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Presídio: uma nova

possibilidade
de atuação.

mbora um dos objetivos explícitos dos presídios


seja o de recuperar o presidiário para a vida lá fora,
surgem muitas barreiras e dificuldades ao trabalho de
profissionais que têm a função de justamente cumprir
este objetivo. Apesar de fazer tal constatação,
a psicóloga Clarisse Duro Goldberg, que foi técnica num
presídio gaúcho, conseguiu desenvolver um trabalho
com alguns resultados que beneficiaram os presidiários
e a vida no presídio. Mais ainda, Clarisse relatou como o
processouma
tornar-se de aprendizagem
organização dos presidiários
para procurou
a volta à liberdade.
Antes de me formar, já estava que- ção para que eles soubessem o que mente modificado e isso começou a
rendo trabalhar com instituições da estava sendo feito com os dados obti- criar uma abertura em relação a mim,
rede pública. Meu estágio de gradua- dos. Disse que, por exemplo, em rela- pois os agentes perceberam que eu
ção foi feito com creches e escolas ção ao grau de escolaridade, seria fei- não estava chegando com um projeto
públicas. No ano que antecedeu a to uma espécie de supletivo de 5a à 8a pronto e acabado e estava disposta a
minha formatura, comecei a manter série. Nessa reunião, um dos presos construir um projeto junto com eles.
contatos com a Secretaria da Justiça começou a falar do problema de ali- Isso realmente funcionou. Nem todos
do Estado. Como o número de vagas mentação, de superpopulação, de fal- se envolveram com o trabalho em si,
para técnicos é limitado e durante os ta de colchão de dormir etc. Daí eles mas criaram condições para que ocor-
últimos anos não houve concurso pa- sugeriram que, ao invés de fazer só resse lá dentro.
ra tais cargos, fiquei mais de um ano uma reunião, começasse a fazer reu-
esperando alguma resposta. Nessa niões quinzenais. O processo de organização
época, houve uma greve de fome de Depois da primeira reunião com os
presidiários, no Presídio Municipal de presos, fizemos diversas outras que já
Rio Grande, uma cidade de porto, no Criando as foram realizadas por iniciativa deles
Rio Grande do Sul, com população de condições de trabalho mesmos. No começo, eles explicita-
250 mil habitantes. Este presídio ti- É importante marcar como foi se vam quais eram os problemas e que-
nha capacidade prevista de 50 presos, estruturando o meu espaço como pro- riam que eu os resolvesse porque
mas continha, em 1985, cerca de 90. fissional lá dentro. Havia uma rejei- acreditavam que tinha o poder para
Lá havia uma série de irregularidades: ção muito grande, principalmente por isso. Da minha parte, comecei a per-
o administrador foi afastado e um parte dos agentes penitenciários (car- ceber que eu não poderia ser a mãe
outro foi designado para assumir o cereiros) e dos administradores em superprotetora que estava mediando
cargo. Nessa circunstância, tornou-se relação ao psicólogo. Segundo estes, a relação extremamente autoritária
urgente o trabalho de um psicólogo na história de outros presídios, o as- entre o pai, que era o administrador, e
ali dentro e, então, houve a indica- sistente social, ou psicólogo, acabava os filhos renegados, que eram os pre-
ção do meu nome, por parte do Secre- tomando partido dos presos quando sos. Concluí realmente que nenhum
tário da Justiça. Não fui contratada, se formavam grupos divergentes e,por psicólogo e nenhum outro técnico de-
mas admitida como cargo em comis- isso, tinham rejeição prévia com rela- ve assumir esse papel numa insti-
são, com remuneração muito aquém ção a técnicos. No Presídio de Rio tuição.
do salário mínimo profissional. Grande, eu era a única pessoa com Os presos conseguiram assumir
Como era a primeira vez que iria cargo técnico, além de ser do sexo que não adiantava esperar de mim a
trabalhar num presídio, fui procurar feminino, num presídio masculino. resolução dos problemas deles. Na
o professor Minasi e pedi orientação. De um lado, tive que criar espaço época, tinha um preso, com uns 30
Ele afirmou que a melhor estratégia entre os presos que me viam como anos dentro de prisão, que vivia en-
era começar o contato fazendo entre- alguém do poder e não se sentiam à trando e saindo dali. Ele foi uma pes-
vistas individuais com os presos. vontade comigo. De outro lado, os soa fundamental no processo todo.
Procurei coletar dados como no- agentes que me viam como alguém Sugeriu que tirássemos representantes
me, data de nascimento, escolaridade propensa a ir para o lado dos presos. dos presos para que junto comigo
etc. Na verdade, eu poderia obter es- Comecei a fazer um trabalho junto fizéssemos o contato constante com o
tes dados na ficha deles, mas o meu ao administrador que havia tomado administrador.
interesse maior não era o dado de fato posse recentemente, naquela época. Fiz um trabalho de grupo com eles,
e sim o contato direto com os presos Procurei demonstrar sempre que o no qual participaram uns 60 presos,
para ver o que surgia nessa interação, meu trabalho era de assessorá-lo, em usando a técnica de psicodrama. Co-
para além dos dados. Notei que, no função de constatações que estáva- mecei conduzindo a dramatização da
início, eles vinham falar comigo com mos começando a descobrir juntos. "vassouragem" pedindo para proce-
muito medo. Na medida que passou o Sempre procurei fazer reunião com derem como costumam fazer durante
tempo, começaram a mudar as rea- ele e discutir sobre o que estava acon- todas as manhãs, no pátio do presí-
ções deles comigo. Eles passaram a tecendo no momento. dio. Numa certa hora, sumiu alguma
dizer que "subiam" com medo por- Com relação aos agentes peniten- coisa numa das celas. Alguém identi-
que antes quando "subiam" era para ciários, o chimarrão foi o intermediá- ficou que sumiu o rádio dele e come-
apanhar, sofrer violência física. rio entre nós. Antes do almoço, eles çou a falar para o grupo como estava
Quando "desciam" da entrevista co- tomavam chimarrão e eu ia tomar se sentindo por ter perdido o rádio.
migo, os outros perguntavam o que com eles, até porque eu gosto muito. Um outro perguntou: "Quem é que
tinha acontecido. Respondiam que só Depois de um certo tempo, montei roubou?". Alguém respondeu: "Fui
tinham ido conversar com a psicólo- um projeto de trabalho e solicitei uma eu". Perguntamos: "O que o grupo
ga. Isso foi abaixando a ansiedade reunião para apresentá-lo, com a ex- faria com quem roubou?". As puni-
deles. pectativa de que eles criticassem e ções previstas pelo grupo eram
Convoquei uma reunião de devolu- dessem sugestões. O projeto foi total- enormes.
Fiquei surpresa porque não imagi- cações dos presos; levá-las para o ad- É importante destacar que só se
nei que eles fossem envolver-se tanto ministrador; e fazer a devolução de discute em geral o abuso de autorida-
com a dramatização. Esta desenca- resultados para os colegas. de do policial e do militar, mas nunca
deou uma crise muito grande entre Decidiram que seriam dois repre- se discute o do psiquiatra ou do psicó-
dois presos. Se isso acontecesse em sentantes, sem tempo definido de re- logo. Isso foi fundamental no meu
outro presídio, até acabaria dando em presentação, com a escolha feita por trabalho porque eu tive a preocupa-
morte. Na dramatização, os presos se eleição direta. O critério de destitui- ção de atuar com crítica e autocrítica
comprometeram a ajudar a resolver o ção seria a pessoa sair do presídio ou junto com os presos.
problema, principalmente os presos eles julgarem que os representantes No início, o trabalho dependia só
da cela dos principais envolvidos no não estavam cumprindo os requisitos de mim; depois, começou a andar
caso. Embora eu tenha propiciado a do cargo. sozinho, com a minha participação.
possibilidade de lidar com os assuntos Nestes termos, o papel do psicólogo é
mais pessoais, no final das contas A contribuição semelhante ao de outros técnicos:
quem fez todo o processo de ajuda criar condições para que o processo
dos presos envolvidos foram os pró-
de psicólogo
na instituição se desenvolva. Quando
prios colegas de cela. Depois de um certo tempo de tra- começou a se desenvolver no Presídio
Entre uma reunião e outra, num balho, começou-se a sentir a necessi- de Rio Grande, eles próprios pegaram
intervalo de duas semanas, eles discu- dade de se discutirem certos assuntos nas mãos o processo de trabalho. Aí
tiram por cela duas perguntas: como que não cabiam nas reuniões com começou a se estabelecer mais a espe-
deveria ser a pessoa candidata a re- todos os presos e que eram próprios cificidade da atuação do psicólogo,
presentante; o que deveria fazer um de cada cela. Por exemplo, era o caso porque começaram a fazer solicita-
representante. Chegaram à conclusão de "vassouragem", como eles dizem, ções de reunião por cela, que era o
que o representante deveria ser uma referente a furto dentro do presídio. momento mais pessoal do preso.
pessoa com bom vínculo com os pre- Como eles ficavam no pátio durante É importante citar que os presos
sos, com a guarda e com o adminis- certo tempo, quando as celas estavam passaram a fazer também reuniões só
trador. O papel do representante era: abertas, começou a haver problemas entre eles para abordarem assuntos de
explicitar as preocupações e reivindi- de furto. interesse particular.
Um aspecto importante e central nuidade ao meu trabalho. Responde- prias de instituições totais, que são as
no trabalho era a organização e a ram para mim que, devido ao corte de de o trabalho chegar até um certo
reunião dos presos entendidas não verbas, todos os cargos em comissão ponto e parar porque não se atende às
apenas como um momento no qual que não fossem estritamente necessá- condições materiais básicas como,
poderiam falar e trocar vivências, mas rios seriam desligados. Além disso, por exemplo, falta de colchão de dor-
como uma preocupação mais política deixei claro que estava me transferin- mir. Isso atrapalha e emperra o traba-
para que eles percebessem a impor- do para São Paulo a fim de desenvol- lho, constituindo assim a realidade
tância da participação na discussão e ver estudos sobre a questão carcerá- com a qual lidamos. Tinha dias que
ação de seus problemas. Naquele mo- ria, na UNICAMP. A superintendên- saía de lá com uma angústia tremen-
mento, estavam dentro do presídio, cia entendeu que eu era dispensável da. Tive supervisão com a psicóloga
mas esse aprendizado servia para a ao quadro, mas que poderia conti- Bebeth Fassa para que essa angústia
volta à liberdade. O ponto chave nes- nuar desenvolvendo as atividades que não interferisse no meu trabalho a
te processo foi a quebra da interme- quisesse, sem remuneração, o que tor- ponto de me imobilizar, até mesmo a
diação do técnico (no caso, o meu nou inviável a continuidade do tra- nível do que era possível fazer naquela
papel de psicóloga). balho. circunstância. Tive todas as dificulda-
O trabalho com instituições totais des de trabalho numa instituição to-
0 surgimento de barreiras é tremendamente angustiante, porque tal, com a diferença de que lá foi
Com a mudança de governo, em se trata de uma micro-sociedade com possível desenvolver algum trabalho,
1986, busquei apoio junto à nova leis muito estabelecidas e difíceis de tendo contribuído para isso, tanto os
Superintendência dos Serviços Peni- serem mexidas. No Presídio de Rio presos quanto o administrador e os
tenciários do Estado, para dar a conti- Grande, surgiram dificuldades pró- agentes penitenciários.

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