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“Simplesmente porque eu não sou prostituta!


Katia V. C. Veloso¹
É comum as pessoas comentarem que quando profissionais de uma mesma área
se encontram, em um determinado momento, o assunto acaba se voltando para o
desenvolvimento das suas atividades profissionais. Com professores não é diferente,
mesmo estando de férias. Durante um almoço, conversando com uma amiga (que
também é professora), o assunto trabalho veio à tona. Mas o inusitado nesse caso ficou
por conta do teor desse diálogo.
Minha amiga me disse que uma aluna da série anterior da qual ela leciona foi
indagá-la se ela seria a professora dela em 2012 e obteve a seguinte resposta: “Não
minha cara, não serei sua professora porque simplesmente não sou mais prostituta!”.
Se eu praticamente engasguei com o meu lanche ao ouvir a resposta, fico imaginando
a expressão da aluna naquele momento.
“Como assim?” – perguntei, “O que você quis dizer com isso?” - E ela
explicou.
Segundo ela, em mais de 15 anos lecionando para alunos nas séries de transição
(8º, 9º ano do EFII e 1º e 2º EM), nenhum ano foi tão difícil como o ano passado
(2011). Além das adversidades que geralmente se apresentam no dia a dia do educador
– cobrança tanto da escola quanto dos pais, material defasado, falta de recursos, etc –
houve uma em destaque que a fez se sentir completamente desmotivada – a total falta
de interesse dos alunos.
Imagino que nesse ponto, alguns leitores-educadores possam pensar que isso
não seja motivo o suficiente para desanimar, afinal de contas, é papel do professor
encontrar maneiras e ações que possam motivar seus alunos e então desenvolver o
processo ensino-aprendizagem recheado de significação para o jovem aprendiz.
Concordo. Mas ela continuou na sua argumentação.
Ela disse que: “Sempre houve alunos desinteressados, mas a diferença é que
esses alunos eram a minoria e a falta de interesse era algo considerado errado e um
problema a ser solucionado. Mas ultimamente houve uma inversão de conceitos (ou
será de valores?). A maioria dos alunos não faz a lição, não trazem o material ou não
fazem o mínimo esforço para participar da aula. Por mais que o professor se empenhe
e seja o tal “professor-show”, o resultado não é obtido. Por mais que o professor
faça, há aquela parcela que é única e exclusivamente do aluno e todos devem fazer
sua parte para atingir o objetivo almejado.”
E complementou seu pensamento – “Isso não é simplesmente uma falta do
aluno, aliás, ele talvez seja o menos responsável por toda essa situação. O que mais
desanima e ouvir os responsáveis (pais) que o filho não faz a lição porque ele está
treinando muito, porque ele faz cursinho, porque são muitas atividades para ele fazer
com tão pouca idade, porque ele está cansado ou que o professor é exigente demais.
Há uma conivência com o comportamento desse aluno, inclusive por parte da escola
que já chegou até mesmo a pedir para verificar a situação (isto é, a nota mesmo) de
um determinado aluno e se não seria possível “dar um jeito”. Pois é isso que
“continuamos” a ensinar, o famoso “jeitinho brasileiro”. E esse ensino ocorre de
forma velada, quase imperceptível, mas ele está, através do exemplo de nossas ações.
O aluno não é burro, ele sabe perfeitamente qual é a sua situação (sabe que não fez
nada e que não deveria passar de ano), portanto ele percebe quando o tal “jeitinho”
de fato é dado. Já fomos tão prejudicados pela famosa filosofia de Gerson, mas
parece que isso está tão enraizado na nossa conduta que me pergunto: será possível
nos livrarmos desse mal algum dia?”
Confesso que não respondi a questão e ainda devolvi outra: “Sim, mas e a
menina da série anterior? Ainda não entendi.” Talvez fosse melhor se eu tivesse
deixado a conversa fluir, sem voltar no ponto inicial...teria me rendido uma noite de
sono!
Respondendo minha questão, ela disse: “Ah sim, a menina. Pois bem. A série na
qual ela se encontra foi a que mais apresentou problemas na escola desde que eu
leciono lá. Problemas de todos os tipos, desde comportamentais dentro da sala de
aula, como desrespeito aos professores e até mesmo fora da sala de aula, com
provocações e até brigas de fato com alunos da série seguinte. Mas ainda vem o pior,
a grande maioria desse comportamento foi amparada pelos pais e pela escola, sendo
a atitude da escola a mais grave, porque em determinado momento até houve alguma
providência, mas depois voltavam atrás na decisão. Seria melhor se simplesmente
tivessem deixado como estava. Portanto não pretendo passar mais um ano lecionando
para alunos que não têm interesse em aprender e que ainda são recompensados por
tal comportamento. Trabalhar dessa forma é como uma prostituição...você se vende,
isto é, deixa de fazer aquilo que você acredita por um determinado salário no fim do
mês. Você sabe que não está atingindo o resultado que deveria e que realmente tem o
potencial para desenvolver, não consegue mudar o sistema e ainda sim permanece
nele...você está se vendendo. A maioria das pessoas se chocam com a prostituição
física. Mas há outras formas de prostituição que deveriam chocar tanto quanto. Por
isso respondi que não iria mais lecionar porque decidi que não iria continuar a me
prostituir, só isso!”
Continuamos almoçando, o dia transcorreu normalmente, mas quando a noite
caiu foi inevitável não pensar na nossa conversa. Eu entendi a posição dela, mas foi a
comparação que ela fez que me deixou intrigada.
Quero deixar bem claro que não tenho nada contra as pessoas que resolveram
seguir esse caminho da prostituição, pois cada um sabe de si e não cabe aqui tecer
qualquer julgamento. Aliás, pelo contrário. Tendo tido a oportunidade de visitar o
bairro da Luz Vermelha (The Red Light District) em Amsterdã mais de uma vez, pude
constatar que, pelo menos lá, prostituição é coisa séria. As mulheres alugam seu
espaço (como se fosse seu escritório) e oferecem seus serviços legalmente. Elas têm
garantido pelo governo holandês assistência médica, direitos trabalhistas e também a
fiscalização para que haja boas condições de trabalho. Por um instante eu tive a nítida
sensação de que a situação das prostitutas de Amsterdã é melhor do que a da minha
amiga. Elas exercem a sua profissão, possuem o apoio do governo e há um consenso
no exercício da sua profissão pelas pessoas envolvidas.

Minha amiga estava se sentindo sem apoio, não havia o consenso das pessoas
envolvidas e o que é pior, ela estava violentando a si própria ao exercer a sua profissão
e ter que agir contra o que acredita, quando por exemplo, foi chamada para “dar o tal
jeitinho”. Confesso que no fundo, neste ponto da reflexão, eu até achei um tanto
quanto engraçado. Mas como toda reflexão, que pode até começar de forma cômica, há
o momento do questionamento. Quantas vezes deixamos de lado nossos princípios ou
aquilo que acreditamos por algum tipo de favorecimento? Tal atitude pode ser tomada
de forma inconsciente ou até mesmo imposta pela necessidade ou pela automação do
desenvolvimento das atividades profissionais. Mas ainda assim é uma forma de
prostituição.
Durante nossa vida temos oportunidades que nos são proporcionadas para que
haja um recomeço e muitos artigos incentivam que as pessoas sigam seus princípios,
que cada um corra atrás do seu sonho, que seja empreendedor. Creio que tal indicação
não poderia ser mais apropriada para minha amiga. Embora ela seja uma educadora
querida pelos alunos, preocupada com sua prática e que sempre se mantém atualizada
em relação a sua formação; como diria Drummond de Andrade no seu poema A Hora
do Cansaço, acredito que ela esmaeceu ao se cansar e todos nos cansamos, por um ou
outro itinerário. E esse cansaço foi responsável pelo seu desânimo e até o presente
momento, pela sua desistência.
Neste ponto gostaria de dividir minha reflexão: seja por cansaço, por
necessidade, por opção (ou falta dela), você, alguma vez, já se prostituiu?

¹ Katia Verginia Cantão Veloso


Coach Educacional e Formadora
kathiaveloso@yahoo.com.br

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