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1- Introdução
No celebrado “Ensaio sobre a dádiva” (2003), publicado pela primeira vez em 1925,
o antropólogo francês Marcel Mauss se dedica a analisar os sistemas de trocas e contratos
nas sociedades “ditas primitivas, e também as que poderíamos chamar arcaicas”
(MAUSS, 2003), que o autor identifica como um “sistema de direito contratual e de
prestações econômicas entre os subgrupos” (Idem, 2003) destas sociedades. Para Mauss,
tais dinâmicas são “fatos sociais totais”, conceito amplamente utilizado pela antropologia
e pela sociologia até a contemporaneidade, sobre o qual o autor discorre em seu “Ensaio
sobre a dádiva”:
Existe aí [nas sociedades arcaicas] um enorme conjunto de fatos.
E fatos que são muito complexos. Neles, tudo se mistura, tudo o
que constitui a vida propriamente social das sociedades que
precederam as nossas – até às da proto-história. Nesses
fenômenos sociais "totais", como nos propomos chamá-los,
exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições:
religiosas, jurídicas e morais – estas sendo políticas e familiares
ao mesmo tempo –; econômicas – estas supondo formas
particulares da produção e do consumo, ou melhor, do
fornecimento e da distribuição –; sem contar os fenômenos
estéticos em que resultam estes fatos e os fenômenos
morfológicos que essas instituições manifestam. (MAUSS, 2003,
p. 187)
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Não há definição de “contribuição consciente” em dicionários, manuais ou artigos científicos, mas o
termo é amplamente utilizado por organizações com ou sem fins lucrativos para designar o valor pago
por qualquer pessoa para colaborar para a realização de um projeto, de um evento, de uma causa ou
mesmo desfrutar de uma experiência ou adquirir um objeto. Segundo a Benfeitoria (uma dessas
instituições), que se autointitula “uma plataforma de mobilização de recursos para projetos de impacto
cultural, social, econômico e ambiental”, trata-se de um “modelo de comissão livre, que significa que não
obrigamos ninguém a pagar (...) Podemos chamar também de colaboração espontânea, contribuição
consciente, comissão voluntária, mas tudo quer dizer a mesma coisa: você colabora com o quanto quiser”
(disponível em https://benfeitoria.com/proposta)
2- Mauss e as trocas e contratos em sociedades “ditas primitivas” ou arcaicas
Mauss chama este sistema de “sistema de prestações totais”, que tem como
característica principal o fato de as prestações e contraprestações – a troca, em outras
palavras - serem feitas sobretudo de forma voluntária, embora sejam, na realidade,
obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública no caso das sociedades estudadas. O
sistema de prestações totais também pressupõe a aliança entre duas frátrias, em que tudo
é complementar - ritos, casamentos, sucessão dos bens, postos militares ou sacerdotais
etc. - e supõe a colaboração das duas metades da tribo. Destarte, é a complementaridade
que une os grupos por meio da dádiva, que opera necessariamente no ciclo de “dar,
receber e retribuir”.
Para dar clareza aos conceitos que Mauss elenca no ensaio, discorreremos
brevemente sobre suas observações nas sociedades analisadas pelo antropólogo com foco
justamente nesta semelhança que nos une, as prestações totais regidas pela
obrigatoriedade da tríade acima mencionada, de dar, receber e contribuir. Em sua visão
não utilitária dos bens em circulação, Mauss observa que eles são inseparáveis de seus
proprietários nas dinâmicas de troca, isto é, coisa e indivíduo são indissociáveis. Segundo
Mauss, as coisas possuem uma substância moral própria, alma ligada à matéria espiritual
do doador, que tende a retornar ao seu antigo dono que, ao doá-la, também se doa. Desta
forma, existe uma força que move a circulação das dádivas, num sistema em que a própria
coisa dada opera como garantia de sua retribuição.
Na Polinésia, os “taonga”, isto é, a “propriedade propriamente dita, tudo aquilo
que torna alguém rico, poderoso e influente, tudo aquilo que pode ser trocado, objeto de
compensação” (MAUSS, 2003, p. 196) estão fortemente ligados à pessoa, ao clã e ao
solo. Assim, os “taonga” constituem o veículo do “mana”, que seria, uma força mágica,
religiosa e espiritual, que contém em si a força capaz de destruir o indivíduo que os recebe
caso a retribuição obrigatória e presumida seja descumprida. Já a palavra ““hau””, que é
traduzida como “vento” e alma”, seria o equivalente de “mana” (usado para humanos)
para coisas, objetos inanimados.
Temos a partir deste conceito, de “hau”, a lógica fundamental das prestações
totais observadas nestas sociedades: o que cria uma obrigação de retribuição é o fato
de que a coisa recebida não é inerte ou “descolada” do doador: por meio dela, este
adquire uma superioridade sobre aquele que a recebe, num ciclo em que o ““hau”” deve
sempre voltar à sua origem, conforme explica Mauss no “Ensaio sobre a dádiva”,
citando o elemento mítico do “hau” encontrado no caderno de campo do antropólogo e
seu amigo pessoal Robert Hertz, contendo a explicação de Tamati Ranaipiri, um dos
informantes maori (nativo da Polinésia) de outro antropólogo, R. Elsdon Best.
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Aquele que dá esmolas, grifo nosso
pode ser verificado nas imagens listadas abaixo, que anunciam eventos, atividades e
experiências que fazem uso de tal modalidade.
Imagem 1- Anúncio extraído do Facebook (facebook.com) para o evento teatral “Na toca”,
realizado no Rio de Janeiro, com contribuição consciente e valor sugerido de R$ 30
Assim, observamos que embora ainda não haja estudos científicos sobre a prática
da contribuição consciente no Brasil, ela é amplamente utilizada e, portanto, socialmente
compreendida, pelo menos entre o público-alvo que cada iniciativa pretende atingir.
Encontramos, entretanto, um estudo de caso sobre a Casa Bô, uma associação
cultural situada no Porto, em Portugal, do pesquisador André Luís Quintino Principe, que
parece nos fornecer o aporte comparativo necessário entre os preceitos da dádiva
observadas por Mauss (2003) e o sistema de trocas e contratos estabelecidos a partir da
prática da contribuição consciente. É a partir desta pesquisa, portanto, que observaremos
as possibilidades de aproximação entre a economia da dádiva como proposta por Mauss
(idem) e a lógica da contribuição consciente na atualidade.
Um dos objetivos da pesquisa, dissertação de mestrado de André Luís Quintino
Principe, é analisar “a efetividade do donativo consciente na inclusão e coesão social para
geração de economia social” (2016, p. V). Deste trecho do trabalho, vinculado ao
Programa de Mestrado em Economia e Gestão da Inovação da Faculdade de Economia
da Universidade do Porto, podemos inferir alguns pontos. O primeiro deles é que o
“donativo consciente” ou “contribuição consciente” visa a criar coesão social, um senso
de comunidade e pertencimento, argumento reforçado quando o autor cita Azevedo et al.,
afirmando que “há muito tempo que se usa a expressão Economia Social. Na Comissão
Europeia, esta traduz-se na consideração de quatro tipos de organizações: as associações,
as fundações, as mutualidades e as cooperativas” ( 2010, p. 19 apud PRINCIPE, 2016,
p.8). Não nos interessa aqui discutir o caráter de cada uma destas organizações, apenas
reafirmar seu papel como propiciadoras de coesão social e de senso comunitário seja com
viés trabalhista, ativista ou quaisquer motivações. Outro ponto a ser destacado a partir da
descrição do objetivo de pesquisa de André Luíz Quintino Principe é o de que o donativo
ou contribuição consciente pode ser considerado um pilar da economia social.
Na avaliação do autor, a adoção da contribuição consciente como acesso à
programação e às atividades da Casa Bô apontam para o propósito do espaço em ser um
local inclusivo.
(...) é uma associação adotou o donativo consciente como forma de ser
ao mesmo tempo sustentável e intervencionista ao ponto de permitir que
qualquer pessoa interessada em um de seus eventos como um concerto
ou uma noite de poesia possam participar sem a preocupação de ter que
adquirir um bilhete para acesso ao local. A ideia é dar acesso a todos,
principalmente aqueles com menos condições, e, ao mesmo tempo, dar
condições a aqueles que tem mais condições que possam contribuir na
medida que julgarem mais justo quanto ao valor do evento que estão a
frequentar. Pode-se dizer que é um ambiente que propicia uma espécie
de equidade social voluntária (PRINCIPE, 2016, p.171)
Assim, pode-se deduzir que nem todos os participantes dos eventos ou atividades
inseridos nesta comunidade pagam o valor sugerido pela Casa Bô. Um aspecto a ser
observado neste sentido é a maneira como a cobrança de valores é realizada. Segundo o
pesquisador (2016, p.134), os donativos conscientes são feitos por diferentes membros da
“família Bô”, de acordo com sua disponibilidade. Em outras palavras, o valor é coletado
por pessoas diretamente ligadas à casa, o que pode causar algum tipo de constrangimento
ou até mesmo coerção aos que optam (ou optariam) por não pagar por sua participação
ou, ao menos não pagar o valor sugerido.
A partir dos trechos destacados acima, já é possível estabelecer algumas
aproximações com as observações de Mauss sobre a economia da dádiva e os sistemas de
prestação total. Em primeiro lugar, cabe analisar o caráter “livre”, porém obrigatório” que
Mauss observa nos sistemas de prestação total. Tal analogia pode ser feita a partir da
instituição da contribuição ou donativo como forma de pagamento. A partir do momento
em que cada pessoa pode, em tese, pagar o valor que julgue cabível ou possível para fazer
parte do evento ou da atividade, ou seja, tornar-se parte daquela comunidade (outra
premissa observada por Mauss, de que a dádiva visa à coesão social, bem como descrito
sobre a Casa Bô) tem-se, como na economia da dádiva, a premissa da liberdade. Porém,
a instituição de um valor “sugerido” para se engajar em tal pertencimento permite a
inferência de uma obrigatoriedade da contribuição. Ora, se há um valor “sugerido”, é
porque presume-se que todos devam contribuir, e mais: com uma quantia igual ou, ao
menos que se aproxime à sugerida. Ou seja, presume-se a retribuição, no caso o
pagamento em dinheiro, pela participação naquele evento ou atividade e, por conseguinte,
naquela comunidade.
Também como observa Mauss, aquele que não retribui uma coisa dada é
inferiorizado, bem como aquele que não participa do donativo consciente ou o faz em um
valor abaixo do sugerido pode sofrer constrangimentos, sobretudo se pensarmos que a
arrecadação dos donativos é feito por pessoas diretamente ligadas à Casa Bô, ou seja, ao
evento ou atividade ofertada, à coisa dada. Assim, podemos deduzir que, ao contrário do
que observa Principe (2016, p. 171), o donativo acaba, como a economia da dádiva, por
estabelecer uma desigualdade, uma assimetria, uma hierarquia, entre aqueles que pagam
o valor sugerido do donativo e aqueles que não, podendo contrariar a afirmação de que a
contribuição voluntária seja, por si só, capaz de criar um “ambiente que propicia uma
espécie de equidade social voluntária” .
Outro ponto a ser observado diz respeito à indissociabilidade das coisas e pessoas
na prática das contribuições conscientes. Em primeiro lugar porque os eventos e
atividades, a “coisa dada”, são tão inseparáveis daqueles que a ofertam que estes são
chamados de “família Bô”. Assim, a relação é tão indissociável que eles chegam a
carregar em si o próprio nome da coisa dada, que, vale ressaltar, é imaterial e se refere às
atividades culturais e à filosofia da Casa Bô como um tudo, ou seja, podem ser lidas como
sendo sua “alma”. O trecho abaixo ilustra esta relação:
A Casa Bô nutre e promove um sentimento de pertença e família (...)
de forma que faça com que eles mesmos gostem e prefiram ser
chamados assim, como uma família, a família Bô. Em relação ao seu
público, a Casa Bô tem em seus valores a inclusão e coesão social, e
todos que se aproximam são tratados sem diferenças e preconceitos
(PRINCIPE, 2016, p. 134)
Assim, podemos fazer uma analogia ao “hau”, que não apenas está no doador, o
membro da “família Bô”, mas confunde-se com ele próprio, como explicitamos acima.
Mais que isso, como o “hau”, esta “alma” da Casa Bô também é transmitida a quem
recebe a coisa dada, ou seja, participa do evento ou atividade, uma vez que “todos que se
aproximam são tratados sem diferenças e preconceitos”, inclusive em relação à “família
Bô”, como se pode inferir. Portanto, quem recebe também se torna indissociável da
“coisa”, do evento, da atividade, e, em última instância, da própria Casa Bô e sua filosofia.
Outra analogia possível entre a economia da dádiva e a prática de contribuição
consciente se refere à hierarquia estabelecida entre quem dá (de superioridade) e quem
recebe (de forma relacional, de inferioridade). O trecho que já destacamos acima e que
voltamos a ressaltar aqui permite fazer tal inferência, ao afirmar que a Casa Bô adotou o
donativo consciente
ao ponto de permitir que qualquer pessoa interessada em um de seus
eventos como um concerto ou uma noite de poesia possam participar
sem a preocupação de ter que adquirir um bilhete para acesso ao local.
A ideia é dar acesso a todos, principalmente aqueles com menos
condições (...) (PRINCIPE, 2016, p. 171)
4- Considerações finais
Assim como Mauss conclui em seu ensaio sobre a dádiva, também observamos
que a prática da contribuição consciente que pode, como demonstramos, ser análoga aos
sistemas de prestação maussianos, ainda carrega muito da moral das sociedades em que
o pesquisador observou, pela primeira vez a economia da dádiva. Como nas sociedades
“ditas primitivas”, quem não paga o “valor sugerido” e ainda assim desfruta de um evento,
atividade ou experiência, a “coisa dada” ainda corre o risco de ser constrangido,
inferiorizado, rotulado. Também é possível afirmar que, como observou Mauss ao falar
do rico esmoler (MAUSS, 2003, p.194), a iniciativa de espaços como a Casa Bô, aqui
analisado, de oferecer acesso a cultura , sobretudo aos menos favorecidos (PRINCIPE,
2016), também tende a suprimir uma certa patronagem inconsciente e injusta (MAUSS,
2003), além de – e por isso mesmo- colocar a Casa Bô, aquela que dá, em uma posição
de inferioridade a quem recebe, o público.
Conforme observamos o estabelecimento de um “valor sugerido” em um evento,
atividade ou experiência em que supostamente cada participante poderia contribuir com
o valor que achasse justo (premissa fundamental da contribuição consciente), pressupõe
uma obrigatoriedade em retribuir, neste caso, pagar o valor sugerido. Assim, é possível a
analogia à observação de Mauss de que no jogo da dádiva, há uma pretensa liberdade,
que oculta uma obrigatoriedade de retribuição da coisa dada (neste caso, as atividades da
Casa Bô e a própria chance de pertencimento à “família Bô”). No capítulo anterior,
elencamos ainda outros exemplos que permitem associar a contribuição consciente à
lógica da dádiva, como a indissociabilidade entre a “coisa” e a “pessoa”, e a
complementaridade entre os grupos que se dá por meio do “dar, receber e retribuir”,
essencial tanto para a compreensão (e o próprio funcionamento) da dádiva quanto da
lógica da contribuição consciente.
Desta forma, tal qual Mauss conclui sobre a contemporaneidade em que viveu,
também é possível afirmar sobre a nossa, em que a dita lógica híbrida da dádiva também
se faz presente, mesmo (e talvez sobretudo por isso) em um mundo hiperconectado e com
fronteiras cada vez mais invisíveis ou encurtadas, ampliando as possibilidades de trocas
e contratos, sejam eles materiais ou não. Não se trata, claro, de afirmar que as sociedades,
sistemas e atores sociais são os mesmos, mas sim que é possível traçar analogias entre os
dois modelos comparados.
5- Referências bibliográficas