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ANO 14/ Nº 156 R$ 18,00

14 16 24
ESTADOS UNIDOS A CAVALGADA AUTORITÁRIA DE BOLSONARO DECLÍNIO OCIDENTAL
UM PAÍS CRIVADO POR EMERGÊNCIA SANITÁRIA APÓS A PANDEMIA,
HOMICÍDIOS POLICIAIS E EROSÃO DEMOCRÁTICA O DESPERTAR DA ÁFRICA?
POR RICHARD KEISER POR ANDRE SINGER POR BOUBACAR BORIS DIOP

LE MONDE

diplomatique
BRASIL

.
2 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

O “PRIVILÉGIO BRANCO” É, BASICAMENTE, O CAPITAL

Você disse
“sistêmico”?
POR SERGE HALIMI*

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s multinacionais norte-ameri- tempo só com gestos “simbólicos” era composta de parasitas, sussur- pediu – a cor da pele nem sempre ga-
canas recorrem frequente- que consistem em se ajoelhar diante rou “vidas negras importam” duran- rante boas escolhas – que 26 dos 28
mente à filantropia para mas- dos afro-americanos, derrubar está- te uma manifestação antirracista. A eleitos negros ao Congresso votas-
carar os crimes que as tuas, trocar nomes de ruas e se arre- perfumista Estée Lauder vai desem- sem a favor da lei.
enriqueceram. Desde maio, estão pender do “privilégio branco”. Ora, é bolsar US$ 10 milhões para “favore- Nos Estados Unidos, o patrimô-
entregando centenas de milhões de justamente a esse repertório, inofen- cer a justiça racial e social, bem co- nio da maioria das famílias afro-a-
.

dólares a diversas associações afro- sivo para eles, que os donos de multi- mo um acesso mais amplo à mericanas permanece abaixo dos
-americanas, entre as quais a Black nacionais querem confinar o movi- educação”. Foi sem dúvida com esse US$ 20 mil – quase nada.1 Eles devem,
Lives Matter. Essas liberalidades pa- mento popular que despertou a objetivo que ela financiou a campa- por isso, residir em bairros pobres e
ra com uma estrutura militante que sociedade norte-americana após a nha de Donald Trump em 2016... matricular seus filhos em escolas
combate o “racismo sistêmico” lem- difusão das imagens da morte de um Afora essas dissimulações, que medíocres. Seu futuro profissional
bram um pouco os pagamentos de negro asfixiado sob o joelho de um vão muito além da paródia, como não fica, desde logo, comprometido. O
apólices de seguro. Apple, Cisco, policial branco (ver p.14). perceber que as manifestações con- cerne do problema – o “sistema” –
Walmart, Nike, Adidas, Facebook e CEO do banco JP Morgan, res- tra o “racismo sistêmico” surgiram está aí: o “privilégio branco” é, basi-
Twitter, que sabem melhor que nin- ponsável por arruinar incontáveis poucas semanas após o candidato camente, o capital. Quanto aos sím-
guém o significado de “sistêmico”, famílias negras seduzindo-as com mais qualificado para enfrentar real- bolos, eles já tiveram um presidente:
devem recear que o questionamento empréstimos imobiliários que elas mente o “sistema”, Bernie Sanders, Barack Obama. 
de iniquidades estruturais nos Esta- nunca poderiam pagar, Jamie Di- ser derrotado por um homem, Joseph
dos Unidos não demore a mirar ou- mon se ajoelhou – diante de um co- Biden, que muito contribuiu para *Serge Halimi é diretor do Le Monde
tras infâmias além das violências po- fre-forte gigante de seu estabeleci- consolidá-lo? Em 1994, o senador Bi- Diplomatique.
liciais – e situadas bem perto de seu mento. O candidato republicano na den foi, com efeito, o grande arquite-
conselho de administração. Admi- eleição presidencial de 2012, Mitt to do arsenal judiciário que precipi- 1   V
 er Dalton Conley, “Aux États-Unis, la couleur
du patrimoine” [A cor do patrimônio nos Esta-
tindo-se essa hipótese, os manifes- Romney, que havia estimado que taria o encarceramento em massa de dos Unidos], Le Monde Diplomatique, set.
tantes não se satisfariam por muito 47% da população norte-americana afro-americanos. Isso, aliás, não im- 2001.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

A hora é agora!
POR SILVIO CACCIA BAVA

maioria dos brasileiros continuará a

A
queles que enfrentaram a dita- sofrer o empobrecimento e a falta de
dura, e a derrotaram em 1985, perspectivas que vivemos agora.
nos asseguraram o novo perío- Se o governo Bolsonaro conti-
do democrático, que chegou a nuar, a pandemia não for controlada
2015. Suas mobilizações e lutas nos e a economia não se orientar para a
garantiram trinta anos com liberda- defesa do cidadão e das pequenas e
de de pensamento, de expressão, médias empresas, teremos o
uma nova Constituição, novos parti- desastre.
dos, um novo pacto social, eleições. Este ano as projeções falam de
Uma democracia imperfeita, que não uma queda de cerca de 10% do PIB,
enfrentou a desigualdade, o racismo, mas pode ser mais. Para muitos mi-
o patriarcado, a devastação ambien- lhões de brasileiros e brasileiras, vão
tal, mas permitiu, nos governos mu- faltar emprego, trabalho, comida na
nicipais, estaduais e federal, a alter- mesa, dinheiro para o aluguel. O go-
nância de poder e a eleição de verno ignora a crise e mantém sua
representantes dos trabalhadores. estratégia de austeridade; alega que
São as entidades, os movimentos não tem dinheiro para atender a es-
sociais, as associações, os sindica- sas necessidades, mas não mexe uma
tos, as organizações de igrejas, os palha para cobrar impostos dos mais
atores coletivos que pressionam as ricos. Coisas simples, que não reque-
instituições democráticas e as trans- rem mudanças profundas, como tri-
formam. Em certos momentos da ius butar juros e dividendos, retirar
l au d
história, apesar de sua diversidade ©C isenções fiscais, combater efetiva-
de agendas, elas assumem bandeiras mente a sonegação fiscal.
comuns, como foi a das Diretas Já, Certamente não será o governo
em 1983 e 1984. Bolsonaro que vai nos tirar dessa si-
.

Catorze anos de governos do PT e tuação. Ele só agrava a crise. E, se


uma maré econômica internacional nossas representações coletivas não
favorável permitiram a melhoria de se mexerem agora, estaremos nos
todos os indicadores sociais e a proje- condenando e à nova geração ao
ção internacional do país como uma pior cenário possível. A geração Co-
potência emergente. vid-19 será mais uma vítima da polí-
Embora implantando um refor- tica de morte e destruição desse go-
mismo fraco e buscando uma convi- verno insano.
vência com as elites financeiras e o associações e sindicatos que defen- jogando milhões de brasileiros na Há algumas semanas, as
agronegócio, favorecendo seus inte- dam seus direitos. miséria e promovendo uma quebra- iniciativas de resistência democrática
resses, o governo foi combatido, não Sob a bandeira “tudo menos o deira geral nas médias e pequenas estão se multiplicando. As torcidas
houve acordo. Muitos grandes empre- PT”, setores conservadores se uniram empresas. organizadas de futebol, eternas
sários e as elites financeiras não acei- e, com a acusação de uma pedalada A Covid-19 se espalha, se dissemi- rivais, se uniram e foram para as ruas
taram a reeleição de Dilma, que abria financeira (!), derrubaram o governo na no país, colhendo cada vez mais pedir democracia. Várias articu-
espaço para um novo ciclo do PT. democrático, respaldando o período mortos pela inexistência de uma po- lações e redes de entidades pedem o
Acompanhando um movimento Temer e a eleição manipulada nas re- lítica federal para enfrentar a pande- impeachment do presidente e agora
internacional de apropriação do es- des sociais de Bolsonaro. mia. Há especialistas que dizem que se articulam na recém-lançada
paço da política pelas grandes em- Muitas das igrejas evangélicas vamos conviver por anos com essa campanha #BrasilpelaDemocracia
presas e a imposição de políticas de neopentecostais viram nesse mo- crise sanitária, com aberturas e fe- #BrasilpelaVida.
austeridade que suprimem ou redu- mento a oportunidade de fazer bons chamentos, calmarias e repiques, até Promovida por entidades nacio-
zem direitos sociais em favor de um negócios, reforçar seu poder político que surja a vacina, até que venha a nais como a Ordem dos Advogados
processo mais intenso de acumula- e de comunicação e sua pregação de nova pandemia... A devastação da na- do Brasil (OAB), a Associação Brasi-
ção, com o argumento de que as po- valores conservadores e aumentar tureza nos expõe aos novos vírus. leira de Imprensa (ABI), a Sociedade
líticas sociais não cabem no orça- seu rebanho. E aderiram ao golpe. Há uma combinação perversa de Brasileira para o Progresso da Ciên-
mento da União, esses setores O golpe também contou com o crise sanitária com uma profunda cia (SBPC), a Comissão Arns, a Asso-
empresariais, liderados pela Federa- apoio de expressiva parcela das clas- crise econômica e com uma crise po- ciação Brasileira de Organizações
ção Brasileira de Bancos (Febraban), ses médias, mobilizadas por uma in- lítica, que vai se tornando o centro de Não Governamentais (Abong), cen-
a Confederação Nacional da Indus- tensa campanha midiática contra a todo esse processo. trais sindicais e uma infinidade de
tria (CNI) e Federação das Indústrias corrupção e o PT. Sentiram-se inco- Se a economia não for reorientada outras organizações, essa campanha
do Estado de São Paulo (Fiesp), ban- modadas em seus privilégios com a sob uma nova óptica – com políticas tem o potencial de promover o en-
caram o golpe de 2016 e bancam ain- melhoria da condição dos mais de dinamização da economia local e contro dos diferentes, a soma dos de-
da o governo Bolsonaro. pobres. do mercado interno, políticas de em- mocratas, a expressão da cidadania
As reformas previdenciária e tra- Hoje, parte desses setores conser- prego e de trabalho, investimentos em todas as suas formas.
balhista, as privatizações e a imposi- vadores que apoiaram o capitão está pesados em educação, saúde e em Mobilize as associações, igrejas,
ção do teto de gastos sociais trazem assustada com a incapacidade deste políticas sociais universais, um pla- entidades das quais você participa e
essa marca. Trata-se de destruir o último de enfrentar a pandemia e no nacional de oferta pública e gra- integre essa campanha de lutas por
nascente Estado de bem-estar social com a incompetência do ministro da tuita de banda larga, além de renda direitos e pela democracia. A hora é
definido pela Constituição de 1988 e Economia de responder a uma crise básica, principalmente para atraves- agora! Campanha #BrasilpelaDemo-
as entidades, movimentos sociais, profunda, sem precedentes, que está sar os próximos anos –, a grande cracia #BrasilpelaVida. 
4 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

POR QUE NOSSAS VIDAS IMPORTAM

Enquanto houver racismo, população negra aumentou mais de


33,1% – dez vezes mais que a taxa ve-
rificada entre a população branca,

não haverá democracia


que foi de apenas 3,3%.
Apenas em 2017, dos mais de 65
mil homicídios no Brasil – o nível
mais alto da série histórica –, 49,5 mil
diziam respeito à vida de pessoas ne-
gras, e nos importamos com cada
Transformar o racismo estrutural sistemático da sociedade brasileira não é tarefa da uma delas. Como ilustração desse
população negra, é responsabilidade da população branca e do conjunto das instituições quadro dramático, o Brasil possui
oficialmente pouco mais de 4.800
brasileiras. Na atualidade, não nos bastam afirmações e posicionamentos antirracistas, é municípios com população inferior a
preciso alterar relações de poder que, efetivamente, atendam aos interesses e às 50 mil habitantes. Isso significa dizer
necessidades da população negra que qualquer uma dessas cidades po-
deria ter sido varrida do mapa. Isso é
algo inadmissível, e apontamos, des-
POR WANIA SANT’ANNA E MARIA JOSÉ MENEZES* de já, que a proposta do atual governo
brasileiro de flexibilizar a posse e o
uso de armas de fogo certamente au-

Q
uando o joelho de um policial a população negra, jovens negros, rança Pública e pelo Instituto de Pes- mentará esses trágicos indicadores.
branco norte-americano sufo- moradores de nossas favelas, perife- quisa Econômica e Aplicada (Ipea), é Essas práticas de violação,
cou e matou George Floyd, rias e alagados. Não há entre eles categórico. Entre 2007 e 2017, mais de violência policial e racismo têm sido
muitos de nós por aqui pude- quem não tenha dezenas de histórias 420 mil pessoas negras – mulheres e denunciadas pelo movimento negro
mos sentir o peso daquele corpo so- como essas para contar e, muitas ve- homens – foram vítimas de homicí- brasileiro há décadas. A Coalizão
bre o pescoço e também os últimos zes, em protesto, grite: “Basta!”. Sim, dio sob incontestável violência poli- Negra por Direitos, unindo 117 orga-
suspiros deste, agora símbolo con- as comunidades reagem, as mães e cial, disputas entre gangues, mas so- nizações do movimento negro, tem
temporâneo eterno contra a brutali- os familiares gritam por justiça e não bretudo vítimas do comprovado essa luta como uma de suas prio-
dade racial e do combate ao racismo. são ouvidos. histórico de discriminação racial e ridades. No primeiro semestre de
No Brasil, conhecemos bem o sig- O Mapa da Violência 2019, elabo- racismo no país. Na década mencio- 2019, ela atuou incisivamente no
nificado da violência policial contra rado pelo Fórum Brasileiro de Segu- nada, a taxa de homicídios entre a Congresso Nacional contra o Pacote
Anticrime, defendido pelo então
© Linoca Souza

ministro da Justiça, Sérgio Moro, e


.

alimentado por intensa propaganda


governamental.
O projeto original, com conse-
quências profundas em processos ju-
rídicos de ordem penal, foi apresen-
tado sem debate amplo com a
sociedade. Em suas entrelinhas,
aprofundava o padrão de acoberta-
mento da responsabilidade legal das
forças de segurança pública nas
abordagens que, supostamente, de-
veriam zelar pelo princípio de prote-
ção da população. Indo mais além, o
pacote continha diversos aspectos
inconstitucionais e materializava os
compromissos de Jair Bolsonaro du-
rante a campanha eleitoral junto aos
seus eleitores. Ou seja, a imagem de
armas com as mãos atravessava a
porta do Congresso Nacional e queria
se impor como ordem absoluta.
A reação de rechaço por parte da
coalizão incluiu a mobilização de li-
deranças negras de todo o país em
posicionamento crítico ao pacote, a
elaboração de nota técnica específica
de contestação em vários parágrafos,
audiências com os presidentes da Câ-
mara, Rodrigo Maia, e do Senado,
Davi Alcolumbre.
Nesse episódio, vê-se com muita
transparência que, na ausência de po-
líticas sociais eficientes e eficazes pa-
ra o conjunto da população, em espe-
cial para a população negra, sobram
“políticas de segurança” truculentas,
que violam, sem pudor, os direitos hu-
manos das parcelas mais empobreci-
das da sociedade brasileira.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5

Para lembrar um episódio recente samos: “Não há democracia, cidada- das, à insegurança que se abate sobre atuamos em fóruns nacionais e inter-
de descaso com políticas sociais, a nia e justiça social sem compromisso suas famílias, à exaustão dos profis- nacionais. É por isso que acreditamos
Emenda Constitucional n. 95, chama- público de reconhecimento do movi- sionais da saúde – isso não é uma na organização global de negros e ne-
da PEC do Fim do Mundo, aprovada mento negro como sujeito político “gripezinha”, é uma pandemia que gras contra o racismo, o colonialis-
em 2017, congelou investimentos es- que congrega a defesa da cidadania marcará a história de nossa geração e mo, o neofascismo, o neonazismo, o
senciais para as áreas de educação e negra no país. Não há democracia das gerações futuras. neonacionalismo, a xenofobia e todas
saúde. Aprofundando a perversidade, sem enfrentar o racismo, a violência Hoje, 30 de junho de 2020, deve- as formas de discriminação e
a reforma trabalhista, também apro- policial e o sistema judiciário que en- mos ter e demonstrar respeito à me- intolerância.
vada em 2017, alterou mais de cem carcera desproporcionalmente a po- mória dos mais de 58 mil brasileiros e Esses princípios foram debatidos
pontos da Consolidação das Leis do pulação negra. Não há cidadania sem brasileiras vítimas fatais da Covid-19 e no 1º Seminário Internacional da
Trabalho (CLT), fragilizando ainda garantir a redistribuição de renda, responsabilizar o governo federal pelo Coalizão Negra por Direitos, realiza-
mais as relações de trabalho em um trabalho, saúde, terra, moradia, edu- descaso com essa tragédia humanitá- do em novembro de 2019, na cidade
país com histórico escravista. Todas cação, cultura, mobilidade, lazer e ria. E aqui não podemos esquecer que de São Paulo, com a presença de mais
as boas análises sobre essa específica participação da população negra em a população negra, os povos indígenas de cem organizações do movimento
reforma não deixam de mencionar espaços decisórios de poder. Não há e a parcela mais empobrecida do país negro de vinte estados brasileiros e li-
que as mudanças instituídas precari- democracia sem garantias constitu- são os mais atingidos. deranças negras da Colômbia, Azânia
zaram as relações de trabalho, des- cionais de titulação dos territórios Todos esses cenários são indícios (África do Sul), Equador, Reino Uni-
truíram a capacidade de negociação quilombolas e o respeito ao modo de transparentes de desigualdade social do, Togo e Estados Unidos, incluindo
dos sindicatos em sua missão de pro- vida das comunidades tradicionais, e desigualdade étnico-racial que exi- catorze representantes do movimen-
teger seus associados e têm como sem contaminação e degradação dos gem mudanças estruturais. As insti- to Black Lives Matter. Nesse momen-
consequência a ampliação da infor- recursos naturais necessários para a tuições e os partidos políticos não po- to, elaboramos a Carta Programa da
malidade no mercado de trabalho. reprodução física e cultural. Não há dem se dar ao luxo de reduzir nossa Coalizão Negra por Direitos, com ca-
Segundo o IBGE, em 2018, do total democracia sem o respeito e liberda- agenda por direitos a uma pauta iden- torze princípios e 25 reivindicações.
da população brasileira, as pessoas de religiosa. Não há justiça social sem titária. Segundo o IBGE, a sub-repre- Nela, mencionamos: “A História exige
negras constituíam a maior parte da que as necessidades e os interesses de sentação da população negra na Câ- da população negra brasileira e de to-
força de trabalho, correspondendo a 55,7% da população brasileira sejam mara dos Deputados, nas assembleias da a diáspora africana ações articula-
57,7 milhões de indivíduos – ou seja, plenamente atendidos”. legislativas estaduais e nas câmaras das para o enfrentamento ao racismo,
25,2% a mais do que a população de vereadores é um fato incontestável. ao genocídio e às desigualdades, in-
branca na força de trabalho, que tota- Apesar de ser a maioria da população, justiças e violências derivadas dessa
lizava 46,1 milhões. No entanto, en- Em 2018, apenas 27,7% esse grupo representa apenas 24,4% realidade. Esta Coalizão se reúne pa-
tre os 12 milhões de desempregados, das pessoas negras se dos deputados federais e 28,9% dos ra fazer incidência política em nosso
8 milhões eram negros. Também nes- deputados estaduais eleitos em 2018. próprio nome, a partir dos valores da
se ano, 41,5% dos brasileiros com 14
encontravam entre os Entre os vereadores eleitos em 2016, colaboração, ancestralidade, circula-
.

anos ou mais de idade encontravam- 10% com os maiores apenas 42,1% se autodeclararam ne- ridade, partilha do axé (força de vida
-se em ocupações informais. Entre os rendimentos no país gros. A sub-representação de gênero e herdada e transmitida), oralidade,
negros, a partir dessa faixa etária, a raça é ainda mais gritante. Em 2018, transparência, autocuidado, solida-
proporção era de 47,3% e, entre os as mulheres negras constituíram ape- riedade, coletivismo, memória, reco-
brancos, de 34,6%. Finalmente, as Essa reflexão crítica à sociedade nas 2,5% dos deputados federais e nhecimento e respeito às diferenças,
trabalhadoras domésticas sem car- brasileira é resultado de 132 anos de 4,8% dos deputados estaduais eleitos. horizontalidade e amor. Em defesa da
teira de trabalho assinada represen- uma abolição inconclusa e de um ra- Entre os vereadores eleitos em 2016, as vida, do bem viver e de direitos ar-
tavam um contingente de 4,2 milhões cismo estrutural sistemático. Trans- mulheres negras constituíam apenas duamente conquistados, irrenunciá-
de mulheres. Entre elas, 2,8 milhões formar essa realidade não é tarefa da 5% dos representantes. veis e inegociáveis, seguiremos hon-
eram negras e tinham rendimento população negra, é responsabilidade Sabemos que formar uma lideran- rando nossas e nossos ancestrais,
médio mensal de R$ 672. As desvan- da população branca e do conjunto ça partidária negra comprometida unificando em luta toda a população
tagens de participação da população das instituições brasileiras. não é uma tarefa fácil neste país. Por afrodiaspórica, por um futuro livre
negra no mercado de trabalho, se- Na atualidade, é bom lembrar que isso, Marielle Franco, mulher, negra, de racismo e de todas as opressões”.
gundo o IBGE, se mantêm, mesmo não nos bastam afirmações e posi- ativista dos direitos humanos, “cria Essa é uma construção ideológica
quando considerado o recorte por ní- cionamentos antirracistas, é preciso da Favela da Maré”, como gostava de que se apresenta ao país, e ao mundo,
vel de instrução. alterar relações de poder que, efetiva- se apresentar, foi e sempre será uma com a firme disposição de enfrentar
O quadro distributivo de renda é, mente, atendam aos interesses e às referência de luta para todos e todas as múltiplas formas de injustiça ra-
no viés desigualdade étnico-racial, necessidades da população negra, nós. Seu brutal assassinato e o de An- cial e racismo e fortalecer a autode-
semelhante às disparidades encon- das mulheres negras, dos homens ne- derson Pedro Gomes exigem respon- terminação de organização da popu-
tradas nas relações de trabalho. Em gros, da juventude negra, das pessoas sabilização. O Estado brasileiro não lação negra.
2018, apenas 27,7% das pessoas ne- faveladas, periféricas, LGBTQIA+, pode se manter omisso e acovardado Em nosso passado formamos qui-
gras se encontravam entre os 10% quilombolas, praticantes de religiões perante a execução de uma defensora lombos, forjamos revoltas, lutamos
com os maiores rendimentos no país. de matriz africana, negros de distin- dos direitos humanos. Para nós, o as- por liberdade, construímos a cultura
Por outro lado, entre os 10% com os tas confissões de fé, povos do campo, sassinato de Marielle representa o e a história deste país. Hoje lutamos
menores rendimentos, observou-se a das águas e da floresta. Enfim, é pre- quadro dramático e crescente de vio- por uma verdadeira democracia,
sobrerrepresentação da população ciso praticar justiça racial a esses su- lência e violação de direitos na socie- exercício de poder da maioria, e con-
negra, com 75,2% dos indivíduos nes- jeitos políticos para que o país tenha dade brasileira contra as populações clamamos aqueles e aquelas que se
se estrato. futuro sob a égide da democracia e negras e indígenas, a ruptura do pac- indignam com as injustiças de nosso
São esses motivos que levam a respeito integral aos direitos huma- to civilizatório e uma ameaça sem país a reconhecer e respeitar essa
Coalizão Negra por Direitos a dizer nos. Essa é a intencionalidade do ma- precedentes à democracia. história e construir um futuro a par-
em seu manifesto “Enquanto houver nifesto “Enquanto houver racismo, Sim, as organizações do movi- tir desse legado. 
racismo, não haverá democracia” não haverá democracia”. mento negro contemporâneo sempre
(https://comracismonaohademocra- Nossa convocação é também um estiveram comprometidas com o *Wania Sant’Anna é historiadora, vice-
cia.org.br/), lançado em 14 de junho apelo à humanidade, uma humani- aprimoramento da democracia no -presidente do Ibase e membra da Coalizão
de 2020, que “o Brasil é um país em dade que é negada aos corpos negros. Brasil. Uma das formas mais objeti- Negra por Direitos; Maria José Menezes
dívida com a população negra – dívi- E falar de humanidade em tempos de vas de expressar esse compromisso é bióloga, ativista feminista negra e mem-
das históricas e atuais”. Covid-19 nunca foi tão necessário e foi contestar o mito da democracia bra da Marcha das Mulheres Negras de
Nosso manifesto é um alerta à so- urgente. Não devemos ser insensíveis racial e se dedicar à organização polí- São Paulo, Mahin Mulheres Negras e Coa-
ciedade brasileira e, por isso, expres- aos sofrimentos das pessoas infecta- tica da população negra. É assim que lizão Negra por Direitos.
6 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

UM PROCESSO BRUTAL DE DESUMANIZAÇÃO DE PESSOAS NEGRAS

A pandemia e a pena
coronavírus pode ser maior fora do
sistema prisional do que dentro e que
não seria razoável a determinação, de

de morte nas prisões


forma monocrática, de imediata re-
moção para o regime domiciliar de
todos os presos que eventualmente
se encontrem no chamado “grupo de
risco”. O preso em questão encontra-
va-se na Penitenciária Compacta de
Com a pandemia, o quadro geral de precariedade, exclusão e adoecimento nas prisões Pracinha, que custodia 1.605 presos,
tornou-se ainda mais preocupante, não só pelo previsível efeito letal da doença em tendo sido projetada para receber no
máximo 844 internos.8
ambientes insalubres, mas também em razão das decisões governamentais e judiciais Mas por que os juízes decidem as-
que agudizaram o problema e ampliaram os riscos da crise sanitária em curso sim? Por que, apesar de todas as evi-
dências, eles continuam mandando
pessoas para cadeias superlotadas,
POR FELIPE DA SILVA FREITAS*
com grande risco de contaminação e
nas quais provavelmente vão morrer?

A
s prisões são o lugar onde as presos que não tivessem cometido estavam detidos em caráter preven- As respostas a essas perguntas
violências e desigualdades so- crimes com violência ou grave amea- tivo, ainda sem julgamento, por cau- passam, sem dúvida, pela constata-
ciais revelam sua mais brutal ça e a transferência de presos do gru- sa de crimes cometidos sem violên- ção do peso do racismo em nossas re-
expressão. No Brasil, trata-se po de risco para prisão domiciliar. cia, e que dos 783 soltos apenas 37 se lações sociais e do brutal processo de
de celas lotadas e sem ventilação, ins- Entretanto, a despeito dos esforços do encontravam condenados a regime desumanização a que pessoas negras
talações elétricas com remendos e Departamento de Monitoramento e fechado de prisão.5 estão submetidas em nossa socieda-
potencialmente perigosas, comida Fiscalização do CNJ e das manifesta- No mesmo sentido, um trabalho de. Na prática, as condutas do gover-
racionada e de péssima qualidade, ções de apoio à agenda de desencar- realizado por pesquisadoras do Insti- no federal e de parte da magistratura
muitas vezes estragada, água escassa ceramento para pessoas do grupo de tuto de Ensino e Pesquisa (Insper) e brasileira em relação à questão da Co-
para o banho, para a limpeza das ce- risco da Covid-19, a Recomendação n. pela Fundação Getulio Vargas (FGV) vid-19 nas prisões representam con-
las e mesmo para beber. 62 continuou sendo duramente criti- Direito de São Paulo constatou que, denações à pena de morte na vigência
Os relatos são assustadores e as cada pelo Ministério da Justiça e pelo das 6.781 decisões de habeas corpus do estado democrático de direito.
doenças são uma presença constante governo federal e foi acolhida apenas (entre 18 de março e 4 de maio de São escolhas políticas que cons-
nesse universo insalubre. De acordo parcialmente pelo Ministério Público 2020) que mencionaram a Covid-19, troem um itinerário de violência cujo
com dados do próprio Departamento e pela magistratura no Brasil. apenas 12% tiveram o pedido conce- desfecho letal é iminente e revela o
.

Penitenciário Nacional (Depen), ór- O ex-ministro Sérgio Moro dedi- dido,6 o que também corrobora a ten- peso do racismo no Brasil e sua força
gão do governo federal responsável cou-se pessoalmente a deslegitimar a dência já apontada no relatório pro- como esquema de anulação das pos-
pela gestão do sistema prisional, em orientação do Conselho e a conceder duzido pelo Conselho Nacional de sibilidades de vida e de acesso a direi-
dezembro de 2019 havia no sistema reiteradas entrevistas afirmando que Justiça, que afirma que 26,9% dos Tri- tos para as pessoas negras nos mais
penitenciário 748 mil pessoas priva- tudo estava sob controle no âmbito bunais de Justiça não apresentaram diferentes campos da vida social. 
das de liberdade no país. Nesse uni- do Departamento Penitenciário Na- alteração nas concessões de liberdade
verso, verificava-se um quadro de cional e que, portanto, não era neces- de réus presos em regime fechado.7 *Felipe da Silva Freitas  é doutor em Di-
170% de déficit de vagas, ou seja, uma sário que os juízes adotassem medi- reito pela Universidade de Brasília, pesqui-
realidade de absoluta superlotação.1 das que pusessem presos perigosos sador do Grupo de Pesquisa em Criminolo-
Os negros são a maioria nesse sis- em liberdade.4 Por que os juízes gia da Universidade Estadual de Feira de
tema e estão expostos a uma taxa de No âmbito do Poder Judiciário, continuam mandando Santana e integrante do projeto Infovírus
encarceramento 1,5 vez maior do que reiteraram-se decisões com indeferi- (www.instagram.com/infovirusprisoes).
a de um homem branco,2 o que con- mento de pedidos de habeas corpus
pessoas para cadeias
firma a seletividade da polícia nas coletivos e sucessivas diligências que superlotadas, com gran- 1   Departamento Penitenciário Nacional (De-
abordagens e prisões em flagrante e o impediam a soltura de presos inte- de risco de contamina- pen), Relatório Sintético – Sistema de Infor-
mações do Departamento Penitenciário Na-
viés discriminatório nas decisões dos grantes do grupo de risco. De modo ção e nas quais provavel- cional, Brasília, 2019.
juízes, que reproduzem tanto este- ilegal, juízes recusaram-se a conce-
reótipos racializados quanto uma der pedidos de liberdade com o argu-
mente vão morrer? 2   M apa do Encarceramento: Jovens do Brasil,
Brasília, SNJ, 2015.
média maior de condenação para mento genérico de que se tratava de 3   Sérgio Adorno, “Discriminação racial e justiça
criminal em São Paulo”, Novos Estados, n.43,
mulheres e homens negros.3 presos perigosos ou que haveria nas Os argumentos adotados para ne- 1995; e Marcelo Paixão, Relatório Anual das
Com a pandemia, esse quadro ge- prisões condições para a prevenção e gar os pedidos de liberdade revelam Desigualdades Raciais no Brasil, Rio de Ja-
ral de precariedade, exclusão e adoe- o tratamento adequado ao coronaví- total desapreço pela obrigação esta- neiro, Garamond, 2008.
4   Sérgio Moro e Fabiano Bourguion, “Prisões,
cimento tornou-se ainda mais preo- rus. Os juízes brasileiros optaram por tal de zelar pela vida e pela integrida- coronavírus e solturavírus”, Estadão, 30 mar.
cupante, não só pelo previsível efeito contrariar as evidências médicas, a de daqueles que se encontram sob 2020.
letal da doença em ambientes insalu- recomendação do CNJ e os apelos e sua custódia (ou seja, sob total e ab- 5   Ricardo Balthazar, “Juízes tratam presos com
rigor ao analisar pedidos de soltura na pande-
bres, mas também em razão das deci- alertas de organizações de direitos soluta responsabilidade do próprio mia”, Folha de S.Paulo, 7 jun. 2020.
sões governamentais e judiciais que humanos, dos próprios presos e de Estado). Algumas sentenças circula- 6   A pesquisa foi coordenada por Maíra Macha-
agudizaram o problema e ampliaram seus familiares, e não concederam a ram na mídia e nas redes sociais co- do e Natália Pires e os resultados finais ainda
não foram publicados. Essas informações fo-
os riscos da crise sanitária em curso. maioria dos pedidos formulados por mo maus exemplos em termos de ram obtidas pela apresentação realizada no
Como forma de propor medidas integrantes das defensorias públicas fundamentação constitucional e de webinar “Covid-19 nas prisões”, promovido
que contivessem a propagação do ví- e pelos advogados particulares. respeito a valores éticos e a princípios pelo Insper em 11 de junho de 2020. Ver: ht-
tps://www.insper.edu.br/agenda-de-eventos/
rus nas prisões, o Conselho Nacional Em pesquisa realizada entre de direitos humanos. covid-19-nas-prisoes-decisoes-do-tjsp-em-
de Justiça (CNJ) editou a Recomenda- março e maio de 2020 pela Defenso- Um dos episódios mais trágicos -habeas-corpus/.
ção n. 62, que exortou os juízes a ado- ria Pública do Estado de São Paulo, foi o do juiz Camilo Léllis, da 4ª Câ- 7   M onitoramento CNJ, Covid-19 Efeitos da Re-
comendação n. 62/2020. Disponível em: ht-
tar medidas para a reavaliação das verificou-se que, desde a edição da mara de Direito Criminal do Tribunal tps : //w w w.cnj.jus.br/wp-content /
prisões provisórias, a contenção de Recomendação n. 62, houve um au- de Justiça do Estado de São Paulo, uploads/2020/06/Monitoramento-CNJ-Covi-
novas ordens de prisão preventiva, a mento dos habeas corpus concedi- que decidiu não alterar o regime da d-19-Abril.20.pdf.
8   Caio Spechoto, “Juiz diz que risco de pegar
concessão de saída antecipada dos dos; porém, o estudo apurou tam- pena de um preso para o aberto, afir- Covid-19 pode ser maior fora do que dentro
regimes fechado e semiaberto para bém que 67% dos presos soltos mando que o risco de contágio pelo da cadeia”, Poder 360, 13 jun. 2020.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7

GENOCÍDIO

“O racismo é uma
duz e legitima a marginalização de todas as existências são sujeitas a po-
sujeitos, privando-os, inclusive, do líticas de direitos, se autorrepresen-
direito à autorrepresentação. tam e se autoenunciam. Sendo o dis-
curso e a linguagem espaços de

realidade violenta”
Variadas são as dimensões dessa
realidade violenta. Para denunciar o disputa e existência, ao lançarem
discurso corrente e fantasioso de que mão da formulação sobre “lugar de
o Brasil vivia uma democracia racial, fala”, os sujeitos negros estão colo-
ainda presente no senso comum, o cando que suas experiências enquan-
intelectual brasileiro Abdias do Nas- to grupo constituem também o espa-
A dinâmica brutal da violência comprova a afirmativa cimento confrontou, em 1977, duran- ço de humanidade e dignidade e
de Grada Kilomba: o racismo é uma realidade violenta. te seminário na Nigéria, uma série de buscando desmantelar a ideia de que
problemáticas da sociedade brasilei- apenas a branquitude tem legitimi-
Uma violência que se acelera e se aprofunda em política ra que comprovavam que, bem dis- dade social. Ao perguntarmos se o
de morte expressa e executada pelo Estado, incentivada tante de harmoniosa, a convivência subalterno pode falar e ao afirmar-
por grupos hegemônicos e atiçada por supremacistas era baseada em violências de toda or- mos que todos os grupos são raciali-
dem e processos de destituição cul- zados em uma sociedade racista, es-
brancos, enraizada de tal modo na sociedade que tural, invisibilidade da contribuição tamos caminhando para uma
se tornou naturalizada intelectual e marginalização política possibilidade de transgressão deco-
e econômica da população negra. lonial e de possível desintegração de
A constatação do genocídio foi hierarquias. Assim, quando a intelec-
POR JULIANA BORGES*
pensada e realizada não apenas tualidade negra afirma o lugar de fa-
como estratégia política para cha- la, não silencia, mas apresenta que

A
o escrever sobre racismo e vio- uma série de mecanismos dispostos mar atenção para o racismo brasilei- todos têm perspectivas válidas no to-
lência no Brasil, sempre tenho a garantir a manutenção de desigual- ro, mas baseada nos processos vio- do social. Estamos falando de cons-
algumas dificuldades em ini- dades baseadas em hierarquias ra- lentos que envolvem todas as truções radicalmente democráticas
ciar o texto. Não porque a reali- ciais e os privilégios do grupo bran- dimensões da vida do negro no Bra- do espaço político.
dade brasileira não seja vasta em co. Assim, quando alguém fala de sil. O genocídio perpassa desde a Essas perspectivas são funda-
ambas as temáticas, mas pela impos- racismo reverso, é inevitável o ques- conceituação sobre medidas siste- mentais se queremos enfrentar o “ra-
sibilidade que vejo em separá-las tionamento – e minha afirmação da máticas e intencionais para causar cismo como realidade violenta” no
quando pensamos o país em que vi- inexistência de tal fenômeno –, tendo morte de grupos raciais até a recusa Brasil. Infelizmente, é inevitável falar
vemos. Em Memórias da plantação: em vista que os grupos subalterniza- constante de sua existência e a des- de números para lidar com o genocí-
episódios do racismo cotidiano, a es- dos não podem performar o racismo, truição política, social e cultural de dio da população negra brasileira.
critora e multiartista Grada Kilomba já que não detêm poder; o que se po- grupos raciais. Assim, retomo a pro- Segundo dados do Atlas da Violência,
.

inicia uma de suas discussões sobre de dizer é de uma prática preconcei- dução de Grada Kilomba, quando ela produzido pelo Instituto de Política
as principais conceituações do racis- tuosa individual, mas que não se estabelece a relação entre a máscara Econômica Aplicada e pelo Fórum
mo afirmando que “O racismo é uma constitui como prática discriminató- de ferro, usada tanto para prender e Brasileiro de Segurança Pública, e di-
realidade violenta”. A expressão não ria, que impossibilita que um grupo tapar a boca de escravizados fisica- vulgado em 2018, somos um dos paí-
é por acaso, porque explicita o quão ascenda e conviva em patamares mente quanto como arma política ses mais violentos do mundo, seja pa-
amalgamados estão racismo e vio- igualitários e equânimes na socieda- do processo colonial para destituir o ra homens, seja para mulheres,
lência. Não há como falar de um sem de. O racismo, então, engloba mani- sujeito de uma ação ativa de existên- principalmente se forem negros.
falar de outro no Brasil. festações de ordem estrutural (das cia ao lhe impor silenciamento. Mais de 75% dos mais de 65 mil ho-
A violência e o racismo são, por- estruturas sociais e políticas), insti- Ora, ainda hoje vivenciamos in- micídios foram de jovens homens ne-
tanto, “emaranhados”, para utilizar- tucional (transcendendo o viés ideo- tensos debates quando grupos subal- gros. A taxa de homicídio a cada 100
mos uma expressão da historiadora e lógico, sendo institucionalizado pe- ternizados reivindicam seus “lugares mil entre jovens negros é de 43,1, ao
intelectual brasileira Beatriz Nasci- los sistemas de justiça criminal e pelo de fala”, que nada têm a ver com si- passo que entre jovens não negros é
mento, manifestos de modo explícito mercado de trabalho, por exemplo) e lenciamento, como desonestamente de 16. Ou seja, tivemos cerca de um
ou em diversas sutilezas. A violência, cotidiana (manifesto em discurso, tentam apregoar, mas com a valida- jovem negro assassinado a cada 23
por sua vez, entre os vários debates comportamento, na construção de ção social e o reconhecimento de que minutos no Brasil em 2017.
para sua conceituação, pode ser com- um “outro” perigoso e expondo sujei- todas as perspectivas constituem o As dinâmicas do genocídio brasi-
preendida como um fenômeno mul- tos cotidianamente). O racismo pro- debate público e, consequentemente, leiro também avançam sobre as mu-
tidimensional, fundacional do país, lheres negras. A taxa de homicídio de
que perpassa as dimensões físicas, mulheres negras é de 5,3 a cada 100
morais, psíquicas e simbólicas, em mil, enquanto a taxa de não negras é
práticas discriminatórias variadas, de 3,1 – uma diferença de 71%. Em dez
além de estar enraizada como meio e anos, as taxas de homicídio de mulhe-
como linguagem. A violência tam- res não negras diminuiu 8%, ao passo
bém tem sido fundamento das práti- que entre mulheres negras aumentou
cas e relações sociais, bem como fer- 15%. A maioria dessas mulheres foi
ramenta do Estado de forma regular e assassinada depois de passar por ou-
constante, sendo essa forma a única tros processos de violência psicológi-
presença estatal em muitos dos terri- ca, patrimonial, sexual ou física, e
tórios no país. grande parte estava em casa no mo-
O racismo, por sua vez, e faço uso mento do feminicídio (40%). A maio-
da conceituação de Grada Kilomba, é ria delas foi vitimada por arma de fo-
a construção da diferença de forma go (mais de 50%). Além disso, somos o
hierárquica, ou seja, como desigual- país que mais mata travestis e transe-
dade. Um sistema de dominação que xuais no mundo. Segundo relatório da
se baseia em valores hierárquicos e Associação Nacional de Travestis e
em poder, sendo este último históri- Transexuais (Antra), 98% das vítimas
co, político, econômico, social e cul- eram trans de gênero feminino, sendo
tural. Ou seja, o “racismo é suprema- 80% negras, e 43% foram assassina-
cia branca”, porque constituído de das com uso de armas de fogo.
© Moisés Patricio
8 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

A SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA

Como dito, o racismo é uma es-


trutura complexa que afeta todas as
esferas da sociedade. Sendo assim,
brar ações e respostas efetivas diante
dessa violência é aviltante. E uma das
explicações apontadas por especia- “Falando da
perda: hoje estou
temos percebido também um au- listas está pautada em um cenário
mento de jovens negros que se suici- político de acirramento e radicaliza-
dam. Ou seja, a cada dez jovens que ção do discurso de morte por parte de
se suicidam no país, seis são negros. governantes. Ou seja, a sensação de

mal, espero que


E essa dimensão, que reflete intenso impunidade e respaldo diante das
sofrimento psíquico, também tem violências cometidas.
sido uma face que evidencia a vio- A quem tem interessado a guerra
lência no país entre policiais. Se- às drogas, que vitima jovens negros e

você entenda”
gundo o Fórum Brasileiro de Segu- homens policiais e civis todos os
rança Pública, o número de policiais dias? A quem têm interessado as di-
que se suicidaram superou o núme- nâmicas violentas que apresentam
ro de policiais mortos em confronto. taxas alarmantes e seguem focadas
A taxa de suicídio entre policiais é em um grupo sociorracial da socie-
de 23,9 para cada 100 mil, quando dade? A dinâmica brutal da violência POR JEANE SASKYA CAMPOS TAVARES*
essa taxa na população é de 5,8. A comprova a afirmativa de Grada Ki-
maioria esmagadora homens lomba, que repito: o racismo é uma
(96,9%), entre 30 e 39 anos (35,3%) e realidade violenta. Uma violência

E
negros(51,7%). que se acelera e se aprofunda em po- sse é o título de um artigo da es- ou mortos nas bancadas dos cursos
Diferentemente do que muitos, a lítica de morte expressa e executada critora, cineasta e jornalista do campo da saúde, são identificados
princípio, acreditavam, a pandemia pelo Estado brasileiro, incentivada norte-americana Bridgett M. como “peças”. Rompimento de vín-
não produz violências e desigualda- por grupos hegemônicos e atiçada Davis, publicado originalmente culos impostos pelas migrações em
des, muito menos racismo. Mas por supremacistas brancos, enraiza- em 1994. Um relato íntimo sobre as busca de trabalho ou pelo encarcera-
evidencia, explicita essas questões da de tal modo na sociedade brasilei- múltiplas perdas que envolvem a ex- mento sistemático em prisões e
que tanto protelamos em enfrentar. ra que se tornou naturalizada, periência de ser negro numa socieda- manicômios.
Em um primeiro momento, com a infelizmente. de racista. A hiperexposição à morte, A vulnerabilidade da saúde e a
maior atuação das medidas de isola- Uma das questões principais a a impossibilidade de viver plenamen- morte da população negra são gera-
mento, houve redução de operações serem enfrentadas é a quebra de si- te os processos de luto e a gravidade das por decisões políticas, a exemplo
policiais em favelas no Rio de Janei- lêncio. Em um cenário desolador, dos efeitos do racismo sobre nossa da Emenda Constitucional n. 95/2016,
ro. Com isso, a Rede de Observató- pode tornar-se cansativo fazê-lo. saúde nos unem a essa autora, a des- que produz o desfinanciamento do
rios apresentou uma redução de 60% Mas é preciso falar. Se uma das fer- peito do distanciamento temporal e SUS, do qual 80% dessa população
.

das mortes nas comunidades cario- ramentas do racismo é o silêncio, social. Tomaremos o texto de Davis depende exclusivamente. Por falta de
cas. Contudo, por pouco tempo. uma prática antirracista é o grito. A como condutor, mas nosso foco será apoio efetivo para o autocuidado, es-
Nem a pandemia foi capaz de parar busca de uma linguagem que desna- a saúde da população negra brasilei- sa população desenvolve diabetes
a face violenta do Estado, seja pelo turalize essas dinâmicas é funda- ra, com especial atenção para o au- melito (mulheres negras 50% mais
descaso enfrentado em ações emer- mental, a quebra da lógica de meca- mento do número de mortes e o re- que brancas), tuberculose (57,5% dos
genciais econômicas e hospitalares, nismos de defesa pautados em crudescimento da violência do casos), hipertensão essencial primá-
seja pela retomada de ações poli- negação, recusa e culpa e que se con- Estado no contexto da pandemia de ria (27% mais entre pretos que entre
ciais. Com isso, tivemos o caso solidem como reconhecimento e Covid-19 como agravantes do sofri- brancos). Essas mesmas pessoas
emblemático do adolescente João ação cotidiana em todos os âmbitos. mento gerado pelo racismo. adoecidas não conseguem cumprir o
Pedro, assassinado dentro de casa, E a busca incessante do desmantela- isolamento social e protocolos de hi-
com um tiro nas costas, em opera- mento dessas estruturas. A violência GENOCÍDIO E O LUTO gienização para a prevenção da Co-
ção violenta da polícia. é um termo que aniquila o outro – NÃO AUTORIZADO vid-19, pois a maioria da população
Apesar da diminuição de crimes portanto, uma negação do exercício se encontra: encarcerada (61,7%), em
como furto/roubo e maiores dificul- do diálogo e da política. Assim, acre- “Na verdade, nunca me permiti situação de rua (67%), em trabalho
dades ao tráfico por causa do fecha- dito que insistir na via da mediação viver meu luto, passar pela perda e informal (47,3%) ou executando ser-
mento das fronteiras, evidenciando pela linguagem, pelo discurso, pela ultrapassá-la. Até que a perda me viços de baixa remuneração (75% dos
uma mudança na dinâmica da vio- escuta (ativa), do exercício político, engoliu [...]” (Davis, 2006, p.104) que têm o rendimento mais baixo) e
lência, a violência policial não acom- da esfera da fala e da existência de vivendo sem abastecimento de água
panhou a redução da criminalidade. todas as perspectivas é fundamen- As mortes físicas e simbólicas, a por rede geral (17,9%, contra 11,5% da
O que os dados têm apontado é o tal. Ademais, essa ação, que é pri- humilhação, o medo e o ódio têm fei- população branca). A exposição con-
crescimento dos homicídios, o forta- meiro passo, deve pautar a demanda to parte da experiência de ser negro tinuada e os quadros clínicos prévios
lecimento das milícias e o aumento por políticas públicas de moradia, no Brasil desde o início do processo elevam o risco de contaminação e
da violência policial. Em abril, o nú- educação, saúde (fortalecimento do de mercantilização e extermínio de morte por Covid-19 (54,8% dos que
mero de mortos pela polícia em su- SUS), cultura, lazer e muitas outras sequestrados africanos e seus des- morreram nos hospitais) ou síndro-
postos confrontos subiu 8%. No esta- dimensões. E, por fim, que enfrente- cendentes, que chamamos de escra- me respiratória aguda (risco 2,5 vezes
do do Rio de Janeiro, houve aumento mos, acatemos e construamos reco- vidão. Do colonialismo à colonialida- maior que entre brancos).
de 13% nas mortes por intervenção nhecimento e processos reparató- de, são quatro séculos de mortes Também são questões de política
policial em relação ao mesmo mês rios que repactuem as dignidades e violentas, anônimas, espetaculariza- de saúde, agravada durante a pande-
em 2019. Em São Paulo, a polícia ma- as humanidades.  das, por tortura, fome, exaustão e ne- mia, as altíssimas taxas e a desigual-
tou mais no mês de abril desde o iní- gligência. Séculos de trabalho exces- dade racial nos indicadores de vio-
cio da divulgação dos dados de letali- *Juliana Borges é escritora e pesquisa- sivo e extenuante nas plantações, nas lência letal no Brasil, sobretudo por
dade policial, em 2001! As mortes por dora de Política Criminal. Autora de Encar- minas, nas construções, na limpeza armas de fogo. Pessoas negras são as
supostos confrontos tiveram aumen- ceramento em massa (col. Feminismos das cidades, nos serviços domésticos. principais vítimas de homicídio
to de 43,6% em abril, em relação a Plurais, Selo Sueli Carneiro/Pólen Livros). Um esforço brutal pela sobrevivência (75,5%). Uma juventude perdida por
março de 2020. Foram 373 pessoas É conselheira da Iniciativa Negra por uma em troca de nada ou de muito pouco, assassinato e suicídio, principalmen-
assassinadas pela polícia paulista Nova Política sobre Drogas e consultora do que não enriquece nem deixa heran- te para homens negros, que têm
nos quatro primeiros meses de 2020, Núcleo de Enfrentamento, Monitoramento ça. Séculos de separações forçadas maior risco de cometer suicídio
sendo 320 em supostos confrontos. A e Memória de Combate à Violência da entre familiares pela venda dos cor- quando adolescentes (67%) e jovens
falta de ação das ouvidorias em co- OAB-SP. pos negros que, vivos na escravidão (34%) que brancos.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9

© DAPENHA
Em meio a esse processo conti-
nuado de negação de direitos, perdas
e mortes, que Abdias Nascimento no-
meia como genocídio do negro brasi-
leiro, desenvolvemos nossas subjeti-
vidades (brancos e negros). Do ponto
de vista da população negra, embora
sejamos múltiplos e tenhamos dife-
rentes experiências ao longo da vida,
as repercussões do racismo produ-
zem intenso sofrimento. Para nós, a
crise gerada pela pandemia se somou
às crises anteriores, que tornaram o
Brasil o país com maior número de
casos registrados de ansiedade, sen-
do a população negra a mais frequen-
temente diagnosticada com transtor-
nos mentais. Apesar disso, temos
menos acesso ao cuidado longitudi-
nal na rede pública e quase nenhum
acesso aos serviços privados, majori-
tariamente ocupados por profissio-
nais brancos, reprodutores de sua
branquitude, o que contribui para a
patologização dos sujeitos e reafirma
o racismo institucional.
Num contexto hostil, numa so-
ciedade que minimiza ou não reco-
nhece o sofrimento gerado pelo ra-
cismo, aprendemos quanto vale a
nossa vida. Fazemos constantemen-
te o cálculo, nem sempre racional,
das (im)possibilidades e do risco da
.

morte física pela Covid-19, pela polí-


cia, pelo tráfico, pelo parceiro ínti-
mo, por suicídio, pela miséria. Esse
cálculo, mediado pelo cruzamento
de vários fatores – gênero, idade, reli-
gião, classe social, escolaridade, Acrescento que, na dimensão co- nos impedem de aprender a viver o por fim, investir num futuro em que
identidade de gênero, entre outros –, letiva, a dessensibilização para a luto coletivo e nos roubam o tempo as próximas gerações rompam defi-
vai definir as reações emocionais e morte tem importante função de ma- necessário para vivermos os lutos in- nitivamente com o racismo e a colo-
comportamentais possíveis diante nutenção do racismo estrutural. A dividuais. Com as repetidas expe- nialidade. Sankofa! 
do aumento do número de ações po- naturalização da violência promovi- riências de desamparo em meio à
liciais durante a pandemia e das no- da pela humilhação dos sujeitos e pe- violência racial, aprendemos a não *Jeane Saskya Campos Tavares  é psicó-
tícias diárias de assassinatos de la exposição continuada dos cadáve- pedir ajuda e a não esperar apoio. Re- loga, doutora em Saúde Pública (Instituto de
crianças e adolescentes em territó- res negros em programas de TV, a sistimos, sobrevivemos, avançamos, Saúde Coletiva da UFBA) e docente da Uni-
rios onde o Estado gerencia a barbá- culpabilização e o estigma que so- temos momentos de felicidade, mas versidade Federal do Recôncavo da Bahia.
rie. Essa intersecção orienta, ainda, frem os familiares das pessoas assas- não estamos bem.
Referências bibliográficas
como interpretamos os números de sinadas por agentes de segurança ou Penso que tempo e aquilomba-
milhares de mortos pela Covid-19 e o mortos por Covid-19 são marcas da mento são decisivos para o resgate de Bridgett M. Davis, “Falando da perda: hoje estou
desprezo abertamente declarado de imposição social de não se viver o lu- nossa saúde mental em relação aos mal, espero que você entenda”. In: Jurema M.
Werneck; Maisa Mendonça e Evelyn White
políticos e empresários pela vida dos to. “Eles” são os não humanos para processos de luto. O racismo altera
(orgs.), O livro da saúde das mulheres negras.
mais vulneráveis. quem os direitos não se aplicam e o radicalmente nossa percepção sobre Nossos passos vêm de longe, Rio de Janeiro, Pal-
O relato de Davis ilustra como o luto não é socialmente autorizado. o tempo. Além de vivermos menos, las/Criola, 2006.
IBGE, Desigualdades sociais por cor ou raça no
excesso de experiências de morte se estamos presos a um eterno e perigo-
Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 2019.
relaciona com a evitação em entrar ENTRE COVAS RASAS E MEMORIAIS so presente colonial. O genocídio Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum
em luto ou de manifestá-lo aberta- apaga corpos negros, mas também Brasileiro de Segurança Pública, Atlas da violência
2019, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
mente. Há uma urgência em tornar- “Mas sei que com certeza tenho memórias da resistência, da cultura,
Jenny Rose Smolen e Edna Maria de Araújo,
-se insensível, pois o curto intervalo uma missão, essa missão consiste em da religião, da identidade, das contri- “Raça/cor da pele e transtornos mentais no Bra-
entre as mortes não permite a recu- me fazer ouvir e em imortalizar aque- buições para o desenvolvimento do sil: uma revisão sistemática”, Ciência & Saúde Co-
letiva , v.22, n.12, p.4021-4030, 2017.
peração plena. É necessário manter- les que se foram e que tanto amei” Brasil. Simultaneamente, produz a
Marizete Gouveia Damasceno e Valeska M. Loyola
-se firme, forte e vivo, ainda que isso (Davis, 2006, p.110) desesperança e nos faz desistir de Zanello, “Saúde mental e racismo contra negros:
implique não desfrutar plenamente planejar o futuro. produção bibliográfica brasileira dos últimos quin-
ze anos”, Psicologia: Ciência e Profissão, v.38,
de momentos de felicidade, nos quais Do Cais do Valongo na escravidão Em meio à matança, enquanto
n.3, p.450-464, 2018.
as mortes não elaboradas lembram ao Cemitério da Vila Formosa na Co- não alcançamos as mudanças estru- Ministério da Saúde, Política Nacional de Saúde
que não deveríamos estar felizes. Pa- vid-19, passando pelo “Cemitério da turais necessárias, precisamos nos Integral da População Negra: uma política para o
SUS, Brasília, 2017.
ra pessoas negras, a entrega emocio- Paz” do Hospital Colônia de Barbace- apoiar e insistir coletivamente em
Ministério da Saúde, Óbitos por suicídio entre
nal pode não ser uma opção, pois na, este é um país que se ergueu e se olhar para o passado e entender co- adolescentes e jovens negros 2012 a 2016, Uni-
tanto é preciso retornar às atividades mantém sobre covas rasas e valas co- mo nossos ancestrais nos trouxeram versidade de Brasília, 2018.
OMS, Depression and Other Common Mental Di-
de sobrevivência quanto se vive o letivas onde corpos negros são des- até aqui. Precisamos chorar nossos
sorders [Depressão e outros transtornos mentais
medo da perda de controle e, por fim, cartados. O desprezo e o desvalor da mortos e cumprir os lutos, construir comuns], Global Health Estimates, Genebra,
de enlouquecer. vida negra no Brasil nos fazem sofrer, memoriais, marcar a sua existência e, 2017.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

DESIGUALDADES SE REPRODUZEM DO ACESSO À REPRESENTATIVIDADE

Comunicação e racismo estrutural


A pandemia e as manifestações antirracistas trouxeram de volta a pauta do movimento negro para a crista do debate
público. No Brasil, quando falamos de direito à comunicação e racismo, procuramos em geral travar um debate sobre
representatividade na mídia, mas nos esquecemos, muitas vezes, de abordar questões relativas ao acesso

POR ANA CLAUDIA MIELKE*

S
abemos que, no Brasil, a popu- revela disparidades no acesso às TI- emergencial. A política não apenas um dado da casualidade, e não uma
lação negra “teve o pior ponto Cs e à internet no Brasil. Entre os in- desconsiderou as desigualdades de permanência histórica.
de partida para a integração ao dicadores individuais, um dado que acesso às TICs como também o fato Por aqui, aconteceram inúmeros
regime social que se formou ao chama atenção é o que mostra que o de que nem todos têm as habilidades atos contra a morte de pessoas ne-
longo da desagregação da ordem so- uso de computadores é maior entre necessárias para usá-las.2 gras, entre os quais a manifestação
cial escravocrata”1 e que essa integra- brancos (49%) e amarelos (48%) e “Vidas Negras Importam”, no dia 7 de
ção, absolutamente marginalizante, significativamente menor entre par- RACISMO ESTRUTURAL NA TV junho, no Rio de Janeiro, contra a
estruturou a própria organização ca- dos (38%), pretos (34%) e indígenas A pouca representação dos negros na morte de João Pedro, adolescente de
pitalista, produzindo desigualdades (24%). Por oposição, são os pardos, mídia – ou melhor, a dificuldade em 14 anos baleado e morto pela PM den-
socioeconômicas que se sobrepuse- pretos e indígenas que acessam a re- produzir uma representação positiva tro de casa. Nas semanas seguintes,
ram às diferenças de raça (conceito de exclusivamente por aparelhos ce- dessa parte da população – ainda ge- outros protestos ganharam as ruas,
aqui operacionalizado do ponto de lulares, com índices de 61%, 65% e ra debates acalorados, quase sempre entre os quais os ocorridos na zona
vista sociológico). 75%, respectivamente. marcados pela necessária reivindica- sul de São Paulo, por conta do assas-
O racismo estrutural resultou em Os dados revelam a ineficiência e ção de mais espaço. E aqui vale lem- sinato do adolescente Guilherme Sil-
desigualdades que também afetam o a descontinuidade das políticas de brar que meios de comunicação, em va Guedes, de 15 anos.
acesso à informação e à livre expres- universalização do acesso à banda especial os eletrônicos de massa, ain- Nesses casos, não houve debate
são no Brasil. Se por um lado o con- larga no Brasil – inexistentes no go- da são um campo significativo de sobre a formação da sociedade brasi-
trole dos meios é absolutamente mar- verno atual. Essa ausência de política disputa de imaginários e representa- leira, sobre o processo de integração
cado pela ausência de negros em seus pública impõe desigualdades na qua- ções sociais. do negro na sociedade de classes,
.

quadros dirigentes ou societários, co- lidade do acesso, que acaba se limi- No mais recente episódio sobre tampouco sobre como isso reverbera
mo revela a pesquisa Media Owner- tando à telefonia móvel, com pacotes representatividade na mídia, a Glo- nos dias atuais como racismo insti-
ship Monitor Brazil – MOM 2017, por de dados precários que, em geral, não boNews se viu obrigada a montar tucional da PM. Na cobertura sobre a
outro o acesso às novas tecnologias permitem desfrutar de toda a poten- uma bancada de jornalistas e comen- execução de Guilherme, os jornais
de informação e comunicação (TICs) cialidade da conexão em rede. Mos- taristas negros (seis no total) para chegaram ao disparate de colocar
e à internet está longe de promover o tram ainda que, por consequência, os analisar as manifestações antirracis- em suas manchetes e GCs frases que
direito à comunicação a essa camada usuários são domesticados a usar as tas nos Estados Unidos e no Brasil. enfocavam os ônibus queimados e as
da população. aplicações e os recursos disponibili- Foi um dia histórico aquele 3 de ju- vias interditadas pela comunidade
Recentemente, vimos eclodir nos zados pelas operadoras, o que difi- nho de 2020. Ainda assim, só possível local, como se o transtorno causado
Estados Unidos os maiores protestos culta a formação de novas habilida- de ser concretizado depois que a pela queima dos ônibus fosse mais
antirracistas desde o assassinato de des no uso das tecnologias e limita o emissora sofreu críticas nas redes por relevante do que a morte do
Martin Luther King, em 1968. No Bra- universo de informações acessadas. ter, no dia anterior, elegido um con- adolescente.
sil, as maiores mobilizações se deram A questão que muitas vezes esca- junto de jornalistas brancos para tra- A cobertura das manifestações
no ambiente digital, pela internet. pa pela tangente é que esses dados tar da mesma temática. antirracistas ocorridas nos Estados
Em meio à crise sanitária, poucos se também revelam como nossa socie- De modo geral, a cobertura das Unidos mobilizou discursos que re-
sentiram seguros para ocupar as ruas dade se edificou sobre o racismo es- manifestações contra o assassinato velam o modo insidioso como o ra-
em protestos. A hashtag #BlackLives- trutural e como isso segue reprodu- de George Floyd provocou reflexões e cismo estrutural opera no Brasil, re-
Matter ganhou o mundo, inclusive no zindo desigualdades de acesso a reações por aqui. Algumas emissoras fletindo uma dificuldade dos veículos
Brasil, com a tradução #VidasNegras- direitos de toda ordem às populações enfatizaram que eram protestos con- em dialogar sobre o racismo como al-
Importam. negras. Basta olhar para as filas que tra “a morte de um homem negro por go que estrutura as relações sociais e,
O potencial de gerar engajamento se formaram em frente às agências da um policial branco”. As palavras “ra- portanto, modela as ações da socie-
em questões que antes eram silencia- Caixa Econômica Federal, em meio cismo” e “racistas” apareceram a to- dade. Sob a égide do mito da demo-
das ou apresentadas apenas sob a óp- ao isolamento social, para se dar con- do momento, dando destaque às ten- cracia racial, essa desfaçatez em tra-
tica daqueles que detêm o monopólio ta de que o direito à comunicação, sões raciais que ocorrem nos Estados tar de tais temas acaba por corroborar
da informação é uma das principais como meio para acessar outros direi- Unidos desde o período de segrega- o cenário de violência constante que
qualidades da rede. Apesar disso, é tos, não estava sendo garantido. Em ção. Questões relacionadas à história vivemos por aqui, na medida em que
preciso observar que nem sempre a notícias na TV e nos jornais era possí- norte-americana, à formação da co- não revela as estruturas do racismo
eclosão de pautas no ambiente digi- vel perceber que a ida às ruas, quase munidade negra e ao período das Jim que o edificam. 
tal representa a participação efetiva sempre, estava associada a uma com- Crow laws eram pano de fundo para
da sociedade nos debates da opinião pleta falta de informação sobre o ca- contextualizar a ação dos que *Ana Claudia Mielke  é jornalista, secretá-
pública. O Brasil é um país continen- lendário dos pagamentos ou sobre a protestavam. ria-geral do FNDC e professora convidada
tal, ainda muito marcado pelas desi- forma de solicitar o auxílio Contudo, não se viu a mesma dis- na FESPSP.
gualdades de direitos, entre elas a de emergencial. posição em tratar as tensões raciais
acesso à informação. Da mesma forma, a não garantia que estão na raiz das execuções de jo-  lorestan Fernandes, A integração do negro
1   F
na sociedade de classes, Dominus, São Pau-
A pesquisa TIC Domicílios de da internet como essencial para o de- vens negros por PMs no território lo, 1965, v.1, p.XI.
2020 – realizada anualmente pelo senvolvimento da cidadania impediu brasileiro. Na cobertura nacional há 2   
Alguns municípios ofereceram profissionais
Núcleo de Informação e Coordena- que milhares de pessoas pudessem sempre uma tentativa de desvincular para auxiliar, de casa em casa, cidadãos sem
smartphone ou que não sabiam usar o aplica-
ção do Ponto BR – traz, pela primeira baixar e utilizar de forma adequada o a execução de negros do racismo es- tivo. Mas, em geral, essa ajuda ficou por conta
vez, dados sobre raça dos usuários e aplicativo para solicitar o auxílio trutural – como se as mortes fossem de ONGs, movimentos e voluntários.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11

AS FORÇAS DA ORDEM SOCIAL

A desconfiança em lecer a possibilidade de punir com


multa de 15 mil euros e um ano de
prisão “a divulgação, por qualquer

relação à polícia
meio ou suporte, da imagem de fun-
cionários da polícia civil, militares,
policiais municipais ou agentes da
alfândega” (Assembleia Nacional da
França, 26 maio 2020). A medida já é
adotada na Espanha desde o vasto
“Todo mundo odeia a polícia.” Comum nas manifestações francesas, esse slogan exprime movimento 15-M, em 2011.
uma preocupação que não é mais restrita aos grupos militantes. Frequentemente A ação violenta das forças da or-
dem também ficou mais perceptível
convocadas para reprimir movimentos sociais, as forças da ordem veem sua missão pelo fato de ela ter se deslocado dos
confundir-se com a de uma guarda pretoriana do poder. Sua popularidade não resistiu bairros periféricos em direção aos
centros das cidades, passando a afe-
tar populações que não estavam
POR LAURENT BONELLI*
acostumadas a essa experiência. Na
França, a crise dos Coletes Amarelos,

A
s imagens da agonia de George nos de 26 anos, e quase metade dos certamente com uma ajuda da hosti- os protestos contra as reformas tra-
Floyd, sufocado por um poli- casos situava-se na região de Paris ou lidade bastante generalizada em rela- balhista e da previdência, assim co-
cial de Minneapolis sob o nas metrópoles de Lyon e Marselha.1 ção a Donald Trump e suas políticas. mo os controles policiais operados
olhar impassível de seus cole- As sequências de reação a esses Também é possível destacar o traba- durante o confinamento por causa
gas, provocaram uma onda de pro- dramas se repetem e se assemelham: lho obstinado de ativistas – como os da epidemia de Covid-19, tudo isso
testos de amplitude incomum nos o bairro de origem da vítima fica em do Mouvement de l’Immigration et teve como resultado um aumento
Estados Unidos. Centenas de milha- chamas por algumas noites, os pa- des Banlieues (MIB, Movimento da considerável de vítimas e testemu-
res de pessoas foram às ruas para de- rentes e amigos organizam manifes- Imigração e dos Subúrbios) – para nhas de intervenções policiais, muito
nunciar com veemência, às vezes tações locais, depois vêm longos unir a causa da violência policial, da além do que os sociólogos costumam
com violência, o tratamento discri- anos de batalhas legais travadas pela qual Assa Traoré, irmã de Adama, identificar como os tradicionais “al-
minatório dado pela polícia às mino- família e alguns ativistas persisten- tornou-se uma carismática porta- vos da polícia”.6 Com certeza, é essa
rias. Alguns dias depois, dezenas de tes, raramente resultando na conde- -voz. Mas talvez nem todas essas ra- ampliação do alcance da polícia que
milhares de manifestantes se reuni- nação das autoridades envolvidas. 2 zões em conjunto seriam suficientes permite entender as resistências co-
ram em Paris e em diversas outras Mas, até recentemente, os esforços se a desconfiança em relação às for- letivas que hoje se manifestam.
cidades francesas, atendendo ao para dar uma base mais ampla a es- ças da ordem não tivesse se expandi- Para explicar esse movimento,
.

chamado do comitê Justice pour sas iniciativas não haviam tido do para além dos círculos nos quais primeiro é preciso dissipar o persis-
Adama Traoré [Justiça para Adama sucesso. ela tradicionalmente se expressa. tente mito de que a polícia se ocupa
Traoré], que leva o nome de um ra- Essa causa permanece impopular exclusivamente de combater a delin-
paz negro morto após sua prisão por porque, na maioria das vezes, está li- ALTA CONSIDERÁVEL DE VÍTIMAS quência. Exceto por raras unidades
policiais militares nos arredores de gada às vítimas “erradas”, “gente co- A extensão dessa desconfiança é al- especializadas, essa tarefa não passa
Paris, em julho de 2016. Ao lado de nhecida da polícia, no mau sentido”. go difícil de mensurar. Pesquisas re- de 20% de sua atividade.7 A polícia es-
cidadãos comuns, os protestos con- Essa desqualificação por parte das velam alguns fragmentos. Uma de- tá frequentemente envolvida na reso-
taram com altas personalidades da autoridades, somada à exibição com- las, publicada pela revista semanal lução de uma infinidade de situações
política, e o movimento foi apoiado placente, por parte da imprensa, de L’Express (20 jan. 2020) – um veículo que não são abrangidas pelo direito
por estrelas do cinema, do futebol e eventuais antecedentes criminais, que nunca esteve entre os mais críti- penal: conflitos de vizinhança, do-
da música. As manifestações conse- cria dúvidas quanto ao desenvolvi- cos à instituição policial –, revelou mésticos ou relativos à ocupação do
guiram até mesmo que, rapidamen- mento dos fatos, reforçando a narra- que apenas 43% dos entrevistados espaço público, regulação do tráfego
te, o ministro do Interior da França, tiva da polícia. Isso também torna “confiavam” nos policiais, enquanto de automóveis, informações admi-
Christophe Castaner, colocasse em mais delicado o apoio das forças polí- 20% sentiam “preocupação” e 10% nistrativas, gestão de reuniões públi-
questão a prática do estrangulamen- ticas ou sindicais de esquerda, histo- “hostilidade” em relação a eles. Estu- cas, controle de migração irregular,
to, além de prometer melhorar o có- ricamente sensíveis à repressão ope- dos científicos confirmam essa ten- vigilância política, apoio a outras ins-
digo de ética das forças da ordem no rária, porém desconfortáveis com dência. Uma vasta pesquisa euro- tituições (da emergência médica aos
país, particularmente no que diz aqueles que são mais relutantes em peia realizada em 2011-2012 com 51 despejos) etc. O sociólogo norte-a-
respeito ao racismo. relação à ordem salarial, outrora cha- mil entrevistados estabeleceu que a mericano Egon Bittner destaca “que
A amplitude da mobilização, bem mados de lumpemproletariado. Tal polícia francesa é particularmente não há problema humano, real ou
como o eco que ela obteve na política desconforto é agravado pela distân- malvista. Ela está em 19º lugar, entre imaginável, que se possa afirmar
e na mídia contrastam com a história cia que foi pouco a pouco se aprofun- 26 países, em relação ao respeito no com certeza que nunca poderia se
da luta contra a violência policial. De dando entre essas organizações e os tratamento dado às pessoas (antes tornar assunto da polícia”.8 A polícia
Youssef Khaïf a Lamine Dieng, de jovens das periferias, que elas não apenas de República Tcheca, Grécia, é, portanto, menos uma agência de
Wissam el-Yamni a Ibrahima Bah, conseguem mais integrar em suas fi- Eslováquia, Bulgária, Ucrânia, Rús- aplicação da lei – como sugere o ter-
passando por Zyed Benna e Bouna leiras e de cujas condições concretas sia e Israel).5 Além disso, qualquer mo anglo-saxão law enforcement
Traoré, Abdelkader Bouziane, Allan de existência têm dificuldade de se manifestante na rua pode notar que agency – do que uma instituição dedi-
Lambin, Amine Bentounsi e muitos aproximar.3 E as tentativas de cons- a frase “Todo mundo odeia a polícia” cada à manutenção de uma ordem
outros, há uma longa lista de jovens truir uma autonomia política dos já faz parte do repertório clássico dos social determinada.
de origem popular cuja morte é im- bairros populares, isto é, estruturas protestos. No entanto, a partir da década de
putável, direta ou indiretamente, às capazes de apresentar outro discurso Ocorre que o uso da força, justifi- 1980, a polícia foi gradualmente ga-
forças da ordem. Entre janeiro de sobre essas comunidades, tiveram cado ou não, tornou-se mais visível. nhando ares, para diversos gover-
1977 e dezembro de 2019, foram re- apenas sucessos pontuais.4 Os smartphones com câmeras digi- nantes, de solução mágica para en-
censeadas pelo site Basta! 676 pes- Então, como explicar a potência tais fazem abundantes registros, que frentar as consequências do
soas mortas por policiais civis ou mi- dos protestos de junho de 2020? Po- são divulgados pelas redes sociais. A aprofundamento das desigualdades
litares, uma média de 16 por ano. [No de-se evocar a coincidência do calen- prática chegou a tal ponto que um sociais e econômicas que se podem
Brasil, as polícias mataram 719 pes- dário francês com a morte de George grupo de trinta deputados, atenden- observar nas sociedades ocidentais e
soas em abril de 2020 (O Globo, 28 Floyd nos Estados Unidos e a emoção do à reivindicação dos sindicatos po- entre os países do Norte e do Sul.
jun. 2020).] Metade delas tinha me- que esta despertou no mundo todo, liciais, recentemente tentou estabe- Com variações de cronologia e de
12 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

tom, os temas da insegurança e das significado legal sólido. No entanto, balas de borracha e de choque). Esse fenômeno é particularmente acen-
migrações (sobretudo as irregulares) se tais acusações existem, não é por- equipamento alimenta as críticas à tuado na França e nos Estados Unidos
se politizaram, e partidos políticos que a sociedade quer dar aos tribu- “militarização” da polícia, particular- (ler artigo de Richard Keiser, virando a
de diferentes inspirações e tendên- nais a missão de reprimir a vadia- mente evidente nas unidades especia- página) pela existência de poderosos
cias passaram a fazer deles pontos gem ou a embriaguez, mas porque lizadas, como as brigadas anticrime sindicatos corporativos. Com uma ta-
importantes de suas disputas eleito- deseja fornecer aos policiais ferra- francesas. Suas insígnias, cheias de xa de sindicalização de quase 70%
rais. As políticas sociais, de preven- mentas legais que lhes permitam ex- imagens de predadores (tigres, lobos, (contra 19% no funcionalismo públi-
ção e de desenvolvimento, embora pulsar os indesejáveis deste ou da- leões, crocodilos, cobras etc.) que co e 8% no setor privado), a polícia é
nunca completamente abandonadas, quele bairro, quando todos os vigiam a cidade adormecida, lançam de longe a profissão mais organizada.
foram pouco a pouco dando lugar a esforços informais para fazer reinar luz sobre o tipo de relação com o Estruturados por corpos (guardas,
abordagens mais securitárias, que a ordem falharam”. espaço e as populações que elas oficiais e comissários), esses sindica-
passam pelo controle e pela coerção. No entanto, confiar a uma insti- desejam incorporar. As Street Crime tos têm um papel importante na evo-
Assim, em vez de lutar contra as cau- tuição o tratamento de determinado Units [Unidades de Crimes de Rua] de lução da carreira. Por causa do dever
sas estruturais das desigualdades problema tem suas consequências. Nova York, dissolvidas em 2002 após de reserva, eles também são os únicos
(vistas como desejáveis por alguns, e Esse movimento favorece o enqua- crivarem de balas um jovem afro-a- que podem se expressar na mídia, ex-
fora do alcance por outros), trata-se dramento que tal instituição dá à si- mericano desarmado, chegaram a ceto, é claro, pelas autoridades hie-
de disciplinar as frações da popula- tuação a ser tratada, bem como suas adotar o lema “Donos da Noite” (We rárquicas – o que limita a expressão
ção mais indóceis à nova ordem neo- interpretações dos fenômenos. A bu- Own the Night). Com práticas agres- pública das dissidências internas e
liberal, nacional e internacional. rocracia, lembra o cientista político sivas de intervenção, essas unidades reforça a ilusão de que a polícia fun-
Entre as racionalizações que norte-americano Murray Edelman, foram responsáveis por grande parte ciona em bloco. Essa força leva a uma
acompanham essa dinâmica, a “teo- tende a “criar problemas como justi- da violência, às vezes fatal, de que a cogestão de fato da instituição, com-
ria do vidro quebrado” ocupa um lu- ficativa para as soluções que ofere- instituição é acusada. Elas também binando negociações, exortações pú-
gar especial. Desenvolvida por dois ce”:10 há visões institucionais, sedi- são acusadas de contribuir para o blicas e ações coletivas (manifesta-
acadêmicos norte-americanos, Ja- mentadas na história da instituição, endurecimento das tensões onde quer ções, licenças de saúde, abandono
mes Q. Wilson e Georges L. Kelling, sob a forma de rotinas, cenários, kno- que sejam introduzidas. das missões “não urgentes”).
ela sugere que a tolerância a peque- w-how e representações que se im- A partir daí, foram desenvolvidas Embora não tenha sido poupada,
nas desordens urbanas levaria gra- põem a seus agentes, tanto no treina- estratégias complementares, deno- a polícia soube se proteger melhor do
dualmente ao desenvolvimento de mento como no trabalho diário (por minadas “polícia comunitária” ou que outros serviços públicos das re-
formas mais graves de criminalida- meio de conselhos e advertências dos “de proximidade”, dependendo do formas liberais, em termos de atuali-
de.9 Apesar de sua absoluta falta de veteranos). Os policiais adoram lem- país, que buscam aproximar a polícia zação estatutária e salarial ou de cré-
fundamentação empírica – Wilson brar que “não são assistentes sociais” da população por meio de sua pre- ditos operacionais. Por exemplo,
mais tarde admitiu que isso era mera e valorizam a coerção. Portanto, re- sença visível (patrulhas a pé) e da durante a reforma previdenciária, em
“especulação” (New York Times, 6 jan. gulam a ordem urbana “à sua manei- criação de espaços de diálogo para dezembro de 2019, bastou que os sin-
.

2004) –, a teoria teve publicidade ra”, recorrendo sobretudo a estraté- tratar dos problemas locais. Essas ex- dicatos falassem na possibilidade de
mundial depois que Rudolph Giulia- gias de assédio. Um comissário dos periências chocaram-se com o pouco interromper o trabalho para obter
ni, prefeito de Nova York entre 1994 e Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, entusiasmo dos policiais (ou com a imediatamente um regime especial,
2001, e seu chefe de polícia, William explicou em uma entrevista sua polí- reprodução de comportamentos vio- enquanto centenas de milhares de
Bratton, inspiraram-se nela para re- tica em relação aos jovens que se reú- lentos) e com as recorrentes restri- trabalhadores (dos transportes, da
formar a ação de suas polícias. nem nos espaços públicos de Barce- ções orçamentárias, por causa do saúde, da educação nacional etc.)
Dos Estados Unidos à França, lona: “Você vai à praça, dá uns gritos, custo dos efetivos necessários. Mas sustentaram semanas de greves e
passando pelo Reino Unido e pela Es- coloca pressão e diz: ‘Vou voltar aqui onde foram colocadas em prática aju- manifestações, sem que suas reivin-
panha, dois caminhos complemen- todo dia. Se você estiver aqui ama- daram a fortalecer a centralidade da dicações fossem atendidas.
tares foram privilegiados: o endure- nhã, vou pedir seus documentos; se polícia na regulação das relações so- Da mesma forma, a instituição
cimento da repressão penal a estiver bebendo, vou fazer um regis- ciais e a redefinir tais relações como policial consegue ser efetiva em frus-
pequenos delitos de via pública e o tro; se tiver erva, também’. E assim, questão de segurança.11 A polícia “re- trar tudo aquilo que considera desa-
desenvolvimento de medidas admi- de uma maneira ou de outra, eles vão pressiva” e a “preventiva”, portanto, fiar suas prerrogativas. Os recentes
nistrativas, de legalidade por vezes embora. Isso muda o problema de lu- são menos opostas do que comple- comentários de Castaner sobre a pos-
questionável, como ordens antimen- gar”. Essa combinação de repressão e mentares e esquadrinham a existên- sível proibição do estrangulamento
dicância e toque de recolher para me- banimento daqueles que são vistos cia cotidiana de porções cada vez provocaram imediatamente acusa-
nores ou para gangues, as quais per- como indesejáveis resume bastante mais amplas da população. ções de “traição” e protestos localiza-
mitem verbalizar aquilo que os bem a prática das forças da ordem Essas estratégias conseguiram dos, que levaram o ministro a recon-
britânicos chamam de “comporta- para cumprir as missões que lhes são cumprir a promessa de conter os pe- siderar sua posição. Episódios
mentos antissociais” (Anti Social designadas. quenos distúrbios urbanos? Obvia- semelhantes podem ser observados,
Behaviors). O consumo de álcool ou mente não. Mas poderíamos acredi- desde as manifestações contra o mi-
de drogas na rua, a ocupação do es- MILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA tar que elas seriam capazes de fazê-lo nistro da Justiça, Robert Badinter, em
paço público, a fraude nos transpor- Essas táticas obviamente aumentam sem agir sobre as causas profundas 1983, até os protestos contra a lei so-
tes, os jogos de azar, a mendicância a resistência daqueles que consti- desses distúrbios? Muitos policiais bre presunção de inocência (15 jun.
“agressiva”, a lavagem de para-brisas tuem seu alvo, sob a forma de insul- estão cientes dessa impossibilidade, 2000), passando pela oposição à re-
nos cruzamentos, as vendas ambu- tos, recusa em colaborar e, às vezes, afirmando que é como “enxugar ge- forma da custódia policial (14 abr.
lantes (de bebidas, CDs, DVDs, bol- confrontos individuais ou coletivos, lo”. Esse fracasso, no entanto, não 2011) e às penas alternativas (15 ago.
sas, óculos de sol, cintos etc.) e a particularmente quando a relação de afetou as opções escolhidas pelos go- 2014). Essa hostilidade à crítica tam-
prostituição de rua tornam-se o prin- forças não é favorável aos policiais. vernantes. Pelo contrário, levou a bém se expressa na resistência a to-
cipal alvo da polícia. Na França, o número de ofensas e uma corrida securitária, da qual a po- dos os órgãos externos que poderiam
Assim, os governos confiam à po- atos de violência contra depositários lícia se apropriou para reivindicar ca- garantir o controle de sua atividade.
lícia a tarefa de regular a pequena da autoridade cresceu de 22 mil, em da vez mais e mais recursos para agir. Autoridades independentes, como a
delinquência e a “incivilidade”, con- 1990, para 68 mil, em 2019 – três vezes A decisão política de fazer das for- Commission Nationale de Déontolo-
cedendo-lhe novos poderes. Como em trinta anos. ças da ordem a ponta de lança da de- gie de la Sécurité (CNDS, Comissão
indicam Wilson e Kelling, a polícia Diante dessa situação, a insti- fesa da ordem urbana acabou, na ver- Nacional de Ética da Segurança), de-
pode “fazer prisões por motivos co- tuição policial reage, fornecendo a dade, por valorizar sua posição no pois o defensor de direitos e o contro-
mo ‘indivíduo suspeito’, ‘vagabun- seu pessoal equipamentos defensivos campo burocrático, colocando os go- lador-geral das instalações de priva-
dagem’ ou ‘embriaguez em via públi- (coletes à prova de balas, granadas de vernos em uma posição desfavorável ção de liberdade, tiveram de travar
ca’, todas acusações desprovidas de dispersão) e ofensivos (armas com na relação de interdependência. Esse batalhas permanentes para exercer
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13

suas missões, e seu campo de ação Nos últimos trinta anos, a amplia- recentemente que o estrangulamen- *Laurent Bonelli é professor de Ciência
sempre foi limitado em relação a suas ção do espectro da ação policial es- to seja “cada vez mais utilizado, pois Política da Universidade de Paris Nanterre.
ambições iniciais. Isso também se tendeu mecanicamente a amplitude cada vez mais pessoas tentam fugir Autor, com Fabien Carrié, de La Fabrique
aplica à justiça, que fica em uma posi- dos grupos que são alvo de sua sus- dos controles policiais” (Libération, 8 de la radicalité. Une sociologie des jeunes
ção desconfortável para julgar a ação peita. Para provar isso, basta consul- jun. 2020). Sem perceber, ele coloca- djihadistes français [A fábrica do radicalis-
policial, considerando que os magis- tar o arquivo de “registro de antece- va uma questão central: por que obe- mo. Uma sociologia dos jovens jihadistas
trados dependem dela para realizar dentes”, no qual policiais civis e decemos à polícia? A resposta é sim- franceses], Seuil, Paris, 2018.
seu trabalho cotidiano. Por fim, em- militares registram indivíduos sobre ples: o grau de obediência à
bora temida pela polícia, a Inspection os quais existem “indicações sérias instituição policial é proporcional à 1   B ase de dados compilada e analisada por Ivan
Générale de la Police Nationale ou convergentes que tornam prová- percepção de sua legitimidade. Mas du Roy e Ludo Simbille. Disponível em: ht-
tps://bastamag.net.
(IGPN, Inspetoria-Geral da Polícia vel que tenham podido participar, essa legitimidade nunca está plena- 2   C f. Mogniss H. Abdallah, Rengainez, on arrive!
Nacional) parece muito mais inclina- como autores ou cúmplices, no co- mente conquistada. O direito penal, [Alto lá, nós chegamos!], Libertalia, Paris,
da a sancionar desvios internos do metimento de um crime, delito ou explicava o sociólogo Émile Dur- 2012.
3   Ler Olivier Masclet, “Le rendez-vous manqué
que a investigar queixas externas. Sua contravenção de quinta classe” – um kheim, “protege os sentimentos cole- de la gauche et des cités” [O desencontro en-
diretora, a comissária Brigitte Jullien, arquivo que não prevê nenhuma ação tivos de um povo em um momento tre a esquerda e a periferia], Le Monde Diplo-
reconheceu que, dos 378 casos que legal a ser tomada (pois trata de sus- determinado de sua história”,14 ou se- matique, jan. 2004.
4   Ler Abdellali Hajjat, “Quartiers populaires et
ela acompanhou no contexto do mo- peitos, não de culpados). Em 15 de ja, traça os limites morais de uma so- désert politique” [Bairros populares e deserto
vimento dos Coletes Amarelos, ape- novembro de 2018, 18,9 milhões de ciedade, distinguindo a maioria dos político], Manière de Voir, n.89, 2006.
nas dois haviam resultado em san- pessoas foram fichadas, ou seja, qua- “bons cidadãos” da minoria de “cri- 5   René Lévy, “La police française à la lumière de
la théorie de la justice procédurale” [A polícia
ções administrativas (Envoyé Spécial, se 30% da população francesa... Sem minosos”. Mas a delegação cada vez francesa à luz da teoria da justiça processual],
France 2, 11 jun. 2020). grande surpresa, os policiais france- maior à polícia da gestão da ordem Déviance et Société, v.40, n.2, 2016.
A combinação entre essa autono- ses aparecem como os mais desres- urbana, dos fluxos migratórios e até 6   Fabien Jobard, “Le gibier de police immuable
ou changeant?” [Alvos da polícia: continuam
mia da instituição e o papel central peitosos da Europa para com os de protestos sociais e políticos muda os mesmos ou estão mudando?], Archives de
que lhe é atribuído na regulação da cidadãos.13 a proporção desses dois grupos. As- Politique Criminelle, v.32, n.1, 2010.
ordem social transformou as rela- Incentivados pelas elites domi- sim, a “particular clareza” dos senti- 7   Richard V. Ericson e Kevin D. Haggerty, Poli-
cing the Risk Society [Policiamento na socie-
ções que seus agentes mantêm com o nantes e por sua própria hierarquia a mentos coletivos de que fala Dur- dade de risco], University of Toronto Press,
resto da sociedade. Dadas as situa- se perceberem como uma das últi- kheim acaba não sendo mais tão 1997.
ções difíceis que enfrentam em sua mas muralhas que separam a ordem clara, e os policiais podem não mais 8   Egon Bittner, “Florence Nightingale à la pour-
suite de Willie Sutton. Regard théorique sur la
atividade profissional (acidentes, e o caos, eles não hesitam em utilizar aparecer como os garantidores do police” [Florence Nightingale em busca de
violência, conflitos, miséria), os po- com regularidade técnicas outrora interesse geral, e sim como os guar- Willie Sutton. Uma visão teórica sobre a polí-
liciais tradicionalmente desenvol- reservada aos delinquentes mais difí- diães de uma ordem social conside- cia], Déviance et Société, Genebra, v.25, n.3,
2001.
vem uma visão bastante pessimista ceis. A morte de Cédric Chouviat, rada injusta por um número cada vez 9   C f. James Q. Wilson e Georges L. Kelling,
do mundo social – um mecanismo motorista de entregas, após um es- maior de indivíduos. Menos obedeci- “Broken Windows: The Police and
.

semelhante pode ser observado en- trangulamento; a morte de Steve dos, eles empregam mais facilmente Neighborhood Safety” [Janelas quebradas: a
polícia e a segurança da vizinhança], The
tre os bombeiros.12 Isso se soma a re- Maia Caniço, atirado no Rio Loire du- a força para se fazer respeitar, o que Atlantic Monthly, mar. 1982.
presentações negativas daqueles a rante uma ação policial; o uso maci- aprofunda ainda mais a desconfian- 10  Murray Edelman, Pièces et règles du jeu poli-
quem chamam de “clientes”, o que ço de balas de borracha para conter ça que recai sobre eles, a qual, por tique [Peças e regras do jogo político], Seuil,
Paris, 1991.
também é uma chave para explicar o manifestantes do movimento dos sua vez, reforça sua própria descon- 11  Sobre a experiência dos governos municipais
racismo policial. Claro que existe Coletes Amarelos ou contrários à re- fiança em relação aos cidadãos, bem progressistas na Espanha, cf. “El giro preven-
uma minoria de agentes ideologica- forma da previdência; e as humilha- como seu desejo de ampliar as medi- tivo de lo policial” [A virada preventiva da polí-
cia], edição especial da revista Crítica Penal y
mente convencidos da desigualdade ções infligidas a estudantes (como os das de segurança. Poder, n.19, Barcelona, 2020.
racial. Mas, para muitos de seus co- de Mantes-la-Jolie, colocados de joe- Esse círculo vicioso produz um 12  Ler Romain Pudal, “Les pompiers entre dévou-
legas, é nas relações difíceis diaria- lhos com as mãos no pescoço, em de- profundo sentimento de asfixia, que ement et amertume” [Os bombeiros, entre a
dedicação e a amargura], Le Monde Diploma-
mente estabelecidas com certas fra- zembro de 2018), feministas ou du- as medidas policiais sanitárias (20,7 tique, mar. 2017.
ções dos setores populares – boa rante o estado de crise sanitária milhões de controles e 1,1 milhão de 13  Juha Kääriäinen e Reino Sirén: “Do the police
parte dos quais é oriunda da migra- certamente fazem parte dessa contravenções entre 17 de março e 11 trust in citizens? European comparisons” [A
polícia confia nos cidadãos? Comparações
ção ou integra minorias – que se for- dinâmica. de maio de 2020) levaram ao auge. europeias], European Journal of Criminology,
jam os estereótipos racistas, os quais No entanto, tudo isso mina os Ecoando a asfixia física de George v.9, n.3, Londres, 2012.
em seguida se aplicam por capilari- fundamentos da autoridade policial. Floyd, tal sentimento hoje se expres- 14  Émile Durkheim, Les règles de la méthode so-
ciologique [As regras do método sociológi-
dade a todos aqueles que possam re- O secretário-geral do sindicato Unité sa em mobilizações cuja palavra de co], Paris, Presses Universitaires de France,
meter a esses estereótipos. SGP Police, Yves Lefebvre, lamentou ordem é “Nos deixem respirar!”.  1996 (reedição).
14 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

EXPRESSÃO BRUTAL DAS DESIGUALDADES NOS ESTADOS UNIDOS

Um país crivado por


de sua pele basta para despertar sus-
peitas. Nas Twin Cities, poucos deles
esqueceram as patrulhas policiais
que perseguiam os fugitivos no tem-

homicídios policiais
po da escravidão.
O sindicato dos agentes de polícia
é uma das principais engrenagens
desse sistema. Em Minneapolis, o
presidente de seu braço local, tenente
Nos Estados Unidos, a garantia da ordem é uma prerrogativa local. Como então Bob Kroll, garantiu a lealdade das
explicar que uma cidade progressista como Minneapolis seja palco de repetidas tropas ao sabotar os esforços em-
preendidos por sucessivos prefeitos
atrocidades policiais racistas? Portadoras de um pesado passivo em termos de democratas a fim de disciplinar os
violência contra pessoas negras, as polícias desfrutam de uma impunidade quase policiais violentos. Segundo o prefei-
total – pelo menos até a morte de George Floyd to atual, Jacob Frey, “os chefes de po-
lícia e os eleitos que tentaram mudar
as coisas se chocaram constante-
POR RICHARD KEISER* mente com a hostilidade do sindicato
e com uma legislação que protege os
autores de violências”.2 Frey e sua ex-
-chefe de polícia, Janee Harteau, acu-
saram o sindicato de obstruir toda
tentativa de processar agentes infra-
tores. Estes são protegidos, sobretu-

N
a história política norte-ameri- As desigualdades raciais só au- do condado, três de quatro motoris- do, por um protocolo de arbitragem
cana, Minnesota é uma exce- mentaram nos Estados Unidos desde tas cujos carros são procurados per- negociado com o sindicato, que clas-
ção: foi o único estado a votar os anos 1970. Portanto, não é de es- tencem à comunidade afro-america- sifica qualquer abuso de poder como
contra Ronald Reagan em 1984. pantar que a Covid-19 tenha feito na, embora esta represente apenas um ato de legítima defesa. Derek
A última vez que seus eleitores esco- muito mais vítimas entre os negros um habitante em cada cinco. Quando Chauvin, o homem que estrangulou
lheram um candidato republicano à que entre os brancos, não apenas em o próprio motorista é objeto de um George Floyd com o joelho durante
presidência remonta a 1972, há quase termos de letalidade, mas também de mandado de busca, ele é negro em quase nove minutos, foi alvo de de-
cinquenta anos. Ao longo de gera- perda de emprego e dificuldade para 76% dos casos, contra somente 13% zessete queixas por violência em vin-
ções, esse santuário da esquerda en- sobreviver durante a crise. As conse- de brancos. Levando-se em conta a te anos de carreira, das quais uma só
.

viou ao Congresso Hubert Hum- quências mais diretas do confina- amplitude dos poderes dos policiais, deu margem a uma repreensão. Em
phrey, Walter Mondale e Ilhan Omar, mento – fechamento de escolas e im- qualquer motivo justifica sua inter- virtude dos acordos celebrados com o
uma das duas primeiras mulheres possibilidade quase total de trabalhar venção. Todos os negros do país sa- sindicato, o conteúdo dessas queixas
muçulmanas a serem eleitas para es- – se mostraram desproporcional- bem: quando estão ao volante, a cor nunca veio a público. Dos três agen-
sa casa. Considerando-se essa repu- mente prejudiciais para os afro-ame-
tação, o assassinato de George Floyd ricanos, dando-lhes ainda mais mo-
por uma patrulha de polícia e a agita- tivos para se mobilizar e tempo de
ção popular que isso provocou po- fazê-lo noite após noite. Como é fre-
dem parecer surpreendentes. Mas, quente nessas erupções de cólera, os
para um observador que conhece habitantes atacaram as propriedades
bem as Twin Cities – as duas cidades privadas dos bairros onde vivem en-
siamesas de Minneapolis e St. Paul, clausurados. Fato mais raro, não
sendo esta última a capital do estado pouparam também as lojas de luxo,
–, tais acontecimentos não foram os restaurantes e os bancos situados
nem um pouco inesperados. um pouco mais longe.
Embora Minnesota figure entre os As violências policiais consti-
estados mais bem posicionados do tuem, evidentemente, a expressão
país em termos de níveis de educa- mais brutal dessas desigualdades.
ção, renda e bem-estar, essas estatís- Nos Estados Unidos, a manutenção
ticas, como lembrou o governador da ordem é prerrogativa local, a cargo
democrata Tim Walz após uma noite da cidade ou do condado, fora do
de turbulência posterior à morte de controle do estado ou das jurisdições
Floyd, em 25 de maio, “só são corre- federais. O Minneapolis Police De-
tas se você for branco; se não for, os partment (MPD) apresenta um tene-
índices desabam”.1 Minnesota está broso passivo de violências mortais
apenas na 39ª posição na lista dos es- perpetradas contra moradores ne-
tados que contam mais afro-ameri- gros. Até o sufocamento filmado de
canos com diploma de nível secun- George Floyd, o MPD gozava de uma
dário. Quanto ao número de negros impunidade quase sistemática, como
empregados, cai para o 45º lugar (de no caso dos agentes responsáveis pe-
cinquenta) e chega ao 48º se conside- la morte de Jamar Clark e Philando
rarmos a porcentagem de afro-ame- Castille nos meses anteriores. As prá-
ricanos com casa própria. O salário ticas de perseguição racista são in-
médio de uma família branca de contáveis. Os não brancos represen-
Minneapolis beira os US$ 100 mil por tam 40% da população de
ano, ao passo que o de uma família Minneapolis, mas concentram em si
negra mal alcança os US$ 28.500. 74% dos episódios de uso de força pe-
Brancos e negros continuam separa- lo MPD. Segundo um estudo publica-
dos e desiguais. do em 2018 pela defensoria pública
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15

tes que assistiram passivamente ao MPD moram fora da cidade onde guns entendem a ideia de cortar par- genas ou moradores de rua em ou-
suplício de George Floyd, dois esta- trabalham. te dos fundos alocados às forças da tros países, a combinação de capita-
vam em serviço há menos de um ano. O prefeito de Minneapolis tomou ordem para transferi-las a serviços lismo moderno e nacionalismo
O terceiro, Tou Thao, já totalizava a decisão salutar de proibir as forma- sociais e programas de apoio – nota- modificou nossa definição de cida-
seis denúncias por violência, das ções que ensinavam os policiais a ver damente junto a pessoas sujeitas a dania e direitos fundamentais, in-
quais cinco deram em nada. Com um cada cidadão negro como uma amea- perturbações psiquiátricas –, sob a ventando categorias de pessoas dis-
de seus colegas, ele havia espancado ça. Trata-se de um curso de aperfei- égide da community [comunidade] pensáveis a quem o Estado pode tirar
uma pessoa algemada em 2017. A ci- çoamento muito valorizado pelos po- ou de associações de bairro com vo- a vida sem provocar revolta. Os gru-
dade indenizou o queixoso em US$ liciais norte-americanos, ministrado cação para assumir parte das atribui- pos visados são tidos como antisso-
25 mil, mas Thao se beneficiou da sob a bandeira da killology [ciência ções até então reservadas ao MPD. ciais, condenados a ser expulsos das
proteção do sindicato e não foi de matar], uma doutrina com preten- Este continuaria, porém, se ocupan- ruas quando não tiverem onde mo-
incriminado. sões científicas que pretende liberar, do dos crimes e da delinquência vio- rar, julgados inassimiláveis no caso
no policial, as pulsões predadoras lenta. Outros atribuem ao “desfinan- dos refugiados ou inimigos internos
KILLOLOGY, A “CIÊNCIA DE MATAR” que dormem dentro de cada um de ciamento” um sentido mais radical: a que desafiam a ordem dominante se
O tenente Kroll, aplaudido ao lado de nós. Conquistado por essa visão de dissolução do MPD e a criação de al- não forem brancos.
Donald Trump durante reunião em mundo e indignado com as veleida- go novo, sonho que semeia ao mesmo Por isso, o vídeo de Derek Chau-
2019, considera os democratas que des de “moderação” preceituadas pe- tempo o entusiasmo (pouco) e a in- vin esmagando a nuca de George
governam a cidade traidores de sua lo prefeito, Kroll respondeu elaboran- quietude (muita) nos condados bran- Floyd durante uma eternidade talvez
causa. Acusa-os, entre outras coisas, do seu próprio programa de cos de Minnesota. não seja suficiente para garantir a
de não terem recrutado mais efetivos formação, financiado pelo sindicato Outra consequência das manifes- condenação do policial e seus três
para reprimir a violência urbana. e inspirado, da mesma forma, na vi- tações: grandes entidades, como a asseclas. Uma infração antiga, tra-
Suas queixas ilustram a síndrome de são atilada da “ciência de matar”. A Universidade de Minnesota, as esco- ços de droga encontrados em seu
perseguição e a aversão à esquerda seus olhos, a política de moderação las de Minneapolis e os parques pú- organismo durante a autópsia, uma
que caracterizam as forças da ordem não poderia se aplicar ao MPD, pois, blicos da cidade, romperam seus atividade potencialmente delituosa
nesse país. Toda vez que os chefes de diz ele, “não está em sua natureza. contratos de parceria com o MPD. Os como a suposta utilização de uma
polícia nomeados pelos prefeitos Vocês querem ensiná-lo a recuar e is- policiais que garantiam a segurança nota falsa ou a venda de cigarros
criaram programas para ensinar téc- so não é natural. Toda pressão vem em estabelecimentos escolares ou contrabandeados – tudo isso pode
nicas de moderação ou refrear os daí, desses guardinhas que não con- nos eventos esportivos universitários ser o bastante para transformar a
“preconceitos implícitos” dos agen- seguem prender ninguém e dizer perderam assim um complemento vítima em culpado aos olhos da
tes, o sindicato prontamente barrou ‘não, você vai ficar quietinho ou o le- apreciável de sua renda, pois essas maioria branca. Um homem negro,
essas iniciativas. E quando os eleitos varei em cana e, se necessário, utili- tarefas eram executadas quase sem- fichado pelo uso de entorpecentes –
conceberam um projeto de lei para zarei a força’”.3 pre fora do horário de expediente. desvantagem amplamente dissemi-
obrigar os policiais do MPD a residir Kroll chamou George Floyd de Considerada ainda muito branda pe- nada desde que eclodiu a guerra con-
.

na cidade, para que convivessem “criminoso violento” e acusou os ma- los militantes, essa onda de descrédi- tra as drogas – ou pelo não pagamento
com a população, o Senado local, sob nifestantes de pertencerem a um to institucional, inédita, tomou de de uma contravenção, será conside-
pressão do lobbying policial, rejeitou “movimento terrorista”. Suas tropas surpresa todos os observadores. Seus rado indigno de piedade ou justiça
o texto. Hoje, 92% dos agentes do lhe devotam uma fidelidade a toda efeitos não serão nada negligenciá- em caso de morte violenta. O desfe-
prova. Foi reeleito com folga nas últi- veis. Se quiserem restaurar suas fon- cho do caso George Floyd depende-
mas eleições sindicais, pois ninguém tes de renda, os policiais talvez se sin- rá, sem dúvida, da composição do
se atreveu a concorrer com seme- tam mais inclinados a aceitar as júri. Mesmo na hipótese de condena-
lhante candidato, e designou, ele pró- mudanças que Kroll combatia tão ar- ção dos quatro policiais, parte da
prio, seu sucessor. O apego dos poli- dentemente, sobretudo no momento esquerda branca e o conjunto do
ciais ao chefão de seu sindicato em que o MPD e o sindicato tiverem campo conservador brandirão a tese
deve-se ao fato de que ele os protege de renegociar seu acordo. da maçã podre que deve ser elimina-
em qualquer situação, ainda que co- Por fim, o governador do estado da para salvar o resto do cesto. Ape-
metam os atos mais brutais e sangui- encomendou uma pesquisa ao De- los solenes clamarão pela volta da
nários, como é de praxe em todos os partamento dos Direitos Humanos confiança na polícia, que afinal de
sindicatos de polícia desse país. Por sobre as suspeitas de práticas discri- contas protege adequadamente o
isso, muitas das grandes centrais de minatórias contra não brancos no bem-estar das classes médias e supe-
trabalhadores, em Minnesota e em MPD. O departamento terá autorida- riores brancas. Desse ponto de vista,
outras partes dos Estados Unidos, de- de para ordenar mudanças específi- Minneapolis não está tão distante
sautorizaram secamente a presença cas e até para assumir temporaria- quanto se pensa de Nova York, Paris,
de sindicatos de polícia no movimen- mente o controle tanto da polícia Sydney ou Rio de Janeiro. 
to de solidariedade a George Floyd. Os como do sindicato.
laços de cumplicidade orgânica entre É raríssimo que os policiais acu- *Richard Keiser é professor de Estudos
o MPD e o sindicato local, além do fa- sados de matar cidadãos afro-ameri- Americanos e Ciência Política da Universi-
to de este representar inegavelmente canos sejam condenados nos tribu- dade Carleton, no Minnesota, Estados
os policiais (que votam nele), recebe- nais, pela simples razão de que, nos Unidos.
ram pouca atenção na pressa do mo- Estados Unidos, como lembra o Mo-
vimento. Kroll vai se aposentar logo, vimento Black Lives Matter [Vidas
mas a cultura de força que impregna Negras Importam], a vida dos negros 1   E ntrevista com o governador Tim Walz, 31
maio 2020.
seu sindicato permanecerá, em Min- nem sempre importa. A lista de víti- 2   Citado em David K. Li, “State of Minnesota fi-
neapolis e em outros lugares, enquan- mas não terá fim com George Floyd: les civil rights charge against Minneapolis Po-
to não se extirpar dos serviços de po- outros nomes já lhe foram acrescen- lice Department” [Estado de Minnesota pro-
cessa Departamento de Polícia de
lícia sua propensão à violência tados, como o de Rayshard Brooks, Minneapolis por infração aos direitos civis],
coercitiva e aos preconceitos racistas. morto em 12 de junho por um poli- NBC News, 2 jun. 2020.
E agora? Desde os distúrbios dos cial de Atlanta após ser interpelado 3   Citado em Ryan Grim e Ainda Chavez, “Min-
neapolis police union president: ‘I’ve been in-
últimos dias de maio, um movimento por estar dormindo em seu carro. Es- volved in three shootings myself, and not one
liderado por militantes e políticos se, porém, não é um fenômeno ex- of them has bothered me’” [Presidente do
surgiu em Minneapolis, exigindo o clusivamente norte-americano. sindicato de polícia de Minneapolis: “Partici-
pei pessoalmente de três tiroteios e nenhum
“desfinanciamento” (defund) da po- Quer se trate de negros nos Estados deles me esquentou a cabeça”], The Inter-
lícia. Por esse termo mal definido, al- Unidos, migrantes na Europa, indí- cept, 2 jun. 2020.
© Moisés Patricio
16 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

EMERGÊNCIA SANITÁRIA E EROSÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

A cavalgada autoritária
Como pôde Bolsonaro empreen-
der sua cavalgada protofascista? Para
começar, mostrando-se audacioso.

de Bolsonaro
No fim de abril, destruiu a pedra an-
gular de sua ascensão meteórica, o
ex-juiz Sérgio Moro, artífice da Ope-
ração Lava Jato3 e na época ministro
da Justiça. Objetivo? Influenciar a
poderosa Polícia Federal (PF), na
Ex-paraquedista, o presidente Jair Bolsonaro sabe que uma das melhores estratégias qual milhares de policiais organi-
de defesa é o ataque. Abalado pelas instituições por sua gestão calamitosa da zam, entre outras coisas, o combate à
corrupção e ao crime organizado.
pandemia de Covid-19, ele aproveita o episódio para acusar o Congresso,
a Justiça e os governadores de oposição de desvios ditatoriais. Enquanto “OBSTRUÇÃO DA JUSTIÇA”
isso, os apelos por sua destituição se multiplicam Desde a volta da democracia, em
1985, os presidentes respeitaram a
autonomia da instituição, que termi-
POR ANDRÉ SINGER* nou por ser considerada uma estru-
tura do Estado, e não do governo. Em

E
m 31 de maio, o ex-capitão para- ções científicas como um combate várias pessoas, sem máscara e sem 24 de abril, proferindo seu discurso
quedista Jair Bolsonaro, eleito capaz de justificar a escalada autori- respeitar as medidas de distancia- de despedida do ministério e denun-
presidente do Brasil dezenove tária. Seguindo o exemplo do presi- mento físico; instigou seus adeptos a ciando as pressões que havia sofrido
meses antes,1 saiu de seu palá- dente norte-americano, Donald fazer vídeos mostrando que os hospi- para nomear comandantes fiéis ao
cio presidencial a fim de se juntar a Trump, Bolsonaro logo se erigiu em tais dispunham de leitos vagos; e ig- presidente (sobretudo no Rio de Ja-
um grupo que reclamava a interven- arauto da liberdade individual de norou as informações sobre o avanço neiro, onde a família Bolsonaro vem
ção dos militares para derrubar o continuar trabalhando, enquanto da epidemia. sendo alvo de investigações compro-
Congresso e o Supremo Tribunal Fe- governadores de vários estados do Em suma, Bolsonaro orquestrou metedoras), Moro se mostrou incisi-
deral (STF), a mais alta instância ju- país, apoiados pelo STF e pelo Con- um caos sanitário que culminou na vo: a demissão, na véspera, do dire-
diciária do país. Era a quarta vez que gresso, instavam a população a per- morte de cerca de mil pessoas por dia tor-geral da PF “põe em causa [...] o
fazia isso desde que a Organização manecer em casa. em junho, enquanto a Argentina con- compromisso mais importante que
Mundial da Saúde (OMS), cujos tra- Radicalizando o antagonismo que ta menos de 1.500 mortos desde o iní- deve nos ligar ao respeito à lei”.
balhos o presidente brasileiro critica, o opunha aos outros poderes, o chefe cio da pandemia (com uma popula- A prisão do ex-integrante da PF
classificou a irrupção da Covid-19 co- de Estado demitiu dois ministros da ção cinco vezes menor). Com um Fabrício Queiroz, em 18 de junho, co-
.

mo pandemia, em 11 de março. Sem Saúde, culpados de acatar as análises total de mais de 55 mil óbitos, sem loca de novo os problemas da família
dúvida desejoso de que a cena ficasse da OMS, antes de confiar a pasta a que se saiba se o país já atingiu o pico Bolsonaro com as autoridades judi-
gravada na memória de todos, Bolso- um general; promoveu a hidroxiclo- epidêmico, o Brasil registra metade ciárias do Rio de Janeiro sob a luz dos
naro decidiu irromper pela Praça dos roquina sem prova de sua eficácia; vi- do número de mortos dos Estados holofotes. Queiroz – ex-assessor do
Três Poderes, em Brasília, montando sitou diversos locais, onde abraçou Unidos (o mais alto do mundo). senador Flávio Bolsonaro, um dos fi-
um cavalo da Polícia Militar (PM).

© José Cruz/Agência Brasil


Mesmo trajando uma simples ca-
misa azul, sem as decorações milita-
res que caracterizavam as fotografias
equestres de Benito Mussolini, a ima-
gem não deixava de lembrar o con-
dottiere italiano. Não era mero acaso:
pouco depois, o presidente publicava
no Facebook uma citação do Duce:
“Melhor viver um dia como leão que
cem anos como cordeiro”.
Esse é o clima no qual o Brasil
atravessou os três primeiros meses
da pandemia. Até então, o país pare-
cia viver o que o cientista político
Adam Przeworski chamou de “autori-
tarismo furtivo”.2 Esse conceito tra-
duz uma erosão lenta da democracia
caracterizada por 1) sua natureza
progressiva, 2) seu respeito formal ao
estado de direito e 3) o fato de ser
posta em prática por dirigentes elei-
tos, e não por forças exteriores ao sis-
tema político. Portanto, nada de tan-
ques nas ruas nem de junta militar
tomando o poder.
Todavia, Bolsonaro resolveu se
aproveitar da emergência sanitária
para acelerar a erosão democrática.
Enquanto outros dirigentes de voca-
ção ditatorial impunham medidas
de confinamento para ampliar seu
poder, o presidente brasileiro apre-
senta a luta contra as recomenda- O presidente Jair Bolsonaro acompanha manifestação de apoiadores na área externa do Palácio do Planalto
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17

lhos do presidente suspeito de desvio continuarão a se mostrar fiéis a Bol- ser Venezuela, não vai ser destruído ção do STF contra Bolsonaro, o vice-
de fundos quando era deputado esta- sonaro. Preocupados unicamente em por ninguém, não vai falir”.4 -presidente declarou que havia a ten-
dual do Rio – foi preso pela polícia tirar proveito da máquina estatal, são Contudo, a adesão popular ao tativa de “usurpar” as “prerrogativas
numa casa pertencente a um advoga- conhecidos por abandonar os barcos “bolsonarismo” talvez dure apenas do Poder Executivo”; que “os gover-
do do círculo de Bolsonaro. No mo- que começam a fazer água. Mas o na- enquanto durar a ajuda emergencial, nadores, os magistrados e legislado-
mento em que são escritas estas li- vio bolsonarista, por ora, continua que dificilmente será perenizada. res” haviam esquecido a teoria políti-
nhas, ninguém pode avaliar as flutuando graças a um casco sólido: o Calculado de início pelo Ministério ca segundo a qual as decisões do
consequências desse episódio, prin- apoio popular e as redes de afinida- da Economia em R$ 200, o auxílio às governo nacional eram as mais “ra-
cipalmente para as relações entre o des específicas, das quais a mais im- pessoas vulneráveis foi multiplicado zoáveis” no seio de uma federação;
STF e o presidente. portante o liga ao poder militar. por três pelo Congresso. Devia ser que certas personalidades eminentes
A despeito do modo como instru- Um terço do eleitorado apoia Bol- concedido até junho, embora o mi- dos governos anteriores tinham pre-
mentalizou a justiça para perseguir sonaro desde o primeiro turno da nistro da Economia, Paulo Guedes, judicado “a imagem do Brasil no ex-
Luiz Inácio Lula da Silva e o PT, Moro eleição presidencial de 2018 e conti- estude no momento a possibilidade terior” e que a imprensa devia “rever
foi erigido em herói nacional pela nuava o apoiando, conforme a última de estendê-lo aos meses de julho e seus procedimentos”.5
classe média, preocupada com a luta pesquisa do Instituto Datafolha, no agosto, mas reduzido pela metade. Esse texto pode ser lido como um
anticorrupção. Quando ele acusa o fim de junho. Ainda que não consti- programa destinado a remodelar a
presidente de atentar contra o estado tua maioria, essa base basta para democracia brasileira. Segundo o an-
de direito, a ideia da destituição de manter o presidente na sela. Ninguém sabe até tropólogo Piero Leirner, professor da
Bolsonaro percorre as redes sociais Entretanto, detalhes da pesquisa quando os parlamenta- Universidade Federal de São Carlos e
como rastilho de pólvora. Em alguns sugerem que o governo estaria per- especialista em Forças Armadas, os
minutos, memes do vice-presidente dendo o apoio das classes médias,
res do suposto “Centrão” militares protegem um presidente
Hamilton Mourão (um general) ves- um dos fatores principais – mas não o continuarão a se mos- que pode favorecer seu projeto de
tido de jogador de futebol prestes a único – da emergência do trar fiéis a Bolsonaro “refundação do Estado”, como um
entrar em campo pipocam na tela bolsonarismo. “para-raios sem fio terra”.6
dos celulares. De dezembro de 2019 a junho de Num contexto de forte recessão e Avançando à sombra dos cavalei-
Até Augusto Aras, nomeado por 2020, o presidente perdeu catorze desemprego em massa, a política ros de uniforme, Bolsonaro se aproxi-
Bolsonaro para o cargo de procura- pontos percentuais entre os eleitores econômica a ser adotada após o fim ma do Estado autoritário que tanto
dor-geral, se viu forçado a abrir uma que ganham de cinco a dez salários da pandemia decidirá a sorte do pre- almeja. E, caso seja destituído, a opo-
investigação depois das revelações mínimos (a segunda faixa mais ele- sidente. Seus vínculos com o empre- sição se alarma ante a possibilidade
de Moro. Em sua petição ao STF, Aras vada). Esse desmoronamento foi sariado – um dos setores em que ain- de uma volta do Exército ao poder.
evocou seis delitos dos quais o presi- acompanhado de um movimento da conta com algum apoio – não Enquanto isso, em parte da popula-
dente poderia ser culpado, entre os oposto entre os mais pobres, que até fazem prever um aumento das despe- ção o medo e a indignação alimentam
quais o de “obstrução da justiça”. O então apoiavam Lula. Entre os que sas públicas. No começo de maio, esperanças de frentes únicas e mani-
.

documento levou à divulgação do ví- ganham menos de dois salários mí- perto de vinte organizações patro- festações em favor da democracia. A
deo de uma reunião ministerial ocor- nimos por mês, a aprovação de Bolso- nais representando os mais variados imprensa, cujas relações com o presi-
rida 48 horas antes da saída do minis- naro subiu 9 pontos percentuais de setores (do eletrônico ao têxtil) pedi- dente já não eram boas, definitiva-
tro da Justiça. Não bastasse a dezembro de 2019 a maio de 2020. ram ao presidente que afrouxasse as mente se afastou do homem a cavalo,
sequência confirmar as acusações do Essa aprovação se explica, sem medidas de confinamento e isola- reservando-lhe agora a mesma hosti-
ex-magistrado relativamente à PF, dúvida, pela ajuda emergencial con- mento. Bolsonaro atravessou então a lidade que preparou as destituições
ainda se ouve Bolsonaro sugerir o ar- cedida a perto de 50 milhões de tra- Praça dos Três Poderes, rodeado por de Fernando Collor de Mello (1992) e
mamento da população para resistir balhadores sem recursos durante a sua brigada de empresários, a fim de Dilma Rousseff (2016). As fileiras des-
aos governadores e prefeitos. Em um pandemia, em três parcelas de R$ exigir do presidente do STF que orde- sa resistência ficarão suficientemente
trecho em que demonstra seu perfei- 600. A ajuda foi distribuída de abril a nasse a flexibilização das medidas cerradas para debelar o bloco no po-
to domínio dos registros mais vulga- junho e podia chegar a R$ 1.200 por sanitárias em vigor. der quando os terrores da pandemia
res da língua portuguesa, o presiden- mês no caso de família monoparen- forem apenas uma lembrança? 
te se empolga: “Quero [...] que o povo tal ou quando os dois pais tinham di- POSTURA TUTELAR
pegue em armas. É o único meio de reito a ela. Esse valor é importante, Nenhum dos setores que ainda *André Singer,  professor de Ciência Polí-
impedir que algum filho da puta [...] sobretudo nas regiões mais pobres. apoiam a Presidência, porém, tem tica da Universidade de São Paulo, é autor
nos impinja uma ditadura!”, referin- Por outro lado, como metade da po- tanto peso quanto o Exército. Oficiais de O lulismo em crise (Companhia das Le-
do-se às medidas de confinamento pulação ativa está no setor informal, dirigem metade dos ministérios, pro- tras, 2018). Entre outros artigos, publicou
decididas aqui e ali. as declarações do governo favoráveis porção maior até que sob a ditadura “The failure of Dilma Rousseff’s develop-
Mas a audácia do epígono brasi- à retomada das atividades econômi- militar (1964-1985). E o vice-presi- mentalist experiment” [O fracasso da expe-
leiro de Mussolini não basta para ex- cas responderam à preocupação de dente, que em caso de destituição to- riência desenvolvimentista de Dilma Rous-
plicar por que Bolsonaro se julga à al- numerosos brasileiros sem renda fi- maria as rédeas do país, é um general seff] (Latin American Perspectives, v.47,
tura de macaquear o Duce. Sua xa: ganhar para sobreviver. de quatro estrelas. Riverside, jan. 2020).
arrancada autoritária se vale do iso- Alguns presumem que a aliança Até a irrupção do coronavírus, 1   V er Renaud Lambert, “Le Brésil est-il fascis-
lamento do Poder Judiciário, que ten- feita por Bolsonaro com poderosas muitos pensavam que os generais te?” [O Brasil é fascista?], Le Monde Diplo-
ta resistir, enquanto os outros atores congregações evangélicas pode con- iriam conter o presidente, refreando matique, nov. 2018.
2   Adam Przeworski, Crises of democracy [Cri-
institucionais ficam paralisados no tribuir para consolidar sua nova base seus instintos mais desvairados, co- ses da democracia], Cambridge University
lamaçal político do país. O presiden- popular: essas organizações religio- mo a ameaça de invadir a Venezuela Press, 2019.
te da Câmara dos Deputados, Rodri- sas, cujos adeptos passaram de cerca em fevereiro de 2019. Declarada a 3   Ver Perry Anderson, “Au Brésil, les arcanes
d’un coup d’État judiciaire” [Os arcanos de
go Maia, que decide se dá prossegui- de 7% para 30% da população entre pandemia, no entanto, os militares um golpe de Estado judiciário no Brasil], Le
mento ou não aos processos de 1980 e 2019, concentram-se nos bair- do governo adotaram uma postura Monde Diplomatique, set. 2019.
impeachment (há mais de trinta), sa- ros populares. Embora permaneça tutelar: colocando-se “acima do con- 4   Hanrrikson de Andrade e Patrick Mesquita,
“Encontro entre pastores e Bolsonaro tem
be que Bolsonaro, empenhado em católico, Bolsonaro se fez batizar por flito”, pareciam achar que seu dever oração por Congresso e STF”, UOL Notícias,
garantir sua retaguarda oferecendo um pastor da Assembleia de Deus nas era apreciar a pertinência das deci- São Paulo, 5 jun. 2020. Disponível em: ht-
cargos importantes aos partidos do águas do Jordão, em Israel (2016). No sões do Executivo, mas também dos tps://noticias.uol.com.br.
5   Antônio Hamilton Martins Mourão, “Limites e
“Centrão”, tem votos suficientes para auge da crise sanitária, ele recebeu poderes Judiciário e Legislativo, dos responsabilidades”, O Estado de S. Paulo, 14
barrar qualquer tentativa desse gêne- representantes de onze igrejas evan- governadores, das atividades da im- maio 2020.
ro no plenário. gélicas no palácio presidencial. Silas prensa e da sociedade como um todo. 6   Ricardo Ferraz, “Bolsonaro tem papel de ‘cau-
sar explosão’ para permitir ação ‘reparadora’
Ninguém sabe até quando os par- Malafaia, o pastor mais conhecido do Num artigo publicado em meados de de militares, diz antropólogo”, BBC News
lamentares do suposto “Centrão” grupo, declarou que o Brasil “não vai maio, após a abertura da investiga- Brasil, Londres, São Paulo, 7 jun. 2020.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

GOVERNO BRASILEIRO SACRIFICA PARTE DA POPULAÇÃO

“Não posso parar de trabalhar”:


o avanço do coronavírus e da fome
A fala de um vendedor ambulante de 65 anos que continuava vendendo suas mercadorias pela cidade de São Paulo
sintetizou o dilema que rapidamente ganhou o noticiário nacional e internacional: “O que você quer que eu faça?
Se não morrer desse vírus, morro de fome. Não posso parar de trabalhar”

POR JOSÉ RAIMUNDO SOUSA RIBEIRO JUNIOR*

E
ntre o final de fevereiro e o iní- bém lidavam com a restrição quanti- relatou dificuldades para arcar com Sendo assim, por mais grave que
cio de março, uma sequência de tativa de alimentos em seus domicí- as refeições dos três filhos que antes seja a situação atual, é preciso reco-
fatos evidenciou que o novo co- lios, ou seja, comiam menos do que comiam na escola; da diarista demiti- nhecer que estamos vivendo a fase
ronavírus (Covid-19) não ape- achavam que deviam, pulavam refei- da pelo WhatsApp que afirmou de- inicial de um longo processo de ex-
nas chegaria ao Brasil, como também ções ou sentiam fome e não comiam pender da cesta básica entregue pela pansão e intensificação da fome.
exigiria que nossa sociedade prati- por falta de dinheiro.3 igreja; do casal de desempregados
casse o distanciamento social. Em 11 Tudo indica que no momento em que declarou contar apenas com um MORRER DE VÍRUS
de março, a Organização Mundial da que a pandemia chegou ao Brasil essa pacote de arroz, dois de feijão, um li- OU MORRER DE FOME?
Saúde passou a descrever a situação situação era ainda mais grave. De tro de óleo e sal para alimentar a si O dilema entre “morrer de vírus ou
como uma pandemia e, com a confir- acordo com o IBGE, entre 2013 e 2018, próprios e aos dois filhos de 1 e 2 morrer de fome” já se tornou um sen-
mação do primeiro caso e da primei- a taxa de desocupação passou de 7,2% anos; do morador de rua que contou so comum habilmente explorado
ra morte em território nacional, dife- para 12%; a subutilização da força de que bebia água para enganar o estô- pelos interessados na retomada das
rentes governos estaduais e trabalho, de 17,1% para 24,6%; a pro- mago nos dias em que não conseguia atividades econômicas, independen-
municipais passaram a decretar o porção de pessoas ocupadas em tra- se alimentar; do pedreiro sem empre- temente dos riscos que isso represen-
início do período de quarentena. balhos informais, de 40,3% para go que agradece quando tem feijão ta para a população. Se por um lado
.

Desde então, a palavra “fome” to- 41,5%; e a quantidade de pessoas vi- para acompanhar o arroz e que afir- esse dilema tem se materializado na
mou o noticiário. Em 18 de março, vendo na pobreza, de 24,9% para mou que prepara seus alimentos num vida de milhões de brasileiros, por
antes mesmo de a quarentena ter sido 25,3%.4 Dados como esses eviden- fogão a carvão, pois não tem dinheiro outro ele encobre ao menos dois fatos.
decretada no estado de São Paulo, ciam por que para milhões de brasi- para o gás; da mãe que relatou que ela Primeiro, dissimula que as pessoas
Gilson Rodrigues, líder comunitário leiros a necessidade de isolamento so- e seus filhos passaram a acordar mais mais pobres já são aquelas que estão
e presidente da União de Moradores e cial soou como um anúncio da fome. tarde para pular o café da manhã e ir sendo simultaneamente expostas ao
Comerciantes de Paraisópolis, já É imprescindível reconhecer que direto para o almoço; do ajudante de vírus e à fome. Segundo, mascara que
anunciava que os moradores de fave- a fome é vivida como um processo e pedreiro que ficou sem renda e con- a pandemia simplesmente exacerbou
la, em especial os desempregados e não pode ser tomada apenas por suas tou que vai com o filho de 2 anos aos um dilema anterior, que já pesava
as crianças que dependiam da ali- consequências mais graves, como a mercados de Parelheiros (São Paulo) sobre grande parte da população:
mentação escolar, iriam passar fome desnutrição severa e a perda de peso. pedir doações; e da mulher, benefi- continuamente expropriada das con-
caso não houvesse um plano especí- Muito antes dessas situações extre- ciária do Bolsa Família, que mesmo dições necessárias para garantir seu
fico para minimizar os efeitos da cri- mas, as pessoas já sofrem com inacei- antes da quarentena já vasculhava sustento, ela é obrigada a aceitar as
se social que se anunciava.1 táveis sensações físicas e psíquicas caçambas de lixo de supermercados condições de trabalho impostas ou
Poucos dias depois, a fala de um provocadas pela privação de alimen- na Brasilândia (São Paulo) e pontuou sofrer com a fome.
vendedor ambulante de 65 anos que tos. Precedida por preocupação, an- que agora nem lá encontra algo para A exposição ao vírus não deixa de
continuava vendendo suas mercado- siedade e medo, causados pela pers- alimentar a família.6 ser, portanto, o mais novo risco a que
rias pela cidade de São Paulo sinteti- pectiva de que os alimentos (ou os Outras crises econômicas já de- muitos devem se submeter em troca
zou o dilema que rapidamente ga- meios para adquiri-los) não serão su- monstraram que suas consequên- de um emprego. É o que explicita a fa-
nhou o noticiário nacional e ficientes, a fome se inicia com a res- cias sobre a alimentação tendem a se la de uma diarista que vive em Barra
internacional: “O que você quer que trição da dieta a um grupo reduzido estender por anos. Foi o que ocorreu do Ceará (Fortaleza) com o marido e
eu faça? Se não morrer desse vírus, de alimentos, o que compromete a durante a crise mundial de 2007- dois filhos e continua caminhando
morro de fome. Não posso parar de qualidade da alimentação. Nos casos 2008 e o período de recessão que a por uma hora até o trabalho para
trabalhar”.2 em que a privação persiste ou se in- sucedeu. Apenas em 2009, de acordo economizar na condução: “A gente
tensifica, a quantidade dos alimentos com a Agência das Nações Unidas tem medo de pegar coronavírus, mas
O AVANÇO DA FOME também é comprometida, o tamanho para a Agricultura e a Alimentação tem que buscar o alimento”.9
A fome não chegou ao Brasil com o das refeições é reduzido e estas dei- (FAO), a quantidade de pessoas cro-
coronavírus. Se as gestões do PT no xam de ser realizadas com a mesma nicamente desnutridas no mundo DEIXAR MORRER
governo federal promoveram melho- frequência. Nos estágios mais graves, aumentou em aproximadamente 100 Desde o início da pandemia o gover-
rias na situação alimentar dos brasi- as pessoas passam por longos perío- milhões de pessoas, ultrapassando a no federal deixou claro que não se im-
leiros, em 2013 aproximadamente 52 dos sem alimentação, até se aproxi- marca de 1 bilhão de desnutridos.7 portaria em sacrificar uma parte da
milhões de pessoas (25,8 % da popu- marem da inanição.5 Mesmo em países desenvolvidos, es- população para manter-se fiel aos in-
lação) ainda conviviam com a preo- Desde o fim de março, matérias e sa crise produziu uma deterioração teresses das classes dominantes, dos
cupação de que os alimentos acabas- reportagens jornalísticas apresenta- significativa da situação alimentar. grandes proprietários de terra à aris-
sem antes de poderem comprar mais ram inúmeros relatos sobre a fome. Nos Estados Unidos, a insegurança tocracia financeira. A principal medi-
comida ou se viam sem dinheiro para Em apenas um dos jornais de grande alimentar cresceu aproximadamen- da para assistir aqueles que não têm
ter uma alimentação saudável e va- circulação no país, foram noticiadas te 30% em 2008, tendo retornado ao renda para adquirir os alimentos de
riada. Destas, aproximadamente 17,5 as histórias da auxiliar de limpeza patamar anterior à crise somente que necessitam foi o pagamento, para
milhões (8,7% da população) tam- que, após ser dispensada pelo patrão, dez anos depois.8 trabalhadores sem carteira assinada,
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19

© Marcelo Camargo/Agência Brasil


desempregados e microempreende-
dores individuais com renda per capi-
ta de até meio salário mínimo, de um
auxílio emergencial de R$ 600, por
três meses. Não é preciso muito esfor-
ço para constatar que o valor desse
auxílio é insuficiente para garantir
que as famílias que dele dependem
não passem fome. Basta considerar a
pesquisa realizada pelo Dieese em
dezessete capitais que identifica que,
em abril deste ano, o custo da cesta
básica de alimentos para um adulto
variava entre R$ 401,37 (Aracaju) e R$
556,35 (São Paulo).10
O Estado, em seus três níveis de
governo, possui outros meios para
assegurar que ninguém passe fome
durante a pandemia. O fortalecimen-
to e a articulação de políticas já exis-
tentes poderiam contribuir para que
não faltassem alimentos para a po-
pulação durante e após a pandemia.
O uso do Programa Nacional de Ali-
mentação Escolar (Pnae) para garan-
tir que todas as crianças da rede pú-
blica de ensino recebessem auxílio Muitas trabalhadoras e trabalhadores sequer puderam ficar em quarentena por conta da falta de assistência do Estado
alimentar, ou ainda do Programa de
Aquisição de Alimentos da Agricultu- da crise multiplicaram-se iniciativas mesmo que seja ressaltada a impor- vivendo um momento de radical de-
ra Familiar (PAA), tanto para escoar autogestionadas no campo e na cida- tância e magnitude dos esforços auto- silusão. Caracterizada pela tristeza,
produtos de pequenos produtores de para a doação de alimentos. As re- gestionados, desde o início do perío- frustração e decepção, a desilusão
(que em muitos casos já encontram des de solidariedade que se formaram do de quarentena a situação alimentar também pode ser lida como o mo-
dificuldades) como para destiná-los possuem enorme capilaridade e têm já se deteriorou significativamente. mento em que, porque nossas ilusões
.

a equipamentos públicos de segu- demonstrado que, especialmente nos caem por terra, nos vemos obrigados
rança alimentar e nutricional (ban- momentos de crise, os trabalhadores O AGRAVAMENTO DA a enfrentar a realidade (enfrentar a
cos de alimentos, restaurantes popu- só podem contar consigo mesmos. FOME E DA EXPLORAÇÃO fome) sem falsas esperanças. 
lares etc.), seriam formas de Algumas dessas iniciativas, por Nos anos 1980, Amrita Rangasami
assegurar que os alimentos chegas- conta de sua capacidade de mobiliza- destacou que as crises de fome não José Raimundo Sousa Ribeiro Junior é
sem a quem mais precisa. ção adquirida historicamente na lu- podem ser compreendidas conside- doutor em Geografia Humana pela USP,
É grande a lista de medidas factí- ta, possuem maior visibilidade. É o rando-se apenas as vítimas desse professor visitante do Instituto de Saúde e
veis, e os exemplos explicitam a exis- caso das ações promovidas pelo Mo- processo. De acordo com a autora in- Sociedade da Unifesp e representante da
tência de conhecimento e meios téc- vimento dos Trabalhadores Rurais diana, essas crises devem ser inter- Associação dos Geógrafos Brasileiros
nicos para enfrentar a fome. Sem Terra (MST), que até o início de pretadas como um processo que (AGB-SP) no Conselho Municipal de Segu-
Tampouco faltam os recursos econô- junho já havia doado mais de 1.200 também produz ganhos para uma rança Alimentar (Comusan).
micos, seja porque o Estado demons- toneladas de alimentos e 50 mil mar- parte da sociedade. Afinal, assolada
tra possuí-los quando se trata, por mitas solidárias.12 Cabe destacar que pela fome, a população empobrecida
1   “ Favelas serão as grandes vítimas do corona-
exemplo, de destinar a maior parte as ações desse movimento têm expli- fica ainda mais exposta ao endivida- vírus no Brasil, diz líder de Paraisópolis”, BBC
do orçamento federal para os gastos citado que a doação é fruto da mobi- mento ou a vender tudo o que possui News Brasil, 18 mar. 2020.
com a dívida pública (atendendo aos lização dos trabalhadores e um ato para sobreviver, e se vê obrigada a 2   “Se não morrer desse vírus, morro de fome”,
diz ambulante de 65 anos, UOL Notícias, 22
interesses do setor financeiro),11 seja de solidariedade, retirando o estigma aceitar remunerações mais baixas e mar. 2020.
porque o Poder Legislativo tem as que pesa sobre aqueles que delas condições de trabalho ainda mais 3   Pnad: Segurança Alimentar – 2013, Rio de
prerrogativas necessárias para obtê- dependem. precárias. Assim, as crises de fome Janeiro, IBGE, 2014.
4   Síntese de indicadores sociais, Rio de Janei-
-los por meios variados, como a tri- Ações como essas diferem daque- também são caracterizadas pelo au- ro, IBGE, 2019.
butação de grandes fortunas. las promovidas pela filantropia cor- mento da expropriação e exploração 5   Kathy L. Radimer et al., “Understanding hun-
Contudo, sem o poder político ne- porativa, realizada por empresas que dos trabalhadores e, por isso, repre- ger and developing indicators to assess it in
women and children” [Entendendo a fome e
cessário para que as medidas para defendem implícita ou explicitamen- sentam novas e ampliadas oportuni- desenvolvendo indicadores para avaliá-la em
enfrentar a fome sejam aprovadas te o fim dos direitos trabalhistas e dades para a acumulação. Há, por- mulheres e crianças], Journal of Nutrition Edu-
pelo Legislativo e colocadas em práti- previdenciários e o desmonte dos tanto, quem ganhe com a fome. cation, v.24, n.1, 1992.
6   Relatos extraídos de reportagens publicadas
ca pelo Executivo, podemos imagi- serviços públicos gratuitos e univer- Os próximos meses e anos, assim pela Folha de S.Paulo entre 27 de março e 10
nar, mas não realizar, as mudanças sais. Muitas dessas empresas, inclu- como aconteceu após a crise mundial de abril.
necessárias no orçamento e funcio- sive, mantêm formas de apoio ao go- de 2007-2008, tendem a ser marcados 7   FAO, “The state of food insecurity in the world”
[O estado da insegurança alimentar no mun-
namento do Estado. verno Bolsonaro em troca de uma por revoltas alimentares (food riots) do], Roma, 2009.
agenda econômica neoliberal. Para com potencial de politizar a fome e 8   Ver Economic Research Service, USDA,
A SOLIDARIEDADE quem, até ontem, repetia insistente- ameaçar a estabilidade política, eco- “Food Security in the U.S., Key Statistics &
Graphics”.
DOS TRABALHADORES mente que “não existe almoço grá- nômica e social. Se não é possível 9   “Desigualdade eleva letalidade da Covid na
O atual cenário impôs aos próprios tis”, as doações funcionam como prever a intensidade e o sentido polí- favela, diz estudo”, Deutsche Welle, 28 maio
trabalhadores e trabalhadoras a marketing social necessário para a tico dessas revoltas, é certo que a mo- 2020.
10  Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Ali-
constituição por si mesmos (e contra manutenção de relações econômicas bilização e a organização da popula- mentos, Dieese, 11 maio 2020.
todas as adversidades) de formas de que produzem a fome. ção serão essenciais para se contrapor 11  Auditoria Cidadã da Dívida.
ação organizada para enfrentar a fo- Contudo, a magnitude da crise à fome que já se agrava. 12  Catarina Barbosa, “Campanha nacional do
MST já doou 1.200 toneladas de alimentos
me. Utilizando recursos próprios ou não permite que ela seja enfrentada Por conta da pandemia e de suas durante pandemia”, Brasil de Fato, 3 jun.
advindos de doações, desde o início apenas com doações de alimentos e, consequências, muitos de nós estão 2020.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

A REGIÃO QUE DERRUBOU O “ÍNDIO”

Bolívia: na estrada com


país”. Agora candidato à eleição pre-
sidencial (inicialmente prevista para
3 de maio de 2020, mas adiada para 6
de setembro por causa da pandemia

a elite de Santa Cruz


de Covid-19), na época Camacho
convocou o povo a se reunir em torno
da monumental estátua do Cristo Re-
dentor, uma das fortalezas da cidade,
a fim de comunicar suas instruções
Do Wall Street Journal às franjas mais descerebradas da esquerda internacional, quase para a continuidade das mobiliza-
todos os comentaristas defenderam a ideia de que o presidente Evo Morales fraudou ções. “Oitenta por cento da derruba-
da do ‘índio’ é mérito de Santa Cruz,
as eleições de outubro de 2019. Seu erro contribuiu para a saída do agora ex-chefe de do ponto de vista econômico e logís-
Estado, em benefício da elite reacionária de Santa Cruz. Esta sonha assumir de vez tico”, conclui Natalia. Quem é o “ín-
as rédeas do país nas eleições de 6 de setembro dio”? O presidente derrubado, Evo
Morales. Outra cidadã de Santa Cruz,
com quem conversamos depois, con-
POR MAËLLE MARIETTE*, ENVIADA ESPECIAL firmou: Sirce Miranda conta ter visto,
todas as noites, seu companheiro e

C
hegar a Santa Cruz de la Sierra é o deles como oferenda a Pachama- to renova as unhas, Natalia fala da vários membros do Comitê Pró-Santa
uma experiência estonteante. ma”. Na época, Natalia só tinha um alegria de ter suas preces atendidas. Cruz percorrendo os vários pontos de
No aeroporto, cruzamos com sonho: derrubar o presidente Evo Não sem certo orgulho. Foi seu primo bloqueio da cidade para “recompen-
homens de terno, famílias me- Morales, aquele “índio analfabeto”. quem “libertou a Bolívia do inferno sar” os manifestantes por sua mobili-
nonitas ruivas, mulheres que pare- da ditadura”: Luis Fernando Cama- zação, com dinheiro e arroz. Assusta-
cem ser obrigadas pelos costumes lo- O MAIS IMPORTANTE AQUI cho, advogado milionário e bem-dis- da com o que viu, ela rompeu a
cais a passar – quando se atinge É PARECER NORTE-AMERICANO posto em seus 40 anos – e que, segun- relação com o parceiro.
determinado padrão de vida – pelo Quase um ano depois, ela combina do informações divulgadas pelo Situado no centro da cidade, na
bisturi do cirurgião plástico e taxistas de nos encontrar no Divine, um nails Consórcio Internacional de Jornalis- Rua Canada Strongest, em um belo
sempre procurando clientes (estes ge- bar (literalmente, “bar de unhas”) tas Investigativos (Icij), em abril de edifício colonial cercado por um
ralmente de pele mais clara que a da- novo em folha, todo de vidro e már- 2016 criou três empresas offshore no grande pátio sombreado onde tre-
queles). No caminho para a cidade, more. As (muitas) funcionárias usam Panamá, para que ele, outros indiví- mula a bandeira verde e branca de
uma interminável linha reta, passa- blusas brancas curtas, sapatos plata- duos e também empresas bolivianas Santa Cruz, o Comitê Pró-Santa Cruz
mos pelo calor escaldante, pelas pla- forma e lentes de contato azuis, o que pudessem praticar lavagem de di- é “o governo moral dos cidadãos de
.

nícies áridas, pelas charretes que ul- as deixa parecidas com as cantoras nheiro e evasão fiscal... Santa Cruz”, explica Castel. O que ele
trapassam veículos 4×4 e pelas descartáveis que desfilam nas telas Em novembro de 2019, um golpe faz? “Defende os interesses de Santa
concessionárias que vendem tratores de TV penduradas nas paredes, liga- apoiado pela polícia e pelos militares Cruz perante o Estado”. Embora
de última geração, exibidos como veí- das na MTV. As clientes do salão es- derrubou Evo Morales, que desde en- composto por cerca de trezentas or-
culos de luxo, como que para lembrar forçam-se para falar entre si apenas tão está exilado.1 O episódio foi pre- ganizações da “sociedade civil”, o
de onde vem a riqueza da região. Pas- inglês (até que a falta de vocabulário cedido por uma greve geral de 21 Comitê Pró-Santa Cruz é, desde sua
samos também ao longo de bairros as force a voltar ao espanhol). É que a dias, após os resultados controversos fundação, em 1950, uma instituição
periféricos miseráveis, aos quais se coisa mais importante por aqui é pa- da eleição presidencial de outubro de de elite, firmemente controlada pela
sucedem residências de luxo com pis- recer alguém dos Estados Unidos. No 2019, que reelegeu o então presidente oligarquia local. Para candidatar-se
cina na cobertura e academia no tér- aeroporto, muitos moradores da ci- no primeiro turno. Durante todo esse à presidência da entidade é preciso
reo, até finalmente chegarmos ao cen- dade que possuem dupla nacionali- período, o Comitê Pró-Santa Cruz, ser apadrinhado por empresários in-
tro antigo, com seu charme colonial. dade – boliviana e norte-americana – presidido por Camacho, empenhou- fluentes e fazer uma campanha que
Situada nas planícies orientais da preferem passar na imigração usando -se em colocar lenha na fogueira. A “custa caro”, explica Herland Vaca
Bolívia, Santa Cruz de la Sierra é a ca- o passaporte dos Estados Unidos a organização dispunha, segundo seu Díez Busch, presidente da instituição
pital do departamento de Santa Cruz, pegar uma fila muito mais rápida administrador, Diego Castel, do entre 2011 e 2013.
o maior e mais populoso do país. com documento da Bolívia. Enquan- “mais forte poder de mobilização do As outras condições são “ter nas-
Com uma área maior que a da Alema- cido em Santa Cruz e viver ali há mais
© Ruditaly/ Wikimedia
nha, ele cobre um terço do território de quinze anos”, completa Castel. E
boliviano e tem mais de 2 milhões de acrescenta: “São imposições do mun-
habitantes, a grande maioria na capi- do moderno! Até recentemente, tam-
tal. A presença de hidrocarbonetos bém era preciso ser filho de pais de
no subsolo e um poderoso setor Santa Cruz”. “Filho”, pois – ele se es-
agroindustrial elevaram o departa- queceu de dizer – a influência do
mento à categoria de “pulmão econô- “mundo moderno” não chegou ao
mico do país”, representando mais de ponto de permitir que as mulheres
30% do PIB. presidam o poderoso comitê dessa ci-
Em uma viagem anterior, em de- dade conservadora. Embora a entida-
zembro de 2018, conhecemos Natalia de conte com uma “seção feminina”,
Ibáñez no avião. Depois, ela nos rece- esta permanece periférica e ocupa-se
beu calorosamente em sua cidade. apenas das relações sociais.
“Santa Cruz é a cidade mais moderna Durante nossa visita às instala-
da Bolívia. Você notou todos esses ções do comitê, cruzamos justamen-
condomínios?”, perguntou, referin- te com uma das figuras da “seção fe-
do-se aos loteamentos particulares minina”: Maria Carmen Morales de
com vigilância privada que abundam Prado, carinhosamente apelidada de
por aqui. “Isso é normal: em Santa “Negrita”, cuja festa de 60 anos fez a
Cruz nós sabemos investir, sabemos alegria das colunas sociais das revis-
fazer nosso dinheiro crescer. Não so- tas da cidade. Ela explica que “o co-
mos como esses índios que enterram Santa Cruz de la Sierra é a capital do departamento mais populoso da Bolívia mitê é um trampolim para entrar na
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21

política”. A maioria dos políticos de cidade, ele nos relata com orgulho do, por isso nos pararam. Com seus metade do país, a parte oriental, onde
Santa Cruz foi, portanto, treinada que, para o movimento, a Bolívia é direitos sociais, seus benefícios pú- não é frio, mas quente, onde somos
nessa escola: um dos ex-presidentes “uma espécie de Tibete sul-america- blicos e sua companhia, destruíram altos e brancos, onde falamos inglês.
da entidade está em seu sexto man- no, composto pelos grupos étnicos nossos negócios. Basta que uma em- Essa ideia preconcebida de que a Bo-
dato como prefeito, e outro está no atrasados e miseráveis Aymara e presa tenha três funcionárias ficando lívia é apenas um país andino é fal-
terceiro como governador da provín- Quechua, onde reina uma cultura de grávidas ao mesmo tempo e já era. sa”. Após alguns minutos de reflexão,
cia. Ela conta emocionada os últimos conflito, pré-republicana, não libe- Você sabia que temos de pagar a elas Herland responde à nossa pergunta
meses intensos passados junto aos ral, sindicalista e conservadora, cujo ‘auxílio-aleitamento’, além do doble citando de memória uma passagem
jovens do comitê que estavam “pron- centro burocrático [La Paz] pratica aguinaldo [um 13º salário dobrado], de... Mein Kampf. Imaginando que
tos a fazer qualquer coisa pelo triunfo um execrável centralismo de Estado que todos os funcionários recebem? pudéssemos ter entendido errado,
da democracia”. Esses jovens, que a colonial que explora suas ‘colônias É isso que dá fazer as mulheres perguntamos: “O livro de Adolf Hi-
chamam carinhosamente de “tia”, internas’, apropria-se de nossos su- trabalharem...”. tler?”. “Sim!”, ele responde. “É um
formam a Unión Juvenil Cruceñista. perávits econômicos e nos impõe a No meio do caminho, passamos clássico! Você conhece?”
O compromisso apaixonado com a cultura do subdesenvolvimento, sua pela cidade de San Julián, que brotou Seguimos de carro por mais de
“recuperação da democracia” dessa cultura”. Portanto, de um lado estão do solo há trinta anos e cujos 48 mil três horas. As paisagens tornaram-se
“equipe de choque do comitê” fre- os cambas, habitantes do leste do habitantes são, em sua maioria, colo- mais montanhosas e exuberantes.
quentemente leva seus membros à país, normalmente brancos e “oci- nos, camponeses indígenas vindos do Atravessamos pequenas vilas com
prisão por violência. dentalizados”; do outro, os collas, ter- interior do país para cá. “Esta selva”, casas coloniais baixas e varandas co-
mo que estigmatiza os “indígenas” como chamam os dois irmãos, é “um bertas, alinhadas em ambos os lados
QUERO QUE MEUS FILHOS MERGU- andinos do oeste do país. exemplo da invasão colla”, da qual os das ruas de terra batida. No caminho,
LHEM NO CHEIRO DO DINHEIRO “Santa Cruz não deve nada à Bolí- cidadãos de Santa Cruz são “vítimas”. cruzamos com várias Harley David-
A Unión Juvenil Cruceñista está se- via”, continua. “Quando eu nasci, em “Esses selvagens jogam pedras em son montadas por adiposos homens
diada nas instalações do comitê. Seus 1948, esta cidade era uma vila, sem nossos carros quando atravessamos a brancos, de cabelos ao vento, com as
militantes se reúnem no fundo do pá- uma rua asfaltada, com apenas 40 mil vila. Além de invadir nossas terras, carnes transbordando da camisa de
tio, no primeiro andar, com ar-condi- habitantes. Veja como prosperou! Ho- eles nos atacam e chegam a nos ma- caubói, ultrapassando as pequenas
cionado no máximo e chão coberto je somos mais de 1,5 milhão de habi- tar. Precisamos nos separar desses motocicletas cobertas de lama das fa-
de bitucas de cigarro. Ele são quase tantes! Fomos abandonados pelo Es- loucos”, explicam os defensores da mílias de pele mais escura. Os dois
trezentos, têm menos de 30 anos, são tado central, que preferia ajudar os autonomia da região. Enquanto atra- irmãos ficam animados por reencon-
brancos, geralmente estudantes e departamentos mineiros. Nós, de vessamos o local sem nenhum incô- trar a atmosfera de sua juventude, já
oriundos das classes médias e altas Santa Cruz, pedimos ajuda, mas, co- modo e cruzamos com mulheres que parte de sua família é da região.
(embora os membros das classes po- mo o Estado não deu, fizemos as coi- usando tranças e saias bufantes tra- Tulio, nostálgico, recorda: “Ei, Gran-
pulares sejam cada vez mais numero- sas por conta própria: nosso sistema dicionais do Altiplano, o irmão do de [apelido com que se dirige ao ir-
sos). Aqui, ninguém reluta em fazer a de água, de telecomunicações e de médico comenta: “Eles não têm nada mão], você se lembra do índio em que
.

saudação fascista, com o braço esten- eletricidade. Temos orgulho disso.” E o que fazer aqui, não estão adaptados você bateu ali na rua quando derru-
dido, durante as reuniões: considera- acrescenta: “Tudo o que fizemos em ao ambiente. Por exemplo, os ani- baram sua bicicleta?”
da um grupo paramilitar pela Fede- Santa Cruz foi feito com o suor do nos- mais, no inverno, têm mais pelos; isso Finalmente chegamos a San Ja-
ração Internacional dos Direitos so rosto”. Na visão de nosso interlocu- é se adaptar ao ambiente. Eles sentem vier, onde nos encontramos com os
Humanos, a Unión Juvenil Cruceñis- tor, não parece grande coisa que o Es- calor, suam e cheiram mal”. Não há camaradas “autonomistas” reunidos
ta foi fundada em 1957 por Carlos tado boliviano tenha construído as como negar que as mulheres indíge- para plantar um mojón (estaca de
Valverde Barbery, líder da Falange infraestruturas de Santa Cruz, como nas não correspondem aos cânones madeira com 2,20 metros de altura e
Socialista Boliviana, criado vinte as estradas e os gasodutos, além de ter da beleza de Santa Cruz, incorpora- 20 centímetros de largura) na praça
anos antes segundo o modelo das bri- investido maciçamente no desenvol- dos pelas magnificas, manequins de principal de San Javier, em frente à
gadas franquistas da Espanha. Ser fa- vimento da agroindústria da região. pele clara e silhuetas alongadas que, Prefeitura. O organizador do evento,
langista continua sendo uma condi- Preocupado em fazer uma apre- todo mês de setembro, posam de Joe Nuñez Klinsky, empresário de
ção para ingressar na Unión Juvenil sentação justa da região, de sua cultu- maiô entre os reluzentes tratores e as Santa Cruz, explica, com seu bigode
Cruceñista, como nos confirmou ra e de seus valores, Herland nos con- cabeças de gado inchadas com hor- ruivo animado por uma convicção
mais tarde Gary Prado Araúz, advo- vida para ir no fim de semana, com ele mônios na Feira Econômica Interna- sincera e entusiasmada, que “o obje-
gado proeminente da cidade. Em um e seu irmão Tulio, a Concepción, uma cional de Santa Cruz (Fexpocruz), tivo dessa ação cívica é deixar mar-
filme que conta a história da organi- pequena cidade da província localiza- uma verdadeira instituição da região. cos da corrente autonomista em cada
zação,2 Carlos Valverde Barbery ex- da 300 quilômetros a nordeste de San- cidade de nossa região, acompa-
plica: “A Unión Juvenil Cruceñista foi ta Cruz. Na BMW que nos transporta, “O LIVRO DE HITLER? nhando o processo que deve levar a
criada para ser o ‘braço armado’ do os irmãos estão muito animados com É UM CLÁSSICO! CONHECE?” uma Constituinte federal na Bolívia,
comitê, encarregando-se não apenas a ideia de mostrar “a sua Santa Cruz”, Atravessamos de carro imensos cam- primeiro passo rumo à autonomia de
da luta de rua, mas também da dou- à qual se sentem profundamente ape- pos de soja e de milho, ouvindo as do- Santa Cruz”. Estão ali cerca de cin-
trinação popular e do apoio militar à gados. “Os collas são uma raça espe- ces vozes de Aldo Peña e Gina Gil, quenta pessoas, a maioria homens de
entidade”. Foi nessa organização que cial, sabe. São preguiçosos e ignoran- cantores populares cambas, que in- 60 anos, de jeans e camiseta, calçan-
Camacho deu seus primeiros passos, tes. Esperam a ajuda cair do céu. terpretam suas maiores canções, “La do mocassins ou botas de caubói, de
antes de se tornar, em 2002, com ape- Nunca tomam a iniciativa. Eu sempre cruceñidad”, “Pena cruceña” e “Viva chapéu na cabeça e faca embainhada
nas 23 anos de idade, seu mais jovem cuidei para que meus filhos não con- Santa Cruz”. Mas o que exatamente é na cintura, Ray-Ban no nariz e um
vice-presidente. vivessem com os pobres, para não fi- cruceñidad? A pergunta deixa os ir- grande relógio de ouro no pulso. Após
Em sua clínica particular, sentado carem preguiçosos. Quero que mer- mãos perplexos. Eles amadurecem seu discurso, Herland – que não dei-
atrás de uma mesa coberta com fotos gulhem no cheiro do dinheiro para longamente sua resposta, da mesma xou de se referir a seu tio Germán
de seus filhos e netos e repleta de li- tomar gosto por ele. Que aprendam forma como fez a cidadã de Santa Busch Becerra, filho de um médico
vros antigos sobre a história da re- com gente bem-sucedida e trabalha- Cruz Gabriela Oviedo, Miss Bolívia alemão que ficou famoso por suas
gião, Herland nos conta que é um dos dora, porque riqueza chama riqueza.” 2003, que, quando questionada sobre proezas durante a Guerra do Chaco,
fundadores e ideólogos do Movi- Depois de elogiar as opções lu- seu país durante o concurso Miss na qual Bolívia e Paraguai se enfren-
miento Nación Camba de Liberación xuosas de seu sedã alemão, o médico Universo, respondeu: “Infelizmente, taram entre 1932 e 1935, e que se pro-
(MNC-L, Movimento Nação Camba continua: “Em Santa Cruz, nós po- quem não conhece a Bolívia pensa clamou presidente do país em 1937 –
de Libertação). Entre uma bandeira díamos ter alcançado muito mais de- que todo mundo aqui é índio. La Paz ergue a bandeira verde e branca de
verde e branca de Santa Cruz e uma senvolvimento, mas o ‘índio’ [Evo reflete essa imagem, com sua gente Santa Cruz que cobre o mojón, sob os
Virgem Maria posicionada na prate- Morales] não deixou. As pessoas do pobre e de baixa estatura, com seus aplausos da plateia. A plateia entoa o
leira ao lado do brasão de armas da oeste, como ele, já nascem nos odian- povos autóctones. Eu venho da outra hino de Santa Cruz com a mão no
22 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

peito, agitando bandeiras com as co- lhos invejavam seus amiguinhos. rales, os cidadãos de Santa Cruz te- apertados em camisas de marca, jo-
res da região. Os membros da elite de Quanto ao padre, ele começou assim: riam sido vítimas de uma forma de vens usando jeans e tênis da moda.
Santa Cruz normalmente têm terras “Estamos todos aqui reunidos, meus “extorsão”, como explica Pablo Men- Adentramos um grande salão e a cele-
por aqui. Quando observamos: “Que queridos irmãos e minhas queridas dieta Ossio, diretor do Centro de Eco- bração se inicia com música. Acompa-
interessante, quase todos vocês têm irmãs, para que o selvagem Evo Mo- nomia da Câmara da Indústria, Co- nhado por um baterista, um baixista,
olhos azuis, como eu!”, eles respon- rales nunca mais volte”. mércio, Serviços e Turismo de Santa três guitarristas e um tecladista, o vo-
dem: “Meu pai” – ou avô – “era euro- Reunidos os três irmãos, partimos Cruz: “O problema não é tanto a taxa calista entoa canções cristãs repetidas
peu”, e acrescentam: “Há muitos des- para a fazenda Berlim, a 20 quilôme- de imposto, nossos impostos são mui- pelo público. As palavras fluem sobre
cendentes de alemães por aqui”. tros dali. É uma propriedade de 1.200 to baixos na Bolívia, mas os controles um fundo com imagens de nascer do
Terminada a cerimônia, voltamos hectares, cujo dono, Oscar Mario Jus- que se intensificaram nos últimos sol, chamas e céus estrelados, exibidas
para Concepción, rumo à fazenda de tiniano, nos espera em sua imponen- anos, multiplicando as possibilidades em duas telas gigantes penduradas na
um terceiro irmão, multimilionário te casa colonial, cercada por uma de erro por parte dos serviços fiscais; parede, enquanto um técnico faz
(“E estou falando de dólares!”, especi- grande pérgola. Não estamos sozi- portanto, de multas. As empresas manchas coloridas dançarem no rit-
fica Tulio), proprietário de áreas de nhos: cerca de quinze homens, já acumularam dívidas fiscais que re- mo da música. Rapidamente, o tom do
exploração de madeira, cana e de presentes na cerimônia autonomista, presentam somas muito grandes e cantor que conduz o salão e recupera
criação de gado, como a maioria dos acabam de chegar. O grupo é unido cujo pagamento as colocaria em uma suas forças com alguns goles de Red
grandes proprietários de terras da re- desde a infância: todos foram colegas situação delicada”. Desde que o gene- Bull entre uma canção e outra torna-
gião. Depois de chegar à praça princi- de classe de Oscar e Tulio, quando es- ral Banzer Suárez chegou ao poder, -se mais meloso. O público então le-
pal da bonita vila colonial indicada tes frequentavam a escola La Salle de instaurou-se na Bolívia uma tradição vanta os braços, canta mais alto, ajoe-
em todos os guias turísticos, nosso Santa Cruz. O estabelecimento de conhecida como anistia fiscal (perdo- lha-se, chora, fecha os olhos. É nesse
companheiro de viagem acrescenta ensino, religioso, privado e frequen- nazo tributario): quando um novo momento que entra em cena o pastor,
que esse não é seu único trunfo. “Aqui tado pelos filhos da elite local, é “o presidente era eleito, ele anulava as de seus 40 anos, vestido como seus
nasceu um grande homem”, anuncia melhor da cidade, pois é o mais caro”, dívidas fiscais das elites. Mas, quan- fiéis “descolados”, com um iPad debai-
ele – o general Hugo Banzer Suárez, explica um dos ex-colegas, antes de do Evo Morales chegou ao poder, ele xo do braço, no qual vai ler o sermão.
que foi presidente da República duas acrescentar: “Eles souberam fazer o interrompeu esse costume, de modo Quando a cerimônia termina, o pastor
vezes: a primeira entre 1971 e 1978, dinheiro crescer; investiram, entre que muitas grandes fortunas hoje têm convida os fiéis a “agradecer a Deus”,
após um golpe de Estado, instauran- outras coisas, em madeira e gado”. dívidas fiscais de vários milhões de acrescentando: “Todos devem dar,
do um regime militar cujo conselhei- Um cordeiro e dois porcos assados dólares. Mas o governo de facto de mesmo quem não tem muito dinheiro,
ro especial para técnicas de repressão no espeto, o pessoal de Oscar nos traz Jeanine Áñez, instaurado após o gol- pois, para mostrar a Deus que O ado-
era o oficial nazista Klaus Barbie; de- bebidas, o ambiente é de festa. Du- pe em novembro de 2019, está decidi- ramos, temos de dar algo que nos cus-
pois, entre 1997 e 2001, quando foi de- rante a refeição, explicam: “A França do a restaurar a ordem das coisas e ta”. Um estojo de guitarra colocado no
mocraticamente eleito. Fizemos nos- é um país grande porque tem um “pôr um fim à extorsão realizada pelo palco logo se enche de dinheiro. Ani-
sa refeição em um restaurante na grande Exército, energia nuclear. Isso governo anterior”, como declarou seu mado pela fé, o pastor promove sua
.

praça, cujos restos foram colocados é ser um país desenvolvido, ter capa- ministro da Economia, José Luis Pa- igreja em sua página no Facebook,
em um saco plástico para ser entre- cidade militar”. Um de seus amigos rada. Atualmente ele trabalha em anunciando a chegada de estrelas pa-
gue ao “índio” que cuida da fazenda reage: “Santa Cruz é tão grande quan- uma nova lei de anistia, apesar das ra “alucinantes” shows de rock cristão.
do irmão multimilionário. Herland to a França e tem muita riqueza. Ima- críticas de que essas mudanças legis- Entre montagens fotográficas de mo-
explica, a propósito desse ato de gene- gine se tivéssemos o Exército da Fran- lativas não poderiam ser de responsa- ças da igreja com a legenda “Aqui as
rosidade: “As pessoas que tinham po- ça: poderíamos lutar contra a invasão bilidade de um governo interino. meninas são lindas, junte-se a nós!”,
der em La Paz nos odeiam porque desses índios bárbaros e acabar com encontramos também fotos do pastor
sempre soubemos trabalhar em boa isso”. Terminada a refeição, alguns se “AQUI AS MENINAS SÃO LINDAS, na companhia de Camacho, que, “gra-
harmonia com nossos índios”. Essa jogam nas redes para digerir os quilos JUNTE-SE A NÓS!” ças à força de Deus, nos libertou mila-
coabitação fraterna não nos pareceu, de carne ingeridos, outros tomam É dia de culto. Um desfile de veículos grosamente do mal”. 
porém, tão óbvia na manhã seguinte, cerveja. Então descobrimos que todo 4×4 estaciona em frente à Igreja Cristã
quando fomos à missa dominical da ano o grupo celebra, em 9 de outubro, da Família, deixando poucas dúvidas *Maëlle Mariette  é jornalista.
missão jesuíta em Concepción. De o assassinato de Che Guevara, ocorri- sobre a prosperidade do rebanho. Em
um lado, bancos ocupados por pa- do na província de Santa Cruz, so- um imenso pátio onde todos esperam 1   Ler Renaud Lambert, “En Bolivie, un coup
trões brancos de traços europeus, nhando com o mesmo destino funes- a hora da celebração, encontramos d’État trop facile” [Na Bolívia, um golpe de Es-
cujos filhos assistiam a desenhos ani- to para todos os comunistas. um ambiente cordial, em que todos se tado muito fácil], Le Monde Diplomatique,
dez. 2019.
mados da Disney no iPhone dos pais; Porque o comunismo são os im- conhecem, com mulheres de salto al- 2   “Historia de la Unión Juvenil Cruceñista”, ví-
do outro, peões indígenas, cujos fi- postos. Sob a presidência de Evo Mo- to, homens de músculos definidos deo encontrado on-line.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23

CONSERTAR O CANO OU SECAR O VAZAMENTO?

Sob a proteção
mia”, adverte o biólogo Antoine Dan-
chin, membro da Academia de
Ciências, “temos visto, em lugar de
uma reflexão sobre a doença, uma

de um jaleco
batalha de imagens, pois pseudo-
cientistas que odeiam as redações es-
tão ali para serem reconhecidos na
rua, não pelo conteúdo do que pre-
tendem dizer”.
Máscaras e testes, duas coisas reconhecidas como eficazes. Máscaras e testes, Submetam a mesma pergunta a
duas coisas de que Paris se privou metodicamente. A França não apenas se três economistas e obterão quatro
respostas diferentes, como teria iro-
livrou de seu estoque estratégico de proteções respiratórias, como também nizado Winston Churchill. Ocorre o
as práticas de relocalização empreendidas pela elite política há trinta mesmo no mundo científico. Como
anos amputaram sua capacidade de produção explicar, então, que os trabalhos do
Conselho Científico Covid-19 te-
nham chegado sempre a opiniões
POR RENAUD LAMBERT* unânimes (com exceção das diver-
gências denunciadas por Jean-Lau-
rent Casanova, sistematicamente in-

T
ransformar um país em uma ticas de relocalização empreendidas Sem máscaras, sem testes, com seridas em notas de rodapé ou
prisão a céu aberto, sem provo- pela elite política há trinta anos am- poucos aparelhos de ventilação e lei- relegadas a anexos)?
car revolta, é sem dúvida uma putaram sua capacidade de produ- tos de hospital, desprovido tanto de Talvez isso ocorra porque, a fim
façanha, tendo em vista que ção. O país não consegue se equipar credibilidade quanto de estratégia, de desaparecer por trás dos jalecos à
contra esse processo já se esboça um nem produzir tudo de que precisa mas protegido por uma fiança cientí- sua volta, o poder deva estar capaci-
vigoroso movimento social. No en- para lançar uma campanha abran- fica dócil, o governo consegue final- tado a fingir que segue “a Ciência”. O
tanto, vários dirigentes fizeram isso gente de rastreamento. Quanto aos mente incutir como melhor a única surgimento de pontos de vista diver-
por ocasião da pandemia de Co- hospitais, há muito tempo vêm de- solução de que dispõe: um confina- gentes o impediria de apresentar
vid-19. Em alguns países, o poder re- nunciando os cortes orçamentários mento de violência medieval, impon- suas decisões como “necessárias”, e
correu à força; na França, ele se di- que ameaçam seu funcionamento.3 do a cada um o dever de continuar vi- elas então “voltariam ao campo da
luiu por trás de um punhado de As raízes da crise são, pois, tanto po- vo, embora privado da possibilidade política”, como analisou o cientista
especialistas de jaleco, depois de ig- líticas e industriais quanto sanitá- de permanecer humano. político Benjamin Morel na France
norar as reivindicações dos cuidado- rias.4 Isso todos sabem, menos o Até então, outra entidade havia Culture (4 abr. 2020). Ora, o campo
.

res no outono de 2019. Há vários me- Conselho Científico. oferecido ao poder o verniz científico da política é também o da contesta-
ses, nenhuma declaração política Tal como um encanador que in- que lhe permitisse apresentar suas ção. Daí, sem dúvida, o desconforto
deixa de vir acompanhada de um sistisse em usar apenas um rodo para preferências políticas como necessi- dos dirigentes diante das controvér-
“conforme a opinião dos cientistas” estancar um vazamento, Delfraissy dades: os economistas, desde que de sias suscitadas pelas tomadas de po-
ou de um “por decisão conjunta dos puxa a água... “Os hospitais da Itália inclinações liberais. Se o recruta- sição do professor Didier Raoult com
médicos”. Os cientistas “tomaram o ficaram submersos, houve então re- mento social dos especialistas do relação à eficácia da hidroxicloroqui-
poder”, alarma-se Éric Zemmour.1 comendações. [...] Deixaram de ven- mundo médico não os afasta dos cír- na. À parte seu possível interesse
Mas os cientistas, ao contrário, não tilar os doentes com mais de 75 anos. culos do poder, a ciência a que recor- científico, elas enfatizam implicita-
se esforçaram para servi-lo? Em caso de sobrecarga nos hospitais rem repousa, a priori, em alicerces mente a responsabilidade do poder:
Quando Emmanuel Macron no- franceses, teremos também de resol- mais sólidos. Trata-se, notadamente, resolver e decidir, o que ele preferiria
meou o Conselho Científico Co- ver esse problema?”, perguntou-lhe de um regime de administração da fazer na maior discrição. Graças ao
vid-19, presidido pelo imunologista Nicolas Demorand na France Inter, prova suscetível de obter consensos Conselho Científico, tempo para isso
Jean-François Delfraissy, em 10 de em 11 de março de 2020. “Nesse caso, inabaláveis. Contudo... não lhe falta.
março de 2020, dois instrumentos fo- a gestão de recursos escassos é que “A ciência lembra a história: é No “mundo de antes”, oferecer ao
ram identificados para frear a pande- decide o tipo de paciente a tratar”, constantemente reescrita pelos ven- poder um serviço de relações públi-
mia: as máscaras e os testes. Em 22 de respondeu o imunologista. Por que os cedores”, explica o estatístico Marc cas era função de economistas con-
janeiro, o diretor-geral da Saúde, recursos são escassos? Responder a Hoffman. “Nomes são apagados, po- tratados.6 A especialidade mudou, a
Jérôme Salomon, explicou que as pri- essa pergunta exigiria erguer os olhos lêmicas são obliteradas, quando na função permanece. 
meiras reduziam “consideravelmen- para o cano furado das políticas neo- verdade o que existe é um espaço de
te o risco de infecção”, antes de um liberais. Delfraissy prefere o rodo. conflito permanente, onde nunca há *Renaud Lambert  é jornalista do Le Mon-
tuíte do Ministério da Saúde aconse- Adotando essa atitude ao tomarem a consenso.” Debate-se, discute-se, de Diplomatique.
lhar o uso de “uma máscara cirúrgi- palavra, os especialistas científicos compete-se nos laboratórios de pes-
ca” para “ir e vir do trabalho” (24 de patrocinados pelo governo traba- quisa. Seria possível imaginar que,
janeiro).2 Por sua vez, a Organização lham para transformar a cólera polí- num contexto de rivalidade das equi- 1   L e Figaro, 10 abr. 2020.
Mundial da Saúde (OMS) sugeriu tica – que agora ruge – em angústia pes, os fachos dos holofotes da mídia 2   Citações extraídas por Nabil Touati de “Sur
les masques, l’argument de LREM sur le revi-
uma estratégia de rastreamento ma- existencial. Contra decisões desas- e a emergência sanitária os convida- rement cientifique tient mal la route” [Sobre as
ciço: “Temos uma mensagem simples trosas, podemos nos insurgir; mas a riam a se entender? máscaras, o argumento de LREM para as revi-
para todos os países: testem, testem, fatalidade é um adversário que não Por ocasião de um seminário na ravoltas científicas não se sustenta], 29 abr.
2020. Disponível em: www.huffingtonpost.fr.
testem”, repisou o diretor-geral da or- temos outra escolha senão suportar. Universidade de Paris-Dauphine, em 3   Ver Frédéric Pierru, “Le cauchemar de ‘l’hôpi-
ganização em uma declaração de Ao sabor de seus trabalhos, o Con- 3 de junho de 2020, o matemático tal du futur’” [O pesadelo do “hospital do futu-
perto de mil palavras, durante a qual selho Científico faz um passe de má- Yvon Maday relatou: “Vários cientis- ro”], Le Monde Diplomatique, out. 2019.
4   Ver Renaud Lambert e Pierre Rimbert, “Jus-
repetiu o verbo dezoito vezes (16 gica: converte o despreparo francês tas ficaram totalmente loucos por qu’à la prochaine fin du monde...” [Até o próxi-
mar.). Máscaras e testes, duas coisas em doutrina sanitária. Paris não tem causa dessa pandemia. Viram a pos- mo fim do mundo...], Le Monde Diplomatique,
reconhecidas como eficazes. Másca- máscaras? Então elas são inúteis. O sibilidade de aparecer como nunca. abr. 2020.
5   Em “Cedric Villani au GdT Covid-19, université
ras e testes, duas coisas de que Paris fornecimento é retomado? Sua utili- Coisas fundamentais como dados – Paris-Dauphine” [Cedric Villani no GdT Co-
se privou metodicamente. zação se torna desejável. O cão-guia dados de epidemiologia etc. – foram vid-19, Universidade Paris-Dauphine], 3 jun.
A França não apenas se livrou de que corre atrás do dono desorientado recuperadas por certo número de 2020, a consultar no YouTube.
6   Ver “Les économistes à gages sur la sellette”
seu estoque estratégico de proteções arrisca-se a sofrer algumas contu- equipes que não quiseram partilhá- [Os economistas contratados na berlinda], Le
respiratórias, como também as prá- sões, que não demoram a aparecer. -los”.5 “No contexto da atual pande- Monde Diplomatique, mar. 2012.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

QUANDO O OCIDENTE NÃO INSPIRA MAIS MEDO NEM RESPEITO

Após a pandemia,
nato de Floyd reabre as feridas dos
sul-africanos negros”.
Por mais significativas que sejam,
essas oscilações de humor nunca pa-

o despertar da África?
receram ameaçar de fato as relações
de poder entre a África e os países
ocidentais, que gostam de se apre-
sentar como seus benfeitores. Nota-
-se também que essas explosões de
A pandemia de Covid-19 lamentavelmente administrada pelo Ocidente revelou os limites orgulho acontecem principalmente
de sua hegemonia. A Europa e os Estados Unidos perdem cada vez mais autoridade nas ex-colônias britânicas ou portu-
guesas, que, pelo menos, podem se
moral. Mas uma ordem internacional mais justa está distante. Para a África, os gabar de um mínimo de soberania.
acontecimentos destacam o sentimento de um destino comum e certa combatividade. Esse não é o caso dos países afri-
Os obstáculos, contudo, continuam numerosos canos de língua francesa, nos quais,
durante sessenta anos, o antigo po-
der colonial impôs sua autoridade
POR BOUBACAR BORIS DIOP* quase diretamente. Costuma-se di-
zer que, durante a Guerra Fria, a CIA

N
as últimas três décadas, o condições para sua própria destrui- testemunhar este evento, nunca pen- integrou o conselho de ministros de
mundo alarmou-se algumas ção se acumularam ao longo dos sei que isso aconteceria durante a mi- regimes fantoches na América Lati-
vezes diante de uma pande- anos. É muito simples: se o vírus que nha vida”. Em seguida, ela soltou na. Esse modelo sobrevive de forma
mia: Sars, H1N1, Ebola. E, no fez os países ricos ocidentais se ajoe- uma risada curta, na qual senti uma reduzida na África de língua france-
fim, as inquietudes sempre excede- lharem tivesse sido tão letal na África, mistura de desgosto e alegria. No en- sa, o último lugar do mundo em que
ram a ameaça. Sem dúvida, isso con- o massacre anunciado certamente te- tanto, não compartilhei com ela meu uma potência estrangeira está no
tribuiu para subestimarmos de início ria ocorrido lá. pensamento mais profundo: o flagelo centro dos processos de tomada de
o perigo do novo coronavírus Sars- No entanto, mesmo que tenham não cairá da noite para o dia, inaugu- decisão, em questões monetárias,
-Cov 2. Talvez não seja tão mortal sido atingidos por um forte golpe na rando uma nova ordem mundial, por exemplo. Essa África continua
quanto a gripe espanhola de 1918, cabeça, os africanos não esperaram mais justa e equilibrada. Ele revela, sendo, para a França, um gigantesco
mas seu impacto econômico promete essa pandemia para sonhar, de acor- porém, os limites de uma hegemonia reservatório de matérias-primas.
ser mais devastador. Curiosamente, o do com a injunção césairiana, em “re- ocidental aparentemente sem eco. Paris não tolera nenhuma força polí-
pensamento urgente parece mais fo- começar o fim do mundo”.2 O mo- Em primeiro lugar, quando eclo- tica que possa ameaçar os interesses
cado no pós do que na própria pande- mento parece ainda mais propício, diu a pandemia, um certo Donald da Total, Areva ou Eiffage. O conti-
.

mia. A luta contra a Covid-19 esconde uma vez que raramente se viram as Trump já ocupava, havia três anos, a nente é o terreno perfeito para os jo-
outra, ainda silenciosa, mas já muito potências ocidentais em uma postura presidência dos Estados Unidos – país gos favoritos do Exército francês,
mais feroz: a disputa pelo controle, tão lamentável. O contexto histórico líder do bloco ocidental, embora cada que interveio dezenas de vezes des-
nos próximos anos, dos recursos e lembra, guardadas as devidas pro- vez mais reticente. Os homens não fa- de 1964 – ano da primeira interven-
dos imaginários em todo o planeta. porções, o pós-Segunda Guerra Mun- zem história, mas parece que seus ção militar francesa na África sub-
A África também está preparada dial. Nesses lugares de pura verdade planos, para se realizarem, às vezes saariana (no Gabão) após a
para agir, e a carta aberta dirigida aos humana, nos campos de batalha, os ganham contornos de destino singu- independência de 1960. O contraste
tomadores de decisão africanos assi- soldados africanos viram o mito da lar. Pode ser que o presidente Trump é gritante em relação a Londres, que
nada por uma centena de intelectuais onipotência do colonizador desmoro- seja para o Ocidente menos um aci- nunca enviou tropas para suas anti-
que vão de Wole Soyinka e Cornel nar. Eles também descobriram as lu- dente do que um sintoma: o de seu gas colônias africanas.
West a Makhily Gassama e Djibril tas de outros povos e entenderam lento declínio. Também não é por É por essa razão que houve uma
Tamsir Niane, em 1º de maio de 2020, melhor os mecanismos de sua pró- acaso que o autocrata Viktor Orbán, impressão de desestabilização quan-
teve uma resposta excepcional.1 Em pria opressão. Libertados da Europa, defensor da teoria da “grande substi- do Macron se posicionou publica-
vez de se resignarem a lançar mais livres do complexo de homem bran- tuição” [a ideia da extrema direita do mente contra o que ele chamou de
uma petição, seus iniciadores (Amy co, tornaram-se atores políticos de Velho Continente de que os “euro- “sentimento antifrancês na África”. O
Niang, Lionel Zevounou e Ndongo destaque e estiveram no centro de to- peus brancos” seriam substituídos presidente percebeu que uma nova
Samba Sylla) querem transformar das as batalhas pela independência. por “não europeus”], esteja no con- geração de africanos está decidida a
palavras em ações, e é por isso que Algo semelhante pode estar acon- trole da Hungria. Tensões identitárias pôr fim no anacronismo da Françá-
estenderam seu apelo aos cientistas tecendo desde a queda do Muro de transformadas em ressentimentos, frica. A linha de frente desse movi-
africanos. Em um continente onde Berlim. seu exemplo poderia causar um surto mento – estrelas planetárias como
quase tudo precisa ser refeito, eles re- na Europa. Deve-se, na mesma linha, Salif Keita, Alpha Blondy, Tiken-Jah
ceberam a pandemia, por assim di- O TERRENO PARA OS JOGOS evocar o Brexit como apenas uma fa- Fakoly ou o cineasta Cheick Oumar
zer, de braços abertos, chegando ao DO EXÉRCITO FRANCÊS cada trivial no projeto europeu? Sissoko – dá uma dimensão da pro-
ponto de vê-la como uma “oportuni- De fato, há vinte anos o Ocidente É compreensível que hoje tantos fundidade dessa revolta. O grande Ri-
dade histórica”. quase não inspira mais medo ou res- líderes no Sul se atrevam a atacar chard Bona cancelou, em fevereiro de
A pandemia tornou a África mais peito a tantas nações ainda sob seu abertamente o Norte. Visitando Ga- 2019, um concerto em Abidjan (Costa
consciente de sua vulnerabilidade e jugo. As guerras no Iraque e na Líbia na em dezembro de 2017, o presiden- do Marfim) para protestar contra a
insignificância aos olhos do mundo. são exemplos de como ele perdeu a te Emmanuel Macron escutou de seu moeda franco CFA e prometeu não
Permitiu-lhe ver concretamente que, pouca autoridade moral que ainda anfitrião duras verdades sobre a Aju- produzir nada em países onde ela vi-
nas grandes tragédias humanas, não podia reivindicar. Seria excessivo di- da Pública ao Desenvolvimento gorasse. Também é preciso levar em
pode confiar em ninguém para sua zer que a pandemia deu o golpe de (APD); 3 no Zimbábue, o embaixador conta as novas formas de radicaliza-
salvação. De fato, se o flagelo atingiu misericórdia, mas ela está criando norte-americano acaba de ser con- ção política, simbolizadas pelos mo-
todos os países ao mesmo tempo, eles uma grande ferida. Esse sentimento é vocado para explicar o caso de Geor- vimentos France Dégage [França, vá
não se uniram para resistir. Pelo con- tão difundido que, na Alemanha, on- ge Floyd; e a União Africana conde- embora], do qual Guy Marius Sagna é
trário, os egoísmos nacionais rapida- de a crise da saúde parece ser um nou em termos muito duros a um dos líderes, e Urgences Panafri-
mente assumiram o reflexo da solida- pouco mais bem controlada do que brutalidade policial contra negros canistes [Emergências Pan-Africa-
riedade. O continente africano, em seus vizinhos, uma amiga lançou nos Estados Unidos. O presidente nistas], de Kemi Sebai.4
dependente de outros para quase tu- por telefone: “O Ocidente está en- sul-africano, Cyril Ramaphosa, não É nesse contexto de ânimos já in-
do, rapidamente entendeu que as trando em colapso. Estou surpresa de hesitou em declarar que “o assassi- flamados que intervém a pandemia.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25

O mundo todo assistiu com es- mados pela loucura, começassem a A África de hoje é muito diferente tar no centro de todas as iniciativas é
panto à incapacidade da Europa e pensar e agir como Thomas Sankara. daquela das independências. É por um sinal claro.
dos Estados Unidos – sempre tão rá- A Françáfrica não deve sua longevi- isso que a ideia de que ela até hoje Se por um lado se entende que o
pidos em se oferecerem para ajudar dade apenas ao controle político. Ela tenta resolver seus problemas de uma vírus sozinho não fará uma primave-
os outros – de socorrer seus próprios também é extremamente eficaz no forma única parece cada vez menos ra africana, por outro a excitação
cidadãos. E, para muitos, não sur- gerenciamento da proximidade, qua- realista. O cenário mais plausível é o atual não deve ser subestimada. A
preendeu ouvi-los reclamar, envergo- se nominativa, de intelectuais e ho- de histórias de sucesso isoladas, nos longo prazo, poderia ajudar a África a
nhados, de sua dependência de Pe- mens cultos transformados em zum- moldes de Ruanda, Gana e Etiópia. “inclinar-se definitivamente para seu
quim. E o que o Le Canard Enchaîné bis. Muitos dos que afirmam estar Apesar de sempre ser evocada co- destino federal”, como convidou
chamou de “guerra das máscaras” impacientes diante dos portões do mo um todo, a África continua sendo Cheikh Anta Diop, acrescentando
certamente deixará marcas na me- novo mundo são, na realidade, fortes o continente de lugares distantes: os com uma lucidez um tanto desespe-
mória coletiva. Se é pela base de um defensores do status quo. meios de transporte continentais rada: “Nem que seja apenas pelo
muro que reconhecemos o pedreiro, No mais, foi para deixar passar a são quase inexistentes; é mais fácil egoísmo lúcido”.
a pandemia expôs um fiasco tempestade que os presidentes Sall e viajar de Lagos a Londres ou Nova Ainda vai demorar um pouco, um
colossal. Macron lançaram o debate sobre a dí- York do que de Lomé a Maputo. Essa tempo tanto de paixão quanto de pa-
Isso despertou entre os africanos vida. O primeiro aceitou o papel desa- compartimentalização do continen- ciência. 
um sentimento de pertencimento gradável: implorar favores financei- te torna quase impossível, no mo-
que, no fundo, nunca os deixou. Está ros aos líderes ocidentais no momento mento atual, a realização de qual- *Boubacar Boris Diop  é escritor.
nítido, há algumas semanas, quem em que estavam ocupados contando quer ação conjunta. E poderia até
poderá desenhar melhor os contor- suas mortes. Ao fazer isso, ele se ex- explicar um torpor, às vezes vergo-
nos da África de amanhã. Ainda es- pôs – e expôs a África – ao desprezo nhoso como o de agora: de Tóquio a 1   C f. Bacary Domingo Mane, “Covid-19: Des
cuto a voz da historiadora Penda dos chefes de Estado do Norte. Bruxelas e de Sydney a Seul, o mun- intellectuels africains interpellent les diri-
geants du continent” [Covid-19: intelectuais
Mbow me recomendando um texto Esse tipo de debate também teve a do inteiro expressa sua solidarieda- africanos desafiam os líderes do continente],
de Hamadoun Touré, antes de acres- vantagem, para o presidente Macron, de aos afro-americanos. A África es- MondAfrik, Dacar, 1º maio 2020.
centar: “Você verá, todos nós dize- de enterrar um continente inteiro tá completamente fora desse 2   Aimé Césaire, Cahier d’un retour au pays natal
[Caderno de um retorno ao país natal], Bor-
mos a mesma coisa neste momento!”. nos esquemas do “mundo de antes” – movimento antirracista planetário. das, Paris, 1939.
Esse “nós”, carregado de uma emo- um mundo em que a ajuda à África é O primeiro-ministro do Canadá se 3   Ler Anne-Cécile Robert, “Diplomatie funam-
ção discreta, me arrebata de forma um dos atributos mais explícitos do ajoelhou por mais de oito minutos bule” [Diplomacia na corda bamba], Manière
de Voir, n.165, e “France-Afrique, Domination
particular. O que se diz e se repete é poder, ilusório ou real, da Europa. em homenagem a Floyd, mas ne- et émancipation” [França-África, dominação e
que todos os sinos da soberania toca- Inútil dizer que esse sentimento é nhum presidente africano achou que emancipação], jun.-jul. 2019.
ram para a África; chegou a hora. É ainda mais intoxicante quando se es- deveria. Essa ausência no mundo em 4   Ler Fanny Pigeaud, “Présence française en Afri-
que: le ras-le-bol” [Presença francesa na Áfri-
para acabar com certa servilidade tá em plena desordem. uma ocasião em que deveríamos es- ca: basta], Le Monde Diplomatique, mar. 2020.
que vários Estados (Burundi, Marro-
.

cos, Guiné Equatorial) corajosamen-

©  Zohra Bensemra/ Reuters


te proibiram a Organização Mundial
da Saúde (OMS) em seus territórios e
acordos. Madagascar começou a fa-
bricar seu próprio remédio, Covid-
-Organics, feito de artemísia. É tam-
bém a primeira vez que os maus-tratos
a negros africanos na China provo-
cam protestos oficiais tão acalora-
dos. O embaixador chinês em Abuja
(Nigéria) recebeu ordens de se expli-
car em condições humilhantes.
O instinto de sobrevivência tem
muito a ver com esse espírito renova-
do de luta. Confiar nos outros para
comer ou curar é colocar-se em risco
de fome ou doença. É por isso que a
autossuficiência alimentar e a racio-
nalização da farmacopeia africana
estão no centro de todos os debates.
Mas é na imprensa on-line e nas re-
des sociais que sentimos, para usar
as palavras do jornalista e consultor
René Lake, que “a tampa pulou”.

FORTES DEFENSORES
DO STATUS QUO
Esse erguer a voz, ao mesmo tempo
selvagem e maciço, está principal-
mente entre os jovens: dos mais de 1
bilhão de africanos subsaarianos,
70% têm menos de 30 anos. Portanto,
esse é um tremendo choque político.
Isso significa que os pássaros já
cantam no amanhã? Certamente não.
Seria necessário, para isso, que no
admirável “mundo novo” os presi-
dentes Alassane Ouattara (Costa do
Marfim) e Macky Sall (Senegal), to- A África está preparada para agir e a carta dirigida aos governos assinada por intelectuais teve uma boa resposta
26 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

CLUBE DE PARIS MARGINALIZADO NO BAILE DOS CREDORES

Enganos a respeito da
dívida dos países pobres
Contrariamente ao desejo do presidente francês, Emmanuel Macron, a dívida dos países africanos não será anulada
e a suspensão momentânea dos pagamentos não resolverá os problemas agravados pela pandemia de Covid-19.
Nesse cenário, a recusa em pagar merece ser cada vez mais considerada uma possibilidade

POR MILAN RIVIÉ*

E
m 13 de abril de 2020, Emma- os planos de ajuste estrutural dos be. Assim, se este desejasse mesmo dívidas soberanas. Contando com o
nuel Macron chamou a atenção anos 1980 até hoje.5 organizar a “anulação” das dívidas apoio do FMI, do G20 e do Internatio-
do mundo inteiro ao pedir a africanas, ele não disporia mais de nal Institute of Finance (IFF), que
“anulação maciça” da dívida COLOCAR A CHINA base suficiente para impô-la aos ou- reúne quinhentos estabelecimentos
africana para apoiar o continente EM UMA SITUAÇÃO RUIM tros credores bilaterais – a China à bancários, os membros do Clube de
diante da pandemia de Covid-19. De Outrora majoritário, o Clube de Paris frente. Além disso, estando a dívida Paris sempre se opuseram a isso.
2010 a 2018, essa dívida dobrou, al- faz hoje o papel de um credor entre externa pública principalmente nas Sugerindo uma anulação maciça
cançando US$ 195 bilhões (ver boxe). muitos. Em 2007, detinha 50% da dí- mãos de credores privados, o Clube das dívidas africanas, Macron plane-
Horas depois, o G20 desautorizou o vida bilateral dos países de renda bai- de Paris não conseguiria nada. Não é java desferir um golpe duplo. Primei-
presidente, decretando apenas uma xa. Em 2018, sua parte mal passava por acaso que a Conferência das Na- ro, colocar a China em uma situação
suspensão de pagamento para os paí- dos 10%. Enquanto isso, a China via a ções Unidas para o Comércio e o De- ruim, incitando-a a não cobrar seus
ses mais pobres. sua passar de perto de 2% para mais senvolvimento (Unctad) tenha mais empréstimos. Segundo, se fosse o ca-
A proposta francesa é puro fingi- de 25%.6 Apesar dos incessantes ape- uma vez proposto a criação de um so, convencê-la a entrar para o Clube
mento. Paris detém 14 bilhões de eu- los dos membros, esse falso aliado mecanismo internacional e indepen- de Paris para garantir que seus con-
ros em dívidas de 41 países africanos, dos países do Sul não pertence ao clu- dente com vistas à reestruturação das correntes se alinhassem quanto às
ou seja, menos de 3% da dívida exter-
.

© Pablo Tupin-Noriega/ Commons Wikimedia


na pública bilateral do continente1 (a
China, pelo menos 20%, segundo as
estimativas).2 Mesmo que o Estado
francês anulasse totalmente suas dí-
vidas – o que é, obviamente, bastante
desejável –, isso teria efeito apenas
marginal sobre o endividamento do
continente africano. O que precisa
ser revisto é toda a arquitetura de re-
gulação das dívidas.
A França é uma das potências que
fundaram as instituições de Bretton
Woods, em 1944: o FMI e o Banco
Mundial, ambos de máxima impor-
tância para a regulação das dívidas
soberanas. Ela está também na ori-
gem da criação do Clube de Paris, em
1956, que reúne hoje 22 Estados cre-
dores e está alojado no Ministério das
Finanças, na rua de Bercy, Paris. Em
64 anos de existência, o Clube de Pa-
ris empreendeu 434 operações de
reestruturação de dívidas soberanas
junto a noventa países.3 Problema,
apesar de seu papel preponderante: o
Clube de Paris não tem legitimidade
alguma. Definindo-se a si mesmo co-
mo uma não instituição, esse “clube”
não dispõe de estatutos nem de códi-
go, não atendendo a nenhuma norma
jurídica. Obedece apenas a seus prin-
cípios, entre os quais o de “solidarie-
dade”.4 Ou seja, nenhum membro do
Clube de Paris pode perdoar unilate-
ralmente a dívida de um país. Agindo
de mãos dadas com o FMI, membro
influente do clube, esse cartel de cre-
dores tomou decisões tendenciosas,
impondo medidas neoliberais desde Emmanuel Macron pediu a “anulação maciça” da dívida africana para apoiar o continente diante da pandemia
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27

mesmas modalidades, segundo ou- dores bilaterais reduzam a dívida, como são reestruturadas as dívidas soberanas in times of crisis I” [Covid-19 e dívida no Sul
tro princípio do clube, o da “equipa- sem aplicar a si próprios a mesma dis- e por que uma alternativa é necessária], Plate- global: como proteger os mais vulneráveis em
forme d’Action et d’Information sur la Dette des tempos de crise I], European Network on
ração de tratamento”. Com essa ope- ciplina. Pior ainda, os financiamen- Pays du Sud, Paris, 18 mar. 2020. Disponível Debt and Development (Eurodad), Bruxelas,
ração de comunicação, o presidente tos de urgência são feitos em forma de em: https://dette-developpement.org. 26 mar. 2020. Disponível em: https://euro-
francês colocaria seu país e o Clube empréstimos condicionados a priva- 5   Ver Damien Millet e Éric Toussaint, “Des dad.org.
créanciers discrets, unis et tout-puissants” 8   Éric Toussaint, “Pour combattre le Covid-19:
de Paris no centro da regulamenta- tizações e outras medidas neolibe- [Credores discretos, unidos e todo-podero- pourquoi et comment suspendre immédiate-
ção da dívida soberana, com os lu- rais. De seu lado, os credores privados sos], Le Monde Diplomatique, jun. 2006. ment le paiement de la dette” [Para combater
cros políticos e econômicos que isso não assumem nenhum compromis- 6   “ Macroeconomic developments and pros- a Covid-19: por que e como suspender ime-
pects in low-income developing countries diatamente o pagamento da dívida], Comité
pressupõe. Nada feito. so. Quanto aos credores bilaterais, o 2018” [Desenvolvimentos e perspectivas ma- pour l’Abolition des Dettes Illégitimes
Entre os países de pouca renda, 46 G20 anunciou um relatório dos paga- croeconômicos em países em desenvolvimen- (CADTM), Liège, 6 abr. 2020. Disponível em:
gastam mais para pagar a dívida mentos para o ano de 2022. Por fim, to de baixa renda, 2018]. Disponível em: www.cadtm.org.
www.imf.org. 9   Ver Jean Gadrey, “Faut-il vraiment payer toute
(7,8% do PIB) do que com saúde essas medidas dizem respeito unica- 7   Daniel Munevar, “COVID-19 and debt in the la dette?” [É preciso mesmo pagar toda a dí-
(1,8%).7 A anulação dos débitos repre- mente a 77 países, representando 8% global South: Protecting the most vulnerable vida?], Le Monde Diplomatique, out. 2014.
sentaria, assim, uma grande golfada da dívida externa pública dos países
de oxigênio. Mas o que importa não é do Sul. Nenhuma anulação, somente
o nível de anulação, e sim “como”. um relatório do pagamento de 3,6%
Uma anulação se define assim: toma- da dívida dos países escolhidos. UMA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL
mos o todo ou uma parte da dívida, Sem esperar por isso, os países do
inclusive capital e juros, e substituí- Sul poderiam, no entanto, suspender A alta espetacular da dívida africana se explica por uma série de fatores exóge-
mos o montante a ser reembolsado ou repudiar a dívida. Para tanto, não nos.1 Por exemplo, o fim dos altos níveis de preços das matérias-primas a partir de
por um “zero” na conta corrente. Os faltam exemplos históricos e argu- 2013, período conhecido como “superciclo”, e a depreciação das moedas em rela-
credores não são pagos. Esse risco, mentos de direito internacional: for- ção ao dólar, principal divisa de troca. Em seguida, a onda de choque provocada
conhecido por todos, é remunerado ça maior, estado de necessidade ou pela crise financeira de 2007-2008, que teve o efeito duplo de desacelerar o de-
pela taxa de juros. Alemanha, Egito, mudança drástica de circunstân- senvolvimento econômico e atiçar o apetite dos bancos e investidores privados,
Equador, Jamaica, Namíbia, Moçam- cias.8 Outras razões poderiam tam- entusiasmados com a perspectiva de aplicar sua gorda liquidez na dívida soberana
bique, Peru e Serra Leoa são alguns bém ser invocadas: dívidas ilegais, dos países do Sul: mais arriscada, essa aplicação era também mais lucrativa em
exemplos de países que já foram be- odiosas, ilegítimas porque herdadas razão das elevadas taxas de juros, quando um período moribundo ou mesmo re-
neficiados pela anulação pura e sim- da época colonial ou de regimes dita- cessivo se iniciava para os mercados financeiros do Norte. Desde 2010, a parte
ples de suas dívidas. toriais.9 Os países do Sul poderiam dos reembolsos da dívida externa pública dos países do Sul, com relação às suas
O alinhamento ou a reestrutura- ainda formar uma frente unida para receitas totais, aumentou 85% e culminou em um nível médio de 12,2% das recei-
ção da dívida são uma operação bem repudiar as dívidas. É indispensável tas públicas dos Estados – o maior nível alcançado desde 2004.2
diferente. Uma parte, quase sempre insuflar uma solidariedade de povos Fatores internos contribuem igualmente para a alta da dívida, sem explicar sua
mínima, pode ser anulada. O restante por meio de mobilizações internacio- recorrência: 3 falta de investimento dos Estados em infraestruturas, em unidades
.

é reescalonado. Adia-se (isto é, sus- nais e, no tocante às populações, pro- de produção e de transformação dos recursos locais; fragilidade das receitas fis-
pende-se) e/ou prolonga-se o prazo mover o debate público das dívidas cais; desvio de dinheiro público; especulação sobre a dívida pública interna; fuga
de pagamento; renegociam-se as ta- graças a uma pressão constante so- de capitais, corrupção; clientelismo etc. Essas disfunções dos regimes ditos de-
xas de juros; ou se refinancia o mon- bre seus dirigentes.  mocráticos não são apanágio dos países africanos: traduzem o próprio caráter do
tante por meio de operações de sua sistema econômico global dominado pelas instituições financeiras internacionais
conversão em dívida de investimen- *Milan Rivié  é responsável pelas queixas (Banco Mundial, FMI, Banco das Regulamentações Internacionais etc.) e pelos
to, com o credor aplicando sob dife- no Comité pour l’Abolition des Dettes Illégi- grupos informais (G7/8, G20, Clube de Paris, International Institute of Finance
rentes formas a dívida que detém em times (CADTM, Comitê para a Anulação etc.). Nesse caso, eles são de fato os principais responsáveis pelos níveis de de-
vários setores do país endividado. das Dívidas Ilegítimas). senvolvimento e endividamento dos países do Sul. (M.R.)
Nesse segundo esquema, apenas a
parte definida como insustentável 1   “ Posição dos créditos da França para com os 1 Ver Sanou Mbaye, “Métamorphoses de la dette africaine” [Metamorfoses da dívida africana],
pelos credores é renegociada, a fim de Estados estrangeiros em 31 de dezembro de Le Monde Diplomatique, maio 2015.
2018”, site do Tesouro, Paris, 12 nov. 2019.
evitar o não pagamento e manter sob 2 Jubilee Debt Campaign, “Crisis deepens as global South debt payments increase by 85%”
Disponível em: www.tresor.economie.gouv.fr.
seu jugo o país em dificuldade. 2   China Africa Research Initiative. Disponível [A crise se aprofunda com elevação de 85% nos pagamentos da dívida do Sul], 3 abr. 2019.
Sem nenhuma surpresa, esse se- em: www.sais-cari.org. Disponível em: www.jubileedebt.org.uk.
3   Site do Clube de Paris: www.clubdeparis.org.
gundo esquema é o mais usado desde 3 Cf. Kako Nubukpo, “Pourquoi les dettes africaines reviennent toujours?” [Por que as dívidas
4   Cf. “Club de Paris: Comment sont restructu-
fins de março de 2020. O FMI e o Ban- rées les dettes souveraines et pourquoi une al- africanas sempre voltam?], Le Point Afrique, 15 abr. 2020. Disponível em: www.lepoint.fr.
co Mundial recomendam que os cre- ternative est nécessaire” [Clube de Paris:

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28 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

PÃO, CIMENTO, INFORMÁTICA, PEIXES: ATIVIDADES MUITO POUCO MILITARES

A voracidade do atividades vão muito além de seu es-


copo inicial. Criada em 1979 pelo pre-
sidente Anwar Sadat, inicialmente

Exército egípcio
servia para fornecer diretamente re-
gimentos para aliviar o orçamento do
Estado. Hoje, a organização reúne
cerca de trinta empresas e é onipre-
sente em cidades, perto de estações
de trem e mercados, com mil lojas e
Desde a chegada ao poder do marechal Abdel Fatah al-Sissi, em 2013, o Exército quiosques que vendem alimentos ba-
egípcio está envolvido em uma expansão econômica que parece sem limites. Levando ratos. Para reduzir preços e competir
com outras companhias, emprega 7,5
adiante uma ampla diversificação de suas atividades, supervisiona milhares de projetos mil soldados que realizam serviço
de infraestrutura e monopoliza contratos públicos em detrimento de empresas estatais e militar obrigatório (de um a três
privadas – uma onipresença que prejudica o país anos, dependendo do caso). O salário
de 350 libras egípcias (R$ 118) por
mês que pagam a esses soldados ofe-
POR JAMAL BUKHARI E ARIANE LAVRILLEUX*, ENVIADOS ESPECIAIS rece a essa organização uma grande
vantagem sobre a concorrência, já
que os salários mais baixos nas em-

E
m uma propaganda de televisão, ceitas a um número crescente de ofi- cicultor, produtor de cimento e até presas privadas giram em torno de 2
soldados de infantaria egípcios ciais que, por sua vez, garantem a organizador de feiras. Seu império mil libras egípcias (R$ 675).
de macacão cáqui pulverizam o estabilidade de seu regime. agora conta com 93 empresas, das Se a expansão da NSPO salta aos
asfalto com desinfetante. Com Em 2016, a instituição chefiada quais um terço surgiu nos últimos se- olhos diariamente, suas contas per-
uma trilha sonora digna de filme B, pelo general Ziedan tornou-se o in- te anos. A captura de contratos públi- manecem secretas. Em um trabalho
distribuem máscaras para uma mul- termediário obrigatório para hospi- cos está no centro dessa estratégia de de pesquisa intitulado “Os proprietá-
tidão disciplinada que se dirige com tais públicos solicitarem equipa- expansão. Todos os ministérios e até rios da República”,4 o pesquisador Ye-
pressa para o metrô do Cairo, en- mentos. Ela escolhe os fornecedores, a instituição islâmica Al-Azhar foram zid Sayigh descreve a entidade como
quanto drones sobrevoam um dos locais ou estrangeiros. Após a nego- forçados a assinar parcerias com ele.1 “a empresária preferida do governo”.
quatro hospitais de campanha do ciação, compra em grandes quanti- E como explica Azraq T., universitá- Da reforma do platô das pirâmides de
país. O audiovisual também divulga dades e revende para o Ministério da rio, os preços não podem ser discuti- Gizé às usinas de tratamento de água,
a capacidade de fábricas militares de Saúde, faturando uma margem. Com dos: “Os militares são o único inter- passando por redes de videovigilân-
produzir 100 mil máscaras cirúrgicas a pandemia de Covid-19, esse poder mediário entre universidades cia, a organização soma 28 bilhões de
.

por dia (em um país de 100 milhões se estendeu à compra de produtos públicas e fornecedores. Eles se ofe- libras (R$ 9,5 bilhões) em contratos
de pessoas). Em maio, o Egito do pre- médicos essenciais nesta crise (lu- recem para vender computadores desde 2013. Graças ao presidente Al-
sidente e marechal Abdel Fatah al- vas, máscaras etc.). E não há lugar importados para nós, 20% mais caros -Sissi, ela também se beneficia de
-Sissi escolheu uma encenação com- para os inconformados: “Nosso pe- que o preço de mercado”. rendas suculentas, como a concessão
bativa para mostrar que seu Exército dido de respiradores foi bloqueado No sistema clientelista erigido pe- de rodovias por períodos que variam
não tem medo de enfrentar a epide- porque não passamos por esse orga- lo ex-presidente Hosni Mubarak, os de 50 a 99 anos. E o número de postos
mia de coronavírus. nismo”, relata o diretor de uma clíni- privilégios concedidos ao Exército de gasolina que gerencia aumentou
Em 7 de abril, Al-Sissi já afirmava ca particular que deseja permanecer não perturbavam a comunidade em- de algumas dezenas no início dos
que o país tinha “reservas estratégi- anônimo. presarial, uma vez que esta tinha di- anos 2000 para trezentos em 2019.
cas” em termos de proteção à saúde, reito à sua parte do bolo. Hoje, o in- Todas as terras ao longo das estra-
graças à Autoridade Unificada de VANTAGENS INDEVIDAS tervencionismo das forças de defesa das nacionais se tornaram proprie-
Compras para Equipamentos Médi- Em teoria, essa centralização permi- na vida econômica incomoda. “Os dade do Exército. E, quando os terre-
cos, um órgão público criado em te reduzir os preços das importações militares têm vantagens indevidas nos que cobiçam já estão ocupados, a
2015, oficialmente sob a autoridade e atender melhor às necessidades em em relação às empresas normais. Isso desapropriação é realizada sem ne-
do primeiro-ministro, mas na reali- todo o território, mas, na prática, cria uma distorção de concorrência”, nhuma contrapartida do Estado. No
dade liderada pelo general Bahaa El- causa escassez. Desde essas refor- revolta-se o bilionário Naguib Sawi- verão de 2019, suas escavadeiras de-
din Ziedan. A declaração reforçou as mas, confia Ali M., gerente de hospi- risi.2 Isentas de impostos e taxas al- sembarcaram nos arredores de Ale-
suspeitas de muitos egípcios de que tal, “faltam 30% dos equipamentos fandegárias, as empresas cáqui tam- xandria para construir uma rodovia e
os militares estão usando a crise sa- necessários às operações cardíacas, bém foram poupadas do aumento no uma área comercial. Outro projeto já
nitária para expandir seu controle assim como válvulas de tamanho fo- preço da eletricidade, no fim de 2019. existente no local e que representava
sobre a economia. Desde o golpe de ra do padrão. Isso força milhares de O complexo militar-industrial es- um obstáculo ao novo canteiro de
Estado de oficiais livres em 1952, a pacientes a serem colocados na lista tá assentado em três pilares: o Minis- obras – a construção de uma fábrica
instituição militar tornou-se pouco a de espera, resultando em aumento da tério da Produção Militar, o Ministé- de congelados da gigante Gevrex,
pouco uma grande empreendedora. mortalidade”. Outra consequência rio da Defesa e suas agências que com autorização do Departamento
Proclamada “bastião da democracia desse monopólio militar: 2 mil im- gozam de grande autonomia e, final- de Engenharia das Forças Armadas
e das instituições” pela Constituição portadores e fabricantes locais de mente, a Organização Árabe para In- da Região Norte (Alexandria) – foi co-
aprovada em 2018, seus poderes e sua equipamentos médicos que não tive- dustrialização (OAI). Somente o pri- locado abaixo e seus 1.500 funcioná-
influência aumentaram dez vezes ram a sorte de agradar à autoridade meiro, criado em 1954, digna-se a rios, demitidos. A decisão judicial de
desde a chegada de Al-Sissi ao poder, de compra foram banidos dos merca- comunicar publicamente seu cresci- postergar a destruição da fábrica não
em 2013. Para o presidente egípcio, dos públicos e fecharam as portas, mento fulgurante. Com dezessete fá- teve nenhuma efetividade, e o gover-
essa evolução tem dupla vantagem. segundo números a que tivemos bricas e vinte empresas, sua receita nador de Alexandria, que havia pro-
Primeiro, o Exército, considerado acesso por um membro da Câmara saltou 215%, passando de 4,2 bilhões metido adiar a demolição do projeto,
menos burocrático, parece-lhe o de Comércio e da Indústria. de libras egípcias (R$ 1,4 bilhão) em foi substituído por um general.
mais capacitado para concluir os E não é apenas na área da saúde. 2014 para mais de 13,2 bilhões em O Exército também deseja compe-
principais projetos de infraestrutura Informática, equipamentos, servi- 2019 (R$ 4,5 bilhões).3 tir com, ou mesmo substituir, as in-
com os quais pretende dotar o país o ços: o Exército não se satisfaz mais Do seu lado, o Ministério da Defe- dústrias nacionais existentes. Sua en-
mais rápido possível. Segundo, ele com os lucros de suas empresas de sa exerce supervisão sobre a tentacu- trada arrasadora no mercado de
consolida seu poder, já que a militari- pão, macarrão ou água mineral en- lar Organização de Projetos Nacio- cimento causou o fechamento de
zação da economia oferece novas re- garrafada. Desde 2013, tornou-se pis- nais de Serviço (NSPO), cujas duas empresas estatais, a demissão
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29
© Cherie A. Thurlby/ U.S. Department of Defense

de atraso após a data de vencimento.


Para obter ganho de causa, somos
obrigados a interromper o trabalho”,
disse o representante de um grande
grupo europeu.
A atividade desenfreada do Exér-
cito beneficia o país? Nada é menos
certo. Na dimensão macroeconômi-
ca, é verdade que o boom da indús-
tria da construção impulsiona o cres-
cimento do país (5,6%, de acordo
com o Banco Mundial), mas força o
Estado, que apelou ao FMI em abril
de 2020, a se endividar mais ainda.
Antes da crise da Covid-19, a dívida
pública já alcançava US$ 109 bilhões,
quase 100% do PIB.6 Oficialmente, o
desemprego diminuiu (de 9,9% para
8,9% entre 2018 e 2019), mas esse de-
clínio se explica principalmente pela
remoção de 1,3 milhão de mulheres
da categoria de desempregados, ope-
rada pela Agência Central para Mobi-
lização Pública e Estatística (Cap-
mas), instituição liderada desde 2019
por um general de infantaria.
Não apenas “a retomada do cres-
cimento praticamente não criou
mais postos de trabalho, como tam-
bém desde 2006 a parcela de empre-
gos informais (sem seguridade so-
cial) dobrou”, afirma o economista
Ragui Assaad.7 E, apesar de toda a
.

atenção midiática sobre novos proje-


tos, a atividade fora do setor de pe-
tróleo permanece lenta desde 2017.8
Preocupados com as consequências
da ganância econômica do Exército,
vários especialistas egípcios entre-
Os privilégios dados ao Exército não perturbaram os empresários, já que esses tinham direito à sua parte vistados por nós manifestaram em
privado o desejo de que as Forças Ar-
de 3 mil funcionários e o enfraqueci- bricas às vezes competem com as do lume de atividades aumentar em madas se desarticulem pouco a pou-
mento de outras três fábricas, de Ministério da Produção Militar e seus 367% entre 2014 e 2016. co de alguns setores, mesmo que is-
acordo com o Pharos Holding, um lucros permanecem limitados. Esti- Entre as cinquenta novas cidades so signifique oferecer compensações
centro de pesquisa e banco de inves- mado em 2018 em quase 2 bilhões de planejadas, o local da futura capital – uma possibilidade bem longe da
timentos sediado no Egito. Apesar da libras (R$ 674 milhões), seu lucro re- administrativa é um símbolo dessa realidade. 
saturação do setor, o Exército conse- presentaria apenas 14% de suas ven- expansão um tanto confusa. Locali-
guiu mordiscar 13% do mercado, gra- das. Uma auditoria estadual mencio- zada no meio do deserto, 45 quilôme- *Jamal Bukhari e Ariane Lavrilleux são
ças em parte ao acesso privilegiado a nada no relatório de Sayigh até tros a leste do Cairo, a nova cidade jornalistas.
megaprojetos de infraestrutura lan- revelou o déficit preocupante de vá- deve cobrir uma área equivalente a
çados pelo presidente Al-Sissi. O mes- rios de seus locais de produção. Esse sete vezes Paris. Mas a segunda fase
mo cenário vale para as pedreiras de baixo desempenho pode ser explica- dos trabalhos precisou ser adiada por 1   C f. “Ministry of military production: consumers
trust us, we will return stronger than before”
granito e mármore. Desde 2016, as do pelos salários colossais de seus falta de investidores. Até o núcleo da [Ministério da produção militar: os consumi-
Forças Armadas controlam 40% da executivos, sua baixa produtividade cidade, composto por torres de vidro dores confiam em nós, retornaremos mais for-
capacidade nacional de produção. e seu baixo valor agregado. e residências espalhadas, não parece tes do que antes], Al-Tahrir, Cairo, 20 nov.
2017.
Essa expansão não segue nenhum A onipresença do Exército em interessar muito, como evidencia um 2   Middle East Monitor, Londres, 21 maio 2020.
plano estratégico. O próprio presi- grandes projetos de infraestrutura é dos principais promotores do país, 3   Segundo declarações do ministro da Produ-
dente egípcio reconheceu, durante um dos melhores indicadores de sua Hussein Sabbour, CEO da firma de ção Militar, divulgadas pelos jornais egípcios
Al Mal e Al-Masry al-youm, em maio de 2018.
uma intervenção televisiva em julho bulimia e de seus limites. Além do co- mesmo nome, que não comprou ne- 4   Yezid Sayigh, “Owners of the republic: an ana-
de 2019, que, se tivesse solicitado “es- mando direto de ministérios, as For- nhum lote: “Os preços são altos de- tomy of Egypt’s military economy” [Donos da
tudos de viabilidade, [o Exército] te- ças Armadas supervisionavam, no mais e apenas alguns novatos pagam república: uma anatomia da economia militar
do Egito], Carnegie Middle East Center, Bei-
ria completado apenas 20% a 25% do fim de 2018, pelo menos 2.300 gran- para entrar no mercado de constru- rute, 18 nov. 2019.
que realizou”. De fato, o objetivo pa- des projetos iniciados pelo presidente ção. Mas a bolha estourará com sua 5   Segundo o porta-voz das Forças Armadas, em
rece ser menos o desempenho econô- Al-Sissi.5 Substituindo a administra- parcela de escândalos”. 2 de setembro de 2019.
6   Embaixada da França no Cairo, “Carta econô-
mico do que o controle de mercado e ção estatal, o Exército dividiu esses mica do Egito”, n.105, fev. 2020.
a cobertura da mídia sobre o dina- projetos entre empresas privadas CRESCIMENTO SEM EMPREGOS 7   Ragui Assaad, “Is the egyptian economy crea-
mismo do Exército. Essa realidade é consideradas leais (que são registra- Para as terceirizadas que têm a sorte ting good jobs? A review of the evolution of
the quantity and quality of employment in
ilustrada pelo caso do terceiro pilar das nos serviços de inteligência após de serem contratadas pelo Exército, a Egypt from 1998 to 2018” [A economia egíp-
do complexo industrial militar: a Or- um longo processo) e suas próprias situação nem sempre é invejável, com cia está criando bons empregos? Uma revi-
ganização Árabe para a Industriali- unidades. Por exemplo, a Autoridade os atrasos nos pagamentos se tornan- são da evolução da quantidade e qualidade
do emprego no Egito de 1998 a 2018], Eco-
zação. Suas vendas quadruplicaram de Engenharia Militar, especializada do regra. “Os pagamentos estão sen- nomic Research Reform, Gizé, out. 2019.
entre 2012 e 2018, mas suas doze fá- em pontes e pavimentos, viu seu vo- do feitos com pelo menos seis meses 8   R euters, 4 fev. 2020.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

ALIANÇA ENTRE OS GOVERNOS E OS GIGANTES DO VALE DO SILÍCIO

As duas faces
lio perpétuo da edição de livros; o car- zes quando conseguem compor com
deal Richelieu aceitou suas demandas o liberalismo; em suma, quando a
essenciais, mas, em troca, eles deve- espada da lei dá lugar às disciplinas
riam se encarregar de sua tarefa de do capitalismo informacional. Da

da censura
polícia e cumprir um grande número mesma maneira que o legislador da
de critérios de proibição. Terceira República tomou o cuidado
De acordo com alguns arranjos, de se proteger por meio de disposi-
principalmente a favor dos livreiros, ções destinadas a reprimir algumas
essa política permitiu a cerca de trin- críticas à autoridade.
Estados e transnacionais de alta tecnologia digital se ta impressores de livros controlar, Alianças análogas garantiram ao
apresentam regularmente como adversários, os primeiros bem ou mal, a produção e a distribui- Estado, desde os anos 1860, o contro-
ção de livros no reino. Como aconte- le das primeiras redes privadas de
dramatizando seus esforços para regular os segundos, que ce hoje com as gigantes digitais, essa telecomunicações. No final do sécu-
atuam sem se preocupar com leis. Mas, quando se trata centralização da economia dos im- lo XX, após a era dos monopólios es-
de vigiar e censurar a internet, sua relação torna-se pressos permitiu ao Estado diminuir tatais sobre os meios de comunica-
o número de intermediários a con- ção hertzianos, o processo de
simbiótica. Essa aliança entre o poder público e o trolar e, portanto, reduziu os “custos privatização remete essas conivên-
capitalismo informacional vem de longe... de transação” associados à censura. cias ao sabor da hora. Mais uma vez,
Após o período de liberdade de ex- o espaço midiático foi submetido a
pressão sem precedentes que acom- uma dupla submissão, ao Estado e
POR FÉLIX TRÉGUER*
panhou a Revolução Francesa, o Im- ao mercado.
pério napoleônico acabou com os Na década de 1990, graças às van-

E
m 12 de novembro de 2018 ocor- norte-americanas amplamente cota- jornais independentes e enxugou o guardas militantes, a internet apare-
reu, no grande salão de confe- das em capitalizações das Bolsas de número de donos de gráficas e o de tí- ceu como uma força capaz de reverter
rências da Organização das Na- Valores mundiais. Apesar das legisla- tulos. No entanto, a partir dos anos a repartição do poder: a web permitiu
ções Unidas para a Educação, a ções – adotadas ou prometidas – des- 1830, no início de um relaxamento a proliferação da mídia alternativa e
Ciência e a Cultura (Unesco), em Pa- tinadas a acabar com os desvios das que prenunciava a lei de 1881 sobre a abriu uma brecha para a hegemonia
ris, o Fórum de Governança da Inter- plataformas (abuso de posição domi- liberdade de imprensa, o poder tole- de grandes grupos de comunicação
net. Muito entusiasmado, Emmanuel nante, ataques à vida privada, fake rou a elevação da força de uma im- dependentes do poder político. No
Macron avançou para o painel. Deci- news...), o conflito aparente entre os prensa popular de grande tiragem. entanto, também neste caso, de acor-
dido a manter firmemente o papel de Estados e as transnacionais de alta Tratava-se de uma concessão sincera do com crises de segurança, o Estado
defensor da democracia liberal con- tecnologia digital, na realidade, mas- ao ideal de liberdade ou do aprofun- restabeleceu sua autoridade, inter-
tra os populismos “não liberais”, o cara uma interdependência. damento de uma parceria eficaz es- vindo na concentração da economia
.

jovem presidente francês parecia to- A história da vigilância e da tabelecida entre o poder político e as política da internet.2 Ao seguirem sua
talmente à vontade diante da plateia censura das comunicações é esclare- empresas gráficas? Além das ondas própria lógica de acumulação, as
internacional que fora ouvi-lo dis- cedora para compreender essas repressivas que atingiram as publica- grandes plataformas digitais centra-
sertar sobre as grandes questões da evoluções. Na realidade, além da ções contestatórias, especialmente lizam, de fato, uma imensa parte de
tecnologia digital. Em seu discurso, conjuntura neoliberal, as lógicas de socialistas, em um setor atormentado nossas comunicações e desenvolvem
como era de esperar, ele opôs dois cooptação entre o poder público e por uma concentração econômica habilidades únicas para vigiar a po-
modelos de regulação da internet: de gestores privados dos meios de comu- crescente, foram aparentemente as pulação e censurar os espaços de ex-
um lado, a “internet californiana”, li- nicação aparecem como uma cons- garantias fornecidas pelos meios dos pressão. Muitas técnicas que o Estado
bertária, “movida por atores priva- tante na história dos meios de comu- negócios que tornaram possível essa considera suas.
dos, fortes, dominantes, mundiais” e nicação. Diante das crises provocadas liberalização. Desde 2013, os documentos di-
resistentes a qualquer controle esta- pelas rupturas tecnológicas ou dos As inovações nas técnicas de im- vulgados por Edward Snowden reve-
tal; do outro, a “internet chinesa”, sobressaltos políticos, essas alianças pressão, o aparecimento da impren- laram a participação de grandes pla-
“com barreiras e inteiramente vigia- permitem restabelecer um controle sa “barata” financiada pela publici- taformas nos programas de
da” por “Estados fortes e autoritá- eficaz da circulação de ideias. dade, do mesmo modo que os vigilância dos serviços de espiona-
rios”. Uma alternativa rejeitada que progressos da alfabetização suscita- gem norte-americanos. Na época, os
lhe permitiu indicar uma terceira MOVIMENTO DE DESPOLITIZAÇÃO ram uma corrida em busca de au- dirigentes dessas empresas não se
via: aquela em que “todos os atores Já no século XVI, no momento em que diência que favoreceu a passagem de deram ao trabalho de fazer nenhum
da internet” – “as sociedades civis, o desenvolvimento da tipografia con- uma imprensa política de opinião esforço para se dissociarem do apa-
atores privados, organizações não tribuía para democratizar o acesso para uma voltada à informação e à relho de segurança e tranquilizar
governamentais (ONGs), intelec- aos livros e propagar doutrinas políti- diversão. Um processo como esse su- quem o utilizava – sem todavia res-
tuais, jornalistas, governos” – consi- cas e religiosas subversivas, o Estado pôs vínculos sempre muito estreitos tringir sua colaboração com as auto-
gam elaborar uma “regulação coope- recorreu às parcerias público-priva- entre os comerciantes do material ridades, principalmente quando os
rativa em comum”. das para fechar as brechas contestató- impresso e a autoridade reguladora. investigadores solicitavam o acesso
Por trás do mito ventilado de uma rias. Na França, a partir de 1539, Fran- As concessões às liberdades públi- às informações ligadas a contas pri-
“governança multiatores” da internet cisco I definiu as condições de cas, simbolizadas pela lei de 1881, vadas. Entre 2013 e 2018, o número
e apesar das referências convenien- exercício da profissão do impressor e que pôs fim à censura prévia, consa- de usuários interessados pelas requi-
tes à “sociedade civil”, o presidente do livreiro em Paris e em Lyon, princi- grando a proteção judiciária da liber- sições judiciárias autorizadas em
francês promoveu o projeto que, de pais locais de edição. Além disso, ele dade de expressão, devem ser avalia- virtude da Lei de Vigilância de Inteli-
seu ponto de vista, permitirá articu- instituiu sindicatos patronais encar- das com base no movimento de gência Estrangeira aumentou 680%
lar o melhor dos dois mundos: um ca- regados de desempenhar o papel de despolitização iniciado pela entrada no Google e 1.300% no Facebook. 3 Na
pitalismo de vigilância desenfreada1 interlocutores do Estado para todo o na era dos meios de comunicação de França, as trocas estabelecidas des-
e a mão de ferro do Estado. Na ausên- setor. Em 1618, um sindicato patronal massa. Mais que uma conquista he- de 2015 no âmbito de um “grupo de
cia de campeões nacionais de novas único dos profissionais do livro foi roica de uma imprensa a partir de contato” entre o oligopólio digital e o
tecnologias de informação e comuni- criado e dotado de poderes de polícia: então independente do poder políti- Ministério do Interior também pro-
cação – aqueles dos quais a China ou seus representantes visitavam gráfi- co – de acordo com a narrativa oficial vocaram um crescimento impressio-
a Rússia podem se gabar para armar cas e bibliotecas, controlavam a apli- em vigor na história dominante da nante do número de dados forneci-
suas políticas de controle da internet cação de normas etc. A fim de enfra- mídia –, a lei de 1881 expressa a to- dos às autoridades: alta de 670% no
–, os países europeus devem se con- quecer a concorrência, os editores mada de consciência, pelo poder, de caso do Google e de 800% no que se
tentar com um punhado de empresas parisienses solicitaram um monopó- que suas regras são ainda mais efica- refere ao Facebook entre 2013 e 2019.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31

© Claudius
Graças a esse órgão opaco, sucessor
longínquo dos sindicatos patronais
dos impressores e dos livreiros do
Antigo Regime, essas empresas tam-
bém mantêm as autoridades france-
sas informadas das atualizações que
elas estão preparadas para difundir
sobre seus serviços – por exemplo,
protocolos criptográficos que cor-
rem o risco de reduzir a capacidade
de vigilância do Estado.
Ao mesmo tempo, os tratados de
cooperação judiciária que regiam,
anteriormente, o acesso das autori-
dades nacionais aos dados estocados
fora de suas fronteiras são contorna-
dos. Novas legislações, como a Lei da
Nuvem, sancionada em 2018 por Do-
nald Trump e da qual a equivalente
europeia – “e-Evidence” – está em fa-
se de análise no âmbito da União Eu-
ropeia, foram ativamente apoiadas
pelo Google e pela Microsoft. Elas co-
locam essas empresas em posição de
decidir sozinhas se qualquer solicita-
ção extraterritorial respeita os direi-
tos fundamentais dos usuários visa-
dos. Esses mecanismos poderiam
rapidamente se internacionalizar por
meio de tratados como a convenção
do Conselho Europeu sobre a
cibercriminalidade.
Na linha de frente da censura,
.

alianças análogas se estabelecem e


marcam um recuo histórico das ga-
rantias em matéria de liberdade de
expressão. Desde os atentados de ja-
neiro de 2015 em Paris, a luta contra a
propaganda jihadista e os “discursos
de ódio” justifica colaborações sem-
pre mais estreitas entre as forças poli-
ciais e as plataformas para invisibili-
zar as expressões julgadas ilícitas ou
simplesmente “indesejáveis”, de acor-
do com o termo usado por Macron na
Unesco. Trata-se, atualmente, de
massificar a censura, contornando os
procedimentos judiciários e automa-
tizando-os. Na realidade, os Estados
pretendem generalizar o recurso às
técnicas de “inteligência artificial”
desenvolvidas pelos gigantes do Vale
do Silício para identificar no oceano
digital os “conteúdos” julgados ina-
propriados e bloqueá-los, mesmo se
no momento as plataformas ainda te- lamento europeu consagrado à luta vem: “É conveniente estender as re- ternet, XVe-XXIe siècle [A utopia caída.
nham de apelar para as milhares de contra a propaganda terrorista, pres- gras fixadas aos conteúdos com cará- Uma contra-história da internet, séculos
“mãozinhas da censura”, esses traba- tes a ser adotado em Bruxelas. ter pedopornográfico e aos referentes XV a XXI], Fayard, Paris, 2019.
lhadores precários encarregados de Em uma correspondência conjun- a discursos de ódio (incitação à dis- 1   L er Shoshana Zuboff, “Un capitalisme de sur-
aplicar suas políticas de moderação. ta enviada para a Comissão Europeia criminação e ao ódio racial, atentado veillance” [Um capitalismo de vigilância], Le
Após as experiências conduzidas em abril de 2018, os ministros do In- à dignidade do ser humano)”. Seria o Monde Diplomatique, jan. 2019.
2   Ler Dan Schiller, “Qui gouvernera Internet?”
no âmbito nacional ou sob a égide de terior francês e alemão evocaram fim da lei de 1881 e da proteção judi- [Quem vai governar a internet?], Le Monde
órgãos como o Europol, textos de lei sem artifícios o objetivo desses tex- ciária da liberdade de expressão. Um Diplomatique, fev. 2013.
tornam perenes esse novo modelo de tos: a generalização, em toda a web, regime de censura extrajudiciário, 3   Cf. os relatórios “Transparence des informa-
tions” [Transparência das informações], Goo-
censura. Trata-se do sentido da lei dos dispositivos de censura desen- amplamente privatizado e cada vez gle. Disponível em: https://transparencyreport.
alemã NetzDG, adotada em junho de volvidos pelo Google e pelo Face- mais automatizado, está em via de google.com; e “Government Requests for User
2017, para lutar contra os “discursos book.4 Eles explicaram também que a consolidação.  Data” [Requisições do governo de dados do
usuário], Facebook Transparency. Disponível
de ódio” na internet, mas também de “apologia ao terrorismo” – uma no- em: https://transparency.facebook.com.
seu equivalente em via de ser adota- ção elástica, regularmente instru- *Félix Tréguer é pesquisador e membro 4   Joe McNamee, “Leak: France and Germany
do pelo Parlamento francês (a pro- mentalizada para invisibilizar ex- fundador da organização La Quadrature du demand more censorship from Internet com-
panies” [Vazamento: França e Alemanha de-
posta de lei “contra os conteúdos de pressões contestatórias – era apenas Net. Este artigo foi adaptado de sua obra mandam mais censura pelas empresas de in-
ódio na internet”), ou ainda do regu- um primeiro passo. No final, escre- L’Utopie déchue. Une contre-histoire d’In- ternet], European Digital Rights, 7 jun. 2018.
32 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

OS “WENZHOU” DE PRATO

Uma aldeia
de abril. No fim de janeiro, essa pres- maciço no país. Se em Belleville e Pa-
tigiosa figura organizou com dezoito ris seus operários, clandestinamente
associações da diáspora uma “força e quinze horas por dia, confeccio-
de intervenção especial Covid”, que nam raviólis para restaurantes asiáti-

chinesa na Itália
impôs o confinamento e o uso de cos, os de Prato desenvolveram o ni-
máscaras aos milhares de trabalha- cho do pronto moda: produzir rápido
dores chineses, bem antes de o gover- e barato o prêt-à-porter para o grande
no italiano decretar essa medida. público. Esse sistema respondia – e
Uma equipe de voluntários garantiu responde ainda – às exigências dos
Na Itália, o centro europeu da diáspora chinesa registrou o respeito às regras para toda a diás- varejistas europeus, que não querem
poucos óbitos pelo coronavírus. Artesãos desse sucesso pora e distribuiu máscaras aos pra- mais esperar dois meses por uma en-
tenses na rua, nas caixas de correio e comenda de roupas, enquanto se
sanitário, os chineses de Prato, engajados na indústria nos estacionamentos dos hospitais. aproveitam da sedutora etiqueta
local do prêt-à-porter, gozam de um reconhecimento “Finalmente, o método chinês foi “Made in Italy”.2
tardio, após vinte anos de desamor aplicado. A única diferença é que os Há muito tempo, em Prato, os cos-
voluntários cívicos não exibiam cole- tureiros chineses trabalham, comem
tes nem braçadeiras vermelhas”, ana- e dormem na confecção, com seus
POR JORDAN POUILLE E LEI YANG*, ENVIADOS ESPECIAIS lisa o jornal, esquecendo de passa- magros salários servindo para pagar
gem as seis igrejas evangélicas os “coiotes”. Seus patrões, também
chinesas da cidade, cujos fiéis tam- de Wenzhou, vivem bem, exibindo-se
bém colaboraram bastante. em carros de luxo. De uma hora para
As autoridades de Prato estimam outra, proliferaram lojas, restauran-

A
s grandes mídias de Pequim fi- tavam na China para o ano novo lu- em 31 mil o número de chineses resi- tes, clubes de jogos e salões de chá
zeram a festa com os elogios nar [25 de janeiro]. De volta, dentes na cidade – dos quais um exclusivos.
proferidos pelo prefeito de Pra- puseram-se em quarentena voluntá- quarto em situação irregular –, em Em 2008, quando eclodiu a crise
to (Toscana), Matteo Biffoni, a ria. É preciso agradecer-lhes por is- uma população total de 195 mil habi- financeira, as últimas fábricas de te-
propósito dos residentes chineses de so”, acrescentou à Agência Xinhua. tantes.1 A Câmara de Comércio local cidos de alta qualidade mantidas por
sua cidade. “Quando a epidemia foi Era a primeira vez que os chineses de contou no ano passado 5.850 empre- italianos aceleraram seu declínio, en-
declarada na China, os jornais e ca- Prato ouviam elogios assim. sas chinesas, quase sempre indivi- quanto as confecções chinesas conti-
deias de televisão [italianos] estavam Nessa cidade industrial da Tosca- duais, 4.280 delas no setor têxtil. Es- nuaram a prosperar. Todavia, a eva-
convencidos de que Prato se tornaria na, situada 20 quilômetros ao norte tas nascem e morrem num ritmo são fiscal provoca indignação: a
o buraco negro da Itália. Na verdade, de Florença, eles fazem parte da pai- desenfreado: a expectativa de vida polícia financeira italiana descobriu
temos uma taxa de contágio bem me- sagem há uns 25 anos. Compraram média não ultrapassa dois anos. fluxos de dinheiro não declarados en-
.

nor que o resto do país e, sobretudo, fábricas de tecido à beira da falência A comunidade majoritariamente tre a Toscana e a China estimados em
não há um só cidadão chinês infecta- e aprimoraram a confecção. Jou Ron- originária de Wenzhou, cidade por- 1 bilhão de euros por ano, dos quais
do. A comunidade chinesa se mos- gjing, presidente da Associação dos tuária da província de Zhejiang, cres- dois terços saíam de Prato. No ano se-
trou extraordinariamente atenta”, Comerciantes Chineses da cidade, ceu a partir de meados dos anos 1990, guinte, Roberto Cenni, o candidato
declarou o Biffoni, em 7 de abril de ressalta: “Fiquei muito orgulhoso ao na esteira das grandes reestrutura- da direita berlusconiana, venceu as
2020, à China Central Television (CC- ouvir as palavras [do prefeito]”, de- ções das empresas estatais chinesas, eleições municipais nessa fortaleza
TV). “Inúmeros cidadãos de Prato es- clarou ao Beijing Qing Nian Bao, em 8 que acarretaram um desemprego comunista após uma campanha vi-

© Stefano Rellandini/ Reuters

Os costureiros chineses trabalham, comem e dormem na confecção, com seus magros salários servindo para pagar os “coiotes”.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 33

rulenta contra a comunidade chinesa darim, a ligar para uma “irmã” ou vo Lunar, recebeu a visita de um ho- “RESPEITO ÀS REGRAS”
e seus “30 mil escravos”. “prima”. É ali, em velhos bares trans- mem que andava atrás de mão de obra Voltamos a Prato, para o almoço.
Em 1º de dezembro de 2013, ocor- formados em cantinas operárias, que para exportar, prometendo um salário Diante de uma casa cercada de pi-
reu a tragédia do Teresa Moda: sete os costureiros do pronto moda sabo- melhor, uma cama confortável e três nheiros, avistamos um operário de
operários chineses morreram prisio- reiam uma enorme tigela de macar- refeições por dia. Seduzido, Gao Dong 23 anos, chamado Amin, com uma
neiros das chamas na confecção, rão com carne de porco, enquanto as- pagou os serviços do homem e chegou caixa de energéticos Red Bull debai-
que, como tantas outras, não tinha sistem aos shows de talentos na TV à Itália um mês depois. Sua esposa se xo do braço. Ele trabalha numa fábri-
saída de emergência. A cidade decre- Zhejiang. Estamos a poucos passos juntou a ele mais tarde. “Ela está tra- ca têxtil há sete meses, depois de
tou um dia de luto. Alessandro Fab- da Via Pistoiese, onde se alinham as balhando numa fábrica de botões, a 10 passar quase três anos num campo
brizzi, secretário-geral local da po- primeiras oficinas de costura chine- quilômetros daqui. Dorme no empre- de refugiados perto de Palinuro, uma
derosa Confederação Geral Italiana sas e prédios velhos que se diria aban- go, em um quarto fornecido pela fá- estação balneária ao sul. “Foi o tem-
do Trabalho (CGIL), exortou Prato a donados, com janelas às vezes oblite- brica, com outra operária. Nós nos ve- po de que precisei para conseguir
deixar de ser “a cidade da ilegalida- radas para disfarçar as luzes acesas mos uma vez por mês.” asilo político. Pensei que ia ficar lou-
de”. 3 Nos muros, florescem grafites que trairiam o trabalho noturno. co, mas aprendi italiano.” Esse jovem
conclamando à “ação”. Nove quilômetros ao sul, em Sea- cresceu numa aldeia do Waziristão,
no, junto às vinhas, as confecções “Fabricamos bolsas para região montanhosa no noroeste do
A “PREGUIÇA” DOS ITALIANOS ocupam barracões novos, construí- ela, a 14 euros a peça. Paquistão, uma base remota dos tali-
Alguns meses depois, Matteo Biffoni, dos atrás de casas respeitáveis e alu- bãs. Conta que sua mãe morreu e seu
o candidato de centro-esquerda, foi gados a altos preços por seus proprie-
Não sei por quanto ela pai ficou inválido. “Posso lhe enviar
eleito com a promessa de diálogo e re- tários italianos. Também ali, a vende. Nem quero sa- 300 euros por mês.” Seu patrão é de
torno à legalidade. Programa que exe- infração por desvio de finalidade do ber.” Consultamos o site Wenzhou, “mas só me comunico
cutou: desde sua posse, em 2014, cerca local parece moeda corrente: máqui- de vendas: 220 euros com meu capo, um paquistanês que
de 10 mil batidas policiais ocorreram nas de costura e montões de tecidos também me arranjou uma cama por
nas empresas. Várias delas visaram substituem os utensílios agrícolas. 150 euros mensais.” Amin vive numa
escritórios de contabilidade em mãos Lu Hong, de 34 anos, tênis nos pés À medida que a mão de obra dimi- casa de seis quartos, cada um ocupa-
de pratenses: por um bom dinheiro, e casaco nos ombros, é uma das pe- nui, principalmente em razão de do por quatro rapazes. O dono, que
alguns forneciam folhas de pagamen- quenas empresárias do pronto moda. muitos regressarem ao país natal, on- embolsa assim 3.600 euros de alu-
to, balanços de empresa e carteiras de Montículos de pano rodeiam sua fina de se abrem oportunidades mais fa- guel por mês, é um aposentado ita-
trabalho para permitir a seus clientes silhueta: ela está concluindo uma en- voráveis, africanos e paquistaneses liano que não aprecia nem um pouco
chineses obter a renovação do visto de comenda de 1.800 vestidos de flanela tomam seu lugar. Podemos vê-los, nossa presença.
permanência. Estes, em seguida, que entregará no dia seguinte, ao vo- por exemplo, desde as 7 horas da ma- A esses novos operários trazidos
eram dispensados e pagos por fora. lante de sua caminhonete, a um co- nhã, na Via del Molinuzzo, em volta pela atual crise migratória, o prefeito
As batidas policiais ocorrem tam- merciante da Rua Popincourt, em Pa- de um trailer amarelo-canário que de Prato, Biffoni, pretende aplicar as
.

bém nas confecções onde são denun- ris: “Chinês como eu, cuja família vende porções de macarrão a 1 euro e mesmas regras: “Os operários africa-
ciadas disparidades entre o número rica abriu falência. Está recomeçan- ovos com chá a 50 centavos. “Eles co- nos ou paquistaneses em geral não
de operários declarados e o das má- do do zero”. A jovem iniciou sua car- mem ao ar livre, agachados na calça- se acham em situação irregular, em-
quinas de costura ali existentes. Veri- reira como operária, há dez anos, ga- da, como verdadeiros chineses”, di- bora trabalhem horas demais... com
fica-se, é claro, se as normas de pre- nhando 800 euros por mês. “Antes verte-se o dono, um ex-operário, com contratos provisórios. Ainda que
venção de incêndio são cumpridas. disso, eu era contadora numa empre- seu tabuleiro bem abastecido. Ele Prato deixe de ser esse centro chinês,
Lacra-se em seguida o estabeleci- sa de telecomunicações, em minha trabalhou em Sesto Fiorentino, a 15 estamos numa sociedade multicul-
mento e, depois, vem a reabertura terra, Fujian”, recorda-se. Lu é ambi- quilômetros de Prato e a 10 quilôme- tural. Devemos nos esforçar para
condicionada a uma série de encar- ciosa. Adquiriu um espaço em que tros de Florença, num conjunto de construir uma sociedade onde todos
gos e ao pagamento de multas decoradores, também chineses, es- armazéns que escondia centenas de respeitem a mesma lei. Todo mundo
pesadas. tão preparando oito showrooms para coureiros chineses espremidos em é bem-vindo a Prato, desde que res-
“Medem até o tamanho dos ban- alugar: “Mas os lucros serão poucos, compartimentos estreitos. Ainda ho- peite as regras”. Reeleito em maio de
cos! Mas, em caso de assalto ou pois sei que as multas vão chover”. je, lá se fabricam exclusivamente bol- 2019, ele convocou pela primeira vez
agressão na rua, não aparece nin- Da ameaça à extorsão, quase sem- sas, produzidas a granel ou para ven- dois filhos de imigrantes chineses5
guém”, suspira um empresário entre- pre é apenas um pulo. Em 3 de maio da aos ambulantes. Como no para integrar o conselho municipal:
vistado antes da epidemia. Wen Jun de 2019, um empresário chinês e sua cubículo-confecção da família de Marco Wong, engenheiro de teleco-
Hui4 possui uma loja atacadista perto esposa grávida foram chantageados Wen Jun Hui, para onde se dirige uma municações de 56 anos, e Teresa Lin,
da Via Toscanini. Bebericando seu em sua residência por um policial e velha senhora loira, de casaco de vi- de 24, formada em Economia nos Es-
chá de jasmim, ele desabafa sobre a três cúmplices, munidos de um falso son, que entrega um envelope e vai tados Unidos e já à frente da empresa
“preguiça” dos italianos, sobre os mandado de busca. Montante do rou- embora. “É um adiantamento”, expli- de pronto moda da família. 
“trabalhadores chineses que ficaram bo: 11 mil euros em dinheiro, dez ve- ca a senhora Hui. “Fabricamos bolsas
muito caros” e sobre a mão de obra zes menos que o esperado. Soube-se sob medida para ela, a 14 euros por *Jordan Pouille e Lei Yang são
paquistanesa e africana pouquíssi- em 29 de abril de 2020 que um figurão peça. Não sei por quanto ela vende. jornalistas.
mo qualificada. Depois, convida-nos também estava envolvido. O fato foi Nem quero saber”, conclui, rindo.
a conhecer o templo budista Pu Hua denunciado no Nouvelles d’Europe, Examinamos o logotipo e consulta- 1   D isponível em: http//statistica.comune.prato.it.
2   C f. Antonella Ceccagno, City Making and Glo-
da Piazza Gualchierina, joia da alta jornal dos chineses da França, e re- mos o site de vendas: 220 euros. Nes- bal Labor Regimes: Chinese Immigrants and
sociedade sino-pratense. Huang Shu- produzido no WeChat. se labirinto de confecções minúscu- Italy’s Fast Fashion Industry [Construção de
lin, seu administrador, de chapéu Lu Hong nos apresentou Gao Dong, las, delimitadas por grades e muretas, cidades e regimes de trabalho globais: imi-
grantes chineses e a indústria italiana de
borsalino combinando com sapatos um de seus três funcionários no mo- cruzamos com pelo menos uns vinte moda rápida], Palgrave MacMillan, Londres,
Versace, nos apresenta três monges mento. Esse passador de roupa qua- trabalhadores africanos. Entre eles, 2017.
residentes, vindos especialmente de rentão é remunerado por peça. “Lu me Sidy, senegalês de 28 anos, com seu 3   Louise Munkholm, Re-inventing Labour Law
Enforcement: a Socio-legal Analysis [Rein-
Ningbo (Zhejiang), e as obras de em- paga 15 centavos por vestido. Posso estilo hip-hop e sentado num ban- venção da aplicação da legislação trabalhista:
belezamento recentes, financiadas passar até seiscentos em doze horas, o quinho. Está aqui há apenas duas se- uma análise sociojurídica], Bloomsburry, Lon-
pelo mecenato. que dá 90 euros por dia. Nada mal, manas. “Tudo tranquilo. Meu patrão dres, 2020.
4   O nome foi alterado a pedido dele.
A pompa do templo contrasta com hein?” Filho de camponeses de Hebei, é o cara na máquina bem atrás de 5   Cf. Dario di Vico, “Teresa Lin e Marco Wong, la
a decadência das calçadas da Via Fil- ele costurava calçados Bally em uma mim. Ganho 30 euros por dia, traba- storia dei primi due consiglieri cinesi eletti a
zi, artéria comercial onde as lixeiras e fábrica dos arredores de Shenzhen, na lhando das 7 às 21 horas. Vou de um Prato (oltre l’integrazione)” [Teresa Lin e Marco
Wong, a história dos dois primeiros conselhei-
os parquímetros são cobertos de ade- China, ganhando 700 euros por mês. cubículo a outro. Quando o patrão ros chineses eleitos em Prato (além da integra-
sivos marotos convidando, em man- Em 2017, durante o feriado de Ano No- me manda um SMS, apareço.” ção)], Corriere della Sera, Milão, 10 jun. 2019.
34 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

TRABALHO INFANTIL NAS MINAS DE COBALTO DA RDC

O lado vergonhoso do “metal azul”


Indispensável para a fabricação de baterias elétricas, o cobalto é uma das matérias-primas mais cobiçadas do
mundo. Sua raridade alimenta o medo de uma possível escassez. Na República Democrática do Congo (RDC),
principal produtor mundial, crianças trabalham nas minas para abastecer as grandes empresas dos setores
automobilístico, de informática e de telefonia

POR AKRAM BELKAÏD*

A
indústria mundial corre o ris- Nisso, aliás, os mercados não se maioria das matérias-primas flutua incapacidade da RDC de escapar à
co de ficar sem cobalto num enganaram. Em 21 de março de 2018, conforme a atividade econômica chi- condição pouco invejável de ser um
futuro próximo? Ultimamen- o preço do cobalto atingiu o recorde nesa (demanda, produção local, fá- dos dez países com as populações
te, seu pequeno mercado – 136 histórico de US$ 95 mil a tonelada na bricas no estrangeiro). No caso do co- mais pobres do planeta.
mil toneladas produzidas em 20191 – Bolsa de Metais de Londres (BML), o balto, deve-se levar em conta o quase Se os grandes grupos como Glen-
ficou no centro de todas as atenções principal centro de transações de monopólio da China em matéria de core, Umicore e BHP garantem 80%
por causa do aumento dos preços, metais. Subindo perto de 300% em refino. Em 2019, esse país produziu do total da produção congolesa, o res-
motivado pelo medo de escassez. relação a seus níveis do início da dé- apenas 2 mil toneladas de metal azul to provém de explorações artesanais
Utilizado há muito em equipamen- cada, o metal justifica plenamente em suas próprias minas, mas garan- mais ou menos dentro da legalidade,
tos médicos de imagem e radiotera- seu outro apelido, “ouro azul”. De- tiu 80% do refino do conjunto da pro- onde 200 mil “furadores”, segundo o
pia, o “metal azul” se tornou um pois, os preços voltaram a patamares dução mundial. Essa situação inquie- termo consagrado, arriscam a vida
componente indispensável para as menos impressionantes, mas ainda ta o Pentágono, que definiu o cobalto trabalhando com ferramentas rudi-
baterias do tipo íon de lítio que equi- assim substanciais: no primeiro se- como “estratégico” para os Estados mentares e sem praticamente ne-
pam a grande maioria dos celulares mestre de 2020, apesar da desacelera- Unidos. Desde 2016, o Departamento nhum equipamento de segurança.
e veículos elétricos. Uma pesquisa ção da atividade por causa da pande- de Defesa tenta convencer as empre- Muitos deles sofrem de doenças pul-
do Instituto McKinsey prevê que es- mia de Covid-19, o preço médio da sas norte-americanas a investir em monares e dermatites. Mais grave
tes últimos representarão de 22% a tonelada oscilou entre US$ 28 mil e infraestruturas de refino a fim de re- ainda, milhares de crianças sem es-
30% do parque mundial em 2030. 2 US$ 35 mil. duzir a dependência. cola labutam nesses locais.6 Algumas
Como não há um mineral substituto Em 6 de maio, o anúncio pelo gru- são designadas para o transporte de
.

e a reciclagem de baterias permane- PREOCUPAÇÃO NO PENTÁGONO po canadense FirstCobalt da abertu- entulho, outras para a triagem ou a
ce uma atividade modesta, a produ- Como quase todas as matérias-pri- ra em 2021 da maior refinaria de co- lavagem do mineral. Há até as que são
ção de cobalto deverá atingir então mas, o cobalto não escapa às estraté- balto da América do Norte foi obrigadas a esgueirar-se pelo interior
220 mil toneladas, ou seja, um au- gias especulativas de fundos que não bastante divulgado pela mídia. Situa- das galerias estreitas e arrancar com
mento de 162% em uma década. Tra- sabem qual destino dar à sua liqui- do em Ontário, ao norte de Toronto, o as mãos nuas os blocos de pedra azu-
ta-se de uma hipótese comedida, dez, obtida a preços ínfimos graças projeto no valor de US$ 56 milhões lada. Os acidentes nesses “túneis da
pois essas projeções não levam em às políticas de juros baixos pratica- consiste na recuperação de uma fá- morte”, como são chamados no local,
conta o entusiasmo atual pelos veí- das pelos grandes bancos centrais. brica fechada em 2015, cuja capacida- se repetem. Em 27 de junho de 2019, o
culos elétricos. Entretanto, é mesmo o medo da es- de de tratamento chegará a 25 mil to- desabamento de duas galerias num
No entanto, o cobalto não é um cassez a médio prazo que explica a neladas. Para seus executivos, o local lugar perto da cidade de Kolweizi – a
dos metais mais disseminados pelo alta dos preços. será tão competitivo quanto as usi- “capital” do cobalto congolês – provo-
planeta: dois terços das reservas es- Desde 2018, as fábricas de celula- nas chinesas. Todavia, o que favore- cou a morte de 36 mineiros e ferimen-
tão na República Democrática do res e as montadoras de automóveis se ceu o lançamento do projeto foi, cer- tos em dezenas de outros.
Congo (RDC). Mesmo sendo o maior entregam a uma discreta concorrên- tamente, o fato de ter obtido o apoio Organizações de defesa dos direi-
produtor mundial (100 mil toneladas cia para garantir sua provisão de me- das autoridades canadenses e a ga- tos humanos estão sempre denun-
em 2019), o país mal consegue desen- tal azul. Temendo que o carro elétri- rantia de mercado na América do ciando essa situação. Em 15 de de-
volver e modernizar sua infraestru- co absorva toda a produção, empresas Norte.5 Segundo os dirigentes da zembro de 2019, a associação
tura mineira. Numerosos projetos de como a Apple e a Samsung entabula- FirstCobalt, o mineral destinado à re- International Rights Advocates (IRA)
exploração estão sendo anunciados ram negociações diretas com os finaria será fornecido pela Glencore, informou sobre uma petição apresen-
na Rússia (6.100 toneladas brutas em grandes grupos mineiros a fim de as- a gigante mineira anglo-suíça. tada em Washington contra diversas
2019), na Austrália (5.100 toneladas) e segurar entregas regulares por vários Ora, a grande questão é saber se empresas transnacionais acusadas de
até em Cuba (3.500 toneladas) e no anos. No entanto, a ideia de fazer es- esse mineral virá ou não das minas da cumplicidade na morte de catorze
Marrocos (2.100 toneladas). Contudo, toques estratégicos destinados a RDC, pois, dado o risco de escassez, a crianças nas minas de cobalto congo-
são grandes os riscos de que a “revo- compensar a escassez no mercado situação controversa dessas minas lesas. Esse processo envolve direta-
lução do veículo elétrico” (para reto- (cuja gestão seria confiada a uma es- também é um problema que envolve mente Apple, Alphabet (precursora do
mar as palavras dos economistas do pécie de cooperativa para os usuários o cobalto. No século XIX, o geólogo Google), Dell, Microsoft e Tesla. Se-
McKinsey) seja sufocada pela insufi- de baterias elétricas) não parece es- belga Jules Cornet, prospectando pa- gundo a IRA, o cobalto é “explorado
ciência da capacidade de produção. tar indo muito longe. “Os grupos mi- ra mineradoras, recorreu à célebre na República do Congo em condições
Levando o raciocínio ao extremo, os neiros não se mostram favoráveis, fórmula do “escândalo geológico” pa- dignas da idade da pedra, extrema-
analistas do Banco UBS sustentaram pois isso influenciaria negativamen- ra realçar a importância das riquezas mente perigosas para crianças, que
que um mundo onde o parque auto- te os preços”, confidencia-nos um minerais do Congo e sua província do recebem US$ 1 ou 2 por dia [...] e for-
mobilístico fosse 100% elétrico exigi- corretor de matérias-primas estabe- Katanga. Mais de um século depois, necem o cobalto presente em equipa-
ria um aumento de... 1.928% na pro- lecido na Suíça. “E os fabricantes de essas jazidas continuam existindo e mentos caros, fabricados por algumas
dução global do metal azul (2.898% telefones ou carros elétricos teriam constituem a principal renda da RDC, das empresas mais ricas do mundo7”.
para o lítio e 655% para as terras-ra- de arcar com os custos da proteção com perto de R$ 1 bilhão de receitas A ação da IRA retoma a da Anistia
ras).3 Missão impossível, exceto se re- das instalações de armazenamento.” de exportação, incluindo os hidrocar- Internacional, que, com o apoio de
giões inteiras fossem transformadas A partir do início dos anos 2000, bonetos. No entanto, o verdadeiro es- imagens, documentou durante anos
em complexos mineradores, com quer se trate do algodão, do petróleo cândalo é a situação dos trabalhado- a situação nas minas da RDC. Em
custo ambiental elevadíssimo.4 ou das terras-raras, a evolução da res nas minas de cobalto e a 2016, a organização publicou, com a
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35

Kenny Katombe/Reuters
associação African Resources Watch
(Afrewatch), um relatório em que
acusava dezesseis grandes nomes da
informática e da indústria automobi-
lística (entre as quais Apple, Daimler,
Lenovo, Microsoft, Sony e Samsung)
de não procurar saber se o cobalto de
suas baterias provinha de minas on-
de trabalhavam crianças. “As vitrines
das lojas de luxo e o marketing das
tecnologias de ponta contrastam vi-
vamente com a imagem de crianças
curvadas ao peso de sacos de pedras
e mineiros se arrastando em túneis
estreitos, por eles cavados, e expon-
do-se ao risco de contrair infecções
pulmonares permanentes”, declarou
então Mark Dummett, especialista
em responsabilidade empresarial na
área de direitos humanos da Anistia
Internacional.8
À denúncia da IRA e ao questiona-
mento da Anistia Internacional, as
respostas das indústrias são todas
uma refutação categórica. Num pri-
meiro momento, os grupos da infor-
mática e da indústria automobilística
asseguraram que nenhum cobalto
extraído por crianças era usado em
seus componentes. Em seguida,
diante da persistência das críticas, o
discurso mudou para invocar a “com-
plexidade” da cadeia de abasteci-
.

mento e a necessidade de tempo para


instalar um sistema eficaz de “trans-
parência” e “rastreabilidade” – duas
palavras que lembram os elementos
de linguagem empregados no início
dos anos 2000 pelos joalheiros acusa- Na República Democrática do Congo até crianças trabalham para abastecer as grandes empresas de vários setores
dos de cumplicidade passiva no tráfi-
co dos “diamantes de sangue”.9 então, os “furadores” vendiam sua neral estratégico, tanto quanto a co- Salvo indicação contrária, a produção em to-
Como a pressão da mídia aumen- produção a negociantes – chineses na lumbita-tantalita e o germânio, e tra- neladas citada no texto se refere a uma esti-
tou, a montadora BMW decidiu em maior parte. Sediados em sua maio- vou uma queda de braço com as mativa para o ano de 2019.
2   “Lithium and cobalt: a tale of two commodi-
2019 não adquirir mais cobalto con- ria na província do Lualaba, esses in- empresas de mineração ao editar um ties” [Lítio e cobalto: história de duas maté-
golês para a fabricação de seus veícu- termediários é que abastecem a Hua- novo código mineral, no qual prevê rias-primas], McKinsey, jun. 2018.
los elétricos. De seu lado, a Tesla afir- you e outras refinarias. que os royalties sobre a extração des- 3   “UBS takes apart Chevy Bolt, says electric
vehicles will disrupt commodity markets”
ma que seus futuros veículos não ses minérios passarão de 3,5% para [UBS desmonta Chevy Bolt e diz que veícu-
precisarão de cobalto, informação 10%. Contudo, em se tratando das los elétricos abalarão o mercado de maté-
acolhida com ceticismo, pois esse Processo envolve direta- condições de trabalho nas minas, rias-primas], Financial Times , Londres, 19
maio 2017.
metal continua insubstituível na fa- mente Apple, Alphabet Kinshasa se pôs inicialmente em guar- 4   “Cobalt: le coût humain et environnemental de
bricação de baterias elétricas. Já a da contra um complô que contrariava l’or bleu de nos transitions énergétiques” [Co-
Apple declara que instaurou “audito-
(precursora do Google), os interesses congoleses, lançando a balto: o custo humano e ambiental do ouro

rias independentes, conduzidas por Dell, Microsoft e Tesla campanha “Não toque em meu cobal-
azul de nossas transições energéticas], UP’
Magazine, Château l’Hermitage, 18 maio
terceiros”, a fim de verificar se as refi- to”, elaborada por jornalistas e asso- 2020.
narias se abastecem ou não junto aos “O papel desses negociantes per- ciações.10 Diante da amplitude das de- 5   “ FirstCobalt seeks government backing to res-
tart Canadian refinery” [FirstCobalt pede aju-
“furadores”. A empresa informa, as- manece obscuro”, diz o corretor suí- núncias, as autoridades se defenderam da governamental para recuperar refinaria ca-
sim, ter excluído em 2019 seis forne- ço. “Adquirem o cobalto a ser refina- lembrando que o trabalho infantil é nadense], Reuters, 13 nov. 2019.
cedores de seus circuitos de do, não importa de onde venha, e o proibido na RDC. Argumento bem frá- 6   C f. Inside the Congo cobalt mines that ex-
ploits children [Por dentro das minas de co-
abastecimento. revendem a quem o queira comprar. gil, que não faz esquecer o fato de o balto do Congo que exploram crianças], do-
A lógica desse comunicado sob Não existe instituição capaz de con- país – onde 90% dos trabalhadores cumentário da Sky News, 27 fev. 2017.
pressão pretende lançar a responsa- trolar totalmente sua atividade.” Vale não são qualificados – não ter um au- 7   International Rights Advocates, 15 dez. 2019.
8   “Voilà pourquoi on meurt. Les atteintes aux
bilidade sobre os ombros das minas e lembrar que a suspensão, pela Hua- têntico projeto de desenvolvimento droits humains en République du Congo ali-
refinarias. Onipresente na RDC, onde you, das compras de cobalto dos “fu- industrial capaz de beneficiar direta- mentent le commerce mondial du cobalt” [Eis
garante 60% da produção de cobalto, radores” é apenas “temporária”. Tal- mente a população, e isso apesar de por que se morre. Os atentados aos direitos
humanos na República do Congo alimentam o
a Glencore jura que suas instalações vez só enquanto não cessar a agitação todas as suas riquezas minerais.  comércio mundial de cobalto], Amnesty, 19
não empregam nenhuma criança e da mídia provocada pela IRA... jan. 2019.
critica os “furadores” que manejam O governo congolês, de seu lado, *Akram Belkaïd  é jornalista do Le Monde 9   G reg Campbell, Diamants de sang. Trafic et
guerre civile en Sierra Leone [Diamantes de
as deles de maneira ilegal, com peri- parece pouco capaz de influir no cur- Diplomatique. sangue. Tráfico e guerra civil em Serra Leoa],
go de vida. Já o grupo chinês Huayou, so dos acontecimentos. Em 24 de no- Les Belles Lettres, Paris, 2013.
maior refinaria de cobalto da RDC, vembro de 2019, para mostrar que pre- 1   “Les principaux pays producteurs de cobalt 10  “ Don’t touch my cobalt, to dirty it, to blacklist
dans le monde de 2013 à 2019” [Os princi- it” [Não toque em meu cobalto para sujá-lo,
anunciou em 28 de maio que sustara tende proteger o país da exploração pais países produtores de cobalto no mundo para boicotá-lo], chamada disponível em con-
as compras das minas artesanais. Até intensiva, ele declarou o cobalto mi- de 2013 a 2019]. Disponível em: statista.fr. gomines.org, mar. 2018.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

LIBERDADE

A extinção judicial prova de livros didáticos que teriam


sido distribuídos pelo Ministério da
Educação (MEC), com conteúdo se-

do Escola sem Partido


xual impróprio para menores, en-
quanto uma rede de robôs e aguerri-
dos militantes complementavam a
desinformação, disseminando maci-
çamente fotos de apetrechos eróticos
que igualmente estariam em uso nas
Efeitos práticos de decisões do STF e o ponto final na farsa jurídica escolas. O estrago eleitoral estava fei-
construída para impor censura antigênero nas escolas e perseguição a professores to. O programa máximo desses movi-
mentos é estabelecer a censura real
nas escolas, de preferência a auto-
POR SALOMÃO XIMENES E FERNANDA VICK* censura, aquela que alcança mais
gente e dá menos trabalho. Para isso,
apostaram nas investidas legislativas

A
ntes tarde do que nunca. O STF camente estéril, como veio a reco- ção ativa de Jair e Flávio Bolsonaro, já para criar deveres genéricos e cons-
decidiu dar fim a uma das mais nhecer o STF nas últimas semanas. então deputado federal como o pai. O trangedores ao exercício do magisté-
danosas farsas jurídicas da Ainda assim, foi suficientemente projeto e seus defensores parlamen- rio, cuja indeterminação jurídica tor-
atualidade: as legislações anti- marcante para alastrar o tema nos tares mais destacados viajaram o naria sempre presente o fantasma da
gênero na educação, que proliferam debates legislativos dos planos muni- país nos anos que se seguiram, disse- ameaça de processos administrati-
no Brasil desde 2014. Disseminadas cipais e estaduais de educação que se minando a ideia e, mui oportuna- vos e ações judiciais. Essa sombra es-
por movimentos reacionários e gru- seguiram ao PNE. mente, corporificando o caldo de taria em cada sala de aula brasileira,
pos fundamentalistas junto aos Le- Não à toa, foi nesse mesmo ano de cultura em franca expansão. Desse emanada de um cartaz obrigatório,
gislativos, essas normas e os debates 2014 que se iniciou a tramitação do périplo resultaram pelo menos 201 com os “Deveres do Professor”.
parlamentares que as antecedem dão primeiro projeto de lei nacional iden- projetos de lei e 46 leis aprovadas que O mecanismo de censura na edu-
suporte institucional à cruzada anti- tificado ao Escola sem Partido (EsP), tratam dos temas,3 seguidos de deze- cação, contudo, não se fechou. Não
gênero e à censura nas escolas, ser- o PL n. 7.180/2014, que foi seguido do nas de questionamentos judiciais. foi aprovada uma lei federal sobre o
vindo de plataforma ao pânico moral PL n. 867/2015, este um protótipo dos Os alertas de movimentos femi- tema – em consequência, nenhum
e suas consequências políticas e so- projetos apresentados no estado e no nistas, LGBTQIs e educadores quanto cartaz oficial foi afixado – e, na visão
ciais.1 Há anos contestadas em mais município do Rio de Janeiro pelos ir- aos impactos mais amplos dessas leis da militância “raiz” desses movi-
de uma dezena de ações judiciais, mãos Flávio e Carlos Bolsonaro, res- e o cenário em gestação nos debates mentos, há inépcia do MEC na con-
desde fins de abril deste ano tais nor- pectivamente. Em seguida, surgiu foram inicialmente minimizados: dução da agenda, como fica evidente
.

mas vêm sendo julgadas e declaradas um punhado de novos PLs com foco “Isso é cortina de fumaça”, ouvia-se. nas críticas públicas desse segmento
inconstitucionais, uma a uma, por específico na temática antigênero. A cegueira quanto à centralidade ao que interpretam como traição e
unanimidade, no discreto Plenário As matérias, caras à família presi- dessa agenda no projeto antidemo- abandono oficiais. Mais que bravatas
Virtual do STF. dencial, ganharam destaque nacio- crático que se anunciava, em alguma sobre a “feiura” de Paulo Freire e as
É, portanto, o fim de um ciclo, ao nal com a criação de uma Comissão medida, perdurou até que seus efei- “balbúrdias” acadêmicas, queriam
menos no relevante plano dos emba- Especial do Escola sem Partido na tos foram duramente sentidos no de- ações concretas de censura e perse-
tes jurídico-formais sobre a censura Câmara dos Deputados, onde tudo bate eleitoral. Simbolicamente, na guição; queriam, enfim, uma nova
nas escolas. Neste ensaio, analisamos foi reunido, hegemonizada desde lá edição do Jornal Nacional de 28 de legislação federal. É nesse contexto
o contexto e, sobretudo, os efeitos pela nata do que viria a ser o bolsona- agosto de 2018, o então candidato Jair de embates no interior do campo
práticos das decisões para a recons- rismo parlamentar, com a participa- Bolsonaro apresentou ao país a falsa reacionário, de reaquecimento da
trução dos ambientes pedagógicos e pauta no Congresso Nacional com a
das dinâmicas da gestão escolar de- © Unsplash criação de uma nova Comissão Espe-
mocrática, há anos vandalizados pela cial,4 que ganham importância as re-
ação articulada de grupos reacioná- centes decisões do STF, ao desautori-
rios e fundamentalistas. zar suas teses jurídicas mais
elementares.
A CONSTRUÇÃO DE UMA FARSA
DE GRAVES CONSEQUÊNCIAS O CONTEÚDO DAS DECISÕES DO STF
O primeiro palco de encenação se Há no STF atualmente quinze ações
deu entre 2013 e 2014, fase final de sobre o tema, a maior parte contra le-
tramitação do Plano Nacional de gislações municipais antigênero.
Educação – PNE (Lei n. 13.005, de 25 Dessas, quatro foram julgadas suces-
de junho de 2014). Ali, entre outras sivamente, entre 27 de abril e 26 de
polêmicas igualmente importantes, junho deste ano, data do último jul-
embora menos ruidosas, reacioná- gamento. Foram eliminadas as leis
rios e fundamentalistas lograram dos municípios de Novo Gama (GO),
emplacar uma falácia jurídica: a re- Foz do Iguaçu (PR), Ipatinga (MG) e
dação final do PNE teria excluído a Cascavel (PR).5 Por unanimidade, ca-
abordagem de gênero e diversidade da novo caso reitera os anteriores,
sexual, uma vez que a diretriz sobre a formando o que no campo do Direito
“erradicação de todas as formas de se entende como uma posição conso-
discriminação”2 não contemplara, lidada do Tribunal, um conjunto de
por veto político desses grupos e precedentes vinculantes que extra-
omissão da maioria parlamentar, polam os casos específicos, um con-
emendas que buscavam afirmar ex- junto estável de teses de interpreta-
pressamente aquelas dimensões de ção constitucional de grande
desigualdades a serem combatidas. repercussão.
Formalmente, a questão não passa de Podemos resumi-las a cinco
uma polêmica terminológica, juridi- Professores e estudantes se manifestam na Câmara contra o Escola sem Partido teses:
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37

1. A censura às temáticas de gêne- são e conscientização sobre as dife- de uso de procedimentos disciplina- possibilidade de reconstruir o espaço
ro, sexualidade e orientação sexual rentes concepções de gênero e res como estratégias de perseguição. de políticas públicas contra-hegemô-
nas escolas viola a liberdade constitu- sexualidade”.7 Aliado à ação legislativa, esse é o ou- nicas de educação para as relações de
cional de ensinar, aprender, divulgar tro foco de atuação cotidiana dos gênero e sexualidade.
a arte e o saber e interdita o pluralis- O ALCANCE DAS DECISÕES DO STF movimentos reacionários, para a dis- Governos devem enfrentar esse
mo de ideias e de concepções Ainda que as quatro ações julgadas seminação do pânico moral e do me- desafio nas três esferas federativas.
pedagógicas. digam respeito, cada uma, a um mu- do na base dos sistemas educacio- Isso porque as decisões afastaram
2. Professores têm liberdade de nicípio em específico, os fundamen- nais, mantendo viva a ameaça definitivamente a ideia de que, em
expressão no exercício profissional, e tos das decisões de controle de cons- constante de denúncias infundadas, matéria de combate à discriminação
a censura prévia às suas atividades é titucionalidade no STF impõem de notificações “extrajudiciais” e, de gênero e orientação sexual, seria
incompatível com as liberdades fun- efeitos nacionais que, na prática, in- claro, disso tudo articulado à exposi- suficiente ao Estado, quando muito,
damentais de opinião e pensamento. viabilizam a proliferação jurídica da ção nas redes sociais. uma obrigação passiva e punitiva, ou
3. Crianças e adolescentes têm di- censura nas escolas. Portanto, procedimentos de apu- seja, evitar e apurar discriminações.
reito fundamental ao conhecimento Pela Constituição de 1988, uma ração ou disciplinares em curso com Não é um tema que se esgota na dele-
e à proteção que os estudos escolares decisão de controle de constituciona- fundamento em censura pedagógica gacia de polícia.
sobre gênero e sexualidade lidade do STF estabelece obrigações devem ser sumariamente arquiva- É obrigatório adotar políticas pú-
proporcionam. vinculantes às demais esferas do Ju- dos. Autoridades e superiores que blicas ativas, educacionais e em ou-
4. O Estado tem o dever de zelar diciário e aos demais poderes, alcan- persistam em sentido contrário po- tras áreas para erradicar todas as for-
pelas liberdades, direitos e garantias çando a todos, o que inclui, por ób- dem, estes sim, ser responsabilizados mas de discriminação, o que deve
anteriores e de atuar por meio de po- vio, os órgãos da administração por improbidade. Em suma, não cabe alcançar o conteúdo de bases curricu-
líticas públicas e sistemas de ensino, educacional de todos os municípios, mais discutir penas judiciais ou ad- lares, projeto pedagógico, planos de
de escolas públicas e privadas, para o Estados e da própria União, além de ministrativas aos educadores nesses ensino, material didático, atividades
enfrentamento de todas as formas de escolas públicas e privadas. Isso por- conflitos, que devem se limitar, por- de extensão, formação de professores
discriminação com fundamento em que tais decisões não apenas retiram tanto, ao ambiente político-pedagó- e financiamento adequado e perma-
gênero e orientação sexual; da esfera jurídica as leis em debate, gico das escolas. nente dessas ações. Um renovado pla-
5. Quanto aos pais, entre os direi- mas também colocam nessa mesma Complementarmente, ficam for- no nacional de combate à homofobia
tos sobre a educação de seus filhos esfera as teses constitucionais em talecidos os educadores em sua defe- nas escolas, entre outras ações.
não se incluem poderes para questio- que se fundamentaram. sa contra agressões injustas e infun- Determina-se, assim, o tratamen-
nar ou vetar conteúdos específicos Nas demais instâncias do Judiciá- dadas, quando os casos de censura to profissional das temáticas de se-
do ensino que compõem os objetivos rio e no próprio STF, as teses contra a venham a configurar algo mais gra- xualidade, gênero e orientação se-
republicanos e democráticos do di- censura e a favor da educação em gê- ve, como constrangimento ilegal e xual nas escolas, como dimensão do
reito à educação. nero e sexualidade devem ser repro- outros crimes eventualmente prati- direito à educação e dos direitos de
Tais teses reconhecem ideias pre- duzidas em julgamentos futuros. De- cados contra si no exercício regular crianças e adolescentes. Tais temáti-
.

sentes no Manual de defesa contra a cisões de instâncias inferiores que de suas atividades de ensino. Nesses cas são um dever do Estado na educa-
censura nas escolas (www.manualde- contrariem os fundamentos desses casos, as decisões do STF reforçam a ção. A omissão nesse ponto é que
defesadasescolas.org.br), levadas ao casos podem ser objeto de reclama- ideia de que as escolhas pedagógicas passa a ser questionável, inclusive ju-
STF por organizações e movimentos ção diretamente ao STF, por descum- são parte do exercício regular da con- dicialmente, o oposto do que preten-
do campo educacional que lá inter- primento de seus julgados, que as jul- dição docente, sendo inclusive parte diam os censores.
vêm como Amici Curiae.6 gará cassadas. E mais, havendo de sua liberdade fundamental de ex- O fato de tais obrigações serem ig-
processo judicial em seu desfavor, pressão na profissão. Eventuais equí- noradas no governo Bolsonaro não as
O FIM DE UMA RETÓRICA DE CENSU- abre-se uma via rápida para que qual- vocos técnicos e pedagógicos têm deslegitima, pelo contrário, reafirma
RA: TIRAR O PNE DA DEFENSIVA quer professor, formalmente perse- preservados seus espaços de revisão sua urgência. 
O fato é que onde os ideólogos do EsP guido ou ameaçado, possa reclamar e supervisão, já regulamentados em
e os movimentos antigênero viram seus direitos diretamente no STF. todos os sistemas de ensino. Refor- *Salomão Ximenes é doutor em Direito
censura o STF viu o contrário. O PNE Na prática, os Tribunais de Justiça çam também que as diversidades de (USP), professor da UFABC e membro do
inclui entre suas diretrizes a “supera- estaduais que hoje analisam dezenas abordagens e de métodos são valores grupo de pesquisa Direito à Educação, Po-
ção das desigualdades educacionais, de ações sobre a inconstitucionalida- educacionais, não problemas a serem líticas Educacionais e Escola (DiEPEE/
com ênfase na promoção da cidada- de de normas similares devem resol- combatidos. CNPq) e da Rede Escola Pública e Univer-
nia e na erradicação de todas as for- ver rapidamente a questão, uma vez Professores e estudantes devem sidade (Repu). E-mail: salomao.ximenes@
mas de discriminação”. Entre estas, que ficou inviável dar interpretação ter assim assegurado e protegido o ufabc.edu.br. Fernanda Vick é advogada,
entendeu o Tribunal, compreendem- dissonante ao tema. Mesmo que no- ambiente escolar contra os impulsos mestra em Direito (USP) e membro da
-se as discriminações com funda- vas leis de censura venham a ser litigiosos de movimentos fundamen- Campanha Nacional pelo Direito à Educa-
mento em gênero e orientação sexual, aprovadas, confrontando as decisões talistas e pró-censura. Estudantes, ção. E-mail: fernanda.vicksena@gmail.com.
reiterando para a educação escolar o do STF, não poderão ser aplicadas na pais e responsáveis têm direito a par-
entendimento já firmado desde a de- prática e, uma vez questionadas no ticipar dos canais de gestão demo-
1   V er Rogério Junqueira, “A invenção da ideolo-
cisão de 2011 sobre direito à união ci- Judiciário, serão eliminadas. crática das escolas e da política edu- gia de gênero”, Revista Psicologia Política ,
vil de pessoas do mesmo sexo. Juízes de primeira instância tam- cacional, mas tal participação, assim v.18, n.43, São Paulo, set.-dez. 2018.
2   PNE, art. 2º, inciso III. Disponível em: http://
No campo educacional, entretan- bém estão vinculados aos fundamen- como nos legislativos, não pode
www.planalto.gov.br/ccivil_03 /_ ato2011-
to, tal interpretação tem efeitos que tos dessas decisões, com destaque afrontar direitos e garantias consti- 2014/2014/lei/l13005.htm.
devem ir além do mero reconheci- para dois prováveis efeitos práticos tucionais. Conforme propõe o Ma- 3   Professores contra o Escola sem Partido, Le-
vantamento Parcial de Projetos de Lei e Leis
mento e proteção, mas impõe a ado- em favor dos professores. Primeiro, nual de defesa, quando surjam os
de Censura Escolar. Disponível em: https://
ção de políticas públicas de diversas devem ser extintas, também de ime- conflitos, deve-se privilegiar, sempre profscontraoesp.org/vigiando-os-projetos-
naturezas, na formação de professo- diato, as ações judiciais de responsa- que possível, seu tratamento no pró- -de-lei/.
4   Carol Siqueira, “Câmara recria comissão es-
res, disseminação de materiais didá- bilização contra docentes, movidas prio ambiente escolar, mediante es-
pecial para analisar Escola sem Partido”,
ticos e projetos curriculares adapta- sob o incentivo da militância pró- tratégias político-pedagógicas; mas Agência Câmara, 4 dez. 2019.
dos a cada fase do desenvolvimento -censura com o objetivo de constran- ações violentas e inaceitáveis de cen- 5   São resultado do julgamento das Arguições
de Descumprimento de Preceito Fundamental
do educando: “o dever estatal de pro- ger a ação pedagógica e o debate de sura por grupos organizados mere-
(ADPFs) n.457, 467, 526 e 460, respectiva-
moção de políticas públicas de igual- temas sensíveis a determinadas vi- cem respostas exemplares. mente.
dade e não discriminação impõe a sões políticas ou religiosas. O mesmo O decidido no STF, portanto, tam- 6   Ação Educativa, “Em nova decisão, STF afir-
ma que é dever do Estado abordar gênero e
adoção de um amplo conjunto de vale na esfera da administração pú- bém produz efeitos para os governos.
sexualidade na escola”, 2 jun. 2020.
medidas, inclusive educativas, orien- blica, em que as decisões do STF afas- Além do efeito no exercício do poder 7   Trecho do Acórdão da ADPF 457, relatoria do
tativas e preventivas, como a discus- tam definitivamente a possibilidade disciplinar, já comentado, abre-se a ministro Alexandre de Moraes.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  JULHO 2020

MISCELÂNEA

livros internet
Começa então uma investigação que o envolve na NOVAS NARRATIVAS DA WEB
história de sua família e de seu país.
Na obra, a jornada do filho em busca do pai se une Sites e projetos que merecem seu tempo
à do filho com o pai, procurando respostas sobre os
desaparecimentos, tanto o daquele momento quan- PROJETEMOS
to o fruto do terrorismo de Estado na Argentina. Há
ainda a jornada de um escritor, argentino, filho de Um movimento de projeções multimídia to-
militantes que viveram a ditadura, como ele próprio, mou conta da cidade de São Paulo durante
O ESPÍRITO DOS
recontando o passado, usando elementos da pes- algumas semanas da quarentena. Fachadas
MEUS PAIS CONTINUA
quisa histórica, ferramentas literárias e registros de de edifícios, casas e muros serviram de te-
A SUBIR NA CHUVA
memória. Dessa perspectiva, Pron dialoga com au- las para vídeos, imagens, palavras de pro-
Patricio Pron,
tores que revolveram as feridas abertas pelo horror testos. Começou como uma “organização
Todavia
das ditaduras no continente, como os contemporâ- de janelas”, entre VJs que queriam seguir
neos Julián Fuks e Alejandro Zambra, os clássicos se manifestando, mesmo a distância. Para

O romance do argentino Patricio Pron pertence


a um conjunto de obras relacionadas à última
ditadura militar de seu país, entre 1976 e 1983.
Roberto Bolaño, Mario Benedetti, Ricardo Piglia e
Julio Cortázar, e os ainda não publicados no Brasil
Fabián Casas e Félix Bruzzone.
a professora da FAU-USP, artista e pesqui-
sadora Giselle Beiguelman, “ironizando o
inacreditável desdém do presidente à gravi-
Com base em suas experiências e/ou na leitura Nesse sentido, O espírito dos meus pais conti- dade da pandemia do coronavírus, as proje-
que fizeram sobre as vivências de seus pais e fa- nua a subir na chuva constrói uma convergência ções deixam claro que nossas insatisfações
miliares, escritores construíram ficções com um entre história e literatura, memória e trauma, his- estão literalmente subindo pelas paredes! E
braço dado à história. tórias privadas e a história argentina, contribuindo mostram que, se não podemos ir às ruas, os
O livro, único do autor publicado no Brasil, para a experiência literária e a compreensão de prédios falarão por nós”.
apresenta um escritor que retorna à Argentina processos históricos. Assim, ao mesmo tempo <https://www.instagram.com/projetemos/>
nos anos 2000, após um problema de saúde do que rememora e reelabora o passado, reafirma
pai, de quem encontra anotações que indicam o sua potência no presente, como contestação das GRÁFICOS COVID-19
desaparecimento de um homem. Ao avançar na heranças da ditadura. PARA VOCÊ USAR
pesquisa, depara-se com outro caso: uma jovem
.

que fora sequestrada e assassinada durante a [Rafael Cal] Professor de História, dramaturgo Flourish é uma ferramenta de visualização
ditadura militar e que era irmã do desaparecido. e mestrando em História Social (PPGHIS-UFRJ). de dados gratuita, desde que seu proje-
to seja público. A equipe do site produziu
uma coleção de infografias interativas que
podem ser usadas em qualquer website e
também são feitas para serem vistas em
questões literárias levantadas na saga napolita- celulares. O conteúdo desses gráficos é
na, mas também não nos poupa dos intertextos e todo sobre a evolução do coronavírus pelo
tangencia um metaquestionamento sobre autoria mundo, em diversos países. Mapas, tabelas,
e literatura contemporânea. tudo atualizado em tempo real com bases de
Nenhum elemento escapa ao olhar atento da dados públicas.
autora, desde a escolha das capas originais da <https://flourish.studio/covid/>
ELENA FERRANTE: UMA
tetralogia até a chamada “Febre Ferrante”. Esse
LONGA EXPERIÊNCIA
é um estudo amplo e pioneiro. As ilustrações e a FATHER’S LULLABY
DE AUSÊNCIA
capa da artista Talita Hoffmann fazem do objeto
Fabiane Secches,
também um livro elegante. Um projeto transmídia colaborativo que des-
Claraboia
Voltando à felicidade clandestina: no conto de taca o papel dos homens na criação dos
Lispector, há duas garotas que parecem ser ami- filhos e sublinha a ausência deles numa so-

H á algo na apresentação do livro da crítica li-


terária e psicanalista Fabiane Secches que
remete ao conto “Felicidade clandestina”, de Clari-
gas, talvez inimigas, mas certamente colegas de
classe. Juntas, alimentam polos de atração e de
repulsa, inveja e admiração – uma tem o desejo
ciedade em que o encarceramento em mas-
sa de negros tem impacto direto em seus
filhos, mulheres e comunidades de baixa
ce Lispector. Na apresentação, a autora descreve de ler, a outra possui o livro, temática a seu modo renda. O projeto é uma série de instalações
o encontro com a escritora Elena Ferrante como presente também na obra de Ferrante. Acom- públicas interativas, oficinas e um site par-
fruto de um acaso, numa livraria, quando o primei- panhamos, afoitos e entregues, as páginas de ticipativo de localização geográfica. Entre-
ro volume da célebre tetralogia napolitana foi pu- Clarice, observando com certo voyeurismo essa vistas íntimas e canções de ninar oferecem
blicado no Brasil. A autora admite que “toda pes- triangulação entre narradora, amiga e livro, como meditações poéticas sobre os espaços de
quisa começa com uma primeira leitura” e então talvez o tenhamos feito ao ler a tetralogia de Fer- amor e trauma, presença e ausência e o po-
acrescenta: “sentei numa poltrona, comecei a ler rante. Identificamo-nos, enfim, com essa felicida- der das memórias pessoais para interrogar a
e não pude mais deixá-lo”. de clandestina que a leitura nos oferece. violência estrutural da política prisional dos
Partindo desse encontro, Secches modula um O que Fabiane Secches faz em seu meticuloso Estados Unidos. No Brasil seria diferente?
justo distanciamento e uma mediação para lan- ensaio é justamente abraçar essa felicidade clan- <https://fatherslullaby.org/>
çar os fundamentos de um trabalho de crítica e destina da leitura com a mediação e o rigor que
análise de grande fôlego e profundidade. O texto um trabalho desse porte requer. [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
se desenvolve com fluidez ensaística sob um ins- Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
tigante prisma comparativista. [Francesca Cricelli] Doutora em Línguas Es- ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
A obra é inovadora ao conjugar uma análise trangeiras e Tradução pela Universidade de São pela ECA-USP e doutorando em Design
panorâmica das primeiras obras de Ferrante com Paulo, tradutora literária e poeta. na FAU-USP.
JULHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

É nóis por nóis!


Ano 14 – Número 156 – Julho 2020
www.diplomatique.org.br
É muito triste todo esse descaso
e impotência de governar um
DIRETORIA
país de forma coerente e honesta. Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Silvio Caccia Bava
Caroline Alvarez, via Instagram
2 O “privilégio branco” é o capital
Você disse “sistêmico”?
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Por Serge Halimi Rubens Naves

A caquistocracia 3 Editorial
A hora é agora!
Editor
Luís Brasilino

Por Silvio Caccia Bava Editora-web


Ainda acho “ponerocracia” mais apropriado: o Enquanto houver racismo não
Bianca Pyl

governo do mal. Mas tá de bom tamanho. 4 haverá democracia Editor de Arte


Por Wania Sant’anna e Maria José Menezes Cesar Habert Paciornik
Fred Lucio, via Instagram
A pandemia e a pena de morte Estagiária
nas prisões brasileiras Gabriela Bonin
Por Felipe da Silva Freitas Revisão
Três hipóteses geopolíticas “O racismo é uma realidade violenta” Lara Milani e Maitê Ribeiro

para o pós-pandemia Por Juliana Borges Gestão Administrativa e Financeira


Arlete Martins
“Falando da perda: hoje estou mal,
Nenhum país deveria ser dependente de outro. espero que você entenda” Assinaturas
Por Jeane Saskya Campos Tavares assinaturas@diplomatique.org.br
Deveria ter uma relação de troca e respeito. De-
Comunicação e racismo estrutural Tradutores desta edição
pendência é um instrumento de dominação e Por Ana Claudia Mielke Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
vigorou na prática do colonialismo. Exploração,
violência, genocídio e extinção foram o legado 11 As forças da ordem social
A desconfiança dos cidadãos em Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
deixado por esse tipo de relação. relação à polícia Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Por Laurent Bonelli Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Fátima Miranda, via Instagram Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,

14 Expressão brutal das desigualdades


nos Estados Unidos
Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Um país crivado por homicídios policiais Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
Brasil derruba Weintraub – Diplô Online Por Richard Keiser Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
e Vera da Silva Telles.
.

Ótima relação de fatos sobre o atual


16 Emergência sanitária e erosão democrática
A cavalgada autoritária de Bolsonaro Assessoria Jurídica
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
desgoverno e o primeiro reconhecimento Por André Singer
Escritório Comercial Brasília
pela mídia da luta travada nos bastidores, e 18 Governo brasileiro sacrifica parte da população
“Não posso parar de trabalhar”:
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
não só dessa brava gente brasileira, em que o avanço do coronavírus e da fome jh@marketing10.com.br
eu também me incluo. Parabéns! Por José Raimundo Sousa Ribeiro Junior Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
Marise Araújo, via Twitter da associação Palavra Livre, em parceria
20 A região que derrubou o “índio”
Bolívia: na estrada com a elite de Santa Cruz
com o Instituto Pólis.

Por Maëlle Mariette, enviada especial Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Tel.: 55 11 2174-2005
Vozes da Floresta – YouTube 23 Consertar o cano ou secar o vazamento?
Sob a proteção de um jaleco
diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br
Por Renaud Lambert
Se quiser conhecer ou saber mais sobre o que Assinaturas: Leila Alves

pensa Ailton Krenak sobre as relações históricas 24 Quando o Ocidente não inspira mais
medo nem respeito
assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2015
do Estado brasileiro com os “povos da floresta”, Após a pandemia, o despertar da África? Impressão
este é o vídeo. Que preciosidade este registro da Por Boubacar Boris Diop D’ARTHY Editora e Gráfica Ltda.
CNPJ: 01.692.620/0001-00, Parque Empresarial Anhan-
série Vozes da Floresta!
26 Clube de Paris marginalizado no baile dos credores
Enganos a respeito da dívida dos países pobres
guera - Rod. Anhanguera Km 33 - Rua Osasco, 1086,
Cep: 07753-040 - Cajamar - SP
Renato Zanata, via Twitter
Por Milan Rivié

28 Pão, cimento, informática, peixes


A voracidade do Exército egípcio
Por Jamal Bukhari e Ariane Lavrilleux,
enviados especiais
Participe de Le Monde Diplomatique LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)

Brasil : envie suas críticas e sugestões 30 Aliança entre os governos


e os gigantes do Vale do Silício
Fundador
para Hubert BEUVE-MÉRY
As duas faces da censura
diplomatique@diplomatique.org.br Presidente, Diretor da Publicação
Por Félix Tréguer
As cartas são publicadas por ordem Serge HALIMI

de recebimento e, se necessário, 32 Os “wenzhou” de Prato


Uma aldeia chinesa na Itália
Redator-Chefe
resumidas para a publicação. Philippe DESCAMPS
Por Jordan Pouille e Lei Yang
Diretora de Relações e das Edições Internacionais
Os artigos assinados refletem o ponto de
vista de seus autores. E não, necessaria-
34 Trabalho infantil nas minas de cobalto da RDC
O lado vergonhoso do “metal azul”
Anne-Cécile ROBERT

Le Monde diplomatique
Por Akram Belkaïd
mente, a opinião da coordenação do 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
periódico.
36 Liberdade
A extinção judicial do Escola sem Partido
www.monde-diplomatique.fr

Por Salomão Ximenes e Fernanda Vick Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:

38
32 edições impressas e 5 eletrônicas.
Miscelânea ISSN: 1981-7525
Capa: © Edson Ikê
.

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