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Subjetividade judicial na

ponderação de valores: alguns


exageros na adoção indiscriminada
da teoria dos princípios*
Judicial subjectivity in values
consideration: some exaggerations
in the indiscriminate adoption of
the theory of principles
Alexandre Santos de Aragão**

RESUMO
O presente artigo discute a problemática no uso da ponderação como téc-
nica decisória, bem como sua aplicação irrefletida e as consequências que
isso acarreta, como a predominância de certos valores em desacordo com
as normas vigentes. Concluímos a análise apontando para a necessária de-
ferência aos enunciados normativos existentes reduzindo a subjetividade
das decisões judiciais.

* Artigo recebido em 6 de agosto de 2014 e aprovado em 5 de setembro de 2014.


** Mestre em direito público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutor
em direito do estado pela Universidade de São Paulo (USP). Professor adjunto de direito
administrativo da Uerj. Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: alexandre.aragao@clcmra.com.br.

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Palavras-chave
Hermenêutica — ponderação de valores — subjetividade judicial

ABSTRACT
The present article discusses the issue of the application of balancing as
a decision technique, as well its unreflected use and the consequences it
brings, such as the predominance of certain values in disagreement with
the current rules. We conclude the analysis pointing the necessary defe-
rence to the existing normative statements to reduce the subjectivity of
judicial decisions.

Keywords
Interpretation — values balancing — judicial subjectivity

1. Introdução: pós-positivismo e princípios

A virada da dogmática positivista para a filosofia pós-positivista, com o


fim da Segunda Guerra Mundial, foi marcada, substancialmente, pela reinser-
ção dos valores no mundo jurídico e a reaproximação entre direito e moral,
desconstruindo a visão positivista eminentemente formal e legalista que do-
minara o cenário jurídico mundial até meados do século XX. Nessa esteira,
ampliou-se o espaço de interpretação jurídica que passou a fundar-se nos va-
lores constantes das constituições contemporâneas.
Com efeito, nas palavras de Odete Medauar,

a concepção de Estado de Direito [desde o séc. XIX] direcionou-se ao


formalismo, com o esquecimento dos valores de liberdade e igualda-
de, pela influência de muitas teorias deformadoras, em especial a de
Kelsen. Estado de Direito passou a significar observância de regras de
competência e forma, sem preocupação com o conteúdo de justiça das
atuações governamentais. (...) O advento de Estados totalitários, que,
na sua atuação, negavam os postulados do Estado de Direito, mas pre-
tendiam apresentar-se como tal, trouxe confusão conceitual.1

1
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 102.

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A Constituição, outrora encarada meramente como fundamento de


validade das normas, passou a ser entendida como um sistema aberto de prin­
cípios e regras,2 fonte de legitimação do direito, dotado de eficácia e “permeável
a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização
dos direitos fundamentais desempenham um papel central”.3
Nesse contexto, os princípios assumiram papel preponderante na concre-
tização do projeto constitucional brasileiro, a partir do momento em que, no
bojo da ideia de eficácia normativa da Constituição, passaram a valer como
normas jurídicas imperativas e vinculantes.4 Como novas tendências do sé-
culo XXI no ramo do direito administrativo tem-se apontado um “mais forte
papel dos princípios como cânones de legalidade da ação administrativa, in-
clusive pelo acréscimo de novos princípios àqueles classicamente detectados,
afetando o espaço de discricionariedade”.5
Para lidar com esse arcabouço normativo, as técnicas de aplicação do di-
reito também se alteraram, passando a exigir maior atividade criativa e aden-
samento argumentativo dos julgadores, de modo a possibilitar o manejo, na
realização de suas tarefas, de técnicas de decisão como a ponderação, as quais
são permeadas por reflexões morais.
É que

a superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do posi­


tivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inaca­bado de
reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-
positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso,

2
Nos dizeres de J. J. Gomes Canotilho, a Constituição “(1) é um sistema jurídico porque é um
sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica (Caliess),
traduzida na disponibilidade e ‘capacidade de aprendizagem’ das normas constitucionais para
captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da ‘verdade’
e da ‘justiça’; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a
valores, programas, funções e pessoas é feitas através de normas; (4) é um sistema de regras
e de princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios
como sob a sua forma de regras” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da
Constituição. 7. ed., 2. reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1159).
3
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, ano I,
v. I, n. 6, set. 2001. Disponível em: <www.direitopublico.com.br>.
4
“As normas constitucionais, como espécies de normas jurídicas, conservam os atributos
essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma,
elas têm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica, não apenas
moral”. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possi­bili­dades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 76.
5
Odete Medauar, Direito administrativo em evolução, op. cit., p. 273.

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no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios


e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a
teoria dos direitos fundamentais, edificada no fundamento da digni­
dade da pessoa humana. A valorização dos princípios, sua incorpo­
ração, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhe­
cimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse
ambiente de reaproximação entre Direito e Ética.6

Tal processo, do qual somos francos partidários, a despeito de todas as


contribuições que trouxe para o entendimento e aplicação do direito nos últi-
mos anos, não é insuscetível a aperfeiçoamentos, que se relacionam tanto com
seus aspectos teóricos quanto práticos.
Entre as principais contribuições que pretendemos trazer ao bom termo
da discussão está a necessidade de, indo além da análise da ponderação de
interesses e de argumentações de parte a parte já desenvolvidas na doutrina
brasileira, se considerar outras metodologias jurídicas, especialmente à luz
da teoria da argumentação, decorrente da pluralidade de argumentos nas
questões de constitucionalidade e da consequente necessidade de, na medida
do possível, diminuir e controlar a subjetividade do aplicador/intérprete do
direito.

6
BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova inter­
pretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, v. 232, p. 336, 2003. Na mesma direção, “Percebe-se que se a
filo­sofia de Kant postula, no campo da fenomenologia do direito e sua aplicação prática, a
dis­tinção entre direito e moral, entre conduta externa e intenção, daí não se extrai a conclusão
de que também no plano abstrato haja tal separação. Pelo contrário. O imperativo categórico,
enquanto norma universal de conduta fundada na liberdade individual, condiciona ao mesmo
tempo o direito e a moral em sua fundamentação básica e seus valores. (…) Esse novo enfoque
faz com que o pensamento jurídico retome a discussão sobre os valores e os fundamentos
da vida em sociedade. A temática da justiça recupera sua importância e inúmeros livros são
publicados na esteira da obra pioneira de John Rawls. A ideia de liberdade recebe também
instigante reflexão e se aprofundam os estudos sobre a era dos direitos e sobre as relações
entre a ética e os direitos humanos. A crítica ao utilitarismo se torna indispensável à elaboração
de uma ética ajustada aos problemas do final do século. Mesmo os pensadores, como
Habermas e Alexy, que rejeitam a possibilidade de discussão sobre valores, em razão de sua
preferibilidade e ínsita contraditoriedade, transferem a reflexão fundamental para o campo
da ética do discurso e da teoria da argumentação”. TORRES, Ricardo Lobo. O orçamento na
constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p. 90-91.

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2. A ponderação: críticas e afirmação na práxis

A ponderação surgiu como técnica decisória nos Estados Unidos ao lon-


go das décadas de 1930 e 1940, mas foi, sobretudo, na década de 1950 que o
tema passou a ser tratado de forma mais ampla pela doutrina. Na Alemanha,
as discussões surgiram após a Constituição de 1948, em um contexto distinto
do norte-americano e, apesar de movimentos em defesa da substituição da
ponderação por outras técnicas de decisão, houve amplo esforço doutrinário
e jurisprudencial no sentido de mantê-la e aperfeiçoá-la.7
Propedeuticamente, não seria irrelevante nivelar rapidamente a infor­
mação a respeito do que estamos considerando quando aludimos à teoria dos
princípios e ponderação de valores.
As “normas” são gênero do qual são espécies as regras e os princípios.
Eros Roberto Grau,8 sintetizando as lições de Dworkin, afirma que “as regras
jurídicas, não comportando exceções, são aplicáveis de modo completo ou
não, de modo absoluto, não se passando o mesmo com os princípios; os prin-
cípios jurídicos possuem uma dimensão — a dimensão do peso ou importân-
cia — que não comparece nas regras jurídicas”.
As meras regras jurídicas, apesar de genéricas e abstratas, dizem respeito
a situações hipotéticas específicas que, concretizando-se na vida prática, acar-
retam determinadas consequências jurídicas. Trata-se do conhecido esquema
“preceito — sanção”, pelo qual, ocorrendo o fato previsto na regra, a ele de-
vem suceder os efeitos jurídicos nela também, já de antemão, estabelecidos.
O mecanismo de aplicação dos princípios é muito mais complexo do que
o esquema binário característico das regras. Não preveem situações deter-
minadas e, muito menos, efeitos jurídicos específicos que delas decorreriam.
É óbvio que normatizam situações e podem acarretar efeitos jurídicos, mas,
devido ao seu caráter fluido, suas consequências, além de não poderem ser
previamente estabelecidas, dependem das características de cada situação e
dos demais princípios que forem pertinentes.
O objetivo dos princípios não é estabelecer uma normatização objetiva
e previsível. A sua grande riqueza está exatamente na maleabilidade que
propicia em relação às demais normas do ordenamento jurídico e diante das

7
Para este tópico, é essencial a remissão à obra de BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação,
racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
8
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998: interpretação e crítica. 2. ed.
São Paulo: RT, 1991. p. 114.

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situações complexas da vida, insuscetíveis de serem resolvidas pela singela


aplicação de regras lógico-subsuntivas.
Os princípios não estabelecem que, ocorrendo tal fato, será aplicada de-
terminada sanção ou concedido certo benefício. Possuem um papel estrutu-
rante da ordem jurídica e da organização estatal como um todo; estabelecem
os pensamentos diretores do ordenamento das instituições, inclusive do pró-
prio Estado, de uma disciplina legal ou de um instituto jurídico.9
São os princípios que, pela abstração semântica em que são formulados,
podem dar liga e unidade ao sistema jurídico, permeando todas as demais
normas jurídicas, consubstanciando valioso elemento de interpretação e inte-
gração do direito.
A importância dos princípios constitucionais é ainda maior, vez que es-
praiam a sua força não apenas na própria Constituição, como também, pela
supremacia desta, em todo o ordenamento jurídico estatal, inquinando de in-
constitucionalidade os atos que os contrariarem.
É comum que mais de um princípio seja aplicável à mesma situação
concreta. O hermeneuta, todavia, deverá adotar metodologia diferente da que
emprega quando diante de (meras) regras contraditórias, em que, salvo casos
excepcionais de diálogo das fontes, que não cabem aqui ser aprofundados, a
aplicação de uma deve necessariamente implicar a exclusão da outra.
Em se tratando de conflitos entre princípios, devem eles ser ponderados,
buscando-se, sempre que possível, alcançar solução que não exclua por com-
pleto nenhum deles.

Assim, é possível que um princípio seja válido e pertinente a determi-


nado caso concreto, mas que suas consequências jurídicas não sejam
deflagradas naquele caso, ou não o sejam inteiramente, em razão da in-
cidência de outros princípios também aplicáveis. Há uma “calibragem”
entre os princípios, e não a opção pela aplicação de um deles.10

Nas palavras de Recasens Siches,11 um dos maiores filósofos que a Amé­


rica Latina já deu à ciência do direito,

9
LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Tradução de Luiz Díez-Picazo.
Madrid: Civitas, 1985. p. 14.
10
SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In: TORRES,
Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 52.
11
SICHES, Recasens. Los temas de la filosofía del derecho. Barcelona: Bosch, 1934. p. 102-103.

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uma relação jurídica, supõe uma situação participante de múltiplos


sentidos ou conexões estimativas, que são pertinentes ao Direito. Os
elementos de uma vinculação social contêm (positiva ou negativamen-
te) vários valores: a justiça exige que o direito regule essa situação de
maneira tal, que entre as concretizações de valores contidas em cada
sujeito se dê a proporcionalidade que existe objetivamente entre os va-
lores.

Atualmente, a ponderação é considerada técnica preponderante para a


resolução de conflitos entre princípios, embora tenha, desde a sua origem,
sofrido críticas de autores influentes como Jünger Habermas, Klaus Günther
e Friedrich Müller, que salientaram o risco de insegurança e decisionismo
judicial que dela adviria.12
Nesse sentido, as principais críticas feitas à ponderação fundam-se na
afirmação de ser uma técnica inconsistente do ponto de vista metodológico,
por trazer noções vagas, o que levaria a arbitrariedades nas decisões. Além
disso, seu uso desmedido arruinaria as conquistas asseguradas em um esta-
do democrático de direito e a segurança jurídica que dele decorre. Por fim,
argumenta-se que a aplicação do direito se transformaria em um novo pro-
cesso político, realizado por entes que não têm capacidade institucional para
reponderar livremente normas já ponderadas pelo legislador.
Com base nessas críticas, surgiram algumas teorias que se opõem à pon-
deração. Ana Paula de Barcelos divide-as entre aquelas oriundas da ideia de
limites imanentes, as relacionadas ao conceptualismo e as que propõem uma
hierarquização normativa.13 As duas primeiras negam, por diferentes razões,
a existência de conflito normativo, ao passo que a terceira reconhece a exis-
tência dos conflitos envolvendo direitos. Abordaremos tais teorias de forma
sucinta.
A primeira sustenta, em linhas gerais, que cada direito tem limites já con-
tidos, decorrentes de sua própria natureza, o que tornaria a ponderação no
caso concreto desnecessária. Porém, não apresenta um método específico para
determinar tais limites, relacionando-os com o senso comum, o que é insufi-
ciente enquanto parâmetro.

12
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006. p. 65.
13
BARCELOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005. cap. II e III.

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Como alternativa, o conceptualismo questiona a existência de direitos


fundamentais em oposição aos bens coletivos, afirmando que a noção de
direitos não reproduziria o desenvolvimento histórico, sendo uma construção
liberal e individualista, que entende os direitos como poderes individuais.
Os direitos fundamentais e os fins públicos, de acordo com essa visão, se
completam, afastando a possibilidade de conflito. Isso leva tal teoria a tam­
bém dispensar a ponderação, sob a premissa de que, se não há direitos como
noção autônoma, não pode haver seu conflito e não há por que se falar em
ponderação.
A hierarquização, em sentido contrário, reconhece a existência dos con-
flitos entre normas, mas propõe como solução um parâmetro objetivo, uma
tabela dispondo sobre a hierarquia normativa, de acordo com sua importân-
cia, incluindo as disposições constitucionais, o que de certa forma implica um
juízo de valor, uma ponderação, no processo de escalonamento das normas.
Não obstante esses movimentos, que apontaram para algumas fragilida-
des da técnica da ponderação, nenhuma alternativa eficaz foi apresentada, e
a verdade é que no Brasil a ponderação teve ampla penetração, tanto no meio
acadêmico como na práxis judicial, e contribuiu para o projeto de efetivação
do rol dos direitos da Constituição de 1988.
Somente agora, portanto, passada a euforia inicial, se começa a buscar so-
luções para corrigir os efeitos da sua utilização desbalizada, como a excessiva
subjetividade das decisões, inclusive com a blindagem de alguns princípios
ou valores, que subverte a própria lógica do sopesamento visado com a pon-
deração, e com o relegar das regras a um papel inteiramente secundário.

3. Blindagem de determinados valores

Determinados valores, até pela forte carga ideológica do “politicamente


correto” neles envolvida, costumam provocar adesões irrefletidas, basicamente
consistentes na genérica e mítica invocação exemplificativamente da “saúde
pública”, dos “direitos dos consumidores” ou do “interesse público”, e, ao
entrarem em ponderação com quaisquer outros valores envolvidos, tendem a
sempre prevalecer, ainda quando a Constituição já contenha regra específica
disciplinando a questão que foi pré-ponderada pelo constituinte.
Não que o Supremo Tribunal Federal (STF) deva desconsiderar no seu
mister, por exemplo, o “interesse público”, identificado, na dicção do art. 27

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da Lei no 9.868/1999, ao “interesse social”.14 Uma coisa é “considerar” para


efeito de ponderação os interesses públicos, estatais e/ou sociais, outra é partir
da sua suposta (e inexistente) preponderância principiológica.
Neste sentido, já se pronunciou o STF em acórdão da lavra do ministro
Celso de Mello:

Razões de Estado — que muitas vezes configuram fundamentos políti-


cos destinados a justificar, pragmaticamente, ex parte principis, a inacei-
tável adoção de medidas que frustram a plena eficácia da ordem cons-
titucional, comprometendo-a em sua integridade e desrespeitando-a
em sua autoridade — não se legitimam com o argumento idôneo de
sustentação da pretensão jurídica do Poder Público. Precedentes.15

Também o ministro Sepúlveda Pertence, certa feita, afirmou:

Verdadeiramente inconciliável com o Estado de Direito e a garan-


tia constitucional da jurisdição seria impedir a concessão ou permitir
a cassação da segurança concedida, com base em motivos de conve­
niência política ou administrativa, ou seja, a superposição ao direito do
cidadão das “razões de Estado”.16

Devemos ter em vista que

o interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos


pela Constituição que não podem ser separadamente descritos na
análise da atividade estatal e de seus fins. (...) Em vez de uma relação
de contradição entre os interesses privado e público há, em verdade,
uma “conexão estrutural”. (...) Interesse público como finalidade fun-
damental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre
o particular não denotam o mesmo significado. O interesse público e os

14
Para a distinção (ou melhor seria dizer “confusão”?) entre interesse público e termos seme­
lhantes como interesse social, interesse geral, interesse nacional etc., ver Luis de la Morena
y de la Morena, apud OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público
sobre o privado no direito administrativo brasileiro? Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 220, p. 69-107, abr./jun. 2000.
15
RE-269437/SP. Disponível em: <www.stf.gov.br>.
16
AGRSS-1149/PE. Disponível em: <www.stf.gov.br>.

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interesses privados não estão principialmente em conflito. Daí a afir-


mação de Häberle: “Eles comprovam a nova, aberta e móvel relação
entre ambas as medidas”.17

E mais, em uma sociedade complexa e pluralista não há apenas um in-


teresse público, mas muitos (preservação da saúde pública, liberdade de ex-
pressão, garantia dos melhores meios possíveis de sustentação dos órgãos de
imprensa, facilitação dos fluxos comerciais, combate ao déficit público, me-
lhoria e ampliação dos serviços públicos etc.),18 o que leva Odete Medauar a
observar que

a uma concepção de homogeneidade do interesse público, segue-se,


assim, uma situação de heterogeneidade; de uma ideia de unicidade,
passou-se à concreta existência de multiplicidade de interesses públi-
cos. A doutrina contemporânea refere-se à impossibilidade de rigidez
na prefixação do interesse público, sobretudo pela relatividade de todo
padrão de comparação. Menciona-se a indeterminação e dificuldade de
definição do interesse público, a sua difícil e incerta avaliação e hierar-
quização, o que gera crise na sua própria objetividade.19

Na maximização e absolutização de certos valores em detrimento de ou-


tros, negando a própria relatividade a eles todos intrínseca de acordo com a
própria teoria dos princípios, podem ser sobrelevados tanto valores ligados
à proteção da sociedade (segurança nacional, saúde pública, ordem pública,
moralidade pública etc.), como valores ligados à proteção dos indivíduos,
normalmente consubstanciados na indefectível invocação coringa da prote-
ção da dignidade da pessoa humana. Vejamos exemplos de exageros dos dois
opostos.

17
ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O direito público em tempos de crise.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 111-112.
18
“É possível, porém, identificar um interesse público universal, essencial? Curvar-se à
retórica do interesse público, sem atentar para a existência de uma multiplicidade de inte­
resses públicos, é submeter-se a um discurso político perverso e dissimulador.” (MENDES,
Conrado Hübner. Reforma do Estado e agências reguladoras. In: SUNDFELD, Carlos Ari
(Coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 104).
19
MEDAUR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: RT, 1992. p. 181-182.

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A sobrepujança na ponderação de interesses de argumentos retóricos em


prol de valores a priori hierarquicamente superiores a outros já possibilitou
nos EUA fortes restrições à liberdade de manifestação de ideias que fossem
consideradas esquerdistas (Dennis v. United States), bem como que cidadãos
norte-americanos de origem japonesa ficassem confinados em campos de con-
centração durante a Segunda Guerra Mundial (Korematsu v. United States). O
fundamento dessas decisões foi que, na ponderação entre os valores da segu-
rança nacional e da liberdade, deveria prevalecer aquele em detrimento deste.
Comentando o caso Korematsu v. United States, Daniel Sarmento analisa:

Discutia-se naquele processo, a constitucionalidade da lei federal que


estabelecera severas limitações à liberdade de locomoção de cidadãos
norte-americanos de ascendência japonesa, permitindo o seu confina-
mento em “centros de relocação de guerra”. Embora a jurisprudência
em vigor inclinasse-se no sentido da inconstitucionalidade das dis-
criminações fundadas em critério racial, a Suprema Corte manteve a
validade da lei impugnada, após ponderar a magnitude da restrição
à liberdade gerada pela norma, com a proteção à segurança nacional
que ela ensejava, já que à época era grande o receio de que os sino-
-americanos pudessem conspirar contra os Estados Unidos, na guerra
então travada com o Japão. Nesta lamentável decisão, o uso do método da
ponderação prestou-se à finalidade de coonestar juridicamente o confinamento
de cidadãos americanos em campos de concentração, emprestando legitimi-
dade constitucional a um verdadeiro crime de guerra.20

Já no outro oposto temos decisões que, invocando a proteção da dignida-


de da pessoa humana, não permitem que o fornecimento de serviços públicos
econômicos seja suspenso mesmo diante do inadimplemento reiterado do
usuário consumidor. Com base na dignidade da pessoa humana (art. 1o, III,
CF) e no art. 22 do CDC21 — que determina que os serviços essenciais22 devem

20
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000. p. 161, grifamos.
21
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou
sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,
eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único. Nos casos de des­
cumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas
compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
22
Quanto às atividades econômicas lato sensu qualificadas como serviços públicos, entende­
mos que todas elas devem ser consideradas “essenciais”, até porque, se não o fossem, seria

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ser contínuos —,23 defendem de maneira genérica a impossibilidade da dita


suspensão, afirmando ainda que o corte do fornecimento seria uma execu-
ção privada do próprio direito por parte da prestadora do serviço público,
desconsiderando todo um conjunto de regras legais, regulamentares e con-
tratuais já preexistentes que, permitindo a suspensão do fornecimento após
prévia notificação, ponderam os interesses do consumidor inadimplente e as
necessidades coletivas de equilíbrio econômico do serviço e dos consumido-
res adimplentes que acabarão arcando com os custos da inadimplência.24
São justamente decisões como essas que têm levado a doutrina a, sem
abandonar os avanços que os mecanismos metodológicos da ponderação de interesses
representaram em relação ao formalismo legalista, se preocupar com os desvios
que a excessiva subjetividade daquela metodologia pode trazer à decisão ju-
dicial, visando evitar que a mera invocação de valores metajurídicos como
segurança nacional, saúde pública, combate à criminalidade etc. possa tornar
plausível qualquer decisão.
Vejamos, a respeito, as advertências feitas por Humberto Bergmann
Ávila:25

inconstitucional sua qualificação como tal, que de regra implica inclusive sua retirada da livre
iniciativa, violando os princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade (GRINOVER,
Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto.
8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 215).
23
Invoca-se também, acessoriamente, o art. 42 do CDC: Art. 42. Na cobrança de débitos, o
consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem submetido a qualquer tipo de
constrangimento ou ameaça. Parágrafo único — O consumidor cobrado em quantia indevida
tem direito a repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso,
acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
24
Veja-se, por exemplo, o seguinte acórdão da Primeira Turma do STJ no RMS 8.915: “1. É
condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a res­
ponder penalmente. 2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato
administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente
na interrupção do fornecimento da mesma. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial
à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da
continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. Os arts. 22
e 42 do Código de Defesa do Consumidor aplicam-se às empresas concessionárias de serviço
público. 5. O corte de energia como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou
multa extrapola os limites da legalidade. 6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada
no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte,
em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios
constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 7. O direito do cidadão de se
utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado
com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza”. Para uma ampla exposição dessa posição,
ver ROCHA, Fábio Amorim da. A legalidade da suspensão do fornecimento de energia elétrica aos
consumidores inadimplentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
25
ÁVILA, Humberto Bergmann. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico.
In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Temas de interpretação de direito tributário. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 115.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO | Subjetividade judicial na ponderação de valores... 53

Deixar de fazer as devidas distinções entre os argumentos pode levar à


arbitrariedade argumentativa; e a arbitrariedade argumentativa conduz
à não fundamentação das premissas utilizadas na interpretação jurídi-
ca. Com efeito, tanto a ausência de definição dos argumentos utilizados
quanto a falta de diferenciação entre eles inserem, na interpretação ju-
rídica, o germe da ambiguidade e, com ele, a fonte da arbitrariedade.26

Robert Alexy, prócere da teoria dos princípios, manifesta a mesma preo-


cupação ao afirmar:

Em última análise, a decisão final é baseada em julgamentos de valor


não intersubjetivamente testados da pessoa que decide, que são o fa-
tor decisivo, julgamentos de valor que talvez possam ser explicados
em termos sociológicos ou psicológicos, mas que não podem ser jus-
tificados? Essa conclusão não é desejável na medida em que se refere
à legitimidade da tomada judicial de decisão e ao caráter científico da
dogmática jurídica em sua preocupação com as questões normativas.27

Por essas razões, a mais moderna hermenêutica tem formulado critérios


de identificação e categorização dos argumentos jurídicos eventualmente in-
vocáveis em uma questão constitucional, partindo, então, em um segundo
momento, para a enumeração de que espécies de argumentos devem ser con-
siderados prioritários sobre outros.28

26
“A mera menção a argumentos é artifício ineficaz para justificar minimamente uma inter­
pretação. Sob as vestes de uma ‘fundamentação’, pode a simplificação dos argumentos
esconder uma mera preferência. É dizer: escolher uma interpretação com base no capricho
(pura preferência), em vez de o fazer com algum fundamento racional (preferência fun­
damentada). Por isso a necessidade de uma sucessiva especificação dos argumentos, sem
a qual não há fundamentação intersubjetivamente controlável. E sem uma fundamentação
intersubjetivamente controlável não se concretiza o princípio do Estado de Direito, pela
ine­xistência de dois dos seus elementos essenciais: racionalidade do Direito e tutela plena
dos direitos” (Humberto Bergmann Ávila, Argumentação jurídica e a imunidade do livro
eletrônico, op. cit., p. 149 e 150, grifos nossos).
27
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. p 25.
28
Além dos autores citados neste texto, poderíamos aludir também, entre outros, a BYDLINSKI,
Franz. Juristiche Methodenlehre und Rechtsbegriff. Viena, Nova York: Springer, 1991; GUASTINI,
Riccardo. Distinguendo: studi di teoria e metateoria del diritto. Turim: Giappichelli, 1996;
MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Interpretation statutes: a comparative study.
Aldershot: Dartmouth, 1992.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
54 Re vi s t a d e D i r eit o Administ ra t iv o

Ávila apresenta sua solução para dar maior objetividade à fundamen­


tação jurídica das decisões jurídicas nos seguintes termos:

Propõe-se uma reclassificação dos argumentos jurídicos integrada com


uma utilização e valoração móvel e flexível desses mesmos argumentos
(...), harmonizando a necessidade de discernir os argumentos com a
importância de não separá-los por completo, diminuindo a inevitável
­subjetividade da interpretação sem enrijecer o pensamento para o futu-
ro. Com isso, poder-se-á abandonar qualquer simplismo na argumen-
tação jurídica, quer no sentido de reduzir o raciocínio jurídico à pura
lógica ou à pura interpretação literal, quer no sentido de circunscrever
a atividade interpretativa ao mero decisionismo ou à simples pondera-
ção de valores de natureza inexplicada.29

Colocadas essas necessidades metodológicas, passamos a demonstrar o


papel dos argumentos jurídicos ligados diretamente ao texto da regra espe-
cífica a ser aplicada sobre os argumentos metajurídicos ou mais genéricos e
subjetivos.

4. A prevalência da ponderação legítima feita pela regra sobre


outras possíveis ponderações

A organização dos argumentos jurídicos em ordem da sua maior ou me-


nor capacidade de prevalecerem sobre os demais é extremamente variada na
doutrina. A importância de tal esforço metodológico é, no entanto, pacífica.
Pacífica também é a prioridade que deve ser dada aos argumentos jurí­
dicos que mais possam ser objetivamente condivididos coletivamente, em
detrimento das afirmações genéricas mais ligadas às concepções pessoais e
ao perfil psicológico de cada julgador. Isso faz com que devam ser pres­ti­
giados os argumentos mais ligados ao texto da regra a ser aplicada do que os
argumentos de caráter não estritamente jurídico, da mesma forma que, em
um conflito entre regra e princípio da mesma hierarquia normativa, deve pre­
valecer aquela, que tem a natureza de uma prévia ponderação dos valores

29
Humberto Bergmann Ávila, Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico, op. cit.,
p. 115 e 116.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO | Subjetividade judicial na ponderação de valores... 55

envolvidos feita pelo poder político a priori legitimado para tanto (o Consti­
tuinte ou o Legislador). Em se tratando de interpretação constitucional, apenas
a ausência de regra constitucional específica pode abrir ao Poder Judi­ciário a
possibilidade de efetuar sua ponderação dos valores envolvidos na questão.
As ideias expostas não devem de forma alguma ser vistas como uma
supervalorização apenas da interpretação gramatical, que sempre estará in-
cindivelmente conectada com as demais espécies de interpretação;30 nem de
um direito desapegado dos valores, já que, no estado de direito, o papel de
pesar os valores em jogo é, por excelência, atribuído ao legislador ou ao cons-
tituinte, não ao órgão julgador. Em outras palavras, não se trata de desprezar
os valores envolvidos, mas sim de priorizar a regra constitucional que já os
ponderou previamente.
Nesse ensejo, demonstraremos a seguir as linhas gerais da categorização
e hierarquização de argumentos feitas por alguns autores de mais forte influ-
ência na cultura jurídica nacional.
Pioneiro entre nós, nesse particular, Humberto Bergmann Ávila coloca
na categoria principal de argumentos os ligados diretamente ao ordenamento
jurí­dico, que podem ser linguísticos, tanto da linguagem comum, como da lin-
guagem técnica; sistemáticos; históricos e de direito comparado; e genéticos,
relacionados aos trabalhos preparatórios do dispositivo a ser interpretado.
Em um segundo grupo em ordem de importância hermenêutica o autor
reúne os argumentos não ligados diretamente ao ordenamento jurídico posi-
tivo, por ele chamados de

argumentos não institucionais, que são argumentos meramente práti-


cos que dependem de um julgamento, feito pelo próprio intérprete, sob
pontos de vista econômicos, políticos e/ou éticos. As consequências da-
nosas de determinada interpretação e a necessidade de atentar para os
planos de governo enquadram-se aqui. (...) Aliás, justamente pela falta
de referência a pontos de vista objetivos ou objetiváveis, os argumentos
não institucionais nunca serão conclusivos, porque manipuláveis conforme os
interesses em jogo.31

30
Demonstrando que não estamos a sustentar a prevalência das interpretações “meramente
literais” das normas jurídicas, mister se faz lembrar que nos referimos à priorização da
interpretação do texto, que pode ser gramatical, teleológica, sistemática etc. Em outras
palavras, interpretação do texto não é equivalente à interpretação literal ou gramatical. O texto
pode ser interpretado gramatical, teleológica ou sistematicamente.
31
Humberto Bergmann Ávila, Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico, op. cit.,
p. 132 e 133, grifamos.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
56 Re vi s t a d e D i r eit o Administ ra t iv o

Por outro lado,

como consequência do princípio da separação dos poderes e do prin-


cípio democrático, é adequado afirmar que os argumentos institucio-
nais devem prevalecer sobre os argumentos não institucionais. Os ar-
gumentos institucionais possuem como ponto de referência o próprio
ordenamento jurídico. É precisamente o ordenamento jurídico que
permite uma argumentação intersubjetivamente controlável. Os argu-
mentos não institucionais, ao invés de permitirem um debate objetiva-
mente concebível, apoiam-se exclusivamente em opiniões subjetivas e
individuais, contrapondo-se, portanto, às exigências de racionalidade e
de determinabilidade da argumentação, ínsitas ao Estado Democrático
de Direito. (...) Os argumentos institucionais devem prevalecer sobre
os argumentos não institucionais. (...) É preciso dar prevalência aos ar-
gumentos que se deixam reconduzir aos princípios inerentes ao Estado
Democrático de Direito, como o são os argumentos linguísticos e siste-
máticos.32

A invocação da “saúde pública” como meio de justificar qualquer restri-


ção ou ablação da propaganda de produtos derivados do tabaco, por exem-
plo, é um típico caso de tentativa de fazer prevalecer um argumento não
institucional sobre um feixe harmônico de argumentos institucionais, calca-
dos diretamente na regra jurídica positiva e objetiva do art. 220, §4o, CF, que
já pondera, da maneira então determinada pelo Constituinte, o valor “saúde
pública” com o da “liberdade de expressão comercial”.33

32
Humberto Bergmann Ávila, Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico, op. cit.,
p. 143, 144 e 150.
33
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta
Constituição. (...)
§3o — Compete à lei federal:
I — regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre
a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua
apresentação se mostre inadequada;
II — estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se
defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto
no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos
à saúde e ao meio ambiente.
§4o — A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos
e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e
conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO | Subjetividade judicial na ponderação de valores... 57

Um feliz exemplo de adoção da correta metodologia jurídica em relação


à invocação do argumento não institucional da “saúde pública” foi dado pelo
Superior Tribunal de Justiça (STJ), que expressamente afirmou, ao conceder
provimento cautelar para impedir a produção de efeitos de ato da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que a mera invocação de argumen-
tos de “saúde pública” não pode servir de biombo para a imposição de qual-
quer ato despropositado às empresas reguladas:

Não se pode atribuir conotação maquineísta e discriminatória aos inte-


resses comerciais da empresa requerente, tão-só porque confrontados,
na espécie, com os sagrados princípios que dizem o direito à vida e
à saúde da população brasileira, dos quais se coloca como guardiã a
Agência requerida.
Por mais sensível que seja o tema, não pode o julgador partir do pres-
suposto de que são inconciliáveis os direitos e interesses debatidos na
lide, sob pena de restar comprometida a realização da justiça.34

O que deve ser frisado é que não se está a descartar a possibilidade de


interpretações evolutivas da Constituição, que devem, no entanto, ser sem-
pre consentâneas com sua letra, que constitui o início e o limite, negativo e
positivo,35 de toda interpretação.36 “As palavras têm sentidos mínimos que de-
vem ser respeitados, sob risco de se perverter o seu papel de transmissoras de
ideias e significados.”37 Fazendo uma analogia com a interpretação musical, a
partitura de La marseillese pode ser tocada de várias formas, mas não a ponto
de ser transformada no Guarani: aí já teríamos outra canção, não mais uma das
possíveis interpretações do hino nacional francês.38

34
Agravo regimental na medida cautelar. Processo no 200300228928, 2a Turma do STJ, j. em
12.8.2003 (DJ, 29.9.2003).
35
Negativo porque não se pode violar o texto, positivo porque deve também se justificar no texto.
36
“O que está para além do sentido literal linguisticamente possível e é claramente excluído
por ele já não pode ser entendido, por via da interpretação, como o significado aqui decisivo
deste termo. Diz acertadamente MEIER-HAYOZ que o ‘teor literal tem, por isso, uma dupla
missão: é ponto de partida para a indagação judicial do sentido e traça, ao mesmo tempo, os
limites da sua atividade interpretativa’. Uma interpretação que se não situe já no âmbito do
sentido literal possível, já não é interpretação, mas modificação de sentido” (LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997. p. 453-454, grifamos).
37
BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva,
1996. p. 122.
38
“A lei, ao regulamentar os direitos individuais, não pode constitucionalmente mudar a sua
essência, ou seja, não pode mudar o que constitui condição inseparável deles. Toda mudança

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
58 Re vi s t a d e D i r eit o Administ ra t iv o

Friedrich Müller valoriza os argumentos calcados na interpretação dos


textos normativos em detrimento dos argumentos não ligados diretamente
ao texto da norma em virtude não apenas de uma necessidade metodoló-
gica, mas por imposição constitucional decorrente da vinculação do Poder
Judiciário à Constituição.
Nas palavras do autor,

em uma sociedade cujo direito constitucional é largamente codificado,


já está com antecedência decidido que os textos das normas exercem
um papel privilegiado no trabalho de concretização do Direito. O fato
de o texto da norma ser particularmente importante é consequência, de
um lado, do direito constitucional em vigor (e também do imperativo
geral não escrito de determinabilidade resultante do Estado de Direito),
e, de outro lado, da opção tomada de se adotar uma Constituição escri-
ta. Assim, esse lugar privilegiado do texto não deve ser explicado ape-
nas pela especificidade metodológica da interpretação gramatical em
si, já que os procedimentos da metodologia do direito, enquanto regras
da arte da prática jurídica, não possuem por si próprios qualquer cará-
ter normativo. (...) O limite posto pelo texto representa o limite traçado
pelos princípios da democracia e do Estado de Direito, ao qual deve
se ater, não a aplicação metodologicamente possível do Direito, mas a
aplicação juridicamente regular do Direito.39

Já os argumentos não ligados ao texto da norma, como os elementos da


teoria ou de política jurídica,

não têm, ainda que em alguns casos a sua prevalência seja dissimulada,
qualquer função além de auxiliares de esclarecimento e de apoio à
aplicação do Direito que tenha sido realizada com base nos textos das
normas em vigor. (...) Em razão dos imperativos de clareza e de deter-
minabilidade impostos pelo princípio do Estado de Direito, o texto da

de essência no direito individual teria como consequência alterá-los.” (MALJAR, Daniel


Edgardo. Intervención del Estado en la prestación de servicios públicos. Buenos Aires: Hammurabi,
1998. p. 119).
39
MÜLLER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Tradução de Olivier Jouanjan. Paris:
Presses Universitaires de France — PUF, 1996. p. 238, 239 e 243.

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ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO | Subjetividade judicial na ponderação de valores... 59

norma constitui, em caso de conflito, o ponto de referência prioritário


da aplicação do Direito, na medida em que ele fixa os limites das possi-
bilidades lícitas de decisão. O texto não é a lei, mas, enquanto dado de
partida do processo de interpretação, uma prefiguração da lei. (...) Não
se pode ir contra a função limitadora do texto da lei invocando textos
que não são textos de normas jurídicas.40

Na mesma esteira, Robert Alexy estatui de forma assemelhada que “os


argumentos que dão expressão a um elo com as verdadeiras palavras da lei,
ou com a vontade do legislador histórico, têm precedência sobre os outros
argumentos (...)”.41
No extremo, a suposta aplicação da Constituição que não dê o devido
valor ao seu texto, dando mais importância a concepções filosóficas ou sociais
exógenas, pode levar a existência de restrições a direitos não albergadas cons-
titucionalmente. A invocação formal da Constituição serviria apenas para que
o operador do direito impusesse suas convicções pessoais ou coletivas sobre
os particulares. Substancialmente, a restrição adviria da vontade do agente
público, não da Constituição, ou seja, do seu texto.
Quanto à interpretação dos direitos fundamentais, uma das mais
im­portantes consequências dessa metodologia é que “Devem ser totalmente
descartadas as condições não escritas que poderiam levar à restrição de cer-
tos direitos fundamentais; as leis que podem restringir direitos fundamentais
submetem-se a uma necessidade suplementar de prévia previsão constitucio-
nal explícita”.42

5. Índices de capacidade institucional decisória

Ademais, ainda que se considere que o agente público ou julgador age,


afastando-se do texto para efetuar o que, a seu ver, promoveria maior concre-
tização da Constituição, deve-se ter em conta o alerta de Frederick Schauer,
segundo o qual nem todos os indivíduos são dotados de sensibilidade

40
Ibid., p. 259, 325 e 327. Veja também p. 323 e 324.
41
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da jus­
ti­ficação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. p. 239.
42
Friedrich Müller, Discours de la méthode juridique, op. cit., p. 270 e 336.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
60 Re vi s t a d e D i r eit o Administ ra t iv o

s­ alomônica para decidir com base em justificações de fundo desatreladas de


previsões expressas.43 Dessa maneira, por melhores que sejam as intenções, os
erros podem advir da própria inaptidão de certos agentes para considerações
abstratas, não explicitadas por meio de regras.
Segundo o autor, o melhor entendimento interpretativo que pode advir
de uma escolha sistêmica é a obediência ao significado claro das palavras,
mesmo diante de argumentos plausíveis para fazer o contrário, atitude que
ele define como constitutiva do raciocínio formalista.44 Isso porque, de acordo
com Schauer,

uma vez que se reconhece que o debate acerca do formalismo no Direito


Constitucional não é apenas um debate sobre dar ou não poder a juízes,
mas também sobre dar ou não poder a presidentes, generais, almiran-
tes, sargentos, membros de ministérios, membros do Congresso, regu-
ladores, burocratas, prefeitos, vereadores e policiais — a questão do
formalismo é vista não apenas como sendo empírica (e preditiva), mas
um exemplo de forma familiar de teoria de decisão, o design de institui-
ções que tomam decisões em condições de incerteza.

Nessa senda, chama-se atenção para o debate acerca das capacidades ins-
titucionais de cada intérprete. Cass Sunstein e Adrian Vermeule afirmam que

o formalismo pode ser aceito não porque a Constituição o requeira (e


não o faz), e não porque o formalismo seja requerido por um entendi-
mento adequado do conceito de lei (não é), mas quando e porque formalis­
mo é o melhor caminho para juízes generalistas que estão frequentemente
desequipados para decidir acerca das políticas públicas em questão.45

43
SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosophical examination of rule-based decision-
making in law and in life. Nova York: Oxford University Press, 1991. p. 151.
44
Id. Formalism: legal, constitutional, judicial. In: WHITTINGTON, Keith; KELEMEN, R.
Daniel; CALDEIRA, Gregory A. The Oxford handbook of law and politics. Nova York: Oxford
University Press, 2008. p. 431-433.
45
SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian. Interpretation and institutions (July 2002). U Chicago
Law & Economics, Olin Working Paper n. 156; U Chicago Public Law Research Paper n. 28.
Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=320245>. Acesso em: 13 ago. 2012.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO | Subjetividade judicial na ponderação de valores... 61

Em síntese pertinente, Luís Roberto Barroso aduz que

capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está


mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria.
Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande comple-
xidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por
falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de
efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis pode recomendar uma
posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por
vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a
justiça do caso concreto, a microjustiça,46 sem condições, muitas vezes,
de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico
ou sobre a prestação de um serviço público.47

Com efeito, tais observações são válidas não só para os juízes quando
confrontados com pré-ponderações realizadas pelo legislador, mas também
para outros agentes que interpretam e aplicam a lei no caso concreto, como
já evidenciamos com as ideias trazidas por Schauer. No exemplo relatado an-
teriormente, relativo à propaganda de produtos derivados do tabaco, tanto
a Agência Reguladora quanto o juiz e o próprio Legislativo devem ser de-
ferentes à pré-ponderação realizada pelo constituinte originário, não só por
constar do texto que se encontra hierarquicamente acima no ordenamento
jurídico, mas também, se assim não o fosse, por contar com as peculiaridades
do processo constituinte, que envolve o debate e a composição entre grupos
de interesses, além de altíssima credencial democrática.
Toda aplicação de normas jurídicas gera uma atividade discricionária,
pois sempre haverá mais de uma interpretação plausível a ser adotada. A
escolha entre uma delas é uma atividade discricionária. Porém, os operadores

46
BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de di­
reitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático.
Revista de Direito do Estado, v. 3, n. 17, p. 34, 2006. Sobre o tema, ver SARMENTO, Daniel.
Inter­pretação constitucional, pré-compreensão e capacidades institucionais do intérprete. In:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Coord.).
Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008. p. 317: “Uma teoria
hermenêutica construída a partir de uma imagem romântica do juiz pode produzir resultados
desastrosos quando manejada por magistrados de carne e osso que não correspondam àquela
idealização...”.
47
BARROSO, Luiz Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no
Brasil contemporâneo. RDE, Revista de Direito do Estado, v. 21, p. 82-122, 2011.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
62 Re vi s t a d e D i r eit o Administ ra t iv o

do direito estão jungidos a aplicar uma entre as interpretações que sejam


plausíveis de acordo com a ciência do direito.
A palavra final sobre qual das interpretações plausíveis deve prevalecer
e até mesmo sobre quais delas são plausíveis não pode, em face da garantia
constitucional de acesso à justiça, ser a priori retirada do Judiciário, até porque
ele é o juiz da própria competência e apenas as suas decisões transitam em
julgado. Por mais que discordemos dela e a critiquemos,48 ela que é o direito
posto, pelo menos para aquele caso concreto.
O Poder Judiciário, no entanto, historicamente e no direito comparado,
tem, sob os mais variados fundamentos ou pretextos práticos e teóricos, ado-
tado uma posição preferencialmente de deferência com as decisões tomadas
pela administração pública.
Em outras palavras, o Judiciário, constitucionalmente, pode controlar
quais­quer atos e comportamentos da administração e do legislador, mas deve
ser observada a política judiciária por ele próprio adotada de, diante de certos
casos, não se imiscuir na decisão tomada pela administração.
Mas essa deferência do Judiciário com as decisões administrativas e le-
gislativas, muito mais do que uma invocação de figuras como discricionarie-
dade e vinculação, ainda em voga, mas que nunca foram satisfatoriamente
diferenciadas na prática, será tanto maior quanto mais e em mais forte grau
estiverem presentes elementos como os seguintes: capacidade institucional
do órgão emissor do ato (órgão colegiado, capacidade técnica, independência
etc.); grande densidade normativa da norma a ser aplicada; consequências
gerais e futuras (prospectivas), para quem não é parte naquele específico pro-
cesso, da decisão que vier a ser tomada; caráter técnico do ato sob controle;
natureza colegiada da decisão; maior ou menor identidade do caso concreto
com a hipótese de incidência abstratamente prevista na lei; a pouca magnitu-
de dos direitos restringidos pela norma (por exemplo, se nem forem ligados
à dignidade da pessoa humana); da higidez do processo administrativo ou
legislativo que o precedeu, inclusive se teve audiências ou consultas públicas,
se estas tiveram participação significativa etc. Quanto mais esses fatores esti-
verem presentes, maior preferência deve o Judiciário dar às decisões tomadas
pelo legislador ou pela administração.

48
É comum ser ouvido na imprensa o chavão de que decisão do Judiciário se cumpre, não se
discute. Apenas a primeira parte da frase é correta: a decisão judicial tem que ser absolutamente
cumprida, mas, concomitantemente, como qualquer ato público, também extremamente
debatida.

rda – revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, p. 41-65, set./dez. 2014
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO | Subjetividade judicial na ponderação de valores... 63

6. Conclusão

Com vistas a reduzir a esfera de subjetividade do juiz e do administrador


e evitar a blindagem de determinados conceitos, ainda que com certos parâ-
metros estabelecidos pela doutrina, não se pode aplicar a ponderação imode-
radamente como técnica decisória quando houver REGRA expressa razoável
sobre a matéria, ainda mais quando a própria regra integrar a Constituição.
A deferência aos enunciados normativos é pertinente e se justifica não
por mero formalismo, mas porque a ponderação já foi realizada quando da
edição da norma, pelo constituinte (quando se tratar de norma constitucional)
ou pelo legislador (quando se tratar de norma infraconstitucional), e até mes-
mo pela administração pública. Logo, utilizar ponderação para decidir nos
casos em que já há regra tutelando determinado direito seria reponderar valores
já ponderados.
Assim, longe de proclamarem um desapego aos valores ou o abando-
no da ponderação como técnica decisória, as ideias aqui defendidas devem
mostrar-se como uma tentativa de evidenciar que, em um estado democrático
de direito, é preciso que sejam levadas a sério, pelos órgãos julgadores e apli-
cadores do direito, as ponderações previamente realizadas pelo legislador ou
constituinte, expressas por meio do texto normativo.

Referências

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional


como teoria da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild
Silva. São Paulo: Landy, 2001.

ÁVILA, Humberto Bergmann. Argumentação jurídica e a imunidade do livro


eletrônico. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Temas de interpretação de direito
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