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Resumo: O que se examina neste trabalho são aspectos relacionados aos processos que Hermeto
Pascoal denomina de “mistura” em sua música, através de considerações sobre a faixa “Ailin”, do
disco Mundo Verde Esperança (2002). São estudados primeiramente aspectos harmônicos e em
seguida aspectos melódicos, que procuram demonstrar como elementos da música espanhola são
incorporados na linguagem musical de Hermeto nesta composição.
The mixed music of Hermeto Pascoal: considerations about the track “Ailin”, from the album
Mundo Verde Esperança.
Abstract: What is examined in this work are aspects related to the processes that Hermeto Pascoal
calls "mixing" in his music, through consideration of the track “Ailin”, from the album Mundo
Verde Esperança (2002). Are studied primarily the harmonic aspects and then melodic aspects,
seeking to demonstrate how elements of Spanish music are incorporated into the musical language
of Hermeto in this composition.
1. Introdução
As pessoas pensam que evoluir é fazer uma harmonia cada vez mais pesada. Para
mim evolução é saber mexer com misturas. O mais difícil nessa música que eu
chamo de universal é justamente saber misturar... Evolução é saber misturar.
(PASCOAL apud ARRAIS, 2006, p.7)
Quando eu cheguei no sul, eu fui juntando a música. A gente nunca fica fixo num
estilo só, é uma mistura. (PASCOAL apud CAMPOS, 2006, p.20)
Como exemplo musical foi escolhida a música “Ailin”, décima quarta faixa do
último disco de estúdio lançado por Hermeto Pascoal e Grupo, o álbum Mundo Verde
Esperança. Será realizada uma breve análise de aspectos harmônico-melódicos 1 que tem por
objetivo investigar como se dão os processos de mistura, e a relação com as fontes de onde
elementos musicais são emprestados e transformados.
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2. Considerações Analíticas
Aspectos harmônicos
A estrutura harmônica de “Ailin” é baseada no movimento entre duas tríades
maiores separadas pela distância de um semitom, e em alguns trechos, a variação ou a
expansão desta idéia. O descenso da tríade por intervalo de semitom estabelece um jogo de
relações, no qual o primeiro acorde parece enfatizar o segundo como uma espécie de centro,
ou lugar de chegada (bII-I).
Este dispositivo harmônico é empregado por Hermeto como uma maneira de
alusão a algumas características musicais associadas à música espanhola, dentre as quais se
destacam, na esfera da harmonia, a cadência andaluza e o modo flamenco. De acordo com
Fernández Marín (2006, p.35) a cadência andaluza é uma sucessão descendente de acordes do
modo menor, que caminha da tônica até a dominante (Im – bVII – bVI – V ou Dm – C – Bb –
A em Ré menor) em forma de semi-cadência. O tetracorde da cadência andaluza coincide
com o primeiro tetracorde do “modo flamenco”, este último um modo com a mesma estrutura
intervalar do modo frígio, mas com o acorde de primeiro grau maiorizado, característico da
música flamenca. Manuel (2006, p.96) denomina este mesmo modo de “Modo Frígio
Andaluz”, e atribui a terça maior do acorde de primeiro grau a uma influência de modos da
música árabe:
Figura 1: Comparativo entre cadência andaluza, modo frígio harmonizado e modo flamenco
harmonizado.
Para Fernández Marín (2006), assim como as tonalidades maiores e menores têm
um acorde de função dominante, este sobre o acorde de quinto grau (V7) e suas outras versões
(VIIo, subV7, etc.), o modo flamenco também possui sua “dominante flamenca”, mas neste
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caso sobre o acorde do segundo grau abaixado (bII) e suas versões. Ela demonstra como
opções possíveis para este acorde, normalmente o sétimo grau abaixado (bVIIm7 ou Cm7 no
modo de Ré flamenco) e o quinto grau (Vm7(b5) ou Am7(b5)), ambos com baixo no segundo
grau da escala (Cm7/Eb ou Am7(b5)/Eb, portanto em primeira e segunda inversão
respectivamente). A autora destaca que esta sensação de dominante se dá pela força que a
progressão bII-I tem através do baixo 2:
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número de compassos e encerra a música. Somente com este centro é que serão realizados
alguns procedimentos de expansão e variação do movimento bII-I.
Entre os compassos 41 e 49, terceira frase da seção A, se encontra a primeira
variação do movimento bII-I:
Aspectos melódicos
Dentre os elementos melódicos que se destacam nos processos de mistura
investigados neste trabalho estão as escalas e as ornamentações. Ao longo da música Hermeto
utiliza basicamente uma escala, primeiramente com o centro na nota Lá e depois na nota Ré.
Ela é formada pela seguinte estrutura:
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Esta escala tem a mesma estrutura intervalar do modo frígio, mas com a inclusão
da terça maior em pontos específicos. Neste sentido ela converge com a formação do modo
frígio maiorizado, com o qual se qualificam as melodias harmonizadas sobre o modo
flamenco (FERNÁNDEZ MARÍN, 2006, p.36). A autora demonstra como se dá a formação
do modo frígio maiorizado:
Apesar da analogia entre as escalas, não se afirma aqui que “Ailin” está em modo
flamenco ou frígio maiorizado, como Fernández Marnín entende a música flamenca. É
preciso entender cada modo em sua maneira de fazer, já que “quando definidos apenas pelas
arrumações internas de seus intervalos, os modos dizem bem pouco sobre música”
(FREITAS, 2008, p.450). Um estudo comparativo mais aprofundado sobre a utilização da
escala entre Hermeto nesta música e a música espanhola foge ao escopo deste artigo.
A convivência entre as terças maior e menor do modo frígio maiorizado, utilizado
na música espanhola, pode ser encontrada também em “Ailin”. Logo na primeira frase, que
começa no segundo compasso, a melodia do flugelhorn se inicia com a nota Dó natural sobre
o acorde de Bb e encerra-se com a nota Dó sustenido sobre o acorde de A. É interessante
ressaltar a nota Ré sustenido (quarta aumentada) utilizada ao final da frase, nota não diatônica
que cria um tipo de breve referência ao modo lídio:
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Um exemplo do uso das terças maior e menor da escala pode ser encontrado entre
as duas primeiras frases da seção A, que apresentam utilização semelhante para as diferentes
terças da escala. Na primeira frase, sobre o centro em Lá, a nota Dó natural serve de
bordadura inferior para a nota Ré natural, terça do acorde de Si bemol Maior, ao final de uma
frase que se encerra na quinta do acorde de Lá Maior:
A próxima frase, agora em torno de Ré, tem um uso parecido, mas com a terça
maior da escala. A nota Fá sustenido serve de bordadura inferior para a nota Sol natural, terça
do acorde de Mi bemol Maior, ao final da frase que se encerra na quinta do acorde de Ré
Maior:
Este pequeno exemplo sugere que Hermeto não está preocupado com uma
sistematização do uso das terças, como acontece na música flamenca. As terças parecem estar
subordinadas às necessidades estéticas do compositor no trecho em questão.
No campo da ornamentação Hermeto realiza um procedimento idêntico nas duas
frases. Em ambas, as suas repetições terminam com um ornamento em forma de grupeto sobre
a quinta justa do acorde de repouso, o qual é encontrado amplamente também na música
espanhola. Ao adicionar uma segunda voz a estas melodias na seção A’, o procedimento é
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repetido, agora sobre a fundamental do acorde de Lá Maior na primeira frase e sobre a terça
do acorde de Ré Maior na segunda.
3. Considerações finais
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Referências:
CAMPOS, Lúcia Pompeu de Freitas. Tudo isso junto de uma vez só: o choro, o forró e as
bandas de pífanos na música de Hermeto Pascoal. Belo Horizonte, 2006. 143 f. Dissertação
(Mestrado em Música) Universidade Federal de Minas Gerais.
FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o
estudo de planos tonais em música popular. Campinas, 2010. 817 f. Tese (Doutorado em
Música) Universidade Estadual de Campinas.
FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Dos modos em seus mundos: usos do termo modal na
teoria musical. In: Congresso da ANPPOM, n. 18, 2008, Salvador, pp. 450-457.
PASCOAL, Hermeto. Calendário do Som. 2. ed. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
Notas
1
Este trabalho faz parte de uma pesquisa em andamento que leva em consideração ainda aspectos rítmicos e de
arranjo que foram suprimidos para a viabilização do presente texto.
2
Zanin (2008, p.129) ressalta em um artigo sobre o violão flamenco que “Muitas vezes o II e I graus [do modo
flamenco] formam por si mesmos uma cadência dentro do modo, com uma relação funcional V-I, existindo
cantes que são construídos quase que exclusivamente em torno destes graus.”
3
A mudança de centro da nota Lá para a nota Ré, ou seja, quarta justa ascendente (ou quinta justa descendente),
sugere uma modulação análoga àquela da região da dominante para a região da tônica, consagrada pela música
tonal da tradição ocidental. Contudo, nas músicas em modo flamenco, as duas modulações mais comuns são para
o sexto grau do modo flamenco (Fá maior em Lá flamenco), considerado como primeira relativa maior do modo,
ou para o terceiro grau (Dó maior em Lá flamenco), considerado segunda relativa do modo (FERNANDEZ
MARÍN, 2006, p.20).
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