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VARGAS, M. V. A. M..

Processos de remissão textual em redações de vestibular: a referenciação nominal e


pronominal. In: II SIMPÓSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA., 2010, Évora, Portugal. II
SIMPÓSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA. A LÍNGUA PORTUGUESA: ULTRAPASSAR
FRONTEIRAS, JUNTAR CULTURAS. Évora, Portugal: Universidade de Évora, 2009. p. 67-85.

REFERENCIAÇÃO E COERÊNCIA TEXTUAL NAS REDAÇÕES DO


VESTIBULAR

Maria Valíria Aderson de Mello Vargas

RESUMO: Tendo em vista os princípios de construção textual do sentido, sobretudo a


referenciação e a coerência, busca-se, na análise de redações do vestibular da FUVEST-
2007, verificar em que medida as formas de articulação textual conduzem à progressão
temática. Pretende-se investigar, nesses textos, se o enunciador deixa pistas de suas
intenções e se demonstra a preocupação em garantir a compreensão e causar a aceitação
do que enuncia.

SUMÁRIO

0. Introdução................................................................................................................... 02
I. Etapas da pesquisa....................................................................................................... 03
II. Procedimentos de referenciação analisados............................................................... 05
III. Amostras da análise.................................................................................................. 08
1. Usos dos conectores/relatores de sentido – especialmente as conjunções e os termos
circunstanciais................................................................................................................ 08

2. Procedimentos de remissão textual: as expressões referenciais (anafóricas e catafóricas)


nominais e pronominais e as operações de nominalização e suas funções............................ 12

3. Pressuposições de conhecimento partilhado, responsáveis pelo processamento do


sentido por parte do interlocutor e pela construção da coerência.................................. 17

IV. Considerações finais................................................................................................ 25

V. Bibliografia............................................................................................................... 26
2

0. Introdução

De acordo com a perspectiva pragmático-enunciativa da Lingüística Textual,


amplamente demonstrada, por exemplo, por Koch (2006), a coerência não se constitui
mera propriedade ou qualidade do texto, mas consiste num fenômeno muito mais
amplo, já que se constrói, numa determinada situação, entre o texto e seus
interlocutores, em função de uma série de fatores de ordem lingüística, cognitiva,
sociocultural e interacional. Essas idéias propiciam a discussão de questões que dizem
respeito ao processamento sociocognitivo do texto, como, por exemplo, a referenciação,
a inferenciação, a mobilização de conhecimentos prévios, o conhecimento partilhado.
A questão da referenciação textual, já bastante explorada por teóricos como van
Dijk, Koch, Marcuschi, envolve a construção dos chamados “objetos-de-discurso”,
entre os quais se situam a anáfora associativa e as operações de nominalização e suas
funções. O pressuposto básico dessas pesquisas, de acordo com Koch (2006:XV), é que
a referenciação se caracteriza como “atividade discursiva”: a referência é definida,
acima de tudo, como um problema relacionado às operações efetuadas pelos sujeitos, à
medida que o discurso se desenvolve e constrói os “objetos” a que faz remissão
(“objetos-de-discurso”), ao mesmo tempo em que é tributário dessa construção.
As idéias de Mondada (apud Koch, 2005:34) contribuem para esclarecer que a
referenciação

não privilegia a relação entre as palavras e as coisas, mas a relação


intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são
publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às
finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores.

Portanto as formas de referenciação, ou seja, os procedimentos de remissão que


se realizam no texto devem ser vistos como escolhas do sujeito em função de um
querer-dizer. Ao mesmo tempo, deve-se considerar que a interpretação das expressões
referenciais anafóricas – nominais ou pronominais – não se limita a localizar no texto
3

uma seqüência lingüística anteriormente enunciada, mas, sim, alguma informação


situada no que se convencionou chamar memória discursiva.

Desse modo, amplia-se o conceito de coerência, na medida em que, ao lado de


fatores sintático-semânticos, passa-se a considerar uma série de fatores de ordem
pragmática e contextual. É essa nova dimensão do fenômeno da coerência que se propôs
como norteadora da análise das redações do corpus, nesta parte da pesquisa.

I. Etapas da pesquisa

Procedeu-se, primeiramente, na leitura do conjunto inicial de trezentas e setenta


redações, à observação dos princípios de construção textual do sentido, sobretudo a
referenciação e a coerência.
Nessa primeira leitura das redações, observou-se uma série de inadequações no
modo como ocorrem nos textos os procedimentos de referenciação, apontados nas
conclusões do primeiro relatório da pesquisa: os relatores de sentido (principalmente as
conjunções e os elementos circunstanciais) em geral não se prestam a relacionar as
ações a propriedades específicas do texto; em grande parte das redações, o enunciador
não realiza atividades lingüístico-cognitivas, que revelariam o intuito de garantir a
compreensão e estimular, facilitar ou causar a aceitação do que enuncia; a maioria dos
textos não se configura como ação social, determinada por regras sociais, em que a ação
verbal deve ser orientada para parceiros da comunicação. Assim, nesses textos, a língua
não é utilizada como um instrumento para a realização de ações verbais e não se revela
um plano/estratégia de ação, tampouco a necessária hierarquia entre os atos de fala, que
permitiriam ao leitor a construção compartilhada do sentido do texto.
Já se concluía também que grande parte dos vestibulandos optou por dar uma
resposta às perguntas da proposta de redação contidas na “instrução”1, pouco inovando,
arriscando-se minimamente, limitando-se, pois, a responder razoavelmente ao que se
propôs.

1
INSTRUÇÃO: A amizade tem sido objeto de reflexões e elogios de pensadores e artistas de todas as
épocas. Os trechos sobre esse tema, aqui reproduzidos, pertencem a um pensador da Antigüidade Clássica
(Cícero), a um pensador do século XVI (Montaigne) e a compositores da música popular brasileira
contemporânea. Você considera adequadas as idéias neles expressas? Elas são atuais, isto é, você julga
que elas têm validade no mundo de hoje? O que sua própria experiência lhe diz sobre esse assunto?
Tendo em conta tais questões, além de outras que julgue pertinentes, redija uma DISSERTAÇÃO EM
PROSA, argumentando de modo a expor seu ponto de vista sobre o assunto.
4

Notou-se, além disso, que muitos textos reproduzem modelos de organização


aplicados em treinamentos; são esvaziados de sentido, de reflexão, de provocações, e
incapazes de suscitar discussões interessantes, embora muitas vezes apresentem
adequação nos procedimentos de referenciação.
Observou-se, ainda no primeiro momento de análise, que, nas redações, pouco se
revela a noção adequada de realidade, ou seja, não se manifesta nos textos um sujeito
capaz de interagir sociocognitivamente com o mundo. Em geral, não se manifesta um
compromisso com o contexto em que se dá a produção do texto. São comuns as
pressuposições falsas de conhecimento partilhado, responsáveis pelo processamento
inadequado do sentido por parte do interlocutor e pelo prejuízo na construção da
coerência.
Na segunda etapa da pesquisa, a análise voltou-se mais diretamente para o
corpus de 100 redações, organizadas em quatro grupos (25 textos de cada grupo), de
acordo com a procedência do vestibulando2, com vistas à definição dos procedimentos
de análise e para a necessária articulação das pesquisas. Organizaram-se os resultados,
nessa fase da pesquisa, de acordo com as inadequações verificadas nas redações: I. Uso
inadequado dos conectores, principalmente das conjunções e dos termos circunstanciais;
II. A não-realização de atividades lingüístico-cognitivas; III. As deficiências no
emprego das anáforas associativas, as operações de nominalização e suas funções; IV.
Falsas pressuposições de conhecimento partilhado, responsáveis pelo processamento
inadequado do sentido por parte do interlocutor e pelo prejuízo na construção da
coerência; V. Textos moldados em treinamento, esvaziados de sentido, ancorados em
reflexões inconseqüentes e incapazes de provocar a participação do leitor. Reforçaram-
se, portanto, por completo, no segundo relatório da pesquisa, as conclusões a que se
chegou na primeira etapa.
Na terceira fase do trabalho, de acordo com critérios mais definidos e tendo em
vista as observações e sugestões da parecerista ao segundo relatório apresentado,
buscou-se organizar a exposição das categorias de análise, apresentando-se um
panorama mais voltado ao modo como se promove a referenciação nas redações. Assim,
estabeleceram-se três categorias básicas, voltadas, respectivamente, para a utilização
dos relatores de sentido, para os procedimentos de nominalização e pronominalização

2
Categoria I: ensino público sem cursinho; cat. II: ensino particular sem cursinho; cat. III: ensino público
com cursinho; cat. IV: ensino particular com cursinho. Convém lembrar que o intuito da pesquisa é
verificar se há diferenças significativas entre os textos de alunos da escola pública e da particular.
5

(anafórica e catafórica) e suas funções, e para determinados recursos que evidenciam


pressuposições de conhecimento partilhado, responsáveis também pela construção de
sentido dos textos.

Na discussão das três categorias estabelecidas, foram utilizados exemplos


extraídos das 100 redações selecionadas para a análise e acrescentaram-se mais alguns
do conjunto original dos trezentos e setenta textos, considerados significativos para a
descrição dos fenômenos em questão.

II. Procedimentos de referenciação analisados

Considerou-se, na terceira etapa da pesquisa, como primeiro procedimento de


referenciação nas redações, a utilização dos conectores/relatores de sentido,
principalmente as conjunções e os termos circunstanciais, tendo em vista a noção de que
esses elementos textuais devem promover não apenas um prosseguimento ou um
acréscimo de sentido, mas, principalmente, a coerência entre os processos que
relacionam, propiciando, desse modo, o desenvolvimento da significação, ou seja, a
progressão semântica.

Também como procedimentos de referenciação, num segundo bloco,


consideraram-se, nas redações, os processos de remissão textual: as anáforas – nominais
e pronominais – e as operações de nominalização e suas funções. Considera-se, aqui, de
acordo com Koch (2005:35), que as descrições nominais (nominalização) implicam
certas escolhas entre uma multiplicidade de formas de caracterizar o referente que serão
feitas, em cada contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do texto. Assim,
analisaram-se as remissões que ocorrem por meio das expressões referenciais nominais
e pronominais, anafóricas ou catafóricas, tanto as que rotulam seqüências lingüísticas do
texto, transformando-as em objetos-de-discurso e, assim, possibilitando a progressão
textual, quanto as que realizam operações de nominalização. Buscou-se verificar, por
exemplo, com base no modo como esses segmentos lingüísticos se encadeiam e
remetem uns aos outros, em que medida as expressões nominais remissivas utilizadas
pelos vestibulandos orientam o leitor a construir sentidos, a alcançar determinadas
conclusões.
Por último, analisaram-se, nas redações, os procedimentos pelos quais se cria a
intersubjetividade, ou seja, os vínculos efetivos entre os sujeitos envolvidos na situação
6

de produção textual. Assim, buscou-se identificar as pressuposições de conhecimento


partilhado, responsáveis pelo processamento de sentido e pela construção da coerência;
procurou-se verificar em que medida se criam, nos textos dos vestibulandos, as
condições específicas para reger a interação, apropriadas à situação de produção dos
textos. Partiu-se da idéia de que um texto somente alcançará uma totalidade de sentido
se os segmentos que o compõem relacionarem-se entre si de acordo com certas
condições que regem uma produção efetiva de linguagem. Também se considerou o
pressuposto de que o texto deve revelar um plano ou estratégia de ação, uma
organização que permitirá ao leitor a construção compartilhada de sentido.

Na análise levada a efeito, também se considerou que, em grande medida, as


manifestações problemáticas em relação à referenciação e à coerência textual, devem-se
a certos fatores que condicionaram a produção do texto. Nesse sentido, remete-se à
pesquisa de Maria Paula Parisi que, em seu relatório final, discorre:

A dissertação, um gênero escolarizado e tido como emblemático


no vestibular, vem sendo traduzida por modelos que empobrecem
seu sentido original: o de um texto que, segundo Garcia (1987)*,
tem “como propósito principal expor ou explanar, explicar ou
interpretar idéias”, externando opinião sobre o que é ou nos parece
ser determinado assunto. Do texto que deve, portanto, expressar ao
leitor uma opinião fundamentada a respeito de algo, resta para
muitos uma estrutura simplificada ao extremo, não raras vezes
traduzida por um esquema em quatro parágrafos: o primeiro, de
introdução; os dois centrais, de argumentação; o final, de
conclusão. Ao se tornar um texto mais conhecido por servir como
instrumento de avaliação em provas, vestibulares e concursos do
que por sua inserção, em estado puro, nas diversas esferas de
circulação social, a dissertação acaba por se afastar de uma prática
de linguagem de circulação mais ampla para se tornar uma forma
particular de comunicação entre alunos e professores e, por
extensão, entre vestibulandos/concursandos e corretores.

Desse modo, é preciso reconhecer que as condições específicas de produção da


modalidade escrita que se dão no âmbito escolar influenciam a manipulação dos
processos de referenciação revelados nos textos produzidos em situação de exame
vestibular.

*
GARCIA, O. M. (1987) Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Editora da FGV.
7

Julgou-se, ainda, necessário verificar se o trabalho com as referências nas


redações desenvolveu-se de maneira a concorrer para a aceitabilidade do texto, para a
eficiência de sua atuação sobre os interlocutores. Nesse sentido, observou-se, por
exemplo, que grande parte dos vestibulandos não é capaz de estabelecer os limites
necessários entre as duas modalidades – oral e escrita – da linguagem. Evidenciam-se,
dessa forma, a falta de domínio das características de um texto argumentativo/
expositivo/ dissertativo, a ausência de reflexão lingüística e a falta de treinamento para a
adequação dos usos da linguagem a situações específicas de comunicação.

Cabe esclarecer que não se procedeu nesta pesquisa a uma análise quantitativa
de dados, uma vez que o objetivo principal consistiu em verificar os modos como
ocorrem os processos de referenciação nas redações. Optou-se por apresentar exemplos
escritos, selecionados de acordo com as questões específicas que se decidiu examinar.
Conclui-se, provisoriamente, que não há diferenças significativas entre os textos das
quatro grupos de redações estabelecidos para a análise. A grande maioria dos
vestibulandos – sejam os egressos da escola pública, sejam os da escola particular -
manifestam as mesmas inadequações ao promoverem a referenciação em seus textos.
Pressupõe-se que eventuais quantificações levariam à conclusão de que raríssimos são
os textos em que os procedimentos de referenciação e coerência textual ocorrem de
modo razoavelmente adequado. Identificam-se, no quadro abaixo, esses textos,
integrantes do corpus das 100 redações selecionadas.

Categorias Textos razoavelmente adequados


I R023

II R128
III R043; R048; R055; R083
IV R032; R034; R067; R071

Mesmo que se considere pequena a amostra de 100 textos para se traçar um


prognóstico seguro, o quadro acima tende a confirmar as primeiras impressões
apontadas nos relatórios anteriores. Quanto aos procedimentos de referenciação e de
construção da coerência, a diferença (pouco significativa) entre os textos se revela entre
aqueles de alunos que fizeram ou não o cursinho, quer sejam egressos do ensino
público, quer sejam do ensino particular.
8

É preciso ressaltar que, conforme se registrou no quadro, os textos são apenas


“razoavelmente” adequados; mesmo os alunos que fizeram o cursinho não se mostram
suficientemente capazes de empregar nos textos os mecanismos de referenciação do
modo que se espera de alunos no final do ensino médio. Não são capazes de atender ao
que se expõe no manual do candidato da FUVEST 2007 (p.42), como já bem apontaram
Mário Ferreira e Maria Paula Parisi, em seus respectivos trabalhos:

A redação deverá ser, obrigatoriamente, uma dissertação, na


qual se espera que o candidato demonstre capacidade de
mobilizar conhecimentos e opiniões, de argumentar
coerentemente e de expressar-se com clareza e adequação
gramatical. [Grifos nossos]

III. Amostras da análise

Apresentam-se, a seguir, as categorias de análise, organizadas, como já se disse,


de acordo com os três procedimentos de referenciação estabelecidos. Tomando-se como
exemplos trechos de textos que representam os quatro grupos de redações já
mencionados (categorias I, II, III e IV), procura-se demonstrar como ocorrem esses
procedimentos básicos de referenciação nas redações.

1. Usos dos conectores/relatores de sentido – especialmente as conjunções e os


termos circunstanciais.

Parte-se do pressuposto de que a função desses conectores é relacionar


adequadamente as ações a propriedades específicas do texto, para que, desse modo,
ocorram a compreensão e a aceitação do que o produtor do texto quis expressar.

Observe-se o primeiro exemplo:

(R051) Sabemos que hoje em dia, é muito raro encontrar-se um amigo, pois3 com o
capitalismo que visa só o lucro, faz com que todos se esqueçam de se relacionar melhor
uns com os outros, é por isso que hoje em dia as pessoas não tem amigos, pois os
mesmos não se podem comprar. [35 anos, cat. III4]

3
Destacam-se, em negrito, os elementos que se prestam mais diretamente à análise.
4
Decidiu-se manter ainda, nessa fase da pesquisa, as informações sobre os candidatos, uma vez que os
dados contribuem para garantir a distribuição mais equilibrada dos exemplos de trechos dos quatro grupos
de redações.
9

Torna-se evidente a desarticulação de idéias nesse trecho e isso se deve, em


grande parte, à inadequação no uso dos conectores, que não promovem a relação
adequada das ações no enunciado. Nota-se que o candidato procura explicar ou
expressar a causa da raridade de amigos, mas, ao utilizar os conectores “pois”
(acompanhado indevidamente da preposição “com”) e “por isso”, perde-se nessa
tentativa e o resultado é o prejuízo da progressão textual. A referenciação, que deveria
centralizar-se no capitalismo, como um fator gerador da causa, manifesta-se de modo
irrefletido, desordenado, por meio do termo oracional “que visa só o lucro” e do
sintagma verbal “não se podem comprar”. Esses relatores de sentido não se prestam,
portanto, a relacionar as ações a propriedades específicas do texto. Não se formam as
necessárias “cadeias coesivas” (Koch, 2001:23) que têm papel importante na
organização textual e que contribuem para a produção do sentido pretendido pelo
produtor do texto.

Interessante é notar que é muito comum nas redações o uso desses mesmos
conectores e que as dificuldades também se repetem, em textos das quatro categorias.

Observe-se como outro candidato expressa praticamente a mesma idéia sobre a


raridade dos amigos, utilizando-se dos mesmos elementos coesivos:

(R009) Refletir sobre amizade no mundo de hoje está se tornando cada vez mais difícil,
pois a competição, o capitalismo e o egoísmo andam em sentido oposto a amizade, por
isso uma coisa é certa: ao encontrar um amigo verdadeiro guarde-o dentro do coração,
pois atualmente isso vale mais que qualquer coisa que o dinheiro possa comprar. [20
anos, cat. II]

Nesse caso, o primeiro elemento coesivo destacado não se presta a estabelecer


entre as orações a relação de causa, ou seja, o que se afirma em “a competição, o
capitalismo e o egoísmo andam em sentido oposto a amizade” não é, na verdade, a
causa da dificuldade cada vez maior de “refletir sobre a amizade”. O segundo elemento
destacado também não estabelece, de fato, a idéia que uma conjunção conclusiva
deveria expressar. É utilizada para encabeçar um segmento cujo propósito é advertir,
anunciar algo como certo. Na verdade, a conjunção “por isso” introduz uma espécie de
súmula, comum na conversação face a face. Além disso, o apelo ao interlocutor (você,
elíptico), que se instaura no trecho inadvertidamente (“guarde-o”), reforça a idéia de
que o candidato desconhece os princípios que regem as condições de produção da
modalidade escrita; transfere elementos conversacionais para a situação de produção do
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que deveria ser uma dissertação. Verifica-se que o terceiro elemento destacado também
não indica a causa, nem se estabelece como um conector de explicação do que se
afirmou na oração anterior. Além disso, a referenciação ambígua, promovida pelo
pronome “isso” (encontrar um amigo verdadeiro ou guardar o amigo no coração),
marcador muito comum de oralidade, revela a dificuldade do candidato de estabelecer
as conexões adequadas de idéias no texto.

A propósito dessa falta de conhecimento que o vestibulando revela do que


caracteriza a modalidade escrita, observe-se este outro exemplo:

(R005) Sempre conferimos à amizade status de primazia, sempre a exaltamos e em


momento algum discordamos. O que acontece é que a temos trocado ou esquecido, até
a tememos. Ela nos torna fortes quando verdadeira e vulneráveis quando falsa.
Relações sociais apenas. O que não devemos é esquecê-la, esquecê-lo, nunca, mesmo
que único, pois tu és um ser social e, como tal, sentimental, humano, precisa do amigo.
Do teu amigo. [24 anos, cat. I]
Nota-se que predomina no trecho um tom coloquial e também uma espécie de
sintaxe oral, marcada por uma tentativa mal sucedida de construção de efeitos de uma
progressão de idéias. Tanto os elementos circunstanciais utilizados – o de tempo
“sempre” (reiterado), o de exclusão “apenas” e o de negação “nunca” – quanto a
preposição “até” e a conjunção “pois” caracterizam-se, sobretudo, como marcadores
conversacionais, portanto, nesse caso, são inadequados para compor as relações de
sentido do tipo de texto solicitado.

Manifesta-se, nessa e em muitas outras redações, a “instabilidade” que, de


acordo com Mondada e Dubois (2003:29), “ocorre no seio das atividades discursivas,
em todos os níveis da organização lingüística, indo das construções sintáticas às
configurações de objetos de discurso, e que é particularmente observável na produção
oral, podendo ser observada nos textos escritos”, como é o caso dos exemplos citados.

No trecho abaixo, novamente se percebe que o vestibulando não utiliza os


relatores de sentido adequadamente para articular as idéias; o trecho, aliás, desconexo
como um todo, é reflexo do que ocorre em todo o texto desse candidato.

(R068) Deve cultivar esta amizade como uma planta. Requer dedicação,
disponibilidade e amor, principalmente. Este faz parte, estão interligados, da amizade e
não tem como dizer que é superior a um, pois amor é carinho, querer o bem do outro,
11

portanto sustenta a amizade. E não haveria este amor, se não tivesse confiança de
contar seus segredos, sair, se divertir que é próprio da amizade. [21 anos, cat. IV]

Apresentam-se, abaixo, dois exemplos de trechos de redações consideradas


razoavelmente adequadas quanto à utilização dos procedimentos de referenciação, mas
que também revelam a fragilidade na construção das relações entre as idéias.

(R043) O egoísmo, o individualismo e a competitividade excessiva, marcas da


sociedade atual, prejudicaram as relações de amizade, pois mais importante que
possuir um amigo é ser superior a ele. A amizade foi suprimida pela nossa escassez de
tempo, por nossas agendas lotadas de compromissos que acabaram banalizando esse
sentimento precioso, fazendo com que uma parcela daquele encanto mostrado por
muitos compositores fosse esquecida. [20 anos, cat. III]

(R083) A amizade é um dos sentimentos mais necessários ao cotidiano das pessoas.


Mais até do que o amor, pois a afirmação feita por muitos pensadores, como Cícero e
Montaigne, de que “quem tem um amigo, tem tudo”, se faz mais verdadeira à medida
em que as pessoas se deparam com adversidades em suas vidas. [21 anos, cat. III]

O termo grifado no trecho acima não se presta a relacionar uma explicação à


afirmação anterior (a amizade é mais necessária do que o amor). Figura como um
marcador conversacional, como ocorre com a conjunção “mas”, no exemplo abaixo
(R052), que se repete também inadequadamente em muitos textos, pois não funciona
como um relator de contraposição de idéias. Observe-se que, além das impropriedades
já apontadas no uso dos conectores causais (pois, porque), nesse trecho, a conjunção
mas funciona como um marcador conversacional.

(R052) A amizade existe a muito tempo e sempre vai existir pois é um tipo de relação
que independe do sexo, cor, idade, etc., ou seja, é típico do ser humano possuir amigos,
o que pode variar muito é o grau da amizade pois uns inspiram mais confiança, outros
menos, alguns a gente conta tudo que acontece, outros apenas partes, mas o que deve
ser forte para uma boa amizade é a lealdade, porque se um amigo é falso então não
deve ser considerado amigo. [22 anos, cat. III]
12

2. Procedimentos de remissão textual: as expressões referenciais (anafóricas e


catafóricas) nominais e pronominais e as operações de nominalização5 e suas
funções.

Para a análise desses procedimentos, parte-se do pressuposto de que, ao produzir


o texto, o enunciador realiza atividades lingüístico-cognitivas, que revelam o intuito de
garantir a compreensão e estimular, facilitar ou causar a aceitação do que enuncia.

Mostram-se abaixo exemplos dos diferentes modos de realizar essas atividades


atividades lingüístico-cognitivas observados nas redações.

(R040) Um porto seguro, essa é a melhor palavra para se definir um amigo, Pode ser
seu pai, mãe vizinho, colega de trabalho ou de estudos e pode ser também aquela
pessoa que você terá filhos e viverá a vida inteira do lado dela, difícil de saber. [20
anos, cat. IV]

A expressão “um porto seguro”, que se constitui num “rótulo” (Francis, 2003)6,
não tem, no trecho, o papel organizador que se estenderia ao período seguinte; também
não tem o poder, conforme se esperaria, de orientar o interlocutor para determinadas
conclusões. Percebe-se que não há compatibilidade entre as idéias dos dois períodos. O
rótulo, nesse caso, não imprime, ao enunciado em que se insere, nem ao texto como um
todo, uma orientação argumentativa compatível com a proposta enunciativa de seu
produtor. A expressão não promove, portanto, a progressão textual.

Observem-se estes outros exemplos:

(R023) E, de novo, o sentimento de amizade volta, em meio às situações caóticas


provocadas pela natureza ou pelo homem. É tema e fato nas rodas de pessoas que se
sentem mais confortadas ao derramar as lágrimas nos braços de um amigo: o tesouro
dos deuses. [26 anos, cat.I]

Nota-se que a referenciação, nesse trecho de redação, um dos raros textos da


amostra considerado razoavelmente adequado, o processo de nominalização (“um
amigo: o tesouro dos deuses.”) marca-se por um forte grau de exageração (“derramar
lágrimas nos braços de um amigo”), que contrasta com a necessária objetividade do

5
Ressalte-se, conforme já se mencionou, que, para Koch (2005:35), as descrições nominais
(nominalização) implicam certas escolhas entre uma multiplicidade de formas de caracterizar o referente
que serão feitas, em cada contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do texto.
6
Francis (2003:191) define os rótulos, geralmente metafóricos, como “um dos principais meios pelos
quais os grupos nominais são usados para conectar e organizar o discurso escrito”.
13

texto dissertativo. O vestibulando revela o domínio da estruturação sintática, mas utiliza


expressões esvaziadas de sentido, marcadas pelo lugar-comum.

(R121) “Amigo: alguém que sabe tudo sobre nós e nos ama mesmo assim”. Essa frase,
que circula na Internet, cartões e letras de música, não poderia ser mais verídica, no
entanto, muitas vezes desejamos e procuramos algo diferente, que seria o amigo ideal.

O amigo ideal é aquele que nunca vai nos deixar de lado ou nos prejudicar; vai
rir e chorar conosco, nos apoiar nas horas difíceis e nos fazer sentir que não
precisamos de nada além deles. Infelizmente, a vida mostra que não há pessoas
perfeitas a esse ponto. [16 anos, cat. II ]

A nominalização, nesse caso, já se processa no interior da citação que dá início


ao trecho. O rótulo “amigo” estabelece-se numa construção apositiva. Ao proceder, em
seguida, à remissão anafórica (“Essa frase...”), o candidato não consegue expressar
exatamente o que pensa. Por um lado, o uso indevido do elemento coesivo seqüencial
“no entanto”, cuja função é estabelecer uma contraposição de idéias, causa um certo
estranhamento, pois não há oposição entre a afirmação anterior (“Essa frase ... não
poderia se mais verídica”) e o desejo e a busca do amigo ideal. Por outro lado, o
processo de nominalização, que ocorre na descrição do amigo ideal, situa-o no mesmo
plano da descrição nominal que abre o primeiro parágrafo do trecho. Revela-se,
portanto, um alto grau de incoerência na construção do sentido.

(R045) Está difícil encontrar valores que ainda reinam em meio a tantas
controvérsias. Mesmo assim, em contraste a esta realidade, existe algo que atravessou
a linha dos tempos e até hoje encontramos sua presença nítida no ser humano: a
amizade. [20 anos, cat. III]

O processo de referenciação no texto se dá por meio da remissão anafórica. O


antecedente “valores” é substituído, na seqüência, pelas expressões “algo” e “a
amizade”. Esta, na verdade, é a que se quer definir. Cria-se uma espécie de orientação
do argumento para uma conclusão. Esse procedimento alcançaria o efeito supostamente
pretendido de realçar a amizade, caso a seleção lexical não fosse tão precária. Nota-se a
fragilidade da argumentação tanto por meio das inadequações que se revelam na
organização sintática – que se inicia com uma marca de oralidade (“Está difícil”),
quanto pela seleção lexical precária – os próprios termos da referenciação (“valores” e
14

“algo”) e as respectivas nominalizações oracionais (“que ainda reinam” e “que


atravessou a linha dos tempos”) são esvaziados de sentido.

Observe-se a nomeação catafórica no exemplo seguinte:

(R062) Isto é amizade: aproveitar a oportunidade e não deixá-la escapar como uma
pena em dia de tempestade. E se conseguir agarrá-la, está feito, não tem como escapar
novamente. [20 anos, cat. IV]

Esse tipo de construção apositiva é muito freqüente nas redações. Cria-se um


foco de referência (“Isto é amizade:”...) em relação ao aposto oracional que especifica o
nome genérico mencionado anteriormente. Novamente, a referenciação é adequada,
porém a argumentação é muito frágil em decorrência da seleção lexical precária e da
influência de expressões próprias da oralidade (“conseguir agarrá-la; “está feito”; “não
tem como escapar novamente”).

Compare-se esse procedimento de referenciação com o de outro trecho de uma


redação considerada razoavelmente adequada:

(R071) Ninguém vive sozinho, ou melhor, até vive, mas não pode gozar de alguns dos
prazeres da vida tanto quanto os que podem compartilhar suas emoções com amigos
sinceros e cultivam a amizade verdadeira.

Entende-se por amizade verdadeira a que é alimentada por sentimentos


positivos, como o companheirismo, que pode se fazer presente em bons e maus
momentos. A segurança de que seremos amparados, confortados e aconselhados, diante
de problemas difíceis da vida, assim como a sincera satisfação e alegria que amigos
exprimem por nós em batalhas vencidas e desejos conquistados somente existem nesse
tipo de amizade, que é a menos comum. [21 anos, cat. IV]

Nesse exemplo, a retomada da expressão “amizade verdadeira” consiste na


busca de dar um estatuto de referente ou de objeto de discurso à expressão, que, ao ser
retomada, dá início, no trecho, a uma predicação secundária. Aproveita-se a expressão
referencial para predicar diversas informações sobre o objeto que ele designa. Esse tipo
de predicação adquire o valor, portanto, de um comentário, uma explicação; trata-se de
um recurso para desenvolver a estruturação do texto. A mudança de parágrafo aponta
para esse valor mais cognitivo do termo, para um ponto de vista prospectivo. É,
portanto, uma referenciação adequada, porém um exame mais atento do trecho revela a
fragilidade da argumentação.
15

No exemplo abaixo, o vestibulando também busca definir a “amizade


verdadeira”, mas é evidente no trecho a precariedade da referenciação. As
nominalizações destacadas não se estabelecem como estratégias para a construção
adequada do sentido.

(R019) Uma amizade pode se tornar amor, mas um amor nunca voltará a ser amizade,
pois o amor quando acaba deixa marcas que a amizade daquele que já foi amor não
pode curar.

A amizade verdadeira é aquela que pode evitar tudo, até mesmo o assédio da
mesma mulher ou do mesmo homem pelos dois(as). [45 anos, cat. I]

Observe-se outro exemplo em que se dá também a referenciação adequada,


porém que é inconsistente do ponto de vista da argumentação:

(R343) Como diria o pensador da antiguidade Cícero: “Nada existe de melhor, nem de
mais agradável”, tão agradável e boa que é excencial para qualquer pessoa, e não
deve ser deixada de lado nem em nome do amor.

É tão excencial porque quando se tem um amigo verdadeiro, que seja honesto e
confiável, sempre se tem suporte para tudo. [...] Já a tristeza se dissolve, quando um
está triste o outro absorve parte disso e consegue dar apoio para que ele consiga
levantar-se e resolver o problema. Assim a amizade prossegue sempre sendo uma ajuda
mutua.

Essa ajuda também está presente no amor, porém a amizade está acima dele. O
amor gera sentimentos a sua volta, como: o ciúme e a desconfiança. [19 anos, Cat. IV]

É bem interessante o modo como se dá a referenciação neste outro exemplo:

(R002) A amizade é um alicerce universal para socorrer os momentos maquiavélicos


da vida. O homem necessita de um verdadeiro amigo, para que este auxilie a encontrar
o estopim da felicidade.

A amizade influência a efêmera passagem da vida do homem. A privação disto


resulta padecimento intrínseco do ser humano. A axiologia da felicidade é encontrada
além do amor. A amizade tem poder de apreciar momentos excelsos, que nem um outro
relacionamento possa alcançar. Os segredos e confissões que são divididas pelo amigo
é o que supre a dor humana. [20 anos, cat. II]
16

Percebe-se que o uso de certas palavras, incomuns ao vocabulário de um jovem


de 20 anos, utilizadas na referenciação da amizade (“alicerce universal”, “axiologia da
felicidade”) e na construção de outros sintagmas nominais (“momentos maquiavélicos
da vida”, “o estopim da felicidade”, “a efêmera passagem da vida do homem”,
“padecimento intrínseco do ser humano”, “momentos excelsos”) visa muito mais a
impressionar a banca e não a causar a reflexão, nem a construção partilhada de sentido
entre interlocutores.

O caráter resumidor da anáfora pode ser percebido no trecho seguinte, apontado


como um dos exemplos de texto razoavelmente adequado quanto à referenciação.

(R32) Portanto a felicidade, o perdão, o amor, a força, sentimentos estes de


incansáveis buscas do homem, são elementos de um conjunto. Para encontrá-los é
necessário que o ser humano busque a fusão de todos eles, o corpo de todos esses
membros, a síntese de todos esses bons sentimentos. Síntese esta que se denomina
amizade. [20 anos, cat. IV]

Apesar da adequação na utilização dos procedimentos de referenciação, revela-


se novamente a inconsistência da seleção lexical e da argumentação.

Considere-se, ainda, este outro exemplo:

(R017) A amizade realmente deve ser um presente da vida, não existe sentimento
mais completo, nem o amor, pois a amizade te dá segurança, não aceita ciúmes, não vê
condição social, física, nem cor de pele, nada. A amizade existe por ela só, é uma
sensação de complementação, ela é atemporal. [37 anos, cat. I]

O processo de nominalização levado a efeito em “A amizade... um presente da


vida... sentimento mais completo... uma sensação de complementação... atemporal” não
se configura como uma busca efetiva de exposição de argumentos para a defesa de um
ponto de vista sobre a amizade. Não se opera o que Koch (2005:37) denomina
recategorização dos objetos de discurso, ou seja, não se dá uma reconstrução adequada a
atender propósitos bem definidos do falante/escritor. O elemento circunstancial de
modo (realmente) que, em seu sentido denotativo, expressa certeza, não deveria ser
usado para modificar a forma verbal “deve ser”, que indica incerteza. Assim, nota-se
que a expressão “realmente” figura no texto como uma simples réplica à coletânea.
Também o uso inadequado do pronome pessoal “te” não se estabelece no trecho como
elemento coesivo referencial de 2ª pessoa. O sujeito parece falar de si e consigo mesmo,
17

utilizando-se de um pronome que se estabelece-se como um elemento de


indeterminação em relação ao destinatário e ao remetente.

3. Pressuposições de conhecimento partilhado, responsáveis pelo processamento


do sentido por parte do interlocutor e pela construção da coerência.

Observem-se os exemplos a seguir.

(R060) Amizade é ter com quem conversar nas horas e momentos mais inoportunos.
Desabafar sem medo de ser censurado. Encontrar abrigo em um caloroso abraço. É
não cansar de se ver, mesmo se for várias vezes ao dia. É chorar despreucupadamente
pelas coisas mais tolas. É saber respeitar os defeitos e limitações do próximo. E acima
de tudo, amizade é encontrar no olhar ao mesmo tempo respeito e cumplicidade. [20
anos, cat. IV]

A referenciação nesse trecho consiste numa exposição desorganizada de visões e


opiniões que não promovem a progressão textual, a construção de um todo significativo,
coerente. O trecho revela uma acentuada distância do mundo da cognição, o qual,
conforme Francis (2003:209), é espelhado no modo do discurso, “e as visões e opiniões
que defendemos são freqüentemente vistas em termos do modo como são expressas”.
Percebe-se que não há plano/estratégia de ação, ou seja, a necessária organização das
idéias, que permitiriam ao leitor uma construção compartilhada de sentido do texto. As
idéias que se expõem em cada frase não se articulam devidamente para a expressão
adequada do que se pretende dizer.

Revela-se, no trecho acima (R060) e nos exemplos abaixo, um sujeito que fala
para si, que não considera o momento da escrita do texto como uma ação social,
determinada por regras sociais, em que a ação verbal deveria ser orientada para
parceiros da comunicação.

(R105) Desde quando aquele planeta, distante de tudo, perto de uma enorme estrela
que o iluminava que se chamaria Sol, e este planeta, Terra, abriga algum tipo de vida,
já percebiam a presença de um sentimento tão forte, a amizade, uma cumplicidade,
uma parceria que assim uniu elementos não vivos e originaram a primeira célula. Seria
isto uma amizade? Então com o passar dos anos, este sentimento vem sendo renovado e
fazendo parte de cada ser vivo. [16 anos, cat. I – treinamento]
18

(R106) Muito embora as sociedades humanas tenham se expandido violentamente, os


grupos sociais tem diminuido. Há muitos interesses, muitas divergências nas
comunidades que, em compensação, ficam mais unidas. Tais interesses retratam,
metaforicamente, os objetivos de sobrevivência antigos. [18 anos, cat.II]

(R018) Ter amigos sempre foi uma necessidade humana e talvez a maior prova disso
seja a existência dos idiomas.

Nossos idiomas existem porque fazemos amigos e queremos nos comunicar com
eles, se assim não fosse qual o sentido de uma língua para quem vive solitário?

Não podemos simplesmente nascer e começar a viver sozinhos, independentes,


sem amigos. Desde o primeiro momento de vida já necessitamos de ajuda dos nossos
primeiros amigos, os pais, e logo precisamos da ajuda de muitos outros. [21 anos, cat.
I]

Afirma-se, no início do trecho acima (R018), que a existência dos idiomas é a


prova de que o homem sempre precisou de amigos. No segundo parágrafo, amplia-se
um pouco essa idéia, com o argumento de que os idiomas são usados na comunicação
com os amigos. Sem discutir o equívoco subliminar dessa reflexão, o que mais chama a
atenção é o fato de que, nos parágrafos seguintes, até o final do texto, essa idéia é
totalmente esquecida, ou seja, foi utilizada sem nenhum objetivo, sem nenhum
propósito de convencimento do interlocutor.

A nominalização (“Ter amigos sempre foi uma necessidade humana...”) não se


constitui numa realização lexical efetiva no contexto, nem demanda do interlocutor a
capacidade de interpretação e a troca de conhecimentos.

Observe-se o tom coloquial que se instaura logo no início deste outro exemplo:

(R162) Sabe ter aqueles momentos em que estamos so apenas so nada mais, as vezes
isso é bom, mais é melhor quando temos um amigo por perto, com a gente as vezes o
fato de estarmos em uma rodinha de amigos, ninguém precisa dizer nada o fato de
estarmos, todos ali juntos já esta valendo apena naque final de tarde que as vezes pode
ser a ultima de todos istos juntos. [18 anos, cat. I]

O tom de conversa (“Sabe...”) permanece com o uso de “a gente” e de uma


seleção lexical precaríssima. Os usos inadequados dos pronomes e das conjunções
(“mais”), os problemas graves de ortografia e de pontuação revelam a total falta de
19

domínio das práticas de produção do texto escrito. Essa inadequação no uso dos
recursos de ordem gramatical é um dos fatores responsáveis pela ausência de progressão
referencial.

É muito comum a indefinição do interlocutor em grande parte dos textos. Essa


indefinição se manifesta por meio do uso de “você”, “a gente”, e de pronomes em
primeira pessoa do singular ou do plural. São inúmeros os exemplos:

(R163) Amigo é aquele que te entende, que te aconselha, que te ouve, que te elogia mas
que também dá bronca quando necessário, aquele que está disposto a ficar em casa
com você em pleno sábado a noite simplesmente porque você sofreu uma desilusão
amorosa e está precisando de um ombro para chorar, é aquele que conhece sua família
e já se sente parte dela, uma pessoa assim realmente merece ser chamado amigo.(...)

Amigo irmão, amigo de escola, amigo de trabalho, seja lá qual for a


denominação desejada, o que importa é ser amigo. Amar e respeitar a outra pessoa
como a nós mesmos, pois só com amizade e união conseguiremos levar o mundo para
frente. [19 anos, cat. I]

(R223) Ter amigo é uma dádiva, mas para isso você também precisa ser leal e
companheiro. Amizade vem do amor, e amor faz bem para a alma e o coração. Quando
as coisas pequenas e simples, como ver as borboletas, contar estrelas, comer
brigadeiro tornam-se as mais importantes do mundo.

Enfim, amigo é um presente de Deus, um anjo enviado para nos proteger


sempre. Se você possui um e é anjo de alguém, não deixe esses momentos acabarem
nunca. [17 anos, cat. I]

Além dos problemas já apontados nos outros exemplos (seleção lexical precária,
apelos a lugares-comuns, usos inadequados dos pronomes) nota-se, no exemplo acima
(R223), a irrefletida interlocução com o leitor, um tom de aconselhamento, distante da
necessária objetividade que deve marcar o texto dissertativo.

A falta de objetividade é também acentuada nos exemplos abaixo. Os candidatos


usam indevidamente a primeira pessoa, muitas vezes num tom panfletário ou de
aconselhamento, exprimindo desejos pessoais. Instaura-se o “outro”, com quem o
sujeito, em determinado momento, passa a falar, mas essa presença do interlocutor,
manifestada nas formas verbais injuntivas e nos pronomes (“confie em seu amigo”;
20

“tente aumentar a quantidade de amigos que tem”), não se caracteriza como uma
chamada, de fato, à interação ou à troca de conhecimentos.

(R221) ...por isso confie mais em seu amigo e tente aumentar a quantidade de amigos
que tem, sem deixar de lado a qualidade que eles possuem.

Espero, que isto mude, que as pessoas possam sentir a amizade em seus corpos,
que transmitam isto para aqueles que não querem, que não gostam de ter amigos. [17
anos, cat. I]

(R021) A amizade é um sentimento tão nobre que chega a ser superior ao amor, pois
contenta-se em oferecer mesmo que nada em troca possa receber.

Feliz é quem tem um amigo, um confidente com quem contar, para dividir as
tristezas, as alegrias, as vitórias e as derrotas. [25 anos, cat. I]

Percebe-se que o candidato é incapaz de sustentar minimamente uma idéia sobre


a amizade. As frases são esvaziadas de sentido, a seleção lexical é marcada pelo lugar-
comum e pelo tom panfletário (“Feliz quem tem um amigo...”).

(R119) Felizes os que tem alguém assim e boa sorte aos que ainda procuram, pois é
fácil achar uma pessoa que lhe ofereça uma relação superficial, porém é difícil achar
um amigo a quem se possa chamar de irmão, sendo este o único “parente” que muitos
vão ter em toda a vida.

Algum tem aos montes, outros contam nos dedos, mas a maioria ainda dorme
rezando a Deus para que lhe dê uma amizade, então para aqueles que tem um amigo,
agarrem, os segurem, pois no final da vida para os que estão sozinhos, essa vai ser a
maior vontade não satisfeita, a de ter amigos, e parta os que tem, essa vai ser a maior
saudade. [16 anos, cat. I – treinamento]

(R042) Se você tem um amigo em sua vida, preze por ele, cuide bem, trate-o com
amor, ele, é sempre na maioria das vezes, aquele que vai lhe estender a mão, que o
ajudará quando você precisar, não tem jóia mais valiosa no mundo do que a amizade.
[20 anos, cat. IV]

(R049) O mais importante porém é que ele sempre está lá, esperando, pronto, e
apenas de olhar para ele você se sente bem e sente que se naquele momento você não
tivesse um amigo, como seria insignificante a vida, de que adiantaria conquistar
alguma coisa sem ter com quem dividir. Como é bom ter amigos, como é bom saber
21

que alguém torce por você, vibra quando você consegue algo e talvez se sinta mais
feliz que você mesmo. [20 anos, cat. II]

(R221) Hoje, as pessoas não tem muitos amigos, pois não conseguem enxergar o lado
bom daqueles que o rodeiam, porque tudo é competição, rivalidade, maldade, mas
ninguém vive sozinho, nem hoje em dia que há fácil acesso a tudo, por isso confie mais
em seu amigo e tente aumentar a quantidade de amigos que tem, sem deixar de lado a
qualidade que eles possuem.

Espero, que isto mude, que as pessoas possam sentir a amizade em seus corpos,
que transmitam isto para aqueles que não querem, que não gostam de ter amigos. [17
anos, cat. I]

(R046) Como é bom ter alguém para dividirmos nossas frustrações e também ver no
teu sorriso de alegria tão grande quanto a nossa quando alcançamos nossos objetivos.
[36 anos, cat. II]

O exemplo abaixo é extraído de um dos textos considerados razoavelmente


adequados quanto à referenciação e à coerência:

(R055) Numa sociedade tão egoísta e competitiva, na qual nossos colegas de escola
são também nossos concorrentes a uma das tão disputadas vagas do vestibular; na
qual nossos colegas de trabalho concorrem conosco por uma promoção para um cargo
melhor, é difícil saber quem são os verdadeiros amigos. A dificuldade em identificar
uma amizade leal nos impede de ter a felicidade de possuir um grande amigo. (21 anos,
cat. III]

No trecho seguinte, pouco se revela também a noção adequada de realidade, ou


seja, não se manifesta um sujeito capaz de interagir sociocognitivamente com o mundo.

(R072) A amizade verdadeira é doce, é terna, é conscientemente um amor puro e


inabalável, um sentimento com troca recíproca desse amor indelével que não tem
denotação de um romance embora muitas vezes amigos descubram-se apaixonados.
Nesse caso um sentimento tão grande como esse laço entre dois amigos tem que ser
absolutamente mais forte para superar um não como resposta e até mesmo o fim do
romance, deixando permanecer a amizade. [21 anos, cat. IV]
22

Em geral, as descrições nominais são distantes de um compromisso com o


contexto em que se dá a produção textual. Grande parte dos vestibulandos limita-se a
dar uma resposta à questão-problema, pouco inovando.

(R161) Essas pessoas, os amigos, que dividem suas vidas conosco e que nos deixam
dividir as nossas com eles são, sem dúvidas, raros e estão sempre presentes em nossas
vidas assim como foi, é e será. [17 anos, cat. I]

(R084) Assim, ao refletirmos sobre a amizade verificamos que estão se tornando


experiências virtuais. Mesmo ultrapassando barreiras de classe social existe, hoje, um
complicador: a virtualidade. E isto coloca sérias questões sobre o que tem sido elogios
da verdadeira amizade: suportar adversidades, limpidez, segurança, sentimento e
superioridade. [43 anos, cat. II]

(R085) A amizade é o bem comum de cada homem, é o legado deixado pelo tempo
que nem mesmo ele pode apagar. O investimento nesse tipo de relacionamento gera
polemica por aqueles que não conhecem seu verdadeiro valor, polêmica essa que
consiste na afirmação falsa de que não existe amigo verdadeiro. [29 anos, cat. II]

(R107) Mas quando realmente se encontra um amigo onde se pode depositar todos os
nossos sonhos, carisma, lealdade, felicidade e contar com essa pessoa para o resto de
suas vidas, assim sim, concerteza esse é o amigo que é pra se guardar debaixo de sete
chaves, pois é com ele que iremos dividir a felicidade e as tristezas da vida e não
importa em qual situação se encontre ele sempre estará para te apoiar. [18 anos, cat.
II]

(R025) Na cabeça de uns, é bom ter alguém, que só concorde com o que dizemos,
sem criticar, nem aloprar nossas idéias. Mas isso, nem sempre é ser amigo. Assim,
discordo de “Cícero”, o grande pensador, quando diz que “falar a alguém como
falarias a ti mesmo”. Deve ser horrível não ter diversidade em uma amizade. A
unanimidade não deve ser a regra. É possível ter um amigo que tenha seus pontos de
vista, a respeito de política, amor ou arte.

Tanto a amizade, como o amor, vieram para a vida do homem para somar, não
para equacionar. [27 anos, cat. I]

Nota-se, no exemplo acima (R025), a precariedade da seleção lexical. A


referência a Cícero é mera citação, sem nenhum compromisso com a necessária defesa
de pontos de vista sobre a amizade. Além disso, o uso da primeira pessoa, tanto do
23

plural quanto do singular, é irrefletida; não há nenhuma preocupação do sujeito em


compartilhar idéias com o interlocutor. Mesmo com o uso do possessivo “seus”, cuja
referência é ambígua (de quem são os pontos de vista?) não se instaura o “outro” no
texto, pois o sujeito parece falar consigo mesmo.

No exemplo abaixo, esses fenômenos se repetem:

(R010) Já imaginou se as relações humanas fossem baseadas somente nos interesses


econômicos, burocráticos, institucionais? (que horror!) O que dá beleza a essas
relações é justamente a partilha involuntária e concedida das dores e alegrias das
pessoas, que se unem numa confluência espiritual e tornam-se cúmplices com
prazer... Quem há de negar que a amizade é superior ao amor? Eu não. [20 anos, cat.
II]

As impressões pessoais (“que horror!”, “Eu não.”), a formulação da pergunta


que abre o primeiro parágrafo (“Já imaginou...”), a seleção lexical precária (“beleza”,
partilha involuntária e concedida das dores e alegrias das pessoas”, “confluência
espiritual”, “cúmplices com prazer”) revelam a extrema dificuldade do candidato na
construção do “objeto-de-discurso”, ou seja, no processamento sociocognitivo do texto.

Essa dificuldade também se manifesta nestes outros exemplos:

(R027) De acordo com minha experiência, ter um amigo não se resume apenas em ter
alguém para desabafar ou para te ajudar nas horas em que você mais precisa, mas
também para compartilhar e etc..., para te advertir quando você estiver fazendo algo
errado, ou que possa prejudicar você ou outra pessoa, para dar e receber concelhos,
para indicar qual caminho você deve seguir. [24 anos, cat. I]

Novamente se percebe a inconsistência de idéias e a falta de domínio das


técnicas de produção de um texto dissertativo. Isso se comprova com o tom pessoal
revelado no início do trecho (“De acordo com minha experiência...”) e com o uso
inadequado dos pronomes de segunda pessoa (“te”, “você”), que certamente não se
referem ao interlocutor e sim ao próprio sujeito que fala no texto.

(R028) A verdadeira amizade é difícil de aparecer, pois não é bom acreditar naquela
pessoa que trabalha ao seu lado. Talvez ela quer sua amizade para saber segredos, o
que você pensa do chefe e na primeira oportunidade te delata. Também é difícil
acreditar em um vizinho que é tão carinhoso e atencioso. Ele freqüenta a sua casa e de
24

repente, um dia, ele invade ela e mata seus pais e até você mesmo para que não o
denuncie.

O candidato, no trecho acima, desvia-se sobremaneira do assunto, denunciando,


desse modo, a ausência de um planejamento de texto, de um objetivo para a produção
textual. Além disso, nota-se o uso inadequado dos tempos e modos verbais (“Talvez ela
quer...”) e a falta total de compromisso com o interlocutor. Os pronomes de segunda e
de terceira pessoa (“seu”, “sua”, “você”, “te”, “seus”), como no exemplo anterior, não
se referem necessariamente ao interlocutor. Trata-se de usos desses pronomes em
situações próprias da oralidade, portanto, inadequados à situação de produção de um
texto dissertativo.

Muitos outros exemplos revelam, enfim, essa dificuldade de grande parte dos
vestibulandos de estabelecer os limites necessários entre a produção oral e a produção
escrita de textos e de utilizar os recursos lingüísticos de acordo com a situação de
produção textual. Apresentam-se alguns, para a constatação de tal dificuldade:

(R015) Eu, como todos que conheço, tenho poucas e boas amizades. Amizades de
uma vida, de décadas e, por vezes, de algumas semanas.

Com cada um deles, criei laços de fraternidade real, que sobrevivem ao


silêncio, à distância, ao tempo e ao caos que rege nossas vidas. Porém, de um minuto
para outro, se retomam como se não tivesse passado mais que uma hora
desabrochando como uma flor no cactus. [43 anos, cat. II]

(R104) Amigos são como irmãos que você pode escolher, companheiros para
qualquer tipo de hora, feliz ou triste, sempre estarão ao nosso lado nos apoiando,
mesmo quando estamos errados. Nos escutam, sem reclamações, os problemas, medos,
remorsos, angústias. E claro, nos fazem dar altas gargalhadas, até a barriga doer;
sorrir de felicidade. [18 anos, cat. I]

(R117) Não se pode escolher, comprar, ou vender um amigo, e talvez seja por isso que
ele é tão valioso e muitos insistam em tentar o impossível. Afinal, de que adianta o
dinheiro e o luxo se não se tem amigos para compartilhar dessas alegrias? Qual é a
graça em navegar em um iate, dirigir o melhor carro ou voar de helicóptero sozinho?
Hoje em dia, as pessoas só querem saber de fama e se contentam com “pseudo-
amigos”. Mas para quem essas pessoas vão “pedir colo” quando seu periquito
australiano morrer? [16 anos, cat. I- treinamento]
25

(R88) Os que têm um amigo, diz que é eterno que é uma relação de cumplicidade de
apoio nos momentos felizes, mas também nos difíceis.

A amizade é um assunto que vai ser sempre atual enquanto houver vida na
terra, porque é ela trás a harmonia nas relações humanas. [20 anos, cat. III]

IV. Considerações finais

Conforme já se afirmou na descrição das etapas da pesquisa, revela-se, em


grande parte das redações analisadas, a incapacidade do candidato de proceder aos dois
movimentos responsáveis pela estruturação do texto – o da retrospecção e o da
prospecção. O uso indevido dos recursos coesivos é determinante no prejuízo da
progressão referencial, pois não se dá a necessária reconstrução de objetos do discurso
previamente introduzidos, que dê origem às cadeias referenciais e coesivas adequadas
no texto.

Em muitos casos, o aluno procura revelar uma certa imagem de


desenvolvimento ordenado do texto; busca construí-lo segundo as exigências próprias
de coesão e argumentação, mas o texto que produz denuncia a ausência de familiaridade
com uma prática efetiva da escrita.

Os fracassos apontados do corpus têm origem, principalmente, em uma falsa


imagem das especificidades da escrita. Pressupõe-se que isso se deve, especificamente,
aos limites das concepções da escrita que são consagrados na escola; ali, escrever
significa reproduzir uma atividade que existe exclusivamente em função do próprio
ambiente escolar.

Desse modo, o efeito mais evidente dos problemas aqui apresentados é a


pronunciada distância que se estabelece entre o valor do desempenho escrito e o valor
de uso da linguagem, da instauração de um processo significativo. O aluno, diante do
papel em branco, não é capaz de compreender que ali se encontra uma chance de dizer,
de mostrar, de esclarecer, de divertir ou divertir-se, de partilhar conhecimentos.

As inadequações encontradas nas redações mostram que não se instauram nos


textos sujeitos capazes de interagir socialmente; pelo contrário, manifesta-se, em grande
parte dos textos, o aluno e sua responsabilidade escolar de empreender uma tarefa, uma
“lição de casa”.
26

Também como já se afirmou, as redações dos alunos que fizeram cursinho


apresentam, em geral, esquemas predeterminados de organização de idéias, reflexos de
treinamento. Por isso não se apresentam nesses textos, com tanta regularidade, as
principais dificuldades de utilizar os processos de referenciação. Porém é importante
lembrar que, mesmo havendo a razoável adequação nesses casos, as redações de textos
das quatro categorias da amostra demonstram, conforme se procurou mostrar nas
análises, que a escola, tanto a pública quanto a particular, não tem cumprido seu papel,
uma vez que os alunos não revelam o domínio da concepção adequada de texto como
instrumento ou estratégia da comunicação ou da interação social; ao contrário, revelam
a ausência de orientação, de prática de texto. A escola, portanto, não forma alunos
capazes de produzir textos adequados à comunicação ou à interação social.

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