt 10:5), que é a mensagem universal de
Deus para todas as nações. Devido à proximidade familiar com Israel, os
samaritanos foram os primeiros a ouvir o evangelho de Cristo pela boca
dos cristãos expulsos de Jerusalém.
6-8. As multidões atendiam, unânimes, às coisas que Filipe dizia,
ouvindo-as e vendo os sinais que ele operava. Pois os espíritos imundos de
muitos possessos saíam gritando em alta voz; e muitos paralíticos e coxos
foram curados. E houve grande alegria naquela cidade.
“As multidões escutavam atentamente”. Note-se estes dois
paralelos:
Primeiro, há um paralelo entre a pregação dos apóstolos em
Jerusalém e a de Filipe em Samaria. No dia do Pentecostes e em algumas
ocasiões posteriores, milhares de pessoas foram para ouvir os apóstolos
pregar o evangelho. Em Samaria, Filipe pregou e multidões vieram para
ouvi-lo.

480
Josefo Antiguidades 11.8.6 [340]. Outro possível lugar é a cidade samaritana da Gitta. Justino
Mártir, nascido ao redor do ano 100 d.C. em Samaria, escreve que esta localidade é o lugar onde
nasceu Simão o mago (8:9). Veja-se Apologia do Justino 1.26.
Atos (Simon J. Kistemaker) 408
Segundo, note-se o paralelo entre os milagres realizados pelos
apóstolos e Estêvão e os realizados por Filipe. Primeiro Pedro, logo os
apóstolos e mais tarde Estêvão realizaram numerosos e importantes
milagres entre o povo. 481 Em Samaria, Filipe também realizou prodígios
e as multidões escutaram atentamente o que dizia e fazia. O dom especial
de pregar e realizar milagres, portanto, não estava limitado aos apóstolos.
Estêvão e Filipe, comissionados para dar assistência aos pobres, também
possuíam este dom.
Filipe atraiu a multidão em Samaria por sua pregação e o ministério
de cura. O grego sugere que continuava fazendo milagres enquanto as
pessoas seguiam escutando e observando. O interesse das multidões foi
sem interrupção; muitos vieram a Cristo por meio da pregação e a
evidência dos milagres divinos.
Quando Jesus começou Seu ministério, Satanás se opôs fazendo
com que seus espíritos imundos possuíssem a numerosas pessoas.
Alguns destes demônios estavam nos cultos nas sinagogas e
identificaram a Jesus como o Santo de Deus (Mc. 1:23–26). Nos tempos
apostólicos, a possessão demoníaca era coisa comum. Pedro expulsou
demônios das pessoas que vinham a ele dos povos próximos a Jerusalém
(At 5:16). Paulo exorcizou um espírito de uma menina escrava em
Filipos (At 16:16–18) e expulsou demônios enquanto ensinava e pregava
em Éfeso (At 19:12). Do mesmo modo, Filipe expulsou espíritos
imundos dos samaritanos. Exorcizou demônios, que saíram das pessoas
com grande chiado. Sabiam que Filipe lhes falava no nome e no poder de
Jesus. Em sua aproximação de judeus e a gentios, Pedro, Paulo e Filipe
sabiam que deviam enfrentar com a oposição de Satanás a Jesus
Cristo. 482
Filipe também curou a coxos e paralíticos. Por seu ministério, o
povo recebeu cura física e espiritual. Por isso Lucas diz que havia grande
481
Veja-se At 3:6–7; 5:12, 15–16; 6:8.
482
Consulte-se de Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p.
137.
Atos (Simon J. Kistemaker) 409
alegria naquela cidade samaritana. Um dos frutos do Espírito é alegria
(Gl 5:22), que os cristãos demonstram especialmente quando recém vão
conhecer a Cristo.

Palavras, frases e construções gregas em At 8:4–7


Versículo 4
οἱ μὲν οὗν — esta é uma frase continuada que é transicional. 483

Versículo 5
κατελθών — o verbo composto no particípio ativo aoristo é diretor
e ao mesmo tempo descritivo. Ou sobe a Jerusalém, ou desce dali a
qualquer outro lugar.
τὴν πόλιν — o respaldo do manuscrito à inclusão do artigo definido
é forte demandando assim que se mantenha. No entanto, porque Lucas
não revela o nome do lugar, os tradutores favorecem eliminá-lo. 484
αὑτοῖς — gramaticalmente este pronome deveria estar no singular.
O plural masculino é usado para referir-se a pessoas. 485

Versículo 6
προσεῖχον — o tempo imperfeito denota ação contínua; o composto
significa “pôr atenção a”. Literalmente significa “eles continuaram a
manter [a mente] atentos a”.
ἐν τῷ ἀκούειν — esta é uma construção favorita nos escritos de
Lucas e aparece frequentemente. Expressa tempo: “enquanto eles
estavam escutando”.

483
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 162.
484
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), pp. 355–56.
485
Robertson, Grammar, p. 684.
Atos (Simon J. Kistemaker) 410
Versículo 7
πολλοί — este caso nominativo no plural não pode ser sujeito do
verbo ἐξήρχοντο (eles saíram). O sujeito é o plural acusativo πνεύματα
(espíritos), o qual é o objeto direto do gerúndio ἐχόντων (tendo). Kirsopp
Lake e H. J. Cadbury atribuem este anacoluto à mente ‘telescópica’ a
qual todos os escritores estão sujeitos”. 486 Isto é, Lucas toma o
substantivo espíritos como um caso nominativo e assim, como o sujeito
do verbo. As terminações nominativa e acusativa deste substantivo são
idênticas. Lucas esqueceu que ele já tinha começado a frase com o
adjetivo nominativo muitos.

b. Convertendo a Simão (At 8:9–13)

Como pregador das Boas Novas e quem curava os doentes, Filipe


recebe calorosas boas-vindas da parte dos samaritanos. O poder do
evangelho de Cristo e a divina autoridade de Filipe para realizar milagres
são grandes e mais poderosos que as artes enganosas de Simão, o mago.
9. Havia ali desde algum tempo um homem chamado Simão, que
praticara a mágica e fizera pasmar o povo de Samaria, dizendo ser ele um
grande homem [TB].
Em Jerusalém, a oposição de Satanás à igreja veio na forma do
engano de Ananias e Safira (At 5:1–11), o encarceramento dos apóstolos
(At 4:3; 5:18), a morte de Estêvão (At 7:60), e a grande perseguição (At
8:1b). Em Samaria, Satanás emprega diferentes métodos para frustrar o
crescimento da igreja. Usa um homem chamado Simão, conhecido em
Samaria como o mago. Lucas o apresenta como um homem que pratica
as artes mágicas nessa cidade samaritana.
As “artes” de Simão não eram, simplesmente, alguma escamoteação
(que é uma forma de enganar a mente devido ao fato de que os olhos
falham em observar corretamente o que está ocorrendo diante deles),

486
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 90.
Atos (Simon J. Kistemaker) 411
mas antes, eram um atentado sério contra a fé cristã, porque
representavam a bruxaria e feitiçaria. Entre os vícios que menciona
Paulo como obras da natureza pecaminosa está a feitiçaria (Gl 5:20).
Todos os que praticam este tipo de artes mágicas estão excluídos da
Cidade Santa e são lançados no lago de fogo e enxofre (Ap 21:8; 22:15).
As artes mágicas têm sua origem em Satanás e são diametralmente
opostas a Deus. Portanto, Deus ordena a Seu povo para não envolver-se
com nenhuma forma de magia (Dt 18:10–14). 487
Com sua magia, Simão o mago tinha cativado as pessoas por longo
tempo. Quando Filipe chegou a Samaria e proclamou as Boas Novas,
Simão creu e foi batizado. Antes de sua conversão, ele alardeava de ser
alguém grande. Além disso, o povo o respeitava porque cria que tinha
recebido poderes divinos para fazer o que fazia.
10, 11. Ao qual todos davam ouvidos, do menor ao maior, dizendo:
Este homem é o poder de Deus, chamado o Grande Poder. Aderiam a ele
porque havia muito os iludira com mágicas.
As Escrituras dos samaritanos consistiam nos cinco livros de
Moisés que, à luz de todo o Antigo Testamento, davam-lhes só um
segmento da verdade religiosa. Os judeus proibiam os samaritanos de
adorar em Jerusalém; portanto, faziam-no em seu templo, no alto do
Monte Gerizim. Também esperavam a vinda do Messias, a quem
chamavam Ta’eb. Devido à sua mescla racial e fundo religioso (veja-se
2Rs 17:24–41), eram receptivos à bruxaria. 488
No século II, Justino Mártir afirmou que Simão, o mago foi de
Samaria a Roma, onde, graças a suas artes mágicas, foi honrado como
um deus. Provavelmente Justino errou quando afirmou que uma estátua
em Roma estava dedicada a Simão: “A Simão o Santo Deus”; porque
provavelmente tinha as palavras Ao Deus Semo Sancus. Esta estátua,

487
Consulte-se Colin Brown, NIDNTT, vol. 2, p. 554.
488
Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The Expanding Church, 2a. ed. (Grand Rapids: Zondervan,
Academie Books, 1986), pp. 144–45. Veja-se especialmente Adolf Deissmann, Bible Studies (reimpr.;
Winona Lake, Ind.: Alpha, 1979), p. 336.
Atos (Simon J. Kistemaker) 412
489
portanto, não honrava a Simão mas a um deus Sabino. Nos séculos II
e III, mencionou-se com muita frequência o nome de Simão. Inclusive
foi considerado o pai do Gnosticismo. 490 Mas fica a pergunta se o Simão
que escutou a Filipe e a Pedro é o mesmo Simão que deu origem ao
movimento gnóstico. Estudiosos que opinam sobre este ponto refutaram
aqueles escritos que ligam a Simão, o mago com o gnosticismo pré-
cristão. Apesar da forte evidência provida pelos escritores dos primeiros
séculos, eruditos afirmam que o curso do desenvolvimento do
movimento conhecido como simonianismo continua tão escuro como
sempre. 491
“Ao qual todos davam ouvidos, do menor ao maior”. Antes de
Filipe ir aos samaritanos, eles tinham a Simão em muito alta estima. A
expressão traduzida como “do menor ao maior” é bastante comum nas
Escrituras (veja-se, p. ex., Gn 19:11) e indica que Simão tinha
numerosos admiradores. Os samaritanos confessavam sua fé nele e
diziam: “Este homem é o poder de Deus, chamado o Grande Poder”.
Eles criam num Deus e é presumível que tenham estimado que Simão
era seu representante, dotado de divino poder. Por outro lado, também é
possível que o próprio Simão se autoproclamou Deus pela magia que
realizava.
A palavra grega traduzida “poder” pode significar também
“Poderoso”. Então, é um circunlóquio para o nome de Deus. Isto é
evidente, por exemplo, na resposta de Jesus à pergunta do sumo
sacerdote. 492 Em seu juízo, Jesus disse ao sumo sacerdote, “Vereis o
Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as
nuvens do céu” (Mt 26:64). No entanto, depois de ter dito tudo isso, não

489
Justino Mártir Apologia 1.26.56; Diálogo 120.
490
Irineu Contra heresias 1.23.
491
Wayne A. Meeks, “Simon Magus in Recent Research”, RelStudRev 3 (1977); 137–42; Robert P.
Casey, “Simon Magus”, Beginnings, vol. 5, p. 163.
492
SB, vol. 1, p. 1006. E veja-se Lake y Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 91; Gustaf Dalman, The
Words of Jesus, trad. por D. M. Kay (Edimburgo: Clark, 1909), p. 200.
Atos (Simon J. Kistemaker) 413
podemos determinar a intenção exata desta afirmação do credo
samaritano e, portanto, temos que deixar a pergunta aberta.
A influência de Simão era enorme e o número de seus seguidores
imenso. Por um longo tempo tinha mantido cativo o povo graças às artes
que praticava. Mas quando Filipe aparece pregando as Boas Novas e
realizando milagres de cura, o povo atende com muito interesse ao que
diz e às maravilhas que realiza. Para eles, a mensagem e as obras de
Filipe ultrapassam muito as atuações de Simão.
12, 13. Quando, porém, deram crédito a Filipe, que os evangelizava a
respeito do reino de Deus e do nome de Jesus Cristo, iam sendo batizados,
assim homens como mulheres. O próprio Simão abraçou a fé; e, tendo
sido batizado, acompanhava a Filipe de perto, observando extasiado os
sinais e grandes milagres praticados.
a. “Quando, porém, deram crédito a Filipe”. Os samaritanos
aceitam o evangelho pregado por Filipe e começam a crer na mensagem
que lhes traz. Traduzi o verbo “começaram a crer” para indicar uma ação
que tem um ponto de partida e que continua progredindo
constantemente. Os samaritanos primeiro dão sua aprovação intelectual à
mensagem de Filipe; logo, entregam-se a Jesus e pedem ser batizados.
Sabemos que sua entrega foi genuína, o que ficou em evidência quando
Pedro e João chegam e o Espírito Santo desce sobre eles. Quando o
Espírito Santo decide habitar neles, dá-lhes evidência de que sua fé é
genuína. Portanto, chegamos à conclusão que os samaritanos creram em
Filipe e na mensagem de salvação que proclamava. 493
b. “A respeito do reino de Deus e do nome de Jesus Cristo”. Lucas
revela o conteúdo total da mensagem de Filipe; isto é, primeiro
menciona a expressão reino de Deus e logo fala “do nome de Jesus
Cristo”. Nos evangelhos sinóticos, especialmente em Mateus, o conceito
do reino é proeminente. Mas em Atos, menciona-se unicamente quatro

493
James D. G. Dunn afirma que o verbo crer neste contexto “significa aceitação intelectual à uma
declaração ou proposição mais que um compromisso com Deus”. Baptism in the Holy Spirit, Studies
in Biblical Theology, 2ª. série 15 (Londres: SCM, 1970), p. 65.
Atos (Simon J. Kistemaker) 414
vezes (At 19:8; 20:25; 28:23, 31). Aqui, reino de Deus não deve ser
interpretado meramente como um sinônimo para “o evangelho”. Em
lugar disso, Lucas usa este termo para ilustrar que Filipe faz insistência
no reinado e na soberania de Deus neste mundo, em oposição com os
poderes de Satanás desdobrados por Simão através de sua magia.
Além disso, Filipe proclama o nome de Jesus Cristo aos
samaritanos. Note-se que o termo nome destaca a revelação total do
Filho de Deus e que o nome duplo Jesus Cristo revela tanto seu
ministério terrestre como seu ofício divino. Jesus, portanto, é rei no reino
de Deus. Os samaritanos ouvem todo o evangelho de salvação, algo que
Simão não lhes pode dar. E respondem pedindo ser batizados.
c. “Iam sendo batizados, assim homens como mulheres”. Lucas já
não menciona números específicos de crentes, mas simplesmente diz que
homens e mulheres professam sua fé em Jesus Cristo e são batizados
(compare At 5:14). Com o verbo batizar no tempo imperfeito, Lucas está
indicando ação continuada. Presumimos que a cerimônia do batismo
repetiu-se vez após vez. Note-se também que as muralhas que separavam
os judeus dos samaritanos (veja-se Jo 4:9) foram derrubadas. Os
samaritanos estão sendo batizados por um judeu.
d. “O próprio Simão abraçou a fé; e, tendo sido batizado”. Simão
reconhece que mais um grande e poderoso que ele chegou a Samaria.
Quando o povo o abandona para seguir Filipe, une-se à multidão e aceita
a presença de um poder superior. Observa os milagres que Filipe faz,
mas a pregação do evangelho parece não mudar em nada seu coração
(veja-se v. 21). ele crê que está “associado com algum espírito
poderoso”. 494 Vê o batismo não como um sinal de que se está entrando
numa relação com o Triúno Deus, e sim como a iniciação de uma relação
com esse espírito poderoso. Espera que através do batismo receberia o
mesmo poder que Filipe tem de realizar milagres (veja-se v. 19).

494
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary 7ª. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), p. 88.
Atos (Simon J. Kistemaker) 415
e. “Observando extasiado os sinais e grandes milagres praticados”.
Depois de seu batismo, Simão se mantém sempre muito perto de Filipe,
seguindo-o onde quer que este vai. E Lucas nos diz a razão de tal atitude:
seu interesse como mago nos grandes sinais e maravilhas que seguiam
ocorrendo. A palavra grega traduzida “maravilhas” na verdade significa
“poderes”. Simão está interessado nos poderosos milagres que Filipe
realiza. Nunca antes viu coisa comparável às obras de Filipe. Lucas diz
que Simão estava atônito com o que via. Assim, Simão dá a conhecer
que seu interesse não é o conhecimento de Jesus, e sim os divinos
poderes que Filipe usa.
Concluímos esta seção com três breves observações. Primeiro,
Filipe é incapaz de julgar o coração de Simão, pelo que aceita como bom
seu testemunho de fé em Cristo. Segundo, o relato do batismo de Simão
é boa prova de que o batismo não é um ato que efetua a salvação. E
terceiro, Simão foi batizado com os samaritanos para não ofender o povo
entre os quais ele vivia e trabalhava. 495

Considerações práticas em At 8:9–13


Hoje em dia são comuns as práticas ocultistas que vão da leitura das
mãos até o espiritismo, passando pelo horóscopo, as fórmulas para
ganhar fortuna e magia. Naturalmente, estas práticas remontam-se até os
começos da história do homem, porém nos anos recentes o público em
geral as aceitou como parte da vida. Gente que se mete no ocultismo
deseja informação que não se consegue através dos canais normais;
buscam comunicar-se com poderes sobrenaturais ou demoníacos; e
procuram alcançar esse poder para que outras pessoas cheguem a ser
seus servidores. 496 Creem na mentira que Satanás disse a Adão e Eva no
paraíso: “Serão como Deus” (Gn 3:5). Assim, em seu afã por alcançar o

495
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. por David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. I, p. 232.
496
Ronald M. Enroth, “Occult, The”, EDT, p. 787.
Atos (Simon J. Kistemaker) 416
conhecimento por vias sobrenaturais, tornam-se escravos de Satanás,
rejeitando o chamado de Cristo de confiar unicamente nEle.
Qual é a diferença entre o ocultismo e a religião cristã? Uns breves
princípios podem dar resposta a esta pergunta. Na prática misteriosa da
magia, um profissional manipula a pessoa crédula para seu próprio
benefício. Na religião, uma pessoa piedosamente pede a Deus a
satisfação de suas necessidades espirituais e materiais. A magia está
dirigida ao indivíduo em particular; a religião é um atividade para grupos
e está aberta ao público. Por último, as práticas ocultistas são impessoais;
em vez disso, os serviços religiosos exigem uma interação pessoal entre
Deus e Seu povo que O adora. 497
Tanto o Antigo como o Novo Testamento denunciam as práticas
abomináveis do ocultismo. Deus quer que Seu povo ponha sua confiança
unicamente nEle, por isso diz, “Eu sou o Senhor teu Deus”. Ele cuida de
Seus filhos e satisfaz todas as suas necessidades (cf. Sl. 81:8–10).

Palavras, frases e construções gregas em At 8:9–11


Versículo 9
προϋπῆρχεν — primeiro, note-se que o tempo imperfeito é o
acostumado imperfeito, “ele exercia”. Logo, o verbo é um composto
consistente da preposição πρό (antes) e o verbo ὑπάρχω (ser). E terceiro,
o verbo é parte da construção perifrástica com o gerúndio μαγεύων
(praticando artes mágicas).
τὸ ἔθνος — Lucas descreve literalmente os samaritanos como “a
nação de Samaria”. Não usa o termo ὁ λαός, o qual estabelece uma
relação com o povo de Deus (veja-se At 4:27).
τινα μέγαν — esta combinação expressa a ideia superlativa, “um
homem grandíssimo”.

497
Consulte-se David E. Aune, “Magic”, ISBE, vol. 3, pp. 213–14.
Atos (Simon J. Kistemaker) 417
Versículo 11
προσεῖχον — três vezes (vv. 6, 10 e 11) aparece este verbo para
mostrar o intenso interesse dos samaritanos. Veja-se a explicação no
versículo 6.
ταῖς μαγείαις — “com estas artes mágicas”. O dativo é
instrumental. Para a palavra relacionada μάγος veja-se At 13:6, 8.
ἐξεστακέναι — o infinitivo ativo perfeito do verbo ἐξίστημι (eu me
maravilho) é um perfeito de “continuidade interrompida” para expressar
ação repetida no passado. 498

c. Com Pedro e João (At 8:14–17)

Foram os apóstolos a Samaria para aprovar o trabalho que Filipe


tem feito? Tinha perdido Filipe o dom do Espírito Santo? Havia
problemas para estabelecer a igreja cristã em Samaria? É possível fazer-
se estas perguntas no contexto do desenvolvimento da igreja tal como
Lucas o apresenta.
Antes de sua ascensão, Jesus disse a Seus apóstolos que
permanecessem em Jerusalém e que ali esperassem a vinda do Espírito
Santo. Quando receberam esse poder, começaram a testificar de Jesus
em Jerusalém, Judeia e Samaria, e até o fim da terra (At 1:8).
O tema que Lucas desenvolve é um daqueles círculos concêntricos
comparáveis às ondas que produz uma pedra ao ser lançada às quietas
águas de uma lagoa. O Espírito é derramado sobre o povo judeu em
Jerusalém e a igreja ali começa a desenvolver-se. Quando Filipe prega
em Samaria e os samaritanos creem e são batizados, os apóstolos vão de
Jerusalém para dar as boas-vindas à igreja cristã a estes novos crentes.
Deus une os cristãos judeus com os cristãos samaritanos numa igreja. 499

498
Robertson, Grammar, p. 909.
499
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 234; veja-se também David John Williams, Acts, série
Good News Commentaries (San Francisco: Harper y Row, 1985), p. 142.
Atos (Simon J. Kistemaker) 418
Derruba a muralha de separação que existiu entre judeus e samaritanos.
Termina toda a animosidade que existia entre estes dois grupos (cf. At
11:17). Deus também faz com que o Espírito Santo desça, de tal maneira
que os samaritanos têm seu próprio pentecostes, por assim dizer, e assim
também reconhecem que com os judeus eles são um em Cristo.
14. Ouvindo os apóstolos, que estavam em Jerusalém, que Samaria
recebera a palavra de Deus, enviaram-lhe Pedro e João.
Os apóstolos em Jerusalém são informados da obra que Filipe está
levando a cabo em Samaria e agora falam entre si o que vão fazer. Em
harmonia com a ordem de Jesus de ser testemunhas em Samaria,
comissionam Pedro e João para viajarem à cidade onde Filipe se acha
pregando o evangelho de Cristo. Instruem-nos que sejam os
representantes oficiais para dar as boas-vindas aos irmãos samaritanos na
igreja cristã. A propósito, esta é a última vez que Lucas menciona em
Atos o nome de João. Lembre-se que em certa ocasião, João e seu irmão
Tiago pediram permissão a Jesus de invocar fogo do céu para destruir os
samaritanos (Lc 9:54).
Lucas escreve que os apóstolos receberam a notícia de que os
samaritanos tinham recebido a palavra de Deus. A palavra Samaria é um
termo genérico que se refere não ao país mas a seus habitantes como tais.
E a expressão a palavra de Deus, que em Atos como no resto do Novo
Testamento é similar às frases a palavra do Senhor ou simplesmente a
palavra, é equivalente a mensagem e testemunho de Jesus compreendido
no evangelho de Cristo. 500
15, 16. Os quais, descendo para lá, oraram por eles para que
recebessem o Espírito Santo; porquanto não havia ainda descido sobre
nenhum deles, mas somente haviam sido batizados em o nome do Senhor
Jesus.
Pedro e João saem de Jerusalém (veja-se v. 5) e viajam à cidade
onde Filipe se encontra pregando e batizando os samaritanos. Quando
chegam ao destino, oram por aqueles crentes e pedem a Deus que
500
Gerhard Kittel, TDNT, vol. 4, pp. 114–15.
Atos (Simon J. Kistemaker) 419
derrame o Espírito Santo a estes recém convertidos (cf. At 2:38; 10:44).
Lucas diz que os samaritanos não tiveram a experiência do Espírito
Santo descendo sobre eles e que estão batizados não no nome do Triúno
Deus, mas só no nome de Jesus.
Não pode Filipe, por ser um evangelista e não um apóstolo, orar
pedindo o dom do Espírito Santo? Não está operando o Espírito Santo
quando os samaritanos voltam com sua fé a Cristo? E por que Filipe
batiza só no nome de Jesus? Procuraremos responder estas perguntas
uma por uma.
Primeiro, tinha Filipe a habilidade de orar pedindo o dom do
Espírito Santo? Por certo que tinha esta capacidade, porque ele mesmo
estava cheio do Espírito (At 6:3). No entanto, Deus enviou os apóstolos
Pedro e João a Samaria para deixar claro que através dos apóstolos ele
estava aprovando oficialmente um novo nível de desenvolvimento na
igreja: acrescentando os crentes samaritanos. Deus confirmou esta nova
fase através do envio do Espírito Santo como um sinal visível de sua
presença divina. Assim como Ele fez sentir sua presença entre os judeus
cristãos em Jerusalém, assim ele afirmou sua proximidade com os
crentes samaritanos.
Note-se também que quando Pedro pregou na casa de Cornélio e
batizou os gentios que creram, Deus de novo deu Sua aprovação a um
novo período no crescimento da igreja, enviando Seu Espírito (At
10:44). Concluímos, então, que à medida que os apóstolos cumpriram o
mandato de ser testemunhas em Jerusalém, Samaria e o mundo gentílico
(At 1:8) Deus deu Sua aprovação a cada etapa iniciada, derramando de
seu Espírito Santo. Sua aprovação a este trabalho em Samaria Ele o deu
através dos apóstolos e não através de Filipe.
Segundo, não estava o Espírito Santo trabalhando entre os
samaritanos quando eles aceitaram a Cristo pela fé? Naturalmente que
sim. Foram batizados externamente com água, mas sua experiência
interna do novo nascimento e renovação foi através do Espírito Santo
(Rm 8:9; 1Co 12:3; 2Ts 2:13; Tt 3:5; 1Pe 1:2). A importância do
Atos (Simon J. Kistemaker) 420
derramamento do Espírito no meio deles, como resultado, descansa nos
sinais visíveis resultando da chegada do Espírito (cf. At 10:45–46; 19:6;
1Co 14:27). O poder do Espírito Santo, evidente nas vidas dos judeus
convertidos depois do Pentecostes, chega agora a ser uma realidade nos
corações e vidas dos crentes em Samaria. Em outras palavras, o
derramamento do Espírito nos samaritanos é uma prova de seu grau de
igualdade com os crentes de Jerusalém.
Terceiro, por que Filipe batizou os samaritanos só no nome de
Jesus? Vemos uma inconsistência com a fórmula da Grande Comissão
que prescreve o batismo em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo
(Mt 28:19). Mas note-se que a ênfase nesta fórmula está posto na palavra
nome, que se refere a toda a revelação de Deus feita em palavra e obra.
Filipe batizava nesta revelação plena e específica, o nome de Jesus (veja-
se v. 12). Seguia assim a fórmula comum daqueles tempos para o
batismo (veja-se At 2:38; 10:48; 19:5). Esta fórmula deve ser entendida
no contexto histórico da pregação apostólica na qual a expressão o nome
de Jesus aparece numerosas vezes. 501
Não devemos pôr mais ênfase na fórmula do batismo que as
circunstâncias históricas recomendam. Donald Guthrie conclui que “não
tem respaldo a opinião de que o uso do nome triúno seria mais ou menos
eficaz que o simples nome de Jesus”. 502 O contexto mostra que Filipe
proclamou Jesus aos samaritanos (v. 12); portanto, seu batismo nesse
nome significa que tal batismo é o mesmo dos judeus cristãos.
17. Então, lhes impunham as mãos, e recebiam estes o Espírito
Santo.
Pedro e João, representando os doze apóstolos, impõem suas mãos
sobre os crentes samaritanos, aqueles que então recebem o Espírito
Santo. Este acontecimento marca a participação plena dos samaritanos
na igreja (veja-se também At 19:6). O fato em si é brilhante e simples.
Interpretar seu significado, entretanto, foi sempre problemático pelos
501
P. ex., Atos 3:6; 4:10, 17–18, 30; 5:40; 8:12; 9:27; 16:18; 19:13, 17; 21:13; 26:9.
502
Guthrie, New Testament Theology, p. 719.
Atos (Simon J. Kistemaker) 421
503
diferentes pontos de vista teológicos. Por questão de espaço não
podemos analisar aqui com amplitude estes pontos de vista, pelo qual
nos limitaremos a fazer uns poucos comentários.
Em certos setores da igreja, os teólogos tiram desta passagem o
sacramento ou rito da confirmação. Por exemplo, em harmonia com uma
carta papal, os teólogos católicos romanos ensinam que “a imposição das
mãos é feita pela unção da fronte o que é chamado também confirmação,
porque através dela o Espírito Santo é dado para um aumento [de graça]
e de forças”. 504 Eles dizem que assim como os apóstolos na igreja
primitiva confirmaram os samaritanos através de lhes impor as mãos,
assim a igreja hoje em dia, como sucessora dos apóstolos, confirma os
fiéis.
No entanto, nos dias apostólicos Filipe batizou o eunuco etíope,
quem não recebeu confirmação apostólica (At 8:36–39). Pelo contrário,
Ananias impôs suas mãos sobre Saulo, quem então recebeu o Espírito
Santo (At 9:17). E Ananias não era apóstolo. Pedro não impôs suas mãos
sobre aqueles que foram batizados na casa de Cornélio (At 10:44–48). E
Paulo tampouco o fez com o carcereiro de Filipos e os membros de sua
família embora todos eles tenham sido foram batizados (At 16:30–34).
Salvo por At 19:6, o contexto histórico de Atos falha quanto a dar
respaldo ao ensino de que a igreja deve ter um sacramento de
confirmação que seja administrado através de impor as mãos sobre cada
crente, para que ele ou ela receba o Espírito Santo. Na verdade, o Novo
Testamento não ordena a igreja a seguir a prática de Pedro e João em
Samaria. “Por outro lado, não há razão para não continuar a prática

503
Num capítulo intitulado “The Riddle of Samaria”, Dunn provê um detalhado e amplo estudo sobre
este assunto. Baptism in the Holy Spirit, pp. 55–72.
504
Heinrich J. D. Denzinger, The Sources of Catholic Dogma, trad. por Roy J. Deferrari (St. Luis y
Londres: B. Herder Book Co., 1957), p. 165. Veja-se também Charles Gregg Singer, “Confirmation”,
EDT, pp. 266–67; L. S. Thornton, Confirmation. Its Place in the Baptismal Mystery (Londres: Dacre,
1954), p. 73.
Atos (Simon J. Kistemaker) 422
bíblica de impor as mãos em oração, a menos que não haja intenção de
obter a outorga de dons espirituais através desta prática”. 505
Qual é o ensino que o Novo Testamento nos dá quanto a receber o
Espírito Santo? O derramamento do Espírito ocorreu em Jerusalém (At
2:1–4) e se repetiu quando a igreja acrescentou novos grupos: os
samaritanos (At 8:11–17), os gentios (At 10:44–47), e os discípulos de
João Batista (At 19:1–7). Mas além destas manifestações especiais, o
Novo Testamento está desprovido de referências à recepção do Espírito
Santo por judeus ou gentios através da imposição das mãos dos
apóstolos. Devido ao Pentecostes, o Espírito Santo permanece com a
igreja e vive nos corações dos verdadeiros crentes (veja-se Rm 5:5; 8:9–
11; Ef 1:13; 4:30). Paulo diz que os corpos dos crentes são o templo do
Espírito Santo (1Co 3:16; 6:19). Portanto, por estas passagens do Novo
Testamento sabemos “que todos aqueles que creem e são batizados
também têm o Espírito de Deus”. 506

Palavras, frases e construções gregas em At 8:14–17


Versículo 14
δέδεκται — embora esta forma é passiva, é traduzida como ativa. O
tempo perfeito do verbo δέχομαι (eu recebo, aceitar) significa efeito
duradouro.

Versículo 15
πνεῦμα ἅγιον — Lucas não quer fazer distinção entre esta forma e a
forma que tem artigos definidos: τὸ πνεῦμα τὸ ἅγιον. 507

505
E. Y. Mullins e Geofrrey W. Bromiley, “Baptism of the Holy Spirit”, ISBE, vol. 1, p. 428.
506
F. F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on the New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 169.
507
Consulte o estudo pormenorizado que fez Dunn, Baptism in the Holy Spirit, pp. 69–70; veja-se
também Moule, Idiom-Book, pp. 112–13.
Atos (Simon J. Kistemaker) 423
Versículos 16–17
ἦν ἐπιπεπτωκός — esta é a construção perifrástica em passado, que
consiste do tempo imperfeito do verbo ser ou estar com o particípio
perfeito. A forma perfeita do composto ἐπιπίπτω (eu venho a) denota
resultado alcançado.
ἐλάμβανον — note-se o uso do tempo imperfeito para descrever
duração. O sujeito deste verbo, naturalmente, é o substantivo implícito
samaritanos e não o substantivo apóstolos.

d. Opondo-se a Simão (At 8:18–23)

Aqui temos a segunda parte do relato relacionado com Simão (veja-


se vv. 9–13) que é um contraste direto com o dom do Espírito Santo
dado por Deus aos samaritanos. Habilmente, Lucas contrapõe a
generosidade de Barnabé (At 4:36–37) ao engano de Ananias e Safira
(At 5:1–11). Compara o majestoso poder de Deus com a má influência
de Satanás. Por conseguinte, Lucas apresenta os samaritanos recebendo o
Espírito Santo na igreja que cresce e a Satanás usando a Simão para
zombar da fé cristã.
A ação de Simão revela que ele não experimentou uma verdadeira
conversão e não recebeu o Espírito. Ao observar as evidências externas
do Espírito, Simão avalia os dons sobre uma base mercantilista e oferece
aos apóstolos dinheiro para ter também a presença do Espírito.
18, 19. Vendo, porém, Simão que, pelo fato de imporem os apóstolos
as mãos, era concedido o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro,
propondo: Concedei-me também a mim este poder, para que aquele sobre
quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo.
Quando os samaritanos recebem o Espírito Santo, a presença do
Espírito é evidente mediante sinais externos. Embora a sucinta descrição
de Lucas omite detalhes, podemos pensar que alguns sinais, talvez na
forma de milagres, foram visíveis ao povo. Para Simão, quem pensa em
termos de truques mágicas, a possessão destes dons extraordinários faz-
Atos (Simon J. Kistemaker) 424
se imperativo. Porém não só isso, mas também quer ter ao seu dispor o
poder demonstrado por Filipe pelo qual cura os doentes e expulsa os
demônios. Simão percebe que os apóstolos de Jerusalém impõem suas
mãos sobre os samaritanos, aqueles que então recebem o poder
milagroso do Espírito Santo. Não imagina que ele estivesse passado por
alto por sua falta de fé verdadeira.
Em dias anteriores, Simão tinha comprado com dinheiro as
fórmulas mágicas de outros magos. E por sua vez, cobrava as pessoas
por seus serviços. Agora, aborda Pedro e João, aos quais considera
agentes do Espírito Santo e também lhes oferece dinheiro. Se consegue
comprar este poder sobrenatural, poderá alcançar níveis muito mais altos
que os conseguidos antes de sua conversão à fé cristã. Movido por esse
pensamento, Simão procura comprar os dons espirituais. É curioso que
Simão o mago tenha dada origem à expressão simonia que quer dizer,
precisamente, procurar comprar ou vender mediante dinheiro favores
eclesiásticos.
Quando Simão oferece dinheiro a Pedro e a João, não está
procurando suborná-los ou pagar-lhes honorários para que chegassem a
ser sócios. Não. Ele cria que pode comprar a investidura sacerdotal mais
ou menos da mesma forma em que poderia comprá-la em qualquer
religião pagã. Porque deve lembrar-se que na primeira metade do século
I tais investiduras com frequência eram vendidas em leilões. 508
“Concedei-me também a mim este poder, para que aquele sobre
quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo”. Parece que Simão
tinha intenção de chegar a ser um líder na igreja samaritana, com
autoridade para impor as mãos sobre as pessoas e lhes outorgar o
Espírito Santo. Pensava funcionar como um sacerdote subordinado aos
apóstolos. Para ele, o Espírito Santo é um poder que pode ser sujeito à
vontade do homem.

508
Consulte-se J. Duncan M. Derrett, “Simon Magus (Acts 8:9–24)”, ZNW 73 (1982): 52–68 (veja-se
especialmente p. 61).
Atos (Simon J. Kistemaker) 425
Simão ofendeu a Deus ao pôr o Espírito Santo no mesmo nível de
seus truques mágicos. Ao querer comprar o Espírito de Deus, ele
demonstrou não ter o mais mínimo conhecimento dos assuntos
espirituais. Não se dá conta que os apóstolos possuíam esse poder
celestial para precisamente glorificar a Deus. Ele quer dispor desse poder
para glorificar-se a si mesmo. 509
20. Pedro, porém, lhe respondeu: O teu dinheiro seja contigo para
perdição, pois julgaste adquirir, por meio dele, o dom de Deus.
Note-se o contraste entre os servos de Deus e Simão, o mago.
Embora Jesus tenha dito a Seus discípulos que o operário é digno de seu
salário (Lc 10:7) e que aqueles que proclamam o evangelho devem
receber adequada remuneração pelo seu trabalho (1Co 9:4), Ele nunca
lhes disse que cobrassem por seus serviços. Paulo, precisamente, disse
categoricamente que ele não queria nem ouro, nem prata, nem roupa de
ninguém, mas trabalhava com suas próprias mãos para satisfazer suas
necessidades (At 20:33–35; 2Co 11:7; veja-se também 1Pe 5:2).
Não se cobra dos crentes os benefícios espirituais que recebem;
tampouco pagam por eles, porque Jesus disse: “De graça recebestes, de
graça dai” (Mt 10:8). Isto está em harmonia com o exemplo de Elias, no
Antigo Testamento, quem recusou aceitar presentes pela cura de Naamã,
o leproso. Lembre-se que Geazi, seu servo, quem pediu ao general
dinheiro e roupa, contraiu a lepra em castigo por sua avareza (2Rs 5:15–
16, 23–27). Da mesma maneira, Simão pensa de benefícios espirituais
através de uma atitude comercial e, por isso, escuta que Pedro
pronunciasse uma maldição contra si.
“O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois julgaste adquirir,
por meio dele, o dom de Deus”. Pedro era zeloso guarda da glória e a
honra de Deus pelo que rejeitou com força os ataques de Satanás, quem
através de Simão, buscou torcer a verdade. A maldição que disse, no eco
do Antigo Testamento, significou que tanto Simão como seu dinheiro

509
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 238.
Atos (Simon J. Kistemaker) 426
estavam a caminho do inferno. A maldição de Pedro tem implicações
tremendas, porque se referia não só à eliminação do dinheiro e à morte
física de Simão, mas à sua condição depois da morte. 510 O pecado de
Simão consistiu em valorizar o Espírito de Deus em termos de uma
determinada soma de dinheiro, que o dinheiro por si só era de máxima
importância e que ele adora mais a criatura (o dinheiro) que a Deus.
21. Não tens parte nem sorte neste ministério, porque o teu coração
não é reto diante de Deus.
Ao dizer-lhe que não tem parte nem sorte em receber o Espírito
Santo, Pedro de um único toque está excluindo Simão da comunidade
cristã. Se Simão tivesse tido parte ou sorte no assunto, não teria tido que
pedi-lo. A palavra parte aponta ao companheirismo, e o termo sorte ao
sentido de posse. As palavras são um modismo que era bem conhecido
aos levitas, porque eles não tinham parte nem herança na distribuição de
propriedades de Israel. 511 Simão, o mago, entretanto, não tem parte nem
sorte no Senhor (note-se o contraste com Is 57:6). Está completamente
desqualificado para receber o Espírito Santo e para ser um mestre das
Boas Novas. As palavras este assunto se referem à obra de ensinar e
pregar o evangelho de Cristo.
Por que é excluído Simão? Com um evidente discernimento
espiritual, Pedro olha a Simão e lhe diz: “O teu coração não é reto diante
de Deus”. Na verdade está citando do Salmo 78:37, onde o salmista
reconta a infidelidade dos israelitas rebeldes que pereceram no deserto.
Pedro olha à própria fonte da vida de Simão e sabe que espiritualmente
este não está servindo a Deus e sim a si mesmo. Há só um caminho para
mudar esta condição, e esse caminho é arrepender-se. Por implicação, a
anterior confissão de fé de Simão e seu subsequente batismo (v. 13)
perdem seu significado porque seu coração não está arrependido.
Portanto, Pedro lhe aponta o caminho de salvação, dizendo-lhe:

510
Hans-Christoph Hahn, NIDNTT, vol. 1, p. 463.
511
Veja-se Dt. 10:9; 12:12; 14:27; 18:1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 427
22, 23. Arrepende-te, pois, da tua maldade e roga ao Senhor; talvez
te seja perdoado o intento do coração; pois vejo que estás em fel de
amargura e laço de iniquidade.
a. O contraste. Comparando o relato a respeito de Ananias e Safira
(At 5:1–11) com o de Simão, o mago, vemos várias diferenças. Ananias
e Safira eram cristãos judeus que professavam conhecer o Senhor e ter
sido cheios do Espírito Santo. Pertenciam ao verdadeiro Israel. Tinham
sido batizados e instruídos na fé dos apóstolos. Pecaram contra o Espírito
Santo provando-o através de um engano deliberado. Por isso Deus tomou
suas vidas como um sinal de sua ofensa, mas também como uma medida
para manter pura a igreja primitiva.
Pelo contrário, Simão era um samaritano que fez uma confissão de
fé verbal, mas o seu coração não era reto para com Deus. Não recebeu o
dom do Espírito Santo. Antes tinha sido o mago conhecido como “o
poder de Deus” mas agora, depois de ver os milagres realizados por
Filipe, uniu-se aos crentes. Pecou gravemente contra Deus ao querer
comprar o dom do Espírito Santo. Embora Pedro pronuncie uma
maldição contra ele, também lhe mostra o caminho de libertação.
Portanto, chegamos à conclusão de que Simão pecou por ignorância
porque ainda não tinha sido libertado das ataduras de maldade. Seu
pecado não foi o pecado contra o Espírito Santo.
b. A condição. “Arrepende-te, pois, da tua maldade e roga ao
Senhor”. Pedro dá a Simão a oportunidade de arrepender-se. Diz-lhe que
se arrependa e que peça perdão ao Senhor. Note-se que não lhe perdoa
seu pecado, mesmo quando Jesus lhe tinha dado a autoridade para fazê-
lo (Jo 20:23). Diz-lhe que se dirija a Deus para o perdão do seu pecado.
“Os próprios apóstolos referem o perdão dos pecados a, e o deixaram ao
soberano poder de Deus e não a seu próprio poder delegado de
absolvição”. 512 A recomendação é que se arrependa e peça ao Senhor
para tirar seu pecado e a maldição dita por Pedro e que pesa sobre ele.

512
Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 91.
Atos (Simon J. Kistemaker) 428
“Talvez te seja perdoado o intento do coração”. Pedro começa sua
sugestão de buscar a remissão de pecados com a frase talvez. Este
condicional não se refere à capacidade de Deus de perdoar pecados, mas
à vontade de Simão de arrepender-se seriamente. Simão deve purificar
seu coração da intenção de comprar o dom do Espírito e deve mudar o
curso de sua vida para estar em verdadeira harmonia com Deus.
c. A restrição. “Pois vejo que estás em fel de amargura e laço de
iniqüidade”. Novamente aqui, Pedro alude a passagens do Antigo
Testamento. Moisés observa aos israelitas que não adorassem outros
deuses para evitar ter a raiz de amargura entre eles (Dt 29:18; e veja-se
Hb 12:15). Moisés diz isto no contexto da disposição de Deus de não
perdoar pecados se ainda existe o veneno amargo no meio deles. De
igual maneira, Pedro observa a Simão de não ter “o fel de amargura”. A
metáfora refere-se ao espírito amargo numa pessoa e à amargura que
comunica às pessoas que se reúnem com ele. Além disso, Simão é um
escravo do pecado através das cadeias de iniquidade que o oprimem (cf.
Is 58:6).
Deus não quer que nenhuma pessoa cheia de amargura e
acorrentada à iniquidade tenha parte com seu povo, porque a amargura
pertence a Satanás. O fel é na verdade o fruto da amargura, e portanto o
oposto exato do fruto do Espírito: amor, alegria, paz e assim por diante
(Gl 5:22–23). Deus quer que Seu povo seja feliz e livre.

Considerações doutrinais em At 8:18–23


Foi alguma vez Simão, o mago um verdadeiro crente? Lucas diz
que Simão creu e foi batizado (v. 13). Aqui usa o mesmo verbo que usa
para referir-se aos samaritanos que aceitaram as boas novas de salvação
e a mensagem do reino de Deus (v. 12). Mas se Simão tivesse
experimentado uma conversão genuína, as evidências em sua vida teriam
dado evidência de sua verdadeira fé. Zacharias Ursinus, teólogo do
século XVI perguntou: “O que é verdadeira fé?” e respondeu assim:
Atos (Simon J. Kistemaker) 429
Não é só um seguro conhecimento pelo qual tenho por certo tudo o
que o Senhor nos revelou em Sua palavra, mas também uma verdadeira
confiança que o Espírito Santo infunde em meu coração pelo Evangelho,
dando-me a segurança de que não só a outros, mas também a mim
mesmo, Deus outorga a remissão de pecados, a justiça e a vida eterna, e
isso por pura graça e somente pelos méritos de Jesus Cristo. 513
Simão nunca experimentou uma conversão genuína e nunca teve fé
verdadeira. Sua fé nunca esteve arraigada na regeneração e, portanto, foi
só temporal (veja-se Mt 13:21). Por esta razão, Pedro insistiu para que se
arrependesse, porque fé e arrependimento são os dois lados de uma
mesma moeda. Onde há uma fé genuína, há um arrependimento genuíno.
Pedro admoestou Simão a arrepender-se porque carecia de uma fé
autêntica.

Palavras, frases e construções gregas em At 8:18–23


Versículo 18
διά — com o genitivo esta preposição significa “por meio de”. 514
ἐπιθέσεως — este substantivo no genitivo (do verbo ἐπιτίθημι [eu
imponho]) tem uma -σις terminação no caso nominativo que denota
atividade contínua.

Versículo 20
εἴη — o presente optativo aparece numa construção que implica
uma maldição (veja-se Mc 11:14).
τὴν δωρεάν — “o dom de Deus” é a presença do Espírito Santo
operativa no coração e na vida dos membros do povo de Deus. Veja-se
também Mateus 10:8.

513
Catecismo de Heidelberg, pergunta e resposta 21.
514
Moule, Idiom-Book, p. 57.
Atos (Simon J. Kistemaker) 430
Versículo 21
σοι — aqui temos um exemplo de dativo de possessão.
ἔναντι — a dupla preposição ἐν (em) com ἀντί (oposto) significa
“nessa parte do espaço que está oposta”. 515

Versículo 22
κακίας — note-se a diferença entre o substantivo “perversidade” e
πονηρία, que tem a mesma tradução. “κακία denota , antes, disposição
viciosa, πονηρία o exercício ativo do mesmo”. 516
εἰ ἄρα — esta combinación expresa un elemento de duda en una
cláusula condicional.

Versículo 23
εἰς — nesta construção, a preposição é similar a ἐν (em). É possível
explicar a preposição como “destinado para”.
ὁρῶ — o presente ativo de ὁράω (eu vejo) com ὅτι dá a entender
“apreensão intelectual, uma opinião ou juízo”. 517

e. Conclusão (At 8:24–25)

Mesmo quando Lucas descreve brevemente a reação de Simão à


maldição e conselho de Pedro é suficientemente claro. O manuscrito
grego Códice Beza difere do texto que estamos usando. Fez alguns
agregados à passagem (tal como o indicam as palavras em itálico):
E Simão respondeu e disse a eles,

515
Thayer, p. 213.
516
Ibid., p. 320.
517
Robertson, Grammar, p. 1041.
Atos (Simon J. Kistemaker) 431
‘Suplico-lhes, roguem por mim a Deus, que nenhum destes males
que vocês têm dito me possam me sobrevir’ — e não deixou de chorar
copiosamente. 518
24, 25. Respondendo, porém, Simão lhes pediu: Rogai vós por mim
ao Senhor, para que nada do que dissestes sobrevenha a mim. Eles,
porém, havendo testificado e falado a palavra do Senhor, voltaram para
Jerusalém e evangelizavam muitas aldeias dos samaritanos.
a. “Rogai vós por mim”. Não nos é possível determinar se o
arrependimento de Simão é genuíno. Com este versículo (v. 24), Lucas
interrompe seu relato sobre Simão. No entanto, o pedido de Simão é
chamativo por sua semelhança com o de Faraó. Muitas vezes o faraó
pediu a Moisés e Arão que orassem a Deus por ele, mas nunca se
arrependeu (Êx 8:8, 28; 9:28; 10:17).
Alguns comentaristas pensam que a evidência que Lucas provê é
suficiente para assumir que Simão foi salvo. Por exemplo, João Calvino
diz que Simão submete-se à repreensão de Pedro, reconhece seu pecado,
sente temor diante do juízo de Deus, busca a misericórdia de Deus e
pede aos apóstolos que orem por ele. Desta maneira Calvino conjetura
que Simão se arrependeu. 519 No entanto, devemos ser cuidadosos para
não ler no texto o que Lucas a propósito omite.
Outros escritores se perguntam se ao pedir aos apóstolos que
orassem por ele Simão não estava sendo movido pelo medo. Quer dizer,
que o que Simão queria era escapar do castigo mais que arrepender-se
diante do Senhor. 520 Algum grau de respaldo a esta teoria é dada pela
história da igreja.
O que a Escritura nos revela é só que Simão pediu a oração da
igreja. Na verdade ninguém nos pede que emitamos um juízo sobre o
destino eterno de Simão e, portanto, fazemos bem em deixar este assunto
para o dia do final juízo de Deus.

518
Metzger, Textual Commentary, pp. 358–59.
519
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 241.
520
Consulte-se Williams. Acts, p. 143.
Atos (Simon J. Kistemaker) 432
b. “Eles, porém, havendo testificado e falado a palavra do Senhor”.
Os apóstolos põem fim à sua visita a Samaria. Tinham alcançado seu
objetivo: o reconhecimento total dos crentes samaritanos como membros
da igreja de Cristo. Os apóstolos e inclusive Filipe têm agora a liberdade
de deixar Samaria e encomendar aos dirigentes das igrejas de Jerusalém
e da Judeia a tarefa de os apoiar e lhes seguir ensinando. Até a sua volta
a Jerusalém, os apóstolos anunciam as Boas Novas em quanta aldeia
samaritana encontram em sua passagem. No final, os apóstolos retornam
a Jerusalém para dar o relatório do trabalho feito.
Não sabemos se Filipe acompanhou a Pedro e a João até Jerusalém.
O texto não diz nada, além de indicar que Filipe deixou Samaria. No
próximo segmento do relato de Lucas, Filipe recebe a ordem de viajar a
Gaza, ao sul de Jerusalém (v. 26). Em resumo, Lucas apresenta a Filipe
como a figura proeminente no relato da igreja samaritana e do oficial
etíope.

Palavras, frases e construções gregas em At 8:24–25


Versículo 24
ὑμεῖς — note-se o uso do pronome pessoal no plural. Simão
apresenta sua solicitude aos apóstolos, a Filipe, e aos crentes
samaritanos.
ὑπέρ — seguida do caso genitivo, esta preposição significa “para o
benefício de um” ou “por causa de”.

Versículo 25
μὲν οὗν — esta combinação aparece frequentemente em Atos e é
uma frase de Lucas que indica transição: “e assim” ou “agora”. 521

521
Moule, Idiom-Book, p. 162.
Atos (Simon J. Kistemaker) 433
ὑπέστρεφον — o tempo imperfeito neste verbo e no verbo
εὑηγγελίζοντο é inceptivo: “eles começaram a retornar e a pregar as boas
novas”.

2. Ao etíope (At 8:26–40)

Agora Lucas passa a relatar a segunda fase do ministério de Filipe.


A primeira missão de Filipe foi pregar aos samaritanos e a segunda é
explicar as Escrituras a um gentio convertido ao judaísmo. Guiado pelo
Espírito Santo, Filipe proclama as Boas Novas em círculos sempre mais
amplos, tendo a Jerusalém como eixo. Como um judeu da dispersão de
fala grega, tem um papel distintivo diferente no ministério crescente da
igreja cristã. E como um judeu da dispersão, constitui-se numa ponte que
une aos judeus e aos não judeus. Vai de Samaria, talvez via Jerusalém,
até a parte sul da Judeia até chegar a Gaza.

a. Viajando (At 8:26–29)

26. Um anjo do Senhor disse a Filipe: “Vá para o sul, para a estrada
deserta que desce de Jerusalém a Gaza” [NVI].
a. “Um anjo do Senhor”. Lucas é bastante parco em seu relato a
respeito das viagens de Filipe. Não diz absolutamente nada sobre onde
estava Filipe quando um anjo lhe falou. Pôde ter sido quando
acompanhava os apóstolos a Jerusalém, ou numa das aldeias
samaritanas. Mas o lugar onde estava Filipe não é importante no relato.
O que importa é o conteúdo da seguinte tarefa que lhe é dada através de
um anjo do Senhor.
Quem é este anjo do Senhor? Em Atos Lucas menciona quatro
aparições do anjo:
a Moisés na sarça ardendo (discurso de Estêvão, At 7:30–38),
a Filipe (At 8:26),
a Pedro para libertá-lo do cárcere (At 12:7–10),
Atos (Simon J. Kistemaker) 434
a Herodes para feri-lo de morte (At 12:23).
No caso de Filipe, Lucas revela que este anjo, é na verdade, o
Espírito do Senhor (vv. 29, 39). Filipe está ao serviço do Senhor, cujo
Espírito se comunica com ele através de um anjo. Não se sabe se o anjo
lhe apareceu ou lhe falou numa visão. A mensagem, contudo, é clara.
b. “Levanta-te e vai para a banda do Sul, ao caminho que desce de
Jerusalém para Gaza”. O verbo “levantar aparece frequentemente no
Novo Testamento, pelo que seu significado é determinado pelo contexto
imediato. Aqui quer dizer, “prepara-te”. 522
Em outras palavras, o anjo lhe dá instruções para que faça arranjos
para uma viagem. Diz-lhe em que direção deve viajar, ou seja, pelo
caminho que corre em direção sul, passando as colinas da Judeia e logo
dobrar para o oeste à cidade costeira da Gaza.
Um viajante podia tomar um de dois caminhos para ir de Jerusalém
a Gaza. O primeiro corria reto em direção oeste, para as planícies
costeiras via a aldeia de Lida, para unir-se com a rota das caravanas que
fazem a viagem entre o Egito e Damasco; a outra corre para o sul de
Jerusalém a Hebrom para logo tomar a oeste até chegar a Gaza. As
instruções dadas a Filipe eram que tomasse a segunda rota. De fato,
Lucas acrescenta uma nota explicativa que diz: “Vá para a estrada
deserta”. Era um caminho pouco transitado por aqueles dias, por essa
razão a ordem do anjo pôde ter soado estranha a Filipe. 523
Uma tradução alternativa para a expressão sul em “vai para o sul”
faz a ordem do anjo duplamente curiosa. No grego, esta expressão
também pode significar “ao meio-dia” (veja-se At 22:6). Se fosse
adotada esta tradução, então o anjo teria dado a Filipe a ordem peculiar
de viajar às 12 horas do meio-dia, — isto é, quando o sol esquenta mais
— e tomar o caminho do deserto que era muito pouco usado. O estranho
desta ordem encaixa bem com a tarefa que esperava a Filipe.

522
Bauer, p. 70.
523
W. C. van Unnik, “Der Befehl an Philippus”, ZNW 47 (1956); 181–91.
Atos (Simon J. Kistemaker) 435
Os tradutores, no entanto, devem determinar se a palavra deserto
refere-se ao caminho ou à cidade de Gaza. Estritamente falando, o
deserto propriamente começa ao sul da Gaza e se estende até o Egito. O
termo deserto poderia ter sido uma referência às ruínas da antiga Gaza
que ficavam diante da nova Gaza. No princípio do século I a.C., os
judeus destruíram completamente esta cidade. No ano 57 a.C., por ordem
de Pompeu, o general romano, Gaza foi reconstruída numa nova
localização pela costa. 524 As ruínas da antiga cidade eram conhecidas
como “o deserto da Gaza”. O contexto, entretanto, pareceria favorecer a
tradução o caminho pelo deserto. A ênfase no relato cai não nas cidades
(Jerusalém e Gaza), mas em um oficial etíope quem pela leitura das
Escrituras chega a ser cristão. E Filipe se une a ele precisamente ali, num
caminho pouco transitado.
27. Eis que um etíope, eunuco, alto oficial de Candace, rainha dos
etíopes, o qual era superintendente de todo o seu tesouro, que viera
adorar em Jerusalém.
Filipe escuta obedientemente as instruções que recebe, prepara-se
para uma longa viagem, e sai tomando o caminho do deserto rumo à
Gaza. Devido ao pouco usual da direção que deve tomar, Filipe dá-se
conta que algo extraordinário está por acontecer. Vê uma carruagem
ocupada por um homem de cor viajando de Jerusalém a Gaza. O viajante
é da Etiópia, uma nação africana ao sul do Egito. A Etiópia estendia-se
da moderna represa de Assuã no Nilo para o sul, ao Sudão, até Cartum.
No Antigo Testamento Etiópia é conhecida como Cuxe. Suas cidades
mais importantes eram Meroe, Napata, e Kerma e estavam localizadas ao
longo do Nilo. Seus habitantes eram da raça núbia.
Parece que Filipe não teve problemas para identificar o etíope por
sua raça, por sua linguagem e pela forma de vestir. Além disso, é
possível que a carruagem tenha tido alguma indicação de que pertencia à
casa real etíope. Lucas dá o detalhe de que o ocupante do carro é um
524
Josefo Antiguidades 13.3 [358–64]; 14.4.4 [76]. E veja-se Anson F. Rainey, “Gaza”, ISBE, vol. 2,
p. 417.
Atos (Simon J. Kistemaker) 436
eunuco, que em geral eram os encarregados de cuidar os haréns. Uma
pessoa assim devia ser castrada. No entanto, o termo também é dado aos
oficiais do governo daqueles dias, pelo que talvez não deve tomar-se
literalmente visto que nem sempre significava que estes homens foram
privados de suas funções masculinas. 525
Se tomarmos a palavra eunuco literalmente, então estaríamos vendo
o cristianismo derrubar as barreiras levantadas pelo judaísmo. Um
estrangeiro podia converter-se ao judaísmo, mas este etíope, por ser
eunuco, não podia participar plenamente na adoração do templo (veja-se
Dt 23:1). Embora ele tenha viajado a Jerusalém para adorar, seguia
sendo considerado um semiprosélito. No entanto, o Antigo Testamento
predisse os dias quando estrangeiros e eunucos não seriam mais
excluídos do companheirismo do povo de Deus (Is 56:3–7; compare
também 1Rs 8:41–43). Observemos um dado curioso: Filipe primeiro
trouxe para a igreja os samaritanos, que se encontravam numa posição
intermediária entre os judeus e os gentios. Agora traz um etíope, meio
convertido ao judaísmo, à assembleia do Senhor.
O etíope é um oficial da corte de Candace, rainha da Etiópia. (Diga-
se de passagem, Candace não é o nome de uma pessoa, e sim o título da
rainha mãe, que governava em lugar de seu filho). 526 O oficial servia na
corte como tesoureiro chefe. Tinha ali a posição proeminente de Ministro
de Fazenda, ou Ministro de Finanças, responsável pelo tesouro real e a
renda nacional.
Este tinha viajado a Jerusalém para adorar. Não só adorava a Deus
na sinagoga judaica do lugar onde vivia; antes, havia tomado a religião
tão seriamente que fez uma peregrinação até Jerusalém (cf. Jo 12:20).
Registros históricos mostram que numerosos judeus tinham fixado suas
residências no Egito e na Etiópia. Estes judeus adoravam ao Deus de
Israel e convidavam os gentios a seus serviços religiosos, com o

525
Johannes Schneider, TDNT, vol. 2, p. 766; Hans Baltensweiler, NIDNTT, vol. 1, p. 560.
526
Por isso algumas versões dizem: “um alto oficial de Candace, ou rainha, da Etiópia”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 437
resultado de que muitos destes chegaram a temer a Deus (veja-se
também At 10:2).
28, 29. Estava de volta e, assentado no seu carro, vinha lendo o
profeta Isaías. Então, disse o Espírito a Filipe: Aproxima-te desse carro e
acompanha-o.
Em Jerusalém, é possível que aquele oficial tenha comprado um
exemplar da tradução ao grego da profecia de Isaías e, em caminho para
casa, tenha ocupado o tempo lendo-a. Antigamente, lia-se em voz alta e
sentia-se estranho quando um leitor não o fazia assim. Indubitavelmente,
os rabinos eram da opinião que ler um manuscrito em voz alta ajudava à
memorização e pelo outro lado, uma leitura silenciosa ajudava a
esquecê-la. 527 O etíope sabe que a Palavra de Deus o levará à salvação,
por isso lê com avidez o texto do livro de Isaías. Embora não pode
entender tudo o que ali se diz, tem confiança de que os judeus lá em sua
pátria poderão explicá-lo. Agora, o Espírito Santo instrui a Filipe a
aproximar-se da carruagem real. Assim o faz e escuta as palavras de
Isaías que lhe são tão conhecidas, saindo dos lábios daquele etíope.
Imediatamente entende que se procura um homem temente a Deus que
busca o caminho da salvação.

Palavras, frases e construções gregas em At 8:26–28


Versículo 26
μεσημβρίαν — esta é uma combinação de μέσος (meio) e ἡμέρα
(dia). Pode significar tanto tempo (meio-dia) como lugar (sul).
αὕτη — o pronome demonstrativo feminino se relaciona com o
antecedente mais próximo Γάζαν (Gaza) ou com τὴν ὅδον (o caminho).
O último é o mais provável.

527
SB, vol. 2. p. 687. Agostinho menciona que Ambrósio, por ler em silêncio, não explicava o texto.
Confissões 6.3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 438
Versículo 27
ἰθίοψ — a etimologia desta palavra é interessante: αἴθω (eu
queimo) e ὤψ (rosto). 528
προσκυνήσων — o particípio ativo futuro denota propósito. O
etíope tinha vindo (ἐληλύθει, mais-que-perfeito de ἔρχομαι) a Jerusalém
para adorar.

Versículo 28
ἦν ὑποστρέφων — a construção perifrástica do tempo imperfeito do
verbo ser ou estar com o gerúndio dos verbos voltar e sentar é
descritiva. Note-se também o tempo imperfeito do verbo ἀνεγίνωσκεν
(ele continuava lendo).

b. Lendo (At 8:30–33)

Em sua providência, Deus guia Filipe até o dignitário etíope justo


no momento em que este lê em voz alta a profecia messiânica do livro de
Isaías. O eunuco que lê não pode entender a mensagem de Isaías e
necessita que alguém a explique. Além disso, está lendo do grego, que é
a língua nativa de Filipe. Este é o ponto de contato que Filipe necessita
para superar sua inicial reticência para aproximar-se à carruagem real.
30, 31. Correndo Filipe, ouviu-o ler o profeta Isaías e perguntou:
Compreendes o que vens lendo? Ele respondeu: Como poderei entender,
se alguém não me explicar? E convidou Filipe a subir e a sentar-se junto a
ele.
Parece que o oficial etíope tinha escolhido a propósito o caminho
menos transitado entre Jerusalém e Gaza para dispor de mais tempo para
ler as Escrituras. Sem dúvida, a carruagem era conduzida por um servo
que mantinha os cavalos a uma velocidade bem lenta. Isso permitiu que

528
Thayer, p. 14.
Atos (Simon J. Kistemaker) 439
Filipe pudesse caminhar ao lado da carruagem e ouvir o que o oficial lia.
Filipe sabia a profecia messiânica de Isaías de cor e imediatamente
reconheceu as palavras que se liam.
Que oportunidade maravilhosa para ensinar o evangelho de Cristo!
Temos aqui um homem que lê com fome a Palavra de Deus, mas que não
pode entender o significado do que lê. Então Filipe, guiado e
impulsionado pelo Espírito Santo, ouve as palavras que este homem vai
pronunciando. Sabe que Deus o pôs aqui neste momento preciso para
guiar o eunuco etíope a Cristo. Faz-lhe a pergunta óbvia: “Compreendes
o que vens lendo?” No grego, a pergunta é um jogo de palavras a qual
aparentemente é inclusive uma transliteração: ginoskeis ha anaginoskeis.
A expressão idiomática revela que a conversação se desenvolve em
grego, uma língua que ambos têm em comum, com o que fica superada
uma possível barreira de tipo linguístico.
Filipe opta por interromper a leitura do etíope, na confiança que o
viajante não se vai ofender. Mas, pelo contrário, com sua pergunta,
sugere estar em boa disposição para ajudá-lo a entender as Escrituras. O
oficial responde com afabilidade ao que Filipe lhe pergunta. Sua resposta
é interessante, pois responde com uma contrapergunta: “Como poderei
entender, se alguém não me explicar?” Abertamente admite sua
ignorância e sua incapacidade para captar o sentido do texto que lê. As
diferenças em posição, raça, e nacionalidade desaparecem quando o
etíope reconhece sua necessidade de um intérprete. Nem o orgulho nem
a vergonha se interpõem na amizade que se está desenvolvendo entre
estes dois homens.
O eunuco volta-se para Filipe, que como um judeu que conhece as
profecias e como cristão sabe como explicar seu cumprimento. Jesus
Cristo é o centro destas profecias, porque ele é aquele a respeito de quem
o profeta Isaías escreve. O evangelho de Cristo começa com estas
profecias messiânicas e demonstra que Jesus as cumpriu. Mais ainda,
Cristo envia os Seus servos para interpretar a mensagem de salvação às
pessoas que estão preparadas para receber as Boas Novas.
Atos (Simon J. Kistemaker) 440
A forma em que está escrita a pergunta do etíope expressa
perplexidade (“Como poderei?”) e a necessidade de que alguém o guie
(“se alguém não me guie”). Esta é “uma metáfora muito óbvia para um
mestre, quando se pensa que a vida é um caminhar, e a igreja chama-se
‘o caminho’ ”. 529
Filipe está preparado para abrir as Escrituras e guiar o etíope a
Cristo. Note-se o marcado paralelo com o relato dos dois homens que
iam no caminho para Emaús quando Jesus se uniu a eles. Jesus lhes
explicou o que a Escritura dizia a Seu respeito (Lc 24:27). Além disso,
no cenáculo Jesus prometeu aos onze discípulos a vinda do Espírito
Santo, que guiaria a toda verdade (Jo 16:13). Mas voltemos ao eunuco
etíope.
A visita a Jerusalém não foi uma experiência muito afortunada para
o oficial etíope. Não pôde encontrar resposta a suas perguntas espirituais,
e embora pôde ter ouvido mencionar o nome de Jesus, não chegou a
compreender a verdade. Por isso agora, quando Filipe se oferece para
interpretar as Escrituras, o buscador está preparado. Convida-o a subir à
carruagem, a sentar-se junto ao oficial e a explicar-lhe o texto da
Escritura.
32, 33. Ora, a passagem da Escritura que estava lendo era esta: Foi
levado como ovelha ao matadouro; e, como um cordeiro mudo perante o
seu tosquiador, assim ele não abriu a boca. Na sua humilhação, lhe
negaram justiça; quem lhe poderá descrever a geração? Porque da terra
a sua vida é tirada
a. “Ora, a passagem da Escritura que estava lendo era esta”. O livro
da profecia de Isaías que tinha o etíope não consistia de páginas, mas
tinha a forma de um rolo. Este rolo era feito de folhas de papiro pegadas
juntas uma por uma. Cada extremo desta longa folha de papel estava
pegado a um pau; à medida que o leitor enrolava e desenrolava ambos os
extremos, podia encontrar a passagem que buscava ler. É provável que

529
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; ed. reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 122.
Atos (Simon J. Kistemaker) 441
este rolo em particular tinha contido o texto completo de Isaías e havia
mostrado só uma coluna do texto ao mesmo tempo. 530
A coluna que o oficial lia era Isaías 53:7–8. A redação que registra
Lucas é idêntica à da Septuaginta. No entanto, a redação do Antigo
Testamento está baseada no texto hebraico e difere ligeiramente daquela.
b. “Foi levado como ovelha ao matadouro”. Esta é uma passagem
messiânica que claramente fala da vida e morte de Cristo. Mas devido ao
fato de que Isaías não menciona o nome da pessoa, mas fala só de “ele”,
o etíope não consegue decifrar o sentido do texto. Para Filipe, esta
passagem da profecia de Isaías fala coisas grandes. Ele vê Jesus detido
no jardim do Getsêmani e levado à casa do sumo sacerdote para ser
submetido a juízo. Enquanto as testemunhas O acusam de querer destruir
o templo e reconstruí-lo em três dias, Jesus permanece em silêncio (Mt
26:60–63).
c. “E, como um cordeiro mudo perante o seu tosquiador”. Filipe
conhece estas palavras que João Batista disse a seus discípulos quando
Jesus Se aproximou dele: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo” (Jo 1:29, 36). Pedro também descreve Jesus como um cordeiro
sem mancha nem defeito (1Pe 1:19). Quando na tradução do grego no
Antigo Testamento aparece a palavra cordeiro, quer dizer cordeiro
sacrifical. Na Escritura, com frequência os termos cordeiro e ovelha são
usados indistintamente. Isto é claro em Isaías 53:7, onde o profeta fala de
um cordeiro que é sacrificado, e de uma ovelha que se mantém quieta
quando o tosquiador lhe tira sua lã. (Uma ovelha adulta tem sua lã
tosquiada quando o verão se aproxima, mas os cordeiros nascidos na
primavera não têm uma lã muito grossa). Além disso, quando as

530
Consulte-se Bruce M. Metzger, The Text of the New Testament: Its Transmission, Corruption, and
Restoration, 2ª. ed. (Nova York: Oxford University Press, 1968), p. 6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 442
expressões cordeiro e ovelha aparecem em Isaías 53:7, referem-se a um
ser humano que cumpre a função de um animal que é sacrificado. 531
d. “Na sua humilhação, lhe negaram justiça”. Esta é a redação da
Septuaginta de Isaías 53:8, porém no Antigo Testamento a redação é
diferente: “Por juízo opressor foi arrebatado”. Profeticamente, esta forma
aponta ao injusto juízo e à subsequente morte de Jesus. Carecemos de
toda explicação a respeito de por que a tradução grega difere do texto
hebraico; no entanto, neste versículo, a Septuaginta harmoniza com a
passagem precedente, onde a leitura fala de um cordeiro silencioso. É um
quadro de humildade, e os tradutores usam esta palavra precisa no texto.
e. “Quem lhe poderá descrever a geração? Porque da terra a sua
vida é tirada” O profeta está falando de uma pessoa que tem
descendentes. Mas a vida desta pessoa chegou a um prematuro fim (cf.
Dn 9:26). Quem são estes descendentes? A Escritura não provê meios
para elucidar este texto e Lucas não registra a exposição de Filipe.
Talvez neste texto podemos ver o cumprimento das palavras de Jesus: “E
eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo” (Jo
12:32). Se entendermos o texto como fazendo referência aos
descendentes espirituais de Jesus, então encaixa com o tremendo
crescimento da igreja nos primeiros anos depois do derramamento do
Espírito Santo. A referência aos descendentes de Jesus então quer dizer,
“O número de Seus discípulos crescerá incalculavelmente, porque ele
chegou a ser o Exaltado”. 532

531
Johannes Gess, NIDNTT, vol. 2, p. 410; Richard N. Longenecker, The Christology of Early Jewish
Christianity, Studies in Biblical Theology, 2ª. série 17 (Londres: SCM, 1970), p. 50. Compare
Joachim Jeremias, TDNT, vol. 1, p. 339.
532
Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Berbard Noble e Gerald Shinn
(Filadélfia: Westminster, 1971), p. 312. Veja-se também P. B. Decock, “The Understanding of Isaiah
53:7–8 in Acts 8:32–33”, Neotest 14 (1981); 123.
Atos (Simon J. Kistemaker) 443
Considerações doutrinais em At 8:30–33
Filipe faz uma pergunta penetrante ao eunuco etíope:
“Compreendes o que vens lendo?” Esta pergunta é básica para confirmar
a fé cristã, porque o cristão conhece Cristo só através das Escrituras. Pela
leitura da Palavra de Deus, aumenta seu conhecimento de Jesus, seu
Salvador. Assim, Filipe começa com as Escrituras, explica seu
cumprimento em Cristo, e guia o oficial etíope ao arrependimento, à fé e
à alegria.
A tarefa do pregador é mostrar Cristo ao seu auditório. Por esta
razão, precisamente, algumas igrejas acostumam pôr uma plaquinha no
púlpito, justo debaixo da Bíblia aberta e visível só ao pregador. A
plaquinha tem gravadas estas palavras: “Senhor, queremos ver Jesus” (Jo
12:21). O membro médio de uma congregação ouve o pregador só no
domingo, durante o culto de adoração. Ele deve ouvir não pontos de
vista sobre um determinado assunto que pode ter ou não relação com sua
vida; ele veio ver Jesus. E se encontra com Jesus através da exposição
fiel das Escrituras. O pregador deve ser um “obreiro que não tem do que
se envergonhar e que maneja corretamente a palavra da verdade” (2Tm
2:15, NVI) e abra a Palavra diante de seus ouvintes. Vale a pena repetir o
velho refrão que diz:
Expõe as Escrituras
Exorta o pecador
Exalta o Salvador.

Palavras, frases e construções gregas em At 8:30–33


Versículo 30
ἆρά γε — a combinação de duas partículas expondo uma pergunta
direta expressa um sentido de dúvida. 533

533
Moule, Idiom-Book, p. 158.
Atos (Simon J. Kistemaker) 444
ἀναγινώσκωις — a forma composta deste verbo no presente
indicativo é intensiva ou perfectiva: “sabes exatamente?”; quer dizer,
“lês?”

Versículo 31
δυναίμην — precedido pela partícula ἄν, este verbo está no presente
optativo. O optativo expressa “o que ocorreria no cumprimento de
alguma condição suposta”. 534 A frase é uma condição que tem a prótase
com um futuro indicativo ὁδηγήσει (ele explicará) e uma apódose com o
optativo.

Versículo 33
ταπεινώσει αὑτοῦ — o substantivo humilhação não denota tanto um
estado como um processo. O pronome seu está ausente no texto da
Septuaginta. Não obstante, sua presença neste versículo pode ser
original. 535

c. Explicando (At 8:34–35)

Lucas menciona a passagem que o eunuco etíope lia enquanto


viajava de Jerusalém a Gaza, porém não registra a explicação que Filipe
dá ao ocupante da carruagem real. Filipe interpreta a profecia messiânica
de Isaías 53 do ponto de vista que Cristo cumpriu as Escrituras. Quer
dizer, todas as profecias messiânicas devem ser entendidas como
cumpridas por Jesus Cristo. A passagem na qual o profeta Isaías prediz
os sofrimentos e a morte do Messias é especialmente significativo. John
Albert Bengel diz: “Por meio desse capítulo [cinquenta e três] de Isaías,
converteram-se não só judeus, mas também ateus. A história registra os
534
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
205.
535
Metzger, Textual Commentary, p. 359.
Atos (Simon J. Kistemaker) 445
536
nomes de alguns deles. Deus os conhece todos”. Esta passagem, então,
fixa o tom para a evangelização e o esforço missionário.
34, 35. O eunuco perguntou a Filipe: “Diga-me, por favor: de quem o
profeta está falando? De si próprio ou de outro?” Então Filipe,
começando com aquela passagem da Escritura, anunciou-lhe as boas
novas de Jesus [NVI].
O etíope não só é receptivo às Boas Novas, mas também não está
longe do reino. Pede a Filipe que lhe interprete a passagem que veio
lendo porque é incapaz de ver o conteúdo espiritual do mesmo.
“Diga-me, por favor: de quem o profeta está falando?”, pergunta. A
resposta de Filipe poderia ser resumida numa palavra: Jesus. Quando
Isaías escreveu sua profecia messiânica, não estava escrevendo de si
mesmo. No contexto mais amplo desta profecia (capítulos 42–53), Isaías
fala do rei messiânico, a quem Deus chama “meu servo”. Este servo, diz
Isaías em cinco seções de três versículos cada uma (Is 52:13–53:12),
sofre no lugar de outros,
é desprezado e rejeitado pelos homens,
morre pelos pecados do mundo,
é sepultado com os malfeitores,
e declara justos a muitos.
De um ponto de vista cristão, o texto de Isaías 53 inequivocamente
refere-se ao Messias e não ao profeta. Até onde podemos determinar, no
entanto, os judeus do século I careceram de uma doutrina de um Messias
sofredor. Esta doutrina se originou com Jesus, quem “viu-se a si mesmo
cumprindo o papel de servo”. 537
Sabemos que passagem do livro de Isaías lia o eunuco etíope,
porém não sabemos que explicação Filipe deu a respeito do texto nem
tampouco o conteúdo do sermão a respeito de Jesus que lhe expôs.

536
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. por Andrew R. Fausset, 5 vols.
Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 590.
537
I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: Introduction and Commentary, serie Tyndale New
Testament Commentaries (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 164.
Atos (Simon J. Kistemaker) 446
Devemos assumir, portanto, que pelo fato de que o oficial etíope tinha o
livro de Isaías em suas mãos, Filipe lhe explicou o contexto amplo dos
versículos que não eram claros ao eunuco. Lucas diz que Filipe começou
com a passagem que o oficial tinha estado lendo e logo seguiu pregando
as boas novas a respeito de Jesus. Por conseguinte, Filipe ensinou que
Jesus cumpriu as profecias messiânicas, especialmente aquela do livro de
Isaías (cf. Is 18:28). Concluímos que o sermão de Filipe esteve composto
de seleções do Antigo Testamento explicadas à luz dos ensinos,
sofrimentos, morte e ressurreição de Jesus.
Sem dúvida também, Filipe explicou ao eunuco que o batismo
significa o lavamento dos pecados, e que o batismo é um sinal e selo do
ato de ser recebido ao povo de Deus. Implicitamente sabemos que o
eunuco pôs sua fé em Jesus, confessou seus pecados, e expressou seu
desejo de ser batizado.

d. Batizando (At 8:36–40)

36-38. Seguindo eles caminho fora, chegando a certo lugar onde


havia água, disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que seja eu
batizado? Filipe respondeu: É lícito, se crês de todo o coração. E,
respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus. Então,
mandou parar o carro, ambos desceram à água, e Filipe batizou o eunuco.
Lucas descreve o caminho entre Jerusalém e Gaza como o caminho
do deserto (v. 26). Não indica quanto tempo pregava Filipe as Boas
Novas ao eunuco, mas supomos que não foi um lapso muito longo.
Numa região desértica, “o problema não é onde encontrar suficiente água
para praticar um batismo por imersão, mas é, simplesmente, onde
encontrar água”. 538 No entanto, perto da Gaza, um regato chamado Wadi
el-Hashi corre ao norte da cidade para o Mediterrâneo. Outra
possibilidade é que alguns estanques nessa área tenham provido um

538
R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p. 345.
Atos (Simon J. Kistemaker) 447
lugar adequado para o batismo. Não tem muito sentido na verdade
procurar encontrar o lugar exato deste batismo. O importante é o que se
nos é contado na passagem bíblica.
a. Versículo 36. “Disse o eunuco: Eis aqui água; que impede que
seja eu batizado?” (veja-se At 10:47; 11:16). Embora o texto só dá as
palavras ditas pelo eunuco, podemos imaginar a emoção, a alegria e a
felicidade em sua voz. Ele é o único que faz menção da água e expõe a
pergunta retórica sobre se haveria alguma dificuldade para ser batizado.
A resposta óbvia a esta pergunta é: nenhuma.
Através do batismo, Filipe aceita este homem na membresia da
igreja. Note-se o paralelismo com o caso de Pedro aceitando a Cornélio e
sua casa. Deus comunica a Pedro uma visão de animais impuros e lhe diz
que vença sua reticência em comer o imundo (At 10:9–16). Logo, vai
onde está Cornélio, prega ali o evangelho, e batiza o centurião romano e
sua família (At 10:24–48). Mas observe-se a diferença entre Filipe e
Pedro. Embora Filipe seja judeu, suas raízes estão na dispersão, onde o
idioma e a cultura grega são coisa comum. Devido a seus antecedentes,
Filipe é um cosmopolita. Pedro, ao contrário, é um judeu palestino da
Galileia que fala aramaico. Filipe abandona o grupo de cristãos
helenistas em Jerusalém e traz o evangelho primeiro aos samaritanos, e
logo, diante da ordem de um anjo, a um eunuco etíope. Pedro ministra
exclusivamente aos cristãos judeus em Jerusalém e na Judeia, e só depois
que Deus o prepara vai ao gentio Cornélio para cumprir sua missão. Por
último, o oficial etíope é batizado, porém não recebe o Espírito Santo.
Cornélio e sua família, pelo contrário, escutam o sermão de Pedro e o
Espírito desce sobre eles. Depois disso, são batizados.
b. Versículo 37. Alguns manuscritos do Texto ocidental dos
manuscritos gregos dizem: “Filipe respondeu: É lícito, se crês de todo o
coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de
Deus”. Todas as testemunhas textuais mais importantes não têm este
versículo. Bruce M. Metzger diz: “Não há nenhuma razão para que os
escribas tenham omitido este material, se originalmente estava no
Atos (Simon J. Kistemaker) 448
539
texto”. Talvez na igreja primitiva considerou-se necessário que o
etíope primeiro professasse sua fé antes de ser batizado. Os escribas,
então, acrescentaram o comentário de Filipe e a confissão do eunuco à
margem do manuscrito de Atos. As palavras ditas pelo eunuco puderam
ter sido usadas como uma fórmula batismal para o final do século II; as
palavras eram conhecidas naqueles dias, o que é evidente nos escritos de
Irineu, o pai da igreja, quem cita parte desta fórmula. 540 O versículo 37
foi agregado ao texto grego via manuscritos medievais posteriores; e dali
foi traduzido para a nossa própria língua. No entanto, devido ao fato de
que se trata de uma inserção e revela um estilo que difere do de Lucas, é
geralmente omitido nos textos e as traduções.
c. Versículo 38. “Então, mandou a parar o carro”. O etíope dá agora
uma ordem. Diz ao condutor que detenha a carruagem. Logo descem à
água onde Filipe o batiza. Embora o texto mesmo seja sucinto, eu afirmo
com toda segurança que, em harmonia com a prática da igreja primitiva,
Filipe batizou o eunuco no nome de Jesus Cristo e não no nome do
Triúno Deus (veja-se At 2:38; 8:12; 10:48; 19:5).
39, 40. Quando saíram da água, o Espírito do Senhor arrebatou a
Filipe, não o vendo mais o eunuco; e este foi seguindo o seu caminho,
cheio de júbilo. Mas Filipe veio a achar-se em Azoto; e, passando além,
evangelizava todas as cidades até chegar a Cesareia.
Façamos as seguintes observações:
a. O texto. O relato tem um abrupto final quando Filipe é
fisicamente tirado da cena pelo Espírito Santo. Alguns antigos
manuscritos têm uma inserção de sete palavras gregas, que traduzidas
dizem: “O [Espírito] Santo veio sobre o eunuco, mas um anjo”. A versão
ampliada diz: “Quando saíram da água, o Espírito Santo veio sobre o
eunuco, e um anjo do Senhor levou Filipe”. É esta parte autêntica?
Dificilmente. Manuscritos gregos respaldam a forma mais breve desta
passagem, não a ampliada. Mesmo quando alguns estudiosos favorecem
539
Metzger, Textual Commentary, p. 359.
540
Irineu Contra heresias 3.12.8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 449
541
a versão ampliada, outros assinalam que um escriba provavelmente
alterou o texto com propósitos de harmonização. Um escriba fez
primeiro o texto estar de acordo com o relato concernente ao batismo do
Espírito Santo em Samaria e logo com aquele do anjo do Senhor
chamando Filipe (vv. 17, 26). Concluímos dizendo que até agora não
apareceu uma tradução com o texto ampliado. 542
b. O arrebatamento. Não sabemos como o Espírito do Senhor
arrebatou Filipe do lugar onde se efetuou o batismo. Tampouco temos
que entrar em fantasias e especulações: que se fez invisível Filipe ou que
voou pelos ares. Outras referências a arrebatamentos feitos pelo Espírito
do Senhor, como é o caso do profeta Elias quando foi levado a céu, não
oferecem maior luz sobre este versículo em particular. 543 A descrição de
Paulo de um homem que foi levado a terceiro céu (2Co 12:2, 4)
tampouco nos ajuda. Paulo não diz se esta experiência foi um êxtase
física ou mental.
A ênfase cai sobre a frase o Espírito do Senhor. Esta expressão nós
a encontramos também no relato sobre Ananias e Safira (At 5:9). E no
Evangelho de Lucas, encontramo-la no sermão que Jesus pregou sobre
Isaías 61:1: “O Espírito do Senhor está sobre mim”. Jesus diz que nEle é
o cumprimento desta Escritura. Portanto, chegamos à conclusão que o
Espírito de Jesus (cf. At 16:7) impele Filipe a ir a outro lugar, tirando-o
da cena do batismo.
c. Alegria. Lucas não reporta nenhuma surpresa por parte do eunuco
quando Filipe desaparece de repente. Ele segue seu caminho, mas agora
o faz cheio de alegria. Aquele que reata a travessia é uma nova criatura
em Cristo, com o Espírito Santo em seu coração. Assumimos que ele não
pôde guardar essa alegria só para si, mas teve que compartilhar com seus

541
Marshall, Acts, p. 165; Williams, Acts, p. 149; veja-se também Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4,
p. 98.
542
Talvez inadvertidamente, algumas versões omitem as palavras do Senhor, com o qual esta parte
fica assim: “o Espírito arrebatou a Filipe”.
543
1Rs. 18:12; 2Rs. 2:16; e veja-se Ez. 3:14; 8:3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 450
compatriotas sua experiência com Jesus e a mensagem de salvação. No
entanto, durante os três primeiros séculos não se sabe nada a respeito de
uma igreja na Etiópia. Só a partir do século IV a tradição registra dados
de conversões como resultado da palavra exposta pelo eunuco e se têm
dados a respeito de uma igreja cristã naquela nação.
d. A proclamação. “Mas Filipe veio a achar-se em Azoto”. A
seguinte obra para Filipe é pregar o evangelho de Cristo nas aldeias
costeiras, começando com Azoto até chegar à própria Cesareia. Azoto é
uma das cinco antigas cidades filisteias. Era conhecida como Asdode
(veja-se 1Sm 5:1), e estava localizada a uns trinta quilômetros a norte de
Gaza. Filipe levou o evangelho àquelas localidades costeiras, incluindo
Jope e Lida, onde Pedro mais tarde foi para visitar os santos (At 9:32–
38). Finalmente em Cesareia, Filipe estabeleceu seu lar. Anos mais tarde,
Paulo se hospedou em casa de Filipe, o evangelista. Lucas registra o
dado de que Filipe tinha quatro filhas solteiras as quais tinham o dom da
profecia (At 21:8–9). Não sabemos se Filipe já residia em Cesareia
quando Pedro pregou o evangelho na casa de Cornélio, o centurião
romano (At 10:24).

Considerações práticas em At 8:34–40


Alguma vez você se sentiu-se culpado por ter falhado em testificar
de Jesus Cristo? Vez após vez foi exortado para apresentar o Senhor aos
seus vizinhos, amigos e conhecidos, mas tem que admitir que os
resultados desse esforço foram parcos. Você procura testificar mesmo
quando não está seguro de ter escolhido o melhor momento para levar a
cabo sua intenção de evangelização.
Muitas vezes, os planos de evangelização nós mesmos os fazemos.
Em lugar de seguir ao Senhor, vamos correndo diante dEle. Em lugar de
esperar que nos cheguem suas instruções, nós formulamos nossa própria
estratégia. Em lugar de pedir a Deus que nos proveja as oportunidades
para testificar, não pedimos nada.
Atos (Simon J. Kistemaker) 451
A Escritura nos diz que somos colaboradores de Deus (1Co 3:9).
Isto significa que Deus governa, dirige, salva e aumenta Sua igreja. Nós
somos Seus servos e em plena obediência devemos obedecer Suas
instruções. Portanto, humildemente lhe pedimos que nos use em Sua
igreja e reino e nos dê a oportunidade de ser Suas testemunhas. Quando
Ele responde nossas orações, abre uma porta de oportunidade e coroa
nossos esforços com sua bênção.
“Espera pelo SENHOR, tem bom ânimo, e fortifique-se o teu
coração; espera, pois, pelo SENHOR.” [Sl. 27:14]

Palavras, frases e construções gregas em At 8:36 e 40


Versículo 36
ἐπί — esta preposição, precedendo as palavras ὕδωρ (certa água) no
caso acusativo “pareces não implicar estritamente ‘em’ mas antes, ‘até’
”. 544

Versículo 40
εὑρέθη — o passivo aoristo do verbo εὑρίσκω (eu encontro)
significa que Filipe apareceu nas ruas de Azoto.
Portanto, a preposição εἰς deve entender-se no sentido local: “em”.

Resumo de Atos 8
A igreja em Jerusalém sofre uma grande perseguição e, como
resultado disso, os crentes são espalhados por toda Judeia e Samaria.
Crentes piedosos sepultam Estêvão e choram por ele, mas Saulo segue
com suas tentativas de destruir a igreja. Filipe prega Cristo em Samaria e
realiza milagres de cura.

544
Robertson, Grammar, p. 602.
Atos (Simon J. Kistemaker) 452
Simão, o mago tinha obtido certa reputação entre o povo
samaritano, para quem ele era o poder de Deus, o poder que é chamado
grande. O povo escuta as Boas Novas que Filipe prega; creem e são
batizados. Simão também crê e também é batizado.
A igreja em Jerusalém ouve a respeito destes crentes em Samaria e
envia a Pedro e a João para que orem por eles. Os apóstolos impõem
suas mãos sobre os crentes samaritanos, que então recebem o Espírito
Santo. Simão oferece aos apóstolos dinheiro numa tentativa de comprar
o dom do Espírito. Pedro o repreende e lhe diz que se arrependa.
Um anjo do Senhor diz a Filipe que vá a Gaza pelo caminho do
deserto, onde se encontra com um eunuco etíope sentado em sua
carruagem e lendo a passagem messiânica da profecia de Isaías. Filipe
lhe pergunta se entende o que lê. O etíope lhe pede ajuda e Filipe lhe
interpreta a passagem e lhe dá as boas novas a respeito de Jesus. O
eunuco nota alguma água, detém a carruagem e é batizado. Filipe é
arrebatado, encontra-se em Azoto, e prega o evangelho nas localidades
costeiras até chegar a Cesareia.
Atos (Simon J. Kistemaker) 453
ATOS 9
A IGREJA NA PALESTINA, parte 2 (At 9:1–43)
C. A conversão de Paulo (At 9:1–31)

1. Paulo em caminho para Damasco (At 9:1–9)

Lucas pôs fim a seus relatos sobre Estêvão e Filipe e volta para as
atividades de Saulo (veja-se At 7:58; 8:1, 3). Parece sugerir que o
trabalho evangelístico de Filipe é um interlúdio e que o leitor deve voltar
a centralizar sua atenção em Saulo (a quem seguirei chamando Paulo),
quem tinha decidido destruir a igreja de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo,
o próprio Lucas não parece preparado para dedicar-se por completo ao
ministério de Paulo, porque seu relatório sobre a conversão deste é
também um interlúdio, só que na seção dedicada ao ministério de Pedro.
Este chega ao seu fim quando Pedro é libertado da prisão (At 12:17); e a
partir dali começa o ativo ministério de Paulo (At 13:2).

a. O objetivo (At 9:1–3)

1, 2. Saulo, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos


do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote e lhe pediu cartas para as
sinagogas de Damasco, a fim de que, caso achasse alguns que eram do
Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para
Jerusalém.
a. “Saulo, respirando ainda ameaças e morte”. No capítulo anterior
(At 8:3), Lucas descreve Paulo como o perseguidor dos crentes de
Jerusalém. Agora oferece outro quadro mais aterrador do Paulo pré-
conversão: tudo o que Paulo pensa e faz, diz ele, está dominado por seu
desejo de acabar com os seguidores de Jesus. Neste sentido, afastou-se
Atos (Simon J. Kistemaker) 454
de seu mestre, Gamaliel, quem tinha advertido os membros do Sinédrio
do perigo de se encontrar opondo-se ao próprio Deus (At 5:39). Paulo,
pelo contrário, está por inteiro dominado pelo afã de destruição e morte.
Não temos nenhuma razão para supor que ele mesmo tenha dado morte a
algum cristão. Mas confessa abertamente que consentiu e aprovou a
execução de alguns ao votar para que tal coisa ocorresse (At 26:10).
Cegado por seu zelo e sem notar, Paulo está dando cumprimento à
palavra de Jesus aos apóstolos: “Qualquer que vos matar cuidará fazer
um serviço a Deus” (Jo 16:2).
Não satisfeito com o que tinha estado fazendo em Jerusalém, Paulo
eleva seu olhar a outros lugares onde vivem cristãos. Lucas se refere aos
cristãos como “discípulos”, pois eles vieram recebendo os ensinos dos
apóstolos. Diz que estes discípulos encontram-se em Damasco (vv. 10,
19), Jerusalém (v. 26), Jope (v. 36) e Lida (v. 38). Assim, com a
autoridade que lhe conferiu o Sinédrio, Paulo se lança a prender os
seguidores de Cristo que estão em Damasco.
b. “Dirigiu-se ao sumo sacerdote”. O sumo sacerdote presidia o
Sinédrio, que era o corpo legislativo que tinha jurisdição sobre os judeus
que viviam em Jerusalém, Palestina, e a dispersão. Isto lhe dava o poder
para fazer com que as sinagogas em Damasco procedessem ao arresto de
todos os judeus cristãos que residiam ali (veja-se At 9:2; 22:5; 26:12).545
Permitiam os romanos a perseguição religiosa em suas províncias? Não
estamos seguros se por aquele tempo o governo de Roma tinha todo o
controle sobre o que ocorria em Damasco. Pelos anos quarenta do século
I, os árabes nabateus sob a liderança do Aretas IV exerciam sua
influência sobre Damasco, chegando a dar aos damascenos
independência temporal. É provável que entre nabateus e judeus tenha
havido algum tipo de cooperação devido à sua postura comum contra os
romanos.

545
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C.–135 d.C.), rev.
e ed. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 218.
Atos (Simon J. Kistemaker) 455
Pelo Novo Testamento e outras fontes históricas sabemos que o
sumo sacerdote era Caifás, o genro de Anás. 546 No entanto, o sumo
sacerdócio era exercido por Anás, conforme podemos ler no versículo
14, onde se usa o plural sumos sacerdotes.
c. “E lhe pediu cartas para as sinagogas de Damasco”. Aquela
cidade servia de residência a um grande número de judeus de maneira
que, por séculos, os judeus dali tinham seu próprio bairro (cf. v. 22). 547
Como resultado, as sinagogas judaicas eram algo comum na capital
Síria. Pela história judaica sabemos que no tempo da guerra dos judeus
contra Roma (66 d.C.), não menos de dez mil judeus foram mortos em
Damasco.
As Escrituras nos dizem que Damasco já existia nos tempos de
Abraão (Gn 14:15; 15:2), que foi conquistada por Davi (2Sm 8:6), que
recuperou sua independência durante o reinado de Salomão (1Rs 11:24–
25), e que chegou a ser uma caldeira de hostilidade para Israel a que no
final dominou por algum tempo (Am 1:3–5). Durante a conquista
romana (64 a.C.), Damasco foi a sede do governo romano para a
província Síria e uma das dez cidades da região conhecida como
Decápolis (Mc 5:20; 7:31). Os árabes nabateus controlavam o setor do
deserto da Arábia e sob a liderança de Aretas IV, sogro de Herodes
Antipas (Mt 14:3; Mc 6:17; Lc 3:19) controlaram Damasco por alguns
anos (2Co 11:32).
Damasco está situada pelo rio Abana, do qual obtém água para
satisfazer suas necessidades de irrigação. Nos dias de Paulo, uma viagem
por terra, de Jerusalém a Damasco, demorava entre cinco e seis dias, pois
era preciso cobrir uma distância aproximada de 280 quilômetros.
Damasco era um centro comercial aonde chegavam caravanas de todos
os lugares do mundo antigo, e onde começava a florescer a fé cristã.
Paulo deu-se conta que desde Damasco o evangelho de Cristo poderia

546
Mt. 26:3; Lc. 3:2; Jo. 11:49; 18:13–14, 24, 28; At. 4:6.
547
Josefo Guerra judaica 2.20.2 [561]; 7.8.7 [368].
Atos (Simon J. Kistemaker) 456
ser estendido a todas as partes. Por isso decidiu deter a influência do
cristianismo e pediu credenciais do sumo sacerdote com autorização para
prender os cristãos, tanto homens como mulheres, nas sinagogas de
Damasco. Ele sabia que em Damasco havia numerosos seguidores de
Jesus Cristo. Aqui Paulo pensava fazer numerosas prisões.
d. “a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho”. Num
começo, os cristãos usaram diversos nomes para identificar-se. A
expressão o Caminho é um dos primeiros nomes que descrevem a fé
cristã (cf. o termo o Nome [At 5:41]). Em Atos aparece umas poucas
vezes (At 19:9, 23; 22:4; 24:14, 22). O termo revela o ensino do
evangelho, a conduta cristã dirigida e guiada por este evangelho, 548 e à
comunidade cristã em geral. Se bem que os crentes formavam um grupo
distinto, de qualquer maneira continuaram reunindo-se com seus
compatriotas nas sinagogas de Damasco. Como resultado disso, as
autoridades de tais sinagogas não teriam problemas para identificar os
seguidores de “o Caminho”. Paulo dependeria da ajuda daquelas
autoridades para passar às detenções. Ele os levaria logo presos a
Jerusalém onde seriam submetidos a juízo.
3. Seguindo ele estrada fora, ao aproximar-se de Damasco,
subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor.
Três relatos descrevem a conversão de Paulo em caminho para
Damasco (At 9:1–19; 22:4–16; 26:12–18). Todos têm um tema em
comum: “Paulo viu Jesus, quem lhe falou em caminho para Damasco”.
Se bem que as três versões procedem da pena de Lucas, são diferentes
uma da outra. Mas claro, as diferenças podem ser explicadas ao levar em
conta o propósito de cada uma, o ambiente em que cada uma foi dita, e
os auditórios. O primeiro relato é uma recontagem histórica; o segundo
corresponde às palavras que Paulo pronunciasse diante de uma turba
enfurecida de judeus em Jerusalém; e a terceira é o discurso no qual
Paulo buscava persuadir a Agripa para que aderisse à fé cristã.

548
Veja-se Wilhelm Michaelis, TDNT, vol. 5, p. 89; Günther Ebel, NIDNTT, vol. 3, p. 942.
Atos (Simon J. Kistemaker) 457
Se aceitarmos que os três relatos têm suas origem com Paulo, não
temos dificuldade em entender suas variações. É um fato comum que
qualquer pessoa que fizer um mesmo relato para diferentes grupos sob
circunstâncias diferentes, esperamos que ocorrerão algumas mudanças.
Seja como for, muito se tem escrito sobre os relatos da conversão
de Paulo. A maioria destes escritos procedem de literatos e críticos que
analisaram cuidadosamente as variações existentes em cada caso. 549 A
conclusão destes é que as três versões são obra de Lucas. Mas claro, se
Lucas recebeu do próprio Paulo os três diferentes relatos, temos que
supor que o escritor tenha registrado o conteúdo e fraseologia de cada
relato.
Além disso, por razões estilísticas, Lucas não parece ter interesse
em repetir a mesma história três vezes usando para isso as mesmas
palavras (At 9:1–19; 22:4–16; 26:12–18). Portanto, vemos que Lucas
descreve a luz do céu (v. 3) como brilhante (At 22:6), e como mais
brilhante que o sol (At 26:13). Era o meio-dia quando Paulo e seus
acompanhantes cavalgavam para Damasco. Todos viram uma luz como
relâmpago que os rodeou, mas só Paulo e não outros ficou cego (v. 8).
Poderia comparar-se aquela experiência com um ataque de epilepsia
ou uma insolação? O Novo Testamento nunca faz referência a males
deste tipo que Paulo tenha padecido. Pelo contrário, lemos que Jesus lhe
apareceu tanto em visões como em transe. De maneira que Jesus lhe deu
instruções e lhe fez revelações (p. ex., veja-se At 18:9–10; 22:17–21; Gl
1:12). O Senhor pessoalmente chamou Paulo para que fosse um de seus
apóstolos e o fez fora dos limites de Jerusalém, como querendo separá-lo
do judaísmo. Quer dizer, Jesus tomou Paulo com todo seu conhecimento
das Escrituras, com todo seu desejo de promover o judaísmo, e com todo

549
Dois estudos são os de C. W. Hedrick, “Paul’s Conversion/Call: A Comparative Analysis of the
Three Reports in Acts”, JBL 100 (1981); 415–32, e Gerhard Lohfink, The Conversion of St. Paul:
Narrative and History in Acts, trad. e ed. por Bruce J. Malina (Chicago: Franciscan Herald Press,
1975). Lohfink atribui as diferenças dos três relatos “à criativa atividade literária e composição do
autor, Lucas” (p. 60).
Atos (Simon J. Kistemaker) 458
seu zelo pela tradição (Gl 1:13–14). Então Jesus voltou-se para Paulo
com seus talentos, capacidades e entusiasmo, fazendo dele um
instrumento posto a serviço da causa de Cristo.

Palavras, frases e construções gregas em At 9:1–2


Versículo 1
ἐμπνέων — o gerúndio ativo do verbo composto ἐμπνέω (eu
respiro) expressa intensidade. Além disso, este verbo governa o caso
genitivo de ἀπειλης (ameaça) e φονοῦ (matar). O caso genitivo é tomado
por verbos de sensação (tocar, cheirar, provar) e emoção.

Versículo 2
Note-se o cuidadoso uso que se faz das preposições neste versículo:
παρά (do lado de), εἰς (em), e πρός (para).
εὕρῃ — o subjuntivo aoristo do verbo εὑρίσκω (eu encontro) não
expressa incerteza com relação a que tenha havido cristãos em Damasco.
A incerteza tem relação com o número de crentes residentes ali.

b. O encontro (At 9:4–6)

4. E, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por
que me persegues? Jesus trouxe Paulo à conversão mediante aparecer na
glória de uma luz celestial. 550 Nesta luz sobrenatural, a única coisa que
resta ao homem é cair ao solo, rosto a terra. Isso é exatamente o que faz
Paulo. Logo, o próprio Jesus Se dirigiu a ele, chamando-o por seu nome.
Fez-lhe uma pergunta direta e aguda: “Por que me persegues?” De fato,
as palavras que usa Jesus são notáveis porque com esta pergunta, está
550
João Calvino é da opinião que Cristo se apareceu a Paulo no brilho de um relâmpago ou de um
raio, mas é difícil que esta interpretação seja correta, levando em conta a evidência. Commentary on
the Acts of the Apostles, ed. por David W. Torrance y Thomas F. Torrance, 2 vols. (Grand Rapids:
Eerdmans, 1966), vol. 1, p. 257.
Atos (Simon J. Kistemaker) 459
fazendo uma plena identificação com os crentes a quem Paulo está
perseguindo para destruir. Jesus e seus seguidores são um (cf. Mt 10:40;
25:45).
A mensagem de advertência de não opor-se a Deus, exposto pelo
mestre de Paulo, Gamaliel, confronta agora a Paulo, numa dura
realidade. O martírio de Estêvão, a perseguição dos cristãos forçados a
sair de Jerusalém, os crentes encarcerados por Paulo, todos são
representados por Cristo Jesus. Portanto, Paulo esteve lutando contra
Jesus e perdeu a batalha. Jesus Se dirige a ele em língua aramaica (veja-
se At 26:14) e pronuncia duas vezes seu nome, em língua hebraica:
Saulo, Saulo (compare, p. ex., 1Sm 3:10). Paulo sabe que a repetição
significa que uma voz divina o está chamando.
5, 6. Ele perguntou: Quem és tu, Senhor? E a resposta foi: Eu sou
Jesus, a quem tu persegues; mas levanta-te e entra na cidade, onde te
dirão o que te convém fazer.
Há certa disparidade de critério entre os comentaristas com relação
à expressão “Senhor” usada por Paulo. 551 Alguns dizem que porque
ainda não conhecia Jesus como o Messias, a forma “Senhor” que Paulo
usa tem uma conotação de simples respeito. Mas o cenário: Paulo
expulso rosto ao solo rodeado por uma brilhante luz e uma voz celestial
que lhe fala em aramaico, indica que era consciente de que se estava
enfrentando a Jesus, o Senhor ressuscitado e ascendido (veja-se vv. 17,
27; 22:14; 26:15).
Naturalmente, Paulo está confundido. Até agora estava convencido
que ao perseguir os cristãos estava fazendo a vontade de Deus, mas eis
aqui que agora ouve a Jesus chamando-o à realidade. Embora em suas
cartas aos coríntios pareça indicar que conhecia Cristo durante seu
ministério terrestre (2Co 5:16), não há evidência consistente de que ele e

551
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottemburg, 1942), vol. 1, p. 293. Veja-se também F. F. Bruce The Book of
Acts, ed. rev., série New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans,
1988), pp. 182–83.
Atos (Simon J. Kistemaker) 460
Jesus tenham se encontrado alguma vez encontrado. Embora, por certo,
tenha ouvido os cristãos proclamando a ressurreição e ascensão do
Senhor. Estes fatos tornam-se realidade agora que o próprio Jesus lhe
fala. Todo temeroso, pergunta: “Quem és tu, Senhor?”
Jesus replica: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues”. Note-se que Ele
usa Seu nome terrestre, Jesus, que foi dado no dia da circuncisão (Lc
2:21). Jesus fala com Paulo dos céus, e este se dá conta que as palavras
pronunciadas por Estêvão são verdadeiras: “Vejo os céus abertos e o
Filho do Homem, em pé à destra de Deus” (At 7:56). Jesus vive,
ressuscitado dentre os mortos e sentado à destra de Deus nos céus. No
grego, Jesus na verdade está dizendo: “Sim, não tenha nenhuma dúvida,
Eu sou Jesus”. E acrescenta, “a quem tu mesmo estás perseguindo” para
enfatizar a acusação que diretamente lhe dirige. Quer dizer, quanto veio
fazendo aos cristãos, veio o perpetrando contra Jesus. Por tal razão, Jesus
diz duas vezes que o perseguido veio sendo Ele. Em outras palavras,
Paulo entende que ele pecou contra Jesus, o que mais tarde teria que
reconhecer repetidamente em suas cartas (1Co 15:9; Gl 1:13, 23; Fp 3:6).
Jesus lhe dá instruções e diz: “Mas levanta-te e entra na cidade,
onde te dirão o que te convém fazer”. Paulo quase não tem tempo para
notar que Jesus lhe apareceu quando ouve a ordem de entrar em
Damasco. Jesus Se faz cargo dele, e aquele que pouco antes respirava
ameaças de morte e destruição, obedece. Note-se que Jesus só diz a
Paulo que entre na cidade onde receberá outras instruções. Neste
momento, Jesus não diz nada a respeito do papel de Paulo como apóstolo
aos gentios. Primeiro, Paulo deverá ser aceito pelos cristãos de Damasco
e chegar a ser um dos discípulos de Cristo. Logo, terá que aceitar que
Jesus o comissionou para proclamar o nome de Cristo aos gentios, aos
reis, e à nação israelita (v. 15). E por último, deverá ser preparado para
sofrer no nome de Jesus (v. 16).
Atos (Simon J. Kistemaker) 461
Palavras, frases e construções gregas em At 9:4–6
Versículo 4
Alguns manuscritos completam o versículo 4 com uma cláusula da
passagem paralela (At 26:14): “Duro é para ti recalcitrar contra os
aguilhões” [At 9:4, RC]. É provável que copistas tenham agregado esta
frase para fazê-la harmonizar com o sentido de At 26:14. Além disso,
alguns manuscritos siríacos, latinos e coptos têm estas palavras: “Então
ele, tremendo e cheio de pavor, disse, ‘Senhor, o que queres que eu
faça?’ E o Senhor lhe disse …” (NKJV). Em 1516, Erasmo traduziu
estas palavras do latim e as incorporou em sua edição grega do Novo
Testamento. 552

Versículo 5
ὁ δέ — esta é uma construção abreviada; perde o substantivo
próprio Ἰησοῦς, seguindo o artigo definido ὁ, e o verbo ἕφη (disse) está
implícito. A combinação ὁ δέ sempre assinala uma mudança de sujeito
num relato histórico.

Versículo 6
ἀλλά — este advérbio está sugerindo não um sentido adversativo e
sim consecutivo. Significa, “Bem, levanta-te e entra”.

552
Bruce M. Metzger, Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 362.
Atos (Simon J. Kistemaker) 462
c. O efeito (At 9:7–9)

7. Os seus companheiros de viagem pararam emudecidos,


ouvindo a voz, não vendo, contudo, ninguém.
Os homens que vão acompanhando a Paulo podem testificar da
brilhante luz que os envolveu, fazendo com que caíssem ao solo (At
26:13–14); que ouviram uma voz, porém não entenderam o que dizia (At
22:9); e que não viram ninguém.
Os tradutores tiveram que enfrentar o problema de traduzir o verbo
grego akouō como “ouvir” ou “entender” e o substantivo grego phōnē
como “voz” ou “som”. Para ilustrar este problema, aqui temos duas
passagens com duas traduções diferentes:
Atos 9:7
“Eles ouviram o som” (NIV) “Eles ouviram a voz” (NEB)
Atos 22:9
“Eles não entenderam “[Eles] … não ouviram a voz” (NIV) “a voz”
(NEB)
Uma forma de enfrentar este problema seria assinalar que Lucas se
contradiz nestes dois relatos sobre a conversão de Paulo. Outra seria que
no contexto destas passagens ele estabelece uma diferença. A segunda
alternativa tem mérito porque o contexto de ambas as passagens mostra
que Jesus dirige-se a Paulo e não a seus acompanhantes. O personagem
central deste relato é, precisamente, Paulo. Seus acompanhantes, não
obstante, ouviram o som de uma voz porém não puderam decifrar o
sentido das palavras que Jesus diz (cf. Dn 10:7). Estes homens ficaram
mudos, viram a brilhante luz, ouviram o som de uma voz, porém não
puderam entender que Jesus se apareceu a Paulo para lhe trazer para a
conversão, ao arrependimento, e à fé. De fato, o termo mudos implica
que eles estavam terrivelmente assustados. 553 Ouviram uma voz, porém
não puderam ver o dono dessa voz. Diga-se de passagem, é interessante

553
Bauer, p. 265; Thayer, p. 217.
Atos (Simon J. Kistemaker) 463
o paralelo que há no martírio de Policarpo que relata a morte deste em
Roma (155 d.C):
E quando Policarpo entrou na areia, veio uma voz do céu: “Sê forte,
Policarpo, e age como homem”. E ninguém viu quem falava, mas nossos
amigos que estavam ali ouviram a voz”. 554
Os que viajavam com Paulo não viram ninguém, mas ouviram um
som que não puderam explicar. Ao contrário, Paulo viu Jesus, escutou
sua voz, e entendeu o que lhe dizia que fizesse: “Levanta-te e entra na
cidade”.
8, 9. Então, se levantou Saulo da terra e, abrindo os olhos, nada
podia ver. E, guiando-o pela mão, levaram-no para Damasco. Esteve três
dias sem ver, durante os quais nada comeu, nem bebeu.
Só Paulo compreendeu a mensagem de Jesus, e só ele ficou cegado
pela luz. Quando pôs-se de pé não podia ver absolutamente nada.
Embora seus olhos estivessem abertos, movia-se com estupidez, cego.
Lucas diz que Deus pôs nos olhos de Paulo algo como escamas, que
caíram quando Ananias pôs suas mãos sobre ele (vv. 17–18). Deus o
deixou três dias cego, para que tivesse tempo para meditar, refletir, e orar
(vv. 9, 11).
Como mudam as coisas! Paulo, que planejava lançar os crentes por
terra, jaz de cabeça para baixo no caminho. Paulo, quem planejava trazer
um grande grupo de prisioneiros de Damasco a Jerusalém, agora é
levado como preso da cegueira rumo a Damasco. Paulo, quem agia com
a autoridade do sumo sacerdote, agora rompe seus vínculos com a
hierarquia de Jerusalém. Paulo, que parecia triunfar sobre a fé cristã,
submete-se agora ao Capitão desta fé (Hb 12:2).
Embora Lucas não diga nada sobre a volta a Jerusalém dos
acompanhantes de Paulo, os quais possivelmente eram membros da
guarda do templo (At 4:1; 5:22, 26) podemos supor que retornaram com
as mãos vazias e informaram ao sumo sacerdote que Saulo ficou na casa
554
Martírio de Policarpo 9.1 (LCL). Veja-se também Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The
Expanding Church, 2ª. ed. (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p. 160.
Atos (Simon J. Kistemaker) 464
de um judeu chamado Judas, que vivia na rua chamada Direita, em
Damasco.
“Esteve três dias sem ver, durante os quais nada comeu, nem
bebeu”. Isolado da sociedade devido à sua cegueira e deixado sozinho
por três dias, Paulo tem tempo para enfrentar-se com a maior crise de sua
vida: a conversão. Note-se o simbolismo dos três dias passados como se
estivesse em encarceramento solitário. “Ele é crucificado com Cristo, e
os três dias de escuridão são semelhantes aos três dias na tumba”. 555
Note-se também o contraste entre a escuridão e a luz neste relato.
Sumido na cegueira espiritual, Paulo vê Jesus na glória de uma brilhante
luz. Fisicamente cego, Paulo ora e começa a ver espiritualmente.
Durante três dias, Paulo não come nem bebe nada. Jejua devido à
perturbação emocional que experimentou. Em arrependimento e fé busca
reconciliar-se com Deus e em tal sentido ora. Acostumado a proferir
orações rotineiras, agora em sua condição de convertido, ora com o
coração.
Num sentido, a conversão de Paulo ocorreu de repente, quando
Jesus o detém no caminho para Damasco e Se apresenta a ele
pessoalmente. Mas se observarmos o contexto mais amplo (vv. 10–19)
vemos um desenvolvimento gradual de sua conversão e chamado. 556 Em
sua solidão, ninguém lhe fala do evangelho até que Ananias, enviado por
Jesus, dá-lhe as boas-vindas à comunidade cristã.

Considerações doutrinais em At 9:4–9


Paulo viu Jesus, não numa aparição que poderia ser descrita como
produto de sua imaginação, mas em um encontro absolutamente real.
Quando estava na casa de Judas, na rua chamada Direita, Jesus lhe
apareceu numa visão para lhe dizer que chegaria Ananias (v. 12). No

555
Richard B. Rackhman, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), P. 133.
556
Consulte-se Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 296.
Atos (Simon J. Kistemaker) 465
caminho perto de Damasco, Paulo não tinha uma visão, e sim viu Jesus
em toda a glória celestial.
Segundo o Novo Testamento, Jesus apareceu só em quatro ocasiões
em Seu estado glorificado. Primeiro, antes de Seu sofrimento, morte,
ressurreição e ascensão apresentou-Se a Pedro, Tiago e João no monte da
Transfiguração (Mt 17:1–8). Logo, depois de Sua ascensão, apareceu a
Estêvão (7:55). Depois apareceu a Paulo perto de Damasco (At 9:1–9). E
por último, na ilha de Patmos João viu o Jesus glorificado vindo a ele no
dia do Senhor (Ap 1:9–20).
Portanto, quando Jesus apareceu a Paulo, estava distinguindo-o
singularmente. Jesus lhe concedeu essa honra porque Paulo era seu
instrumento escolhido para levar o evangelho aos gentios (v. 15).

Palavras, frases e construções gregas em At 9:7–9


Versículo 7
ἀκούοντες τῆς φωνῆς — no versículo 4, o verbo ἀκούω aparece
com o substantivo φωνή (caso acusativo) para referir-se a Paulo; aqui o
verbo aparece com o substantivo voz (caso genitivo) com relação aos
acompanhantes de Paulo. Em At 22:7, Paulo diz que ele ouviu a voz
(caso genitivo) de Jesus lhe falando. Logo diz que seus acompanhantes
não entendem a voz (caso acusativo [At 22:9]). Significa o verbo ouvir
“entender” com o acusativo e “ouvir um som” com o genitivo? Alguns
estudiosos afirmam que as duas construções foram usadas
indistintamente no mundo helenístico do primeiro século.557 Outros,
contudo, arguem que a diferença do matiz nestes dois casos é
significativa. 558

557
H. R. Moehring, “The Verb AKOYEIN in Acts IX 7 and XXII 9”, NovT 3 (1959); 80–99; Robert
G. Bratcher, “Akouō en Acts ix. 7 y xxii. 9”, ExpT 71 (1960); 243–45.
558
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 506.
Atos (Simon J. Kistemaker) 466
A evidência, contudo, é pouco convincente. Tomemos, por
exemplo, a cena do juízo de Jesus, onde o sumo sacerdote diz aos
membros do Sinédrio: “Ouvistes a blasfêmia”. Este texto é idêntico em
Mateus 26:65 e em Marcos 14:64, exceto que no grego a palavra
blasfêmia está no caso acusativo em Mateus e no caso genitivo em
Marcos. 559 A regra gramatical no grego clássico não se aplica: o
acusativo se vincula à coisa que é ouvida e o genitivo à pessoa que é
ouvida.
Para voltar ao uso que Lucas faz dos casos genitivo e acusativo com
o verbo ouvir, contradiz-se conscientemente a si mesmo? Dificilmente.
Devemos encontrar a solução no contexto do versículo em questão e
julgar cada caso segundo seus próprios méritos. Assim, os
acompanhantes de Paulo ouviram uma voz, não viram Jesus, e como
resultado não entendem o que se diz. Jesus Se dirige a Paulo e não a seus
acompanhantes, pelo que concluímos que Lucas tenta sugerir uma
diferença em significado.

Versículo 8
ἀνεῳγμένων — com o substantivo ὀφθαλμῶν (olhos) o particípio
forma a construção genitiva absoluta. O particípio perfeito passivo do
verbo ἀνοίγω (eu abro) sugere resultado final. Quer dizer, a cegueira fez
com que os olhos de Paulo se mantivessem abertos.

Versículo 9
μή — a partícula negativa precede ao particípio; οὑκ e οὑδὲ anulam
o verbo. A construção ἦν βλέπων é perifrástica.

559
Consulte-se Nigel Turner, Grammatical Insights into the New Testament (Edimburgo: Clark,
1965), pp. 88–90.
Atos (Simon J. Kistemaker) 467
2. Paulo em Damasco (At 9:10–25)

Jesus leva Paulo à conversão, mas Paulo ainda tem que enfrentar
sua entrada à igreja que tinha vindo destruir. No entanto, isto não é
preocupação de Paulo, porque o próprio Jesus é aquele que lhe abre o
caminho para que entre à igreja e seja bem-vindo no meio dos crentes.
Uma das lições que podemos aprender da conversão de Paulo é que a
salvação se origina em Deus e não no homem. A iniciativa é tomada por
Deus e é Ele quem leva a salvação até seu destino final.

a. O chamado (At 9:10–12)

10. Ora, havia em Damasco um discípulo chamado Ananias. Disse-


lhe o Senhor numa visão: Ananias! Ao que respondeu: Eis-me aqui,
Senhor!
Cego perto da cidade de Damasco, Paulo tem que depender de seus
acompanhantes que o tomam pela mão e o levam até a casa de um judeu
chamado Judas, que vive na rua chamada Direita. Judas o hospeda, e
permanece ali por espaço de três dias. Durante esse período, Jesus
aparece a Paulo e lhe diz que um homem chamado Ananias o visitará,
porá suas mãos sobre ele e lhe devolverá a vista.
Também Jesus aparece ao judeu Ananias, nome bastante comum
em Israel (veja-se At 5:1; 23:2). Ananias é descrito por Lucas como um
discípulo, a saber, um cristão. Indiretamente está se indicando que não se
procura um exilado que fugiu de Jerusalém durante a grande
perseguição. Relata que Ananias depende dos rumores quanto à
adversidade que sofrem os santos em Jerusalém (v. 13). Anos mais tarde,
o próprio Paulo se referirá a Ananias em termos muito elogiáveis quando
informa à sua audiência que ele guarda a lei e é respeitado por seus
concidadãos judeus (At 22:12). Jesus, pois, escolhe a Ananias para que
apresente Paulo à comunidade cristã de Damasco.
Atos (Simon J. Kistemaker) 468
Jesus fala com Ananias pelo nome numa visão. Não se sabe se foi
em forma de sonho na noite ou de transe durante o dia (cf. At 10:10).
Ananias, bem como o menino Samuel muitos anos antes, responde
obedientemente ao chamado de Jesus dizendo: “Aqui estou, Senhor”.
11, 12. O Senhor lhe disse: “Vá à casa de Judas, na rua chamada
Direita, e pergunte por um homem de Tarso chamado Saulo. Ele está
orando; numa visão viu um homem chamado Ananias chegar e impor-lhe
as mãos para que voltasse a ver” [NVI].
a. “Vá à casa de Judas”. Respeitado pelos judeus de Damasco,
Ananias não tem objeções para ir à casa de Judas na rua Direita. Esta rua
da cidade mais antiga mencionada nas Escrituras continua sendo uma
artéria importante na moderna Damasco. Diferente das ruas orientais que
são tão tortuosas, esta vai reta em direção ocidental por cerca de dois
quilômetros, partindo da Porta Este.
b. “Vá à casa de Judas, na rua chamada Direita, e pergunte por um
homem de Tarso chamado Paulo”. É de imaginar o temor e a
repugnância que terão surgido na mente de Ananias quando ouve o nome
do grande perseguidor da igreja cristã. A má fama de Paulo já tinha
chegado a Damasco, pelo que os crentes estavam alerta. E agora Jesus
lhe pede que vá reunir-se, precisamente com ele. Para evitar mal-
entendidos, Jesus acrescentou o nome da cidade de onde era Paulo:
Tarso. Localizada no sudeste da Ásia Menor (a moderna Turquia), Tarso
tinha uma população de 500 mil habitantes e é repetidamente
mencionada em Atos. 560 A cidade estava situada ao longo das margens
do rio Abana e estava rodeada por terras muito férteis. Perto da cidade,
nos Montes Tauro, estavam as Portas da Cilícia, através das quais
passavam as caravanas que vinham do norte. As portas controlavam o
acesso às partes centrais e ocidentais da Ásia Menor e protegiam a
cidade de ataques dos saqueadores.

560
At 9:11, 30; 11:25; 21:39; 22:3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 469
Além disso, Tarso, como a capital da província da Cilícia, não era
uma cidade comum (At 21:39). Desfrutava do privilégio de conceder a
cidadania romana aos cidadãos que nascessem dentro de suas muralhas
(At 22:28). No século I, pois, Tarso era uma cidade muito influente,
conhecida por seu interesse comercial, sua localização tão estratégica,
seus produtos agrícolas e seu sistema educacional.
Ali nasceu Paulo e ali recebeu parte de sua educação (At 22:3).
Devido a seus conhecimentos e a sua cidadania (e o fato de estar a
serviço do Sinédrio) Paulo de Tarso era uma pessoa distinguida no
mundo judeu. Por isso não admira que quando se lançou a perseguir os
cristãos, o temor o precedia antes de chegar a Damasco.
c. “Ele está orando”. A oração é a ponte entre Deus e o homem e
entre os crentes individualmente. Quando Paulo, afligido pela cegueira
começa a orar com sinceridade, Jesus vem a ele em visão e o prepara
para sua entrada na comunidade cristã. Jesus tranquiliza Ananias quando
lhe diz que Paulo ora. Com estas palavras, diz-lhe que Paulo esteve
orando sem descansar. E é de supor que Paulo, ao orar com sinceridade a
Jesus, pôs sua confiança nEle e que Jesus aceitou a Paulo. Portanto, o
tempo chegou para que Paulo se reúna com um irmão espiritual.
Jesus prepara tanto a Paulo como a Ananias ao aparecer a cada um
numa visão e lhes dar instruções. Assim, o próprio Jesus elimina as
barreiras que separam o ex-perseguidor dos cristãos perseguidos. Em
outro relato, Jesus faz o mesmo com Pedro e Cornélio, com o que a
brecha entre judeus e gentios é fechada. Através de um anjo e com voz
celestial, Jesus instrui a ambos em visões separadas (At 10:3–6, 9–16).
d. “Numa visão viu um homem chamado Ananias chegar e impor-
lhe as mãos para que voltasse a ver”. Jesus informa Ananias o que Ele
veio fazendo para lhe preparar o caminho. Quer dizer, Paulo está
preparado para receber Ananias porque numa visão viu o homem com
esse nome vir a ele e lhe impor as mãos para que recuperasse a vista.
Esta visão é a resposta do Senhor à oração de Paulo. Através dela, Paulo
recebe a segurança da parte de Jesus de que Ananias o aceitará e o
Atos (Simon J. Kistemaker) 470
reconhecerá como um crente. Em outra visão, Jesus assegura a Ananias
que ele já aceitou a Paulo como um crente e que ele, Ananias, deve
aceitá-lo também, pondo as mãos sobre ele. Finalmente, Paulo reconhece
que Ananias é o instrumento do Senhor para que recupere a vista.
Em outras palavras, Jesus informa a Ananias que Paulo está cego,
que o perseguidor da igreja é um crente que ora, que Paulo o espera na
casa de Judas para que o aceite como um cristão, e que lhe dará o poder
para terminar com a cegueira de Paulo.

b. A objeção (At 9:13–14)

13, 14. Ananias, porém, respondeu: Senhor, de muitos tenho ouvido


a respeito desse homem, quantos males tem feito aos teus santos em
Jerusalém; e para aqui trouxe autorização dos principais sacerdotes para
prender a todos os que invocam o teu nome.
Não devemos culpar Ananias pelas objeções que tem às ordens do
Senhor. Porque as notícias relacionadas com a grande perseguição em
Jerusalém encontram-se circulando na dispersão e os crentes de
Damasco estão preparados para enfrentar uma forte perseguição. Os
crentes estão prevenidos especialmente contra Paulo, quem vem a
Damasco com a autoridade dos sumos sacerdotes. Ananias se ofende
quando escuta a ordem divina de visitar Paulo. A história da redenção
nos ensina que outros santos, tanto do Antigo como do Novo
Testamento, receberam ordens parecidas com esta e que também
expuseram a Deus suas objeções. Pensemos em Moisés, a quem Deus
chamou para ir à corte de Faraó no Egito (Êx 3); em Jonas, quem
recebeu instruções específicas com relação a pregar arrependimento aos
habitantes de Nínive (Jn 1); e Zacarias, a quem foi dito disse que sua
esposa, Isabel, daria à luz a um filho (Lc 1:11–20). Deus exerce uma
extraordinária paciência com Seus filhos quando estes fazem objeções
baseadas em sua ignorância. Quando Jesus fala com Ananias numa
visão, Ananias ignora que o perigo da perseguição tenha desaparecido.
Atos (Simon J. Kistemaker) 471
Com sua atitude não está revelando falta de fé, e sim consternação
produzida pelo medo.
a. “de muitos tenho ouvido a respeito desse homem”. Quando os
cristãos foram expulsos de Jerusalém, foram a Judeia e Samaria (At
8:1b) e, eventualmente a Fenícia, a Chipre e a Antioquia (At 11:19).
Podemos supor que alguns também foram a Damasco, onde informaram
à comunidade cristã dali a respeito dos horrores da perseguição. E,
certamente, disseram que um dos principais perseguidores em Jerusalém
era Paulo. Ananias, portanto, embora ele mesmo não fosse um exilado,
recebeu sua informação de outros.
b. “Quantos males tem feito aos teus santos”. Paulo procurou
devastar a igreja e causou dano incalculável aos santos. Esta é a primeira
vez no Novo Testamento que os seguidores de Cristo são chamados
“santos”. 561 Eles são os santos de Deus, que compartilham Sua santidade
porque o Espírito de Deus repousa neles. Ananias, então, afirma que
Paulo infligiu dano aos santos de Deus.
c. “[Paulo] trouxe autorização dos principais sacerdotes”.
Presumivelmente, os crentes recém-chegados a Damasco informaram
que Paulo vinha com autoridade conferida pelos principais sacerdotes
para levar a cabo perseguições nas sinagogas de Damasco. Eles sabem
que as intenções de Paulo são deter os cristãos e levá-los presos a
Jerusalém. Quando Ananias fala, ele o faz como defensor dos crentes,
que se reúnem para invocar o nome do Senhor. A expressão “invocar o
nome do Senhor” refere-se a reuniões regulares nas quais os cristãos
invocam a presença espiritual de Jesus. 562 Por conseguinte, a objeção
manifestada por Ananias é válida e oportuna. Em sua resposta, Jesus não
passa a recriminar Ananias, mas lhe dá alguma informação adicional,
que vai precedida por um lacônico: “Vai”.

561
No grego, o termo aparece quatro vezes em Atos (At 9:13, 32, 41; 26:10), trinta e nove vezes nas
epístolas paulinas, duas vezes em Hebreus e treze vezes em Apocalipse.
562
Veja-se também Mt. 18:20; 28:20; At. 2:21, 38; 22:16; Rm. 10:13; 1Co. 1:2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 472
c. A ordem (At 9:15–16)

15, 16. Mas o Senhor lhe disse: Vai, porque este é para mim um
instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis,
bem como perante os filhos de Israel; pois eu lhe mostrarei quanto lhe
importa sofrer pelo meu nome.
Jesus diz pela segunda vez a Ananias que vá ver Paulo. E de
passagem, mostra-lhe três aspectos importantes que têm que ver com a
vida futura de Paulo. Num sentido, estes três atos são uma sinopse da
segunda parte de Atos. 563 Enquadram a vida de Paulo depois de sua
conversão:
1. Chega a ser um instrumento escolhido por Cristo
2. Apresentará o evangelho tanto a judeus como a gentios
3. Ao fazê-lo, sofrerá pelo nome de Jesus.
Jesus tira toda dúvida da mente de Ananias e lhe manda ir a Paulo.
Diz-lhe:
a. “Este é para mim um instrumento escolhido”. Há cinco razões
para crer que Paulo é uma pessoa superior para realizar a tarefa que Jesus
tem para ele: Paulo é um judeu, quem foi instruído esmeradamente no
Antigo Testamento por Gamaliel; criou-se num ambiente onde se falava
o grego; conhece a cultura helenística; sabe como interpretar o
evangelho em termos adaptados para ser entendido pelo mundo
helenístico; é um cidadão romano que entende que a vasta rede de
caminhos do império romano facilita as viagens, de maneira que o
evangelho pode chegar a todos os limites do mundo. E. M. Blaiklock
escreve: “Ninguém melhor que Paulo de Tarso podia reunir todas estas
qualidades. É difícil imaginar-se outro lugar [fora de Tarso] onde todo o
ambiente e a história da cidade fossem mais favoráveis para produzi-los
numa só pessoa”. 564 Quando Jesus usa a palavra escolhido está se

563
Richard N. Longenecker, The Acts of the Apostles, en vol. 9 de The Expositor’s Bible Commentary,
ed. Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1981), p. 373.
564
E. M. Blaiklock, “Tarsus”, ZPEB, vol. 5, p. 602.
Atos (Simon J. Kistemaker) 473
referindo não a uma escolha mas a uma missão. Esta é a tarefa que
espera a Paulo:
b. “Para levar o meu nome perante os gentios”. Paulo é o
representante pessoal de Jesus ao mundo gentílico. Em suas epístolas,
reiteradamente assinala que ele foi chamado para ser um apóstolo aos
gentios. 565 No caminho para Damasco, Jesus pessoalmente o chama para
levar a cabo esta tarefa. E embora a comissão de ser apóstolo não se
concretizou senão até alguns dias depois, não variou no mínimo que seja
a acusação de levar o evangelho de Cristo aos gentios. Além disso, Paulo
proclamou o evangelho primeiro aos judeus em suas sinagogas, mas
depois se dedicou ao mundo gentílico. Ele mesmo se considerava
primeiro e mais que nada uma voz de Jesus aos gentios.
c. “Perante … reis, bem como perante os filhos de Israel”. A seu
tempo, Paulo apareceria diante do rei Agripa e buscaria persuadi-lo de
tornar-se cristão (At 26:28). Apelaria a César para ser julgado por Nero
nos tribunais de Roma (At 25:11–12, 25; 26:32; 28:19). E em numerosas
oportunidades ele se dirigiria aos judeus, como o testemunha seu
discurso dos degraus da fortaleza romana em Jerusalém (At 22:1–21).
d. “Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome”.
Jesus dá a Ananias informação só parcial e Se reserva para si o privilégio
de informar a Paulo a respeito dos sofrimentos que ele deveria suportar
por anunciar o evangelho de Cristo. Talvez Jesus está antecipando-se a
uma pergunta de Ananias sobre o sofrimento que implicaria para Paulo o
ser embaixador de Cristo. A resposta de Jesus é afirmativa e
tranquilizadora. Jesus está no controle completo da situação, e disso
falará com Paulo no seu devido tempo.

Considerações doutrinais em At 9:15


Paulo afirma ser um apóstolo “não da parte de homens, nem por
intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo” (Gl 1:1). À primeira
565
Rm. 11:13; 15:15–16; Gl. 1:16; 2:7–8; veja-se também At. 13:2, 46; 22:21.
Atos (Simon J. Kistemaker) 474
vista, a evidência em Atos não parece respaldar o apostolado que Paulo
proclama. Primeiro, os três relatos de sua conversão (At 9:1–19; 22:6–
21; 26:12–18) não dizem nada sobre sua nomeação como apóstolo.
Logo, só uma vez Lucas se refere a Paulo como apóstolo, e num sentido
muito geral quando o menciona junto com Barnabé (At 14:14). Terceiro,
Pedro claramente estabelece os requisitos para o apostolado quando os
crentes se reúnem para escolher o sucessor de Judas Iscariotes (At 1:21–
22). Segundo estes requisitos, um apóstolo devia ter sido um seguidor de
Jesus desde o tempo em que o Senhor foi batizado por João no Jordão
até o dia de Sua ascensão. E, além disso, devia ter sido testemunha de
Sua ressurreição.
Não obstante, Paulo é um apóstolo porque o próprio Jesus o pôs na
posição de apóstolo. Embora ele não faça parte dos Doze, os apóstolos
em Jerusalém o aceitam como o apóstolo de Cristo aos gentios. Há cinco
razões para isso:
Paulo viu o Jesus ressuscitado e, por isso, foi testemunha da
ressurreição (At 26:16–18; 1Co 9:1). Bem como os outros apóstolos,
Paulo tem o poder para realizar maravilhas e sinais. Como outros
apóstolos receberam o dom do Espírito Santo, assim também Paulo (At
9:17). Proclamou o mesmo evangelho que os apóstolos proclamam (Gl
2:2). Por último, como outros apóstolos, chega a ser um intérprete do
evangelho. Em resumo, por seu próprio testemunho em suas cartas e
discursos sabemos que ele preencheu os requisitos para ser apóstolo. Foi
chamado pessoalmente por Jesus. 566

566
Consulte-se Everett F. Harrison, “Apostle, Apostleship”, EDT, pp. 70–72; William Childs
Robinson, “Apostle”, ISBE, vol. 1, pp. 192–95.
Atos (Simon J. Kistemaker) 475
Palavras, frases e construções gregas em At 9:15–16
Versículo 15
σκεῦος ἐκλογῆς — literalmente traduzida, a expressão instrumento
de eleição é um hebraísmo. Peritos em gramática explicam o genitivo
como um atributivo e o tratam como um adjetivo descritivo: “um
instrumento escolhido”. 567
τοῦ βαστάσαι — o artigo definido no caso genitivo seguido pelo
infinitivo aoristo denota propósito.

Versículo 16
ὅσα — o antecedente implícito deste pronome indefinido é πάντα
(cf. At 14:27). 568

d. A resposta (At 9:17–19a)

Ananias compreende que o próprio Jesus preparou o caminho que o


levará até Paulo e que ao mesmo tempo preparou a este para seu
encontro com um irmão em Cristo. Não tem nada a temer da parte do
perseguidor dos crentes. Vai em busca de um cego, que se hospeda na
casa de Judas da rua Direita.
17. Então Ananias foi, entrou na casa, pôs as mãos sobre Saulo e
disse: “Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que lhe apareceu no caminho por
onde você vinha, enviou-me para que você volte a ver e seja cheio do
Espírito Santo” [NVI].
a. “Ananias foi, entrou na casa”. Obediente à ordem de Jesus,
Ananias caminha pela rua Direita até a casa de Judas, entra, e se encontra
com Paulo. Admitindo que Lucas só provê os traços gerais deste

567
Robertson, Grammar, p. 496.
568
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. E rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#304.
Atos (Simon J. Kistemaker) 476
encontro, supomos que Judas dá as boas-vindas a Ananias quando entra
em sua casa e lhe informa do estado de Paulo, tanto espiritual como
fisicamente. Em lugar de encontrar um homem de aspecto temível,
Ananias está diante de uma pessoa que revela uma tremenda necessidade
de amizade cristã.
b. “Pôs as mãos sobre Saulo”. O significado exato deste gesto não
está muito claro e Lucas tampouco oferece maior explicação. Devido a
certa ambiguidade que se percebe, devemos evitar interpretações que não
tenham sua base firme no contexto. Assim, atrevemo-nos a dizer que o
propósito de Ananias ao pôr as mãos sobre Paulo é, primeiro, reconhecê-
lo como um crente; logo, devolver-lhe a vista; e finalmente, fazer com
que o Espírito Santo venha sobre ele. O fato interessante é que Ananias,
discípulo, porém não apóstolo, serve como instrumento de Jesus para
operar um milagre de cura e conferir o Espírito Santo. 569
c. “Irmão Saulo”. Impressionado pelo aspecto manso de Paulo,
Ananias deixa ver seu genuíno amor ao cumprimentá-lo. Como o deixa
ver a transliteração do grego da palavra Saoul, ele fala ou no hebraico ou
em aramaico. E não só isso, mas também diz “irmão”. Para Paulo, esta
simples palavra, mais que qualquer outra coisa, diz-lhe muito. Agora ele
se dá conta que com a saudação de irmão, Ananias o aceitou e lhe dá as
boas-vindas ao seio da igreja. 570 Este servo do Senhor, portanto, tende
uma ponte sobre o topo que existe entre o judaísmo e o cristianismo. Ao
tocar em Paulo, indica que reconhece a Paulo como um crente. Em
seguida, então, dá a mensagem que Jesus lhe deu para dar.
d. “O Senhor Jesus, que lhe apareceu … enviou-me”. Ananias
menciona a Jesus, a quem chama Senhor, e assim estabelece um ponto
de contato com Paulo. Está dando a entender que Jesus o pôs a par da
experiência de conversão de Paulo, em caminho para Damasco. E que
está ali porque Jesus o comissionou para isso. Por contraste, Jesus disse a
569
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981); pp. 541–42.
570
Lake e Cadbury ainda sugerem que este saudação “realmente seria melhor se a leitura dissesse:
meu compañero-cristianizo”. Beginnings, vol. 4, p. 104.
Atos (Simon J. Kistemaker) 477
Paulo que Ananias viria para restituir-lhe a vista (v. 12). O quadro verbal
que Lucas pinta é vívido, embora careça de detalhes. Usando uma
linguagem muito descritiva, revela que Paulo recebeu a vista, mas as
palavras com relação à plenitude do Espírito Santo são esquemáticas.
Não dá uma sequência dos fatos pelo que não podemos estabelecer com
exatidão em que momento ocorreu a vinda do Espírito Santo. Diz que
depois que recuperou a vista, Paulo foi batizado.
18, 19a. Imediatamente, lhe caíram dos olhos como que umas
escamas, e tornou a ver. A seguir, levantou-se e foi batizado. E, depois de
ter-se alimentado, sentiu-se fortalecido.
Mesmo quando sabemos que Lucas era um médico, seu relatório a
respeito da recuperação da vista por Paulo é direta. Um paralelo à frase
como escamas aparece no livro apócrifo de Tobias, onde lemos que
quando Tobias aplicou o fel de um peixe nos olhos cegos de seu pai,
Tobit, recuperou a vista. “Logo lhe tirou com ambas as mãos as escamas
dos olhos”. 571
No segundo relato da conversão de Paulo (At 22:13), Ananias lhe
diz: “Irmão Saulo, recupere a visão” [NVI]. E ato seguido, dá-lhe
instruções com estas palavras: “O Deus de nossos pais, de antemão, te
escolheu para conheceres a sua vontade, veres o Justo e ouvires uma voz
da sua própria boca, porque terás de ser sua testemunha diante de todos
os homens, das coisas que tens visto e ouvido. E agora, por que te
demoras? Levanta-te, recebe o batismo e lava os teus pecados,
invocando o nome dele.” [At 22:14–16]
Entendemos que no primeiro relato Lucas apresenta uma descrição
breve e real da reunião que houve entre Ananias e Paulo. No segundo
relato, Paulo mesmo conta sobre a reunião e de forma vívida lembra as
palavras ditas por Ananias.
Paulo se levanta e faz saber seu desejo de ser batizado. Lucas omite
o detalhe do lugar onde o batismo teve lugar, a forma em que se levou a

571
Tob. 11:12–13.
Atos (Simon J. Kistemaker) 478
cabo, e a pessoa que o praticou. É possível que tenha tido lugar no rio
Abana, que corre através de Damasco para o norte e de forma paralela à
rua Direita. É significativo, entretanto, o fato que a satisfação de uma
necessidade espiritual precede a de uma necessidade física. Depois de ter
estado jejuando por três dias, Paulo não sente a pressa de satisfazer a
fome que tem. Quer ser batizado para que todos saibam que agora é um
discípulo de Jesus Cristo. Pensamos que foi o mesmo Ananias quem o
batizou. Em seguida desta cerimônia, Paulo se alimenta para recuperar a
força física, pondo fim ao seu jejum.

Considerações práticas em At 9:18


Uma das responsabilidades de um pastor ordenado é praticar o rito
do batismo onde quer que seja requerido. Em algumas das congregações
com muitos membros, os serviços batismais são fixados para um
domingo específico do mês. Nestes serviços, em geral oficia o pastor da
igreja local.
No Novo Testamento com frequência encontramos menções ao
batismo, e é dito que foi oficiado por um apóstolo (1Co 1:14–16), um
evangelista (At 8:38; 21:8), e um membro da igreja de Cristo (At 9:18).
Na igreja primitiva não existiam regulamentos muito rígidos nesta
matéria. O próprio Paulo diz que sua primeira preocupação não é batizar,
e sim pregar o evangelho (1Co 1:17). O costume de permitir que
membros da igreja não ordenados que administrem o rito do batismo
prevaleceu através do tempo. Na maioria das igrejas, especialmente as de
persuasão reformada, esta prática foi descontinuada. Para promover
ordem e dignidade, só os pastores ordenados que podem realizar
batismos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 479
Palabras, frases y construcciones griegas en Hch 9:17–19a
Versículo 17
ὁ κύριος … Ἰησοῦς — a palavra Senhor está separada do nome
Jesus para indicar ênfase.

Versículo 18
ἐβαπτίσθη — o passivo aoristo insinua um agente implícito,
chamado Ananias. Em At 22:16 aparece o primeiro imperativo médio
aoristo βάπτισαι. O meio não significa “batizar-se a si mesmo”, mas sim,
“a pessoa permitir-se ser batizada”. 572

Versículo 19a
ἐνίσχυσεν — do verbo ἐνισχύω (eu fortaleço), esta forma composta
é intensiva.

e. A propagação (At 9:19b–22)

Alguns tradutores dividem o texto no meio do versículo 19. Veem


que Paulo entrou para uma nova fase de sua vida, um de cujos aspectos é
sua reclusão no deserto da Arábia. Segundo a informação que provê em
sua carta aos Gálatas, Paulo passou três anos na Arábia e Damasco antes
de ir a Jerusalém (At 1:17–18). Não sabemos se este período é de três
anos completos, ou se ele se refere a um ano completo mais parte do ano
precedente e parte do ano seguinte. Os judeus contam como um ano
completo a parte de um ano.
A reclusão de Paulo no deserto é importante por mais de uma razão:
primeiro, a permanência por um longo período num lugar o preparava
572
Nigel Turner, A Grammar of New Testament Greek, 4 vols. (Edimburgo: Clark, 1963), vol. 3, p.
57. Veja-se também C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge:
Cambridge University Press, 1960), p. 26.
Atos (Simon J. Kistemaker) 480
573
para a tarefa que o esperava; logo, porque o tempo cura as feridas,
uma longa ausência de Jerusalém foi benéfica tanto para ele como para a
igreja; e por último, Paulo não se apressou em ir a Jerusalém para reunir-
se com os apóstolos porque o próprio Jesus, não os apóstolos, tinha-o
escolhido para o apostolado.
Depois de sua permanência no deserto, que pôde ter sido qualquer
lugar no reino nabateu que se estendia de Damasco até a fronteira com o
Egito, Paulo volta para Damasco. Por seu próprio testemunho (Gl 1:16–
24) e pelo relato que faz Lucas em Atos, podemos propor a seguinte
sequência de eventos:
1. Sua conversão no caminho para Damasco (At 9:1–19a)
2. Sua breve estada em Damasco (At 9:19b–22)
3. Seu retiro para a Arábia (Gl 1:17)
4. Seu retorno a Damasco por algum tempo (At 9:23)
5. Seu escape a Jerusalém (At 9:23–25; 2Co 11:32–33)
6. Seu encontro com os apóstolos (At 9:26–28; Gl 1:18–19)
7. Saída para a Síria e Cilícia (At 9:30; Gl 1:21).
A informação subministrada por Lucas e Paulo é insuficiente para
formular uma cronologia confiável desta fase em particular da vida de
Paulo. Portanto, vemo-nos na necessidade de lançar mão das hipótese.
Uma destas é que com relação à expressão alguns dias (v. 19b) e muitos
dias (v. 23) Lucas abrevia alguns eventos que incluem o retiro de Paulo
no deserto da Arábia. 574
19b, 20. Então, [Paulo] permaneceu em Damasco alguns dias com os
discípulos. E logo pregava, nas sinagogas, a Jesus, afirmando que este é o
Filho de Deus.

573
Tanto João Batista (Lc. 1:80) como Jesus (Mt. 4:1–11) passaram tempo no deserto, em preparação
para suas respectivas tarefas.
574
Alguns comentaristas sustentam que Lucas não se dava conta da permanência de Paulo na Arábia.
Se fosse certo tal suposto, significaria que Lucas nunca teve acesso à carta de Paulo aos Gálatas. Veja-
se Gerhard Schneider, Die Apostelgeschichte, série Herders Theologischer Kommentar, 2 vols.
(Freiburg: Herder, 1982), vol. 2, p. 34. Consulte-se também Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles:
A Commentary, trad. por Bernard Noble e Gerald Shinn (Philadelphia: Westminster, 1971), p. 334.
Atos (Simon J. Kistemaker) 481
Embora Lucas não registre a reunião em Damasco de Paulo e os
cristãos, não duvidamos que Ananias serviu de porta-voz de Paulo,
tirando barreiras de temores e ressentimentos e fazendo com que a igreja
aceitasse o seu ex-perseguidor. Também supomos que Paulo teve que
provar-se como um discípulo de Cristo e teve que ganhar a confiança da
comunidade cristã.
Vemos, então, que Paulo, delegado pelo Sinédrio de Jerusalém para
ir às sinagogas de Damasco, logo começa a pregar nestas mesmas
sinagogas. 575 Em sua pregação ele afirma de maneira convincente que
Jesus é o Filho de Deus. É verdade que esta mensagem é o coração do
cristianismo, mas para os judeus é blasfêmia. Ele confessa o credo
judaico: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR”
(Dt 6:4).
Significativo é o fato que a expressão Filho de Deus aparece em
Atos só no versículo que descreve o começo da pregação de Paulo. Quer
dizer, a pregação de Paulo começa com a afirmação que Jesus é o Filho
de Deus, quem cumpriu as profecias do Antigo Testamento. Mesmo se o
termo Filho de Deus se aplicasse aos israelitas ou à nação de Israel (veja-
se, p. ex., Jr 3:19–20; Os 11:1), o conceito de filho aplica-se
especificamente a um descendente real de Davi (2Sm 7:14) e o Messias
(Sl. 2:7). 576 Jesus nunca usou o título exceto quando, no juízo, o sumo
sacerdote lhe perguntou se ele era o Filho de Deus (Mt 26:63). Quando
Jesus respondeu afirmativamente, acusaram-nO de blasfêmia. Agora,
Paulo continua pregando nas sinagogas de Damasco que Jesus é o Filho
de Deus e assim revela o coração da fé cristã.
21. Ora, todos os que o ouviam estavam atônitos e diziam: Não é este
o que exterminava em Jerusalém os que invocavam o nome de Jesus e
para aqui veio precisamente com o fim de os levar amarrados aos
principais sacerdotes?

575
Pregar nas sinagogas judaicas chegou a ser uma prática corrente no ministério de Paulo. Veja-se At
13:5, 14; 14:1; 17:2, 10, 17; 18:4, 19; 19:8.
576
Guthrie, New Testament Theology, p. 302; veja-se também Bruce, Book of the Acts, p. 190.
Atos (Simon J. Kistemaker) 482
Lucas descreve a reação dos judeus que assistiam aos cultos de
adoração na sinagoga. Perguntam-se se estão escutando um representante
do sumo sacerdote ou um cristão. Esperam ouvir uma mensagem do
sumo sacerdote em Jerusalém e instruções para a perseguição dos
cristãos. Em lugar disso ouvem que Jesus de Nazaré é o Cristo, o Filho
de Deus. Perguntam: “Não é este o que exterminava em Jerusalém os
que invocavam o nome de Jesus?” Surpreendem-se do que lhe ocorreu.
A mudança radical de Paulo toma de surpresa e assim, num sentido lhes
priva da capacidade de levantar qualquer objeção.
Lucas parece conhecer os comentários biográficos de Paulo em sua
epístola aos Gálatas. Por exemplo, diz que os judeus damascenos usam a
palavra assolar para descrever a perseguição que Paulo faz à igreja. No
Novo Testamento, esta palavra aparece só aqui (v. 21) e em Gálatas 1:13
e 23. Logo, o título Filho de Deus, que aparece só uma vez em Atos (At
9:20) é um nome que Paulo incorpora ao pregar o evangelho aos gentios
(Gl 1:16).
Paulo proclama o nome de Jesus Cristo, o Filho de Deus. E ao fazê-
lo, situa-se entre os discípulos que invocam este nome. Portanto, com
assombro total seus ouvintes perguntam se é o mesmo homem que foi
enviado a Damasco para prendê-los e os levar prisioneiros diante do
sumo sacerdote. Logo começam a notar que o cristianismo ganhou um
dos mais brilhantes membros do judaísmo. Paulo abandonou os círculos
da autoridade em Jerusalém para receber agora suas ordens de Cristo.
22. Saulo, porém, mais e mais se fortalecia e confundia os judeus que
moravam em Damasco, demonstrando que Jesus é o Cristo.
A reação à pregação de Paulo é inevitável, mas ele parece crescer
no meio da oposição que recebe. A expressão mais forte refere-se não a
seus poderes físicos, e sim à sua habilidade para provar com as
Escrituras que Jesus é o Messias. Manuscritos do Texto ocidental
acrescentam a frase preposicional na Palavra à cláusula Saulo, porém,
mais e mais se fortalecia. Assim, o texto “refere-se ao seu poder na
pregação e não somente na recuperação de suas forças físicas” depois
Atos (Simon J. Kistemaker) 483
577
dos três dias de jejum. Paulo recebeu um treinamento intenso no
Antigo Testamento e agora usa esses conhecimentos para explicar o
cumprimento destas Escrituras aos seus ouvintes. Quanto mais abre a
Palavra de Deus, mais vê o Cristo personificado em Jesus de Nazaré.
Os judeus entesouravam a sagrada Palavra, mas sentiam-se
confundidos e desconcertados quando Paulo lhes mostra o cumprimento
destas profecias messiânicas. Não estão capacitados a opor-se a este
erudito quem, cheio com o Espírito Santo, mostra-lhes a verdade da
Escritura. Seus débeis esforços para defender-se resultam em
contradição, confusão e derrota. Devem admitir que Paulo está correto
em seu ensino e que tudo o que ele diz está em harmonia com a Palavra
de Deus. Paulo demonstra “que Jesus é o Cristo”. No grego, o verbo
demonstrar na verdade significa pôr juntas várias partes para que uma
pessoa possa obter uma conclusão. 578 Paulo une numerosas passagens do
Antigo Testamento e demonstra com isso que é verdade que Jesus de
Nazaré é o Messias.

Palavras, frases e construções gregas em At 9:20–21


Versículo 20
ἐκήρυσσεν — o tempo imperfeito denota ação continuada no
passado; também é ingressivo: “Ele começou a pregar”. 579
συναγωγαῖς — devido à numerosa comunidade judaica de
Damasco, a cidade tinha várias sinagogas.
ὅτι — a conjunção introduz uma cláusula complementar, “que este
é o Filho de Deus”.

577
Metzger, Textual Commentary, p. 365.
578
Bauer, p. 777.
579
Robertson, Grammar, p. 885.
Atos (Simon J. Kistemaker) 484
Versículo 21
τὸ ὄνομα τοῦτο — estas palavras são traduzidas “este nome” e se
referem a Jesus. F. F. Bruce diz, “Talvez At 4:17; 5:28 devem ser
comparados pela incerteza de τὸ ὄνομα τοῦτο”. 580
ἐληλύθει — o ativo mais-que-perfeito do verbo ἔρχομαι (eu venho)
é traduzido como um tempo passado. Neste contexto, o mais-que-
perfeito perdeu seu verdadeiro significado porque a ação é um fato
consumado.

f. O complô (At 9:23–25)

Neste ponto cabe o isolamento de Paulo no deserto da Arábia. A


frase preposicional decorridos muitos dias difere da frase alguns dias no
versículo 19b. Lucas parece indicar um intervalo na permanência de
Paulo em Damasco. Como vimos no comentário sobre o versículo 21,
Lucas conhece a vida e cartas de Paulo. Por isso não considera
necessário entrar em detalhes a respeito da permanência solitária de
Paulo na Arábia.
23, 24a. Decorridos muitos dias, os judeus deliberaram entre si tirar-
lhe a vida; porém o plano deles chegou ao conhecimento de Saulo.
A expressão tão geral quanto a tempo, “decorridos muitos dias”,
está relacionada com os comentários autobiográficos de Paulo:
“Decorridos, três anos, então, [desde minha conversão perto de
Damasco] subi a Jerusalém” (Gl 1:18). Estes “três anos” bem puderam
ter sido pouco menos que dois anos e não três exatos. Em tal caso,
contaríamos um ano completo mais os dois anos parciais de antes e
depois daquele completo (cf. At 20:31). Este período inclui o tempo
passado na Arábia e em Damasco.

580
F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed.
rev. e aumentada. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 327.
Atos (Simon J. Kistemaker) 485
Paulo continua sua pregação nas sinagogas damascenas, onde se
encontra com uma dura oposição da parte daqueles judeus que recusam
aceitar o evangelho. De fato, Paulo corre o risco de ser morto por seus
compatriotas. Que mudanças nos acontecimentos! O perseguidor que
respirava ameaças de morte contra os cristãos (At 9:1) recebe agora sua
própria condenação de morte. O mesmo religioso fanático que causou
tanta dor aos seguidores de Cristo agora sofre por causa de Cristo (veja-
se v. 16). Neste ponto, sua vida de sofrimento quase não está começando
(veja-se 2Co 11:23–29).
Os judeus traçam um plano para matar Paulo, mas através dos
contatos na comunidade este recebe informação a respeito do complô (cf.
At 23:16, 30). Eles não estão interessados em atacá-lo com segurança.
Pelo contrário, movem-se através dos canais oficiais do governo local,
pensando obter seu objetivo de eliminá-lo. 581 Segundo a passagem
paralela (2Co 11:32–33), a autoridade com assento em Damasco não
representa o governo de Roma diretamente, mas sim o governo da
etnarquia, estabelecida por Aretas IV, rei dos árabes nabateus (9 a.C a 40
d.C.). Nos últimos anos de sua vida, este rei nabateu tomou de Roma o
controle de Damasco e a governou por um pouco de tempo. 582 Agora o
governador dá ordens para serem vigiadas as portas da cidade, porque
ele e os judeus querem capturar e matar Paulo.
24b., 25. Dia e noite guardavam também as portas, para o matarem.
Mas os seus discípulos tomaram-no de noite e, colocando-o num cesto,
desceram-no pela muralha.
Por que podem os judeus persuadir o governador nabateu de
Damasco a emitir a ordem de prender Paulo? Embora suponhamos que
Paulo passou tempo no deserto da Arábia meditando e preparando-se,
não devemos excluir a possibilidade de que ele procurou evangelizar os

581
Consulte-se Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 306.
582
Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, pp. 129–30. Refira-se F. F. Bruce, New Testament
History (1969; Garden City, N.Y.: Doubleday, 1971), p. 242. Para um interessante contraste, veja-se
Kirsopp Lake, “The Conversion of Saul”, Beginnings, vol. 5, p. 193.
Atos (Simon J. Kistemaker) 486
árabes nabateus. Por mais de um ano, Paulo proclamou o evangelho aos
nabateus e talvez ao próprio rei. Não seria estranho que o próprio rei
Aretas já não mais tolerasse a Paulo, e procurou capturá-lo. Por isso,
quando o governador sob Aretas soube que Paulo residia em Damasco,
pôs vigilância por todas as partes para capturá-lo. 583
Os convertidos sob seu ministério o protegem no entanto, e lhe
ajudam a escapar. Põem-no numa cesto e por uma janela de uma casa
construída nos muros da cidade o baixam pelo lado de fora (2Co 11:33;
Js. 2:15). Esta ação se realiza quando as sombras da noite já têm caído
sobre a cidade. Os esforços missionários de Paulo, no entanto, não foram
infrutíferos porque agora há na cidade um bom número de convertidos
(discípulos, em grego). É muito provável que o dono da casa da muralha
tenha sido um cristão. No entanto, para Paulo o tempo de permanecer em
Damasco terminou, pelo que retorna a Jerusalém.
Antes de abandonar o assunto do escape de Paulo de Damasco,
olhemos mais uma vez a dois fatos (vv. 23–25; 2Cor. 11:32–33) porque
um torna o outro mais claro. Por exemplo, a expressão pela muralha (v.
25) adquire um significado especial quando se compara com as palavras
uma janela na muralha (2Co 11:33). Também, a forma verbal desceram-
no é a mesma em ambas as passagens. Mesmo quando estas indicações
pudessem ser palha no vento, no entanto apontam na direção do
conhecimento que tem Lucas da segunda carta de Paulo aos coríntios. 584

Palavras, frases e construções gregas em At 9:23–25


Versículo 23
ἐπληροῦντο — o uso do imperfeito passivo do verbo πληρόω (eu
encho) transmite o sentido de um passo gradual do tempo: “eles foram
enchendo”.
583
Veja-se Lake, “The Conversion of Saul”, p. 194; e consulte-se Bruce, Book of Acts, pp. 191–92.
584
C. Masson, “A propos de Act. 9.19b–25. Note sur l’utilisation de Gal. et de 2 Cor. par l’auteur de
Actes”, TheolZeit 18 (1962): 161–66.
Atos (Simon J. Kistemaker) 487
ἱκαναί — referindo-se ao tempo, este adjetivo mostra que passou
um tempo considerável (veja-se também At 27:7). 585

Versículo 24
παρετηροῦντο — este é o médio imperfeito do verbo composto
παρατηρέω (eu observo de perto). O imperfeito denota atividade
constante, o meio significa “observar por si mesmo”, 586 e o composto
reflete intensidade.
ἡμέρας καὶ νυκτός — o genitivo de tempo —, quer dizer, o tempo
no qual ocorre algo.

Versículo 25
διά — a preposição seguida por um substantivo no caso genitivo
significa “através” no sentido de “através da abertura de uma janela”.

3. Paulo em Jerusalém (At 9:26–30)

Esta seção apresenta a volta de Paulo a Jerusalém, cidade que tinha


deixado em qualidade de implacável perseguidor dos cristãos, e de
enviado especial do sumo sacerdote. Ele sabe que como convertido à fé
cristã e apóstolo aos gentios — escolhido pelo próprio Jesus Cristo —
ele deve unir-se à igreja e aos apóstolos. A passagem contém algumas
dificuldades. Para ilustrá-lo, Lucas diz que Barnabé apresentou Paulo aos
apóstolos, mas Paulo em sua carta aos Gálatas diz que ele não se reuniu
com os apóstolos, exceto Pedro e Tiago (At 1:18–19).
Por outro lado, esta seção também desdobra uma notável
semelhança com a seção paralela anterior (vv. 19b–25): a apresentação

585
Bauer, p. 374.
586
Thayer, p. 486.
Atos (Simon J. Kistemaker) 488
de Paulo às igrejas, sua pregação nas sinagogas locais, o atentado contra
sua vida, e o escape a outros lugares.
26. E, quando Saulo chegou a Jerusalém, procurava ajuntar-se aos
discípulos, mas todos o temiam, não crendo que fosse discípulo [RC].
a. “Saulo chegou a Jerusalém”. Aparentemente, Lucas minimiza o
estado emocional e psicológico em que se encontra Paulo; no entanto,
não é difícil imaginar a tremenda pressão que sente à medida que se
aproxima de Jerusalém. Por muitas razões, Jerusalém é para ele sua casa,
mais que a própria Tarso. É possível que em Jerusalém tenha estado
vivendo com sua irmã (At 23:16). Mas como um que antes era fariseu
(Fp 3:5) deveria enfrentar seus antigos colegas, mestres e superiores.
Tratam-no de traidor e alguns não vacilarão em tentar matá-lo (v. 29).
Por isso é bem possível que quando lhes contou como o Senhor o havia
chamado perto de Damasco eles se negaram a aceitar seu testemunho
sobre Jesus; o próprio Senhor deve dizer lhe que saia imediatamente de
Jerusalém (At 22:17–18).
b. “Procurava ajuntar-se aos discípulos”. Como cristão, Paulo terá
que reunir-se com os membros da igreja de Jerusalém para adorar e orar.
Mas ele não conhece ninguém que lhe servisse de intermediário para que
o apresentasse diante dos membros da igreja. Em Damasco, Ananias
cumpriu esta função amorosamente, mas aqui, ele está sozinho. É-lhe
muito evidente que os cristãos têm medo dele. Continuam crendo nele
como um perseguidor da igreja, indigno de sua confiança.
c. “Todos o temiam”. Vez após vez, Paulo tenta adorar com os
crentes, a quem Lucas chama “os discípulos”; mas sempre sofre a
rejeição. Nos dias antes de sua conversão Paulo havia planejado voltar
para Jerusalém acompanhado de numerosos prisioneiros, discípulos de
Jesus da comunidade cristã de Damasco. Agora, ele chega à igreja de
Jerusalém como um discípulo de Cristo. Que mudança! A igreja não está
preparada para aceitá-lo e se nega a crer que se tornou discípulo.
Em sua carta aos Gálatas, Paulo revela que três anos depois de sua
conversão foi a Jerusalém (Gl 1:18). Porém não teria ouvido a igreja de
Atos (Simon J. Kistemaker) 489
Jerusalém de sua conversão? O fato é que depois de três anos, a igreja de
Jerusalém continua sofrendo as consequências da grande perseguição (At
8:1a). Paulo não menciona a igreja de Jerusalém, mas diz que a igreja da
Judeia não o conhece pessoalmente (Gl 1:22). Talvez porque passou
mais tempo no deserto da Arábia que na cidade de Damasco, as notícias
relacionadas com ele foram indefinidas, esquemáticas e talvez até
distorcidas. Paulo está sozinho entre dois corpos religiosos, o judaísmo e
o cristianismo, porque nenhum dos dois o aceita.
27. Mas Barnabé, tomando-o consigo, levou-o aos apóstolos; e
contou-lhes como ele vira o Senhor no caminho, e que este lhe falara, e
como em Damasco pregara ousadamente em nome de Jesus.
De novo, Lucas apresenta a Barnabé (At 4:36–37), um levita de
Chipre, a quem os apóstolos chamam “filho da consolação”. Ele tinha
vendido um campo e tinha dado o produto para ajudar aos pobres em
Jerusalém. Lucas também o descreve como “um bom homem, cheio do
Espírito Santo e de fé” (At 11:24).
Barnabé, fazendo honra a seu nome, interessa-se por Paulo. Dá-se
conta que Paulo precisa ser aceito pela igreja cristã e então decide ver o
que pode fazer. Os antecedentes de um e de outro se parecem bastante
em alguns sentidos; por exemplo, ambos procedem de comunidades
judaicas da dispersão, Chipre e Tarso, respectivamente; ambos falam
grego como sua primeira língua. Não devemos especular quanto a um
possível encontro pessoal antes, quer em Jerusalém ou na dispersão. As
Escrituras não dizem nada sobre se eles se conheciam de antes. Se este
fosse o caso, teríamos esperado que Paulo fosse diretamente buscar
Barnabé quando chega a Jerusalém. 587
Barnabé crê no que Paulo lhe diz a respeito de sua conversão e está
convencido de que é autêntica. Traz Paulo aos apóstolos, assume o papel
de porta-voz de Paulo, tal como o fez Ananias em Damasco. A

587
“É muito provável que Barnabé e Saulo conheceram-se pessoalmente nos dias de sua juventude”,
escreve Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4
vols. (1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 105.
Atos (Simon J. Kistemaker) 490
integridade de Barnabé faz com que os apóstolos escutem com atenção o
que tem a dizer-lhes quanto a Paulo. Conta-lhes a experiência de Paulo
no caminho para Damasco, sua conversão à fé cristã e sua coragem ao
pregar nas sinagogas de Damasco a respeito do nome de Jesus. Persuade-
os da autenticidade da conversão de Paulo.
Quem são os apóstolos que estão em Jerusalém? O próprio Paulo
diz que durante sua visita a Jerusalém, só viu Pedro e a Tiago, o irmão
do Senhor, mas a nenhum dos demais apóstolos (Gl 1:18–19). Tiago,
certamente, não pertence aos Doze mas ao círculo mais amplo dos
apóstolos. O que é que quer dizer Paulo quando diz que se reuniu só com
Pedro e Tiago? Quer dizer que quando Paulo esteve em Jerusalém, ali
estava Pedro, mas todos outros apóstolos encontravam-se ministrando
“em diversas comunidades cristãs através do país”. 588 A nota de Lucas
de que Barnabé trouxe Paulo diante dos apóstolos é uma afirmação geral
que parece referir-se a pelo menos dois representantes: Pedro e Tiago.
28, 29. Estava com eles em Jerusalém, entrando e saindo, pregando
ousadamente em nome do Senhor. Falava e discutia com os helenistas;
mas eles procuravam tirar-lhe a vida.
O que fez Paulo quando se encontrou com Pedro em Jerusalém?
Não cremos que durante quinze dias estivesse falando do estado do
tempo (Gl 1:18). Nas sinagogas de Damasco tinha proclamado a Jesus
como o cumprimento das profecias messiânicas do Antigo Testamento.
Baseado em seu conhecimento das Escrituras e em seu encontro com
Jesus, Paulo pôde pregar do nome do Senhor. No entanto, ele não tinha
sido seu seguidor desde dia do batismo do Senhor no Jordão por João
Batista até o tempo de Sua ascensão (At 1:21–22). Embora diga que ele
não recebeu o evangelho através de nenhum homem, mas por revelação
de Cristo Jesus (Gl 1:12), contudo, precisava da confirmação e visão
para pregar o evangelho de Cristo. Como apóstolo com eles, Paulo não
trabalhou independentemente dos outros apóstolos (veja-se Gl 2:1–2).

588
William Hendriksen, C.N.T. sobre Gálatas (Grand Rapids: SLC, 1984), p. 69.
Atos (Simon J. Kistemaker) 491
Proclamou um evangelho em harmonia com aquele que proclamavam os
Doze.
Para provar aos cristãos que ele realmente se converteu, Paulo se
dedica a levar o evangelho aos judeus de fala grega. Em resumo,
continua o trabalho começado por Estêvão. Com toda convicção
apresenta o nome de Cristo Jesus aos helenistas (veja-se At 6:1, 9), os
quais agora já não o consideram um erudito respeitável das Escrituras,
mas um traidor à causa do judaísmo. Como o fizeram no caso de
Estêvão, procuram também matá-lo.
30. Tendo, porém, isto chegado ao conhecimento dos irmãos,
levaram-no até Cesareia e dali o enviaram para Tarso.
É notável o paralelo entre a experiência de Paulo em Damasco e a
de Jerusalém: tem que fugir para salvar sua vida. Note-se também que
em ambos os casos é protegido pelos outros crentes chamados “irmãos”.
Em Damasco o ajudam a escapar descendo-o num cesto pela muralha da
cidade. Em Jerusalém, os irmãos o acompanham até Cesareia, onde o
põem a bordo de um navio que zarpa rumo a Tarso, sua terra natal.
Surgem duas perguntas relacionadas com o tempo que Paulo
permanece em Jerusalém e seus anos em Tarso: Primeiro, Paulo escreve
que permaneceu com Pedro durante quinze dias (Gl 1:18), mas Lucas diz
que Paulo falou e debateu com os judeus de fala grega em Jerusalém.
Esta dificuldade desaparece quando nos damos conta que a natureza
impetuosa de Paulo não lhe permitiu ficar tranquilo e dedicar-se a
aprender de Pedro e de Tiago o que estes lhe diziam a respeito da vida e
ministério de Jesus. Durante o lapso daquelas duas semanas, Paulo foi às
sinagogas que Estêvão tinha visitado. Ali, em poucos dias, os judeus
helenistas deram-se conta que não podiam rebater o erudito debate do
ex-fariseu. Para rebater sua pregação, eles viram a maneira de atentar
contra sua vida. E foram estas as circunstâncias que limitaram sua visita
a Jerusalém a só quinze dias.
Logo, o que fez Paulo quando voltou à sua cidade natal?
Permaneceu ali por vários anos antes que Barnabé fosse convidá-lo para
Atos (Simon J. Kistemaker) 492
o ajudar no ensino e na pregação à igreja em Antioquia (At 11:25–26).
Embora Lucas escreva a respeito das viagens missionárias de Paulo e das
igrejas que visitou, nunca menciona que em Tarso tenha existido uma
igreja. O que sabemos é que nessa cidade viviam numerosos judeus que
certamente tinham construído várias sinagogas.
Quase é óbvio pensar que Paulo se manteve como um missionário
ativo em sua província natal da Cilícia. Ele mesmo escreve que depois
que saiu de Jerusalém, foi a Síria e a Cilícia (Gl 1:21). O conselho do
Concílio de Jerusalém aos crentes gentios esteve dirigido aos que viviam
em Antioquia, Síria, e Cilícia (At 15:23). Quando Paulo iniciou sua
segunda viagem missionária, ele e Silas visitaram as igrejas na Síria e na
Cilícia com o propósito de fortalecê-las (At 15:41).589 Tudo parece
indicar, então, que Paulo usou seu tempo em proclamar o evangelho de
Cristo nas províncias da Síria e Cilícia.
Humanamente falando, Paulo falhou porque devido à sua impetuosa
forma de apresentar o evangelho foi criando inimigos por todas as partes.
Fez pouco em adiantar a igreja e o reino de Cristo. Por isso necessitava
um período de maturação e reflexão em Tarso para ganhar confiança e
desenvolver paciência. De uma perspectiva divina, dizemos que Jesus o
tirou da cena de conflito e confrontação em Damasco e em Jerusalém.
No tempo certo, chamou-o como Seu instrumento escolhido para
proclamar o evangelho aos gentios.

Considerações práticas em At 9:26–30


“O perfeito amor lança fora o temor” escreve João numa de suas
epístolas (1Jo 4:18). O perfeito amor se manifesta quando amamos o
Senhor com todo nosso coração, alma, e mente, e a nosso próximo como
a nós mesmos. Quando amamos a Deus e ao nosso próximo, então o
temor no sentido de alarme ou pânico desaparece de nossos corações.

589
E. A. Judge, “Cilícia”, ISBE, vol. 1, p. 699. Veja-se também R. C. H. Lenski, The Interpretation of
the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p. 378.
Atos (Simon J. Kistemaker) 493
Jesus nos diz que devemos amar até os nossos inimigos e orar por eles
(Mt 5:44). Ele põe nossos inimigos no mesmo nível que nossos amigos.
Barnabé não só ouviu este ensino de Jesus mas também o praticou.
Quando Paulo chegou a Jerusalém e foi rejeitado pelos crentes devido ao
fato de que duvidavam de sua sinceridade, Barnabé aproximou-se dele
em amor e o aceitou como um irmão em Cristo. Com um coração cheio
de amor por Paulo, Barnabé não teve medo do ex-perseguidor da igreja
de Jerusalém. E chegou a ser a ponte para Paulo quando o apresentou aos
apóstolos e aos membros da igreja para que o aceitassem. Sua atitude
motivou os irmãos a aceitar Paulo. Quando em duas semanas a situação
em Jerusalém pôs-se difícil para Paulo, estes mesmos irmãos
acompanharam-no a Cesareia. Barnabé e eles demonstraram um amor
genuíno para com Paulo e assim viveram sem temor. Nas palavras de um
hino escrito no século IX:
Sua fé não conheceu a vergonha,
Seu amor não adoeceu;
E a eterna esperança venceu
A angústia momentânea.

Palavras, frases e construções gregas em At 9:26–28


Versículo 26
ἐπείραζεν — note-se o tempo imperfeito deste verbo e o verbo
ἐφοβοῦντο neste versículo. O imperfeito traçado uma ação repetida. O
verbo πειράζω significa “tentar”.
πιστεύοντες — este particípio ativo presente sugere a causa para a
ação do verbo precedente temer.
ὅτι — usada como conjunção, a palavra introduz um discurso
indireto no qual o tempo presente do verbo ἐστίν é traduzido no passado.
Atos (Simon J. Kistemaker) 494
Versículo 27
ἐπιλαβόμενος —o sentido básico deste particípio aoristo é
“agarrar”. É preferível, contudo, o sentido figurado: “interessar-se em”.
πῶς … ὅτι … πῶς — a fraseologia vai de um assunto indireto à
uma afirmação indireta e logo volta a um assunto indireto. 590

Versículo 28
εἰσπορευόμενος καὶ ἐκπορευόμενος — aqui temos um modismo
que na verdade significa “mover-se livremente”. As palavras não devem
entender-se como uma construção perifrástica com o verbo ἦν, “entrava
e saía de Jerusalém”. Pelo contrário, o verbo estar é construído com μετʼ
αὑτῶν (ele esteve com eles). Também, a preposição εἰς é equivalente a
ἐν (em).

4. Conclusão (At 9:31)

Ao longo de seu livro, Lucas vai dando curtos resumos que põem o
leitor de sobreaviso com relação à passagem de um assunto a outro. Por
exemplo, há um resumo transicional entre seu relato do Pentecostes e o
da cura por Pedro e João do coxo na área do templo (At 2:44–47).591
Antes de escrever sobre a viagem missionária de Pedro a Lida e a Jope,
Lucas diz que as igrejas na Palestina entraram num período de paz.
31. A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e
Samaria, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto
do Espírito Santo, crescia em número.
a. “A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e
Samaria”. Lucas enfoca sua atenção na meta final: o último da terra. Por
tal razão, não diz quase nada a respeito da obra missionária na Palestina.
Supomos que os crentes que foram espalhados pela Judeia e Samaria (At
590
Robertson, Grammar, p. 1047; e veja-se Moule, Idiom-Book, p. 153.
591
Veja-se também At 4:32–35; 5:12–16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 495
8:1) ensinavam as Boas Novas e foram usados no estabelecimento de
igrejas. Só aqui em Atos, Lucas menciona a palavra Galileia. Seria o
mais natural supor que os quinhentos irmãos a quem Jesus apareceu
depois de Sua ressurreição e antes de Sua ascensão (1Co 15:6) tenham
estado testificando para Cristo na Galileia. Agora, numa afirmação
resumida, Lucas diz que a igreja na Judeia, Galileia e Samaria desfrutava
de um período de paz. Note-se que ele usa a palavra igreja no singular, o
que fortalece a ideia de unidade do corpo de Cristo. 592 Os judeus cristãos
do sul (Judeia) e do norte (Galileia) viviam em perfeita harmonia com os
cristãos samaritanos.
b. “A igreja, na verdade, tinha paz ... edificando-se”. Nesta
passagem, Lucas indica que toda a igreja na Palestina desfrutava de paz.
Dá a impressão que os judeus que se opunham à igreja cristã estavam
preocupados com outros assuntos. Em outras palavras, as notícias
religiosas e políticas daqueles dias monopolizavam a atenção com o
resultado de que a igreja experimentava uma trégua no meio da
perseguição.
Se assumirmos que o resumo de Lucas se refere aos anos 36 e 37
d.C., então sabemos pelo historiador Josefo que esses anos foram
marcados pela mudança. Para ilustrar isso, no ano 36 d.C. o governador
romano Vitélio sucedeu a Pôncio Pilatos. Logo que assumiu oficialmente
o poder, tirou Caifás da acusação de sumo sacerdote e deu o posto a
Jônatas. Um ano depois, Jônatas foi substituído por seu irmão Teófilo. 593
Diferente de Pilatos, Vitélio promoveu a ordem e a estabilidade social.
Além disso, no ano 37 d.C. o imperador Tibério morreu e foi substituído
por Calígula. Nesse ano, Calígula deu a seu amigo Herodes Agripa I a
autoridade para governar como rei na Palestina. 594 Herodes Agripa I,

592
Embora a RC use a palavra igrejas no plural, a maioria das versões protestantes em português usa a
forma singular; algumas versões católicas, no entanto, usam a forma plural. Veja-se Metzger, Textual
Commentary, p. 367.
593
Josefo Antiguidades 18.4.3 [95]; 18.5.3 [123].
594
Josefo Guerra judaica 2.9.6 [181]; Antiguidades 18.6.10 [237].
Atos (Simon J. Kistemaker) 496
neto de Herodes o Grande, governou de 37 a 44 d.C. Foi ferido por um
anjo do Senhor e morreu comido de vermes (At 12:23). Isto fez com que
os judeus que estavam empenhados em perseguir os cristãos desistissem
disso e escutassem os seus novos governantes. Então, a igreja desfrutou
de um período de paz e tranquilidade, e foi fortalecida na fé. Mas o
crescimento não só foi espiritual, mas também foi numericamente.
c. “Crescia em número”. Em todas as regiões da Palestina, a igreja
mostrava aumentos substanciais em termos de membresia. Quando o
medo pela perseguição baixou, inumeráveis pessoas confessaram
abertamente sua fé em Cristo. Lucas menciona duas razões para este
crescimento: primeiro, os cristãos viviam no temor do Senhor; quer
dizer, eram reverentes para com Jesus e O honravam em seu andar diário
como seu Senhor e Salvador. Segundo, experimentavam o consolo do
Espírito Santo. Em resumo, estes primeiros crentes mostraram ao mundo
a alegria do viver em Cristo. Através de suas vidas cheias do Espírito,
atraíam numerosas pessoas ao conhecimento salvífico de Cristo Jesus.

Palavras, frases e construções gregas em At 9:31


μὲν οὗν — veja-se a explicação deste reiterado modismo em Atos
em At 8:25.
τῆς — o único artigo definido é seguido por três nomes (Judeia,
Galileia, Samaria) e assim faz referência a todo o país da Palestina. 595
εἶχεν — este verbo (foram tendo) e o seguinte, ἐπληθύνετο (foi
aumentando), estão no tempo imperfeito que descreve uma ação
continuada no tempo passado.
τῶ φοβῳ — o caso dativo é um dativo de lugar com o verbo
πορεύομαι (eu ando, viver).

595
Robertson, Grammar, p. 787.
Atos (Simon J. Kistemaker) 497
D. O ministério de Pedro (At 9:32–11:18)

1. Milagre em Lida (At 9:32–35)

Em Atos, Lucas se move rapidamente através da história da igreja


cristã na primeira década de sua existência. Depois de relatar a
conversão de Paulo perto de Damasco e seu breve ministério ali e em
Jerusalém, volta ao ministério de Pedro. Pedro e Paulo se reúnem em
Jerusalém por duas semanas. Quando a igreja na Palestina começa a
experimentar uma trégua na perseguição que se desatou sobre ela e segue
crescendo em espírito e em número, Pedro sai de Jerusalém e começa a
viajar pelo país. É possível que sua viagem missionária tenha tido lugar
no último ano da quarta década. 596
A viagem de Pedro é um prelúdio ao seu chamado para que
visitasse em Cesareia a Cornélio, o centurião romano. Curiosamente,
Jesus comissionou a Paulo para ser Seu apóstolo aos gentios, mas dá
instruções a Pedro que pregue o evangelho à família gentílica de
Cornélio. Pedro, não Paulo, é o primeiro em dar as boas-vindas aos
gentios no seio da igreja cristã.
Antes de sua viagem a Cesareia, Pedro visita as igrejas localizadas
ao longo da fronteira da Judeia. Viaja à região costeira para reunir-se
com os crentes de Lida.
32. Passando Pedro por toda parte, desceu também aos santos que
habitavam em Lida.
Nada sabemos a respeito das viagens de Pedro, salvo o que Lucas
registra em Atos. Paulo faz a observação de que Pedro levava a sua
esposa em suas viagens missionários (1Co 9:5). Podemos presumir que
Pedro visitou as igrejas na Galileia e Samaria. Lucas oferece uma
descrição geral e diz que Pedro viajou por várias regiões. Quão longe foi

596
Alford sustenta que Pedro visitou as igrejas antes que Paulo o devesse ver a Jerusalém. Alford’s
Greek Testament, vol. 2, p. 107.
Atos (Simon J. Kistemaker) 498
não é importante para Lucas, quem se interessa em contar de sua visita a
Lida.
Das alturas de Jerusalém ou Samaria, Pedro desceu até os férteis
campos na planície de Sarom pela costa do Mediterrâneo. A cidade de
Lida, conhecida antigamente por seu nome hebraico de Lod, 597 estava
localizada a uns dezoito quilômetros a sudeste de Jope. Estava no
cruzamento de uma rota comercial entre o Egito e Damasco com o
caminho de Jerusalém a Jope. Júlio César deu a cidade de Lida aos
judeus, que a governaram até a revolta do ano 66 d.C. Então, enquanto o
povo estava em Jerusalém celebrando a Festa dos Tabernáculos, o
comandante romano Céstio a incendiou até sua total destruição. 598
Quem evangelizou os habitantes de Lida e de Jope? Inferimos pelas
evidências que nos proporciona
Lucas, que o evangelista Filipe, depois de batizar o eunuco etíope,
encontrou-se em Azoto e levou o evangelho a todas as aldeias e povos
naquela região costeira; até o final veio para Cesareia (At 8:40).
Pedro visitou os santos em Lida, escreve Lucas. É interessante que
a palavra santos aparece só umas poucas vezes em Atos (vv. 13, 32, 41;
26:10). Na primeira década da era cristã, os crentes foram conhecidos
como discípulos de Jesus. Uns poucos anos mais tarde, os crentes de
Antioquia foram chamados cristãos (At 11:26). Porém, nos últimos anos
da quarta década, os seguidores de Jesus ainda careciam de identidade,
pelo que o nome santos servia a esse propósito.
Os santos de Lida dão as boas-vindas a Pedro. Como resultado do
milagre de cura ali efetuado, cresceu a membresia das igrejas em Lida e
na planície de Sarom (v. 35). Sempre que lemos no Novo Testamento a
respeito dos milagres realizados tanto por Jesus como pelos apóstolos ou
os evangelistas, vemos que tais milagres têm o propósito de originar fé

597
O aeroporto internacional de Israel tem o nome do Lod. foi construído a uns dezoito quilômetros a
leste do Tel Aviv (a antiga Jope).
598
Josefo Guerra judaica 2.19.1 [515–16]; Antiguidades 14.10.6 [205–8], Veja-se também William
Ewing e R. K. Harrison, “Lydda”, ISBE, vol. 3, p. 151.
Atos (Simon J. Kistemaker) 499
ou fortalecê-la. Este é o caso de Lida, onde Eneias põe sua confiança nas
palavras de Pedro e é curado. Assumo que foi o próprio Pedro quem
contou a Lucas este milagre e o da ressurreição do Dorcas. Em ambos os
casos, Lucas menciona os nomes das pessoas envolvidas (Eneias e
Dorcas) o que permite dar a estas histórias maior vida e colorido.
33. Encontrou ali certo homem, chamado Eneias, que havia oito anos
jazia de cama, pois era paralítico.
Os santos em Lida põem Pedro em contato com Eneias, quem
sofreu um derrame ou paralisia e pelos últimos oito anos esteve
acamado. Para ele é absolutamente impossível mover-se de sua cama,
mesmo quando Pedro se aproxima. Se Eneias é crente ou não, não é
possível sabê-lo porque o relato é muito breve. Talvez Eneias tenha
ouvido dos milagres realizados por Pedro em Jerusalém; agora espera
com expectação a palavra de Pedro.
34, 35. Disse-lhe Pedro: Enéias, Jesus Cristo te cura! Levanta-te e
arruma o teu leito. Ele, imediatamente, se levantou. Viram-no todos os
habitantes de Lida e Sarona, os quais se converteram ao Senhor.
Pedro cura os doentes só invocando o nome de Jesus Cristo (cf. At
3:6), porque é o Senhor, não Pedro, quem opera os milagres. Pedro
chama Eneias por seu nome e logo lhe diz que Jesus Cristo o cura. Usa o
tempo presente numa frase declarativa. Anuncia um fato que na verdade
ocorre no instante em que ele diz as palavras. Logo ordena ao doente que
se ponha de pé e faça sua cama. A expressão literal no grego é “arruma-
te tu mesmo”. O objeto do verbo preparar faz falta e bem pode referir-se
à “cama” como à “mesa”. Os tradutores preferem usar o verbo com o
substantivo “cama”. 599
O advérbio imediatamente revela que, sem perder um segundo,
Eneias fica de pé e arruma sua cama para demonstrar às pessoas que foi
curado. Todos seus membros voltaram a funcionar.

599
Bauer, p. 771.
Atos (Simon J. Kistemaker) 500
O povo em Lida e nos arredores de Sarom vê e ouve o que ocorreu
e põem sua fé e confiança em Jesus Cristo. A planície de Sarom se
estende de Jope ao longo da costa passando Cesareia até o monte
Carmelo. Aqui Lucas está falando em termos gerais para comunicar as
notícias de que a igreja continua crescendo numericamente.

Palavras, frases e construções gregas em At 9:32 e 34


Versículo 32
κατελθεῖν — o infinitivo aoristo depende do verbo ἐγένετο, o qual é
seguido por Πέτρον (acusativo) como o sujeito do infinitivo. A forma
composta do infinitivo indica que Pedro desceu à planície de Sarom de
uma região geográfica mais alta.

Versículo 34
ἰᾶται — este indicativo presente ativo — o presente ativo é ἴαται —
é um presente aorístico. Quer dizer, a cura tem lugar quando Pedro fala.
στρῶσον — o imperativo ativo aoristo toma o substantivo implícito
κλίνην (cama) como objeto direto. A palavra cama também pode referir-
se a uma maca posta perto de uma mesa.

2. Milagre em Jope (At 9:36–43)

36, 37. Havia em Jope uma discípula por nome Tabita, nome este
que, traduzido, quer dizer Dorcas; era ela notável pelas boas obras e
esmolas que fazia. Ora, aconteceu, naqueles dias, que ela adoeceu e veio a
morrer; e, depois de a lavarem, puseram-na no cenáculo.
Junto às águas azuis do mediterrâneo e a uns cinquenta e sete
quilômetros a noroeste de Jerusalém jaz a cidade de Jope (a moderna
Haifa). Até Jope foi levada a madeira do Líbano que Salomão usou na
construção do templo de Jerusalém (2Cr 2:16). Foi em Jope também
onde Jonas embarcou para Társis (Jn 1:3). Através dos séculos, muitas
Atos (Simon J. Kistemaker) 501
nações tinham tido controle sobre esta cidade, porém no século I a.C.
Júlio César a entregou aos judeus. 600 Permaneceu nas mãos deles até a
guerra contra Roma (66–70 d.C.).
Os habitantes de Jope ouviram as Boas Novas dos lábios de Filipe,
o evangelista (At 8:40), e entre os que creram estava uma mulher com o
nome de Tabita. Logo Tabita se revelou como uma autêntica servidora
de Jesus Cristo, porque vivia sua fé quanto dizia e fazia. Era conhecida
por seu infatigável trabalho entre os pobres ao quais servia com carinho
e compaixão. Aparentemente, sua situação econômica era solvente,
porque sempre que tinha a ocasião vivia segundo o mandato divino de
cuidar dos pobres (cf. Dt 15:11; Mt 26:11; Gl 6:9–10).
Tabita é um nome árabe que significa “gazela”. Dorcas é o nome
em grego. Como muitas pessoas da Palestina do primeiro século, Dorcas
tinha dois nomes, um em aramaico e o outro em grego. Devido ao fato
de que era uma pessoa muito conhecida pelas numerosas obras de bem
que fazia em favor dos pobres, sua enfermidade e morte foi um
verdadeiro golpe para a comunidade cristã. Não nos são oferecidos
detalhes a respeito de sua enfermidade e morte, mas Lucas nos diz que
os crentes prepararam o corpo para o enterro. Lavaram-no e o puseram
num quarto do piso superior da casa onde ela viveu (veja-se 1Rs 17:19;
2Rs 4:10, 21). Com frequência, o cenáculo era destinado a abrigar os
hóspedes. Lucas registra este fato para mostrar que Dorcas tinha morrido
e que sua morte havia ocorrido nesse mesmo dia. Nas regiões onde o
calor é intenso, as pessoas mortas são sepultadas ou no mesmo dia que
falecem ou no seguinte. Tanto os judeus como os gregos praticavam o
rito de lavar os corpos dos mortos como preparação para o enterro. Esta
observância entre os judeus é conhecida como “a purificação da
morte”. 601

600
Josefo Guerra judaica 1.20.3 [396]; Antiguidades 14.10.6 [202–5]; 15.7.3 [217].
601
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 110.
Atos (Simon J. Kistemaker) 502
Normalmente, os corpos eram ungidos antes de ser sepultados. No
caso de Dorcas, Lucas só diz que foi lavado, o que parece implicar que
os cristãos tinham um motivo oculto para isso. Tinham ouvido que Pedro
realizou o milagre de cura de um paralítico perto de Lida, e queriam
pedir-lhe que levantasse Dorcas da morte.
38. Como Lida era perto de Jope, ouvindo os discípulos que Pedro
estava ali, enviaram-lhe dois homens que lhe pedissem: Não demores em
vir ter conosco.
A distância entre Jope e Lida era relativamente curta, pelo qual a
presença de Pedro na região certamente era conhecida pelos cristãos. Por
isso, os crentes de Jope enviaram dois homens para que fossem a ele.
Sabiam que Jesus tinha ressuscitado mortos e que Pedro tinha recebido
da parte de Jesus a autoridade para realizar milagres similares; houve a
possibilidade viva que Pedro pudesse trazer de novo à vida a Dorcas. O
envio dos dois emissários foi feito sobre a base desta fé. Naturalmente,
não queriam que Pedro se atrasasse mais que o necessário. Ao persuadir
a Pedro de que os acompanhasse imediatamente, estes emissários agiram
também com fé. Embora Lucas só registre o pedido de que venha, é
provável que não puderam conter a dor. Supomos que Pedro foi
informado da morte de Dorcas. Inteirou-se que os pobres de Jope
sentiram profundamente a falta de sua benfeitora.
O rogo é exposto em palavras corteses (“Não demores em vir ter
conosco”). Além disso, a urgência do assunto tinha relação direta com o
enterro iminente. O que se pedia a Pedro não era que fosse a Jope para
pregar nos funerais de Dorcas. Ao contrário, os crentes com fé esperam o
milagre de que Dorcas retornasse a eles viva e sã. 602
39. Pedro atendeu e foi com eles. Tendo chegado, conduziram-no
para o cenáculo; e todas as viúvas o cercaram, chorando e mostrando-lhe
túnicas e vestidos que Dorcas fizera enquanto estava com elas.
A distância entre Lida e Jope requeria ao menos uma caminhada de
três horas. É possível que os enviados já tenham feito esse tempo
602
Refira-se a Harrison, Interpreting Acts, pp. 172–73.
Atos (Simon J. Kistemaker) 503
caminhando. O pedido era urgente, pelo que Pedro, fazendo um
parêntese em seu plano de visitas às igrejas, despediu-se dos crentes em
Lida e foi embora com os homens a Jope imediatamente.
Quando Pedro chegou, os crentes o levaram ao quarto onde jazia o
corpo. Havia grande quantidade de viúvas que, segundo o costume
judaico, estavam chorando e lamentando. As viúvas daqueles tempos
eram facilmente identificáveis por sua vestimenta muito especial e
usualmente pertenciam aos estratos mais pobres da sociedade. As viúvas
de Jope dependiam de Dorcas, quem fez numerosas túnicas e outras
roupas para elas. Eles as mostraram a Pedro, rendendo assim um tributo
à memória de Dorcas.
João Calvino observa que Deus pôde ter mantido viva a Dorcas
para seguir cuidando das viúvas. Mas ao levantá-la dentre os mortos,
Deus lhe deu duas vidas. Ao mesmo tempo, mostrou às viúvas o poder
de Seu Filho, quem é o autor da vida. 603
40. Pedro mandou que todos saíssem do quarto; depois, ajoelhou-se e
orou. Voltando-se para a mulher morta, disse: “Tabita, levante-se”. Ela
abriu os olhos e, vendo Pedro, sentou-se [NVI].
a. “Pedro mandou que todos saíssem do quarto”. Ninguém havia
pedido a Pedro que operasse um milagre, embora Jesus anteriormente lhe
tinha dado o poder de ressuscitar mortos (veja-se Mt 10:8). Pedro não
podia agir por sua própria iniciativa, por isso orou ao Senhor por ajuda.
Seguindo a prática de Jesus quando ressuscitou a filha de Jairo, 604 pediu
a todos que saíssem da habitação. Precisava estar a sós com Jesus e orar
em particular. Ajoelhou-se numa atitude de humilde adoração e
dependência de Deus. Entendia o importante que era para os pobres que
Dorcas continuasse o trabalho que estava fazendo. Pediu então poder
para levar a cabo um milagre de acordo com a vontade de Deus.
b. “Voltando-se para a mulher morta, disse: ‘Tabita, levante-se’.”
Diferente do que fizeram os profetas Elias e Eliseu, que tocaram os
603
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 280.
604
Mt. 9:25; veja-se também Lc. 7:11–17; Jo. 11:44.
Atos (Simon J. Kistemaker) 504
corpos das pessoas que ressuscitaram (1Rs 17:19–23; 2Rs 4:32–35),
Pedro falou ao corpo de Dorcas (cf. Jo 5:25). Seguia o modelo de Jesus,
quem disse à filha de Jairo, “Talitá cumi” (Mc 5:41). Em aramaico, estas
palavras querem dizer: “Menina, levanta-te”. Temos razões para pensar
que Pedro falou em aramaico quando ressuscitou Dorcas. Chamando-a
por seu nome aramaico, disse-lhe: «Tabita cumi» (“Tabita, levante-se”).
A diferença entre a ordem que deu Jesus à filha de Jairo e esta de Pedro a
Dorcas é só uma letra. A semelhança, no entanto, que é só coincidência,
não vai além disso. Além disso, os manuscritos do Texto ocidental fazem
um pouco mais longa a ordem de Pedro: “Tabita, em nome de nosso
Senhor Jesus, levante-se” (cf. At 4:10). 605 Este agregado nos parece
alheio.
c. “Ela abriu os olhos e, venço a Pedro, sentou-se”. Note-se que não
é Pedro senão Jesus quem devolve Dorcas à vida. Ao abrir os olhos e
sentar-se, ela demonstra que está viva e bem. A enfermidade que lhe
tinha ocasionado a morte tinha desaparecido. Olhou para Pedro. Lucas
não proporciona o que disse. Pedro, então, ajudou-a a ficar de pé.
41. Tomando-a pela mão, ajudou-a a pôr-se em pé. Então, chamando
os santos e as viúvas, apresentou-a viva [NVI].
Pedro não tocou Dorcas senão até que ela demonstrou que estava
viva. É possível que o temor ritual judaico da contaminação tenha
proibido que Pedro só lhe desse a mão para a fazer levantar quando viu
que estava viva. Uma vez que o milagre de devolver a vida a Dorcas foi
feito, Pedro saiu do quarto e chamou os cristãos e às viúvas para que
vissem Dorcas viva. Quanto alegria haveria entre aqueles crentes!
Quanto agradecimento a Deus! Que triunfo maior da fé posta no Senhor!
42, 43. Isto se tornou conhecido por toda Jope, e muitos creram no
Senhor. Pedro ficou em Jope muitos dias, em casa de um curtidor
chamado Simão.

605
Muitos tradutores rejeitam esta versão, mas Lake e Cadbury chamam-na “a fórmula correta”.
Beginnings, vol. 4, p. 111.
Atos (Simon J. Kistemaker) 505
Que tremendo impacto causou este milagre e o de Lida. Lucas diz
que depois da cura de Eneias (v. 35), o povo que vivia em Lida e na
planície de Sarom voltou-se para o Senhor. Depois da ressurreição de
Dorcas, muitas pessoas de Jope creram no Senhor. A igreja cristã tinha
agora uma congregação em Asdode, em Lida, em Jope e ao longo de
toda a costa, “quase até Cesareia” 606 Lucas já fez menção da igreja na
Judeia, Galileia e Samaria (v. 31). Chegou o momento de levar as Boas
Novas aos gentios.
Não é Pedro senão o Senhor quem recebe todo o louvor, pois o
povo de Jope pôs sua fé em Jesus. Pedro ficou ali na cidade portenha
hospedando-se com um curtidor com o nome de Simão, quem vivia perto
do mar (At 10:6, 32). Aqui Simão tem suficiente água para trabalhar na
limpeza dos couros. 607 Talvez esta informação que Lucas proporciona
diga-nos algo sobre os membros da congregação de Jope. É possível que
a população em geral tenha evitado relacionar-se com Simão pelo tipo de
materiais que usava em seu trabalho, pelos animais mortos e o mau
cheiro que produziriam as peles. Além disso, os judeus consideravam
ritualmente impura a atividade do curtidor. Rejeitado pelos judeus da
sinagoga local, Simão foi aceito pelos membros da igreja cristã. A
decisão de Pedro de hospedar-se com Simão, o curtidor reflete sua
disposição de separar-se do legalismo judeu e ocupar-se em sua missão
entre os gentios. Em resumo, sua residência com Simão, o curtidor
estava preparando-o para o chamado de proclamar o evangelho na casa
de Cornélio, o centurião romano.

Considerações práticas em At 9:35 e 42


A igreja do Novo Testamento nasceu num só dia: no dia do
Pentecostes, quando três mil crentes foram acrescentados ao grupo
inicial de cristãos (At 2:41). A seguinte cifra que Lucas revela é de cinco

606
Haenchen. Acts, p. 341.
607
Howard M. Jamieson, “Tanner”, ZPEB, vol. 5, p. 595.
Atos (Simon J. Kistemaker) 506
mil homens que pertenciam à igreja. Se aqui se está falando de chefes de
família, então terei que acrescentar as esposas, com o que o número se
duplicaria a dez mil (At 4:4). Depois, era crescente o número de homens
e mulheres que criam em Jesus (At 5:14; 6:1, 7; veja-se também At
21:20).
O evangelho reúne pessoas de diferentes línguas: judeus que falam
grego, e judeus que falam aramaico (At 6:1). Superando barreiras
culturais, o povo comum abraça a fé cristã, assim como um grande
número de sacerdotes (At 6:7); os samaritanos e judeus são parte da
mesma igreja; e Cristo aceita tanto os ricos como os pobres (p. ex.
Dorcas e as viúvas). Assim como as águas de uma inundação cobrem a
terra, o evangelho cobre a terra de Israel dentro dos dez anos desde o
Pentecostes. O evangelho de Cristo cobre todas as áreas e todo tipo de
pessoas. Num sentido, o trabalho missionário na Palestina chegou ao seu
fim, pelo que Pedro e Paulo devem sair aos gentios e aos judeus da
dispersão. No entanto, inspirados pelo ensino das parábolas de Jesus da
semente de mostarda e a levedura, observamos que externamente a igreja
continua crescendo. Internamente, o evangelho deve penetrar cada capa,
segmento e setor da sociedade. Como a levedura afeta cada partícula da
massa, assim o evangelho do reino de Cristo penetra as esferas da vida
familiar, o trabalho, a educação e o governo. Alegramo-nos quando a
igreja cresce numericamente, porém não devemos deixar de orar para
que o Senhor nos ajude a aplicar a Palavra de Deus em cada coisa que
fazemos ou dizemos. O cristão deve viver sua vida na própria presença
de Deus.

Palavras, frases e construções gregas em At 9:36–39


Versículo 36
μαθήτρια — esta forma, que a encontramos só aqui, é o feminino
do substantivo μαθητής (discípulo). Note-se que no caso de Dorcas,
Atos (Simon J. Kistemaker) 507
Lucas explicitamente afirma que ela é uma discípula, o que não ocorre
no caso de Eneias.
Ταβιθά — transliterado de uma palavra aramaica, o nome está
relacionado no nome Zíbia em 2Rs 12:1.

Versículo 38
οὕσης Αύδδας — tanto o particípio como o substantivo no caso
genitivo revela a construção genitiva absoluta.
δύο — Lucas diz que foram enviados dois mensageiros, em
harmonia com o costume do Próximo Oriente de enviar os discípulos de
dois em dois (cf. At 8:14; 11:30; 13:2; 15:27; 19:22; 23:23). 608
μὴ ὀκνήσῃς — do verbo ὀκνέω (eu duvido, demorar), este é o
subjuntivo aoristo, precedido por μή, na forma de um comando negativo.
A proibição sugere a resposta, “vou evitar fazê-lo”. 609 Veja-se também
Números 22:16.

Versículo 39
ἐπιδεικνύμεναι — este gerúndio na voz média significa “mostrar
por meio do uso”. Não é necessário interpretar o particípio como ativo,
porque “a voz média pode dar um sentido válido”. 610
ἐποίει — o tempo do verbo que precede esta forma ativa imperfeita
influi em sua tradução. Portanto, o tempo aparece como um mais-que-
perfeito (“fez”).

608
Refira-se a Bruce, Acts (texto griego), p. 249.
609
James Hope Moulton, A Grammar of New Testament Greek, vol. 1, Prolegomena, 2ª. ed.
(Edimburgo:Clark, 1906), p. 125.
610
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
207.
Atos (Simon J. Kistemaker) 508
Resumo de Atos 9
Paulo viaja a Damasco em perseguição da igreja. Vai prender os
crentes e levá-los prisioneiros a Jerusalém. À medida que se aproxima de
Damasco, uma luz brilhante do céu o rodeia. Escuta a voz de Jesus,
quem lhe pergunta por que o persegue. Cego pela brilhante luz, Paulo é
levado a Damasco, onde jejua durante três dias.
Jesus chama Ananias e o envia a casa de Judas, na rua chamada
Direita onde Paulo está hospedado Paulo. Depois de objetar o encargo e
de ouvir as palavras de ânimo de Jesus, Ananias vai encontrar se com
Paulo. Põe suas mãos sobre ele, este recupera a vista e é cheio com o
Espírito Santo. É batizado, põe fim ao seu jejum, e é fortalecido.
Paulo prega nas sinagogas de Damasco, mas logo começa a
experimentar tanta oposição teme por sua vida. Os convertidos o descem
num cesto para fora das muralhas da cidade. Escapa a Jerusalém, onde é
apresentado aos apóstolos por Barnabé com palavras diplomáticas. Paulo
enfrenta aos judeus de origem grega em Jerusalém, de novo é ameaçado,
e viaja a Cesareia e a Tarso.
Pedro realiza dois milagres: um em Lida, onde cura Eneias, quem
jazia de cama, doente; e o outro em Jope, onde traz Dorcas de novo à
vida. Muitos creem no Senhor enquanto Pedro fica alguns dias em casa
de Simão, o curtidor.
Atos (Simon J. Kistemaker) 509
ATOS 10
A IGREJA NA PALESTINA, parte 3 (At 10:1–48)
3. O chamado a Pedro (At 10:1–8)

Nos anos finais da primeira década, a igreja cristã seguiu ganhando


aderentes tanto entre os judeus da Judeia e Galileia como entre os
samaritanos. A igreja cresceu ao longo da costa do Mediterrâneo onde
tinha pregado Filipe (Azoto e em localidades até Cesareia). Pedro,
depois de visitar os cristãos em Lida, ficou com os crentes em Jope.
Tinha chegado a hora de pregar àqueles que não eram descendentes
de judeus ou samaritanos: o evangelho devia ser levado aos gentios (Mt
28:19–20). porém não é Paulo quem foi comissionado pelo próprio Jesus
para ser apóstolo aos gentios (At 9:15), mas Pedro quem primeiro rompe
a barreira que existia entre judeus e gentios. Não é difícil compreender
esta ação de Pedro. Primeiro, ele foi o porta-voz em Jerusalém quando
no Pentecostes proclamou o evangelho aos judeus. Logo, com João foi a
Samaria receber os crentes samaritanos no seio da igreja cristã. E por
último, Pedro abriu o caminho para os gentios para que entrassem
também a fazer parte da igreja quando Deus o chamou para ir a Cornélio
em Cesareia.

a. As circunstâncias (At 10:1–3)

1. Havia em Cesareia um homem chamado Cornélio, centurião do


regimento conhecido como Italiano [NI].
Esta é a terceira vez que Lucas menciona Cesareia. Primeiro, Filipe
se radicou ali depois de ter pregado enquanto viajava para o norte de
Azoto (At 8:40). Logo, quando Paulo teve que escapar de Jerusalém,
Atos (Simon J. Kistemaker) 510
seus amigos cristãos o levaram a Cesareia para que dali embarcasse para
Tarso (At 9:30). Por último, ali vivia Cornélio.
Antigamente, Cesareia tinha sido conhecida com o nome de Torre
de Strato. No ano 30 a.C. foi dada por César Augusto a Herodes, o
Grande. 611 Por sua vez, Herodes quis congraçar-se com César Augusto e
lhe pôs seu nome à cidade. Reconstruiu a cidade para fazer dela uma
vitrine do Este. Num período de doze anos (22–10 a.C.), construiu um
teatro, um anfiteatro, edifícios públicos, uma pista de carreiras, um
palácio, um aqueduto e um magnífico porto.
A cidade floresceu. A cultura grega e a influência romana atraíram
uma população mista a esta bela cidade portenha. Entre estes estava o
governador romano, quem tinha ali sua residência e fez dela também a
sede de seu governo. Mesmo quando gregos e romanos e pessoas de
outras nacionalidades representavam a maioria da população, os judeus
constituíam uma minoria influente e poderosa.
Sob a autoridade do governador romano havia uns três mil
soldados, entre os quais estava o regimento Italiano. Seus membros
pertenciam à segunda coorte de cidadãos romanos que tinham oferecido
voluntariamente seus serviços (Coorte II. Milícia Italiana Cívica Romana
Voluntária). 612 Este regimento servia em Cesareia no ano 69 d.C. e é
muito provável que desde antes, protegendo os interesses do império.
Servindo com o regimento italiano havia um centurião chamado
Cornélio, que em essência era um oficial não comissionado que estava à
frente de um centena de soldados. O nome Cornélio era comum nos
círculos romanos e põe em evidência a cidadania romana; quanto ao
mais, é sabido que um centurião devia ser um cidadão romano. Pela
descrição que Lucas faz, entendemos que vivia numa residência grande e
que tinha muitos serventes. Não há dúvida que através dos anos de servir

611
Josefo Antiguidades 13.12.2 [324]; 13.15.4 [395]; 15.7.3 [215–17].
612
T. R. S. Broughton, “The Roman Army”, Beginnings, vol. 5, p. 437.
Atos (Simon J. Kistemaker) 511
com o exército romano conseguiu reunir uma considerável fortuna (cf.
Lc 7:1–6) além de um prestígio bem adquirido.
2. Ele e toda a sua família eram piedosos e tementes a Deus; dava
muitas esmolas ao povo e orava continuamente a Deus [NVI].
Durante sua carreira militar, Cornélio tinha chegado a conhecer a
religião judaica e a tinha abraçado como um temente a Deus. Assistia aos
serviços religiosos do sábado na sinagoga local, e observava o sábado
como dia de descanso. Observava a lei judaica a respeito da alimentação,
era generoso em dar ofertas materiais que aliviassem as necessidades dos
pobres, e orava diariamente às horas fixadas. 613 No entanto, não
consentiu em ser circuncidado e batizado nem oferecia ofertas de
sacrifício. Desta maneira seguia o exemplo de numerosos gentios que
adoravam a Deus mas que não eram admitidos na comunidade judaica. 614
“[Cornélio] era devoto e piedoso de Deus com toda sua casa”. Para
ele, sua religião não era uma questão pessoal, mas compartilhava com
sua casa as verdades espirituais. De fato, ao menos um de seus soldados
era conhecido como um homem devoto (v. 7). Cornélio procurava viver
em harmonia com os Dez Mandamentos e ao fazê-lo, expressava seu
amor por Deus. Lucas nos diz que orava fielmente a Deus, expressava de
forma amorosa sua preocupação pelos pobres, e lhes fazia generosas
provisões. Suas ofertas eram aceitas por Deus e eram tidas em conta por
ele (v. 4). Possuía uma fé genuína no Deus de Israel e um verdadeiro
conhecimento dos preceitos de Deus; além disso, esperava a vinda do

613
P. L. Schoonheim, “De Centurio Cornelius”, NedTTs 6 (1964): 462; veja-se F. F. Bruce, The Acts
of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed. rev. e ampl. (Grand
Rapids: Eerdmans, 1990), p. 342.
614
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C.–135 d.C.), ed.
e rev. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 3, pp. 173–74;
Max Wilcox, “The ‘God-Fearers’ in Acts — A Reconsideration”, JSNT 13 (1981): 102–22; A. T.
Kraabel, “The Disappearance of the ‘God-Fearers,’ ” Numen 28 (1981): 113–26, e seu “Roman
diaspora: Six Questionable Assumptions”, JJS 33 (1982): 445–64; T. M. Finn, “The God-Fearers
Reconsidered” CBQ 47 (1985), 75–84; J. A. Overman, “The God-Fearers: Some Neglected Features”
JSNT 32 (1988); 17–26; Colin J. Hemer, The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. por
Conrad H. Gempf (Tubinga: Mohr, 1989), pp. 444–47.
Atos (Simon J. Kistemaker) 512
Messias. Sem as virtudes que menciona Lucas, não teria podido ser um
crente. Em resumo, estava preparado para ouvir o evangelho e aceitar a
Jesus Cristo como Senhor e Salvador.
3. Certo dia, por volta das três horas da tarde, ele teve uma visão.
Viu claramente um anjo de Deus que se aproximava dele e dizia:
“Cornélio!” [NVI]
Vemos um paralelo entre as visões de Ananias e Paulo em Damasco
(At 9:11–16 e 9:12, respectivamente), e as de Cornélio e Pedro em
Cesareia e Jope (vv. 3 e 10–16). Ao aparecer a Ananias e a Paulo em
visões separadas, Jesus os preparou para o encontro que teriam. O
mesmo ocorreu no caso de Pedro e Cornélio.
Para os judeus, a hora costumeira da oração era as três da tarde
(veja-se At 3:1). Um dia, a esta hora, Cornélio estava sobre seus joelhos
orando quando de repente viu um anjo. Lucas usa a palavra visão para
referir-se à aparição de um “anjo de Deus”. Quando os apóstolos foram
deixados livres no cárcere de Jerusalém, um anjo do Senhor abriu-lhes as
portas (At 5:19). De igual maneira, Pedro foi libertado da prisão por um
anjo do Senhor (At 12:7–10). Mas o anjo que veio a Cornélio apareceu-
lhe numa visão (veja-se também At 8:26).
É muito provável que Cornélio tenha tido conhecimento da
existência e obra dos anjos. Para o centurião, no entanto, que um anjo lhe
aparecesse e o chamasse por seu nome era uma experiência única.
Mesmo quando não tenha sabido das visitas angélicas, não quer dizer
que tenha estado mal da cabeça. Pelo contrário, estava em pleno uso de
suas faculdades. 615 O anjo o chamou e lhe disse: “Cornélio”.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:2


φοβούμενος τὸν θεόν —“piedoso”. A expressão aparece quatro
vezes em Atos (At 10:2, 22; 13:16, 26). Além disso, o verbo σέβομαι (eu

615
John Albert Bengel Gnomon of the New Testament, ed. por Andrew R. Fausset, 5 vols.
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 599.
Atos (Simon J. Kistemaker) 513
adoro) com o particípio refere-se aos gentios que adoram a Deus (At
13:43, 50; 17:4, 17; 18:7).
οἴκῳ — este substantivo (“casa”) é virtualmente idêntico ao
substantivo οἰκία. Dependendo do contexto, οἶκος significa “família” (p.
ex., neste versículo e em At 16:31, 34; 18:8); como οἰκία em João
4:53. 616
διὰ παντός — uma expressão idiomática que significa “sempre” ou
“em geral”. Perde o substantivo χρόνου (tempo).

b. A mensagem (At 10:4–6)

4. Atemorizado, Cornélio olhou para ele e perguntou: Que é,


Senhor? O anjo respondeu: Suas orações e esmolas subiram como oferta
memorial diante de Deus [NVI].
Dois mundos se juntam no encontro do anjo e Cornélio: o mundo
sem pecado no qual se move o primeiro, e o mundo pecador ao qual
pertence o segundo. Logo que Cornélio vê o anjo, percebe a divina
presença de Deus representada por um de Seus mensageiros. Não
admira, então, que o centurião tenha sido presa de grande temor quando
viu o anjo. 617 Zacarias e Maria, a aqueles que lhes apareceu o anjo
Gabriel no templo de Jerusalém e em Nazaré, respectivamente, foram
também muito perturbados. Como resultado disso, o anjo teve que lhes
dizer que não tivessem medo (Lc 1:13, 30). Neste caso, Cornélio não
tinha nada que temer.
Pergunta: “Que é, Senhor?” Note-se a semelhança no caso de Paulo
e de Cornélio: Jesus chamou Paulo pelo nome no caminho para
Damasco, e o anjo dirigiu-se a Cornélio pelo nome em Cesareia; Paulo
respondeu a Jesus com a expressão Senhor (At 9:5), e Cornélio usou a

616
Jürgen Goetzmann, NIDNTT, vol. 2, pp. 248, 250.
617
Consulte-se João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. por David W. Torrance e
Thomas F. Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1, p. 287.
Atos (Simon J. Kistemaker) 514
618
mesma palavra para dirigir-se ao anjo. O oficial romano sabia que está
diante de um santo anjo e, portanto, sua resposta é mais que uma frase de
cortesia.
O anjo lhe diz: “As tuas orações e as tuas esmolas subiram para
memória diante de Deus” [RA]. A mensagem do anjo assegura ao
centurião que suas orações ao Deus de Israel não foram oferecidas em
vão. Deus aceitou o amor que lhe demonstrou através de suas generosas
dádivas para o bem dos pobres. Portanto, Deus não esqueceu suas
orações e sua generosidade.
Para o judeu, lembrar significa que pode apelar a Deus em oração,
porque tem a segurança de que pode contar com Sua ajuda. 619 Como
Cornélio é um piedoso e não um convertido ao judaísmo, está inibido de
apresentar ofertas a Deus no templo de Jerusalém. Mas suas orações e
suas ações generosas para seu próximo foram aceitas por Deus.
5, 6. Agora, envia mensageiros a Jope e manda chamar Simão, que
tem por sobrenome Pedro. Ele está hospedado com Simão, curtidor, cuja
residência está situada à beira-mar.
Em que consistiam as orações que Cornélio apresentava a Deus?
Mesmo quando Lucas prescinde de dar detalhes, o conteúdo das orações
de Cornélio está implícito na mensagem do anjo. Cornélio tinha chegado
a ter conhecimento do Messias pelo estudo das Escrituras. Podemos
supor que desde sua chegada a Palestina tinha ouvido da vida e morte de
Jesus, porém não de Sua ressurreição, Suas aparições e Sua ascensão.
Ora para que Deus lhe conceda a salvação através do Messias prometido,
a quem proclamavam os apóstolos e os evangelistas. Embora o texto
bíblico não o indique especificamente (veja-se At 8:40), por aquele
tempo talvez Filipe já tinha chegado a Cesareia e, estabelecendo-se ali,
pregava o evangelho de Cristo.

618
David John Williams, Acts, série Good News Commentaries (San Francisco: Harper y Row, 1985),
p. 172
619
Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, p. 238. Veja-se Lv. 2:2, 9, 16; 5:12; Sir. 35:6; 38:11; 45:16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 515
“Agora, envia mensageiros a Jope e manda chamar Simão, que tem
por sobrenome Pedro”. Façamos duas observações: Primeiro, o anjo não
revela a Cornélio qual é a resposta específica de Deus a suas orações. Só
lhe diz a forma em que Deus lhe responderá sua petição. Em outras
palavras, Deus deseja que Cornélio exercite sua fé. Por isso não lhe diz
que o oficial vá a Jope para ver Pedro, mas envie homens a Pedro e que
lhe peçam para visitar uma família de gentios em Cesareia. Isto tem
importância porque assim como Pedro e João foram a Samaria receber os
cristãos no seio da igreja, assim Pedro viaja a Cesareia e abre as portas
da igreja cristã para que os gentios cheguem a ser membros dela. Desta
maneira, e em cumprimento do mandato de Cristo aos apóstolos (At 1:8),
Deus realiza novas fases no crescimento da igreja através dos apóstolos.
As instruções que Cornélio recebe do anjo são claras. Como
centurião e chefe de lar, era preciso mandar homens a Jope, uma cidade
localizada a meio caminho entre Gaza ao sul e o monte Carmelo ao
norte. Para ser preciso, Jope estava situada a 57 quilômetros a noroeste
de Jerusalém e a 44 ao sul de Cesareia. Os emissários estenderiam um
convite a Simão, chamado Pedro, para que visitasse o lar de Cornélio.
Note-se que o anjo usou o nome hebraico Simão para destacar o fato de
que Cornélio estaria pedindo a um judeu que visitasse sua casa. Além
disso, os homens não teriam dificuldade em encontrar a Pedro. Eles o
encontrariam em casa de um homem chamado Simão, curtidor, que vivia
junto ao mar. Não lhes seria difícil achar a casa, que estava localizada
fora dos limites da cidade (veja-se o comentário sobre At 9:43).

Considerações doutrinais em At 10:1–6


Quando os missionários cristãos levaram o evangelho aos gentios,
encontraram-se com um grupo de pessoas chamados piedosos (ou
tementes a Deus). Tratava-se de gentios que não tinham abraçado
totalmente a religião judaica e, portanto, não podiam ser qualificados
nem como pagãos nem como prosélitos. Conheciam a Septuaginta,
Atos (Simon J. Kistemaker) 516
porém não se incorporaram ao judaísmo, devido ao fato de que não se
tinham submetido a algumas regras da lei mosaica como a circuncisão, o
batismo e os sacrifícios. 620 Muitos dos piedosos aceitaram os ensinos do
evangelho, aderiram à fé cristã e creram em Jesus como seu salvador.
Entre estes estava Lídia, que vendia púrpura em Filipos (At 16:14),
alguns gregos em Atenas (At 17:4) e Tício Justo em Corinto (At 18:7).
Embora Cornélio orasse ao Deus de Israel, não conhecia Jesus
Cristo. Contudo, Deus escutou e respondeu sua oração. Tal coisa não
teria podido ocorrer a menos que Cornélio orasse com fé. 621 Cornélio,
então, orou a Deus e lhe pediu o dom da salvação mesmo antes de
conhecer Cristo. Vivia com a expectativa de que Cristo viesse à sua vida
da mesma maneira que os santos do Antigo Testamento esperavam o
Messias. Lucas não dá evidências de que Cornélio tenha orado a Deus e
dado generosamente aos pobres com o propósito de ganhar a salvação.
Dedicado a Deus, procurava guardar os mandamentos com um coração
cheio de amor a Deus e a seus próximos em necessidade.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:4–6


Versículo 4
ἀτενίσας — o verbo ἀτενίζω (eu olho intensamente para) aparece
quatorze vezes no Novo Testamento; doze vezes nos escritos de Lucas
(Lc 4:20; 22:56; At 1:10; 3:4, 12; 6:15; 7:55; 10:4; 11:6; 13:9; 14:9;
23:1). Veja-se também 2Co 3:7, 13.
κύριε — o vocativo, mas assinala mais que uma frase cortês. No
contexto, significa “Senhor”.

620
Kirsopp Lake, “Proselytes and God-fearers”, Beginnings, vol. 5, pp. 74–96.
621
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 111; veja-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p.
290.
Atos (Simon J. Kistemaker) 517
ἐλεημοσύναι — com o verbo ποιεῖν este substantivo significa
“praticar a virtude de misericórdia ou beneficência”. Aqui quer dizer
fazer “uma doação aos pobres”. 622

Versículos 5–6
μετάπεμψαι — este é o infinitivo ativo aoristo do verbo μεταπέμπω
(eu envio depois, ou para). A preposição neste verbo composto significa
“depois”. 623
βυρσεῖ — o dativo é em aposto no nome Simão, assim, “Simão, o
curtidor”.

c. A ação (At 10:7–8)

7, 8. Logo que se retirou o anjo que lhe falava, chamou dois dos seus
domésticos e um soldado piedoso dos que estavam a seu serviço e,
havendo-lhes contado tudo, enviou-os a Jope.
O anjo tinha vindo com uma tarefa específica: dar a Cornélio a
mensagem que Deus lhe enviava. Depois de ter cumprido sua missão, foi
embora. Mas Cornélio, em fé, obedeceu as instruções que Deus lhe tinha
dado. Chamou dois de seus serventes que eram confiáveis, deram-se
conta da devoção a Deus de seu senhor, e eram homens espirituais (veja-
se v. 2). Além disso, encarregou um soldado a acompanhá-los para dar-
lhes proteção. Este soldado era um homem devoto que assistia aos
serviços de adoração que Cornélio levava a cabo em sua casa. Os três
enviados possuíam um tesouro espiritual que lhes dava unidade de
propósitos.
Assim, os três saíram para Jope. Se isto ocorreu numa segunda-
feira, Cornélio esperaria que voltassem na quinta-feira (veja-se vv. 9, 23,

622
Thayer, p. 203.
623
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 609.
Atos (Simon J. Kistemaker) 518
24, 30). Se decidiram viajar pelo caminho arenoso que corre perto do
mediterrâneo, teriam que andar umas dez horas para cobrir a distância
entre Cesareia e Jope. É provável que no primeiro dia tenham caminhado
quatro horas e, partindo para a manhã seguinte, cedo, tenham atracado a
Jope pelo meio-dia.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:7–8


ὁ λαλῶν — el participio presente es traducido en el tiempo pasado
(“habló”) debido al tiempo aoristo de ἀπῆλθεν (salió).
ἅπαντα — a palavra é equivalente a πάντα (tudo). Para Lucas, trata-
se de um termo favorito tanto em seu Evangelho como em Atos. Aparece
dezessete vezes no Evangelho de Lucas, treze vezes em Atos, quatro em
Marcos, quatro nas epístolas paulinas e uma em Tiago.

4. A visão de Pedro (At 10:9–23a)

Lucas revela que Deus prepara Cornélio para entrar na igreja cristã
e a Pedro para recebê-los nela como membros plenos. Lucas dedica perto
de um capítulo e meio (At 10:1–11:18) ao assunto dos primeiros gentios
que aceitam a Cristo como seu Salvador, que recebem o dom do Espírito
Santo e são batizados. Nestes capítulos, Lucas indica que Deus
comissiona Pedro para abrir a porta aos gentios; Pedro representa os
apóstolos e é o líder da igreja de Jerusalém. Por tal razão, Pedro, não
Paulo, é a pessoa que dá as boas-vindas aos gentios.
Desde pequeno, Pedro aprendeu como judeu que não devia entrar
na casa de um gentio nem compartilhar a mesa fraternalmente com uma
pessoa que não fosse judia. Agora, deve aprender a sobrepor-se a esse
preconceito e aceitar como irmãos e irmãs os gentios que temem a Deus
e que creem em Jesus. Mediante uma visão, Deus prepara Pedro para seu
encontro com Cornélio e sua casa.
Atos (Simon J. Kistemaker) 519
a. A visão (At 10:9–13)

9. No dia seguinte, por volta do meio-dia, enquanto eles viajavam e


se aproximavam da cidade, Pedro subiu ao terraço para orar [NVI].
Os mensageiros de Cornélio não perderam nem um minuto na
viagem. Em dez horas estavam em Jope. Supomos que depois de
descansar durante a noite, continuaram a jornada ao amanhecer
chegando a Jope ao meio-dia. O fato que segundo Lucas Pedro tenha
estado no terraço leva-nos a supor que era verão, época do ano que dava
aos viajantes dias mais longos.
Enquanto os mensageiros se aproximavam de Jope, Pedro buscava
solidão para orar sobre o teto plano da casa do curtidor onde se
hospedava. As casas da Palestina daqueles tempos tinham escadas
exteriores que davam acesso até os tetos que eram planos. Ali a pessoa
podia dormir durante as calorosas noites do verão ou, como no caso de
Pedro, desfrutar durante o dia de uma refrescante brisa proveniente do
Mediterrâneo. Aparentemente, a casa do curtidor carecia de um
cenáculo. Por isso Pedro subiu ao teto à hora do meio-dia para passar um
tempo em oração particular.
Em Israel, o tempo para as orações particulares era pela manhã, ao
meio-dia, e ao entardecer (veja-se p. ex. Sl. 55:17; Dn 6:10). Os judeus
em Jerusalém participavam das orações públicas no templo durante a
hora do sacrifício matutino e às três, durante o tempo das ofertas de meia
tarde (veja-se At 3:1). 624 Em Jope, Pedro observa a hora de oração do
meio-dia enquanto espera o almoço.
10. Estando com fome, quis comer; mas, enquanto lhe preparavam a
comida, sobreveio-lhe um êxtase.
O grego sugere que na verdade Pedro tinha muita fome, talvez
devido ao fato de que tinha estado jejuando. Seriamente seu corpo
demanda algo de comer. Na cozinha, enquanto isso, seus hospitaleiros

624
SB, vol. 2, pp. 696–702; Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, p. 481.
Atos (Simon J. Kistemaker) 520
trabalham em lhe preparar a comida. Enquanto sofre as ferroadas da
fome, seus sentidos estão alerta na medida que concentra seus
pensamentos na oração a Deus. De repente cai em transe, o que no grego
se expressa com a palavra ekstasis (da qual se deriva nosso termo
êxtase). Enquanto permanece em transe, nem perde o controle de seus
sentidos nem tampouco sonha. Durante uma experiência enlevada
similar, Paulo vê o Senhor lhe falando e lhe dizendo que deve sair
imediatamente de Jerusalém (At 22:17–18). Em ambos os casos, os
apóstolos entram na presença de Deus para receber instruções relativas
ao seu ministério. Num profundo estado de concentração, ambos os
homens estão parcial ou totalmente insensíveis a sensações externas mas
completamente alertas a qualquer influência subjetiva que venha a eles
quer seja visualmente ou por meio de som.
No caso de Pedro, todos os seus sentidos estão dirigidos a Deus à
espera de instruções. Deus é aquele que provoca o transe para poder
comunicar-se visual e audivelmente com ele. 625 Note-se então que a
angústia causada pela fome se relaciona diretamente com a visão que
recebe quando cai em transe. Seus sentidos físicos são estimulados pela
fome que tem; no entanto, e apesar de seu apetite intenso está preparado
para rejeitar o convite que se lhe faz de comer.
11-13. Então, viu o céu aberto e descendo um objeto como se fosse
um grande lençol, o qual era baixado à terra pelas quatro pontas,
contendo toda sorte de quadrúpedes, répteis da terra e aves do céu. E
ouviu-se uma voz que se dirigia a ele: Levanta-te, Pedro! Mata e come.
Pedro vê que os céus se abrem e que um grande lençol cheio de
todo tipo de animais desce diante dele. Isto é muito interessante porque
teríamos esperado o contrário, ou seja, que os animais se juntaram em
terra para então ser levados ao céu. Mas um objeto desce do céu e Pedro
observa que é baixado pelos quatro extremos. Não se diz quem são os
que sujeitam o tecido, mas podemos supor que se trata de anjos. A ideia

625
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 601.
Atos (Simon J. Kistemaker) 521
que se quer deixar é que esta exibição se origina no céu, e não na
terra. 626 Em outras palavras, é ordenado por Deus.
Quando o lençol está o suficientemente perto para vê-lo, Pedro se
dá conta que contém todo tipo de animais quadrúpedes além de répteis e
aves do céu. Exceto pelos peixes do mar, todas as criaturas de Deus estão
presentes neste grande receptáculo aberto e assim, por comparação, são
similares àqueles que encheram a arca de Noé (Gn 6:20). O tecido
contém animais limpos e impuros: a ovelha e o porco, a vaca e o coelho
(cf. Lv 11; Dt 14:3–21). Quando Pedro toma nota de todos estes animais,
escandaliza-se quando ouve uma voz que vem do céu mandando que
mate e coma.
Deus mandou o judeu de que se separasse do gentio por meio do
comer alimentos preparados com fins rituais. Os judeus nem sequer
pensavam na possibilidade de entrar na casa de um gentio para comer e
beber com ele (veja-se At 11:3; Jo 18:28). Inclusive recusavam comprar
carne de um açougueiro gentio, com tudo o que queriam evitar
contaminar-se com algo que fosse ritualmente impuro. 627 Estas leis
estritas de separação ofendiam os gentios, que não viam nada mau em
comer animais imundos. Portanto, ao obedecer o mandamento da lei
mosaica de não comer com os gentios, Pedro considerava-se limpo ao
mesmo tempo que para ele todos os gentios eram imundos (cf. Gl 2:12–
14).
A lição que Deus dá a Pedro através desta visão de animais limpos
e imundos é que ele derrubou as barreiras que alguma vez tinha
estabelecido para separar seu povo das nações que os rodeavam. A
barreira entre os cristãos judeus e os cristãos samaritanos tinha ficado
abolida quando Pedro e João foram a Samaria para receber os crentes
samaritanos como membros inteiros da igreja. Agora chegou o momento
para estender este mesmo privilégio aos crentes gentios. É Deus, não
626
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 601.
627
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, serie Westminster Commentaries
(1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 150.
Atos (Simon J. Kistemaker) 522
homem algum, quem tira a barreira que separa judeus de gentios. Deus
instrui Pedro a aceitar os crentes gentios no seio da igreja cristã. Deus,
não Pedro, abre as portas do céu aos gentios. É o próprio Deus quem
inaugura uma nova fase no ministério evangélico de Pedro (At 11:18).

Considerações doutrinais em At 10:9–13


Antes que Jesus subisse ao céu, disse aos apóstolos que fizessem
discípulos em todas as nações, batizando e ensinando os crentes sem
levar em conta raça ou cor (Mt 28:19–20). Naturalmente, os apóstolos
entenderam o mandato de proclamar o evangelho de Cristo em todas as
partes. Sua preparação, cultura e fundo os levou primeiro aos judeus: às
ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 10:6). Mas Jesus lhes disse que
fossem suas testemunhas em Jerusalém, Judeia, Samaria, e até o fim da
terra. Com exceção dos samaritanos aceitos na igreja cristã, os apóstolos
entenderam que o mandato incluía só os judeus que viviam em outros
países fora da Palestina (veja-se, p. ex. At 11:19).
Deus guiou os apóstolos passo a passo enquanto a igreja continuava
desenvolvendo-se. Primeiro, no Pentecostes judeus devotos se
arrependeram, foram batizados e receberam o Espírito Santo (At 2:38).
Logo, depois da perseguição que seguiu por ocasião da morte de
Estêvão, as Boas Novas entraram em Samaria, onde Filipe pregava a
palavra. Em representação dos apóstolos, Pedro e João foram a Samaria,
oraram para que os crentes samaritanos recebessem o Espírito Santo e os
batizaram (At 8:14–17).
Logo, através de uma visão de animais limpos e impuros, Deus
preparou Pedro para pregar o evangelho à casa do centurião romano
Cornélio. Estes gentios representativos receberam o Espírito Santo e
foram batizados. Mas o assunto da plena aceitação dos gentios no seio da
igreja cristã não chegou a ser uma total realidade senão até que Paulo e
Barnabé voltaram de sua primeira viagem missionária e contaram aos
Atos (Simon J. Kistemaker) 523
membros do Concílio de Jerusalém suas experiências entre os gentios
(At 15:4).
Na reunião deste concílio, debateu-se se os crentes gentios deviam
ou não submeter-se à circuncisão. Para o judeu, a circuncisão significava
que ele pertencia à aliança que Deus fez com Abraão (Gn 17:7). Assim,
os cristãos judeus se questionavam que os gentios que não se submetiam
ao rito da circuncisão fossem membros da aliança de Abraão. Guiados
pelo Espírito Santo, os integrantes do Concílio de Jerusalém
determinaram que os gentios não deviam submeter-se à circuncisão, mas
às regulações que fossem consideradas sagradas antes da lei mosaica (At
15:19–20). Para os gentios, portanto, o batismo era suficiente.
Quando Pedro pregou em Cesareia e batizou à família de Cornélio,
não se disse nada sobre o assunto da circuncisão. O próprio Deus guiou
Pedro, os apóstolos e os crentes judeus de Jerusalém para que
recebessem os gentios. Em anos posteriores, Deus guiou a igreja a
admitir os gentios não circuncidados. Concluímos que é Deus quem
determina a direção e o desenvolvimento da igreja.

b. As instruções (At 10:14–16)

14-16. Mas Pedro replicou: De modo nenhum, Senhor! Porque


jamais comi coisa alguma comum e imunda. Segunda vez, a voz lhe falou:
Ao que Deus purificou não consideres comum. Sucedeu isto por três
vezes, e, logo, aquele objeto foi recolhido ao céu.
a. “De modo nenhum, Senhor! Nunca comi nada impuro e imundo”.
Quando Pedro vê os animais e ouve a voz que lhe diz “Levanta-te,
Pedro! Mata e come”, responde usando algumas palavras ditas pelo
profeta Ezequiel quando Jerusalém passava por um período de fome:
“Então, disse eu: ah! SENHOR Deus! Eis que a minha alma não foi
contaminada, pois, desde a minha mocidade até agora, nunca comi
animal morto de si mesmo nem dilacerado por feras, nem carne
abominável entrou na minha boca” [Ez 4:14].
Atos (Simon J. Kistemaker) 524
Pedro ouve a voz de Deus lhe falando; em sua reação, dirige-se a
Deus como Senhor. Ele sabe que se Deus falar dos céus é porque algo
importante está ocorrendo. Dois exemplos disso foram o batismo de
Jesus e Sua transfiguração (Mt 3:17; 17:5). Que Deus fala com Pedro é
algo significativo. Marca a entrada dos gentios na igreja, de acordo com
a vontade de Deus, Seu plano e propósito. 628
O preconceito cultural de Pedro está tão enraizado nele que
fortemente recusa obedecer a ordem de Deus de que mate e coma.
Aludindo à Escritura (Ez 4:14), parece-lhe estar com razão ao objetar a
ordem divina. Diz ao Senhor que nunca comeu nada impuro e imundo e
que assim respeitou a barreira entre judeus e gentios.
Qual é o significado das palavras impuro e imundo? Os judeus
podiam comer a carne de apenas os animais que Deus tinha declarado
limpos: os ruminantes e todos aqueles com a unha fendida. Outros
animais eram impuros e imundos. O lençol que baixou do céu continha
animais de ambos os tipos. Quando Deus disse a Pedro que matasse e
comesse, não fez nenhuma distinção entre as duas categorias. Pedro,
contudo, estabeleceu a diferença; mais ainda, considerou impuros os
animais puros devido à sua associação com aqueles. 629
b. “Ao que Deus purificou não consideres comum”. Esta é a
segunda vez que uma voz fala do céu e dá resposta à objeção legítima de
Pedro. A voz transmite a mensagem que Deus, quem formulou as leis
sobre a alimentação de seu povo Israel pode também anular tais leis de
acordo com Sua soberana vontade. Deus fez os animais puros, portanto
Pedro e os judeus cristãos podem passar por alto as leis sobre comida
que vieram observando desde os dias de Moisés (cf. Rm 14:14).
Literalmente, o texto grego pode ser traduzido assim: “O que Deus fez
limpo, não continues chamando impuro”.

628
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, p. 331.
629
Colin House, “Defilement by Association: Some Insights from the Usage of KOINÓS-KOINÓŌ in
Acts 10 and 11”, AUSS 21 (1983): 143–53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 525
Quando aboliu Deus as leis sobre alimentação com relação aos
cristãos judeus? A vigência destas leis cessou no mesmo momento em
que Deus tirou a barreira entre judeus e gentios. A abolição destas leis
significa que os cristãos, tanto judeus como gentios, entram numa nova
relação e se aceitam mutuamente como iguais na igreja. A barreira é
tirada por Deus, o mesmo que a tinha estabelecido.
c. “Sucedeu isto por três vezes”. A voz celestial é incapaz de
convencer Pedro antes que se faça ouvir por três vezes. Pedro deve ter
lembrado o ensino de Jesus no sentido que não contamina o homem a
comida que entra por sua boca (Mt 15:11). Três vezes a voz celestial fala
com Pedro e lhe diz que Deus purificou todos os alimentos. Por
implicação, Deus lhe está ensinando que com a abolição das leis sobre a
alimentação ele pode agora se reunir com os gentios e ter comunhão na
mesa com eles. Depois de ouvir a voz celestial por três vezes, Pedro está
convencido. E de repente, quando o porta-voz chefe dos doze apóstolos e
líder da igreja de Jerusalém atende à voz, o lençol é levado de novo ao
céu. Este retorno ao céu de novo indica que o próprio Deus abriu o
caminho para o ministério do evangelho aos gentios.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:14–15


Versículo 14
μηδαμῶς — o advérbio intensivo é um composto negativo que
significa “de modo algum”. É uma combinação de μηδέ (e não) e ἅμα (a
um homem).
οὑδέποτε … πᾶν — o advérbio negativo nega o verbo, embora na
verdade significa “nada”. 630

630
Robertson, Grammar, p. 752.
Atos (Simon J. Kistemaker) 526
Versículo 15
πάλιν ἐκ δευτέρου — a construção é redundante, mas a frase
preposicional é idiomática (veja-se Mt 26:42; e cf. Jo 4:54; 21:16).
ἐκαθάρισεν — o ativo aoristo indica uma só vez em que Deus
declara a todos os animais limpos.
μὴ κοίνου — o presente imperativo com a partícula negativa
transmite a mensagem “deixa de considerar impuro o que Deus declarou
limpo”. 631

c. O chamado (At 10:17–20)

17, 18. Enquanto Pedro estava perplexo sobre qual seria o


significado da visão, eis que os homens enviados da parte de Cornélio,
tendo perguntado pela casa de Simão, pararam junto à porta; e,
chamando, indagavam se estava ali hospedado Simão, por sobrenome
Pedro.
Quando Deus tirou o lençol, também fez com que o transe de Pedro
cessasse. Para Pedro, no entanto, a importância da visão ainda não está
clara. O apóstolo medita e reflete sobre o significado de tudo o que viu.
Dá-se conta que Deus está trabalhando em sua vida e que ele fará
com que entenda com clareza a visão. Sabe que a visão extraordinária
tem que ver com seu ministério do evangelho. E claro, imediatamente
Deus provê a explicação. Manda gentios de Cornélio em Cesareia a
Pedro em Jope.
Os três homens chegaram a Jope e perguntaram por aqui e por lá
pela casa de Simão, o curtidor. É muito provável que não tenham tido
dificuldade em encontrá-la porque estava situada junto ao mar. Quando
chegam à porta, perguntam se Simão, aquele que tem por sobrenome
Pedro, hospeda-se com o curtidor. A presença do soldado romano talvez

631
James Hope Moulton, A Grammar of New Testament Greek, vol. 1, Prolegomena, 2a. ed.
(Edimburgo: Clark, 1906), p. 125.
Atos (Simon J. Kistemaker) 527
incomodou um pouco o dono de casa. Além disso, a vestimenta e o
acento dos dois servos indica que não se procura judeus. Os homens,
pois, param na porta, chamam o dono de casa, e perguntam por Pedro.
19, 20. Enquanto meditava Pedro acerca da visão, disse-lhe o
Espírito: Estão aí dois homens que te procuram; levanta-te, pois, desce e
vai com eles, nada duvidando; porque eu os enviei.
Ainda ensimesmado, Pedro não evita da conversação entre o dono
da casa e as visitas. O Espírito de Deus Se dirige a ele e lhe diz que à
porta chegaram três homens que querem vê-lo. Com frequência Lucas
diz que o Espírito instrui os servos de Deus para ir a um lugar específico
ou para fazer uma determinada coisa (p. ex. At 8:29, 39; 11:12; 13:2;
21:11). O Espírito informa a Pedro que há uns homens em sua procura,
porém não lhe diz quem são. Mas para tranquilizá-lo, manda-lhe que
desça para vê-los e que não se demore. O Espírito lhe assegura que ele os
enviou a Jope para ver o apóstolo.
Ao descer para ver os visitantes, Pedro tem que superar pelo menos
dois motivos de vacilação: Primeiro, sabe que são gentios que vieram
viajando e necessitam hospedagem. Quer dizer, que tanto ele como o
curtidor devem esquecer-se das restrições judaicas contra a associação
com gentios. É preciso lhes prover alimentos e hospedagem ao menos
por uma noite. Segundo, deve depor qualquer temor de estar na presença
de um soldado romano e de dois servos de um oficial romano em tempos
de tensão política entre judeus e romanos. 632
Quando o Espírito Santo tira de Pedro o temor ao lhe dizer que
Deus enviou os três homens, o sentido da visão torna-se claro em sua
mente. O próprio Deus lhe assegurou que o que ele declarou limpo,
Pedro não deve chamá-lo impuro. Deus quer que Pedro se reúna aos
visitantes gentios. E estes, por sua vez, contarão a ele a respeito do anjo
de Deus que visitou Cornélio. Esta é a confirmação que recebe Pedro: ou

632
Josefo Antiguidades 18.8.2 [261]; Suetônio Gaius Caligula, en The Lives of the Caesars, trad. por
John C. Rolfe, 2 vols., vol. 1, livro 4, pp. 405–97 (LCL).
Atos (Simon J. Kistemaker) 528
seja, que Deus está lhe interpretando a visão em termos relacionados
com o ministério evangélico.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:17–20


Versículo 17
τί ἂν εἴη — introduzido pelo ativo imperfeito διηπόρει (ele estava
absolutamente perplexo), a pergunta indireta forma o optativo presente
do verbo εἰμί com a partícula ἄν: “o que a visão poderia significar”. 633
Note-se o uso dos tempos presente, imperfeito, aoristo e perfeito nos
verbos e particípios deste versículo.

Versículo 18
ἐπυνθάνοντο εἰ Σίμων — o meio imperfeito de πυνθάνομαι (eu
averiguo) é seguido por uma pergunta indireta.
“Mas o fato que εἰ pode ser usado para introduzir uma pergunta
direta e que ἐνθάδε, aqui, é estritamente incorreto para uma pergunta
indireta, a qual requereria ἐκεῖ, ali, pode assinalar que não se trata na
verdade de uma pergunta indireta mas de uma citação direta: eles
chegaram perguntando, Hospeda-se aqui Simão?” 634

Versículo 19
τοῦ Πέτρου — com o particípio médio presente no genitivo
(διενθυμουμένου) este substantivo pessoal forma a construção genitiva
absoluta.
τρεῖς — o Códice Vaticano diz δύο (dois). Esta forma está baseada
no versículo 7 e refere-se aos dois servos, aqueles que iam
acompanhados por um soldado em qualidade de escolta. É possível que
633
Robertson, Grammar, p. 940.
634
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 154. Véase Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 116.
Atos (Simon J. Kistemaker) 529
escribas harmonizaram esta passagem com At 11:11, onde aparece a
palavra τρεῖς. No entanto, uma ampla posição de testemunhos textuais
respalda a forma τρεῖς. 635

d. A recepção (At 10:21–23a)

21, 22. E, descendo Pedro para junto dos homens, disse: Aqui me
tendes; sou eu a quem buscais? A que viestes? Então, disseram: O
centurião Cornélio, homem reto e temente a Deus e tendo bom
testemunho de toda a nação judaica, foi instruído por um santo anjo para
chamar-te a sua casa e ouvir as tuas palavras.
Pedro sai ao encontro dos homens e se apresenta a eles como a
pessoa a quem buscam. Pergunta-lhes por que vieram de Jope e para o
que querem vê-lo. Como resposta, ouve que lhe falam em detalhe a
respeito da vida moral e espiritual de Cornélio, um oficial do exército
romano situado em Cesareia. Apresentam o centurião como um homem
justo e piedoso. Em outras palavras, dizem-lhe que Cornélio adora a
Deus na sinagoga local tanto como em sua própria casa. Acrescentam
que desfruta do respeito de todo o povo judeu, especificamente dos que
vivem em Cesareia. Este último é importante porquanto os judeus não
atestariam de sua piedade se na verdade o oficial não tivesse sido
adorador do Deus de Israel. 636
Então os homens informam a Pedro da visita do anjo a Cornélio
dois dias antes. E lhe dizem que em obediência à mensagem recebida
vieram buscar Simão Pedro em Jope. Descrevem o anjo como “santo”.
Ao referir-se à santidade do anjo, estão demonstrando sua sinceridade e
fidelidade. Também lhe falam da significativa informação que o anjo deu
a Cornélio: convidar Simão Pedro para que fosse à sua casa em Cesareia

635
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 373.
636
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 298.
Atos (Simon J. Kistemaker) 530
a dar a mensagem do evangelho. Aqui está, então, a razão de sua missão,
e esperam a reação do apóstolo.
Infelizmente, Lucas é muito conciso em seu relato e não descreve a
reação de Pedro. Quão maravilhado terá ficado o apóstolo ao ver a
cuidadosa condução de Deus e Seus admiráveis desígnios! Quão grande
terá sido sua emoção ao notar que a igreja está entrando numa nova fase
de seu ministério! Sem dúvida que a visão e a visita dos três homens de
Cesareia dão fé das mudanças que estão por ocorrer.
23a. Pedro, pois, convidando-os a entrar, hospedou-os.
Pedro entende que deve aceitar os visitantes e implicitamente
também, seu hospitaleiro, Simão o curtidor concorda. Portanto, fazem-
nos passar, compartilhando com eles a comida que foi preparada (v. 10).
Não há informação que nos diga que Pedro tenha compartilhado o pão
com os gentios, mas há razão para crer que, em obediência à visão, sim o
fez. Logo que saísse de Jope, terá que sentar-se à mesa em mais de uma
ocasião com os não judeus. Passam a tarde conversando, enquanto Pedro
se prepara para a viagem que deverá fazer até Cesareia. Dormem em
casa de Simão, o curtidor e no dia seguinte estão preparados para a
viagem de volta.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:22


τοῦ ἔθνους —“a nação”. Estas palavras procedem dos lábios dos
gentios. Um judeu teria usado a expressão λαός (o próprio povo de
Deus).

5. A visita de Pedro a Cesareia (At 10:23b–48)

Na primeira parte do capítulo 10, Lucas relata que Deus tornou


possível o encontro entre Cornélio e Pedro. Portanto, Pedro tem a
autoridade de pregar o evangelho aos gentios e aceitá-los como cristãos.
Pedro compreende que este é um passo transcendental para a igreja, pelo
Atos (Simon J. Kistemaker) 531
que pede que seis judeus cristãos de Jope o acompanhem (veja-se At
11:12). Por sua vez, Cornélio está também muito consciente da
importância deste evento, pelo que convida a parentes e amigos mais
próximos de sua casa. 637

a. A chegada (At 10:23b–29)

23b, 24. No dia seguinte, levantou-se e partiu com eles; também


alguns irmãos dos que habitavam em Jope foram em sua companhia. No
dia imediato, entrou em Cesaréia. Cornélio estava esperando por eles,
tendo reunido seus parentes e amigos íntimos.
Pedro faz os últimos preparativos para sua visita a Cesareia;
convida a seis membros da igreja de Jope para irem com ele. Deseja ter
testemunhas oculares para que atestem sua visita à casa de um gentio de
tal modo que a igreja possa conhecer em detalhe esta extraordinária
visita (At 11:1–18).
Nada é dito a respeito do momento exato em que Pedro e seus
acompanhantes saíram de Jope, mas é óbvio que um grupo de dez
necessita mais tempo para preparar-se que só dois ou três. Lucas nota
que saem, que viajam o dia inteiro e que chegam a Cesareia no dia
seguinte. A pé, a jornada toma umas dez horas. Sem dúvida, os viajantes
passaram a noite em algum lugar entre Jope e Cesareia e chegam a seu
destino no curso do dia seguinte. Supondo que Cornélio recebeu as
instruções da parte do anjo numa segunda-feira, e que nesse mesmo dia
despachou seus mensageiros a Jope, estes chegaram ali na terça-feira. No
dia seguinte, quarta-feira, Pedro e seus acompanhantes saíram de Jope e
na quinta-feira chegaram à casa de Cornélio (veja-se v. 30).
Lucas escreve que Cornélio espera com expectação a chegada de
Pedro. Fez todos os preparativos necessários, convidando inclusive
parentes e amigos mais próximos. Parece que viveu muitos anos em

637
Rackham, Acts, p. 153.
Atos (Simon J. Kistemaker) 532
Cesareia, visto que seus familiares vieram viver ali. Com o correr do
tempo fizeram boas amizades com os residentes no lugar. Todos
respondem ao convite de Cornélio de reunir-se com Simão Pedro e ouvir
sua proclamação do evangelho de Cristo. Junto com Cornélio estão
esperando a volta dos mensageiros, mas agora acompanhados por seis
cristãos de Jope (veja-se v. 45; At 11:12), e Pedro. Quando o grupo de
dez pessoas chega à sua casa, Cornélio está à porta de sua casa e dá as
boas-vindas a Pedro. 638
25, 26. Aconteceu que, indo Pedro a entrar, lhe saiu Cornélio ao
encontro e, prostrando-se-lhe aos pés, o adorou. Mas Pedro o levantou,
dizendo: Ergue-te, que eu também sou homem.
Como pôde Cornélio saber o momento exato da chegada de Pedro a
Cesareia? Não o sabemos. O Texto ocidental tem uma ampliação desta
passagem e nos dá uma explicação a respeito. Diz: “E ao ir
aproximando-se de Cesareia, Pedro, um dos serventes correu adiante e
anunciou sua chegada. Então Cornélio levantou-se e [saiu a seu
encontro]”. 639 No entanto, este agregado parece ser uma explicação
posterior do texto pelo que lhe falta autoridade.
Quando Pedro entrou na casa de Cornélio não deixa de assombrar-
se ao ver que este militar de alta posição põe sua autoridade de lado e se
prostra a seus pés para lhe oferecer seus respeitos. Por sua tradição
cultural gentílica, Cornélio não conhece outra forma para honrar a Pedro
que prostrar-se. Para ele não há dúvida de que se alguém é apontado
especialmente pelo anjo de Deus “é merecedor do mais alto respeito”. 640
Por outro lado, Pedro rejeita tal ação pelos reflexos de idolatria que tem,
visto que um dos mandamentos ordena adorar somente a Deus (Êx 20:3–
4; Dt 5:7–8). As Escrituras ensinam que quando qualquer homem busque
adorar a anjos ou a outros homens, é-lhe dito para não fazê-lo mas adorar

638
Os manuscritos respaldam igualmente as formas eles entraram e ele entrou. Por isso, os tradutores
estão divididos neste ponto: alguns preferem o plural enquanto que outros o singular.
639
Metzger, Textual Commentary, pp. 374–75.
640
Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 116.
Atos (Simon J. Kistemaker) 533
só a Deus (veja-se At 14:14–15; Ap 10:10; 22:8–9). Consequentemente,
o primeiro encontro entre Pedro e Cornélio resulta um tanto embaraçoso.
Pedro dá-se conta que o que Cornélio quer fazer é mostrar seus respeitos,
mas de qualquer maneira lhe diz que se ponha de pé. E procura suavizar
a situação de forma adequada, por isso lhe diz: “Ergue-te, que eu
também sou homem”. Em outras palavras, está revelando-se como um
homem comum que aos olhos de Deus está no mesmo nível que
Cornélio. Desta maneira ensina ao centurião o conceito de igualdade
diante da presença de Deus de todos os crentes.
27-29. Conversando com ele, Pedro entrou e encontrou ali reunidas
muitas pessoas e lhes disse: “Vocês sabem muito bem que é contra a nossa
lei um judeu associar-se a um gentio ou mesmo visitá-lo. Mas Deus me
mostrou que eu não deveria chamar impuro ou imundo a homem
nenhum. Por isso, quando fui procurado, vim sem qualquer objeção.
Posso perguntar por que vocês me mandaram buscar?” [NVI]
a. “Conversando com ele, Pedro entrou”. Em seu primeiro encontro,
segundo Lucas, Pedro e Cornélio parecem ter muito que falar. Cornélio
convida Pedro a entrar em um grande quarto onde se reuniram os
parentes e amigos do anfitrião. Pedro então está diante de um grupo de
gentios bastante grande. Se ainda tinha alguma dúvida a respeito do
significado da visão, na presença desta gente essa dúvida desaparece.
b. “É contra a nossa lei um judeu associar-se a um gentio”. À
primeira vista, o comentário de Pedro aparece como carente de cortesia e
para os eventuais conversos à fé cristã parece ser uma lição verbal sobre
sua própria alienação. No entanto Cornélio, seus familiares e amigos
estão conscientes das estritas regras de separação que os judeus
observam. Mesmo quando alguns gentios adoram com os judeus na
sinagoga local, não podem desenvolver com eles uma relação amistosa
devido às leis judaicas que regulamentam o referente a compartilhar a
mesa (veja-se At 11:2–3). Os judeus só reconhecem os convertidos ao
judaísmo; só estes alcançaram pleno reconhecimento na comunidade
judaica (veja-se Is 56:3). É-lhes permitido visitar os judeus e inclusive
Atos (Simon J. Kistemaker) 534
comer com eles. Os gentios sabem que os judeus nem sequer compram
sua comida dos gentios, pelo temor a contaminar-se. Por própria
experiência sabem que os judeus não põem os pés em casa de um gentio
(cf. Mt 8:8; Lc 7:6).
Ao entrar na casa de Cornélio, e talvez servir-se algo que lhe é
oferecido para refrescá-lo depois da longa viagem, Pedro deve explicar
ao seu auditório gentílico por que ele difere de outros judeus. Desde
criança, todo judeu aprendeu que entrar na casa de um gentio e comer
com ele constitui uma violação da lei judaica. 641 Os gentios, por sua vez,
devido à sua relação comercial com os judeus também sabem disso. Se
Pedro não explicar agora sua conduta, que é contrária a toda a prática
judaica, tomariam como insincero e indigno de confiança. Por isso desde
o princípio dedica-se a este mesmo tema e explica sua conduta social
informando seus ouvintes a respeito da revelação que Deus lhe fez.
c. “Mas Deus me mostrou que eu não deveria chamar impuro ou
imundo a homem nenhum”. Quando Pedro lhes diz que veio a vê-los por
uma revelação de Deus e pela ordem que recebeu, os gentios ficam
satisfeitos. Ao anunciar que foi Deus quem tirou a barreira racial, Pedro
se constitui em ponte entre judeus e gentios porque anuncia que o
próprio Deus tirou a barreira social (Ef 2:11–22). Como judeu cristão,
Pedro não pode continuar mantendo a separação com os gentios e
dizendo que eles são “impuros e imundos” (v. 14). Informa a estes
gentios, que adoram a Deus mas que não estão plenamente convertidos
ao judaísmo, que Deus os aceita como puros e limpos. Com esta
afirmação, implicitamente lhes está revelando que Deus não requer que
se submetam à circuncisão. 642 No marco do primeiro século, os judeus
aplicaram aos gentios as palavras impuro e imundo não só com relação
às leis que tinham que ver com a comida, mas também com a
circuncisão. Este tema tornou-se explícito enfim quando os apóstolos,

641
Cf. Éx. 34:15–16; véase SB, vol. 4, pt. 1, pp. 352–414.
642
Schürer, History of the Jewish People, vol. 3, p. 173.
Atos (Simon J. Kistemaker) 535
anciãos e a igreja se reuniram no Concílio de Jerusalém (veja-se
especialmente At 15:1, 7–11).
d. “Por isso, uma vez chamado, vim sem vacilar”. Devido ao fato de
que com frequência Lucas apresenta discursos de forma abreviada,
supomos que Pedro descreve a visão que teve em Jope. Sobre a base
desta visão, pode afirmar livremente agora que veio aos gentios sem
nenhuma objeção. Ele sabe que sua visita a Cornélio e a sua casa
responde ao desejo de Deus.
e. “Por que razão me mandastes chamar?” Pelos mensageiros,
Pedro tinha sabido que Cornélio queria ouvir a mensagem que tinha para
lhes dar. Além disso, os servos têm dito a Pedro da visão de Cornélio
alguns dias antes; mas agora, Pedro quer ouvir deles a razão para fazê-lo
ir a Cesareia. Espera que Cornélio o explique.

Considerações práticas em At 10:23–29


Os apóstolos deram à igreja cristã a verdade elementar de que Deus
não mostra favoritismo a ninguém, e que diante de Sua presença todos os
crentes são iguais. 643 Nos dias dos apóstolos, os judeus foram ensinados
a respeitar o sumo sacerdote (veja-se 23:1–5). Também tinham um alto
respeito pelos mestres da lei e os fariseus, que gostavam que os
chamassem rabinos (Mt 23:7). No entanto, Jesus expôs as coisas de uma
maneira diferente e ensinou ao Seu povo a humildade.
“Mas vocês não devem ser chamados 'rabis'; um só é o Mestre de
vocês, e todos vocês são irmãos. A ninguém na terra chamem 'pai',
porque vocês só têm um Pai, aquele que está nos céus. Tampouco vocês
devem ser chamados 'chefes', porquanto vocês têm um só Chefe, o
Cristo. O maior entre vocês deverá ser servo”. [Mt 23:8–11, NVI]
Certamente, os líderes que servem bem na igreja merecem o
respeito e “são dignos de dupla honra” (1Tm. 5:17). A Escritura ensina
que devemos obedecer a nossos líderes pela autoridade conferida a eles
643
Veja-se. p. ex., v. 34; Rm. 2:11; Ef. 6:9; Cl. 3:25; Tg. 2:1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 536
(Hb 13:17). Mas o líder deve ser exemplo sendo um servidor que escuta
em obediência as palavras de Jesus: “Se alguém quiser ser o primeiro,
será o último, e servo de todos” (Mc 9:35, NVI).

Palavras, frases e construções gregas em At 10:23b–29


Versículo 23b
ἀναστάς — veja-se a discussão em At 5:17.

Versículos 24–25
συγκαλεσάμενος — o aoristo médio do particípio tem o mesmo
significado que o particípio aoristo ativo: “foi chamado”.
ἀναγκαίους — “necessário”. Este adjetivo está unido ao substantivo
ἀνάγκη (necessidade). Tem um significado secundário: “relacionado por
laços naturais ou de amizade”. 644 Uma tradução aceitável seria “íntimo”.
τοῦ εἰσελθεῖν — o artigo definido precedendo o infinitivo aoristo é
supérfluo.

Versículos 27–28
εὑρίσκει — “ele encontra”. O uso que Lucas faz do presente
histórico outorga viveza ao relato.
ὡς — esta partícula é o equivalente de ὅτι (isso).
κἀμοί — formado pela combinação καί e ἐγώ, a palavra neste
contexto é adversativa: “mas a mim”.

b. A explicação (At 10:30–33)

30, 31. Cornélio respondeu: Há quatro dias eu estava em minha casa


orando a esta hora, às três horas da tarde. De repente, colocou-se diante

644
Thayer, p. 36.
Atos (Simon J. Kistemaker) 537
de mim um homem com roupas resplandecentes e disse: Cornélio, Deus
ouviu sua oração e lembrou-se de suas esmolas.
a. “Há quatro dias”. Chegou o momento para Cornélio dizer por que
mandou chamar Pedro. Em poucas palavras conta o que aconteceu “há
quatro dias ... a esta hora”. Estritamente falando, o tempo que
transcorreu da visão de Cornélio e o momento em que se dirige a Pedro
são somente três dias, mas na Palestina do primeiro século, contava-se a
parte de um dia como um dia inteiro. Portanto, o dia em que Cornélio
teve a visão é o primeiro; o dia em que Pedro teve sua visão e a chegada
dos mensageiros procedentes de Jope, é o segundo; o dia em que os
viajantes saíram de Jope, é o terceiro; e o dia em que chegaram a
Cesareia, é o quarto.
b. “Às três horas da tarde”. Supomos que chegaram os viajantes
perto do meio-dia do quarto dia, e que imediatamente depois foi-lhes
oferecido comida, bebida, e um refrescante banho. De modo que quando
se reúnem para ouvir a resposta que Cornélio dá à pergunta de Pedro, são
as três da tarde. É a hora em que Cornélio costuma ter suas devoções.
Uma tradução literal do grego complica um tanto as coisas: “Desde
o quarto dia até esta hora estive orando às três em minha casa”. 645 Na
verdade, o texto parece ininteligível. Embora não temos suficientes
provas, supomos que o grego usa duas expressões idiomáticas referentes
ao tempo, as quais não deveriam ser tomadas literalmente mas devem ter
seu contraparte em nossa própria forma de contar o tempo. 646 “Desde o
quarto dia” na verdade significa “há quatro dias”; e “até esta hora”, “a
esta hora”.
c. “Diante de mim um homem com roupas resplandecentes”.
Cornélio descreve o anjo em termos humanos. No Novo Testamento, os

645
Algumas versões dizem: “Faz quatro dias eu estava jejuando até esta hora; e à hora nona orava em
minha casa”.
646
Metzger menciona a possibilidade de “que o grego poderia ser explicado como koinê coloquial ou
como grego semitizado”. Textual Commentary, p. 376.
Atos (Simon J. Kistemaker) 538
escritores pintam aos anjos como homens vestidos com roupas brancas
que com frequência mostram uma luminosidade sobrenatural. 647
d. “Cornélio, Deus ouviu sua oração”. Embora Lucas não diga do
que se trata oração, supomos que é aquela onde Cornélio pediu a Deus
condução espiritual e compreensão de Sua palavra, especialmente quanto
às profecias messiânicas (veja-se v. 4). O anjo lhe diz que Deus Se
lembrou de sua generosidade para com os pobres e necessitados a quem
ajudou com donativos materiais.
32, 33. Manda, pois, alguém a Jope a chamar Simão, por sobrenome
Pedro; acha-se este hospedado em casa de Simão, curtidor, à beira-mar.
Portanto, sem demora, mandei chamar-te, e fizeste bem em vir. Agora,
pois, estamos todos aqui, na presença de Deus, prontos para ouvir tudo o
que te foi ordenado da parte do Senhor.
Lucas repete quase palavra por palavra o relato histórico registrado
nos versículos 5 e 6. Quando os mensageiros chegam a Jope, dizem que
o anjo tinha pedido a Cornélio que mandasse buscar Pedro, porque este
teria uma mensagem para ele (v. 22). Lucas não faz caso desta nota
adicional à vista do fato de que na presente situação Cornélio espera que
Pedro pregue o evangelho. 648
Em resposta ao chamado dos mensageiros, Pedro veio à casa de
Cornélio. Escuta dos lábios deste palavras de agradecimento por ter
atendido ao seu chamado. “Fizeste bem em vir”, diz-lhe. Logo lhe
menciona as ânsias com que todos os presentes esperam a mensagem que
lhes traz; e acrescenta: “Agora, pois, estamos todos aqui, na presença de
Deus, prontos para ouvir tudo o que te foi ordenado da parte do Senhor”.
Que bela oportunidade para pregar a Palavra de Deus! Que grupo
de ouvintes! Quantas ânsias de ouvir o evangelho! Quão grande a alegria
e a satisfação de Pedro ao fazer uso de oportunidade de proclamá-lo!
Cornélio afirma que todos ali reunidos vieram para ouvir a Palavra, pelo

647
At 1:10; Mt. 28:3; Mc. 16:5; Lc. 24:4; Jo. 20:12.
648
Numerosos manuscritos antigos acrescentam, “Quando ele vier, ele vos falará”. Estas palavras são
um reflexo de At 11:14 e poderiam ser uma expansão deste texto.
Atos (Simon J. Kistemaker) 539
que sabem que estão diante da sagrada presença de Deus. Quer dizer,
Deus lhes vai falar através da boca de seu servo, o apóstolo Pedro.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:30 e 33


Versículo 30
τὴν ἐνάτην — o caso acusativo para a referência a hora novena
(três da tarde) não expressa tanto o lapso de tempo como um ponto de
tempo. 649

Versículo 33
καλῶς ἐποίησας παραγενόμενος — a ação do particípio aoristo e a
do verbo principal ocorrem simultaneamente. No grego, as duas
primeiras palavras da frase refletem gratidão: “graças por vir”. A
expressão καλῶς ποιήσεις significa “por favor, faça [isto]”.

c. O sermão (At 10:34–43)

Na primeira parte de suas palavras (vv. 34–35), Pedro explica a


intenção de Deus de salvar as pessoas de todas as nações. Logo, lembra a
seus ouvintes a mensagem de Deus em palavra e obra através de Jesus
Cristo (vv. 36–38). Logo, fala da morte de Cristo, Sua ressurreição e
Suas aparições (vv. 39–41). Por último, proclama a mensagem de
salvação e chama seu auditório a pôr sua fé em Cristo para perdão de
seus pecados (vv. 42–43). Enquanto ainda está pregando, é interrompido
pelo Espírito Santo que desce sobre eles (v. 44). De qualquer maneira, a
mensagem ficou completa.
34. Pedro abriu sua boca e disse: Na verdade entendo que Deus não
mostra parcialidade [RSV].

649
Moule, Idiom-Book, p. 34.
Atos (Simon J. Kistemaker) 540
Esta é a primeira vez que Pedro prega a um auditório formado por
gentios. 650 Como representante da igreja cristã, ele está muito consciente
da singularidade desta situação. Dá-se conta do significado da visão que
teve em Jope e sabe que está fazendo a vontade de Deus. Diz: “Na
verdade entendo que Deus não mostra parcialidade”. Os judeus dos dias
de Pedro viviam pela doutrina que Deus fez uma aliança com Abraão e
seus descendentes e que eles eram o povo escolhido de Deus.
Desprezavam os gentios porque, segundo eles, Deus os tinha rejeitado e
lhes tinha negado Suas bênçãos.
Os judeus também sabiam que Deus havia dito a Abraão que nele
seriam benditas todas as nações da terra (Gn 12:3; 18:18; 22:18; 26:4).
Assim, então, os crentes de todas as nações da terra reclamariam a
paternidade de Abraão. É interessante que Pedro, em seu sermão do
Pórtico de Salomão tinha citado as palavras que Deus disse a Abraão: “E
em tua semente todas as famílias da terra serão abençoadas” (At 3:25,
NKJV). Mas Pedro não conseguia entender ainda as tremendas
implicações da promessa divina. Agora, contudo, vê o cumprimento da
palavra de Deus a Abraão. O centurião romano, os membros de sua
família e todos os seus convidados, tanto parentes como amigos,
recebem a bênção de Deus.
Pedro apela às Escrituras quando diz que Deus não mostra
favoritismo. Por exemplo, Moisés diz aos israelitas no deserto: “Porque
o Senhor, teu Deus é Deus de deuses e Senhor dos senhores, Deus
grande, poderoso e admirável, que não mostra parcialidade nem aceita
subornos” (Dt 10:17, trad. livre). 651
Deus não olha a aparência externa de uma pessoa, nem
nacionalidade, recursos econômicos, nível social ou logros. À luz do
ensino de Deus dado na visão, Pedro depõe seu preconceito enraizado

650
O grego, literalmente diz, “Tendo aberto sua boca, Pedro disse”. Esta é uma forma aramaica para a
qual os tradutores trataram de encontrar uma boa equivalência no idioma espanhol. O texto transmite
o significado Pedro disse. Compare as traduções de At 8:35; Mt. 5:2; 13:35.
651
Veja-se Jó 34:19; Mc. 12:14; Rm. 2:11; Gl. 2:6; Ef. 6:9; Cl. 3:25; Tg. 2:1; 1Pe. 1:17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 541
contra os gentios e, como ele mesmo o declara, pela fé aceita a doutrina
da imparcialidade de Deus. Está convencido que a salvação pertence a
todas as nações e não só a Israel. Sabe que sua posição anterior estava
errada. 652

Se fosse tinta todo o mar


E todo o céu um grande papel
E todo homem um escritor
E cada folha um pincel,
Nem mesmo assim se escreveria
Do grande amor do Senhor.

35. Mas de todas as nações aceita todo aquele que o teme e faz o que
é justo [NVI].
Para dar mais ênfase à expressão, a frase de todas as nações
aparece primeiro. Deus não exclui a nenhuma nação de sobre a face da
terra, mas pelo contrário aceita em Sua igreja todos os crentes sem
importar sua nacionalidade. A barreira entre Israel e os gentios foi
derrubada por Deus. No entanto, Deus aceita um gentio só quando este O
teme e obedientemente faz Sua vontade. Nenhum pecador pode
pretender ser aceito por Deus graças a seus próprios méritos; todos, quer
judeus ou gentios, devem ser salvos mediante a obra expiatória de Cristo
Jesus. Se Cornélio tivesse sido aceito sobre a base de sua pureza moral e
sua religiosidade pessoal, Pedro não teria tido que pregar o evangelho
em sua casa. 653
O que quer dizer Pedro quando afirma que Deus aceita o homem
que O teme e faz o que é correto? O que está dizendo é que alguém que
busca a Deus e se esforça em guardar sua lei é, por esse fato, uma pessoa
faminta de ouvir as boas novas de salvação. Em Atos, Lucas mostra que

652
Consulte-se Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p.
101.
653
Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 118.
Atos (Simon J. Kistemaker) 542
os homens tementes a Deus que sinceramente fazem o que é correto logo
põem sua confiança em Jesus. Quando os apóstolos lhes pregam o
evangelho, eles creem (veja-se At 16:14–15; 17:4, 12; 18:7–8). Deus
recebe as pessoas de qualquer raça, tribo ou língua não sobre a base de
sua reverência a Deus e seus esforços em ser justos, mas porque puseram
sua fé em Jesus. Assim, Pedro lembra aos seus ouvintes de seu
conhecimento de Cristo.
36. Vocês sabem que a mensagem que proclama paz através de
Cristo Jesus, que ele é Senhor de tudo, foi enviada ao povo de Israel [trad.
de Kistemaker].
a. “Vocês sabem”. Pedro insinua que as pessoas em seu auditório
ouviram os informes a respeito de Jesus Cristo como o supremo
governante e sua mensagem de paz. Esta mensagem, por certo, foi
proclamada nos círculos judeus e não foi dado a conhecer aos gentios
ainda. O evangelista Filipe tinha pregado as Boas Novas nas sinagogas
locais ao longo da costa do Mediterrâneo e é possível que até na própria
Cesareia.
b. “A mensagem que proclama paz”. Os gentios sabem que Deus
enviou Sua mensagem de paz através de Jesus Cristo, porque o povo que
vivia na Palestina naqueles dias tinha ouvido a respeito da pregação de
Jesus. Jesus proclamou o conceito bíblico de paz, que não é
simplesmente a ausência de hostilidade. Paz é um conceito global que se
refere ao restabelecimento da relação do homem com Deus (veja-se Is
52:7; Rm 5:1). A paz torna-se evidente quando o homem entra na
presença de Deus e recebe Seu favor e graça. A paz significa que Deus
abençoa o homem, protege-o de perigos e danos, e o torna outra vez um
ser completo. 654
c. “Através de Cristo Jesus”. A proclamação da paz não se limita ao
ministério terrestre de Jesus, porém se estende a todos os seus servidores

654
Hartmut Beck e Colin Brown, NIDNTT, vol. 2, pp. 776–83; veja-se Werner Foerster, TDNT, vol. 2,
pp. 406–20.
Atos (Simon J. Kistemaker) 543
que fielmente pregam o evangelho da salvação (Ef 2:17; 6:15). Esta paz
só pode ser obtida de Deus mediante Cristo Jesus (cf. Jo 14:6).
d. “Ele é Senhor de tudo”. A mensagem de Pedro a seus ouvintes
gentios é que Jesus é Senhor de judeus e gentios (Rm 10:12). Na
verdade, a autoridade de Cristo se estende a todos, em todos os lugares
(Mt 28:18). Jesus Cristo, portanto, é Senhor de Cornélio e dos seus.
e. “[A mensagem] foi enviada ao povo de Israel”. Literalmente, o
texto grego diz “os filhos de Israel”. Como filhos, os judeus são os
herdeiros da promessa que Deus fez a Abraão e a seus descendentes; esta
promessa inclui a vinda do Messias. “Estes [filhos] foram os herdeiros
legais de Israel que herdaram a posição de Israel e as prerrogativas na
aliança”. 655
O evangelho veio primeiro aos judeus e logo aos gentios (Rm 1:16).
mas ambos são iguais aos olhos de Deus. Pedro proclama aos gentios o
evangelho da paz.
37. Vós conheceis a palavra que se divulgou por toda a Judéia, tendo
começado desde a Galiléia, depois do batismo que João pregou.
Aqui, Pedro prega sua mensagem evangélica, que Lucas registra de
forma esquemática. Na verdade, Pedro nos oferece um esboço do
evangelho oral que parece relacionar-se com o resumo do Evangelho de
Marcos. 656 Daí que os líderes cristãos do século II escrevem que Marcos
serviu como intérprete de Pedro quando Marcos escreveu seu evangelho.
Em termos simples, Pedro relata a Cornélio e a seus amigos as palavras
que Jesus disse e os milagres que realizou na Galileia e na Judeia depois
de seu batismo no rio Jordão.
a. “Vós conheceis a palavra que se divulgou por toda a Judeia”. Os
quatro Evangelhos indicam que as notícias referentes às frases e milagres
de Jesus se estenderam amplamente aqui e ali. As pessoas vinham de
todas as partes para ouvi-Lo (veja-se, p. ex. Mt 4:24). Com o termo

655
R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p. 420.
656
C. H. Dodd, “The Framework of the Gospel Narrative”, ExpT 43 (1932): 396–400. Veja-se seu
Apostolic Preaching and Its Developments (Nova York e Evanston: Harper and Row, 1964), p. 28.
Atos (Simon J. Kistemaker) 544
Judeia com frequência Lucas se refere a toda a terra dos judeus, da
Galileia ao norte até o deserto do Neguebe ao sul. 657
Com toda confiança e até enfaticamente Pedro diz a seus ouvintes
que eles estão a par dos acontecimentos ocorridos em Israel durante o
ministério de Jesus. Supomos que os mensageiros tinham informado a
Pedro da expansão do evangelho na Cesareia. Assim, Pedro pode afirmar
que seus ouvintes sabem estas coisas relacionadas com Jesus.
b. “Tendo começado desde a Galileia, depois do batismo que João
pregou”. Note-se que o ministério de João Batista não era desconhecido
entre os gentios, por isso Pedro somente falou “do batismo que João
pregou” e não o identifica como o Batista. Menciona-o para fazer
distinção entre a era veterotestamentária e o começo dos tempos do
Novo Testamento. 658 Diz-lhes que Jesus começou Seu ministério na
Galileia, algo que nos Evangelhos está absolutamente claro. 659
38. Vocês sabem a respeito de Jesus de Nazaré, como Deus o ungiu
com o Espírito Santo e poder, e como ele andou fazendo o bem e curando
todos os que eram dominados pelo diabo, porque Deus estava com ele
[trad. Kistemaker].
a. “Vocês sabem a respeito de Jesus de Nazaré”. Pedro repete o
nome de Jesus e inequivocamente afirma que seus ouvintes conhecem o
nome Jesus de Nazaré. Este é o nome pelo qual Jesus era conhecido ao
ensinar as multidões e curar os doentes (veja-se Mt 21:11; Jo 1:45).
b. “Deus o ungiu com o Espírito Santo e poder”. Pedro apresenta
seu relato evangélico em ordem cronológica, porque no batismo de Jesus
o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma de pomba (Mt 3:16). Deus
ungiu a Jesus com o Espírito e com poder para Lhe permitir dar
cumprimento à profecia messiânica (Is 61:1; veja-se também Lc 4:18). 660

657
Veja-se Lc. 1:5; 4:44; 7:17; 23:5; At. 1:8; 2:9.
658
Bengel, Gnomon of the New Testament. vol. 2, p. 607.
659
Mt. 4:12; Mc. 1:14; Lc. 4:14; Jo. 1:43; 2:1.
660
Consulte-se W. C. van Unnik, “Jesus the Christ”, NTS 8 (1962): 113–16; Richard N. Longenecker,
The Christology of Early Jewish Christianity, Studies in Biblical Theology, 2ª. série 17 (Londres:
SCM, 1970), pp. 79–80.
Atos (Simon J. Kistemaker) 545
Quer dizer, Deus equipou a Jesus para a tarefa especial de pregar e curar.
O termo poder aponta para a obra que Jesus pôde levar a cabo através da
presença do Espírito. Jesus Se opôs a Satanás, expulsou demônios, curou
os paralíticos e os doentes, purificou os leprosos, ressuscitou os mortos e
proclamou o evangelho (cf. Mt 11:4–5).
c. “Andou fazendo o bem e curando todos os que eram dominados
pelo diabo”. Jesus libertou as pessoas de suas ataduras do pecado, da
enfermidade, e de Satanás (p. ex. veja-se Lc 13:16). Onde quer que Jesus
ia, Ele foi o benfeitor das pessoas. Recuperou território de Satanás, e este
teve que ceder seu poder a Jesus. Libertou todos os que estavam sob o
poder de Satanás.
d. “Deus estava com ele”. Lucas apresenta só um esboço do sermão
de Pedro. Dá a entender que Pedro repetiu numerosas histórias a respeito
do ministério de cura de Jesus. Note-se também que Pedro ainda não
falou da divindade de Cristo. Só relata de novo as manifestações
externas do poder de Jesus, o que explica dizendo que Deus estava com
Jesus. Deus capacitou Jesus a realizar milagres e sinais, pela presença do
Pai em Seu Filho (cf. Jo 10:30, 38; 14:9–10).
39-41. E nós somos testemunhas de tudo o que ele fez na terra dos
judeus e em Jerusalém; ao qual também tiraram a vida, pendurando-o no
madeiro. A este ressuscitou Deus no terceiro dia e concedeu que fosse
manifesto, não a todo o povo, mas às testemunhas que foram
anteriormente escolhidas por Deus, isto é, a nós que comemos e bebemos
com ele, depois que ressurgiu dentre os mortos.
Notem-se os seguintes pontos:
a. A morte. Pedro informa a seus ouvintes sobre a parte que os
imediatos seguidores de Jesus têm na proclamação das Boas Novas.
Enfaticamente lhes diz que ele e o resto dos apóstolos são testemunhas
presenciais de tudo o que Jesus fez ao longo e ao largo da terra de Israel.
Ao dizer que ele é uma testemunha ocular, está projetando-se como uma
fonte de informação a respeito de Jesus. No entanto, implicitamente está
Atos (Simon J. Kistemaker) 546
afirmando também que é só um servo de Quem o envia e que, como tal,
está no mesmo nível que qualquer outro crente.
Com a frase na terra dos judeus, Pedro está referindo-se a todo o
ministério de Jesus na Galileia e na Judeia. Menciona Jerusalém para
identificar o lugar onde Jesus morreu crucificado. Sua referência à morte
do Senhor na cruz é breve; não está interessado em lançar sobre os
soldados romanos nenhuma responsabilidade pela execução de Jesus.
Em anteriores discursos tinha culpado os judeus, não os romanos (At
2:23; 3:15; 4:10; 5:30).
b. A ressurreição. “A este ressuscitou Deus no terceiro dia”. Pedro
proclama a boa notícia da ressurreição de Jesus e desta forma apresenta
seu ofício apostólico. Com os outros apóstolos, Pedro é uma testemunha
da ressurreição (At 1:22), e de todo o ministério de Jesus, mas esta
testemunha testifica da ressurreição. 661 Pedro recebeu a tarefa de
proclamar as novas de que Jesus ressuscitou da tumba no terceiro dia.
Deve dizer às pessoas que o próprio Deus levantou Jesus dos mortos.
Além das referências nos Evangelhos, a frase no terceiro dia aparece só
aqui e uma vez nas epístolas de Paulo (1Co 15:4).
c. As aparições. Deus deu a muito poucas pessoas o privilégio de
ver Jesus depois de Sua ressurreição. Salvo por Sua aparição aos
quinhentos irmãos reunidos ao mesmo tempo (1Co 15:6), Jesus Se
mostrou exclusivamente aos Seus seguidores mais imediatos. 662 Estes
seguidores deviam ser testemunhas de Sua ressurreição. Portanto, não é
remota a possibilidade de que Cornélio e seus amigos não tenham ouvido
nada a respeito das aparições de Jesus durante o período de quarenta dias
entre Sua ressurreição e Sua ascensão. Os judeus na sinagoga local de
Cesareia não estavam em condições de dizer nada a Cornélio a respeito
das aparições de Jesus, porque só podiam testificar de Sua morte na
cruz. 663
661
Rackham, Acts, p. 158.
662
Veja-se o comentário sobre At 1:3.
663
Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 349.
Atos (Simon J. Kistemaker) 547
d. As provas. Pedro tira qualquer raiz de cepticismo a respeito da
ressurreição de Jesus. Sabemos que na sociedade do primeiro século, os
apóstolos se encontraram com atitudes de zombaria e de dúvida onde
quer que ensinaram a doutrina da ressurreição (p. ex. At 17:32). Pedro,
contudo, fala como uma testemunha presencial e lembra que Jesus com
frequência comeu e bebeu com os apóstolos depois de ter ressuscitado
dentre os mortos. Sem dúvida, diz-lhes que Jesus partiu o pão com os
dois homens de Emaús (Lc 24:30), comeu um pedaço de peixe num
cenáculo (Lc 24:42-43), e se serviu café da manhã com sete de seus
discípulos junto ao Mar da Galileia (Jn.21:13). Pedro dá provas
irrefutáveis de que Jesus ressuscitou em corpo físico e que vive. 664 A
segurança consoladora que Pedro proclama é que os apóstolos têm
companheirismo com Jesus não somente durante Sua vida terrestre, mas
também depois de Sua ressurreição (Mt 28:20).
42, 43. Ele nos mandou pregar ao povo e testemunhar que foi a ele
que Deus constituiu juiz de vivos e de mortos. Todos os profetas dão
testemunho dele, de que todo o que nele crê recebe o perdão dos pecados
mediante o seu nome [NVI].
a. O mandato. “Ele nos mandou a pregar ao povo”. Eis aqui o
encargo que Jesus fez a Seus discípulos: pregar em Seu nome o
evangelho de salvação a todas as nações (Mt 28:19; Mc 16:15; Lc
24:47). Note-se que Pedro emprega para “povo” a palavra grega, a qual
até esse tempo se referia ao povo de Israel; é uma expressão usada por
aqueles que estão sob a aliança com Deus. Mas agora, Deus derrubou as
muralhas de separação entre judeus e gentios com o resultado que os
gentios também pertencem ao povo de Deus. E eles formam parte da
igreja cristã. Creem em Cristo Jesus, porém não têm necessidade de
submeter-se ao rito da circuncisão.

664
O corpo ressuscitado de Jesus não foi em corpo angélico. Uma referência à tradição a respeito dos
anjos (Tobe. 12:19), destaca o contraste: O arcanjo Rafael revela a Tobit e a Tobias que todos os dias
que Rafael lhes apareceu não comeu nem bebeu.
Atos (Simon J. Kistemaker) 548
De qualquer maneira, Pedro e seus companheiros judeus de Jope
ficam atônitos quando veem que os gentios recebem o dom do Espírito
Santo (v. 45). Necessitam tempo para aceitar que os crentes gentios são
iguais aos cristãos judeus e samaritanos.
Pedro informa à sua audiência que Cristo deu a Seus apóstolos um
segundo mandamento: “testemunhar que foi a ele que Deus constituiu
juiz de vivos e de mortos”; quer dizer, os apóstolos devem advertir ao
povo que Deus estabeleceu um dia de juízo e já designou a Jesus para
que servir como juiz naquele dia. Isto é significativo porque tendo
entregue a Jesus a responsabilidade de ser juiz, Deus está dizendo que
Ele e Jesus são iguais. Ambos, Deus o Pai e Deus o Filho julgarão o
povo no dia do juízo. 665
Em seu discurso breve diante dos filósofos atenienses, Paulo faz a
mesma afirmação: “[Deus] estabeleceu um dia em que há de julgar o
mundo com justiça, por meio do homem que designou. E deu provas
disso a todos, ressuscitando-o dentre os mortos” (At 17:31, NVI; e veja-
se At 24:25).
Ninguém poderá escapar do juízo, mas todos deverão comparecer
diante de Deus. Pedro usa a expressão idiomática os vivos e os mortos
para indicar que todos estarão incluídos quando Cristo julgar o povo.
Aqui, então, Pedro adverte os membros de sua audiência a procurar o
perdão de seus pecados através da fé em Jesus Cristo para que quando
tiverem que comparecer diante do juiz designado por Deus possam ser
absolvidos.
b. O compromisso. “Todo o que nele crê recebe o perdão dos
pecados”. Este é o coração do evangelho: Cristo limpa todo pecador que
vem a Ele com fé e arrependido. Ele se compromete com esta verdade,
pela qual o crente que foi perdoado não tem nada que temer quando
chegar o dia do juízo. Pedro acrescenta que a remissão de pecados tem
lugar só mediante o nome de Cristo. A palavra nome é mais que um

665
Cf. Gn 18:25; Jz. 11:27; Jo 5:22, 27; 9:39; Rm 2:16; 14:9–10; 2Tm 4:1; 1Pe 4:5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 549
título, porque inclui toda a revelação de Jesus Cristo, especialmente com
relação à Sua vida, obras, e palavras. Para quem é a purificação dos
pecados mediante o nome de Cristo? Pedro diz que é para todos os que
creem. Não põe restrições nem limitações: tanto judeus como gentios
recebem remissão de pecados. Cada pessoa, então, que segue
depositando sua fé e confiando nele pertence a Jesus. O contrário é
também verdade; quer dizer, todo aquele que recusa crer em Jesus terá
que enfrentá-Lo como juiz no dia do juízo. E ali terá que ouvir a
sentença de condenação por ter rejeitado o convite para aceitar a
salvação.
Pedro baseia no Antigo Testamento seu anúncio da obra
purificadora de Cristo. Não menciona a parte exata, citando capítulo e
versículo, mas diz que “todos os profetas dão testemunho dele [Cristo]”
e falaram a respeito de seu amor perdoador. 666 . Diz a Cornélio que o
conhecimento que o centurião obteve das Escrituras ao reunir-se na
sinagoga para adorar é verdadeiro. Sem dúvida que os profetas testificam
da pessoa e obra de Cristo, quem foi o cumprimento das promessas
messiânicas.

Considerações doutrinais em At 10:34–43


Lucas registra como Pedro apresenta o evangelho de Cristo a uma
audiência gentílica. Ao assim fazer, Pedro desdobra habilidade para
eliminar qualquer mal-entendido. Anuncia as boas novas de salvação e
relata a história da vida, morte e ressurreição de Jesus. Também lhes fala
de sua própria posição como testemunha ocular a quem foi encarregada a
tarefa de proclamar o evangelho. Por último, referindo-se ao Antigo
Testamento, chama as pessoas ao arrependimento e fé.
Os pastores, evangelistas e missionários que pregam o evangelho
semana após semana devem conhecer seus auditórios para que seu
ministério seja eficaz. Em seus sermões, devem começar por estabelecer
666
Is. 33:24; 53:5, 6, 10, 11; Jr. 31:34; 33:8; 50:20.
Atos (Simon J. Kistemaker) 550
um vínculo de simpatia com seus ouvintes. Quando se assegurarem de
sua atenção, devem ministrar mediante a leitura e explicação da Palavra
de Deus. Em cada sermão devem apontar a Cristo Jesus como o autor e o
aperfeiçoador da fé. Na conclusão de suas pregações, devem chamar os
adoradores a pôr sua fé em Cristo e arrepender-se de seus pecados. E
devem dizer-lhes que continuar numa vida de pecado conduz à perdição,
mas que o perdão dos pecados leva à vida eterna.

Palavras, frases e construções gregas em At 10:34–43


Versículo 34
ἐπʼ ἀληθείας — esta frase é uma tradução que faz Lucas de uma
expressão aramaica de forma transliterada (ἀμήν, ἀμήν), a qual aparece
vinte e cinco vezes no Evangelho de João. É a introdução para uma
afirmação solene.
προσωπολήμπτης — a forma composta de πρόσωπον (rosto) e
λαμβάνω (eu recebo, aceitar) aparece uma vez no Novo Testamento.

Versículos 36–38
Os tradutores diferem em seus critérios a respeito de fazer uma
tradução suave para a incomumente áspera e desarticulada sintaxe destes
versículos. Alguns tomam ὁ θεός (v. 34) como o sujeito que controla o
versículo 36 e eliminam o pronome relativo ὅν (o qual). Eu tomei o
verbo οἴδατε (você sabe) como o verbo principal para os versículos 36,
37 e 38, e assim incorporei o pronome relativo na construção da frase.
No entanto, seguem sendo problemáticos o caso nominativo de
ἀρξάμενος (v. 37) e o caso acusativo de Ἰησοῦν (v. 38). 667

667
Para outra opinião, veja-se F. Neirynck, “Acts 10, 36a ton logon,” EphThL 60 (1984): 118–23; e
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 606. Consulte-se Harald Riesenfeld, “The Text of
Acts 10:36”, em Text and Interpretation: Studies in the New Testament Presented to Matthew Black,
ed. por E. Best e R. McL. Wilson. (Cambridge: Cambridge University Press, 1979), pp. 191–94.
Atos (Simon J. Kistemaker) 551
Versículo 38
πνεύματι y δυνάμει — estes dois dativos expressam a forma em que
Jesus foi ungido.
διῆλθεν — de διέρχομαι (ir através de), este aoristo é constantivo
porque encerra a ação do verbo em sua totalidade. 668

Versículo 39
κρεμάσαντες — veja-se a explicação de At 5:30. O tempo do
particípio ativo aoristo coincide com o do verbo principal. 669

Versículo 41
ἡμῖν — o dativo do pronome pessoal está em aposto a μάρτυσιν
(testemunhas) e é enfático.
οἵτινες — este pronome relativo indefinido tem uma conotação
casual. No final deste versículo, os Manuscritos ocidentais expandem o
texto acrescentando-lhes as palavras que aparecem em itálico: “que
comemos e bebemos com ele e acompanhamos (a ele), depois que
ressuscitou dos mortos, por quarenta dias”. 670

Versículo 42
τῷ λαῷ — no versículo precedente, esta expressão refere-se aos
judeus; aqui, refere-se aos gentios.
οὗτος — um número de manuscritos importantes têm a forma αὑτός
(ele). Sobre a base de evidência externa, é difícil escolher.

668
H. E. Dana y Julius R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927; Nova
York: Macmillan, 1967), p. 196.
669
Robertson, Grammar, p. 1113.
670
Metzger, Textual Commentary, p. 381.
Atos (Simon J. Kistemaker) 552
ὡρισμένος — o particípio passivo perfeito de ὁρίζω (eu nomeio)
mostra ação que começa no passado e continua através do presente até o
futuro.

Versículo 43
Note-se os tempos neste versículo: μαρτυροῦσιν (eles testificam) é
o presente durativo; λαβεῖν (receber) é o aoristo constantivo; e
πιστεύοντα (está crendo) é o particípio ativo presente que denota ação
continuada.

d. A reação (At 10:44–48)

O Espírito Santo foi derramado sobre os judeus em Jerusalém (At


2:1–4), sobre os samaritanos em Samaria (At 8:15–17), e sobre os
gentios em Cesareia (At 10:44–46). O círculo da igreja cristã se expandia
com cada grupo que se acrescentava, e assim ia cumprindo o mandato
que Jesus deu a Seus apóstolos quando subiu ao céu (At 1:8).
44. Enquanto Pedro ainda estava falando estas palavras, o Espírito
Santo desceu sobre todos os que ouviam a mensagem [NVI].
Pedro não terminou seu sermão quando é interrompido pelo
derramamento do Espírito Santo. Para que não restasse nenhuma dúvida,
Pedro mesmo explica à igreja em Jerusalém o que tinha ocorrido. Disse:
“Quando, porém, comecei a falar, caiu o Espírito Santo sobre eles, como
também sobre nós, no princípio” (At 11:15). Pedro tinha experimentado
o derramamento do Espírito em Jerusalém no dia do Pentecostes.
Naquela ocasião, os apóstolos e todos os que estavam ali reunidos
ouviram um ruído como de um vento violento, viram línguas de fogo
sobre suas cabeças e, cheios com o Espírito Santo, “passaram a falar em
outras línguas” (At 2:4).
Na casa de Cornélio, Pedro de novo é testemunha do derramamento
do Espírito Santo. Mas agora o Espírito desce sobre os gentios, e com
Atos (Simon J. Kistemaker) 553
este ato indica que estes são parte da igreja igualmente como os cristãos
judeus.
O Espírito Santo vem sobre os gentios antes de serem batizados. Se
algum dos acompanhantes de Pedro em Cesareia tivesse perguntado se
os gentios seriam batizados antes de receber o Espírito Santo, o próprio
Espírito agiu de repente para evitar a pergunta. Além disso, a vinda do
Espírito declara obsoleto o rito da circuncisão, 671 um rito que por certo o
Concílio de Jerusalém posteriormente aboliu (At 15:8–11).
Pedro prega a palavra aos gentios e estes quase não têm tempo de
responder ao evangelho. De repente, Deus envia Seu Espírito como um
sinal de que Deus aceita estes gentios crentes como Seu povo. Note-se
que o Espírito Santo desce sobre Cornélio, sua família e os convidados
ali apresente, porém não sobre os cristãos judeus que acompanham a
Pedro (veja-se v. 46). Desta maneira, Deus está demonstrando que o
desenvolvimento da igreja cristã entra numa nova fase.
45, 46a. E os fiéis que eram da circuncisão, que vieram com Pedro,
admiraram-se, porque também sobre os gentios foi derramado o dom do
Espírito Santo; pois os ouviam falando em línguas e engrandecendo a
Deus.
Embora Jesus tenha encomendado aos apóstolos a tarefa de pregar o
evangelho a todas as nações, os companheiros de Pedro se maravilham
ao ver que Deus aceita os gentios, ao conceder-lhes o dom de Seu
Espírito. Devido ao fato de que o derramamento do Espírito nesta
ocasião é idêntico à experiência do Pentecostes em Jerusalém, os crentes
judeus agora veem que os crentes gentios são iguais aos olhos de
Deus. 672 E mesmo quando o próprio Pedro começa seu sermão, dizendo
que Deus não tem favoritismo com ninguém (veja-se vv. 34–35), os
companheiros de Pedro estão assombrados que o próprio Deus confirme
esta verdade ao derramar Seu Espírito sobre os crentes gentios. Nesse
momento, Pedro lembra o que Jesus havia dito: “João, na verdade,
671
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 609.
672
Cf. At 11:1, 18; 13:48; 14:27; 15:7, 12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 554
batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo” (At
11:16; veja-se também At 1:5; Mt 3:11; Mc. 1:8; Lc 3:16).
Os seis membros da delegação de Jope (At 11:12) ouvem os gentios
falar em línguas e louvar a Deus. Veem os sinais visíveis do
derramamento do Espírito Santo (cf. At 2:4, 11; 19:6). Lucas não explica
a forma deste falar em línguas, só registra o relatório de Pedro à igreja de
Jerusalém. Ali, Pedro relata que o Espírito veio sobre os gentios
exatamente como tinha descido sobre os apóstolos no Pentecostes (At
11:15), e que Deus tinha dado aos gentios o mesmo dom que tinha dado
aos judeus (At 11:17). A única diferença entre o relato que faz Lucas do
Pentecostes e o de Cesareia é o uso da palavra outras. Quer dizer, em
Jerusalém os apóstolos falam em outras línguas (idiomas), mas Cornélio
e os que estavam em sua casa estavam “falando em línguas”. Lucas não
explica se os gentios se expressaram em idiomas conhecidos ou em
palavras enlevadas. Não podemos conhecer o significado exato da
expressão falar em línguas usada neste versículo e em At 19:6. 673 De
fato, a dificuldade com a que temos que lutar radica no extremamente
raro que é esta expressão nos escritos do Novo Testamento.
Com o uso dos tempos verbais em grego, Lucas indica que a
explosão de alegria e felicidade levou tempo. Os cristãos judeus
continuaram ouvindo os gentios elevando suas vozes em louvor a Deus
(veja-se At 13:48). Lucas parece sugerir que os judeus ouviram os
gentios falar em línguas porém não necessitavam interpretação para
entender o que diziam. 674
46b-48. Então, perguntou Pedro: Porventura, pode alguém recusar a
água, para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam

673
“Além de estes exemplos serem encontrados só em Atos e em 1 Coríntios … são anteriores ao
século IV, data em que se localiza a referência de Marcos 16:17 e em Irineu, Contra heresias (V vi
I)”. Stuart D. Currie, “Speaking in Tongues: Early Evidence Outside the New Testament Bearing on
Glossais Lalein”, Interp 19 (1965); 277. Publicado também em Speaking in Tongues: A Guide to
Research in Glossolalia, ed. por Watson E. Mills (Grand Rapids: Eerdmans, 1986).
674
Anthony A. Hoekema, Holy Spirit Baptism (Grand Rapids: Eerdmans, 1972); pp. 48–49.
Atos (Simon J. Kistemaker) 555
o Espírito Santo? E ordenou que fossem batizados em nome de Jesus
Cristo. Então, lhe pediram que permanecesse com eles por alguns dias.
Quando Pedro ouviu os gentios falar e cantar louvores a Deus, ele
sabe que ninguém pode impedir que sejam batizados e sejam
incorporados à igreja como membros. A pergunta que fez foi meramente
retórica que, naturalmente, deve obter uma resposta negativa. Em outras
palavras, nem os cristãos judeus ou samaritanos podem impedir que os
cristãos gentios cheguem a ser membros plenos da igreja. A frase “Pode
alguém recusar a água, para que não sejam batizados estes” talvez foi um
formalismo que se usava normalmente no momento do batismo. O
eunuco etíope fez a mesma pergunta a Filipe antes de ser batizado (At
8:36).
Quando Pedro e João viajaram a Samaria, oraram para que os
samaritanos recebessem o Espírito Santo. Depois puseram as mãos sobre
eles, que então receberam o Espírito (At 8:15–17). Mas em Cesareia,
Deus interrompeu o sermão de Pedro, fazendo com que o Espírito
descesse sobre os gentios. Depois que Cornélio e os seus terminaram sua
adoração a Deus, Pedro faz a pergunta se haveria algum impedimento
para que fossem batizados. Isso nos permite entender a soberania de
Deus ao transtrocar a sequência do batismo primeiro e do derramamento
do Espírito depois.
Pedro, como o explica o texto grego, ordenou aos seis cristãos
gentios que batizassem os convertidos gentios. Em Samaria, não foram
os apóstolos e sim Filipe que batizou. Paulo, escrevendo aos coríntios,
afirma que em Corinto ele não batizou a ninguém, salvo a Crispo, Gaio,
e a família do Estéfanas (1Co 1:14, 16; e compare Jo 4:2). Inclusive
Paulo escreve que não quer que seu nome seja associado com os
batismos (1Co 1:15). Os apóstolos, desta maneira, põem a ênfase não
neles mesmos, e sim no nome de Jesus; por isso Pedro instrui a seus
acompanhantes para batizar os gentios no nome de Jesus Cristo. Segue a
forma comum de batizar daqueles dias (At 2:38; 8:16; 19:5).
Atos (Simon J. Kistemaker) 556
O nome Jesus Cristo significa a revelação total de tudo o que Jesus
fez e disse. Além disso, indica tudo o que as Escrituras revelam a
respeito da vinda, o ofício, e a função do Messias. Portanto, quando nos
tempos apostólicos um crente era batizado no nome de Jesus Cristo, ele
declarava que como candidato para o batismo estava identificando-se
completamente com esse nome. 675
Cornélio e seus amigos convidam Pedro a ficar em Cesareia por
mais alguns dias. Fazem-lhe numerosas perguntas e desejam ser
instruídos na fé cristã. Lucas sugere que os companheiros de viagem de
Pedro também ficam em Cesareia e posteriormente o acompanham a
Jerusalém. Explicitamente afirma que estavam em Jerusalém (At 11:12)
quando Pedro deu seu relatório à igreja ali. Pelo fato de hospedar-se em
lares gentios, Pedro e seus amigos judeus demonstraram que estavam
aceitando plenamente seus hospitaleiros como membros iguais da igreja
cristã. E desta forma o tempo que ficaram nesses lares serviu para
fortalecer aqueles crentes gentios.676

Considerações práticas em At 10:44–48


“Quando for a Roma, faça como os romanos”. Este ditado popular é
particularmente aplicável a homens e mulheres que pregam e ensinam o
evangelho em países e culturas que não são deles. Eles não só devem
aprender o idioma para que saibam comunicar-se facilmente e ser dignos
embaixadores de Jesus Cristo. Também devem submergir totalmente na
cultura onde vão viver e trabalhar. Quer dizer, estão obrigados a
identificar-se até onde for possível com a gente a quem vão ministrar.
Sua mensagem deve ser clara e direta: dizer às pessoas que se
arrependam de seus pecados e da maldade e que se voltem em fé a Cristo

675
Leon Morris, New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p.
166.
676
Pedro cometeu um erro quando mais tarde em Antioquia recusou comer com os cristãos gentios.
Paulo, portanto, abertamente o repreendeu por essa conduta errada (Gl. 2:11–14).
Atos (Simon J. Kistemaker) 557
Jesus. E. T. Cassel formulou este pensamento de forma terminante nas
palavras do hino:
Sou peregrino aqui,
Meu lar longínquo está
Na mansão de luz,
eterna paz e amor;
Embaixador eu sou
do reino celestial
Nos negócios de meu Rei.
esta mensagem fiel ouvi,
Mensagem de sua paz e amor;
“Reconciliai-vos já”
diz o Senhor e Rei.
Reconciliai-vos já com Deus!

Palavras, frases e construções gregas em At 10:44–48


Versículo 44
λαλοῦντος — com o nome Pedro no caso genitivo, este particípio
ativo presente forma a construção absoluta genitiva.
τὸ πνεῦμα τὸ ἅγιον — os dois artigos definidos tornam claro que
este é o Espírito Santo (em distinção de um espírito) e se refere a seu
derramamento aos gentios. 677

Versículo 45
ἐκ — a preposição descreve o partido dos cristãos judeus, os quais
enfatizavam o rito da circuncisão.
ὅτι καί — os tradutores estão divididos quanto a tomar ὅτι como
causal (“porque”) ou como a conjunção essa. A conjunção καί pode ser
ascensiva como adjuntiva e se traduz tanto “até” como “também”.
677
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#257.2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 558
δωρεὰ τοῦ ἁγίου πνεύματος — veja-se o comentário sobre At 2:38.
ἐκκέχυται — esta forma passiva perfeita do verbo ἐκχέω (eu
derramo) é traduzida no tempo mais-que-perfeito devido ao tempo
passado do verbo principal (“maravilharam-se”).

Versículo 47
μήτι — a partícula interrogativa introduz uma pergunta retórica que
supõe uma resposta negativa. A partícula negativa μή antes do infinitivo
batizar-se é redundante devido ao verbo impedir.
οἵτινες — este pronome relativo indefinido tem um sentido causal.
Veja-se o versículo 41.

Versículo 48
Todos os tempos neste versículo estão no aoristo e significam uma
só ocorrência. O infinitivo aoristo βαπτισθῆναι implica que os cristãos
judeus oficiaram na cerimônia de batismo.

Resumo de Atos 10
Cornélio, quem serve como centurião do Regimento Italiano
acantonado em Cesareia, é um devoto piedoso. Ajuda materialmente os
pobres e passa muito tempo orando. Numa de suas sessões de oração,
aparece a ele um anjo que lhe dá instruções de mandar a trazer Simão
Pedro que se encontra em Jope. Cornélio despacha então a dois
servidores de confiança e um fiel soldado para que peçam a Pedro vir a
Cesareia.
Em Jope, Pedro passa tempo no terraço da casa onde se hospeda.
Enquanto ora, cai em transe e numa visão vê um grande lençol cheio de
todo tipo de animais que baixa do céu. Ouve uma voz que lhe diz que
mate e coma. Ele se opõe à ordem, dizendo que nunca comeu nada
imundo. Mas a voz lhe diz que Deus tirou a distinção entre o limpo e o
Atos (Simon J. Kistemaker) 559
imundo. Isto ocorre por três vezes, e enquanto Pedro procura entender o
significado da visão, os mensageiros de Cesareia chegam. Convidam
Pedro a ir à casa de Cornélio.
Dois dias depois, Pedro e seus acompanhantes viajam a Cesareia,
onde Cornélio lhes dá as boas-vindas. Um importante círculo de amigos
de Cornélio esperam a Pedro. Ele lhes explica que Deus lhe disse que
não deve chamar a ninguém imundo; quer dizer, Pedro devia
acompanhar os mensageiros. Cornélio lhe conta a respeito da visita e a
mensagem do anjo. Então Pedro prega as Boas Novas a seu auditório
gentílico. De repente, o Espírito Santo desce sobre os gentios, o qual
enche de assombro os cristãos judeus. Os gentios falam em línguas,
glorificam a Deus, e são batizados. Pedro permanece com eles por alguns
dias mais.
Atos (Simon J. Kistemaker) 560

IV. A IGREJA NA PALESTINA


(AT 8:1B – 11:18)
Atos (Simon J. Kistemaker) 561
ATOS 11
A IGREJA NA PALESTINA, parte 4 (At 11:1–18)
e
A IGREJA EM TRANSIÇÃO, parte 1 (At 11:19–30)
6. A explicação de Pedro (At 11:1–18)

Em numerosos lugares através de Atos, Lucas oferece só uns


poucos detalhes a respeito dos relatos históricos que registra. Isto nos dá
a impressão que devido à amplitude da história da igreja cristã, Lucas é
forçado a ser seletivo e conciso. No entanto, quando se refere à visita de
Pedro à casa de Cornélio, é deliberadamente minucioso. Dedica quase
um capítulo e meio (At 10:1–11:18) a este evento. Como cristão gentio,
concede especial importância à entrada dos gentios à igreja.
Quando Pedro chega a Jerusalém, os cristãos judeus exigem uma
explicação a respeito de sua visita aos gentios. Pedro tem que informar à
igreja de Jerusalém que o próprio Deus abriu o caminho para que os
gentios cheguem a ser membros da igreja. Quando os samaritanos
entraram na igreja, os cristãos judeus em Jerusalém não puseram
objeções. Mas agora que os gentios se voltam para Cristo por meio da fé,
Pedro deve dizer à igreja de Jerusalém que Deus os aceitou.
Em seu relato, Lucas se abstém de dar qualquer detalhe relacionado
com a viagem de Pedro a Cesareia. Vamos supor, no entanto, que esta
visita ocorreu perto do fim dos anos quarenta ou a princípio dos
cinquenta (39–41 d.C.). Sabe-se que nesses anos a situação política de
Jerusalém era tensa. O imperador Calígula, cuja demência tinha causado
revoltas sérias e mortes 678 tinha decretado que uma estátua do imperador

678
Refira-se a Suetônio Gaio Caligula, em The Lives of the Ceasars, trad. por John C. Rolfe, 2 vols.,
vol. 1, livro 4, pp. 403–97 (LCL).
Atos (Simon J. Kistemaker) 562
fosse colocada no templo de Jerusalém. Calígula tinha emitido este
decreto depois de ter recebido uma delegação judaica que desejava
explicar por que os judeus de Alexandria, Egito, não tinham um altar a
César. Nesta reunião, Calígula se sentiu ofendido pelos judeus e foi às
nuvens. Josefo conta o seguinte:
“Indignado por ser considerado tão pouca coisa somente pelos
judeus, Gaio despachou Petrônio [Governador da Síria, 39–42 d.C.] a
Síria como seu representante para suceder Vitélio naquele cargo. Suas
ordens eram enviar um forte contingente de tropas a Judeia e, se os
judeus consentiam em recebê-lo, colocar sua imagem no templo de
Deus. Mas se, pelo contrário, os judeus se obstinavam, devia submetê-
los pela força das armas e de qualquer maneira colocá-la”. 679
Quando Petrônio chegou por fim a Tiberíades, localizada junto à
margem do lago da Galileia, dez mil judeus se reuniram com ele e o
persuadiram a não instalar a estátua do imperador em Jerusalém. Com o
risco de sua própria vida, Petrônio escreveu a Calígula e lhe pediu deixar
a ordem sem efeito. Pouco depois, o imperador morreu às mãos de seus
assassinos (41 d.C.) com o qual se evitou a calamidade que ameaçava.
Se estamos certos em assumir que a visita de Pedro a Cesareia
ocorreu nos tempos do decreto de Calígula, podemos imaginar então que
os judeus em Jerusalém desaprovaram a visita de Pedro a um oficial
militar de Roma. Em qualquer caso, as relações entre judeus e romanos
eram tensas.

a. A crítica (At 11:1–3)

1. Chegou ao conhecimento dos apóstolos e dos irmãos que estavam


na Judéia que também os gentios haviam recebido a palavra de Deus.
Os cristãos judeus que viviam em Cesareia tinham ouvido que
Pedro e seis judeus de Jope tinham entrado na casa de Cornélio e tinham

679
Josefo Antiguidades 18.8.2 [261]; Guerra judaica 2.10.1 [184–87].
Atos (Simon J. Kistemaker) 563
vivido ali por algum tempo. Enviaram a notícia aos judeus da Judeia e
especialmente a Jerusalém. Além disso, informaram que gentios em
Cesareia tinham recebido a palavra de Deus e tinham posto sua fé em
Jesus Cristo.
Primeiro, Lucas menciona os apóstolos e logo acrescenta a palavra
irmãos, o que no uso do Novo Testamento quer dizer “crentes”. Os
apóstolos consultaram os membros da igreja e procuraram entender as
notícias que lhes tinham chegado. Eles sabiam que os gentios tornaram-
se cristãos, porque a expressão palavra de Deus era sinônimo da
pregação apostólica do evangelho. 680 Esta pregação tinha suas raízes na
história de Jesus Cristo (At 10:36–43).
De repente, os cristãos judeus viram-se confrontados a uma nova
fase do desenvolvimento da igreja: a entrada dos gentios à membresia.
Os judeus já não tinham mais o monopólio da graça de Deus, porque
Deus também tinha convidado os gentios a ser plenos participantes de
Sua graça. Embora os judeus tivessem ouvido as notícias deste recente
acontecimento, careciam de informação detalhada ao mesmo tempo que
não estavam muito dispostos a acomodar-se às inevitáveis mudanças que
estavam ocorrendo na igreja. Por isso demandaram de Pedro uma
explicação.
2, 3. Quando Pedro subiu a Jerusalém, os que eram da circuncisão o
arguiram, dizendo: Entraste em casa de homens incircuncisos e comeste
com eles.
Pouco depois de sair de Cesareia, Pedro volta para Jerusalém, onde
teve que informar aos apóstolos e à igreja a respeito de sua visita à casa
de Cornélio. Entre parêntese, alguns manuscritos ocidentais (grego,
latino, siríaco e cóptico) têm um texto ampliado que indica que Pedro
passou considerável tempo em sua viagem a Jerusalém. 681 Não é

680
Veja-se At 4:29, 31; 6:2, 7; 8:14; 13:5, 7, 44, 46, 48; 16:32; 17:13; 18:11. Bertold Klappert,
NIDNTT, vol. 3, p. 1113.
681
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), pp. 382–83.
Atos (Simon J. Kistemaker) 564
possível dizer quanto Pedro demorou em chegar à cidade; sabemos,
porém, que quando chegou teve que enfrentar aqueles que eram
circuncidados”.
Alguns comentaristas interpretam a frase os que eram da
circuncisão como referindo-se a um partido separado de judeus dentro
da igreja cristã. 682 Outros são da opinião que a frase refere-se aos judeus
de nascença. Dizem que “não há nada que sugira que se tenha tratado de
um ‘partido’ definido na igreja, nesta época, especialmente antes que o
assunto da circuncisão se levantasse de forma tal que se tomasse
posições quanto a isso. 683
Pedro mesmo tinha manifestado sua aversão a entrar no lar de um
gentio até que Deus lhe disse que o fizesse (At 10:28). Assim, em geral
podemos dizer que cada judeu que evitava contato social com os gentios
pertencia a “os que eram da circuncisão”. Mas Lucas tem em mente os
cristãos judeus, não a todos os judeus em Israel e na dispersão. Usa a
mesma frase para descrever os seis cristãos judeus que acompanharam a
Pedro (At 10:45). Além disso, como um gentio cristão ele mesmo, Lucas
vê toda a igreja de Jerusalém desse tempo como cristãos circuncidados.
Assinala que todos os cristãos judeus em Jerusalém e Judeia no tempo da
visita de Pedro se opunham a aceitar os cristãos gentios na igreja. 684
Mais tarde (At 15:5) referir-se-á ao partido dos judaizantes.
A objeção dos membros da igreja é que Pedro tenha entrado no lar
dos gentios e tenha comido com eles. Os judeus evitavam visitar os
gentios (veja-se Jo 18:28) por temor a tornar-se cerimonialmente
imundos. E recusavam compartilhar a mesa com os gentios porque lhes
tinha sido dado mandamento de não comer nada impuro. Esta estrita lei
de separação os pressionava a rejeitar qualquer contato com os gentios; a
682
P. ex. R.C.H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p.
438.
683
I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: An Introduction and Commentary, série Tyndale
New Testament Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 195.
684
Veja-se F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe
Testament, 2 vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, p. 360.
Atos (Simon J. Kistemaker) 565
influência que também exerciam os judeus que não eram membros da
igreja cristã era um fator nessa rejeição.
Os judeus viajariam por terra e por mar para fazer conversos para
sua fé tal como Jesus o assinalou (Mt 23:15), mas escrupulosamente
evitaram contaminar-se, pelo que só comiam comida kosher (quer dizer,
autorizada pela lei judaica). Note-se que os cristãos judeus em
Jerusalém, mesmo quando ouviram que os gentios aceitavam o
evangelho de Cristo, não perguntam a Pedro a respeito de sua missão
evangelística entre os gentios. Não perguntaram a respeito da fé em
Cristo ou o batismo; só lhes interessava conhecer as razões que tinha tido
Pedro para hospedar-se em casa de um gentio e comer com ele comida
impura.

Palavras, frases e construções gregas em At 11:1–3


Versículo 1
κατά — em contexto, esta preposição significa “em”. Veja-se 13:1;
15:23; 24:12; Hb 11:13. 685
τὰ ἔθνη — normalmente, o substantivo plural neutro é o sujeito do
verbo no singular. Aqui aparece no plural. Não obstante, a variante
textual, é preferível o plural ἐδέξαντο (receberam).

Versículo 2
διεκρίνοντο — este é o meio imperfeito no verbo composto
διακρίνομαι (discuto) e tem um sentido ingressivo: “começaram a
discutir”. 686

685
H. E. Dana y Julius R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927; Nova
York: Macmillan, 1957), p. 107.
686
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 885.
Atos (Simon J. Kistemaker) 566
περιτομῆς — a falta de um artigo definido generaliza a frase na qual
aparece o substantivo. Portanto, sem o artigo definido, dificilmente a
frase se refere a um partido.

Versículo 3
ὅτι — alguns tradutores entendem ὅτι como um interrogativo. Pode
significar “Por que entrou …?” Esta conjunção, então, tem o significado
de por que, o que também aparece em Mc 2:16; 9:11, 28. No entanto, a
maioria dos tradutores favorecem o uso recitativo, que introduz um
discurso direto. 687

b. A visão (At 11:4–10)

Lucas tem a tendência de referir-se mais de uma vez a um mesmo


fato (cf. At 9:1–19; 22:3–16; 26:9–18). 688 Aqui, repete a história da
visão de Pedro e sua visita a Cesareia. Mesmo quando omite alguns
detalhes, acrescenta outros para enfatizar certos pontos neste evento. De
qualquer maneira, em vários versículos, os relatos são idênticos.
4, 5. Então, Pedro passou a fazer-lhes uma exposição por ordem,
dizendo: Eu estava na cidade de Jope orando e, num êxtase, tive uma
visão em que observei descer um objeto como se fosse um grande lençol
baixado do céu pelas quatro pontas e vindo até perto de mim.
Em sua defesa, Pedro se abstém de citar algumas passagens
relevantes do Antigo Testamento e declarações pertinentes de Jesus. Em
vez disso, conta sua história pessoal e começa no momento de sua visão
em Jope. Não lhe é difícil fazê-lo, porque ele sabe que o próprio Deus o
mandou, mediante a visão, proclamar o evangelho de Cristo aos gentios.

687
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 132.
688
Lucas refere-se quatro vezes a Cornélio (At 10:3–6, 22, 30–32; 11:13), quatro vezes à estada de
Pedro em casa de Simão, o curtidor (At 9:43; 10:6, 17, 32), e duas vezes à visão de Pedro em Jope (At
10:9–16; 11:5–10).
Atos (Simon J. Kistemaker) 567
Obviamente, Lucas apresenta uma versão abreviada da experiência
de Pedro, visto que omite referências ao fato de que Pedro se encontrava
no terraço da casa ao meio-dia, e que tinha fome enquanto se preparava a
comida. Relata a experiência de Pedro, que enquanto estava orando,
Deus lhe deu uma visão de um grande lençol sujeito pelas quatro pontas
e baixando diretamente até ele.
6-10. E, fitando para dentro dele os olhos, vi quadrúpedes da terra,
feras, répteis e aves do céu. Ouvi também uma voz que me dizia: Levanta-
te, Pedro! Mata e come. Ao que eu respondi: de modo nenhum, Senhor;
porque jamais entrou em minha boca qualquer coisa comum ou imunda.
Segunda vez, falou a voz do céu: Ao que Deus purificou não consideres
comum. Isto sucedeu por três vezes, e, de novo, tudo se recolheu para o
céu.
Pedro relata a visão em primeira pessoa do singular para dar a seus
ouvintes uma descrição vívida do que viu. Sublinha que olhou
atentamente o que continha o grande lençol: eram seres viventes desta
terra (acrescenta uma referência específica a animais selvagens), répteis,
e aves do céu (cf. Sl. 148:10).
Como judeu que é, Pedro evita usar o nome Deus e, em vez disso,
diz que uma voz do céu lhe disse que se levantasse, que matasse e
comesse. Além disso, dá a entender que o lençol continha animais
limpos e imundos; este fato faz referência diretamente à prática dos
judeus de não comer algo impuro. Aderindo às leis do Antigo
Testamento, Pedro recusa contaminar-se. Mas a voz celestial lhe revela
que não considerasse impuro o que Deus purificou. Em outras palavras,
Deus tirou a distinção entre os animais puros e impuros. Depois que
Deus falou três vezes sucessivas, o lençol foi levado de novo ao céu e a
visão chegou ao seu fim. Obviamente, o propósito da visão foi preparar a
Pedro para sua missão a Cesareia.
Atos (Simon J. Kistemaker) 568
Palavras, frases e construções gregas em At 11:6
ἀτενίσας — este particípio ativo aoristo do verbo ἀτενίζω (eu olho
atentamente a) é seguido pelo ativo imperfeito κατενόουν (estive
observando) e o ativo aoristo εἶδον (eu vi). É importante neste versículo
o uso dos tempos do verbo.

c. A visita (At 11:11–14)

Logo, Pedro descreve sua visita à casa de Cornélio. Não obstante


que se trata do primeiro gentio convertido à fé cristã, Pedro não
menciona seu nome no relatório que dá. Simplesmente refere-se a ele
como “o homem” (v. 12), e, talvez a propósito também evita qualquer
referência à sua posição militar.
11-14. E eis que, na mesma hora, pararam junto da casa em que
estávamos três homens enviados de Cesaréia para se encontrarem comigo.
Então, o Espírito me disse que eu fosse com eles, sem hesitar. Foram
comigo também estes seis irmãos; e entramos na casa daquele homem. E
ele nos contou como vira o anjo em pé em sua casa e que lhe dissera:
Envia a Jope e manda chamar Simão, por sobrenome Pedro, o qual te
dirá palavras mediante as quais serás salvo, tu e toda a tua casa.
Pedro relata a sua audiência que logo que teve a visão, três homens
procedentes de Cesareia chegaram à casa onde ele e alguns
acompanhantes se hospedavam. Embora não diga que se tratava de
homens gentios, seus ouvintes bem sabiam que eram gentios os que o
convidavam para vir a Cesareia. Note-se que Pedro informa a seus
ouvintes que Deus o instruiu a respeito de visitar a família de Cornélio.
Quer dizer, não foi coisa que ele, Pedro, tenha imaginado. Antes, Deus
lhe disse que aceitasse o convite que o fazia: primeiro, mediante a visão,
e logo, falando mediante o Espírito Santo. Por isso Pedro é cuidadoso em
pôr ênfase em Deus e não em si mesmo.
Inteiramo-nos que os seis crentes que foram com ele a Cesareia
estão agora em Jerusalém para dar fé do que Pedro informar. Pedro
Atos (Simon J. Kistemaker) 569
confirma que ele e os seis companheiros judeus entraram na casa de um
gentio e permaneceram ali vários dias.
Pedro afirma que ali foi informado que um anjo tinha ordenado a
este gentio que mandasse mensageiros a Pedro para convidá-lo à casa do
senhor. Note-se que neste relatório, a versão da visita e a mensagem
angélica que Lucas transmite, difere da que aparece no capítulo anterior
(At 10:4–6, 31–32). O anjo prometeu salvação a Cornélio e à sua casa. O
termo sua casa inclui a todos os que têm alguma relação com Cornélio,
incluindo seus familiares, seus serventes e inclusive seus soldados (At
16:15, 31–34; 18:8; veja-se Jo 4:53; 1Co 1:11, 16). Além disso, quando
o anjo prometeu salvação a Cornélio e sua casa, está implicitamente
fazendo referência ao autor da salvação, o Senhor Jesus Cristo. Embora
Cornélio tivesse recebido instrução religiosa na sinagoga, e embora
adorasse a Deus em suas devoções particulares em seu lar, ainda não
tinha recebido o dom da salvação. Só através da fé em Jesus Cristo
poderiam ele e os membros de sua casa ser receptores deste dom.

Palavras, frases e construções gregas em At 11:11–14


Versículo 11
ἦμεν — alguns manuscritos usam o singular ἤμην (eu estava) em
lugar do plural ἦμεν (estávamos). A forma plural é de mais difícil
interpretação e, portanto, é preferível.

Versículos 13–14
τὸυ ἄγγελον — aunque la fluidez de la historia demanda la
eliminación del artículo definido, su presencia de todos modos parece ser
original. Los escribas posiblemente estuvieron más inclinados a eliminar
el artículo que a agregarlo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 570
σωθήσῃ σύ — note-se o uso enfático do pronome pessoal na
segunda pessoa para fortalecer o verbo passivo futuro na segunda
pessoal do singular.

d. Conclusão (At 11:15–18)

Pedro declara que ele visitou os gentios porque Deus lhes estava
dando o dom da salvação. Confessa que ele não devia interferir quando
Deus está dando Seus dons a quem Ele quiser. Desta maneira, Pedro
dirige a atenção de sua audiência a Deus. Assinala que quando Deus
derrama Seu Espírito aos gentios, como o fez no Pentecostes, os gentios
e os judeus chegam a ser iguais na igreja cristã.
15-17. Quando, porém, comecei a falar, caiu o Espírito Santo sobre
eles, como também sobre nós, no princípio. Então, me lembrei da palavra
do Senhor, quando disse: João, na verdade, batizou com água, mas vós
sereis batizados com o Espírito Santo. Pois, se Deus lhes concedeu o
mesmo dom que a nós nos outorgou quando cremos no Senhor Jesus,
quem era eu para que pudesse resistir a Deus?
As palavras Quando, porém, comecei a falar não devem tomar-se
literalmente, mas de forma figurada. O que Pedro está procurando dizer é
que ele quase não tinha começado a pregar um esquema do evangelho de
Cristo e que nos dias sucessivos foi explicando à sua audiência gentílica
mais amplamente o caminho da salvação. Portanto, no começo de sua
estada o Espírito Santo desceu sobre Cornélio e sua casa. O
derramamento do Espírito sobre os judeus em Jerusalém foi o
acontecimento muito importante na história da igreja. Agora Pedro
explica que os gentios também receberam o dom do Espírito. Portanto, a
igreja cristã está formada agora por judeus, samaritanos, e gentios.
Neste ponto da história, Pedro menciona algumas palavras ditas por
Jesus: “João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados
com o Espírito Santo” (At 1:5; veja-se Mc 1:8). É interessante o uso do
verbo lembrei porque Jesus disse a Seus apóstolos que lhes enviaria o
Atos (Simon J. Kistemaker) 571
Espírito Santo para fazê-los lembrar tudo o que lhes havia dito (Jo
14:26). Quando o Espírito Santo veio sobre os gentios, fez com que
Pedro lembrasse as palavras de Jesus quanto ao batismo do Espírito
Santo.
A conclusão a que chega Pedro a respeito deste fato histórico é que
Deus é soberano em conceder salvação a judeus e a gentios. Quando
Deus põe os gentios cristãos no mesmo nível que os cristãos judeus, e
ambos gentios e judeus creem no Senhor Jesus Cristo, Pedro nem sequer
pode abrigar o pensamento de negar aos gentios a entrada na igreja. E
aqui faz a pergunta: “Quem era eu para que pudesse resistir a Deus?”
Fazer a pergunta é respondê-la. Pedro não diz nada a respeito da
circuncisão. Ele e os membros da igreja de Jerusalém veem a mão de
Deus no desenvolvimento da igreja. A igreja de Jerusalém não quer
opor-se à obra de Deus entre os gentios.
18. E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram-se e glorificaram a
Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o
arrependimento para vida.
Quando de repente velhos padrões de conduta são postos fora de
uso por outros novos, não resta outra coisa que adaptar-se a estes
últimos. A igreja de Jerusalém aceitou a explicação de Pedro a respeito
de sua visita a Cesareia e reconhece a soberania de Deus em outorgar a
salvação aos gentios. No entanto, deveria passar quase uma década antes
que o Concílio de Jerusalém se reunisse para ditar os requisitos básicos
que os gentios deveriam cumprir (At 15:20, 28–29).
Os que escutam a explicação de Pedro ficam satisfeitos e não põem
outras objeções à entrada na igreja. Eles reconhecem que o próprio Deus
tinha instruído Pedro para ir a Cesareia e, como resultado, estão
louvando a Deus por Sua graça e misericórdia. Num sentido, os crentes
levantaram as mesmas objeções que Pedro também sentiu quando Deus
lhe disse na visão para comer o imundo. Mas como Deus assegurou a
Pedro que purificou todas as coisas, assim faz entender aos crentes em
Jerusalém que aceitou os gentios e que lhes outorgou o dom da salvação.
Atos (Simon J. Kistemaker) 572
Louvando a Deus, os crentes em Jerusalém determinam: “Logo,
também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para
vida”. A igreja de Jerusalém aceita os gentios sobre a base do dom do
Espírito Santo dado a eles por Deus, e de seu arrependimento. Estes dois
atos oferecem suficiente evidência de que a igreja cristã (diferente do
judaísmo) não depende de observâncias legalistas mas da guia divina. 689
No Pentecostes, no fim de seu sermão, Pedro exortou sua audiência
a arrepender-se de seus pecados (At 2:38). Em seu sermão no Pórtico de
Salomão, pronunciado depois da cura do paralítico, chamou as pessoas
ao arrependimento (At 3:19). Ao castigar a Simão, o mago, disse-lhe que
se arrependesse de sua maldade (At 8:22). No entanto, o arrependimento
não é algo que se origine no coração do homem por mera iniciativa
deste. O arrependimento, como o confessaram os crentes em Jerusalém,
é um dom de Deus: “Logo, também aos gentios foi por Deus concedido
o arrependimento para vida” (veja-se também At 5:31; 2Tm 2:25). Quer
dizer, Deus concede a Seu povo o dom do arrependimento, o perdão de
pecados, e a vida eterna.

Considerações doutrinais em At 11:18


Quando João Batista pregou o batismo de arrependimento, teve que
enfrentar a hierarquia religiosa de seu tempo, ao coletor de impostos e ao
soldado a serviço de Roma, e a Herodes Antipas que tinha casado com a
mulher de seu irmão Filipe. Chamou todos ao arrependimento e a serem
batizados (Lc 3:7–20). Chamou os pecadores a depor uma vida carregada
de pecado por uma dedicada a Deus. Inclusive lhes ensinou como viver
para a glória de Deus.
Pode um pecador que se arrepende reclamar crédito por afastar-se
do mal? Certamente que não. O pecador que sabe que Deus mediante
Jesus Cristo o lavou do seu pecado e lhe deu vida, dá a Deus todo o
crédito. Dá-se conta que foi salvo não pelas obras mas pela graça
689
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 686.
Atos (Simon J. Kistemaker) 573
mediante a fé (Ef 2:8–9). Assim, ele aceita o arrependimento como um
dom de Deus, quem através de Seu Filho lhe assegura a salvação e
através de Seu Espírito o ressuscitou da morte espiritual. Numa de suas
epístolas, o apóstolo Paulo atribui a salvação tanto a Deus como ao
homem: “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque
Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a
sua boa vontade” (Fp 2:12–13). Deus concede Sua graça levantando o
homem a uma nova vida em Cristo, e logo o chama a arrepender-se de
tudo o que é mau. 690 O crente, então, vê o arrependimento como um dom
que Deus lhe concede e, em troca, deseja expressar sua gratidão
obedecendo os preceitos de Deus.

Palavras, frases e construções gregas em At 11:15–18


Versículo 15
ἐν τῷ ἄρξασθαι — o infinitivo aoristo articular no dativo (por causa
da preposição ἐν) refere-se ao tempo durante o qual Pedro começou a
falar. A fraseologia não deveria levar-se a um extremo quanto a lógica
(veja-se At 10:44).
ἐν ἀρχῇ — a frase preposicional refere-se à experiência do
Pentecostes, pela que os cristãos judeus marcaram o começo da fé cristã.
O derramamento do Espírito Santo em Cesareia é o Pentecostes dos
gentios.

Versículo 16
ἐμνήσθην — de μιμνῄσκομαι (lembrar), no passivo aoristo, este
verbo está seguido pelo caso genitivo. Os verbos sobre lembrar ou
esquecer têm seu objeto direto no genitivo.

690
Leon Morris, New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p.
181.
Atos (Simon J. Kistemaker) 574
691
ἔλεγεν — o tempo imperfeito (“ele costumava a”) é habitual. O
dito, pronunciado primeiro por João, parece ser proverbial: os quatro
evangelistas o citam, claro que com pequenas variações (Mt 3:11; Mc
1:8; Lc 3:16; Jo 1:26).

Versículo 17
εἰ — esta partícula introduz uma frase condicional que estabelece
um fato singelo e sugere algo real.
πιστεύσασιν — no plural dativo, este particípio ativo aoristo refere-
se tanto a crentes judeus como gentios. No final do versículo, o
Manuscrito ocidental acrescenta: “que não lhes dê o Espírito Santo
depois que tenham crido nele”. 692

Versículo 18
ἡσύχασαν — o ativo aoristo de ἡσυχάζω (eu me calo) suporta o
sentido constantivo. O verbo “descreve uma condição de quietude …
inclusive de silêncio”. 693
ἄρα — a partícula inferencial significa “portanto, assim”. 694

A. O ministério de Barnabé (At 11:19–30)

Lucas segue em seu relato dos cristãos judeus que tinham sido
obrigados a sair de Jerusalém depois da morte de Estêvão (At 8:1–4).
Estes cristãos sob perseguição foram da Judeia e Samaria em direção
norte até a Fenícia (o moderno Líbano), Chipre, e Antioquia da Síria.
Lucas parece ter tido um interesse especial em nos deixar este relato,
porque o prólogo mais antigo a Lucas, escrito entre 160 e 180 d.C.

691
Dana y Mantey, Manual Grammar, p. 188.
692
Metzger, Textual Commentary, p. 386.
693
Thayer, p. 281.
694
Robertson, Grammar, p. 1190.
Atos (Simon J. Kistemaker) 575
afirma que Lucas era um sírio, nativo de Antioquia, e médico (Cl 4:14)
de profissão. 695 Embora não saibamos nada com relação à conversão de
Lucas, é possível que estivesse entre os primeiros gentios em aceitar a
Cristo como seu Salvador e Senhor.
A cidade de Antioquia, localizada a 36 quilômetros do
mediterrâneo, foi fundada no ano 300 a.C. por Seleuco I Nicátor, quem
lhe pôs esse nome em honra de seu pai, Antíoco. Quando os romanos
conquistaram a Síria no ano 64 a.C., Antioquia chegou a ser a capital da
Síria ocidental e prosperou como um importante centro comercial. No
Império romano, Antioquia era considerada em terceiro lugar em
importância depois de Roma no ocidente e Alexandria no oriente. 696 A
esta cidade vieram a estabelecer-se muitos judeus. Eram influentes e
viviam seguros depois de ter obtido os direitos de cidadãos iguais aos
dos gregos. 697 No entanto, era conhecida não por suas virtudes mas por
seus vícios; era uma cidade moralmente depravada como um autor
romano o assinala. 698 Aqui, os judeus tinham suas sinagogas, ensinavam
a Lei e os Profetas no sábado e ainda evangelizavam a população local.
(Por exemplo, Nicolau converteu-se ao judaísmo em Antioquia. Foi a
Jerusalém, onde se tornou cristão e chegou a ser um dos sete diáconos
[At 6:5]). Os conversos deviam cumprir três requisitos: submeter-se à
circuncisão para estabelecer a relação de aliança através de Abraão (Gn
17:11–12); batizar-se para sua purificação de impurezas morais,
demonstrando assim obediência à lei judaica; e oferecer algum sacrifício
apropriado. 699 Os gregos, contudo, adoravam seus corpos e negavam-se a
submeter-se à circuncisão. Os que rejeitavam a circuncisão não podiam

695
Albert Huck, Synopsis of the First Three Gospels, rev. por Hans Lietzmann, 9ª. ed. (Oxford:
Blackwell, 1957), pp. vii–viii.
696
Josefo Guerra Judaica 3.2.4 [29].
697
Josefo Guerra Judaica 7.3.3 [43–45].
698
Juvenal Satires 3.62. Veja-se também Richard N. Longenecker, The Acts of the Apostles, no vol. 9
de The Expositor’s Bible Commentary, ed. Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand Rapids: Zondervan,
1981), p. 399.
699
Everett F. Harrison, The Apostolic Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), p. 54.
Atos (Simon J. Kistemaker) 576
ser considerados conversos ao judaísmo e eram chamados ‘tementes a
Deus’ pelos judeus. É lógico supor que alguns destes gentios piedosos
vieram a ser cristãos, contribuíram à missão da igreja e receberam
menção especial em Atos.

1. A extensão do evangelho (At 11:19–21)

19. Então, os que foram dispersos por causa da tribulação que


sobreveio a Estêvão se espalharam até à Fenícia, Chipre e Antioquia, não
anunciando a ninguém a palavra, senão somente aos judeus.
Depois da morte de Estêvão, a obra missionária entre os habitantes
de Jerusalém experimentou alta. Na providência de Deus, os cristãos que
tinham sido obrigados a sair da cidade levaram o evangelho às pessoas
da Palestina. Onde quer que eles fossem, proclamaram o evangelho de
salvação, fazendo assim que a igreja se expandisse. Portanto, Deus usou
a morte de Estêvão e a perseguição subsequente para fazer maior a igreja
através da obra missionária dos cristãos perseguidos. Os judeus
helenistas que abraçaram os ensinos de Cristo voltaram para seus lugares
de origem; alguns se estabeleceram nas cidades costeiras e povos da
Fenícia. Estes crentes se associaram com os judeus e não com os gentios,
pelo que compartilharam as Boas Novas só com os membros de sua
própria raça.
20. Alguns deles, porém, que eram de Chipre e de Cirene e que
foram até Antioquia, falavam também aos gregos, anunciando-lhes o
evangelho do Senhor Jesus.
Judeus helenistas que residiam em Chipre e em Cirene viajaram até
Antioquia e compartilharam o evangelho com os gregos. Sabe-se que
numerosos judeus viviam em ambos os lugares. 700 Devido ao fato de que
a distância entre Chipre e Antioquia é relativamente curta e direta,
podemos entender que os judeus viajavam de um lugar a outro. Porém

700
Para Chipre, veja-se At 4:36; 13:4–5; 21:16; e para Cirene, veja-se At 2:10; 6:9; 13:1; Mt. 27:32.
Atos (Simon J. Kistemaker) 577
não podemos explicar por que os judeus de Cirene, no Norte da África,
vieram a Antioquia.
De qualquer maneira, quando estes judeus helenistas chegaram a
Antioquia, pregaram o evangelho aos gregos. Como os judeus de
Antioquia costumavam ensinar o Novo Testamento aos gentios, os
cristãos trouxeram o evangelho aos gregos. E estes gregos não
duvidaram em pôr sua fé em Jesus Cristo.
Alguns eruditos favorecem a tradução gregos no texto, conquanto
outros preferem a expressão helenistas. O problema surge de uma
variante no texto: a palavra para “gregos” é Hellēnas e para “helenistas”
é Hellēnistas. O problema da variante no texto grego se reflete nas
traduções, que procuram comunicar a importância subjacente na palavra
grega. Eis aqui alguns exemplos:
Gregos (RA, NVI)
Não judeus (NTLH)
Pagãos (O Livro do Povo de Deus)
Como tratar este assunto? Primeiro, a variante textual tem um forte
respaldo externo, o que não nos permite fazer uma escolha na base da
evidência do manuscrito. Como resultado, vemo-nos forçados a
depender da evidência interna. Lucas afirma que os cristãos judeus de
fala grega de Chipre proclamavam o evangelho, não aos judeus, mas por
igual àqueles que tinham nascido na Grécia ou cuja primeira língua era o
grego. Com este forte contraste, ele estima que os missionários cristãos
judeus se dirigiram não aos judeus de fala grega, a quem chamava
Hellēnistas, 701 mas sim aos gregos não judeus, a quem reiteradamente
chama Hellēnas. 702 A evidência interna, portanto, parece favorecer a
forma gregos.

701
O termo Hellēnistas aparece duas vezes em Atos, e se refere a judeus (cristãos ou não cristãos) cuja
língua nativa era o grego (At 6:1; 9:29). Mas além destes dois exemplos e a variante de At 11:20, a
palavra não volta a aparecer em toda a literatura conhecida.
702
Veja-se At 14:1; 17:4; 18:4; 19:10, 17; 20:21; 21:28; e 16:1, 3 no singular.
Atos (Simon J. Kistemaker) 578
Logo, como deveríamos nós interpretar esta passagem? No Novo
Testamento, o termo gregos sugere tanto os naturais da Grécia e
Macedônia como os helenistas não judeus residentes nas cidades
maiores, como Antioquia, Icônio, Éfeso, Tessalônica e Corinto. 703
Lucas indica que os cristãos judeus, além de pregar o evangelho aos
judeus em Antioquia, proclamavam a Cristo Jesus aos gentios. Não só
Lucas em Atos, mas também Paulo em seus escritos afirmam que o
evangelho é primeiro para o judeu e logo para o grego, quer dizer, o
gentio (Rm 1:16). 704
21. A mão do Senhor era com eles, e um grande número dos que
creram, converteu-se ao Senhor [TB].
Neste versículo, Lucas faz soar uma nota de triunfo. Como cristão
gentio, descreve o crescimento da igreja cristã entre os gentios. Estes
ouviram a mensagem, creram em Cristo Jesus, e se uniram a seus irmãos
da igreja. Lucas atribui o crescimento à mão do Senhor (veja-se At 4:30;
13:11). Quer dizer, em Sua providência, Deus abençoou o trabalho dos
missionários quando numerosos gentios se converteram. É possível que
Lucas tenha sido um daqueles primeiros convertidos.
Chamativa é a ênfase da palavra Senhor. Aparece três vezes em
sucessão (vv. 20–21) e apresenta uma marcada ênfase na proclamação
das Boas Novas. Isto não significa que o termo Senhor tenha-se
originado em Antioquia, entre os crentes gentios. 705 Por outro lado, Jesus
aplicou o Salmo 110:1, “O Senhor disse a meu Senhor” a Si mesmo,
como a Seus apóstolos (Mt 22:41–44; At 2:34). Tanto judeus como

703
Refira-se a Hans Windisch, TDNT, vol. 2, p. 510; Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 126; Martin
Hengel, Between Jesus and Paul, trad. por John Bowden (Filadelfia: Fortress, 1983), p. 58.
704
Metzger favorece a forma Hellēnistas, mas aceita o termo “no amplo sentido de ‘pessoas que falam
grego’ ”. Textual Commentary, pp. 388–89.
705
Esta é a opinião de Wilhelm Bousset, Kyrios Christos: A History of the Belief in Christ from the
Beginning of Christianity to Irenaeus, trad. por John E. Steely (Nashville: Abingdon, 1970), pp. 146–
47. Mas veja-se Richard N. Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity, Studies in
Biblical Theology, 2ª. série 17 (Londres: SCM, 1970), p. 122.
Atos (Simon J. Kistemaker) 579
gentios aceitaram a Cristo Jesus como seu Senhor; e mediante a
confissão de Seu nome chegaram a ser Seus discípulos.
Sobre a base que oferece o versículo 19, entendemos que o
ministério inicial dos cristãos judeus entre os judeus e os gregos teve
lugar nos termos das sinagogas antioquianas. As notícias do grande
número de conversos logo chegou aos ouvidos dos apóstolos em
Jerusalém (veja-se At 2:47; 6:7; 9:31; 12:24; 14:1; 16:5; 19:20). Eles se
deram conta que a era da pregação do evangelho aos gentios tinha
chegado e que deviam tomar as providências do caso para dar-lhes as
boas-vindas no seio da igreja.

2. A missão de Barnabé (At 11:22–24)

22-24. A igreja em Jerusalém, tendo notícia disto, enviou Barnabé a


Antioquia; o qual, quando chegou e viu a graça de Deus, se alegrou, e
exortava a todos a perseverar no Senhor com firmeza de coração; porque
era homem bom e cheio do Espírito Santo e de fé. Muita gente uniu-se ao
Senhor.
Façamos as seguintes observações:
a. As notícias. As boas notícias viajam rápido! Pessoas que
chegaram a Jerusalém informaram à igreja a influência fenomenal da fé
cristã e o resultante aumento dos crentes na cidade de Antioquia.
Primeiro, a igreja de Jerusalém recebeu as notícias a respeito dos
samaritanos que haviam aceito o evangelho. Como resultado disso, seus
membros enviaram a Pedro e a João a Samaria (At 8:14). Logo, a igreja
mãe ouviu dos gentios em Antioquia que aceitaram o evangelho. Como
reação, comissionou Barnabé para ir até ali em representação dos
apóstolos. Note-se, então, que a igreja de Jerusalém permaneceu o
encarregado do desenvolvimento que se experimenta em outras regiões.
Quando as notícias chegaram aos ouvidos da igreja em Jerusalém,
os apóstolos possivelmente estavam em outras regiões (cf. v. 30). Os
cristãos judeus não tiveram objeções quanto a que os gentios entrassem
Atos (Simon J. Kistemaker) 580
na igreja cristã, basicamente porque Pedro lhes tinha contado a respeito
de sua experiência em Cesareia. Embora Cesareia estivesse localizada na
Palestina, nas mentes dos judeus a cidade de Antioquia era a capital de
uma nação pagã. De qualquer maneira, a igreja em Jerusalém não
apresentou nenhuma objeção. Em lugar disso, os líderes buscaram uma
pessoa que pudesse representá-los e que pudesse entender a situação de
Antioquia. E escolheram Barnabé.
Finalmente, a igreja de Jerusalém não podia tomar levianamente o
crescimento da igreja em Antioquia. Em seu tempo, a igreja antioquiana
chegou a ser o centro missionário para a expansão da fé cristã,
ultrapassando à igreja mãe de Jerusalém. Mesmo quando Jerusalém
proveu liderança e direção, Antioquia tinha a visão e a ambição. De
Antioquia, o evangelho se estendeu pelos diferentes países que
limitavam com o Mediterrâneo. Antioquia chegou a ser a igreja gentílica
que ocupava uma posição estratégica entre o centro judaico em
Jerusalém e as igrejas gentílicas que Paulo tinha fundado.706 Depois da
Queda de Jerusalém no ano 70 d.C., Antioquia preencheu o vazio de
liderança que se tinha produzido na igreja.
b. A ação. Como cristão judeu de fala grega e natural de Chipre,
Barnabé é a pessoa precisa para promover o desenvolvimento da igreja
em Antioquia. Ele não chega para exercer autoridade, senão para ajudar
os crentes no crescimento de sua fé.
Talvez viajando ao longo do setor costeiro, visitando e animando as
igrejas no caminho, Barnabé por fim chega a Antioquia. Está
maravilhado pela graça de Deus quando comprova a harmonia que existe
entre judeus e gentios na igreja antioquiana. Com olhos espirituais, olha
o desenvolvimento da igreja e dá a Deus a glória. Barnabé se alegra
quando vê os efeitos do evangelho de Cristo no povo e, consequente com
seu nome — Filho da consolação (At 4:36) — começa imediatamente a

706
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; reimp. Grand Rapids: Baker, 1964), p. 167.
Atos (Simon J. Kistemaker) 581
animar os crentes para que se mantenham fiéis a Deus. Dá-se conta que
estes crentes recém-convertidos podem chegar a ser presa fácil de
Satanás. Portanto, num plano diário, Barnabé os instrui com relação a ser
leais a Jesus. Insiste para que se agarrem a Cristo com determinação (cf.
At 13:43; 14:22).
c. O resultado. Lucas expressa sua admiração pelas características
espirituais de Barnabé. Chama-o “homem bom”, cheio do Espírito Santo
e “fé”. A descrição se compara à de Estêvão (At 6:5; 7:55), e assim põe
Barnabé no mesmo nível que Estêvão. O adjetivo bom aplicado a
Barnabé, assinala a qualidade de excelência. Lucas descreve Barnabé
como bom no sentido que esta pessoa é de caráter firme, são, capaz, e
serviçal. Cheio com o Espírito Santo e fé, Barnabé vive uma comunhão
diária com Deus o Pai e o Senhor Jesus Cristo (1Jo 1:3). A presença do
Espírito Santo e sua completa confiança em Jesus o equipam com uma
estabilidade serena, amor genuíno pelos outros, e uma dedicação
inigualável para a obra do Senhor.
Como resultado, a igreja de Antioquia continua crescendo em
número. Lucas escreve: “E muita gente se uniu ao Senhor”. Na verdade,
esta é a segunda vez que Lucas informa do crescimento da igreja
antioquiana (v. 21). A igreja experimenta um desenvolvimento que é
único no mundo gentílico e num sentido indica que ainda estão por vir
coisas maiores.

Palavras, frases e construções gregas em At 11:22–23


εἰς τὰ ὦτα — este é um modismo semita que aparece
frequentemente na Septuaginta. Veja-se também Mateus 10:27.
τῇ προθέσει — o substantivo no caso dativo modifica o verbo. O
dativo é usado adverbialmente para expressar forma, isto é, como
manter-se fiel ao Senhor. 707

707
Robertson, Grammar, p. 530.
Atos (Simon J. Kistemaker) 582
3. Os cristãos em Antioquia (At 11:25–26)

Barnabé prova ser o homem correto que está no lugar correto.


Relaciona-se bem com as pessoas que vivem na cidade capital de
Antioquia: é bilíngue, conhece a cultura grega, e talvez trabalhe num
oficio para sustentar-se. Devido ao incremento numérico da igreja
antioquiana, Barnabé necessita ajuda. Ele sabe que Paulo vive em Tarso
e é um mestre muito capaz.
25, 26. E partiu Barnabé para Tarso à procura de Saulo; tendo-o
encontrado, levou-o para Antioquia. E, por todo um ano, se reuniram
naquela igreja e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia, foram os
discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos.
a. “E partiu Barnabé para Tarso à procura de Saulo”. A distância,
em termos geográficos entre Antioquia e Tarso, era relativamente curta e
viajando a pé poderia cobrir-se em poucos dias. Tarso era uma cidade
importante na Cilícia, província romana no sudoeste da Ásia Menor (a
moderna Turquia). Era uma cidade universitária de maior prestígio,
academicamente, que Alexandria e Atenas. Aqui nasceu Paulo. Ele se
descreve a si mesmo como “um judeu, de Tarso da Cilícia, cidadão de
uma cidade não insignificante” (At 21:39). E. M. Blaiklock sugere que
os judeus influentes nessa cidade tinham pedido a Roma que lhes
conferisse a cidadania romana com a provisão de que este privilégio
fosse transmitido por nascimento aos seus descendentes. 708 Roma lhes
concedeu o solicitado e, como resultado, Paulo desfrutava da proteção da
cidadania romana (At 16:37; 22:28).
Depois que Paulo saiu de Jerusalém e viajou a Tarso via Cesareia
(At 9:30), parece ter desaparecido. No entanto, à vista da referência que
Lucas faz às igrejas na Cilícia (At 15:41), presumimos que Paulo, como
um ativo missionário aos gentios, proclamou e ensinou o evangelho

708
E. M. Blaiklock, Cities of the New Testament (Westwood, N.J.: Revell, 1965), p. 21; veja-se
também “Tarsus”, ZPEB, vol. 5, p. 602; William M. Ramsay, The Cities of St. Paul: Their Influence
on His Life and Thought (1907; reimp., Grand Rapids: Baker, 1963), pp. 197–98.
Atos (Simon J. Kistemaker) 583
nessa área. Portanto, não é estranho que Barnabé tenha escolhido a Paulo
para ser sua mão direita quanto a ensinar a Palavra aos cristãos gentios
de Antioquia.
b. “Tendo-o encontrado, levou-o para Antioquia”. Lucas não diz
quanto tempo andou Barnabé buscando Paulo em Tarso e seus arredores.
Somente diz que o encontrou e o levou a Antioquia. Barnabé sabia que
Jesus tinha chamado Paulo para ser um apóstolo aos gentios (At 9:27). E
embora tivessem passado vários anos desde que ambos estiveram juntos
em Jerusalém, o chamado de Paulo mantinha-se intacto. Barnabé
informou a Paulo a respeito da entrada de gentios na igreja antioquiana e
o convida para ser seu mestre. 709 Quando Paulo acedeu a acompanhar a
Barnabé e trabalhar com ele em Antioquia, fez sua estreia como mestre
aos cristãos gentios.
c. “E, por todo um ano, se reuniram naquela igreja”. Durante um
ano, Barnabé e Paulo ensinaram aos crentes em Antioquia. Além disso,
Lucas acrescenta que ambos ensinaram a um grande número de pessoas.
Esta informação é indicativa do tremendo crescimento da igreja cristã
nessa cidade. Obviamente, Paulo estava altamente qualificado para
ensinar que as Escrituras do Antigo Testamento se cumpriram em Cristo
Jesus. Em Jerusalém, tinha sido instruído nas Escrituras aos pés de
Gamaliel (At 22:3) e depois de sua conversão perto de Damasco,
interpretou as profecias messiânicas do Antigo Testamento da
perspectiva de seu cumprimento.
d. “Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez,
chamados cristãos”. Desde o derramamento do Espírito Santo em
Jerusalém no dia do Pentecostes, os seguidores de Jesus referiam-se a
eles mesmos como irmãos, discípulos, crentes, santos e aqueles que
pertenciam ao Caminho. O tempo tinha chegado, porém, para que as
pessoas que aceitavam a Jesus como seu Senhor e Salvador adotasse um

709
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 127.
Atos (Simon J. Kistemaker) 584
nome significativo e descritivo. O nome cristãos foi usado pela primeira
vez em Antioquia, no ambiente multinacional daquela cidade. O nome
aparece só duas vezes em Atos, aqui e em At 26:28 (onde Herodes
Agripa II repreende a Paulo por procurar torná-lo cristão). A palavra
também aparece em 1 Pedro 4:16. Pedro a usa no contexto de sofrimento
e insiste com seus leitores a não envergonhar-se por levar esse nome.
Não é possível determinar se os antagonistas da fé cristã cunharam o
nome grego Christianoi para difamar os seguidores de Cristo. À luz do
comentário de Agripa a Paulo no contexto do comentário de Pedro a seus
leitores, inclinamo-nos a pensar que os inimigos da fé foram os que
puseram este nome aos cristãos.
A outra possibilidade é que foram os próprios crentes que
cuidadosamente escolheram o nome. Eles não chamaram a si mesmos
seguidores de Jesus, nem adotaram o nome que os judeus lhes davam “a
seita dos nazarenos” (At 24:5). Em lugar disso, usaram o título oficial
Cristo e, acrescentando-lhe a terminação ianos (do grego -ianoi),
indicavam que se identificavam completamente com Cristo. 710 De forma
similar os membros da família do César, os soldados e os oficiais
públicos se chamavam, por sua vez, Kaisarianoi para demonstrar sua
lealdade ao imperador romano.
Embora os cristãos judeus pudessem ficar sob a sombrinha
protetora da “liberdade religiosa” que o governo romano tinha concedido
aos judeus, com a entrada dos gentios na igreja os cristãos tiveram que
distinguir-se dos judeus para o que assumiram um novo nome. De
qualquer maneira, não é possível provar que os cristãos mesmos
cunharam o termo Christianoi. A ausência deste termo na primeira
literatura cristã (exceto nas cartas de Inácio) “sugere que na verdade não
foi um nome muito aceito inicialmente pelos próprios cristãos”. 711 Assim

710
Uma variante que se originou com os historiógrafos romanos é “Chrestianoi”. Tácito Anais 15.44;
Suetônio Vida de Cláudio 25.4, e Nero 16.2; Plínio Epístolas 10.97. Também o Códice Sinaítico usa
esta forma.
711
H. J. Cadbury, “Names for Christians and Christianity in Acts”, Beginnings, vol. 5, p. 386.
Atos (Simon J. Kistemaker) 585
como os cristãos em Antioquia se dedicaram completamente a Cristo
Jesus, nós devemos refletir as virtudes, a glória e a honra de Cristo.
Como cristãos, somos irmãos e irmãs na família da fé, cidadãos no reino
dos céus, e soldados no exército de Cristo.

Considerações práticas em At 11:26


Por que nos chamam cristãos? O nome cristão quer dizer que nós
estamos identificados completamente com Cristo porque somos Seus
discípulos. Mas para muitos cristãos esta identificação parece aplicar-se
somente durante o culto de adoração dos domingos. Durante a semana
muitos crentes parecem pôr de lado a etiqueta de cristãos que usam no
domingo quando cantam louvores a Deus, leem as Escrituras, oram, e
escutam um sermão. Como vivem alguns cristãos? Alguns vivem para
conseguir dinheiro; outros estão em processo de destruir seus corpos
mediante a dependência de drogas; e inclusive outros usam linguagem
profana e indecente como parte de seu falar diário. A pergunta, “Por que
nos chamam cristãos?” é pessoal e direta. A muitos cristãos os faz
ruborizar-se.
No século XVI, o teólogo alemão Zacarias Ursinus fez a mesma
pergunta e formulou a seguinte resposta:
“Porque pela fé eu sou membro de Cristo e participante de sua
unção, para que confesse seu nome, e me ofereça a ele em sacrifício vivo
e agradável; que nesta vida lute contra o pecado e Satanás com uma
consciência livre e boa; e para que depois de esta vida reine com Cristo
eternamente sobre todas as criaturas”. 712

Palavras, frases e construções gregas em At 11:25–26


O Códice Beza e outros manuscritos ocidentais têm um texto
ampliado. As cláusulas e frases em itálicas indicam a variação:

712
Catecismo de Heidelberg, pergunta e resposta 32.
Atos (Simon J. Kistemaker) 586
E tendo ouvido que Saulo estava em Tarso, foi buscá-lo; e quando
se reuniu com ele, rogou-lhe ir a Antioquia. Quando tiveram chegado,
durante todo um ano um numeroso grupo de pessoas foi comovido e
então pela primeira vez os discípulos foram chamados cristãos em
Antioquia. 713
ἀναζητῆσαι — o infinito aoristo composto expressa propósito e, ao
mesmo tempo, minuciosidade. Quer dizer, Barnabé foi a Tarso para
realizar uma busca diligente. 714
ἐγένετο αὑτοῖς — esta frase simplista, traduzida literalmente “foi a
eles”, apresenta três infinitivos: primeiro, συναχθῆναι (encontraram-se),
logo, διδάξαι (ensinaram), e por último, χρηματίσαι (receberam um
nome).

4. Predição e cumprimento (At 11:27–30)

Como historiador, Lucas fala em termos gerais (compare At 12:1) e


não dá datas exatas. Da informação a respeito da fome e o contexto
histórico em Atos e outras fontes, podemos conjeturar que Ágabo
predisse a fome na primeira parte da década dos cinquenta. Os eruditos
diferem quanto à data exata, mas a evidência histórica parece respaldar o
ponto de vista de que esta fome ocorreu ao redor do ano 46 d.C. 715
27, 28. Naqueles dias alguns profetas desceram de Jerusalém para
Antioquia. Um deles, Ágabo, levantou-se e pelo Espírito predisse que uma
grande fome sobreviria a todo o mundo romano, o que aconteceu durante
o reinado de Cláudio [NVI].
Façamos os seguintes comentários:
a. Os profetas. O vínculo entre as igrejas em Jerusalém e Antioquia
parece ser forte, porque com o tempo alguns profetas vão de Jerusalém a

713
Metzger, Textual Commentary, p. 390.
714
Thayer, p. 37.
715
Josefo Antiguidades 3.15.3 [320]; 20.2.5 [51–52]; 20.5.2 [101]; Suetônio Cláudio 18.2; Tácito
Anais 12.43; Dion Cássio História romana 60.11; Eusébio História Eclesiástica 2.8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 587
Antioquia para visitar os crentes. Trata-se de profetas cristãos que têm o
dom do Espírito Santo (v. 28) e vêm para fortalecer os crentes em sua fé
(At 13:1). Mesmo quando esta é a primeira vez que Lucas menciona
profetas, sabemos por outras passagens do Novo Testamento que
profetas interpretavam e pregavam a Palavra de Deus, animavam o povo
e anunciavam fatos que haviam de ocorrer. 716 Diferenciavam-se dos
profetas do Antigo Testamento por sua função. Os profetas do Antigo
Testamento principalmente anunciaram o nascimento e a vinda de
Cristo. Mas depois que Jesus veio, a profecia messiânica cessou e os
profetas do Novo Testamento pregaram o evangelho e predisseram o que
havia de vir. Além disso, o evangelho de Cristo tinha sido confiado aos
apóstolos, que cumpriram um papel principal na igreja cristã. Assim, na
lista que Paulo faz, aparecem primeiro os apóstolos, e logo os profetas
(veja-se Ef 4:11).
b. A predição. Um dos profetas era Ágabo, quem predisse que uma
fome havia de açoitar todo o império romano. Ágabo só prediz, não
profetiza. De igual maneira, quando Paulo chegou a Cesareia no final de
sua terceira viagem missionária, Ágabo veio da Judeia e predisse o
encarceramento de Paulo (At 21:10–11). O fato de este profeta estar
cheio com o Espírito Santo significa que Deus queria comunicar-Se com
o Seu povo com relação a um fato futuro. Este evento afetou as vidas não
só dos cristãos mas também de todos os que viviam no império romano.
A fome predita por Ágabo ocorreu durante o reinado do imperador
Cláudio, quem governou entre os anos 41 e 54 d.C. Lucas fala de uma
fome severa, porque em diferentes graus de intensidade afetou a todo o
império romano. O Egito vendeu grão para ajudar o povo faminto em
Jerusalém. Chipre supriu de figos,717 e os cristãos em Antioquia
enviaram ajuda aos crentes na Judeia (v. 29). A fome açoitou diferentes
partes do império romano. Portanto, interpretamos a descrição de Lucas,
716
Veja-se especialmente At 15:32; 19:6; 21:9–10; Rm. 12:6; 1Co. 12:10; 13:2, 8; 14:3, 6, 29–37.
717
Josefo Antiguidades 20.2.5 [51–52]. Veja-se também Kenneth S. Gapp, “The Universal Famine
under Claudius”, HTR 28 (1935): 258–65.
Atos (Simon J. Kistemaker) 588
“grande fome sobreviria a todo o mundo romano”, não num sentido
literal, mas em um sentido amplo.
29, 30. Os discípulos, cada um conforme as suas posses, resolveram
enviar socorro aos irmãos que moravam na Judéia; o que eles, com efeito,
fizeram, enviando-o aos presbíteros por intermédio de Barnabé e de
Saulo.
O propósito da visita dos profetas de Jerusalém foi informar aos
crentes antioquianos da grande fome que ocorreria na Judeia e a forma
desastrosa em que afetaria os cristãos que viviam nessa região. A igreja
em Antioquia não recebeu a mensagem só como mera informação, mas
imediatamente fez planos para aliviar a necessidade dos crentes na
Judeia.
Lucas descreve o dedicado amor dos cristãos de Antioquia em
termos entusiastas: “Os discípulos, cada um conforme as suas posses,
resolveram enviar socorro aos irmãos que moravam na Judeia”. A igreja
antioquiana decidiu estabelecer um fundo de ajuda ao qual cada pessoa
contribuiu segundo seus recursos o permitiam. Sobre uma base
voluntária, entregaram seus donativos para mostrar seu amor aos irmãos
em necessidade. De fato, “Deus ama o doador alegre” (2Co 9:7). Ao
enviar ajuda para rebater a fome da igreja judaica em Jerusalém, a igreja
gentílica derrubou a muralha de separação entre judeus e gentios.
Por décadas, talvez como um resultado da perseguição que se
seguiu por ocasião da morte de Estêvão, a igreja em Jerusalém ia
empobrecendo. Durante suas viagens missionários, Paulo pediu às
igrejas gentílicas donativos para ajudar os pobres de Jerusalém. 718 Os
cristãos gentios desejavam agradecer aos cristãos judeus por ter
compartilhado com eles suas bênçãos espirituais. Assim, retribuindo a
gentileza, enviaram bênçãos materiais aos irmãos de Jerusalém (veja-se
Rm 15:27).

718
Veja-se At 24:17; Rm. 15:25–28, 31; 1Co. 16:1; 2Co. 8:1–6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 589
Em seu relatório, Lucas é extremamente breve. Não diz nada com
relação ao tipo de ajuda que os crentes de Antioquia enviaram a
Jerusalém e quando fizeram os envios. Supomos que entregaram uma
soma de dinheiro a Barnabé e a Paulo, e estes a levaram ao destino (veja-
se v. 30). Além disso, cremos que os dois enviados chegaram a
Jerusalém antes que a fome se desatasse. Devemos lembrar que os
profetas foram a Antioquia com o propósito de informar aos cristãos dali
a respeito da necessidade entre os crentes na Judeia. Quando as notícias
chegaram aos antioquianos, sua resposta foi imediata e espontânea.
Comissionaram a Barnabé e a Paulo a levar os donativos aos anciãos de
Jerusalém e assim demonstraram a unidade visível da igreja de Cristo.
Dois assuntos requerem uma explicação. Primeiro, os crentes de
Antioquia enviaram os seus melhores mestres a Jerusalém para que
fossem seus representantes. Barnabé aproveitou a ocasião para informar
à igreja em Jerusalém a respeito do trabalho que ele e Paulo tinham
levado a cabo em Antioquia (veja-se v. 22). Para Paulo, esta viagem foi
uma sorte de volta a casa nostálgico. Anos antes ele tinha saído de
Jerusalém porque os judeus dali o buscavam para matá-lo (At 9:29–30).
Retornava agora sem saber se seus inimigos lhe permitiriam permanecer
na cidade sem perigo. Era esta a visita a Jerusalém “quatorze anos
depois” que Paulo tinha saído (Gl 2:1)? Deixamos esta pergunta em
suspense, porque tem que ver com a visita de Paulo por ocasião do
Concílio de Jerusalém (veja-se o comentário sobre At 15:2). 719
Logo, o versículo 30 [RC, NKJV] é a primeira vez que se menciona
os anciãos da igreja em Jerusalém. Quando Paulo e Barnabé
estabeleceram igrejas na Ásia Menor, nomearam anciãos em cada igreja
(At 14:23; veja-se também At 20:17). E quando Paulo escreveu sua carta
a Tito, quem foi um pastor na ilha de Creta, dá-lhe instruções para que
nomeie anciãos em cada cidade (Tt 1:5). Lucas introduz a expressão
719
Alguns eruditos relacionam a visita durante a fome com a de Gl. 2:1; veja-se, p.ej., Longenecker,
Acts, p. 405. Consulte-se também P. Benoit, “La deuxième visite de Saint Paul à Jérusalem”, Bib 40
(1959): 778–92.
Atos (Simon J. Kistemaker) 590
grega presbyteroi (anciãos) em conexão com os líderes da igreja em
Jerusalém. Esta liderança foi desenhada segundo a sinagoga judaica, na
qual o concílio de anciãos cumpriu um importante papel de liderança. 720

Palavras, frases e construções gregas em At 11:28–30


Versículo 28
O texto do Códice Beza e uns poucos outros manuscritos indicam
que Lucas esteve presente em Antioquia. Eis aqui a primeira passagem
onde diz “nós”: “E ali havia muita alegria; e quando nos reunimos, um
deles chamado Ágabo falou, manifestando …” 721
διὰ τοῦ πνεύματος — “A profecia cristã foi um dom do próprio
Espírito Santo, e Deus falou diretamente por meio de Ágabo”. 722
μέλλειν ἔσεσθαι — estes dois infinitivos introduzidos pelo ativo
aoristo ἐσήμανεν (ele indicou) mostram redundância. O primeiro sugere
uma conotação futura; o segundo está no tempo futuro.
ἐπί — esta preposição contém uma ideia temporal, “no tempo de”.

Versículos 29–30
εὑπορεῖτο — o meio imperfeito de εὑπορέομαι (eu tenho recursos)
é significativo porque descreve um status financeiro.
αὑτῶν — este pronome no caso genitivo, redundante à vista do caso
genitivo (“dos discípulos”), expressa ênfase.
ὅ — o pronome relativo está no caso acusativo e se refere à cláusula
verbal completa da frase precedente.
διά — não “através” mas por meio de”.

720
Lothar Coenen, NIDNTT, vol. 1, p. 199; Günther Bornkamm, TDNT, vol. 6, p. 662.
721
Metzger, Textual Commentary, p. 391 (letra itálica acrescentada).
722
Nigel Turner, Grammatical Insights into the New Testament (Edimburgo: Clark, 1965), p. 21.
Atos (Simon J. Kistemaker) 591
Resumo de Atos 11
Quando Pedro chega a Jerusalém, é acusado de entrar em casa de
gentios e comer com eles. Pedro explica extensamente aos membros da
igreja em Jerusalém os acontecimentos e como ocorreram. Fala-lhes de
sua visão em Jope quando viu um lençol cheio de animais que baixava
do céu; quando ouviu uma voz ordenando-lhe que matasse e comesse; e
quando, depois de ouvir aquela voz por três vezes, viu que o lençol era
recolhido de novo ao céu.
Informa-lhes que três homens enviados de Cesareia lhe pediram
para ir com eles. O Espírito lhe ordenou que fosse e, em companhia de
seis crentes judeus de Jope, viajou a Cesareia. Ali falou com os gentios e
foi testemunha da vinda do Espírito sobre eles. Declara que ele foi
incapaz de opor-se a Deus. Seus ouvintes não têm mais objeções e
louvam a Deus.
Refugiados de Jerusalém proclamam o evangelho aos judeus na
Fenícia, Chipre, e Antioquia. Mas uns poucos de Chipre e de Cirene
também pregam as boas novas a respeito de Jesus aos gregos de
Antioquia. Como resultado, muitos deles creem. As notícias com relação
ao crescimento da igreja em Antioquia chegam até a igreja em
Jerusalém. Esta envia Barnabé a Antioquia. Quando chega, alegra-se
diante da evidente manifestação da graça de Deus. Viaja a Tarso em
busca de Paulo, quem o acompanha de volta a Antioquia. Estes dois
ensinam aos crentes durante todo um ano. A igreja aumenta
numericamente e os discípulos são chamados cristãos pela primeira vez
ali em Antioquia.
Ágabo vem de Jerusalém e prediz uma grande fome no império
romano. Os crentes antioquianos manifestam sua amorosa preocupação
pelos crentes em Jerusalém e encarregam a Barnabé e a Paulo para
levarem ajuda, a qual é entregue aos anciãos na Judeia.
Atos (Simon J. Kistemaker) 592
ATOS 12
A IGREJA EM TRANSIÇÃO, parte 2 (At 12:1–25)
B. Pedro escapa da prisão (At 12:1–19)

Lucas começa um novo episódio na vida de Pedro, quem passa a ser


um preso, é libertado do cárcere por um anjo, e deixa Jerusalém rumo a
outro lugar. Mesmo quando Lucas introduz o capítulo com a frase geral
por aquele tempo, surgem algumas pergunta quanto à sequência
cronológica dos fatos narrados. Está Lucas oferecendo um relato
estritamente cronológico ou é o relatório do encarceramento de Pedro
um interlúdio que ocorre antes da fome? A expressão que usa Lucas,
“por aquele tempo” parece excluir uma sequência cronológica dos
capítulos 11 e 12. Ele simplesmente usa a frase introdutória para recolher
um fato histórico que tem alguma relação com o desenvolvimento do
relato. 723 Devemos assumir, então, que a fome ocorreu depois da morte
de Herodes no ano 44 d.C. e que Barnabé e Saulo fizeram sua visita de
ajuda aos irmãos da Judeia depois dessa data.

1. Preso por Herodes (At 12:1–5)

1-3. Por aquele tempo, mandou o rei Herodes prender alguns da


igreja para os maltratar, fazendo passar a fio de espada a Tiago, irmão de
João. Vendo ser isto agradável aos judeus, prosseguiu, prendendo
também a Pedro. E eram os dias dos pães asmos.
a. A história. Os cristãos em Jerusalém tinham estado relativamente
livres da perseguição da morte de Estêvão (At 8:1). Embora Paulo tenha
recebido ameaças contra sua vida (At 9:29), tinha podido mover-se com
bastante liberdade em Jerusalém. Em anos posteriores, a igreja recebeu
723
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 132.
Atos (Simon J. Kistemaker) 593
uma ameaça não dos líderes religiosos dos judeus, nem do povo comum,
mas de uma pessoa a quem Lucas descreve como o rei Herodes.
Quem era este rei? Era Herodes Agripa I (nascido no ano 10 a.C.),
neto de Herodes, o Grande (Mt 2:1) e de Mariamne, uma judia. Era filho
de Aristóbulo, quem morreu no ano 7 a.C. Sua mãe o enviou a Roma,
onde Herodes Agripa foi educado e onde travou amizade com Gaio
(Calígula), quem chegou a ser imperador no ano 37 d.C. Este imperador
proclamou a Herodes Agripa rei sobre a Itureia, Traconites, e Abilene
(Lc 3:1), as tetrarquias a leste da Galileia. 724 No ano 39, o tio de Herodes
Agripa, Herodes Antipas, como seu sobrinho, solicitou ao imperador um
título real. Antipas tinha governado a tetrarquia da Galileia e Pereia da
morte de seu pai no ano 4 a.C. No entanto, em lugar de receber o
cobiçado título, Antipas foi deposto e exilado, e Herodes Agripa, quem
obviamente tinha influenciado ao imperador, obteve a tetrarquia do
Antipas. 725 Depois da morte de Calígula no ano 41 d.C. Herodes Agripa
apelou ao imperador Cláudio e recebeu de este Judeia e Samaria. 726 Por
esse tempo, o rei Herodes Agripa governou sobre territórios que
igualavam os de seu avô Herodes, o Grande.
b. Tiago. Através de sua avó Mariamne, Herodes Agripa pôde
reclamar ascendência judaica. E explorou este fato ao máximo. Por
exemplo, fez saber que desfrutava viver em Jerusalém; enquanto ali,
observava escrupulosamente a lei e a tradição judaicas. Diariamente
oferecia sacrifícios no templo e durante a festa dos tabernáculos as
autoridades judaicas concediam-lhe a honra de ler publicamente uma
passagem da lei. 727 Seu apego à lei mosaica era tal que todos os dias de
sua vida leu uma cópia da lei (Dt 17:19). Em resumo, os judeus
aceitavamao rei Herodes Agripa como um de seu número.

724
Josefo Antiguidades 18.6.10 [225–39].
725
Antiguidades 18.7.1–2 [240–55]; Guerra Judaica 2.9.6 [181–83].
726
Antiguidades 19.5.1 [274–75]; Guerra judaica 2.11.5 [214–15].
727
Mishnah, Sota 7.8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 594
Assim, Herodes Agripa continuou seu ardil e decidiu lançar mão a
vários membros da igreja com a intenção de maltratá-los e ganhar desta
maneira o favor dos judeus. Lucas não indica quantas pessoas foram
presas embora sim mencione o nome de Tiago, o irmão de João e filho
de Zebedeu. De fato, Herodes tinha morto à espada o apóstolo Tiago.
Aparentemente, o rei agiu em conluio com o Sinédrio, o qual servia
como tribunal. Segundo Deuteronômio 13:6–18, se alguém tenta um
judeu a praticar a idolatria, esse deve ser condenado a morrer por
apedrejamento. Mas se uma pessoa persuade a toda uma cidade a servir a
outros deuses, então essa pessoa deve ser executada à espada. Aos olhos
de Herodes Agripa, Tiago tinha desviado a cidade de Jerusalém pelo
mau caminho. Ironicamente, segundo a lei de Moisés todos os habitantes
de Jerusalém deveriam ter sido condenados à morte (Dt 13:15). 728
Lucas registra em Atos uma série de primeiros fatos: o primeiro
Pentecostes (At 2:1–11), a primeira perseguição (At 4:1–4), o primeiro
mártir (At 7:54–60), e agora o primeiro apóstolo a morrer à espada.
Note-se que, embora a igreja tenha escolhido Matias para preencher o
posto deixado por Judas Iscariotes, não nomeou sucessor para Tiago. Do
tempo do Pentecostes até sua morte no ano 44 d.C., Tiago (diferente de
Judas), cumpriu seu ofício apostólico. E porque o cumpriu, não foi
substituído. E mesmo quando Tiago tenha sido um proeminente
discípulo que pertenceu ao círculo íntimo dos seguidores de Jesus
(Pedro, Tiago e João), Lucas só o menciona na lista dos apóstolos (At
1:13) e aqui. O enfoque não está em Tiago, mas em Pedro.
c. Pedro. Encorajado pela aprovação que recebe dos judeus, o rei
Herodes Agripa pôs-se mais agressivo e prendeu Pedro, o líder e porta-
voz chefe dos doze apóstolos. Sua intenção era levar Pedro à morte, mas
pospôs sua execução até que a festa dos pães Asmos tivesse passado.
Nos tempos do Novo Testamento a festa era combinada com a Páscoa

728
Veja-se J. Blinzler, “Rechtsgeschichtliches zur Hinrichtung des Zebedäiden Jakobus”, NovT 5
(1962): 191–206.
Atos (Simon J. Kistemaker) 595
(veja-se Lc 22:1). Esta festa era celebrada durante o fim de março ou
princípios de abril. 729 Supomos que Pedro estava em Jerusalém para esta
festa. Como líder da igreja, era mais vulnerável, pelo que caiu nas mãos
de Herodes Agripa.
4, 5. Tendo-o prendido, lançou-o no cárcere, entregando-o para ser
guardado por quatro escoltas de quatro soldados cada uma. Herodes
pretendia submetê-lo a julgamento público depois da Páscoa. Pedro,
então, ficou detido na prisão, mas a igreja orava intensamente a Deus por
ele [NVI].
Herodes julgou conveniente pospor a execução de Pedro. Portanto,
ele o pôs no cárcere sob custódia. No império romano, o encarceramento
em si não era considerado castigo. Os detentos eram mantidos sob prisão
à espera de seu juízo, depois do qual poderiam ser libertados, açoitados,
exilados, ou executados. O juízo de Pedro seria efetuado uma vez que
tivesse passado a festa da Páscoa. Além disso, a execução de Tiago tinha
estimulado o desejo dos judeus de julgar e executar a Pedro.
Supomos que Herodes pôs Pedro na prisão localizada na Fortaleza
de Antônia, na esquina noroeste da área do templo. Atribuiu dezesseis
soldados para que custodiassem o preso: quatro pelotões de quatro
soldados cada um. Se o preso escapasse, os soldados que o vigiavam
pagavam com a vida (v. 19); a situação em que puseram a Pedro
equivaleria à nossa moderna segurança máxima.
Por que Herodes Agripa pôs uma vigilância tão estreita a Pedro? É
possível que o Sinédrio o tenha informado que anteriormente tinham
preso todos os apóstolos, e que haviam escapado do cárcere durante a
noite (At 5:19). Além disso, o próprio Pedro tinha realizado numerosos
milagres em Jerusalém e em outras partes e, como resultado, tinha
demonstrado que às vezes possuía poderes sobrenaturais. Daí que
Herodes tenha querido estar absolutamente seguro que desta vez não
poderia escapar.

729
Gleason L. Archer, Jr., Encyclopedia of Bible Difficulties (Grand Rapids: Zondervan, 1982), pp.
375–76.
Atos (Simon J. Kistemaker) 596
No entanto, falhou em notar o poder da oração que a igreja em
pleno fazia em favor de Pedro. Quer dizer, mediante as orações de Seu
povo, o próprio Deus interveio e demonstrou a Herodes Agripa que sua
oposição era insignificante e sem poder. O tempo todo que Pedro esteve
preso, a igreja ofereceu orações contínuas por ele. O texto fala de
orações intensas, o que significa que a igreja orava ardentemente e com
todo o coração, alma e mente implorava a Deus pela libertação de
Pedro. 730

Palavras, frases e construções gregas em At 12:1–5


Versículo 1
κατʼ ἐκεῖνον δὲ τὸν καιρόν — esta frase simplesmente quer dizer
“por aquele tempo”. O substantivo καιρόν indica um tempo definido e
limitado “com a ideia agregada de conveniência”. 731
ἀπό — sugerindo aderentes a um partido, a preposição refere-se aos
membros da igreja.

Versículo 3
προσέθετο — do verbo προστίθημι (eu acrescento) esta forma no
meio aoristo seguida pelo infinitivo ativo aoristo συλλαβεῖν (apreender)
significa “o fez de novo”; precisamente, “Herodes também prendeu
Pedro”. 732
τῶν ἀζύμων — o plural é um modismo hebraico que é transferido
sintaticamente ao grego. A palavra refere-se a um festival judaico.

730
Cf. Lc. 22:44; Tg. 5:16; Jt. 4:9.
731
Thayer, p. 319.
732
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 177.
Atos (Simon J. Kistemaker) 597
Versículo 4
ἔθετο — embora a forma é meio aoristo (de τίθημι, eu ponho), neste
verbo a distinção entre o ativo e o médio desapareceu (veja-se At 4:3;
5:18, 25). Este verbo, portanto, não deve ser traduzido “o pôs ele
mesmo” na prisão.

Versículo 5
μὲν οὗν — a combinação destas duas palavras aparece
frequentemente em Atos e geralmente é uma frase que sugere
reassunção.
ἦν γινομένη — note-se que esta construção perifrástica com um
gerúndio forma tanto o verbo εἰμί (sou) como o verbo γίνομαι (sou,
chegar a ser). Provavelmente põe “especial ênfase … na continuidade da
oração”. 733

2. Libertado por um anjo (At 12:6–11)

6, 7. Na noite anterior ao dia em que Herodes iria submetê-lo a


julgamento, Pedro estava dormindo entre dois soldados, preso com duas
algemas, e sentinelas montavam guarda à entrada do cárcere.
Repentinamente apareceu um anjo do Senhor, e uma luz brilhou na cela.
Ele tocou no lado de Pedro e o acordou. “Depressa, levante-se!”, disse ele.
Então as algemas caíram dos punhos de Pedro [NVI].
Lucas relata em detalhe o escape de Pedro do cárcere. Em contraste,
a libertação dos doze apóstolos, ele a descreve com muito poucas
palavras (At 5:19–20). Como um verdadeiro artista literário, descreve a
cena, as ações, e registra as conversações que tiveram lugar. Faz com
que cada palavra seja importante para realçar o efeito da milagrosa
libertação de Pedro.

733
F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed.
rev. e aumentada (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 282.
Atos (Simon J. Kistemaker) 598
Herodes Agripa fixou o juízo de Pedro para o dia depois da
conclusão do festival judaico. De acordo com a prática romana de
encerrar os prisioneiros em máxima segurança, Herodes Agripa ordena
que dois soldados sejam acorrentados a Pedro, um à direita de Pedro e o
outro à sua esquerda. 734 Também foram postos guardas diante da porta.
Desta forma, as possibilidades de um escape eram completamente nulas.
No entanto, Lucas põe a ênfase não em Herodes Agripa ou nos
soldados, mas em Pedro. Apresenta-o dormindo tranquilamente entre os
dois soldados, o que sugere uma completa confiança e fé em Deus: na
véspera de seu juízo e morte, Pedro dorme. A contraparte do Antigo
Testamento é registrada em um dos salmos de Davi. Quando Davi fugiu
de seu filho Absalão, disse: “Eu me deito e durmo, e torno a acordar,
porque é o Senhor que me sustém” [Sl. 3:5, NVI).
Deus intervém no último momento, quando a situação está
realmente crítica. Ele está no controle de toda situação e vela sobre Seu
povo. E Deus ouve e responde as orações dos crentes que rogam com fé.
“Repentinamente”, diz Lucas, “apareceu um anjo do Senhor, e uma
luz brilhou na cela”. Note-se que, como em outros lugares de Atos,
Lucas escreve “um anjo”, não “o anjo”. 735 Este anjo parou perto de
Pedro e não fez o que devia fazer na escuridão, mas fez com que uma luz
celestial iluminasse a cela. A implicação é que os guardas estavam tão
carregados de sonho que não se deram conta da luz. O anjo tocou a
Pedro em seu lado para que despertasse. Sem dúvida, Pedro se sentiu
muito confundido quando viu alguém de pé junto a ele e mandando que
se levantasse. Como podia fazer esse movimento se as cadeias o atavam
aos dois soldados? Mas as cadeias caíram de seus pulsos e ficou livre.
Obviamente, tinha ocorrido um milagre que desafia a lógica humana e

734
No ano 37 d.C., Herodes Agripa mesmo tinha sido um detento em Roma, onde estava acorrentado
a um soldado. Josefo Antiguidades 18.6.7 [196]. Veja-se também At 28:16; Ef. 6:20; 2Tm. 1:16.
735
Veja-se At 5:19; 8:26; 10:3; 12:23; 27:23.
Atos (Simon J. Kistemaker) 599
736
resiste qualquer explicação razoável. Quando o anjo disse a Pedro que
se pusesse de pé rapidamente, não lhe queria sugerir que o tempo para
escapar era breve. A palavra rápido sugere que um Pedro sonolento
devia recuperar seus plenos sentidos para obedecer as instruções que o
anjo lhe estava dando.
8, 9. O anjo lhe disse: “Vista-se e calce as sandálias”. E Pedro assim
fez. Disse-lhe ainda o anjo: “Ponha a capa e siga-me”. E, saindo, Pedro o
seguiu, não sabendo que era real o que se fazia por meio do anjo; tudo lhe
parecia uma visão [NVI].
O anjo teve que dizer a Pedro, quem estava procurando despertar, o
que devia fazer: “Vista-se e calce as sandálias”. Uma tradução literal
indica que o anjo instruiu Pedro pôr seu cinturão ao redor da cintura,
para que sua longa túnica não o impedisse de caminhar. E as sandálias
tinham sido postas de lado, possivelmente à entrada da cela. O anjo
então disse a Pedro que se envolvesse em seu manto; estavam prestes a
sair da prisão.
Pedro fez exatamente como o anjo lhe mandou. Quando se vestiu,
ele o seguiu. O tempo do verbo grego na verdade indica que ele se
manteve seguindo-o. Assombrado, olhava ao seu redor, porque “não
sabendo que era real o que se fazia por meio do anjo” (NVI). Já ele tinha
tido uma visão; pensou que estava vendo outra. Enquanto avançava
através dos corredores do edifício seguindo o anjo, as comporta se
abriam automaticamente e os guardas pareciam seguir dormindo. Pedro
deu-se conta que um milagre estava ocorrendo e que ele mesmo era o
motivo de tal milagre.
10. Passaram a primeira e a segunda guarda, e chegaram ao portão
de ferro que dava para a cidade. Este se abriu por si mesmo para eles, e
passaram. Tendo saído, caminharam ao longo de uma rua e, de repente, o
anjo o deixou [NVI].
736
Ernst Haenchen chama este relato uma lenda (The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por
Bernard Noble e Gerald Shinn [Philadelphia: Westminster, 1971], p. 391). Mas se a libertação de
Pedro do cárcere é considerada uma lenda, a ressurreição de Cristo pode ser considerada mitologia.
“Então nossa fé”, diz Paulo, “é vã” (1Co. 15:14).
Atos (Simon J. Kistemaker) 600
Lucas descreve as sentinelas de pé diante de duas portas diferentes.
Talvez devemos pensar em oito soldados em serviço, e outros fora de
serviço. Dos oito em serviço, dois estavam acorrentados a Pedro, dois
estavam na primeira guarda, dois na segunda, e os últimos dois estavam
na porta de ferro. 737 O anjo e Pedro passaram através das portas como se
alguém as tivesse aberto. No grego, Lucas usa a palavra automatē, da
qual se deriva a expressão automaticamente. 738 Esta pesada porta se
abriu sozinha. Ao outro lado estava a rua que indicava a liberdade de
Pedro.
Alguns manuscritos incluem um agregado. Quando o anjo e Pedro
deixaram a prisão, eles “desceram os sete degraus” do edifício. Se Pedro
estava presto na Fortaleza de Antônia — o que parece provável, como
Paulo também esteve preso ali e era custodiado por soldados — então
teve que descer um número de degraus (veja-se At 21:40).739
O anjo se apresentou de repente na cela de Pedro, e de repente o
deixou enquanto caminhavam juntos pelas ruas de Jerusalém. O anjo já
tinha cumprido seu trabalho (Hb 1:14). Isto estava de acordo com o
plano de Deus. João Calvino diz que Deus pôde ter trasladado Pedro
instantaneamente ao quarto onde se encontravam os crentes orando por
sua libertação. Se Deus tivesse trasladado Pedro de um lugar a outro, ele
teria realizado um só milagre. Como Lucas o diz, Deus levou a cabo uma
série de milagres ao libertar Pedro e responder as orações dos santos. 740

737
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, pp. 386–87.
738
Josefo usa a palavra automatos quando conta que pouco antes da Queda de Jerusalém (ano 70
d.C.), “viu-se às seis horas da noite que a porta do templo se abriu por si mesma”. Guerra judaica
6.5.3 [293] (LCL).
739
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 394. Veja-se Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4,
p. 136.
740
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance y Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1, p. 341.
Atos (Simon J. Kistemaker) 601
11. Pedro, tornando a si, disse: Agora sei verdadeiramente que o
Senhor enviou o seu anjo e me livrou da mão de Herodes e de tudo o que
esperava o povo judaico [TB].
Não podemos explicar o milagre da libertação de Pedro. Sabemos
que nos podemos perguntar por que Deus permitiu que Tiago fosse
assassinado e, por outro lado, resgatou a Pedro. Podemos nos perguntar
por que Herodes, depois da libertação de Pedro, deu morte aos soldados
(v. 19). Mesmo quando não podemos encontrar as respostas, de qualquer
maneira confessamos nossa fé num Deus soberano. E com o poeta do
século XVIII, William Cowper, podemos cantar:

Deus se move de uma forma misteriosa


Para executar Suas maravilhas
Marca Seus rastros no mar
E cavalga sobre a tormenta.

Quando Pedro de repente se deu conta que o anjo tinha


desaparecido, voltou a si e se convenceu que não se tratava de uma
visão. Nesse momento e de forma instantânea experimentou a realidade
de seu resgate e soube que Deus tinha realizado um milagre. Entendeu
que sua tarefa na terra ainda continuaria, que receberia um ministério
mais amplo longe de Jerusalém, e que estava prestes a entrar numa nova
fase de seu trabalho de pregar o evangelho de salvação.
“Agora sei verdadeiramente que o Senhor enviou o seu anjo e me
livrou da mão de Herodes e de tudo o que esperava o povo judaico”,
falou Pedro para si mesmo. (Ao registrar este solilóquio, Lucas indica
que ele soube deste resgate através do próprio Pedro, o que lhe permitiu
transmitir as palavras corretas do apóstolo.) Pedro expressou sua
gratidão a Deus por ter enviado a um anjo para livrá-lo da prisão. Ele
estava completamente seguro não só das intenções ímpias de Herodes
Agripa, mas também do conhecimento que o povo tinha de seu
encarceramento e seu subsequente juízo. Os judeus estavam junto a
Atos (Simon J. Kistemaker) 602
Herodes Agripa e esperavam que depois do juízo seguiria a execução de
Pedro.

Considerações doutrinais em At 12:6–11


Quando o povo judeu celebrava a festa dos pães Asmos,
literalmente interrompia e punha termo ao ciclo de fermentação do
processo de assar. A velha levedura, que devia ser tirada de cada lar e
logo queimada, representava a maldade e iniquidade (1Co 5:8). Devido
ao fato de que nos tempos do Novo Testamento a festa dos pães Asmos e
a páscoa eram dois nomes para o mesmo festival, os judeus não só
rompiam simbolicamente com seu passado pecaminoso, mas também
comemoravam sua libertação da escravidão do Egito.
Nos tempos do encarceramento de Pedro, quando queimavam a
velha levedura, os judeus em Jerusalém simbolicamente se despojavam
da maldade de seus corações e vidas. Mas enquanto isso, esperavam o
juízo contra Pedro e sua posterior morte. Fica em evidência que todo o
simbolismo de purificar a maldade de seus corações era puro conto. Pelo
contrário, o simbolismo da libertação na celebração da páscoa fez-se
uma realidade em Pedro quando o anjo o libertou do cárcere. Enquanto o
homem falhava em purificar-se a si mesmo do pecado e da maldade,
Deus demonstrava sua fidelidade ao libertar Pedro.

Palavras, frases construções gregas em At 12:6–11


Versículo 6
ἦν κοιμώμενος — com o verbo estar e o particípio médio presente,
esta é a construção perifrástica que indica duração de tempo.
δεδεμένος — de δέω (eu ato), o particípio passivo perfeito significa
que uma ação que teve lugar no passado continua no presente. Neste
caso, Pedro tinha sido preso por um tempo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 603
ἐτήρουν — o ativo imperfeito de τηρέω (eu guardo) denota ação
contínua no tempo passado. Neste versículo em particular, Lucas
aproveita o uso do tempo grego.

Versículos 7–8
ἐκ — aqui a preposição não quer dizer “fora de” e sim “de” que a
faz equivalente a ἀπό.
περιβαλοῦ — o imperativo meio aoristo significa ação única:
“envolva-se em seu manto”. Mas ἀκολούθει, o imperativo ativo aoristo
expressa ação linear: “mantém-te atrás de mim”.

Versículo 10
ἥτις — o pronome relativo indefinido neste caso significa “esta
mesma porta”.
αὑτομάτη — embora a palavra seja um adjetivo, é usado
adverbialmente. Modifica o verbo aberta e não o substantivo porta.

Versículo 11
ἐν ἑαυτῷ γενόμενος — o pronome no caso dativo indica que Pedro
já não dormia, não sonhava, nem estava em transe. Literalmente, o texto
diz: “voltou a si”. 741

3. A igreja em oração (At 12:12–17)

Indiretamente, Lucas registra um contraste entre o povo judeu que


celebrava a páscoa enquanto antecipa o juízo público de Pedro e sua
morte, e os cristãos, que passam o tempo em oração contínua pedindo a
Deus que liberte Pedro. Por sua própria segurança, os cristãos
permanecem juntos e com a porta que controla a entrada para a casa
741
Moule, Idiom-Book, p. 75.
Atos (Simon J. Kistemaker) 604
hermeticamente fechada. Procuravam impedir a entrada de algum intruso
e que possam haver mais prisões.
12. Considerando ele a sua situação, resolveu ir à casa de Maria, mãe
de João, cognominado Marcos, onde muitas pessoas estavam congregadas
e oravam.
Pedro foi à igreja que orava na casa de Maria. Ele sabia onde se
reuniam alguns dos crentes e foi ali para dizer-lhes que Deus tinha
respondido suas orações e lhes agradecer por seu apoio. Ele também
sabia que em sua condição devia buscar proteção e segurança em alguma
parte.
Lucas identifica o lugar de reunião como a “casa de Maria, mãe de
João. Que tem por sobrenome Marcos”. Parece que a casa de Maria era
ampla e espaçosa, de tal maneira que podia acomodar um número de
pessoas bastante grande. Ela pertencia à classe de cidadãos abastados, o
que fica demonstrado pela amplitude da casa e porque tinha uma
muralha exterior que a rodeava por completo. Mesmo quando Maria era
uma cristã e provavelmente viúva, tinha podido conservar sua casa
durante e depois da perseguição que seguiu por ocasião da morte de
Estêvão. Paulo diz que ela era a tia de Barnabé (Cl 4:10), e Lucas a
chama mãe de João Marcos. 742 A única menção de Maria nas Escrituras
relaciona-a com sua vontade de pôr sua casa à disposição dos cristãos
para que se reúnam nela para adorar e orar.
Não temos provas de que a casa de Maria tenha sido o lugar onde
Jesus instituiu a Ceia do Senhor (Mc. 14:13–15), onde os apóstolos se
reuniram depois da ascensão de Jesus (At 1:13), e onde os cristãos se
reuniram depois que Pedro e João foram libertados do cárcere (At 4:23–
31). Lucas informa, no entanto, que Pedro foi à casa de Maria, onde os
cristãos passavam a noite orando por sua libertação. Dois membros da
casa de Maria estavam também ali: Rode, a serva e possivelmente o
próprio João Marcos.

742
A. van Veldhuizen, Markus. De Neef van Barnabas (Kampen: Kok, 1933), pp. 18–19.
Atos (Simon J. Kistemaker) 605
O filho de Maria tinha recebido o nome João; e posteriormente
chegou a ser conhecido como Marcos. Acompanhou Paulo e Barnabé em
sua primeira viagem missionária a Chipre (At 13:4–5), mas decidiu não
ir com eles à Ásia Menor (At 13:13). Embora Paulo tenha expressado
sua moléstia pela atitude de Marcos (At 15:37–40), mais tarde se
reconciliou com ele (Cl 4:10; 2Tm 4:11; Fm 24). E Pedro,
afetuosamente, chama-o seu filho (1Pe 5:13). Segundo fontes que
correspondem aos começos do século II, Marcos escreveu o segundo
evangelho com a ajuda e aprovação de Pedro. 743
13, 14. Quando ele bateu ao postigo do portão, veio uma criada,
chamada Rode, ver quem era; reconhecendo a voz de Pedro, tão alegre
ficou, que nem o fez entrar, mas voltou correndo para anunciar que
Pedro estava junto do portão.
Aqui temos um sutil toque de humor que deve romper a tensão na
qual se encontram os crentes. Imaginemos, primeiro, ao apóstolo Pedro
de pé diante da porta exterior da casa de Maria, espancando com todo
cuidado e esperando encontrar logo um refúgio seguro; logo, à pequena
Rode, a serva, que temerosa aproxima-se da porta e relutante em abri-la;
no final, os crentes, cansados e preocupados, ainda orando intensamente
pela libertação de Pedro. Quando estas três partes por fim são postas
juntas, dão-se conta que na verdade Deus ouviu e respondeu sua oração.
O fato que Lucas mencione Rode por seu nome indica que Pedro
pessoalmente conhecia os membros da casa de Maria. Supomos que em
anos posteriores Lucas recebeu um relato detalhado do próprio Pedro.
Rode ou era uma escrava ou uma serva quem ao serviço de Maria veio a
ser cristã. Nós talvez tivéssemos esperado encontrar um homem em lugar
de uma pequena moça encarregado da porta de entrada à casa de Maria.
Mas naqueles dias o costume parecia ser ter moças como Rode para que
atendessem esse trabalho (Jo 18:16–17).

743
Eusébio História Eclesiástica 2.15.1–2; 3.24.7; 3.39.15; 5.8.3; 6.14.6–7; 6.25.5; veja-se também
Ralph P. Martin, Mark: Evangelist and Theologian (Grand Rapids: Zondervan, 1972), pp. 80–83.
Atos (Simon J. Kistemaker) 606
Quando Rode se aproximou da porta de entrada, reconheceu a voz
de Pedro. Mas em lugar de abrir, deixou Pedro de pé fora. Perplexa,
correu à casa e com voz tremente pela prazerosa emoção, exclamou:
«Pedro está lá fora, diante da porta». Note-se como Deus vai revelando
gradualmente o milagre da libertação de Pedro. Em lugar de pô-lo de
uma vez no meio do grupo de cristãos que oram, atrasa-se um pouco
para ir preparando os crentes para que vejam sua oração respondida.
15, 16. Eles lhe disseram: Estás louca. Ela, porém, persistia em
afirmar que assim era. Então, disseram: É o seu anjo. Entretanto, Pedro
continuava batendo; então, eles abriram, viram-no e ficaram atônitos.
Note-se que Lucas não registra palavras de recriminação pela
incredulidade expressa pelos cristãos. Descreve uma reação humana
normal diante do inesperado das boas notícias da libertação de Pedro.
Com vívidas cores descreve a reação dos crentes ao registrar suas
expressões: “Estás louca”. No entanto, a verdade é o contrário. De todas
as pessoas na casa, somente Rode está corda e, confiante em si mesma,
insiste em que Pedro está aí, à porta. 744
O grupo recusa crer que Pedro está vivo e livre. Dizem a Rode: “É
o seu anjo”. Mas embora houvesse um anjo que libertou Pedro, ele tinha
ido embora (v. 10). Mas isso as pessoas na casa de Maria ainda não
sabiam. No entanto, sabemos que os judeus criam que anjos guardiões os
protegiam (veja-se Sl. 91:11; Mt 18:10). E do Talmude judaico, o qual
reflete um tempo um pouco posterior, sabemos que os judeus ensinavam
que os anjos da guarda assumiam a aparência de pessoas a quem
protegiam e lhes serviam como seus duplos. 745
Enquanto isso, Pedro continuava lá fora e possivelmente ouvia a
comoção que havia no interior. Queria estar com seus irmãos, por isso
seguiu batendo na porta. Por fim, os crentes perceberam que de fato era
Pedro que estava ali, de modo que abriram, viram-no, e com completo

744
R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p. 480.
745
SB, vol. 1, pp. 781–83; vol. 2, pp. 707–8; C. P. Thiede, Simón Peter: From Galilee to Rome
(Exeter: Paternóster, 1986), pp. 153–58.
Atos (Simon J. Kistemaker) 607
assombro lhe deram as boas-vindas. Imediatamente o temor e a tensão se
desvaneceram dando lugar à risada, a felicidade, a alegria e a gratidão.
17. Ele, porém, fazendo-lhes sinal com a mão para que se calassem,
contou-lhes como o Senhor o tirara da prisão e acrescentou: Anunciai isto
a Tiago e aos irmãos. E, saindo, retirou-se para outro lugar.
Façamos as seguintes observações:
a. O relato. Seguindo o costume daqueles dias, Pedro moveu sua
mão para trás e para frente em sinal de que queria que sua audiência
ficasse em silêncio (veja-se At 13:16; 21:40; 26:1). Contou-lhes que
tinha estado acorrentado a dois soldados; da impossibilidade de escapar,
de sua completa confiança em Deus, e de seu sonho profundo até que foi
despertado por um anjo do Senhor. Relatou-lhes como as cadeias caíram
de seus pulsos, como as portas da prisão se abriram sem nenhuma
resistência dos guardas, e como o anjo o deixou numa das ruas de
Jerusalém.
b. Tiago. Pedro disse: “Anunciai isto a Tiago e aos irmãos”. Esta
breve oração está cheia de significado, porque, com efeito, Pedro está
nomeando seu sucessor pois ele seria um fugitivo. Tiago é o meio-irmão
de Jesus, não o filho de Zebedeu a quem Herodes Agripa matou (v. 2).
Pela Escritura sabemos que Tiago não creu em Jesus durante o
ministério do Senhor (Jo 7:5); que depois de Sua ressurreição, Jesus lhe
apareceu (1Co 15:7); e que em seguida depois da ressurreição de Jesus,
esteve presente no cenáculo (At 1:14). Já naqueles primeiros anos, tinha
chegado a ser um líder influente na igreja de Jerusalém e era considerado
como um apóstolo mesmo que não tinha sido um dos Doze (cf. Gl 1:19).
Com Pedro e João, Tiago era considerado uma das “colunas” da igreja
(Gl 2:9). Era um homem abençoado com uma habilidade de liderança
natural, porque ele teve um papel ativo em presidir o Concílio de
Jerusalém (At 15:13–21). E no fim de sua terceira viagem missionária,
Paulo foi a Jerusalém e informou a Tiago “todas as coisas que Deus fez
entre os gentios” (At 21:19). Supomos que durante o encarceramento de
Pedro, Tiago se tinha escondido, pelo que teve que receber a mensagem
Atos (Simon J. Kistemaker) 608
de Pedro indiretamente. De qualquer maneira, entendemos por
implicação que Pedro o nomeou como seu sucessor.
No Novo Testamento, a palavra irmãos normalmente significa
“companheiros crentes”. Portanto, neste versículo, o termo deveria
aplicar-se não aos irmãos biológicos de Tiago, mas aos seus irmãos e
irmãs espirituais.
c. Lugar. Pedro “saindo, retirou-se para outro lugar”. Embora Lucas
elimine o nome do lugar ao qual Pedro se retirou, é explícito em afirmar
que foi embora de Jerusalém. Alguns estudiosos sugerem que Pedro foi a
Roma e, de acordo com a tradição, foi o primeiro bispo de Roma durante
vinte e cinco anos. 746 No entanto, a evidência desta tradição é
insuficiente. As Escrituras indicam que Pedro estava em Jerusalém para
as reuniões do Concílio de Jerusalém (At 15:7–11). Mais tarde, foi a
Antioquia (Gl 2:11–14). Paulo assinala que Pedro tinha passado algum
tempo em Corinto (1Co 1:12; 3:22) e foi um apóstolo viajante a quem
sua esposa acompanhou (1Co 9:5). Concluímos que o lugar para onde
Pedro se retirou é desconhecido, embora o texto indique que foi um
missionário itinerante.

Considerações doutrinais em At 12:15


Temos anjos da guarda? As Escrituras claramente ensinam que
Deus comissiona Seus anjos para que nos guardem e nos sirvam. O
salmista escreve, “Porque aos seus anjos [Deus] dará ordens a teu
respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos” (Sl. 91:11).
Jesus nos observa de não desprezar às crianças, porque “os seus anjos
nos céus veem incessantemente a face de meu Pai celeste” (Mt 18:10). E
o escritor de Hebreus faz uma pergunta retórica que implica uma

746
P. ex., veja-se John Wenham, “Did Peter go to Rome in AD 42?” TynB 23 (1972): 92–102; R. E.
Osborae, “Where Did Peter Go?” CJT 14 (1968): 274–77.
Atos (Simon J. Kistemaker) 609
resposta positiva: “Não são todos eles espíritos ministradores, enviados
para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação??” (Hb 1:14). 747
Qual é, então, a mensagem que nos dá a Escritura? A Bíblia ensina
que Deus comissionou Seus anjos — para ser preciso, uma classe
particular de anjos — para proteger os crentes na terra. Em nenhuma
parte indica a Escritura que cada crente tem a um anjo em particular para
que o proteja. Os anjos são servidores de Deus que cuidam dos crentes.
Dizer mais do que a Escritura revela são conjeturas e especulações.

Palavras, frases e construções gregas em At 12:14 e 17


Versículo 14
ἀπὸ τῆς χαρᾶς — “por causa de sua alegria”. A preposição ἀπό
expressa causa.
τὸν πυλῶνα —a palavra πύλη (porta) não se usa aqui, mas um
termo que significa a entrada a uma cidade, ou, neste caso, a uma casa. 748

Versículo 17
ὁ κύριος — note-se que Pedro dá o crédito ao Senhor, não ao anjo,
pelo milagre que resultou em sua libertação da prisão.
ἕτερον — aqui, o adjetivo indica um lugar que é inteiramente
diferente do ambiente que é conhecido por Pedro.

4. A reação de Herodes (At 12:18–19)

18, 19. De manhã, não foi pequeno o alvoroço entre os soldados


quanto ao que tinha acontecido a Pedro. Fazendo uma busca completa e
não o encontrando, Herodes fez uma investigação entre os guardas e

747
Veja-se também Tobe. 12:12–15.
748
Veja-se Mateus 26:71; Lucas 16:20; Atos 10:17; David Hill, NIDNTT, vol. 2, p. 30; Joachim
Jeremias, TDNT, vol. 6, p. 921.
Atos (Simon J. Kistemaker) 610
ordenou que fossem executados. Depois Herodes foi da Judéia para
Cesaréia e permaneceu ali durante algum tempo [NVI].
Inescrutáveis são os juízos e os caminhos de Deus. Ele protege a
seu servo Pedro e faz com que escape a um refúgio onde Herodes Agripa
não poderá encontrá-lo e prendê-lo de novo. Mas Deus não protege os
soldados, os quais por ordem expressa de Herodes deviam cuidar de um
prisioneiro na cela de segurança máxima. E sofrem a terrível
consequência do escape noturno de Pedro. De igual maneira, quando
Jesus nasceu em Belém, Herodes, o Grande ordenou a seus soldados a
matar a todos os meninos de dois anos de idade ou menos (Mt 2:16).
Estes bebês eram inocentes, e mesmo assim foram mortos. Deus concede
a vida, mas também a pode tirar.
a. “Não foi pequeno o alvoroço entre os soldados”. Na manhã
seguinte, a consternação tomou conta dos soldados. Os dois que estavam
acorrentados a Pedro despertaram com as cadeias ainda em seus pulsos,
porém não estavam atados a Pedro. Eles sabiam que a lei romana
estipulava a pena de morte para os guardas que permitissem os
prisioneiros escaparem (veja-se também At 16:27: 27:42). Os guardas
que estavam diante das portas também se encheram de terror, porque
eles também seriam justiçados.
b. “Fazendo uma busca completa e não o encontrando, Herodes”.
As notícias do escape de Pedro se espalharam e em pouco tempo
chegaram aos ouvidos de Herodes Agripa. Como comandante-em-chefe
das forças armadas, imediatamente ordenou aos seus soldados começar
uma minuciosa busca de Pedro. Talvez acariciava a secreta esperança de
que se Pedro tinha escapado milagrosamente do cárcere, ainda estivesse
em Jerusalém (At 5:25). Sem dúvida, buscaram nas casas dos cristãos
mais proeminentes e interrogaram a numerosos crentes a respeito do
paradeiro de Pedro. Mas qualquer intenção foi inútil, porque Pedro não
apareceu.
c. “Herodes fez uma investigação entre os guardas”. No transcurso
do dia, ordenou-se aos guardas para comparecer diante de Herodes
Atos (Simon J. Kistemaker) 611
Agripa para explicar o desaparecimento de Pedro. Sua única explicação
foi que, durante a noite, eles adormeceram. E mesmo quando as portas
estivessem fechadas com chave e Pedro tivesse estado acorrentado a dois
soldados, tinha desaparecido. Asseguraram a Herodes que eles não
tinham participado de nenhuma cumplicidade na fuga.
d. “[Ele] ordenou que [os guardas] fossem executados”. O verbo
levar pode sugerir que se está colocando uma pessoa no cárcere, 749 mas
neste caso, o termo está referindo-se à pena de morte. De um ponto de
vista humano, o veredito de Herodes parece cruel e injusto. No entanto,
este ato humano de injustiça serve como contraste a um ato divino de
justiça (o horrível fim de Herodes; veja-se v. 23).
e. “Depois Herodes foi da Judeia para Cesareia”. Cesareia era a
sede das autoridades romanas que governavam na Palestina, mas o rei
Herodes Agripa tinha decidido viver em Jerusalém. Depois da milagrosa
fuga de Pedro, Herodes Agripa abandonou a cidade capital e fixou sua
residência em Cesareia.
Em Jerusalém, Herodes tinha levantado sua mão contra o povo de
Deus, sabendo que Deus pelejava do lado dos crentes, o que lhe
ocasionou a desilusão. Em Cesareia o aguardava o juízo divino.

C. Morte de Herodes Agripa I (At 12:20–25)

Lucas vincula o relato da fuga de Pedro e a morte de Herodes com a


afirmação transicional: “Depois Herodes foi da Judeia para Cesareia e
permaneceu ali durante algum tempo” (v. 19, NVI). O tempo do verbo
grego para “permaneceu” indica que ficou por um período
indeterminável de tempo em Cesareia. De qualquer maneira, do ponto de
vista divino, seus dias estavam contados.
20. Ora, havia séria divergência entre Herodes e os habitantes de
Tiro e de Sidom; porém estes, de comum acordo, se apresentaram a ele e,

749
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 344.
Atos (Simon J. Kistemaker) 612
depois de alcançar o favor de Blasto, camarista do rei, pediram
reconciliação, porque a sua terra se abastecia do país do rei.
Por que Lucas mistura uma história secular em seu relato sobre o
desenvolvimento da igreja cristã partindo de Jerusalém em Cesareia e
Antioquia, e com o tempo em Roma? Primeiro, Deus castiga Herodes
Agripa tirando-lhe a vida. Desta maneira responde por seu ataque a dois
dos doze apóstolos: Tiago, a quem Herodes tinha dado morte; e Pedro, a
quem tinha encarcerado. Deus julgou Herodes Agripa, quem conhecia o
Antigo Testamento e que havia tocado na menina dos olhos de Deus (Zc
2:7–9). Logo, Lucas diz que Deus abençoava a igreja: “a palavra de
Deus continuava a crescer e a espalhar-se” (v. 24, NVI).
Durante algum tempo, Herodes tinha estado zangado com o povo
de Tiro e Sidom. Os habitantes destas duas cidades portenhas da Fenícia
(o moderno Líbano) eram rivais de Cesareia no mundo do comércio, mas
para suas necessidades de grão dependiam das colheitas em Israel.
Supomos que Herodes tinha negado aos fenícios o acesso ao mercado do
grão israelita, fazendo desta maneira que vivessem uma vida bastante
difícil. Em resumo, Herodes aplicava aos fenícios uma guerra
econômica, apesar de que por dois séculos estes tinham sido sócios
comerciais com Israel. 750
Lucas não está interessado em dar detalhes a respeito dos pleitos de
Herodes. Simplesmente fala do desejo comum dos habitantes de Tiro e
Sidom de chegar a um acordo de paz com ele. Para obter isso, uma
delegação persuadiu Blasto, quem era um oficial chefe de Herodes, para
que pedisse a Herodes que levantasse o embargo ao grão e estivesse
anuente a estabelecer relações normais entre Israel e Fenícia. A palavra
paz é equivalente a “reconciliação” e significava que a disputa chegava a
seu fim. 751 Devido à brevidade do relato, não sabemos se a delegação

750
Veja-se 1Rs. 5:11; Ed. 3:7; Ez. 27:17.
751
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 136.
Atos (Simon J. Kistemaker) 613
voltou imediatamente a Tiro e Sidom ou se permaneceram em Cesareia
para participar das festividades programadas.
21-23. Em dia designado, Herodes, vestido de trajo real, assentado
no trono, dirigiu-lhes a palavra; e o povo clamava: É voz de um deus, e
não de homem! No mesmo instante, um anjo do Senhor o feriu, por ele
não haver dado glória a Deus; e, comido de vermes, expirou.
O historiógrafo judeu Josefo conta que Herodes Agripa tinha vindo
a Cesareia para celebrar um festival em honra do imperador Cláudio. 752
O festival consistia em jogos que se levavam a cabo cada cinco anos,
presumivelmente programados para primeiro de agosto de tal modo que
coincidissem com o aniversário do imperador.753 É importante esta data,
depois da colheita de grãos, pois permitia aos comerciantes comprar
trigo.
Josefo escreve que no segundo dia dos jogos, Herodes entrou na
arena ao amanhecer. Estava vestido com um traje tecido de linho de
prata. Quando os primeiros raios do sol deram em sua capa, Herodes se
iluminou pelo reflexo da luz do sol.
Imediatamente seus aduladores elevaram suas vozes em várias
direções — embora não para seu bem — dirigindo-se a ele como a um
deus. “Sê propício a nós”, disseram, “e se até agora te tememos como a
um homem, daqui em diante reconhecemos que é mais que um simples
mortal”. O rei não os reprovou nem rejeitou suas adulações como
ímpias”. 754
Tanto Lucas como Josefo descrevem a aparência de Herodes
Agripa diante da multidão. Os dois diferem só em uns pequenos pontos:
Lucas diz que Herodes começou a pronunciar um discurso público, mas
Josefo omite este detalhe; Lucas diz que o povo gritou: “É a voz de um
deus, e não de homem”; Josefo diz que a multidão de gentios dirigiu-se a
Herodes como a um deus; Lucas menciona que um anjo do Senhor feriu

752
Josefo Antiguidades 19.8.2 [343].
753
Suetônio Cláudio 2.1.
754
Josefo Antiguidades 19.8.2 [345] (LCL).
Atos (Simon J. Kistemaker) 614
Herodes, enquanto Josefo afirma que Herodes viu “uma coruja parada
numa corda sobre sua cabeça”. Eusébio, o historiador do século IV,
tendo citado extensamente do relato de Josefo, mistura este detalhe com
o registro bíblico e diz que Herodes “viu um anjo sentado sobre sua
cabeça”. 755
Em numerosas passagens da Escritura lemos que Deus comissionou
um anjo para que levasse a cabo um castigo. Por exemplo, um anjo
matou a 185.000 soldados assírios numa só noite (2Rs 19:35). 756
Publicamente, Deus castigou Herodes Agripa por aceitar honras que só
correspondiam a Ele. Deus é um Deus zeloso, como Ele mesmo afirma.
E não permite que ninguém tome Seu lugar (Êx 20:5; Dt 5:9).
Lucas descreve graficamente a morte de Herodes, ao dizer que foi
comido por vermes. Embora alguns estudiosos sugeriram um número de
causas para a morte, indo de uma apendicite até o envenenamento, nós
confiamos na análise médica de Lucas com relação à causa da morte do
rei. Nós o fazemos no conhecimento de que, por Sua intervenção divina,
Deus revelou o castigo de Herodes Agripa: devia ser devorado por
vermes e sofreria assim extrema dor e um final totalmente desprezível.
Calvino assinala que o corpo de Herodes cheirava mal ao ir-se
decompondo, e que chegou ao ponto que não era mais que um esqueleto
vivente. 757 Outras fontes descrevem a penosa morte de ser comido por
vermes; uma se refere a Antíoco Epifânio, um tirano que perseguiu os
judeus e como resultado disso foi ferido com uma enfermidade
incurável: “Os olhos do ímpio ferviam de vermes, e ainda com vida, em
meio de horríveis dores, a carne caía aos pedaços; o corpo começou a
apodrecer-se o e era tal o seu mau cheiro, que todo o exército sentiu
repugnância (2Mc. 9:9).

755
Eusébio História Eclesiástica 2.10.6 (LCL).
756
Veja-se também Êx. 33:2; Sl. 35:5–6; 78:49; Mt. 13:41.
757
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 347.
Atos (Simon J. Kistemaker) 615
Josefo supre a informação que Herodes morreu depois de cinco dias
de agonia, “no ano 54 de sua vida e no sétimo de seu reinado”. 758 Quer
dizer, Herodes morreu no ano 44 d.C. Um perseguidor da igreja sofreu
uma morte vergonhosa relativamente pouco tempo depois de ter dado
morte a Tiago e de haver encarcerado a Pedro.
24. Entretanto, a palavra de Deus continuava a crescer e a espalhar-
se [NVI].
Depois da morte de Herodes, o imperador romano nomeou um
governador sobre a terra dos judeus. De novo os cristãos desfrutaram da
ausência de perseguição. Como resultado disso, a igreja continuou
crescendo numericamente. Lucas o atribui a que os mensageiros do
evangelho foram a todas as partes com as Boas Novas. Em qualquer
lugar que estes ministros proclamavam a mensagem de salvação, ali a
igreja era fortalecida na fé e sustentada por numerosos crentes que se
somavam a ela. No começo de seu livro, Lucas dá cifras para indicar o
crescimento fenomenal da igreja. Mas embora a igreja se expanda em
círculos sempre maiores, Lucas só escreve de uma perspectiva global, e
diz que “a palavra de Deus continuava a crescer e a espalhar-se” (veja-se
At 6:7; 19:20).
25. Tendo terminado sua missão, Barnabé e Saulo voltaram de
Jerusalém, levando consigo João, também chamado Marcos [NVI].
Lucas chegou no final de sua vista histórica da influência de
Herodes Agripa na igreja. Após este interlúdio, retoma a história de
Barnabé e Paulo (At 11:30). Estes viajaram de Antioquia a Jerusalém
com ajuda para a população dessa cidade que foi açoitada pela fome.
Fizeram a viagem depois da morte de Herodes Agripa. Lucas não
relaciona a volta de Barnabé e Paulo ao governo de Herodes em
Jerusalém. Em lugar disso, separa completamente os dois relatos e usa o
versículo 25 como uma introdução à seção dedicada à primeira viagem
missionária de Paulo (At 13:1–3).

758
Josefo Antiguidades 19.8.2 [350] (LCL).
Atos (Simon J. Kistemaker) 616
Lucas usa o verbo voltaram e, por implicação, sugere que Barnabé
e Paulo foram a Antioquia. Do ponto de vista de Lucas, eles retornaram à
sua cidade natal. Portanto, não crê necessário ser mais explícito quanto a
nomear Antioquia pelo nome. Para ele, não é Jerusalém mas Antioquia o
centro missionário que ocupa um lugar estratégico no crescimento e
desenvolvimento da igreja. Antioquia enviou missionários ao mundo
greco-romano.
João Marcos, quem anos mais tarde chegou a ser conhecido como
Marcos, acompanhou a seu primo Barnabé e a Paulo. Ele o fez pelo
interesse que demonstrou em espalhar as boas novas de salvação e veio a
ser um ajudante dos dois missionários que a igreja antioquiana tinha
enviado a Chipre (At 13:5).

Considerações doutrinais em At 12:21–23


Quando Deus diz no Decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, um
Deus zeloso” (Êx 20:5; Dt 5:9), Ele não está falando palavras ociosas.
Zelosamente guarda Sua honra. De fato, abundam os exemplos de
pessoas castigadas por Deus quando sabendo que estão fazendo algo
mau, procuram roubar dEle a honra. Dois filhos de Arão, Nadabe e Abiú,
ignoraram as instruções de Deus com relação ao seu trabalho no altar e
decidiram seguir suas próprias inclinações. Deus os castigou com a
morte repentina (Lev. 10:1–2). Uzias, rei de Judá, encheu-se de orgulho
e quis queimar incenso no templo. Fez caso omisso das instruções de
Deus no sentido que só os sacerdotes podiam oferecer incenso. Portanto,
Deus o feriu com lepra, o que fez dele um pária e morreu no isolamento
(2Cr 26:16–21). O rei Herodes Agripa conhecia as Escrituras, as quais
lia publicamente ao povo no templo durante as festas judias. No entanto,
quando a multidão de Cesareia dirigiu-se a ele como se fosse divino,
Herodes não a repreendeu mas reclamou para si a honra que só pertence
a Deus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 617
Note-se o contraste nas vidas de Paulo e Barnabé, que curaram o
paralítico em Listra. Em sua excitação, o povo os proclamava deuses que
tinham vindo a eles; os licaônios criam que Barnabé era Zeus e que
Paulo era Hermes (At 14:11–12). Mais ainda, o sacerdote de Zeus queria
honrá-los, oferecendo-lhes sacrifícios. Mas os missionários
energicamente rejeitaram esta honra fora de lugar. Expressaram sua
angústia rasgando seus vestidos e enfaticamente estabeleceram que eles
não eram deuses e sim homens (At 14:13–15). Falaram com povo do
Deus vivo, quem fez os céus e a terra, e assim exaltaram o nome de Deus
e O honraram. De fato, eles sabiam que Deus é um Deus zeloso.

Palavras, frases construções gregas em At 12:20 e 25


Versículo 20
ἦν θυμομαχῶν — a construção perifrástica do verbo estar com o
gerúndio indica que a disputa de Herodes não foi um arranque de ira
momentâneo mas uma situação contínua. O particípio composto se
deriva do substantivo θυμός (raiva) e do verbo μάχομαι (eu pelejo). A
segunda parte do composto controla a primeira parte e assim quer dizer
“estar muito zangado”. 759
κοιτῶνος — literalmente, o substantivo refere-se a “o encarregado
dos dormitórios”. 760 No entanto, no contexto, a palavra significa um
oficial de alta confiança.

Versículo 25
εἰς — a forma em Jerusalém é indubitavelmente dificultosa. O
contexto exige a forma de Jerusalém, especialmente porque João

759
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#191.1.
760
Bauer, p. 440.
Atos (Simon J. Kistemaker) 618
Marcos, residente em Jerusalém, acompanhou a Barnabé e a Paulo. Os
melhores manuscritos têm a preposição εἰς em lugar de ἀπό e ἐξ (longe
de; de). Mas em Atos, o verbo ὑποστρέφειν (voltar) especifica
frequentemente o lugar do qual a pessoa volta. 761 A preposição εἰς pode
tomar o lugar de ἐν (em). Bruce M. Metzger, portanto, sugere a seguinte
tradução: “Barnabé e Saulo voltaram, depois de ter cumprido sua missão
em Jerusalém, trazendo com eles a João, cujo outro nome era
Marcos”. 762 Mesmo assim, mantém-se a dificuldade.
πληρώσαντες — do verbo πληρόω (eu cumpro), o particípio é um
aoristo efetivo que enfatiza o cumprimento de uma tarefa. O particípio
συμπαραλαβόντες (trazendo) é um aoristo constantivo que “contempla a
ação em sua totalidade”. 763

Resumo de Atos 12
O rei Herodes Agripa I persegue a igreja dando morte ao apóstolo
Tiago, o irmão de João. Prende Pedro e o encerra no cárcere durante a
festa dos pães Asmos. Põe um guarda de quatro pelotões de quatro
soldados cada um para que o vigiem. Enquanto Pedro está na prisão, a
igreja ora por sua libertação.
Na véspera de seu juízo, um anjo entra na cela onde se encontra
Pedro. Profundamente adormecido, Pedro está acorrentado a dois
guardas. Despertado pelo anjo e libertado de seus grilhões, Pedro segue o
anjo através das portas e o portão até que se encontra na rua. O anjo
desaparece e Pedro volta a si. Rapidamente se dirige à casa da mãe de
João Marcos, onde bate na porta. Dentro, muitos cristãos estão orando e
Rode, uma serva, vem à porta. Reconhece a voz de Pedro, porém não
abre. Os cristãos deixam Pedro entrar e estão atônitos. Pedro lhes conta a

761
P. ex., At 1:12; 8:25; 12:25; 13:13, 34; 14:21; 21:6; 22:17; 23:32.
762
Metzger, Textual Commentary, p. 400.
763
H. E. Dana e Julius R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927; Nova
York: Macmillan, 1967), p. 196. Veja-se também A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New
Testament in the Light of Historical Research (Nashville: Broadman, 1934), p. 859.
Atos (Simon J. Kistemaker) 619
história de sua libertação e, depois de lhes dar algumas instruções, sai de
Jerusalém.
Herodes examina o relatório dos soldados. Ordena que sejam
executados e sai para Cesareia. Resolve uma disputa com o povo de Tiro
e Sidom. Num dia dado, veste sua túnica real, fala com a multidão, e
aceita ser aclamado como um deus em lugar de como um homem. Um
anjo do Senhor o fere, e morre comido por vermes.
A igreja continua crescendo e multiplicando-se. Barnabé e Paulo,
acompanhados por João Marcos, viajam de Jerusalém a Antioquia.
Atos (Simon J. Kistemaker) 620
ATOS 13
A IGREJA EM TRANSIÇÃO, parte 3 (At 13:1–3)
e
A PRIMEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 1 (At 13:4–52)
D. Barnabé e Paulo são comissionados (At 13:1–3)

Nos primeiros três versículos deste capítulo, Lucas continua seu


relato a respeito da igreja em Antioquia e a apresenta como um
importante centro da fé cristã (At 11:19–30). Um dos primeiros
ministérios da igreja de Antioquia foi enviar ajuda aos crentes de
Jerusalém que estavam sofrendo pela fome (At 11:27–30).
Então, ganhou destaque quando enviou missionários ao mundo
gentílico, começando com Chipre e Ásia Menor e seguindo com a
Macedônia e Grécia. Lucas a menciona quatorze vezes, 764 conquanto
Paulo só o faz uma vez (Gl 2:11). À medida que a igreja vai crescendo,
Lucas chama a atenção a Antioquia e não a Jerusalém como o centro da
atividade. Decisivamente põe a igreja em Antioquia no mesmo nível da
de Jerusalém quando menciona os principais nomes dos dirigentes dessa
igreja.
1. Na igreja de Antioquia havia profetas e mestres: Barnabé, Simeão,
chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, que fora criado com Herodes,
o tetrarca, e Saulo [NVI].
Façamos as seguintes observações:
a. A igreja. Nos primeiros doze capítulos de Atos, a palavra igreja
refere-se consistentemente à assembleia dos cristãos em Jerusalém. Mas
quando os crentes em Antioquia recebem instrução de Barnabé e Paulo,
Lucas se refere a eles como uma igreja (At 11:26). Os cristãos em

764
Veja-se At 11:19, 20, 22, 26 [duas vezes], 27; 13:1; 14:26; 15:22, 23, 30, 35; 18:22, 23.
Atos (Simon J. Kistemaker) 621
Antioquia chegaram a constituir-se em igreja quando ouviram e
pregaram o evangelho regularmente, receberam instrução quanto à fé,
nomearam seus dirigentes e implementaram sua visão para a missão ao
mundo. No entanto, sabemos que a igreja é um corpo mesmo se seus
membros procederem de diferentes lugares e países. Os crentes em
Antioquia, portanto, pertenciam à mesma igreja à qual pertenciam os de
Jerusalém.
b. O ofício. Havia ali um grupo de profetas e mestres. Se partirmos
do grego, fica difícil discernir se as palavras profetas e mestres se
referem a dois ofícios separados ou se uma pessoa podia ser profeta ao
mesmo tempo que mestre. Paulo, por exemplo, fala de “pastores e
mestres” (Ef 4:11); desde sua perspectiva, uma pessoa preenche um só
ofício com uma função dupla. Além disso, ele põe os profetas numa
categoria separadamente, a qual é situada na lista depois dos apóstolos.
Isto nos leva à conclusão de que o Novo Testamento revela uma
diferença entre profetas e mestres. “Pelo fato de que os mestres expõem
as Escrituras, cuidam da tradição a respeito de Jesus e explicam os
fundamentos do catecismo, os profetas, não estando limitados pelas
Escrituras ou a tradição, falam com a congregação sobre a base de
revelações” (veja-se 1Co 14:29–32). 765 Lucas descreve Barnabé e Paulo
como mestres na igreja antioquiana (At 11:26), mas na lista de cinco
nomes (At 13:1) ele não diz nada específico quanto a quem é um mestre
e quem é um profeta, e desta forma deixa o assunto sem resolver.
c. Os nomes. Dos cinco dirigentes da igreja, Barnabé ocupa o
primeiro lugar da lista. Isto se entende levando-se em conta que a igreja
de Jerusalém o comissionou para ministrar às necessidades espirituais
dos crentes de Antioquia (At 11:22).
A próxima pessoa na lista é Simeão, chamado Níger. É de assumir
que outros também se chamavam Simeão, portanto é necessária uma
765
Gerhard Friedrich, TDNT, vol. 6, p. 854; veja-se também Cari Heinz Peisker, NIDNTT, vol. 3, p.
84. Jacques Dupont entende os termos profetas e mestres para referir-se às mesmas pessoas. Nouvelles
Etudes sur les Actes des Apôtres, Lectio Divina 118 (Paris: Cerf, 1984), p. 164.
Atos (Simon J. Kistemaker) 622
identificação adicional. A palavra Níger (que em latim quer dizer negro)
indubitavelmente se refere à compleição e à ascendência étnica de
Simeão. Pelo fato de que Lucas o menciona junto com Lúcio de Cirene,
não é remota a possibilidade de que Simeão fosse também oriundo da
África do Norte. Não podemos averiguar se este Simeão seja o mesmo
Simão de Cirene, quem ajudou Jesus a carregar a cruz (Mt 27:32), ou se
Lúcio é aquele a quem Paulo menciona enviando saudações aos irmãos
de Roma (Rm 16:21). 766 Ambos os homens provavelmente estavam
entre aqueles refugiados que, tendo saído de Jerusalém por causa da
perseguição que se seguiu por ocasião da morte de Estêvão, chegaram a
Antioquia, tendo sido oriundos de Chipre e de Cirene (At 11:19–20).
Segue-lhes Manaém. Seu nome é uma forma grega da palavra
hebraica Menaḥem que quer dizer “consolador”. Lucas diz “fora criado
com Herodes, o tetrarca”. Isto permite supor que o que Lucas está
procurando dizer é que Manaém era um irmão de leite de Herodes
Antipas, o tetrarca da Galileia e Pereia (4:27; Mt 14:1–12; Mc 6:14–29;
Lc 3:1). Manaém, pessoa influente de linhagem real e cristão de
Antioquia, proveu a Lucas com informação a respeito de Herodes
Antipas e possivelmente de outros membros da família de Herodes. 767
A última pessoa é Paulo, incluído aqui por seu nome hebraico,
Saulo. Por convite de Barnabé ele tinha ido à igreja antioquiana como
mestre, precisamente quando o trabalho começava a ser grande demais
para Barnabé (At 11:25–26). “Entre os veteranos de Antioquia, com
notável modéstia, ele se sentia contente ocupando o último lugar”. 768
2, 3. Enquanto adoravam o Senhor e jejuavam, disse o Espírito
Santo: “Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho
chamado”. Assim, depois de jejuar e orar, impuseram-lhes as mãos e os
enviaram [NVI].

766
Consulte-se H. J. Cadbury, “Lucius of Cyrene”, Beginnings, vol. 5, pp. 489–95.
767
Veja-se Richard Glover, “ ‘Luke the Antiochene’ and Acts”, NTS 11 (1964–65); 101.
768
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, rev. e ed. por Andrew R. Fausset, 5 vols.
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 618.
Atos (Simon J. Kistemaker) 623
a. “Enquanto adoravam o Senhor e jejuavam”. O termo adoração,
um termo religioso tipicamente veterotestamentário, descrevia
originalmente o serviço dos sacerdotes no templo de Jerusalém (veja-se,
p. ex. Lc 1:23). Porém no versículo 2, Lucas pela primeira vez o aplica à
prática cristã. Desta maneira está mostrando continuidade com o
passado, mas também está sugerindo sutilmente uma ênfase diferente,
mais espiritual. 769 Na nova forma de adoração, não vemos o sacerdote
diante do altar, e sim cada crente da igreja em oração.
Nestes versículos, Lucas também indica que os cristãos em
Antioquia combinavam a oração com o costume judaico do jejum; estas
duas práticas eram celebradas juntas só em algumas ocasiões especiais
(veja-se At 14:23).
O contexto imediato dos versículos 2 e 3 parece restringir a
referência à adoração aos cinco profetas e mestres que Lucas mencionou
(v. 1). Mas haveria ao menos três objeções a esta interpretação. Primeiro,
um culto de adoração se realiza para que participem dele todos os crentes
da igreja. Segundo, toda a igreja de Antioquia participou em comissionar
a Barnabé e Saulo, visto que ao retornar, os missionários informaram à
igreja o que Deus fez (At 14:27). E terceiro, o Espírito Santo move a
toda a igreja e não só a cinco pessoas para ocupar-se no trabalho
missionário. 770
b. “Disse o Espírito Santo: ‘Separem-me Barnabé e Saulo para a
obra a que os tenho chamado’.” Enquanto a igreja orava, o Espírito
Santo falou através dos profetas dando a conhecer Sua vontade. Deus,
mediante Seu Espírito, aumenta a igreja e escolhe Seus servos para que
façam a tarefa que Ele lhes encarrega. 771 Deus, então, escolhe a Barnabé
e a Saulo para a obra missionária.

769
Hermann Strathmann, TDNT, vol. 4, p. 226; Klaus Hess, NIDNTT, vol. 3, p. 552.
770
Compare Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The Expanding Church, 2ª. ed. (Grand Rapids:
Zondervan, Academie Books, 1986), p. 216.
771
P. ex., At 8:39; 9:31; 10:19, 44.
Atos (Simon J. Kistemaker) 624
Jesus tinha chamado Paulo para ser um apóstolo aos gentios, mas
tanto ele como Barnabé tinham estado ensinando na igreja de Antioquia.
Agora, o Espírito Santo revela aos crentes Sua vontade de que ambos se
dediquem a uma tarefa específica: proclamar as Boas Novas ao mundo.
Para a igreja de Antioquia isto significa que ao comissionar a Barnabé e
a Paulo estariam perdendo dois mestres altamente qualificados; que
teriam que prometer apoiá-los mediante a oração; e que Antioquia
seguiria sendo um centro para as missões.
Tanto Paulo como Barnabé tinham sido chamados para ser
apóstolos aos gentios. Na verdade, quando Lucas se refere a eles em sua
primeira viagem missionária, chama-os “apóstolos” (At 14:14; e veja-se
1Co 9:1–6). A tarefa que o Espírito Santo lhes atribui é dar a conhecer ao
mundo o evangelho de Cristo e estender a igreja até os limites da terra
(compare At 1:8).
c. “Impuseram-lhes as mãos e os enviaram”. Depois de um período
de jejum e oração, os dirigentes da igreja de Antioquia impuseram as
mãos sobre Barnabé e Paulo. Em Damasco, Ananias fez o mesmo com
Paulo e desta maneira Paulo tinha recebido o dom do Espírito Santo (At
9:17). Embora por vários anos Barnabé e Paulo tinham ensinado o
evangelho de Cristo, a igreja em Antioquia, oficialmente, ordenou-lhes
para serem missionários aos gentios. Não foi senão até depois que Deus
os chamou para a tarefa tão especial de proclamar o evangelho ao mundo
greco-romano (compare Gl 1:16) que a igreja antioquiana levou a cabo a
cerimônia externa de ordená-los.772 O serviço de ordenação mostra
claramente que missionários e igreja estão unidos no trabalho das
missões.

772
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 1, p. 355. Compare Ernest Best, “Acts xiii. 1–
3”, JTS 11 (1960); 344–48.
Atos (Simon J. Kistemaker) 625
Considerações doutrinais em At 13:1–3
À luz do trabalho realizado por Barnabé e Paulo, qual é o
significativo na ordenação que receberam em Antioquia? Primeiro, até
agora nem Paulo nem Barnabé foram chamados de apóstolo, mas quando
Lucas relata os eventos de sua primeira viagem missionária dá-lhes o
título de apóstolos (At 14:14). Segundo, os dois missionários mostram
milagrosos poderes de cura, pregam o evangelho a judeus e a gentios, e
possuem autoridade igual à que têm os apóstolos Pedro e João. E
terceiro, o paralelo entre Pedro e Paulo é evidente quando curam um
paralítico (At 3:1–10 e At 14:8–10), repreendem um mago ou feiticeiro
(At 8:18–24 e At 13:6–12), e organizam igrejas (At 8:14–17 e At 14:21–
25). O que significa a ordenação de Barnabé e de Paulo? Os dois
homens “foram consagrados a um trabalho que seria reconhecido como o
trabalho dos apóstolos e no qual eles agiriam com autoridade apostólica,
mantendo uma posição correspondente à dos Doze”. 773
Além disso, notemos o paralelo entre os doze apóstolos e Barnabé e
Paulo. O Espírito Santo enche os doze apóstolos em Jerusalém no dia do
Pentecostes com o qual ficam capacitados para dirigir-se às multidões
judias (At 2:1–41). E o próprio Espírito Santo dirige a igreja em
Antioquia para que designem a Barnabé e a Paulo para que proclamem o
evangelho às multidões gentílicas. Os Doze estão ocupados na formação
da igreja em Jerusalém que cresce rapidamente, enquanto Barnabé e
Paulo são enviados pela igreja antioquiana a organizar igrejas até os
limites da terra (At 1:8).

773
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; reimpr., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 192.
Atos (Simon J. Kistemaker) 626
Palavras, frases e construções gregas em At 13:1–2
Versículo 1
κατὰ τὴν οὗσαν ἐκκλησίαν — “na igreja local” (At 11:22) é um
termo técnico. 774 De qualquer maneira, a unidade da igreja prevalece.

Versículo 2
λειτουργούντων — a construção absoluta genitiva deste gerúndio e
o pronome αὑτῶν separam a cláusula do sujeito da frase principal (“o
Espírito Santo disse”). O pronome, porém, é indefinido, conquanto o
particípio mostra ação contínua. A palavra liturgia é derivada do verbo
λειτουργέω (eu servo).
δή — esta partícula tem a força de um convite: “Venham e me
nomeiem …”. 775
προσκέκλημαι — aqui o meio perfeito aponta para uma ação que
ocorreu no passado mas que tem plena validez no presente.

774
Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#474.5c.
775
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 1149.
Atos (Simon J. Kistemaker) 627

V. A PRIMEIRA VIAGEM
MISSIONÁRIA (AT 13:4 – 14:28)
Atos (Simon J. Kistemaker) 628
A. Chipre (At 13:4–12)

O trabalho missionário para o qual o Espírito Santo chamou


Barnabé e Paulo é exigente. Os missionários frequentam as sinagogas
judaicas, mas além disso, buscam ativamente novos convertidos entre a
população gentílica. Este novo aspecto do trabalho dos missionários é
grandemente desafiador, porque significa que eventualmente devem
confrontar a necessidade de formular princípios de conduta aos crentes
gentios (At 15:1–35).

1. A sinagoga dos judeus (At 13:4–5)

4, 5. Enviados, pois, pelo Espírito Santo, desceram a Selêucia e dali


navegaram para Chipre. Chegados a Salamina, anunciavam a palavra de
Deus nas sinagogas judaicas; tinham também João como auxiliar.
a. “Enviados, pois, pelo Espírito Santo”. Lucas enfatiza que os
missionários são enviados não pela igreja de Antioquia mas pelo Espírito
Santo. O Espírito disse à igreja que escolhesse Barnabé e Paulo, e Ele
mesmo os envia a seu campo de trabalho. Por conseguinte, Paulo pode
dizer que ele foi “apóstolo, não da parte de homens, nem por intermédio
de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai” (Gl 1:1). Quer
dizer, o Triúno Deus enviou Paulo e Barnabé primeiro a Chipre e logo à
Ásia Menor.
b. “Desceram a Selêucia”. Localizada junto ao rio Orontes e perto
da costa do Mediterrâneo, Selêucia servia como porto marítimo à cidade
de Antioquia. Devido ao fato de que Antioquia está localizada num
território montanhoso, Barnabé e Paulo tiveram que viajar uma distância
relativamente curta para descer a Selêucia.
c. “Dali navegaram para Chipre”. Num dia claro, os apóstolos
poderiam ter visto desde Selêucia a linha costeira do complexo de
montanhas de Chipre. A viagem por mar poderia tomar menos de um
Atos (Simon J. Kistemaker) 629
776
dia. Chipre era o lugar de nascimento de Barnabé (At 4:36), portanto
ele conhecia intimamente os seus habitantes, as sinagogas judaicas e a
cultura. Este conhecimento provou ser uma virtude. Barnabé não foi o
primeiro cristão em visitar a ilha; refugiados cristãos de Jerusalém
tinham chegado até ali, segundo nos conta Lucas (At 11:19).
d. “Chegados a Salamina, anunciavam a palavra de Deus nas
sinagogas judaicas”. Salamina era um porto na costa leste de Chipre e
estava localizada diretamente ao norte da moderna cidade de Famagusta.
Esta era um centro de comércio onde mercadores da Cilícia, Sitia,
Fenícia e Egito comercializavam com azeite de oliva, lã, vinho e grãos.
Com o correr do tempo, este porto atraiu a um grande número de judeus
que pertenciam à classe mercantil e que tinham estabelecido várias
sinagogas na cidade. Quando Barnabé e Paulo chegaram a Salamina, os
judeus lhes deram as boas-vindas em suas sinagogas.
Neste breve relatório, Lucas não menciona os efeitos da mensagem
pregada pelos missionários. No entanto, com o tempo usado no verbo em
grego, ele sugere que Barnabé e Paulo continuaram por algum tempo
pregando a Palavra de Deus. Podemos supor que os apóstolos provaram
com o Antigo Testamento que Jesus tinha dado cumprimento às
promessas messiânicas. A Palavra de Deus, portanto, serviu como
denominador comum para ambos os grupos. Talvez em seu contato
inicial com o povo, Barnabé e Paulo passaram algum tempo com a
população judaica de Salamina, porém não se diz nada com relação a se
os gentios frequentavam os cultos de adoração nas sinagogas. Os
missionários aplicaram a regra que com o tempo chegou a ser seu selo
pessoal: primeiro aos judeus, e depois aos gentios.
e. “Tinham também João como auxiliar”. Como um pensamento
tardio, Lucas inclui a informação de que João Marcos acompanhou os
missionários à ilha de Chipre (veja-se At 12:25). Talvez Lucas queria
pôr toda a ênfase na missão de Barnabé e Paulo; só de passagem

776
Refira-se a E. M. Blaiklock, “Seleucia”, ZPEB, vol. 5, p. 334.
Atos (Simon J. Kistemaker) 630
menciona João Marcos, seu companheiro de viagem. De fato, Marcos
não tinha sido chamado pelo Espírito Santo e tampouco tinha sido
ordenado pela igreja de Antioquia. Por esta razão Lucas o descreve como
um auxiliar dos missionários. Não nos é dito que tipo de ajuda lhes dava,
mas seu trabalho não estava limitado a prover às necessidades físicas
(como alimentação e alojamento) de seus companheiros. Lucas usa
literalmente a palavra subordinado para descrever a Marcos, o que
significa que ele fazia tudo o que os missionários lhe pediram que
fizesse.

Palavras, frases e construções gregas em At 13:5


κατήγγελλον — do verbo καταγγέλλω (eu proclamo publicamente),
esta forma é o imperfeito ingressivo: “começaram a proclamar”.
ὑπηρέτην — traduzido “servo” ou “ajudante” (veja-se Lucas 4:20),
o substantivo é um acusativo de aposto.

2. Barjesus (At 13:6–12)

6, 7. Havendo atravessado toda a ilha até Pafos, acharam um judeu


chamado Barjesus, mago, falso profeta, que estava com o procônsul
Sérgio Paulo, varão sensato. Este, tendo chamado a Barnabé e a Saulo,
mostrou desejo de ouvir a palavra de Deus [TB].
A ilha de Chipre tinha sido conquistada pelos romanos e feita uma
província imperial que estava sob a jurisdição do senado romano.
Evitando as áreas montanhosas interiores da ilha, os missionários
caminharam pelas planícies ao longo da costa sul. Foram quase duzentos
quilômetros da costa leste até a costa oeste, onde atracaram à cidade de
Pafos. Esta cidade se distinguia por suas belas edificações e um templo
dedicado à deusa Afrodite. Durante o reinado do imperador Augusto,
Pafos foi destruída por um terremoto (15 aC), mas foi rapidamente
reconstruída com recursos do governo romano. Chegou a ser um centro
administrativo e religioso, tanto como a residência do procônsul romano.
Atos (Simon J. Kistemaker) 631
Os procônsules, que eram nomeados pelo senado romano, governavam
em geral durante um ano e tinham absoluta autoridade militar e judicial
(veja-se At 18:12; 19:38).
Em suas viagens missionárias, Paulo costumava visitar as cidades
capitais, especialmente aquelas onde residia o governo romano. Em
Pafos, encontraram-se com o procônsul Sérgio Paulo. Ele costumava
empregar um mago, que interpretava sonhos e incursionava no oculto,
chamado Barjesus. O nome Barjesus é aramaico e quer dizer “filho de
Jesus”, ou, no Antigo Testamento, “filho de Josué”. Lucas diz que este
homem era um falso profeta de nacionalidade judaica. Como judeu,
Barjesus sabia da condenação de Deus aos profetas que não tinham sido
chamados por Deus (veja-se Jr 14:14–16). Mas apesar dos ensinos de
Deus com relação a adivinhos e falsos profetas, Barjesus era um deles
(cf. At 19:13).777 Tanto o Talmude como a literatura pós-apostólica
contêm severas advertências contra a prática da magia (e veja-se Ap
22:15). 778
No versículo 7 Lucas diz que Sérgio Paulo, o procônsul, era homem
inteligente que desejava ouvir da palavra de Deus. Estava aberto a
receber instrução dos mestres judeus; assim, empregava Barjesus e
escutava a Barnabé e a Paulo que lhe pregavam o evangelho. Não era um
temente a Deus, mas desejava ouvir a palavra de Deus e conhecer o
ensino dos apóstolos.
Na parte norte da ilha, os arqueólogos têm descoberto um
fragmento de uma inscrição em grego que leva o nome Quinto Sérgio
Paulo, quem presumivelmente foi procônsul durante o reinado do
imperador Cláudio (41–54 d.C.). Se aceitarmos que Paulo começou sua
primeira viagem missionária na segunda parte da quinta década (46

777
Refira-se a Arthur Darby Nock, “Paul and the Magus”, Beginnings, vol. 5, pp. 182–83.
778
Shabbath 75a; Didache 2.2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 632
d.C.), o achado arqueológico aponta ao procônsul descrito por Lucas em
Atos. 779
8-11a. Mas Elimas, o mago (porque assim se interpreta o seu nome),
opunha-se-lhes, procurando desviar da fé o procônsul. Mas Saulo,
também chamado Paulo, cheio do Espírito de Deus, fixando nele os olhos,
disse: Ó filho do Diabo, cheio de todo o engano e de toda a malícia,
inimigo de toda a justiça, não cessarás tu de perverter os caminhos retos
do Senhor? Agora eis a mão do Senhor sobre ti, e ficarás cego, não vendo
o sol por algum tempo [TB].
a. “Mas Elimas, o mago … opunha-se-lhes”. Lucas diz que
Barjesus tinha um nome grego, Elimas, o qual é a transliteração de uma
palavra aramaica ou arábica que quer dizer “mago”. 780 Na corte de
Sérgio Paulo, Barjesus usava seu nome grego mais que o aramaico.
Note-se que neste contexto, Paulo também prefere seu nome grego ao
hebraico (v. 9).
b. “Procurando desviar da fé o procônsul”. Enquanto a pregação do
evangelho intrigava a Sérgio Paulo, a Elimas o mobilizava para uma
postura de oposição. Era um mago que se dava conta que se Sérgio Paulo
abraçasse o cristianismo, seus serviços deixariam de ser necessários e
isso significava que se secava a fonte de seus ganhos. Além disso, como
judeu, Elimas adotou uma postura de forte oposição ao evangelho e a
seus mensageiros. Quando viu que Sérgio Paulo tinha pedido que os
missionários viessem vê-lo para ouvir a explicação do evangelho, fez
todo o possível por dissuadir o procônsul de aceitar a fé cristã (cf. 2Tm
3:8). A situação alcançou um nível crítico, porque estava em jogo a
veracidade do evangelho. Ou Elimas era um impostor; ou o eram
Barnabé e Paulo.

779
Bastiaan Van Elderen, “Some Archaelogical Observations on Paul’s First Missionary Journey”, em
Apostolic History and the Gospel, ed. W. Ward Gasque y Ralph P. Martin (Exeter: Paternóster; Grand
Rapids: Eerdmans, 1970), pp. 151–56.
780
S. F. Hunter, “Bar-Jesus”, ISBE, vol. 1, p. 431; veja-se também L. Yaure, “Elymas-Nehelamite-
Pethor”, JBL 79 (1960): 297–314.
Atos (Simon J. Kistemaker) 633
c. “Mas Saulo, também chamado Paulo, cheio do Espírito de Deus,
fixando nele os olhos”. Podemos observar aqui ao menos quatro
mudanças importantes:
Primeiro, desde este momento, Lucas dá proeminência a Paulo.
Quer dizer, Paulo já não é mais a pessoa que acompanha a Barnabé; as
posições se transtornam, embora às vezes ainda se dá a ordem Barnabé e
Paulo (veja-se At 14:14; 15:12).
Segundo, Paulo adota o nome grego Paulus o qual é uma palavra
emprestada do latim que literalmente significa “o pequeno” ou, “o
menino”. Já não usa mais a forma hebraica. Agostinho cria que Paulo
adotou seu novo nome para indicar que ele era “o menor (ou
insignificante) dos apóstolos” (1Co 15:9; e veja-se Ef 3:8). Mas esta
opinião não tem muito apoio. Tampouco temos provas de que Paulo
tenha decidido usar seu nome grego em reconhecimento de Sérgio Paulo.
Paulo, um cidadão romano, já tinha dois, se não três, nomes. (Um
cidadão romano usualmente tinha três nomes; por exemplo, Quinto
Sérgio Paulo.) E Paulo usou seu nome grego mesmo antes que Sérgio
Paulo chegasse a ser um crente. 781
Terceiro, embora Paulo tenha recebido o Espírito Santo quando
Ananias impôs sobre ele as mãos (At 9:17) e foi enviado pelo Espírito
Santo (v. 4), esta é a primeira afirmação explícita que Paulo é cheio com
o Espírito.
E quarto, fortalecido pela presença do Espírito Santo, Paulo
amaldiçoou a Elimas com uma cegueira e assim exerceu sua autoridade
apostólica. De passagem, chamamos a atenção ao paralelo entre os dois
apóstolos: Pedro repreende a Simão, o mago (At 8:20–23) e Paulo
amaldiçoa a Elimas.
d. “Paulo … disse: Ó filho do Diabo, cheio de todo o engano e de
toda a malícia”. Quando Paulo denunciou a Elimas diante de Sérgio
Paulo, houve uma erupção verbal. Chamou-o “filho do diabo” (cf. Jo

781
Compare Colin J. Hemer, “The Name of Paul”, TynB 36 (1985); 179–83.
Atos (Simon J. Kistemaker) 634
8:44) em lugar de “filho de Jesus” (Barjesus). Paulo estava cheio com o
Espírito Santo, mas Elimas estava cheio de engano e malícia. 782 Paulo
representa Jesus Cristo e Elimas representa o diabo. Portanto, neste
conflito espiritual, Paulo se dirige a Elimas diretamente e a Satanás
indiretamente: “Ó filho do Diabo, cheio de todo o engano e de toda a
malícia”. Em Atos, Lucas se refere a Satanás duas vezes (At 5:3; 26:18)
e uma vez ao diabo (At 13:10).
Paulo não pôde ter sido mais explícito em sua denúncia. Segundo
ele, Elimas praticava o engano e a maldade no mais alto nível.
Trovejando, Paulo continua: “Inimigo de toda a justiça”. Identifica-o
como um servidor de Satanás e, portanto, como um inimigo. Que classe
de inimigo era ele? Este falso profeta se constituiu ele mesmo como
contrário a tudo o que era reto, justo e verdadeiro. Era um ativo e
persistente perturbador dos “caminhos retos do Senhor”. Pelo Antigo
Testamento, Elimas sabia que os caminhos de Deus são perfeitos, retos e
justos.783 Mas inexoravelmente se opôs aos ensinos do Senhor. Para
Elimas, a expressão Senhor significava o Senhor Deus de Israel. E este
Deus, a quem ele pessoalmente se opunha, castigou-o com uma cegueira
temporal. Paulo repreendeu a Elimas e lhe disse:
e. “Agora eis a mão do Senhor sobre ti, e ficarás cego, não vendo o
sol por algum tempo”. Note-se, primeiro, que não é Paulo mas o Senhor
quem castiga a Elimas por sua oposição grosseira ao ensino do
evangelho. Com a Sua mão, o Senhor o põe fora de jogo (Jz. 2:15; 1Sm
12:15). Logo, o Senhor estende Sua graça e misericórdia a Elimas ao
dizer-lhe que seu castigo será só temporal. E finalmente, Deus o afligiu
com o flagelo de uma cegueira, o que o leva a viver um tempo de
confinamento. Paulo podia entender esta condição, porque em seu estado
de cegueira física, sua cegueira espiritual foi tirada, o que lhe permitiu
entender os propósitos de Deus (At 9:8–18).
782
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, série Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1942), vol. 1, p. 411.
783
Refira-se a Dt. 32:4; 2 S. 22:31; Sl. 18:30; Os. 14:9.
Atos (Simon J. Kistemaker) 635
11b, 12. No mesmo instante caiu sobre ele uma névoa e trevas e,
andando à roda, procurava quem o guiasse pela mão. Então o procônsul,
vendo o que havia acontecido, creu, maravilhando-se da doutrina do
Senhor [TB].
Que aspecto mais lamentável deve ter oferecido o mago Elimas,
dando tombos, incapaz de ver, ouvi-lo pedindo às pessoas que o tomasse
pela mão para levá-lo de um lugar a outro. No inesperado conflito entre
Paulo e Elimas, Paulo triunfou enquanto seu oponente sumiu na
escuridão. O imediatismo do castigo divino que caiu sobre Elimas
assombrou o procônsul, que entendeu que Paulo era o verdadeiro profeta
do Senhor e Elimas o impostor.
Sempre que o Novo Testamento revela que Deus realiza um
milagre, o resultado é que as pessoas se voltam a Ele com fé. Por
exemplo, Pedro curou o paralítico na porta do templo e numerosos
adoradores creram em Jesus (At 3:6; 4:4). Quando Deus castigou Elimas
com a cegueira, Sérgio Paulo pôs sua fé em Cristo. Não nos é dito que
Elimas se arrependeu e tenha crido. Mas Sérgio Paulo ficou livre das
ataduras com que Elimas o tinha tido cativo, crendo agora no ensino do
evangelho de Cristo, o mesma que havia lhe dito que rejeitasse. 784

Considerações doutrinais em At 13:4–12


“A fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo”, escreve
Paulo (Rm 10:17). Lucas diz que a pessoa aceita a Cristo quando ouve
Seu evangelho. Os samaritanos creem quando Filipe proclama as Boas
Novas no meio deles (At 8:12). Filipe ensina um eunuco etíope, que
depois segue seu caminho cheio de alegria (At 8:39). Cornélio e sua
família ouvem o evangelho pela boca de Pedro e recebem o dom do
Espírito Santo (At 10:44). E Sérgio Paulo vê o que ocorre com Elimas e
crê. Lucas acrescenta que ele continuou maravilhando-se do ensino do
evangelho de Cristo; no entanto, não temos razão para duvidar do

784
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 361.
Atos (Simon J. Kistemaker) 636
785
genuíno de sua fé. Não volta a ser mencionado; supõe-se que uma vez
que completasse seu período na acusação, iria de Chipre. Sérgio Paulo
serve como a marca de aprovação do Espírito Santo sobre o propósito
missionário da igreja de proclamar as Boas Novas ao mundo greco-
romano.

Palabras, frases y construcciones griegas en Hch 13:10


ὦ — uma interjeição que expressa emoção. Antecipa o anúncio de
um iminente juízo divino: o castigo de uma cegueira temporal. Com os
vocativos acompanhantes υἱέ (filho) e ἐχθρέ (inimigo), a partícula é
intensamente pessoal. 786
οὑ παύοῃ — a segunda pessoa do singular do indicativo futuro do
verbo παύομαι (deixo de) é seguida pelo particípio ativo presente
διαστρέφων (pervertendo). A frase é quase um imperativo e sem dúvida
expressa um desejo: “Não vais deixar de perverter?” 787

B. Antioquia da Pisídia (At 13:13–52)

Vemos um interessante desenvolvimento na rota que Paulo e


Barnabé tomam em sua primeira viagem missionária. Devido ao fato de
que Barnabé tinha nascido e se criou na ilha de Chipre, os viajantes
visitam Chipre primeiro. Mas quando percorreram a ilha de leste a oeste,
embarcam rumo à Ásia Menor, o lugar de nascimento de Paulo. E
embora não cheguem a visitar Tarso, a cidade onde Paulo nasceu, eles
tocam terra em Perge da Panfília, viajam ao norte a Antioquia da Pisídia,
e dali eventualmente a Icônio, Listra e Derbe, onde organizam igrejas.

785
Alguns estudiosos duvidam que Sérgio Paulo tenha experimentado uma conversão genuína. Veja-
se Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 147.
786
Blass y Debrunner, Greek Grammar, #146.1.
787
Robertson, Grammar, p. 874.
Atos (Simon J. Kistemaker) 637
Estas igrejas, localizadas no coração da província romana da Galácia,
recebem uma carta de Paulo conhecida como a Epístola aos Gálatas.
Durante os dois últimos séculos, alguns eruditos têm sustentado que
em sua terceira viagem missionária Paulo viajou através do norte da
Galácia em seu caminho para Éfeso (At 18:23). Os que assim creem
consideram que a Epístola aos Gálatas foi dirigida a congregações no
norte da Galácia. Porém não existe evidência que Paulo tenha visitado a
parte norte da Galácia com o que as objeções a esta teoria (chamada a
teoria do norte da Galácia) são quase incontestáveis. Portanto,
inclinamo-nos a defender a teoria conhecida como a da Galácia do sul.
Cremos que as igrejas que Paulo fundou durante sua primeira viagem
missionária foram as receptoras de sua epístola a Galácia. 788

1. O convite (At 13:13–15)

13. Tendo Paulo e seus companheiros navegado de Pafos, foram a


Perge na Panfília; João, porém, apartando-se deles, voltou a Jerusalém.
Devemos confrontar dois problemas nesta passagem:
a. A localização. Paulo, Barnabé e Marcos decidem deixar Pafos em
Chipre, e embarcando, navegaram em direção noroeste para a Ásia
Menor. Para ser preciso, eles se dirigiram a Perge, uma cidade
importante na província costeira da Panfília. Paulo e seus companheiros,
sem dúvida sabiam que alguns judeus da Panfília tinham ouvido o
sermão do Pentecostes de Pedro em Jerusalém (At 2:10) e haviam
trazido o evangelho à sua província nativa. Esta província, que faz
fronteira com a Cilícia ao leste, Lícia ao leste, e Pisídia e os Montes
Tauro ao norte, possuía terras férteis ao longo da costa do Mediterrâneo.
O rio Cestro descia das montanhas ao mar e provia água para a irrigação
das planícies agrícolas em suas margens. “A terra era rica em frutos e

788
Herman N. Ridderbos, em sua “Galatians, Epistle to the”, ISBE, vol. 2, pp. 380–81, apresenta uma
completa discussão sobre as teorias da Galácia do norte e Galácia do sul. Igualmente William
Hendriksen, no C.N.T. Gálatas, (Grand Rapids: SLC, 1984), pp. 11–14.
Atos (Simon J. Kistemaker) 638
789
grãos e era um centro de produtos farmacêuticos”. Perge estava
localizada levemente ao interior e a muito curta distância ao oeste do rio
Cestro.
Paulo e seus companheiros não organizaram uma igreja em Perge,
mesmo quando proclamaram o evangelho ali ao voltar de Antioquia da
Pisídia (At 14:25). Paulo e Barnabé foram bem ao interior e pregaram as
Boas Novas aos gálatas da Pisídia. William M. Ramsay sugere que em
Perge Paulo adoeceu de malária, por essa razão se trasladou a um clima
mais temperado nas altas elevações de Antioquia da Pisídia, 790 porque
Paulo diz que esteve doente quando visitou pela primeira vez os gálatas
(Gl 4:13; e cf. 2Co 12:7). Mesmo se assinássemos a sugestão do
Ramsay, ainda estaríamos diante de um segundo problema. Por que João
Marcos abandonou a Paulo e Barnabé em Perge e voltou para Jerusalém?
b. A volta. De novo, o texto é obscuro. Talvez, porque a informação
tem que ver com seu amigo Marcos, Lucas decide manter silêncio.
Eruditos especularam a respeito da nostalgia de Marcos, os perigos da
viagem pelas regiões montanhosas da Panfília e Pisídia (veja-se 2Co
11:26), a insegurança de viajar por um território desconhecido para
Marcos e sua possível objeção a pregar o evangelho primeiro aos
gentios.
Se lançarmos um olhar cuidadoso aos capítulos 13 e 14, notaremos
que a ênfase cai sobre a proclamação do evangelho de Cristo aos gentios.
Quando Paulo e Barnabé foram rejeitados pelos judeus em Antioquia da
Pisídia eles anunciaram que se voltariam para os gentios (At 13:46; veja-
se também At 14:27). 791 Esta decisão talvez foi rejeitada por Marcos,
que decidiu deixar os missionários e voltar para Jerusalém. Poderíamos
supor que ali ele informou da excessiva preocupação de Paulo em
converter os gentios à fé cristã. Quando, algum tempo depois, Barnabé

789
E. A. Judge, “Pamphylia”, ISBE, vol. 3, p. 650.
790
William M. Ramsay, St. Paul the Traveller and the Roman Citizen (1897; reimpr., Grand Rapids:
Baker, 1962), pp. 89–97.
791
Consulte-se Dupont, Nouvelles Études, p. 344.
Atos (Simon J. Kistemaker) 639
quis tomar Marcos para acompanhá-los em outra viagem missionária,
sua relação com Paulo sofreu um golpe bastante duro. Devido ao fato de
que na opinião de Paulo Marcos tinha desertado na Panfília, recusou tê-
lo como companheiro (At 15:37–39). O rompimento das relações entre
Paulo e Barnabé pode ser explicada melhor se a deserção de Marcos teve
sua origem em sua objeção ao interesse de pregar aos gentios. 792
14, 15. De Perge prosseguiram até Antioquia da Pisídia. No sábado,
entraram na sinagoga e se assentaram. Depois da leitura da Lei e dos
Profetas, os chefes da sinagoga lhes mandaram dizer: “Irmãos, se vocês
têm uma mensagem de encorajamento para o povo, falem” [NVI].
Lucas informa só que os missionários continuaram sua viagem de
Perge até Antioquia da Pisídia. Mas sabemos que eles tiveram que viajar
por muitos dias, seguindo o rio Cestro, e ascendendo a uma altura de
quase mil metros. Além disso, a rota era perigosa porque bandidos locais
atacavam os viajantes nas estreitas passagens montanhosas (cf. 2Co
11:26). Os missionários entraram num território que os romanos
chamavam a província da Galácia. Na parte sul desta província, os
romanos tinham fundado uma colônia em Antioquia (ano 25 a.C.).
O nome Antioquia era comum a muitas cidades no mundo antigo,
fundadas tanto pelo governador sírio Seleuco Nicátor (301–281 a.C.) ou
seu filho Antíoco I. Lucas escreve que Paulo e Barnabé foram a
Antioquia da Pisídia e assim a distingue de Antioquia da Síria. Antioquia
da Pisídia, localizada na margem do rio Anthius 793 estava no centro
ocidental da Ásia Menor (a moderna Turquia). A cidade foi residência de
numerosos gregos, frígios, romanos, e judeus. Os judeus tinham sido
trazidos a Antioquia pelos selêucidas no terceiro século antes de Cristo.
A população judaica tinha construído uma sinagoga e tinha entregue aos
gentios os ensinos do Antigo Testamento.

792
Richard N. Longenecker, The Acts of the Apostles, no vol. 9 de The Expositor’s Bible Commentary,
ed. Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1981), p. 421.
793
Bastiaan Van Elderen, “Antioch (Pisidian)”, ISBE, vol. 1, p. 142; Colin J. Hemer, The Book of Acts
in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf (Tubinga: Mohr, 1989), pp. 201, 228.
Atos (Simon J. Kistemaker) 640
Além disso, na dispersão a sinagoga era um centro de ensino, uma
fonte de ajuda para as necessidades da comunidade, um lugar de
reuniões, uma corte de justiça. As sinagogas chegaram a ser uma parte
da vida pública nas comunidades gentílicas. Numerosos gentios
assistiam aos cultos de adoração na sinagoga local, observavam a lei
judaica, e criam em Deus. Mas alguns gentios, devido ao fato de que
recusavam submeter-se à circuncisão, eram chamados tementes a Deus.
Por conseguinte, pelo menos quatro grupos de pessoas adoravam juntas
em qualquer sábado: os judeus, nascidos quer na dispersão quer em
Israel, os convertidos ao judaísmo, os tementes a Deus e os gentios que
demonstravam um interesse, porém não estavam dispostos a
comprometer-se.
Depois que os missionários chegaram a Antioquia da Pisídia, no
sábado seguinte entraram na sinagoga. Sentaram-se e esperaram ser
recebidos ao culto de adoração. Lucas escreve que o costume de Paulo
era ir às sinagogas locais e ensinar as Escrituras. 794
Lucas descreve a liturgia levada a cabo no serviço. Diz que se leram
a Lei e os Profetas; quer dizer, membros da congregação em dispersão
tinham sido nomeados para ler seleções do Antigo Testamento na versão
grega (a Septuaginta). Naturalmente, outras partes da liturgia eram a
recitação do Shema (Dt 6:4–9; 11:13–21; veja-se também Nm. 15:37–
41), a oração, o sermão, e uma bênção final. A parte importante do
serviço era sempre o sermão. 795
Os dirigentes da sinagoga convidaram a Paulo e a Barnabé para dar
ao povo “uma palavra de exortação”. Estes dirigentes estavam a cargo e
com frequência participavam de algumas das partes da liturgia. Deram as
boas-vindas aos visitantes e esperaram que ou Paulo ou Barnabé

794
Veja-se v. 5; At 14:1; 17:1, 2, 10, 17; 18:4, 19, 26; 19:8.
795
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C. a 135 d.C.)
rev. e ed. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 448.
Consulte-se também Robert F. O’Toole, “Christ’s Resurrection in Acts 13, 13–52”, Bib 60 (1979):
361–72.
Atos (Simon J. Kistemaker) 641
aceitasse o pedido que lhes faziam para dar uma mensagem. Na sinagoga
local, era comum que aos visitantes lhes pedisse que falassem.

Palavras, frases e construções gregas em At 13:13–15


Versículo 13
ἀναχθέντες — de ἀνάγω (eu conduzo a) no passivo aoristo este
particípio é um termo náutico que quer dizer “zarpar”.
οἱ περὶ Παῦλον — este é um modismo clássico que significa “Paulo
e seus companheiros”. 796

Versículos 14–15
σαββάτων — a forma plural deriva do modismo hebraico shemaim
(céus) mas é traduzido no singular.
ἀνάγνωσιν — do verbo ἀναγινώσκω (eu leio), este substantivo tem
a terminação -σις para indicar a atividade de ler as Escrituras.

2. História do Antigo Testamento (At 13:16–22)

Paulo teve a oportunidade de examinar o Antigo Testamento e


mostrar que Cristo Jesus de Nazaré deu cumprimento às profecias
messiânicas. Ele Se dirigiu a uma audiência um tanto heterogênea na
qual os gentios piedosos eram não só ouvintes mas também seguidores
de Cristo. Estas pessoas notavam que a fé cristã estava baseada no
Antigo Testamento, mas que tal fé estava livre das demandas que os
judeus lhes faziam.
16. Pondo-se em pé, Paulo fez sinal com a mão e disse: Israelitas e
gentios que temem a Deus, ouçam-me! [NVI]
Os cultos de adoração nas sinagogas locais se caracterizavam por
um excessivo ruído, especialmente durante uma breve interrupção. Os
796
Robertson, Grammar, p. 766.
Atos (Simon J. Kistemaker) 642
assistentes aproveitavam a oportunidade para comunicar-se notícias ou
intercambiar opiniões; estavam prontos para expressar o que gostavam
ou não. Quando os dirigentes mandaram mensagem a Paulo e a Barnabé,
que é muito provável que ocupavam um assento afastado do frente, os
assistentes estavam envoltos numa animada conversação. Reuniam-se
não só para adorar a Deus. Também usavam a sinagoga como um lugar
de reunião informal. Como resultado, quando Paulo aceitou o convite a
dar “uma palavra de exortação”, teve que pedir atenção e o fez conforme
o costume naqueles dias: fez um aceno e desta forma chamou à ordem a
concorrência que enchia o local (veja-se também At 12:17; 19:33; 21:40;
26:1).
Lucas opta por registrar o sermão que Paulo pregou a uma
audiência de judeus e gentios em Antioquia da Pisídia. De forma
resumida, este sermão é típico dos que Paulo pregou através da Ásia
Menor, Macedônia e Grécia (cf. At 14:15–17; 17:22–31). Além disso,
em muitos aspectos, o sermão nos faz lembrar aquele que Pedro pregou
no Pentecostes (At 2:14–36), e no Pórtico de Salomão (At 3:12–26), e
aquele outro que Estêvão pregou diante do Sinédrio (At 7:2–53). O
sermão de Paulo em Antioquia da Pisídia podia ser dividido em três
partes: uma vista da história de Israel; a vida, morte e ressurreição de
Jesus; e a aplicação da mensagem do evangelho.
Em seu Evangelho e em Atos, Lucas descreve dois cultos de
adoração numa sinagoga. Em um deles, Jesus se sentou a pregar (Lc
4:20); e no outro, Paulo fica de pé para começar seu sermão (At 13:16).
A diferença radica nas duas culturas diferentes: nas sinagogas de Israel o
mestre se sentava, por outro lado nas da dispersão ficava de pé.
Paulo começa seu sermão com algumas palavras que são
conhecidas os ouvintes: “Israelitas e gentios que temem a Deus”. Note-se
que ele menciona primeiro os judeus e depois os gentios. Os gentios são
os piedosos, aqueles que voluntariamente se preparam para ouvir o que
Paulo tem a dizer. Entre eles há também muitas proeminentes damas
gentias (v. 50).
Atos (Simon J. Kistemaker) 643
17-20a. O Deus desta nação Israel escolheu nossos pais e fez um povo
grande enquanto eles estiveram na terra do Egito. Com braço poderoso os
tirou dali. E os suportou no deserto por cerca de quarenta anos. Destruiu
sete nações na terra de Canaã e dividiu a terra em herança. Tudo isto
ocorreu em uns quatrocentos e cinquenta anos [trad. Kistemaker].
a. “O Deus desta nação Israel”. Como Estêvão diante do Sinédrio,
Paulo começa seu sermão com uma recontagem histórica da nação Israel.
Em sua afirmação introdutória, primeiro declara que Deus é o Deus de
Israel. Na verdade, especifica que Deus reclama o povo de Israel como
Seu próprio, neste caso aqueles que adoram na sinagoga local de
Antioquia da Pisídia (veja-se v. 15).
Logo, diz que “Deus … escolheu nossos pais”. Deus é aquele que
escolheu, não o homem. E Deus tinha escolhido os antepassados, quer
dizer, os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó (veja-se Dt 4:37; 10:15). A
graça eletiva de Deus estende-se ao povo de Israel: “Em sua eterna
vontade e propósito Deus escolheu Israel, quando Israel ainda não era,
como tinha escolhido a Paulo (At 9:15; 22:14), e como ele tinha
preordenado Cristo antes da fundação do mundo (Lc 9:35; 23:25; cf. At
3:20).” 797 Lucas oferece só um resumo da dissertação de Paulo e
rapidamente vai do período dos patriarcas à formação de Israel como
uma nação.
b. “[Ele] fez um povo grande”. Com esta simples observação
registrada por Lucas, Paulo se refere aos descendentes de Jacó que
chegaram a ser uma nação quando viviam no Egito. Os israelitas foram
desprezados pelos egípcios e obrigados a viver como escravos. Mas o
próprio Deus proveu para os oprimidos israelitas e fez deles uma nação
(compare, p. ex., Êx 1:20; 5:5; 33:13; Is 1:2). Deus olhou aos israelitas
como Seu povo da aliança e os fez grandes em meio de um país
estrangeiro. Engrandeceu-os em número e em fortaleza e os fez
prosperar durante o tempo que estiveram no Egito.

797
Rackham, Acts, p. 211.
Atos (Simon J. Kistemaker) 644
c. “Com braço poderoso os tirou dali”. Paulo adota a linguagem do
Antigo Testamento quando fala do poderoso braço ou mão de Deus. 798
Ele usa o termo poderoso para mostrar que o braço de Deus era o poder
acima deles que controlava cada coisa que sucedia no Egito. Atribui ao
Deus de Israel toda a glória e a honra, que libertou Seu povo do jugo de
escravidão e o guiou para fora do Egito com maravilhas e milagres.
d. “[Deus] suportou-os no deserto por cerca de quarenta anos”.
Depois que tirou Seu povo do Egito, Deus o continuou cuidando. Por
quarenta anos, dia após dia deu-lhes alimento em forma de maná (Êx
16:35), supriu-lhes de água (Êx 17:6), cuidou suas vestes e sandálias
para que não se gastassem (Dt 8:4; 29:5), e os protegeu de seus inimigos
(Êx 17:8–13). Cuidou de Seu povo como um pai cuida de seu filho (Dt
1:31).
Apesar dos milagres, a bondade e o amor de Deus, os israelitas se
queixaram, choraram e rejeitaram a Deus. No deserto, desobedeceram e
provaram a Deus dez vezes (Nm. 14:22). Não obstante, Deus continuou
suportando-os por uns quarenta anos. A propósito, o texto grego tem
uma variante que é uma mudança de uma das letras no verbo suportar
(v. 18). Uma tradução adotou a variante: em lugar de “os suportou”, a
Bíblia de Jerusalém diz “os rodeou de cuidados”. 799
e. “[Deus] destruiu sete nações na terra de Canaã”. Paulo segue de
perto a narrativa do Antigo Testamento e diz que não foram os israelitas
e sim Deus quem conquistou Canaã e desapropriou e destruiu os que
viviam ali. As sete nações foram os heteus, os girgaseus, os amorreus, os
cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus (Dt 7:1; Js. 3:10; 24:11).
Porém nem todos os povos de Canaã foram mortos durante a conquista.
Na verdade, Davi finalmente destruiu os jebuseus quando conquistou
Jerusalém e fez dela a Cidade de Davi (2Sm 5:6–7; 1Cr 11:4–8).

798
Refira-se a Êx. 6:1, 6; 13:3; Dt. 4:34; 5:15; 7:8; 9:26, 29; Sl. 77:15; 118:15; 136:12; Ez. 20:33.
799
A variante se deriva do texto da Septuaginta em Dt. 1:31. Veja-se a análise em Bengel, Gnomon of
the New Testament, vol. 2, pp. 622–25; Lake y Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 149.
Atos (Simon J. Kistemaker) 645
f. “[Deus] dividiu a terra em herança”. Paulo se refere ao
cumprimento da promessa que Deus fez a Abraão (Gn 15:18–21) de dar
a seus descendentes a terra pela aliança que fez com Ele. Séculos mais
tarde, quando a conquista foi completada, Josué repartiu a terra
prometida aos israelitas, tribo por tribo (Js. 14–21). A terra de Canaã
chegou a ser a sagrada herança de Israel, o povo de Deus.
g. “Tudo isto ocorreu em uns quatrocentos e cinquenta anos”. Paulo
se atreve a dar números redondos ao referir-se ao período que começa
quando Jacó e seus filhos chegaram ao Egito e termina quando os
israelitas receberam a herança em Canaã. Deus havia dito a Abraão que
seus descendentes seriam submetidos à opressão em terra estranha por
400 anos (Gn 15:13). Se a isso se acrescentam os 40 anos que os
israelitas passaram no deserto e os 10 da conquista de Canaã, o total vem
a ser de 450 anos.
No entanto, a leitura desta passagem (vv. 19b–20a) pode ser
interpretada em diferentes formas:
“Depois disso lhes deu juízes por uns quatrocentos e cinquenta
anos, até Samuel o profeta” [v. 20]. 800
“Deu-lhes a terra em herança, por uns quatrocentos e cinquenta
anos. E depois disso, deu-lhes juízes até Samuel o profeta.” [vv. 19b–
20a]. 801
No texto grego, não há parágrafos nem divisões; portanto, os
tradutores devem determinar onde termina um versículo e onde começa
o outro. Se escolhermos a primeira tradução, temos que contar o número
total de anos (410) que os juízes governaram Israel. Se acrescentarmos a
este número os 40 anos que governou o sacerdote Eli, chegamos ao total
de 450 anos. Mas 1 Reis 6:1 fala de 480 anos do êxodo até o quarto ano
do reinado de Salomão. Além disso, Josefo calcula o período do êxodo

800
Em inglês: NKJV e também KJV.
801
A RC diz: “Depois disto, por quase quatrocentos e cinqüenta anos, lhes deu juízes, até ao profeta
Samuel”. Em inglês, veja-se RSV, NASB, NAB.
Atos (Simon J. Kistemaker) 646
802
até a construção do templo em 592 anos. Em resumo, temos diante de
nós uma confusão de números. Fazemos bem em interpretar 450 como
um número redondo e aplicá-lo ao tempo que Israel permaneceu no
Egito, a viagem pelo deserto, e a conquista de Canaã. Portanto,
suspeitamos que Paulo começa a contar desde o tempo em que Israel
chegou a ser uma nação.
20b, 21. “Depois destas coisas, Deus lhes deu juízes até o tempo de
Samuel o profeta. Então eles pediram um rei, e Deus deu a Saul filho do
Quis, um homem da tribo de Benjamim, por quarenta anos” [trad.
Kistemaker].
Não obstante a desobediência de Israel, Deus continuou dando-lhes
guia espiritual (Jz. 2:16). Esta guia espiritual veio de seis juízes menores
(Sangar, Tola, Jair, Ibsã, Elom, e Abdom) e seis juízes (Otniel, Eúde,
Débora, Gideão, Jefté, e Sansão). Devido ao fato de que ele fez uma
aliança com eles, respeitou sua promessa de cuidá-los.
Paulo menciona Samuel pelo nome, mas o chama profeta. Para ser
preciso, Deus chamou Samuel para servi-Lo como sacerdote e profeta
(1Sm 2:35; 3:20), mas o comissionou para ser um profeta que serviu de
ponte entre o período transicional entre os juízes e os reis de Israel.
Samuel teve que prover liderança aos israelitas, os quais rejeitaram a
Deus como seu Rei e pediram um rei humano. 803 Deus disse a Samuel
que escutasse o que o povo queria pedir, mesmo quando os israelitas
violaram sua relação de aliança com Deus e pecaram.
Deus então escolheu a Saul, o filho de Quis, da tribo de Benjamim,
para ser rei de Israel. (Note-se a referência pessoal: o nome hebraico de
Paulo era Saulo, e a tribo de Benjamim, a que Paulo pertencia [veja-se
Rm 11:1; Fp 3:5]). Paulo diz que o rei Saul reinou por quarenta anos.
Não pelo Antigo Testamento mas por Josefo sabemos que Saul foi rei
por dezoito anos enquanto Samuel ainda vivia, e por vinte e dois anos

802
Josefo Antiguidades 8.3.1 [61]. Consulte-se Eugene H. Merrill, “Paul’s Use of ‘About 450 Years’
in Acts 13:20”, BS 138 (1981): 246–57.
803
Veja-se Dt. 17:14–17; 1Sm. 8:6–7; 10:19; 12:17, 19.
Atos (Simon J. Kistemaker) 647
804
depois da morte do profeta. Mas a informação relacionada com a
idade e a duração do reinado de Saul (1Sm 13:1) é incerta. John Albert
Bengel sugere que “os anos de Samuel, o profeta e Saul, o rei [sejam]
reunidos numa só quantidade: porque entre a unção de Saul como rei e
sua morte não houve mais de vinte, bem menos que quarenta anos: 1
Samuel 7:2”. 805
22. E, tendo tirado a este, levantou-lhes o rei Davi, do qual também,
dando testemunho, disse: Achei Davi, filho de Jessé, homem segundo o
meu coração, que fará toda a minha vontade
Quando Saul rejeitou as instruções de Deus e pôs-se a si mesmo
acima da lei, Deus o rejeitou. Samuel lhe disse: “Porque a rebelião é
como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como a idolatria e culto a
ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te
rejeitou a ti, para que não sejas rei.” [1Sm 15:23]
Saul perdeu sua coroa e a possibilidade de fundar uma dinastia.
Nenhum de seus filhos jamais ocuparia o trono. Deus dirigiu Samuel
para ir a Jessé em Belém e ungisse a Daniel rei de Israel (1Sm 16:1, 13),
o qual conduziu ao cumprimento da profecia de Jacó que o cetro não
seria tirado de Judá (Gn 49:10). 806 Não foi Saul, descendente de
Benjamim, e sim Davi, natural de Belém no território tribal de Judá, o
antepassado do Rei messiânico.
Mesmo quando Samuel e o salmista Etã ezraíta falaram com relação
a Davi, Paulo atribui estas palavras a Deus e diz que Ele testificou com
relação a Davi (1Sm 13:14; Sl. 89:20). Deus disse “Achei Davi, filho de
Jessé, homem segundo o meu coração, que fará toda a minha vontade”.
O verbo testificar significa que Deus falou favoravelmente de Davi. No
entanto, Davi pecou gravemente contra Deus e o homem quando
cometeu adultério com Bate-Seba, e fez com que seu marido, Urias,

804
Josefo Antiguidades 6.14.9 [378]. Mas em contraste, veja-se 10.8.4 [143], que afirma que Saul
reinou vinte anos.
805
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 628. E veja-se SB, vol. 2, p. 725.
806
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 367.
Atos (Simon J. Kistemaker) 648
fosse morto em batalha. Mas de todo coração Davi buscou perdão e
purificação (Sl. 51). Deus ouviu seu clamor, aceitou sua confissão, e o
restaurou. Davi demonstrou que estava disposto a obedecer as ordens de
Deus e que na verdade era um homem segundo o coração de Deus.

Considerações doutrinais em At 13:22


Cremos que a Bíblia é a Palavra de Deus, porque através dela, Deus
se revela a si mesmo e se comunica conosco. Sabemos que embora
autores humanos escreveram os livros do Antigo e do Novo Testamento,
suas palavras são na verdade a Palavra de Deus. Paulo nos diz que cada
palavra das Escrituras é inspirada por Deus (2Tm 3:16), e Pedro escreve
que os autores humanos falaram palavra de Deus e foram inspirados pelo
Espírito Santo (2Pe 1:21). Como resultado, podemos afirmar que as
Escrituras ensinam a doutrina da inspiração.
Como se referem os escritores do Novo Testamento ao Antigo?
Eles têm um grande respeito pelas Escrituras porque nesses livros eles
não ouvem a voz do homem mas a voz de Deus. Mesmo quando citam
passagens nos quais o homem é quem fala, atribuem aquelas palavras
não ao homem, mas a Deus.
O escritor da Epístola aos Hebreus atribui as palavras “Tu és meu
Filho, eu, hoje, te gerei” (Sl. 2:7) não ao salmista, mas a Deus (Hb 1:5).
Aquelas linhas do salmo de Davi “A meus irmãos declararei o teu nome;
cantar-te-ei louvores no meio da congregação” (Sl. 22:22), são palavras
de Jesus (Hb 2:12). E a advertência do salmista contra os incrédulos,
“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o coração …” (Sl. 95:7–11)
começa com a frase o Espírito Santo diz (Hb 3:7). O escritor de Hebreus
trata as palavras escritas pelos homens como sendo palavras
pronunciadas por Deus. 807
O que as Escrituras do Antigo Testamento transmitem não é a voz
do homem mas a voz de Deus. Por isso Paulo identifica as palavras das
807
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 974.
Atos (Simon J. Kistemaker) 649
Escrituras como a voz de Deus. Por exemplo, as palavras de irritação de
Sara ditas a Abraão a respeito de Agar: “Deita fora esta escrava” (Gn
21:10, TB) Paulo as atribui a Deus quando se refere ao papel
desempenhado por estas duas mulheres, Agar e Sara (Gl 4:30). De igual
maneira, atribui a Deus a condenação de Samuel a Saul, como se Deus
pessoalmente Se dirigisse ao rei (1Sm 13:14). Em conclusão, os
escritores do Novo Testamento demonstram que eles consideram as
Escrituras como divinamente inspiradas e revestidas de plena autoridade
devido ao fato de que o próprio Deus as pronunciou.

Deus escreve com pena


que nunca rabisca,
Fala com uma língua
que nunca erra,
Age com uma mão
que nunca falha.
— Charles H. Spurgeon

Palabras, frases y construcciones griegas en Hch 13:16–22


Versículo 16
οἱ φοβούμενοι — o particípio médio do presente articular é
dependente do pronome pessoal implicado ὑμεῖς (tu que teme a Deus).

Versículo 18
χρόνον — aqui está o acusativo de extensão de tempo: “por um
período de tempo”.
ἐτροποφόρησεν — este verbo (“suportou-os”) está respaldado por
um manuscrito igual àquele que diz ἐτροφοφόρησεν (cuidou deles). Esta
última forma aparece no texto de Deuteronômio 1:31 da Septuaginta. Os
tradutores aplicam a regra segundo a qual a mais difícil leitura, melhor.
Atos (Simon J. Kistemaker) 650
Quer dizer, ajustar-se ao texto da Septuaginta é mais fácil de explicar
que divergir dele. Portanto, é preferível a tradução os levantou. 808

Versículos 19–20a
κατεκληρονόμησεν — este verbo tem um significado causativo:
“[Deus] fê-los que herdassem”.
ἔτεσιν — embora o grego clássico usaria o caso acusativo
(acusativo de extensão), o grego koinê emprega o dativo de tempo para
expressar duração.

Versículo 22
μεταστήσας — do verbo μεθίστημι (eu removo) este particípio
ativo aoristo pode referir-se tanto ao ato de tirar Saul do trono como a
sua morte.
εἰς βασιλέα — esta construção é o acusativo do predicado que
significa “ser um rei para eles”.
πάντα τὰ θελήματά μου — o substantivo plural é usado como um
modismo e significa “tudo o que desejo”. 809

3. A Vinda de Jesus (At 13:23–25)

Depois de oferecer uma breve recontagem histórica das Escrituras


do Antigo Testamento, Paulo vai mostrar seu cumprimento em Jesus.
Está preparado para assinalar que Deus cumpriu a promessa da vinda do
Messias através de Jesus Cristo.

808
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), pp. 405–6. Refira-se também a R. Gordon, “Targumic
Parallels to Acts XIII 18 and Didache XIV 3”, NovT 16 (1974): 285–89.
809
La cláusula todo lo que deseo es una paráfrasis de “conforme a mi corazón” (véase 1 S. 13:14).
Consúltese F. F. Bruce, “Paul’s Use of the Old Testament in Acts”, en Tradition and Interpretation in
the New Testament, ed. por Gerald F. Hawthorne (Grand Rapids: Eerdmans; Tubinga: Mohr, 1987), p.
72.
Atos (Simon J. Kistemaker) 651
23. Da descendência deste, conforme a promessa, trouxe Deus a
Israel o Salvador, que é Jesus.
Façamos as seguintes observações:
a. “A descendência”. Jesus descendia da linha real de Davi, uma
verdade que Mateus mostra claramente na genealogia de Jesus (Mt 1:1–
17). Sem dúvida nenhuma, Jesus cumpriu as Escrituras que antecipavam
a linhagem real do Messias (Mq 5:2; Mt 2:5–6; Lc 2:4; Jo 7:42). Quando
o anjo Gabriel anunciou a Maria a concepção e o nascimento de Jesus,
disse-lhe que Deus daria a Jesus o trono real de Davi. Além disso, disse
que o reino de Jesus não teria fim (Lc 1:32–33; compare 2Sm 7:12–13;
22:51; 1Cr 17:11–14; Sl. 132:11–12). “O fundamental para as
genealogias de Mateus e Lucas é a convicção de que a linhagem de Jesus
é demonstravelmente davídica”. 810
b. A promessa. Deus prometeu ao povo de Israel que lhe daria um
salvador. Assim, Deus trouxe Jesus ao mundo para cumprir aquela
promessa feita a Seu povo. Algumas passagens no Antigo Testamento
indicam que Deus, sem lugar a dúvida, traria o Redentor, o Santo de
Israel, para estar com o Seu povo (Is 48:15–17). Para exemplificar sua
decisão, disse ao sumo sacerdote Josué e a outros sacerdotes: Eu farei vir
o meu servo, o Renovo” (Zc 3:8).
c. A função. Em Antioquia da Pisídia, Paulo informa à sua
audiência que o Salvador que Deus tinha prometido tinha vindo na
pessoa de Jesus. Seus ouvintes aplicaram a palavra salvador (libertador)
aos juízes que governavam Israel (p. ex. Jz. 3:9, 15); a Deus que a seu
tempo trouxe Seu povo do exílio (Is 45:15); e ao Messias que viria o
qual, segundo a opinião popular, libertaria Israel dos governos
estrangeiros. Mas Paulo proclama a Jesus como o Salvador que redime o
Seu povo das cadeias do pecado (veja-se Mt 1:21), o Único a quem Deus

810
Richard N. Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity, Studies in Biblical
Theology, 2ª. série, 17 (Londres: SCM, 1970), p. 110. Veja-se também Otto Glombitza, “Akta xiii.
15–41. Analyse einer Lukanischen Predigt vor Juden”, NTS 5 (1959): 306–17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 652
811
escolheu e preparou para salvar o Seu povo. Quando Paulo disse que
Jesus é o Salvador, está cancelando qualquer possibilidade de ver Jesus
como um libertador político.
24, 25. Antes da vinda de Jesus, João pregou um batismo de
arrependimento para todo o povo de Israel. Quando estava completando
sua carreira, João disse: ‘Quem vocês pensam que eu sou? Não sou quem
vocês pensam. Mas eis que vem depois de mim aquele cujas sandálias não
sou digno nem de desamarrar’ [NVI].
a. “Antes da vinda de Jesus, João pregou”. Aparentemente, o
Batista era conhecido entre os judeus e os piedosos na Palestina e na
dispersão. Pedro se refere a ele em seu sermão na casa de Cornélio;
discípulos de João Batista residiam em Éfeso (At 19:1–6); e neste
sermão, Paulo faz ver que João, o precursor de Jesus de Nazaré, pregou
uma mensagem de arrependimento e batismo. O Batista proclamou esta
mensagem a todo Israel: a fariseus e a saduceus, às multidões, aos
publicanos e aos soldados, e inclusive a Herodes Antipas (Mt 3:7–12; Lc
3:7–20).
Quando João pregou a mensagem de arrependimento e lhe coube
uma audiência receptiva, então realizou batismos. Seu batismo diferia do
lavamento dos judeus, porque um requisito para participar dele era
arrepender-se dos pecados. Josefo nos dá uma breve descrição do ponto
de vista de João Batista e diz que “tinha exortado aos judeus a viver
vidas retas, a praticar justiça para com seus compatriotas e piedade
diante de Deus, e então poderiam unir-se ao batismo. Desde sua
perspectiva, para o batismo ser aceitável a Deus, era necessário cumprir
esses requisitos preliminares”. 812
b. “Quando estava completando sua carreira”. Paulo dá a entender
que a obra de João era só temporal; com a chegada de Jesus terminou.
Mas durante seu breve ministério, ele teve que responder perguntas que

811
Johannes Schneider y Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, p. 219.
812
Josefo Antiguidades 18.5.2 [117].
Atos (Simon J. Kistemaker) 653
lhe fizeram sacerdotes e levitas quanto à pregação e batismos não
autorizados no rio Jordão.
Os mensageiros enviados pelo Sinédrio pediram que se
identificasse, ao que João lhes respondeu, dizendo: “Quem supondes que
sou eu?” Eles queriam saber se João era o Messias, Elias, ou o Profeta. A
todas essas perguntas, sua resposta foi negativa. Enfaticamente afirmou
que ele não era o Cristo. Tirando a atenção de si mesmo, disse que não
era digno nem sequer de desatar as sandálias dAquele que vinha depois
dele (veja-se Mc 1:7; Jo 1:27; o judeu usava a expressão aquele que vem
para referir-se ao Messias [cf. Mt 11:3]). João descreve o trabalho de um
escravo que tirava as sandálias e lavava os pés da pessoa que entrava na
casa de seu amo, e desta maneira torna claro que na presença de “aquele
que vem” ele nem sequer estava no nível de um escravo. Disse também
que Cristo devia crescer e ele mesmo devia diminuir em importância (Jo
3:30). Portanto, João identifica a pessoa da qual fala como Jesus e fez
saber que o Messias tinha vindo.
Paulo usa as bem conhecidas palavras de João Batista para
apresentar Jesus à sua audiência. E traz a notícia de que o anúncio de
João a respeito da chegada do Messias é verdade, porque o Messias veio
na pessoa de Cristo Jesus.

Palavras, frases e construções gregas em At 13:23–25


Versículos 23–24
τούτου — note-se a posição pouco usual deste pronome. Devido ao
fato de que encontra-se no começo da frase, denota ênfase.
προκηρύξαντος — com o nome Ἰωάννου no caso genitivo, este
particípio aoristo forma a construção genitiva absoluta. A preposição πρό
no particípio composto é temporal e descreve o tempo antes da vinda de
Jesus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 654
πρὸ προσώπου τῆς εἰσόδου — “antes do rosto de sua entrada”. Este
é um circunlóquio hebraico que significa “antes de sua vinda”. 813

Versículo 25
τί — o pronome pode ser relativo (“não sou o que vocês creem que
sou”); ou interrogativo (“O que supõem vocês que sou eu?”) Os
tradutores preferem a segunda forma. 814

4. A morte e a ressurreição (At 13:26–31)

Paulo segue o costume de dirigir-se a seus ouvintes da sinagoga


como “homens de Israel” e logo, na segunda parte de seu sermão, como
“irmãos”. Quando Pedro pregou seu sermão do Pentecostes e seu
discurso no Pórtico de Salomão usou a mesma fórmula (At 2:22, 29;
3:12, 17). Paulo sabe que sua audiência em Antioquia da Pisídia é
variada e, portanto, está falando tanto com judeus como a gentios.
26. Irmãos, descendência de Abraão, e os que entre vós temem a
Deus, a nós foi enviada a palavra desta salvação.
a. “Irmãos”. O tom de voz de Paulo é confiante porque está se
dirigindo a compatriotas judeus. Entre os judeus sente-se como em casa
e em seu desejo de dar-lhes a conhecer Jesus Cristo, chama-lhes
“irmãos”. Usa um clichê bastante aceito entre os judeus e sua intenção
não é de deixar fora as mulheres. Sabemos que numerosas e
proeminentes damas gentias temerosas de Deus assistiam aos cultos de
adoração na sinagoga (v. 50).
b. “Descendência de Abraão”. Os judeus na audiência reclamavam
a Abraão como seu antepassado físico. Embora na verdade Paulo não
esteja falando de uma relação natural mas de uma filiação espiritual. Ao

813
Robertson, Grammar, p. 94.
814
Consulte-se Metzger, Textual Commentary, p. 408; C. F. D. Moule, Idiom-Book of New Testament
Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1960), p. 124.
Atos (Simon J. Kistemaker) 655
pôr a conexão com Abraão num nível espiritual, ele pode incluir esses
crentes que não são de ascendência judaica.
c. “Os que entre vós temem a Deu”. Estes são os gentios que foram
evangelizados pela comunidade judaica local. Eles foram à sinagoga
para obter instrução nas Escrituras, porém não consentiram em
submeter-se ao rito da circuncisão. Sua rejeição os mantém na condição
de não conversos; em vez disso, são chamados “tementes a Deus” (veja-
se v. 16; At 10:2, 35). 815
d. “A nós foi enviada a palavra desta salvação”. O que une aos
judeus e gentios piedosos numa comunhão é uma busca da salvação que
Deus prometeu em Sua palavra. Porque Deus deu a Abraão a promessa
que devia tornar-se eficaz em toda sua descendência espiritual é que
Paulo pode dizer “a nós”. Portanto, Paulo se inclui entre os receptores da
mensagem da salvação que Deus mandou do céu. Qual é esta
mensagem? Dito de maneira mais simples, é o cumprimento da promessa
de Deus em Seu Filho Jesus. Deus provê salvação através do um e único
Salvador, Cristo Jesus, aos judeus e gentios crentes (compare vv. 16, 23).
27. O povo de Jerusalém e seus governantes não reconheceram
Jesus, mas, ao condená-lo, cumpriram as palavras dos profetas, que são
lidas todos os sábados [NVI].
Paulo é um dos primeiros em admitir que ele foi parte da classe
dominante de Jerusalém e que desde essa posição se opôs fortemente a
mensagem de salvação. Perseguia os crentes em Jerusalém e na Judeia.
Até foi mandado a Damasco para prender os cristãos ali e lhes mandar às
autoridades de Jerusalém como prisioneiros (At 9:2). No entanto, Paulo
converteu-se no em caminho para Damasco, foi chamado por Jesus para
ser um apóstolo aos gentios, e agora proclama o evangelho de salvação
tanto a judeus como a gentios de Antioquia da Pisídia.
a. “O povo de Jerusalém e seus governantes”. Paulo enfrenta a
dificuldade de dirigir-se a uma audiência que considera Jerusalém como
815
Compare Max Wilcox, “The ‘God-Fearers’ in Acts-A Reconsideration”, JSNT 13 (1981): 102–22;
Hemer, Book of Acts, p. 183.
Atos (Simon J. Kistemaker) 656
a sede oficial da fé judaica e, portanto, honra os dirigentes religiosos
dessa cidade. Tem que guiar os seus ouvintes da posição que ele mesmo
ocupou quando esteve relacionado com o sumo sacerdote em Jerusalém
e ainda levá-los à posição de liberdade que agora tem em Cristo. Os
habitantes de Jerusalém foram os primeiros em rejeitar a Jesus e Sua
mensagem, influenciados por seus dirigentes religiosos, que
pressionaram a multidão a condenar a Jesus.
b. “[Eles] não reconheceram Jesus [O condenaram]”. Como poderá
Paulo levar sua audiência a aceitar o fato de que Jesus é o Salvador?
Primeiro, faz notar que o povo de Jerusalém agiu por ignorância quando
rejeitaram a Cristo. Tanto Pedro como ele dão testemunho desta verdade
(At 3:17; 1Tm. 1:13; veja-se também Lc 23:34; Jo 16:3). O povo judeu
não sabia o que estava fazendo. Ao contrário, nem o povo de Jerusalém
nem os dirigentes religiosos poderiam fugir da responsabilidade; se eles
não tivessem levado Jesus diante de Pilatos, o governo romano nunca o
teria matado. 816 Pedro em seus sermões e discursos pronunciados em
Jerusalém também responsabilizou os judeus pela morte de Jesus,
quando disse que eles O tinham matado (At 2:23, 36; 3:14–15; 4:10).
Além disso, as Escrituras por si mesmas são suficientemente claras.
c. “Cumpriram as palavras dos profetas, que são lidas todos os
sábados”. As Escrituras eram lidas nas sinagogas por todo Israel e na
dispersão. Nenhum judeu devoto podia dizer que era ignorante a respeito
das palavras dos profetas. Parte da liturgia de cada serviço de adoração
no sábado era ler da Lei e os Profetas (v. 15; At 15:21), por tal razão isto
lhes era muito conhecido. Os profetas predisseram que o Messias devia
sofrer, morrer e mesmo assim ser o Salvador de Seu povo (veja-se Is
52:13–53:12). Sobre a base da mensagem profética, então, Jesus poderia
ser seu salvador que teve uma morte vergonhosa como seu substituto.
Paulo dá a entender que ao condenar a Jesus, os judeus em Jerusalém

816
R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p. 528.
Atos (Simon J. Kistemaker) 657
cumpriram as palavras que os profetas tinham falado a respeito do
Messias.
28, 29. E, embora não achassem nenhuma causa de morte, pediram a
Pilatos que ele fosse morto. Depois de cumprirem tudo o que a respeito
dele estava escrito, tirando-o do madeiro, puseram-no em um túmulo.
Ao pedir a Pôncio Pilatos que crucificasse a Jesus de Nazaré, os
judeus em Jerusalém deram cumprimento às Escrituras do Antigo
Testamento. Como diz Leão Morris: “Todo o panorama que se vai
desdobrando é um cumprimento do que Deus tinha posto em ação”. 817
De qualquer maneira, Deus mantém os judeus sob culpabilidade por ter
condenado à morte um inocente. Embora tenham procurado encontrar
uma acusação que justificasse a execução de Jesus, não a puderam achar.
Daí que Pilatos, vez após vez, declarou que não encontrava base alguma
para mandar Jesus à morte. 818
Falando numa colônia romana como era Antioquia da Pisídia, Paulo
põe a responsabilidade da morte de Jesus não sobre os romanos mas
sobre os judeus. Intencionalmente assinala que os membros do Sinédrio,
a corte suprema de Israel, tinham ido contra suas próprias leis ao
condenar Jesus e pedir a Pilatos a pena de morte para Ele. Paulo,
entretanto, faz diferença entre os judeus que lhe escutam e os judeus de
Jerusalém, sugerindo que estes devem denunciar a ação tomada pelo
Sinédrio e não se identificar com aqueles judeus que rejeitam a Jesus e
Sua mensagem. Num sentido, Paulo está arriscando tudo por seus
ouvintes, que talvez poderiam optar por manter sua fidelidade aos
dirigentes religiosos de Jerusalém.
Paulo assinala que “[os judeus] realizaram tudo o que tinha sido
escrito a respeito de [Jesus]”. De novo chama a atenção às Escrituras que
revelam o cumprimento da profecia a respeito de Jesus Cristo. Diz que a
morte de Jesus foi ordenada divinamente (At 2:23). Ensina que Jesus

817
Leon Morris, New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p.
175.
818
Mt. 27:23; Lc. 23:4, 14, 22; Jo. 18:38; 19:4, 6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 658
veio para cumprir as Escrituras que falam da vinda, sofrimentos, morte e
sepultura do Messias (cf. Lc 18:31). E ao referir-se duas vezes às
Escrituras (vv. 27, 29), Paulo procura convencer sua audiência que Jesus
de Nazaré é, sem dúvida alguma, o Messias.
Quando diz que eles baixaram [a Jesus] “do madeiro” e puseram
seu corpo num túmulo, não está dizendo que foram as autoridades
judaicas que fizeram isso. Em lugar disso, ele está sugerindo que os
amigos de Jesus pediram a Pilatos a permissão correspondente para
baixar o corpo da cruz e colocá-lo numa tumba (Mt 27:57–60; Jo 19:38–
39). Estes amigos de Jesus, Nicodemos e José de Arimateia eram
membros do Sinédrio e dirigentes religiosos em Jerusalém. Paulo está
certo, então, quando afirma que eles baixaram o corpo da cruz.
Imaginamos que a audiência conhecia os detalhes históricos da morte e
sepultura de Jesus. No original, Paulo usa a palavra árvore para referir-se
à cruz (veja-se 5:30). Para os judeus, este termo refere-se à maldição de
Deus sobre todo aquele que fosse morto e posto num madeiro (Dt 21:23;
Gl 3:13).
Como podia uma pessoa maldita por Deus ser colocada numa
tumba nova e assim, como Isaías o profetizou, estar com os ricos em sua
morte (Is 53:9)? Os judeus tiveram que reconhecer que a mão de Deus
estava na sepultura de Jesus. Tiveram que ver que se Deus fez Jesus
descer até o ponto mais baixo da humilhação (sepultura), Ele tiraria
também a maldição e O exaltaria ao ressuscitá-Lo da morte.
30, 31. Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos; e foi visto muitos
dias pelos que, com ele, subiram da Galiléia para Jerusalém, os quais são
agora as suas testemunhas perante o povo.
Notemos os seguintes pontos:
a. A ressurreição. Os judeus pediram a Pilatos que assegurasse a
tumba de Jesus para que Seus discípulos não viessem a levar o corpo.
Então a tumba foi selada e se colocou diante dela uma guarda especial.
Robert Lowry o diz em seu poema:
Atos (Simon J. Kistemaker) 659
De guardas escapou, Cristo, meu Cristo.
O selo destruiu, Cristo o Senhor.
Cristo a tumba venceu,
E com grande poder ressuscitou;
De sepulcro e morte Cristo é vencedor,
Vive para sempre nosso Salvador.
Glória a Deus! Glória a Deus!
O Senhor ressuscitou.

Embora os judeus tenham difundido a mentira de que os discípulos


de Jesus haviam roubado o corpo durante a noite, a evidência prova o
contrário. Deus ressuscitou Jesus da morte, algo que nenhuma força
humana podia prevenir (veja-se At 3:15). Além disso, depois de Sua
ressurreição, Jesus apareceu fisicamente a numerosas pessoas.
b. Suas aparições. Paulo faz uma observação geral a respeito do
tempo durante o qual Jesus apareceu, pelos que foi visto e onde tiveram
lugar as aparições. Diz que Jesus apareceu “por muitos dias”. Lucas diz
que o tempo que transcorreu entre a ressurreição de Jesus e Sua ascensão
foi de quarenta dias (At 1:3). Contando as aparições mencionadas nos
Evangelhos, Atos e as Epístolas (excluindo as referências paralelas)
temos um total de dez. 819 Numa ocasião, foi visto por mais de quinhentas
pessoas. Moisés disse que o testemunho de duas ou três testemunhas era
suficiente para estabelecer um caso (Dt 19:15), mas uma multidão de
testemunhas oculares testificou da ressurreição de Jesus. Paulo
acrescenta que estes observadores eram as pessoas que viajavam com
Jesus da Galileia a Jerusalém. Está-se referindo aos doze apóstolos (At
1:21–22). Eles tinham recebido as correspondentes instruções e agora
são Seus embaixadores. Talvez por questão de modéstia, Paulo não dá
referência alguma a seu próprio encontro com Jesus no caminho para
Damasco e guarda silêncio quanto a apresentar-se a si mesmo como o

819
Mt 28:1–10, 16–20; Mc 16:9–11; Lc 24:13–49; Jo 20:19–25; 26–31; 21:1–23; At 1:3–8; 1 Cor.
15:5–7.
Atos (Simon J. Kistemaker) 660
apóstolo aos gentios. De qualquer maneira, no versículo seguinte (v. 32),
declara que Barnabé e ele são mensageiros do evangelho de Cristo.
c. As testemunhas. As pessoas a quem apareceu são agora
testemunhas de Jesus. Pelo fato de tê-Lo visto, podem testificar da
verdade da ressurreição (cf. 1Jo 1:1–3). Por implicação, Paulo diz que
estas testemunhas proclamaram abertamente a doutrina apostólica (At
2:42) na cidade de Jerusalém. E depois da perseguição que seguiu por
ocasião da morte de Estêvão, eles, com numerosos outros crentes,
difundiram as Boas Novas aos judeus que viviam na dispersão. Como
todo olho pode ver e todo ouvido pode ouvir, Paulo e Barnabé estão em
Antioquia da Pisídia para proclamar a mensagem de salvação.

Considerações doutrinais em At 13:29


A cruz é o símbolo universal do cristianismo, porque representa a
morte de Jesus Cristo fora das muralhas de Jerusalém. Ao simbolizar a
morte de Cristo, a cruz é um emblema de segurança para cada crente. No
entanto, nos dias de Paulo fez-se um obstáculo para os judeus, os quais
não puderam identificar a cruz com o Messias. Para tais pessoas, o
Messias devia ser um triunfador, e a cruz significava morte. O judeu não
podia aceitar o ensino apostólico de que o Messias devia morrer numa
cruz, e assim ficar sob a maldição de Deus (Dt 21:23). Para os gentios do
primeiro século, a cruz era loucura. Sabiam que os únicos que eram
crucificados eram os políticos rebeldes e os escravos (1Co 1:23). Para
eles, Cristo era um criminoso.
Quando os missionários proclamaram a mensagem da cruz, tiveram
que enfrentar uma audiência com uma tremenda dificuldade para aceitar
o evangelho. Era necessário convencer o judeu e o gentio que Jesus tinha
morrido na cruz por seus pecados, sofrido a ira de Deus em seu lugar,
tirado a maldição que pesava sobre eles, provido vida eterna para todo
crente, restaurado a relação entre Deus e Seu povo, e aberto o caminho
ao céu. Em resumo, Jesus pagou a dívida de pecado ao morrer na cruz.
Atos (Simon J. Kistemaker) 661
Por todas estas razões, a cruz de Cristo é um símbolo precioso ao
cristão que, prazeroso, canta:
Foi na cruz, foi na cruz
Onde primeiro vi a luz,
E as manchas de minha alma eu lavei
Foi ali por fé onde vi a Jesus
E sempre com Ele feliz serei.
— Ralph E. Hudson

Palavras, frases e construções gregas em At 13:26–31


Versículo 26
ἡμῖν — embora alguns manuscritos tenham o pronome plural da
segunda pessoa ὑμῖν, o contexto indica a primeira pessoa plural.
ἐξαπεστάλη — o verbo composto ἀποστέλλω (eu envio) com a
preposição ἐκ (a) é diretor; quer dizer, a mensagem de salvação não se
originou entre os homens em Jerusalém mas veio de Deus. A voz passiva
no tempo aoristo implica que Deus é o agente.

Versículo 27
κατοικοῦντες — o gerúndio composto de κατά (sob) e o verbo
σἰκέω (eu habito) denota permanência, em contraste com as pessoas que
são residentes temporais (παροικοῦντες; cf. At 7:6, 29).
τοῦτον — este pronome refere-se tanto a ὁ λόγος (a mensagem, v.
26) como a Jesus. À vista do contexto, no qual dois particípios ativos
aoristos tomam este pronome como seu objeto direto, os tradutores
entendem que se refere a Jesus. Os particípios são ἀγνοήσαντες (estar
ignorante) com uma conotação causal, “porque eles não o
reconheceram”, e κρίναντες (julgando) com um sentido de modo
“condenando-o”.
κατά — o contexto demanda o uso distributivo desta preposição:
“cada sábado”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 662
Versículo 28
θανάτου — o genitivo é objetivo e parece-se ao dativo: “para
morte”.
εὑρόντες — o particípio ativo aoristo do verbo εὑρίσκω (eu
encontro) é concessivo: “embora não encontraram uma causa …”

Versículos 30–31
ὁ δὲ θεὸς — note-se a força adversativa da partícula δέ para indicar
uma mudança de sujeito. Paulo põe Deus contra os judeus.
ἐπί — a preposição cumpre a ideia de acusativo de tempo: “por
muitos dias”. 820
οἵτινες — o pronome relativo indefinido não é causal mas enfático.
É o equivalente de ὅσπερ (no plural) e significa “estas pessoas são agora
testemunhas”.

5. As boas novas de Jesus (At 13:32–41)

Como Pedro em seus sermões do Pentecostes e o Pórtico de


Salomão, Paulo respalda o suas com citações do Antigo Testamento.
Recorre ao Saltério e aos profetas para dar força a suas palavras. Depois
de fazer um percurso pela vida, morte e ressurreição de Jesus, espera que
seus ouvintes perguntem por que Deus permitiu que o Messias sofresse e
morresse. Talvez perguntem sobre o significado da ressurreição.
Portanto, fala-lhes a respeito do significado das boas novas de salvação
em Cristo.

a. Salmo 2:7
32, 33. Nós vos anunciamos o evangelho da promessa feita a nossos
pais, como Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a

820
Robertson, Grammar, p. 602.
Atos (Simon J. Kistemaker) 663
Jesus, como também está escrito no Salmo segundo: Tu és meu Filho, eu,
hoje, te gerei.
Paulo se identifica pessoalmente com o relato ao usar o pronome
nós para referir-se a Barnabé e a si mesmo. Sem uma introdução, ele
afirma que eles são testemunhas de Jesus Cristo e proclamam Seu
evangelho. Os judeus e os gentios piedosos estão recebendo em primeira
mão o relatório dos mensageiros dos mensageiros que foram enviados
pelo próprio Deus. No grego, os pronomes neste versículo querem dizer:
“nós mesmos proclamamos estas boas novas a vocês”. Está implícita a
ideia de que Paulo e Barnabé querem que seus ouvintes agarrem para si
as riquezas das Boas Novas.
Quais são as boas novas que trazem? São extraídas das Escrituras
do Antigo Testamento. São as boas novas que Deus, muito tempo atrás,
proclamou aos antepassados espirituais e que se estariam cumprindo com
o tempo. Os profetas anunciaram a mensagem de Deus de paz e
salvação, da vinda do Messias e Seu reino (Is 40:9; 52:7). A promessa a
que Paulo faz referência inclui todas as profecias messiânicas nas
Escrituras, até aquelas que falam da ressurreição.
Antes que Paulo volte à Palavra escrita, afirma sem lugar a dúvida
que Deus cumpriu Sua promessa messiânica feita aos descendentes dos
antepassados espirituais. É isso que quer dizer a frase a … seus filhos?
Em Antioquia da Pisídia Paulo está-se dirigindo à uma audiência
formada por judeus, conversos e gentios piedosos. A todos eles os inclui
como herdeiros espirituais dos patriarcas e para ser mais enfático ainda,
diz: “Deus cumpriu esta promessa … a nós”.
Algumas versões da Bíblia dizem a nossos filhos e para isso se
baseiam nos melhores manuscritos gregos. Mas se o pronome nossos
refere-se a Paulo e a Barnabé, é incongruente com o contexto e tem que
ser excluído. Umas poucas evidências no grego dizem eles (“a seus
filhos”). Mas mesmo se esta forma carecer de um forte respaldo nos
Atos (Simon J. Kistemaker) 664
manuscritos e é ainda um tanto difícil na sequência a nós, seus filhos, de
qualquer maneira é preferível. 821
Paulo volta ao salmo segundo como sua primeira citação. É
importante porque este salmo era parte da liturgia dos cultos de adoração
na sinagoga e o povo tinha aprendido de cor as palavras. Ao citar um
salmo tão conhecido como aquele, Paulo capta imediatamente a reação
de seus ouvintes. Além disso, sabemos que os judeus do século I
interpretavam messianicamente certas passagens bem conhecidas (2Sm.
7:14; Sl. 2:7). 822 Pelo salmo segundo eles sabiam que Deus enviou Seu
Filho ao mundo. Paulo diz: “Ele ressuscitou a Jesus”. O verbo
ressuscitar quando é usado num sentido geral quer dizer “levantar”. No
desenvolvimento de seu sermão, Paulo já mencionou que Deus tinha
levantado Jesus da família real de Davi (veja-se v. 23).
A fim de ser repetitivo, o apóstolo cita agora Salmo 2:7, onde Deus
diz a seu Filho: “Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei”. Entre os cristãos
dessa era, esta citação aplicava-se inquestionavelmente a Jesus, o Filho
de Deus (veja-se, p. ex., Hb 1:5; 5:5). Deus levantou Seu Filho com o
propósito de redimir o mundo pecador. Portanto, na citação deste salmo
está compreendida toda a missão terrestre de Jesus, incluindo Seu
nascimento, morte e ressurreição. Por certo, a própria citação não fala
especificamente da ressurreição da morte do Filho, mas fala da
entronização do Filho e, nos versículos seguintes, de Seu governo
universal sobre as nações. Pelo Novo Testamento nós sabemos que
depois de Sua ressurreição e antes de Sua ascensão Cristo falou de Sua
entronização, quando disse: “Toda autoridade me foi dada no céu e na
terra” (Mt 28:18).
No Salmo 2, o salmista nos apresenta a figura de um filho subindo
ao trono real de seu pai, quem o instala como rei dizendo: “Tu és meu

821
Consulte-se Metzger, Textual Commentary, pp. 410–11.
822
SB, vol. 3, pp. 675–77; Longenecker, Christology of Early Jewish Christianity, pp. 80, 95; Simon
J. Kistemaker, The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews (Amsterdam: Van Soest, 1961), p.
17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 665
Filho, eu, hoje, te gerei” (v. 7). O salmo é um hino de coroação e a
citação em questão é um decreto de tomada do trono. As palavras usadas
indicam ao leitor que o Rei é o próprio Deus, quem designa um rei
davídico para o ofício real. Mas também estão dizendo que este filho real
de Davi é Jesus Cristo, o Messias.
Com a menção deste salmo, Paulo ensina que Deus levantou Jesus
para Sua missão messiânica. Supomos que quando Paulo em seu
primeiro sermão refere-se aos fatos a respeito da ressurreição de Jesus, a
audiência quis provas do Antigo Testamento. Queriam saber se as
Escrituras predizem que Deus ressuscitaria Jesus da morte. Eles agora
aceitam a referência messiânica ao salmo segundo e creem no relatório
verbal de que Jesus apareceu fisicamente a numerosas testemunhas. Mas
querem escutar mais provas que a ressurreição foi prenunciada nas
profecias messiânicas. Portanto, Paulo de novo volta às Escrituras.

b. Isaías 55:3
34. E, que Deus o ressuscitou dentre os mortos para que jamais
voltasse à corrupção, desta maneira o disse: E cumprirei a vosso favor as
santas e fiéis promessas feitas a Davi.
Paulo é específico e agora assinala que Deus é o agente em levantar
Cristo da morte. A ressurreição de Jesus é a base da fé cristã e esta
verdade fundamental foi proclamada desde os dias do Pentecostes. Pedro
a fez o centro de todos os seus sermões e discursos e Paulo pregou a
doutrina da ressurreição de Cristo tanto a judeus como a gentios. Em
Antioquia da Pisídia, Paulo retoma a profecia de Isaías, a qual
implicitamente afirma que Deus manteve Sua fidelidade à Sua aliança
eterna com Davi, cuja família real teria que terminar no Messias, o Rei
eterno. Se Jesus é o Messias como as Escrituras claramente o mostram,
então a morte não tem poder sobre Ele porque Deus O levantou dentre os
mortos. 823

823
Veja-se D. Goldsmith, “Acts 13:33–37: A Pesher on 2 Samuel 7”, JBL 87 (1968): 321–24.
Atos (Simon J. Kistemaker) 666
Antes que Paulo citasse a profecia de Isaías, ele declara que o corpo
de Cristo nunca veria corrupção. Num sentido, Paulo oferece à sua
audiência uma introdução preliminar a um assunto que explicará com
sua terceira citação do Antigo Testamento. No momento, ele quer
comunicar o pensamento que, embora Jesus tenha morrido na cruz,
Cristo Se levantou, e Seu corpo nunca verá corrupção. Em outro lugar,
escreve: “Sabemos que porque Cristo foi ressuscitado dentre os mortos,
nunca voltará a morrer; a morte não terá mais poder sobre ele” (Rm 6:9).
Cristo tem um corpo glorificado e vive para sempre.
Em consonância com este pensamento, Paulo cita uma passagem da
tradução do grego de Isaías 55:3, onde Deus diz a Israel: “Cumprirei a
vosso favor as santas e fiéis promessas feitas a Davi”. O texto do Antigo
Testamento difere grandemente no hebraico, quando diz: “Farei contigo
uma aliança eterna, meu amor inesgotável a Davi”. As diferenças na
tradução não nos devem deter neste ponto. Antes, olhamos à fraseologia
que Paulo usa ao fazer esta citação e nos perguntamos o que quer
comunicar Paulo com esta passagem em particular. Em primeira
instância admitimos que a passagem não tem nada em comum com a
doutrina da ressurreição de Cristo, porque o contexto refere-se a Davi.
No entanto, a referência a Davi que faz Isaías é mais que suficiente para
que Paulo mostre que “as santas e seguras bênçãos” de Deus não se
esgotavam depois da morte de Davi. Quando Paulo diz que Deus dará a
seu povo “as santas e seguras bênçãos de Davi” não está usando o texto
para provar que Cristo ressuscitou dos mortos. Em lugar disso, está
enfatizando os benefícios que emanam da ressurreição de Jesus. 824
O grego nesta citação está incompleto. Uma versão literal diria:
“Dar-te-ei as [coisas] santas, as [coisas] seguras de Davi”. Os tradutores
tomam os adjetivos santas e seguras como modificadores do substantivo
bênçãos. Se observarmos a citação do Antigo Testamento (Sl. 16:10) no
versículo seguinte (v. 35), vemos a frase teu Santo, que claramente se

824
Jacques Dupont, “TA OSIA DAVID TA PISTA (Ac XIII 34 = Is LV 3),” RB 68 (1961): 91–114.
Atos (Simon J. Kistemaker) 667
refere a Cristo. As santas e seguras bênçãos pertencem ao santo
descendente de Davi, quer dizer, a Jesus Cristo. Como faz Cristo que
estas bênçãos alcancem o Seu povo? Lava-os de seus pecados e os
santifica. “Tanto o que santifica quanto os que são santificados provêm
de um só” (Hb 2:11, NVI). Na verdade, através de Jesus Cristo Deus
nunca deixa de cumprir Suas promessas ao Seu povo. Definitivamente,
então, Deus levantou Cristo da morte para oferecer Suas santas e seguras
bênçãos aos crentes.

c. Salmo 16:10
35. Por isso, também diz em outro Salmo: Não permitirás que o teu
Santo veja corrupção.
Paulo começa com a frase por isso. No estilo judaico de interpretar
o Antigo Testamento, Paulo busca uma palavra chave, que neste caso é o
termo santo, e logo então acrescenta as duas citações uma ao lado da
outra. Esta citação, que é mais importante que a primeira, é dependente
da anterior, por esta razão diz: “Por isso”. Paulo aplica aqui a regra
exegética de analogia: explicar uma palavra obscura através de um texto
análogo que tenha a mesma palavra mas que seja claro. 825 Por isso, o
significado da expressão Santo em Salmo 16:10 serve para esclarecer a
frase santas (coisas) de Isaías 55:3 da tradução grega. As duas citações
estão intimamente conectadas porque juntas apresentam a mensagem que
o Santo, que nunca voltará a experimentar a morte nem a corrupção, porá
à disposição de Seu povo Suas santas e seguras bênçãos. Jesus Cristo é o
Santo, a quem Deus levantou da morte. Em resumo, Ele é o Messias.
A importância messiânica do Salmo 16 era bem conhecida entre os
cristãos; Pedro em seu sermão do Pentecostes (At 2:27, 31) cita a mesma
passagem escolhida por Paulo. Os cristãos usavam o texto para provar
que Cristo tinha ressuscitado e que em Seu estado de glorificação nunca
mais voltaria a experimentar a morte nem a corrupção. Deus O tinha

825
Longenecker, Acts, p. 426; Kistemaker, Psalms Citations, p. 62.
Atos (Simon J. Kistemaker) 668
levantado da morte e não permitiu que a corrupção tomasse posse
permanente de Seu Filho, o Santo. Esta citação, originalmente aplicada a
Davi, cumpriu-se no Messias.
36, 37. Na verdade, tendo Davi no seu tempo servido ao conselho de
Deus, adormeceu e foi reunido a seus pais e experimentou corrupção;
porém aquele que Deus ressuscitou dentre os mortos, não experimentou
corrupção [TB].
a. “Davi … adormeceu”. É interessante que a apresentação da prova
bíblica de Paulo coincide com a de Pedro (veja-se At 2:29–35). Esta
coincidência não é tão surpreendente se levarmos em conta o desejo de
Paulo, expresso depois de sua primeira viagem missionária, de comparar
o evangelho que ele pregava com aquele que pregavam os apóstolos em
Jerusalém (Gl 2:2). Esta é evidência de que Paulo prega o mesmo
evangelho que proclamou Pedro no Pentecostes.
A diferença entre as apresentações de Pedro e Paulo é só questão de
ênfase. Pedro enfatiza a tumba de Davi como evidência da morte e
sepultura do rei, mas Paulo acrescenta que o ministério de Davi esteve
limitado a seu tempo. Diz: “Tendo Davi no seu tempo servido ao
conselho de Deus”. Tudo que Davi levou a cabo em harmonia com o
plano de Deus terminou quando a morte o tirou do cenário desta vida.
Por implicação, está sendo afirmado que o ministério de Jesus é para
sempre.
Como interpretamos o versículo 36? Pode ler-se de duas maneiras:
“[Davi] serviu aos propósitos de Deus em sua própria geração”, 826 ou
“[Davi] serviu a sua própria geração”. 827 Se usarmos o princípio de
interpretar uma passagem com a ajuda de uma paralela, voltamos ao
versículo 22 e lemos que Deus diz: “[Davi] fará o que eu desejo”. O
objeto direto deste versículo é o desejo de Deus, quer dizer, o propósito

826
Veja-se em inglês NASB, RSV, NEB, SEB entre outras.
827
Para outras traduções deste versículo, veja-se Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A
Commentary, trad. por Bernard Noble y Gerald Shinn (Filadelfia: Westminster, 1971), p. 412.
Atos (Simon J. Kistemaker) 669
de Deus. Por essa razão, tradutores e intérpretes favorecem a forma,
“Serviu aos propósitos de Deus em sua própria geração”.
b. “Foi reunido a seus pais e experimentou corrupção”. O
eufemismo adormeceu era de uso comum entre os cristãos primitivos.
Por exemplo, Estêvão “adormeceu” quando as pedras lançadas contra ele
puseram fim à sua vida terrestre (At 7:60). Paulo se refere aos restos de
Davi que descansavam em paz numa tumba em Jerusalém. Apesar da
perícia dos embalsamadores, seu corpo esteve sujeito à corrupção
enquanto esperava o dia da ressurreição.
c. “Porém aquele que Deus ressuscitou dentre os mortos, não
experimentou corrupção”. Jesus também foi sepultado numa tumba fora
dos muros de Jerusalém. E embora Seu corpo maltratado estaria exposto
à ação da decomposição ao permanecer na tumba desde sexta-feira à
tarde até domingo de manhã, Deus não permitiu a corrupção permanente.
Em seu lugar, Deus O livrou do poder da morte e da tumba (At 2:24;
3:15) e Lhe deu poder sobre elas (Ap 1:18). Jesus Cristo é vitorioso e
como descendente da linha real de Davi, vive eternamente. Ao contrário,
Davi morreu na cidade de Jerusalém, foi sepultado junto a seus
antepassados, e espera a ressurreição geral da morte tendo sido afetado
pela deterioração natural da matéria. Não foi Davi, o escritor de Salmo
16:10, mas Jesus Cristo, o Messias, quem cumpriu a palavra profética.
38, 39. Portanto, meus irmãos, quero que saibam que mediante Jesus
lhes é proclamado o perdão dos pecados. Por meio dele, todo aquele que
crê é justificado de todas as coisas das quais não podiam ser justificados
pela Lei de Moisés [NVI].
Consideremos os seguintes pontos:
a. Perdão. Paulo chega à conclusão de seu sermão. Faz referência a
um assunto que toca o coração de cada um de seus ouvintes: «Como
posso obter o perdão de meus pecados?» Os judeus e os gentios piedosos
deviam aderir às leis cerimoniais e morais do Antigo Testamento para
alcançar alívio espiritual da pressão ocasionada pela carga do pecado.
Agora, Paulo chega e ensina que seus esforços por satisfazer as
Atos (Simon J. Kistemaker) 670
demandas da lei nunca os livrarão da carga do pecado. Ao proclamar as
boas novas de Jesus Cristo, diz-lhes que Jesus perdoa os pecados. Esta é
a mensagem que os apóstolos pregam tanto aos judeus como aos
gentios. 828
No grego, Paulo apresenta estas notícias primeiro com uma
importante afirmação “Portanto, … saibam” (veja-se At 4:10; 28:28), e
logo, de uma forma mais conhecida homens e irmãos [AV]. A afirmação
na verdade significa que está prestes a proclamar algo de excepcional
importância. Além disso, a forma dupla de dirigir-se a eles significa que
ele e seus ouvintes estão no mesmo nível quanto a encontrar a remissão
de seus pecados.
“Mediante Jesus lhes é proclamado o perdão dos pecados”. Paulo
lembra à sua audiência João Batista, quem pregou “um batismo de
arrependimento pelo perdão dos pecados” (Mc 1:4). Os judeus sabiam
que mediante o arrependimento eles receberiam perdão e salvação. A
audiência de Pedro no Pentecostes perguntou-lhe: “Que faremos?” Pedro
lhes disse que se arrependessem e fossem batizados no nome de Jesus
para remissão de pecados (At 2:37–38). Tanto Pedro como Paulo
proclamam a mesma mensagem: o homem encontra perdão de seus
pecados só através de Jesus Cristo! João Batista foi o precursor de Jesus
Cristo e não pôde fazer mais que exortar as pessoas a se arrependerem e
serem batizadas. Mas o ressuscitado Senhor e Salvador tem o poder de
perdoar os pecados a todo o que vier a Ele em arrependimento e fé.
b. Fé. Paulo apresenta a oferta da salvação a toda pessoa que creia
em Jesus. Não faz distinção entre judeus e gentios porque Deus justifica
a quem quer que clamar por remissão de seus pecados. Ele declara que
todo aquele que puser sua fé em Cristo é aceito por Deus. Usando a frase
todo aquele que crê, Paulo pode expor um chamado universal para
alcançar o perdão dos pecados em Cristo Jesus.

828
Veja-se At 2:38; 3:19; 5:31; 10:43; 26:18.
Atos (Simon J. Kistemaker) 671
c. Justificação. Ao relatar o sermão que Paulo pregou em Antioquia
da Pisídia, Lucas faz insistência no ensino do apóstolo a respeito da
justificação pela fé e não pela lei. Paulo apresenta este ensino em seu
sermão e em algumas de suas epístolas. 829 Por exemplo, em sua carta aos
gálatas, escreve: “Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por
obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido
em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não
por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado.” [Gl
2:16]
Paulo diz a seus ouvintes que quando eles põem sua fé em Cristo,
Deus os declara justificados, quer dizer, livres de culpa. Seus pecados
são perdoados, não sobre a base de uma diligente observância da lei de
Moisés, e sim mediante a obra expiatória de Cristo. Os contemporâneos
de Paulo sabem que eles não são capazes de cumprir as demandas da lei
de Moisés e se dão conta que todos os seus esforços para alcançar a
justificação por sua própria conta só levam a frustração e futilidade. Por
esta razão, Paulo prega que a fé em Cristo os torna livres.
Exceto pela exortação final, Paulo virtualmente pôs fim a seu
sermão. Se resumirmos sua mensagem, vemos um desenvolvimento
gradual em sua apresentação, que pode resumir-se ponto por ponto.
Paulo testificou que
1. Deus ressuscitou a Cristo dentre os mortos, segundo as
Escrituras;
2. testemunhas oculares verificaram a ressurreição de Cristo;
3. seus ouvintes não podem guardar a lei de Moisés;
4. mediante a fé em Cristo os pecadores são justificados diante de
Deus;

829
Consulte-se Theodor Zahn, Die Apostelgeschichte des Lucas, série Kommentar zum Neuen
Testament, 2 vols. (Leipzig: Deichert, 1921), vol. 1, p. 447; Lake y Cadbury, Beginnings, vol. 4, p.
157.
Atos (Simon J. Kistemaker) 672
5. consequentemente, o perdão dos pecados está intimamente ligado
à ressurreição de Cristo. 830
40, 41. Cuidem para que não lhes aconteça o que disseram os
profetas: Olhem, escarnecedores, admirem-se e pereçam; pois nos dias de
vocês farei algo que vocês jamais creriam se alguém lhes contasse! [NVI]
Como um final apropriado de sermão, Paulo primeiro exorta a seus
ouvintes a pôr atenção ao que os profetas do Antigo Testamento
declararam. Então, cita diretamente da profecia de Habacuque, quem
viveu umas poucas décadas antes da destruição de Jerusalém e do
subsequente exílio de Judá (586 a.C.). Contemporâneo de Jeremias,
Habacuque observou aos habitantes de Judá e de Jerusalém que Deus
faria algo extraordinário, ou seja, os babilônios os levariam cativos. Deus
permitiria isso devido à violência incontrolada, à corrupção social e à
bancarrota espiritual em que tinha caído Judá. Os contemporâneos de
Paulo sabiam que o povo de Judá tinha rejeitado as advertências do
profeta e tinham continuado suas vidas de pecado. No final a paciência
de Deus acabou e o exército babilônio conquistou Jerusalém e levou os
seus habitantes ao exílio.
Do mesmo modo, Paulo adverte os adoradores de Antioquia da
Pisídia que atendam a mensagem de salvação e ponham sua fé em Jesus
Cristo. Ele percebe que alguns dos judeus entre aqueles que o escutam
estão a ponto de fazer zombaria de suas palavras. Eles necessitam um
conselho direto das Escrituras, portanto, com pequenas variantes, cita-
lhes do texto grego Habacuque 1:5. As palavras desta profecia são a
propósito duras:
a. “Olhem, escarnecedores, admirem-se e pereçam.” Bem como
Habacuque antigamente, Paulo instrui seus ouvintes a pôr atenção no que
está ocorrendo. Aqueles que zombem da mensagem de salvação estão
rejeitando o próprio Deus. E os que rejeitem a Deus, ficarão estupefatos
quando de repente cair sobre eles o juízo de Deus e perecerem. No
830
Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, pp. 437–38; Zahn, Apostelgeschichte des Lucas, vol.
1, pp. 447–48.
Atos (Simon J. Kistemaker) 673
grego, o verbo perecer na verdade significa “desaparecer da vista”. Por
exemplo, a palavra é usada para descrever as cidades que foram
destruídas por um terremoto. 831
b. “Pois nos dias de vocês farei algo”. Aquele que fala nesta
profecia é Deus, que diz ao povo que Ele fará algo surpreendente no
meio deles e em suas vidas. Na verdade, no ano 70 d.C. as forças
romanas destruíram totalmente a cidade de Jerusalém e seu templo,
matando ou dispersando seus habitantes, e proibiram aos judeus
restabelecer-se em sua cidade e reconstruir o templo.
Abruptamente, e quando obteve o máximo efeito, Paulo finaliza seu
sermão. Nunca antes esta audiência tinha ouvido “uma mensagem de
alento” como esta (v. 15). De acordo com o texto grego do Códice Beza,
os ouvintes de Paulo ficaram em silêncio.

Considerações doutrinais em At 13:39


Com frequência, e com o passar do tempo, leis que foram
formuladas pelos legisladores de uma nação são anuladas por outros. Isto
se deve em muitos casos a que se estima que uma lei perdeu sua vigência
ou que tem sérias falhas. Estarão também as leis de Deus feitas por Seu
povo sujeitas a estas mesmas possibilidades de mudança? Deus deu a
Israel as leis cerimoniais que foram deixadas de lado por Cristo quando
cumpriu Sua obra mediadora. No entanto, os Dez Mandamentos
permanecem inalterados e continuam sendo válidos para todos os povos,
aplicáveis a toda cultura e época.
Se a lei de Deus é perfeita (Sl. 19:7), por que é incapaz de fazer
com que o crente seja justificado diante de Deus? A lei não tem falhas,
mas o pecador, sim, tem. Quer dizer, o problema está inerente não na lei
mas em quem quebranta a lei (Rm 7:12, 13). Jesus Cristo satisfez as
demandas da lei e, por Sua obediência, fez o crente justo aos olhos de
Deus. Um cristão é justificado não porque obedece a lei, mas pelos
831
Bauer, p. 124.
Atos (Simon J. Kistemaker) 674
méritos de Cristo. Mediante o Seu Filho, Deus concede a vida eterna a
todo aquele que nEle crê (Jo 3:16). Como resultado disso, o cristão
deseja obedecer a lei de Deus e expressa sua gratidão a Deus por ter
enviado o Seu próprio Filho ao mundo.

Palavras, frases e construções gregas em At 13:32–41


Versículo 32
ἡμεῖς ὑμᾶς — estes dois pronomes pessoais estão justapostos para
ênfase e abrangência.

Versículo 33
ἐκπεπλήρωκεν — o composto do verbo ἐκπληρόω (eu cumpro
completamente) está no tempo perfeito para mostrar uma ação no
passado com importância para o presente.
τοῖς τέκνοις αὑτῶν ἡμῖν — “a seus filhos, a nós”. Embora a
evidência dos manuscritos para esta passagem é fraco, o respaldo
contextual é forte. Pelo contrário, os melhores manuscritos apresentam a
forma τοῖς τέκνοις ἡμῶν (a nossos filhos), mas o contexto está contra.
Outra forma é τοῖς τέκνοις αὑτῶν (a seus filhos), mas o respaldo externo
é insignificante.
τῷ δευτέρῳ — a leitura o segundo salmo tem grande força, mas o
Códice Beza contém as palavras τῷ πρώτῳ (o primeiro). Segundo os
escritores dos primeiros séculos, os primeiros dois salmos com
frequência eram combinados e considerados como um. Muitos
estudiosos respaldam a leitura o segundo salmo. 832

832
Metzger, Textual Commentary, p. 414.
Atos (Simon J. Kistemaker) 675
Versículos 34–35
τὰ ὅσια — a tradução do hebraico (Is 55:3) é “as misericórdias”. Os
tradutores da Septuaginta intercambiavam a forma plural das palavras
ḥēsēd (misericórdia) e ḥasid (santo) e dão origem à forma as (coisas)
santas.
ἐν ἑτέρῳ — como Paulo entendia a citação no versículo 34 e esta
como uma sequência de duas citações, ele usa este adjetivo como “o
segundo” num par. 833

Versículos 38–39
διὰ τούτου — a preposição é instrumental (“através deste
[homem]”). O pronome demonstrativo, que se refere a Jesus, une estes
dois versículos. O Texto ocidental tem algumas adições que são
indicadas com itálico: “Através deste homem é proclamado a vocês o
perdão de pecados, e o arrependimento de todas aquelas coisas das quais
não poderão ser livres pela lei de Moisés; por ele portanto é libertado
diante de Deus todo aquele que crê”. 834
ἐν νόμῳ — esta frase (“mediante a lei”) está equilibrada pela frase
ἐν τούτῳ (através dele). A preposição é instrumental.

Versículos 40–41
βλέπετε — “tenham cuidado”. O imperativo presente está seguido
pelo imperativo aoristo ἴδετε (olhem!). Ambos os verbos servem para
advertir o povo sobre o juízo iminente que pesa sobre eles se falharem
em dar ouvidos à advertência.

833
Robertson, Grammar, p. 748.
834
Metzger, Textual Commentary, p. 415.
Atos (Simon J. Kistemaker) 676
ἐκδιηγῆται — na prótase de uma frase condicional, este subjuntivo
médio presente expressa probabilidade. O composto é perfectivo e pode
ser traduzido como “afirmar”. 835

6. O convite é renovado (At 13:42–45)

Uma característica no estilo de Lucas é a brevidade. Enfatiza e


amplia aqueles assuntos que são relevantes em seu relato. E o resto deixa
à imaginação do leitor. Isto é exatamente o que ocorre quando
procuramos imaginar a conclusão do serviço e a saída da sinagoga.
42, 43. Quando Paulo e Barnabé estavam saindo da sinagoga, o povo
os convidou a falar mais a respeito dessas coisas no sábado seguinte.
Despedida a congregação, muitos dos judeus e estrangeiros piedosos
convertidos ao judaísmo seguiram Paulo e Barnabé. Estes conversavam
com eles, recomendando-lhes que continuassem na graça de Deus [NVI].
À primeira vista, estes dois versículos parecem ser uma repetição.
Ambos indicam que o serviço da sinagoga tinha terminado e que Paulo e
Barnabé abandonavam o lugar. Sabemos que os costumes e as tradições
variam de país em país e de povo em povo. Portanto, não devemos
interpretar estes versículos como se refletissem nossos próprios
costumes. Supomos que imediatamente depois de finalizado o serviço
propriamente dito, os adoradores permaneciam no edifício por algum
tempo de intercâmbio social (veja-se o comentário sobre o v. 16).
Quando finalmente a parte informal da reunião chegava a seu fim, o
porteiro fechava as portas da sinagoga e todo mundo ia a suas casas. O
que Lucas está fazendo, então, é descrever os costumes que prevaleciam
naqueles tempos em Antioquia da Pisídia.
Paulo e Barnabé saem da sinagoga, mas são detidos pelo povo que
quer voltar a ouvi-los. A maior parte dos tradutores acrescentam o
sujeito Paulo e Barnabé para esclarecer a ideia, enquanto que outros

835
Robertson, Grammar, p. 597.
Atos (Simon J. Kistemaker) 677
seguem literalmente a forma grega indefinida: “Quando eles saíram, o
povo lhes rogava …” E um terceiro grupo, baseando-se nos manuscritos
do Texto grego majoritário, amplia a expressão com dois diferentes
sujeitos: “E quando os judeus saíram da sinagoga, os gentios lhes
rogaram …” 836
O povo fica favoravelmente impressionado pela mensagem de
Paulo, pelo que o convidou, junto com Barnabé, a voltar no sábado
seguinte. Queriam ouvir mais a respeito das coisas relacionadas com
Jesus e Seu evangelho. Lucas diz que muitas pessoas, tanto judeus como
gentios, continua falando com os missionários. Por implicação
deduzimos que outros judeus evitam falar com os visitantes e, em vez
disso, esperam expectantes o desenvolvimento dos acontecimentos (veja-
se v. 45). Lucas descreve os gentios crentes como prosélitos tementes a
Deus (ainda não completamente convertidos ao judaísmo). 837 Paulo, o
apóstolo aos gentios, tem um imediato entendimento com estes
prosélitos e os guia a Cristo. Contrariamente, os judeus tinham cruzado
terra e mar para fazer um converso (Mt 23:15) e agora veem a Paulo e a
Barnabé atraindo à fé cristã os gentios piedosos. Não admira que muitos
judeus se sintam incômodos e tomem os missionários como rivais
molestos.
Paulo e Barnabé, contudo, exortam os judeus e conversos que com
muito interesse os escutam a que “continuem na graça de Deus”. Paulo e
seus companheiros sabem que depois que o primeiro broto de
entusiasmo minguar, os crentes necessitam palavras de ânimo. O verbo
continuar indica que já o povo pôs sua confiança em Jesus e O aceitou
como seu Messias (cf. At 11:23; 14:22). Estão em comunhão com Jesus
Cristo e agora Paulo e Barnabé insistem para continuarem nessa relação,

836
O melhor manuscritos gregos tem a forma mais breve para a primeira cláusula e omite o sujeito os
gentios na segunda. Veja-se também Metzger, Textual Commentary, pp. 416–17.
837
Compare At 16:14; 17:4, 17; 18:7; e veja-se At 2:11; 6:5. Para uma discussão detalhada, veja-se
Kirsopp Lake, “Proselytes and Godfearers”, Beginnings, vol. 5, pp. 74–96.
Atos (Simon J. Kistemaker) 678
838
a manter-se fiéis ao Senhor, e a “expor-se à graça de Deus”. “Graça” é
uma palavra que Paulo usa repetidamente em suas epístolas; em seu
léxico, significa o ato decisivo de Deus de salvar o homem mediante
Cristo Jesus.
44, 45. No sábado seguinte, quase toda a cidade se reuniu para ouvir
a palavra do Senhor. Quando os judeus viram a multidão, ficaram cheios
de inveja e, blasfemando, contradiziam o que Paulo estava dizendo [NVI].
Supomos que durante a semana os cristãos de Antioquia da Pisídia
seguiram falando a respeito de sua fé em Cristo; também, Paulo e
Barnabé não guardaram silêncio enquanto esperavam a chegada do
sábado seguinte para fazer uso da oportunidade que lhes era dada para
falar. O Texto ocidental (o Códice Beza e outros dois manuscritos)
acrescenta a este versículo uma frase introdutória: “Assim foi como a
palavra de Deus se estendeu por toda a cidade”. As consequências da
pregação de Paulo são contundentes. Lucas generaliza e diz que no
sábado seguinte “quase toda a cidade se reuniu para ouvir a palavra do
Senhor”. Não diz se esta reunião teve lugar na sinagoga durante várias
reuniões consecutivas ou ao ar livre, talvez numa praça ou no anfiteatro.
A população gentílica não estava acostumada a observar o sábado, no
entanto, tomaram tempo para ouvir Paulo e Barnabé que lhes pregam o
evangelho de Cristo. Neste ponto, o texto grego tem uma variante que foi
adotada por muitos tradutores: “para ouvir a palavra de Deus”. 839 Tanto a
frase palavra de Deus como a frase palavra do Senhor são respaldadas
pelos manuscritos. Estudiosos que se inclinam pela segunda forma o
fazem porque aparece com menos frequência que a frase palavra de
Deus. A diferença em significado é quase imperceptível.
A resposta que os missionários recebem da população gentílica
prova que Deus está abençoando-os como missionários ao mundo greco-
romano. Para os judeus, contudo, esta tremenda reação prova muito.
Desgostados já pelo sermão de Paulo do sábado anterior, agora se
838
Guthrie, New Testament Theology, p. 106. Veja-se também Rackham, Acts, p. 220.
839
Veja-se NVI, BJ, RA; em inglês KJV, RKJV, RSV.
Atos (Simon J. Kistemaker) 679
encontram cheios de ciúme. Assim, podemos notar que não são os
gentios piedosos, e sim os judeus os que se levantam contra Paulo e
Barnabé. Eles percebem que os missionários estão recolhendo uma
colheita evangelística depois que os judeus testificaram por anos à
população gentílica. De um ponto de vista humano, seu zelo é
compreensível. Mas de uma perspectiva divina, os judeus deveriam ser
os primeiros em aceitar o evangelho de salvação. Em lugar de obedecer
os ensinos da palavra de Deus, começam a contradizer o que diz Paulo.
Lucas incluso acrescenta que o faziam de forma prepotente. O termo que
usa para afirmar isto é blasfemar. Quer dizer, os judeus blasfemam do
Cristo proclamado por Paulo e por Barnabé (cf. At 26:11).
Indubitavelmente, dizem à multidão que o crucificado chamado Jesus é
um criminoso maldito por Deus. 840 E ridicularizam e denigrem a Paulo
por falar de Jesus. Lucas não dá detalhes dos ataques verbais lançados
pelos dirigentes judeus da sinagoga local, mas o relato é o
suficientemente claro para que o leitor forme uma imagem mental do
ocorrido.

Palavras, frases e construções gregas em At 13:42–45


Versículo 42
ἐξιόντων αὑτῶν — a construção genitiva absoluta separa o pronome
do sujeito no verbo principal. O gerúndio deriva do verbo ἔξειμι (eu
saio). No Texto majoritário, contudo, o sujeito da cláusula absoluta
genitiva é τῶν Ἰουδαίων (os judeus) e o sujeito do verbo principal é τὰ
ἔθνη (os gentios). 841
μεταξύ — este advérbio normalmente se refere ou a espaço ou a
tempo, e quer dizer “entre”. Aqui se refere a “depois” ou a “seguinte”.

840
Rackham, Acts, p. 220.
841
Arthur L. Farstad e Zane C. Hodges, The Greek New Testament According to the Majority Text
(Nashville: Nelson, 1982), p. 420.
Atos (Simon J. Kistemaker) 680
Versículo 44
ἐρχομένῳ — modificando o nome σαββάτῳ (sábado), o particípio
médio presente significa “aquele que vem” ou “aquele que segue”.
Alguns manuscritos dizem ἐχομένῳ (o seguinte).
ἀκοῦσαι — o infinitivo aoristo denota propósito.

Versículo 45
ζήλου — o genitivo com o verbo ἐπλήσθησαν (eles foram cheios) é
o genitivo com os verbos compartilhar, participar e encher. 842
ἀντέλεγον — o tempo imperfeito descreve no passado ação
continuada. O composto é diretor.

7. Resultados e oposição (At 13:46–52)

46. Então, Paulo e Barnabé, falando ousadamente, disseram:


Cumpria que a vós outros, em primeiro lugar, fosse pregada a palavra de
Deus; mas, posto que a rejeitais e a vós mesmos vos julgais indignos da
vida eterna, eis aí que nos volvemos para os gentios.
a. Ousadia. Uma palavra que aparece repetidamente na descrição de
Lucas e que tem relação com o ânimo dos apóstolos é ousadamente ou
com toda valentia. 843 Os apóstolos sabem que Jesus lhes disse que não
deviam ter medo quando tivessem que falar dele. Diz-lhes: “Não sois vós
os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós” (Mt
10:20). Por isso, tanto Paulo como Barnabé falam com toda ousadia em
nome de Cristo, observando assim a regra básica de proclamar primeiro
o evangelho aos judeus e logo aos gentios (v. 26; At 1:8; 3:26; Rm 1:16;
2:9; veja-se também Mt 10:5–6).
b. Prioridade. Paulo e Barnabé asseguram inequivocamente aos
judeus: “Cumpria que a vós outros, em primeiro lugar, fosse pregada a
842
Robertson, Grammar, pp. 509–10.
843
Veja-se At 2:29; 4:13, 29, 31; 9:27, 28; 13:46; 14:3; 18:26; 19:8; 26:26; 28:31.
Atos (Simon J. Kistemaker) 681
palavra de Deus”. Os missionários indicam a razão de sua ação. Devido
ao amor e à preocupação de Deus pelos judeus (veja-se Rm 11:1), os
missionários sentem-se obrigados a revelar a mensagem de salvação
primeiro a eles. Os judeus são os receptores e guardiões da palavra
revelada de Deus (Rm 3:2). Eles são os filhos adotivos de Deus; eles
receberam a Lei, as alianças, e as promessas; eles têm o templo para
adorar; e eles honram ao patriarca através do qual veio o Messias (Rm
9:4–5). Deus, então, ordena Paulo e Barnabé a ir primeiro aos judeus e
proclamar a eles as boas novas de salvação em Cristo. Mas se os judeus
recusam ouvir os embaixadores de Deus, Paulo e Barnabé irão aos
gentios. Paulo foi chamado a servir como um apóstolo aos gentios e, sem
dúvida, Barnabé tem o mesmo chamado (veja-se v. 2).
c. Rejeição. No prólogo de seu Evangelho, João escreve que Jesus
veio para os Seus, mas Seu próprio povo recusou aceitá-Lo (Jo 1:11). Os
embaixadores de Jesus experimentam a mesma coisa em Antioquia da
Pisídia. Como os judeus rejeitam a mensagem do evangelho de Cristo, os
gentios chegaram a ser os receptores do favor de Deus. 844
Intencionalmente, os judeus perdem seu lugar na família de Deus e já
não se consideram dignos da vida eterna. Já não podem seguir contando
com seus privilégios porque Deus os tirou. Paulo e Barnabé se voltam
para os gentios e trabalham no meio deles. Os gentios, então, são os
ramos de oliva silvestre que são enxertadas na oliveira; alguns dos ramos
naturais (quer dizer, os judeus) são tirados (Rm 11:17–21). Em seu
ministério, Paulo experimenta repetidamente o rejeição pelos judeus, por
isso volta-se logo aos gentios (veja-se At 18:6).
47. Pois assim o Senhor nos ordenou: “Eu fiz de você luz para os
gentios, para que você leve a salvação até aos confins da terra” [NVI].
Paulo baseia seu ensino no Antigo Testamento e desta maneira
segue o exemplo de Jesus. Defende sua decisão de ir aos gentios citando
uma profecia do livro de Isaías (Is 49:6). Mediante esta citação, os

844
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 391.
Atos (Simon J. Kistemaker) 682
judeus podem ver por si mesmos que séculos antes Deus tinha planejado
conceder a salvação aos gentios. Em outras palavras, as Escrituras
provam que os missionários estão certos e os judeus errados.
Na resposta de Paulo, a Escritura tem a última palavra. Paulo diz:
“Assim o Senhor nos ordenou”. As palavras originalmente ditas por
Deus através do profeta Isaías, mais de sete séculos antes do nascimento
de Cristo, são trazidas agora à tona por Paulo. É interessante que Paulo lê
o Antigo Testamento à luz do chamado que Jesus lhe fez de ser apóstolo
aos gentios. As palavras de Isaías, então, cumprem-se em Paulo, quando
este se volta dos judeus para trabalhar entre os gentios.
Quais são as palavras da profecia de Isaías? Isaías descreve a tarefa
do messiânico servo de Deus, a quem Deus designa para dar liberdade
aos descendentes de Jacó das cadeias do pecado e trazê-los de volta a
Deus. A tarefa do Messias é restaurar as tribos de Jacó e fazer voltar a
um remanescente fiel de Israel (Is 49:6a). Mas a tarefa adicional do
Messias é ser luz dos gentios e assim estender a salvação até os confins
da terra (Is 49:6b). Esta profecia messiânica era bem conhecida pelos
contemporâneos judeus de Paulo. Ao citar esta passagem, o apóstolo
assinala que quando o Messias torna a salvação acessível aos gentios,
Paulo, como seu servo, não pode fazer senão o mesmo. De forma
sucinta, esta passagem é com frequência chamada “a grande comissão do
Antigo Testamento”. 845 Quando Simeão tomou o menino Jesus em seus
braços no templo, ele foi cheio do Espírito Santo e falou profeticamente.
Disse que seus olhos tinham visto agora “uma luz para revelação aos
gentios e para glória de seu povo Israel” (Lc 2:32; compare Is 42:6).
Sabiamente, Paulo escolhe uma passagem do Antigo Testamento
que de forma clara fala da missão do Messias de trazer salvação aos
gentios. Nenhum dos oponentes de Paulo pode contradizer este ensino
explícito das Escrituras. Embora os judeus guardem silêncio depois do
845
Consulte-se Edward J. Young, The Book of Isaiah, série New International Commentary on the Old
Testament, 3 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), vol. 3, p. 276. Refira-se a Pierre Grelot, “Note
sur Actes, XIII, 47”, RB 88 (1981): 368–72.
Atos (Simon J. Kistemaker) 683
dito por Paulo, os gentios se enchem de alegria. Eles sabem que a
profecia citada por Paulo tem que ver com eles.
48. Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra
do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida
eterna.
a. “Os gentios, ouvindo isto”. O evangelho sempre tem um efeito
duplo nas pessoas que o ouvem. Para uns, a mensagem do evangelho é
como um grato aroma; é a fragrância da vida, como Paulo escreve aos
coríntios. Mas para outros, o mesmo evangelho é um aroma
desagradável que leva o horrível cheiro da morte (2Co 2:14–16). Em
Antioquia da Pisídia, alguns dos judeus vociferantes objetam e rejeitam a
pregação do evangelho de Cristo. Os gentios, não obstante, escutam a
exposição de Paulo e respondem cheios de alegria com louvores por tudo
o que ouvem.
b. “[Os gentios] regozijavam-se e glorificavam a palavra do
Senhor”. A reação dos gentios é eufórica: estão cheios de alegria porque
sabem que a salvação provida por Deus também lhes foi concedida.
Em antigos manuscritos se encontraram variações da frase
glorificar a palavra do Senhor. Para ilustrar isso, um destes manuscritos
tem o verbo receber porque o povo recebe mais que glorifica a palavra
do Senhor (cf. At 8:14; 11:1; 17:11). Outro elimina a frase a palavra do
Senhor e a substitui com a palavra Deus com o que fica glorificar a
Deus. Esta forma é comum em qualquer parte de Atos, conquanto a outra
forma glorificar a palavra de Deus apareça só aqui (veja-se At 4:21;
11:18; 21:20). Diga-se de passagem, as variantes palavra de Deus e
palavra do Senhor são insignificantes (veja-se v. 44).
Um princípio verdadeiro e provado é que a forma mais difícil é
correta, porque os escribas com frequência apresentariam uma tradução
mais agradável do texto num esforço por esclarecer seu significado. A
forma difícil glorificar a palavra do Senhor tem o respaldo substancial
de manuscritos e é, portanto, a preferida pelos tradutores. Os gentios
glorificavam a palavra de Deus ao aceitá-la com grande alegria.
Atos (Simon J. Kistemaker) 684
c. “E creram todos os que haviam sido destinados para a vida
eterna”. Lucas acrescenta uma frase na qual usa a voz passiva haviam
sido destinados. A implicação é que Deus é o agente, porque só ele
concede a vida eterna (Mt 25:46; Jo 10:28; 17:2). No grego, a forma
foram destinados é um particípio passivo no tempo perfeito. O perfeito
denota ação que ocorreu no passado mas que é relevante para o presente.
No passado, Deus predestinou a salvação dos gentios. Em muitos lugares
do Antigo Testamento, Deus revela que a bênção da salvação também é
para os gentios (p. ex. Gn 12:1–3; Is 42:6; 49:6). Quando eles com fé
aceitam a Cristo, Ele lhes concede o dom da vida eterna.
Quando os gentios põem sua fé em Cristo Jesus, estão se
apropriando da vida eterna. O texto revela os proverbiais dois lados da
mesma moeda: o amor eletivo de Deus e a resposta de fé do homem (cf.
Fp 2:12–13). Mesmo quando este texto usa o verbo principal crer
também ensina a doutrina da divina eleição (refira-se a Rm 8:29–30).
Note-se que Lucas diz “[Os gentios] haviam sido destinados para a vida
eterna”. Não diz que foram destinados para que cressem. “O importante
para ele é que a vida eterna não só se recebe pela fé, mas também é
essencialmente o plano de Deus”. 846
49, 50. E divulgava-se a palavra do Senhor por toda aquela região.
Mas os judeus instigaram as mulheres piedosas de alta posição e os
principais da cidade e levantaram perseguição contra Paulo e Barnabé,
expulsando-os do seu território.
O efeito da apresentação que Paulo faz do evangelho é fenomenal:
por todas as partes o povo comenta a respeito “da palavra do Senhor”.
Pela via oral as Boas Novas são disseminadas por toda a cidade de
Antioquia e a região da Pisídia. Os cristãos gentios cheios de entusiasmo
proclamam a mensagem do evangelho a todos os que queiram ouvi-los.
A igreja cristã cresce e se desenvolve rapidamente. Do ponto de vista de
Paulo, ele pode dizer que Deus está abençoando o trabalho missionário.
846
Guthrie, New Testament Theology, p. 618. Consúltese Calvino, Acts of the Apostles, vol. 1, p. 393;
e veja-se Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 160.
Atos (Simon J. Kistemaker) 685
847
Depois de passar algum tempo, sobreveio uma violenta
perseguição. Os judeus da sinagoga local têm uma tremenda inveja de
Paulo e Barnabé devido à inesperada resposta positiva que recebem dos
gentios. Estes judeus se dão conta que sua influência religiosa está em
decadência, pois os gentios que se convertem aceitam agora os ensinos
de Cristo. Como disse alguém: “o ciúme é a matéria-prima do
assassinato” (cf. At 14:19). O ciúme envenenou as mentes dos judeus e
os impulsiona a buscar cumplicidade entre mulheres de alto nível social
que frequentam os cultos da sinagoga. (No século I, as mulheres gentias
proeminentes com frequência assistiam aos serviços da sinagoga judaica
local. Eram piedosas convertidas e que com frequência constituíam um
número importante [veja-se At 17:4]). 848 Os judeus obtêm que estas
mulheres persuadam os homens dirigentes da cidade a perseguir Paulo e
Barnabé.
Os judeus querem que as autoridades da cidade fiquem do seu lado,
promovam uma perseguição contra os missionários, e expulsem Paulo e
Barnabé da Pisídia. Eles parecem não notar que o evangelho já lançou
raízes na região e que não poderá ser erradicado. A igreja de Jesus Cristo
continua crescendo (At 14:21–24). A perseguição instigada pelos judeus
e permitida pelas autoridades da cidade não só toca as vidas dos novos
cristãos, mas também obtém a expulsão dos dois missionários. Entre as
autoridades estão oficiais romanos que defendem a política de Roma de
promover a paz e a ordem. Mesmo quando nem Paulo nem Barnabé
tenham criado nenhum problema, os agitadores judeus criam suficiente
inquietação que as autoridades creem necessário intervir. Expulsam
Paulo e Barnabé da região, embora a própria expulsão parecesse ter sido

847
Ramsay crê que os missionários permaneceram em Antioquia da Pisídia pelo menos dois a seis
meses. Como centro administrativo daquela região, Antioquia atraía as pessoas de outras cidades; o
resultado era que o evangelho se estendia por toda a região centro-sul da Ásia Menor. St. Paul the
Traveller, p. 105.
848
Josefo diz que em Damasco as mulheres gentios, “com poucas exceções, converteram-se todas à
religião judaica”. Guerra Judaica 2.20.2 [560]. Veja-se também Max Wilcox, “The ‘God-Fearers in
Acts — A Reconsideration”, JSNT 13 (1981); 102–22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 686
só temporal. Porque algum tempo depois os missionários estão de volta
em Antioquia, animando os crentes e nomeando anciãos na igreja.
51, 52. E estes, sacudindo contra aqueles o pó dos pés, partiram para
Icônio. Os discípulos, porém, transbordavam de alegria e do Espírito
Santo.
Temos aqui uma vívida descrição do costume judaico que simboliza
uma renúncia de pessoas ou coisas. Os fariseus, por exemplo, quando
abandonavam solo gentílico sacudiam o pó de seus pés e assim
demonstravam que não se tinham poluído. 849 No entanto, Paulo e
Barnabé manifestam sua objeção não contra os gentios e sim contra os
judeus. Usam o ato simbólico de sacudir o pó de seus pés para indicar
que não têm nada que ver com os judeus de Antioquia da Pisídia (cf. At
18:6).
Os missionários agora abandonam a região da Pisídia e a cidade de
Antioquia e viajam na direção leste, para Icônio. 850 Esta cidade,
conhecida no presente como Konya, foi parte de Frígia mesmo quando
esteja na fronteira com a Licaônia. Situada numa planície, estava
rodeada por férteis campos que recebiam suficiente água de correntes
que fluíam das montanhas próximas. Era um centro comercial que servia
à comunidade agrícola dessa área. Chegou a ser uma cidade importante
junto a uma estrada principal, de onde saíam pelo menos cinco caminhos
para diferentes regiões da área. 851
Lucas fecha este segmento de seu relato a respeito da primeira
viagem missionária, descrevendo a atitude dos cristãos de Antioquia. Ele
diz: “Os discípulos, porém, transbordavam de alegria e do Espírito
Santo”. Como é costume em Atos, Lucas chama discípulos aos recém-
convertidos ao Cristianismo (quer dizer, é gente que está aprendendo).

849
A expressão sacudir o pó dos pés aparece cinco vezes no Novo Testamento: Mt. 10:14; Mc. 6:11;
Lc. 9:5; 10:11; At. 13:51.
850
Consulte-se M. F. Unger, “Archaeology and Paul’s Visit to Iconium, Lystra, and Derbe”, BS 118
(1961): 107–12.
851
Donald A. Hagner, “Iconium”, ISBE, vol. 2, p. 792.
Atos (Simon J. Kistemaker) 687
Esperar-se-ia que estes novos crentes se sentissem desanimados pela
partida de Paulo e Barnabé. Em lugar disso, estão cheios de alegria e do
Espírito Santo. Deus enche o vazio criado pela repentina saída dos
mestres, dando-lhes o dom da alegria, o qual é um fruto do Espírito
Santo (Gl 5:22). A presença do Espírito Santo nos corações dos crentes
constitui, em si mesma, uma alegria indescritível.

Considerações doutrinais em At 13:52


Missões! A palavra nos faz pensar na coleção de roupa usada que é
enviada ao campo missionário. Pensamos em utensílios de segunda mão
que nós já não usamos, mas que os operários em distantes terras
considerarão um tesouro. Atribuímos somas de dinheiro para sustentar
aqueles missionários que proclamam o evangelho em lugares remotos.
Ouvimos que gente com dificuldades para cursar seus estudos, aos quais
foi dito que não importava que não completassem seus estudos, de
qualquer maneira poderiam ir ao campo missionário. Conhecemos
ministros que optaram pelo campo missionário para não ter que lutar
contra as tensões de um pastorado local.
Mas deverá ser sempre o campo missionário o lugar ao qual mandar
roupa usada, utensílio descartado, dinheiro que nos sobra e missionários
medíocres? O que ocorreria se mandássemos mercadoria de marca, sem
usar, se déssemos mais para as missões que o que necessitam nossas
igrejas locais, e se recrutássemos os mais destacados pastores para ser
missionários? Em Antioquia da Síria, o Espírito Santo disse à igreja:
“Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho
chamado” (At 13:2). Os membros da igreja jejuaram, oraram e
comissionaram os seus melhores mestres para a obra missionária. E Deus
abençoou essa igreja para além de toda medida. Em Antioquia da Pisídia,
Paulo e Barnabé fizeram um trabalho inavaliável ao levantar aquela
nascente igreja. Devido à perseguição, tiveram que ir embora. Mas em
lugar de sentir tristeza e dor, os membros daquela igreja se encheram de
Atos (Simon J. Kistemaker) 688
alegria e do Espírito Santo. Deus os abençoou abundantemente com Sua
sagrada presença e proveu para todas suas necessidades. Não há dúvida
que “Deus ama o doador alegre” (2Co 9:7).

Palavras, frases e construções gregas em At 13:46–52


Versículo 46
τε καί — a posição destas duas partículas na cláusula demonstra
que tanto Paulo como Barnabé falavam com muita ousadia. O particípio
médio aoristo παρρησιασάμενοι surge das palavras πᾶν (toda) e o verbo
ῥέω (eu digo), ou do substantivo ῥῆσις (palavra). O particípio funciona
como um verbo independente: “Paulo e Barnabé falaram ousadamente e
disseram”. 852
ἀπωθεῖσθε αὑτόν — a voz média neste verbo presente significa
“vocês mesmos se afastam da palavra de Deus”. 853

Versículo 48
ἔχαιρον — o uso do tempo imperfeito neste verbo e em ἐδόξαζον é
inceptivo e significa “a iniciação de um processo”. 854 Quer dizer, “eles
começaram a alegrar-se e a louvar”. Note-se que neste versículo são
usados vários tempos. O particípio ἀκούοντα é presente: “eles
continuaram escutando”. Logo, dois verbos no imperfeito sugerem
continuidade no passado. São seguidos do aoristo ἐπίστευσαυ (eles
creram). O último verbo é a construção perifrástica do verbo ser ou estar
(ἦσαν) no imperfeito com o particípio passivo perfeito τεταγμένοι. O
perfeito indica uma ação no passado que tem importância para o
presente.

852
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #420.3.
853
Robertson, Grammar, p. 810.
854
H. E. Dana e Julius R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927: Nova
York: Macmillan, 1967), p. 190.
Atos (Simon J. Kistemaker) 689
Versículo 52
ἐπληροῦντο — o tempo imperfeito de πληρόω (eu encho) significa
ação estendida no tempo passado. A voz passiva implica que o agente é
Deus.

Resumo de Atos 13
O Espírito Santo diz à igreja em Antioquia que comissione a
Barnabé e a Paulo para ser missionários aos gentios. Depois de um
período de jejum e oração, a igreja os ordena como missionários. Eles
viajam a Chipre via Selêucia onde pregam o evangelho primeiro em
Salamina e logo em Pafos. Em Pafos encontram-se com um feiticeiro
judeu chamado Barjesus, conhecido também como Elimas, e com o
procônsul Sérgio Paulo. Por sua decidida oposição ao evangelho, o
feiticeiro é cegado ao mesmo tempo que o procônsul Sérgio Paulo crê.
Os missionários deixam Chipre e navegam para Ásia Menor.
Chegam a Perge da Panfília e dali viajam a Antioquia da Pisídia. Nesta
cidade assistem ao culto de adoração na sinagoga judaica. São
convidados a dar uma palavra de alento. Paulo aceita o convite e prega
um sermão no qual traça a história do povo de Israel desde o tempo em
que estavam no Egito até o tempo do reinado do rei Davi. Paulo prova
que a promessa feita por Deus quanto ao descendente real de Davi se
cumpriu na pessoa do Salvador Cristo Jesus. A mensagem de salvação
tanto aos descendentes de Abraão como aos gentios piedosos é que Jesus
foi crucificado mas Deus O levantou dentre os mortos. Paulo mostra com
a Escritura que o Santo não veria corrupção mas que Se levantaria da
tumba. Todo aquele que crê em Jesus é justificado. Paulo anima os seus
ouvintes a não zombar do evangelho mas crer para que nenhum pereça.
Muitos dos judeus e dos gentios tementes a Deus creem. Convidam
a Paulo e a Barnabé a voltar no seguinte sábado para que lhes sigam
falando. Outros judeus, cheios de zelo, atacam verbalmente e se opõem a
Paulo. De novo, Paulo cita das Escrituras e prova que devido ao fato de
Atos (Simon J. Kistemaker) 690
que eles estão sendo rejeitados pelos judeus, ele e Barnabé devem voltar-
se para os gentios. Com a ajuda das autoridades do governo, os judeus
desatam uma perseguição. Obtêm êxito em seu esforço ao obrigar Paulo
e Barnabé a abandonarem a cidade e a região. Os missionários então
viajam para Icônio enquanto os membros da igreja ficam cheios de
alegria e do Espírito Santo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 691
ATOS 14
A PRIMEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 2 (At 14:1–28)
C. Icônio (At 14:1–7)

1. A mensagem é proclamada (At 14:1–3)

Para a proclamação do evangelho, Paulo e Barnabé selecionaram


cidades localizadas junto às estradas romanas principais. De Antioquia
da Pisídia viajaram 135 quilômetros a leste, até Icônio, cidade que por
aquele tempo era de certa importância. Aqui Paulo e Barnabé passaram
bastante tempo pregando as Boas Novas (v. 3). Nesta sua primeira
viagem missionária ficaram em Icônio mais tempo que em qualquer
outro lugar. 855
É possível que a decisão de viajar ao leste em lugar de ao oeste ou
ao norte tenha tido que ver algo com o conhecimento que Paulo tinha da
Licaônia, cidade fronteiriça com sua província nativa da Cilícia. De fato,
sua rota os levou muito perto da Cilícia, onde tinham sido estabelecidas
algumas igrejas (At 15:41).
1. Em Icônio, Paulo e Barnabé entraram juntos na sinagoga judaica
e falaram de tal modo, que veio a crer grande multidão, tanto de judeus
como de gregos.
Lucas conta que em Icônio Paulo e Barnabé seguiram o mesmo
estilo que tinham usado em Antioquia da Pisídia. No entanto, seu
relatório é breve e conciso. Logo que entraram nesta cidade de ativo
comércio, Paulo e seu companheiro buscaram a sinagoga onde adoraram
junto com os judeus e os gentios piedosos. Foram convidados a pregar e
quando aceitaram, proclamaram com bom efeito as boas novas de

855
Refira-se a William M. Ramsay, The Cities of St. Paul: Their Influence on His Life and Thought
(1907; reimp., Grand Rapids: Baker, 1963), p. 370.
Atos (Simon J. Kistemaker) 692
salvação. Imaginamos que foram convidados a voltar. Lucas assinala o
efeito que teve a mensagem entre os que assistiam à sinagoga: “veio a
crer grande multidão, tanto de judeus como de gregos”. Ele parece
indicar que a resposta em Icônio foi muito maior que em Antioquia da
Pisídia. Por implicação pode-se entender que os judeus de Icônio tinham
estado informando à população gentílica a respeito dos ensinos do
Antigo Testamento. Daí que inumeráveis gentios adoravam regularmente
na sinagoga da cidade.
Quando Paulo e Barnabé explicaram a respeito do cumprimento das
profecias messiânicas através de Cristo Jesus, creram não só numerosos
judeus mas também uma grande multidão de gentios piedosos. Os
missionários pregaram a ambos a mensagem do evangelho, dizendo-lhes
que era necessário que se voltassem a Deus em arrependimento e fé no
Senhor Jesus Cristo” (At 20:21). 856
2. Mas os judeus que não creram, excitaram e exasperaram os
ânimos dos gentios contra os irmãos [TB].
O ocorrido em Antioquia da Pisídia se repete em Icônio. Alguns
judeus rejeitam o evangelho e recusam aceitar a Jesus como seu Messias.
O texto diz literalmente: “Mas os judeus que desobedeceram”. Num
sentido, o verbo desobedecer é o substituto para o verbo expressar
incredulidade com o que se consegue um significado duplo. A fé exige
obediência; se não, perde as características de confiabilidade, confiança e
dependência. A fé sem obediência está morta (Tg 2:17), porquanto a
essência da incredulidade é a desobediência. 857 A proclamação das Boas
Novas exige uma resposta positiva de prazerosa submissão, mas uma
resposta negativa demonstra uma contumaz oposição. Da mesma forma
em que os crentes expressam sua fé mediante obras dignas, assim o
incrédulo comunica sua oposição mediante obras perversas.

856
Cf. At 18:4; 19:10, 17.
857
Consulte-se R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg,
1944), p. 560.
Atos (Simon J. Kistemaker) 693
Sem dúvida, inflamados de inveja ao ver que Paulo e Barnabé
conseguiam uma multidão de aderentes à fé cristã, os judeus agora
começam a trabalhar entre a população gentílica. Começam a agitar os
gentios e os persuadem para que ajam contra Paulo e seu companheiro.
Mais ainda, conseguem envenenar as mentes dos gentios contra os
cristãos em Icônio.
Usam a população local para excitá-la contra os crentes, a quem
Lucas chama “irmãos”. Em outras palavras, Lucas especificamente
afirma que as hostilidades maquinadas pelos judeus incluem tanto a
igreja como os seus líderes. Os recém-convertidos ao cristianismo devem
suportar o embate mais hostil instigado pelos judeus. Não admira que
algum tempo depois Paulo e Barnabé os animam com estas palavras:
“Através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus” (v.
22). Quanto mais forte aumenta a oposição para impedir o crescimento e
desenvolvimento da igreja, mais corajosamente pregam os missionários.
3. Paulo e Barnabé passaram bastante tempo ali, falando
corajosamente do Senhor, que confirmava a mensagem de sua graça
realizando sinais e maravilhas pelas mãos deles [NVI].
Mas os ataques contra os missionários e a igreja criaram um efeito
contrário ao que os judeus pretendiam. Porque em lugar de abandonar a
área, Paulo e Barnabé permanecem com a congregação um considerável
período de tempo e sem vacilações seguem pregando as Boas Novas.
Demonstram assim a verdade de que em tempos de opressão, a igreja
prospera. A causa de Cristo atrai as pessoas quando esta observam a
coragem e convicção dos crentes. A obra da pregação e o ensino
continua vitoriosa enquanto o Senhor concede Suas bênçãos
indispensáveis para fazer com que Sua igreja cresça. Os apóstolos
experimentam o poder do Senhor quando proclamam Seu nome com
valentia. A expressão Senhor refere-se tanto a Deus como a Jesus.
Embora Lucas com frequência relacione o arrojo apostólico com a causa
Atos (Simon J. Kistemaker) 694
858
de Cristo, bem fazemos de interpretar a expressão sinônimo do
evangelho de Cristo 859 proclamado pelos apóstolos, e da palavra de
Deus (veja-se At 20:32).
Indiretamente, Lucas sugere que a igreja em Icônio cresceu
rapidamente. Diz que “Paulo e Barnabé … [falaram] corajosamente do
Senhor, que confirmava a mensagem de sua graça realizando sinais e
maravilhas pelas mãos deles”. O Senhor, então, capacita os missionários
para que levem a cabo obras extraordinárias que não passam
desapercebidas para o povo de Icônio. Deus realiza milagres em resposta
a e para o crescimento da fé. Os apóstolos recebem de Deus os dons
carismáticos que lhes permitem curar os doentes e ressuscitar os mortos
e assim a fé do povo de Deus é fortalecida (At 5:12; 6:8; Hb 2:4).
Quando Deus realiza um milagre, Ele o faz em harmonia com Sua
palavra e assim então fortifica espiritualmente o crente. Lucas, no
entanto, elimina os detalhes quanto a estes sinais e maravilhas que talvez
deviam ver com um ministério de cura. Em sua Epístola aos gálatas,
Paulo faz notar que Deus operava milagres entre os receptores de sua
carta (At 3:5), entre aqueles que estavam os habitantes de Icônio (na
província romana da Galácia).

Palavras, frases e construções gregas em At 14:1–3


Versículo 1
κατὰ τὸ αὑτό — esta frase significa tanto “juntos” (RA) como “de
costume” (NVI). 860 Tradutores modernos preferem a segunda forma,
porque enfatiza o fato que os apóstolos continuaram em Icônio com sua
prática habitual.

858
Veja-se At 4:29, 31; 9:27–28; 19:8; 28:31.
859
Consulte-se Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p.
617.
860
Bauer, p. 123, inclui a expressão “ao mesmo tempo”, mas esta forma não se ajusta muito bem ao
contexto.
Atos (Simon J. Kistemaker) 695
ὥστε πιστεῦσαι — a partícula ὥστε (assim que) seguida do
infinitivo ativo aoristo expressa resultados concretos.
πολὺ πλῆθος — “uma grande multidão”. Os genitivos precedentes
(“tanto judeus como gregos”) dependem desta frase. Usualmente, o
genitivo segue ao substantivo do qual depende. 861 A posição destes
genitivos mostra ênfase.

Versículo 2
ἀπειθήσαντες — o composto de ἀ (não) e o verbo πείθω (eu
persuado) significa, “Eu não me deixo persuadir”. No Novo Testamento,
o composto significa “negar-se a crer”, em oposição ao verbo πιοτεύω
(eu creio). Como tal, implica desobediência.
ἐκάκωσαν — este verbo tem dois significados: “maltratar” e
“amargurar”. No Novo Testamento, o segundo sentido encontra-se só
aqui.
O Códice Beza tem uma ampliação a este versículo. O agregado
aparece a seguir em itálico: “Mas os chefes da sinagoga dos judeus e os
governantes da sinagoga causaram eles mesmos perseguição contra os
justos, e amarguraram as mentes dos gentios contra os irmãos. Mas logo
o Senhor lhes deu paz”. 862
O agregado representa uma tentativa de proporcionar uma maior
coerência no texto, mas o resultado não é muito feliz. A redundância das
frases chefes da sinagoga e governantes da sinagoga é óbvia. Além
disso, a frase mas logo o Senhor lhes deu paz parece uma transição
incompleta entre os versículos 2 e 3. Os estudiosos preferem ficar com o
texto usual destes dois versículos apesar da aparente falta de coerência.

861
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 502.
862
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), pp. 419–20.
Atos (Simon J. Kistemaker) 696
Versículo 3
μὲν οὗν — a combinação de uma partícula e uma conjunção
comunica um sentido adversativo: “no entanto”. 863
διέτριψαν — do composto intensivo διατρίβω (eu passo tempo), o
ativo aoristo comunica a ideia constativa que permite ver a ação do
princípio ao fim.

2. A divisão (At 14:4–5)

4, 5. O povo da cidade ficou dividido: alguns estavam a favor dos


judeus, outros a favor dos apóstolos. Formou-se uma conspiração de
gentios e judeus, com os seus líderes, para maltratá-los e apedrejá-los
[NVI].
Lucas introduz aqui a palavra apóstolos. Um estudo em Atos revela
que Lucas emprega o termo consistentemente para referir-se aos doze
apóstolos e só duas vezes (vv. 4, 14) para referir-se a Paulo e a Barnabé.
Os Doze, com Pedro à cabeça, são portadores e guardiões do evangelho
de Cristo em Jerusalém (At 8:1, 14). Os próximos em reclamar o título
são Paulo e Barnabé, os quais foram comissionados pela igreja de
Antioquia para proclamar o evangelho aos gentios (At 13:1–3). Por
último, num sentido mais amplo, Paulo menciona Andrônico e Júnias,
que são pregadores do evangelho e são reconhecidos pelas igrejas como
apóstolos (Rm 16:7). De qualquer maneira, um apóstolo devia ser uma
testemunha da ressurreição de Cristo e devia ter sido comissionado como
o próprio Cristo. 864 Assim Matias foi designado pelo próprio Cristo em
Jerusalém e Paulo perto de Damasco. Mas Apolo e Timóteo nunca são
chamados apóstolos.

863
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 162.
864
Veja-se o comentário sobre At 1:23–25; Karl Heinrich Rengstorf, TDNT, vol. 4, p. 231.
Atos (Simon J. Kistemaker) 697
Mesmo quando Lucas em Atos designa Paulo em duas ocasiões
como apóstolo, três vezes menciona o chamado de Paulo e a comissão
que recebe para ser apóstolo aos gentios (At 9:1–19; 22:1–21; 26:2–18).
Além disso, Jesus diz que Paulo é seu instrumento escolhido para levar
seu nome diante de gentios e reis (At 9:15). Jesus o envia como um
apóstolo (At 22:21; 26:16–17; a palavra se deriva do verbo grego
apostellō [envio]). Paulo reúne os requisitos apostólicos assinalados
pelos apóstolos quando escolheram Matias como o sucessor de Judas
Iscariotes (At 1:21–22). Na experiência de sua conversão perto de
Damasco, Paulo viu Jesus com o qual chegou a ser testemunha de Sua
ressurreição. Embora não o tinha seguido desde o tempo em que João
batizava até a ascensão de Cristo, os Doze o aceitaram como um
apóstolo genuíno. Como Lucas descreve a Paulo? “O quadro que Atos
pinta não é que Paulo não era apóstolo, mas que era apóstolo
extraordinário, o qual está em consonância com os relatos do próprio
Paulo (1Co 9:1–3; 15:5–9; Gl 1:12–17)”. 865 Por último, Paulo
indiretamente chama Barnabé um apóstolo (1Co 9:6; Gl 2:9–10).
Os ensinos da fé cristã dividem os habitantes de Icônio de tal modo
que um número não pequeno identifica-se com os judeus incrédulos
enquanto que outros apoiam a Paulo e a Barnabé. O resultado é uma
confrontação. As autoridades devem intervir. Novamente, Lucas
descreve uma situação que faz lembrar o que tinha ocorrido em
Antioquia da Pisídia. Ali, os judeus com a ajuda de proeminentes e
distinguidas damas gentias temerosas de Deus influenciaram as
autoridades do governo local para que expulsassem os missionários.
Aqui, os judeus conseguem também que as autoridades da cidade
cooperem com seus planos sinistros.
Convencem os gentios que se deve fazer um atentado contra as
vidas de Paulo e Barnabé. Eles tramam e tramam até que conseguem que
os gentios tomam o assunto em suas mãos. Em seu relatório, Lucas

865
Colin Brown, NIDNTT, vol. 1, p. 136.
Atos (Simon J. Kistemaker) 698
refere-se primeiro a eles: “Tanto os gentios como os judeus com seus
governantes [tramaram] para maltratar e apedrejar [os missionários]”.
Astutamente, os judeus se apresentam como os que respaldam uma causa
que parecia ser de exclusiva incumbência dos gentios, mas que na
verdade eles mesmos provocaram. No grego, o texto não é claro a
respeito de se as palavras seus governantes referem-se aos chefes da
sinagoga judaica, aos gentios governantes da cidade, ou a ambos. 866
Considerando o paralelismo do ocorrido em Antioquia da Pisídia e
Icônio, o termo seus governantes parecesse referir-se na verdade tanto
aos oficiais da cidade como aos chefes da sinagoga. Os primeiros
estavam preocupados em manter a ordem na cidade pelo que ficaram ao
lado dos gentios e dos judeus. Para eles, Paulo e Barnabé apareciam
como vulgares alvoroçadores. O ataque contra estes produziu-se com
insolência; quer dizer, com ultrajes, insultos e impropérios de tipo
pessoal. Mas a situação pôs-se realmente séria quando tramados
atentaram contra as vidas dos enviados do evangelho, apedrejando-os.
(Curiosamente, apedrejar parecia ser algo comum no Próximo
Oriente, onde a provisão de pedras é praticamente ilimitada.) Mais uma
vez, chegou para Paulo e Barnabé o momento de sair rapidamente da
cidade (cf. At 13:50).

Palavras, frases e construções gregas em At 14:4–5


Versículo 4
τὸ πλῆθος — literalmente, o substantivo sugere “multidão”, embora
aqui seu significado é “o povo”.

866
Os comentaristas estão divididos neste ponto. Alguns afirmam que os líderes eram os judeus (p. ex.
Lenski, Acts, pp. 567–68). Outros pensam que se procurava os governantes gentios (p.ej. F. W.
Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2 vols.
[Amsterdam: van Bottenburg, 1942], vol. 1, p. 453). E ainda um terceiro grupo crê que as autoridades
vinham de ambos os campos: o judeu e o gentio; veja-se Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The
Expanding Church, 2a. ed. (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p. 231.
Atos (Simon J. Kistemaker) 699
σύν — não “na companhia de” mas sim “ao lado”. Do Códice Beza
amplia o texto, dizendo: “Mas o povo da cidade estava dividido; alguns
ao lado dos judeus, e alguns ao lado dos apóstolos, identificando-se com
eles pela palavra de Deus” (o agregado aparece em itálico). 867

Versículo 5
ὁρμὴ τῶν ἐθνῶν — embora o substantivo ὁρμή em seu contexto
significa “tentar”, a ideia de atacar, assaltar, ou atacar não poderia ser
desprezada.
σύν — neste versículo, a preposição σύν é equivalente a καί (y). 868

3. A fuga (At 14:6–7)

6, 7. Quando eles souberam disso, fugiram para as cidades licaônicas


de Listra e Derbe, e seus arredores, onde continuaram a pregar as boas
novas [NVI].
Sair fugindo de situações perigosas chegou a ser para Paulo um
estilo de vida. Em Damasco, escapou com a ajuda de crentes amigos (At
9:25; 2Co 11:33). Quando em Jerusalém os judeus procuraram matá-lo,
foi embora para Cesareia, onde embarcou para sua cidade natal, Tarso
(At 9:30). De Antioquia da Pisídia o expulsaram (At 13:50) e agora deve
sair fugindo de Icônio para salvar-se. Imaginamos que cristãos da cidade
ouviram do complô e avisaram oportunamente a Paulo e a Barnabé.
Depois de analisar os pró e os contra da situação, os missionários
decidiram buscar um novo lugar onde continuar pregando. Viajam de
direção sul até a região da Licaônia. Licaônia está situada numa meseta
montanhosa na parte sul da Ásia Menor, a uma elevação de uns mil
metros. Limita com os Montes Tauro e foi parte da província romana da
Galácia. “Licaônia é uma planície seca e quase sem vegetação,

867
Metzger, Textual Commentary, p. 420.
868
Robertson, Grammar, p. 628.
Atos (Simon J. Kistemaker) 700
extremamente poeirenta no final do verão e com um frio insuportável
durante o inverno”. 869
Primeiro chegaram os missionários a Listra, que está a 38
quilômetros de Icônio, e logo seguiram a Derbe, mais ao sudeste. Os
romanos tinham colonizado Listra da mesma forma em que tinham feito
com Antioquia da Pisídia. No entanto, a presença de uma população
romana parecia não ser importante para Paulo e Barnabé. “À parte dos
colonizadores romanos, a população de Listra consistia de duas classes:
uma, que tinha sido educada à maneira grega e no idioma grego, e os
licaônios, que eram quase analfabetos”. 870 Sabemos que Timóteo, que
nasceu e cresceu em Listra, era descendente de grego. Sua mãe era judia
mas seu pai grego, presumivelmente da classe educada (At 16:1–3). Os
romanos pertenciam à classe governante, enquanto os gregos, também
chamados helenistas, eram gente culta e em geral, abastada.
O povo comum de Listra falava o licaônio, o que demonstra que
linguisticamente ao menos, não tinham sido influenciados pela cultura
romana ou grega (embora adorassem a deuses gregos tais como Zeus e
Hermes [veja-se v. 12]). A população rural vinha à cidade onde estava o
centro de comércio regional. Ali alternavam com os comerciantes
judeus, com os cultos gregos e com os oficiais romanos. 871 Sem dúvida,
Paulo e Barnabé tinham decidido visitar uma pequena cidade regional
procuraram de alcançar com o evangelho de Cristo uma audiência mista.

Considerações práticas em At 14:1–7


O relato histórico de Atos põe de manifesto um padrão bastante
claro na experiência dos missionários. Deus escolhe Seus servos e os
envia a proclamar o evangelho de salvação. Estes homens,

869
William S. LaSor, “Lycaonia”, ISBE, vol. 3, p. 188.
870
Ramsay, Cities of St. Paul, p. 417.
871
Consulte E. M. Blaiklock, Cities of the New Testament (Westwood, N.J.:Revell, 1965), p. 31;
Ramsay, Cities of St. Paul, pp. 324–25; Colin J. Hemer, The Book of Acts in the Setting of Hellenistic
History, ed. Conrad H. Gempf (Tubinga: Mohr, 1989), pp. 228–30.
Atos (Simon J. Kistemaker) 701
corajosamente pregam e ensinam a Palavra com o resultado de que
numerosas pessoas ouvem, convertem-se e chegam a ser membros da
igreja. Logo, os opositores judeus, ajudados às vezes por gentios,
provocam uma perseguição, expulsam-nos e em alguns casos até os
colocam no cárcere. Mas Deus os salva de seus apuros e abençoa a
igreja. 872
Onde quer que Deus leva Seus ministros e missionários para falar
com ousadia em Seu nome, as forças de Satanás procuram interferir e
criar oposição a eles e à Palavra. Serão acossados, ridicularizados e se
fará mofa dos pastores não só por gente do mundo mas também às vezes
pelos próprios membros da igreja. Apesar das dificuldades que os servos
de Deus devem enfrentar, a graça divina é suficiente. Ele os sustenta
para que sigam cumprindo sua tarefa.
No meio da oposição,
Que confiem, ó Deus, em ti;
Quando o êxito coroe seus esforços,
Que Teus servos se mantenham humildes.
Não os deixes nunca
Até que no céu vejam Teu rosto.
— Thomas Kelly (Trad. libre)

Palavras, frases e construções gregas em At 14:6–7


Versículo 6
συνιδόντες — o particípio ativo aoristo de συνοράω (eu entendo,
perceber) significa “inteirar-se de”.
κατέφυγον — a forma composta deste verbo no aoristo é mais forte
que o verbo simples φεύγω (eu fujo). E significa “eles fugiram buscando
refúgio”.

872
Leland Ryken, Words of Life: A Literary Introduction to the New Testament (Grand Rapids: Baker,
1987), p. 79. Veja-se também M. D. Goulder, Type and History in Acts (Londres: SPCK, 1964), p. 16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 702
Versículo 7
O Texto ocidental (Códice Beza) amplifica o texto: “E ali eles
pregaram o evangelho, e toda a multidão foi comovida pelo ensino. E
Paulo e Barnabé permaneceram em Listra” (a palavra acrescentada
aparece em itálico). 873

D. Listra e Derbe (At 14:8–20a)

Em Atos, Lucas indiretamente apresenta um paralelo entre Pedro e


Paulo. Por exemplo, Pedro curou um paralítico na porta do templo
chamada Formosa (At 3:1–10) e Paulo restaura um aleijado em Listra
(At 14:8–10). Pedro ressuscita Dorcas em Jope (At 9:36–42) e Paulo
ressuscita Êutico (At 20:9–12). Pedro foi libertado da prisão (At 12:6–
11), também Paulo (At 16:25–28).
Lucas diz que o paralítico da porta Formosa foi curado porque tinha
fé no nome de Jesus (At 3:16). De igual maneira, quando Paulo
milagrosamente restaurou o paralítico em Listra, ele viu que “o homem
tinha fé para ser curado” (v. 9).

1. O milagre (At 14:8–10)

8-10. Em Listra estava sentado um homem aleijado dos pés, coxo


desde o seu nascimento, e que nunca tinha andado. Ele ouvia falar Paulo,
e este, fitando nele os olhos e vendo que tinha fé de que seria curado, disse
em alta voz: Levanta-te direito sobre os teus pés. Ele saltou, e andava
[TB].
Supomos que os judeus de Listra não tinham sinagoga porque no
relato não são mencionados os gentios tementes a Deus. Paulo e Barnabé
viajaram a Listra buscando refúgio dos oficiais da sinagoga judaica.
Proclamam o evangelho a todos os que quiseram ouvi-los.

873
Metzger, Textual Commentary, p. 420.
Atos (Simon J. Kistemaker) 703
Entre os ouvintes havia um homem nascido aleijado. Não pode usar
seus pés e, por conseguinte, nunca andou. Lucas descreve em detalhe a
condição do homem e ainda usa uma palavra que é idêntica à sua
descrição do aleijado da porta do templo de Jerusalém: “coxo de
nascença” (At 3:2). Em resumo, Lucas relata que durante o seu
ministério em Icônio, os apóstolos levaram a cabo muitos milagres de
cura (At 14:3); e relata com luxo de detalhes o primeiro milagre de Paulo
em Listra contrastando a severidade da situação do homem com a
magnitude do milagre realizado.
Assumimos que a ausência de uma sinagoga fazia necessário que
Paulo buscasse um lugar do qual alcançar a população local. Todos
conheciam o paralítico, que provavelmente ganhava a vida pedindo
esmolas. Paulo o cura com o propósito de ganhar a atenção do povo.
Quando veem os resultados do milagre estão preparados para ouvir o
evangelho.
O homem foi levado a um lugar de reunião pública, como o templo
ou a praça do mercado e aí o deixavam, sentado. Aqui as pessoas
chegavam e o coxo juntava algumas moedas. Neste lugar, Paulo prega o
evangelho da salvação. Embora todos os oriundos do lugar falam a
língua licaônica, podem entender Paulo, que comunicava sua mensagem
em língua grega. Entre os que ouvem o sermão de Paulo está o paralítico.
Uma leitura do texto grego indica que o homem escutou muitas vezes. 874
Qualquer que tenha sido a situação, o caso é que Paulo percebeu a
presença do aleijado e lhe prestou sua atenção. Note-se, outra vez, a
semelhança entre este relato e aquele de Pedro curando o paralítico em
Jerusalém. Ali, Pedro olhou profundamente ao paralítico (At 3:4); em
Listra, Paulo faz o mesmo.
Lucas acrescenta que o homem “tinha fé de que seria curado”. De
que classe de fé está se falando aqui? Pondo-o na forma mais simples, a

874
Alguns manuscritos têm o tempo aoristo, sugerindo uma só vez; mas outros têm o tempo
imperfeito, o que sugere ação continuada ou frequente.
Atos (Simon J. Kistemaker) 704
fé que é necessária para salvação. O verbo ser curado também pode
significar ser salvo (refira-se a At 4:12; Rm 5:10). Os evangelistas
sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) com frequência unem a fé com os
milagres de cura. Os três registram esta frase repetida por Jesus, “A tua
fé te salvou”, e dito àqueles que eram curados milagrosamente. 875 Os
escritores dos evangelhos enfatizam os milagres de cura, porém não
devemos minimizar a fé genuína daqueles que foram curados. O coxo de
Listra, depois de ouvir o sermão de Paulo, põe sua fé em Jesus. Sua fé
autêntica é necessária para restaurar os pés do aleijado (cf. Tg 5:15).876
Como pode saber Paulo que aquele homem tem fé? Guiado pelo Espírito
Santo, pode detectar que o paralítico tem fé em Jesus, que talvez
expressou de forma audível.
Paulo se dirige ao paralítico e lhe ordena em alta voz para que não
só ele pudesse ouvi-lo mas também toda a gente que estava ali: “Ponha
de pé!” No grego, o que lemos é: “Levanta-te direito sobre os teus pés.”
Assim que Paulo terminou que dizer aquelas palavras quando o homem
põe à prova sua fé. Levanta-se, reto, salta, e pela primeira vez em sua
vida começa a caminhar. Podemos imaginar a alegria e o tremendo
regozijo e os gritos de júbilo do homem e as expressões de assombro da
multidão. Todos podem ver que na verdade ocorreu um milagre, porque
o próprio homem é um testemunho vivo do milagre.

Palavras, frases e construções gregas em At 14:8–10


Versículo 8
ἀδύνατος —este adjetivo não significa “impossível” (Hb 6:4) mas
sim “incapaz” ou “incompetente”.
τοῖς ποσίν — o caso dativo é o dativo de respeito, especialmente
com referência ao adjetivo incapaz.
875
Veja-se Mt. 9:22; Mc. 5:34; 10:52; Lc. 7:50; 8:48; 17:19; 18:42. Consulte-se também Leon Morris
New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986), p. 198.
876
Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, p. 212.
Atos (Simon J. Kistemaker) 705
ἐκάθητο — o uso do tempo imperfeito do verbo sentar-se destaca a
posição contínua e habitual do paralítico sentado num lugar dado.

Versículos 9–10
ἤκουσεν — a evidência dos manuscritos com relação ao tempo
aoristo (“escutava”) e o tempo imperfeito (ἤκουεν, ele escutava
repetidamente) é igualmente forte. Os editores do texto estão divididos
neste ponto.
πίστιν τοῦ σωθῆναι — o infinitivo articular tem um sentido
consecutivo: a intenção do infinitivo é o resultado do substantivo
precedente fé. Daí “a fé é necessária para a salvação”.
ὀρθός — a posição deste adjetivo nesta frase imperativa a faz
equivalente a um advérbio: “Para te direito!”
ἥλατο καὶ περιεπάτει — note-se que o primeiro verbo (de ἅλλομαι,
eu salto) está no tempo aoristo enquanto o segundo verbo está no tempo
imperfeito.

2. A resposta da multidão (At 14:11–13)

11, 12 Quando as multidões viram o que Paulo fizera, gritaram em


língua licaônica, dizendo: Os deuses, em forma de homens, baixaram até
nós. A Barnabé chamavam Júpiter, e a Paulo, Mercúrio, porque era este o
principal portador da palavra.
a. “Quando as multidões viram o que Paulo fizera”. Os cidadãos de
Listra e as regiões circunvizinhas devem ter-se reunido num número
considerável, talvez de várias centenas, se não milhares, para que Lucas
use a forma plural multidões. Estão maravilhados do que ocorreu e em
grande agitação falam em sua língua nativa, a licaônica. No princípio,
Paulo e Barnabé não conseguem entender o que estão dizendo.
b. “Os deuses, em forma de homens, baixaram até nós”, grita o
povo. A população local, saturados de religiosidade, vê em Paulo e em
Barnabé a dois deuses que baixaram a Listra em forma humana. É
Atos (Simon J. Kistemaker) 706
provável que sua reação tenha sido inspirada na lenda segundo a qual
Zeus, chefe dos deuses, e Hermes, mensageiro dos deuses, tinham
visitado uma área da província de Frígia, mas os residentes locais se
negaram a recebê-los. Enfim, uns esposos anciãos lhes deram as boas-
vindas em sua humilde moradia. Os deuses, então, agradecidos pela
hospitalidade, recompensaram generosamente os anciãos, transformando
sua moradia num templo, e a pedido dos próprios anciãos,
transformando-os em sacerdotes daquele templo. Por outro lado, os
deuses castigaram o resto do povo destruindo seus lares. A lenda aparece
na produção literária do poeta romano Ovídio, quem viveu de 43 a.C. a
17 d.C. e quem chamou os deuses por seus nomes latinos: Júpiter (Zeus)
e Mercúrio (Hermes). 877
(Entre parêntese, permita me dizer que não devemos interpretar o
elogio que Paulo dirigiu aos cristãos da Galácia, entre os quais estavam
os irmãos de Listra, como uma referência a este episódio. Paulo escreve,
“Me recebestes como anjo de Deus” [Gl 4:14]. No entanto, é óbvio que
os listranos consideravam Paulo e a Barnabé deuses, não anjos.)
Os habitantes de Listra adoravam Zeus, a quem consideravam como
sua deidade guardiã. Nas subúrbios da cidade tinham erigido um templo
em sua honra. E como se tal coisa fosse pouco, adoravam Hermes como
o patrono dos oradores e viajantes e como o deus da fortuna e da
fertilidade. 878 Hermes, cuja tarefa era comunicar as mensagens que os
deuses enviavam aos homens, era o filho de Zeus e de Maia. Seu nome
aparece refletido na palavra hermenêutica, a que deriva do termo grego
hermēneutēs (intérprete).
Evidências arqueológicas — como inscrições a respeito de
“sacerdotes de Zeus” e uma estátua de Hermes descoberta nas
imediações de Listra — demonstram claramente que os deuses Zeus e

877
Ovídio Metamorfose 8.626–724. Algumas versões, p. ex., KJV, usam os nomes latinos.
878
“Hermes”, ISBE, vol. 2, pp. 687–88.
Atos (Simon J. Kistemaker) 707
Hermes eram motivo de adoração naquela cidade. Além disso, as
inscrições estão em língua licaônica. 879
c. “A Barnabé chamavam Júpiter, e a Paulo, Mercúrio, porque era
este o principal portador da palavra”. Para nós, teria parecido mais lógico
que se designasse a Paulo, em função de sua evidente posição de líder,
Zeus, e a Barnabé, que aparecia como um associado e ajudante de Paulo,
como Hermes. Mas este não é o caso. Indubitavelmente, a comunidade
de Listra cria que a deidade mais alta não devia trabalhar mas ser servida
por deuses inferiores. À vista da passividade de Barnabé, o povo
considerou que ele era o deus chefe Zeus e que Paulo, quem aparecia
fazendo todo o trabalho, como Hermes, seu servidor.880 Embora o livro
apócrifo Os Atos de Paulo e Tecla apresenta uma descrição de Paulo,
não creio que tenha algo que ver com esta passagem em particular e
francamente questiono sua veracidade:
“E um homem chamado Onesíforo, que tinha ouvido que Paulo
viria a Icônio, … foi pelo caminho real que leva a Listra e esperou ali
por ele … Viu vir a Paulo, um homem pequeno de estatura, calvo e de
pernas arqueadas, em aparente boa saúde, com grandes sobrancelhas e
nariz ligeiramente aquilino, cheio de cordialidade; que de repente parecia
um homem, e de repente parecia ter o rosto de um anjo”. 881
13. O sacerdote de Zeus, cujo templo ficava diante da cidade, trouxe
bois e coroas de flores à porta da cidade, porque ele e a multidão queriam
oferecer-lhes sacrifícios [NVI].
a. “O sacerdote de Zeus”. Paulo e Barnabé sabem que estão em
meio de um ambiente pagão onde o povo adora a Zeus, que tem seu
templo justo ali, nas subúrbios da cidade. A pessoa que ostenta a
autoridade religiosa e quem recebe a adoração do povo é o sacerdote de

879
Consulte-se F. F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), pp. 274–75.
880
Consulte-se Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 457.
881
The Acts of Paul and Thecla 3.2–3. Edgar Hennecke, New Testament Apocrypha, ed. Wilhelm
Schneemelcher, 2 vols. (Filadelfia: Westminster, 1963–64), vol. 1, pp. 353–54.
Atos (Simon J. Kistemaker) 708
Zeus. Em outras palavras, os apóstolos devem submeter-se a essa
autoridade porque eles são visitantes no território que controla. Não é
fácil determinar depois de quanto tempo os missionários entenderam o
que dizia o povo: “Os deuses, em forma de homens, baixaram até nós”.
Mas quando o sacerdote de Zeus ouve estas exclamações dá-se conta que
tem trabalho a realizar: oferecer sacrifícios aos deuses que vieram visitar
o povo de Listra. Obviamente, o sacerdote quer agradar os deuses e
evitar assim que se repetisse o castigo que os deuses tinham infligido aos
pouco hospitaleiros cidadãos de Frígia.
b. “À porta da cidade”. Há evidência histórica de que fora das
muralhas da cidade havia um templo dedicado à adoração pagã de Zeus.
O templo era chamado “Templo de Zeus fora da cidade”. 882 O sacerdote
toma touros adornados com grinaldas feitas de lã e os leva fora da
cidade, ao templo de Zeus. A palavra leva descreve as portas da cidade
ou as portas do templo. Aqui o sacerdote e a multidão desejam
reverenciar a Paulo e Barnabé.

Palavras, frases e construções gregas em At 14:13


πυλῶνας — devido à forma plural, provavelmente a palavra não se
refere à uma casa, mas sim às portas da cidade.

3. A reação dos apóstolos (At 14:14-18)

O relato de Lucas dá a impressão de que entre a cura do paralítico e


a aparição do sacerdote com seus animais preparados para o sacrifício
passou algum tempo. Aparentemente, ninguém pôs Paulo e Barnabé a
par do que as multidões estavam dizendo em língua licaônica, pelo que
num começo não se deram conta que todo aquele sacrifício que se
preparava era em honra deles.

882
Ernst Haenchen menciona que este nome “era de uso amplo e cmum”. The Acts of the Apostles: A
Commentary, trad. por Bernard Noble y Gerald Shinn (Filadélfia: Westminster, 1971), p. 427 n. 2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 709
14, 15. Ouvindo isso, os apóstolos Barnabé e Paulo rasgaram as
roupas e correram para o meio da multidão, gritando: Homens, por que
vocês estão fazendo isso? Nós também somos humanos como vocês.
Estamos trazendo boas novas para vocês, dizendo-lhes que se afastem
dessas coisas vãs e se voltem para o Deus vivo, que fez o céu, a terra, o
mar e tudo o que neles há [NVI].
Observemos os seguintes pontos:
a. Vestidos rasgados. De algum modo, os apóstolos se põem de
sobreaviso do que a multidão dirigida pelo sacerdote de Zeus estava
planejando fazer. Presumivelmente algum dos discípulos dos apóstolos
serviu de informante e intérprete (v. 20). Quando se deram conta do que
estava por ocorrer, Paulo e Barnabé rasgam suas vestes em sinal de
profunda comoção emocional. 883 Eles se sentiam grandemente afligidos
porque, como servos de Deus, sabem que a glória e a honra pertencem
exclusivamente ao Deus Todo-poderoso. Na verdade, quando por ordem
de Deus Pedro entrou na casa de Cornélio em Cesareia, este se prostrou
diante de seus pés para lhe render veneração. Mas Pedro lhe disse:
“Levanta-te, que eu também sou homem” (At 10:26, TB; veja-se
também Ap 19:10; 22:8–9). Além disso, os apóstolos sabem que quando
o povo adorou o rei Herodes Agripa I, dizendo que sua voz era como a
voz de um deus, Deus o castigou e pouco tempo depois morreu (At
12:21–23).
Não admira, então, que Paulo e Barnabé rasguem suas roupas para
indicar sua agonia mental diante desta situação. Rejeitam plenamente a
tentação de deixar-se adorar pela multidão e reagem com grande aflição.
Vieram pregar o evangelho de salvação a povos que servem a deuses
pagãos, mas agora veem que o povo perverte o evangelho ao considerar
que os proclamadores são deuses a quem é preciso adorar prontamente.
Note-se, primeiro, que Lucas de novo usa a expressão apóstolos
(veja-se v. 4) para ambos os missionários. Além disso, menciona

883
Esta prática, tipicamente judia (p.ej. Mar. 14:63) não era desconhecida no mundo greco-romano.
Veja-se Bauer, p. 188, com referência ao verbo romper.
Atos (Simon J. Kistemaker) 710
primeiro a Barnabé, talvez porque os licaônios consideravam que ele era
o mais importante, Zeus.
b. Humanos como vocês. Pela primeira vez, Paulo e Barnabé põem
as coisas na devida perspectiva. Correm ao encontro da multidão
gritando: “Homens, por que vocês estão fazendo isso? Nós também
somos humanos como vocês” (cf. Tg 5:17). Os apóstolos não perdem
tempo e vão ao coração do assunto e pedem uma explicação. Querem
saber por que o povo está se preparando para oferecer sacrifícios. E
porque para esta gente oferecer sacrifícios a seus deuses era coisa
normal, tanto Paulo como Barnabé declaram que eles são pessoas
comuns e correntes e não divinas. Explicam que não são homens-deuses
mas mensageiros enviados por Deus. Devem ensinar o povo de Listra as
verdades elementares a respeito do Deus vivo.
c. Mensagem do evangelho. “Estamos trazendo boas novas para
vocês”. O discurso de Paulo e Barnabé difere substancialmente do
sermão que Paulo pregou à sua audiência de judeus-gentios em
Antioquia da Pisídia. Ali, os gentios tementes a Deus tinham sido
instruídos no ensino das Escrituras. Aqui, os missionários devem
começar com as verdades fundamentais e não podem assumir que a
multidão tenha algum conhecimento a respeito de Deus e Sua obra. O
discurso de Paulo no Areópago de Atenas (At 17:24–28) assemelha-se
aos comentários que fazem em Listra. Tanto aqui como em Atenas,
Paulo ensina que Deus é o Criador e Sustentador do universo. Não
começa falando da nação Israel, mas da natureza e sua criação pelo único
Deus que sustenta e governa este mundo. Paulo e Barnabé devem ensinar
as pessoas que não tiveram o benefício da instrução religiosa por
residentes judeus. Diferente dos gentios tementes a Deus de Antioquia da
Pisídia e em Icônio, o povo em Listra não teve preparação alguma para
receber o evangelho.
Os missionários confrontam diretamente o povo com a prática pagã
da idolatria, dizendo que seus ídolos são “coisas inúteis”. Através de
todo o Antigo Testamento, esta expressão refere-se aos ídolos inúteis das
Atos (Simon J. Kistemaker) 711
884
nações gentílicas. Paulo e Barnabé buscam não ofender os seus
ouvintes mas devem estabelecer o contraste entre as “coisas inúteis” e o
Deus vivo. Implicitamente, indicam que os ídolos são objetos
inanimados, que estão mortos (refira-se a Sl. 115:4–8). Por contraste,
Deus é um Deus vivo “que fez os céus e a terra e o mar, e tudo o que
neles há”. Esta é uma citação direta do relato da criação do Antigo
Testamento (Êx 20:11; Sl. 146:6). Num sentido, os apóstolos ensinam
aos gentios a respeito da origem do mundo e indiretamente lhes estão
dizendo que seus ídolos são incapazes de fazer qualquer coisa.
De maneira que, desafiam-nos a voltar-se de seus ídolos ao Deus
vivo, conhecê-Lo e converter-se a Ele (cf. 1Ts 1:9). Se se voltarem de
seus deuses inúteis, eles devem voltar-se a Deus que criou o céu, a terra,
e o mar. Os gentios tinham três classes de deuses para o universo
visível. 885 No entanto, os apóstolos ensinam que o único Deus que criou
todas as coisas vive e dá vida.
16, 17. No passado ele permitiu que todas as nações seguissem os
seus próprios caminhos. Contudo, Deus não ficou sem testemunho:
mostrou sua bondade, dando-lhes chuva do céu e colheitas no tempo
certo, concedendo-lhes sustento com fartura e um coração cheio de
alegria [NVI].
Supõe-se que nesta ocasião é Paulo quem fala, ensinando às pessoas
não a respeito de Jesus, o Salvador, e sim a respeito do Deus único, que
criou todas as coisas. Quando fala com os licaônios de Deus o Criador,
espera que lhe perguntem por que Deus não se revela a eles. Paulo
antecipa esta pergunta e sua resposta é que durante as passadas gerações,
Deus permitiu às nações ir por seu próprio caminho.
A expressão no passado deve ser entendida no mais amplo sentido
possível, porque se refere aos tempos de Noé. Deus salvou oito pessoas
das águas do dilúvio; tanto o povo de Deus como as nações incrédulas

884
P. ex., veja-se Dt. 32:21; 1Rs. 16:13, 26; 2Rs. 17:15; Sl. 31:6; Jr. 2:5; 8:19; 10:8.
885
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo:
Clark, 1877), vol. 2, p. 641.
Atos (Simon J. Kistemaker) 712
descenderam destas oito. A expressão todas as nações não inclui a Israel,
porque Deus constantemente chamou Seu próprio povo para que se
arrependesse. Ao longo dos séculos, enquanto os patriarcas e Israel
recebiam a revelação especial de Deus, as nações do mundo viviam
longe de Deus.
Paulo só diz que Deus permitiu às nações extraviar-se. Deus sempre
esteve a par do que as nações faziam, mas Ele lhes permitiu viver em
pecado. Paulo está sugerindo que os gentios não cumpriram os
mandamentos de Deus. Preferiram suas próprias formas de vida pelo que
devem assumir a responsabilidade de seus atos. Não podem dizer que
agiram por ignorância, porque como diz Paulo, Deus Se revelou a eles
desde a criação do mundo, pelo que não têm desculpa (Rm 1:19–20). Em
seu discurso do Areópago, Paulo diz aos filósofos atenienses essa mesma
verdade: “Tendo passado por alto os tempos de ignorância, Deus agora
ordena a todos os homens onde quer que estejam que se arrependam” (At
17:30; veja-se também 1Pe 4:3). O período de ignorância chegou a seu
fim agora, com a proclamação das Boas Novas pelos apóstolos.
Em reação ao que ouviram, os licaônios poderiam apontar os
muitos anos que passaram da revelação de Deus a Israel e ao incontável
número de gentios ignorantes. Talvez poderiam aduzir que não eram
conscientes da existência de Deus. A verdade de Deus é eterna e
inalterável, 886 e Paulo prova que Deus “nunca se deixou sem
testemunhas”. A testemunha, naturalmente, é o testemunho eloquente da
natureza. Toda a criação canta louvores a Deus e testifica de Sua
bondade. Paulo dá três exemplos que provam claramente o testemunho
aos gentios:
a. Mostra-lhes bondade. Deus concede aos gentios o benefício da
chuva no tempo apropriado. Graças à chuva é possível colher o alimento
para eles e para seus animais. O fato de que se mantém o ciclo constante

886
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 713
de chuvas e colheitas é prova abundante que Deus, Criador de todas as
coisas, sustenta tudo o que criou.
b. Provê-lhes de alimento. Deus abre Sua mão e dá alimento a todo
homem e a todo animal sem receios nem discriminação. Como o disse o
salmista: “Ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre
justos e injustos” (Mt 5:45). Deus envia a chuva para abastecer a terra e
assim possa dar abundantes colheitas (veja-se Lv 26:4; Sl. 65:9–13; Jr
5:24). A palavra chuvas é uma referência tácita ao mar que provê terra
que recebe as precipitações em forma de chuva, gelo ou neve. Deus dá a
Suas criaturas as colheitas a seu tempo: pasto para forragem e grão para
o consumo humano. De vez em quando a seca faz com que se percam
algumas colheitas, mas Deus não abandona Sua criação. Pelo contrário,
Ele sempre provê o necessário para sustentar o homem e o animal.
c. Dá corações alegres. Deus não só provê a comida necessária
para toda Sua criação, mas também enche de alegria o coração do
homem. Mesmo quando o homem pecador nega ou recusa dar graças a
Deus por todas as Suas bênçãos, Deus de qualquer maneira sacia o
coração do pecador com prazer e deleite. O homem por si mesmo é
incapaz de criar alegria, mas Deus lhe concede essa alegria. Numa
palavra, Deus supre o homem com tudo o que necessita e o faz feliz
também.
Os licaônios devem reconhecer que eles mesmos não têm controle
sobre as chuvas anuais nem sobre a produção agrícola. Até a alegria que
têm depende de circunstâncias externas. São dependentes de Deus, quem
abre Sua mão e lhes dá quanto necessitam. Paulo, então, prega aos
cidadãos de Listra a mensagem que Deus, quem criou o mundo,
fielmente se preocupa por eles, dando as chuvas, as colheitas, o alimento
e a felicidade.
18. Dizendo isto, foi ainda com dificuldade que impediram as
multidões de lhes oferecerem sacrifícios.
Tanto Paulo como Barnabé estão pregando às multidões em Listra,
ao tempo que procuram dissuadi-los de oferecerem sacrifícios. Devem
Atos (Simon J. Kistemaker) 714
recorrer a todo seu sentido comum, suas forças, seu tato e seu talento
para mostrar à multidão que Deus, não os apóstolos, é digna de toda
honra e respeito. Pelo fato de que no idioma grego uma partícula
negativa precede o verbo, inferimos que as multidões ainda não
começaram as cerimônias. Os missionários fazem tudo o que podem para
persuadi-los a nem sequer iniciarem o ritual. Uns poucos manuscritos
gregos acrescentam uma cláusula adicional (“e que se vá cada um para
sua casa”). O propósito é prover um final suave à frase, mas a intenção
falha, porque a cláusula extra dá uma união muito forçada. 887 Além
disso, o apoio para este agregado é realmente fraco.
Lucas esboça o paralelo entre Pedro e Paulo e seus respectivos
ministérios. Pedro cura um paralítico em Jerusalém e Paulo restabelece a
saúde do aleijado de Listra. Mas note-se a diferença: Depois de ter
curado o homem, Pedro prega a uma multidão do povo judeu e se
acrescentam à igreja de Jerusalém uns cinco mil homens. Paulo realiza o
mesmo milagre em Listra e as multidões de gentios creem que ele e
Barnabé são deuses aos quais querem honrar com sacrifícios. O efeito da
mensagem de Paulo é mínimo em comparação com o efeito que o
sermão de Pedro tem em Jerusalém. No entanto, a igreja que foi fundada
em Listra demonstra o triunfo da fé (vejam-se vv. 21–23). Com este
relato, Lucas descreve as dificuldades que Paulo e Barnabé devem
enfrentar ao pregar uma audiência gentílica. 888

Considerações doutrinais em At 14:14–18


Quando Paulo prega o evangelho aos judeus, em geral começa
citando ou a Abraão ou à formação da nação israelita no Egito. No
entanto, quando se dirige aos gentios, começa com o relato da criação.

887
Metzger, Textual Commentary, p. 424.
888
E. Lerle sustenta que o sermão em Listra não se originou com Paulo; e nega que Lucas o tenha
escrito. Pelo contrário, ele considera que este sermão é um exemplo da pregação dos cristãos
primitivos. Seu argumento, porém, carece de lógica e falha em provar que Paulo não tenha sido o
orador. “Die Predigt in Lystra (Acta xiv. 15–18)”, NTS 7 (1960): 46–55.
Atos (Simon J. Kistemaker) 715
Assim, ensina a estes que Deus é o criador do céu, da terra e do mar.
Paulo os instrui no conhecimento elementar sobre a formação do mundo
(refira-se a At 17:22–31; Rm 1:19–20; 2:14–15).
Com efeito, a doutrina da criação é fundamental para a mensagem
de redenção. 889 Pela fé, o homem deve conhecer a Deus em Jesus Cristo
como o Criador tanto como o Redentor (Ec 12:1–7). O escritor da
Epístola aos Hebreus, ao mencionar repetidamente o conceito da fé,
afirma categoricamente que “pela fé entendemos que o universo foi
formado pela palavra de Deus”, e que “sem fé é impossível agradar a
Deus” (Hb 11:3, 6). O homem é incapaz de entender a redenção além das
Escrituras. Ele deve conhecer a Palavra de Deus revelada para entender
sua condição caída, sua necessidade de salvação, e sua libertação do
pecado e da morte espiritual através de Jesus Cristo. Um conhecimento
básico da natureza leva-o a Deus o Criador, mas o conhecimento das
Escrituras leva-o a Cristo seu Redentor. Dito em poucas palavras, só a
Bíblia ensina ao homem a doutrina do pecado, da salvação e do serviço.

Palavras, frases e construções gregas em At 14:15–18


Versículo 15
τί — a tradução desta frase interrogativa é “Por que estão vocês
fazendo isso?” e não “O que estão fazendo?” 890
ἐπιοτρέφειν — este infinitivo ativo presente (“voltar”) expressa
propósito.

889
Consulte-se Charles W. Carter y Ralph Earle, The Acts of the Apostles (Grand Rapids: Zondervan,
1973), p. 200; Willem A. VanGemeren, The Progress of Redemption: The Story of Salvation from
Creation to the New Jerusalem (Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1988), p. 40.
890
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#299.1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 716
Versículos 16–17
πάντα τὰ ἕθνη — “todas as nações”. No entanto, Israel não está
incluída nesta categoria, porque o povo de Deus recebeu sua revelação
especial (Rm 3:2).
καίτοι — esta partícula adversativa (“e ainda”) é seguida de uma
dupla negativa (οὑκ ἀμάρτυρον, não sem testemunha) para indicar
ênfase.
Ao usar três particípios ativos presentes, Paulo demonstra o
contínuo cuidado de Deus pela criação em geral e pelo homem em
particular: ἀγαθουργῶν (fazendo bem), διδούς (dando), e ἐμπιπλῶν
(enchendo).

Versículo 18
κατέπαυσαν — a preposição κατά neste verbo composto tem uma
força perfectiva e dá ao verbo o sentido de restringir. 891
τοῦ μὴ θύειν — depois do verbo deter a partícula negativa μή antes
do infinitivo θύειν pareceria redundante. O infinitivo (“sacrificar”) é
equivalente a um infinitivo de resultado.

4. A violência (At 14:19–20a)

Paulo e Barnabé tinham fugido de Antioquia da Pisídia e Icônio a


Listra em busca de proteção dos judeus que tentavam atacá-los e tirar-
lhes a vida (v. 5). Buscavam segurança na cidade rural de Listra, longe
dos centros de residência dos judeus. No entanto, as notícias
relacionadas com os apóstolos chegaram aos ouvidos dos judeus de
Antioquia e de Icônio. Seu ódio era tão intenso que viajaram até Listra
para cumprir seu plano e apedrejar a Paulo.

891
Robertson, Grammar, p. 606.
Atos (Simon J. Kistemaker) 717
19, 20a. Então alguns judeus chegaram de Antioquia e de Icônio e
mudaram o ânimo das multidões. Apedrejaram Paulo e o arrastaram
para fora da cidade, pensando que estivesse morto. Mas quando os
discípulos se ajuntaram em volta de Paulo, ele se levantou e voltou à
cidade [NVI].
Assumimos que passou algum tempo do episódio que se seguiu à
cura do aleijado. Paulo e Barnabé continuam seu trabalho missionário e
podem formar o núcleo de uma igreja. Ganham um bom número de
discípulos (vv. 20a, 22), dos quais alguns chegam a ser anciãos (v. 23).
Em uns poucos manuscritos gregos, cujo apoio é bastante fraco, a
transição entre os versículos 18 e 19 é suavizada com a seguinte frase:
“Mas enquanto [os apóstolos] permaneciam ali e ensinavam, certos
judeus vieram de Icônio e de Antioquia”. 892
Pode-se imaginar o fanatismo de uns poucos judeus! Os de
Antioquia da Pisídia viajam 170 km. para chegar a Listra 893 com o fim
de levar a cabo seu plano de matar Paulo. Persuadiram as multidões de
licaônios a ouvi-los antes que aos missionários. E embora os judeus não
pudessem objetar nada do que Paulo e Barnabé faziam ou disseram em
Listra, de qualquer maneira caluniaram os apóstolos opondo-se ao seu
trabalho. Assim, convencem os gentios a tirar os intrusos da cidade. Sem
nenhum impedimento da parte das forças romanas, recolhem pedras e as
lançam na direção de Paulo. Talvez o ataque foi só a Paulo por ser este o
principal orador.
Lucas indica que o apedrejamento ocorreu dentro da própria cidade,
porque depois de ver os efeitos de seu ataque brutal, crendo que tinham
dado morte a Paulo, arrastam-no da cidade. Naturalmente, perguntamo-
nos por que as pessoas são tão volúveis, visto que pouco antes tinham
considerado os apóstolos como deuses que os estavam visitando, e logo

892
Metzger, Textual Commentary, p. 425.
893
Evidências arqueológicas mostram que Antioquia e Listra eram colônias irmãs no império romano.
Veja-se William M. Ramsay, The Church in the Roman Empire Before A.D. 170. (Londres: Hodder
and Stoughton, 1907), p. 50; veja-se também Donald A. Hagner, “Lystra”, ISBE, vol. 3, p. 193.
Atos (Simon J. Kistemaker) 718
está apedrejando a Paulo. Mas a caprichosa conduta das multidões
sempre foi imprevisível. Pense-se, por exemplo, nos judeus da sinagoga
de Nazaré que num momento estavam maravilhados pelas palavras que
Jesus lhes dizia, e pouco depois O queriam despenhar (Lc 4:22, 29). A
multidão de Jerusalém gritava “Hosana” no domingo de Ramos e na
seguinte sexta-feira “Crucifica-o” (Mt 21:9; Lc 23:21).
Os golpes recebidos com as pedras deixaram Paulo inconsciente,
pelo que dá a impressão que morreu. Seus atacantes o tiraram então da
cidade, onde o abandonam, com nenhum interesse em enterrá-lo. Paulo,
contudo, não está morto. Milagrosamente, Deus permitiu que ele se
recupere. A própria experiência mudou a vida de Paulo, porque agora ele
sabe o que significava sofrer por causa do evangelho. Mais que nunca
antes, Paulo exalta a Cristo em seu ministério a judeus e a gentios.
Em sua epístola aos coríntios, Paulo menciona que uma vez foi
apedrejado (2Co 11:25; veja-se também 2Tm 3:11). E em sua Epístola
aos Gálatas, entre os quais estavam os crentes de Listra, ele diz que leva
em seu corpo as marcas de Jesus (Gl 6:17). Para Paulo, a experiência de
ser apedrejado possivelmente trouxe à sua memória o apedrejamento de
Estêvão, cuja morte cruel ele mesmo tinha aprovado (At 8:1a). Estêvão
morreu, mas Deus conservou a vida a Paulo para continuar levando
adiante o evangelho da salvação.
Imagino os discípulos de Paulo formando um círculo ao redor de
seu corpo e lhe protegendo de qualquer novo ataque. Sua alegria é
indescritível quando Paulo dá sinais de vida, que depois de um tempo se
levanta e caminha. Talvez amparado pela escuridão da noite, 894 Paulo
cobrou ânimo e voltou a Listra, passando a noite na cidade. Seu
ministério ali terminou temporariamente, e no dia seguinte os dois
missionários decidem ir para outro lugar.

894
Os Manuscritos ocidentais acrescentam a cláusula explicativa, “quando a multidão se foi e a noite
teve chegado”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 719
Considerações práticas em At 14:19–20
Nos escritos de Lucas, encontramos várias ideias desenvolvidas.
Em seu Evangelho, enumera três parábolas: a ovelha perdida, a moeda
perdida, e o filho perdido (Lc 15:4–32). Na primeira, fala de uma ovelha
perdida entre cem; na segunda, é uma moeda perdida entre dez; e na
terceira, é um filho perdido entre dois.
Em Atos, Lucas também desenvolve a ideia de três episódios. Por
exemplo, o Sinédrio coloca no cárcere Pedro e João e os deixa livres não
sem antes lhes recomendar que não voltem a pregar no nome de Jesus
(At 4:3–21). Logo, o Sinédrio prende todos os apóstolos, mas os deixa
livres sem antes açoitá-los (At 5:18–40). Finalmente, os membros do
Sinédrio, depois de ouvir Estêvão, expressam sua ira apedrejando-o até
matá-lo (At 7:54–60).
Em seu relato da primeira viagem missionária, Lucas de novo
apresenta um fato com três elementos. Os apóstolos são expulsos de
Antioquia da Pisídia (At 13:50); de Icônio fogem para escapar de uma
multidão hostil que tenta apedrejá-los (At 14:5); e em Listra, Paulo
sobrevive depois que seus atacantes o apedrejam e assumem que lhe
deram morte (At 14:19).

Palavras, frases e construções gregas em At 14:19–20a


Versículo 19
Note-se que Lucas usa dois verbos e dois particípios no tempo
aoristo para enfatizar uma só ocorrência: o verbo ἐπῆλθαν (eles
apareceram), o particípio πείσαντες (eles persuadiram), o particípio
λιθάσαντες (eles apedrejaram), e o verbo ἔσυρον (eles arrastaram). Os
particípios devem ser traduzidos como verbos finitos.
τεθνηκέναι — o infinitivo perfeito é o objeto deste gerúndio
νομίζοντες (eles estiveram pensando). O infinitivo é parte de um verbo
incompleto θνῄσκω (eu morro), o qual no perfeito significa “Eu morri”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 720
Versículo 20a
κυκλωσάντων — com o substantivo μαθητῶν (discípulos) este
particípio ativo aoristo (de κυκλόω, eu rodeio, cercar) forma a
construção absoluta genitiva.

E. Antioquia da Síria (At 14:20b–28)

1. As igrejas se fortalecem (At 14:20b–25)

20b. No dia seguinte, ele e Barnabé partiram para Derbe [NVI].


Paulo e Barnabé se dão conta que temporariamente seu esforço
missionário em Listra chegou a seu fim. Portanto, à manhã seguinte
seguem viagem. Decidem ir em direção sudoeste para visitar a cidade de
Derbe, que ficava a 100 km. de Listra. Caminhando sem parar,
provavelmente fariam a distância em dois ou três dias.
Com base em duas inscrições, os arqueólogos puderam identificar o
lugar onde estava Derbe perto ou no monte Kerti Hüyük, a 50 km. a leste
de Gudelisin. (Perto do meio século os estudiosos tinham considerado
Gudelisin como o lugar provável onde estava Derbe.) Agora que os
arqueólogos verificaram o sítio exato de Derbe, informação mais antiga
foi revisada e descartada. 895
21. E, tendo anunciado o evangelho naquela cidade e feito muitos
discípulos, voltaram para Listra, e Icônio, e Antioquia.
Lucas não nos dá um relato sobre a obra realizada por Paulo e
Barnabé em Derbe. Somente diz, e de forma muito concisa, que os
apóstolos pregaram o evangelho, que como resultado do qual muitas
pessoas chegaram a ser discípulos (ou aprendizes), e que Paulo e

895
Bastiaan Van Elderen, “Derbe”, ISBE, vol. 1, pp. 224–25; veja-se seu artigo “Some Archaeological
Observations on Paul’s First Missionary Journey” em Apostolic History and the Gospel, ed. por W.
Ward Gasque e Ralph P. Martin (Exeter: Paternoster; Grand Rapids: Eerdmans, 1970), pp. 156–61.
Veja-se também E. M. Blaiklock, “Derbe”, ZPEB, vol. 2, p. 103; Ramsay, Cities of St. Paul, p. 395; y
George Ogg, “Derbe”, NTS 9 (1963); 367–70.
Atos (Simon J. Kistemaker) 721
Barnabé seguiram os rastros de seu caminho anterior e visitaram as três
congregações em Listra, Icônio e Antioquia, respectivamente. Em Derbe,
onde os apóstolos pregaram na cidade, não ocorreu nenhum incidente
perturbador. De fato, Paulo repete o relato das perseguições em
Antioquia, Icônio e Listra (2Tm 3:11), porém não inclui Derbe.
Lucas não dá a razão por que Paulo e Barnabé não continuaram a
sua viagem a Tarso, sua cidade natal, na província da Cilícia. Mesmo
quando tivesse estado inclinado a visitar as igrejas da Cilícia, Paulo tinha
um coração pastoral pelos recém-convertidos nas cidades das quais tinha
tido que sair fugindo. Por causa de sua angustiosa experiência em Listra,
provou ser um apóstolo de Jesus Cristo ainda mais decidido que nos
tempos prévios. Foi sua tarefa fortalecer os crentes e organizar as igrejas.
Em Atos, Derbe é mencionada outras três vezes. Em sua segunda
viagem missionária, Paulo viajou de Antioquia da Síria através da Cilícia
para dar ânimo às igrejas. Dali continuou sua viagem a Derbe e mais
tarde a Listra (At 15:41–16:1). Em Listra ou em Derbe havia um
discípulo chamado Timóteo que era membro de uma dessas igrejas (At
16:1); ali também tinha sua residência Gaio (At 20:4). Embora saibamos
pouco das igrejas em Listra e em Derbe, conhecemos ao menos dois de
seus obreiros.
Implicitamente Lucas descreve a coragem dos dois apóstolos ao
voltar às cidades onde tinham tropeçado com tão fanática hostilidade.
Além disso, Lucas registra a amorosa preocupação que os missionários
desdobraram em favor das nascentes igrejas naquelas cidades. De fato, o
que obrigou Paulo e Barnabé a voltar àquelas cidades foi sua
preocupação pastoral pelos crentes. Os missionários perceberam que os
discípulos poderiam desanimar-se diante das perseguições e aflições que
os crentes teriam que suportar da parte de seus compatriotas. As
pequenas congregações poderiam ser feitas em pedaços, o que poderia
ser tomado como uma prova da futilidade dos esforços dos apóstolos. E
se isso acontece, Satanás e seus demônios obteriam uma vitória.
Atos (Simon J. Kistemaker) 722
22. Paulo e Barnabé fortaleceram os discípulos e os animaram a
perseverar na fé, dizendo “Através de muitas tribulações entraremos no
reino de Deus” [trad. Kistemaker].
Do contexto podemos deduzir que duas razões motivaram os
apóstolos a passar bastante tempo com estes discípulos: continuam
fortalecendo os novos cristãos em sua fé e seguem animando-os (cf. At
15:32, 41; 16:5; 18:23). Estes recém-convertidos de Listra não estão
preparados para as tribulações que devem suportar. Embora muitos dos
judeus convertidos ao cristianismo na Palestina, Fenícia, Síria e Chipre
podiam contar as perseguições que tinham tido que suportar depois da
morte de Estêvão (At 8:1), o sofrer por sua fé seria uma nova e
inquietante experiência para os cristãos gentios. Podemos imaginar a
legítima pergunta que teriam formulado: «Por que não protege Deus o
Seu povo?»
Paulo e Barnabé estão em condições de responder perguntas
relacionadas com maus procedimentos e penalidades. Eles sabem que
Deus usa a adversidade para manter o Seu povo fiel à fé. Lembre-se que
Paulo reprova estes mesmos cristãos gentios na Galácia, por ter tornado
rapidamente do evangelho para um evangelho diferente, que nem sequer
se poderia chamar evangelho (Gl 1:6–7). 896 Portanto, para manter os fiéis
aderidos à sua confissão cristã e fazer com que ponham sua confiança
em Cristo Jesus, Deus manda provas a Seu povo.
De modo que, os apóstolos dizem a estes recém-conversos,
“Através de muitas provas entraremos no reino de Deus”. A preposição
através é descritiva da vida que os cristãos devem viver; através de
provas devem entrar pessoalmente no reino de Deus. O conceito reino de
Deus aparece em numerosas ocasiões nos Evangelhos de Mateus,
Marcos e Lucas. Mas em Atos, a expressão é muito rara e quando
aparece só é com referência à pregação (At 1:3; 8:12; 14:22; 19:8; 28:23,

896
Alguns comentaristas interpretam a palavra fé objetivamente: fé é o equivalente de cristianismo.
Veja-se Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 167. Outros entendem o termo subjetivamente: fé
pessoal em Cristo. Consulte-se Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, p. 469.
Atos (Simon J. Kistemaker) 723
31). Quer dizer, o crente que responde ao evangelho de Cristo entra no
reino. Note-se que os apóstolos ficam no mesmo nível que os discípulos
quando dizem que “entraremos no reino”. 897
23. E, tendo nomeado anciãos em cada igreja, e orado com jejuns,
eles os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido [AV].
a. Nomearam. No grego, o termo nomear na verdade significa
aprovar mediante o ato de levantar a mão numa reunião congregacional.
Com a aprovação de uma assembleia, os indivíduos foram nomeados
para servir num determinado posto. Em outras palavras, o levantar a mão
era equivalente a escolher oficiais, neste caso para servir no governo da
igreja local. Mesmo quando o texto diz que os apóstolos nomearam
anciãos aos crentes em cada igreja, não cremos que o tenham feito sem a
participação da congregação local. Assim como os crentes participavam
coletivamente na oração e no jejum, assim tomavam parte em escolher
os anciãos para suas igrejas. 898 No entanto, o texto claramente diz que
Paulo e Barnabé nomearam anciãos para os crentes. Alguns
comentaristas afirmam que as congregações estavam excluídas da
eleição de anciãos. “Embora seja verdade que a palavra [nomearam]
poderia indicar eleição congregacional, não é esse o caso neste
contexto”. 899
O assunto é difícil. De acordo com 2 Coríntios 8:19, onde Tito foi
eleito pelas igrejas, a prática estabelecida pelos apóstolos nas igrejas
parece ser que a congregação local nomeava e comissionava seus
oficiais. O Didaquê (também conhecido como O ensino dos doze
Apóstolos), que presumivelmente data do século I, oferece esta regra às
897
Henry Alford alude à possibilidade de tomar o pronome nós como se referindo ao “narrador”, que
neste caso é Lucas. Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed., 4
vols. (1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 160.
898
Lenski, Acts, p. 586. Veja-se também Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 1, pp. 470–71;
Jacques Dupont, Nouvelles Études sur les Actes des Apôtres, Lectio Divina 118 (París: Cerf, 1984),
pp. 352–55.
899
Harrison, Interpreting Acts, p. 237; veja-se também Haenchen, Acts, p. 436. Bauer categoricamente
afirma que “na Licaônia e na Pisídia os presbíteros não eram escolhidos pelas congregações”, p. 881.
Consulte-se Eduard Lohse, TDNT, vol. 9, p. 437.
Atos (Simon J. Kistemaker) 724
igrejas: “Portanto nomeiem [levantando a mão] para vocês mesmos
bispos e diáconos dignos do Senhor”. 900
Seguindo a regra analógica de comparar Escritura com Escritura,
sabemos que em Atos Lucas apresenta “três aspectos típicos de eleição e
ordenação nos casos de Matias (At 1:23–26), os Sete (At 6:1–6), e Paulo
e Barnabé (At 13:1–3)”. 901 Estas analogias demonstram que as
assembleias escolheram os candidatos, logo oravam e jejuavam, depois
disso os ordenavam. De igual maneira, no caso dos anciãos da Licaônia e
Pisídia, os apóstolos aprovaram as seleções feitas pelas igrejas e depois
de orar e jejuar, nomearam-nos.
b. Anciãos. A expressão do grego presbyteros é um adjetivo
comparativo que quer dizer “ancião”. Paulo usa este termo
indistintamente que episkopos (bispo, supervisor). A palavra ancião faz
referência à idade de uma pessoa e a expressão supervisor ao
cumprimento de seu ofício. Em suas epístolas pastorais, Paulo usa às
vezes ambos os termos no mesmo contexto (1Tm. 3:1–2; 5:17; Tt 1:5–7).
A palavra ancião tem sua origem na prática judaica de governar a vida
religiosa e política em Israel (veja-se At 4:5). Mas até na Grécia e no
Egito, os anciãos governavam e assessoravam como representantes nos
governos locais e estatais. 902 Em Jerusalém, a igreja primitiva adotou a
prática de nomear anciãos para governar a igreja (At 11:30).
c. Confiança. Lucas escreve, “[Os apóstolos] os encomendaram ao
Senhor em quem haviam crido”. Referem-se as palavras os aos anciãos
ou a todos os cristãos dessas igrejas? A primeira leitura, estaríamos
inclinados a aplicar estas palavras só aos anciãos. No entanto, devido ao
fato de que no grego a frase em quem haviam crido está no tempo mais-
que-perfeito (o que sugere ação no passado com implicação para o

900
Os pais apostólicos, vol. 1, Didaquê 15.1 (LCL).
901
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 237.
902
Lothar Coenen, NIDNTT,‚ vol. 1, p. 193. E consulte-se Adolph Deissmann, Bible Studies (reimp.,
Winona Lake, Ind.: Alpha, 1979), p. 156.
Atos (Simon J. Kistemaker) 725
presente), fazemos bem em aplicar o pronomes os tanto aos anciãos
como aos membros das igrejas. Depois de ter passado algum tempo com
estas igrejas, Paulo e Barnabé os encomendam ao cuidado do Senhor.
24, 25. Atravessando a Pisídia, dirigiram-se a Panfília. E, tendo
anunciado a palavra em Perge, desceram a Atália.
Depois de passar tempo com os cristãos em Antioquia, os apóstolos
viajam de direção sul através da Pisídia e Panfília. Voltaram sobre seus
passos e chegam a Derbe, onde João Marcos os tinha deixado (At 13:13).
Lucas volta a ser muito lacônico ao descrever as atividades de Paulo e
Barnabé em Perge. Não diz nada a respeito do própria viagem, embora a
área através da qual os missionários tiveram que viajar era muito
perigosa (2Co 11:26). Simplesmente escreve que os missionários
pregaram o evangelho ali sem dizer nada a respeito da oposição ou
indiferença da parte da população. Aparentemente, os apóstolos não
podem formar um núcleo para o estabelecimento de uma igreja. Assim,
continuam viajando, abordando um navio na cidade-porto de Atália para
retornar a Antioquia da Síria.

Palavras, frases e construções gregas em At 14:22–23


Versículo 22
ἐπιστηρίζοντες — este particípio ativo presente sugere propósito e
depende do verbo introdutório do versículo anterior (ὑπέστρεψαν, eles
voltaram a animá-los). 903
τῇ πίστει — o caso dativo é locativo. Neste versículo, a palavra fé
pode ter tanto uma conotação objetiva (doutrina cristã) como uma
subjetiva (crença pessoal).
ἡμᾶς — o pronome pessoal refere-se tanto aos apóstolos como aos
membros das igrejas.

903
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #339.3a; veja-se também Robertson, Grammar, p. 892.
Atos (Simon J. Kistemaker) 726
Versículo 23
χειροτονήσαντες — como um aoristo de forma composta deriva do
substantivo χείρ (mão) e o verbo τείνω (eu estiro, estender), este
particípio descreve a maneira como a nomeação ocorreu. Estritamente
falando, o sujeito do particípio é os apóstolos. Por isso, infere-se que o
povo levantou sua mão em sinal de votação.
αὑτοῖς — o pronome plural refere-se aos membros da igreja. A
forma αὑτούς inclui tanto os crentes como os anciãos.
πεπιοτεύκεισαν — sem o acrescentado, este é o tempo mais-que-
perfeito do verbo πιστεύω (eu creio).

2. Relatório a Antioquia (At 14:26–28)

26. E dali navegaram para Antioquia, onde tinham sido


recomendados à graça de Deus para a obra que haviam já cumprido.
Quando Paulo e Barnabé vêm ao porto sírio de Selêucia viajam para
o interior, a Antioquia. Num sentido, voltam ao lar, porque os cristãos
em Antioquia da Síria os haviam comissionado para pregar o evangelho
aos gentios no mundo greco-romano (At 13:1–3). É difícil determinar
quanto tempo estiveram os apóstolos ausentes, mas pode-se dizer que
esta primeira viagem missionária durou aproximadamente dois anos (de
46 a 48 d.C.).
Com palavras cuidadosamente escolhidas, Lucas destaca que
Antioquia era “o lugar onde primeiro tinham sido encomendados à graça
de Deus para a obra que agora tinham cumprido”. Por implicação, ele
está dizendo que os membros da igreja de Antioquia da Síria estavam a
par das dificuldades e perigos que Paulo e Barnabé teriam que encontrar
em sua viagem. A igreja tinha encomendado os missionários à graça de
Deus, sustentando-os com suas orações, e confiando no Senhor para a
extensão da igreja como produto de seu trabalho. Na verdade, o Senhor
tinha respondido suas orações e a obra encomendada aos apóstolos tinha
Atos (Simon J. Kistemaker) 727
sido cumprida. Por Atos sabemos que Antioquia era a sede missionária
de Paulo (veja-se At 15:35; 18:23). Deste lugar ele saiu em suas
sucessivas viagens.
27. Quando ali chegaram e reuniram a igreja, contaram quantas
coisas fizera Deus com eles, e como abrira a porta da fé aos gentios [TB].
Fazia dois anos, a igreja antioquiana havia comissionado os
apóstolos. Agora, Paulo e Barnabé retornam a Antioquia e convocam os
membros da igreja para ouvirem seu relatório. Note-se que Lucas fala da
igreja e não de congregações particulares ou de igrejas nas casas. Ele
sublinha a unidade da igreja, porque os cristãos de Antioquia desejam
ouvir a respeito da expansão dessa mesma igreja em Chipre e na Ásia
Menor. Lucas emprega o tempo imperfeito do verbo contar para indicar
que a história que Paulo e Barnabé deviam contar era muito longa para
uma só sessão. Além disso, acrescenta que os apóstolos falaram a
respeito de todo o seu trabalho. Repetidamente, então, se reúnem com os
crentes e lhes contam em detalhe as incursões que o evangelho fez entre
os judeus e os gentios. Dão toda a honra e a glória a Deus (veja-se At
15:4). Deus tinha operado poderosamente através deles realizando
milagres, dando-lhes as palavras que deviam dizer, abençoando seu
trabalho e os protegendo de perigos e morte.
O objetivo inicial dos missionários era proclamar as Boas Novas
aos gentios. E o cumpriram plenamente, porque Paulo e Barnabé
informaram que Deus “abrira a porta da fé aos gentios”. Embora alguns
anos antes Pedro havia dado a Cornélio e às pessoas que habitavam em
sua casa as boas-vindas na igreja cristã (veja-se At 10:45), não tinha sido
fundada ainda nenhuma igreja gentílica. Agora, como apóstolos aos
gentios, Paulo e Barnabé tinham organizado igrejas não judaicas.
A expressão abrir a porta parece ser favorita de Paulo. Em suas
epístolas, usa-a pelo menos três vezes (1Co 16:9; 2Co 2:12; Cl 4:3). O
termo fé é descritivo e serve para enfatizar a importância que Paulo
outorga ao crer em Jesus Cristo. Através desta porta da fé, os gentios
Atos (Simon J. Kistemaker) 728
agora entram e assim formam parte da família de fé. Junto com os
cristãos judeus e os cristãos samaritanos integram a família de Deus.
28. Paulo e Barnabé ficaram com os discípulos por um longo tempo
[trad. Kistemaker].
Assim termina a primeira viagem missionária. Os apóstolos ficam
em Antioquia, ensinam e pregam na igreja local e recuperam suas forças.
Seguem entregues à tarefa de integrar as igrejas gentílicas na corrente do
cristianismo daqueles dias. Supomos que permaneceram em Antioquia
ao menos por um ano.

Palavras, frases e construções gregas em At 14:27–28


Versículo 27
ἀνήγγελλον — no meio dos particípios, verbos e tempo aoristo está
o tempo imperfeito. O uso deste tempo sugere ação repetida; quer dizer,
os apóstolos se reuniram frequentemente com os crentes na igreja
antioquiana.
ὅσα — este adjetivo correlativo é equivalente às palavras πάντα ἅ
(todas as coisas que).
μετʼ αὑτῶν — “tudo o que Deus tem feito em companheirismo (ou
‘cooperação’) com eles”. 904 A preposição μετά (com) tem um uso
simples em grego.
πίστεως — o substantivo fé neste versículo pode ser um objetivo
genitivo (“guiando à fé”) ou um genitivo subjetivo (“onde entra a fé”). 905

Versículo 28
διέτριβον — o tempo imperfeito indica que passou um tempo
considerável antes que Paulo e Barnabé partissem de Antioquia. Lucas

904
Moule, Idiom-Book, p. 61.
905
Nigel Turner, A Grammar of New Testament Greek, 4 vols. (Edimburgo: Clark, 1963), vol. 3, p.
212.
Atos (Simon J. Kistemaker) 729
completa a frase com uma de suas características descrições insuficientes
— χρόνον οὑκ ὀλίγον (não pouco tempo).

Resumo de Atos 14
Em Icônio, Paulo e Barnabé falam corajosamente em nome do
Senhor e realizam numerosos sinais e milagres. Como resultado,
numerosos judeus e gentios creem. Mas judeus incrédulos agitam a
população gentílica de modo que a cidade se divide com relação aos
apóstolos e sua mensagem. Organiza-se um complô para maltratar e
apedrejar Paulo e Barnabé; quando alguém os adverte disso, fogem às
cidades de Listra e Derbe.
Em Listra, Paulo cura um paralítico. O povo ali crê que os apóstolos
são deuses de forma humana. Dirigidos pelo sacerdote de Zeus,
preparam sacrifícios em honra de Paulo e Barnabé. Mas ao sabê-lo, os
apóstolos rasgam suas vestes, correm à multidão e os advertem que não
devem oferecer estes sacrifícios. Enquanto isso, judeus hostis vindos de
Antioquia da Pisídia e de Icônio chegam a Listra e incitam o povo, o
qual se volta contra Paulo e o apedreja. Pensando que o mataram, tiram-
no para fora da cidade e o abandonam ali. Os discípulos de Paulo se
juntam ao redor dele, quem de forma milagrosa recupera o conhecimento
e fica de pé. Entra na cidade, onde passa a noite. Na manhã seguinte ele
e Barnabé continuam sua viagem e se dirigem a Derbe. Depois de um
ministério frutífero naquela cidade, voltam para Listra, Icônio e
Antioquia onde dão ânimo aos crentes e nomeiam anciãos para cada
igreja. Os apóstolos deixam Antioquia da Pisídia e descem a Perge da
Panfília. Por mar saem de Atália e chegam a Antioquia da Síria, onde
prestam um relatório à igreja com relação a todas as coisas que Deus tem
feito através deles. Ficam em Antioquia por algum tempo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 730

VI. O CONCÍLIO DE JERUSALÉM


(AT 15:1–35)
Atos (Simon J. Kistemaker) 731
ATOS 15
O CONCÍLIO DE JERUSALÉM (At 15:1–35)
e
A SEGUNDA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 1 (At 15:36–41)
A. A cronologia

Em Atos, Lucas se abstém de dar as referências históricas que provê


em seu Evangelho; vejam-se, por exemplo, os detalhes a respeito do
começo do ministério público de João Batista (Lc 3:1–2). Com a ajuda
dos paralelismos do escritor judeu do século I, Josefo, do historiador
romano Suetônio e as descobertas arqueológicas, podemos determinar
pelo menos três datas que têm que ver com Atos: A morte de Herodes
Agripa I em 44 d.C., a expulsão dos judeus de Roma por ordem do
Imperador Cláudio em 49 d.C., e a presença do procônsul Gálio em
Corinto em 51 d.C. Além disso, podemos indicar aproximadamente o
início do governo de Festo na Judeia (59 d.C.; com base na viagem de
outono de Paulo, depois do jejum). Destes quatro marcos históricos
depende a cronologia de Atos. O primeiro marco o pomos em At
12:19b–23, o segundo, em At 18:2, o terceiro, em At 18:12–17, e o
quarto, em At 24:27 e At 27:9. Tudo o mais de Atos gira em torno destas
datas.
Paulo foi a Jerusalém várias vezes, sendo a primeira a que fez
imediatamente depois de sua conversão no caminho para Damasco (At
9:26–29). Assumimos que teve lugar a finais dos anos trinta. A segunda
visita foi quando a igreja em Antioquia comissionou a ele e a Barnabé
para que levassem ajuda econômica que pudesse paliar a fome que
açoitou a Judeia nos meados dos anos quarenta (At 11:27–30; 12:25).
Junto com Barnabé, Paulo visitou Jerusalém pela terceira vez quando se
Atos (Simon J. Kistemaker) 732
reuniu o Concílio (49 d.C.) antes do início de seu segunda viagem
missionária (At 15:4).
Em Gálatas, Paulo apresenta uma narrativa cronologicamente
ordenado a respeito de sua vida depois de sua conversão. Diz que três
anos depois de ter conhecido a Cristo, foi a Jerusalém (Gl 1:18). Esta é
sua primeira visita conforme o registra Lucas em Atos 9:26–29. Logo
diz: “Quatorze anos depois voltei para Jerusalém com Barnabé; e
também levamos Tito conosco” (Gl 2:1). Os quatorze anos de que fala
poderiam incluir ou excluir os três anos depois de sua conversão. Quer
dizer, estes dois períodos poderiam ser simultâneos ou sucessivos.
É a visita “quatorze anos depois” a mesma que fazem Paulo e
Barnabé por ocasião do Concílio de Jerusalém? Alguns estudiosos
respondem afirmativamente a esta pergunta conquanto outros dizem que
corresponde à visita feita por ocasião da fome (At 11:27–30; 12:25).
Como poderíamos saber se Lucas em Atos e Paulo em Gálatas estão
referindo-se ao mesmo acontecimento?
Temos aqui algumas considerações que nos podem ajudar a
entender a cronologia das visitas de Paulo a Jerusalém:
1. A menção de Paulo aos “quatorze anos” depois de sua primeira
visita a Jerusalém encaixa bem com a data tradicional (49 d.C.) do
Concílio de Jerusalém. Mas se os “quatorze anos” se aplicam à visita
durante a fome (46 d.C.) a primeira visita apareceria muito cedo e a
cronologia seria muito forçada.
Alguns estudiosos põem a conversão de Paulo entre os anos 32–34
d.C., abrangem os períodos de três anos (Gl 1:18) e quatorze anos (Gl
2:1) como um lapso de tempo concorrente, e a visita durante a fome a
põem entre os anos 46 e 47 d.C. 906
2. Paulo escreve que Barnabé e Tito acompanharam a Jerusalém (Gl
2:1). Em Atos 15, Lucas menciona que Paulo e Barnabé foram

906
P. ex., Colin J. Hemer, The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf
(Tubinga: Mohr, 1989), p. 264.
Atos (Simon J. Kistemaker) 733
designados pela igreja antioquiana para ir a Jerusalém e que “alguns
outros crentes” foram com eles. Embora Lucas não mencione Tito pelo
nome, é possível que tenha sido um daqueles crentes.
Estes crentes de Antioquia foram a Jerusalém para resolver a
questão da circuncisão dos gentios (At 15:1–2). O assunto é apresentado
por cristãos que pertenciam ao partido farisaico: “É necessário
circuncidá-los e determinar-lhes que observem a lei de Moisés” (At
15:5). (Alguns estudiosos sustentam que Tito, um gentio não
circuncidado [Gl 2:3], serviu como um caso de prova para o concílio. É
verdade que Paulo declara que Tito era um cristão gentio não
circuncidado a quem não se tinha forçado a circuncidar-se [Gl 2:3]). Se o
assunto da circuncisão tivesse estado resolvido durante o tempo da visita
à raiz da fome, o concílio não teria tido que reunir-se. 907
Além disso, a própria Escritura não nos diz se Tito acompanhou a
Barnabé e a Paulo durante a visita pela fome (veja-se At 11:30; para um
contexto mais amplo, At 11:27–30). Poderia perguntar-se por que Tito
acompanharia Barnabé e Paulo nessa visita, especialmente se Atos 15:5 e
Gálatas 2:1 parecem referir-se a outra visita.
3. Em Gálatas, Paulo diz que ele foi a Jerusalém para pôr diante dos
apóstolos o evangelho que tinha vindo pregando e para comprovar sua
exatidão (At 2:2, 6–7). Isto parece calçar melhor num contexto posterior
à primeira viagem missionária (At 13–14) que no contexto quando Paulo
e Barnabé foram a Judeia com os recursos para aliviar a fome (At 11:27–
30; 12:25). 908
4. Paulo e Barnabé se reúnem com os distinguidos pilares da igreja
(Tiago, Pedro e João), os quais lhes estendem sua mão direita em sinal
de amizade (Gl 2:9). No Concílio de Jerusalém, Pedro e Tiago estavam
presentes com outros apóstolos e anciãos (At 15:4, 6–7, 13). Mas em sua
descrição da visita pela fome, Lucas reconhece só os anciãos (At 11:30).
907
William Hendriksen, C.N.T. sobre Gálatas (Grand Rapids: SLC, 1984), p. 85–89.
908
Martin Hengel, Acts and the History of Earliest Christianity, trad. por John Bowden (Filadélfia:
Fortress, 1980), p. 111.
Atos (Simon J. Kistemaker) 734
Além disso, o contexto histórico desse tempo dificilmente faria possível
que Pedro estivesse presente em Jerusalém depois de sua libertação do
cárcere e sua saída para outro lugar (At 12:17; ano 44 d.C.)
De qualquer maneira, encontramos algumas áreas problemáticas:
1. Se identificarmos a visita a Jerusalém de Gálatas 2 com a de Atos
15, por que em sua carta aos Gálatas Paulo não se refere às decisões
tomadas pelo concílio? Embora reconheçamos a importância desta
questão, descobrimos que o relatório de Lucas sobre as visitas de Paulo e
Silas às igrejas da Galácia diz que pessoalmente e cidade por cidade
foram dando a conhecer tais decisões (At 16:4). Ainda mais, a ênfase na
carta de Paulo aos Gálatas é tal que parece não estar tão preocupado com
as prescrições para os cristãos gentios como com o chamado e as
responsabilidades dos cristãos judeus. 909
2. Paulo afirma em Gálatas 2 que sua reunião em Jerusalém foi uma
reunião particular com os líderes da igreja. Mas em Atos 15, Lucas diz
que Paulo se reuniu com a igreja, os apóstolos, e os anciãos (vv. 4, 12,
22). Mesmo que a reunião de Jerusalém fosse pública, sem dúvida Paulo
e Barnabé se reuniram primeiro privadamente com Pedro, Tiago e João.
3. Como puderam Pedro e Barnabé recusar comer com os cristãos
gentios (Gl 2:11–14)? Se este evento ocorreu algum tempo antes do
Concílio de Jerusalém (por exemplo, imediatamente depois do escape de
Pedro da prisão), é possível explicar o problema relacionado com
compartilhar a mesa. 910 Se não, mantinha-se o problema de Pedro e
Barnabé de comer só com os judeus.
O ponto focal do episódio em Antioquia, contudo, é a hipocrisia
que tinha pego numa armadilha a Pedro e a Barnabé apesar das decisões

909
Jakob van Bruggen, “Na Veertien Jaren”: De Datering van het in Galaten 2 genoemde Overleg te
Jeruzalem (Kampen: Kok, 1973), pp. 163, 237; Pierson Parker, “Once More, Acts and Galatians”,
JBL 86 (1967): 175–82.
910
Refira-se a F. F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), pp. 284–85. Veja-se também seu Commentary on
Galatians, série New International Greek Testament Commentary (Exeter: Paternoster; Grand Rapids:
Eerdmans, 1982), p. 128.
Atos (Simon J. Kistemaker) 735
do concílio apostólico (At 15:20). Foram arrastados por judaizantes
legalistas que constituíam um grupo forte. Esses cristãos judeus que
zelosamente guardavam a lei mosaica eram ainda uma força maior dez
anos depois, quando Paulo, à conclusão de sua terceira viagem
missionária, voltou para Jerusalém (At 21:20–21). Lucas escreve que seu
número era de milhares. Assumimos que em Antioquia estes cristãos
judeus de Jerusalém tinham uma influência persuasiva até sobre Pedro e
Barnabé. Inclusive podiam causar divisão entre os judeus e os gentios na
igreja cristã, através de exigir o acatamento às leis de comida do Antigo
Testamento. “Isto só vai mostrar quão forte continuaram sendo para esta
gente as velhas formas e quão difícil lhes era adotar um novo estilo de
vida”. 911
4. Tanto Barnabé como Paulo foram comissionados pela igreja de
Antioquia para levar aos crentes da Judeia ajuda para combater a fome
que os afligia (At 11:27–30). Paulo escreve que quatorze anos mais tarde
ele foi a Jerusalém com Barnabé por causa de uma revelação (Gl 2:1–2).
E acrescenta que Tiago, Pedro e João, as reconhecidas colunas da igreja,
tinham-lhe pedido junto com Barnabé que lembrassem dos pobres (Gl
2:10).
A sugestão de que a visita pela fome ocorreu quatorze anos depois
da conversão de Paulo é válida, mas as dificuldades que a rodeiam são
numerosas. Primeiro, durante a visita no meio da fome eles se reuniram
só com os anciãos e não com os apóstolos. Segundo, a revelação que
Paulo menciona veio do Senhor, mas a profecia a respeito da fome veio
de Ágabo. Segundo a epístola aos Gálatas, Paulo é enviado pelo Senhor
a Jerusalém. Lucas, pelo contrário, diz que a igreja de Antioquia
comissionou Paulo e Barnabé para ir aos irmãos na Judeia. Terceiro, o
ensino sobre lembrar-se dos pobres pertence à lei mosaica que era bem
conhecida entre os judeus (veja-se Dt 15:11). E quarto, em Atos 11:30 e

911
David John Williams, Acts, série Good News Commentaries (San Francisco: Harper y Row, 1985),
p. 249.
Atos (Simon J. Kistemaker) 736
12:25 Barnabé, não Paulo, é o líder, mas em Gálatas 2:1–10 é o
contrário.
Em resumo, nenhuma teoria deixa de ter suas falhas e nenhuma
hipótese deixa de ter seus problemas. No entanto, nós favorecemos a
narrativa de Paulo que temos em Gálatas 2, porque no geral harmoniza
com a descrição que faz Lucas do Concílio de Jerusalém. Cremos que
esta convicção pode ser defendida e é preferível àquela que identifica a
visita durante a fome (At 11:27–30) com Gálatas 2:1–10. Quando
chegarmos ao comentário do capítulo 15 analisaremos outros pontos
exegéticos.

B. O debate (At 15:1–21)

Paulo e Barnabé ensinaram e pregaram o evangelho em Antioquia


durante um tempo bastante longo, talvez durante todo um ano. Enquanto
eles estavam ali, chegaram uns judeus de Jerusalém que objetaram o
trabalho que os missionários tinham levado a cabo em Chipre e na Ásia
Menor. Estes se encontraram com judeus que queriam que cada crente
gentio se sujeitasse ao ensino de Moisés quanto à circuncisão e
chegassem a ser, então, judeus convertidos. Paulo e Barnabé objetaram
energicamente este ensino.

1. A controvérsia (At 15:1–5)

1, 2. Alguns indivíduos que desceram da Judéia ensinavam aos


irmãos: Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não
podeis ser salvos. Tendo havido, da parte de Paulo e Barnabé, contenda e
não pequena discussão com eles, resolveram que esses dois e alguns outros
dentre eles subissem a Jerusalém, aos apóstolos e presbíteros, com
respeito a esta questão.
Notemos os seguintes pontos:
Atos (Simon J. Kistemaker) 737
a. A exigência. Lucas apresenta alguns irmãos não identificados
vindos da Judeia. Assumimos que eram judeus convertidos ao
cristianismo que pertencem ao partido dos fariseus (v. 5). Em dias
anteriores, a igreja comissionou a Barnabé para que ajudasse os cristãos
em Antioquia (At 11:22–23). Pelo contrário, estes homens, sem a
autorização correspondente, vêm a Antioquia para impor suas próprias
regras e regulações sobre os crentes, dizendo-lhes: “Se não vos
circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos”.
O texto indica que estes homens começaram a ensinar estes
preceitos e assim se autonomeiam mestres ficando em Antioquia por
algum tempo. Sua presença na igreja antioquiana não tem o propósito de
estender a obra por meio da evangelização; tampouco vieram para dar
ânimo aos crentes para que se mantenham firmes na fé. Seu propósito é
estabelecer um estrito requisito que determinaria se seriam salvos ou
não: insistem que o rito judaico da circuncisão é necessário para que os
cristãos gentios alcancem a salvação. Com razão, Paulo e Barnabé se
alarmaram. Porque eles tinham ensinado em Antioquia, Chipre e Ásia
Menor que os gentios estavam livres desta exigência cerimonial da lei de
Moisés; quer dizer, nenhum gentio devia submeter-se à circuncisão.
Estes agitadores de Jerusalém vêm agora a exigir que cada crente
varão seja circuncidado se quer alcançar a salvação. Baseiam sua
argumentação na lei Mosaica que para os cristãos, fossem judeus ou
gentios, era a Palavra de Deus. Dizem que Deus nunca tinha ab-rogado a
exigência da circuncisão. No entanto, a prática dos apóstolos era não
exigir dos cristãos gentios que se circuncidassem, porque eles sabiam
que tanto os romanos como os gregos se ofendiam por este rito. Portanto,
Pedro tinha exigido a Cornélio e aos de sua casa quando chegaram a ser
membros da igreja cristã só o batismo e não a circuncisão (At 10:47). E
em suas viagens a Chipre e a Ásia Menor, Paulo e Barnabé nunca
pressionaram os gentios piedosos a que se conformassem a esta prática.
b. O debate. O assunto é contraditório à obra de Paulo e Barnabé,
que ensinam que só a fé em Cristo Jesus salva a pessoa de seus pecados e
Atos (Simon J. Kistemaker) 738
da condenação. Para eles, a prática da circuncisão, tal como a ensinavam
os judaizantes de Jerusalém não pode obter a salvação de ninguém. Mas
estes visitantes insistem em que, tanto na sinagoga judaica como na
igreja cristã, o ser membro depende da circuncisão em particular, e da lei
de Moisés, em geral. Insistem os judaizantes em que cada cristão gentio
deve aderir a e cumprir a lei de Moisés para alcançar a salvação. Eles
entendem a observância da lei de um ponto de vista judaico, não
cristão. 912 Com efeito, estes judaizantes praticam a discriminação racial
no contexto da igreja cristã. Por exemplo, com base na lei do Antigo
Testamento eles impedem a um cristão gentio entrar na área do templo
devido ao fato de que não é circuncidado (cf. At 21:28–29).
O duro debate entre os judaizantes e os missionários chega a seu
fim quando a igreja de Antioquia decide pedir aos apóstolos e anciãos
em Jerusalém um pronunciamento definitivo sobre este assunto. Os
supervisores da igreja não devem ser violentos nem com espírito
briguento (1Tm. 3:3; 2Tm 2:24), mas devem resolver as disputas de
forma pacífica. Mesmo diante de um assunto tão transcendental quanto
um crente não pode ser salvo a menos que se circuncide, a igreja de
Antioquia conserva a calma e decide apelar aos líderes de Jerusalém.
Comissiona, então, a Paulo e Barnabé para que viajem a Jerusalém e
perguntem aos apóstolos e anciãos se a fé em Cristo é suficiente para a
salvação.
Lembre-se que quando Pedro voltou de sua visita a Cornélio e sua
casa em Cesareia, a igreja de Jerusalém aceitou os cristãos gentios como
iguais no seio da igreja dos cristãos judeus (At 11:18). Os apóstolos e
anciãos nesse tempo não formularam regras para aceitar os gentios na
igreja. Agora chegou o momento para convocar a igreja e, guiada pelo
Espírito Santo (At 15:28), estabelecer qualquer requisito necessário aos
crentes gentios.

912
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 686.
Atos (Simon J. Kistemaker) 739
Os Manuscritos ocidentais do texto grego ampliaram os versículos
1 e 2 e afirmam que foram os judaizantes aqueles que ordenaram a Paulo
e Barnabé para viajar a Jerusalém:
“1 E alguns homens daqueles que tinham crido e que eram
membros do partido dos fariseus, desceram da Judeia e ensinavam aos
irmãos, ‘A menos que se circuncidem e andem conforme ao costume de
Moisés, vocês não poderão ser salvos’. 2 E quando Paulo e Barnabé
tiveram uma dissensão não pequena e debate com eles, porque Paulo
mantinha firmemente que eles [quer dizer, os convertidos] deveriam
ficar como estavam quando se converteram; então os que tinham vindo
de Jerusalém lhes ordenaram, a Paulo, a Barnabé e a alguns outros, subir
a Jerusalém aos apóstolos e aos anciãos para que se julgassem diante
deles esta questão.” 913
De um ponto de vista gramatical, estamos de acordo com que o
texto grego 914 no qual se baseia nossa tradução afirme que os
judaizantes ordenaram a Paulo e a Barnabé ir a Jerusalém. No entanto, o
contexto imediato (v. 3) confirma que a igreja de Antioquia, não os
judaizantes, foram os que despacharam os missionários a Jerusalém.
Note-se que a igreja antioquiana, obediente às demandas do Espírito
Santo (At 13:2) tinha mandado a Paulo e a Barnabé numa viagem
missionária. Depois de estes terem voltado e sido informados dos
numerosos gentios que entravam na igreja cristã em muitos lugares, os
crentes antioquianos comissionam a Paulo e a Barnabé a ir a Jerusalém
para dar o mesmo relatório. Os missionários, evidentemente, querem ter
também o apoio dos apóstolos e anciãos de Jerusalém, e não só da igreja
de Antioquia.
3. Enviados, pois, e até certo ponto acompanhados pela igreja,
atravessaram as províncias da Fenícia e Samaria e, narrando a conversão
dos gentios, causaram grande alegria a todos os irmãos.

913
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), pp. 426–27. Os agregados aparecem em letra itálica.
914
Nes-Al, 26a. ed.
Atos (Simon J. Kistemaker) 740
Paulo, Barnabé, e os outros, entre os quais é possível que tenha
estado Tito (Gl 2:1), eram oficialmente delegados da igreja de Antioquia.
(Curiosamente, Lucas nunca menciona Tito em Atos. Alguns estudiosos
fazem uma conjetura interessante de que Tito era irmão de Lucas, por
isso este, com toda modéstia, deixa de mencionar o nome de seu irmão e
também o seu.). 915
Os delegados viajam por terra de Antioquia a Jerusalém e de
passagem visitam algumas igrejas na Fenícia (o moderno Líbano) e
Samaria. Em cada igreja os missionários contam as grandes coisas que
Deus tem feito entre os gentios e como a igreja cristã aumentou por todas
as partes. Os crentes da Fenícia (At 11:19) e Samaria (At 8:1) não põem
nenhuma objeção às notícias de que se levou o evangelho aos gentios e
se fundaram igrejas cristãs gentílicas. Pelo contrário, onde quer que
Paulo e Barnabé narram a história de suas experiências missionárias, os
crentes se alegram e se regozijam.
Deus, que chamou Paulo e Barnabé para pregar o evangelho aos
gentios, confirma sua obra através da resposta que encontram nas igrejas
que visitam na Fenícia e em Samaria. De fato, Deus prepara os
missionários para sua reunião com os apóstolos e anciãos de Jerusalém, e
lhes dá o respaldo da igreja em todos aqueles lugares que visitam.
Depois da perseguição que se seguiu por ocasião da morte de Estêvão, a
igreja de Jerusalém assumiu uma distintiva aparência hebraica. Contudo,
esta igreja tem que dar liderança para resolver os assuntos relacionados
com a admissão dos gentios à igreja.
4. Tendo eles chegado a Jerusalém, foram bem recebidos pela igreja,
pelos apóstolos e pelos presbíteros e relataram tudo o que Deus fizera com
eles.
Os missionários e seus acompanhantes chegam a Jerusalém e são
recebidos pelos apóstolos e os anciãos da igreja. Supomos que em sua
viagem, os apóstolos foram proclamando o evangelho em muitos

915
Refira-se a Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 171.
Atos (Simon J. Kistemaker) 741
lugares. Para esta reunião, contudo, foram solicitados para reunir-se em
Jerusalém. Por exemplo Pedro, que tinha saído para outro lugar (At
12:17) volta para a cidade santa e assume a função de liderança ali.
Estava presente Tiago e também João (Gl 2:9).
Note-se que a igreja antioquiana comissionou a Paulo e a Barnabé
para reunir-se com os apóstolos e anciãos em Jerusalém. Assim que
chegam, os missionários são oficialmente recebidos pela igreja, os
apóstolos e os anciãos como iguais. Isto indica a unidade fundamental da
igreja cristã.
Os missionários relatam o que Deus tem feito entre os gentios.
Põem a ênfase não em seu próprio trabalho, e sim na obra de Deus
através deles (veja-se v. 12). Consequentemente, a igreja de Jerusalém,
tanto como os apóstolos e os anciãos, percebem que o próprio Deus está
aumentando a igreja universal mediante Seus missionários designados
para isso, Paulo e Barnabé (cf. At 14:27; 21:19). Implicitamente, Lucas
indica que a reação daqueles que ouvem é favorável. Em outras palavras,
fica em evidência que os judaizantes que tinham ido a Antioquia com
suas demandas de circuncisão aos cristãos gentios não tinham
representado a toda a igreja de Jerusalém (veja-se v. 24).
5. Mas levantaram-se alguns que tinham sido da seita dos fariseus e
que haviam crido, dizendo: É necessário circuncidar os gentios e mandar-
lhes que observem a Lei de Moisés [TB].
Não podemos assegurar com certeza se os judaizantes que tinham
visitado a igreja de Antioquia tinham voltado a Jerusalém. Por si mesmo,
este ponto não tem importância, porém não deixa de chamar a atenção
que os crentes que representavam no seio da igreja àquelas que
pertenciam ao partido dos judaizantes estiveram dispostos a reagir
negativamente ao relatório dos missionários. Nem sequer esperam que os
apóstolos e os anciãos formulassem alguma resposta aos missionários
que representam a igreja de Antioquia.
Para eles o que importava era obrigar todos os cristãos, fossem
judeus ou gentios, a obedecer toda a lei de Moisés, incluindo a
Atos (Simon J. Kistemaker) 742
circuncisão. John Albert Bengel diz: “Era mais fácil fazer um cristão de
um gentio que superar os falsos ensinos dos fariseus”. 916
Antes de sua conversão, Paulo pertencia ao partido dos fariseus (cf.
At 23:6; 26:5; Fp 3:5). Agora precisa enfrentar o mesmo partido, porém
numa posição de cristão. O cristianismo destes fariseus está eclipsado
pela ênfase que dão à lei mosaica. Eles creem e assim o dizem, que o
desenvolvimento da igreja pode ter lugar só quando os crentes aderirem
a todas as condições estipuladas no Antigo Testamento. O que na
verdade estão fazendo é exigir que todo gentio se converta em judeu
antes de converter-se em cristão.
E como se isso fosse pouco, os cristãos farisaicos têm feito caso
omisso completamente do relatório anterior de Pedro relacionado com
Cornélio de Cesareia e a reação favorável dos apóstolos e da igreja de
Jerusalém. Naquela ocasião, a igreja pospôs qualquer decisão quanto à
lei de Moisés e a circuncisão. Mas agora chegou o momento de resolver
este assunto para manter a harmonia e a unidade em toda a igreja.

Considerações doutrinais em At 15:1–5


Em resposta à proclamação do evangelho da parte de Pedro na casa
de Cornélio, os crentes gentios se alegraram, receberam o Espírito Santo,
e foram batizados. No entanto, Pedro não lhes fez nenhuma exigência
com relação a circuncidar-se. Para eles, o batismo era suficiente. A
admissão de um grupo de gentios em Cesareia não causou problema
algum no seio da igreja de Jerusalém depois que Pedro explicou que ele
não pôde opor-se a Deus (At 11:17–18). Alguns anos mais tarde, Paulo
informa à mesma igreja de Jerusalém que ele tinha fundado igrejas
gentílicas e que tampouco fez exigências quanto à circuncisão. Os
cristãos judeus que pertenciam ao partido dos fariseus não aceitaram

916
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo:
Clark, 1877), vol. 2, p. 643.
Atos (Simon J. Kistemaker) 743
isso, pelo contrário com veemência rejeitaram que qualquer gentio não
circuncidado chegasse a ser membro da igreja.
Estes cristãos judeus alegavam que qualquer convertido primeiro
deve submeter-se à circuncisão e logo ser ensinado na observância da lei
de Moisés. Note-se o paralelo e, ao mesmo tempo, o contraste distinto
dado por Jesus na Grande Comissão. Jesus disse a Seus seguidores que
fizessem discípulos a todas as nações, primeiro, batizando-os e logo,
ensinando-os a guardar tudo o que Ele tinha ordenado (Mt 28:19–20).

Palavras, frases e construções gregas em At 15:1–5


Versículo 1
ἐδίδασκον — o tempo imperfeito é inceptivo, quer dizer, indica que
começou uma ação: “eles começaram a ensinar”.
περιτμηθῆτε — do verbo περιτέμνω (eu corto ao redor de,
circuncidar), o aoristo significa que a ação ocorre uma só vez; o passivo
implica que há um agente agindo sobre o sujeito; o subjuntivo indica
incerteza no contexto de uma frase condicional; e a segunda pessoa
plural é direta e inclusiva.
τῷ ἔθει — “segundo o costume”. O uso do dativo expressa modo,
não causa. 917

Versículo 2
γενομένης — com os dois substantivos genitivos, este particípio
aoristo no caso genitivo constitui a construção genitiva absoluta.
στάσεως — de ἵστημι (eu me levanto), o substantivo στάσις
significa “pleito, discórdia, discussão”. O substantivo ζήτησις implica
ação em progrisso na forma de um acalorado debate.

917
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 45; Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand
Rapids: Baker, 1983), p. 218.
Atos (Simon J. Kistemaker) 744
οὑκ ὀλίγης — “não pequeno”. Esta é uma das frases moderadas
características de Lucas (At 12:18; 14:28; 17:4, 12; 19:23, 24).
ἔταξαν — “eles comissionaram”. Gramaticalmente, o sujeito é τινες
(v. 1). No entanto, o contexto exige que “os irmãos” sirvam de sujeito
(veja-se vv. 1, 3).

Versículo 3
μὲν οὗν — esta frase denota continuação e é transicional. Poderia
ser traduzida como “então”. 918
προπεμφθέντες — literalmente, este particípio passivo aoristo
significa “tendo sido enviados por seu caminho”. Mas o verbo προπέμπω
comunica muito mais que isso; os viajantes foram providos de comida e
dinheiro, e inclusive se fizeram para eles acertos para alojamento (cf. 3Jo
5–8). 919
διήρχοντο y ἐποίουν — o tempo imperfeito nestes dois verbos é
descritivo.

Versículo 5
πεπιστευκότες — os judaizantes tinham sido cristãos fazia tempo,
como o indica o tempo perfeito do particípio ativo. Não obstante, como
verdadeiros fariseus que eram, seguiam a lei à risca.
δεῖ — “é necessário”. Este verbo controla os infinitivos circuncidar
e instruir. O infinitivo τηρεῖν é um infinitivo de propósito.

918
Moule, Idiom-Book, p. 162.
919
Bauer, p. 709.
Atos (Simon J. Kistemaker) 745
2. O discurso de Pedro (At 15:6–11)

Tinha passado bastante tempo desde a volta de Pedro de Cesareia e


a convocatória do concílio. É possível que estejamos falando até de uma
década. Deus havia dito a Pedro que fosse ver Cornélio em Cesareia;
Deus também o inspira para que se dirija ao Concílio de Jerusalém.
6. Agora os apóstolos e os anciãos se reuniram para considerar este
assunto [NKJV].
Detenhamo-nos para fazer as seguintes observações:
a. O debate. Tudo parece indicar que o concílio esteve reunido
durante muitos dias para falar do assunto e chegar a um acordo que
mantivesse a unidade e a unanimidade da igreja. Parece que percebemos
ao menos três reuniões separadas: primeiro, uma geral durante a qual
Paulo, Barnabé e os outros delegados de Antioquia foram recebidos e na
qual os missionários apresentaram seu relatório (vv. 4–5); segundo, uma
reunião à parte entre os apóstolos, os anciãos com Paulo e Barnabé (vv.
6–11); e terceiro, uma assembleia geral para ouvir os missionários e a
Tiago. Durante esta última reunião estão formulando e aprovando as
quatro exigências aos cristãos gentios (vv. 12–22).
A informação subministrada tanto por Lucas (At 15:6–11) como
por Paulo (Gl 2:1–10) é incompleta e insuficiente. Não podemos afirmar
nem negar que a reunião separada de Paulo com os apóstolos e anciãos é
a que se refere Paulo em seu relatório aos gálatas. Se se trata da mesma
reunião, então a presença de Tito, um cristão não circuncidado,
indubitavelmente deu verdadeira urgência à discussão. Os apóstolos e
anciãos reuniram-se para falar da liberdade que os cristãos gentios
tinham em Cristo.
7-9. Havendo grande debate, Pedro tomou a palavra e lhes disse:
Irmãos, vós sabeis que, desde há muito, Deus me escolheu dentre vós para
que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho e
cressem. Ora, Deus, que conhece os corações, lhes deu testemunho,
concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós nos concedera. E
Atos (Simon J. Kistemaker) 746
não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes pela fé
o coração.
b. A mensagem. Como um cristão gentio, Lucas mesmo tem um
interesse pessoal no debate, procedimentos e resultados da reunião. Ele é
claro em sinalizar que a ação tomada pelo concílio afeta o futuro da
igreja universal; portanto, não só nota que os apóstolos e anciãos se
envolveram num longo debate, mas também que Deus através de Seu
Espírito dirigiu os apóstolos e a igreja na decisão a tomar.
Deus dirigiu Pedro à casa de Cornélio em Cesareia para admitir os
gentios no seio da igreja. No Concílio de Jerusalém, Pedro se dirige a
seus irmãos apóstolos e aos anciãos para lembrá-los que Deus esteve
guiando-os quanto a aceitar estes gentios. Depois de dirigir-se a eles com
a tão familiar fórmula de “Irmãos”, acrescenta, “vós sabeis que, desde há
muito, Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio,
ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem”. Lembra que dez
anos antes, o Espírito de Deus o levou aos gentios em Cesareia. O
Espírito de Deus desceu sobre estes gentios e lhes deu uma experiência
do Pentecostes assim como a dos judeus em Jerusalém (At 2:1–4). O
derramamento do Espírito de Deus, então, tornou iguais cristãos judeus e
cristãos gentios. Lembra-lhes, além disso, que quando ele voltou de
Cesareia eles aceitaram que o próprio Deus tinha chamado os gentios à
salvação (At 11:18). Assinala que Deus o escolheu para a tarefa de
pregar a mensagem do evangelho aos gentios. A frase Deus me escolheu
refere-se ao caso específico de Cesareia. Embora Paulo seja conhecido
como o apóstolo aos gentios, e Pedro como o apóstolo aos judeus, estas
designações de maneira nenhuma devem tomar-se estreitamente (Gl 2:7–
9). Desde no momento em que Paulo se despediu dos anciãos de Éfeso
sabemos que ele pregou o evangelho igualmente a judeus e a gregos (At
20:21). Da mesma maneira, Pedro não restringiu seu ministério aos
judeus, mas viajou extensamente por Corinto, Ásia Menor, e Roma e se
reuniu com judeus e gentios igualmente, como o testifica claramente ele
e Paulo em suas epístolas.
Atos (Simon J. Kistemaker) 747
Diz-lhes que ele trouxe “a mensagem do evangelho” aos gentios,
com o resultado de que creram. Não foi o pregador mas Deus como
Salvador que abriu seus corações e os fez receptivos às Boas Novas. A
mensagem do evangelho, portanto, é sinônimo de salvação. Em resumo,
os gentios ouviram a palavra e creram.
c. O conhecimento. A salvação é um dom de Deus. Esta verdade
faz-se evidente quando Pedro diz: “Deus, que conhece os corações, lhes
deu testemunho, concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós
nos concedera”. Devido ao fato de que o homem é incapaz de dar a
salvação, a estipulação “a menos que se circuncidem … não poderão ser
salvos” (v. 1) não tem sentido. Só Deus salva os Seus.
Deus conhece o coração do homem e lhe comunica o dom do
Espírito Santo. Portanto, nenhum homem senão Deus tem o poder de
escolher os que hão de receber a salvação, porque Deus prova os
corações dos homens. O coração do homem é o lugar onde Deus
implanta e faz crescer fé que vem a expressar-se em obediência e
perseverança (Rm 6:17; 2Ts 3:5). 920 Deus não olha os sinais externos,
mas examina o coração. Pelo contrário, no século I os cristãos judeus
julgavam os gentios levando em conta questões externas, e por isso os
rejeitavam. Mas Deus fez saber aos cristãos judeus que quando os
gentios ouvem as Boas Novas, eles respondem com fé e recebem o
Espírito Santo.
O Espírito sopra a Palavra,
E faz visível a verdade;
Dá preceitos e promessas
E uma luz santificada.
— William Cowper

O derramamento do Espírito Santo tanto em Jerusalém como em


Cesareia demonstra a aceitação que Deus faz dos crentes gentios. Além
disso, como Deus dá Seu Espírito de forma idêntica a judeus e a gentios
920
Theo Sorg, NIDNTT, vol. 2, p. 183.
Atos (Simon J. Kistemaker) 748
na igreja, assim Ele tira a barreira de hostilidade que os divide na
adoração (Ef 2:14). “Não há distinção entre judeu e grego, uma vez que
o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam”
(Rm 10:12). Pedro afirma que quem quer que se oponha aos sinais
externos do derramamento do Espírito Santo aos gentios, está resistindo
a Deus. E se Deus não insiste no assunto da circuncisão, tampouco o
judeu cristão. 921
d. A santificação. Deus tirou a diferença entre judeus e gentios.
Pedro ao descrever Deus como agente, está dizendo claramente que não
se procura uma inovação humana para ampliar os limites da igreja. O
próprio Deus tirou as barreiras raciais e étnicas, porque em Cristo todos
os crentes são iguais. A implicação é que se Deus dá o exemplo, nós
devemos seguir esse exemplo.
Pedro diz que Deus não faz distinção entre nós (os judeus) e eles
(os gentios). Em nossa forma de usar o idioma, modestamente nos
pomos no final em qualquer comparação ou sequência, porém no grego,
a situação é oposta. Se Deus, então, escolheu os crentes gentios para que
sejam seu povo, Ele os santificou no sangue de Cristo e os declarou
puros e limpos de pecado.
Se Deus aceitou os crentes gentios como Seu próprio povo, os
outros cristãos mal poderiam pretender impor condições que aqueles
devem acatar antes de poder obter a salvação. Mas os cristãos judeus
pertencentes ao partido dos fariseus vão às Escrituras e dizem: «Deus
disse a Abraão que o sinal da aliança é a circuncisão. A aliança que Deus
fez com Abraão e seus descendentes é eterna. Portanto, a circuncisão se
mantém através das idades como o sinal de sua aliança eterna e não pode
ser ab-rogada (veja-se Gn 17:7, 9–14)”. 922

921
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, série Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 29.
922
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 35.
Atos (Simon J. Kistemaker) 749
Porém na era do Novo Testamento, a circuncisão perdeu sua
importância porque Deus santifica o crente através da obra expiatória de
Cristo (veja-se, entre outras passagens, Gl 5:2–6). Além disso, Jesus
encarregou os apóstolos a batizar cada novo discípulo; por implicação
entendemos que o batismo toma o lugar da circuncisão. Já desde o
Pentecostes, a igreja guardou o sacramento do batismo em obediência ao
mandato de Cristo. Quando chegou o dia que os cristãos gentios
entraram na igreja, a circuncisão já tinha sido abolida (cf. Cl 2:11–12). 923
Naturalmente, por si mesma a cerimônia do batismo nos tempos do
Novo Testamento não purifica a ninguém, como tampouco o fez a
circuncisão nos dias do Antigo Testamento. Com base em uma
verdadeira fé em Cristo Deus limpa o coração do crente sem exigir que
se circuncide. Do Novo Testamento aprendemos que Cristo purifica as
consciências dos crentes com Seu sangue (Hb 9:14). Para ser mais exato,
o Antigo Testamento ensina que a circuncisão como sinal da aliança
também teve que ser apoiada por uma fé autêntica. De qualquer maneira,
o ato de purificar os pecados no contexto do Antigo Testamento se
manteve intimamente ligado com certas cerimônias externas.
10, 11. Então, por que agora vocês estão querendo tentar a Deus,
pondo sobre os discípulos um jugo que nem nós nem nossos antepassados
conseguimos suportar? De modo nenhum! Cremos que somos salvos pela
graça de nosso Senhor Jesus, assim como eles também [NVI].
e. As restrições. Pedro conclui suas palavras a seus irmãos os
apóstolos e os anciãos aconselhando-os que cancelem a demanda de
obedecer as regulações do Antigo Testamento incluindo a circuncisão.
Estas são as palavras finais de Pedro conforme as registra Lucas em Atos
e como as apresenta são consideradas. Resume suas ideias a respeito da
obra de Deus entre os gentios e logo pergunta se terão notado os
judaizantes que estão provando a Deus.

923
Consulte-se Marten H. Woudstra, “Circumcision”, EDT, p. 245.
Atos (Simon J. Kistemaker) 750
As Escrituras ensinam que quando o homem põe Deus à prova, está
fazendo isso com base em um espírito de incredulidade e desobediência.
Tentar a Deus é o contrário de adorá-Lo com um coração decidido (Dt
6:16).924 O exemplo dos israelitas no deserto é eloquente. Deus lhes
havia provida água em Mara e em Elim (Êx 15:22–27). Mas quando
chegaram a Refidim e não acharam água, queixaram-se e perguntaram,
“Está Deus entre nós ou não?” (Êx 17:7). Eles tentaram a Deus ao
duvidar abertamente do poder que Ele tinha, já constatado, de lhes
proporcionar água. De forma similar, afirma Pedro, os judaizantes estão
tentando a Deus, quem demonstrou claramente que os cristãos gentios
são livres em Cristo.
“Por que agora vocês estão querendo tentar a Deus, pondo sobre os
discípulos um jugo que nem nós nem nossos antepassados conseguimos
suportar?” Esta certeira pergunta de Pedro compara-se com as palavras
que Paulo diz em suas epístolas (p. ex. Gl 5:1; os ensinos de Jesus, veja-
se Mt 23:4; Lc 11:46). Qual é este jugo que ninguém pode suportar?
Obviamente, é a lei de Moisés. Os judeus definiam a lei de Deus como
“o jugo” que cada judeu e prosélito devia levar voluntária e
prazerosamente. Jesus incluso usa a figura judia quando convida a todos
os que estão cansados e carregados a tomar o Seu jugo; mas lhes diz,
“meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11:28–30). 925
No caso que está diante do Concílio de Jerusalém, Pedro considera
o jugo uma carga que não dá deleite ao crente. Nenhum judeu ganhou a
salvação procurando guardar a lei. Para ele, esta tinha chegado a ser uma
carga porque suas tentativas em guardá-la provaram-se infrutíferas.926
Em si mesma, porém, a lei que Deus deu era boa. Mas a impossibilidade
do homem em observar a lei de Deus oprimia os contemporâneos de

924
Heinrich Seesemann, TDNT, vol. 6, p. 27. Veja-se também Walter Schneider e Colin Brown,
NIDNTT, vol. 3, p. 801.
925
Consulte-se M. Maher, “ ‘Take my Yoke upon You’ (Mt. xi. 29)”, NTS 22 (1975–76); 97–103;
Hans-Georg Link e Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, pp. 1160–65.
926
Refira-se a John Nolland, “A Fresh Look at Acts 15.10”, NTS 27 (1980); 111–12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 751
Pedro e tinha afligido os seus antepassados. Além disso, a parte
cerimonial da lei e as regulações ensinadas pelos rabinos tinham chegado
a ser uma carga impossível de levar. “Não há duvida que embora os
judeus tradicionais pudessem respeitar aquela massa de mandamentos —
613 no total, dos quais 348 eram preceitos positivos — como uma forma
provida por Deus para alcançar méritos, eles poderiam também dar lugar
a um zelo errado de valor somente externo”. 927 Pedro expressa o que
Paulo tinha proclamado na sinagoga de Antioquia da Pisídia, qual é, que
um crente não pode ser justificado pela lei de Moisés (At 13:39). Uma
pessoa, não importa se é judeu ou gentio, é justificada unicamente pela
fé em Cristo Jesus.
f. A salvação. “Cremos que somos salvos pela graça de nosso
Senhor Jesus, assim como eles também”. Através de sua expiação, Cristo
cumpriu a lei. Como resultado, Ele livrou da penalidade causada pela
transgressão da lei a todo aquele que confia nEle. Por tal razão, a lei
assumiu um significado diferente. Quer dizer, que através da graça do
Senhor Jesus Cristo os que creem, quer judeus ou gentios, obtêm a
salvação.
Pedro não sugere que o concílio deve ab-rogar a lei. O que ele
objeta é fazer da lei uma condição prévia para a salvação. Visto que a lei
é incapaz de salvar uma pessoa, sem dúvida a fé em Cristo Jesus a salva.
Tanto judeus como gentios são iguais diante do Senhor e ambos ganham
sua salvação através dEle “como um objetivo dom de graça”. 928
Pedro reflete em sua experiência em Cesareia e como resultado está
completamente de acordo com o ensino de Paulo e Barnabé; não
demandemos dos crentes gentios que se circuncidem nem os submetam
ao jugo da lei mosaica. Nem Pedro, nem Paulo e Barnabé inventaram
esta estratégia. O próprio Deus os dirigiu a proclamar liberdade em
Cristo aos cristãos gentios.
927
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D. 135, ed.
e rev. por Geza Vermes e Fergus Millar, 3 vols (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 466.
928
Guthrie, New Testament Theology, p. 617; Hengel, Acts and the History, p. 125.
Atos (Simon J. Kistemaker) 752
Considerações doutrinais em At 15:6–11
Em seu exame histórico dos cristãos primitivos, Lucas os descreve
como observadores da lei. Os judeus acusaram Estêvão de falar contra a
lei (At 6:13), mas em seu discurso diante do Sinédrio ele demonstrou ser
respeitoso da lei que Deus deu a Moisés e ao povo de Israel (At 7:38).
Estêvão, contudo, foi firme em afirmar que os membros do Sinédrio,
tendo recebido a lei, não quiseram obedecê-la (At 7:53).
Depois de completar sua terceira viagem missionária, Paulo foi ao
templo, onde os judeus da Ásia Menor o acusaram de ensinar às pessoas
de não obedecer a lei (At 21:18). Em sua defesa diante do governador
Félix, Paulo confessou que ele cria em tudo o que está escrito na lei (At
24:14); disse ao governador Festo que não fez nada contrário a ela (At
25:8). Apesar disso, em Jerusalém milhares de cristãos judeus
continuavam insistindo que era preciso cumprir a lei (At 21:20).
Onde está, então, a importância da lei para o cristão? Para colocar
de forma simples, obedecer a lei não significa alcançar salvação embora
seja uma evidência de que se está vivendo uma vida santificada. 929 É
preciso admitir que para um sem-número de cristãos judeus a estrita
observância da lei era mais um assunto de costume que um esforço por
agradar a Deus em agradecimento por Seu dom da salvação.

Palavras, frases e construções gregas em At 15:7–11


Versículo 7
ὑμεῖς ἐπίστασθε — o pronome pessoal é intensivo: “vocês
mesmos”. O verbo é o presente médio de ἐπίσταμαι e significa “saber,
estar a par de, entender”. Por exemplo, “o rei entende estas coisas” (At
26:26).

929
Consulte-se I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: An Introduction and Commentary, série
Tyndale New Testament Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p.
250.
Atos (Simon J. Kistemaker) 753
ἀκοῦσαι — “ouvir”. Este infinitivo aoristo ingressivo é seguido
pelo caso acusativo; e indica escutar obedientemente. O infinitivo aoristo
πιστεῦσαι é também ingressivo.

Versículos 8–9
δούς — o particípio aoristo refere-se à uma só vez; a ação é
simultânea com aquela do verbo principal ἐμαρτύρησεν (ele testificou).
μεταξύ — o advérbio entre dá força à preposição διά no verbo
composto διέκρινεν (ele fez distinção).

Versículos 10–11
ἐπιθεῖναι — este infinitivo aoristo do verbo ἐπιτίθημι (eu ponho
em) é epexegético; quer dizer, explica a maneira pela qual os judaizantes
provam a Deus: “pondo um jugo sobre seus pescoços”.
πιστεύομεν σωθῆναι — note-se que o infinitivo passivo aoristo ser
salvo é o objeto direto do verbo principal: “cremos que somos salvos”.

3. Barnabé e Paulo (At 15:12)

Um estudo da sequência dos nomes Barnabé e Paulo revela que


sempre que alguma atividade ocorre em Jerusalém, o nome Barnabé
precede ao de Paulo (veja-se v. 25). Mas em outro contexto,
especialmente no relacionado com os gentios, a ordem sempre é o
inverso. Em Jerusalém, Barnabé desfrutava de maior estima que Paulo.
Em outros lugares, Paulo, talvez por sua habilidade em falar, recebia
maior reconhecimento. 930
12. Toda a assembléia calou-se, e escutava a Barnabé e a Paulo, que
contavam quantos milagres e prodígios Deus fizera entre os gentios por
meio deles [TB].
930
A exceção é At 14:14, onde a gente de Listra honra a Barnabé como Zeus e a Paulo como Hermes,
o mensageiro de Zeus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 754
Assumimos que na ordem que se seguiram as reuniões, o concílio
reuniu-se em pleno depois da reunião dos apóstolos e anciãos (vv. 6–11).
A frase toda a assembleia calou-se pode ser interpretada como querendo
dizer que “a reunião foi convocada”. 931 Agora chegou a parte mais
importante das deliberações, e o concílio está totalmente pronto para
ouvir o testemunho de Barnabé e de Paulo.
Note-se como descreve Lucas a mensagem que os dois missionários
apresentaram diante da assembleia geral. A ênfase não cai no que Paulo
e Barnabé fizeram durante sua viagem missionária, mas no que Deus fez
através deles. Portanto, os missionários não mencionam nada
relacionado com a circuncisão mas se estendem em referir-se à forma em
que Deus estendeu as fronteiras da igreja no mundo gentílico. Desta
maneira, a assembleia deve notar que o crescimento da igreja é obra de
Deus e que a questão de admitir os gentios no seio da igreja deve ser
estabelecido definitivamente pelo Concílio de Jerusalém.
No grego, Lucas indica que a audiência ouviu a exposição durante
muito tempo. Barnabé e Paulo não só contam suas experiências em
Chipre e Ásia Menor, mas também explicam a importância destes
eventos. Fazem o mesmo que fez Pedro quando retornou a Jerusalém de
sua missão a Cornélio em Cesareia. Ele fez uma contagem das coisas
como tinham sucedido explicando toda a obra levada a cabo por Deus.
Igualmente, Barnabé e Paulo assinalam que Deus estava operando
através deles, mediante sinais e prodígios. Imaginamos que
mencionaram os milagres da cegueira do falso profeta Barjesus em
Chipre (At 13:6–12) e a cura do paralítico em Listra (At 14:8–10). Ao
mencionar estes milagres, eles testificam que o próprio Deus tinha
aprovado seu ministério entre os gentios. 932

931
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 175. Cf. At 12:17; 1Co. 14:28, 30, 34. As testemunhas
ocidentais acrescentam esta cláusula no começo do versículo 15: “E quando os anciãos assentiram a
tudo o que Pedro havia dito”. Metzger, Textual Commentary, p. 429.
932
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 165.
Atos (Simon J. Kistemaker) 755
Palavras, frases e construções gregas em At 15:12
ἐσίγησεν — este aoristo pode ser constantivo (ao referir-se à ação
em sua totalidade) ou inceptivo (referindo-se no começo da ação).
As formas singulares πᾶν τὸ πλῆθος (toda a multidão) controlam o
plural do verbo ἤκουον (eles ouviram). O imperfeito indica um mais
amplo período de tempo.
ἐξηγουμένων — o particípio médio presente do verbo ἐξηγέομαι
(eu explico) está no caso genitivo porque (1) segue-o o verbo ἀκούω (eu
ouço); ou (2) é parte de uma construção absoluta genitiva (com o
substantivo genitivo Barnabé e Paulo).

4. O discurso de Tiago (At 15:13–21)

Quando Pedro, Paulo e Barnabé falaram, o líder da igreja de


Jerusalém assume a tarefa de dirigir-se à assembleia e formular uma
proposta de solução que merece a aprovação de todo o concílio. Esta
pessoa é Tiago, o meio-irmão de Jesus, quem sucedia Pedro como
cabeça da igreja (At 12:17) e quem era muito respeitado pela autoridade
que tinha (cf. At 21:17–19). 933 Quando ele fala com a assembleia,
literalmente tem a última palavra.

a. Introdução
13, 14. Depois de terminarem, Tiago respondeu: Irmãos, ouvi-
me. Simão acaba de relatar como Deus primeiramente visitou os
gentios, para tomar deles um povo para o seu nome.
Os cristãos judeus que eram membros do partido dos fariseus
deviam estar de acordo com Pedro de que o próprio Deus tinha aberto a
porta para admitir os gentios no seio da igreja. Devem reconhecer que

933
Eusébio diz que Tiago “foi o primeiro em receber do Salvador e dos apóstolos o episcopado da
igreja de Jerusalém”. História Eclesiástica 7.19.1 (LCL); veja-se também 2.1.3; 2.23.1–19.
Atos (Simon J. Kistemaker) 756
Deus havia abençoado a obra missionária realizada por Paulo e Barnabé.
Mesmo assim, não estão satisfeitos. Suas esperanças e expectativas estão
agora no que Tiago, o Justo vai dizer. Eles sabem que ele guardou
escrupulosamente a lei e o respeitam como seu guia espiritual (cf. Gl
2:12). No entanto, Tiago é tolerante e mantém a sintonia com o conceito
da cuidadosa direção de Deus pela igreja universal na qual judeus e
gentios cristãos aceitam-se mutuamente como irmãos e irmãs.
Tiago exerce a função de presidente da assembleia. Todos os
presentes estão ansiosos de ouvir o que vai dizer com relação a aderir à
lei no assunto específico da circuncisão. À maneira de introdução, diz:
“Irmãos, ouvi-me”. A semelhança entre estas palavras e aquelas da
Epístola de Tiago é notável. Em sua epístola, Tiago escreve: “Ouvi,
meus amados irmãos” (Tg 2:5). A ordem ouvi-me não aparece em
nenhuma outra parte do Novo Testamento. 934 Ela revela que Tiago
desfruta de respeito e autoridade na igreja e que apóstolos, anciãos e
delegados presentes no concílio apreciam sua liderança. Tiago faz
menção às palavras de Pedro porém não diz nada sobre as palavras de
Paulo e Barnabé: “Simão acaba de relatar como Deus primeiramente
visitou os gentios, para tomar deles um povo para o seu nome”. No
original, Tiago refere-se a Pedro como Simeão, que também é o nome
que Pedro usa ao escrever sua segunda epístola (2Pe 1:1). Provavelmente
o uso deste típico nome judeu sugere uma íntima relação entre Tiago e
Pedro. Ao chamar Pedro por seu nome judaico, Tiago demonstra que
está plenamente de acordo com o relato de Pedro de sua visita a Cornélio
em Cesareia. Talvez com o uso do nome judaico de Pedro também tem a
intenção de influir de algum modo no ânimo dos judaizantes.
Além disso, Tiago menciona a experiência de Pedro porque através
do apóstolo Pedro Deus permitiu que os gentios chegassem a ser parte da
igreja. E pelo tempo em que teve sua experiência, Pedro era o líder da

934
Refira-se a Simón J. Kistemaker, C.N.T. Santiago y I–III Juan (Grand Rapids: Libros Desafío,
1992), sobre 2:5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 757
igreja de Jerusalém e o porta-voz dos apóstolos. Tiago diz que não foi
Pedro quem mudou a situação a respeito dos gentios, mas que se limitou
a explicar o que Deus fez. Como Pedro, Tiago põe a ênfase em Deus,
quem estava interessado nos gentios. Quer dizer, foi Deus que os tomou
como um povo para Si.
Infelizmente, as traduções são deficientes quanto a comunicar o
sentido do texto grego. Em grego, usa-se um verbo que com frequência
significa visitação. Embora a palavra visita possa ser entendida no
sentido de castigo (veja-se Êx 32:34; Jr 14:10), usualmente a expressão
comunica a ideia da bênção de Deus para Seu povo. 935 Este texto indica
que Deus não estende Sua bênção aos judeus, e sim aos gentios. Além
disso, o termo grego ethnos, traduzido “gentios” simboliza as nações do
mundo: não se trata do povo da aliança com Deus. 936 Em grego, o Novo
Testamento usa a palavra laos para o povo que pertence à aliança com
Deus, para ser precisos, os cristãos descendentes de judeus.
Naturalmente, o conceito de aliança origina-se no Antigo Testamento: só
o povo de Israel (hebraico: am) estão incluídos na aliança; os gentios
(hebraico: gôyîm) não o estão.
Século após século, os hebreus reclamaram a aliança como coisa
própria porque, de todas as nações da terra, só eles eram o povo de Deus.
Mas agora, Deus visitou os gentios e tomou deles um número para ser
Seu povo da aliança. Deus não tomou a todas as nações, mas delas
escolheu os Seus. Assim como no passado Deus escolheu um povo
dentre muitos povos, agora Ele escolhe de todos os povos para fazer um
povo para Si. 937
O texto grego tem as palavras um povo para o seu nome. O nome
de Deus, no entanto, é a revelação de Sua pessoa e Seu poder. A frase

935
Consulte-se Leon Morris, New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academic Books,
1986), p. 156.
936
O termo aparece 162 vezes no Novo Testamento. “Em 100 delas, ethnos é usada em contraste com
judeus e cristãos”. Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 793.
937
Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 2, p. 38.
Atos (Simon J. Kistemaker) 758
para o seu nome tem um sentido idiomático e interpretativo, e é
equivalente a Ele mesmo”. 938

b. A Escritura
15-18. Com isto concordam as palavras dos profetas, como está
escrito: Depois disto voltarei e reedificarei o tabernáculo de Davi, que está
caído; reedificarei as suas ruínas, e tornarei a levantá-lo; para que o resto
dos homens busque ao Senhor, sim, todos os gentios que têm sido
chamados pelo meu nome, diz o Senhor que faz estas coisas conhecidas
desde o princípio do mundo [TB].
Tiago introduz esta citação da profecia de Amós usando a forma
plural palavras para uma passagem da Escritura (Am 9:11–12) e o
substantivo plural profetas para um escritor (Amós). Muitos
comentaristas entendem a expressão profetas como uma referência aos
doze profetas menores. 939 No entanto, o termo poderia incluir a todos os
profetas do Antigo Testamento pelo qual Tiago fala de “palavras” na
fórmula introdutória. 940
Por que escolheu Tiago esta passagem em especial para declarar seu
apoio à admissão de gentios na igreja? Os profetas do Antigo
Testamento estão de acordo com a mensagem de Amós e, com efeito,
falam do mesmo. Sem dúvida, o Espírito Santo fala através deles. 941
Através de todo o Antigo Testamento, começando com Gênesis 3:15,
Deus proclama a mensagem de esperança. Mesmo quando Deus castiga
o Seu povo, não o rejeita, porque lhes dá a promessa da restauração. A

938
Veja-se especialmente Nils A. Dahl, “ ‘A People for His Name’ (Acts xv. 14)”, NTS 4 (1958):
319–27; Jacques Dupont, “Un Peuple d’entre les Nations”, NTS 31 (1985): 321–25.
939
Por exemplo, Marshall, Acts, p. 252; F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with
lntroduction and Commentary, 3ª. ed. rev. y ampl., (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 454.
940
Consulte-se Walter C. Kaiser, Jr., “The Davidic Promise and the Inclusion of the Gentiles (Amos
9:9–15 and Acts 15:13–18): A Test Passage for Theological Systems”, JETS 20 (1977): 97–111.
941
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 46. Michael A. Braun, porém, alega que “a escolha que faz
Tiago de Amós 9 foi uma arbitrariedade”. Veja-se “James’ Use of Amos at the Jerusalem Council:
Steps Toward a Possible Solution of the Textual and Theological Problems”, JETS 20 (1977): 113.
Atos (Simon J. Kistemaker) 759
passagem em Amós, então, é messiânica e ensina que Deus cumpre as
promessas da aliança que fez com Abraão e com Davi. Quando o
Messias vier, Ele governará sobre todas as nações que levam Seu nome.
Em outras palavras, a profecia de Amós descreve o governo universal do
Messias.
1. Variações textuais. Neste estudo, assinalarei algumas diferenças
entre a fraseologia de Amós 9:11–12 e a citação em Atos 15:16–18. 942
Uma olhada superficial à fraseologia destas passagens é suficiente para
ver que Tiago não segue o texto da passagem do Antigo Testamento:
“Naquele dia, levantarei o tabernáculo caído de Davi, repararei as
suas brechas; e, levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo-ei como fora
nos dias da antiguidade; para que possuam o restante de Edom e todas as
nações que são chamadas pelo meu nome, diz o SENHOR, que faz estas
coisas.” [Amós 9:11–12].
Salvo algumas variações, a Septuaginta é bastante parecida com a
citação de Atos 15. Eis aqui uma tradução do texto grego de Amós 9:11–
12: “Naquele dia levantarei a tenda caída de Davi, e reconstruirei suas
ruínas, e levantarei seus restos. E a reconstruirei como era nos dias de
antigamente, de modo que o remanescente dos homens possa buscar e
todas as nações sobre as quais meu nome é invocado, diz o Senhor quem
fará estas coisas.”
A Septuaginta difere em alguns pontos da citação em Atos. Entre as
divergências mais importantes podemos ver as seguintes três: a
introdução naqueles dias em lugar de “depois disto”; a falta do objeto
direto depois da frase o remanescente de homens possa buscar; a
cláusula abreviada o Senhor quem fará estas coisas por o Senhor, quem
faz conhecidas estas coisas desde antigamente”. 943 Uma forma de Amós
942
Para um estudo detalhado, veja-se Braun, “James’ Use of Amos”, pp. 114–17.
943
J. de Waard, A Comparative Study of the Old Testament Text in the Dead Sea Scrolls (Leiden:
Brill, 1965), pp. 24–26. Para um estudo a fundo de Amós 9:11–15 no contexto de Atos 15:14–20,
veja-se O. Palmer Robertson, “Hermeneutics of Continuity”, en Continuity and Discontinuity;
Perspectives on the Relationship Between the Old and New Testaments, ed. John S. Feinberg
(Westchester, Ill.: Crossway, 1988), pp. 89–108.
Atos (Simon J. Kistemaker) 760
9:11–12 no hebraico que oferece um dos rolos do Mar Morto (4QFlor
1.12) tem uma fraseologia muito parecida com a citação de Atos. No
entanto, mesmo que pudéssemos dizer que Tiago citou de um manuscrito
hebraico para o benefício de sua audiência de judeus cristãos, não
podemos provar se as reuniões do concílio foram realizadas em aramaico
ou em grego. Não seria nada de raro que se tenham usado ambos os
idiomas.
2. Matizes exegéticas. Observemos a exegese destes versículos um
por um:
16. Depois disto voltarei e reedificarei o tabernáculo de Davi, que
está caído; reedificarei as suas ruínas, e tornarei a levantá-lo [TB].
Só Tiago usa as palavras depois disto, enquanto tanto o texto
hebraico como a Septuaginta dizem “naquele dia”. Aparentemente,
Tiago se refere aos tempos do profeta Amós, quem falou de que o
templo de Jerusalém seria destruído. Amós prediz que Deus destruirá os
pecadores, mas que não destruirá totalmente a casa de Jacó (Amós 9:1–
10). A expressão depois disto significa “naquele dia” e refere-se à
reconstrução da tenda de Davi. 944 A cláusula Voltarei e reedificarei
significa que depois de que Jerusalém tenha sido destruída, Deus fará
com que Seu povo volte a reconstruir e restaurar suas ruínas.
A frase o tabernáculo de Davi é uma referência profética ao templo
do Senhor ao qual todas as nações vão adorar a Deus (cf., p. ex. Is 2:2–4;
Zc 14:16). Os profetas predizem que tanto os judeus como os gentios
juntos adoram a Deus. Note-se que Amós relaciona a palavra
tabernáculo com Davi, não com Levi nem com Arão. Davi é uma
testemunha aos povos desta terra de que as nações que não conhecem a
Deus correrão a Ele (Is 55:3–5). Estas profecias, que o descendente de
Davi, Cristo Jesus, cumpre então, são messiânicas. Ao mencionar o
tabernáculo de Davi, Amós visualiza os gentios devendo conhecer e a
adorar a Deus. No tempo em que se efetuou o Concílio de Jerusalém,

944
Kaiser, “Davidic Promise”, pp. 105–6; Robertson, “Hermeneutics of Continuity”, p. 97.
Atos (Simon J. Kistemaker) 761
Tiago indica que esta profecia messiânica de Amós se cumpriu com a
entrada dos gentios à igreja. Tiago ensina que Israel, restaurado mediante
Jesus Cristo, estende as boas-vindas ao resto da humanidade numa
comunhão espiritual.
17. Para que o resto dos homens busque ao Senhor, sim, todos os
gentios que têm sido chamados pelo meu nome.
As diferenças textuais do texto hebraico, a Septuaginta e a
fraseologia de Atos provavelmente é resultado de um mal-entendido do
texto hebraico: “para que possuam o remanescente de Edom”. No
hebraico, a palavra Edom foi escrita sem as vogais. Os tradutores da
Septuaginta leram esta palavra como Adão e a interpretaram como
“humanidade” ou “homens”. Além disso, os tradutores da Septuaginta
tomaram a frase que possuam como se quisesse dizer “eles buscarão”. 945
A Septuaginta carece do objeto direto depois do verbo buscar, mas o
texto que usa Tiago, sim, o tem: “buscar ao Senhor”.
Quem são “o remanescente dos homens”? Quando o Antigo
Testamento usa a expressão remanescente normalmente está falando do
povo judeu fiel que experimentou o cuidado protetor de Deus (p. ex.,
veja-se 2Rs 19:4; Is 37:4). No entanto, mesmo que o termo remanescente
não se use especificamente, o conceito em si aparece várias vezes no
Antigo Testamento com referência ao remanescente das nações (p. ex., Is
66:19–21; Zc 14:16). 946
Se lemos da seguinte maneira, encontraremos que o texto da
Septuaginta de Amós 9:12 e o de Atos 15:17 proveem uma interpretação
adequada do “remanescente dos homens”: “que o remanescente dos
homens, até todos os gentios que são chamados por meu nome busquem

945
“O verbo [hebreu] yyršw (‘eles possuirão’) é variada para que se leia ydršw (‘eles buscarão’). Na
história da transmissão do Antigo Testamento houve um tempo em que d e e eram virtualmente
indistinguíveis”. Braum, “James’ Use of Amós”, p. 117. Veja-se também Alford, Alford’s Greek
Testament, p. 165.
946
Volkmar Herntrich, TDNT, vol. 4, p. 208.
Atos (Simon J. Kistemaker) 762
947
ao Senhor”. A segunda cláusula explica a primeira. Os gentios, então,
são o remanescente que pertence ao Senhor (cf. Tg 2:7). Com estas
palavras do Antigo Testamento, Tiago respalda seu argumento de que
dos gentios Deus tomou um povo para Si. Portanto, ao chamar os crentes
gentios, Deus cumpre a promessa messiânica.
18. Diz o Senhor que faz estas coisas conhecidas desde o princípio do
mundo [TB].
Este versículo ensina duas coisas. A primeira, que Deus dá esta
profecia ao Seu povo acompanhada da promessa de que Ele cumprirá o
que disse. Portanto, quando Tiago cita estas palavras de Amós, está
respaldando o relatório de Pedro no sentido que Deus não faz distinção
entre judeus e gentios quanto à Sua salvação (v. 9). O próprio Deus falou
em Sua palavra e deu a segurança de que Ele fará as coisas que deu a
conhecer.
Segundo, o que Deus disse foi conhecido há muito tempo (Is
45:21). Deus o fez conhecido nos dias de Amós; e o volta a repetir nos
tempos do Concílio de Jerusalém. Na verdade, estas coisas voltam para
além, ao tempo em que Abrão recebeu a promessa que ele seria pai de
muitas nações. Por tal razão, Deus lhe deu o nome de Abraão (Gn 17:5).
As coisas ditas por Deus se referem a Davi, quem estendeu os limites de
Israel, conquistando as nações vizinhas para obter a Terra Prometida em
toda a sua extensão. Num grau infinitamente maior, Jesus Cristo,
descendente de Davi, governa sobre todas as nações da terra.

c. As condições:
19, 20. Por isso eu julgo que não se deve perturbar os gentios que se
estão convertendo a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das
viandas oferecidas aos ídolos, da fornicação, dos animais sufocados e do
sangue [TB].
947
Veja-se Bruce, Book of the Acts, p. 292; Richard N. Longenecker, The Acts of the Apostles, en vol.
9 de The Expositor’s Bible Commentary, ed. Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand Rapids: Zondervan,
1981), p. 449; Robertson, “Hermeneutics of Continuity”, p. 104.
Atos (Simon J. Kistemaker) 763
No concílio, todos os olhos estão fixos em Tiago quem, como já
dissemos, exerce a função de presidente. Todos esperam que a palavra
final que saia de sua boca esteja de acordo com sua própria posição (v.
28). Tiago, então, resumindo o que se disse e se fez no concílio, declara
enfaticamente: “Eu julgo”. Sua recomendação como o líder aos que o
ouvem é concisa: “Não se deve perturbar os gentios que se estão
convertendo a Deus”. O verbo grego que traduzido como “perturbar” na
verdade significa “curvar a alguém”. 948 Isto é exatamente o que os
judaizantes estão fazendo com os crentes gentios: curvá-los com o peso
da demanda de circuncidar-se e cumprir a lei de Moisés. Tiago não
utiliza as expressões circuncisão e obediência à lei, mas emprega uma
linguagem que diz: “Não curvem a esta gente”.
Os cristãos judeus deveriam alegrar-se pelo fato que os gentios
estejam voltando-se a Deus (veja-se At 14:15; 26:20). O texto indica que
as conversões dos gentios eram coisa comum.
Tiago sabe que os judaizantes não ficarão satisfeitos com uma
exortação negativa. Portanto, sugere quatro recomendações que são
aplicáveis aos cristãos gentios que se relacionam com os cristãos judeus,
especialmente com os que estão na dispersão. Ele busca promover a
unidade entre os crentes, tanto judeus como gentios; ele quer que os
cristãos vivam juntos numa relação saudável. Ele deseja que observem
certas regulações prescritas que evitem que se cometa qualquer ofensa
em relação às comidas e contatos sociais. Tiago propõe que o concílio
escreva uma carta aos cristãos gentios e lhes diga o que é que devem
fazer.
1. Comida contaminada. Nas estruturas sociais de nossos dias, a
primeira recomendação é muito difícil de entender. Mas para os crentes
gentios de meados do século I, cada palavra da ordem “que se abstenham
das contaminações dos ídolos” [RA] tinha importância. Em outras duas
ocasiões em que se faz a mesma recomendação, és indicado que a

948
R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p. 613.
Atos (Simon J. Kistemaker) 764
comida, especialmente a carne, era sacrificada aos ídolos (v. 29; At
21:25). 949
Os judeus relacionaram a comida sacrificada a um ídolo com um
cadáver humano. Qualquer que tocasse o corpo morto de uma pessoa era
considerado imundo ou poluído; como resultado, nenhum judeu comia
carne contaminada. Além disso, os cristãos judeus e gentios
consideravam o compartilhar a comida sacrificada aos ídolos como
equivalente a demonstrar lealdade às deidades pagãs. Os gentios que
tinham abraçado a fé cristã, por exemplo em Corinto, tinham sido
reiterados observadores de rituais de sacrifício nos templos dos
numerosos deuses pagãos. Estes crentes agora demonstravam sua
lealdade a Jesus Cristo rompendo todo vínculo com sua herança pagã e
evitando toda forma de idolatria (veja-se 1Co 10:14).
2. Imoralidade sexual. Os crentes gentios sabiam que os rituais de
imoralidade sexual nos templos pagãos estavam na ordem do dia.
Através das epístolas de Paulo sabemos que os cristãos gentios
necessitavam recordatórios contínuos de fugir da imoralidade sexual (p.
ex. 1Co 6:9, 18; 2 Cor. 12:21; Gl 5:19). João Calvino crê que a
referência apostólica para evitar viver uma vida sexualmente imoral se
referia à prática pagã de manter uma esposa à margem das regulações
legais normais. 950
3. Animais afogados ou estrangulados. Um judeu se nega a comer a
carne de um animal que foi estrangulado. Se um animal não for morto
adequadamente e seu sangue não se deixa escorrer do corpo, a carne está
corrompida (Lv 17:13; veja-se também Gn 9:4). Este animal, então, é um
cadáver apto para o consumo humano. A proibição apostólica aos crentes
gentios de não comer carne de animais estrangulados lhes ensina

949
Veja-se Êx. 34:15; 1Co. 8:1, 4, 7, 10; 10:19; Ap. 2:14, 20; Wilhelm Mundle, NIDNTT, vol. 2, p.
286; Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, p. 432; Friedrich Büchsel, TDNT, vol. 2, p. 378; David R.
Catchpole, “Paul, James and the Apostolic Decree”, NTS 23 (1977): 428–44.
950
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 51.
Atos (Simon J. Kistemaker) 765
princípios básicos de higiene. A submissão a esta proibição lhes dava
aceitação social entre os crentes judeus da comunidade cristã.
4. Sangue. Esta última ordenança tem que ver com o aborrecimento
dos judeus pelo sangue. A lei mosaica proíbe consumir sangue e diz que
a vida está no sangue (Gn 9:4; Lv 3:17; 7:26; 17:10, 13–14).
Os cristãos gentios estavam bem a par das restrições religiosas,
morais e dietéticas judaicas. Portanto, o decreto apostólico não foi uma
surpresa para eles. As quatro recomendações formuladas por Tiago não
seriam uma carga para eles, mesmo que fossem apresentadas de forma
negativa (“abstenham-se”). Ao mesmo tempo, seus amigos judeus
aprovariam sua boa vontade de acatar estas quatro estipulações. Em
resumo, como líder do Concílio de Jerusalém, Tiago sugeriu um
caminho a seguir que não impediria o anelo dos gentios para a salvação
de Deus como teria ocorrido se lhes tivesse obrigado a circuncidar-se e a
observar estritamente a lei levítica. A sugestão também satisfez os
cristãos judeus que insistiam em que aderissem à lei.
Algumas áreas do templo estavam fechadas aos gentios (cf. At
21:28–29), mas à parte dessa limitação, os cristãos judeus e gentios se
misturavam livremente desde que Pedro visitou Cornélio em Cesareia
(At 10:25–48; veja-se também At 11:19–26). A recomendação de Tiago,
então, constitui um rogo tanto aos crentes judeus como aos gentios, de
aceitar-se uns aos outros e promover a unidade da igreja de Cristo. Tiago
tenta pôr uma ponte de paz entre ambos setores; e, como o resto deste
capítulo o revela, teve pleno êxito em seu esforço.
21. Pois, desde os tempos antigos, Moisés é pregado em todas as
cidades, sendo lido nas sinagogas todos os sábados [NVI].
O que é que está procurando dizer Tiago quando pronuncia estas
palavras com as quais termina seu discurso? Está se dirigindo aos judeus
ou aos gentios? Está procurando agradar os judaizantes que exigem que
os crentes gentios se submetam à circuncisão e obedeçam a lei de
Moisés? Está procurando despojar os gentios da liberdade que eles há
pouco receberam? Podemos continuar fazendo perguntas e buscando
Atos (Simon J. Kistemaker) 766
respostas mas se mantém o fato que este versículo é difícil de
interpretar. 951
Tiago começa dizendo: “Pois, desde os tempos antigos, Moisés é
pregado em todas as cidades”. A conjunção pois incorpora a razão das
quatro exigências. Quer dizer, os cristãos judeus poderiam fazer mais
exigências, mas Tiago vê a realidade da situação e aponta à dispersão
dos judeus. Depois do exílio, provavelmente nos tempos de Esdras,
construíram-se as sinagogas para que os judeus pudessem ser instruídos
na lei de Moisés. 952 Em cada cidade, em todo o mundo conhecido
naquela época, o povo judeu instruiu a população gentílica com a
Palavra de Deus. Os gentios que receberam a instrução chegaram a ser
conhecidos como piedosos.
“Sendo [Moisés] lido nas sinagogas todos os sábados”. Tiago argui
que estes gentios não são ignorantes a respeito dos preceitos mosaicos.
Se querem chegar a saber mais a respeito de tais preceitos, podem
assistir à sinagoga uma vez por semana. Portanto, Tiago está se dirigindo
a judaizantes que não desejam obstruir a tarefa evangelística que os
judeus da dispersão estão fazendo. Mas também deve enfrentar os
cristãos gentios e implicitamente lhes diz que respeitem os judeus
observantes das ordenanças de Moisés. Em resumo, Tiago traz a paz
tanto a judeus como a gentios com sua conclusão e, como resultado,
preserva a unidade da igreja.

Nota textual sobre At 15:20


Nossas traduções usam o texto grego que pertence à família
alexandrina de tipos de texto. A leitura apresenta a quádrupla proibição
de abster-se de comida sacrificada aos ídolos, imoralidade sexual, carne

951
Martin Dibelius afirma, “O conteúdo do decreto é considerado virtualmente como uma concessão
que o povo de Jerusalém faz aos cristãos gentios, e não o contrário”. Studies in the Acts of the Apostles
(Londres: SCM, 1956), p. 97.
952
Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, p. 427.
Atos (Simon J. Kistemaker) 767
de animais estrangulados, e sangue. Estas quatro proibições voltam a ser
expostas no versículo 29 e em At 21:25.
No entanto, o Texto ocidental tem uma variação muito especial; em
At 15:20, 29, e em At 21:25 se omite a referência a animais
estrangulados; e em At 15:20, 29 se acrescenta a Regra áurea mas de
forma negativa: “E qualquer coisa que você fizer e que não quer que lhe
façam isso, não a faça a outros”. As três estipulações no Texto ocidental
são que os cristãos gentios devem abster-se de idolatria, de imoralidade,
e de sangue (quer dizer, de cometer homicídio).
Também devem observar a Regra áurea em sua forma negativa.
“Mas esta forma dificilmente pode ser original, porque implica que uma
especial advertência deve ter-se dado aos conversos gentios contra
pecados tais como o homicídio, e que isto estava expresso na forma de
lhes pedir abster-se disso, o que não deixa de parecer absurdo!” 953
Finalmente, o texto de Cesareia elimina a referência à imoralidade
sexual em At 15:20, 29. A omissão possivelmente reflita uma tentativa
de evitar a inconveniência de misturar uma lei moral com três leis
referentes a comida. 954
A evidência coletiva parece favorecer a forma das quatro
recomendações (abster-se de comida contaminada, de imoralidade, de
comer animais estrangulados e de consumir sangue). O Novo
Testamento indica que as igrejas gentílicas cumpriram a recomendação
apostólica por um longo tempo (por exemplo, veja-se as referências em
Ap 2:14, 20).

953
Metzger, Textual Commentary, pp. 431–32.
954
Kirsopp Lake, “The Apostolic Council of Jerusalem”, Beginnings, vol. 5, pp. 206–7.
Atos (Simon J. Kistemaker) 768
Palavras, frases e construções gregas em At 15:14–21
Versículos 14–15
ἐθνῶν λαὸν — note-se a justaposição destes dois substantivos: das
nações pagãs (ἔθνη) Deus tomou um povo (λαός) para Si.
τούτῳ — este é o neutro, não o masculino, do pronome
demonstrativo: “neste sentido”.

Versículo 17
καί — a conjunção é ascensiva e deve ser traduzida como “ainda”.
A cláusula que a segue καί explica a cláusula que a precede.
πάντα — “todo”. Deus chama os gentios sem condições.

Versículo 19
ἐγὼ κρίνω — a presença do pronome pessoal acrescenta ênfase pelo
que o verbo, agora qualificado, quer dizer, “Eu por um julgo”.
μὴ παρενοχλεῖν — o infinitivo ativo presente precedido pela
partícula negativa μή indica que uma ação que esteja em
desenvolvimento deve ser detida: “deixar de perturbar”.

Versículo 20
τοῦ ἀπέχεσθαι — “abster-se do infinitivo médio presente com o
artigo definido no caso genitivo denota uma cláusula de propósito. O
verbo composto controla o caso genitivo dos substantivos nas quatro
proibições.

Versículo 21
κηρύσσοντας αὑτὸν ἔχει — o sujeito do verbo principal ter é
Moisés. O verbo principal está no tempo presente e descreve ação
Atos (Simon J. Kistemaker) 769
955
continuada. O tempo presente do particípio ativo pregando expressa
ação em desenvolvimento.

C. A carta (At 15:22–35)

1. Os mensageiros (At 15:22)

Mesmo que Lucas não diga a reação da assembleia à proposta feita


por Tiago, do contexto deduzimos que o concílio aceitou as quatro
recomendações apresentadas (vv. 28–29). Depois de adotar o
correspondente acordo, foi necessário nomear os irmãos que pudessem
levar o decreto apostólico às igrejas gentílicas, e, além disso, redigir a
carta.
22. Então os apóstolos e os presbíteros, com toda a igreja, decidiram
escolher alguns dentre eles e enviá-los a Antioquia com Paulo e Barnabé.
Escolheram Judas, chamado Barsabás, e Silas, dois líderes entre os
irmãos [NVI].
Façamos as seguintes considerações:
a. A unidade. No grego, Lucas mostra que a igreja primitiva tinha
dois grupos distintos de líderes: os apóstolos e os anciãos. 956 Não há
forma de determinar quantos dos apóstolos estiveram presentes no
concílio. Por alguma razão que não conhecemos, o concílio não nomeou
apóstolos para informar à igreja de Antioquia a respeito da decisão que
tinham tomado. Apóstolos e anciãos trabalham juntos com toda a igreja,
quer dizer, com representantes de congregações individuais presentes no
Concílio de Jerusalém e não só com a igreja mãe de Jerusalém.
A decisão de enviar homens qualificados a Antioquia é de peso
porque estes homens têm que comunicar e explicar as deliberações do
concílio. Além disso, devem pedir à igreja antioquiana que aceite as

955
Moule, Idiom-Book, p. 8.
956
Veja-se At 15:2 (um artigo definitivo em grego com os dois substantivos apóstolos e anciãos), 4, 6,
22, 23; 16:4. Consulte-se Guthrie, New Testament Theology, p. 740.
Atos (Simon J. Kistemaker) 770
decisões e mantenha assim a unidade da igreja. Sua tarefa seria criar
harmonia entre os crentes judeus que exigem a circuncisão e os cristãos
gentios que pedem liberdade. Portanto, o concílio chega a um acordo
unânime de escolher a homens que são capazes de cumprir esta missão.
Eles não devem ir sozinhos mas acompanharão a Paulo e a Barnabé.
b. Nomeados. O Concílio nomeia dois homens, Judas Barsabás e
Silas. O nome Barsabás quer dizer “filho de Sabás” (o ancião) ou “filho
do sábado”, quer dizer, nascido no sábado. Por outra fonte literária
sabemos que o nome Barsabás era muito comum, embora no Novo
Testamento apareça apenas aqui e em At 1:23, onde se menciona a José
Barsabás. Não sabemos se havia algum parentesco entre Judas e José,
visto que seus nomes aparecem só em Atos. Lucas descreve Judas como
um líder (v. 22) e profeta (v. 32). O nome Silas é uma forma abreviada
de Silvano. Este homem é um reconhecido líder entre os crentes, profeta
(v. 32), cidadão romano (16:37), pregador (2Co 1:19), e escritor que
assistiu a Pedro na composição de sua primeira epístola (At 5:12).
Acompanhou a Paulo na segunda viagem missionária e o menciona pela
última vez quando Paulo fundou a igreja em Corinto (At 18:5). 957
Estes dois homens recebem o encargo de entregar a carta, a que se
supõe que o próprio Tiago redigiu. E embora ele não a assinou, poderia
conjeturar-se que a escreveu. A semelhança entre o discurso de Tiago
diante do concílio e o texto da carta é evidente. Pelas palavras
pronunciadas, contudo, sabemos que os apóstolos e anciãos aprovaram
quase palavra por palavra a carta e que são os responsáveis por seu
envio.

957
Refira-se a B. N. Kaye, “Acts’ Portrait of Silas”, NovT 21 (1979); 13–26.
Atos (Simon J. Kistemaker) 771
2. A mensagem (At 15:23–29)

23. Com eles enviaram a seguinte carta: “ Os irmãos apóstolos e


presbíteros, aos cristãos gentios que estão em Antioquia, na Síria e na
Cilícia: Saudações [NVI].
É possível que, pelo fato de que a carta estava dirigida à igreja em
Antioquia, tenha sido redigida em idioma grego. Não há razão para supor
que foi Lucas quem a compôs, embora seja possível que tenha tido
acesso a uma copia, que incluiu em seu relato. É possível que Judas e
Silas tenham colaborado em sua redação.
Note-se que o conteúdo difere do que se acha nas epístolas escritas
por Pedro ou Paulo. Embora a Epístola de Tiago e esta mostrem certa
semelhança. Por exemplo, a palavra saudações aparece em ambas; o
termo irmãos, que aparece duas vezes neste documento, é usado por
Tiago quinze vezes em sua epístola. 958
É significativo o fato que os apóstolos e anciãos de Jerusalém ficam
no mesmo nível que os crentes gentios de Antioquia. A mensagem é de
um grupo de irmãos cristãos a outro grupo de irmãos em Cristo. O
encabeçado, portanto, indica claramente que os apóstolos e anciãos estão
livres de qualquer indício de discriminação racial.
O vocativo que se usa é “aos irmãos gentios que estão em
Antioquia, na Síria e na Cilícia” embora na membresia da igreja
antioquiana havia também cristãos judeus. Os decretos apostólicos, no
entanto, afetam os cristãos gentios que vivem em Antioquia, na Síria e
na Cilícia (v. 41). Para ser preciso, antes de 72 d.C. Antioquia servia
como a capital da Síria e a parte oriental da Cilícia. 959 Paulo e Silas
também entregaram a carta às igrejas no sul da Galácia (At 16:4).
24-27. Soubemos que alguns saíram de nosso meio, sem nossa
autorização, e os perturbaram, transtornando a mente de vocês com o que
disseram. Assim, concordamos todos em escolher alguns homens e enviá-

958
Tg. 1:2, 16, 19; 2:1, 5, 14; 3:1, 10, 12; 4:11; 5:7, 9, 10, 12, 19.
959
E. M. B. Green, “Syria and Cilicia-A Note”, ExpT 71 (1959): 52–53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 772
los a vocês com nossos amados irmãos Paulo e Barnabé, homens que têm
arriscado a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto,
estamos enviando Judas e Silas para confirmarem verbalmente o que
estamos escrevendo [NVI].
As primeiras duas orações da carta são reveladoras: com toda
simplicidade referem-se ao problema que fez com que se reunisse o
Concílio de Jerusalém e põem a origem do assunto sobre os ombros de
judaizantes não autorizados que tinham viajado de Jerusalém a
Antioquia. Declaram que tais irmãos saíram da igreja de Jerusalém,
embora o fizessem por sua própria conta. Portanto, sem a autorização
dos apóstolos e anciãos, provocaram conflitos na igreja antioquiana com
suas declarações a respeito da circuncisão e da lei de Moisés. Note-se,
entretanto, que a própria carta evita fazer referência aos assuntos da
circuncisão e da lei. Com sua insistência no que eles consideravam o
proceder correto, estes judaizantes perturbaram os cristãos gentios de
Antioquia. Os apóstolos e anciãos tornaram claro que se distanciam
destes perturbadores (cf. Gl 1:7; 5:10). Por implicação se entende que
eles estão observando os crentes gentios que não fazem caso destes
judaizantes que buscam dividir em lugar de unificar a igreja.
“Assim, concordamos todos em escolher”. A próxima frase na carta
explica a unanimidade da liderança de Jerusalém: enviar a alguns irmãos
de Jerusalém com Barnabé e Paulo para que lhes expliquem as decisões
que o concílio tomou. A forma desta frase indica que os apóstolos e
anciãos atribuem grande importância ao envio destes mensageiros com
Barnabé e Paulo. (Paulo é mencionado em segundo lugar devido ao fato
de que não era tão conhecido como Barnabé.) A intenção é mostrar que a
iniciativa vem dos apóstolos e anciãos e não dos delegados de Antioquia,
Barnabé e Paulo, a quem se referem como “nossos amados irmãos”. A
carta revela que estes dois eram tidos em muito alta estima, porque eram
“homens que têm arriscado a vida pelo nome de nosso Senhor Jesus
Cristo” (veja-se At 5:41). Os líderes de Jerusalém estão impressionados
com a dedicação e o ardor destes dois apóstolos aos gentios. De fato, os
Atos (Simon J. Kistemaker) 773
missionários ganharam o carinho da igreja em Jerusalém porque puseram
suas vidas em perigo pelo evangelho de Cristo (At 9:23–25; 14:19; 1Co
15:30).
Os acompanhantes dos missionários são Judas e Silas. Não se nos
dá mais informação sobre eles; são os portadores da carta e os porta-
vozes de seus enviados. Possivelmente não eram conhecidos pela igreja
antioquiana. São os responsáveis por informar verbalmente os acordos
do concílio e explicar o conteúdo da carta.
28, 29. Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor
maior encargo além destas coisas essenciais: que vos abstenhais das coisas
sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados
e das relações sexuais ilícitas; destas coisas fareis bem se vos guardardes.
Saúde.
A primeira palavra pois relaciona a decisão tomada pelo Concílio
de Jerusalém com a tarefa de Judas e Silas. A carta estabelece que a
decisão foi feita pelo Espírito Santo e pela assembleia. Revela que os
apóstolos, os anciãos, e a igreja estavam completamente conscientes da
presença do Espírito Santo guiando-os e dirigindo-os. O Espírito revelou
o que os anciãos da igreja deviam dizer e fazer. Por exemplo, numa
ocasião anterior Pedro disse: “Nós somos testemunhas destes fatos, e
bem assim o Espírito Santo, que Deus outorgou aos que lhe obedecem”
(At 5:32). E em anos posteriores, Paulo foi compelido pelo Espírito a ir a
Jerusalém (At 20:22). 960
Guiada pelo Espírito Santo, a assembleia sente-se livre de dizer que
os cristãos gentios não devem ser afligidos com várias exigências não
essenciais. Note-se, então, que a carta guarda silêncio a respeito da
questão da circuncisão, que foi o que tinha motivado que o concílio se
reunisse (vv. 1, 5). Nada é dito -se a respeito das leis cerimoniais que os
cristãos judeus continuavam cumprindo. Nem tampouco se faz

960
Consulte-se Morris, New Testament Theology, p. 194.
Atos (Simon J. Kistemaker) 774
referências a guardar o sábado como o último dia da semana. A parte
essencial para sua salvação é sua fé em Deus.
A carta especifica que os cristãos gentios devem cumprir quatro
regulações que são expressas de forma negativa: abster-se de consumir
alimentos que tenham sido sacrificados aos ídolos, de sangue, de comer
animais que tivessem morrido afogados ou estrangulados, e da
imoralidade sexual. Estes quatro requerimentos, porém, dão-se não como
uma lei universal aplicável a todos os cristãos em todos os tempos.
Antes, devem ser vistos à luz do desejo do Concílio de manter a unidade
e a harmonia entre os cristãos judeus e os cristãos gentios. Ao contrário,
nenhum cristão, quer judeu ou gentil, opõe-se à primeira estipulação se
fosse relacionada com sua fidelidade a Jesus Cristo. Logo, o cristão que
busca viver segundo a lei de Deus instintivamente se abstém da
imoralidade sexual. E por último, as prescrições de não comer carne de
animais estrangulados e não consumir sangue são regras higiênicas que
os judeus por incontáveis séculos observaram para salvaguardar seu
próprio bem-estar físico.
“Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos”. Numa carta
aos coríntios, Paulo se refere a esta ordenança, embora com uma
fraseologia diferente e em outro contexto (1Co 8:4–10, 13; 10:1–22).
Pediu-se a Paulo para dar sua opinião sobre comer alimentos sacrificados
aos ídolos. Na situação que havia em Corinto, não se refere a comida
tomada dos templos pagãos e vendida ao público nos mercados, mas a
“comer comida sacrifical nas comidas cúlticas nos templos pagãos”. 961
De qualquer maneira, a regulação emitida pelo Concílio de Jerusalém era
aplicável aos cristãos gentios em qualquer lugar que.
A sequência das quatro proibições difere ligeiramente da proposta
de Tiago feita durante as sessões do concílio; a fornicação aparece no
final na carta (v. 29) embora no discurso de Tiago ocupa o segundo lugar

961
Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, série New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 359.
Atos (Simon J. Kistemaker) 775
(v. 20). Na carta, as três primeiras estipulações, que têm que ver com
assuntos de comida, foram agrupadas primeiro, e a outra, que tem que
ver com assuntos de tipo moral, foi posta no quarto lugar. 962
Estas quatro regras são conhecidas como os decretos apostólicos, e
concluem com a advertência, “Destas coisas fareis bem se vos
guardardes”. Com o fato das acatar, não devem pensar os cristãos gentios
que com isso podem alcançar a salvação. Deus concede a salvação
somente pela graça. No entanto, Deus quer que Seu povo faça (quer
dizer, pratique) o que é correto. A carta conclui com a acostumada
despedida daqueles dias: “Saúde”.

Considerações doutrinais em At 15:23–29


Quando Pedro e João foram enviados a Samaria pelos apóstolos,
eles oraram com os crentes samaritanos e pediram a Deus que enviasse
sobre eles o Espírito Santo. Os cristãos judeus aceitaram os crentes de
Samaria porque eles eram meio judeus. Os samaritanos tinham ao menos
os primeiros cinco livros do Antigo Testamento; adoravam a Deus no
Monte Gerizim (Jo 4:20–23) e ouviram Jesus pregar em Sicar (Jo 4:40–
42).
Mas quando os cristãos gentios pediram para ser admitidos na
igreja, os apóstolos e os anciãos se reuniram em assembleia geral. Os
cristãos judeus tiveram que fazer uma importante decisão: ou demandar
que cada gentio se tornasse judeu antes de poder ser cristão, ou preservar
a unidade da igreja e admitir os crentes gentios numa membresia plena
sem condições prévias. O concílio optou pela segunda alternativa. E
recomendaram aos gentios cumprir quatro regras, três das quais tinham
que ver com assuntos de alimentação e a quarta com assuntos de
moralidade.

962
A Nota textual sobre At 15:20 depois da explicação do versículo 21 oferece algumas variações
textuais do versículo 29. Também o leitor pode referir-se a M. Simon, “The Apostolic Degree and Its
Setting in the Ancient Church”, BJRUL 52 (1970): 437–60.
Atos (Simon J. Kistemaker) 776
Mediante a evidente guia do Espírito Santo, os apóstolos e os
anciãos permitiram que o evangelho superasse as diferenças que existiam
entre judeus e gentios. E como as regras estabelecidas pelo Concílio de
Jerusalém eram de longo alcance, as igrejas gentílicas continuaram
crescendo e desenvolvendo-se. Estas igrejas foram assumindo direção e
liderança à medida que o segmento judeu diminuía até desaparecer.
Todas as igrejas gentílicas, portanto, devem sua origem à decisão feita
pelo Concílio de Jerusalém.

Palavras, frases e construções gregas em At 15:23–29


Versículo 23
γράψαντες — gramaticalmente, este particípio ativo aoristo não tem
conexão com o contexto precedente. Traduzido “tendo escrito”,
permanece sozinho e é chamado um absoluto nominativo.
διὰ χειρός — um semitismo traduzido do hebraico ao grego, a
expressão simplesmente quer dizer “por”. 963
ἀδελφοί — sem um artigo definido, este substantivo é aposicional
ao substantivo articular apóstolos e anciãos e poderia ser traduzido como
“seus irmãos”.
τὴν Ἀντιόχειαν —note-se que um artigo definido τὴν aplica-se a
três substantivos: os nomes da cidade de Antioquia e das províncias da
Síria e Cilícia. 964
χαίρειν —aqui está o infinitivo absoluto mais que o infinitivo
imperativado. Expressa um desejo e não uma ordem.

963
Em grego, veja-se At 2:23; 5:12; 7:25; 11:30; 14:3; 19:11, 26.
964
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 787.
Atos (Simon J. Kistemaker) 777
Versículos 24–25
ἀνασκευάζοντες — “desconcertante”. Mesmo quando este é um
gerúndio, em força é idêntico ao verbo principal no indicativo aoristo
(ἐτάραξαν, arrasado).
ἔδοξεν — de δοκέω (eu creio, parece-me), a forma é impessoal no
aoristo da terceira pessoa singular, “pareceu bem” (vv. 22, 25, 28).

Versículo 27
διὰ λόγου — a combinação da preposição com o substantivo
(“palavra”) é equivalente ao advérbio verbalmente.
ἀπαγγέλλοντας — o gerúndio expressa propósito. Judas e Silas
foram enviados “a informar”, quer dizer, “a explicar”.

Versículo 28
πλήν — um advérbio usado como uma preposição que controla o
caso genitivo, significa “exceto”. Numa frase que é um adjetivo
comparativo (πλέον, maior), o uso de uma preposição com o genitivo é
redundante.
τῶν ἐπάναγκες — o caso genitivo descansa na preposição
precedente (“exceto”). No entanto, a palavra ἐπάναγκες gramaticalmente
não é um substantivo mas um advérbio que significa “necessariamente”.
Na tradução, o advérbio vem a ser um substantivo (“coisas necessárias”).
Este advérbio aparece só uma vez no Novo Testamento.

Versículo 29
ἀπέχεσθαι — veja-se a explicação do versículo 20. Aqui o infinitivo
perde o artigo definido.
εἰδωλοθύτων — o caso genitivo deste substantivo depende do verbo
precedente que exige um genitivo de separação.
Atos (Simon J. Kistemaker) 778
διατηροῦντες — a forma composta intensifica este verbo (“guardar
cuidadosamente”). 965 O particípio ativo presente é condicional: “se vocês
guardarem”.

3. O efeito (At 15:30–35)

A tarefa dos dois emissários, Judas e Silas, é facilitada grandemente


pela introdução que Paulo e Barnabé proveem à igreja em Antioquia. De
qualquer maneira, os dois comissionados pelo Concílio de Jerusalém têm
plena autoridade de entregar a carta e explicá-la. De fato, em sua
segunda viagem missionária Paulo e Silas leram esta carta às pessoas que
visitavam quando iam de povoado em povoado através da Síria, Cilícia e
Galácia (At 16:4).
30, 31. Os que foram enviados desceram logo para Antioquia e,
tendo reunido a comunidade, entregaram a epístola. Quando a leram,
sobremaneira se alegraram pelo conforto recebido.
Lucas não oferece indicação de que os missionários tenham visitado
as igrejas em Samaria e na Fenícia, como o tinham feito quando iam a
Jerusalém (v. 3). Mesmo assim, é possível que Paulo, Barnabé e os
outros viajaram para o norte ao longo da costa e comunicaram a
mensagem do concílio às igrejas que encontraram em seu caminho.
Quando chegam a Antioquia, reúnem-se com toda a igreja em essa
cidade e entregam a carta a seus líderes. Estes oficiais da igreja leem a
comunicação do Concílio de Jerusalém diante de toda a congregação.
Agora os crentes gentios sabem em primeira mão que o concílio adotou
o ponto de vista de Paulo e Barnabé e rejeitou as argumentações dos
cristãos judeus que pertenciam ao partido dos fariseus (v. 5). O efeito da
carta e a explicação satisfatória dada por Judas e Silas são alegria e
complacência aos corações dos crentes. Indubitavelmente, Paulo e
Barnabé também dão sua opinião a respeito. Em resumo, os crentes são

965
Thayer, p. 142.
Atos (Simon J. Kistemaker) 779
966
animados pela carta e as palavras dos mensageiros. Aparentemente,
eles não têm objeções às quatro estipulações do concílio. Como os
cristãos em Jerusalém, desejam manter a unidade da igreja; desta
maneira estão dispostos a fazer sua parte em promover a harmonia e a
paz.
32, 33. Judas e Silas, que eram também profetas, consolaram os
irmãos com muitos conselhos e os fortaleceram. Tendo-se demorado ali
por algum tempo, os irmãos os deixaram voltar em paz aos que os
enviaram.
As razões que teve o concílio para escolher a Judas e a Silas como
emissários a Antioquia são óbvias. Primeiro, os dois falavam grego com
facilidade, com o que poderiam dirigir-se aos cristãos gentios em sua
própria língua. Logo, eles são profetas que usam seus dons de pregação
para animar e fortalecer os crentes em Antioquia. 967 Sabemos que a
igreja ali já tinha um número de profetas entre os quais estavam Barnabé
e Paulo (At 13:1). Lucas está muito consciente disso, mas neste versículo
chama a atenção aos dois profetas de Jerusalém que vieram animá-los e
para apoiar os crentes antioquianos. Estes dois vão por ali fazendo saber
verbalmente a respeito das riquezas da salvação em Cristo.
Tanto Judas como Silas ficam em Antioquia por algum tempo onde
continuam seu ministério de pregação. Ppr assim dizer, eles estão a
serviço da igreja antioquiana. E como o texto indica (v. 33), os irmãos
dali os enviam de volta aos que os haviam comissionado. Numa breve
cláusula, Lucas descreve as relações entre os dois profetas e a igreja em
Antioquia: “Os irmãos os deixaram voltar em paz”. A expressão em paz
é na verdade uma saudação de despedida que era de uso comum naquele
tempo. 968

966
O grego tem a palavra paraklēsis, a qual pode significar tanto “consolação”, “exortação”, ou
“alento”. Os tradutores, no entanto, preferem a última forma. Cf. At 13:15.
967
Veja-se Everett F. Harrison, The Apostolic Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), p. 134.
968
Veja-se Ronald F. Youngblood, “Peace”, ISBE, vol. 3, p. 733. E compare Mc. 5:34; Lc. 7:50; 8:48;
At. 16:36; 1 Cor. 16:11; Tg. 2:16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 780
Devido ao fato de que Silas está em Antioquia quando Paulo
começa sua segunda viagem missionária, copistas de séculos posteriores
na era cristã acrescentaram notas explicativas que chegaram a ficar
incorporadas no texto. Para ilustrar, um texto grego diz: “Mas pareceu
bem a Silas permanecer ali”. Outra é um pouco mais ampla: “Mas
pareceu bem a Silas que eles ficassem, e Judas viajou só” (Texto
ocidental). 969 Eruditos são da opinião que estas notas não são originais;
portanto eliminam o versículo 34.
35. Paulo e Barnabé demoraram-se em Antioquia, ensinando e
pregando, com muitos outros, a palavra do Senhor.
Pelo texto grego sabemos que Paulo e Barnabé continuaram em
Antioquia e assim reataram o trabalho que tinham feito antes de viajar a
Chipre e Ásia Menor (At 11:26; e veja-se At 13:1; 14:28). Têm um
ministério completo ensinando e pregando, trabalho que realizavam com
muitos outros. Eles ensinam às pessoas a palavra do Senhor, tal como
costumavam fazer os apóstolos em Jerusalém anteriormente (At 2:42;
5:42). À vista do talento de líder da igreja antioquiana, devemos dizer
que Antioquia, e não Jerusalém, veio gradualmente a ser o centro do
crescimento e desenvolvimento eclesiástico como do alcance
missionário.

Palavras, frases e construções gregas em At 15:30–33


Versículo 30
οἱ μὲν οὗν — com Judas, Silas, Paulo e Barnabé havia também
alguns outros de Antioquia (v. 2).
τὸ πλῆθος — “multidão”. Em contexto, esta palavra às vezes
significa “a igreja” (At 6:2, 5; 15:12).

969
Metzger, Textual Commentary, p. 439.
Atos (Simon J. Kistemaker) 781
Versículo 32
διὰ λόγου πολλοῦ — a preposição διά expressa circunstância
acompanhante e comunica um significado preciso: “longamente (com
muita conversação)”. 970
O Códice Beza suplementa o texto. Depois do gerúndio ὄντες,
acrescenta-lhe: “cheios com o Espírito Santo”. Este manuscrito particular
inclui várias referências ao Espírito Santo (veja-se At 11:16; 15:7, 29;
19:1; 20:3).

Versículo 33
ἀπελύθησαν — o passivo aoristo de ἀπολύω (eu despeço) sugere
que o agente é a igreja antioquiana.
Todos os manuscritos mais importantes dizem, “àqueles que os
tinham enviado”. O Textus receptus e o Texto majoritário preferem a
expressão mais breve aos apóstolos. 971 No entanto, à vista do amplo
contexto (apóstolos, anciãos, e toda a igreja, v. 22), a versão mais breve
carece do respaldo necessário.

970
Moule, Idiom-Book, p. 57.
971
Arthur L. Farstad e Zane C. Hodges, The Greek New Testament According to the Majority Text
(Nashville: Nelson, 1982), p. 428.
Atos (Simon J. Kistemaker) 782

VII. A SEGUNDA VIAGEM


MISSIONÁRIA (AT 15:36–18:22)
Atos (Simon J. Kistemaker) 783
A. Voltam a visitar as igrejas (At 15:36–16:5)

Como historiador, Lucas traça o desenvolvimento da igreja cristã e


descreve como os resultados da primeira viagem missionária de Paulo
provocaram a convocatória ao Concílio de Jerusalém. Durante a primeira
visita de Paulo a território gentílico, numerosos gentios vieram, porém
não foram recebidos por alguns judeus membros da igreja. Depois do
Concílio de Jerusalém, Paulo começa sua segunda viagem missionária
com o decreto apostólico na mão (veja-se At 16:4) e abertamente recebe
os cristãos gentios à membresia plena.
Nem todos os presentes no Concílio de Jerusalém estiveram de
acordo com a decisão que tinha sido tomada. Na verdade, os judaizantes
seguiram Paulo e Barnabé até Antioquia e chegaram inclusive até as
igrejas na Galácia. Em todos estes lugares, fizeram caso omisso dos
decretos apostólicos e exigiram que os gentios convertidos fossem
circuncidados e aderissem estritamente à lei levítica. 972
Segundo Paulo, Pedro veio para Antioquia, comeu com os cristãos
gentios respaldando assim plenamente as decisões feitas pelo Concílio de
Jerusalém (Gl 2:12). No entanto, quando alguns vieram da parte Tiago,
Pedro foi influenciado por eles e decidiu não voltar a sentar-se à mesa
com seus irmãos gentios. A referência a Tiago não significa que ele
tenha delegado a estes homens para que fossem semear discórdia na
igreja de Antioquia. “muito mais natural seria a explicação que eles
vinham da igreja de Jerusalém, uma igreja na qual Tiago ocupava um
lugar eminente”. 973 Tudo parece indicar que estas pessoas pertenciam ao
mesmo molde que aqueles que antes tinham insistido na circuncisão
como um requisito da salvação (v. 1). Quando vieram a Antioquia,
puderam influenciar não só a Pedro mas também a outros cristãos
judeus, incluindo Barnabé (Gl 2:13). Paulo imediatamente viu através de
972
Compare-se Gl. 2:11–12; 3:10–12; 5:2–3; 6:12.
973
Hendriksen, Gálatas, p. 101. Consulte-se também Herman N. Ridderbos, “Galatians, Epistle to
the”, ISBE, vol. 2, pp. 382–83.
Atos (Simon J. Kistemaker) 784
sua hipocrisia. E sem mais repreensão abertamente a Pedro, dizendo-lhe
para corrigir o erro de seu caminho. Paulo não revelou o que disse a
Barnabé, mas supomos que lhe falou mais ou menos da mesma forma.
Num sentido, Paulo estava só mantendo o curso correto. Talvez de
sua perspectiva, este acontecimento afetou de forma adversa a excelente
relação que tinha mantido com Barnabé. Além disso, é provável que este
episódio tenha produzido o desacordo tão agudo que deu como resultado
a separação destes dois amigos (v. 39). Sabemos que a relutância de
Paulo de levar com eles a João Marcos em sua segunda viagem
missionária teve sua raiz na decisão de Marcos de abandonar a Paulo e a
Barnabé. Mas assumimos que Paulo teve razões adicionais para sua
indisposição para com Marcos. Infelizmente, carecemos de evidências
objetivas a respeito de quais puderam ter sido estas razões.

1. A separação (At 15:36–41)

36. Alguns dias depois, disse Paulo a Barnabé: Voltemos, agora, para
visitar os irmãos por todas as cidades nas quais anunciamos a palavra do
Senhor, para ver como passam.
Não podemos determinar quanto tempo permaneceram os
missionários em Antioquia. Possivelmente ficaram ali alguns meses. (No
texto grego, Lucas dá a referência geral depois de algum tempo.) As
necessidades espirituais das recém-fundadas igrejas na Ásia Menor,
contudo, estavam na mente e nas orações de Paulo e Barnabé. Embora a
primeira viagem missionária originou-se pelo Espírito Santo, o plano de
voltar para a Ásia Menor originou-se com Paulo. Quer dizer, o chamado
a Paulo para ser apóstolo aos gentios não tinha cessado depois de
completar sua primeira viagem: uma vez missionário, sempre um
missionário! Além disso, a vocação de sua vida não tinha sido ministrar
Atos (Simon J. Kistemaker) 785
às necessidades espirituais dos crentes em Antioquia, e sim àqueles
dentre os gentios na Ásia Menor, Grécia e Itália. 974
Paulo se dirige a Barnabé como seu companheiro missionário e lhe
sugere que voltem para os crentes das várias cidades onde antes tinham
pregado o evangelho. Refere-se aos crentes como irmãos que ouviram “a
palavra do Senhor” e dá a entender que estes cristãos gentios necessitam
guia pastoral, conselho e ajuda. Em todo o livro de Atos, Lucas
intercambia os termos palavra de Deus e palavra do Senhor (veja-se, por
exemplo, At 8:14, 25).
37, 38. Barnabé queria levar João, também chamado Marcos. Mas
Paulo não achava prudente levá-lo, pois ele, abandonando-os na Panfília,
não permanecera com eles no trabalho [NVI].
Barnabé está de acordo com a sugestão de Paulo, mas sugere que
Marcos vá com eles. Primeiro, lembre-se que Barnabé e Marcos eram
primos (Cl 4:10). Logo, embora Marcos tenha abandonado os
missionários durante sua viagem pela Ásia Menor e havia retornado a
Jerusalém, inferimos que agora ele viajou a Antioquia e desejava servir a
Paulo e a Barnabé de novo como assistente. Barnabé queria dar-lhe uma
segunda oportunidade para que provasse ser um companheiro digno. E
terceiro, no princípio da primeira viagem missionária, Barnabé foi um
líder que ocupava a primeira importância (At 13:1, 7). Mas quando se
planeja a segunda viagem, Paulo está no comando e reage negativamente
à sugestão de que João Marcos os acompanhe.
Muitas pessoas no século I tinham dois nomes: um era aceitável a
gregos e romanos, e o outro refletia a herança semítica da pessoa (p. ex.,
Mateus e Levi, Paulo e Saulo). De igual maneira, João Marcos parece ter
sido chamado João por seus amigos judeus, mas era conhecido como
Marcos no mundo gentílico. No Império Romano, o nome Marcus
(Marcos) era muito comum. Por alguma razão, Lucas sublinha este duplo

974
Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 2, p. 71.
Atos (Simon J. Kistemaker) 786
nome: três vezes indica que João é também chamado Marcos (At 12:12,
25; 15:37).
Quando Lucas escreve o livro de Atos, considera Marcos um amigo
e colega no trabalho de pregar e ensinar o evangelho de Cristo (Cl 4:10,
14; Fm 24). Tem dificuldade em informar que Marcos foi a causa da
contenda que levou à separação de Paulo e Barnabé.
Compreensivelmente, Lucas só registra o essencial e exclui os detalhes.
Informa da controvérsia, porém não delineia a causa básica. Assim nós
poderíamos perguntar-nos se Paulo não era severo demais quando
Barnabé, quem se tinha distinguido como uma pessoa que dava ânimo a
outros (At 4:36; 9:27; 11:24–25) falou-lhe em favor de Marcos. Não
devia Paulo mostrar um espírito perdoador e reincorporar a Marcos
como um colega? Da perspectiva de Paulo, contudo, Marcos tinha
quebrantado sua promessa de ser um fiel servo de Jesus Cristo quando
abandonou os missionários e voltou para Jerusalém (At 13:13). 975
Devemos responder que Paulo duvidou que Marcos pudesse agir como
um missionário que, não obstante as consequências, tinha dedicado sua
vida a Cristo.
“Paulo insistiu 976 em que não o levassem”. Considera Marcos
inepto para a tarefa que os esperava. Pelas cartas de Paulo sabemos que a
seu tempo produziu-se a reconciliação e que Paulo ainda recomendou
Marcos à igreja em Colossos (Cl 4:10). No fim da vida de Paulo, pediu
que Marcos viesse à sua cela na prisão em Roma. E acrescenta que
Marcos lhe tinha sido útil em seu ministério (2Tm 4:11). Além disso,
Pedro o chama seu filho (veja-se 1Pe 5:13).
Em outras palavras, Marcos tem as qualidades necessárias mas
Paulo ainda não está convencido disso. O grego indica que Paulo seguia
insistindo em que não levassem a Marcos porque ele os havia

975
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 62.
976
Bauer, p. 78.
Atos (Simon J. Kistemaker) 787
abandonado na Panfília e não os havia acompanhado a Antioquia da
Pisídia, Icônio, Listra, e Derbe.
39. Houve entre eles tal desavença, que vieram a separar-se. Então,
Barnabé, levando consigo a Marcos, navegou para Chipre.
Lucas usa uma linguagem bastante forte quando informa da ruptura
nas relações entre Paulo e Barnabé. No grego, a expressão traduzida “tal
desavença” vem de uma palavra que significa “provocar a ira” (veja-se
At 17:16; 1 Cor. 13:5). 977 Lucas só conta os fatos e deixa a interpretação
ao leitor. Neste versículo, ele menciona a Barnabé pela última vez
quando diz que Barnabé e Marcos saíram para Chipre.
De qualquer maneira, Paulo não abriga nenhuma animosidade,
porque em suas epístolas escreve palavras de reconhecimento. Pergunta
aos coríntios se ele e Barnabé têm direito de trabalhar numa profissão
(1Co. 9:6). E se afirmarmos que Paulo escreveu Gálatas de Corinto em
sua segunda viagem missionária, lemos que o apóstolo não denigre a
Barnabé, mas só menciona seu nome (Gl 2:13).
Barnabé e Marcos saem para Chipre, terra natal de Barnabé e
também de Marcos. Lucas não diz que a igreja de Antioquia os
encomendou à tarefa que tinham pela frente (embora possivelmente o
terá feito). Ele simplesmente nota que os dois missionários saíram para
Chipre.
40, 41. Mas Paulo, tendo escolhido a Silas, partiu encomendado pelos
irmãos à graça do Senhor. E passou pela Síria e Cilícia, confirmando as
igrejas.
Na providência de Deus, não uma equipe de missionários mas dois
saem de Antioquia. Ainda se nada sabemos a respeito dos resultados da
obra realizada por Barnabé e Marcos, vemos o maravilhoso cuidado de
Deus para com os crentes em Chipre. Deus também cuida das
necessidades dos cristãos da Ásia Menor ao lhes enviar a Paulo e Silas.

977
Heinrich Seesemann, TDNT, vol. 5, p. 857.
Atos (Simon J. Kistemaker) 788
O nome Silas tem sua contraparte na forma latina Silvano. O nome
mais breve estava em voga entre os judeus, porque parecia ter alguma
relação com o nome Saulo. No texto grego, tanto Paulo como Pedro
preferem a forma mais longa. 978 “Como Paulo (também chamado Saulo),
Silas provavelmente usou ambos os nomes e é quase seguro que os teve
desde seu nascimento”. 979 Paulo tinha conhecido Silas no Concílio de
Jerusalém (v. 22) e tinha viajado com ele a Antioquia. Graças ao seu
talento como pregador (v. 32) e a sua condição de cidadão romano (At
16:37), Silas foi o candidato número um para acompanhar a Paulo em
sua segunda viagem missionária.
A relação entre Paulo e Silas é diferente da que houve entre Paulo e
Barnabé. Lucas nunca chama Silas um apóstolo, embora Barnabé diga
apóstolo em duas oportunidades. Silas acompanhou a Paulo não como
um igual, e sim como um subordinado. Por contraste, Paulo sempre
tratou a Barnabé como seu igual e nos primeiros dias como seu guia e
seu mentor.
A igreja antioquiana encomenda Paulo e Silas “à graça do Senhor”.
Com efeito, a igreja em Antioquia comissiona Paulo e Silas para esta
segunda viagem missionária. Não obstante, neste tempo Paulo só está
planejando visitar os crentes nas cidades onde ele e Barnabé tinham
pregado o evangelho. Depois de ter encomendado os missionários à
graça do Senhor, os irmãos de Antioquia os despediram.
Esta segunda viagem prova ser muito mais importante para Paulo
que a primeira: mais adiante leva o evangelho do moderado asiático a
Europa, quando deixa a Ásia Menor e viaja a Macedônia.
Lucas é breve em sua descrição da visita de Paulo às igrejas na Síria
e Cilícia. Primeiro, a rota os leva através da cidade de Tarso, da qual é
oriundo Paulo. Logo, Silas é quem leva a carta e pode explicar os
decretos apostólicos às várias igrejas que visitam. E por último, \

978
2Co. 1:19; 1Ts. 1:1; 2Ts. 1:1; 1Pe. 5:12.
979
Robert C. Campbell, “Silas”, ISBE, vol. 4, p. 509.
Atos (Simon J. Kistemaker) 789
passagem da montanha, as Portas da Cilícia, que provia acesso da Cilícia
a norte e a leste deve ter sido suficientemente segura que Paulo e Silas
puderam viajar a Derbe e Listra.

Considerações práticas em At 15:36–41


Desde a reforma do século XVI a igreja sofreu numerosas divisões,
quer denominacionais, culturais, geográficas, nacionalistas, linguísticas,
doutrinais, eclesiásticas ou administrativas. As justificações que se dão
para um cisma com frequência revelam uma declaração de aderência à
verdade às custas da unidade. A oração de Jesus pela unidade da igreja,
“que todos sejam um” (Jo 17:22), triste é dizê-lo, frequentemente é
desatendida. A regra parece ser a separação, enquanto que a exceção
parece ser a unificação. Os acordos às vezes surgem depois de anos de
consultas e revisões, enquanto que os cismas se apresentam com
inusitada rapidez.
Às vezes, as controvérsias eclesiásticas surgem não por questões
doutrinais, mas por conflitos de personalidade. O choque entre Paulo e
Barnabé é um caso assim. Ninguém devia mais a Barnabé que Paulo por
tê-lo apresentado aos apóstolos em Jerusalém (At 9:27), por tê-lo
convidado a ensinar em Antioquia (At 11:25–26), e por ter-lhe provido
companhia em Chipre e Ásia Menor. Na igreja de Jerusalém, os
apóstolos tinham chamado a Barnabé o “filho de consolação” (At 4:36).
Por sua vez, Barnabé dependia de Paulo para dirigir, pregar, ensinar e
exortar. Barnabé sabia que Paulo tinha visão e era respeitoso dos
princípios.
Mas ambos eram humanos, como o tinham declarado tão
enfaticamente em Listra (At 14:15). 980 Permitiram que a irritação
interrompesse uma amizade e a amargura fosse causa de divisão. Não
obstante o cuidado e a providência de Deus em usar este evento para o

980
Bruce, Book of the Acts, p. 301.
Atos (Simon J. Kistemaker) 790
progresso do evangelho, Paulo e Barnabé tiveram que abrigar tristes
memórias de uma divisão que ambos teriam preferido evitar.
Devemos promover a unidade às custas da verdade? De maneira
nenhuma. Como um escritor anônimo o disse: “Quando a Bíblia fala da
unidade da igreja, não fala de unidade às custas da verdade, mas de
unidade baseada na verdade”.

Palavras, frases e construções gregas em At 15:36–41


Versículo 36
ἐπιστρέψαντες — este particípio aoristo assume a mesma função
que o verbo principal ἐπισκεψώμεθα (subjuntivo ativo aoristo). Juntos
comunicam o significado de subjuntivo exortatório: “Voltemos e
visitemos”.
αἷς — o antecedente deste pronome relativo no plural feminino é o
substantivo singular πόλιν (cidade). É usado distributivamente com a
preposição κατά (em [toda cidade]). 981

Versículos 37–38
συμπαραλαβεῖν — “levar”. Este é o aoristo constantivo, quer dizer,
refere-se à ação em sua totalidade. 982 Note-se que no versículo 38 Lucas
usa o mesmo verbo porém no tempo presente.
O tempo imperfeito nos verbos principais de ambos os versículos:
ἐβούλετο (queria) e ἠξίου (insistia), indica que a briga não se limitou a
um momentâneo broto de raiva.

981
Moule, Idiom-Book, pp. 59–60.
982
H. E. Dana e Julius R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927; Nova
York: Macmillan, 1967), p. 196.
Atos (Simon J. Kistemaker) 791
Versículo 39
ὥστε — com o infinitivo passivo aoristo ἀποχωρισθῆναι (separar) o
advérbio expressa resultado real: “então eles se separaram”. 983

Versículo 41
διήρχετο — o imperfeito descritivo do verbo διέρχομαι (eu vou
através) descreve Paulo e Silas visitando e animando a muitas igrejas.
O Códice Beza acrescenta a cláusula: “entregando [a eles] as
instruções dos anciãos”. 984 Mas a autenticidade deste agregado é atacada
pelos paralelos nos versículos 22 e 23 e 16:4.

Resumo de Atos 15
Na igreja de Antioquia alguns homens da Judeia ensinam que os
crentes devem circuncidar-se e aderir à Lei Mosaica antes de poderem
ser salvos. Paulo e Barnabé se opõem a este ensino. A igreja antioquiana
encarrega-os e a outros que apresentem este assunto aos apóstolos e
anciãos em Jerusalém. Pelo caminho, a delegação viaja através da
Fenícia e Samaria e conta às igrejas a respeito da conversão dos gentios.
E já em Jerusalém informam sobre a obra que Deus tem feito através dos
missionários.
Os apóstolos e os anciãos reúnem-se para falar a respeito da
circuncisão e a aderência à lei de Moisés. Pedro lhes fala e assinala a
obra que Deus está fazendo entre os gentios. Diz que Deus não faz
distinção entre judeus e gentios. Portanto, o jugo da lei, que nem sequer
os judeus são capazes de levar, não deve ser posto sobre os gentios. A
salvação é pela graça de Jesus Cristo.
Depois que Paulo e Barnabé falaram, Tiago se dirige à assembleia e
declara sua identificação com a apresentação feita por Pedro. Faz

983
Robertson, Grammar, p. 1091.
984
Metzger, Textual Commentary, p. 440.
Atos (Simon J. Kistemaker) 792
referência ao ensino das Escrituras e sugere que se peça aos gentios que
se abstenham de comida contaminada, da fornicação, de carne de
animais que tenham morrido estrangulados, e de sangue. Todo o concílio
aprova esta sugestão e nomeia a Judas e Silas para acompanharem Paulo
e Barnabé a Antioquia para entregar a carta do concílio. Em Antioquia, o
povo recebe a carta, ouve sua leitura, e manifesta sua complacência.
Judas e Silas se retiram, mas Paulo e Barnabé permanecem ali.
Paulo e Barnabé se indispõem por causa de João Marcos, quem
tinha desertado na Panfília e quem agora quer acompanhá-los de novo. A
disputa tem como resultado a separação, pelo que Barnabé toma a
Marcos e vai para Chipre. Paulo toma a Silas e visita as igrejas na Síria e
Cilícia.
Atos (Simon J. Kistemaker) 793
ATOS 16
A SEGUNDA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 2 (At 16:1–40)
2. Derbe e Listra (At 16:1–5)

Nesta seção, Lucas apresenta a Timóteo, quem vem a ser um dos


colaboradores de Paulo, e nos relata da entrega dos acordos apostólicos
às igrejas. Omite os detalhes pertinentes à viagem de Paulo e à recepção
que tem em Derbe e Listra; pelo contrário, registra o dado sobre o
desenvolvimento e fortalecimento das igrejas.
1, 2. Chegou também a Derbe e a Listra. Havia ali um discípulo
chamado Timóteo, filho de uma judia crente, mas de pai grego; dele
davam bom testemunho os irmãos em Listra e Icônio.
O enfoque de Lucas está em Paulo, a quem apresenta como o
encarregado da obra. Mesmo que Silas seja o companheiro de viagem de
Paulo, Lucas não o menciona senão até que registre o fato que os dois
missionários são apreendidos em Filipos (v. 19). Em resumo informa que
Paulo chega a Derbe (cf. At 14:6, 20), e mais tarde a Listra (veja-se At
14:6, 8), uma cidade a noroeste de Derbe.
Listra é o lugar de nascimento de Timóteo (cf. At 20:4), cuja mãe
era judia e cujo pai era grego. Lucas faz notar que Timóteo era um
discípulo; quer dizer, um cristão, e que sua mãe era crente. De outra
fonte sabemos que sua mãe, Eunice, e sua avó, Lóide, mostraram uma fé
sincera e ensinaram a Timóteo, desde a infância, as Sagradas Escrituras
(2Tm 1:5; 3:15). Possivelmente, Eunice e Lóide chegaram a ser cristãs
quando Paulo e Barnabé pregaram o evangelho em Listra durante sua
primeira viagem missionária. Por sua vez, elas instruíram a Timóteo,
quem, não obstante sua juventude, foi de grande respeito entre os crentes
tanto em Listra como em Icônio. Parece que Paulo já sabia algo da
Atos (Simon J. Kistemaker) 794
família de Timóteo, porque menciona a sua mãe e a sua avó por seus
respectivos nomes.
Paulo adotou Timóteo como seu filho espiritual. 985 Timóteo estava
completamente a par das perseguições que Paulo tinha sofrido em
Antioquia da Pisídia, em Icônio e em Listra (2Tm 3:10, 11). É possível
que tenha visto como apedrejavam a Paulo em Listra. Se foi assim, este
evento deveria ter deixado um profundo rastro na memória de Timóteo.
Que idade tinha Timóteo quando Paulo se encontrou com ele em
Listra? Em suas epístolas pastorais, Paulo aconselha a Timóteo a não
sentir-se ofendido quando era visto como a um jovenzinho (1Tm. 4:12).
Paulo escreveu sua primeira epístola a Timóteo depois de sua libertação
do cárcere romano, provavelmente em 64 d.C. Isto é quatorze anos
depois de que este começou como companheiro de Paulo em Listra. Se
por aquele tempo Timóteo tinha vinte anos, ainda seria visto como muito
jovem quando servia à igreja em Éfeso e recebeu a carta de Paulo.
Lucas escreve que a mãe de Timóteo era uma judia que tinha
casado com um grego. Não dá mais informação a respeito do pai grego,
mas supõe-se que era um homem educado que ocupava uma posição
destacada em Listra. Não era um convertido ao judaísmo porque não
havia permitido que seu filho se submetesse ao rito da circuncisão.
Tampouco era cristão.
Os casamentos mistos eram considerados ilegais pelos judeus. 986
No mesmo sentido, Paulo ensinava aos cristãos não unir-se em jugo com
os incrédulos mas que se casassem em Cristo (veja-se 2Co 6:14). A mãe
de Timóteo se casou com um grego mesmo quando ela conhecia as
Escrituras. 987 Como uma filha de Abraão, ela não havia respeitado a lei,
pelo fato de que não se tinha preocupado de circuncidar seu filho.
Embora os irmãos de Listra e de Icônio falassem bem de Timóteo, os

985
1Co. 4:17; 1Tm. 1:2, 18; 2Tm. 1:2.
986
SB, vol. 2, p. 741.
987
Refira-se a Gerald F. Hawthorne, “Timothy”, ISBE, vol. 4, p. 857; Everett F. Harrison, Interpreting
Acts: The Expanding Church, 2a. ed. (Grand Rapids: Zondervan, Academic Books, 1986), p. 261.
Atos (Simon J. Kistemaker) 795
judeus sentiam-se ofendidos porque não havia sido circuncidado.
Consideravam-no fora da aliança que Deus fez com Abraão e seus
descendentes.
3. Quis Paulo que ele fosse em sua companhia e, por isso,
circuncidou-o por causa dos judeus daqueles lugares; pois todos sabiam
que seu pai era grego.
Cada vez que Lucas apresenta alguém que é importante quanto à
difusão do evangelho, provê detalhada informação. (No entanto, não
deixa de surpreender que nunca tenha mencionado a Tito, quem,
segundo os escritos de Paulo, provou ser um obreiro diligente e capaz em
Corinto e mais tarde em Creta.) 988 Lucas é claro em assinalar que Paulo
tinha um interesse especial no jovem Timóteo e queria levá-lo consigo. É
possível que enquanto esteve em Listra, Paulo tenha tomado a decisão de
estender seu trabalho missionário para além de Icônio, para o qual tenha
estimado que os serviços de Timóteo lhe eram muito necessários.
Paulo lembra a Timóteo que ele tinha recebido o dom de profecia
quando os anciãos, incluindo o próprio Paulo, impuseram suas mãos
sobre ele e o ordenaram para o serviço missionário. 989 Os anciãos em
Listra e em Icônio apartaram a Timóteo para que pregasse e ensinasse o
evangelho.
Mas Timóteo, que era considerado um judeu em razão de que sua
mãe e sua avó o eram, não era bem-vindo aos judeus desta região. Eles
sabiam que seu pai era grego e também que Timóteo não tinha sido
circuncidado. Se seus dois pais tivessem sido gentios, não teria havido
dificuldades, mas como filho de uma judia, Timóteo estava obrigado a
submeter-se à circuncisão. Sem a marca da aliança, não poderia chegar a
ser um missionário eficaz aos judeus. Para evitar qualquer oposição dos
judeus, Paulo então circuncidou a Timóteo.

988
2Co. 2:13; 7:6, 13, 14; 8:6, 16, 23; 12:18; Gl. 2:1, 3; 2Tm. 4:10; Tt. 1:4. Veja-se também W. O.
Walker, “The Timothy-Titus Problem Reconsidered”, ExpT 92 (1981); 231–35.
989
1Tm. 1:18; 4:14; 2Tm. 1:6–7.
Atos (Simon J. Kistemaker) 796
Que equívoco de Paulo, o apóstolo da liberdade em Cristo!
Consideremos por um momento o problema que Paulo devia enfrentar:
os decretos apostólicos não exigiam circuncidar-se (At 15:20, 29); Tito
fica sem circuncidar-se (Gl 2:3); e Paulo mesmo exorta aos gálatas (entre
os quais estavam os de Listra) a não se deixarem circuncidar (Gl 5:2–3,
6; 6:15; ver também 1Co 7:19). Consideremos estes casos um por um.
Primeiro, o Concílio de Jerusalém não exigia que os gentios que se
convertiam se circuncidassem (At 15:19). Isto eximia os gentios cristãos
das exigências da lei de Moisés, embora não necessariamente os judeus
cristãos.
Segundo, Paulo levou Tito a Jerusalém, como uma prova diante do
Concílio. Este exime Tito de circuncidar-se por ser um cristão gentio. A
presença de Tito no Concílio provou uma coisa: que os gentios obtinham
a salvação sem primeiro tornar-se judeus.
Terceiro, Paulo diz aos gálatas (incluindo os crentes em Listra) que
eles são livres em Cristo e não são escravos à lei da circuncisão. Deus
aceita um crente não com base na circuncisão mas por sua fé expressa
através do amor (Gl 5:6, 13–14). Paulo ensina aos gálatas a mesma
mensagem: os gentios estão livres do jugo da lei (At 15:10; Gl 5:1).
No caso de Timóteo, “ser um bom cristão não significa
necessariamente ser um mau judeu”. 990 O próprio Paulo queria ser tudo
para todos, a fim de ganhar tanto judeus como gentios para Cristo (1Co
9:19–23). Esperava que Timóteo, seu colega missionário, pudesse fazer
o mesmo. Portanto, Paulo o circuncidou para tirar qualquer impedimento
para levar adiante a causa de Cristo. 991

990
Richard N. Longenecker, The Acts of the Apostols, no vol. 9 de The Expositor’s Bible Commentary,
ed. Frank E. Gaebelein, 12 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1981), p. 455.
991
Ernst Haenchen argumenta que Lucas se baseia numa tradição “pouco confiável” quando escreve
que Paulo circuncidou a Timóteo. The Acts of the Apostles, trad. por Bernard Noble y Gerald Shinn
(Filadélfia: Westminster, 1971), p. 482. Mas isto é improvável. Lucas mesmo foi companheiro de
viagem com Paulo, Silas e Timóteo (At 16:10). Veja-se Harrison, Interpreting Acts, p. 262.
Atos (Simon J. Kistemaker) 797
4. Ao passar pelas cidades, entregavam aos irmãos, para que as
observassem, as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros de
Jerusalém.
Lucas faz uma afirmação geral quando diz que Paulo e seus
companheiros viajavam de cidade em cidade e davam a conhecer os
decretos apostólicos. Parece que os judaizantes que tinham visitado a
igreja de Antioquia e tinham conseguido dissuadir a Pedro e a Barnabé a
que não comessem com os cristãos gentios (Gl 2:12–13) também
seguiram a Paulo às igrejas do sul da Galácia. Nestas cidades, eles
insistiram que os cristãos gentios deviam obedecer a lei de Moisés e ser
circuncidados (Gl. 5:2–3; 6:12). 992
Para ser preciso, o Concílio de Jerusalém tinha redigido uma carta
principalmente para o benefício dos crentes em Antioquia. Mas Paulo e
Silas usaram essa carta para pôr a par os cristãos das igrejas do sul da
Galácia da ação tomada pelo concílio. Quando os judaizantes visitaram
as igrejas e procuraram desviar os crentes, Paulo teve que escrever sua
Epístola aos Gálatas. Atrever-nos-íamos a afirmar que Paulo escreveu
esta carta às igrejas da Galácia durante sua segunda viagem missionária,
possivelmente de Corinto, para procurar evitar a ameaça que se abatia
sobre o bem-estar dos cristãos gálatas. 993
Os missionários entregam a carta e instruem os crentes a obedecer
os decretos apostólicos. Em outras palavras, dizem aos crentes que
devem pôr em prática quanto têm prescrito aos cristãos gentios os
apóstolos e anciãos.
5. Assim, as igrejas eram fortalecidas na fé e, dia a dia, aumentavam
em número.

992
Guilherme Hendriksen, Exposición sobre Gálatas, serie Comentario del Nuevo Testamento (Grand
Rapids: SLC, 1984), p. 27.
993
Embora persistam alguns problemas causados pela interpretação desta passagem, não há razão para
duvidar de sua autenticidade. Todos os manuscritos gregos respaldam o que este texto diz. Para um
ponto de vista oposto, veja-se F. F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., New International
Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 305.
Atos (Simon J. Kistemaker) 798
Aqui temos um típico relatório do progresso que Lucas com
frequência oferece na conclusão de um segmento de sua narração (veja-
se, p. ex., At 2:47; 6:7; 9:31; 12:24). Durante sua estada no sul da
Galácia, os missionários continuam instruindo e dando ânimo aos
crentes. Como resultado disso, estes se fortalecem nas doutrinas da
igreja. A palavra fé refere-se a uma fé objetiva, quer dizer, a um ensino
doutrinal, não à uma fé subjetiva de um crente em particular.
O grego indica que tanto o fortalecimento na fé como o crescimento
numérico dos crentes experimentava um progresso constante. Não se
mencionam cifras, mas o resultado do trabalho entre os gentios é
fenomenal. A igreja entre os gentios cresce rapidamente.

Palavras, frases e construções gregas em At 16:1–5


Versículos 1–2
Δέρβην — esta cidade é mencionada primeiro e Λύστραν em
segundo lugar devido ao fato de que os missionários estão viajando de
direção oeste (veja-se a ordem oposta em At 14:6). Note-se que a forma
plural Λύστροις é usada no versículo 2. O plural é comum quando a
referência é a cidades.
ἐμαρτυρεῖτο — o tempo imperfeito de μαρτυρέω (eu testifico) é
descritivo.

Versículos 3–4
ᾔδεισαν — o tempo mais-que-perfeito toma o lugar do tempo
imperfeito no verbo οἶδα (eu sei). Com a conjunção ὃτι (essa) introduz
uma afirmação indireta, seguida do tempo imperfeito de ὑπῆρχεν (ele
era). O imperfeito nesta afirmação comunica a informação que o pai de
Atos (Simon J. Kistemaker) 799
994
Timóteo tinha morrido. O uso do tempo presente é uma afirmação
indireta que tivesse indicado que seu pai vivia ainda.
διεπορεύοντο — se Lucas tivesse escrito a preposição διά (através)
depois de este verbo composto, o objeto direto τὰς πόλεις (as cidades)
teria estado no caso genitivo. Este verbo (“eles foram através de”)
expressa direção mas toma o objeto no acusativo. 995
Os Manuscritos ocidentais têm uma versão ampliada; os agregados
aparecem em itálico: “E enquanto iam através das cidades pregavam [e
lhes entregavam] com toda ousadia, o Senhor Jesus Cristo, dando a
conhecer ao mesmo tempo também os mandamentos dos apóstolos …” 996

Versículo 5
αἱ μὲν οὗν — a combinação do artigo definido e as duas partículas
μὲν οὗν (portanto) aparece dezoito vezes em Atos e geralmente é para
apresentar uma afirmação resumida.

994
Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961). #330.
995
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 91.
996
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 441. Consulte-se Édouard Delebecque, “De Lystres
á Philippes (Ac 16) avec le codex Bezae”, Bib 63 (1982): 395–405.
Atos (Simon J. Kistemaker) 800
B. Macedônia (At 16:6–17:15)

1. O chamado macedônico (At 16:6–10)

Paulo, Silas e Timóteo trabalham nas igrejas do sul da Galácia e


decidem logo pregar em outras regiões do centro-sul da Ásia Menor.
Planejam viajar na direção ocidental e, segundo a forma em que lhes
guiasse o Espírito Santo, estender a igreja de Cristo num mundo
predominantemente gentílico.
A estratégia missionária de Paulo é pregar nas cidades importantes,
preferivelmente nos centros comerciais e administrativos, de onde a
Palavra de Deus pudesse radiar-se em todas as direções. Pelo texto
sabemos que Paulo tinha planejado ir para o oeste, à província da Ásia (a
parte ocidental da Turquia). Supomos que ele queria visitar Éfeso, cidade
localizada ao sul do rio Cayster, perto do mar Egeu. Mas Lucas diz que o
Espírito Santo não lhes permitiu entrar nessa província. Alguns anos
mais tarde, durante sua terceira viagem missionária, Paulo teria que
ministrar às pessoas da província da Ásia e particularmente aos que
viviam em Éfeso (At 19:1–12).
6-8. Paulo e seus companheiros viajaram pela região da Frígia e da
Galácia, tendo sido impedidos pelo Espírito Santo de pregar a palavra na
província da Ásia. Quando chegaram à fronteira da Mísia, tentaram
entrar na Bitínia, mas o Espírito de Jesus os impediu. Então,
contornaram a Mísia e desceram a Trôade [NVI].
Vejamos os seguintes pontos:
a. Frígia e Galácia. Em lugar de ir direto para o oeste, Paulo, Silas
e Timóteo, obedientes à direção do Espírito, viajam pela região
conhecida como Frígia e Galácia. Os eruditos postulam duas explicações
para a frase Frígia e Galácia. Os que respaldam a teoria da chamada
Galácia do Norte, afirmam que Frígia era um distrito distinto onde se
encontravam as cidades de Antioquia da Pisídia e Icônio. Viajando para
Atos (Simon J. Kistemaker) 801
o norte, os missionários entrariam na província romana da Galácia,
também conhecida como a Antiga Galácia.
Presumivelmente visitaram as cidades de Pessino, Ancira (a
moderna Ankara), e Tavio, no caminho a Trôade (v. 8) onde
estabeleceram igrejas. No entanto, o Novo Testamento não menciona
nenhuma igreja nesta parte da Galácia. Herman N. Ridderbos escreve,
“Não pode ser descartada a possibilidade de que a hipótese da Galácia do
Norte tivesse algo que ver com congregações fictícias”. 997
Os que compartilham a teoria da Galácia do Sul dizem que o grego
usa as palavras Frígia e Galácia como adjetivos que descrevem o
substantivo região: “a região frígio-gálata”. 998 Os adjetivos referem-se à
uma região na metade do sul da província romana da Galácia, habitada
por frígios.
A evidência em favor da teoria de Galácia do Sul é decisiva.
Primeiro, Frígia era uma região habitada por milhares de judeus, 999 os
quais introduziram o ensino do Antigo Testamento entre os gentios. Este
conhecimento e o ensino das Escrituras contribuiu para a difusão do
evangelho. Segundo, Lucas menciona a Frígia como uma das nações
representadas no Pentecostes (At 2:10). Galácia era habitada por gente
que, no século III a.C. tinha emigrado da Gália na Europa até Bitínia, na
Ásia Menor. Os romanos fizeram da área na qual os gálatas viveram uma
província que se estendeu desde Bitínia e o Ponto no norte até Frígia e
Licaônia no sul. Galácia do Sul, então, era uma área multirracial, e a
estratégia missionária de Paulo era pregar o evangelho principalmente
em tais áreas. Por esta razão muitos eruditos são resistentes a sugerir que

997
Herman N. Ridderbos, “Galatians, Epistle to the”, ISBE, vol. 2, p. 380; veja-se também Lorman M.
Petersen, “Galations, Epistle to”, ZPEB, vol. 2, p. 634.
998
Colin J. Hemer, “The Adjective ‘Phrygia’ ” JTS 27 (1976): 122–26: “Phrygia: A Further Note”,
JTS 28 (1977); 99–101; The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf
(Tubinga: Mohr, 1989), p. 112; “Phrygia”, ISBE, vol. 3, pp. 862–63.
999
Josefo diz que Antíoco III (223–187 a.C.) transportou a duas mil famílias judias desde
Mesopotâmia e Babilônia, a Frígia. Antiguidades 12.3.4 [149].
Atos (Simon J. Kistemaker) 802
Paulo trouxe o evangelho exclusivamente aos gentios na parte norte da
Galácia.
b. Mísia e Bitínia. O Espírito Santo guia os missionários em suas
viagens. Não conhecemos com exatidão a forma em que ele comunicava
Sua vontade aos viajantes; talvez Silas, quem era profeta (At 15:32)
recebia as ordens do Espírito. Embora Lucas usa a frase Espírito de
Jesus como um sinônimo para Espírito Santo, a própria frase é
“indicativa de que o Cristo ressuscitado continuava trabalhando
mediante o Espírito. O Espírito é o representante de Jesus”. 1000
Viajando de direção noroeste, os missionários chegam à fronteira de
Mísia, uma região na esquina noroeste da Ásia Menor. Dali procuram ir
para o norte, a Bitínia (cf. 1Pe 1:1), mas o Espírito, que já lhes tinha
proibido entrar na província da Ásia, impede-os de ir a Bitínia. (É
interessante notar aqui que, com o tempo, Bitínia chegou a ser um forte
enclave da igreja cristã e a sede de importantes reuniões de concílios da
igreja [p. ex., o Primeiro Concílio de Niceia, 325 d.C.; o Quarto Concílio
Geral de Calcedônia, 451 d.C.].) Paulo e seus companheiros devem
viajar ao porto de Trôade sobre o mar Egeu.
c. Trôade. A cidade de Trôade, situada a uns dezoito quilômetros ao
sul da antiga Troia, estava na parte ocidental de Mísia. Colônia romana,
servia como a porta de entrada da Europa a Ásia Menor e como o ponto
de partida para a Macedônia. Lucas diz que os missionários desceram a
Trôade; quer dizer, deixaram as alturas de Mísia e desceram até o nível
do mar. Rodearam Mísia, no sentido de que não se ficaram ali a
proclamar a Palavra. O Espírito lhes disse que viajassem para o oeste, a
Trôade, em lugar de ir a leste, a Bitínia. Anos mais tarde, Paulo visitou
com frequência Trôade, onde pregou o evangelho (At 20:5–6; 2Co 2:12;
2Tm 4:13).

1000
Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grave: Inter-Varsity, 1981), p. 547.
Consulte-se também W. P. Bowers, “Paul’s Route Through Mysia: A Note on Acts XVI.8,” JTS 30
(1979): 507–11.
Atos (Simon J. Kistemaker) 803
9, 10. À noite, sobreveio a Paulo uma visão na qual um varão
macedônio estava em pé e lhe rogava, dizendo: Passa à Macedônia e
ajuda-nos. Assim que teve a visão, imediatamente, procuramos partir
para aquele destino, concluindo que Deus nos havia chamado para lhes
anunciar o evangelho.
a. “Sobreveio a Paulo uma visão na qual um varão macedônio”. A
ordem de descer a Trôade vem do Espírito de Jesus, quem, ao bloquear
sua intenção de ir às províncias da Ásia e Bitínia, dirige-os a desenvolver
a igreja em outra parte. Ele está no controle total de tudo e em Trôade
informa Paulo qual deve ser o próximo passo. Jesus dá a Paulo
instruções que são suficientes para a necessidade desse momento.
Durante a noite, Paulo tem uma visão, uma experiência comum em
Pedro, Paulo, e outros. 1001 Nesta visão, nem Jesus lhe fala nem envia um
anjo. Pelo contrário, Paulo vê um homem que lhe diz: “Passa a
Macedônia e ajuda-nos”. Supomos que Paulo pôde identificar a
nacionalidade do homem por seu modo de falar e sua vestimenta.
No século I Macedônia se estendia de leste a oeste do mar Egeu até
o mar Adriático. Ao norte estavam Ilírico e Trácia e ao sul, Acaia
(Grécia). Governada pelos romanos, o povo da Macedônia falava grego,
o que lhes permitia comunicar-se sem problemas com os habitantes da
Ásia Menor. Para Paulo e seus companheiros, portanto, a passagem de
um continente (Ásia) a outro (Europa) foi relativamente fácil.
b. “Passa a Macedônia e ajuda-nos”. Qual é o significado do pedido
do macedônio? A primeira parte de sua petição (“passa a Macedônia”)
refere-se a cruzar o mar Egeu (veja-se v. 11). A segunda parte do rogo é
uma petição de ajuda. O verbo usado tem a conotação de vir em ajuda de
alguém; por exemplo, o pai da criança epilética suplicou a Jesus:
“Ajuda-me na minha falta de fé” (Mc 9:24). O pedido, então, é por ajuda
espiritual. O macedônio indica que ele não está sozinho; está falando em

1001
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentary
(1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 273.
Atos (Simon J. Kistemaker) 804
nome de seus compatriotas. Este rogo vem de gente que está preparada
para receber o evangelho.
c. “Imediatamente, procuramos partir para aquele destino”. Paulo
conta a visão a seus companheiros e juntos seguem a direção divina de ir
a Macedônia.
Neste versículo é óbvia a mão do escritor de Atos: com o pronome
nós está-se identificando a si mesmo como um participante das
deliberações dos missionários. Não sabemos como se conheceram Paulo
e Lucas; com modéstia Lucas evita prover informação a respeito de sua
fé, habilidades e talentos. De uma fonte do século II (o Prólogo
antimarcionita ao Evangelho de Lucas) sabemos que Lucas era natural
de Antioquia da Síria; da Escritura sabemos que era médico (veja-se Cl
4:14). Talvez se conheceram em Antioquia, embora Lucas não diga nada
a respeito. A frase Deus nos havia chamado parece comunicar que Lucas
não era um recém convertido que se associou com Paulo pela primeira
vez em Trôade. 1002 Porém não nos dá mais detalhes, o que nos obriga a
ficar com o que diz o texto.
Começando com esta referência a Trôade, Lucas usa o pronome nós
em muitos lugares. 1003 Até naquelas passagens nos quais Lucas escreve
em terceira pessoa, ele de qualquer maneira mostra que foi testemunha
dos acontecimentos que narra (veja-se, p. ex., Atos 20:4–5). 1004

Considerações práticas em At 16:6–10


O chamado de Deus a Isaías no tempo em que morreu o rei Uzias,
“A quem enviarei, e quem há de ir por nós?” (Is 6:8a) é ouvido hoje por
muitos cristãos. Alguns deles respondem com as mesmas palavras com

1002
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, serie Westminster Commentary
(1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 273.
1003
Atos 16:10–17; 20:1–15; 21:1–18; 27:1–28:16.
1004
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed., 4 vols.
(1877: Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 176; Otto Glombitza, “Der Schritte nach Europa:
Erwägungen zu Act 16, 9–15”, ZNW 53 (1962): 77–82.
Atos (Simon J. Kistemaker) 805
que respondeu Isaías: “Eis-me aqui, envia-me a mim” (Is 6:8b). Estes
demonstram uma vontade de servir ao Senhor e trabalhar no avanço de
sua causa.
No entanto, o perigo é que alguns cristãos começam a trabalhar sem
esperar as ordens específicas que o Senhor tem para eles. Creem que
Deus deveria alegrar-se pelo esforço que fazem. No entanto, falharam
em deter-se para orar e perguntar a Deus onde e como quer usá-los e o
que espera deles.
Paulo e seus acompanhantes esperaram que o Espírito de Jesus lhes
dissesse onde ministrar. Foi-lhes proibido ir tanto a oeste como a norte;
tiveram que ir a Trôade. Ali, numa visão Paulo recebeu instruções de
embarcar para a Europa. Ao esperar com paciência a direção divina,
Paulo e seus companheiros foram receptores da imprescindível bênção
de Deus.
Esperar paciente é com frequência
o caminho mais excelente
de fazer a vontade de Deus.
— Jeremy Collier

Palavras, frases e construções gregas em At 16:6 e 9


Versículo 6
τὴν … χώραν — o artigo definido modifica o substantivo região. O
substantivo é qualificado pelos adjetivos frígios e gálatas.
κωλυθέντες — o particípio passivo aoristo de κωλύω (eu impeço)
pode ser tomado tanto como uma ação que ocorreu antes da do verbo
principal (“eles foram através”) ou como uma cláusula causal (“porque
lhes proibiu”). 1005

1005
Moule, Idiom-Book, p. 100.
Atos (Simon J. Kistemaker) 806
Versículo 9
Testemunhos ocidentais ampliam a leitura deste versículo. As
mudanças estão em itálico: “E numa visão na noite, apareceu a Paulo,
como se fosse um homem da Macedônia, de pé diante dele, rogando e
dizendo”. 1006

2. Filipos (At 16:11–40)

Paulo e seus companheiros estão prestes a entrar na Macedônia e


viajar à sua cidade principal, Filipos, onde num sábado adoram com as
mulheres temerosas de Deus. Expulsam um demônio de uma menina e
sofrem eles as consequências. O evangelho lança raízes nesta cidade e se
forma uma igreja.

a. A chegada (At 16:11–12a)

11, 12a. Partindo de Trôade, navegamos diretamente para


Samotrácia e, no dia seguinte, para Neápolis. Dali partimos para Filipos,
na Macedônia, que é colônia romana e a principal cidade daquele distrito
[NVI].
1. “De Trôade”. Aparentemente, Paulo e seus companheiros não
encontram dificuldades em obter passagens num navio para Neápolis (a
atual Kavala, ou Cavalla). O vento é favorável de modo que ao
entardecer do primeiro dia de navegação chegam à ilha chamada
Samotrácia. A respeito, diz Howard F. Vos, “A ilha não tinha porto — só
um fundeadouro inseguro na parte norte — mas os perigos que
significava navegar de noite em geral obrigava os marinheiros a lançar
âncoras onde lhes fosse possível”. 1007 A ilha montanhosa encontra-se
aproximadamente na metade entre a Europa e Ásia Menor, e tem um

1006
Metzger, Textual Commentary, p. 443.
1007
Howard F. Vos, “Samothrace”, ISBE, vol. 4, p. 309.
Atos (Simon J. Kistemaker) 807
cimo que se levanta 1500 metros sobre o nível do mar e serve como
marco.
No dia seguinte, o barco continua sua viagem até atracar a
Neápolis, porto da Macedônia. Ventos favoráveis reduziram a viagem a
dois dias; ventos contrários poderiam prolongá-la até a cinco dias (veja-
se p. ex., 20:6). Os missionários saíram dali para Filipos, que ficava a 18
km. a noroeste de Neápolis.
2. “Filipos, na Macedônia, que é colônia romana”. Os viajantes vão
pela estrada Egnatia, construída pelos romanos, e que se estendia por
quase 530 km. da costa leste à costa oeste da Macedônia. Depois de sair
de Neápolis, Paulo e seus companheiros sobem uma ampla meseta
excepcionalmente fértil e durante o verão exuberante e verde. Em poucas
horas, tiveram Filipos à vista (literalmente, “de Filipe”; Filipe II, o pai de
Alexandre, o Grande, tinha dado esse novo nome à cidade). Num tempo,
a área foi conhecida por suas minas de ouro que produziam anualmente
mais de mil talentos do rico metal. 1008 Os romanos conquistaram Filipos
em 168 a.C. e colheram a riqueza das minas.
Em 42 a.C. Filipos foi o cenário de uma batalha decisiva na qual
Marco Antônio e Otávio derrotaram Bruto e Cássio, os assassinos de
Júlio César. Otávio, quem mais tarde adotaria o nome Augusto, chegou a
ser o primeiro imperador romano. Filipos converteu-se numa colônia
romana. Augusto concedeu a Filipos o direito da lei italiana, e a
administração da cidade foi organizada seguindo o modelo de Roma.
Muitos veteranos do exército romano se estabeleceram nesta colônia.
Como cidadãos romanos eram protegidos pela lei romana, não podiam
ser submetidos a açoites, e tinham o direito de apelar em caso de ser
presos (veja-se o v. 37). Em resumo, “os colonos desfrutavam dos
mesmos direitos e privilégios como se fosse sua terra parte da Itália”. 1009

1008
Diodorus Siculus 16.8.6.
1009
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 187.
Atos (Simon J. Kistemaker) 808
3. “A principal cidade”. O texto grego é ambíguo neste ponto: a
palavra principal pode ser usada tanto com o termo cidade (p. ex.,
“Filipos ... a cidade mais principal daquele distrito da Macedônia”
(itálico acrescentada) como com o substantivo distrito. Os tradutores em
geral optam pela primeira alternativa devido ao fato de que a evidência
proporcionada pelos manuscritos é forte. Mas a objeção que tem esta
alternativa é que a capital da Macedônia não era Filipos mas
Tessalônica. A sugestão de que Filipos era a primeira cidade visitada por
Paulo é definitivamente débil. Paulo esteve primeiro em Neápolis, se
assumirmos que esta estava no mesmo distrito que Filipos.
Segundo o historiador romano Lívio, os romanos tinham dividido
Macedônia em quatro distritos e Anfípolis era a capital do primeiro
deles. 1010 Por isso, alguns eruditos preferem a segunda alternativa:
“Filipos, uma cidade no primeiro distrito da Macedônia” (GNB). 1011
Embora esta leitura seja a preferida, os manuscritos gregos não a
respaldam, pelo que não passa de uma conjetura. Uma régia básica de
interpretação é aceitar uma conjetura só quando o texto original é
ininteligível. Este não é exatamente o caso neste exemplo, porque é
possível traduzir o texto assim: “Filipos, uma cidade principal na região
da Macedônia”. 1012 A expressão principal talvez se refira a suas
facilidades educacionais (uma famosa escola de medicina) e a sua
florescente economia (procedente das minas de ouro) mais que a sua
função administrativa.

1010
Livy, Anales, 45.29.
1011
Por exemplo, Bruce, Book of the Acts, pp. 308-9; veja-se também seu artigo, "St. Paul in
Macedonia", BJRUL 61 (1979): 337-54; e consulte-se Herner, Book of Acts, p. 113.
1012
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 188. Consulte-se Bauer, p. 505; e Metzger, Textual
Commentary, p. 446.
Atos (Simon J. Kistemaker) 809
Palavras, frases e construções gregas em At 16:11-12a
Versículo 11
τή ἐπιούση — “no dia seguinte”. No entanto, a frase sugere desde o
primeiro dia.
Νεάν Πολιν — em lugar de uma só palavra Νεάπολις, é preferível
a forma clássica de duas palavras.

Versículo 12a
πρῴτη μερίδος τῆς Μακεδονίας πόλις — esta forma tem forte
respaldo nos manuscritos gregos. Sem o artigo definido antes de πρῴτη,
este adjetivo pode ser interpretado como indefinido: “uma cidade
principal”. O artigo definido antes de μερίδος é equivalente ao pronome
demonstrativo essa: “dessa divisão da Macedônia”. 1013

b. A adoração (At 16:12b-15)

12b, 13. Ali ficamos vários dias. No sábado saímos da cidade e fomos
para a beira do rio, onde esperávamos encontrar um lugar de oração.
Sentamo-nos e começamos a conversar com as mulheres que haviam se
reunido ali [NVI].
A construção gramatical do texto grego sugere que Paulo e seus
companheiros ficaram em Filipos durante algum tempo. A tradução
vários dias aparentemente quer dizer um período superior aos quatro ou
cinco dias. No contexto, Lucas está interessado em relatar a experiência
dos missionários durante o primeiro sábado que passavam em Filipos.
Diz que depois desta experiência, Paulo e seus companheiros continuam
sua permanência.
Em Filipos os missionários encontraram uma população
tristemente romana. Parece que os judeus residentes ali eram poucos,

1013
Moule, Idiom-Book, p. 111.
Atos (Simon J. Kistemaker) 810
pois não há menção a respeito de alguma sinagoga local. Segundo os
rabinos, dez judeus varões, cabeças de famílias era o mínimo para
estabelecer uma sinagoga. 1014
No sábado, os missionários saem da cidade e se dirigiram ao rio
Gangites, onde pensavam que as pessoas se reuniam para orar. “O lugar
de adoração dos judeus pode ter sido determinado pela prática romana
de tolerar, embora às vezes excluir dos limites da colônia, àqueles que
praticavam atividades religiosas pouco consistentes com seu próprio
estado”. 1015 (Além disso, para os efeitos das necessárias abluções, as
sinagogas estabelecidas nas subúrbios da cidade eram levantadas perto
de onde havia água.)
Ao lado do rio, Paulo e seus amigos se reúnem com algumas
mulheres que estavam ali para a oração do sábado. Onde estavam os
homens para dirigir o serviço? Considere-se que por aquele tempo, 49
d.C., o imperador Cláudio tinha expulso os judeus de Roma devido ao
fato de que eles tinham sido acusados de criar distúrbios religiosos (At
18:2). Supomos que a colônia romana de Filipos tinha seguido o
exemplo de Cláudio expulsando também os judeus. 1016 Quando Paulo e
Silas são presos em Filipos mais adiante, acusam-nos de ser judeus
perturbadores da paz da cidade (v. 20). Esta acusação é similar à que se
levantou contra os judeus em Roma.
As mulheres, pois, dão as boas-vindas aos missionários e se
prepararam para ouvir deles uma exposição das Escrituras. Com seus
companheiros, Paulo toma assento e começa a ensinar-lhes o evangelho.
Embora o grupo seja pequeno, a presença do Senhor é poderosa, como o
diz Lucas no versículo seguinte.

1014
Mishnah, Sanhedrin 1.2a; Aboth 3.6
1015
Gerald L. Borchert, “Philippi”, ISBE, vol. 3, p. 836.
1016
Compare R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg,
1944), p. 655.
Atos (Simon J. Kistemaker) 811
14. Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora
de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração
para atender às coisas que Paulo dizia.
1. A reação de Lídia. Uma das mulheres presentes no lugar de
oração é Lídia. Suas raízes estão em Tiatira (Ap 1:11; 2:18, 24), cidade
localizada no distrito de Lídia, no lado ocidental da Ásia Menor. É
possível que o nome Lídia se origine na frase descritiva a dama de Lídia.
Não há informação que permita conhecer seu nome real e resistimos a
especular se se tratava de Evódia ou Síntique, à quais Paulo exorta a
estar em paz com os demais membros da igreja filipense (Fp 4:2).
Lídia tinha saído de Tiatira, ao outro lado do mar Egeu, e se tinha
radicado em Filipos onde se dedicava à venda de tecidos de púrpura. A
tintura de púrpura aplicado a linho fino era obtido da secreção de uns
moluscos que vivem na parte oriental do mediterrâneo. “Pelo fato de que
se requeriam 8 mil moluscos para produzir um grama de púrpura, os
tecidos tingidos com este produto eram caríssimos”. 1017 As vestes de
púrpura eram usadas pelos imperadores e alguns outros cidadãos como
símbolo de sua posição social. Em Roma, as estolas de púrpura eram
usadas junto com as togas senatoriais. Pode-se concluir, então, que Lídia
pertencia à classe de comerciantes ricos e era proprietária de uma casa
grande (vv. 15, 40).
Em Tiatira, Lídia tinha chegado a ser uma crente no Deus de Israel
e, como gentia, era uma das pessoas qualificadas como temerosas de
Deus (At 10:2; 13:16, 26, 50). Quer dizer, os judeus não a haviam aceito
plenamente como uma conversa. Em Filipos, todos os sábados ela
adorava fielmente no lugar de oração. Quando Paulo ensinou o
evangelho de Cristo, ela ouviu com atenção suas palavras.
2. A obra do Senhor. O Cristo exaltado prepara Lídia através do
ensino do Antigo Testamento dado na sinagoga. Agora, Ele envia Paulo

1017
Dorothy Irvin, “Purple”, ISBE, vol. 3, p. 1057. Para uma opinião oposta que púrpura era obtida da
raiz de uma erva euroasiática, veja-se Robert North, “Thyatira”, ISBE, vol. 4, p. 846. Veja-se também
Rosalie Ryan, “Lydia, A Dealer in Purple Goods”, BibToday 22 (1984): 285–89.
Atos (Simon J. Kistemaker) 812
e seus companheiros a Filipos para dar a oportunidade a Lídia a ouvir a
mensagem de salvação. Lucas atribui ao Senhor, não a Paulo, a
conversão de Lídia. A salvação, então, não é questão de trabalho de
homem, e sim do Senhor. Não é a palavra em si, mas o próprio Senhor
(Lc 24:45) quem abre os corações do homem. O resultado é que Lídia
responde a mensagem de Paulo e aceita o Senhor como seu Salvador.
15. Depois de ser batizada, ela e toda a sua casa, nos rogou, dizendo:
Se julgais que eu sou fiel ao Senhor, entrai em minha casa e aí ficai. E nos
constrangeu a isso.
A descrição que Lucas faz destes fatos é muito breve. Portanto,
supomos que depois que os missionários ouvem a profissão de fé em
Cristo Jesus dos lábios de Lídia, ela e os membros de sua família são
batizados no rio Gangites. Quem oficiou no batismo? Talvez tenha sido
Silas, Timóteo, ou Lucas. Paulo não, porque ele mesmo batizou a muito
poucos (1Co 1:14–16). E os que constituem a família de Lídia? Seus
familiares mais imediatos, mas também seus servos que vivem sob o
mesmo teto. O fato de que ela e os de sua casa vêm ao lugar de oração
descreve Lídia como uma piedosa cuja influência espiritual alcança toda
sua casa. Ela é a cabeça de família e ensina a Palavra de Deus a seus
filhos (veja-se 1Co 7:14) e serventes. Lídia professa sua fé e é batizada, e
os membros de sua casa seguem seu exemplo. Lucas está interessado não
em prover detalhes a respeito da família de Lídia mas em apresentá-la
como o núcleo da nascente igreja de Filipos. Os blocos e tijolos da igreja
são as famílias e as pessoas individuais.
Lídia deseja expressar sua gratidão a Paulo e a seus companheiros e
roga que se hospedem em sua casa. Note-se que uma mulher gentia está
pedindo a quatro homens (três judeus e um gentio) para serem seus
hóspedes. Diz-lhes: “Se julgais que eu sou fiel ao Senhor, entrai em
minha casa e aí ficai”. Em grego, esta frase condicional comunica um
fato positivo. Lídia indica que os missionários não têm dúvida em
considerar uma crente em Cristo, pois aceitaram seu testemunho,
selando-o com o batismo. Lídia prevalece e os missionários decidem
Atos (Simon J. Kistemaker) 813
hospedar-se em sua casa. Ali eles continuam ensinando o evangelho de
Cristo e fazendo maior a igreja.

Considerações doutrinais em At 16:14


Lucas claramente ensina que a salvação é obra do Senhor, porque
Ele salva o Seu povo segundo Seu plano eterno. No sermão de Pedro no
Pentecostes, Lucas diz que Jesus sofreu na cruz “pelo propósito e o
antecipado conhecimento de Deus” (At 2:23; e veja-se At 4:28). Quando
em Antioquia da Pisídia os gentios ouvem a Palavra de Deus e
expressam sua felicidade, Lucas diz: “e creram todos os que haviam sido
destinados para a vida eterna” (At 13:48). Lucas na verdade comunica o
ensino de que Deus, ao realizar Sua obra de salvação, dá cumprimento
ao Seu plano eterno.
A salvação tem sua origem em Deus. Assim, o Senhor abriu o
coração de Lídia para que ouça com toda atenção as palavras de Paulo.
Deus lhe concedeu um coração receptivo para entender as coisas
espirituais. Deu-lhe o dom da fé e a iluminação do Espírito Santo. John
Albert Bengel diz: “O coração por si mesmo está fechado, mas é
prerrogativa de Deus abri-lo”. 1018
No grego, Lucas emprega tempos de verbo diferentes para enfatizar
a obra de Deus quanto à salvação. Em sua tradução, as mudanças no
tempo aparecem em itálico: “Enquanto Lídia continuava escutando,
Deus de uma vez por todas abriu seu coração para que pusesse toda sua
mente nas coisas que estavam sendo ditas por Paulo”. Em conclusão,
Deus é o autor de Sua salvação.

1018
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. por Andrew R. Fausset, 5 vols
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2; p. 657; veja-se também João Calvino, Commentary on the Acts of
the Apostles, ed. David W. Torrance y Thomas F. Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966),
vol. 2, p. 73; Guthrie, New Testament Theology, p. 618.
Atos (Simon J. Kistemaker) 814
Palavras, frases e construções gregas em At 16:12b–15
Versículo 12b
ἦμεν — a posição do verbo estar no imperfeito é enfática. Além
disso, com o gerúndio διατρίβοντες (passando) o imperfeito forma uma
construção perifrástica e sugere um período prolongado.

Versículo 13
σαββάτων — na forma plural, a palavra é um plural hebraico que se
refere a um só dia (veja-se At 13:14).
οὗ ἐνομίζομεν προσευχὴν εἶναι — “onde pensamos que havia um
lugar para a oração”. São esmagadoras as variações nos manuscritos.
Algumas versões dizem οὗ ἐνουμίζετο προσευχὴ εἶναι, o que se traduz,
“onde acostumavam fazer oração”. O substantivo προσευχὴ significa
“oração” ou “lugar de oração”.

Versículo 14
A sequência dos tempos no grego é única e feita a propósito:
ἤκουεν (imperfeito: ela continuava escutando), διήνοιξεν (aoristo: [o
Senhor] abriu), e προσέχειν (presente infinitivo de propósito: escutar a).

Versículo 15
παρεκάλεσεν — de παρακαλέω (eu suplico) o tempo aoristo
implica insistência. Lídia insistiu, como se faz evidente no verbo aoristo
παρεβιάσατο (ela insistiu insistentemente).
εἰ — esta partícula, seguida pelo indicativo perfeito κεκρίκατε (se
tiverem julgado) é a prótase de uma simples condição de fato. Lídia
expressa confiantemente realidade.
Atos (Simon J. Kistemaker) 815
c. O exorcismo (At 16:16–18)

Indiretamente, Lucas revela que Paulo e seus companheiros


continuam seu trabalho por um período extenso. Indica que um dia
qualquer, foram ao lugar dedicado à oração. Mas em lugar de descrever
o culto, conta um episódio no qual Paulo fez sair um demônio de uma
escrava.
16, 17. Aconteceu que, indo nós para o lugar de oração, nos saiu ao
encontro uma jovem possessa de espírito adivinhador, a qual,
adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Seguindo a Paulo e a
nós, clamava, dizendo: Estes homens são servos do Deus Altíssimo e vos
anunciam o caminho da salvação.
Façamos as seguintes observações:
1. A oposição. Lucas escreve que os missionários vão a caminho do
“lugar de oração”. No grego, lê-se: “a oração”, e refere-se não ao ato de
orar mas ao lugar de reunião (veja-se v. 13).
Em qualquer lugar que a igreja começa a crescer, Satanás procura
obstaculizar o trabalho dos servos de Deus. Por exemplo, em Samaria,
Simão, o mago ofereceu a Pedro e a João dinheiro para obter o dom do
Espírito Santo (At 8:18–19); na ilha de Chipre, Elimas se opôs a Paulo e
Barnabé ao procurar persuadir o procônsul Sérgio Paulo para que não
cresse em Jesus Cristo (At 13:7–8). Igualmente, em Filipos, Satanás usa
uma menina possuída por um demônio para estorvar o trabalho dos
missionários.
No caminho ao lugar da oração, uma escrava que tem um espírito
adivinhador encontra-se com os missionários. No grego, Lucas escreve
que ela possuía um espírito com o nome de Pitom, que se traduz como
“adivinhação”. 1019 A palavra Pitom faz referência à legendária serpente
que guardava o Oráculo de Delfo, um santuário na Grécia central, mas
que foi morta pelo deus da profecia, Apolo. Anos mais tarde, o termo

1019
J. Stafford Wright, NIDNTT, vol. 2, pp. 558–59; Werner Foerster, TDNT, vol. 6, p. 920; Bauer, pp.
728–29.
Atos (Simon J. Kistemaker) 816
começou a significar um espírito adivinhador que habitava num médium.
Assim como a sacerdotisa de Apolo em Delfo podia predizer o futuro,
assim esta pequena escrava servia a seus amos em Filipos, predizendo a
sorte. Era um instrumento dos demônios que a usavam como uma porta-
voz, 1020 e se tinha constituído numa lucrativa fonte de lucros para seus
donos (veja-se Palavras, frases e construções gregas em At 16:16–18).
Nesta moça possuída por um demônio, vemos o paralelo com os
demônios com quem Jesus Se encontrou durante Seu ministério (p. ex.,
Mc 1:24).
2. O reconhecimento. A escrava segue os missionários; e enquanto
o fazia, anunciava a grande voz quem eram Paulo e seus acompanhantes:
“Estes homens são servos do Deus Altíssimo e vos anunciam o caminho
da salvação”. Em si mesma, esta confissão parece correta, sempre que
vem do coração de um crente na forma de uma declaração de fé. No
entanto, como o reconhecimento vem, na verdade, de Satanás, quem,
através desta moça, procura destruir a efetividade do ministério de Paulo.
Paulo não pediu à menina que prediga seu futuro; pelo contrário, vê as
forças de Satanás operando na pobre. De fato, se Paulo tivesse aceito o
testemunho de Satanás sem um adequado discernimento, estaria dando
crédito ao maligno e aprovando assim seus motivos. 1021
18. Isto se repetia por muitos dias. Então, Paulo, já indignado,
voltando-se, disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, eu te mando:
retira-te dela. E ele, na mesma hora, saiu.
O mais provável é que os gritos da menina fizeram com que muitas
pessoas se reunisse ao redor de Paulo e seus companheiros. Assim, todos
poderiam escutar a mensagem de salvação. Mas os contínuos gritos da
menina se transformaram logo num estorvo para Paulo em sua pregação.

1020
Hans Conzelmann exclui o ventriloquismo; “o uso do verbo krazō ‘apregoar’, em [versículo] 17 é
apropriado para a possessão demoníaca”, Acts of the Apostles, trad. por James Limburg, A. Thomas
Kraabel y Donald H. Juel (1963; Filadélfia: Fortress, 1987), p. 131.
1021
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 76; F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, série
Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2 vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 96.
Atos (Simon J. Kistemaker) 817
O alvoroço o incomodou tanto que teve que intervir e dirigir-se ao
demônio que vivia na pequena.
Paulo confronta o demônio no nome de Cristo. Quer dizer, com a
autoridade que o próprio Senhor lhe concedeu ordena ao demônio que
deixe a menina. Paulo invoca o nome de Jesus na mesma forma que fez
Pedro quando curou o paralítico na porta do templo em Jerusalém (At
3:6). E assim como o fez Jesus quando curou endemoninhados entre o
povo de Israel, agora faz assim por meio de Seu servo Paulo, expulsando
o demônio da menina de Filipos. Da mesma maneira que Jesus deu aos
apóstolos poder sobre os espíritos imundos (Mc 6:7), assim dá também a
Paulo essa mesma autoridade. 1022 O resultado é que o demônio sai nesse
mesmo instante da moça. Seus donos perdem de uma só vez sua valiosa
fonte de lucros, mas supomos que a moça recebeu o dom da salvação e
chegou a ser um membro da igreja filipense.

Palavras, frases e construções gregas em At 16:16–18


Versículo 16
πορευομένων ἡμῶν — “enquanto íamos”. Com o pronome pessoal
no caso genitivo, este gerúndio forma a construção absoluta genitiva.
πύθωνα — a forma no singular acusativo é mais difícil de explicar
que πύθωνος (genitivo) e portanto é preferível. O substantivo está em
aposto a πνεῦμα (um espírito, ou seja, um Pitom).
τοῖς κυρίοις — embora o substantivo esteja no masculino plural,
possivelmente se refira a uns esposos que eram donos da menina.

1022
Quando Jesus estava na terra, os demônios clamavam porque O reconheciam como o Filho do
Deus Altíssimo (Mc. 5:7; Lc. 8:28). O título Deus Altíssimo era usado tanto pelos judeus como pelos
gregos; em seu Evangelho como em Atos, Lucas usa sete vezes a expressão Altíssimo, com referência
a Deus: Lc. 1:32, 35, 76; 6:35; 8:28; At. 7:48; 16:17. Na Septuaginta, geralmente o termo refere-se a
Deus. Consulte-se Georg Bertram, TDNT, vol. 8, pp. 617–19.
Atos (Simon J. Kistemaker) 818
Versículo 17
Παύλῳ καὶ ἡμῖν — Lucas apresenta Paulo como o líder; o pronome
nós inclui Silas, Timóteo, e Lucas. Cf. 21:18 e 28:16. 1023
ὑμῖν — “a vocês”. O contexto é favorável a esta forma; tem um
forte respaldo nos manuscritos. A forma alternativa é “a nós” (RA).

Versículo 18
ἐποίει — “isto o fazia”. Este é um uso iterativo do tempo
imperfeito.
ἐπί — a preposição seguida por um acusativo indica tempo e
extensão. 1024
παραγγέλλω — o tempo presente tem um sentido aorístico:
“Mando-te, de uma vez por todas”.

d. A detenção (At 16:19–21)

Quando Jesus expulsou os demônios, as pessoas não podiam ocultar


sua admiração diante do milagre (veja-se Mc 1:27). Mas quando Paulo
libertou a escrava do espírito adivinhador, seus donos reagiram
violentamente e fizeram Paulo e Silas serem presos.
19-21. Vendo os seus senhores que se lhes desfizera a esperança do
lucro, agarrando em Paulo e Silas, os arrastaram para a praça, à
presença das autoridades; e, levando-os aos pretores, disseram: Estes
homens, sendo judeus, perturbam a nossa cidade, propagando costumes
que não podemos receber, nem praticar, porque somos romanos.
Levantou-se a multidão, unida contra eles, e os pretores, rasgando-lhes as
vestes, mandaram açoitá-los com varas.

1023
Consulte-se H. J. Cadbury, “ ‘We’ and ‘I’ Passages in Luke–Acts”, NTS 3 (1957): 128–32. Veja-
se Vernon K. Robbins, “The We-Passages and Ancient Sea Voyages”, BibRes 20 (1975): 5–18.
1024
Moule, Idiom-Book, p. 49.
Atos (Simon J. Kistemaker) 819
Ao notar que os lucros que a moça adivinha produzia tinham
cessado, os donos dirigiram sua ira contra Paulo e Silas. Cheios de
cólera, agarrando os missionários, os arrastam até o mercado para
apresentá-los às autoridades da cidade. Por que Paulo e Silas? Estes dois
homens são judeus, o que não se pode dizer dos outros dois: Timóteo e
Lucas eram considerados gentios, mesmo que Timóteo poderia
demonstrar uma herança judaica (v. 1).
Nos dias do Novo Testamento, o mercado servia como centro social
da cidade. Aqui os desempregados esperavam por alguma ocupação, os
doentes eram curados, e os magistrados exerciam justiça. Naqueles dias,
um demandante podia levar um acusado diante da corte e pedir aos
juízes que emitissem uma sentença contra ele (Tg 2:6). Quando os donos
da menina apreenderam Paulo e Silas e levaram seu caso diante das
autoridades da cidade, estavam procedendo segundo a lei romana. (É
interessante anotar aqui que os arqueólogos descobriram o lugar do juízo
no antigo mercado de Filipos.)
Lucas chama magistrados às autoridades. Eram os oficiais em chefe
da colônia romana de Filipos; de acordo com as inscrições, eles deveram
chamar-se duumviri (um par de magistrados).1025 Nestas colônias
romanas também era usado o título de praetors (chefes) para estas
autoridades oficiais.
Os acusadores apresentam uma acusação dupla contra Paulo e Silas:
primeiro, “Estes homens, sendo judeus, perturbam a nossa cidade”;
segundo, “[estão] propagando costumes que não podemos receber, nem
praticar, porque somos romanos”. Porém com estas acusações eles estão
ocultando a causa de seu desgosto; não dizem nem uma só palavra a
respeito da escrava e a perda de seus lucros. Pelo contrário, põem ênfase
na nacionalidade dos acusados (são judeus) e exploram os temores que
poderia haver por recentes problemas políticos (veja-se o comentário
sobre At 16:12b). Assim, a acusação retumba nos ouvidos dos

1025
Bauer, p. 770.
Atos (Simon J. Kistemaker) 820
magistrados, os quais têm a responsabilidade de manter a paz e a ordem
na cidade.
Na segunda parte de sua alegação, os acusadores comparam os
interesses romanos aos interesses dos judeus: “[estes judeus estão]
propagando costumes que não podemos receber, nem praticar, porque
somos romanos”. Não dizem nada a respeito da proclamação do
evangelho nem tampouco mencionam a palavra religião mas se
interessam em pôr a ênfase nos costumes romanos. Na antiga sociedade
os costumes nunca estavam separados do aspecto religioso, e no
contexto, o termo costumes é sinônimo da palavra religião, com o que
significa «as leis do país».
Os romanos tinham dado reconhecimento legal no império ao
judaísmo, mas o cristianismo ainda não era um pouco diferente do
judaísmo. No entanto, os romanos proibiam aos judeus que fizessem
conversos dos cidadãos romanos. 1026 Indiretamente, Lucas sugere que o
trabalho dos missionários entre os cidadãos romanos em Filipos estava
começando a mostrar resultados. Portanto, os magistrados julgaram que
o proselitismo destes missionários judeus devia terminar. A ênfase no
termo romanos na acusação apresentada descreve o orgulho patriótico
dos acusadores. Certamente se oporiam a qualquer tentativa de mudar
seus costumes.
Se Paulo tivesse permitido que os gritos da menina possuída
continuassem, os donos da menina escrava o teriam tolerado e não o
teriam ajuizado. Mas quando Paulo expulsou o demônio e os privou
assim de seus lucros, então, sim, ele estava tentando mudar as práticas
religiosas da sociedade romana, que incluía a adivinhação.

1026
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 195. Para um ponto de vista alternativo, consulte-se A. N.
Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963; reimpr. Grand Rapids:
Baker, 1968), p. 81.
Atos (Simon J. Kistemaker) 821
e. Os açoites (At 16:22–24)

Em qualquer mercado, as pessoas se aglomeram, ainda mais quando


há algum distúrbio. A multidão em Filipos escuta os gritos dos donos da
menina escrava e percebe a comoção que se produz no tribunal.
22-24. Levantou-se a multidão, unida contra eles, e os pretores,
rasgando-lhes as vestes, mandaram açoitá-los com varas. E, depois de lhes
darem muitos açoites, os lançaram no cárcere, ordenando ao carcereiro
que os guardasse com toda a segurança. Este, recebendo tal ordem, levou-
os para o cárcere interior e lhes prendeu os pés no tronco.
a. “Levantou-se a multidão, unida contra eles”. A multidão ouve os
acusadores de Paulo e Silas. Então eles também unem suas vozes em
ataque contra os missionários. Só se podiam ouvir os gritos e os insultos
da turba; as vozes dos missionários eram abafadas. Influenciados pelo
emocionalismo do povo, os magistrados ignoraram os procedimentos
legais. Em lugar de ouvir os acusados e pô-los sob custódia à espera do
juízo que havia de produzir-se, os dois juízes precipitadamente dão a
ordem de despi-los e açoitá-los com varas.
Em suas epístolas, Paulo se refere direta e indiretamente a este
incidente em Filipos. Por exemplo, quando escreve a igreja em
Tessalônica, diz-lhes: “mas, apesar de maltratados e ultrajados em
Filipos” (1Ts 2:2). E em sua lista de sofrimentos pelo nome de Cristo,
Paulo diz que ele foi açoitado três vezes com varas (2Co 11:25).
b. “Os pretores, rasgando-lhes as vestes, mandaram açoitá-los com
varas”. Os oficiais romanos tinham a seu serviço oficiais de polícia (vv.
35, 38) que em latim eram chamados lictors (ou seja, os que levavam
varas). Estes oficiais levavam os símbolos romanos da lei e a ordem: um
maço de varas com um machado. Com estes feixes de varas eles
administravam castigo corporal e, às vezes, aplicavam a pena capital. Os
oficiais, agindo sob as ordens que lhes deram os magistrados, despojam
de suas vestes Paulo e Silas e os espancam com as varas. Não ficava nem
o menor vestígio de procedimento legal correto. Se nesse momento de
Atos (Simon J. Kistemaker) 822
frenesi Paulo e Silas tivessem insistido que castigar com varas a cidadãos
romanos era ilegal, teriam rido na cara deles.
c. “[Eles] os lançaram no cárcere”. Os magistrados tinham dado
ordem que se aplicasse aos presos severo castigo em suas costas
descobertas. Quando os missionários estão mais mortos que vivos,
ordena-se que os coloquem no cárcere. Encarregam ao carcereiro que os
vigie cuidadosamente. Esta ordem parece ser desnecessária dadas as
condições físicas dos presos. No entanto, o carcereiro, quem
possivelmente era um veterano do exército, sabia que se Paulo e Silas
escapavam de algum modo do cárcere, ele pagaria com sua própria vida
(veja-se v. 27).
d. “[O carcereiro] levou-os [a Paulo e Silas] para o cárcere interior”.
No setor onde estavam as primeiras celas, os presos desfrutavam da
liberdade de caminhar e receber a seus amigos e familiares, porém na
cela interior reinava a escuridão e mantinha os detentos no mais absoluto
confinamento. Neste lugar, o carcereiro pôs Paulo e Silas com os pés
aprisionados na armadilha, com o qual qualquer tentativa de escape era
impossível. A posição em que ficaram era uma tortura, especialmente
quando as pernas estavam separadas em forçosa posição e os pés metidos
nos ocos da armadilha. 1027
Paulo e Silas foram tratados como criminosos indignos de qualquer
tratamento humano. Mesmo assim, o poder de Deus fez-se evidente na
vida dos missionários, naquela hora de extrema escuridão.

Considerações práticas em At 16:22–24


Sofrer. A própria palavra nos causa estremecimento. Quando vemos
outros sofrendo dor física causada por alguma enfermidade ou abuso, a
compaixão invade nossas almas. Procuramos aliviar os sofrimentos dos
demais lhes dando um pouco de cuidado amoroso. Especialmente

1027
Compare Eusébio (História Eclesiástica 5.1.27), quem descreve os sofrimentos dos cristãos
encarcerados no sul da França.
Atos (Simon J. Kistemaker) 823
gostaríamos de ajudar a crentes que sofrem por causa de Cristo, quer
nossa ajuda os lembre em nossas orações diárias ou prover-lhes outras
formas de consolo.
Pedro diz que se sofrermos por fazer o bem, e o suportamos, Deus
nos abençoa (1Pe 2:20; 3:14; 4:13–16). Isto de maneira nenhuma
significa que buscaremos o sofrimento, porque nesse caso não estamos
servindo a Deus mais que nos estamos servindo a nós mesmos. Mas
quando Deus nos envia o sofrimento enquanto estamos procurando fazer
Sua vontade, e quando o suportamos, Deus nos dá Seu reconhecimento.
O sofrimento pelo nome de Cristo pode apresentar-se em diversas
formas: tormentos dos que sofrem fisicamente em tempos de
perseguição; aflição pelos que sofrem enfermidades, especialmente
males incuráveis; agonia mental pelos que sofrem em silêncio num
ambiente anticristão no lar, na escola ou no trabalho.
O que deve fazer o cristão quando enfrenta o sofrimento? Deve
manter seus olhos de fé postos em Jesus, quem sofreu por Seu povo
como o justo pelos injustos e lhe deixou um exemplo a seguir (1Pe 2:21).

Palavras, frases e construções gregas em At 16:22 e 24


Versículo 22
περιρήξαντες — do composto περί (ao redor) e ῥήγνυμι (eu
arrebato) este particípio ativo aoristo refere-se mais aos oficiais que
receberam a ordem de espancar os missionários que aos próprios
magistrados.
ἐκέλευον — o imperfeito de κελεύω (eu ordeno) é equivalente ao
aoristo. 1028

1028
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 883.
Atos (Simon J. Kistemaker) 824
Versículo 24
ἐσωτέραν — este adjetivo comparativo (“interior”) pode ser
entendido como um superlativo (“mais dentro”). 1029

f. O terremoto (At 16:25–30)

No princípio, Paulo e Silas procuram acomodar seus doloridos


corpos no solo, mas logo percebem que a rígida posição a que os
obrigam seus pés na armadilha não lhes permitirá dormir. Só um
caminho resta pela frente: orar a Deus e louvá-Lo com salmos e hinos.
25. Por volta da meia-noite, Paulo e Silas oravam e cantavam
louvores a Deus, e os demais companheiros de prisão escutavam.
Em lugar de lamentar-se pela dor que estavam sofrendo, a perda de
sangue, a fome e a sede, os missionários se voltam para Deus. Primeiro
em oração, e logo cantando louvores ao Seu nome. Sintonizam-se com o
salmista quando diz: “Contudo, o SENHOR, durante o dia, me concede a
sua misericórdia, e à noite comigo está o seu cântico, uma oração ao
Deus da minha vida.” [Sl 42:8]
Paulo e Silas não só recuperam forças para si mesmos, mas também
são um testemunho vivo e uma espécie de fortalecimento para outros
presos que ouvem suas orações e seus salmos (cf. Ef 5:19; Cl 3:16; Tg
5:13). O tempo do verbo ouvir indica que enquanto os missionários
prolongam seus cantos, outros presos continuam ouvindo. Em lugar de
maldições, os presos ouvem palavras de adoração e de louvor.
Não temos evidência que a nos indicar que Paulo e Silas tenham
orado pedindo a Deus que os libertasse. Embora claro, pela Escritura
sabemos que Deus nunca Se esquece de Seu povo (Is 49:15–16). O
momento da intervenção divina chegou.

1029
Cf. Lenski, Acts, pp. 671–72.
Atos (Simon J. Kistemaker) 825
26. Subitamente houve um grande terremoto, de modo que foram
abalados os alicerces do cárcere; logo se abriram todas as portas, e foram
soltas as correntes de todos [TB].
a. “Um grande terremoto”. Deus não envia um anjo mas um
terremoto para libertar os presos. Ele usa meios sobrenaturais ao
comissionar um anjo para libertar os apóstolos (At 5:19) e a Pedro (At
12:7). Deus recorre ao fenômeno natural de um terremoto, o que na
Macedônia era coisa comum, para libertar os presos em Filipos. Deus
usa tanto os recursos sobrenaturais como os naturais como milagres que
não podem ser explicados em todos os seus detalhes. 1030 Ele revela Seu
poder e majestade ao libertar os Seus servos porque não é o homem
senão Ele quem tem o controle final de tudo.
O terremoto produz-se de repente. Lucas escreve e diz que a
sacudida foi violenta (cf. At 4:31). Não dá detalhes quanto aos danos,
destruição, nem que tenha havido mortos na cidade. Seu interesse está
concentrado na liberdade dos presos, incluindo Paulo e Silas, e na
salvação do carcereiro e sua família.
b. “Logo se abriram todas as portas, e foram soltas as correntes de
todos”. Não vamos mencionar aqui os conceitos modernos de fechaduras
de segurança, de algemas e de outros meios de que se dispõe agora para
assegurar os presos. William M. Ramsay diz:
“Ninguém que tenha visto um cárcere na Turquia poderia
surpreender-se de que neste caso todas as comportas se abriram; cada
porta estava fechada apenas com uma barra transversal, portanto, o
terremoto não teve nenhuma dificuldade em fazer com que a barra caísse
ao solo e a porta ficasse aberta. Os presos eram amarrados à muralha ou
postos em armadilhas de madeira v. 24; e as cadeias e armadilhas foram

1030
Alguns comentaristas dizem que o relato sobre o terremoto que libertou os detentos é só uma
lenda: Martin Dibelius, Studies in the Acts of the Apostles (Londres: SCM, 1956), pp. 23–24;
Haenchen, Acts, pp. 500–504; Conzelmann, Acts, pp. 132–33. Entretanto, nós interpretamos o milagre
como um ato de Deus, quem é livre de usar um terremoto para libertar os detentos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 826
arrancadas da muralha, a qual foi sacudida de tal maneira que se
formaram aberturas entre pedra e pedra”. 1031
Na proteção providencial de Deus, nenhum preso fica ferido.
Mesmo que as cadeias já não estejam incrustadas nas paredes da prisão,
ainda estão os grilhões. Os reclusos permanecem ali junto a Paulo e
Silas, que talvez sejam considerados mensageiros divinos dotados de
uma força e poder sobrenaturais.
27, 28. Tendo acordado o carcereiro, e vendo abertas as portas da
prisão, tirou da espada e ia suicidar-se, supondo que os presos haviam
fugido. Mas Paulo bradou em alta voz: Não te faças nenhum mal, porque
todos estamos aqui [TB].
Com toda sutileza, Lucas estabelece o contraste entre os presos que
vigiam e o carcereiro que dorme; entre a confiança de Paulo e a
perplexidade do carcereiro; entre as portas abertas da prisão e a palavra
de Paulo assegurando que ninguém escapou.
Ao despertar sobressaltado, a primeira preocupação do carcereiro é
ver onde estão os detentos. Ele sabe que se escaparem, terá que pagar o
descuido com sua própria vida (veja-se At 12:19; 27:42). Ao ver as
portas totalmente abertas, possivelmente graças à luz da lua, e a nenhum
preso perto da porta, o carcereiro chega a uma rápida decisão: tira sua
espada e a dirige ao coração. Está seguro que a maioria dos presos
fugiram, e agora com a pena de morte sobre sua cabeça, está por
terminar a agonia, atentando contra a própria vida. O verbo grego sugere
que há um breve momento de indecisão em que se ouve o grito de Paulo,
anunciando que todos os presos estão aí, com ele. Com os olhos
acostumados à escuridão do cárcere, Paulo pode ver com toda claridade
o carcereiro, embora este não os pode ver.
Não se sabe quantos presos havia na prisão e qual foi a sorte deles
depois que Paulo e Silas os deixaram. No versículo 30, o Texto ocidental
acrescenta que depois de deixar Paulo e Silas livres, o carcereiro
1031
William M. Ramsay, St. Paul the Traveller and the Roman Citizen (1897; reimp. Grand Rapids:
Baker, 1962), pp. 220–21.
Atos (Simon J. Kistemaker) 827
1032
“assegurou o resto” dos presos. Alguns comentaristas veem estas
palavras como um agregado feito por algum escriba que quis explicar a
passagem.
29, 30. Então, o carcereiro, tendo pedido uma luz, entrou
precipitadamente e, trêmulo, prostrou-se diante de Paulo e Silas. Depois,
trazendo-os para fora, disse: Senhores, que devo fazer para que seja
salvo?
O carcereiro volta para sua família e lhes pede luz. Quer entrar no
cárcere e estar seguro que o que Paulo disse é verdade. Quando tem a
lanterna em sua mão, corre à prisão e comprova que Paulo tem razão:
todos os presos estão ali.
Agora o carcereiro prostra-se tremendo diante dos missionários,
numa evidente sinal de humilde submissão. Dá-se conta que está diante
da presença de homens que lhe podem indicar o caminho de salvação,
mesmo que talvez ainda não compreenda o significado da salvação.
Quando Cornélio deu as boas-vindas em sua casa a Pedro e se ajoelhou
diante dele, Pedro reagiu imediatamente, rejeitando aquela expressão e
dizendo que ele, Pedro, era tão humano como Cornélio (At 10:25–26).
Neste caso, nem Paulo nem Silas dizem uma palavra diante da atitude do
carcereiro, porque compreendem a confusão mental do carcereiro. Não o
repreendem mas esperam que fale.
O carcereiro não ouviu os louvores dos presos à meia-noite por
encontrar dormindo, embora tenha entendido que o terremoto era uma
resposta divina à atitude de Paulo e Silas. Leva Paulo e Silas fora da
prisão, ao pátio e aí lhes fala. Golpeado por uma consciência culpada,
pergunta-lhes: “Senhores, o que devo fazer para ser salvo?” Talvez ele
ouviu a mensagem de salvação em alguma ocasião anterior, ponderou
seu significado, reconhece o poder espiritual de Paulo e Silas, pelo que
agora lhes pede que lhe mostrem o caminho de salvação. Sua pergunta
nasce de um coração sincero, como é evidente pela forma tão cortês

1032
Metzger, Textual Commentary, p. 449; Bruce, Book of Acts, p. 317 n. 69.
Atos (Simon J. Kistemaker) 828
como se dirige a eles, senhores. Com grande respeito dirige-se a homens
que pouco antes ele mesmo tinha lançado na cela interior.

Considerações práticas em At 16:30


A igreja de Filipos estava muito perto do coração de Paulo. Ele lhes
escreveu uma carta muito especial, insistindo com seus membros a estar
prazerosos no Senhor. A palavra alegro em suas várias formas aparece
dezesseis vezes nesta breve epístola. 1033 Isto reflete a atitude de Paulo
demonstrada no cárcere de Filipos onde ele e Silas cantavam hinos no
meio da noite.
Paulo tinha desenvolvido uma relação especial com os membros
dessa igreja, devido ao fato de que repetidamente proveram para suas
necessidades físicas (Fp 4:14–18). Em sua epístola aos filipenses, Paulo
menciona a Epafrodito (Fp 2:25; 4:18) e a Evódia e Síntique (Fp 4:2).
Pelo livro de Atos sabemos de duas pessoas, com um fundo
completamente diferente, que chegam a ser membros fundadores da
igreja: Lídia de Tiatira, a vendedora de púrpura, (vv. 14–15) e o
carcereiro (v. 33). É bem possível que a menina escrava também tenha
chegado a ser parte da igreja. Estes convertidos, tendo conhecido o
caminho da salvação, podiam testificar que a salvação é um dom de
Deus. Com estes membros iniciais, Deus continua construindo Sua
igreja, até o ponto que dentro de pouco Paulo escreve a respeito de
anciãos e diáconos na igreja de Filipos (Fp 1:1).

Palavras, frases e construções gregas em At 16:29–30


Versículo 29
φῶτα — a forma é o acusativo plural neutro e não deve ser tomada
como um acusativo singular.

1033
Wiliiam Hendriksen, Filipenses, série Comentarios del Nuevo Testamento (Grand Rapids: SLC,
1981), p. 28.
Atos (Simon J. Kistemaker) 829
εἰσεπήδησεν — de εἰσπηδάω (eu salto), este ativo aoristo aparece
duas vezes no Novo Testamento: aqui, e em At 14:14. Comunica “ação
vigorosa”. 1034

Versículo 30
ἔξω — “fora”. Isto é uma indicação da precisão do escritor.
σωθῶ — este é o subjuntivo passivo aoristo de σῴζω (eu salvo). O
aoristo indica a totalidade da salvação do carcereiro, o passivo implica
que Deus é o agente, e o subjuntivo indica a solicitude cortês do
carcereiro.

g. A salvação (At 16:31–34)

O contexto da pergunta do carcereiro mostra que seu interesse não


está na segurança de seu trabalho mas em sua segurança eterna: quando
Paulo e Silas pregam o evangelho, aquele e os membros de sua família
creem em Deus, são batizados, e ficam cheios de alegria.
31. Responderam-lhe: Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua
casa.
Os missionários mostram ao carcereiro o caminho de salvação
usando uma linguagem absolutamente direta. Dizem-lhe o que tem que
fazer: “Crê no Senhor Jesus”. Todo aquele que confesse com sua boca e
crê em seu coração que Jesus é o Senhor, será salvo (Rm 10:9). 1035 Isso é
fundamental. De modo que Paulo e Silas dizem ao carcereiro que deve
pôr toda sua confiança em Jesus e reconhecê-Lo como seu Senhor. Não
eles, mas somente o Senhor Jesus Cristo pode salvá-los.
Paulo e Silas, não obstante, dizem-lhe que a salvação está à
disposição de todos os membros da família (incluindo os servos). Diga-

1034
F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed.
rev. e ampl. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 486.
1035
Veja-se, p. ex., Jo. 13:13; At. 11:17; 1 Cor. 12:3; Fp. 2:11.
Atos (Simon J. Kistemaker) 830
se de passagem, permita-me afirmar que embora Deus salve os
indivíduos, muitas vezes traz também a salvação a toda a família da
pessoa que busca ao Senhor. 1036 Deus age através das famílias, porque
elas são as pedras usadas para a edificação da igreja.
32, 33. Anunciaram-lhe a palavra de Deus, e a todos os que estavam
em sua casa. Ele, naquela mesma hora da noite, tomando-os consigo,
lavou-lhes as feridas, e foi logo batizado, ele e todos os seus [TB].
Depois de pôr o fundamento: “Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu
e a tua casa”, Paulo e Silas explicam o evangelho (a frase exata é a
palavra do Senhor) com mais detalhe. Os missionários sofrem a dor
causada pelos açoites do dia anterior. No entanto, a oportunidade de
levar ao Senhor toda esta família os faz esquecer o desconforto que
sentem. Se os anjos no céu se alegram quando na terra um pecador se
arrepende (Lc 15:10), não teriam que alegrar-se os servos de Deus
quando todos os membros de uma família se arrependem e creem?
Lucas nos dá evidências da mudança de vida do carcereiro. O amor
pelo Senhor o faz pensar nas necessidades físicas de Paulo e Silas.
Percebe que esses corpos feridos e sangrentos necessitam atenção
médica. Ele pessoalmente leva os presos ao poço da prisão e lhes lava as
feridas. Como terá lamentado o pobre seu proceder anterior! Somente no
dia anterior tinha posto Paulo e Silas na armadilha, e agora com toda
ternura lhes lava as feridas e procura suavizar seus vergões.
Enquanto os missionários estão fisicamente lavados assim, o
carcereiro e sua família estão espiritualmente lavados com o sangue de
Jesus, o que é simbolizado pelo batismo em água. Assim como Paulo e
Silas são os receptores da amabilidade do carcereiro, este e sua família
são os beneficiários da graça de Deus. Com o sinal do batismo, agora
eles são membros da família de Deus.
34. Então, levando-os para a sua própria casa, lhes pôs a mesa; e,
com todos os seus, manifestava grande alegria, por terem crido em Deus.

1036
At. 11:14; 16:15, 31; 18:8; 1 Cor. 1:11, 16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 831
Depois que Lídia e os membros de sua família receberam o sinal de
batismo, ela convidou Paulo e seus companheiros para irem a sua casa
(v. 15). Quando o carcereiro, com sua esposa, seus filhos, e seus criados
é batizado, não faz menos. Tanto Lídia como ele desejam expressar sua
gratidão porque agora pertencem à família de Deus. Ambos consideram
os missionários como seus irmãos em Cristo. Portanto, para o carcereiro,
Paulo e Silas não são já os presos, e os missionários não têm nenhum
desejo de fugir.
O carcereiro convida Paulo e Silas para entrar em sua casa. O grego
sugere que ele mesmo os leva até seu domicílio. Em outras palavras, o
cárcere encontra-se na parte baixa do que é sua residência. O carcereiro
pessoalmente preocupa-se pelas necessidades físicas de Paulo e Silas e
também lhes provê comida e algo para beber. Em tudo o que faz por eles
manifesta sua alegria ilimitada no Senhor porque agora ele e sua família
são crentes. De novo, o grego sugere que a fé do carcereiro é um confiar
permanente em Deus. Ele e os membros de sua casa demonstram não
uma fé circunstancial, mas uma fé verdadeira em Jesus Cristo. Unem-se
assim a outros que expressam sua alegria e felicidade tendo obtido a fé
(veja-se At 8:39; 10:46; 13:48). Alegria, então, procede da fé, que em si
mesma está viva como um dom de Deus. 1037

Palavras, frases e construções gregas em At 16:31–34


Versículos 31–32
ἐπί — com o acusativo o Senhor Jesus depois do verbo crer, a
preposição ἐπί (a) metaforicamente indica ação para alguém. 1038
σωθήσῃ σὺ — o pronome singular da segunda pessoa é o sujeito do
verbo, o qual está em futuro passivo. O futuro é definido.

1037
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 87.
1038
Moule, Idiom-Book, p. 49.
Atos (Simon J. Kistemaker) 832
τὸν λόγον τοῦ κυρίου — alguns manuscritos gregos têm a forma
variante τοῦ θεοῦ. Em Atos, Lucas intercambia as frases a palavra de
Deus e a palavra do Senhor (p. ex., veja-se At 13:5, 44.).

Versículos 33–34
ἔλουσεν ἀπὸ τῶν πληγῶν — “ele lavou suas feridas”. Se
acrescentarmos um objeto direto ao verbo lavar, teríamos a tradução
literal, “ele lavou [as impurezas] de suas feridas”.
πανοικεί — este advérbio, traduzido “com toda sua casa”, coincide
tanto com o verbo alegrar-se como com o particípio perfeito creram.

h. A partida (At 16:35–40)

Quando Deus milagrosamente liberta Paulo e Silas, o efeito do


milagre é surpreendente. Os magistrados que foram influenciados pela
multidão no dia anterior pensam agora de forma diferente. É possível
que supersticiosamente tenham relacionado o violento terremoto com os
eventos do dia anterior. 1039 De qualquer maneira, eles queriam desfazer-
se destes judeus o mais breve possível. Portanto, ao raiar o dia, dão
instruções aos oficiais que tinham golpeado a Paulo e Silas que fossem
ao cárcere e dessem ordem ao carcereiro de deixar os presos em
liberdade.
35, 36. Quando amanheceu, os pretores enviaram oficiais de justiça,
com a seguinte ordem: Põe aqueles homens em liberdade. Então, o
carcereiro comunicou a Paulo estas palavras: Os pretores ordenaram que
fôsseis postos em liberdade. Agora, pois, saí e ide em paz.
Como não querem criar nenhuma dificuldade ao carcereiro, os
missionários voltam voluntariamente para a prisão para aguardar os

1039
O Texto ocidental inclui um agregado que tem todos os reflexos de uma explicação: “Mas quando
foi de dia, os magistrados se reuniram no mercado, e lembrando o terremoto que tinha ocorrido,
tiveram medo; e enviaram os oficiais, dizendo …” Metzger, Textual Commentary, p. 450.
Atos (Simon J. Kistemaker) 833
acontecimentos que hão de produzir-se. Logo ouvem as vozes dos
oficiais que dizem ao carcereiro para deixar em liberdade a Paulo e Silas.
Enquanto os oficiais esperam, o carcereiro vai onde estão os presos e
lhes dá a mensagem: “Os pretores ordenaram que fôsseis postos em
liberdade. Agora, pois, saí e ide em paz”. Note-se que Paulo é a figura
principal no desenvolvimento deste drama.
O carcereiro não duvida que a notícia terá que agradar aos
missionários. surpreende-se, portanto, porque Paulo não está disposto a
abandonar a prisão. E ouve as objeções insistentes com que o apóstolo
rejeita o mandato dos magistrados.
37. Paulo, porém, lhes replicou: Sem ter havido processo formal
contra nós, nos açoitaram publicamente e nos recolheram ao cárcere,
sendo nós cidadãos romanos; querem agora, às ocultas, lançar-nos fora?
Não será assim; pelo contrário, venham eles e, pessoalmente, nos ponham
em liberdade.
Analisemos os seguintes pontos:
1. A injustiça. Paulo sentiu o duro fio da injustiça administrada a ele
e a Silas pelos magistrados. E agora quer fazê-los saber que estiveram
muito errados. Invoca, então, o direito de apelação que lhe concede a lei
romana e que no caso deles foi violado.
A lei romana, aprovada entre os séculos VI e II a.C., protegia os
cidadãos romanos de castigo público, prisão, e morte sem um juízo
prévio. Por exemplo, o historiador romano Lívio escreve a respeito da
aplicação da lei Porciana, aprovada provavelmente no 198 a.C.: “Mesmo
quando a lei Porciana só parecia ter sido aprovada para proteger os
cidadãos, impunha, como ocorreu, uma forte pena se alguém açoitasse
ou matasse um cidadão romano”. 1040 A cidadania romana, então, deve ter
protegido Paulo e Silas dos açoites e da prisão a que foram submetidos.
Uma exceção à lei romana só podia ser feita no caso em que um cidadão

1040
Livy 10.9.4; veja-se também Cícero Em defesa de Rabirius 4.12–13; Boyd Reese, “The Apostle
Paul’s Exercise of His Rights as a Roman Citizen as Recorded in the Book of Acts”, EvQ
47(1975):138–45.
Atos (Simon J. Kistemaker) 834
romano tinha sido devidamente julgado e declarado culpado numa corte
de justiça. 1041 Os magistrados devem ter iniciado um juízo legal em lugar
de deixar-se pressionar pela multidão para que castigasse em público a
Paulo e Silas e os colocasse no cárcere.
Por que Paulo guardou silêncio quando ele e Silas foram
espancados publicamente? Se eles tivessem protestado, os magistrados
pouco caso lhes teriam feito, levando em conta o momento explosivo. O
silêncio de Paulo, provocado pelas circunstâncias ou por um desígnio,
agora lhe serve para chamar a atenção à séria injustiça de que ele e Silas
foram objeto. Se os magistrados estiverem anuentes a reconhecer
publicamente seu erro, tolerarão os cristãos e evitarão futuros incidentes
que afetem a igreja.
2. As desculpas. “Querem agora, às ocultas, lançar-nos fora? Não
será assim; pelo contrário, venham eles e, pessoalmente, nos ponham em
liberdade” Paulo está no controle total da situação. Insiste que os
magistrados vão ao cárcere e libertem os dois cidadãos romanos. Os dois
juízes tinham cometido um grave erro ao não respeitar a lei romana.
Fizeram açoitar publicamente a Paulo e Silas e publicamente devem
desculpar-se antes que os missionários abandonem a prisão.
38, 39. Os oficiais de justiça comunicaram isso aos pretores; e estes
ficaram possuídos de temor, quando souberam que se tratava de cidadãos
romanos. Então, foram ter com eles e lhes pediram desculpas; e,
relaxando-lhes a prisão, rogaram que se retirassem da cidade.
Tudo o que Paulo esperava que ocorresse, aconteceu. Quando os
oficiais deram o relatório aos magistrados, que os dois presos são
cidadãos romanos, o temor inundou seus corações. Sabiam que tamanho
erro poderia não só lhes custar o posto, mas além disso, também
poderiam ser severamente castigados. Não tinham nem para o que pôr
em dúvida a veracidade da notícia, porque qualquer que quisesse passar
por cidadão romano sem sê-lo, expunha-se a ser executado. 1042
1041
Veja-se Sherwin-White, Roman Society and Roman Law, p. 74.
1042
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 210.
Atos (Simon J. Kistemaker) 835
A declaração de Paulo é genuína e assim a tomam os magistrados.
Lucas não nos diz como puderam Paulo e Silas provar que eram
cidadãos romanos. Quando um cidadão romano registrava o nascimento
de uma criança diante de um oficial romano, “ele recebia um díptico de
madeira onde se registrava a declaração, e isto cumpria as funções de um
certificado de cidadania pelo resto da vida”. 1043 É possível que Paulo e
Silas levassem consigo tais provas de sua cidadania.
Os magistrados vão pessoalmente ao cárcere. Podemos imaginar
que iam acompanhados dos oficiais e de gente que queria satisfazer sua
curiosidade. 1044 Publicamente admitem seu erro e oferecem suas
desculpas. Levam Paulo e Silas para fora do cárcere e lhes pedem que
abandonem a cidade de Filipos. De seu ponto de vista, a petição tem suas
vantagens porque a presença dos missionários na cidade é um contínuo
recordatório das evidências contra ele. Pedem a estes homens, capazes
de lhes mostrar o caminho da salvação, que se retirem. Esta atitude nos
traz à memória a experiência dos gadarenos pedindo a Jesus que se retire
(Mt 8:34). Pensando no interesse e no futuro da igreja, Paulo e Silas
acedem, não sem antes obter que lhes permitam passar um tempo com os
cristãos na casa de Lídia.
40. Tendo-se retirado do cárcere, dirigiram-se para a casa de Lídia e,
vendo os irmãos, os confortaram. Então, partiram.
Paulo e Silas deixam a prisão como honoráveis cidadãos romanos a
quem as autoridades romanas da cidade têm respeito. Fisicamente não
estão em condições de sair de viagem. A dor dos golpes recebidos e a
perda de sono esgotam suas reservas de energia. Precisam repor-se um
pouco e, para isso, nada melhor que a casa de Lídia. Aqui Lucas, o

1043
A. N. Sherwin-White, The Roman Citizenship, 2a. ed. (Oxford: Clarendon, 1973), p. 316.
1044
O revisor do Texto ocidental acrescentou algumas frases explicativas, que a seguir aparecem em
letra itálica: “E tendo chegado com muitos amigos à prisão, eles lhes suplicaram que se retirassem,
dizendo, ‘Acabamos de saber a verdade a respeito de vós, que sois homens justos’. E quando os tinha
tirado fora, suplicaram-lhes dizendo, ‘Ide-vos da cidade, não vá a ser que se tornem a levanatar
contra nós, alvoroçando contra vós”. Metzger, Textual Commentary, p. 451.
Atos (Simon J. Kistemaker) 836
médico espera ajudar no conforto físico de Paulo e Silas, enquanto
Timóteo e Lídia atendem suas necessidades espirituais e materiais.
Até aqui, Lucas descreveu a conversão de Lídia, o exorcismo da
menina escrava, e a transformação do carcereiro. Porém não disse nada
sobre o crescimento da igreja na cidade de Filipos. Neste versículo, diz
que os missionários se reúnem com os irmãos na casa de Lídia. Embora
os irmãos procurem ministrar a Paulo e a Silas, diz Lucas, os
missionários é que os animam. O ponto é que ao longo dos séculos, os
judeus tinham aprendido a sofrer por sua fé. Os gentios, pela primeira
vez, veem a alguém sofrendo pelo nome de Cristo. Percebem que por sua
relação com Jesus Cristo, eles também vão enfrentar oposição,
perseguição, e aflições (veja-se Fp 1:29–30). Por tal razão, os
missionários dirigem a eles palavras que os animam.
Depois de um tempo de descanso na casa de Lídia, Paulo,
acompanhado por Silas e Timóteo, reata suas viagens. Toma rumo para o
oeste, pela via Egnatia. Parece que Lucas ficou em Filipos, porque o
pronome pessoal nós desaparece do relato, até aparecer de novo em At
20:5–6.

Considerações práticas em At 16:35–40


“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria
vida em favor dos seus amigos” (Jo 15:13). Estas palavras de Jesus as
aceitamos como verdade, mas sabemos que só em circunstâncias
excepcionais podem vir a cumprir-se. Ao dar sua vida por outros, Jesus
demonstrou seu inquestionável amor para eles.
Num sentido, no cumprimento de seu chamado missionário, Paulo e
Silas estiveram preparados para dar sua vida pelos crentes filipenses.
Deus protegeu suas vidas, mas sofreram intensamente em benefício dos
cristãos de Filipos. Por sua vez, os cristãos filipenses expressaram sua
gratidão a Paulo, ministrando-lhe vez após vez. Como resultado,
desenvolveu-se uma reunião inquebrantável entre Paulo e os irmãos de
Atos (Simon J. Kistemaker) 837
Filipos. Como fica claro na carta que Paulo lhes escreveu, os filipenses
eram amados por Paulo e eles, por sua vez, amavam o apóstolo:
“Porque vos tenho no meu coração” (Fp 1:7, TB)
“Estou certo de que isto mesmo, pela vossa súplica e pela provisão
do Espírito de Jesus Cristo, me redundará em libertação” (Fp 1:19)
“Meu Deus suprirá todas as vossas necessidades” (Fp 4:19, TB).
Nesta epístola, Paulo os exorta a ter sempre alegria no Senhor. Um
autor anônimo escreveu: “A alegria é a expressão natural da obediência
do cristão à vontade revelada de Deus”.

Palavras, frases e construções gregas em At 16:36–40


Versículo 36
ἀπέσταλκαν — o tempo perfeito de ἀποστέλλω (eu envio) sugere
efeito permanente. Note-se que a terminação –αν é usada em lugar da
normal -ασιν (terceira pessoa do plural ativo perfeito).
ἐν εἰρήνῃ — a preposição ἐν quer dizer “ir-se à uma paz em que
possa viver”. 1045

Versículo 37
δείραντες — Paulo usa o particípio ativo aoristo de δέρω (eu esfolo,
esfolar). Ele diz aos oficiais: “Vós nos esfolastes”.
ὑπάρχοντας — o gerúndio de ὑπάρχω (eu existo, estou presente) é
usado amplamente como um substituto do verbo ser. O particípio é
concessivo: “mesmo que nós somos”.
O contraste entre δημοσίᾳ (publicamente, à vista de todos) e λάθρᾳ
(secretamente, oculto da vista) é evidente.
οὑ γάρ — no contexto, esta combinação significa “Não é certo!”1046

1045
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
223; Moule, Idiom-Book, p. 79.
1046
Cf. Robertson, Grammar, p. 1187.
Atos (Simon J. Kistemaker) 838
Versículos 39–40
ἠρώτων — “eles estavam rogando”. O uso do imperfeito indica que
eles pediam repetidamente.
ἀπό — esta preposição segue ao verbo ἀπελθεῖν (sair). Embora a
preposição propriamente signifique “de”, aqui quer dizer, “sair de”. 1047
πρὸς τὴν Λυδίαν — a referência é à casa de Lídia, não ao distrito de
Lídia na Ásia Menor.

Resumo de Atos 16
Paulo e Silas chegam a Derbe e Listra, onde Timóteo se une a eles.
Filho de mãe judia e de pai grego, Timóteo é um crente. Paulo deseja
que os acompanhe; para realçar a eficácia do testemunho que Timóteo
possa ter como testemunha aos judeus, Paulo decide circuncidá-lo. À
medida que vão visitando igrejas, Paulo e Silas entregam às igrejas os
decretos apostólicos e as fortalecem em sua fé.
O Espírito Santo impede os missionários de pregar o evangelho na
província da Ásia e nas regiões de Bitínia e Mísia. Em Trôade, Paulo tem
uma visão de um homem da Macedônia quem lhe pede que vá ajudar às
pessoas ali. Os missionários embarcam, navegam até Neápolis, e logo se
dirigem a Filipos, onde permanecem por alguns dias. No sábado, Paulo
prega a um grupo de mulheres. Deus abre o coração de Lídia, quem crê
no Senhor e é batizada. A pedido dela, Paulo e seus companheiros se
hospedam em casa de Lídia.
Uma menina escrava, possuída por um demônio e que se dedica à
adivinhação, dando aos seus donos grandes lucros, identifica os
missionários como servos de Deus. Seus contínuos gritos incomodam
Paulo, quem expulsa dela o espírito perverso. Os donos da menina
percebem que perderam sua fonte de lucro e acusam Paulo e Silas diante
dos magistrados. Os missionários são açoitados duramente e lançados no

1047
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #209.1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 839
cárcere. Durante a noite, eles oram e cantam hinos. Mediante um
terremoto, Deus liberta os presos. Paulo evita que o carcereiro tire a
vida; o homem crê e é batizado junto com toda sua família.
Na manhã seguinte, os magistrados enviam oficiais ao cárcere para
libertar Paulo e Silas. Mas Paulo lhes informa que ele e Silas são
cidadãos romanos que sofreram a injustiça de ser castigados
publicamente e detidos sem juízo prévio. Paulo exige que venham os
magistrados ao cárcere para soltar a ele e Silas. Os magistrados se
desculpam; e a pedido destes, abandonam Filipos depois de ter passado
algum tempo na casa de Lídia.
Atos (Simon J. Kistemaker) 840
ATOS 17
A SEGUNDA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 3 (At 17:1–34)
3. Tessalônica (At 17:1–9)

Durante sua segunda viagem missionária, Paulo se esforçou por


levar o evangelho às cidades que constituíam os grandes centros do
comércio e administrativos, e de onde poderia disseminar-se por
numerosos lugares. Com seus companheiros, viajou de Filipos a
Tessalônica (a moderna Salônica). Na sinagoga de Tessalônica
proclamou o evangelho a judeus e a gentios.

a. A proclamação (At 17:1–4)

1, 2. Tendo passado por Anfípolis e Apolônia, chegaram a


Tessalônica, onde havia uma sinagoga de judeus. Paulo, segundo o seu
costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com eles acerca das
Escrituras.
Detenhamo-nos nestes dois pontos:
1. O lugar. A via Egnatia se estendia da costa do mar Egeu ao norte
da Macedônia até a costa oeste (na moderna Albânia), ao longo do mar
Adriático. De Filipos, os missionários percorreram esta estrada em
direção sudoeste. Não podemos afirmar se a viagem eles a fizeram
caminhando ou a cavalo. Pensamos que Paulo e seus companheiros
hajam coberto a distância (48 km.) entre Filipos e Anfípolis num dia e
tenham passado ali a noite. É possível que tenham cavalgado em vez de
caminhar, porque Paulo e Silas ainda estavam sofrendo as dores das
feridas pelos açoites recebidos em Filipos.
Anfípolis, localizada na margem do rio Estrimom, era a capital do
primeiro distrito da Macedônia (veja-se o comentário sobre At 16:12). O
Atos (Simon J. Kistemaker) 841
nome Anfípolis (ao redor da cidade) sugere que a cidade estava quase
rodeada pelo rio. Lucas parece indicar que devido ao fato de que
Anfípolis e sua vizinha Apolônia careciam de sinagoga e não havia
judeus que vivessem nelas, Paulo e seus companheiros não pregaram o
evangelho ali. 1048
Depois de viajar outro dia, os missionários chegaram a Apolônia,
uma cidade situada a 45 km. a oeste-sudoeste de Anfípolis. Ali passaram
a noite antes de continuar sua viagem para Tessalônica, situada a 63 km.
além.
Em Tessalônica, o tráfico marítimo se unia com o tráfico terrestre.
A cidade, localizada no golfo de Salônica, está perto de dois rios (o
Vardar e o Vistritza). Em tempos antigos, o povo usava estes rios para o
transporte de produtos agrícolas que colhiam nas férteis planícies ao
longo de suas margens. Além de ser um importante centro de comércio,
nos dias de Paulo a cidade era a capital da Macedônia e servia a toda a
província como centro administrativo.1049 Em sua campanha contra
Bruto e Cássio, aqueles que tinham assassinado a Júlio César, os
romanos estabeleceram em Tessalônica uma guarnição. Devido ao seu
apoio a Marco Antônio e Otávio (conhecido mais tarde como Augusto),
no ano 42 a.C. os romanos deram a Tessalônica a categoria de cidade
livre. 1050 Quando Paulo e seus companheiros chegaram ali, umas
duzentas mil pessoas, entre os quais havia numerosos judeus, viviam na
cidade. Por sua posição estratégica, chegou a ser uma base de onde o
evangelho foi semeado por toda Macedônia e Grécia (1Ts 1:8).
2. O tempo. Paulo continuou com sua prática habitual de pregar o
evangelho primeiro aos judeus e logo aos gentios (cf. At 13:5; veja-se
também Lc 4:16). Visitou uma sinagoga judaica e esperou que o
1048
David John Williams assinala que os arqueólogos não encontraram evidências de alguma sinagoga
nem em Anfípolis nem na vizinha Apolônia. Acts, série Good News Commentaries (San Francisco:
Harper and Row, 1985), p. 286.
1049
Antes de que no 146 a.C. os romanos fizessem de Tessalônica a capital provincial da Macedônia,
era a capital do segundo distrito da Macedônia. Livy Anais 44.10.45; 45.29.
1050
Pliny Historia natural 4.36.
Atos (Simon J. Kistemaker) 842
convidassem a pregar o evangelho aos judeus e aos gentios piedosos que
adoravam ali. Lucas escreve que “Paulo, segundo o seu costume, foi
procurá-los e, por três sábados, arrazoou com eles acerca das Escrituras”.
Passou Paulo apenas três semanas em Tessalônica? Aparentemente,
não. As cartas a essa igreja e o relato de Lucas em Atos sugerem que
permaneceu ali durante mais tempo que só três sábados. Lembremos,
para ilustrar este ponto, que a igreja filipense enviou-lhe ajuda material
em duas ocasiões (Fp 4:16). 1051 Devido ao fato de que não queria ser
uma carga para ninguém (1Ts 2:9; 2Ts 3:8), 1052 Paulo trabalhou de dia e
de noite para atender suas próprias necessidades, presumivelmente
fazendo tendas (veja-se At 18:3). Eu concluo em que durante três dias de
sábado seguidos, Paulo pregou na sinagoga, mas depois seguiu
ministrando entre os gentios piedosos. Ele escreveu que a igreja em
Tessalônica estava formada por gentios que tinham renunciado aos
ídolos e se converteram a Deus (1Ts 1:9). E também escreveu que a
igreja proclamava o evangelho por toda Macedônia e Acaia, o qual
implica que os tessalonicenses receberam ampla instrução na mensagem
do Senhor. Tal instrução pôde ser possível só se Paulo ficou em
Tessalônica mais que os três sábados mencionados. 1053
3. Explicando e provando que o Cristo deveria sofrer e ressuscitar
dentre os mortos. E dizia: Este Jesus que lhes proclamo é o Cristo [NVI].
No culto de adoração na sinagoga local, Paulo diz à sua audiência
que Jesus é o Cristo, quem através de Seu sofrimento, morte e
ressurreição tinha dado cumprimento às profecias messiânicas das
Escrituras. Lucas só diz que Paulo pregou; não contribui ao texto da
mensagem. Em Tessalônica, Paulo modificou levemente seu método

1051
BJ tem a leitura: “Pois inclusive quando estava eu em Tessalônica, enviou por duas vezes com o
que atender a minha necessidade”, a qual respalda a interpretação de que foi uma breve estada. Mas
alguns tradutores rejeitam incluir a frase pois inclusive quando estava eu, porque não se encontra no
texto grego.
1052
Donald H. Madvig, “Thessalonica”, ISBE, vol. 4, p. 837.
1053
Consulte-se Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The Expanding Church, 2ª. ed. (Grand Rapids:
Zondervan, Academic Books, 1986), p. 275.
Atos (Simon J. Kistemaker) 843
costumeiro (veja-se At 13:16–41): “ele discorreu [com os judeus] a
respeito das Escrituras”. Quer dizer, apresenta os ensinos da Escritura
relacionadas com o Messias e convida a sua audiência a fazer
perguntas. 1054 A menos que os ouvintes de Paulo estejam preparados e
dispostos a certificar-se que a pessoa e obra de Cristo cumprem as
profecias bíblicas, a Bíblia continua sendo para eles um livro
fechado. 1055
Paulo segue o exemplo dado por Jesus, quem abriu as Escrituras aos
dois homens no caminho a Emaús e aos discípulos no cenáculo. Jesus
lhes mostrou com a Lei, os Profetas, e os Salmos que Cristo devia sofrer
e levantar-Se da morte (Lc 24:25–27, 44–46). O termo explicou vem do
verbo grego que significa “abrir”. Paulo abre a Palavra e desdobra diante
de seus ouvintes a explicação sobre as profecias messiânicas. Apelando
às Escrituras, encontra uma base comum para provar que o Messias veio
na pessoa e obra de Jesus de Nazaré.
Paulo demonstra que o Cristo devia sofrer, morrer, e ressuscitar da
tumba. Lucas, em seu Evangelho e em Atos, também ilustra com toda
clareza que a vida, morte e ressurreição de Jesus estão governadas por
uma divina necessidade (veja-se, p. ex., Lc 2:49; 4:43; 13:33; 24:26; At
3:21). “A preocupação fundamental de Lucas não é projetar a morte de
Jesus como um trágico fracasso de um profeta, e sim apresentar a morte
e ressurreição de Jesus como um necessário ato salvador de Deus”. 1056
Em suas apresentações, Paulo discorre a respeito de três atos: o
Cristo devia sofrer, Ele devia ressuscitar da morte, e Ele é o Jesus que
proclama Paulo. Os judeus objetavam o ensino de que Cristo morreu
numa cruz, porque para eles, um criminoso que era pendurado de uma
árvore (cruz) estava sob a maldição de Deus (Dt 21:23; Gl 3:13). A

1054
Gottlob Schrenk, TDNT, vol. 2, p. 94; Dieter Fürst. NIDNTT, vol. 3, p. 821.
1055
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 295.
1056
Erich Tiedtke e Hans-George Link, NIDNTT, vol. 3, p. 667; veja-se também Leon Morris, New
Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academic Books, 1986), pp. 164, 174.
Atos (Simon J. Kistemaker) 844
doutrina da ressurreição é o tema recorrente que os apóstolos proclamam
onde quer que falam (veja-se At 2:24, 32; 13:30, 33, 34, 37; 17:31). E
para Paulo, desde sua conversão no caminho a Damasco (At 9:22), seu
objetivo pessoal é identificar Jesus com o Messias. Por tal razão, Paulo
usa o pronome pessoal eu, “Este Jesus que lhes proclamo”. Ao abrir as
Escrituras e demonstrar aos judeus que Jesus foi o cumprimento delas,
Paulo convence tanto a judeus como a gentios que Jesus é o Messias
prometido.
4. Alguns dos judeus foram persuadidos e se uniram a Paulo e Silas,
bem como muitos gregos tementes a Deus, e não poucas mulheres de alta
posição [NVI].
Lucas descreve o resultado da pregação de Paulo. Embora
mencione tanto a judeus como a gentios, claramente contrasta a
composição do grupo: uns poucos judeus e uma grande multidão de
gentios. A igreja, então, é predominantemente gentílica em caráter; os
judeus tinham instruído os gentios nos ensinos do Antigo Testamento.
Paulo está recolhendo uma abundante colheita da atividade missionária
dos judeus em Tessalônica porque muitos gentios tinham posto sua fé no
Deus de Israel embora rejeitem a circuncisão. Por isso, os judeus não os
aceitam como conversos, mas os chamam gentios piedosos (veja-se o
comentário sobre At 10:2). Esta é uma repetição do que tinha ocorrido
em Antioquia da Pisídia (At 13:43–48).
Lucas acrescenta que entre os gentios piedosos havia numerosas
mulheres de destacado nível social. Ele usa o característico mecanismo
de suavizar o evidente: “e não poucas mulheres de alta posição”. Estas
mulheres ou ocupavam posições de liderança na cidade ou eram esposas
das autoridades da cidade. A primeira opção parece mais lógica, porque
na sociedade greco-romana daqueles dias com frequência as mulheres
alcançavam proeminência e estatura (At 16:14).
Lucas usa o verbo unir-se a, que em grego é único. Ele diz:
“Alguns dos judeus … se uniram a Paulo e Silas”. Este verbo particular
significa que estes judeus “foram adjudicados por Deus a Paulo, como
Atos (Simon J. Kistemaker) 845
1057
discípulos, seguidores”. Em outras palavras, eles se uniram aos
missionários no sentido de que os seguiram. Portanto, estes judeus e
gentios piedosos “mediante Deus obtiveram uma parte na prometida
herança e foram postos nela”. 1058

Considerações doutrinais em At 17:1–4


A Escritura ensina que a salvação se origina com Deus e não com o
homem. Mesmo quando Paulo exorta os filipenses a ocupar-se de sua
própria salvação com temor e tremor, ele de qualquer maneira acrescenta
que Deus opera através deles para obter Seu propósito (Fp 2:12–13). A
salvação compreende tanto a soberania de Deus como a responsabilidade
do homem. Deus salva o homem, mas o homem tem que responder em fé
fazendo a vontade de Deus em palavra e obra. Deus leva a cabo Seu
plano de salvação através de seu Filho e desta forma redime a Seu povo.
A Escritura ensina que de acordo com o plano de Deus, Cristo teve
que sofrer, morrer, e ressuscitar da morte. A Escritura expressa divina
necessidade na palavra ter que. Este termo aparece repetidamente em
Atos e comunica o propósito de Deus. Por exemplo, Jesus diz a Paulo no
momento de sua conversão, o que deve fazer (At 9:6) e informa a
Ananias que Paulo tem que sofrer pelo nome de Cristo (At 9:16). E Jesus
instrui a Paulo de que terá que testificar do Senhor em Roma (At 23:11).
Por todo Atos, Lucas nunca se cansa de descrever a Deus como o autor
da salvação do homem, e que através do homem está levando a cabo Seu
divino plano e propósito.

1057
Thayer, p. 547. Veja-se também Bauer. p. 716.
1058
Johannes Eicklere, NIDNTT, vol. 2, p. 302.
Atos (Simon J. Kistemaker) 846
Palavras, frases e construções gregas em At 17:1–4
Versículo 1
τὴν … τὴν — estes dois artigos definidos precedem os substantivos
Anfípolis e Apolônia. Note-se que o substantivo Tessalônica carece do
artigo definido.1059 O Texto ocidental sugere que Paulo e seus
acompanhantes se detiveram em Apolônia: “Quando eles tinham passado
através de Anfípolis, desceram a Apolônia, e dali a Tessalônica”. 1060

Versículos 2–3
πρὸς αὑτοὺς — estas palavras se referem à sinagoga dos judeus.
σάββατα — usualmente traduzida “sábados”, mas ao menos uma
tradução diz “semanas” (RSV). 1061
ἀπὸ τῶν γραφῶν — esta frase pode ser tomada com o verbo
διελέξατο (raciocinou) ou com os particípios presentes διανοίγων
(explicou) e παρατιθέμενος (demonstrou).
ἐγώ — o pronome pessoal é enfático e significa o resultado direto
da conversão de Paulo no caminho a Damasco. Para a mudança de
discurso indireto a discurso direto compare At 1:4–5 e At 23:22.

Versículo 4
προσεκληρώθησαν — o verbo é uma combinação da preposição
πρός (a) e o substantivo κλῆρος (grupo). Comunica a ideia de receber o
privilégio de ter uma parte na herança. O passivo aoristo implica que
Deus é o agente.

1059
Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#261.2.
1060
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 452.
1061
Para uma análise mais detalhada, consulte-se Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, pp. 202–3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 847
πρώτων — o adjetivo superlativo neste exemplo expressa só
posição: “proeminente”. 1062

b. A reação (At 17:5–9)

5. Os judeus, porém, movidos de inveja, trazendo consigo alguns


homens maus dentre a malandragem, ajuntando a turba, alvoroçaram a
cidade e, assaltando a casa de Jasom, procuravam trazê-los para o meio
do povo.
Depois de estar pregando na sinagoga de Tessalônica durante três
sábados, Paulo continua seu ministério de ensino nas casas. Entre os
crentes judeus há um homem chamado Jasom, quem provê alojamento
para Paulo e Silas e que, além disso, parece que converteu sua casa numa
igreja. Embora o nome Jasom seja grego, sua tradução ao hebraico é
Josué. Outros crentes em Tessalônica são Aristarco e Segundo (At 20:4),
que posteriormente acompanham Paulo em suas viagens.
Pelos escritos de Paulo sabemos que ele proclamou o evangelho
“com poder, com o Espírito Santo e com profunda convicção” (1Ts 1:5).
Deus abençoa o trabalho de Paulo com numerosos gentios que se voltam
para a fé do Senhor. Entre eles estão os conhecidos como piedosos a
quem os judeus tinham instruído nas verdades básicas das Escrituras.
Como resultado, quando os judeus veem que Paulo está tirando estes
piedosos dos cultos de adoração da sinagoga, ficam não meramente
zelosos com Paulo; na verdade, eles estão furiosos. Ciúme e ira são os
dois lados da mesma moeda. Lucas ilustra isto em relatos anteriores (At
5:17; 13:45) e mostra que os oponentes de Paulo recorrem às calúnias e
ao abuso verbal.
Os judeus vão ao mercado onde costumam reunir-se alguns maus
elementos. Por um pagamento modesto, estes homens estão dispostos a
fazer qualquer coisa que se pedir que façam. Recebem instruções dos
1062
A. T. Robertson, A Greek Grammar of the New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 669.
Atos (Simon J. Kistemaker) 848
judeus para formar uma chusma e começar uma revolta (compare At
14:4–5, 19; veja-se também 1Ts 2:14–16). Com estes agitadores, os
judeus se dirigem à casa de Jasom com o propósito de capturar a Paulo e
Silas e levá-los diante da assembleia do povo.
Devido ao fato de que Tessalônica era uma cidade livre, uma
assembleia popular se encarregava de elucidar os assuntos públicos. 1063
Na assembleia pública, os cidadãos tramitavam os casos de corte e
assuntos legislativos. Não sabemos se a assembleia estava em sessão, ou
se o próprio povo se constituía na assembleia. Não eram os judeus os
que governavam, visto que eram uma minoria em Tessalônica, mas
governava a multidão. De passagem, note-se que Lucas usa o termo os
judeus para designar os que se opunham ao evangelho.
6, 7. Porém, não os encontrando, arrastaram Jasom e alguns irmãos
perante as autoridades, clamando: Estes que têm transtornado o mundo
chegaram também aqui, os quais Jasom hospedou. Todos estes procedem
contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei.
1. Os oficiais. Supomos que Paulo recebeu um aviso antecipado de
que tentariam prendê-lo. Os cristãos esconderam Paulo e Silas em algum
lugar da cidade e os protegeram para que não fossem atacados
fisicamente. No entanto, eles não esperavam que o povo se voltaria
contra Jasom e os outros crentes. Quando a multidão veio à casa de
Jasom e não puderam encontrar os missionários, então capturaram o
dono de casa e outros cristãos e literalmente os arrastaram até a
assembleia pública, diante das autoridades da cidade.
O termo grego politarchēs, traduzido “autoridades da cidade”,
descreve os oficiais nas assembleias públicas das cidades livres na
Macedônia. Devido ao fato de que Tessalônica era uma cidade livre, a
palavra politarchēs refere-se aos magistrados macedônicos e não aos
oficiais romanos. Nos meados do primeiro século, Tessalônica tinha ao

1063
Bauer, p. 179. Ernst Haenchen, no entanto, afirma que a palavra grega demos é um sinônimo de
ochlos (povo). The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble e Gerald Shinn
(Filadelfia: Westminster, 1971), p. 507. Compare At 19:33, 35.
Atos (Simon J. Kistemaker) 849
menos cinco politarcas. Em 1876, quando os oficiais da cidade de
Salônica decidiram demolir o antigo arco chamado a Porta de Vardar que
atravessava a Via Egnatia, descobriram uma inscrição com os nomes de
antigos oficiais da cidade. Estes nomes estavam precedidos pelo termo
politarchēs. O mesmo termo encontra-se em várias outras inscrições que
datam “do segundo século a.C. até o terceiro século d.C.”. 1064
2. As acusações. A multidão levanta acusações contra Jasom e seus
irmãos cristãos, mas as palavras que eles usam se aplicam antes que
ninguém a Paulo e Silas e só num plano secundário a Jasom. “Estes que
têm transtornado o mundo chegaram também aqui, os quais Jasom
hospedou”. Os judeus acusam Paulo e Silas, a quem não podem
encontrar, de alvoroçar o mundo. Num sentido, a acusação de que os
missionários estiveram alvoroçando o mundo é correto. O fato é que o
evangelho alvoroça, penetra e altera a sociedade em todas as partes do
mundo. Além disso, talvez os judeus tinham ouvido o que havia ocorrido
a Paulo e Silas em Filipos. E insinuam que algo parecido poderia ocorrer
em Tessalônica. 1065 Não obstante, da perspectiva dos magistrados, é
possível que a acusação inicial lhes tenha parecido grosseiramente
exagerada. Como os judeus não podem apresentar a Paulo e Silas, põem
diante dos magistrados a Jasom, um concidadão judeu e residente ali
mesmo, a quem acusam de ajudar os missionários.
Para dar consistência ao caso, os judeus também acusam Paulo,
Silas e Jasom de rebelião: “Todos estes procedem contra os decretos de
César, afirmando ser Jesus outro rei”. Que a acusação seja verdadeira ou
falsa não é importante neste momento; a acusação em si é séria e deve
ser investigada pelos magistrados. Os decretos do César, por exemplo,
eram juramentos de lealdade, os quais os magistrados locais deviam
administrar e fazer cumprir. 1066

1064
Lake e Cudbury, Beginnings, vol. 4, p. 205.
1065
Para o fundo político, veja-se Suetônio Vida de Cláudio 25.4; comentário sobre At 16:20–21.
1066
Veja-se E. A. Judge, “The Decrees of Caesar at Thessalonica”, RefThr 30 (1971); 1–7.
Atos (Simon J. Kistemaker) 850
Durante o juízo contra Jesus, Pôncio Pilatos perguntou a Jesus se
Ele era um rei, ao que Jesus respondeu: “Meu reino não é deste mundo”
(Jo 18:36). O lema César é Senhor prevaleceu em todo o império
romano. No entanto, no primeiro século os cristãos aclamaram como
Senhor não a César, e sim a Jesus (1Co. 12:3), e os apóstolos pregaram a
vinda do reino de Deus.
Em Atos, Lucas não enfatiza o conceito reino de Deus, talvez numa
tentativa de evitar possíveis acusações de rebelião. No entanto, Paulo
menciona com frequência este conceito. 1067 Por suas duas cartas à igreja
de Tessalônica, sabemos que Paulo ensina a vinda do dia do Senhor,
durante o qual o homem iníquo é morto (1Ts 4:16; 2 Ts. 2:8). Estes
versículos podem ser interpretados como uma mudança de governantes.
A expressão rei é usada às vezes para descrever o imperador romano (cf.
Lc 23:2; Jo 19:15; 1Pe 2:13, 17). Os judeus incrédulos puseram Jesus
contra César e acusaram os missionários de fomentar a rebelião contra
Roma. Os magistrados da cidade livre de Tessalônica desfrutam da
liberdade do governo romano direto e como resultado desejam prevenir
qualquer ameaça a esta liberdade.
8, 9. Ouvindo isso, a multidão e os oficiais da cidade ficaram
agitados. Então receberam de Jasom e dos outros a fiança estipulada e os
soltaram [NVI].
Como ocorreu no juízo de Jesus diante de Pôncio Pilatos, assim
ocorre aqui em Tessalônica: os judeus sabem como manipular as
autoridades. Fazem-no provocando a multidão. Seu propósito é criar
confusão entre o povo e convencer os magistrados que as acusações são
de peso.
Os oficiais da cidade não são persuadidos pelo tumulto. Na
ausência dos principais personagens, Paulo e Silas, as acusações perdem
sua urgência visto que não há mais provas disponíveis. Os oficiais
ouvem a evidência, porém não estão convencidos que Jasom e seus
1067
Veja-se At. 14:22; 19:8; 20:25; 28:23, 31; Rm. 14:17; 1 At Cor. 4:20; 6:9, 10; 15:24, 50; Gl. 5:21;
Ef. 5:5; Cl. 4:11; e 2Ts. 1:5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 851
amigos constituam um perigo à segurança de Tessalônica. Deixam ir a
Jasom e aos outros cristãos, mas lhes aplicam uma fiança para garantir a
paz e a ordem na cidade. A estipulação é que Paulo e Silas se retirem. Se
Jasom e seus amigos permitirem que Paulo permaneça em Tessalônica e
se, como resultado disso, se desata um novo tumulto, Jasom perderia a
fiança e enfrentaria o encarceramento.
Mesmo quando Paulo e Silas deixaram Tessalônica, a terna
congregação suportou penalidades e perseguição, como o revela Paulo
em sua primeira epístola aos tessalonicenses (1Ts 2:14). A população
gentílica, possivelmente incitada pelos judeus, lança ataque hostis aos
cristãos. Ao menos em duas oportunidades Paulo desejava ir em sua
ajuda, mas foi impedido pela fiança de Jasom. “Este mecanismo
engenhoso constituiu um abismo infranqueável entre Paulo e os
tessalonicenses. Enquanto os magistrados mantiverem vigente esta
decisão, Paulo não poderá retornar: ele é incapacitado enquanto Satanás
é o poderoso”. 1068 Paulo, não podendo fazer outra coisa, mandou a
Timóteo para pregar o evangelho e animar os crentes em Tessalônica
(1Ts 2:18; 3:2–3).

Palavras, frases e construções gregas em At 17:5–9


Versículo 5
ζηλώσαντες — do verbo ζηλόω (empenhar-se, ser zeloso) este
particípio ativo aoristo expressa a qualidade negativa da inveja. O
Manuscrito ocidental (Códice Beza) não tem este particípio, e diz: “Mas
os judeus incrédulos reuniram a alguns ímpios do mercado”. O Texto
majoritário diz: “Mas os judeus que não criam tomaram a alguns ímpios
do mercado”. E o Textus Receptus diz: “Mas os judeus que não tinham

1068
William M. Ramsay, St. Paul the Traveller and the Roman Citizen (1897; reimp., Grand Rapids:
Baker, 1962), p. 231.
Atos (Simon J. Kistemaker) 852
sido persuadidos, encheram-se de inveja, e tomaram a alguns dos
homens ímpios do mercado”.
ἐθορύβουν — o tempo imperfeito descreve o começo de uma ação:
“eles começaram a pôr a cidade em desordem”. O verbo θορυβέω difere
de ταράσσω (eu perturbo). ἐτάραξαν (v. 8) é o resultado de ἐθορύβουν.

Versículo 6
ἀναστατώσαντες — o particípio ativo aoristo de ἀναστατόω (eu
perturbo, agitar) mostra a ironia do acontecimento. Os judeus acusam
Paulo e Silas de perturbar a cidade (e o mundo) enquanto são
precisamente eles os que dão origem a uma revolta.
πάρεισιν — o tempo presente na verdade refere-se a um tempo
perfeito: “eles chegaram”.

Versículos 7 e 9
ἀπέναντι — a preposição tríplice composta (ἀπό, ἐν, ἀντί) expressa
uma ideia hostil: “contra”. 1069
ἕτερον — outro de uma classe diferente.
λαβόντες τὸ ἱκανὸν — um termo legal derivado do latim satis
accipere, quer dizer, assegurar-se.

4. Bereia (At 17:10–15)

O nome Bereia não necessita apresentação nos círculos cristãos.


Significa o estudo bíblico sério pelos que desejam saber o que Deus diz
em Sua palavra. Sempre que há cristãos que recusam aceitar alguma
explicação de alguma passagem das Escrituras como a última palavra,
mas examinam a exposição para ver se na verdade interpreta

1069
Robertson, Grammar, p. 639.
Atos (Simon J. Kistemaker) 853
corretamente o texto bíblico, o espírito bereano está presente. Para os
bereanos, as Escrituras são básicas, relevantes e preciosas.
10. E logo, durante a noite, os irmãos enviaram Paulo e Silas para
Bereia; ali chegados, dirigiram-se à sinagoga dos judeus.
Os cristãos tessalonicenses percebem que os judeus poderiam
apresentar acusações adicionais contra Paulo e Silas. Por isso insistem
que os missionários abandonem a cidade e que o façam protegidos pela
escuridão da noite (cf. At 9:25; 23:23, 31; veja-se também 2Co 11:33).
Paulo e Silas, a contragosto saem e viajam em direção a oeste-sudoeste.
Em lugar de retirar-se a uma cidade importante, os missionários
decidem visitar a localidade de Bereia (a moderna Véria). Pelos escritos
de Cícero sabemos que um século antes de Paulo e seus acompanhantes
visitarem Bereia, o governador romano Piso veio a Tessalônica uma
noite e, devido à forte oposição que encontrou ali, refugiou-se em
Bereia. Cícero faz notar que esta cidade estava afastado do caminho. 1070
Estava localizada a poucos quilômetros ao sul da estrada principal e
aproximadamente a 65 km. de Tessalônica. É possível que Paulo tenha
decidido ir a Bereia, e posteriormente a Atenas e Corinto, em lugar de ir
a Roma, porque em 49 d.C. o imperador Cláudio tinha expulso os judeus
da cidade imperial. 1071
Depois de ter viajado pelo menos uma noite e dois dias, os
missionários chegam a Bereia. Fiéis ao seu chamado, pouco depois de
sua chegada entram na sinagoga judaica local. Infelizmente, Lucas não
provê informação sobre o motivo principal para ir a Bereia. Supomos
que uma das razões de Paulo foi reunir-se com o povo judeu em sua
sinagoga e pregar o evangelho (cf. v. 2).
11, 12. Ora, estes de Bereia eram mais nobres que os de Tessalônica;
pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras
todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim. Com isso, muitos
deles creram, mulheres gregas de alta posição e não poucos homens.

1070
Cícero Contra Piso 36.89.
1071
Consulte-se F. F. Bruce, Paul, The Apostle of the Free Spirit (Exeter: Paternoster, 1977), p. 235.
Atos (Simon J. Kistemaker) 854
Observemos os seguintes pontos:
1. Mais nobres. Lucas compara os que adoram na sinagoga de
Bereia com os de Tessalônica e elogia os bereanos. Paulo desenvolve
uma estreita e amorosa amizade com os tessalonicenses (veja-se 1Ts
2:11); de qualquer maneira, em matéria de nobreza, os bereanos são
superiores. Estão mais abertos à verdade da Palavra de Deus que os de
Tessalônica.
A razão dessa atitude dos bereanos é preciso buscá-la em sua
receptividade a e em seu amor pela Palavra de Deus. Para eles, as
Escrituras são muito mais que um rolo escrito ou livro que comunica
uma mensagem divina. Eles usam o Antigo Testamento como a pedra de
toque da verdade, de maneira que quando Paulo proclama o evangelho,
eles imediatamente vão à Palavra escrita de Deus para verificação. Eles o
fazem, acrescenta Lucas, com grande anelo. Note-se bem, o adjetivo
toda indica que eles entesouram a Palavra de Deus. Lucas atribui a
mesma diligência aos bereanos que Pedro faz aos profetas do Antigo
Testamento, aqueles que intensa e diligentemente indagaram a Palavra e
investigaram o seu significado (1Pr. 1:10). Os bereanos abrem as
Escrituras e com mentes dispostas aprendem que Jesus cumpriu as
profecias messiânicas.
Dia após dia, os bereanos examinam as Escrituras para ver se o que
Paulo e Silas lhes ensinam está de acordo com a Palavra escrita de Deus.
Fazem-no não porque sejam incrédulos ou tenham dúvida, mas por
honestidade e anelo para captar a mensagem da revelação de Deus.
Embora Lucas não diga que Deus tenha aberto os corações dos bereanos
(cf. At 16:14), no versículo 12 ele afirma que “muitos dos judeus” creem
no evangelho. Este povo crê porque conhece a Palavra de Deus. A
situação em Bereia difere da situação em Tessalônica, onde “alguns dos
judeus foram persuadidos” (v. 4).
2. Fé. Como os judeus em Tessalônica, os judeus em Bereia haviam
aceito a população gentílica em suas sinagogas e lhes tinham instruído a
respeito das verdades da Escritura. Em ambas as cidades, muitos gentios
Atos (Simon J. Kistemaker) 855
piedosos, tanto homens como mulheres, vieram à fé. E em ambos os
lugares, as mulheres gentias eram distinguidas. 1072 Lucas mostra
imparcialidade ao referir-se a homens e mulheres. Aqui ele menciona
primeiro as mulheres e logo os homens (cf. At 18:26). Repetidamente diz
que mulheres proeminentes nas igrejas gentílicas judias vêm à fé em
Cristo e assumem posições de liderança. Até registra nomes e
parentescos: a mãe de Timóteo (At 16:1), Lídia de Tiatira (At 16:14–15),
Dâmaris de Atenas (At 17:34), Priscila (At 18:2, 18, 26), e as quatro
filhas profetisas de Filipe (At 21:9). Com os homens, estas mulheres
demonstram a fé em ação.
Lucas dá a impressão que em Bereia se levanta uma florescente
igreja. No entanto, nunca diz que Paulo voltou a visitar esse lugar. Diz
que um dos companheiros de Paulo na Macedônia foi Sópatro, filho de
Pirro de Bereia (At 20:4).
13. Mas, logo que os judeus de Tessalônica souberam que a palavra
de Deus era anunciada por Paulo também em Bereia, foram lá excitar e
perturbar o povo.
Provavelmente, Paulo e seus companheiros missionários
trabalharam em Bereia durante vários meses. Mas quando judeus
incrédulos de Tessalônica ouviram que Paulo estava pregando o
evangelho em Bereia, viajaram até ali. Os judeus de Tessalônica fizeram
o mesmo que os judeus em Antioquia da Pisídia e Icônio quando
seguiram a Paulo até Listra (At 14:19). Viajaram até ali e agitaram às
multidões numa tentativa de deter Paulo na pregação da Palavra de Deus,
quer dizer, do evangelho. 1073 O plural multidões indica que estes judeus
continuavam agitando o povo até que obtiveram seu propósito: fazer
Paulo sair. Na verdade, eles prosseguiram seu plano de agitação entre os

1072
A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963; reimp. Grand
Rapids: Baker, 1968), p. 174.
1073
Refira-se a At. 4:31; 8:14; 11:1; 12:24; 13:5, 7, 46; 17:13; 18:11.
Atos (Simon J. Kistemaker) 856
1074
habitantes desta nobre cidade até que os cristãos dali proveram salvo
conduto para que Paulo fosse a algum outro lugar.
Originalmente, Paulo foi chamado a Macedônia (At 16:9) para
pregar o evangelho. Mas agora ele é forçado a deixar a província para
proteger-se de ataques físicos.
14, 15. Então, os irmãos promoveram, sem detença, a partida de
Paulo para os lados do mar. Porém Silas e Timóteo continuaram ali. Os
responsáveis por Paulo levaram-no até Atenas e regressaram trazendo
ordem a Silas e Timóteo para que, o mais depressa possível, fossem ter
com ele.
Os cristãos em Bereia cuidam da segurança de Paulo e rapidamente
o enviam numa viagem à costa do mar Egeu. Mais uma vez é forçado a
deixar uma jovem congregação (veja-se At 14:6, 20; 16:40; 17:10) e
viajar a outros lugares. Talvez Paulo tenha recebido instruções divinas de
ir a Atenas por mar ou por terra, seguindo o caminho costeiro. Lucas não
diz nada sobre este ponto, mas indica que os cristãos bereanos levam só
a Paulo. Silas e Timóteo ficam em Bereia. Ali continuam pregando o
evangelho, embora seja possível que também se ausentaram
temporariamente de Bereia até que as revoltas tivessem cessado.
Os amigos bereanos de Paulo o acompanham todo o caminho até
chegar a Atenas. Os estudiosos afirmam que viajaram de navio, mesmo
quando o Texto ocidental diz que Paulo “passou por Tessália, porque foi
impedido de proclamar o evangelho a eles”. 1075 (Tessália está na região
oriental da Grécia.) Este comentário parece sugerir que Paulo e seus
amigos viajaram por terra até Atenas, pelo caminho costeiro. Além disso,
Lucas parece abandonar seu costume de mencionar a cidade porto da
qual Paulo zarpa. Em vista de tal omissão, a interpretação de que Paulo
viajou a pé a Atenas é verossímil.

1074
Livy Historia 45.30.
1075
Metzger, Textual Commentary, p. 455. Uma tradução diz, “os irmãos enviaram a Paulo como se
fosse por mar” (letra itálica acrescentada).
Atos (Simon J. Kistemaker) 857
Quando Paulo chega a Atenas, dá-se conta de quão duro será pregar
o evangelho aos educados cidadãos atenienses. Necessita toda a ajuda
que pudesse conseguir. Portanto, instrui os amigos bereanos a voltar para
Bereia e dizer a Silas e a Timóteo que venham a Atenas logo que
puderem. Pelos escritos de Paulo sabemos que estes dois missionários
viajaram prontamente até esta cidade (1Ts 1:1; 3:1). Paulo, contudo,
anela estar com os irmãos de Tessalônica, mas devido ao impedimento
de ir até ali, manda a Timóteo para saber a respeito da situação espiritual
em que se encontram os cristãos tessalonicenses (1Ts 3:2). De Atenas,
Paulo envia a Silas de volta a Macedônia (At 18:5). Depois, Silas e
Timóteo voltam a Corinto para encontrar-se com Paulo.

Considerações práticas em At 17:10–15


A Bíblia continua sendo o livro de mais venda em todo mundo.
Mas, ao mesmo tempo, a Bíblia continua sendo o livro mais descuidado
por aqueles que têm um exemplar. O desejo de tê-la não corre a par com
o desejo de conhecer sua mensagem. Em muitos lares, a Bíblia está cheia
de pó e permanece em algum canto como um livro esquecido.
Durante o reinado de Josias rei de Judá, o sumo sacerdote descobriu
o Livro da Lei no templo do Senhor (2Rs 22:8). Num afastado canto do
edifício, a Palavra de Deus tinha permanecido oculta, esquecida e,
consequentemente, sem influência alguma sobre o povo. Os judeus se
esqueceram do Deus de Israel e voltaram para os ídolos, aos quais
adoravam. Mas uma vez que as Escrituras foram descobertas, o rei Josias
literalmente mudou o curso da história. Leu a Palavra de Deus ao povo e
o guiou a renovar seus votos de obediência à aliança que Deus fez com
eles (2Rs 23:1–3), evitando assim a ira e o juízo de Deus.
Devemos ler a Palavra de Deus unidos como famílias e meditar em
seu conteúdo. Ao manter as devoções familiares diárias, podemos
construir famílias fortes que amam ao Senhor. Devemos animar a outros
a memorizar porções das Escrituras, o que fará com que a Palavra de
Atos (Simon J. Kistemaker) 858
Deus seja algo importante em nossas vidas. Além disso, em nossos
cultos de adoração, a Bíblia deve tomar um lugar central e nossos
pastores devem ensinar toda a Bíblia e todas as suas doutrinas.
Ao ler, aprender e conhecer a Bíblia nos comunicamos com Deus e
O ouvimos quando nos fala. Mediante essa Palavra, instrui-nos a respeito
de como viver para Ele. E quando fervorosamente dedicamos nossas
vidas a Ele, grandes bênçãos descerão sobre nós.

Palavras, frases e construções gregas em At 17:10–15


Versículo 10
διὰ νυκτὸς — “na noite”. Como um genitivo de tempo, a preposição
é supérflua (veja-se Jo 3:2; At 9:25).
ἀπῄεσαν — o ativo imperfeito de ἄπειμι (eu deixo). O significado
de ἀπό (fora) no composto é suplantado pela preposição εἰς (em).

Versículo 11
εὑγενέστεροι — a interpretação primária deste adjetivo é “nobreza
de nascimento”. O significado secundário refere-se à “nobreza de
mente”. Aqui é aplicável o sentido secundário. O adjetivo é comparativo
e é seguido pelo caso genitivo.
οἵτινες — este pronome relativo indefinido (traduzido “quem”) tem
uma conotação causal: explica o caráter nobre dos bereanos.
ἔχοι — aqui está o optativo presente numa pergunta indireta. O
verbo ter nesta frase idiomática significa o verbo ser: “se estas coisas
eram verdade”.

Versículos 12–13
O Texto ocidental (Códice Beza) diz “e creram muitos dos gregos e
homens e mulheres distinguidos”. Obviamente, nesta forma, a relevância
das mulheres foi diminuída.
Atos (Simon J. Kistemaker) 859
ἀπό — talvez a seleção desta preposição (“de”) em lugar de ἐν (em)
relação à perspectiva do escritor de ver judeus de Tessalônica em Bereia.
σαλεύοντες — o gerúndio de σαλεύω (eu agito) sugere ação
contínua junto com o gerúndio de παράσσοντες (revolvendo).

Versículos 14–15
ἕως — o Textus Receptus tem ὡς (como) em lugar de ἕως (até). Os
tradutores se inclinam pela segunda forma.
ὡς τάχιστα — eis aqui o verdadeiro advérbio superlativo, “quanto
antes”. 1076

C. Grécia (At 17:16–18:17)

1. Atenas (At 17:16–34)

Quando Paulo chegou a Atenas, o centro intelectual do mundo,


percebeu que o Senhor queria que ensinasse o evangelho onde a filosofia
grega reinava com todo seu esplendor. Em Atenas, encontrou-se com
filósofos epicureus e estoicos, que ensinavam na renomada universidade
da cidade, e numerosos estudantes de todas as partes do mundo
conhecido. Paulo sentia-se em seu ambiente no meio acadêmico porque
era oriundo de Tarso e foi criado e educado em Jerusalém (At 22:3), e
depois de sua conversão passou muitos anos em Tarso (At 9:30).
Conhecia perfeitamente bem a filosofia dos estoicos, que ensinavam na
universidade de Tarso.
Atenas já não era a cidade próspera de antes. Comercial e
politicamente tinha perdido a influência no mundo de seus dias. Em 146
a.C. os romanos a tinham conquistado, mas se cuidaram de não interferir
com o governo local. Desfrutando de uma relativa independência, Atenas

1076
Robertson, Grammar, pp. 696, 974.
Atos (Simon J. Kistemaker) 860
descansava em sua reputação como centro de arte, literatura, filosofia,
ensino e oratória. Sua cultura, contudo, provinha da idade de ouro da
Grécia nos séculos V e IV a.C.
Paulo observava a cultura grega onde quer que fosse. Em Atenas,
viu os templos e os altares, as esculturas e as estátuas. Para ele, estas
coisas não eram meros objetos artísticos, e sim objetos de uma religião
pagã. Nesta cidade idólatra, Paulo introduziria o evangelho de Cristo.
Embora os judeus tivessem uma sinagoga onde ele poderia pregar nos
sábados, sabia que devia confrontar os filósofos atenienses com os
ensinamentos de Cristo de uma forma que seria compreensível e direta.

a. O cenário (At 17:16–18)

16, 17. Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito se


revoltava em face da idolatria dominante na cidade. Por isso, dissertava
na sinagoga entre os judeus e os gentios piedosos; também na praça, todos
os dias, entre os que se encontravam ali.
1. A espera. Paulo conhecia a adoração de ídolos e numa ocasião
anterior tinha experimentado seus efeitos em Listra (At 14:11–20). Em
Atenas, no entanto, a influência dos ídolos estava em todas as partes. 1077
Apesar de sua distinção de ser um centro educacional e artístico, esta
cidade superava a todas as outras em cegueira espiritual e complacência
numa idolatria que não tinha rival. Até o nome Atenas havia sido
escolhido em honra da deusa Atenas. E o lugar do qual Paulo se dirigiu
aos filósofos atenienses tinha o nome de Areópago (vv. 19, 22), que
segundo uma tradição, era a colina de Ares (ou Marte para os romanos),
o deus da guerra. 1078
Enquanto Paulo esperava que Silas e Timóteo chegassem a Atenas
(veja-se v. 15), dedicou-se a preparar-se para um encontro formal com os
filósofos atenienses. Paulo não visitava Atenas como um turista
1077
Josefo chama os atenienses, “os mais piedosos entre os gregos”. Contra Apion 2.11 [130] (LCL).
1078
Consulte-se Donald H. Madvig, “Areopagus”, ISBE, vol. 1, p. 287.
Atos (Simon J. Kistemaker) 861
interessado em observar os monumentos e os objetos artísticos. Ele era
um apóstolo de Jesus Cristo em missão de proclamar a mensagem de
salvação. Onde quer que ia em Atenas, ficou muito impressionado pelo
espírito idólatra dos atenienses. Procurando satisfazer uma necessidade
humana, buscou na sinagoga local o respaldo e o ânimo dos judeus e os
gentios piedosos. Segundo seu costume (v. 2) foi primeiro aos judeus e
logo aos gentios.
2. O debate. “Por isso, dissertava na sinagoga entre os judeus e os
gentios piedosos”. Os judeus de Atenas tinham introduzido o ensino das
Escrituras entre os atenienses e tinham tido êxito em persuadir alguns
deles para que aceitassem suas doutrinas. Supomos que os membros da
sinagoga em Atenas eram menos que nas de Bereia e Tessalônica. Lucas
não diz que Paulo pôde ganhar conversos entre os membros da sinagoga,
nem diz que foi rejeitado nem perseguido como tinha ocorrido em outros
lugares.
“Por isso, dissertava … na praça, todos os dias, entre os que se
encontravam ali”. Paulo não limitava seu ensino nem aos judeus nem aos
gentios piedosos, nem à sinagoga local no sábado. Durante o resto da
semana, ensinava no mercado, onde as pessoas iam comprar alimentos e
outros produtos. Nos edifícios vizinhos, os magistrados e outros
dignitários civis realizavam trabalhos de comunicar justiça. Aqui
também se reunia o senado para discutir assuntos relacionados com a
política. 1079
Sob o abrigo dos corredores conhecidos como pórticos (stoa) os
filósofos reuniam-se para escutar ou oferecer conferências. O público
tinha permissão de escutar essas conferências pelo que no mercado
tinham lugar muitos debates de grande nível intelectual. Aqui foi Paulo a
debater com os filósofos, os discípulos destes, e outras pessoas que

1079
Lake e Cadbury observam, “É, no entanto, impossível obter um plano de Atenas que mostre
exatamente onde estavam localizados estes edifícios”. Beginnings, vol. 4, p. 210.
Atos (Simon J. Kistemaker) 862
foram ouvir sua exposição a respeito da pessoa, obra, morte e
ressurreição de Jesus.
18. E alguns dos filósofos epicureus e estóicos contendiam com ele,
havendo quem perguntasse: Que quer dizer esse tagarela? E outros:
Parece pregador de estranhos deuses; pois pregava a Jesus e a
ressurreição.
3. A argumentação. Entre os filósofos que escutavam a Paulo e
arguiam com ele havia membros de dois grupos de pensadores: os
epicureus e os estoicos. Os do primeiro grupo eram os seguidores de
Epicuro (342–270 a.C.), quem ensinou que a morte não era para ser
temida; que até a alma se extingue quando o corpo morre. Além disso,
ensinou que todo ser procura prazer, evitando sofrimento e dor na busca
de satisfação e felicidade.
Os estoicos, que derivam seu nome da visita que os discípulos de
Zenão (332–260 a.C.) faziam ao Stoa Poikilē (o Pórtico Pintado). Este
filósofo ensinava que o homem alcança sua mais alta aspiração quando
se sujeita a si mesmo ao curso dos acontecimentos que são controlados
pela necessidade divina. Quando o homem se sujeita ao seu destino,
alcança o estado de felicidade.
Estes filósofos eram os intelectuais que se travaram em debate com
Paulo. Com o tempo do verbo grego, Lucas indica que o debate
continuou por um tempo prolongado. Paulo era um visitante estrangeiro
que veio aos filósofos atenienses com ideias estranhas. Estes eruditos
que estavam a cargo do debate, desdenharam a Paulo e a sua mensagem
quando disseram: “O que quererá dizer este enganador?” Eu traduzi o
termo grego spermologos como “enganador”, mas literalmente significa
“rouba-semente”. 1080 Originalmente, o termo descreveu tanto os pássaros
que comem a semente que um granjeiro inadvertidamente lançou junto
ao caminho (Mt 13:4) ou ao homem que recolhe produtos desprezados
no mercado. Às vezes, porém, a palavra foi usada metaforicamente como

1080
Bauer, p. 762; Thayer, p. 584; Blass e Debrunner, Greek Grammar, #119.1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 863
uma descrição zombadora de um plagiador que mediante uma fala
incessante procuraria conseguir que as pessoa o escutem. 1081
4. A proclamação. Paulo pregou a mensagem de Jesus e Sua
ressurreição; salvo por sua audiência diferente, sua apresentação foi
idêntica à da sinagoga local, onde se dirigiu a judeus e a gregos piedosos.
À parte da pergunta zombadora que fizeram os filósofos, eles
trataram a Paulo com certo respeito porque seu ensino tinha que ver com
a qualidade e essência da vida: moralidade, morte, juízo, e ressurreição.
O ensino de Paulo era uma novidade para eles, e cometeram um erro ao
supor que Paulo estava proclamando uma doutrina referente a duas
deidades: Jesus e sua companheira feminina Anastasia (que do grego se
traduz por “ressurreição”). Evidentemente não tinham ouvido de Jesus e
ninguém lhes tinha falado da ressurreição; daí seu comentário de que
Paulo “parecia um proclamador de deidades estranhas”. 1082 No entanto,
Paulo estava pregando as boas novas de Jesus e ensinando que o Senhor
tinha ressuscitado da morte. Isto era sensacional e impunha um formal
discurso breve da parte de Paulo.

Palavra, frases e construções gregas em At 17:16–18


Versículos 16–17
ἐκδεχομένου — o gerúndio com o nome próprio Paulo no caso
genitivo forma a construção absoluta genitiva. No entanto, devido ao
fato de que o sujeito na frase principal é o mesmo que na cláusula
absoluta genitiva, esta construção é imperfeita. O tempo presente indica
ação durativa: “ele seguia esperando”.

1081
Maurice A. Robinson opina que no mercado de Atenas, Paulo pregou a parábola do semeador, na
qual usou as palavras sperma (semente) e logos (palavra) e que o depreciativo epíteto de spermologos
foi o resultado de uma má compreensão da mensagem de Paulo. “Spermologos: ¿Did Paul Preach
from Jesús’ Parables?” Bib 56 (1975): 231–40.
1082
A frase deidades estranhas é uma sutil alusão ao juízo de Sócrates no ano 399 a.C; a frase aparece
no relatório do juízo. Veja-se Xenofonte Memorabilia 1.1.1; Platão Apologia 24b.
Atos (Simon J. Kistemaker) 864
παρωξύνετο — o meio imperfeito expressa a ideia inceptiva: “Paulo
pôs-se comovido”.
διελέγετο — o uso reiterado do imperfeito neste parágrafo revela a
intenção descritiva do escritor. O verbo composto significa “debater,
entrar numa discussão”.
τῶν … φιλοσόφων — o substantivo é modificado pelos dois
adjetivos epicureu e estoico, que são dois grupos distintos mas que aqui
são tomados juntos.
θέλοι — o optativo presente reflete o uso clássico de uma frase
condicional com uma prótase implícita: “se fosse possível, o que está
tratando de dizer este enganador?” 1083
δοκεῖ — aqui a construção pessoal (“parece ser”) é empregada em
lugar da impessoal (“parece”).

b. A solicitude (At 17:19–21)

19, 20. Então o levaram a uma reunião do Areópago, onde lhe


perguntaram: “Podemos saber que novo ensino é esse que você está
anunciando? Você está nos apresentando algumas idéias estranhas, e
queremos saber o que elas significam” [NVI].
Os tradutores tiveram que fazer frente a dois problemas na primeira
parte deste versículo (v. 19). A primeira dificuldade tem que ver com a
tradução de havendo tomado, que pode ser entendida como “o
convidaram a que os acompanhasse”. Outras traduções dizem “o
agarraram”, com a ideia de que Paulo foi detido por estar pregando a
“deidades estranhas” em Atenas. O verbo grego epilambanomai (agarro)
pode ser traduzido em duas formas, e em Atos encontramos este verbo
usado em ambos os sentidos. 1084 O contexto, no entanto, não nos dá

1083
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 151.
1084
At. 9:27; 23:19 onde o tratamento é gentil, e At. 16:19; 18:17; 21:30, 33 onde lhe prende.
Atos (Simon J. Kistemaker) 865
razão para pensar que Paulo foi detido e acusado formalmente por ter
violado alguma lei em Atenas.
Logo, levaram os filósofos a Paulo a uma sessão de uma corte
formal no Areópago? Algumas versões traduzem esta passagem dizendo
que “então eles tomaram e o trouxeram diante da Corte do Areópago”. A
expressão Areópago na verdade significa “colina de Ares”; a colina,
localizada a noroeste da Acrópoles, era onde se reunia o concílio de
governantes de Atenas. Mais adiante, o nome Areópago foi aplicado ao
lugar de reunião e ao próprio concílio. Em tempos posteriores, o concílio
realizou suas reuniões no Pórtico Real, localizado no lado oeste do
mercado. Supomos que os filósofos levaram Paulo não à colina mas ao
Pórtico Real. Aqui, numa sessão informal, Paulo enfrentou os membros
da corte e os eruditos que o levaram ali. 1085
Uma das funções do concílio era “fiscalizar a educação,
particularmente controlando os numerosos conferencistas que visitavam
a cidade”. 1086 Os membros do concílio queriam saber se o ensino de
Paulo constituía uma ameaça para o estado. Se a corte ficasse
convencida que Paulo não era perigoso, ele poderia continuar pregando
sua mensagem.
“Podemos saber que novo ensino é esse que você está anunciando?”
Os filósofos não tinham acusação a fazer contra Paulo, mas diante dos
membros do tribunal lhe fizeram uma pergunta bastante incisiva. Se é
novidade, pouco comum, [uma doutrina] não ouvida antes”. 1087 Paulo
estava sozinho, de pé, diante da presença de mestres brilhantes que
queriam saber se seus pontos de vista superavam os seus. Diante de uma

1085
Consulte-se Colin J. Hemer, “Paul at Athens: A Topographical Note”, NTS 20 (1973–74): 341–50;
R. E. Wycherley, “St. Paul at Athens”, JTS n.s. 19 (1968); 619–21; T. D. Barnes, “An Apostle on
Tria!”, JTS n.s. 20 (1969); 407–19; Ned B. Stonehouse, Paul Before the Areopagus and Other New
Testament Studies (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), pp. 8–9; W. G. Morrice, “Where Did Paul Speak
in Athens-On Mars’ Hill or Before the Court of the Areopagus? Acts 17:19”, ExpT 83 (1972): 377–
78.]
1086
Bauer, p. 105.
1087
Thayer, p. 317; Bauer, p. 394.
Atos (Simon J. Kistemaker) 866
audiência completamente pagã, Paulo devia apresentar a mensagem do
evangelho de Cristo. Já não pôde apelar ao Antigo Testamento como
costumava fazer quando se dirigia a suas audiências na sinagoga. Em
lugar de judeus e gentios piedosos, Paulo agora se confrontava com
gente que nunca tinha ouvido a respeito do Deus de Israel.
“Você está nos apresentando algumas idéias estranhas, e queremos
saber o que elas significam”. Os filósofos não afirmam mais que Paulo
está introduzindo “algumas ideias estranhas”. Não manifestam que tais
noções estranhas sejam um perigo para suas filosofias; pelo contrário,
vários deles expressam interesse misturado com curiosidade de ouvir
mais de Paulo. As novas ideias são para eles um meio para enriquecer
seus conhecimentos (vv. 19, 20, 21). 1088 E este interesse em conhecer
coisas novas dá a Paulo uma abertura para pôr a sua audiência a par
sobre aquelas “estranhas noções”.
21. Pois todos os de Atenas e os estrangeiros residentes de outra coisa
não cuidavam senão dizer ou ouvir as últimas novidades
Com esta afirmação parentética, Lucas descreve a vida de uma
típica cidade universitária daqueles dias. Os acadêmicos se davam o luxo
de dedicar-se para buscar mais conhecimento. Não realizavam trabalho
manual alguma, nem se dedicavam a outra coisa mas sim a debater
conceitos no lugar para assim acrescentar as últimas ideias a seu
amontoado de conhecimentos. Os professores e estudantes gastariam seu
tempo debatendo teorias investigadas por eles mesmos ou aprendidas de
estrangeiros, cuja presença era coisa comum no lugar. Estes estrangeiros
viviam entre os atenienses por períodos longos ou curtos e eram
convidados a contribuir no processo de analisar novas ideias. O convite
de falar diante do Areópago ofereceu a Paulo uma excelente
oportunidade de apresentar as boas novas de Jesus Cristo no ambiente
acadêmico de Atenas.

1088
Veja-se Gustav Stählin, TDNT, vol. 5, p. 7.
Atos (Simon J. Kistemaker) 867
Palavras, frases e construções gregas em At 17:19–21
Versículos 19–20
γνῶναι — note-se que este infinitivo aoristo aparece duas vezes
nestes dois versículos. Sua ênfase está no processo acadêmico de
aprendizagem.
ξενίζοντα — este particípio ativo presente no plural neutro com
τινα (alguns) indica o significado secundário de surpreender, não o
significado primário tratar com atenção um visitante; veja-se ξένοι
(estrangeiros, v. 21).
O Texto ocidental acrescentou umas poucas palavras ao verso 19.
As palavras acrescentadas aparecem em itálico: “E depois de alguns dias
o agarraram e o levaram ao Areópago, perguntando e dizendo …” 1089
Versículo 21
ἕτερον — o uso deste adjetivo contrasta de propósito a vida de um
erudito com a de outro cidadão. Os sábios atenienses não tinham outro
interesse mas sim debater ideias novas. O sentido deste adjetivo é
“diferente”.
καινότερον — a forma comparativa de καινός (veja-se v. 19) refere-
se a “algo mais novo que eles logo estavam ouvindo”. 1090
c. Introdução 1091 (At 17:22–23)

22, 23. Então, Paulo, levantando-se no meio do Areópago, disse:


Senhores atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos;

1089
Metzger, Textual Commentary, p. 456.
1090
Robertson, Grammar, p. 665.
1091
O discurso breve de Paulo está dividida em três partes: introdução (vv. 22b–23), conteúdo (vv.
24–28), e aplicação (vv. 29–31). Para variantes a esta divisão, veja-se Jacques Dupont, “Le discours á
l’Aréopage (Ac 17,22–31) lieu de rencontre entre christianisme et hellénisme”, Bib 60 (1979): 530–
46; Hans Conzelmann, Acts of the Apostles, trad. por James Limburg, A. Thomas Kraabel, y Donald
H. Juel (1963; Filadélfia: Fortress, 1987), p. 141.
Atos (Simon J. Kistemaker) 868
porque, passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei
também um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO.
Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos
anuncio.
Se entendermos a palavra Areópago como uma referência ao
concílio, a frase no meio do calça perfeitamente. Por outro lado, se o
termo Areópago refere-se à colina, fica um pouco difícil de explicar
como Paulo pôde levantar-se no meio da colina. De pé no meio dos
membros do concílio, dos filósofos, estudantes e qualquer outro
espectador interessado, Paulo aproveita a oportunidade para ensinar as
“últimas ideias” a respeito de Cristo Jesus.
“Senhores atenienses!”. Habilmente, Paulo se dirige à sua audiência
com a mesma fórmula que tinha usado o afamado orador Demóstenes.
Desta maneira, ele toca os corações de seus ouvintes. Logo segue com
palavras de elogio por sua ostentosa religiosidade. Paulo busca um ponto
de contato do qual ir dirigindo a sua audiência para o conhecimento dos
valores eternos de Cristo. A presença de numerosos templos, ídolos, e
altares em Atenas dá a ele um excelente ponto de contato, não obstante
que ele mesmo se tenha sentido comovido pela idolatria desta cidade (v.
16). Pelo amor do evangelho, ele está disposto a acomodar seu discurso
ao nível de sua audiência.
Ao ensinar uma doutrina panteísta, os filósofos atenienses
animaram o povo a levantar lugares de adoração a seus numerosos
deuses. Por esse motivo, Paulo lhes diz que eles são “muito religiosos”.
Este termo pode ser entendido quer num sentido depreciativo
(“supersticiosos”) ou como um elogio. No contexto de suas palavras,
Paulo usa o termo afirmativamente, porque está interessado em ganhar a
atenção da multidão ateniense. Para completar seu elogio, acrescenta
ainda as palavras em tudo [“em todos os aspectos”, NVI]. Naturalmente,
entendemos que Paulo não está interessado em endossar a religiosidade
dos atenienses, mas antes, deseja alcançá-los com a doutrina de Cristo. E
Atos (Simon J. Kistemaker) 869
externa este desejo ao referir-se explicitamente à ressurreição de
Jesus 1092 e ao pôr a fé cristã contra os ídolos de Atenas.
“Porque, passando e observando”. Paulo diz que diariamente
percorria a cidade, tomando nota dos objetos de adoração. Tinha
examinado cuidadosamente os magníficos templos, altares, e ídolos.
Entre todos estes objetos de adoração, tinha encontrado um altar com a
inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO.
Elogia os atenienses por sua diligência em construir um altar
dedicado inclusive a uma deidade da qual não têm conhecimento. Em
outras palavras, não queriam ofender inclusive a uma deidade
desconhecida. As palavras gregas agnostos theos podem ser traduzidas
como “deus desconhecido” ou como “deus não conhecido”. É preferível
a primeira forma, porque o propósito de Paulo é ensinar que Deus, que
criou os céus e a terra, pode ser conhecido.
Em seu discurso, Paulo usa a inscrição como ponto de contato com
os atenienses, que neste altar 1093 adoravam um deus desconhecido. Por
seu ato de adoração, a audiência tem que admitir que eles estão abertos a
receber instruções a respeito de um deus desconhecido, e que podem
adorar um novo deus, a menos que o conheçam. João Calvino comenta
que é muito melhor ter conhecimento de Deus que adorá-Lo sem
conhecê-lo, porque Deus não pode ser adorado reverentemente a menos
que primeiro Ele seja conhecido. 1094

1092
H. Armin Moellering, “Deisidaimonia, a Footnote to Acts 17:22”, ConcThMonth 34 (1963): 470.
1093
Não há evidência arqueológica de que tenha sido descoberto este altar. Mas este fato não desmente
que tenha existido um altar com esta inscrição (“a um deus não conhecido”). A inscrição no singular,
e não no plural, pode referir-se a uma antiga forma de altar, porque Paulo usa o tempo mais-que-
perfeito epegegrapto (tinha sido inscrito). Veja-se John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament,
ed. Andrew R. Faussct, 5 vols. (Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 666. A literatura sobre este
assunto em particular é vasta. Para uma lista bastante completa embora não exaustiva, consulte-se F.
F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on the New Testament
(Grand Rapids: Eerdmans, 1988), pp. 333–34 n. 47.
1094
João Calvino Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance y Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 111.
Atos (Simon J. Kistemaker) 870
“O que, pois, adorais sem o conhecer, é o que eu vos anuncio”.
Paulo transfere o conceito desconhecido da deidade aos adoradores. Eles
adoram sem conhecimento, o que em Atenas, baluarte da cultura, é uma
contradição. Eles concedem que este deus desconhecido existe, porém
não o conhecem. E devem reconhecer que sua forma de adoração
apropriada é deficiente devido à sua ignorância. Paulo, contudo, não
compara o deus desconhecido dos atenienses com o verdadeiro Deus.
Note-se que lhes diz “O que, pois, adorais” não “a quem vós
adorais”. 1095 Paulo chama a atenção só à sua falta de conhecimento e
assim aproveita a oportunidade para apresentar a Deus como Criador e
Juiz do universo. Dá-lhes a entender que a ignorância que os atenienses
têm de Deus é censurável e que esta ignorância demanda uma rápida
correção.
Paulo, com absoluta autoridade lhes diz: “O que, pois, adorais sem
o conhecer, é o que eu vos anuncio”. Ele fala em nome de Deus e assim
sua autoridade é representativa e obtida da divindade. Paulo, então, serve
como canal através de quem Deus fala aos atenienses. Se eles rejeitarem
a mensagem de Paulo, com efeito rejeitam o próprio Deus.

Palavras, frases e construções gregas em At 17:22–23


Versículo 22
σταθείς — o particípio passivo aoristo de ἵστημι (eu me levanto)
deve ser interpretado como um ativo intransitivo. Ninguém pôs Paulo
fisicamente no meio do Areópago; Paulo se levantou ali.
δεισιδαιμονεστέρους — este adjetivo no comparativo significa
“mais religioso do que eu esperava” ou “mais religioso que de
comum”. 1096

1095
Alguns tradutores seguem o Texto majoritário e dizem “a quem vocês adoram”.
1096
Robertson, Grammar, p. 665; Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament
(Grand Rapids: Baker, 1983), p. 225.
Atos (Simon J. Kistemaker) 871

Versículo 23
ἐπεγέγραπτο — o uso do passivo mais-que-perfeito é talvez uma
indicação de que a inscrição pertencia a tempos anteriores.
ὃ — “que” (neutro), não ὅν (quem: masculino), expressa a natureza
impessoal da religião pagã.

d. O conteúdo (At 17:24–28)

24, 25. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há, sendo ele o
Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos dos
homens, nem é servido por mãos humanas, como se necessitasse de
alguma coisa, visto ele mesmo dar a todos vida, respiração e todas as
coisas.
A mensagem que Paulo proclama é completamente bíblica. Embora
as pessoas que formam sua audiência são ignorantes com relação às
referências, Paulo ensina que Deus, quem é o criador de céus e terra, dá
vida a todos. E cita as palavras de Isaías: “Assim diz Deus, o SENHOR,
que criou os céus e os estendeu, formou a terra e a tudo quanto produz;
que dá fôlego de vida ao povo que nela está e o espírito aos que andam
nela.” [Is 42:5].
Paulo põe seu ensino a respeito de Deus e Sua revelação no lugar da
filosofia estoica que vê deuses em cada aspecto do mundo mas que não
tem uma doutrina da criação. Ensina o monoteísmo contra o panteísmo
estoico. Apresenta a Deus, quem fez o mundo e tudo o que nele há. A
palavra grega kosmos refere-se ao mundo disposto em estilo ordenado
“como a soma total de tudo o daqui e agora”. 1097 Quando Paulo
acrescenta no fim kosmos à frase e tudo o que nele há, está acentuando a
ordem da criação, que acha sua origem num só Deus pessoal. Diz que

1097
Bauer, p. 445. Veja-se também E. Fudge, “Paul’s Apostolic Self-Consciousness at Athens”, JETS
14 (1971): 193–98.
Atos (Simon J. Kistemaker) 872
este Deus é Senhor do céu e da terra. E dá a entender que como Senhor,
Deus governa e cuida de tudo o que criou, incluindo esta audiência
ateniense.
Casualmente, a referência de Paulo à criação tem seu eco no sermão
que pronunciou em Listra (At 14:15–17; cf. Gn 14:19, 22; Êx 20:11). Ali
ele enfatizou que Deus provê ao povo abundância de comida e enche
seus corações com alegria. Agora, afirma que Deus governa sobre tudo o
que há no céu e na terra. 1098
“[Deus] não habita em santuários feitos por mãos dos homens”. De
novo Paulo proclama os ensinos do Antigo Testamento quando assinala
que Deus não vive em templos feitos por mãos humanas (veja-se At
7:48; 1Rs 8:27). Um simples raciocínio convencerá os atenienses que
Deus, quem criou céus e terra, não pode ser restringido aos limites de um
templo.
“Nem é servido por mãos humanas, como se necessitasse de alguma
coisa”. Deus é imensuravelmente maior que tudo o que a mente humana
poderia imaginar. Portanto, nos salmos Deus diz que porque todas as
coisas deste mundo pertencem a Ele, não tem necessidade de sacrifícios
de animais como touros e cabras (Sl. 50:8–13). Em outras palavras, Deus
não depende dos sacrifícios que o homem possa Lhe oferecer. Com seu
ensino, Paulo encontra um ouvido atento entre os filósofos atenienses.
“Aqui podem ser percebidas aproximações à doutrina epicureia no
sentido de que Deus não necessita nada do ser humano, e à crença dos
estoicos de que Ele é a fonte de toda vida …” 1099
“Visto ele mesmo dar a todos vida, respiração e todas as coisas”.
Deus é um Deus pessoal que não só cria, mas também sustenta todas as
coisas que Ele fez. Este Deus autossuficiente cuida diariamente do
homem e da Sua grande criação até nos mais mínimos detalhes. Deus é a

1098
Consulte-se Stonehouse, Paul Before the Areopagus, p. 26.
1099
F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed.
rev. e aumentada (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 506. Veja-se também Bertil Gärtner, The
Areopagus Speech and Natural Revelation, trad. por C. H. King (Lund: Gleerup, 1955), pp. 144–45.
Atos (Simon J. Kistemaker) 873
1100
fonte de vida, porque Ele dá alento a toda criatura vivente. Note-se o
notável contraste que Paulo faz neste versículo (v. 25). Ele diz que Deus,
quem não “necessita nada”, provê “todas as coisas” para todos. No
grego, a expressão todas as coisas sugere que Deus em Seu cuidado do
homem não exclui absolutamente nada da totalidade da criação. Deus dá
ao homem tudo o que necessita e assim o sustenta pelo Seu poder.
26, 27. De uma pessoa fez toda nação da raça humana para que
habite sobre a face da terra, e determinou para estas nações a ordem dos
tempos e os limites de sua habitação. Eles deviam buscar a Deus se,
porventura, tateando, puderem encontrá-lo, mesmo que ele não está longe
de cada um de nós [trad. Kistemaker]
Notemos os seguintes quatro pontos:
1. A criação. Os atenienses dividiam os habitantes do mundo em
duas categorias: gregos e bárbaros. Todo aquele que tivesse nascido fora
da Grécia era considerado um bárbaro. Paulo desafia esta teoria
enfocando a atenção na origem do homem. Sem mencionar sua fonte,
ensina o relato do Gênesis da criação e afirma que Deus é o criador do
homem (Gn 2:7). Além disso, de um homem, Adão, Deus fez toda nação
sobre esta terra. 1101 Deus se propôs ter todo o globo terrestre habitado
pelas diferentes nações que se originaram deste único homem (Gn 1:28;
9:1; 11:8–9). Isto significa que a raça humana está integralmente
relacionada como habitantes de toda a terra (cf. Ml. 2:10). Devido à sua
origem comum, um judeu não deve desprezar um gentio nem um
filósofo ateniense odiar um judeu. Deus, quem criou a humanidade,
governa e provê para todos. Por tal motivo, o homem deve reconhecer
nEle o seu Criador e o seu Senhor.
2. A providência. Deus governa Sua criação e especialmente o
desenvolvimento das raças e as nações. “[Ele] determinou para estas
1100
O termo grego pasi (seja masculino ou neutro) refere-se ao homem, embora não exclui ao resto da
criação de Deus que tem vida e que respira. Eis aqui uma tradução inclusiva: “O é em si mesmo o
doador universal de vida e alento e tudo o mais” (NEB).
1101
“Os Manuscritos ocidentais e o Texto majoritário dizem de um sangue. A palavra sangre ou foi
acrescentada por algum revisor ou foi (acidentalmente) apagada.
Atos (Simon J. Kistemaker) 874
nações a ordem dos tempos e os limites de sua habitação”. Quer dizer, o
próprio Deus está no pleno controle definindo suas épocas e suas
fronteiras. Os gregos ensinavam que eles tinham tido sua origem na terra
na qual habitavam. O ensino de Paulo, portanto, entra em conflito com as
teorias gregas sobre a origem do homem; mas Paulo substitui aquela
teoria defeituosa com a revelação de Deus sobre a descendência do
homem.
Qual é o significado da frase a ordem dos tempos? Uma opinião é
que Deus determinou de uma vez por todas as estações do ano (veja-se
14:17; e Sl. 74:17). 1102 Outros intérpretes entendem a frase como uma
referência a “épocas históricas”. 1103 Eles baseiam sua explicação no
contexto imediato da criação de Adão e as nações que descendem dele.
Portanto, dizem que Deus fixou a estas nações períodos da história nos
quais elas prosperam. Uma terceira explicação explica a palavra tempos
com referência a indivíduos que formam as nações. No passado, Deus
fixou os tempos exatos para cada pessoa e no presente os cumpre. 1104
Devido ao fato de que o texto fala de nações e não de pessoas
individuais, eu prefiro a segunda alternativa, e interpreto a frase como
“épocas históricas determinadas por Deus”. Em seu Evangelho, Lucas
também usa a palavra tempos para referir-se a épocas; e assim, ele diz
que Jerusalém será destruída quando “os tempos dos gentios se
completem” (Lc 21:24).
A segunda alternativa tem relação com a seguinte cláusula: “[Deus
determinou] os limites de sua habitação”, o que parece ser o eco de uma
linha do Cântico de Moisés: “Quando o Altíssimo distribuía as heranças
às nações, … fixou os limites dos povos” (Dt 32:8). Deus, então,

1102
Haenchen, Acts, p. 523.
1103
Gärtner, Areopagus Speech and Natural Revelation, pp. 147–51; I. Howard Marshall, The Acts of
the Apostles: An Introduction and Commentary, serie Tyndale New Testament Commentary
(Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 288; Gerhard Delling, TDNT, vol. 3, p.
461.
1104
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 149.
Atos (Simon J. Kistemaker) 875
determinou as épocas para e os limites das nações do mundo. Limites
com frequência são demarcações geográficas causadas quer seja por
corpos de água (mares, lagos, rios) ou cordilheiras. 1105 Sabemos que
Deus determina onde residirão as nações do mundo.
3. A busca. Paulo diz que Deus expressou um duplo propósito para
a raça humana: que habitassem na terra e pudessem “buscar a Deus”.
Estes propósitos estão inter-relacionados, porque habitar na terra impõe a
busca de Deus. Ao pô-lo de forma diferente, a segunda frase é uma
explicação da primeira. Deus criou o homem, para que o homem O
adore. Mas como uma pessoa busca a Deus? O Antigo Testamento está
repleto de exemplos de pessoas que buscam a Deus com o propósito de
servi-Lo. O Saltério registra numerosas referências de buscas de Deus, e
os livros proféticos continuamente observam e exortam às pessoas para
buscar a Deus e a obedecê-Lo. 1106
Paulo qualifica seu comentário a respeito das nações que buscam a
Deus e pronuncia um desejo: “se, porventura, tateando, puderem
encontrá-lo”. Ele espera que as pessoas, mesmo quando cegadas pelo
pecado, possam tateando buscar a Deus seu Criador, da mesma maneira
que um cego busca e toca a um ser humano sem vê-lo. O escritor de
Hebreus acentua esta mesma verdade pondo-a no contexto de uma fé
genuína. Diz ele: “De fato, sem fé é impossível agradar a Deus,
porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele
existe e que se torna galardoador dos que o buscam” (Hb 11:6).
4. A presença. Paulo toca um dogma da religião dos estoicos
quando, apelando à sua audiência pagã, diz: “[Deus] não está longe de
cada um de nós”. Assim, move-se do conceito geral das nações a uma
noção específica da pessoa como indivíduo, dizendo que a religião é uma
1105
Martin Dibelius diz que os limites são as cinco zonas do globo (duas regiões polares, duas zonas
temperadas, e a zona tropical) e, desde sua perspectiva de nascença (Alemanha) afirma que as zonas
de temperatura “diferem favoravelmente das zonas tropical e as duas árticas”, Studies in the Acts of
the Apostles (Londres: SCM, 1956), p. 31.
1106
P.ej., Sl. 24:6; 27:8; 83:16; 105:3–4; Is. 9:13; 31:1; 55:6; 65:1; Jr. 29:13–14. Veja-se também
Édouard des Places, “Actes 17, 27”, Bib 48 (1967): 1–6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 876
relação pessoa a pessoa entre Deus e o homem. Cada ser humano é
responsável pessoalmente diante de seu Deus. No entanto, Paulo difere
da filosofia estoica que diz que Deus, de uma forma impessoal, está
presente em todas as partes. Como contraste, o ensino de Paulo é que nós
podemos ter uma relação pessoal com Deus, porque Deus está perto de
Seu povo (veja-se Sl. 139:5–12; 145:18; Jr 23:23).
28. Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos
vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração.
Em sua intenção por estabelecer a relação que busca com seus
ouvintes, Paulo cita literalmente a dois poetas gregos. Ambos os
escritores exaltam as virtudes do deus Zeus. O primeiro é o poeta
cretense Epimênides (600 a.C.). As palavras de seu poema aparecem
num comentário do século IX, escrito em siríaco por Isho’dad de Merw,
quem comenta: “Os cretenses afirmavam a respeito de Zeus que ele era
um senhor; que ele foi rasgado por um porco selvagem e sepultado; e,
prestem atenção bem! sua tumba é conhecida entre nós; portanto Minos,
filho de Zeus, pronunciou um discurso laudatório em nome de seu pai; e
disse nele:
‘Os cretenses cavaram uma tumba para ti, Ó Santo e Altíssimo!
embusteiros, más bestas, e panças folgazãs;
porque tu não morreste para sempre;
vives e ressuscitarás; porque
em ti nós vivemos e nos movemos,
e temos nosso ser’.” 1107
A segunda citação corresponde ao poeta Arato de Solos (315–240
a.C.), oriundo da Cilícia, na Ásia Menor, portanto, compatriota de Paulo.
No século III a.C. Arato escreveu um poema em honra de Zeus numa
composição chamada Phaenomena. As linhas quarta e quinta do poema

1107
Margaret D. Gibson, ed. The Commentaries of Isho’dad of Merw, Horae Semiticae nº. 10
(Cambridge: Cambridge University Press, 1913), p. 28. Veja-se também Kirsopp Lake, “Your Own
Poets”, Beginnings, vol. 5, pp. 246–51.
Atos (Simon J. Kistemaker) 877
dizem: “De toda maneira tudo temos que ver com Zeus, porque na
verdade somos sua descendência”. 1108
A primeira citação apresenta um problema menor que se refere a
sua fonte. Embora Isho’dad de Merw atribua as palavras do poema a
Minos de Creta, Clemente de Alexandria atribui as linhas “os cretenses
são sempre mentirosos, más bestas, e panças folgazãs” (veja-se Tt 1:12)
a Epimênides. 1109
Ao citar estes poetas, Paulo não está insinuando que está de acordo
com o contexto pagão no qual surgiram essas citações. Em lugar disso,
está usando aquelas frases como complemento de seu ensino cristão. Ele
pode obter do Antigo Testamento a evidência de que o homem deriva
sua vida, atividade e existência de Deus (Jó 12:10; Dn 5:23). Usa a
expressão nele como um termo favorito para o crente que está em Cristo,
mas em muitas ocasiões os nomes Cristo e Deus são idênticos (p. ex.,
“sua vida está escondida com Cristo em Deus” [Cl 3:3]). E João afirma
que Deus dá ao crente vida através de Seu Filho (1Jo 5:11). De acordo
com isso, E. Margaret Clarkson oferece-nos uma voz poética sobre estes
pensamentos em seu hino:

Viemos, ó Cristo, a ti,


Verdadeiro Filho de Deus e homem,
Por quem todas as coisas subsistem,
E em quem toda vida começou:
Em Ti somente nos movemos e somos,
E temos nosso ser em Teu amor. (Trad. livre)

Copyright 1957. Renewal 1985 por Hope Publishing Co., Carol


Stream, Il. Todos os direitos reservados. Usado com permissão.

1108
As palavras também aparecem num Hymn to Zeus escrito pelo Cleantes (331–233 a.C.). Clemente
de Alexandria refere-se a ele em Stromata 1.19.91.4–5.
1109
Clemente de Alexandria Stromata 1.14.59.
Atos (Simon J. Kistemaker) 878
Palavras, frases e construções gregas em At 17:25–28
Versículo 25
προσδεόμενος — o gerúndio indica condição: “como se ele
necessitasse algo”. O uso do presente também o encontramos em διδούς
(ele dá) para indicar ação continuada.
ζωὴν καὶ πνοήν — “vida e alento”. O português é incapaz de
reproduzir a assonância do grego. O alemão Leben und Atem e o
holandês leven en adem aproximam-se muito mais do ritmo e da
semelhança no som.
τὰ πάντα — a adição do artigo definido indica que nada é excluído
da totalidade de πάντα (todas as coisas).

Versículo 27
εἰ ἄρα — esta partícula introduz uma condição, “se, porventura”,
seguida por dois optativos no tempo aoristo (ψηλαφήσειαν, eles podem
tatear, e εὕροιεν, podem encontrá-lo [a ele]).
ὑπάρχοντα — o gerúndio é concessivo: “embora ele é”. Isto é
negado por οὑ em lugar de μή para ênfase.

Versículo 28
καθʼὑμᾶς — a preposição κατά aparece em lugar do pronome
pessoal ὑμῶν no caso genitivo. Esta construção é uma perífrase para o
pronome genitivo.1110
τοῦ — o artigo definido ocupa o lugar do pronome demonstrativo
τούτου (deste um).

1110
Bauer, p. 408.
Atos (Simon J. Kistemaker) 879
e. A aplicação (At 17:29–31)

29. Assim, visto que somos descendência de Deus, não devemos


pensar que a Divindade é semelhante a uma escultura de ouro, prata ou
pedra, feita pela arte e imaginação do homem [NVI].
Com o advérbio assim, Paulo está indicando que ele está preparado
para tirar a conclusão e aplicar sua mensagem à audiência. Com base nas
duas citações dos poetas gregos, ele pode afirmar livremente: “Somos
descendência de Deus”. E porque isto é assim, Paulo insiste, devemos
olhar a Deus de uma perspectiva divina, não humana. Quer dizer, não
deveríamos imaginar a Deus com forma de homem e assim adorá-Lo
fazendo dEle imagens de ouro, prata, ou pedra. Deus é espírito (Jo 4:24)
e não pode ser representado na forma de um ídolo feito pelo homem.
Deus é o Criador do homem; portanto, é imensamente maior que o
homem, Sua criatura. Deus não pode ser comparado com os artigos
preciosos que Ele mesmo fez: ouro, prata, pedra. Num sentido, o homem
se eleva entre Deus e a matéria. Quando o homem, confiante em suas
habilidades e pensamentos, tenta construir uma imagem de metal ou
pedra e adorá-la, ele mesmo está chegando a ser odioso diante de Deus.
O homem transgride os mandamentos divinos quando faz para si
imagens e as adora (refira-se ao Êx 20:4–6; Dt 5:8–10). Por implicação,
Paulo ensina à sua audiência gentílica o mandamento terminante de Deus
de não adorar ídolos. 1111 Com muita habilidade apresenta o argumento
de tal maneira que os filósofos são incapazes de opor-se ao seu ensino.
Com todo cuidado, Paulo escolhe as palavras quando diz que “a
divindade” não é feita como uma imagem de ouro, prata, ou pedra. O
termo divindade está no neutro e corresponde ao uso do pronome
relativo que na cláusula que … vós adorais (v. 23). Cuida-se de falar de
um ídolo com o nome de “Deus”, mas o classifica com objetos

1111
Compare Dt. 4:23, 28; Is. 40:18–20; 44:9–20; Rm. 1:23; Sb 13:10.
Atos (Simon J. Kistemaker) 880
impessoais. Assim, claramente está distinguindo entre o Deus que vive e
os ídolos inanimados.
30, 31. Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância;
agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se
arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo
com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de
todos, ressuscitando-o dentre os mortos.
1. Superado. Se os gentios decidem defender-se com a afirmação
que eles agiram em ignorância dos mandamentos de Deus, Paulo lhes diz
que Deus superou seus atos de ignorância pecaminosa (veja-se At 3:17;
13:27). Quer dizer, Deus nem julgou o povo nem o castigou por seus
pecados; mas em lugar disso buscou outro caminho, por assim dizer. Em
outros dois casos, Paulo assinala este mesmo ponto.
Primeiro, em seu discurso ao povo de Listra, Paulo afirma que no
passado Deus permitiu às nações gentílicas viver sua própria forma de
vida (At 14:16). Isto não significa que Deus justifique as nações, porque
Ele segue considerando-os responsáveis por suas ações (Rm 1:19–20).
Mas quando estes gentios ouvem a proclamação do evangelho, o tempo
de sua ignorância chegou a seu fim. 1112 Se eles ouvirem as Boas Novas e
não se arrependerem, perdem a oferta de Deus para a salvação e
consequentemente sofrem castigo eterno.
Segundo, em Romanos 3:25 Paulo escreve que Deus tolerou os
pecados das pessoas cometidos em tempos passados e assim os perdoou.
Mas agora que Cristo derramou Seu sangue pelos pecados de Seu povo,
Deus está preparado para perdoar os pecados do passado da assim como
esquece os pecados de todos aqueles que arrependidos vêm a Ele
agora. 1113
Paulo diz aos filósofos atenienses que Deus no presente manda “a
todos os homens em todas as partes que se arrependam”. Este é o
mandamento divino que ninguém pode correr o risco de passar por alto.

1112
Gärtner, Areopagus Speech and Natural Revelation, p. 233.
1113
Veja-se Guillermo Hendriksen, C.N.T. Romanos, (Grand Rapids: SLC, 1990), p. 154.
Atos (Simon J. Kistemaker) 881
Porque Cristo derramou Seu sangue na cruz para remissão dos pecados,
a todas as pessoas de todas as nações, tribos, raças e línguas dizendo que
se arrependam, creiam, e deixem de viver em ignorância e pecado logo
que ouçam a proclamação da mensagem do evangelho (cf., p. ex., Lc
24:27).
2. Julgar. Paulo toca agora o coração do assunto: “Porquanto
[Deus] estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por
meio de um varão que destinou”. Não menciona o nome de Jesus Cristo,
mas continua falando dos atos de Deus. Diz que Deus designou um certo
dia como dia de juízo. Esta referência de Paulo ao juízo divino é uma
advertência às pessoas para que se arrependam, e assim possam evitar o
dia da condenação, morte e destruição. A mensagem de juízo divino faz
com que as pessoas confessem seus pecados e creiam em Cristo (At
10:42) ou endureçam seus corações e se afastem de Deus (At 24:25–26).
No dia do juízo Deus julgará o mundo em justiça (Sl. 9:8; 96:13;
98:9). Paulo ensina que Deus é tanto o Criador do homem como seu Juiz
final. Embora indiretamente está referindo-se a Jesus Cristo como “um
varão que [Deus] destinou”, dá a entender que este homem é o segundo
Adão. Por um homem (o primeiro Adão) Deus fez a toda a raça humana
(v. 26), e na presença de outro homem (o segundo Adão), toda a
humanidade será julgada (v. 31). 1114 O próprio Jesus ensina que Deus
deu ao Filho do Homem, a autoridade para julgar o mundo (Jo 5:22, 27).
Mas os atenienses poderiam perguntar se este homem, cujo nome
ainda não se dá, possui autoridade divina para julgar ao mundo. O que
provas pode exibir este homem para respaldar a afirmação de que tem o
poder de julgar? Paulo declara enfaticamente que o próprio Deus provê a
prova, porque ele levantou este homem da morte.
Sem dúvida, os gregos tinham dificuldade para entender como a
ressurreição de um homem poderia ser uma prova de que Deus O
designou para julgar o mundo. Eles ensinavam a imortalidade da alma e

1114
Édouard des Places, “Actes 17, 30–31”, Bib 52 (1971): 531–32.
Atos (Simon J. Kistemaker) 882
a destruição do corpo, porém não tinham nada como a doutrina da
ressurreição.
Segundo o estilo apostólico, onde quer que Paulo prega as Boas
Novas, ensina a ressurreição de Jesus Cristo. Para os apóstolos, esta
doutrina é básica para a fé cristã e deveria ser proclamada tanto a judeus
como a gentios. 1115 Portanto, Paulo introduz esta doutrina fundamental
sem desculpa alguma e demonstra que esta é a prova de Deus para
designar um homem, Cristo Jesus, como supremo Juiz (cf. 1Ts 1:9–10).
O discurso de Paulo chega a um abrupto final quando sua audiência
recusa aceitar a doutrina da ressurreição. Depois de uma longa
introdução para estabelecer um ponto de contato com sua audiência,
Paulo começou a desenvolver a parte principal de sua mensagem: as
boas novas de salvação. Quando menciona a doutrina da ressurreição,
sua audiência deixa de mostrar interesse, 1116 mesmo que este seja o tema
que Paulo tinha começado a ensinar no mercado antes de ser convidado a
falar diante do Concílio do Areópago (v. 18). O discurso de Paulo não
menciona nem a morte de Cristo na cruz nem Sua volta; não obstante, o
discurso toca os quatro elementos básicos do evangelho: pecado,
arrependimento, juízo e ressurreição.

Nota adicional ao discurso no Areópago


Estritamente falando, o discurso de Paulo em Atenas não é uma
defesa da fé cristã. É, pelo contrário, tanto um desafio à religião pagã
como uma proclamação do evangelho. Quando Paulo se dirigiu ao
Concílio do Areópago, enfrentou uma audiência que diferia daquelas nos
cultos de adoração nas sinagogas. De pé diante dos filósofos atenienses,
não podia assumir que estes tinham algum conhecimento das Escrituras

1115
At. 2:24, 32; 3:15, 26; 4:2, 10, 33; 5:30; 10:40; 13:34, 37; 17:31; 25:19.
1116
Leland Ryken afirma que a construção do discurso de Paulo revela que ele buscou pronunciar um
discurso breve clássico que foi interrompida. Words of Life: A Literary lntroduction to the New
Testament (Grand Rapids: Baker, 1987), p. 128. Stonehouse, no entanto, crê que o discurso está
completo. Paul Before the Areopagus, pp. 36–40.
Atos (Simon J. Kistemaker) 883
ou de Jesus, quem deu cumprimento às profecias. Paulo então teve que
começar seu breve discurso ensinando aos seus ouvintes as doutrinas de
Deus e da criação. Continuou com a doutrina do homem, porque o
homem é descendência de Deus. E concluiu com a doutrina do juízo e da
ressurreição.
Nós declaramos a historicidade da visita de Paulo ao Concílio do
Areópago. 1117 Nessa reunião, Paulo o apóstolo aos gentios introduz sua
audiência pagã às verdades da fé cristã. Diz que Deus criou o homem,
que fixou um dia para juízo, que esqueceu os pecados do homem no
passado. A semelhança entre este discurso e os escritos de Paulo dá peso
à autenticidade desta passagem. Por exemplo, em sua carta aos
Romanos, Paulo menciona que Deus Se deu a conhecer na criação, que
Deus julga os segredos dos homens através de Jesus Cristo, e que Deus
mostrou Sua paciência deixando sem castigo os pecados passados (Rm
1:19–21; 2:16; 3:21–26).
Mesmo quando Paulo alude a uma inscrição (“ao Deus
desconhecido”) num altar, e cita algumas linhas de fontes pagãs, em
nenhum momento está sugerindo que o evangelho ocupa “um terreno
comum com a religião pagã e a filosofia”. 1118 Paulo usa estes recursos
pagãos como pontos de contato com sua audiência, porém não acomoda
nem compromete a mensagem do evangelho. Neste sentido, ele é fiel a
seu Deus, quem dá ao homem a lei de não ter deus algum diante dEle.
Seja que Paulo diante de uma audiência judia ou de uma assembleia
pagã, ensina fielmente a inalterável verdade da revelação de Deus.
Em seus relatos sobre as três viagens missionárias de Paulo, Lucas
inclui um discurso pronunciado em cada um das viagens. No caso da
primeira, dá-nos o sermão que Paulo pregou em Antioquia da Pisídia. Na

1117
F. F. Bruce, “Paul and the Athenians”, ExpT 88 (1976): 11. Hans Conzelmann chama o discurso
de Paulo “não um extrato de uma mensagem missionária, mas uma criação puramente literária”. Veja-
se “The Address of Paul on the Areopagus”. em Studies in Luke–Acts: Essays Presented in Honor of
Paul Schubert, ed. Leander E. Keck e J. Louis Martyn (Nashville: Abingdon, 1966), p. 218.
1118
Thomas L. Wilkinson, “Acts 17: The Gospel Related to Paganism”, VoxRef 35 (1980): 12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 884
segunda, oferece-nos o do Areópago, e na terceira, o discurso de
despedida dos anciãos de Éfeso, na praia de Mileto. 1119
Lucas apresenta Atenas como o centro cultural e intelectual do
mundo onde a mensagem do evangelho encontra-se com a sabedoria dos
gregos. O resultado deste encontro é que um proeminente membro do
concílio, uma distinguida dama, e vários outros chegam a ser cristãos. O
efeito limitado, contudo, deveria ser atribuído não à mensagem de Paulo
mas à indisposição dos atenienses de ouvir e aceitar o evangelho. A falta
de resposta é insignificante se for comparada com a forma em que o
evangelho seguia estendendo-se.
Num sentido, o encontro de Paulo com os sofisticados atenienses
nos meados do século I é representativo da missão da igreja ao mundo
secular do presente. Devemos considerar um fracasso a missão de Paulo
a Atenas? Certamente que não, porque a igreja tem uma responsabilidade
de proclamar o evangelho em todas as áreas da vida e chamar as pessoas
a arrepender-se e pôr sua fé em Jesus Cristo.

Palavras, frases e construções gregas em At 17:29–31


Versículos 29–30
τὸ θεῖον — literalmente “o divino [ser]”. O adjetivo é neutro e
corresponde ao pronome relativo ὅ no versículo 23.
ὑπεριδών — este particípio ativo aoristo de ὑπεροράω (eu esqueço)
comunica uma noção negativa. 1120

1119
Veja-se Jacques Dupont, Nouvelles Études sur les Actes des Apôtres, Lectio Divina 118 (París:
Cerf, 1984), p. 384.
1120
Robertson, Grammar, p. 629.
Atos (Simon J. Kistemaker) 885
Versículo 31
ἐν ἀνδρί — o substantivo é tanto um dativo de esfera (“na pessoa de
um homem”) como um dativo instrumental (“por um homem”). É
preferível a segunda tradução. 1121

f. A reação (At 17:32–34)

32-34. Quando ouviram falar de ressurreição de mortos, uns


escarneceram, e outros disseram: A respeito disso te ouviremos noutra
ocasião. A essa altura, Paulo se retirou do meio deles. Houve, porém,
alguns homens que se agregaram a ele e creram; entre eles estava
Dionísio, o areopagita, uma mulher chamada Dâmaris e, com eles, outros
mais.
Os filósofos atenienses, entre os quais está Platão, tinham
desenvolvido uma doutrina da imortalidade da alma. Eles raciocinaram
que a alma emigra a outro lugar mas que a morte termina com a
existência física do homem. Na audiência de Paulo, os filósofos rejeitam
Seu ensino de uma ressurreição física, porque “a ideia de uma
ressurreição geral no final dos tempos é estranha aos gregos”. 1122 Como
resultado, alguns dos ouvintes começam a zombar, e com isso estão
dizendo que a mensagem é inaceitável para eles. Para eles, a doutrina da
ressurreição é algo sem sentido. Outros mostram interesse no tema e
dizem a Paulo que gostariam de ouvi-lo outra vez. Lucas não dá
evidência de que sobre esta matéria tenha havido uma divisão entre os
membros das duas filosofias ali presentes (os epicureus e os estoicos).
Portanto, não se pode dizer quem entre os ouvintes de Paulo manifestou
interesse em ouvir mais sobre o tema.
Quando Paulo sai do Concílio do Areópago, percebe que sua
mensagem foi rejeitada. Unindo os que o ridicularizaram com os

1121
Moule, Idiom-Book, p. 77.
1122
Albrecht Oepke, TDNT, vol. 1, p. 369. Veja-se também Colin Brown, NIDNTT, vol. 3, p. 261.
Atos (Simon J. Kistemaker) 886
amáveis indiferentes, parece entender que sua permanência em Atenas
deve ser muito breve. Não pôde penetrar o mundo intelectual dos
filósofos atenienses com o evangelho de Cristo. Retira-se do lugar por
iniciativa própria.
Mas o trabalho de Paulo não é em vão, porque Lucas informa que
alguns chegaram a crer e a transformar-se em seguidores de Cristo. É
possível que estes tenham sido os que lhe manifestaram seu interesse de
voltar a ouvi-lo mais com relação à doutrina da ressurreição. Lucas
menciona duas pessoas, um homem e uma mulher. O primeiro é
Dionísio, um areopagita e, obviamente um membro do concílio
governante. A outra é Dâmaris, de quem nada mais se diz. Alguns
eruditos sugerem que ela era conhecida com o nome de Damalis (que
significa “vitela”), que era uma estrangeira, que pertencia à classe
educada, e que teve permissão de participar das reuniões públicas do
concílio. 1123
Além de Dionísio e Dâmaris, outros que representavam diferentes
antecedentes chegaram a ser cristãos. Supomos que Paulo permaneceu
por algum tempo em Atenas para instruir no evangelho a estes crentes
(cf. 1Ts 3:1–2). Mas nem o Novo Testamento nem os pais da igreja
primitiva se referem à fundação de uma igreja em Atenas. Não obstante,
Eusébio, o historiador eclesiástico do século IV, escreve:
“Dionísio, um dos antigos, pastor da diocese dos coríntios
[aproximadamente no ano 170 d.C.], relata que o primeiro bispo da
igreja em Atenas era um membro do Areópago, o outro Dionísio, cuja
conversão original depois do discurso de Paulo aos atenienses no
Areópago relata Lucas em Atos”. 1124

1123
Ramsay, St. Paul the Traveller, p. 252. O Códice Beza diz: “entre aqueles que também havia um
certo Dionísio, um areopagita de alta posição, e outros com eles”. A omissão do nome Damaris se
explica ou como uma atitude antifeminista ou como a omissão acidental de uma linha no manuscrito.
Metzger, Textual Commentary, p. 459.
1124
Eusébio História eclesiástica 3.4.10; 4.23.3 (LCL)
Atos (Simon J. Kistemaker) 887
Por último, quando Paulo escreve que os membros da família do
Estéfanas em Corinto foram os primeiros convertidos na província de
Acaia (1Co 16:15), sem dúvida ele tinha em mente não Atenas, mas sim
toda a província do Peloponeso e Corinto como sua capital provincial.

Resumo de Atos 17
Paulo chega a Tessalônica e prega a Cristo na sinagoga local
durante três sábados seguidos. Abre as Escrituras e explica que Cristo
devia sofrer e ressuscitar da morte. Como resultado, creem alguns dos
judeus e gregos piedosos.
Judeus zelosos em Tessalônica juntam uma multidão e realizam
uma revolta para opor-se a Paulo e Silas. Vão buscá-los na casa de
Jasom, porém não os acham. Arrastam então a Jasom e a outros crentes
diante dos magistrados, mas Paulo e Silas escapam, viajando a Bereia.
Ali os missionários pregam na sinagoga. Os bereanos estudam as
Escrituras para assegurar-se da confiabilidade da pregação de Paulo.
Muitos judeus e gregos proeminentes creem. Os judeus de Tessalônica
vão a Bereia em perseguição de Paulo, quem com seus companheiros
viaja até Atenas.
Paulo fica estupefato ao observar o grau de idolatria de Atenas. Na
sinagoga prega aos judeus e aos gregos piedosos, e no mercado ensina ao
público em geral. Os filósofos epicureus e os estoicos o ridicularizam,
mas o levam a uma reunião do Areópago, o concílio governante. Nesta
reunião, Paulo ensina a doutrina da criação e cita poetas gregos para
provar o ponto de que Deus criou o homem. Chama seus ouvintes a
arrepender-se, porque, conforme lhes diz, Deus escolheu um homem
para julgar o mundo em um dia que o próprio Deus fixou. Como prova,
menciona a ressurreição do homem que Deus escolheu para ser o juiz.
Alguns na audiência riem de Paulo; outros lhe dizem que gostariam
de voltar a ouvi-lo; e um terceiro grupo crê em Cristo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 888
ATOS 18
A SEGUNDA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 4 (At 18:1–22)
e
A TERCEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 1 (At 18:23–28)

2. Corinto (At 18:1–17)

Nos dias de Paulo, Corinto, não Atenas, era a capital de Acaia


(Grécia). Como era seu costume, Paulo ia principalmente às principais
cidades e às capitais. De Atenas, ele viajou 75 quilômetros a oeste
sudoeste e num dia ou dois chegou a Corinto. Ali encontrou alojamento
com um casamento que eram fabricantes de tendas.

a. O fabricante de tendas (At 18:1–3)

1-3. Depois disso Paulo saiu de Atenas e foi para Corinto. Ali,
encontrou um judeu chamado Áquila, natural do Ponto, que havia
chegado recentemente da Itália com Priscila, sua mulher, pois Cláudio
havia ordenado que todos os judeus saíssem de Roma. Paulo foi vê-los e,
uma vez que tinham a mesma profissão, ficou morando e trabalhando
com eles, pois eram fabricantes de tendas [NVI].
Inicialmente, Paulo recebeu um urgente chamado para ajudar os
macedônios (At 16:9), mas foi para Atenas, fugindo da perseguição.
Quando percebeu que seu trabalho em Atenas estava sendo dificultado,
pôs seus olhos em Corinto, cidade com uma população estimada em
duzentas mil pessoas. Situada no istmo que divide o Peloponeso do
continente, Corinto veio a ser um próspero centro comercial, com uma
baía em cada extremo do istmo. A mercadoria era transportada de um
porto a outro ao longo de um corredor empedrado e construído
especialmente para isso. A uns três quilômetros e meio ao norte de
Atos (Simon J. Kistemaker) 889
Corinto estava o porto de Lecaion, que acomodava barcos para e da
Itália, Espanha, e Norte da África. O porto de Cencreia estava localizado
a uns onze quilômetros a leste de Corinto e facilitava o tráfico marítimo
para e do Egito, Fenícia, e Ásia Menor. Da perspectiva de Paulo, Corinto
era um centro missionário ideal do qual o evangelho poderia espalhar-se
através dos marinheiros de leste a oeste.
Corinto tinha tido uma idade de ouro no sétimo século antes de
Cristo. A rivalidade entre Atenas e Corinto contribuiu para um declínio,
que foi precipitado pela Guerra do Peloponeso (431–404 a.C.). Quase
três séculos mais tarde, os romanos conquistaram Corinto. Quando em
146 a.C. produziu-se uma revolta contra Roma, o general Lúcio Múmio
matou todos os habitantes varões da cidade, e vendeu as mulheres e as
crianças como escravos.
Em 46 a.C. Júlio César deu a Corinto o nome de Colonia Laus Julia
Corinthiensis (a colônia coríntia é um louvor a Júlio), fazendo com que
muitos romanos libertos estabelecessem sua residência ali, e fazendo do
latim seu idioma oficial (o grego era a língua comum). Seu sucessor,
Augusto, fez de Corinto a capital da província de Acaia (27 a.C.). Os
interesses comerciais de Corinto de novo floresceram e atraíram a muitos
judeus, os quais construíram uma sinagoga nesta cidade.
Os residentes de Corinto adoravam Afrodite, a deusa do amor, e sob
a aparência de religião soltavam-se numa desenfreada imoralidade.
Corinto tinha muitas prostitutas de templo, que estavam ao serviço das
autoridades religiosas da cidade. Por todo mundo do Mediterrâneo, a
expressão corintizar (viver imoralmente) chegou a ser conhecidíssima.
No plano de Deus, Corinto foi o lugar onde Paulo devia pregar o
evangelho e estabelecer uma igreja.
Quando Paulo chegou a Corinto, supõe-se que tenha procurado
entrar em contato com as autoridades da sinagoga local, encontrando
alojamento com um judeu chamado Áquila e sua esposa, Priscila. 1125 O

1125
Veja-se o v. 26; Rm. 16:3–5; 1Co. 16:19; 2Tm. 4:19.
Atos (Simon J. Kistemaker) 890
nome Áquila é a forma latina de “águia”, e Priscila é o diminutivo de
Prisca, que em latim significa “antigo” ou “ancião”. Áquila era natural
da província do Ponto na Ásia Menor, mas tinha ido viver a Roma. Ele e
sua esposa eram fabricantes de tendas, que fabricavam de pele, pano, ou
tecido feita com lã de cabras. Estas tendas, pequenas em tamanho, eram
muito usadas pelos viajantes. 1126 É possível que Paulo mesmo, em suas
viagens, tenha usado este tipo de tendas; de fato, ele sabia como fazê-las.
Paulo, Áquila e Priscila tinham algo mais em comum que ser judeus
e ser fabricantes de tendas. Os três eram cristãos. Áquila e Priscila
tinham chegado fazia pouco a Corinto procedentes de Roma, devido ao
fato de que o imperador Cláudio tinha expulso os judeus que viviam na
cidade imperial em 49 d.C. O historiador romano Suetônio diz que
Cláudio “expulsou os judeus devido ao fato de que estavam
continuamente provocando desordens, instigados por um tal Cresto”. 1127
Suspeitamos que Cláudio confundiu aquele nome com Cristo, o que para
ele carecia de significado. Também pensou que Cristo estava
pessoalmente em Roma para instigar as revoltas. Como resultado dos
reiterados conflitos entre judeus e cristãos, ambos os grupos tiveram que
sair da cidade imperial. Algum tempo depois, contudo, os judeus e os
cristãos voltaram, como se faz evidente pelas viagens de Áquila e
Priscila (Rm 16:3–5).
A referência de Lucas ao decreto imperial parece indicar que Áquila
e Priscila eram cristãos quando saíram de Roma. Esta hipótese vê-se
fortalecida pelo fato de que em seus escritos, Paulo não os considera seus
primeiros conversos em Acaia (1 Cor. 16:15). Além disso, quando Paulo
buscou alojamento em Corinto depois de ter chegado de Atenas, ele teria
preferido permanecer em casa de cristãos. Por estas razões, conjeturamos
que Paulo, Áquila e Priscila formaram o núcleo da igreja coríntia.

1126
Thayer, p. 578; Bauer, p. 755.
1127
“Judaeos impulsore Chresto assidue tumultuantes Roma expulit”. Suetonio Claudio 25.4. Veja-se
também Dio Cassio History 60.6.6; Robert O. Hoerber, “The Decree of Claudius in Acts 18:2”,
ConcThMonth 31 (1960); 690–94.
Atos (Simon J. Kistemaker) 891
Os pais judeus ensinavam a seus filhos as profissões da família, o
que se transmitia por gerações. Zebedeu ensinou a seus filhos Tiago e
João os segredos da pesca. Jesus aprendeu carpintaria na oficina de seu
pai José em Nazaré. E Paulo foi adestrado por seu pai na arte de fabricar
tendas, e provavelmente o de trabalhar o couro. As ferramentas que se
requeriam para esta atividade eram relativamente poucas e podiam ser
levadas por Paulo de um lugar a outro onde fora. 1128 Muitos rabinos se
sustentavam realizando trabalhos manuais que tinham aprendido desde
jovens. Paulo escreve aos coríntios que ele trabalhava com suas próprias
mãos (1Co 4:12; veja-se também 9:6) e aos tessalonicenses que ele
trabalhou de dia e de noite para sustentar-se em suas necessidades (1Ts
2:9; veja-se também At 20:34–35).

Considerações práticas em At 18:3


Deveria um pastor ter um ministério de “fabricar tendas” e não
depender para seu sustento da comunidade cristã? Não necessariamente,
porque o Senhor estabeleceu que “aqueles que proclamam o evangelho
que vivam do evangelho” (1Co 9:14; cf. Mt 10:10; Lc 10:7; 1Tm. 5:18).
Não obstante Paulo escreve que para evitar qualquer impedimento na
proclamação do evangelho, ele não vai aproveitar-se do direito de
receber sustento material (1Co 9:12b). Paulo fala de sua própria situação
sem abrigar a intenção de fazer disso um decreto apostólico. Os
apóstolos em Jerusalém se dedicaram por inteiro à oração e ao ministério
da Palavra (At 6:2, 4). Num sentido, deram o exemplo do que deve ser
um ministério de tempo completo, livre de pressões materiais.
Em algumas situações, contudo, um ministro ou missionário pode
praticar alguma profissão ou atividade lucrativa e por esse meio entrar
num mundo que de outra forma permaneceria fechado ao evangelho. A
prática, então, de alguma atividade comercial ou profissional pode

1128
Veja-se Ronald F. Hock, The Social Context of Paul’s Ministry: Tentmaking and Apostleship
(Filadélfia: Fortress, 1980), p. 25. Veja-se Lake e Cadbury. Beginnings, vol. 4, p. 223.
Atos (Simon J. Kistemaker) 892
chegar a ser um veículo para o ensino da Palavra de Deus aos que não
ouviram a mensagem de salvação.

Palavras, frases e construções gregas em At 18:2–3


τῷ γένει — o substantivo dativo expressa maneira (veja-se At 4:36):
“por nacionalidade” ou “oriundo de”. 1129
ἠργάζετο — de ἐργάζομαι (eu trabalho) o tempo imperfeito assinala
que por algum tempo Paulo trabalhou em sua profissão.
O Texto ocidental embeleza estes versículos (os agregados
aparecem em itálico):
[Áquila e Priscila] tinham saído de Roma porque Cláudio César
tinha ordenado a todos os judeus que abandonassem Roma; e se
estabeleceram na Grécia. E Paulo chegou a ser conhecido de Áquila
porque ele era da mesma tribo e da mesma profissão, e permaneceu e
trabalhou com eles, porque eles se dedicavam a fabricar tendas. 1130

b. O pregador (At 18:4–8)

4, 5. Todos os sábados discutia ele na sinagoga e persuadia a judeus e


a gregos. Quando Silas e Timóteo desceram da Macedônia, Paulo estava
ativamente ocupado com a palavra, testificando aos judeus que Jesus era
o Cristo.
Fiel à sua prática, Paulo adorava na sinagoga local no sábado (cf. At
13:14; 14:1). Convidado a pregar, Paulo procurava persuadir tanto os
judeus como os gentios piedosos a ouvir o evangelho e aceitar a Jesus
como seu Messias, quem foi o cumprimento das profecias das Escrituras.
Cada sábado, semana após semana, Paulo aproveitava cada oportunidade

1129
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 530.
1130
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), pp. 460–61.
Atos (Simon J. Kistemaker) 893
para confrontar as pessoas com as Boas Novas e procurar ganhá-los para
Cristo.
Em 1898, os arqueólogos descobriram na Via Lecaion em Corinto
uma pedra com as letras gregas gōgē ebr. Os eruditos têm feito a
inscrição inteligível lhe acrescentando umas poucas letras para formar as
palavras synagōgē hebraiōn (sinagoga dos hebreus). A inscrição data do
primeiro século antes de Cristo aos dois primeiros séculos depois de
Cristo e estava no batente sobre a porta de entrada da sinagoga onde
Paulo pregou.
Os judeus tinham alcançado a comunidade ao convidar os gregos a
reunir-se com eles na sinagoga, que era chamada a casa da
aprendizagem. Aqui os rabinos ensinariam aos gentios a respeito do
Deus de Israel. E, como resultado disso, muitos gregos creram e
chegaram a ser piedosos.
No princípio, Paulo trabalhava em sua profissão durante a semana e
ensinava na sinagoga aos sábados. Mas quando Silas e Timóteo
chegaram da Macedônia (Filipos, Tessalônica, e Bereia), Paulo se
dedicou por inteiro a pregar o evangelho da salvação. Seus dois
companheiros lhe trouxeram uma oferta em dinheiro procedente das
igrejas na Macedônia (2Co 11:9; Fp 4:14–15), o que permitiu que a
necessidade de trabalhar em sua profissão diminuísse. Paulo soube por
seus companheiros que os crentes em Tessalônica estavam bem (1Ts
3:6).
Quando Paulo estava em Atenas, Timóteo tinha vindo a ele em
resposta às instruções de Paulo (At 17:15). Mas Paulo o tinha enviado de
volta a Tessalônica (1Ts 3:1–5). Talvez Silas tinha voltado à igreja em
Filipos enquanto Timóteo retornava a Tessalônica. Quando Timóteo e
Silas chegaram a Corinto, informaram do bem-estar espiritual que
desfrutavam os irmãos de Tessalônica (1Ts 3:6). Isto impulsionou Paulo
a enviar sua primeira epístola, e, seis meses mais tarde, sua segunda carta
aos tessalonicenses. O tom destas cartas é de alegria e gratidão, e Paulo
fala de seu desejo de ver estes crentes. Entre as cartas que Paulo
Atos (Simon J. Kistemaker) 894
escreveu durante o período que Lucas cobre em Atos há dez cartas
canônicas, embora surpreendentemente Lucas nunca menciona a
correspondência de Paulo. 1131
Lucas escreve que Paulo, pregando e ensinando em tempo
completo, testificava aos judeus que Jesus era o Messias. O verbo
testificar aplica-se ao testemunho apostólico 1132 e significa que Paulo,
como um apóstolo, contou aos judeus em Corinto sobre seu encontro
com o Senhor ressuscitado, perto de Damasco. Paulo disse isto apenas
aos judeus, e não aos gregos piedosos, porque os judeus sabiam das
profecias messiânicas das Escrituras.
6. Opondo-se eles e lançando maldições, Paulo sacudiu a roupa e lhes
disse: Caia sobre a cabeça de vocês o seu próprio sangue! Estou livre da
minha responsabilidade. De agora em diante irei para os gentios [NVI].
De todos os povos sobre a terra, os judeus deviam ser os primeiros
em reconhecer a Jesus como o Cristo. Por séculos, eles possuíram as
profecias a respeito da vinda do Messias. Quando Jesus finalmente
cumpriu todas as profecias, os judeus deviam tê-lo reconhecido e
aclamado como o Messias prometido. Mas quando Jesus veio para os
Seus, o Seu povo não O recebeu (Jo 1:11).
Paulo disse aos judeus de Corinto que ele pessoalmente tinha visto
e ouvido Jesus e que ele era um de Seus apóstolos. Mas em lugar de
aceitar a mensagem do evangelho, os judeus rejeitaram a verdade e
começaram a falar de forma insultante contra a mensagem de Paulo (At
13:45). Eles rejeitaram o evangelho, como fica claro pelas Dezoito
Petições. A oração mais antiga do judaísmo, conhecida só como “A
Oração”, era recitada nos cultos de adoração pelo líder da sinagoga. A
Mishná requer que cada judeu a recite três vezes por dia. 1133 Na décima

1131
Em sua segunda viagem missionária, Paulo escreveu Gálatas e 1 e 2 Tessalonicenses. Durante sua
terceira viagem, escreveu Romanos e 1 e 2 Coríntios; e enquanto permaneceu prisioneiro, escreveu
Efésios, Colossenses, Filipenses e Filemom.
1132
Atos 8:25; 20:21, 24; 23:11; 28:23.
1133
Mishnah, Berakhoth 3.3; 4.1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 895
segunda petição (Resenha palestiniana) desta oração lemos: E para os
apóstatas, que não haja esperança; e que os reinos insolentes sejam
rapidamente desarraigados em nossos dias. E que os nazarenos e os
heréticos pereçam rapidamente; e que sejam apagados do Livro da Vida;
e que não apareçam com os justos. Bendito és tu, Senhor, que humilhas o
insolente. 1134
Na sinagoga local, Paulo sacudiu sua capa para simbolizar seu
rompimento com os judeus (veja-se Ne 5:13). Supomos que não sacudiu
o pó de suas sandálias, porque as tinha deixado à entrada da sinagoga. 1135
Jesus tinha dado instruções a seus discípulos de sacudir o pó de seus pés
quando vissem que seus ouvintes não aceitavam a mensagem do
evangelho (Mt 10:14; cf. At 13:51).
Paulo explicou sua ação dizendo: “Caia sobre a cabeça de vocês o
seu próprio sangue! Estou livre da minha responsabilidade. De agora em
diante irei para os gentios”. Ele estava aludindo à palavra de Deus dita
por Ezequiel, relacionada com a sentinela que fazia soar a trombeta para
advertir o povo de um perigo iminente. Se alguém não escutava e era
morto pela espada, seu sangue cairia sobre sua cabeça e sua morte não
seria imputada à sentinela (Ez 33:4). Paulo, com essa declaração, disse
que ele fez sua parte, e, portanto, os judeus teriam que assumir total
responsabilidade por sua rejeição em aceitar o evangelho. Considerava-
se a si mesmo livre de culpa e absolvido pelo juízo de Deus que viria
sobre os judeus (cf. At 20:26).
Consciente de seu chamado como apóstolo dos gentios, Paulo
declarou que sairia dos judeus para levar sua mensagem aos gentios em
Corinto. A situação lembra o que ocorreu em Antioquia da Pisídia,
quando Paulo abandonou a sinagoga local e foi aos gentios daquela
cidade (At 13:46; cf. 28:28; Rm 1:16; 11:11). Portanto, a expressão De

1134
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D. 135),
rev. e ed. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 461.
Veja-se também SB, vol. 4, pt. 1, pp. 212–13.
1135
H. J. Cadbury, “Dust and Garments”, Beginnings, vol. 5, p. 274.
Atos (Simon J. Kistemaker) 896
agora em diante não deve ser tomada literalmente, porque se aplica só à
situação local. Paulo continuou seu ministério aos judeus em outros
lugares (At 20:21).
7, 8. Saindo dali, entrou na casa de um homem chamado Tício Justo,
que era temente a Deus; a casa era contígua à sinagoga. Mas Crispo, o
principal da sinagoga, creu no Senhor, com toda a sua casa; também
muitos dos coríntios, ouvindo, criam e eram batizados.
Lucas não dá indicação de que Paulo tenha deixado o lar de Áquila
e Priscila para ir hospedar-se com Tício Justo. 1136 Em lugar disso, ele
sugere que Paulo já não adorou mais com os judeus na sinagoga local,
mas celebrava os cultos de adoração numa casa vizinha. Ao não querer
ofender os judeus, Paulo de qualquer maneira devia buscar um lugar
adequado para pregar, e a casa do Tício Justo provou ser o lugar.
Os cristãos judeus e os gregos piedosos começaram a reunir-se para
adorar e receber instrução na casa de uma pessoa que provavelmente era
rica (sua casa podia acomodar ao menos uma pequena congregação) e
cidadão romano. Algumas traduções dão a este homem o nome de Justo,
outras, o de Tito Justo, e ainda outras o de Tício Justo. A diferença é o
resultado das variantes que se acham nos manuscritos gregos. Como
cidadão romano, esta pessoa provavelmente tinha três nomes: Gaio Tício
Justo. Alguns eruditos justificadamente o identificam com o Gaio a
quem Paulo se refere como o crente que brindou hospitalidade a ele e a
toda a igreja de Corinto (Rm 16:23; e veja-se 1Co 1:14). 1137 Não deveria
ser identificado com Tito, quem acompanhou Paulo a Jerusalém no final
de sua primeira viagem missionária e provavelmente era um oriundo de
Antioquia da Síria (Gl 2:1). 1138

1136
Henry Alford escreve que Paulo, “ao deixar a sinagoga, não voltou para a casa do judeu Áquila”.
Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7a. ed., 4 vols. (1877; Grand
Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 202. Mas dificilmente seria este o sentido do texto, porquanto a
amizade de Paulo com Áquila e Priscila se manteve inalterável.
1137
P. ex., Edgar J. Goodspeed, “Gaius Titius Justus”, JBL 69 (1950): 382–83.
1138
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 225.
Atos (Simon J. Kistemaker) 897
Tanto os judeus como os gregos cristãos assistiram aos cultos de
adoração na casa de Tício Justo. Os primeiros convertidos em Corinto
foram Estéfanas e sua casa. Lucas diz que o principal da sinagoga,
Crispo, e toda sua casa também chegaram a ser crentes em Cristo Jesus.
(Em Atos, Lucas com frequência usa o termo a casa, o que usualmente
refere-se à esposa do chefe do lar, seus filhos e filhas, seus parentes mais
próximos, e seus serventes [veja-se At 11:14; 16:15, 31–34]). Crispo era
uma figura proeminente na comunidade judaica. Sua conversão ao
cristianismo provou ser decisiva para o crescimento da igreja local. Seu
sucessor ou colega na sinagoga, Sóstenes (At 18:17), também chegou a
ser um crente (1Co 1:1).
Todas estas pessoas, exceto Sóstenes, foram batizadas pelo próprio
Paulo (1Co 1:16; 16:15), embora, segundo seu próprio testemunho, ele
normalmente não batizava os convertidos. É possível que Estéfanas,
Crispo, Gaio, e os membros de suas famílias tenham sido batizados antes
que Silas e Timóteo chegassem a Corinto e antes que se produzisse o
rompimento com os judeus. Talvez a conversão destas pessoas tão
importantes tenha provocado ciúme que se traduziram em azedas
disputas e que fizeram com que finalmente Paulo abandonasse a
sinagoga como lugar de reunião.
Paulo continuou seu trabalho de pregação na casa de Tício Justo.
Muitos coríntios, tanto judeus como gregos, ouviam suas instruções e
creram. Entre os membros da igreja de Corinto estavam Erasto, o
tesoureiro da cidade, e uma pessoa chamada Quarto (Rm 16:23). No
grego, Lucas indica que eles ouviam regularmente a Paulo e que o
batismo dos convertidos ocorria frequentemente.

Palavras, frases e construções gregas em At 18:4–8


Versículo 4
O Texto ocidental acrescentou algumas frases para suavizar a
leitura desta passagem. Os agregados estão em itálico: “E entrando na
Atos (Simon J. Kistemaker) 898
sinagoga cada sábado, falava-lhes, apresentando o nome do Senhor
Jesus, e persuadia não só aos judeus, mas também aos gregos.” 1139
διελέγετο — o uso do tempo imperfeito mostra o reiterada tentativa
de Paulo de debater com os judeus. De igual maneira, o tempo
imperfeito de ἔπειθεν (procurava persuadir) indica ação e tentativa
reiterada.

Versículo 5
συνείχετο — o meio imperfeito de συνέχομαι (eu estou ocupado
com) significa “ele se sustentava a si mesmo em [a pregação de] a
palavra”. 1140
εἶναι τὸν Χριστὸν Ἰησοῦν — o substantivo com o artigo definido
serve como o sujeito do infinitivo, o substantivo sem o artigo como o
predicado. Os judeus sabiam a respeito do Messias pelas Escrituras,
porém não conheciam Jesus. Uma tradução literal é, “que o Cristo é
Jesus”.

Versículos 6–8
O Texto ocidental começa o versículo 6 com uma cláusula
introdutória: “E depois de ter havido muita discussão, e que se teve dado
uma interpretação das escrituras …” 1141
ἐκτιναξάμενος — este particípio médio composto no aoristo é
reflexivo e intensivo: “tendo sacudido suas vestes de si mesmo”. 1142 O
plural idiomático τὰ ἱμάτια refere-se à roupa exterior de uma pessoa.
ἐκεῖθεν — alguns manuscritos ocidentais substituem o advérbio
com a frase de Áquila. Outros combinam estas duas: “dali de Áquila”.

1139
Metzger, Textual Commentary, p. 461.
1140
Refira-se a Robertson, Grammar, p. 808.
1141
Metzger, Textual Commentary, p. 462.
1142
Robertson, Grammar, p. 810.
Atos (Simon J. Kistemaker) 899
ἦν συνομοροῦσα — a construção passada perifrástica com o verbo
ser e um gerúndio é equivalente à construção simples esteve perto de,
com o que o particípio é um adjetivo.
O uso do tempo imperfeito no versículo 8 descreve confissões de fé
e ocasiões de batismo reiteradas.

c. O visionário (At 18:9–11)

Enquanto Paulo, com a ajuda de Silas e de Timóteo, dedicava-se


por inteiro a pregar e a ensinar o evangelho, a oposição da parte dos
judeus tornava-se cada vez mais forte. O desânimo e o temor chegaram a
ser os companheiros do apóstolo, causando-lhe verdadeiros problemas
em seu ministério. Como muitos outros santos que o precederam, ele
necessitou uma palavra de ânimo (cf. Js. 1:9; Is 41:10; 43:5; Jr 1:8, 19).
9-11. Teve Paulo durante a noite uma visão em que o Senhor lhe
disse: Não temas; pelo contrário, fala e não te cales; porquanto eu estou
contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta
cidade. E ali permaneceu um ano e seis meses, ensinando entre eles a
palavra de Deus.
Paulo está desanimado e temeroso. Ele confirma este estado de
ânimo em sua carta aos coríntios: “Eu estive com vocês num estado de
fraqueza, temor, e muito tremor” (1Co 2:3). Cidadãos prestigiosos de
Corinto o viam como uma pessoa sem fortaleza, influência e privilégio
devido à sua profissão de fabricante de tendas. 1143 Punham a Paulo ao
nível de um escravo. Os judeus queriam que deixasse de ensinar o povo
a respeito de Jesus, e as ameaças à sua segurança pessoal estavam
sempre presentes. A aparente interminável oposição ao seu ministério
começava a ter efeitos depressivos em sua vida espiritual.
1. A ordem. Quando Jesus lhe aparece numa visão de noite, Paulo
imediatamente O reconhece (cf. At 9:10, 12; 22:18; 23:11; 27:23–24).

1143
Consulte-se Hock, Social Context of Paul’s Ministry, p. 60.
Atos (Simon J. Kistemaker) 900
Jesus fala diretamente com os problemas que estava enfrentando Paulo e
lhe dá três ordens lacônicas:
Não temas
Fala
Não te cales.
Intenso temor no coração do homem com frequência debilita. Em
casos extremos, esse temor pode levar à morte e nos casos não tão
graves, a uma distorção da realidade. O medo é usado por Satanás para
fazer do homem um servidor dele. Por outro lado, Deus continuamente
está dizendo ao Seu povo que não tenha medo. Para ilustrar isto, Jesus
exorta os seus discípulos a confiar porque Ele venceu o mundo (Jo
16:33). Assim, numa visão, Jesus instrui a Paulo a não temer. O tempo
do verbo temer indica que Paulo na verdade está sofrendo deste mal, mas
Jesus lhe ordena a dominar esse temor.
Além disso, Jesus lhe ordena que continue falando. Não se está
referindo ao conteúdo dos discursos de Paulo mas ao ato de falar. A esta
ordem positiva Jesus acrescenta outra negativa: “Não te cales”. Não está
dizendo que Paulo esteja calado, mas lhe adverte que não chegue a estar
calado. Através da voz de Paulo, Cristo faz conhecido seu evangelho às
pessoas e, portanto, proíbe-lhe guardar silêncio.
2. Promessa. No primeiro versículo de Atos, Lucas escreve que em
seu primeiro livro disse a Teófilo tudo o que Jesus tinha começado a
fazer e a ensinar (At 1:1). Com isso está sugerindo que em Atos Jesus
continua Seu trabalho. Esta é uma vívida ilustração da participação direta
de Jesus no crescimento da igreja. A primeira razão para a tríplice ordem
de Jesus é que Ele está com Paulo em Corinto (cf. Mt 28:20). Assegura-
lhe que ninguém vai pôr as mãos sobre ele para lhe causar dano. Paulo
não vai sofrer os rigores físicos que caracterizaram sua estada em
Filipos, Tessalônica e Bereia.
Jesus dá uma segunda razão para as três ordens a Paulo: “pois tenho
muito povo nesta cidade”. Que forma de animar a Paulo! O próprio Jesus
garante que o trabalho de Paulo em Corinto renderá frutos. O próprio
Atos (Simon J. Kistemaker) 901
Deus escolhe o Seu povo para a vida eterna (At 13:48), abre seus
corações à mensagem do evangelho (At 16:14) e os leva à salvação.
Leon Morris observa: “Eles ainda não tinham feito nada para ser salvos;
muitos deles nem sequer tinham ouvido o evangelho. Mas eles eram de
Deus. Claramente é Ele quem os traria à salvação no momento
devido”. 1144 Deus chama judeus e a gentios para ser Seu próprio povo e
Ele levanta a igreja em Corinto (cf. 2Co 6:16). 1145
3. Resposta. “E [Paulo] ali permaneceu um ano e seis meses,
ensinando entre eles a palavra de Deus”. Lucas não diz muito a respeito
do ministério de Paulo em Corinto, pelo que é necessário que busquemos
informação nas cartas de Paulo. Sabemos que Deus abençoou o
ministério de Paulo, porque houve crentes em toda a província de Acaia
(2Co 1:1). No porto de Cencreia alguns crentes fundaram uma igreja na
qual Febe era uma diaconisa (Rm 16:1). E Paulo menciona pelo nome a
alguns outros crentes em Corinto: Cloe e sua casa (1Co 1:11), Fortunato
e Acaico (1Co 16:17), e Tércio (Rm 16:22).
Paulo descreve os cultos de adoração dos coríntios e nota que a
igreja desfruta de “uma variedade de ministérios altamente
diversificados: havia apóstolos, profetas, mestres, operadores de
milagres, operadores de cura, ajudantes, ‘governantes’, os que falavam
em línguas”. 1146 A igreja de Corinto continuou aumentando e se
desenvolvendo no período posterior à partida de Paulo e ao tempo em
que escreveu suas cartas. Mas à luz da afirmação do Senhor de que tinha
muito povo em Corinto, podemos dizer que Paulo viu um notável
crescimento no ano e meio que permaneceu na cidade.

1144
Leon Morris, New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academic Books, 1986), p.
154
1145
Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 800; Hermann Strathmann, TDNT, vol. 4, p. 54.
1146
Richard B. Rackhman, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries
(1901; reimp. Grand Rapids: Baker, 1964), p. 328.
Atos (Simon J. Kistemaker) 902
Considerações doutrinais em At 18:10
O pastor, o evangelista, e o missionário nunca devem esquecer que
o Senhor Jesus Cristo está sempre com eles. Jesus é o comandante-em-
chefe quem envia os Seus servidores pelo mundo para que sejam Seus
embaixadores. Além disso, Ele lhes dá a segurança de que abençoará sua
obra.
As Escrituras ensinam que Deus o Pai escolheu o Seu povo desde a
eternidade (Ef 1:4). Através da proclamação da Palavra de Deus e o
poder de Seu Espírito, Ele trará Seu povo à salvação em Cristo. Portanto,
pregadores que proclamam com fidelidade a mensagem do evangelho
podem pôr toda sua confiança em Deus e Lhe pedir resultados tangíveis.
No meio da oposição,
que confiem, ó Senhor, em Ti;
Quando o êxito coroa sua missão,
que Teus servidores humildes sejam.
Nunca os deixes
Até que sua face no céu te vejam.
— Thomas Kelly (Trad. libre)

Palavras, frases e construções gregas em At 18:9–10


Versículo 9
διʼ ὁράματος — “mediante [em] uma visão”. A frase preposicional
comunica tanto sentido como maneira.
μὴ φοβοῦ — o tempo presente do imperativo revela que Paulo sem
dúvida estava temeroso, enquanto o tempo aoristo do subjuntivo em μὴ
σιωπήσῃς indica que mesmo quando Paulo agora não está medroso, no
futuro nunca deve ficar calado.
Atos (Simon J. Kistemaker) 903
Versículo 10
τοῦ κακῶσαι — o infinitivo aoristo precedido pelo artigo definido
no singular genitivo indica propósito que é dependente do verbo e objeto
precedente ἐπιθήσεταί σοι ([ninguém] te atacará).
λαός — o contexto deste substantivo mostra que Deus chama as
pessoas como Seu próprio povo mesmo antes de se converterem. Na
Septuaginta, a palavra λαός significa frequentemente o povo de Deus da
aliança. Neste versículo, Deus aplica a expressão à comunidade cristã.
Do ponto de vista de Deus, a igreja em Corinto, integrada principalmente
por gentios, assumiu o lugar do povo teocrático de Israel. 1147 A igreja
cristã, portanto, é a continuação da aliança de Deus com o povo da era
do Antigo Testamento.

d. O acusado (At 18:12–17)

Quando Jesus assegurou a Paulo que ninguém em Corinto lhe faria


mal, não quis dizer que não deveria enfrentar a perseguição. Os judeus
coríntios, antagonistas de Paulo mas refreados pela democracia grega,
buscavam a maneira de apresentar ação legal contra Paulo. Levaram-no a
corte com a intenção de pedir ao procônsul Gálio proscrever o
cristianismo na província de Acaia.
12, 13. Sendo Gálio procônsul da Acaia, levantaram-se os judeus de
comum acordo contra Paulo e, levando-o ao tribunal, disseram: Este
persuade os homens a adorar a Deus de um modo contrário à Lei [TB].
1. O procônsul. Inscrições descobertas perto de Delfo proveem
dados para estabelecer o tempo exato em que Gálio serviu como
procônsul de Acaia. Uma inscrição revela que Cláudio, no décimo
segundo ano de seu reinado e aclamado imperador pela vigésima sexta

1147
Thayer, p. 372; Bauer, p. 467.
Atos (Simon J. Kistemaker) 904
1148
vez, menciona o seu amigo Gálio, o procônsul de Acaia. Partindo
destes dados, podemos deduzir que Gálio serviu desde julho de 51 até
junho de 52. O decreto imperial limitava a um ano o término do
procônsul num determinado lugar.
Supomos que Paulo foi a Corinto em outono de 50 d.C. e por seis
meses pregou primeiro na sinagoga e logo na casa de Tício Justo. Se
Paulo compareceu diante de Gálio no começo do governo do procônsul,
teremos uma data confiável para estabelecer a cronologia do segunda
viagem missionária de Paulo. 1149
Gálio nasceu em Córdoba, Espanha, filho de Sêneca, cujo filho
mais velho tinha o mesmo nome. O nome inteiro de Gálio foi Marco
Anneo Novato, mas quando chegou a Roma, foi adotado por Lúcio Júnio
Gálio conservando o último sobrenome. Muito em breve Gálio entrou no
serviço do governo e serviu primeiro como pretor por espaço de cinco
anos. Logo foi a Acaia como procônsul por um ano, depois do qual
obteve a posição de cônsul. Quando seu irmão Sêneca, quem foi tutor e
assessor de Nero, suicidou-se por ordem do imperador, Gálio pediu que
sua própria vida fosse poupada. 1150 No entanto, pouco tempo depois ele
também foi morto. Sêneca menciona várias vezes a Gálio. Diz que este
tinha problemas de saúde, que era uma pessoa muito inteligente que
odiava as lisonjas, e que foi abençoado com uma “personalidade
invariavelmente agradável”. 1151

1148
“Embora na prática os imperadores reinavam por toda a vida, eram aclamados imperator de tempo
em tempo”. Kirsopp Lake, “The Chronology of Acts”, Beginnings, vol. 5, p. 462.
1149
Consulte-se Colin J. Hemer, “Observations on Pauline Chronology”, em Pauline Studies, ed.
Donald A. Hagner e Murray J. Harris (Exeter: Paternoster; Grand Rapids; Eerdmans, 1980), p. 8; veja-
se também seu Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf (Tubinga:
Mohr, 1989), pp. 168–69. Para pontos de vista diferentes, veja-se B. Schwank, “Der sogenannte Brief
an Gallio und die Datierung des 1 Thess”, BZ n.s. 15 (1971): 265–66; Klaus Haacker, “Die Gallio-
Episode und die paulinische Chronologie”, BZ n.s. 16 (1972): 252–55.
1150
Tácito Anais 15.60–65; 15.73.
1151
Sêneca Natural Questions 4ª. prefácio 10–11; Epistles 104.2; e veja-se Dio Cassio História
Romana 61.35.
Atos (Simon J. Kistemaker) 905
2. A acusação. Os judeus coríntios estavam procurando usar o
procônsul para seus próprios propósitos: erradicar o cristianismo da
província de Acaia. Prenderam Paulo, não necessariamente mediante a
força, e o levaram diante do tribunal romano localizado perto do
mercado. Respondendo a uma planejada estratégia, levaram Paulo diante
de Gálio para que se registrassem as seguintes acusações: “Este persuade
os homens a adorar a Deus de um modo contrário à Lei”. A brevidade
dos acusações deixa o sentido do termo lei aberto à interpretação. Se a
expressão refere-se à lei romana, deviam provar que Paulo era uma
ameaça para a segurança de Roma. Se concernia à lei religiosa dos
judeus, expunham-se a Gálio recusar atender às acusações contra Paulo.
As autoridades romanas permitiam os judeus adorar a seu Deus com
a mesma liberdade com que o faziam outros povos a suas deidades
pagãs. Quando as populações de Alexandria, Antioquia e cidades da
Ásia Menor começaram a perseguir os judeus por causa de sua religião,
as autoridades romanas defenderam “as liberdades religiosas dos judeus,
contanto que não perdessem estes direitos (como no ano 66 d.C.) através
de uma ação revolucionária”. 1152
Para Gálio, a acusação dos judeus dirigida contra um de seus
próprios compatriotas deve ter-lhe parecido absurda. Se eles não eram
capazes de provar que Paulo era uma ameaça para a segurança de Roma,
seriam despedidos no ato. Além disso, a acusação se referia a um Deus,
ou seja, o Deus de Israel, e não às deidades pagãs. Como resultado, os
judeus desvirtuaram suas próprias tentativas pela forma em que
apresentaram a acusação.
Quando apareciam diante das autoridades romanas, em geral os
judeus o faziam buscando proteção. Por exemplo, se tinham alguma
queixa contra os magistrados civis de Corinto por lhes proibir adorar no

1152
Schürer, History of the Jewish People, vol. 3, p. 132. Veja-se também Josefo Antiguidades 19.5.3
[289]; 20.1.2 [10–14].
Atos (Simon J. Kistemaker) 906
sábado, Gálio devia defendê-los ou correr o risco de irritar a César. 1153
Mas agora que os judeus vinham como acusadores, Gálio entendeu que
eles não estavam falando da lei romana mas de um assunto relacionado
com a sua própria religião.
14, 15. Quando Paulo ia começar a falar, Gálio disse aos judeus: “Se
vocês, judeus, estivessem apresentando queixa de algum delito ou crime
grave, seria razoável que eu os ouvisse. Mas, visto que se trata de uma
questão de palavras e nomes de sua própria lei, resolvam o problema
vocês mesmos. Não serei juiz dessas coisas [NVI].
Gálio nem sequer deu a Paulo a oportunidade de defender-se diante
de seus acusadores, porque para ele, o assunto não tinha nada que ver
com a lei romana, mas com as complexidades da religião judaica (cf.
23:29; 25:18–20). No grego, Gálio usou uma frase condicional que
expressa uma afirmação contrária aos fatos: “Se vocês, judeus,
estivessem apresentando queixa de algum delito ou crime grave (porém
não estão fazendo isso), seria razoável que eu os ouvisse (mas agora não
farei nada)”.
O procônsul continuou com uma segunda frase condicional, uma
afirmação que é de fato uma verdade. Com efeito, diz: “Mas, visto que
se trata de uma questão de palavras e nomes de sua própria lei, resolvam
o problema vocês mesmos. Não serei juiz dessas coisas”. Está sendo dito
aos judeus que vieram a Gálio com uma acusação que deve ser dirigida
na sinagoga local, não diante do tribunal de Gálio.
O procônsul concluiu dizendo que ele não seria parte de suas brigas
religiosas. Não é possível medir o tom de voz de Gálio, mas supomos
que suas palavras comunicava o desdém e ironia: “Não serei juiz dessas
coisas”.
16, 17. E os expulsou do tribunal. Então, todos agarraram Sóstenes,
o principal da sinagoga, e o espancavam diante do tribunal; Gálio,
todavia, não se incomodava com estas coisas.

1153
A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963; reimp. Grand
Rapids: Baker, 1978), p. 103.
Atos (Simon J. Kistemaker) 907
Sem dúvida que Gálio tinha outras preocupações legais que atender.
Mas primeiro devia purificar a corte dos judeus, que se negavam a ir
embora. Por isso, teve que ordenar aos lictores: “Usem suas varas e
limpem a corte”. Lucas é extremamente lacônico neste relatório, o que
torna possível mais de uma interpretação:
a. Quando deram-se conta que tinham perdido o caso, os judeus
apreenderam ao Sóstenes. Mas estavam os judeus dispostos a agarrar a
seu próprio líder da sinagoga?
b. Os lictores espancaram Sóstenes porque ele era o porta-voz dos
judeus. Mas o adjetivo todos não compagina com o contexto se se refere
a dois ou três lictores. *
c. Os manuscritos Ocidental e Bizantino dizem “todos os gregos”.
A população gentílica, então, desafogou-se de sua antipatia para os
judeus dando a Sóstenes um golpe. Mas se os gregos libertaram-se de
seus sentimentos antissemitas, por que só os empreenderam contra um
judeu? Talvez Sóstenes, como porta-voz dos demais, transformou-se em
seu branco.
d. Segundo os manuscritos gregos mais importantes, Lucas não
provê o sujeito da cláusula: “E todos eles agarraram Sóstenes”.
Por esta razão, os tradutores deixaram o assunto sem resolver,
mesmo quando geralmente os comentaristas sugerem que foi uma turba a
que o atacou.
“Gálio, todavia, não se incomodava com estas coisas”. As
consequências deste caso são agridoces. Por um lado, é difícil entender o
desinteresse de Gálio em manter a ordem pública. Ele tinha agido
sabiamente a respeito da acusação que os judeus trouxeram contra Paulo,
mas indiferentemente para com o Sóstenes, o principal da sinagoga.
Aplicou a lei romana para proteger a liberdade religiosa, porém não fez
nada para salvaguardar o bem-estar físico de uma pessoa. Por outro lado,

*
Lictor: Ministro de justiça entre os romanos, que precedia com feixes de varas chamadas fasces aos
cônsules e a outros magistrados. – Nota do Tradutor.
Atos (Simon J. Kistemaker) 908
graças à falha de Gálio o cristianismo continuou recebendo proteção
religiosa. De fato, devido ao fato de que Roma não fazia distinção entre
o cristianismo e o judaísmo, o cristianismo foi protegido pelo decreto do
César que reconhecia a legalidade da religião judaica no império
romano.
Fiel à Sua palavra, Jesus protegeu Paulo de ataques físicos ao
estorvar a oposição judaica à expansão do evangelho. Por conseguinte,
na cidade capital de Corinto, a igreja começou a crescer e a estender-se
através da Acaia (2Co 1:1; 11:10; 1Ts 1:7–8). A conclusão a que chegou
Gálio constituiu uma vitória decisiva para a igreja na Grécia.

Palavras, frases e construções gregas em At 18:12–17


Versículos 12–13
O Texto ocidental tem um longo agregado depois da palavra
Ἰουδαῖοι. As palavras acrescentadas aparecem em itálico: “tendo falado
juntos entre si contra Paulo, e havendo postos suas mãos sobre ele o
trouxeram para o governador, gritando e dizendo …” 1154
τὸ βῆμα — “o tribunal” era uma plataforma levantada onde ficava a
mesa do juiz. O juiz atendia assuntos legais publicamente (Mt 27:19; Jo
19:13; At 18:12, 16–17; 25:6, 10, 17).
παρὰ τὸν νόμον — a preposição comunica o significado ir para
além de no sentido de “contrário a”. Assim, a acusação dos judeus era
que Paulo estava pregando em violação à lei.

Versículo 14
μέλλοντος — este é o particípio ativo presente de μέλλω (eu estou
prestes a) numa construção absoluta genitiva.
κατὰ λόγον — a combinação de preposição e substantivo forma um
modismo que significa “razoavelmente” ou “justamente”.
1154
Metzger, Textual Commentary, p. 463.
Atos (Simon J. Kistemaker) 909
Versículos 15–17
ὄψεσθε — o indicativo futuro do verbo ὁράω (eu vejo) expressa
uma ordem: “vejam-no”. O pronome αὑτοί (vocês mesmos) é enfático.
ἔμελεν — esta forma é o imperfeito de um verbo incompleto (μέλει,
é uma preocupação) que demonstra a indiferença de Gálio. O texto latino
do Códice Beza diz: “Então Gálio agiu como se não o via”. O texto
grego neste lugar no Códice Beza foi apagado, mas “é correto assumir
que o texto de D correspondia a esse”. 1155

D. A volta a Antioquia (At 18:18–22)

A seguinte seção é um resumo da parte final da segunda viagem


missionária de Paulo, sua breve estada em Éfeso, sua viagem a Cesareia
e sua visita a Jerusalém, e sua volta a Antioquia. Em poucos versículos
Lucas apresenta um esboço de um período da vida de Paulo a respeito da
qual sabemos muito pouco (veja-se 2Co 11:23–27).
18. Paulo permaneceu em Corinto por algum tempo. Depois
despediu-se dos irmãos e navegou para a Síria, acompanhado de Priscila e
Áquila. Antes de embarcar, rapou a cabeça em Cencreia, devido a um
voto que havia feito [NVI].
a. “Paulo permaneceu em Corinto”. Depois que Gálio acabou de
falar, Paulo soube que a lei romana o protegia em Corinto. Também
soube que no fim do proconsulado de Gálio em Acaia, poderia voltar a
enfrentar a oposição. 1156 Pregou o evangelho e fortaleceu a igreja
permanecendo ali por um ano e meio (v. 11). A expressão por algum
tempo possivelmente se refere a uma parte daquele período de dezoito
meses. Se Paulo chegou no outono do ano 50 d.C., deve ter saído na
primavera de 52, antes que o procônsul por sua vez saísse dali.

1155
James Hardy Ropes, Beginnings, vol. 3, p. 176.
1156
Veja-se Hemer, Book of Acts, pp. 255–56.
Atos (Simon J. Kistemaker) 910
b. “Despediu-se dos irmãos”. A corrente do pensamento neste
versículo é desconexa. Paulo se despede da igreja em Corinto, embora
como uma ideia tardia Lucas escreve que passou tempo em Cencreia, o
porto localizado a poucos quilômetros a leste de Corinto. Pela epístola de
Paulo aos romanos sabemos que Cencreia tinha uma próspera igreja na
qual Febe servia como diaconisa (Rm 16:1). Supomos que Paulo foi
elemento-chave na fundação e fortalecimento dessa igreja. Além disso,
Silas e Timóteo eram companheiros de Paulo que aparentemente
continuaram seu trabalho em Corinto e Cencreia depois de sua saída.
c. “Navegou para a Síria, acompanhado de Priscila e Áquila”. Em
64 a.C. os romanos fizeram da Síria uma província; seus limites se
estendiam dos Montes Tauro ao norte, o rio Eufrates a leste, Palestina ao
sul, e o mediterrâneo a oeste. 1157 Pelo fato de que Antioquia era a capital
dessa província, a intenção de Paulo era viajar até ali e dar à igreja local
um relatório de seu trabalho (vv. 22–23; cf. At 14:26–27). Mas fez uma
promessa que o obrigava a visitar Jerusalém.
A viagem foi completada em duas etapas, nas quais Éfeso foi o
ponto médio. Priscila e Áquila decidiram acompanhar Paulo na primeira
parte de sua viagem. O porquê deixaram Corinto e estabeleceram sua
residência em Éfeso é algo que desconhecemos. Talvez Paulo planejava
iniciar uma nova fase de seu trabalho missionário em Éfeso e necessitava
ali a ajuda dessa equipe formada por este casal. 1158 Note-se que o nome
de Priscila precede ao de seu esposo (veja-se também v. 26; Rm 16:3;
2Tm 4:19; e cf. 1Co 16:19). Priscila parece ter aplicado sua aguda mente
ao conhecimento e à interpretação das Escrituras. Daí que obteve
preeminência.
d. “Antes de [Pablo] embarcar, rapou a cabeça em Cencreia, devido
a um voto que havia feito”. Embora a ordem das palavras gregas pode
significar que Áquila fez um voto, o contexto aponta a Paulo como o
1157
Bauer, p. 794; Thayer, p. 607.
1158
Consulte-se R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg,
1944), p. 762.
Atos (Simon J. Kistemaker) 911
principal sujeito neste versículo. Paulo seguiu a prática judaica de fazer
um voto de nazireu, o qual estipulava que a pessoa rapasse a cabeça no
fim de um determinado período. Dentro de trinta dias, era necessário
oferecer um sacrifício em Jerusalém. 1159 Depois que Paulo fez a
promessa, viu-se obrigado a viajar a Jerusalém e oferecer seus cabelos
com o sacrifício. 1160 Paulo fez esse voto para expressar seu
agradecimento a Deus por protegê-lo em Corinto e por abençoar sua
obra. Para os judeus, ele continuava sendo um judeu até em guardar
votos e trazer ofertas ao templo (At 21:23–26).
19-21. Chegados a Éfeso, deixou-os ali; ele, porém, entrando na
sinagoga, pregava aos judeus. Rogando-lhe eles que permanecesse ali
mais algum tempo, não acedeu. Mas, despedindo-se, disse: Se Deus quiser,
voltarei para vós outros. E, embarcando, partiu de Éfeso.
Do porto de Cencreia, o navio que levava Paulo, Priscila e Áquila
navegou através do mar Egeu até Éfeso. Antes, enquanto viajava através
da Ásia Menor, Paulo tinha sido impedido pelo Espírito Santo de ir à
província romana da Ásia (At 16:6), da qual Éfeso era a capital e uma
importante cidade porto. Logo ele teria que considerar esta cidade como
sua próxima base de operações.
Originalmente, Éfeso tinha sido uma colônia grega que servia como
um centro comercial à população do resto da Ásia Menor. Da conquista
romana, residia ali um procônsul para implementar o governo romano.
Nesta cidade, o templo à deusa Ártemis reunia anualmente multidões de
adoradores e provia um lucrativo ganho aos artesãos que faziam ídolos
(At 19:23–27).
Paulo deixou Áquila e Priscila em Éfeso, possivelmente para trazer
pessoas até Cristo e formar um núcleo de crentes. Por exemplo, estes
esposos se reuniram com Apolo na sinagoga local e os instruíram mais
profundamente nos caminhos do Senhor (v. 26). Embora Paulo mesmo
assistia aos cultos de adoração na sinagoga de Éfeso e discorria com os
1159
Veja-se Nm. 6:1–21; Josefo Guerra Judaica 2.15.1 [313]; Misna, Nazir 1.1–9.5.
1160
SB, vol. 2, p. 749.
Atos (Simon J. Kistemaker) 912
1161
judeus, não permaneceu ali. Não obstante o rogo dos judeus de que
passasse mais tempo com eles instruindo-os nas Escrituras, Paulo
declinou o convite por causa de seu voto (veja-se o comentário sobre o v.
18). Mas lhes prometeu que voltaria a visitá-los, acrescentando: “Se
Deus quiser”. Lucas revela que a população judaica apreciava o trabalho
realizado por Paulo e queria que ele continuasse ensinando-lhes. Por esta
razão, disse-lhes que voltaria. Mas primeiro devia deixar Éfeso e navegar
até Cesareia.
Os Textos ocidental e majoritário têm uma ampliação ao versículo
21: “Mas [Paulo] foi embora dali, dizendo, ‘devo tratar por todos os
meios de estar em Jerusalém para a próxima festa; mas voltarei a visitá-
los, se Deus quiser’. E foi embora de Éfeso”. Devido ao fato de que a
parte em itálico não está nos mais importantes manuscritos, os tradutores
creem que esta nota explicativa foi acrescentada por algum escriba. O
agregado, contudo, descreve a pressa de Paulo por chegar a Jerusalém
antes da festa. Pensava estar ali para a Páscoa na primeira parte de abril,
tinha poucos dias para encontrar passagem numa navio para Cesareia.
Depois de passar o inverno, a navegação se reatava em março 10. 1162
Ventos favoráveis do noroeste levariam rapidamente o navio até o porto
de Cesareia.
22. Chegando a Cesareia, desembarcou, subindo a Jerusalém; e,
tendo saudado a igreja, desceu para Antioquia.
Lucas é excepcionalmente breve em informar sobre a viagem de
Paulo a Cesareia como igualmente de suas viagens seguintes. Cesareia
tinha uma florescente igreja (At 8:40; 10:1, 24), mas todas as indicações
são que Paulo não saudou a igreja local. Viajou quase 105 quilômetros
para o sudeste para visitar a igreja em Jerusalém. Mesmo quando os

1161
Os judeus tinham obtido a cidadania local em Éfeso. Veja-se Josefo Contra Apion 2.4 [39]; e
Schürer, History of the Jewish People, vol. 3, pp. 22–23.
1162
Consulte-se F. F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on
the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 356. Vexa--se também William M. Ramsay,
St. Paul the Traveller and the Roman Citizen (1897; reimp. Grand Rapids: Baker, 1962), p. 264.
Atos (Simon J. Kistemaker) 913
manuscritos gregos omitem a localização, numerosas traduções da Bíblia
inserem as palavras em ou em Jerusalém. 1163
O contexto provê umas poucas indicações de que na verdade Paulo
foi a Jerusalém. Primeiro, o verbo subir não se refere a Cesareia (no
nível do mar), mas à cidade santa (localizada numa elevação maior).
Segundo, Cesareia servia como um porto internacional para Jerusalém
(veja-se At 9:30). Terceiro, o verbo desceu pode aplicar-se a Antioquia
se Paulo saiu das alturas de Jerusalém. Quarto, Paulo não tinha razão
para visitar a congregação de Antioquia, mas tinha razões para ir à igreja
dos apóstolos e anciãos em Jerusalém. Finalmente, a urgência com que
Paulo deixou Éfeso pode explicar-se somente se ele devia estar em
Jerusalém para uma data específica. Em conclusão, o texto fala da visita
de Paulo à igreja mãe.
Depois de ter passado algum tempo em Jerusalém, certamente com
alguns apóstolos e Tiago e os anciãos, Paulo decidiu viajar a Antioquia.
Cobrindo os quase quinhentos quilômetros a pé, chegou à cidade capital
da Síria e informou à igreja o que Deus tinha estado fazendo através
deles e dos outros missionários.

Considerações práticas em At 18:18–22


Se pensamos fazer um voto ao Senhor, devemos atender
cuidadosamente às palavras do Pregador: “Quando a Deus fizeres algum
voto, não tardes em cumpri-lo; porque não se agrada de tolos. Cumpre o
voto que fazes. Melhor é que não votes do que votes e não cumpras.”
[Ecl 5:4–5]
As Escrituras ensinam que muitas das promessas que a pessoa fazia
eram algo como transações com Deus. O adorador pedia a Deus um
favor, e se Deus o cumprisse, receberia do adorador um presente. Em

1163
Como algumas traduções em inglês, holandês, alemão, francês, espanhol, e português, Jacob van
Bruggen identifica a visita de Paulo a Jerusalém com Gl. 2:1, “Na Veertien Jaren”: De Datering van
het in Galaten 2 genoemde Overleg te Jeruzalem (Kampen: Kok, 1973), pp. 114–17, 228–29.
Atos (Simon J. Kistemaker) 914
Betel, Jacó pediu a Deus proteção e Lhe prometeu dez por cento de suas
posses se Deus respondesse sua oração (Gn 28:20–22). Ana pediu um
filho, que dedicaria ao Senhor se Deus o concedesse (1Sm 1:11, 27–28).
No entanto, devemos cuidar-nos de prometer a Deus algo na
condição de que Ele nos conceda o que Lhe pedimos. Se Deus honrar
nossa petição, mas nós decidimos que não estamos em condições ou
simplesmente não temos vontade de cumprir nossa obrigação para com
Ele, não somos mais que néscios em Sua presença. Em lugar disso,
devemos oferecer a Ele nossas promessas de ação de graças, louvor e
serviço pelo dom da salvação em Seu Filho, Cristo Jesus (Rm 12:1–2).

Palavras, frases e construções gregas em At 18:18–22


Versículo 18
ἐξέπλει — o tempo imperfeito de ἐκπλέω (eu navego) reflete a
duração da viagem. O tempo imperfeito de εἶχεν (estava tendo) também
reflete duração.
κειράμενος — este particípio meio aoristo do verbo κείρομαι (eu
me corto o cabelo) descreve tanto tempo como forma.

Versículo 19
κατήντησαν — “eles chegaram”. O Texto majoritário tem o verbo
singular ele chegou.
αὑτός — a posição deste pronome pessoal (intensivo) indica que
recebe ênfase.
Versículos 21–22
πάλιν ἀνακάμψω —aqui há um caso de redundância que é atribuído
a um costume do falar: “Voltarei de novo”. 1164

1164
Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961), #484.
Atos (Simon J. Kistemaker) 915
κατελθών — o particípio aoristo (tendo descido) mantém-se
separado dos outros dois particípios aoristos (ἀναβάς, tendo subido, e
ἀσπασάμενος, tendo cumprimentado). A ordem das palavras revela uma
razão sutil para a sequência de eventos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 916

VIII. A TERCEIRA VIAGEM


MISSIONÁRIA (AT 18:23–21:16)
Atos (Simon J. Kistemaker) 917
A. A Éfeso (Hch 18:23–28)

Em seus escritos, Lucas omite dar um esboço dos três viagens


missionárias de Paulo. De fato, é muito conciso em dar detalhes
relacionados com os acontecimentos finais da segunda viagem
missionária de Paulo e o começo da terceira fase do ministério do
apóstolo.
23. Havendo passado ali algum tempo, saiu, atravessando
sucessivamente a região da Galácia e Frígia, confirmando todos os
discípulos.
Mais uma vez, Lucas omite os detalhes relacionados com a
permanência de Paulo em Antioquia. Assumimos que Paulo permaneceu
ali por uns seis meses antes de iniciar uma visita às igrejas na Galácia e
Frígia. Não se sabe se Paulo teve acompanhantes neste longa viagem.
Tampouco sabemos como o recebeu a igreja de Antioquia (cf. At 14:27).
Ao deixar Antioquia, seguiu a mesma rota que tinha tomado quando
iniciou sua segunda viagem missionária (At 16:1–6). Quer dizer, visitou
as igrejas de Derbe, Listra, Icônio, e Antioquia da Pisídia, e dali decidiu
retornar a Éfeso (At 19:1).
“[Paulo] saiu, atravessando sucessivamente a região da Galácia e
Frígia”. Esta cláusula origina interessantes perguntas. Por que Lucas
inverte a ordem mencionada anteriormente (At 16:6)? Recebeu Paulo
algumas notícias a respeito das igrejas nessa área que o levaram a visitar
os discípulos na Galácia e Frígia?
Primeiro, a variação na ordem das palavras deve entender-se como
uma variação no estilo de At 16:6 (veja-se o comentário). Os adjetivos
Galácia e Frígia descrevem a região localizada na parte sul da província
romana da Galácia. 1165
Logo, supomos que depois que Paulo terminou de visitar em sua
segunda viagem as igrejas na região da Galácia e Frígia, escreveu de

1165
Refira-se a Kirsopp Lake, “Paul’s Route in Asia Minor”, Beginnings, vol. 5, pp. 239–40.
Atos (Simon J. Kistemaker) 918
Corinto a carta aos Gálatas. Escreveu-a depois de duas visitas (At 13:14–
14:23; 16:1–6), como se pode ver implícito em Gálatas 4:13. 1166 Quando
Paulo chegou às igrejas, sua tarefa foi fortalecer os crentes, os quais
Lucas chama “discípulos”, quer dizer, aprendizes. Fortaleceu-os
espiritualmente (At 14:22), mas também lhes ensinou a pôr em prática
sua nova fé. Lembrou aos gálatas sua obrigação de sustentar os santos de
Jerusalém espancados pela pobreza (Gl 2:10; veja-se também 1Co 16:1).
24-26. Nesse meio tempo, chegou a Éfeso um judeu, natural de
Alexandria, chamado Apolo, homem eloqüente e poderoso nas Escrituras.
Era ele instruído no caminho do Senhor; e, sendo fervoroso de espírito,
falava e ensinava com precisão a respeito de Jesus, conhecendo apenas o
batismo de João. Ele, pois, começou a falar ousadamente na sinagoga.
Ouvindo-o, porém, Priscila e Áqüila, tomaram-no consigo e, com mais
exatidão, lhe expuseram o caminho de Deus.
Notemos as seguintes características de Apolo:
a. Educado. Um judeu da cidade egípcia de Alexandria veio para
seus compatriotas em Éfeso. Os estudiosos estimam que ao redor de um
milhão de judeus viviam no Egito, onde falavam a língua grega. Em
Alexandria, o Antigo Testamento tinha sido traduzido do hebraico ao
grego num esforço por ajudar aos judeus de fala grega a entender as
Escrituras. Os judeus tinham construído uma enorme sinagoga, a qual
“era tão grande que o sacristão devia parar-se sobre uma plataforma no
meio para fazer gestos com uma bandeira para que os que estavam atrás
soubessem quando deviam unir-se a outros nos améns”. 1167 Alexandria
foi a segunda cidade no ranking do Império Romano e teve a distinção
de ser um centro de sabedoria. Aqui os estudantes judeus recebiam uma
completa educação.
O nome deste judeu alexandrino era Apolo, que é uma forma
abreviada do nome comum Apolônio (2Mc. 3:5–7; 4:21; 5:24; 12:2).
Apolo era um homem educado que tinha assistido às escolas judaica e

1166
Guillermo Hendriksen, C.N.T. Gálatas, (Grand Rapids: SLC, 1984), pp. 18–19.
1167
J. Alexander Thompson, “Alexandria”, ISBE, vol. 1, p. 91. E veja-se Talmude, Sukkah 51b.
Atos (Simon J. Kistemaker) 919
grega de Alexandria e conhecia a literatura de ambas as culturas. Lucas
especifica que “era poderoso nas Escrituras”. Quer dizer, era um perito
na leitura e interpretação dos escritos do Antigo Testamento. Em
resumo, era um homem inteligente e capaz, como tanto Lucas como
Paulo deixam estabelecido nos Atos e nas epístolas. 1168
b. Eloquente. “Era ele [Apolo] instruído no caminho do Senhor”.
Entre os peregrinos no Pentecostes havia judeus do Egito (At 2:10) que
voltaram para sua pátria com o evangelho que Pedro tinha proclamado.
Devido à concisão dos escritos de Lucas não podemos dizer se Apolo
recebeu o evangelho por meio de um destes peregrinos ou por outras
pessoas. No entanto, o Texto ocidental tem o interessante agregado e
mudança (em itálico) que “Apolo tinha sido instruído em seu próprio
país na palavra do Senhor”. Se isto é correto, teríamos aqui a indicação
mais anterior de que o evangelho chegou ao Egito durante as duas
primeiras décadas de sua existência. 1169 Para ser preciso, o tempo
perfeito do particípio instruído sugere que o ensino que Apolo recebeu
tinha ocorrido no passado, mas tinha um efeito perdurável.
Logo, as frases o caminho do Senhor e a palavra do Senhor
significam a mesma coisa (veja-se também v. 26; At 9:2). Apolo chegou
a conhecer o ensino do Caminho. Com um desejo ardente em seu
coração, falava eloquentemente a respeito de Jesus. Era fervoroso de
espírito (cf. Rm 12:11). Tudo o que sabia a respeito do Messias, seguia
ensinando-o fielmente. A desvantagem era que ele só havia conhecido “o
batismo de João”. João tinha proclamado um batismo de arrependimento,
não um batismo de fé em Cristo Jesus. Embora Apolo articulava com
fidelidade os fatos a respeito de Jesus (seu nascimento, ministério, morte
e ressurreição), não conhecia a obra do Espírito Santo, o progresso do

1168
At. 19:1; 1Co. 1:12; 3:4–6, 22; 4:6; 16:12; Tt. 3:13; Veja-se G. D. Kilpatrick, “Apollos-Apelles”,
JBL 89 (1970): 77.
1169
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 233. No entanto, Martin Hengel dúvida do “valor
histórico” dessa afirmação. Acts and the History of the Earliest Christianity, trad. por John Bowden
(Filadélfia: Fortress, 1980), p. 107.
Atos (Simon J. Kistemaker) 920
1170
reino de Deus, e o caminho de Deus. Em resumo, através do ensino
oral, Apolo tinha aprendido o conteúdo do evangelho. 1171 Porém não
tinha aprendido de sua importância e aplicação.
c. Dócil. Apolo “começou a falar ousadamente na sinagoga”. Os
judeus em Éfeso não tinham rejeitado o ensino do evangelho. Tinham
pedido a Paulo que passasse mais tempo com eles (v. 20), deram as boas-
vindas a Priscila e a Áquila (v. 19), e convidaram Apolo a pregar Jesus.
Como não se tinha desenvolvido uma ação opositora ao cristianismo,
Apolo pôde falar abertamente e sem nenhum tipo de impedimento.
Entre os adoradores na sinagoga de Éfeso estavam Priscila e
Áquila. Quando eles ouviram Apolo, perceberam a deficiência que tinha
na apresentação do evangelho. Portanto, convidaram-no a vir a sua casa
para instruí-lo melhor na fé cristã.
“Priscila e Áquila, tomaram-no consigo e, com mais exatidão, lhe
expuseram o caminho de Deus”. Note-se, primeiro, que o nome de
Priscila precede ao de seu esposo, Áquila. Ela e seu esposo ensinaram ao
educado orador Apolo “o caminho de Deus”, uma forma para dizer “o
evangelho cristão e sua aplicação”. Imaginamos que Priscila e Áquila
mostraram a Apolo a significância da obra de Deus que se seguiu à
ressurreição e ascensão de Jesus Cristo. Logo, Apolo mostrou uma
notável circunspeção quando aceitou ir à casa de alguns fabricantes de
tendas e receber instrução não só de um humilde artesão mas também de
uma mulher. 1172 Apolo era um entendido nas Escrituras do Antigo
Testamento, mas carecia de conhecimento com relação ao “caminho de
Deus”. Por isso, Priscila e Áquila ensinaram este grande pregador a
ensinar mais corretamente as coisas relacionadas com Jesus.

1170
Consulte-se Rackham, Acts, p. 342.
1171
Refira-se a Klaus Wegenast, NIDNTT, vol. 3, pp. 771–72; Hermann Wolfgang Beyer, TDNT, vol.
3, pp. 638–40.
1172
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 145.
Atos (Simon J. Kistemaker) 921
O texto nada diz a respeito de que Apolo recebesse o dom do
Espírito Santo e o batismo cristão. “Se ele tinha recebido o batismo de
João antes de Pentecostes, seu batismo, como o dos Doze, seria aceito
como válido”. 1173 A passagem dá a entender que de Priscila e Áquila
Apolo aprendeu a importância do batismo cristão: o perdão de pecados
através do sangue de Cristo e a renovação de vida através do poder do
Espírito Santo. Devido à brevidade do relato de Lucas, sempre ficam
algumas perguntas sem responder relacionadas com esta passagem.
27, 28. Querendo ele ir para a Acaia, os irmãos o encorajaram e
escreveram aos discípulos que o recebessem. Ao chegar, ele auxiliou muito
os que pela graça haviam crido, pois refutava vigorosamente os judeus em
debate público, provando pelas Escrituras que Jesus é o Cristo [NVI].
a. “Querendo ele [Apolo] ir para a Acaia”. Depois de ter
transcorrido algum tempo, Apolo expressou aos crentes de Éfeso seu
desejo de ir à província de Acaia e a sua capital, Corinto (At 19:1). A
primeira epístola de Paulo aos coríntios indica que no curso do tempo, as
congregações de Corinto e Éfeso tinham desenvolvido um forte vínculo.
Não sabemos muito a respeito da formação da igreja de Éfeso enquanto
Paulo esteve ausente. Embora Lucas pareça indicar que Priscila e Áquila,
com a ajuda de Apolo, tinham formado um núcleo de crentes.
Priscila e Áquila tinham contado a Apolo a respeito do crescimento
espiritual da igreja em Corinto. Junto com os outros crentes de Éfeso,
animaram-no a visitar os cristãos em Acaia. Inclusive pediram aos
crentes coríntios que recebessem a Apolo como um irmão cristão. A
correspondência entre as igrejas e os indivíduos era algo comum, como
fica em evidência com a carta do Concílio de Jerusalém (At 15:23–29) e
as numerosas epístolas de Paulo, Pedro, João, Tiago e Judas como a
Epístola aos Hebreus.

1173
D. Edmond Hiebert, “Apollos”, ZPEB, vol. 1, p. 215. Compare G. W. H. Lampe, The Seal of the
Spirit, 2ª. ed. (Londres: SPCK, 1967), p. 66. Consulte-se também C. K. Barrett, “Apollos and the
Twelve Disciples of Ephesus”, em The New Testament Age: Essays in Honor of Bo Reicke, ed.
William C. Weinrich, 2 vols. (Macon, Ga.: Mercer University Press, 1984), vol. 1, p. 38.
Atos (Simon J. Kistemaker) 922
b. “Ele auxiliou muito os que pela graça haviam crido”. Apolo usou
seus conhecimentos das Escrituras e seus talentos de orador para
fortalecer a fé dos crentes de Corinto. Como resultado de seu trabalho, a
igreja coríntia chegou a ter uma facção conhecida como os seguidores de
Apolo (1Co 1:12; 3:4). Embora tenha repreendido os coríntios por ter
grupos dentro da igreja, Paulo falou favoravelmente de Apolo e seu
trabalho de ensinar e pregar as Escrituras a judeus e a gentios e fortalecer
a fé das igrejas em Acaia (1Co 3:5–6; 4:6; 16:12).
c. “Refutava vigorosamente os judeus em debate público, provando
pelas Escrituras que Jesus é o Cristo”. Na ausência de Paulo, os judeus
coríntios pareceram ganhar influência entre os cristãos com sua
interpretação das Escrituras. Mas quando chegou Apolo, confrontou-os
publicamente e provou com o Antigo Testamento que Jesus era o Cristo
(compare v. 5). Na providência de Deus, Apolo supriu o lugar de Paulo
em Corinto, e corajosamente defendeu a fé cristã de frente à oposição
judaica. Como Paulo e Silas proclamaram a Jesus como o Messias, assim
Apolo continuou em sua ausência com a gloriosa tarefa.

Palavras, frases e construções gregas em At 18:23–28


Versículo 23
διερχόμενος — o gerúndio segue ao verbo principal ἐξῆλθεν (foi
embora) e tem uma conotação futurista: “ir através”. 1174
τὴν χώραν — em At 16:6, o artigo definido com o substantivo
χώραν (região) inclui os dois adjetivos frígio e gálata. No versículo 23, o
artigo definido não se repete. “Portanto, não se pode tirar nenhuma
conclusão de um artigo”.1175

1174
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #339.2a.
1175
Robertson, Grammar, p. 788.
Atos (Simon J. Kistemaker) 923
Versículos 25–26
ἦν κατηχημένος — o particípio passivo perfeito do verbo κατηχέω
(faço soar abaixo, ensinar verbalmente) com a forma imperfeita do verbo
ser ou estar é uma construção perifrástica. O uso do particípio perfeito
em lugar do presente ou o aoristo mostra ação que teve lugar no passado
embora tenha seu efeito no presente.
ζέων τῷ πνεύματι — o dativo com o gerúndio tem um sentido
locativo e literalmente significa “fervendo em seu espírito”. 1176
ἀκριβέστερον — note-se a repetição do advérbio ἀκριβῶς (v. 25)
mas agora como um comparativo: “mais corretamente”.

Versículo 27
O Texto ocidental expande e parafraseia este versículo. As adições
estão em itálico: “Agora certos coríntios estavam em Éfeso, e tendo
ouvido [quer dizer, Apolo] insistiram-no a cruzar com eles a sua própria
terra. E quando ele teve aceito, os efésios escreveram aos discípulos em
Corinto que eles recebessem o homem, ele que tendo estado em Acaia
era uma grande ajuda às igrejas”. 1177
βουλομένου — o caso genitivo do particípio é parte da construção
genitiva absoluta. O tempo presente denota ação continuada.
διακατηλέγχετο — do verbo διακατελέγχομαι (eu refuto), este
composto (duas preposições com um verbo) significa perfeição. O tempo
imperfeito descreve ação repetida.

1176
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
227.
1177
Metzger, Textual Commentary, pp. 467–68.
Atos (Simon J. Kistemaker) 924
Resumo de Atos 18
Paulo chega a Corinto e se encontra com Áquila e Priscila, os quais,
como Paulo, são fabricantes de tendas. Quando Silas e Timóteo vêm até
ele procedentes da Macedônia, ele se dedica completamente a pregar a
mensagem que Jesus é o Cristo. Como alguns judeus se opõem, Paulo
rompe com eles e se dispõe a ir aos gentios. Ensina na casa de Tício
Justo e batiza a família de Crispo. Jesus lhe aparece numa visão e o
instrui a permanecer em Corinto, que não tenha temor, e que não deixe
de falar. O Senhor lhe promete protegê-lo e acrescenta que tem muito
povo nessa cidade.
Os judeus acusam Paulo de ensinar uma forma de adoração
religiosa que é contrária à lei. No entanto, Gálio, o procônsul, faz uma
distinção entre lei criminal e lei religiosa e diz aos judeus que resolvam o
problema entre eles mesmos. Sóstenes, o principal da sinagoga, recebe
uma surra diante de Gálio, mas este não intervém.
Na companhia de Priscila e Áquila, Paulo viaja a Éfeso, onde fala
na sinagoga. Continua sua viagem e chega a Cesareia; logo sobe a
Jerusalém para visitar a igreja. Dali viaja a Antioquia e às igrejas na
Galácia e Frígia.
Um judeu alexandrino, Apolo, quem é perito em interpretar as
Escrituras, ensina sobre Jesus, mas só conhece os ensinos de João
Batista. Quando Priscila e Áquila o escutam, convidam-no a sua casa
para dar-lhe mais instrução. Apolo viaja a Acaia, refuta os judeus em
debate público, e prova que Jesus é o Cristo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 925
ATOS 19
A TERCEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 2 (At 19:1–41)
B. Em Éfeso (At 19:1–41)

1. O batismo de João (At 19:1–7)

Nestes versículos, Lucas apresenta um relatório extremamente


breve sobre a reunião de Paulo em Éfeso com doze discípulos. Devido à
sua brevidade, Lucas põe o expositor num apuro. Para ilustrá-lo, em seu
Evangelho Lucas diz que João Batista começou seu ministério no ano
quinze do reinado de Tibério César (veja-se Lc 3:1–3). Uma data
provável seria os anos 25–26 d.C. Num breve período de tempo, João
Batista foi detido e logo decapitado por Herodes Antipas (veja-se Mt
14:3–12). Seu ministério e influência tinham terminado. Mas em Atos,
Lucas diz que, perto de três décadas depois da morte de João, algumas
pessoas que tinham sido batizadas com o batismo de João viviam não na
Judeia mas em Éfeso. E Lucas os chama discípulos.
Mas, qual é a importância da palavra discípulos com relação à fé
cristã? E o que se entende por “ser batizado com o batismo de João”? É o
segundo batismo só dos discípulos? Estas são perguntas complicadas
nesta passagem em particular.
1-3. Enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo, atravessando as
regiões altas, chegou a Éfeso. Ali encontrou alguns discípulos e lhes
perguntou: “Vocês receberam o Espírito Santo quando creram?” Eles
responderam: “Não, nem sequer ouvimos que existe o Espírito Santo”.
“Então, que batismo vocês receberam?”, perguntou Paulo. “O batismo de
João”, responderam eles [NVI].
a. Éfeso. Mesmo que Lucas apresente a Apolo no capítulo anterior
(Atos 18) e mencione seu nome neste capítulo (Atos 19), em nenhuma
Atos (Simon J. Kistemaker) 926
parte diz que Paulo e Apolo se encontraram. Só diz que enquanto Apolo
estava em Corinto, Paulo viajou de Antioquia da Pisídia através das
regiões interiores (segundo o texto grego, as zonas mais altas) da Ásia
Menor e chegou a Éfeso. Paulo tinha prometido aos judeus em Éfeso que
voltaria a visitá-los, se Deus o permitia, para lhes instruir mais (cf. At
18:19–21). Embora numa ocasião anterior o Espírito Santo o tinha
impedido de entrar na província da Ásia (At 16:6), Paulo considerava
Éfeso um ponto-chave para a propagação do evangelho.
Situada ao sul do rio Caistro e a quase 5 km. ao interior do Mar
Egeu, Éfeso era uma encruzilhada para a estrada costeira que ia do norte
ao sul e a estrada que se estendia a leste, a Laodiceia e à região de Frígia
(Antioquia da Pisídia). Em séculos anteriores, Éfeso, onde o tráfico do
mar se unia com o de terra, tinha sido o principal centro do comércio na
província da Ásia. Porém, nos dias de Paulo, o porto de Éfeso estava tão
cheio de sedimento que as embarcações tinham dificuldade para atracar
ali pelo que buscavam outro lugar.
Embora a deterioração do porto tivesse provocado a inevitável
decadência de Éfeso como ponto de influência comercial, não obstante
tinha ultrapassado a Pérgamo em importância quando os romanos a
fizeram a capital provincial da Ásia (Turquia ocidental) para o final do
século I a.C. Nos meados daquele século, é possível que a cidade tenha
tido mais de duzentos mil habitantes; as escavações arqueológicas
encontraram o antigo teatro, o qual se estima que tinha capacidade para
vinte e quatro mil pessoas. De mais significado era o templo da deusa
Ártemis. O templo, que era o edifício maior de que se tenha
conhecimento naquele tempo e que era uma das sete maravilhas do
mundo antigo, atraía multidões de adoradores a Éfeso. E aqui os ourives
tinham desenvolvido um possante negócio, fabricando altares e imagens
de prata de Ártemis.
b. Os discípulos. Quando Paulo chegou a Éfeso, sem dúvida que se
reuniu com Priscila e Áquila, aqueles que certamente lhe informaram a
respeito do trabalho de Apolo na sinagoga local. Pouco depois, Paulo
Atos (Simon J. Kistemaker) 927
reuniu a um grupo de doze homens a aqueles que Lucas descreve como
discípulos. A palavra discípulos, que Lucas em Atos usa para descrever
aos crentes cristãos, é usualmente um sinônimo para “seguidores de
Cristo”. Paulo parece dar a estas pessoas o benefício da dúvida, porque
usa o verbo crer, com a implicação de que eles criam em Cristo.
Pergunta-lhes: “Vocês receberam o Espírito Santo quando creram?”
Mas estes discípulos lhe responderam: “Não, nem sequer ouvimos
que existe o Espírito Santo”. Esta afirmação em si mesma parece
inconcebível, porque o Antigo Testamento ensina a doutrina do Espírito.
E a evidência da presença do Espírito foi óbvia na vida de João (cf. Lc
1:15). O escriba do Texto ocidental enfrentou este problema e fez os
discípulos dizerem: “Nem sequer ouvimos se as pessoas estão recebendo
o Espírito Santo”. 1178 Mas os tradutores duvidam quanto a usar esta
forma, devido à insinuação usual dos escribas de revisar o texto e torná-
lo mais fácil de entender aos leitores. Prevalece, no entanto, a forma
mais difícil: “que se existe o Espírito Santo”.
O fato de que os discípulos em Éfeso mostrem ignorância a respeito
da presença do Espírito provoca perguntas, porque um cristão sem o
Espírito é uma contradição. Fé (ou crença) sem o Espírito é nada mais
que um consentimento sem compromisso. Além disso, eram estes
homens seguidores de Cristo? Tinham sido batizados no nome de Jesus?
O Novo Testamento ensina que “ninguém que não tenha recebido o
batismo cristão pode ser parte da comunidade de fé”. 1179
Paulo queria saber mais quanto à base espiritual destes discípulos e
lhes perguntou: “Então, que batismo vocês receberam?” Os discípulos

1178
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York; Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 469.
1179
Ernst Käsemann, “The Disciples of John the Baptist in Ephesus”, em Essays on New Testament
Themes,‚ série Studies in Biblical Theology 41 (Londres: SCM, 1964), p. 144. Consulte-se C. K.
Barrett, “Apollos and the Twelve Disciples of Ephesus” en The New Testament Age: Essays in Honor
of Bo Reicke, ed. William C. Weinrich, 2 vols. (Macon, GA.; Mercer University Press, 1984), vol. 1,
p. 30. Mas veja-se F. W. Norris, “Christians only, but not the only Christians (Acts 19:1–7)”, ResQ 28
(1985–86); 97–105.
Atos (Simon J. Kistemaker) 928
simplesmente responderam: “O batismo de João”. Sua resposta pode
indicar que eles eram na verdade discípulos de João Batista, que tinham
sido batizados por seu mestre ou por um de seus seguidores, e que se
tinham trasladado da Judeia a Éfeso. C. K. Barrett escreve: “Há uma boa
embora pouco contundente razão para pensar que grupos de discípulos
de João existiam depois da morte de seu mestre, e mesmo depois da
morte e ressurreição de Jesus”. 1180
Note-se a diferença entre Apolo e estes discípulos. Apolo conhecia
só o batismo de João mas ensinava corretamente a respeito de Jesus com
um amplo conhecimento das Escrituras (At 18:24–25); os discípulos
tinham o batismo de João mas careciam de conhecimento sobre o
Espírito Santo. Embora estivessem aprendendo a respeito de Jesus,
mantiveram-se estreitamente associados com João Batista. Eles
perderam a prazerosa segurança do Espírito em suas vidas, não tinham
uma relação viva com Jesus, e lhes disse que o batismo de João era
inadequado. Estavam numa fase que era introdutória à fé cristã. E devido
ao fato de que se encontravam nesta fase, Lucas e Paulo usam com
cautela os termos discípulos (aprendizes) e crer (consentir). 1181
Da forma em que Priscila e Áquila ensinaram Apolo a respeito do
evangelho de Cristo e o animaram, assim Paulo guiou estes seguidores
de João a um conhecimento salvífico de Jesus. Desta maneira Paulo
confirmou as palavras que João Batista pronunciou ao comparar Cristo
consigo mesmo: “É necessário que ele cresça, mas que eu diminua” (Jo
3:30).
4. Disse-lhes Paulo: João realizou batismo de arrependimento,
dizendo ao povo que cresse naquele que vinha depois dele, a saber, em
Jesus.

1180
Barrett, “Apollos and the Twelve Disciples”, p. 37. J. D. G. Dunn observa contra chamar estes
discípulos efésios simplesmente “discípulos de João Batista”. Baptism in the Holy Spirit, Studies in
Biblical Theology, 2ª. série 15 (Londres: SCM, 1970), p. 84.
1181
Em Atos, o verbo crer é usado ocasionalmente para significar consentir mas sem devoção (veja-
se, p. ex., At 8:13).
Atos (Simon J. Kistemaker) 929
Os discípulos revelam que eles não são leais aos ensinos de João
Batista, quem disse que ele era o precursor do Messias. Eles certamente
devem ter ouvido as palavras de João e aceitado a Jesus como seu
Messias. Por essa razão, Paulo os refere ao ministério e aos ensinos do
Batista. (Mt 3:11; At 1:5; 10:37; 13:24–25).
a. “Batismo de arrependimento”. Com o fim de oferecer uma suave
tradução ao português, pode acrescentar-se o objeto direto ao povo.
Neste ponto, o grego é conciso: “João batizava um batismo de
arrependimento”. Realmente, a palavra batizava tem a conotação de
pregava (veja-se Mc 1:4). João chamou o povo ao arrependimento, e
quando se arrependeram, batizou-os como um sinal de purificação
espiritual. Mas a pregação de João foi preparatória à vinda do Messias,
porque não João, e sim Jesus podia purificar o povo de seu pecado. Em
sua pregação, João apontou Àquele que vinha depois dele e que batizaria
o povo com o Espírito Santo (Mt 3:11; Mc 1:8; Lc 3:16).
b. “Cresse naquele que vinha depois dele”. Paulo instrui aos
homens que tinham o batismo de João não lhes falando a respeito do
Espírito Santo, e sim lhes apresentando a Jesus, que veio depois de João.
Seu objetivo é que eles venham à fé em Jesus. Ao alcançar seu propósito,
Paulo faz com que o ministério do Batista ceda efetivamente a Cristo. E
este foi exatamente o propósito do ministério do Batista. Depois desta
referência, o nome de João não volta a aparecer em Atos.
5. Eles, tendo ouvido isto, foram batizados em o nome do Senhor
Jesus.
Paulo guia estes discípulos a Jesus Cristo, em quem põem sua
confiança. Indica-lhes a diferença entre a obra preparatória de João e a
obra mediadora de Jesus. A pregação e o batismo de João demandam o
arrependimento dos pecados. Obediência à mensagem do evangelho e
um desejo de batizar-se em o nome de Jesus descansam sobre a
verdadeira fé em Cristo. Ao ouvir a instrução de Paulo, estes homens
ouvem e entendem a mensagem do evangelho. Por fé aceitam a palavra
de salvação e pedem para ser batizados no nome de Jesus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 930
Era necessário batizar de novo estes discípulos? O Novo
Testamento não é explícito neste ponto; por exemplo, Lucas não diz se
Apolo, que conhecia o batismo de João, foi rebatizado (At 18:25). João
Calvino, portanto, interpreta o batismo dos discípulos em Éfeso como a
vinda do Espírito Santo sobre eles (v. 6). Diz ele: “Não nego que o
batismo de água foi feito outra vez”. 1182 Mas a sequência na narração é
que estes homens são batizados e logo recebem a imposição das mãos, a
qual é seguida pelo derramamento do Espírito Santo. Outros intérpretes
veem o batismo de João como uma introdução ao batismo no nome de
Jesus. 1183 Por exemplo, muitos dos três mil judeus que se arrependeram e
foram batizados no Pentecostes (At 2:41) presumivelmente já tinham
recebido o batismo de João no Jordão. O batismo de João aponta para
Cristo, mas o batismo no nome de Jesus olha para trás, rumo à obra
realizada por Cristo.
Num poema chamativo, Dora Greenwell captou o pensamento de
perdão dos pecados que olha para Cristo e canta:
Eu não posso entender
O que Deus desejou,
o que Deus planejou;
Só sei que à Sua destra
Está meu Salvador.
6, 7. E, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo;
e tanto falavam em línguas como profetizavam. Eram, ao todo, uns doze
homens.
João pregava o arrependimento e o perdão, porém não pôde
purificar o povo de seus pecados. Pelo contrário, Jesus perdoa os
pecadores e os restaura completamente. João falou com sua audiência do

1182
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 151.
1183
J. K. Parratt, “The Rebaptism of the Ephesian Disciples”, ExpT 79 (1967–68); 182–83; Henry
Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4 vols. (1877;
Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 211.
Atos (Simon J. Kistemaker) 931
batismo do Espírito Santo, porém não pôde dar a ninguém o dom do
Espírito. Jesus, contudo, prometeu o derramamento do Espírito Santo,
quem no tempo preciso veio sobre os judeus em Jerusalém, os
samaritanos em Samaria, e os gentios em Cesareia.
Pela quarta vez o Espírito é derramado sobre um grupo de pessoas.
Primeiro tinha sido sobre os judeus em Jerusalém, os samaritanos e os
gentios em Cesareia; agora os discípulos em Éfeso o recebem. O texto
diz, além disso, que Paulo impôs as mãos sobre os discípulos. Em só três
lugares em Atos lemos que a imposição das mãos vai acompanhada pelo
derramamento do Espírito: em At 8:17, sobre os samaritanos; em At
9:17, sobre Paulo; e aqui, sobre os discípulos de João. Em outros
exemplos, o ato simbólico de impor as mãos ocorre em cerimônias de
ordenação. 1184
A vinda do Espírito Santo sobre os discípulos em Éfeso é
comparável com as experiências dos apóstolos em Jerusalém (At 2:11) e
os gentios em Cesareia (At 10:44–46). Os discípulos em Éfeso começam
a falar em línguas e a profetizar. Em Jerusalém, os apóstolos falaram em
outros (quer dizer, conhecidos) idiomas e declararam as maravilhas que
Deus fez; em Cesareia, os gentios se expressaram em línguas e louvaram
a Deus; e em Éfeso, os discípulos falaram em línguas e profetizaram. A
palavra profetizar nestes contextos comunica a ideia de glorificar o nome
de Deus e dar testemunho de Jesus.
Note-se que Lucas não oferece explicação sobre se os convertidos
em Cesareia e em Éfeso falaram línguas conhecidas ou enlevadas. Em
ambos os casos (At 10:46; 19:6) não há indicação de que se tenha
necessitado de intérpretes para explicar as palavras daqueles que
falavam. Devido ao fato de que a evidência em Atos não é concludente, é
sábio cuidar-se de não ser dogmático neste ponto.
Lucas acrescenta a informação de que doze homens neste grupo
foram batizados e receberam o Espírito Santo. A recepção do Espírito

1184
Veja-se At. 13:3; 1Tm. 4:14; 5:22; 2Tm. 1:6; e refira-se a Hb. 6:2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 932
1185
Santo foi a prova final de que eram cristãos. O número doze nesta
passagem não deveria ser tomado simbolicamente ou ser comparado com
os doze discípulos de Jesus. Isso seria tirar algo do texto que não tem
intenção de ensinar. Por que foi derramado o Espírito Santo sobre estes
doze homens em Éfeso? Em cumprimento da promessa de Jesus (At
1:8), o Espírito desceu sobre os judeus, os samaritanos, e os gentios.
Depois que o Espírito foi derramado sobre os membros da casa de
Cornélio (p. ex. sobre os gentios [“até os confins da terra”, At 1:8]), a
promessa parece ter ficado cumprida. Como, então, devemos tomar o
fato de Éfeso? 1186
Uma possível resposta é considerar a extensão da igreja em
Jerusalém, Samaria, e Cesareia como uma primeira fase da obra
missionária entre os judeus, os samaritanos e os gentios. Uma segunda
fase tem que ver com o trabalho de evangelizar a pessoas que têm um
conhecimento inadequado de Cristo mas que mais tarde recebem
instrução na verdade do evangelho. Se considerarmos a primeira fase
extensiva, então a segunda é intensiva.

Considerações doutrinais em At 19:1–7


As quatro ocasiões em que o Espírito Santo é derramado conforme
o registra o livro de Atos são confirmadas pelos apóstolos: em Jerusalém
pelos Doze, em Samaria por Pedro e João, em Cesareia por Pedro, e em
Éfeso por Paulo.
Ensina Atos que o batismo no Espírito dá como resultado a
glossolalia? A resposta é não. Primeiro, o derramamento do Espírito em
Éfeso não é um batismo no Espírito mas um batismo no nome de Jesus.
Depois que é para confirmar que agora eles são cristãos que tiveram uma

1185
Consulte-se Dunn, Baptism in the Holy Spirit, p. 88.
1186
F.F. Bruce vá Éfeso como “o novo centro da missão aos gentios” e aos discípulos cheios do
Espírito Santo como “o núcleo da igreja efésia”. The Book of Acts, ed. rev., série New International
Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 365.
Atos (Simon J. Kistemaker) 933
verdadeira experiência de conversão. Segundo, numerosas pessoas foram
batizadas, porém não falaram em línguas: os três mil crentes em
Jerusalém no dia do Pentecostes (At 2:41); o oficial etíope (At 8:38–39);
Paulo em Damasco (At 9:18); Lídia e sua família (At 16:15); e o
carcereiro de Filipos e sua família (At 16:33). Terceiro, muitas pessoas
que creem, enche-se com o Espírito Santo. porém não falam em línguas
estáticas: Pedro diante do Sinédrio (At 4:8); Estêvão em seu sermão
diante do Sinédrio (At 7:55); e Paulo em seu enfrentamento a Elimas (At
13:9).
Em resumo, o Novo Testamento não respalda a crença que diz que
a recepção do Espírito Santo dá como resultado o falar em línguas.1187
Por outro lado, a evidência histórica em Atos mostra que todos aqueles
cristãos que foram cheios com o Espírito testificaram inteligivelmente de
Cristo Jesus.

Palavras, frases e construções gregas em At 19:1–7


Versículo 1
Para a primeira frase, o Texto ocidental tem uma variante, que a
seguir aparece em itálico: “E embora Paulo desejava, segundo seu
próprio plano, ir a Jerusalém, o Espírito lhe disse que voltasse para a
Ásia. E tendo passado pelas regiões altas, veio para Éfeso”. 1188
O escriba do Texto ocidental procurou unir At 19:1 (Paulo
retornando a Éfeso logo que pôde) com At 18:22, onde Lucas escreve
que Paulo foi a Cesareia e então “subiu e saudou a igreja”. Mas a
informação em At 18:23 contradiz a variante em questão.

1187
Consulte-se Anthony A. Hoekema, Holy Spirit Baptism (Grand Rapids: Eerdmans, 1972), pp. 44–
45.
1188
Metzger, Textual Commentary, p. 468.
Atos (Simon J. Kistemaker) 934
Versículo 2
εἰ — o primeiro εἰ incorpora uma pergunta direta. Não está
traduzida e deriva da tradução literal da Septuaginta da sintaxe hebraica:
‘Receberam …?” O tempo do particípio aoristo πιστεύσαντες (quando
creram) é simultâneo com o do verbo principal ἐλάβετε (receberam). 1189
O segundo εἰ (se) está numa pergunta indireta.

Versículo 3
εἰς τί — “em que?” significa “como?” A preposição εἰς en εἰς τό é o
equivalente do dativo, “com”.

Versículo 6
O escriba no Texto ocidental embelezou o texto no final da
cláusula: “eles começaram a falar em línguas”. O agregado está em
itálico: “outras línguas, e eles mesmos as conheciam, as quais eles
mesmos interpretaram; e alguns também profetizaram”. 1190

2. O ministério de Paulo (At 19:8–12)

Quando Lucas escreve que Paulo entrou na sinagoga, não tem a


intenção de dizer que, uma vez que retornou a Éfeso, primeiro se reuniu
com os doze discípulos de João (vv. 1, 7) e logo foi à sinagoga. Em lugar
disso, relaciona dois episódios históricos separados que puderam ter
ocorrido mais ou menos ao mesmo tempo. Informa primeiro do
ministério de ensino de Paulo com relação aos seguidores de João Batista
e logo às pessoas da sinagoga local.

1189
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 861.
1190
Metzger, Textual Commentary, p. 470.
Atos (Simon J. Kistemaker) 935
8. Paulo entrou na sinagoga e ali falou com liberdade durante três
meses, argumentando convincentemente acerca do Reino de Deus [NVI].
Quando Paulo se deteve brevemente em Éfeso em sua viagem a
Jerusalém (At 18:19), imediatamente foi à sinagoga, onde discorreu com
os judeus. Sua audiência estava encantada com seu ensino e lhe pediram
que permanecesse. Embora ele declinasse o convite, de qualquer maneira
lhes prometeu que voltaria. Lucas dá a impressão de que Paulo e sua
audiência judaica tinham desenvolvido uma relação amigável. Quando
Paulo retornou a Éfeso, foi imediatamente à sinagoga e se dedicou
intensamente ao ministério do ensino. Graças à sua relação amistosa com
os judeus dali, pôde ensinar-lhes durante três meses. Em outras partes,
Paulo tinha ensinado as pessoas nas sinagogas por períodos limitados,
mas em Éfeso pôde fazê-lo por uma temporada completa.
Durante estes três meses, Paulo dissertou sobre o reino de Deus. Em
Atos, pregar o reino de Deus significa proclamar a Palavra do Senhor,
quer dizer, o evangelho. 1191 Por exemplo, no mesmo contexto (v. 10),
Lucas escreve que os judeus e os gregos ouviram “a palavra do Senhor”;
em At 20:24–25, ele usa os termos o evangelho da graça e o reino como
sinônimos; e em At 28:30–31, escreve que Paulo, preso sob prisão
domiciliar em Roma, proclamava o reino de Deus e a Jesus a todos os
que o visitavam. Em Éfeso, o choque entre o reino de Deus e o governo
idólatra de Satanás fez-se evidente quando os fabricantes de pequenos
altares e imagens provocaram uma revolta (vv. 23–41). Até alguns
judeus que tinham escutado a Paulo difamaram a fé cristã (v. 9).
9, 10. Mas alguns deles se endureceram e se recusaram a crer, e
começaram a falar mal do Caminho diante da multidão. Paulo, então,
afastou-se deles. Tomando consigo os discípulos, passou a ensinar
diariamente na escola de Tirano. Isso continuou por dois anos, de forma

1191
Consulte-se George E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974),
p. 333; veja-se também seu “Kingdom of God (Heaven)”, BEB, vol. 2, p. 1277. E refira-se a Donald
Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 429.
Atos (Simon J. Kistemaker) 936
que todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia ouviram
a palavra do Senhor [NVI].
a. “Mas alguns deles se endureceram e se recusaram a crer”. Paulo
continuou seu ministério de ensino na sinagoga efesiana, mas ao fim de
três meses percebeu que a oposição de uma minoria de judeus não o
estorvava. Estas pessoas se voltaram contra ele e gradualmente
endureceram seus corações demonstrando desobediência a Deus e a Sua
palavra.
b. “Começaram a falar mal do Caminho diante da multidão”. Estes
judeus incrédulos fizeram público seu ódio, caluniando os ensinos da fé
cristã. Lucas diz que os judeus difamaram o Caminho. O termo Caminho
era uma forma em que os próprios crentes referiam-se à igreja. Talvez
nas primeiras décadas da existência da igreja os cristãos o tenham usado
como um termo missionário.1192 Como um interessante paralelo, Lucas
diz que antes de sua conversão, Paulo buscava colocar no cárcere as
pessoas que pertencessem ao Caminho (At 9:2). Mas anos mais tarde,
Paulo mesmo teve que suportar a oposição de seus compatriotas judeus
em Éfeso, quando desprezaram os membros do Caminho.
c. “Paulo, então, afastou-se deles. Tomando consigo os discípulos,
passou a ensinar diariamente na escola de Tirano”. Seguindo um padrão
estabelecido, Paulo tirou seus estudantes da escola da sinagoga. Para
buscar outro local onde reunir-se, encontrou um salão de conferências de
um tal Tirano. Não temos outro conhecimento de Tirano. 1193 É provável
que Tirano tenha sido um apelido dado por seus alunos.
O Texto ocidental acrescenta a interessante nota de que Paulo dava
suas aulas “da hora quinta à hora décima”, isto é, das 11 da manhã até as
4 da tarde. Tirano usava o salão em horas da manhã; e quando o calor do
1192
Günther Ebel, NIDNTT, vol. 3, p. 941. S. V. McCasland afirma que o termo o Caminho “como
uma designação de cristianismo se derivava de Isaías 40:3 e que é uma forma abreviada de ‘o caminho
do Senhor’ ”. A forma chegou ao cristianismo via Qumran e João Batista. “TheWay”, JBL 77 (1958):
230.
1193
Um dos guarda-costas de Herodes o Grande também chamava-se Tirano. Josefo Antiguidades
16.10.3 [314].
Atos (Simon J. Kistemaker) 937
dia aumentava e quando desfrutava do almoço e da sesta, Paulo podia
usar o local. Supomos que para sustentar-se financeiramente, tenha
trabalhado na fabricação de tendas durante as horas da manhã (veja-se At
18:3; 20:34; 1Co 4:12). Com doações de outras pessoas, é possível que
tenha podido pagar o aluguel do salão, em que ensinava os seus alunos
por cinco horas, com um apropriado tempo para descanso.
Há razões para crer que a nota adicional do Texto ocidental é
autêntica, embora os tradutores duvidam de torná-la parte do texto do
Novo Testamento. Perguntam-se por que esta peça de informação, se for
genuína, foi apagada dos principais manuscritos.
d. “Passou a ensinar diariamente na escola de Tirano”. Em Éfeso,
Paulo abriu uma escola de teologia para treinar aos futuros líderes para o
desenvolvimento da igreja na província da Ásia. É possível que estes
estudantes tenham sido empregados sobre uma base regular desde cedo
na manhã até as onze, para logo dedicar-se à instrução religiosa. 1194 As
longas horas de trabalho e estudo dão fé do entusiasmo dos primeiros
cristãos, e tal testemunho não se perdeu no mundo pagão.
e. “Isso continuou por dois anos”. Paulo ensinou diariamente no
salão de conferências dos efésios por dois anos. Em números redondos
(três meses de ensino na sinagoga local e dois anos no salão de
conferências), o curso completo de estudo durou perto de três anos (At
20:31). E na cultura judaica dos dias de Paulo, parte de um ano era
considerada um ano completo. Em conclusão, tanto o mestre como os
estudantes demonstraram uma indomável vontade de ganhar a vida e
promover o evangelho.
f. “Todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia
ouviram a palavra do Senhor”. De Éfeso, a palavra do Senhor alcançou a
judeus e gregos que viviam na província da Ásia. Supomos que os
estudantes treinados por Paulo chegaram a ser pastores em novas
congregações no ocidente da Ásia Menor (cf., p. ex., a referência às sete

1194
Gerald F. Hawthorne, “Tyrannus”, vol. 4, p. 932.
Atos (Simon J. Kistemaker) 938
igrejas [Ap 1:11]). Estes discípulos foram de grande ajuda na pregação
do evangelho de Cristo; quer dizer, a palavra do Senhor, tanto a judeus
como a gregos. Por exemplo, Epafras foi um fiel ministro do evangelho
em Colossos (Cl 1:7), Laodiceia e Hierápolis (Cl 4:12–13). Esteve com
Paulo em Roma durante o primeiro encarceramento do apóstolo e
chegou a ser seu companheiro da prisão. De igual maneira Tíquico,
natural da província da Ásia (At 20:4), foi um estreito companheiro;
Paulo refere-se a ele como um conservo (Cl 4:7) e um fiel ministro (Ef
6:21). Logo vem Trófimo, também oriundo da Ásia (At 20:4). E
finalmente, Filemom e Arquipo, conservos e companheiros de milícia
com Paulo em Colossos (Fm 1–2). 1195
Consideremos os seguintes pontos:
Primeiro, é possível que os discípulos (v. 9) que tinham sido
batizados com o batismo de João estivessem entre os alunos de Paulo.
Logo, é um fato que durante décadas, Éfeso foi o centro evangelístico
para a igreja cristã na Ásia Menor ocidental (compare Ap 2:1–7). Por
último, Éfeso é o único lugar onde Paulo, durante suas viagens
missionárias, passou três anos num ministério de ensino. Seu sucessor
foi Timóteo (1Tm. 1:3), e em anos posteriores o apóstolo João serviu na
igreja de Éfeso.
11. E Deus, pelas mãos de Paulo, fazia milagres extraordinários, a
ponto de levarem aos enfermos lenços e aventais do seu uso pessoal,
diante dos quais as enfermidades fugiam das suas vítimas, e os espíritos
malignos se retiravam.
Em Atos observamos um interessante paralelismo. Depois de
derramar o Espírito Santo no Pentecostes, Deus realizou extraordinários
milagres através dos apóstolos (At 2:43; e veja-se At 5:12). Antes que o
Espírito Santo viesse sobre os samaritanos, Deus realizou sinais
miraculosos através de Filipe (At 8:6, 13). Quando o Espírito Santo
desceu sobre os discípulos em Éfeso, Deus deu a conhecer Seu poder
1195
Consulte-se Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster
Commentaries (1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 352.
Atos (Simon J. Kistemaker) 939
através de milagres que Paulo realizou. Naturalmente, durante sua
primeira viagem missionária Deus tinha dado a Paulo tanto como a
Barnabé poder para realizar sinais miraculosos e maravilhas em Icônio
(At 14:3).
Há outro paralelismo que é óbvio: a sombra de Pedro caía sobre os
doentes, que eram curados enquanto ele passava (At 5:15); os lenços e
aventais de Paulo curavam os doentes. A referência no caso de Paulo é
um pano usado para secar a transpiração ou um objeto de proteção, que
certamente se sujavam e manchavam com o uso diário na oficina. Estas
objetos eram levados aos doentes que, ao tocá-los, seriam curados e
espíritos maus sairiam das pessoas possessas por demônios.
Notemos o seguinte no serviço de Paulo ao Senhor:
a. Deus, e não Paulo, é o operador de milagres. É verdade que o
povo de Éfeso atribuía a Paulo um poder sobrenatural para curar os
doentes; no entanto, Lucas claramente diz que Deus levava a cabo os
milagres através de Paulo.
b. Lucas, médico de profissão, chama estes milagres de
extraordinários. Quaisquer que tenham sido as maravilhas, eram
admiráveis aos olhos do povo. Incontáveis doentes foram curados, e
chegaram a ser receptores da graça de Deus, ouvindo o evangelho de
salvação proclamado publicamente por Paulo.
c. Além de ensinar o evangelho abertamente e de realizar milagres
de cura, Paulo também difundiu as Boas Novas de casa por casa (At
20:20). Dirigindo-se tanto a judeus como a gregos, admoestou-os a
arrepender-se, voltar-se a Deus, e pôr sua fé em Cristo Jesus (At 20:21).
d. Paulo disputou pela unidade da igreja, a qual ele considerava o
corpo de Cristo. 1196 Em Éfeso, ele recebeu informação a respeito de
grupos e disputas na igreja de Corinto (1Co 1:11–12). Uma delegação de
três pessoas lhe informou pessoalmente da situação em Corinto (1Co
16:17). Em resposta, Paulo escreveu as duas epístolas canônicas aos

1196
1Co. 12:12–27; Ef. 1:22–23; 4:12; Cl. 1:18, 24.
Atos (Simon J. Kistemaker) 940
coríntios e outras duas que já não existem (veja-se 1Co 5:9; 2Co 2:4).
Além disso, Paulo mesmo decidiu visitar a igreja em Corinto, mas esta
visita provou ser uma dolorosa experiência para ele (2Co 2:1).
Paulo trabalhou incessantemente para o avanço do reino de Deus, o
crescimento e desenvolvimento da igreja de Cristo, a proclamação do
evangelho da graça de Deus, e a salvação dos pecadores.

Considerações doutrinais em At 19:11–12


Ao ler esta passagem em particular, invariavelmente pensamos que
o povo de Éfeso era supersticioso. Eles esperavam ser curados de suas
doenças com apenas tomar algum objeto de vestir que tivesse tocado a
pele de Paulo. Parecem considerar Paulo quase divino pelos poderes de
cura que possuía.
No entanto, Lucas não dá indicação de que o povo adorou a Paulo
ou que fez de seus lenços e aventais objetos de idolatria. Calvino assinala
que se escolheram aqueles objetos sem valor precisamente para que o
povo não caísse na superstição e a idolatria. 1197
A atenção está em Deus, quem cura o povo fisicamente e o restaura
espiritualmente através da pregação do evangelho. Deus leva a cabo
“milagres extraordinários” como o diz Lucas. Mostra o Seu poder para
que o povo se volte para Ele em fé e obtenha a salvação. Os milagres e a
fé são os dois lados de uma mesma moeda. Nas palavras do escritor dos
Hebreus: “A qual [salvação], tendo sido anunciada inicialmente pelo
Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram; dando Deus
testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios e vários milagres
e por distribuições do Espírito Santo, segundo a sua vontade” (Hb 2:3–
4).

1197
Calvino, The Acts of the Apostles, vol. 2, p. 155.
Atos (Simon J. Kistemaker) 941
Palavras, frases e construções gregas em At 19:11
δυνάμεις τε οὑ τὰς τυχούσας — “milagres, não dos comuns”. Aqui
temos uma das características descrições incompletas de Lucas, na qual
expressa o negativo para acentuar o positivo (cf. v. 24). O uso da
partícula οὑ em lugar de μή, para negar o particípio aoristo τυχούσας,
aponta à natureza extraordinária dos milagres.

3. O nome de Jesus (At 19:13–20)

Entre as pessoas que foram curada por Paulo em Éfeso havia alguns
possessos de demônios. Assim como Jesus deu aos doze discípulos
autoridade sobre os espíritos maus (Mc 6:7), assim Deus dotou Paulo
com poder para expulsar demônios das pessoas afligidas por este mal.
Paulo entrou nos domínios de Satanás e com a soberania que Deus lhe
tinha dado, disse aos demônios que saíssem.
13, 14. Alguns judeus que andavam expulsando espíritos malignos
tentaram invocar o nome do Senhor Jesus sobre os endemoninhados,
dizendo: “Em nome de Jesus, a quem Paulo prega, eu lhes ordeno que
saiam!” Os que estavam fazendo isso eram os sete filhos de Ceva, um dos
chefes dos sacerdotes dos judeus.
a. Exorcismo. Ao escrever Atos, Lucas apresenta com frequência
primeiro o ambiente e logo o evento específico. Por exemplo, revela a
informação geral de que o Senhor fez numerosos sinais miraculosos e
maravilhas através de Paulo e Barnabé (At 14:1–7). Logo relata a
história de Paulo curando o paralítico em Listra (At 14:8–10). De igual
modo, depois de descrever o ambiente em Éfeso, dá detalhes de um caso
particular de judeus exorcistas procurando expulsar um demônio.
Pelos Evangelhos sabemos que os judeus em Israel expulsavam
demônios (Mt 12:27; Lc 11:19). Além disso, o historiador judeu Josefo
informa que ele viu um compatriota expulsando um demônio de um
Atos (Simon J. Kistemaker) 942
1198
homem possuído, na presença do general romano Vespasiano. Às
vezes, os gentios pediam aos mestres judeus para realizar exorcismos.
Alguns destes mestres visitaram seus irmãos judeus que viviam na
dispersão e usaram fórmulas mágicas para conjurar os maus espíritos.
Devido ao fato de que com frequência as fórmulas falhavam, os magos
viam-se forçados a aprender novos conjuros para melhorar suas
argúcias. 1199 Uma quantidade de manuscritos antigos dão testemunho de
uma variedade de encantamentos que os judeus exorcistas empregavam,
e, como este relato o revela, a cidade de Éfeso provou ser um armazém
de rolos mágicos.
Os judeus exorcistas que viram Paulo expulsar os demônios em o
nome de Jesus ficaram intrigados. Perceberam que seus próprios poderes
mágicos tinham falhado, mas as palavras pronunciadas por Paulo
provaram ser eficazes. Os apóstolos curavam as pessoas em o nome de
Jesus, não como praticantes de uma magia senão para demonstrar a
autoridade de Jesus (cf. At 3:6). O termo nome refere-se à pessoa,
palavras, e obras de Jesus, por isso, aquele que usar este nome identifica-
se completamente com o possuidor do mesmo e chega a ser Seu
verdadeiro representante. Portanto, os incrédulos jamais poderão usar o
poder do nome de Jesus.
Os enganadores judeus em Éfeso diriam aos espíritos maus: “Em
nome de Jesus, a quem Paulo prega, eu lhes ordeno que saiam!”. Seu
conjuro é derivativo, porque inclui o nome de Paulo. Além disso, eles se
expõem a si mesmos como incrédulos, porque suas palavras mostram
que é Paulo, não eles, quem serve a Jesus. Em contraste, consideremos o
homem quem expulsou demônios no nome de Jesus. Jesus ordenou a
Seus discípulos não deter este homem, porque “quem não é contra nós, é

1198
Josefo Antiguidades 8.2.5 [46–49].
1199
Adolf Deissmann traduziu um fragmento de um papiro que dizia: “Conjuro-te por Jesu o deus dos
hebreus”. Deissmann comenta que ou nome Jesu é uma inserção: “nenhum cristão, a menos que fosse
um judeu, chamaria Jesus ‘o deus dos hebreus’ ”. Light from the Ancient East, ed. rev. e trad. por
Lionel R. M. Strachan (Nova York: Doran, 1927), p. 260 n.4.
Atos (Simon J. Kistemaker) 943
por nós” (Lc 9:50). Evidentemente, o homem cria em Jesus e era Seu
seguidor.
b. Ceva. Lucas assinala três fatos a respeito de Ceva: Era um judeu,
era um sumo sacerdote, e era pai de sete filhos. Durante o primeiro
século, os magos judeus tinham bastante influência (p. ex. o mago judeu
Barjesus, que era um assistente do procônsul Sérgio Paulo [At 13:6–7]).
Não temos evidência de que Ceva tenha servido como sumo sacerdote no
templo de Jerusalém; portanto, não temos que supor que desempenhava
uma posição de autoridade. Josefo indica que alguns homens que eram
chamados sumos sacerdotes nunca agiam em tal capacidade. 1200 É
possível crer, no entanto, que este judeu se chamasse a si mesmo sumo
sacerdote para seu próprio benefício e que vivesse com seus filhos na
dispersão. 1201 De novo, Lucas falha em indicar se o próprio Ceva estava
em Éfeso; só diz que estavam ali seus sete filhos. Pela falta de evidência
sólida quanto ao nome e ofício de Ceva, atrevemo-nos a pensar que estes
filhos pertenciam a uma família sacerdotal e praticavam o exorcismo.1202
De fato, o Texto ocidental usa a expressão sacerdote em lugar de “sumo
sacerdote”. 1203
15, 16. Mas o espírito maligno lhes respondeu: Conheço a Jesus e sei
quem é Paulo; mas vós, quem sois? E o possesso do espírito maligno
saltou sobre eles, subjugando a todos, e, de tal modo prevaleceu contra
eles, que, desnudos e feridos, fugiram daquela casa.

1200
Josefo Guerra Judaica 2.20.4 [566]; 4.9.11 [574]; 5.13.1 [527]. Dos escritos de Josefo, Emil
Schürer compilou uma lista de vinte e oito sumo sacerdotes que foram nomeados entre os anos 37 a.C.
e 67–68 d.C. The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D. 135), ed. rev.
por Geza Vermes e Fergus Millar. 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, pp. 229–32.
1201
Bruce, Book of the Acts, p. 368; Gary M. Burge, “Sceva”, ISBE, vol. 4, p. 350.
1202
Consulte-se B. A. Mastin, “Scaeva the Chief Priest”, JTS 27 (1976): 412.
1203
Albert C. Clark assegura que devido ao fato de que no Novo Testamento grego o termo sumo
sacerdote aparece muito mais com frequência que a expressão sacerdote, “um escriba … poderia
facilmente ter substituído a palavra mais familiar pela menos comum”. The Acts of the Apostles: A
Critical Edition with Introduction and Notes on Selected Passages (1933; Oxford: Clarendon, 1970),
p. 370.
Atos (Simon J. Kistemaker) 944
A descrição que Lucas faz do espírito mau que fala pela boca do
homem possuído tem seus paralelos nos relatos dos Evangelhos sinóticos
(veja-se Mt 8:29; Mc 1:24; Lc 4:41). Nestes relatos, os demônios
reconhecem a Jesus como o Filho de Deus. Em Éfeso, o demônio, ao
ouvir a fórmula pronunciada pelos exorcistas, responde com pleno
conhecimento: “Conheço a Jesus e sei quem é Paulo; mas vós, quem
sois?” No texto grego, Lucas usa duas diferentes palavras para o verbo
saber ou conhecer. Talvez servem para estabelecer a diferença entre o
Jesus celestial e o Paulo terrestre. No entanto, estes dois verbos são
virtualmente sinônimos porque ambos se relacionam com conhecimento
adquirido, não inato. 1204 O demônio aprendeu a respeito de Jesus e sabe
que o poder divino que flui de Jesus para Paulo pode vencê-lo. Também
detecta o engano da prática dos judeus exorcistas e sabe que não têm
nenhum poder. A pergunta “vós, quem sois?” revela o desprezo do
demônio.
O demônio então descarrega sua ira sobre os sete filhos da Sceva. O
homem possuído, com uma força sobre-humana, salta em cima dos sete e
os domina. Neste ponto, e devido a uma variante no texto grego, alguns
tradutores diferem de outros. Os melhores manuscritos têm a expressão
ambos, que aparece numa tradução como “submeteu a ambos” (NASB) e
em outra, “dominou a uns e outros” (BJ). Esta forma se choca com o
número sete (v. 14) se é que a palavra ambos aplica-se só a duas pessoas.
Mas quando participam mais de duas pessoas, o termo pode significar
“todos” (veja-se At 23:8), que é o que usam várias outras versões. 1205
O homem possuído dá uma surra tal nos sete exorcistas que estes
quase não conseguem escapar da casa onde se encontravam. Contentes
de estar vivos, fogem despidos e feridos. O grego indica que as feridas
demoraram um longo tempo para curar. Por um lado, estes exorcistas

1204
Os verbos ginōskō (chegar a conhecer, a entender) e epistamai (entendo, sei) são idênticos em
significado. Veja-se Günther Harder, NIDNTT, vol. 3, p. 122.
1205
Bauer, p. 47. Consulte-se Robertson, Grammar, p. 745.
Atos (Simon J. Kistemaker) 945
aprenderam a não invocar o nome de Jesus. E por outro, o fato promoveu
a causa do evangelho.
17. Quando isso se tornou conhecido de todos os judeus e gregos que
viviam em Éfeso, todos eles foram tomados de temor; e o nome do Senhor
Jesus era engrandecido [NVI].
Deus confirma que Ele está no controle da situação. Ele frustra a
estratégia de Satanás de usurpar o poder de Jesus e faz com que até os
demônios façam com que o reino de Deus avance no mundo gentílico.
Note-se que Lucas menciona primeiro os judeus e logo os gregos que
vivem em Éfeso. Os judeus efésios reconhecem a total humilhação de
seus compatriotas. Além disso, os gregos se inteiram da situação. O
nome de Jesus se transforma em tema de conversação: “Paulo usou esse
nome, e os demônios foram expulsos; usaram-no os exorcistas, e foram
derrotados. O que havia por trás desse nome?” 1206
Lucas usa duas vezes neste versículo o adjetivo todos: “todos os
judeus e gregos” e “todos eles foram tomados de temor”. Ele destaca a
natureza monopolista desta ocorrência. Vemos um paralelo com as
mortes de Ananias e Safira. Nesse tempo “sobreveio grande temor a toda
a igreja e a todos quantos ouviram a notícia destes acontecimentos” (At
5:11). Em Jerusalém, o povo teve medo quando viu o castigo divino
manifestado dentro dos limites da própria igreja (veja-se At 5:5). De
forma similar, em Éfeso tanto judeus como gregos tiveram medo quando
ouviram do castigo que receberam os sete filhos de Ceva. Eles tinham
um grande respeito pelo nome de Jesus, o qual revelou poder e
autoridade divinos. Como resultado disso, a população local chegou a
respeitar muito o nome do Senhor Jesus e muitos se arrependeram e
confessaram seus pecados.
18-20. Muitos dos que creram vieram confessando e denunciando
publicamente as suas próprias obras. Também muitos dos que haviam
praticado artes mágicas, reunindo os seus livros, os queimaram diante de

1206
R. C. H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p.
796.
Atos (Simon J. Kistemaker) 946
todos. Calculados os seus preços, achou-se que montavam a cinquenta mil
denários. Assim, a palavra do Senhor crescia e prevalecia poderosamente.
a. “Muitos dos que creram vieram confessando e denunciando
publicamente as suas próprias obras”. Lucas descreve como o poder do
evangelho deteve a estendida influência da magia em Éfeso. 1207 A
prática comum da magia era tão difundida que até os cristãos não eram
imunes. Lucas refere-se a cristãos que tinham posto sua fé em Cristo,
mas que continuavam com a prática de suas artes mágicas. Depois de
ouvir do episódio relacionado com os filhos de Ceva, estes crentes
perceberam que tal prática era “desviada e inconsistente com a fé
cristã”. 1208 O texto grego revela que estes cristãos vieram para a frente
gradualmente, provavelmente nos serviços de adoração, onde primeiro
confessaram e logo informaram que estavam praticando a magia. 1209 De
repente eles perceberam que sua conduta estava em conflito com o estilo
de vida cristão e que deviam terminar com suas más ações. Quais eram
essas más ações? Esta gente estava praticando a adivinhação e a
feitiçaria, interpretando sinais e augúrios, envolta na magia negra,
lançando encantamentos ou consultando os mortos. Agora lhes foi dito
que muito tempo atrás Deus havia proibido como detestáveis tais
práticas (Dt 18:10–14). A Palavra de Deus convenceu os crentes efésios
de seus pecados. E como resultado, arrependeram-se e deixaram sua má
conduta.
b. “Também muitos dos que haviam praticado artes mágicas,
reunindo os seus livros, os queimaram diante de todos”. Muitos cristãos
que confessaram publicamente que tinham estado envolvidos nas artes

1207
A cidade era um centro de artes mágicas como o confirmam descobertas arqueológicas.
Numerosos documentos contêm encantamentos mágicos, alguns dos quais eram conhecidos como as
cartas efésias. O último termo se relaciona ao encantamento mágico que era usado na adoração da
deusa Ártemis. Hans Dieter Betz, ed., The Greek Magical Papyri in Translation: Including the
Demotic Spells (Chicago e Londres: University of Chicago Press, 1986), pp. 84, 89, 91.
1208
David E. Aune, “Magic”, ISBE, vol. 3, p. 219.
1209
Consulte-se Adolf Deissmann, Bible Studies (reimp. Winona Lake, Ind.: Alpha, 1979), p. 323.
Veja-se também Bauer, p. 646.
Atos (Simon J. Kistemaker) 947
mágicas acrescentaram ação a suas palavras. Resolutamente tiraram os
rolos de magia de suas casas e os levaram a um lugar público onde, dia
após dia, os foram queimando. O texto não diz se só os cristãos
queimaram estes livros. É possível que inclusive alguns gentios tenham
agregado seus pergaminhos e rolos ao fogo para livrar-se também
daqueles instrumentos de magia.
c. “Calculando o seu valor, acharam que montava a cinqüenta mil
dracmas de prata” [v. 19, TB]. O valor destes livros era bastante alto,
embora seria difícil procurar pôr esse valor em conceitos monetários
atuais. O texto grego usa a expressão moeda de prata, que a Tradução
Brasileira traduziu como “dracmas de prata”. Walter Bauer afirma que o
valor de uma dracma era “normalmente dentre 18 e 20 centavos”. 1210 É
provável que a avaliação não tenha sido exagerada, se levar-se em conta
que a população de Éfeso naqueles dias era mais de duzentas mil
pessoas. As pessoas queimando aqueles livros era um claro sinal que o
povo de Éfeso estava voltando-se da magia e abraçando o evangelho de
Jesus Cristo. A igreja local experimentou um crescimento fenomenal
naqueles três anos que Paulo ministrou ali (At 20:31). É claro que a
igreja cristã avançava vitoriosamente.
d. “Assim, a palavra do Senhor crescia e prevalecia
poderosamente”. Através dos Atos, Lucas emprega umas poucas frases à
maneira de resumo. Uma destas é a referência que faz à “palavra do
Senhor” ou “a palavra de Deus” (cf. At 6:7; 12:24; 13:49). Descreve o
crescimento da igreja recalcando a influência poderosa da palavra de
Deus na vida das pessoas. Nesta breve afirmação, Lucas comunica a
informação de que a igreja crescia numericamente e que os crentes
aplicavam a mensagem do evangelho à sua condutas diária. Fortaleciam
sua fé, mostravam obediência à Palavra de Deus, e viviam vida

1210
Bauer, p. 105.
Atos (Simon J. Kistemaker) 948
1211
piedosa. A cidade de Éfeso experimentou uma transformação devido
à viva e poderosa Palavra de Deus.
Éfeso se purificou a si mesma de sua má literatura ao queimar os
rolos de magia e transformar-se em depositaria da literatura sagrada que
formou o cânon do Novo Testamento. 1212 Enquanto vivia em Éfeso,
Paulo escreveu sua primeira epístola aos coríntios. Quando estava sob
prisão domiciliar em Roma, ele enviou sua epístola aos Efésios. Em anos
posteriores, quando Timóteo era pastor em Éfeso, Paulo mandou as duas
epístolas que levam o nome daquele. Décadas mais tarde em Éfeso, o
apóstolo João compôs seu Evangelho e suas três epístolas. Como quem
diz, assim como aos judeus fora confiado o Antigo Testamento (Rm 3:2),
os efésios tinha recebido em custódia os livros do Novo Testamento.

Considerações práticas em At 19:17–20


Quando o evangelho é proclamado e as pessoas são mudadas
mediante a fé a Jesus Cristo, queríamos ver resultados imediatos e
permanentes. Esperamos que os recém-convertidos vivam em harmonia
com a mensagem da Bíblia e que vivem segundo seus ensinos em tudo o
que façam ou digam. Percebemos que nossas expectativas são altas mas
também estamos conscientes das fraquezas e falhas humanas. No
entanto, continuamente nos esforçamos em agradar ao nosso Criador e
Redentor. Por tal razão, estabelecemos prioridades e confiamos que os
recém-convertidos à fé cristã e o mundo que nos rodeia se beneficiem
com nossa forma de viver e sigam nosso exemplo.
Buscamos aplicar os princípios da conduta cristã a cada área da
vida. Por exemplo, esperamos que o mundo dos negócios seja regido

1211
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 159. A. W. Argyle sugere a seguinte tradução: “Assim
pelo poder do Senhor a palavra crescia e prevalecia”. Veja-se “Acts 19:20”. ExpT 75 (1964): 151. E
veja-se Édouard Delebecque, “La mésaventure des fils de Scévas selon ses deux versions (Actes 19,
13–20)”, RSPT 66 (1982): 231.
1212
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo:
Clark, 1877), vol. 2, p. 680.
Atos (Simon J. Kistemaker) 949
pelos princípios de honestidade e integridade; que nas cortes e nas
assembleias legislativas distingam-se a justiça e a equidade; que cada
cidadão possua inatas características de honestidade e veracidade.
Por outro lado, estamos plenamente conscientes que vivemos num
mundo pecador, egoísta e corrupto cuja influência e poder devemos
resistir dia a dia. Neste mundo, o recém-convertido à fé cristã confronta
diariamente tentações e distrações que procuram fazê-lo viver uma vida
dupla: seguidor de Cristo no domingo na hora do culto e seguidor do
mundo no resto da semana.
Mas a pregação do evangelho e a aplicação de sua mensagem são
armas poderosas e efetivas em opor às forças da escuridão. De fato,
graças a obra interior do Espírito Santo, todo cristão obediente alcança a
vitória. Vê como as forças das trevas se retiram quando a luz da Palavra
de Deus ilumina o caminho dos justos. Então, como cristãos com uma
verdadeira fé em Deus exclamamos prazerosos: “E em sua luz vemos a
luz” (Sl. 36:9).

Palavras, frases e construções gregas em At 19:14–20


Versículo 14
Assim põe este versículo o Texto ocidental. O itálico indica os
agregados:
Nesta associação também [sete] filhos de um certo sacerdote
chamado Ceva desejavam fazer as mesmas coisas (estavam acostumados
a exorcizar às pessoas). E vieram a um que estava possuído de demônios
e começaram a invocar o Nome, dizendo, “Ordenamos-te, por Jesus a
quem Paulo prega, que saia fora”. 1213

Versículo 16

1213
Metzger, Textual Commentary, p. 471.
Atos (Simon J. Kistemaker) 950
ἀμφοτέρων — “ambos” ou “todos”. O Texto majoritário usa a
expressão αὑτῶν (seu).
τετραυματισμένους — o particípio passivo perfeito do verbo
τραυματίζω (eu firo) indica efeito permanente.
ἐκφυγεῖν — a forma composta deste infinitivo aoristo indica que os
homens quase não escaparam vivos. O particípio ὥστε (tanto que)
precedendo o infinitivo indica o resultado de uma ação.

Versículos 18–20
Note-se que todos os verbos principais nestes três versículos, exceto
calcular e trazer para (v. 19) estão no tempo imperfeito. Este tempo é
descritivo e representa progresso e repetição.

4. O plano de Paulo (At 19:21–22)

Esta seção do capítulo é muito breve: só dois versículos. Mas nestes


dois versículos, Lucas revela a intenção de Paulo de viajar primeiro na
direção norte, a Macedônia, logo a Acaia, e finalmente a Jerusalém. No
capítulo seguinte, diz que Paulo foi a Macedônia e a Acaia (At 20:1–2).
Não só visitou a Macedônia, mas também pregou o evangelho em ou até
Ilírico (a que era a moderna Iugoslávia: veja-se Rm 15:19), escreveu sua
carta aos Romanos, presumivelmente enquanto estava em Corinto (Rm
16:22–23), e arrecadou ajuda monetária para os santos em Jerusalém
(1Co 16:1–3). Todos estes acontecimentos provavelmente tiveram lugar
em uns dois anos.
21, 22. Depois dessas coisas, Paulo decidiu no espírito ir a Jerusalém,
passando pela Macedônia e pela Acaia. Ele dizia: “Depois de haver estado
ali, é necessário também que eu vá visitar Roma”. Então enviou à
Macedônia dois dos seus auxiliares, Timóteo e Erasto, e permaneceu mais
um pouco na província da Ásia [NVI].
a. “Depois destas coisas”. A informação de Lucas sobre os planos
de viagem de Paulo forma um breve interlúdio entre a queima dos livros
Atos (Simon J. Kistemaker) 951
de bruxaria e a revolta instigada por Demétrio. Introduz este segmento
com a cláusula depois destas coisas referindo-se, obviamente, ao
episódio imediatamente precedente. A cláusula reflete o ponto alto da
obra de Paulo em Éfeso e indica que o tempo de sua partida está aí, à
mão.
Durante a segunda viagem missionária de Paulo, as cidades de
Tessalônica e Corinto chegaram a ser centros cristãos. E durante sua
terceira viagem, Éfeso chegou a ser o ponto focal do cristianismo.
Centros da fé cristã dominavam a cena a cada lado do mar Egeu (norte,
leste e oeste). A partir destes portos, o evangelho foi disseminado através
da concha do Mediterrâneo. Mas Paulo ainda não estava contente. O
desejo de seu coração era visitar Roma, a capital do império.
Em seu Evangelho, Lucas dirige sua atenção a Jerusalém como o
centro onde Jesus morreu, ressuscitou, e subiu ao céu. Em Atos, dirige
sua atenção a Roma, de onde a mensagem de salvação devia estender-se
até os confins da terra (At 1:8).
b. “Paulo decidiu no espírito”. Deveria escrever-se a palavra
espírito com maiúscula ou com minúscula? Refere-se este texto ao
espírito humano ou ao Espírito Santo? Se interpretarmos a expressão
como referindo-se ao espírito humano (“resolveu no seu espírito” - RA),
poderíamos compará-la com uma frase similar, “decide em seu
coração”, 1214 e tomá-la como um modismo. Alguns tradutores preferiram
a expressão equivalente: “fez planos” ou “decidiu”. 1215
Muitas traduções interpretam a palavra como uma referência ao
Espírito Santo: “Paulo decidiu no Espírito”. 1216 Isto significaria que, no
mais amplo contexto, os planos de viagem de Paulo são feitos com a
direção do Espírito Santo (At 20:22). Além disso, no versículo 21 Lucas
usa a palavra dever (“é necessário também que eu vá visitar Roma”), a
qual com frequência no Novo Testamento indica uma ordem divina.
1214
Cf. o texto grego em Lc. 1:66; 21:14; At. 5:4; 2Co. 9:7.
1215
Veja-se BJ, DHH; a NVI diz, “propôs”.
1216
Em inglês: RSV, NKJV, MLB.
Atos (Simon J. Kistemaker) 952
Quando o termo espírito refere-se ao espírito humano, Lucas usualmente
o qualifica com o pronome possessivo (“meu espírito” [Lc 1:47], ou “seu
espírito em mim” [sentiu-se comovido; At 17:16]). Porém, no versículo
21, ele não delimita o termo. Por todas estas razões, alguns eruditos
escolheram apropriadamente ser guiados pelo contexto e, portanto,
escrever a palavra Espírito com maiúscula.
c. “Ir a Jerusalém passando pela Macedônia e pela Acaia”. Quer
seja por terra ou por mar, a rota direta de Éfeso a Jerusalém é leste e
sudeste, não noroeste e oeste. Mas Paulo queria visitar as igrejas na
Macedônia e Acaia, como já tinha visitado as igrejas na Ásia Menor
durante sua segunda viagem missionária (At 15:36; 16:1–5). Seu
propósito era fortalecer os crentes nas igrejas que tinha fundado. Depois
de passar algum tempo com os cristãos em Filipos, Tessalônica, Bereia e
Corinto, planejou viajar a Jerusalém. Seu propósito para ir a Jerusalém
era assistir às celebrações pentecostais (At 20:16), entregar a ajuda para
os pobres (Rm 15:26–27; 1Co 16:1–3; 2Co 8:1–9), e informar a Tiago e
aos anciãos (At 21:18–19).
d. “É necessário também que eu vá visitar Roma”. Note-se a
fraseologia nesta curta afirmação. Primeiro, depois de visitar Jerusalém,
Paulo está sob obrigação divina de visitar a cidade imperial (cf. At
23:11). Paulo não é um turista mas um embaixador de Jesus Cristo.
Logo, o texto grego indica que ele deve ver Roma. Paulo sabia que os
cristãos romanos tinham uma igreja forte, pelo que seu propósito ao ir a
Roma era animar os crentes em sua fé (Rm 1:11–12). Ele olha ainda para
além, e planeja ir a Espanha (Rm 15:24, 28).
e. “Então enviou à Macedônia dois dos seus auxiliares, Timóteo e
Erasto”. Lucas falha quanto a prover detalhes relacionados com a obra
de Timóteo durante a permanência de Paulo em Éfeso, embora
anteriormente tenha mencionado seu nome com relação a Corinto (At
18:5). Supomos que Timóteo tinha vindo a Éfeso para assistir a Paulo.
Pelas epístolas paulinas sabemos que em Corinto serviu como emissário
de Paulo; logo voltou a reunir-se com Paulo em Éfeso (1Co 4:17; 16:10–
Atos (Simon J. Kistemaker) 953
11). Agora Paulo o manda junto com Erasto a Macedônia, possivelmente
a Filipos e a Tessalônica.
À parte deste versículo, o nome Erasto aparece duas vezes no Novo
Testamento. Paulo o menciona em conexão com Corinto e o descreve
como o tesoureiro da cidade (Rm 16:23). E em sua última epístola
assinala que Erasto ficou em Corinto (2Tm 4:20). Em 1930, arqueólogos
em Corinto descobriram uma parte de pavimento com a inscrição,
“Erasto, comissionado de obras públicas, custeou os custos deste
pavimento”. 1217 Não sabemos se todas estas são referências à mesma
pessoa ou a mais de uma.
f. “E [Pablo] permaneceu um pouco na província da Ásia”. A
discórdia na igreja coríntia manteve Paulo em Éfeso. Ele tinha escrito
cartas (entre elas 1 Coríntios) aos coríntios e enviou Tito a Corinto para
reconciliar os irmãos. 1218 Esperava que Tito lhe trouxesse notícias que o
animassem. (Lucas não menciona Tito em Atos, assim como tampouco
menciona seu próprio nome. Talvez Tito e Lucas eram parentes, pelo que
o silêncio seja uma forma de modéstia. Não o sabemos.) Enquanto
esperava em Éfeso, Paulo era testemunha da revolta instigada por
Demétrio.

5. A ofensa de Demétrio (At 19:23–41)

O reino de Deus progride e faz sentir sua influência na província da


Ásia Menor. Quando o reino de Deus avança, Satanás deve ceder, mas o
príncipe das trevas não se rende tão facilmente. Ele mobiliza as forças
dos adoradores de ídolos em Éfeso e provoca uma revolta. Lucas inclui o
relato do distúrbio em Éfeso para ilustrar o poder de Satanás, 1219 o

1217
H. J. Cadbury, “Erastus of Corinth”, JBL 50 (1931); 42–58. Veja-se também Colin J. Hemer, The
Book of Acts in the Setting of Hellenistic History”, ed. Conrad H. Gempf (Tubinga: Mohr, 1989), p.
235.
1218
2Co. 2:13; 7:6, 13; 8:6, 16–18, 23; 12:18.
1219
Consulte-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 161.
Atos (Simon J. Kistemaker) 954
progresso do evangelho, e a sabedoria do escrivão da cidade. Com luxo
de detalhes, registra um incidente que tem um profundo efeito no
desenvolvimento da igreja em Éfeso.

a. A ofensa (At 19:23–27)

23, 24. Naquele tempo houve um grande tumulto por causa do


Caminho. Um ourives chamado Demétrio, que fazia miniaturas de prata
do templo de Ártemis e que dava muito lucro aos artífices [NVI].
Com a frase naquele tempo, Lucas indica que o incidente ocorreu
quando Paulo estava prestes a abandonar a cidade (At 20:1). A palavra-
chave neste versículo 23 é “tumulto”. Lucas o qualifica com uma de suas
características expressões moderadas que numa tradução literal diz, “não
pequeno”. 1220 Nesta cidade oriental, o impacto dos distúrbios
preocupavam seriamente os membros da igreja local. Como um reflexo
desses alvoroços, Paulo escreve aos coríntios dizendo que em Éfeso ele
pelejou com bestas selvagens (1Co 15:32; veja-se também 2Co 1:8–11).
Se tomarmos o comentário de Paulo figurativamente (quer dizer, seres
humanos que pelejaram como bestas selvagens), então começamos a
entender a feroz oposição que os cristãos tiveram que sofrer nessa
cidade. 1221
Lucas não usa o termo igreja mas a expressão geral Caminho,
porque esta última representa o estilo de vida cristão (cf. At 9:2; 18:25,
26; 19:9; 22:4; 24:14, 22). A oposição ao estilo de vida cristão veio dos
artífices locais, cuja subsistência dependia dos adoradores da deusa
Ártemis, conhecida em latim como Diana. 1222
1220
Lucas tem uma inclinação às expressões exageradamente moderadas. Exemplos disso no texto
grego encontramos em At 12:18; 14:28; 15:2; 17:4, 12; 19:23–24; 27:20.
1221
R. E. Osborne interpreta o termo bestas selvagens para referir-se aos judeus que se opunham a
Paulo primeiro em Éfeso e posteriormente em Jerusalém (“Paul and the Wild Beasts”, JBL 85 [1966]:
225–30). Abraham J. Malherbe crê que Paulo refere-se aos hereges (“The Beasts at Ephesus”, JBL 87
[1968]: 71–80).
1222
A adoração de Ártemis se difundiu pela Grécia, onde ela era reverenciada como a deusa dos
animais, da natureza e da caça. Na Ásia Menor, era conhecida como a deusa da fertilidade e do parto
Atos (Simon J. Kistemaker) 955
O templo de Ártemis atraía adoradores, que, antes de voltar aos
seus lugares de residência, compravam pequenos altares e imagens de
Ártemis. Estes objetos, usados na adoração nas casas, eram feitos e
vendidos pelos ourives de Éfeso. Um destes ourives era Demétrio. (Uma
inscrição que data do ano 57 d.C. descreve a certo Demétrio como “um
guarda do templo”, porém não sabemos se se refere ao Demétrio de
nossa história. O nome Demétrio era bastante comum [veja-se, p. ex. 3Jo
12].) Talvez Demétrio desenhava as imagens e artesãos a seu serviço as
fabricavam. Além disso, parece ter sido o porta-voz do grêmio dos
ourives de Éfeso. Sabemos que ele e outros ourives tinham uma empresa
lucrativa, porque Lucas, usando seu característico estilo de ideias
incompletas, escreve que Demétrio “dava muito lucro aos artífices”.
Estes artesãos, incitados por Demétrio, opunham-se a quem fosse e ao
que fosse que ameaçasse seu negócio. Sob a fachada da religião,
defendiam sua fonte de ganhos.
25, 26. reuniu-os com os trabalhadores dessa profissão e disse:
“Senhores, vocês sabem que temos uma boa fonte de lucro nesta atividade
e estão vendo e ouvindo como este indivíduo, Paulo, está convencendo e
desviando grande número de pessoas aqui em Éfeso e em quase toda a
província da Ásia. Diz ele que deuses feitos por mãos humanas não são
deuses.
a. “Reuniu-os com os trabalhadores dessa profissão”. Lucas faz
uma distinção entre os artesãos e os trabalhadores. Os artesãos são os
técnicos especializados; os trabalhadores representam o setor de
negócios que depende da manufatura de altares e imagens. Toda esta
gente obtinha seus ganhos do culto de Ártemis. Demétrio os reuniu,
talvez num salão, e dirigiu-se a eles dizendo:

(veja-se William S. La Sor, “Artemis”, ISBE, vol. 1, pp. 306–7). Em 1956, arqueólogos descobriram
em Éfeso duas estátuas de Ártemis despida, cada uma com mais de vinte seios (símbolo da
fecundidade). Embora a deusa fosse conhecida como Ártemis dos efésios (v. 34), o verdadeiro objeto
de adoração em seu templo em Éfeso era uma pedra, provavelmente um meteorito, que tinha caído do
céu (v. 35).
Atos (Simon J. Kistemaker) 956
b. “Senhores, vocês sabem que temos uma boa fonte de lucro nesta
atividade”. A forma varões era o costume no começo de um discurso. O
Texto ocidental diz: “Varões, colegas artesãos”. Devido ao fato de que
esta última palavra não aparece em outro lugar no Novo Testamento, os
eruditos rejeitam a autenticidade desta forma. O verbo saber significa
que aqueles que ouviam a Demétrio estão bem conscientes de sua fonte
de ganhos. O negócio de fabricar e vender imagens e altares traduziu-se
em prosperidade para eles. Segundo o grego, Demétrio indica que todos
eles prosperam financeiramente. Assim, quando lhes fala de seus lucros,
não tem dificuldade em obter uma atenção unânime.
c. “Aqui em Éfeso e em quase toda a província da Ásia”. Os
ourives, os comerciantes, os operários observaram e ouviram do ardor da
fé cristã que alcançou a um sem-número de pessoas em Éfeso e no oeste
da Ásia Menor. Estas pessoas deram as costas à adoração de Ártemis e já
não compravam os objetos fabricados e vendidos pelos membros da
audiência de Demétrio. Demétrio dá testemunho do fato que o ministério
de Paulo em Éfeso e na província da Ásia produziu frutos. Não vejo
razão para interpretar as palavras de Demétrio como “a afirmação mais
exageradamente possível”. 1223 O contexto mais amplo revela que devido
aos extraordinários milagres de Deus e a fiel pregação do evangelho da
parte de Paulo, “a palavra do Senhor crescia e prevalecia
poderosamente” (v. 20). Lucas não informa sobre a obra de Paulo nas
regiões circundantes de Éfeso; por isso, não sabemos se fundou alguma
das sete igrejas da Ásia (Ap 1:11) além da de Éfeso.
d. “Este indivíduo, Paulo, está convencendo e desviando grande
número de pessoas”. Demétrio e seus ouvintes sabem que Paulo foi
peça-chave em alcançar as pessoas, especialmente na cidade de Éfeso.
Demétrio não tem mais que desprezo para com Paulo e, portanto, refere-
se a ele como “este indivíduo” (no sentido de “vocês o conhecem tão

1223
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 246.
Atos (Simon J. Kistemaker) 957
1224
bem como eu”). Ele está a par da metodologia de Paulo, porque diz
que “Paulo persuadiu” (veja-se v. 8) as pessoas a voltar-se da adoração
dos ídolos para servir ao Deus vivo.
e. “Diz ele [Paulo] que deuses feitos por mãos humanas não são
deuses”. Aqui está a essência da pregação de Paulo a uma audiência
gentílica. Quando se dirige aos filósofos atenienses, diz-lhes que Deus,
que criou os céus e a terra, não vive em templos feitos por mãos de
homens. Deus não é uma imagem esculpida por um homem em ouro,
prata, ou pedra (At 17:24, 29). Enfim, Demétrio tinha posto atenção à
mensagem de Paulo, mas devido ao fato de que seu bem-estar
econômico dependia da adoração a um ídolo, rejeitou a mensagem e se
declarou opositor de Paulo.
27. Não somente há o perigo de nossa profissão perder sua
reputação, mas também de o templo da grande deusa Ártemis cair em
descrédito e de a própria deusa, adorada em toda a província da Ásia e
em todo o mundo, ser destituída de sua majestade divina” [NVI].
Astutamente, Demétrio muda o curso de seu discurso. move-se do
assunto da prosperidade material rumo à adoração de Ártemis e enfatiza
não tanto as riquezas dos artesãos, e sim o interesse no templo de
Ártemis. Estabelece uma conexão entre seu artesanato e a adoração da
deusa e alerta a sua audiência do perigo de que Ártemis perca seu bom
nome. Se ela cair em descrédito, sua fonte de ganhos minguará. Não lhes
está dizendo que já se está vendo um declínio no negócio, mas que tal
coisa é iminente.
“Há o perigo de ... o templo da grande deusa Ártemis cair em
descrédito”. Mais que em seu próprio futuro, a preocupação estava no
templo de Ártemis. Este templo, construído de mármore “era de enormes
proporções: umas quatro vezes maior que o Partenon”.1225 Media 130
por 67 metros. Sua altura era de 18 metros e estava circundado por 127

1224
Refira-se a F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe
Testament, 2 vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 215.
1225
Lily Ross Taylor, “Artemis of Ephesus”, Beginnings, vol. 5, p. 252.
Atos (Simon J. Kistemaker) 958
colunas. Quando Paulo viveu em Éfeso, observou o templo em toda sua
beleza. 1226 Depois do incêndio de 356 a.C., foi restaurado tal como era e
até chegou a ultrapassar seu esplendor anterior. Arqueólogos têm
descoberto que este templo estava localizado a 2.4 quilômetros a
nordeste de Éfeso.
O templo honrava a grande deusa Ártemis. Porém não é o templo e
sim Ártemis a que é descrita como grande. Demétrio confirma sua
grandeza ao dizer: “Ártemis ... adorada em toda a província da Ásia e em
todo o mundo, [vai] ser destituída de sua majestade divina”. Ele
corretamente afirma que a adoração de Ártemis era universal, 1227 e sua
declaração constitui um chamado à ação. Faz soar a trombeta, por assim
dizer, e declara com estridência sua oposição à fé cristã.

Considerações práticas em At 19:25–27


Os cristãos, com seu ensino e seus princípios, se esforçam por
penetrar todos os segmentos de uma cultura existente. Em áreas onde a
fé cristã se desenvolve rapidamente, sua influência começa a mudar o
entorno cultural; por exemplo, a literatura, a pintura, e a escultura
refletem a influência cristã. Em geral, esta influência se expande durante
um número de décadas, com o resultado que uma cidade ou inclusive um
país podem ser descritos como cristãos. Em geral, os crentes desejam ver
que sua fé influencie a cultura na qual eles vivem.
As forças numa dada cultura, entretanto, oferecem dura resistência à
crescente persuasão cristã. Às vezes se livram ferozes batalhas para
conseguir o domínio na sociedade, como a história pode testificar disso
eloquentemente. E se o cristianismo começa a minguar, uma cultura não
cristã ou até anticristã começa a prevalecer.

1226
Alford, Alford’s Greek Testament, vol. 2, p. 217.
1227
Larry J. Kreitzer conjetura que as moedas romanas comemorativas, cunhadas em Éfeso, tinham a
inscrição e o emblema do templo de Diana, e datavam de ao redor do ano 51 d.C., o que poderia
indicar o respaldo imperial ao templo onde se adorava Ártemis. “A Numismatic Clue to Acts 19.23–
41. The Ephesian Cistophori of Claudius and Agrippina,” JSNT 30 (1987): 59–70.
Atos (Simon J. Kistemaker) 959
Onde quer que Deus em Sua providência pôs o Seu povo, ali este
deve ser vigilante no serviço ao Senhor. Nas palavras de Isaque Watts, o
cristão exclama:
Lutaram outros pela fé
Com zelo e com valor,
E eu covarde negarei
A Cristo meu Senhor?
É mister que seja fiel,
Que nunca volte atrás;
Que siga sempre Ele:
Sua graça me dará.

Palavras, frases e construções gregas em At 19:24–27


Versículo 24
ἀργυροκόπος — de ἄργυρος (prata) e κόπτω (eu bato), este
substantivo aparece só aqui no Novo Testamento e uma vez na
Septuaginta (Jr 6:29). Junto com os artesãos, Demétrio formava um
grêmio de ourives. Os arqueólogos ainda não encontraram nem um
templo ou imagem de prata de Ártemis de Éfeso.

Versículo 26
Ἐφέσου … πάσης τῆς Ἀσίας — aqui temos um exemplo de uso raro
do genitivo de lugar (veja-se também Lc. 5:19; 16:24; 19:4). Unir o caso
genitivo ao substantivo ὄχλον (gente) cria um problema sintático devido
à localização deste substantivo na frase. 1228
οὗτος — pelo uso que faz deste pronome demonstrativo, Demétrio
está expressando desprezo. Para um uso similar deste pronome, veja-se
João 3:26.

1228
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 39.
Atos (Simon J. Kistemaker) 960
Versículo 27
είς ἀπελεγμὸν ἐλθεῖν — a frase é idiomática e significa “cair em
descrédito”. 1229 O substantivo deriva do verbo ἀπελέγχω (eu repudio) e
sua terminação -μος indica ação progressiva.
O infinitivo presente μέλλειν dá o infinitivo médio presente
καθαιρεῖσθαι uma conotação futura: “todo mundo sofrerá a perda de sua
magnificência”.

b. O tumulto (At 19:28–31)

Demétrio teve êxito em convencer sua audiência do efeito


prejudicial que o cristianismo teria em seus ganhos. E excitou os
sentimentos religiosos de seus ouvintes até o ponto que começaram a
proclamar a grandeza de Ártemis.
28. Ao ouvirem isso, eles ficaram furiosos e começaram a gritar:
“Grande é a Ártemis dos efésios!” [NVI]
O Texto ocidental acrescenta a este versículo uma interessante nota:
“eles saíram à rua correndo”. Se este agregado é autêntico, podemos
imaginar a Demétrio alvoroçando a multidão. Os artesãos estão furiosos
com as forças que os ameaçam e saem às ruas em busca de seu
inimigo. 1230 O povo apinhou-se por toda a cidade e ficou gritando:
“Grande é a Ártemis dos efésios!”. A declaração em si cabe em qualquer
ordem similar dos tempos antigos. 1231 Levou a multidão a um estado de
frenesi; como diz Lucas, mantiveram-se gritando por umas duas horas
(v. 34).

1229
Refira-se a G. D. Kilpatrick, “Acts 19.27 apelegmon”, JTS n.s. 10 (1959): 327.
1230
F. Sokolowski (“A New Testimony on the Cult of Artemis of Ephesus”, HTR 58 [1965]: 427–31)
detalha um evento no qual quarenta e cinco pessoas de Sardes foram sentenciadas à morte. A ira
expressa neste incidente e o da multidão em Éfeso é similar.
1231
Xenofonte efésio 1.11.15.
Atos (Simon J. Kistemaker) 961
29. A cidade encheu-se de confusão, e todos correram ao teatro,
arrebatando os macedônios, Gaio e Aristarco, companheiros de Paulo em
viagem [TB].
Os habitantes de Éfeso ouviram os persistentes gritos a respeito da
grandeza de Ártemis dos efésios, porém não sabiam exatamente por que
se reuniu aquela multidão. A bulha deve ter sido extraordinária. Neste
relato, Lucas usa a palavra confusão duas vezes (aqui e no versículo 32:
“a assembleia estava em confusão, e a maior parte não sabia por que
causa se havia ali reunido”.)
A multidão convergiu no teatro ao ar livre no centro da cidade.
Todas as aparências parecem indicar que não se tratava senão de povo.
Supomos que os artesãos tinham procurado capturar Paulo, mas devido
ao fato de que não puderam encontrá-lo, agarram dois de seus
companheiros de viagem, Gaio e Aristarco. Os nomes destes dois
homens são romano e grego, respectivamente, e Lucas diz que
procediam da Macedônia. Não dá informação a respeito de quando estes
dois homens tinham acompanhado a Paulo e quanto tempo fazia que
estavam em Éfeso. Sabemos que Aristarco, quem formou seu lar em
Tessalônica, posteriormente acompanhou Paulo a Trôade (At 20:4) e em
sua viagem a Roma (At 27:2). Paulo menciona Aristarco como seu
colaborador (Fm 24) e prisioneiro (Cl 4:10). O nome Gaio era comum,
porque aparece várias vezes no Novo Testamento (At 20:4; Rm 16:23;
1Co 1:14; 3Jo 1). Lucas afirma que este Gaio veio da Macedônia,
enquanto o Gaio que acompanha Paulo a Jerusalém residia em Derbe (At
20:4). Supomos que tanto Gaio como Aristarco eram cristãos gentios. Se
este é o caso, então a multidão atacou não aos judeus mas sim a seus
compatriotas gentios que estavam de visita em Éfeso.
A frase à uma [RA] também aparece no relato da morte de Estêvão
(At 7:57 - unânimes). Imaginamos que a intenção da multidão em Éfeso
era similar aos do Sinédrio em Jerusalém. Em resumo, as vidas de Gaio e
Aristarco em particular e as dos cristãos em geral estavam em perigo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 962
30. Querendo Paulo apresentar-se ao povo, os discípulos não lho
permitiram [TB].
Os seguidores de Paulo perceberam a ameaça contra sua vida. Por
esse motivo, procuraram evitar ao máximo que ele se apresentasse diante
da turba. No entanto, Paulo queria defender a causa de Jesus Cristo
contra a religião pagã de Ártemis. Não devemos interpretar mal o
propósito de Paulo. Ele se considerava um embaixador de Jesus Cristo,
acreditava que Gaio e Aristarco necessitavam ajuda, e queria refutar as
acusações feitos por Demétrio.
Os discípulos de Paulo sabiam que os artesãos tinham querido
capturá-lo e que a turba o atacaria. Estes discípulos sabiam que Paulo
tinha sobrevivido a um apedrejamento em Listra e aos açoites em
Filipos, mas usaram de bob senso para evitar que se convertesse num
mártir. Lucas usa o termo discípulos num sentido geral, de modo que nós
não temos necessariamente que pensar em termos dos estudantes no
salão de Tirano ou dos doze que receberam o batismo de João (vv. 1, 9).
31. Também asiarcas, que eram amigos de Paulo, mandaram rogar-
lhe que não se arriscasse indo ao teatro.
Lucas parece indicar que não era fácil dissuadir a Paulo de ir ao
teatro. Sugere que os discípulos de Paulo não se conformaram só com
sua própria capacidade, física e mental, para fazer com que Paulo
desistisse e acatasse sua sábia decisão. Também buscaram a ajuda das
autoridades do governo provincial. Lucas diz que alguns destes altos
funcionários, ou asiarcas, eram amigos de Paulo. Eles tinham poder civil
para protegê-lo e seguiam rogando-lhe que não se aproximasse do teatro.
Quais eram estas autoridades provinciais? O título asiarcas (véase
NASB, NAB, RSV, RA) significa “deputados da assembleia provincial
da Ásia”. Alguns estudiosos afirmam que também eram sumos
sacerdotes. Mas isto talvez não era assim no caso de cada asiarca, porque
Atos (Simon J. Kistemaker) 963
os títulos sumo sacerdote e asiarca eram “às vezes diferenciados”. 1232
Estes asiarcas pertenciam à classe abastada da sociedade e eram
“delegados de cidades individuais ao concílio provincial (Commune
Asiae) a qual regulava a adoração de Roma e do imperador. É muito
provável que se reuniam em Éfeso, entre outros lugares, para presidir os
jogos públicos e os ritos religiosos no festival, em honra dos deuses e do
imperador”. 1233 Na verdade fica um pouco difícil explicar como algumas
destas pessoas tão influentes, governadores em assuntos civis e
religiosos e representantes do imperador romano, puderam ter sido
simpáticos com Paulo. É possível que tenham reagido contra os motivos
dos artesãos que tinham provocado uma revolta e ilegalmente haviam
convocado uma reunião no teatro (veja-se v. 40). Assim, apoiaram a
Paulo, rogando-lhe para não se apresentar diante daquela turba. Temos
aqui outro exemplo no qual autoridades romanas tiveram uma disposição
favorável para com a fé cristã.

Palavras, frases e construções gregas em At 19:30–31


βουλομένου — a construção genitiva absoluta forma o particípio no
tempo presente para acentuar uma ação continuada. O uso do verbo
βούλομαι expressa intenção e propósito.
Os verbos εἴων y παρεκάλουν estão no tempo imperfeito para
mostrar efeito repetido e continuado.
ὄντες — este gerúndio de εἰμί poderia ter uma conotação causal.
Porque eram amigos de Paulo, rogaram-lhe que não fosse ao teatro.
δοῦναι ἑαυτόν — o significado do verbo dar neste caso é
equivalente ao verbo τίθεναι (pôr, colocar). Os amigos de Paulo
procuraram persuadi-lo a não pôr-se no lugar de perigo.

1232
Bauer, p. 116. A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963;
reimp., Grand Rapids: Baker, 1968), p. 90. E veja-se Lily Ross Taylor, “The Asiarchs”, Beginnings,
vol. 5, pp. 256–62.
1233
Morris O. Evans, “Asiarch”, ISBE, vol. 1, p. 329.
Atos (Simon J. Kistemaker) 964
c. A confusão (At 19:32–34)

32. Uns, pois, gritavam de uma forma; outros, de outra; porque a


assembleia caíra em confusão. E, na sua maior parte, nem sabiam por que
motivo estavam reunidos.
Na descrição do fato, Lucas parece ter dificuldades para não
sucumbir ao humor. A cena se caracteriza por um caos provocado por
uma turba que se mantém gritando uma coisa e outra. Ele conta que a
multidão reuniu-se no teatro, mas ali ninguém parece saber o por quê da
reunião. No grego, é usada a palavra ekklēsia (assembleia) para o povo
reunido no teatro. Em outras partes da Escritura, esta palavra significa
“igreja” e comunica a ideia de ordem e paz (cf. 1Co 14:28, 33 em seu
contexto). Mas aqui significa desordem e confusão.
33, 34. Alguns da multidão julgaram que Alexandre era a causa do
tumulto, quando os judeus o empurraram para frente. Ele fez sinal
pedindo silêncio, com a intenção de fazer sua defesa diante do povo. Mas
quando ficaram sabendo que ele era judeu, todos gritaram a uma só voz
durante cerca de duas horas: “Grande é a Ártemis dos efésios!” [NVI].
No princípio do versículo 33, o grego é obscuro, porque significa
ou que algumas pessoas na multidão pediram a Alexandre que falasse ou
que encontraram a Alexandre no meio da multidão. À vista do interesse
que os judeus tinham neste assunto, eu prefiro a primeira forma e
interpreto as palavras alguns da multidão para incluir os judeus.
Alguns judeus na multidão encontram Alexandre, levam-no à
frente, e lhe pedem que se dirija às pessoas. Aparentemente, esta pessoa
em particular se fez um nome como orador eloquente. Possivelmente da
parte dos judeus e talvez de Demétrio e dos artesãos recebe relatório
sobre o propósito da reunião. Supomos que os judeus queriam evitar ser
culpados de qualquer acusação de oposição à adoração a Ártemis. Ao
mesmo tempo, queriam pôr Paulo e seus seguidores na pior posição (cf.
v. 9). Por tal motivo, Alexandre se dispôs a falar em favor dos judeus. A
conclusão é que este homem, um judeu, fez aliança com os artesãos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 965
Não podemos afirmar se Alexandre, o latoeiro (2Tim. 4:14), é a
mesma pessoa que o orador em Éfeso, ou aquele que, segundo Paulo,
naufragou em sua fé (1Tm. 1:19–20). 1234 Devido ao fato de que o nome
Alexandre era bastante comum no mundo antigo, parece-me que se
procura três pessoas diferentes.
Alexandre acenou, pedindo silêncio para poder dirigir-lhes a
palavra (refira-se a At 12:17; 13:16; 21:40). Ele pensa absolver os judeus
de qualquer acusação de que tenham desrespeitado a Ártemis. Porém não
bem abriu a boca e disse a palavra judeu, a multidão começa a uivar,
“Grande é a Ártemis dos efésios”. O povo não vê diferença alguma entre
a religião dos judeus na sinagoga local e a fé cristã nas casas-igrejas.
Tanto judeus como cristãos recusam adorar a deusa Ártemis e, portanto,
estão em desacordo com a população geral de Éfeso e da província da
Ásia. Durante duas horas, a multidão dá expressão a seu sentimento
religioso e se mantém fazendo coro a uma só voz à grandeza de Ártemis.
O espírito de chusma provê o necessário entusiasmo para manter-se
gritando por tão longo tempo. Como Alexandre não pode falar,
sabiamente se mistura com a multidão e desaparece. Mas Gaio e
Aristarco seguem cativos de Demétrio e seus sócios (veja-se vv. 37–38).

Palavras, frases e construções gregas em At 19:32–34


Versículo 32
ἄλλοι … ἄλλο — este é um modismo clássico que significa “um
uma coisa, [e] um outra”. 1235
οἱ πλείους — o adjetivo masculino é uma contração de πλειόνες e
neste caso significa “a maioria”.
Lucas usa dois verbos no tempo mais-que-perfeito: ᾔδεισαν (de
οἶδα, eu sei) e o composto συνεληλύθεισαν (de συνέρχομαι, eu reúno). O
1234
Consulte-se Guillermo Hendriksen, C.N.T. 1 y 2 Timoteo/Tito, (Grand Rapids: SLC, 1979), pp.
102–103, 365–367.
1235
Robertson, Grammar, p. 747 (letra em itálico acrescentada).
Atos (Simon J. Kistemaker) 966
mais-que-perfeito de οἶδα na verdade comunica o significado do tempo
imperfeito.

Versículo 33
ἐκ δὲ τοῦ ὄχλου — “alguns da multidão”. No entanto, o particípio
ativo aoristo na construção genitiva προβαλόντων (de προβάλλω, eu
empurro para frente) tem um sentido causal: “porque eles o empurraram
para frente” (cf. NASB, GNB, MLB). Portanto, o particípio influi o
sujeito do verbo principal ουνεβίβασαν (eles instruíram, aconselharam).

Versículo 34
ἐπιγνόντες — nesta frase, o particípio aoristo nominativo carece de
um verbo principal. Nesta frase sintaticamente difícil, Lucas está
procurando dizer: “Todo o povo gritava a uma só voz”. O verbo gritar
dado aqui como o gerúndio κραζόντων, serve como o verbo principal. O
caso genitivo do particípio é controlado pela preposição ἐκ (de).

d. O discurso (At 19:35–41)

35, 36. O escrivão da cidade acalmou a multidão e disse: “Efésios,


quem não sabe que a cidade de Éfeso é a guardiã do templo da grande
Ártemis e da sua imagem que caiu do céu? Portanto, visto que estes fatos
são inegáveis, acalmem-se e não façam nada precipitadamente [NVI].
a. “O escrivão da cidade acalmou a multidão”. Demétrio perdeu o
controle do movimento que tinha iniciado. Alexandre é impedido de
falar, e a multidão se mantém gritando uma ordem religiosa. Ninguém é
capaz de mudar a situação até que por fim o escrivão da cidade fica de pé
diante da multidão e lhe dirige a palavra.
Atos (Simon J. Kistemaker) 967
Em Éfeso, o escrivão da cidade era um oficial cuja posição poderia
ser comparada com a do prefeito de uma cidade moderna. 1236 Servia
como intermediário entre o governo de Roma e o concílio da cidade de
Éfeso. Tinha autoridade e o povo a reconhecia. Quando fez um
movimento com a mão, o povo se acalmou e se dispôs a ouvi-lo.
b. “Quem não sabe que a cidade de Éfeso é a guardiã do templo da
grande Ártemis?” O escrivão conhece sua gente e começa dirigindo-se a
eles como “Efésios”. Logo continua estabelecendo uma verdade óbvia a
qual ele habilmente põe na forma de uma pergunta retórica. Com esta
pergunta (a que espera uma resposta negativa) habilmente passa por alto
o assunto levantado por Demétrio e seus companheiros. O escrivão
pergunta se alguém não está informado do fato que Éfeso é a cidade
guardiã do templo da grande deusa Ártemis. A resposta é: Ninguém.
O título honorífico guardiã do templo em geral era dado às cidades
que construíam e mantinham templos para o imperador romano. No caso
de Éfeso, a honra estava relacionada com a deusa Ártemis, 1237 porque a
cidade era guardiã “da sua imagem que caiu do céu”. Esta imagem
provavelmente foi um meteorito com a aparência de um ícone (veja-se a
n. 45).
c. “Portanto, visto que estes fatos são inegáveis, acalmem-se e não
façam nada precipitadamente”. O escrivão estabelece estes fatos como
uma evidência incontrovertível e logo habilmente convida os cidadãos a
mostrar dignidade e decoro. Ao iniciar uma revolta em Éfeso, o povo
exibiu uma conduta que é o “reverso do nível de um cavalheiro grego”. 1238

1236
Em sua tradução do Novo Testamento, Martinho Lutero interpreta o termo grego grammateus
(tabelião) como Kanzler (chanceler), que é equivalente a um secretário ou ministro de estado.
Consulte-se Theodor Zahn, Die Apostelgeschichte des Lucas, serie Kommentar zum Neuen
Testament, 2 vols. (Leipzig: Deichert, 1921), vol. 2, p. 697 n. 26.
1237
Bauer, p. 537. Sherwin-White observa que o título neokoros (guarda do templo) “aparece nas
moedas cívicas de Éfeso do tempo do imperador romano Marco Ulpio Trajano, embora uma geração
depois que nas moedas provinciais”. Roman Society and Roman Law, pp. 88–89.
1238
Rackham, Acts, p. 369.
Atos (Simon J. Kistemaker) 968
Com palavras bem escolhidas, desafia-os a recorrer à razão e a usar o
bom senso.
37. Vocês trouxeram estes homens aqui, embora eles não tenham
roubado templos nem blasfemado contra a nossa deusa [NVI].
Durante todo este tempo, Gaio e Aristarco permaneceram cativos
dos artesãos. Supomos que o escrivão conhecia estes homens, sabia que
não se tinham apresentada acusações nas cortes civis, e entendia que
Demétrio tinha provocado a revolta. Portanto, recomenda que os cativos
sejam deixados em liberdade pela falta de evidência contra eles. Não são
nem ladrões do templo nem blasfemos. Como estrangeiros na dispersão,
os judeus observavam esta regra: “Não blasfemar contra os deuses que
outras cidades veneram, não roubar nos templos dos estrangeiros, não
tomar tesouro que tenha sido dedicado ao nome de qualquer deus”. 1239
Mesmo que Gaio e Aristarco sejam gentios, não judeus, não roubaram o
tesouro do templo em Éfeso nem pronunciaram blasfêmia contra
Ártemis.
O escrivão passa por alto o fato de que os ensinos tanto dos judeus
como dos cristãos exaltam ao Deus vivo contra os ídolos sem vida.
Como um estadista hábil, faz caso omisso de certas inconsistências
grosseiras no interesse da paz e da ordem. 1240 No entanto, se Demétrio
deseja refutar sua observação, o escrivão tem uma recomendação para
ele e seus homens.
38, 39. Se Demétrio e seus companheiros de profissão têm alguma
queixa contra alguém, os tribunais estão abertos, e há procônsules. Eles
que apresentem suas queixas ali. Se há mais alguma coisa que vocês
desejam apresentar, isso será decidido em assembleia, conforme a lei
[NVI].
Diante daquela multidão, o escrivão diz a Demétrio e aos artesãos
como proceder no caso que tenham alguma queixa contra Gaio e
Aristarco. Que humilhação para os membros do grêmio dos artífices!

1239
Josefo Antiguidades 4.8.10 [207] (LCL); Contra Apion 2.33 [237].
1240
Consulte-se Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 2, p. 222.
Atos (Simon J. Kistemaker) 969
Todo mundo sabe que qualquer demanda civil deveria ser levada diante
dos magistrados quando a corte estivesse em sessão. Primeiro, Demétrio
perde o controle da multidão; logo, perde prestígio quando lhe é dito que
vá às cortes e procure os procônsules. 1241
Tanto as cortes locais como a imperial são o lugar onde se expõem
os argumentos na presença dos membros do concílio da cidade, dos
magistrados ou dos procônsules. Enfim, o escrivão dá à sua audiência
um conselho geral: “Que acusadores e defendidos vão a nossos cortes,
onde podem apresentar acusações numa assembleia legal”. O escrivão
usa termos técnicos, “apresentar acusações” e “assembleia legal”. Como
homem de lei e ordem, insiste que as acusações devem ser apresentados
diante de uma corte legalmente constituída que convoque num tempo
estabelecido. 1242 Por implicação ele está declarando que a presente
reunião carece de toda aparência de legalidade.
40. Porque também corremos perigo de que, por hoje, sejamos
acusados de sedição, não havendo motivo algum que possamos alegar
para justificar este ajuntamento.
Neste último versículo, o escrivão é explícito quando adverte a sua
audiência do perigo que se encontram. Se as autoridades romanas
investigassem os acontecimentos do dia, encontrariam os efésios
culpados de alvoroço. Note-se a ironia em todo este episódio. Demétrio

1241
O termo procônsul cabe no contexto porque um procônsul romano residia na capital da província
à qual tinha sido atribuído. Éfeso, a capital da província da Ásia, tinha um procônsul. O uso do plural
neste caso talvez se refira aos procônsules como uma classe.
Outra explicação para o uso do plural é que pouco depois que Nero chegou a ser imperador
(outubro do ano 54 d.C.), sua mãe, Agripina, planejou a morte de Marco Junho Silano, o procônsul da
Ásia. Instruiu a dois romanos, um um cavaleiro e o outro um liberto, que envenenassem ao procônsul.
Os dois oficiais, protegidos pela Agripina, funcionavam como controles dos ganhos imperiais na Ásia
(Tácito Anais 13.1; Dion Cássio História 61.6.4–5). Alguns eruditos supõem que estes homens
temporariamente assumiram a função de procônsul e daí que Lucas use a palavra procônsules em
alusão a eles. (Consulte-se E. M. Blaiklock, Cities of the New Testament [Westwood, N.J.: Revell,
1965], p. 65; Rackham, Acts, p. 369: Hemer, Book of Acts, pp. 123, 169. Mas Bruce chama a esta
sugestão “improvável”. (Book of the Acts, p. 379). No entanto, como a informação é insuficiente,
qualquer conclusão sobre este assunto não é mais que uma hipótese.
1242
Consulte-se Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 251.
Atos (Simon J. Kistemaker) 970
diz aos membros de seu grêmio que estão em perigo de ver declinar seu
negócio e, portanto, lança-os a uma revolta; o escrivão da cidade diz aos
efésios que estão em perigo de ser culpados de ter iniciado um alvoroço
na cidade.
Qual é o perigo que os efésios confrontam? O escrivão não o diz,
mas nós podemos especular que corresponde a perder os privilégios que
os romanos tinham dado à cidade. A responsabilidade total pela revolta
deve ser assumida pela população total de Éfeso, não pela igreja cristã
representada por Gaio e Aristarco. O escrivão indica a posição na qual se
encontram. Diz-lhes que não há razões válidas para reunir-se no teatro, e
ninguém poderá explicar o escândalo. (O forte termo escândalo tem no
grego o sentido adicional de “conspiração”.)
41. E, havendo dito isto, dissolveu a assembleia.
Possivelmente a ausência de um procônsul designado em Éfeso
(veja-se n. 1241) possa explicar a razão pela qual as autoridades romanas
foram incapazes de conter a revolta que durou algumas horas. O escrivão
alerta o povo das possíveis consequências e lhes diz o adequado para
dissolver a reunião.

Considerações doutrinais em At 19:35–41


a. Embora nem Gaio, nem Aristarco, nem Paulo jogaram um papel
ativo na revolta, os efeitos neles e na igreja local são exaustivos. Em sua
segunda carta à igreja em Corinto, Paulo alude às adversidades que ele e
seus companheiros tiveram que suportar na província da Ásia, e
inclusive fala de receber sentença de morte (2Co 1:8–9). Até nas horas
de maior escuridão, quando uma cidade inteira estava em tumulto, Deus
legislou a favor de Seu povo mediante a ação de um escrivão da cidade.
A causa de Cristo continuava avançando, de maneira que a igreja de
Éfeso crescia em fortaleza, tamanho e estatura.
b. Quando Paulo deixou a congregação efesiana para ir a
Macedônia (At 20:1), anciãos piedosos dirigiram e cuidaram dos
Atos (Simon J. Kistemaker) 971
membros como pastores que cuidam suas ovelhas (At 20:28). Além
disso, a igreja demonstrou unidade e harmonia ao derrubar a muralha de
separação entre os crentes judeus e os gentios (Ef 2:14–16).
c. A igreja de Éfeso chegou a ser uma igreja evangelística que no
começo foi consumida por um amor pelo Senhor (Ap 2:2–3). 1243 Ao
difundir o evangelho através da província da Ásia chegou a ser uma
igreja líder entre as demais daquela região. Foi a receptora da circular de
Paulo conhecida como Epístola aos efésios.

Palavras, frases e construções gregas em At 19:35–41


Versículo 35
νεωκόρον — “guardião do templo”. A palavra literalmente indica
“varredor do templo”, porque é uma combinação de ναός (templo) y
κορέω (eu varro). Refere-se a alguém que está a cargo disso.
τοῦ διοπετοῦς — do verbo πίπτω (eu caio) e διός (dos deuses), este
termo necessita o substantivo adicional ἄγαλμα (imagem) para que o
pensamento fique completo. 1244

Versículos 36–37
ἀναντιρρήτων — este adjetivo verbal tem uma conotação passiva, e
com o gerúndio ὄντων forma a construção absoluta genitiva que expressa
causa: “porque não pode ser disputado”.
βλασφημοῦντας — o particípio ativo presente neste contexto indica
concessão: “mesmo quando eles não blasfemam”.

1243
Refira-se a Everett F. Harrison, The Apostolic Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), p. 215.
1244
Friedrich Blass e Alberto Debrunner. A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#241.7; Thayer, p. 152.
Atos (Simon J. Kistemaker) 972
Versículo 38
εἰ — esta partícula (“se”) com o indicativo presente significa uma
condição de fato simples. Quer dizer, Demétrio e seus homens têm uma
ofensa.
ἀγοραῖοι — ao suprir o substantivo ἡυέραι (dias) ou σύνοδοι
(assembleias), a expressão significa “dias de mercado” ou “assembleias
quando há mercado”.

Versículo 40
Aqui há um relatório que é concentrado numa só oração. Mas esta
oração “ficou obscura pela intenção de dizer muito em poucas
palavras”. 1245 Devido à densidade da estrutura da frase, os problemas
textuais são substanciais.
στάσεως — “sublevação”. É o caso genitivo dependente do verbo
precedente ser acusado de ou da preposição περί (respeito a)? Se é
tomado com o verbo, significa “por hoje, sejamos acusados de sedição”
(RA). Mas se é construída com a preposição, significa ser “levado a
interrogatório pelo alvoroço de hoje” (NKJV). Ambas as formas são
difíceis. Os tradutores em geral suprem um substantivo, dado aqui em
itálico, para completar a frase preposicional: “com relação aos eventos de
hoje”. 1246

1245
William M. Ramsay, Pauline and Other Studies in Early Christian History, Limited Editions
Library (1906; reimp., Grand Rapids: Baker, 1970), p. 213.
1246
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
230.
Atos (Simon J. Kistemaker) 973
Resumo de Atos 19
Paulo chega a Éfeso e se reúne com doze discípulos que foram
batizados com o batismo de João. Fala-lhes de crer em Jesus, batiza-os
em o nome de Jesus, e lhes impõe as mãos. Recebem o Espírito Santo,
falam em línguas, e profetizam.
Durante três meses, Paulo ensina na sinagoga local, mas quando
alguns judeus se opõem a ele, sai dali. Durante dois anos ensina a seus
discípulos no salão de Tirano. Deus realiza milagres através de Paulo.
Seus lenços e aventais são usados para curar os doentes.
Os filhos de Ceva, um judeu sumo sacerdote, procuram expulsar um
demônio no nome de Jesus. O demônio os domina e os espanca
duramente, tanto que eles quase não conseguem fugir, despidos e feridos.
muitas pessoas creem em Jesus, confessam seus pecados, e queimam
seus livros sobre feitiçaria, os quais têm um valor de cinquenta mil
moedas de prata.
Paulo planeja sair de Éfeso, viajar através da Macedônia e Acaia, e
ir a Jerusalém. Antes de ele abandonar Éfeso, o ourives Demétrio
convoca o grêmio dos artesãos e outros trabalhadores que fabricam e
vendem altares de prata. Apela aos interesses econômicos e religiosos de
sua audiência e denuncia Paulo e os cristãos de dizer que os ídolos feitos
por mãos humanas não são deuses. Como resultado, cria-se um tumulto.
Gaio e Aristarco são capturados e levados a teatro, mas os amigos de
Paulo impedem que ele vá ali. Alexandre procura dirigir-se à multidão,
mas devido ao fato de que é judeu é silenciado pela multidão que grita:
“Grande é a Ártemis dos efésios!” O escrivão da cidade acalma a
multidão, admoesta-os, e os adverte das consequências que poderiam
resultar da revolta. Logo despede a multidão.
Atos (Simon J. Kistemaker) 974
ATOS 20
A TERCEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 3 (At 20:1–38)
C. A Jerusalém (At 20:1–21:16)

1. Através da Macedônia (At 20:1–6)

Paulo já tinha decidido sair de Éfeso, visitar as igrejas na


Macedônia e Acaia, e viajar a Jerusalém. Por seu próprio relato (1Co
16:8), decidiu ficar em Éfeso até o Pentecostes, provavelmente em maio
de 55 d.C. Visitar e viajar aparentemente requeria bastante tempo; não
sabemos quanto tempo ministrou Paulo aos crentes nas igrejas de
Filipos, Tessalônica, e Bereia.
Na Macedônia, esperou a Tito para informá-lo sobre a situação da
igreja em Corinto (2Co 2:13; 7:6, 13), voltou a enviá-lo para lá (2Co 8:6,
16–17), e escreveu sua segunda epístola aos coríntios. Viajou logo a
Corinto, onde passou três meses (At 20:3), possivelmente o inverno (1Co
16:6) de 56 a 57 d.C. Em Corinto, escreveu sua carta aos romanos,
arrecadou dinheiro para os santos de Jerusalém que estavam sendo
açoitados pela fome (Rm 15:26; 1Co 16:2–3; 2Co 8:2–4), viajou de volta
através da Macedônia, e depois da Páscoa navegou de Filipos a Trôade
(At 20:6). Pensava estar em Jerusalém antes do Pentecostes (At 20:16).
1. Depois de cessar o tumulto, Paulo mandou chamar os discípulos e,
tendo-os exortado, despediu-se e partiu para a Macedônia.
As palavras do escrivão da cidade em Éfeso fizeram que a gritaria
no teatro chegasse a seu fim (At 19:35–41). A multidão voltou para suas
casas e lugares de trabalho. Mas Paulo percebeu que seus dias em Éfeso
estavam contados, mesmo quando ele já tinha decidido partir (At 19:21).
Passou algum tempo com seus discípulos, quer dizer, os crentes e
estudantes aos quais tinha instruído no salão de conferências de Tirano
Atos (Simon J. Kistemaker) 975
(At 19:9). Não voltaria a vê-los por muitos anos. Teriam que enfrentar
sozinhos os tempos de perseguição e penalidades (Ap 2:3) e
necessitavam o ânimo que ele pudesse dar-lhes.
Depois de despedir-se dos crentes de Éfeso, Paulo viajou para a
Macedônia. De outra fonte sabemos que primeiro foi a Trôade (2Co
2:12). Antes tinha estado neste porto, porém não havia pregado o
evangelho (At 16:8). De qualquer maneira, o Senhor tinha prosperado
sua obra de pregação do evangelho de Cristo, porque sabemos que em
Trôade havia uma igreja. Aqui Paulo esperou em vão que Tito chegasse
de Corinto com notícias a respeito dos conflitos que havia naquela
congregação. De modo que comprou passagem num navio que o levou a
Macedônia. É possível que Paulo tenha estado sofrendo de alguma
enfermidade ou algum tipo de depressão (2Co 4:7–12). 1247 A informação
neste ponto é escassa; nem Lucas nem Paulo em seus respectivos escritos
dão luz a respeito das aflições de Paulo. Paulo diz que quando viajava
pela Macedônia, seu corpo não teve descanso (2Co 7:5).
2, 3. Viajou por aquela região, encorajando os irmãos com muitas
palavras e, por fim, chegou à Grécia, onde ficou três meses. Quando
estava a ponto de embarcar para a Síria, os judeus fizeram uma
conspiração contra ele; por isso decidiu voltar pela Macedônia [NVI].
a. “Viajou por aquela região”. Nestes versículos em particular,
Lucas apresenta seu relato mais breve sobre as viagens de Paulo. Não
nos diz onde nem por quanto tempo esteve na Macedônia. Alguns
comentaristas creem que viajou a nordeste e pregou o evangelho no
Ilírico; quer dizer, na conhecida a Iugoslávia (“De maneira que, desde
Jerusalém e circunvizinhanças até ao Ilírico, tenho divulgado o
evangelho de Cristo” [Rm 15:19]). Embora esta interpretação seja
aceitável, o texto pode significar também que chegou até a fronteira do

1247
Philip Edgcumbe Hughes provê uma lista de interpretações referentes a aflições físicas e mentais
de Paulo. Paul’s Second Epistle to the Corinthians: The English Text with Introduction, Exposition
and Notes, serie New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans,
1962), pp. 17–18.
Atos (Simon J. Kistemaker) 976
1248
Ilírico. Em Atos, Lucas simplesmente diz que Paulo “viajou por
aquela região”. Não podemos determinar se isso significa que foi para
além das fronteiras da província da Macedônia. Em anos posteriores,
enviou Tito a Dalmácia (2Tm 4:10), que é a parte sul do Ilírico.
b. Ele estava “encorajando os irmãos com muitas palavras”. Lucas
usa o verbo encorajar repetidamente para mostrar que onde quer que
Paulo se reunia com crentes falava-lhes palavras de alento (At 14:22;
15:32; 16:40). Era o pai espiritual dos crentes no mundo gentílico e
dirigia-se a eles como a filhos espirituais (1Co 4:14; Gl 4:19; 1Ts 2:7,
11). Sua primeira viagem de pregação na Macedônia tinha sido
relativamente breve, mas durante sua segunda visita ficou um período
mais longo.
c. “[Ele] chegou à Grécia”. Com o propósito de indicar que tinha
passado um tempo grandemente longo durante as viagens de Paulo pela
Macedônia, ao menos duas traduções acrescentam a palavra por fim a
esta cláusula: “[Paulo] por fim, chegou à Grécia” (NVI). É possível que
Paulo tenha viajado ao longo da costa oeste da Macedônia e logo tenha
visitado Nicópolis, uma baía no oeste da Grécia (Tt 3:12). Quando
finalmente chegou à Grécia, passou três meses em Corinto.
d. “Quando estava a ponto de embarcar para a Síria, os judeus
fizeram uma conspiração contra ele; por isso decidiu voltar pela
Macedônia”. Os judeus em Corinto não tinham esquecido daquele que
havia convertido dois de seus principais da sinagoga (Crispo e Sóstenes)
e tinha fundado uma igreja perto da sinagoga (At 18:7–8, 17; 1Co 1:1,
14). Ainda lembravam a humilhação de perder um caso na corte quando
era procônsul Gálio (At 18:12–17). Sendo assim, tramaram um plano
para atacar Paulo. 1249 Mas Paulo se precaveu de suas perversas

1248
P.ej. Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The Expanding Church, 2a. ed. (Grand Rapids:
Zondervan, Academie Books, 1986), p. 326.
1249
Para referências a respeito de outras conspirações, veja-se At 9:23–24; 14:5; 20:19; 23:12, 15, 30;
25:3; 2Co. 11:26.
Atos (Simon J. Kistemaker) 977
intenções, mudou seus planos e, em lugar de embarcar para a Síria,
viajou por terra a Macedônia.
Ele não estava sozinho em Corinto. Tinha enviado Timóteo e Erasto
de Éfeso a Acaia (At 19:22); e enquanto viajava a Síria, alguns de seus
seguidores da Macedônia e Ásia Menor, incluindo Lucas, fizeram-lhe
companhia.
O Texto ocidental acrescenta interessantes detalhes, dados aqui em
itálico, ao relato de sua estada em Corinto e sua viagem subsequente:
“E quando teve passado três meses ali, e quando os judeus urdiram
um complô contra ele, ele quis embarcar para a Síria, mas o Espírito lhe
disse que voltasse pela Macedônia. Portanto, quando estava por sair,
Sópatro de Bereia, filho de Pirro, e dos tessalonicenses Aristarco e
Segundo, e Gaio de Douberios, e Timóteo, foram com ele até a Ásia;
mas os efésios Êutico e Trófimo …” 1250
Paulo abandonou seu plano de embarcar do porto Corinto de
Cencreia. Supomos que os judeus que queriam eliminá-lo, também
tinham comprada passagem para Jerusalém. Para eles teria sido muito
fácil eliminá-lo durante a viagem. 1251
4. Acompanharam-no Sópatro de Beréia, filho de Pirro, e dos de
Tessalônica, Aristarco e Secundo, e Gaio de Derbe, e Timóteo, e dos da
Ásia, Tíquico e Trófimo.
Paulo já não pôde chegar a Jerusalém antes da Páscoa, pelo que
planejou chegar para a festa do Pentecostes (v. 16). As igrejas da
Macedônia lhe entregaram donativos para os membros da igreja em
Jerusalém (2Co 8:2–3). Além disso, representantes de algumas daquelas
igrejas o acompanharam. Embora Lucas não mencione representantes
das congregações de Corinto e Filipos, é possível que ele mesmo tenha
representado a Filipos. (Durante a segunda viagem missionária de Paulo,

1250
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 474.
1251
Consulte-se William M. Ramsay, St. Paul the Traveller and the Roman Citizen (1897; reimp.,
Grand Rapids: Baker, 1962), p. 287.
Atos (Simon J. Kistemaker) 978
Lucas pareceu ter ficado em Filipos.) Ou talvez Lucas tenha estado em
Corinto com Tito (2Co 8:18–19). Como apoio a esta possibilidade,
poderíamos considerar o uso de Lucas dos pronomes: no versículo 4 não
fala de nós” e “nosso” mas o faz no versículo 5, o que indica sua própria
participação nos acontecimentos relatados. (Diga-se parêntese, as seções
“nós” em Atos estão em At 16:10–17; 20:5–15; 21:1–18; 27:1–28:16.)
Através de Atos, Lucas nunca menciona seu próprio nome nem faz
referência alguma a Tito; isso, precisamente, permitir-nos-ia supor que
estes dois homens puderam ter sido encarregados de levar as ofertas que
as igrejas enviavam aos santos de Jerusalém.
Entre os que acompanhavam a Paulo na viagem estava Sópatro, que
é identificado como filho de Pirro e oriundo de Bereia. Paulo, em
Romanos 16:21, menciona a um Sosípatro, o que poderia ser uma forma
diferente de escrever o mesmo nome.
Aristarco e Segundo, outros de seus acompanhantes, são de
Tessalônica. Lucas menciona a Aristarco em outros dois lugares (19:29;
27:2) o que indica a estreita relação que existia entre ele e Paulo. Em
suas epístolas, Paulo também refere-se a esta proximidade (Cl 4:10; Fm
24). O Segundo nome aparece só uma vez no Novo Testamento. O nome
latino é Secundus que significa “segundo”, assim como Tertius quer
dizer “terceiro” (Rm 16:22) e Quartus, “Quarto” (Rm 16:23).
Logo, Lucas menciona a Gaio, que vem de Derbe. O Texto
ocidental dá como lugar de residência de Gaio, Douberios, que era um
povoado próximo de Filipos. Albert C. Clark adota esta forma,
identificando assim a Gaio como macedônio.1252 No entanto, o respaldo
que os manuscritos dão a esta forma é fraco e, portanto, a sequência
lógica que apresenta Lucas exige a forma Derbe. Temos, então, que o
primeiro companheiro de viagem é de Bereia; os dois seguintes são de
Tessalônica, o seguinte casal é de Derbe e Listra, e os últimos dois são

1252
Albert C. Clark. The Acts of the Apostles: A Critical Edition with Introduction and Notes on
Selected Passages (1933; Oxford: Clarendon, 1970), pp. xlix–1, 374–75.
Atos (Simon J. Kistemaker) 979
1253
da província da Ásia. Gaio de Derbe não é a mesma pessoa que foi
presa em Éfeso (cf. At 19:29). A respeito de Timóteo, Lucas não dá seu
lugar de origem, mas sabemos que era de Listra (At 16:1).
Finalmente, Tíquico e Trófimo são da província da Ásia. Ambos os
nomes aparecem nas epístolas de Paulo e estão associados com Éfeso e a
região circunvizinha. Lemos que Tíquico serviu a Paulo como
mensageiro 1254 e a presença de Trófimo em Jerusalém levou à prisão de
Paulo (At 21:29). Anos mais tarde, Paulo deixou Trófimo em Mileto,
doente (2Tm 4:20).
Os sete homens, delegados de várias igrejas, acompanharam Paulo
para protegê-lo de qualquer dano físico. Seu número era também
garantia de que o dinheiro chegaria à igreja de Jerusalém.
5. Esses homens foram adiante e nos esperaram em Trôade [NVI].
Agora Lucas revela que ele mesmo era um companheiro de viagem
de Paulo e que ficaram em Filipos um pouco mais que os outros sete. 1255
Lucas não dá a razão para aquela separação, mas podemos assumir que
Paulo desejava ficar em Filipos para a festa da Páscoa, que talvez se
celebrava num estilo cristão como o Domingo de Ressurreição. João
Calvino crê que Paulo buscava oportunidades para ensinar durante a
Páscoa porque “os judeus estavam [então] muito motivados para
aprender”. 1256 Mas quando Paulo chegou a Filipos em sua segunda
viagem missionária, só mulheres reuniam-se num lugar de oração (At
16:13–15), e não temos indícios que judeus se estabeleceram ali nos anos

1253
Veja-se Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble y
Gerald Shinn (Filadélfia: Westminster, 1971), pp. 52–53; Lake y Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 254;
Colin J. Hemer, The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf (Tubinga;
Mohr, 1989), p. 124.
1254
Ef. 6:21–22; Cl. 4:7–9; 2Tm. 4:12: Tt. 3:12.
1255
A forma em que está escrito o versículo 5 (“[eles] esperaram-nos”) descarta que Timóteo tenha
sido o escritor de Atos; Timóteo e os outros foram a Trôade enquanto Lucas permanecia com Paulo.
Haenchen opina que só Tíquico e Trófimo se foram adiante a Trôade enquanto o resto ficava com
Paulo em Filipos. Acts, p. 583.
1256
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 168.
Atos (Simon J. Kistemaker) 980
que mediaram. Por falta de evidência não podemos explicar a separação
de Paulo de seus companheiros de viagem.
6. Nós, depois dos dias dos pães asmos, navegamos de Filipos, e em
cinco dias fomos ter com eles em Trôade, onde nos demoramos sete dias.
Paulo passou a Páscoa em Filipos, depois disso ele e Lucas
embarcaram de Neápolis (a cidade-porto de Filipos) a Trôade. Com
vento favorável, a viagem através da parte norte do mar Egeu poderia ser
feita em dois dias (At 16:11). Porém, com condições desfavoráveis,
poderia tomar até cinco, visto que seria necessário deter-se em algumas
ilhas que havia entre ambos os portos.
Paulo permaneceu uma semana inteira em Trôade. O texto não
especifica a razão; talvez, mesmo quando seus companheiros lhe tinham
precedido, não foi possível conseguir um navio que estivesse viajando de
Trôade até a Síria.

Palavras, frases e construções gregas em At 20:2–4


Versículos 2–3
τὴνἙλλάδα — esta é a única vez no Novo Testamento que aparece
a designação a Grécia. Esta província romana era oficialmente
conhecida como Acaia, do qual tanto Lucas como Paulo dão fé em seus
respectivos escritos.
ἐπιβουλῆς — derivada do composto ἐπί (contra) e βούλομαι (eu
dito) a palavra complô aparece no Novo Testamento só com referência a
Paulo (At 9:24; 20:3, 19; 23:30). O caso genitivo é parte da construção
absoluta genitiva.
γνώμης — o verbo ἐγενετο (chegou a ser) controla o caso genitivo
do substantivo decisão. C. F. D. Moule se pergunta se a construção
genitiva é similar à expressão em português “foi dominado por uma
decisão”. 1257
1257
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 38.
Atos (Simon J. Kistemaker) 981
Versículo 4
ἄχρι τῆς Ἀσίας — “até a Ásia”. Umas poucas traduções adotaram
esta forma que aparece em vários manuscritos gregos, latinos e siríacos
(veja-se em inglês KJV, NKJV, RV, ASV). No entanto, outros
importantes manuscritos omitem esta frase. Devido ao fato de que o
agregado desta frase é mais fácil de explicar que sua eliminação, os
estudiosos duvidam de aceitá-la como original.
O Texto ocidental substitui a palavra Êutico pelo nome Tíquico. É
provável que os escribas tenham sido influenciados pelo versículo 9.

2. Em Trôade (At 20:7–12)

Paulo tinha visitado Trôade em sua segunda viagem missionária.


Ali teve a visão do homem da Macedônia que lhe disse: “Passa a
Macedônia e ajuda-nos” (At 16:9–10). Nesse tempo, Paulo não tinha
pregado o evangelho em Trôade. Mas durante sua terceira viagem
missionária, fundou uma igreja ali (2Co 2:12).
7. No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para partir o
pão, Paulo, que havia de sair no dia seguinte, discutia com eles, e
prolongou o seu discurso até a meia noite.
Lucas, como testemunha ocular, dá-nos uma cronologia quase dia
após dia do que ocorreu durante a viagem de Paulo de Filipos até
Jerusalém. No versículo 6, registra o fato que a viagem a Trôade levou
cinco dias e que Paulo ficou ali uma semana. Neste versículo, é
igualmente preciso. Conta que no primeiro dia da semana, Paulo assistiu
ao culto de adoração local; no dia seguinte planejava sair de Trôade.
“No primeiro dia da semana” (quer dizer, no domingo; esta é a
primeira referência que encontramos no Novo Testamento à adoração
dominical) os cristãos se reuniram para celebrar a Ceia do Senhor, a qual
era seguida por uma comida comunitária, a “festa de amor”. 1258 Em

1258
Consulte-se C. Lambert, “Agape”, ISBE, vol. 1, p. 66.
Atos (Simon J. Kistemaker) 982
Atos, a expressão partir o pão refere-se a celebrar a comunhão (At 2:42;
e veja-se At 2:46). O culto de adoração começou com a pregação da
Palavra, e Lucas diz que Paulo pregou até a meia-noite.
Os crentes estavam felizes ouvindo Paulo durante um tempo tão
prolongado, mesmo quando certamente muitos deles tinham trabalhado
todo o dia (veja-se Considerações práticas em At 20:7–12). Eles viam a
visita de Paulo como uma extraordinária oportunidade para receber
instrução de um apóstolo, além do fato de saberem que na manhã
seguinte (segunda-feira) Paulo e seus companheiros partiriam para a
Síria. Portanto, alegravam-se por ouvi-lo explicar as Escrituras.
8, 9. Havia muitas lâmpadas no cenáculo onde estávamos reunidos.
Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado numa janela,
adormecendo profundamente durante o prolongado discurso de Paulo,
vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo e foi levantado morto
Aqui temos o relato de uma testemunha ocular que com toda
precisão descreve a cena num salão do terceiro andar. Lucas escreve que
havia muitas lâmpadas no salão; estas lâmpadas proviam luz para as
pessoas que ali estavam reunidas, mas também aumentava a temperatura
do salão. Imaginamos que estava cheio; não admira que o jovem Êutico
tenha tido que sentar-se na janela. 1259 Naqueles dias uma janela era
simplesmente uma abertura na parede. Usualmente estava coberta por
uma cortina, mas quando se tirava a cortina, alguém podia sentar-se no
vão da janela.
Êutico, cujo nome quer dizer “afortunado”, provavelmente tinha
trabalhado durante o dia e se achava cansado. Quando Paulo fazia seu
“prolongado discurso”, o rapaz já não pôde manter-se acordado.
Dominado pelo sono, caiu do terceiro andar e morreu. Se havia outras
pessoas dormindo também não tem importância para Lucas. Ele dá a
entender que a morte deste jovem mudou a alegria e a felicidade em

1259
Embora Bauer (p. 534) diga que a palavra jovem refere-se à idade de uma pessoa entre “os 24 e os
40 anos”, Êutico possivelmente se aproximava dos 20. (A palavra grega pais [veja-se o v. 12] também
pode significar “escravo” ou “servo”.)
Atos (Simon J. Kistemaker) 983
tragédia e tristeza. Os membros da igreja o levantaram já morto; Lucas, o
médico, estava capacitado para verificar tal diagnóstico.
10-12. Paulo desceu, inclinou-se sobre o rapaz e o abraçou, dizendo:
“Não fiquem alarmados! Ele está vivo!” Então subiu novamente, partiu o
pão e comeu. Depois, continuou a falar até o amanhecer e foi embora.
Levaram vivo o jovem, o que muito os consolou [NVI].
Notemos os seguintes pontos:
a. A ressurreição. A pregação foi interrompida de forma abrupta.
Paulo correu escada abaixo e se inclinou sobre Êutico. Abraçando-o,
disse às pessoas que choravam ao seu redor: “Não fiquem alarmados!
Ele está vivo!”
Encontramos um paralelo nas vidas de dois dos profetas, Elias e
Elísio. 1260 Cada um devolveu à vida a um filho único, e cada um o fez da
mesma forma: inclinando-se sobre o corpo da pessoa morta (1Rs 17:21;
2Rs 4:34–35). No Novo Testamento, um paralelo é Pedro ressuscitando
Dorcas. Por questão de decoro, Pedro ajoelhou-se, orou, e logo disse a
Dorcas que se pusesse em pé (At 9:40). Com toda simplicidade Lucas
relata que ambos os apóstolos ressuscitaram pessoas da morte.
Paulo trouxe de volta à vida a Êutico e disse às pessoas: “Sei que
vocês estão afligidos, porém não têm por que estar, porque o fôlego de
vida está nele”. E quando levantou Êutico, ele o fez só graças ao poder
que Jesus lhe deu. Com este milagre, Paulo demonstrou a realidade da
presença de Jesus no meio do povo de Deus.
b. A comunhão. Nesta passagem, Lucas menciona duas vezes o
partir do pão, porém não dá uma apresentação clara da sequência e do
significado deste ato. Com frequência ele apresenta um fato ou uma ação
que explica no contexto seguinte; por exemplo, brevemente assinala que
os crentes de Jerusalém tinham todas as coisas em comum (At 2:44–45),
mas em passagens posteriores descreve a generosidade de Barnabé (At
4:36–37) e o engano de Ananias e Safira (At 5:1–11). Da mesma
1260
Lake e Cadbury dizem que este paralelismo “parece exagerado” (Beginnings, vol. 4, p. 257). Seu
comentário aplica-se a uma estrita comparação verbal e não à ilustração.
Atos (Simon J. Kistemaker) 984
maneira, a referência a que os cristãos em Trôade se reuniram para partir
o pão (v. 7) poderia ser introdutória. O comentário de que Paulo partiu o
pão e comeu, refere-se à efetiva celebração da Ceia do Senhor e à
participação da festa de amor (v. 11). No texto grego do versículo 11,
Lucas escreve o artigo definido antes da palavra pão para demonstrar
que este era um acontecimento especial: Paulo partiu o pão da Santa
Comunhão. Depois de celebrar a Ceia do Senhor, Paulo participou da
festa de amor (cf. 1Co 11:20, 33; 2 Pê. 2:13; Jd 12). 1261 O resto da noite
ele a passou em conversação com os crentes. Ao clarear a alvorada saiu e
viajou a Assôs (v. 13).
c. A alegria. Lucas completa o relato dizendo que eles “conduziram
vivo o rapaz e sentiram-se grandemente confortados” [v. 12, RA]. Esta
nota revela o efeito que sobre a congregação teve a ressurreição de
Êutico. Uma tradução literal da frase incompleta tão característica de
Lucas descreve a alegria dos crentes: “não foram moderadamente
confortados”.
A Escritura registra poucos casos de pessoas que foram
ressuscitadas da morte: dois no período do Antigo Testamento, nos
tempos de Elias e de Eliseu; três durante o ministério de Jesus (a filha de
Jairo, o jovem de Naim, e Lázaro); e dois no período apostólico (Dorcas
e Êutico). Quando ocorre uma ressurreição, o próprio Deus confirma o
testemunho de Sua palavra. E aqui essa Palavra é clara: os cristãos em
Trôade levaram a Êutico a sua casa vivo, diz Lucas.

Considerações práticas em At 20:7–12


Hoje em dia, através do mundo, observa-se a semana de sete dias.
Porém nos dias de Paulo, só os judeus, os piedosos, e os cristãos tinham
um calendário no qual a semana constava de sete dias. Isto faziam em

1261
F. F. Bruce relaciona o partir do pão com a Santa Comunhão e comer o pão com “a comida
fraternal”. The Book of Acts, ed. rev., série New International Commentary on the New Testament
(Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 385 n. 30.
Atos (Simon J. Kistemaker) 985
harmonia com o relato da criação que encontramos nos primeiros dois
capítulos de Gênesis e com o mandamento no Decálogo de guardar o
shabat (sábado) depois de trabalhar seis dias (Êx 20:8–11; Dt 5:12–15).
Além disso, os gregos e os romanos não tinham dias de descanso. Na
verdade, o autor romano Sêneca zombava dos judeus e os ridicularizava
por gastar tempo em descansar um dia de cada sete. Quando Paulo
pregou o evangelho exclusivamente a audiências gentílicas (por
exemplo, em Listra e em Atenas), começou ensinando a doutrina da
criação. Teve que ensinar que Deus criou os céus e a terra em seis dias e
descansou no sétimo.
Os judeus designavam cinco dias da semana com números ordinais
(o primeiro dia, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto). Isto era
seguido pelo dia da preparação (sexta-feira) e o shabat (sábado). Os
primeiros cristãos adotaram esta nomenclatura. Mas para o final do
século I, chamaram o primeiro dia da semana o Dia do Senhor para
comemorar que Jesus tinha ressuscitado esse dia (Ap 1:10; o documento
do primeiro século Didaquê 14.1). É interessante que na moderna Grécia
o calendário designa os dias da semana como Dia do Senhor, segundo,
terceiro, quarto, quinto, dia de preparação e shabat. Em português, os
dias são domingo, segundo dia (segunda-feira), terceiro (terça-feira),
quarto (quarta-feira), quinto (quinta-feira), sexto (sexta-feira), e sábado.

Palavras, frases e construções gregas em At 20:7–12


Versículo 7
τῇ μιᾷ τῶν σαββάτων — “o primeiro dia depois do sábado”. Se o
plural shabats quer dizer “semanas”, então deveria traduzir “o primeiro
dia da semana”.
ἡμῶν — a construção genitiva absoluta é completada com o
particípio passivo perfeito συνηγμένων (de συνάγω, eu reúno). O tempo
perfeito indica duração.
Atos (Simon J. Kistemaker) 986
Versículo 9
κατεφερόμενος — do verbo καταφέρω (eu baixo) este particípio
passivo perfeito tem uma conotação intensiva. O tempo presente mostra
processo.
διαλεγομένου — “dissertando”. Note-se que o tempo presente deste
particípio (numa construção genitiva absoluta) dá a entender ação
continuada.
κατενεχθείς — este é o particípio passivo aoristo de καταφέρω. O
aoristo expressa ação individual, a preposição ἀπό causa ou sentido (por
causa de ou por [dormir]), e o composto minuciosidade.

Versículos 11–12
ἐφʼ ἱκανόν — esta expressão idiomática significa “por muito
tempo”.
οὕτως — mesmo quando o advérbio simples significa “assim”, é
difícil comunicar adequadamente o conceito com o verbo partir.
Algumas traduções eliminam o advérbio; outras o interpretam “então”.
O Texto ocidental muda o plural tomaram no singular Paulo tomou:
“Quando eles estavam despedindo-se, Paulo levou o jovem a sua casa
vivo”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 987
3. Em Mileto (At 20:13–38)

Lucas nos está entregando uma página de seu diário, por assim
dizer, porque ele escreve com o estilo de uma testemunha ocular que
registra tanto o que ocorre como o que se diz. Dá-nos uma descrição dia
após dia da viagem de Trôade a Mileto.

a. A viagem (At 20:13–16)

13, 14. Quanto a nós, fomos até o navio e embarcamos para Assôs,
onde iríamos receber Paulo a bordo. Assim ele tinha determinado, tendo
preferido ir a pé. Quando nos encontrou em Assôs, nós o recebemos a
bordo e prosseguimos até Mitilene [NVI].
Por razões que ignoramos, Paulo se separou de seus companheiros e
decidiu viajar a pé até Assôs. Alguns comentaristas afirmam que Paulo
era um marinheiro péssimo, que temia encontrar-se no barco com judeus
inimigos, ou que queria estar sozinho com Deus. Não conhecemos suas
razões. O texto parece implicar que como seus companheiros foram
adiante a barco, ele ficou momentaneamente atrás em Trôade. Sabia que
o navio atracaria mais tarde nesse dia (segunda-feira) em Assôs, povo
que estava localizado numa elevação de 215 metros sobre o nível do
mar.
Lucas parece indicar que Paulo abordou o navio antes que atracasse
a Assôs ou em Assôs mesmo. Nesse mesmo dia, o veleiro zarpou para o
sul ao longo da ilha de Lesbo, a uma aldeia-porto chamada Mitilene, a
qual estava localizada a 80 km. ao sul de Trôade. Aqui passaram a noite.
William M. Ramsay faz uma interessante observação:
“Evidentemente, o navio se detinha cada anoitecer. A razão estava no
vento, que no Egeu em geral durante o verão sopra do norte, começando
bem cedo na manhã; a fins da tarde, cessa; ao ocaso, há uma calma total,
mas logo se levanta um suave vento do sul e sopra durante a noite. A
partida se faria antes que amanhecesse, pelo que era necessário que todos
Atos (Simon J. Kistemaker) 988
os passageiros estivessem a bordo pouco depois de meia-noite com o fim
de estar preparados para zarpar com os primeiros ventos do norte”. 1262
15, 16. No dia seguinte navegamos dali e chegamos defronte de Quio;
no outro dia atravessamos para Samos e, um dia depois, chegamos a
Mileto. Paulo tinha decidido não aportar em Éfeso, para não se demorar
na província da Ásia, pois estava com pressa de chegar a Jerusalém, se
possível antes do dia de Pentecoste [NVI].
a. “No dia seguinte navegamos dali e chegamos defronte de Quio”.
No dia seguinte (terça-feira) o navio zarpou de novo cedo pela manhã.
Um vento do norte o impulsionava em direção sul-sudoeste através de
mar aberto até a ilha de Quios. Os viajantes passaram a noite no estreito
entre terra firme e Quios. No dia seguinte (quarta-feira) saíram para o
sudeste e, mais uma vez, cruzaram o mar aberto, aproximando-se da ilha
de Samos, situada a oeste-sudoeste de Éfeso. Na frente da ilha e de terra
firme havia um povoado chamado Trogílio. Segundo o Texto ocidental e
o Texto majoritário, Paulo e seus companheiros “ficaram em
Trogílio”. 1263 Este pequeno detalhe é “natural e provável numa viagem
costeira e geograficamente certeira”. 1264 A frase foi ou eliminada de
alguns dos mais importantes manuscritos ou agregada aos Textos
ocidental e majoritário.
No quarto dia (quinta-feira), o barco navegou ao longo da costa
ocidental da Ásia Menor e fez porto em Mileto (cf. 2Tm 4:20). Esta
cidade estava localizada, em linha reta, a 65 km. de Éfeso; mas, devido
ao fato de que nos tempos apostólicos o viajante devia ir ao redor do
golfo de Priene, a distância era muita maior.
“Hoje, este golfo é uma lago continental, e a ilha de Lada, a qual
uma vez foi uma abrigada baía, chegou a ser uma colina rodeada por
uma pantanosa planície aluvial”. 1265
1262
Ramsay, St. Paul the Traveller, p. 293.
1263
KJV, NKJV, JB, Moffatt.
1264
William M. Ramsay, The Church in the Roman Empire Before A.D. 170 (Londres: Hodder and
Stoughton, 1907), p. 155.
1265
Gerald L. Borchert, “Miletus”, ISBE, vol. 3, p. 355.
Atos (Simon J. Kistemaker) 989
b. “Paulo tinha decidido não aportar em Éfeso, para não se demorar
na província da Ásia”. Note-se que Lucas apresenta a Paulo como aquele
que faz as decisões: 1266
Paulo fez acertos para viajar a pé a Assôs;
Paulo decidiu não deter-se na província da Ásia;
Paulo enviou um mensageiro a Éfeso para pedir aos anciãos para vir
a Mileto.
Ele teve a oportunidade de deixar o barco em Trogílio e caminhar
até Éfeso, mas preferiu permanecer a bordo até que o navio atracou na
baía de Mileto. Percebeu que uma visita pessoal a Éfeso lhe consumiria
muito tempo, e que uma reunião com os anciãos efésios em Mileto seria
mais curta. Além disso, depois de ter perdido a oportunidade de estar em
Jerusalém para a festa da Páscoa, agora queria estar ali para a celebração
do Pentecostes.
Lucas informa como preencheu Paulo as sete semanas entre a
Páscoa e Pentecostes: passou cinco dias viajando entre Neápolis e
Trôade (At 20:6); esteve uma semana em Trôade (At 20:6); tomou
quatro dias viajar de Trôade a Mileto (At 20:13–16); passou talvez quase
uma semana na viagem de Mileto a Tiro (At 21:1–3); ficou uma semana
em Tiro (At 21:4); e detendo-se em Cesareia, necessitou ao menos uma
semana para chegar a Jerusalém (At 21:7–15). Segundo o registro de
Lucas, Paulo tinha algum tempo disponível antes do Pentecostes.
É possível que o capitão do navio tenha decidido permanecer na
baía de Mileto por uns poucos dias para carregar e descarregar. Durante
esse tempo de espera, Paulo pôde reunir-se com os anciãos de Éfeso e,
talvez durante um culto de adoração, despedir-se deles.

1266
Cf. J. Lambrecht, “Paul’s Farewell-Address at Miletus (Acts 20, 17–38)”, em Les Actes des
Apôtres: Traditions, Rédaction, Théologie, ed. J. Kremer, Bibliotheca Ephemeridium Theologicarum
Lovaniensium 48 (Louvain: Louvain University Press, 1979), pp. 329–30.
Atos (Simon J. Kistemaker) 990
Palavras, frases e construções gregas em At 20:13–16
Versículos 13–14
προελθόντες — o contexto respalda esta forma (“adiantamo-nos”)
em lugar de προσελθόντες (aproximamo-nos). A forma do Texto
ocidental (“baixamos”) parece ser a modificação de um escriba.
διατεταγμένος — o tempo perfeito neste particípio passivo de
διατάσσω (eu ordeno, mandar) revela que a decisão de Paulo não tinha
sido feita no apuro do momento.
συνέβαλλεν — ao usar o tempo imperfeito, Lucas torna possível
duas traduções: Paulo abordou o navio perto de Assôs ou em Assôs.

Versículo 16
εἰ δυνατὸν εἴη — “de ser possível”. Aqui temos uma das poucas
frases optativas em condicional. Esta é uma frase parentética parecida
com “se Deus quiser” (At 18:21).
εἰς — não “para” mas “em”. Depois de γενέσθαι (ser), significa
“em Jerusalém” (veja-se At 21:17; 25:15). 1267

b. A declaração (At 20:17–21)

Embora Lucas tenha registrado com toda exatidão a substância e a


forma de outros sermões e discursos de Paulo, as palavras de despedida
em Mileto provavelmente sejam as únicas que ele mesmo realmente
ouviu. A despedida está numa das seções de “nós” em Atos; 1268 o que
significa que o relato é feito por uma testemunha ocular, e o texto

1267
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961), #205.
1268
C. K. Barrett pergunta por quê Lucas teria que escrever ficção e pôr a história em Mileto em lugar
de “em Éfeso, a grande cidade e centro paulino”. Veja-se “Paul’s Address to the Ephesian Elders” em
God’s Christ and His People: Studies in Honour of N. A. Dahl, ed. Jacob Jervell e Wayne A. Meeks
(Oslo, Bergen, y Tromsö: Universitetsforlaget, 1977), p. 109.
Atos (Simon J. Kistemaker) 991
registra as palavras que Paulo falou. Ao comparar as palavras desta
discurso breve com o estilo de Paulo em suas epístolas, pode-se notar
semelhanças notáveis:
“servindo ao Senhor com toda a humildade” (At 20:19 e Rm 12:11;
Ef 4:2);
“contanto que complete a minha carreira” (At 20:24 e 2Tm 4:7);
completar “o ministério que recebi do Senhor” (At 20:24 e Cl 4:17);
a “herança entre todos os que são santificados” (At 20:32 e Cl
1:12).1269
Embora o discurso possa ser lido como uma unidade, alguns
editores do Novo Testamento grego e alguns tradutores usam suas frases
recorrentes (“vós bem sabeis” [v. 18], e “e agora” [vv. 22, 32], e “e eu
sei” [v. 25], “eu sei” [v. 29]) como pontos lógicos em que dividir o
discurso em quatro ou cinco parágrafos. 1270 As frases repetitivas são
parte do último testemunho de Paulo aos anciãos efésios. Ele lhes
informa que com o passar da era apostólica eles se tornaram os pastores
do rebanho de Cristo. Paulo usa o verbo saber para acentuar estes
assuntos que eles têm em comum:
“Vocês sabem que eu estive com vocês” (v. 18);
“Embora não sei o que me ocorrerá lá” (v. 22);
“Sei que nenhum de vocês … verá de novo meu rosto” (v. 25);
“Eu sei que … lobos selvagens virão” (v. 29);

1269
H. J. Cadbury, “The Speeches in Acts”, Beginnings, vol. 5, p. 413. É volumosa a literatura recente
sobre as palavras de Paulo em Mileto; veja-se especialmente Jacques Dupont, Le Discours de Milet:
Testament Pastoral de Saint Paul (Acts 20:18–36), Lectio Divina 32 (París: Cerf, 1962); Hans-
Joachim Michel, Die Abschiedsrede des Paulus an die Kirche Apg 20, 17–38; Motivgeschichtliche
und theologische Bedeutung (Munich: Kösel, 1973).
1270
P.ej veja-se Nes-Al, Merk; MLB, NIV, NEB. C. Exum e C. Talbert analisam o discurso como um
quiasmo no qual o v. 25 serve de centro, os vv. 22–24 de balanço aos vv. 26–30, e os vv. 18–21
comunicam a mesma mensagem que os vv. 31–35. “The Structure of Paul’s Speech to the Ephesian
Elders (Acts 20, 18–35)”, CBQ 29 (1967):233–36.
Atos (Simon J. Kistemaker) 992
“Vocês mesmos sabem que estas mãos ministraram para minhas
próprias necessidades” (v. 34). 1271
O repetido uso deste verbo enfatiza o vínculo entre Paulo e os
anciãos e lhes comunica que Paulo os está deixando a cargo da igreja. Os
anciãos de Éfeso receberam o legado de ser supervisores e pastores do
rebanho de Jesus Cristo.
17. De Mileto, Paulo mandou chamar os presbíteros da igreja de
Éfeso [NVI].
Um mensageiro pôde cobrir a distância entre Mileto e Éfeso em
dois dias, e os anciãos terão necessitado igual número de dias para viajar
a Mileto. Talvez Trófimo, natural de Éfeso (At 21:29), serviu como
mensageiro e acompanhou os anciãos quando vieram encontrar-se com
Paulo. Supomos que Paulo passou um dia exortando e instruindo os
anciãos. Em anos posteriores, escreveu a Timóteo e a Tito as
qualificações para os anciãos, quer dizer, supervisores (1Tm. 3:1–7;
5:17; Tt 1:6–9).
Onde quer que Paulo fundava igrejas, nomeava anciãos para dar
orientação (cf. At 14:23; e veja-se Tt 1:5). Neste versículo Lucas chama
estes homens “anciãos”, embora em seu discurso Paulo os descreve
como “supervisores” (v. 28). A palavra ancião refere-se à uma posição; a
palavra supervisor descreve a tarefa que a pessoa realiza.
18. E, quando se encontraram com ele, disse-lhes: Vós bem sabeis
como foi que me conduzi entre vós em todo o tempo, desde o primeiro dia
em que entrei na Ásia.
Supomos que os anciãos viajaram a Mileto sem demora. Talvez
suspeitavam que a mensagem de Paulo diferiria das palavras de alento
que havia dito aos discípulos quando saiu para a Macedônia (v. 1).
Vieram como anciãos governantes e mestres a quem Paulo confiaria uma
herança espiritual.

1271
Consulte-se Jacques Dupont, Nouvelles Études sur les Actes des Apôtres, Lectio Divina 118
(París: Cerf, 1984), p. 439.
Atos (Simon J. Kistemaker) 993
Na primeira parte de seu discurso, Paulo lembra que primeiro
tinham vindo de Corinto (At 18:19), ensinado na sinagoga local, ido a
Jerusalém, e voltado para Éfeso. Quando voltou para Éfeso, ensinou por
cerca de três anos. Em nenhuma outra parte tinha pregado o evangelho
por um período tão longo. Os anciãos sabiam que Paulo tinha ensinado a
palavra de Deus com toda fidelidade tanto a judeus como a gentios da
província da Ásia (At 19:10). Eles podiam dar fé que ele tinha estado
entre eles como um autêntico mensageiro do evangelho de Cristo.
Convencidos de sua missão, foram testemunhas da veracidade da
mensagem que proclamava. Tinham visto um Paulo completamente
entregue a servir ao seu Senhor.
19. Servi ao Senhor com toda a humildade e com lágrimas, sendo
severamente provado pelas conspirações dos judeus [NVI].
Notemos os seguintes pontos:
Primeiro, ao dizer “servi ao Senhor”, Paulo indica no grego que ele
era um servo de Cristo (cf. Rm 1:1; 12:11; Gl 1:10; Fp 1:1). Literalmente
está se chamando escravo. Como um escravo elevava seus olhos a seu
Senhor, porque para fazer menos que isso lhe pareceria pecado. Portanto,
confessa que serviu a Jesus “com toda a humildade”. 1272 Tinha aprendido
a viver com toda a humildade como servo do Senhor (veja-se Fp 4:12), e
exortou as pessoas a olhar não simplesmente seu próprio benefício, e sim
buscar o de outros (Fp 2:4; e veja-se Ef 4:2). Agostinho captou a
importância da humildade quando disse:
Para aqueles que aprenderiam os caminhos de Deus,
humildade é a primeira coisa,
humildade é a segunda,
e humildade é a terceira.
Segundo, Paulo serviu ao Senhor com lágrimas. Duas vezes em seu
discurso, confessa que tinha derramado lágrimas: quando foi perseguido
por seus inimigos (v. 19) e quando se angustiava pelos convertidos (v.

1272
Veja Hans-Helmut Esser, NIDNTT, vol. 2, p. 263; Walter Grundmann, TDNT, vol. 8, pp. 21–23.
Atos (Simon J. Kistemaker) 994
31). Durante seu ministério, entregou-se completamente para servir ao
Senhor e à igreja. Chorou não pelas feridas e as contusões que ele tinha
recebido como servo de Cristo. Cuidava dos membros da igreja quando
escreveu aos coríntios para revelar seu profundo amor por eles (uma
carta não existente; veja-se 2Co 2:4). E aos filipenses falou de suas
lágrimas quando lhes disse que muitos viviam como inimigos da cruz de
Cristo (Fp 3:18). Estas lágrimas dão testemunho da grandeza de Paulo.
Terceiro, as aflições foram obstáculos formidáveis em sua vida
apostólica. Ele diz que estas provas foram as conspirações dos judeus.
Desde sua conversão perto de Damasco, os complôs dos judeus contra
sua vida, pareceram ocorrer com muita frequência, tanto em Damasco,
como na Ásia Menor, Macedônia, Grécia, e Jerusalém. 1273 Sua vida
sempre pareceu estar em perigo de bandidos, judeus ou gentios (2Co
11:26), mas o Senhor o protegeu.
20, 21. Não guardei nada do que é bom para vocês, pregando e
ensinando publicamente e de casa em casa. Testifiquei tanto a judeus
como a gregos para que se arrependessem a Deus e pusessem sua fé em
nosso Senhor Jesus [trad. Kistemaker].
a. “Não guardei nada”. Mesmo quando confrontou perigos em
qualquer lugar que, Paulo ousadamente deu aos crentes tudo o que eles
necessitavam para seu desenvolvimento espiritual. Disse-lhes, “Não
permaneci calado por medo de ocultar algo de vocês que lhes pudesse
beneficiar” (cf. v. 27). Qual foi então a vantagem para eles? Seu bem-
estar espiritual. Com uma devoção incansável, Paulo comunicou aos
efésios as riquezas da salvação por meio da pregação da Palavra de
Deus.
b. “Pregando e ensinando”. Paulo proclamava o evangelho nos
cultos de adoração, mas também ensinava diariamente no salão de
conferências de Tirano (At 19:9). Além disso, sua pregação nunca foi
feita em segredo. Publicamente pregou a Palavra na cidade de Éfeso de

1273
Veja-se, p.ej., At 9:23–24, 29; 14:5; 20:3; 23:12; 25:3; 2Co. 11:26.
Atos (Simon J. Kistemaker) 995
modo que todos tiveram a oportunidade de ouvir a mensagem de
salvação. Seu ensino não esteve limitado às conferências que
diariamente dava a seus discípulos; também ia de casa em casa
instruindo às pessoas nas riquezas da Palavra. A palavra casa
indubitavelmente refere-se às numerosas igrejas-casas que se
estabeleceram ali (veja-se Rm 16:5; Cl 4:15; Fm 2). Em seu trabalho,
demonstrou que sempre e em todo lugar foi um ministro dessa Palavra.
c. “Testifiquei tanto a judeus como a gregos”. Paulo foi tudo a todos
para que ganhasse para Cristo. Foi um judeu na companhia de judeus e
um gentio com os gentios. Fez todo o possível por adiantar a causa do
evangelho (1Co 9:19–23). Como quer que fosse, viveu em dois mundos
diferentes, cada um com sua própria cultura e costumes. Nunca tratou de
usar seu chamado de apóstolo aos gentios como desculpa para não pregar
aos judeus. Testificou fielmente a ambos os grupos de pessoas. O verbo
testificar aparece frequentemente em Atos e descreve a pregação dos
apóstolos Pedro, João, e Paulo. 1274
O texto grego indica que Lucas diz que Paulo testificava
continuamente. Qual era o conteúdo de seu testemunho? Dito
simplesmente, o que é o resumo da doutrina cristã: o arrependimento por
fé. Em seu discurso, Paulo diz que ele proclamou tanto a judeus como a
gregos

arrependimento fé
a Deus em nosso Senhor Jesus

Os substantivos arrependimento e fé são os dois lados da mesma


moeda. Visto que Paulo dá dois aspectos de um conceito, nós não
devemos ligar o arrependimento aos gentios e fé aos judeus. Tanto
judeus como gentios deviam arrepender-se de seus pecados e ambos
1274
No grego, aparece nove vezes em Atos (At 2:40; 8:25; 10:42; 18:5; 20:21, 23, 24; 23:11; 28:23),
uma vez no Evangelho de Lucas (At 16:28), quatro vezes nas epístolas de Paulo (1Ts. 4:6; 1Tm. 5:21;
2 Ti. 2:14; 4:1), e uma vez em Hebreus (2:6).
Atos (Simon J. Kistemaker) 996
deviam expressar sua fé em Jesus. Além disso, arrependimento sem fé
como seu contraparte é inútil; e fé sem o requisito de arrependimento, é
fútil. Por certo, “arrependimento e fé estão unidos numa união
inquebrantável”. 1275

Considerações práticas em At 20:17–21


Numerosos adoradores dos domingos preferem ouvir um sermão a
respeito do céu que uma referência ao inferno. Gostam de ouvir palavras
agradáveis sobre o amor de Deus, mas recusam aceitar a justiça de Deus.
Recebem com agrado uma palavra de elogio, mas rejeitam qualquer
alusão à condenação. Das doutrinas da fé cristã, escolhem aquelas que
são agradáveis e gratificantes. Como resultado, rejeitam ouvir sobre o
pecado e o arrependimento, a incredulidade e a desobediência, o inferno
e a reprovação.
Qual é a tarefa do pastor que ministra a Palavra às pessoas que têm
comichão de ouvir (2Tm 4:3)? Deve lembrar que ele é um ministro da
Palavra de Deus, não um ministro das pessoas. Ele ministra a Palavra ao
povo, mas em primeiro lugar é um ministro dessa Palavra. Para colocar
na linguagem da Escritura, Deus lhe deu a responsabilidade de tocar a
trombeta para preparar o seu povo para a guerra contra o pecado (1Co
14:8). Mas se a trombeta não produz um som claro, ninguém vai se
preparar para a batalha, e como resultado todos virão a ser cativos do
pecado.
Falhar em pregar toda a mensagem de salvação é cruel, porque os
resultados são destruição e morte. O pastor que fielmente prega o
evangelho nunca deixa de incluir um chamado ao arrependimento. Ele
lança uma advertência de iminente condenação se seu chamado não é
atendido. Assinala o caminho estreito que leva à vida e adverte a sua

1275
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 176. Para uma sugestão de quiasmo, veja-se Lake e
Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 260; e John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed.
Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 687.
Atos (Simon J. Kistemaker) 997
audiência a não ir pelo caminho largo de pecado que leva à condenação
eterna. Um verdadeiro pregador chama os pecadores ao arrependimento
e à fé. D. L. Moody disse: “Arrependimento é a lágrima do olho da fé”.

Palavras, frases e construções gregas em At 20:18 e 20


Versículo 18
ἀπὸ πρώτης ἡμέρας ἀφʼ ἦς — a cláusula relativa contrasta com o
substantivo anterior devido ao fato de que a preposição está repetida. 1276
Paulo é enfático em seu discurso e aponta ao primeiro dia em que pôs
seus pés em Éfeso.
τὸν πάντα χρόνον — “o tempo todo”. O substantivo refere-se ao
tempo calendário e não a um tempo ou momento determinado.

Versículo 20
ὑπεστειλάμην — este verbo de ὑποστέλλω (eu guardo) sempre
mostra que o medo é uma força motivadora. Aparece duas vezes em
Atos (At 20:20, 27), uma em Gálatas (Gl 2:12), e uma em Hebreus (Hb
10:38).

c. O testemunho (At 20:22–24)

22, 23. Agora, compelido pelo Espírito, estou indo para Jerusalém,
sem saber o que me acontecerá ali. Só sei que, em todas as cidades, o
Espírito Santo me avisa que prisões e sofrimentos me esperam [NVI].
Depois de lembrar sua audiência a obra que tinha realizado entre
eles, Paulo na segunda parte de seu discurso lhes diz por que está em
caminho para Jerusalém.

1276
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 721.
Atos (Simon J. Kistemaker) 998
a. “Agora, compelido pelo Espírito, estou indo para Jerusalém”. Os
anciãos de Éfeso sabiam dos desejos de Paulo de ir a Jerusalém, porque
enquanto ainda estava ensinando no salão de Tirano tinha expresso seu
desejo de prosseguir para essa cidade (At 19:21). Provavelmente eles se
maravilharam que em lugar de ir ao sul e a leste para a Palestina, fora a
norte e oeste, para a Macedônia e Grécia (At 20:1).
A razão para ir a Jerusalém, segundo os matizes do texto grego, era
porque por algum tempo já Paulo estava destinado, quer dizer, sob
obrigação de fazer a viagem. Era este um desejo só de seu espírito
humano, ou estava sendo impulsionado pelo Espírito Santo? 1277
Procuramos responder esta pergunta olhando ao contexto geral. Em
Atos, Lucas mostra que o Espírito Santo trabalhou em muitas pessoas.
Assim, o Espírito induziu Filipe a aproximar-se do funcionário etíope
(At 8:29), Pedro a acompanhar os homens enviados por Cornélio (At
10:20; 11:12), a igreja em Antioquia a comissionar a Barnabé e Paulo
(At 13:2), e a Paulo a passar de largo na Ásia e Mísia (At 16:6–7).
Às vezes, Lucas usa a palavra espírito quando se refere ao espírito
humano (veja-se At 18:25). Com frequência, mostra precisão quando no
grego delimita esta palavra com um adjetivo possessivo (p. ex. meu ou
seu espírito; veja-se Lc 1:47; At 17:16). No versículo 22, Lucas parece
indicar que está aludindo ao Espírito, especialmente quando no versículo
que segue (v. 23), explicitamente escreve, “o Espírito Santo”. Em
conclusão, Paulo está sendo dirigido pelo Espírito Santo para ir a
Jerusalém. 1278
b. “Sem saber o que acontecerá ali”. O Espírito Santo compele
Paulo a viajar para Jerusalém, porém não lhe disse o que o espera lá. O
próprio Pablo não tem um conhecimento inato dos acontecimentos

1277
Algumas traduções usam a palavra espírito com minúscula para indicar que era o espírito de Paulo
e não o Espírito Santo. Outras usam a palavra com maiúsculas. E ainda outras acrescentam a palavra
Santo para que se leia Espírito Santo.
1278
Cf. F. F. Bruce, “The Holy Spirit in the Acts of the Apostles”, Interp 27 (1973): 182. Veja-se
também meu comentário sobre At 19:21.
Atos (Simon J. Kistemaker) 999
futuros. Mas ele sabe que o Espírito irá revelando detalhes à medida que
continue para frente. Durante o curso da viagem (para ser precisos, tanto
em Tiro como em Cesareia), recebe informação adicional. Em Tiro, os
cristãos o advertem para não continuar para Jerusalém (At 21:4). E em
Cesareia, o profeta Ágabo lhe manifesta que em Jerusalém será preso e
entregue aos gentios (At 21:10–11).
Três dias depois de sua conversão, Jesus disse a Ananias em
Damasco que (Jesus) mostraria a Paulo quanto deveria sofrer pela causa
da revelação de Cristo (At 9:16). Mesmo que tinha suportado muito
sofrimento (veja-se a lista em 2Co 11:23–29), ele sabe que será
encarcerado e sofrerá adversidades em Jerusalém e outras partes. Como
diz Paulo: “o Espírito Santo me disse que em cada cidade me esperam
prisões e aflições”. Quanto mais perto está de Jerusalém, mais
claramente o Espírito lhe fala a respeito de seus iminentes sofrimentos.
O texto não oferece evidência de que Paulo pospôs sua viagem com
o fim de evitar as aflições que o esperavam. Ele não resiste ao Espírito
mas obedientemente ouve e Lhe permite governar sua vida. Portanto,
explicitamente afirma:
24. Porém não tenho a minha vida como coisa preciosa a mim
mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi
do Senhor Jesus, para dar testemunho do Evangelho da graça de Deus.
Observemos os seguintes pontos:
a. Variantes. Se consultarmos umas poucas traduções, notaremos
algumas variantes no primeiro artigo deste versículo:
“Porém não me move nenhuma destas coisas; nem conto minha
vida como algo querido para mim” (NKJV; veja-se também KJV, MLB).
“Porém não vale a pena que eu lhes fale de minha vida” (Nota na
BJ).
“Mas eu não considero minha vida por nenhuma conta como algo
querido para mim” (NASB).
A razão para estas diferenças jaz, primeiro, na evidência dos
manuscritos gregos e, segundo, no uso das expressões idiomáticas. Os
Atos (Simon J. Kistemaker) 1000
Textos ocidental e majoritário têm a expressão ampliada que está
refletida nas traduções mais longas. 1279 Além disso, o versículo contém
tanto uma combinação como uma contração de duas expressões: “não
tenho estima absolutamente” e “Não considero minha vida preciosa”. 1280
Uma tradução mais ou menos literal da primeira parte do versículo 24 é,
“Mas eu não faço conta de minha vida (como algo) precioso para
mim”. 1281
b. Explicação. Tanto na presença dos crentes em Cesareia como em
seus escritos, Paulo declara que ele está disposto a ceder tudo, incluindo
sua vida, a Cristo Jesus (At 21:13; 2Co 12:10; Fp 1:20–21; 2:17; 3:8).
Afirma que se encontra correndo uma carreira para cumprir seu
ministério, metáfora que repete em sua última epístola, que escreve antes
de sua morte: “terminei a carreira” (2Tm 4:7). Sua experiência de
conversão foi o começo dessa carreira, que ele agora espera terminar. Ele
sabe que o propósito desta carreira é completar o trabalho que Jesus lhe
deu pra fazer, quer dizer, a tarefa de testificar das boas novas da graça de
Deus (cf. 2Co 5:18).
c. Intenção. As palavras de Paulo não devem necessariamente ser
entendidas como achando que a obra de sua vida chegará a um abrupto
final em Jerusalém. Antes, ele tinha expresso seu desejo de viajar para
Roma (At 19:21), e em sua epístola à igreja na cidade imperial escreve
que deseja ir a Espanha (Rm 15:24, 28). Ele via sua obra estendendo-se
em círculos cada vez mais amplos, tendo Jerusalém como centro, e
alcançando até os limites da terra (At 1:8).
O evangelho descobre a graça de Deus para com Seu povo. Em suas
palavras de despedida, Paulo usa este conceito mais uma vez quando
encomenda os anciãos a Deus e à palavra de Sua graça (v. 32).
1279
Consulte-se Metzger, Textual Commentary, p. 479.
1280
Veja-se Hans Conzelmann, Acts of the Apostles, trad. por James Limburg, A. Thomas Kraabel, e
Donald H. Juel (1963; Filadélfia: Fortress, 1987), p. 174.
1281
Cf. James Hardy Ropes “The Text of Acts”, Beginnings, vol. 3, p. 196; F. F. Bruce, The Acts of
the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3a. ed. rev. y aum. (Grand Rapids:
Eerdmans, 1990), p. 570.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1001
Igualmente, no Concílio de Jerusalém, Pedro disse que os gentios são
salvos mediante a graça de Jesus (At 15:11). A salvação é o dom de
graça de Deus, da qual os pecadores se apropriam pela fé. 1282

Palavras, frases e construções gregas em At 20:22–24


Versículos 22–23
πορεύομαι — o tempo presente deste verbo “descreve uma ação
que já estava em desenvolvimento, ‘vou a Jerusalém’ ”. 1283
δεσμά — este substantivo plural cadeias (quer dizer,
encarceramento) aparece três vezes no Novo Testamento, todas nos
escritos de Lucas (Lc 8:29; At 16:26; 20:23). Como sinônimo de δεσμός
(correntes), descreve vividamente o encarceramento que esperava a
Paulo.

Versículo 24
No grego, a primeira cláusula neste versículo é incômoda, porque
comprime duas expressões idiomáticas. O Texto ocidental tem as
expressões separadas ao expandir o texto: οὑδενὸς λόγον ἔχω μοι (eu não
valorizo [considero] de nada para mim mesmo) e οὑδὲ ποιοῦμαι τὴν
ψυχήν μου τιμίαν ἐμαυτοῦ (não faço minha vida valiosa para mim). Com
modificações, o Texto Receptus e o Texto majoritário adotaram esta
forma ampliada.
τῆς χάριτος τοῦ θεοῦ — “a graça de Deus”. Com o substantivo
evangelho, esta frase é um genitivo subjuntivo, não o genitivo objetivo.
O evangelho é um dom de Deus.

1282
Os conceitos graça e fé estão estreitamente ligados. Consulte-se Donald Guthrie, New Testament
Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 617.
1283
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
232.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1002
d. A advertência (At 20:25–31)

25. Agora eu sei que todos vós, por entre os quais passei
proclamando o reino, não vereis mais a minha face.
Na terça parte de suas palavras de despedida dos anciãos efésios,
Paulo prediz que nunca mais voltarão a ver-se. Como devemos
interpretar este versículo, à vista do fato de que mais tarde Paulo voltou a
Éfeso (1Tm. 1:3; 3:14)? Podemos considerar várias respostas:
1. Quando Lucas escreveu Atos, ele não estava a par da intenção de
Paulo de visitar Éfeso. Isto é possível se considerarmos que Lucas
escreveu Atos muito pouco tempo depois que Paulo foi libertado da casa
onde estava custodiado em Roma.
2. Paulo tinha sua atenção posta em visitar Roma e outros lugares,
porém não tinha intenção alguma de voltar a Éfeso. Esta é uma
explicação válida se assumirmos que visitou a Espanha. 1284
3. Paulo esperava viajar a Roma, onde havia de morrer. 1285 Mas
Lucas finaliza o Livro de Atos com uma nota otimista que o descreve
pregando o evangelho sem nenhum impedimento (At 28:31).
4. Paulo era da opinião que ele seria levado à morte em Jerusalém.
Só se interpretarmos este versículo (v. 25) de um ponto de vista
estritamente humano, podemos dizer que temia tal possibilidade.
5. Quando Paulo voltou para seus antigos paroquianos em Éfeso,
“quase todas estas pessoas [haviam] morrido ou foram a outro lugar”. 1286
Mas esta é uma mera hipótese.
As primeiras duas interpretações parecem ser as mais aceitáveis.
Admitindo que Paulo parcebia a importância do impulso do Espírito, ele
de qualquer maneira tinha o desejo de pregar o evangelho em outra parte.
1284
Clemente de Roma diz, “[Paulo] chegou aos limites do oeste”. I Clem. 5.7 (LCL); Veja-se o
Cânon Muratório, linhas 34–39. Hemer respalda a ideia que Paulo visitou a Espanha mas se cuida das
especulações. Book of Acts, p. 400.
1285
Conzelmann vê um só encarceramento em Roma, durante o qual morreu (Acts, p. 174). No
entanto, a tradição afirma que esteve duas vezes preso e que nesse ínterim viajou extensamente.
1286
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 688.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1003
Portanto, disse aos anciãos efésios que tinham ouvido a mensagem do
reino (quer dizer, o evangelho [veja-se At 19:8]), que não voltariam a ver
seu rosto. Paulo não voltaria a Éfeso como seu ministro; agora
comissionava os anciãos para que se fizessem acusação da igreja local
(v. 28).
26, 27. Portanto, eu lhes declaro hoje que estou inocente do sangue
de todos. Pois não deixei de proclamar-lhes toda a vontade de Deus [NVI].
Com sua última afirmação, Paulo diz que seu trabalho em Éfeso
terminou. Ao usar o verbo testificar (v. 21) de novo está afirmando sua
fidelidade em pregar o evangelho: “Estou inocente do sangue de todos”.
Aqui está aludindo a uma profecia em Ezequiel na qual o vigia sobre os
muros da cidade faz soar a trombeta para advertir as pessoas da
proximidade do perigo. Mas se os habitantes da cidade não fazem caso
da sua advertência, o vigia não será responsável pelo sangue que for
derramado (Ez 33:4; e veja-se Ez 3:17–19). Paulo se refere à mesma
passagem do Antigo Testamento quando sai do meio dos dirigentes
judeus da sinagoga de Corinto (At 18:6).
De novo, Paulo se refere ao que já disse antes (v. 20): “Não deixei
de proclamar-lhes toda a vontade de Deus”. Não passou por alto
nenhuma das verdades do evangelho, antes, o proclamou íntegro tanto a
judeus como a gentios. Ao dirigir-se a suas audiências, Paulo usou tato e
discrição, porém nunca comprometeu a pureza da mensagem de
salvação. A frase toda a vontade de Deus refere-se à revelação completa
que Deus deu em seu Filho Jesus Cristo, através de quem o crente se
apropria da salvação (cf. At 2:23; 4:28). Note-se que em sua epístola aos
Efésios, Paulo assinala como Deus realiza e cumpre Seu plano de
salvação mediante Cristo: “nele fomos também escolhidos, tendo sido
predestinados conforme o plano daquele que faz todas as coisas segundo
o propósito da sua vontade” (Ef 1:11, NVI).
28. Cuidem de vocês e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito
Santo os colocou como supervisores para pastorear a igreja de Deus, que
ele comprou com seu próprio sangue [trad. Kistemaker].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1004
a. “Cuidem de vocês e de todo o rebanho”. Paulo encomenda uma
tarefa aos anciãos efésios, que devem assumir sua responsabilidade
pastoral na igreja local. Começa dizendo que cuidem de si mesmos; quer
dizer, devem ser exemplos espirituais para os membros da igreja. Exorta-
o a colocar suas mentes no trabalho de cuidar por de mesmos (cf. 1Tm.
4:16).
Além disso, os anciãos têm a tarefa de cuidar das necessidades
espirituais de “todo o rebanho”. Paulo usa imagens tomadas da sociedade
agrícola de seus dias. 1287 Isto é pouco usual nele, cuja formação
educacional certamente não lhe permitiu conhecer muito de perto a
atividade pastoril. Mesmo assim, ele sabia que Jesus frequentemente
tinha aludido ao pastor e às ovelhas. 1288 E quando Pedro escreveu sua
epístola, ele chamou Jesus o Príncipe dos pastores sob quem os anciãos
servem como supervisores e pastores do rebanho de Deus (1Pe 5:1–4).
b. “Sobre o qual o Espírito Santo os colocou como supervisores”.
Esta cláusula introduz dois pontos muito importantes. Primeiro, Paulo
afirma que o Espírito Santo designou os anciãos como supervisores.
Talvez Paulo está se referindo a uma cerimônia específica que marcou
sua nomeação (cf. At 14:23). Logo, ele usa o termo supervisores como
um sinônimo de “anciãos” (veja-se v. 17). O trabalho do supervisor é ser
pastor (cf. Nm. 27:16–17) como o Senhor Jesus Cristo:
Supervisão significa amoroso cuidado e preocupação, assumir uma
responsabilidade voluntariamente; nunca deve ser usada para o
engrandecimento pessoal. Significa ser visto no generoso serviço de
Cristo, quem foi motivado por Seu interesse na salvação dos homens. 1289
Tanto Paulo como Pedro descrevem, em suas respectivas epístolas,
as responsabilidades de um supervisor. Paulo enumera algumas das

1287
Em suas epístolas, Paulo só uma vez refere-se a um rebanho (1Co. 9:7), e também uma só vez aos
pastores (Ef. 4:11).
1288
P. ex. Mt. 7:15; 10:6; 18:12; 25:32; 26:31; Jo. 10:1–4, 11, 14, 16; 21:16–17.
1289
Lothar Coenen, NIDNTT, vol. 1, p. 191. E veja-se Hermann Wolfgang Beyer, TDNT, vol. 2, pp.
615–17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1005
qualificações para quem aspira ao ofício de ancião/supervisor (1Tm.
3:1–7; Tt 1:6–9), e igualmente Pedro especifica as características de um
ancião (1Pe 5:1–4). Ambos os apóstolos usam os termos ancião e
supervisor indistintamente.
c. “Para pastorearem a igreja de Deus, que ele comprou com o seu
próprio sangue”. Esta cláusula apresenta dificuldades, porque a
expressão igreja de Deus pode ser traduzida “igreja de Deus/Cristo” ou
“igreja do Senhor”. A primeira expressão é comum no Novo
Testamento; aparece doze vezes além de Atos 20:28. 1290
Pelo contrário, embora a forma a igreja do Senhor apareça várias
vezes em excelentes manuscritos gregos, tal forma não aparece no Novo
Testamento e só sete vezes na Septuaginta. Com base na evidência
bíblica, eu me inclino a adotar a forma a igreja de Deus.
Resta, contudo, outra dificuldade. Qual é o significado da tradução
literal com o sangue de seu próprio? Ao traduzir a frase “com o seu
próprio sangue”, como a maioria das traduções o têm feito, confundimos
o sentido da frase. O contexto menciona o Espírito Santo e a Deus, a
quem a palavra sangue não se aplica. Talvez a sugestão de dizer que
“seu próprio” é uma variante de “seu amado” ou “seu único [Filho]” seja
um passo para resolver este assunto. 1291
d. “A igreja de Deus, que ele comprou”. Deus comprou Sua igreja
universal com o sangue de Seu Filho. Pagou um preço incalculável para
salvar um povo para Si através da morte de Cristo na cruz. Donald
Guthrie escreve: “A ideia da morte de Cristo como um preço de compra
recebe uma ênfase distintiva nas epístolas de Paulo”. 1292 De fato, Paulo
diz aos coríntios: “Vocês foram comprados por um preço” (1Co 6:20;
7:23; e veja-se Sl. 74:2; Ap 5:9).
1290
A expressão igreja de Cristo aparece só em Rm. 16:16; outras passagens têm igreja de Deus (1Co.
1:2; 10:32; 11:16, 22; 15:9; 2Co. 1:1; Gl. 1:13; 1Ts. 2:14; 2Ts. 1:4; 1Tm. 3:5, 15).
1291
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 262; Metzger, Textual Commentary, pp. 480–81. Algumas
versões aceitam a forma a igreja do Senhor eliminando a dificuldade com a tradução seu próprio
sangue.
1292
Guthrie, New Testament Theology, p. 462; y véase p. 481.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1006
29, 30. Eu sei que depois da minha partida virão a vós lobos ferozes
que não pouparão o rebanho, e que dentre vós mesmos surgirão homens,
falando coisas perversas para atrair os discípulos após si [TB].
a. “Eu sei”. De novo Paulo emprega o verbo saber. Ele está
plenamente consciente da perigosa condição na qual os crentes se
encontrarão depois que ele os tiver deixado. Fala com conhecimento
inato: “Virão a vós lobos ferozes”. Lobos são animais de rapina que
atacam o rebanho e matam muitas ovelhas (cf. Mt 7:15; 10:16; Jo 10:12).
b. “Depois da minha partida”. Paulo introduz o conceito de partida
num sentido geral. Depois da partida dos apóstolos, várias das sete
igrejas na província da Ásia caíram numa letargia espiritual (Ap 2:1–
3:22). Paulo mesmo continuou advertindo a igreja de Éfeso através de
suas epístolas pastorais a Timóteo (p. ex., 1Tm. 4:1; 2Tm 3:1–9).
c. “Lobos ferozes”. A metáfora de lobos atacando o rebanho refere-
se a falsos mestres que entram na igreja para enganar os membros e os
afastar da fé. Tanto Pedro como Judas se opõem a tais falsos mestres e
zombadores, que furtivamente se deslizaram para dentro da igreja e
levam as pessoas a se extraviarem. Por exemplo, estes mestres negam a
volta de Cristo, desprezam a autoridade, rejeitam a Jesus Cristo,
repudiam a conduta cristã, e vivem em imoralidade (veja-se, p. ex. 2Pe
2; Jd 4–19). 1293
d. “Dentre vós mesmos”. Não só se infiltram falsos mestres entre os
membros da igreja (cf. Jd 4), mas inclusive dentro da igreja é real o
perigo da heresia (veja-se 1Jo 2:18–19). Algumas pessoas da própria
igreja revelar-se-ão como falsos profetas, embora às vezes se disfarcem
de anjos de luz (2Co 11:14). Estes a propósito procuram extraviar os
crentes da verdade do evangelho.

1293
Veja-se Simón J. Kistemaker, C.N.T. sobre I, II Pedro e Judas sobre estes versículos. Veja-se
também G. W. H. Lampe, “ ‘Grievous Wolves’ (Acts 20:29)”, em Christ and Spirit in the New
Testament: Studies in Honour of C. F. D. Moule, ed. Barnabas Lindars e Stephen S. Smalley
(Cambridge: Cambridge University Press, 1973), pp. 253–68.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1007
31. Portanto, vigiai, lembrando-vos de que, por três anos, noite e dia,
não cessei de admoestar, com lágrimas, a cada um.
Paulo faz soar o alarme: “Vigiai” (cf. Mt 24:42; Mc 13:37). Adverte
os anciãos a respeito da luta espiritual que confrontam, que nenhum
membro da igreja pode correr o risco de tomar levianamente.
Durante seus três anos de ministério em Éfeso, Paulo não descansou
em suas advertências aos membros da igreja a estar alertas. Ele o fez
noite e dia, com lágrimas. Em resumo, entregou-se de coração, alma e
mente ao trabalho de admoestar os crentes a seguir o Senhor. E em seu
derramar de lágrimas, demonstrou seu amoroso cuidado como pastor da
congregação efésia.
Implicitamente, Paulo está exortando os anciãos a seguir seu
exemplo, ao assumir sua responsabilidade de cuidar a igreja de Deus.
Dá-lhes a entender que como ele incessantemente trabalhou por seu
bem-estar espiritual, até o ponto de chorar por eles, assim eles, por sua
vez, devem trabalhar arduamente pelo Senhor. Diz-lhes que durante seu
ministério ele foi um pastor diligente, porque advertiu e instruiu a cada
membro da igreja (veja-se 1Co 4:14).
Além disso, a expressão noite e dia não é simplesmente um
modismo conveniente para indicar continuidade. Significa que Paulo
continuou trabalhando em sua profissão (At 19:9) pelas manhãs, ensinou
diariamente no salão de conferências de Tirano (At 19:9), e pelas horas
da tarde ensinou as pessoas tanto em público como de casa em casa (At
20:20).

Considerações doutrinárias em At 20:28


Poremos nossa atenção sobre três pontos:
a. A compra. Deus comprou para Si um povo que é exclusivamente
Seu. O preço que pagou foi o sangue de Seu Filho derramado na cruz do
Calvário. No entanto, a metáfora não pode ser levada além deste ponto,
porque, por assim dizer, nesta transação não há vendedor. Deus não
Atos (Simon J. Kistemaker) 1008
comprou a igreja de alguém. Na verdade, a palavra grega que foi
traduzida “comprou” (v. 28) significa, “adquirir, obter, ganhar para si
mesmo”. 1294 A palavra não tem nada que ver com compra e venda, mas
com pagar um preço num tribunal de justiça. Através da obra meritória
de seu Filho, Deus pagou a culpa pelo pecado. Quer dizer, o sangue que
Jesus derramou no Gólgota cobriu os pecados de Seu povo.
b. A Trindade. Em seu discurso aos anciãos efésios, Paulo
implicitamente ensina a doutrina da Trindade. Justapõe “arrependimento
a Deus” e “fé em nosso Senhor Jesus” (v. 21) e continua com uma
referência ao Espírito (v. 22) e ao Espírito Santo (v. 23). Também
menciona o “Espírito Santo” quem designou supervisores para o
rebanho, “a igreja de Deus [o Pai]”, e o sangue de seu próprio [Filho]”
(v. 28).
c. A igreja. Ao escrever uma carta a um grupo de crentes, Paulo às
vezes dirige-se à uma igreja individual (p. ex. a igreja em Tessalônica
[1Ts 1:1; 2Ts 1:1]). Mas em seu discurso em Mileto, alude à igreja
universal. Chama a atenção à igreja de Deus, “que ele adquiriu para si
pelo sangue do seu próprio filho” (BJ). “Este versículo (v. 28) é uma das
afirmações mais claras que encontramos no Novo Testamento sobre a
doutrina da expiação”. 1295 Nesta passagem, Paulo claramente ensina que
Jesus Cristo morreu pelo povo que constitui a igreja, quer dizer, os
escolhidos (cf. Jo 10:15; 17:9; Rm 8:32–33).

1294
Bauer, p. 650. Veja-se também Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition,
série Westminster Commentaries (1901; reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 392.
1295
David John Williams, Acts, série Good News Commentaries (San Francisco: Harper and Row,
1985), p. 351. Consulte-se Luis Berkhof, Teología sistemática, 2ª. ed. rev. (Grand Rapids: T.E.L.L.,
1974 e reimpressões), pp. 394–95.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1009
Palavras, frases e construções gregas em At 20:25–30
Versículos 25–26
διῆλθον — o uso do aoristo deve ser visto como “um fato isolado
sem referência a seu progresso”. 1296
διότι — no contexto, esta partícula composta significa “e então”.

Versículo 27
ὑπεστειλάμην — este aoristo está na voz média: “Eu me nego a
mim mesmo”. 1297 É seguida por uma construção infinitiva (τοῦ μὴ
ἀναγγεῖλαι). O caso genitivo depende do verbo precedente que expressa
vacilação e medo. A partícula negativa μή fortalece a partícula οὑ que
nega o verbo.

Versículo 28
ποιμαίνειν — note-se o tempo presente, “pastorear continuamente”.
O infinitivo pode expressar tanto ordem, como um substituto do
imperativo, como propósito. 1298 É preferível a ideia de propósito com o
verbo precedente ἔθετο (ele designou).
περιεποιήσατο — o verbo aoristo composto está na voz média: “ele
conseguiu para si mesmo”. A inserção ἑαυτῷ (para si mesmo) do Texto
ocidental é supérflua.
τοῦ ἰδίου — “seu próprio”. Suprimos o substantivo Filho para
completar a frase. 1299

1296
E. D. Burton, Moods and Tenses of New Testament Greek (Edimburgo: Clark, 1898), #39(b).
1297
Robertson, Grammar, p. 807.
1298
Bruce, Acts (texto grego), p. 434.
1299
Moule. Idiom-Book, p. 121.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1010
Versículo 30
ὑμῶν αὑτῶν — usualmente esta combinação expressa a forma
reflexiva do pronome, mas neste caso tem mais o sentido de
intensiva. 1300
διεστραμμένα — o particípio perfeito passivo do verbo διαστρέφω
(torcer). É usado no caso “de objetos que falham nas mãos de um
trabalhador torpe, e cuja forma é, portanto, distorcida. 1301

e. A encomenda (At 20:32–35)

Lucas dá a parte final do discurso de Paulo aos anciãos efésios


numa afirmação resumida. Menciona juntos uma quantidade de termos
como graça, edificar, herança, santificação sem explicação alguma. No
entanto, o propósito é claro.
32. Agora vos encomendo a Deus e à palavra da sua graça, àquele
que é poderoso para vos edificar e dar herança entre todos os que são
santificados [TB].
Paulo está fazendo suas observações finais e encomenda sua
audiência tanto “a Deus e à palavra da sua graça”. Fez o mesmo com os
anciãos de Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra, e Derbe (At 14:23). Ao
referir-se à pregação do evangelho da parte de Paulo em Icônio, Lucas
assinala que o próprio Senhor “confirmava a palavra da sua graça” (At
14:3). O conceito graça é tipicamente paulino, visto que Paulo usa a
palavra umas cem vezes em suas epístolas. Colocando-o de forma
simples, a palavra da sua graça é sinônimo de “evangelho” (veja-se v.
24). 1302
O evangelho de Cristo é poder inato para fortalecer e estabelecer os
anciãos efésios em sua fé. Por implicação, podemos entender que o

1300
Robertson, Grammar, p. 687.
1301
Bauer, p. 189.
1302
Hans-Helmut Esser, NIDNTT, vol. 2, p. 119.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1011
evangelho recebe sua autoridade do Senhor Jesus Cristo, quem
demonstra o Seu poder confirmando os crentes mediante a palavra falada
e escrita (c.f. Rm 16:25). Para ser preciso, o que Paulo encomenda aos
anciãos é o evangelho, e este evangelho lhes dá uma herança. A igreja
tinha já o cânon do Antigo Testamento, mas em seu devido tempo
recebeu também e reconheceu os livros do Novo Testamento como
canônicos e assim herdou a palavra da graça de Deus.
Quando Paulo alude à herança, ele está-se dirigindo à igreja inteira.
Note-se que diz que o evangelho é capaz de “lhes dar a herança entre
todos os que são santificados”. Nesta frase, a palavra-chave é a
preposição entre, visto que Paulo não diz que a palavra de graça será
dada em herança aos anciãos efésios. Ele diz que estes santos em
particular, que são confiantes a Deus e Sua palavra, recebem uma
herança entre todos quão crentes são santificados (veja-se, p. ex., 1Co
1:2). Quer dizer, Paulo enfatiza “a natureza coletiva da Igreja dentro da
qual estes crentes têm seu lugar”. 1303 Por isso, Paulo insiste na unidade
do corpo de Cristo.
33, 34. De ninguém cobicei prata, nem ouro, nem vestes; vós mesmos
sabeis que estas mãos proveram as minhas necessidades e as dos que
estavam comigo [TB].
a. “De ninguém cobicei prata, nem ouro, nem vestes”. Mesmo
quando o Senhor Jesus disse que aqueles que pregassem as Boas Novas
deviam receber um salário (Lc 10:7; citado em 1Co 9:14; 1Tm. 5:18),
Paulo nunca se aproveitou desse direito. Em lugar disso, em suas cartas
revela que trabalhou noite e dia com suas mãos para sustentar-se, 1304 de
tal maneira que ninguém pudesse acusá-lo de depender dos ouvintes do
evangelho para suprir suas necessidades materiais (cf. 1Sm 12:3).
Recusou ser uma carga para ninguém nas igrejas que estabeleceu. Ao
realizar trabalho com suas mãos, conseguia ganhar o que necessitava
para suas necessidades financeiras. Recebeu donativos dos crentes em
1303
Hanna, Grammatical Aid, p. 233.
1304
Veja-se 1Co. 4:12; 1Ts. 2:9; 2Ts. 3:8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1012
Filipos, como ele mesmo o diz (Fp 2:25; 4:16–18), embora também diga
que não pediu esses presentes.
b. “Vós mesmos sabeis que estas mãos proveram as minhas
necessidades”. Os anciãos de Éfeso tinham observado o ministério de
Paulo como também seu trabalho físico durante os três anos que tinha
estado com eles. Eles podiam testificar que nunca tinha explorado a
ninguém (2Co 7:2), mas sempre tinha sido um exemplo de diligência e
autossuficiência, no bom sentido da palavra. Tinha sido um modelo para
os crentes ao ensinar a regra: “Se alguém não quer trabalhar, também
não coma” (2Ts 3:10).
c. “E as dos que estavam comigo”. Este é um interessante pedaço de
informação. Parece que Paulo conseguiu gerar suficientes ganhos para
sustentar-se não só a si mesmo, mas também a seus companheiros. Entre
estes estiveram Timóteo e Erasto em Éfeso. Não sabemos se estes dois
homens se dedicavam a algum tipo de trabalho físico ou se dependeram
completamente de Paulo. Lucas, entretanto, indica que com a chegada de
Silas e Timóteo a Corinto, Paulo dedicou-se exclusivamente a pregar o
evangelho. É possível, então, que estes companheiros tenham chegado
com algum donativo financeiro procedente das igrejas na Macedônia (At
18:5).
35. Em tudo lhes mostrei por meio do trabalho duro que desta
maneira devemos ajudar o necessitado e lembrar as palavras do Senhor
Jesus, que disse de si mesmo: ‘Mais bem-aventurado é dar que receber’
[trad. Kistemaker].
Este versículo provoca cinco perguntas:
a. O que é trabalho duro? Em toda situação, diz Paulo aos anciãos
efésios, eu lhes ensinei a trabalhar arduamente e com seus ganhos ajudar
o necessitado. A frase trabalhar duro não precisa ser limitada a trabalho
físico, mas também compreende trabalho mental e espiritual. No grego
do Novo Testamento, o verbo trabalhar refere-se tanto a trabalho
corporal (p. ex., Mt 6:28; Lc 5:5; 12:27) como ao esforço desdobrado
Atos (Simon J. Kistemaker) 1013
pelos mestres do evangelho e os promotores do reino de Deus (1Co
15:10; 16:16). 1305
b. Quem são os necessitados? Nos dias de Paulo, o mundo gentílico
carecia das virtudes de amor e misericórdia. Ninguém cuidava do pobre,
do desamparado, do doente, ou das pessoas fisicamente fracas. Os
cristãos foram em busca daqueles em necessidade devido ao amor e à
misericórdia que eles mesmos tinham recebido de Cristo. Cuidaram do
pobre, visitaram o doente, e ajudaram o necessitado. E o fizeram sem
fixar-se quando, onde, ou a quem ajudavam (veja-se Mt 25:37–40).
c. Era conhecida esta declaração? Paulo exorta os anciãos efésios a
obedecer a regra que o próprio Jesus tinha dado: “Mais bem-aventurado
é dar que receber”. Note-se que Paulo introduz esta declaração do
Senhor com a ordem lembrar as palavras. Durante seu ministério em
Éfeso, Paulo tinha ensinado com toda fidelidade as frases de Jesus, de tal
maneira que os anciãos estavam bem a par do seu significado. E uma
destes frases era a regra relacionada com a bênção de dar. Nenhum dos
quatro evangelistas registra esta declaração em seus respectivos
Evangelhos, embora seja uma autêntica palavra dita pelo Senhor.
d. Qual é o significado deste bem conhecido provérbio? Não
devemos pensar que a bênção é só para aquele que dá e não para aquele
que recebe. O receptor de algo recebe a bênção através do que lhe é
dado. Mas a virtude de dar é um reflexo da atividade contínua de Deus.
O desejo maior de Deus é dar. Quando o homem segue o exemplo de
Deus, recebe uma bênção divina, porque demonstra que é um dos filhos
de Deus. 1306 O que Jesus dá a entender neste provérbio é que o ato de
dar, não o de tomar ou o de arrebatar algo para si mesmo, é bem-
aventurado. 1307 O contraste nesta declaração é comparável à afirmação
1305
Thayer, p. 355; Bauer, p. 443.
1306
Consulte-se Joachim Jeremias, Unknown Sayings of Jesus trad. por Reginald H. Fuller (Londres:
SPCK, 1957), p. 80.
1307
O Didaquê (1.5) tem um interessante paralelo: “Bem-aventurado é aquele que dá … Miséria para
aquele que recebe; porque todo homem que recebe esmolas sob a pressão de sua necessidade é
inocente; mas aquele que recebe sem necessidade será julgado pelo que tomou e para o que tomou”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1014
de Jesus de que ele veio para servir, não para ser servido (Mc 10:45). O
cristão deve mostrar seu amor para seu próximo dando-lhe de seus bens
com alegria (veja-se Lc 6:30; 2Co 9:7b).
e. É esta uma palavra genuína de Jesus? Frases populares das
culturas persa, grega e judaica são similares à afirmação de Jesus; por
exemplo: “É melhor para um homem livre dar onde ele deve que receber
onde ele deve”. 1308 Mas as analogias não desvirtuam a genuinidade da
máxima de Jesus. Jesus não copiou da regra áurea de Confúcio, [mas
disse] “Como vocês querem que os outros lhes façam, façam também
vocês a eles” (Lc 6:31, NVI). Enquanto Jesus falou positivamente,
Confúcio se expressou negativamente: “Não faça a outros o que não quer
que façam a você”. 1309

Considerações práticas em At 20:34–35


O Novo Testamento ensina a dignidade e a importância do trabalho,
pelo qual o trabalhador pode atender às necessidades de sua família e das
pessoas que não podem trabalhar (1Ts 4:11–12; 1Tm. 5:8). A
comunidade cristã deve sempre cuidar dos pobres (Gl 2:10; 6:10). O
contrário, cada pessoa capaz deve ocupar-se num trabalho conveniente.
Nas palavras do Didaquê: “Que cada um ‘que vem no Nome do
Senhor, seja recebido.… Se não tiver ofício [ocupação] proveja-se
segundo sua compreensão, de modo que ninguém viva entre vocês em
ociosidade porque é um cristão”. 1310

1308
Aristóteles Ethica Nicomachea 4.1.7. Cf. Tucídides 2.97.4; e veja-se Sir. 4:31.
1309
Confúcio The Analects 12.2.
1310
Didaquê 12.1, 4–5 (LCL).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1015
Palavras, frases e construções gregas em At 20:32 e 35
Versículo 32
τῷ θεῷ — embora alguns manuscritos tenham τῷ κυρίῳ, a
evidência textual respalda a forma a Deus.
τῷ δυναμένῳ — o caso dativo depende do antecedente mais
próximo, o qual é τῷ λόγῳ (a palavra).

Versículo 35
πάντα — o plural acusativo é um acusativo de especificação que
tem o sentido de advérbio: “em todo respeito”. 1311
ὅτι οὕτως — “desta maneira”. Esta combinação não significa
“assim, ou seja, por trabalhar”. Esta é um mandato (acompanhado por
um enérgico gesto): “olhem, assim se deve trabalhar e esforçar-se”. 1312

f. A partida (At 20:36–38)

Paulo conclui seu encargo aos anciãos efésios com um dito


atribuído a Jesus e conhecido por eles mediante o ministério de ensino
que ele tinha levado a cabo antes em Éfeso. Os anciãos percebem que a
responsabilidade de cuidar das necessidades espirituais dos crentes
pertence a eles. O tempo para despedir-se de seu amado mestre chegou.
36. Tendo dito estas coisas, ajoelhando-se, orou com todos eles.
Ao longo de todo seu relato, Lucas demonstra que Paulo está no
controle completo de cada situação. Ao finalizar seu discurso, ajoelha-se
com os anciãos de Éfeso e, com todo ardor, ora por todos deles. Em suas
palavras, ele os encomendou a Deus; agora, antes de partir, em oração
leva a Deus suas necessidades e petições (cf. At 21:5).

1311
Bauer, p. 663.
1312
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #425.6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1016
37. Então, houve grande pranto entre todos, e, abraçando
afetuosamente a Paulo, o beijavam.
O constante amor que Paulo tinha dado aos efésios durante seu
ministério é agora retribuído plenamente pelos anciãos, os quais,
sobressaltados de emoção, começam a chorar sonoramente. A
intensidade de seu pranto demonstra seu afeto por Paulo. Abraçam-no e
o beijam repetidamente. O grego é descritivo: “Tendo caído sobre seu
pescoço, seguiam beijando-o” (cf. Gn 33:4; 45:14–15; e Lc 15:20).
38. O que mais os entristeceu foi a declaração de que nunca mais
veriam a sua face. Então o acompanharam até o navio [NVI].
Em suas palavras, Paulo afirmou que os anciãos não voltariam vê-lo
(v. 25). Agora, o impacto de suas palavras espanca-os totalmente, porque
os membros de sua audiência lhe dizem adeus com a certeza de que,
efetivamente, não mais tornarão a vê-lo nesta terra. O verbo que é
traduzido “ver” na verdade quer dizer “observar cuidadosamente”. Eles
percebem que o fim tinha chegado. E muito tristes acompanham Paulo
até o navio que levará a ele e seus companheiros viajantes rumo a
Jerusalém. Porém, na providência de Deus, ele o veem de novo depois
que Paulo foi libertado de sua prisão em Roma (1Tm. 1:3; 3:14).

Resumo de Atos 20
Quando a revolta em Éfeso chega a seu fim, Paulo percebe que o
tempo de sua partida está perto. Reúne seus discípulos, dá-lhes ânimo, e
logo sai para a Macedônia e Grécia. Depois de passar três meses na
Grécia, decide viajar a Síria. Para frustrar um complô contra sua vida,
desvia-se através da Macedônia com alguns de seus companheiros.
De Filipos, embarca para Trôade, onde permanece por sete dias,
parte o pão no primeiro dia da semana, e prega a Palavra. Enquanto ele
prega, Êutico, “dominado pelo sono”, cai de uma janela. Embora morra
na queda, Paulo o devolve à vida. Paulo continua a pé sua viagem até
Assôs e ali aborda um navio e se dirige a Mileto. Em Mileto convoca os
anciãos de Éfeso, que veem e ouvem suas palavras de despedida.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1017
Paulo lembra aos anciãos do trabalho que ele realizou entre eles,
ensinando publicamente e de casa em casa. Informa-lhes que o Espírito
Santo está advertindo-o que em Jerusalém o esperam prisão e
sofrimento. Diz-lhes que não voltarão a vê-lo. Afirma que lhes
proclamou a mensagem completa da palavra de Deus e lhes encarrega
ser pastores supervisores da igreja de Deus. Eles alerta do perigo de
lobos vorazes que aparecerão entre as ovelhas. Exorta-os a seguir seu
exemplo e trabalhar duro. Por último, termina suas palavras com um bem
conhecido dito de Jesus.
Depois, os anciãos choram, abraçam a Paulo e o beijam.
Acompanham-no até o navio.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1018
ATOS 21
A TERCEIRA VIAGEM MISSIONÁRIA, parte 4 (At 21:1–16)
e
EM JERUSALÉM E EM CESAREIA, parte 1 (At 21:17–40)
4. A viagem (At 21:1–16)

Na narração que faz da viagem, Lucas oferece um relato quase


diário dos acontecimentos que ocorreram no trajeto entre Mileto e
Jerusalém. Destaca que tanto em Tiro como em Cesareia os crentes
advertiram a Paulo mediante o Espírito Santo a que não fosse a
Jerusalém. Em resumo, Lucas apresenta aqui um aparente conflito: o
Espírito Santo empurrando a Paulo para que seguisse a Jerusalém (At
20:22), e os crentes mediante o Espírito advertindo-o para que não fosse.

a. A Tiro (At 21:1–6)

1, 2. Depois de nos apartarmos, fizemo-nos à vela e, correndo em


direitura, chegamos a Cós; no dia seguinte, a Rodes, e dali, a Pátara.
Achando um navio que ia para a Fenícia, embarcamos nele, seguindo
viagem.
Não temos indícios sobre os que viajaram com Paulo de Mileto a
Jerusalém, mas deve presumir-se que foram Lucas e os companheiros
cujos nomes aparecem em At 20:4. Assim, o pronome nós refere-se a
nove homens que se despedem dos anciãos de Éfeso. O texto grego
descreve a cena da emocionada despedida: precisamente antes de os
homens embarcarem, soltam-se dos abraços que deram com os anciãos
efésios.
O barco zarpa da Baía de Mileto; navega impulsionado pelo vento
do norte, seguiu pela linha costeira em direção sul rumo à ilha de Cós.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1019
Os viajantes chegam pela tarde e passam ali a noite. Na manhã seguinte,
a tripulação levanta velas. Cruzando em direção sudeste, no final do
segundo dia, o barco chega ao povoado de Rodes, na ponta norte da ilha
do mesmo nome. O navio circunavega o sudoeste da Ásia Menor; ao
terceiro dia dirige-se a Pátara, uma cidade com um excelente porto, na
província de Lícia. 1313
Em Pátara, Paulo e seus amigos fazem trasbordo a outro navio.
Mesmo quando Lucas não dá razão para este trasbordo, supomos que o
navio que fazia a rota ao longo da costa ocidental da Ásia Menor
funcionava como um serviço rápido entre pontos próximos. No século I,
a maioria dos barcos em geral navegavam perto da costa, mas aqueles
navios maiores cruzavam o mar aberto de Pátara a Tiro, na Fenícia.
Talvez com uma longitude muito mais que os trinta metros de
comprimento, este navio estava construído para aventurar-se longe da
terra. 1314 Alguns barcos de carga podiam acomodar numerosos
passageiros; por exemplo, aquele que encalhou em Malta levava a bordo
nada menos que 276 pessoas (At 27:37). Além disso, um barco que
oferecia um cruzeiro sem parada de Pátara até Tiro (645 km.), deveria
ser muito mais rápido que um que fosse parando em cada porto ao longo
da costa.
3. Quando Chipre já estava à vista, deixando-a à esquerda,
navegamos para a Síria e chegamos a Tiro; pois o navio devia ser
descarregado ali.
Paulo e seus companheiros abordam um grande navio que os leva
diretamente a Tiro. Possivelmente, no curso do terceiro dia, e à medida
que se aproximavam da ilha e a deixavam atrás navegando rumo ao sul,
começaram a ver as montanhas de Chipre (veja-se o contraste com At

1313
Segundo o Texto ocidental, Paulo e seus companheiros navegaram a Mira. Os outros manuscritos
mais importantes carecem desta referência, a que talvez foi inserida no Texto ocidental através de
assimilar a 27:5 ou os Atos de Paulo e Tecla. Consulte-se Bruce M. Metzger, A Textual Commentary
on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975),
p. 482.
1314
Refira-se a Earle Hilgert, “Ships; Boats”, ISBE, vol. 4, pp. 482–89.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1020
27:4). Ao dizer Lucas “navegamos” está sugerindo que parece que
tinham vento favorável. Chegam ao porto de Tiro ao quarto ou ao quinto
dia de navegação. Lucas acrescenta que o navio ficou no povoado para
descarregar. Com a construção no grego do gerúndio descarregando, ele
está indicando que a tarefa de descarregar levou tempo: sete dias. Esta
informação confirma que a viagem de Paulo era a bordo de um navio
grande. 1315 Aparentemente, Paulo continuou sua viagem a bordo do
mesmo navio; de outra maneira, não teria tido que permanecer no porto
uma semana inteira.
4. Encontrando os discípulos, permanecemos lá durante sete dias; e
eles, movidos pelo Espírito, recomendavam a Paulo que não fosse a
Jerusalém.
Em Atos, o nome Tiro aparece duas vezes neste contexto (vv. 3, 7),
e uma vez em At 12:20. A cidade estava localizada na Fenícia (o
moderno Líbano); os crentes judeus que foram espalhados depois da
morte de Estêvão, viajaram até a Fenícia (At 11:19) e comunicaram às
pessoas o evangelho de Cristo. Quando Paulo e Barnabé foram de
Antioquia a Jerusalém, passaram pela Fenícia para contar aos crentes
como Deus havia trazido os gentios à fé (At 15:3). Estes crentes ficaram
felizes ao ouvir do crescimento da igreja entre os gentios. Quando Paulo
a visitou, a cidade de Tiro, que era uma colônia nos tempos de Roma,
pôde ter tido uma congregação formada por judeus e gentios. Sabe-se
pouco a respeito desta igreja, porém nos tempos pós-apostólicos, Tiro
chegou a ser um centro maior da fé cristã (o cumprimento de Sl. 87:4).
Tiro está aproximadamente a 177 km. ao noroeste de Jerusalém e a
104 km. ao noroeste da Cesareia. Em outras palavras, Paulo pôde
facilmente chegar a Jerusalém antes do dia do Pentecostes (At 20:16).
Mesmo se tivesse caminhado toda essa distância, chegaria a Jerusalém
numa semana. Mas agora, tem tempo para ministrar aos discípulos em
Tiro.
1315
Consulte-se William M. Ramsay, St. Paul the Traveller and the Roman Citizen (1897; reimp.,
Grand Rapids: Baker, 1962), p. 300.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1021
Enquanto a tripulação descarrega o navio, Paulo e seus colegas vão
à cidade, onde procuram encontrar os membros da igreja local. Têm
êxito em sua busca e permanecem ali por sete dias (veja-se At 20:6).
Supomos que Paulo usou o tempo para ensinar estes cristãos, a quem
Lucas chama discípulos. Embora não se trate necessariamente de crentes
recém-convertidos, recebem instrução da parte de Paulo e em resposta
têm uma palavra de advertência para ele.
Lucas diz que os cristãos em Tiro procuram dissuadir a Paulo de ir
a Jerusalém. Eles receberam revelação do Espírito Santo (cf. 1Co 14:32)
de que Paulo vai ao encontro de dificuldades ali. Esta revelação respalda
os comentários de Paulo no sentido que o Espírito o advertiu a respeito
de futuros encarceramentos e aflições (At 20:23).
Poderia tratar-se de uma contradição entre as revelações que Paulo
recebeu do Espírito Santo e aquelas que receberam os cristãos de Tiro?
Não, de maneira nenhuma. Os cristãos de Tiro ouviram o Espírito Santo
dizer que Paulo se encontraria com adversidades, mas eles não
entendiam o propósito dos futuros sofrimentos de Paulo. Por outro lado,
Paulo entendeu a advertência como confirmação que “deve sofrer pelo
meu nome [do Senhor]” (At 9:16, NVI). Ele considerou estas revelações
divinas como um símbolo da graça de Deus desenhada para prepará-lo
para o futuro imediato. 1316
Os membros da igreja em Tiro têm uma reação absolutamente
normal: eles advertem a Paulo de que não vá a Jerusalém. Querem que
evite as óbvias aflições que tem pela frente. Mas Paulo sente-se mais
seguro que nunca quanto a aceitar os preordenados sofrimentos como um
verdadeiro servo de seu Senhor e sair para Jerusalém (veja-se um
paralelo em Lucas 9:51).
5. Mas quando terminou o nosso tempo ali, partimos e continuamos
nossa viagem. Todos os discípulos, com suas mulheres e filhos, nos

1316
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance E Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 193.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1022
acompanharam até fora da cidade, e ali na praia nos ajoelhamos e oramos
[NVI].
a. “Mas quando terminou o nosso tempo”. A forma desta frase faz
constar que a tripulação terminou de descarregar o navio e está preparada
para seguir viagem. Não era Paulo senão o capitão da navio quem
determinava o tempo que deviam permanecer em Tiro.
b. “Todos os discípulos, com suas mulheres e filhos, nos
acompanharam até fora da cidade”. Aqui temos outro quadro da estreita
relação que existia entre Paulo e as igrejas às quais servia. Em Mileto, ao
despedir-se, os anciãos efésios abraçaram e beijaram a Paulo (At 20:37).
Em Tiro, quase toda a congregação: esposos, esposas, e filhos,
acompanharam a Paulo e a outros que iam com ele até o barco. A
despedida aqui foi menos emotiva que em Mileto; Paulo tinha servido
em Éfeso quase três anos e com os crentes em Tiro tinha estado uma
semana. De qualquer maneira, há um paralelo: tanto em Mileto como em
Tiro os crentes oram juntos.
c. “Ali na praia nos ajoelhamos e oramos”. Embora o ajoelhar-se
seja uma posição apropriada para a oração, 1317 a Bíblia não recomenda
uma pose em particular. Paulo, em suas epístolas pastorais, fala de elevar
mãos santas em oração (1Tm. 2:8), e os judeus em geral ficam de pé para
orar. Na praia em Tiro, toda a congregação, Paulo e seus companheiros
se ajoelharam e oraram uns pelos outros. Que testemunho mais eloquente
para os gentios que estavam observando! Não conhecemos o conteúdo
das orações que se elevaram ali na praia, mas imaginamos que Paulo
orou pelo crescimento da igreja local, e os crentes, por sua vez, oraram
pela segurança de Paulo.
6. E, despedindo-nos uns dos outros, então, embarcamos; e eles
voltaram para casa.
Os membros da congregação acompanham a Paulo e a seus colegas
até o barco que permanecia atracado junto ao cais. Aqui se separam:

1317
Veja-se 2Co. 6:13; Sl. 95:6; Dan. 6:10; At. 9:40.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1023
Paulo e seus companheiros sobem ao navio que os trouxe a Tiro e que
agora os levará a Ptolemaida e Cesareia. Os membros da igreja voltam
para suas casas.

Palavras, frases e construções gregas em At 21:1–6


Versículos 1–2
ἀποσπαθέντας — o particípio passivo aoristo (de ἀποσπάω, eu
arranco), deve entender-se como uma reflexão e deve ser-lhe dada uma
interpretação literal: “nos separamos”.
διαπερῶν — este particípio ativo presente de διαπεράω (eu cruzo)
“tem um sentido futurista de propósito”. O propósito expresso nesta
partícula coincide com a ação do verbo principal ou do particípio
precedente: “Demos com um navio que ia cruzar”. Isto é também
verdade do gerúndio ἀποφορτιζόμενον (v. 3). “O navio estava
programado para descarregar”. 1318

Versículo 3
ἀναφάναντες — de ἀναφαίνω (eu ilumino; fazer aparecer), o
particípio ativo aoristo significa “o fizemos visível a nós por nos
aproximar”. 1319
ἐπλέομεν — o tempo imperfeito tem um sentido descritivo:
“navegávamos”. Indica que os ventos foram favoráveis durante a
viagem. Por contraste, o tempo aoristo em κατήλθομεν (tocamos terra)
sugere que ocorreu uma só vez.

1318
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), pp. 891, 1115.
1319
Consulte-se Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and
Other Early Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press,
1961), #309.1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1024
Versículo 4
αὑτοῦ — um advérbio de lugar (“ali”), não o caso genitivo do
pronome pessoal. 1320
ἔλεγον — o tempo imperfeito significa repetição: “eles se
mantiveram dizendo-lhe que não fosse”. μὴ ἐπιβαίνειν é uma cláusula de
propósito negativo com um infinitivo presente.

Versículos 5–6
ἐξαρτίσαι — este infinitivo ativo aoristo do verbo ἐξαρτίζω (eu
termino, completar) é provavelmente um termo náutico. 1321
τὸ πλοῖον — o artigo definido parece respaldar a interpretação de
que Paulo abordou o mesmo navio que o tinha levado a Tiro.
τὰ ἴδια — o termo é idiomático: “a suas próprias casas”.

b. Em Cesareia (At 21:7–9)

7. Concluída a viagem de Tiro, chegamos a Ptolemaida; depois de


saudarmos os irmãos, passamos um dia com eles [TB].
Lucas informa que de Tiro, o grupo continuou sua viagem ao porto
de Ptolemaida. Entre ambos os pontos há 43 km. Com vento favorável, o
barco poderia cobrir a distância em menos de um dia. Com diferenças
menores, alguns tradutores dizem: “Quando completamos a viagem
desde Tiro”. 1322 A implicação é que Paulo desembarcou em Ptolemaida e
procurou fazer o resto da viagem a pé. No entanto, o verbo grego dianyo
(completar) também pode ser interpretado “continuar”, como é evidente

1320
Bauer, p. 124.
1321
F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed.
rev. e aum. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 580.
1322
KJV, RSV, NASB, BJ, Moffatt.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1025
1323
na literatura grega. Paulo, então, reatou sua viagem depois de uma
breve pausa em Ptolemaida.
A cidade de Ptolemaida tem uma história que retrocede até os
tempos do Antigo Testamento, quando era conhecida como Aco (Jz.
1:31). Mas durante a era intertestamental, depois da morte de Alexandre,
o Grande, a área foi ocupada pelos Ptolomeus do Egito, aqueles que lhe
deram o nome de Ptolemaida (veja-se 1Mc. 5:22; 10:39; 12:48). Nos
tempos romanos, a cidade chegou a ser uma colônia e conservou o nome
egípcio. 1324 Mais tarde, o nome semítico voltou a estar em voga, e hoje a
cidade é conhecida como Akka. Supomos que quando o evangelho se
estendeu pela costa em direção norte a Fenícia (At 11:19), também
alcançou a Ptolemaida.
Enquanto a tripulação do navio carrega e descarrega, os passageiros
têm tempo para desembarcar. Paulo e seus companheiros de viagem se
reúnem com os membros da igreja local (a frase saudamos os irmãos
tem a mesma conotação de “tendo encontrado os discípulos” (v. 4).
Depois de permanecer com eles por um dia, Paulo continua sua viagem a
Cesareia, 56 km. ao sul.
8, 9. No dia seguinte, partimos e fomos para Cesaréia; e, entrando na
casa de Filipe, o evangelista, que era um dos sete, ficamos com ele. Tinha
este quatro filhas donzelas, que profetizavam.
O texto grego não dá indicação alguma quanto a se Paulo viajou a
Cesareia a pé ou em barco. Se traduzirmos o verbo no versículo anterior
(v. 7) como “continuou”, é lógico supor que a continuação da viagem de
Ptolemaida a Cesareia foi efetuada por mar.
Quando Paulo e seus companheiros chegam a Cesareia, 1325 não se
sente um estranho na cidade, porque já a tinha visitado duas vezes em

1323
Bauer, p. 187. Veja-se o uso deste verbo no Xenofonte Efésios 1.11.2; 3.2.12; 5.1.5; 5.10.3;
5.11.1.
1324
H. Porter, “Acco” ISBE, vol. 1, pp. 23–24.
1325
Ao menos duas traduções, seguindo o Texto majoritário, acrescentam as palavras dadas aqui em
itálico: “No dia seguinte nós que acompanhávamos a Paulo partimos”. No entanto, os mais
importantes manuscritos não respaldam esta adição.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1026
suas viagens para e de Jerusalém (At 9:30; 18:22). Aqui vive Filipe, um
dos sete diáconos em Jerusalém (6:5). É chamado “o evangelista” por
seus esforços evangelísticos em Samaria (At 8:4–13) e ao longo da costa
do Mediterrâneo de Azoto a Cesareia (At 8:40). Nas duas décadas que
seguiram a sua primeira aparição em público, Filipe se estabeleceu na
cidade porto de Cesareia. Lucas acrescenta o interessante comentário de
que Filipe tinha quatro filhas solteiras que tinham o dom da profecia.
Infelizmente, não nos dá mais detalhes, assim é que não podemos saber
absolutamente nada a respeito da natureza de suas profecias. A palavra
profetizavam deve ser interpretada em harmonia com a referência de
Paulo aos dons do Espírito (1Co 11:5; 14:1, 39). Evidentemente, estas
quatro mulheres eram versadas nas Escrituras e, como seu pai,
evangelizavam a sociedade gentílica no meio da qual viviam.
Pelos pais da igreja do século II sabemos que com o tempo, Filipe e
suas filhas se trasladaram à cidade do Hierápolis, no ocidente da Ásia
Menor, onde morreram e foram sepultados. 1326

1) A profecia (At 21:10–11)

10, 11. Depois de passarmos ali vários dias, desceu da Judéia um


profeta chamado Ágabo. Vindo ao nosso encontro, tomou o cinto de Paulo
e, amarrando as suas próprias mãos e pés, disse: “Assim diz o Espírito
Santo: ‘Desta maneira os judeus amarrarão o dono deste cinto em
Jerusalém e o entregarão aos gentios’ [NVI].
a. “Depois de passarmos ali vários dias”. Pelos dados que Lucas
provê na narração da viagem, podemos traçar um roteiro a respeito de
como Paulo utilizou seu tempo entre a Páscoa e o Pentecostes:

1326
Clemente de Alexandria Stromata 3.6.52; Eusébio cita de Policarpo de Éfeso em História
Eclesiástica 3.31.3–5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1027
Primeira Sai de Filipos
semana depois da festa.

Viagem a Trôade (At 20:6;


cinco dias)

Segunda Pasa siete días en


semana Trôade (At 20:6)
Terceira Viagem a Mileto
semana (At 20:13–16; quatro dias)

Quarta Viagem de Mileto


semana a Tiro (AT 21:1–3; sete dias)
Quinta Passa sete dias em
semana Tiro (At 21:4)
Viagem a Ptolemaida
(At 21:7; um dia)

Sexta semana Passa um dia em Ptolemaida


(At 21:7; um dia)

Viagem a Cesareia
(At 21:8; um dia)

Sétima Passa vários dias em


semana Cesareia (At 21:10, 15)
Viagem a Jerusalém
(At 21:15; dois ou três dias)
Chega a Jerusalém
(At 21:17)
Atos (Simon J. Kistemaker) 1028
Paulo contava os dias antes do Pentecostes, porque tinham passado
seis semanas desde que tinha deixado Filipos. De Cesareia deveria viajar
105 km. até Jerusalém. E esta distância se faria em dois, ou talvez três
dias. Devido às numerosas advertências que tinha recebido em vários
lugares (At 20:23), não tinha maior interesse em chegar cedo a
Jerusalém. Queria passar tempo com Filipe (quem, entre parêntese, deve
ter tido uma casa grande para ter acomodado a Paulo e a seus
companheiros). Enquanto isso, Lucas tem a oportunidade de ouvir dos
lábios de Filipe o relato dos batismos dos samaritanos e do funcionário
etíope e de sua obra missionária ao longo da costa.
b. “Desceu da Judeia um profeta chamado Ágabo”. Esta é a
segunda vez que Lucas menciona o profeta Ágabo (veja-se também At
11:28). Não está claro por quê acredita que é necessário apresentar esta
pessoa e seu ofício mais uma vez; talvez se deva ao fato de ser a primeira
vez que se encontram ele e o profeta.
Na década anterior, Ágabo tinha viajado de Jerusalém a Antioquia,
onde predisse a chegada de uma grande fome em todo mundo romano.
Paulo e Barnabé o ouviram profetizar em Antioquia, e os crentes dali os
enviaram com presentes aos anciãos da Judeia. Agora, mais uma vez,
Ágabo encontra-se com Paulo. Como profeta inspirado pelo Espírito
Santo, Ágabo vem da Judeia, quer dizer, de terra dos judeus, com uma
mensagem pessoal para Paulo. 1327
c. “Tomou o cinto de Paulo e, amarrando as suas próprias mãos e
pés”. Ágabo seguiu o exemplo dos profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel,
do Antigo Testamento, que usaram sinais visuais para advertir os
israelitas a respeito de seu iminente exílio (veja-se Is 20:2; Jr 13:1–11;
Ez 4:1–12). Tomou o cinto que pertence a Paulo e habilmente se amarra
com ele suas próprias mãos e pés. Possivelmente o cinto era feito de

1327
Localizada na província da Judeia, Cesareia era um centro romano militar e administrativo na
Palestina e, aos olhos dos judeus, não formava parte de Israel. Cf. Josefo Antiguidades 15.9.6 [331–
41]; 16.5.1 [136–41].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1029
tecido e não de couro; um cinto de tecido pôde ter facilitado o processo
de amarrar-se.
A diferença entre os profetas do Antigo e do Novo Testamento não
deveria passar-se por alto. Enquanto a função dos profetas do Antigo
Testamento era revelar a vinda do Messias, Ágabo predisse
acontecimentos do futuro imediato. 1328
d. “Assim diz o Espírito Santo: ‘Desta maneira os judeus amarrarão
o dono deste cinto em Jerusalém e o entregarão aos gentios”. O Espírito
fala diretamente através de Ágabo e dirige-se a Paulo. Mediante este
sinal visível, o Espírito Santo está dizendo a Paulo a forma em que será
feito prisioneiro em Jerusalém. Naturalmente, os fatos não devem ser
levados até seu extremo lógico; os judeus em Jerusalém não ataram a
Paulo com um cinto. Pelo contrário, tê-lo-iam matado se o comandante
romano não tivesse intervindo. O comandante resgatou a Paulo e o
mandou atar com duas cadeias (vv. 31–33).
e. “E o entregarão aos gentios”. Com estas palavras, o Espírito
Santo está aludindo a Jesus, quem predisse que seria traído, condenado, e
entregue aos gentios (Mt 20:19; Mar. 10:33). Os gentios são as
autoridades romanas, os quais, influenciados pela hierarquia judaica,
crucificaram a Jesus e, dentro em breve, tomarão preso a Paulo. Note-se,
entretanto, que o Espírito Santo prediz que Paulo seria preso e
encarcerado porém não morto. Por implicação, seu ministro do
evangelho continuará ainda na prisão.

Considerações doutrinais em At 21:11


Em vários capítulos de Atos se ensina a doutrina do Espírito Santo.
Devido a esta ênfase, Crisóstomo, um pai da igreja primitiva se referiu a
Atos como o Evangelho do Espírito Santo.1329 O Espírito de Deus fala

1328
Consulte-se Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p.
740.
1329
Crisóstomo, Homilias nos Atos dos Apóstolos 1.5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1030
diretamente através dos profetas. Em Antioquia, o Espírito Santo usa a
Ágabo para predizer uma fome mundial (At 11:28). Através dos profetas
e, em harmonia com a igreja antioquiana, dá a conhecer Sua vontade
com relação ao ministério de Paulo e Barnabé (At 13:1–2). E em
Cesareia, o Espírito mais uma vez emprega o profeta Ágabo para falar
diretamente com Paulo.
Paulo experimenta o premente poder do Espírito Santo, que lhe diz
que vá a Jerusalém, onde deverá sofrer penalidades e aflições.
Obedientemente, Paulo responde às instruções do Espírito Santo.
Também demonstra sua confiança em Deus.
Em algum momento antes de decidir viajar a Jerusalém, Paulo
escreveu sua epístola aos romanos. Nela, exorta os cristãos em Roma a
orar a Deus por ele. Pede-lhes que orem para que ele possa ser resgatado
dos incrédulos na Judeia e para que seu serviço aos santos em Jerusalém
possa ser aceitável. E em resposta a esta oração, espera poder visitar a
igreja em Roma (Rm 15:30–32). Paulo, então, confiou que as orações
dos santos seriam respondidas e que o Espírito Santo o guiaria através
das dificuldades que estava por enfrentar. Com fé, aceitou as palavras do
Espírito ditas por meio de Ágabo como uma detalhada revelação dos
acontecimentos futuros. 1330

2) A resposta (At 21:12–14)

12, 13. Quando ouvimos estas palavras, tanto nós como os daquele
lugar, rogamos a Paulo que não subisse a Jerusalém. Então, ele
respondeu: Que fazeis chorando e quebrantando-me o coração? Pois
estou pronto não só para ser preso, mas até para morrer em Jerusalém
pelo nome do Senhor Jesus.

1330
Refira-se a E. Earle Ellis, “The Role of the Christian Prophet in Acts”, em Apostolic History and
the Gospel, ed. W. Ward Gasque e Ralph P. Martin (Exeter: Paternoster; Grand Rapids: Eerdmans,
1970), pp. 55–67.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1031
a. “Tanto nós como os daquele lugar, rogamos a Paulo que não
subisse a Jerusalém”. Os companheiros de Paulo e os cristãos de
Cesareia querem protegê-lo de dano e lhe rogam que não visite
Jerusalém. Numa ocasião anterior em Éfeso, os discípulos de Paulo e
certas autoridades provinciais tinham tido êxito em impedir que Paulo
entrasse no teatro para falar a uma multidão fora de controle. Dessa
maneira o resgataram do possível dano físico (At 19:30–31). Mas em
Cesareia, a situação tem um enfoque diferente, porque Paulo sabe que o
Espírito Santo o está levando a Jerusalém (At 19:21; 20:22). Cada
manifestação do Espírito neste assunto ele a vê como uma confirmação
da ordem de demonstrar em Jerusalém a unidade da igreja de Cristo em
expansão.
Aos companheiros de viagem de Paulo deve ter chamado a atenção
a reiterada mensagem do Espírito tanto em Tiro como em Cesareia.
Observe a resposta similar de ambos os grupos; a diferença é que em
Cesareia, a pessoas acompanham seu rogo com lágrimas.
b. “Então, ele respondeu: Que fazeis chorando e quebrantando-me o
coração?” Paulo mostra uma determinação inflexível diante de uma
reação emocional de seus próprios companheiros e dos crentes em
Cesareia. Não se mostra obstinado, mas simplesmente obediente. Por
essa razão, percebe os bem intencionados esforços das pessoas como um
obstáculo. Repreende-os por objetar o que ele está procurando fazer.
Com suas lágrimas, estão quebrantando seu coração e estão tentando
dissuadi-lo. Por isso rejeita seu pranto, primeiro, porque ele mesmo,
emocionalmente, é propenso a chorar (At 20:19, 31), e segundo, porque
quer obedecer a ordem do Espírito Santo.
c. “Pois estou pronto não só para ser preso, mas até para morrer em
Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus”. O Espírito lhe dá fortaleza
interior e o capacita a resistir a tentação de escapar. Imediatamente
depois de sua conversão em Damasco, Jesus lhe disse que teria que
sofrer muito pelo nome de Cristo (At 9:5–16).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1032
Paulo não tem medo porque sabe que Deus determina o resultado
de todas as coisas. Sua atitude está completamente isenta de fatalismo;
em completa segurança em Cristo, aceita a mensagem do Espírito Santo
e diz à sua audiência que está preparado não só a ser preso, mas também
para morrer em Jerusalém (cf. At 20:24). À vista do sofrimento que ele
já suportou em nome de Cristo (veja-se 2Co 11:23–28), Paulo provou
sua disposição de morrer pelo Senhor Jesus. Por outro lado, a afirmação
de Paulo não deve ser interpretada como querendo significar que ele
espera que sua vida termine em Jerusalém. Ele continua desejando
estender a igreja até o fim da terra.
14. Como, porém, não o persuadimos, conformados, dissemos: Faça-
se a vontade do Senhor!
Lucas escreve dizendo que Paulo não pôde ser dissuadido.
Certamente sabia que no final de seu ministério em Éfeso, Paulo tinha
expresso seu desejo de ir a Jerusalém (At 19:21). Quando finalmente foi
embora de Trôade em caminho ao sul e ao leste, o fez depressa, porque
tinha um só desejo: estar em Jerusalém antes do Pentecostes (At 20:16).
A 104 km. de seu destino, Paulo não pôde ser persuadido de mudar de
parecer. Manteve-se obediente ao seu Senhor. Embora inquieto, como
seu Mestre, pôs seu rosto em direção a Jerusalém.
Mesmo Lucas se uniu ao esforço de dissuadir a Paulo. Mas quando
ele e o resto do grupo percebe o firme desejo de Paulo de obedecer a
vontade de Deus, dizem: “Faça-se a vontade do Senhor!” Esta não é uma
piedosa afirmação, mas antes, um eco da terceira petição do Pai Nosso,
“Seja feita a tua vontade”. 1331
Estamos seguros que na segunda metade do século I, o Pai Nosso
foi amplamente usado pelos apóstolos e seus ajudantes. Além disso, as
palavras ditas pelo povo em Cesareia nos fazem lembrar a oração de
Jesus a seu Pai no Getsêmani: “Não se faça a minha vontade, e sim a
tua” (Lc 22:42).
1331
Henry Alford, Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4 vols.
(1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 238.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1033
Considerações práticas em At 21:14
Lucas pinta a Paulo como um verdadeiro seguidor de Jesus Cristo.
À medida que informa sobre a viagem de Paulo, assinala indiretamente
uma quantidade de paralelos:

Paulo desejava ir a Jerusalém para estar na Jesus viajou a Jerusalém para sua
Páscoa (At 20:3) ou Pentecostes (At 20:16) última Páscoa (Jo 12:1; 13:1)

O Espírito advertiu a Paulo três Jesus falou de sua paixão três vezes
vezes (At 20:23 21:4, 11) (Lc 9:22, 44; 18:31–33)

Paulo foi preso por soldados romanos Jesus foi preso por soldados
(At 21:33) (Jo 18:12)

Paulo ajoelhou-se e orou Jesus ajoelhou-se e orou


(At 20:36; 21:5) (Lc 22:41)

“Faça-se a vontade do Senhor!” “Não se faça a minha vontade,


(At 21:14) e sim a tua” (Lc 22:42)

Palavras, frases e construções gregas em At 21:12–14


Versículos 12–13
τοῦ μὴ ἀναβαίνειν — o infinitivo presente com o artigo definido no
caso genitivo e a partícula negativa μή expressa propósito negativo. Para
uma construção comparável, veja-se o versículo 4.
συνθρύπτοντες — a forma composta do gerúndio aparece uma só
vez no Novo Testamento. Igualmente, o verbo simples θρύπτω (eu
quebro em pequenos pedaços) aparece uma vez no Novo Testamento
(1Co 11:24). O verbo composto é intensivo e significa “quebrado
inteiramente em pedaços”.
εἰς — neste contexto, a preposição é equivalente a ἐν (em).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1034
ἑτοίμως ἔχω — “Mantenho-me preparado”. Esta é uma expressão
idiomática que poderia ser traduzida com o verbo estar. “Estou
preparado”.

Versículo 14
πειθομένου — esta é a construção absoluta genitiva. O gerúndio do
verbo πείθω (eu persuado) indica ação continuada; o passivo implica que
o agente é a audiência.
εἰπόντες — seguindo o verbo principal ἡσυχάσαμεν (ficamos em
silêncio), a construção paralela o modismo ele respondeu e disse.

c. A Jerusalém (At 21:15–16)

15, 16. Depois destes dias, tendo feito os preparativos, subimos a


Jerusalém; e alguns discípulos foram também conosco de Cesaréia,
levando consigo um certo Mnasom de Chipre, discípulo antigo, com quem
nos deveríamos hospedar [TB].
Depois que os crentes renunciaram a persuadir Paulo de que não
fosse a Jerusalém, este e seus companheiros de viagem fizeram os
preparativos para partir de Cesareia. O texto grego diz, literalmente,
“depois destes dias” (quer dizer, quando terminou seu tempo de
permanência de vários dias). O momento chegou para completar a
viagem a Jerusalém. Lucas não diz nada sobre se os viajantes
caminharam ou cavalgaram; o texto só diz que fizeram os preparativos
para a viagem. 1332 Não obstante, a forma do Texto ocidental sugere que
a viagem foi completada em dois dias: Paulo e seus companheiros
passaram a noite na casa de Mnasom de Chipre e partiram para

1332
Ramsay afirma que o verbo preparar-se quer dizer, “equipar ou selar um cavalo”. St. Paul the
Traveller, p. 302. Devido ao fato de que este verbo aparece só uma vez no Novo Testamento (e duas
vezes no resto da Bíblia), a evidência que poderia respaldar a interpretação do Ramsay é fraca.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1035
1333
Jerusalém no dia seguinte. Para cobrir uma distância de 105 km. em
dois dias pode fazer-se melhor a cavalo. Se tivessem caminhado,
poderiam ter necessitado mais um dia.
A igreja em Cesareia estendeu sua preocupação por Paulo e seus
companheiros ao enviar alguns crentes para os acompanharem parte do
em caminho para Jerusalém. O grupo formado por nove pessoas (sete
companheiros de Paulo [At 20:4] além de Lucas) mais vários crentes de
Cesareia deve ter sido impressionante.
A construção da frase em grego na parte final do versículo 16 é
ambígua. É possível traduzir a de duas maneiras. A primeira seria: “e
trouxe com ele um Mnasom de Chipre, antigo discípulo, com quem nos
teríamos que hospedar”. 1334 A segunda seria: “e nos trouxe para Mnasom
de Chipre, um discípulo de fazia bastante tempo, com quem nos
hospedamos”. 1335 O sentido da passagem favorece a segunda tradução,
porque pareceria estranho ter a Mnasom tanto como um companheiro de
viagem e como um hospitaleiro.
Numerosos viajantes iam em caminho para Jerusalém no
Pentecostes, e assim conseguir alojamento não teria sido fácil. No
entanto, Mnasom (o nome poderia ser a forma grega para o nome
hebraico Manassés) proveu hospedagem; 1336 deve ter sido um homem de
recursos para ter uma casa que pudesse acomodar um número tão grande
de pessoas. Lucas destaca que Mnasom, natural de Chipre (cf. At 4:36),
fazia tempo que era um discípulo, o que faz supor que talvez era dos
primeiros convertidos no Pentecostes.

1333
Os agregados ao texto aparecem em itálico; o Texto ocidental diz: “E estes [os discípulos
cesareanos] trouxeram-nos àqueles com quem nos teríamos que hospedar; e quando chegamos a certa
aldeia, ficamos com Mnasom de Chipre, um antigo discípulo. E quando partimos dali viemos …”
Veja-se Metzger, Textual Commentary, p. 483.
1334
Com variantes menores: KJV, NKJV, RV, ASV.
1335
Também com variantes: BJ, NVI; inglês: NAB, RSV, Phillips e Moffatt.
1336
Bruce, Acts (texto grego), p. 443.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1036
Palavras, frases e construções gregas em At 21:15–16
Versículo 15
μετὰ δὲ τὰς ἡμέρας ταύτας — a frase temporal depois desse
intervalo refere-se diretamente à cláusula depois que tivemos
permanecido ali por vários dias (v. 10)
ἐπισκευασάμενοι — “fazendo preparativos”. O Textus Receptus diz
ἀποσκευασάμενοι, o que provavelmente significa “empacotar e
partir”. 1337

Versículo 16
τῶν μαθητῶν — para dar sentido ao genitivo partitivo desta
construção, devemos suprir o pronome indefinido τινές (alguns).
ἄγοντες — este gerúndio do verbo trazer necessita um objeto direto
(ἡμᾶς, nos) para completar o sentido deste verbo transitivo.
ξενισθῶμεν — o subjuntivo passivo aoristo de ξενίζω (eu recebo
como uma visita) tem um sentido volitivo, “deviam hospedar-nos”. 1338 A
cláusula relativa precedente παρʼ ᾧ (com quem) expressa propósito.

1337
Bauer, p. 98.
1338
Robertson, Grammar, p. 955.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1037

IX. EM JERUSALÉM E EM
CESAREIA (AT 21:17 – 26:32)
Atos (Simon J. Kistemaker) 1038
A. Em Jerusalém (At 21:17–23:22)

Depois de cada viagem missionária, Paulo voltava para a igreja em


Jerusalém. Quando ele e Barnabé tinham concluída sua primeira viagem,
foram a Jerusalém informar ao concílio (At 15:1–2, 4, 12; Gl 2:1–2).
Embora Lucas seja extremamente conciso na narração a respeito da
conclusão da segunda viagem, parece indicar que Paulo subiu para
Jerusalém (At 18:22). E por último, Paulo veio para os dirigentes da
igreja em Jerusalém para informar sobre o que Deus fez durante a
terceira viagem missionária.
Mesmo quando Antioquia chegou a ser o centro missionário da
igreja primitiva e comissionou a alguns para levar a mensagem do
evangelho ao mundo gentílico, a igreja em Jerusalém continuou
ocupando uma posição de comando, embora ia diminuindo.

1. A chegada de Paulo (At 21:17–26)

Ó célica Jerusalém! Ó, quando te verei?


Tuas glórias que por fé se veem, Ó, quando desfrutarei?
Sem sombra te contemplarei. Há vida e luz em ti;
Qual astro resplandecerei, Eternamente ali.

No século XII, Bernard de Cluny compôs um hino no qual


descrevia a alegria da Jerusalém celestial. Mas quando Paulo chegou a
Jerusalém terrestre, ele experimentou a alegria de ser calorosamente
bem-vindo pelos cristãos locais e a ansiedade de ser detido pelos
romanos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1039
a. A recepção (At 21:17–19)

17-19. Quando chegamos a Jerusalém, os irmãos nos receberam com


alegria. No dia seguinte Paulo foi conosco encontrar-se com Tiago, e todos
os presbíteros estavam presentes. Paulo os saudou e relatou
minuciosamente o que Deus havia feito entre os gentios por meio do seu
ministério [NVI].
a. “Os irmãos nos receberam com alegria”. Depois de passar a noite
na casa de Mnasom, o grupo chega a Jerusalém no dia seguinte,
provavelmente já entrada a noite. Quando Paulo e seus amigos chegam a
Jerusalém, representantes da igreja estão ali para estender-lhes cordiais
boas-vindas. Lucas chama a estes representantes “irmãos”, que é um
termo que significa “companheiros crentes”. Paulo está seguro entre eles,
mas as reiteradas advertências do Espírito Santo aumentam sua
impressão sobre os perigos que há nesta cidade (cf. At 9:29).
b. “Paulo foi conosco encontrar-se com Tiago, e todos os
presbíteros estavam presentes”. No seguinte dia, que deve ter sido o
sábado judeu, Tiago e os anciãos recebem a Paulo e a seus
acompanhantes. Os dirigentes da igreja em Jerusalém reconhecem assim
os sete representantes das igrejas gentílicas como irmãos em Cristo. Eles
podem ver o vínculo de fraternidade na igreja de Jesus Cristo através do
mundo. Embora Lucas não informe especificamente que os
companheiros de Paulo entregaram os donativos que tinham enviado as
igrejas gentílicas 1339 supomos que assim o fizeram, e que Tiago e os
anciãos se alegraram em receber esses dons.
Neste versículo, Lucas não diz nada sobre os apóstolos;
aparentemente estavam em diferentes lugares e é provável que alguns até
já tivessem morrido. Ele centraliza sua atenção nos anciãos e em Tiago,
quem foi o sucessor de Pedro na igreja de Jerusalém (veja-se At 12:17).
Tiago pronunciou o discurso decisivo no Concílio de Jerusalém (At

1339
Veja-se também Rm. 15:25–28; 1Co. 16:1–4; 2Co. 8:1–4.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1040
15:13–21) e foi uma das três colunas que estenderam a mão direita de
fraternidade a Paulo e a Barnabé (Gl 2:9).
Neste versículo, Lucas também muda o uso dos pronomes. Com
propósitos literários — para enfatizar que Paulo é a figura central deste
relato — passa da primeira pessoa do plural à terceira pessoa do
plural. 1340 E no relato sobre a viagem de Paulo a Roma continua com o
uso da primeira pessoa do plural (At 27:1), em que ele mesmo é
acompanhante.
c. “[Pablo] relatou minuciosamente o que Deus havia feito entre os
gentios por meio do seu ministério”. O propósito da visita de Paulo é
tríplice: primeiro, entregar a oferta monetária das igrejas gentílicas; logo,
fortalecer o vínculo entre judeus e gentios mediante a reunião de Tiago e
os anciãos com os representantes gentios; e, por último, entregar um
relatório do crescimento e influência das igrejas gentílicas.
Apresenta um detalhado relatório de sua terceira viagem
missionária; para seu relato, necessita tempo. Por isso, Tiago e os
anciãos passam a maior parte do dia ouvindo o que Deus tem feito entre
os gentios através de Seu servo Paulo. Estes dirigentes de Jerusalém
devem desenvolver uma compreensão da unidade da igreja universal.
Lucas sublinha que Deus era quem fazia as coisas, portanto, atribui a
Deus o louvor e a glória.¡Soli Deo Gloria! (somente a Deus glória [1Tm.
1:17]).

Palavras, frases e construções gregas em At 21:17–19


γενομένων — a construção absoluta genitiva com um verbo que
expressa movimento: “quando chegamos”. Portanto, a preposição εἰς,
embora traduzida “em”, pode ter a conotação usual, “para com”.

1340
Consulte-se Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble e
Gerald Shinn (Filadélfia: Westminster, 1971), p. 608.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1041
εἰσῄει — este é o tempo passado (imperfeito) do verbo εἴσειμι (eu
entro). Veja-se At 3:3; 21:26; Hb 9:6. Este verbo carece de aoristo, por
isso o imperfeito tem dupla função.
ἐξηγεῖτο — note-se o tempo imperfeito do verbo ἐξηγέομαι (eu
informo). Neste contexto, o imperfeito sugere ação continuada. Além
disso, o modismo καθ ἕν ἕκαστον (um por um) indica que Paulo contou
suas experiências com muitos detalhes e fez notar a mão de Deus no
desenvolvimento da igreja em outros lugares.

b. A advertência (At 21:20–25)

20. Ouvindo isso, eles louvaram a Deus e disseram a Paulo: Veja,


irmão, quantos milhares de judeus creram, e todos eles são zelosos da lei
[NVI].
Fazemos duas observações:
a. Glorificar. Ao ouvir do tremendo crescimento da igreja na Ásia
Menor, Macedônia, Grécia, Roma, e Ilírico e da intenção de Paulo de ir a
Espanha, Tiago e os anciãos ficavam a lançar aleluias. Louvam a Deus
por sua maravilhosa obra entre os gentios e veem o cumprimento das
Escrituras do Antigo Testamento que falam a respeito dos gentios vindo
ao conhecimento do Senhor. Estão agradecidos que os relatórios
negativos que ouviram a respeito de Paulo e sua obra entre os gentios
sejam incorretos. De qualquer maneira, sentem que devem informar
Paulo a respeito dos sentimentos de numerosos cristãos judeus em
Jerusalém.
b. A alerta. Paulo vem aos anciãos para promover a unidade da
igreja e espera deles que aceitem os cristãos gentios de outras partes num
mesmo nível que os cristãos judeus em Jerusalém. Mas o inverso é
também verdade, quer dizer, que deve pôr atenção àqueles cristãos
judeus que são zelosos em guardar a lei. Tiago e os anciãos o incluem
diretamente dizendo: “Veja, irmão”. O verbo ver quer dizer perceber
algo, refletir e ponderá-lo. A palavra irmão dá a entender que Tiago e os
Atos (Simon J. Kistemaker) 1042
anciãos consideram Paulo um irmão em Cristo. E também se distanciam
daqueles cristãos judeus que em seu zelo invalidaram as decisões do
Concílio de Jerusalém (At 15:19–21, 23–29).
Tiago mostrou sabedoria ao decidir convidar só os anciãos para
ouvir Paulo. Ele queria manter a paz na igreja e evitar qualquer brecha
que pudesse surgir do relatório de Paulo sobre seu trabalho entre os
gentios. Também desejava alertar a Paulo a respeito da maneira de
pensar e as práticas de muitos milhares de crentes judeus. Desejava que
Paulo desfizesse as suspeitas que os cristãos judeus tinham, porque Paulo
não podia abandonar toda esta gente que, com os crentes gentios,
formavam o corpo de Cristo. 1341
Multidões de cristãos judeus em Jerusalém e Judeia observavam
estritamente a lei e esperavam que os crentes fizessem o mesmo. Eram
como os judaizantes que se opuseram a Paulo e Barnabé no final da
primeira viagem a Chipre e Ásia Menor (At 15:1, 5). Devido ao seu zelo
pela lei, a igreja de Jerusalém tinha perdido seu zelo pelas missões.
Enquanto Paulo tinha seguido adiante, pregando a mensagem de
salvação ao mundo greco-romano, os judeus que vieram à fé em Cristo
buscavam merecer a salvação por guardar as tradições judaicas e
observar a lei mosaica. Com toda imparcialidade temos que dizer que as
decisões do Concílio de Jerusalém foram dirigidas aos cristãos gentios,
mas permitiram aos cristãos judeus continuar aderidos a seus tradicionais
costumes e rituais judaicos.
Supomos que a expressão milhares inclui a todos os cristãos judeus
que viviam na Palestina. Depois da perseguição que se seguiu por
ocasião da morte de Estêvão, os crentes foram espalhados por toda
Judeia e Samaria (At 8:1). Além disso, a igreja em Jerusalém no curso do
tempo começou a crescer, de modo que literalmente milhares de crentes
residiam na cidade e lugares adjacentes.

1341
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 199.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1043
21, 22. Eles foram informados de que você ensina todos os judeus
que vivem entre os gentios a se afastarem de Moisés, dizendo-lhes que não
circuncidem seus filhos nem vivam de acordo com os nossos costumes.
Que faremos? Certamente eles saberão que você chegou [NVI].
a. “Você ensina todos os judeus que vivem entre os gentios a se
afastarem de Moisés”. Enquanto Paulo proclamava o evangelho em
Éfeso, as notícias com relação à sua obra chegavam a Jerusalém. As
pessoas em Jerusalém interpretaram estas notícias de suas própria
perspectiva, que diferia grandemente da de Paulo em Éfeso. Os judeus
cristãos em Jerusalém punham o evangelho dentro do da lei mosaica e as
tradições, mas Paulo em Éfeso ensinava os cristãos gentios que eles não
estavam obrigados a sujeitar-se às regulações mosaicas. Informou aos
gentios das decisões do Concílio de Jerusalém, segundo as quais eram
ordenados para que se abstivessem de coisas sacrificadas aos ídolos, de
sangue, de animais estrangulados, e da fornicação” (At 15:29). Aos
judeus em Éfeso ensinou o evangelho da graça de Deus (At 20:24) e lhes
mostrou que a fé em Jesus Cristo eclipsava as leis mosaicas e os
costumes (Gl 3:25).
Na Ásia Menor, Macedônia, e Grécia, Paulo pregou o evangelho
tanto aos judeus como aos gregos (At 20:21). Aos judeus, foi um judeu,
e aos gentios fez-se um gentio para ganhar ambos para Cristo (1Co 9:20–
22). Bem percebia a dificuldade que enfrentava ao pregar o evangelho a
estes dois grupos de pessoas, embora tivesse limpa a consciência.
Chamou o arrependimento tanto a judeus como a gregos. Entre os judeus
na dispersão havia aqueles que não estavam de acordo com a forma que
usava (veja-se vv. 27–29). Fizeram suas queixas chegar aos judeus e aos
judeus cristãos em Jerusalém, dizendo que Paulo havia dito a todos os
judeus que não guardassem a lei judaica nem a tradição.
b. “Dizendo-lhes que não circuncidem seus filhos nem vivam de
acordo com os nossos costumes”. Os judeus cristãos em Jerusalém
ouviram os relatórios a respeito das atividades missionárias de Paulo e
viram sérias falhas em seu trabalho. Com base nos informes que tinham
Atos (Simon J. Kistemaker) 1044
recebido — que Paulo não exigia que os judeus na dispersão
circuncidassem seus filhos e guardassem os costumes judaicos —
consideram o apóstolo fora da corrente principal. Embora Tiago e os
anciãos sabiam que Paulo tinha aplicado as decisões do Concílio de
Jerusalém, a multidão dos cristãos judeus queriam que Paulo promovesse
a circuncisão e as leis judaicas. Rejeitaram notar que, na igreja, os
gentios tinham chegado a ser mais numerosos que os judeus, e que eles
mesmos teriam que promover a unidade do corpo de Cristo.
Em favor de Paulo, devemos notar que em sua obra e em sua vida,
ele demonstrou sua lealdade aos judeus ao aderir aos costumes judaicos.
Por exemplo, circuncidou Timóteo justo nos dias quando estava
enviando a carta do Concílio de Jerusalém às igrejas na Galácia (At
16:3–4). Logo, ele mesmo fez um voto nazireu que requeria cortar o
cabelo e aparecer no templo de Jerusalém antes de uma data específica
(At 18:18). E por último, em suas epístolas, nunca proibiu que os judeus
circuncidassem os seus filhos.
c. “Que faremos? Certamente eles saberão que você chegou”. O
Texto majoritário tem uma ampliação, que aqui incluímos em itálico: “E
agora, que fazer? A assembleia certamente deve reunir-se, porque eles
saberão que você chegou”. 1342 A intenção é óbvia, porque a diferença
entre cristãos gentios e cristãos judeus poderia resolver unicamente numa
assembleia. Mesmo quando o agregado parece ser original, os estudiosos
duvidam incluí-lo em suas traduções.
Tiago e os anciãos respaldavam Paulo em seu trabalho e ensinos,
mas deviam encontrar uma fórmula para aliviar a carregada atmosfera
que havia nos círculos cristão-judeus. Se os judeus cristãos em Jerusalém
tinham um forte preconceito contra Paulo, “os judeus não cristãos
sentiam-se o grau mais alto do ressentimento”. 1343 Com numerosos

1342
A adição grega também pode significar “uma chusma vai se reunir”. Veja-se Lake e Cadbury,
Beginnings, vol. 4, p. 272; James Hardy Ropes, Beginnings, vol. 3, p. 205.
1343
William M. Ramsay, Pictures of the Apostolic Church: Studies in the Book of Acts (reimp. Grand
Rapids: Baker, 1959), p. 272.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1045
judeus violentamente opostos a Paulo, a situação era sem dúvida muito
grave. E as notícias da chegada de Paulo à cidade não poderiam ocultar-
se por muito tempo, especialmente quando os cristãos judeus se reuniram
com os delegados das igrejas gentílicas (veja-se vv. 17–19).
23, 24. Faze, pois, isto que te vamos dizer: Temos quatro homens que
fizeram voto; toma-os, purifica-te com eles, e faze a despesa necessária
para raparem a cabeça; e saberão todos que não é verdade aquilo de que
têm sido informados a teu respeito, mas que andas também retamente,
guardando a Lei.
Fazemos as seguintes observações:
a. A advertência. Os anciãos da igreja de Jerusalém fizeram a Paulo
uma proposição prudente. Eles sabiam de quatro homens, judeus
cristãos, que tinham feito um voto. Supomos que fizeram o voto nazireu
antes da festa do Pentecostes. No final do mês que durava o voto, eles
foram incapazes de pagar os gastos provocados pelo cumprimento do
voto. Segundo Números 6:14–17, o nazireu devia oferecer três animais
(um cordeiro macho, um cordeiro fêmea, e um carneiro), uma oferta de
grão e uma de bebida e um cesto de pão. 1344 O custo para aquele que
fazia o voto era alto, mas servia como uma expressão de sua promessa
sincera a Deus.
b. O voto. Durante o período de seu voto, um nazireu não podia usar
navalha em sua cabeça, mas devia deixar que seu cabelo crescesse. Mas
quando o voto terminava, devia rapar a cabeça, dedicar o cabelo ao
Senhor, e queimá-lo junto com o sacrifício de sua oferta de
companheirismo (Nm. 6:18). 1345
c. Os ritos. Tiago e os anciãos aconselharam Paulo a tomar estes
quatro homens, unir-se a eles em seus ritos de purificação, e pagar os
gastos. Entende-se que o próprio Tiago sabia a respeito do voto nazireu.
Eusébio, o historiador da igreja, cita de um livro escrito por Hegésipo,

1344
Refira-se a SB, vol. 2, p. 755.
1345
Cf. Josefo Antiguidades 4.4.4 [72]; 19.6.1 [294].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1046
que pertencia à geração que veio depois da dos apóstolos. Na citação,
Hegésipo apresenta Tiago como um nazireu. 1346
Embora os quatro homens tivessem feito um voto nazireu, Paulo
mesmo evidentemente não o fez. Portanto, os ritos de purificação para
ele e para os quatro homens não podem ter sido os mesmos. Paulo tinha
chegado a Jerusalém de território gentílico e estava cerimonialmente
impuro. Devia submeter-se à purificação levítica antes de poder ser o
benfeitor dos quatro nazireus e participar de suas cerimônias. Para ele, os
dias prescritos para a purificação terminavam numa semana. O terceiro
dia dessa semana, foi aspergido com água de expiação (v. 26); no sétimo
dia teve lugar um segundo aspergimento (v. 27). Depois, quando se
programou o oferecimento dos sacrifícios, Paulo pôde custear os gastos
dos quatro nazireus. 1347 Ele pôde tomar parte nas cerimônias só quando
ele mesmo esteve leviticamente puro. No sétimo dia da purificação de
Paulo, o tempo da abstenção dos nazireus também havia concluído (cf.
Nm. 6:3). 1348 E se Paulo buscava obter limpeza cerimonial num período
de uma semana, não teria sido necessário que rapasse a cabeça.
d. A prova. Ao pagar os gastos dos quatro nazireus, ao ir ao
sacerdote com eles para fixar o tempo dos sacrifícios, e ao participar dos
ritos de purificação, Paulo demonstrou que ele era um judeu que
respeitava a lei. Uma demonstração visível de sua integridade como
judeu seria muito mais eficaz que uma extensa explicação. Ele fez
efetivo o velho refrão: “Um quadro fala mais que mil palavras”.
Os líderes da igreja e Paulo esperavam que os judeus cristãos em
Jerusalém estivessem dispostos a certificar-se que os informes que
tinham recebido a respeito do ensino de Paulo fossem falsos. Pagar os
gastos dos quatro nazireus foi considerado um ato de piedade. Os líderes

1346
Eusébio História Eclesiástica 2.23.4–6.
1347
Veja-se SB, vol. 2, pp. 757–58; Haenchen, Acts, p. 612.
1348
Josefo Guerra Judaica 2.15.1 [313]. É difícil crer que os quatro homens tenham sido
simultaneamente contaminados pela morte de alguém em sua presença (Nm. 6:9), justo no tempo em
que Paulo fazia os acertos necessários para seus próprios ritos de purificação.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1047
anteciparam que a participação de Paulo nas cerimônias mesmo quando
ele mesmo não fosse um nazireu, convenceria os judeus cristãos que ele
era um tradicional filho de Abraão. Em resumo, a associação de Paulo
com os quatro nazireus teria que ser uma evidência esmagadora de que
ele era um judeu respeitoso da lei de Deus em todo sentido.
25. Quanto aos gentios convertidos, já lhes escrevemos a nossa
decisão de que eles devem abster-se de comida sacrificada aos ídolos, do
sangue, da carne de animais estrangulados e da imoralidade sexual [NVI].
a. Tradução. O Texto ocidental acrescenta tanto como elimina
material neste versículo. As palavras acrescentadas (em itálico) pretende-
se que mostrem a diferença entre os cristãos judeus e os gentios:
“Quanto aos crentes gentios, eles [quer dizer, os cristãos judeus] não têm
nada que te dizer, porque lhes ordenamos e decretamos que não
observassem nada disso, salvo manter-se afastados do que se oferece aos
ídolos, de sangue e da imoralidade sexual”. O agregado não acrescenta
nada ao sentido do texto e aparece como uma paráfrase. Por este motivo,
os eruditos eliminam os agregados1349 e adotam a versão mais breve.
Pelo contrário, o Texto ocidental omitiu uma das estipulações do
Concílio de Jerusalém: abster-se de comer carne de animais
estrangulados. Para uma análise desta omissão, veja-se a Nota textual
sobre At 15:20).
b. A intenção. Tiago e os anciãos da igreja de Jerusalém queriam
evitar qualquer mal-entendido a respeito do assunto em questão. Eles
sabiam que o assunto tinha que ver com os cristãos judeus que viviam na
Dispersão, e não os cristãos gentios. Não obstante, os anciãos pensavam
que era sábio repetir as decisões feitas pelo Concílio de Jerusalém para
que todo mundo percebesse que não se exigia dos cristãos gentios
observar as leis e costumes cerimoniais dos judeus. A repetição não foi
feita com o propósito de instruir os delegados cristãos gentios. 1350 Eles já

1349
Embora veja-se KJV e NKJV.
1350
Refira-se a I. Howard Marshall, The Acts of the Apostles: An Introduction and Commentary, série
Tyndale New Testament Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1048
tinham sido instruídos por Paulo, conheciam as regras prescritas, e
desfrutavam de sua liberdade em Cristo. Os líderes da igreja em
Jerusalém reiteraram as estipulações para implicar que já haviam
resolvido a situação dos cristãos gentios, porém não dos cristãos judeus.
De fato, a igreja deveria convocar outra reunião para debater o assunto
da liberdade em Cristo para os crentes judeus.

Considerações doutrinais em At 21:20–25


Fortalecido pelas decisões do Concílio de Jerusalém, Paulo voltou
ao mundo greco-romano em sua segunda e terceira viagens missionárias.
Ele estava decidido a pregar o evangelho da liberdade cristã a cada
gentio que queria escutá-lo. Instruiu o gentio de que não deveria chegar
a ser um judeu, porque Cristo tinha cumprido as leis cerimoniais do
judaísmo.
Mas em Jerusalém, voluntariamente aceitou a recomendação dos
anciãos da cidade de que pagasse pelos sacrifícios oferecidos por quatro
nazireus e se submetesse aos ritos da purificação levítica. Comprometeu
ele seu ensino e suas próprias crenças? Devia ter rejeitado a
recomendação dos anciãos? Não, certamente que não. Paulo manteve
que os cristãos gentios estariam pecando se observassem os costumes e
as leis cerimoniais judias, e os cristãos judeus pecariam também se
observassem a lei para alcançar salvação. Observar o cerimonial judaico
em si não é pecaminoso. 1351 Ele mesmo seguiu sendo judeu e continuou
observando os costumes judaicos. Assim, fez um voto em Cencreia e
viajou a Jerusalém para cumpri-lo (At 18:18). Em sua defesa diante do
Governador Félix, afirmou que tinha vindo a Jerusalém para apresentar
ofertas (At 24:17).

346. Marshall acrescenta que “Lucas deixa de editar a fonte [nós] à luz da anterior menção do decreto
no capítulo 15”. Esta explicação é meritória se entendermos que a “fonte-nós” é o próprio diário de
Lucas.
1351
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 267 n. 2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1049
O propósito ao ir a Jerusalém era promover a unidade da igreja.
Queria reunir os representantes cristãos das igrejas gentílicas no
estrangeiro e os cristãos judeus em Jerusalém. Ele mesmo faria tudo em
seu poder para manter tal unidade, até se devia submeter-se a ritos de
purificação e pagar pelos sacrifícios.

Palavras, frases e construções gregas em At 21:20–25


Versículo 20
ἐδόξαζον τὸν θεὸν εἶπόν — os tempos imperfeito e aoristo indicam
ação continuada em um dos casos e ação só no outro. “Eles louvaram a
Deus por algum tempo e em várias formas até que finalmente
disseram”. 1352
τοῦ νόμου — o caso genitivo é objetivo (“[zeloso] da lei”). A
influência e o crescimento numérico de crentes que “pertenciam ao
partido dos fariseus” (At 15:5) parece ter sido substancial. Uma tradução
literal do grego é “dezenas de milhares” mas em português idiomático é
“milhares”.

Versículo 21
διδάσκεις — o verbo ensinar toma um duplo acusativo: um uma
coisa (ἀποστασίαν, apostasia) e as outras pessoas (Ἰουδαίους, judeus). O
adjetivo πάντας (tudo), devido ao seu lugar na frase, revela um toque de
exagero no relatório com relação a Paulo. A ordem da palavra através de
toda esta frase é incômodo.
τοῖς ἔθεσιν — o dativo de esfera significa “segundo nossos
costumes”. 1353

1352
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #327.
1353
Robertson, Grammar, p. 524.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1050
Versículos 23–24
ἡμῖν — o dativo de possessão. Na tradução, o verbo ser ou estar se
transforma em haver ou ter: “temos quatro homens”.
ἐφʼ ἑαυτῶν — “por eles mesmos”. A forma ἀφʼ em ao menos dois
manuscritos importantes (o Sinaítico e o Vaticano) significa “por sua
própria iniciativa”.
ἁγνίσθητι — o imperativo passivo aoristo de ἁγνίζω (eu purifico)
deveria ser entendido como um meio causativo: “purifica-te a ti mesmo”.
ξυρήσονται — a partícula ἵνα introduz uma cláusula de propósito,
porém numa quantidade de importantes manuscritos o verbo aparece no
indicativo futuro em lugar de no subjuntivo aoristo. No Novo
Testamento, é comum o uso do tempo futuro em lugar do subjuntivo
(veja-se, p. ex. Jo 7:3; 1Pe 3:1; Ap 6:4). O passivo é equivalente a um
médio permissivo: “para que eles tenham suas cabeças barbeadas”. 1354

Versículo 25
ἐπεστείλαμεν — a evidência externa para esta forma ou
ἀπεστείλαμεν é igualmente forte. A intenção do versículo se mantém
inalterável com uma ou outra forma.

c. O voto (At 21:26)

26. Então Paulo, tomando aqueles homens, no dia seguinte purificou-


se com eles e entrou no templo, notificando o cumprimento dos dias da
purificação, em que cada um deles deveria trazer a oferenda.
Dentro dos termos deste único versículo Lucas condensa um
número de detalhes que necessitam uma nota explicativa, por assim
dizer. (Em Atos, reiteradamente comprime informação ao ponto de afetar
a clareza de um versículo em particular [veja-se, p. ex. At 6:13–14; 7:16;

1354
Bauer, p. 549; Robertson, Grammar, p. 809.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1051
18:22].) Quando escreve “no dia seguinte”, está-se referindo ao terceiro
dia depois da chegada de Paulo a Jerusalém (veja-se vv. 17–18).
Atrevemo-nos a dizer que se Paulo chegou a Jerusalém uma sexta-feira e
se reuniu com Tiago e os anciãos num sábado, o terceiro dia seria então
no domingo (o dia do Pentecostes). Para mais detalhes, veja-se o
comentário sobre At 24:11.
Quando Paulo levou os quatro nazireus a um sacerdote no templo
naquele domingo do Pentecostes, ele mesmo devia submeter-se a uma
semana de purificação para poder qualificar-se como patrocinador deles.
No terceiro dia de seu processo de purificação (terça-feira), o sacerdote o
tinha aspergido com água de expiação, o mesmo que fez no sétimo dia
(sábado). Os dias especificados para purificação eram o terceiro e o
sétimo (veja-se Nm. 19:12). O próprio Paulo não poderia ter feito o voto
de nazireu, pelo qual teve que unir-se aos quatro homens nos ritos de
purificação que se prolongaram por uma semana. Mais tarde, falando em
sua própria defesa diante do Governador Félix, Paulo testificou que ele
estava cerimonialmente limpo. Tinha ido ao templo levando ofertas para
os pobres, quer dizer, para seu próprio povo (At 24:17–18). Esta
informação não nos diz nada de que Paulo tenha pago os gastos pelo
nazireado com as ofertas que tinha levado a Jerusalém. Supomos que
custeou os gastos de seu próprio pecúlio. Além disso, ao pagar ele seus
gastos, os nazireus puderam completar as cerimônias prescritas. Segundo
as regras judaicas, a apresentação dos sacrifícios e o rapado da cabeça
eram feitos no final dos sete dias. 1355
Em resumo, Paulo fez as provisões necessárias para os nazireus ao
ir ao sacerdote no templo, fixar a duração de dias da purificação e
programar o tempo para os sacrifícios de cada um dos nazireus. Também
programou o rapado de suas cabeças e a queima de seu cabelo com a
oferta de fraternidade (Nm. 6:18).

1355
Mishnah Nazir 3.6.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1052
Palavras, frases e construções gregas em At 21:26
εἰσῄει — veja-se a análise deste verbo no versículo 18.
διαγγέλλων — do verbo informar de este gerúndio expressa
intenção.
ὑπέρ — o sentido básico desta preposição é singularmente aplicável
dentro do presente: “em nome de, pelo bem de alguém”. 1356

2. A detenção de Paulo (At 21:27–36)

Para Paulo, o templo era tanto o lugar mais seguro de Jerusalém


como o mais perigoso. Era seguro porque ele se submeteu aos ritos da
purificação e, portanto, não poderia ser acusado de contaminá-lo ou
violar os costumes judaicos. Mas devido ao fato de que ali chegavam as
multidões de judeus, especialmente durante uma festa, era extremamente
perigoso Paulo aparecer por ali.

a. A acusação (At 21:27–29)

27. Quando já estavam por findar os sete dias, os judeus vindos da


Ásia, tendo visto Paulo no templo, alvoroçaram todo o povo e o
agarraram, ...
A relação entre os judeus e os cristãos judeus em Jerusalém era
harmoniosa, especialmente durante o tempo das festas religiosas.
Enquanto os cristãos judeus continuavam observando os costumes e
tradições do judaísmo, os judeus passavam por alto algumas
aberrações. 1357 Na opinião dos judeus, os cristãos não eram uma ameaça.
A perseguição que seguiu por ocasião da morte de Estêvão era coisa do
passado.
1356
Bauer, p. 838; C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge:
Cambridge University Press, 1960), p. 64.
1357
Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, serie Westminster Commentaries
(1901; reimp. Grand Rapids: Baker, 1964), p. 411.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1053
Os judeus na dispersão, contudo, não foram tolerantes com Paulo.
Em Corinto os judeus tramaram contra sua vida quando ele estava
prestes a partir para Jerusalém a fim de celebrar a Páscoa (At 20:3), mas
Paulo fez fracassar seu plano ao viajar através da Macedônia e chegar a
Jerusalém para a festa do Pentecostes. Em Jerusalém, os judeus
procedentes do oeste da Ásia Menor, provavelmente de Éfeso,
reconheceram-no, visto que tinha vivido naquela cidade por cerca de três
anos. Estes judeus talvez tinham esperado ver se aparecia em Jerusalém
para celebrar a festa; e quando o fez, viram a oportunidade de eliminá-lo,
o que, apesar de suas tentativas (At 20:19), não poderiam ter feito.
Durante a primeira semana de sua estada em Jerusalém, o povo não
detectou a presença de Paulo. Os judeus de Jerusalém não o
reconheceram, porque tinha estado ausente da cidade por mais de duas
décadas. Mas quando entrou na área do templo com quatro homens a
quem não conheciam, os judeus da Ásia se sentiram afrontados. Tinham-
no visto na cidade com Trófimo, um gentio de Éfeso, e supuseram que
Paulo havia trazido gentios ao lugar santo. Então incitaram a multidão
nos pátios do templo. Lucas diz claramente que os judeus, não os
cristãos judeus, instigaram a revolta que resultou na detenção de Paulo.
Por que os judeus estavam tão decididos contra Paulo? Em sua
opinião, ele representava uma ameaça para o judaísmo: ele supostamente
ensinou os judeus da dispersão que não observassem os costumes e as
leis cerimoniais de Moisés. As acusações contra ele são similares às que
se fizeram a Estêvão. Os judeus acusaram a Estêvão de falar contra a lei,
de Deus, e do templo (At 6:11, 13–14). Os judeus da Ásia acusam Paulo
de ensinar contra a lei e o templo (vv. 28–29).
28, 29. ... gritando: Israelitas, socorro! Este é o homem que por toda
parte ensina todos a serem contra o povo, contra a lei e contra este lugar;
ainda mais, introduziu até gregos no templo e profanou este recinto
sagrado. Pois, antes, tinham visto Trófimo, o efésio, em sua companhia na
cidade e julgavam que Paulo o introduzira no templo.
Estes são os pontos mais destacados:
Atos (Simon J. Kistemaker) 1054
a. A preocupação. No grego, Lucas pode, numa só frase, registrar a
dupla acusação que os judeus de Éfeso levantam contra Paulo. Na
verdade, quando Paulo faz sua defesa diante do Governador Félix em
Cesareia, desafia estes judeus a apresentar-se diante da corte e insistir em
suas acusações (At 24:19). O que disseram nos átrios do templo
dificilmente podem considerar uma acusação!
A dispersão judaica introduz o assunto como uma típica
preocupação judaica. Como resultado, gritam: “Israelitas!” Eles se
consideram como os vigia sobre os muros de Sião; são os defensores da
fé ortodoxa. Chamam seus compatriotas judeus para ajudá-los e gritam:
“Socorro!” No entanto, é óbvio que se eles necessitavam ajuda, devem
tê-la pedido ao capitão da guarda do templo (At 4:1; 5:24, 26; Lc 22:4).
b. A primeira acusação. Os judeus da Ásia começam sua acusação
com estas palavras: “Este é o homem que por toda parte ensina todos a
serem contra o povo, contra a lei e contra este lugar”.
Esta parte das acusações revela um exagero: “por toda parte ensina
todos”. A palavra todos è inclusiva: judeus e gentios. Se a alegação
tivesse sido verdade, então Paulo deve ter ensinado também em
Jerusalém. Além disso, a acusação de que Paulo ensinava contra o povo
judeu simplesmente não resiste a uma análise séria; a informação de
Atos e das epístolas de Paulo mostra que o apóstolo pregou o evangelho
primeiro nas sinagogas e que, apesar da rejeição que experimentou,
sempre deu a conhecer sua preocupação pelos judeus (p. ex. Rm 11:1–
2a, 13–15). Embora tenha instruído o povo judeu no sentido de que as
leis cerimoniais foram cumpridas por Jesus Cristo, insistiu no significado
e aplicação da lei moral. Por último, os fatos — que tenha ido ao templo
para purificar-se e que tenha pago os gastos dos quatro nazireus —
desmente a acusação de que tinha falado contra o templo.
c. A segunda acusação. A segunda parte da acusação (“Introduziu
até gregos no templo e profanou este recinto sagrado”) é também
infundada. Nenhum gentio pensaria em entrar nos átrios do templo
sagrado; segundo Josefo, numerosos letreiros tanto em grego como em
Atos (Simon J. Kistemaker) 1055
1358
latim proibiam aos gentios passar do Átrio dos gentios. Todo mundo
na cidade de Jerusalém, judeu ou gentio, estava informado da inscrição:
“Nenhum gentio pode passar da varanda ao redor do santuário e do
recinto fechado. Quem quer que for surpreendido ficará sujeito à pena de
morte que inevitavelmente lhe será aplicada”. 1359
Se Paulo tinha levado gregos à área específica do templo — o Átrio
das mulheres e o Átrio dos israelitas — proibidos para os gentios, então
os judeus teriam tido a evidência: os intrusos seriam detidos. Mas isto de
maneira nenhuma é o caso. Os judeus furiosos dependem de hipóteses e
rumores, não de fatos.
d. A explicação. Uns poucos dias antes, os judeus efésios tinham
visto Paulo na cidade. Foi acompanhado por Trófimo de Éfeso, a quem
conheciam como gentio que tinha chegado a ser cristão. Agora veem
Paulo no templo com quatro homens. Ao não saber quem eram estes
homens, presumiram que eram cristãos gentios que o tinham
acompanhado a Jerusalém. Mas Paulo estava com os quatro nazireus
perto da chamada câmara dos nazireus, que estava localizada na esquina
sudeste do Átrio das mulheres. 1360 Aqui, Paulo e os nazireus faziam os
arranjos finais com um sacerdote para oferecer seus sacrifícios e
completar seus votos.
Os pressupostos dos judeus da Ásia não se encaixam na realidade.
Se eles tivessem visto Trófimo na área do templo, deviam tê-lo
capturado sem demora. Assim teriam tido uma prova incontrovertível de
que Paulo tinha poluído o templo ao levar um gentio, Trófimo, ao Átrio
das Mulheres e ao Átrio dos israelitas. O guarda do templo (veja-se At
4:1) então não teria demorado em proceder à prisão.

1358
Josefo Guerra Judaica 5.5.2 [194]; 6.2.4 [124–26]; Antiguidades 15.11.5 [417]. Veja-se também
SB, vol. 2, pp. 761–62.
1359
Harold G. Stigers, “Temple, Jerusalem”, ZPEB, vol. 5, p. 650.
1360
Refira-se a Shmuel Safrai y Michael Avi-Yonah, “Temple”, Encyclopaedia Judaica, vol. 15, p.
966.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1056
Palavras, frases e construções gregas em At 21:27–29
Versículo 27
ἀπό — em lugar da preposição mais apropriada ἐκ (fora de), Lucas
recorre a ἀπό (de). Cf. At 6:9.
συνέχεον — o tempo imperfeito do verbo συγχέω (eu incito)
descreve um esforço sustentado para confundir à multidão. O significado
literal deste verbo é “lançar juntos”.

Versículo 28
τοῦ λαοῦ — note-se o uso do artigo definido para este nome e para
as palavras lei e lugar. Os judeus especificam três distintas categorias. O
substantivo λαός significa o próprio povo de Deus.
πάντας πανταχῇ — “todos em todas as partes”. Esta combinação
talvez seja uma expressão idiomática.
εἰοήγαγεν — o tempo aoristo de εἰσάγω (eu entro) sugere uma
ocorrência única; mas note-se que o verbo κεκοίνωκεν está no tempo
perfeito que mostra efeito continuado e consequências duradouras. 1361

Versículo 29
ἦσαν γὰρ προεωρακότες — a construção perifrástica perfeita do
verbo ser ou estar com o particípio perfeito de προοράω (eu vejo
anteriormente) indica que o ato de observar a Trófimo na cidade
continuou transtornando os judeus efésios.
ἐνόμιζον — o tempo imperfeito do verbo νομίζω (penso) acrescenta
viveza descritiva à narração.

1361
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #342.4; Robertson, Grammar, p. 894.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1057
b. A confusão (At 21:30–32)

30. Agitou-se toda a cidade, havendo concorrência do povo; e,


agarrando a Paulo, arrastaram-no para fora do templo, e imediatamente
foram fechadas as portas.
De boca em boca, as pessoas foram espalhando a acusação que
Paulo ensinava contra o povo judeu, da lei, e do templo. Esta acusação
foi suficiente para levantar toda uma cidade como Jerusalém e a
numerosos visitantes. Nas ocasiões de festa, as pessoas estavam à
expectativa de notícias extraordinárias. Por exemplo, quando Jesus fez
Sua entrada triunfal em Jerusalém, toda a cidade se comoveu (Mt 21:10);
quando o Espírito Santo foi derramado no dia do Pentecostes, a multidão
se confundiu (At 2:6). Igualmente, agora as pessoas se aglomeraram por
toda a cidade e correram até a área do templo sem conhecer os detalhes
precisos. Isto é típico das cidades orientais, onde até hoje se reúnem
grandes multidões em tempo recorde e são facilmente incitados para
gritar ordens e levar pancartas e estandartes.
Os instigadores da revolta, os judeus efésios, tinham apreendido
Paulo (v. 27). Agora, eles e outros homens o arrastam fora dos átrios do
templo. Lucas não menciona os diferentes átrios do templo; para ele, o
templo incluía todas as áreas que podiam ser fechadas por portas e que
eram proibidas aos gentios. Estas eram o templo propriamente dito, o
Átrio dos sacerdotes, o Átrio dos israelitas, e o Átrio das mulheres. As
áreas não restringidas do templo: — o Átrio dos gentios, o Pórtico de
Salomão (Jo 10:23; At 3:11; 5:12) e o Pórtico real, onde os cambistas de
dinheiro e os comerciantes tinham seus negócios — permitiam
facilmente que se acomodassem milhares de pessoas.
O capitão da guarda do templo e suas tropas agiram rapidamente
para fechar as portas entre o Átrio dos gentios e o Átrio das mulheres. O
capitão tinha a responsabilidade de manter a ordem dentro e ao redor do
Atos (Simon J. Kistemaker) 1058
1362
templo. Ao fechar as portas, ele evitava que a multidão se
alvoroçasse dentro dos átrios. Se o povo matasse Paulo no sagrado solo
do templo, seu sangue contaminaria o templo (2Rs 11:15–16; 2Cr
24:21).
31, 32. Procurando eles matá-lo, chegou ao conhecimento do
comandante da força que toda a Jerusalém estava amotinada. Então, este,
levando logo soldados e centuriões, correu para o meio do povo. Ao verem
chegar o comandante e os soldados, cessaram de espancar Paulo.
Paulo esteve em perigo de perder sua vida, porque não tinha recurso
para uma ação legal. A pessoa que fosse acusada de contaminar o templo
poderia ser morta imediatamente, sem benefício de um juízo. A chusma
pôde tê-lo arrastado até os subúrbios da cidade e ali apedrejá-lo até sua
morte, como o tinham feito com Estêvão (7:58). Mas eles não tinham
paciência e, como informa Lucas, já estavam procurando matar Paulo.
Só a intervenção dos militares romanos salvou Paulo.
Os romanos tinham construído a Fortaleza Antônia e seus quartéis
(v. 34) num terreno rochoso de 50 côvados (22,87m) de altura com
precipícios por todos os lados”. 1363 A própria fortaleza tinha 15,25m de
altura, mas possuía torres que teriam pelo menos 30m de altura. Desse
ponto de vista, os romanos podiam observar as multidões não só da área
do templo, mas também em outras partes da cidade. Se se produziram
tumultos, o comandante enviaria imediatamente suas tropas para
restabelecer a ordem.
Lucas chama o comandante um quiliarca (oficial a cargo de mil
homens); hoje, um oficial como ele teria a posição de major ou
coronel. 1364 Era superior em posição a um centurião e na sociedade
romana ostentava uma posição equestre. Este comandante era bem

1362
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D. 135),
rev. e ed. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 278.
1363
Josefo Guerra judaica 5.5.8 [238].
1364
Bauer, p. 882; veja-se também, p. ex., Jo. 18:12. Em Jerusalém havia um batalhão de 760 soldados
de infantaria e um esquadrão de 240 soldados de cavalaria. Consulte-se Lake e Cadbury, Beginnings,
vol. 4, p. 275.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1059
conhecido em Jerusalém: Lucas registra seu nome, Cláudio Lísias (At
23:26). Quando o comandante ouviu de sua sentinela postada na torre de
vigilância que a cidade inteira estava alvoroçada, imediatamente entrou
em ação. Ao notar que a multidão formava uma verdadeira coluna,
ordenou a alguns de seus oficiais e soldados — ao menos uns duzentos
homens — que o acompanhassem. Sem demora atacou a multidão para
deter o revoltoso.
Assim que viram isso, os que atacavam a Paulo deixaram de
espancá-lo, porque não tinham nenhum interesse em ser presos
juntamente com ele. Era melhor para eles entregá-lo ao comandante
romano que ser detidos sob a acusação de incitar à rebelião.

Considerações doutrinais em At 21:30–32


Quando Jesus morreu no Calvário, a cortina que separava o Lugar
Santíssimo do resto do templo propriamente dito rasgou-se de cima
abaixo (Mt 27:51). Com esta ação sobrenatural, Deus mostrou, sem lugar
a dúvida, que o sacerdócio levítico e o templo estavam obsoletos. Mas
Deus deixou passar quarenta anos antes de terminar com o sistema
sacerdotal e destruir o templo.
Nesse período de quarenta anos, o templo sempre foi sagrado para o
povo judeu. Alguém que falasse do templo e sua referência a ele fosse
considerada negativa, era condenado à morte. Por exemplo, tanto Jesus
(Mt 26:61) como Estêvão (At 6:13) foram acusados de falar contra o
templo, e foram mortos. Para os judeus, Israel era o centro das nações do
mundo, Jerusalém era o centro de Israel, e o templo era o centro de tudo.
Mas, com a influência dos cristãos gentios na igreja, os cristãos
judeus tiveram que resolver um problema de grande magnitude. Embora
continuassem adorando com os judeus não cristãos no templo, se fossem
promover a unidade da igreja universal, teriam que terminar com a
adoração que excluía os cristãos samaritanos e gentios. Jesus havia dito à
mulher samaritana que os verdadeiros adoradores adorariam o Pai em
Atos (Simon J. Kistemaker) 1060
espírito e em verdade (Jo 4:21–24), e que não adorariam nem em
Jerusalém nem no Monte Gerizim. Jesus, o Messias prometido,
introduziu um novo sistema de adoração que não está “sujeito a nenhum
lugar sagrado em particular’.1365
Lucas, um cristão gentio, foi testemunha da detenção de Paulo e da
fechadura das portas do templo que veio a seguir. De sua perspectiva, o
fato de fechar as portas simbolicamente significava que o templo não era
coisa de importância para os cristãos gentios e que com o tempo —
depois do ano 70 d.C. — perderia também sua importância para os
cristãos judeus.
Na terra onde só há dia
Há uma cidade quadrangular;
Que nunca deixará de ser,
Onde noite não haverá.
As portas nunca se fecharão
Na cidade quadrangular;
Ali o rio é de cristal
Onde noite não haverá.
— John R. Clements (Trad. livre)

Palavras, frases e construções gregas em At 21:30–32


Versículo 30
εἷλκον — o tempo imperfeito de ἕλκω (eu arrasto) é descritivo e
indica processo. Mas o verbo passivo aoristo ἐκλείσθησαν (de κλείω, eu
fecho) indica ação única. Enquanto os judeus arrastavam a Paulo para
fora do Átrio das mulheres e o levavam ao Átrio dos gentios, os guardas
fecham as portas do templo.

1365
Leon Morris, The Gospel According to John, série New International Commentary on the New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), p. 270.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1061

Versículos 31–32
ζητούντων — a construção absoluta genitiva carece do pronome
αὑτῶν no caso genitivo. O pronome está implícito. 1366 O verbo ζητέω (eu
busco) comunica a ideia desfavorável de tentar matar alguém.
συγχύννεται — esta é uma variação do tempo presente de συγχέω
(eu confundo). Veja-se o versículo 27.
κατέδραμεν — de κατατρέχω (eu baixo correndo), este verbo no
segundo aoristo descreve vividamente o comandante correndo escada
abaixo rumo à Corte dos gentios.

c. A intervenção (At 21:33–36)

33. Aproximando-se o comandante, apoderou-se de Paulo e ordenou


que fosse acorrentado com duas cadeias, perguntando quem era e o que
havia feito.
Pela narração de Lucas sabemos que as autoridades romanas
trataram Paulo com bastante cortesia. Exceto em Filipos (At 16:22), os
oficiais do governo romano repetidamente o favoreceram e inclusive o
protegeram. Por exemplo, em Corinto o procônsul romano o deixou em
liberdade mesmo antes de ter oportunidade de defender-se (At 18:14–
15). Em Éfeso, os asiarcas o advertiram a não entrar no teatro (At 19:31).
Durante sua viagem a Roma, o centurião chamado Júlio esteve
amavelmente disposto e lhe permitiu desembarcar em Sidom para ver
seus amigos (At 27:3).
O comandante em Jerusalém aproximou-se, prendeu-o, e mandou
prendê-lo com duas cadeias (cf. At 12:6). 1367 Ao acorrentá-lo, o
comandante se precaveu de qualquer tentativa de escapar. (Paulo
percebeu que a profecia e a demonstração de Ágabo tinha sido cumprida

1366
Robertson, Grammar, p. 1126.
1367
Cf. Josefo Antiguidades 18.6.7 [196]; veja-se também At. 28:20; Ef. 6:20; 2Tm. 1:16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1062
[At 21:10–11].) Com sua intervenção, o comandante o salvou da morte.
Começou a perguntar aos atacantes a respeito da identidade de Paulo e
suas transgressões. O tempo do verbo grego indica que o comandante fez
a pergunta repetidas vezes.
34. Na multidão, uns gritavam de um modo; outros, de outro; não
podendo ele, porém, saber a verdade por causa do tumulto, ordenou que
Paulo fosse recolhido à fortaleza.
O comandante demonstrou que estava no controle total da situação.
Considerando que só fazia alguns anos, o governador Cumano tinha
ordenado a suas tropas esmagar uma revolta e como resultado tinham
morrido milhares de judeus, 1368 O próprio Cláudio Lísias penetrou no
meio da multidão e procurou descobrir o que estava ocorrendo.
A multidão não pôde dar-lhe uma resposta porque ninguém entre
eles tinha ideia cabal do que estava ocorrendo (para um paralelismo,
veja-se At 19:32). Algumas pessoas gritavam que Paulo tinha levado os
judeus por mau caminho, enquanto outros gritavam que tinha
quebrantado a lei; ainda outros disseram que tinha poluído o templo (v.
28). Consequentemente, quando o comandante não recebeu uma resposta
satisfatória a suas perguntas, ordenou a suas tropas levar Paulo ao
quartel, onde ele pessoalmente o interrogaria (At 22:27–28).
35, 36. Ao chegar às escadas, foi preciso que os soldados o
carregassem, por causa da violência da multidão, pois a massa de povo o
seguia gritando: Mata-o!
Os atacantes viram que o objeto de seu ódio estava sendo levado
sob a custódia romana e possivelmente escaparia da pena de morte que
eles queriam administrar-lhe. Quando Paulo, acorrentado entre dois
soldados, chegou aos dois primeiros lances dos degraus que levavam à
Fortaleza Antônia, a multidão procurou evitar que subisse os degraus. 1369

1368
Josefo Guerra Judaica 2.12.1 [223–26]; Antiguidades 20.5.3 [105–12].
1369
Josefo Guerra Judaica 5.5.8 [243]. Consulte-se a Schürer, History of the Jewish People, vol. 1, p.
366.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1063
A pressão da multidão era tão grande que os soldados tiveram que elevar
a Paulo e no ar o levaram escada acima.
Enquanto isso, a chusma seguia atrás dos soldados romanos, que
sem dúvida procuraram impedir que alcançassem os degraus. Quando
perceberam que tinham perdido a sua vítima, começaram a gritar aos
soldados: “Mata-o!” Com este grito não estavam querendo dizer que os
soldados levassem Paulo para dentro do quartel, mas que o matassem.
Note-se a semelhança com os gritos da multidão quando Pôncio Pilatos
queria soltar Jesus. Ali, a chusma gritou, “Fora! Fora! Crucifica-o!” (Jo
19:15; e veja-se Lc 23:18; At 22:22). De fato, Paulo poderia afirmar a
verdade das palavras de Jesus de que o servo não é maior que seu senhor
(Mt 10:24; Jo 13:16).

Palavras, frases e construções gregas em At 21:33–36


Versículo 33
αὑτοῦ — o caso genitivo do pronome depende do verbo ἐπελάβετο
(prendeu). Os verbos que indicam agarrar, apreender, e prender
dominam o caso genitivo.
ἐπυνθάνετο — o tempo imperfeito descreve interrogatório repetido
por parte do comandante, que procurava conhecer os detalhes a respeito
de Paulo como pessoa (τίς, quem) e como causa da revolta (τί, o que).
εἴη — o optativo presente do verbo εἰμί (eu sou) com a construção
perifrástica perfeita de ἐστιν e o particípio perfeito πεποιηχώς. O uso do
optativo e da construção perifrástica provavelmente reflita exatamente as
palavras do comandante. Compare o uso frequente do optativo no
relativamente breve discurso do governador Festo (At 25:16 [duas
vezes], 20).

Versículo 34
Atos (Simon J. Kistemaker) 1064
ἄλλοι δε ἄλλο — “uns uma coisa, outros outra”. Veja-se At 19:32
para esta expressão idiomática. 1370
ἐπεφώνουν — o tempo imperfeito mostra ação repetida; o verbo
composto revela intensidade: “seguiam gritando a plenos pulmões”.
δυναμένου δὲ αὑτοῦ — embora a construção seja o absoluto
genitivo, não é exato porque o sujeito do verbo principal ἐκέλευσεν
(ordenou) é o mesmo do absoluto genitivo.

Versículos 35–36
συνέβη — este aoristo de συμβαίνω (eu reúno, ocorre) é uma
variante estilística de ἐγένετο (ocorreu). Com o infinitivo presente
βαστάζεσθαι (levar), descreve o assombro de Lucas pela ação dos
soldados romanos em levar a Paulo a um lugar seguro.
ἠκολούθει — o tempo imperfeito do verbo ἀκολουθέω (eu sigo)
mostra a persistência da multidão e seu apaixonado odeio por Paulo.

3. O discurso de Paulo (At 21:37–22:21)

Paulo é agora prisioneiro de Roma, e daqui até o final de Atos,


segue como prisioneiro. No entanto, estando sob a custódia de Roma,
Paulo dá seus primeiros passos rumo à capital do império. Mesmo que
estando acorrentado, eventualmente cumpre-se sua intenção de visitar
Roma (veja-se At 19:21).
Roma constituía o centro do império de onde as estradas, como os
raios de uma roda, estendiam-se até os confins da terra. Como resultado,
para Paulo chegar a Roma significava cumprir o mandato missionário de
Jesus dado aos apóstolos: “Sereis minhas testemunhas tanto em
Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra”
(At 1:8).

1370
Robertson, Grammar, p. 747.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1065

a. A solicitude (At 21:37–40)

37, 38. Quando os soldados estavam para introduzir Paulo na


fortaleza, ele perguntou ao comandante: “Posso dizer-te algo?” “Você fala
grego?”, perguntou ele. “Não é você o egípcio que iniciou uma revolta e
há algum tempo levou quatro mil assassinos para o deserto?”
a. “Quando os soldados estavam para introduzir Paulo na fortaleza”.
Tendo-se interessado em Paulo, o comandante fica perto dele. Seus
soldados advertiram à multidão de subir pela escada enquanto Paulo é
protegido contra a força brutal da chusma. Enquanto os oficiais e
soldados ainda estão nas escadas fora do quartel, Paulo, falando um
excelente grego, dirige uma pergunta ao comandante.
b. “Posso dizer-te algo?” O comandante se surpreende ao ouvir
Paulo falar um grego fluido e dirigir-se a ele cortesmente, visto que tinha
entendido que se procurava um judeu egípcio e um criminoso. Além
disso, o comandante tinha fracassado em sua intenção de averiguar o que
estava ocorrendo quando fez perguntas no Átrio dos gentios. Sem dar
uma resposta à pergunta, o comandante expressa seu assombro e, por sua
vez, faz-lhe uma pergunta óbvia: “Você fala grego?” Provavelmente
quer saber se a língua mãe de Paulo é o grego e onde a tinha aprendido.
c. “Não é você o egípcio”. A pergunta retórica do oficial exige uma
resposta positiva. Ele sabe que a língua mãe de um judeu egípcio seria o
grego. Mas Paulo não é o egípcio que o comandante tem em mente, a
saber, aquele que tinha encabeçado uma rebelião contra Roma e dirigido
uns quatro mil homens ao deserto alguns anos antes.
d. “[O egípcio] que iniciou uma revolta e há algum tempo”. Josefo
informa que um impostor do Egito que pretendia ser um profeta tinha
encabeçado um bando de trinta mil pessoas do deserto ao Monte das
Oliveiras. Este impostor pretendia que sob suas ordens cairiam os muros
Atos (Simon J. Kistemaker) 1066
de Jerusalém. Tentava derrocar a guarnição da Fortaleza Antônia e
transformar-se num tirano. Mas o governador Félix ouviu de seu
levantamento e despachou sua cavalaria. Morreram numerosos judeus e
outros tantos foram feitos prisioneiros (cf. At 5:36). O egípcio e uns
poucos seguidores conseguiram escapar. 1371
e. “levou quatro mil assassinos para o deserto”. A discrepância nas
cifras que Josefo apresenta e as de Atos provavelmente tenha sua raiz
num erro de algum escriba. Nos antigos manuscritos, os números eram
expressos em formas abreviadas de letras, pelo que no grego um D
maiúsculo (D) é igual a quatro e um L maiúsculo (L) representa trinta.
No grego, a diferença é só um pequeno risco de lápis. 1372
Durante a administração do governador Félix, um grupo terrorista
conhecido como os sicarii levou-se a cabo os assassinatos seletivos de
líderes judeus amigos dos romanos. Estes assassinos derivam seu nome
de sica (adaga) que eles escondiam entre suas vestes amplas. 1373
Especialmente durante os festivais judeus, eles se misturavam entre a
multidão, atacavam velozmente os seus oponentes, juntavam os
enfermos, e assim escapavam de ser descobertos.
Não é estranho que o comandante queria conhecer a identidade de
Paulo. Percebe que por seu aspecto, este não era um assassino mas uma
pessoa educada do estrangeiro.
39. Respondeu-lhe Paulo: Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade
não insignificante da Cilícia; e rogo-te que me permitas falar ao povo.
De pé nos degraus e com uma agitada multidão no Átrio dos
gentios, Paulo sabiamente se abstém de dar uma longa explicação sobre
quem era ele. Simplesmente disse que é judeu nascido em Tarso, na
província da Cilícia. E, à maneira de esclarecimento, acrescenta, “natural
de Tarso, cidade não insignificante da Cilícia”. O comentário de Paulo

1371
Josefo Guerra Judaica 2.13.5 [261–63]; Antiguidades 20.8.6 [169–72].
1372
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 277.
1373
Josefo Antiguidades 20.8.10 [186]. Veja-se Schürer, History of the Jewish People, vol. 1, p. 463;
Terence L. Donaldson, “Zealot”, ISBE, vol. 4, p. 1178.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1067
não deixava de ter sua importância. Tarso era a capital da Cilícia (At
9:11; 22:3; 23:34) e cidade universitária da posição de Atenas. Era
conhecida como a sede da escola dos filósofos estoicos. 1374
O comandante, entretanto, não se impressiona principalmente pela
afirmação de Paulo de que é oriundo de uma cidade não insignificante da
Ásia Menor. Mas quando Paulo, então, revela que é um cidadão romano,
o oficial fica impressionado e informa a Paulo que ele tinha pago uma
forte soma de dinheiro para obter sua cidadania (At 22:28). Paulo afirma
que ele nasceu cidadão romano.
Paulo lhe pede permissão para dirigir-se à multidão. Ao fazê-lo,
identifica-se com o povo que só momentos antes tinha procurado matá-
lo. Falar com esta multidão revoltosa demonstra firmeza e caráter. Por
isso, o pedido ganha o respeito do comandante, que lhe concede a
permissão.
40. Tendo recebido permissão do comandante, Paulo levantou-se na
escadaria e fez sinal à multidão. Quando todos fizeram silêncio, dirigiu-se
a eles em aramaico [NVI].
Quando Paulo recebe permissão para falar com a multidão, ele lhes
acena (veja-se At 12:17; 13:16; 19:33). E a multidão, vendo-o, guarda
gradualmente silêncio e se dispõe a escutar o que tem a dizer lhes.
Paulo demonstra tato e habilidade ao dirigir-se à multidão em
aramaico, a língua vernácula do povo judeu. Quer que conheçam seus
antecedentes, sua educação, sua conversão e seu chamado. Por tal
motivo, comunica-se na linguagem do povo para ganhar sua confiança.
Usa esta oportunidade para lhes falar de Jesus.

1374
Refira-se a E. M. Blaiklock, Cities of the New Testament (Westwood, N.J.: Revell, 1965), p. 21;
Ramsay, St. Paul the Traveller, pp. 31–32; e veja-se Colin J. Hemer, “Tarsus”, ISBE, vol. 4, pp. 734–
36.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1068

Palavras, frases e construções gregas em At 21:37–40


Versículo 37
εἰ — quando esta partícula apresenta uma pergunta direta, não
precisa ser traduzida (veja-se At 19:2).
γινώσκεις — neste contexto, o verbo saber ou conhecer quer dizer
“entender”. No entanto, Lake e Cadbury afirmam que o infinitivo
presente λαλεῖν deve ser agregado depois de γινώσκεις: “Você sabe falar
grego?” 1375

Versículos 39–40
μὲν … δέ — note-se o contraste neste versículo. Paulo responde a
pergunta do comandante com a partícula μέν, e faz uma pergunta com a
partícula δέ.
σιγῆς — a construção absoluta genitiva: “quando houve um grande
silêncio”. Lucas corrobora esta afirmação no seguinte capítulo, quando
diz: “guardaram ainda maior silêncio” (At 22:2).

Resumo de Atos 21
Depois de despedir-se dos anciãos efésios em Mileto, Paulo e seus
acompanhantes abordam o navio e se dirigem a Pátara, via Cós e Rodes.
Dali, atravessam Tiro, onde permanecem uma semana com os cristãos.
Estes crentes insistem com Paulo para que não vá a Jerusalém, mas ele
lhes diz que o Espírito o obriga ir. Antes de seguir viagem, oram juntos
na praia. Paulo e seus associados sobem ao barco e navegam a
Ptolemaida e Cesareia. Em Cesareia se hospedam em casa de Filipe, o
evangelista, cujas quatro filhas profetizam.

1375
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 276.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1069
O profeta Ágabo viaja da Judeia a Cesareia com uma profecia para
Paulo. Toma o cinto deste, amarra-se com ele as mãos e os pés, e diz que
os judeus em Jerusalém atarão assim ao dono daquele cinto e o
entregarão aos gentios. Mesmo quando com lágrimas seus amigos rogam
que não vá a Jerusalém, Paulo está decidido a ir, pelo nome de Jesus. Ele
e seus amigos deixam Cesareia, passam uma noite na casa de Mnasom, e
chegam a Jerusalém no dia seguinte.
Os cristãos em Jerusalém dão calorosas boas-vindas a Paulo, quem
se reúne com Tiago e os anciãos da igreja um dia depois de sua chegada.
Informa-lhes tudo o que Deus tem feito através de seu ministério. Os
anciãos advertem-no dos rumores que circulam, que ele ensina os judeus
da dispersão que não circuncidassem seus meninos. Dizem-lhe que
pague os gastos a quatro homens que fizeram um voto de nazireus. Ao
fazê-lo, dizem-lhe, todos saberão que os rumores são falsos.
Paulo segue o conselho dos anciãos e se submete aos ritos de
purificação no templo. Alguns judeus da província da Ásia o veem ali e
o agarram. Ruidosamente pedem ajuda, dizendo que Paulo contaminou o
templo. Arrastam-no para fora do templo e tentam matá-lo. O
comandante romano recebe relatório que toda a cidade de Jerusalém está
conturbada. Acompanhado de uns duzentos soldados, o comandante
prende Paulo e manda prendê-lo com duas cadeias. Quando vão subindo
as escadas para o quartel, Paulo lhe pede permissão para dirigir-se às
pessoas. Quando o comandante lhe concede a permissão, dirige-se a eles
em aramaico, sua língua materna.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1070

ATOS 22
EM JERUSALÉM E EM CESAREIA, parte 2 (At 22:1–30)
Embora a audiência a que Paulo se dirige dos degraus da Fortaleza
Antônia é judia, está dividida entre cristãos e não cristãos. Ele sabe que
ambos os grupos são zelosos da lei (At 21:20). E também sabe que em
Jerusalém tanto judeus como cristãos pensam que ele ensina contra a
raça judaica, contra a lei e o templo (At 21:28). Ele quer dizer a esta
multidão que ele é um deles quanto à raça, educação, e, até onde os
cristãos estão preocupados, à conversão. E deseja informá-los a respeito
de sua missão como apóstolo aos gentios.
As acusações contra ele são muita parecidas com as que foram
feitas contra Estêvão, quem foi acusado de falar contra Deus, contra a lei
e o templo (At 6:11–14). Estêvão se defendeu a si mesmo traçando a
história de Israel para mostrar que as acusações eram infundadas; Paulo
lhes conta sua história pessoal para provar a genuinidade de suas raízes e
sua devoção a seu Senhor. Em seu discurso, evita absolver-se da
acusação de profanar o templo. Pelo contrário, o clímax de suas palavras
produz-se quando faz referência à ordem divina de trabalhar entre os
gentios. 1376
Paulo se dirige à multidão em aramaico, a língua vernácula do povo
judeu. Por seus escritos, inferimos que Lucas entendia suficientemente
bem o aramaico para traduzir o discurso de Paulo ao grego. Além disso,
estava informado da história de Paulo, a qual, como seu companheiro de
viagem, ele tinha ouvido várias vezes. Portanto, não encontra dificuldade
em reconstruir o discurso e apresentar seu conteúdo com precisão.

1376
Consulte-se Martin Dibelius, Studies in the Acts of the Apostles (Londres: SCM, 1956), p. 160.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1071

b. A educação (At 22:1–5)

1. Irmãos e pais, ouvi, agora, a minha defesa perante vós.


Os judeus, que só momentos antes tinham pensado em matá-lo,
agora o escutam dirigir-se a eles respeitosamente como irmãos e pais.
Para sua surpresa, estabelece relação com eles, não só por falar o
aramaico, mas também por dizer que é um filho do povo judeu. Mostra-
lhes respeito ao usar a palavra pais (veja-se At 7:2); chama-os irmãos e
pais, e lhes pede que escutem suas palavras de explicação.
Pede aos reunidos que escutem “sua defesa”, e com o uso deste
termo, por implicação está transformando a situação num caso para os
tribunais. No entanto, não estabelece as acusações contra ele e passa por
alto as acusações. A construção grega (verbo e substantivo) traduzida
aqui por “defesa” aparece de novo nos discursos que faz diante de Félix
e diante de Festo e Agripa. 1377 Em outras palavras, Paulo definitivamente
considera seu discurso uma defesa de sua obra, que é a proclamação do
evangelho aos gentios. Não é uma defesa diante do comandante romano,
não obstante sendo seu prisioneiro, mas uma justificação de sua obra na
presença de seu próprio povo, os judeus. 1378
2, 3. Quando ouviram que lhes falava em aramaico, ficaram em
absoluto silêncio. Então Paulo disse: Sou judeu, nascido em Tarso da
Cilícia, mas criado nesta cidade. Fui instruído rigorosamente por
Gamaliel na lei de nossos antepassados, sendo tão zeloso por Deus quanto
qualquer de vocês hoje [NVI].
Notemos os seguintes pontos:

1377
Veja-se At 24:10; 25:8, 16; 26:1, 2, 24. Veja-se também Rm. 2:15; 1Co. 9:3; 2Co. 12:19; Fp. 1:7,
16; 2Tm. 4:16.
1378
Consulte-se F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, série Kommentaar op het Nieuwe
Testament, 2 vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 282. No entanto, Jacob Jervell crê
que o objeto da defesa é a pessoa de Paulo mais que sua missão aos gentios, da comunidade cristã, ou
do evangelho. “Paulus-der Lehrer Israels. Zu den apologetischen Paulusreden in der
Apostelgeschichte”, NovT 10 (1968); 164–90.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1072
a. A linguagem. Paulo sabiamente se dirige à multidão em
aramaico, a língua vernácula de Israel. Procura estabelecer um vínculo
com o povo e, quando eles ouvem palavras aramaicas saindo de seus
lábios, o escutam. Creem que um judeu da dispersão que fala um
aramaico fluido merece ser ouvido. Lucas descreve o desenvolvimento
da cena dizendo “ficaram em absoluto silêncio”. Paulo habilmente lhes
tende a mão e logo começa seu discurso.
b. A criação. O primeiro assunto que Paulo toca é sua identidade
(veja-se Fp 3:5). Chama-se judeu e acrescenta que nasceu em Tarso (At
9:11; 21:39), cidade capital da província da Cilícia. Diz-lhes que é um
judeu da dispersão, mas imediatamente acrescenta que se criou na cidade
de Jerusalém. Para ser preciso, seus pais se trasladaram de Tarso para
Jerusalém quando ele era criança (cf. At 26:4). 1379 O verbo criar que
aparece no versículo 3, refere-se à criação mental e física de uma
criança, 1380 mas difere do verbo educar. Paulo cresceu falando aramaico
e possivelmente grego, porque “os estudantes judeus estudavam grego
em Jerusalém. O vocabulário grego e os conceitos encontraram uma
posição firme no uso de vários rabinos”. 1381
c. A educação. Em Jerusalém, continua dizendo Paulo: “fui
instruído rigorosamente por Gamaliel na lei de nossos antepassados”.
Seu mestre foi Rabban Gamaliel, o Velho, quem foi muito reverenciado
(veja-se At 5:34–39). Também foi um mestre com o maior respeito pela
lei, até o ponto que depois de sua morte, os rabinos acostumavam dizer:

1379
W. C. van Unnik, Tarsus or Jerusalem: The City of Paul’s Youth, trad. por George Ogg (Londres:
Epworth, 1962), p. 44.
1380
Bauer, p. 62. A pontuação neste versículo é decisiva se distinguirmos entre os verbos criar e
educar. Umas poucas traduções, no entanto, tomam os verbos como sinônimos: “criado nesta cidade
aos pés de Gamaliel, educado segundo a maneira estrita da lei de nossos pais” (RSV; e veja-se NKJV,
ASV).
1381
Everett F. Harrison, “Acts 22:3—A Test Case for Luke’s Reliability”, em New Dimensions in New
Testament Studies, ed. Richard N. Longenecker e Merrill C. Tenney (Grand Rapids: Zondervan,
1974), p. 256. Veja-se também Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus
Christ (175 B.C.–A.D. 135, rev. e ed. por Geza Vermes e Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark,
1973–87), vol. 2, p. 78.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1073
“Na época em que Rabban Gamaliel, o Velho morreu, cessou o respeito
pela Torah; e a pureza e a abstinência morreram ao mesmo tempo”. 1382
Quando Paulo recebeu sua educação, ele e seus condiscípulos se
assentavam no piso enquanto seu mestre se assentava numa plataforma.
Literalmente, sentavam-se aos seus pés.
Ao mencionar Paulo o nome de Gamaliel e revelar que tinha sido
educado por este renomado mestre da lei, suas palavras são eficazes. Os
judeus o veem como um fariseu e um doutor da lei de seus antepassados
espirituais (veja-se Gl 1:14).
d. O zelo. Paulo continua, e chama-se um zeloso para com Deus e,
acrescenta: “quanto qualquer de vocês hoje”. A palavra zeloso tem a
conotação de “perseguidor”. Paulo reflete sobre o zelo que tinha antes de
sua conversão, quando perseguia a igreja e cria que estava fazendo um
serviço a Deus (Fp 3:6; cf. Jo 16:2). Como escreve a respeito dos judeus
em sua epístola aos Romanos: “Porque eu testifico a eles que têm um
zelo por Deus, mas um zelo que não está baseado no conhecimento” (At
10:2).1383 É direto e franco, afirmando que os judeus a quem está se
dirigindo, tanto cristãos como não cristãos, têm o mesmo tipo de zelo
doentio. Desdobraram seu zelo para com Deus momentos antes, quando
queriam matar Paulo no Átrio dos gentios. Paulo não os está acusando,
porque sabe que seu zelo é produto da ignorância (veja-se At 3:17).
4. Persegui os seguidores deste Caminho até a morte, prendendo
tanto homens como mulheres e lançando-os na prisão [NVI].
Agora Paulo lembra seu passado pecador (veja-se At 8:3; 9:2). Por
um tempo, foi um perseguidor que procurou destruir a igreja (Gl 1:23).
Mas note-se que usa a frase seguidores deste Caminho para descrever os
membros da igreja. Volta a este nome porque estava entre as primeiras
designações para os crentes. Quer que seus ouvintes percebam que lhes

1382
Misnah Sota 9.15. Consulte-se SB, vol. 2, p. 763; Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, p.
368.
1383
Hans-Christoph Hahn, NIDNTT, vol. 3. p. 1167.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1074
está falando de acontecimentos que tiveram lugar faz mais de vinte anos
(At 9:2; e cf. At 19:9, 23; 24:14–22).
“Persegui os seguidores deste Caminho até a morte”. O mesmo que
os judeus que o escutavam tinham procurado fazer contra ele, ele fez
contra os primeiros cristãos. Honesta e abertamente lhes confessa seu
pecado de matar tanto homens como mulheres inocentes. Alguns
eruditos são da opinião que Paulo consentiu só por ocasião da morte de
Estêvão (At 8:1a). 1384 Mas isso dificilmente seria correto se
considerarmos a explicação adicional diante do rei Agripa: “E assim
procedi em Jerusalém. Havendo eu recebido autorização dos principais
sacerdotes, encerrei muitos dos santos nas prisões; e contra estes dava o
meu voto, quando os matavam” (At 26:10). Paulo diz que ele capturava
tanto a homens como a mulheres e os colocava nos cárceres. Esta é uma
referência direta à perseguição que se seguiu por ocasião da morte de
Estêvão. Lucas informa que por esse tempo, Paulo ia de casa em casa e
arrastava à prisão tanto a homens como a mulheres (At 8:3).
Na igreja, homens e mulheres eram participantes ativos, como se
torna evidente nas saudações que Paulo transmite à igreja em Roma (Rm
16:3–23; veja-se também Fp 4:2–3; Cl 4:15; Fm 1–2); no templo e nas
sinagogas os homens eram proeminentes em assuntos religiosos. Porém,
quando Paulo agia como um fanático cego, não fazia distinção e
mandava à prisão homens e mulheres.
5. Por certo, até o sumo sacerdote e todo o concílio de anciãos podem
testificar a meu favor de que recebi cartas deles para os irmãos em
Damasco. Fui ali para trazer para Jerusalém os que fizesse prisioneiros
para castigá-los [trad. Kistemaker].
a. “Por certo, até o sumo sacerdote”. Admitindo que Paulo havia
deixado Jerusalém fazia mais de duas décadas, algumas pessoas na
multidão poderiam lembrar os tempos quando o sumo sacerdote e o
concílio de anciãos o comissionaram para perseguir os cristãos em outras

1384
Refira-se, p.ej., a Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 279.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1075
cidades. Sabemos que quando se refere ao sumo sacerdote, tem em
mente a Caifás, quem serviu em tal capacidade de 18 a 36 d.C. (veja-se o
comentário sobre At 4:6 e 9:1). Pelo relato de Lucas sabemos que no
momento em que se dirige à sua audiência judaica, o sumo sacerdote era
Ananias, um homem excepcionalmente cruel (At 23:2). Supomos que
esta pessoa, que pertencia a uma das famílias de mais alta posição
sacerdotal, bem pôde ter estado presente quando Paulo perseguia os
cristãos.
b. “E todo o concílio de anciãos pode testificar”. A expressão
concílio de anciãos é outro nome para o Sinédrio, o qual aprovou a
missão que Caifás deu a Paulo (cf. Lc 22:66). 1385 O Sinédrio exerceu sua
autoridade de enviar Paulo a Damasco para prender os cristãos judeus e
trazê-los presos diante do sumo sacerdote. 1386 Mesmo quando os líderes
atuais do Sinédrio não dessem fé da anterior posição de Paulo, os
registros indicariam que numa ocasião ele esteve ao serviço do sumo
sacerdote.
c. “Recebi cartas deles para os irmãos em Damasco”. Paulo diz que
foi a Damasco com cartas autorizadas pelo Sinédrio e dirigidas aos
irmãos dali. Especificamente, estes irmãos eram os principais nas
sinagogas de Damasco (At 9:2); com outros judeus posteriormente
tramaram matá-lo (At 9:23).
d. “Fui ali para trazer para Jerusalém os que fizesse prisioneiros
para castigá-los”. Os cristãos que foram expulsos de Jerusalém depois da
morte de Estêvão viajaram para a Judeia, Samaria, Fenícia, Antioquia, e
Chipre (At 8:1b; 11:19). Supomos que também se estabeleceram em
Damasco. Porém, nem todos os crentes em Damasco eram refugiados,
porque o devoto Ananias recebeu informes a respeito da perseguição em
Jerusalém (At 9:13). Paulo lembra que ele ia em caminho para Damasco
para prender os cristãos e trazê-los presos a Jerusalém, onde deviam ser

1385
Lothar Coenen, NIDNTT, vol. 1, pp. 196–97. Os cristãos também usavam o termo (1Tm. 4:14).
1386
Veja-se também Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, pp. 198, 218.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1076
castigados. Usa o tempo imperfeito do verbo viajar para indicar que não
foi possível completar sua missão.

Considerações práticas em At 22:1–5


Versículos 1–3
Quando proclama ou ensina a Palavra de Deus, o pastor deve fazê-
lo com tato e diplomacia. Embora seja difícil ajustar-se a uma cultura ou
situação na qual Deus o colocou, deve aprender a dirigir-se às pessoas
em palavras que toquem seus corações. Para comunicar efetivamente o
evangelho, deve esforçar-se em obter um ponto de contato com sua
audiência.

Versículos 4–5
Através de seu Evangelho, Lucas não mostra parcialidade;
menciona tanto homens como mulheres (p. ex. Zacarias e Elizabete, José
e Maria, Simeão e Ana). Em Atos, continua o tema da igualdade: as
mulheres e os apóstolos (At 1:13–14), Ananias e Safira (At 5:1–10),
Eneias e Dorcas (At 9:32–42), Áquila e Priscila (At 18:2), Félix e
Drusila (At 24:24), Agripa e Berenice (At 25:23).
O fato de Lucas mencionar o relato da conversão de Paulo três
vezes, é prova suficiente de que Paulo livremente admitiu sua
participação na perseguição à igreja. Quando chegou a ser um crente,
percebeu que sofreria perseguição pelo nome do Senhor Jesus Cristo.
Mesmo quando esta perseguição veio principalmente da parte dos
judeus, ainda assim continua chamando-os irmãos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1077
Palavras, frases e construções gregas em At 22:1–5
Versículos 1–2
μου — este pronome não acentuado deve ser tomado com o
substantivo ἀπολογίας (defesa) e não com o verbo ἀκούω (ouvir). A
posição do pronome é devida ao costume no grego de colocar os
pronomes não acentuados tão perto quanto possível no começo da
frase. 1387
Ἑβραΐδι — embora a palavra signifique “hebraico”, o termo no
contexto refere-se à língua aramaica falada na Palestina (veja-se At
21:40; 26:14).

Versículo 3
τῆς Κιλικίας — este substantivo (“Cilícia”) é um genitivo descritivo
de lugar. 1388
ἀνατεθραμμένος — o particípio passivo perfeito de ἀνατρέφω (eu
crio) revela que Paulo passou sua juventude em Jerusalém. O tempo
perfeito mostra ação duradoura.
ὑπάρχων — o particípio no tempo presente é um substituto para o
gerúndio de εἰμί (eu sou).

Versículo 5
μαρτυρεῖ — o contexto exige o uso do verbo auxiliar poder, quer
dizer, “o sumo sacerdote pode testificar”. Testemunhos ocidentais
acrescentam o substantivo Ανανίας (Ananias) depois do termo sumo

1387
Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#473.1.
1388
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadmann, 1934), p. 497.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1078
sacerdote, mas a inserção está influenciada por uma forma derivada do
capítulo seguinte (At 23:2).
ἄξων — o particípio futuro de ἄγω (eu dirijo, trago) expressa
propósito.

c. A conversão (At 22:6–11)

6, 7. Quando eu ia no caminho e me aproximava de Damasco, pelo


meio-dia brilhou do céu repentinamente em volta de mim uma grande luz,
e caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: Saulo, Saulo, por que me
persegues? [TB]
Paulo conta a experiência de sua conversão; este relato (At 22:6–
11) difere da narração anterior (At 9:3–9) só em detalhes menores. Aqui
diz que ia no caminho a Damasco, e quando se aproximava da cidade por
volta do meio-dia, de repente viu uma luz muito brilhante que vinha do
céu e que resplandeceu ao redor dele. O agregado neste relato é a
referência ao tempo: “pelo meio-dia”.
Quando Paulo fala de uma luz brilhante que resplandeceu do céu,
está dizendo à sua audiência judaica que o que experimentou foi um
encontro divino. Pelas Escrituras, os judeus sabiam que a luz procede de
Deus (Sl. 4:6; 44:3; 89:15) e que é uma forma que Deus emprega para
revelar-Se a Si mesmo (veja-se, p. ex., Êx 13:21–22; Ne 9:12; Sl. 104:2;
Dn 2:22; Hc 3:4). 1389 De fato, a luz da autorrevelação de Deus substitui a
luz criada. Em seu discurso diante de Agripa, Paulo diz que a luz que o
envolveu era mais brilhante que a luz do sol (At 26:13).
Paulo afirma que se converteu ao cristianismo não porque os
crentes o tenham convencido, mas porque Jesus o deteve perto de
Damasco. Lembra que caiu ao solo e ouviu uma voz que se dirigia a ele
repetindo duas vezes seu nome hebraico, Saulo. Por seu conhecimento
da Escritura, os judeus sabiam que quando Deus chama pessoas, com

1389
Hans-Christoph Hahn e Colin Brown, NIDNTT, vol. 2, pp. 491, 495.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1079
frequência repete seu nome. Por exemplo, da sarça ardendo, Deus disse:
“Moisés, Moisés” (Êx 3:4), e no tabernáculo Deus chamou o menino
Samuel e disse: “Samuel, Samuel” (1Sm 3:10). Paulo, portanto, indica
que ele tinha sido chamado divinamente. A voz lhe perguntou: “Por que
me persegues?”
8. E eu perguntei: “Quem és tu, Senhor?” E ele me respondeu: “Eu
sou Jesus, de Nazaré, a quem tu estás perseguindo.” [RSV]
Enquanto estava cegado pela luz, caído na terra, e ouvindo uma voz
celestial que lhe fazia uma pergunta, Paulo lembra que manteve sua
mente clara. A voz que se dirigiu a ele perguntou por que estava fazendo
vítima a quem lhe falava. Teve que responder pedindo à voz que se
identificasse. Assim, perguntou: “Quem és tu, Senhor?” E a resposta
surpreendente veio a ele: “Eu sou Jesus, de Nazaré, a quem tu estás
perseguindo”. Note-se que em seu discurso aos judeus, Paulo menciona
o substantivo esclarecedor Nazaré, que não aparece nos outros relatos
(At 9:5; 26:15). A apelação Jesus, de Nazaré aparece frequentemente em
Atos, e é o nome pelo qual Jesus era conhecido pelos judeus crentes e
não crentes. 1390
Os judeus que escutam Paulo sabem que Jesus o chamou do céu e
lhe disse duas vezes que Paulo O estava perseguindo. Paulo não
prossegue com mais identificação de Jesus, mas deixa a impressão clara
que Jesus é divino. Os judeus também se inteiram pelo diálogo entre
Jesus e Paulo que Jesus Se identifica completamente com os crentes.
Paulo continua seu relato e diz:
9. Os que estavam comigo viram a luz, sem, contudo, perceberem o
sentido da voz de quem falava comigo.
Seus companheiros de viagem viram a brilhante luz e o viram caído
no solo. Mas embora tenham observado o fenômeno, a luz não os deixou
cegos como o fez com Paulo. Além disso, ouviram uma voz que falava
porém não entenderam o que dizia, mesmo quando a voz dirigiu-se a

1390
Veja-se At 2:22; 3:6; 4:10; 6:14; 22:8; 26:9; e refira-se a At 24:5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1080
Paulo em aramaico (At 26:14). A voz foi ininteligível para eles. Ficaram
estupefatos pelo medo (At 9:7; para uma análise, veja-se o
comentário). 1391 Não foram eles, e sim Paulo quem entendeu as palavras
de Jesus que o levaram à conversão.
10. Então, perguntei: que farei, Senhor? E o Senhor me disse:
Levanta-te, entra em Damasco, pois ali te dirão acerca de tudo o que te é
ordenado fazer.
O relato anterior (At 9:5–7) difere levemente da descrição que
Paulo dá diante de sua audiência judaica, porque lhes proporciona
informação adicional. Primeiro, diz-lhes que os homens que o
acompanhavam “viram a luz”. Logo, diz mais do diálogo com Jesus.
Perguntou-Lhe: “Que farei, Senhor?” Esta pergunta e a oração que
introduz a resposta de Jesus não aparecem no primeiro relatório de Paulo
de sua conversão. E por último, as instruções que Jesus lhe deu são mais
detalhadas na segunda versão que na primeira. A cláusula tudo o que te é
ordenado foi acrescentada.
Três vezes em dois versículos (vv. 8, 10), Paulo emprega o termo
Senhor, com o que manifesta seu respeito por Jesus. Ao mesmo tempo,
numerosas pessoas entre os que lhe escutam eram judeus cristãos (cf. At
21:20). Paulo sabe que ele e eles compartilham um costume para dirigir-
se a Jesus. Mas para não provocar aos judeus não crentes, evita usar o
nome Jesus e opta pela expressão Senhor.
O Senhor está totalmente no controle da chamada e conversão de
Paulo, pois já tem feito acertos para uma tarefa para ele. A cláusula tudo
o que te é ordenado fazer significa que Jesus já planejou uma carreira de
serviço para Paulo.1392 O tempo do verbo grego indica que os arranjos
foram feitos no passado, mas foram postos a operar no tempo da
conversão de Paulo. Quer dizer, Jesus o tinha escolhido para ser Seu

1391
Os Textos ocidental e majoritário têm uma ampliação. Depois das palavras viu a luz, acrescentam,
“e tiveram medo”. Os tradutores devem decidir se a frase foi acidentalmente omitida do texto ou se foi
acrescentada. A maioria se inclina pela segunda possibilidade.
1392
Consulte-se J. I. Packer, NIDNTT, vol. 1, p. 476.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1081
servo e testemunha (At 26:16) e o enviaria como apóstolo aos gentios
(At 9:15).
11. Tendo ficado cego por causa do fulgor daquela luz, guiado pela
mão dos que estavam comigo, cheguei a Damasco.
Paulo continua seu relato e descreve sua cegueira por causa do
resplendor da luz que o rodeou (At 9:3). Neste versículo, informa
brevemente de sua cegueira e de sua necessidade de depender de seus
companheiros de viagem. A descrição anterior de Lucas é a mesma em
significado, salvo pequenas variações (At 9:8). Mas Lucas diz que Paulo
esteve cego durante três dias e que durante esse tempo, jejuou (At 9:9).
Paulo mesmo elimina este detalhe de sua narração. Ser golpeado pela
cegueira, segundo as Escrituras, era uma das maldições de Deus sobre os
desobedientes (Dt 28:15, 28–29). Mas isto não se aplica a Paulo, quem
em Damasco recebe mais instrução do Senhor.

Palavras, frases e construções gregas em At 22:6–11


Versículo 6
μοι — “para mim”. O caso é um dativo de vantagem, seguido pelo
gerúndio descritivo πορευομένῳ (indo) e ἐγγίζοντι (aproximando-se).
περὶ μεσημβρίαν — veja-se o comentário sobre At 8:26.

Versículo 7
ἤκουσα φωνῆς — “A regra clássica do genitivo para as pessoas a
quem escutamos, e o acusativo para as pessoas ou coisas a respeito das
quais ouvimos, é aplicada ainda mais sistematicamente no Novo
Testamento], onde o acusativo tende a substituir o mais comum genitivo
clássico, até no caso de ouvir um som, embora o último ainda
ocorra”. 1393

1393
Gerhard Kittel, TDNT, vol. 1, p. 216.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1082
Versículo 10
τί ποιήσω — o subjuntivo deliberativo em lugar do indicativo
futuro: “O que tenho que fazer?”
ἀναστάς — embora o particípio com um verbo finito normalmente
significa “preparar-se”, para Paulo prostrado no solo a palavra tem uma
conotação literal: “levanta-te”.
τέτακται — de τάσσω (eu escolho), o perfeito mostra uma ação no
passado com resultados perduráveis para o presente.

Versículo 11
ἀπό — no contexto, esta preposição tem um sentido causal: “pelo
resplendor da luz”.

d. A restauração (At 22:12–16)

12, 13. Um homem chamado Ananias, piedoso segundo a lei e muito


respeitado por todos os judeus que ali viviam, veio ver-me e, pondo-se
junto a mim, disse: ‘Irmão Saulo, recupere a visão’. Naquele mesmo
instante pude vê-lo [NVI].
Mais uma vez, Paulo é mais conciso que Lucas em seu relato a
respeito de Ananias. Lucas descreve a visão de Ananias na qual Jesus lhe
deu a informação necessária a respeito de Paulo (At 9:10–16). Por
contraste, Paulo repassa o que ocorreu de seu próprio ponto de vista.
Lembra que o visitou um certo homem chamado Ananias. O nome
Ananias era relativamente comum no judaísmo, como é faz evidente em
Atos (veja-se At 5:1; 23:2) e na literatura apócrifa (que com frequência
inclui o nome com diferentes grafias).1394 Sagazmente, Paulo diz que
Ananias era um homem “piedoso segundo a lei e muito respeitado por
todos os judeus que ali viviam”. Não o chama um discípulo ou seguidor

1394
1 Ed. 5:16; 9:21, 29, 43, 48; Tobe. 5:12; Canto dos três jovens 66.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1083
do Caminho. Pelo contrário, descreve-o em termos que soam gratamente
aos ouvidos de uma audiência judaica e com a intenção de pôr todo o
episódio da conversão numa luz favorável. 1395
Ananias guardava a lei devotamente diz Paulo, pelo que na cidade
de Damasco era altamente respeitado pelos residentes judeus. Põe ênfase
neste ponto para mostrar que Ananias, mesmo sendo um cristão, era um
judeu que respeitava a lei, em boa relação com seus compatriotas. Diga-
se de passagem, num versículo posterior, Paulo descreve a si mesmo
como um judeu tradicional que adorava no templo (v. 17).
Lembra que Ananias veio e “pondo-se junto a mim”. Passa por alto
o temor que devia vencer Ananias ao se aproximar do perseguidor dos
crentes. Pelo contrário, descreve o seu visitante como alguém que lhe
diz: “Irmão Saulo, recupere a visão”, e ele pôde ver novamente. Visto
que conta a história num contexto judaico, a palavra irmão insinua a
estreita relação entre dois judeus. Além disso, a audiência percebeu que
quando Ananias lhe disse que recuperasse a visão, ocorreu um milagre.
Pela profecia de Isaías, eles sabiam que o Messias que viria abriria os
olhos aos cegos (Is 35:5). E durante o Seu ministério, Jesus curou
frequentemente os cegos (p. ex., Mt 9:28–30; 11:5; 20:30–34). Logo,
através das palavras de Ananias, Jesus restitui a vista a Paulo. Por
questões apologéticas, entretanto, Paulo omite as palavras que Lucas
inclui em seu primeiro relatório da conversão: “Então Ananias foi,
entrou na casa, pôs as mãos sobre Saulo e disse: “Irmão Saulo, o Senhor
Jesus, que lhe apareceu no caminho por onde você vinha, enviou-me
para que você volte a ver e seja cheio do Espírito Santo”” (At 9:17,
NVI). A seguir Paulo usa uma típica frase judaica, “o Deus de nossos
pais”, o que indiretamente embora de forma clara refere-se ao Messias.
14, 15. Então ele disse: O Deus dos nossos antepassados o escolheu
para conhecer a sua vontade, ver o Justo e ouvir as palavras de sua boca.

1395
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 280.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1084
Você será testemunha dele a todos os homens, daquilo que viu e ouviu
[NVI].
Recitando as palavras de Ananias, Paulo explica o que o Senhor
resolveu que fizesse. Ao empregar a expressão o Deus dos nossos
antepassados, continua afirmando sua identidade judaica. Demonstra-
lhes que o Deus que tratou com tanta benevolência os seus antepassados
é o próprio Deus que o escolheu e o chamou. 1396
A expressão é uma vívida lembrança da ocasião quando Moisés
parou diante da sarça ardendo no deserto do Sinai e escutou Deus lhe
dizer: “O Senhor, o Deus dos seus antepassados, o Deus de Abraão, o
Deus de Isaque, o Deus de Jacó, enviou-me a vocês” (Êx 3:15, NVI).
Pedro também usou a expressão em seu sermão no Pórtico de Salomão
(At 3:13) e em seu discurso diante do Sinédrio (At 5:30). Agora Paulo
usa estas palavras de Ananias para convencer sua audiência que o Deus
de Israel o tinha escolhido (veja-se At 26:16). Deus apartou a Paulo
desde seu nascimento, como ele mesmo o diz (Gl 1:15). Portanto, Paulo
reconheceu que em sua vida Deus estava levando a cabo Seu plano.1397
Qual era este plano?
a. “Conhecer a sua vontade”. Para os judeus, conhecer a vontade de
Deus significava obedecer os Seus preceitos. Eles entendiam que quem
quer que conhecesse a vontade de Deus e desobedecesse, recebe um
justo castigo. Melhor seria para tal pessoa que nunca tivesse conhecido a
vontade de Deus. 1398 Paulo tinha procurado fazer um serviço a Deus
perseguindo os cristãos, mas Deus lhe disse que sua divina vontade era
totalmente diferente. Paulo devia ver a vontade de Deus com relação ao
Justo.

1396
Refira-se a Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p.
89.
1397
Leon Morris, New Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, Academic Books, 1986), p.
173.
1398
Refira-se a Lc. 12:47; Rm. 2:12; Tg. 4:17; 2Pe. 2:21.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1085
b. “Ver o Justo”. O termo Justo é um título messiânico que tem sua
origem nos livros dos profetas. Por exemplo, Isaías diz: “O meu Servo, o
Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos” (Is 53:11).1399 Os
apóstolos reconheceram estas passagens proféticas como messiânicas e
as aplicaram a Jesus. No caminho para Damasco, Paulo viu Jesus
ressuscitado e ouviu a Sua voz.
c. “E ouvir as palavras de sua boca”. De fato, Deus revelou o Justo
a Paulo, mas Jesus lhe deu instruções adicionais. Paulo tinha ouvido uma
mensagem de Jesus fora de Damasco, mas através de Ananias recebeu
outra mensagem. Ao revelar à sua audiência que Jesus tinha falado a
Ananias (At 9:15), evitou usar o nome Jesus.
d. “Você será testemunha dele a todos os homens, daquilo que viu e
ouviu”. Com base em ver e ouvir Jesus, Paulo chegou a ser um apóstolo
(1Co 9:1; cf. 4:20). Quando viu Jesus e ouviu a Sua voz, entendeu a
vontade de Deus: “Você será testemunha dele [Jesus]”. Para Paulo,
então, proclamar a ressurreição de Jesus a todos os homens em todas as
partes chegou a ser equivalente a fazer a vontade de Deus. As palavras
todos os homens são usadas deliberadamente em sentido geral, pela qual
podem referir-se a todos os judeus que viviam na Dispersão. Mas devido
ao fato de que Jesus chamou Paulo para ser apóstolo aos gentios, neste
contexto o termo obviamente inclui a todos.
16. E agora, por que te demoras? Levanta-te, recebe o batismo e lava
os teus pecados, invocando o nome dele.
Paulo não diz que durante três dias jejuou e não pôde ver (At 9:10–
12). Quando recebeu a visão e ouviu a mensagem de Jesus da parte de
Ananias, teve que ser empurrado. Quer dizer, Ananias lhe perguntou
porquê necessitava ainda mais tempo, visto que Paulo mesmo devia fazer

1399
Veja-se também Jr. 23:5; 33:15; Zc. 9:9. Para referências no Novo Testamento, veja-se At. 3:14;
7:52; 1Jo. 2:1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1086
1400
a decisão de seguir a Jesus. Paulo revela que Ananias o instruiu com
relação aos passos que devia dar:
levanta-te
recebe o batismo
lava os teus pecados
invocando o nome dele.
O verbo levanta-te é mais idiomático que literal e significa
“prepara-te [para ser batizado]”. Os judeus conheciam o batismo levítico
e o de João Batista. 1401 O batismo cristão foi demonstrado visivelmente
no Pentecostes, quando três mil judeus creram e foram batizados (At
2:41), e muitíssimas vezes depois.
Quando Pedro respondeu a pergunta da multidão, disse-lhes que
fossem batizados para que seus pecados fossem perdoados no nome de
Jesus Cristo (At 2:38). Igualmente, Ananias instruiu Paulo a ser batizado
com o propósito de purificar-se de seus pecados e que o fizesse
invocando o nome de Jesus. Ao perseguir os cristãos, Paulo tinha
causado dano à igreja de Jesus e consequentemente ao próprio Jesus. A
única forma de receber o perdão de seus pecados era pedir a Jesus que o
perdoasse. Quando Paulo, então, pediu perdão no nome de Jesus Cristo,
em resposta foi batizado nesse nome. 1402 O ato que, em plena
consciência, Paulo realiza ao confessar seu pecado demonstrou sua fé em
Jesus. O rito externo do batismo selou essa união com Cristo. Em anos
posteriores, Paulo disse aos crentes de Corinto que eles haviam sido
lavados, santificados e justificados no nome de Jesus Cristo (1Co 6:11).
Paulo evita usar o nome de Jesus quando informa sobre as palavras
de Ananias. Mas o antecedente mais próximo ao qual a expressão seu
nome exegeticamente pode referir-se é “o Justo”, quer dizer, Jesus
Cristo. Em nenhuma parte de seu discurso aos judeus Paulo usa o nome

1400
Consulte-se James D. G. Dunn, Baptism in the Holy Spirit, Studies in Biblical Theology, 2ª. série
15 (Londres: SCM, 1970), p. 74.
1401
Consulte-se W. H. T. Dau, “Baptism”, ISBE, vol. 1, p. 425.
1402
G. R. Beasley-Murray, NIDNTT, vol. 1, p. 146.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1087
Jesus, com exceção da auto identificação do próprio Jesus (v. 8).
Supomos que a audiência estava inteirada do batismo cristão e entendeu
que Paulo tinha sido batizado.

Palavras, frases e construções gregas em At 22:14–16


Versículo 14
γνῶναι — o conteúdo do ativo aoristo do verbo γινώσκω (eu sei) é
fortalecido pelo significado dos infinitivos aoristos ἰδεῖν (ver) e ἀκοῦσαι
(ouvir).

Versículo 16
βάπτισαι — o imperativo aoristo de βαπτίζω (eu batizo) e o
imperativo aoristo de ἀπόγουσαι (de ἀπολούω, eu lavo) são verbos
meios causativos: “te batize e lava seus pecados”. 1403

e. A missão (At 22:17–21)

17, 18. Quando voltei a Jerusalém, estando eu a orar no templo, caí


em êxtase e vi o Senhor que me dizia: ‘Depressa! Saia de Jerusalém
imediatamente, pois não aceitarão seu testemunho a meu respeito’ [NVI].
Paulo não dá detalhes referentes à sua pregação nas sinagogas de
Damasco (At 9:20–22), sua longa estada no deserto da Arábia (Gl 1:17),
e sua fuga num cesto acima dos muros da cidade de Damasco (2Co
11:33). Não diz nada sobre sua volta a Jerusalém, onde experimentou o
rejeição da parte dos cristãos, que lhe tinham medo, e da parte dos
judeus, que tentaram assassiná-lo (At 9:26–29). Menciona, entretanto,
aspectos de sua vida religiosa que não têm paralelo nem em At 9:26 nem
em At 26:20.

1403
Robertson, Grammar, p. 808.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1088
a. “Quando voltei para Jerusalém, estando eu a orar no templo”.
Paulo fala em termos gerais sem indicar quando voltou para a cidade. 1404
Revela o desenvolvimento sucessivo de tudo o que foi preparado que
[ele] faça” (v. 10). Enquanto ele estava em transe, diz, estava recebendo
instruções adicionais de Jesus.
Note-se que Paulo não põe ênfase no tempo de sua volta. O que
importa para ele neste discurso é que veio ao templo a orar. Introduz este
fato com muita maestria. Espera que seus ouvintes entendam claramente
que ele não pode ser um profanador do templo, porque veio a orar aqui.
b. “Caí em êxtase”. No grego, Lucas usa a palavra ekstasis, da qual
se deriva nossa palavra em português êxtase. Pedro teve uma experiência
enlevada no terraço da casa de Simão em Jope, quando estava orando ao
meio-dia (At 10:9–10), e João estava no Espírito no dia do Senhor (Ap
1:10). Os apóstolos experimentaram êxtase quando suas mentes
chegaram a estar tão concentradas em oração que entraram na presença
de Jesus. Quando isso ocorreu, Jesus lhes deu instruções relacionadas
com seus ministérios individuais. Os apóstolos não estavam sonhando
nem vencidos por fantasias, mas estiveram sempre atentos ao poder de
Deus que era transmitido a eles tanto pela vista como por sons.
c. “Vi o Senhor que me dizia: ‘Depressa, saia de Jerusalém
imediatamente!’.” Uma interpretação literal do grego é simplesmente,
“Vi-o falando comigo”. O pronome o evidentemente se refere a Jesus,
quem se tinha dirigido a Paulo no caminho perto de Damasco. Aqui,

1404
Alguns estudiosos rejeitam a sugestão de que Paulo esteja se referindo à sua primeira visita depois
de sua conversão. Eles dizem isso porque não podem ver um paralelo com outras passagens (At 9:29–
30; Gl. 1:17–2:2). Hans Conzelmann afirma que o transe de Paulo (vv. 17–21) “forma uma variante
concorrente ao relato do chamado em caminho para Damasco”. Acts of the Apostles, trad. por James
Limburg, A. Thomas Kraabel, e Donald H. Juel (1963; Filadélfia: Fortress, 1987), p. 187. Veja-se
também E. P. Blair, quem localiza o transe de Paulo e o chamado aos gentios durante sua visita ao
Concílio de Jerusalém. “Paul’s Call to the Gentile Mission”, BibRes 10 (1965): 19–33.
Mas Paulo provê detalhes adicionais a respeito de sua estada em Jerusalém que indicam que seguiu
a sua experiência de conversão. Por exemplo, o Senhor o manda sair de Jerusalém sem demora porque
os judeus recusam escutar o evangelho. A referência encaixa com o complô dos judeus de matá-lo (At
9:29).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1089
então, temos a confirmação de Paulo que o Senhor que lhe falou perto de
Damasco é o próprio Senhor ressuscitado que lhe aparece em Jerusalém.
O próprio Senhor o está protegendo ao lhe dar instruções pertinentes a
respeito de seu futuro imediato. Ele sabe dos perigos que o espreitam em
Jerusalém, portanto, diz-lhe que deixe a cidade imediatamente.
d. “Pois não aceitarão seu testemunho a meu respeito”. O sujeito
não aparece nesta cláusula, porque Paulo procura suavizar a
recriminação de Jesus de que os judeus em Jerusalém recusavam ouvir as
boas novas de salvação. Porém, na verdade a mensagem de Jesus é uma
exposição incompleta. Expressa um pensamento afirmativo em termos
negativos; o propósito é realçar o efeito das palavras ditas por Jesus. 1405
O que na verdade quer dizer é que os judeus rejeitariam a mensagem de
salvação de Paulo, e, como seus pais muito tempo atrás que perseguiram
os profetas, tentariam tirar a vida de Paulo.
Paulo, o judeu, deseja pregar o evangelho primeiro a sua própria
gente, especialmente aos que residem na cidade de Jerusalém. Por um
período de duas semanas, Paulo falou corajosamente de Jesus, debatendo
com os judeus de fala grega. Mas os judeus rejeitavam o ensino de Paulo
e se confabulavam para matá-lo. Jesus, entretanto, preveniu-o para que
não continue seu trabalho entre eles. Graças à intervenção dos irmãos
cristãos que levam a Paulo de Jerusalém a Cesareia e o põem a bordo de
um navio que zarpa para Tarso (At 9:30), Jesus fez com que cessasse o
ministério de Paulo entre os judeus de Jerusalém. Isto não significa que
Paulo não voltaria a falar com os judeus, visto que durante suas viagens
missionárias ele seguiu a exortação de Jesus de pregar primeiro aos
judeus e depois aos gentios (Mt 10:5–6; e veja-se Rm 1:16). Em seu
discurso aos anciãos efésios em Mileto, ele afirmou que tinha testificado

1405
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, trad. por Andrew R. Fausset, 5 vols.
(Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 698. Bengel chama a este recurso literário “tapeinosis” ou
“litotes”. Louis Berkhof explica que “os litotes afirmam uma coisa através da negação do oposto”.
Princípios de interpretação bíblica, 2ª. ed. (Grand Rapids: T.E.L.L.), p. 91.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1090
tanto a judeus como a gregos que se voltassem a Deus em
arrependimento e cressem em Jesus (At 20:21).
19, 20. Eu disse: Senhor, eles bem sabem que eu encerrava em prisão
e, nas sinagogas, açoitava os que criam em ti. Quando se derramava o
sangue de Estêvão, tua testemunha, eu também estava presente, consentia
nisso e até guardei as vestes dos que o matavam.
Em lugar de dizer à sua audiência o que fez depois de ter saído de
Jerusalém, Paulo lhes conta que estava decidido a permanecer na cidade
e testificar aos seus concidadãos. Em Damasco tinha pregado aos judeus
nas sinagogas locais; quando veio para Jerusalém, de novo foi aos
judeus. Ele dá a entender que estava bem qualificado para comunicar os
ensinos da fé cristã aos judeus; como doutor da lei judaica poderia guiar
os cidadãos de Jerusalém a Cristo. Sentia-se em casa com o povo judeu
porque eles conheciam as Escrituras. Era capaz de discutir com eles e
assim dispunha de um imediato ponto de contato (At 9:29). Mas o
Senhor lhe informou, através de Ananias em Damasco, que deveria
pregar o evangelho aos gentios (At 9:15). Jesus queria usar os dons e
talentos de Paulo no mundo gentílico e assim a igreja viesse a ser
universal.
Paulo entra num diálogo com Jesus, embora não chame Jesus pelo
nome. Em lugar disso, usa a palavra Senhor, que é um termo geral com o
qual também se pode fazer referência a Deus. Paulo diz: “Senhor, eles
bem sabem que eu encerrava em prisão e, nas sinagogas, açoitava os que
criam em ti” (veja-se At 8:3). Quer dizer que ao voltar para Jerusalém, os
judeus lembrariam dele como um perseguidor de homens e mulheres
cristãos. Ao dizer “eles bem sabem”, sugere que os judeus deviam
lembrar seu passado. Só três anos antes de sua volta a Jerusalém (Gl
1:18), tinha encarcerado e espancado membros da igreja cristã. 1406 Em
sua resposta à ordem de Jesus de sair da cidade, Paulo usa três vezes o
pronome pessoal eu. Com o uso frequente deste pronome, está
1406
O verbo saber “expressa o resultado de um processo de percepção”. Günther Harder, NIDNTT,
vol. 3, p. 122.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1091
declarando que punha objeções a sair ao estrangeiro; em outras palavras,
preferia continuar seu ministério de ensino na cidade, mesmo com o
risco de perder sua vida.
Pelos tempos do verbo no texto grego sabemos que transcorreu um
período substancial de tempo durante o qual Paulo encerrou na prisão e
espancou os cristãos. Ia de uma sinagoga a outra, de onde os crentes
eram trazidos diante dos concílios. Quando os cristãos eram culpados de
confessar o nome de Jesus, eram açoitados (cf. Mt 10:17; 23:34). Paulo
admite que ele mesmo açoitou estes crentes.
“Quando se derramava o sangue de Estêvão, tua testemunha”,
continua Paulo, “eu também estava presente, consentia nisso e até
guardei as vestes dos que o matavam” (veja-se At 7:58; 8:1). A morte de
Estêvão causou uma forte impressão em Paulo. Com efeito, ele veio a ser
o sucessor de Estêvão quanto a alcançar aos judeus de fala grega (cf. At
6:8–10 e 9:29). Paulo usa a palavra mártir, que se deriva do verbo grego
martyreō (testificar, testemunhar). Estêvão, enquanto testificava para
Jesus, foi morto por seus acusadores com a total aprovação do Sinédrio.
Lucas não dá evidências de que Paulo alguma vez tenha sido membro do
concílio judaico. Em lugar disso, diz que tinha sido comissionado pelo
Sinédrio para perseguir os cristãos. Nesta passagem, Paulo confessa que
ele mesmo consentiu na morte de Estêvão, que cuidou as capas dos
homens que apedrejavam Estêvão, o primeiro mártir cristão.
Por um lado, Paulo lembra sua participação na morte de Estêvão
para mostrar sua identificação com os verdadeiros judeus que
respeitavam a lei e que guardam a pureza da fé judaica. Por outro, usa
este episódio para introduzir a resposta de Jesus. Se Paulo pensou que
poderia convencer Jesus de mudar Suas instruções, estava tristemente
errado. Jesus lhe havia dito que para ir pregar o Seu nome diante dos
gentios e lhe reiterou seu mandato.
21. Mas ele me disse: Vai, porque eu te enviarei para longe, aos
gentios.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1092
Paulo chega ao clímax de seu discurso. Evitando o uso do nome
Jesus, contudo atribui a Jesus a ordem de que deveria abandonar
Jerusalém. O Senhor o mandaria para longe, aos gentios. Finalmente,
embora originalmente fosse dita pelo Senhor, a palavra gentios sai da
boca de Paulo. Isto significa, naturalmente, que a carga para Paulo de
pregar o evangelho aos gentios não foi coisa dele, e sim se tratou de uma
ordem divina. Para Paulo, a mensagem de Jesus foi de ânimo, porque o
próprio Jesus o enviaria aos gentios e assim proveria para seu bem-estar
físico e espiritual (cf. At 26:17). Além disso, Jesus especificamente disse
a Ananias que Paulo era o Seu instrumento escolhido para O servir como
Seu mensageiro aos gentios (At 9:15). Paulo é incapaz de eliminar de seu
relatório o encargo que Jesus lhe tinha dado.

Notas adicionais a At 22:1–21


As diferenças entre o primeiro e o segundo relato sobre a conversão
de Paulo (At 9:1–19 e 22:1–21) são óbvias, não obstante o fato que
Lucas escreveu os dois. O primeiro relatório é uma descrição narrativa
dada por Lucas quando traça a vida de Paulo. O segundo, é um discurso
de Paulo pronunciado aos judeus quando estava na escalinata da
Fortaleza Antônia. Embora não esperemos uma transcrição palavra por
palavra, descobrimos que Lucas apresenta com toda fidelidade o
conteúdo do discurso de Paulo. Consideremos estes aspectos:
a. A ênfase judaica. É importante o fato de que Paulo se dirigiu aos
judeus em sua língua vernácula (o aramaico), mas também são
significativas as palavras que escolheu, as expressões, e as descrições,
que são tipicamente judaicas. Fixe-se como dirige-se Paulo à multidão:
“Irmãos e pais, ouvi” (v. 1); o discurso está na mesma linha que o de
Estêvão, quem enfrentou os membros do Sinédrio (At 7:2). Paulo recorre
ao uso de termos judaicos, incluindo “o Deus de nossos pais” e “o Justo”
(v. 14). Identifica-se como um judeu, nascido no estrangeiro, mas criado
e educado em Jerusalém, com o nome de Saulo. Manifesta respeito pela
Atos (Simon J. Kistemaker) 1093
lei mosaica e, por sua referência ao zelo por Deus, identifica-se com
qualquer judeu que o escuta (v. 3). Diz que Ananias é um homem devoto
segundo a lei (v. 12) e evita referir-se a ele como um discípulo (veja-se
At 9:10). Por último, descreve-se a si mesmo como um judeu que vai ao
templo a orar (v. 17).
b. As omissões. À parte da autoidentificação de Jesus “Eu sou Jesus
de Nazaré” (v. 8), Paulo deliberadamente evita usar esse nome e no
grego alude a ele com pronomes pessoais. No grego usa “Senhor” quatro
vezes (vv. 8, 10 [duas vezes], 19), mas este termo também foi usado por
Deus e não apresentava nenhuma ofensa aos judeus. No primeiro relato
de sua conversão, Ananias informa a Paulo que o Senhor Jesus o enviava
(At 9:17), mas em seu discurso, faltam estas palavras. Além disso, Jesus
instrui Ananias para ir a Paulo, quem deve proclamar o nome de Jesus
aos gentios (At 9:15). Mas quando este se dirige aos judeus, diz-lhes que
Ananias lhe disse: “Você será testemunha dele [o Justo] a todos os
homens, daquilo que viu e ouviu” (At 22:15, NVI). De novo, a expressão
todos os homens é inofensiva.
c. Os acrécimos. Em seu relato, Paulo descreve seu diálogo com
Jesus (v. 10, 18–21). Esta informação está ausente no relato anterior de
Lucas (At 9:5–7). No Antigo Testamento, Deus encoraja o diálogo com
Seu povo (p. ex., veja-se Is 1:18). Os judeus mostram esta liberdade
característica de intercâmbio verbal: Ananias (At 9:10–16), Pedro (At
10:13–15), e Paulo (At 22:8–10, 18–21).
Quando Jesus diz a Paulo “ali te dirão acerca de tudo o que te é
ordenado fazer” (v. 10), dá Suas instruções para Paulo em Damasco (At
9:15–16) e em Jerusalém (vv. 18, 21). Jesus cumpre Sua promessa e em
várias oportunidades informa a Paulo o que tem que fazer a seguir (veja-
se 18:9–10; 23:11).
d. A conclusão. Certeiramente Lucas descreve Paulo como um
orador que conta sua experiência de conversão “como uma segunda
Atos (Simon J. Kistemaker) 1094
1407
variação do acontecimento de Damasco”. Lucas supõe que o leitor
lembra os detalhes do primeiro relato e agora informa como Paulo se
dirigiu aos judeus em Jerusalém. Além disso, Lucas finaliza o discurso
de Paulo com as palavras “Eu te enviarei para longe, aos gentios” (v.
21), porque a multidão asperamente impedia que Paulo continue seu
discurso (v. 22). Martin Dibelius chama a isso “interrupção intencional”,
um recurso literário que Lucas emprega para concluir o discurso em
Atos. 1408 Mas esta engenhosa observação quando é submetida a
cuidadoso escrutínio, dificilmente pode ser válida para o discurso de
Paulo em Jerusalém. Por uma coisa, em sua conclusão este discurso
carece de uma exortação à audiência. 1409 À luz do desenvolvimento de
uma reação ao discurso de Paulo, não estamos persuadidos a duvidar da
historicidade, e sim a afirmar que Lucas faz uma apresentação fidedigna.

Palavras, frases e construções gregas em At 22:17–21


Versículos 17–18
προσευχομένου μου — “enquanto estava orando”. Devido ao fato
de que o sujeito deste absoluto genitivo é o mesmo que o da cláusula
principal, a construção gramatical é defeituosa.
παραδέξονται — este é o futuro preditivo do verbo composto
παραδέχομαι (eu aceito, reconhecer) em seu sentido perfectivo. Com a
partícula negativa οὑ (não), o verbo na verdade significa “rejeitar,
rejeitar com desdém”.

1407
Paul Schubert, “The Final Cycle of Speeches in the Book of Acts”, JBL 87 (1968): 14.
1408
Dibelius, Studies in the Acts of the Apostles, p. 160.
1409
Consulte-se Thomas L. Budesheim, “Paul’s Abschiedsrede in the Acts of the Apostles”, HTR 69
(1976); 16–17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1095
Versículo 19
ἤμην — com os dois particípios presentes φυλακίζων (capturando)
e δέρων (espancando), este imperfeito do verbo εἰμί (eu sou) é uma
construção perifrástica a qual, talvez, reflita a sintaxe aramaica.
κατά — a preposição expressa a ideia distributiva: “de uma
sinagoga a outra”.

Versículos 20–21
ἐξεχύννετο — note o uso descritivo do tempo imperfeito
(“derramava-se”) para realçar o efeito do relato de uma testemunha
ocular.
μακράν — este adjetivo modifica o nome provido ὁδόν (caminho) e
funciona como um acusativo de extensão: “longe”.

4. O juízo contra Paulo (At 22:22–23:11)

A multidão juntou-se nos átrios do templo devido ao fato de que os


judeus tinham posto a correr a notícia de que Paulo ensinava os judeus
na dispersão que vivessem como os gentios (At 21:28). Também diziam
que tinha colocado gentios dentro dos átrios do templo, onde não deviam
entrar (At 21:29). Quando a multidão ouviu Paulo dizer que tinha sido
enviado aos gentios, chegaram à conclusão que ele mesmo tinha
confirmado os informes que tinham ouvido.

a. A apelação (At 22:22–29)

22. A multidão ouvia Paulo até que ele disse isso. Então todos
levantaram a voz e gritaram: “Tira esse homem da face da terra! Ele não
merece viver!” [NVI]
A audiência de pé nos degraus da escada que conduzia à Fortaleza
Antônia escutou atentamente as palavras que Paulo falava. Embora
Atos (Simon J. Kistemaker) 1096
aceitassem seu discurso que foi pronunciado com palavras gratas ao
ouvido, voltaram-se contra ele quando mencionou que tinha pregado aos
gentios. Esta simples palavra gentios, foi suficiente para que o
condenassem como um profanador do templo.
Na opinião dos judeus, Paulo tinha renegado a verdade do judaísmo
e não poderia continuar sendo considerado um ortodoxo. Pareceu-lhes
que em seu discurso procurou ocultar seus esforços de converter os
gentios. 1410 Eles não tinham objeções a que ensinasse aos gentios a
respeito do Deus de Israel; de fato animavam os gentios piedosos a se
converterem (cf. Mt 23:15). Mas consideravam o ensino de Paulo
contrário a suas demandas de que os gentios obedecessem a lei. Seus
ouvintes se enfureceram quando Paulo aludiu à sua divina comissão de ir
aos gentios. Recusaram reconhecê-lo como um missionário da causa
judia. Para eles, a afirmação de Paulo significava que ele considerava os
judeus e gentios iguais diante de Deus. E isto era absolutamente
inaceitável. 1411
Os judeus interromperam o discurso de Paulo e gritaram o mais alto
que puderam: “Tira esse homem da face da terra! Ele não merece viver!”
Perto de três décadas antes, uma multidão de judeus tinha gritado quase
as mesmas palavras a Pôncio Pilatos (Lc 23:18; Jo 19:15; e veja-se At
21:36). Os judeus recusaram identificar Paulo pelo nome mas se
referiram depreciativamente a ele como “esse homem ou tal pessoa”. Seu
clamor a respeito de tirá-lo fisicamente da face da terra e a
impropriedade de que viva foi equivalente a demandar para ele a pena de
morte (veja-se At 25:24).
23. Ora, estando eles gritando, arrojando de si as suas capas,
atirando poeira para os ares.

1410
Refira-se a Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, pp. 281–82.
1411
Grosheide, Handelingen der Apostelen, vol. 2, pp. 296–97. A. J. Mattill, Jr., assinala que os
cristãos judeus da Judeia e Galileia “podem ter sido mais zelosos pela Lei que os de Jerusalém”. Veja-
se “The Purpose of Acts: Schneckenburg Reconsidered”, em Apostolic History and the Gospel”, ed.
W. Ward Gasque e Ralph P. Martin (Exeter: Paternoster; Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 116.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1097
Lucas descreve uma típica revolta oriental, durante a qual o povo dá
rédea solta a suas emoções. Pinta a multidão gritando (provavelmente
uma ordem após outra), tirando de si as capas que moviam ou lançavam
pelos ares, e recolhendo pó a punhados e lançando-o também ao ar. A
cena era de um completo alvoroço e confusão.
Suspeitamos que o comandante romano não tinha podido entender o
discurso de Paulo. Mesmo quando houvesse entendido aramaico, não
havia podido seguir os raciocínios teológicos que fizeram co que a
multidão ficasse a gritar tão loucamente. Embora tivesse que proteger
Paulo de danos físicos e inclusive de uma possível morte, estava
perplexo a respeito da razão pela qual o povo estava tão zangado.
24. Ordenou o comandante que Paulo fosse recolhido à fortaleza e
que, sob açoite, fosse interrogado para saber por que motivo assim
clamavam contra ele.
Quando o comandante percebeu que a multidão fazia-se cada vez
mais hostil, ordenou a seus soldados para levar Paulo ao quartel. Ao tirá-
lo da vista do povo, esperava pôr fim à revolta. Como comandante das
forças armadas em Jerusalém, era responsável pela manutenção da paz.
Talvez o comandante tenha ressentido pela decisão de Paulo de
dirigir-se às pessoas em aramaico e não em grego. Nem os judeus nem
Paulo o punham a par da razão da revolta. Por isso devia descobrir quais
eram as razões do descontentamento, para poder tomar medidas se no
futuro se apresentassem situações como esta.
Assim é que mandou seus soldados açoitarem o prisioneiro, porque
supunha que uma vez aplicado o castigo, Paulo diria por quê a multidão
estava tão zangada com ele (cf. At 21:34). A lei romana permitia os
açoites como uma forma de interrogar a quem quebrantava a lei, ou
como uma forma de castigo a escravos ou criminais. O castigo aplicava-
se com correias de couro às quais se amarravam pedaços de osso ou de
metal. Portanto, quando se aplicavam as chicotadas às vítimas, com
Atos (Simon J. Kistemaker) 1098
frequência abriam profundas feridas que inclusive expunham seus
ossos. 1412 Às vezes, as vítimas morriam no momento ou pouco depois.
25. Enquanto o amarravam a fim de açoitá-lo, Paulo disse ao
centurião que ali estava: “Vocês têm o direito de açoitar um cidadão
romano sem que ele tenha sido condenado?” [NVI]
Paulo percebeu que de novo estava em perigo de morte. Segundo
seu próprio testemunho (2Co 11:23–25), ele tinha sido açoitado mais
duramente que qualquer outro apóstolo (cf. At 5:40) e em mais de uma
ocasião tinha enfrentado à morte. Lembrou que em cinco diferentes
ocasiões tinha recebido trinta e nove açoites dos judeus, tal como tinha
sido prescrito pelos rabinos (veja-se Dt 25:1–3). Estes açoites
provavelmente eram aplicados nas sinagogas judaicas onde Paulo
pregava o evangelho e levantava oposição. Em três outros casos, tinha
recebido açoites com varas, um deles em Filipos (At 16:22–23).
a. “Enquanto amarravam a fim de açoitá-lo”. A construção desta
cláusula no grego permite duas interpretações. Uma, que os soldados
estavam amarrando Paulo num pau, deixando as costas exposta para
receber os açoites ou, amarrando as mãos com tiras de couro,
levantavam-no do solo para logo açoitá-lo. Em qualquer caso, o
resultado é o mesmo.
b. “Vocês têm o direito de açoitar um cidadão romano sem que ele
tenha sido condenado?” A lei romana eximia seus cidadãos da pena de
ser açoitados, embora nos dias de Cícero um cidadão romano foi
golpeado até matá-lo. Mas aquilo era a exceção muito pouco comum. 1413
Os cidadãos romanos possuíam direitos inalienáveis que geralmente
eram respeitados estritamente. Diz Cícero: “Amarrar um cidadão romano
é um crime, açoitá-lo é uma abominação, matá-lo é quase um ato de

1412
Josefo Guerra Judaica 2.21.5 [612]; 6.5.3 [304]. Consulte-se David W. Wead, “Scourge”, ISBE,
vol. 4, p. 359.
1413
Livy 10.9.4. Consulte-se Conzelmann, Acts, p. 189; A. N. Sherwin-White, Roman Society and
Roman Law in the New Testament (1963; reimp. Grand Rapids: Baker, 1968), p. 172; Mark Black,
“Paul and Roman Law in Acts”, ResQ 24 (1981); 209–18.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1099
assassinato: crucificá-lo é … o quê? Não há uma palavra adequada que
possa descrever coisa tão horrível”. 1414
As leis que protegiam os direitos dos cidadãos romanos tinham sido
ditadas séculos antes da era apostólica. Nos dias de Paulo, estas leis
romanas eram aplicadas em todas as províncias através do império.
Paulo objetou ser açoitado sem ter sido submetido a juízo; assim,
invocou estas leis em seu próprio benefício e deixou estabelecido que ele
era um cidadão romano. Em anos posteriores voltou a exercer seus
direitos ao apelar a César (At 25:11). Por contraste, quando tanto Paulo
como Silas foram espancados com varas em Filipos (At 16:22–23), não
invocaram seus direitos como cidadãos romanos, mas sofreram em nome
da congregação local (At 16:37–40).
26. Ouvindo isto, o centurião procurou o comandante e lhe disse:
Que estás para fazer? Porque este homem é cidadão romano.
O centurião a cargo de ministrar os açoites entendeu as implicações
da pergunta de Paulo e correu a Cláudio Lísias. Supomos que de algum
modo Paulo poderia provar sua cidadania romana (veja-se o comentário
sobre At 16:38). A evidência foi suficiente para que o centurião
detivesse o procedimento e consultasse com seu superior se este sabia o
que estava fazendo. Quando o oficial mencionou a expressão cidadão
romano, o comandante foi direto a Paulo. Aplicar açoites a um cidadão
romano sem lhe dar um apropriado juízo poria o comandante em sérias
dificuldades com seus superiores. Poderia ficar exposto a ser degradado
ou destituído.
27, 28. Vindo o comandante, perguntou a Paulo: Dize-me: és tu
romano? Ele disse: Sou. Respondeu-lhe o comandante: A mim me custou
grande soma de dinheiro este título de cidadão. Disse Paulo: Pois eu o
tenho por direito de nascimento.
A cidadania romana podia obter-se por vários meios: podia ser
oferecida como uma recompensa por serviços feitos a Roma, podia ser
comprada, ou, a pessoa podia nascer dentro de uma família que já
1414
Cícero Contra Verres 2.5.66 (LCL); veja-se também Em defesa de Rabirius 4:12–13.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1100
possuía o privilégio, que passava aos filhos. A conversação entre o
comandante romano e o prisioneiro judeu gira sobre a expressão cidadão
romano. Cláudio Lísias perguntou a Paulo se podia confirmar seu status.
Quando Paulo lhe respondeu afirmativamente, ele, voluntariamente
disse: “A mim me custou grande soma de dinheiro este título de
cidadão”. Lucas não dá mais detalhes a respeito da cidadania de Cláudio
Lísias. No entanto, o nome do comandante indica que ele tinha obtido
sua cidadania durante o reinado do imperador Cláudio, e a “grande soma
de dinheiro” foi o suborno que pagou aos oficiais. 1415 Lucas deixa a
impressão clara de que para o comandante, reclamar a cidadania era
extremamente importante.
Quando Paulo acrescentou que ele era cidadão romano por
nascimento, o comandante terá tido que reconhecer que Paulo
ultrapassava a ele em status. Os antepassados de Paulo tinham obtido sua
cidadania em Tarso, provavelmente por serviços feitos a Roma. 1416 Uma
vez que receberam a cidadania, seus antepassados estipularam que este
privilégio fosse conferido aos seus descendentes.
29. Imediatamente, se afastaram os que estavam para o inquirir com
açoites. O próprio comandante sentiu-se receoso quando soube que Paulo
era romano, porque o mandara amarrar.
À uma ordem de Cláudio Lísias, o centurião e seus soldados não
perderam tempo em deixar Paulo livre. O comandante estava bem a par
dos direitos de um cidadão romano e percebeu que, mesmo que não fez
dano em Paulo, de qualquer maneira era culpado por tê-lo acorrentado. A
princípio, Paulo pôde ter dito ao comandante que era cidadão não só de
Tarso (At 21:39), mas também de Roma, mas esperou até que os

1415
Eruditos assumem que Cláudio Lísias era grego de nascença; pessoas que eram cidadãos romanos
por nascimento usualmente tinham três nomes em lugar de dois. Para o assunto dos subornos, veja-se
Dion Cássio History 60.17.5–6; Sherwin-White, Roman Society and Roman Law, pp. 154–55; F. F.
Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed. rev. e
aum. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 609.
1416
William M. Ramsay, The Cities of St. Paul: Their Influence on His Life and Thought (1907;
reimp. Grand Rapids: Baker, 1963), pp. 197–98.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1101
soldados o tivessem preso e estavam preparados para açoitá-lo. Sabia
que o comandante não quereria quebrantar a lei romana, e, num esforço
por reivindicar-se, trataria Paulo com deferência.
As cadeias que levava eram um símbolo visível de sua prisão em
Roma (At 21:33). Acorrentar um cidadão era uma violação direta à lei de
Roma e podia ter sido usado como evidência contra o comandante. De
qualquer maneira, durante sua prisão em Cesareia e sua prisão domiciliar
em Roma, Paulo foi acorrentado por um total de pelo menos quatro
anos. 1417

Considerações práticas em At 22:26 e 28


Versículo 26
Durante sua vida, Paulo exerceu seus direitos de cidadão romano
duas vezes diretamente (At 16:37–38; 22:26) e uma vez por apelar a
César (At 25:11). Para ele, entretanto, é de muito mais importância sua
cidadania no reino dos céus que seus direitos civis. Escreve: “Mas a
nossa cidadania está no céu” (Fp 3:20). Ele não assinala aos crentes de
Filipos sua cidadania terrestre (mesmo quando Filipos tinha um status
especial [veja-se o comentário sobre At 16:12a], mas antes, comunica a
mensagem que os crentes são residentes na cidade de Deus. 1418

Versículo 28
Neste versículo, Lucas se refere indiretamente ao tempo no qual
ocorreu o episódio. Cláudio Lísias menciona a importante soma de
dinheiro que teve que pagar para obter a cidadania romana. Durante o
reinado do imperador Cláudio, os oficiais tinham permissão para receber
o suborno das pessoas que queriam comprar a cidadania. Mas quando
Nero chegou a ser imperador em 54 d.C. terminou com os abusos e

1417
Veja-se At. 26:29; 28:20, 30; Ef. 6:20; Fp. 1:13–14, 17; Cl. 4:3, 18; Fm. 10, 13.
1418
Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 804.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1102
prescreveu castigos apropriados para os delinquentes. Logo, a
observação de Cláudio Lísias aponta ao tempo do imperador Cláudio
(41–54 d.C.) e não ao de Nero. 1419

Palavras, frases e construções gregas em At 22:24–29


Versículos 24–25
εἴπας — este segundo particípio aoristo com a terminação do
primeiro aoristo é equivalente a um verbo coordenado (“ele disse”); quer
dizer, “o comandante ordenou … e disse”.
τοῖς ἱμᾶσιν — do substantivo ἱμάς (correia) este plural dativo pode
ser interpretado como um dativo instrumental (“com as correias”).
Também pode significar um dativo de propósito (“para as correias”, quer
dizer, Paulo foi amarrado para ser açoitado). Tradutores preferem a
segunda interpretação. 1420
εἰ — esta partícula introduz uma pergunta direta e não é traduzida.

Versículos 28–29
κεφαλαίου — este é o segundo significado do substantivo
κεφάλαιον (sumário), o que no contexto significa “soma de dinheiro”. O
genitivo é genitivo de preço.
ὅτι — o primeiro exemplo é o declarativo “esse”; mas o segundo
tem um significado causal. 1421
ἦν δεδεκώς — a construção perifrástica perfeita do verbo δέω (eu
ato) indica ação no passado com efeito continuado no presente.

1419
Sherwin-White, Roman Society and Roman Law, p. 156.
1420
Bauer, p. 376.
1421
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), pp.
237–38.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1103
b. A acusação (At 22:30)

Depois que Paulo ficou livre de suas ataduras, os soldados o


levaram ao quartel e o protegeram durante toda a noite. Enquanto isso,
Cláudio Lísias teve tempo para refletir na situação e buscar um caminho
para solucionar o problema do prisioneiro não desejado em sua fortaleza.
Percebeu que os distúrbios provocados pelos judeus respondiam a razões
teológicas. Portanto, no dia seguinte procurou solucionar o assunto,
convocando o Sinédrio e apresentando Paulo diante deste corpo
governante do povo judeu.
30. No dia seguinte, visto que o comandante queria descobrir
exatamente por que Paulo estava sendo acusado pelos judeus, libertou-o e
ordenou que se reunissem os chefes dos sacerdotes e todo o Sinédrio.
Então, trazendo Paulo, apresentou-o a eles [NVI].
a. “Por que Paulo estava sendo acusado pelos judeus”. Cláudio
Lísias devia averiguar exatamente por que os judeus acusavam Paulo.
Ele era o comandante das forças romanas estacionadas em Jerusalém e
era responsável diante de seu superior, o governador Félix (At 23:24), se
estalasse uma revolta. Se no dia anterior tivesse conhecido as causas do
distúrbio, teria podido prevenir que ocorresse de novo.
b. “Libertou-o e ordenou que se reunissem os chefes dos sacerdotes
e todo o Sinédrio”. Eu entendo o texto como querendo dizer que Cláudio
Lísias deixou Paulo livre da custódia e lhe deu o privilégio de caminhar
livremente perto dos soldados romanos. Um dia antes, quando soube que
Paulo era um cidadão romano, o comandante o tinha deixado livre de
suas cadeias (v. 29). 1422
Alguns eruditos consideram que este evento não pode ser um
acontecimento histórico real. 1423 Eles pensam que o comandante deixou
1422
Boyd Reese nota a idêntica preocupação dos magistrados em Filipos (At 16:38) e do comandante
em Jerusalém (At 22:29). “The Apostle Paul’s Exercise of his Rights as a Roman Citizen as Recorded
in the Book of Acts”, EvQ 47 (1975): 142.
1423
Conzelmann, Acts, p. 191; veja-se também Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A
Commentary, trad. por Bernard Noble e Gerald Shinn (Filadelfia: Westminster, 1971), pp. 639–10.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1104
Paulo acorrentado durante a noite, e que em lugar de interrogá-lo, o
comandante evadiu sua responsabilidade, apresentando-o diante do
Sinédrio. Mas estas dificuldades desaparecem quando aceitamos o
versículo precedente (v. 29) tal qual e vemos que o comandante percebeu
seu erro. Durante a noite manteve Paulo em cela de segurança e pela
manhã deu-lhe completa liberdade. 1424 Além disso, devido ao fato de que
o conflito entre Paulo e os judeus era teológico e não político, Cláudio
Lísias tinha perfeito direito de levar Paulo diante do Sinédrio num
esforço para conseguir a informação exata dos teólogos judeus.
Tinha o comandante autoridade para convocar o Sinédrio? Sem
dúvida que sim. Em Israel, o Sinédrio judaico e a corte romana existiam
lado a lado. Embora o Sinédrio tivesse poder de levar Paulo a juízo, o
comandante romano, quando cria que os interesses de Roma estavam
implicados, tinha um poder superior ao da corte judaica. 1425 Ele não só
ordenou aos membros do Sinédrio para reunir-se (v. 30), mas também
transportou Paulo a Cesareia para ser julgado numa corte romana (At
24:1–22).
c. “Então, trazendo Paulo, apresentou-o a eles”. O comandante
primeiro informou ao sumo sacerdote (ver o comentário sobre At 4:6) a
respeito da reunião; o sumo sacerdote, por sua vez, convocou os
membros da corte. Depois disso, mandou trazer para Paulo à sala de
reunião. Não era permitido aos gentios entrar em nenhuma sala no
complexo do templo. Segundo Josefo, o salão de assembleia do Sinédrio
estava situado a oeste do templo propriamente dito. 1426 Foi este lugar
para onde o comandante levou Paulo e o apresentou aos membros do
Sinédrio (cf. At 4:7; 5:27; 6:15).

1424
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 286. I. Howard Marshall é da opinião que Paulo continuou
preso. The Acts of the Apostles: An lntroduction and Commentary, série Tyndale New Testament
Commentary (Leicester: Inter-Varsity; Grand Rapids: Eerdmans, 1980), p. 361.
1425
Schürer, History of the Jewish People, vol. 1, pp. 377–78.
1426
Josefo Guerra Judaica 2.16.3 [344]; 5.4.2 [144]; 6.6.3 [354], Consulte-se Schürer, History of the
Jewish People, vol. 2, pp. 223–24.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1105
Resumo de Atos 22
Paulo se dirige ao povo judeu da escada que leva à Fortaleza
Antônia. Falando em aramaico, diz aos judeus que tinha nascido em
Tarso, mas criado em Jerusalém e educado pelo respeitado mestre
Gamaliel. Revela que tinha sido um perseguidor dos cristãos e, levando
cartas do sumo sacerdote e do Sinédrio, ainda foi a Damasco para
prender esta gente.
Perto de Damasco, relata Paulo, Jesus o chamou e lhe deu
instruções para que entrasse na cidade, onde lhe seria dito o que devia
fazer. Cegado pela brilhante luz proveniente do céu, foi guiado a
Damasco. Ali, um devoto judeu chamado Ananias veio até ele e lhe
restituiu a visão. Ananias lhe disse que seria uma testemunha a todos os
homens, recebesse o batismo, e invocasse o nome do Senhor.
Ao voltar a Jerusalém, continua dizendo Paulo, foi ao templo a orar,
caiu num transe, e escutou a Jesus advertindo-o a sair de Jerusalém
imediatamente. Embora Paulo argumentasse diante da ordem recebida, o
Senhor lhe ordenou ir para longe, aos gentios.
A audiência tinha escutado Paulo sem o interromper, mas quando
ouvem que Paulo devia ir aos gentios, criaram uma grande agitação. O
comandante romano o leva ao quartel e ordena aos seus oficiais que o
interrogassem, administrando-lhe açoites. Quando os soldados o atam
para açoitá-lo, Paulo pergunta ao oficial se era legal açoitar um cidadão
romano. O oficial informou o comandante, quem pediu a Paulo que
confirmasse sua cidadania romana. A resposta foi afirmativa e o
comandante, temendo consequências adversas por ter acorrentado um
cidadão romano, deixa-o livre. No dia seguinte, Paulo compareceu diante
do Sinédrio.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1106
ATOS 23
EM JERUSALÉM E EM CESAREIA, parte 3 (At 23:1–35)
c. O comparecimento (At 23:1–5)

Paulo se levanta no mesmo lugar onde, mais de vinte anos antes,


levantou-se Estêvão. Embora tenha declarado que estava preparado para
morrer por Jesus em Jerusalém (At 21:13), também sabia que o
comandante romano era responsável por sua segurança. Como um
cidadão romano, Paulo sempre tinha o direito de comparecer numa corte
romana.
Devido ao fato de que conhece perfeitamente bem a organização do
Sinédrio, percebe que seu comparecimento diante desta corte só
complica a situação. Entende que os líderes do Sinédrio terão acedido
com prazer à convocatória do comandante aos membros da corte. E sabe
de sua relutância a apresentar a verdade do assunto e de sua intenção de
acusá-lo de provocar os distúrbios. Se a acusação é exposta contra si
diante do comandante romano, o resultado será perigoso para seu bem-
estar físico.
Três inferências surgem deste contexto. Primeiro, para o benefício
do comandante romano, Paulo se dirige aos membros da corte em grego.
Este é um contraste total com o dia anterior quando, utilizando a língua
aramaica, procura estabelecer um vínculo com o povo judeu (At 21:40;
22:2). Logo, devido ao treinamento que Paulo recebeu em Jerusalém e a
sua estreita relação com o Sinédrio (At 22:5) está em condições de
controlar a situação na corte e desviar os acontecimentos a seu favor.
Finalmente, muitos membros do Sinédrio tinham escutado o discurso de
Paulo do dia anterior e assim não precisam receber detalhada informação
a respeito de sua vida e ministério.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1107
1. Fitando Paulo os olhos no Sinédrio, disse: Varões, irmãos, tenho
andado diante de Deus com toda a boa consciência até ao dia de hoje.
a. “Fitando Paulo os olhos no Sinédrio”. Supomos que o oficial que
preside, Ananias, o sumo sacerdote, fez a cerimônia de abertura habitual,
e que o comandante pediu à corte que lhe provesse de informação que
permitisse a ele entender as diferenças teológicas entre os judeus e
Paulo. Logo permitiu Paulo falar.
Lucas, quem possivelmente tivesse estado na reunião como
observador, diz que Paulo tomou seu tempo olhando intensamente aos
membros da corte. A membresia do Sinédrio tinha mudado grandemente
desde o tempo em que Paulo tinha sido comissionado para perseguir os
cristãos em Jerusalém e em Damasco. Mas, sem dúvida, Paulo queria ver
se reconhecia alguém.
b. “Varões, irmãos”. Quando começa a falar, desta vez não repete a
mesma saudação anterior, “Irmãos e pais” (At 22:1), mas apenas diz:
“Varões, irmãos”. Parece que continua o discurso dado no dia anterior,
visto que em sua abertura não se preocupa em deixar sentado seu caso.
Continua no ponto onde tinha sido interrompido e afirma: “Tenho
andado diante de Deus com toda a boa consciência até ao dia de hoje”.
Esta simples frase está cheia de significado.
c. “Tenho andado”. Paulo não está dizendo que sua morte é
iminente (em contraste, veja-se 2Tm 4:7). Em lugar disso, quer dizer que
sua vida foi gasta em harmonia com os princípios religiosos. Tratou
conscientemente de viver uma vida de fé em Deus. 1427
d. “[Eu tenho vivido] com toda a boa consciência”. Esta é uma
afirmação que Paulo faz consistentemente tanto em sua defesa diante do
governador Félix como em suas epístolas. Diante de Félix, o sumo
sacerdote Ananias, e outros, diz: “Também me esforço por ter sempre
consciência pura diante de Deus e dos homens” (At 24:16). E em suas
epístolas, também fala de uma consciência clara: “O testemunho de

1427
Consultar Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 804; Hermann Strathmann, TDNT, vol. 6, p. 534.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1108
nossa consciência é este: que em santidade e sinceridade … nos
conduzimos no mundo” (2Co 1:12; veja-se também 1Tm. 3:9; cf. 1Pe
3:16, 21).
e. “Diante de Deus com toda a boa consciência até ao dia de hoje”.
Qual é o significado, no contexto, da palavra consciência? Olhemos
primeiro ao qualificadores, “boa”. Quer dizer, a consciência de Paulo
não só afetou cada aspecto de sua vida, mas também era boa. * Paulo
pode dizer abertamente diante de Deus que viveu uma vida moral e
religiosa. Os pecados cometidos antes de sua conversão, incluindo os
relacionados com a perseguição dos cristãos, tinha os confessado
prontamente. Mas quanto às acusações apresentadas contra ele pelos
judeus, considera-se inocente. Sabia que tinha vivido como um judeu
que havia sido fiel a seu Deus e que tinha obedecido a lei de Deus até
esse dia. 1428
2. Mas o sumo sacerdote, Ananias, mandou aos que estavam perto
dele que lhe batessem na boca.
O sumo sacerdote interrompeu com rudeza o discurso de Paulo.
Com base num só comentário, ordenou os que estavam perto de Paulo
“que lhe batessem na boca”. Para Ananias, Paulo era um pervertedor da
religião judaica que devia ser humilhado e condenado. Sua tremenda
aversão pela volta de Paulo fez-se evidente alguns dias mais tarde
quando pessoalmente viajou cento e cinco quilômetros de Jerusalém a
Cesareia para apresentar diante do governador Félix acusações contra ele
(At 24:1).
Por Josefo sabemos que, presumivelmente, uma década antes deste
fato, Ananias, filho de Nedebeu, foi nomeado sumo sacerdote por
Herodes, rei de Cálcis (44–48 d.C.). Serviu como sumo sacerdote desde
*
Em português nós falamos de uma consciência tranquila. – Nota do Tradutor.
1428
É abundante a literatura relacionada com o conceito conscientiza; umas poucas obras
representativas são: Claude A. Pierce, Conscience in the New Testament (Naperville, Ill.: Allenson,
1955); Alfred Martin Rehwinkel, The Voice of Conscience (St. Louis: Concordia, 1956); N. H. G.
Robinson, Christ and Conscience (Londres: Nisbet, 1956); Hans-Christoph Hahn e Colin Brown,
“Conscience”, NIDNTT, vol. 1, pp. 348–53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1109
1429
47 até 59 d.C. Ananias, conhecido por ser vicioso e violento, foi
influente e rico, mas sua rapacidade fez dele pouco popular entre o povo.
Foi destituído pelo rei Agripa em 59 d.C.; morreu assassinado em
setembro de 66 d.C., durante o levantamento judeu. 1430
A ordem de bater em Paulo na boca tem seu paralelo em João
18:22–23: Jesus, ao responder uma pergunta do sumo sacerdote Caifás,
foi golpeado no rosto por um dos soldados. Não fica claro se o bofetão
foi ordenado por Ananias para que Paulo tivesse mais respeito para com
o Sinédrio ou para pô-lo em seu lugar. 1431 O que é óbvio é que o sumo
sacerdote interrompeu o procedimento normal da corte quando ordenou
aos observadores que espancassem Paulo por ter feito uma afirmação de
abertura. Saindo-se dos procedimentos normais, inconscientemente criou
confusão que não foi capaz de superar.
3. Então Paulo lhe disse: “Deus te ferirá, parede branqueada! Estás
aí sentado para me julgar conforme a lei, mas contra a lei me mandas
ferir?” [NVI].
A bofetada no rosto fez com que Paulo não mantivera nem o
respeito nem o silêncio. Reagiu imediatamente. Jesus também reagiu
quando o soldado o espancou no rosto, mas ele somente perguntou se
havia dito algo mau e ao soldado lhe perguntou porquê lhe tinha pego (Jo
18:23). Por contraste, Paulo não pôde imitar a seu Mestre nisto. Pediu-
lhe a Deus que castigasse ao sumo sacerdote; seu pedido foi na verdade
uma maldição lançada contra Ananias. 1432 (Diga-se de passagem, Paulo
falou em sentido profético, porque a maldição que pronunciou cumpriu-

1429
Josefo Antiguidades 20.5.2 [103]; 20.6.2 [131]. Consulte-se Emil Schürer, The History of the
Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D. 135), rev. e ed. por Geza Vermes y Fergus
Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 2, p. 231.
1430
Josefo Guerra Judaica 2.12.6 [243]; 2.17.6 [429]; 2.17.9 [441–42]; Antiguidades 20.8.11 [196].
Veja-se também SB, vol. 2, p. 766.
1431
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, série Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 305.
1432
Refira-se a SB, vol. 2, p. 766.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1110
se alguns anos mais tarde, quando Ananias morreu às mãos de
assassinos.)
Além disso, Paulo descreveu a Ananias com um ofensivo epíteto:
“parede branqueada”. Em outras palavras, Ananias era como uma parede
oscilante que externamente tinha uma cobertura de cal, mas a estrutura
interna carecia de argamassa que mantivesse unidos os tijolos que a
formavam. Se uma chuva torrencial lavasse a sua cobertura e o vento
soprasse, a parede viria abaixo (cf. Ez 13:10–12). Outra comparação é a
de uma tumba cuja pintura exterior oculta os ossos de morto em seu
interior (Mt 23:27). Não há dúvida, Paulo procurou pintar o caráter de
Ananias; portanto, recorreu a um termo de “abuso geral”. 1433
“Estás aí sentado para me julgar conforme a lei, mas contra a lei me
mandas ferir?” Doutor da lei mosaica, Paulo expõe diante de Ananias
uma questão legal. Com base na lei, o sumo sacerdote não tinha direito
de ordenar que o espancassem. Se Ananias tivesse admitido que tinha
quebrantado a lei (veja-se Lv 19:15 - “com justiça julgarás o teu
próximo”), teria perdido sua autoridade para julgar. Os fariseus e os
doutores da lei que estavam presentes na corte devem ter estado de
acordo com Paulo, “porque na lei judaica, os direitos dos acusados eram
cuidadosamente salvaguardados”. 1434
4, 5. Os que estavam perto de Paulo disseram: “Você ousa insultar o
sumo sacerdote de Deus?” Paulo respondeu: “Irmãos, eu não sabia que
ele era o sumo sacerdote, pois está escrito: ‘Não fale mal de uma
autoridade do seu povo’.”
Para os espectadores, entre eles talvez aquele que espancou a Paulo,
este insulto foi muito. Fez-se ouvir um grito de indignação: “Você ousa
insultar o sumo sacerdote de Deus?” Apesar da crueldade e o seu caráter
ambicioso e ao fato de que tinha sido nomeado por um rei pagão, os
1433
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 287.
1434
David John Williams, Acts, série Good News Commentaries (San Francisco: Harper and Row,
1985), p. 383. F. F. Bruce observa que “a lei judaica presumia inocência até que a culpabilidade fosse
provada”. The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed. rev. e
aum. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 464.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1111
observadores reconheciam nele “o sumo sacerdote de Deus”. De novo,
note-se o paralelismo entre Jesus e Paulo. O soldado que espancou a
Jesus lhe perguntou: “É assim que falas ao sumo sacerdote?” (Jo 18:22).
Os que estavam perto de Paulo fizeram praticamente a mesma pergunta.
A resposta de Paulo (“Irmãos, eu não sabia que ele era o sumo
sacerdote”) é difícil de interpretar. Deram-se várias explicações,
nenhuma delas satisfatória:
1. Devido ao fato de que Paulo tinha estado ausente de Jerusalém,
não sabia que Ananias era o sumo sacerdote. Mas isto pode aceitar-se
com dificuldade, visto que Paulo tinha estado em Jerusalém no final de
sua segunda viagem missionária (At 18:22) e isso deve tê-lo permitido
saber de Ananias.
2. Paulo recusou reconhecer Ananias como sumo sacerdote e,
portanto, disse com toda ironia: “Irmãos, eu não sabia que ele era o sumo
sacerdote”. Mas ele estava amplamente informado da história de Israel e
sabia que alguns dos passados sumos sacerdotes tinham sido igualmente
maus.
3. Paulo tinha a visão muito ruim (Gl 4:15; 6:11) e não pôde
distinguir o sumo sacerdote dentre outros membros do Sinédrio. Mas ele
sabia que o sumo sacerdote era quem presidia o Sinédrio.
Qualquer que seja a solução que os comentaristas escolherem,
sempre há objeções. Talvez nós faríamos bem em entender que Lucas
pinta Paulo como um ser humano, com suas virtudes e seus defeitos.
Paulo perdeu o controle quando foi rudemente interrompido pelo sumo
sacerdote e foi golpeado no rosto. Enquanto procura recuperar sua
compostura, faz seu comentário pouco claro. Talvez deva entender-se
como uma aparente desculpa por ter sido descortês com Ananias.
Como doutor da lei que era, Paulo imediatamente citou a lei
mosaica: “Não amaldiçoe nenhuma das autoridades do seu povo” (Êx
22:28, NTLH [Êx 22:27, LXX]). Na Septuaginta se lê como segue: “Não
denigra a Deus nem amaldiçoe o governador de seu povo”. Para ser
Atos (Simon J. Kistemaker) 1112
1435
preciso, os rabinos entendiam a palavra Deus como “juízes”. Deus
quer que Seu povo respeite os seus governantes e obedeça às autoridades
que Ele pôs (veja-se Rm 13:1; 1Pe 2:13–14). Paulo sabia que ele devia
mostrar obediência à autoridade espiritual do sumo sacerdote e assim
citou a Escritura com o propósito de desculpar-se diante de Ananias e
diante de toda a corte.

Palavras, frases e construções gregas em At 23:1–5


Versículo 1
πάοῃ συνειδήσει ἀγαθῇ — este é um dativo de modo. Os dois
adjetivos foram postos antes e depois do nome. O adjetivo precedente
πάσῃ (em todo sentido, completamente) e o adjetivo que segue ἀγαθῇ
(bom; puro, claro) podem ser traduzidos “perfeitamente clara”. O
substantivo deriva da preposição σύν (juntos) e do verbo οἶδα (eu sei); o
que indica conhecimento junto ou consciência. 1436
πεπολίτευμαι — precedido pelo pronome enfático ἐγώ, o verbo no
meio imperfeito (de πολιτεύομαι, eu sou um cidadão) em muitas
passagens tem uma conotação política. Aqui, entretanto, significa viver
como um cidadão em obediência à lei. O grego deste versículo é
excelente.

Versículo 3
κατὰ τὸν νόμον — “segundo a lei”. Note-se o contraste no uso do
particípio ativo presente παρανομῶν (quebrantando a lei). O particípio
indica modo.

1435
SB, vol. 2, p. 766; Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 288; Ernst Haenchen, The Acts of the
Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble e Gerald Shinn (Filadelfia: Westminster, 1971), p.
638 n.2.
1436
Thayer, p. 602.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1113
Versículo 5
ᾔδειν — o mais-que-perfeito do verbo οἶδα (eu sei) tem um
significado imperfeito “Eu não estava a par do fato”.
οὑκ ἐρεῖς — o futuro imperativado, comum na Septuaginta,
comunica uma ordem: “não fale [mal]”.

d. A assembleia (At 23:6–8)

6. Sabendo Paulo que uma parte do Sinédrio se compunha de


saduceus e outra, de fariseus, exclamou: Varões, irmãos, eu sou fariseu,
filho de fariseus! No tocante à esperança e à ressurreição dos mortos sou
julgado!
Lucas apresenta Paulo como um homem que viu a oportunidade de
fazer-se cargo da situação. Educado como um fariseu sob um mestre
capaz e membro do Sinédrio, Gamaliel, conhecia os partidos que havia
na corte. Sabia que o partido governante, que era minoritário, eram os
saduceus, enquanto os fariseus, que constituíam a maioria, exerciam
grande influência, especialmente em assuntos teológicos. (Para uma
detalhado análise dos fariseus e os saduceus, veja-se o comentário sobre
At 4:1–4.) Além disso, Paulo percebeu que o propósito desta reunião era
prover informação útil ao comandante romano.
a. “Varões, irmãos, eu sou fariseu, filho de fariseus!” O texto indica
que o ruído no salão onde se efetuava a assembleia alcançou tal
intensidade, que Paulo teve que gritar para ser ouvido. Sem dúvida
alguma, identificou-se como fariseu, e na verdade, tinha sido um
membro desse partido em seus dias de estudante (At 26:5; Fp 3:5). Além
disso, quando voltou para Jerusalém, no final de sua terceira viagem
missionária, soube que milhares de judeus cristãos eram zelosos da lei
(quer dizer, como fariseus [At 21:20]). E, mesmo diferindo destes
cristãos judeus em alguns pontos, ele, por respeito à sua preocupação,
submeteu-se aos ritos de purificação e ofereceu sacrifício no templo (At
Atos (Simon J. Kistemaker) 1114
21:26). Em matéria doutrinal, estava de acordo com os fariseus.
Portanto, não devemos acusá-lo de faltar com a verdade. 1437
Paulo de novo se dirige aos membros do Sinédrio dizendo “varões,
irmãos”. Habilmente dirige o espírito partidário e se situa ao lado da
maioria constituída pelos fariseus: “Eu sou fariseu, filho de fariseus!” A
frase filho de não necessariamente se refere aos seus antepassados, antes,
este é um termo geral que era comum entre os judeus (p. ex. “filho de
Abraão” e “filho de Davi”). Aqui, a frase parece significar que
respaldava o partido farisaico. 1438
b. “No tocante à esperança e à ressurreição dos mortos sou
julgado!” Paulo tocou um assunto conflitivo: a doutrina da ressurreição,
que unia os fariseus e os cristãos, mas separava os fariseus dos saduceus.
“Na igreja cristã judaica primitiva, uma pessoa poderia chegar a ser
cristão e continuar sendo fariseu, mas um saduceu deveria mudar toda
sua postura teológica”. 1439 Quando Pedro e João pregaram “em Jesus, a
ressurreição dos mortos” (At 4:2), os saduceus se opuseram a eles. Os
saduceus rejeitavam esta doutrina e reagiram com veemência quando
Paulo afirmou que estava sendo julgado por sua esperança na
ressurreição dos mortos.
Em futuros discursos, Paulo de novo menciona o termo esperança.
Diante do rei Agripa explica com eloquência este conceito, dizendo:
“Agora, estou sendo julgado por causa da minha esperança no que Deus
prometeu aos nossos antepassados. Esta é a promessa que as nossas doze
tribos esperam que se cumpra, cultuando a Deus com fervor, dia e noite.
É por causa desta esperança, ó rei, que estou sendo acusado pelos judeus.
Por que os senhores acham impossível que Deus ressuscite os mortos?”
(At 26:6–8, NVI). E em sua reunião com os líderes judeus em Roma,
1437
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 230.
1438
Bauer (p. 833) crê que a expressão “é provavelmente uma referência à sua descendência direta”.
1439
I. Howard Marshall, “The Resurrection in the Acts of the Apostles”, em Apostolic History and the
Gospel, ed. W. Ward Gasque e Ralph P. Martin (Exeter: Paternoster; Grand Rapids: Eerdmans, 1970),
p. 97.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1115
explica que ele é um prisioneiro em razão “da esperança de Israel” (At
28:20). Esta esperança, então, está centralizada na ressurreição dos
mortos. Paulo apresenta esta crença na ressurreição como “a verdadeira
continuação da religião judaica e do povo de Deus” no cristianismo. 1440
Por tal razão, recebe o respaldo tanto dos cristãos judeus como dos
fariseus. Em suas apresentações, a ressurreição de Jesus está
intimamente relacionada com a ressurreição geral, por isso rejeitar uma é
rejeitar a outra (cf. At 13:32–41; 17:31; 26:23). 1441
7, 8. Ditas estas palavras, levantou-se grande dissensão entre fariseus
e saduceus, e a multidão se dividiu. Pois os saduceus declaram não haver
ressurreição, nem anjo, nem espírito; ao passo que os fariseus admitem
todas essas coisas.
Paulo se apresenta como um fariseu que promulga e defende a
doutrina da ressurreição. Logo que emitiu esta afirmação, os fariseus e os
saduceus estiveram em desacordo uns com os outros. Lucas usa a
palavra dissensão, que pode significar “revolta”, mas neste contexto
refere-se à discórdia que degenera em violência física (veja-se v. 10). O
sumo sacerdote Ananias perdeu o controle da situação.
Para benefício dos leitores, Lucas esclarece as diferenças doutrinais
entre os fariseus e os saduceus. Na verdade, acrescenta um pensamento
parentético que equivale a uma nota de rodapé. Diz que os saduceus
rejeitam as doutrinas da ressurreição, dos anjos, e dos espíritos, mas que
os fariseus aceitam todas estas crenças. Por sua afinidade doutrinal com
os cristãos judeus nestes princípios, os fariseus estiveram anuentes, no
momento, em reconhecer em Paulo um deles e defendê-lo contra os
ataques dos saduceus.
Quando os saduceus procuram provar Jesus, inventaram uma
história de sete irmãos que sucessivamente se casavam com a mesma
mulher. Perguntaram-lhe de qual dos sete seria esposa no dia da

1440
Robert J. Kepple, “The Hope of Israel, the Resurrection of the Dead, and Jesus” JETS 20 (1977):
240–41.
1441
Considere-se também as apresentações de Pedro: At 2:24; 3:15; 4:2, 10; 5:30; 10:40.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1116
ressurreição. Sagazmente, Jesus lhes respondeu comparando as pessoas
ressuscitada com os anjos, que não se casam e que não são dados em
casamento (Mt 22:23–32). Confundiu os saduceus ao lhes ensinar as
doutrinas da ressurreição e dos anjos.

Considerações históricas em At 23:1–8


Ao observar os detalhes que descrevem os procedimentos da corte,
um escritor é da opinião que “o incidente é historicamente impossível”, e
que Lucas o escreveu num “estilo anedótico”. 1442 Admitimos que à
primeira vista, o relato de Lucas parece ser problemático, mas os
problemas que enfrentamos não nos dão a liberdade de dizer que Lucas
fabricava ilustrações.
Devido ao fato de que Paulo estava a par dos partidos e as
diferenças doutrinais no Sinédrio, ele sabia que devia semear discórdia
entre os fariseus e os saduceus. precaveu-se que se se uniam eles para
acusá-lo de perturbar a pax romana perderia a proteção do comandante.
Breve, estava pelejando por sua vida, e o relato de Lucas reflete esse
fato.
Se observarmos o estilo de informar de Lucas, descobrimos que
repetidamente comprime seus relatos. Essa brevidade inevitavelmente
gera perguntas a respeito da exatidão histórica, mas através dos Atos,
Lucas provou sua integridade. Por exemplo, o vivido relato a respeito do
sobrinho de Paulo informando do complô contra seu tio obriga ao leitor a
chegar à conclusão de que é o relato de uma testemunha ocular. Outro
exemplo é a descrição da milícia que acompanhou Paulo de Jerusalém a
Antipátride [At 23:31] e Cesareia (At 23:23). Ao menos um erudito
cataloga o relato como “pura fantasia”. 1443 A verdade é que a região

1442
Hans Conzelmann, Acts of the Apostles, trad. por James Limburg, A. Thomas Kraabel, e Donald
H. Juel (1963; Filadélfia: Fortress, 1987), pp. 191–92. Veja-se também Martin Dibelius, Studies in the
Acts of the Apostles (Londres: SCM, 1956), p. 170.
1443
Conzelmann, Acts p. 194.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1117
1444
estava infestada de guerrilhas judaicas; Josefo diz que estes
terroristas provocaram danos incalculáveis durante a administração do
governador Félix. 1445 Esta atividade guerrilheira — e a decisão de mais
de quarenta judeus que queriam assassinar a Paulo — é um exemplo da
falta de ordem que havia naqueles dias. Tal desordem civil faria com que
o comandante romano estivesse particularmente de sobreaviso a respeito
de sua responsabilidade em prover salvo-conduto para Paulo, um
cidadão romano, na forma de 470 homens. Embora seja verdade que
Lucas é parco em seus informes, é veraz na apresentação dos fatos.

Palavras, frases, e construções gregas em At 23:6 e 8


Versículo 6
γνούς — o particípio aoristo de γινώσκω (eu sei) é
constantivo.“Este uso do aoristo contempla a ação em sua totalidade”. 1446
ἔκραζεν — o tempo é o imperfeito descritivo. Lucas descreve Paulo
procurando levantar sua voz para conseguir ser ouvido acima do ruído
que enchia o edifício.
ἐλπίδος καὶ ἀναστάσεως — “a coordenação de duas ideias, uma das
quais é dependente da outra, serve no Novo Testamento para evitar uma
série de genitivos dependentes”. A frase, portanto, significa “um relato
da esperança da ressurreição dos mortos”. 1447
κρίνομαι — “estou julgado”. Paulo não está dizendo que o estão
julgando numa assembleia legal porque o Sinédrio convocou uma sessão

1444
Consulte-se E. M. Blaiklock, “The Acts of the Apostles as a Document of First Century History”,
em Apostolic History and the Gospel, ed. W. Ward Gasque e Ralph P. Martin (Exeter: Paternoster;
Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 48.
1445
Josefo Guerra Judaica 2.13.6 [264–65]; Antiguidades 20.8.5–6 [160–72].
1446
H. E. Dana y Julius R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927; Nova
York: Macmillan, 1967), p. 196.
1447
Friedrich Blass e Albert Debrunner, Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#442.16.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1118
da corte. Pelo contrário, refere-se ao ensino da ressurreição pela qual ele
está sendo julgado.

Versículo 8
μὲν … δέ — o contraste entre os saduceus e os fariseus é perfilado
com estas duas partículas: “uns e os outros”.
τὰ ἀμφότερα — o significado primário deste adjetivo no plural
neutro é “ambos”; quando são mencionadas mais de duas coisas, o
significado secundário é “tudo”. 1448

e. O resgate (At 23:9–11)

9. Houve um grande alvoroço, e alguns dos mestres da lei que eram


fariseus se levantaram e começaram a discutir intensamente, dizendo:
“Não encontramos nada de errado neste homem. Quem sabe se algum
espírito ou anjo falou com ele?” [NVI]
Lucas continua o relato descrevendo o argumento entre os dois
partidos opositores. Os fariseus tomam Paulo como seu protegido porque
ele e eles têm as mesmas crenças doutrinais. Mas os saduceus se opõem
aos seus ensinos e, consequentemente, desejam processar. Gritam tanto
que, como o indica Lucas, alguns dos escribas dos fariseus já não podem
continuar mantendo a calma. Levantam-se e começam a discutir com
veemência com os saduceus. Não podemos dizer se os fariseus estão
sentados separadamente dos saduceus ou se os dois partidos se
misturarem ao usar os assentos disponíveis.
Alguns dos escribas dos fariseus declaram em alta voz que Paulo é
inocente de qualquer delito: “Não encontramos nada de errado neste
homem. Quem sabe se algum espírito ou anjo falou com ele?” Mais uma
vez chamo a atenção ao paralelo entre Jesus e Paulo. Quando Pôncio
Pilatos declarou a Jesus inocente, disse reiteradamente: “Não acho

1448
Bauer, p. 47.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1119
1449
nenhuma base para uma acusação contra este homem”. Alguns dos
fariseus emitem o mesmo juízo quanto a Paulo. Em tais circunstâncias,
Paulo não terá podido menos que notar as semelhanças.
Devemos esperar que numerosos fariseus considerassem que Paulo
era inocente. Durante o ministério de Jesus muitos deles, entre os quais
estavam Nicodemos e José de Arimateia, estiveram de acordo com Ele.
Em Atos, “Lucas nunca denigre os fariseus; para ele, representam o
melhor do judaísmo, e alguns deles nesta ocasião parecem não estar
muito longe do reino de Deus”. 1450
A segunda metade do juízo feito pelos fariseus é decisiva. Em lugar
de mencionar a doutrina da ressurreição, expõem outras duas crenças
doutrinais: “Quem sabe se algum espírito ou anjo falou com ele?” 1451
Eles supunham que um anjo ou um espírito tinha falado a Paulo em sua
conversão perto de Damasco. No contexto, vemos que Lucas provê uma
nota explicativa para suavizar a transição da doutrina da ressurreição à
dos espíritos e anjos (v. 8).
10. A discussão tornou-se tão violenta que o comandante teve medo
que Paulo fosse despedaçado por eles. Então ordenou que as tropas
descessem e o retirassem à força do meio deles, levando-o para a fortaleza
[NVI].
A discussão tornou-se cada vez mais forte e a reação que a
acompanhou alcançou níveis de violência física. Mesmo quando os
fariseus procuraram proteger Paulo, os saduceus o atacam, até o ponto
que esteve em perigo de ser despedaçado.
Quando o comandante romano percebe a situação, ordena aos seus
soldados a entrar no salão da assembleia do Sinédrio e resgatá-lo da
violência física que se levanta ao seu redor. Sob custódia militar, Paulo

1449
Lc. 23:4, 14, 22; Jo. 18:38.
1450
F. F. Bruce, The Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on the New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 429; Haenchen, Acts, p. 643.
1451
Algumas versões acrescentam uma cláusula que não aparece nos manuscritos mais importantes. A
cláusula acrescentada (em itálico) foi introduzida de At 5:39: “Mas se um espírito ou um anjo lhe
falou, não vá a ser coisa que pelejemos contra Deus”.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1120
deixa a reunião e é escoltado até o quartel da Fortaleza Antônia (veja-se
At 21:34; 22:24). Enquanto isso, o sumo sacerdote Ananias e os
saduceus percebem que perderam a oportunidade de fazê-lo condenado,
sentenciado e executado.
11. Na noite seguinte o Senhor, pondo-se ao lado dele, disse: Tem
bom ânimo; pois assim como deste testemunho de mim em Jerusalém,
assim importa também que o dês em Roma [TB].
a. “Na noite seguinte, o Senhor, pondo-se ao lado dele [Paulo]”.
Supõe-se que Paulo está assustado. Ele não tem ideia do que ocorrerá
agora. Duas vezes em dois dias, o comandante romano Cláudio Lísias o
resgatou, primeiro no templo e logo no salão da assembleia do Sinédrio.
Mas quando o perigo o rodeia mesmo que se sinta cercado por todos os
lados, Jesus lhe aparece numa visão (cf. At 18:9; 22:18; 27:23; 2Tm
4:17).
Na noite seguinte, tem uma visão na qual vê Jesus perto dele e que
lhe diz: “Tem bom ânimo”. 1452 Este verbo é um verbo que Jesus usou
com frequência durante o Seu ministério terrestre. Por exemplo, quando
Jesus caminhou sobre o mar no Lago da Galileia e os discípulos se
encheram de medo, Ele lhes disse que tivessem ânimo (Mt 14:27; Mc
6:50).1453 Aqui em Jerusalém, Jesus anima Paulo a que seja valente.
b. “Assim como deste testemunho de mim em Jerusalém, assim
importa também que o dês em Roma”. Que segurança mais incomovível!
Que promessa mais maravilhosa! Justo quando se encontra no final do
caminho, recebe diretamente de Jesus a segurança de que assim como
pregou em Jerusalém, pregará em Roma. Tendo completado sua terceira
viagem missionária, Paulo recebe sua seguinte missão: «vá a Roma e
prega ali». A missão lhe assegura a proteção de Jesus. Note-se,
entretanto, que o Senhor não lhe promete nem liberdade nem uma
viagem prazenteira até a cidade imperial. Garante-lhe que chegará ao seu

1452
O agregado do nome Paulo não tem respaldo nos principais manuscritos. Portanto, os tradutores o
eliminam.
1453
Veja-se também o texto grego de Mt. 9:2; Mc. 10:49; Jo. 16:33.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1121
destino, mas tampouco lhe diz quanto durará a viagem nem que tipo de
perigos o esperam no caminho. Nas palavras de um velho adágio:
Deus não garante uma viagem fácil,
mas prometeu um porto seguro.

Palavras, frases e construções gregas em At 23:9–11


Versículo 9
διεμάχοντο — o tempo imperfeito indica ação progressiva: “eles
começaram e continuaram discutindo violentamente”. A forma composta
deve entender-se no sentido perfectivo.
εἰ — embora traduzida “não é possível” esta partícula introduz uma
frase condicional que carece da segunda metade. A frase deve concluir
com a apódose, “que oposição poderíamos fazer?” 1454

Versículo 10
στάσεως — neste contexto στάσις já não significa “dissensão”
(versículo 7), porque o adjetivo πολλῆς modifica-o para indicar violência
física. O -σις com que finaliza o nome indica atividade continuada; os
genitivos formam a construção absoluta genitiva.
διασπασθῇ — este subjuntivo passivo aoristo está numa cláusula de
medo. A forma é um composto da preposição διά (mediante) e do verbo
σπάω (eu tiro) e significa “tirar dois”. O substantivo espasmo deriva
deste verbo.

Versículo 11
διεμαρτύρω — o médio aoristo da segunda pessoa singular
(“testificaste”) dificilmente difere do infinitivo ativo aoristo μαρτυρῆσαι

1454
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #482.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1122
(testificar). O infinitivo é introduzido por δεῖ (é necessário), o qual
expressa uma ordem divina.
εἰς — antes dos dois substantivos que descrevem as cidades de
Jerusalém e Roma, esta preposição é equivalente a ἐν deveria ser
traduzida “em”.

5. A proteção de Paulo (At 23:12–22)

Depois de uma noite de suave descanso, Paulo sabe que chegará a


ver Roma. Mesmo quando está consciente que os judeus podem estar
conspirando contra sua vida, confia que as forças militares romanas o
protegerão.

a. O complô (At 23:12–15)

12, 13. Na manhã seguinte os judeus tramaram uma conspiração e


juraram solenemente que não comeriam nem beberiam enquanto não
matassem Paulo. Mais de quarenta homens estavam envolvidos nessa
conspiração [NVI].
Com Paulo sob a custódia romana, os judeus lamentam o fato que
tenha evitado seu controle. Quando se reúnem na manhã seguinte,
discutem acaloradamente o assunto com alguns saduceus, expressam seu
ódio para com Paulo, e formam uma conspiração para levá-lo à morte, ao
custo que fosse. Lucas usa o termo judeus só como uma categoria geral,
mais que para indicar que todos os judeus estão incluídos no complô. É
possível que entre eles haja inclusive terroristas, os chamados zelotes (At
21:38), que eram ferozes inimigos da ocupação romana. Esta gente
queria enganar o comandante romano, fazendo Paulo aparecer mais uma
vez em público para poder eliminá-lo.
Os judeus que tramam para assassinar Paulo fazem um juramento
com maldição. Pedem a Deus que os amaldiçoe se consumirem qualquer
alimento ou líquido antes de matar Paulo. Esperam consumar o fato
Atos (Simon J. Kistemaker) 1123
muito em breve, porque não poderão viver sem água além das vinte e
quatro horas. A sede, não a fome, fixa os limites de sua resistência.
Lucas prova ser um mestre da narrativa porque com uns poucos
golpes de sua pena literária descreve a cena com franco humor. Ele se
deleita em descrever o atrevido voto dos judeus de não comer nem beber
até que tenham dado morte a Paulo. Acrescenta que os participantes no
complô são mais de quarenta. Ao revelar que muitos radicais fizeram
esse voto solene, insinua que o complô não poderá manter-se em
segredo.
14, 15. Estes, indo ter com os principais sacerdotes e os anciãos,
disseram: Juramos, sob pena de anátema, não comer coisa alguma,
enquanto não matarmos Paulo. Agora, pois, notificai ao comandante,
juntamente com o Sinédrio, que vo-lo apresente como se estivésseis para
investigar mais acuradamente a sua causa; e nós, antes que ele chegue,
estaremos prontos para assassiná-lo.
O número de pessoas em conhecimento do complô aumenta
dramaticamente quando os potenciais assassinos chegam diante dos
sumos sacerdotes e os anciãos. Informam-lhes do juramento que fizeram;
com efeito, anunciam-lhes o plano de matar a Paulo 1455 e lhe pedem que
o Sinédrio aprove o plano. Qual é seu ardil? Querem que o Sinédrio,
representado por estes líderes, peça a Cláudio Lísias que traga Paulo
diante deles de novo para um interrogatório mais detalhado. O
comandante cairá na armadilha porque como no dia anterior tinha havido
tão grande tumulto, não tinha sido possível fazer um interrogatório
apropriado. Portanto, aconselhava-se uma nova audiência.
No entanto, a solicitude é um pretexto para matar Paulo antes que
chegue à sala de assembleia do Sinédrio. Em outras palavras, se o
comandante aceder à sua petição, os envolvidos no complô estão
dispostos a pelejar contra a milícia romana se for necessário a fim de
alcançar sua meta. Também pensam que o Sinédrio estará de acordo em
aprovar sua proposta devido ao fato de que o sumo sacerdote e os
1455
Cf. At 4:23; 25:2, 15; e veja-se Mt. 26:47.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1124
saduceus desejam que Paulo seja eliminado. E se seu plano falhar,
podem anular seu juramento com base em que não puderam cumprir suas
obrigações. 1456 Mesmo que os juramentos eram irrevogáveis, os doutores
da lei os anulavam quando não podiam ser cumpridos.

Palavras, frases e construções gregas em At 23:12 e 15


Versículo 12
οἱ Ἰουδαῖοι — o Texto majoritário tem um pronome indefinido
(“alguns”) antes deste artigo e substantivo definidos: “alguns dos
judeus”. A presença do pronome forma uma suave transição ao versículo
seguinte (v. 13). Mas segundo uma regra textual, a forma mais difícil é a
melhor. É mais difícil explicar a ausência do pronome que sua presença,
por isso é preferível omiti-lo.

Versículo 15
O Texto ocidental expande o começo deste versículo: “Agora
portanto te pedimos que faça isto por nós: Reúne o Sinédrio e informa o
tribuno”. E o Texto ocidental acrescenta ao versículo uma cláusula
conclusiva: “mesmo que nós tenhamos que morrer também”. 1457
ἀκριβέστερον — este advérbio comparativo funciona como um
superlativo e significa “muito exatamente”. Veja-se também o versículo
20.

1456
Midrash Nedarim 3.3; 9.1. Consulte-se Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, p. 486.
1457
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 488.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1125
b. O complô é descoberto (At 23:16–22)

16, 17. Entretanto, o sobrinho de Paulo, filho de sua irmã, teve


conhecimento dessa conspiração, foi à fortaleza e contou tudo a Paulo,
que, chamando um dos centuriões, disse: “Leve este rapaz ao
comandante; ele tem algo para lhe dizer” [NVI].
Aparentemente, os conjurados não fazem maior esforço por manter
o complô em segredo. Talvez são da opinião que as barreiras culturais e
linguísticas evitariam que os romanos se inteirassem do assunto. Mas
eles deveriam ter sabido que Deus governa e domina. Como Salomão
observa: “Não há sabedoria, nem inteligência, nem conselho, contra o
Senhor” (Pv 21:30; veja-se também Is 8:10). Deus ri das deliberações
dos homens e frustra seus planos. 1458
O vívido desta história escrita mostra claramente a presença de uma
testemunha ocular. Lucas diz que a irmã de Paulo vive em Jerusalém, e
que seu filho escuta o complô dos judeus para matar Paulo. Estas
notícias o alarmam, pelo que visita Paulo no quartel para pô-lo de
sobreaviso do complô. Segundo os costumes desses dias, os prisioneiros
dependiam de seus familiares e amigos para sua comida e outras
necessidades (Hb 10:34; 13:3). Como resultado, o rapaz não tem
problemas para ver seu tio. É possível que o próprio Lucas tenha
acompanhado o rapaz; se tal é o caso, teria sido registrado de forma
indelével na mente do escritor.
Paulo, homem experimentado em complôs dos judeus (At 9:23, 29;
20:3), age imediatamente. Chama um dos oficiais e o instrui a levar a
rapaz diante de Cláudio Lísias. Em harmonia com os costumes daqueles
dias, Paulo se comunica com um comandante através de um oficial de
menor posição. Além disso, não há dúvida de que a relação de Paulo
com os centuriões e o comandante é cordial; como cidadão romano, é
tratado com respeito.

1458
Consulte-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 239.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1126
18, 19. Tomando-o, pois, levou-o ao comandante, dizendo: O preso
Paulo, chamando-me, pediu-me que trouxesse à tua presença este rapaz,
pois tem algo que dizer-te. Tomou-o pela mão o comandante e, pondo-se à
parte, perguntou-lhe: Que tens a comunicar-me?
O centurião leva o rapaz a Cláudio Lísias e apresenta um típico
relatório militar. Diz corretamente quem lhe deu as ordenes, quais eram
as ordens, e a evidência que confirmam as ordens. Identifica Paulo como
o prisioneiro, mesmo que os romanos o tratam cortesmente e não como
um cativo. O oficial diz que Paulo o chamou e lhe pediu que levasse o
rapaz ao comandante. Logo lhe explica que o jovem tem algo a dizer.
Lucas emprega vários termos em grego para descrever o sobrinho de
Paulo como um filho (v. 16) e como um jovem (vv. 17, 18). Mas a
impressão que recebemos é que o rapaz quase não é um adolescente;
nenhum oficial tomaria um adolescente nem menos a um adulto pela
mão. Cláudio Lísias quer que a informação que recebe fosse
confidencial. Entende que se fosse perdida a confidencialidade da
notícia, perderia a oportunidade de agir com eficácia. Tendo encontrado
a privacidade que busca, o comandante dá confiança ao rapaz e com voz
amistosa pede que lhe conte o que tem em mente. Em grego, o tempo do
verbo perguntar indica que manteve uma conversação prolongada com o
rapaz.
20, 21. Respondeu ele: Os judeus decidiram rogar-te que, amanhã,
apresentes Paulo ao Sinédrio, como se houvesse de inquirir mais
acuradamente a seu respeito. Tu, pois, não te deixes persuadir, porque
mais de quarenta entre eles estão pactuados entre si, sob anátema, de não
comer, nem beber, enquanto não o matarem; e, agora, estão prontos,
esperando a tua promessa.
Com infantil candura e franqueza, o menino informa o que ouviu
sobre o plano dos judeus rebeldes. Começa fazendo uma descrição do
complô e logo muda para uma forma direta, na qual roga que o
comandante não escute os judeus. Em seguida, transborda o relato que
quase não começou, para terminar dizendo que o oficial terá que agir
rapidamente.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1127
De forma certeira, o menino comunica a informação que recebeu
sobre o complô (cf. a redação do v. 15). Naturalmente, o essencial do
assunto recai nas palavras como se. E esta ênfase é suficiente razão para
que o rapaz expresse seus temores de que o comandante possa não ver
através do pretexto e possa pôr Paulo, sem querer, em perigo mortal. De
uma forma infantil, o sobrinho de Paulo instrui o comandante a não ouvir
os judeus que virão vê-lo com sua solicitude. Informa a Cláudio Lísias
que mais de quarenta judeus tenderão uma emboscada a Paulo, porque
estão sob juramento de não comer nem beber nada enquanto não o matar.
Completa seu relatório dizendo que de um momento a outro os judeus
estarão diante da porta do comandante esperando sua resposta favorável.
Lucas não diz se o rapaz falou como um familiar próximo de Paulo
ou como um cristão que extraoficialmente representa a igreja. Na análise
final, vemos a mão de Deus guiando e protegendo a Paulo de dano,
estorvando o complô dos judeus.
22. Então, o comandante despediu o rapaz, recomendando-lhe que a
ninguém dissesse ter-lhe trazido estas informações.
Cláudio Lísias aceita como bom o relatório do rapaz, porque
percebe que lhe está dizendo a verdade. O comandante precisa manter a
lei e a ordem em Jerusalém, e aceita com prazer qualquer informação
que lhe permita controlar alguma agitação ou traição. Despede-se do
sobrinho de Paulo com as instruções de que a ninguém conte a
conversação que tiveram. O comandante deseja dissipar qualquer
suspeita que os judeus pudessem chegar a ter das ações que ele irá tomar.
Considerações práticas em At 23:15 e 20
Nestes dois versículos, a frase como se revela uma tentativa
deliberado de enganar ao ouvinte desprevenido e aproveitar-se de sua
ingenuidade. O mundo está cheio de engano: no mercado, na
publicidade, na política, nos testemunhos, para mencionar só algumas
áreas. A tergiversação da verdade está na ordem do dia, pelo que a
sociedade rapidamente perde confiança nas pessoas que deliberadamente
Atos (Simon J. Kistemaker) 1128
distorcem os fatos em suas próprias esferas de influência. “A brecha bem
conhecida da credibilidade em todas estas áreas levou a pedir leis que
obriguem a dizer a verdade na publicidade, dizer a verdade nos
empréstimos, dizer a verdade nos testemunhos.”. 1459
Palavras, frases e construções gregas em At 23:18–21
Versículos 18–19
ἠρώτησεν — quando este verbo aparece no aoristo, é uma forma de
pedido que se deve obedecer. Usa-se o verbo ἐρωτάω (eu requeiro), não
o verbo αἰτέω (eu peço, rogar).
ἔχοντα — este é o particípio ativo presente de ἔχω (eu tenho,
manter) com uma conotação causal: “porque ele tem …”
ἐπυνθάνετο — o tempo imperfeito do verbo πυνθάνομαι (eu
averiguo) é descritivo e indica uma conversação animada.
Versículo 20
ὅπως — com o verbo καταγάγῃς (você traz abaixo), esta é a
cláusula de propósito que segue o infinitivo aoristo articular ἐρωτῆσαι,
que também comunica propósito.
ὡς — a partícula como se (veja-se o v. 15) é o ponto focal na
oração. O particípio singular neutro μέλλον (indo a) está de acordo com
o substantivo Sinédrio.
Versículo 21
μὴ πεισθῇς αὑτοῖς — a proibição negativa está no subjuntivo
passivo aoristo: “não seja persuadido por eles”. O pronome expressa o
dativo de agência.

1459
Ralph E. Powell, “Deceptíon”, em Baker’s Dictionary of Christian Ethics, ed. Carl F. H. Henry
(Grand Rapids: Baker, 1973), p. 167.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1129
B. Em Cesareia (At 23:23–26:32)

1. Paulo é transferido (At 23:23–35)

Cláudio Lísias era diretamente responsável perante o governador


Félix, quem residia na Cesareia. Devido ao fato de que Paulo era um
cidadão romano, cuja segurança pessoal estava ameaçada em Jerusalém,
sabiamente, o comandante decidiu transferi-lo a Cesareia. Ali Félix
poderia decidir no caso.

a. A ordem (At 23:23–24)

23, 24. Então ele chamou dois de seus centuriões e ordenou-lhes:


“Preparem um destacamento de duzentos soldados, setenta cavaleiros e
duzentos lanceiros a fim de irem para Cesaréia esta noite, às nove horas.
Providenciem montarias para Paulo, e levem-no em segurança ao
governador Félix” [NVI].
Fazemos as seguintes observações:
a. Tempo. Lucas diz que os judeus formaram seu complô no curso
da manhã e foram aos principais sacerdotes e anciãos buscando sua
aprovação. Presumivelmente pela tarde o sobrinho de Paulo ouviu do
complô e correu para o quartel. Nessa mesma tarde, o comandante
chamou dois centuriões e lhes deu as seguintes instruções: “Preparem
um destacamento de duzentos soldados, setenta cavaleiros e duzentos
lanceiros a fim de irem para Cesaréia esta noite, às nove horas.
Providenciem montarias para Paulo, e levem-no em segurança ao
governador Félix”.
b. O texto. A passagem apresenta algumas dificuldades. Primeiro, o
Texto ocidental tem uma forma diferente (as mudanças aparecem em
itálico):
“Preparem soldados para ir a Cesareia, cem homens a cavalo e
duzentos lançadores”, e ele lhes ordenou que estivessem preparados
Atos (Simon J. Kistemaker) 1130
para partir para a terceira hora da noite. E ordenou aos centuriões
prover cavalos para Paulo para que andasse, e o levassem durante a noite
a Félix o governador; porque tinha temor que os judeus pudessem
sequestrá-lo [a Paulo] e matá-lo, e depois ele poderia ser acusado de tê-
lo permitido por dinheiro [quer dizer, permitir que linchassem a
Paulo]. 1460
Esta forma indica, primeiro, que a força total consistia de trezentos
homens e, segundo, a razão para as tão extraordinárias medidas de
segurança que Cláudio Lísias tomou. Se os terroristas assassinassem a
Paulo, o comandante seria considerado responsável por sua morte e
“contrairia a acusação de ter recebido dinheiro” (quer dizer, um suborno.
Aceitar um suborno causou a destituição do governador Cumano, o
predecessor de Félix, e Félix mesmo esperava que Paulo o subornasse
[At 24:26]). Mas devido ao limitado respaldo que os manuscritos dão a
esta redação, os tradutores duvidam em adotá-la.
c. A interpretação. Encontramos uma dificuldade na palavra grega
dexiolaboi, a qual literalmente quer dizer, “lançar com a [mão] direita”.
A palavra só aparece aqui e em uns poucos manuscritos dos séculos VII
e X, mas em nenhuma outra parte em toda a literatura grega conhecida.
Eruditos apresentaram uma série de sugestões para esclarecer seu
significado, mas nenhuma é satisfatória. 1461 Em geral, os tradutores usam
a expressão lançadores, porque a lança era atirada com a mão direita. 1462
Outros traduzem a palavra “auxiliar” ou “tropas com armamento leve”.
Qualquer que seja a tradução, o significado da palavra se mantém
incerto.
d. As perguntas. Por que Cláudio Lísias decidiu ordenar tão grande
força para proteger um prisioneiro? Ele não podia julgar se os quarenta

1460
Metzger, Textual Commentary, pp. 488–89.
1461
Lake e Cadbury propõem a tradução “conduzir cavalos”; Beginnings, vol. 4, p. 293. G. D.
Kilpatrick sugere “lançadores das forças da polícia local”; veja-se seu artigo, “Dexiolaboi”, JTS 14
(1963): 393–94.
1462
P. ex., em inglês, KJV, NKJV, NASB, GNB, entre outras; em português, NVI, RA, BJ.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1131
possíveis assassinos tinham alertado outros terroristas fora de Jerusalém,
pelo que quis assegurar-se que suas forças seriam suficientemente
grandes para que um grupo de assassinos não se atrevesse a atacá-los. Os
movimentos das tropas romanas eram o suficientemente comuns para
que um grande número de soldados, cavalaria, e lançadores pudessem
preparar-se para sair de Jerusalém sem levantar imediatas suspeitas entre
os judeus.
Por que ordenou Cláudio a seus oficiais a “prover cavalos, para que
Paulo pudesse cavalgar”? Permitiriam cavalgar os amigos de Paulo
(Lucas e Aristarco), que o acompanhavam a Cesareia? Não o sabemos.
Sabemos que Aristarco era o companheiro de Paulo desde o tempo em
que se levantou a revolta em Éfeso (At 10:29), a viagem de Corinto via
Macedônia a Jerusalém (At 20:4), e a viagem a Roma (27:2). Nas cartas
de Paulo, ele o chama “um companheiro das prisões” (Cl 4:10), que
envia saudações (Fm 24).

Palavras, frases e construções gregas em At 23:23–24


Versículo 23
δύο τινάς — a tradução parece ser a “certos dois” em lugar da “uns
dois”. 1463
δεξιολάβους — a palavra aparece aqui e em uns poucos
documentos dos séculos VII e X, e tem um significado incerto:
“tomando [uma lança] na mão direita”. Um soldado sustentava uma
lança em sua mão direita e um escudo com a esquerda. 1464

1463
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 742.
1464
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #119.1; Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New
Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p. 239.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1132
Versículo 24
κτήνη — do verbo κτάομαι (eu possuo) este substantivo refere-se à
propriedade de uma pessoa, na forma de animais de carga (como cavalos
ou jumentos).
παραστῆσαι — este infinitivo aoristo de παρίστημι (eu provejo; pôr
junto a) serve como um imperativo.
διασώσωσι — o verbo composto no subjuntivo aoristo é seguido
pela preposição πρός (para) e é diretiva: “levem [a Paulo] são e salvo a
[Félix] e protejam-no assim do perigo.

b. A carta (At 23:25–30)

25, 26. E o comandante escreveu uma carta nestes termos: Cláudio


Lísias ao excelentíssimo governador Félix, saúde.
Não devemos pensar que Lucas tinha acesso direto à
correspondência entre um comandante romano e um governador.
Supomos que a essência da carta foi comunicada a Paulo, quem por sua
vez a pôs ao conhecimento de Lucas. 1465 Por esta razão, Lucas prefacia
sua paráfrase com as palavras “escreveu uma carta nestes termos”.
Cláudio dirige a carta “ao excelentíssimo governador Félix”. O
nome do governador é um assunto que está em discussão; pôde ter sido
Tibério Cláudio Félix ou Marco Antônio Félix. 1466 Pelos autores
romanos sabemos que Félix e seu irmão Palas eram ex-escravos que
subiram a posições de influência no governo romano. Em 52 d.C., o
imperador Cláudio nomeou Félix como governador de Cesareia e assim
o elevou a um nível ainda mais alto. Há indicações de que sua
administração durou sete anos e foi menos que distinguida. De fato,

1465
Colin J. Hemer especula no sentido de que “a carta original foi na realidade lida na corte diante da
presença de Paulo”. The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf
(Tubinga: Mohr, 1989), p. 348.
1466
Josefo Antiguidades 20.7.1 [137]; Tácito História 5.9; F. F. Bruce, “The Full Name of Procurator
Felix” JSNT 1 (1978): 33–36; Colin J. Hemer, “The Name of Felix Again”, JSNT 31 (1987): 45–49.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1133
Tácito observa: “[Ele] praticou todo tipo de crueldade e luxúria,
exercendo o poder de um rei com os instintos de um escravo”. 1467 Depois
que Félix derrotou os seguidores do egípcio (At 21:38), bandas de forças
rebeldes vagaram pelos campos à vontade. Saquearam casas, queimaram
vilas, assassinaram a líderes. O resultado foi que por todo o país, mas
especialmente em Jerusalém, reinou um clima político e social
instável. 1468
27. Este homem foi preso pelos judeus e estava prestes a ser morto
por eles, quando eu, sobrevindo com a guarda, o livrei, por saber que ele
era romano.
A carta, escrita num excelente grego, é um relatório militar no qual
um comandante informa ao seu superior de um problema político.
Cláudio explica que ele mesmo fez todo o possível para solucionar o
problema. (Note-se o uso do pronome eu, que em minha tradução
aparece sete vezes em quatro versículos.) Cláudio informa a Félix que
como um comandante militar, ordenou a seus soldados arrebatar a Paulo
dos judeus, que estavam prestes a matá-lo. Acrescenta que fez isto
devido ao fato de que Paulo lhe falou de sua cidadania romana. Aqui
Cláudio coloca-se a si mesmo numa luz favorável, porque na verdade ele
não soube do status de Paulo senão até que deu de que o açoitassem.
Imaginamos que o comandante não menciona nada que pudesse ir contra
ele, daí que seu relatório tenha sido tão direto. Não devemos
necessariamente culpar a Cláudio por distorcer a verdade.
28, 29. Querendo certificar-me do motivo por que o acusavam, fi-lo
descer ao Sinédrio deles; verifiquei ser ele acusado de coisas referentes à
lei que os rege, nada, porém, que justificasse morte ou mesmo prisão.
Com umas poucas frases, Cláudio descreve a ação seguinte que
tomou, que foi levar Paulo diante do Sinédrio para saber a causa das
acusações que se tinham levantado contra ele. Sabiamente deixa de
comentar os procedimentos irregulares que ocorreram no salão onde se

1467
Tácito História 5.9 (LCL).
1468
Schürer, History of the Jewish People, vol. 1, pp. 460–65.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1134
reunia o Sinédrio. Pelo contrário, só resume o assunto legal, dizendo que
tudo tinha relação com controvérsias sobre a lei judaica. 1469 Para
Cláudio, que vê Paulo como um cidadão romano, as acusações dos
judeus não merecem nem a morte nem a prisão. 1470
30. Sendo eu informado de que haveria uma cilada contra este
homem, envio-to sem demora, intimando também aos acusadores que
digam perante ti o que há contra ele [TB].
Cláudio simplesmente afirma que ele ouviu do complô para matar a
Paulo e assume que Félix entenderá. Logo revela que disse aos
acusadores que viajassem a Cesareia para que apresentassem sua
acusação diante do próprio governador. Por esta ação, Cláudio Lísias
apela ao governador para que aja como juiz em nome de um cidadão
romano ao qual está legalmente obrigado a proteger. Na verdade, o
comandante diz a Félix que em sua opinião, Paulo não é um criminoso e
deve ser deixado em liberdade (cf. At 25:11, 25; 26:31–32; 28:18).

Palavras, frases e construções gregas em At 23:27 e 30


Versículo 27
μαθών — o particípio aoristo de μανθάνω (eu aprendo) indica
causa: “porque ele era um cidadão romano”. Distorceu Cláudio Lísias a
verdade? C. F. D. Moule sugere que a fraseologia do comandante
“representa um emprego diplomático dos fatos”. 1471

1469
O Texto ocidental realça a redação acrescentando a cláusula: “[de sua lei] de Moisés e de um certo
Jesus”.
1470
De novo, o Texto ocidental embeleza esta frase, acrescentando no final, “usando a força, com
dificuldade consegui tirá-lo dali”.
1471
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 100.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1135
Versículo 30
ἔσεσθαι — este infinitivo futuro de εἰμί (sou) depende do particípio
passivo aoristo μηνυσθείσης na construção absoluta genitiva: “depois de
que se me revelou que haveria um complô”.
ἔπεμψα — “enviei”. Cláudio Lísias usa o aoristo epistolar e
considera o ponto de vista do destinatário, quem vê a ação como em
tempo passado.

c. A chegada (At 23:31–35)

31, 32. Os soldados, cumprindo o seu dever, levaram Paulo durante a


noite, e chegaram a Antipátride. No dia seguinte deixaram a cavalaria
prosseguir com ele, e voltaram para a fortaleza [NVI].
Por ordem do comandante, os soldados eram os guardas de Paulo.
Partiram de Jerusalém até Antipátride, 65 quilômetros a noroeste.
Quando chegaram a Antipátride, só os setenta homens a cavalo
continuaram com Paulo a Cesareia. As tropas voltaram para Jerusalém.
Surgiram algumas perguntas relacionadas com este fato. Por
exemplo, a ordem original aos dois centuriões foi preparar as tropas que
levariam Paulo são e salvo a Cesareia (v. 23). Mas os soldados foram só
até Antipátride; e dali voltaram para seu quartel em Jerusalém deixando
com a cavalaria a responsabilidade de escoltar Paulo até Cesareia. Uma
boa explicação é que Lucas fala de uma ordem geral, sem especificar
detalhes. Além disso, os setenta homens a cavalo podiam entregar a
Paulo são e salvo a Félix, em Cesareia.
Antipátride era um posto militar romano usado como um lugar de
descanso entre Cesareia e Jerusalém. Herodes, o Grande, tinha
construído a cidade e a tinha dedicado ao seu pai, Antípater. 1472 Para
Paulo, a viagem de Jerusalém a Cesareia marcava de novo a rota que ele

1472
Josefo Guerra Judaica 1.21.9 [417]; veja-se também Antiguidades 13.15.1 [390]; 16.5.2 [143].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1136
1473
tinha tomado duas semanas antes (At 21:15–16). Para os soldados, a
excursão a Antipátride foi meramente mais um de seus habituais
exercícios militares.
33. Quando a cavalaria chegou a Cesareia, deu a carta ao
governador e lhe entregou Paulo [NVI].
Supomos que ao chegar a Antipátride, os soldados e Paulo tomaram
um descanso antes de continuar, no dia seguinte, suas respectivas
viagens. Antipátride estava a uns quarenta quilômetros de Cesareia, o
que significa que os viajantes poderiam fazer a distância antes que caísse
a noite. Quando chegaram, os oficiais romanos entregaram ao
governador a carta de Cláudio Lísias e apresentaram a Paulo como a
pessoa pela qual se organizou a escolta. Os militares tinham cumprido
sua missão e voltaram para seus quartéis. Agora, Paulo ficava sob a
custódia de Félix.
34, 35. O governador leu a carta e perguntou de que província era
ele. Informado de que era da Cilícia, disse: “Ouvirei seu caso quando os
seus acusadores chegarem aqui”. Então ordenou que Paulo fosse mantido
sob custódia no palácio de Herodes [NVI].
Félix leu a comunicação de Cláudio Lísias e percebeu que Paulo
não era nem um criminoso nem um revoltoso. Queria conhecer seus
antecedentes, porque legalmente poderia enviá-lo para juízo à sua
província natal. 1474 Quando Paulo lhe informou que era natural da
Cilícia, o governador decidiu tratar o caso em Cesareia em lugar de
enviá-lo a Tarso. Na época em que Paulo compareceu diante de Félix,
Ummidius Quadratus servia como legado da província de Síria-
Cilícia. 1475 Parece-nos que Félix duvidou em incomodar o legado com

1473
Paulo chegou a Jerusalém na sexta-feira antes do Pentecostes, e umas duas semanas depois se
apresentou diante de Félix. Veja-se o comentário sobre At 24:11; veja-se também Richard B.
Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster Commentaries (1901; reimp.
Grand Rapids: Baker, 1964); pp. 441–42.
1474
A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963: reimp., Grand
Rapids: Baker, 1978), p. 55.
1475
Bruce, Acts (texto grego) p. 473.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1137
um caso tão corriqueiro como esse. Dá a impressão que preferiu não
entrar em antagonismos com os líderes judeus forçando-os a viajar de
Jerusalém a Cilícia.
Félix disse então a Paulo que lhe daria uma audiência cuidadosa
quando seus acusadores chegassem a Cesareia. Supunha que uma
delegação de funcionários judeus de Jerusalém estariam presentes numa
das sessões comuns da corte (veja-se At 24:1). Enquanto isso, mandou
que Paulo fosse mantido prisioneiro no palácio de Herodes, que tinha
sido construído por Herodes, o Grande, e servia como residência do
governador. 1476 Com base na cidadania de Paulo, Félix devia tê-lo
deixado livre. Pelo contrário, manteve-o sob guarda enquanto esperava
que chegassem os judeus.

Palavras, frases e construções gregas em At 23:31–35


Versículo 31
μὲν … δέ — estas duas partículas mostram sequência de ação mais
que de contraste: os soldados viajaram a Antipátride e logo voltaram a
Jerusalém.
διὰ νυκτός — “de noite”. A preposição indica que a viagem durou
toda a noite (cf. At 5:19; 16:9; 17:10). Sem a preposição, o substantivo
no caso genitivo geralmente quer dizer “de noite”. 1477

Versículos 34–35
ἐκ — esta preposição aqui é uma variação estilística de ἀπό (de).
ποίας — o pronome interrogativo descreve a qualidade do nome ao
qual modifica. Mas neste contexto, simplesmente introduz uma questão
simples e assim especifica localização.

1476
Josefo Antiguidades 15.9.6 [331].
1477
No grego, veja-se Mt. 2:14; 28:13; Lc. 2:8; Jo. 3:2; 19:39; At. 9:25.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1138
κελεύσας — embora dada na forma de um particípio aoristo, a
palavra é traduzida como um verbo finito: “ele ordenou”.

Resumo de Atos 23
Paulo enfrenta os membros do Sinédrio e começa a falar-lhes. Mas
depois de ter pronunciado a primeira frase, o sumo sacerdote o
interrompe e ordena que alguns espectadores o espanquem na boca.
Paulo reage chamando-o de parede branqueada, recebe uma reprimenda
por este comentário e se desculpa. Sabendo que alguns membros do
Sinédrio são saduceus e outros fariseus, Paulo com voz forte proclama
que ele é fariseu e que crê na ressurreição dos mortos, doutrina que os
saduceus não aceitam. Os fariseus o apoiam, produz-se uma disputa, e
como resultado Paulo está prestes a ser despedaçado. O comandante
romano chama seus soldados, que o resgatam e o levam de novo ao
quartel da Fortaleza Antônia.
Durante a noite, o Senhor aparece a Paulo numa visão e o anima
com o anúncio de que deve pregar o evangelho em Roma. Enquanto isso,
os judeus se confabulam para matá-lo. Pedem ao Sinédrio que faça com
que Paulo compareça de novo na corte, porque eles planejam assassiná-
lo enquanto é levado do quartel romano ao Sinédrio. O sobrinho de
Paulo ouve do complô, corre a Paulo, e lhe conta tudo. O menino é
levado ao comandante romano e lhe diz que quarenta judeus fizeram um
juramento de não comer nem beber nada até matarem Paulo. O
comandante ordena a dois centuriões para preparar suas tropas para
acompanhar a Paulo a Cesareia nessa mesma noite. Escreve uma carta ao
governador Félix e envia seus soldados. Os soldados a pé vão só até
Antipátride e dali voltam a Jerusalém, enquanto a cavalaria segue com
Paulo até Cesareia. Quando chegam ali, os oficiais entregam a carta e
Paulo a Félix, quem o põe sob custódia militar no palácio de Herodes.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1139
ATOS 24
EM JERUSALÉM E EM CESAREIA, parte 4 (Hch 24:1–27)
2. Paulo diante de Félix (At 24:1–27)

O comparecimento de Paulo diante do Sinédrio não poderia ser


catalogado como um juízo bem-sucedido (At 23:1–11). Mas quando o
comandante Cláudio Lísias o mandou a Félix com uma carta (At 23:26–
30), pôs o caso diante do governador e pediu a ele para pronunciar-se
sobre a matéria.

a. A introdução (At 24:1–4)

1. Cinco dias depois, o sumo sacerdote Ananias desceu a Cesaréia


com alguns dos líderes dos judeus e um advogado chamado Tértulo, os
quais apresentaram ao governador suas acusações contra Paulo [NVI].
Lucas escreve como uma testemunha ocular que levou um diário
detalhado da detenção, prisão, e juízo de Paulo. Note-se a referência a
um lapso de cinco dias antes que o juízo pudesse começar. Depois de seu
arresto, Paulo tinha passado um dia e meio ou dois em Jerusalém antes
de ser levado a Cesareia. A viagem durou aproximadamente um dia e
meio a dois. Depois da partida de Paulo, Cláudio Lísias disse aos líderes
judeus que apresentassem suas acusações contra Paulo diante do
governador Félix em Cesareia (At 23:30). Os líderes lembraram de
formular suas acusações e pediram a um advogado chamado Tértulo que
fosse com eles e falasse por eles no juízo. Sem demora, saíram para
Cesareia. No tempo de sua chegada ao menos tinham passado cinco dias
desde que Paulo fora detido em Jerusalém. 1478

1478
Outra tradução é, “Cinco dias mais tarde … Ananias foi a Cesareia” (GNB) o que significa que
cinco dias depois da chegada de Paulo a Cesareia, apareceu Ananias.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1140
O sumo sacerdote Ananias considerou o caso contra Paulo de tal
importância que ele mesmo, o principal governante dos judeus, estimou
que devia estar presente no juízo. Além disso, a prudência lhe disse que
ganhasse o favor das autoridades romanas. 1479 Ananias foi acompanhado
por alguns dos anciãos, representando o Sinédrio. Supomos que estes
anciãos, precisamente, respaldavam a posição dos saduceus. Estes líderes
religiosos desistiram de apresentar as acusações eles mesmos, de
maneira que contrataram um advogado chamado Tértulo para que fosse
o seu porta-voz.
O nome Tértulo é uma forma diminutiva do Tércio, que significa
“terceiro” (cf. Rm 16:22). Tértulo possivelmente era um judeu que tinha
nascido e se criou na Dispersão. 1480 Parecia que tinha estudado a lei
romana e provavelmente sabia latim.
2, 3. Quando Paulo foi chamado, Tértulo apresentou sua causa a
Félix: “Temos desfrutado de um longo período de paz durante o teu
governo, e o teu providente cuidado resultou em reformas nesta nação.
Em tudo e em toda parte, excelentíssimo Félix, reconhecemos estes
benefícios com profunda gratidão.
A chegada do sumo sacerdote, acompanhado como vinha com um
orador e anciãos judeus, impressionou o governador Félix. Estes
dignitários tinham viajado depressa a Cesareia o que faz supor que
desejavam evitar uma demora na convocatória ao juízo. Assim, o
governador os agradou e mandou um soldado trazer Paulo à sala do
juízo.

1479
No tempo de Ananias “reis clientes judeus (Herodes de Caldeia e Agripa II)” nomeavam o sumo
sacerdote, mas anteriormente tal prerrogativa pertencia aos governadores romanos. Veja-se Emil
Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D. 135), rev. e ed.
por Geza Vermes e Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 1, p. 377.
1480
John Albert Bengel opina, “Parecesse ter sido italiano”. Gnomon of the New Testament, ed.
Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 706. F. F. Bruce o vê como um
helenista. The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed. rev. e
aum. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 475.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1141
Por todas as aparências, Lucas está presente em todos estes
procedimentos. Embora talvez não ofereça um relato palavra por palavra,
pinta Tértulo com realismo, descrevendo-o como dono de uma florida
retórica. Primeiro exalta Félix e logo acusa Paulo de rebelião.
a. “Temos desfrutado de um longo período de paz durante o teu
governo”. A administração de Félix, que tinha começado cinco anos
antes (52 d.C.) não se tinha caracterizado de forma alguma por uma paz
permanente. Félix tinha derrotado um bando de quatro mil judeus
dirigidos por um egípcio que tinha prometido derrocar o governo romano
e lançar da Fortaleza Antônia a guarnição romana (veja-se At 21:38).
Também tinha capturado e crucificado a um número incalculável tanto
de insurgentes como de cidadãos inocentes. 1481 Suas ações repressivas
tinham provocado uma reação entre os cidadãos judeus que desejavam a
independência de Roma. Os rebeldes e assassinos pululavam livremente
pelo país, de modo que a vida em Israel já não era segura para ninguém
que promovesse o governo romano. Só aquelas pessoas que eram
parciais a Roma apoiavam as medidas brutais do governador Félix. Entre
eles estava o orador Tértulo, cujo exagerado louvor agradou a Félix.
b. “E o teu providente cuidado resultou em reformas nesta nação”.
Tértulo emprega a lisonja que de maneira nenhuma é congruente com a
realidade. Usa as palavras previdente cuidado, uma expressão teológica
que em seu contexto do Antigo Testamento refere-se ao cuidado de Deus
por Seu povo. 1482 Mas o governador carecia da virtude de previsão. De
fato, custaria muito aos judeus mencionar alguma reforma iniciada por
Félix que tenha sido benéfica. Sua administração foi tão opressiva que
Nero o destituiu dois anos depois do juízo de Paulo (cf. v. 27). Ao sair,
Félix deixou a Palestina num estado tal de desordem civil, que tudo isso

1481
Josefo Guerra Judaica 2.13.2 [253]; Antiguidades 20.8.5 [160]; Schürer, History of the Jewish
People, vol. 1, p. 463.
1482
Paul Jacobs e Hartmut Krienke, NIDNTT, vol. 1, p. 694; Johannes Behm, TDNT, vol. 4, pp. 1011–
12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1142
culminou pouco depois com a guerra judaica. Durante a guerra,
Jerusalém e o templo foram destruídos e o sacerdócio terminado.
c. “Em tudo e em toda parte, excelentíssimo Félix, reconhecemos
estes benefícios com profunda gratidão”. Lucas dá ao leitor uma amostra
das exageradas adulações de Tértulo para o governador. Os três
qualificativos profunda, em tudo, e em toda parte realçam o efeito. A
lisonja de Tértulo é imerecida; embora o epíteto excelentíssimo seja um
título de respeito, a história mostra que Félix não fez nada por merecê-lo.
4. Entretanto, para não te deter por longo tempo, rogo-te que, de
conformidade com a tua clemência, nos atendas por um pouco.
Tértulo percebe que seus elogiosos comentários parecem cansar o
governador. Como um prefácio às acusações que vai apresentar, Tértulo
apela à gentileza do governador e lhe implora que o escute por alguns
momentos. O irônico da situação é que a queixa contra Paulo é tão fraca
que se requer de uma longa cascata de louvores para dar a aparência de
algo consistente. Como o mesmo Tértulo o admite, tem pouco a dizer.

Palavras, frases e construções gregas em At 24:1–4


Versículos 1–2
κατά — seguida por um substantivo no caso genitivo, a preposição
neste contexto significa “contra”.
κληθέντος — Lucas emprega um termo legal, “citado”. É o
particípio passivo aoristo de καλέω (eu chamo) e com o pronome αὑτοῦ
forma a construção absoluta genitiva. A referência é a Paulo.
πολλῆς εἰρήνης — o uso do adjetivo grande para modificar a
palavra paz indica um grosseiro exagero. O genitivo depende do
gerúndio τυγχάνοντες (encontrando, experimentando).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1143
Versículos 3–4
ἀποδεχόμεθα — “reconhecemos”. Em grego, o verbo carece de um
objeto direto, o qual é suprido na tradução. Lucas informa de todas as
inconsistências gramaticais em que incorre o orador.
ἐγκόπτω — “Eu obstruo, estorvar”. “As versões siríaca e armênia
entendem este verbo como se quisesse dizer para não te seguir
incomodando”. 1483

b. A acusação (At 24:5–9)

Nas seguintes poucas frases, Tértulo apresenta três acusações: pinta


Paulo como um revoltoso, um líder da seita dos nazarenos, e um
profanador do templo. Diz a Félix que ele mesmo investigue a
veracidade das acusações.
5, 6a. Verificamos que este homem é um perturbador, que promove
tumultos entre os judeus pelo mundo todo. Ele é o principal cabeça da
seita dos nazarenos e tentou até mesmo profanar o templo [NVI].
Admitindo que Lucas não transcreve o discurso, de qualquer
maneira registra a torpe estrutura da frase grega dita por Tértulo. Uma
tradução insípida da primeira frase seria: “Encontrando este homem ser
um revoltoso que incita à rebelião entre todos os judeus através do
mundo”. Sem aprofundar muito, encontramos que a frase requer um
verbo principal (cf. o texto grego de Lucas 23:2). Lucas assinala os erros
gramaticais deste orador com certeza jornalística. 1484 Parecia querer
demonstrar que o orador é incapaz de convencer a corte.
A acusação está apresentada em três partes:
Primeiro, Tértulo refere-se depreciativamente a Paulo como “este
homem” e o chama um revoltoso. Em grego, a palavra loimos na verdade
1483
Bauer, p. 216.
1484
James Hope Moulton afirma que “Lucas sem piedade informa do discurso do orador palavra por
palavra”. A Grammar of New Testament Greek, vol. 1, Prolegomena, 2ª. ed. (Edimburgo: Clark,
1906), p. 224.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1144
significa uma pessoa que esparrama pestilência. Paulo, então, ameaça o
bem-estar público pelo que deveria ser tirado da circulação ou
completamente eliminado. O orador afirma que Paulo está incitando a
rebelião entre o povo judeu de todas as partes do mundo. Mesmo que a
afirmação seja exagerada, do ponto de vista do governador é algo sério.
Tértulo pinta Paulo como uma pessoa sediciosa que ameaça o estado
romano.
Segundo, o orador diz que Paulo é um cabeça da seita dos
nazarenos. Ao ser traduzida, em geral a palavra nazareno é interpretada
como “de Nazaré”. 1485 Os judeus identificavam os cristãos como
seguidores de Jesus, o Nazareno, 1486 mas por que Tértulo falou da seita
dos nazarenos? “Pode-se supor que nos tempos pré-cristãos tenha
existido um partido de judeus sectários nazoreano, aquele que era
reconhecido por sua estrita observância de regras de conduta de tipo
ascético. É possível que este partido tenha sido chamado pejorativamente
pelos judeus ortodoxos Nazoraioi, e que nos tempos do cristianismo
tenham aplicado este termo de desrespeito, sabendo ou por ignorância, à
nova seita cristã”. 1487 Tértulo tenta apresentar a assim chamada seita
nazarena como um partido político; no entanto, fracassa em sua intenção,
porque Félix está a par da existência da fé cristã (v. 22).
Terceiro, Tértulo diz que Paulo procurou profanar o templo, “mas
nós o prendemos”. No máximo, a afirmação é uma meia verdade, porque
os judeus tentaram matar Paulo quando o apreenderam no templo (At
21:27, 30).

1485
As dificuldades linguísticas persistem com relação à soletração; veja-se Hans Heinrich Schaeder,
TDNT, vol. 4, p. 879; Karl Heinrich Rengstorf, NIDNTT, vol. 2, pp. 332–34. Pelos Evangelhos
sabemos que as frases Jesus da Galileia e Jesus de Nazaré são virtualmente sinônimas (Mt. 26:69,
71), e a inscrição na cruz de Jesus incluiu a palavra Nazaré como uma referência ao seu lugar de
origem (Jo. 19:19). Os judeus, especialmente aqueles que viviam em Jerusalém e na Judeia,
consideravam a Galileia uma área atrasada e o termo Nazaré era depreciativo (veja-se Jo. 1:46).
1486
Em Atos, veja-se At 2:22; 3:6; 4:10; 6:14; 22:8; 24:5; 26:9.
1487
David H. Wallace, “Nazarene”, ISBE, vol. 3, p. 500.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1145
[6b-8a. nós o prendemos com o intuito de julgá-lo segundo a nossa lei.
Mas, sobrevindo o comandante Lísias, o arrebatou das nossas mãos com
grande violência, ordenando que os seus acusadores viessem à tua
presença.]
Considere estes dois pontos:
a. O texto. Esta passagem, relegado por muitas traduções à uma
simples nota de rodapé, 1488 não aparece nos principais manuscritos. Com
o respaldo dos manuscritos menores no Texto ocidental, aparece em
algumas versões. 1489 A interpretação do v. 8 (“Se tu mesmo o
interrogares, poderás verificar a verdade”, NVI) depende se se inclui ou
se elimina a passagem. 1490
Alguns eruditos creem que estes versículos foram acrescentados por
algum escriba para conseguir uma transição suave do versículo 6a ao
versículo 7. Eles não incluem estes versículos e interpretam a passagem
como que Félix interrogará a Paulo a respeito das acusações
apresentadas pelos judeus contra ele.
Outros eruditos, pelo contrário, incluem em suas traduções a
passagem em questão. Aduzem que o contexto geral indica que Lícias é
a pessoa a quem o governador deve interrogar (veja-se v. 22) e, pelo
menos, considerar a passagem ou não. 1491
b. A explicação. A palavra e a sintaxe no agregado do Texto
ocidental encaixam com a estrutura do discurso de Tértulo; sem o
agregado, o discurso parecesse interromper-se abruptamente depois da

1488
Veja-se, p. ex., RSV, NASB, NEB, GNB, BJ, NVI.
1489
KJV, NKJV, JB, MLB. O Textus Eeceptus e a Vulgata também incluem esta passagem, mas
Arthur L. Farstad e Zane C. Hodges a eliminam. The Greek Text According to the Majority Text
(Nashville: Nelson, 1982), p. 459.
1490
Consulte-se James Hardy Ropes, “The Text of Acts”, Beginnings, vol. 3, p. 225.
1491
Veja-se Albert C. Clark, The Acts of the Apostles: A Critical Edition with Introduction and Notes
on Selected Passages (1933; Oxford: Clarendon, 1970), p. xlvii. Consulte-se também F. F. Bruce, The
Book of the Acts, ed. rev., série New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1988), p. 441.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1146
1492
frase então o prendemos. O agregado é, claramente, um protesto
contra Lísias; Tértulo queixa-se ao governador de que o comandante saiu
de sua jurisdição. Os romanos tinham dado aos judeus a autoridade de
executar a qualquer pessoa que profanasse o seu templo. Portanto, ao
tirar Paulo da área do templo, o comandante tinha violado
flagrantemente as prerrogativas judaicas.
Tértulo continua expressando seu desagrado ao lembrar a Félix a
ordem de Lísias de que os líderes judeus apresentassem suas acusações
contra Paulo diante do governador (veja-se At 23:30). Se não tivesse
sido por essa ordem, não teriam tido motivo para viajar a Cesareia. A
queixa do orador parece ser justificada.
Uma coisa é dizer que um escriba percebeu uma pausa depois da
frase nós o prendemos e logo construiu a transição. Mas é outra muito
diferente explicar a omissão desta passagem se é que estava no
original. 1493 Deixando de lado as evidências textuais, a forma do Texto
ocidental tem um tom de autenticidade. Portanto, não desejo bloquear
sua inclusão, mas prudentemente a coloco entre colchetes.
8b, 9. Tu mesmo, examinando-o, poderás tomar conhecimento de
todas as coisas de que nós o acusamos. Os judeus também concordaram
na acusação, afirmando que estas coisas eram assim.
Sem o agregado do Texto ocidental, a sintaxe indica que a palavra o
(“Tu mesmo, examinando-o”) referir-se-ia ao antecedente mais próximo,
que seria Paulo. Em outras palavras, Tértulo está dizendo a Félix que ele
duvida que Paulo vá negar a informação na presença do governador. Por
isso anima Félix a interrogá-lo e assim saber se a acusação dos judeus
apresentada contra ele é verdadeira.
Se for aceito o agregado como original, o antecedente mais próximo
para o pronome o seria Lísias. Esta forma harmoniza com o versículo 22,

1492
Lake e Cadbury afirman: “Ao sopesar todos os argumentos ali apresente, parece haver uma
notável preponderância em favor do Texto ocidental”. Beginnings, vol. 4, p. 299.
1493
Henry Alford, Alford’s Greek New Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4
vols. (1877; Grand Rapids: Guardian, 1976), vol. 2, p. 262.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1147
que diz que Félix posterga o juízo até a chegada de Cláudio Lísias. Logo,
que Tértulo crê que o governador deve investigar as queixas que os
judeus apresentaram contra o comandante. Uma dificuldade com esta
interpretação é que os judeus estão interessados em obter que Félix
investigue as acusações contra Paulo. 1494 Também queriam que Félix
repreenda a Lísias por interferir em seus objetivos e usurpar suas
prerrogativas. Embora esta interpretação demonstra o fastidioso que
eram os judeus, não se esclarece todo o contexto (v. 22). A evidência
textual continua sendo não concludente; portanto, mantenho meu critério
de pôr o texto entre colchetes.
O discurso pronunciado pelo advogado Tértulo revela ser do
principio ao fim uma pomposa oratória que não oferece nenhuma
evidência concludente. Ao pedir a Félix que investigue todas as
acusações contra Paulo, Tértulo implicitamente está admitindo a
fraqueza da evidência que apresentou.
Lucas termina dizendo que Ananias e os anciãos ofereceram seu
respaldo ao discurso de Tértulo. A ironia do episódio é que Ananias,
quem impediu que Paulo falasse na assembleia do Sinédrio (At 23:2),
agora é forçado a escutar a defesa que o acusado faz.

Palavras, frases e construções gregas em At 24:5 e 8


Versículo 5
εὑρόντες — o particípio ativo aoristo (encontrando). Devido ao fato
de que não está o verbo principal, a frase é incoerente. A forma deveria
ser εὕρομεν (encontramos).
στάσεις — “revoltas”. O Texto majoritário tem o singular
“dissensão” (NKJV).

1494
Édouard Delebecque diz que sobre a base do contexto geral, a referência deve ser a Paulo. “Saint
Paul avec ou sans le tribun Lysias en 58 à Césarée (Actes, XXIV, 6–8)”, RevThom 81 (1981): 426–34.
Com sua brevidade característica (cf. At 7:16; 20:24, 32) Lucas abrevia fos atos de maneira que suas
referências a Lísias e Paulo coincidem.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1148
Versículo 8
ἀνακρίνας — este particípio ativo aoristo do verbo ἀνακρίνω (eu
pergunto, interrogar) indica condição: “Se averiguar”.

c. A resposta (At 24:10–16)

Ao informar sobre os discursos tanto de Tértulo como de Paulo,


Lucas dedica muitíssimo mais espaço à defesa de Paulo que à acusação
de Tértulo. Note-se que as palavras de respeito de Paulo para Félix são
relativamente breves (a metade de um versículo), enquanto os elogios de
Tértulo são longos (três versículos).
10. Quando o governador lhe deu sinal para que falasse, Paulo
declarou: Sei que há muitos anos tens sido juiz nesta nação; por isso, de
bom grado faço minha defesa [NVI].
Lembremos que Félix tinha recebido uma carta de Cláudio Lísias na
qual o colocava a par de uma série de fatos. Ele sabia, portanto, que
Paulo era um cidadão romano, que as acusações contra ele tinham que
ver com um assunto da lei judaica, que os judeus queriam matar Paulo, e
que este não fez nada para merecer a pena de morte e nem sequer a
prisão (At 23:27–29). Também sabia que Lísias tinha ouvido de um
complô dos judeus contra Paulo.
Quando os representantes do Sinédrio se apresentaram diante de
Félix com seu orador, que fracassou em oferecer evidência convincente,
o governador se incomodou. Fazendo um gesto para Paulo, deu-lhe
permissão para que falasse. 1495
a. “Sei que há muitos anos tens sido juiz nesta nação”. Paulo evita
pronunciar elogios a Félix, e em seu lugar estabelece um fato neutro e
objetivo. Diz que o governador foi um juiz, porém não o qualifica com
1495
O Texto ocidental aumenta esta passagem: “E quando o governador fez um gesto a ele para expor
sua própria defesa, Paulo respondeu; e tendo assumido uma posição de dignidade, disse …” Bruce M.
Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e Nova York:
Sociedades Bíblicas Unidas, 1975) p. 491. (Os agregados aparecem em itálico.)
Atos (Simon J. Kistemaker) 1149
adjetivos. Faz notar que Félix ocupou esta acusação por muitos anos
(Félix sucedeu Cumano como governador em 52 d.C.). 1496 Segundo o
historiógrafo romano Tácito, Ventídio Cumano governou Galileia desde
ano 48 até o 52 d.C. e Félix governou Samaria (e Judeia)
simultaneamente até que Cumano foi deposto em 52 d.C., quando Félix
veio a ser governador da província da Judeia. 1497 Nós sugerimos que a
expressão muitos anos seja tomada literalmente, não retoricamente, para
referir-se à sua administração na década dos cinquenta.
b. “Por isso, de bom grado faço minha defesa”. Paulo sugere que
Félix está acostumado aos juízos na Judeia e estaria em condições de
entender assuntos que têm que ver com as diferenças entre o judaísmo e
o cristianismo. Portanto, animadamente começa sua defesa, porque quer
expor diante de um juiz que conhece algo do Caminho, os fatos tal como
sucederam (veja-se v. 22). Confia em que Félix provará ser um juiz
imparcial.
11, 12. Facilmente poderás verificar que há menos de doze dias subi
a Jerusalém para adorar a Deus. Meus acusadores não me encontraram
discutindo com ninguém no templo, nem incitando uma multidão nas
sinagogas ou em qualquer outro lugar da cidade [NVI].
No começo, Paulo compromete a Félix no juízo ao desafiá-lo a que
comprove que só tinham passado doze dias desde que tinha chegado a
Jerusalém para celebrar a festa do Pentecostes. Convida Félix a
perguntar aos líderes judeus quando o tinham visto pela primeira vez na
cidade. Eles percebem que o governador sabe exatamente a data dos
festivais judaicos. Também sabem que Félix se mantém em estreito
contato com o comandante militar em Jerusalém.
a. “Há menos de doze dias subi a Jerusalém para adorar”. Para esta
frase há duas interpretações. Alguns eruditos dizem que o lapso de doze
1496
Josefo Guerra Judaica 2.12.8 [247]; Antiguidades 20.7.1 [137].
1497
Tácito Anais 12.54.3; Schürer, History of the Jewish People, vol. 1, p. 459 n. 15. Mas Ernst
Haenchen tem sérias dúvidas da exatidão do relatório de Tácito. Mostra que Félix não foi nomeado
governador senão até o ano 52 d.C. The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble
y Gerald Shinn (Filadélfia: Westminster, 1971), pp. 68–70.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1150
dias estende-se do tempo em que Paulo chegou a Jerusalém até o
momento de sua defesa diante de Félix. Assumem que Paulo chegou a
Jerusalém na sexta-feira antes do Pentecostes e contam esse como o
primeiro dia. Logo, no sábado reuniu-se com Tiago e os anciãos (At
21:18). No domingo o templo é purificado (At 21:26), e antes que
termine a semana de purificação, é detido (At 21:27). No oitavo dia
(sexta-feira) comparece diante do Sinédrio (At 22:30) e no dia nono
(sábado) às nove da noite é levado de Jerusalém a Cesareia, onde chega
na segunda-feira, que é o dia número onze. Os líderes judeus chegam a
Cesareia na terça-feira (décimo segundo dia) e o juízo diante de Félix
tem lugar na quarta-feira. 1498 A dificuldade com esta opinião é que se
Paulo foi ao templo no domingo para a purificação, ele receberia o
aspergimento com a água da expiação no terceiro dia seguinte ao
domingo, quer dizer, na terça-feira; e o segundo aspergimento teria
ocorrido no sétimo dia, a saber, no sábado. Em resumo, Paulo deveria ter
estado mais tempo do que estes eruditos indicam.
Outros estudiosos tomam o período de doze dias com referência ao
período total do tempo que passou em Jerusalém, desde sua chegada até
sua saída. Seguindo Adolfo Schlatter, Ernst Haenchen traça a semana de
purificação de Paulo do terceiro dia até o nono dia, faz comparecer a
Paulo diante do Sinédrio no décimo dia, e o traslado a Cesareia o
localiza no dia doze. 1499 A dificuldade com esta opinião é que Paulo
menciona este período de doze dias ao governador Félix e não ao sumo
sacerdote judeu. O sumo sacerdote Ananias certamente saberia que
Paulo tinha passado doze dias em Jerusalém, porém Félix pôde haver
entendido que este período era contínuo até seu comparecimento diante
dele.

1498
Consulte-se Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles: An Exposition, série Westminster
Commentaries (1901); reimp., Grand Rapids: Baker, 1964), p. 441; Alford, Alford’s Greek Testament,
vol. 2, p. 263.
1499
Haenchen, Acts, p. 654 n. 2. Bruce adota esta ordem, mas coloca Paulo chegando a Cesareia no
dia 12. Acts (texto grego), p. 631.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1151
Percebemos que é complicada uma relação exata, primeiro, porque
não sabemos o dia preciso em que Paulo foi detido nos átrios do templo
(At 21:27) e, segundo, porque em geral, naqueles tempos parte de um dia
era contado como um dia completo. Inclinamo-nos a dizer, entretanto,
que a interpretação que limita o período de doze dias à permanência de
Paulo em Jerusalém tem seu mérito. Em conclusão, o que Paulo está
querendo assinalar é que o tempo que esteve em Jerusalém foi breve.
b. “Com ninguém no templo, nem incitando uma multidão nas
sinagogas ou em qualquer outro lugar da cidade”. À vista das
advertências que tinha recebido durante sua viagem a Jerusalém (At
20:23; 21:4, 11) e do conselho de Tiago e os anciãos quando esteve na
cidade (At 21:20–24), Paulo evitou aparecer em público. Salvo para
fazer os correspondentes arranjos para a purificação, manteve-se
afastado do templo. Tampouco visitou as sinagogas locais. Em nenhuma
parte tinha provocado nem distúrbios nem revoltas. Em lugar disso, diz,
“Subi a Jerusalém para adorar”. Ele queria estar com os cristãos judeus e
fortalecer os vínculos de unidade entre eles e os crentes gentios. Para ele,
adorar significa servir a Cristo com Seu povo.
c. “Meus acusadores não me encontraram discutindo com ninguém
no templo, nem incitando uma multidão”. O texto é enfático, como o
mostra o uso de três advérbios negativos sucessivos: “não me
encontraram ... ninguém no templo … nem incitando uma multidão”. Em
sua defesa, Paulo refuta as acusações de que havia sido um revoltoso que
provoca distúrbios. Declara que esta acusação carece de base.
13. Nem tampouco podem provar-te as acusações que agora estão
levantando contra mim [NVI].
Paulo põe Tértulo e os líderes judeus na defensiva ao desafiá-los
que provem, na presença do governador, que ele tinha causado distúrbios
em Jerusalém. Segundo a lei judaica, uma acusação devia ser respaldada
por duas ou três testemunhas (Dt 17:6; 19:15). Os oponentes de Paulo
não podem apresentar evidência que respalde sua acusação. Por tal
motivo, Paulo passa da primeira acusação de causar distúrbios (um delito
Atos (Simon J. Kistemaker) 1152
político) à segunda, de ser um líder da seita dos nazarenos (v. 8; um
assunto religioso).
14. Porém confesso-te que, segundo o Caminho, a que chamam seita,
assim eu sirvo ao Deus de nossos pais, acreditando em todas as coisas que
estejam de acordo com a lei e nos escritos dos profetas.
Sua resposta à imputação de que é um líder cristão é direta:
abertamente admite diante de Félix que é um cristão. Não tem nenhum
desejo de esconder este fato tão importante. No entanto, destrói a
importância da acusação dos judeus ao pôr o fato no contexto de que ele
serve ao Deus de Israel. Quer que o governador saiba que os seguidores
do Caminho procedem do judaísmo, reconhecido legalmente como
religião no império romano. Paulo serve ao Deus de seus antepassados e
diz que a religião cristã tem suas raízes na religião dos judeus.
No primeiro século, o cristianismo era conhecido como o Caminho.
Entendemos pelo discurso de Paulo que os crentes se chamavam a si
mesmos seguidores do Caminho.1500 Algumas vezes se referem à sua
religião como “o caminho do Senhor” (At 18:25) ou “o caminho de
Deus” (At 18:26). Seus adversários, no entanto, deram-lhes o nome
depreciativo de seita dos nazarenos. Para os cristãos, o Caminho era um
estilo de vida. Para seus oponentes judeus, era uma heresia.
Paulo expõe as coisas francamente quando diz que ele “segundo o
Caminho, a que [meus acusadores] chamam seita, assim eu sirvo ao
Deus de nossos pais [judeus]”. Identifica-se com o povo judeu quando
usa o pronome pessoal nossos (mas, note-se, além disso, que se está
dirigindo a Félix, quem tinha casado com Drusila, uma judia [At 24:24]).
A palavra pais também é importante. Indica que Paulo não esqueceu os
ensinos de seus antepassados físicos e espirituais, porque serve ao Deus
de Abraão, de Isaque, e de Jacó (cf. At 22:3; 28:17).
Como serve Paulo ao Deus de Israel? Crendo “crendo tudo quanto
está escrito na Lei e nos Profetas” [RC]. Em outras palavras, ele está

1500
At. 9:2; 19:9, 23; 22:4; 24:14, 22.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1153
dizendo a Félix que crê nos ensinos das Escrituras do Antigo Testamento
(veja-se At 26:22; 28:23). Ao referir-se às duas partes do Antigo
Testamento, identifica-se com os judeus, cuja religião, como Félix sabe,
é protegida pela lei romana. De forma conclusiva, Paulo prova que,
embora seja um líder na comunidade cristã, sua atividade não viola a lei
romana.
15. 16. Sustento a mesma esperança em Deus que estes homens têm:
que certamente há uma ressurreição tanto para os justos como para os
injustos. Portanto, eu sempre faço o melhor para manter uma consciência
limpa diante de Deus e os homens [trad. Kistemaker].
Fazemos as seguintes observações:
a. A esperança. Paulo afirma categoricamente que ele tem a mesma
esperança em Deus que a que têm seus acusadores. Qual é esta esperança
em Deus? Em poucas palavras, é a doutrina da ressurreição dos mortos.
Quando Paulo compareceu diante do Sinédrio e percebeu que o sumo
sacerdote Ananias não lhe quis fazer um juízo justo, Paulo lhes gritou de
que ele pertencia ao partido farisaico e que era julgado “pela esperança
na ressurreição dos mortos” (At 23:6). Diante de Félix, voltou ao mesmo
assunto: a esperança de Israel, que aqui chama a esperança em Deus.
Mais uma vez, o cenário é montado para um conflito entre os judeus que
aceitam a doutrina da ressurreição e os que não. Mas devido ao fato de
que seus acusadores estão na presença do governador, conservam a paz.
b. A ressurreição. A doutrina da ressurreição foi ensinada nos
tempos do Antigo Testamento (Dan. 12:2). Ao longo do período
intertestamental e do tempo de Jesus e os apóstolos, esta doutrina era
parte do que Israel cria. 1501 Paulo, como os fariseus, ensinava a doutrina
da ressurreição, embora os saduceus a rejeitavam.

1501
Veja-se a literatura dos tempos intertestamentais: 2 Mac. 7:9, 14, 23, 36; 12:43–44; Salmos de
Salomão 3:11–12; 10:8; 14:10. E consulte-se Josefo Guerra Judaica 2.8.14 [163]; Antiguidades
18.1.3 [14].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1154
Em suas epístolas, expõe sua crença na dupla ressurreição dos
mortos: a dos justos e a dos injustos. 1502 (Deve levar-se em conta que
algumas de suas cartas já estavam escritas no tempo do juízo e
circulavam entre as igrejas.) Emil Schürer escreve: “A ideia nunca foi
completamente aceita; muitos continuaram esperando só uma
ressurreição dos justos”. 1503 De qualquer maneira, Jesus ensina que todas
as pessoas devem enfrentar o juízo (Mt 25:31–46) e todos os mortos, os
que praticaram o bem, e os que praticaram o mal, ressuscitarão para ser
julgados (Jo 5:28–30; veja-se também Ap 20:12. Concordando com o
ensino de Jesus sobre este ponto doutrinal, Paulo faz referência à
ressurreição dos justos e dos injustos, que é seguida pelo juízo e a vinda
do reino de Cristo (cf. 2Tm 4:1).
Para os apóstolos, o ensino sobre a ressurreição de Jesus era
fundamental à fé cristã. Tanto Pedro como Paulo proclamam esta
doutrina em seus sermões e discursos diante de suas audiências judaicas
e gentios. 1504 Deste ensino derivaram o credo da ressurreição geral dos
crentes e dos incrédulos. Paulo mesmo abrigava a firme convicção que
depois de sua partida desta vida, seu corpo seria levantado da morte,
enfrentaria o juízo, e estaria com Cristo eternamente.
c. A consciência. “Portanto, eu sempre faço o melhor para manter
uma consciência limpa diante de Deus e os homens”. Paulo diz que ele
põe todo seu empenho em ter uma consciência livre de pecado, sem
ofensa nem culpa. 1505 Escolhe as mesmas palavras que tinha pronunciado
diante do Sinédrio poucos dias antes, quando disse: “Tenho cumprido
meu dever para com Deus com toda a boa consciência, até o dia de hoje”
(At 23:1, NVI). Eles o estão julgando por ensinar a verdade fundamental
da ressurreição dentre os mortos (veja-se v. 21). No entanto, sua
consciência está limpa de culpa diante de Deus e os homens devido ao

1502
Veja-se 1Co. 15:23–26; 1Tes. 4:16–17.
1503
Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, p. 494.
1504
At. 2:24, 32; 3:15; 4:10; 5:30; 10:40; 13:30, 33–34, 37; 17:31.
1505
Bauer, p. 102; Thayer, p. 70.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1155
fato de que constantemente se esforça por fazer a vontade de Deus:
proclamar Sua verdade revelada.

Palavras, frases e construções gregas em At 24:10–16


Versículo 10
νεύσαντος — o particípio ativo aoristo de νεύω (eu indico) no caso
genitivo é parte da construção absoluta genitiva. Este particípio indica
tempo: “Quando o governador o indicou”.
ἐκ — com a expressão de tempo, esta preposição indica um ponto
de partida (quer dizer, o tempo em que algo começou): “por muitos
anos”. 1506
ὄντα — o gerúndio do verbo εἰμί (eu sou) no contexto comunica o
significado do tempo perfeito (“tu estiveste”).
ἀπολογοῦμαι — aqui há uma média verdadeira que é traduzida
“Faço minha defesa”.

Versículo 11
δυναμένου — o particípio meio presente no caso genitivo forma
com o pronome σου (você) a construção absoluta genitiva. O particípio
introduz o infinitivo complementar ἐπιγνῶναι (aprender, averiguar).
οὑ πλείους — “não mais que”. O genitivo de comparação poderia
normalmente ser usado em lugar do nominativo. “Mas é um modismo de
comparação e não está limitado ao nominativo como tal”. 1507
εἰσίν μοι — o pronome é o dativo de possessão: na tradução, o
verbo ser ou estar chega a ser o verbo haver ou ter e o pronome mim se

1506
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 597.
1507
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 31 n. 2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1156
transforma em “eu”: “Eu não tenho mais de doze dias”. Numa suave
tradução, ler-se-ia: “não mais de doze dias atrás”. 1508
προσκυνήσων — este é o particípio ativo futuro do verbo
προσκυνέω (eu adoro) e transmite a ideia de propósito.
ἀφʼ ἧς — a abreviação de ἀφʼ ἡμέρας ᾗ (desde dia em que). O
pronome dativo é atraído ao substantivo genitivo e chega a ser ἧς.

Versículo 14
οὕτως — embora o advérbio significa “até o ponto que”, é
substituído completamente por κατὰ τὴν ὁδόν (segundo o Caminho) e
portanto não é traduzido. O verbo λατρεύω (eu sirvo) relaciona-se com
cultos de adoração (cf. 2Tm 1:3; Hb 12:28).
τῷ πατρῴῳ θεῷ — o adjetivo πατρῴῳ (dos antepassados de
alguém) necessita o pronome possessivo meu.
γεγραμμένοις — o particípio passivo perfeito de γράφω (eu
escrevo) é um perfeito com estado resultante. Quer dizer, as Escrituras
escritas no passado têm validez eterna.

Versículos 15–16
μέλλειν ἔσεσθαι — os dois infinitivos expressam o futuro, e assim
um deles é redundante. Consulte o comentário sobre At 11:28.
ἐν τούτῳ — esta frase preposicional não significa “neste” mas por
esse motivo”. 1509 Tem uma conotação causal.
διὰ παντός — veja-se a explicação em At 2:25.

1508
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#189.1.
1509
lbid., #219.3.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1157
d. Os fatos (At 24:17–21)

Neste juízo, Paulo rebate três acusações: uma acusação política de


ser um revoltoso e duas de tipo religioso, uma que é um líder da seita dos
nazarenos e outra que profanou o templo. Tendo refutado com êxito as
duas primeiras, passa agora a desvirtuar a terceira.
17, 18. Depois de estar ausente por vários anos, vim a Jerusalém
para trazer esmolas ao meu povo e apresentar ofertas. Enquanto fazia
isso, já cerimonialmente puro, encontraram-me no templo, sem envolver-
me em nenhum ajuntamento ou tumulto [NVI].
a. “Depois de estar ausente por vários anos, vim a Jerusalém”.
Paulo deixa estabelecido que esteve afastado de Jerusalém por um longo
período. Sua última visita à cidade (no fim de sua segunda viagem
missionária [At 18:22] tinha ocorrido cinco anos antes. Mas se pensamos
em termos da estendida visita de Paulo ao Concílio de Jerusalém (At
15:4), o intervalo pôde haver-se aproximado à uma década.
b. “Para trazer esmolas ao meu povo”. Paulo dá a entender que sua
ausência de Jerusalém não pôde ter contribuído para as revoltas. Pelo
contrário, procurou cumprir o mandato apostólico de “lembrar do pobre”
(Gl 2:10) e ajudar a todos (Gl 6:10). Portanto, trouxe uma série de ajudas
financeiras das igrejas gentílicas para os açoitados pela pobreza em
Jerusalém. Em suas epístolas, menciona estas ofertas; 1510 esta é a única
referência em Atos à entrega que faz das ofertas aos empobrecidos
cristãos em Jerusalém. Por razões não claras, tanto Paulo como Lucas
não dão informação adicional.
c. “E apresentar ofertas”. Qual é o significado da palavra oferta? A
palavra em si dá três possíveis interpretações. A primeira é que os termos
donativos e ofertas são sinônimos. Ao dá-las aos pobres, Paulo dedicou
estas doações como ofertas de gratidão a Deus (cf. 2Co 8:19). Uma
segunda interpretação é que Paulo entregou os donativos aos pobres e

1510
Veja-se Rm. 15:25–28; 1Co. 16:1–4, 15; 2Co. 8:1–4.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1158
depois apresentou ofertas de gratidão a Deus em resposta a um voto (cf.
At 18:18). E a terceira interpretação é que Paulo não pensava ir a
Jerusalém a levar ofertas, mas por sugestão de Tiago e os anciãos pagou
os gastos dos quatro nazireus (At 21:26). Visto que Lucas com
frequência comprime o material, o termo oferta é uma forma abreviada
usada com a intenção de trazer à mente o episódio no templo (At 21:26–
27).
d. “Enquanto fazia isso, já cerimonialmente puro, encontraram-me
no templo”. Obviamente, Paulo se refere ao tempo em que quase se
completaram os dias de purificação (At 21:27). Menciona esta ocasião a
Félix para refutar a acusação de Tértulo de que ele procurou profanar o
templo.
e. “Sem envolver-me em nenhum ajuntamento ou tumulto”. No
momento que os judeus o descobriram no templo, acharam-no efetuando
um rito cerimonial particular e tranquilamente. Não o viram instigando à
multidão nem provocando uma revolta. O sumo sacerdote e seus
companheiros poderiam dizer que eles não estavam presentes no templo
quando Paulo foi detido, mas que outros lhes tinham feito relatório do
problema. Precisamente por essa razão, Paulo foi específico ao relatar os
detalhes do fato.
19. Mas há alguns judeus da província da Ásia que deveriam estar
aqui diante de ti e apresentar acusações, se é que têm algo contra mim
[NVI].
Paulo especifica aqui quais eram os antigos acusadores: os judeus
da província da Ásia. Eles o conheciam por suas viagens e obras naquela
parte do mundo e, depois de viajar a Jerusalém por motivo do
Pentecostes, tinham-no visto no templo. Para ser preciso, eles, não Paulo,
tinham instigado à multidão e instigado um alvoroço. Se estes judeus da
dispersão tinham algo contra ele, deviam tê-lo acusado na presença do
governador Félix. Mas estes acusadores não estão presentes. Portanto,
Paulo agora implica o sumo sacerdote e os anciãos no juízo. Até agora,
eles guardaram silêncio, deixando que o advogado Tértulo fale por eles.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1159
Se eles tivessem sabido de algum crime cometido por Paulo quando o
interrogaram no Sinédrio, agora era o momento de falar.
20, 21. Ou os que aqui se acham deveriam declarar que crime
encontraram em mim quando fui levado perante o Sinédrio, a não ser que
tenha sido este: quando me apresentei a eles, bradei: Por causa da
ressurreição dos mortos estou sendo julgado hoje diante de vocês [NVI].
a. “Ou os que aqui se acham deveriam declarar que crime
encontraram em mim quando fui levado perante o Sinédrio”. Paulo
desafia agora a Ananias e a seus acompanhantes a falarem. Mesmo que
eles mesmos não tenham presenciado o ocorrido no templo, estiveram
presentes no dia seguinte quando Paulo se apresentou diante do Sinédrio.
Tinham escutado suas palavras e devem ser capazes de dizer se
descobriram algum crime que tivesse cometido. Presumivelmente, o
orador Tértulo não tinha estado presente na reunião do Sinédrio; agora,
diante de Félix, o próprio Ananias deve testificar se tinha encontrado
Paulo culpado. Mas o sumo sacerdote guarda silêncio.
b. “A não ser que tenha sido este: quando me apresentei a eles,
bradei”. Paulo pergunta aos seus acusadores se tinha cometido um crime.
Mesmo quando estão diante da possibilidade de escolher a resposta,
teriam que admitir: Não, nenhum!
Paulo mais uma vez aproveita a oportunidade para referir-se à
ressurreição (veja-se v. 15). Inicia sua afirmação dizendo que ele tinha
lançado uma frase enquanto esteve diante dos membros do Sinédrio. O
fato que use o verbo lançar não deveria entender-se como se tratando da
apologia a uma conduta imprópria diante do corpo eclesiástico. Em lugar
disso, provê evidência no sentido que a reunião tinha sido uma desordem
(veja-se At 23:1–10). Dito simplesmente, põe a Ananias, quem presidia a
reunião aquela noite, sob uma luz pouco favorável.
c. “Por causa da ressurreição dos mortos estou sendo julgado hoje
diante de vocês”. Afirma que quando ele esteve diante do Sinédrio,
pronunciou só uma frase crítica, que tinha que ver não com questões
políticas dos romanos, mas com assuntos teológicos de judeus e cristãos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1160
Isto significa que o ponto em conflito entre Ananias e ele é um assunto
teológico que deve ser discutido numa corte eclesiástica judaica. Em
suma, Paulo espera que o juiz despreze o caso, que não tinha lugar numa
corte civil romana, e então que o deixasse em liberdade. À vista do fato
de que o princípio teológico da ressurreição dentre os mortos era
compartilhado tanto por fariseus e cristãos, porém não pelos saduceus,
percebemos que Paulo faz referência à bem conhecida controvérsia entre
saduceus e fariseus.
Paulo se dirige não somente a Félix, mas também a Ananias e seus
acompanhantes. Diz: “Estou sendo julgado hoje diante de vocês
[plural]”. Ao usar o pronome plural vocês, no grego, está obrigando
Ananias e os anciãos a falar de um assunto teológico que Félix recusa
aceitar como evidência numa corte romana.
Note-se que sempre que Paulo vê uma oportunidade de mencionar a
doutrina da ressurreição, ele o faz. Para ele, esta doutrina é fundamental
à fé cristã e corajosamente a proclama por todas as partes.

Considerações práticas em At 24:17–21


Em diferentes oportunidades, Pedro e Paulo devem defender-se
diante dos tribunais. Ambos apresentam serenamente material objetivo
para respaldar suas alegações de inocência, ambos estão em pleno
controle dos procedimentos, e ambos convencem a corte a chegar a um
veredito que seja favorável a eles. Pedro e João são levados a juízo
diante do Sinédrio depois de curar um paralítico na porta do templo (At
3:1–10), e Pedro diretamente fala a verdade (At 4:8–12, 19–20). Muda o
juízo de uma investigação criminal numa indagação a respeito de um ato
de misericórdia. Além disso, põe a ênfase não no paralítico que foi
curado mas em Jesus, o Salvador (At 4:12; veja-se também At 5:30–32).
Sem educação em assuntos legais e destreza quanto a procedimentos na
sala do tribunal, Pedro de qualquer maneira responde todas as acusações
Atos (Simon J. Kistemaker) 1161
que se apresentam contra ele. Com isso demonstra que o Espírito Santo o
guia quanto a apresentar a verdade.
Paulo também toma o controle do procedimento na corte. Diante de
seus acusadores e do governador Félix, de forma resumida responde cada
alegação por escrito contra ele e demonstra que as acusações são
infundadas. Neste juízo, duas vezes apresenta a doutrina da ressurreição,
a qual é fundamental à fé cristã. O Espírito Santo o capacita a agir como
seu próprio advogado.
Tanto Pedro como Paulo enfrentam os líderes judeus que professam
servir ao Deus de Israel. Os apóstolos rebatem a mentira de Satanás, o
pai da mentira. Hoje, homens e mulheres cheios com o Espírito Santo
adiantam valente e habilmente a causa de Cristo mediante o
estabelecimento da verdade revelada de Deus. Eles sabem que diante do
erro, a verdade triunfará. Portanto, sem nenhum temor descobrem a
mentira e se opõem ao pai da mentira. Como Martinho Lutero, referindo-
se ao diabo, diz no hino, Pois condenado está, pela Palavra santa.

Palavras, frases, e construções gregas em At 24:17–21


Versículo 17
πλειόνων — o comparativo de πολύς é traduzido “vários”. Não é
positivo nem superlativo, e sim comparativo, mesmo quando signifique
“muitos”.
ποιήσων — o particípio ativo futuro expressa propósito. O
modismo em português é “dar esmolas” não “fazer esmolas”.
τὸ ἔθνος — “a nação [judaica]”. Ao dirigir-se ao governador gentio,
Paulo emprega este termo em lugar de λαός (povo).
Com isso, inclui aos judeus e aos cristãos judeus.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1162
Versículo 18
ἐν αἷς — o pronome relativo refere-se ao substantivo plural
feminino προσφοράς (ofertas) que é seu mais próximo antecedente.
Alguns manuscritos menores usam o plural neutro οἷς (entre as quais
[circunstâncias]), o que é mais difícil de explicar pelo que é digno de
considerar-se como a forma original.
ἡγνισμένον — o particípio passivo perfeito de ἁγνίζω (eu purifico)
mostra resultados permanentes. O passivo tem seu agente no caso dativo
do substantivo ofertas.

Versículo 19
τινὲς … Ἰουδαῖοι — nesta cláusula deve acrescentar-se o verbo ser
ou estar. Sua ausência, não obstante, não significa incoerência.
ἔδει — o imperfeito de δεῖ (é necessário) comunica obrigação
moral. Os judeus asiáticos deveram ter estado presentes na corte.
ἔχοιεν — o optativo na prótase é uma frase condicional que mostra
um grau de flexibilidade. “Se eles (realmente) tivessem tido uma queixa
(que não a têm)”. 1511

Versículos 20–21
ἐπί — “diante de”. Esta preposição com o caso genitivo aparece “na
linguagem das cortes”. 1512 (Veja-se também At 23:30; 25:10.) A maioria
dos tradutores preferem a forma ἐφʼ ὑμῶν (diante vocês). 1513 Outros
seguem a forma ὑφʼ ὑμῶν (por você [vós]). 1514

1511
Moule, Idiom-Book, p. 150.
1512
Bauer, p. 286.
1513
NAB, NASB, RSV; também NVI e BJ.
1514
KJV, NKJV.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1163
μιᾶς ταύτης φωνῆς — “esta única declaração”. Por questão de
ênfase, o pronome demonstrativo esta foi posto entre o adjetivo numeral
um e o substantivo declaração, ἧς é o genitivo de atração.

e. A suspensão e demora (At 24:22–27)

Depois que Paulo fez sua defesa, Félix lhe explicou que esperaria
pela chegada de Cláudio Lísias antes de decidir neste caso. À vista da
defesa de Paulo, certamente que deveria desprezá-lo por falta de
evidência. Em vez disso, suspendeu o juízo.
22. Então, Félix, conhecendo mais acuradamente as coisas com
respeito ao Caminho [que a maioria das pessoas], adiou a causa, dizendo:
Quando descer o comandante Lísias, tomarei inteiro conhecimento do
vosso caso.
Lucas descreve a extensão do evangelho e informa que o
governador Félix tinha um conhecimento apreciável do cristianismo.
Escreve que Félix entendia “mais acuradamente as coisas com respeito
ao Caminho”, ao qual eu acrescento a frase que a maioria das pessoas.
Lucas não diz como Félix veio a saber tanto a respeito da fé cristã.
Possivelmente, os crentes em Cesareia tenham sido usados para ensinar a
este oficial romano as doutrinas da fé. Umas duas décadas antes, o
Espírito Santo tinha sido derramado sobre os crentes gentios em Cesareia
(At 10:44–46); entre eles estava Cornélio, um oficial do exército
romano. Ou talvez Félix obteve esse conhecimento religioso através da
Drusila, sua mulher, quem era uma judia (At 24:24), filha de Herodes
Agripa I (veja-se At 12:1–23), e irmã de Agripa II (At 25:13). Tanto
Félix como Drusila demonstraram interesse na fé cristã, como é evidente
por seu desejo de ouvir Paulo pregar o evangelho (At 24:24).
Lucas oferece uma afirmação resumida da forma pela qual Félix
pôs fim ao juízo. O governador, empregando a tática da demora,
despediu-se do sumo sacerdote e dos anciãos, dizendo que ele decidiria o
caso quando o comandante Lísias chegasse de Jerusalém. Com sua
Atos (Simon J. Kistemaker) 1164
brevidade característica, Lucas decide não oferecer informação alguma
sobre a visita de Lísias.
23. E mandou ao centurião que conservasse a Paulo detido,
tratando-o com indulgência e não impedindo que os seus próprios o
servissem.
O governador não deve ter mantido Paulo sob custódia, porque as
acusações contra ele não tinham nada que ver com a lei romana. Félix
talvez desejava aplacar os judeus e proteger um cidadão romano.
Portanto, deu instruções a um oficial para que custodiasse a Paulo, mas
lhe permitisse alguma liberdade, como se estivesse vivendo em sua
própria casa (cf. At 28:30). 1515 Félix permitiu aos amigos de Paulo que
lhe trouxessem comida, bebidas, e outras coisas que lhe permitissem
uma vida mais cômoda. Os amigos que o visitaram provavelmente eram
membros da igreja em Cesareia (veja-se At 21:8–14).

Quartel general de missões


Durante sua carreira missionária, Paulo tinha passado considerável
tempo em Antioquia antes e depois de sua primeira viagem missionária,
em Corinto durante sua segunda viagem, e posteriormente em Éfeso.
Agora, sua residência chega a ser Cesareia. Sob a custódia protetora do
exército romano, tem a liberdade de receber amigos. Supomos que o
visitaram delegações de várias igrejas na Palestina, e que Paulo, um
experimentado missionário, os animou. Mas Paulo fez mais que receber
visitantes. Por exemplo, suas conversações com os soldados que o
custodiavam foram, sem dúvida, de tipo evangelístico. Cremos que um
bom número destes soldados chegaram a crer; e quando foram
transferidos a outras partes do império romano, iriam espalhando o
conhecimento de Jesus por todas as partes.

1515
Josefo conta que Herodes Agripa I estava preso em Roma nos mesmos dias em que morreu o
imperador Tibério. Tinha sido trasladado de uma prisão militar “à casa onde tinha vivido antes de sua
detenção”. Antiguidades 18.6.10 [235] (LCL).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1165
É razoável supor que durante os dois anos que Paulo permaneceu
em Cesareia, Lucas se ocupou em recolher informação pertinente para
seus dois livros, o Evangelho e Atos. Recebeu sua informação de
“testemunhas oculares e ministros da palavra” (Lc 1:2) em Jerusalém,
Samaria, e Galileia. Além disso, tinha bastante tempo para escrever estes
livros. Provavelmente completou o Evangelho durante a prisão de Paulo
e o enviou ao mundo greco-romano. Em suas epístolas pastorais, escritas
depois de sua libertação, Paulo cita o Evangelho de Lucas e o chama
Escritura: “Digno é o trabalhador do seu salário” (Lc 10:7; citado em
1Tm. 5:18). Paulo, então, esteve a par das atividades literárias de Lucas,
e usou estes escritos em sua tarefa missionária.
24. Passados alguns dias, vindo Félix com Drusila, sua mulher, que
era judia, mandou chamar Paulo e passou a ouvi-lo a respeito da fé em
Cristo Jesus.
Entre os primeiros em escutar a Paulo estiveram o governador Félix
e sua esposa Drusila. Eles deveram ouvir o evangelho, o qual Lucas
descreve como objetiva “fé em Cristo Jesus”. Lucas não dá indicação de
que o governador e sua esposa tenham demonstrado uma fé subjetiva.
A expressão vindo não precisa ser interpretada para entender que
Félix tinha voltado a Cesareia depois de ter estado ausente. Pelo
contrário, o termo no contexto significa que tanto Félix como Drusila
abandonaram a mansão do governador e foram ao lugar onde estava
Paulo sob custódia. O governador ordenou aos oficiais que trouxessem
Paulo diante dele. Então, sem pressa o escutaram pregar o evangelho.
Este casal, interessado em aprender mais a respeito do Caminho,
tinha um histórico conjugal manchado pela promiscuidade. O
historiógrafo romano Suetônio conta que Drusila foi a terceira esposa de
Félix. 1516 Drusila também tinha tido vários esposos. Nascida em Roma,
foi trazida por seu pai a Cesareia, onde passou sua infância. 1517 Quando
tinha seis anos de idade, foi prometida em casamento a Epifânio, o filho
1516
Suetônio Cláudio 28.
1517
Em Cesareia, Herodes Agripa I erigiu uma estátua dela. Josefo Antiguidades 19.9.1 [357].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1166
1518
do rei Antíoco de Comagene. Mas Epifânio recusou submeter-se ao
rito judaico da circuncisão, por isso o casamento nunca se consumou.
Quando ela tinha 14 anos, seu irmão, Agripa II, deu-a em casamento a
Azizo, rei de Emesa, no norte da Síria; no entanto, Drusila o abandonou
para ser esposa de Félix. 1519 Através de um intermediário, o governador
tinha prometido a Drusila uma vida de felicidade, que não tivera na corte
de Azizo. 1520 Ao casar com Félix, a judia Drusila desafiou a lei do
Antigo Testamento que lhe proibia ser a esposa de um gentio. Mesmo
assim, ela teve suficiente interesse em vir aonde estava Paulo e ouvi-lo
pregar o evangelho de Cristo Jesus.
O Texto ocidental indica que Drusila persuadiu a Félix que a
deixasse ouvir Paulo: “Félix veio com sua esposa Drusila, que era judia,
que pediu ver Paulo e escutar sua palavra. Desejando, portanto,
agradá-la, fez Paulo comparecer”. 1521
25. Quando Paulo se pôs a discorrer acerca da justiça, do domínio
próprio e do juízo vindouro, Félix teve medo e disse: “Basta, por
enquanto! Pode sair. Quando achar conveniente, mandarei chamá-lo de
novo” [NVI].
Embora tenha um considerável conhecimento do Caminho, Félix vê
uma oportunidade de receber informação segura a respeito do
cristianismo de um de seus mais destacados líderes. Drusila, conhecendo
os ensinos da Escritura e as tradições judaicas, também quer ouvir os
ensinos da fé cristã. Marido e mulher se sentem atraídos ao evangelho,
como a traça à luz que dispersa as trevas.

1518
Josefo Antiguidades 19.9.1 [354–55].
1519
Drusila casou com Félix no ano 54 d.C. Consulte-se Schürer, History of the Jewish People, vol. 1,
pp. 461–62.
1520
Josefo Antiguidades 20.7.1–2 [139–43].
1521
Metzger, Textual Commentary, p. 491 (a parte acrescentada está em itálico); Clark. Acts, pp. 155,
381.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1167
Fiel ao seu estilo, Paulo prega o evangelho e lhes fala da justiça. 1522
Em sua carta aos Romanos, que escreveu poucos meses antes, quando
ainda estava em Corinto e antes de empreendesse sua viagem a
Jerusalém, usa este termo especial, trinta e três vezes. Por contraste, em
Atos, a palavra justiça aparece só quatro vezes: Pedro a usa uma vez em
seu sermão pregado em Cesareia (At 10:35); Paulo chama Elimas
“inimigo de toda a justiça” (At 13:10), menciona-a em seu discurso do
Areópago (At 17:31), e de novo em Cesareia quando prega ao
governador e sua esposa (At 24:25).
Não se poderia pensar que Paulo dá a este casal uma dissertação
teológica abstrata. Antes, apresenta o evangelho em termos de um viver
segundo os princípios do Caminho. Quer dizer, ensina-lhes sobre como
distinguir o correto do incorreto, as virtudes do domínio próprio e a
castidade, e a inevitabilidade do dia do juízo. Diz-lhes que devem chegar
a ser seguidores de Jesus para poder andar no caminho.1523
Félix e Drusila se incomodam quando Paulo lhes explica a palavra
domínio próprio. 1524 O governador e sua esposa se veem no espelho do
ensino explícito de Paulo. E quando o orador acrescenta que eles terão
que enfrentar o Juízo divino para receber seu veredito, Félix se
aterroriza. Ele mesmo tinha tido que exercer como juiz de Paulo, mas
este lhe informa que ele deverá comparecer diante do tribunal de Cristo
Jesus (At 10:42; 17:31).
Basta e sobra para Félix, especialmente quando o ensino de Paulo
revela a conduta moral e ética do governador. Como os filósofos

1522
A palavra dikaiosunē (justiça) é uma de suas expressões favoritas: aparece cinquenta e seis vezes
em todas as suas epístolas. João a usa em suas escritos sete vezes; Mateus, também sete; o escritor de
Hebreus, seis; Tiago, três; e Lucas (em seu Evangelho), uma.
1523
Consulte-se J. Pathrapankal, “Christianity as a ‘Way’ ” em Les Actes des Apôtres: Traditions,
Rédaction, Théologie, ed. J. Kremer, Bibliotheca Ephemeridium Theologicarum Lovaniensium 48
(Louvain: Louvain University Press, 1979), pp. 537–38.
1524
A literatura daquela época revela que com frequência, a palavra refere-se à pureza sexual mantida
por exercer a continência na conduta de alguém. Veja-se, p.ej., 1Co. 7:9 (o verbo controle); Gl. 5:23;
Policarpo aos Filipenses 4:2; Testamento de Naftali 8:8.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1168
atenienses que disseram a Paulo que numa próxima ocasião o ouviriam
de novo (At 17:32), Félix interrompe a Paulo com a cortês desculpa de
que, quando o tempo o permita, voltará a ouvi-lo. O governador está
temeroso com relação ao juízo vindouro, mas recusa arrepender-se de
seus maus caminhos e voltar-se com fé a Jesus.
26. Ao mesmo tempo esperava que Paulo lhe oferecesse algum
dinheiro, pelo que mandava buscá-lo freqüentemente e conversava com
ele [NVI].
Félix deixou Paulo na prisão, porque tinha a esperança de receber
um suborno deste. 1525 A prática de manter um prisioneiro no cárcere até
que pagasse um suborno, embora proibida pela lei romana, era coisa
comum. 1526
Supomos que quando Félix ouviu que Paulo havia trazido presentes
em dinheiro para as pessoas de Jerusalém (v. 17), sua mente ambiciosa
imediatamente concebeu um plano para subtrair um preço como sua
libertação. Quando seus muitos amigos visitaram Paulo para cuidar de
suas necessidades diárias, Félix estava seguro que eles poderiam ajudar
também em pagar pela liberdade de Paulo.
Lucas escreve que Félix chamaria frequentemente a Paulo para
conversar com ele. Esta informação indica que as relações entre ambos
eram amistosas, embora estas conversas nunca chegaram a algo positivo.
Félix as usou para preencher alguns de seus momentos de ócio, mas
Paulo continuou preso. Devido ao fato de que Paulo ainda não tinha
querido fazer uso de seus direitos como cidadão romano: apelar ao
imperador, o governador legalmente pôde mantê-lo em custódia. Logo
que fez a apelação, o governador esteve obrigado a enviá-lo a Roma sob

1525
Algumas versões, seguindo o Texto majoritário, têm uma frase adicional que diz, “para que ele
pudesse soltá-lo [libertá-lo]”.
1526
Em duas diferentes ocasiões Albino, o governador que sucedeu a Pórcio Festo (v. 27), libertou só
os presos que pagaram um suborno. Josefo Guerra judaica 2.14.1 [273]; Antiguidades 20.9.5 [215].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1169
custódia militar, onde deveria enfrentar o tribunal do imperador. Em
suma, Félix se manteve dentro dos limites da lei. 1527
27. Dois anos mais tarde, Félix teve por sucessor Pórcio Festo; e,
querendo Félix assegurar o apoio dos judeus, manteve Paulo encarcerado.
Dois anos mais tarde, Nero fez Félix voltar a Roma. O chamado a
voltar foi provocada pelas condições políticas na Palestina. Félix tinha
intervindo militarmente quando os judeus e os sírios que viviam em
Cesareia começaram a apedrejar-se mutuamente numa disputa sobre
direitos civis. Os soldados mataram alguns judeus, detiveram outros, e
saquearam casas onde esta gente tinha acumulado substanciais somas de
dinheiro.1528 Como resultado, escreve Josefo, “quando Pórcio Festo foi
enviado por Nero como sucessor de Félix, os líderes da comunidade
judaica em Cesareia subiram a Roma para acusar Félix”. 1529 Felizmente
para Félix, seu abastado irmão Palas intercedeu por ele na presença de
Nero e conseguiu que fosse exonerado.
No entanto, Lucas escreve que “querendo Félix assegurar o apoio
dos judeus, manteve Paulo encarcerado”. A palavra que Lucas usa para
“favor” comunica a ideia de quid pro quo; ou seja, uma coisa por
outra. 1530 Félix sabia que seria criticado pelos distúrbios que tinham
ocorrido em Cesareia. Queria ganhar o respaldo do Sinédrio em
Jerusalém, pelo qual deixou a Paulo como prisioneiro e dessa maneira
rebater as acusações dos judeus de Cesareia. O Texto ocidental,
entretanto, afirma que Félix deixou Paulo na prisão “por insistência de
Drusila”. Como Herodias guardava rancor contra João Batista (Mc.
6:19), assim Drusila desprezou Paulo por criticar sua vida conjugal.
Talvez não podia conseguir que o levassem à morte, mas que o
mantivessem na prisão.

1527
Consulte-se A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963;
reimp. Grand Rapids: Baker, 1978), p. 63.
1528
Josefo Guerra Judaica 2.13.7 [266–70]; Antiguidades 20.8.7 [173–78].
1529
Josefo Antiguidades 20.8.9 [182].
1530
No grego, a palavra está no plural. Lucas usa a mesma expressão em At 25:9, mas no singular.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1170
Palavras, frases e construções gregas em At 24:22–27
Versículo 22
ἀκριβέστερον — o comparativo de ἀκριβῶς (exatamente) pode ser
entendido como um superlativo (“muito exatamente”). No entanto,
devido ao fato de que o objeto de comparação está implícito no contexto,
interpretar o advérbio como um comparativo é aceitável e válido. 1531
εἰδώς — o particípio ativo perfeito de οἶδα (eu sei ou conheço)
comunica o tempo presente e tem um significado causal.

Versículos 23–24
τηρεῖσθαι — “ser vigiado”. Note-se o tempo presente na série de
quatro infinitivos sucessivos. O Texto majoritário acrescenta as palavras
ἥ προσέρχεσθαι (ou vir a) depois do verbo ὑπηρετεῖν (ser de ajuda).
ἰδίᾳ — a presença deste adjetivo (“a si mesmo”) é supérflua; o
artigo definido τῇ é suficiente.

Versículos 25–26
διαλεγομένου — a construção genitiva absoluta usa o gerúndio com
uma conotação temporal (“enquanto ele esteve conversando”). Por
contraste, o particípio γενόμενος está no aoristo para revelar que o temor
de Félix foi momentâneo. O particípio atributivo ἔχον com τὸ νῦν, que
quer dizer, “por agora”, é difícil de explicar. 1532
πυκνότερον —este advérbio comparativo pode ser interpretado
como um superlativo (“com muita frequência”) ou como um
comparativo (“mais com frequência”).

1531
Consulte-se Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids:
Baker, 1983), p. 241.
1532
Moule, Idiom-Book, p. 160.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1171
ἅμα καὶ ἐλπίζων — a combinação de advérbio, conjunção, e
gerúndio significa “ao mesmo tempo também na esperança”. 1533

Versículo 27
διετίας — “um período de dois anos”. O substantivo aparece só
duas vezes no Novo Testamento (aqui e em At 28:30). O caso genitivo é
parte da construção absoluta genitiva.
δεδεμένον — o particípio passivo perfeito do verbo δέω (eu ato). O
tempo perfeito significa um período estendido. O particípio não precisa
indicar que Paulo foi mantido em cadeias, visto que lhe foi dada “alguma
liberdade” (v. 23). Mas segundo seu próprio testemunho, esteve em
cadeias durante a administração de Félix (At 26:29).

Resumo de Atos 24
O sumo sacerdote Ananias, junto com alguns dos anciãos e um
advogado chamado Tértulo, vem a Cesareia para estar presente no juízo
de Paulo diante do governador Félix. Tértulo dá elogios louvores e
agradecimentos ao governador pelas mudanças que efetuou na nação.
Logo faz constar as acusações contra Paulo, chamando-o revoltoso, líder
da seita nazarena, e um profanador do templo.
Paulo responde negando que tenha incitado nem a multidão nem na
sinagoga nem em nenhum outro sitio em Jerusalém. Afirma que ele
adora ao Deus de Israel, adere-se aos ensinos das Escrituras, e crê na
ressurreição. Informa a Félix que veio para Jerusalém trazendo presentes
aos pobres e para apresentar ofertas. Diz que se os judeus da província
da Ásia, que se encontram ausentes, ou a delegação chegada de
Jerusalém têm qualquer acusação, que a apresentem diante de Félix.
Félix cancela os procedimentos e anuncia que fará uma decisão
quando o comandante militar Lísias chegar a Cesareia. Ordena que Paulo

1533
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #425.2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1172
seja mantido sob custódia, porém com a liberdade de receber os seus
amigos.
Félix e Drusila visitam Paulo com o propósito de ouvi-lo pregar a
respeito da fé cristã. Quando Paulo lhes fala de justiça, do domínio
próprio e do juízo, Félix dá por terminada a reunião com a promessa que
convocará Paulo em outro momento. Chama frequentemente a Paulo
porque espera receber dele suborno. Depois de um período de dois anos,
Félix é substituído por Pórcio Festo e Paulo continua como prisioneiro.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1173
ATOS 25
EM JERUSALÉM E EM CESAREIA, parte 5 (At 25:1–27)
3. Paulo diante de Festo (At 25:1–12)

Diferente de Félix, um escravo liberto que tinha escalado a carreira


política até chegar a ser governador, Festo era membro de uma das
famílias nobres de Roma. Conquanto Félix tinha sido ambicioso e mau,
Festo era sábio e honorável. De Félix tinha herdado uma nação marcada
pela ausência de lei e ordem. Num esforço por devolver-lhe uma
aparência de segurança e paz, Festo eliminou os chamados sicários,
aqueles que nos últimos anos da administração de Félix tinham chegado
a aumentar cada vez mais. 1534 Estes sicários eram judeus assassinos que
se misturavam entre as multidões durante os dias de festas. Com adagas
escondidas entre suas vestes, podiam dar morte a seus oponentes e logo
desaparecer. Quando os espectadores se amontoavam ao redor do líder
morto, os sicários reapareciam, uniam-se aos que lamentavam o fato, e
assim evitavam ser detectados. 1535
Festo também herdou o problema de determinar a culpabilidade ou
inocência de Paulo, o prisioneiro. Falto de experiência em matéria da
religião dos judeus, imediatamente foi a Jerusalém para aprender sobre a
lei, a adoração e os costumes dos judeus.

1534
Josefo Antiguidades 20.8.10 [185–88].
1535
Consulte-se Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–
A.D. 135) ed. e rev. por Geza Vermes e Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 1, p.
463.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1174
a. Jerusalém (At 25:1–5)

1, 2. Três dias depois de chegar à província, Festo subiu de Cesaréia


para Jerusalém, onde os chefes dos sacerdotes e os judeus mais
importantes compareceram diante dele, apresentando as acusações contra
Paulo [NVI].
a. O tempo. Nenhuma das duas referências a tempo (“três dias” [At
25:1] e “dois anos” [At 24:27]) provê informação sobre o ano em que
Pórcio Festo veio para Judeia e quanto tempo exerceu o cargo de
governador. Para encontrar pistas, olhemos a informação que proveem os
historiógrafos.
Não se pode determinar com segurança o começo do governo de
Festo, devido ao fato de que não conhecemos exatamente quando foi
deposto Félix. Podemos fazer um cálculo aproximado, usando como
ponto de partida um comentário feito por Cláudio Lísias. Quando
interrogou a Paulo, o comandante se referiu ao egípcio que se levantou
contra Roma “algum tempo atrás” (At 21:38). Este incidente teve lugar
durante o reinado de Nero, quando o imperador já tinha reinado por
algum tempo. A afirmação de Lísias deve ser interpretada como uma
referência a um tempo bastante posterior à ascensão de Nero ao trono
(13 de outubro de 54 d.C.). 1536 E depois de seu arresto, Paulo tinha
passado dois anos na prisão. É provável que Félix tenha governado a
Palestina de 52 até 59 d.C. 1537 e que Nero o tenha deposto no ano 59.
Festo provavelmente chegou a Cesareia no ano 59 ou no 60.
Sabemos que Festo morreu estando no cargo, e que seu sucessor,
Albino, veio para Judeia em 62 d.C. Josefo conta que Albino era
governador no tempo da Festa dos Tabernáculos no outono desse ano;

1536
Josefo Guerra Judaica 2.13.5 [261–63]; Antiguidades 20.8.6 [169–72]. Veja-se Schürer, History
of the Jewish People, vol. 1, p. 465 n. 42.
1537
Para uma data anterior da partida de Félix de Cesareia, veja-se Kirsopp Lake, “The Chronology of
Acts”, Beginnings, vol. 5, pp. 464–67. Cf. Colin J. Hemer, The Book of Acts in the Setting of
Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf (Tubinga: Mohr, 1989), p. 171.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1175
presumivelmente tinha assumido suas funções uns poucos meses
antes. 1538
b. O momento. “Então Festo, três dias depois de ter chegado à
província, subiu a Jerusalém de Cesareia”. Quando Pórcio Festo chegou
a Cesareia, sabia que só os dirigentes judeus poderiam lhe ajudar a
reverter a corrente do descontentamento político e social na Judeia.
Imediatamente viajou a Jerusalém, onde se reuniu com o sumo sacerdote
Ismael, filho de Fabi, quem tinha sido nomeado por Agripa II no ano 59
d.C. 1539 Lucas escreve que os principais sacerdotes e os dirigentes judeus
se apresentaram diante de Festo em Jerusalém, provavelmente na
Fortaleza Antônia. Mas, note-se que usa a forma plural chefes dos
sacerdotes. Mesmo quando Ananias tinha sido deposto, continuou
exercendo enorme influência. Possivelmente estava entre os dirigentes
judeus que puseram Festo a par a das queixas do povo. Também estavam
presentes outros membros das famílias sumo sacerdotais (cf. At 4:6).
c. As acusações. “[Eles] apresentando as acusações contra Paulo”.
Lucas não está interessado no mal-estar político daqueles dias, antes,
chama a atenção às acusações que os judeus apresentaram contra Paulo
(refira-se a At 24:5–8). Embora tenham passado dois anos desde que
Paulo se defendeu diante de Félix (At 24:10–21, 27), os judeus não
tinham esquecido as acusações contra seu inimigo. Durante dois anos,
Paulo tinha estado seguro sob a custódia do exército romano (veja-se At
24:23, 27) e durante esse tempo não pôde ser tocado pelas autoridades
judaicas. Na opinião destes, Paulo representava uma ameaça ao judaísmo
e era preciso eliminá-lo.
3. Pediram a Festo o favor de transferir Paulo para Jerusalém,
contra os interesses do próprio Paulo, pois estavam preparando uma
emboscada para matá-lo no caminho [NVI].

1538
Josefo dá a data como “quatro anos antes da guerra” (Guerra Judaica 6.5.3 [300]) e “sete anos e
cinco meses” antes da destruição de Jerusalém [308] (LCL).
1539
Josefo Antiguidades 20.8.8 [179]; Schürer, History of the Jewish People, vol. 2, p. 231. Ananias
(veja-se At 23:2; 24:1) tinha sido deposto.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1176
a. “Pediram a Festo o favor de transferir Paulo para Jerusalém,
contra os interesses do próprio Paulo”. Os líderes de Jerusalém
entendiam que o novo governador poderia decidir libertar Paulo. E se
Paulo viajava para o oeste, a Roma e a Espanha (cf. Rm 15:23–24, 28),
já não poderiam eliminá-lo. Por isso, os principais sacerdotes e os
anciãos apelaram à boa vontade de Festo e reiteradamente lhe pediram
um favor e que não ouvisse nenhum rogo de Paulo. Sugeriram-lhe que o
convocasse a Jerusalém, onde poderia levar a cabo um juízo com a
presença dos dirigentes judeus. Seu pedido pareceu perfeitamente lógico
porque Festo já se encontrava em Jerusalém. Só deveria mandar um
mensageiro a Cesareia com a citação e logo determinar a culpabilidade
ou a inocência de Paulo.
b. “Pois estavam preparando uma emboscada para matá-lo no
caminho”. Lucas acrescenta que os judeus estavam preparando uma
emboscada no caso Festo aceder à sua petição. Planejaram estacionar
uma quantidade de pessoas em algum lugar entre Cesareia e Jerusalém;
esta gente poderia assassinar Paulo e os soldados designados para
escoltá-lo (cf. At 23:12, 21).
4, 5. Festo respondeu: Paulo está preso em Cesareia, e eu mesmo vou
para lá em breve. Desçam comigo alguns dos seus líderes e apresentem ali
as acusações que têm contra esse homem, se realmente ele fez algo de
errado [NVI].
Se aceitarmos que Cláudio Lísias ainda era o comandante em
Jerusalém, Festo pôde ter recebido informação oportuna a respeito de
Paulo e o anterior complô judaico (cf. At 23:12–22). Além disso, se
Lucas pôde escrever que os judeus estavam preparando outro complô,
poderíamos supor que as notícias também chegaram aos ouvidos de
Festo. Como governador romano, ele devia garantir a segurança de
Paulo, portanto, rejeitou a solicitude dos judeus.
Além disso, indiretamente, os dirigentes judeus procuraram
debilitar a autoridade de Festo ao trasladar seu tribunal de Cesareia, onde
o governador romano tinha sua residência e seu quartel general, a
Atos (Simon J. Kistemaker) 1177
Jerusalém, o centro da influência judaica. Festo reagiu negativamente a
esta intromissão em suas atribuições e assim rejeitou a sugestão para
uma mudança de lugar do juízo. Afirmou que Paulo estava sob custódia
em Cesareia e que ele mesmo iria logo ali. Sua negativa salvou a vida de
Paulo, porque em Cesareia não havia temor de alguma agressão física.
Ali, os judeus eram incapazes de atacá-lo, porém no caminho para
Jerusalém, ou na própria cidade, poderia estar em perigo mortal.
De repente, os judeus perceberam que o governador lhes tinha
virado a mesa. Em lugar de trazer Paulo a Jerusalém, Festo disse aos
judeus: “Desçam comigo alguns dos seus líderes [literalmente, alguns
dos poderosos]”. Quer dizer, que o sumo sacerdote e seus associados
venham a Cesareia. Normalmente, são os demandantes os que se
apresentam na corte; nunca o juiz e o jurado vão diante dos
demandantes. 1540
“E apresentem ali as acusações que têm contra esse homem, se
realmente ele fez algo de errado”. Festo fez saber à hierarquia dos judeus
que ele não conhece suas leis religiosas, mas se estiverem em condições
de provar que Paulo cometeu um crime, não terá nenhum inconveniente
em submetê-lo a juízo. Portanto, diz-lhes, que apresentem suas
acusações.

Palavras, frases e construções gregas em At 25:2–5


Versículo 2
οἱ πρῶτοι — “os homens mais proeminentes”. Esta palavra é um
sinônimo para “anciãos” (Lc 19:47; At 28:17). 1541
παρεκάλουν — o tempo imperfeito de παρακαλέω (eu apelo a,
suplicar, pedir) deixa em evidência a ação repetida da hierarquia judaica.

1540
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo:
Clark, 1877), vol. 2, p. 710.
1541
Josefo Antiguidades 11.5.3 [141].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1178
Versículo 3
αἰτούμενοι — o tempo presente indica ação persistente e
continuada. O verbo αἰτέω (eu peço) está na voz média, que é um modo
comum no Novo Testamento para descrever transações comerciais. 1542
χάριν — no singular (para o plural veja-se At 24:27), a palavra
favor revela um quid pro quo (uma coisa por outra).

Versículo 4
μὲν οὗν — esta combinação refere-se ao adversativo no entanto. O
artigo definido e o nome ὁ Φῆστος (Festo) marca uma mudança no
sujeito; a construção comunica uma mudança naqueles que falam. 1543
εἰς — neste contexto, a preposição é equivalente a ἐν (em).
δυνατοί —“poderosos”. O adjetivo refere-se não à capacidade e sim
à influência e autoridade. 1544
εἴ τί ἐστιν — “se há algo”. Note-se que o governador usa o
indicativo presente em lugar do subjuntivo. O indicativo comunica
realidade e certeza, mas o subjuntivo, probabilidade e incerteza.

b. Cesareia (At 25:6–8)

Uns assuntos chamam nossa atenção. Primeiro, o governador Festo


exerce sua autoridade com relação aos judeus. Logo, os líderes judeus
decidem viajar a Cesareia para apresentar acusações contra Paulo. E por
último, Lucas diz que o procedimento judicial reflete pressa.

1542
A. T. Robertson, A Grammar of New Testament Greek in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 805; Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the
New Testament and Other Early Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago:
University of Chicago Press, 1961), #316.2.
1543
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 163.
1544
Cf. Josefo Guerra Judaica 1.12.4 [242]; Antiguidades 14.13.1 [324].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1179
6. E, não se demorando entre eles mais de oito ou dez dias, desceu
para Cesaréia; e, no dia seguinte, assentando-se no tribunal, ordenou que
Paulo fosse trazido.
Lucas descreve dia a dia os acontecimentos que precederam o juízo
de Paulo diante de Festo. Diz que três dias depois de sua chegada a
Cesareia, Festo foi a Jerusalém (v. 1). Ali passou entre oito e dez dias
com os líderes judeus (v. 6) e, no dia seguinte de ter chegado de volta a
Cesareia, convocou a corte (v. 6).
Temos a impressão que os dirigentes judeus acompanharam Festo
na viagem de dois dias entre Jerusalém e Cesareia. Porque justo no dia
seguinte, convocou a sessão da corte, com os dignitários de Jerusalém
em sua condição de demandantes, Paulo em sua condição de demandado,
e ele mesmo, em sua condição de governador, como juiz (veja-se o
paralelo em At 22:30).
7. Quando Paulo apareceu, os judeus que tinham chegado de
Jerusalém se aglomeraram ao seu redor, fazendo contra ele muitas e
graves acusações que não podiam provar [NVI].
O caso apresentado diante da corte é extraordinário. Dois anos
antes, Félix tinha ouvido as acusações de Tértulo e a defesa de Paulo,
porém não tinha ditado um veredito. Deixou o caso sem resolver e
manteve Paulo na prisão.
Diante da insistência dos judeus de Jerusalém, Festo acedeu a
resolver o caso. Ordenou aos soldados que fizessem Paulo comparecer;
quando Paulo chegou à corte, permaneceu no meio dos membros do
Sinédrio. É possível que este fator tenha contribuído ao ambiente tenso
da sala da corte, pois de repente os judeus tiveram aí, junto a eles, a
Paulo, seu arqui-inimigo.
Logo, Festo autorizou os judeus para apresentarem suas acusações,
e estas eram numerosas e sérias. No próprio juízo, entretanto, os judeus
não puderam provar nenhuma delas. Suspeitamos que repetiram as
mesmas acusações que tinham apresentado durante o anterior juízo (At
24:2–9). Mas depois de dois anos, os judeus da província da Ásia (At
Atos (Simon J. Kistemaker) 1180
21:27) não podiam ser chamados como testemunhas oculares. Como
resultado, nenhuma das acusações pôde ser verificada por testemunhas
fidedignas.
Festo, ao ouvir as acusações, logo percebeu que Paulo não era um
criminoso, mas as acusações se relacionavam com leis religiosas e
costumes dos judeus. Devia julgar um homem que, além de ser cidadão
romano, não tinha ofendido César nem em palavra nem em atos. Além
disso, permitiu um homem que era inocente ser seu próprio advogado e
refutar as alegações dos judeus.
8. Então Paulo, defendendo-se, disse: Não tenho pecado em coisa
alguma, nem contra a Lei dos judeus, nem contra o templo, nem contra
César.
Neste ponto, Lucas condensa a defesa de Paulo numa só frase.
Mesmo quando as acusações eram muitas e sérias, os judeus não
puderam apresentar nenhuma nova. As alegações foram idênticas às que
Tértulo fez no primeiro juízo (At 24:5–6). O verbo defendeu (no original
está no tempo presente) indica que Paulo reiteradamente se reivindicou a
si mesmo. Rejeitou as acusações de que tinha pecado contra a lei judaica,
tinha profanado o templo, e que tinha mostrado rebeldia contra César.
Ao dizer que não havia pecado, estava declarando sua inocência diante
de qualquer delito contra os judeus, contra o templo de Jerusalém, e
contra a autoridade romana.
A atitude de Paulo para os romanos era positiva (ver Rm 13:1–7).
Em suas relações com os oficiais que representavam o governo de Roma,
sempre tinha demonstrado cortesia e respeito. E, por sua vez, os romanos
usualmente eram considerados com ele, especialmente quando fez valer
seus direitos como cidadão romano. (At 16:37; 22:25). De qualquer
maneira, enquanto permanecia em meio de judeus furiosos que lhe
lançavam insultos e acusações na sala da corte de Festo, ele sabia que
não podia esperar um juízo justo. O recém-nomeado governador poderia
optar por dar seu apoio aos judeus e ganhar assim sua boa vontade.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1181
Palavras, frases e construções gregas em At 25:6–8
Versículos 6–7
ἥ — esta partícula quer dizer “ou” entre as palavras oito e dez. Não
deve ser considerada como parte do comparativo πλείους (mais [que]) no
sentido de “que”.
βήματος — Festo ocupou o tribunal e transformou a sessão da corte
num juízo oficial em nome do governo romano. Veja-se Mt 27:19; Jo
19:13; At 18:12.
αἰτιώματα — “acusações”. Esta palavra aparece uma só vez no
Novo Testamento. O termo comum é αἰτί (acusación).

Versículo 8
ἀπολογουμένου — do verbo ἀπολογέομαι (eu faço uma defesa,
defendo-me a mim mesmo), este particípio médio presente amostra,
primeiro, ação contínua; logo, ação reflexiva, com Paulo servindo como
seu próprio juiz; e finalmente, o caso genitivo como parte da construção
absoluta genitiva. Esta construção é defeituosa; o sujeito na cláusula e a
frase principal é o mesmo. 1545

c. A apelação (At 25:9–12)

Nestes versículos, Lucas pinta uma interessante luta pelo poder


entre um governador romano e um cidadão romano. Ao julgar a Paulo
em Jerusalém, Festo quer agradar os judeus e ganhar seu favor, mas
Paulo, reclamando seus direitos de cidadão, insiste em ser julgado num
tribunal em Roma, reitera sua inocência, e apela para César.

1545
J. de Zwaan tabulou noventa e cinco casos em que aparece a construção absoluta genitiva em Atos
e mostra que vinte delas são defeituosas. “The Use of the Greek Language in Acts”, Beginnings, vol.
2, p. 42.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1182
9. Festo, querendo alcançar o favor dos judeus, perguntou a Paulo:
Queres subir a Jerusalém e ser aí julgado destas coisas perante mim?
a. Assentimento. Este versículo revela que a palavra favor é a chave
para entender a mudança em Festo. Em Jerusalém, ele tinha exercido
seus poderes como o governador romano e tinha recusado conceder aos
dirigentes judeus a cortesia de uma mudança de lugar para o juízo. Mas
quando estes dirigentes viajaram a Cesareia, fizeram-no seu devedor. Se
quisesse contar com sua ajuda na restauração da lei e da ordem em toda a
terra sob sua jurisdição e reprimir o poder dos zelotes, deveria fazer-lhes
um favor. E o favor que os judeus pediam era que Paulo fosse julgado
em Jerusalém. Ali poderiam acusá-lo de profanar o templo, declará-lo
culpado, e executá-lo. Os romanos não poderiam intervir e a cidadania
romana de Paulo não lhe serviria absolutamente.
Festo, entretanto, informou a Paulo que em Jerusalém o juiz seria o
governador. A questão é se Festo se faria acompanhar por seu próprio
concílio (v. 12) ou permitiria que o Sinédrio servisse como seu tribunal.
Poderia ouvir os judeus acusadores e a Paulo e logo emitir um juízo
imparcial? Serviria ele como mediador entre os judeus e Paulo? 1546
Paulo considerou suas opções e temeu que
1. Festo pudesse usar os membros do Sinédrio como seu concílio,
com o que o procedimento perderia objetividade; 1547
2. O governador queria congraçar-se com os judeus e, portanto,
poderia ser parcial em seus juízos;
3. Se Festo o declarasse inocente e o deixasse livre, não poderia
desfrutar da proteção do exército romano, e assim sua vida correria
perigo nas ruas de Jerusalém e nos caminhos da Judeia;
4. Os judeus poderiam planejar assassiná-lo no caminho para ou de
Jerusalém (At 9:23–24, 29; 20:3, 19; 23:12, 15, 30; 25:3; 2Co 11:26).

1546
Uns poucos manuscritos gregos inseriram a conjunção comparativa ou para que o texto diga, “e
ser julgado ali ou diante de mim”.
1547
A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963; reimp. Grand
Rapids: Baker, 1978), p. 67.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1183
Quando o governador Festo perguntou a Paulo se estava disposto a
viajar a Jerusalém e submeter-se a juízo ali, Paulo recusou. Ele apreciava
sua cidadania romana (veja-se At 22:25–29; 23:27) e, por meio dela, a
segurança de não ser perseguido pelos judeus na Judeia.
10. Mas Paulo respondeu: Estou perante o tribunal de César onde
devo ser julgado. Não tenho feito mal algum aos judeus, como tu bem
sabes.
b. Imunidade. Tanto Félix como Festo tinham julgado a Paulo.
Ambos os governadores deveram havê-lo deixado em liberdade por falta
de evidência, mas preferiram assegurar o favor dos judeus e o
mantiveram na prisão. Quando Festo sugeriu um terceiro juízo, agora
diante de um tribunal (religioso) em Jerusalém, Paulo não vacilou em
invocar seus direitos como cidadão romano. Lembrou-lhe ao governador
que um cidadão romano deve ser julgado numa corte romana.
Paulo mostrou sua integridade e inocência quando fez notar a Festo
seu dever e o lembrou que o governador era o representante de César e,
portanto, devia assegurar justiça em favor de um cidadão romano.
Forçou Festo a reconhecer sua inocência, a qual o governador já tinha
determinado (vv. 4–8). Também lhe tocou a consciência. 1548 Quando lhe
disse que ele não fez nada mau aos judeus, pôs em contraste sua
inocência com a questionável tentativa de Festo de mostrar favoritismo
pelos judeus.
11. Se, pois, sou malfeitor, e tenho praticado alguma coisa que
mereça a morte, não recuso morrer; mas se não são verdadeiras as coisas
de que me acusam, ninguém pode entregar-me a eles; apelo para César.
c. Inocência. Paulo francamente deixa claro que ou é culpado ou é
inocente. Na presença de Festo, o juiz, fica a si mesmo sob a lei e expõe
duas frases paralelas que expressam uma simples questão de verdade.
Na primeira frase, diz ao governador que se é culpado e cometeu
algum crime que mereça um veredito de pena capital, não buscará
escapar à aplicação da sentença. Dessa maneira, apresenta ao governador
1548
Bengel, Gnomon of the New Testament, vol. 2, p. 711.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1184
e ao tribunal (v. 12) a provocação de provar que é culpado. A segunda
frase não é só a exata oposição à primeira, mas também especifica que as
acusações contra ele foram formuladas pelos judeus. Pôde ter feito uma
declaração categórica de sua integridade, mesmo quando Festo sabia
muito bem de sua inocência. Pelo contrário, expõe o fato simples de sua
falta de culpabilidade de uma forma condicional: “se não são verdadeiras
as coisas de que me acusam [e você sabe que estas acusações são
infundadas], ninguém pode entregar-me a eles [os judeus]”.
Durante a administração de Félix, Paulo evitou apelar seu caso
diante do imperador romano. Félix ainda não tinha emitido um veredito
mas em qualquer momento pôde ter declarado sua inocência, deixando-o
livre. Quando, entretanto, foi chamado a Roma e apareceu Festo na cena,
Paulo percebeu que seu futuro ficaria difícil se o novo governador
quisesse favorecer os judeus, levando-o a juízo para Jerusalém. Agora
terá que lutar por sua vida, e em essa luta, lança mão do último recurso:
como cidadão romano exerce seu direito de apelar para César.
Quando diz que ninguém tem o direito de entregá-lo aos judeus,
diretamente se está referindo a Festo. Neste ponto confrontamos um
assunto legal que deriva do contexto geral: Carecia Festo, e por
conseguinte Félix, de autoridade para ditar sentença se Paulo tinha o
direito de apelar para César? Festo livremente admite diante de Agripa
sua incapacidade de formular acusações contra Paulo (v. 27). E Agripa
chega à conclusão que Paulo “bem podia ser solto, se não tivesse apelado
para César” (At 26:32). O contexto sugere que a apelação de Paulo
impede ao governador emitir um veredito de inocência que pôde ter feito
tardiamente. 1549 Em resumo, o apelo para César concede a Paulo um
status que o põe acima de qualquer processo tanto do Sinédrio em
Jerusalém como da corte de Festo em Cesareia.

1549
H. J. Cadbury, “Roman Law and the Trial of Paul”, Beginnings, vol. 5, pp. 310–11; Schürer,
History of the Jewish People, vol. 1, p. 369 n. 76.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1185
Com a breve declaração apelo para César, Paulo releva Festo de
sua relação judicial com ele. (Tanto em latim como em grego, a
afirmação apelo a César consiste em só duas palavras: Caesarem
appello [latim] e kaisara epikaloumai [grego]. O verbo grego no meio
significa: “Acudo a César em meu favor”.). 1550 Ao mesmo tempo, Paulo
põe o governador na posição indesejável de ter que justificar o envio de
Paulo a Nero sem nenhuma acusação específica. Nero e seus ajudantes
não veriam muito bem um governador que mostrava incompetência em
julgar assuntos de menor importância. Paulo apelou para César por três
razões: primeiro, a apelação salvou sua vida; segundo, poderia ir a
Roma, como Jesus lhe tinha antecipado (At 23:11); e terceiro, em Roma
poderia pregar o evangelho aos do governo de Nero (veja-se Fp 1:13;
4:22) e talvez o cristianismo pudesse receber um reconhecimento
oficial. 1551
12. Então Festo, tendo conferenciado com o conselho, respondeu:
Para César apelaste, a César irás.
a. A apelação. Desde os inícios do império romano, os cidadãos
tinham o direito de apelar ao imperador quando se tratava de sentenças
de morte aplicadas por juízes locais. Este privilégio estava limitado aos
cidadãos dentro das muralhas de Roma e até uma milha para além. Nas
províncias, escreve H. J. Cadbury, os governadores não tinham
autoridade para ajuizar e condenar cidadãos. Com relação às acusações
que suportavam a pena de morte, os governadores com efeito
funcionavam não como juízes, e sim como fiscais que apresentavam os
casos, junto com os cidadãos acusados, ao imperador. 1552 Os
imperadores romanos respeitavam este direito dos cidadãos. Ajudados
por outros funcionários, julgavam os casos segundo toda a informação

1550
Cf. Robertson, Grammar, p. 809.
1551
Refira-se a J. M. Gilchrist, “On What Charge Was St. Paul Brought to Rome?” ExpT 78 (1967):
264–66; Sherwin-White, Roman Society and Roman Law, pp. 57–70.
1552
Cadbury, “Roman Law and the Trial of Paul”, p. 315. A apelação era chamada o provocatio, o que
significava o “direito de um cidadão de apelar contral veredito de um magistrado” (p. 313).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1186
que lhes proporcionavam os governadores e cônsules. (Paulo exerceu
seus direitos durante a primeira parte do reinado de Nero [54–62 d.C.],
que usualmente é chamada a idade de ouro do imperador.)
Quando Festo ouviu Paulo dizer “Apelo para César”,
imediatamente entrou em consulta com seu tribunal. Percebendo bem
que só os casos excepcionais podiam ser enviados ao imperador, e que
Paulo não tinha cometido nenhum delito contra o estado romano, Festo
buscou a assessoria dos membros de seu concílio, que incluía “tanto os
altos funcionários de sua corte como a jovens que os acompanhavam
para adquirir experiência na administração provincial”. 1553
Em favor de Festo, poderíamos dizer que o governador aceitou a
apelação de Paulo e concordou em enviá-lo a Roma. Cumpriu a tentação
de enganar a Paulo de uma maneira ou de outra. Manteve sua palavra e
em pouco tempo fez os preparativos para que Paulo embarcasse rumo à
cidade imperial.

Palavras, frases e construções gregas em At 25:9–11


Versículo 9
χάριν — “favor”. Note-se a construção similar em At 24:27, onde
aparece a forma χάριτα. Neste contexto, prepondera a palavra favor:
como um substantivo nos versículos 3 e 9, e como um verbo (χαρίζομαι,
eu concedo como um favor) nos versículos 11 e 16.
θέλεις — este é um verbo presente simples (“estás disposto?”),
porque aparece numa frase interrogativa. 1554

1553
F. F. Bruce, The Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary 3a. ed.
rev. e amp. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 489.
1554
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
242.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1187
Versículos 10–11
Καισαρός — a palavra César é proeminente neste capítulo (vv. 8,
10, 11, 12, 21).
κάλλιον — o advérbio superlativo de καλῶς (bem, louvável) é
traduzido “muito bem”.
ἀδικῶ — embora presente de forma (“estou errado”), este verbo
está perto do tempo perfeito, muito parecido a πέπραχα (o fiz). A. T.
Robertson define o último verbo como “um perfeito que rompe a
continuidade”. 1555

4. Paulo e Agripa (At 25:13–27)

Festo enfrentava um imenso problema. Sabia que devia respeitar o


desejo de Paulo de apelar para César, mas estava perplexo quanto à
descrição legal que enviaria do caso de Paulo a Roma. Não sabia como
formular uma acusação contra Paulo, porque as acusações dos judeus se
relacionavam com assuntos religiosos que nada tinham que ver com a lei
romana.
Por isso, sentiu um grande alívio quando o rei Agripa II e Berenice
chegaram a Cesareia para apresentar-lhe seus respeitos. Agripa era
descendente de judeus, tinha sido educado em Roma, e era governante de
um reino. Ele poderia lhe dar assessoria adequada e ajudá-lo neste caso.

a. Os visitantes identificados (At 25:13–14a)

13, 14a. Alguns dias depois, o rei Agripa e Berenice chegaram a


Cesareia para saudar Festo. Visto que estavam passando muitos dias ali,
Festo explicou o caso de Paulo ao rei [NVI].
Por uns poucos dias, Festo não soube o que fazer para formular ao
imperador uma descrição adequada do caso de Paulo. Justo nesse tempo,

1555
Robertson, Grammar, p. 896.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1188
o rei Agripa e Berenice chegaram a Cesareia para lhe dar as boas-vindas
em sua nova nomeação como governador da Judeia. Chegaram ao
palácio do governador e permaneceram ali com ele por muitos dias.
Havia uma cortês relação de amizade entre ambos governantes. Festo
percebia que Agripa tinha sido preparado na corte de Cláudio e tinha
uma clara compreensão da religião judaica. Além disso, o imperador
Cláudio lhe tinha dado a posição de curador do templo de Jerusalém e o
direito de nomear seus sumos sacerdotes. 1556 Depois de alguns dias,
Festo deu a conhecer a Agripa sua preocupação e lhe pediu seu conselho.

Comentários adicionais sobre Agripa II e a dinastia herodiana

Agripa, Berenice, e Drusila eram os filhos do rei Herodes Agripa I


(veja-se o quadro genealógico).

1556
Josefo Antiguidades 20.5.2 [103]; 20.9.4, 7 [213, 222–23].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1189
CHAVE
Os números entre parêntese se referem aos anos em exercício de
suas acusações.
Os nomes em negrito indicam as pessoas mencionadas no texto.
= Indica casamentos.
Quando em 44 d.C. morreu Herodes, Agripa II tinha dezessete
anos; Berenice, dezesseis; e Drusila, seis. Na estação, Agripa II estava
em Roma. Esperava que o imperador Cláudio lhe concedesse a coroa de
seu pai, mas Cláudio pensava que um jovem de dezessete anos carecia de
maturidade para governar a Palestina, acossado como estava por
interesses religiosos e nacionalistas, problemas e conflitos. Em 50 d.C.,
Cláudio confiou a Agripa o reino de Cálcis (no vale do Líbano), que
tinha pertencido ao irmão de Herodes Agripa. 1557 Três anos depois, no
entanto, Cláudio ofereceu a Agripa II a tetrarquia de Filipe (Batanea,
Traconites, e Gaulanitis), a tetrarquia de Lisânias (Abilene) e o território
do Varus (Acra) em troca do reino de Cálcis. 1558 No primeiro ano do
reinado de Nero (54 d.C.), o imperador deu a Agripa II uma quantidade
de cidades importantes e aldeias tanto na Galileia como na Pereia. 1559
Agripa II, então, governou a metade norte da Palestina. Expandiu a
cidade capital de Cesareia de Filipos, e a rebatizou como Neronias, em
honra do imperador Nero. 1560 Embora se chamou a si mesmo “Grande
Rei, piedoso Amigo do César e Amigo de Roma”, no entanto tratou de
promover a causa judaica. Foi conhecido como um perito em costumes e
conflitos judeus (At 26:3), e foi bem versado na Escritura hebraica (At
26:27). Agripa traçou suas raízes judaicas até sua bisavó Mariamne,
segunda esposa de Herodes, o Grande.

1557
Josefo Guerra Judaica 2.12.1 [223|; Antiguidades 20.5.2 [104]; veja-se também Schürer, History
of the Jewish People, vol. 1, pp. 562–63, 571–73.
1558
Cf. Lc. 3:1; refira-se a Josefo Guerra Judaica 2.12.8 [247]; Antiguidades 20.7.1 [138].
1559
Josefo Guerra Judaica 2.13.2 [252]; Antiguidades 20.8.4 [159].
1560
Josefo Antiguidades 20.9.4 [211].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1190
Agripa demonstrou sua lealdade a Roma visitando Festo pouco
depois de sua chegada a Cesareia. De uma perspectiva moral, entretanto,
a presença de sua irmã Berenice foi um embaraço. Aos treze anos, ela
tinha casado com seu tio, Herodes de Cálcis, a quem deu dois filhos
durante os sete anos de casamento. Quando em 48 d.C. Herodes morreu,
Berenice começou a viver com seu irmão, que dois anos mais tarde
chegou a ser rei de Cálcis. Berenice funcionava como rainha, enquanto
Agripa II permanecia solteiro. Josefo e o poeta latino Juvenal assinalam
que os rumores de uma relação incestuosa entre Agripa e Berenice se
estenderam amplamente. 1561 Para desvirtuar este rumor, Berenice casou
com o rei Polemo da Cilícia, presumivelmente depois de 64 d.C. Mas
pouco depois disso, abandonou-o e voltou com seu irmão.
Agripa e Berenice se esforçaram por evitar o derramamento de
sangue que resultou da revolta judaica, a que culminou com a queda de
Jerusalém, no ano 70 d.C. Tanto Agripa como Berenice apoiavam o
general romano Tito e permaneceram em sua companhia. “E quando Tito
levou a cabo impressionantes jogos às custas de Cesareia de Filipos para
celebrar a conquista de Jerusalém, o rei Agripa, sem dúvida, esteve
presente, alegrando-se como um romano na derrota de seu povo”. 1562
Além disso, Berenice comprometeu-se em enredos amorosos com Tito e
esperava que este casasse com ela quando foi a Roma em 75 d.C. Mas
devido ao fato de que o público se opôs a esse casamento, Tito a rejeitou.
Agripa, o último membro da dinastia herodiana, morreu em 100 d.C.
Através dos Evangelhos e de Atos, os escritores mostram a reação
que os membros da dinastia herodiana mostraram para com Cristo ou
Sua causa. Herodes, o Grande, procurou matar o menino Jesus (Mt 2:13,
16)). Na geração seguinte, seu filho Arquelau governou sem piedade na
Judeia, obrigando desse modo a José e Maria e ao menino Jesus a
estabelecer-se em Nazaré em lugar de em Belém (Mt 2:22–23). Outro
1561
Josefo Antiguidades 20.7.3 [145]; Juvenal Sátiras 6.156–60.
1562
Schürer, History of the Jewish People, vol. 1, p. 477; veja-se também Josefo Guerra Judaica 7.2.1
[23–24].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1191
filho, Herodes Antipas, decapitou João Batista (Mt 14:10). Uma geração
mais tarde, o rei Agripa, neto de Herodes, o Grande, matou o apóstolo
Tiago e prendeu Pedro (At 12:2). E em Atos 25, Lucas mostra o bisneto,
o rei Agripa II, participando da investigação do caso de Paulo. Diferente
de seus antepassados, este rei esteve amavelmente disposto para com a
causa apresentada por Paulo. Escutou o evangelho e depois disso
declarou que Paulo deve ter sido libertado. 1563

Palavras, frases e construções gregas em At 25:13–14a


διαγενομένων — este particípio composto na construção absoluta
genitiva na verdade significa “alguns dias vieram entre (διά)”. 1564
ἀσπασάμενοι — o uso do particípio aoristo é anormal num contexto
que demanda o particípio futuro para expressar propósito (“dar as boas-
vindas”). Gramáticos consideram a ação indicada pelo particípio aoristo
seja coincidente com a do verbo principal. 1565
κατά — esta preposição com o caso acusativo é mais expressiva
que o genitivo simples da frase caso de Paulo. Significa “As coisas que
correspondem a Paulo”.

b. O problema explicado (At 25:14b–22)

Assumindo que a conversação entre Festo e Agripa foi particular,


supomos que Lucas apresenta em seu relato as ideias principais da
discussão. “A forma de composição que usa Lucas é inferencial mais que
baseada em fontes”. 1566 Não podemos indicar como ou de que fonte

1563
Cf. Richard B. Rackham, The Acts of the Apostles, série Westminster Commentaries (1901;
reimpr. Grand Rapids: Baker, 1964), p. 457–58.
1564
Robertson, Grammar, p. 580.
1565
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #339.1; Moule, Idiom-Book, p. 100. Consulte-se também
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e Nova
York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 492.
1566
Hemer, Book of Acts, p. 348.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1192
Lucas obteve o conteúdo desta conversação particular que teve lugar
entre estes dois governantes. De qualquer maneira, o grego nesta oração
é clássico e livre de qualquer influência semítica. Festo fala como um
educado funcionário romano que se dirige a Agripa num excelente
grego.
14b-16. [Festo disse]: Há aqui um homem que Félix deixou preso.
Quando fui a Jerusalém, os chefes dos sacerdotes e os líderes dos judeus
fizeram acusações contra ele, pedindo que fosse condenado. Eu lhes disse
que não é costume romano condenar ninguém antes que ele se defronte
pessoalmente com seus acusadores e tenha a oportunidade de se defender
das acusações que lhe fazem [NVI].
Com o uso (no grego) do tempo perfeito, Festo testifica do fato que
Paulo tinha sido um prisioneiro por um longo período. Faz notar que seu
predecessor, Félix, tinha deixado o caso sem dar um veredito e que
subsequentemente o assunto passou à atenção de Festo quando chegou a
Jerusalém. Ali, a hierarquia religiosa judaica informou-o imediatamente
a respeito de Paulo, a quem acusavam de quebrantar a lei. Demandavam
que Festo emitisse um veredito de culpado. Festo deixou expressamente
estabelecido que os judeus não estavam pedindo um juízo no qual
pudesse ser determinada a culpabilidade ou inocência do acusado, mas
pelo contrário, exigiam um veredito de culpabilidade.
Festo informa que ele se opôs a este procedimento evidentemente
viciado, porque como juiz que representava o imperador romano deveria
submeter a juízo um cidadão romano segundo a prática e leis de Roma.
Os judeus queriam não somente que declarasse a Paulo culpado, e sim
como um favor queriam que Paulo lhes fosse entregue. O governador
manifestou sua integridade em sua explicação a Agripa. Segundo a lei
civil romana, ninguém poderia ser condenado sem ser ouvido primeiro e
sem que lhe tenha sido dado a oportunidade de defender-se na corte. 1567

1567
Diante do senado romano e Cícero, o senador Piso declarou: “Nossa lei, senadores, requer que o
acusado pessoalmente ouça as acusações interpostas contra ele, e terá que ser julgado depois que fizer
Atos (Simon J. Kistemaker) 1193
17, 18. Portanto, tendo-se eles reunido aqui, sem me demorar, no dia
seguinte sentei-me no tribunal e mandei trazer o homem; e levantando-se
os acusadores, não apresentaram contra ele alguma acusação dos crimes
que eu supunha.
O texto grego parece implicar que os judeus viajaram com Festo a
Cesareia. Quando chegaram, o governador convocou imediatamente a
corte e ordenou que Paulo fosse levado à sua presença. As circunstâncias
de ter à mão a delegação judaica e a determinação de Festo de levar a
cabo o juízo em Cesareia contribuíram para evitar qualquer demora. Sem
dúvida, ele pensava que o juízo a Paulo era de grande significância e
queria levá-lo a cabo logo. Mas para sua surpresa, logo percebeu que
Paulo não era um criminoso que tivesse violado a lei romana.
Acostumado a aplicar a lei civil e castigar os malfeitores e todos os que
se rebelassem contra Roma, o governador não soube o que fazer nesta
disputa entre judeus sobre assuntos religiosos. Se tivesse querido levar o
juízo a Paulo a uma conclusão satisfatória da perspectiva romana, teria
tido que declará-lo inocente e deixá-lo em liberdade. Mas, como seu
predecessor, queria fazer um favor aos judeus e o manteve prisioneiro.
19. Mas tinham com ele certas questões sobre a sua religião e sobre
um Jesus defunto, que Paulo afirmava estar vivo.
O governador admite sua falta de perícia em «alguns pontos de
desacordo» relacionados com a religião judaica. O governo de Roma
tinha dado à religião dos judeus status legal e mantinha uma política de
não interferência em leis e práticas religiosas. Mas quando os judeus
pediam aos governadores romanos julgar um compatriota judeu com
base na lei judaica, estes funcionários não podiam aceder a tais pedidos.
Festo, não obstante, parecia ter ao menos um conhecimento
superficial da disputa relacionada com a ressurreição de Jesus. Embora
não identifica Paulo por seu nome mas se refere a ele como um homem
que é um prisioneiro, no contexto da ressurreição de Jesus menciona os

sua própria defesa”. Appian Civil Wars 3.54 (LCL). Veja-se também Tácito Historia 1.6; Jacques
Dupont, Etudes sur les Actes des Apôtres, Lectio Divina 45 (Paris: Cerf, 1967), pp. 527–52.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1194
nomes tanto de Jesus como de Paulo. Aqui está o ponto nevrálgico que
provoca que os judeus peçam um veredito de culpabilidade contra Paulo:
a ressurreição de Jesus dentre os mortos. Festo informa a Agripa II que o
assunto era “sobre um Jesus defunto, que Paulo afirmava estar vivo”.
João Calvino destaca que Festo, incrédulo e adorador de ídolos, teve que
ser o juiz de Paulo e mediador na presença de seus inimigos judeus. 1568
Em sua ignorância espiritual, o governador teve que emitir juízo sobre a
verdade de Deus pertinente à ressurreição de Cristo. No entanto, por
questão de orgulho pessoal, decididamente rejeitou o ensino de Paulo a
respeito da morte e ressurreição de Cristo (veja-se At 26:22–24).
20, 21. Fiquei sem saber como investigar tais assuntos; por isso
perguntei-lhe se ele estaria disposto a ir a Jerusalém e ser julgado ali
acerca destas acusações. Apelando Paulo para que fosse guardado até a
decisão do Imperador, ordenei que ficasse sob custódia até que eu pudesse
enviá-lo a César [NVI].
Com relação aos assuntos religiosos de judeus e cristãos, Festo
confessa francamente “fiquei sem saber como investigar”. O texto grego
mostra que usa o pronome pessoal eu para indicar que é ele mesmo quem
não sabe como proceder. No entanto, o que não diz a Agripa é que ele
queria fazer um favor aos judeus, trasladando o juízo de Cesareia a
Jerusalém (v. 9). Só diz que perguntou a Paulo se estaria disposto a
comparecer em Jerusalém baseando sua sugestão em sua incapacidade de
decidir sobre assuntos religiosos. Este reconhecimento antecipa que
Paulo não receberia um veredito favorável se acedesse em viajar a
Jerusalém. Mas a visita real de Festo entende perfeitamente a situação e
não se surpreende de ouvir o governador dizer que Paulo tinha apelado
para César. 1569

1568
Consulte-se João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e
Thomas F. Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 266.
1569
Em português comum, este título corresponderia a “Sua Majestade”. Parece que quem está falando
usa vários títulos (sinônimos) para Nero, chamando-o César (v. 21), Imperador (vv. 21, 25; a palavra
imperador no texto grego é Sebastos, que é o equivalente em latim para “Augusto”), ou Sua
Atos (Simon J. Kistemaker) 1195
Festo informa a Agripa que deu andamento à ordem de manter
Paulo em custódia em Cesareia até fazer os arranjos necessários para
enviá-lo a Roma. Mas Festo precisa primeiro preparar um documento
legal que deve acompanhar Paulo diante do imperador. E ele pode enviar
Paulo só quando um número suficiente de prisioneiros possam ser
levados a Roma por um centurião e soldados do Regimento Imperial (At
27:1). Enquanto isso, Paulo permanecerá em Cesareia.
22. Disse Agripa a Festo: Eu também desejava ouvir esse homem.
Amanhã, respondeu ele, o ouvirás.
Festo despertou a curiosidade de Agripa, porque por meio de Paulo
Agripa poderá obter informação direta a respeito dos cristãos e sua
religião. Vemos aqui um paralelo entre Agripa, que deseja encontrar-se
com Paulo, e o tio avô daquele, Herodes Antipas, quem quis ver Jesus
(Lc 9:9; 23:8). Numa ocasião anterior, Drusila, a irmã de Agripa, tinha a
oportunidade de escutar Paulo apresentando os ensinos de Cristo (At
24:24–26).
Em adequadas e bem escolhidas palavras, Agripa expressou seu
desejo de ouvir Paulo. Ele pôde ter usado uma expressão descortês para
dizer que queria ouvi-lo, porém com o tempo do verbo querer ele
expressa uma solicitude cortês (“Eu estava no ponto de desejar”). 1570 A
resposta de Festo é breve mas precisa: “Amanhã o ouvirás”.

Considerações históricas em At 25:10–21


Quando em 63 a.C. Roma conquistou Israel, o governo romano
sabiamente deixou intactos os alicerces religiosos do povo judeu. A
religião judaica recebeu status legal de tal maneira que por todo o
império romano os judeus podiam adorar de acordo com suas próprias
leis e costumes. Inclusive Roma deu aos judeus em Jerusalém o direito

Majestade (v. 26). Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 312. Consulte-se Bauer, pp. 745–46;
Thayer, p. 572.
1570
Ver Robertson, Grammar, p. 919.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1196
de impor a pena de morte a qualquer pessoa não judia que entrasse na
área do templo proibida aos gentios.
Durante ao menos seus primeiros trinta anos de existência, a igreja
cristã foi considerada parte da religião judaica reconhecida pelo estado
romano. Mas o rápido e amplo desenvolvimento da igreja junto com a
crescente hostilidade dos judeus contra o cristianismo provocou uma
rachadura entre a fé cristã e o judaísmo. Esta situação não pôde ser
passada por alto pelos romanos, porque ou deviam dar igualdade de
direitos à igreja ou declarar ilegal sua existência. Os judeus que se
opunham violentamente aos cristãos lutaram ardorosamente para que
Roma declarasse ilegal a igreja.
Quando Paulo apelou para César na presença do governador Festo,
Roma se enfrentou face a face com a religião cristã. Na corte de César,
Roma deveria fazer uma decisão relativa à existência da igreja. (A
apelação de Paulo não foi um esforço evangelístico para apresentar o
evangelho na cidade imperial. Por certo a igreja de Roma já estava
prosperando e crescendo muitos anos antes de Paulo escrever sua
Epístola aos Romanos em 57 d.C.,) Mesmo quando era um prisioneiro,
ele pôde expor diante de César a questão do status legal do cristianismo.
Festo tinha se declarado incapaz de decidir sobre a matéria pela qual
devia mandar Paulo ao imperador. Em Roma, Paulo declarou que ele era
um prisioneiro pela esperança de Israel, a qual consistia na vinda do
reino de Deus e Seu Messias e a doutrina da ressurreição. Em suma,
Paulo era um prisioneiro em Roma pelo nome do evangelho de Cristo.
Embora Lucas não proveja evidência, a tradição mantém que Paulo foi
libertado da prisão domiciliar em Roma. Lucas nos diz que Paulo
pregava ousadamente o evangelho, sem nenhum tipo de impedimento
por parte do estado (cf. At 28:31).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1197
Palavras, frases e construções gregas em At 25:14b–22
Versículos 14b–15
καταλελειμμένος — com o verbo ser ou estar no tempo presente,
esta é uma construção perifrástica (“foi deixado atrás”). O tempo perfeito
no particípio denota efeito duradouro e o uso do composto significa
abandono.
οἱ … οἱ — o aparecimento de dois artigos definidos antes de dois
substantivos indica dois grupos distintos: os principais sacerdotes e os
anciãos.
καταδίκην — “veredito de culpabilidade”. O Texto majoritário
adotou a forma δίκην (juízo). Em vista da frase κατʼ αὑτοῦ (contra ele),
no entanto, eruditos preferem καταδίκην, um nome composto que repete
a preposição.

Versículo 16
πρὶν ἥ — esta combinação é comum no grego koinê; no grego
*
ático aparece a forma simples πρίν. Ambas as formas significam
“diante”. Daqui e em Lc 2:26 a combinação é seguida pelo verbo finito
numa construção coloquial indireta. Os dois optativos ἔχοι (tem) e λάβοι
(recebe) sugerem possibilidades futuras.

Versículos 18–19
ἔφερον — note-se o uso crescente do imperfeito descritivo nos
versículos 18–20: “foram trazendo”, “foi suspeitando”, “foi
reclamando”, e “foi perguntando”.
πονηρῶν — “dos delitos”. Os manuscritos do Texto majoritário
omitem esta palavra, talvez no interesse de suavizar a leitura.

*
Relativo a Atenas ou aos atenienses; simples e elegante. – Nota do Tradutor.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1198
δεισιδαιμονίας — no Novo Testamento, esta palavra aparece só
aqui. É usada objetivamente; quer dizer, num sentido favorável significa
“religião”. Para o uso do adjetivo, veja-se At 17:22.

Versículo 20
εἰ βούλοιτο — em lugar do indicativo presente θέλεις (v. 9), Festo
usa o optativo (“se ele quereria”) “para suavizar a força da verdadeira
ordem e consequentemente para conciliar o motivo original deste
assunto”. 1571

c. Paulo apresentado (At 25:23–27)

É razoável supor que quando Festo trouxe Paulo diante do rei


Agripa, Lucas estava presente. Durante a prisão de Paulo, seus amigos
puderam visitá-lo e ajudá-lo em suas necessidades (At 24:23); pelo que
parece improvável que lhes tivesse sido negado o acesso a este encontro.
Além disso, as palavras de Festo (“todos os homens aqui conosco”, At
25:24) implica que à parte dos dignitários e nobres convidados havia
outras pessoas presentes. 1572 E Lucas assistiu aos anteriores juízos de
Paulo. Também é seguro que ele tenha querido estar perto de seu amigo
nesta ocasião. Qualquer informação com relação a Paulo que circulava
em e em torno do palácio de Festo era do interesse de Lucas.
Por toda sua apresentação, Lucas concede a Paulo uma posição
principal no desenvolvimento do relato. Para ele não é importante a
presença da realeza nem o desdobramento militar e administrativo, e sim
a calma dignidade de Paulo.

1571
Hanna, Grammatical Aid, p. 243.
1572
Theodor Zahn, Die Apostelgeschichte des Lucas, serie Kommentar um Neuen Testament, 2 vols.
(Leipzig: Deichert, 1921), vol. 2, p. 814.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1199
23. No dia seguinte vindo Agripa e Berenice, com grande pompa e,
depois de entrarem na audiência com os tribunos e homens principais da
cidade, foi Paulo ali trazido por ordem de Festo.
Por que convidou Festo ao salão a realeza e os dignitários?
Obviamente a reunião não era um juízo formal, porque Paulo já tinha
sido julgado diante de Festo e seus acusadores tinham voltado a
Jerusalém. Além disso, a reunião teve lugar não numa sala de corte (v.
6), porém na sala de audiência do governador. 1573 E, para ser precisos, a
apelação de Paulo a César inabilitava qualquer juízo que estivesse
pendente.
De qualquer maneira, Festo não tinha completado seu trabalho no
caso de Paulo. Ainda precisava escrever um documento legal para
benefício de Nero, mas publicamente tinha reconhecido sua confusão (v.
27). Por tal motivo, convocou Agripa e Berenice, os chefes militares e
autoridades da cidade que o ajudassem (v. 26) a formular sua justificação
para enviar Paulo a Roma. No coração de todo o assunto estava o
evangelho que Paulo tinha estado apresentando.
Alguns eruditos questionaram a historicidade do comentário de
Lucas a respeito da pompa. Hans Conzelmann escreve: “O
desdobramento de ostentação é criação de Lucas e não tem pretexto
histórico”. 1574 Mas a historicidade do relato de Lucas certamente não
está em tela de juízo. Tudo o que teve lugar foi uma tentativa de Festo de
honrar ao rei Agripa. O governador proveu ao rei a ocasião de desdobrar
seu poder real; cedendo-lhe a cadeira do juiz, de modo que o rei pudesse
autorizar a Paulo para que falasse (At 26:1); permitiu ao rei que fosse o

1573
Bauer, p. 33.
1574
Hans Conzelmann, Acts of the Apostles, trad. por James Limburg, A. Thomas Kraabel, e Donald
H. Juel (1963; Filadélfia: Fortress, 1987), p. 207. E Ernst Haenchen afirma: “Qualquer que … concebe
de uma apresentação tal como um prova litográfica historicamente confiável … deve por necessidade
fazer um relato deficiente de suas próprias corretas impressões”. The Acts of the Apostles: A
Commentary, trad. por Bernard Noble e Gerald Shinn (Filadelfia: Westminster, 1971), p. 679.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1200
primeiro em levantar-se (At 26:30); e lhe concedeu o privilégio de fazer
a declaração de fechamento do caso de Paulo (At 26:32). 1575
O rei Agripa II vestiu-se de roupas pomposas, como seu pai
Herodes Agripa se embelezou com roupas reais (At 12:21). Para
impressionar o governador Festo e as demais personalidades, Agripa II
exibiu sua realeza pelas roupas que usou para a ocasião. Berenice,
mesmo quando não era a rainha, fez outro tanto. E os altos oficiais do
exército de Roma, cinco em número, 1576 assistiram à reunião em seus
atavios mais finos, em respeito pelo rei visitante. Quanto às altas
autoridades da cidade, vestiam igualmente segundo a ocasião.
Entre “as altas autoridades da cidade” é possível que porventura
tenha havido judeus, mas conjeturamos que a maioria era gentios.
Quando todos os convidados de honra estiveram sentados, o governador
Festo ordenou a um soldado que trouxesse Paulo. E consciente da
palavra de Jesus de que seria levado diante de governadores e reis por
causa de Jesus, Paulo aproveitou a oportunidade para testificar diante dos
gentios (Mt 10:18).
24, 25. Então, disse Festo: Rei Agripa e todos vós que estais presentes
conosco, vedes este homem, por causa de quem toda a multidão dos
judeus recorreu a mim tanto em Jerusalém como aqui, clamando que não
convinha que ele vivesse mais. Porém eu achei que ele nada praticara
passível de morte; entretanto, tendo ele apelado para o imperador, resolvi
mandá-lo ao imperador.
Antes de ceder sua autoridade a Agripa II, Festo apresenta Paulo à
audiência. Respeitosamente dirige-se a Agripa como rei e dá as boas-
vindas a todos os que se encontram na audiência. Segundo o costume
daqueles dias, fala só aos homens, embora Berenice esteja presente.
Dirige a atenção para Paulo e logo, com um toque de exagero,
declara que “toda a multidão dos judeus recorreu a mim tanto em

1575
Consulte-se Rackham, Acts, p. 461.
1576
Josefo menciona cinco coortes, cada uma das quais tinha um comandante. Antiguidades 19.9.2
[365].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1201
Jerusalém como aqui”. Evidentemente se está referindo aos dirigentes
judeus e não a cada judeu que vive nesses dois lugares. Faz notar a
seriedade do assunto quando diz que os judeus não somente lhe
apresentaram uma petição, mas gritam que Paulo não deve seguir
vivendo (cf. At 21:36; 22:22). No original, o advérbio negativo não
aparece com a expressão já não mais como um reforço da petição: “ele
não deve seguir vivendo”. Os judeus são inflexíveis em seu desejo da
morte de Paulo.
O governador revela aos seus ouvintes que investigou Paulo e
encontrou que este não cometeu nada digno da pena capital. Neste ponto,
continua Festo, Paulo apelou ao imperador (veja-se a análise do v. 21). O
que o governador não diz é a causa imediata para que Paulo apelasse.
Omite sua sugestão de que o juízo se faça em Jerusalém como um favor
aos judeus (veja-se vv. 9, 20).
Para suprir esta falta, o Texto ocidental acrescenta bastante ao texto
(vv. 24–25, os agregados aparecem em itálico):
que se os entregasse para castigo sem nenhuma defesa. Mas eu não
podia entregar-lhe devido às ordens que temos do Imperador. Mas se
alguém ia acusá-lo, disse-lhes que deveria me seguir a Cesareia, onde
ele [Paulo] era mantido em custódia. E quando chegaram, gritaram que
deveria ser levado à morte. Mas quando ouvi os dois lados do caso,
encontrei que em nenhum aspecto era culpado de morte. Mas quando
disse “Estaria disposto a ser julgado em Jerusalém?” ele apelou ao
César. 1577
A consagrada regra de que o texto mais breve é mais provável que
seja o original aplica-se neste caso. A ampliação parece ser o trabalho de
um escriba que desejava apresentar uma leitura mais suave desta
passagem.

1577
Metzger, Textual Commentary, p. 494. Refira-se a Albert C. Clark, The Acts of the Apostles: A
Critical Edition with Introduction and Notes on Selected Passages (1933; Oxford: Clarendon, 1970),
pp. 158–59, 381–82. E veja-se Bruce, Acts (texto grego), p. 494.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1202
O governador fala como um juiz e revela que falhou com relação à
apelação de Paulo de ser enviado a Roma. Esta decisão é final, mas
agora Festo necessita ajuda para preparar o relatório que deve
acompanhar o prisioneiro.
26, 27. Contudo, a respeito dele, nada tenho de positivo que escreva
ao soberano; por isso, eu o trouxe à vossa presença e, mormente, à tua, ó
rei Agripa, para que, feita a argüição, tenha eu alguma coisa que
escrever; porque não me parece razoável remeter um preso sem
mencionar, ao mesmo tempo, as acusações que militam contra ele.
a. “Contudo, a respeito dele, nada tenho de positivo que escreva ao
soberano”. Embora as atas dos juízos anteriores de Paulo estão à
disposição do governador, sabe que tem que escrever seu próprio
relatório. Abertamente confessa que está confundido sobre como redigir
o relatório. Sabe que as acusações que se apresentaram contra Paulo
carecem de fundamento, pelo que não entende a causa da ira dos judeus
contra ele. Portanto, diz que não tem nada definido para escrever a
respeito de Paulo. Em alguns sentidos, vemos um paralelo entre Cláudio
Lísias, que queria saber dos dirigentes judeus no Sinédrio a razão de sua
ira (At 22:30), e o governador Festo, quem pede a Agripa II, um perito
em assuntos judeus (At 26:3), que o ajude a entender o ódio que os
judeus têm contra Paulo.
Festo refere-se ao imperador Nero como “Sua Majestade”. A
palavra grega é kyrios, que se traduz como “senhor”. Assim, o
governador na verdade diz que não tem nada que escrever ao senhor.
Tanto Augusto como Tibério rejeitaram ser tratados com este título, mas
Calígula e todos os imperadores que o seguiram o aceitaram. Evidências
arqueológicas têm provas contundentes de que especialmente Nero
desejava ser chamado “senhor”. Apreciava este título e exigia que seus
súditos através de todo o império o usassem. “Em qualquer lugar,
Atos (Simon J. Kistemaker) 1203
inclusive nas mais remotas aldeias, os oficiais chamavam Nero de
Kyrios”. 1578
A confissão mais antiga dos cristãos é “Jesus é Senhor” (1Co 12:3).
Esta declaração estava diametralmente oposta ao lema César é
Senhor. 1579 Em seu discurso diante de Agripa, Paulo chama
corajosamente a Jesus “Senhor” (At 26:15). Para os seguidores de Cristo,
só Jesus era digno desse nome.
b. “Por isso, eu o trouxe à vossa presença e, mormente, à tua, ó rei
Agripa”. Festo espera a ajuda que lhe possa dar sua audiência. Entende
que a religião cristã, representada por Paulo, o colocou neste apuro. E
espera que, de todos os que estão ali, Agripa possa ajudá-lo a solucionar
o problema. E espera ter, na conclusão da investigação, depois das
palavras de Paulo e a avaliação de Agripa, suficiente material para seu
relatório.
c. “Porque não me parece razoável remeter um preso sem
mencionar, ao mesmo tempo, as acusações que militam contra ele”. Este
comentário reflete uma modéstia excessiva. Festo está implicando que se
enviasse Paulo ao imperador sem acompanhar as acusações por escrito,
estaria a sérias dificuldades. Nero não vai perder seu tempo em assuntos
que devem ter atendido seus funcionários nas províncias. Com a frase
não me parece razoável o governador quer dizer que ninguém em seu
são juízo faria algo semelhante.

Palavras, frases e construções gregas em At 25:23–26


Versículo 23
φαντασίας — o substantivo grego (“pompa”) deriva do verbo
φαντάζω (faço-me visível). Um derivado em português é “fantasia”.

1578
Adolf Deissmann, Light from the Ancient East, ed. rev., trad. por Lionel R. M. Strachan (Nova
York: Doran, 1927), p. 353.
1579
A Policarpo foi dito que se ele dissesse “César é Senhor” isso o livraria de ser queimado na
fogueira (155 d.C.). Recusou fazê-lo. Martydom of Polycarp 8.2.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1204
κατʼ ἐξοχήν — “suas excelências”. O modismo aplica-se aos
homens proeminentes na cidade de Cesareia.

Versículos 24–25
ἐνέτυχον — “apelaram”. A forma plural aparece, mesmo quando o
sujeito πλῆθος (multidão) é singular.
δεῖν — o infinitivo é parte de uma ordem indireta: “gritando que ele
não deve viver mais”.
κατελαβόμην — do verbo καταλαμβάνω (eu agarro), é o meio, que,
como um reflexivo, quer dizer “agarrar, encontrar, entender”.

Versículo 26
τι γράψαι — “algo que escrever”. Note-se a repetição de τί γράψω
(o que tenho que escrever). No primeiro caso, Festo afirma um fato com
o uso do pronome indefinido τι (algo) e o infinitivo aoristo. No segundo
caso, emprega o pronome interrogativo τί (o que?) e o subjuntivo aoristo
da primeira pessoa singular. O subjuntivo é deliberativo.

Resumo de Atos 25
Festo toma o lugar do governador Félix e aos três dias de ter
chegado a Cesareia viaja a Jerusalém, onde se reúne com os principais
sacerdotes e os anciãos. Eles apresentam acusações contra Paulo, que
está preso em Cesareia, e pedem a Festo que Paulo seja julgado em
Jerusalém. Festo se nega e programa um juízo em Cesareia, onde
convoca Paulo e ouve as numerosas acusações que os judeus não estão
em condições de provar. Paulo declara que ele nem agiu contra a lei dos
judeus ou de César nem profanou o templo. Quando Festo lhe pergunta
se estaria disposto a comparecer em Jerusalém, lembra ao governador
que ele deve ser julgado numa corte romana. Defendendo seus direitos,
apela para César. Festo declara que irá a César.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1205
O rei Agripa e Berenice chegam a Cesareia para dar as boas-vindas
a Festo, que apresenta ao rei o caso de Paulo. Agripa diz que a ele
gostaria de escutar Paulo, e Festo lhe assegura que seu desejo será
satisfeito no dia seguinte. Com grande pompa, Agripa, Berenice, os altos
oficiais militares, e os destacados dirigentes da cidade se reúnem com
Festo na sala de audiências de Festo. Quando Paulo comparece diante
deles, Festo o apresenta e pede à audiência, especialmente a Agripa, que
o ajude a escrever para César as acusações que se apresentaram contra
Paulo.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1206
ATOS 26
EM JERUSALÉM E EM CESAREIA, parte 6 (At 26:1–32)
5. O discurso de Paulo (At 26:1–32)

O propósito desta ostentosa reunião é conseguir que o rei Agripa II


ofereça algum conselho a Festo com relação às acusações contra Paulo.
Festo o honrou ao lhe oferecer o martelo de juiz. Lucas registra só
afirmações resumidas sobre Agripa; em seu relato, o personagem
principal é Paulo.

a. A permissão (At 26:1)

1. Então Agripa disse a Paulo: “Você tem permissão para falar em


sua defesa”. A seguir, Paulo fez sinal com a mão e começou a sua defesa
[NVI].
O rei Agripa está favoravelmente disposto a ouvir Paulo. O rei não
pede uma explicação das acusações; mas, pelo contrário, dá a Paulo
completa liberdade para falar. Obviamente, percebe que, devido à
apelação a César, a reunião que começa não é uma reunião formal da
corte. Ao lhe permitir dirigir-se à audiência sem interrupções nem
refutações, Agripa elimina qualquer tensão e assim recebe um amplo
relato dos ensinos de Paulo.
Agripa evita até dar a impressão de ter um semblante de autoridade
sobre Paulo. Sabiamente emprega a voz passiva quando diz “Você tem
permissão para falar”, em lugar de dizer: “Dou-lhe permissão para falar”.
Ao dizer que Paulo pode falar em seu próprio nome, dá-lhe uma
magnífica oportunidade de pregar o evangelho. Lembre-se que ele já
tinha manifestado seu interesse em ouvir Paulo pregar (At 25:22).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1207
“A seguir, Paulo fez sinal com a mão e começou a sua defesa”. O
movimento com a mão é um gesto comum entre os oradores do primeiro
século. Quando Lucas escreve que Paulo fala em sua própria defesa, está
indicando que as palavras que pronuncia são uma defesa do evangelho
na presença do rei Agripa (veja-se o contexto imediato de v. 24). Em sua
condição de prisioneiro, Paulo carrega correntes (v. 29) enquanto está de
pé diante de seus distinguidos ouvintes. O contraste entre o deslumbrante
adorno dos altos e poderosos e as humildes roupas do prisioneiro
acorrentado de repente chega a carecer de significado, visto que Paulo
desdobra a tranquila dignidade de um homem que tem uma mensagem
para dar. 1580
Nenhum discurso em Atos, quer de Paulo ou de qualquer outro
orador, tem tom tão pessoal como o discurso de Paulo diante de Agripa
(veja-se especialmente v. 27). Ao longo de seu discurso, fala com o rei
com graça, dirigindo-se a ele por seu título, seu nome, e com o pronome
pessoal você. 1581 Este discurso cintila com a beleza de sua direta
apelação ao evangelho.
Paulo escolhe suas palavras para quadrar com sua audiência. Quer
dizer, a linguagem que usa se aproxima do grego clássico e está no nível
de seu discurso diante do Areópago (At 17:22–31). Ao mesmo tempo,
percebemos aqui o mesmo tom que os outros discursos de Paulo.
Neste discurso perante Agripa, mais uma vez narra sua experiência
de conversão (cf. At 22:1–21; e veja-se At 9:1–19). Os três relatos de sua
conversão diferem, mas em cada caso, Paulo enfatiza aqueles elementos
que se ajustam a seus propósitos do presente. Ele é livre para escolher
suas próprias palavras para descrever o acontecimento.

1580
O Texto ocidental diz, “confiante, e animado pelo Espírito Santo, Paulo faz sinal com sua mão”.
No entanto, o agregado só aparece em latim, o qual Albert C. Clark reconstruiu em grego. The Acts of
the Apostles: A Critical Edition with Introduction and Notes on Selected Passages (1933; Oxford:
Clarendon, 1970), pp. 159, 232.
1581
Refira-se aos vv. 2, 3, 7, 13, 19, 27.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1208
Embora se dirija a Agripa, quem é um descendente de judeus e “um
perito em todos os costumes e disputas dos judeus” (v. 3), seu discurso
não é uma apelação com um só matiz do evangelho dirigido unicamente
ao rei (veja-se, por exemplo, v. 8). Paulo apresenta a doutrina da
ressurreição de Cristo como uma luz para o povo judeu tanto como para
os gentios (v. 23). 1582

Palavras, frases e construções gregas em At 26:1


ἐπιτρέπεται — “agora te é permitido”. O uso do tempo imperfeito é
cerimonioso.1583 A voz passiva do verbo com o pronome no caso dativo
é equivalente ao ativo (“tem autorização”).
περί — com o pronome σεαυτοῦ no caso genitivo, a frase significa
“por conta de ti mesmo”.
ἀπελογεῖτο — o tempo imperfeito é incoativo e se traduz “ele
começou a defender-se a si mesmo”. 1584

b. O reconhecimento (At 26:2–3)

2, 3. Rei Agripa, considero-me feliz por poder estar hoje em tua


presença, para fazer a minha defesa contra todas as acusações dos judeus,
e especialmente porque estás bem familiarizado com todos os costumes e
controvérsias deles. Portanto, peço que me ouças pacientemente [NVI].
a. “Considero-me feliz”. Paulo crê em cada palavra que diz a
Agripa. Expressa sua alegria pela oportunidade que o rei lhe dá de
apresentar o evangelho. Dirige-se não a um governante gentio mas a um

1582
Cf. Klaus Haacker, “Das Bekenntnis des Paulus zur Hoffnung Israels nach der Apostelgeschichte
des Lukas”, NTS 31 (1985): 437–51.
1583
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2a. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 7.
1584
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 885.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1209
1585
rei judeu que é versado nas Escrituras do Antigo Testamento. Com
relação a Agripa, tem com ele um ponto de contato espiritual que não
tem com Festo. Agripa pode entender as doutrinas da fé cristã e pode dar
sua avaliação a Festo.
b. “Por poder estar hoje em tua presença, para fazer a minha defesa
contra todas as acusações dos judeus”. Paulo pode relatar a Agripa seu
passado, sua experiência de conversão, seu mandato divino e sua prisão
em Jerusalém. E confia que o rei entenderá que, do ponto de vista
judaico, está em completo acordo com a esperança de Israel para o
cumprimento das profecias do Antigo Testamento (veja-se v. 7). Esta
esperança se centraliza no ensino judaico da ressurreição dos mortos vv.
8, 23).
Paulo não enumera as acusações que os judeus apresentaram contra
ele, mas em seu discurso refuta as acusações que o irritaram desde sua
prisão em Jerusalém. 1586 Sua intenção principal é promover a causa do
evangelho, mas uma consideração secundária é limpar o seu nome. Em
ausência dos acusadores judeus, pode falar livremente sem temor a ser
rebatido. Quando de repente Festo interrompe o discurso de Paulo,
expressa incredulidade porém não animosidade (v. 24).
c. “Peço que me ouças pacientemente”. Paulo emprega as
formalidades oratórias de sua época em que implora a Agripa que o
escute. No juízo diante do governador Félix, o orador Tértulo disse
palavras similares (veja-se At 24:4). No entanto, Paulo, diferente de
Tértulo, não deve ser acusado de falta de sinceridade. Ele pensa em cada
palavra que vai dizer e quer que Agripa ponha muita atenção à
mensagem teológica que está prestes a ouvir.

1585
Consulte-se Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 a.C–
135 d.C.) rev. e ed. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 1, p.
475; R. F. O’Toole, The Christological Climax of Paul’s Defense, Analecta Biblica 78 (Rome:
Biblical Institute, 1978), p. 17.
1586
Refira-se a John J. Kilgallen, “Paul Before Agrippa (Acts 26, 2–23): Some Considerations”, Bib
69 (1988); 170–95.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1210
d. “Especialmente porque estás bem familiarizado com todos os
costumes e controvérsias deles”. Devido ao fato de que Agripa conhece a
fé judaica, Paulo pensa em lhe mostrar que o cristianismo tem suas raízes
no judaísmo. Uma tradução literal do texto, diria: “porque você é
especialmente perito” (veja-se anotação à margem da NASB). O que
quer dizer é que de todos os governantes, o rei Agripa é o melhor
qualificado para entender os costumes e disputas judaicas. Cortesmente
oferece um elogio ao rei ao chamá-lo perito nos assuntos judeus.

Palavras, frases e construções gregas em At 26:2–3


Ἰουδαίων — a omissão do artigo definido é comum onde quer que
se mencionam nomes de pessoas nos pleitos em grego. 1587
ἥγημαι — este é o perfeito do verbo ἡγέομαι (eu penso, considerar),
o qual perdeu sua função média e, portanto, necessita o pronome
ἐμαυτόν para completar o sentido do verbo (“considero-me”). O perfeito
tem o sentido de presente.
ἀπολογεῖσθαι — a voz média expressa como uma reflexiva:
“defender-me a mim mesmo”.
ὄντα σε — “você é”. Este é um particípio suspenso. “Uma falta de
congruência nos particípios não está limitada aos escritores pouco
educados do Novo Testamento”. 1588

c. Os antecedentes (At 26:4–8)

A parte introdutória do discurso de Paulo varia quanto ao conteúdo


do que pronunciou dos degraus da Fortaleza Antônia uns dois anos antes
(At 22:3). A diferença está em que na presença do rei Agripa, enfatiza a

1587
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961), #262.
1588
Nigel Turner, A Grammar of New Testament Greek, 4 vols. (Edimburgo: Clark, 1963), vol. 3, p.
316.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1211
doutrina da ressurreição dos mortos. Faz insistência em que é
precisamente por este ensino que está sendo julgado (vv. 6–8).
4, 5. Todos os judeus sabem como tenho vivido desde pequeno, tanto
em minha terra natal como em Jerusalém. Eles me conhecem há muito
tempo e podem testemunhar, se quiserem, que, como fariseu, vivi de
acordo com a seita mais severa da nossa religião.
a. “Todos os judeus sabem como tenho vivido desde pequeno”.
Com o uso do adjetivo todos, Paulo está falando generalidades. Quer
dizer que seus oponentes em Jerusalém e outras partes conhecem sua
identidade e podem examinar sua vida pessoal. Conhecem suas origens
(veja-se At 22:3; Gl 1:13; Fp 3:5). Quando ainda era criança, seus pais se
trasladaram de Tarso da Cilícia a Jerusalém. Nesta cidade foi criado e
recebeu sua educação. Emprega as frases desde pequeno, e há muito
tempo para apoiar sua afirmação de que os judeus estão a par de sua
maneira de viver. Além disso, seus oponentes vieram a conhecer seu
passado através dos discursos que pronunciou em Jerusalém e em
Cesareia (At 22:1–21; 24:10–21).
Diz que ele passou sua vida em sua própria “terra natal”. Usa o
costumeiro termo grego ethnos (nação), e não o substantivo grego Laos,
que normalmente se refere a Israel como o povo da aliança com
Deus. 1589 Sua audiência é principalmente gentílica, por isso
cuidadosamente evita ser ofensivo de qualquer maneira, por isso escolhe
o termo comumente usado, ethnos. Enquanto o termo nação é amplo, a
referência a Jerusalém é específica. Aqui viveu por várias décadas até
que saiu para Damasco (At 9:1–3) e daí para Tarso (At 9:30). Sua
prolongada permanência em Jerusalém identifica-o claramente com a
religião judaica.

1589
Em várias ocasiões, tanto no Evangelho como em Atos, Lucas descreve o povo de Israel como
ethnos (p. ex. Lc. 7:5; 23:2; At. 10:22). O contexto determina o significado exato do termo grego
ethnos. Consulte-se Hans Bietenhard, NIDNTT, vol. 2, p. 793.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1212
b. “Eles me conhecem há muito tempo e podem testemunhar, se
quiserem”. Diz que os judeus o conheceram desde sua juventude. 1590 Por
raça, educação, e zelo, ele é um deles, mas os judeus recusam reconhecer
sua preparação e dedicação na religião judaica. O reconhecimento dos
judeus os obrigaria a testificar em seu favor, mas ele duvida que farão
isso. Põe a responsabilidade de testificar nos judeus.
c. “Como fariseu, vivi de acordo com a seita mais severa da nossa
religião”. Se os judeus não querem testificar, ele o fará. Identifica-se
com os judeus cumpridores da lei daquele tempo, porque os fariseus
eram reconhecidos por obedecer os mandamentos de Deus ao pé da letra.
Descreve os fariseus como “a seita mais severa da nossa religião”.
Ninguém, diz Paulo, pode acusá-lo de ignorar a lei de Deus, porque suas
raízes estão na seita mais estrita do judaísmo.
A forma verbal vivi refere-se à sua juventude e à duração de sua
preparação em Jerusalém. Justificadamente, pôde referir-se a si mesmo
como “fariseu, filho de fariseus” (At 23:6). Se alguém pôde havê-lo
defendido num tribunal judeu, os fariseus teriam que ter sido os
primeiros em falar por ele.
Paulo sabe que Agripa tem autoridade para nomear o sumo
sacerdote, que pertence ao partido dos saduceus. Não quer fazer questão
da diferença entre os saduceus e os fariseus, mas quer que o rei entenda
que quanto à doutrina da ressurreição, os fariseus deveriam respaldá-lo.
E com o termo religião está se referindo especificamente à
adoração do Deus de Israel. Testifica que ele e o rei compartilham esta
adoração, mesmo quando Agripa deveria reconhecer que Paulo é o
adorador mais fiel.
6. E, agora, estou sendo julgado por causa da esperança da promessa
que por Deus foi feita a nossos pais.

1590
Quando descreve a desolação em torno de Jerusalém, Josefo usa o mesmo verbo (“conhecer desde
tempos passados”). Não poderia ser reconhecida por ninguém que tinha conhecido sua beleza de
tempos passados. Guerra Judaica 6.1.1 [8].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1213
Num sentido, os vv. 6, 7 e 8 formam um pensamento parentético
que brevemente interrompe a autoidentificação de Paulo, um fariseu (v.
5) que manifesta sua anterior oposição a Jesus de Nazaré (v. 9). 1591
Claramente explica que a razão para este juízo é espiritual e corresponde
à religião de Israel: “a esperança da promessa feita por Deus a nossos
pais”. Mais uma vez (veja-se v. 5) Paulo inclui Agripa entre o povo
judeu.
Qual é a esperança que Paulo compartilha com a nação de Israel?
Através de sua pregação e ministério de dirigir-se preferentemente a
audiências judaicas, repetidamente menciona a palavra esperança (At
23:6; 24:15; 28:20) e, com frequência, a relaciona com Jesus e com a
ressurreição dos mortos. Esperança refere-se à promessa que Deus fez
aos antepassados espirituais de Israel mediante os profetas na época do
Antigo Testamento. E Deus cumpriu esta promessa na ressurreição de
Jesus Cristo. 1592
A rejeição de seus oponentes em reconhecer o cumprimento da
esperança de Israel faz com que o apóstolo proclame e ensine ainda mais
seriamente a realidade desta esperança. 1593 De fato, ele quer que seus
compatriotas reconheçam a ressurreição de Jesus dos mortos (cf. Rm
9:4–5; Fp 3:11). Ao fazê-lo assim, eles mudariam gradualmente desde
esperar o cumprimento da promessa a notar que já se cumpriu.
7. Esta é a promessa que as nossas doze tribos esperam que se
cumpra, cultuando a Deus com fervor, dia e noite. É por causa desta
esperança, ó rei, que estou sendo acusado pelos judeus [NVI].
a. “Esta é a promessa que as nossas doze tribos esperam que se
cumpra, cultuando a Deus com fervor, dia e noite”. A expressão as
nossas doze tribos aparece unicamente aqui e nas cartas de Paulo,

1591
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo:
Clark, 1877), vol. 2, p. 714.
1592
Consulte-se Robert J. Kepple, “The Hope of Israel, the Resurrección of the Dead, and Jesus”,
JETS 20 (1977): 231–41.
1593
Algumas traduções personalizam o conceito esperança ao fazer aparecer a Paulo dizendo “a
esperança que tenho”. Veja-se NAB; BJ, NVI.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1214
embora outros escritores do Novo Testamento usam uma expressão
similar no grego (veja-se Mt 19:28; Lc 22:30; Tg 1:1; Ap 7:4–8; 21:12).
O termo serve como um sinônimo para “Israel” e não provê informação
na história pós-exílica. 1594 Também deviam admitir que Jesus fez o
mesmo, como também os apóstolos, pelo poder que Jesus lhes deu. E por
último, eles conheciam o ensino cristão sobre a ressurreição de Jesus da
tumba. Os judeus farisaicos aceitavam a doutrina da ressurreição, mas
rejeitavam crer que Deus tivesse levantado Jesus da morte. Se Deus pôde
devolver à vida ao filho da viúva de Sarepta, e ao filho da mulher
sunamita, por que não poderia ressuscitar a Jesus?
Inteligentemente, Paulo estabelece os aspectos positivos da
esperança de Israel. Fala palavras amáveis e afirma que o povo de Israel
está procurando obter o cumprimento da promessa de Deus servindo a
Deus dia e noite. Embora em suas epístolas explica que o zelo por
guardar a lei de Deus não pode de forma alguma lhes assegurar a
salvação (veja-se, p. ex., Rm 10:2-3), aqui omite explicações doutrinais
e só faz uma observação. Afirma que a nação de Israel adora
fervorosamente a Deus esperando que Deus cumpra Sua promessa de
que o Messias restaurará a Israel. Esta esperança é fundamental na
religião judaica.
De uma forma sutil, Paulo demonstra que a esperança que ele
abriga tem sua origem na religião judaica e que tanto os judeus como ele
fomentam a mesma esperança, mas que os judeus o levaram a juízo por
esta esperança em Jesus e na ressurreição. Aqui, então, está a
incongruência que confronta Agripa ao ouvir a defesa de Paulo.
b. “É por causa desta esperança, ó rei, que estou sendo acusado
pelos judeus”. Paulo se dirige ao rei mais uma vez (veja-se v. 2) porque
quer que Agripa ponha muita atenção a este ponto crucial: os judeus o
arrastam à corte por expor uma doutrina que eles mesmos ensinam.

1594
Ao menos dois manuscritos de I Clem. 55:6 (Códices Alexandrino e Constantinopolitano) dizem
as doze tribos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1215
Devemos acrescentar, entretanto, que para Paulo tal esperança chegou a
ser uma realidade na vinda e ressurreição de Jesus Cristo. Para o
apóstolo, a pregação desta esperança é uma mensagem de cumprimento.
Em suma, a expressão esta esperança representa a proclamação do
evangelho.
8. Por que se julga incrível entre vós que Deus ressuscite os mortos?
A mudança do versículo precedente (v. 7) ao presente é abrupto e
poderia ser entendido somente por alguém cuja herança é judaica. A
conexão entre a esperança de que Deus cumprirá Sua promessa aos pais
(v. 6) e o fato de que Deus ressuscita os mortos (v. 8) não seria evidente
um gentio. Portanto, Paulo formalmente não oferece a uma audiência
gentílica uma exposição detalhada da doutrina da ressurreição. Em
Atenas fez uma exceção, onde se dirigiu a ilustrados filósofos (At 17:31-
32). Mas quando falou com judeus, sabia que tinham uma base em
comum, que era a promessa de Deus aos pais com relação ao Messias e a
ressurreição dos mortos.
Os ouvintes de Paulo no palácio do governador eram autoridades
militares e preeminentes cidadãos de Cesareia (At 25:23). Estamos
seguros que a maioria destas pessoas eram gentios, embora seja possível
que tenha havido alguns judeus. Agora Paulo desvia sua atenção do rei
Agripa e a dirige para os judeus que estão entre seus ouvintes. Deixa de
lado os gentios e simplesmente pergunta aos judeus que estão presentes:
“Por que se julga incrível entre vós [judeus] que Deus ressuscite os
mortos?”
Por sua herança do Antigo Testamento, os judeus sabiam que, sem
dúvida, Deus levantava as pessoas da tumba. 1595 Também deviam
admitir que Jesus fez o mesmo, como deste modo os apóstolos, pelo
poder que Jesus lhes deu. E por último, eles conheciam o ensino cristão
sobre a ressurreição de Jesus da tumba. Os judeus farisaicos aceitavam a

1595
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance y Thomas F.
Torrance, 2. vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 272; Haacker, "Das Bekenntnis des
Paulus", pp. 437-51.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1216
doutrina da ressurreição, mas rejeitavam crer que Deus tivesse levantado
Jesus da morte. Se Deus pôde devolver a vida ao filho da viúva de
Sarepta, e ao filho da mulher sunamita, por que não poderia ressuscitar a
Jesus?

Considerações doutrinais em At 26:6-8


O Antigo Testamento revela um desenvolvimento gradual da
doutrina da ressurreição. Depois da Queda do homem em pecado, Deus
pôs um limite na vida física do homem. Desde Adão até Noé, por
exemplo, a genealogia tem um recorrente refrão para cada pessoa que
menciona: "e morreu" (Gn 5:5, 8, 11, 14, etc.). A exceção é Enoque,
quem “um dia desapareceu, pois Deus o levou” (Gn 5:24, NTLH). Deus
também levou Elias ao céu (2Rs 2:11). Estas duas pessoas foram
trasladadas ao céu, porém não experimentaram uma ressurreição. Os
profetas Elias e Eliseu foram usados para levantar jovens da morte (1Rs
17:23; 2Rs 4:35), porém com o correr do tempo, o filho da viúva de
Sarepta morreu de novo, do mesmo modo que o filho da mulher
sunamita. Também morreu de novo o homem que foi atirado à fossa de
Eliseu e voltou à vida (2Rs 13:21).
A doutrina da ressurreição é muito evidente em Jó, ,os Salmos, e
nos profetas. Nestes livros aparece uma série de referências à
ressurreição. Jó declara que depois da morte verá com seus próprios
olhos o seu Redentor (Jó 19:25-27). No Salmo 16:10, Davi afirma que o
Santo de Deus (ou: o fiel) não será abandonado na tumba nem verá
corrupção. Isaías registra um hino, no qual aparecem estas linhas:
“Mas os teus mortos viverão; seus corpos ressuscitarão. Vocês, que
voltaram ao pó, acordem e cantem de alegria. O teu orvalho é orvalho de
luz; a terra dará à luz os seus mortos” [Is 26:19, NVI].
Daniel profetiza: “Muitos dos que dormem no pó da terra
ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror
eterno” (Dn 12:2). O profeta Oseias convida o povo a voltar-se ao
Atos (Simon J. Kistemaker) 1217
Senhor, quem lhes dará vida depois de dois dias e ao terceiro dia os
restaurará (Os 6:2). E Ezequiel conta sua visão dos ossos secos que
voltam a viver (Ez 37:1–14).
Na era do Novo Testamento, Marta diz que ela crê na ressurreição
dos mortos. Diante da segurança que Jesus lhe dá de que Lázaro viverá,
responde confessando: “Eu sei que ele vai ressuscitar na ressurreição, no
último dia” (Jo 11:24, NVI). Marta demonstra que, como membro da
comunidade judaica, tem conhecimento da doutrina da ressurreição, a
qual aceita pela fé. A resposta de Jesus “Eu sou a ressurreição” (Jo
11:25) é o cumprimento do anelo do homem pela restauração. Este
ensino, portanto, chegou a ser uma das doutrinas básicas do cristianismo.

Palavras, frases e construções gregas em At 26:4–8


Versículo 4
μὲν … οὗν — “assim então”. Esta combinação é contrastada por
aquela de καὶ νῦν (e agora) que introduz um comentário parentético (vv.
6–8).
ἴσασιν — a forma ática para o terceiro plural οἴδασιν (eles
conhecem) aparece só aqui. Paulo usa o grego clássico na presença dos
funcionários de governo, autoridades militar, e cidadãos preeminentes.

Versículo 5
ἐὰν θέλωσιν — o uso do subjuntivo (“em caso que eles queiram”)
expressa incerteza e dúvida. Também indiretamente mostra a
animosidade dos judeus para com Paulo.
ἔζησα — “vivi”. Aqui temos o uso culminativo do tempo aoristo.
Paulo olha para trás, para um período de sua vida quando praticava sua
religião como um fariseu.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1218
Versículos 7–8
ἐν ἐκτενεία — a expressão tem a força de um advérbio e significa
“seriamente”. Em 1 Tessalonicenses 3:10 encontramos um paralelo
aproximado.
ἦς — este pronome relativo é similar a um pronome demonstrativo
e deve ser traduzido “esta esperança”. 1596
παρά — a preposição παρά com o dativo comunica um sentido
metafórico: “Por que é julgado incrível a vossos olhos?” 1597
εἰ — o significado desta partícula no contexto da frase é o
equivalente de ὅτι (essa).

d. O propósito (At 26:9–11)

Depois de uma breve explicação doutrinal (vv. 6–8), Paulo volta ao


seu esboço biográfico. Informa à sua audiência como se opôs aos ensinos
de Jesus de Nazaré.
9. Então eu pensei que eu mesmo fizesse tudo o que me fora possível
contra o nome de Jesus de Nazaré [trad. Kistemaker].
A palavra introdutória então conecta esta oração com a anterior
série de pensamentos de Paulo (vv. 2–5). Como fariseu, conscientemente
decidiu negar a influência da igreja cristã, na verdade, destruí-la. Dá a
entender que ninguém lhe ordenou opor-se a Jesus Cristo; ele mesmo fez
esta decisão.
Além disso, diz que sentia uma obrigação moral opor-se à difusão
do cristianismo com todos os recursos ao seu dispor. Mesmo que cresse
na ressurreição dos mortos, recusava crer que Deus tinha levantado Jesus
de Nazaré. Cegado pela incredulidade, pensava que se opondo ao nome
de Jesus Cristo, estava servindo a Deus (cf. Jo 16:2). O termo nome deve
ser entendido no amplo sentido dos ensinos e ministério de Cristo, quer

1596
Blass y Debrunner, Greek Grammar, #458.
1597
Moule, Idiom-Book, p. 52.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1219
dizer, Sua revelação. Paulo identifica a Jesus não como o Cristo, e sim
com referência à sua residência, Nazaré (veja-se o comentário sobre At
22:8 e At 24:5). Como um ardente fariseu, opunha-se a Jesus de diversas
maneiras. Para ele, estorvar a causa de Cristo veio a ser seu estilo de
vida.
10. E foi exatamente isso que fiz em Jerusalém. Com autorização dos
chefes dos sacerdotes lancei muitos santos na prisão, e quando eles eram
condenados à morte eu dava o meu voto contra eles [NVI].
Eis aqui sua franca confissão a respeito de sua antiga vida como
perseguidor dos seguidores de Cristo. Depois da morte de Estêvão, Paulo
perseguiu os residentes em Jerusalém que criam em Cristo. Ia de casa em
casa e, arrastando homens e mulheres, encerrava-os na prisão (At 8:3).
Note-se que identifica suas vítimas como santos (lit.: os santos). 1598 Ao
usar este termo explícito, o ex-perseguidor não só admite abertamente
que causou dano a gente inocente, mas lhes concede o atributo de
santidade. Em suma, exalta-os sobremaneira. 1599
Em outros lugares, Lucas diz que Paulo “arrastando homens e
mulheres, encerrava-os no cárcere” (At 8:3; e veja-se At 9:2; o termo
cárcere provavelmente refere-se aos lugares que alguma vez ocuparam
os apóstolos [At 4:3; 5:18]). A obsessão de Paulo o tinha cegado. Não
respeitava nem homens nem mulheres. Sem fazer nenhuma classe de
distinção, encarcerava a todos. E estava presente nos juízos deles.
Confessa que inclusive deu seu voto para que os executassem, apesar de
que os judeus não tinham o direito de administrar a pena de morte (Jo
18:31). 1600
1598
Em Atos, o termo os santos aparece só quatro vezes: aqueles que foram vítimas de Paulo (At
9:13); os cristãos em Lida (At 9:32); os crentes em Jope (At 9:41); e os cristãos encarcerados em
Jerusalém (At 26:10). A primeira e última referências são ao mesmo grupo de cristãos.
1599
Em suas epístolas, e como sinônimo de chamado, eleito e fiel, Paulo emprega o termo os santos ao
menos trinta e sete vezes. Veja-se Hans Seebass, NIDNTT, vol. 2, p. 229; H. J. Cadbury, “Names for
Christians and Christianity in Acts”, Beginnings, vol. 5, pp. 380–81.
1600
Ernst Haenchen entende o texto como querendo dizer que o Sinédrio tinha o ius gladii (a
autoridade da espada). The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble y Gerald
Shinn (Filadelfia: Westminster, 1971), p. 684 n. 5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1220
Pela informação que nos provê Atos sabemos de uma só pessoa a
quem os judeus apedrejaram até a morte, ou seja, Estêvão, e talvez Paulo
tenha em mente este primeiro martírio. Porém, nos revoltos dias do ano
36 d.C., último do período de Pôncio Pilatos e quando foi chamado a
Roma, os judeus não só continuaram seus ataques aos cristãos, mas
também até executaram alguns deles (veja-se 22:4). Não se sabe que tipo
de morte lhes foi aplicado.
Quase não sabemos nada a respeito do processo de nomear novos
membros ao Sinédrio, embora Emil Schürer diga que “a única prova para
escolher um candidato era seu conhecimento rabínico”. 1601 Mas parece
que a idade também era um fator, porque Paulo é descrito como um
jovem ao morrer Estêvão (At 7:58). Portanto, é possível que devia
esperar antes de unir-se ao Sinédrio. Ao cumprir o ofício de perseguidor
para o Sinédrio, votou a favor da execução dos cristãos encarcerados.
11. Muitas vezes ia de uma sinagoga para outra a fim de castigá-los,
e tentava forçá-los a blasfemar. Em minha fúria contra eles, cheguei a ir a
cidades estrangeiras para persegui-los [NVI].
O ponto que procura destacar em seu discurso diante do rei Agripa
é que ele foi um dos judeus mais zelosos que serviu ao corpo governante,
o Sinédrio, em Jerusalém. Em tal capacidade, ajudou as forças que se
opunham ao crescimento do cristianismo, perseguindo os que se aderiam
a essa fé. Os cristãos eram parte das sinagogas locais. Assim, facilmente
pôde lançar mão deles, e levá-los a juízo e castigo pelas cortes judiciais
dessas sinagogas (cf. Mt 10:17). Estes tribunais menores os açoitavam
(veja-se Mt 23:34; 2Co 11:24). Quando os cristãos não se reuniam para
adorar nas sinagogas, ele ia pelas casas e os arrastava às cortes.
Abertamente, Paulo confessa que estava tão cheio de ódio contra os
seguidores de Jesus que procurava forçá-los a blasfemarem. Não diz
especificamente a que tipo de blasfêmias ele se refere, mas o contexto

1601
Schürer. History of the Jewish People, vol. 2, p. 211.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1221
sugere que se procurava amaldiçoar a pessoa, os ensinos e a obra de
Jesus (1Co 12:3).
Aterrorizar a comunidade cristã em Jerusalém e Judeia não o
satisfez. Por isso, solicitou permissão do sumo sacerdote para levar sua
perseguição a cidades estrangeiras e dali trazer os cristãos cativos a
Jerusalém. Ele sabia que o Sinédrio exercia sua autoridade inclusive
sobre sinagogas fora de Israel, e com as correspondentes credenciais
poderia viajar a cidades onde se estabeleceram numerosos judeus. Um
destes lugares era Damasco.

Palavras, frases e construções gregas em At 26:9–11


Versículos 9–10
μὲν οὗν — no contexto, esta combinação provavelmente é o
equivalente do modismo coloquial pois ou, “Pois, eu penso”. 1602
ὅ — o pronome relativo no singular acusativo neutro (veja-se
11:30) na verdade refere-se a todo o versículo anterior (v. 9): “e isto é
exatamente o que fiz”.
ἀναιρουμένων — o particípio passivo presente do verbo ἀναιρέω
(eu destruo) alude ao ato de executar alguém. 1603
O tempo presente indica ocorrência repetida, o caso genitivo é a
construção absoluta genitiva, e o uso do passivo serve para esconder a
identidade dos verdugos.

Versículo 11
ἠνάγκαζον — do verbo ἀναγκάζω (eu forço), o tempo imperfeito
deve ser interpretado no sentido conativo: “Procurei forçar”. Paulo
admite que, não obstante seus esforços, não o obteve.

1602
Moule, Idiom-Book, p. 163.
1603
Bauer, p. 54.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1222
περισσῶς — o advérbio que significa “excessivamente” pode ser
traduzido como “muito”.

e. A conversão (At 26:12–14)

Este relato de sua conversão difere daquele que fez aos judeus em
Jerusalém (At 22:6–21). Dificilmente poderíamos culpá-lo por
apresentar sua própria experiência em duas versões levemente diferentes;
o contexto e propósito de cada relato contribuem para as diferenças.
12, 13. Com estes intuitos, parti para Damasco, levando autorização
dos principais sacerdotes e por eles comissionado. Ao meio-dia, ó rei, indo
eu caminho fora, vi uma luz no céu, mais resplandecente que o sol, que
brilhou ao redor de mim e dos que iam comigo.
Paulo conta que continuou perseguindo os seguidores de Jesus,
inclusive em cidades estrangeiras. Na presença do rei, emprega
terminologia oficial. Numa ocasião anterior, disse que tinha recebido
cartas do sumo sacerdote e do concílio (At 22:5). Agora fala
formalmente e diz que foi a Damasco “levando autorização dos
principais sacerdotes”. A expressão principais sacerdotes aponta aos
membros das famílias sacerdotais que ocupavam um assento no Sinédrio
(veja-se o comentário sobre At 4:6).
Nesta altura de seu discurso, ele fala a Agripa de sua conversão ao
cristianismo. Perto da cidade de Damasco ocorreu o inesperado. Assinala
que era o meio-dia quando se encontrava viajando. De repente, uma luz
que ultrapassou o brilhantismo do sol envolveu a ele e aos seus
companheiros de viagem (cf. Lc 2:9), como aqueles companheiros
puderam certificá-lo (At 22:9; em suma, não se tratou de um ataque
epilético, um ataque de coração, ou uma alucinação). Ele diz que a luz se
originou no céu, pelo que Agripa deve perceber as características
sobrenaturais do fato.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1223
14. E, caindo todos nós por terra, ouvi uma voz que me falava em
língua hebraica: Saulo, Saulo, por que me persegues? Dura coisa é
recalcitrares contra os aguilhões.
Os dois relatos anteriores (At 9:4 e 22:7) e este diferem em vários
pontos.
No versículo 14 diz que todos no grupo caíram por terra, mas os
outros dois informes dizem que somente ele caiu. (O Texto ocidental
acrescenta uma cláusula [o agregado está em itálico]: “Quando todos nós
tivemos caído por terra, pelo medo, só eu ouvi …”). Como podemos
explicar variação tão óbvia? Não temos que ver um obstáculo se
aceitarmos a interpretação de que seus companheiros caíram, mas logo
se levantaram. Eles não foram cegados pela luz como foi ele e, embora
ouviram o som, não puderam entender as palavras que Jesus falou (At
9:7; 22:9).
Logo, só aqui lemos que Jesus Se dirigiu a ele em língua
hebraica. 1604 Supomos que Paulo queria comunicar a Agripa que a voz
celestial lhe falou na língua sagrada das Escrituras do Antigo
Testamento. O texto grego mostra que Jesus chamou Paulo por seu nome
hebraico (Saoul) e não pela forma grega (Saulos).
Por último, as duas primeiras narrações revelam que Jesus
perguntou brevemente: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9:4;
22:7). Mas aqui, Jesus continua e declara, “Dura coisa é recalcitrares
contra os aguilhões” (veja-se os comentários no texto grego em At 9:5).
Indubitavelmente, Paulo diz a Agripa mais das palavras de Jesus que o
que disse à sua audiência em Jerusalém. Esta ilustração, tirada de um
ambiente agrícola, era bem conhecida como um provérbio em todo
mundo mediterrâneo. 1605 Para o rei Agripa isso não era estranho.

1604
A maioria das traduções segue o texto grego, o qual tem a palavra hebraidi (hebreo). Umas poucas
dizem “arameu”, devido ao fato de que aquela era a língua que se falava naquele então na Palestina.
Bauer, p. 213.
1605
F. F. Bruce diz que este “provérbio não foi achado em nenhuma fonte aramaica, mas esta é a
classe de frases que costumam ser comuns numa comunidade agrícola”. The Acts of the Apostles: The
Atos (Simon J. Kistemaker) 1224
Qual é o sentido deste provérbio? A declaração ilustra um boi
lançando uma rápida patada, só para experimentar a aguda dor causada
pela ponta de um aguilhão. A indisposição do boi de servir a seu amo o
leva só a experimentar dor. Mas quando o animal docilmente realiza o
trabalho que se espera dele, o amo tira o aguilhão. Metaforicamente, este
provérbio aplica-se a um homem que resiste ao chamado que Deus lhe
faz para servi-Lo. Jesus queria usar os talentos e educação de Paulo para
o propósito de estender o reino de Deus e proclamar o evangelho, mas
Paulo perseguia a igreja. Seus esforços resultaram em dor. Depois de sua
conversão, repetidamente se referiu ao seu pecado de perseguir a igreja
(1Co 15:9; Gl 1:23). Chama-se um ex-blasfemador, perseguidor, e
homem violento (1Tm. 1:13). Em conclusão, este provérbio informa
Agripa a respeito do ponto decisivo na vida de Paulo. Em lugar de ser
inimigo de Jesus, chegou a ser Seu servo.

Palavras, frases e construções gregas em At 26:12–14


Versículos 12–13
ἐν οἷς — “enquanto fazia isto”. O uso da frase preposicional parece
ter um significado de reatamento, equivalente a “e assim, então bem”. 1606
ἡμέρας μέσης — a combinação (“ao meio-dia”) indica a forma
romana de contar o tempo. O caso é genitivo de tempo.

Versículo 14
καταπεσόντων — do verbo καταπίπτω (eu me caio), o particípio
ativo aoristo é parte da construção absoluta genitiva.
ἤκουσα φωνήν — “Ouvi uma voz”. Veja-se o comentário sobre At
9:7.

Greek Text with lntroduction and Commentary, 3ª. ed. rev. e aum. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990),
p. 501.
1606
Moule, Idiom-Book, p. 131.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1225
κέντρα — o plural provavelmente se refere a um aguilhão de dupla
ponta. 1607

f. A comissão (At 26:15–18)

15, 16. Então, eu perguntei: Quem és tu, Senhor? Ao que o Senhor


respondeu: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas levanta-te e firma-te
sobre teus pés, porque por isto te apareci, para te constituir ministro e
testemunha, tanto das coisas em que me viste como daquelas pelas quais
te aparecerei ainda.
a. “Quem és tu, Senhor?” O significado do versículo 15 já foi
explicado no contexto dos relatos anteriores (At 9:5; 22:8). Aqui temos
uma leve variação, quando Jesus Se identifica a Si mesmo mas omite seu
lugar de origem, Nazaré.
b. “Mas levanta-te e firma-te sobre teus pés”. Dos três relatórios
sobre sua conversão, só este diz que se afirme sobre seus pés. A
princípio, a ordem parece redundante, mas uma reflexão maior mostra
que comunica uma mensagem dupla. O primeiro e óbvio é que Paulo
deve levantar-se de sua posição de prostração, e erguer-se na presença de
Jesus, seu Senhor, e aceitar sua nova tarefa. A segunda mensagem gira
sobre o fato que as palavras são uma citação direta de um dos profetas do
Antigo Testamento. Deus disse a Ezequiel que se ficasse sobre seus pés e
o chamou para ser seu profeta. De forma similar, Jesus nomeou a Paulo
para ser um profeta. Agripa cria nos escritos dos profetas (veja-se v. 27)
e agora entende que Paulo, também, foi chamado divinamente para um
ofício profético.
c. “Porque por isto te apareci”. O Jesus ressuscitado e glorificado
apareceu a Paulo e então pessoalmente o chamou para cumprir uma
tarefa. Em outras palavras, o chamado tem uma origem divina que foi
pessoal e direto.

1607
Turner, Grammar of New Testament Greek, vol. 3, p. 27.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1226
1608
d. “Para te constituir ministro”. Nos primeiros dois relatos de
sua conversão, Jesus lhe diz para entrar na cidade de Damasco, onde lhe
será dito o que deve fazer (At 9:6; 22:10). Aqui, entretanto, Jesus mostra
o propósito de aparecer “para te constituir ministro e testemunha”. É
importante o verbo constituir porque no grego tem uma forma
combinada que inclui o significado de antemão. 1609 Quer dizer, Deus
separou Paulo antes de seu nascimento para a tarefa de pregar o
evangelho (cf. At 22:14; Gl 1:15). Em seu discurso diante dos judeus em
Jerusalém, manifesta que Deus o designou, mas agora diz que Jesus foi
quem o fez.
e. “[Para te constituir] testemunha, tanto das coisas em que me viste
como daquelas pelas quais te aparecerei ainda”. Paulo deve ser uma
testemunha tanto como alguém que viu Jesus durante o encontro perto de
Damasco (cf. 1Co 9:1) como um proclamador do evangelho de Cristo.
Depois de sua conversão, Jesus repetidamente Se revelou a ele em
visões. 1610 Paulo, então, veio a ser uma testemunha ocular e um ministro
da palavra (cf. Lc 1:2) e preencheu as exigências para o apostolado (At
1:21–22). Jesus o designou como uma testemunha da ressurreição de
Cristo e um arauto do que tinha ouvido de seu Senhor.
17, 18. Eu o livrarei do seu próprio povo e dos gentios, aos quais eu o
envio para abrir-lhes os olhos e convertê-los das trevas para a luz, e do
poder de Satanás para Deus, a fim de que recebam o perdão dos pecados
e herança entre os que são santificados pela fé em mim [NVI].
Fazemos as seguintes observações:
a. Resgate. As palavras de Jesus que Paulo comunica ao rei Agripa
estão baseadas em passagens do Antigo Testamento dos profetas e dos
salmos. Deus diz a Jeremias que não tivesse medo da gente porque ele

1608
Os tradutores duvidam em usar o infinitivo passivo grego designar como um passivo verdadeiro,
devido ao fato de que o objeto direto tu vem a ser o sujeito do infinitivo: “tu és designado para ser
meu servo” (veja-se, p.ej., Phillips).
1609
Consulte-se Peter Schmidt, NIDNTT, vol. 1, pp. 475–76; William Michaelis, TDNT, vol. 6, pp.
862–64.
1610
Veja-se At 18:9; 22:17–18; 23:11; 2Co. 12:1; Gl 1:12.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1227
mesmo o resgataria (Jr 1:8, 19). E em seu salmo de ação de graças, Davi
clama a Deus por libertação das nações (1Cr 16:35; Sl. 106:47).
A vida de Paulo testifica do fato que necessitava libertação tanto do
povo judeu como dos gentios. Em numerosas ocasiões os judeus
quiseram matá-lo, assim como os gentios (veja-se 2Co 11:24–27). O
irônico é que o ex-perseguidor dos discípulos de Cristo, foi perseguido
igualmente por judeus e gentios. Mas vez após vez, o Senhor o resgatou.
b. Apóstolo. Quando Jesus lhe disse “[seu povo e os gentios] aos
quais eu o envio”, indiretamente usou as palavras que Deus falou com
Jeremias e a Ezequiel quando os comissionou como profetas (veja-se Jr
1:7; Ez 2:3). Ao crer nos profetas, Agripa deveria admitir que Paulo
estava na linha dos profetas do Antigo Testamento. Para ser preciso,
Jesus o comissionou como uma testemunha tanto aos judeus como aos
gentios (At 20:21), mas especialmente como um apóstolo aos gentios (At
9:15; Rm 15:15–16; Gl 2:8).
Note-se que todas as palavras que Jesus disse perto de Damasco e
que agora as lembra na presença do rei Agripa são alusões aos escritos
dos profetas. Quando diz “abrir-lhes os olhos e convertê-los das trevas
para a luz”, Agripa deve ter sabido que Jesus Se estava referindo
especialmente a Isaías 42:7. Esta parte da profecia de Isaías é conhecida
como uma das canções do servo que descreve a vinda do Messias. 1611 A
obra de abrir os olhos espirituais das pessoas pertence ao Espírito Santo.
O Espírito dá poder aos servos de Deus para pregar o evangelho e lhes
concede a alegria de ver os efeitos de sua pregação. 1612 Paulo assinala
que ele trabalha entre judeus e gentios em nome do Messias. Prega o
evangelho como um apóstolo de Cristo. As Boas Novas abrem os olhos
daqueles que estão espiritualmente cegos e torna as pessoas das trevas à
luz da Palavra de Deus (1Pe 2:9).

1611
Veja-se também Is. 29:18; 32:3; 35:5.
1612
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 276.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1228
c. Propósito. Com relação ao povo, Jesus especifica a Paulo três
objetivos espirituais: primeiro, abrir seus olhos; segundo, fazer com que
se voltem das trevas à luz; e terceiro, fazê-los passar do poder de Satanás
ao poder de Deus. Quando uma pessoa abre seus olhos espirituais e se
converte, deixa seu mundo de escuridão e entra na luz do evangelho. Já
não é mais escravo de Satanás, mas agora serve ao Deus vivo.
Para os judeus, a figura de andar tropeçando como um cego sumido
nas trevas descrevia apropriadamente a condição dos gentios. Mas Deus
tinha confiado Seus santos oráculos aos judeus (Rm 3:2), de maneira que
pudessem viver em sua luz. Os judeus, entretanto, tinham rejeitado
aceitar a Palavra de Deus vindo assim a ser espiritualmente cegos (Jo
9:39–41). Tanto os judeus como os gentios deviam voltar-se das trevas à
luz. Em suas epístolas às igrejas gentílicas, Paulo usa frequentemente a
metáfora de escuridão e da luz. 1613 As trevas representam o reino de
Satanás, o que Jesus descreve aqui como o poder de Satanás. (Em Atos,
o nome Satanás aparece duas vezes, aqui e na pergunta de Pedro:
“Ananias, por que encheu Satanás o teu coração?” [At 5:3].) Paulo
enfrenta o poder de Satanás em qualquer lugar que proclama o evangelho
(veja-se, p. ex., At 13:10; 16:16; 19:15).
d. Salvação. As palavras que Paulo pronuncia não são suas, mas de
Jesus. Isto se torna evidente pelo predomínio dos pronomes de primeira
pessoa nas palavras de Jesus, especialmente na última frase: “Eu o envio
... a fim de que recebam o perdão dos pecados e herança entre os que são
santificados pela fé em mim”. O grego põe a ênfase na última palavra da
frase, que neste caso é mim. A salvação se manifesta quando o pecador
se arrepende, é purificado de seu pecado, e toma seu lugar entre aqueles
que obtêm herança espiritual através de sua fé em Cristo. O crente recebe
sua herança quando Jesus, tendo-o declarado santo, acolhe-o e o recebe
na fraternidade dos santos.

1613
Rm. 13:12; 2Co. 4:6; Ef. 5:8–14; Cl. 1:13; 1Ts. 5:5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1229
Considerações práticas em At 26:12–18
“Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a
seu tempo” [Pv 25:11].
Quando se dirige aos judeus da escalinata da Fortaleza Antônia,
Paulo lhes diz que depois de sua conversão, tinha vindo a vê-lo um judeu
damasceno chamado Ananias. Que era “piedoso conforme a lei, tendo
bom testemunho de todos os judeus que ali moravam” (At 22:12). Usa
esta descrição para apaziguar os seus ouvintes e provar que foi bem
recebido em Damasco por um judeu muito respeitado. Além disso, evita
cuidadosamente usar o nome de Jesus para não ofender a ninguém.
Perante o rei Agripa, Paulo não menciona Ananias. Em seu lugar,
escolhe usar as palavras de Jesus quem, ao designá-lo Seu ministro e
testemunha, coloca-o na linhagem dos profetas do Antigo Testamento e
dos apóstolos do Novo. 1614 Paulo comunica as palavras de Jesus que são
eco das profecias do Antigo Testamento. Ele sabia que Agripa crê nestas
profecias e, portanto, queria persuadi-lo a aceitar a verdade da
mensagem de Jesus.
Paulo pregou o evangelho tanto aos judeus em Jerusalém como ao
rei Agripa em Cesareia. Em ambos os casos relatou sua experiência de
conversão. daquele mesmo caso, e em seu esforço por levar o evangelho
a ambos os grupos, escolhe diferentes palavras e enfatiza diferentes
aspectos: as palavras de Ananias aos judeus em Jerusalém, as palavras de
Jesus a Agripa. Paulo fez-se tudo a todos a fim de ganhar em alguém
para Cristo (1Co 9:20–23).

Palavras, frases e construções gregas em At 26:16–17


ὀφθήσομαι — do verbo ὁράω (eu vejo), este verbo passivo futuro
tem uma conotação ingressiva: “Começarei a aparecer”. 1615

1614
Consulte-se P. Boyd Mather, “Paul in Acts as ‘Servant’ and ‘Witness’ ”, BibRes 30 (1985): 23–44.
1615
Robertson, Grammar, p. 871.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1230
ἐξαιρούμενος — no passivo, o verbo αἰρέω significa “escolher”,
mas é preferível o sentido libertar ou salvar. 1616
οὕς — o antecedente mais próximo é o plural neutro ἐθνῶν
(nações). Junto com o substantivo λαοῦ (povo [judeu]) o substantivo
neutro introduz uma mudança de gênero no pronome relativo do neutro
ao masculino.
ἀποστέλλωσε — “estou te enviando”. A frase é seguida por uma
série de três infinitivos aoristos que expressam propósito: abrir, voltar, e
receber.

g. O testemunho (At 26:19–23)

A apresentação do evangelho que Paulo faz diante do rei Agripa vai


chegando gradualmente a um clímax. O apóstolo oferece um testemunho
de sua obediência à comissão divina que recebeu. Pouco a pouco, vai
sendo cada vez mais pessoal, como se torna evidente pelo uso da
primeira pessoa do singular em quase cada oração. 1617
19, 20. Pelo que, ó rei Agripa, não fui desobediente à visão celestial,
mas anunciei primeiramente aos de Damasco e em Jerusalém, por toda a
região da Judéia, e aos gentios, que se arrependessem e se convertessem a
Deus, praticando obras dignas de arrependimento.
a. “Pelo que, ó rei Agripa”. Habilmente, como se estivesse
pregando a um só homem, Paulo dirige-se ao rei Agripa três vezes por
seu nome (vv. 2, 19, 27) e seis vezes por seu título real (vv. 2, 7, 13, 19,
26, 27). Envolve ao rei no relato de uma forma pessoal para ganhá-lo
para a causa de Cristo.
b. “Não fui desobediente”. Depois de citar as palavras de Jesus, o
apóstolo agora se refere à sua reação à divina nomeação. Escolhe a

1616
Bauer, p. 272.
1617
Refira-se a Paul Schubert, “The Final Cycle of Speeches in the Book of Acts”, JBL 87 (1968): 1–
16; Jacob Jervell, “Paulus — der Lehrer Israels. Zu den apologetischen Paulusreden in der
Apostelgeschichte”, NovT 10 (1968): 164–90.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1231
construção negativa dupla para acentuar sua resposta imediata: “Não fui
desobediente à visão celestial”. (Esta referência inclui as subsequentes
revelações de Jesus.) Omite qualquer referência aos três dias de busca
espiritual quando esteve fisicamente cego. Pelo contrário, indica que
imediatamente começou a pregar o evangelho de Cristo nas sinagogas de
Damasco (At 9:20). Quando foi obrigado a abandonar a cidade, voltou
para Jerusalém e continuou falando valorosamente no nome de Cristo
Jesus, especialmente aos judeus de fala grega (At 9:28–29). Ele cria que
a mensagem de salvação devia primeiro ser levada aos judeus e logo aos
gentios (veja-se, p. ex., Rm 1:16).
c. “Por toda a região da Judeia, e aos gentios”. Neste ponto, a
construção gramatical do texto grego é torpe. Por exemplo, teríamos
esperado a sequência em Damasco, em Jerusalém, e na Judeia. Mas
Paulo nunca pregou nas cidades e aldeias da Judeia. Em Jerusalém
somente passou quinze dias (Gl 1:18) e afirma categoricamente que as
igrejas da Judeia não o conheciam (Gl 1:22). Mas graças a uma mudança
da frase na gramática grega, a qual eu traduzo com a preposição através
de, ele faz sentir o efeito de sua pregação.
Paulo pregou o evangelho
em Damasco,
em Jerusalém,
por toda Judeia,
aos gentios.
A ênfase não está na presença de Paulo na Judeia, e sim no fato que
ele, um ex-perseguidor da igreja, pregava o evangelho. Esta assombrosa
notícia alcançou até as áreas rurais da Judeia. 1618 Além disso, o chamado
especial a Paulo foi levar o evangelho aos gentios (Rm 15:16; Gl 2:8), o
qual ele fez em suas viagens a Chipre, Ásia Menor, Macedônia, e Acaia.
Paulo certamente cumpriu o mandato missionário que Jesus deu aos
1618
R.C.H. Lenski, The Interpretation of the Acts of the Apostles (Columbus: Wartburg, 1944), p.
1044. Veja-se também David John Williams, Acts, série Good News Commentaries (San Francisco:
Harper and Row, 1985), p. 423.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1232
apóstolos antes de Sua ascensão: ser Suas testemunhas em Jerusalém,
Judeia, Samaria, e até os confins da terra (1:8; Rm 15:19).
d. “Que se arrependessem e se convertessem a Deus, praticando
obras dignas de arrependimento”. Bem como João Batista (Mt 3:2, 8),
Paulo pregou o evangelho de arrependimento. Chamou tanto a judeus
como a gentios para que se voltassem a Deus em arrependimento (At
20:21). Seu objetivo era fazer com que estes dois grupos reconhecessem
a Cristo Jesus como seu Salvador.
Para Paulo, as ações de arrepender-se e voltar-se para Deus devem
ser seguidas de obras que mostrem a autenticidade do arrependimento.
Para ser preciso, o arrependimento indica que toda a pessoa, com
coração, mente, e alma volte-se do pecado ao serviço. Para cada pessoa,
sem importar idade, raça, ou nacionalidade, o arrependimento marca
uma orientação moral e religiosa para um novo estilo de vida. 1619 Nas
palavras de Jesus: “Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis” (Mt
7:20; e veja-se Tg 2:14–17). 1620
21. Por causa disto, alguns judeus me prenderam, estando eu no
templo, e tentaram matar-me.
Ignorando as acusações dos judeus (At 21:26–29) e as acusações
apresentados por Tértulo (At 24:5–6), Paulo afirma que os judeus o
prenderam por pregar o arrependimento. Não oferece detalhes, porque
percebe que na presença do rei Agripa não é alguém que se está
defendendo na corte, mas é um arauto do evangelho de Cristo. Não
obstante, como de passagem, refere-se à violência dirigida contra ele em
Jerusalém: “alguns judeus me prenderam, estando eu no templo, e
tentaram matar-me”. A expressão matar na verdade significa “maltratar
de tal maneira que a morte resulte inevitável” (veja-se At 5:30). Quando
1619
I. Howard Marshall, Luke, Historian and Theologian (Grand Rapids: Zondervan, 1971), p. 193.
1620
Nas epístolas de Paulo, o substantivo e o verbo grego para “arrependimento” e “arrepender-se”
(metanoia y metanoeō, respectivamente) aparecem só cinco vezes (Rm. 2:4; 2Co. 7:9, 10; 12:21;
2Tm. 2:25; mas para o verbo grego epistrephō, veja-se 2Co. 3:16; Gl. 4:9; 1Ts. 1:9). Paulo emprega a
terminologia de fé: “estar em Cristo” ou “revestido do novo homem”. Consulte-se Jürgen Goetzmann,
NIDNTT, vol. 1, p. 359.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1233
os judeus tentaram impedir que pregasse o evangelho, deliberadamente
escolheram opor-se a Deus. No entanto, em sua luta contra Deus, teriam
que ser perdedores e, mediante a graça de Deus, Paulo seria o
vencedor. 1621
22. Mas, alcançando socorro de Deus, ainda até ao dia de hoje
permaneço, dando testemunho, tanto a pequenos como a grandes, não
dizendo nada mais do que o que os profetas e Moisés disseram que devia
acontecer [RC].
Paulo viu a mão de Deus em sua libertação do cárcere de Filipos, da
violência da multidão em Tessalônica e em Éfeso, e dos revoltosos na
área do templo em Jerusalém. Deus o tinha protegido dos homens maus
enquanto ele permanecia obediente ao seu chamado: proclamar o
evangelho de salvação. Tinha recebido instruções da parte de Jesus que
deveria testificar do Senhor em Roma, e ele sabia que Deus o protegeria
de qualquer perigo (At 23:11).
Enquanto esteve prisioneiro, recebeu da parte de numerosos amigos
e conhecidos tudo o que necessitava para viver. Por sua vez, estes
membros da comunidade cristã tinham recebido o evangelho e conselho
espiritual de parte do apóstolo. Outros visitantes, tanto grandes como
pequenos dentro da escala social, também ouviram a proclamação das
Boas Novas. Não só os grandes e poderosos (governadores romanos e
um rei judeu) ouviram sua palavra, mas também as classes baixas da
sociedade (o trabalhador comum e o soldado).
Qual era o conteúdo da proclamação do evangelho que Paulo fazia?
Era o mesmo evangelho que Jesus ensinou aos homens em Emaús e a
Seus discípulos no cenáculo. Jesus abriu as Escrituras começando com
os livros de Moisés e continuando através dos escritos proféticos e os
salmos (Lc 24:27, 44). 1622 Paulo não usa a tríplice divisão do Antigo

1621
Veja-se 2Cr. 13:12; Jó 9:4; Pv. 21:30; At. 5:39; 11:17.
1622
Consulte-se Jacques Dupont, “La Mission de Paul d’après Actes 26.16–23 et la Mission des
Apôtres d’après Luc 24.44–9 et Actes 1.8”, en Paul and Paulinism: Essays in Honour of C. K.
Barrett, ed. M. D. Hooker y S. G. Wilson (Londres: SPCK, 1982), p. 296.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1234
Testamento mas a dupla (os livros de Moisés e os profetas) e no final (cf.
At 28:23), para ênfase, coloca a palavra Moisés.
Diz ao rei Agripa que o cânon do Antigo Testamento é sua fonte de
informação para a pregação do evangelho. Devido ao fato de que o
próprio rei crê nos escritos do mesmo cânon, Agripa terá que chegar à
conclusão que Paulo prega o evangelho dentro dos parâmetros do
judaísmo e é inocente de qualquer falta (veja-se v. 32).
23. Eles declararam que o Cristo devia sofrer e, por sua ressurreição
dos mortos, seria o primeiro o proclamar luz tanto ao povo judeu como
aos gentios [trad. Kistemaker].
Paulo afirma que as profecias do Antigo Testamento revelam o
sofrimento, a morte, e a ressurreição do Messias. Além disso, estas
profecias ensinam que o Messias faria com que Sua luz brilhasse a
judeus e a gentios igualmente. Tanto os salmistas (Sl. 2:6–7; 16:10;
22:1–21; 118:27) como o profeta Isaías (42:6; 49:6; 53:3–11; 60:3)
falam da obra, vida, morte e ressurreição do Messias.
Para os judeus, a doutrina de que o Messias teria que sofrer e
morrer era difícil de aceitar. 1623 Mesmo quando Jesus e Seus apóstolos
basearam esta doutrina nas Escrituras, os judeus se mostraram resistentes
a aceitá-la. Na verdade, Jesus direta (e retoricamente) perguntou aos
homens de Emaús se os profetas haviam dito que o Cristo deveria sofrer
e entrar em Sua glória (Lc 24:26). Paulo, em seus sermões na sinagoga
de Tessalônica, ensinou e provou pelas Escrituras que “o Cristo
padecesse e ressurgisse dentre os mortos” (At 17:3). E numa de suas
epístolas, ensina o coração do evangelho: Cristo morreu, foi sepultado, e
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras (1Co 15:3–4). Mas
devido ao fato de que os judeus rejeitaram seu ensino, prenderam-no e
estiveram prestes a matá-lo.
Cristo veio para que a luz do evangelho iluminasse tanto o povo
judeu como os gentios. Jesus é a luz do mundo (veja-se Jo 8:12) e chama

1623
Refira-se a SB, vol. 2, pp. 273–99.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1235
judeus e a gentios a deixar as trevas e entrar em Sua luz. Os apóstolos,
como servidores de Cristo, continuam a tarefa de dissipar as trevas e
fazer brilhar a luz (veja-se At 13:47).

Palavras, frases e construções gregas em At 26:19–23


Versículos 19–20
ὅθεν — como um advérbio, a palavra introduz uma frase
coordenada que expressa causa: “por isso”. 1624
ἐν — a preposição que denota lugar governa os dois substantivos
Damasco e Jerusalém.
πᾶσαν — “toda Judeia”. Este é um acusativo de extensão que indica
quão longe chegou a notícia da pregação de Paulo.
τοῖς ἔθνεσιν — o dativo do objeto indireto separa os gentios dos
judeus que vivem nos lugares mencionados.
πράσσοντας — ao modificar o sujeito entendido dos infinitivos
precedentes, o tempo presente deste particípio mostra ação continuada. O
verbo πράσσω assinala a um estilo de vida habitual: “eles praticam”.

Versículo 23
εἰ — esta partícula toma o lugar da conjunção que.
παθητός — um adjetivo verbal do verbo παθεῖν (sofrer). À luz do
costume de Lucas de expressar a necessidade do sofrimento de Cristo
(veja-se Lc 24:26, 46; At 3:18; 17:3), este adjetivo verbal deveria ser
interpretado como “deve sofrer”. 1625

1624
Robertson, Grammar, p. 962.
1625
Bauer, p. 602; Blass e Debrunner, Greek Grammar, #65.3; Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p.
321.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1236
h. A persuasão (At 26:24–29)

Em tudo seu discurso, Paulo se dirige diretamente ao rei Agripa.


Mas o governador Festo está também presente e ouve com toda atenção.
O tema tratado e a terminologia usada parecem ser muito para ele. Pouco
familiarizado com as Escrituras e ignorante a respeito da fé cristã, reage
negativamente às palavras de Paulo com relação à ressurreição de Cristo.
24. A esta altura Festo interrompeu a defesa de Paulo e disse em alta
voz: “Você está louco, Paulo! As muitas letras o estão levando à loucura!
[NVI].
a. “Você está louco, Paulo”. A palavra defesa deve ser interpretada
como uma defesa do evangelho e não como uma defesa num caso
judicial (veja-se o comentário sobre o v. 1). Paulo estava tão
compenetrado da pregação do evangelho que Festo considerou que
estava fora de si. O arranque de Festo realmente comunica a ideia de que
o governador considera que Paulo está sobre excitado, o que lhe tem
feito perder seu são juízo.1626 A emocionadas palavras do apóstolo
afetaram Festo, quem como resultado, de repente o interrompeu na
apresentação do evangelho que estava fazendo. Quando uma pessoa não
pode aprofundar-se nas verdades espirituais por incredulidade ou por
ignorância, tem a tendência de crer que o orador está fora de seu são
juízo. Em outra parte, Paulo diz: “Certamente, a palavra da cruz é
loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de
Deus” (1Co 1:18). Entre parêntese, alguns dos judeus acusaram a Jesus
de estar possuído pelos demônios e fora de si (Jo 10:20).
b. “As muitas letras o estão levando à loucura!”. O discurso de
Paulo, pronunciado em excelente grego, mostrou-o como um homem
educado. Quando abriu as Escrituras a seus ouvintes, Festo sabia que não
poderia entender a mensagem. Ao não estar familiarizado com o Antigo
Testamento e os ensinos de Jesus, o governador percebeu que não

1626
Bauer, p. 486.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1237
poderia conseguir nenhuma informação que o ajudasse a preparar a carta
para Nero. A fim de manter seu próprio prestígio, recorreu a descrever a
Paulo como um homem que por seus muitos conhecimentos se tornou
excêntrico. Na opinião de Festo, Paulo mantinha uma posição
insustentável, especialmente com relação à doutrina da ressurreição (cf.
At 17:32).
25, 26. Paulo, porém, respondeu: Não estou louco, ó excelentíssimo
Festo! Pelo contrário, digo palavras de verdade e de bom senso. Porque
tudo isto é do conhecimento do rei, a quem me dirijo com franqueza, pois
estou persuadido de que nenhuma destas coisas lhe é oculta; porquanto
nada se passou em algum lugar escondido.
Notemos estes dois pontos:
a. Festo. Paulo está no controle total da situação. Primeira fala
diretamente a Festo e logo, enquanto continua dirigindo-se ao
governador, refere-se com simpatia à capacidade intelectual do rei
Agripa. Em suma, envolve a ambos, Festo e Agripa, em sua apresentação
do evangelho.
A primeira coisa que deixa claro está relacionado com seu estado
mental: ele está em perfeito juízo. Dirige-se ao governador por seu nome
e utilizando um título de respeito (“excelentíssimo”). Esta forma era
normalmente utilizada com relação a pessoas de alta posição social,
incluindo os que estavam em posições de governantes (veja-se At 23:26;
24:3; e cf. Lc 1:3).
A seguinte coisa que Paulo enfatiza é que as palavras que ele falou
até aqui, são verdadeiras e razoáveis. Muitas vezes, quando se fala num
estado de loucura, dizem-se coisas exageradas ou simplesmente falsas.
Pelo contrário, as palavras que Paulo pronunciou estão baseadas em fatos
históricos que podem ser verificados. Algo que diga uma pessoa
perturbada mentalmente não é sensato. Mas o que Paulo diz é racional e
demonstra um juízo são e domínio próprio. Durante a exposição, e
particularmente para o final, Paulo demonstra entusiasmo e ardor pelo
Atos (Simon J. Kistemaker) 1238
nome de Cristo. Assim, ninguém pode criticá-lo por desdobrar tal
medida de zelo por uma causa que está tão perto de seu coração.
b. Agripa. Enquanto responde a Festo, Paulo engenhosamente inclui
o rei para que este siga prestando atenção. Em sua resposta ao
governador, descreve Agripa com traços muito favoráveis. Segundo ele,
o rei entendeu suas palavras. Agripa conhece as Escrituras do Antigo
Testamento por isso Paulo pode expor-lhe com toda confiança o
evangelho. O que na verdade está dizendo é que pode falar francamente,
quer dizer, com toda liberdade e abertamente.
Agripa o escuta quando elogiosamente diz que o rei é
excepcionalmente perspicaz a respeito dos assuntos religiosos em Israel.
Diz: “Estou persuadido de que nenhuma destas coisas lhe é oculta”.
Paulo afirma que Agripa está absolutamente consciente do fato que o
cristianismo é o cumprimento das profecias messiânicas do Antigo
Testamento. Em 30 d.C., depois do Pentecostes, o evangelho de Cristo
foi pregado aberta e corajosamente em Israel e por todo mundo greco-
romano. E Agripa, ao passar sua juventude em Cesareia, certamente
tinha sabido acerca do crescimento da igreja cristã entre os judeus e os
membros da família de Cornélio, o centurião romano.
“Porquanto nada [disso] se passou em algum lugar escondido”. Os
aderentes à fé cristã não estavam escondidos em lugares secretos.
Levavam a mensagem de salvação a cada cidade importante. Podiam ser
encontrados em qualquer lugar da Judeia, Samaria, e Galileia (At 9:31);
tinham viajado até a Fenícia, Chipre, e Antioquia (At 11:19); tinham
fundado igrejas através da Ásia Menor, Macedônia, e Acaia; e inclusive
tinham levado o evangelho à própria Roma. O cristianismo havia
chegado a ser uma religião mundial. Em Atenas, Paulo tinha falado sem
temor diante dos filósofos epicureus e estoicos (At 17:16–33), tinha
oferecido conferências públicas por mais de dois anos em Éfeso (At
19:8–10), e se tinha defendido diante de Félix e Festo (At 24:10–21;
Atos (Simon J. Kistemaker) 1239
1627
25:8–11). Nada se fez secretamente, num canto. Engenhosamente,
Paulo cita palavras que os filósofos usavam de uma forma pejorativa
com os mestres com pouca educação. Estes mestres procuravam ganhar
seguidores entre as pessoas das classes mais baixas da sociedade, porém
não podiam e não queriam apresentar seus ensinos entre os eruditos. Ao
citar este adágio, Paulo está refutando efetivamente a acusação de Festo
de que estava louco.
27. Acreditas, ó rei Agripa, nos profetas? Bem sei que acreditas.
De novo, Paulo centraliza sua atenção diretamente em Agripa;
imediatamente depois dos elogios, pergunta-lhe se crê nos profetas. É
uma referência indireta ao cânon do Antigo Testamento. Com esta
pergunta, faz com que o rei se enfrente a um dilema: se responder
negativamente, provocará a ira do povo judeu; e se responder
afirmativamente, perderá prestígio se é que Paulo lhe pede que creia no
evangelho. Antes que pudesse responder, Paulo já o fez por ele: “Bem
sei que acreditas”. De fato, a resposta de Paulo é tão positiva que
comunica o sentido de: “Intuitivamente sei que você crê”.
28. Então, Agripa se dirigiu a Paulo e disse: Por pouco me persuades
a me fazer cristão.
a. Traduções. Diversas variantes no texto grego se manifestam em
traduções diferentes deste versículo:
“Quase me persuades a me fazer cristão” (NKJV).
“Com umas poucas palavras estás procurando me persuadir a ser
um cristão” (MLB).
“Em pouco tempo me persuadirás a ser um cristão” (NASB).
“Pensa que em tão pouco tempo pode me persuadir a que me faça
cristão?” (NVI).
“Por pouco tempo me persuades a ser cristão” (RSV).
As formas diferem em três pontos. Primeiro, o texto grego refere-se
a tempo (“em pouco tempo”) ou meio (“com poucas palavras”)?
1627
Consulte-se Abraham J. Malherbe, “ ‘Not in a Corner’: Early Christian Apologetic in Acts 26:26”.
SeeCent 5 (1985–86): 193–210.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1240
Segundo, deve o texto ser traduzido “persuadir” ou “pensar”? E terceiro,
devemos adotar a forma chegar a ser cristão ou me fazer cristão? Os
problemas técnicos se discutem em outras fontes; aqui, eu desejo
assinalar a sabedoria de entender acertadamente expressões idiomáticas
em grego em lugar de prover uma tradução literal mas inexpressiva. 1628
Este modismo no discurso de Paulo sugere: “Em pouco tempo você está
procurando me persuadir a agir como um cristão”.
b. Interpretação. Antes, durante, e inclusive depois do discurso,
Agripa mantém uma atitude bem disposta para Paulo. Isto, portanto,
deve levar-nos a interpretar sua resposta nem como uma tentativa de
deixar em ridículo o orador, nem a replicar burlescamente para fazer a
audiência rir. 1629
Agripa vê que a penetrante pergunta de Paulo sobre sua crença nos
profetas poderia levar a mais perguntas sobre crer na verdade do
evangelho. Assim é que evasivamente contra-ataca perguntando se o
apóstolo espera “uma resposta instantânea à pregação”. 1630 Como Félix,
que se despede de Paulo quando o assunto da ética pessoal faz-se muito
pessoal (At 24:25), Agripa recorre a uma tática dilatória: meia hora é
muito pouco tempo para fazer um compromisso! Além disso, ele não
quer ser que o identifiquem como um cristão. Durante o século I, o nome
cristão provocava mofas depreciativas (veja-se 1Pe 4:16). Na presença
de um governador, de altos oficiais do exército, e de personalidades
civis, Agripa não tem interesse em declarar que reconhece a verdade do
evangelho de Cristo e deseja seguir a Jesus. Responde com uma pergunta
que deixa ver falta de seriedade, e assim põe ponto final à conversação.

1628
Um exemplo similar encontra-se no texto grego correspondente a 3Rs. 20:7 (quer dizer, 1Rs 21:7
em nossas Bíblias), no qual o verbo fazer quer dizer “agir a parte de”. A rainha Jezabel despreza o rei
Acabe e lhe diz, “age como um rei sobre Israel”. Refira-se a A. Nairne, “En oligō me peitheis
Christianon poiēsai — Acts xxvi:28”, JTS 21 (1919–20); 171–72; Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4,
p. 323; Bruce, Acts (texto griego), pp. 506.
1629
Cf. Lenski, Acts, p. 1055.
1630
Malherbe, “Not in a Corner”, p. 210.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1241
29. Paulo respondeu: Assim Deus permitisse que, por pouco ou por
muito, não apenas tu, ó rei, porém todos os que hoje me ouvem se
tornassem tais qual eu sou, exceto estas cadeias.
O apóstolo aproveita a oportunidade para fazer uma afirmação final.
Em elegante grego, expressa seu desejo tanto ao rei como a todos os que
compõem a audiência. Dá-lhes a conhecer seu desejo na forma de uma
oração a Deus. Literalmente está dizendo que se as circunstâncias o
permitissem, ali mesmo oraria a Deus. A reunião chegou a seu fim,
porque imediatamente depois de Paulo falar, o rei se levanta. Esta ação
assinala suspensão.
O desejo de Paulo, sem importar o tempo, é ver cada um de seus
ouvintes chegar a ser como ele. Não usa a palavra cristão, mas seu
desejo é que todos sigam a Jesus Cristo, porque nele se encontra a
salvação plena e livre. Tendo insinuado isso, rapidamente acrescenta:
“exceto estas cadeias”. Com esta última cláusula, lembra ao rei e ao
governador que não recebeu uma adequada justiça, que deseja estar livre,
e que apelou seu caso para César.

Considerações práticas em At 26:28


Quando Davi chegou a ser rei de Israel, e deu o exemplo de servir
ao Deus de Israel, a nação floresceu espiritual e materialmente. Se o rei
Agripa tivesse posto sua fé em Jesus Cristo, teria sido um exemplo para
os cidadãos de seu reino. Agripa, que recebeu um convite pessoal para
expressar sua fé mas recusou aceitá-la, considerou por baixo de sua
dignidade ser um seguidor de Jesus Cristo. O cristianismo floresceu entre
as classes mais baixas da sociedade e, portanto, foi motivo de zombaria
pelos de alta categoria. No entanto, o evangelho de Jesus Cristo é para
todas as classes sociais, para os grandes e poderosos tanto como para os
pobres e impotentes.
Em Atos, Lucas demonstra que o evangelho de Cristo alcançou
homens e mulheres de influência. Menciona pessoas importantes que
chegaram a ser cristãs: um tesoureiro real (At 8:27), um centurião (At
Atos (Simon J. Kistemaker) 1242
10:1), um irmão adotivo de Herodes Antipas (At 13:1), um procônsul (At
13:7) e distinguidos gregos, tanto homens como mulheres (At 17:4, 12).
Algumas das mulheres eram ricas (At 12:12), eram comerciantes (At
16:14), e capazes de ensinar (At 18:26) e profetizar (At 21:9). Os
seguidores de Cristo estão em todos os níveis da sociedade, onde Cristo
os põe para levar adiante a causa da Sua igreja e do Seu reino. Os
ensinos de Jesus estão abertos ao mundo (Jo 18:20) e nunca devem ser
proibidos da vida pública.

Palavras, frases e construções gregas em At 26:24–29


Versículo 24
μεγάλῃ τῇ φωνῇ — o adjetivo está numa posição predicada com o
resultado que é o equivalente de uma cláusula relativa: “com a voz
elevada”. 1631
σε — o pronome pessoal aparece na primeira parte da frase; no
grego, sua localização provavelmente quer expressar ênfase.
γράμματα — o substantivo refere-se a cartas ou livros. No entanto,
“também pode significar educação superior”. 1632

Versículo 26
λανθάνειν — note-se que o tempo presente deste infinitivo sugere
ação continuada: “passar inadvertido continuamente”.
οὑ — esta partícula não nega o verbo πείθομαι (eu persuado) mas
pertence ao infinitivo λανθάνειν como um negativo duplo. 1633
ἐστιν πεπραγμένον — esta é a construção perifrástica com o
particípio passivo perfeito do verbo πράσσω (eu faço, praticar). A ênfase

1631
Robertson, Grammar, p. 789.
1632
Bauer, p. 165.
1633
Moule, Idiom-Book, pp. 167–68.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1243
está no aspecto formal desta construção; quer dizer, a ação é vista desde
o princípio até o presente.

Versículo 28
ἐν ὀλίγῳ — esta frase provavelmente indica tempo
(“rapidamente”). Se for entendido como um dativo de significado, deve-
se prover o substantivo λόγῳ (palavra) ou um substantivo similar.
πείθεις — é o uso conativo deste verbo no tempo presente. Os
pontos conativos a um ato que se iniciou mas que foi interrompido: “está
tratando de me persuadir”. 1634 A forma no passivo presente πείθῃ (tu está
persuadido, confiar, pensar) só tem o respaldo do Códice alexandrino.
Pode indicar que um escriba tentou suavizar a forma do texto. 1635
ποιῆσαι —“fazer, agir”. Respaldada pelos principais manuscritos
(P74; códices Sinaítico, Alexandrino, e Vaticano), esta forma parece ser
mais difícil de explicar que a γενέσθαι (chegar a ser), a qual é respaldada
pelo Texto bizantino. A regra de que o texto mais difícil é o original
aplica-se neste caso. Além disso, não é remota a possibilidade que a
inclusão do infinitivo γενέσθαι tenha sido influenciada pela forma do
versículo 29.

Versículo 29
εὑξαίμην ἄν — com uma prótase implícita (“se só fora possível”) o
optativo implica “Eu poderia orar”. 1636
ὁποῖος καὶ ἐγώ — “como até eu”. A conjunção quer dizer
“como”. 1637

1634
Turner, Grammar of New Testament Greek, vol. 3, p. 63.
1635
Consulte-se Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr.
(Londres e Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 496.
1636
Moule, Idiom-Book, p. 151.
1637
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #442.13.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1244
i. A conclusão (At 26:30–32)

30, 31. A essa altura, levantou-se o rei, e também o governador, e


Berenice, bem como os que estavam assentados com eles; e, havendo-se
retirado, falavam uns com os outros, dizendo: Este homem nada tem feito
passível de morte ou de prisão.
O rei Agripa, que presidia esta augusta reunião, levanta e faz sinal
de que a reunião finalizou. Todos os outros dignitários, incluindo
Berenice e o governador, fazem o mesmo. Enquanto caminham
abandonando a sala, os componentes da audiência falam animadamente a
respeito do encarceramento de Paulo e seu discurso. Supomos que Lucas
estava também ali (veja-se o comentário sobre At 25:23) e ouvia os
comentários que se faziam em torno de Paulo. Ouviu os dignitários dizer
que Paulo não fez nada que merecesse prisão ou morte (cf. At 23:29;
25:25). Com base em seu discurso, os comentários implicavam que a
pregação do evangelho de Cristo não era uma ameaça para o Império
romano e, por conseguinte, não havia delito digno de castigo.
32. Então, Agripa se dirigiu a Festo e disse: Este homem bem podia
ser solto, se não tivesse apelado para César.
Em resposta ao requerimento de ajuda do governador Festo para
escrever a carta a o imperador Nero, Agripa se proveu da necessária
informação. Depois de consultar com as pessoas que estavam presentes,
é possível que Festo tenha compartilhado com Paulo a redação da carta
que enviaria a Roma. Agripa havia dito ao governador que se Paulo não
tivesse apelado ao César, poderia ter sido deixado em liberdade. A razão
de seu encarceramento, então, atribui-se à decisão de Paulo de apelar ao
imperador. A culpa não era do governador, e sim de Paulo.
O conselho de Agripa a Festo mostra a imparcialidade do rei com
relação a Paulo. Como judeu, Agripa pôde ter ficado ao lado dos judeus,
mas com base em seu conhecimento das Escrituras do Antigo
Testamento e os ensinos do cristianismo, declara Paulo inocente de
qualquer delito. Como um rei designado pelo imperador romano, devia
Atos (Simon J. Kistemaker) 1245
ater-se à lei de Roma e respeitar a solicitude de Paulo de ser julgado em
Roma. Festo esteve de acordo com Agripa, e Paulo precisou esperar ser
trasladado à cidade imperial.

Resumo de Atos 26
Paulo recebe permissão para falar. Informa a Agripa e ao resto da
audiência que se sente feliz por poder fazer sua defesa diante do rei,
quem conhece os costumes e controvérsias dos judeus. Identifica-se
como um judeu que foi a Jerusalém, que vivia como um fariseu, e que é
acusado pelos judeus por crer no ensino da ressurreição. Conta que se
opôs ao nome de Jesus, oprimiu os santos, que foi a numerosas
sinagogas para castigá-los, e viajou ao estrangeiro para persegui-los.
Relata novamente sua experiência de conversão perto de Damasco,
sua designação como servo e testemunha, e sua comissão para pregar o
evangelho. Descreve como obedeceu a voz celestial, proclamou a
mensagem de salvação, e foi detido pelos judeus, aqueles que
procuraram matá-lo.
O governador Festo interrompe seu discurso e o acusa de estar
louco. Paulo nega que o esteja e pede a Agripa confirmar sua fé nos
escritos dos profetas. Agripa se nega a dar resposta a esta pergunta
pessoal e conclui a reunião. Comenta que Paulo pôde ter sido libertado
se não tivesse apelado para César.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1246

X. VIAGEM A E PERMANÊNCIA EM
ROMA (AT 27:1 – 28:31)
Atos (Simon J. Kistemaker) 1247
ATOS 27
VIAGEM A E PERMANÊNCIA EM ROMA, parte 1 (At 27:1–44)

A. De Cesareia a Malta (At 27:1–44)

Salvo os pescadores, os judeus não eram marinheiros. Só quando o


judeu era forçado pela a viajar de barco, ele faria uma longa viagem por
mar. Tinha um inato temor ao imprevisível poder dos ventos e as ondas.
Quando João escreve que viu aparecer um novo céu e uma nova terra, “o
mar já não existe” (Ap 21:1). Para ele, o desaparecimento do mar era um
alívio. Agora poderia esperar paz e tranquilidade.
Paulo tinha navegado as águas dos mares Egeu e Mediterrâneo em
mais de uma ocasião. Conhecia os perigos do mar, visto que escreveu
que três vezes tinha sofrido naufrágio e que passou uma noite e um dia
nas águas abertas do mar (2Co 11:25). De novo, Paulo teve que abordar
um navio, mas agora como prisioneiro sob custódia para Roma. Estava
acompanhado por Lucas, quem escreveu um detalhado relato da
angustiosa experiência de navegar de Cesareia a Itália. O relato começa
com a travessia entre Cesareia e Creta.

1. A Creta (At 27:1–12)

Através deste capítulo e o seguinte, de novo o escritor (veja-se At


16:10–17; 20:5–21:18) usa o pronome plural da primeira pessoa para
indicar que ele acompanhava Paulo de Cesareia até Roma. 1638 Menciona
nomes de lugares — alguns um tanto obscuros — que os estudiosos
identificaram como exatos; descreve as condições climáticas que podem

1638
Hans Conzelmann duvida que Lucas estivesse presente e chama o uso do pronome pessoal “um
recurso literário”. Acts of the Apostles, trad. por James Limburg, A. Thomas Kraabel, e Donald H. Juel
(1963; Filadélfia: Fortress, 1987), p. 215.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1248
entender-se muito bem, como as observações de uma testemunha
ocular. 1639
Nós compartilhamos o ponto de vista que os vívidos detalhes
apresentados neste relato são a obra de uma testemunha ocular que
experimentou a tempestade e o subsequente naufrágio.

a. Abordando o navio (At 27:1–2)

1. Quando ficou decidido que navegaríamos para a Itália, Paulo e


alguns outros presos foram entregues a um centurião chamado Júlio, que
pertencia ao Regimento Imperial [NVI].
a. “Quando ficou decidido”. A frase mostra o desejo do escritor de
introduzir no relato uma certa condição de anonimato, porque os sujeitos
dos verbos decidido e entregues não aparecem. Mesmo tendo Festo dado
a ordem de que Paulo fosse transportado a Roma, o cumprimento desta
ordem dependia de alguns outros fatores e pessoas. Por exemplo, o
governador não podia enviar a Roma um único prisioneiro acompanhado
de um centurião e um regimento de soldados. Para realizar o embarque a
Itália terá que esperar até que se tivesse um grupo de prisioneiros de
várias partes da Palestina e do interior. As autoridades teriam que esperar
que se pudesse dispor de um navio capaz de acomodar um grupo grande
de pessoas. (Note-se que o barco que naufragou levava 276 pessoas [v.
37]). O transporte era feito utilizando normalmente grandes embarcações
que navegavam pela costa e que iam entregando e recebendo carga e
passageiros.
b. “Que navegaríamos para a Itália”. Quando Paulo estava preso em
Cesareia, seus amigos puderam visitá-lo e suprir suas necessidades
diárias. Mas pôde Lucas acompanhá-lo? A mesma pergunta cabe a
respeito de Aristarco, que é identificado como um macedônio de

1639
Consulte-se Colin J. Hemer, The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H.
Gempf (Tubinga: Mohr, 1989), pp. 330–31; veja-se também seu artigo, “First Person Narrative in
Acts 27–28”, TynB 36 (1985): 79–109.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1249
Tessalônica (v. 2; At 19:29; 20:4). Estes homens são amigos de Paulo e
seus companheiros de viagem. 1640 Supomos que eles pagaram sua
própria passagem e assim puderam acompanhar Paulo e atender suas
necessidades. Os prisioneiros tinham que depender de seus amigos e
familiares para obter alimentação, roupa, e outras coisas. 1641
Note-se que Lucas escreve que saíram para a Itália, não para Roma.
Os viajantes a Roma com frequência usavam a rota da parte sul da Itália
e logo seguiam por terra rumo à cidade imperial.
c. “Paulo e alguns outros presos foram entregues a um centurião
chamado Júlio”. A pessoa importante neste relato não é Lucas, e sim
Paulo; salvo pelo uso dos pronomes nós e nossos, o escritor permanece
no anonimato. Paulo é posto além de outro grupo de prisioneiros, escreve
Lucas. Isto é, os outros presumivelmente eram criminais. Mas o
centurião considera Paulo como uma pessoa de estatura que merece
respeito e a quem outros escutam (veja-se especialmente, vv. 21–26, 31,
33–35).
O oficial romano a cargo dos presos era um centurião chamado
Júlio. Lucas o descreve como um oficial que pertencia ao Regimento
Imperial. 1642 Com a ajuda de seus soldados, Júlio servia como um
correio militar com autoridade especial para escoltar e proteger
prisioneiros. 1643 É provável que tenha sido membro da guarda pessoal de

1640
William M. Ramsay é da opinião que Lucas e Aristarco receberam permissão de acompanhá-lo
em qualidade de seus escravos. St. Paul the Traveller and the Roman Citizen (1987; reimp. Grand
Rapids: Baker, 1962), p. 316. F. F. Bruce sugere que Lucas foi contratado como médico do barco. The
Acts of the Apostles: The Greek Text with Introduction and Commentary, 3ª. ed. rev. e aum. (Grand
Rapids: Eerdmans, 1990), p. 511.
1641
Consulte-se Jean Rougé, “Actes 27, 1–10”, VigChr 14 (1960): 193–203.
1642
Outra tradução diz “um centurião chamado Júlio, da coorte Augusta” (TB). No século I, um
regimento desse nome permanecia estacionado na Síria e Batanea (a leste da Galileia). T. R. S.
Broughton, “The Roman Army”, Beginnings, vol. 5, pp. 443–44.
1643
Refira-se a A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963;
ed. reimpr., Grand Rapids: Baker, 1968), pp. 109–110. Consulte-se Henry Alford, Alford’s Greek
Testament: An Exegetical and Critical Commentary, 7ª. ed., 4 vols. (1877; Grand Rapids: Guardian,
1976), vol. 2, p. 285.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1250
Nero que tinha sido enviado em missão especial a Cesareia e agora
estava retornando a Roma.
2. Embarcamos num navio de Adramítio, que estava de partida para
alguns lugares da província da Ásia, e saímos ao mar, estando conosco
Aristarco, um macedônio de Tessalônica [NVI].
Aparentemente, o governador Festo não pôde encontrar uma forma
adequada de enviar Paulo pelas estradas romanas de Cesareia a Trôade,
logo através do mar Egeu a Macedônia, pela Via Egnatia rumo à costa
oeste da Macedônia, e daí de navio através do mar Adriático até a Itália.
Pelo contrário, creu que o mantendo confinado num barco faria com que
uma fuga fosse, embora não impossível, pelo menos difícil. Para o
transporte de prisioneiros em navios, ele devia depender dos locadoras
de veículos que navegavam pelas águas costeiras.
Os navios que transportavam grão egípcio de Alexandria a Itália
não se detinham na baía de Cesareia, porém costeavam pela Ásia Menor.
Festo pôs Júlio, seus soldados, e os prisioneiros a bordo de um cargueiro
que se detinha em vários lugares antes de chegar ao seu porto de
Adramítio. Este porto estava localizado na costa noroeste da Ásia
Menor, para o leste de Trôade e Assôs, diante do Mitilene (veja-se At
20:13–14). Lucas escreve que Aristarco acompanhou Paulo em sua
viagem. Mais tarde, Paulo escreve numa de suas epístolas da prisão que
Aristarco é seu companheiro da prisão, pelo que nós podemos supor que
esta pessoa viajou com Paulo toda a distância até Roma (Cl 4:10). Ali se
hospedou com o apóstolo numa casa alugada. Provavelmente sua decisão
de estar com Paulo e compartilhar sua prisão foi algo voluntário. 1644

1644
Veja-se C.N.T. sobre Cl. 4:10.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1251
Palavras, frases e construções gregas em At 27:1–2
Versículo 1
ἐκρίθη — o passivo aoristo tem o infinitivo articular τοῦ ἀποπλεῖν
como sujeito: “foi determinado que navegássemos para a Itália”. 1645 A
construção, no entanto, é pouco usual. A construção da terceira pessoa
singular é indefinida.
O Texto ocidental proveu uma ampliação (o agregado está em
itálico): “Então o governador decidiu enviá-lo a César; e no dia seguinte
chamou um centurião chamado Júlio, da Coorte Augusta, e entregou
Paulo com os outros prisioneiros. E começando a navegar para a Itália,
embarcamo-nos num navio”. 1646
παρεδίδουν — o uso do imperfeito do verbo παραδίδωμι (eu
entrego) é descritivo. 1647

Versículo 2
ὄντος — o particípio ativo presente é parte da construção absoluta
genitiva.
ἀνήχθημεν — o verbo ἀνάγω (eu subo) no médio e passivo é um
termo náutico (cf. At 13:13; 16:11; 18:21; 27:12; 28:11) e significa
“fazer-se ao mar”. Lucas emprega não menos que quatorze diferentes
verbos para expressar o progresso do navio. Todos estes termos náuticos
são peculiares ao seu Evangelho e a Atos; não se encontram nos outros
livros do Novo Testamento. 1648

1645
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research
(Nashville: Broadman, 1934), p. 1424.
1646
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 496.
1647
Friedrich Blass y Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961), #327.
1648
Consulte-se James Smith, The Voyage and Shipwreck of St. Paul, 3a. ed. (Londres: Longmans,
Green, 1866), pp. 27–28.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1252
b. Navegação até Creta (At 27:3–8)

3. No dia seguinte, ancoramos em Sidom; e Júlio, num gesto de


bondade para com Paulo, permitiu-lhe que fosse ao encontro dos seus
amigos, para que estes suprissem as suas necessidades [NVI].
Se os ventos fossem favoráveis, num dia o capitão da navio poderia
navegar sem dificuldade as setenta milhas náuticas entre Cesareia e
Sidom, mas Lucas não faz nenhuma referência ao vento (contrastando
com o versículo seguinte). Em Sidom atracaram para carregar e
descarregar mercadoria. Devido ao fato de que este trabalho ia consumir
bastante tempo, Júlio deu permissão a Paulo para desembarcar a fim de
visitar seus amigos da cidade. Aparentemente, Júlio sabia que Paulo era
um cidadão romano e não um criminoso, e por esta razão estava bem
disposto para com ele. Lucas parece indicar que durante toda a viagem,
Paulo não esteve acorrentado. Ao contrário, quando chegou a Roma e foi
mantido sob prisão domiciliar, Lucas diz que foi acorrentado (At 28:20).
Embora Lucas não identifique os amigos de Paulo, supomos que
eram crentes que pertenciam à igreja em Sidom. Dá evidência indireta
que ali havia cristãos, porque escreve que as pessoas que foram dispersas
depois da morte de Estêvão, viajou até a Fenícia (At 11:19). Além disso,
Paulo e Barnabé viajaram através da Fenícia em seu caminho ao
Concílio de Jerusalém e contaram aos irmãos a respeito da conversão dos
gentios (At 15:3).
4. Quando partimos de lá, passamos ao norte de Chipre, porque os
ventos nos eram contrários [NVI].
Numa viagem anterior de Pátara até Tiro, quando o navio passou ao
sul de Chipre (At 21:1–3), Lucas tinha visto a ilha dos lados sul e
ocidental. Mas nesta ocasião os ventos foram contrários (do ocidente),
escreve, e o barco navegou ao norte; quer dizer, a leste da ilha, em
direção norte. “Agora, um marinheiro ou uma pessoa acostumada a estes
mares, não teria pensado em dar nenhuma explicação, porque o curso do
Atos (Simon J. Kistemaker) 1253
1649
navio era o normal”. No entanto, Lucas talvez não «estava
acostumado a estes mares» e escreve como uma testemunha ocular que
descreve detalhes exatos. 1650
Não nos é dito se o navio fez paradas adicionais em portos ao longo
da costa da Síria e Cilícia. Ao costear, o capitão e sua tripulação se
aproveitariam do escudo protetor de terra. Mas o momento chegou
quando tiveram que mover-se para o ocidente e enfrentar as brisas
noroestes.
5. E, tendo atravessado o mar ao longo da Cilícia e Panfília,
chegamos a Mirra, na Lícia.
Navegando em direção ocidental, os homens a bordo do navio
puderam ver as montanhas de Chipre desaparecer no horizonte. A
tripulação sabia que estavam em mar aberto e que seria bom que
navegassem à vista das duas províncias sulinas vizinhas, Cilícia e
Panfília. Os marinheiros conheciam quão corrente passa para o oeste da
costa sul da Ásia Menor.
Embora Lucas tenha condensado sua história, supomos que os
ventos do noroeste fizeram com que o progresso do navio fosse muito
lento, por um lapso de umas duas semanas. Com ventos favoráveis, o
tempo estimado de percurso entre Pátara e Tiro era de quatro a cinco dias
(At 21:3), porém com ventos contrários, uma viagem de volta poderia
consumir até cinco vezes mais tempo. 1651 A viagem de Cesareia a Mirra
tomou três se não quatro semanas, e provavelmente foi realizada durante
a última semana de agosto e os primeiros quinze dias de setembro (veja-

1649
Ramsay, St. Paul the Traveller, p. 317.
1650
Vernon K. Robbins sustenta que o escritor recebeu seu material mediante a tradição oral e fontes
escritas. “My Land and My Sea: The We-Passages and Ancient Sea Voyages”, em Perspectives on
Luke–Acts, ed. Charles H. Talbert (Edimburgo: Clark, 1978), p. 241. Veja-se a análise de Hemer,
Book of Acts, pp. 317–20; e “First Person Narrative”, pp. 81–86. Veja-se também C. K. Barrett, “Paul
Shipwrecked”, en Scripture: Meaning and Method, ed. Barry P. Thompson (Hull, England: Hull
University Press, 1987), pp. 51–56.
1651
Para mais comentários sobre este assunto veja-se Hemer, Book of Acts, p. 134 n. 102. O Texto
ocidental acrescenta “por quinze dias” depois das palavras tendo cruzado o mar aberto.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1254
se os comentários adicionais sobre o v. 9), quando os ventos dominantes
são do noroeste.
Finalmente, o navio chegou ao porto de Mirra, localizado na
província de Lícia. Este era um porto importante, similar a Pátara, onde
embarcavam passageiros para diversas partes da concha do
Mediterrâneo. Júlio e seus homens poderiam ter seguido a bordo do
cargueiro até Adramítio, cruzando o mar Egeu, e caminhar até a costa
oeste da Macedônia, mas preferiu transferir os prisioneiros e seus
soldados a uma embarcação que iria diretamente a Itália.
6. Ali, o centurião encontrou um navio alexandrino que estava de
partida para a Itália e nele nos fez embarcar [NVI].
No século I, Roma dependia do Egito para sua provisão de grão;
como resultado, o governo romano desenvolveu uma marinha mercante
que transportava grandes quantidades de grão do porto egípcio de
Alexandria até Putéoli, no sul da Itália. Dependendo dos ventos do oeste,
estes navios cruzavam às vezes o Mediterrâneo desde Alexandria
diretamente a Mirra, ao norte. Mas se os ventos sopravam do noroeste,
navegavam a Fenícia e daí ou a Pátara ou a Mirra na Ásia Menor. Dali
poderiam continuar viagem rumo à ilha de Rodes e a Creta. Tomavam a
rota pela costa setentrional de Creta, navegando através do Mediterrâneo,
e seguiam para o oeste, até Malta e Sicília.
Fazendo uso de sua autoridade militar, Júlio fez os arranjos
necessários para que os prisioneiros, seus soldados e ele mesmo
embarcassem numa navio alexandrino com destino à Itália. Toda esta
gente abandonou o navio adramitino e, como o diz Lucas, abordou o
navio alexandrino. (O adjetivo alexandrino sugere que o navio
transportava carga e grão do Egito [veja-se vv. 18, 38].) Entre parêntese,
mesmo quando Júlio tenha usado seu poder militar para conseguir
espaço para seus homens, as relações entre este oficial romano e o
capitão do navio parecem ter sido cordiais.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1255
Para aqueles dias, os cargueiros de grão eram imensos, de 60
metros de comprimento, por 15 de largura, e 14 de profundidade. 1652
Alguns dos passageiros destas embarcações recebiam camarotes
pequenos, mas a maioria devia permanecer no convés, onde faziam seus
próprios abrigos. Como diz Josefo, as pessoas viajavam excessivamente
aglomeradas. 1653
7, 8. Navegando vagarosamente muitos dias e tendo chegado com
dificuldade defronte de Cnido, não nos sendo permitido prosseguir, por
causa do vento contrário, navegamos sob a proteção de Creta, na altura
de Salmona. Costeando-a, penosamente, chegamos a um lugar chamado
Bons Portos, perto do qual estava a cidade de Laseia.
O imenso navio, carregada de mercadorias, grão, e 276 pessoas,
zarpou em direção oeste. Por causa dos fortes ventos do oeste e do
noroeste, foi necessário custear e aproveitar a proteção que lhe era dado.
De qualquer maneira, adiantou-se bem pouco. Depois de muitos dias, o
barco chegou a Cnido, uma cidade no extremo de uma longa península
que sobressai da costa em direção oeste. Quando o navio chegou a
Cnido, já não recebia a proteção do continente nem se beneficiava da
corrente ocidental. O barco foi forçado a ir quase reto ao sul, para Creta.
Com o vento noroeste soprando em suas velas, dirigiu-se a sota-vento de
Creta, perto do cabo Salmona, um promontório situado na esquina
nordeste da ilha. O próprio nome pode sugerir que Salmona era um
“refúgio contra a fúria do vento”. 1654
A costa oriental de Creta é relativamente curta. Em questão de
horas, a tripulação teve que enfrentar a tarefa de dirigir o navio em
direção oeste e navegar pela costa sul. Lucas diz que passaram muito
trabalho realizando essa manobra. Finalmente conseguiram colocar o

1652
Lucian Navigium 5.
1653
Durante o governo de Félix, ele viajou a Roma; ao sofrer um naufrágio, ele e sua “companhia de
umas seiscentas almas tiveram que nadar durante toda a noite”. Oitenta destas pessoas foram levadas a
bordo de um navio de Cirene. Josefo Vida 3 [13–15].
1654
Hemer, Book of Acts, p. 135.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1256
navio em direção a um lugar chamado Bons Portos, perto do povo de
Laseia, onde lançaram âncoras.
Não se sabe muito sobre estes dois lugares. Laseia estava localizado
a 8 km. a leste de Bons Portos. 1655 Em Bons Portos, os navios estavam
relativamente a salvo dos ventos do noroeste; a área tinha duas baías
contíguas que em sua própria forma eram atrativas, como seu nome o
indica. Embora estivessem protegidos por várias pequenas ilhas
costeiras, as baías olhavam ao mar aberto, tornando questionável a
conveniência de passar ali os quatro meses de inverno.

Palavras, frases e construções gregas em At 27:4–8


Versículos 4–5
ὑπεπλεύσαμεν — este composto no ativo aoristo significa
“navegamos perto de”. 1656
τε — a partícula anexa une os versículos 4 e 5.
τήν — note-se que um artigo definido precede os dois nomes
Cilícia e Panfília. A construção indica proximidade e unidade (cf. At
9:31).

Versículos 7–8
προσεῶντος — do verbo προσεάω (eu permito ir para além), o
particípio ativo presente é parte da construção absoluta genitiva. A
preposição πρός no composto é diretiva, não intensiva.
μόλις — “com dificuldade”. O advérbio aparece duas vezes, uma
vez com o particípio aoristo γενόμενοι (chegou) e de novo com o
gerúndio παραλεγόμενοι (navegando).

1655
Consulte-se Smith, Voyage and Shipwreck, pp. 83–85, 259–60.
1656
Robertson, Grammar, p. 634.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1257
c. Esperando em Creta (At 27:9–12)

9a. Tínhamos perdido muito tempo, e agora a navegação se tornara


perigosa, pois já havia passado o Jejum [NVI].
Ali ficou detida possivelmente devido aos ventos adversos que
sopravam do noroeste. Se a tripulação decidia zarpar de Bons Portos,
teriam que navegar circundando o cabo Matala (uns poucos quilômetros
para o oeste) e logo sair a mar aberto. No cabo Matala, a costa seguia
uma linha fechada vários quilômetros ao norte. O navio não poderia ter
permanecido muito perto da costa com um vento soprando do noroeste.
Lucas simplesmente diz que o tempo passava. Todos a bordo
sabiam que um dia passado esperando na baía significava um
encurtamento do tempo favorável para navegar em alto mar. A estação
para a navegação em alto mar estava chegando rapidamente a seu fim.
b. O perigo. Lucas escreve que navegar através do Mediterrâneo
tinha chegado a ser perigoso. Nos tempos antigos, não era recomendável
navegar em alto mar depois de 15 de setembro. 1657 Nessa época, o tempo
fica nublado; a capa de nuvens torna impossível que os marinheiros
observem as estrelas, por meio das quais eles navegavam. E de 11 de
novembro a 10 de março todos os navios permaneciam no porto. Os
rabinos judeus aconselhavam as pessoas para viajar por mar unicamente
entre a Páscoa e a Festa dos Tabernáculos (observada cinco dias depois
do Jejum, no dia quinze do Tishri). 1658 Sabemos que ao longo da costa
sul da Itália, o tráfico costeiro começava na primeira semana de
fevereiro.
c. O jejum. Lucas menciona o Jejum, que é o Dia da Expiação dos
judeus, e que se observava na parte final de setembro, ou a primeira parte
de outubro (segundo o calendário lunar; veja-se Lv 16:29–34; 23:26–32).
Pelas indicações quanto ao tempo que Lucas oferece na sequência de sua

1657
Vegetius De Re Militari 4.39. Consulte-se Lionel Casson, Ships and Seamanship in the Ancient
World (Princeton: Princeton University Press, 1971), p. 270.
1658
SB, vol. 3, p. 771.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1258
relato, inclinamo-nos pela última das datas para a observância do Jejum.
A data mais tardia para o Jejum (dez de Tishri) caía em 5 de outubro de
59 d.C. 1659 Enquanto o navio estava em Bons Portos, Paulo e seus
amigos observaram o Jejum. Uns poucos dias depois, o capitão decidiu
levantar âncoras e navegar para o porto de Fenice (v. 12). Depois de
deixar Creta, passaram duas semanas em mar aberto antes do naufrágio
(vv. 27, 41), na última semana de outubro. Depois disso, Paulo esperou
três meses na ilha de Malta (novembro, dezembro, e janeiro) antes de
abordar outro navio e desembarcar em Putéoli (At 28:11, 13). Por esse
tempo era meados de fevereiro.
Se supusermos que o navio adramitino deixou Cesareia na última
semana de agosto e que Paulo chegou a Putéoli nos meados de fevereiro,
temos alguma noção sobre o início e o fim de sua viagem. Carecemos de
provas absolutas, mas a evidência corroborativa no relato parece ilustrar
que Paulo chegou a Itália em fevereiro de 60 d.C.
9b, 10. Por isso Paulo os advertiu: “Senhores, vejo que a nossa
viagem será desastrosa e acarretará grande prejuízo para o navio, para a
carga e também para a nossa vida”.
Paulo era um viajante experimentado que, segundo seu próprio
testemunho, tinha sofrido três naufrágios (2Co 11:25). Ele sabia que era
preciso tomar uma decisão com relação onde passar os meses de inverno.
Que autoridade tinha Paulo para aconselhar o piloto, o capitão, e o
centurião? Não sabemos, mas sua experiência, comportamento, e
conhecimento não passaram desapercebidos durante a viagem. Quando
ele falava, todos escutavam (vv. 21–26, 33–34). A soma e substância de
seu conselho foi que continuar a viagem significaria enfrentar o perigo
de perder o navio, a carga, e até as vidas da tripulação e os passageiros.
(O tempo do verbo advertir indica que repetidamente aconselhou a um
número de pessoas a respeito de não abandonar o porto [veja-se v. 21].)

1659
Hemer, Book of Acts, pp. 137–38, 333; F. F. Bruce, The Book of Acts, ed. rev., série New
International Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 481; Ramsay,
St. Paul the Traveller, p. 322.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1259
Ele e seus amigos se humilharam diante de Deus no dia do Jejum (Lv
16:29) e resistiam a correr o risco de abandonar o povo para enfrentar o
perigo inevitável do mar. Este risco entenderam como tentar a Deus. 1660
11, 12. Mas o centurião dava mais crédito ao piloto e ao mestre do
navio do que ao que Paulo dizia. Não sendo o porto próprio para
invernar, os mais deles foram de parecer que se fizessem dali ao mar, a
ver se de algum modo podiam chegar a Fenice, e aí passar o inverno, visto
ser um porto de Creta, o qual olha para o nordeste e para o sudoeste.
Júlio tinha autoridade neste assunto, visto que era um oficial militar
a cargo tanto dos prisioneiros como do grão destinado a Roma. 1661 Ouviu
Paulo, mas também devia considerar o que o piloto e o capitão do navio
tinham a dizer a respeito. Estes não desconheciam a costa da Grécia.
Sabiam que Bons Portos não era uma baía que pudesse prover proteção
nas tormentas invernais. Também sabiam que se pudessem navegar umas
quarenta milhas a oeste, ao porto da Fenice, poderiam dispor de um lugar
mais propício para passar os meses de inverno.
Lucas diz que Fenice tinha uma baía que olhava tanto a sudoeste
como a noroeste. Neste lugar, o cabo Mouros sobressai no mar para o sul
e para o oeste. Assim, provê duas baías: uma no lado leste do cabo e a
outra no lado oeste. Ao longo das margens da baía ocidental há uma
aldeia que hoje recebe o nome da Foinica, conquanto a aldeia de Loutro
está localizada na ribeira da baía oriental. Não só em tempos antigos mas
também até hoje os marinheiros preferem a baía ocidental nos meses de
inverno; “os marinheiros de Loutro dizem que é preciso considerar
insegura a baía de Loutro de novembro a fevereiro”. 1662 Na baía
ocidental estava o porto da Fenice, onde a tripulação do navio
alexandrino quis passar o inverno.

1660
João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance y Thomas F.
Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 288.
1661
Hemer, “First Person Narrative”, p. 94.
1662
Jack Finegan, The Archeology of the New Testament: The Mediterranean World of the Early
Christian Apostles (Boulder, Colo.: Westview; Londres: Croom Helm, 1981), p. 197.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1260
Os comentaristas têm um problema ao explicar como um porto no
lado sul de Creta pode estar frente ao noroeste. A passagem parece
logicamente absurda. No entanto, investigações arqueológicas
mostraram que nos dias de Paulo a baía ocidental tinha dois portos.
Como o assinala o mapa abaixo, o porto A olha para o sul e o porto B
olha para o noroeste. A topografia de Creta mudou desde aqueles tempos
antigos. Em alguns lugares, terremotos levantaram a parte ocidental de
Creta até 6 m. em alguns lugares e provavelmente 5 m. em Loutro. O
porto B chegou a ser terra seca. “A linha de conchas, que marca o limite
do levantamento das praias aqui e ao redor da baía, é de perto de 5 m.
sobre o nível atual do mar”. 1663 Além disso, desde os tempos antigos a
proteção rochosa do promontório ocidental do cabo Mouros decresceu
entre 54 e 110 metros e, como resultado, oferece menos proteção do mar
que nos dias passados.

Considerações práticas em At 27:9–12


Em Atos, Lucas registra os dias festivos do calendário judaico. Por
exemplo, refere-se duas vezes à festa do Pentecostes (At 2:1; 20:16),
duas vezes à festa da Páscoa (também chamada a Festa dos Pães Asmos;
At 12:4; 20:6), e uma vez ao Jejum (At 27:9). As referências são feitas
porque escreve sobre Pedro e Paulo, que observavam os dias festivos
deste calendário. Em Bons Portos, a observância de Paulo do Jejum
coincide com o Dia da Expiação que era celebrado em Jerusalém.
A igreja cristã elaborou seu próprio calendário de festividades que
para alguns crentes começa com a Epifania. Todos os cristãos observam
a Sexta-feira Santa e o Domingo da Ressurreição ou Páscoa, o dia da
Ascensão (quarenta dias depois da Páscoa, At 1:3), o dia do Pentecostes
(sete semanas depois da Páscoa), e o Natal. A igreja tem composto hinos
e cantatas que se cantam e interpretam para estas ocasiões. Os crentes
são animados a celebrar estes dias santos e expressar sua alegria e
1663
R. M. Ogilvie, “Phoenix”, JTS n.s. 9 (1958): 312.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1261
felicidade. Pelo contrário, o mundo carece de um depósito de hinos e
olha com inveja os cristãos quando eles celebram estes dias especiais.

Palavras, frases e construções gregas em At 27:9–12


Versículos 9–10
Os genitivos na primeira parte do versículo 9 formam duas vezes a
construção absoluta genitiva. Esta construção é seguida pelo uso causal
do infinitivo articulado no modo ativo perfeito παρεληλυθέναι (teve
passado). Numa maneira gramaticalmente concisa, Lucas expressa três
vezes seguidas a ideia de que o tempo passou.
παρῄνει — de παραινέω (eu aconselho, recomendar, advertir), o
tempo imperfeito sugere ação repetida.
μέλλειν ἔσεσθαι — a construção infinitiva é introduzida pela
conjunção ὅτι (que). A sintaxe, no entanto, é incômoda, provavelmente
devido a um deslize inadvertido por parte do escritor. 1664

Versículo 12
εἴ πως — a combinação de duas partículas introduz uma cláusula de
propósito a qual, por implicação, tem o discurso indireto. 1665
δύναιντο — “se por algum modo eles pudessem”. Aqui temos o
optativo presente numa construção do discurso indiretamente implícita.
Embora a apódose não aparece, pode ser deduzida da prótase.

1664
C. F. D. Moule, Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge University
Press, 1960), p. 154.
1665
Robertson, Grammar, p. 1021.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1262
2. A tempestade (At 27:13–44)

A viagem de Paulo a Roma é uma história emocionante no livro de


Atos, e a seção sobre a tempestade deve ser considerada como a melhor
parte da história. Lucas prova ser um excelente cronista, uma testemunha
ocular que usa o pronome nós da primeira pessoa. Com uns poucos
traços de sua pena mestra, descreve um drama em mar aberto e compõe
literatura que está entre as histórias clássicas de todos os tempos.

a. O Nordeste (At 27:13–20)

13. Começando a soprar suavemente o vento sul, eles pensaram que


haviam obtido o que desejavam; por isso levantaram âncoras e foram
navegando ao longo da costa de Creta [NVI].
Os marinheiros esperaram até que detectaram uma mudança na
direção dos ventos. Em lugar de uma brisa do noroeste, começou a
soprar um vento suave do sul ou sudoeste. A tripulação viu a
oportunidade que estavam esperando e, sem perder tempo, levantaram
âncoras para navegar 65 km. até a Fenice.
Durante cinco a seis km. navegaram em direção oeste até que
rodearam o cabo Matala. Nesse momento, tiveram que mover-se para o
norte umas vinte km. e logo tomar direção oeste-noroeste. Durante todo
este trajeto costeavam, por temor a uma repentina tormenta que pudesse
lançá-los a mar aberto. Se o vento mantinha sua força do sul, em umas
poucas horas poderiam alcançar Fenice sem problemas.
14. Pouco tempo depois, desencadeou-se da ilha um vento muito
forte, chamado Nordeste [NVI].
Antes que a tripulação pudesse manobrar adequadamente o leme e
dirigir o navio rumo a norte, o vento voltou inesperadamente e começou
a soprar do nordeste. No grego, Lucas escreve que o vento do sul estava
soprando por abaixo, o que parece indicar que os céus estavam bastante
nublados. Uma tormenta espancou da ilha e fez com que o barco se
Atos (Simon J. Kistemaker) 1263
afastasse de terra por volta de mar aberto. James Smith descreve
graficamente as condições mutáveis de tempo no oriente do
Mediterrâneo: “Nestes mares ocorre com frequência a repentina
mudança de um vento sul a um violento vento norte. O termo ‘tufão’,
com o qual se descreve este vento, indica que está acompanhado por algo
dos fenômenos que são de esperar-se em casos como estes, quer dizer,
agitação e movimentos como redemoinhos causados por uma
concentração de correntes de ar que chocam entre si quando ocorreu a
mudança”. 1666
O vento é chamado o “nordeste”, que no grego é Euraquilon. A
palavra é um termo náutico que se deriva da palavra grega euros (vento
oriental) e a expressão latina aquilo (vento norte). 1667 Num lugar
chamado Thugga na áfrica proconsular, os arqueólogos têm descoberto
uma rosa dos ventos de doze pontas que foi cinzelada no pavimento. Os
nomes dos ventos começam com o norte e se movem para o este, sul, e
oeste, seguindo o movimento dos ponteiros de relógio do relógio. O
nome Euraquilon aparece com referência ao vento nordeste. 1668
15. O navio foi arrastado pela tempestade, sem poder resistir ao
vento; assim, cessamos as manobras e ficamos à deriva [NVI].
A palavra escolhida para descrever a fúria do furacão é chamativa.
Lucas diz que o navio foi arrancado e “não pôde enfrentar o olho do
vento” (lit.). A tempestade desceu das montanhas de Creta para o mar e
espancou o navio com um violento vento leste-noroeste. A tripulação fez
todo o possível por manter-se perto da costa, procurando aproveitar o
vento para obter seus propósitos, mas perceberam que a força do vento
não permitiria manter o navio em seu curso. Assim, começaram a ir à

1666
Smith, Voyage and Shipwreck, p. 101.
1667
A versão Almeida Atualizada usa a expressão Euroaquilão, palavra que na realidade significa “o
vento do Nordeste que levanta ondas” (Bauer, p. 325). Mas um vento do sudeste teria feito com que o
navio alcançasse o porto da Fenice e não a ilha Cauda (v. 16).
1668
Hemer, Book of Acts, pp. 141–12. Veja-se também seu “Euroaquilão e Melita”, JTS n.s. 26 (1975):
100–11.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1264
deriva. Os homens não puderam fazer outra coisa que ceder ao vento e
deixar que o navio fosse em direção sudoeste. 1669
Embora Lucas mesmo não fosse marinheiro, de qualquer maneira
viu-se tão envolto na tensão e incerteza da viagem que escreveu este
versículo e as seguintes orações na primeira pessoa do plural.
16. Passando ao sul de uma pequena ilha chamada Clauda, foi com
dificuldade que conseguimos recolher o barco salva-vidas [NVI].
O vento nordeste empurrou o navio num curso oeste-sudoeste do
cabo Matala até uma pequena ilha chamada Cauda (moderna Gaudos ou
Gozzo). 1670 O barco cobriu a distância entre Cauda e Creta, que está a 37
km., em umas poucas horas frenéticas. Os homens procuraram
aproximar o navio à proteção da ilha. Com a proteção de terra, eles
tiveram a oportunidade de preparar-se para o pior, que ainda estava por
vir. O primeiro foi assegurar o barco salva-vidas que normalmente ia
atrás do barco, amarrando-o com cordas. O vento que bramia furioso
esteve prestes a romper o barco salva-vidas contra o navio. Os
marinheiros (e, aparentemente, os passageiros, incluindo o próprio
Lucas) tiveram grande dificuldade em elevá-lo.
17. Levantando-o, lançaram mão de todos os meios para reforçar o
navio com cordas; e temendo que ele encalhasse nos bancos de areia de
Sirte, baixaram as velas e deixaram o navio à deriva [NVI].
Os marinheiros tinham três tarefas para realizar:
a. O bote salva-vidas. O barco tinha passado a parte leste da ilha; a
tripulação evitou o lado oeste por seus perigosos recifes. Agora, com as
velas meio recolhidas e a proa ao vento para diminuir a deriva,
trabalharam içando o bote salva-vidas do convés.
b. As cordas. Logo que terminaram essa tarefa, começaram a
seguinte. Precisavam pôr cordas por debaixo e ao redor do navio para

1669
O Texto ocidental amplia o versículo: “Cedemos diante do [vento] que estava soprando, e tendo
arriado as velas foram à deriva”. Metzger, Textual Commentary, p. 497.
1670
A forma de escrever este nome varia de Cauda a Clauda e Clauden. Talvez Cauda seja a forma
latina do grego Clauda.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1265
protegê-lo y lhe dar fortaleza. Como se executou este trabalho não
podemos determinar, porque as palavras no texto grego são bastante
obscuras. Provavelmente colocaram cordas muito tensas ao redor do
casco para evitar fortes golpes contra a madeira e assim evitar
infiltrações de água. Este procedimento é conhecido como atortorar, e se
refere à ação de pôr cordas através e ao redor do navio em vários lugares
de proa a popa. 1671 Outras possibilidades são que as cordas foram
colocadas na longitude, da parte de diante à parte de trás do navio, ou da
proa à popa. 1672 Qualquer que tenha sido o procedimento empregado, o
propósito era um só: fortalecer o navio contra o tamborilar de vento e
ondas.
c. A âncora. Logo que estiveram ao abrigo da ilha Cauda, baixaram
a âncora numa tentativa por manter o navio estacionado. A palavra grega
skeuos, que eu traduzi “âncora” é um termo geral que pode significar
“coisa, objeto, barco, instrumento”. Este objeto pode ter sido uma âncora
móvel ou flutuante. 1673 O contexto sugere que o skeuos servia para fazer
mais lenta a deriva do barco. Os marinheiros sabiam que se o nordeste
empurrava a embarcação para o sudoeste, poderiam encalhar nos
temíveis bancos de areia do Sirte (o golfo de Cidra na costa da Líbia. O
Sirte menor é o golfo de Gabes, na costa leste da Tunísia). Estas barras
arenosas do grande Sirte, como os marinheiros sabiam muito bem, eram
extremamente perigosas. 1674 Daí que os homens fizessem qualquer coisa
para prevenir o naufrágio nas areias movediças do Sirte.
Ancorar na Cauda demonstrou ser impossível devido ao fato de que
o porto da ilha estava no lado leste-nordeste pelo que não oferecia

1671
Consulte-se H. J. Cadbury, “Hypozōmata”, Beginnings, vol. 5, p.348; Smith, Voyage and
Shipwreck, pp.107–8; Hemer, Book of Acts, p. 143 n. 120.
1672
Veja-se Casson, Ships and Seamanship, pp. 91–92.
1673
Refira-se a Ernst Haenchen, The Acts of the Apostles: A Commentary, trad. por Bernard Noble and
Gerald Shinn (Filadélfia: Westminster, 1971), p. 703 n. 2. Veja-se Jean Rougé, Ship and Fleets of the
Ancient Mediterranean, trad. por Susan Frazer (Middletown, Conn.: Wesleyan University Press,
1981), p. 66.
1674
Vergil Aeneid 4.40–41; Strabo Geography 2.5.20; 17.3.16–17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1266
proteção da tormenta. Teriam que abandonar a proteção da Cauda e sair
a mar aberto. Com a ajuda das velas para tormentas puderam exercer
algum controle sobre o navio e mantê-la em posição estável. O uso das
velas evitou que o navio fora empurrado para o Sirte. 1675 E mesmo
quando houvesse alguma derivação, com a ajuda das velas de tormenta o
navio se movia lentamente para o oeste. 1676
18, 19. No dia seguinte, sendo violentamente castigados pela
tempestade, começaram a lançar fora a carga. No terceiro dia, lançaram
fora, com as próprias mãos, a armação do navio [NVI].
Naqueles tempos, os marinheiros careciam de instrumentos de
navegação e para fixar o rumo deviam confiar no sol, na lua, e nas
estrelas. Isso significava que céus nublados tornavam impossível a
orientação; por isso, durante a tormenta, a tripulação do navio
alexandrino não pôde comprovar o curso que levava. Quando os ventos
impetuosos multiplicaram sua força, e a chuva e as ondas anularam a
visibilidade, a tripulação foi presa do pânico. Embora Lucas dê um
relatório dia a dia, deixa à imaginação do leitor como resolveram durante
a noite a tripulação e os passageiros. Não é admira que na manhã
seguinte, os assustados marinheiros tenham tomado medidas drásticas.
Temos alguma dificuldade em explicar por que os marinheiros
lançaram pela amurada a carga e os apetrechos, salvo que se tenha feito
para aliviar o navio. Mas um navio vazio é muito mais fácil de mover
pelas ondas que um carregado, ao mesmo tempo que está mais ao sabor
dos ventos. Talvez a tripulação era da opinião que um navio vazio
poderia superar os bancos de areia se entrava no grande Sirte.
A palavra carga é um termo genérico; portanto, devemos entender
que a tripulação lançou pela amurada tudo o que estava armazenado no
convés e nas adegas (c.f. Jn 1:5). 1677 Lucas diz que umas duas semanas

1675
Smith, Voyage and Shipwreck, p. 114.
1676
Lake e Cadbury, Beginnings, vol. 4, p. 333.
1677
Rougé comenta que a prática de levar carga em coberta era comum. Ships and Fleets, p. 70.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1267
depois, quando era quase seguro o naufrágio, a tripulação lançou ao mar
o grão (v. 38).
No dia seguinte, (quer dizer, ao terceiro dia desde que tinham
deixado a costa de Creta), com suas próprias mãos os marinheiros
lançaram ao mar os aparelhos. Alguns manuscritos têm a expressão
lançamos, 1678 o que indicaria que se requereu a participação tanto dos
tripulantes como dos passageiros para lançar pela amurada a haste maior,
que era da altura de uma árvore amadurecida. Ao descarregar esta haste
pesada, o navio terá ficado muitíssimo mais leviano. A palavra grega
skeue é geral e refere-se não só ao pau maior mas também a toda a
equipe do navio, quer dizer, os aparelhos. 1679 Toda a equipe que
consideraram que devia ser lançado ao mar, lançaram-no pela amurada
com suas próprias mãos. Também foi lançada a vela maior, unida ao
mastro, que, quando estava unida à popa do navio, serviu como freio.
Com estas poucas palavras, Lucas descreve o pânico que dominava a
tripulação.
20. E, não aparecendo, havia já alguns dias, nem sol nem estrelas,
caindo sobre nós grande tempestade, dissipou-se, afinal, toda a esperança
de salvamento.
Em termos claros, Lucas descreve a cena a bordo do navio. Como
se o leitor tivesse perdido o fio do relato, repete o óbvio. A tripulação e
os passageiros não podiam ver o sol de dia nem as estrelas de noite.
Assim, perdidos no mar, temeram dar contra a costa. Se tivessem estado
ancorados perto de terra, a tormenta podia ter passado. Mas nas águas
profundas, estavam no meio da tormenta que começou em Creta e
terminou em Malta.
De modo característico, Lucas se expressa com uma negativa
modéstia: “caindo sobre nós grande tempestade”. A tempestade bramou

1678
O Texto majoritário, refletido em algumas versões da Bíblia como a RA.
1679
D. J. Clark traduz: “A violenta tormenta continuou, pelo que no dia seguinte, eles procuraram
lançar pela amurada todo o equipamento pesado do navio; ao terceiro dia, num esforço a puro braço,
fizeram-no”. “What Went Overboard First?” BibTr 26 (1975): 144–46.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1268
ao redor dia e noite, hora após hora. Não admira que lhes tenha
sobrevindo o temor de perder a vida. Lucas admite com toda franqueza,
“dissipou-se, afinal, toda a esperança de salvamento”. Não nos é dito se
o navio começou a afundar devido às infiltrações, à chuva, ou às ondas,
mas o crescente volume de água no interior talvez tenha sido uma das
razões para desfazer-se da carga e dos aparelhos.

Palavras, frases e construções gregas em At 27:13–20


Versículo 13
Neste e nos seguintes versículos (14–20), cada frase começa com
uma ou duas construções absolutas genitivas. Esta forma parece ser um
recurso literário característico do escritor.
κεκρατηκέναι — o infinitivo ativo perfeito de κρατέω (eu obtenho)
toma o genitivo προθέσεως (propósito) como um objeto direto. O tempo
perfeito revela que os marinheiros tinham planejado sua ação desde fazia
um longo tempo.
ἄραντες — de αἴρω (eu levanto) o particípio ativo aoristo é
suplementado por um substantivo entendido e um verbo: “tendo
levantado âncora, navegaram”.
ἆσσον — embora este advérbio comparativo de ἄγχι (perto)
significa “mais perto”, deve ser percebido como um superlativo: “eles
começaram a navegar tão perto da terra como foi possível”. O verbo
παρελέγοντο (v. 8) é o perfeito incoativo.

Versículos 14–16
ἔβαλεν κατʼ αὑτῆς — o aoristo é efetivo; significa que o vento
“espancava desde ela [Creta]”, e não “contra ela”. 1680

1680
Moule, Idiom-Book, p. 60.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1269
ἀντοφθαλμεῖν — o infinitivo presente é um composto da preposição
ἀντί (contra) e o substantivo ὀφθαλμός (olho). O navio foi incapaz de
enfrentar o vento.
τῷ ἀνέμῳ — “o vento”. Este substantivo no dativo pode tomar-se
com o infinitivo precedente enfrentar ou o particípio aoristo que segue
ἐπιδόντες (cedeu). A maioria dos tradutores constroem o substantivo
tanto com o infinitivo como com o particípio (p. ex., BJ, NVI; NAB,
RSV).
ὑποδραμόντες — de ὑποτρέχω (eu corro, navegar sob), este
particípio aoristo mostra descritivamente que o barco navegou ao sul da
ilha buscando proteção da tormenta.
ἰσχύσαμεν — o aoristo é ingressivo: “começamos a ter êxito”.

Versículo 17–18
μή — depois dos verbos que expressam medo, aparece a cláusula
negativa com μή e o subjuntivo. O subjuntivo aoristo ἐκπέσωσιν
(encalharam) tem o sentido da forma passiva de ἐκβάλλω (eu lanço). 1681
ἐκβολὴν ἐποιοῦντο — o substantivo indica lançar ao mar; o verbo é
o imperfeito incoativo: “começaram a aliviar”.

Versículo 20
λοιπόν — uma expressão adverbial que significa “enfim”. É
semelhante ao modismo francês enfin.
τοῦ σῷζεσθαι — o infinitivo articular complementa o substantivo
ἐλπίς (esperança): “toda esperança de ser resgatados”.

1681
Robertson, Grammar, p. 802.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1270
b. A revelação (At 27:21–26)

Na descrição que Lucas faz sobre a cena cheia de tensão provocada


pelo furacão (vv. 13–20), deixa Paulo completamente fora do quadro,
mesmo estando com e entre as pessoas. No entanto, quando o desespero
apertava os corações de todos a bordo e ninguém dizia uma palavra de
esperança ou de alento, Paulo trouxe uma mensagem espiritual de
resgate.
21. Visto que os homens tinham passado muito tempo sem comer,
Paulo levantou-se diante deles e disse: Os senhores deviam ter aceitado o
meu conselho de não partir de Creta, pois assim teriam evitado este dano
e prejuízo [NVI].
O desespero tem um efeito debilitante na mente e, por extensão, no
corpo do homem. O desespero faz com que a pessoa não sinta dores
agudas pela fome e, como resultado, o corpo começa a debilitar-se. A
ansiedade fez com que a tripulação e os passageiros não comessem por
um longo tempo. Além disso, cozinhar em tais circunstâncias chegou a
ser quase impossível sem levar em conta que as provisões podem ter sido
prejudicadas com a água do mar.
Nestas deploráveis circunstâncias, Paulo se levantou para dirigir-se
aos homens que permaneciam sentados, presas do desalento e esperando
o golpe final do desastre. Parou no meio. E esta gente, com seus espíritos
quebrantados por sua situação desesperada, se dispuseram a ouvi-lo, e
ele lhes disse:
a. “Os senhores deviam ter aceitado o meu conselho de não partir
de Creta”. Antes, tinha advertido o centurião romano, o piloto, e o
capitão do navio (v. 10) para não continuar a viagem, mas estes
rejeitaram o conselho. Em horas, perceberam que estavam pondo em
perigo o navio, a carga, e as vidas dos tripulantes e passageiros.
b. “Teriam evitado este dano e prejuízo”. Todos sabiam da
advertência que fez Paulo, e muitos dos passageiros tinham ajudado a
tripulação a lançar ao mar carga e equipamento. Se eles tivessem
Atos (Simon J. Kistemaker) 1271
permanecido em Bons Portos teriam evitado esta perda. O preço que
tiveram que pagar pela rápida decisão de zarpar foi prejudicial ao navio e
perda da mercadoria, sem mencionar a angústia e o mal-estar dos
passageiros. Em seu desespero, as pessoas olhavam para Paulo. Se tinha
alguma palavra de alento que os ajudasse em sua desesperada situação,
estavam ansiosos para ouvi-la.
22-24. Mas agora recomendo-lhes que tenham coragem, pois
nenhum de vocês perderá a vida; apenas o navio será destruído. Pois
ontem à noite apareceu-me um anjo do Deus a quem pertenço e a quem
adoro, dizendo-me: “Paulo, não tenha medo. É preciso que você
compareça perante César; Deus, por sua graça, deu-lhe a vida de todos os
que estão navegando com você”.
a. “Mas agora recomendo-lhes que tenham coragem”. Paulo se
orgulha não em sua força pessoal mas em Cristo Jesus, que lhe dá forças
para suportar (cf. Fp 4:13). Ele sabe que terá que dar testemunho de
Jesus em Roma (At 23:11), e sobre essa base pode aconselhar aos
homens a não perder a coragem. No entanto, ele necessita informação
precisa a respeito do resultado da viagem para que suas palavras tenham
sentido. A menos que Deus lhe comunique informação pertinente, não
poderá predizer com certeza que ninguém vai perecer.
b. “Ontem à noite apareceu-me um anjo do Deus a quem pertenço e
a quem adoro”. A tempo e fora de tempo (veja-se 2Tm 4:2) Paulo
aproveita qualquer oportunidade para dar a conhecer a Deus e a
mensagem da verdade às pessoas. Depois de ganhar a confiança de sua
audiência, diz-lhes que ele recebeu as boas notícias de um anjo de Deus
com relação à sua segurança e bem-estar físicos. Embora antes lhes
tivesse dito que o navio, a carga e as vidas se perderiam (v. 10), agora
lhes pode assegurar que suas vidas, embora não o navio, serão
preservadas.
Acrescenta que ele pertence a Deus e que é um servo de Deus.
Note-se que se está dirigindo a gentios que são politeístas em seus
conceitos religiosos e suas superstições. Mas sem reserva alguma lhes
Atos (Simon J. Kistemaker) 1272
fala de pertencer a Deus e servir a esse Deus. Sabe que deve opor-se e
retificar a ideia gentílica de que se uma pessoa servir a Deus, Deus está
obrigado a recompensá-lo com Seus favores. 1682 Demonstra-lhes que ele
pôs toda sua confiança em Deus, que provou repetidamente que nunca o
desapontará. Por esta razão, comunica-lhes as palavras exatas do anjo.
c. “Paulo, não tenha medo. É preciso que você compareça perante
César”. Suspeitamos que já antes a tripulação, os soldados, e os
prisioneiros se precaveram que Paulo tinha apelado para César. Agora
entendem que se um anjo de Deus lhe falou diretamente, devia ser um
homem justo. Em sua opinião, não pode ser um criminoso, mesmo tendo
que comparecer diante de César.
Deus não lhe aparece numa visão nem num sonho. Envia Seu anjo
com uma comunicação especial para confirmar a segurança de Jesus de
que chegaria a Roma. No meio do temporal, quando todo mundo está
perdendo a esperança de salvar-se, Deus envia um mensageiro especial
para reforçar a mensagem anterior de Jesus (At 23:11). Além disso, o
anjo disse a Paulo:
d. “Deus, por sua graça, deu-lhe a vida de todos os que estão
navegando com você”. Paulo é servo de Deus e, por implicação, é
também Seu porta-voz. Apresenta-se a si mesmo como o representante
de Deus que presumivelmente pediu a Deus que preservasse a vidas de
todo os que estão a bordo do navio. Agora, através do anjo, Deus lhe
informa que sua oração foi respondida e que a vida de todos os homens a
bordo pertencem a ele. Que Paulo se encarrega da situação fica evidente
quando dá instruções ao centurião de manter todos os homens no barco
(v. 31). E assim o próprio centurião, em submissão à providência de
Deus e em deferência a Paulo, protege a vida de todos os seus
prisioneiros (v. 43). 1683

1682
F. W. Grosheide, De Handelingen der Apostelen, serie Kommentaar op het Nieuwe Testament, 2
vols. (Amsterdam: Van Bottenburg, 1948), vol. 2, p. 404.
1683
John Albert Bengel, Gnomon of the New Testament, ed. Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo:
Clark, 1877), vol. 2, p. 725.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1273
25, 26. Assim, tenham ânimo, senhores! Creio em Deus que
acontecerá do modo como me foi dito. Devemos ser arrastados para
alguma ilha.
Pela segunda vez (veja-se v. 22) Paulo chama seus ouvintes a ser
corajosos. Identifica coragem com fé quando diz que crê em Deus.
Implicitamente convida os homens a seguir seu exemplo e crer em Deus,
quem controla não só o tempo mas também todas as demais coisas.
Assegura-lhes que confia plenamente que Deus salvará a ele e a todos os
que estão a bordo, embora o próprio navio se perderá. Aqui há um
homem que demonstra sua imutável fé em seu Deus. A fé de Paulo
estava ancorada em Deus. Priscilla J. Owens comunica este pensamento
nestas palavras:
Resistirá tua âncora as tormentas da vida,
Quando as nuvens desdobrem suas asas de contenda?
Quando se levantarem as fortes marés, e os cabos se esticarem,
Cederá tua âncora, ou permanecerá firme?
Temos uma âncora que guarda a alma
Firme e segura enquanto as ondas rodam,
Unida à Rocha que não se moverá,
Fundamento firme e profundo no amor do Salvador. (Trad. livre)

Paulo revela que o navio tocará terra em alguma ilha. Esta não é
uma hipótese de sua parte. É uma revelação que o anjo de Deus lhe deu,
pelo que ninguém poderá dizer mais tarde que a chegada a Malta foi pura
casualidade. Como representante de Deus, Paulo garante que a predição
que recebeu se realizará. 1684

Considerações doutrinais em At 27:22–26


Deus quer que seu povo seja o sal da terra e que deixe que sua
influência impregne a sociedade na qual Ele os pôs em Sua providência.

1684
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 293.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1274
Com efeito, Ele insiste com Seu povo a orar pelo bem-estar da
sociedade. Da Escritura aprendemos que Deus abençoou todas as nações
da terra por causa de Abraão (Gn 12:3; 18:18; 22:18); Deus abençoou a
casa do Potifar por causa de José (Gn 39:5); Deus preservou a tripulação
e os passageiros que acompanhavam a Paulo em sua viagem (vv. 22, 24).
Por amor de Seus escolhidos, Deus concede bênçãos aos incrédulos.
Apesar da promessa de Deus de segurança, alguns marinheiros
demonstraram sua falta de fé, tentando fugir do navio sob um pretexto
(v. 30)
A cega incredulidade certamente que erra
E esquadrinha Sua obra em vão;
Deus é Seu próprio intérprete
E Ele o fará evidente.
— William Cowper

Palavras, frases e construções gregas em At 27:22–24


Versículo 22
τὰ νῦν — esta é uma expressão adverbial que significa “no que cabe
à presente situação”. 1685
πλήν — “exceto”. O advérbio serve como uma preposição
inadequada que governa ao caso genitivo.

Versículos 23–24
A ordem das palavras é notável e destaca a sequência Deus, Paulo,
e um anjo. O artigo definido em τοῦ θεοῦ deve traduzir-se ao português,
porque aponta ao Deus especial ao qual Paulo serve. 1686

1685
Bauer, p. 546.
1686
Robertson, Grammar, p. 758.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1275
κεχάρισται — o tempo perfeito do infinitivo comunica a ideia que
Deus concedeu a Paulo as vidas da tripulação e dos passageiros enquanto
dure a viagem.

c. A sondagem (At 27:27–32)

27. Quando chegou a décima quarta noite, sendo nós batidos de um


lado para outro no mar Adriático, por volta da meia-noite, pressentiram
os marinheiros que se aproximavam de alguma terra.
a. O tempo. Como Lucas o demonstrou em outras partes de seu
livro, guarda minuciosa conta dos dias que passam. Aqui menciona a
décima quarta noite da viagem (quer dizer, desde que o navio zarpou de
Creta). Segundo Smith, a distância entre as ilhas de Cauda e Malta é de
ao redor de 476,6 milhas náuticas. Ele calcula que um navio do século I
desviando-se a uma médio de uma milha e meia por hora e com vento
leste-nordeste poderia cobrir a distância em treze dias. 1687 La desviación
a través del mar Mediterráneo parece haber sido en una línea recta más
que en zigzag, patrón que a menudo se presenta en ilustraciones.
b. Localização. A designação mar Adriático nos tempos do Novo
Testamento refere-se a “essa porção do Mediterrâneo que se estende de
Malta a Creta”. 1688 O nome deriva da cidade italiana Atria em Etrusca e é
usado pelo historiador Strabo.1689 Marinheiros medievais usaram o nome
Adriático para “toda a metade oriental do Mediterrâneo” (com exceção
do mar Egeu). 1690 Lucas, entonces, emplea la terminología geográfica de
sus días.
c. A terra. Os marinheiros começaram a perceber que o navio
estava se aproximando de terra. Literalmente, o texto diz que a terra se
estava aproximando deles, porque do ponto de vista dos marinheiros, é a

1687
Smith, Voyage and Shipwreck, pp. 124–26.
1688
George H. Allen y Donald H. Madvig, “Adria”, ISBE, vol. 1, p. 58.
1689
Strabo, Geography 5.1.8.
1690
Ramsay, St. Paul the Traveller, p. 334.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1276
terra a que está em movimento e não o navio. Os homens ouvem o ruído
das ondas que rompem no promontório rochoso chamado a Ponta de
Koura, uma barreira localizada na costa nordeste de Malta. Empurradas
pelas ventanias do nordeste, as grandes ondas quebrando-se contra estas
rochas produziam um ruído que podia ser ouvido à distância de 500 m.
No meio da noite, os marinheiros não podem ver nada, mas podem ouvir
o ruído e sabem que uma costa rochosa está perto. O vento já não é uma
força impetuosa e, à medida que se deslizam em direção oeste-noroeste,
o ruído lhes chega do sudeste. Com terror em seus corações, imaginam
naufragando em meio das rochas.
28. Lançando a sonda, verificaram que a profundidade era de trinta
e sete metros; pouco tempo depois, lançaram novamente a sonda e
encontraram vinte e sete metros [NVI].
Os membros da tripulação lançaram a sonda para determinar a
profundidade do mar. Na primeira vez viram que a água estava a 37 m.
de profundidade. Avançaram um pouco e voltaram a lançar a sonda, e a
profundidade era de 27 m. Devido ao fato de que o texto original tem
somente a palavra pouco, muitos tradutores suprem a palavra depois e
entendem o termo num sentido temporal (cf. Lc 22:58). 1691 Outros
estudiosos tomam o termo como indicador de distância. 1692
29, 30. E, receosos de que fôssemos atirados contra lugares rochosos,
lançaram da popa quatro âncoras e oravam para que rompesse o dia.
Procurando os marinheiros fugir do navio, e, tendo arriado o bote no
mar, a pretexto de que estavam para largar âncoras da proa.
A 500 m. da costa, os marinheiros procuraram evitar que o navio se
chocasse contra as rochas. Lançaram quatro âncoras pela popa para
assim evitar que se bamboleasse com a proa ao vento. Estas quatro

1691
NVI; GNB, NEB.
1692
RA, BJ, DHH; MLB, NAB, RSV, KJV, NKJV.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1277
1693
âncoras, duas a cada lado do navio, fixam o navio em seu lugar,
enquanto a tripulação esperava a chegada do dia.
A tentação de encontrar segurança em terra é grande para alguns
dos membros da tripulação senão para todos. Decidem abandonar o
navio sob o pretexto de lançar as âncoras de proa. Para fazer isso devem
baixar o bote salva-vidas (veja-se v. 16), que aparentemente tinha sido
guardado na proa. Os passageiros, entre os quais estão Paulo e Lucas,
agora veem a intenção dos marinheiros. Percebem que eles não têm as
habilidades náuticas para manobrar o navio com segurança para o porto,
o que lhes antecipa grandes dificuldades. Supomos que entre os
marinheiros que querem ir estão também o piloto e o capitão. Abdicaram
de sua responsabilidade e agora procuram abandonar soldados,
prisioneiros, e demais passageiros.
31, 32. Disse Paulo ao centurião e aos soldados: Se estes não
permanecerem a bordo, vós não podereis salvar-vos. Então, os soldados
cortaram os cabos do bote e o deixaram afastar-se.
De acordo com a mensagem que Paulo recebeu do anjo, a vida de
todas as pessoas a bordo foram dadas a Paulo. Ele está a cargo e,
portanto, dirige-se imediatamente ao oficial e a seus soldados. Diz-lhes
que se ele deixar que os marinheiros abandonem o navio, eles mesmos
não se poderão salvar. Embora lhes tinha dado uma mensagem de Deus
que promete que nenhuma vida se perderia, diante da traição adverte
agora aos soldados que já não pode garantir sua segurança. Esta é a
terceira vez durante o curso da viagem que Paulo fala. Agora, Júlio e os
soldados sabem que a palavra de Paulo é digna de crédito e não deve ser
tomada levianamente. Portanto, eles o escutam. Enquanto Júlio e os
soldados entram em ação, os marinheiros abandonam sua intenção de
fugir. Os soldados tomam a drástica medida de cortar as amarras e deixar
que o bote caia às águas. Tanto marinheiros como soldados estão à beira
da loucura; um grupo deseja usar o bote salva-vidas com propósitos
1693
Haenchen escreve que “antigas âncoras pesavam só 20 kg.”, Acts, p. 705 n. 7. Smith assinala que
“esses navios antigos estavam feitos para ser ancorados pela popa”. Voyage and Shipwreck, p. 132.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1278
egoístas e o outro sem pensar deixa que se perca. A perda do bote salva-
vidas significa que todos os passageiros estão exatamente na mesma
situação: todos terão que alcançar a praia nadando.

Palavras, frases e construções gregas em At 27:27–30


Versículo 27
προσάγειν — “aproximar-se. O desajeitado do texto se reflete no
surgimento de ao menos quatro variantes, das quais o infinitivo
προσηχεῖν (ressoar) é interessante. O infinitivo presente aproximar-se,
que no contexto significa “estava aproximando-os” sempre é a forma
preferida.

Versículos 29–30
φοβούμενοι — veja-se o comentário sobre o versículo 17.
ηὕχοντο — o tempo imperfeito deste verbo indica ação continuada:
“seguiam desejando”.
ὡς — com o particípio precedente χαλασάντων (baixando), que é o
ativo aoristo na construção absoluta genitiva, a partícula introduz razão
suposta: “como pretexto”.

d. O alento (At 27:33–38)

33. Enquanto amanhecia, Paulo rogava a todos que se alimentassem,


dizendo: Hoje, é o décimo quarto dia em que, esperando, estais sem
comer, nada tendo provado.
A espantosa noite cheia de acontecimentos é um tempo de espera.
Enquanto a tormenta moderou e o navio está ancorado, Paulo aproveita a
oportunidade para exortar a tripulação e os passageiros a comer algo
antes de buscar a praia. Deu-lhes a palavra do anjo de Deus de que
nenhum perecerá e que tocarão terra em alguma ilha. Ele está no controle
Atos (Simon J. Kistemaker) 1279
da situação e agora insiste com as pessoas a comer e recuperar as forças
que necessitarão para enfrentar as provocações desconhecidas que lhes
trará o dia. Percebe que os homens estiveram vigiando durante toda a
viagem, que perderam o apetite durante duas semanas devido à incerteza
e à ansiedade, e que não tiveram nem uma refeição decente. Estão
fisicamente exaustos e debilitados. Mas se comerem algo, recuperarão as
forças e poderão alcançar a praia.
34. Eu vos rogo que comais alguma coisa; porque disto depende a
vossa segurança; pois nenhum de vós perderá nem mesmo um fio de
cabelo.
Paulo dá o exemplo de estar esperançoso, expectação, fé, e
coragem. Sabe que todos serão resgatados, pelo que olha adiante, para o
que ocorrerá no dia que está pela frente. Diz: “Eu vos rogo que comais
alguma coisa; porque disto depende a vossa segurança”. Eles estão
enfrentando não a morte mas a salvação. Como lhes disse antes (v. 22)
nenhum dos que está a bordo se perderá. Inclusive vai um pouco além,
acrescentando um dito judaico: “Nenhum de vós perderá nem mesmo um
fio de cabelo”. 1694 Paulo repete as palavras exatas ditas por Jesus em Seu
discurso sobre as últimas coisas (Lc 21:18). Agora, estas palavras são
aplicadas aos marinheiros, que no curso da manhã alcançarão a praia
sãos e salvos (v. 44). Eles necessitam palavras de alento, mas também
precisam comer; a comida lhes dará forças para agir segundo as palavras
de ânimo de Paulo.
35-37. Tendo dito isto, tomando um pão, deu graças a Deus na
presença de todos e, depois de o partir, começou a comer. Todos
cobraram ânimo e se puseram também a comer. Estávamos no navio
duzentas e setenta e seis pessoas ao todo.
As palavras do versículo 35 se assemelham àquelas ditas por Jesus
no dia da alimentação dos cinco mil (Mt 14:19), e na instituição da Ceia
do Senhor (Mt 26:26). Paulo segue o costume judaico de pronunciar uma

1694
Veja-se 1Sm. 14:45; 2Sm. 14:11; 1Rs. 1:52.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1280
1695
oração antes de comer. Na presença das pessoas, Paulo adora a Deus
num ato de ação de graças. Ao fazê-lo, por implicação está animando
outros a adotar esta prática. Demonstra-lhes que pertence a Deus e serve
a Ele (v. 23).
A possibilidade de que se possa estabelecer uma semelhança entre o
ato de adoração de Paulo e a celebração da Santa Comunhão é excluída
categoricamente, com base em vários pontos:
Primeiro, o texto simplesmente menciona a oração e o partir do pão
e seu conseguinte consumo; não diz nada a respeito de beber vinho, que
é o segundo elemento na Ceia do Senhor.
Segundo, Paulo não celebraria a comunhão na presença de
incrédulos. O Texto ocidental aumenta o versículo 35 depois da cláusula
[ele] começou a comer, acrescentando as palavras [e] deu-nos também a
nós. Talvez o pronome nós se refira a Lucas e Aristarco. 1696 Mas a ceia
em si é inapropriada para celebrar o sacramento da ceia do Senhor, a
qual é observada num culto de adoração e participam dela estritamente
os cristãos que fizeram exame apropriado de suas vidas (1Co 11:28).
Terceiro, Paulo ora, parte o pão, e come sem nenhuma reserva. O
fato de convidar os marinheiros a seguir seu exemplo não quer dizer que
todos os presentes tenham entendido suas palavras e ações. Seu exemplo
de orar antes de comer demonstra a relação que mantinha com seu Deus.
Todos os marinheiros são testemunhas de sua devoção e é muito
provável que alguns tenham sido influenciados por seu exemplo de dar
graças a Deus.
Quarto, em sua análise sobre a celebração da Ceia do Senhor Paulo
faz uma clara distinção entre o pão que se come para satisfazer a fome e

1695
Os judeus não comiam sem antes dar graças a Deus pelo alimento (SB, vol. 1, pp. 685–87). Os
cristãos também dão graças a Deus pela provisão diária de comida.
1696
Metzger, Textual Commentary, p. 499.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1281
o pão que se serve na comunhão (veja-se 1Co 11:20–34). Neste caso, o
propósito ao comer é fortalecer o corpo físico das pessoas.1697
Quando Paulo parte o pão e come, outros seguem seu exemplo.
Lucas faz notar que a ação de Paulo os anima e eles fazem o mesmo.
Assim, chegamos à conclusão que alcançou seus objetivos nos planos
espiritual, psicológico e prático. Neste ponto particular, Lucas acrescenta
que o número total de pessoas a bordo era de 276. 1698 Não estamos em
condições de dizer a razão de Lucas prover, precisamente aqui, essa
informação. Talvez o capitão e o centurião tenham desejado fazer uma
chamada final antes de abandonar o navio.
38. Refeitos com a comida, aliviaram o navio, lançando o trigo ao
mar.
O capitão e sua tripulação creem na palavra de Paulo de que o navio
naufragará mas que todos se salvarão. Visto que não dispõem do bote
salva-vidas, o próprio navio terá que lhes servir como salva-vidas. E
devido à tormenta, o barco pode ter acumulado uma grande quantidade
de água do mar. Depois de haver comido, os homens se põem a trabalhar
com renovados brios e decidem aliviar o navio lançando pela amurada a
carga de trigo (veja-se v. 18). Navegando sobre a pura superfície das
ondas, o barco talvez poderia cruzar os bancos de areia ou os recifes e
alcançar terra. Tudo isso ocorre quando ainda é de noite.
Supomos que o trigo era transportado solto nas adegas do barco.
Possivelmente foi levado a bordo em sacos que foram esvaziados nas
adegas; e agora, novamente foi posto em sacos para ser lançado ao mar.
A tarefa de lançar o trigo dentro dos sacos e levá-los ao convés era
trabalho muito laborioso; certamente os homens formaram uma linha

1697
Theodor Zahn, Die Apostelgeschichte des Lucas, serie Kommentar zum Neuen Testament, 2 vols.
(Leipzig: Deichert, 1921), vol. 2, p. 837 n. 94.
1698
Os manuscritos mostram algumas variações; p.ej. o Códice Vaticano diz ao redor de setenta e
seis. Esta cifra é o resultado da duplicação de uma das letras gregas que representavam esse número.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1282
para facilitar o trabalho. A tripulação usou o traquete para carregar e
descarregar e em relativamente curto tempo puderam aliviar o navio. 1699

Considerações doutrinais em At 27:33–38


Paulo, o prisioneiro, é o homem que está no controle completo da
situação. Informa à tripulação e aos passageiros que todos se salvarão
(embora o navio se destruirá) e tocarão terra numa ilha (vv. 22–26).
Ordena ao centurião e aos soldados que proíbam a tripulação de
abandonar o navio (v. 31). E lhes diz que cobrem ânimo, que terminem
seu jejum, e comam (vv. 33–34). Aos olhos de marinheiros e soldados,
Paulo, que sobrevive a uma picada de serpente (At 28:5) e cura um
doente (At 28:8) deve ser divino.
Em nenhuma parte do relato há indicação alguma de que Paulo se
considera a si mesmo divino. Pelo contrário, é um servidor de seu Deus
(v. 23); adora a Deus (v. 35); e, mesmo quando a tormenta aumenta, crê
firmemente em cada palavra que Deus lhe revelou. No meio do furacão,
é uma rocha de fé. Sua confiança em Deus é inamovível. Crê em Deus e
Sua palavra e desafia todos a imitarem seu exemplo.

Palavras, frases e construções gregas em At 27:33–38


Versículos 33–34
ἄχρι οὗ — a conjunção serve como uma preposição e governa o
caso genitivo do pronome relativo. O relativo é um antecedente no
substantivo provido χρόνου (tempo): “até o tempo em que”.
προσδοκῶντες — “esperando”. As traduções variam segundo a
cláusula na qual aparece este gerúndio. A cláusula é um modismo que
significa “hoje é o décimo quarto dia que vocês estiveram vigiando”. 1700

1699
Refira-se a Haenchen, Acts, p. 707 n. 5; veja-se também Rougé, Ships and Fleets, p. 74.
1700
Blass e Debrunner, Greek Grammar, #161.3. Veja-se também Robert Hanna, A Grammatical Aid
to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p. 249.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1283
ὑμετέρας — em lugar do pronome pessoal ὑμῶν, Paulo usa o
adjetivo possessivo para ênfase: “sua própria”.

Versículo 38
ἐκούφιζον — o tempo imperfeito do verbo aliviar é inceptivo: “eles
começaram a aliviar”. 1701

e. O naufrágio (At 27:39–44)

39, 40. Quando amanheceu, não reconheceram a terra, mas


avistaram uma enseada, onde havia praia; então, consultaram entre si se
não podiam encalhar ali o navio. Levantando as âncoras, deixaram-no ir
ao mar, largando também as amarras do leme; e, alçando a vela de proa
ao vento, dirigiram-se para a praia.
Naqueles dias, Malta encontrava-se fora das rotas dos navios. Se
estas passavam pela ilha, ele os fariam pela costa sul ou atracariam no
porto de Valletta. Quando chegou a manhã e os marinheiros puderam
distinguir os contornos da terra, não puderam identificar o lugar. Não
reconheceram nem a baía, nem a praia, nem a costa. Viram que a baía
tinha uma praia arenosa plana que, em sua opinião, seria um lugar seguro
para atracar o navio. Uma praia arenosa era absolutamente preferível a
uma costa rochosa que teria feito o barco em pedaços.
Do ponto de vista de olhar em que estavam a bordo do navio, não
puderam determinar se na baía havia bancos de areia ou recifes. Teriam
que determinar como evitá-los, se havia, quando entrassem na própria
baía. Na verdade, eles não podiam ver que na entrada nordeste da baía
estava a ilha Salmonetta. Só depois que entraram na baía perceberam a
existência de um canal entre Salmonetta e Malta. A água que fluía
através do canal “de não mais de 110 m de largura” unia as águas da

1701
Cf. H. E. Dana e Julio R. Mantey, A Manual Grammar of the Greek New Testament (1927; Nova
York: Macmillan, 1967), p. 190.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1284
1702
baía. A palavra grega dithallason (v. 41) na verdade significa
“tendido entre dois mares”. Claramente, Lucas diz que o ponto do
naufrágio foi em “um lugar com mar por ambos os lados” (v. 41, BJ). A
propósito, esta é uma clara indicação de que Lucas foi uma testemunha
ocular que sem lugar a dúvida informou do local exato onde ocorreu o
naufrágio. 1703 Ele apresenta suas observações pessoais destes detalhes
topográficos. Tradutores modernos, no entanto, interpretam a palavra
dithallason em termos de resultado, quer dizer, o recife criado pelos dois
mares. Hoje, as ondas lavaram os bancos de areia que havia no sítio onde
tocaram terra os passageiros e tripulantes.
A tripulação fez bem quando decidiu cortar as amarras que
ancoraram o navio. O que eles queriam era manter a proa diante da
entrada da baía; se tivessem levantado uma âncora após a outra, teriam
deixado ao navio exposto à costa rochosa. Por isso, cortaram as amarras
e abandonaram as âncoras no fundo do mar. Simultaneamente com isso,
lançaram os lemes que as cordas tinham mantido em seu lugar durante a
tormenta. A cada lado do barco havia um leme em forma de um remo de
direção que era baixado até a água através de um escovém. Estes remos
eram levantados da água quando o navio estava ancorado “para evitar
que se movessem”. 1704 Ao mesmo tempo os homens içavam a vela no
traquete e conduziam o navio rumo à praia. Todo este trabalho deve ter
sido feito com extrema precisão.
41. Dando, porém, num lugar onde duas correntes se encontravam,
encalharam ali o navio; a proa encravou-se e ficou imóvel, mas a popa se
abria pela violência do mar.
Uma vez dentro da baía, o navio se chocou contra um recife e
encalhou. Possivelmente, a tripulação não teve tempo de manobrar o

1702
Smith, Voyage and Shipwreck, p. 140.
1703
Conzelmann afirma que Lucas tomou seu material de um diário de viagem “de um companheiro
de Paulo”, Acts, p. 221. Em Acts, p. 710, Haenchen está de acordo. Martin Dibelius faz notar “que
uma descrição secular da viagem e naufrágio serviu como padrão, base ou fonte”. Studies in the Acts
of the Apostles (Londres: SCM, 1956), p. 205.
1704
Casson, Ships and Seamanship, p. 228.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1285
navio ao redor do recife ou pensou que a corrente poderia levá-los em
cima dele. No que hoje se conhece como a Baía de São Paulo, a corrente
arrasta partículas de areia e barro que formam depósitos de lama. No
lugar onde se juntam as duas correntes (“no lugar onde se juntam os dois
mares”; veja-se o comentário sobre o v. 40), formou-se um recife e o
fronte do navio ficou entupido no barro. Mas a popa, exposta ao embate
das ondas, não pôde resistir o tamborilar e começou a partir-se. Os
homens correram rapidamente rumo à proa em busca de segurança e para
manter-se secos. Mas todos sabiam que teriam que abandonar o barco e
nadar até a praia.
42, 43. O parecer dos soldados era que matassem os presos, para que
nenhum deles, nadando, fugisse; mas o centurião, querendo salvar a
Paulo, impediu-os de o fazer; e ordenou que os que soubessem nadar
fossem os primeiros a lançar-se ao mar e alcançar a terra.
Nos tempos antigos, dizia-se aos soldados que quando eram
atribuídos a custodiar prisioneiros condenados, deviam pagar com a
própria vida se um dos prisioneiros escapava (veja-se, p. ex., At 12:19).
A lei romana estipulava que se um prisioneiro escapasse, seu guarda
devia sofrer a pena que era atribuída ao réu. 1705 Por isso, na confusão do
naufrágio, os soldados pensaram em termos de sua segurança pessoal
quando tivessem que informar em Roma. Calvino diz que “a ingratidão
dos soldados teria sido muito cruel” de contemplar a morte de Paulo. 1706
Ele lhes tinha dado a boa notícia de que conservariam suas vidas; tinha-
lhes animado quando haviam perdido toda esperança de salvar-se; e lhes
tinha dado sã advertência e uma exortação a alimentar-se. Estes soldados
demonstraram muita crueldade ao planejar dar morte aos prisioneiros.
Deus governa e prepondera. Ele faz com que Júlio, o centurião,
detenha os soldados em sua decisão de executar os presos. Lucas diz que
Júlio queria poupar Paulo. Ao longo deste capítulo e o seguinte (cap. 28),

1705
Registrado no Códice Justiniano (9.4.4). Veja-se Bruce, Acts (texto grego), p. 528; Hemer, Book
of Acts, p. 152.
1706
Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 296.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1286
assinala que o oficial tinha uma atitude favorável para com Paulo. Tinha-
lhe permitido abandonar o barco em Sidom para visitar seus amigos (v.
3) e lhe tinha permitido permanecer durante uma semana com os cristãos
em Putéoli antes de seguir viagem a Roma (28:14). Lucas não dá
indicação alguma de que Júlio tenha chegado a ser crente, pelo que nos
ocorre pensar que o que ele queria era expressar sua gratidão a Paulo
pela liderança que tinha mostrado no meio da tormenta. Júlio tinha visto
literalmente o cumprimento da profecia divina que todos a bordo
encontrariam segurança numa ilha mesmo quando o navio se destroçaria.
Ele sabia que Deus havia concedido a Paulo as vidas de todos os homens
do barco (v. 24). Poupar a vida a Paulo significava poupar a vida dos
demais prisioneiros.
Desta maneira, Júlio disse a seus soldados que não matassem
ninguém. E assinalou aos prisioneiros que pudessem nadar que saltassem
ao mar e alcançassem a praia. Sabia que ninguém poderia escapar da
ilha. Certamente a distância até a praia era curta e a tormenta já tinha
amainado.
44. Os outros teriam que salvar-se em tábuas ou em pedaços do
navio. Dessa forma, todos chegaram a salvo em terra [NVI].
Todos os que a bordo não pudessem nadar, procuraram prover-se de
qualquer objeto flutuante que lhes permitisse alcançar a praia. Agarrados
a estes restos do naufrágio, mantendo a cabeça fora da água, deixaram
que o vento os levasse até a praia. Lucas usa a palavra tábuas. Estas
tábuas provavelmente tinham saído da adega do navio, onde tinha estado
armazenado o trigo. 1707 Quando o navio começou a desintegrar, as tábuas
constituíram um recurso para os náufragos, que as usaram como balsas
para chegar a terra.
Depois da breve descrição sobre ao abandono do barco, Lucas
simplesmente diz que todos chegaram sem novidade à praia. Assim, a
palavra do anjo (vv. 22–26) cumpriu-se literalmente. Uma pergunta

1707
Rougé, Ships and Fleets, p. 71.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1287
interessante para a qual não temos resposta, é como pôde Lucas manter
secos seus escritos.

Palavras, frases e construções gregas em At 27:39–44


Versículo 39
κατενόουν — o uso do imperfeito refere-se não ao objeto percebido
e sim às pessoas que observam: “um depois de outro percebeu”.
ἐξῶσαι — o infinitivo aoristo do verbo ἐξωθέω (eu impulsiono,
guiar) é um termo náutico que significa “conduzir um navio até a praia”.

Versículo 40
εἴων — do verbo ἐάω (eu deixo, permitir), este imperfeito denota
ação voluntária: “eles os deixaram [ser]”.
ἅμα — o advérbio indica ação simultânea: “ao mesmo tempo”.
τῇ πνεούσῃ — o substantivo αὕρᾳ (ar matutino) deve ser
complementado: “o vento matinal que soprava”.
κατεῖχον — este é um termo náutico com τὴν ναῦν (o navio). O
verbo significa “dirigir o navio para o imperfeito é inceptivo.

Versículos 43–44
ἐκώλυσεν — “ele preveniu”. O aoristo sugere ação única com efeito
imediato. O verbo é seguido pela construção genitiva τοῦ βουλήματος (o
plano) porque os verbos de prevenção e obstrução governam o caso
genitivo.
τινων — este pronome indefinido no neutro supõe-se que se refere
aos desperdícios que flutuavam perto do navio. Se for tomado como um
masculino, significaria que os nadadores não levavam em suas costas os
Atos (Simon J. Kistemaker) 1288
que não sabiam nadar. A preposição ἐπί governa o caso dativo de
“tábuas” e o caso genitivo de “algumas”. 1708

Resumo de Atos 27
Paulo e outros prisioneiros são embarcados num navio que está
prestes a sair tocando portos pela costa da província da Ásia. A cargo
dos prisioneiros vai um centurião com o nome de Júlio, que permite a
Paulo visitar seus amigos em Sidom. Dali, o navio passa diante da costa
leste de Chipre e continua sua viagem ao porto de Mirra, em Lícia. Aqui,
o centurião encontra passagem para suas tropas e prisioneiros em outro
barco que sai para a Itália. Este navio viaja lentamente a Cnido, e dali,
aproveitando o vento, navega ao lado sul de Creta e atraca na baía
chamada Bons Portos. Devido ao fato de que a estação para as viagens
seguras passou, Paulo aconselha o centurião, o piloto, e o capitão que
fiquem ali. Mas sua advertência é rejeitada e a tripulação decide navegar
para o leste, ao porto de Fenice.
Um furacão, chamado o “Nordeste” se desata através de Creta,
alcança o navio e o dirige em direção sudoeste rumo à ilha de Cauda.
Aqui, a tripulação assegura o bote salva-vidas, levando-o ao convés,
rodeia o navio com cordas, e chega a lançar a carga e os artefatos pela
amurada. Quando a tormenta açoita por muitos dias, as pessoas a bordo
perdem toda esperança de serem resgatada.
Paulo os admoesta a que tenham ânimo. Diz-lhes que um anjo do
Deus a quem Ele pertence e serve informou-lhe que ele, Paulo, vai
comparecer diante de César em Roma. Prediz que o navio se destruirá
mas que tocarão terra numa ilha.
Os marinheiros percebem que o navio está se aproximando de terra
e lançam as âncoras. Sob o pretexto de lançar as âncoras da proa, baixam
o bote salva-vidas e tentam sair fugindo. Paulo alerta o centurião; os
soldados cortam as cordas e assim evitam a fuga. Paulo os exorta a
1708
Consulte-se Bruce, Acts (texto grego), p. 528.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1289
comer, dá graças a Deus pelo pão que parte, e lhes dá o exemplo,
comendo. A tripulação alivia o navio lançando o trigo ao mar.
Quando chega o dia, ninguém reconhece a terra que têm pela frente.
Veem uma baía, cortam as amarras que sujeitam as âncoras, içam a vela
principal, e dirigem o navio rumo à baía. O navio se choca contra um
recife, fica varado na areia, e começa a desintegrar-se à medida que as
ondas se chocam contra ele. O centurião adverte os soldados a não
matarem os prisioneiros, permite que os que possam nadar se lancem à
água e vão a terra, e a outros diz que se dirijam rumo à praia utilizando
tábuas e outras partes do navio. Todos conseguem chegar à terra sãos e
salvos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1290
ATOS 28
VIAGEM A E PERMANÊNCIA EM ROMA, parte 2 (At 28:1-31)

B. De Malta a Roma (At 28:1–31)

Em aproximadamente um terço deste capítulo, Lucas descreve dois


acontecimentos nos quais Paulo é o principal. Conta o encontro de Paulo
com uma serpente (vv. 3–6) e o ministério de cura que exerce naqueles
que estavam doentes (vv. 7–9). O resto dos três meses que Paulo
permaneceu na ilha de Malta, não diz nada.

1. Em Malta (At 28:1–10)

Os habitantes de Malta eram descendentes dos fenícios, que se


tinham estabelecido ali em séculos anteriores. Como os fenícios que
viviam nas ilhas vizinhas de Gozo e Comino, eles prosperaram no
mundo do comércio. Segundo o historiógrafo Diodoro, os fenícios
chegavam com seus navios mercantes até o oceano ocidental (o
Atlântico) e usavam os excelentes portos de Malta como lugares de
refúgio. 1709 A ilha está localizada entre Sicília e a costa da África, a 96
km. da primeira e a 290 da última. Mede 30 km. de comprimento,
contando do noroeste até o sudeste e tem uma largura de 14 km. 1710
De fato, a palavra Melita (Malta) nas línguas semíticas, faladas num
dialeto fenício pelos ilhéus, pôde ter sido uma tradução da expressão um
lugar de refúgio. Do século VI ao III a.C., a ilha foi governada pelo povo

1709
Diodorus Siculus 5.12.
1710
Tentativas de relacionar a palavra Melíta com uma ilha chamada Mljet no mar Adriático provaram
ser pouco convincentes. Veja-se a argumentação por Angus Acworth, “Where Was St. Paul
Shipwrecked? A Reexamination of the Evidence”, JTS n.s. 24 (1973): 190–93 y Colin J. Hemer, The
Book of Acts in the Setting of Hellenistic History, ed. Conrad H. Gempf (Tubinga: Mohr, 1989), p. 141
n. 115.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1291
de Cartago. No ano 218 a.C., os romanos tomaram controle dela e a
fizeram parte da província de Sicília. A administração local eles a
deixaram intacta, mas durante o reinado de Augusto, Malta foi
governada por um procurador. Na parte habitada da ilha, a população
falava latim além de seu próprio dialeto fenício. (Os que falavam um
idioma não conhecido geralmente eram chamados bárbaros. Este termo,
no entanto, não tinha uma conotação pejorativa.)

a. Expressões de amabilidade (At 28:1–6)

1, 2. Uma vez em terra, verificamos que a ilha se chamava Malta. Os


bárbaros trataram-nos com singular humanidade, porque, acendendo
uma fogueira, acolheram-nos a todos por causa da chuva que caía e por
causa do frio.
O fato de Lucas e o resto dos homens terem chegado ilesos a Malta
deve ter causado uma profunda impressão no escritor. Escreve
expressamente a respeito da segurança física das pessoas, e usa o
pronome em primeira pessoa nós, talvez só para referir-se aos seus
companheiros cristãos, Paulo e Aristarco. 1711 Lucas sugere que quando
Paulo e seus amigos chegaram a terra, perguntaram aos nativos o nome
da ilha. A resposta que receberam foi Melita (refúgio), nome que soou
gratamente aos ouvidos dos marinheiros do naufragado navio
alexandrino. 1712 É provável que as línguas semíticas hebraica e aramaica
e o dialeto fenício tenham sido tão similares que Paulo pôde conversar
com os ilhéus.
Em tempos antigos, os sobreviventes de algum naufrágio que
chegavam a terra em praias desconhecidas esperavam encontrar-se ou
com a morte ou com a escravidão. Isto não ocorreu em Malta, devido ao
1711
Nos versículos seguintes, os pronomes nós e nos parecem referir-se aos crentes (vv. 7, 10).
Algumas versões baseadas no Texto majoritário, têm no v. 1 a forma eles.
1712
Consulte-se Theodor Zahn, Die Apostelgeschichte des Lucas, série Kommentar zum Neuen
Testament, 2 vols. (Leipzig: Deichert, 1921), vol. 2, pp. 841, 844. Veja-se também A. M. Honeyman,
“Two Semitic Inscriptions from Malta”, PEQ 93 (1961): 151–53.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1292
fato de que desde 218 a.C. a ilha tinha pertencido a Roma. Quando os
ilhéus viram um centurião e soldados atracando à ilha, foram o
suficientemente sábios para mostrar hospitalidade e amabilidade aos
representantes de Roma. Lucas diz que “os ilhéus nos mostraram uma
amabilidade incomum ao nos receberem”. Esta afirmação é significativa
se lembrarmos que a população nativa tinha tido que satisfazer as
necessidades físicas de 276 pessoas (At 27:37) durante três meses (v.
11). Casualmente, a tradução da palavra ilhéus é um equivalente
dinâmico para o termo grego barbaroi. O grego difere do derivativo em
português bárbaros, o qual tem uma decidida conotação negativa. Os
gregos referiam-se a todos os estrangeiros como barbaroi. O uso que
Lucas faz do termo para os habitantes de Malta deve ser entendido nessa
luz, e está isento de qualquer depreciativo torcido.
Naquela manhã em particular de outubro, quando o vento soprou do
nordeste e começou a chover, as pessoas, cobertas com suas vestes
empapadas tiritava de pé na praia. Ao ver a lamentável condição dessa
gente, os ilhéus se compadeceram deles e acenderam uma grande
fogueira para que pudessem secar suas vestes e esquentar-se.
3. Paulo ajuntou um monte de gravetos; quando os colocava no fogo,
uma víbora, fugindo do calor, prendeu-se à sua mão [NVI].
Uma fogueira deve ser alimentada constantemente com mais
combustível. Paulo dá um exemplo, provê liderança, e demonstra sua
disposição de ajudar os ilhéus a buscar ramos para alimentar a fogueira.
O povo percebe imediatamente que Paulo é mordido por uma serpente
que estava no meio da lenha. A serpente, aquecida pelo calor do fogo,
defende-se mordendo a mão que a lança às chamas.
Embora na atualidade Malta não tenha serpentes venenosas,
indubitavelmente naqueles dias, sim, havia, especialmente nas partes de
bosque da ilha. Persiste a pergunta sobre se a serpente que mordeu a mão
de Paulo era ou não venenosa. Alguns estudiosos creem que o réptil era
uma serpente comum que vive no meio da erva e que mesmo podendo
Atos (Simon J. Kistemaker) 1293
atacar o homem, não lhe faz mal. A reação dos nativos é diferente, pois
esperam que Paulo morra.
4. Quando os habitantes da ilha viram a cobra agarrada na mão de
Paulo, disseram uns aos outros: “Certamente este homem é assassino,
pois, tendo escapado do mar, a Justiça não lhe permite viver” [NVI].
a. “Os habitantes da ilha viram a cobra agarrada na mão de Paulo,
disseram uns aos outros”. Neste versículo, Lucas registra os comentários
dos ilhéus. Supomos que se na verdade Paulo podia comunicar-se com
eles, devem ter estado muito atentos a tudo o que ele fazia. Devido ao
fato de que os soldados o custodiavam, sabiam que se tratava de um
prisioneiro em caminho para Roma. Não há evidência que estivesse
algemado durante a viagem e a permanência em Malta. Por tal motivo,
os ilhéus devem ter conhecido seu status por outras indicações. 1713
b. “Certamente este homem é assassino”. Os malteses fazem uma
rápida avaliação da situação de Paulo. A seus olhos, este simpático judeu
devia ser um criminoso culpado de homicídio. Ao referir-se a ele como
“este homem” lhe expressam sua recriminação.
“Tendo escapado do mar, a Justiça não lhe permite viver”. 1714 Os
nativos chegam à conclusão de que sua deusa Justiça está castigando um
malfeitor. Este criminoso pode ter escapado de morrer no mar, mas aqui
não poderá evitar o veneno de uma serpente. (Talvez os ilhéus
conheciam uma história a respeito de um marinheiro quem depois de ter
sobrevivido a um naufrágio e chegado são e salvo à uma praia de Líbia,
foi fatalmente mordido por uma serpente). 1715 Em sua opinião, Paulo
morrerá logo, agora que recebeu sua sentença pela deusa Justiça.
5, 6. Porém ele, sacudindo o réptil no fogo, não sofreu mal nenhum;
mas eles esperavam que ele viesse a inchar ou a cair morto de repente.

1713
John Albert Bengel afirma que os ilhéus “viram suas cadeias”. Gnomon of the New Testament, ed.
Andrew R. Fausset, 5 vols. (Edimburgo: Clark, 1877), vol. 2, p. 728.
1714
Hans Conzelmann póe em dúvida a veracidade histórica deste relato; diz que “o escritor põe suas
próprias palavras em boca dos nativos”. Acts of the Apostles, trad. por James Limburg, A. Thomas
Kraabel, e Donald H. Juel (1963; Filadelfia: Fortress, 1987), p. 223.
1715
Statillius Flaccus Palatine Anthology 7.290.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1294
Mas, depois de muito esperar, vendo que nenhum mal lhe sucedia,
mudando de parecer, diziam ser ele um deus.
Paulo é um homem que confia plenamente em que seu Deus o
protege de todo perigo. Conhece a palavra de Jesus: ele tem autoridade
para pisotear serpentes e nada o danificará (Lc 10:19; veja-se Mc 16:18).
ele crê que se apresentará diante do tribunal de César em Roma. Uma
mordida de serpente não o deterá.
Quando diante dos marinheiros e passageiros do cargueiro
alexandrino que naufragou predisse que todos se salvariam e que
chegariam a uma ilha embora o barco se destruiria, Paulo provou ser um
homem de Deus. Agora, na presença da população nativa de Malta ao
sacudir a serpente que lhe mordia a mão e lançá-la ao fogo sem sofrer
dano algum, demonstra que é um homem de Deus. Tanto no mar como
aqui, em terra, Paulo realiza extraordinárias proezas para indicar que é
um servo de Deus. 1716 A mordida da serpente não é um acidente fortuito,
mas é um incidente divinamente dirigido no qual Deus desdobra Seu
poder e soberania.
Quando uma serpente venenosa morde, seu veneno entra no sangue,
destrói os vasos capilares e provoca uma hemorragia interna maciça. A
área afetada começa a inchar e, se o veneno for suficientemente
poderoso, a vítima morrerá quase instantaneamente. Portanto, as pessoas
que rodeiam Paulo esperam ver qual será o efeito do veneno. Porém nada
ocorre, e Paulo continua aquecendo-se ao fogo e secando suas vestes.
Depois de uma longa espera e não vendo nada incomum em sua
condição física, as pessoas ali perto do fogo começam a pensar de
maneira diferente. Os ilhéus já não o veem como um criminoso ou como
uma pessoa qualquer, mas o veem como um deus. Neste sentido não
foram muito diferentes os gentios de Listra que, depois Paulo ter curado
um paralítico, consideraram que ele e Barnabé eram deuses gregos (At
14:12). A diferença entre o episódio de Listra e leste de Malta é a
1716
Consulte-se João Calvino, Commentary on the Acts of the Apostles, ed. David W. Torrance e
Thomas F. Torrance, 2 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1966), vol. 2, p. 298.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1295
ausência de adoração. Se os malteses tivessem demonstrado qualquer
reverência errada para com ele, Paulo certamente os teria reprovado e
lhes teria dito que adorassem unicamente a Deus.

Considerações doutrinais em At 28:1–6


Marinheiros e soldados a bordo do navio não se expressam em
termos religiosos como o fizeram os marinheiros nos dias de Jonas. Ao
contrário, os habitantes de Malta expressam sua devoção religiosa ao
referir-se à sua deusa Justiça, falam de retribuição divina, e consideram
que Paulo é um deus. Everett F. Harrison se pergunta como não viram
nada estranho em que um deus estivesse sob custódia humana. 1717
Geralmente, os escritores do Novo Testamento unem a fé à
realização e efeitos de milagres. Quer dizer, um milagre ocorre quando
uma pessoa pela fé o realiza e quando as testemunhas respondem a ele
pela fé. Na ilha de Malta, Paulo demonstra sua fé no poder protetor de
Deus, mas Lucas não diz se aqueles que o presenciam chegaram a ter fé
em Cristo. Podemos supor que Paulo usou cada oportunidade para
ensinar às pessoas o evangelho de Cristo Jesus. No entanto, não temos
evidência de que em Malta tenha nascido uma igreja cristã.

Palavras, frases e construções em grego em At 28:1–6


Versículos 1–2
διασωθέντες — a milagrosa libertação do tempestuoso mar deve ter
produzido um grande impacto em Lucas. Repetidamente usa o verbo
composto διασῴζω (eu resgato) para fazer notar que Paulo e seus
companheiros prisioneiros foram salvos (At 27:43), que todos chegaram
sãos e salvos (At 27:44), que Lucas e seus amigos foram salvos (At 28:1)
e que Paulo foi salvo do mar (At 28:4).

1717
Everett F. Harrison, Interpreting Acts: The Expanding Church, 2ª. ed. (Grand Rapids: Zondervan,
Academie Books, 1986), p. 424.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1296
Μελίτη — alguns manuscritos usam a forma Μελιτήνη, que poderia
ser o resultado da duplicação de duas letras no contexto. 1718
οὑ τὴν τυχοῦσαν — esta é uma frase vernacular comum (At 19:11)
que significa “não o comum”, portanto, incomum. O particípio está no
aoristo (de τυγχάνω, encontrava-me).
ἐφεστῶτα — o particípio ativo perfeito de ἐφίστημι (eu estou perto)
indica que ameaçava com ou finalmente começou a chover.

Versículos 4–5
τὸ θηρίον — a forma diminutiva de θήρ (besta) é usada na Grécia,
tanto em tempos antigos como modernos, para referir-se a serpentes. 1719
μὲν οὗν — “no entanto, ou melhor, não”. Aqui, esta combinação
expressa um sentido adversativo. 1720

Versículo 6
προσεδόκων — o tempo imperfeito de προσδοκάω (eu estou
expectante, esperar) implica ação repetida e um lapso de tempo. Isto é
reforçado pela frase ἐπὶ πολύ (depois de um longo tempo) e pelo
gerúndio do verbo.
πίμπρασθαι — um termo médico no infinitivo passivo que quer
dizer tanto “queimar-se pela febre” como “inchar”. No Novo Testamento
aparece só aqui, mas veja-se Números 5:21, 27.

1718
Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 3ª. ed. corr. (Londres e
Nova York: Sociedades Bíblicas Unidas, 1975), p. 500.
1719
Bauer, p. 361; Lake e Cadbury, Princípios, vol. 4, p. 342.
1720
C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament Greek, 2ª. ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1960), p. 163.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1297
b. A amabilidade é retribuída (At 28:7–10)

Lucas registra dois fatos que ilustram a amabilidade em Malta. Um


é a forma em que os ilhéus recebem à empapada tripulação e
passageiros. Os malteses se mostram muito amáveis com Paulo, seus
amigos, e outros. O segundo tem que ver com o ministério de cura que
Paulo estendeu entre os doentes da ilha. Num sentido, Paulo retribui a
amabilidade devolvendo a saúde aos doentes.
7, 8. Perto daquele lugar, havia um sítio pertencente ao homem
principal da ilha, chamado Públio, o qual nos recebeu e hospedou
benignamente por três dias. Aconteceu achar-se enfermo de disenteria,
ardendo em febre, o pai de Públio. Paulo foi visitá-lo, e, orando, impôs-lhe
as mãos, e o curou.
Notemos os seguintes pontos:
a. O homem. Não sabemos quanto tempo passou entre as boas-
vindas na praia (vv. 1–6) e o convite à casa do governador (v. 7). Lucas
parece dar a impressão que imediatamente depois de sua chegada, Paulo
foi apresentado à pessoa que governava na ilha. Aparentemente, Paulo e
seus amigos foram levados à casa desta autoridade.
O nome Públio é um nome e não um sobrenome. Lembre-se que,
como se falou no caso de Cláudio Lísias (veja-se cap. 22 n. 1415), um
cidadão romano normalmente tinha três nomes. É possível, porém não se
pode provar, que Públio e Lucas tenham desenvolvido uma estreita
amizade de modo que um ao outro se chamaram por seus primeiros
nomes. 1721 Mais provável é que na cultura daqueles dias as pessoas
fossem conhecidas por seus primeiros nomes. Este é o caso em muitos
lugares no mundo no dia de hoje.
Públio é chamado o (homem) principal da ilha. O termo principal
indica que ele era a máxima autoridade. A expressão não precisa ser
interpretada como um título de um funcionário oficial de Roma, mas

1721
Veja-se Zahn, Apostelgeschichte des Lucas, vol. 2, p. 846 n. 5.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1298
pelo contrário pode referir-se a um benfeitor de várias causas
filantrópicas. 1722 Públio parecia preencher a posição de um benfeitor ao
receber a Paulo e seus companheiros em sua casa e hospedá-los por três
dias.
Era um homem de meios econômicos, visto que a ele pertenciam as
terras que rodeavam a praia a qual chegaram os náufragos. Certamente
tinha casas e outros edifícios onde os extraviados poderiam encontrar
refúgio. Mesmo ele pertencendo à classe social abastada, não se esperava
que hospedasse e alimentasse a 276 pessoas. Lucas indica que a
hospitalidade que brindou a Paulo e seus amigos durou três dias. Depois,
os ilhéus tinham feito arranjos para hospedá-los.
b. O pai. A amabilidade dos ilhéus em geral, e de Públio em
particular achou eco em Paulo e seus companheiros. Supomos que
Lucas, em sua condição de médico, não teve falta do que fazer na ilha. E
Paulo usou seu dom de cura quando soube que o pai de Públio estava
doente com febre e disenteria. No grego, Lucas usa a forma plural de
“febre” para assinalar que o paciente sofria de repetidos ataques de febre.
(O mal, conhecido agora como a febre de Malta, é causada pelo leite das
cabras malteses. Autoridades médicas puderam receitar o tratamento
adequado e medidas preventivas.)
Paulo cura o pai de Públio, orando por ele e lhe impondo as mãos.
Em outras palavras, não é Paulo mas Cristo, cujo nome invoca, que cura
o doente (cf. Lc 4:38). Paulo segue a prática de orar pela restauração
(veja-se At 9:40). De novo, ocorre um milagre devido à força da fé de
Paulo em Cristo. Lucas não registra nada que nos permita conhecer a
reação do homem ao milagre. Só diz que o pai de Públio recebeu a cura.
9. À vista deste acontecimento, os demais enfermos da ilha vieram e
foram curados.
A notícia sobre a cura do pai de Públio correu de boca em boca,
com o resultado que muitos doentes vieram à casa onde Paulo se alojava.
1722
Colin J. Hemer, “First Person Narrative in Acts 27–28”, TynB 36 (1985): 79–109, esp. p. 100.
Veja-se também seu Book of Acts, p. 153 n. 152.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1299
Não podemos saber quantos pacientes chegaram, mas vemos um paralelo
direto com o relato da cura que faz Jesus da sogra de Pedro em
Cafarnaum (Mc 1:30–31). Depois que Jesus a curou, na noite daquele dia
todos os doentes e endemoninhados de Cafarnaum vieram a Ele
buscando cura (Mc 1:32–34). Assim como Jesus teve um ministério de
cura e ensino, também Paulo em seu ministério curou os doentes e
pregou a Palavra de Deus. Sabemos que estes milagres foram meios
eficazes para levar as pessoas ao conhecimento de Deus. E sabemos que
o ato de pregar o evangelho não é infrutífero mas alcança os propósitos
de Deus (Is 55:11).
10. Eles nos prestaram muitas honras e, quando estávamos para
embarcar, forneceram-nos os suprimentos de que necessitávamos [NVI].
As pessoas que tinham sido curadas desejavam expressar seu
agradecimento a Paulo e seus companheiros. Assim, os ilhéus lhes
expressaram seu respeito (cf. 1Tm. 5:17), não pagando dinheiro pelo
ministério de cura de Paulo, e sim lhes oferecendo presentes.
Quando Paulo e seus amigos chegaram a Malta, não traziam senão
as roupas empapadas que usavam. Quando continuaram viagem,
fizeram-no carregando muitos presentes em roupa e provisões que os
habitantes de Malta lhes ofereceram. Em suma, quando chegou o tempo
para que Paulo, Lucas, e Aristarco partissem, os malteses lhes supriram
com tudo o que necessitavam para a parte da viagem que restava por
fazer. Assim, os ilhéus expressaram seus agradecimentos por tudo o que
Paulo e seus amigos tinham feito e dito enquanto foram seus hóspedes
em Malta.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1300
Palavras, frases e construções gregas em At 28:7–10
Versículo 7
τοῖς — deveria ser suprido o substantivo μέρεσιν (partes). A própria
frase é prolixa: “nas partes ao redor do lugar”, que na verdade quer dizer,
“na vizinhança desse lugar”. 1723
ἡμέρας — este é o acusativo de tempo ou duração: “por três dias”.
συνεχόμενον — o gerúndio passivo literalmente significa “sendo
presa por” ou “sendo atormentado pela construção gramatical faz da
enfermidade o sujeito, e do doente, o objeto. Em nosso idioma é o
reverso; faz do paciente o sujeito, e da aflição, o objeto; quer dizer, nós
temos febre, resfrio, ou dor de cabeça.

Versículo 10
τιμαῖς ἐτίμησαν — “honraram-nos com honras”. O verbo e o
substantivo têm a mesma raiz. A combinação, embora não seja comum,
aparece em outras partes. 1724
Uns poucos manuscritos acrescentam a frase o tempo todo que
fomos hóspedes depois da primeira cláusula no versículo. A frase, no
entanto, é um agregado que resulta redundante.

2. A Roma (At 28:11–16)

Perto do final da estada de Paulo em Éfeso, expressa seu desejo de


visitar Roma (At 19:21; veja-se Rm 1:11, 15). Por então, ele não tem a
menor ideia de que antes de chegar a Roma terá que suportar prisão e um
naufrágio. Mas depois de passar três meses na ilha de Malta, sabe que
chegou o dia de completar a última parte de sua viagem.

1723
Moule, Idiom-Book, p. 62.
1724
Cf. Josefo Antiguidades 20.3.3 [68].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1301
11. Ao cabo de três meses, embarcamos num navio alexandrino, que
invernara na ilha e tinha por emblema Dióscuros.
Tripulação e passageiros do naufrágio passaram os meses de
novembro, dezembro e janeiro em Malta. Quando na primeira semana de
fevereiro começava a sopro o vento do sul 1725 os barcos que tinham
buscado refúgio nos portos de Malta se atreviam a fazer a viagem de 100
km. entre Malta e o porto da Siracusa na Sicília. Essa viagem seria
relativamente segura e de curta duração, porque o percurso podia ser
feito num só dia. Com um vento favorável do sul, um veleiro podia
manter uma velocidade dentre quatro e seis milhas náuticas por hora.
Júlio tinha averiguado num porto que tinha dado refúgio das
tormentas de inverno a um navio alexandrino. Com a chegada do bom
tempo na primeira semana de fevereiro, o capitão do navio queria
entregar quanto antes a carga de trigo. Ele levaria os seus passageiros até
Putéoli e o trigo a Porto, que era um novo porto em Óstia, na
desembocadura do rio Tibre. 1726 Esteve de acordo em levar Júlio, os
soldados, e os prisioneiros e sair imediatamente aproveitando o vento do
sul que soprava.
De passagem, Lucas menciona que o navio exibia a insígnia dos
Irmãos Gêmeos. A palavra grega dioskouroi (filhos de Zeus) refere-se a
Dióscuros, que eram os filhos gêmeos da Leda e do deus grego Zeus. Os
marinheiros consideravam a estes dois irmãos deidades patronais que os
protegeriam dos perigos do mar. Não podemos determinar qual é a razão
para que Lucas mencione estes nomes. Embora Paulo e seus amigos
rejeitassem a adoração de ídolos, podemos supor que os outros navios
em que Paulo tinha sido passageiro ostentavam insígnias similares.
12, 13. Aportando em Siracusa, ficamos ali três dias. Dali partimos e
chegamos a Régio. No dia seguinte, soprando o vento sul, prosseguimos,
chegando a Potéoli no segundo dia [NVI].

1725
Consulte-se Pliny the Eider Natural History 2.122. O dia 7 ou em 8 de fevereiro era a data mais
anterior para navegar costeando.
1726
Hemer, Book of Acts, p. 154.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1302
O fato de que o navio tenha permanecido no porto da Siracusa por
três dias, provavelmente tenha sido devido a condições climáticas
adversas. No mês de fevereiro, o tempo segue instável, de maneira que
os barcos navegariam pela costa de um porto seguro a outro,
preferivelmente em jornadas de um só dia. Portanto, com a ajuda do
vento do sul, a distância entre a Siracusa e Régio devia ser coberta num
dia. Algo do tempo no porto da Siracusa certamente foi investido na
carga e descarga de mercadoria.
A cidade de Régio está localizada no estreito de Messina e Mirra
rumo à ilha de Sicília. Para fazer o trajeto através destes estreitos
(conhecidos pelo estreito de Caríbdis e as rochas de Cila) até o porto de
Putéoli, requeria-se um vento favorável para fazer a viagem em vinte e
quatro horas. Putéoli (atual Pozzuoli), um porto na baía de Nápoles, está
a 190 km. a sudeste de Roma.
14. Ali encontramos alguns irmãos que nos convidaram a passar
uma semana com eles. E depois fomos para Roma [NVI].
Nos dias de Paulo, Putéoli era um ativo porto que prosperava graças
ao comércio que Roma realizava com o resto do mundo habitado,
especialmente os portos do Mediterrâneo oriental. Antes de que o novo
porto de Óstia, Porto, fosse construído durante o reinado do imperador
Cláudio, Putéoli era o único porto de Roma. Os viajantes que vinham do
Leste passariam por este porto para chegar à Cidade Eterna. Depois que
Júlio, seus soldados, e os prisioneiros desembarcaram, o centurião
planejou viajar a Roma por via terrestre. Esta distância podia cobrir-se
em uns cinco dias.
A viagem a Roma, no entanto, pospôs-se por uma semana
completa. Se Lucas tivesse ampliado o relato, saberíamos por que Júlio
ficou no porto de Putéoli durante sete dias. Lucas diz que Paulo foi
recebido por irmãos, quer dizer, cristãos. Sabemos que na cidade
comercial de Putéoli os judeus tinham formado sua própria
Atos (Simon J. Kistemaker) 1303
1727
comunidade. Imaginamos que os “visitantes de Roma” (At 2:10)
eram judeus que tinham ouvido o evangelho da parte de Pedro e
voltavam para Roma via Putéoli. Nesta cidade porto, a comunidade
cristã pode ter-se formado simultaneamente com a de Roma. Quando em
49 d.C. Cláudio expulsou os judeus (incluindo os cristãos) da cidade
imperial, muitos deles ficaram em Putéoli ou passaram por ali em
viagem a outras cidades.
Ao desembarcar, Paulo e seus companheiros estabeleceram contato
com cristãos que viviam ali. Os cristãos convidaram a Paulo, com
permissão de Júlio (At 27:3) e possivelmente sob custódia, a permanecer
com eles durante sete dias. Que alegria terão sentido estes crentes de ter
Paulo com eles para pregar e ensinar, especialmente no dia do Senhor
(veja-se At 20:6–7)! Os crentes também mandaram dizer aos cristãos em
Roma que Paulo faria a última etapa de sua viagem dentro de uma
semana (veja-se v. 15).
“E depois fomos a Roma”. Normalmente, os tradutores traduzem
esta breve frase “e depois fomos a Roma”. O verbo ir na cláusula fomos
a Roma significa “partimos para Roma”. 1728 (Em João 20:3 encontramos
um paralelo onde lemos que Pedro e João “foram para o sepulcro”
[NVI]. O texto usa o verbo ir, mas o significado em seu contexto é que
os dois discípulos “saíram para o sepulcro”.)
A ênfase na oração está nas primeiras duas palavras e depois. Paulo
e seus companheiros foram confortados pelos cristãos locais e souberam
que se havia informado aos irmãos de Roma de sua iminente chegada.
Em seu momento, os cristãos ali teriam que receber a Paulo e prover
para ele.

1727
Josefo Guerra Judaica 2.7.1 [104]; Antiguidades 17.12.1 [328]. Os gregos chamavam à cidade-
porto Dicaearchia. Veja-se Josefo Vida 16; Strabo Geografia 5.4; 17.1.
1728
Cf. as seguintes traduções: “Então para Roma nós fomos” (MLB), “E então a Roma” (NEB), “E
assim nós fomos para Roma” (NKJV).
Atos (Simon J. Kistemaker) 1304
15. Tendo ali os irmãos ouvido notícias nossas, vieram ao nosso
encontro até à Praça de Ápio e às Três Vendas. Vendo-os Paulo e dando,
por isso, graças a Deus, sentiu-se mais animado.
O mensageiro de Putéoli tinha alertado os cristãos de Roma que
Paulo estava em caminho para a cidade imperial. Assim, dois grupos de
crentes saíram para encontrar-se com eles a meio caminho. 1729 Um grupo
viajou até a Praça de Ápio, que está a 65 km. a sudeste de Roma; o outro
foi a um lugar chamado Três Vendas, a 48 km. a sudeste da cidade.
A Praça de Ápio era um mercado onde as pessoas descansavam de
sua longa viagem pela Via Ápia. O caminho foi chamado assim em
honra do censor Appius Claudius, quem começou sua construção no ano
312 a.C. O poeta romano Horácio descreve a Praça de Ápio como
“lotado com boteiros e ruins guardas de vendas”. 1730 Estes boteiros não
eram marinheiros mas nomes empregados em botes que transportavam
passageiros ao longo do canal através dos pântanos de Pontine. A Praça
de Ápio não era famosa precisamente pela lei e a ordem. O segundo
lugar chamava-se Três Vendas; o termo venda refere-se não só a uma
hospedaria, mas também à uma tenda ou armazém. Cícero diz em seus
escritos que às vezes se detinha a descansar aqui. 1731
Quando Paulo se encontrou com os irmãos de Roma, começou a dar
graças a Deus e se animou a continuar a viagem até Roma. Percebeu que
Deus foi fiel à Sua palavra em enviá-lo à capital do império Romano. No
fim de sua viagem, estava rodeado e atendido pelos irmãos cristãos que
lhe tinham dado as boas-vindas à cidade imperial. Paulo tinha orado
continuamente pelos cristãos em Roma, desde que lhes tinha escrito, uns
três anos antes (Rm 1:9–10). E tinha pedido aos crentes que orassem por
sua segurança em Jerusalém e durante sua viagem a Roma (Rm 15:31–
32). Não sabemos quantos crentes se encontraram com Paulo na Via

1729
Josefo escreve que toda a comunidade judaica de Roma saiu para receber um impostor que dizia
ser Alexandre, filho de Herodes, o Grande. Antiguidades 17.12.1 [324–31].
1730
Horácio Sátiras 1.5.4 (LCL).
1731
Cícero Cartas a Atico 1.31.1.; 2.10; 2.12.2; 2.13.1.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1305
Ápia, mas podemos imaginar que a prazerosa reunião tanto na Praça de
Ápio como nas Três Vendas deve ter impressionado a Júlio.
16. Uma vez em Roma, foi permitido a Paulo morar por sua conta,
tendo em sua companhia o soldado que o guardava.
Por quase dois dias, os cristãos acompanharam Paulo a Roma.
Quando chegaram, tiveram que separar-se devido ao fato de que Paulo
devia seguir sob custódia. Júlio deve ter intercedido diante das
autoridades por Paulo quando fez entrega dos prisioneiros. 1732
O relatório de Festo, que Júlio apresentou às autoridades romanas,
destaca três pontos: que Paulo era inocente de qualquer delito, que tinha
apelado para César, e que a razão para seu encarceramento era com
relação a disputa religiosas com os judeus. Além disso, é possível que o
próprio Júlio tenha comentado a conduta de Paulo durante a viagem de
Cesareia a Roma. Em sua forma concisa, Lucas escreve que “foi
permitido a Paulo morar por sua conta, tendo em sua companhia o
soldado que o guardava”. Num versículo posterior, acrescenta que a casa
era alugada pelo tempo que durasse sua detenção, quer dizer, por dois
anos (v. 30). De qualquer maneira, Paulo permaneceu acorrentado (v.
20) e um soldado o vigiava (cf. At 24:23). É provável que a cidadania de
Paulo tenha influenciado para que as autoridades lhe permitissem viver
numa casa alugada. Imaginamos que os cristãos em Roma e outros
lugares pagaram o aluguel e supriram a alimentação, vestuário e outras
necessidades de Paulo (veja-se Fp 2:25; 4:10).

1732
O Texto ocidental tem uma ampliação que adota o Texto majoritário: “Quando chegamos a Roma,
o centurião entregou os prisioneiros ao capitão da guarda”. Veja-se Metzger, Textual Commentary, p.
501; Albert Clark, The Acts of the Apostles: A Critical Edition with Introduction and Notes on
Selected Passages (1933; Oxford: Clarendon, 1970), pp. 386–88; William M. Ramsay, St. Paul the
Traveller and the Roman Citizen (1897; reimp., Grand Rapids: Baker, 1962), pp. 347–48, 362.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1306
Palavras, frases e construções gregas em At 28:11–14
Versículo 11
παρασήμῳ Διοσκούροις — esta frase não significa “marcado por
Dióscuros”. Mas, devido ao fato de que a construção é um absoluto
dativo, deveria ser traduzida, “um navio, com a insígnia de Dióscuros”,
em conformidade com os dados sobre o registro do barco. 1733

Versículos 13–14
περιελόντες — alguns manuscritos usam a forma περιελθόντες, que
traduzida quer dizer, “rodear”. Sem a letra θ, o particípio é o aoristo de
περιαιρέω e, como um termo náutico, significa “tendo levantado as
âncoras nos dois lados do navio”. Em suma, o sentido é “o navio
zarpou”. É possível que esta forma seja responsável pelas variantes. 1734
παρεκλήθημεν — como um verbo composto, este é o passivo
aoristo no sentido intensivo: “fomos hóspedes”. Tradutores preferem esta
versão àquela que diz, “fomos confortados por estar”.

3. Prisão em Roma (At 28:17–31)

Os judeus da Ásia Menor tinham sido os responsáveis pela detenção


de Paulo em Jerusalém (At 21:27–29), onde os principais judeus se
opunham a Paulo com veemência. Inclusive viajaram a Cesareia para
acusá-lo no juízo diante de Félix (At 24:1) e dois anos depois diante de
Festo (At 25:7). Quando Paulo chegou a Roma, não sabia das acusações
que os judeus locais pudessem apresentar diante de César. Assim é que
decididamente reuniu os líderes judeus num esforço por saber deles

1733
Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
Christian Literature, trad. e rev. por Robert Funk (Chicago: University of Chicago Press, 1961),
#198.7.
1734
Veja-se a Metzger, Textual Commentary, p. 501.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1307
mesmos se estavam a par de seu caso. Também, e sutilmente, prepara-os
para que escutassem o evangelho.

a. A declaração de Paulo (At 28:17–20)

17, 18. Três dias depois, ele convocou os principais dos judeus e,
quando se reuniram, lhes disse: Varões irmãos, nada havendo feito contra
o povo ou contra os costumes paternos, contudo, vim preso desde
Jerusalém, entregue nas mãos dos romanos; os quais, havendo-me
interrogado, quiseram soltar-me sob a preliminar de não haver em mim
nenhum crime passível de morte.
Num período de três dias, Paulo já se pôs em contato com os
dirigentes dos judeus em Roma e lhes pediu que fossem a sua casa.
Quais eram estes líderes judeus? Com base na informação provida pelos
historiógrafos romanos e judeus (Suetônio, Tácito, e Josefo), podemos
estimar que nos meados do século I até quarenta mil judeus viviam na
cidade imperial. 1735 Por inscrições sabemos que em Roma havia ao
menos dez sinagogas com líderes influentes. 1736 Estes líderes, então,
reuniram-se com Paulo para ouvir dele as razões de sua detenção.
Paulo se dirige a eles como “varões irmãos”, o que era uma
saudação comum nos círculos judeus. 1737
Sugere que ele, um compatriota judeu, é seu irmão. Assegura-lhes
que não fez nada contra o povo judeu nem seus costumes (At 25:8).
Declara-lhes que embora seja inocente de qualquer delito, mesmo assim
os judeus em Jerusalém o entregaram aos romanos como prisioneiro.
Não dá muitos detalhes, como mencionar nomes, nem acusa os judeus
em Jerusalém de tratá-lo injustamente. Com sabedoria evita qualquer
comentário negativo para poder ganhar a boa vontade destes líderes e
1735
Consulte-se George A. Van Alstine, “Dispersión”, ISBE, vol. 1, pp. 964–65; Leo Levi, “Italy”,
Encyclopaedia Judaica, vol. 9, p. 1116.
1736
Emil Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ (175 B.C.–A.D. 135),
rev. e ed. por Geza Vermes y Fergus Millar, 3 vols. (Edimburgo: Clark, 1973–87), vol. 3, pp. 96–100.
1737
Veja-se o texto grego de At 2:29, 37; 7:2, 26; 13:15, 26, 38; 15:7, 13; 22:1; 23:1, 6; 28:17.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1308
fazê-los receptivos ao evangelho que poderia lhes apresentar em outra
ocasião (vv. 23–28).
Inclusive tem uma palavra amável para os romanos, ao dizer que
eles o interrogaram num tribunal e não puderam encontrar culpa nem
nenhum crime que merecesse a sentença de morte. Omite dizer que tanto
Félix como Festo queriam agradar os judeus: que Félix o encarcerou
durante dois anos, e que Festo queria que fosse julgado em Jerusalém.
Pelo contrário, diz que eles estiveram dispostos a lhe dar a liberdade
(veja-se At 26:32). Num esforço por adiantar a causa do evangelho, ele
deseja evitar qualquer insinuação de confrontação entre os judeus e os
cristãos, ou entre os judeus e os romanos. E, mantendo sua prática
habitual, apresentou o evangelho “primeiro aos judeus, e logo aos
gregos” (cf. Rm 1:16). Durante seu ministério em Chipre (At 13:5, 7),
em Antioquia da Pisídia (At 13:14, 46), em Corinto (At 18:6), e em
Éfeso (At 20:21) sempre observou essa regra; agora a aplica em Roma.
Consistente com seu propósito ao escrever Atos, Lucas mostra a
extensão do evangelho, inclusive na capital. Quando Paulo estive em
Roma, pensa defender a causa de Cristo de modo que o evangelho
pudesse ser difundido livremente através de todo o império.
19. Diante da oposição dos judeus, senti-me compelido a apelar para
César, não tendo eu, porém, nada de que acusar minha nação.
Paulo estabelece somente o fato e não a causa da oposição à sua
libertação. Põe a ênfase nas palavras fui forçado; ao usar a voz passiva
evita dizer à sua audiência quem o compeliu a apelar para César, mesmo
que o contexto assinale aos judeus de Jerusalém.
Quando menciona que apelou para César, está indiretamente
dizendo que é um cidadão romano. Também está sugerindo que deseja
um juízo na presença de César. No entanto, é cuidadoso em não enfatizar
os privilégios que acompanham sua cidadania romana. 1738 Percebe a

1738
A. N. Sherwin-White, Roman Society and Roman Law in the New Testament (1963; reimp., Grand
Rapids: Baker, 1968), p. 66.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1309
alusão política e a possibilidade de que possa ser acusado de renegar sua
herança judaica.
Enfaticamente afirma, pelo contrário, que sua apelação para César
não é motivada porque busque trazer uma acusação contra os judeus
como nação. Com esta declaração, assegura aos dirigentes judeus em
Roma que não tem a intenção de causar nenhum problema. Será leal a
seu povo e não apresentará nenhuma acusação contra ele.
O Texto ocidental aumentou este versículo num esforço por
completá-lo e prover um adequado equilíbrio: “Quando os judeus
objetaram e gritavam ‘Fora com nosso inimigo!’, fui forçado a apelar
para César, não que tenha tido acusação alguma contra meu povo, mas
sim queria livrar minha alma da morte”. Tradutores são da opinião que a
origem deste texto mais breve é mais fácil de explicar que um texto mais
longo. Assinalam ao fato de que os escribas eram mais propensos a
acrescentar que a eliminar palavras.
20. Foi por isto que vos chamei para vos ver e falar; porque é pela
esperança de Israel que estou preso com esta cadeia.
Paulo conclui sua declaração geral. Mostra seu amor pelo povo
judeu ao convidar os dirigentes a que o visitem na casa que aluga. Deseja
explicar-lhes as causas de sua apelação para César, seus encarceramentos
em Cesareia e em Roma, e sua negativa de incriminar aos judeus. Supõe
que os dirigentes judeus terão algumas perguntas a respeito de seu
encarceramento, o que é evidenciado pela cadeia que leva e a presença
de um soldado romano na casa. Também quer que eles saibam que está
interessado num diálogo espiritual. Para resumir ambos os propósitos,
diz: “É pela esperança de Israel que estou preso com esta cadeia”.
Esta declaração em si mesma é muito breve, pelo que podemos
inferir por suas palavras que nesta instância, prefere pospor uma análise
detalhada do assunto. Os líderes judeus entendem a expressão esperança
de Israel como uma referência ao Messias. Numa seguinte reunião,
introduziria o ensino messiânico a respeito de Jesus, o Messias. Agora
Atos (Simon J. Kistemaker) 1310
diz aos visitantes que a causa de estar acorrentado tem suas raízes em sua
esperança comum.
Neste último comentário, e com o uso da palavra cadeia (singular),
chama a atenção à sua prisão domiciliar. Aparentemente, desfrutou de
suficiente liberdade para mover-se por toda a casa. Note-se que quando
em Jerusalém o comandante o prendeu pela primeira vez, atou-o com
duas cadeias (At 21:33) mas posteriormente as tirou ao saber que era um
cidadão romano (At 22:29).

Palavras, frases e construções gregas em At 28:17–20


Versículo 17
τοὺς ὄντας — o particípio articular com o adjetivo πρώτους
(primeiro) tem um sentido técnico: “os líderes locais dos judeus” (cf. At
5:17).
οὑδέν — este adjetivo negativo é um substantivo que se usa como
um objeto direto do particípio ποιήσας (não tendo feito nada [mau]). 1739

Versículos 19–20
οὑχ ὡς — “não como se” (veja-se 2 Jo 5). O advérbio negativo
precede ao particípio havendo, o qual é pouco comum, mas para o uso de
οὑ em lugar de μή provavelmente conta a distância entre o advérbio e o
particípio.
τοῦ ἔθνους — em quatorze lugares no Novo Testamento, o povo
judeu é chamado ἔθνος (nação), uma palavra normalmente usada pelos
gentios (veja-se, p. ex., At 10:22).
ὑμᾶς — o pronome pessoal serve como um objeto direto para o
verbo principal convidei e para os dois infinitivos ver e falar com.

1739
Robert Hanna, A Grammatical Aid to the Greek New Testament (Grand Rapids: Baker, 1983), p.
251.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1311
b. A reação dos judeus (At 28:21–22)

21, 22. Eles responderam: “Não recebemos nenhuma carta da Judeia


a seu respeito, e nenhum dos irmãos que vieram de lá relatou ou disse
qualquer coisa de mal contra você. Todavia, queremos ouvir de sua parte
o que você pensa, pois sabemos que por todo lugar há gente falando
contra esta seita” [NVI].
Os dirigentes judeus lembram que só uma década atrás (49 d.C.) o
imperador Cláudio os tinha expulso de Roma devido a algumas revoltas.
Segundo o historiógrafo Suetônio, estas tinham sido instigadas por uma
pessoa chamada Chrestos (Christos). 1740 Supõe-se que os judeus não
cristãos enfrentaram os judeus cristãos. Incapaz de entender a diferença
entre os dois grupos, Cláudio expulsou todos. Agora, diante de um líder
da fé cristã, os dirigentes judeus são cautelosos embora amáveis em sua
reação.
“Não recebemos nenhuma carta da Judeia a seu respeito”. Este é um
reconhecimento honesto da ignorância justificada. O fato de que a
hierarquia de Jerusalém não tenha enviado informação aos judeus nem às
autoridades romanas respalda a inocência de Paulo. Depois de ter
apelado para César e ser enviado a Roma, as autoridades judaicas em
Jerusalém foram da opinião que Paulo estava longe demais de Israel para
causar algum dano. Além disso, enquanto o tempo apagava a lembrança
da detenção de Paulo em Jerusalém, a oposição a Roma veio a ser o
assunto do dia.
Além disso, um juiz romano poderia considerar a ausência de um
acusador ou de uma acusação uma ofensa punível. 1741 Os judeus em
Roma desejam ser absolvidos de qualquer culpa e como resultado estão
abertos ao responder a Paulo. Assim é que honestamente admitem,
“Nenhum dos irmãos que vieram de lá relatou ou disse qualquer coisa de
mal contra você”. O que eles estão dizendo é que não ouviram nada

1740
Suetônio Cláudio 25.4.
1741
Consulte-se Sherwin-White, Roman Society and Roman Law, p. 52.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1312
sobre Paulo. Em si mesma, essa afirmação parece incongruente, porque
nós sabemos que Paulo tinha enviado sua carta aos cristãos em Roma
três anos antes. Mas os contatos entre os judeus e os cristãos
possivelmente não eram suficientemente íntimos como para que os
cristãos a compartilhassem.
Mas os dirigentes judeus estão interessados em ouvir os pontos de
vista teológicos do próprio Paulo. Estão abertos a ouvi-lo ensinar o
evangelho e explicá-lo em detalhe. Seu desejo agrada a Paulo além de
qualquer medida, porque cumpre a palavra de Jesus de que como tinha
testificado de Jesus em Jerusalém, assim o faria também em Roma (At
23:11). Agora, tem a oportunidade de proclamar a mensagem de
salvação aos dirigentes judeus que, se aceitarem o evangelho, poderão
influir em seu povo nas sinagogas locais.
“Sabemos que por todo lugar há gente falando contra esta seita”.
Lucas apresenta uma versão condensada da solicitude que os judeus
fazem. Quando usam a palavra seita, têm em mente a igreja cristã (veja-
se At 24:5, 14). A palavra por si mesma não é derrogatória. Significa
“partido” ou “escola de pensamento”, como se torna evidente em Atos e
nos escritos de Josefo; é usada para descrever os saduceus (At 5:17) e os
fariseus (At 15:5). 1742 Os dirigentes judeus falam em generalidades e
observam que o povo, chame-se judeus, opõe-se ao ensino da igreja
cristã. Mas eles estão dispostos a ouvir o que Paulo tiver que dizer.

c. A explicação de Paulo (At 28:23–28)

23, 24. Havendo-lhe eles marcado um dia, vieram em grande número


ao encontro de Paulo na sua própria residência. Então, desde a manhã até
à tarde, lhes fez uma exposição em testemunho do reino de Deus,
procurando persuadi-los a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés
como pelos profetas. Houve alguns que ficaram persuadidos pelo que ele
dizia; outros, porém, continuaram incrédulos.
1742
Josefo Antiguidades 13.5.9 [171]; Vida 10; 12; 191.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1313
Lucas está interessado em informar que Paulo pregou a um grande
número de judeus na cidade capital. É fiel a seu propósito ao escrever o
Livro de Atos (veja-se At 1:8). Porém no processo, faz falta em
descrever os detalhes relacionados com o tamanho dos quartos da casa
alugada por Paulo, a liberdade com que evidentemente contou para
receber um grande número de pessoas, e a reação dos cristãos em Roma.
Estes aspectos são pouco importantes dentro do propósito de Lucas.
Aventuramo-nos a dizer que os dirigentes judeus animaram sua gente a ir
à casa de Paulo num determinado dia, que a permissão para esta reunião
teve que ser concedido pelas autoridades romanas, e que muitos dos
judeus iam e vinham.
De novo, o centro focal é Paulo, que aproveita a oportunidade para
pregar o evangelho da manhã à noite. Supomos que se está falando do
nascer até o pôr do sol. Paulo parece ter uma tremenda energia para falar
durante horas sem descanso (veja-se At 20:7, 11). Faz lembrar Jesus e
Seus discípulos, que numa ocasião foram rodeados por uma multidão e
não tiveram tempo nem para comer (Mc 3:20).
Paulo ensina as pessoas a respeito do reino de Deus, o que é
equivalente a lhes ensinar o evangelho de Cristo. Por exemplo, quando
ensinou na sinagoga de Éfeso e no salão de conferências de Tirano, ele
ensinou as pessoas a respeito do “reino de Deus” e “a palavra do Senhor”
(At 19:8, 10). 1743 No discurso de despedida aos anciãos de Éfeso, as
frases evangelho da graça de Deus e pregando o reino significam a
mesma coisa (At 20:24–25). De igual modo, em Roma, Paulo pregou ao
povo “o reino de Deus” e procurou persuadi-los “a respeito de Jesus”
(veja-se At 28:23, 31).
Educado na Lei de Moisés e nos Profetas, Paulo abriu as Escrituras
para seus ouvintes e procurou explicar-lhes que Jesus de Nazaré é, sem
dúvida, o Messias. Assim como Jesus abriu o Antigo Testamento (a Lei

1743
Em Atos, estas duas expressões parecem ser sinônimos. Veja-se Donald Guthrie, New Testament
Theology (Downers Grove: Inter-Varsity, 1981), p. 429.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1314
e os Profetas) aos homens no caminho a Emaús, assim Paulo buscou
persuadir os judeus que Jesus tinha cumprido as profecias messiânicas
nas Escrituras (cf. Lc 24:27). Os homens de Emaús creram na palavra de
Jesus quando foram abertos seus olhos espirituais, mas em Roma, muitos
judeus não haveriam de ser persuadidos.
Os judeus em Roma conheciam e aplicavam a doutrina das obras,
porém não a doutrina da graça (cf., p. ex., Rm 4:4; 11:6). Quando Paulo
ensinou aos judeus que a entrada no reino de Deus não é pelas obras mas
pela graça, levantou oposição e uma conseguinte rejeição. Seu desejo era
que seus compatriotas pudessem ser salvos e que seu zelo por Deus
pudesse expressar-se não em termos da justiça mediante a lei mas através
da fé em Cristo (Rm 10:1–6).
Ao ensinar a respeito do nascimento, vida, morte e ressurreição de
Jesus, teve que demonstrar pelas Escrituras que Deus prometeu a vinda
do Messias. E apresenta o Messias como o Único que expiaria o pecado
do homem; reconciliaria a humanidade com Deus; adquiriria justiça
eterna; regeneraria Seu povo com Seu Espírito; faria Seus fiéis
servidores herdeiros com Cristo. 1744
Seja dito em sua honra, Paulo pôde manter a atenção de sua
audiência da manhã à noite. Alguns dos judeus aceitaram a Jesus como
seu Messias, mas outros continuaram em sua incredulidade. Através de
seu ministério, em lugares tão diversos como Antioquia da Pisídia,
Tessalônica, e Corinto, tinha experimentado a mesma coisa: alguns
creem em Jesus enquanto outros O rejeitam (veja-se At 13:43–46; 17:4–
5; 18:6–8, respectivamente).
25. Discordaram entre si mesmos e começaram a ir embora, depois
de Paulo ter feito esta declaração final: Bem que o Espírito Santo falou
aos seus antepassados, por meio do profeta Isaías [NVI].
a. “Discordaram [os judeus] entre si mesmos”. O texto sugere que a
audiência está dividida quanto à interpretação correta das Escrituras. Os

1744
Veja-se Calvino, Acts of the Apostles, vol. 2, p. 309.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1315
que não creem estão em desacordo com os que creem. Lucas diz que seu
desacordo não foi uma questão momentânea mas seguiu dividindo-os.
Os que estão em desacordo com os crentes não rejeitam Paulo mas a
Cristo, o Filho de Deus e as Escrituras que dão testemunho dEle. Por
outro lado, os judeus que creem chegam a ser parte das igrejas existentes
em Roma e assim fortalecem a comunidade cristã.
b. “[Eles] começaram a ir embora, depois de Paulo ter feito esta
declaração final”. Pouco a pouco, as pessoas começaram a sair. Mesmo
assim, Paulo deseja dirigir aos judeus não crentes uma última palavra das
Escrituras. Portanto, não é Paulo mas o próprio Deus quem tem a palavra
final para os endurecidos judeus.
c. “Bem que o Espírito Santo falou aos seus antepassados, por meio
do profeta Isaías”. A palavra que Paulo vai dizer, ele a atribui não ao
profeta Isaías mas ao Espírito Santo, que é o autor primário das
Escrituras. Se os judeus rejeitarem as Escrituras, não só estão
desdenhando a Isaías, mas também estão opondo-se ao Espírito Santo.
Em Sua palavra, Deus lhes deu as profecias messiânicas e enviou o Seu
servo Paulo para lhes explicar que Jesus cumpriu essas profecias.
Ao receber toda a evidência e logo recusar aceitar a verdade da
Palavra de Deus, os judeus estão opondo-se ao Deus vivo. Por tal razão,
Paulo firmemente declara que o Espírito Santo dirigiu-se justamente a
seus antepassados através de uma palavra do profeta Isaías. O termo
antepassados permite aos judeus refletir sobre o aspecto histórico. Esta
palavra que Isaías entregou aos seus contemporâneos Paulo agora aos
dirige a seus contemporâneos em Roma.
Ao mesmo tempo, Paulo se separa dos judeus e seus antepassados
ao usar o pronome possessivo seus. 1745 Quando Paulo convidou pela
primeira vez a sua casa aos judeus, falou de nossos pais (v. 17). Agora a
propósito evita identificar-se com os judeus não crentes, tal como o fez
Estêvão diante do Sinédrio. No princípio, Estêvão expressou sua

1745
Baseado no Texto majoritário, algumas versões da Bíblia, como a RA, usam pronome nossos.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1316
identificação com sua audiência usando o pronome inclusivo nossos na
frase nossos pais (At 7:11, 12, 15, 38, 39, 44, 45); mas quando percebeu
que sua audiência rejeitava sua apresentação, deixou de identificar-se
com eles e falou de vossos pais (At 7:51, 52).
26, 27. Vá a este povo e diga: Ainda que estejam sempre ouvindo,
vocês nunca entenderão; ainda que estejam sempre vendo, jamais
perceberão. Pois o coração deste povo se tornou insensível; de má vontade
ouviram com os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos. Se assim não
fosse, poderiam ver com os olhos, ouvir com os ouvidos, entender com o
coração e converter-se, e eu os curaria [NVI].
Observemos estes pontos destacados:
a. O cenário. Os judeus em Roma sabem que Paulo citou de Isaías
6:9–10 e conhecem o ambiente histórico destas palavras. Entendem que
Deus disse a Isaías para ir aos israelitas, cujos corações estavam
endurecidos pela incredulidade e a desobediência. Sabem que as palavras
divinas ditas por Isaías só conseguiram que o povo de Israel se afastasse
mais da salvação.
Deus disse a Isaías para ir a Israel e informar ao povo que eles
estavam sempre ouvindo, mas que não entendiam; e sempre estavam
vendo, porém nunca percebiam. Isto estava longe de ser um elogio. De
fato, foi uma dura repreensão que finalmente concluiu em juízo contra
Israel e resultou na destruição de cidades, devastação dos campos, e o
exílio do povo (Is 6:11–12). A tarefa de Isaías deve ter sido
desanimadora, mesmo que o Senhor tivesse prometido que do tronco
Deus levantaria sua santa semente (Is 6:13).
b. A aplicação. Os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas relatam
que Jesus ensinou a parábola do semeador. Em resposta a pergunta de
Seus discípulos a respeito de porquê ensinava em parábolas (Mt 13:10;
Mc 4:10; Lc 8:9), Jesus citou as palavras de Isaías 6:9–10 aplicando-as
aos incrédulos fariseus e mestres da lei (Mt 12:24; Mc. 3:22). João conta
que apesar de todos os milagres que Jesus realizou, os judeus se negaram
a crer nEle. Cita Isaías 6:10 para explicar por quê os judeus foram
Atos (Simon J. Kistemaker) 1317
incapazes de crer (Jo 12:40). Jesus observou a dureza do coração do
homem e assim pôde aplicar as palavras e o ambiente de Isaías aos
judeus de seu tempo. E Paulo volta a esta passagem quando encontra
judeus incrédulos que, depois de ter ouvido toda a exposição das
Escrituras, recusam aceitar a Jesus como o Messias (cf. o conteúdo de
Rm 9–11).
Mediante o profeta Isaías, Deus está dizendo a Israel que o povo
permitiu que seus corações se endureçam, que seus ouvidos cheguem a
ser surdos, e que seus olhos cheguem a ser cegos. Deliberadamente
cortaram suas possibilidades de arrependimento. Se não tivesse sido
assim, teriam se voltado a Deus e Ele os teria restaurado. Ao citar a
passagem de Isaías, Paulo está dizendo aos seus ouvintes que em termos
de espiritualidade, eles são iguais aos contemporâneos de Isaías.
O texto. A forma em que esta citação está escrita vem diretamente
da Septuaginta. As palavras são as mesmas de Mateus 13:14–15,
enquanto Marcos, Lucas, e João têm, em seus respectivos evangelhos,
uma versão abreviada da passagem de Isaías. O Evangelho segundo
Mateus, no entanto, está dirigido aos leitores judeus e, portanto, tem o
texto completo. De igual maneira, Paulo se dirigiu aos judeus de Roma e
quis que eles ouvissem toda a passagem da profecia de Isaías.
28. Portanto, quero que saibam que esta salvação de Deus é enviada
aos gentios; eles a ouvirão! [NVI]
Paulo acrescenta suas próprias conclusões a este ensino. Com base
na profecia de Isaías, na verdade diz: “Vocês, judeus, devem saber que a
salvação é primeiro para os judeus e logo para os gentios. Mas vocês
rejeitaram a segurança da salvação de Deus e agora Deus a oferece aos
gentios”.
Observamos duas coisas. Primeiro, Deus chamou Paulo para que
fosse um apóstolo aos gentios (At 9:15; 22:21; Gl 1:15–16; 2:8).
Segundo, através de todo seu ministério, Paulo aderiu à regra de
apresentar o evangelho primeiro aos judeus e logo aos gentios. Onde
quer que os judeus rejeitavam a pregação do evangelho, Paulo se voltava
Atos (Simon J. Kistemaker) 1318
para os gentios (veja-se, p. ex., At 13:46; 18:6). O evangelho tem uma
mensagem universal para todos os povos. Portanto, o Livro de Atos
finaliza não com uma nota negativa de judeus incrédulos recusando
aceitar o evangelho. Pelo contrário, as últimas palavras de Paulo são
positivas. Afirma que os gentios ouvirão o evangelho de salvação e por
crer em Jesus serão salvos.

Considerações doutrinais em At 28:23–28


Se observarmos o contexto histórico de Isaías proclamando a
mensagem de Deus ao povo de Israel (Is 6:9–10) e considerarmos o
ambiente do ministério de cura e ensino de Jesus, notamos um destacado
paralelo. Deus abençoou Israel de muitas maneiras, mas quanto mais
mostrou Seu amor ao povo, tanto mais se afastou dele. Mas o amor de
Deus que foi desenhado para abençoar os israelitas mudou a uma ira
divina quando eles encheram a medida de seus pecados. Franz Delitzsch
diz que “Em todo o bem que os homens fazem, o princípio ativo é o
amor de Deus; e em todo o mal que eles fazem, o princípio ativo é a ira
de Deus”. 1746 A ira de Deus culmina com o fechamento do caminho ao
arrependimento e com a pessoa entregue à sua própria destruição.
Quando em Seu ministério de cura Jesus deu vista ao cego, estava
dando cumprimento à profecia de Isaías de que Ele era o Messias (veja-
se Is 35:5; Jo 9:6–7, 35–38). Mas os judeus recusaram crer. Quando Ele
expulsou demônios, os doutores da lei e os fariseus disseram que o fazia
em nome de Belzebu, o príncipe dos demônios. Com isso, estavam
acusando Jesus de estar em conluio com Satanás (Mt 12:22–24; Mc
3:22). Logo, Jesus ensinou a doutrina do pecado contra o Espírito Santo.
Ele insinuou que os judeus que atribuíam Seus milagres de cura a
Satanás em lugar de reconhecer o poder do Espírito Santo cometiam o
pecado imperdoável (Mt 12:32; Mc 3:29). Jesus disse que essa gente

1746
Franz Delitzsch, Biblical Commentary on the Prophecies of Isaiah, trad. por James Martin, 2 vols.
(1877; Grand Rapids: Eerdmans, 1954), vol. 1, p. 201.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1319
estava no lado de fora (Mc 4:11), o que implicava que seriam excluídos
da instrução relacionada com os secretos do reino de Deus. 1747 Neste
ambiente Jesus citou as palavras de Isaías 6:9–10.
Paulo expôs as Escrituras aos judeus em Roma e no final do dia
percebeu que muitos judeus recusavam adotar as verdades messiânicas
cumpridas em Jesus Cristo. Ele sabia que este povo continuaria
endurecendo seus corações e se eliminando do Deus vivo. Em sua
opinião, estes judeus poderiam ser comparados com os ramos quebrados
de uma oliveira — a árvore de oliva representa o verdadeiro Israel —
porque tinham morrido espiritualmente. Paulo diz que devido à sua
incredulidade eles foram arrancados (Rm 11:20). Uma insistente
incredulidade leva a um coração cada vez mais duro. E a dureza de
coração leva à apostasia e ao pecado, depois do que está a morte (1Jo
5:16).

Palavras, frases e construções gregas em At 28:23–29


Versículo 23
τὴν ξενίαν — o significado primário é “hospitalidade” ou
“entretenimento”. O significado secundário é “quarto de hóspedes”, que
é a tradução preferível nos dois lugares em que aparece esta palavra no
Novo Testamento (aqui e em Fm 22).
ἐξετίθετο — o meio imperfeito do verbo ἐκτίθημι (eu explico) é
seguido por dois particípios que expressam maneira ou modo:
διαμαρτυρόμενος (por testificar) e πείθων (por persuadir). O imperfeito
indica ação continuada. Seu uso prepondera nesta seção (veja-se vv. 24 e
25).

1747
William L. Lane, The Gospel According to Mark, série New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 159.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1320
Versículos 26–27
A forma da Septuaginta difere levemente do texto hebraico na frase
introdutória: “Anda e diga a esta gente” (Is 6:9) e “Anda a esta gente e
diga ” (v. 26).
As cláusulas no versículo 27 estão na sequência literária a b c, c b
a. A sequência serve para enfatizar a mensagem.
O uso do tempo futuro ἰάσομαι (curarei) em lugar do subjuntivo
ativo aoristo ἰάσωμαι deve-se à confusão no grego das vogais ο e ω.
Estas duas letras são muito similares em seu som.

Versículos 28–29
γνωστὸν ἔστω — “que lhes seja conhecido”. Esta frase solene é
comum em discursos formais. Veja-se At 2:14; 4:10; 13:38.
No versículo 29 o Texto majoritário adotou a ampliação do Texto
ocidental: “Ditas estas palavras, partiram os judeus, tendo entre si grande
contenda” (RA). Os tradutores preferem excluir este versículo.

d. A conclusão (At 28:30–31)

Na segunda metade de Atos, Lucas apresenta Paulo como a figura


principal, até o ponto que o leitor poderia pensar que o escritor está
escrevendo uma biografia do apóstolo. Este não é o caso, porque o livro
deixa sem mencionar sua morte. Lucas compõe uma história, não de
Paulo, e sim da divulgação do evangelho. E conclui o Livro de Atos
assinalando que Paulo apresentou os ensinos de Jesus decididamente e
sem obstáculo.
30, 31. Por dois anos inteiros Paulo permaneceu na casa que havia
alugado, e recebia a todos os que iam vê-lo. Pregava o Reino de Deus e
ensinava a respeito do Senhor Jesus Cristo, abertamente e sem
impedimento algum [NVI].
Atos (Simon J. Kistemaker) 1321
a. “Por dois anos inteiros Paulo permaneceu”. Com a referência de
tempo, Lucas nos oferece a última nota biográfica de Paulo. Não nos diz
nada sobre sua libertação, as viagens que fez posteriormente, um novo
encarceramento, e sua morte. Por suas epístolas sabemos que Paulo
esperava ser libertado da prisão (veja-se Fp 1:19, 25; 2:24) e necessitaria
alojamento em Colossos (Fm 22). As epístolas pastorais incluem
referências a lugares não mencionados em Atos. Por isso, chegamos à
conclusão que deve ter viajado de Éfeso a Macedônia (2Tm 1:3; 3:14),
Nicópolis (Tt 3:12), e Trôade (2Tm 4:13). E, finalmente, em sua última
epístola escreve que sua execução está próxima (2Tm 4:6).
Se Lucas tivesse sabido da volta de Paulo à congregação de Éfeso,
certamente teria escrito uma conclusão diferente à emotiva despedida
dos anciãos de Éfeso (At 20:38). Aparentemente Lucas compôs Atos
durante o encarceramento de Paulo e o terminou pouco depois de sua
libertação (para a data de Atos, veja-se a Introdução).
Não sabemos dizer por quê Paulo esteve preso durante dois anos na
cidade capital. Estudiosos sugeriram que, devido ao fato de que durante
dois anos seus acusadores não foram a Roma para o juízo, foi deixado
em liberdade. 1748 Porém não dispomos de evidência sobre que este caso
tenha sido abandonado por não apresentar os interessados. “A tradição
romana … é que o acusador deve acusar. A proteção da pessoa acusada
não radica na provisão de uma libertação automática se seus acusadores
não se apresentarem, mas na severidade das sanções contra este tipo de
acusadores”. 1749 Além disso, em caso de uma “causa justa” ou de morte
do acusador, o acusado podia pedir que as acusações contra ele fossem
desprezadas. Até então, os legisladores romanos eram relutantes a
cancelar as acusações. 1750 Em outras palavras, se os acusadores nunca se

1748
Consulte-se, p. ex., H. J. Cadbury, “Roman Law and the Trial of Paul”, Beginnings, vol. 5, pp.
325–36.
1749
Sherwin-White, Roman Society and Roman Law. p. 114.
1750
Sherwin-White (ibid., p. 117) alega que Cadbury (Beginnings, vol. 5, p. 330) não oferece provas
sobre este ponto.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1322
apresentaram pessoalmente em Roma, Paulo pôde seguir como
prisioneiro. No final dos dois anos, Nero pode tê-lo deixado livre.
b. “Paulo permaneceu na casa que havia alugado, e recebia a todos
os que iam vê-lo”. Outra tradução diz: “a suas próprias custas” (RSV). A
Vulgata tem a mesma tradução: in suo conducto (com seus próprios
recursos). A essência do assunto radica na palavra grega misthōma, que
quer dizer, ou “rendida” (ativo) ou “que é rendida” (passivo). 1751
Lucas escreve que Paulo permaneceu e não que viveu, o que
implica que ficou como prisioneiro em quartos separados. Paulo cumpriu
sua missão de pregar e ensinar o evangelho a todas as pessoas que foram
visitá-lo. Somente carecia de tempo para atender suas necessidades
financeiras, pelo que, supomos, dependia de seus amigos.
c. “Pregava o Reino de Deus e ensinava a respeito do Senhor Jesus
Cristo, abertamente e sem impedimento algum”. Lucas termina o Livro
de Atos com uma nota de triunfo. Paulo prega o reino de Deus e ensina a
respeito de Jesus a todos os que chegam à sua casa. Além de alguns dos
judeus em Roma, numerosos gentios foram vê-lo. De fato, ele era o
apóstolo nomeado para ir aos gentios.
A palavra abertamente significa que Paulo desfrutava de completa
liberdade para pregar e ensinar o evangelho de Cristo. Cheio com o
Espírito Santo, pôde falar com autoridade a todos os seus visitantes e
esperar ver os resultados de seu ministério. As duas cláusulas (“pregava
o reino de Deus” e “ensinava a respeito do Senhor Jesus Cristo”) são
sinônimos e respaldam uma à outra. Com a combinação Senhor Jesus
Cristo, Lucas expressa a confissão da igreja cristã primitiva que Jesus é
Senhor (1Co 12:3), em oposição à máxima romana de César é Senhor. E
a respeito dos judeus, testifica que Jesus é o Cristo.
d. “Sem impedimento”. Esta palavra, a última no texto original, é
chamativa. Lucas dá a entender que o governo romano não pôs nenhuma
restrição à difusão do evangelho através de toda Roma e o império. Com

1751
Bauer, p. 523.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1323
esta palavra, a qual devido ao seu lugar no texto grego é enfática, Lucas
descreve a amplitude do estado a respeito da igreja. Paulo foi
reivindicado e as acusações apresentadas contra ele pelos judeus eram
falsas. 1752 Da casa alugada de Paulo, o evangelho saiu até o fim do
mundo. E depois de sua libertação, ele continuou suas viagens pelo nome
do evangelho.

Quartel general de missões 1753


Eu estou certo que enquanto Paulo viveu em sua casa com um
soldado custodiando-o, sua conversação diária não girou em torno do
estado do tempo. Em lugar disso, levou o soldado a Jesus Cristo,
ensinou-lhe as verdades do evangelho de Cristo, e inculcou nele um
conhecimento salvífico de Jesus. Como em qualquer exército, um
soldado no exército de Roma era frequentemente levado de um lugar a
outro. Se supusermos que o soldado que custodiava a Paulo chegou a ser
cristão e foi transferido a outro lugar do império romano, era uma forma
em que Paulo certamente podia enviar seus missionários (cf. Fp 1:13;
4:22).
Quantos soldados terão custodiado a Paulo num período de dois
anos? E quantos missionários terá enviado Paulo pelo mundo? Não nos é
dito, mas estamos seguros que não há dúvida que a casa de Paulo chegou
a ser um quartel general missionário. Amigos e conhecidos de distintas
partes do mundo puderam visitar Paulo. E ele os enviou a todas as partes
com o evangelho de Cristo (veja-se o paralelo em 2Tm 4:9–12).
Também escreveu as assim chamadas Epístolas da prisão: Colossenses,
Filemom, Efésios, e Filipenses.
Uma última observação. O envio de missionários de Roma até os
limites da terra provou ser o cumprimento do mandato de Jesus de ser
“testemunhas em Jerusalém, em toda Judeia e Samaria, e até os confins

1752
Refira-se a Gerhard Delling, “Das Letzte Wort der Apostelgeschichte”, NovT 15 (1973): 193–204.
1753
Cf. a seção similar no comentário sobre At 24:23.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1324
da terra”. Eu estou certo que enquanto Paulo viveu em sua casa com um
soldado custodiando-o, sua conversação diária não girou em torno do
estado do tempo. Em lugar disso, levou a soldado a Jesus Cristo,
ensinou-lhe as verdades do evangelho de Cristo, e inculcou nele um
conhecimento salvífico de Jesus. Como em qualquer exército, um
soldado no exército de Roma era frequentemente levado de um lugar a
outro. Se supusermos que o soldado que custodiava a Paulo chegou a ser
cristão e foi transferido a outro lugar do império romano, era uma forma
em que Paulo certamente podia enviar seus missionários (cf. At 1:8).

Palavras, frases e construções gregas em At 28:30–31


O Texto ocidental acrescenta estas palavras ao versículo 30: “tanto
judeus como gregos”. E no final do versículo 31, os manuscritos latinos
acrescentam: “dizendo que este é Cristo Jesus, o Filho de Deus, por meio
de quem o mundo inteiro será julgado”. É óbvio em ambos os agregados
a mão de um bem-intencionado escriba.

Resumo de Atos 28
Com a tripulação e os passageiros do navio naufragada, Paulo
chega são e salvo à ilha de Malta. Aqui, os habitantes acendem uma
fogueira para que aquela gente, molhada pelo mar e gelados pelo vento e
a chuva possam esquentar-se. Paulo junta um montão de lenha que lança
ao fogo; uma serpente sai do fogo e crava seus colmilhos na mão de
Paulo. Paulo sacode a serpente, que cai ao fogo. Os ilhéus esperam que
Paulo se inche e caia morto; porém nada ocorre, pelo que eles o
consideram um deus.
Paulo cura o pai de Públio da febre e disenteria. Como resultado,
muitos doentes vêm para ser curados. Depois de uma espera de três
meses e de receber muitas provisões dos ilhéus, Paulo e seus amigos
abordam um veleiro alexandrino e zarpam para a Itália. Chegam à terra
em Putéoli, onde Paulo permanece com os amigos cristãos por uma
Atos (Simon J. Kistemaker) 1325
semana. Daí viajam a pé até a Praça de Ápio e as Três Vendas. Nestes
dois lugares há cristãos de Roma esperando Paulo para dar-lhe as boas-
vindas. Quando chegam a Roma, Paulo tem permissão de viver
separadamente com um soldado como guarda.
Depois de três dias, Paulo convida os dirigentes judeus em Roma a
sua casa. Informa-lhes a respeito de sua prisão em Jerusalém e seu
encarceramento pelos romanos. Os dirigentes lhe dizem que não
receberam nenhuma carta ou mensagem quanto às acusações contra ele.
Mostram-se dispostos a ouvir a respeito da religião dos cristãos.
Acompanhados de numerosos amigos judeus vão à casa de Paulo, que
lhes explica os ensinos do reino de Deus e de Jesus, e procura convencê-
los das Escrituras. Alguns creem, mas outros rejeitam a instrução. Paulo
cita da profecia de Isaías e diz aos judeus incrédulos que a salvação de
Deus é agora enviada aos gentios, que escutarão o evangelho. Durante
dois anos, Paulo permanece em sua casa alugada e sem impedimento
ensina o evangelho a todos os que o visitam.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1326
1754
BIBLIOGRAFIA SELETA
COMENTÁRIOS
Alford, Henry. Alford’s Greek Testament: An Exegetical and Critical
Commentary, 4 vols., 7ª. ed. 1877. Grand Rapids: Guardian, 1976.
Arrington, French L. The Acts of the Apostles: An Introduction and
Commentary, Peabody, Mass.: Hendrickson, 1988.
Bengel, John Albert, Gnomon of the New Testament. Editado por
Andrew R. Fausett, 5 vols. Edimburgo: Clark, 1877.
Bruce, F. F. The Acts of the Apostles: The Greek Text with
Introduction and Commentary, 3ª. ed. rev. e aum. Grand Rapids:
Eerdmans, 1990.
———. The Book of Acts. Serie New International Commentary on
the New Testament. Ed. rev. Grand Rapids: Eerdmans, 1988.
Calvin, John, Commentary on the Acts of the Apostles. Ed. por David
W. Torrance e Thomas F. Torrance, 2 vols., Grand Rapids:
Eerdmans, 1966.
Carter, Charles W., y Ralph Earle, The Acts of the Apostles. Grand
Rapids: Zondervan, 1959.
Clark, Albert C. The Acts of the Apostles: A Critical Edition with
Introduction and Notes on Selected Passages. 1933. Oxford:
Clarendon, 1970.
Conzelmann, Hans. Acts of the Apostles. Traduzido ao inglês por
James Limburg, A. Thomas Kraabel, e Donald H. Juel, 1963.
Filadelfia: Fortress, 1987.
Delebecque, Édouard. Les Actes des Apôtres: Texte Traduit et Annoté.
París: Les Belles Lettres, 1982.

1754
Consulte-se as notas de rodapé para referências aos numerosos livros e artigos considerados no
comentário.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1327
Delitzsch, Franz, Biblical Commentary on the Psalms. Traducido al
inglés por Francis Bolton, 3 vols. Reimp. Grand Rapids: Eerdmans,
1955.
de Zwaan, J. De Handelingen der Apostelen. Serie Het Nieuwe
Testament, 2ª. ed. Groningen: Wolters, 1932.
Dibelius, Martin. Studies in the Acts of the Apostles. Londres: SCM,
1956.
Dupont, Jacques, Les Actes des Apôtres. Bible de Jérusalem, 2a. ed.
París: Cerf, 1954.
Fee, Gordon D. The First Epistle to the Corinthians. Serie New
International Commentary on the New Testament, Grand Rapids:
Eerdmans, 1987.
Findlay, J. A. The Acts of the Apostles. Londres: SCM, 1936.
Foakes Jackson, F. J. The Acts of the Apostles. Moffat New Testament
Commentary. Londres: Hodder and Stoughton, 1931.
Gibson, Margaret D., ed. The Commentaries of Isho’dad of Merw.
Horae Semiticae no. 10. Cambridge: Cambridge University Press,
1913.
Gispen, W. H. Bible Student’s Commentary: Exodus. Traducido al
inglés por Ed van der Maas. Grand Rapids: Zondervan; St.
Catherines: Paideia, 1982.
Greeven, Heinrich. Studies in the Acts of the Apostles. Londres: SCM,
1956.
Grosheide, F. W. De Handelingen der Apostelen. Serie Kommentaar
of het Nieuwe Testament, 2 vols. Amsterdam: Van Bottenburg,
1942, 1948.
———. De Handelingen der Apostelen. Serie Korte Verklaring der
Heilige Schrift. Kampen: Kok, 1950.
Haenchen, Ernst. The Acts of the Apostles: A Commentary. Traducido
al inglés por Bernard Noble and Gerald Shinn. Filadelfia:
Westminster, 1971.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1328
Hanson, R. P. C. The Acts of the Apostles. New Clarendon Bible.
Oxford: Clarendon, 1967.
Harrison, Everett F. Interpreting Acts: The Expanding Church. 2ª. ed.
Grand Rapids: Zondervan, Academie Books, 1986.
Hemer, Colin J. The Book of Acts in the Setting of Hellenistic History.
Editado por Conrad H. Gempf. Tubinga: Mohr, 1989.
Hendriksen, Guillermo. Colosenses y Filemón. C.N.T., Grand Rapids:
SLC, 1982.
———. Gálatas. C.N.T. Grand Rapids: SLC, 1984.
———. 1 y 2 Timoteo y Tito. C.N.T. Grand Rapids: SLC, 1979.
———. Romanos. C.N.T. Grand Rapids: SLC, 1990.
———. Filipenses. C.N.T. Grand Rapids: SLC, 1981.
Hughes, Philip Edgcumbe. Paul’s Second Epistle to the Corinthians:
The English Text with Introduction, Exposition and
Notes. Serie New International Commentary on the New Testament.
Grand Rapids: Eerdmans, 1962.
Kistemaker, Simon J. Hebreos. C.N.T. Grand Rapids: SLC, 1991.
———. Santiago y I–III Juan. C.N.T. Grand Rapids: Libros Desafío,
1992.
———. Pedro y Judas. C.N.T. Grand Rapids: Libros Desafío, 1994.
Knowling, R. J. The Acts of the Apostles. Vol. 2 del Expositor’s Greek
Testament. Editado por W. R. Nicoll, 1900. Grand Rapids:
Eerdmans, 1951.
Krodel, Gerhard A. Acts. Augsburg Commentary on the New
Testament. Minneapolis: Augsburg, 1986.
Lake, Kirsopp, y H. J. Cadbury. English Translation and Commentary
[sobre Hechos]. Vol. 4 de The Beginnings of Christianity Reimp.,
Grand Rapids: Baker, 1965.
Lane, Williams L., The Gospel According to Mark. Serie New
International Commentary on the New Testament. Grand Rapids:
Eerdmans, 1974.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1329
Lenski, R. C. H. The Interpretation of the Acts of the Apostles.
Columbus: Wartburg, 1944.
Longenecker, Richard N. Acts of the Apostles. En el vol. 9 de The
Expositor’s Bible Commentary, editado por Frank E. Gaebelein. 12
vols. Grand Rapids: Zondervan, 1981.
Luedemann, Gerd. Das frühe Christentum nach den Traditionen der
Apostelgeschichte: ein Kommentar. Gotinga: Vandenhoeck und
Ruprecht, 1987.
Marshall, I. Howard. The Acts of the Apostles: An Introduction and
Commentary. Serie Tyndale New Testament Commentaries. Grand
Rapids: Eerdmans: Leicester. Inter-Varsity, 1980.
Meyer, H. A. W. Critical and Exegetical Handbook to the Acts of the
Apostles. Kritisch-Exegetischer Kommentar. 3 vols. 4ª. ed. 1870.
Edimburgo: Clark, 1877.
Munck, Johannes. The Acts of the Apostles. Anchor Bible. Vol. 31.
Garden City, N.Y.: Doubleday, 1967.
Neil, William. The Acts of the Apostles. New Century Bible. Londres:
Oliphants, 1973.
Packer, J. W. The Acts of the Apostles. Cambridge Bible Commentary
on the New English Bible. Cambridge: Cambridge
University Press, 1966.
Rackham, Richard B. The Acts of the Apostles: An Exposition. Serie
Westminster Commentaries. 1901. Grand Rapids: Baker, 1964.
Ridderbos, J. De Kleine Propheten: Hosea, Joël, Amos. Serie Korte
Verklaring der Heilige Schrift, 2ª. ed. Kampen: Kok, 1952.
Roloff, Jürgen. Die Apostelgeschichte. Serie Das Neue Testament
Deutsch. Vol. 5. Gotinga: Vandenhoeck und Ruprecht, 1981.
Schille, G. Die Apostelgeschichte des Lukas. Theologischer Hand-
Kommentar zum Neuen Testament. Vol. 5. Berlin: Evangelische
Verlagsanstalt, 1983.
Schlatter, A. Die Apostelgeschichte. Erläuterungen zum Neuen
Testament. Vol. 4. Stuttgart: Calwer Verlag, 1948.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1330
Schmithals, W. Die Apostelgeschichte des Lukas. Züricher
Bibelkommentar. Vol. 3.2. Zürich: Theologischer Verlag, 1982.
Schneider, Gerhard. Die Apostelgeschichte. Serie Herders
Theologischer Kommentar zum Neuen Testament. Freiburg:
Herder, 1980.
Stählin, Gustav. Die Apostelgeschichte. Das Neue Testament Deutsch.
Vol. 5. Gotinga: Vandenhoeck und Ruprecht, 1962.
Walker, T. The Acts of the Apostles. 1910. Chicago: Moody, 1965.
Weiser, A. Die Apostelgeschichte. Ökumenischer Taschenbuch-
Kommentar zum Neuen Testament. Vol. 5.1, 2. Gütersloh: Mohn;
Würzburg: Echter Verlag, 1980, 1985.
Williams, C. S. C. A Commentary on the Acts of the Apostles. Black’s
(Harper’s) New Testament Commentaries. Nueva York: Harper,
1957.
Williams, David John. Acts. Serie Good News Commentaries. San
Francisco: Harper y Row, 1985.
Williams, R. R. The Acts of the Apostles. Torch Biblical
Commentaries. Londres: SCM, 1953.
Young, Edward J. The Book of Isaiah. Serie New International
Commentary on the Old Testament. 3 vols. Grand Rapids:
Eerdmans, 1972.
Zahn, Theodor. Die Apostelgeschichte des Lucas. Serie Kommentar
zum Neuen Testament. 2 vols. Leipzig: Deichert, 1921.

ESTUDIOS
Achtemeier, Paul, J. The Quest for Unity in the New Testament
Church: A Study in Paul and Acts. Filadelfia: Fortress, 1987.
Augustine. Augustine: The Later Works, in vol. 8, On the Holy Spirit
and the Letter. Traduzido ao inglês por John Burnaby.
Biblioteca de Clássicos Cristãos. 13 vols. Filadelfia: Westminster,
1955.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1331
———. Confesions of St. Augustine. Traduzido por W. Watts. Serie
Biblioteca Clásica Loeb. 2 vols. Cambridge: Harvard University
Press, 1977–79.
Barrett, C. K. “Apollos and the Twelve Disciples of Ephesus”. Em
The New Testament Age: Essays in Honor of Bo Reicke, editado por
William C. Weinrich. 2 vols. Macon, Ga.: Mercer University Press,
1984.
———. Luke the Historian in Recent Study. Londres: Epworth, 1961.
———. New Testament Essays. Londres: SPCK, 1972.
———. “Paul’s Address to the Ephesian Elders”. En God’s Christ
and His People: Studies in Honour of N. A. Dahl, editado por Jacob
Jerwell e Wayne A. Meeks. Oslo, Bergen, and Tromsö:
Universitetsforlaget, 1977.
Betz, Hans Dieter, ed. The Greek Magical Papyri in Translation:
Including the Demotic Spells. Chicago e Londres: University of
Chicago Press, 1986.
Bishop, E. F. F. Apostles of Palestine. Londres: Lutterworth, 1958.
Black, M. An Aramaic Approach to the Gospels and Acts. 3ª. ed.
Oxford: Clarendon, 1967.
Blaiklock, E. M. Cities of the New Testament. Westwood, N.J.:
Revell, 1965.
Bousset, Wilhelm. Kyrios Christos: A History of the Belief in Christ
from the Beginnings of Christianity to Irenaeus. Traduzido ao
inglês por John E. Steely. Nashville: Abingdon, 1970.
Bultmann, Rudolf. Theology of the New Testament. Traducido al
inglés por Kendrick Grobel. 2 vols. Nova York: Charles Scribner’s
Sons, 1951.
Cadbury, H. J. The Book of Acts in History. Nova York: Harper;
Londres: A. and C. Black, 1955.
———. The Making of Luke–Acts. 1927. Naperville, Ill.: Allenson;
Londres: SPCK, 1958.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1332
———. The Style and Literary Method of Luke. 2 vols. Cambridge:
Harvard University Press, 1919–20.
Casson, Lionel. Ships and Seamanship in the Ancient World.
Princeton: Princeton University Press, 1971.
Conzelmann, Hans. History of Primitive Christianity. Traduzido ao
inglês por John E. Steely. Nashville: Abingdon, 1973.
———. The Theology of St. Luke. Traducido al inglés por Geoffrey
Buswell. Nueva York: Harper: Londres: Faber, 1960.
Cullmann, Oscar. The Early Church. Londres: SCM, 1956.
———. Peter: Disciple-Apostle-Martyr. Londres: SCM, 1953.
Dalman, Gustaf. The Words of Jesus. Traduzido ao inglês por D. M.
Kay. Edimburgo: Clark, 1909.
Deissmann, Adolf. Light from the Ancient East. Traducido al inglés
por Lionel R. M. Strachan. Ed. rev. Nova York: Doran, 1927.
Dibelius, Martin. Paul. Editado por W. G. Kümmel. Londres:
Longmans, 1953.
———. Studies in the Acts of the Apostles. Londres: SCM, 1956.
Dodd, C. H. The Apostolic Preaching and Its Developments. 1937.
Nova York y Evanston: Harper, 1964.
Dunn, James D. G. Baptism in the Holy Spirit. Studies in Biblical
Theology. 2a. serie 15. Londres: SCM, 1970.
Dupont, Jacques. Études sur les Actes des Apôtres. Lectio Divina 45.
París: Cerf, 1967.
———. Nouvelles Études sur les Actes des Apôtres. Lectio Divina
118. París: Cerf, 1984.
———. The Salvation of the Gentiles: Essays on the Acts of the
Apostles. Traduzido ao inglês por John R. Keating. Nueva York:
Paulist, 1979.
———. The Sources of the Acts. Traducido al inglés por Kathleen
Pond. Nova York: Herder and Herder, 1964.
Ellis, E. Earle. The Gospel of Luke. New Century Bible. Londres:
Oliphants, 1974.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1333
———. “The Role of the Christian Prophet in Acts”. En Apostolic
History and the Gospel, editado por W. Ward Gasque y Ralph P.
Martin. Exeter: Paternoster, 1970.
Epp, Eldon J. The Theological Tendency of Codex Bezae
Cantabrigiensis in Acts. Cambridge: Cambridge University Press,
1966.
Foakes, Jackson, F. J. The Life of St. Paul. Londres: Jonathan Cape,
1927.
———. Peter: Prince of Apostles. Londres: Hodder and Stoughton,
1927.
Foakes, Jackson, F. J., e Kirsopp Lake. The Beginnings of
Christianity. Vols. 1–5. Londres: Macmillan, 1920–33.
Gärtner, Bertil. The Areopagus Speech and Natural Revelation.
Traduzido por C. H. King. Lund: Gleerup, 1955.
Gasque, W. Ward. A History of the Criticism of the Acts of the
Apostles. Beiträge zur Geschichte der biblischen Exegese 17.
Tubinga: Mohr, 1975.
Gasque, W. Ward, y Ralph P. Martin, editores. Apostolic History and
the Gospel. Exeter: Paternoster, 1970.
Goulder, M. D. Type and History in Acts. Londres: SPCK, 1964.
Hagner, Donald A. y Murray J. Harris, editores. Pauline Studies.
Exeter: Paternoster; Grand Rapids: Eerdmans, 1980.
Harnack, A. The Acts of the Apostles. Londres: Williams and Norgate,
1909.
———. Date of the Acts and of the Synoptic Gospels. Londres:
Williams e Norgate, 1911.
Harrison, Everett F. The Apostolic Church. Grand Rapids: Eerdmans,
1985.
Hengel, Martin, Acts and the History of Earliest Christianity.
Traducido al inglés por John Bowden. Filadelfia: Fortress, 1980.
———. Between Jesus and Paul. Traduzido ao inglês por John
Bowden. Filadélfia: Fortress, 1983.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1334
Hobart, W. K. The Medical Language of St. Luke. Dublin: Hodges,
Figgis; Londres: Logmans, Green, 1882.
Hock, Ronald F. The Social Context of Paul’s Ministry: Tentmaking
and Apostleship. Filadélfia: Fortress, 1980.
Hoehner, Harold W. Chronological Aspects of the Life of Christ.
Grand Rapids: Zondervan, 1976.
Hoekema, Anthony A. Holy Spirit Baptism. Grand Rapids: Eerdmans,
1972.
Hollander, Harm W. Joseph as an Ethical Model in the Testaments of
the Twelve Patriarchs. Leiden: Brill, 1981.
Hooker, M. D., y S. G. Wilson. Paul and Paulinism: Essays in
Honour of C. K. Barrett. Londres: SPCK, 1982.
Hyldahl, Niels. Die Paulinische Chronologie. Leiden: Brill, 1986.
Jeremias, Joachim. Jerusalem in the Time of Jesus. Filadelfia:
Fortress, 1969.
———. Unknown Sayings of Jesus. Traduzido ao inglês por Reginald
H. Fuller. Londres: SPCK, 1957.
Jervell, Jacob. Luke and the People of God: A New Look at Luke–Acts.
Minneapolis: Augsburg, 1972.
———. The Unknown Paul. Minneapolis: Augsburg, 1984.
Jewett, Robert. A Chronology of Paul’s Life. Filadelfia: Fortress,
1979.
Judge, E. A. The Social Pattern of Christian Groups in the First
Century. Londres: Tyndale, 1960.
Kaiser, Walter C. The Uses of the Old Testament in the New. Chicago:
Moody, 1985.
Käsemann, Ernst, “The Disciples of John the Baptist in Ephesus”. En
Essays on New Testament Themes. Studies in Biblical Theology.
Series 41. Londres: SCM, 1964.
Keck, Leander E., y J. Louis Martyn, editores. Studies in Luke–Acts:
Essays Presented in Honor of Paul Schubert. Nashville: Abingdon,
1966.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1335
Kilgallen, John J. The Stephen Speech: A Literary and Redactional
Study of Acts 7, 2–53. Analecta Biblica 67. Roma: Instituto Bíblico,
1976.
Kistemaker, Simon J. The Psalm Citations in the Epistle to the
Hebrews. Amsterdam: Van Soest, 1961.
Knox, John. Chapters in a Life of Paul. Nueva York y Nashville:
Abingdon-Cokesbury, 1950.
Lampe, G. W. H. “ ‘Grievous Wolves’ (Acts 20:29)”. En Christ and
Spirit in the New Testament: Studies in Honour of C. F. D. Moule,
editado por Barnabas Lindars y Stephen S. Smalley. Cambridge:
Cambridge University Press, 1973.
———. The Seal of the Spirit. 2a. ed. Londres: SPCK, 1967.
———. St. Luke and the Church of Jerusalem. Londres: Athlone,
1969.
Lohfink, Gerhard. The Conversion of St. Paul: Narrative and History
in Acts. Traduzido ao inglês e editado por Bruce J. Malina.
Chicago: Franciscan Herald Press, 1976.
Long, William R. “The Trial of Paul in the Book of Acts: Historical,
Literary, and Theological Considerations”. Ph.D. diss., Brown
University, 1982.
Longenecker. Richard N. The Christology of Early Jewish
Christianity. Studies in Biblical Theology. 2a. series 17. Londres:
SCM, 1970.
Longenecker, Richard N., y Merrill C. Tenney, editores. New
Dimensions in New Testament Study. Grand Rapids: Zondervan,
1974.
Luedemann, Gerd. Paul. Apostle to the Gentiles: Studies in
Chronology. Traduzido ao inglês por F. Stanley Jones. Filadelfia:
Fortress, 1984.
———. Paulus der Heidenapostel: Antipaulinismus im frühen
Christentum. Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und
Neuen Testaments 130. Gotinga: Vandenhoeck und Ruprecht, 1983.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1336
MacDonald, William G. “Glossolalia in the New Testament”. Em
Speaking in Tongues: A Guide to Research on Glossolalia, editado
por Watson E. Mills. Grand Rapids: Eerdmans, 1986.
Maddox, R. The Purpose of Luke–Acts. Edimburgo: Clark, 1982.
Marshall, I. Howard. Luke: Historian and Theologian. Grand Rapids:
Zondervan, 1971.
Martin, Ralph P. Mark: Evangelist and Theologian. Grand Rapids:
Zondervan, 1972.
Michel, Hans-Joachim. Die Abschiedsrede des Paulus an die Kirche
Apg 20, 17–38: Motivgeschichtliche und theologische Bedeutung.
Munich: Kösel, 1973.
Mills, Watson E., editor. Speaking in Tongues: A Guide to Research
in Glossolalia. Grand Rapids: Eerdmans, 1986.
Morris, Leon. New Testament Theology. Grand Rapids: Zondervan,
Academie Books, 1986.
Ogg, George. The Chronology of the Life of Paul. Londres: Epworth,
1968.
O’Neill J. C. The Theology of Acts in Its Historical Setting. Londres:
SPCK, 1970.
Orosius, Paulus. The Seven Books of History Against the Pagans.
Serie Fathers of the Church. Traducido al inglés por Roy J.
Deferrari. Washington, D.C: Catholic University Press, 1964.
O’Toole, R. F. The Christological Climax of Paul’s Defense. Analecta
Biblica 78. Roma: Instituto Pontifício, 1978.
Pathrapankal, J. “Christianity as a ‘Way’ ”. Em Les Actes des Apôtres:
Traditions, Rédaction, Théologie, editado por J. Kremer.
Bibliotheca Ephemeridium Theologicarum Lovaniensium 48.
Lovain: Lovain University Press, 1979.
Pierce, Claude A. Conscience in the New Testament. Naperville, Ill.:
Allenson, 1955.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1337
Praeder, Susan M. “The Narrative Voyage: An Analysis and
Interpretation of Acts 27–28”. Ph.D. diss., Graduate Theological
Union, 1980.
Puskas, Charles B., Jr. “The Conclusion of Luke–Acts: An
Investigation of the Literary Function and Theological Significance
of Acts 28:16–31”. Ph.D. diss., St. Louis University, 1980.
Ramsay, William M. The Church in the Roman Empire Before A.D.
170 Londres: Hodder and Stoughton, 1907.
———. The Cities of St. Paul: Their Influence on His Life and
Thought. 1907. Grand Rapids: Baker, 1963.
———. Pauline and Other Studies in Early Christian History.
Limited Editions Library. 1906. Grand Rapids: Baker, 1970.
———. Pictures of the Apostolic Church: Studies in the Book of Acts.
1910. Grand Rapids: Baker, 1959.
———. St. Paul the Traveller and the Roman Citizen. 1897. Grand
Rapids: Baker, 1962.
Rehwinkel Alfred Martin, The Voice of Conscience. St. Louis:
Concordia, 1956.
Ridderbos, Herman N. The Speeches of Peter in the Acts of the
Apostles. Londres: Tyndale, 1962.
Robinson, J. A. T. Redating the New Testament. Londres: SCM, 1976.
———. Twelve New Testament Studies. Studies in Biblical Theology
34. Londres: SCM, 1962.
Robinson, N. H. G. Christ and Conscience. Londres: Nisbet, 1956.
Rougé, Jean. Ships and Fleets of the Ancient Mediterranean.
Traduzido ao inglês por Susan Frazer. Middletown, Conn.:
Wesleyan University Press, 1981.
Ryken, Leland. Words of Life: A Literary Introduction to the New
Testament. Grand Rapids: Baker, 1987.
Sanders, J. T. The Jews in Luke–Acts. Londres: SCM, 1987.
Scharlemann, Martin H. Stephen: A Singular Saint. Analecta Biblica
34. Roma: Instituto Bíblico, 1968.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1338
Sherwin-White, A. N. The Roman Citizenship. 2a. ed. Oxford:
Clarendon, 1973.
———. Roman Society and Roman Law in the New Testament, 1963.
Grand Rapids: Baker, 1978.
Smallwood, E. M. The Jews under Roman Rule. Leiden: Brill, 1976.
Smith, James. The Voyage and Shipwreck of St. Paul. 3a. ed. Londres:
Longmans, Green, 1866.
Stonehouse, Ned B. Paul Before the Aeropagus and Other New
Testament Studies. Grand Rapids: Eerdmans, 1957.
Suhl, A. Paulus und seine Briefe: Ein Beitrag zur paulinischen
Chronologie. Gütersloh: Mohn, 1975.
Talbert, Charles H. Literary Patterns, Theological Themes and the
Genre of Luke–Acts. Missoula, Mont.: Scholars, 1974.
———. editor. Perspectives on Luke–Acts. Edimburgo: Clark, 1978.
———. editor. Luke–Acts: New Perspectives from the Society of
Biblical Literature Seminar. Nueva York: Crossroad, 1984.
Taylor, Vincent. The Names of Jesus. Londres: Macmillan, 1953.
Thompson, Barry, ed. Scripture: Meaning and Method. Hull, England:
Hull University Press, 1987.
van Unnik, W. C. Tarsus or Jerusalem: The City of Paul’s Youth.
Traduzido ao inglês por George Ogg. Londres: Epworth, 1962.
van Veldhuizen, A. Markus. De Neef van Barnabas. Kampen: Kok,
1933.
Wilcox, Max. The Semitisms of Acts. Oxford: Clarendon, 1965.
Williams, C. S. C. Alterations to the Text of the Synoptic Gospels and
Acts. Oxford: Blackwell, 1951.
Zehnle, Richard F. Peter’s Pentecost Discourse: Tradition and Lukan
Reinterpretation in Peter’s Speeches of Acts 2 and 3.
Society of Biblical Literature Monograph. Serie 15. Editado por
Robert A. Kraft. Nashville: Abingdon, 1971.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1339
AYUDAS
Aland, Kurt, editor. Synopsis Quattuor Evangeliorum 4a. ed. rev.
Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt, 1967.
Archer, Gleason L., Jr. Encyclopedia of Bible Difficulties. Grand
Rapids: Zondervan, 1982.
Bauer, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testament and
Other Early Christian Literature. 4ª. edição revisão e aumentada
por F. Wilbur Gingrich y Frederick W. Danker de la 5a. edición de
Walter Bauer. Chicago e Londres: University of Chicago Press,
1979.
Berkhof, Luis. Principios de la interpretación bíblica. 2a. ed. Grand
Rapids: T.E.L.L., 1950.
———. Teología sistemática. Grand Rapids: Eerdmans, 1976 e
reimpressões.
Blass, Friedrich, y Albert Debrunner. A Greek Grammar of the New
Testament and Other Early Christian Literature. Traduzido ao
inglês e revisado por Robert Funk. Chicago: University of Chicago
Press, 1961.
Bromiley, Geoffrey W., editor. The International Standard Bible
Encyclopedia. Ed. rev. 4 vols. Grand Rapids: Eerdmans, 1979–88.
Brown, Colin, editor. New International Dictionary of New Testament
Theology. 3 vols. Grand Rapids: Zondervan, 1975–78.
Bruce, F. F. New Testament History. 1969. Garden City, N.Y.:
Doubleday, 1971.
Burton, E. D. Moods and Tenses of New Testament Greek.
Edimburgo: Clark, 1898.
Charlesworth, James H., ed. The Old Testament Pseudepigrapha. 2
vols. Garden City, N.Y: Doubleday, 1983.
Dana, H. E. y Julius R. Mantey. A Manual Grammar of the Greek
New Testament. 1927. Nueva York: Macmillan, 1967.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1340
Danby, Herbert, editor. The Mishnah. Londres: Oxford University
Press, 1933.
Deissmann, Adolf. Bible Studies. Reimp. Winona Lake, Ind.: Alpha,
1979.
Elwell, Walter A., editor. Baker Encyclopedia of the Bible. 2 vols.
Grand Rapids: Baker, 1988.
———. editor. Evangelical Dictionary of Theology. Grand Rapids:
Baker, 1984.
Epstein, Isidore, editor. The Babylonian Talmud 18 vols. Londres:
Soncino, 1948–52.
Eusebio. Historia eclesiástica. Traduzido ao inglês por J. E. L.
Oulton. Serie Biblioteca Clásica Loeb. 2 vols. Cambridge: Harvard
University Press, 1980.
Farstad, Arthur R., y Zane C. Hodges. The Greek New Testament
According to the Majority Text. Nashville: Nelson, 1982.
Finegan, Jack. The Archeology of the New Testament: The
Mediterranean World of the Early Christian Apostles. Boulder,
Colo.: Westview; Londres: Croon Helm, 1981.
Goold, E. P., editor. The Apostolic Fathers. Traducido al inglés por
Kirsopp Lake. Serie Biblioteca Clásica Loeb. 2 vols. Cambridge:
Harvard University Press; Londres: Heinemann, 1976.
———. editor. Appian’s Roman History. Traduzido ao inglês por
Horace White. Serie Biblioteca Clásica Loeb. 4 vols. Cambridge:
Harvard University Press; Londres: Heinemann, 1979.
———. editor. Eusebius. Traduzido ao inglês por Kirsopp Lake. Serie
Biblioteca Clásica Loeb. 2 vols. Cambridge: Harvard University
Press; Londres: Heinemann, 1980.
Guthrie, Donald. New Testament Introduction. 3a. ed. Downers
Grove: Inter-Varsity, 1971.
———. New Testament Theology. Downers Grove: Inter-Varsity,
1981.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1341
Hanna, Robert. A Grammatical Aid to the Greek New Testament.
Grand Rapids: Baker, 1983.
Majority Text Arthur L. Farstad y Zane Hodges, The Greek New
Testament: According to the Majority Text
Hennecke, Edgar. New Testament Apocrypha. Editado por Wilhelm
Schneemelcher. 2 vols. Filadelfia: Westminster, 1963–64.
Henry, Carl F. H., editor. Baker’s Dictionary of Christian Ethics.
Grand Rapids: Baker, 1973.
Huck, Albert. Synopsis of the First Three Gospels. Revisado por Hans
Lietzmann. 9a. ed. Oxford: Blackwell, 1957.
Josefo, Flavio. Antigüedades. Serie Biblioteca Clásica Loeb. Londres:
Heinemann; Nova York: Putnam, 1966–76.
———. Vida y Contra Apión. Serie Biblioteca Clásica Loeb. Londres:
Heinemann; Nueva York: Putnam, 1966–76.
———. Guerra judaica. Serie Biblioteca Clásica Loeb. Londres:
Heinamann; Nova York: Putnam, 1966–76.
Kittel, Gerhard, e Gerhard Friedrich, editores. Theological Dictionary
of the New Testament. Traducido al inglés por
Geoffrey W. Bromiley. 10 vols. Grand Rapids: Eerdmans, 1964–76.
Ladd, George E. A Theology of the New Testament. Grand Rapids:
Eerdmans, 1974.
Mattill, A. J., y M. B. Mattill. A Classified Bibliography of Literature
on the Acts of the Apostles. New Testament Tools and Studies 7.
Leiden: Brill, 1966.
Metzger, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New
Testament. 3a. ed. corr. Londres e Nova York: Sociedades Bíblicas
Unidas, 1975.
———. editor. The Oxford Annotated Apocrypha of the Old
Testament. Nueva York: Oxford University Press, 1965.
Mills, Watson E. A Bibliography of the Periodical Literature on the
Acts of the Apostles, 1962–84. Novum Testamentum Supplement
58. Leiden: Brill, 1986.
Atos (Simon J. Kistemaker) 1342
Morris, Leon. New Testament Theology. Grand Rapids: Zondervan,
Academie Books, 1986.
Moule, C. F. D. An Idiom-Book of New Testament Greek. 2a. ed.
Cambridge: Cambridge University Press, 1960.
Moulton, James Hope. A Grammar of New Testament Greek. Vol. 1,
Prolegomeno. Edimburgo: Clark, 1906.
Nestle E., y Kurt Aland. Novum Testamentum Graece. 26a. ed.
Stuttgart: Deutsche Bibelstiftung, 1981.
Roberts, Alexander, y James Donaldson, editores. The Ante-Nicene
Fathers: Translations of Writings of the Fathers down to d.C. 325.
14 vols. Grand Rapids: Eerdmans, 1899–1900.
Robertson, A. T. A Grammar of the Greek New Testament in the Light
of Historical Research. Nashville: Broadman, 1934.
Ropes, James Hardy. The Text of Acts. Vol. 3 de The Beginnings of
Christianity. Reimp. Grand Rapids: Baker, 1965.
Roth, Cecil, editor. Encyclopaedia Judaica. 16 vols. Nova York:
Macmillan, 1972.
Schürer, Emil. The History of the Jewish People in the Age of Jesus
Christ (175 B.C.–A.D. 135). Revisado e editado por Geza Vermes y
Fergus Millar. 3 vols. Edimburgo: Clark, 1973–87.
Strack, H. L., y P. Billerbeck. Kommentar zum Neuen Testament aus
Talmud und Midrasch. 5 vols. Munich: Beck, 1922–28.
Tenney, Merrill C., editor. The Zondervan Pictorial Encyclopedia of
the Bible. 5 vols. Grand Rapids: Zondervan, 1975.
Thayer, Joseph H. A Greek-English Lexicon of the New Testament.
Nueva York, Cincinnati, e Chicago: American Book Co., 1889.
Trench, R. C. H. Synonyms of the Greek New Testament. 1854. Grand
Rapids: Eerdmans, 1953.
Turner, Nigel. A Grammar of New Testament Greek. Vol. 3.
Edimburgo: Clark, 1963.
———. Grammatical Insights into the New Testament. Edimburgo:
Clark, 1965.

Você também pode gostar