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Constantino e Ashoka

“Quando a história de nosso tempo for escrita, mil anos adiante, ela não enfatizará
tanto a guerra do Vietnam, o conflito entre capitalismo e comunismo ou a tensão
racial, mas a interpenetração do cristianismo e do budismo”.
Arnold Toynbee

Ashoka foi chamado de "O Constantino do Oriente" por ter promovido o budismo na Índia, assim
como Constantino veio a fazê-lo no Império Romano em relação ao cristianismo, quase seis
séculos depois. Nada mais injusto, como veremos.

Ashoka e o budismo
A fundação das ordens monásticas budista e jainista se deram por volta de 500 AC. Buda e
Mahavir eram da casta dos xátrias (guerreiros/governantes) e não brâmanes (casta sacerdotal).
Ambos ignoraram ritos, deuses e o sistema de castas. Ambos pregaram a libertação do samsara
(ciclo de renascimento), crença também comum aos pitagóricos e órficos, e originária dos povos
nômades das estepes, nos séculos XVIII e XVII AC. Buda começou sua pregação em Sarnath /
Benares, mas era monge itinerante. As fronteiras barravam exércitos e espiões, mas estavam
abertas a monges e ascetas. O mesmo aconteceu com os filósofos sofistas e confucionistas, na
Grécia e na China.
Chandra Gupta, avô de Ashoka, foi o fundador da dinastia Maurya, 322 AC. Foi ele quem deteve a
invasão de Alexandre no vale do Indo.
Existem inscrições em pedra de Ashoka em Kandahar (Noroeste), Bangladesh (Leste) e Madras /
Chennay (Sul), limites do seu império. Kalinga (Orissa) foi sua última conquista militar. Por essa
época, tomou contato com a tradição budista Theravada que o impressionou profundamente. A
partir daí, renunciou às guerras de conquista e dedicou o resto de sua vida à divulgação do
Dharma. Entre 258 e 255 AC, enviou missões religiosas aos cinco governantes gregos do já então
fracionado império de Alexandre. Seu 13º decreto, gravado na rocha, mostra seu sincero
arrependimento pelos sofrimentos que causou a Kalinga em sua derradeira guerra. Ao invés de
soldados, passou a enviar monges ao mundo. Seus decretos, lavrados em rocha, constituíam
verdadeiros "outdoors" em favor da paz!
Ao contrário de Constantino, Ashoka aderiu explicitamente ao budismo, zelando pela unidade da
Sangha (Comunidade dos monges), ao mesmo tempo em que protegeu escrupulosamente as
outras religiões de seus súditos. Seu espírito ecumênico ficou registrado nas inscrições de
Kandahar, lavradas em grego e aramaico; esse último, a língua de Jesus, três séculos depois.
Ashoka propagou o Dharma, dentro e fora do seu império, mais como padrão de conduta ética do
que como religião, tal como é entendida cá no Ocidente. Em seus primórdios, tanto o budismo
quanto o cristianismo eram filosofias de vida – ou psicologias, se preferirem – conforme pudemos
concluir de nossas pesquisas históricas. As formas religiosas apareceram mais tarde. Por uma série
de razões políticas, que apresentaremos ao longo desse trabalho, o budismo preservou mais esse
espírito original do que o cristianismo, que foi mais submetido às influências do poder temporal.
Ashoka demonstrou igual simpatia pelo jainismo, o qual levou à mitigação do sofrimento dos
animais, observada até hoje na Índia. O Império Maurya acabou em 183 AC, depois de um século
e meio de existência.
Com o fim da dinastia Maurya, o Império Kushan expandiu-se para o leste e vários reis gregos
governaram a Índia por quase 2 séculos, sendo o primeiro o rei Menandro (160~130 AC). Sua
presença na literatura indiana da época é confirmada por moedas e outros achados arqueológicos.
No noroeste da Índia, a arte visual grega forneceu um veículo cultural para a Escola Mahayana do
budismo, que parece ter tomado forma ali nos dois primeiros séculos da era cristã.
Com o fim dos reis budistas, o bramanismo retoma sua tradicional força e o budismo entra em
declínio na Índia, ao mesmo tempo em que inicia uma nova fase de expansão além de suas
fronteiras (China, Tibet, Mongólia e Sudeste Asiático). Nas palavras do físico, filósofo e escritor
Ravi Ravindra, o budismo caracteriza-se por ser "hinduísmo para exportação", assim como o
cristianismo, um "judaísmo para exportação". Segundo ele, de formação hindu, certas formas
religiosas são como queijos e vinhos muito especiais que só podem ser degustados onde
produzidos e não se prestam à venda externa.

Religiões missionárias e devocionais


O budismo e o cristianismo eram religiões missionárias, ao contrário do hinduísmo e do judaísmo.
Assim como o budismo era "hinduísmo para exportação", o cristianismo também tornou-se
"judaísmo para exportação" por iniciativa de um judeu que era ao mesmo tempo cidadão romano,
Paulo de Tarso. Ele é tido por muitos teólogos e historiadores como o verdadeiro fundador da
Igreja cristã, em sua versão greco-romana, e não Jesus.
A força do budismo como religião missionária residia na disposição de chegar a um acordo com as
religiões que encontrava pelo caminho. Era aberto à simbiose e não à conquista. O cristianismo
vitorioso, pelo contrário, herdou o intolerante monoteísmo judaico; diferia desse, porém, na
medida em que devorava e assimilava as religiões rivais. Sob esse aspecto, a herança judaica do
cristianismo constituía uma desvantagem para seus teólogos e missionários. O cristianismo não
podia aceitar viver e deixar viver: tinha de destruir ou absorver as religiões rivais e, nesse último
caso, fazê-lo secretamente. Historicamente, absorveu mais do que destruiu. Sob esse aspecto, por
paradoxal que seja, acabou aproximando-se do budismo em sua prática missionária.
No início da era cristã, os hindus tornaram-se devotos dos deuses Shiva e Vishnu; os budistas,
dos budas e bodhisattvas, tidos como seres iluminados; os cristãos, do deus Iavé, de Jesus
(também deus) e Maria (virtual deusa). Se o próprio Jesus tivesse vivido o suficiente para ser
aclamado Deus, teria sem dúvida recusado o status que lhe foi conferido, já que como judeu não
poderia aceitá-lo. Em conseqüência da divindade atribuída a Jesus, Maria foi elevada à condição
de Mãe de Deus (Theotókos). Tornou-se tudo uma deusa, exceto no nome.
Esse "boom" de religiões devocionais deveu-se ao sentimento de impotência dos povos diante das
políticas imperiais vigentes então em todo o Velho Mundo, apelando diretamente para os deuses
em busca de socorro. No Ocidente, Jesus substituiu os césares e faraós como encarnação da
divindade. Na Índia, berço do budismo, esse questionava a hegemonia dos brâmanes, enfatizando
a importância central da meditação e do autoconhecimento, postos à disposição de qualquer um,
fosse qual fosse a casta a que pertencesse.
A Igreja obteve força devido à eficiência de sua organização. As religiões orientais, como, por
exemplo, o budismo, não possuíam uma organização central. O cristianismo copiou o Império
Romano, subordinando suas células nas cidades-estado desse a uma hierarquia eclesiástica, por
todo o império e mais além (A Igreja da Armênia, por exemplo). O papa, bispo da capital do
império, era reconhecido como "primo inter pares".

Constantino e o cristianismo
A obra de reunificação e reabilitação do Império Romano foi feita por imperadores militares
provenientes de províncias periféricas, com destaque para Diocleciano (284-305) e Constantino
(311-337). Constantino completou a obra do antecessor, procurando dotar o Império Romano de
uma unidade religiosa, através da Igreja. Desde Aureliano, os imperadores tinham deixado de ser
fator de tal unidade, com a renúncia desse a seus "direitos divinos", em 274. Político sagaz que
era, Constantino inverteu a política imperial romana, passando da perseguição aos cristãos à
promoção do cristianismo, vislumbrando a oportunidade de relançar, através da Igreja, a unidade
religiosa do Império Romano.
Em 312, Constantino encenou sua conversão ao cristianismo, mas só se deixou batizar no leito de
morte, em 337. Durante todo o seu reinado, não abriu mão de sua condição de sumo-sacerdote
do culto pagão ao "Sol Invictus". Tinha um conhecimento rudimentar da doutrina cristã e sua
intervenções em matéria religiosa foram pautadas mais pelos seus resultados para a política
imperial.
O motivo de Constantino para se converter ao Cristianismo foi, do ponto de vista ético, muito
inferior ao de Ashoka para se converter ao budismo. O motivo de Ashoka fora o arrependimento
por ter empreendido uma guerra de agressão e nunca mais empreendeu outra guerra. O motivo
de Constantino era a gratidão por suas vitórias em três guerras civis sucessivas. É que o império
havia sido dividido em quatro regiões administrativas para melhor enfrentar as ameaças
representadas pela Pérsia e pelos bárbaros, a saber: Reno, sob comando de Constantino; Itália,
com Maximiliano; Grécia, com Diocleciano; Oriente Médio, com Galério e, depois, Licínio, casado
com a irmã de Constantino. Afastadas aquelas ameaças, os quatro césares passaram a disputar o
poder político entre si, gerando as três guerras civis vencidas por Constantino.
Enquanto comandante na Gália, na Bretanha e no Reno, Constantino combateu os bárbaros
francos e alemães com sucesso. Assegurada a vitória, marchou com suas tropas sobre Roma. À
véspera da batalha decisiva, discursou para suas tropas dizendo ter tido uma visão divina de uma
cruz com a frase "Sob esse signo vencerás!" Mandou colocar aquele monograma à frente de suas
tropas e venceu a batalha. Na verdade, observara a coragem e determinação dos mártires cristãos
durante as perseguições promovidas por Diocleciano, em 303. Sabia que, embora ainda fossem
minoritários (10% da população do império), os cristãos se concentravam nos grandes centros
urbanos, principalmente em território inimigo. Foi uma jogada de mestre, do ponto de vista
estratégico. Tomando os cristãos sob sua proteção, estabelecia a divisão no campo adversário.
Constantino ficou conhecido por sua crueldade a caminho do poder. Entre elas, a de ter mandado
executar seu cunhado, Licínio, apesar dos apelos de sua irmã; prendeu e condenou à morte
Crispo, seu filho mais velho; e Fausta, sua esposa, foi morta por sufocamento a seu mando.
Em 325, já como chefe único do Império Romano, convocou mais de 300 bispos ao Concílio de
Nicéia, oriundos de todo os rincões do império e além dele. Visava dotar a Igreja de uma doutrina
padrão. É que, livre das perseguições e prestigiada pelo imperador, suas contradições internas
vieram à tona e ameaçavam a tão sonhada unidade religiosa. Com a subida da Igreja ao poder,
discussões doutrinárias passaram a ser tratada como questões de Estado. Desse concílio nasceu o
nosso conhecido Credo, rezado até hoje nas missas. A doutrina de Ário, sacerdote de Alexandria,
mas que representava o ponto de vista da Igreja de Antioquia, foi condenada como herética. O
arianismo considerava Jesus um santo homem, eleito de Deus, e não o filho único de Deus e ele
próprio Deus, como reza o Credo. Espelhando bem os novos tempos, o Credo de Nicéia não fez
qualquer referência aos ensinamentos de Jesus. Faltou nele um "Creio em seus ensinamentos",
talvez porque já não interessassem tanto a uma religião agora sócia do poder imperial romano.
A heresia ariana levou cerca de 200 anos para ser erradicada da cristandade, já que os povos
bárbaros haviam sido convertidos àquela forma de cristianismo pelo missionário godo Ulfilas,
antes das decisões de Nicéia, e dela se valeram para reafirmar sua própria identidade enquanto
povo. Mesmo assim, depois de mais de 200 anos, quando tudo já parecia sob o controle do poder
imperial, eis que surge, no início do século VII, uma nova heresia na península arábica, o islã,
reassumindo as teses de Ário a respeito de Jesus.
Constantino não chegou a perseguir seus súditos não-cristãos, mas concedeu uma série de
privilégios aos cristãos ou a quem se dispusesse a abraçar a fé cristã como, por exemplo, a
nomeação de bispos para o Senado Romano, a concessão do título de bispo a figuras importantes
que decidissem se converter ao cristianismo, etc., criando um clima geral de adesismo. A tarefa de
desmantelar a religião pagã ficou a cargo de seus sucessores, a exceção de alguns que tentaram
reverter a ascensão da Igreja ao poder como, por exemplo, Juliano , o apóstata. O primeiro
imperador nominalmente cristão foi Teodósio, no final do século IV.
Em resumo, poderíamos dizer que, enquanto Ashoka serviu o Dharma, Constantino se serviu do
Evangelho. Seu ato final, o batismo no leito de morte, bem diz de sua disposição de usar a Igreja
até mesmo no "post mortem". É que faz parte da crença cristã que o batismo nos livra de todos os
nossos pecados. No caso de Constantino, significava garantir o Reino dos Céus no último instante,
apesar de toda uma vida de crimes.
Referências bibliográficas e televisivas:
“A Humanidade e a Mãe-Terra”, Arnold Toynbee, Zahar.
“História da Igreja Católica”, Philip Hughes, Dominus.
“Sussurros da Outra Margem”, Ravi Ravindra, Teosófica.
“Constantino: Carregando a Cruz”, People & Arts / BBC.

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