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A d e m o c r a c i a r a c i a l — c u n h a d a originalmente, e m ple-
na ditadura varguista, p a r a n o s inserir no mundo dos v a l o r e s
p o l í t i c o s universais — p r e c i s a a g o r a ser substituída pela de-
m o c r a c i a tout court, q u e i n c l u i a t o d o s sem m e n ç ã o a r a ç a s ,
h s t a s , que n ã o e x i s t e m , c a r r e g a d a s de negatividade, f a r í a m o s
m e l h o r se as a p a g á s s e m o s d o n o s s o ideal de c o n v i v ê n c i a , re-
servando-as apenas p a r a d e n u n c i a r o racismo.
FUSP
Apoio:
F u n d a ç ã o Ford
".-732b-S3E-X
Antônio Sérgio
Alfredo Guimarães
CLASSES, RAÇAS
E DEMOCRACIA
A p o i o : Fundação Ford
editoraB34
E D I T O R A 34 CLASSES, RAÇAS
E d i t o r a 3 4 Ltda. E DEMOCRACIA
R u a H u n g r i a , 5 9 2 Jardim Europa C E P 0 1 4 5 5 - 0 0 0
S ã o P a u l o - SP Brasil Tel/Fax ( 1 1 ) 3 8 1 6 - 6 7 7 7 www.cditora34.com.br
Agradecimentos '
F U S P - F u n d a ç ã o de Apoio à Universidade de S ã o P a u l o Apresentação 9
A v . A f r â n i o Peixoto, 14 Butantã C E P 0 5 5 0 7 - 0 0 0
1. Classes sociais • 13
S ã o P a u l o - SP Brasil Tel/Fax ( 1 1 ) 3 8 1 5 - 0 8 0 0 fusp@edu.usp.br
O grande consenso dos anos 1 9 6 0 :
A p o i o : F u n d a ç ã o Ford
industrialização e modernidade 15
O Estado e os empresários c o m o agentes sociais 16
Os estudos sobre a formação da
C o p y r i g h t © Editora 3 4 Ltda., 2 0 0 2 classe trabalhadora brasileira 20
Classes, raças e democracia © Antônio Sérgio A l f r e d o Guimarães, 2 0 0 2 Os estudos sobre as classes médias 30
Os estudos sobre o campesinato e o proletariado rural 32
A F O T O C Ó P I A D E Q U A I Q U E R TOLHA DESTK L I V R O É I L E G A L , 1- C O N F I G U R A UMA J
Novos estudos de classe 5
A P R O P R I A Ç Ã O I N D E V I D A DOS D I R E I T O S I N T E L E C T U A I S E P A T R I M O N I A I S DO A U T O R .
CLv.se como "condição" e "identidade" 38
Conclusões 42
Agradecimentos 7
APRESENTAÇÃO.. _
Apresentação 9
e t r a b a l h o que fosse tipicamente capitalista. O a r g u m e n t o políti- vro anterior (Guimarães, 1 9 9 9 ) , enriquecendo.-o.com o diálogo e
co erroneamenre derivado dessa análise em a b s t r a t o , que muito debate profícuos que estabeleci c o m alguns dos meus críticos.
deve a o evolucionismo do século X I X , foi o de q u e as classes so- N o capítulo terceiro, busco reinterpretar o intervalo demo-
ciais capitalistas se formam prescindindo de q u a l q u e r uma daque- crático entre 1 9 4 5 e 1 9 6 4 c o m o compromisso político, a um só
las formas de sociabilidade, consideradas a partir daí como for- tempo racial e de classes. Ou seja, nesse capítulo avanço a tese de
mas a r c a i c a s , a serem superadas pelo próprio r e g i m e capitalista. q u e a democracia racial brasileira n ã o foi a p e n a s doutrina de
O r a , o conceito de classes sociais capitalistas n a d a mais é que convivência pacífica enrre as raças ou ideologia de dominação
um recurso analítico para referir-se a esse tipo de exploração, que, racial, ou mesmo mito fundador da nacionalidade brasileira: foi
na prática social e no mundo real, aparece s e m p r e misturado a t a m b é m , e principalmente, um pacto e c o n ô m i c o e político que
hierarquias de gênero, de raça, etnia ou outra f o r m a qualquer de uniu a massa negra urbana (formada principalmente por traba-
construção de outsiders (Elias e Scotson, 1 9 9 4 ) . O problema teóri- lhadores) e os intelectuais negros a o establisbment (elites políti-
co deve ser colocado como de exploração ou a p r o p r i a ç ã o díferen- c a s , intelectuais e econômicas) do Estado desenvolvímentista.
cial de recursos. Assim, rautologicamente e p o r definição, não se N o quarto capítulo, trato diretamente da formação do ima-
pode escapar do fato de que as desigualdades raciais n o capitalismo ginário nacional do Brasil m o d e r n o e das mudanças que podem
sejam t a m b é m desigualdades de classe (afinal trata-se de apropria- ser observadas recentemente na nossa " d e m o c r a c i a racial", mais
ção diferencial). D o mesmo modo, os preconceitos de cor ou de especificamente das fissuras que e x p õ e , nesse c o m e ç o de século,
raça só têm sentido se resultarem em posições de classe, distinguin- o nosso sentimento de nacionalidade. Nesse capítulo, invisto na
do brancos de negros, no caso específico de que e s t a m o s tratando. temporalidade e historícídade desse senrimento, abordando algu-
O fato de que tais preconceitos e desigualdades persistam no in- m a s tensões recentes que aparecem no nosso trato com os indí-
terior de uma mesma classe é o modo lógico mais c l a r o de demons- genas e os negros. N o final, traro dos i m i g r a n t e s nordestinos.
trar a a t u a ç ã o de componente tipicamente " r a c i a l " n a geração des- Investigo a origem de sua discriminação, algo que antecede a gran-
sas desigualdades. Ou seja, a constante recriação de raças, gêneros de imigração para o Sudeste, nos anos 1 9 5 0 . M e u argumento é
e etnias c o n t i n u a sendo um dos meios mais eficientes de gerar ex- que o preconceito contra os " b a i a n o s " e "nordesrinos" teceu-se
ploração e c o n ô m i c a e tal "tecnologia" longe de ser suplantada no n o século X X — após a primeira leva de m o d e r n i z a ç ã o em finais
capitalismo tardio, tem sido constantemente reatualizada. dos oitocentos —, a partir da substituição da herança cultural luso-
N o primeiro capítulo deste livro, portanto, m e dedico a re- brasileira e colonial pela modernidade e u r o p é i a , estigmatizando
senhar boa parte da literatura sociológica brasileira para desco- a tudo e a todos que remetiam àquele passado. O Nordeste, par-
brir a trajetória do conceito de "classe" entre n ó s . M e u objetivo, ticularmente a Bahia, e nordestinos p a s s a r a m a ser associados a o
mais que contextualizar, é alargar a concepção de "classes" para atraso, ao arcaico, ao avesso do trabalho livre e voluntarioso. Essa
usá-la n ã o apenas como categoria analítica, m a s c o m o grupo de forma de estigmatizar os outros pelo que a eles atribuímos de
pertença. Isso para sugerir que, seguindo a i n t u i ç ã o nativa, no antimoderno e não-europeu parece ser u m a constanre no nosso
Brasil, os " n e g r o s " formam uma "classe". m o d o de ser, alimentando os estigmas que cultivamos também em
N o segundo capítulo, ao contrário, v o l t o - m e para esclare- relação a outros grupos étnicos, sociais e nacionais.
cer c o m o a palavra "raça" pode e deve ser e m p r e g a d a como con- N o quinto capítulo, e x a m i n o a c o n s t r u ç ã o e vulgarização da
ceito a n a l í t i c o . Nesse capítulo, retomo os a r g u m e n t o s do meu li- idéia de democracia racial, assim c o m o s u a aparente dissolução
1
Este capítulo é uma versão ampliada do capítulo publicado original-
mente em Sérgio Miceli (org.), O que ler na ciência social brasileira [1970-
1995), vol. II: Sociologia, São Paulo/Brasília, SumaréVANPOCS/CAPES, 1 9 9 9 ,
pp. 1 3 - 5 6 .
2
Seguindo as orientações traçadas nos estudos de Y a n k e e City p o r
Lloyd W a r n e r . Ver Gordon (1963).
3
explicação estrutural, na Sociologia brasileira. A vontade de de-
Podemos subdividir essa corrente em duas: havia os que prescindi-
senvolvimento e c o n ô m i c o e social passou, cada vez mais, a vin-
am de problematizar as classes e havia os que buscavam, em seus trabalhos
de campo, compreender a organização social através da estratificação em clas- cular-se a uma expectativa de que as classes sociais (fosse o e m -
ses das comunidades estudadas (Cândido, 1 9 4 7 ; Willems, 1 9 4 7 ) . presariado industrial, fosse o operariado nascente, fossem as clas-
' Na verdade, o nacionalismo de Estado foi, entre nós, uma forte ideo- lobbies congressuais e t c , ampliando o universo da análise de
logia. V e r , a respeito, Reis (1990). classes. Muito representativos dessa nova postura foram os traba-
s lhos de Cerqueira e Boschi ( 1 9 7 6 , 1 9 7 7 a ) , Dimz e Boschi ( 1 9 9 3 ) ,
Sigo, aqui, a interpretação de Antônio C â n d i d o ( 1 9 9 4 ) , contrária à
de R a y m u n d o Faoro (1993). Dimz ( 1 9 7 8 , 1 9 8 4 , 1 9 8 6 , 1 9 9 2 ) , Boschi ( 1 9 7 9 , 1983), Cheibub
inspirada pelos escritos políticos de M a r x e Gramsci, José Arthur De fato, na década seguinte, ampliar-se-á a ênfase na inves-
G i a n n o t t i {1966), na corrente de análise da dialética marxista, e tigação dos condicionantes subjetivos da a ç ã o de classe e da for-
Francisco de Oliveira (Oliveira, 1 9 7 2 ; Oliveira e Reichstul, 1 9 7 3 ) ,
na corrente de análise macroeconômica inspirada por O Capital.
p o r Singer e Brant ( 1 9 8 0 ) marcou, definitivamente, a incorpora- sobre os "novos movimentos s o c i a i s " . Essa tendência foi argu-
ç ã o dos movimentos populares aos estudos de classe. Seguiram- tamente notada por Sader e Paoli ( 1 9 8 6 : 3 9 ) :
se várias coletâneas e resenhas sobre o tema (Jelm e Calderón, "[...] ao narrar o que anda acontecendo com os tra-
1 9 8 7 ; Larangeira, 1 9 9 0 ; Cardoso, 1 9 8 7 ; Gomes e Ferreira. 1 9 8 7 ; balhadores e seus movimentos sociais, parte desta pro-
D i n i z , Lopes e Prandi, 1 9 9 4 ) . dução sociológica recente parece questionar profunda-
12
O tom da revisão, contudo, foi d a d o por dois artigos: um mente o conceito de classe social como paradigma teó-
de autoria de Sader, Paoli e Telles ( 1 9 8 3 ) e, o outro, de Sader e rico instituído e adquirido pelas ciências sociais [...]".
Paoli ( 1 9 8 6 ) . A mudança conceituai é notável: os novos estudos
usarão sistematicamente conceitos c o m o "experiência", "imaginá- Mas será, justamente, o alargamento do conceito de classe
1 4
r i o " , "cotidiano", "cidadania", originários da história social e da social para além de T õ n n i e s , para significar mais que organiza-
filosofia política, em vez dos conceitos academicamente consagra- ção coletiva e ação política — sindicato e partido —, mas ineor-
1
' Cardoso (1987: 2 7 ) tem o seguinte diagnóstico: "A desilu-ão com " Cs novos movimentos sociais eram geralmente caracterizados pela
os esquemas globalizantes passou a alimentar a busca de explicações quali- "sua independência com relação aos políticos profissionais e aos partidos,
tativas para os novos problemas que se colocavam e que diziam respeito ao bem como sua capacidade de expressar os desejos de base da sociedade'"
sistema de dominação e seu modo de operar. A progressiva rigidez tia teoria (Cardoso, i 9 8 " : 2 8 ) . Eram vistos, pois, como atores sociais.com o m e s m o
marxista, tal como vinha sendo usada, abriu caminho para novas formas de estatuto teórico das classes.
investigação". 1 4
"Uma classe é tentativa de desenvolver poder efetivo através da for-
1 2
A fórmula cunhada por Emilia Viotti da Costa (1990), "estruturas ça das massas, i.e., através do grande número daqueles que pertencem a esse
versus experiência", sintetiza o que estava em j o g o na revisão. coletivo; depende em menor medida das qualidades dos indivíduos [...] En-
caro o partido político como o tipo ideal de um coletivo societário" (Tõn- novo modo de analisar a classe operária, fosse industrial ou rural.
nies, 1 9 6 6 : 12-4). Forma-se na A N P O C S , paralelamente ao já tradicional Gru-
1 5
Também Cardoso (1987) anota a a ç ã o comunitária como sendo o po de Trabalho "Classe O p e r á r i a e Sindicalismo", outro G T , este
que os distingue dos novos movimentos sociais. sobre "Processo de T r a b a l h o e Reivindicações Sociais". E m 1 9 8 4 ,
"A fraqueza de grande parte dessa literatura tem Outra vertente importante, nesses anos, deriva dos estudos
consistido num certo formalismo, derivando daí, com sobre trajetórias operárias, influenciados especialmente pela re-
freqüência, um tratamento da dimensão da política ape- construção da teoria das classes e da ação coletiva feita por B o u r -
nas como um elemento estrutural — por exemplo, nos dieu ( 1 9 7 4 , 1 9 7 9 ) . Autores c o m o Lopes (1987, 1 9 8 8 ) e G u i m a -
estudos que se limitam a demonstrar que a política se rães, Agier e Castro ( 1 9 9 5 ) documentam, também, essa tendên-
encontra embutida no processo de trabalho através do cia nos estudos sobre os trabalhadores urbanos.
sistema de máquinas e no controle social da produção Sintetizando, os estudos sobre a classe operária apresenta-
— , e não na riqueza das suas determinações concretas ram quatro vertentes principais, nesses últimos 2 5 anos, identifi-
no plano da conjuntura". cáveis a partir da teoria de classe que os orientou:
a) Foram estudos sobre o sindicalismo ou centrados na a n á -
Parte da riqueza a que V i a n n a alude, adveio do contato en- lise da ação sindical, q u a n d o as associações políticas foram vis-
tre os estudos sobre a classe t r a b a l h a d o r a e os estudos feitos em tas como as representantes, par excelence, da classe, à maneira da
outras tradições disciplinares, q u e eram não apenas diversas, mas, conceituação de T õ n n i e s . Nesse caso, tivemos seja uma análise
n o Brasil, inusitadas, tais c o m o a administração (Eleury e Eischer, sociológica das determinações estruturais, seja uma análise polí-
1 9 8 5 ) , a antropologia urbana (Pereira, 1 9 7 9 ; Lopes 1 9 7 6 , 1 9 8 8 ) , tica das conjunturas, seja a conjugação de amuas.
a engenharia de produção (Fleury e Vargas, 1 9 8 3 ) e, principal- b) Foram estudos de valores e aritudes, quando se acreditou
mente, os estudos feministas (Rodrigues, 1 9 7 8 ; Abreu, 1980; Pena, que a classe era uma associação e não necessariamente uma comu-
1.981; Githay, 1 9 8 2 ; H u m p h r e y e Hirata, 1 9 8 4 ; Hirata, 1 9 8 8 ; nidade, e que, portanto, a identidade operária e sua eventual a ç ã o
Souza-Lobo. 1 9 9 1 ) . Os estudos de processo de trabalho foram, política dependeriam das características sociais de seus m e m b r o s .
também, segundo Bruschim ( 1 9 9 3 : 2 , apud Castro e Leite, 1 9 9 4 ) ,
"a porta de entrada dos estudos sobre a mulher na academia brasi-
leira". Para Castro e Leite ( 1 9 9 4 : 4 2 ) , "a crítica das relações sociais 1 6
Apenas para citar a influência sobre minha formação, ver G u i m a -
tecidas na produção e das formas simbólicas de opressão teve, en- rães (1988, 1 9 9 1 , 1 9 9 8 ) , Castro e Guimarães ( 1 9 9 6 ) .
ç ã o brasileira, se burguesa ou socialista (Wagley, 1951; Prado J r . , zem da persistente análise da relação entre campesinato e capitalismo: " [ . . . ]
podem-se destacar dois tipos de trabalhos: os estudos onde a ênfase é posta
1 9 6 6 ; Frank, 1969; Fernandes, 1 9 7 4 ) , marcaram os rumos dos
nas formas de subordinação do trabalho camponês ao capital e os estudos
estudos sobre a estrutura e as classes agrárias (Palmeira, 1 9 7 1 ;
das estruturas internas da produção familiar, interessados ambos n o s diver-
Oliveira, 1 9 7 2 ; Sá Jr., 1 9 7 3 ; M a r t i n s , 1 9 7 3 , 1979, 1 9 8 0 , 1 9 8 1 ; sos planos de dominação-resistência que vivenciam os atores sociais".
De fato, o modelo preferido d o s nossos intelectuais para salarial e a " d e s a f i l i a ç â o " de grandes camadas de trabalhadores.
pensarem o modo como a sociedade brasileira lida com as dife- Como se pode deduzir, nesse sentido restrito, francês, n ã o
renças e organiza suas hierarquias foi sempre a França. Lá esta- poderia ter havido propriamente sociedade de classes no Brasil do
ria a sociedade típica de classes: a um só tempo, modelo explicativo pós-guerra. Os estudos j á citados de Fernando Henrique C a r d o -
e ideal de república. Para c o m p r e e n d e r esse imaginário, farei um so (1969 [ 1 9 6 1 ] ) , Alain T o u r a i n e ( 1 9 6 1 ) , Juarez Brandão L o p e s
rápido mergulho nas letras s o c i o l ó g i c a s francesas, ainda que me (1964, 1 9 6 7 ) , Luiz Pereira ( 1 9 6 5 ) e Leôncio Martins Rodrigues
restringindo ao período mais r e c e n t e . (1970) reafirmam tal interpretação. O operariado nascente bra-
Se seguirmos a terminologia de Castel ( 1 9 9 9 , 1 9 9 9 a ) , a socie- sileiro teria suas origens no campesinato rural, imerso em l a ç o s
dade de classes, na França, c o n h e c e seu apogeu nos anos 40 e 5 0 de dependência e o b r i g a ç õ e s clientelistas. N ã o haveria uma " c o n -
do século X X , para ceder l e n t a m e n t e lugar, nos anos 6 0 , ao que dição" operária, ao m o d o francês (Halbwachs, 1 9 1 3 ; Weil, 1 9 5 1 ;
ele chama de sociedade s a l a r i a l . 22
A sociedade de classes seria o Schwartz, 1 9 9 0 ; Verret, 1 9 8 8 ) , uma vez que, no Brasil, os operá-
rios industriais tenderiam ou a reproduzir no meio urbano tais la-
ços de clientela ou a aspirar à condição das camadas médias ur-
banas. Aliás, essa aspiração c auto-identificação do operariado in-
2
- Diz Castel (1999: 5 8 3 - 5 , t r a d u ç ã o minha): "Esse é o sentido literal
da expressão 'trabalho alienado': t r a b a l h a r para outrem e não par.; si mes-
mo, deixar o produto de seu trabalho para um terceiro que o vai consumir
antagonismos tomam a forma de luta por posições e classificações e n a o de
ou comercializar. Essa concepção secular de trabalho assalariado desapare-
luta de classes".
ce cerca dos anos 50 e 6 0 , provocando o desaparecimento do pape! históri-
2 3
co da classe operária. A lenta p r o m o ç ã o de uma salariado burguês abriu tal Castel ( 1 9 9 9 : 5 8 1, tradução minha): "A transformação decisiva que
via. Ela desemboca num modelo de sociedade que já não é cindida por um amadureceu ao longo dos a n o s 5 0 e 6 0 não foi pois nem a homogeneização
conflito central entre assalariados e não-assalariados, isto é, entre proletá- completa da sociedade, nem o deslocamento da alternativa revolucionária
rios e burgueses, trabalho e capital. Á ' n o v a sociedade' é organizada, con- para um novo operador, a nova classe operária. Foi antes a dissolução dessa
trariamente, em torno da competição entre diferentes pólos de atividades sa- alternativa revolucionária e a redístribuição dos conflitos modernos sociais
lariais. Sociedade que não é nem h o m o g ê n e a , nem pacificada, mas cujos segundo um modelo diferente da sociedade de classes: a sociedade salarial".
tro, da proximidade e da distinção, da fascinação e da seria de se esperar, e nenhum o u t r o funcionário poderia ajudar-me. por não
deter esse conhecimento. Imagino c o m o , no Brasil, reagiríamos à pretensão
rejeição. Ela supõe uma dimensão transversal aos di-
ile distinção de pessoas que detivessem conhecimento tão limitado. A tendên-
ferentes agrupamentos que reúne os que se opõem, per-
cia certamente seria a desqualificação social do detentor de tal conhecimen-
mitindo os comparar e classificar" (Castel, 1 9 9 9 : 5 9 1 , to. Como aliás fazemos literariamente, chamando de "secretária" a caixa de
tradução minha). mensagem.
A guisa de conclusão, realinho a b a i x o os argumentos prin- Preencher o vazio teórico deixado pela referência vulgar à
cipais que desenvolvi nos últimos itens deste capítulo. "classe" talvez seja a grande tarefa da sociologia a partir dos anos
O termo "classe" c o m e ç o u a ser utilizado nos estudos da 1 9 9 0 . Boa parte da produção sociológica no Brasil, a partir dos
s o c ie d a d e (pela filosofia m o r a l , principalmente) associado aos 1 9 8 0 , a começar pelos e n s a i o s seminais de Roberto D a M a t t a
privilégios e ao sentimento de honra social, próprios ao domínio ( 1 9 8 1 , 1 9 8 5 ) , apontam nesta direção: a chamada sociedade de
estatuto do conceito de " r a ç a " e explorar um pouco mais a insufi- construção social.
ciência da categoria "classe" p a r a dar conta da pobreza dos ne- No entanto, para Gilroy, tal argumento já não é mais vá-
gros no Brasil. lido, e aí reside a sua novidade. Todo discurso que recria " r a ç a s "
seria hoje a n a c r ô n i c o , já que, em suas palavras: " A negritude
pode hoje significar prestígio vital, em vez de abjeção, para um
REDISCUTINDO O telesetor de info-trenimento, em que os resíduos das s o c i e d a d e s
CONCEITO DE R A Ç A 2 5
escravistas e os vestígios paroquiais do conflito racial a m e r i c a n o
precisam ser substituídos por outros imperativos, derivados da
Paul Gilroy ( 1 9 9 8 ) , um dos mais brilhantes intelectuais ne- planetarização d o lucro e da abertura de novos mercados bastan-
gros do nosso tempo, e c e r t a m e n t e um dos mais envolvidos poli- te afastados da m e m ó r i a da escravidão" (Gilroy, 1 9 9 8 : 8 4 2 , tra-
ticamente no combate ao r a c i s m o , declarou-se recentemente in- dução minha).
teiramente contrário à m a n u t e n ç ã o do termo "raça" em nosso Gilroy argumenta também que o anti-racismo tem sido, des-
vocabulário. Algumas de suas razões não diferem daquelas assu- de sempre, uma p o l í t i c a de negação do racismo e x i s t e n t e , m a s
midas pelos que o precederam nesta posição. São elas: 1) no to- nunca uma política afirmativa. Por isso, ele pergunta: " O s anti-
cante à espécie humana, n ã o existem " r a ç a s " biológicas, ou seja, racistas são, afinal, a favor do quê? Estamos positivamente c o m -
não há no mundo físico e material nada que possa ser corretamente promissados c o m o quê, e c o m o isso se conecta com o m o m e n t o
classificado c o m o " r a ç a " ; 2 ) o c o n c e i t o de " r a ç a " é parte de um necessário de s u p e r a ç ã o que define nossas esperanças e e s c o l h a s
políticas?" ( G i l r o y , 1 9 9 8 : 8 4 3 , tradução minha).
A posição que Gilroy apenas insinua deve ficar m u i t o c l a r a :
2 5
Esta parte do artigo foi originalmente preparada para a mesa-redon-
1) os anti-racistas estão comprometidos com a superação das de-
da "(Re)Discutindo o Conceito de R a ç a " , Universidade Federal do Paraná, sigualdades e das diferenças construídas a partir da idéia de r a ç a ;
Curitiba, 9 de novembro de 1 9 9 9 . 2) segundo ele, j á n ã o precisamos historicamente da identidade
Na agenda de ambas as posturas delineadas acima não consta informadas pela idéia de r a ç a . Para ser mais claro, utilizo u m
a superação da divisão da h u m a n i d a d e em "raças". Trata-se, tão exemplo. S u p o n h a m o s o caso corriqueiro de alguém, no Brasil,
somente, de civilizar as r e l a ç õ e s raciais, ou seja, de implantar e que se queixa por ter sofrido preconceito de cor. " C o r " , n o c a s o ,
garantir o funcionamento de n o r m a s sociais que conduzam à igual- é uma categoria emic, nativa. Para o analista, porém, o que se
dade de tratamento, de o p o r t u n i d a d e s e de direitos, independen- passou foi um caso de preconceito racial porque a categoria " c o r "
temente da raça do indivíduo. é informada pela idéia de " r a ç a " que. embora possa ter desapa-
Pode-se, ainda, distinguir duas outras posturas anti-racistas recido do discurso dos envolvidos no referido incidente, c o n t i n u a
ponto de vista científico, e, do p o n t o de vista social, como c o n s - Segundo Harris et.?/. ( 1 9 9 3 : 460), "termos emie se referem a siste-
mas lógico-empíncos nos quais distinções fenomênicas ou 'coisas' são ela-
truções que precisam ser s u p e r a d a s para que se possa erradicar o
boradas a partir de discriminações e contrastes que são signíficantes, reais,
racismo. As pessoas que a d o t a m tal postura não acreditam que
acurados, fazem sentido e são julgados apropriados pelos próprios a t o r e s " .
se possa ser, a um só t e m p o , racialista e anti-racista. Para elas, a Ao contrário, as categorias etic "dependem de distinções fenomênicas julga-
idéia de raça, por si só, m a i s c e d o ou mais tarde, conduz ao ra- das pertinentes por uma comunidade de observadores científicos".
movimento aprofundou, por outro lado, sua política de constru- ' Mito, para os antropólogos, não se confunde com "falsa ideologia";
significa a expressão simbólica de um conjunto de ideais que organizam a vida
ç ã o de identidade racial, chamando de "negros" todos aqueles com
social de unia certa comunidade.
alguma ascendência africana, e não apenas os "pretos".
2 S
Sérgio Costa ( 2 0 0 1 i me atribui a intenção de querer reduzir a ideo-
Apenas essa mudança já explicaria grande parte da reação
logia nacional brasileira a uma ideologia de cunho meramente racial, o que
a o movimento negro. Por um lado, antropólogos como Roberto evidentemente seria uma b o b a g e m . O que eu digo é que essa ideologia na-
D a M a t t a e Peter Fry alertaram para o fato de que a democracia cional tem pressupostos raciais (mestiçagem), o que obviamente não impede
racial é, na verdade, um mito fundador da nacionalidade brasi- que ela seja declaradamente a-racialista.
Mais: é bastante provável que já não seja possível, no Brasil, sociais, sendo comum, hoje, personalidades midiáticas, que a n -
construir um consenso nacional sobre as desigualdades raciais. £ tes se definiriam c o m o morenas ou mesmo brancas, se identifica-
provável que, como nos Estados Unidos, a questão racial passe a rem e serem aceitas c o m o negras.
ser objeto de dois discursos competitivos, ambos em sintonia com A luta contra a discriminação, ademais, começa agora a ser
o reconhecimento pleno da cidadania negra. Por um lado, um dis- travada pari passu a uma outra, bem mais ampla: a luta c o n t r a
curso cuja ênfase é posta no c a r á t e r racial das desigualdades, ou as desigualdades raciais, através da busca de políticas públicas mais
seja, na discriminação sistêmica alimentada pelos preconceitos e abrangentes, que reparem a exclusão política, social e e c o n ô m i -
pelas hierarquias socialmente aceitas (classe, gênero, etnia, raça, ca da população negra.
região e t c ) ; por outro lado, o u t r o discurso, cuja ênfase é dada ao Mas, apesar do imenso progresso e do enorme esforço feito
caráter econômico da desigualdade, ou seja à pobreza da popu- em termos de política de identidade, a verdade, no entanto, é q u e ,
lação em geral. Qualquer política pública, no futuro, talvez tenha dos negros em potencial (os "pardos" e "pretos" censitários, q u e
que ser negociada entre essas duas posições. O velho consenso alguns ativistas c h a m a m de negros), e que formariam 4 0 % da
sobre a democracia racial, a o qual aderiam, entre os anos 1 9 3 0 e população brasileira, segundo dados de uma pesquisa a m o s t r a i ,
apenas uma minoria atendeu ao apelo racial do movimento (ver
Tabela 1). Ainda de a c o r d o com esses dados (ver Tabela 2 ) , a p e -
3 2
Ver Nascimento e N a s c i m e n t o , 2 0 0 1 . nas 7 % da população brasileira se identifica como " n e g r a " ou
riam que ter duração maior que uma ou duas administrações. impedem que políticas antipobreza sejam tomadas ou implemen-
tadas pelos governos brasileiros. Em artigo recente, Elisa R e i s
(2000: 187) expressou essa dificuldade da seguinte maneira:
de ação afirmativa (as únicas que visam reparar erros do passado), dados da pesquisa mostram também um forte consen-
atualmente propostas pelas lideranças negras, têm sido rejeitadas so na elite c o n t r a ações afirmativas ou impostos sobre
com base tanto em argumentos de classe (tais políticas beneficia- a riqueza. Ainda que reconhecendo que existe discri-
riam apenas os negros de classe média), quanto de raça (não ha- minação c o n t r a o s negros e contra as mulheres, a elite
veria propriamente uma comunidade negra no Brasil, ou seja, uma não está preparada para compensá-la através de me-
identidade negra precisamente definida). E por quê? Ora, a justi- didas de d i s c r i m i n a ç ã o positiva. De fato, a educação é
ficativa moral para o seu repúdio parece assentar-se sobre a au- vista c o m o o m e i o mais efetivo de combate à pobreza
sência, entre nós, de sentimento de responsabilidade ou de culpa e à desigualdade justamente porque se trata de uma so-
pelo passado, o que inviabiliza qualquer argumento de "repara- lução universalista, aberta a todos" (tradução minha).
ç ã o " (Skidmore, 1 9 9 7 ) .
Ademais, a cena política brasileira mostra também uma au- A discussão de políticas afirmativas para a população n e g r a ,
sência de sentimento de responsabilidade com o presente e com a por exemplo, conta, entre seus adversários, com os melhores e m a i s
pobreza: políticas afirmativas q u e visem beneficiar a população renomados cientistas sociais do país. Esses argumentam que t a i s
carente são igualmente c o m b a t i d a s em nome da competição por políticas c o n t r a r i a m os valores liberais (Reis, 1 9 9 7 ) e ferem a in-
4 2
mérito ou da excelência a c a d ê m i c a ; enquanto as políticas de teligência nacional ( D a M a t t a , 1 9 9 7 ; Fry, 2 0 0 0 ) . Para eles, a idéia
guerra à pobreza apenas lentamente saem do papel. É por isso que de adotar tais políticas é equivocada e simplista. Equivocada p o r -
tem alguma plausibilidade a afirmativa dos militantes negros de que reforça identidades étnicas e raciais, que reificam o r a c i s m o ;
que tal indiferença em relação à pobreza e a legitimidade da dis- simplista porque c o n t r a r i a a nossa tradição cultural. O s intelec-
criminação contra os pobres têm uma motivação racial. tuais que defendem políticas antipobreza mais radicais, que levem
As elites brasileiras não aceitam medidas eficazes de combate cm conta a discriminação racial e de gênero, seriam, portanto, o u
à pobreza. Há, inegavelmente, um agarramento aos privilégios pouco refinados para entender a complexidade da cultura brasi-
leira, ou estariam c o n t a m i n a d o s ideologicamente pelo seu e n v o l -
vimento com o m o v i m e n t o negro.
4 2
Foi o que aconteceu com o projeto de lei 298/99, já aprovado no O que esses autores ignoram ou omitem é que o povo brasi-
Senado, mas amplamente repudiado por educadores, reitores e intelectuais leiro não rejeita políticas afirmativas, inclusive em sua forma e x -
e, inclusive, pela imprensa mais progressista. Tal projeto de lei, em tramitação
trema de cotas, tal c o m o sugerem. Quem as rejeita são as c l a s s e s
na Câmara dos Deputados, assegura 5 0 % das vagas nas universidades pú-
médias e as elites, inclusive intelectuais. Em 1 9 9 5 , a já citada pes-
blicas brasileiras a alunos oriundos de escolas públicas de segundo grau, as
únicas que os mais carentes podem freqüentar. quisa do D a t a F o l h a sobre racismo detectou que os mais p o b r e s e
ria obra de uma minoria vanguardista distanciada da m a s s a ) . dizer que políticas que levem em conta a a u t o c l a s s i f i c a ç ã o racial
serão b u r l a d a s por pessoas que gostam de levar vantagem em tu-
Com relação ao primeiro desses argumentos, alinhavo idéias
do. P a r e c e - m e claro que a estratégia de se definir c o m o "preto"
que vão n o sentido de afirmar que, longe de contradizerem a ló-
ou " n e g r o " , c o m o qualquer estratégia, implicará sempre em van-
gica da democracia liberal, tais ações afirmativas radicalizam-na
tagens e desvantagens desde que o Estado g a r a n t a a coerência da
e só podem ser compreendidas em contextos em que o indivíduo
autoclassificação, o que não seria muito difícil de fazer.
e o mérito são t o m a d o s rigorosamente a sério. Em alguns âmbi-
tos, como na defesa do mercado de trabalho para brasileiros na- O r a , engajar-se num debate político não significa "pontifi-
tos, nos anos 1 9 4 0 , ou no combate a desigualdades regionais, nos car". Para m i m , o mais importante desse debate de primeira hora
anos 1 9 6 0 , foi o apego aos nossos princípios igualitários e a von- sobre ações afirmativas foi enfrentar os fantasmas que nossos in-
tade de preservar a unidade nacional o que nos levou a desenhar telectuais a l i m e n t a m e que a polêmica trouxe à luz. C i t o alguns: a
políticas afirmativas, respectivamente a chamada lei de 2 / 3 e o convicção na fragilidade de nossos valores d e m o c r á t i c o s ; o cons-
dispositivo de incentivo fiscal conhecido como 3 4 / 1 8 . 4 4 tante m e d o de sermos vítimas do imperialismo cultural, que nos le-
varia a importar idéias e pô-las fora do lugar; a c r e n ç a na excepcio-
Com relação ao segundo argumento, desenvolvo a tese de
nalidade e excelência de nossa convivência interracial (que não seria
que nosso antí-racialismo não deve ser entendido c o m o anti-ra-
racial); o persistente medo de que esse país se transforme num outro
cismo. Pelo c o n t r á r i o , sob os ideais progressistas de n e g a ç ã o de
Haiti (revivendo tardiamente 1791); e, finalmente, o suposto ar-
raças humanas e de afirmação de um convívio democrático entre
raigado vício do nosso povo de pegar carona sem dividir custos.
as " r a ç a s " vicejam preconceitos e discriminações que n ã o se apre-
sentam c o m o tais, o que termina por fazer com que esses ideais e
concepções continuem a alimentar as desigualdades sociais entre
brancos e negros. D a d a a nossa tradição anti-racialista recente, CONCLUSÕES
todavia, é mais provável que o reconhecimento das diferenças e
das identidades raciais, implícitas em políticas de a ç ã o afirmati- As críticas ao uso de "raça" enquanto c o n c e i t o analítico têm,
va, levasse à tolerância e não ao conflito racial. c o m o v i m o s , diversos fundamentos. Os que me parecem mais só-
lidos são o s que chamam a atenção para o caráter histórico e tran-
C o m relação ao terceiro argumento, digo basicamente o se-
sitório da idéia de raça. Tal historicidade fica evidente no empre-
guinte: a divisão entre brancos e negros está presente no nosso co-
go que faço desse conceito, sempre o referindo a uma situação
tidiano, ainda que outras formas de classificação p a r e ç a m sobre-
concreta que pode ser verificada empiricamente. Ademais, enquan-
p
to c o n c e i t o analítico, uso-o sempre com o p r o p ó s i t o d revelar o
4 A
E certo que a lei de 2/3 veio revestida, na época, de um inegável rancor racialismo real que o não-racialismo formal e discursivo escon-
xenófobo e antiliberal, alimentado pelo clima de intolerância racial dos anos de. Isto, é c l a r o , limita o entendimento do c o n c e i t o àqueles que
1 9 4 0 . No entanto, é também inegável que havia, no mercado de trabalho, c o m u n g a m c o m i g o o repúdio à idéia de r a ç a . D a í decorre, me
uma preferência racial pelos imigrantes europeus, o que acabava por alimentar parece, a sua fragilidade; isto é, de sua c o n t e x t u a l i d a d e e transi-
a xenofobia dos negros brasileiros. Os valores igualitários a que me refiro
toriedade; qualidades, entretanto, que decorrem do conceito e não
foram aqueles que sedimentaram a incorporação dos negros e mestiços ao
do meu u s o . Assim, por exemplo, ao c o n t r á r i o do que parece
mercado de trabalho industrial e de serviços das regiões Sul e Sudeste.
4;>
Versão anterior deste capítulo foi publicada com o título de " A
questão racial na política brasileira: os últimos quinze anos", na Tempo So-
cial, vol. XIII, n° 2, novembro de 2 0 0 1 , pp. 121-42. Essas idéias foram ex-
postas originalmente na Conferência "Fifteen Years of Deniocracy in Brazil",
University of London, Institute of Latiu American Studies, Londres, em 15 e
16 de fevereiro de 2 0 0 1 . Agradeço comentários feitos a versões anteriores
por Brasilio Sallum Jr., Lilia Schwarcz, Nadya Guimarães e Peter Fry.
M a s , foi Amaury de Souza (1971) quem demonstrou pela sólidas bases e contrapartidas materiais. N o caso do populismo,
primeira vez, que os negros apresentavam r e a l m e n t e comporta- Souza ( 1 9 7 1 ) argúi, por exemplo, que as leis trabalhistas de Var-
mento político diferente dos brancos. Utilizando técnicas de aná- gas deram ao negro brasileiro as garantias para a sua inclusão na
lise multivariada, a partir de dados eleitorais d o s anos 1 9 6 0 , e sociedade de classes. Seus ciados m o s t r a m , ademais, que, entre os
c o n t r o l a n d o os efeitos de outros possíveis determinantes, como jovens eleitores cie 1960, havia maior mobilidade ascendente en-
a classe social, a educação e outras variáveis de posição social, tre os negros que entre os brancos; essa maior mobilidade, toda-
c o m p r o v o u a sigularidade eleitoral que já tinha sido avançada por via, era insuficiente pata erodir a identificação dos negros com a
Freyre em termos impressionísticos. classe trabalhadora c os pobres. N o plano ideológico, "pelo me-
nos durante os primeiros anos do período de democracia liberal,
D e p o i s que Souza demonstrou que os n e g r o s , nas eleições
de 1 9 4 5 a 1964, as categorias políticas de negro e povo eram qua-
de 1 9 6 0 , votaram mais consistentemente em J a n g o que os bran-
se que intercambiáveis" (Souza, 1 9 7 1 : 6 4 ) .
cos, independentemente de sua situação s o c i o e c o n ô m i c a , firma-
se na ciência política brasileira a idéia de um c e r t o padrão de voto T a m b é m Reginaldo Prandi ( 1 9 9 6 : 6 3 - 4 ) interpretando esse
negro, que iria sistematicamente em direção a o s populistas e tra- período, diz:
balhistas. U m a década depois, Gláucio Soares e N e l s o n do Valle ";\ ias é a feição populista do trabalhismo de Var-
Silva ( 1 9 8 5 ) , analisando a vitória de Bnzola nas eleições para go- gas que explicaria a adesão do negro a essa corrente
vernador do R i o de Janeiro, demonstram f a r t a m e n t e a existência partidária e seus candidatos. ( ) populismo nega a luta
de uma preferência eleitoral dos "pardos", ou seja, dos mulatos, de classes e dilui as raças numa unidade homogênea,
pela c a n d i d a t u r a do herdeiro getuhsta, ainda q u e controlando o povo, que é ideologicamente a fonte de toda a legiti-
outras variáveis explicativas, como a situação socioeconômica, o midade. Diferenças raciais n ã o fazem sentido, como
grau de u r b a n i z a ç ã o etc. não faz sentido qualquer movimentei de afirmação ra-
T a m b é m M ô n i c a de Castro ( 1 9 9 2 ) , a partir de dados de in- cial; o populismo, assim, é uma ideologia de integração
tenção de votos em quatro municípios brasileiros de porte médio, do negro como igual".
e a sua rápida integração na nacionalidade, através do domínio dindo, no começo do século X X , as posições proletárias da sociedade de
liapetinmga — principalmente os ofícios artesanais — enquanto, nos 1 9 4 0 .
da cultura luso-brasileira. O fato é que, um pouco mais de qua-
a maioria dos imigrantes já estava estabelecida em posições de classe média
renta anos depois da a b o l i ç ã o e quase cem anos depois da Inde- e alta, ao contrário de negros e mulatos.
que as diferenças então existentes entre brancos e negros poderiam que era considerado por eles como culto a o exotismo e como trans-
ser atribuídas quase que exclusivamente à seletividade de classe, f o r m a ç ã o do negro em objeto.
barreira esta encontrada por todas as minorias é t n i c a s que emi- C o n t u d o , a postura agressiva de anti-raeialismo ede afirma-
graram para o N o v o M u n d o . 49
Na academia, serão os intelectuais ç ã o cie um Brasil mestiço por parte de Gilberto Freyre, josé Lins
paulistas, principalmente Oracy Nogueira e Florestan Fernandes, do R e g o , J o r g e Amado, Rachel de Q u e i r o z e outros escritores en-
que r o m p e r ã o tal consenso, ainda nos anos 1 9 5 0 , afirmando a c o n t r a v a também alguma simpatia do movimento negro quando,
confluência de barreiras de classe e de cor à mobilidade social e à e apenas quando, tal visão de Brasil contradizia a visão, nutrida
integração dos n e g r o s . 50
por parte de outn >s escritores e intelectuais, em São Paulo e no Sul
A postura do "FFN colidia frontalmente com o mainstream do país, do brasil como um país branco e da democracia racial co-
52
da intelectualidade brasileira, tanto na interpretação sociológica, mo fruto de um etíyis cordial, não necessariamente miscigenaclo.
quanto no plano ideobágieo. No plano sociológico, o pensamen- Para s - entendei a postura de intelectuais c o m o Guerreiro
L
to negro pressupunha a existência de formação racial e não ape- R a m o s , Correia beire, Abdias Nascimento e outros tem que se ter
nas de classe; no plano idcoléigico, reivindicava a identidade ne- presente o que estava em jogo nas diferentes dimensões do espa-
gra e n ã o apenas mestiça, que constituiria o â m a g o da identida- ço s i m b ó l i c o .
de nacional brasileira. Era desse modo que os líderes dos anos 1950 N o plano da identidade nacional, tratava-se de definir o ne-
procuravam equacionar o nacionalismo e a negritude.- 11
Isso os gro n ã o c o m o uma minoria estrangeira — tal c o m o fazia o main-
afastava do m o d o como os demais intelectuais, principalmente os stream da intelectualidade paulista — , mas c o m o maioria, como
nordestinos, entendiam a democracia racial então vigente, que se o povo. M a s , tal postura, por outro lado, pressupunha o negro
sustentava sobre a negação dos negros, qna raça ou grupo social, c o m o categoria no plano político, o que n ã o eta reconhecido pelo
e na a f i r m a ç ã o de um ideal — que na verdade era tido c o m o uma mainstreaw da intelectualidade nordestina, que via o negro como
realidade c o n c r e t a — de mestiçagem racial e sincretismo cultural. c a t e g o r i a anenas no plano da cultura, enquanto objeto de estu-
do. M a s , apesar dessas diferenças m a r c a n t e s , na disputa entre
aqueles qm pensavam o Brasil como mestiço e aqueles que o viam
c o m o b r a n c o , a simpatia dos negros tendia para os primeiros.
A
" Fssa idéia é primeiramente aplicada ao Brás:! por Donald Picrson
F tanmém d< >s anos 1950 que d a t a o progressivo desapare-
1 9 4 2 ) . que segue à risca o modelo explicam <> de R o i v r c 1'.. Park il».vl>. sen
cimento dc .'stigmas raciais tais como o mulato pernóstico ou mu-
orientador, acrescentando, todavia, para o caso nrasileiro. algumas condi-
ções biológicas e culturais, como a mestiçagem, aportadas por (jilberro Irey- lato pachoio pn t» doutor, o negro boçal, o negro de alma hran-
rc (19.53). Charles Wagley ( 1 9 s 2 l apenas reitera tal ponto de vista.
s o
Um intelectual comoThales de Azevedo, ainda que as documentan-
do fartamente, atribuiu as barreiras de cor a persistência da ordem social de V e i . por exemplo, a polêmica envolvendo Paulo Duarte, Sérgio
Stànd, típica de sociedades tradicionais. Ver Guimarães ( 1 9 9 6 } . Millier, J o s é Lins do Rego e Rachel de Q u e i r o z , em Bastos (1988) e Maio
1 1 (1997).
T a l interpretação pode ser encontrada em Basude ( 1 9 6 1 ) .
í !
Freyre (1.936), Pierson ( 1 9 / 1 [ 1 9 4 2 ] í e Azevedo (1996 [1955]), en- M
Este é o título dado pelo T E N à coletânea J e teses apresentada no I
tre outros, documentam tais estigmas. Congresso do Negro Brasileiro. Ver Nascimento ( i 9 6 8 ) .
cia racial transformada em dogma de governo, a influência cio mo- decida de 1 9 7 0 , já aparecem no Brasil as primeiras analises sociológicas qtie
demonstram a importância da "raça" na construção das desigualdades so-
vimento negro internacional foi muito maior e direta do que o que
ciais no Brasil {Hasenbalg, 1<>79; Silva. 1978) e as primeiras críticas à inter-
seria de se esperar. Isso aconteceu tanto pela influência que o
pretação da discriminação e do preconceito como reação à ordem competi-
mundo cultural europeu e norte-americano exerceu diretamente tiva. A discriminação passaria a ser vista doravante como parte integrante
sobre os exilados, e x p o s t o s agora ao dia-a-dia da política racial, da modernização capitalista.
Uma análise d o texto clássico de Lélia Gonzalez ( 1 9 8 2 ) e dos canos na diáspora" (Nascimento, 1 9 8 0 : 1 5 6 ) .
T o d o tipo de arbitrariedade é fixada indelevelmente nas batidas do E s t a d o N o v o , seja através do trahalhismo de V a r g a s e do na-
policiais rotineiras que mantêm a comunidade negra aterrorizada c i o n a l i s m o , o m a i o r radicalismo do M N U faz c o m que o protes-
e desmoralizada. Com estas batidas, espancamentos, assassinatos to n e g r o a t u a l tenha uma sobrevida maior. A d e m a i s , o M N U é
e tortura, a impotência e 'inferioridade" do povo negro é atualizada
apenas u m a e n t r e a-s muitas organizações n e g r a s q u e foram fun-
diariamente, posto que incapazes de defenderem-se a si mesmos
dadas nos ú l t i m o s 15 anos. Logo emergiram o u t r a s , de diferen-
ou de proteger a sua família e os membros de sua comunidade. Is-
to constitui uma situação de humilhação perpétua" (Nascimento, tes matizes i d e o l ó g i c o s e políticos, e c o m d i f e r e n t e s finalidades,
"Nessa passagem, os autores [do manifesto] tocam num ponto Em sua pluralidade, o movimento negro r e c e n t e trouxe para
importante a tradição quilombista — a definição do caráter nacio- a c e n a b r a s i l e i r a uma agenda que. alia p o l í t i c a de reconhecimen-
nalista do movimento. Nacionalismo aqui não deve ser confundi-
to (de diferenças raciais e culturais), política de identidade (racia-
do com xenofobia. O quilombismo é uma luta anti-mipenalista, que
lismo e v o t o é t n i c o ) , política de cidadania ( c o m b a t e à discrimi-
se articula com o pan-afncanismo e sustenta uma solidariedade
radical com todos os povos do mundo que lutam contra a explora- n a ç ã o r a c i a l c afirmação dos direitos civis d o s n e g r o s ) e política
ç ã o , a opressão e a pobreza, tanto quanto contra as desigualdades redisttibutiva (ações afirmativas ou c o m p e n s a t ó r i a s ) .
motivadas por raça, cor, religião ou ideologia. O nacionalismo ne-
gro é universalista e internacionalistu porque apoia a libertação na-
cional dos povos e vê no respeito a sua singularidade cultura! e à
sua integridade política uni imperativo para a libertação mundial. >lf
• Uma pequena lista das reivindicações do m o v i m e n t o negro, nos úl-
A uniformidade sem face em nome da 'unidade' ou da 'solidarie- timos 1 5 anos, dá uma idéia de sua abrangência e r a d i c a l i s m o . Em primeiro
dade', em conformidade com os ditames do modelo social ociden- lugar, o movimento recusou a data oficial de celebração da incorporação dos
tal n ã o é do interesse dos povos oprimidos não-ocidentais. O qui- negros à n a ç ã o brasileira, o 13 de maio, data da a b o l i ç ã o da escravidão,
— são iniciativas independentes de qualquer organização política entende e faz da denúncia de sua crueldade (tal ideologia anestesia
ou étnica, alguns deles bastante radicais em seu p r o t e s t o , o que e aliena suas vítimas) o principal instrumento de m o b i l i z a ç ã o po-
acaba por forçar as lideranças políticas negras a manterem-se coe- lítica e de f o r m a ç ã o de uma identidade racial c o m b a t i v a .
rentes c o m o seu próprio passado de mobilização. C o n t r a tal interpretação têm se manifestado alguns antropó-
logos (Fry, I 995-96), que argúem que a "democracia r a c i a l " é pro-
priamente um m i t o fundador da nação brasileira, o u seja, parte
fundamental de sua matriz civilizatória, a qual, ainda que não e x -
clua c o m p l e t a m e n t e preconceitos e discriminações, permite maior
intimidade e interpenetração entre negros e b r a n c o s , fornecendo
bases mais sólidas para a superação do racismo. Nesse sentido, a
" d e m o c r a c i a r a c i a l " é também um sistema de o r i e n t a ç ã o da a ç ã o
social, ativo e onipresente tanto nos pequenos atos do dia-a-dia,
q u a r t o na racionalização da experiência cotidiana.
na "democracia racial", t a m b é m , um compromisso político e so- necessário institucionalizar a desmemória das origens étnico-ra-
cial do moderno Estado r e p u b l i c a n o brasileiro, que vigeu, alter- ciais: os brancos afastando-se do Portugal "decrépito" e "subor-
nando força e convencimento, do Estado Novo de Vargas até a dinado", responsabilizado pelos males herdados; os negros afas-
ditadura militar. Tal c o m p r o m i s s o consistiu na incorporação da tando-se, pelo e m b r a n q u e c i m e n t o , do passado servil; os caboclos
população negra brasileira a o m e r c a d o de trabalho, na ampliação fugindo da "selvageria" e do "primitivismo" quelheseram atribuí-
da educação formal, enfim na c r i a ç ã o das condições infra-estrutu- dos. Brancas para dentro e mestiças para fora, as elites viram-se
rais de uma sociedade de classes que desfizesse os estigmas criados encurraladas, c o m o diz Skurski (Í996: 3 7 6 ) , parafraseando Bha-
pela escravidão. A imagem do n e g r o enquanto povo e o banimen- bha { 1 9 9 4 ) , "entre a necessidade de negar e de afirmar sua dife-
to, no pensamento social b r a s i l e i r o , do conceito de "raça", subs- rença em relação ao poder metropolitano", permanecendo "in-
tituído pelos de "cultura" e " c l a s s e social", são suas expressões. capazes de estabelecer sua autoridade através da autenticidade de
suas origens".
Neste capítulo, e x p o n h o a constelação simbólica que faz da
"democracia racial" e do " d e s c o b r i m e n t o " mitos nacionais. Meu A ambigüidade das elites latino-americanas encontrou, pi>-
argumento principal é de que tal construção ideológica, sempre ten- rém, um elemento renovador na crise política e ideológica que afe-
1
sa, encontra-se agora em crise. E x e m p l o disso é o crescimento cio tou o-, povos europeus depois da guerra franco-prussiana de 1 8 / ) .
preconceito étnico-regionaíista em S ã o Paulo. Para entendê-lo me- A necessidade francesa de contrapor-se ao nacionalismo alemão
lhor, exploro, no final do c a p í t u l o , esse avesso da nacionalidade. de base étnico-racial, a c a b o u servindo de base para a construção
da nacionalidade brasileira. Examinemos brevemente tal matriz.
Os ilumimstas franceses foram os primeiros, no século X V I I ,
O processo de construção da identidade nacional brasileira, gurando uma definição puramente política de nação. N o século
no século X X , guarda muitas s e m e l h a n ç a s com o processo que se do nacionalismo, entretanto, foi a definição pelas origens que pre-
passou na América Latina em geral, tal c o m o sistematizado por Julic valeceu. Os franceses discutiram, então, diversas outras forma--
:
Skurski ( 1 9 9 6 ) . A primeira dessas semelhanças é uma recusa cole- de traçar as origens, premidos sempre, como bem salientou H a n r
tiva do passado colonial, u m a vez que tal passado, português ou Arenct 1 1 9 5 1 ,>. pela luta entre a nobreza e o resto da nação trai -
espanhol, não podia ser seu. A romantiza cão dos índios como guer- cesa. x) sangue e a raça, a geografia e o clima, a mestiçagem f< -
r
reiros selvagens e livres, que preferiram a morte à servidão consti- ram ;->rmas usadas para definir o povo francês. Michel Foueau
tuiu desde sempre um traço forte dessa representação n a c i o n a l . w) (1997 explora, em suas aulas no Collège de France, o modo com- •
a luta entre nobres e plebeus, na França, se transforma numa lui •
de raças, para transformar-se depois, de novo, em lutas de clas-
ses (entre burgueses e o p e r á r i o s ) .
611
Apenas nos dias que correm foi também possível acrescentar-se a tal
No ideário da revolução francesa, fundadora cia moderna na
representação romântica a figura guerreira dos quilombolas (Zumbi) e do seu
espírito de liberdade (o Quilombo dos Palmares). cionalidade republicana francesa, prevalece a inspiração rousseau -
Se as migrações internas e a criação de u m a sólida cultura de fronteira do Sul e do Sudeste. A c o m p e t i ç ã o que então se ins-
nacional, de bases mestiças e populares, de origens principalmente talou no mercado de trabalho, tanto quanto o estranhamento cul-
nordestinas, baianas, cariocas e mineiras, f o r a m capazes de de- tural, são responsáveis pelo surgimento de estereótipos regionais
s a r m a r a bomba étnica que se formava em S ã o Paulo antes dos negativos ("baianos", "paraíbas" e " n o r d e s t i n o s " ) , assim como
anos 1 9 3 0 , elas não evitaram, porém, a emergência ou continui- nacionais ("português"), visto que os portugueses gozavam dos
dade de novos problemas, tais como o preconceito racial e regio- mesmos privilégios dos nacionais. Tais fenômenos, ainda que im-
nal e as crescentes desigualdades raciais. Do m e s m o modo, a crença portantes, apesar de pouco estudados, não foram suficientes pata
na d e m o c r a c i a racial tora tecida por sobre a lenda da excepcio- levar à crise o sentimento nacionalista. A " r e g i o n a l i z a ç ã o " dos
n a l i d a d c brasileira, que deixava de ser plausível ã medida que preconceitos e estereótipos foi quase sempre a regra, reforçada por
outras sociedades pós-coloniais, como Estados Unidos e v lanada, uma socialização regionalizada, com seus heróis, seus santos, suas
superavam a segregação racial através de soluções c o m o . > conví- datas cívicas, suas festas, comidas típicas etc... Na verdade, mas
vio multirracial e multicultural, numa situação de convivência de- apenas nesse sentido, o sentimento de pertença nacional brasilei-
69
A configuração descrita acima foi forte o suficiente para delo assimilacionista e heterofóbico de nação alguns elementos que
sedimentar o sentimento de pertença à nação brasileira, no período passo a enumerar. Primeiro, o ressurgimento, ainda que por bre-
pós-abolicionista. Apenas, duas grandes tensões pesaram -obre tal ve período, de movimentos separatistas, principalmente no Sul do
s e n t i m e n t o , no período que vai dos anos 1 9 4 0 aos anos 9 7 0 do país. Segundo, o surgimento de movimentos racistas voltados con-
século X X . Primeiro, o fato de o Brasil ter cerrado ri lei r; com os tra nordestinos e negros, principalmente no Sudeste, tais como os
A l i a d o s , durante a Segunda Guerra Mundial, se contrap >ndo ao Carecas do ABC etc. Terceiro, o tato de que. pela primeira vez
e i x o ( A l e m a n h a , Itália e J a p ã o ) , exigiu uma assimilaçã > muito cm sua história, o brasil passa a ser uma origem importante na
rápida cias comunidades e colônias italianas, alemãs e japonesas, emigração internacional. Quarto, o tato de unia grande leva de
surgidas da grande imigração internacional da virada d< sécuio. brasileiros de segunda, terceira e quarta g e r a ç ã o buscarem uma
nas cultural, mas política, uma vez que a antiga capital, tinha ou suas formas ou maneiras baianas de ser se exalta-
reconvertido todo o seu capital social para uso na corte imperial, ram sob a influência de outras substâncias, daí resul-
principalmente sua oratória e a beleza vernacular do seu idioma, tando combinações magníficas de baianidade com pau-
para a representação política dos interesses, seus e de outros. A listantdade, por exemplo" (Freyre, 1 9 5 9 : 2 1 0 ) .
A indisposição da República para com a Bahia e para com uma mulata velha'' .
os baianos será impiedosa, como impiedosa será c o m os portugue- V o l t e m o s ao catolicismo barroco. A p a r t i c i p a ç ã o dos negros
ses: através da galhofa, do riso e da estereotipia. tratando o seu povo nos festejos religiosos, na Bahia, e no Brasil c o l o n i a l em geral, foi
c o m o um povinho atrasado, ignorante, démodé e ridículo em suas mais além do que mandaria a hierarquia do desfile processional
pretensões de civilidade. Trabalho de desmoralização esse, e bom português, para adquirir o ar de mistura e de convivência intima,
que se diga, feito por baianos e não-baianos igualmente, desde que c o m u m aos carnavais, que os visitantes estrangeiros registraram.
progressistas, c o m o aliás documenta muito b e m Gilberto breyre, Aliás, os portugueses e brasileiros brancos c h e g a v a m mesmo a dis-
citando mais de um baiano ilustre para tipificar o encastelamento putar entre si a inclusão de músicos africanos e crioulos para melhor
da B a h i a no passado. É de Freyre a mais completa afirmação do louvar os seus santos (Reis, 1 9 9 1 : 6 6 ) . E esse sentido de mistura, de
caráter retrógrado da Bahia novecentista, t ã o c o m p l e t a que pare- falta de respeito e de reversão da ordem que os republicanos e pro-
ce haver realmente, na Bahia, se não no sangue b a i a n o , algo incom- gressistas repudiam e que, na Bahia, não tiveram força para reverter.
patível c o m a modernidade. Escreve o mestre de Apipucos: N a B a h i a , "a negrada", com tantas festas e procissões, aca-
75
" É certo que dessa mística [da O r d e m , contrária bou por t o m a r conta das r u a s . S í m b o l o m a i o r dessa "incivili-
a o Progresso] se desgarraram baianos ilustres do século dade" era a falta de higiene resultante do crescimento demográfico
X I X : Teixeira de Freitas, Nabuco de Araújo, o primeiro de uma cidade que mantinha o a r m a m e n t o , t r a n s p o r t e e escoa-
R i o B r a n c o , Luís Gama, Castro Alves. R u y Barbosa. mento s a m t á r i o do século XVHI, sem passar pelos grandes inves-
M a s sob o estímulo de outros meios: em correspondên- timentos de reurbanização da capita! imperial. E x e m p l o maior da
cia c o m outros ambientes brasileiros; pelo acréscimo falta de higiene, aos olhos dos brancos, eram as c o m i d a s vendi-
à sua condição de baianos de outras s i t u a ç õ e s , parti-
4
A representação da Bahia como a "mulata velha" é registrada por
Ruth Landes • 1 9 4 7 ) , por exemplo. Ver Guimarães ! 1 9 9 9 ) .
' Diz o médico baiano Durval Vieira de Aguiar, citado por irevre
0
(I 9 5 9 : 2 0 9 ) : " [ . . . ) o baiano esquecia-se da Província pelo Império'', isto e. Sobre as tentativas, em alguns casos bem-sucedidas, em outros não,
pela corte, ''para onde convergem, em curso forçado, todos os nossos recur- de disciplinar a gente do povo e o espaço público em Salvador, ver, entre
outros. Ferreira Filho (1999) e Morales ( 1 9 8 8 ) .
sos materiais e intelectuais [...]".
Bahia lhe mandava, como os que formaram a Pequena África da demográfico dos negros. Na capital da República, os cientistas na-
Saúde (Carvalho, 1987; Moura. 1995; Fry, 1 9 8 8 ) . J á nos anos 1940, cionais armaram a estratégia política e a solução teórica: o novo
o samba d o R i o ganhava "Escola" e " m o d e r n i z a v a " o modelo da c a l d e a m e n t o se daria pelo a fluxo de sangue n o v o europeu, de
procissão b a r r o c a , que arrastava os devotos pela rua, o que deu preferência nâo-ibérico. Interessante que foi um baiano adotivo,
margem à observação irônica de Verger (1 9 8 4 : 1 3 ) : "se no Brasil da Academia de Medicina, quem levou mais a sério o racismo cien-
de antigamente as procissões tinham um alegre ar carnavalesco, ao tífico da época, sem transmutá-lo, c o m o fizeram os seus ilustras
c o n t r á r i o , o carnaval de rua das escolas de s a m b a de hoje tornou- colegas da Academia carioca, em teorias do embranquecimento.
se uma s o r t e pomposa de procissão". C o m o se s a b e , ainda hoje as Talvez, n ã o pudesse.
classes altas da Bahia lutam para disciplinar a procissão paga dos Estavam plantadas, na virada para o século X X , as raízes da
trios elétricos, organizados em blocos, não m a i s em irmandades, subeultura baiana, de cujo estigma nutriu-se o primeiro precon-
que a r r a s t a m a multidão pelas ruas, atraída pela fanfarra elétrica c e i t o c o n t r a os baianos. O b a r r o c o , a d e c a d ê n c i a , a mulatice.
e, agora, pelo espetáculo erótico de dançarinas e dançarinos... A n t ô n i o Risério ( 1 9 8 8 : 146) disse que "foi em m e i o ao mormaço
H o u v e ainda, a endurecer os estereótipos, mais que os negros, e c o n ô m i c o e ao crescente desprestígio político que práticas cul-
a raça. T o d o o racismo doutrinário brasileiro concentrou-se nos turais se articularam no sentido da individuação da Bahia no con-
4 0 anos cia Primeira República, em que f o m o s beber no discurso junto brasileiro de civilização". T e m razão.
/ 6
O pape! central das mulheres negras, vendedoras de rua, nesse pro- A estagnação econômica «Guimarães, 1 os;2 •, ranto q u a n t o a perme
1 1
cesso de desmoralização e acentuado por Ferreira Filho ( 1 > >V): "Freqüen- bilida. das elites a formas culturais afro-baianas serão usadas, tamhcm. pa- -
r
temente, a crítica às formas de mercância ou mesmo com idas vendidas na rua explicar a pujança c permanência da presença africana na Bahia. W r , p<
trazia implícita a associação cora a escravidão ou com costumes tipicamente exemp.o. (Ferreira Filho. 1999: 2 5 5 - 6 ) : " S e , no plano micro-político. laçv-,
negros. A ' m u l h e r do saião' fora expressão pejorativa largamente diíundul.: pessoa^ serviram para a preservação de espaços consideráveis da cultura n -
na imprensa republicana para dirigir-se à trabalhadora de rua. A crítica a gra eir Salvador, no mundo do trabalho e do comércio informal, as reste -
roupa tradicional das mulheres pobres e trabalhadoras geralmente as asso- ções d.i mercado formal de ocupações, a pobreza u r b a n a resultante das ex-
ciava à África, à escravidão que, por sua vez, eram relacionadas à barbárie, clusões e restrições econômicas da falida economia agro-exportadora do
Estado, aliadas ao caráter artificial do projeto de reformas urbanas, garant-
atraso e falta de higiene" (Ferreira Filho, 1 9 9 9 : 2 4 6 ) .
133 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 139
c o m o mais humana e suportável, no Bra_síl, justamente pela au- cracia racial", além de mais recente, está envolta numa teia de
8 2
sência dessa linha de c o r . significados muito específica.
Célia Marinho de Azevedo ( 1 9 9 6 ) registra a intervenção de N o s anos 1 9 3 0 , quando se organiza pela primeira vez o mo-
Frederick Douglas, numa palestra em 1 8 5 8 , em Nova York: v i m e n t o político negro no Brasil — a Frente Negra Brasileira —,
" M e s m o um país católico c o m o o Brasil — um essa utopia não será posta em dúvida, pelo menos de imediato. Em
país que nós, em nosso orgulho, estigmatizamos como sua " M e n s a g e m aos negros americanos", M a n o e l Passos (1942),
s e m i b á r b a r o — não trata as suas pessoas de cor, livres presidente da União Nacional dos H o m e n s de C o r , prefere, por
ou escravas, do modo injusto, b á r b a r o e escandaloso e x e m p l o , salientar o abandono a que está relegada a população
c o m o nós tratamos. (...) A América democrática e pro- negra, sua falta de instrução e seus costumes a r c a i c o s , como res-
testante faria bem em aprender a lição de justiça e liber- ponsáveis pela Mtuação de "degenerescência" dos negros. Até mes-
dade vinda do Brasil católico e d e s p ó t i c o " (apitd Aze- m o o "preconceito de cor", de que se ressentem os negros, é par-
vedo, 1 9 9 6 : 1 5 5 ) . cialmente atribuído à fraqueza moral das populações negras.k--
Esta autotlageiação só será revertida com a democratização
Célia Azevedo registra ainda a opinião d o francês Quentin, do país, em 1 9 4 5 , quando surgem novas organizações negras, as
em 1 8 6 7 , segundo a qual "o que facilitará singularmente a tran- quais serão, de certo modo, incorporadas pela Segunda Repúbli-
sição [para o trabalho livre] no Brasil é que lá n ã o existe nenhum c a . Incorporadas no sentido de que funcionarão livremente, além
p r e c o n c e i t o de raça", (apud Azevedo, 1 9 9 6 : 1 5 6 ) . D o mesmo de influenciarem a vida nacional em termos culturais, ideológi-
m o d o , para o período pós-abolicionista, Hellwig ( 1 9 9 2 ) alinha- cos e políticos. O Teatro Experimental do N e g r o ( T E N ) , forma-
va u m a série de artigos escritos por afro-americanos, entre 1 9 1 0 do e m 1 9 4 4 , é sem dúvida a principal dessas organizações.
e 1 9 4 0 , reafirmando a crença generalizada n u m país sem precon-
ceitos o u discriminações raciais, no qual o valor e o mérito indi-
vidual n ã o seriam empanados pela pertença racial ou pela cor. O " I T I N E R Á R I O DA D E M O C R A C I A "
E verdade que na fala transcrita a c i m a , Douglas contrasta a D E R O G E R BASTIDE
d e m o c r a c i a e o senso de injustiça americanos, por um lado, com
o despotismo e a justiça brasileiros, por o u t r o lado, no trato dado A história da expressão de que estamos tratando começa um
aos h o m e n s de cor. M a s não vai além disso. N ã o usa a palavra p o u c o antes do fim da Segunda Guerra.
" d e m o c r a c i a " para referir-se a relações 'ociais. Democracia guarda Roger Bastide empreende em 1 9 4 4 a sua pr meira viagem
seu sentido puramente político, teferindo-se tão-somente à forma ao Nordeste brasileiro. As impressões recolhidas nessa viagem,
de g o v e r n o . muito influenciadas pela leitura de Freyre, ajudar un a (ormar a
O s historiadores fazem bem em tratar essa utopia como o sua primeira percepção das relações raciais n o Bi isil. Essas im-
" m i t o d o paraíso racial", pois, na verdade, a expressão "demo-
s
-' Bastide e Fernandes (1955) se referem a tal fenôrr mo como "puri-
S 2
V e r Azevedo (1994) sobre a opinião de R u y Barbosa, Joaquim Na- tanismo negro". Fernandes (1965) explora a lógica própria ao "preconceito
buco, André Rebouças e outros sobre o caráter das relações raciais no Brasil. de c o r " .
140 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 141
pressões serão modificadas apenas nos 1 9 5 0 , a partir do momen- go com uma rápida referência ao romance Jubiabá, de J o r g e A m a -
to em que Bastide se engaja c o m Florestan Fernandes numa pes- do, "onde ele mostra c o m o pouco a pouco o negro, no lugar de
quisa de campo sobre "brancos e negros em São Paulo", patroci- procurar uma c o m p e n s a ç ã o para o seu labor cotidiano na místi-
nada pela U N E S C O e pela Revista Anbembi. ca, que o separa do b r a n c o , fixando-o numa tradição africana,
Bastide colabora então regularmente com a imprensa diária volta-se para o sindicalismo que o agrega a seus companheiros de
paulista e de outros estados brasileiros, engajando-se em fértil trabalho, o funde numa comunhão que ultrapassa a raça para dar-
diálogo com o mundo artístico e intelectual local (Peixoto, 2 0 0 0 ) . lhe uma outra mentalidade que é a classe". Bastide argumenta,
Em março de 19.94, nos dias 17, 2 4 e 3 1, Bastide publica no Diá- em seguida, que o p o v o , para Amado, não se resume aos proletá-
rio de S. Paulo uma série de artigos que intitula "Itinerário da de- rios, a uma categoria e c o n ô m i c a , mas se expressa na alegria da
mocracia", produto de suas visitas a Bernanos, Jorge Amado e festa: "O povo é o c o n j u n t o dos proletários, sem dúvida, m a s
Gilberto Freyre, no Rio de J a n e i r o , Salvador e Recife, respectiva- considerado como alegria de festa, como criador de valores esté-
mente. O Brasil encontra-se alinhado aos Estados Unidos, Grã- ticos, como mantenedor de uma certa cultura, muitas vezes a mais
Bretanha e Rússia na guerra contra o Eixo, enquanto a França con- saborosa de todas as c u l t u r a s " . Jorge Amado, o comunista que
tinua ocupada pelas tropas alemães. O mundo está então dividi- luta pela liberdade, teria lhe ensinado a lição de que a d e m o c r a -
N o primeiro desses artigos, Bastide nos explica que essa fora No terceiro e ú l t i m o artigo da série, dedicado ao e n c o n t r o
"uma viagem ideológica, através das conversações, na qual cada com Gilberto Freyre, no Recife, Bastide reflete sobre a ordem sócia!
grande capital visitada constituía c o m o que uma etapa neste cami- própria à democracia brasileira, ordem que seria baseada n a au-
nho da ideologia democrática" (Bastide, 1 9 4 4 ) . O encontro com sência de distinções rígidas entre brancos e negros. E nesse c o n -
Bernanos, no R i o , serve de p r e t e x t o para Bastide explorara idéia texto que aparece, pela primeira vez, a expressão " d e m o c r a c i a
te, que ajudara a organizar a resistência francesa a partir do R i o , "Regressei para a cidade de bonde. O veículo es-
pelas ondas da BBC de Londres, teria uma compreensão eminente- tava cheio de t r a b a l h a d o r e s de volta da fábrica, que
mente moral da d estendendo-a para além da idéia de misturavam seus c o r p o s fatigados aos dos passeantes
direitos civis, no sentido da ética da ação política. Mas, para nós, que voltavam do parque dos Dois Irmãos. População
o decisivo, nesse artigo, é que Bastide inclui o Brasil no rol das de mestiços, de brancos e pretos fraternalmente aglo-
nações democráticas não pela obediência a certa ética pública ou merados, apertados, amontoados uns sobre os outros,
mesmo pela garantia ao exercício de liberdades civis, mas pelo fato numa enorme e amistosa confusão de braços e pernas.
deste, ao engajar-se na guerra c o n t r a o fascismo na Europa com- Perto de mim, um preto exausto pelo esforço do dia,
partilhar uma certa "concepção da vicia e da dignidade do homem" deixava cair sua c a b e ç a pesada, coberta de suor e ador-
(Bastide, 1 9 4 4 ) . mecida, sobre o o m b r o de um empregado de escritório,
um branco que ajeitava cuidadosamente suas espáduas
O segundo artigo, dedicado a o encontro com Jorge Amado
de maneira a r e c e b e r esta cabeça como num ninho,
em Salvador, versa, ao c o n t r á r i o , sobre algo mais concreto: a
como numa c a r í c i a . E isso constituía uma bela imagem
constituição do povo e da cultura popular, os sujeitos e a forma
da democracia social e racial que Recife me oferecia no
estética da democracia brasileira, Bastide ( 1 9 4 4 a ) começa o arti-
142 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 143
meu c a m i n h o de regresso, na passagem crepuscular do vel. N o nível d o senso comum, a desmoralização d a idéia de raça
arrebalde p e r n a m b u c a n o " (Bastide, 1 9 4 4 b ) . não significará o fim imediato dos estereótipos que atingiam a
p o p u l a ç ã o n e g r a — estes se manterão r a z o a v e l m e n t e intactos,
Vê-se, p o r t a n t o , que a democracia brasileira, tal c o m o Bas- perdendo talvez o seu caráter de imutabilidade — ; representará,
tide a pensa em 1 9 4 4 , é antes de tudo "social e racial". " S o c i a l " , isto sim, u m a a r m a poderosa de incorporação d o s mestiços —
entretanto, num sentido muito preciso, que nada tem a ver c o m os mulatos, p a r d o s , principalmente morenos — a o s espaços econô-
direitos sociais a que se refere Marshall ( 1 9 6 5 ) . Seria, antes, a cons- m i c o , s i m b ó l i c o e ideológico da nação (incluindo aí a reivindica-
tituição de uma o r d e m social em que a "raça" teria evoluído para ç ã o de direitos civis e sociais). O T E N atuará n o sentido de am-
a "classe", mas na qual o " p o v o " daí resultante não teria c o p i a d o pliação desses espaços, para aí incluir o negro.
a expressão cultural pequeno-burguesa, européia e puritana, tal A p r i n c í p i o , nos 1 9 4 0 e 1 9 5 0 , o negro brasileiro, na repre-
como nos Estados Unidos, mas construído uma forma original de sentação que dele fazem os seus líderes, c o n t i n u a r á sendo cultu-
cultura miscigenada, livre e festiva. A democracia a que Bastide se ralmente mestiço e híbrido; 84
mas com o correr d o tempo ganhará,
refere, inspirada em Freyre e Amado, não pode ser reduzida a di- cada vez mais, uma essência negra, culruralmente "africana". Por
reitos e liberdades civis, mas alcançaria uma região mais sublime: isso tem r a z ã o M a u é s (1988) ao notar a ambigüidade do discur-
a liberdade estética e cultural, de criação e convívio miscigenaclo. so tecido pelas principais lideranças do T E N n o s anos 1 9 4 0 e
Muito interessante, e ademais decisivo, é que B a s t i d e , ao 1 9 5 0 , que o s c i l a entre a busca da superação das práticas cultu-
contrário de F r e y r e , ao referir-se a essa ordem use o adjetivo "ra- rais ditas " a f r i c a n a s " e "retrógradas" da p o p u l a ç ã o negra brasi-
cial" para d e n o m i n á - l a , mesmo depois de reconhecer a evolução leira, por um l a d o , e, por outro lado, a afirmação de um certo ethos
da "raça" para a " c i a s s e " . Tal referência à mistura social e à mis- negro, t a m b é m "africano", de emotividade e expressividade, que
cigenação entre b r a n c o s e negros como "racial" mostra c o m o era se manifestaria espontaneamente nas artes.
artificial a pretendida abolição (acadêmica) das raças, a sua evolu- E preciso também lembrar que o T E N foi gerado no ambiente
ção para "classes" e a regra acadêmica de tratá-las c o m o " e t n i a s " . de crítica a o Listado Novo e de mobilização intelectual para a
Na linguagem d o s j o r n a i s e da política, mais p r ó x i m a do senso c o n s t r u ç ã o de u m a ordem democrática mais inclusiva. Os que
comum e dos sentidos "nativos", será a "democracia r a c i a l " e não estavam no T E N pertenciam à mesma geração nacionalista que
"democracia é t n i c a " que prevalecerá. reinventou a nacionalidade brasileira, seu povo e sua cultura (Ta-
vares, 1 9 8 8 ) . F o i essa também a geração que propugnou não ape-
nas por um desenvolvimento econôm co e social auro-sustenta-
O C O N S E N S O RACIA1.-DEMOCRÁTICO do. c o m o por u m a economia e sociologia propriamente brasilei-
ras. V e m desse vínculo comum a coiib -rmidade de pontos de vis-
No pós-guerra, a grande novidade que representou a vulga-
rização do c o n c e i t o cie " c u l t u r a " , cunhado pelas ciências sociais,
S 4
Para ilustrar o ideal de sineretismo ao meio negro, Maués (1 9 8 8 :
em detrimento do c o n c e i t o biológico de "raça", será a de negar
92 i a t a um texto do jornal negro O Quilombo (ano I, n" .?, junho de 1 9 4 9 i ,
o caráter irreversível da inferioridade intelectual, m o r a l e psico-
que justifica o c o n c u r s o da Rainha das Mulatas como sendo "uma iniciativa
lógica dos negros. N ã o o de negar tal inferioridade, senão de trans- em prol da v a l o r i z a ç ã o estética e social das t]ualidades mestiças de nossa
feri-la para o p l a n o da cultura, tornando-a passageira e reversi- civilização".
144 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 145
ta, em algumas matérias, entre os intelectuais do T E N e os inte- .ricos unidos na luta antifascista, q u e procuram agora se diferen-
lectuais nacionalistas como Florestan Fernandes, Paulo Prado, ciar e traçar, através dos adjetivos, a sua trajetória particular.
Gilberto Freyre e os escritores regionalistas. M a u é s ( 1 9 8 8 ) cha-
N o caso que nos interessa mais de perto aqui, a democracia
ma-nos a atenção para algumas dessas coincidências. M a s tal con- 8 5
"social e étnica" de que falava Freyre, em 1 9 4 3 , ou a "demo-
formidade se rompeu em dois pontos capitais: a apropriação c
cracia social e racial" como disse Bastide, em 1 9 4 4 , transformam-
reinvenção da "cultura afro-brasileira" pelos antropólogos e ar-
se, nos 1 9 5 0 , em democracia racial tout court, e m referência di-
tistas " b r a n c o s " , e o discurso sobre a participação do negro na
reta aos conflitos raciais que c o m e ç a m a rasgar o racismo legal
sociedade brasileira, em particular a discussão sobre a existência
dos Estados Unidos. Ao contrário de lá, pensavam scbolars e mili-
ou n ã o do preconceito racial no Brasil.
tantes, já tínhamos um legado de d e m o c r a c i a racial desde a Abo-
A crença na democracia racial, ao menos c o m o ideal, perten- lição. Para os movimentos negros, entretanto, a abolição não fora
ce à zona de coincidência de pensamento a que estou me referindo. completa, pois não representara a integração econômica e social
Assim, por exemplo, em 13 de maio de 1 9 5 5 , a o encerrar a "Sema- do negro à nova ordem capitalista: t a n t o para a geração dos 1 9 3 0
na de Estudos sobre Relações de R a ç a " , o Teatro Experimental do (a Frente Negra Brasileira;, quanto para a geração dos 1950 (o
Negro reitera a opinião da mencionada fala de Nascimento (1950), T
T F J \ ) , seria necessária uma segunda A b o l i ç ã o .
numa D e c l a r a ç ã o de Princípios, na qual se lê no parágrafo /; das
E justamente em torno da utopia de uma Segunda Abolição,
considerações: "considerando que o Brasil é unia comunidade na-
na qual se realizaria plenamente a d e m o c r a c i a racial, que se dá a
cional onde tem vigência os mais avançados padrões de democra-
mobilização política dos negros. F preciso que se note a ambigüi-
cia racial, apesar da sobrevivência, entre nós, de alguns restos de
dade no emprego deste termo, especialmente por parte dos negros:
d i s c r i m i n a ç ã o " . A expressão também aparece no item 5 da decla-
por um lado, falar em democracia racial significava afirmar o di-
ração: "[...] possam contribuir para a preservação das sadias tradi-
reito pleno a algo que não havia ainda se materializado, mas que se
ções da democracia racial no Brasil [...]" (Nascimento, 1 9 6 8 : 5 6 ) .
poderia reivindicar a qualquer m o m e n t o — nisso residia o seu la-
N a verdade, em meado dos anos 1 9 5 0 , ao lado de concei- do progressista; o seu aspecto conservador ficava por conta de que
tos c o m o " p o v o " e "nacionalidade", a noção de "democracia" é tal igualdade, não consubstanciada cm termos de oportunidades
centra] no léxico político brasileiro (Tavares, 1 9 8 8 ) . Ela tem um de vida, ficava como promessa cujo fado se cumpre ao prometer.
poder semântico do qual nenhum grupo político pode prescindir,
Portanto, ao lado do consensi • sobre a democracia racial, ha-
pois marca o afastamento destes seja da ditadura varguista, seja
via diferenças entre a intelectualidade negra rebelde e o establish-
do fascismo e do nazismo derrotados na Segunda Guerra. A me-
nient cultural da Segunda República. D o ponto de vista dos ne-
dida, porém, que os anos avançam, e com eles recrudescem a guer-
gros, são duas as principais t e n s õ e s a crítica ao exotismo negro
ra fria c o anticomunismo, acirra-se também a crítica da esquerda
que seria cultivado pelas ciências s* veiais, a crítica aos intelectuais
à d e m o c r a c i a representativa e cresce em seu seio a idéia de demo-
" b r a n c o s " que negavam a existênc:.: do preconceito racial no Bra-
cracia c o m o mistificação formal e ideológica. M a s , nos anos 1950,
sil e a necessidade de uma Segunda A b o l i ç ã o .
ainda prevalece o consenso democrático. A d e m o c r a c i a , entretan-
to, já c o m e ç a a ser adjetivada, algo que atinge seu ápice nos 1960:
d e m o c r a c i a política, econômica, social, cooperativista, socialista,
,<b
Ver Freyre (1944: 30). Embora i publicação seja de 1 9 4 4 , a confe-
positiva, étnica e (por que não?) racial. São os agrupamentos polí-
rência foi proferida em 1943, como veremos adiante.
mim num Recife amedrontado c o m o o de hoje: ameaças de agressões na "cm Gilberto, esse caráter [ibérico• responsável rela
impossibilidade de se repetir a prisão do ano passado que encontrou reação
inesperada; boletins anônimos; pixamento dos muros da casa de minha fa-
mília com palavras obcenas pintadas não por mulcques afoitos de rua, mas
8 8
por sherloks-mirins a serviço n ã o só de nazistas indígenas como de jesuítas A conferência " U m a cultura ameaçada: a l u s o - h r a s i l e i j p r o f e r i -
estrangeiros tão inimigos da água quanto do Brasil e do próprio clero brasi- da por Freyre em 1 9 4 0 no Gabinete Português de Leitura, nu Rec::'e, ilustra
leiro" (Freyre, 1 9 4 4 : 8 0 ) . tais tensões regionais e nacionalistas.
150 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 151
harmonia social, leva a que a democracia política pas- à mística da 'negritude' como ao nrito da 'branquitu-
se a segundo plano, uma vez substituída pela democra- de': dois e x t r e m o s sectários que contrariam a já brasi-
cia étnica/social. Mais ainda, justifica a não adoção, no leiríssima prática da democracia racial através da mes-
Brasil, de medidas sociais e políticas universais, pois as tiçagem: uma prática que nos impõe deveres de parti-
mesmas não caberiam em uma sociedade marcada pela cular solidariedade c o m outros povos mestiços. S o b t e -
heterogeneidade, caracterizada por uma formação não tudo com os do Oriente e os das Africas Portuguesas.
tipicamente ocidental" (Bastos, 2 0 0 1 : 6 2 ) . Principalmente c o m os das Africas negras e mestiças
marcadas pela presença lusitana" (Frevre, 1 9 6 2 ) .
Freyre forja a idéia de "democracia social" ainda nos anos
1930, contra o fato patente da ausência de democracia política, Antes disso, nas diversas oportunidades em que tratara, n o s
quer no Brasil ou em Portugal. O u seja, põe-se o desafio de traçar anos 1 9 4 0 e 1 9 5 0 , da presença negra e da democracia brasileira,
a inserção luso-brasileira no concerto das nações democráticas, Freyre adjetivou de diversos modos a democracia, mas nunca c o m o
contra todas as semelhanças e simpatias dos regimes autocráticos "racial". Nos textos desses anos, ele fala em democracia política,
de Vargas e de Salazar com o fascismo. Sua linha de argumenta- econômica, sociopsicológica, social e étnica, quer trate de assun-
ção apója-se no fato de que a cultura luso-brasileira é não ape- tos políticos, quer trate de temas culturais e nacionais. Apenas a
nas mestiça, c o m o recusa a pureza étnica, característica dos regi- partir de 1943 e 1 9 4 4 , c o m o vimos, fala em "democracia é t n i c a " ,
mes fascistas e nazistas da Itália e da Alemanha. Do ponto de vista retomando a e x p r e s s ã o , em 1 9 6 1 , no contexto de exposição d o
"social", portanto, estes regimes seriam democráticos, posto que luso-tropicalismo:
promovem a integração e a mobilidade social de pessoas de dife- "Mais cio que nunca saberá de certo o Português
rentes raças e culturas. Para usar as suas palavras, trata-se de "de- conservar-se fiel às inspirações henriquinas, em vez de
mocracia social, essencial, humana, quero dizer; pouco me preo- procurar, já a g o r a arcaicamente, seguir, naquelas rela-
cupa a política" (Freyre, 1 9 4 0 : 5 1 ) . ções, normas de povos estritamente europeus — e o Por-
Quanto à "democracia r a c i a l " , Freyre não usa tal expiessão tuguês, sobretudo depois de D. Flenrique. não e povo
senão em 1 9 6 2 , quando no auge da sua polêmica defesa do coloma- estritamente europeu — c o m não-europeus. Seria um
lismo português na África, c no bojo da construção teórica do que desvio perigoso de tradições vindas dos dias daquele
chamara de luso-tropicalis:no, julga conveniente atacar o que ele príncipe e desenvolvidas principalmente no Brasil: um
considerava c o m o influência, estrangeira sobre os negros brasilei- Brasii tão henriquino no seu desenvolvimento em demo-
ros, particularmente o conceito de "negritude", cunhado por Aime cracia étnica e em democracia social" (Freyre, í^fí 1).
Cesaire, Leopold Senghor, PYanz Fanon e outros, e reelaborado por
Guerreiro Ramos e Abdias a o Nascimento (Bastide, 1961). Km dis- Sem ter cunhado a expressão, e mesmo avesso a ela, já que
curso no Gabinete Português de Leitura, naquele ano, dirá Freyre: evocava uma c o n t r a d i ç ã o em seus termos, mas grandemente res-
" M e u s agradecimentos a quantos, pela sua pre- ponsável pela legitimação científica da afirmação da inexistência
sença, participam este ano, no Rio de Janeiro, da come- de preconceitos e discriminações raciais no Brasil, Freyre manteve-
moração do Dia de C a m õ e s , vindo ouvir a palavra de se relativamente longe da discussão enquanto a idéia de " d e m o -
quem, adepto da 'vária c o r ' camoneana, tanto se opõe cracia racial" p e r m a n e c e u relativamente consensual, seja c o m o
152 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 153
tendência da sociedade brasileira, seja c o m o p a d r ã o ideal de re- de F r e y r e de que a "democracia racial" já estava plenamente rea-
lação entre as raças no Brasil. Ou seja, enquanto a luta antifascista lizada no plano da cultura e da mestiçagem, enfim, da formação
8 y
"Palavras que ferindo o que Angola t e m de mais de Freyre. O autor dessa expressão foi justamente alguém que já
democrático — a sua democracia social através daquela dialogava criticamente com a obra e as idéias de Freyre desde o
10
mestiçagem que vem sendo praticada por numerosos início de sua formação acadêmica: Florestan Fernandes^ .
luso-angolanos, ao modo brasileiro — fere o Brasil; e Utilizando-se do mesmo contraste entre " a r i s t o c r a c i a " e "de-
torna ridícula — supremamente ridícula — a solidarie- m o c r a c i a " e do mesmo conceito de " m i t o " usado por Freyre, o
dade que certos diplomatas, certos políticos e certos jor- diálogo c o m este não poderia ser mais explícito:
nalistas elo Brasil de hoje pretendem, alguns do alto de "Portanto, as circunstâncias histórico-sociais apon-
responsabilidades oficiais, que parta de uma população t a d a s fizeram com que o mito da ' d e m o c r a c i a racial'
em grande parte mestiça, como a brasileira, a favor de surgisse e fosse manipulado c o m o c o n e x ã o dinâmica
afroracistas. Que afinidade com esses afroracistas, crua- dos mecanismos societários de defesa dissimulada de ati-
mente hostis ao mais precioso valor d e m o c r á t i c o que tudes, comportamentos e ideais 'aristocráticos' da 'raça
vem sendo desenvolvido pela gente btasileira — a de- d o m i n a n t e ' . Para que sucedesse o inverso, seria preciso
mocracia racial — pode haver da parte do Brasil? T a i s que ele caisse nas mãos dos negros e dos mulatos; e que
diplomatas, políticos e jornalistas, assim procedendo, estes desfrutassem de autonomia social equivalente para
ou estão sendo mistificados quanto ao afroracismo, fan- e x p l o r á - l o na direção contrária, em vista de seus pró-
tasiado de movimento democrático e de causa liberal, prios fins, c o m o um fator de democratização da rique-
ou estão sendo eles próprios mistificadores dos demais za, da cultura e do poder" (Fernandes. 1 9 6 5 : 2 0 5 ) .
brasileiros. N ó s , brasileiros, não podemos ser, c o m o
brasileiros, senão um povo por excelência anti-segre-
gacionista: quer o segregacionismo siga a mística da s
" Sobre mestiçagem, ver o Ir ro de Kabengelc Munanga <; 1 999).
'branquitude', quer siga o mito da 'negritude'. O u o da
Florestan defende, em 196-, sua tese de titular da Cadeira de Socio-
' a m a r e b t u d e ' " (Freyre, 1 9 6 2 ) .
logia ! da Universidade de São Paul' • . A integração do negro nj sociedade de
classes-, publicada no Boletim n° ? ) 1 , Sociologia I, n" 1 2 . da FFLCH, no
O s a c o n t e c i m e n t o s políticos posteriores, principalmente, a mesmo a n o . Ainda em 1964, Florestan faz uma conferência n o Curso de In-
vitória das forças conservadoras, em 1 9 6 4 , farão prevalecer a idéia trodução ao T e a t r o Negro sobre o mito da democracia racial.
158 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideai, o pacto e o mito 159
O movimento negro ressurgiu, em 1 9 7 8 , como o fez em 1944, um movimento de ampliação dos direitos culturais do povo ne-
em sintonia com o movimento pela retlemocratização do país. Em gro, que desde os anos 1 9 6 0 passara a ser utilizado e promovi-
sua agenda política estavam três alvos principais: a) a denúncia d o , seja para fins da política e x t e r i o r do Brasil em relação à Áfri-
do racismo, da discriminação racial e do preconceito de que eram c a , seja para fins de expansão da indústria do turismo no Estado
vítimas os negros brasileiros; b) a denúncia do mito da democra- da Bahia (Agier, 2 0 0 0 ; Santos, 2 0 0 0 ) .
cia racial, como ideologia que impedia a a ç ã o anti-racista; c) a bus- Ainda que nesse período a p a r e ç a m palavras de ordem como
ca de construção de uma identidade racial positiva: através do aí-ro- " p o r uma autêntica democracia r a c i a l " , título de um documento
centrismo e do quilombismo, que p r o c u r a m resgatar a herança veiculado pelo III Congresso do M N U , realizado em Belo Horizon-
africana no Brasil (invenção de uma cultura negra). Ou seja. o mo- te, em 1 9 8 2 , gradativamente, a m o b i l i z a ç ã o negra de 1978 a 1985
vimento negro retomava as suas bandeiras históricas de "inte- se fará tendo como pano de fundo a denúncia d o "mito da demo-
gração do negro à sociedade de classes" (Fernandes, 1 9 6 5 ) . acres- cracia racial". Um dos mais importantes intelectuais negros do pe-
centando a elas a nova bandeira de identidade étnico-racial ex- r í o d o , Joel Rufino, já notava o risco de "esgotamento" que isso
pandida. Ou seja, têm-se três movimentos em um: a luta contra representava para o movimento. E m artigo de 1 9 8 5 , diz Rufino:
o preconceito racial; a luta pelos direitos culturais da minoria afro- "Ora, foi o colapso cio m i t o da democracia racial
brasileira; a luta contra o modo c o m o os negros foram definidos que permitiu avançar o m o v i m e n t o negro, nos anos se-
e incluídos na nacionalidade brasileira. tenta. Ele não abriria c a m i n h o sozinho, pela exclusiva
J á antes de completa a redemocratização do país, nas elei- pertinácia de suas lideranças; m a s pela conjugação des-
ções estaduais de 1 9 8 2 , a militância negra tem a oportunidade de tas a condições históricas favoráveis, que liquidaram
partilhar o poder em alguns estados, c o m o R i o de Janeiro e São em bloco o pacto ideológico qu~e c o n f o r m a v a a noção
Paulo, através da sua incorporação a organismos governamentais. anterior de Brasil" (Santos, 1 9 8 5 : 2 9 8 ) .
É a época da formação dos núcleos negros nos principais parti-
dos políticos, e da ctiação de organismos estatais que procuram Os anos seguintes, que se estendem de 1 9 8 5 a 1995, são de
absorver as reivindicações da militância nas áreas da cultura, da c o n s t r u ç ã o de uma nova institucionalídade política; de formação
91
legislação e da ação e x e c u t i v a . da N o v a República, como se c h a m o u na época. Os ativistas ne-
Em São Paulo e no Rio era a o p o s i ç ã o de esquerda ao regi- gros serão chamados a ocupar c a r g o s nos recém-criados Conse-
me militar que chegava ao poder e atendia a reivindicações de seus lhos e Secretarias da Comunidade N e g r a , no âmbito dos gover-
aliados negros, também na oposição; mas, na Bahia, tratava-se de nos estaduais, e na Fundação P a l m a r e s , criada em 1 988, no âm-
bito do Ministério da Cultura. D e grande efeito simbólico foi o
t o m b a m e n t o , como patrimônio cultural brasileiro, da Serra da
1
' Exemplos de ações estatais dessa época: em 1 9 8 2 , a Prefeitura Mu- Barriga, local onde existiu no século X V I I o Quilombo dos Pal-
nicipal de Salvador incorpora ao patrimônio histórico estadual o lerreiro m a r e s . O governo federal c o m e ç a v a , assim, ao menos no plano
da Casa Branca, primeiro terreiro de candomblé da Bahia; em l^tia, a Se- 92
s i m b ó l i c o , a incorporar as demandas do M o v i m e n t o Negro.
cretaria de Educação do Estado da Bahia regulamenta a inclusão da discipli-
na Introdução aos Estudos Africanos nos currículos escolares das escolas pú-
blicas de 1° e 2" graus; em. 1984, o governo de S ã o Paulo cria o Conselho de
Participação e de Desenvolvimento da Comunidade Negra. 12
Ver a respeito Maggie ( 1 9 8 9 ) e Santos ( 2 0 0 0 ) .
160 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 161
I
Data também desse período a instituição de uma nova legis- constantemente durante o período, incentivado também pelo cres-
93
l a ç ã o anti-racista, cujo parâmetro legal será a Carta Constitucio- cimento da oferta de recursos internacionais para a filantropia.
nal de 1 9 8 8 , que declara em seu capítulo I, artigo 5", § X L l b "A Apesar do esgotamento, nos a n o s 1 9 7 0 , do modelo de "de-
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, mocracia racial", de que nos fala J o e l Rufino, o fato é que o movi-
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei", e, no Ato das Dispo- mento negro fez da denúncia d o m i t o da democracia racial seu
sições Constitucionais Transitórias, artigo 6 8 : "Aos remanescen- mote mobilizador central durante t o d o o período das décadas de
tes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas 1 9 7 0 a 1 9 9 0 . Esta centralidade renderá frutos e reações, seja atra-
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado vés de políticas públicas e legislação, seja através de novas teo-
emitir-lhes os títulos respectivos". E m 5 de j a n e i r o de 1 9 8 9 é san- rias acadêmicas sobre a " d e m o c r a c i a racial".
c i o n a d a a Lei n" 7.716, que define os crimes resultantes de pre-
c o n c e i t o de raça ou de cor. Esta lei permitirá que dali em diante
a luta contra a discriminação racial e o preconceito de cor se or- A DEMOCRACIA RACIAL
ganize em bases jurídicas. As constituições estaduais, promulga- ENQUANTO MITO
9 3
das em 1 9 8 9 , seguirão, neste aspecto, a C a r t a M a g n a .
C o m a institucionalização de uma nova ordem jurídica no O incômodo da academia brasileira perante o avanço do mo-
país, em 1 9 8 8 , amplamente favorável aos interesses negros, unia vimento negro teve alguns pivôs importantes: primeiro, um certo
boa parte da militáncia congregada anteriormente no MNU, nos exagero do discurso militante, q u e transparece no emprego de
p a r t i d o s , nos sindicatos e nos órgãos estatais passará a atuar no termos como "genocídio" para referir-se ao comportamento da
c h a m a d o "quarto setor", ou seja, organizados em O N G s . Isso não sociedade brasileira em relação a o s negros, e a vontade de fazer
quer dizer que o M N U deixe de existir (mas passará a ser apenas crer que a opressão dos negros no Brasil era pior do que a situação
mais uma organização política negra), nem que os órgãos esta- norte-americana ou sul-africana. O u seja, a propaganda do mo-
tais, os partidos e sindicatos deixem de recrutar ativistas negros. vimento quetia transformar a i m a g e m do Brasil de paraíso em in-
M u i t o pelo contrário, a partir de 1 9 9 5 se amplia o recrutamento ferno racial (Sansone, 1 9 9 6 ) . Segundo, a pretensão do movimento
de negros para órgãos do governo federal. A novidade, porém, em politizar a classificação racial brasileira, redefinindo identida-
será a proliferação do movimento negro em entidades indepen- des c o m o "preto", "pardo" ou " m o r e n o " em "negro", sem no
dentes da sociedade c i v i l . 94
O número de O N G s negras cresce entanto consegui-lo, pois a massa da população, na melhor das hi-
b
" Rosana Heringer (2000) arrola 1 2 4 principais O N G s cm 1 V 9 V . b-,-
9 l
A legislação brasileira anti-racista encontra-se reunida e comentada
s.is O N G s concentram-se: a) na luta c o n t r a o preconceito racwl — são cria-
em Silva j r . ; 1 9 9 8 ) .
dos, no período, os serviços jurídicos de S O S Racismo — , aproveitando a
9 4
Para exemplificar com as mais importantes entidades negras: em í 9SS cnminalização do racismo pela Lei 7 . 7 1 6 ; b) na luta contra a discriminação
é fundado o Geiedés — Instituto da Mulher Negra; em 1 9 8 9 , o CEAP — no trabalho, fazendo com que as regras das convenções internacionais con-
C e n t r o de Articulação de Populações Marginalizadas; em 1 9 9 0 , o CEER'1 tra a discriminação, das quais o Brasil é signatário, passassem a ser efetiva-
— C e n t r o de Estudos das Relações do T r a b a l h o e Desigualdade; em 1993, o mente respeitadas no país; c) na área da saúde; d) na área de educação e qua-
Fala Preta! — Organização de Mulheres Negras. lificação para o trabalho; e e) na área de proteção à infância.
164 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 165
CONCLUSÕES Com a redemocratização do país, a impossibilidade de se
conter as reivindicações sociais dos negros brasileiros nos estrei-
Entre 1930 e 1 9 6 4 , vigeu no Brasil o que os cientistas polí- tos parâmetros da idéia freyreana de "democracia social" fica de
ticos chamam de "pacto populista" ou "pacto nacional-desenvol- todo evidente. A nação brasileira, constituída como mestiça e
vimentista". Neste pacto, os negros brasileiros foram inteiramente sincrética, já não precisava reivindicar uma origem "não tipica-
integrados à nação brasileira, em termos simbólicos, através da mente ocidental". Ao contrário, as classes e grupos sociais farão
a d o ç ã o de uma cultura nacional mestiça ou sincrética, e em ter- dos direitos civis, individuais e universais o principal objetivo das
mos materiais, pelo menos parcialmente, através da regulamen- lutas sociais.
t a ç ã o do mercado de trabalho e da seguridade social urbanos,
A reconstrução da d e m o c r a c i a no Brasil, a partir de 1 9 7 8 ,
revertendo o quadro de exclusão e descompromisso patrocinado
ocorre panpassu ao renascimento da "cultura" e do protesto ne-
pela Primeira República. Nesse período, o movimento negro orga-
gro. Mais que isso: dá-se num m u n d o em que a idéia de multicul-
nizado concentrou-se na luta contra o preconceito racial, através
turalismo, ou seja de tolerância e respeito a diferenças cuiturais
de uma política eminentemente universalista de integração social
que se querem integras, autênticas e não-sincréticas, ao contrário
do negro à sociedade moderna, que tinha a "democracia racial"
do ideal nacionalista do pós-guerra, é dominante. Nesse ambien-
brasileira como um ideal a ser atingido.
te, todo o trabalho de reconstrução de um pacto racial democrá-
O golpe militar de 1964, que destrói o pacto populista, estre- tico, no que pese o esforço de i n c o r p o r a ç ã o simbólica e material
mece também os elos do protesto negro c o m o sistema político, do Estado brasileiro, está fadado a um (in)sucesso limitado.
que se teciam principalmente através d o nacionalismo de esquer- Seria errôneo atribuir o recrudescimento da "consciência ne-
da. D e fato, no começo dos 1 9 6 0 , a política externa brasileira já gra" e do cultivo da identidade racial, no Brasil dos anos 1970, à
se encontrava estressada quanto à posição que o Brasil deveria to- influência estrangeira, especialmente norte-americana. Ao contrá-
mar ante os movimentos de libertação das colônias portuguesas rio, o renascimento cultural negro deu-se nesses anos sob a prote-
na África. O movimento negro brasileiro, influenciado pelo m o - ção do Estado autoritário e de seus interesses de política exterior.
vimento negro internacial, principalmente a negritude, enfatiza- Ademais, a guinada do m o v i m e n t o negro brasileiro em direção à
va as suas raízes africanas, o que gerava a reação de intelectuais negritude e às origens africanas data dos anos 1 9 6 0 e foi, ela mes-
c o m o Gilberto Freyre ( 1 9 6 1 , 1 9 6 2 ) , em sua cruzada pelos valoies ma, responsável pela geração das tensões políticas surgidas em
da mestiçagem e do luso-tropicalismo. A discussão sobre o caráter torno do ideal de democracia racial. D o mesmo modo, as idéias
da "democracia racial" no Brasil — o u seja, se se tratava de rea- e o nome de "democracia racial" longe de serem o logro forjado
lidade cultural (como queriam Freyre c o estdbüshnient conserva- pelas classes dominantes brancas, c o m o querem hoje alguns a:i-
dor) ou de ideal político (como queriam os progressistas L- o movi- vistas e sociólogos, foi durante muito tempo uma forma de inte-
mento negroi — acaba levando à radicalização das duas posições. gração pactuada da militância negra.
A acusação de que "democracia r a c i a l " brasileira não passava de
Em resumo, "democracia racial" foi, a princípio, uma tradu-
"mistificação", "logro" e "mito" toma então conta do movimento,
ção livre de Bastide das idéias expressas por Freyre em suas con-
à medida que a participação política se torna cada vez mais res-
ferências na Universidade da Bahia e de Indiana, em 1943 e 1 9 4 4 ,
trita, excluindo a esquerda e os dissidentes culturais. A partir de
respectivamente. Idéias essas caudatárias, elas próprias, das refle-
1 9 6 8 , os principais líderes negros brasileiros vão para o exílio.
xões de Freyre sobre a " d e m o c r a c i a social" luso-brasileira. Nes-
Tabela 1 O Q U E S Ã O OS INSULTOS R A C I A I S ?
Q U E I X A S PRESTADAS DE D I S C R I M I N A Ç Ã O ,
S E G U N D O O Â M B I T O DAS RELAÇÕES SOCIAIS C h a r l e s Flynn (1 977: 3) define o insulto c o m o "um ato, ob-
O N D E O C O R R E U E O REGISTRO D E I N S U L T O S servação ou gesto que expressa uma opinião bastante negativa de
uma pessoa ou grupo". Tratarei aqui apenas das ofensas verbais.
Com Sem
O m e s m o Flynn ( 1 9 7 7 : 6) propõe " e x a m i n a r a natureza das su-
Âmbito das i ns u Ito insulto Total %
relações sociais (A) (C) coluna (A/C
posições c o m u n s e obvias concernentes à realidade social, parti-
(Ii)_
10 22 24% 54"-
lhada por m e m b r o s de sistemas socioculturais específicos, e de-
Consumo 12
Vizinhança 18 1 19 21% o
95 - m o n s t r a r c o m o os insultos, numa grande v a r i e d a d e de culturas,
No trânsito 4 1 5 6% o
80 - consiste principalmente em violações de n o r m a s muito signifi-
Nas ruas •)
0 2 2% 100°- c a n t e s , m a s substancialmente implícitas". M a i s que uma opinião
2 / <-''' 91'!
Trabalho 29 3 32 JO /O
negativa, portanto, o insulto, significa o r o m p i m e n t o de uma nor-
Negócios 3 0 3 3% 100°/
ma s o c i a l . P a r a Edmund Leach ( 1 9 7 9 ) , o insulto significa a vio-
Família 6 0 6 7% 100°
1 1 1% o°-
lação de um tabu, ou seja, consiste na e x p r e s s ã o de nomes, atos
Outro 0
ou gestos socialmente interditos, que g e r a l m e n t e referem os mui-
Total 74 90 100%
to p r ó x i m o s ou muito longínquos de si (sejam pessoas, animais,
% linha 82% 18 'o 100%
ou fatos c o r p ó r e o s ) .
Fonte primária: Delegacia de Crimes llaciais de São Paulo, 1" de maio de 199
a 30 de abril de 1 9 9 8 . A função ou a intenção do insulto poden variar, mas estão
sempre ligadas a uma relação de poder. Flynn ista algumas fun-
ções: a) legitimação e reprodução de uma orde n moral; hj legiti-
Nesse a n o , em 74 das noventa queixas prestadas na delega- m a ç ã o de hierarquia entre grupos sociais; c) legitimação de hie-
cia, ou seja, em 8 2 % dos casos, as vítimas fizeram registrar, tam- rarquias no interior de grupos; d) socialização de indivíduos. Fs-
bém, os insultos verbais sofridos. O grande número de insultos sas duas últimas funções, entretanto, c o r r e s p o n d e m melhor ao que
registrados era de se esperar, dado que 7 6 % das q u e i x a s regis- se c h a m a , na literatura especializada, de "insultos rituais", ou seja,
tradas foram de ataques à honra pessoal. No entanto, os insultos c o n t e n d a s verbais cm que insultos são t r o c a d o s de modo regula-
aparecem na m a i o r i a das queixas relativas à d i s c r i m i n a ç ã o nas do, p o n d o em evidência o domínio verbal e o c o n t r o l e emocional
deveria estar aqui; q u a l q u e r um poderia estar aqui, menos você". te, além de atribuir sujeira ("filhas de uma barata preta, v a g a b u n -
1 0 1
Nos dados que analisei, a forma sintética é minoritária. Acon- da"). A c o n d i ç ã o de quase-humanidade pode ser referida t a m -
tece apenas em dez dos 7 8 insultos registrados ( 1 3 % ) . Na maioria bém por qualidades intelectuais negativas, tais c o m o " b u r r o " ,
desses casos, a proximidade social entre as partes exige que se re- "imbecil" e " i d i o t a " . Registrou-se, ainda, o termo " í n d i o " , para
pita o ritual de afastamento, através de insultos qualificados, in- referir-se à c o n d i ç ã o de sociabilidade incompleta, selvagem.
sultos que procuraram a s s o c i a r a cor do agredido com uma outra A anomia social é referida de três maneiras. P r i m e i r o , atra-
dimensão do estigma. vés de termos ou qualidades ligadas à delinqüência: " l a d r ã o " , "fol-
Tais insultos, o b v i a m e n t e , requerem uma reiteração dos ter- gado", " s a f a d o " , "sem-vergonha", "aproveitador'', "pilantra";
mos ofensivos sintéticos pelo qual o grupo é reconhecido, fazendo " m a c o n h e i r o " , " t r a f i c a n t e " ; segundo, através de termos referen-
10
com que, em 78 ofensas registradas, a palavra "'negro" e seus deri- tes à moral sexual: "vagabunda", "bastardo", " f i l h o - d a - p u t a " - ,
vados (feminino, diminutivo e corruptelas) fossem citados 5 5 vezes, "prostituta", g i g o l ô " , " s a p a t ã o " , "homossexual", " m a n a - h o -
e "preto" o fosse 33 vezes. Eis um exemplo de reiteração, quase his- mem"; terceiro, por estigmatização religiosa, através de t e r m o s
térica, que tem a finalidade de associar o nome grupai a qualidades como " m a c u m b a " e "macumbeira".
desprezíveis: "Preto safado, sangue de preto, negro sem vergonha, O estigma da sujeira é reforçado por termos como: " fedida",
preto vagabundo, v o c ê n ã o presta porque tem sangue de preto". "merda", "podre", "fedorenta", "porqueira", "nojento" e "suja".
A animalidade, q u a n d o se trata de insulto propriamente ra- A pobreza e a condição social inferior é referida por pala-
cial, é atribuída principalmente através de termos como " m a c a c o " vras como "favelada", "maloqueira", "desclassificado" e "analfa-
e "urubu", usados indistintamente para ambos os sexos. N o pri- beto". D e fato, os estigmas preferidos de inferioridade social s ã o
meiro caso, o animal, além de selvagem, é considerado pela zoo- o local e tipo de moradia e o grau de instrução formal. A d e m a i s ,
logia como o mais p r ó x i m o do ser humano, devendo, portanto, se- uma estratégia lingüística freqüente é o uso de diminutivos, c o m o
guindo as idéias de L e a c h , ser objeto de distanciamento ritual mui- "negrinho" ou " n e g r i n h a " , para referir-se aos insultados. M a s ,
to rigoroso; no segundo c a s o , trata-se de um abutre que tem por faz-se t a m b é m referência direta à "classe" ("não falo c o m gente
hábito devorar cadáveres de outros animais, inclusive humanos. de sua classe") ou à situação de escravidão ("lugar de n e g r o é na
''" Nesse contexto, "barata" tem mais de um sentido: aiém cie reterii-
se à sujeira, relere-se também à genitália feminina.
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'"" Os seres humanos, em gerai, têm a sexualidade eferida a animais. interessante que, nas culturas latinas, seja a relação de rebaixamento
social (filho-da-puta), e não um animal doméstico c íntimo Hon-of-a-bitch)
A recorrência à animalização sempre está ligada a atribuição de estigma ou
ou o incesto materno (tnotberfucker) que expresse a maior vergonha masculi-
à formação de um carisma (reivindicação de qualidades excepcionais). So-
na com respeito a sua mãe, e portanto, o insulto sexual mais forte. Ver, a res-
bre a relação entre sexo e a n i m a i s , diz Leach (1979: 2 1 2 . tradução minha):
peito, Prestou e Stanley ( 1 9 8 7 ) .
" E uma hipótese plausível que o modo como os animais são categorizados
macumbeiro
Ins ultado M M H H Total %
despacho
Insulrador M H M H
Í de frango - 1 0,58
T e r m o s insultuosos
Condição social 3 11 6,40
Sintéticos 26 - 15 9 16 66 38,37 1 3 1,74
senzala
negro ia 4 5 7 29 16,86 - 1,16
favelado
preto 5 7 3 8 23 Í3,37
maloqueiro - 2 1,16
nego 4 3 i - 8 4,65 1 0,58
analfabeto 1
negrinho 1 - 1 4 2.33 1 1 0.58
desclassificado
negrona 1 - - - 1 0,58 - 1 0,58
metido
neguinha 1 - - - 1 0,58 0,58
besta - 1
Animalização 9 2 2 3 16 9,30 Sujeira 1 11 6,40
macaco 7 2 2 3 14 S,14 fedido - 1,74
urubu 2 - - - 2 1,16
merda - 1,16
Incivilídade 1 - - - 1 0,58 sujo - 1,16
índ io 1 - - - 1 0,58 barata - 1 0,58
Anomia 25 7 10 13 55 31,98 fedorento - ] 0,58
vagabunda 6 3 - 9 5,23 podre - 1 0,58
filho-da-puta 1 1 1 4 7 4.0" porqueira 1 1 0,58
vaca 2 - - - 2 1,16 Natureza 2 5 2,91
cadela - 1 - - 1 0,58 raça 1 1,74
caralho - - 1 1 0,58 desgraça 1 1 0,58
D '—
x >° i• i
OJ ^
gaiinha i - - - 1 0.5 S maldita - i 0,58
gigolõ - - 1 1 0,58 7 4,07
Defeitos 2
I
•§ ~ homossexual - 1 - 0,5 S 0,58
queimado - 1
bastardo 0.58 - :i 0,58
escíerosado
maria-homem - 1 0.58 0,58
canceroso - 1
sapatão - - 0,58
imbecil 1 i 0,58
scort girl 1 M.58
burro - 1 0,58'
safado 1 .í 3 7 4,07 1 1 2 1,16
idiota
ladrão 2 - 1 2 5 i:> i
Total geral 78 33 21 40 172 100,00
sem-vergonha 1 - ~>
- 3 5.74
45,34 19,19 12,21 23,26 100,00
V ~^ folgado - - 2 2 1,16
23 ^~ aproveitador 1 - ! 0.58 Fonte primária: Delegacia de Crimes Raciais de Sao Paulo, i" de m a i o
pilantra 1 - - - 1 0.58 de 1997 a 30 de abril de 1 9 9 8 .
M = Mulher, H = H o m e m .
Delinqüência e Moral
padrões de sociabilidade inter-racial é notório que a classe b a i x a
Higiene:
defeitos morais: sexual: fedida
branca carrega um folclore de concepções estereotipadas do ne-
aproveitador bastardo fedorenta gro. Contudo, tais estereótipos s ã - com freqüência verbalizados
folgado fiiho-da-puta merda em contextos amistosos, e as situações raramente evoluem para
incompetente gigolô nojento o conflito interpessoal e para a violência, a menos que a i n t e n ç ã o
ladrão homossexual podre
ofensiva esteja claramente p r e s e n t - O r a , assim como nas situa-
maconheiro maria-homem porqueira
pilantra
ções de insulto ritual, os termos njuriosos podem ser emprega-
sapatão suja
safado scort girl dos para simbolizar uma situação iposta a o seu significado cor-
sem-vergonha vagabunda rente. Isso acontece q u a n d o são tr ados entre pessoas muito pró-
traficante ximas, amigas, para simbolizar ju- tamente a ausência de forma-
lidade entre elas, ou seja o grau de intimidade e de confiança mú-
tuas. Seu emprego é n o t a d o principalmente entre m e m b r o s de
grupos estigmatizados, quando os epítetos mais insultuosos, nor-
malmente dirigidos a tais grupos por seus detratores, são empre-
C o m o era de se esperar, essas situações de ambigüidade ou la nega besta está bem grandinha pra assumir as coisas
de expressão de intimidade nao aparecem nas queixas prestadas que assina, aquela esclerosada'. E a vítima, na mesma
em delegacias. D e a c o r d o com os dados de que disponho, o in- data, r e c e b e u uma ligação do advogado da imobiliária
o
sulto racial aparece nas seguintes situações. ( 2 indiciado), cobrando tal débito, que, segundo a víti-
Primeiro, q u a n d o a relação entre as pessoas envolvidas está ma, foi fiadora de um imóvel involuntariamente, ou se-
tensa e bastante desgastada por algum motivo, seja de convivên- ja, c i t a d a c o m o fiadora sem seu conhecimento, e c o m o
cia vicmal ou familiar, seja de ordem contratual ou de qualquer disse a o referido advogado que nada devia à i m o b i l i á -
outra. O fato é que, a partir cie um determinado m o m e n t o , uma ria, este ofendeu-a dizendo: 'por causa de uma merre-
das partes resolve utilizar o insulto como modo de, sistematica- ca, v o c ê e seu advogado vão se foder, sua nega b e s t a " ' .
Algumas estatísticas ajudarão a esclarecer esse ponto. Das mulheres que se q u e i x a m de insultos. Ou seja, os insultos às mu-
74 queixas em que foram registradas injúrias, 2 9 ( 3 9 % ) se refe- lheres são mais que proporcionais à razão entre homens e mulheres
rem a insultos proferidos, no ambiente de trabalho, por clientes, queixosos. M a s , t a m b é m , os insultos são principalmente desferi-
colegas, superiores ou subordinados; 18 insultos ( 2 4 % ) foram dos por mulheres c o n t r a mulheres ( 3 6 , 8 % ) e por h o m e n s c o n t r a
proferidos por vizinhos; 1 2 ( 1 6 % ) insultos foram sofridos por homens ( 2 9 , 9 % ) , a i n d a que nos insultos entre-sexos, sejam o s
negros, na condição de consumidores, inquilinos ou usuários; os homens que o f e n d a m duas vezes mais as mulheres ( 2 3 , 0 % ) que
demais insultos o c o r r e r a m em situação familiar (6), na rua ( 2 ) , o inverso ( 1 0 , 3 % ) . Isso, contudo, não explica a q u a n t i d a d e de
no trânsito (4) ou em decorrência de realização de negócios (.3). insultos à c o n d u t a m o r a l ou sexual das vítimas, pois s ã o as mu-
Ou seja, as queixas de insulto ocorrem com mais freqüência em lheres, e não os h o m e n s , que abusam de referências d e s a b o n a d o -
âmbitos em que as relações sociais são mais intensas e também ras à moral sexual das vítimas. De faro, 3 9 % das injúrias profe-
mais formalizadas; em que, portanto, o insulto é mais contundente. ridas por mulheres c o n t r a mulheres c 4 0 % das dirigidas por elas
contra homens referiam-se à morai sexual; enquanto, entre os h o -
Das noventa queixas prestadas, quatro referiam-se a mino-
mens, apenas 1 2 % assacaram contra a honra sexual das mulhe-
rias étnicas (dois nordestinos, um peruano e uma judia) e, nestas,
res negras e nenhum ofendeu a moral sexual de outro h o m e m , pre-
se registraram injúrias, proferidas em situação de consumo, tra-
ferindo fazê-lo, em 21 % dos casos, em relação à m ã e dos mes-
balho ou negócio. N o c a s o dos nordestinos, as injúrias aludiam
mos (Tabela 3 ) .
a seu deslocamento geográfico, isto é, ao fato de serem de outro
lugar: 1) "Esses nordestinos desgraçados, vem pra cá querer man-
dar; sua vaca e t c . " ou " v o c ê tem complexo de inferioridade por Tabela 3
ter nascido naquela terrinha de Arapiraca... porque você nasceu I N S U L T A D O S E INSULTANTES
na puta que pariu". N o c a s o do peruano, é também sua condi- POR GÊNERO
Cor do -
Co- declarada do msultante Total
fosse separada, e por norma do Clube o averiguado fora
insultado Ignorada Branca Morena Parda informado que não poderia ter esse pedido a c e i t o , pas-
194 Classes, raças e demex r.wia O mito anverso: o insulto racial 195