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Resumo
Palavras-chave
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 427-444, set./dez. 2007 427
Children’s narratives: a case study at an institution of
early childhood education
Abstract
Keywords
Contact:
Tizuko Morchida Kishimoto Children’s narratives – Project-based approach – Binary thinking –
Faculdade de Educação da USP
Av. da Universidade, 308/Depto EDM Scaffolding.
05508-040 – São Paulo – SP
e-mail: tmkishim@usp.br
428 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 427-444, set./dez. 2007
Objetivos do estudo de caso Adota-se o conceito de profissionalização,
proposto por Day (1999), Hargreaves (1994),
As escolas municipais de Educação Infantil Fullan e Hargreaves (2000), de professores refle-
em São Paulo não têm especificidade. Caracteri- xivos e proativos, que têm voz e saberes, opon-
zam-se pelo modelo tradicional, adultocêntrico, do-se à tradição de excluí-los das decisões do
de concepções e práticas que reproduzem formas cotidiano. Dewey (1959; 1955) já mencionava, no
de organização dos espaços e dos tempos peda- início do século XX, a importância da reflexão,
gógicos, similares ao do Ensino Fundamental: não como ato individual, mas cooperativo, como
salas com mesas e cadeiras, quadro negro que aprendizagem ampliada em contexto democráti-
ocupa toda parede, alfabeto no topo, armários co. As culturas colaborativas (Hargreaves, 1994;
fechados, para um agrupamento massificado de Fullan; Hargreaves, 2000; Lima, 2002) favorecem
35 a 40 crianças de quatro a seis anos e um aprendizagens de melhor qualidade, geram con-
adulto, atividades fragmentadas, que focalizam fiança profissional e capacidade dos professores
conteúdos curriculares sem participação da crian- de iniciarem e responderem às mudanças. Outro
ça, acrescido de um sistema perverso de três eixo para a profissionalização no campo da Edu-
turnos diários (Kishimoto, 2001; Gomes, 2005). cação Infantil é a compreensão das peculiarida-
Em uma dessas escolas, após um perío- des das pedagogias da transmissão e da partici-
do de formação, uma professora enfrenta resis- pação para a construção de sua práxis.
tências, mas faz inovações, alterando sua prá- Nas instituições infantis, a Pedagogia Tra-
tica. Nesse processo, suas crianças conduzem dicional enclausura a criança no espaço físico da
projetos, entre os quais o da construção de uma sala, com mesas e cadeiras, armários fechados e a
bruxa, com caixas de papelão, que estimula a direção do adulto em todo o processo educativo.
expressão de narrativas infantis. As Pedagogias de Participação, também conheci-
O objetivo é investigar, com base na das como construtivistas ou socioconstrutivistas,
teoria de J. Bruner, as concepções subjacentes ancoram-se em ambientes educativos abertos,
às inovações e às características das narrativas cooperativos, baseadas em concepções de criança
infantis que acompanham o projeto das bruxas e de educação nas quais as ações são partilhadas.
no interior de um processo que integra a for- Aprende-se em um mundo de interações com
mação, a pesquisa e a inovação. pessoas e objetos, em contextos sociais e culturais.
Entre as pedagogias da infância que es-
Quadro teórico timulam a participação (Oliveira-Formosinho;
Kishimoto; Pinazza, 2007), encontram-se duas
O estudo focaliza uma profissional em modalidades divulgadas em nosso país e que
formação dentro de um paradigma participativo, são objeto deste estudo: High/Scope e Aborda-
defendido por vários autores entre os quais gem de Projetos.
Pascal, Bertram e Ramsden (1994) e Pascal e O High/Scope (Hohmann; Banet; Weikart,
Bertram (apud Oliveira-Formosinho; Formosinho, 1995; Hohmann; Weikart, 1997; Post; Hohmann,
2001), em parceria com universidade, escola 2000), que utiliza concepções de Piaget e
infantil, professores, crianças e suas famílias e Smilanski, tem como pressupostos: a organização
que constrói uma pedagogia da infância que de experiências-chave, a aprendizagem pela ação,
orienta suas práticas. A formação é um concei- a interação adulto e criança, as áreas de aprendi-
to dinâmico, que pressupõe o aperfeiçoamento zagem, os registros; e o planejar, fazer e rever. A
profissional, pela reflexão sobre a prática peda- reorganização do espaço físico, em áreas de
gógica, como condição para que se alcancem aprendizagem, facilita a ação protagonizada das
níveis mais elevados de serviços educativos (Oli- crianças que desenvolvem experiências por elas
veira-Formosinho; Kishimoto, 2002). iniciadas. Essa abordagem, desde os anos 90
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do século passado, começa a fazer parte das Na segunda metade do século XX, influ-
reflexões dos profissionais da Educação Infantil enciado por Vygotsky, Leontiev e Bakhtin,
no Brasil. Bruner estuda abordagens que tratam a lingua-
Na Abordagem de Projetos, segundo Katz gem como artefato cultural. Mais recentemen-
e Chard (1997), “a principal característica [...] é te, preocupado com as formas específicas do
que ela é um esforço de pesquisa delibera- pensamento infantil, em Actual minds, possible
damente centrado em encontrar respostas para worlds, propõe a narrativa para dar sentido ao
questões levantadas pelas crianças” (p. 1). As mundo e à experiência da criança e alinha-se
crianças se empenham em resolver problemas de aos estudiosos que relacionam os contos de
seu interesse, com auxílio do professor. A Abor- fadas à cognição (Egan, 1991; 1995; Biddle;
dagem de Projetos tem bases teóricas sólidas em Good; Goodson, 2000).
Dewey (1924; 1954; 1955), seguida por muitos Como uma forma de discurso, que des-
outros, entre os quais Malaguzzi (2001), que creve fatos em seqüência do passado, real ou
propõe a tomada de decisões como um direito da imaginário (Bruner, 1996), a narrativa ocorre em
criança e a expressão de projetos por meio de linguagem articulada oral ou escrita, imagem
cem linguagens (Reggio Children, 1995; 1996). fixa ou móvel, gesto, mito, lenda, fábula, con-
Embora a maioria dos estudos sobre projetos to, novela, epopéia, história, tragédia, drama,
inclua esses teóricos, neste, utilizam-se concep- comédia, pantomima, pintura, vitral, cinema,
ções de Bruner, ainda pouco divulgadas, mas de histórias em quadrinhos, situações diversas e
grande relevância para a condução de projetos conversação (Barthes,1976).
que incluam narrativas infantis. A narrativa está presente na conversação,
As concepções brunerianas foram utiliza- no contar e recontar histórias, na expressão
das para a compreensão das ações das crianças gestual e plástica, na brincadeira e nas ações
que, após ouvir histórias sobre bruxas, constro- que resultam da integração das várias lingua-
em narrativas com diferentes linguagens. gens, dando sentido ao mundo e tornando
essencial sua inclusão no cotidiano infantil.
Concepções de J. Bruner Bruner (1986; 1996) valoriza as histórias
infantis, do gênero conto de fadas, porque ne-
Jerome Seymour Bruner tem vasta pro- las se encontra um formato, uma estrutura pré-
dução teórica sobre aprendizagem e desenvol- via, de tipo binário, de situações opostas, típi-
vimento infantil. Ele pesquisa como o bebê co do processo de categorização. A narrativa,
constrói seus saberes e elabora uma concepção como categorização, “exige discriminar diferen-
de aprendizagem por descoberta, que depende tes coisas como equivalentes, agrupar objetos,
da criança e do apoio do adulto; como a cri- eventos e povos em classes, em termos de mem-
ança representa o mundo, expressa saberes; e bros de classe” (Bruner; Goodnow; Austin, 1956,
como os contos de fadas contribuem para o p. 1). A categorização possibilita a aprendiza-
desenvolvimento de mentes narrativas. Dessa gem, porque identifica objetos do mundo, reduz
forma, cria espaço para delinear pedagogias que a complexidade do ambiente, mas requer moti-
favorecem a iniciativa da criança, o protagonismo, vos postos pela criança e estratégias para sua
a aprendizagem e a expressão do conhecimento, finalização. Para Bruner (1973), pensar é
pressupostos encontrados na Abordagem de Pro- categorizar e resolver problemas. No processo de
jetos. Por tais razões, o psicopedagogo, que categorização, a mente humana utiliza um sis-
atua na interface entre a psicologia e a educa- tema binário, similar ao computacional (perten-
ção (Cambi, 1999), é referência para a compre- cer ou não à categoria), mas vai além da infor-
ensão de práticas como a abordagem de pro- mação dada, utilizando inferências e indicações
jetos, relacionada com as narrativas infantis. do ambiente. Cada indivíduo constrói um siste-
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reconto da história de Branca de Neve e os como registram Kishimoto (2001) e Gomes
Sete Anões, no personagem Morena das Neves (2005) em pesquisas nas escolas municipais de
(Gomes, 2005). A estrutura binária: bom/mau, Educação Infantil na cidade de São Paulo.
certo/errado, presente nos contos e nas situa- Para Egan (1991), “o mítico é a primeira
ções vividas pelas crianças, facilita a elaboração forma de compreensão de quase tudo que tem a
e expressão de significados por sua ordenação ver com o pensamento humano” (p. 48). Há di-
em duas categorias: pertencer e não pertencer. ferenças entre a narrativa infantil e a dos mitos,
A incorporação de personagens do cotidiano mas ambas se desenvolvem na forma de históri-
infantil é prática comum nas histórias criadas as. No mito, a narrativa é carregada de sagrado,
por crianças de quatro a cinco anos do Colé- enquanto a da criança é marcada pelo contato
gio D. Pedro V, de Braga, Portugal, que inclu- com o cotidiano e suas histórias. No mito e nas
em a pesquisadora que as visitava na história narrativas infantis, há elementos organizadores
Tiuko e a sementinha. binários como medo/segurança, morte/vida.
As narrativas infantis que alteram a Para Egan (1991), na cultura oral dos
canonicidade das histórias tornam as crianças tempos homéricos, a aprendizagem se fazia em
protagonistas, construtoras de mundos reais e nível somático, para auxiliar a memorização. O
possíveis, relevantes e dignos de serem conta- jogador utilizava um instrumento, como o tam-
dos, ensejando a intertextualidade, a criação de bor, cuja percussão reforçava o ritmo da decla-
textos que integram elementos de várias histó- mação. O público, convidado a viver o relato,
rias infantis, o que pressupõe a mediação do não ficava passivo, mas recriava movimentos. O
adulto, que disponibiliza o acesso ao mundo ritmo acústico, acompanhado pelo instrumen-
da cultura adulta. Assim, as narrativas infantis to, apoiava-se nos movimentos rítmicos do
são também ferramentas para desvendar o corpo e da história, que levavam os participan-
mundo encantado dos contos de fadas. tes a criarem conexões. Dessa forma, o corpo
A preocupação de Bruner (1965) com os todo se envolve na memorização. Perspectiva
processos intuitivos e criativos da mente já similar aparece em Siegler (1978), para quem a
aparece em On knowing: essays for the left mente infantil se desenvolve pela memória, com
hand , obra destinada à mão esquerda, vista uso de habilidades/competências do corpo.
como menos ordenada, racional e metódica que Bruner vê a percepção como um proces-
a mão direita. O ensaio reflete o esforço pela so indissociável da cognição e da personalida-
formulação de uma concepção integrada do ser de. A maioria de seus estudos sobre percepção,
humano, como cientista, humanista e artista publicados entre 1946 e 1958, fase do New
(Anglin, 1973). Observando o lúdico na aquisi- Look (Kishimoto, 1976), indica que a memória
ção da linguagem, na comunicação entre adul- se integra à cognição. Posteriormente, em
to e criança, no seio de uma cultura, Bruner Studies in cognitive growth , Bruner (1966)
conclui que “as bases da educação são poéti- mostra como a criança vê seu mundo por for-
cas” (Apple apud Egan, 1991, p. 13) e que a mas integradas da ação (enativa), percepção
criança vive como poeta. Assim, para desenvol- (icônica) e linguagem (simbólica). Separar o
ver a compreensão poética, é necessário incluir movimento das percepções gráficas e da lingua-
a fantasia e construir teorias e práticas que a gem oral ou escrita é contrariar as formas de
estimulem. Huizinga (1951) já chamava a aten- representação do mundo da criança, que são
ção para a educação grega, que incorporava integradas, que resultam de atividades em con-
artes, poesia, música e lúdico. A tendência de texto, que são ferramentas para expressão de
excluir a fantasia, a narrativa e o jogo simbó- significações.
lico para valorizar a racionalidade é prática A representação enativa (movimento do
comum dos currículos infantis (Egan, 1991), corpo), repetição de movimentos, é uma forma de
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criança, especialmente com a mãe, dependen- jeto sobre histórias infantis. Classifica-se como
do das formas de maternagem. Ao pesquisar o um caso instrumental (Stake, 1995; Gómez;
papel da intencionalidade nas primeiras ações do Flores; Jiménez, 1999) ao fazer a leitura da
bebê, Bruner questiona educadores que de fora abordagem de projetos, na perspectiva de
para dentro querem ensiná-lo, contrariando sua Bruner, como relevante para a construção de
forma de aprender, que é por descoberta. narrativas. É também uma modalidade de inves-
As idéias de descoberta e motivação são os tigação cooperativa, envolvendo a pesquisado-
pilares de sua teoria de aprendizagem divulgadas ra, a coordenadora e a professora. Os dados
em The Process of Education (1960) e explicitadas foram coletados por questionários, avaliações e
em La Pédagogie par la Découverte (Shulman; entrevistas com a professora, imagens do coti-
Keislar, 1973). Os conteúdos culturalmente desti- diano infantil, portfólios e registros da coorde-
nados à educação do homem não se descobrem, nadora. A análise dos dados foi efetuada à luz
mas são transmitidos; a linguagem é uma inven- das concepções brunerianas definidas no quadro
ção humana transmitida pela cultura. É pela refle- teórico. A fidedignidade dos dados foi garanti-
xão sobre as próprias ações (self-loop), pelo ato da por meio da triangulação das fontes, como
intencional, motivado, que se constroem concep- entrevistas, avaliação e portfólio da professora,
ções com uso de informações que se transformam registros diversos e imagens. O período da pes-
em aprendizagem por descoberta. O aprender só quisa: janeiro de 2003 a maio de 2006.
tem significado quando se constrói, o que impli- O agrupamento, objeto do estudo, na
ca descobrir (Bruner, 1973). Aprender, descobrir e Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI)
construir fazem parte do mesmo processo. Benedicto Castrucci, na cidade de São Paulo, no
Se a boa aprendizagem conduz o desen- período das 15 às 19 horas, tem 36 crianças de
volvimento (Bruner, 1996), como atingi-la an- 4 anos. Maria Letícia atua na área há mais de 24
tes deste? anos, com 10 anos de trabalho nessa escola e
Sozinha, a criança não o consegue, mas se formação superior em Pedagogia. Já foi diretora de
o adulto coloca andaimes, uma forma de tuto- instituição infantil e dobra o período em outra
ramento, cria possibilidades para a aprendizagem unidade infantil pública, na cidade de Osasco-SP.
e para a construção do mundo. Para Goodman
(apud Bruner, 1986), não existe um mundo real Análise dos dados
independente da atividade mental e da lingua-
gem simbólica. O que se chama de mundo é um A nova prática de ouvir crianças, dar au-
produto de mentes humanas. Bruner (1986) des- tonomia, criar áreas de escolha de brincadeiras
creve como a realidade é construída pela mente resultou de concepções que a professora cons-
infantil nas narrativas, o que explica o título do truiu no curso de formação em contexto, coorde-
seu livro: Actual minds, possible worlds. Como nado pelo Grupo de Pesquisa: Formação em
construtivista convicto, Bruner (1996) acredita Contexto, da Faculdade de Educação da Univer-
que todo ser humano constrói-se e constrói o sidade de São Paulo, e que a levou a desconstruir
mundo pela ação e simbolização. a pedagogia tradicional (Santos, 2003a).
Ester Barocas, responsável pela formação,
Metodologia discutiu com as professoras dessa escola munici-
pal, durante o primeiro semestre de 2003, diver-
A investigação, de natureza qualitativa sas abordagens pedagógicas para infância, entre
(Denzin; Lincoln, 1998a; 1988b; 2000), foca- as quais o High/Scope e a Abordagem de Proje-
liza um estudo de caso, no qual a professora, tos, possibilitando à Maria Letícia compreender
em processo de formação, reorganiza sua prá- concepções que subsidiaram sua nova prática:
tica e conduz, junto com as crianças, um pro- papel mediador do adulto, autonomia da criança,
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go, 2003, p. 25). Uma das imagens divulgadas em or e a atual, com uso de uma escala com 5
maio traz a sala de atividade sem mesas e cadei- pontos, criada por Ferre Leavers (1994) e revis-
ras, organizada com áreas para brincadeiras simbó- ta por Pascal e Bertram (1999), destinada à ob-
licas. A mudança da pedagogia transmissiva para servação do envolvimento da criança e do empe-
outra, que elimina mesas e cadeiras e introduz nho do adulto. Nesse caso, três questões foram
áreas como cozinha e quarto, construção, artes, lin- objeto de atenção: o protagonismo da criança, as
guagem, proporciona experiências no mundo ima- narrativas infantis e o suporte do adulto (andaime).
ginário e estimula as expressões infantis. O proje- Para cada pontuação da escala, exigiu-se uma
to político pedagógico denominado Pensando o justificativa para sua atribuição:
currículo da Educação Infantil, publicado em maio
de 2003 pela Revista Pedagógica do Município, 1. não há presença da categoria
divulga a experiência realizada na sala do 1º está- 2. há muito pouco e de baixa qualidade
gio, compartilhada por três professoras, uma das 3. há de vez em quando com boa qualidade
quais a colaboradora deste estudo. Entre os eixos 4. há de forma quase contínua e com boa
principais da proposta, encontram-se: a valoriza- qualidade
ção do brincar, a construção da autonomia da cri- 5. há de forma contínua e de boa qualidade
ança, o trabalho colaborativo com a universidade,
o self-service, a parceria família/comunidade e o Antes da inovação, Maria Letícia contava
investimento na formação profissional. história para toda turma e não achava relevante
o recontar história. Dispunha de sala com mesas
Auto-avaliação da prática e cadeiras, armários fechados e desenvolvia uma
prática, ainda tradicional, dando suporte à clas-
Para compreender as razões que levaram se toda, sem atender às expectativas de cada
a professora, foco deste estudo, às inovações, criança. Às vezes, preocupada com as hipóteses
foi sugerido que se analisasse a prática anteri- de escrita das crianças, criava um pequeno espa-
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do mundo: enativa (teatro, gestos e movimento), da destruição da perna da bruxa pelas crianças
icônica (desenhos e construções ) e simbólica de outros agrupamentos infantis. O bilhete es-
(palavras e números), evidenciando sua contri- crito pelas crianças revela o problema de uma
buição para tornar a criança ativa e protagonista. sala compartilhada por três agrupamentos in-
Na área da construção, criada após a fantis, em três turnos diários.
adoção da proposta do High/Scope, peças, Alguns dias após, a bruxa estava caída,
como Lego, caixas de sapato e de camisa esti- a perna havia despregado. Reuni o grupo e re-
mulam ações de empilhar e construir, aguçam solveram escrever um bilhete/aviso para deixar-
a observação e exploração dos materiais e o mos junto à bruxa:
saber-fazer, como comparar a altura e a forma
das caixas. A experiência prévia subsidia a com- A PERNA DA BRUXA DE CAIXA CAIU.
paração das dimensões das caixas e as relações CUIDA DA BRUXA, NÃO DEIXA NINGUÉM
com a altura dos pés da bruxa, confirmando TOCAR NELA.
que a exploração e a manipulação livre de AS CRIANÇAS DA LETÍCIA AGRADECEM
materiais favorecem a solução de problemas TAMBÉM.
(Bruner, 1976). A presença constante da coor- (Santos, 2003a, p. 25)
denadora Dorli é outro saber construído pelas
crianças para resolver seus problemas. O projeto prossegue com o desejo das
No processo de construção, a criança crianças de produzir o vestido da bruxa, evi-
utiliza saberes já adquiridos, observa, compara denciando a continuidade das ações como in-
e encontra a solução: dício de interesse e esforço para a busca do
objetivo (Dewey, 1959). A professora fornece
Um menino observa e compara as caixas. Per- andaimes para a confecção da roupa da bruxa,
gunto o que havia. Ele disse: ‘Essas não dá sugerindo alfinetes para prender o tecido. As
pra usar’. Por quê? – ‘Por causa que a bruxa crianças assumem, de forma autônoma, as
vai ficar com um pé alto e o outro baixo’. ações de vestir a bruxa: Natália e Ana Lúcia
O que vocês precisam fazer? ‘Ir na Dorli e põem o tecido e fazem a roupa sem cortar,
pedir mais caixas’. prendem com alfinete para a roupa não ficar
Trouxeram outras caixas e ele espontanea- pequena e aparecer o corpo. Mayara dá a idéia
mente começou a sobrepô-las. Pergunto: O de colocar a peruca. Natália pega a peruca no
que você está fazendo? – ‘Veja esse lado, tá armário. As crianças pesquisam livros para fa-
sobrando’. E assim processa o seu raciocí- zer o chapéu, por sugestão de Mayara. Quan-
nio até encontrar duas caixas semelhantes do decidem fazê-lo com papelão preto, uma
para os braços, duas para as pernas e duas das crianças lembra que podiam utilizar uma
para a cabeça. Quando questionados sobre cartolina que havia pintado com tinta preta
o corpo, resolvem utilizar uma caixa de lei- (Santos, 2003a).
te que estava disponível e visível na sala. O projeto da bruxa beneficiou-se de sa-
(Santos, 2003a, p. 24) beres já adquiridos pelas crianças com a implan-
tação das áreas de aprendizagem do High/Scope,
A aprendizagem criativa ou por desco- possibilitando a coordenação de um saber-fazer
berta se processa quando a criança descreve com outros mais complexos e a repetição de
seu raciocínio para a professora, explicando a ações com vista ao aperfeiçoamento como pin-
inadequação das caixas para a construção do tar papéis, prender com alfinete, colocar peruca,
corpo e das pernas da bruxa. observar dimensões de caixas, empilhar, colar,
A contextualização das atividades leva à comparar a altura de caixas, entre outras. O
emergência do letramento, como no episódio protagonismo da criança, a experiência com a
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A história coletiva A bruxinha feliz pos- complementa: “lá no norte”, com sotaque bem
sibilita a análise de inúmeras concepções carregado, característico de sua origem nordesti-
brunerianas: na. Outra criança tenta imitá-la, com ar de debo-
che. A primeira, muito segura, intensifica a sua
Era uma vez uma bruxinha muito alegre que pronúncia, um confronto que mostra as variantes
gostava de crianças. Ela vivia sorrindo. da língua e a aceitação de contextos diversos.
Um dia a Bruxa Malvada prendeu a bruxinha Considerando que 58% das famílias das
na grade. Ela ficou muito triste. Aí... depois... crianças têm origem nordestina (diagnóstico
chorou... chorou... chorou... e dormiu. efetuado pela escola em 2003), é compreensí-
Ela teve um pesadelo e acordou muito vel que as narrativas, resultado da expressão
chateada. livre, não sejam descarnadas, porém matizadas
Depois ela viu a Bruxa Malvada e o cava- pelos valores e pelas características do caldo
leiro que tava escondido. cultural em que as crianças estão imersas. A
O cavaleiro pôs a Bruxa Malvada no caldei- professora evidencia sua compreensão do ser
rão e ferveu. humano (Bruner, 1996; Vygotsky, 1988) perce-
A Bruxa Malvada foi para bem longe... lá bendo a complexidade do pensamento infantil
no norte. que revela as características da cultura.
Aí veio o príncipe e casou com a Bruxinha
Feliz, que abraçou todas as crianças e ficaram À guisa de conclusão
felizes para sempre. (Santos, 2003a, p. 29)
O estudo de caso focaliza uma prática
A história construída revela na inter- de construção de uma pedagogia da infância
textualidade (Bruner, 1986; 1990; 1996) a com uso de concepções do High/Scope e da
integração de contos com bruxas e príncipes. A Abordagem de Projetos por uma professora que
bruxa assume o lugar da princesa e se casa valoriza as histórias infantis.
com o príncipe. O bem e o mal são retratados O contar e recontar histórias em um am-
nas bruxas malvada e alegre. biente que acolhe a criança e lhe dá voz é es-
O fio da história é típico do gênero con- sencial para o desenvolvimento do pensamen-
tos de fadas: era uma vez e ficaram felizes para to infantil, de natureza categorial e binária. As
sempre. “Aí... depois...” são dêiticos que indicam narrativas infantis auxiliam a categorização de
aspectos, como tempo e lugar, dando seqüência situações imaginárias como a bruxa boa e má
ao conto, e repetições, como “chorou... chorou... ou o personagem que mora perto ou longe.
chorou... e dormiu”, muito utilizadas por contos O caso analisado evidencia, à luz das
infantis e, com prazer, pelas crianças em outras concepções brunerianas, como as ações das cri-
narrativas, como a do “cão que cheirou... chei- anças, de natureza enativa, icônica e simbóli-
rou e cheirou...” (Gomes, 2005, p. 112). Ocorrem ca, se integram como diferentes formas de per-
desvios da canonicidade, quando as crianças ceber o mundo pelo movimento, pelo grafismo
usam expressões que lhes chamam atenção para ou pelos objetos tridimensionais, pela lingua-
recriar novas situações, transformando a cultu- gem oral, escrita ou matemática, dando suporte
ra do adulto em cultura infantil pela aprendiza- para o pensamento categorial, binário, típico
gem por descoberta. dos contos de fadas, das narrativas infantis e
A situação imaginária, de algo distante da das conversações diárias das crianças.
atividade cotidiana, surge quando a bruxa, fervi- No entender de Bruner, pedagogias que
da no caldeirão, não morre, mas vai para longe. estimulam narrativas infantis garantem a inte-
Durante a produção do texto, uma criança diz: A gração de formas de representação do mundo
Bruxa Malvada “foi para bem longe”. Outra criança pela criança, a intertextualidade, a mudança da
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VYGOTSKY, L. A fformação
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Recebido em 11.10.06
Aprovado em 05.03.07
Tizuko Morchida Kishimoto é docente e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e
coordenadora do Grupo de Pesquisa Contextos Integrados de Educação Infantil.
Maria Letícia Ribeiro dos Santos e Dorli Ribeiro Basílio são professoras na Escola Municipal de Educação Infantil
Benedicto Castrucci.