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" D e m o c r a c i a r a c i a l " f o i , a princípio, uma t r a d u ç ã o livre

cias idéias expressas p o r G i l b e r t o Freyre em suas c o n f e r ê n c i a s


na Universidade da B a h i a e d e Indiana, em 1 9 4 3 e 1 9 4 4 . N e s s a
" t r a d u ç ã o " , R o g e r B a s t i d e o m i t e o sentido " i b é r i c o " , restrito,
q u e Freyre atribuía à e x p r e s s ã o " d e m o c r a c i a social e é t n i c a " ;
realçando-lhe o c a r á t e r u n i v e r s a l i s t a de " c o n t r i b u i ç ã o brasi-
leira à h u m a n i d a d e " . A s s i m t r a n s p o s t a para o universo indi-
vidualista ocidental, a " d e m o c r a c i a r a c i a l " t o m o u n o v o fôle-
g o , fazendo c o m que, c o m o t e m p o , ganhasse a c o n o t a ç ã o de
ideal de igualdade e d e r e s p e i t o a o s direitos civis. S ó d e p o i s
de 1 9 6 4 , " d e m o c r a c i a r a c i a l " v o l t o u a significar, apenas e e x -
c l u s i v a m e n t e , m e s t i ç a g e m e m i s t u r a étnico-cultural. T o r n o u -
se, assim, para a m i l i t â n c i a n e g r a e para intelectuais c o m o
l l o r e s t a n Fernandes, a s e n h a d o r a c i s m o à brasileira, um m i t o
racial. Recentemente, p a r a o s antropólogos, o mito transfor-
m a - s e em chave i n t e r p r e t a t i v a d a cultura.

A d e m o c r a c i a r a c i a l — c u n h a d a originalmente, e m ple-
na ditadura varguista, p a r a n o s inserir no mundo dos v a l o r e s
p o l í t i c o s universais — p r e c i s a a g o r a ser substituída pela de-
m o c r a c i a tout court, q u e i n c l u i a t o d o s sem m e n ç ã o a r a ç a s ,
h s t a s , que n ã o e x i s t e m , c a r r e g a d a s de negatividade, f a r í a m o s
m e l h o r se as a p a g á s s e m o s d o n o s s o ideal de c o n v i v ê n c i a , re-
servando-as apenas p a r a d e n u n c i a r o racismo.

Antônio Sérgio Alfredo Liiumarars

FUSP

i-undação de A p o i o à Universidade de São Paulo

Apoio:
F u n d a ç ã o Ford
".-732b-S3E-X

73 2 6 2 3 22 G CÍI tO r*â.^lA..3 4"


FUSP
F u n d a ç ã o de A p o i o à Universidade de São Paulo

Antônio Sérgio
Alfredo Guimarães

CLASSES, RAÇAS
E DEMOCRACIA

A p o i o : Fundação Ford

editoraB34
E D I T O R A 34 CLASSES, RAÇAS

E d i t o r a 3 4 Ltda. E DEMOCRACIA
R u a H u n g r i a , 5 9 2 Jardim Europa C E P 0 1 4 5 5 - 0 0 0
S ã o P a u l o - SP Brasil Tel/Fax ( 1 1 ) 3 8 1 6 - 6 7 7 7 www.cditora34.com.br
Agradecimentos '
F U S P - F u n d a ç ã o de Apoio à Universidade de S ã o P a u l o Apresentação 9
A v . A f r â n i o Peixoto, 14 Butantã C E P 0 5 5 0 7 - 0 0 0
1. Classes sociais • 13
S ã o P a u l o - SP Brasil Tel/Fax ( 1 1 ) 3 8 1 5 - 0 8 0 0 fusp@edu.usp.br
O grande consenso dos anos 1 9 6 0 :
A p o i o : F u n d a ç ã o Ford
industrialização e modernidade 15
O Estado e os empresários c o m o agentes sociais 16
Os estudos sobre a formação da
C o p y r i g h t © Editora 3 4 Ltda., 2 0 0 2 classe trabalhadora brasileira 20
Classes, raças e democracia © Antônio Sérgio A l f r e d o Guimarães, 2 0 0 2 Os estudos sobre as classes médias 30
Os estudos sobre o campesinato e o proletariado rural 32
A F O T O C Ó P I A D E Q U A I Q U E R TOLHA DESTK L I V R O É I L E G A L , 1- C O N F I G U R A UMA J
Novos estudos de classe 5
A P R O P R I A Ç Ã O I N D E V I D A DOS D I R E I T O S I N T E L E C T U A I S E P A T R I M O N I A I S DO A U T O R .
CLv.se como "condição" e "identidade" 38
Conclusões 42

C a p a , p r o j e t o gráfico e editoração eletrônica: 2. R a ç a e pobreza no Brasil 47


Bracher & Malta Produção Grafica Rediscutindo o conceito de raça 48

Revisão: Os limites do racialismo negro 61

Adriennc de Oliveira firmo As causas da pobreza negra no Brasil: algumas reflexões 64


As críticas às ações afirmativas 70
Conclusões , 75

V E d i ç ã o - 2 0 0 2 ( D Reimpressão - 2 0 0 6 ) 3. Política de integração e política de identidade 79


O \oto negro e a ciência política 80
0 conformismo negro 85
C a t a l o g a ç ã o na Fonte do Departamento N a c i o n a l d o Livro 01 movimentos negros 8/
( F u n d a ç ã o Biblioteca Nacional, R J , Brasil) A cinâmica do movimento negro 90
O .milombismo o u a influência de
C u i m a r ã c s , A m o r n o Sérgio Alfredo
t , , 6 c
Abdias do Nascimento nos anos 1 9 8 0 99
- ' Cl.is.ses. r a ç a s e d e m o c r a c i a / A m o n i o S é r g i o
A l f r e d o O u i m n r ã e s . — S ã o Paulo: F u n d a ç ã o d c A p o i o Os limites da cooptação 10->
a U n i v e r s i d a d e J e S ã o P a u l o ; F.d. 3 4 2 0 1 ) 2
232 p.
4 . Direitos e avessos da nacionalidade 109
ISBN 85-7J26-2J2-X A Matriz francesa: memória e não raças 110
1. R a c i s m o - Brasil. 2. C l a s s e s s o c i a i s - B r a s i l . A matriz americana: o encontro do paraíso 113
3 . B r a s i l - R e l a ç õ e s r a c i a i s . [. F u n d a ç ã o de A p o i o n O Brasil moderno: uma democracia racial 117
U n i v e r s i d a d e d e S ã o P a u l o . 11. T í t u l o .
Unia nova identidade nacional brasileira? 122
CDD - 305.80981 Os avessos do mito: o preconceito contra os baianos 125
5. Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 13 /
AGRADECIMENTOS
A idéia de um paraíso racial 139
O "Itinerário da d e m o c r a c i a " de Roger Bastide 141
O consenso racial-democrático 144
A "democracia social e étnica" e a
denúncia do " m i t o da democracia racial" 149
O novo protesto negro e o "mito da democracia racial" 157
A democracia racial enquanto mito 163
Conclusões 166

6. O mito anverso: o insulto racial 169


0 que são os insultos raciais? ! • 1
Os capítulos que compõem este livro resultam de projetos
Os termos injuriosos encontrados 1 /3 de pesquisa realizados com o apoio financeiro de diversas insti-
As situações de insulto i 1 S1 tuições e agências de fomento. Entre elas: a F u n d a ç ã o F o r d , atra-
Insultados e insultantes I 86 vés da d o t a ç ã o n° 0 9 8 0 - 1 8 1 4 ; a A N P O C S (Associação N a c i o n a l
Os insultos proferidos em situação de trabalho 189
de P ó s - G r a d u a ç ã o em Ciências Sociais), e a C A P E S , através do
Os insultos dos vizinhos 191
projeto " O que ler na ciência social brasileira"; o C N P q , através
Os insultos a consumidores 192
O insulto no trânsito e em outros âmbitos 193
de uma bolsa de produtividade de pesquisa; a F A P E S P , através
Conclusões 1^4 da c o n c e s s ã o de uma bolsa pesquisa no exterior, entre d e z e m b r o
de 1 9 9 9 e fevereiro de 200(3.
Bibliografia 197 D e n t r e as instituições que apoiaram tais projetos e s t ã o o
D e p a r t a m e n t o de Sociologia da USP, através de Líseas N e g r ã o e
Sedi H i r a n o , e Centre des Recherches sur le Brésil C o n t e m p o r a i n ,
da École des H a u t e s Étttdes en Sciences Sociaíes, através de Afrâ-
nio G a r c i a .
N a d y a A r a ú j o Guimarães reve paciência para rever o s ori-
ginais do livro, sugerindo melhorias no estilo e na a r g u m e n t a ç ã o .
M á r c i o M a c e d o , Elávia Mateus Rios, Rita Hipé)lito e Uvanderson
Vitor da Silva, meus assistentes de pesquisa, ajudaram na c o l e t a
de material e na organização da bibliografia. O s meus agradeci-
mentos às o u t r a s pessoas que discutiram versões anteriores dos
textos que c o m p õ e m este livro esrão expressos em cada um dos
capítulos. N e s t e s encontra-se também a referência bibliográfica
da versão publicada em revista acadêmica ou apresentada em c o n -
gresso científico.

Agradecimentos 7
APRESENTAÇÃO.. _

Este livro reúne arrigos escriros por mim entre 1 9 9 9 e 2 0 0 1 .


O que os une são duas indagações que me têm sido constantemente
repetidas: primeira, qual a relação entre classes e " r a ç a s " e, se-
gunda, o que significa, afinal, democracia racial?
A idéia de que a discriminação e o preconceito de que so-
frem os negros no Brasil, assim como as desigualdades sociais entre
brancos e negros, têm um fundamento de "classe" é uma idéia que
persiste apesar de todas as tentativas feitas anteriormente, por m i m
ou por outros, para demonstrar o seu caráter racial. D o m e s m o
modo, a idéia de que a democracia racial é, ao fim e ao c a b o , uma
doutrina satisfatória ou, pelo menos, fundadora de um possível
futuro de relações não-racistas entre os grupos de cor parece re-
sistente à denúncia do " m i t o da democracia racial". N o s capítu-
los que seguem, tento desvendar a permanência dessas concepções
(que poderia c h a m a r t a m b é m de ilusões).
N o capítulo inicial deste livro, resenho a trajetória acadêmica
do conceito de "classes sociais" na sociologia brasileira. O c o n -
ceito de "ciasse", c o m o sabemos, ganhou universalidade e difu-
são através dos escritos de M a r x e dos marxistas. Para demons-
trar que a sociedade capitalista moderna, a sociedade burguesa,
devia sua dinâmica e seu desenvolvimento à exploração dos Tra-
balhadores, M a r x ( 1 9 6 7 ) , subtraiu de sua análise da r e l a ç ã o
social de trabalho no capúalismo todas as formas de coerção n ã o -
econômicas que pudessem conspurcar essa relação (o gênero, a
ernia, a idade, a r a ç a , a religião, a nacionalidade e t c ) . Sua inten-
ção era encontrar e a n a l i s a r a relação de exploração entre capital

Apresentação 9
e t r a b a l h o que fosse tipicamente capitalista. O a r g u m e n t o políti- vro anterior (Guimarães, 1 9 9 9 ) , enriquecendo.-o.com o diálogo e
co erroneamenre derivado dessa análise em a b s t r a t o , que muito debate profícuos que estabeleci c o m alguns dos meus críticos.
deve a o evolucionismo do século X I X , foi o de q u e as classes so- N o capítulo terceiro, busco reinterpretar o intervalo demo-
ciais capitalistas se formam prescindindo de q u a l q u e r uma daque- crático entre 1 9 4 5 e 1 9 6 4 c o m o compromisso político, a um só
las formas de sociabilidade, consideradas a partir daí como for- tempo racial e de classes. Ou seja, nesse capítulo avanço a tese de
mas a r c a i c a s , a serem superadas pelo próprio r e g i m e capitalista. q u e a democracia racial brasileira n ã o foi a p e n a s doutrina de
O r a , o conceito de classes sociais capitalistas n a d a mais é que convivência pacífica enrre as raças ou ideologia de dominação
um recurso analítico para referir-se a esse tipo de exploração, que, racial, ou mesmo mito fundador da nacionalidade brasileira: foi
na prática social e no mundo real, aparece s e m p r e misturado a t a m b é m , e principalmente, um pacto e c o n ô m i c o e político que
hierarquias de gênero, de raça, etnia ou outra f o r m a qualquer de uniu a massa negra urbana (formada principalmente por traba-
construção de outsiders (Elias e Scotson, 1 9 9 4 ) . O problema teóri- lhadores) e os intelectuais negros a o establisbment (elites políti-
co deve ser colocado como de exploração ou a p r o p r i a ç ã o díferen- c a s , intelectuais e econômicas) do Estado desenvolvímentista.
cial de recursos. Assim, rautologicamente e p o r definição, não se N o quarto capítulo, trato diretamente da formação do ima-
pode escapar do fato de que as desigualdades raciais n o capitalismo ginário nacional do Brasil m o d e r n o e das mudanças que podem
sejam t a m b é m desigualdades de classe (afinal trata-se de apropria- ser observadas recentemente na nossa " d e m o c r a c i a racial", mais
ção diferencial). D o mesmo modo, os preconceitos de cor ou de especificamente das fissuras que e x p õ e , nesse c o m e ç o de século,
raça só têm sentido se resultarem em posições de classe, distinguin- o nosso sentimento de nacionalidade. Nesse capítulo, invisto na
do brancos de negros, no caso específico de que e s t a m o s tratando. temporalidade e historícídade desse senrimento, abordando algu-
O fato de que tais preconceitos e desigualdades persistam no in- m a s tensões recentes que aparecem no nosso trato com os indí-
terior de uma mesma classe é o modo lógico mais c l a r o de demons- genas e os negros. N o final, traro dos i m i g r a n t e s nordestinos.
trar a a t u a ç ã o de componente tipicamente " r a c i a l " n a geração des- Investigo a origem de sua discriminação, algo que antecede a gran-
sas desigualdades. Ou seja, a constante recriação de raças, gêneros de imigração para o Sudeste, nos anos 1 9 5 0 . M e u argumento é
e etnias c o n t i n u a sendo um dos meios mais eficientes de gerar ex- que o preconceito contra os " b a i a n o s " e "nordesrinos" teceu-se
ploração e c o n ô m i c a e tal "tecnologia" longe de ser suplantada no n o século X X — após a primeira leva de m o d e r n i z a ç ã o em finais
capitalismo tardio, tem sido constantemente reatualizada. dos oitocentos —, a partir da substituição da herança cultural luso-
N o primeiro capítulo deste livro, portanto, m e dedico a re- brasileira e colonial pela modernidade e u r o p é i a , estigmatizando
senhar boa parte da literatura sociológica brasileira para desco- a tudo e a todos que remetiam àquele passado. O Nordeste, par-
brir a trajetória do conceito de "classe" entre n ó s . M e u objetivo, ticularmente a Bahia, e nordestinos p a s s a r a m a ser associados a o
mais que contextualizar, é alargar a concepção de "classes" para atraso, ao arcaico, ao avesso do trabalho livre e voluntarioso. Essa
usá-la n ã o apenas como categoria analítica, m a s c o m o grupo de forma de estigmatizar os outros pelo que a eles atribuímos de
pertença. Isso para sugerir que, seguindo a i n t u i ç ã o nativa, no antimoderno e não-europeu parece ser u m a constanre no nosso
Brasil, os " n e g r o s " formam uma "classe". m o d o de ser, alimentando os estigmas que cultivamos também em
N o segundo capítulo, ao contrário, v o l t o - m e para esclare- relação a outros grupos étnicos, sociais e nacionais.
cer c o m o a palavra "raça" pode e deve ser e m p r e g a d a como con- N o quinto capítulo, e x a m i n o a c o n s t r u ç ã o e vulgarização da
ceito a n a l í t i c o . Nesse capítulo, retomo os a r g u m e n t o s do meu li- idéia de democracia racial, assim c o m o s u a aparente dissolução

10 Classes, r a ç a s e democracia Apresentação 11


atual. Nele procuro r e s t i t u i r à expressão "democracia r a c i a l " os._ 1.
seus significados históricos, datando os diversos contextos em que CLASSES S O C I A I S 1

tal concepção vigeu.


No último e s e x t o c a p í t u l o , retomo a análise empírica do
racismo à brasileira, t o m a n d o c o m o objeto os insultos raciais. Esse
texto tem a mesma e x t r a ç ã o temporal e documental dos capítu-
los reunidos em um livro anterior meu (Guimarães, 1 9 9 8 ) . T r a -
ta-se de um b a n c o de d a d o s sobre queixas de discriminação ra-
cial registradas na D e l e g a c i a de Crimes Raciais de São Paulo.
C e n t r a l para os estudos de estrutura, organização e estratifi-
c a ç ã o s o c i a l , o conceito de "classes sociais" emerge com a nascen-
te academia brasileira. Em 1942, Donald Pierson caracteriza o Brasil
c o m o u m a "sociedade multirracial de classes" ou de grupos sociais
abertos — a o contrário de sociedade de castas, que s ã o g r u p o s
fechados, o u de "estados", grupos mais comunais que s o c i e t á r i o s
(Pierson, 1 9 4 2 , 1 9 4 5 ) . Estas distinções, introduzidas por T õ n n i e s
( 1 9 6 6 ) e W e b e r ( 1 9 6 8 ) , foram posteriormente reelaboradas pela
sociologia americana e popularizadas em manuais de s o c i o l o g i a .
N o s a n o s 1 9 4 0 , a revista Sociologia, editada pela E s c o l a de
Sociologia e Política de São Paulo, serviu de veículo p a r a o pri-
meiro d e b a t e teórico sobre classes sociais, na nascente s o c i o l o g i a
brasileira (Pierson, 1 9 4 5 , 1 9 4 8 ; ' P i n t o , 1 9 4 6 ; F e r n a n d e s , 1 9 4 8 ;
Willems, 1 9 4 8 ) .
De m o d o geral, o debate opôs, de um lado, aqueles que, c o -
mo Pierson e Willems, viam as "classes" c o m o meros estratos so-
2
ciais, d o t a d o s de consciência e sociabilidade p r ó p r i a s e, de ou-
tro lado, a q u e l e s que, como Pinto e Fernandes, viam as classes

1
Este capítulo é uma versão ampliada do capítulo publicado original-
mente em Sérgio Miceli (org.), O que ler na ciência social brasileira [1970-
1995), vol. II: Sociologia, São Paulo/Brasília, SumaréVANPOCS/CAPES, 1 9 9 9 ,
pp. 1 3 - 5 6 .
2
Seguindo as orientações traçadas nos estudos de Y a n k e e City p o r
Lloyd W a r n e r . Ver Gordon (1963).

12 Classes, raças e democracia Classes sociais 13


como_estruturas sociais, que condicionavam as ações coletivas nas partir do.comportamento e das atitudes...deJtor.es coletivos, re-
sociedades capitalistas. Para os primeiros, o conceito de "classe feridos, direta ou indiretamente, às classes sociais, prescindindo
social" era aplicável a qualquer sociedade humana, sendo simples ou não de atores individuais.
sinônimo para "camada social", distinguindo-se apenas de outros
tipos de estratos pelo grau de mobilidade ou solidariedade que pro-
3
porcionava. Para os segundos, as e c o n o m i a s ocidentais capita- O G R A N D E C O N S E N S O D O S ANOS 1 9 6 0 :
listas teriam se encarregado de destruir as sociedades de castas e INDUSTRIALIZAÇÃO E MODERNIDADE
de estados, anteriormente exisrentes, de tal modo que a socieda-
de de classes passou a condicionar a sociabilidade própria à mo- A sociologia brasileira, em seus primeiros anos, principal-
dernidade e ao capitalismo ocidentais. mente nas décadas de 1 9 3 0 e 1 9 4 0 , era ainda uma sociologia tri-
Em jogo, estavam mais que as concepções de duas tradições butária daquela feita e m C h i c a g o , cuja força se mostrava n o s es-
disciplinares — a antropologia versus a sociologia — ou metodo- tudos de comunidade. L o g o em seguida, a partir dos meados dos
lógicas — os estudos de comunidade versus os estudos histórico- 1 9 5 0 , íormar-se-á um grande consenso teórico, que transforma-
esrruturais. Tratava-se de definir o o b j e t o mesmo da reflexão so- rá o processo de indusrrialização em explanandum onipresente de
ciológica no Brasil. No dizer de F l o r e s t a n , a sociologia tinha " c o - todos os fenômenos s o c i a i s brasileiros. Tal paradigma se c o n -
m o objeto fundamental, o c o n h e c i m e n t o da origem, da estrutura substancia na idéia de t r a n s i ç ã o , seja do tradicional para o m o -
e da dinâmica de sociedades de c l a s s e s " (Fernandes, 1 9 4 8 : 9 3 ) . derno, seja do patrimonial para a ordem social competitiva, seja
N o Brasil, o objeto da sociologia seria, pois, fundamentalmente, do escravismo para o c a p i t a l i s m o , seja do capitalismo mercantil
o desenvolvimento de uma sociedade capitalista entre nós, ou — para o capitalismo industrial.
o que vem dar no mesmo — o desenvolvimento de uma socieda- Nesse contexto t e ó r i c o , serão as classes sociais os principais
de de classes ou, simplesmente, o desenvolvimento. agentes e o seu conceito a principal ferramenta da sociologia. A
O debate entre essas duas formas de compreender e utilizar própria idéia de sociologia passa a ser associada ao conhecimento
o conceiro de classes sociais ( c o m o c o n c e i t o descritivo, por um de uma estrutura (a estrutura social), regida por leis científicas e,
lado, ou como conceiro explicativo, por outro) chega aos anos portanto, racionalmente compreensível, mas totalmente o p a c a a o
1 9 6 0 com o claro predomínio daqueles que consideram a análise entendimento dos indivíduos quaatores sociais. As relações sociais
de classe central para a explicação s o c i o l ó g i c a . A análise de clas- engendradas pelo processo de industrialização serão alçadas, por-
se, enquanto estilo de explicação, se fundamenta no princípio de tanto, à condição de principal objeto da pesquisa sociológica, m a s
que a estrutura social e sua reprodução dependem, fundamental- também — numa petição de princípios evidente — à condição de
mente, da ação das classes. Tal estilo de fazer sociologia consis- explicação mais plausível para os fenômenos mais diversificados.
te, basicamente, em interpretar e e x p l i c a r os fenômenos sociais a Os anos 1 9 6 0 assistiram ao avanço da teoria das classes e à
consolidação da influência d o marxismo, e de todas as formas de

3
explicação estrutural, na Sociologia brasileira. A vontade de de-
Podemos subdividir essa corrente em duas: havia os que prescindi-
senvolvimento e c o n ô m i c o e social passou, cada vez mais, a vin-
am de problematizar as classes e havia os que buscavam, em seus trabalhos
de campo, compreender a organização social através da estratificação em clas- cular-se a uma expectativa de que as classes sociais (fosse o e m -
ses das comunidades estudadas (Cândido, 1 9 4 7 ; Willems, 1 9 4 7 ) . presariado industrial, fosse o operariado nascente, fossem as clas-

14 Classes, raças e democracia Classes sociais 15


5
—ses médias) adquirissem.axonsciência necessária para assumir o inação) de seus suieitos/agentes: o. E s t a d o , a classe operária, o
que se pensava ser seu papel histórico: quer a superação das oli- campesinato, a classe média e a burguesia.
g a r q u i a s agrárias no poder, quer a implantação do socialismo. O papel do Estado no processo de desenvolvimento capita-
Essa problemática será expressa, sob a forma de análise de lista brasileiro foi sempre elemento inesperado para os esquemas
classes, em três movimentos teóricos: teóricos mais rígidos, permanecendo desafiador e instigante para
a) O de uma sociologia e c o n ô m i c a . Trata-se dos estudos de novos esquemas interpretativos. A tal ponto o Estado esteve pre-
desenvolvimento econômico-social que culminam com as análi- sente, no imaginário acadêmico, que Cerqueira e Boschi (Í977:
6
ses de dependência (Fernandes, 1 9 6 8 , 1 9 7 5 ; Cardoso e Faletto, 9) observam:
1969). Nesse caso, as análises macrossociais abandonam o estilo "[...] no caso dos países de desenvolvimento tar-
m e t o d o l ó g i c o individualista das análises anteriores, para enfocar dio, parece-nos que a tentativa de captar a complexi-
a a r t i c u l a ç ã o entre a dinâmica interna de classes, o Estado nacio- dade do processo político subjacente à consolidação do
nal e a ordem capitalista mundial. O objetivo será analisar as capitalismo industrial n ã o se furtou de um certo viés,
possibilidades de transformação do Estado e de aumento do bem- na medida em que, invariavelmente, saiientou-se o pa-
estar social; a ferramenta, a análise de classes. pel determinante do Estado c o m o matriz geradora dos
b) O de uma sociologia política. Principalmente os estudos processos sociais. Embora historicamente esta prepon-
s o b r e parrimonialismo, clientelismo, populismo e, recentemente, derância do Estado c o m o núcleo vital do sistema seja
d e m o c r a c i a . Os autores de tais estudos, ainda tributários da aná- inquestionável, questionável é, isto sim, o pequeno es-
lise de classe, focalizarão as insrituições e o sistema políticos, o paço que as análises conferiram à possibilidade de atua-
E s t a d o e o seu contexto societário. ção autônoma de grupos s o c i a i s " .
c) O dos estudos de formação das classes sociais brasileiras.
Estes se ramificam em cinco: de formação do empresariado nacio- A princípio, para dar conta da importância do Estado, desen-
nal; de formação de burocracias ou elites dirigentes; de formação volveu-se, entre nós, um estilo de análise, às vezes, por demais cul-
de classes médias; de formação da classe operária industrial; e de
f o r m a ç ã o do proletariado rural.
aceleramento da divisão social do trabalho, a dominação crescente do capi-
tal sobre o trabalho, a submissão da economia agrária às necessidades indus-
triais e a imposição ao conjunto da sociedade de critérios capitalistas de
O E S T A D O E OS E M P R E S Á R I O S
'racionalidade'" (Pinheiro, 1 9 7 5 : 1 2 5 ) .
C O M O AGENTES SOCIAIS
5
Sader e Paolí (1986: 5 1 ) assim explicam a percepção do Estado en-
quanto agente: "[...] segundo a versão dominante do imaginário sociológico
A nascente sociologia brasileira se atirou à análise dos agentes
c político dos anos 6 0 , o Estado é que torna a classe dominante apta à sua
4
do p r o c e s s o de industrialização , procurando explicar a ação (ou tarefa histórica quando disciplinou as relações entre as classes sociais".
6
As citações de textos publicados nos 19 primeiros números dos BIB
— Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais —serão feitas de
4
" P o r industrialização, a partir de 1 9 3 0 , não se entende somente o acordo com a paginação dos BIB: O que se Deve Ler em Ciências Sociais no
desenvolvimento das forças produtivas e da mecanização, mas também o Brasil, vols. I, II e III.

16 Classes, raças e democracia Classes sociais 17


turalista, de procura de um etbos. nacional, outras vezes por demais ra, 1 9 7 7 , 1 9 7 8 , 1 9 8 5 ) . Apenas nas análises marxistas mais orto-
estruturalista, no qual as variáveis causais ganhavam, quase sem- doxas, mais próximas do P C B que da academia (Sodré, 1 9 6 8 , 1 9 7 6 ) ,
pre, o estatuto de agentes, substituindo-os'. Este estilo tem raízes, o Estado será teorizado c o m o aparato apropriado por uma classe
sem dúvida, nas análises clássicas de Gilberro Freyre (1969 [1933]), (a oligarquia rural e os setores agro-exportadores, ligados ao c a -
que a b a n d o n o u o determinismo racial e c l i m á t i c o do fim de século, pital estrangeiro) e, portanto, quase como instância epifenomênica.
e m t r o c a do desvendamento de uma matriz cultura! fundadora; de O empresariado nacional mereceu uma atenção especial de
Sérgio Buarque de Holanda ( 1 9 3 6 ) , que inrroduziu a noção depa- nossos analistas, principalmente depois de frustradas as esperan-
8
t r i m o n i a l i s m o entre nós; e de Caio P r a d o J r . ( 1 9 6 5 [1937]), que ças de uma revolução burguesa nacionalista ou mesmo socialis-
teorizou sobre as determinações sistêmicas e as restrições exógenas ta (Martins, 1 9 6 8 ; Faria, 1 9 7 1 ; Cardoso, 1 9 7 2 ; Cerqueira e B o s -
a o n o s s o desenvolvimento nacional. E m c a d a uma dessas matri- chi, 1 9 7 6 ; Guimarães, 1 9 7 7 ; Santos, 1 9 7 7 ; Gomes, 1 9 7 9 ; Boschi,
zes, as classes sociais, qua agentes, estiveram em segundo plano. 1979). Tais análises desmentiram expectativas nutridas pela teo-
T a l tradição de análise teve c o n t i n u i d a d e c o m o clássico de ria das classes enrão vigente, que procurava encontrar, na burgue-
R a y m u n d o Faoro (1958), e levou algum rempo esquecida, sendo sia, o principal ator da revolução burguesa. A conclusão, ao con-
r e t o m a d a , com toda a força, nos anos 1 9 7 0 , por Schwartzman trário, foi a de uma revolução sem ator (Fernandes, 1 9 7 4 ) , e de
( 1 9 7 0 , 1 9 7 3 , 1982). Tanto em F a o r o , q u a n t o em Schwartzman, uma burguesia politicamente inexpressiva. N o dizer de Cerqueira
será a c a m a d a dirigente, os donos do poder, portadora do ethos e Boschi ( 1 9 7 7 : 1 5 ) : " [ . . . ] consolidou-se a idéia deste setor social
patrimonialisra, que dará os rumos à sociedade brasileira. Tal pers- como ator político de pouca relevância, o que de certa forma des-
pecriva, discutida à exaustão em Dados, n° 1 4 , 1 9 7 7 , e criticada locou o foco da a t e n ç ã o , na produção das ciências sociais, para
em seu culturalismo implícito, foi invariavelmente substituída por outros grupos tais c o m o tecnocratas, militares e burocráticos".
c o n c e i t o s mais dialógicos, que capturavam melhor a articulação A tradição dos estudos sobre o empresariado e as elites em-
entre E s t a d o e classes da sociedade civil, tais c o m o os conceitos presariais tem continuidade, nos anos 1 9 8 0 , deixando para trás,
de p o p u l i s m o (Ianm, 1 9 6 3 , 1 9 7 5 , 1 9 8 8 ; C a m a r g o , 1 9 7 4 , 1 9 7 6 ) ; tanto as expectativas normativas sobre o papel político e histórico
de autoritarismo (Martins, 1 9 7 3 ; R e i s , 1 9 7 4 ; Velho, 1976; Car- das classes, como as visões dicotômicas simples, que opunham o
doso, 1 9 7 5 ; Linz, 1975; Stepan, 1 9 7 3 ) e de corporativismo (Erick- Estado controlado por estamento burocrático a outro, controla-
son, 1 9 7 2 ; Malloy, 1976; 0 ' D o n n e ü , 1 9 7 6 ) . do por classe dominante. Assiste-se a um grande desenvolvimento
Concomitantemente, desenvolveram-se algumas perspectivas conceituai (populismo, anéis burocráticos, neocorporativismo
t e ó r i c a s que procuraram teorizar o E s t a d o , enquanto ator, através e t c ) , que reforça a necessidade de novos estudos empíricos. As-
de categorias sociais plenas, tais como a tecnoburocracia (Martins, sim, foi através de pesquisas bastante inovadoras que a ciência
1 9 7 4 ; Pereira, 1978; Suarez, 1986) ou a burguesia de Estado (Perei- política explorou as análises de representação de interesses, de
disputas por recursos de poder, de formação de opinião pública
e de opinião de grupos dirigentes, de formação de elites e de

' Na verdade, o nacionalismo de Estado foi, entre nós, uma forte ideo- lobbies congressuais e t c , ampliando o universo da análise de
logia. V e r , a respeito, Reis (1990). classes. Muito representativos dessa nova postura foram os traba-
s lhos de Cerqueira e Boschi ( 1 9 7 6 , 1 9 7 7 a ) , Dimz e Boschi ( 1 9 9 3 ) ,
Sigo, aqui, a interpretação de Antônio C â n d i d o ( 1 9 9 4 ) , contrária à
de R a y m u n d o Faoro (1993). Dimz ( 1 9 7 8 , 1 9 8 4 , 1 9 8 6 , 1 9 9 2 ) , Boschi ( 1 9 7 9 , 1983), Cheibub

18 Classes, raças e democracia Classes sociais 19


( 1 9 9 5 ) , Reis e Cheibub (1995), Lima e Boschi ( 1 9 9 5 ) , Pereira foi a questão do peso dos imigrantes estrangeiros na
( 1 9 9 4 ) e Minella ( 1 9 8 8 ) . formação da classe operária [antes de 1 9 3 0 ] . Em segui-
da sublinharam-se as conseqüências da imigração rural
na composição da classe operária, ressaltando-se os seus
OS ESTUDOS SOBRE A F O R M A Ç Ã O valores tradicionais, a sua dificuldade em aderir a orga-
D A CLASSE T R A B A L H A D O R A B R A S I L E I R A nizações políticas, seu p r o j e t o de ascensão social" (Pi-
nheiro, 1 9 7 5 : 1 2 3 ) .
N o começo dos 1 9 6 0 , o diagnóstico consensual, nas ciênci-
as sociais, era o de que os anos 1 9 3 0 haviam marcado uma rup- Os anos 1 9 7 0 , já no clima de resistência democrática à dita-
tura n o processo de desenvolvimento brasileiro, c o m o esgotamen- dura, assistem ao ressurgimento dos estudos de formação da classe
to da economia agroexportadora. N o desenvolvimento da nova trabalhadora, agora sob uma nova ótica: trata-se de reavaliar cri-
e c o n o m i a urbano-industrial, novas classes sociais teriam sido ge- ticamente a estrutura sindical brasileira e as relações entre sindi-
radas, que se tornariam, daí em diante, os agentes (ou referentes) calismo e Estado; trata-se de explicar os limites estruturais da ação
principais da mudança social e política: o operariado, as classes transformadora da classe operária no Brasil, e não sua suposta falta
médias urbanas e a burguesia industrial. de consciência política. Quem desencadeia este novo ciclo é, sem
Ainda nos anos 1 9 6 0 , aparecem os primeiros estudos so- dúvida, Weffort ( 1 9 7 2 ) , em seu estudo sobre as greves de 1 9 6 8 ,
ciológicos sobre a classe operária brasileira, principalmente pau- em Osasco e Contagem. Seguindo a trilha de Weffort, floresce uma
lista, que podem ser agrupados em dois temas: o sindicalismo e a grande produção sobre a f o r m a ç ã o da classe trabalhadora no
o r g a n i z a ç ã o operária (Simão, 1 9 6 6 ; R o d r i g u e s , ] . , 1 9 6 8 ; Rodri- Brasil, tanto entre historiadores (Fausto, 1 9 7 4 , 1 9 7 6 ; Pinheiro e
gues, L . , 1 9 6 6 , 1 9 6 8 ) ; as atitudes e os valores da classe operária Hall, 1982; Carone, 1 9 7 4 , 1 9 8 9 ; Hall, 1 9 7 1 , 1 9 8 4 ) , quanto cien-
nascente (Cardoso, 1 9 6 9 [ 1 9 6 1 ] ; T o u r a i n e , 1 9 6 1 ; Lopes, 1 9 6 4 , tistas políticos (Andrade, 1 9 7 4 ; Almeida, 1 9 7 5 , 1 9 7 8 , 1 9 7 8 a ,
1 9 6 7 ; Pereira, 1 9 6 5 ; Rodrigues, L., 1 9 7 0 ) . T o d o s eles estão refe- 1 9 8 1 , 1 9 8 8 ; Moisés, 1 9 7 7 ) e sociólogos (Fíumphrey, 1 9 7 9 , 1 9 8 2 ) .
ridos à problemática maior da industrialização e da transforma- Discutem-se as restrições estruturais, históricas, à ação da
ção da estrutura social no pós-1930; mais especificamente, bus- classe trabalhadora no Brasil, e as condições, objetivas e subjeti-
cam avaliar a ação, a força e o potencial político dos trabalhado- vas, para o surgimento de uma nova classe operária e seu novo
res industriais brasileiros. São, pois, estudos que procuram situar sindicalismo, a partir das condições materiais e políticas dadas pela
e analisar a classe operária qua agente coletivo. Escritos e publi- grande indústria brasileira. I m p o r t a n t e salientar que esses estu-
cados entre o final dos anos 1 9 5 0 e o c o m e ç o dos 1 9 7 0 , o móvel dos já passam a usar ou referir o instrumental conceituai e analí-
político e a perspectiva de análise que os alimentam esgotam-se tico desenvolvido per Antônio G r a m s c i (a teoria da hegemonia)
c o m os golpes dc 1 9 6 4 e 1 9 6 8 , quando fica clara a impossibili- e Poulantzas (a teoria das classes), bastantes debatidos, então, nas
dade de ação coletiva da classe operária no futuro imediato. Na ciências sociais brasileiras.
a v a l i a ç ã o crítica da geração que os sucede, Nesse momento, um segundo debate importante sobre as clas-
" O s ensaios [...] pecaram por uma leitura demais socio- ses sociais, no Brasil, tem lugar nas páginas da revista Estudos Ce-
logizante: preocupou-se mais c o m a estrutura e a com- brap, em especial no seu n° 3 , de janeiro de 1 9 7 3 , dedicado à dis-
posição da classe operária. Aqui o prato de resistência cussão das idéias de Poulantzas. O s frutos m a i s importantes desse

20 Classes, raças € democracia 21


Classes sociais
debate foram a crítica ao excesso de formalismo teórico dos mar-, na qual despontam, como sujeitos da história, os atores coletivos
xistas franceses (Cardoso, 1 9 7 3 ) , o retorno aos termos clássicos (os governos, as classes e os estamentos) que fizeram o Brasil.
de pensar a mudança social c o m o resultado da lutas de classes, e Nos estudos sobre a classe operária, nessa época, havia os
não do embate entre estados-nação, c o m o o pensamento nacional- que, apoiados nas análises de conjuntura, atribuíam o fracasso
desenvolvimentista sugeria (Weffort, 1 9 7 1 ) , e a incorporação das operário, em 1 9 6 4 , à falta de autonomia de suas organizações
categorias de análise althusserianas e gramscianas — frações de diante dos partidos políticos e do Estado (Weffort, 1 9 7 2 , 1 9 7 5 ,
classe, categorias sociais, grupos sociais, sobredeterminações, hege- 1 9 7 8 , 1 9 7 9 ; Moisés, 1 9 7 8 , 1 9 7 9 , 1 9 8 2 ; Andrade, 1974); e aqueles
monia, bloco histórico, consentimento etc. — ao vocabulário socio- 9
que, escudando-se (Vianna, 1 9 7 8 a ) na "crítica à razão dualista",
lógico brasileiro. Sintomaticamente, t a n t o o primeiro balanço crí- proposta por Oliveira ( 1 9 7 2 ) ,
tico da produção brasileira sobre o movimento operário, feito por "[...] sublinha[va]m sobretudo que a ordem corporativa
Pinheiro ( 1 9 7 5 ) , como os ensaios de Weffort ( 1 9 7 2 , 1973,1975, e mais tarde a conservação das instituições corporativas
1 9 7 8 , 1 9 7 9 ) estão calcados na análise gramsciana da hegemonia. sindicais na época liberal corresponderam a uma prá-
Conceitualmente, a teoria das classes, na sociologia brasi- tica intencional para a desmobilização dessa classe,
leira, estivera presa, ate então, a algumas grandes tradições teó- numa intervenção sobre o mercado de trabalho cujos
ricas: a sociologia da USP (nascida da confluência da Escola de fins foram os de viabilizar, peio recurso à violência —
C h i c a g o com a escola de sociologia francesa), a sociologia nacio- institucionalizada ou não — a acumulação primitiva de
nal-desenvolvimentista do ISEB, a ortodoxia marxista, vigente nos capital" (Vianna, 1 9 7 8 : 8 6 ) .
partidos de esquerda, e a sociologia latino-americana, desenvol-
vida na FLACSO, sob a influência de Germani e dos desenvolvi- Francisco de Oliveira produzirá, além de dois ensaios mar-
mentistas da Escolatina e da C E P A L . A novidade dos anos 1 9 7 0 cantes, em termos de interpretação das restrições estruturais às
é o surgimento, no Brasil, do núcleo de pensamento em torno do ações de classe (Oliveira, 1 9 7 2 ; Oliveira e Reichstul, 1 9 7 3 ) , duas
C e b r a p , direcionado para a nova exegese marxista, nos moldes obras primas de análise histórica e conjuntural, respaldadas em
aliás, do que já acontecera na F r a n ç a (Althusser, 1 9 6 5 ; Althusser suas leituras dos textos políticos de M a r x (principalmente O 18
et al, \ 9 6 8 : Poulantzas, 1 9 6 8 ; B a l i b a r , 1 9 7 3 ) e na Itália (Delia Brumário de Luís Bonaparte): refiro-me ao seu Elegia para uma
V o l p e , 1 9 6 9 ; Colletti, 1 9 6 9 , 1 9 7 3 ) . N o m e s decisivos desse mar- re(li)gião e O elo perdido, que deixarão marcas no marxismo dos
x i s m o acadêmico serão Weffort, na corrente de análise política anos 1 9 8 0 . 1 0

inspirada pelos escritos políticos de M a r x e Gramsci, José Arthur De fato, na década seguinte, ampliar-se-á a ênfase na inves-
G i a n n o t t i {1966), na corrente de análise da dialética marxista, e tigação dos condicionantes subjetivos da a ç ã o de classe e da for-
Francisco de Oliveira (Oliveira, 1 9 7 2 ; Oliveira e Reichstul, 1 9 7 3 ) ,
na corrente de análise macroeconômica inspirada por O Capital.

As análises de classes que se desenvolverão nos 1 9 7 0 refa- 9


Antunes ( 1 9 8 2 , 1 9 8 6 ) e Boito ( 1 9 9 1 ) darão continuidade a essa li-
r ã o diagnósticos e interpretações d o que foram a Revolução de nha de análise.
1 9 3 0 , o Estado Novo e o intervalo democrático de 1 9 4 5 - 1 9 6 4 . 1 0
No Nordeste, estudos c o m o o de Guimarães ( 1 9 8 2 ) , Guimarães e
O estilo é, portanto, histórico-estrutural, interpretativo, voltado Castro (1988) e Lima ( 1 9 9 6 ) são alguns exemplos da influência que Olivei-
para a teorização das restrições estruturais, internas e externas, ra exerceu nas discussões sobre as classes sociais.

22 Classes, raças e democracia Classes sociais 23


i n a ç ã o de uma cultura operária no Brasil. M u i t o importante para dos pela sociologia. Tais c o n c e i t o s expressam a preocupação em
esse movimento teórico-metodológico foi a influência dos intelec- tratar os dominados c o m o criadores de seus próprios mundos,
tuais marxistas ingleses, principalmente E . P. Thompson ( 1 9 5 8 , comprometendo os autores c o m a emergência da consciência de
1 9 7 8 ) e Raymond Williams ( 1 9 7 7 , 1 9 8 1 ) , em sua reação ao mar- direitos, individuais e c o l e t i v o s , por parte não apenas dos operá-
x i s m o estruturalista francês. 11
rios, mas das camadas populares. Neste sentido, tão importante
N o Brasil, os anos 1 9 8 0 foram de enorme euforia nas esquer- quanto as organizações políricas, serão as práticas coletivas. N o
das, nutrida pela expectativa do m o d o c o m o os movimentos popu- que toca a classe t r a b a l h a d o r a , os estudos serão dirigidos mais às
lares e o movimento operário seriam capazes de se expressar atra- fábricas que aos sindicatos (Frederico, 1 9 7 8 ; Maroni, 1 9 8 2 ; Abra-
vés de novo partido político — o P T . Seguindo o debate anterior, mo, 1 9 8 8 ; De Decca, 1 9 8 1 ) , mais aos bairros de moradia que aos
na ordem do dia esteve a discussão s o b r e a possibilidade da for- mercados de trabalho (Caldeira, 1 9 8 4 ; Kowarick, 1 9 8 8 ; Sader,
m a ç ã o de aristocracias operárias n o Brasil (Humphrey, 1 9 8 2 ; 1 9 8 8 ; Telles, 1 9 8 8 , 1 9 9 2 ; B a v a , 1 9 8 8 ; Martins, 1 9 9 1 ) . M a s , com
Almeida, 1981; Jellin e Torre, 1 9 8 2 ; C a s r r o e Guimarães, 1996). o tempo, esse novo enfoque criará seus próprios vícios. A c a b a r á
E m termos acadêmicos, a relação entre operários e o movimento por fazer, entre outras c o i s a s , com que boa parte da produção
social mais amplo já era rratada desde os 1 9 7 0 (Moisés. 1 9 7 9 ; sociológica sobre os trabalhadores urbanos se desvie das preocupa-
M o i s é s e Alier, 1978), mas, em 1 9 8 0 , uma coletânea organizada ções teóricas clássicas, ficando prisioneira das teorias emergentes
1 J

p o r Singer e Brant ( 1 9 8 0 ) marcou, definitivamente, a incorpora- sobre os "novos movimentos s o c i a i s " . Essa tendência foi argu-
ç ã o dos movimentos populares aos estudos de classe. Seguiram- tamente notada por Sader e Paoli ( 1 9 8 6 : 3 9 ) :
se várias coletâneas e resenhas sobre o tema (Jelm e Calderón, "[...] ao narrar o que anda acontecendo com os tra-
1 9 8 7 ; Larangeira, 1 9 9 0 ; Cardoso, 1 9 8 7 ; Gomes e Ferreira. 1 9 8 7 ; balhadores e seus movimentos sociais, parte desta pro-
D i n i z , Lopes e Prandi, 1 9 9 4 ) . dução sociológica recente parece questionar profunda-
12
O tom da revisão, contudo, foi d a d o por dois artigos: um mente o conceito de classe social como paradigma teó-
de autoria de Sader, Paoli e Telles ( 1 9 8 3 ) e, o outro, de Sader e rico instituído e adquirido pelas ciências sociais [...]".
Paoli ( 1 9 8 6 ) . A mudança conceituai é notável: os novos estudos
usarão sistematicamente conceitos c o m o "experiência", "imaginá- Mas será, justamente, o alargamento do conceito de classe
1 4
r i o " , "cotidiano", "cidadania", originários da história social e da social para além de T õ n n i e s , para significar mais que organiza-
filosofia política, em vez dos conceitos academicamente consagra- ção coletiva e ação política — sindicato e partido —, mas ineor-

1
' Cardoso (1987: 2 7 ) tem o seguinte diagnóstico: "A desilu-ão com " Cs novos movimentos sociais eram geralmente caracterizados pela
os esquemas globalizantes passou a alimentar a busca de explicações quali- "sua independência com relação aos políticos profissionais e aos partidos,
tativas para os novos problemas que se colocavam e que diziam respeito ao bem como sua capacidade de expressar os desejos de base da sociedade'"
sistema de dominação e seu modo de operar. A progressiva rigidez tia teoria (Cardoso, i 9 8 " : 2 8 ) . Eram vistos, pois, como atores sociais.com o m e s m o
marxista, tal como vinha sendo usada, abriu caminho para novas formas de estatuto teórico das classes.
investigação". 1 4
"Uma classe é tentativa de desenvolver poder efetivo através da for-
1 2
A fórmula cunhada por Emilia Viotti da Costa (1990), "estruturas ça das massas, i.e., através do grande número daqueles que pertencem a esse
versus experiência", sintetiza o que estava em j o g o na revisão. coletivo; depende em menor medida das qualidades dos indivíduos [...] En-

24 Classes, raças e democracia Classes sociais 25


_ porar práticas ç u l t u r ^ cotidiano, que práticas que criam novos lugares sociais", a "alteração das pró-
possibilitará a Sader e Paoli ( 1 9 8 6 : 4 6 - 7 ) fazer a crítica do conceito prias instituições no curso das experiências coletivas". N o entanto,
de classes, usado antes, implicitamente, na sociologia brasileira: como eles mesmos r e c o n h e c e m , muitos outros autores, que tra-
"Assim, as práticas culturais diferenciadas dos di- balhavam com o cotidiano das "classes populares", perderam toda
versos grupos sociais populares, isto é, sua inserção real e qualquer consciência ou preocupação teórica, em seu esforço de
em um mundo de relações sociais historicamente forma- "dar voz" aos dominados e visibilidade às suas práticas de resis-
do [...], foram banidas do m u n d o da 'verdadeira' clas- tência (Sader e Paoli, 1 9 8 6 : 6 5 ) . A verdade é que, na maioria das
se social, fazendo-se ver c o m o algo que divide e cons- vezes, tal tendência intelectual rejeitou as teorias de classe sem mes-
pira contra a unidade, a c o e s ã o e o poder coletivo". mo as ter submetido à crítica teórica.
Paralelamente, os estudos sobre a formação da classe t r a b a -
Sader e Paoli (1986: 5 9 ) procuram ampliar o conceito de clas- lhadora enveredam por outra vertente, enfatizando as análises do
se social para nele incluir o m o v i m e n t o social, ou seja, o processo processo de trabalho, antes restritas à sociologia industriai, que
de formação das classes a partir das práticas dos atores sociais, nunca formara tradição entre nós. Estes são retomados agora sob
nas diversas esferas da vida cotidiana, produtiva ou não. ' Nes- 1 1
a óptica marxista, dada p o r Braverman ( 1 9 7 4 ) . Ao encerrar a sua
se sentido, preferem mesmo falar de classes populares, já que tal resenha, Vianna ( 1 9 7 8 : 9 0 ) anotara:
termo indica "que o esforço de rigor do analista desloca-se do "Registre-se, entretanto, que mal começaram as
c a m p o da delimitação das fronteiras entre classes, frações, catego- investigações s o b r e o trabalho e a vida operária nas
rias sociais, para o campo da c o m p r e e n s ã o específica da prática unidades fabris. R i t m o de trabalho, relações com o sin-
dos atores sociais em movimento". As classes, para Sader e Paoli dicato, com o d e p a r t a m e n t o de pessoal da empresa,
( 1 9 8 6 : 6 1 ) seriam lazer, sistemas de i n t e r a ç ã o horizontais e verticais etc.
"[...] um coletivo presente duplamente: 1) na experi- são temas que ainda fazem parte de um território a ser
ência única com aqueles que se identificam com e em descoberto e e x p l o r a d o " .
cada uma dessas situações e 2 ) na elaboração mais ge-
ral de todos, reconhecendo algo em comum entre ex- De fato, um c o n j u n t o de pesquisadores (sociólogos e a n t r o -
periências distintas". pólogos) procurará articular o estudo das condições do processo
de trabalho com as condições extrafabris, para dar conta da forma-
O que estes autores vêem de n o v o , teoricamente, é a possibi- ção dos trabalhadores em classe, quer como grupos identitários
lidade de redefinir o conceito de c l a s s e , com a "descoberta da de status, quer como coletivos políticos (partidos, sindicatos, asso-
multiplicidade de espaços onde se faz a classe", "a existência de ciações). Estudos como os de Vera Pereira (1979), Jose Sérgio I .eite
Lopes (1976) e John H u m p h r e y ( 1 9 7 9 , 1 9 8 2 ) , realizados na se-
gunda metade dos 1 9 7 0 , foram pioneiros e emblemáticos desse

caro o partido político como o tipo ideal de um coletivo societário" (Tõn- novo modo de analisar a classe operária, fosse industrial ou rural.
nies, 1 9 6 6 : 12-4). Forma-se na A N P O C S , paralelamente ao já tradicional Gru-
1 5
Também Cardoso (1987) anota a a ç ã o comunitária como sendo o po de Trabalho "Classe O p e r á r i a e Sindicalismo", outro G T , este
que os distingue dos novos movimentos sociais. sobre "Processo de T r a b a l h o e Reivindicações Sociais". E m 1 9 8 4 ,

26 Classes, raças e democracia Classes sociais 27


um pequeno e seminal estudo de Nilton Vargas ( 1 9 8 5 ) reavalia a tão, a virtude de vivificar t a n t o os estudos feministas sobre mu-
história das relações de trabalho no Brasil (relações entre burgue- lher e trabalho, quanto o núcleo duro' dos estudos de fábrica [...]".
sia, Estado e operariado) a partir do conceito de taylorismo. O No que toca à teoria das classes, na sociologia mundial, os
texto é importante porque, ao repensar o Brasil contemporâneo estudos sobre processo de trabalho ganham virtuosidade formal e
com conceitos novos, aplaina o quadro de referência histórico para teórica com Adam Przeworski ( 1 9 7 7 , 1 9 7 9 ) , que enfoca a formação
novos estudos sobre o processo capitalista de trabalho. A partir de classes, e com Michael B u r a w o y ( 1 9 7 9 , 1 9 8 5 ) , que conceitua-
daí, não cessam de crescer os "estudos de caso", modo como eram liza os regimes fabris. A partir deles, foi possível revigorar a teoria
referidas as pesquisas feitas em unidades fabris. Em 1 9 8 6 , duas marxista das classes, integrando formalmente as esferas cotidianas
resenhas já haviam sido escritas sobre o tema: Sorj ( 1 9 8 3 ! e Abreu de construção de interesses, valores e identidades ao mundo da pro-
( 1 9 8 6 ) . Mas o problema c o m a maioria de tais estudos cedo foi dução, ou seja, articulando "estrutura" e "experiência". O impacto
apontado, aliás inutilmente, por um observador arguto como Vian- desses conceitos sobre os estudos da classe trabalhadora brasileira,
na ( 1 9 8 4 : 2 2 8 ) : se não foi direto nem imediato, foi, sem dúvida, c r e s c e n t e . 16

"A fraqueza de grande parte dessa literatura tem Outra vertente importante, nesses anos, deriva dos estudos
consistido num certo formalismo, derivando daí, com sobre trajetórias operárias, influenciados especialmente pela re-
freqüência, um tratamento da dimensão da política ape- construção da teoria das classes e da ação coletiva feita por B o u r -
nas como um elemento estrutural — por exemplo, nos dieu ( 1 9 7 4 , 1 9 7 9 ) . Autores c o m o Lopes (1987, 1 9 8 8 ) e G u i m a -
estudos que se limitam a demonstrar que a política se rães, Agier e Castro ( 1 9 9 5 ) documentam, também, essa tendên-
encontra embutida no processo de trabalho através do cia nos estudos sobre os trabalhadores urbanos.
sistema de máquinas e no controle social da produção Sintetizando, os estudos sobre a classe operária apresenta-
— , e não na riqueza das suas determinações concretas ram quatro vertentes principais, nesses últimos 2 5 anos, identifi-
no plano da conjuntura". cáveis a partir da teoria de classe que os orientou:
a) Foram estudos sobre o sindicalismo ou centrados na a n á -
Parte da riqueza a que V i a n n a alude, adveio do contato en- lise da ação sindical, q u a n d o as associações políticas foram vis-
tre os estudos sobre a classe t r a b a l h a d o r a e os estudos feitos em tas como as representantes, par excelence, da classe, à maneira da
outras tradições disciplinares, q u e eram não apenas diversas, mas, conceituação de T õ n n i e s . Nesse caso, tivemos seja uma análise
n o Brasil, inusitadas, tais c o m o a administração (Eleury e Eischer, sociológica das determinações estruturais, seja uma análise polí-
1 9 8 5 ) , a antropologia urbana (Pereira, 1 9 7 9 ; Lopes 1 9 7 6 , 1 9 8 8 ) , tica das conjunturas, seja a conjugação de amuas.
a engenharia de produção (Fleury e Vargas, 1 9 8 3 ) e, principal- b) Foram estudos de valores e aritudes, quando se acreditou
mente, os estudos feministas (Rodrigues, 1 9 7 8 ; Abreu, 1980; Pena, que a classe era uma associação e não necessariamente uma comu-
1.981; Githay, 1 9 8 2 ; H u m p h r e y e Hirata, 1 9 8 4 ; Hirata, 1 9 8 8 ; nidade, e que, portanto, a identidade operária e sua eventual a ç ã o
Souza-Lobo. 1 9 9 1 ) . Os estudos de processo de trabalho foram, política dependeriam das características sociais de seus m e m b r o s .
também, segundo Bruschim ( 1 9 9 3 : 2 , apud Castro e Leite, 1 9 9 4 ) ,
"a porta de entrada dos estudos sobre a mulher na academia brasi-
leira". Para Castro e Leite ( 1 9 9 4 : 4 2 ) , "a crítica das relações sociais 1 6
Apenas para citar a influência sobre minha formação, ver G u i m a -
tecidas na produção e das formas simbólicas de opressão teve, en- rães (1988, 1 9 9 1 , 1 9 9 8 ) , Castro e Guimarães ( 1 9 9 6 ) .

28 Classes, raças e democracia Classes sociais 29


c) Foram esrudos do processo de trabalho e do mundo fa- forma incipiente de a n o t a ç õ e s (Oliveira, 1988), sem grande res-
bril, quando a classe foi vista c o m o determinada, em última ins- paldo empírico.
tância, pelo mundo da produção, e a organização política, c o m o A produção a c a d ê m i c a brasileira sobre as classes médias
locus de alianças ciassistas espúrias ou de tutelagem. privilegiará três temas: primeiro, estudos sobre categorias sociais
d) Foram estudos de cidadania, quando se pensou que a clas- decisivas, em algumas conjunturas históricas, tais como os estu-
se eta o modo como os indivíduos realizavam e atualizavam di- dantes (Foracchi, 1 9 6 5 ; Poerner, 1 9 6 8 ) ou os militares. N o c a s o
reitos civis de natureza coletiva. dos últimos, a sua persistente importância na vida nacional fará
Ao mesmo tempo, essas vertentes corresponderam a proble- com que nova área t e m á t i c a , a dos estudos militares, ganhe au-
máticas sociais inscritas no m u n d o político brasileiro. Nos anos tonomia na academia brasileira (Coelho, 1 9 7 6 , 1 9 8 5 ; M a r t i n s ,
1 9 6 0 , tratava-se de avaliar a continuidade das instituições corpora- 1974; Oliveira, 1 9 7 6 ; Stepan, 1 9 7 1 ; Goes, 1986; Zaverucha, 1 9 9 4 ;
tivas do Estado Novo no processo de industrialização do pós-guerra Leirner, 1 9 9 7 ) . Segundo, estudos sobre a mudança na situação de
(democrático e liberal, até 1 9 6 4 , e ditatorial, depois), e explicar a classe de camadas que transitam da autonomia para o assalaria-
fraqueza da ação política do operariado brasileiro, se comparada mento (Evers. 1 9 8 2 ; Saes, 1 9 8 4 ) . Também importantes s ã o os
ao que ocorria na Europa. N o s a n o s 1 9 7 0 , tratava-se de entender estudos sobre a relação entre camadas sociais específicas (bacha-
o caráter autonomista das reivindicações operárias emergentes. Nos réis, intelectuais etc.) e o poder político no Brasil (Adorno, 1 9 8 8 ;
1 9 8 0 , buscava-se compreender a força de determinação das " b a - Miceli, 1 9 7 9 ; Pinheiro, I 9 7 4 ; Martins, 1 9 8 7 ) . Ainda nessa tra-
ses" sobre a atuação dos sindicatos, e as reivindicações de direitos dição, aparecem os estudos sobre categorias profissionais especí-
subjetivos e coletivos pelo c o n j u n t o das organizações populares. ficas, como advogados, médicos e engenheiros (Barbosa, 1 9 8 5 ;
Kawamura, 1 9 8 1 , 1 9 8 6 ) , que também acabam por criar nova tra-
dição de análise, diferente da análise de c l a s s e — a sociologia das

OS ESTUDOS S O B R E AS C L A S S E S MÉDIAS profissões (Bonelli e D o n a t o n i , 1 9 9 6 ) . Terceiro, e principalmen-


te, as análises que se c o n c e n t r a m no estudo do associativismo e
do sindicalismo dessas camadas (Almeida, 1 9 8 8 ; Boschi, 1 9 8 4 ,
A recepção das idéias de Poulantzas no Brasil, e até mesmo
11 1987; Saes, 1 V 8 5 ) . M a i s recentemente, boa parte dos autores passa
0 grande debate i n t e r n a c i o n a l sobre o estatuto das classes mé-
a se dedicar ao estudo das condições de trabalho, das formas de
dias (a nova pequena burguesia e os trabalhadores não-produti-
organização sindical e de luta política de segmentos cias classes
vos), não foram capazes de fazer c o m que tais estudos ganhassem,
18 médias, tais c o m o b a n c á r i o s , professores e profissionais diversos
entre nós, o estilo de uma análise de classes marxista (Simões,
(Blass, 1 9 9 2 : Segnini, 1 9 9 8 ) .
1 9 9 2 ) . As teorizações sobre o papel das classes médias ficaram na
A parte mais i n o v a d o r a , em termos teóricos, dos estudos
sobre as classes médias ficou por conta da grande proximidade
dos pesquisadores do I U P E R J c o m a produção contemporânea da
" Para acompanhar este debate ver Poulantzas (1973, 1 9 7 7 , 1 9 7 8 ,
1 9 8 3 ) , Carchedi (1977), Wright ( 1 9 7 7 , 1 9 7 8 , i 985), Ehrenreich e Ehrenreicb sociologia e da ciência política americanas, principalmente no que
( 1 9 7 9 ) , Abercombie e Urry ( 1 9 8 3 ) e Simões ( 1 9 9 2 ) . concerne às teorias de ação coletiva, de movimentos sociais e de
1 8
A exceção fica por conta da tese de doutorado de Simões ( 1 9 8 9 ) , mobilização de recursos (Melucci, 1 9 8 1 ; Offee Wiesenthal, 1 9 7 9 ;
defendida em Londres. Olson Jr., 1 9 6 5 ; Piven e Cloward, 1 9 7 9 ; Oberschall, 1 9 7 3 ; Pizzor-

30 Classes, raças e democracia Classes sociais 31


no, 1 9 7 6 ; TíIIy, 1 9 7 8 ) . Esses a u t o r e s (Boschi, 1984, 1 9 8 6 , 1 9 8 7 , Gnaccarini e M o u r a , 1 9 8 3 ; Sallum Jr., 1979; Santos, 1 9 9 1 ) . Do_
1 9 9 0 ; Saes, 1984) trazem para os estudos de classe novas influên- mesmo modo, p a r a a esquerda brasileira, as lutas de classe no
cias teóricas, através da análise do associativismo e do sindicalismo campo, principalmente as famosas Ligas Camponesas, foram his-
de classe média, em sua r e l a ç ã o c o m o poder político. Ademais, toricamente um o b j e t o privilegiado de reflexão.
o IUPERJ foi uma das poucas instituições brasileiras que preser- A tradição d e trabalhos empíricos sobre as classes sociais
vou (através dos estudos de N e l s o n d o Valle Silva e Carlos Hasen- no campo r e m o n t a a o s trabalhos pioneiros de Antônio Cândido
balg) a tradição dos estudos de estratificação e mobilidade social (1964), M a r i a Isaura de Queiroz ( 1 9 6 7 , 1 9 7 3 ) e ao programa de
iniciados, no Brasil, por H u t c h i n s o n ( 1 9 6 0 ) , o que ofereceu aos pesquisa c o o r d e n a d o p o r Roberto Cardoso de Oliveira ( 1 9 7 6 ) e
seus projetos de pesquisa, t a n t o s o b r e as classes médias quanto David Lewis, no M u s e u Nacional, a partir de 1 9 6 8 (Gnaccarini
sobre o empresariado, sólida base de dados estatísticos sobre mo- e Moura, 1 9 8 3 ) . O fato, entretanto, é que, independentemente
bilidade ocupacional e m u d a n ç a s n a esrrutura social. da filiação, em t e r m o s teóricos, tais estudos permaneceram em
diálogo constante c o m a teoria marxista sobre a renda da terra
19
e com as teorias sociológicas sobre as classes s o c i a i s . O seu o b -
OS ESTUDOS S O B R E O C A M P E S L N A T O jeto teórico p r ó p r i o , o campesinato, foi construído nos a n o s
E O PROLETARIADO R U R A L 1960, de modo a t r a ç a r a especificidade da teoria que se fará n o
Brasil. N o dizer de Gnaccarini e Moura ( 1 9 8 3 : 1 4 - 5 ) , a pequena
O clima político que, nos a n o s 1 9 6 0 , informava o debate in- produção c a m p o n e s a , n o Brasil,
telectual sobre a natureza das classes sociais no campo brasileiro "seria p r o d u t o da ocupação de terras livres ou do fra-
foi muito bem sintetizado por G n a c c a r i n i e Moura ( 1 9 8 3 : 1 2 ) , do cionamento d a s fazendas que, num sisrema colonial,
seguinte modo: primeiro e de expansão capitalista posterior, se mantém
"Polemizava-se se a n o ç ã o de feudalismo não es- ou se recria n a estrutura agrária como uma forma q u e
condia um bias reformista de c e r t a corrente que pro- lura pela sua permanência, ao mesmo tempo que dela
pugnaria, coerentemente, u m a etapa burguesa neces- se vale o sistema dominante para extração e captação
sária e dominante — aí i n c l u í d a a agricultura — de de seu s o b r e t r a b a l h o [...] [e] seria também gerada na
organização da sociedade. Inversamente, a rotulação ocupação da fronteira agrícola".
de capitalista, conferida a o c o n j u n t o das relações de
produção no campo, parecia u m a forma apressada de A realidade dos anos 1 9 7 0 , principalmente o destroçamento
frisara desnecessidade de u m a reforma agrária". das organizações c a m p o n e s a s , o recrudescimento da urbanização

De fato, o debate acerca da natureza da formação social bra-


1 9
sileira, se feudal ou capitalista, a s s i m c o m o do caráter da revolu- Exemplo disso é o sumário que Gnaccarini e Moura (1 9 8 3 : 17) fa-

ç ã o brasileira, se burguesa ou socialista (Wagley, 1951; Prado J r . , zem da persistente análise da relação entre campesinato e capitalismo: " [ . . . ]
podem-se destacar dois tipos de trabalhos: os estudos onde a ênfase é posta
1 9 6 6 ; Frank, 1969; Fernandes, 1 9 7 4 ) , marcaram os rumos dos
nas formas de subordinação do trabalho camponês ao capital e os estudos
estudos sobre a estrutura e as classes agrárias (Palmeira, 1 9 7 1 ;
das estruturas internas da produção familiar, interessados ambos n o s diver-
Oliveira, 1 9 7 2 ; Sá Jr., 1 9 7 3 ; M a r t i n s , 1 9 7 3 , 1979, 1 9 8 0 , 1 9 8 1 ; sos planos de dominação-resistência que vivenciam os atores sociais".

32 Classes, raças e democracia Classes sociais 33


e das migrações_rurais-urban.as, esvazia, por um brevíssimo tem- N O V O S E S T U D O S D E CLASSE
po, a importância do mundo rural para a intelectualidade brasi-
leira. Passa-se então por uma espécie de superação da divisão As análises de classe n ã o esgotam, como vimos, a problemá-
empiricista entre rural e urbano (Martins, 1 9 8 1 ) . Tal tendência tica das classes sociais brasileiras. Por isso, certamente, m u i t o s
já estava presente num conjunto de estudos sobre o mercado de estudos que têm c o m o o b j e t o de reflexão as classes sociais n ã o se
trabalho rural, que insistiam na unificação dos mercados urbano vêem a si mesmos c o m o estudos de classe, mas como estudos de
e rural (Brant, 1 9 7 7 ) e na e x p a n s ã o da classe operária para o "classes populares", " v i o l ê n c i a " , "cidadania", "movimento ne-
campo (Ianni, 1 9 7 6 ; Meilo, 1 9 7 1 ) . gro" etc. etc.
Entretanto, ainda que teoricamente superada a divisão ru- O termo estudos de classe, portanto, é mais adequado p a r a
ral-urbana, impor-se-ão, empiricamente, certos temas específicos referir um universo mais a m p l o de estudos e ensaios que utiliza o
ao meio rural: J) Os camponeses sem-terra, ou bóias-frias, e o sin- conceito de " c l a s s e " , às vezes de um modo mais descritivo, m a s
dicalismo rural (D'íncao, 1 9 8 4 ; Ferrante e Saffioti, 1986-87; Si- 21
sempre com um sentido " n a t i v o " ' , seja na própria análise, seja
gaud, 1 9 8 6 , 1989); 2) A modernização da agricultura e as polí- na referência ao seu o b j e t o .
ticas públicas voltadas para a agricultura (Heredia, 1988; Lewin, Retomemos o fio t e ó r i c o .
1 9 8 5 ) ; 3) Os efeitos sociais das barragens hidroelétricas e as lu- A teoria das classes surgiu com Marx como teoria das lutas
tas que desencadeiam (Sigaud, 1 9 8 6 a ) ; 4 ) A expansão da frontei- de classes e da mudança histórica. O sucesso científico da teoria
ra agrícola (Martins, 1 9 7 9 , 1 9 8 0 ) ; 5 ) As lutas pelo acesso à terra deveu-se, em grande medida, à articulação que ela propunha en-
(Martins, 1 9 7 3 , 1 9 8 1 ) ; 6 ) A violência no campo (Porto, 1 9 9 2 ; tre as esferas sociais — a e c o n o m i a , a sociedade, a política e a
Martins, 1994). cultura — de tal m o d o que uma certa ordem prevaleceria sempre
O mainstream dessa produção, sem deixar de introduzir no- entre elas; o segredo de tal ordenamento devendo ser buscado na
vos temas e novos "olhares" sociológicos, i.e., sem deixar de se re- produção da vida material (na economia, era última instância).
novar teórica e metodologicamente, permanece firmemente filia- Por muito tempo, a industrialização capitalista, na Europa, nos
do aos estudos de classe. Ainda que a análise, quando mal feita, Estados Unidos e no resto do mundo, pareceu dar razão a M a r x ,
possa resvalar para os vícios (a o r t o d o x i a , a falta de criatividade, no sentido de que a classe emergente dos trabalhadores industriais
0 empiricismo das descrições, a m o n ó t o n a repetição das falas dos parecia ter interesses o p o s t o s (do ponto de vista de um observa-
entrevistados etc.) que fustigam atualmente todas as ciências so- dor racional) à classe capitalista, e vontade política de impor à
ciais. Em seus melhores m o m e n t o s , entretanto, essa produção é
extremamente inovadora e refinada, c o m o quando se dedica ao
cotidiano familiar camponês ( M a r t i n s , 1 9 9 8 ; Garcia J r . , 1 9 8 3 , -" "Classe" pode ser referida com o sentido de um carisma ou estig-
1 9 8 9 ) . O fato é que a relação teórica entre campesinato e capita- ma, significando o prestígio social associado a uma pertença grupai. .Nesse
lismo continuou a ser problematizada em termos da luta de clas- sentido, classe é muito p r ó x i m o de status. Este é o modo como é usado vul-
garmente em expressões c o m o "fulano tem classe" ou "um desclassificado",
ses e da formação de sujeitos, quer na linha do neo-marxismo,
popularizadas a partir do sentido do termo inglês class. Nas ciências sociais,
quer na linhagem bourdieusiana, quer na nova tradição da histó-
tal sentido foi recuperado pelos estudos de comunidade feitos em C h i c a g o ,
ria social. nos anos 1 9 2 0 e 1 9 3 0 , para os quais a classe era, antes de tudo, um g r u p o
de convivência e comensa!idade possíveis.

34 Classes, raças e democracia Classes sociais 35


sociedade um novo ordenamento econômico. A teoria de M a r x , son. Sofreu seus primeiros sinais de esgotamento nos anos 1 9 7 0 ,
entretanto, não dava conta da complexidade da articulação entre depois da derrota das esquerdas e das forças populares em 1 9 6 4
economia, cultura e política. e 1 9 6 8 ; ficou combalida com a emergência, na última metade dos
O aprimoramento da teoria marxista foi, a princípio, feito 1 9 8 0 , de movimentos sociais, inclusive operários, por fora do sis-
por seus críticos, mormente os cientisras sociais alemães, que in- tema político de representação de interesses. Os vícios que a teoria
troduziram uma certa flexibilidade e conringência no modo c o m o ganhou no Brasil, tornando-se uma simples análise abstrata de c a -
tais esferas poderiam se articular ou não. Conceitos como os de tegorias reificadas, foram muito criticados em alguns trabalhos
associação, comunidade, classe, status e partido procuravam, jus- da época, entre os quais salienta-se o artigo de Cardoso ( 1 9 7 5 ) .
tamente, tornar a organização de interesses racionais analiticamen- Do ponto de vista empírico, a crise da teoria de classes re-
te separáve! (e historicamente contingente) do sentimenro de per- flete o desenvolvimento capitalista recente. Hoje, em grande me-
tença comunitária. Tal revisão das idéias de M a r x devia-se tanto dida, a economia e sua gestão estão dissociadas da política e da
à oposição ideológica aos m a r x i s t a s , quanto às crescenres dificul- representação de interesses, enquanto mantém-se o hiato entre
dades empíricas de aplicação da sua reoria ao Ocidente (Kaufsky, ambas e as formas culrurais. A sociabilidade inerente ao grande
1 9 7 1 ) , no que pese o seu sucesso político na Rússia. capital (o individualismo, o universalismo de valores e a formali-
Por dentro do marxismo a c a d ê m i c o , só no começo dos 6 0 dade das regras), longe de se impor ao conjunto da sociedade
do século X X a teoria das classes veio a sofrer alterações signifi- brasileira, ficou prisioneira de um círculo restrito de pessoas " e s -
cativas. Isso ocorreu através de E. P. Thompson, em sua bem suce- clarecidas", que circulam internacionalmente, não chegando se-
dida tentativa de fazer da experiência coletiva e do sentimento co- quer a atingir o conjunto das classes médias. Por outro lado, o
munitário os núcleos da f o r m a ç ã o das classes trabalhadoras; mas sistema político, no que pesem os intervalos periódicos de anula-
também de Althusser e Poulantzas, que reconstruíam a teoria mar- ção da ordem democrática, ficou mais vulnerável à representação
xista em seu feitio estruturalista (do ponto de vista conceituai) e dos interesses e dos valores dos diversos grupos sociais, incluin-
2
funcionalista (do ponto de vista da lógica de explicação). ' do aqueles que não mereceram a designação de "classe" nos es-
N o Brasil, a teoria das classes teve uma carreira interessante. tudos sociológicos.
Do final dos anos 1 9 4 0 até o final dos 1 9 6 0 , a teoria gozou de De fato, a sociedade burguesa, muito bem apreendida por
invejável e uníssono prestígio. F o i introduzida na academia, como M a r x em seus traços gerais, rende a internacionalizar-se, buscando
vimos, por Pinto e Fiorestan Fernandes, contra a resistência de esferas rransnacionais de representação de interesses, inclusive
sociólogos e antropólogos, c o m o E m í l i o Willems ou Donald Pier- instâncias reguladoras a u t ô n o m a s , como o F M I , o Banco Central
americano, o Parlamento Europeu etc. Os Estados Nacionais, to-
davia, tornam-se mais permeáveis aos valores e aos interesses das
21
As tentativas de reconstrução da teoria das classes marxistas, feitas, camadas subalternas (ou. pelo menos, não hegemônicas econo-
primeiro, por Poulantzas e, depois, pelos marxistas analíticos (Wright. 1 9 7 7 ,
micamente) sem conseguir impor-lhes a forma de sociabihdade do
1 9 7 8 , 1985), apesar de introduzirem flexibilidade e clareza à análise, mantêm
grande capital. Isso faz c o m que os mais diversos grupos sociais
ainda um organicismo pré-estabelecido entre as esferas sociais, que não parece
viger na prática. Por conta disso, a corrente crítica liderada por E. P. Thomp- — etnias, comunidades e associações diversas — , e não apenas as
son, desde 1958, quando do aparecimento do seu The Formation oftbe En- classes típicas do capitalismo, passem a ter importância crescen-
glish Working C/ass, tornou-se cada vez mais hegemônica na academia. te para a análise sociológica e política.

36 Classes, raças e democracia 37


Classes sociais
Para compreender essas m u d a n ç a s recentes, temos que nos reino dos conflitos m o d e r n o s não domesticados, entre capital e
transportar para o universo de u m a sociedade de classes que tem trabalho, assim c o m o cia pujança da cultura operária. Ao c o n t r á -
a tradição de se pensar a si mesma e n q u a n t o tal, ou seja, a Fran- rio, os conflitos m o d e r n o s que perpassam a sociedade salarial e s -
ça. Foi lá não apenas que M a r x buscou inspiração para a sua teoria tariam, depois de 1 9 6 8 , totalmente regulados e a precariedade d o
das classes, no século X I X , mas p a r a onde intelectuais do mundo trabalho inteiramente circunscrita por redes de proteção, sendo
2 3
inteiro se voltaram em busca do segredo da sociabilidade e con- a condição salarial c o m p a r t i l h a d a pelo conjunto da sociedade. -
flitosnrodernos. O operariado, e n q u a n t o classe de pertença social, teria passado
então a ser marginal. A sociedade salarial teria tido vigência plena
nos anos 70 e 8 0 do século X X . J á os anos 1 9 9 0 , na França, seriam
CLASSE C O M O " C O N D I Ç Ã O " justamente a década em que tal sociedade salarial sofreu sucessi-
E "IDENTIDADE" vos ataques e tentativas de desmonte, legitimados pelo argumen-
to da " g l o b a l i z a ç ã o " , justificando a precarização da c o n d i ç ã o

De fato, o modelo preferido d o s nossos intelectuais para salarial e a " d e s a f i l i a ç â o " de grandes camadas de trabalhadores.

pensarem o modo como a sociedade brasileira lida com as dife- Como se pode deduzir, nesse sentido restrito, francês, n ã o
renças e organiza suas hierarquias foi sempre a França. Lá esta- poderia ter havido propriamente sociedade de classes no Brasil do
ria a sociedade típica de classes: a um só tempo, modelo explicativo pós-guerra. Os estudos j á citados de Fernando Henrique C a r d o -
e ideal de república. Para c o m p r e e n d e r esse imaginário, farei um so (1969 [ 1 9 6 1 ] ) , Alain T o u r a i n e ( 1 9 6 1 ) , Juarez Brandão L o p e s
rápido mergulho nas letras s o c i o l ó g i c a s francesas, ainda que me (1964, 1 9 6 7 ) , Luiz Pereira ( 1 9 6 5 ) e Leôncio Martins Rodrigues
restringindo ao período mais r e c e n t e . (1970) reafirmam tal interpretação. O operariado nascente bra-
Se seguirmos a terminologia de Castel ( 1 9 9 9 , 1 9 9 9 a ) , a socie- sileiro teria suas origens no campesinato rural, imerso em l a ç o s
dade de classes, na França, c o n h e c e seu apogeu nos anos 40 e 5 0 de dependência e o b r i g a ç õ e s clientelistas. N ã o haveria uma " c o n -
do século X X , para ceder l e n t a m e n t e lugar, nos anos 6 0 , ao que dição" operária, ao m o d o francês (Halbwachs, 1 9 1 3 ; Weil, 1 9 5 1 ;
ele chama de sociedade s a l a r i a l . 22
A sociedade de classes seria o Schwartz, 1 9 9 0 ; Verret, 1 9 8 8 ) , uma vez que, no Brasil, os operá-
rios industriais tenderiam ou a reproduzir no meio urbano tais la-
ços de clientela ou a aspirar à condição das camadas médias ur-
banas. Aliás, essa aspiração c auto-identificação do operariado in-
2
- Diz Castel (1999: 5 8 3 - 5 , t r a d u ç ã o minha): "Esse é o sentido literal
da expressão 'trabalho alienado': t r a b a l h a r para outrem e não par.; si mes-
mo, deixar o produto de seu trabalho para um terceiro que o vai consumir
antagonismos tomam a forma de luta por posições e classificações e n a o de
ou comercializar. Essa concepção secular de trabalho assalariado desapare-
luta de classes".
ce cerca dos anos 50 e 6 0 , provocando o desaparecimento do pape! históri-
2 3
co da classe operária. A lenta p r o m o ç ã o de uma salariado burguês abriu tal Castel ( 1 9 9 9 : 5 8 1, tradução minha): "A transformação decisiva que
via. Ela desemboca num modelo de sociedade que já não é cindida por um amadureceu ao longo dos a n o s 5 0 e 6 0 não foi pois nem a homogeneização
conflito central entre assalariados e não-assalariados, isto é, entre proletá- completa da sociedade, nem o deslocamento da alternativa revolucionária
rios e burgueses, trabalho e capital. Á ' n o v a sociedade' é organizada, con- para um novo operador, a nova classe operária. Foi antes a dissolução dessa
trariamente, em torno da competição entre diferentes pólos de atividades sa- alternativa revolucionária e a redístribuição dos conflitos modernos sociais
lariais. Sociedade que não é nem h o m o g ê n e a , nem pacificada, mas cujos segundo um modelo diferente da sociedade de classes: a sociedade salarial".

Classes, raças e democracia Classes sociais 39


dustrial com as classes médias t a m b é m foram detectadas duran- Ora, esse gosto pela hierarquia social e pelo monopólio de
te o processo de industrialização tardia de outras áreas brasilei- pequenos saberes é algo ainda atual, mesmo na França, n o senti-
ras (Guimarães, Agier e Castro, 1 9 9 5 ; Guimarães, 1998a). do de que faz parte da ideologia republicana afirmar a igualdade
Se no Brasil não tivemos operários em "condição" que lhes de todos os cidadãos, mas r e c o n h e c e r juridicamente a sua condi-
fosse peculiar, conhecemos, desde sempre, a "condição negra", a ção de classe, regulamentando em detalhe a distribuição de bens,
que esteve submetida a massa dos proletários. Bastide e Fernandes serviços e honrarias. O b s e r v a r e problematizar tal gosto é possí-
24
( 1 9 5 5 ) , e depois Ianni ( 1 9 6 2 ) , c h a m a r a m tal condição negra de vel apenas se contrastarmos a sociedade francesa a o u t r a s .
"as metamorfoses do escravo", isto é, a persistência na "socieda- Assim, nos Estados U n i d o s , a sociedade se representaria a
de de classes" de relações servis, preconceitos e ritos próprios à si mesma como um c o n j u n t o de indivíduos, não de classes. Essas
ordem escravocrata. últimas, mal vistas, seriam portadoras de privilégios e de limita-
Tal ordem de metamorfoses poderá ser interrompida somente ções à liberdade individual. As desigualdades, assim, teriam se-
a partir do processo de construção democrática, nos anos 80 do guido explicitamente uma linha de raça, pensada como desigual-
século X X . Ou seja, quando a democracia, no Brasil, passa a ser dade natural, sem afetar, p o r t a n t o , a ideologia liberai.
praticada em seu sentido estrito, q u a n d o governo e sociedade ci- Catherine Bidou ( 1 9 9 7 : 6 4 ) comunga com essa interpreta-
vil obedecem as regras do sistema político, respeitando os direitos ção sobre a incongruência entre o conceito de classes e a socieda-
individuais e promovendo as garantias jurídicas de seu gozo. Se de americana (insight este, aliás, que já se encontra em Myrdal
existe tal ordem, no Brasil, ela é pois rardia, sendo contemporânea [ 1 9 4 4 ] ) . Bidou explica o desenvolvimento da teoria social fran-
da precarização das condições de vida das classes médias, da res- cesa como reflexo do desenvolvimento do sistema social real. As-
trição dos direitos trabalhistas e sindicais, e da internacionalização sim, para ela, a reação a o que Castel chama de sociedade salarial,
da economia e da globalização dos fluxos financeiros e culturais. seguiu dois caminhos: p r i m e i r o , o reconhecimento e elaboração
Implícita nessa discussão está a n o ç ã o de classe social en- de novas categorias sociais, a s categorias socioprofissionais, pelo
quanto grupo hierárquico, de distinção e de honra sociais, que se Estado francês teria ensejado dois movimentos teóricos: a teoriza-
diferencia das ordens do Antigo Regime apenas pela sua maior
abertura e por sua ideologia. As classes, nesse sentido, continuam
a existir mesmo nos dias atuais, c o m o se depreende do trecho
2 4
Uma anedota ilustra esse ponto muito bem. Certa feita, em Paris,
seguinte de Gastei:
ao hospedar-me numa instituição universitária que abriga pesquisadores em
"Esse espaço social é c o r t a d o pelo conflito e pela
cooperação internacional, defrontei-me com dois problemas, ambo-- poden-
busca de diferenciação. Um princípio de distinção opõe do ser resolvidos apenas por seu "especialista": gravar uma mensagem no rc-
e reúne os grupos sociais. O p õ e e reúne, pois a distin- jumdeur do telefone do meu quarto, e programar os parâmetros ( D \ ' S e !Pi
ção funciona sobre a dialética sutil do mesmo e do ou- de minha conta de correio eletrônico. Não havia instruções impressas, c o m o

tro, da proximidade e da distinção, da fascinação e da seria de se esperar, e nenhum o u t r o funcionário poderia ajudar-me. por não
deter esse conhecimento. Imagino c o m o , no Brasil, reagiríamos à pretensão
rejeição. Ela supõe uma dimensão transversal aos di-
ile distinção de pessoas que detivessem conhecimento tão limitado. A tendên-
ferentes agrupamentos que reúne os que se opõem, per-
cia certamente seria a desqualificação social do detentor de tal conhecimen-
mitindo os comparar e classificar" (Castel, 1 9 9 9 : 5 9 1 , to. Como aliás fazemos literariamente, chamando de "secretária" a caixa de
tradução minha). mensagem.

40 Classes, raças e democracia Classes sociais 41


ção sobre uma nova classe operária (Maljet, 1 9 6 9 ; Bidou, 1984;} aristocrático e ao ancien regime. M a r x tem certamente razão quan-
e reconceitualização das classes sociais (Poulantzas, 1 9 6 8 , 1 9 7 4 ; do reivindicou ter retirado do termo este sentido subjetivo e va-
Baudelot, Establet, M a l e m o r t , 1 9 7 4 ) . Segundo, Bidou chama a lorativo, para referi-lo a posições objetivas na estrutura social, às
atenção para a tradição dos estudos sobre o modo de vida das clas- quais corresponderiam interesses e orientações de ação similares.
ses trabalhadoras (Michel V e r r e t , 1 9 8 1 , 1 9 8 8 , 1988a), que in- Foi com este sentido propriamente sociológico que o termo foi
corporaram definitivamente o operariado ao modo de ser e viver incorporado às modernas ciências sociais.
francês, algo aliás que atualmente foi posto em questão pelo sur- M a x Weber, ao separar anahticamente as dimensões e c o n ô -
gimento de uma nova categoria social, os imigrantes, formada pe- mica, política e social da distribuição do poder nas sociedades,
la diferença de raça e cultura (Sayad, 1 9 8 4 , 1 9 9 1 , 1999; Beaud e foi mais longe: deu um sentido mais preciso ao termo " c l a s s e " ,
Pialoux, 1999). distinguindo-o dos fenômenos ligados à distribuição da honra e
Mas, para nossos interesses, é preciso explorar ainda mais a do prestígio sociais. Tal separação analítica permitiu que se pu-
diferença entre "classes" nativas (representação da estrutura e da desse problematizar, desvinculada da distribuição econômica de
hierarquia sociais) e as " c l a s s e s " teóricas, conceito analítico para riquezas, a continuidade, nas sociedades modernas, dos fenôme-
a representação sociológica de uma sociedade, de uma época ou nos de distribuição da honra e do prestígio sociais.
de um modo de produção. As classes sociais francesas, por exem- No entanto, prevaleceu, no pensamento sociológico, a asso-
plo, não são depositárias de "privilégios" como as classes inglesas, ciação das "classes sociais" a ordens competitivas, a relações so-
m a s de "direitos". Nesse sentido, os ideais revolucionários bur- ciais abertas, ao capitalismo e à modernidade. O sentido inglês,
gueses foram retraduzidos, na F r a n ç a , em termos menos indivi- ancien regime, do termo permaneceu apenas no uso vulgar, prin-
dualistas que na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, onde "clas- cipalmente nos Estados Unidos e Inglaterra.
s e s " passaram a ser associadas às corporações do antigo regime. No Brasil, onde as discriminações raciais (aquelas determi-
O u seja, a concepção nativa francesa comunga com o marxismo e nadas pelas noções de raça e cor) são amplamente consideradas,
c o m o corporativismo, a crença de que todas as sociedades, ou ao pelo senso comum, c o m o discriminações de classe, o sentido pré-
m e n o s a sociedade moderna, s ã o divididas em classes, e que, por- sociológico do termo nunca deixou de ter vigência. Este sentido
t a n t o , cabe ao Estado regular a relação entre elas, em termos de ancien do termo " c l a s s e " pode ser compreendido como perten-
direitos (Dirn, 1998; Rosanvallon, 1 9 9 5 ; Pa rrot, 1974; Desrosiè- cendo à ordem das desigualdades de direitos, da distribuição da
res, 1 9 8 7 ; Boltanski, 1 9 8 2 ; Boltanski e Thévenot, 1983). íionra e do prestígio sociais, em sociedades capitalistas e moder-
nas, onde permaneceu razoavelmente intacta uma ordem hierár-
quica de privilégios, e onde as classes médias não foram capazes
CONCLUSÕES de desfazer os privilégios sociais, e de estabelecer os ideários da
igualdade e da cidadania.

A guisa de conclusão, realinho a b a i x o os argumentos prin- Preencher o vazio teórico deixado pela referência vulgar à
cipais que desenvolvi nos últimos itens deste capítulo. "classe" talvez seja a grande tarefa da sociologia a partir dos anos
O termo "classe" c o m e ç o u a ser utilizado nos estudos da 1 9 9 0 . Boa parte da produção sociológica no Brasil, a partir dos
s o c ie d a d e (pela filosofia m o r a l , principalmente) associado aos 1 9 8 0 , a começar pelos e n s a i o s seminais de Roberto D a M a t t a
privilégios e ao sentimento de honra social, próprios ao domínio ( 1 9 8 1 , 1 9 8 5 ) , apontam nesta direção: a chamada sociedade de

42 Ciasses, raças e democracia Classes sociais 43


classes, no Brasil, não pressupõe uma ordem social igualitária e sentido de ..produto .desclassificações, identitáiias). Isso significa
relações sociais abertas. fazer dialogar tradições que refletem sobre: a) as heranças patri-
Em Relativizando, por e x e m p l o , D a M a t t a (1981) inspira-se momalistas e autoritárias; b) a ideologia da desigualdade brasi-
em interpretação clássica de M a r v i n H a r r i s (1964), reelaboran- leira, sob a forma mitológica de democracia racial; c) a prática
do-a a partir das idéias de D u m o n t ( 1 9 6 6 ) sobre a relação entre cotidiana da desigualdade, através da violência física e simbólica;
racismo e igualdade, para c o l o c a r a hipótese de que teria sido a d) a formação de atores coletivos e sua política; e) a inserção eco-
"quase rígida estrutura de classes" brasileira a responsável pela nômica destes atores e a sua dinâmica produtiva.
relativa ausência de discriminação racial n o país. Ora, parece-me, Nos próximos capítulos, desenvolverei melhor algumas des-
que a confusão brasileira tradicional entre discriminação de clas- sas temáticas.
se e discriminação racial se deve, t a n t o a uma postura ideológi-
ca, quanto à confusão, e o constante deslizamento semântico, entre
os três significados do termo " c l a s s e " — grupo identitário, asso-
c i a ç ã o de interesses e sujeito político e histórico.
Assim como o termo cidadania traz implícito o sentimento
de nacionalidade comum, pressuposto n ã o problematizado nor-
malmente pelos teóricos, o termo ciasse, m e s m o quando empre-
g a d o em seu senrido sociológico, que explicitamente o relaciona
a uma ordem de igualdade de direitos, pressupõe, de fato, os pri-
vilégios e, portanto, a desigualdade de direiros que o rermo vul-
gar e pré-sociológico sugere. A guisa de e x e m p l o , dizer que não é
racial a discriminação que, no Brasil, sofrem os negros, eqüivale
a silenciar o que deveria ser dito: que se encontra ativo, na nossa
o r d e m de classes, o princípio de desigualdade de direitos indivi-
duais. N o mesmo diapasão, José M u r i l o de Carvalho (1998) cha-
m o u a atenção para o fato de que a n o ç ã o de cidadania, no Bra-
sil, refere-se mais propriamente à igualdade de direitos políticos
que à igualdade de direitos civis.
Se estou certo, pois, boa parte da literatura sociológica con-
temporânea, que toma como tema central a exclusão e a limitação
de cidadania das classes populares, está realmente referida ao cam-
po temático das classes sociais, no que tange à ordem cstamental,
à a ç ã o de grupos, à sua hierarquia e à f o r m a ç ã o de comunidades,
mesmo quando distante da problemática econômica das classes.
O desafio teórico do presente é, justamente, fazer confluir
os estudos sobre a desigualdade dos indivíduos e das classes (no

44 Classes, raças e democracia Classes sociais 45


2.
RAÇA E P O B R E Z A N O B R A S I L

Uma das pistas abertas pela discussão do capítulo a n t e r i o r


é de que a invisibilidade da discriminação racial no Brasil se deve
ao fato de que os brasileiros, em geral, atribuem, à discriminação
de classe a destituição material a que são relegados os negros. O
termo "classe", utilizado dessa maneira, passa a significar, a o
mesmo tempo, condição social, grupo de status atribuído, g r u p o
de interesses e forma de identidade social. Além disso, para mui-
tos, falar em discriminação racial significaria, incorrer num equí-
voco teórico, já que não existem raças humanas.
Ficamos, portanto, presos em duas armadilhas sociológicas,
quando pensamos o Brasil contemporâneo. Primeiro, o c o n c e i t o
de classes não é concebido c o m o podendo referir-se a uma c e r t a
identidade social ou a um grupo relativamente estável, cujas fron-
teiras sejam marcadas por formas diversas de discriminação, b a -
seada em atributos c o m o a c o r — afinal é esse o sentido do dito
popular, de senso comum, de que a discriminação é de classe e
não de cor. Segundo, o conceito de "raças" é descartado c o m o
imprestável, não podendo ser analiticamente recuperado para
pensar as normas que orientam a ação social concreta, ainda que
as discriminações a que estejam sujeitos os negros sejam, de fato,
orientadas por crenças raciais.
Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, três críticas têm sido
formuladas à minha utilização do termo "raça" como c o n c e i t o
analítico. Costa e Werle ( 1 9 9 7 ) , Yvonne Maggie (1999) e M ô n i -
ca Grin ( 2 0 0 1 ) consideram " r a ç a " uma noção estranha à reali-
dade social brasileira; Peter Fry ( 2 0 0 0 ) argumentou que m i n h a

Raça e pobreza no Brasil 47


posição se afastaria da nossa t r a d i ç ã o intelectual, estando de cer- discurso científico errôneo e de um discurso político racista, au-
to modo contaminada, seja pelas posições ideológicas do movi- toritário, antiigualitário e antidemocrático; 3 ) o uso d o t e r m o
mento negro, seja pelas categorias nativas norte-americanas. Sérgio "raça" apenas reifica uma categoria política abusiva.
Costa ( 2 0 0 1 ) , embora reconheça que faça algum sentido referir- Paul Gilroy certamente reconhece os argumentos dos anti-
se à "raça" em estudos específicos sobre desigualdades ou discri- racistas que defendem o uso da categoria "raça". O principal de-
minações raciais, considerou abusivo o uso do conceito em estu- les é, sem dúvida, o fato de que "raça" é a única categoria possí-
dos sobre a identidade nacional o u sobre os regionalismos brasi- vel de auto-identificação para pessoas "cujos pleitos legais, o p o s i -
leiros. Essas críticas viram-se reforçadas pela posição de Paul Gil- cionistas e m e s m o democráticos têm necessariamente de ser c o n s -
roy ( 1 9 9 8 , 2 0 0 0 ) , um intelectual negro de expressivo ativismo na truídos sobre identidades e solidariedades forjadas a grande c u s t o ,
luta anti-racista, que passou a defender insistentemente a tese de a partir de c a t e g o r i a s que lhes foram impostas pelos seus opres-
que a categoria " r a ç a " já n ã o t e m nenhuma utilidade prática ou sores" (Gilroy, 1 9 9 8 : 8 4 2 , tradução minha). Tal r e c o n h e c i m e n t o
teórica no mundo globalizado. levaria, c o m o levou, a uni compromisso liberal e d e m o c r á t i c o de
Neste capítulo, tenho, p o r t a n t o , dois alvos: re-examinar o empregar-se " r a ç a s ' ' entre aspas, para denotar o seu c a r á t e r de

estatuto do conceito de " r a ç a " e explorar um pouco mais a insufi- construção social.

ciência da categoria "classe" p a r a dar conta da pobreza dos ne- No entanto, para Gilroy, tal argumento já não é mais vá-
gros no Brasil. lido, e aí reside a sua novidade. Todo discurso que recria " r a ç a s "
seria hoje a n a c r ô n i c o , já que, em suas palavras: " A negritude
pode hoje significar prestígio vital, em vez de abjeção, para um
REDISCUTINDO O telesetor de info-trenimento, em que os resíduos das s o c i e d a d e s
CONCEITO DE R A Ç A 2 5
escravistas e os vestígios paroquiais do conflito racial a m e r i c a n o
precisam ser substituídos por outros imperativos, derivados da
Paul Gilroy ( 1 9 9 8 ) , um dos mais brilhantes intelectuais ne- planetarização d o lucro e da abertura de novos mercados bastan-
gros do nosso tempo, e c e r t a m e n t e um dos mais envolvidos poli- te afastados da m e m ó r i a da escravidão" (Gilroy, 1 9 9 8 : 8 4 2 , tra-
ticamente no combate ao r a c i s m o , declarou-se recentemente in- dução minha).
teiramente contrário à m a n u t e n ç ã o do termo "raça" em nosso Gilroy argumenta também que o anti-racismo tem sido, des-
vocabulário. Algumas de suas razões não diferem daquelas assu- de sempre, uma p o l í t i c a de negação do racismo e x i s t e n t e , m a s
midas pelos que o precederam nesta posição. São elas: 1) no to- nunca uma política afirmativa. Por isso, ele pergunta: " O s anti-
cante à espécie humana, n ã o existem " r a ç a s " biológicas, ou seja, racistas são, afinal, a favor do quê? Estamos positivamente c o m -
não há no mundo físico e material nada que possa ser corretamente promissados c o m o quê, e c o m o isso se conecta com o m o m e n t o
classificado c o m o " r a ç a " ; 2 ) o c o n c e i t o de " r a ç a " é parte de um necessário de s u p e r a ç ã o que define nossas esperanças e e s c o l h a s
políticas?" ( G i l r o y , 1 9 9 8 : 8 4 3 , tradução minha).
A posição que Gilroy apenas insinua deve ficar m u i t o c l a r a :
2 5
Esta parte do artigo foi originalmente preparada para a mesa-redon-
1) os anti-racistas estão comprometidos com a superação das de-
da "(Re)Discutindo o Conceito de R a ç a " , Universidade Federal do Paraná, sigualdades e das diferenças construídas a partir da idéia de r a ç a ;
Curitiba, 9 de novembro de 1 9 9 9 . 2) segundo ele, j á n ã o precisamos historicamente da identidade

48 Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 49


racial para avançar nossos p o n t o s de vista; 3) como conseqüên- grupos sociais que se identifiquem a partir de marcadores direta
cia, já não precisamos da idéia de raça, seja biológica, seja social. ou indiretamente derivados da idéia de raça; segundo, q u a n d o as
Alguns dos pressupostos de Gilroy são também pressupos- desigualdades, as discriminações e as hierarquias sociais efetiva-
tos meus. Se eles estão corretos, a pergunta decisiva é: quando os mente não c o r r e s p o n d e r e m a esses marcadores; terceiro, q u a n d o
anti-racistas negros podem prescindir da idéia de "raça" que os tais identidades e discriminações forem prescindíveis em t e r m o s
unifica? Essa é uma pergunta política e, portanto, concreta, que tecnológicos, s o c i a i s e políticos, para a afirmação social dos g r u -
não pode ser respondida em t e r m o s genéricos. Afinal, se a raça pos oprimidos".
biológica não existe, t a m b é m n ã o há uma única e universal ma- Pois bem, n o c a s o brasileiro, parece ter acontecido j u s t a m e n -
neira de construir a categoria social de " r a ç a " , a qual deve dife- te o contrário. A s raças foram, pelo menos até recentemente, n o
rir de sociedade para sociedade, ainda que obedeça a certa matriz período que vai d o s anos 1 9 3 0 aos anos 1 9 7 0 , abolidas d o dis-
universal, informada por um m o d o de produção, uma estrutura curso erudito e popular (sancionadas, inclusive, por i n t e r d i ç õ e s
planetária de trocas e por tecnologias específicas. rituais e etiqueta bastante sofisticada), mas, ao mesmo t e m p o , cres-
Assim, ainda que Gilroy tenha razão quando se refira à Euro- ceram as desigualdades e as queixas de discriminação a t r i b u í d a s
pa Ocidental, sua resposta talvez não tenha a mesma validade para à cor. Essas e r a m vozes abafadas. Para obterem r e c o n h e c i m e n t o ,
o "paroquialismo" americano ou brasileiro. Se tivesse validade, viram-se forçadas a recrudescer o discurso identitário, que resva-
certamente estaríamos submersos num "anacronismo" conceituai, lou para a r e c o n s t r u ç ã o étnica e cultural. Tais identidades a p e -
que teríamos forçosamente de superar. nas hoje estão b e m assentadas no terreno político. M a i s a i n d a : a
Repito aqui a posição que tenho adotado: "raça" é não ape- assunção da identidade negra significou, para os negros, a t r i b u i r
nas uma categoria política necessária para organizar a resistên- à idéia de raça presente na população brasileira que se autodefine
cia ao racismo no Brasil, m a s é t a m b é m categoria analítica indis- como branca a responsabilidade pelas discriminações e pelas de-
pensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades sigualdades q u e eles efetivamente sofrem. Ou seja, c o r r e s p o n d e u
que a noção brasileira de " c o r " enseja são efetivamente raciais e a uma acusação d e racismo. E isso justamente porque tais discri-
não apenas de "classe" ( G u i m a r ã e s , 1 9 9 9 ) . minações e desigualdades não foram nunca reconhecidas c o m o
Reconheço, todavia, que a minha argumentação repousa tendo motivação racial, quer pelas elites políticas e pelas c l a s s e s
sobre dois pressupostos às vezes difíceis de serem percebidos. Pri- médias, que se definem c o m o brancas, quer pelas classes t r a b a -
meiro, não há raças b i o l ó g i c a s , ou seja, na espécie humana nada lhadores. Assim, a retomada da categoria de raça pelos n e g r o s
que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corres- correspondeu, n a verdade, à retomada da luta anti-racista em ter-
ponda ao que comumente c h a m a m o s de "raça" tem existência mos práticos e o b j e t i v o s .
real; segundo, o que c h a m a m o s " r a ç a " tem existência nominal, Quais as formas possíveis que o movimento anti-racista p o d e
efetiva e eficaz apenas no m u n d o social e, portanto, somente no tomar, hoje em d i a , no Brasil?
mundo social pode ter realidade plena. Para o a n t i - r a c i s m o , há quatro possibilidades discerníveis.
O problema que se c o l o c a é, pois, o seguinte: quando, no A primeira delas é aferrar-se a crenças racialistas (ou seja, c r e n -
mundo social, podemos, t a m b é m , dispensar o conceito de raça? ças na d e t e r m i n a ç ã o biológica de qualidades m o r a i s , p s i c o l ó g i -
A resposta teórica parece ser bastante clara: primeiro, quando já cas e intelectuais, a o longo da transmissão de caracteres fenotípicos
n ã o houver identidades r a c i a i s , o u seja, quando já não existirem que definem " r a ç a s " ) . Este anti-racismo, devo confessar, vive em

50 Classes, raças e democracia Raça e pobreza n o Brasil 51


bases bastante delicadas, uma vez que aceita diferenças de quali- cismo. No nível científico, portanto, a única referência possível a
26
dades e de propriedades raciais sem que aceite a hierarquia entre "raças" é o registro dessa idéia em termos cmic , ou seja, c o m o
elas. Mas, ainda que difícil, esta p o s i ç ã o é, logicamente, possível. categoria nativa. Por isso, deve-se sempre grafar tal palavra en-
N ã o vou me alongar sobre este p o n t o . Direi apenas que boa par- tre aspas, denotando o seu caráter epiíenomenal e nativo, não-ana-
te dos negros brasileiros que e s t ã o longe da influência acadêmica lítico e não-fenomênico. H á , nessa postura, uma crença ílumimsta
e perto da influência da cultura de massa, principalmente o mo- de que os indivíduos podem ser esclarecidos sobre a inexistência
vimento rap (Gordon, 1 9 9 9 ) , a s s u m e tal posição. das raças e que, a partir deste esclarecimento, mudem o seu c o m -
A segunda possibilidade é, sem crer em raças biológicas, acei- portamento racista.
tar que as "raças sociais" (ou seja, a construção social das identi- A quarta possibilidade, à qual me filio, apóia-se na c r e n ç a
dades e classificações raciais) s ã o epifenômenos permanentes, que de que a superação das classificações raciais passa necessariamente
organizam a experiência social h u m a n a e que não têm chances de por dois passos: a) pelo reconhecimento da inexistência de raças
desaparecer. Trata-se de u m a p o s i ç ã o pragmática. Assim como biológicas; b) pela denúncia da constante transformação da idéia
aceitamos, há séculos, a teoria c o p e r n i c a n a sem que deixemos de de raça sob diferentes formas e tropos. Ou seja, o não-racialismo
organizar as nossas experiências diárias em torno da crença de que não é garantia para o anti-racismo, podendo mesmo cultivá-lo se,
o sol se põe e se levanta, assim t a m b é m acontece com a crença para tanto, utilizar um b o m tropo para "raça". Uma vez atingi-
e m "raças". Continuamos a n o s classificar em raças, independente do o estágio do não-racialismo e não-racismo científicos, o u seja,
do que nos diga a genética. P r a g m a t i c a m e n t e , portanto, as pes- uma vez estabelecidas pelas ciências a inexistência de raças hu-
soas que adotam tal postura anti-racista, também não acreditam manas e a inexistência de hierarquias inatas entre os grupos hu-
em raças biológicas, mas a c e i t a m que as raças sociais são cons- manos, durante um b o m tempo, precisaremos ainda usar a pala-
truções sociais permanentes, s o b r e as quais deve-se organizar a vra "raça" de um m o d o analítico, para compreender o significa-
luta anti-racista. do de certas classificações sociais e de certas orientações de a ç ã o

Na agenda de ambas as posturas delineadas acima não consta informadas pela idéia de r a ç a . Para ser mais claro, utilizo u m

a superação da divisão da h u m a n i d a d e em "raças". Trata-se, tão exemplo. S u p o n h a m o s o caso corriqueiro de alguém, no Brasil,

somente, de civilizar as r e l a ç õ e s raciais, ou seja, de implantar e que se queixa por ter sofrido preconceito de cor. " C o r " , n o c a s o ,

garantir o funcionamento de n o r m a s sociais que conduzam à igual- é uma categoria emic, nativa. Para o analista, porém, o que se

dade de tratamento, de o p o r t u n i d a d e s e de direitos, independen- passou foi um caso de preconceito racial porque a categoria " c o r "

temente da raça do indivíduo. é informada pela idéia de " r a ç a " que. embora possa ter desapa-

Pode-se, ainda, distinguir duas outras posturas anti-racistas recido do discurso dos envolvidos no referido incidente, c o n t i n u a

que implicam na superação da idéia de raças. Uma delas, a terceira


possibilidade, é de que t r a t e m o s raças c o m o epifenômenos, do
2,1

ponto de vista científico, e, do p o n t o de vista social, como c o n s - Segundo Harris et.?/. ( 1 9 9 3 : 460), "termos emie se referem a siste-
mas lógico-empíncos nos quais distinções fenomênicas ou 'coisas' são ela-
truções que precisam ser s u p e r a d a s para que se possa erradicar o
boradas a partir de discriminações e contrastes que são signíficantes, reais,
racismo. As pessoas que a d o t a m tal postura não acreditam que
acurados, fazem sentido e são julgados apropriados pelos próprios a t o r e s " .
se possa ser, a um só t e m p o , racialista e anti-racista. Para elas, a Ao contrário, as categorias etic "dependem de distinções fenomênicas julga-
idéia de raça, por si só, m a i s c e d o ou mais tarde, conduz ao ra- das pertinentes por uma comunidade de observadores científicos".

52 Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 53


a orientar a ação dos agentes sociais. Analiticamente, portanto, pretos brasileiros, que ilustram uma classifieação-política ou de
o correto é falar em preconceito racial e não em preconceito de cor, respectivamente.
gênero ou de classe, ainda que, t a m b é m analiticamente, seja tam- Ora, para a tradição sociológica, cabe justamente ao analista
bém importante adicionar a categoria nativa através da qual o buscar o que há de c o m u m a diversas sociedades humanas p a r a
preconceito de raça se atualizou, no caso " c o r " . construir categorias a n a l í t i c a s gerais que possam ser utilizadas
Mas, minha postura, volto a repetir, é também delicada, pois heuristicamente, não para subsumir as diferenças e as particula-
pressupõe uma comunidade de leitores e ouvintes que partilhem ridades, mas, a o c o n t r á r i o , para permitir a compreensão das p a r -
a crença científica na inexistência de raças humanas e nas bases ticularidades e das contingências históricas. Assim, a palavra es-
sociais do racismo. " R a ç a " , neste c o n t e x t o , é uma ferramenta panhola " c a s t a " pôde ser usada em relação à hierarquia s o c i a l
analítica que permite ao s o c i ó l o g o inferir a permanência da idéia indiana, e não ficar circunscrita apenas à hierarquia social das c o -
de " r a ç a " disfarçada em algum tropo. lônias espanholas e portuguesas do período colonial, ainda que
N o caso específico d o d e b a t e brasileiro atual, ainda mais as duas hierarquias t e n h a m mais diferenças que semelhanças en-
importante para se compreender a dificuldade de entendimento tre si, quando pensadas em termos religiosos, por exemplo. C o m
entre os aderentes a essas duas últimas posturas anti-racistas tal- mais razão ainda, a idéia de raça de que estamos tratando per-
vez seja uma diferença ontológica fundamental entre alguns antro- tence, seja nos Estados U n i d o s , seja no Brasil ou em países da E u -
pólogos, como Yvonne Maggie e Peter Fry, por exemplo, e alguns ropa Ocidental, a um m e s m o universo de significado, que t e m
sociólogos, como eu. como referente histórico a modernidade européia, particularmente
Isso ficou claro para mim depois de ler um texto de Maggie o desenvolvimento da c i ê n c i a ao longo da colonização e da e s c r a -
( 1 9 9 9 ) em que a autora reproduz boa parte da crítica de Louis vização dos povos africanos.
Dumont ( 1 9 6 6 ) aos sociólogos americanos que utilizavam o con- Autores como Maggie e Fry tendem a ver a "democracia ra-
ceito de "casta" para referir-se às relações raciais do Deep South. cial" como parte constituinte da formação social brasileira, c o m o
A postura, que deve muito a Evans-Pritchard ( 1 9 6 9 ) , é a seguin- uma matriz cultural periodicamente atualizada por políticas, dis-
te: não cabe ao cientista social criar categorias analíticas para cursos e crenças. D a í p o r q u e a recusa à democracia racial, p e l o
sobrepor ao modo c o m o os atores sociais constróem o seu mun- menos da maneira radical c o m o o movimento negro a fez, foi in-
do de significados; à antropologia caberia apenas entender o modo terpretada como resultado da aplicação de um discurso e x t e r n o
c o m o esses mundos são construídos e são vividos pelos seus su- a essa matriz nativa. Eu tendo, ao contrário, a analisar a " d e m o -
jeitos-atores, ou seja, as pessoas particulares, em situações parti- cracia racial" brasileira c o m o uma ideologia historicamente d a -
culares, no interior de uma estrutura de significados. A crítica tada, materializada em práticas sociais, em políticas estatais e e m
sociológica ficaria por conta da c o m p a r a ç ã o entre sociedades hu- discursos literários e artísticos. Tal ideologia reinou sem g r a n d e
manas, cada uma delas podendo ser entendida da perspectiva da contestação, grosso m o d o , dos 1 9 3 0 aos 1 9 7 0 , e apenas a p a r t i r
outra. "Castas" seriam um fenômeno indiano, jamais categoria daí passou a ser crescentemente afrontada, submetendo-se a refor-
analítica para referir-se aos grupos semifechados, hereditários e mas que a descaracterizam.
endogâmicos das sociedades ocidentais, por exemplo; assim como O respaldo científico de que precisam os militantes a n t i -
" r a ç a s " seriam o modo particular c o m o os negros norte-ameri- racistas brasileiros, p o r t a n t o , não está em ressuscitar a idéia de
canos são classificados socialmente, ao contrário dos negros ou " r a ç a " biológica ou uma raciologia ultrapassada, invertendo os

54 Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 55


t e r m o s d o racismo científico do século passado. O.respaldo de que 27
leira, além de ser, enquanto ideal, inatacável. Fry ( 1 9 9 5 - 9 6 : 1 2 6 )
precisam resultará da reelaboração sociológica do conceito de raça. foi mais longe, argumentando que, enquanto ideologia, a d e m o -
C o n c e i t o este que deverá, ao mesmo t e m p o : 1) reconhecer o peso cracia racial, longe de a c o b e r t a r , ou ter se tornado, ela m e s m a ,
real e efetivo que tem a idéia de raça na sociedade brasileira, em racista, se contrapõe à ideologia que permite a discriminação ra-
28
termos de legitimar desigualdades de tratamento e de oportuni- cial no B r a s i l . Ao m e s m o tempo, à medida que o m o v i m e n t o
dades; 2 ) reafirmar o caráter fictício de tal construção em termos negro acusava Gilberto Freyre por ter passado uma imagem rósea
físicos e biológicos; e 3) identificar o c o n t e ú d o racial das "classes das relações raciais no país, cresceu a reação de alguns intelectuais
sociais" brasileiras. à tentativa de demonização de Frevre.
O anti-racismo erudito e a ciência social politicamente enga- A tensão entre o m o v i m e n t o negro e a academia brasileira é
jada precisam mais que negar a existência de raças biológicas, refe- também grande quando se trata de identidade racial. Definindo
rindo-se a tal idéia entre aspas. Precisam nomear as construções "negros" como todos os descendentes de africanos e identifican-
que tal idéia suscita, referindo-as pelo n o m e que devem ter, ainda do-os com a soma das c a t e g o r i a s censitárias "preto" e " p a r d o " ,
que não sejam polidos ou estejam interditos por tabus: "raciais" o movimento incorreu em duas heresias científicas: primeiro, a d o -
e " r a ç a " , esses são os nomes que descrevem a sua verdadeira na- tou como critério de identidade, não a auto-identificação, c o m o
tureza social. Afinal, a linguagem da ciência deve justamente ser quer a moderna a n t r o p o l o g i a , mas a ascendência biológica; se-
capaz de desvendar e revelar o que o senso comum escondeu. gundo, ignorou o fato de que, em grande parte do Brasil, a p o p u -
N o entanto, seria impostura ou demagogia não reconhecer lação que se autodefine " p a r d a " pode ter origem indígena e n ã o
os perigos reais para os quais Paul Gilroy e Peter Fry, entre ou- africana. A pretensão de identificar alguém como " n e g r o " pela
tros, apontam. sua ascendência, ignorando o modo como as pessoas se classifi-
O combate à discriminação e às desigualdades raciais tem cam ou traçam suas origens, deu margem também a outras críti-
encontrado resistências por parte da opinião pública brasileira. cas: a de que o m o v i m e n t o negro tenta impor categorias raciais
E isso, em parte, porque a luta c o n t r a o racismo, no Brasil, tomou americanas ao Brasil, e a de que professa a crença em raças b i o -
um rumo contrário ao imaginário n a c i o n a l e ao consenso cien- lógicas (racialismo).
tífico, formado a partir dos anos 1 9 3 0 . Por um lado, o Movimento Ora, à medida que o movimento negro ganhou maior proe-
Negro Unificado, assim c o m o as demais organizações negras, pno- minência política, principalmente quando passou a defender po-
rizaram em sua luta a desmistificação do credo da democracia ra-
cial, negando o caráter cordial das relações raciais e afirmando
que, no Brasil, o racismo está e n t r a n h a d o nas relações sociais. O
2

movimento aprofundou, por outro lado, sua política de constru- ' Mito, para os antropólogos, não se confunde com "falsa ideologia";
significa a expressão simbólica de um conjunto de ideais que organizam a vida
ç ã o de identidade racial, chamando de "negros" todos aqueles com
social de unia certa comunidade.
alguma ascendência africana, e não apenas os "pretos".
2 S
Sérgio Costa ( 2 0 0 1 i me atribui a intenção de querer reduzir a ideo-
Apenas essa mudança já explicaria grande parte da reação
logia nacional brasileira a uma ideologia de cunho meramente racial, o que
a o movimento negro. Por um lado, antropólogos como Roberto evidentemente seria uma b o b a g e m . O que eu digo é que essa ideologia na-
D a M a t t a e Peter Fry alertaram para o fato de que a democracia cional tem pressupostos raciais (mestiçagem), o que obviamente não impede
racial é, na verdade, um mito fundador da nacionalidade brasi- que ela seja declaradamente a-racialista.

56 Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 57


líricas públicas voltadas para a p o p u l a ç ã o negra, ferindo interes- reitos coletivos" e.os "direitos difusos", reconheceu, como sujei-
ses e privilégios consolidados, o mal-estar da academia tendeu a to de direito, o amplo setor da sociedade brasileira organizado em
transformar-se facilmente em c o n s e r v a d o r i s m o político. Reações ONGs, além de instituir o Ministério Público como o guardião
intelectuais bem fundamentadas c o m o as de Fry (1995-96) ou desses novos direitos. Assim, a criminalização do preconceito e
Harris et al. ( 1 9 9 3 ) acabam cedendo lugar a parolagens e acusa- da discriminação raciais, prevista na Constituição de 1 9 8 8 , ense-
ções gratuitas de "racismo às a v e s s a s " , "intelectuais a serviço do jou, em São Paulo e no R i o de Janeiro, a formação de programas
29
imperialismo americano", " s u b o r d i n a ç ã o cultural" e t c . como o SOS R a c i s m o e a criação de Delegacias Especializadas;
Mesmo contando com aliados intelectuais de peso, a verda- enquanto, em outros lugares, c o m o em Salvador, ofereceu a o M i -
de é que, o movimento negro ainda precisa muito dos intelectuais nistério Público a oportunidade de criar seções especializadas n o
3 0
"brancos" para vencer a resistência do establisbment acadêmi- combate aos crimes raciais. D o mesmo modo, a nova ordem c o n s -
c o , o qual continua pouco permeável à ascensão de negros. O me- titucional abriu espaço para a elaboração de políticas c o m p e n s a -
lhor exemplo disso está na r e a ç ã o bastante negativa das melho- tórias, que defendam os direitos sociais de populações margina-
res universidades públicas do país a qualquer tentativa de acesso lizadas, e que garantam o cumprimento de acordos internacionais
privilegiado de negros, e mesmo de pobres. Vendo-se a si mesma dos quais o Brasil é signatário. Era, portanto, esperado, que u m a
c o m o uma elite formada através d o mérito intelectual, a comuni- boa parte da intelectualidade negra concentrasse suas energias n a
dade universitária brasileira não aceita, de modo algum, a preten- atuação jurídica, c o m o que cresceu bastante a importância, n o
são de se utilizar qualquer outro critério de ingresso às faculda- movimento negro, d o s advogados, procuradores e p r o m o t o r e s
J
des que não seja o exame v e s t i b u l a r . ^ negros, além dos ativistas do S O S Racismo.
Ainda, em relação ao establisbment, vale lembrar que, nos Ora, ao tempo em que, para os negros, a atuação j u r í d i c a
últimos anos, o grande avanço da luta contra o racismo, no Bra- cresce de importância, surge também a necessidade de melhor pre-
sil, está se dando no terreno jurídico-político e não apenas no ter- paração, técnica e ideológica, para o convencimento da o p i n i ã o
reno ideológico. A Carta de 1 9 8 8 , a o introduzir no país os "di- pública, em geral, e dos magistrados e dos ministros das C o r t e s
superiores, em particular. Isso porque as decisões jurídicas g a n h a m
rapidamente repercussão jornalística, sejam prisões por r a c i s m o ,
2 9
Um bom exemplo de má-informação e conservadorismo são as pas- sejam liminares a a ç õ e s civis públicas que defendem direitos difu-
sagens de Bourdieu e Wacquant ( 1 9 9 8 ) referentes ao Brasil. As críticas con-
sos. A reação que os advogados e promotores negros e n c o n t r a m
tundentes que lhes foram dirigidas por French ( 2 0 0 0 ) me dispensam de maio-
no Judiciário e nas C o r t e s , por parte de juizes, desembargadores
res comentários.
e ministros, assim c o m o a que encontram por parte de j o r n a l i s -
, l !
No caso dos intelectuais brasileiros, mestiços de pele clara em sua
tas, é ainda, do p o n t o de vista intelectual, bastante primitiva.
maioria, a situação é ainda mais complexa, já que o movimento negro, em con-
tradição com seus próprios critérios, tende a tratá-los como "brancos". De fato, c o m o salientei em outro texto (Guimarães, 1 9 9 9 ) ,
51
há uma grande defasagem entre o pensamento sociológico, g e r a -
Essa restrição vem sendo d o b r a d a lentamente. A nova Lei de Diretri-
do e transmitido nas faculdades de filosofia e ciências sociais, e
zes e Bases da Educação flexibilizou o ingresso ao ensino superior, enquanto
o Exame Nacional do Ensino M é d i o ( E N E M ) , já em uso, possibilita um me- aquele transmitido nas escolas de direito ou jornalismo. Isso faz
canismo eficaz de avaliação alternativa de mérito acadêmico, já parcialmente com que os magistrados e advogados brasileiros, tendo r e n e g a d o
aceito por algumas universidades. tardiamente as idéias racistas de Lombroso e Nina R o d r i g u e s ,

58 Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 59


.continuem agora apegados ao consenso intelectual, liderado _por 1 9 6 0 , negros e brancos, direira e esquerda, liberais e socialistas,
Freyre, dos anos 1 9 3 0 e 1 9 4 0 . O u seja, para uma parcela decisiva parece ter sido definitivamente rompido.
das elites brasileiras, a única alternativa ao racismo científico do
final do século X I X continua a ser a ideologia da democracia ra-
cial. O movimento negro, p o r t a n t o , precisa esclarecer as diferen- OS L I M I T E S D O R A C I A L I S M O N E G R O
ças entre o seu racialismo e o racialismo anterior e, para isso, preci-
sa também atentar para o que de verdade dizem os seus críticos. O moderno movimento negro brasileiro foi criado nos 1 9 3 0 ,
Desse modo, são justas, t a n t o a defesa da identidade racial e recriado nos 1 9 7 0 , c o m o um programa de combate à discrimi-
c o m o direito à auto-identificação, quanto a rejeição das "raças" nação racial e de integração do negro à sociedade de classes. O
biológicas como construções sociais opressivas. T ã o justas quan- primeiro lutou para construir a democracia racial que, t e m p o s
to a crítica à função mistificadora da democracia racial brasilei- mais tarde, adquiriu o teor de farsa, denunciado pelo segundo.
ra, 3 2
ou a crítica à sociedade hierárquica ainda vigente no Brasil O primeiro negou as raças e pregou a cor como " a c i d e n t e " , o
(DaMatta, 1 9 8 1 , 1 9 8 5 ; Adorno, 1 9 9 5 ; Guimarães, 1998), ou ain- segundo reivindicou a dignidade e o orgulho raciais, como m o d o
da a demonstração de que as desigualdades sociais entre brancos de se opor à opressão. C o m o conseqüência de sua atuação, a p o -
e negros têm, no Brasil, um fundamento racial inegável (Hasenbalg lítica de identidade racial rendeu, também, frutos visíveis: e m
e Silva, 1 9 9 2 ; Lovell, 1 9 8 9 ; T e l l e s , 1 9 9 2 ) . Todos esses pontos vários pontos do país floresceram grupos culturais de a f i r m a ç ã o
precisam ser reintegrados de m o d o a evitar que as críticas justas da identidade negra e afro-brasileira, tais como os bailes black,
e saudáveis ao racialismo não realimentem uma elite politicamente os blocos afro, os grupos rap, os bailes funk etc. A própria f o r m a
conservadora e racialmente cínica. de identificação racial m u d o u , pelo menos em certas c a m a d a s

Mais: é bastante provável que já não seja possível, no Brasil, sociais, sendo comum, hoje, personalidades midiáticas, que a n -

construir um consenso nacional sobre as desigualdades raciais. £ tes se definiriam c o m o morenas ou mesmo brancas, se identifica-

provável que, como nos Estados Unidos, a questão racial passe a rem e serem aceitas c o m o negras.

ser objeto de dois discursos competitivos, ambos em sintonia com A luta contra a discriminação, ademais, começa agora a ser
o reconhecimento pleno da cidadania negra. Por um lado, um dis- travada pari passu a uma outra, bem mais ampla: a luta c o n t r a
curso cuja ênfase é posta no c a r á t e r racial das desigualdades, ou as desigualdades raciais, através da busca de políticas públicas mais
seja, na discriminação sistêmica alimentada pelos preconceitos e abrangentes, que reparem a exclusão política, social e e c o n ô m i -
pelas hierarquias socialmente aceitas (classe, gênero, etnia, raça, ca da população negra.
região e t c ) ; por outro lado, o u t r o discurso, cuja ênfase é dada ao Mas, apesar do imenso progresso e do enorme esforço feito
caráter econômico da desigualdade, ou seja à pobreza da popu- em termos de política de identidade, a verdade, no entanto, é q u e ,
lação em geral. Qualquer política pública, no futuro, talvez tenha dos negros em potencial (os "pardos" e "pretos" censitários, q u e
que ser negociada entre essas duas posições. O velho consenso alguns ativistas c h a m a m de negros), e que formariam 4 0 % da
sobre a democracia racial, a o qual aderiam, entre os anos 1 9 3 0 e população brasileira, segundo dados de uma pesquisa a m o s t r a i ,
apenas uma minoria atendeu ao apelo racial do movimento (ver
Tabela 1). Ainda de a c o r d o com esses dados (ver Tabela 2 ) , a p e -
3 2
Ver Nascimento e N a s c i m e n t o , 2 0 0 1 . nas 7 % da população brasileira se identifica como " n e g r a " ou

Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 61


60
"preta", enquanto 4 3 % prefere se identificar c o m o "morena" e Ora, enquanto a luta c o n t r a a discriminação forçou o r e c o -
o restante como " b r a n c a " ( 3 8 % ) , " p a r d a " ( 6 % ) ou outra cor. nhecimento explícito da c a t e g o r i a racial que motivava a discrimi-
nação, conduzindo, a d e m a i s , a uma definição ampla de n e g r o ,
enquanto categoria o b j e t o do preconceito, a luta a favor de a ç õ e s
Tabela 1 afirmativas para os negros terá forçosamente que beneficiar a q u e -
BRASIL: R E S P O S T A I N D U Z I D A À P E R G U N T A les 7% da população que se identifica como preto ou negro. C o m o
" Q U A L É SUA C O R ? "
reagirá no futuro o m o v i m e n t o a essa evidência? Como reagirá a
sociedade branca?
Cor Freqüência %
Em termos políticos, são grandes os desafios: se o movimento
Branca 2.522 49,6
606 11,9 negro abandonar o r a c i a l i s m o de atribuição racial (feita a partir
Preta
Parda 1454 28,6 de caracteres fisionômicos ou ascendência biológica), em t r o c a de
Amarela 141 2,8 um racialismo de identidades eleitas, poderá se ver tentado, c o m
Indígena 326 6,4 o tempo, a abandonar u m a política de maioria em favor de u m a
Outras 32 0,6
política de minoria. ^ O racialismo negro brasileiro tem duas vir-
Total 5.081 100,0 tudes inigualáveis: a c o n j u n ç ã o entre negros, definidos amplamen-
Fonte: Instituto de Pesquisa D a t a F o l h a , 1 9 9 5 . te, e pobreza é tão g r a n d e que dizer que os pobres são p o b r e s
porque são negros, e n ã o p o r q u e o país é pobre, é uma e x c e l e n t e
estratégia de responsabilização das elites do país que, até h o j e ,
Tabela 2
escondem seus interesses m a i s mesquinhos atrás de teorias c o m o
BRASIL: R E S P O S T A E S P O N T Â N E A À P E R G U N T A
" Q U A L É SUA C O R ? "
a da democracia racial o u a do subdesenvolvimento e c o n ô m i c o .
Tal estratégia negra c a s a - s e muito bem com a aspiração das es-
Cor Freqüência % querdas e com a nova m o b i l i z a ç ã o em defesa dos direitos h u m a -
Branca 1.946 38,3 nos e do respeito à c i d a d a n i a . Ao contrário, uma política de mi-
Moreno 1.769 34,8 noria, em uma sociedade e m que a maioria sofre a pobreza e a
Moreno claro 375 7,4 exclusão social e política, c o r r e o risco de perder legitimidade.
Parda 302 5,9
221 4,3 Esse dilema explica, talvez, por que as lideranças negras t ê m ,
Preta
Negro 135 2,7 aliás sabiamente, se c o n f o r m a d o a acomodar suas reivindicações
Ciara 84 1,7 de políticas afirmativas a fórmulas mais abrangentes, c o m o " n e -
Mulato 39 0,8 gros e carentes". Isso p o r q u e se sabe muito bem que, tanto atra-
Escuro 34 0,7
vés de critérios de auto-identificação racial, quanto de a t r i b u i ç ã o
Amarela 28 0,6
Moreno escuro 29 0,6
Outras 72 1,4
Não sabe 47 0,9

Total 5.081 100,0 3 3


O mesmo é válido para uma atribuição muito restrita que, por e x e m -

Fonte: Instituto de Pesquisa D a t a F o l h a , 1 9 9 5 . plo, inclua apenas os " p r e t o s " .

Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 63


62
34
por terceiros, a p o p u l a ç ã o negra c bem menor que a de descen- discrepância entre brancos e negros deve seaí) passado.escravista.
:

dentes de africanos. Sena, portanto, uma herança do passado, que desapareceria c o m


o tempo. T a l e x p l i c a ç ã o , embora tenha um cerne de verdade, es-
conde alguns p r o b l e m a s graves.
AS CAUSAS D A P O B R E Z A N E G R A
3 5
N O BRASIL: A L G U M A S R E F L E X Õ E S
Figura 1
A L I N H A D E C O R E DE POBREZA NO BRASIL.
Estatisticamente, está bem estabelecido e demonstrado o fato S E G U N D O THALES DE AZEVEDO
de que a pobreza atinge mais os negros que os brancos, no B r a -
sil. Mais que isto: está t a m b é m demonstrado na literatura s o c i o -
lógica, desde os 1 9 5 0 , que, no imaginário, na ideologia e no discur-
so brasileiros, há uma equivalência entre preto e pobre, por um
lado, e branco e rico, por o u t r o . Thales de Azevedo ( 1 9 6 6 ) , p o r
A n ,

exemplo, em texto d a t a d o de 1 9 5 5 , estuda a hierarquia social n a


Bahia para concluir que a principal clivagem dá-se entre b r a n c o s
e negros, clivagem esta que é igualmente referida na linguagem
cotidiana como sendo entre ricos e pobres. Comparando as e s -
truturas sociais da B a h i a e do sul dos Estados Unidos, Thales uti-
liza o diagrama sugerido por Lloyd Warner (Figura 1) para visua-
36
lizar a relação entre o sistema de castas raciais e o de c l a s s e s .
Há, portanto, no Brasil, seja na mentalidade popular, seja n o Fonte: Azevedo, 1 9 6 6 , p. 3 9 .
pensamento erudito, seja na demografía ou na sociologia, na e c o n o -
mia ou na antropologia, seja entre governantes e governados, u m
consenso de que os pobres são pretos e que os ricos são brancos. Primeiro, isenta as gerações presentes de responsabilidade
Quais são as causas da pobreza negra? A explicação normal- pela desigualdade atual; segundo, oferece uma desculpa fácil para
mente aceita, tanto pelos governos, quanto pelo povo, é de que a a permanência d a s desigualdades ("como reverter em c i n c o anos
o que é produto de c i n c o séculos?", esta tem sido a frase m a i s re-
petida pelos diversos governos republicanos, inclusive o atuai);
; 4 terceiro, deixa sugerido que os diversos governos têm b u s c a d o
' Até mesmo o movimento negro recusa-se a chamar de "negro" os
afrodescendentes de classe média, que se definem como "brancos". corrigir, gradualmente, tais disparidades (as vezes, m a i s q u e su-
gerido, o a r g u m e n t o é explícito entre os economistas: é preciso
" Este item foi escrito originalmente para ser apresentado ao Seminário
"Race and Poverty: Inter-Agency Consultations on Afro-Latin Americans",
que a economia c r e s ç a para que os problemas sociais r e s o l v a m -
Inter-American Díalog/Inter-American Development Bank, World Bank, W a - se naturalmente).
shington DC, 19 de junho de 2 0 0 0 . Contra tal e x p l i c a ç ã o conservadora têm se insurgido, a o lon-
3 6
Tal argumento encontra-se detalhado em Guimarães ( 1 9 9 9 ) . go dos anos (pelo m e n o s desde 1930 de forma organizada), as lide-

64 Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 65


ranças negras, para as quais as causas cia pobreza negra são a falta tivamente pelo ideário da cidadania m o d e r n a . 3 8
Só a partir de
de oportunidades, o preconceito e a discriminação raciais. Até bem então, estudos sobre a violência, a criminalidade e de construção
pouco tempo (a mudança pode ser datada de 1 9 8 8 ) , quando se es- da cidadania passaram a explicitar as discriminações diárias per-
creveu a atual C a r t a constitucional, os argumentos das lideranças petradas contra todos aqueles que, pelo seu aspecto físico — prin-
negras eram peremptoriamente rejeitados: não haveria nem discri- cipalmente a cor —, não parecem, para os poderes públicos, por-
minação, nem preconceitos raciais, sendo a pobreza negra pura- tadores de direitos subjetivos.
mente pobreza. Atualmente, nota-se uma mudança importante:
De fato, o que torna legítimo o r e c o n h e c i m e n t o da falta de
tanto o governo, quanto a opinião pública reconhecem a discrimi-
oportunidades dos pobres e o preconceito e a discriminação de
3
nação r a c i a l . ' ' M a s ainda se considera legítima a discriminação
que são vítimas? Em grande parte, dizem os militantes negros, tal
de classe, o que, ao fim e ao cabo, para os negros, dá n o mesmo.
legitimidade decorre justamente do fato de que os pobres são ne-
É importante chamar a atenção para a legitimidade que ad- gros. A c h o que esses militantes têm razão. S e n ã o vejamos.
quiriram no Brasil o preconceito e a discriminação contra os po- Primeiro, há aquilo que Hasenbalg e Silva ( 1 9 9 2 ) chamam
bres. Essa legitimidade se expressa na justificativa dada para os de "ciclo cumulativo de desvantagens" dos negros. As estatísticas
casos inegáveis e reconhecidos de discriminação c o n t r a pessoas demonstram que não apenas o ponto de partida dos negros é des-
negras. Nesses c a s o s , costuma-se explicar tal discriminação como vantajoso (a herança do passado), mas que, e m c a d a estágio da
sendo uma discriminação de classe e não de cor. T a l argumenta- competição social, na educação e no mercado de trabalho, somam-
ção foi, nos a n o s 1 9 4 0 , aceita e refinada pelas ciências sociais se novas discriminações que aumentam tal desvantagem. Ou seja,
brasileiras p o r autores tão importantes quanto D o n a l d Pierson as estatísticas demonstram que a desvantagem dos negros não é
( 1 9 4 2 ) , Marvin Harris (1966) ouThales de Azevedo ( 1 9 5 3 ) . Como apenas decorrente do passado, mas é ampliada no t e m p o presen-
esses autores faziam profissão de fé anti-racista, isso significou te, através de discriminações.
tratar c o m o natural e legítima tal discriminação de classe, esque-
Segundo, e talvez mais importante, é o c a r á t e r dessas discri-
cendo-se de que a possibilidade de uma pessoa pobre n ã o ser por-
minações. Dificilmente se poderia afirmar, para o Brasil, como se
tadora dos direitos plenos da cidadania é inaceitável numa ordem
fez, no passado, para os Estados Unidos o u para a África do Sul,
democrática. O fato de que os pobres, no Brasil, n ã o sejam reais
que o fator racial seja um motivo de discriminação explícito ou
sujeitos de direitos passou a ser um problema apenas recentemente,
diretamente detectável. Ao contrário, no Brasil, o fator racial está,
quando as ciências sociais brasileiras passaram a pautar-se norma-
geralmente, diluído numa série de características pessoais, todas
de ordem atribuída (ascribeu). Tome-se, c o m o e x e m p l o , o acesso
ao trabalho, que 4 5 % dos negros brasileiros, segundo o DataFolha
( 1 9 5 5 ) , consideram ser o principal problema que a população ne-
5T
- A administração Fernando Henrique Cardoso reconheceu publica- gra enfrenta, no Brasil.
mente, em diversas oportunidades, que existe racismo no Brasil. N o plano
da opinião pública, a referida pesquisa do DataFolha, realizada em 1 9 9 5 ,
mostrou que 8 9 % dos brasileiros também acreditam que os brancos têm pre-
conceito contra os negros e 5 8 % acham que o fato de a população negra viver
em condições piores que a branca se deve ao preconceito e à discriminação ,fi
Fíabermas talvez seja o autor contemporâneo que mais tenha dado
dos brancos c o n t r a os negros (DataFolha, 1 9 9 5 ) . ênfase aos fundamentos normativos das ciências sociais.

66 Classes, raças e democracia R a ç a e pobreza no Brasil 67


O r a , no mercado de trabalho, valores estéticos e comporta- arranjarem empregos. De um l a d o , o s bairros pobres-são estig-
mentais, que se traduzem na noção de " b o a aparência", são os matizados pela violência, pela sujeira, pela desonestidade, 41
de ou-
grandes responsáveis pela discriminação dos negros e dos po- tro lado, os bairros mais afluentes oferecem mais oportunidades
3 9
bres. Além da " b o a aparência", para jovens universitários que de emprego.
buscam emprego, outro fator decisivo é o r e n o m e da sua univer- Mas, há ainda um fator mais perverso, o fator "gênero", que
sidade, sendo que as universidades públicas e gratuitas, de ingresso n ã o pode ser desconsiderado. A pobreza, a falta de oportunida-
mais concorrido, são muito melhor aceitas pelo mercado que as des, a desigualdade de rendimentos e a discriminação atingem
40
universidades privadas. O problema consiste no fato de que a muito mais fortemente as mulheres que os homens. Nos últimos
qualidade do ensino público e gratuito deteriorou-se a tal ponto a n o s , a luta pela emancipação das mulheres e pela efetiva iguaL-
que apenas aqueles que podem pagai' colégios privados têm con- dade entre os sexos melhorou em muito a posição das mulheres
dições de ingressar na universidade pública e gratuita. Não ape- na sociedade brasileira. No e n t a n t o , olhando algumas estatísticas
nas os jovens mais pobres não têm acesso à universidade, como desagregadas por cor, fica-se c o m a idéia de que esse benefício
grande parte dos jovens negros melhor aquinhoados pela fortu- restringiu-se, até agora, quase que totalmente às mulheres bran-
na, mas que não freqüentam colégios de elite, têm que pagar pe- cas. Ou seja, a emancipação das mulheres parece ter ficado res-
los seus estudos universitários. Assim, o m e r c a d o e o governo trita às classes médias e altas, n ã o atingindo as mulheres pobres,
discriminam duplamente o negro: primeiro, oferecem mais chances geralmente negras. Os dados m o s t r a m , por exemplo, que embo-
de qualificação para os estudantes oriundos de colégios privados; ra as mulheres brancas tenham expandido sua participação na PEA
segundo, qualificam melhor os universitários da rede pública. e no emprego, inclusive com g a n h o s salariais, as mulheres negras
Ademais, o mercado de trabalho para as ocupações menos continuam presas ao desemprego e discriminadas em termos de
qualificadas, justamente aquelas onde negros e pobres com esco- salário (Guimarães c Consoni, 2 0 0 0 ; Lavinas, 2 0 0 1 ) .
laridade média teriam mais chances de c o n c o r r e r , encontra-se, nas O que sobressai das estatísticas e dos diagnósticos disponí-
grandes cidades brasileiras, como São P a u l o , totalmente fragmen- veis é que houve um desleixo h i s t ó r i c o dos governos brasileiros
tado por áreas de residência: a primeira pergunta feita a uma en- com relação à pobreza, que atingiu sobretudo a população negra.
trevistado em busca de emprego é o local de sua residência e quan- Pol íticas na área de educação, v o l t a d a s especialmente para os
tas conduções ela tomaria para chegar ao trabalho (Guimarães e negros e carentes, políticas de saúde pública c saneamento, poli-,
Guimarães, 2 0 0 0 ) . Isso circunscreve a c h a n c e dos pobres e negros ticas habitacionais para as classes pobres, políticas de transporte
urbano etc. são políticas que podem realmente reverter a situa-
ç ã o de pobreza da população negra brasileira. M a s , para que es-
sas políticas pudessem reverter a s i t u a ç ã o de carência dos negros
A noção de "boa aparência" é comentada do seguinte modo por uma
brasileiros, elas teriam que p r e e n c h e r duas condições: primeiro,
consultora de R H : "Boa aparência significa sucesso, atenção, aceitação so-
cial. Embora tenhamos consciência de que as pessoas não devem ser julgadas
pela aparência, na prática as bem cuidadas são mais favorecidas" (Guima-
rães e Guimarães, 2 0 0 0 ) .
I0
" Apenas três ou quatro universidades privadas, todas concentradas 4 1
O termo "favelado", por e x e m p l o , é um dos insultos raciais mais
no R i o de Janeiro e em São Paulo, fogem dessa regra. freqüentes no Brasil (ver último capítulo).

68 Classes, raças e democracia R a ç a e pobreza no Brasil 69


visar dois alvos — a população negra e os pobres; segundo, te- seculares, protegidos por interesses corporativos. Esses interesses

riam que ter duração maior que uma ou duas administrações. impedem que políticas antipobreza sejam tomadas ou implemen-
tadas pelos governos brasileiros. Em artigo recente, Elisa R e i s
(2000: 187) expressou essa dificuldade da seguinte maneira:

AS CRÍTICAS ÀS A Ç Õ E S A F I R M A T I V A S " U m outro t r a ç o relevante da cultura política da


elite é a forte preferência por políticas sociais univer-

N o entanto, apesar das evidências estatísticas, as políticas salistas p a r a c o m b a t e r a pobreza e a desigualdade. O s

de ação afirmativa (as únicas que visam reparar erros do passado), dados da pesquisa mostram também um forte consen-

atualmente propostas pelas lideranças negras, têm sido rejeitadas so na elite c o n t r a ações afirmativas ou impostos sobre

com base tanto em argumentos de classe (tais políticas beneficia- a riqueza. Ainda que reconhecendo que existe discri-

riam apenas os negros de classe média), quanto de raça (não ha- minação c o n t r a o s negros e contra as mulheres, a elite

veria propriamente uma comunidade negra no Brasil, ou seja, uma não está preparada para compensá-la através de me-

identidade negra precisamente definida). E por quê? Ora, a justi- didas de d i s c r i m i n a ç ã o positiva. De fato, a educação é

ficativa moral para o seu repúdio parece assentar-se sobre a au- vista c o m o o m e i o mais efetivo de combate à pobreza

sência, entre nós, de sentimento de responsabilidade ou de culpa e à desigualdade justamente porque se trata de uma so-

pelo passado, o que inviabiliza qualquer argumento de "repara- lução universalista, aberta a todos" (tradução minha).

ç ã o " (Skidmore, 1 9 9 7 ) .
Ademais, a cena política brasileira mostra também uma au- A discussão de políticas afirmativas para a população n e g r a ,
sência de sentimento de responsabilidade com o presente e com a por exemplo, conta, entre seus adversários, com os melhores e m a i s
pobreza: políticas afirmativas q u e visem beneficiar a população renomados cientistas sociais do país. Esses argumentam que t a i s
carente são igualmente c o m b a t i d a s em nome da competição por políticas c o n t r a r i a m os valores liberais (Reis, 1 9 9 7 ) e ferem a in-
4 2
mérito ou da excelência a c a d ê m i c a ; enquanto as políticas de teligência nacional ( D a M a t t a , 1 9 9 7 ; Fry, 2 0 0 0 ) . Para eles, a idéia
guerra à pobreza apenas lentamente saem do papel. É por isso que de adotar tais políticas é equivocada e simplista. Equivocada p o r -
tem alguma plausibilidade a afirmativa dos militantes negros de que reforça identidades étnicas e raciais, que reificam o r a c i s m o ;
que tal indiferença em relação à pobreza e a legitimidade da dis- simplista porque c o n t r a r i a a nossa tradição cultural. O s intelec-
criminação contra os pobres têm uma motivação racial. tuais que defendem políticas antipobreza mais radicais, que levem

As elites brasileiras não aceitam medidas eficazes de combate cm conta a discriminação racial e de gênero, seriam, portanto, o u

à pobreza. Há, inegavelmente, um agarramento aos privilégios pouco refinados para entender a complexidade da cultura brasi-
leira, ou estariam c o n t a m i n a d o s ideologicamente pelo seu e n v o l -
vimento com o m o v i m e n t o negro.
4 2
Foi o que aconteceu com o projeto de lei 298/99, já aprovado no O que esses autores ignoram ou omitem é que o povo brasi-
Senado, mas amplamente repudiado por educadores, reitores e intelectuais leiro não rejeita políticas afirmativas, inclusive em sua forma e x -
e, inclusive, pela imprensa mais progressista. Tal projeto de lei, em tramitação
trema de cotas, tal c o m o sugerem. Quem as rejeita são as c l a s s e s
na Câmara dos Deputados, assegura 5 0 % das vagas nas universidades pú-
médias e as elites, inclusive intelectuais. Em 1 9 9 5 , a já citada pes-
blicas brasileiras a alunos oriundos de escolas públicas de segundo grau, as
únicas que os mais carentes podem freqüentar. quisa do D a t a F o l h a sobre racismo detectou que os mais p o b r e s e

Classes, taças e democracia Raça e pobreza no Brasil 71


70
os menos escolarizados seriarn favoráveis a tais políticas, posição ção racial e de g ê n e r o ) ; significa que a paz racial é, n o Brasil, um
que se inverte à medida que se perscrutam as camadas mais educa- pacto de privilegiados, negros e brancos (e não que os que n ã o
das e mais favorecidas (Telles e Bailey, 2 0 0 1 ) . Seria isso refinamen- aceitam tal p a c t o queiram a guerra racial ou sejam intelectual e
to intelectual e cultural ou pura defesa de privilégios de classe? culturalmente grosseiros).
(ver Tabela 3 ) . A defesa que fiz (Guimarães, 1 9 9 9 ) do emprego de a ç õ e s
afirmativas p a r a reverter as desigualdades raciais no Brasil m e
rendeu críticas que vale a pena comentar.
Tabela 3
Alguns autores me atribuíram uma tendência a "traduzir"',
O P I N I Ã O D O S B R A S I L E I R O S SOBRE COTAS,
S E G U N D O C L A S S E S D E RENDA E GRUPOS DE C O R ou importar, para o Brasil modelos de engenharia social n o r t e -
americanos (Grin, 2 0 0 T . 174); outros a adotar princípios c o m u n i -
Concordância Por cor Por classes de renda Total tanstas ( C o s t a e W e r l e , 1 9 9 7 : 1 7 5 - 6 ) . Grin ( 2 0 0 1 : 1 8 2 - 6 ) , em
ou não com c o t a s '4
até 1 0 SM 11 ou + S M especial, fala de dogmatismo, de imposição de modelos e c a t e g o -
Brancos rias de pensamento à realidade social, enfim de desejo de " p o n t i -
Concordam 46,7% 69,5% 30,5% 100,0%
ficar". O u seja, atribui-me vícios c defeitos intelectuais dos quais
Discordam 53,3% 51,5% 48,5% 100,0%
deveriam estar imunes as pessoas bem formadas e refinadas.
Negros (pretos e pa rdos)
É significativo, entretanto, que tais críticas se dirijam a p o -
Concordam 51,5% S0,3% 19,7% 100,0%
65,1% 34,9% 100,0% sições políticas tomadas por mim nas duas oportunidades em que
Discordam 48,5%
discuti programas de ação afirmativa (Guimarães, 1 9 9 9 , parte 3 ) .
Fonte: DataFolha, 1 9 9 5 .
Antes de t u d o , é preciso lembrar que, nos dois m o m e n t o s e m que
analiso a a d e q u a ç ã o de políticas afirmativas para o Brasil, o faço
Que não se trata de simples interesse racial sabemos atra- num tom de p o l ê m i c a , primeiro, e, segundo, assumindo explici-
vés dos mesmos dados, já que, entre os negros mais favorecidos, tamente um estilo lógico-normativo, em que meus valores são
também diminui a adesão a tais políticas. Ou seja, estamos ine- abertamente declarados. Em ambos, meu conhecimento da ques-
gavelmente diante de uma sociedade em que os privilégios estão tão racial brasileira aparece, portanto, num c o n t e x t o c l a r a m e n t e
bem estruturados e sedimentados entre grupos raciais e de gênero. político e partidário (e não expresso em termos de análise s o c i o -
Isso significa que tais privilégios orientam a sua reprodução e am- lógica), o que, por si só, indica que a crítica deveria pôr-se mais
pliação através de discriminações (e não que não há d i s c n m i n a - propriamente nesse rerreno político. Meu objetivo nos referidos
textos ( G u i m a r ã e s , 1 9 9 9 , parte 3) é claro: contrapor-me a o s ar-
gumentos daqueles que repudiaram, na primeira hora, a a d o ç ã o
de políticas afirmativas no Brasil. Que argumentos foram estes?
4 5
A pergunta feita foi a seguinte: "Diante da discriminação passada e Cito os três principais. Primeiro, que tais políticas c o n t r a r i a r i a m
presente contra os negros, têm pessoas que defendem a idéia de que a única os ideais de u m a sociedade liberal, democrática e igualitária. Se-
maneira de garantir a igualdade racial é reservar uma parte das vagas nas
gundo, que t a i s políticas seriam contrárias aos nossos v a l o r e s
universidades e dos empregos nas empresas para a população negra, você
nacionais, principalmente ao nosso anti-racialismo. T e r c e i r o , que
concorda ou discorda c o m esta reserva de vagas de estudo e trabalho para
os negros?".
tais políticas n ã o poderiam ser aplicadas aqui porque n ã o existi-

72 Classes, raças e democracia Raça e pobreza no Brasil 73


riam sujeitos instituídos que reclamassem tais medidas (tudo se- pujá-la. Dizer que ninguém sabe quem é preto n o Brasil, significa

ria obra de uma minoria vanguardista distanciada da m a s s a ) . dizer que políticas que levem em conta a a u t o c l a s s i f i c a ç ã o racial
serão b u r l a d a s por pessoas que gostam de levar vantagem em tu-
Com relação ao primeiro desses argumentos, alinhavo idéias
do. P a r e c e - m e claro que a estratégia de se definir c o m o "preto"
que vão n o sentido de afirmar que, longe de contradizerem a ló-
ou " n e g r o " , c o m o qualquer estratégia, implicará sempre em van-
gica da democracia liberal, tais ações afirmativas radicalizam-na
tagens e desvantagens desde que o Estado g a r a n t a a coerência da
e só podem ser compreendidas em contextos em que o indivíduo
autoclassificação, o que não seria muito difícil de fazer.
e o mérito são t o m a d o s rigorosamente a sério. Em alguns âmbi-
tos, como na defesa do mercado de trabalho para brasileiros na- O r a , engajar-se num debate político não significa "pontifi-

tos, nos anos 1 9 4 0 , ou no combate a desigualdades regionais, nos car". Para m i m , o mais importante desse debate de primeira hora

anos 1 9 6 0 , foi o apego aos nossos princípios igualitários e a von- sobre ações afirmativas foi enfrentar os fantasmas que nossos in-

tade de preservar a unidade nacional o que nos levou a desenhar telectuais a l i m e n t a m e que a polêmica trouxe à luz. C i t o alguns: a

políticas afirmativas, respectivamente a chamada lei de 2 / 3 e o convicção na fragilidade de nossos valores d e m o c r á t i c o s ; o cons-

dispositivo de incentivo fiscal conhecido como 3 4 / 1 8 . 4 4 tante m e d o de sermos vítimas do imperialismo cultural, que nos le-
varia a importar idéias e pô-las fora do lugar; a c r e n ç a na excepcio-
Com relação ao segundo argumento, desenvolvo a tese de
nalidade e excelência de nossa convivência interracial (que não seria
que nosso antí-racialismo não deve ser entendido c o m o anti-ra-
racial); o persistente medo de que esse país se transforme num outro
cismo. Pelo c o n t r á r i o , sob os ideais progressistas de n e g a ç ã o de
Haiti (revivendo tardiamente 1791); e, finalmente, o suposto ar-
raças humanas e de afirmação de um convívio democrático entre
raigado vício do nosso povo de pegar carona sem dividir custos.
as " r a ç a s " vicejam preconceitos e discriminações que n ã o se apre-
sentam c o m o tais, o que termina por fazer com que esses ideais e
concepções continuem a alimentar as desigualdades sociais entre
brancos e negros. D a d a a nossa tradição anti-racialista recente, CONCLUSÕES
todavia, é mais provável que o reconhecimento das diferenças e
das identidades raciais, implícitas em políticas de a ç ã o afirmati- As críticas ao uso de "raça" enquanto c o n c e i t o analítico têm,
va, levasse à tolerância e não ao conflito racial. c o m o v i m o s , diversos fundamentos. Os que me parecem mais só-
lidos são o s que chamam a atenção para o caráter histórico e tran-
C o m relação ao terceiro argumento, digo basicamente o se-
sitório da idéia de raça. Tal historicidade fica evidente no empre-
guinte: a divisão entre brancos e negros está presente no nosso co-
go que faço desse conceito, sempre o referindo a uma situação
tidiano, ainda que outras formas de classificação p a r e ç a m sobre-
concreta que pode ser verificada empiricamente. Ademais, enquan-
p
to c o n c e i t o analítico, uso-o sempre com o p r o p ó s i t o d revelar o
4 A
E certo que a lei de 2/3 veio revestida, na época, de um inegável rancor racialismo real que o não-racialismo formal e discursivo escon-
xenófobo e antiliberal, alimentado pelo clima de intolerância racial dos anos de. Isto, é c l a r o , limita o entendimento do c o n c e i t o àqueles que
1 9 4 0 . No entanto, é também inegável que havia, no mercado de trabalho, c o m u n g a m c o m i g o o repúdio à idéia de r a ç a . D a í decorre, me
uma preferência racial pelos imigrantes europeus, o que acabava por alimentar parece, a sua fragilidade; isto é, de sua c o n t e x t u a l i d a d e e transi-
a xenofobia dos negros brasileiros. Os valores igualitários a que me refiro
toriedade; qualidades, entretanto, que decorrem do conceito e não
foram aqueles que sedimentaram a incorporação dos negros e mestiços ao
do meu u s o . Assim, por exemplo, ao c o n t r á r i o do que parece
mercado de trabalho industrial e de serviços das regiões Sul e Sudeste.

Raça e pobreza no Brasil 75


74 Classes, raças e democracia
pensar Sérgio Costa ( 2 0 0 1 ) , quando analiso a possibilidade de que ra e a " r a ç a " norte-americana está a construção típica ideal de
a identidade brasileira esteja se movendo do paradigma freyreano raça, q u e a p e n a s pode dar conta do afastamento entre a catego-
de "nação mestiça" para o paradigma internacionalista de " n a - ria nativa e as práticas sociais que o conceito quer representar.
ção multirracial"; e q u a n d o digo que "baiano", no sul do Brasil, Q u a n d o os conceitos de "raça" e "gênero" são aplicados aos
é muitas vezes (mas n e m sempre) um tropo para "negro'", "mes- estudos sobre desigualdades socioeconômicas ou pobreza eles têm
tiço" ou "mulato", estou na verdade, buscando investigar até que o efeito virtuoso de revelar aspectos que o conceito de " c l a s s e " não
ponto o elemento racial está mudando, até que ponto está ganhan- poderia e x p l i c i t a r . Eles desvelam certas particularidades ria cons-
do proeminência ou desaparecendo. Estou, de fato, levantando trução social da pobreza que eram antes ignoradas. E m vez de con-
uma hipótese de t r a b a l h o , que poderá ou não ser verificada. Em tinuarmos a pensar que a relação entre " c o r " e pobreza é de c o -
sociologia, qualquer c o n c e i t o que queira substituir o t r a b a l h o incidência, passamos a investigar o papel constituinte da " c o r "
empírico é equivocado, não apenas "raça". Ademais, reduzir a sobre a p o b r e z a . Passamos também a buscar os fundamentos ra-
análise de qualquer realidade a um único conceito é sempre sim- ciais da classificação por cor no Brasil. Em nenhum m o m e n t o , que-
plório. Certamente esta n ã o foi, nem poderia ser, uma intenção rem esses estudos ou estudiosos negar a construção da pobreza
interpretativa minha; a o contrário, parece ser o risco que sempre pela s i t u a ç ã o de classe (ou pela luta de classes, pela e x p l o r a ç ã o
corre a leitura n ã o - a n a l í t i c a , ao não perceber o ceteris paribus capitalista e t c ) . Tudo o que fazemos é mostrar outras determi-
envolvido na análise de qualquer aspecto da realidade social. nações que n ã o são subsumíveis ao conceito de classe social. Do
Já outros a r g u m e n t o s me parecem completamente equivo- mesmo m o d o , nos estudos de identidade nacional há aspectos que
cados. O principal desses equívocos é considerar a "democracia só podem ser revelados quando investigamos a i m a g e m racial e
racial" uma matriz cultural, produto de um ethos (ou essência) de gênero do nacional. Sem imperialismos ou reducionismos.
qualquer (a c o l o n i z a ç ã o portuguesa etc.) que se sobrepõe à his-
tória. Ainda que a idéia de matriz de longa duração possa ser
proveitosa quando aplicada à história, ela deve obedecer à regra
simples de não impedir que se construa o entendimento da mu-
dança. A idéia de um imperialismo cultural americano a impor
ao mundo o seu particularismo sofre desta doença: acreditar que
o que é hoje " b r a s i l e i r o " ou "francês" está constituído desde sem-
pre e foi construído e m isolamento das influências mais variadas
e mais aparentemente estrangeiras. O que parece estrangeiro, é
sempre, na verdade, alimentado do interior e em contradição com
as tradições que se impuseram.
Outro equívoco m e parece ser o relativismo cultural, que de-
nuncia a construção de classificações gerais. A verdade é que o
conceito jamais se efetiva em realidades sociais, permanecendo
sempre como um " t i p o ideal", ao modo weberiano, e x a t a m e n t e
como acontece c o m o s conceitos nativos. Entre a " c o r " brasilei-

76 Classes, raças e democracia Raça e p o b r e z a no Brasil


POLÍTICA DE I N T E G R A Ç Ã O
4 5
E POLÍTICA D E I D E N T I D A D E

Como se coloca a questão racial na política brasileira? E s t a


é uma pergunta que pode ser entendida de diversas maneiras. A
primeira delas refere-se ao m o d o c o m o assuntos relativos às dife-
renças raciais da população brasileira são tratados ou abordados
pelos políticos e pelas políticas públicas. Podemos, também, repor-
tá-la à maneira como algumas minorias raciais se organizam p o -
liticamente, seja em termos da construção de um sentimento ét-
nico particular, seja em termos institucionais e partidários; ou,
ainda, circunscrevê-la à forma particular como diferentes contin-
gentes raciais foram absorvidos n u m a única identidade nacional
brasileira.
A ciência política brasileira construiu, todavia, no decorrer
dos anos, um certo modo de abordar a questão. Bolívar Lamounier
( 1 9 6 8 ) e Amaury de Souza ( 1 9 7 1 ) arrolaram, há trinta anos, três
questões substantivas que ainda desafiam o estudo da relação entre
raça e política no Brasil. A primeira é se negros e brancos tem
comportamentos políticos diferenciais, presumidamenfe baseados
na experiência das desigualdades sociais; a segunda, se há um

4;>
Versão anterior deste capítulo foi publicada com o título de " A
questão racial na política brasileira: os últimos quinze anos", na Tempo So-
cial, vol. XIII, n° 2, novembro de 2 0 0 1 , pp. 121-42. Essas idéias foram ex-
postas originalmente na Conferência "Fifteen Years of Deniocracy in Brazil",
University of London, Institute of Latiu American Studies, Londres, em 15 e
16 de fevereiro de 2 0 0 1 . Agradeço comentários feitos a versões anteriores
por Brasilio Sallum Jr., Lilia Schwarcz, Nadya Guimarães e Peter Fry.

Política de integração e política de identidade 79


comportamento político coletivo por parte dos negros, que e x p r e s z A p r i m e i r a tentativa de explicar o c o m p o r t a m e n t o político
se solidariedade racial: c finalmente, "como opera o sistema po- diferenciado dos negros no Brasil moderno foi cie G i l b e r t o Freyre.
lítico para desmobilizar o potencial de comportamento político As duas frases reproduzidas abaixo sintetizam m u i t o bem a sua
coletivo" dos negros? opinião s o b r e a preferência dos negros pelos p o l í t i c o s populistas,
Souza e a m a i o r i a dos que escreveram sobre a relação entre principalmente pelo trabalhismo.
raça e política no Brasil (Silva e Soares, 1 9 8 5 ; Castro, 1 9 9 3 ; Ber- " O lado irônico do desaparecimento s i m u l t â n e o
quó e Alencastro, 1 9 9 2 ; Prandi, 1996) restringiram seus estudos das d u a s instituições — escravidão e m o n a r q u i a — foi
à primeira dessas questões, enquanto Lamounier ateve-se a exami- que antigos escravos se encontraram na p o s i ç ã o de ho-
nar a terceira. Neste capítulo, abordarei as duas primeiras, deixan- m e n s e mulheres que não tinham o i m p e r a d o r nem o
do para o capítulo seguinte a discussão sobre a incorporação sim- a u t o c r a t a da casa-grande para protege-los, t o r n a n d o -
bólica dos negros na comunidade nacional. Começarei por rese- se. em conseqüência, vítimas de profundo sentimento
nhar, brevemente, os estudos sobre o comportamento eleitoral dos de insegurança. (...) Foram necessários a n o s para que
negros brasileiros para. depois, tratar da emergência de movimen- os líderes políticos entendessem a situação p s i c o l ó g i c a
tos sociais negros e de sua incorporação ao sistema político. e s o c i o l ó g i c a real destes antigos escravos, disfarçados
em trabalhadores livres e privados de assistência social
p a t r i a r c a l que lhes era dada na velhice ou n a doença
O V O T O N E G R O E A CIÊNCIA P O L Í T I C A pela casa-grande ou, quando esta deixava de fazer-lhes
j u s t i ç a , pelo Imperador, pela Imperatriz o u Princesa
Focalizando especificamente São Paulo, entre 1 8 8 8 e 1 9 8 8 , imperial. !-..] Isto explica — chegando ao Brasil moder-
George Andrews ( 1 9 9 I) apresenta uma interpretação síntese de n o — a grande popularidade de Getúlio V a r g a s quan-
quais têm sido as tendências políticas dos negros brasileiros. Seu d o , c o m o presidente, por algum tempo c o m p o d e r di-
argumento é que, n o passado, a simpatia política do povo negro t a t o r i a l , decidiu-se a implantar a legislação s o c i a l que
sempre esteve com a monarquia, pois era sabido que o Imperador deu a grande parte da população obreira do Brasil pro-
sempre fora muito mais propenso à abolição da escravidão que t e ç ã o contra a velhice, doença e exploração p o r empre-
os fazendeiros. D o mesmo modo, a Primeira República, que se sas comerciais ou industriais. Isto também e x p l i c a por-
segue à abolição, por ser uma república de fazendeiros, no plano que V a r g a s se tornou conhecido c o m o o ' P a i cios Po-
do poder, e por ter adotado uma política cultura! de europeizarão bres* e conquistou entre o povo popularidade que su-
dos costumes, n u n c a fora bem vista ou bem-quista pelos negros. p.-rou a obtida por D. Pedro II em 4 8 anos de governo
Apenas o Estado N o v o de Getúlio Vargas, com sua política de b- >m, hor.csto e paternalista''' (Freyre, 1 9 5 6 : 4 6 ; .
proteção ao t r a b a l h a d o r brasileiro e de tutela de seus sindicatos,
(c, posteriormente, o trabalhismo de Getúlio, Jango e Brizola) re- Foi Bolívar Lamounier (1968) quem i n a u g u r o u uma nova
ganhou as simpatias das massas negras na mesma escala c o n s e - tradição científica no estudo das relações entre r a ç a e política no
guida pela casa imperial. Brasil. Para ele, a situação brasileira oferecia u m aparente para-
Andrews reproduz, em sua síntese, o consenso de boa parte d o x o : g r a n d e s e crescentes desigualdades sociais entre brancos c
da literatura disponível sobre o tema. negros convive riam, lado a lado, com a relativa a u s ê n c i a de con-

80 Classes, raças e democracia Política cie integração e política de identidade 81


1
flitos violentos e com a quase inexistência cie assuntos raciais na de d o voto negro. Um voto que opera complexamente acoplado
esfera política. Aceitando a observação de Freyre de que os ne- à situação socioeconômica: entre os mais pobres, os negros ten-
gros, mais que os brancos, apoiam os lideres trabalhistas e popu- dem à apatia política (não comparecimento às urnas, voto nulo),
listas, Lamounier concentra-se no estudo das formas de integração e n q u a n t o que, entre os mais bem situados economicamente, os
dos negros ao sistema político, oferecendo uma explicação para negros tenderiam a votar na esquerda. Castro n ã o encontra, to-
o p a r a d o x o por ele apontado. Para ele, primeiro, o Estado brasi- davia, diferenças significativas de c o m p o r t a m e n t o entre pardos
leiro tem sido capaz de gerar símbolos de i n t e g r a ç ã o e incorpora- e pretos.
ção dos negros que são suficientes para contrabalançar-as tensões Se, como vimos, a preferência dos negros pelo imperador e
oriundas do preconceito e da discriminação raciais; segundo, o pelo populismo getulísta é interpretada por Gilberto Freyre (1956)
Estado tem sabido antecipar-se ou abortar no n a s c e d o u r o as ten- c o m o produto do sentimento de insegurança, que os leva a bus-
sões raciais; terceiro, as instituições sociais brasileiras têm tido su- car proteção social em figuras fortes e dominadoras, Souza (1971)
cesso em c o o p t a r as lideranças negras emergentes e agressivas. e Andrews ( 1 9 9 1 ) , entretanto, sugerem que tal preferência tenha

M a s , foi Amaury de Souza (1971) quem demonstrou pela sólidas bases e contrapartidas materiais. N o caso do populismo,

primeira vez, que os negros apresentavam r e a l m e n t e comporta- Souza ( 1 9 7 1 ) argúi, por exemplo, que as leis trabalhistas de Var-

mento político diferente dos brancos. Utilizando técnicas de aná- gas deram ao negro brasileiro as garantias para a sua inclusão na

lise multivariada, a partir de dados eleitorais d o s anos 1 9 6 0 , e sociedade de classes. Seus ciados m o s t r a m , ademais, que, entre os

c o n t r o l a n d o os efeitos de outros possíveis determinantes, como jovens eleitores cie 1960, havia maior mobilidade ascendente en-

a classe social, a educação e outras variáveis de posição social, tre os negros que entre os brancos; essa maior mobilidade, toda-

c o m p r o v o u a sigularidade eleitoral que já tinha sido avançada por via, era insuficiente pata erodir a identificação dos negros com a

Freyre em termos impressionísticos. classe trabalhadora c os pobres. N o plano ideológico, "pelo me-
nos durante os primeiros anos do período de democracia liberal,
D e p o i s que Souza demonstrou que os n e g r o s , nas eleições
de 1 9 4 5 a 1964, as categorias políticas de negro e povo eram qua-
de 1 9 6 0 , votaram mais consistentemente em J a n g o que os bran-
se que intercambiáveis" (Souza, 1 9 7 1 : 6 4 ) .
cos, independentemente de sua situação s o c i o e c o n ô m i c a , firma-
se na ciência política brasileira a idéia de um c e r t o padrão de voto T a m b é m Reginaldo Prandi ( 1 9 9 6 : 6 3 - 4 ) interpretando esse
negro, que iria sistematicamente em direção a o s populistas e tra- período, diz:
balhistas. U m a década depois, Gláucio Soares e N e l s o n do Valle ";\ ias é a feição populista do trabalhismo de Var-
Silva ( 1 9 8 5 ) , analisando a vitória de Bnzola nas eleições para go- gas que explicaria a adesão do negro a essa corrente
vernador do R i o de Janeiro, demonstram f a r t a m e n t e a existência partidária e seus candidatos. ( ) populismo nega a luta
de uma preferência eleitoral dos "pardos", ou seja, dos mulatos, de classes e dilui as raças numa unidade homogênea,
pela c a n d i d a t u r a do herdeiro getuhsta, ainda q u e controlando o povo, que é ideologicamente a fonte de toda a legiti-
outras variáveis explicativas, como a situação socioeconômica, o midade. Diferenças raciais n ã o fazem sentido, como
grau de u r b a n i z a ç ã o etc. não faz sentido qualquer movimentei de afirmação ra-

T a m b é m M ô n i c a de Castro ( 1 9 9 2 ) , a partir de dados de in- cial; o populismo, assim, é uma ideologia de integração

tenção de votos em quatro municípios brasileiros de porte médio, do negro como igual".

para as eleições de 1 9 8 9 , comprova a existência de especificida-

82- Classes, raças e democracia Política de integração e política de identidade 83


Depois da Constituição de 1 9 8 8 , que permite o voto de anal- Mais ainda, a cor, para Prandi, foi o fator principal para a predi-
fabetos, incorporando assim milhões de negros ao eleitorado bra- ção da intenção de voto, superando a escolaridade ou a idade.
sileiro, e diante do avanço do M o v i m e n t o Negro no país pregan- Prandi rejeita, contudo, as interpretações de Souza, Castro, Berquó)
do o voto em candidatos negros, a relação entre raça e política c Alencastro, Soares e Silva, segundo as quais tratar-se-ia de um
voltou a preocupar os cientistas políticos. O lançamento da can- voto motivado ideológica ou etmeamente, preferindo retornar a
didatura de Benedita da Silva ao governo do Estado do R i o de uma explicação mais próxima da de Freyre: tratar-se-ia de um sen-
Janeiro, em 1 9 8 9 , com a p o l a r i z a ç ã o racial e de ciasse que se se- timento profundo cie desamparo e de impotência, que levaria os
guiu, assustou as elites políticas, econômicas e intelectuais do país. negros a identificar-se c o m os programas de alguns candidatos
Estaríamos em vias de assistir à racialização da política brasilei- carismáticos.
ra? Estariam os negros no Brasil desenvolvendo" sentimentos e
comportamentos políticos c o m u n i t á r i o s .
Berquó e Alencastro (1 9 9 2 ) , analisando dados de pesquisas O CONFORMISMO NEGRO
amostrais realizadas em São Paulo e em Vitória do Espírito San-
to, vêem a possibilidade, com o fim da proibição de voto aos anal- Assim c o m o Prandi, muitos autores argumentam que, no
fabetos, de surgir no país o v o t o étnico negro, ou seja uma prefe- Brasil, o homem do povo, que se classifica como "preto" o:: "par-
rência dos afrodescendentes cm votar em candidatos que repre- do" nos censos, ou c o m o moreno no dia-a-dia, não tem "ideolo
sentem a comunidade negra brasileira, ameia que apenas 1 4 % dos gia" ou "consciência de raça", isto é, pauta o seu discurso de iden-
que se autoclassificam de negros manifestem tal intenção. O voto tidade em conformidade c o m o mito da democracia racial.
étnico, até então, estivera restrito a comunidades "imigrantes" de Assim compreendida, a "democracia racial" seria um siste-
São Paulo (italianos, sírio-libaneses, portugueses, japoneses etc.) ma de orientação de a ç ã o (práticas, expectativas, sentido- e va-
e Rio de Janeiro (portugueses). lores arraigados no senso comum) que informaria a conduta real
Analisando dados de i n t e n ç ã o de voto para as eleições de do dia-a-dia e o c o m p o r t a m e n t o político. Dessa perspectiva, os
1 9 9 4 , Prandi ( 1 9 9 6 ) t a m b é m c o n s t a t a a preferência eleitoral dos negros e mulatos agiriam, no Brasil, de tal maneira que sua c o r
negros por alguns candidatos ( L u l a , Brizola, Quercia) em detri- não seria um fator relevante da organização de sua conduta ou
mento de outros (EHC, Amin, E n é a s ) . ainda que controlando va- do nosso entendimento nesta. Não que essas pessoas fossem "alie-
riáveis como área geográfica, idade, sexo. renda, escolaridade. nadas' e não percebessem qualquer discriminação social, ms< esta.
quando existente, não -cria atribuída à raça e, caso ÍOSSL. seria
vista c o m o episódica e marginal. Um negro poderia, assim, c o m -
4 6
Dc fito, políticos negros, rais c o m o Ab-umo Az rodo, no Espirito portar-se normalmente seguir, também normalmente, a: "vi de-
Santo, e Alceu Colares. no Rio Cirande do Sul. ja luvimi sido eleitos ante- terminada trajetória soe; d, sem que sua cor fosse responsabilizada
riormente p>\emadores de seu.s Estados. A diferi -ca dess N políticos, em re- por esta trajetória. T a i "normalidade" seria garantida, obvia-
lação a Benedita, e que se tratava de políticos " o n f o r m i - u s " : eram ambos
mente, por um padrão universal de comportamento. Ou se;a, um
de partidos políticos não radicais e pessoas "'Ivra educadas", no sentido de
padrão "brasileiro", mais que " b r a n c o " . A crença na existência
se expressarem em "bom" português de ciasse média e acrecitarem nos valores
da "democracia racial", sem apelarem diretamente para c voto negro. Mais e na efetividade desse c o m p o r t a m e n t o seria responsável pela ge-
adiante, ficará claro no que consiste o "conformismo" destes políticos. neralização de trajetórias bem-sucedidas de negros c mulatos na

S'4 Classes, raças e democracia Política de integração e políuca de identidade 85


sociedade brasileira, ainda q u a n d o estas pessoas pudessem reco-
OS M O V I M E N T O S N E G R O S
nhecer que efetivamente sofreram constrangimentos e humilha-
ções por conta de sua cor. O que faria este comportamento efeti-
Se, do ponto de vista da política eleitoral, não p a r e c e t e r
vo não seria a ausência de discriminação, mas o fato de esta não
havido, nos últimos 1 5 a n o s , uma movimentação dos n e g r o s em
ser realçada ou considerada um obstáculo insuperável.
uma direção única, isso n ã o impediu a formação de um m o v i m e n t o
A crença, pelas ciências sociais, de que tal comportamento social relativamente forte. C o m o muitos outros autores a p o n t a m ,
de negros e mulatos seja efetivo e generalizado não se dá, entre- os negros, no Brasil, sempre ostentaram comportamentos radicais,
tanto, sem contradições. R o g e r Bastide, por exemplo, se referiu quebrando as regras do conformismo social. Debrucemo-nos, por
a tal comportamento c o m o "embranquecimento", realçando jus- um momento, sobre esses que se definem como " n e g r o s " , que
tamente o seu caráter a c u h u r a d o , que distanciava o negro de sua organizam movimentos sociais e dizem representar o c o n j u n t o do
cultura e de seus valores. O u seja, evocando uma certa inauten- "povo negro".
ticidade naquilo que esses negros consideravam "brasileiro" c que
As tensões raciais no Brasil moderno, isto é, de 1 9 5 0 para
ele, Bastide, implicitamente, considerava "branco". Do mesmo
cá. tem crescido nos m o m e n t o s de menor coesão n a c i o n a l . N o s
modo, era considerado " e m b r a n q u e c i m e n t o " a absorção pelos
anos 3 0 , em São Paulo, por exemplo, as diversas formações étni-
negros de certos padrões de c o m p o r t a m e n t o das classes médias e
cas — principalmente os italianos, os sírios-libaneses, os portugue-
altas, o que significava, t a m b é m subtepticiamente, que não ha-
ses — estavam tão bem organizadas que o regionalismo paulista
veria lugar para negro nessas classes.
assumia contornos separatistas. Os brasileiros de variada mesti-
Pode-se dizer, baseado nessa literatura dos anos 1950 e 1 9 W ) , çagem sentiam-se a m e a ç a d o s "de exclusão em seu próprio p a í s " .
que havia dois tipos de " n e g r o " : o que acreditava na "democra-
É nessa época que surge a Frente Negra Brasileira ( F N B ) , uma
cia racial", ou seja o " e m b r a n q u e c i d o " ou racialmente "aliena-
organização étnica, no sentido de que cultivava valores c o m u n i -
d o " , e o negro consciente de sua cor e cie sua discriminação, que
tários específicos, m a s cuja forma de recrutamento e identificação
Bastide e Fernandes c h a m a r a m de " o novo negro".
era baseada na " c o r " ou " r a ç a " e não na "cultura" ou nas "tradi-
Estudos recentes (Figueiredo, 1 9 9 9 ) têm demonstrado, que ções". De fato, a F N B buscava justamente afirmar o negro c o m o
no período atual, além destes dois tipos, existe um outro: o ne- "brasileiro" — renegando as tradições culturais afro-brasileiras,
gro que, mesmo sabendo que sua cor faz parte do jogo permanente responsabilizadas pelos estereótipos que marcavam os negros —
cias representações sociais, definindo oportunidades desiguais, faz, e denunciando o p r e c o n c e i t o de cor que os alijava do m e r c a d o de
amda assim, uma trajetória de ascensão social sem a necessidade trabalho em favor dos estrangeiros (bastide. i 9 5 5 , i 9 8 3 ; Fernan-
de mobilizar politicamente a c o r . Assim seria o novo conformis- des, 1 9 5 5 , 1 9 6 5 ) . M a s a F N B foi, também, uma organização políti-
mo negro, o qual grassaria tanto no espaço delimitado rolos va- ca que chegou a se tran sformar em partido, antes de ser extinta pelo
lores da democracia racial (mas, sem se confundir com "embran- Estado Novo. P o l i t i c a m e n t e , apesar de conter algumas dissidên-
quecimento"), quanto no espaço cultural construído pela mihtan- cias socialistas, a F N B era majontariamente de d r e i t a , de corre
cia negra, (mas sem se confundir politicamente com esta). fascista, incluindo m e s m o um grupamento paramihrar. Assim, em
1932, os negros relutam em formar com a revolução constituciona-
lista paulista, de cunho regionalista e separatista e,em 1 9 3 7 , apoiam
o golpe de Vargas que, de certo modo, implementa algumas polí-

86 Classes, raças e democracia


Política de integração e política de identidade 87
ricas ao encontro das suas reivindicações. Tratava-se, portanto, cio tamente os negros em ascensão social, aqueles recentemente in-
protesto negro contra uma organização social (a da Primeira Re- corporados à sociedade cie classes, que verbalizarão com m a i o r
pública), que tinha material e culturalmente acuado as populações contundência os problemas da discriminação, do preconceito e das
negras e mestiças em espaços secundários e marginais. desigualdades.
Mas a ditadura de V a r g a s prescindia de organizações polí- O Teatro Experimental do Negro (TEN) do R i o de J a n e i r o
ticas livres, ainda que sua política tivesse o respaldo das massas. foi, nesse período, a principal organização negra do país. E m b o -
O protesto negro só poderá emergir com a restauração das liber- ra tivesse, de início, o objetivo, eminentemente cultural, de abrir
dades civis, oito anos depois. o campo das artes cênicas brasileiras aos atores negros, a c a b o u ,
A redemocratização em 1 9 4 5 será mareada, como vimos, por com o tempo, por se transformar em agência de formação pro-
um forte projeto nacionalista, tanto em termos econômicos quanto fissional, clínica pública de psicodrama para a população negra
culturais. Isso representou, por urn lado, a recusa do liberalismo e movimento de recuperação da imagem c da auto-estima dos
econômico e do imperialismo cultural europeu e americano e, por negros brasileiros. Seus principais intelectuais, Abdias do N a s c i -
outro lado, a edificação de um capitalismo regulado pelo Estado mento ( 1 9 5 0 . 1 9 6 8 i e Alberto Guerreiro Ramos ( 1 9 5 7 ) , princi-
e uma cultura nacional a u t ó c t o n e de bases populares. Esse proje- palmente este último, radicalizaram a crítica ao imperialismo cul-
to de nação ofereceu aos negros uma melhor inserção econômica tural europeu e norte-americano, pregando uma ciência social que
e transformou em n a c i o n a i s o u regionais as diversas tradições se engajasse num projeto de construção nacional. Para Guerreiro
culturais de origem africana ou luso-afro-brasileira: o barroco Ramos, negro era o povo brasileiro, não fazendo sentido falar de
colonial de Pernambuco, B a h i a e Minas, as procissões católicas, uma "questão negra" ou cultivar como exóticas formas de expres-
as festas de largo, o s a m b a , o carnaval, a capoeira, o candomblé, são cultural próprias da situação de miséria e de ignorância em
as congadas, as diversas culinárias regionais etc. etc. Ou seja, o que se encontrava boa parte da população pobre do país ( c o m o
federalismo político foi, de certo modo, fortalecido pela naciona- se referia principalmente as religiões afro-brasileiras). O s intelec-
lização dos diversos regionalismos culturais, todos de cunho ra- tuais cio T E N e a sua ideologia estiveram, portanto, em sintonia
cial, e temperados agora pela grande mobilidade espacial da po- com a política nacionalista e populista da época, cuja e x p r e s s ã o
pulação e pela "integração cios negros na sociedade de classes", maior foi o trabalhismo de Vargas. Do ponto de vista ideológi-
ou seja, como trabalhadores e brasileiros negros. O Brasil, se não co, radicalizando o mulatismo de Gilberto freyre, segundo o qual
era de fato, deveria ser, no devir, uma democracia racial, coisa que, todo brasileiro traria na alma a marca da mestiçagem. Guerreiro
aliás, para o imaginário n a c i o n a l bastava. Ramos transforma a negritude em assunção de uma identidade
nacional brasileira liberta dos complexos de inferioridade deixa-
O protesto negro, e n t r e t a n t o , não desapareceu, muito pelo 4
dos pela colonização portuguesa.
contrário, ampliou-se e amadureceu intelectualmente m -se perío-
do. Primeiro, porque a discriminação racial, à medida que se am- Depois cie n o v o período autoritário, entre 1 9 6 4 e 1 9 7 8 , que
pliavam os mercados e a c o m p e t i ç ã o , também se tomava m a i s calou a sociedade civil, o protesto negro recuperou toda a sua vee-
problemática; segundo, p o r q u e os preconceitos e os estereótipos mência recentemente, com o Movimento Negro Unificado ( M N U ) .
continuavam a perseguir os negros; terceiro, porque grande par-
te da população "de c o r " continuava marginalizada em favelas,
4
mucambos, alagados e na agricultura de subsistência. Serão pts- Ver, sobre esse assunto, Bastide (1961).

88 Classes, raças e democracia Política de integração e política de identidade 89


Fundado em 1 9 7 9 , o M N U tem um perfil radicalmente di- pendência, os afrodescendentes continuavam, em sua maioria, n a s
ferente de seus antecessores (Gonzalcz, 1982; Santos, 1985). Po- camadas subalternas e marginais da sociedade paulista, oncle es-
liticamente, alinha-se à esquerda revolucionária; ideologicamen- tavam também, de início, os imigrantes e u r o p e u s . E s t e s , e n t r e -
te, assume, pela primeira vez n o país, um racialismo radical. Suas tanto, já tinham r o m p i d o , a essa altura, a barreira de c l a s s e . A
influências mais evidentes e reconhecidas são: primeiro, a crítica impermeabilidade da estrutura social brasileira à mobilidade cios
de Florestan Fernandes à ordem racial de origem escravocrata, que afrodescendentes de traços negróides (mas não dos mais c l a r o s ,
a burguesia brasileira mantivera intacta e que transformara a de- que podiam se classificar como "brancos"') foi, certamente, se n ã o
mocracia racial em mito; segundo, o movimento dos negros ame- o estímulo maior, a o menos a grande justificativa para que se for-
ricanos pelos direitos civis e o desenvolvimento de um naciona- masse um m o v i m e n t o social negro com o objetivo de e d u c a r e
lismo negro nos Pastados Unidos; terceiro, a luta de libertação cios integrar socialmente os negros (Fernandes, 1965).
povos da África meridional (Moçambique, Angola, Rodésia, Áfri-
Bastide (1 9 8 3 ) , ao estudar a imprensa negra em São P a u l o ,
ca do Sul). Mas, a esses se deve juntar pelo menos mais três: o mo-
fala de três períodos, entre 1 9 1 0 e os anos 1950. O primeiro, de
vimento das mulheres, no plano internacional, que possibilita a
H 10 a 1 9 3 0 , reflete um movimento de associação e f o r m a ç ã o cie
militáncia de mulheres negras; o novo sindicalismo brasileiro que,
lideranças negras. O s objetivos dessas associações e cie sua impren-
apoiado nos chãos-de-fábrica, retira as lideranças sindicais da
sa parecem articular-se em torno de três eixos. Primeiro, p r o m o -
órbita dos partidos políticos tradicionais; e os novos movimen-
ver a vida social n e g r a , através da atribuição e do reconhecimen-
tos sociais urbanos, que m a n t ê m a sociedade civil mobilizada,
to da honra e do prestígio sociais distribuídos em diversos e s p a -
durante toda a década de 1 9 8 0 .
ços de sociabilidade e consagração, principalmente os clubes e os
bailes; segundo, liderar um processo de reeducação da m a s s a ne-
gra, no sentido de sua completa aculturação e distanciamento de
A DINÂMICA D O M O V I M E N T O NEGRO suas origens africanas, a começar pela educação formal; t e r c e i r o ,
liderar a luta c o n t r a o preconceito de c o r e o seu correlato, o sen-
Retomemos alguns elementos, com o intuito de esquematizar timento de inferioridade.
o desenvolvimento do movimento político dos negros no século X X . E sintomático que, nessa campanha de reeducação, seja da-
Como vimos, a primeira organização negra no Brasil a atuar da ênfase aos defeitos e vícios da massa negra: a relação p r o m í s -
no campo político surgiu nos anos 3 0 desse século e tomou o nome cua entre os sexos, o alcoolismo, o modo de vestir, a licenciosidade
de Frente Negra Brasileira. Surgiu em São Paulo. Estado oncle era «e linguagem, de gestos e modos. Fossem esses vícios p e n s a d o s
forte a formação de comunidades étnicas, alimentadas pela mi- como produtos cia escravidão, à maneira de Nabuco. fossem eles
gração quase centenária de europeus — principalmente italianos,
portugueses, espanhóis e sírio-libaneses. A Frente Negra foi, até
certo ponto, segundo autores c o m o Fernandes f 196ã), uma rea-
4 S
ção à permeabilidade da estrutura social brasileira a estas etnias Nogueira ( 1 9 9 8 [1 955]) descreve negros, mulatos e imigrantes divi-

e a sua rápida integração na nacionalidade, através do domínio dindo, no começo do século X X , as posições proletárias da sociedade de
liapetinmga — principalmente os ofícios artesanais — enquanto, nos 1 9 4 0 .
da cultura luso-brasileira. O fato é que, um pouco mais de qua-
a maioria dos imigrantes já estava estabelecida em posições de classe média
renta anos depois da a b o l i ç ã o e quase cem anos depois da Inde- e alta, ao contrário de negros e mulatos.

90 Classes, raças e democracia


Política de integração e política de identidade 91
costumes de uma raça atrasada, à maneira do cvohicionismo cia ele não reconhecia c o m o culturalmente distinta, n e g a n d o , p o r
época, a verdade é que essas lideranças negras não apenas acredi- exemplo, a pujança tias tradições religiosas afro-brasileiras. Vias,
tavam em tais explicações, c o m o aceitavam também que tais este- contraditonamente, esse período deixou como legado um conjun-
reótipos tivessem fundamento. Reeducar a massa negra significava, to de práticas de reconstrução da auto-estima popular, c o m o o
portanto, ao mesmo tempo, diferenciar-se dela. Combater o pre- teatro negro e os c o n c u r s o s de beleza (boneca de piche).
conceito eqüivalia t a m b é m a subtrair-lhe os fundamentos inscri- üe fato, os propósitos de integração do negro na s o c i e d a d e
tos no comportamento da massa negra. O sentimento de inferio- nacional e de resgate da sua auto-estima foram marcas registra-
ridade, pois, estava presente tanto nas elites quanto nas massas. das do Teatro E x p e r i m e n t a l do Negro. Através do t e a t r o , do psi-
O segundo período de que nos fala Bastide, de vigência da codrama e de c o n c u r s o s de beleza, o TEN procurou n ã o apenas
Frente Negra Brasileira, vai cios anos 1 9 5 0 até 1 9 3 7 e é marcado denunciar o p r e c o n c e i t o e o estigma de que os negros e r a m víti-
pela politização do discurso. Substancialmente nada muda, o que mas, mas, acima de t u d o , oferecer uma via racional e politicamen-
muda é o tom. O discurso torna-se cada vez mais nacionalista, às te construída de integração e mobilidade social dos p r e t o s , par-
vezes xenófobo, as acusações de preconceito transformam-se em dos e mulatos.
explicação para a pobreza negra, oriunda do desemprego dos A orientação política desse movimento hcou e x p r e s s a n o
artesãos e artistas negros c sua substituição por imigrantes estran- modo extenso de definir os "negros", para neles incluir m u l a t o s
geiros. 1 al discurso, entretanto, é pouco convincente qua discur- e pardos, tal c o m o j á acontecia em São Paulo e no Sul, fazendo
so negro pois sustenta-se, por um lado, na aceitação do caráter com que, longe de ser uma minoria, o negro fosse o povo brasi-
mestiço da nacionalidade brasileira, produto das três raças fun- leiro. Povo significa t a m b é m aqueles excluídos do pleno g o z o dos
dadoras, e, por outro lado, na recusa dos vestígios de tudo que direitos civis e sociais — como acesso à educação, ao e m p r e g o e
seja africano ou lembre a África. Não é convincente tampouco pelo à assistência médica — constitucionalmente garantidos pela or-
que tem de " p u n t a n i s m o negro" (Bastide, 1955). De fato, a bus- dem jutídico-política. Povo sempre foi o oposto de elite ou de dou-
ca de aparência de moralidade atinge seu ápice justamente nessa tores, na dicotomía hierárquica da sociedade brasileira. L o n g e ,
fase, com tudo que representa de inculpação sub-reptícia das ví- portanto, de expressar os interesses de uma minoria, o T E N , e de
timas do preconceito. Segundo Bastide, o símbolo desse períod>> modo mais amplo o movimento negro desses anos. p r o c u r a v a
é a Mãe-Prcta, c a palavra de ordem, a .segunda abolição. solucionar um problema nacional de integração social, e c o n ô m i c a
O mais consistente no nacionalismo negro dos anos l ^ a ó . e política da grande massa da população brasileira. Da:, a r e a ç ã o
0 terceiro período de que fala Bastide, viceiou nos escritos de Guer- negativa de Guerreiro R a m o s (1957) c de muitos intelectuais, ne-
reiro Ramos. Kste inverteu completamente a idéia matricial de gros ao cultivo, por parte dos antropólogos, da herança, cultural
branqueamento. inscrita no pensamento social brasileiro (Bastide. africana presente no Brasil. Pinto (i 9 9 8 11953]), a primeiro s o c i ó -
1 96 1). Fm vez cie um elogio da mestiçagem, a maneira de Freyre logo a interpretar as relações raciais brasileiras de uma perspec-
e dos modernistas, que marginalizava o negro. Guerreiro R a m o s tiva marxista, pensava, a o contrário, que o TEN era um m o v i m e n -
atribuirá a negritude ao povo brasileiro ("o negro é o povo bra- to de negros de classe média, alienados da massa proletária.
sileiro") e falará tio mestiço c o m o um branco patológico. N o en- Fica, portanto, c l a r o , seja na postura da Frente N e g r a , seja
tanto, por mais forte que tenha sido tal inversão, a verdade é que na postura d o T F . N , o reconhecimento tácito da superposição entre
o discurso de Guerreiro manteve-se distante da massa negra, a qual ordem econômica (de classe) e ordem racial, a barrar o c a m i n h o

92 Classes, raças e democrac Política de integração e política de identidade 93


da- integração dos homens de cor à modernidade luso-brasileira. Ao c o n t r á r i o , os intelectuais negros acusavam os intelectuais nor-
O discurso intelectual prevaleeente até então, era de que a ordem destinos e estrangeiros (principalmente Bastide) de incentivarem
racial já tinha sido desfeita, pertencia ao passado escravista, e de a permanência de traços culturais afro-brasileiros retrógrados, o

que as diferenças então existentes entre brancos e negros poderiam que era considerado por eles como culto a o exotismo e como trans-
ser atribuídas quase que exclusivamente à seletividade de classe, f o r m a ç ã o do negro em objeto.

barreira esta encontrada por todas as minorias é t n i c a s que emi- C o n t u d o , a postura agressiva de anti-raeialismo ede afirma-
graram para o N o v o M u n d o . 49
Na academia, serão os intelectuais ç ã o cie um Brasil mestiço por parte de Gilberto Freyre, josé Lins
paulistas, principalmente Oracy Nogueira e Florestan Fernandes, do R e g o , J o r g e Amado, Rachel de Q u e i r o z e outros escritores en-
que r o m p e r ã o tal consenso, ainda nos anos 1 9 5 0 , afirmando a c o n t r a v a também alguma simpatia do movimento negro quando,
confluência de barreiras de classe e de cor à mobilidade social e à e apenas quando, tal visão de Brasil contradizia a visão, nutrida
integração dos n e g r o s . 50
por parte de outn >s escritores e intelectuais, em São Paulo e no Sul

A postura do "FFN colidia frontalmente com o mainstream do país, do brasil como um país branco e da democracia racial co-
52

da intelectualidade brasileira, tanto na interpretação sociológica, mo fruto de um etíyis cordial, não necessariamente miscigenaclo.

quanto no plano ideobágieo. No plano sociológico, o pensamen- Para s - entendei a postura de intelectuais c o m o Guerreiro
L

to negro pressupunha a existência de formação racial e não ape- R a m o s , Correia beire, Abdias Nascimento e outros tem que se ter
nas de classe; no plano idcoléigico, reivindicava a identidade ne- presente o que estava em jogo nas diferentes dimensões do espa-
gra e n ã o apenas mestiça, que constituiria o â m a g o da identida- ço s i m b ó l i c o .
de nacional brasileira. Era desse modo que os líderes dos anos 1950 N o plano da identidade nacional, tratava-se de definir o ne-
procuravam equacionar o nacionalismo e a negritude.- 11
Isso os gro n ã o c o m o uma minoria estrangeira — tal c o m o fazia o main-
afastava do m o d o como os demais intelectuais, principalmente os stream da intelectualidade paulista — , mas c o m o maioria, como
nordestinos, entendiam a democracia racial então vigente, que se o povo. M a s , tal postura, por outro lado, pressupunha o negro
sustentava sobre a negação dos negros, qna raça ou grupo social, c o m o categoria no plano político, o que n ã o eta reconhecido pelo
e na a f i r m a ç ã o de um ideal — que na verdade era tido c o m o uma mainstreaw da intelectualidade nordestina, que via o negro como
realidade c o n c r e t a — de mestiçagem racial e sincretismo cultural. c a t e g o r i a anenas no plano da cultura, enquanto objeto de estu-
do. M a s , apesar dessas diferenças m a r c a n t e s , na disputa entre
aqueles qm pensavam o Brasil como mestiço e aqueles que o viam
c o m o b r a n c o , a simpatia dos negros tendia para os primeiros.
A
" Fssa idéia é primeiramente aplicada ao Brás:! por Donald Picrson
F tanmém d< >s anos 1950 que d a t a o progressivo desapare-
1 9 4 2 ) . que segue à risca o modelo explicam <> de R o i v r c 1'.. Park il».vl>. sen
cimento dc .'stigmas raciais tais como o mulato pernóstico ou mu-
orientador, acrescentando, todavia, para o caso nrasileiro. algumas condi-
ções biológicas e culturais, como a mestiçagem, aportadas por (jilberro Irey- lato pachoio pn t» doutor, o negro boçal, o negro de alma hran-
rc (19.53). Charles Wagley ( 1 9 s 2 l apenas reitera tal ponto de vista.
s o
Um intelectual comoThales de Azevedo, ainda que as documentan-
do fartamente, atribuiu as barreiras de cor a persistência da ordem social de V e i . por exemplo, a polêmica envolvendo Paulo Duarte, Sérgio
Stànd, típica de sociedades tradicionais. Ver Guimarães ( 1 9 9 6 } . Millier, J o s é Lins do Rego e Rachel de Q u e i r o z , em Bastos (1988) e Maio
1 1 (1997).
T a l interpretação pode ser encontrada em Basude ( 1 9 6 1 ) .

94 Classes, r a ç a s e democracia Política de integração e política de identidade 95


Vl
ca e t c , coalescidos no império e na Primeira R e p ú b l i c a , quan- Desafiado teoricamente, a resposta de Florestan será decisi-
do eram ainda vivos o escravismo e a subalternidade dos africa- va: o preconceito no Brasil seria uma reação das elites brancas (e
nos c de seus descendentes. N o lugar desses estigmas estabelecem- não do povo) às novas relações sociais próprias à ordem social
se progressivamente outros novos — c o m o baiano ou nordesti- competitiva. A potencialidade revolucionária dos negros estaria
no, no Sudeste, ou brasileiro, no interior do Sul do Brasil — para justamente em livrar a sociedade burguesa emergente das amar-
referir-se não apenas àqueles tipos raciais afro-brasilciros. mas, ras dos privilégios e das desigualdades da ordem patrimonial.
de modo mais abrangente, a todos os provenientes de regiões bra- Assim, o preconceito brasileiro, em vez de provir dos iguais em
sileiras de povo mestiço. Isso se deve principalmente ao incremento direito — competidores numa ordem igualitária —, como nos Es-
da migração inter-regional no sentido norte-sul, que desloca mas- tados Unidos, provinha das elites temerosas de perder privilégios
sas significativas da população pobre negro-mestiça (negros, mu- patrimoniais. Daí, entre nós, o preconceito racial tomar este as-
latos, caboclos e cabras) do Nordeste para o Sudeste e o sul do pecto de preconceiro não-revelado, pois o branco em posição social
país. As tensões sociais que taí deslocamento provoca — seja pela superior não reconhece no negro que ele discrimina um competi-
concorrência no mercado de t r a b a l h o , sept pelo aumento da po- dor, mas um subalterno deslocado de lugar, t ) problema, portanto,
breza urbana — acabarão por fazer com que esses tipos émico- para quem discrimina, não estaria na raça, mas na ausência de
regionais sofram também com os estigmas antes concentrados nos subalternidade do discriminado, deslocado de sua classe.
tipos raciais. Ou, melhor dito, a c a b a r ã o por dar uma rationalc 54
Florestan fará, portanto, do "negro r e v o l t a d o " o revolu-
regionalista ao preconceito de fundo racial: não importa que o
cionário em potencial que poderá completar o serviço da revolu-
negro seja paulistano ou gaúcho de quatro costados, ele será vis-
ção burguesa, deixado i n a c a b a d o . Florestan possibilita, assim, a
to preferencialmente c o m o um descendente baiano, carioca ou
renovação da linha política dos movimentos negros, que deixa-
nordestino, como um migrante, em sociedades paradoxalmente
rão, no futuro, de lutar apenas pela integração na vida nacional,
orgulhosas de sua recente procedência européia.
preferindo a construção de uma sociedade mais justa e igualitá-
Ainda nos anos 1 9 5 0 , Florestan Fernandes encontra, final- ria. O ideal socialista c o n t a m i n a r á , durante a década de 1 9 6 0 c
mente, uma razão sociológica para o preconceito racial no Brasil, seguintes, muitos militantes negros.
o "preconceito de cor". Nos Estados Unidos, sociedade igualitária,
O socialismo marxista, que muitos militantes negros abra-
o preconceito era explicado como uma forma dos brancos evitarem
çaram nos 1960, tinha, entretanto, a grande desvantagem de acen-
a concorrência no mercado de t r a b a l h o óu de manterem o mo-
tuar demasiadamente a luta de classes como motor ua história em
l
nopólio sobre as melhores posições sociais (Pierson, 1 9 / 1 | i >42|;
detrimento da consciência racial, tida como partícularismo ou alie-
Harris, 1967). Como justificai o preconceito no Brasil, sociedade
nação. Ainda que os marxistas reconhecessem a discriminação
de privilégios sociais reconhecidos de fato, quando não de direito,
racial existente na sociedade brasileira, tal racismo era atribuído
onde os negros eram mantidos em posição subalterna na hierar-
a determinantes sociocconômicos que desapareceriam com a sti-
quia do prestígio social?
plantação da sociedade burguesa. Na verdade, o movimento n c -

í !
Freyre (1.936), Pierson ( 1 9 / 1 [ 1 9 4 2 ] í e Azevedo (1996 [1955]), en- M
Este é o título dado pelo T E N à coletânea J e teses apresentada no I
tre outros, documentam tais estigmas. Congresso do Negro Brasileiro. Ver Nascimento ( i 9 6 8 ) .

96 Classes, raças e democracia


Política de integração e política de identidade 97
gro, como todos os outros movimentos sociais, inclusive o movi- feminista e terceiro-mundista, quanto pela maior influência que
mento operário, foram postos pelos marxistas a reboque da luta a indústria cultural norte-americana e européia passou a e x e r c e r
de classes (Hancbard, 1 9 9 4 ) . no Brasil.
Nos anos I 9 7 0 , a coincidência entre a descolonização da O discurso político negro será guiado por duas balizas prin-
África e a luta pelos direitos civis dos negros americanos, desá- cipais — o n a c i o n a l i s m o e a esquerda — e a busca de africanidade
5
gua numa conseqüente onda de pan-africanismo e afrocentrismo se desenvolverá entre o s campos acadêmico -"' e artístico. Pois bem,
que mudará substancialmente o panorama brasileiro. M a s isso a grande virada acontecerá apenas nos anos 1 9 8 0 j u s t a m e n t e na
lentamente. confluência de uma política de esquerda com a busca de africani-
De início, a descolonização da África, nos anos 1 9 6 0 , perío- dade. A passagem foi marcada pela transformação de Z u m b i , e
do marcado pelo nacionalismo e por projetos de desenvolvimen- do 20 de n o v e m b r o , em símbolo da luta pela e m a n c i p a ç ã o , des-
to auto-sustentado, levará o governo brasileiro a reconhecer e locando a M ã e - P r e t a e o 13 de maio, símbolo maior da respeita-
patrocinar as origens africanas da civilização brasileira, aquilo que bilidade da mulher e da família negras.
se expressa na cunhagem do termo "afro-brasileiro" para signi-
ficar brasileiro de origem africana, tal como o candomblé, a c a -
poeira, o samba etc. N o entanto, a busca de raízes, que havia O Q U I L O M B I S M O O U A INFLUÊNCIA D E
começado tempos antes, dissociada do discurso político, pela re- ABDIAS D O N A S C I M E N T O NOS ANOS 1 9 8 0
jeição do sineretismo religioso e pela conseqüente procura da pu-
reza nagó, essa busca das origens será doravante a ptopulsora do O M o v i m e n t o N e g r o Unificado dos anos 1 9 8 0 foi um m o -
discurso político negro. vimento cindido. D e um lado, lideranças de esquerda, g e r a l m e n -
A década seguinte, os anos 1 9 7 0 , presenciou o arrefecimento te jovens universitários, algumas deles sintonizados c o m a luta
do "reducionismo de classe" entre a militância negra, ainda que democrática que se organizava a partir das organizações socia-
o marxismo passe a predominar daí em diante (Hanchatd, 1 9 9 4 ) . listas, abrigados no P M D B ; e, de outro lado, lideranças sintoni-
De um modo geral, os avanços da luta pelos direitos civis dos zadas com a resistência cultural que espontaneamente se espraia-
negros americanos foram decisivos para chamar a atenção dos bra- va nos meios negros mais pobres, influenciados pela cultura de
sileiros para a importância da mobilização em linhas raciais. Ade- consumo de m a s s a . M a s a presença de um dirigente I m t ó r i c o ,
mais, a ditadura militar desorganizou os grupos políticos marxistas como Abdias do N a s c i m e n t o , com trânsito internacional, ligado
e nacionalistas de o p o s i ç ã o ao governo, condenando ao exílio lí-
deres e intelectuais importantes como Abdias do N a s c i m e n t o ,
Guerreiro R a m o s , Florestan Fernandes c muitos outros. D e s p r o -
vidos de tais lideranças e defrontando-se agora com a d e m o c r a - " No plano acadêmico, a mudança foi também radicai. X o finai J a

cia racial transformada em dogma de governo, a influência cio mo- decida de 1 9 7 0 , já aparecem no Brasil as primeiras analises sociológicas qtie
demonstram a importância da "raça" na construção das desigualdades so-
vimento negro internacional foi muito maior e direta do que o que
ciais no Brasil {Hasenbalg, 1<>79; Silva. 1978) e as primeiras críticas à inter-
seria de se esperar. Isso aconteceu tanto pela influência que o
pretação da discriminação e do preconceito como reação à ordem competi-
mundo cultural europeu e norte-americano exerceu diretamente tiva. A discriminação passaria a ser vista doravante como parte integrante
sobre os exilados, e x p o s t o s agora ao dia-a-dia da política racial, da modernização capitalista.

98 Classes, raças e democracia Política de integração e política de identidade 99


ao trabalhismo de B n z o l a , foi também decisiva na formação ideo- 1950, se a p r o p r i a r a m das idéias de negritude, vindas cio m u n d o
lógica do movimento. Passo a examinar agora o " q u i l o m b i s m o " , francófono. N a q u e l a oportunidade, como bem argumentou Roger
doutrina forjada por A b d i a s , uma das principais matrizes ideo- Bastíde (! 9 6 1 ) , os negros brasileiros deram uni sentido bastante
lógicas que permeava o movimento negro nos anos 1 9 8 0 , alian- original ao m o v i m e n t o da negritude, recusando seus aspectos cul-
do radicalismo cultural a radicalismo político. turais (vistos e n t ã o , no caso do Brasil, como anacronismo b á r b a -
Duas influências maiores marcaram a doutrina de "quilom- ro) e enfatizando seu catáter libertário e nacionalista. A novida-
bismo" em Abdias do Nascimento. A mais óbvia é certamente o de, nos a n o s 1 9 8 0 , foi a adoção de uma postura, a um só t e m p o ,
Afrocentrismo que foi, desde os anos 1950, uma doutrina muito nacionalista e culturalista.
influente entre os intelectuais africanos e afrodescendentes, radi- A a d o ç ã o de uma classificação racial bipolar ( b r a n c o s e ne-
cados na Europa e nos Estados Unidos (Diop, 1 9 7 9 [ 1 9 5 4 ] ; Asante gros, a b o l i n d o as categorias intermediárias de " p a r d o " ou " m o -
e Asante, 1 9 8 2 ; Asante, 1 9 8 7 ) . Do Afrocentrismo vem o projeto reno"), parece, portanto, ter uma motivação claramente política.
de filiar os negros brasileiros a uma "nação" negra transnacional, Longe de ser p r o d u t o de mentes "colonizadas" pelo imperialis-
de cuja matriz teria evoluído a civilização ocidental, cujas raízes 5
mo cultural a m e r i c a n o ou presas a um racialismo a r c a i c o - ' , foi a
mais profundas se e n c o n t r a m no Antigo Império egípcio e na pre- escolha d e um movimento que optou por uma luta em que o ne-
sença africana na América pré-colombiana. Trata-se, evidentemen- gro pudesse ser assimilado à classe trabalhadora e x p l o r a d a e n ã o
te, de um movimento de invenção de tradições e reivindicação de a uma minoria apenas oprimida.
um processo civilizatório negro. A outra influencia foi, sem dú- Conto t o d o o movimento político, o movimento negro se nu-
vida, o marxismo, principalmente através da vertente mais pró- tre de tradições e de elos com movimentos contemporâneos, inter-
xima ao nacionalismo brasileiro dos anos 1960. Deste, Abdias re- nos e e x t e r n o s a o país, retirando daí a sua atualidade e eficácia
tira não apenas analogias formais c palavras de ordem, mas a idéia ideológica. F o i o que fizeram as suas principais lideranças inte-
fundamental de que a emancipação do negro brasileiro significa lectuais e políticas, como Abdias do Nascimento e Lélía Gonzalez.
a emancipação da e x p l o r a ç ã o capitalista de todo o povo brasilei- Em sua referência interna, Abdias buscou integrar o progra-
ro. Ora, o caráter universalista da emancipação dos negros no ma do q u i l o m b i s m o ao movimento pela redemocratização do país,
Brasil está intimamente ligado à idéia de uma luta de maioria ex- através de u m a luta de emancipação radical, de i n s p i r a ç ã o mar-
plorada, e não de uma minoria oprimida, como nos Estados Uni- xista ( Q u a d r o 1, item A).
dos. Para esta luta, a definição ampla de negro como descenden- Do m e s m o m o d o , Abdias definiu o negro brasileiro não ape-
tes de africanos (e n ã o apenas pessoas de cor ou fenónpo negro) nas como a p a r c e l a mais explorada do povo brasileiro, mas sua
é imprescindível. Aliás, tal definição ampliada de negro já fora teita maioria, m o b i l i z a n d o velhas tradições sobre u m u l a t i s m o dos c a -
6
por Guerreiro R a m o s e pelo próprio Abdias^ quando, nos amos

Ali cs. a distância que o movimento negro guarda da n o ç ã o bioló-


í 6
Ainda que haja alguma continuidade entre o pensamento de Ab- gica de " r a ç a " é reiterada inúmeras vezes. Ver, por exemplo. Nascimento
dias dos anos 1 9 5 0 e o dos anos 1 9 8 0 , é preciso ter bem claro que o seu (19X0: 163;- " A v i s o aos caluniadores, intrigantes, maliciosos e os apressa-
pensamento, entre 1 9 6 0 e 1 9 8 0 , se desloca do eixo da "negritude" para o dos em julgar: a palavra 'raça', no sentido em que a emprego, e definida em
do "afrocentrismo". termos de história e cultura, não de pureza biológica".

100 Classes, raças e democracia Política de integração e política de identidade 101


I
pirães-do-mato, perseguidores dos quilombolas (Quadro 1, item J Quadro 1 _
B). Mais. Abdias forçava a analogia entre a luta dos negros bra- A L G U N S ELEMENTOS I D E O L Ó G I C O S
sileiros e a luta c o n t r a o apartheid na África .do Sul, definindo o DO QUILOMBISMO

negro como o t r a b a l h a d o r por excelência, o mais brasileiro dos


" O povo negro tem um projeto coletivo: a edificação de ama
brasileiros, a maioria oprimida por uma minoria racista, em gran-
sociedade fundada sobre a justiça, a igualdade e o respeito por ro-
de parte estrangeira ( Q u a d r o 1, item C). dos os seres humanos; uma sociedade cuja natureza intrínseca tor-
Forçando os aspectos de segregação residencial, exclusão do ^ ne impossível a exploração econômica ou racial. Uma democracia
mercado formal de t r a b a l h o e terrorismo policial, Abdias apro- o autêntica, fundada pelos destituídos e deserdados da terra. N ã o
.3 temos interesse na simples restauração de tipos e formas obsoletas
xima, por analogia, o racismo brasileiro do sul-africano ( Q u a d r o
2 de instituições econômicas, políticas e sociais; isto serviria apenas
1, item D ) . M a s , ao m e s m o tempo, a referência à brutalidade po-
» para procrastmar o advento de nossa emancipação total e deíiniti-
licial está t a m b é m indissoluvelmente iigada ao movimento pelos 'C va, a qual virá apenas com a transformação radicai das estruturas
direitos humanos que, nessa época, já mobilizava as torças polí- socioeconômicas e políticas existentes. Não temos interesse em pro-
ticas que lutavam pela redemocratização do país. Mais claramente, por uma adaptação ou reforma dos modelos da sociedade capita-
Abdias argén que, para os negros, o autoritarismo e ausência de lista" (Nascimento, 19S0: 160).

diretos têm sido permanentes (Quadro 1, item E ) . A saída, para


Abdias, seria a luta antiimperialista e nacionalista, articulada com "A citação dos capitães-áo-mato é importante. De um modo
gerai, eles eram mulatos, isto é, negros de pele clara assimilados pela
movimentos de libertação nacionais e de luta de classes, mas guar-
classe dominante branca e instigados contra seus irmãos e irmãs afri-
dando as particularidades culturais e especificidades dos negros
canos. N ã o devemos hoje nos permitir sermos divididos entre 'pre-
brasileiros, ris-à-Ois seja outros negros na diáspora, seja à classe tos' e 'mulatos', enfraquecendo nossa identidade fundamental de
operária brasileira ( Q u a d r o 1, item F). afro-brasileiros, afro-americanos de todo o continente, isto é, afri-

Uma análise d o texto clássico de Lélia Gonzalez ( 1 9 8 2 ) e dos canos na diáspora" (Nascimento, 1 9 8 0 : 1 5 6 ) .

documentos do M N U encontraria os mesmos elementos, ainda que


de modo não tão e x p l í c i t o : o movimento negro brasileiro se nu- " J u n t o com os índios, escravizados por uni período e depois
exterminados, os africanos foram o primeiro e único trabalhador
tre ideologicamente das lutas de emancipação que naquele mo-
durante três séculos e meio. construindo as estruturas desse país cha-
mento estão t r a v a n d o alguns povos negros (nus Estados Unidos,
mado Brasil. L desnecessário lembrar mais uma vez os vastos cam-
na África do Sul e na África portuguesa) e da tradição das lutas pos que os africanos irrigaram com seu suor. ou evocar os canaviais,
de resistência popular no Brasil, do abolicionismo ao T e a t r o E x - os campos ele algodão, as minas de ouro. diamante e prata. . a s mui-
perimental do N e g r o . tas outras fases ela formação do Brasil alimentadas com o sangue
martirizado dos escravo:.. O negro, longe de ser um invasor ou um
estrangeiro, é a verdadeira alma e corpo deste país. Entretanto,
.apesar desse fato histórico irrefutável, os africanos e seus descenden-
tes nunca foram tratados como iguais pela minoria branca que com-
plementa o quadro demográfico do país, mesmo nos dias de hoje.
Esta minoria manteve um monopólio exclusivo de rocio o poder, bem
estar, saúde, educação e renda nacionais" (Nascimento, 1 9 8 0 : 149).

102 Classes, raças e democracia Política de integração e política de identidade


l o m b i s m o , enquanto movimento nacionalista, ensina que a iuta de
" A condição do povo negro não mudou desde então, senão
cada novo por sua libertação deve estar e n r a i z a d a na sua própria
que piorou. Posto à margem do emprego, largado em situação de
identidade cultural e experiência histórica" ( N a s c i m e n t o , 19S0:
semi-emprego ou suhemprego, o povo negro continua largamente
155).
excluído da economia. A segregação residencial é imposta à comu-
nidade negra pelo duplo fator da raça e da pobreza, marcando como
áreas residenciais negras guetos de diversas denominações: fave-
las, alagados, porões, mocambos, invasões, conjuntos populares ou
'residenciais.' A brutalidade policial permanente e as prisões arbi-
trárias motivadas racialmente contribuem para o reino de terror sob OS L I M I T E S DA COOPTAÇÃO
o qual vivem cotidianamente os negros. Nessas c o n d i ç õ e s , com-
preende-se por que nenhum negro consciente tem esperança que
V i m o s q u e , tanto nos dias de hoje q u a n t o n o s clois períodos
mudanças progressivas possam ocorrer espontaneamente e benefi-
anteriores ( 1 9 3 0 - 3 7 , 1 9 4 5 - 1 9 6 4 ) , o protesto n e g r o forma-se num
ciar a comunidade afro-brasileira" (Nascimento, 1 9 8 0 : 1 4 9 - 5 0 ) .
a m b i e n t e de efervescência intelectual e de m o b i l i z a ç ã o política
intensa da s o c i e d a d e brasileira. Mas, ao c o n t r á r i o da F N B e do
"Quase 5 0 0 anos de autoritarismo é bastante. N ã o podemos,
T E N , que e n c o n t r a r a m rapidamente uma r e s p o s t a às suas reivin-
não devemos e não toleraremos mais. Uma das práticas básicas des-
te autoritarismo é o desprezo brutal da polícia pela família negra. dicações n o q u a d r o da política tradicional, seja a t r a v é s do golpe

T o d o tipo de arbitrariedade é fixada indelevelmente nas batidas do E s t a d o N o v o , seja através do trahalhismo de V a r g a s e do na-
policiais rotineiras que mantêm a comunidade negra aterrorizada c i o n a l i s m o , o m a i o r radicalismo do M N U faz c o m que o protes-
e desmoralizada. Com estas batidas, espancamentos, assassinatos to n e g r o a t u a l tenha uma sobrevida maior. A d e m a i s , o M N U é
e tortura, a impotência e 'inferioridade" do povo negro é atualizada
apenas u m a e n t r e a-s muitas organizações n e g r a s q u e foram fun-
diariamente, posto que incapazes de defenderem-se a si mesmos
dadas nos ú l t i m o s 15 anos. Logo emergiram o u t r a s , de diferen-
ou de proteger a sua família e os membros de sua comunidade. Is-
to constitui uma situação de humilhação perpétua" (Nascimento, tes matizes i d e o l ó g i c o s e políticos, e c o m d i f e r e n t e s finalidades,

1980: 162). entre as q u a i s se destacam entidades culturais, p o l í t i c a s e jurídi-


cas, que t ê m em comum a luta contra o r a c i s m o .

"Nessa passagem, os autores [do manifesto] tocam num ponto Em sua pluralidade, o movimento negro r e c e n t e trouxe para
importante a tradição quilombista — a definição do caráter nacio- a c e n a b r a s i l e i r a uma agenda que. alia p o l í t i c a de reconhecimen-
nalista do movimento. Nacionalismo aqui não deve ser confundi-
to (de diferenças raciais e culturais), política de identidade (racia-
do com xenofobia. O quilombismo é uma luta anti-mipenalista, que
lismo e v o t o é t n i c o ) , política de cidadania ( c o m b a t e à discrimi-
se articula com o pan-afncanismo e sustenta uma solidariedade
radical com todos os povos do mundo que lutam contra a explora- n a ç ã o r a c i a l c afirmação dos direitos civis d o s n e g r o s ) e política
ç ã o , a opressão e a pobreza, tanto quanto contra as desigualdades redisttibutiva (ações afirmativas ou c o m p e n s a t ó r i a s ) .
motivadas por raça, cor, religião ou ideologia. O nacionalismo ne-
gro é universalista e internacionalistu porque apoia a libertação na-
cional dos povos e vê no respeito a sua singularidade cultura! e à
sua integridade política uni imperativo para a libertação mundial. >lf
• Uma pequena lista das reivindicações do m o v i m e n t o negro, nos úl-
A uniformidade sem face em nome da 'unidade' ou da 'solidarie- timos 1 5 anos, dá uma idéia de sua abrangência e r a d i c a l i s m o . Em primeiro
dade', em conformidade com os ditames do modelo social ociden- lugar, o movimento recusou a data oficial de celebração da incorporação dos
tal n ã o é do interesse dos povos oprimidos não-ocidentais. O qui- negros à n a ç ã o brasileira, o 13 de maio, data da a b o l i ç ã o da escravidão,

Política de integração e política de identidade 105


Classes, raças e democracia
A l g u m a s de suas reivindicações e n c o n t r a r a m respostas rá- Outras demandas, entretanto, c o m o aquelas que dizem res-
pidas por parte do Estado brasileiro, tais c o m o as que poderiam p e i t o a o combate das desigualdades raciais na distribuição de
mais facilmente caber na atual matriz de nacionalidade, cujo teor renda e no acesso aos serviços públicos, que exigem políticas afir-
é o do sincretismo das três raças fundadoras. A l i á s , foi a partir mativas e inovadoras, encontram, ainda hoje, grande resistência.
da c o m p r e e n s ã o muito peculiar da multirracialidade e do multi- É verdade que, aos poucos, novas instituições estão sendo cria-
culturalismo c o m o síntese (à maneira freyreana), e n ã o como con- das para atender a tais demandas, tais c o m o : os cursmhos pré-
vivência entre iguais (à maneira norte-americana), que os brasi- vestibulares para negros e carentes; isenção de taxas de inscrição
leiros passaram a aceitar algumas teses do m o v i m e n t o negro, tais n o vestibular pata alunos provenientes de tais cursos; projetos de
c o m o o respeito às tradições e às expressões culturais de origem lei que reservam vagas nas universidades públicas para estudan-
africana e à estética negra. O fato é que t a m b é m o Estado bra- tes egressos do sistema público de e d u c a ç ã o ; introdução de que-
sileiro foi ágil em responder nesse diapasão, seja através da cria- sitos sobre cor nos formulários e registros de instituições de ensi-
ção de fundações culturais e de conselhos estaduais da comuni- n o superior etc.
dade negra, seja através da incorporação de s í m b o l o s negros ao D e qualquer modo, é fato que a amplitude das demandas tem
imaginário nacional; seja através do desenvolvimento de legisla- a l i m e n t a d o continuamente o ativismo político negro, arrefecendo
ção mais apropriada de combate ao racismo (a Constituição de as tentações decooptação. Do mesmo modo, há reivindicações que
1 9 8 8 e as leis 7 . 7 1 6 e 9 . 4 5 9 , que regulamentam o crime de racis- n ã o são feitas para serem atendidas, tais c o m o o voto étnico (ne-
mo); seja através da modificação do currículo e s c o l a r , em alguns g r o deve votarem negro) e o cultivo ela consciência negra (cie cor-
municípios onde a pressão e a presença negra s ã o m a i s fortes, pata te racíalista). O que tem acontecido, em contrapartida, é que o perfil
permitir a multiculturalidade. ideológico e partidário dos ativistas tem se diversificado, cm res-
p o s t a à procura dos diversos partidos pelo voto negro. Em certos
m o m e n t o s , entretanto, líderes negros de grande carisma, como foi

passando a festejar o 2 0 de novembro, dia da morte de Z u m b i , que chefiou


o c a s o de Benedita da Silva, no Rio de J a n e i r o , em 1 9 8 9 , surgiram,
a resistência d o Quilombo dos Paimares em 1 6 9 5 . Em segundo iugar, pas- e p o d e m voltar a surgir, no cenário político, disputando cargos
sou a reivindicar uma mudança completa na educação escolar, de modo a eletivos por partidos de esquerda, c o m o foi o caso do l'T ou d< > PDT,
extiqsar dos livros didáticos, dos currículos e das práticas de ensino os este- e, através da conjunção de propostas radicais de modificação das
reótipos e os preconceitos contra os negros, insulando, a o c-oitrano. a auto-
desigualdades raciais, ameaçarem desestabilizar o sistema.
estima e o orgulho negros. Em terceiro lugar, exigiu uma campanha especial
do governo brasileiro que esclarecesse a população negra (pretos e pardos! D e fato, partidos e instituições g o v e r n a m e n t a l incorporam
cie modo a se declarar "preta" nos censos demográficos de 1991 e 2 0 0 0 . Em a p e n a s parte dos ativistas negros, ou seja, a q u e l e s afiliados ou
quarto lugar, reclamou e obteve a modificação da Constituição para trans- simpatizantes dos partidos no poder, deixando de íora tanto as
formar o racismo cm crime inafiançável e imprescritível, tendo, posteriormen- lideranças de oposição, quanto os militantes partiuariamcate in-
te, conseguido passar legislação ordinária regulamentando o dispositivo cons-
dependentes. Estes últimos, geralmente agrupados em organiza-
titucional. Em quinto lugar, articulou uma campanha nacional de denuncias
ç õ e s não-governamentais, cooperam entre si em fóruns nacionais
contra a discriminação racial no país, pregando c a l c a n ç a n d o , era alguns
lugares, a c r i a ç ã o de delegacias especiais de combate ao racismo. Finalmen-
e internacionais, ao mesmo tempo em que competem pela repre-
te, concentra-se, boje em dia, em reclamar do governo federal a adoção de s e n t a ç ã o étnica. Tanto o escopo dessas organizações — que têm
políticas de a ç ã o afirmativa para o combate das desigualdades raciais. o ativismo como profissão — quanto a sua fonte de financiamento

106 Classes, raças e democracia Política de integração e política de identidade 107


— independente do governo brasileiro — garantem-lhes maior 4.

autonomia e radicalidade de ações e propostas. DIREITOS E AVESSOS


5 9
Além da crise da identidade nacional, do radicalismo e da DA N A C I O N A L I D A D E
abrangência das reivindicações negras, vale, finalmente, mencio-
nar um último motivo do porquê o protesto negro atual t e m sido
mais duradouro e mais difícil de ser absorvido pelo E s t a d o . Refi-
ro-me à nova conjuntura internacional, da qual o Estado brasileiro
já não pode mais se isolar, nem mesmo parcialmente, seja em ter-
mos econômicos, seja em termos culturais e políticos. A sociedade
de consumo e a internacionalização da indústria cultural possibi- Nos capítulos anteriores, vimos pelo menos três sentidos do
litaram o surgimento de movimentos culturais negros, influencia- termo " d e m o c r a c i a racial". Entendida como uma ideologia de do-
dos não apenas pela cultura popular brasileira de origem africana, minação por Fernandes (1965), a democracia racial seria apenas
mas também pela cultura do chamado Black Atlantic. Movimentos um modo c í n i c o e cruel de manutenção das desigualdades s o c i o -
como os que congregam principalmente a juventude u r b a n a — o econômicas entre brancos e negros, acobertando e silenciando a
funk carioca (Vianna, 1 9 8 8 ) , o bloco afro baiano (Risério, 1 9 8 1), permanência do preconceito de cor e das discriminações raciais.
o reggae maranhense (Silva, 1 9 9 5 ) , o rap paulista (Félix, 20'KJ) E desse m o d o que a maioria dos intelectuais negros brasileiros a

— são iniciativas independentes de qualquer organização política entende e faz da denúncia de sua crueldade (tal ideologia anestesia

ou étnica, alguns deles bastante radicais em seu p r o t e s t o , o que e aliena suas vítimas) o principal instrumento de m o b i l i z a ç ã o po-

acaba por forçar as lideranças políticas negras a manterem-se coe- lítica e de f o r m a ç ã o de uma identidade racial c o m b a t i v a .

rentes c o m o seu próprio passado de mobilização. C o n t r a tal interpretação têm se manifestado alguns antropó-
logos (Fry, I 995-96), que argúem que a "democracia r a c i a l " é pro-
priamente um m i t o fundador da nação brasileira, o u seja, parte
fundamental de sua matriz civilizatória, a qual, ainda que não e x -
clua c o m p l e t a m e n t e preconceitos e discriminações, permite maior
intimidade e interpenetração entre negros e b r a n c o s , fornecendo
bases mais sólidas para a superação do racismo. Nesse sentido, a
" d e m o c r a c i a r a c i a l " é também um sistema de o r i e n t a ç ã o da a ç ã o
social, ativo e onipresente tanto nos pequenos atos do dia-a-dia,
q u a r t o na racionalização da experiência cotidiana.

Parte deste texto foi originalmente escrito c o m o relatório de viagem


ao exterior para a FAPESP. Uma outra versão foi publicada em Jessé Souza
(org.), Democracia boje: novos desafios para a teoria democrática contem-
porânea, Brasília, Editora da UNB, 2 0 0 1 , pp. 3 8 7 - 4 1 4 .

108 Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 109


Meu entendimento, no c a p í t u l o anterior, é que devemos ver O fato é que, premido pela necessidade de recusar o passado, foi

na "democracia racial", t a m b é m , um compromisso político e so- necessário institucionalizar a desmemória das origens étnico-ra-

cial do moderno Estado r e p u b l i c a n o brasileiro, que vigeu, alter- ciais: os brancos afastando-se do Portugal "decrépito" e "subor-

nando força e convencimento, do Estado Novo de Vargas até a dinado", responsabilizado pelos males herdados; os negros afas-

ditadura militar. Tal c o m p r o m i s s o consistiu na incorporação da tando-se, pelo e m b r a n q u e c i m e n t o , do passado servil; os caboclos

população negra brasileira a o m e r c a d o de trabalho, na ampliação fugindo da "selvageria" e do "primitivismo" quelheseram atribuí-

da educação formal, enfim na c r i a ç ã o das condições infra-estrutu- dos. Brancas para dentro e mestiças para fora, as elites viram-se

rais de uma sociedade de classes que desfizesse os estigmas criados encurraladas, c o m o diz Skurski (Í996: 3 7 6 ) , parafraseando Bha-

pela escravidão. A imagem do n e g r o enquanto povo e o banimen- bha { 1 9 9 4 ) , "entre a necessidade de negar e de afirmar sua dife-

to, no pensamento social b r a s i l e i r o , do conceito de "raça", subs- rença em relação ao poder metropolitano", permanecendo "in-

tituído pelos de "cultura" e " c l a s s e social", são suas expressões. capazes de estabelecer sua autoridade através da autenticidade de
suas origens".
Neste capítulo, e x p o n h o a constelação simbólica que faz da
"democracia racial" e do " d e s c o b r i m e n t o " mitos nacionais. Meu A ambigüidade das elites latino-americanas encontrou, pi>-
argumento principal é de que tal construção ideológica, sempre ten- rém, um elemento renovador na crise política e ideológica que afe-
1

sa, encontra-se agora em crise. E x e m p l o disso é o crescimento cio tou o-, povos europeus depois da guerra franco-prussiana de 1 8 / ) .

preconceito étnico-regionaíista em S ã o Paulo. Para entendê-lo me- A necessidade francesa de contrapor-se ao nacionalismo alemão

lhor, exploro, no final do c a p í t u l o , esse avesso da nacionalidade. de base étnico-racial, a c a b o u servindo de base para a construção
da nacionalidade brasileira. Examinemos brevemente tal matriz.
Os ilumimstas franceses foram os primeiros, no século X V I I ,

A MATRIZ FRANCESA: a debater o que forma um povo: as origens ou o contrato? Con-

M E M Ó R I A E NÃO R A Ç A S tra as pretensões de sangue da nobreza, Rousseau definiu um po\ o


pelo contrato, ou seja, pela associação livre e interessada, inau-

O processo de construção da identidade nacional brasileira, gurando uma definição puramente política de nação. N o século

no século X X , guarda muitas s e m e l h a n ç a s com o processo que se do nacionalismo, entretanto, foi a definição pelas origens que pre-

passou na América Latina em geral, tal c o m o sistematizado por Julic valeceu. Os franceses discutiram, então, diversas outras forma--
:

Skurski ( 1 9 9 6 ) . A primeira dessas semelhanças é uma recusa cole- de traçar as origens, premidos sempre, como bem salientou H a n r

tiva do passado colonial, u m a vez que tal passado, português ou Arenct 1 1 9 5 1 ,>. pela luta entre a nobreza e o resto da nação trai -

espanhol, não podia ser seu. A romantiza cão dos índios como guer- cesa. x) sangue e a raça, a geografia e o clima, a mestiçagem f< -
r

reiros selvagens e livres, que preferiram a morte à servidão consti- ram ;->rmas usadas para definir o povo francês. Michel Foueau

tuiu desde sempre um traço forte dessa representação n a c i o n a l . w) (1997 explora, em suas aulas no Collège de France, o modo com- •
a luta entre nobres e plebeus, na França, se transforma numa lui •
de raças, para transformar-se depois, de novo, em lutas de clas-
ses (entre burgueses e o p e r á r i o s ) .
611
Apenas nos dias que correm foi também possível acrescentar-se a tal
No ideário da revolução francesa, fundadora cia moderna na
representação romântica a figura guerreira dos quilombolas (Zumbi) e do seu
espírito de liberdade (o Quilombo dos Palmares). cionalidade republicana francesa, prevalece a inspiração rousseau -

110 Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade


niana. A formação nacional por assimilação de povos se dá con- munidade lingüística e racial, ainda que tal maneira não se res-
tra a pretensão de distinção racial da aristocracia através de sua trinja à Alemanha.
o n g e m germânica. Do mesmo m o d o , discutem-se, na literatura internacional
Segundo Noinel ( 1 9 9 2 : 2 1 ) , apenas a partir do advento do (Anderson, 1 9 9 1 ) , as influências mútuas entre a forma mestiça,
Estado nação, no século X I X , se pode falar em definição francesa latino-americana (Vasconcelos, 1 9 4 8 [1925); Freyre, 1969 [ 1 9 3 3 | ;
da nação (vontade coletiva), c o n t r a uma definição alemã (raça e Shumway, 1 9 9 1 ; Schutte, 1 9 9 3 ; Stutzman, 1 9 8 1 ) , de definir a
língua). Tal bifurcação, todavia, pode ser enganosa. Como subli- nação (e o nacionalismo) e a forma mestiça de pensar a nação
nha o mesmo Noiriel ( 1 9 9 2 : 2 3 ) , a definição de nação, que acabou francesa.
por se impor em Renan ( 1 9 9 7 f l 8 8 2 ] ) , supõe uma raça histórica,
construída a partir de memórias coletivas, de experiências histó-
ricas e do culto dos ancestrais. N e l a , a noção de "origens" é am- A MATRIZ AMERICANA:
bígua, podendo ser interpretada c o m o genealogia e hereditarie- O E N C O N T R O D O PARAÍSO
dade ou como pertença simbólica (por intermédio da literatura,
das instituições) etc. Originam-se daí duas formas de distinção Entre os mitos nacionais brasileiros, o Descobrimento do
nacional: uma atribuída (a lignée e a soitche) e outra adquirida Brasil é fundador em mais de um sentido, pois narra a chegada
(o domínio da língua, das letras e da história francesas). Dificil- dos portugueses ao N o v o M u n d o e a sua resolução de criarem aqui
mente, esses dois princípios de identificação andam separados. Ao uma nação a partir de elementos não apenas europeus, mas tam-
contrário, geralmente, eles são utilizados de acordo com a situa- bém nativos. Os elementos principais do mito são: o descobrimen-
ção e o momento, to da nova terra; a sua posse simbólica, através cio soerguimento
Como se vê, o que se c h a m a de definição francesa da nação de uma cruz, seguido do ofício de uma missa católica, na qual
não é necessariamente uma definição univetsalista, democrática participam portugueses e indígenas, igualmente. A representação
e assimilacionista. Tal definição é, para ser exato, mais iluminista pictórica é conhecida: europeus bem vestidos, guerreiros e civili-
que francesa. A definição p r o p r i a m e n t e francesa, particularista, zados, comungam e absorvem indígenas (mulheres belas e guer-
de nação supõe tanto a idéia de " r a ç a " , quanto de "língua", com reiros bravos) ingênuos, puros e nus, à sua fé. As narrativas do
a diferença essencial de que se t r a t a de uma definição histórica e descobrimento, na verdade, formam não apenas um mito. mas
não biológica de raça; e o critério da língua é medido pelo desem- vários: o descobrimento, a assimilação dos povos primitivos, o
penho individual e não pela filiação a um tronco lingüístico co- paraíso na terra.
munitário. No caso da raça, o particularismo francês privilegia a O Descobrimento, diz-nos José Murilo de Carvalho ( 2 ( ' i R ) ) ,
pertença a uma memória coletiva e a um tronco de antepassados estabelece c o m o fato o que não é verdade histórica: a existência
e de memórias comuns; no c a s o da língua, o domínio do verná- de uma nova terra, virgem de nacionalidades, sem reiisnão o u
culo e da história francesas. Estado prévios. A idéia de um paraíso terrestre é parte essencial
A rigor, tal forma de particularismo é francesa apenas no do mito do descobrimento, ainda que depois se desdobre em narra-
sentido de que é discursivamente legítimo, não no sentido de que tiva mitológica a u t ô n o m a . A meu ver, o caráter edênico, no Des-
a França seja a única nação a pensar-se desse modo; assim como, cobrimento, se deve justamente à virgindade pressuposta. E x p l i -
para o nacionalismo alemão, é legítimo pensar-se como uma co- co-me: já que os povos que os portugueses aqui encontram for-

112 (lasses, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 113


marão uma das bases da futura n a ç ã o , não é possível tratá-los Os índios transformam-se afinal em símbolo cios que não são
como ímpios ou perversos, mas apenas como habitantes de um totalmente brancos nem totalmente cidadãos, mas inteiramente
paraíso original. Os índios não formam uma civilização oposta brasileiros (Agier e C a r v a l h o , 1 9 9 4 ) . Mais que raça, trata-se da
ou inimiga, mas se encontram, a o contrário, em estado original, representação da parcela subordinada da nação: impuramente
pré-civilizado. européia, mestíçamente branca.
Pois bem, o que cimenta o m i t o do Descobrimento é a fé ca- Repare-se que faltam a o nosso mito dois elementos impor-
tólica. Os portugueses que aqui chegam irão, de certo modo, cons- tantes, encontrados em outras partes da América: aqui não se fala
purcar o paraíso que encontraram — a natureza virgem e a igual- em conquista (como na América espanhola) nem em vitória icomo
dade social primitiva — , mas, ao m e s m o tempo, trazem a reden- na América inglesa), mas em dócil incorporação. Os índios não
ção possível para os pecados que introduzem. A inspiração do mi- foram nem conquistados e incorporados, como na primeira, nem
to do descobrimento é claramente o mito bíblico da expulsão do tampouco vencidos, exterminados ou postos em reservas, c o m o
paraíso. O catol íosmo represento. 3. redenção dos pecados intro- na segunda. Por primitivos e originais, eles são apenas transmu-
duzidos pela civilização, mas representa também a igualdade de tados em novas pessoas, agora civilizadas e incorporadas ao uni-
todos peranív Deus e a a b s o r ç ã o dos índios (ou os nâo-brancos) verso católico. Aí reside o segundo elemento do mito: a idéia de
à civilização. uma totalidade hierárquica, não exatamente igualdade entre ci-
A representação do Descobrimento tem um componente cen- dadãos, mas igualdade entre criaturas de Deus, incorporadas nu-
tral: a integração e c o m u n h ã o social de todos na fé católica. N ã o ma mesma ordem h i e r á r q u i c a , c o m o apontou Roberto D a M a t t a
por acaso, no Carnaval dos 5 0 0 a n o s do Descobrimento, foram ( 1 9 8 1 ) . Esse aspecto do m i t o desdobra-se em outro mito parti-
os símbolos católicos da cruz, da Virgem e do Cristo os mais busca- cular: o da democracia racial, desenvolvido bem mais tarde, nos
dos pelas escolas de samba. A Igreja Católica procurou impedir anos 1 9 2 0 e 1 9 3 0 , q u a n d o se tenta superar o trauma da escravi-
a utilização de seus símbolos sagrados na procissão profana. M a s dão negra, incorporando, de modo positivo, os afro-descenden-
é sintomático que, para os s a m b i s t a s , fosse impossível pensar o tes ao imaginário n a c i o n a l .
Brasil sem os símbolos c a t ó l i c o s ; e, por isso mesmo, agiram em A relação edênica entre homem e natureza é comum aos mi-
conformidade: como se tais s í m b o l o s não fossem realmente cató- tos fundadores de t o d a s as nações americanas. No Brasil, porém,
licos ou religiosos, mas apenas brasileiros. E também sintomático essa relação é de continuidade. A Descoberta aparece como de-
que a representação cio Brasil não tenha sido feita a partir de ele- sígnio de Deus, não c o m o missão de construir na terra uma n a -
mentos culturais novos elaborados nos 2 0 0 anos de nacionalidade, ção segundo a Sua lei, c o m o aconteceu nos Estados Unidos C a r -
mas por uma atualização do mito do descobrimento: mulatos, mo- valho, 2')Q0). Desígnio divino tanto mais evidente porque o b r a
renos e mestiços reconhecendo o papel redentor e civilizador de do acas' ••: Cabral teria sido trazido a o paraíso pelas correntes
Portugal, a superioridade de sua civilização, ainda que precisassem marítimas e pelas c a l m a r i a s do Atlântico sul, e sua missão civili-
reafirmar sentimentalmente a superioridade da pureza indígena. zadora seria incorporar os índios à fé cristã e ao trabalho. ' ' A t e r r a
Apenas a fé católica, m e s m o no sincretismo, parece garan- é boa, em se plantando tudo dá".
tir tal equilíbrio entre duas superiondades reivindicadas: o esta- A idéia de um paraíso terrestre, como vimos, é o terceiro ele-
do virginal anterior, pré-civilizado e propriamente americano, e mento mítico. M a s ele t a m b é m não pode ser desvencilhado da fé
o estado civilizado posterior, desigual e hierárquico, mas europeu. católica. E nem t a n t o pela inspiração, como pela própria estru-

Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 115


tura do mito. Pois o Descobrimento representa, mais que tudo, a O BRASIL M O D E R N O :
instituição e a superação da desigualdade entre natureza e cultura, UMA D E M O C R A C I A R A C I A L
de um lado, entre "índios" e "portugueses", de outro. Os índios
representam a vida, os pequenos e os humildes (dóceis, pacatos e A modernidade brasileira é, sem dúvida, produto dos últimos
sábios, por natureza); só os portugueses representam a cultura e setenta anos. Os sociólogos e cientistas políticos demarcam, geral-
a civilização (com toda a carga de violência e de racionalidade que mente, tal modernidade com a R e v o l u ç ã o de 1 9 3 0 , que pôs fim à
envolve a acumulação de riqueza). Para que tal antinomia viva em Primeira República ( 1 8 8 9 - 1 9 2 9 ) . Se em relação ao Império (1 8 2 3 -
equilíbrio é preciso um redentor — o C r i s t o , representado pela 1 8 8 9 ) , a Primeira República procurou modernizar o Brasil atra-
fé católica e pela hierarquia de sua igreja — , que desfaça as dife- vés da adoção de novas instituições, da europeização dos costu-
renças e re-estabeleça a igualdade de t o d o s perante Deus. O pla- mes (Freyre, 1 9 3 6 ) e do incentivo à imigração européia (Seyferth,
n o da cidadania e do estado de direito, do ordenamento social e 1 9 9 0 ; Schwarcz, 1 9 9 3 ) , em continuidade c o m aquele, manteve
do contrato entre indivíduos, não e x i s t e , portanto, no mito fun- uma nacionalidade ostensivamente polarizada, marcada pela enor-
d a d o r da nacionalidade. A ordem social e política continua a ser me distância entre brancos e pretos, civilizados e matutos. Foi ape-
revivida como o encontro primeiro entre a natureza e a cultura. nas a partir de 1 9 3 0 , principalmente com o Estado Novo ( 1 9 3 7 -
J o s é Murilo (Carvalho, 1 9 8 7 ) já apontava para a ausência de ver- 1 9 4 5 ) e a Segunda República ( 1 9 4 5 - 1 9 6 4 ) que o Brasil ganhou
dadeiros heróis nacionais e de um p a n t e ã o cívico. Em outro tex- definitivamente um " p o v o " , ou seja, inventou para si uma tradi-
t o , ele observa (Carvalho, 1 9 9 5 ) , c o r r e t a m e n t e , que quando a ç ã o e uma origem. - 6

R e p ú b l i c a necessitou estabelecer um imaginário nacional laico, o


A idéia fundamental da nova n a ç ã o é a de que não existem
herói nacional chamado a desempenhar tal papel,Tiradentes. foi
raças humanas, com diferentes qualidades civilizatórias inatas, mas
reconstruído, à maneira de Cristo, c o m o um mártir redentor da
sim diferentes culturas. O Brasil passa a se pensar a si mesmo como
nacionalidade, a garantir, com o seu sacrifício, a pátria indepen-
uma civilização híbrida, miscigenada, não apenas européia, mas
dente que nasceria adiante, em c o n t i n u i d a d e com a ordem esta- 63
produto do cruzamento entre b r a n c o s , negros e índios. O "cal-
belecida pelos portugueses.
deirão étnico" brasileiro seria capaz de absorver e abrasileirar as
M a s , ao mesmo tempo, justamente p o r ser o catolicismo o tradições e manifestações culturais de diferentes povos que para
c i m e n t o de uma ordem social desigual (a igualdade em Deus c pre- aqui imigraram em diferentes é p o c a s ; rejeitando apenas aquelas
s o c i a l ) , a Igreja Católica não aceita a t o d o s os "índios", indistin-
t a m e n t e . Fia pede fidelidade às crenças católicas e aos costumes
europeus, ela exige o embranquecimento da alma e da fé. A Igre- Sigo. grosso modo, a interpretação de Frevre. É K :v» verdade, como
ja procura desesperadamente restabelecer, nos períodos de testas nos diz Schwarcz Í 1999*. que a europeização do-, costunp - inicia-se no im-
61 pério. Mas, esta foi contrabalançada pelo romantismo brasileiro, em busca
populares e festivais de i n v e r s ã o , a s e p a r a ç ã o entre fé e crendi-
de nativismo: que. por sua vez. nunca foi amplo o Milicien; para incorporar
c e s , entre religião e festa paga, entre índios e portugueses. Distin-
as massas negras e mulatas. O povo brasileiro, tal como In c o concebemos,
ç ã o esta que o povo desfaz em todos os seus carnavais. e uma construção modernista.

Esta é, entretanto, uma tradição intelectual que remonta ao final d o


século X I X , e que tem, entre seus expoentes, intelectuais J o porte de Silvio
Ver, a respeito, DaMatta ( 1 9 9 0 a ) . Romero (1949 [1888]) e Joaquim N a b u c o ( 1 8 8 3 1

Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 117


que fossem incompatíveis com a modernidade (supertições, ani- Conquanto a pequena presença demográfica européia, ante a po-
m i s m o s , crendices e t c ) . Tal idéia permite o cultivo de uma "alta pulação de origem indígena e africana, tenha acabado por fazer
c u l t u r a " , propriamente brasileira, e m sintonia com a "cultura po- predominar no país uma população biologicamente mestiça, ela
p u l a r " , algo que eclode na Semana de Arte Moderna de 1 9 2 2 . 6 4
nunca pôs em cheque o caráter europeu da civilização brasileira,
M a s , de certo modo, foram as c i ê n c i a s sociais, e não apenas as nem de suas classes d o m i n a n t e s , nem mesmo a cor branca da
6
artes plásticas e a literatura ficcional, as inventoras desse Brasil maioria da sua p o p u l a ç ã o . '
m o d e r n o , através de obras seminais c o m o s s de Gilberto Frevre Essa mão-de-obra estrangeira, concentrada quase totalmente
( 1 9 6 9 [ 1 9 3 3 ] , 1936), Sérgio B u a r q u e de Holanda (1936) e Caio em São Paulo, nós estados do Sul e no Rio de Janeiro, dominou a
P r a d o J r . ( 1 9 6 5 [1937]). oferta de mão-de-obra industria] e artesanal, alijando do merca-
As bases materiais e e c o n ô m i c a s dessa modernidade foram do a população negra e mestiça. Apenas com o fim da imigração
plantadas pela Revolução de 1 9 3 0 . Essas consistem, basicamente, estrangeira, nos anos 1 9 3 0 , e a constituição de uma reserva de mer-
no incentivo à industria e â substituição da mão-de-obra estrangei- cado para o trabalhador brasileiro, tornou-se possível a incorpo-
ra por mão-de-obra brasileira, que passa a constituir propriamente ração de uma enorme massa racialmente miscigenada ou negra,
um proletariado, com estatuto p o l í t i c o reconhecido e regulado. que migrou para São Paulo e para os estados do Sul e do Sudeste
A base demográfica, e n t r e t a n t o , já estava consolidada. De brasileiro, oriunda de várias partes do país, principalmente de
fato, entre 1560 e 1850, o governo c o l o n i a l brasileiro importou Minas Gerais, do interior de S ã o Paulo, do Rio de Janeiro e dos
entre quatro milhões e meio e seis milhões de africanos para traba- estados do Nordeste, as regiões mais populosas.
lhar c o m o escravos nas plantações de c a n a , café, algodão, tabaco, Até então, ou seja, aré os anos 1 9 3 0 , o Brasil tinha reconhe-
nas minas de ouro e diamante, nas fazendas de gado e no trabalho cidamente uma questão racial, cujos fundamentos eram biológi-
65
d o m é s t i c o e artesão. Nesse p e r í o d o , a população branca, quase cos e demográficos. Assim, enquanto perdurou a importação de
toda de origem portuguesa, mal rivalizava a população escrava, escravos africanos ou enquanto o volume de migração européia
ficando espremida entre a p o p u l a ç ã o negra, mulata e c a b o c l a . 66
foi diminuto, éramos vistos por nossas elites c o m o uma nação sem
D e p o i s de findo o tráfico de e s c r a v o s , o país foi buscar mão-de- povo e sem cultura (Skidmore, 1 9 7 6 ) .
o b r a na Europa, mas estima-se q u e , entre 1 8 5 0 e 1 9 3 2 , apenas Quando começa a imigração européia, é a ameaça de divi-
q u a t r o dos 5 5 milhões de emigrantes europeus tenham se dirigido são cultural do país que passa a ser percebida, tal como colocada
ao Brasil, concentrado-se principalmente nos estados do Rio de de modo exemplar por Nina Rodrigues ( I 9 s 3: 1 9), ainda no fi-
J a n e i r o , São Paulo, Paraná, Santa C a t a r i n a e Rio Grande do Sul. nal do século X I X :
"Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente
nao pode deixar de impressionar a possibilidade ela
1,4
Esta interpretação deve, de n o v o , ser matizada com a compreensão oposição futura, que ja se deixa entrever, entre unia
de ouc o romantismo ln.isileiro revelou-se bastante artificial, ao excluir nc- nação branca, forte e poderosa, provavelmente de o n -
ftros e mulatos do imaginário nacional.

' ° Sobre essas cifras, ver Florentino ( 1 9 9 7 : 2 3 ) .


11
6 6
Em 1660, por exemplo, Simonsen (1 9 7 8 : 2 7 1 ) estima a população A proporção cjue se declara branca nos recenseamentos varia de
brasileira em 74 mil brancos e índios livres e 1 1 0 mil escravos. 6 3 , 4 % , em 1940, a 5 4 , 2 % , em 1 9 9 1 . Ver Wood e Carvalho (1994: 159).

Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 119


gem teutônica, que se está constituindo nos estados do
colonização cultural dos negros e índios, ou seja, da sua "domes-
Sul, donde o clima e a civilização eliminarão a Raça
t i c a ç ã o " ou "civilização"); 2) o reconhecimento da dívida cultu-
negra, ou a submeterão, de um lado; e, de outro lado,
ral que a nação brasileira tem em relação aos negros (tratar o ne-
os estados do Norte, mestiços, vegetando na turbulên-
gro c o m o um colonizador, foi uma das maiores inspirações de Gil-
cia estéril de uma inteligência viva e pronta, mas asso-
berto Freyre em Casa-grande & senzala); 3) a idéia de que, en-
ciada à mais decidida inércia e indolência, ao desâni-
quanto povo, os brasileiros "ultrapassaram" os elementos forma-
m o e por vezes à subserviência, e assim ameaçados de
dores da nação (os brancos, os negros, os índios — em termos ra-
converterem-se em pasto submisso de todas as explo-
c i a i s — ou os portugueses, italianos, nagôs, b a n t o s , tupinambás,
rações de régulos e pequenos ditadores".
guaranis etc. — em tetmos nacionais) para se constituir numa
68
meta-raça, num povo, o povo b r a s i l e i r o . Segundo tal represen-
Ou seja, temia-se pela qualidade do estoque populacional
t a ç ã o , largamente freyreana, nós n ã o ternos propriamente uma
brasileiro, pela ausência de uniformidade cultural e pela unidade
" r a ç a " — não somos brancos, negros ou índios — , mas uma na-
nacional. T o d o s os temores alimentados por crenças raciais.
ção: somos um povo mestiço. Qualquer dos três pólos, se reivin-
V a r g a s , na política; Freyre, nas ciências sociais; os artistas e dicado sem mestiçagem, é estrangeiro à n a ç ã o . Assim, diz Frevre
literatos modernistas e regionalistas, nas artes; esses serão os prin- em Casa-grande e~ senzala ( 1 9 6 9 [1 9 3 3 ] : 3 9 5 ) , " t o d o brasileiro,
cipais responsáveis pela "solução" da questão racial, diluída na mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e n o corpo a som-
matriz luso-brasileira e mestiça de base p o p u l a r , formada por bra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do n e g r o " .
séculos de colonização e de mestiçagem biológica e cultural, em
Permita-me insistir. Os negros e índios, na política republi-
que o predomínio demográfico e civilizatório d o s europeus nun-
cana, são apropriados como objetos culturais, s í m b o l o s e marcos
ca fora c o m p l e t o a ponto de impor a segregação dos negros e
fundadores cie uma civilização brasileira, mas têm negado o direito
mestiços. A o contrário, a estratégia dominante sempre fora de
a uma existência singular plena c o m o m e m b r o s de grupos étni-
" t r a n s f o r m i s m o " e de ''embranquecimento", ou seja, de incorpo-
cos. Estes são marcos da fronteira da civilização brasileira, rema-
ração dos mestiços socialmente bem-sucedidos a o grupo domi-
nescentes dos antepassados que criaram a n a ç ã o , restos e vestígios
nante " b r a n c o " .
das origens í Guimarães, 1999; W a d e . 1 9 9 3 ) . T a l constelação sim-
Se a Primeira República fora responsável pela europeização
bólica se manifesta, no campo político, por c o n c e s s õ e s igualmente
dos costumes brasileiros e pela introdução de milhões de europeus
simbólicas. Lembre-se que a existência mesma d o movimento ne-
no Sul e no Sudeste do Brasil, em detrimento da população mestiça,
gro contradiz o ide\\ de mistura, reificando um elos elementos de-
oriunda do caldeirão colonial, a Revolução de 1 9 3 0 e a Segunda
formação, que não deveria ter e n c a r n a ç ã o política, mas apenas
República tiveram o bom senso de desarmar a b o m b a étnica que
cultural. Pois bem. quando essa-, concessões s ã o feitas, elas cor-
se formava em conformidade com os temores de Nina Rodrigues.
rem o risco de permanecerem no papel. Isso é v á l i d o t a n t o para a
C o m o vimos anteriormente, a lógica da poiítica republica-
a b s o r ç ã o de símbolos da identidade afro-brasileira à cultura na-
na com relação à população negra (de origem africana) foi balizada
por três construções simbólicas: 1) o reconhecimento da escravi-
dão c o m o um sistema inumano e aviltante (ao c o n t r á r i o da justi-
6 ! i
Essa rdéia se encontra muito bem equacionada e apresentada criti-
ficativa monarquista, escravista, da escravidão c o m o tempo da
camente, por Roberto DaMatta (19$ 11.

120 Classes, raças «• democracia


Direitos e avessos da nacionalidade 12!
cional, c o m o ate para a incorporação à ordem jurídico-normatíva rrializados). A decisão de Vargas de reservar o m e r c a d o de trabalho
das reivindicações políticas do movimento n e g r o , tais como os urbano aos brasileiros (lei de 2/3) reforçou as migrações internas,
princípios constitucionais da não-discriminação e cia integração fazendo c o m que grandes levas de nordestinos se dirigissem aos
s o c i o c c o n ô m i c a dos negros (Guimarães, 1 9 9 8 ) . centros urbanos do Sudeste ou às áreas de agricultura moderna e

Se as migrações internas e a criação de u m a sólida cultura de fronteira do Sul e do Sudeste. A c o m p e t i ç ã o que então se ins-

nacional, de bases mestiças e populares, de origens principalmente talou no mercado de trabalho, tanto quanto o estranhamento cul-

nordestinas, baianas, cariocas e mineiras, f o r a m capazes de de- tural, são responsáveis pelo surgimento de estereótipos regionais

s a r m a r a bomba étnica que se formava em S ã o Paulo antes dos negativos ("baianos", "paraíbas" e " n o r d e s t i n o s " ) , assim como
anos 1 9 3 0 , elas não evitaram, porém, a emergência ou continui- nacionais ("português"), visto que os portugueses gozavam dos

dade de novos problemas, tais como o preconceito racial e regio- mesmos privilégios dos nacionais. Tais fenômenos, ainda que im-

nal e as crescentes desigualdades raciais. Do m e s m o modo, a crença portantes, apesar de pouco estudados, não foram suficientes pata
na d e m o c r a c i a racial tora tecida por sobre a lenda da excepcio- levar à crise o sentimento nacionalista. A " r e g i o n a l i z a ç ã o " dos

n a l i d a d c brasileira, que deixava de ser plausível ã medida que preconceitos e estereótipos foi quase sempre a regra, reforçada por

outras sociedades pós-coloniais, como Estados Unidos e v lanada, uma socialização regionalizada, com seus heróis, seus santos, suas
superavam a segregação racial através de soluções c o m o . > conví- datas cívicas, suas festas, comidas típicas etc... Na verdade, mas

vio multirracial e multicultural, numa situação de convivência de- apenas nesse sentido, o sentimento de pertença nacional brasilei-
69

m o c r á t i c a mais igualitária em termos de oportunidades de vida. ra continuou f r a c o .


A crise real sobreveio nos anos 1 9 8 0 , c o m a estagnação eco-
n ô m i c a , a crise financeira e a falta de direção política clara. A di-
U M A N O V A IDENTIDADE ficuldade de reconversão e de remserção brasileira na nova ordem

N A C I O N A L BRASILEIRA? mundial, galvanizada pela crise de governabilidade, levou a iden-


tidade nacional aos limites da tensão. S ã o índices da crise do mo-

A configuração descrita acima foi forte o suficiente para delo assimilacionista e heterofóbico de nação alguns elementos que

sedimentar o sentimento de pertença à nação brasileira, no período passo a enumerar. Primeiro, o ressurgimento, ainda que por bre-

pós-abolicionista. Apenas, duas grandes tensões pesaram -obre tal ve período, de movimentos separatistas, principalmente no Sul do

s e n t i m e n t o , no período que vai dos anos 1 9 4 0 aos anos 9 7 0 do país. Segundo, o surgimento de movimentos racistas voltados con-

século X X . Primeiro, o fato de o Brasil ter cerrado ri lei r; com os tra nordestinos e negros, principalmente no Sudeste, tais como os

A l i a d o s , durante a Segunda Guerra Mundial, se contrap >ndo ao Carecas do ABC etc. Terceiro, o tato de que. pela primeira vez

e i x o ( A l e m a n h a , Itália e J a p ã o ) , exigiu uma assimilaçã > muito cm sua história, o brasil passa a ser uma origem importante na

rápida cias comunidades e colônias italianas, alemãs e japonesas, emigração internacional. Quarto, o tato de unia grande leva de

surgidas da grande imigração internacional da virada d< sécuio. brasileiros de segunda, terceira e quarta g e r a ç ã o buscarem uma

e x a c e r b a n d o os sentimentos nacionalistas (Seyfertb, 1 9 9 0 . Segun-


do, a n o v a ordem econômica surgida no pós-guerra (o desenvolvi-
mento sustentado), significou um aumento do desequilibro regio- 6 9
A fragilidade do sentimento nacional na América Latina em geral é
nal (o Nordeste agrário cedendo terreno ao Sudeste e ao Sul indus- comentada por Skurski (1996).

122 Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 123


dupla nacionalidade, aproveitando-se da m u d a n ç a da legislação OS AVESSOS DO M I T O :
brasileira. Q u i n t o , o movimento de "reafricanização" dos costu- O PRECONCEITO
mes negros no Brasil, gerenciado politicamente pela construção C O N T R A OS B A I A N O S 7

da identidade negra. Sexto, o movimento de reetnízação de povos


indígenas brasileiros, dados como desaparecidos, no Nordeste, O preconceito contra os baianos, paraíbas e nordestinos é
Sudeste e Sul do país. dos mais fortes e persistentes no Brasil c o n t e m p o r â n e o , só. rivali-
C a d a um desses elementos tem uma história própria que é zado pelo preconceito racial. O estereótipo do baiano como o imi-
preciso retomar para que se possa verificar a hipótese de crise. Dei- grante pobre, ignorante, servil, preguiçoso, b e ó c i o , sem espírito
xem-me, entretanto, desenvolver melhor a própria hipótese geral. empreendedor, sem chances de se tornar alguém, pode nos levar
Se D a M a t t a tem razão, como eu acho que tem, em dizer que a considerar que tal estereótipo se deve à sua condição de imigrante
a nacionalidade brasileira, enquanto definição de identidade ra- no Sudeste do Brasil, sendo portanto produto do pós-guerra, quan-
cial, se construiu no último século no espaço de representação de- do as migrações internas no Brasil substituíram as migrações inter-
m a r c a d o por três pólos raciais — o branco, o negro e o índio —, nacionais em termos de prover de mão-de-obra a nascente indús-
se distanciando cuidadosamente de cada um deles, ainda que to- tria do Sudeste, principalmente São Paulo. S ó em parte isso é ver-
mando-os por referência, para a definição de uma mestiçagem sin- dade. E é tão mais verdade para os termos paraíba, ao Rio de j a -
gular; pois bem, se esse é o modo de definir-se racialmente, esse neiro, e nordestino, em São Paulo, que para baiano.
modo está mudando rapidamente. Sua crise é visível na busca de A verdade inteira começa ainda no Brasil C o l ô n i a , quando
identificação a partir da recriação de cada um desses pólos. O a B a h i a era a capital brasileira e os baianos, seus habitantes, se
branco de classe média busca sua segunda nacionalidade na Eu- arrogavam a ser os únicos habitantes civilizados da Tetra de Santa
ropa, nos E s t a d o s Unidos ou no Japão — ou cria uma xenofobia Cruz. Nos conta Gilberto Freyre que, em r e a ç ã o a tal pretensão,
regional racializada; o negro constrói uma África imaginária para baiano passou a denotar no Sul, principalmente no R i o Grande,
traçar a sua ascendência ou busca os Estados Unidos como Meca um j a n o t a palavroso, maneiroso e efeminado, típico dos homens
afro-americana; os índios recriam a sua t r i b o de origem. Ainda u r b a n o s , especialmente do Norte. Leiamos o mestre:
que tais movimentos centrípetos (de reagrupar-se em torno de um " E o baiano da cidade, isto é, de Salvador, acabou
dos pólos) não sejam movimentos de m a s s a , ou seja, movimen- por sua vez fazendo de sua c o n d i ç ã o de h o m e m da ca-
tos populares, eles são, entretanto, movimentos muito bem vesti- pital do Brasil — por muitos anos a cidade por exce-
dos de ideologia e expressos, com crescente a c e i t a ç ã o , pela inte- lência do palanquim e de negros que gritavam para todo
lectualidade brasileira e internacional, que rendem a vero país co- homem de sapato i;iie descesse do navio ou nau: 'Que
mo uma n a ç ã o multirracial, em vez de n a ç ã o mestiça. cadeira, sinbô?' — m o t i v o de supervalorização de ori-
V e j a m o s , a seguir, sobre que bases o preconceito ético-regio-
nalista em S ã o Paulo cresceu.

'' Comunicação ao Congresso Internacional da I.arin American Studies


Associauon (LASA), Sessão '"Lo afro en America Latina: debates sobre cul-
tura, política y poder". Mianú, março de 2 0 0 0 .

124 C l a s s e s , raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 125


gem ou de situação regional. Era c o m o se fosse Salva- no Império, mesmojdepois da independência.' 1
Que costumes
d o r a única região civilizada, urbana, polida, do Bra- são esses?
sil; e o mais, mato rústico. A essa supervalorização de Primeiramente, na Bahia, mais que em qualquer outro lu-
origem ou situação urbana ou metropolitana, o gaúcho gar, era ainda pujante o catolicismo barroco, de que nos fala J oã o
reagiu a seu modo, desdenhando de q u a n t o brasileiro Reis ( 1 9 9 1 ) , com suas muitas procissões e festejos, incorporan-
do N o r t e se mostrasse incapaz de montar a cavalo com do n ã o apenas a parte organizada da sociedade, inclusive negros
a destreza dos homens do extremo Sul; e associando e escravos afiliados a Irmandades, mas também a patuléia e o"zé-
essa incapacidade à condição de baiano. Ser baiano era 2
povinho, que seguia a t r á s . ' Verdadeiros carnavais, nos diz Pierre
ignorar a arte máscula da cavalaria. Era ser excessi- Verger ( 1 9 8 4 ) , ele próprio c o m e n t a n d o as observações de Roger
vamente civilizado: quase efeminado. Q u a s e mulher. Basticie ( 1 9 4 5 : 3 2 ) , feitas nos a n o s 4 0 do século X X , quando o
Q u a s e sinhá. Era só saber viajar de palanquim, de re- c o s t u m e dos baianos de transformar em festa carnavalesca todas
de, de cadeira, aos ombros dos escravos negros. De as efemérides santas continuava incólume.
m o d o que baiano tornou-se, no Brasil, termo ao mes- Os republicanos e progressistas, nos ensinam Freyre e José
m o tempo de valorização e de desvalorização do indi- M u r i l o de Carvalho (1995». odiavam esse legado colonial e gosta-
víduo por circunstâncias regionais de origem e de for- riam de vê-lo enterrado e não vivíssimo, c o m o na Bahia. Ademais,
m a ç ã o social. E o mesmo se verificou c o m gaúcho'" as festas religiosas, na Bahia, c o n t i n u a v a m a ser a única represen-
(Freyre, 1 9 3 6 : 3 6 9 ) . t a ç ã o pública da autoridade política. M e s m o a lesta da indepen-
dência, na Bahia, era a Festa do 2 de J u l h o , ou melhor, a "festa
Baiano, portanto, enquanto metonímia de gente do Norte, dos c a b o c l o s " , tão carnavalesca, religiosa e processional quanto
ou N o r d e s t e , c o m o passou a ser conhecida a região a partir dos as festas coloniais (Santos. 1 9 9 5 ; A l b u q u e r q u e , ] 9 9 9 ) .
6 0 do século X X , era já uma criação do século X V I I I , ao menos
para os g a ú c h o s . M a s não tinha, certamente, o caráter incontro-
versamente pejorativo que ganhou nesse século. Era, como nos diz
Freyre, um termo de valorização e desvalorização, ao mesmo tem-
_ i ,K,
Nesse sentido, tem razão Thales de Azevedo (1 <> [I 9S"l- quando
po, provavelmente mais de valorização que seu contrário, pois
diz que a Bahia era a mais portuguesa das cidades brasileiras, pi ' arquite-
rodos s a b e m o s c o m o , na sociedade de corte, eram malvistos o.-, tura e pelos costumes. Thales apenas fazia um exercício de reversa aiacntiea
homens do interior. cio sentido pejorativo com que a República tratou seia a t Alonia. -via os por-
O termo baiano parece ter perdido toda a áurea de civilida- tugueses. Para uma outra interpretação da mesma passaaem de ; nales. ver

de apenas na República. E conhecido o afã c o m que a República Guimarães (1999).

procurou separar-se da herança colonial e da herança portugue- 2


O conceito é assim definido por Reis Í 1 9 9 1: 6 1 : "Ncss.. visão bar-
sa. Pois bem: nada mais colônia! e português que a Bahia, toma- roca do catolicismo, o santo não se contenta c o m a pivee indi•aciual. Sua
intercessão será tão mais eficaz quanto maior for a capacidade .ms indiví-
da pela óptica de suas classes dominantes. Português não em ter-
duos de se unirem para homenageá-lo de maneira espetacular. Para receber
mos de seus habitantes, ou mesmo em referência a Portugal, mas
a força do santo, deve o devoto fortalecê-lo com as festas em seu !»uvor. tes-
em t e r m o s de sua civilização, em termos dos costumes luso-bra- tas que representam exatamente um ritual de intercâmbio de energias entre
sileiros que aqui se estabeleceram e fincaram raízes na Colônia e homens e divindades".

126 Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 127


Aliás a indisposição da Bahia com a R e p ú b l i c a era não ape- cularmente dinâmicas, dentro das q u a i s suas aptidões

nas cultural, mas política, uma vez que a antiga capital, tinha ou suas formas ou maneiras baianas de ser se exalta-

reconvertido todo o seu capital social para uso na corte imperial, ram sob a influência de outras substâncias, daí resul-

principalmente sua oratória e a beleza vernacular do seu idioma, tando combinações magníficas de baianidade com pau-

para a representação política dos interesses, seus e de outros. A listantdade, por exemplo" (Freyre, 1 9 5 9 : 2 1 0 ) .

R e p ú b l i c a , privilegiando as ciências às artes, a substância à for-


ma, os anglicismos e galicismos ao castiço; renegando o legado M a s há outro componente nesse p r e c o n c e i t o que se nutriu
luso-brasileiro, para imitar os franceses e ingleses, destituía a Bahia contra ã Bahia, que tem a ver precisamente c o m o m o d o de ser ne-
do seu capital cultural e social, ela que já perdera, nesse trabalho gro na B a h i a , ou com o fato de as elites baianas " n ã o saberem li-
ile r e p r e s e n t a ç ã o , boa parte do seu capital material. dar c o m os seus negros", ou com o fato de a B a h i a ser ela mesma,
4

A indisposição da República para com a Bahia e para com uma mulata velha'' .

os baianos será impiedosa, como impiedosa será c o m os portugue- V o l t e m o s ao catolicismo barroco. A p a r t i c i p a ç ã o dos negros

ses: através da galhofa, do riso e da estereotipia. tratando o seu povo nos festejos religiosos, na Bahia, e no Brasil c o l o n i a l em geral, foi

c o m o um povinho atrasado, ignorante, démodé e ridículo em suas mais além do que mandaria a hierarquia do desfile processional

pretensões de civilidade. Trabalho de desmoralização esse, e bom português, para adquirir o ar de mistura e de convivência intima,

que se diga, feito por baianos e não-baianos igualmente, desde que c o m u m aos carnavais, que os visitantes estrangeiros registraram.

progressistas, c o m o aliás documenta muito b e m Gilberto breyre, Aliás, os portugueses e brasileiros brancos c h e g a v a m mesmo a dis-

citando mais de um baiano ilustre para tipificar o encastelamento putar entre si a inclusão de músicos africanos e crioulos para melhor

da B a h i a no passado. É de Freyre a mais completa afirmação do louvar os seus santos (Reis, 1 9 9 1 : 6 6 ) . E esse sentido de mistura, de

caráter retrógrado da Bahia novecentista, t ã o c o m p l e t a que pare- falta de respeito e de reversão da ordem que os republicanos e pro-

ce haver realmente, na Bahia, se não no sangue b a i a n o , algo incom- gressistas repudiam e que, na Bahia, não tiveram força para reverter.

patível c o m a modernidade. Escreve o mestre de Apipucos: N a B a h i a , "a negrada", com tantas festas e procissões, aca-
75
" É certo que dessa mística [da O r d e m , contrária bou por t o m a r conta das r u a s . S í m b o l o m a i o r dessa "incivili-
a o Progresso] se desgarraram baianos ilustres do século dade" era a falta de higiene resultante do crescimento demográfico
X I X : Teixeira de Freitas, Nabuco de Araújo, o primeiro de uma cidade que mantinha o a r m a m e n t o , t r a n s p o r t e e escoa-
R i o B r a n c o , Luís Gama, Castro Alves. R u y Barbosa. mento s a m t á r i o do século XVHI, sem passar pelos grandes inves-
M a s sob o estímulo de outros meios: em correspondên- timentos de reurbanização da capita! imperial. E x e m p l o maior da
cia c o m outros ambientes brasileiros; pelo acréscimo falta de higiene, aos olhos dos brancos, eram as c o m i d a s vendi-
à sua condição de baianos de outras s i t u a ç õ e s , parti-

4
A representação da Bahia como a "mulata velha" é registrada por
Ruth Landes • 1 9 4 7 ) , por exemplo. Ver Guimarães ! 1 9 9 9 ) .
' Diz o médico baiano Durval Vieira de Aguiar, citado por irevre
0

(I 9 5 9 : 2 0 9 ) : " [ . . . ) o baiano esquecia-se da Província pelo Império'', isto e. Sobre as tentativas, em alguns casos bem-sucedidas, em outros não,

pela corte, ''para onde convergem, em curso forçado, todos os nossos recur- de disciplinar a gente do povo e o espaço público em Salvador, ver, entre
outros. Ferreira Filho (1999) e Morales ( 1 9 8 8 ) .
sos materiais e intelectuais [...]".

Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 129


!28
das na rua p o r negras do acarajé que, no R i o de Janeiro e fora da ideológico europeu, não apenas a ciência, que estancou epidemias
Bahia, p a s s a r a m a ser chamadas de baianas' . b
As autoridades da e saneou nossas ruas, mas a pseudociência, as ideologias políticas
capital da República perseguiram tenazmente as baianas, tanto que franceses manipulavam entre si e contra os alemães, para justi-
quanto os candomblés (Velloso, 1 9 9 0 ) e s a í r a m vitoriosos. Per- ficar seja a restauração monárquica, seja a integridade da nação
seguição, diga-se de passagem, não apenas policial. Em seu hu- francesa (Arendt, 1 9 5 1 ; Foucault, 1 9 9 7 ; Noiriel, 1 9 9 2 ) . Idéias de
mor ferino, os cariocas e aqueles que, vindo de t o d o o Brasil, se raça, teorias sobre a degenerescência dos mulatos, o m o d o c o m o
transformam em cariocas, esses novos citadinos civilizados, repre- os europeus nos viam, a nós que queríamos ser mais europeus que
sentarão a B a h i a , em suas caricaturas sociais, " p o r uma baiana os portugueses, doíam. A Bahia era a mulatice. Sem imigrantes
gorda, de turbante e fazedora de angu". ( F r e y r e , 1 9 5 9 : cxxxviii) europeus novos e sem esperança de novos imigrantes europeus.
O R i o de Janeiro cuidava dos seus negros e dos negros que a Era o velho caldeirão racial parado no tempo, a receber o influxo

Bahia lhe mandava, como os que formaram a Pequena África da demográfico dos negros. Na capital da República, os cientistas na-

Saúde (Carvalho, 1987; Moura. 1995; Fry, 1 9 8 8 ) . J á nos anos 1940, cionais armaram a estratégia política e a solução teórica: o novo

o samba d o R i o ganhava "Escola" e " m o d e r n i z a v a " o modelo da c a l d e a m e n t o se daria pelo a fluxo de sangue n o v o europeu, de

procissão b a r r o c a , que arrastava os devotos pela rua, o que deu preferência nâo-ibérico. Interessante que foi um baiano adotivo,

margem à observação irônica de Verger (1 9 8 4 : 1 3 ) : "se no Brasil da Academia de Medicina, quem levou mais a sério o racismo cien-

de antigamente as procissões tinham um alegre ar carnavalesco, ao tífico da época, sem transmutá-lo, c o m o fizeram os seus ilustras

c o n t r á r i o , o carnaval de rua das escolas de s a m b a de hoje tornou- colegas da Academia carioca, em teorias do embranquecimento.
se uma s o r t e pomposa de procissão". C o m o se s a b e , ainda hoje as Talvez, n ã o pudesse.

classes altas da Bahia lutam para disciplinar a procissão paga dos Estavam plantadas, na virada para o século X X , as raízes da
trios elétricos, organizados em blocos, não m a i s em irmandades, subeultura baiana, de cujo estigma nutriu-se o primeiro precon-
que a r r a s t a m a multidão pelas ruas, atraída pela fanfarra elétrica c e i t o c o n t r a os baianos. O b a r r o c o , a d e c a d ê n c i a , a mulatice.
e, agora, pelo espetáculo erótico de dançarinas e dançarinos... A n t ô n i o Risério ( 1 9 8 8 : 146) disse que "foi em m e i o ao mormaço
H o u v e ainda, a endurecer os estereótipos, mais que os negros, e c o n ô m i c o e ao crescente desprestígio político que práticas cul-
a raça. T o d o o racismo doutrinário brasileiro concentrou-se nos turais se articularam no sentido da individuação da Bahia no con-
4 0 anos cia Primeira República, em que f o m o s beber no discurso junto brasileiro de civilização". T e m razão.

/ 6
O pape! central das mulheres negras, vendedoras de rua, nesse pro- A estagnação econômica «Guimarães, 1 os;2 •, ranto q u a n t o a perme
1 1
cesso de desmoralização e acentuado por Ferreira Filho ( 1 > >V): "Freqüen- bilida. das elites a formas culturais afro-baianas serão usadas, tamhcm. pa- -
r

temente, a crítica às formas de mercância ou mesmo com idas vendidas na rua explicar a pujança c permanência da presença africana na Bahia. W r , p<
trazia implícita a associação cora a escravidão ou com costumes tipicamente exemp.o. (Ferreira Filho. 1999: 2 5 5 - 6 ) : " S e , no plano micro-político. laçv-,
negros. A ' m u l h e r do saião' fora expressão pejorativa largamente diíundul.: pessoa^ serviram para a preservação de espaços consideráveis da cultura n -
na imprensa republicana para dirigir-se à trabalhadora de rua. A crítica a gra eir Salvador, no mundo do trabalho e do comércio informal, as reste -

roupa tradicional das mulheres pobres e trabalhadoras geralmente as asso- ções d.i mercado formal de ocupações, a pobreza u r b a n a resultante das ex-

ciava à África, à escravidão que, por sua vez, eram relacionadas à barbárie, clusões e restrições econômicas da falida economia agro-exportadora do
Estado, aliadas ao caráter artificial do projeto de reformas urbanas, garant-
atraso e falta de higiene" (Ferreira Filho, 1 9 9 9 : 2 4 6 ) .

130 Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade


Mas, esse primeiro preconceito encontrou logo vários freios. A segunda fase do preconceito, que se desenvolve no pós-
Depois dos e x a g e r o s da Primeira República, ou ainda nos anos guerra, esse, ainda que nutrido pelo primeiro, t e v e moto próprio.
1 9 3 0 , c o m e ç a m as reações contra o antilusitanismo e antibarro- Foi m a i s um preconceito contra os emigrantes que se dirigiram,
quismo dos progressistas. Uma verdadeira restauração dos valo- em grandes levas, para as áreas rurais e os c e n t r o s urbanos do sul,
res luso-brasileiros, em alguns, como Gilberto Freyre: ou a recria- em b u s c a de emprego. Os estados que hoje c o m p r e e n d e m o Su-
ção de uma cultura propriamente brasileira, c o m o queriam os mo- deste e o Sul formavam há muito uma região, n o sentido de que
dernistas de 1 9 2 2 . A velha Bahia, barroca e mulata, passava a ser c o n h e c e r a m desde o Império algum tipo de m i g r a ç ã o interna. Mas
uma fonre inesgotável de referência e de inspiração. Para os poe- a e m i g r a ç ã o massiva de gente do Norte para o Sul era um fato
tas populares, c o m o Ary Barroso, Assis Valente, Dorival Caymmi, i n u s i t a d o . O imaginário da gente do sul, a c o s t u m a d a a se pensar
Gilberto Gil, C a e t a n o Veloso e tantos outros, ou para romancis- a partir do afluxo de novos imigrantes e u r o p e u s , do progresso e
tas, com J o r g e A m a d o ou J o ã o Ubaido, a Bahia foi referência para do e m b r a n q u e c i m e n t o , era posto em causa. M i g r a ç õ e s de serta-
uma nova estética; para os ideólogos da tolerância e bondade do nejos nordestinos, principalmente, incentivados pela nova política
povo brasileiro, um paraíso racial; para os a n t r o p ó l o g o s cultu- de industrialização nacional, que, desde Vargas, através da Lei de
rais e sociais, seus terreiros de candomblé foram valorizados co- 2 / 3 , reservava o mercado de trabalho brasileiro a o s nacionais.
mo preciosidade cultural e documento vivo da presença africana Esses imigrantes serão, em São Paulo e no Sul, principalmen-
nas A m e i icas. P o u c o tempo depois da Segunda Guerra, já no novo te, c h a m a d o s de baianos. Sem serem m u l a t o s , e r a m mestiços e
concerto das n a ç õ e s , o Brasil passava a ser simbolicamente repre- a c a b o c l a d o s , igualmente baixos, cabeças c h a t a s , p o b r e s e analfa-
sentado por uma mulher branca em trajes de baiana e a democracia betos o u semi-analfabetos. Era o tipo de gente que o brasileiro do
racial passava a-ser o seu produto de exportação. O que de melhor sul n ã o gostaria que tosse brasileiro — o seu O u t r o rejeitado, um
a civilização brasileira teria produzido. O estigma c o n t r a a Bahia o u t r o m o d o de ser brasileiro: mestiço, imigrante, p o b r e , "dester-
amainara. N o e n t a n t o , ainda assim, "a boa t e r r a " , " o berço do r a d o " . M a s , menos que o tipo físico, era t o d o um Brasil antigo,
Brasil" passa a ser a encarnação de uma natureza pródiga, "de que era rejeitado, tal como a Bahia o fora: o Brasil da casa-gran-
mar, petróleo, c a c a u , carnaúba" e t c , nos mesmos termos do modo de, dos c o r o n é i s , da oligarquia, da agricultura de subsistência, da
como o Brasil é e x a l t a d o . O que, na Bahia, não é natureza é "en- fome, d o flagelo das secas. Seria também o Brasil q u e o sul odia-
canto", " m a g i a " , "feitiço", "sedução". Aos baianos se cola a ima- ria ser, n o futuro: mestiço, pobre e migrante?
gem do pré-industrial e do pré-moderno em termos de costumes s
C h a m a r de baianos esses migrantes era a p e n a s estender
e de tempo: a manemolência, o atraso, a preguiça, a lentidão...
geograficamente, e antecipar no tempo, o m e s m o significado que
Ao que era um preconceito contra uma classe e um gênero foi, n o s a n o s 1 9 6 0 , atribuído ao Nordeste. N ã o credo haver aqui.
de baianos — os h o m e n s de alta estirpe ou os baianos bem-edu-
cados — vai aos p o u c o s sendo generalizado para todos os baia-
nos, homens e mulheres.
* Oficialmente, as migrações interna e externa têm designações dife-
rentes. Chamam-se os que vieram do Nordeste de "migrantes"; p o r "imigran-
tes" entendem-se apenas os que vieram do estrangeiro — o u seja. da Euro-
ram a perpetuação de velhas práticas de trabalho e renda agenciadas por mu- pa ou d o J a p ã o . No imaginário da gente do sul, esses últimos perpetuam a
lheres, mesmo que na contramão das intenções modernizantes". saga h e r ó i c a dos colonizadores e bandeirantes.

132 Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 133


na escolha cio nome, um preconceito contra os negros ou mula- Só recentemente, em São Paulo e e m i x j a parte do Sul e Su-
tos apenas. C r e i o se tratar, antes, de um preconceito contra os an- deste do país, o preconceito contra os " b a i a n o s " o u nordestinos,
tigos " b r a s i l e i r o s " , ou melhor contra aquilo que, no B r a s i l fora ganhou características novas, parecidas com a xenofobia européia
até então considerado brasileiro. Tenho a hipótese de que. ape- moderna, o que, por si só, revela a força do regionalismo no Bra-
nas quando nordestino passa expressamente a significar o atra- sil. O ódio aos migrantes nutre-se do sentimento de medo e amea-
so, prefere-se, em São Paulo, chamar esses novos imigrantes de ça. Ameaça à integridade da cultura paulistana (ou sulista), ela
nordestinos. M a s serão os dois termos intercambiáveis, baiano e própria produto da imigração européia do c o m e ç o do século; me-
nordestino? E m algumas situações, certamente sim. A4as talvez não do da deterioração do padrão de vida urbano, do crescimento do
em todas. Especulo de novo: baiano ficaria reservado para uso desemprego e da decadência econômica; pavor diante do aumento
mais p e j o r a t i v o . Assim, um branco ou branca de classe média, da criminalidade e da violência urbanas. O s migrantes brasilei-
vindo do C e a r á ou de outro lugar do Nordeste, numa boa escola ros do Nordeste, geralmente pobres, que a l i m e n t a m as favelas e
paulista, será preferencialmente tratado por baiano, por quem o o desemprego, são geralmente culpabilizados pela decadência ou
discrimina, c n ã o nordestino, reservado aos seus conterrâneos mais pela deterioração do padrão de vida das cidades paulistas ou su-
pobres, cuja c o n d i ç ã o pode ser referida direta e descritivamente. listas. Tal fato é registrado por vários autores. Citarei apenas dois:
A ofensa, no c a s o , consiste em tratar por baiano, em sentido ge- L
Alba Zakuir ( 1 4 H : 5 3 - 4 ) :
nérico, o o u t r o brasileiro, nascido ou não na Bahia, negando-lhe
"As mudanças populacionais sobre o e s p a ç o fí-
a naturalidade brasileira. Nesse caso, é o sentido primeiro, de
sico da cidade tiveram efeito na construção do medo
atraso e luso-brasilidade incivilizada, que prevalece.
dos moradores da classe média. Estes, na sua interpre-
N o R i o de Janeiro, entretanto, ao contrário de S ã o Paulo, tação do crescimento da violência na c i d a d e , culpam
não ocorreu a fusão entre o sentido pejorativo, republicano, de os nordestinos que passaram a morar no m e s m o bair-
"baiano", baseado na oposição barroco/moderno, e "nordestino", ro pela situação considerada insuportável e exigem p o -
imigrantes p o b r e s e culturalmente inferiores. N o R i o , esse senti- líticos mais duros [...] O ódio aos nordestinos parece
do de " n o r d e s t i n o " foi preenchido pelo termo " p a r a í b a " , tendo ser, no entanto, um fato específico desses bairros q u e
o termo " b a i a n o " guardado seu sentido original de preguiça, atra- os diferencia de outros locais no que se refere à c o n s -
so e lentidão. Por que isso? E possível que na migração nordesti- trução do medo e à resultante apatia social e política.
na para São Paulo tenham prevalecido os baianos; é também pos- Portanto, o problema desses bairros não parece ser ape-
sível que, em r e l a ç ã o ao R i o , o mesmo tenha o c o r r i d o com os nas um retorno à comunidade mais fechada, mas t a m -
paraibanos. E possível ainda que os baianos que se dirigiram para bém um reforço da identidade racial e é t n i c a que nega
o Rio fossem de c o r mais escura, tendo sido mais facilmente ab- a cor.vivéncia com os diferentes por c«<nta «.ios riscos
sorvidos na p o p u l a ç ã o negra carioca, como negros e não apenas que :sso implica".
nordestinos; e n q u a n t o que a migração baiana para São Paulo te-
nha sido mais propriamente de sertanejos brancos. N ã o se sabe.
e Flávio Pierucci i, I 999: 6 4 ) :
Será preciso mais investigação histórica sobre esse a s p e c t o . O fato
" N o caso de São Paulo, o d e s c o n t e n t a m e n t o de
é que, no R i o , n ã o se dá essa sinonímia entre " b a i a n o s " e "nor-
janistas e malufistas com o atual estado de c o i s a s n o
destinos", sendo esses últimos referidos pelo termo " p a r a í b a " .
plano da moralidade privada é, além disso, regressivo:

134 Classes, raças e democracia Direitos e avessos da nacionalidade 135


existe, na memória dessa gente, um t e m p o , uma época 5.
de ouro (memória?) em que não havia t a n t o bandido, D E M O C R A C I A RACIAL:
8 0
t a n t o drogado, tanto sem teto. E existe, em sua imagi- O IDEAL, O PACTO E O M I T O
n a ç ã o , a identificação desse tempo com a inexistência
de m i g r a d o s nordestinos. A rejeição a o s ' b a i a n o s ' é
função direta da amplitude do medo: cresce na medida O niytho é o nada que è tudo
O mesmo sol que^abre os céus
e n o ritmo do crescimento real (mas s o b r e t u d o no do
E um mytho brilhante e mudo...
a u m e n t o imaginário) da insegurança. A percepção de
que São Paulo já saturou, que já não há mais lugar, que Fernando Pessoa

o s que chegam só fazem aumentar as hostes do desem-


p r e g o e da miséria, e portanto as taxas da delinqüên- O s estudiosos das relações raciais no Brasil ficam sempre
cia, suscita um tipo de insatisfação neo-regionalista que intrigados com a origem e a disseminação do t e r m o " d e m o c r a c i a
se expressa de várias maneiras, inclusive no protesto r a c i a l " . A começar pelo simples fato de a e x p r e s s ã o , atribuída a
c o n t r a a ausência de uma política migratória em nível G i l b e r t o Freyre,*' não ser encontrada em suas o b r a s mais impor-
federal, o que só tem feito prejudicar São P a u l o " . tantes e de não aparecer na literatura a não ser tardiamente, nos
anos 1 9 5 0 .
Esse tipo de preconceito, muito virulento, explícito e, de certo Ademais, por que empregar uma metáfora política para re-
modo, c o n t r á r i o à ideologia racial brasileira, é t a m b é m muito pa- ferir-se às relações sociais entre brancos e negros? P o r que tal lo-
recido a o tipo de preconceito teorizado por B l u m e r 7 9
(19.58: 4). c u ç ã o passou a exprimir tão perfeitamente um p e n s a m e n t o que
D e v e m o s , p o r t a n t o , distingui-lo do preconceito bem-humorado, c o n c e i t o s anteriores, cunhados pelos cientistas sociais •— c o m o
que a l i m e n t o u , durante anos, a crônica jornalista c a r i o c a de este- "sociedade multirracial de classes", empregado por Pierson ( 1 9 4 2 )
reótipos raciais, nacionais e regionais, principalmente contra baia- ou " r e l a ç õ e s raciais harmoniosas", usado pela U N E S C O ( M a i o ,
nos, m i n e i r o s , paulistas e portugueses. A este ú l t i m o , ao que pa- 1 9 9 7 ) — foram incapazes de expressar? Essas são algumas das
rece, faltavam ó d i o e medo, c sobravam arrogância e rivalidade. indagações que procuro responder neste artigo.

O m o d e r n o preconceito contra os nordestinos, em São Paulo,


portanto, une o velho preconceito regionalista à xenofobia mo-
s
derna c o n t r a as minorias migrantes. ' ' Fste texto é uma versão mais completa •• revista do artigo do mes-
mo nome publicado em Kavos Estudos í',ebrap. ;" (SI, novembro de 2 0 0 1 ,
pp. 14~-ò2, e do texro, umociü homônimo, prepa ulo para o E n e aitro Anual
da A X P O C S , Caxambu. 2001 • Agradeço .« Antôn • Flávto Pierucci, Elide Bas-
tos. Micbel Agier e Filia Schv.arez peios coment. "ios.
Segundo esse autor, quatro sentimentos estão .sempre presentes no
S :
preconceito raciai: " S ã o eies: 1) um sentimento de superioridade; 2 ; um sen- Ver Souza (2000: 1 36': "Gilberto teria s: ..> o criador d>> conceito de
timento de que a raça subordinada é intrinsecamente diferente e estranha; 3) 'democracia racial', o qual agiu como principal impedimento d a possibilidade
um sentimento de propriedade sobre certas áreas de privilégios e vantagens de construção de uma consciência racial por parte dos negros" • Ver também
sociais; 4 ) um medo ou suspeita de que a raça subordinada almeje as prerro- Souza ( 2 0 0 0 a ) . Para uma interpretação da gênese da idéia ( n ã o do termo) de
gativas da r a ç a dominante" (Blumer, 1958: 4 ) . "democracia racial" em Gilberto Freyre, ver Elide Rugai Bastos ( 2 0 0 1 ) .

136 Classes, r a ç a s e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 137


Sem ter consultado sistematicamente documentos ou jornais mando, p o r inspiração e imposição das últimas con-
da época, mas concentrando-me na produção jornalística e a c a - quistas da biologia, da antropologia, e da sociologia,
dêmica de alguns intelectuais pioneiros no estudo das "relações numa bem delineada doutrina de democracia racial, a
raciais", busquei primeiramente traçar a cronologia de cunhagem servir de lição e modelo para outros povos de forma-
do termo "democracia r a c i a l " . ção étnica c o m p l e x a conforme é o nosso c a s o " (1 9 5 0
Ao que parece o termo foi usado pela primeira vez por Roger apud 1968: 67).
Bastide num artigo publicado n o Diário de S. Paulo em 3 1 de mar-
ço de 1 9 4 4 , no qual se reporta a uma visita feita a Gilberto Freyre, Na literatura acadêmica especializada, no e n t a n t o , o uso
em Apipucos. Teria Bastide c u n h a d o a expressão ou a ouvido de primeiro parece c a b e r a Charles Wagley. " O Brasil é r e n o m a d o
Freyre? Provavelmente, t r a t a - s c de uma tradução livre das idéias mundialmente p o r sua democracia racial", escrevia W a g l c v , em
de Freyre sobre a democracia brasileira. 1 9 5 2 , na " I n t r o d u ç ã o " ao primeiro volume de uma série de estu-
Como é sabido, G i l b e r t o Freyre, em suas conferências na dos sobre r e l a ç õ e s raciais no Brasil, patrocinados pela U N E S C O
Universidade do Estado de Indiana, no outono de 1 9 4 4 , ou seja : Wagley, 1 9 5 2 ) . A o que parece, Wagley introduziu na literatura
entre setembro e dezembro, usou a expressão sinônima — "de- vibre "relações r a c i a i s " a expressão que se tornaria n ã o apenas
mocracia étnica"—, para referir-se à catequese jesuíta: célebre, mas a síntese do pensamento de toda uma época e de toda
"[...] mas o seu sistema excessivamente paterna- uma geração de cientistas sociais. Como veremos adiante, Gilber-
lista e mesmo a u t o c r á t i c o de educar os índios desen- to Freyre ( 1 9 6 9 [ 1 . 9 3 3 ] , 1 9 3 6 ) não pode ser responsabilizado in-
volveu-se às vezes em o p o s i ç ã o às primeiras tendências tegralmente, n e m pelas idéias nem pelo seu rótulo; ainda que fosse
esboçadas no Brasil n o sentido de uma democracia ét- o inspirador da "democracia racial", evitou, no mais das vezes,
nica e social" (Freyre, 1 9 4 7 : 7 8 ) . nomeá-la assim, tendo-a conservado, ademais, com um significado
bastante peculiar.
Na verdade, c o m o veremos em seguida, a expressão de Frey-
re parece datat de n o v e m b r o cie 1 9 4 3 , quando se refere à tradi-
ção democrática baiana. A o r i g e m da idéia de democracia em A IDÉIA D E U M PARAÍSO RACIAL
Freyre, no entanto, já desvendada por Elide Rugai Bastos (1001),
remonta a sua crença num s u p o s t o caráter ibérico da civilização A idéia de que o Brasil era uma sociedade sem "linha de c o r " ,
brasileira. <-u seja, unia s o c i e d a d e sem barreiras legais que impedissem a
Mais ainda: a disseminação e aceitação polnca da expres- ascensão social dc pessoas de c o r a cargos oficiais ou a posições
são "democracia racial" p o d e surpreender os mil "antes de hoje, t e riqueza o u prestígio, era já uma idéia bastante difundida n o
tendo sido ela de uso corrente no movimento negro .'os anos 1 9 . i 0 . i iundo, p r i n c i p a l m e n t e nos Estados Unidos e na E u r o p a , bem
Abdias do Nascimento, p o r e x e m p l o , em sua fala inaugural ao ! antes do n a s c i m e n t o cia sociologia. Tal idéia, no Brasil m o d e r n o ,
Congresso do Negro B r a s i l e i r o , dizia em agosto t e 1 9 5 0 : ceu lugar à c o n s t r u ç ã o mítica de uma sociedade sem p r e c o n c e i -
"Observamos q u e a latga miscigenação pratica- tos e discriminações raciais. Mais ainda: a escravidão mesma, cuja
da como imperativo de nossa formação histórica, des- sobrevivência m a n c h a v a a consciência de liberais corno N a b u c o ,
de o início da c o l o n i z a ç ã o do Brasil, está se transfor- era tida pelos a b o l i c i o n i s t a s americanos, europeus e brasileiros,

133 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 139
c o m o mais humana e suportável, no Bra_síl, justamente pela au- cracia racial", além de mais recente, está envolta numa teia de
8 2
sência dessa linha de c o r . significados muito específica.
Célia Marinho de Azevedo ( 1 9 9 6 ) registra a intervenção de N o s anos 1 9 3 0 , quando se organiza pela primeira vez o mo-
Frederick Douglas, numa palestra em 1 8 5 8 , em Nova York: v i m e n t o político negro no Brasil — a Frente Negra Brasileira —,
" M e s m o um país católico c o m o o Brasil — um essa utopia não será posta em dúvida, pelo menos de imediato. Em
país que nós, em nosso orgulho, estigmatizamos como sua " M e n s a g e m aos negros americanos", M a n o e l Passos (1942),
s e m i b á r b a r o — não trata as suas pessoas de cor, livres presidente da União Nacional dos H o m e n s de C o r , prefere, por
ou escravas, do modo injusto, b á r b a r o e escandaloso e x e m p l o , salientar o abandono a que está relegada a população
c o m o nós tratamos. (...) A América democrática e pro- negra, sua falta de instrução e seus costumes a r c a i c o s , como res-
testante faria bem em aprender a lição de justiça e liber- ponsáveis pela Mtuação de "degenerescência" dos negros. Até mes-
dade vinda do Brasil católico e d e s p ó t i c o " (apitd Aze- m o o "preconceito de cor", de que se ressentem os negros, é par-
vedo, 1 9 9 6 : 1 5 5 ) . cialmente atribuído à fraqueza moral das populações negras.k--
Esta autotlageiação só será revertida com a democratização
Célia Azevedo registra ainda a opinião d o francês Quentin, do país, em 1 9 4 5 , quando surgem novas organizações negras, as
em 1 8 6 7 , segundo a qual "o que facilitará singularmente a tran- quais serão, de certo modo, incorporadas pela Segunda Repúbli-
sição [para o trabalho livre] no Brasil é que lá n ã o existe nenhum c a . Incorporadas no sentido de que funcionarão livremente, além
p r e c o n c e i t o de raça", (apud Azevedo, 1 9 9 6 : 1 5 6 ) . D o mesmo de influenciarem a vida nacional em termos culturais, ideológi-
m o d o , para o período pós-abolicionista, Hellwig ( 1 9 9 2 ) alinha- cos e políticos. O Teatro Experimental do N e g r o ( T E N ) , forma-
va u m a série de artigos escritos por afro-americanos, entre 1 9 1 0 do e m 1 9 4 4 , é sem dúvida a principal dessas organizações.
e 1 9 4 0 , reafirmando a crença generalizada n u m país sem precon-
ceitos o u discriminações raciais, no qual o valor e o mérito indi-
vidual n ã o seriam empanados pela pertença racial ou pela cor. O " I T I N E R Á R I O DA D E M O C R A C I A "
E verdade que na fala transcrita a c i m a , Douglas contrasta a D E R O G E R BASTIDE
d e m o c r a c i a e o senso de injustiça americanos, por um lado, com
o despotismo e a justiça brasileiros, por o u t r o lado, no trato dado A história da expressão de que estamos tratando começa um
aos h o m e n s de cor. M a s não vai além disso. N ã o usa a palavra p o u c o antes do fim da Segunda Guerra.
" d e m o c r a c i a " para referir-se a relações 'ociais. Democracia guarda Roger Bastide empreende em 1 9 4 4 a sua pr meira viagem
seu sentido puramente político, teferindo-se tão-somente à forma ao Nordeste brasileiro. As impressões recolhidas nessa viagem,
de g o v e r n o . muito influenciadas pela leitura de Freyre, ajudar un a (ormar a
O s historiadores fazem bem em tratar essa utopia como o sua primeira percepção das relações raciais n o Bi isil. Essas im-
" m i t o d o paraíso racial", pois, na verdade, a expressão "demo-

s
-' Bastide e Fernandes (1955) se referem a tal fenôrr mo como "puri-
S 2
V e r Azevedo (1994) sobre a opinião de R u y Barbosa, Joaquim Na- tanismo negro". Fernandes (1965) explora a lógica própria ao "preconceito
buco, André Rebouças e outros sobre o caráter das relações raciais no Brasil. de c o r " .

140 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 141
pressões serão modificadas apenas nos 1 9 5 0 , a partir do momen- go com uma rápida referência ao romance Jubiabá, de J o r g e A m a -
to em que Bastide se engaja c o m Florestan Fernandes numa pes- do, "onde ele mostra c o m o pouco a pouco o negro, no lugar de
quisa de campo sobre "brancos e negros em São Paulo", patroci- procurar uma c o m p e n s a ç ã o para o seu labor cotidiano na místi-
nada pela U N E S C O e pela Revista Anbembi. ca, que o separa do b r a n c o , fixando-o numa tradição africana,

Bastide colabora então regularmente com a imprensa diária volta-se para o sindicalismo que o agrega a seus companheiros de

paulista e de outros estados brasileiros, engajando-se em fértil trabalho, o funde numa comunhão que ultrapassa a raça para dar-

diálogo com o mundo artístico e intelectual local (Peixoto, 2 0 0 0 ) . lhe uma outra mentalidade que é a classe". Bastide argumenta,

Em março de 19.94, nos dias 17, 2 4 e 3 1, Bastide publica no Diá- em seguida, que o p o v o , para Amado, não se resume aos proletá-

rio de S. Paulo uma série de artigos que intitula "Itinerário da de- rios, a uma categoria e c o n ô m i c a , mas se expressa na alegria da

mocracia", produto de suas visitas a Bernanos, Jorge Amado e festa: "O povo é o c o n j u n t o dos proletários, sem dúvida, m a s

Gilberto Freyre, no Rio de J a n e i r o , Salvador e Recife, respectiva- considerado como alegria de festa, como criador de valores esté-

mente. O Brasil encontra-se alinhado aos Estados Unidos, Grã- ticos, como mantenedor de uma certa cultura, muitas vezes a mais

Bretanha e Rússia na guerra contra o Eixo, enquanto a França con- saborosa de todas as c u l t u r a s " . Jorge Amado, o comunista que

tinua ocupada pelas tropas alemães. O mundo está então dividi- luta pela liberdade, teria lhe ensinado a lição de que a d e m o c r a -

do entre a democracia e o fascismo. cia "é igualmente o n a s c i m e n t o de uma cultura".

N o primeiro desses artigos, Bastide nos explica que essa fora No terceiro e ú l t i m o artigo da série, dedicado ao e n c o n t r o

"uma viagem ideológica, através das conversações, na qual cada com Gilberto Freyre, no Recife, Bastide reflete sobre a ordem sócia!

grande capital visitada constituía c o m o que uma etapa neste cami- própria à democracia brasileira, ordem que seria baseada n a au-

nho da ideologia democrática" (Bastide, 1 9 4 4 ) . O encontro com sência de distinções rígidas entre brancos e negros. E nesse c o n -

Bernanos, no R i o , serve de p r e t e x t o para Bastide explorara idéia texto que aparece, pela primeira vez, a expressão " d e m o c r a c i a

universal de democracia representativa. Bernanos, cristão militan- racial". Reconstituamos a cena:

te, que ajudara a organizar a resistência francesa a partir do R i o , "Regressei para a cidade de bonde. O veículo es-
pelas ondas da BBC de Londres, teria uma compreensão eminente- tava cheio de t r a b a l h a d o r e s de volta da fábrica, que
mente moral da d estendendo-a para além da idéia de misturavam seus c o r p o s fatigados aos dos passeantes
direitos civis, no sentido da ética da ação política. Mas, para nós, que voltavam do parque dos Dois Irmãos. População
o decisivo, nesse artigo, é que Bastide inclui o Brasil no rol das de mestiços, de brancos e pretos fraternalmente aglo-
nações democráticas não pela obediência a certa ética pública ou merados, apertados, amontoados uns sobre os outros,
mesmo pela garantia ao exercício de liberdades civis, mas pelo fato numa enorme e amistosa confusão de braços e pernas.
deste, ao engajar-se na guerra c o n t r a o fascismo na Europa com- Perto de mim, um preto exausto pelo esforço do dia,
partilhar uma certa "concepção da vicia e da dignidade do homem" deixava cair sua c a b e ç a pesada, coberta de suor e ador-
(Bastide, 1 9 4 4 ) . mecida, sobre o o m b r o de um empregado de escritório,
um branco que ajeitava cuidadosamente suas espáduas
O segundo artigo, dedicado a o encontro com Jorge Amado
de maneira a r e c e b e r esta cabeça como num ninho,
em Salvador, versa, ao c o n t r á r i o , sobre algo mais concreto: a
como numa c a r í c i a . E isso constituía uma bela imagem
constituição do povo e da cultura popular, os sujeitos e a forma
da democracia social e racial que Recife me oferecia no
estética da democracia brasileira, Bastide ( 1 9 4 4 a ) começa o arti-

142 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 143
meu c a m i n h o de regresso, na passagem crepuscular do vel. N o nível d o senso comum, a desmoralização d a idéia de raça
arrebalde p e r n a m b u c a n o " (Bastide, 1 9 4 4 b ) . não significará o fim imediato dos estereótipos que atingiam a
p o p u l a ç ã o n e g r a — estes se manterão r a z o a v e l m e n t e intactos,
Vê-se, p o r t a n t o , que a democracia brasileira, tal c o m o Bas- perdendo talvez o seu caráter de imutabilidade — ; representará,
tide a pensa em 1 9 4 4 , é antes de tudo "social e racial". " S o c i a l " , isto sim, u m a a r m a poderosa de incorporação d o s mestiços —
entretanto, num sentido muito preciso, que nada tem a ver c o m os mulatos, p a r d o s , principalmente morenos — a o s espaços econô-
direitos sociais a que se refere Marshall ( 1 9 6 5 ) . Seria, antes, a cons- m i c o , s i m b ó l i c o e ideológico da nação (incluindo aí a reivindica-
tituição de uma o r d e m social em que a "raça" teria evoluído para ç ã o de direitos civis e sociais). O T E N atuará n o sentido de am-
a "classe", mas na qual o " p o v o " daí resultante não teria c o p i a d o pliação desses espaços, para aí incluir o negro.
a expressão cultural pequeno-burguesa, européia e puritana, tal A p r i n c í p i o , nos 1 9 4 0 e 1 9 5 0 , o negro brasileiro, na repre-
como nos Estados Unidos, mas construído uma forma original de sentação que dele fazem os seus líderes, c o n t i n u a r á sendo cultu-
cultura miscigenada, livre e festiva. A democracia a que Bastide se ralmente mestiço e híbrido; 84
mas com o correr d o tempo ganhará,
refere, inspirada em Freyre e Amado, não pode ser reduzida a di- cada vez mais, uma essência negra, culruralmente "africana". Por
reitos e liberdades civis, mas alcançaria uma região mais sublime: isso tem r a z ã o M a u é s (1988) ao notar a ambigüidade do discur-
a liberdade estética e cultural, de criação e convívio miscigenaclo. so tecido pelas principais lideranças do T E N n o s anos 1 9 4 0 e
Muito interessante, e ademais decisivo, é que B a s t i d e , ao 1 9 5 0 , que o s c i l a entre a busca da superação das práticas cultu-
contrário de F r e y r e , ao referir-se a essa ordem use o adjetivo "ra- rais ditas " a f r i c a n a s " e "retrógradas" da p o p u l a ç ã o negra brasi-
cial" para d e n o m i n á - l a , mesmo depois de reconhecer a evolução leira, por um l a d o , e, por outro lado, a afirmação de um certo ethos
da "raça" para a " c i a s s e " . Tal referência à mistura social e à mis- negro, t a m b é m "africano", de emotividade e expressividade, que
cigenação entre b r a n c o s e negros como "racial" mostra c o m o era se manifestaria espontaneamente nas artes.
artificial a pretendida abolição (acadêmica) das raças, a sua evolu- E preciso também lembrar que o T E N foi gerado no ambiente
ção para "classes" e a regra acadêmica de tratá-las c o m o " e t n i a s " . de crítica a o Listado Novo e de mobilização intelectual para a
Na linguagem d o s j o r n a i s e da política, mais p r ó x i m a do senso c o n s t r u ç ã o de u m a ordem democrática mais inclusiva. Os que
comum e dos sentidos "nativos", será a "democracia r a c i a l " e não estavam no T E N pertenciam à mesma geração nacionalista que
"democracia é t n i c a " que prevalecerá. reinventou a nacionalidade brasileira, seu povo e sua cultura (Ta-
vares, 1 9 8 8 ) . F o i essa também a geração que propugnou não ape-
nas por um desenvolvimento econôm co e social auro-sustenta-
O C O N S E N S O RACIA1.-DEMOCRÁTICO do. c o m o por u m a economia e sociologia propriamente brasilei-
ras. V e m desse vínculo comum a coiib -rmidade de pontos de vis-
No pós-guerra, a grande novidade que representou a vulga-
rização do c o n c e i t o cie " c u l t u r a " , cunhado pelas ciências sociais,
S 4
Para ilustrar o ideal de sineretismo ao meio negro, Maués (1 9 8 8 :
em detrimento do c o n c e i t o biológico de "raça", será a de negar
92 i a t a um texto do jornal negro O Quilombo (ano I, n" .?, junho de 1 9 4 9 i ,
o caráter irreversível da inferioridade intelectual, m o r a l e psico-
que justifica o c o n c u r s o da Rainha das Mulatas como sendo "uma iniciativa
lógica dos negros. N ã o o de negar tal inferioridade, senão de trans- em prol da v a l o r i z a ç ã o estética e social das t]ualidades mestiças de nossa
feri-la para o p l a n o da cultura, tornando-a passageira e reversi- civilização".

144 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 145
ta, em algumas matérias, entre os intelectuais do T E N e os inte- .ricos unidos na luta antifascista, q u e procuram agora se diferen-
lectuais nacionalistas como Florestan Fernandes, Paulo Prado, ciar e traçar, através dos adjetivos, a sua trajetória particular.
Gilberto Freyre e os escritores regionalistas. M a u é s ( 1 9 8 8 ) cha-
N o caso que nos interessa mais de perto aqui, a democracia
ma-nos a atenção para algumas dessas coincidências. M a s tal con- 8 5
"social e étnica" de que falava Freyre, em 1 9 4 3 , ou a "demo-
formidade se rompeu em dois pontos capitais: a apropriação c
cracia social e racial" como disse Bastide, em 1 9 4 4 , transformam-
reinvenção da "cultura afro-brasileira" pelos antropólogos e ar-
se, nos 1 9 5 0 , em democracia racial tout court, e m referência di-
tistas " b r a n c o s " , e o discurso sobre a participação do negro na
reta aos conflitos raciais que c o m e ç a m a rasgar o racismo legal
sociedade brasileira, em particular a discussão sobre a existência
dos Estados Unidos. Ao contrário de lá, pensavam scbolars e mili-
ou n ã o do preconceito racial no Brasil.
tantes, já tínhamos um legado de d e m o c r a c i a racial desde a Abo-
A crença na democracia racial, ao menos c o m o ideal, perten- lição. Para os movimentos negros, entretanto, a abolição não fora
ce à zona de coincidência de pensamento a que estou me referindo. completa, pois não representara a integração econômica e social
Assim, por exemplo, em 13 de maio de 1 9 5 5 , a o encerrar a "Sema- do negro à nova ordem capitalista: t a n t o para a geração dos 1 9 3 0
na de Estudos sobre Relações de R a ç a " , o Teatro Experimental do (a Frente Negra Brasileira;, quanto para a geração dos 1950 (o
Negro reitera a opinião da mencionada fala de Nascimento (1950), T
T F J \ ) , seria necessária uma segunda A b o l i ç ã o .
numa D e c l a r a ç ã o de Princípios, na qual se lê no parágrafo /; das
E justamente em torno da utopia de uma Segunda Abolição,
considerações: "considerando que o Brasil é unia comunidade na-
na qual se realizaria plenamente a d e m o c r a c i a racial, que se dá a
cional onde tem vigência os mais avançados padrões de democra-
mobilização política dos negros. F preciso que se note a ambigüi-
cia racial, apesar da sobrevivência, entre nós, de alguns restos de
dade no emprego deste termo, especialmente por parte dos negros:
d i s c r i m i n a ç ã o " . A expressão também aparece no item 5 da decla-
por um lado, falar em democracia racial significava afirmar o di-
ração: "[...] possam contribuir para a preservação das sadias tradi-
reito pleno a algo que não havia ainda se materializado, mas que se
ções da democracia racial no Brasil [...]" (Nascimento, 1 9 6 8 : 5 6 ) .
poderia reivindicar a qualquer m o m e n t o — nisso residia o seu la-
N a verdade, em meado dos anos 1 9 5 0 , ao lado de concei- do progressista; o seu aspecto conservador ficava por conta de que
tos c o m o " p o v o " e "nacionalidade", a noção de "democracia" é tal igualdade, não consubstanciada cm termos de oportunidades
centra] no léxico político brasileiro (Tavares, 1 9 8 8 ) . Ela tem um de vida, ficava como promessa cujo fado se cumpre ao prometer.
poder semântico do qual nenhum grupo político pode prescindir,
Portanto, ao lado do consensi • sobre a democracia racial, ha-
pois marca o afastamento destes seja da ditadura varguista, seja
via diferenças entre a intelectualidade negra rebelde e o establish-
do fascismo e do nazismo derrotados na Segunda Guerra. A me-
nient cultural da Segunda República. D o ponto de vista dos ne-
dida, porém, que os anos avançam, e com eles recrudescem a guer-
gros, são duas as principais t e n s õ e s a crítica ao exotismo negro
ra fria c o anticomunismo, acirra-se também a crítica da esquerda
que seria cultivado pelas ciências s* veiais, a crítica aos intelectuais
à d e m o c r a c i a representativa e cresce em seu seio a idéia de demo-
" b r a n c o s " que negavam a existênc:.: do preconceito racial no Bra-
cracia c o m o mistificação formal e ideológica. M a s , nos anos 1950,
sil e a necessidade de uma Segunda A b o l i ç ã o .
ainda prevalece o consenso democrático. A d e m o c r a c i a , entretan-
to, já c o m e ç a a ser adjetivada, algo que atinge seu ápice nos 1960:
d e m o c r a c i a política, econômica, social, cooperativista, socialista,
,<b
Ver Freyre (1944: 30). Embora i publicação seja de 1 9 4 4 , a confe-
positiva, étnica e (por que não?) racial. São os agrupamentos polí-
rência foi proferida em 1943, como veremos adiante.

146 Classes, raças e democracia 147


Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito
O projeto sobre relações raciais no Brasil, que a UNESCO A atitude de Bastide e Fernandes já existia, de fato, na prá-
patrocinou entre 1 9 5 2 e 1 9 5 5 , galvanizou o debate em torno des- tica dos intelectuais negros, c o m o Abdias do Nascimento c Guer-
86
sas divergências. Rapidamente a discussão se polarizou em torno reiro Ramos, que justificavam seus objetivos políticos de desmas-
da existência ou não do "preconceito racial" no Brasil. Isso por- caramento da discriminação racial e de desrecalque da "massa ne-
que Bastide e Fernandes como que não aceitavam a conclusão de gra" em termos daquele ideal. Nota-se, assim, que o debate acer-
Wagley, segundo a qual, no Brasil, "em todo seu imenso territó- ca da existência ou não do preconceito racial no Brasil ainda n ã o
rio semi-continental a discriminação e o preconceito raciais estão punha em causa o consenso s o b r e a "democracia racial", m e s m o
sob controle, ao contrário do que acontece em muitos outros paí- que polarizasse o seu significado.
s e s " (Wagley, 1 9 5 2 : 7 ) . Ao contrário, Bastide e Fernandes trata-
vam a "democracia racial" a que se referia Charles Wagley, não
c o m o algo que existisse c o n c r c t a m e n t e , mas apenas como um A "DEMOCRACIA S O C I A L E ÉTNICA"
padrão ideal de comportamento. Bastide escreve: E A DENÚNCIA D O
"'Nós brasileiros, dizia-nos um branco, temos pre- " M I T O DA D E M O C R A C I A RACIAL"
conceito de não ter preconceito. E esse simples fato
basta para mostrar a que ponto [o preconceito racial] Na sociologia moderna, Gilberto Freyre foi o primeiro a re-
está arraigado no nosso meio social'. M u i t a s respostas tomar a velha utopia do paraíso racial, cara ao senso comum dos
negativas [que dizem não haver preconceito racial no abolicionistas, dando-lhe uma roupagem científica. Em 1 9 3 6 , em
Brasil] explicam-se por esse preconceito de ausência de Sobrados e mucambos, Freyre chega mesmo a retomar as imagens
preconceito, por esta fidelidade do Brasil ao seu ideal de "aristocracia" e " d e m o c r a c i a " para contrastai a rigidez da
de democracia racial" (Bastide e Fernandes, 1 9 5 5 : 123, organização patriarcal e a flexibilidade das relações entre raças:
grifos e colchetes meus). "Até o que havia de m a i s renitentemente aristo-
crático na organização patriarcal de família, de econo-
Ou seja, Bastide e Fernandes não vêem problemas em conci- mia e de cultuta foi atingido pelo que sempre houve de
liar a realidade do "preconceito de c o r " a o ideal da "democracia contagiosamente d e m o c r á t i c o ou democratizante e até
r a c i a l " , tratando-os, respectivamente, c o m o prática e norma so- anarqiuzante, no a m a l g a m e n t o de raças e culturas e,
ciais, as quais podem ter existências contraditórias, concomitantes até certo ponto, de tipos regionais, dando-se uma es-
e n ã o necessariamente exrludentes. De fato, c o m o veremos em pécie de despedaçamento das formas mais duras, ou
seguida, trata-se de um alargamento Lia n o ç ã o de "democracia menos plásticas, por e x c e s s o de trepidação ou inquie-
social e étnica" de Gilberto Freyre. F m Bastide dos anos 1950, tação de conteúdos" (Freyre, 1 9 3 6 : 3 5 5 ) .
"democracia racial" significa um ideai de igualdades de direitos
e não apenas de expressão cultural, a tística e popular. Entretanto, acunhagem da expressão '"democracia é t n i c a " ,
por Gilberto Frevre, surge no c o n t e x t o da sua miütância contra o
integralismo. Seguidas agressões a Freyre, no Recife, culminaram,
S 6
Para u m a análise detalhada d o q u e : o r a m os estudos patrocinados em setembro de 1 9 4 3 , num contundente manifesto, de cunho inte-
p e l a U N E S C O no Brasil d o s anos 1 9 5 0 , ver M a i o ( 1 9 9 7 ) . gralista, assinado pelo Diretório dos Estudantes da Universidade

148 C l a s s e s , raças e democracia Democracia racial: o ideal, o p a c t o e o m i t o 149


de Direito do Recife, que tenta_dcsmoralizádo. v
A mobilização Junta-se à tensão da guerra na Europa a tensão regionalista, para
das forças democráticas e de esquerda em defesa de Gilberto foi definir-se o conteúdo " s o c i a l " da democracia brasileira. M a i s que
imediata. Entre estas, estava a União de Estudantes da Bahia, logo isto: tudo que não é genuinamente luso-brasileiro, m i s t u r a d o ,
secundada por várias instituições baianas, que convidou Freyre, sinerético, é visto c o m o um perigo para a jovem democracia bra-
88
para uma visita a Salvador, oportunidade em que lhe seriam pres- sileira. Isso fica m e l h o r explicitado no trecho abaixo:
tadas diversas homenagens de desagravo. O convite foi aceito em "Nesse sentido a recente demonstração de ener-
novembro do mesmo ano e, no dia 2 6 , Gilberto leu a primeira de gia cívica da B a h i a , sua magnífica ostentação de espí-
suas conferências na Faculdade de Medicina da Bahia. Em seu elo- rito político preocupado não apenas com o estreito des-
gio à Bahia e à matriz luso-brasileira de sua cultura, diz Gilberto: tino da Bahia estadual mas do vasto mundo brasileiro
"Encontram-se aqui [na Bahia] esses resultados que no R i o Grande do Sul se denomina compreensivel-
num clima em que n e n h u m a região do Brasil é mais mente Baía, creio que ficará histórica. Marca bem o
doce, de democracia étnica, inseparável da democra- início de um período novo na história da culrura bra-
cia social. E sem d e m o c r a c i a social, sem democracia sileira. A velha 'Virgínia do Império' se levanta com um
étnica, sem d e m o c r a c i a e c o n ô m i c a , sem democracia novo senrido imperial de sua força, de seu matriarcado
sócio-psicológica — a dos tipos que se combinam livre- e de sua fecundídade política e intelectual: o imperia-
mente em expressões novas, admitidas, favorecidas e lismo da democracia sobre trechos do Brasil ainda in-
estimadas pela o r g a n i z a ç ã o social e da criatura — que decisos entre essa tradição genuinamente nossa e o ra-
pode ser senão um artifício a simples democracia polí- cismo violentamente anti-btasileiro, o nazi-jesuitismo,
:
tica?" (Freyre, 1 9 4 4 : 3 0 ) . o fascismo sob disfarces sedutores, inclusive o da h i s -
panidade'" (Freyre, 1 9 4 4 a ) .

Observe-se que " d e m o c r a c i a " deixa de ser contrastada a


"aristocracia" e passa a sê-lo a o "fascismo". O primeiro termo é Elide Rugai Bastos ( 2 0 0 1 ) pode nos elucidar o sentido e x a -
associado ao anti-racismo e o segundo, ao racismo nazi-fascista; to de "democracia social e étnica" em Freyre. Nos dias de h o j e ,
o primeiro, à tradição brasileira, o segundo, ao antibrasileirismo. em que a idéia de democracia está intimamente ligada a idéia de
direitos civis e individuais, de caráter universal, falar ce " d e m o -
cracia étnica" ou " r a c i a l " poderia até nos levar a assobiar tais
x
Gilberto descreve assim o clima vivido por ele no Recife dos anos
expressões aos direitos de representação e autenticidade de m i n o -
1 9 4 0 , respondendo aos estudantes baianos que organizam os eventos cm de-
rias étnicas ou raciais. N a d a mais contrári-> a Freyre. A « : m c o m o
sagravo a tais ataques: " N ã o se trata de desagravo nenhum. Pois a pal.ivra
'desagravo' só faria dar a honra de agravo à insignificante campanha contra para as gerações literárias espanholas de H9$ ou í <•) i 4. :

mim num Recife amedrontado c o m o o de hoje: ameaças de agressões na "cm Gilberto, esse caráter [ibérico• responsável rela
impossibilidade de se repetir a prisão do ano passado que encontrou reação
inesperada; boletins anônimos; pixamento dos muros da casa de minha fa-
mília com palavras obcenas pintadas não por mulcques afoitos de rua, mas
8 8
por sherloks-mirins a serviço n ã o só de nazistas indígenas como de jesuítas A conferência " U m a cultura ameaçada: a l u s o - h r a s i l e i j p r o f e r i -
estrangeiros tão inimigos da água quanto do Brasil e do próprio clero brasi- da por Freyre em 1 9 4 0 no Gabinete Português de Leitura, nu Rec::'e, ilustra
leiro" (Freyre, 1 9 4 4 : 8 0 ) . tais tensões regionais e nacionalistas.

150 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 151
harmonia social, leva a que a democracia política pas- à mística da 'negritude' como ao nrito da 'branquitu-
se a segundo plano, uma vez substituída pela democra- de': dois e x t r e m o s sectários que contrariam a já brasi-
cia étnica/social. Mais ainda, justifica a não adoção, no leiríssima prática da democracia racial através da mes-
Brasil, de medidas sociais e políticas universais, pois as tiçagem: uma prática que nos impõe deveres de parti-
mesmas não caberiam em uma sociedade marcada pela cular solidariedade c o m outros povos mestiços. S o b t e -
heterogeneidade, caracterizada por uma formação não tudo com os do Oriente e os das Africas Portuguesas.
tipicamente ocidental" (Bastos, 2 0 0 1 : 6 2 ) . Principalmente c o m os das Africas negras e mestiças
marcadas pela presença lusitana" (Frevre, 1 9 6 2 ) .
Freyre forja a idéia de "democracia social" ainda nos anos
1930, contra o fato patente da ausência de democracia política, Antes disso, nas diversas oportunidades em que tratara, n o s
quer no Brasil ou em Portugal. O u seja, põe-se o desafio de traçar anos 1 9 4 0 e 1 9 5 0 , da presença negra e da democracia brasileira,
a inserção luso-brasileira no concerto das nações democráticas, Freyre adjetivou de diversos modos a democracia, mas nunca c o m o
contra todas as semelhanças e simpatias dos regimes autocráticos "racial". Nos textos desses anos, ele fala em democracia política,
de Vargas e de Salazar com o fascismo. Sua linha de argumenta- econômica, sociopsicológica, social e étnica, quer trate de assun-
ção apója-se no fato de que a cultura luso-brasileira é não ape- tos políticos, quer trate de temas culturais e nacionais. Apenas a
nas mestiça, c o m o recusa a pureza étnica, característica dos regi- partir de 1943 e 1 9 4 4 , c o m o vimos, fala em "democracia é t n i c a " ,
mes fascistas e nazistas da Itália e da Alemanha. Do ponto de vista retomando a e x p r e s s ã o , em 1 9 6 1 , no contexto de exposição d o
"social", portanto, estes regimes seriam democráticos, posto que luso-tropicalismo:
promovem a integração e a mobilidade social de pessoas de dife- "Mais cio que nunca saberá de certo o Português
rentes raças e culturas. Para usar as suas palavras, trata-se de "de- conservar-se fiel às inspirações henriquinas, em vez de
mocracia social, essencial, humana, quero dizer; pouco me preo- procurar, já a g o r a arcaicamente, seguir, naquelas rela-
cupa a política" (Freyre, 1 9 4 0 : 5 1 ) . ções, normas de povos estritamente europeus — e o Por-
Quanto à "democracia r a c i a l " , Freyre não usa tal expiessão tuguês, sobretudo depois de D. Flenrique. não e povo
senão em 1 9 6 2 , quando no auge da sua polêmica defesa do coloma- estritamente europeu — c o m não-europeus. Seria um
lismo português na África, c no bojo da construção teórica do que desvio perigoso de tradições vindas dos dias daquele
chamara de luso-tropicalis:no, julga conveniente atacar o que ele príncipe e desenvolvidas principalmente no Brasil: um
considerava c o m o influência, estrangeira sobre os negros brasilei- Brasii tão henriquino no seu desenvolvimento em demo-
ros, particularmente o conceito de "negritude", cunhado por Aime cracia étnica e em democracia social" (Freyre, í^fí 1).
Cesaire, Leopold Senghor, PYanz Fanon e outros, e reelaborado por
Guerreiro Ramos e Abdias a o Nascimento (Bastide, 1961). Km dis- Sem ter cunhado a expressão, e mesmo avesso a ela, já que
curso no Gabinete Português de Leitura, naquele ano, dirá Freyre: evocava uma c o n t r a d i ç ã o em seus termos, mas grandemente res-
" M e u s agradecimentos a quantos, pela sua pre- ponsável pela legitimação científica da afirmação da inexistência
sença, participam este ano, no Rio de Janeiro, da come- de preconceitos e discriminações raciais no Brasil, Freyre manteve-
moração do Dia de C a m õ e s , vindo ouvir a palavra de se relativamente longe da discussão enquanto a idéia de " d e m o -
quem, adepto da 'vária c o r ' camoneana, tanto se opõe cracia racial" p e r m a n e c e u relativamente consensual, seja c o m o

152 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 153
tendência da sociedade brasileira, seja c o m o p a d r ã o ideal de re- de F r e y r e de que a "democracia racial" já estava plenamente rea-
lação entre as raças no Brasil. Ou seja, enquanto a luta antifascista lizada no plano da cultura e da mestiçagem, enfim, da formação
8 y

e a luta anti-racista o aproximou da esquerda e dos escritores e nacional.


políticos progressistas brasileiros. Quando, entretanto, a situação N u m a época de tantos e diversos tipos de democracia — po-
polarizou-se na África, com as guerras de libertação, e no Brasil, lítica, e c o n ô m i c a , social, racial, étnica etc. — algumas teriam que
com o avanço ideológico da "negritude" e do m o v i m e n t o pelas ser c o n s i d e r a d a s falsas e outras verdadeiras. Em 1 9 6 4 , no con-
reformas sociais, Freyre passou a louvar a " d e m o c r a c i a racial" t e x t o d o r o m p i m e n t o da democracia brasileira justamente em
ou "étnica" c o m o prova da excelência da cultura n ã o apenas luso- nome da preservação dos valores e ideais d e m o c r á t i c o s , estava fi-
brasileira, mas luso-tropical. Ironicamente, tratará a "negritude" n a l m e n t e m a d u r a a idéia de que a "democracia r a c i a l " mais que
c o m o um mito ou mística racial: um ideal era um mito; um mito racial, para u s a r m o s as palavras

"Palavras que ferindo o que Angola t e m de mais de Freyre. O autor dessa expressão foi justamente alguém que já

democrático — a sua democracia social através daquela dialogava criticamente com a obra e as idéias de Freyre desde o
10

mestiçagem que vem sendo praticada por numerosos início de sua formação acadêmica: Florestan Fernandes^ .

luso-angolanos, ao modo brasileiro — fere o Brasil; e Utilizando-se do mesmo contraste entre " a r i s t o c r a c i a " e "de-
torna ridícula — supremamente ridícula — a solidarie- m o c r a c i a " e do mesmo conceito de " m i t o " usado por Freyre, o
dade que certos diplomatas, certos políticos e certos jor- diálogo c o m este não poderia ser mais explícito:
nalistas elo Brasil de hoje pretendem, alguns do alto de "Portanto, as circunstâncias histórico-sociais apon-
responsabilidades oficiais, que parta de uma população t a d a s fizeram com que o mito da ' d e m o c r a c i a racial'
em grande parte mestiça, como a brasileira, a favor de surgisse e fosse manipulado c o m o c o n e x ã o dinâmica
afroracistas. Que afinidade com esses afroracistas, crua- dos mecanismos societários de defesa dissimulada de ati-
mente hostis ao mais precioso valor d e m o c r á t i c o que tudes, comportamentos e ideais 'aristocráticos' da 'raça
vem sendo desenvolvido pela gente btasileira — a de- d o m i n a n t e ' . Para que sucedesse o inverso, seria preciso
mocracia racial — pode haver da parte do Brasil? T a i s que ele caisse nas mãos dos negros e dos mulatos; e que
diplomatas, políticos e jornalistas, assim procedendo, estes desfrutassem de autonomia social equivalente para
ou estão sendo mistificados quanto ao afroracismo, fan- e x p l o r á - l o na direção contrária, em vista de seus pró-
tasiado de movimento democrático e de causa liberal, prios fins, c o m o um fator de democratização da rique-
ou estão sendo eles próprios mistificadores dos demais za, da cultura e do poder" (Fernandes. 1 9 6 5 : 2 0 5 ) .
brasileiros. N ó s , brasileiros, não podemos ser, c o m o
brasileiros, senão um povo por excelência anti-segre-
gacionista: quer o segregacionismo siga a mística da s
" Sobre mestiçagem, ver o Ir ro de Kabengelc Munanga <; 1 999).
'branquitude', quer siga o mito da 'negritude'. O u o da
Florestan defende, em 196-, sua tese de titular da Cadeira de Socio-
' a m a r e b t u d e ' " (Freyre, 1 9 6 2 ) .
logia ! da Universidade de São Paul' • . A integração do negro nj sociedade de
classes-, publicada no Boletim n° ? ) 1 , Sociologia I, n" 1 2 . da FFLCH, no
O s a c o n t e c i m e n t o s políticos posteriores, principalmente, a mesmo a n o . Ainda em 1964, Florestan faz uma conferência n o Curso de In-

vitória das forças conservadoras, em 1 9 6 4 , farão prevalecer a idéia trodução ao T e a t r o Negro sobre o mito da democracia racial.

154 Classes, raças e democracia D e m o c r a c i a racial: o ideal, o pacto e o mito 155


O rompimento do pacto democrático que vigeu entre 1945 pedir ou retatdar sua conscientização de espoliado por
e 1 9 6 4 e que incluiu os negros, seja c o m o movimento organiza- causa da cor e da classe pobre a que pertence".
do, seja c o m o elemento fundador da n a ç ã o , parece ter decretado
t a m b é m a morte da "democracia racial'' daqueles anos. Doravan- Em 1977, retornando do exílio, Abdias escreve e publica, em
te, ainda que aos poucos, os militantes políticos e ativistas negros Lagos, The racial democracy in Brazü: myth or realitv?, republi-
referirão tanto as relações entre brancos e negros, quanto o pa- cado em 1 9 7 8 , no Brasil, como O genocídio do negro brasileiro.
d r ã o ideal destas relações como o "mito da democracia racial". N o prefácio, Florestai! escreve:
O o b j e t i v o era claro: opor-se à ideologia oficial patrocinada pe- "[Abdias] não fala mais em uma 'Segunda Abo-
los militares e propalada pelo luso-tropicalismo. lição' e situa os segmentos n e g r o s e mulatos da popu-
Abdias do Nascimento, em 1 9 6 8 , a poucos dias de partir pa- lação brasileira como estoques africanos com tradições
ra o exílio, já fala em "logro": culturais e um destino histórico peculiares. E m suma,
" O status de raça, manipulado pelos brancos, im- pela primeira vez surge a idéia d o que deve ser uma
pede que o negro tome consciência d o l o g r o que no sociedade pluri-racial c o m o democracia: ou ela é de-
Brasil chamam de democracia racial e de c o r " (Nasci- mocrática para todas as raças e lhes confere igualda-
mento, 1968: 22). de econômica, social e cultural, ou não existe uma so-
ciedade pluri-racial democrática" (Nascimento, 1 9 7 8 :
Ainda em 1968, em depoimento em evento organizado pe- 20).
los Cadernos Brasileiros (n° 4 7 , 1 9 6 8 , p. 2 3 ) , ficam claras as ten-
sões entre Abdias do Nascimento e a esquerda nacionalista, sina-
lizando o fim da "democracia racial" e n q u a n t o compromisso po- O NOVO PROTESTO N E G R O
lítico. Ali, já aparece o uso da "negritude" em sentido multicultu- E O " M I T O DA D E M O C R A C I A R A C I A L "
ralista e em sua pretensão ecumênica:
"Entendo que o negro e o m u l a t o — os homens O movimento social negro q u e irrompe na cena política bra-
de c o r — precisam, devem ter uma contra-ideologia sileira, em julho de 1 9 7 8 , com o n o m e de Movimento Negro Uni-
racial e uma contra-posição em matéria econômico- ficado Contra a Discriminação R a c i a l , representa realmente algo
social. O brasileiro de cor tem de se bater simultanea- de novo no sistema político brasileiro.
mente por uma dupla mudança: a) a m u d a n ç a econô- No entanto, a novidade a p o n t a d a por Florestar: esteve em
mico-social do país; b) a mudança nas relações de raça gestação durante todos os anos 1 9 7 0 , no Brasil, principalmente
e c o r . Aqui entra a Negritude como c o n c e i t o c ação re- no R i o de Janeiro e em Salvador, o n d e amadurecia rapidamente
volucionários. Afirmando os valores da cultura negro- o que Jônatas da Silva (1 988) c h a m o u de "auto-afirmação cultu-
africana contida em nossa civilização, a Negritude esta ral" dos negros. Do mesmo m o d o , do ponto de vista puramente
afirmando sua condição ecumênica e seu destino huma- político, o M N U dos anos 1 9 8 0 t r a ç a o seu passado em continui-
nístico. Enfrenta o teacionário c o n t i d o na configura- dade com os movimentos negros dos anos 1 9 3 0 , 1 9 4 0 , 1 9 5 0 e
ç ã o de simples luta de classe do seu c o m p l e x o econô- 1 9 6 0 , numa linha evolutiva em q u e as rupturas refletiriam ape-
mico-social, pois tal simplificação é u m a forma de im- nas o amadurecimento do pensamento negro e o desenvolvimen-

156 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o m i t o Í57


to da sociedade e da nação brasileiras. O u seja, o M N U não foi (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras), no Rio de Janeiro, e a
um raio em céu azul, nem surgiu fazendo tabula rasa do passado. Confederação Baiana dos Cultos Afro-Brasileiros (que se junta à
N o Brasil, desmascarar a "democracia racial", em sua versão Federação do Culto Afro-Brasileiro, criada em 1 9 4 6 ) e o bloco afro
conservadora, cie discurso estatal que impedia a organização das llê Ayê, em Salvador. Em 1 9 7 6 é criado, em Salvador, o Núcleo
lutas anti-racistas, passa a ser o principal alvo da resistência ne- Cultura! Afro-Brasileiro, cujo manifesto é publicado na Tribuna
gra. N o entanto, tal resistência vai se dar primeiro e mais desim- da Bahia ( 1 5 / 1 2 / 1 9 7 6 ) e, no Rio de j a n e i r o , são criados o Centro
pedidamente no terreno cultural que no c a m p o mais propriamente de Pesquisas das Culturas Negras e a Escola de S a m b a Quilombo.
político. Isso por diversos motivos, entre os quais os mais impor- Nesse mesmo ano de 1 9 7 6 , t a m b é m em Salvador, duas me-
tantes são a repressão às atividades políticas e os rumos que toma didas de governo nos dão a medida exata do que mudava no pacto
a política exterior brasileira, nos anos 1 9 6 0 e 1 9 7 0 , de aproxi- racial-democrático firmado na era Vargas. Primeiro, um decreto
m a ç ã o com a África negra. do governador do Estado da Bahia põe fim à exigência de licença
De fato, a política exterior brasileira, em relação a África, policial pata funcionamento de terreiros de candomblé; segundo,
vai explorar, justamente, dois trunfos: a "democracia racial" bra- a assinatura de um convênio, entre a Fundação Pró-Memória do
sileira — o que requer, como vimos, a repressão aos ativistas ne- Governo Federal, o CEAO (Centro cie Estudos Afro-Orientais da
gros, que a denunciavam como " m i t o " — e as origens africanas L1FBA) e o SECNEB, permite a implantação do primeiro currículo
da cultura brasileira — o que levará o Estado a incentivar as mani- multicultural, na escola do Axé O p ô Afonjá, ligada ao terreito do
festações culturais afro-brasileiras, principalmente na Bahia (Agier, mesmo nome.
2 0 0 0 ; Bacelar, 2 0 0 1 : Santos, 2 0 0 0 ) . Ota, a democracia racial que se implantara n o país nos anos
Nesse jogo de repressão e incentivo, a "cultura negra" e as 1 9 3 0 , seja como ideal de relações não-discriminatónas e não segre-
"origens africanas" passarão a ser os e i x o s através dos quais se gacionistas, seja como pacto político de participação das massas
construirá um discurso alternativo ao marketing governamental. urbanas, seja como integração simbólica dos negros à nação, tal
A o " s i n c r é t i c o " e "mestiço" procurar-se-á construir o "negro" e democracia pressupunha o papel subordinado de práticas reli-
a "pureza cultutal". Antes, portanto, que surgisse, em 1978, o giosas de origem africana e o caráter sincrético da contribuição
M o v i m e n t o Negro Unificado, já estava em atuação nas principais dos negros à cultura nacional: não havia lugar para direitos a iden-
cidades br iisílciríis um sem-numero de entidades culturais negras, tidade ou singularidade. M a s , em meado dos 1 9 7 0 era a reivin-
todas em busca de afirmação étnica. dicação de tal identidade e singularidade que começava a ser aten-
O patrocínio à "cultura afro-brasileira", de fato, gerou, e não dida pelo Estado brasileiro, ao menos no terreno da cultura.
apenas na Bahia, mas também no R i o de J a n e i r o , uma espéck de Ou seja, antes que o movimento negro aparecesse na cena
renascimento cultural, que <. m muito beneficiou a jovem militância política nacional com uma agenda radical de reivindicações anti-
negra em formação. Lélia ( onzalez, por exemplo, cita, como Jato racistas, a "afirmação cultural" negra já se encontrava bastante
marcante na formação do A •. NU, a Semana Afro-Brasileira de 19 4, madura, protegida justamente por uma política de "democracia
patrocinada pelo CEAA ( C . ntro de Estudos Afro-Asiáticos) e p i o racial", que remonta aos anos 1 9 3 0 . O novo, nos anos 1980, como
S E C N E B (Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil),com disse Florestan, será a demanda por direito à diferença cultural
a e x p o s i ç ã o de arte e cultura negras. Nesse mesmo ano são fun- pari passu à demanda por direitos sociais e respeito pelos ditei-
dadas a SIBA (Sociedade de Intercâmbio Brasil-África) e o IPCN tos civis dos negros.

158 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideai, o pacto e o mito 159
O movimento negro ressurgiu, em 1 9 7 8 , como o fez em 1944, um movimento de ampliação dos direitos culturais do povo ne-
em sintonia com o movimento pela retlemocratização do país. Em gro, que desde os anos 1 9 6 0 passara a ser utilizado e promovi-
sua agenda política estavam três alvos principais: a) a denúncia d o , seja para fins da política e x t e r i o r do Brasil em relação à Áfri-
do racismo, da discriminação racial e do preconceito de que eram c a , seja para fins de expansão da indústria do turismo no Estado
vítimas os negros brasileiros; b) a denúncia do mito da democra- da Bahia (Agier, 2 0 0 0 ; Santos, 2 0 0 0 ) .
cia racial, como ideologia que impedia a a ç ã o anti-racista; c) a bus- Ainda que nesse período a p a r e ç a m palavras de ordem como
ca de construção de uma identidade racial positiva: através do aí-ro- " p o r uma autêntica democracia r a c i a l " , título de um documento
centrismo e do quilombismo, que p r o c u r a m resgatar a herança veiculado pelo III Congresso do M N U , realizado em Belo Horizon-
africana no Brasil (invenção de uma cultura negra). Ou seja. o mo- te, em 1 9 8 2 , gradativamente, a m o b i l i z a ç ã o negra de 1978 a 1985
vimento negro retomava as suas bandeiras históricas de "inte- se fará tendo como pano de fundo a denúncia d o "mito da demo-
gração do negro à sociedade de classes" (Fernandes, 1 9 6 5 ) . acres- cracia racial". Um dos mais importantes intelectuais negros do pe-
centando a elas a nova bandeira de identidade étnico-racial ex- r í o d o , Joel Rufino, já notava o risco de "esgotamento" que isso
pandida. Ou seja, têm-se três movimentos em um: a luta contra representava para o movimento. E m artigo de 1 9 8 5 , diz Rufino:
o preconceito racial; a luta pelos direitos culturais da minoria afro- "Ora, foi o colapso cio m i t o da democracia racial
brasileira; a luta contra o modo c o m o os negros foram definidos que permitiu avançar o m o v i m e n t o negro, nos anos se-
e incluídos na nacionalidade brasileira. tenta. Ele não abriria c a m i n h o sozinho, pela exclusiva
J á antes de completa a redemocratização do país, nas elei- pertinácia de suas lideranças; m a s pela conjugação des-
ções estaduais de 1 9 8 2 , a militância negra tem a oportunidade de tas a condições históricas favoráveis, que liquidaram
partilhar o poder em alguns estados, c o m o R i o de Janeiro e São em bloco o pacto ideológico qu~e c o n f o r m a v a a noção
Paulo, através da sua incorporação a organismos governamentais. anterior de Brasil" (Santos, 1 9 8 5 : 2 9 8 ) .
É a época da formação dos núcleos negros nos principais parti-
dos políticos, e da ctiação de organismos estatais que procuram Os anos seguintes, que se estendem de 1 9 8 5 a 1995, são de
absorver as reivindicações da militância nas áreas da cultura, da c o n s t r u ç ã o de uma nova institucionalídade política; de formação
91
legislação e da ação e x e c u t i v a . da N o v a República, como se c h a m o u na época. Os ativistas ne-
Em São Paulo e no Rio era a o p o s i ç ã o de esquerda ao regi- gros serão chamados a ocupar c a r g o s nos recém-criados Conse-
me militar que chegava ao poder e atendia a reivindicações de seus lhos e Secretarias da Comunidade N e g r a , no âmbito dos gover-
aliados negros, também na oposição; mas, na Bahia, tratava-se de nos estaduais, e na Fundação P a l m a r e s , criada em 1 988, no âm-
bito do Ministério da Cultura. D e grande efeito simbólico foi o
t o m b a m e n t o , como patrimônio cultural brasileiro, da Serra da
1
' Exemplos de ações estatais dessa época: em 1 9 8 2 , a Prefeitura Mu- Barriga, local onde existiu no século X V I I o Quilombo dos Pal-
nicipal de Salvador incorpora ao patrimônio histórico estadual o lerreiro m a r e s . O governo federal c o m e ç a v a , assim, ao menos no plano
da Casa Branca, primeiro terreiro de candomblé da Bahia; em l^tia, a Se- 92
s i m b ó l i c o , a incorporar as demandas do M o v i m e n t o Negro.
cretaria de Educação do Estado da Bahia regulamenta a inclusão da discipli-
na Introdução aos Estudos Africanos nos currículos escolares das escolas pú-
blicas de 1° e 2" graus; em. 1984, o governo de S ã o Paulo cria o Conselho de
Participação e de Desenvolvimento da Comunidade Negra. 12
Ver a respeito Maggie ( 1 9 8 9 ) e Santos ( 2 0 0 0 ) .

160 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 161
I

Data também desse período a instituição de uma nova legis- constantemente durante o período, incentivado também pelo cres-
93

l a ç ã o anti-racista, cujo parâmetro legal será a Carta Constitucio- cimento da oferta de recursos internacionais para a filantropia.
nal de 1 9 8 8 , que declara em seu capítulo I, artigo 5", § X L l b "A Apesar do esgotamento, nos a n o s 1 9 7 0 , do modelo de "de-
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, mocracia racial", de que nos fala J o e l Rufino, o fato é que o movi-
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei", e, no Ato das Dispo- mento negro fez da denúncia d o m i t o da democracia racial seu
sições Constitucionais Transitórias, artigo 6 8 : "Aos remanescen- mote mobilizador central durante t o d o o período das décadas de
tes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas 1 9 7 0 a 1 9 9 0 . Esta centralidade renderá frutos e reações, seja atra-
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado vés de políticas públicas e legislação, seja através de novas teo-
emitir-lhes os títulos respectivos". E m 5 de j a n e i r o de 1 9 8 9 é san- rias acadêmicas sobre a " d e m o c r a c i a racial".
c i o n a d a a Lei n" 7.716, que define os crimes resultantes de pre-
c o n c e i t o de raça ou de cor. Esta lei permitirá que dali em diante
a luta contra a discriminação racial e o preconceito de cor se or- A DEMOCRACIA RACIAL
ganize em bases jurídicas. As constituições estaduais, promulga- ENQUANTO MITO
9 3
das em 1 9 8 9 , seguirão, neste aspecto, a C a r t a M a g n a .
C o m a institucionalização de uma nova ordem jurídica no O incômodo da academia brasileira perante o avanço do mo-
país, em 1 9 8 8 , amplamente favorável aos interesses negros, unia vimento negro teve alguns pivôs importantes: primeiro, um certo
boa parte da militáncia congregada anteriormente no MNU, nos exagero do discurso militante, q u e transparece no emprego de
p a r t i d o s , nos sindicatos e nos órgãos estatais passará a atuar no termos como "genocídio" para referir-se ao comportamento da
c h a m a d o "quarto setor", ou seja, organizados em O N G s . Isso não sociedade brasileira em relação a o s negros, e a vontade de fazer
quer dizer que o M N U deixe de existir (mas passará a ser apenas crer que a opressão dos negros no Brasil era pior do que a situação
mais uma organização política negra), nem que os órgãos esta- norte-americana ou sul-africana. O u seja, a propaganda do mo-
tais, os partidos e sindicatos deixem de recrutar ativistas negros. vimento quetia transformar a i m a g e m do Brasil de paraíso em in-
M u i t o pelo contrário, a partir de 1 9 9 5 se amplia o recrutamento ferno racial (Sansone, 1 9 9 6 ) . Segundo, a pretensão do movimento
de negros para órgãos do governo federal. A novidade, porém, em politizar a classificação racial brasileira, redefinindo identida-
será a proliferação do movimento negro em entidades indepen- des c o m o "preto", "pardo" ou " m o r e n o " em "negro", sem no
dentes da sociedade c i v i l . 94
O número de O N G s negras cresce entanto consegui-lo, pois a massa da população, na melhor das hi-

b
" Rosana Heringer (2000) arrola 1 2 4 principais O N G s cm 1 V 9 V . b-,-
9 l
A legislação brasileira anti-racista encontra-se reunida e comentada
s.is O N G s concentram-se: a) na luta c o n t r a o preconceito racwl — são cria-
em Silva j r . ; 1 9 9 8 ) .
dos, no período, os serviços jurídicos de S O S Racismo — , aproveitando a
9 4
Para exemplificar com as mais importantes entidades negras: em í 9SS cnminalização do racismo pela Lei 7 . 7 1 6 ; b) na luta contra a discriminação
é fundado o Geiedés — Instituto da Mulher Negra; em 1 9 8 9 , o CEAP — no trabalho, fazendo com que as regras das convenções internacionais con-
C e n t r o de Articulação de Populações Marginalizadas; em 1 9 9 0 , o CEER'1 tra a discriminação, das quais o Brasil é signatário, passassem a ser efetiva-
— C e n t r o de Estudos das Relações do T r a b a l h o e Desigualdade; em 1993, o mente respeitadas no país; c) na área da saúde; d) na área de educação e qua-
Fala Preta! — Organização de Mulheres Negras. lificação para o trabalho; e e) na área de proteção à infância.

162 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o m i t o 163


póteses, só muito lentamente poderia seguir tal redefinição (Har- mobilização e protestos negros nas décadas seguintes, sintetizan-
ris et ai, 1993; Maggie, 1996). Terceiro, um evidente descompasso do a distância entre o discurso e a prática dos preconceitos, da
entre o discurso político da militância e o comportamento eleito- discriminação e das desigualdades entre brancos e negros no Bra-
ral das massas, as quais se revelavam muito mais permeáveis ao sil, finalmente se esgota enquanto discurso acadêmico, ainda que
populismo trabalhista que aos apelos afrocêntricos do MNU (Sou- como discurso político sobreviva c o m alguma eficiência.
za, 1 9 7 1 ; Santos, 1 9 8 5 ; Agier, 2 0 0 0 ) . Na academia brasileira, o " m i t o " passa agora a ser pensa-
D o ponto de vista teórico, a r e a ç ã o acadêmica começa com do como chave para o entendimento da formação nacional, en-
o esforço de reintrepretação do Brasil empreendido por DaMatta quanto as contradições entre discursos e práticas do preconceito
( 1 9 7 9 ) , em termos da dicotomia entre "indivíduo" e "pessoa", to- racial passam a ser estudadas sob o rótulo mais adequado (ainda
m a d a de empréstimo a Louís D u m o n t ( 1 9 6 6 ) , e que culmina com que altamente valorativo) de " r a c i s m o " . Ou seja, no mesmo ter-
a sugestão de que as relações raciais no Brasil sejam regidas por reno em que o movimento negro o pôs. Foi o próprio DaMatta,
uma "fábula das três raças" ( D a M a t t a , 1 9 8 1 ) . Mais tarde, rea- inspirador da nova leva de estudos (Guimarães, 1 9 9 5 ; Hasenbalg,
gindo à anaiise de Michael Hanchard ( 1 9 9 6 ) , que via na denun- 1 9 9 6 ) que visam a definir a especificidade do racismo no Brasil,
cia pública de racismo na sociedade brasileira o fim do mito da quem cunhou a expressão "racismo à brasileira" (DaMatta, 1 9 8 1 ,
d e m o c r a c i a racial, Peter Fry escreve: 1 9 9 7 ; Pereira, 1 9 9 6 ) , depois substituída, no senso comum, por
"[...] nem por isso precisamos descartar a 'demo- o u t r a — "racismo cordial" (Folha de S. PtfH/o/DataFolha, 1 9 9 5 )
cracia racial' como ideologia falsa. C o m o mito, no sen- — forjada pela mídia. Ou seja, n ã o é mais a democracia que será
tido em que os antropólogos empregam o termo, é um adjetivada para explicar a especificidade brasileira, mas o racismo.
conjunto de idéias e valores poderosos que fazem com O que continua em jogo, p o r t a n t o , é a distância entre dis-
que o Brasil seja o Brasil, para aproveitai a expressão cursos e práticas das relações raciais n o Brasil, tal como Florestan
de Roberto D a M a t t a " (Fry, 1 9 9 5 - 9 6 : 1 3 4 ) . e Bastide colocavam nos idos anos 1 9 5 0 . Ainda que, certamente,
para as ciências sociais, o mito n a o possa ser pensado da manei-
Lilia Schwarcz ( 1 9 9 9 a : 3 0 9 ) sintetiza tal posição do seguin- ra maniqueísta como Freyre e Florestan pensaram, transpondo-o
te m o d o : diretamente para a política, permanecem os fatos das desigualda-
"Dessa maneira, t o m a n d o os t e r m o s de Lévi- des entre brancos e negros no Brasil, apesar do modo como se clas-
Strauss, [1975] poderíamos dizer que o mito se 'exte- sifiquem as pessoas. Mais que isso: as diferenças raciais se impõem
nua sem por isso desaparecer'. O u seja, a oportunida- à consciência individual e social, c o n t r a o conhecimento científi-
de do mito se mantém, para além de sua desconstrução co que nega es raças ísão c o m o b r u x a s que teimam em atemori-
racional, o que faz com que, m e s m o reconhecendo a zar, ou come o sol que, sem saber de Copcrnico, continua a nas-
existência do preconceito, no Brasil, a idéia de harmo- cer e a se pôi ?)• Novos estudos s o b r e as desigualdades raciais no
nia racial se imponha aos dados e à própria consciên- Brasil, elaborados inicialmente no â m b i t o da sociologia e da de-
cia da discriminação". mografia, ganham outras disciplinas sociais, como a economia
(Barros e Henriques, 2 0 0 0 ; S o a r e s , 2 0 0 0 ) , enquanto saem das
O u seja, ao que parece, a denúncia do " m i t o da democracia universidades e se aninham nos círgãos de planejamento estatal,
r a c i a l " , forjada por Florestan em 1 9 6 4 , que respaldou toda a a respaldar as reivindicações do protesto negro.

164 Classes, raças e democracia Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 165
CONCLUSÕES Com a redemocratização do país, a impossibilidade de se
conter as reivindicações sociais dos negros brasileiros nos estrei-
Entre 1930 e 1 9 6 4 , vigeu no Brasil o que os cientistas polí- tos parâmetros da idéia freyreana de "democracia social" fica de
ticos chamam de "pacto populista" ou "pacto nacional-desenvol- todo evidente. A nação brasileira, constituída como mestiça e
vimentista". Neste pacto, os negros brasileiros foram inteiramente sincrética, já não precisava reivindicar uma origem "não tipica-
integrados à nação brasileira, em termos simbólicos, através da mente ocidental". Ao contrário, as classes e grupos sociais farão
a d o ç ã o de uma cultura nacional mestiça ou sincrética, e em ter- dos direitos civis, individuais e universais o principal objetivo das
mos materiais, pelo menos parcialmente, através da regulamen- lutas sociais.
t a ç ã o do mercado de trabalho e da seguridade social urbanos,
A reconstrução da d e m o c r a c i a no Brasil, a partir de 1 9 7 8 ,
revertendo o quadro de exclusão e descompromisso patrocinado
ocorre panpassu ao renascimento da "cultura" e do protesto ne-
pela Primeira República. Nesse período, o movimento negro orga-
gro. Mais que isso: dá-se num m u n d o em que a idéia de multicul-
nizado concentrou-se na luta contra o preconceito racial, através
turalismo, ou seja de tolerância e respeito a diferenças cuiturais
de uma política eminentemente universalista de integração social
que se querem integras, autênticas e não-sincréticas, ao contrário
do negro à sociedade moderna, que tinha a "democracia racial"
do ideal nacionalista do pós-guerra, é dominante. Nesse ambien-
brasileira como um ideal a ser atingido.
te, todo o trabalho de reconstrução de um pacto racial democrá-
O golpe militar de 1964, que destrói o pacto populista, estre- tico, no que pese o esforço de i n c o r p o r a ç ã o simbólica e material
mece também os elos do protesto negro c o m o sistema político, do Estado brasileiro, está fadado a um (in)sucesso limitado.
que se teciam principalmente através d o nacionalismo de esquer- Seria errôneo atribuir o recrudescimento da "consciência ne-
da. D e fato, no começo dos 1 9 6 0 , a política externa brasileira já gra" e do cultivo da identidade racial, no Brasil dos anos 1970, à
se encontrava estressada quanto à posição que o Brasil deveria to- influência estrangeira, especialmente norte-americana. Ao contrá-
mar ante os movimentos de libertação das colônias portuguesas rio, o renascimento cultural negro deu-se nesses anos sob a prote-
na África. O movimento negro brasileiro, influenciado pelo m o - ção do Estado autoritário e de seus interesses de política exterior.
vimento negro internacial, principalmente a negritude, enfatiza- Ademais, a guinada do m o v i m e n t o negro brasileiro em direção à
va as suas raízes africanas, o que gerava a reação de intelectuais negritude e às origens africanas data dos anos 1 9 6 0 e foi, ela mes-
c o m o Gilberto Freyre ( 1 9 6 1 , 1 9 6 2 ) , em sua cruzada pelos valoies ma, responsável pela geração das tensões políticas surgidas em
da mestiçagem e do luso-tropicalismo. A discussão sobre o caráter torno do ideal de democracia racial. D o mesmo modo, as idéias
da "democracia racial" no Brasil — o u seja, se se tratava de rea- e o nome de "democracia racial" longe de serem o logro forjado
lidade cultural (como queriam Freyre c o estdbüshnient conserva- pelas classes dominantes brancas, c o m o querem hoje alguns a:i-
dor) ou de ideal político (como queriam os progressistas L- o movi- vistas e sociólogos, foi durante muito tempo uma forma de inte-
mento negroi — acaba levando à radicalização das duas posições. gração pactuada da militância negra.
A acusação de que "democracia r a c i a l " brasileira não passava de
Em resumo, "democracia racial" foi, a princípio, uma tradu-
"mistificação", "logro" e "mito" toma então conta do movimento,
ção livre de Bastide das idéias expressas por Freyre em suas con-
à medida que a participação política se torna cada vez mais res-
ferências na Universidade da Bahia e de Indiana, em 1943 e 1 9 4 4 ,
trita, excluindo a esquerda e os dissidentes culturais. A partir de
respectivamente. Idéias essas caudatárias, elas próprias, das refle-
1 9 6 8 , os principais líderes negros brasileiros vão para o exílio.
xões de Freyre sobre a " d e m o c r a c i a social" luso-brasileira. Nes-

166 Classes, raças e democracia


Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito 167
sa "tradução" Bastide omite o caráter " i b é r i c o " restrito que Freyre 6.
atribuía, no mais das vezes, ao t e r m o ; pelo contrário, alarga-o, O MITO ANVERSO: O I N S U L T O R A C I A L 9 6

realça-lhe o caráter propriamente universalista de "contribuição


brasileira á humanidade" (também reivindicado por Freyre), mais
apropriado à coalizão antifascista e anti-racista da época. Assim
transposta para o universo individualista ocidental, a democra-
cia racial ganhou um conteúdo político distante do caráter pura-
m e n t e " s o c i a l " que prevalece em F r e y r e , fazendo com que, com o
t e m p o , a expressão ganhasse a c o n o t a ç ã o de ideal de igualdade
de oportunidades de vida e de respeito aos direitos civis e políti- No Brasil, desde que foi definido o crime racial, em 1 9 8 9 ,
cos que teve nos anos 1 9 5 0 . Mais tarde, em meados dos 1960, pela Lei 7.716, um dado p a s s o u a chamar a atenção dos ativistas
"democracia racial" voltou a ter o significado original freyreano e advogados negros, assim c o m o dos pesquisadores: a maioria das
de mestiçagem e mistura étnico-cultural tout cnurt. Tornou-se, as- queixas de discriminação p o d e r i a ser enquadrada como crime de
sim, para a militância negra e para intelectuais c o m o Florestam a injúria ou infâmia 9
. A i m p o r t â n c i a numérica dos casos de insul-
senha do racismo à brasileira, um m i t o racial. Finalmente, para tos raciais era tão grande q u e , em 1 9 9 7 , por pressão dos ativistas,
alguns intelectuais contemporâneos, o mito transforma-se em cha- o legisíadot modificou o C ó d i g o Penal (Lei n" 9.459) para que a
ve interpreiativa da cultura brasileira. injúria racial fosse punida c o m o mesmo rigor dos crimes raciais.
M o r t a a democracia racial, ela c o n t i n u a viva enquanto mi- Em outro contexto ( G u i m a r ã e s , 1998), eu interpretei a ofensa
t o , seja no sentido de falsa ideologia, seja no sentido de ideal que verbal, que acompanhava a maioria dos atos de discriminação,
orienta a ação concreta dos atores s o c i a i s , seja como chave inter- como sendo a única evidência disponível, para o queixoso, de que
pretativa da cultura. E enquanto m i t o c o n t i n u a r á viva ainda pot a discriminação sofrida por ele era, realmente, de cunho racial e
m u i t o tempo c o m o representação do q u e , no Brasil, são as rela- não apenas de classe, o que é t a m b é m muito comum no Brasil.
ç õ e s entre negros e brancos, ou m e l h o r , entre as raças sociais Neste capítulo, e n t r e t a n t o , quero investigar o insulto racial
(Wagley, 1 TS2) — as cores — que c o m p õ e m a nação. como forma de construção de uma identidade social estigmatiza-
N o ç ã o criada durante a ditadura varguista pata nos incluir
no mundo dos valores políticos universais, a "democracia racial"
precisa agora ser substituída pela simples democracia, que inclui 9 6
Uma versão deste texto foi apresentada ao Congresso da American
a t o d o s sem menção a raças. Estas, que não existem, faríamos Anthropological Associauon, em Chicago, novembro de 1999. Agradeço a
Afrânio Garcia, Jocéiio Teles dos Santos e Njdya Araújo Guimarães a leitu-
m e l h o r se não as mencionássemos c o m o ideai, como o que deve
ra cuidadosa de versões preliminares do texto e suas valiosas sugestões. Hste
ser, reservando-as para denunciar o que não deveria existir (o
capítulo foi originalmente publicado em Estudos Apo-Asiáticos, n" 3 8 , de-
racismo). zembro de 2000, pp. 3 1-48.
9
O código penal brasileiro, a o contrário do norte-americano, reco-
nhece o crime contra a honra. Sua mera existência já indica a presença de
relações sociais hierarquizadas, q u e se pautam por um código de honra pes-
soal e estamental (e não apenas de ética).

168 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 169


da. Para t a n t o , volto a me valer de queixas registradas na Dele- esferas do t r a b a l h o , da vizinhança e do c o n s u m o (ver Tabela 1),
gacia de Crimes Raciais de São Paulo, ainda que tal fonte tenha a o que reforça minha convicção de que as i n j ú n a s são usadas de
desvantagem de ser um registro feito por outrem (o plantonista), forma b a s t a n t e licenciosa, na sociedade brasileira. Na verdade,
a partir do relato de apenas uma das partes, a vítima. T e m a van- apenas n o â m b i t o das relações de consumo de bens e serviços o
tagem, entretanto, de apresentar estereótipos socialmente aceitos n ú m e r o de queixas sem registro de insultos é significativo (10 em
enquanto tais, t a n t o pelas vítimas, quanto pelos policiais. T o m e i 2 1 c a s o s ) ; n o s demais âmbitos da vida social as q u e i x a s com in-
o
para a análise apenas as queixas registradas-entre I de m a i o de sultos são sempre maiores que 8 0 % .
1 9 9 7 e 3 0 de abril de 1 9 9 8 .

Tabela 1 O Q U E S Ã O OS INSULTOS R A C I A I S ?
Q U E I X A S PRESTADAS DE D I S C R I M I N A Ç Ã O ,
S E G U N D O O Â M B I T O DAS RELAÇÕES SOCIAIS C h a r l e s Flynn (1 977: 3) define o insulto c o m o "um ato, ob-
O N D E O C O R R E U E O REGISTRO D E I N S U L T O S servação ou gesto que expressa uma opinião bastante negativa de
uma pessoa ou grupo". Tratarei aqui apenas das ofensas verbais.
Com Sem
O m e s m o Flynn ( 1 9 7 7 : 6) propõe " e x a m i n a r a natureza das su-
Âmbito das i ns u Ito insulto Total %
relações sociais (A) (C) coluna (A/C
posições c o m u n s e obvias concernentes à realidade social, parti-
(Ii)_
10 22 24% 54"-
lhada por m e m b r o s de sistemas socioculturais específicos, e de-
Consumo 12
Vizinhança 18 1 19 21% o
95 - m o n s t r a r c o m o os insultos, numa grande v a r i e d a d e de culturas,
No trânsito 4 1 5 6% o
80 - consiste principalmente em violações de n o r m a s muito signifi-
Nas ruas •)
0 2 2% 100°- c a n t e s , m a s substancialmente implícitas". M a i s que uma opinião
2 / <-''' 91'!
Trabalho 29 3 32 JO /O
negativa, portanto, o insulto, significa o r o m p i m e n t o de uma nor-
Negócios 3 0 3 3% 100°/
ma s o c i a l . P a r a Edmund Leach ( 1 9 7 9 ) , o insulto significa a vio-
Família 6 0 6 7% 100°
1 1 1% o°-
lação de um tabu, ou seja, consiste na e x p r e s s ã o de nomes, atos
Outro 0
ou gestos socialmente interditos, que g e r a l m e n t e referem os mui-
Total 74 90 100%
to p r ó x i m o s ou muito longínquos de si (sejam pessoas, animais,
% linha 82% 18 'o 100%
ou fatos c o r p ó r e o s ) .
Fonte primária: Delegacia de Crimes llaciais de São Paulo, 1" de maio de 199
a 30 de abril de 1 9 9 8 . A função ou a intenção do insulto poden variar, mas estão
sempre ligadas a uma relação de poder. Flynn ista algumas fun-
ções: a) legitimação e reprodução de uma orde n moral; hj legiti-
Nesse a n o , em 74 das noventa queixas prestadas na delega- m a ç ã o de hierarquia entre grupos sociais; c) legitimação de hie-
cia, ou seja, em 8 2 % dos casos, as vítimas fizeram registrar, tam- rarquias no interior de grupos; d) socialização de indivíduos. Fs-
bém, os insultos verbais sofridos. O grande número de insultos sas duas últimas funções, entretanto, c o r r e s p o n d e m melhor ao que
registrados era de se esperar, dado que 7 6 % das q u e i x a s regis- se c h a m a , na literatura especializada, de "insultos rituais", ou seja,
tradas foram de ataques à honra pessoal. No entanto, os insultos c o n t e n d a s verbais cm que insultos são t r o c a d o s de modo regula-
aparecem na m a i o r i a das queixas relativas à d i s c r i m i n a ç ã o nas do, p o n d o em evidência o domínio verbal e o c o n t r o l e emocional

170 Classes, raças e democracia O m i t o anverso: o insulto racial 171


7
dos participantes ^. No caso ue insultos raciais não-rituais, esta- O S - T E R M O S INJURIOSOS E N C O N T R A D O S
remos lidando, fundamentalmente, com tentativas de legitimar
9
uma hierarquia social baseada na idéia de r a ç a . ' ' Os insultos raciais seguem a lógica esboçada acima. Como
N o estudo da formação de grupos socialmente execrados, instrumentos de humilhação, sua eficácia reside justamente em
N o r b e r t Elias e J o h n Scotson ( 1 9 9 4 ) propõem um ordenamento d e m a r c a r o afastamento do insultador em relação ao insultado,
no m o d o c o m o os grupos dominantes estigmatizam os dominados. remetendo este último para o terreno da pobreza, da anomia so-
Isso o c o r r e , lembram, quando tais grupos detêm efetivo poder de cial, da sujeira e da animalidade.
fazer crer a si e aos próprios execrados que tais estigmas são (ou N o entanto, como a posição social e racial dos insultados
podem ser) verdadeiros. O primeiro modo de estigmatizar é a po- já está estabelecida historicamente, através de um longo proces-
breza. Para utilizá-la, o grupo dominante precisa monopolizar as so anterior de humilhação e subordinação, o próprio termo que
melhores posições sociais, em termos de poder, prestígio social e os designa enquanto grupo racial ( " p r e t o " ou "negro") já é, em
vantagens materiais. Apenas nesta situação, a pobreza pode, en- si mesmo, um termo pejorativo, podendo ser usado sinteticamen-
tão, ser vista c o m o decorrência da inferioridade natural dos excluí- te, sem acompanhamento de adjetivos e qualificativos. "Negro"
dos. O segundo modo de estigmatizar é atribuir c o m o caracterís- ou " p r e t o " passam, pois, a ser uma síntese verbal para toda uma
ticas definidoras do outro grupo a anomia (a desorganização social c o n s t e l a ç ã o de estigmas referentes a uma f o r m a ç ã o racial identi-
e familiar) e a delinqüência (o não cumprimento das leis). O ter- tária. Mais que o termo, a própria c o r adquire tal função simbó-
ceiro é atribuir ao outro grupo hábitos deficientes de limpeza e hi- lica, estigmatizante, como bem d e m o n s t r a m os sinônimos lista-
giene. O quarto e último é tratar e ver os dominados c o m o animais, dos em dicionários de língua vernácula: sujo, encardido, lúgubre,
quase-animais, ou não inteiramente pertencentes à ordem social. funesto, maldito, sinistro, nefando, perverso etc, O estigma pode
O s insultos são também, ao mesmo tempo, evocação de estig- estar tão bem assentado que é possível, por exemplo, a um negro
mas sociais e pessoais, os quais Erving Goffman ( 1 9 6 3 ) classificou se sentir ofendido por uma referência t ã o sutil quanto esta: "tam-
em três tipos: 1) anomalias corporais (deformidades físicas); 2) b é m , olha a cor do indivíduo".
defeitos de caráter individual — fraqueza de vontade, paixões ina- A estigmatização requer, todavia, um aprendizado, que passa
turais, crenças rígidas, desonestidade e t c , inferidos a partir de doen- necessariamente por um processo de ensinar aos "subalternos" o
ça mental, encarceramento, alcoolismo, vício, homossexualidade, significado da marca de cor. Assim, uma senhora, para humilhar
desemprego, tentativas de suicídio, c o m p o r t a m e n t o político etc.: o filho menor de uma vizinha, refere-se a sua cor no diminutivo c
3) estigmas tribais — raça, nação, religião e mesmo classe. designa seu corpo com cores " e s t r a n h a s " : "Pode me deixar pas-
sar, seu negrinho de olho r o x o ? ! " . O u , num outro exemplo, ago-
ra envolvendo dois adultos, o administrador de uma empresa diz,
s
''• í ais jogos são muito comuns entre jovens negros americanos. Ver,
por telefone, à gerente de uma outra empresa, que se prontificou
por e x e m p l o , Dolard 11939) e Labov ( 1 9 7 2 ) .
a atendê-lo, em lugar do chefe: " N ã o falo com preto. Prefiro es-
v 9
Diz Flynn ( 1 9 7 7 : 5 5 , tradução minha): " O s negros, por exemplo, p e r a r " . T a l forma sintética visa criar uma barreira social intrans-
estão sujeitos a insultos diretos ou indiretos, que visam confirmar a defini-
ponível entre agressor e vítima, confortável para o primeiro, de
ção cultural de sua inferioridade 'inata' e, talvez mais significativamente,
m o d o que este precisa apenas pronunciar o nome do grupo, desig-
procuram relembrá-los continuamente de tal inferioridade, fazendo-os assi-
milar o significado da baixa estima social que lhes é devotada". n a ç ã o sintética da injúria. Às vezes, n e m mesmo a palavra precisa

172 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 173


ser pronunciada, apenas a segregação é reivindicada: " V o c ê não dem ser usados também, como "barata", para ofender s e x u a l m e n -

deveria estar aqui; q u a l q u e r um poderia estar aqui, menos você". te, além de atribuir sujeira ("filhas de uma barata preta, v a g a b u n -
1 0 1

Nos dados que analisei, a forma sintética é minoritária. Acon- da"). A c o n d i ç ã o de quase-humanidade pode ser referida t a m -

tece apenas em dez dos 7 8 insultos registrados ( 1 3 % ) . Na maioria bém por qualidades intelectuais negativas, tais c o m o " b u r r o " ,

desses casos, a proximidade social entre as partes exige que se re- "imbecil" e " i d i o t a " . Registrou-se, ainda, o termo " í n d i o " , para

pita o ritual de afastamento, através de insultos qualificados, in- referir-se à c o n d i ç ã o de sociabilidade incompleta, selvagem.

sultos que procuraram a s s o c i a r a cor do agredido com uma outra A anomia social é referida de três maneiras. P r i m e i r o , atra-

dimensão do estigma. vés de termos ou qualidades ligadas à delinqüência: " l a d r ã o " , "fol-

Tais insultos, o b v i a m e n t e , requerem uma reiteração dos ter- gado", " s a f a d o " , "sem-vergonha", "aproveitador'', "pilantra";

mos ofensivos sintéticos pelo qual o grupo é reconhecido, fazendo " m a c o n h e i r o " , " t r a f i c a n t e " ; segundo, através de termos referen-
10

com que, em 78 ofensas registradas, a palavra "'negro" e seus deri- tes à moral sexual: "vagabunda", "bastardo", " f i l h o - d a - p u t a " - ,

vados (feminino, diminutivo e corruptelas) fossem citados 5 5 vezes, "prostituta", g i g o l ô " , " s a p a t ã o " , "homossexual", " m a n a - h o -

e "preto" o fosse 33 vezes. Eis um exemplo de reiteração, quase his- mem"; terceiro, por estigmatização religiosa, através de t e r m o s

térica, que tem a finalidade de associar o nome grupai a qualidades como " m a c u m b a " e "macumbeira".

desprezíveis: "Preto safado, sangue de preto, negro sem vergonha, O estigma da sujeira é reforçado por termos como: " fedida",

preto vagabundo, v o c ê n ã o presta porque tem sangue de preto". "merda", "podre", "fedorenta", "porqueira", "nojento" e "suja".

A animalidade, q u a n d o se trata de insulto propriamente ra- A pobreza e a condição social inferior é referida por pala-

cial, é atribuída principalmente através de termos como " m a c a c o " vras como "favelada", "maloqueira", "desclassificado" e "analfa-

e "urubu", usados indistintamente para ambos os sexos. N o pri- beto". D e fato, os estigmas preferidos de inferioridade social s ã o

meiro caso, o animal, além de selvagem, é considerado pela zoo- o local e tipo de moradia e o grau de instrução formal. A d e m a i s ,

logia como o mais p r ó x i m o do ser humano, devendo, portanto, se- uma estratégia lingüística freqüente é o uso de diminutivos, c o m o

guindo as idéias de L e a c h , ser objeto de distanciamento ritual mui- "negrinho" ou " n e g r i n h a " , para referir-se aos insultados. M a s ,

to rigoroso; no segundo c a s o , trata-se de um abutre que tem por faz-se t a m b é m referência direta à "classe" ("não falo c o m gente

hábito devorar cadáveres de outros animais, inclusive humanos. de sua classe") ou à situação de escravidão ("lugar de n e g r o é na

Mas, quando se trata de mulheres negras, além do insulto


racial, acompanha, às vezes, o insulto sexual, que iguala mulheres
a animais, para atribuir devassidão moral, usando termos tais c o - em termo.-, de comesvibilidade tenha alguma correspondência c o m o modo
1
mo "vaca", "galinha" o u " c a d e l a " . ' ' " Mas, outros animais po- como os seres humanos são categorizados com respeito a relações sexuais".

''" Nesse contexto, "barata" tem mais de um sentido: aiém cie reterii-
se à sujeira, relere-se também à genitália feminina.
1 0 2
r
'"" Os seres humanos, em gerai, têm a sexualidade eferida a animais. interessante que, nas culturas latinas, seja a relação de rebaixamento
social (filho-da-puta), e não um animal doméstico c íntimo Hon-of-a-bitch)
A recorrência à animalização sempre está ligada a atribuição de estigma ou
ou o incesto materno (tnotberfucker) que expresse a maior vergonha masculi-
à formação de um carisma (reivindicação de qualidades excepcionais). So-
na com respeito a sua mãe, e portanto, o insulto sexual mais forte. Ver, a res-
bre a relação entre sexo e a n i m a i s , diz Leach (1979: 2 1 2 . tradução minha):
peito, Prestou e Stanley ( 1 9 8 7 ) .
" E uma hipótese plausível que o modo como os animais são categorizados

O mito anverso: o insulto racial 175


174 Classes, raças e democracia
senzala"), expressões utilizadas para referir-se a uma forma de na- e " p r e t o / a " , este último preferido pelos h o m e n s , o primeiro pe-
tureza ou de ordem social estagnada (a laia, a casta, o escravo). las mulheres. O insulto animal mais empregado é " m a c a c o " . Os
Outros termos empregados, como "besta" e " m e t i d a " , remetem termos de anomia que se referem à moral s e x u a l são os mais nu-
para tentativas de inversão de uma hierarquia social, considerada m e r o s o s e são geralmente assacados contras as mulheres (as víti-
natural, pois são usados no sentido de que tais pessoas querem mas ou as mães das vítimas): "vagabunda" é o insulto preferido
usurpar uma p o s i ç ã o que não é sua. por mulheres e "filho-da-puta", por homens; já e n t r e aqueles que
Finalmente, vale a pena mencionar a ocorrência de referên- se referem à legalidade e ao caráter, " s a f a d o " é o insulto preferi-
cias a doenças ou defeitos físicos do insultado (tais c o m o "quei- do, geralmente dirigido contra homens. As m u l h e r e s têm também
mada" ou " c a n c e r o s a " ) e referências a determinações naturais ou o privilégio de ser acusadas de " m a e u m b e i r a s " . E n t r e as injúrias
teológicas, tais c o m o "maldito", "desgraça" e " r a ç a " . que se referem à condição social, a preferida é l e m b r a r a condi-
Os insultos propriamente raciais que encontrei nos registros ç ã o de ex-escravo, através da referência ao lugar que se crê apro-
policiais podem, portanto, ser agrupados, enquanto estratégia de priado às vítimas: a senzala. Este é geralmente um insulto de bran-
distanciamento social, em sete tipos: co c o n t r a negro, de superior social para inferior. Termos como
1) Simples nominação do Outro, de modo a lembrar a dis- " f a v e l a d o " ou "maloqueiro" são atualizações de locais de mora-
tância social ou justificar uma interdição de c o n t a t o . dia apropriados a negros, mas desferidos por p e s s o a s da mesma
2) Animalização do Outro ou implicação de mcivilidade. c o n d i ç ã o social da vítima. Os termos que r e m e t e m à sujeira não
3) Acusação de anomia, em termos de: são t a m b é m concentrados: "fedido", " m e r d a " e " s u j o " têm a
c o n d u t a delinqüente ou ilegal; m a i o r freqüência. Nas demais categorias, c h a m a a atenção ape-
imoralidade sexual; nas o insulto que se refere diretamente à " r a ç a " do indivíduo in-
irreligiosidade ou perversão religiosa. sultado, evocando assim uma índole pervertida.

4) I n v o c a ç ã o da pobreza ou da condição social inferior do O Q u a d r o 1 sintetiza a classificação dos insultos encontra-


O u t r o , através de: dos. N o t e m que o recurso à metáfora animal abrange praticamente
t e r m o s referentes a tal condição; toda a t a x o n o m i a , seguindo a estreita relação e n t r e categoria ani-
referência a uma origem subordinada; mal e a b u s o verbal, prescrita por Leach. O s i n s u l t o s sexuais são
uso de diminutivos; referidos por animais domésticos (cadela!, de c r i a ç ã o , mas liga-
a c u s a ç ã o de impostura (assunção de p o s i ç ã o social dos à alimentação da casa (galinha e vaca), ou p r ó x i m o s indese-
indevida). jáveis, n ã o propriamente animais, c o m o a b a r a t a . O uso de seus
5 ) A c u s a ç ã o de sujeira. nomes corresponde, de modo geral, à lógica das interdições de con-
6) I n v o c a ç ã o de uma natureza pervertida ou de uma mal- t a t o s e x u a l entre os muito próximos. O s insultos relativos a hie-
dição divina. rarquia e às deficiências físicas e mentais estão referidos a animais
7) I n v o c a ç ã o de defeitos físicos ou mentais. de t r a b a l h o (burro, besta). Bichos d o m e s t i c a d o s , mas não muito
p r ó x i m o s , que jamais comemos. Apenas os insultos raciais são re-
T o m a d o s de per si, anotamos 56 termos ínjuriosos, que dis- feridos por animais distantes (macacos, urubus), selvagens ou, pelo
tribuímos pelas sete categorias elaboradas acima (ver T a b e l a 2 ) . m e n o s , que devem ser mantidos à distância da vida social.
Os termos sintéticos mais utilizados, como vimos, são "negro/a"

176 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 177


Tabela 2 0,58
vagabundo
T E R M O S ÍNJURIOSOS POR T Í P O D E I N S U L T O , 0,58
inveioso
SEGUNDO O S E X O D O 0,58
traficante
INSULTADO E D O I N S U L T A D O R 0,58
maconheiro

macumbeiro
Ins ultado M M H H Total %
despacho
Insulrador M H M H
Í de frango - 1 0,58
T e r m o s insultuosos
Condição social 3 11 6,40
Sintéticos 26 - 15 9 16 66 38,37 1 3 1,74
senzala
negro ia 4 5 7 29 16,86 - 1,16
favelado
preto 5 7 3 8 23 Í3,37
maloqueiro - 2 1,16
nego 4 3 i - 8 4,65 1 0,58
analfabeto 1
negrinho 1 - 1 4 2.33 1 1 0.58
desclassificado
negrona 1 - - - 1 0,58 - 1 0,58
metido
neguinha 1 - - - 1 0,58 0,58
besta - 1
Animalização 9 2 2 3 16 9,30 Sujeira 1 11 6,40
macaco 7 2 2 3 14 S,14 fedido - 1,74
urubu 2 - - - 2 1,16
merda - 1,16
Incivilídade 1 - - - 1 0,58 sujo - 1,16
índ io 1 - - - 1 0,58 barata - 1 0,58
Anomia 25 7 10 13 55 31,98 fedorento - ] 0,58
vagabunda 6 3 - 9 5,23 podre - 1 0,58
filho-da-puta 1 1 1 4 7 4.0" porqueira 1 1 0,58
vaca 2 - - - 2 1,16 Natureza 2 5 2,91
cadela - 1 - - 1 0,58 raça 1 1,74
caralho - - 1 1 0,58 desgraça 1 1 0,58
D '—
x >° i• i
OJ ^
gaiinha i - - - 1 0.5 S maldita - i 0,58
gigolõ - - 1 1 0,58 7 4,07
Defeitos 2
I
•§ ~ homossexual - 1 - 0,5 S 0,58
queimado - 1
bastardo 0.58 - :i 0,58
escíerosado
maria-homem - 1 0.58 0,58
canceroso - 1
sapatão - - 0,58
imbecil 1 i 0,58
scort girl 1 M.58
burro - 1 0,58'
safado 1 .í 3 7 4,07 1 1 2 1,16
idiota
ladrão 2 - 1 2 5 i:> i
Total geral 78 33 21 40 172 100,00
sem-vergonha 1 - ~>
- 3 5.74
45,34 19,19 12,21 23,26 100,00
V ~^ folgado - - 2 2 1,16
23 ^~ aproveitador 1 - ! 0.58 Fonte primária: Delegacia de Crimes Raciais de Sao Paulo, i" de m a i o
pilantra 1 - - - 1 0.58 de 1997 a 30 de abril de 1 9 9 8 .
M = Mulher, H = H o m e m .

178 C .lasses, raças e democracia 179


O mito anverso: o insulto racial
Quadro 1
AS S I T U A Ç Õ E S D E I N S U L T O
T E R M O S INSU1.TUOSOS,
CLASSIFICADOS P O R C A T F C O R J A DE
A situação que propicia a agressão verbal pode nos ensinar
A F A S T A M E N T O E N T R E GRUPOS
muito sobre o significado sociológico do insulto racial. Q u a n d o
o insulto é feito? Q u a l a posição do agressor e da vítima na rela-
Nomeação Animal/ Animal/ Hierarquia
ção social? Que tipo de insulto é desferido, a depender da situa-
genérica: sexo: hierarquia: social:
nega (o)
ção e das características da vítima?
barata besta analfabeto
negra (o) cadela desclassificado Lima afirmação do senso comum, no Brasil, é a de que o
negrinbo (a) galinha favelada insulto racial ocorre apenas numa situação de conflito, ou seja,
preto (a) vaca maloqueira de ruptura de uma o r d e m formal de convivência social. T a l afir-
metida mação nada mais é que a conseqüência do pressuposto de u m a
Animal/ Animal/ senzala
ordem igualitária, de respeito aos direitos individuais, resguardada
raça: deficiências:
macaco burro
por normas de polidez e formalidade. Na verdade, tal pressupos-
urubu to, ainda quando aceito idealmente, pode não ser verdadeiro, na
prática social. Ademais, o insulto racial pode ocorrer durante o
Religião: Natureza: Defeitos físicos,
conflito ou pode, ao contrário, ocasionar o conflito. Pode ser uma
despacho desgraça mentais e doenças: arma de última instância, mas também um primeiro trunfo a ser
macumba maldita cancerosa sacado. O que motiva o insulto racial e a ordem em que ele apa-
macumbeira raça queimada rece no conflito são, pois, elementos decisivos para a análise.
idiota
Carlos Hasenbalg, em 1 9 7 9 , anota em Discriminação e de-
imbecil
sigualdades raciais no Brasil, à pagina 2 5 2 : "Com relação aos

Delinqüência e Moral
padrões de sociabilidade inter-racial é notório que a classe b a i x a
Higiene:
defeitos morais: sexual: fedida
branca carrega um folclore de concepções estereotipadas do ne-
aproveitador bastardo fedorenta gro. Contudo, tais estereótipos s ã - com freqüência verbalizados
folgado fiiho-da-puta merda em contextos amistosos, e as situações raramente evoluem para
incompetente gigolô nojento o conflito interpessoal e para a violência, a menos que a i n t e n ç ã o
ladrão homossexual podre
ofensiva esteja claramente p r e s e n t - O r a , assim como nas situa-
maconheiro maria-homem porqueira
pilantra
ções de insulto ritual, os termos njuriosos podem ser emprega-
sapatão suja
safado scort girl dos para simbolizar uma situação iposta a o seu significado cor-
sem-vergonha vagabunda rente. Isso acontece q u a n d o são tr ados entre pessoas muito pró-
traficante ximas, amigas, para simbolizar ju- tamente a ausência de forma-
lidade entre elas, ou seja o grau de intimidade e de confiança mú-
tuas. Seu emprego é n o t a d o principalmente entre m e m b r o s de
grupos estigmatizados, quando os epítetos mais insultuosos, nor-
malmente dirigidos a tais grupos por seus detratores, são empre-

180 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 181


gados entre os seus membros, com enorme ironia, já que estão q ü e n t e m e n t e , nao havendo condições de d i á l o g o paci-
10
desprovidos de significado subjetivamente ofensivo, uma vez que ficamente". ^
todos sabem fazer parte da comunidade estigmatizada referida
pelo epíteto. D o mesmo modo, freqüentemente o uso dc epítetos Segundo, q u a n d o durante uma disputa q u a l q u e r , c o m u m ,
injuriosos ocorre em situações definidas ambiguamente pelo agres- esgotados os m e i o s de convencimento e o uso de a m e a ç a s plausí-
sor, situando-se entre a intimidade da brincadeira (a proximida- veis, diante da recusa ou falta de assentimento da v í t i m a , a injú-
de expressa no insulto ritual) e o distanciamento expresso pelo ria é usada p a r a encerrar a disputa,"com a h u m i l h a ç ã o desta. O
conteúdo semântico das palavras ofensivas. Nesses casos, o insul- insulto, no c a s o , sinaliza a passagem da disputa p a r a o conflito.
ta n te apesar de não ser amigo do insultado, põe-se nesse terreno A queixa a b a i x o se enquadta nessa situação. R e p a r e - s e que a ex-
ao usar o termo injurioso de modo que possa ser interpretado pressão insultuosa ("nega besta") procura c a r a c t e r i z a r a atitude
como um convite à brincadeira; ficando para o insultado definir de resistência c o m o sendo provocada pela petulância e arrogân-
a situação: se aceita o outro c o m o um igual, e trata o incidente cia de alguém que usurpa uma posição social (de igualdade c o m
como o início de uma troca de insultos rituais, ou se aproveita a o agressor) q u e não lhe seria devida (por viausa da c o r ) .
ocasião para coalescer a distância entre ambos. Quando a a m b i - " C o m p a r e c e a vítima, informando que, na data e
güidade existe entre membros de grupos raciais diferentes (bran- local dos fatos, soube por seu advogado que a P indicia-
cos e pretos), mas membros de uma mesma classe social (pobres), da disse a ele que ela deveria pagar uma dívida que ti-
a situação de ambigüidade mostra apenas a ambigüidade das per- nha assumido com a imobiliária, na qualidade de fiado-
tenças de classe e de " r a ç a " . ra de u m imóvel, proferindo as seguintes palavras: 'aque-

C o m o era de se esperar, essas situações de ambigüidade ou la nega besta está bem grandinha pra assumir as coisas

de expressão de intimidade nao aparecem nas queixas prestadas que assina, aquela esclerosada'. E a vítima, na mesma

em delegacias. D e a c o r d o com os dados de que disponho, o in- data, r e c e b e u uma ligação do advogado da imobiliária
o

sulto racial aparece nas seguintes situações. ( 2 indiciado), cobrando tal débito, que, segundo a víti-

Primeiro, q u a n d o a relação entre as pessoas envolvidas está ma, foi fiadora de um imóvel involuntariamente, ou se-

tensa e bastante desgastada por algum motivo, seja de convivên- ja, c i t a d a c o m o fiadora sem seu conhecimento, e c o m o

cia vicmal ou familiar, seja de ordem contratual ou de qualquer disse a o referido advogado que nada devia à i m o b i l i á -

outra. O fato é que, a partir cie um determinado m o m e n t o , uma ria, este ofendeu-a dizendo: 'por causa de uma merre-

das partes resolve utilizar o insulto como modo de, sistematica- ca, v o c ê e seu advogado vão se foder, sua nega b e s t a " ' .

mente, humilhar o seu desafeto. A queixa transcrita abaixei ilus-


tra tal situação: T e r c e i r o , quando uma falha involuntária da vítima provo-
"Informa a vítima que divide o mesmo quintal ca o ódio d o agressor. F. como se houvesse, por parte deste, uma
com sua c u n h a d a , a indiciada, sendo que, por desen-
tendimentos antigos, a mesma freqüentemente é ofen-
dida verbalmente, bem c o m o seus filhos, sendo c h a m a - 1(15
Essa e as demais citações são transcritas tal c o m o estão nos bole-
dos de ' m a c a c o s ' , 'vagabunda', 'negrinho b a s t a r d o ' , tins de ocorrência policial. Prescindo de anotações como sic ou qualquer outra
'negra fedida', 'favelada' e t c . Que o fato ocorre fre- forma de e d i ç ã o dos textos.

182 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 183


predisposição racista, uma animosidade gratuita ou motivada por Quinto, quando o agressor vê-se na posição de ser corrigi-
eventos anteriores, que, diante de um fato qualquer, se manifesta do ou repreendido por ter c o m e t i d o uma falha e, para reverter tal
c o m o insulto. Veja-se, como exemplo, a q u e i x a a seguir: posição, agride verbalmente a v í t i m a . Estão sujeitos a essa situa-
"Informa a vítima que na data de o n t e m colocou ç ã o de risco, os negros que, no cumprimento dos deveres do car-
seu veículo na vaga privativa de vendedores da empresa g o , vêem-se obrigados a fazer c u m p r i r as normas. A queixa abai-
em que trabaiha, com a intenção de tirá-lo assim que x o se enquadra nesse caso:
começassem a chegar os vendedores, sendo que nin- "Informam as vítimas que na data e local dos fa-
guém o avisou e acabou esquecendo. Assim foi pro- tos, onde são seguranças, a p ó s procurarem o averigua-
curado pelo gerente, que estupiclamente o repreendeu. do, que é morador do C o n d o m í n i o , e adverti-lo que po-
Q u e imediatamente procurou tirar o c a r r o da vaga e deria ser multado caso não retirasse o seu veículo, que
surpreendeu o referido gerente falando para a primei- estava ocupando a vaga de o u t r o proprietário, este pas-
ra testemunha: 'Preto é uma merda, por isso que eu não sou a ofender-lhes dizendo: 'quem são vocês, são uns
1
gosto dessa raça . Ao tomar satisfações sobre o que di- porqueiras, uns pretos folgados, desclassificados' e, ato
zia, o mesmo não repetiu tais frases, alegando que se a contínuo, foi entrando em sua residência dizendo: 'vou
vítima não tivesse gostado que partisse para cima". cortai" vocês no carango agora', ao que foi impedido por
familiares, que não o d e i x a r a m entrar no quarto para
Q u a r t o , quando não há nenhum conflito e o insulto é ape- pegar alguma arma, segundo informam as vítimas".
nas o meio extremado de demarcar a s e p a r a ç ã o racial entre agres-
sor e vítima. Trata-se da reivindicação de u m a segregação social, Em todos esses casos, e x c e t o no primeiro, é nítido o senti-
c o m o na queixa abaixo: mento hierárquico de superioridade do agressor, ferido pelo com-
"Informa a vítima que o indiciado, o qual pres- portamento igualitário do o f e n d i d o , seja numa disputa, seja num
tava serviços de convênio de Assistência M é d i c a à Em- incidente que o assusta ou desagrada, seja no dia-a-dia do relacio-
presa em que a vítima trabalha, e por esre motivo fre- namento social. O insulto é uma forma ritual de ensinar a subor-
qüentemente precisava entrar em c o n t a t o pessoal ou dinação, através da humilhação, mais que uma arma de conflito.
telefônico, na data de hoje ligou para falar com o ge- Seguramente, pode ser que, n o cotidiano, os insultos raciais
rente comercial e a testemunha retro, disse que ele não sejam mais comuns em situações de conflito, ou mesmo ocorram
se encontrava, mas, se quisesse, p o d e r i a talar com a em última instância de ofensa, c o m o muitos acreditam. Entretan-
vítima. O indiciado pelo telefone respondeu: 'Não falo to, pelos dados que tenho, parece certo acreditar que tais insul-
c o m preto. Prefiro esperar'. A vítima e n t ã o tornou co- tos não sejam especialmente m a i s ofensivos que os outros por-
nhecimento do fato e ficou sabendo que isso era fre- ventura proferidos durante o conflito, quando não apenas a raça
qüente. Esclarece ainda que nas oportunidades ante- c invocada, mas também o s e x o , as preferências sexuais, a ori-
riores que falou com o indiciado, ele s e m p r e foi extre- gem regional, familiar e de classe, os defeitos físicos, os defeitos
m a m e n t e mal educado. A vítima sente-se discrimina- morais etc.
da e ofendida em sua honra e imagem pessoal". Do mesmo modo, apenas poucos insultos (16) ocorreram
durante campanhas sistemáticas de humilhação pública, c o m o

184 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 185


forma de retaliação a alguma ofensa real ou imaginada, os demais Primeiro, é m a i o r o número de muiheres que se q u e i x a m de

foram decorrentes de situações singulares e fortuitas. discriminação e t a m b é m é proporcionalmente maior o n ú m e r o de

Algumas estatísticas ajudarão a esclarecer esse ponto. Das mulheres que se q u e i x a m de insultos. Ou seja, os insultos às mu-

74 queixas em que foram registradas injúrias, 2 9 ( 3 9 % ) se refe- lheres são mais que proporcionais à razão entre homens e mulheres

rem a insultos proferidos, no ambiente de trabalho, por clientes, queixosos. M a s , t a m b é m , os insultos são principalmente desferi-

colegas, superiores ou subordinados; 18 insultos ( 2 4 % ) foram dos por mulheres c o n t r a mulheres ( 3 6 , 8 % ) e por h o m e n s c o n t r a

proferidos por vizinhos; 1 2 ( 1 6 % ) insultos foram sofridos por homens ( 2 9 , 9 % ) , a i n d a que nos insultos entre-sexos, sejam o s

negros, na condição de consumidores, inquilinos ou usuários; os homens que o f e n d a m duas vezes mais as mulheres ( 2 3 , 0 % ) que

demais insultos o c o r r e r a m em situação familiar (6), na rua ( 2 ) , o inverso ( 1 0 , 3 % ) . Isso, contudo, não explica a q u a n t i d a d e de

no trânsito (4) ou em decorrência de realização de negócios (.3). insultos à c o n d u t a m o r a l ou sexual das vítimas, pois s ã o as mu-

Ou seja, as queixas de insulto ocorrem com mais freqüência em lheres, e não os h o m e n s , que abusam de referências d e s a b o n a d o -

âmbitos em que as relações sociais são mais intensas e também ras à moral sexual das vítimas. De faro, 3 9 % das injúrias profe-

mais formalizadas; em que, portanto, o insulto é mais contundente. ridas por mulheres c o n t r a mulheres c 4 0 % das dirigidas por elas
contra homens referiam-se à morai sexual; enquanto, entre os h o -
Das noventa queixas prestadas, quatro referiam-se a mino-
mens, apenas 1 2 % assacaram contra a honra sexual das mulhe-
rias étnicas (dois nordestinos, um peruano e uma judia) e, nestas,
res negras e nenhum ofendeu a moral sexual de outro h o m e m , pre-
se registraram injúrias, proferidas em situação de consumo, tra-
ferindo fazê-lo, em 21 % dos casos, em relação à m ã e dos mes-
balho ou negócio. N o c a s o dos nordestinos, as injúrias aludiam
mos (Tabela 3 ) .
a seu deslocamento geográfico, isto é, ao fato de serem de outro
lugar: 1) "Esses nordestinos desgraçados, vem pra cá querer man-
dar; sua vaca e t c . " ou " v o c ê tem complexo de inferioridade por Tabela 3
ter nascido naquela terrinha de Arapiraca... porque você nasceu I N S U L T A D O S E INSULTANTES
na puta que pariu". N o c a s o do peruano, é também sua condi- POR GÊNERO

ção de estrangeiro que é injuriada, junto com sua aparência físi-


Gênero Gênero do indiciado Total
ca: "é por isso que eu não gosto de fazer contratos com esses ín-
da vítima Masculino Feminino
dios nojentos e ainda mais sendo estrangeiro, tem que morar no
Masculino 29,9% 10.3% 40.2%
mato do seu país". N o caso da judia, a injúria é genérica: "sua
Feminino 23,0% 36,8% 59,8%
judia fracassada... nenhum judeu presta".
Total 52,9% 4~ .1 % 100,0%
Examinemos mais de perto os insultos propriamente raciais
Fonte primária: Delegacia de Crimes Raci.w de São Paulo, 1" de
contra os negros. maio de 1 9 9 7 a 3 0 de abril de 1998.

INSULTADOS E INSULTANTES Considerando não os casos registrados, mas a freqüência d o s


termos injuriosos proferidos, chega-se à mesma c o n c l u s ã o . A m u -
lher é muito mais insultada do que o homem. N o c a s o de injúrias
Dois fatos c h a m a m a atenção quando observamos as esta-
entre pessoas do m e s m o sexo, as mais numerosas ( 1 0 8 em 1 7 2 ) ,
tísticas.

186 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 187


os insultos envolvendo mulheres são quase o dobro daqueles en- É possível t a m b é m que o gênero, predominantemente mas-
volvendo homens ( 7 8 para 4 0 ) . J á nos easos de injúrias interse- culino, e a c o r , na maioria branca, dos indiciados, assim c o m o as
xuais (54 em 1 7 2 ) , os homens ofendem 5 7 % mais as mulheres do características de gênero e cor das vítimas, ganhem i m p o r t â n c i a
são ofendidos por elas. Em suma, a maioria dos insultantes é mu- para a c o m p r e e n s ã o sociológica apenas no âmbito das relações
lher ( 5 8 % ) , mas, em c o m p e n s a ç ã o , as mulheres são também as sociais em que ocorreu o insulto. Voltemo-nos, p o i s , p a r a anali-
mais insultadas ( 6 4 % ) , isso porque 4 5 % dos insultos contra mu- sar cada situação em separado.
lheres são dirigidos p o r outras mulheres e, ademais, os homens
as insultam mais do q u e são insultados por elas (ver Tabela 2 ) .
O segundo fato que merece atenção é a grande quantidade OS I N S U L T O S P R O F E R I D O S
de averiguados, ou seja, de insultadores, de cor ignorada ou não- E M S I T U A Ç Ã O D E TRABALHO
anotada. Como era de se esperar, 9 3 % das vítimas se declararam
ou foram declaradas negras, no entanto, apenas 5 7 % dos insul- A m a i o r i a dos insultos proferidos nos l o c a i s de t r a b a l h o
tantes foram considerados brancos, sendo que 3 8 % deles não ti- provém de clientes ou usuários de serviços prestados p o r traba-
veram a cor registrada pelo plantomsta ou declarada pela vítima. lhadores negros ( 5 6 % ) . Isso acontece quando t a i s e m p r e g a d o s
Desconhecimento, d a d o sem importância, ou silêncio revelador? cumprem n o r m a s ou regras que desagradam ou ferem o sentido
O fato de ter havido insulto mostra que dificilmente a cor do acusa- de hierarquia dos clientes. O insulto, nesse caso, l o n g e de emer-
do não seria notada. P o r se tratar de um boletim de ocorrência gir do c o n f l i t o , o instala. Não se fazem necessárias palavras ou
sobre crime de r a c i s m o , peça que fundamenta qualquer ação ju- atitudes bruscas por parte dos negros: é a própria a t i t u d e ordiná-
dicial contra o a c u s a d o , também dificilmente a cor do acusado ria de c o b r a n ç a , negação, repreensão ou frieza d o s negros que é
seria esquecida sem propósito. Portanto, é mais provável que 38%> sentida c o m o ' ' o f e n s a " pelos brancos. Dou um e x e m p l o :
dos acusados t a m b é m não fossem brancos (Tabela 4 ) . " C o m p a r e c e a vítima informando que n a d a t a e
local dos fatos, onde prestava serviços autônomos c o m o
g a r ç o m , a o servir o averiguado que é sócio d o C l u b e ,
Tabela 4 após este pedir-lhe algumas refeições que c o n s t a v a m no
C O R DECLARADA
c a r d á p i o , mas que não tinham disponíveis p a r a serem
D O I N S U L i A N T E E DO INSULTADO
servidas. s< nnado ao fato de ter pedido para que a c o n t a

Cor do -
Co- declarada do msultante Total
fosse separada, e por norma do Clube o averiguado fora

insultado Ignorada Branca Morena Parda informado que não poderia ter esse pedido a c e i t o , pas-

Ignorada - i,4% - 1,4",, sou a ofender a vítima com as seguintes o f e n s a s : 'gra-


Negra 36,2°;. 50,7% 1.4% 4.5";, ^2.S"- ças a D e u s que você não é meu empregado, m a c a c o ,
Parda - 5,8% - - 5,S"» se fosse estaria na senzala'. Vítima sentiu-se ofendido
Total 36,1% 58,0% 1,4%_ 4.5% 500.0",. em sua h o n r a e imagem pessoal".
o
Fonte primária: Delegacia de t rimes Raciais de SãoPauio, I de maio de 1 9 9 .
a 3 0 de abril de 1 9 9 8 . Aqui, já se vê, o insulto tem a função de " e n s i n a r à vítima
seu lugar" e s p e r a d o , ou seja, a subserviência. P a r a t a n t o , é sem-

188 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 189


prc mencionado nos insultos o deslocamento social ou o lugar que Em termos de freqüência, os clientes ou usuários insultantes
deveriam ocupar as vítimas: "a senzala", "desclassificados", "essa são, na maioria, homens. Mas os h o m e n s ofendem mais os ho-
m a c a c a aí pensa que é o quê?", "negra metida". mens e as mulheres ofendem mais as mulheres. Para o insultante,
A inconformidade com a igualdade social dos negros trans- portanto, além do fato de não suportar o que considera "arro-
parece t a m b é m nas ofensas proferidas por superiores: "Isso é um g â n c i a " ou "desrespeito" do servidor, o sexo da vítima tem algu-
desperdício de talento. Essa deveria estar lavando roupas. Isso aí m a importância. Por que será isso? T a l v e z porque a relação entre
é para n o s servir."; " E negro, por isso que fez errado! Faz as coi- os sexos imponha mais formalidade e envolva, a o mesmo tempo,
sas e r r a d a s e quer chegar cheio de razão! Esses vigilantes nem es- uma abordagem mais simpática. Mas é interessante que os homens
tudo t ê m . . . " . Ofensas que resvalam para outros âmbitos (hones- negros, insultados por clientes, não declarem, c o m maior freqüên-
tidade, diligência ou outros aspectos morais), quando direitos tra- cia, a cor dos insultantes (quatro em c i n c o c a s o s ) , enquanto as
balhistas são reivindicados ou estão em j o g o . mulheres ofendidas se "esqueçam" m e n o s da cor cie quem as ofen-
As vezes, os insultados se queixam de que o insulto é prece- deu (três em sete). Acaso? O fato é q u e a não declaração da cor
dido p o r um período de "perseguição". T a m b é m os interiores hi- dos insultantes é mais freqüente em queixas contra clientes e usuá-
erárquicos invocam o deslocamento social das vítimas ("não cum- rios, ou contra superiores hierárquicos, que contra colegas ou su-
prirei ordens daquele negro analfabeto"). bordinados, e mais freqüente nos homens que nas mulheres.
Dependendo do grau de segurança do o f e m o r quanto à sua
própria posição social, os insultos podem apenas sugerir a anima-
lização ou coisificação dos negros (quando o reconhecimento so- OS I N S U L T O S D O S V I Z I N H O S
cial d o ofensor é visível), mantendo-se no terreno da desqualiíi-
c a ç ã o social, ou podem progredir para uma completa negação da O local de moradia é i segundo â m b i t o social de maior re-
humanidade do ofendido, situação mais c o m u m quando a distân- gistro policial de insultos raciais. Por tratar-se de um ambiente
cia social entre ofendidos e ofensores é m í n i m a . doméstico, onde a presença feminina é m a i o r , os registros são, co-
T a m b é m , no caso de clientes e usuários, há, às vezes, a trans- rno era de se esperar, em sua maioria, de mulheres brancas ofen-
ferência para os "inferiores", ou seja, para os "empregados", da dendo mulheres negras (1. em 19 c a s o s ) . As ofensas, quando
raiva que deveria ser dirigida contra o governo e.i a organização ocorrem nesse âmbito, são : -spaldadas, geralmente, por uma his-
que os negros momentaneamente representam: tória mais longa de desavei ças e isso, j u n t o com a proximidade
"Comparece a vítima nesta Delegacia informan- física entre os beligerantes, enseja disputas mais carregadas de
do que na data e local dos fatos, onde trai-a lha como e m o ç ã o , que extravasam er. virulência verbal. A moral sexual, a
p o r t e i r o , logo após entregar o carne do li ! L para a Humanidade, a higiene, os . efeitos físicos e a inconveniência da
averiguada, foi ofendido pela mesma que dis-e: "eu que- vizinhança das vítimas são odos alvos de ataque verbal. Eis al-
b r o a sua cara seu nego safado, ladrão sem -ergonha", guns exemplos:
e n t r e outras ofensas que foram presenciada pelas tes- 1) "Suas negrmhas fiii as da puta, negas fedorentas", "Suas
t e m u n h a s retro qualificadas. A vítima s e n r u - s e ofen- vacas, galinhas".
dido em sua honra e imagem p e s s o a l " . 2) "Estou cheia dessa i iça; por que vocês não se mudam?",
"Essa raça não presta".

190 Classes, : aças e democracia O mito anverso: o insulto racial 191


3) "Sua macaca, eu odeio negro, eu vou por você na cadeia, ver a imagem pública da empresa prestadora de serviços. (.) c o n -
sua negra". tato social, nesse caso, é não apenas secundário, para usai' a termi-
4) "Suas negrinhas vagabundas, vocês são negras maloquei- nologia clássica da sociologia, mas também padronizado. C o m o ,
ras e não prestam". então, mais de 5 0 % das q u e i x a s ainda evocam insultos raciais?
5) "Além de negra, ainda é queimada; na escola que eu dou Observando-se caso a c a s o , tem-se o seguinte: três dos in-
aula é cheia de negrinhos macaquinhos e eu reprovo mes- sultos ocorreram na relação entre senhorio e inquilino; dois em
mo, pois nego tem é que c a t a r papel". estabelecimentos bancários, envolvendo clientes e seguranças; e
6) "Márcia sapatão, maldita, vagabunda, negra invejosa, outros cinco em transporte coletivo (motorista e usuário), lancho-
que tinha inveja da mesma por ser branca de olhos cla- nete, hospital público, oficina e loja comercial. Três fatos são dig-
ros e t c " . nos de nota: primeiro, os insultos mais fortes partem de pessoas
7) "Sua negra, maloqueíra, você tem que mudar do prédio". do mesmo nível social cia vítima e, provavelmente, da mesma c o r ,
o
8) "Essa negra do 4 andar, eu n ã o agüento esse cheiro! Eu pois a cor, geralmente, n ã o é registrada; segundo, os insultos,
vomito". quando partem de pessoas de m a i o r nível social ou dos donos do
9) "Maconheiros", "Pretos s u j o s " , "Vagabundos", "Trafi- estabelecimento, são insultos sintéticos ("preto", "negro") ou,
cantes", "Que odeia essa r a ç a " , "Que odeia pretos e nor- simplesmente, aludem à c o r da vítima ("também, olha a cor do
destinos". indivíduo"); terceiro, os estabelecimentos pequenos apresentam
maior número de casos c o m insulto que os grandes, provavelmente
O que dizer das disputas que geram tais insultos? São dispu- porque neles a relação c o m o consumidor é sujeita a menor for-
tas entre síndico e condôminos, a respeito da honestidade do geren- malização e disciplinamento.
ciamento do condomínio; em t o r n o de brigas e brincadeiras de
crianças, filhos das vítimas; disputas em torno do uso do passeio
das casas ou da garagem e, muitas vezes, ódio sem causa aparen- O INSULTO N O T R Â N S I T O
te, puro desejo de segregação, v o n t a d e de evitar a presença de E EM O U T R O S Â M B I T O S
negros no prédio.
Do mesmo modo q u e , geralmente, a discr minação entre
vizinhos é insultuosa também o é a discriminação to trânsito, nos
OS INSULTOS A C O N S U M I D O R E S pequenos negócios ou na rua e isso pela mesma azão: a grande
tensão emocional a que estão sujeites os agresse es. Trata-se de
As queixas prestadas de discriminação no âmbito de relações insultos pesados, carregados sempre de alusões ei sabonadoras à
cie consumo de bens e serviços são aquelas que menos registram moral sexual das vítimas ou de suas famílias, dt-feridos, quase
insultos recebidos — apenas 12 das 2 2 queixas fazem-no. Esse da- sempre, por pessoa do m e s m o sexo.
do já revela que a relação de c o n s u m o é mais formal que as de- Obviamente, tem a mesma virulência o insuh > proferido por
mais (de trabalho, de vizinhança, ou relações não-sistemáticas. familiar, com a agravante de, nesses casos, o sexe oposto não ter
c o m o as que se desenvolvem na rua ou no trânsito), desenrolando- tratamento mais discreto.
se normalmente sob etiqueta bastante cuidadosa, que visa promo-

192 Classes, raças e democracia O mito anverso: o insulto racial 193


CONCLUSÕES brancos se sentem incomodados pela conduta igualitária do ne-
gro. Existe mesmo, no Brasil, a expressão "tomar liberdade" ou
Os negros, no Brasil, se q u e i x a m principalmente do insulto "metida a besta" para alguém, que se crê superior, referir-se à con-
racial proferido no âmbito do t r a b a l h o , da vizinhança e do con- duta "indevida" de outrem, que se crê socialmente igual a ele.
sumo de bens e serviços. Fazem-no beneficiando-se da Lei 7.7 16, Ainda segundo os registros que tenho, não foi possível c o n -
modificada pela 9 . 4 5 9 , que transformou a injúria racial em cri- firmar a idéia do senso c o m u m de que, no Brasil, o insulto racial
me. Neste capítulo, utilizei os registros de queixas na Delegacia ocorre como último recurso de ataque numa disputa interpessoal
de Crimes Raciais de São Paulo, entre 1" de maio de 1997 e 30 que se deteriora. Ao contrário, na maioria das queixas que anali-
de abril 1 9 9 8 , para estudar o insulto racial. sei, o insulto foi o fato que instalou o conflito, não uma decor-
Desenvolvi uma interpretação do insulto racial segundo a rência deste.
qual sua função é institucionalizar um inferior racial. Isso significa Essas conclusões, todavia, por conta do número restrito de
que o insulto deve ser capaz de, simbolicamente: a) fazer o insul- casos, não podem ser t o m a d a s com definitivas. Devem, melhor,
tado retornar a um lugar inferior já historicamente constituído e servir de guia para investigação do insulto racial através de ou-
b) re-instituir esse lugar. tros métodos de observação e outras fontes.
A atribuição de inferioridade consiste na aposição de uma
marca sintética, c o m o a cor, e qualidades e propriedades negati-
vas (em termos de constituição física, moralidade, organização so-
cial, hábitos de higiene e humanidade) a um certo grupo de pes-
soas consideradas "negras" ou " p r e t a s " .
Pelo que pude constatar, esse "inferior racial", no Brasil, é
constituído pelos seguintes estigmas: 1) pretensa essência escra-
va; 2) desonestidade e delinqüência; 3) moradia precária; 4) devas-
sidão moral; 5) irreligiosidade; 6) falta de higiene; 7) incivilid.tde,
má-educação ou analfabetismo. Esses estigmas são rcitcradans.-nie
associados a cor negra ou preta, que tais pessoas apresenam.
transformando-a em símbolo sintético dc estigma. Interess inte
notar que nenhuma característica física, além da cor — cab íos,
lábios ou nariz, por exemplo — loi invocada nos insultos r -gis-
t r a d o s . ameia que saibamos serem c o m u n s em. canções e -. nos
populares.
As situações de insulto, ou seja, aquelas em que a po-içao
de inferioridade do negro precisa ser reforçada por rituais cb hu-
milhação pública, encontra-se, principalmente, no trabalho -.- ne-
gócios, onde o cliente ou usuário sente-se ameaçado pela amori-
dade de que o negro está investido; ou em situações em que os

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