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Cidades Inteligentes em Perspectivas

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reservados.

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reproduzida ou transmitida sob quaisquer meios existentes sem prévia
autorização, por escrito, dos editores.

Texto revisto pelo Acordo Ortográfico de 1990.

Produção editorial
Obliq

Preparação dos originais


Patrícia Sotello

Todos os direitos desta edição reservados à


Obliq Edição e Produção Ltda.

E-mail: atendimento@obliq.com.br
http://obliq.com.br
Sumário

Apresentação

Cidade futurista, inteligência artificial e ficção científica:


expectativas, aprendizados e prudências
Ecologia: uma narrativa inteligente para a proteção de dados
pessoais nas cidades inteligentes?
Paisagens urbanas e cenários distópicos: para quem produzir
cidades inteligentes?
Smart cities: uma breve investigação crítica sobre os limites de
uma narrativa contemporânea sobre cidades e tecnologia
Considerações sobre regimes urbanos opressivos inteligentes
Tecnologias inteligentes de vigilância: percepções sobre segurança
e visibilidade nos centros urbanos
Cidade dos algoritmos: a ética da informação nas cidades
inteligentes
Instagramização da vida: distribuindo vigilâncias e integrando
espetáculos
Cidades inteligentes: Motivações e Desafios da Adoção de
Medidores Inteligentes de Água
O uso de dashboards de Big Data Analytics no contexto das
cidades inteligentes
Uber: Soluções Regulatórias para Aplicativos de Transporte de
Passageiros nas Smart Cities
Participação Inteligente: o caso do aplicativo Mudamos
Criptomoedas complementares para Territórios Inteligentes: um
estudo exploratório
Smart cities, blockchain e defesa da concorrência: uma análise da
aplicação da teoria das essential facilities em redes de blockchain
privadas
Apresentação

As cidades inteligentes podem ser analisadas a partir de múltiplas


perspectivas. Como conceito, elas são conscientemente ambíguas,
com uma trajetória mais discursiva do que prática. Entretanto,
afirmar certo distanciamento entre a realidade discursiva e a
implementação projetual não significa menosprezar sua influência
na agenda das políticas urbanas. De uma forma ou de outra, é na
prática do discurso que se constitui o modelo particular de
inovação que veio a dar forma a intervenções urbanas em Nova
York, Barcelona, Paris, Rio de Janeiro, Medellín, Mumbai e Toronto.
A cidade computável propõe, sobretudo, que o espaço urbano
seja inscrito sob uma nova ordem, a do fluxo informacional
contínuo e intercambiável. Posto de outra forma, a cidade
inteligente é aquela que se percebe e que tem as possibilidades
técnicas para um agir responsivo em tempo real. A realização de
tal promessa não poderia ser mais atual, com o horizonte das
tecnologias 5G, a quinta geração de conectividade móvel. Esse
horizonte representa uma nova perspectiva de realização e um
convite urgente para a revisão dos imaginários acerca do uso de
tecnologias da informação e comunicação no território urbano. A
convite do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS),
pesquisadores de diversas áreas do conhecimento se dedicaram ao
longo de um ano a investigar exatamente isso.
Ponderando sobre os desafios da ampliação de um determinado
modelo de urbanismo tecnológico, Bernardo Ainbinder
desenvolveu um estudo sobre os regimes urbanos opressivos,
enquanto Clarice Tambelli se dedicou a investigar os limites de
uma narrativa contemporânea sobre cidades e tecnologia. Em
paralelo, discutindo inteligência artificial e ficção científica,
Cristiano Therrien destacou expectativas, aprendizados e
prudências. Paisagens urbanas e cenários distópicos também
foram analisados por Lucas Costa dos Anjos e Maria Clara Santos,
os quais trouxeram o relevante questionamento: para quem
produzir cidades inteligentes?
Vigilância, privacidade e exposição nas cidades inteligentes foi
outro eixo analisado pelos pesquisadores. Anna Bentes escreveu
sobre o processo de instagramização da vida. Nesse caminho,
Laura Ribeiro explorou tecnologias inteligentes de vigilância,
trazendo percepções sobre segurança e visibilidade nos centros
urbanos. Relacionando essas questões com a aplicação de
algoritmos, Caio Machado desenvolveu estudo sobre o que
chamou de “cidade dos algoritmos”, abordando a ética da
informação nas cidades inteligentes. Para finalizar esse eixo da
publicação, Bruno Bioni trouxe propostas para a proteção de dados
pessoais nas cidades inteligentes.
Foram também desenvolvidas pesquisas sobre regulação de
tecnologias e aplicação de instrumentos tecnológicos para a
promoção da democracia e a facilitação do acesso a bens e
serviços. Rachel Telésforo abordou soluções regulatórias para
aplicativos de transporte de passageiros nas smart cities,
enfatizando a proposta da Uber; já Marina Cyrino e Douglas Leite
escreveram sobre smart cities, blockchain e defesa da
concorrência, analisando a teoria das essential facilities em redes
de blockchain privadas; e Marco Konopacki, Debora Albu, Diego
Cerqueira e Thayane Guimarães discutiram a participação e a
democracia, a partir da análise do aplicativo Mudamos.
Acerca da aplicação de instrumentos e soluções tecnológicas nas
cidades inteligentes, Taciano Moraes escreveu sobre o uso de
dashboards de Big Data Analytics; Ágatha de Mattos analisou as
motivações e desafios da adoção de medidores inteligentes de
água; e Alexandre Barbosa realizou estudo exploratório sobre
criptomoedas complementares para Territórios Inteligentes.
Grande parte desses interessantes artigos é fruto do segundo
grupo de pesquisa do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio
de Janeiro (ITS), que tratou das cidades inteligentes. Foram
também convidados pesquisadores para compor o grupo e ampliar
o debate.
O ITS é um centro de pesquisa multidisciplinar totalmente
independente, que trabalha em parceria com diversas instituições
brasileiras e estrangeiras, para refletir sobre o desenvolvimento
das tecnologias da informação e da comunicação e seus impactos
na sociedade. As atividades do instituto se dividem em quatro
áreas principais: direito e novas tecnologias; democracia; inovação;
e educação. Você encontra mais informação sobre o ITS no site:
itsrio.org.
Por fim, é importante destacar que os textos aqui reunidos estão
disponíveis na área de publicações do site do ITS e estão
licenciados por meio da licença Creative Commons, na modalidade
atribuição, uso não comercial, compartilhamento pela mesma
licença (CC-BY-NC-SA). Para saber mais sobre as licenças Creative
Commons e suas permissões, visite o site do ITS.

Os organizadores[1][2]

1. Chiara de Teffé é doutoranda e mestre em


Direito Civil pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Atualmente, é professora de
Direito Civil na faculdade de Direito do
Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais
(IBMEC) e professora em cursos do CEPED-
UERJ, da Pós-graduação da PUC Rio, da Emerj,
do ITS Rio, da Pós-graduação do Instituto New
Law e da Pós-graduação em Advocacia
Contratual e Responsabilidade Civil da EBRADI.
Membro do conselho executivo da revista
eletrônica civilistica.com. Membro do Fórum
permanente de mídia e liberdade de expressão
da Emerj. Foi professora substituta de Direito
Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro
e pesquisadora do ITS Rio. E-mail:
chiaradeteffe@gmail.com. ↵
2. Victor Vicente é mestre em Tecnologias da
Comunicação e Estéticas no PPGCOM da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Se interessa por aplicações tecnológicas que
proporcionem impacto social positivo e
distribuído. É graduado em jornalismo pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) e especializado em Marketing e Design
Digital pela ESPM. Trabalhou por dois anos no
Grupo In Press e possui experiência de cinco
anos na área de Comunicação Institucional. É
coordenador de mídias do ITS Rio. ↵
Cidade futurista, inteligência artificial e ficção
científica: expectativas, aprendizados e
prudências

Cristiano Therrien[1]

A cidade tomou uma decisão cuidadosa, uma decisão que ela adiou
por anos. Lentamente, em seu próprio ritmo, ela começou a executar
a estratégia baseada nessa decisão. Era a hora de abraçar suas
crianças um pouco mais de perto.[2]

INTRODUÇÃO

O presente artigo se propõe a tratar dos usos previstos e dos


riscos potenciais da inteligência artificial na gestão das cidades,
combinando ficção científica e uma revisão da literatura
acadêmica estrangeira sobre o tema. Muitas obras de ficção
científica, sejam literárias ou audiovisuais, descrevem o futuro a
partir de visões de tecnologias avançadas e aplicadas no ambiente
urbano. Essa cidade ficcional e futurista, projetada por lentes
cognitivas[3] que partem das questões urbanas e tecnológicas do
presente e do passado para simbolizar o futuro, torna-se assim
meio de questionamento real sobre os possíveis destinos e perigos
para nossa sociedade.
A primeira parte do texto dedica-se a apresentar os elementos
chave de uma história narrada por uma cidade futurista e a
relacioná-los com os significados do que se convencionou
recentemente chamar de Cidade Inteligente. A segunda descreve
parte das expectativas e funções dos imaginários de quem realiza
os projetos de Cidade Inteligente na prática e alguns de seus
dilemas quanto às condicionalidades da inteligência artificial. A
terceira parte trata das aplicações de inteligência artificial nas
cidades e as áreas de preocupação que a literatura acadêmica e de
ficção científica têm pautado para um maior entendimento dos
benefícios e riscos envolvidos. Finalmente, conclui-se que
cientistas, urbanistas, juristas e residentes de cidades inteligentes
devem refletir prudentemente sobre as possíveis contribuições da
ficção científica para o desenvolvimento da inteligência artificial na
gestão urbana.

1. A CIDADE INTELIGENTE EM UM
FUTURO PRÓXIMO E FICCIONAL

Em Panic City[4], obra da autora canadense-estadunidense


Madeline Ashby, a personagem principal é uma pequena cidade
inteligente em um futuro próximo e não determinado. A narrativa
desse conto de ficção científica parte do “ponto de vista” (ou do
ponto dos sensores) da protagonista — nominada apenas como
“City” — que acompanha o que deveria ser um simples serviço de
manutenção de ventilação a ser executado por Roscoe0308, um
ser humano encarregado do suporte técnico de City. Detalhes
sobre essa inteligência artificial urbana e o humano monitorado
por ela a cada passo vão sendo revelados ao longo da história, que
nos servirá para questionar os sentidos, funções e riscos da
inteligência artificial aplicadas à cidade.
A cidade, considerada uma das maiores invenções[5] da
humanidade, transformou-se ao longo da história e disseminou-se
em “um mundo que se tornou, em diversos aspectos práticos, uma
cidade”[6]. Este habitat humano revela-se como o espaço-tempo
central de vida em sociedade, sua unidade básica de análise
macroeconômica[7], sua base socioespacial de comunicação
cultural[8] e sua principal estrutura distribuída de fluxos
informacionais em uma sociedade em rede[9]. A cidade hoje se
pauta por mudanças paradigmáticas decorrentes de diversos
fatores concorrentes e distintos que se refletem no intenso
processo de urbanização — possivelmente mais veloz do que se
previa[10] — que agrava os desafios de reverter a degradação
ambiental[11] em curso. A cidade inteligente ou smart city é
reiteradamente propagada como uma das soluções chave para a
sustentabilidade ambiental[12], com a inteligência artificial como
parte cada vez mais relevante nessa tarefa incontornável.
No caso da personagem City, ela não é explicitamente descrita
como uma inteligência artificial que opera a cidade, mas as
primeiras páginas de Panic City levam os leitores a deduzir que se
trata de uma entidade senciente e autoconsciente. A inteligência
artificial da cidade passa a ser demonstrada pela capacidade dela
de sentir e interpretar o ambiente urbano (com sensores/
“sentidos mais úteis que a visão”), de tomar decisões para a
intervenção urbana baseadas nessas informações e, finalmente, de
demonstrar mínima consciência da própria existência, ao calcular
as consequências das próprias ações. Seria City uma descrição
ficcional da “cidade inteligente” especulada há décadas e que se
mantém sempre no horizonte do porvir?
Ainda considerada por muitos como uma expressão “de moda”[13],
a implantação de projetos[14] de cidade inteligente segue célere em
milhares de cidades no mundo. Até recentemente, a pesquisa
sobre a temática seguia muito restrita[15], limitada a poucos
projetos-piloto e objeto de poucas áreas de conhecimento.
Contudo, hoje a temática da cidade inteligente passou ao status de
pauta social urgente que recebe cada vez mais atenção acadêmica,
midiática e institucional. Apesar da intensificada produção
acadêmica, muitas questões seguem abertas e as respostas
jurídicas ainda são relativamente escassas frente à gravidade das
problemáticas que já se apresentam concretamente para o
enfrentamento social.
Os desafios postos pela cidade inteligente se tornam cada vez
mais complexos, à medida que outras tecnologias se integram ao
processo de inovação urbana, como no caso da inteligência
artificial. Por se tratar de modelo tecnológico cuja viabilidade
prática é recente no setor público[16], os esforços institucionais
para regulamentar aplicações de forma inclusiva e responsável[17]
seguem incipientes. Entre os níveis de poder público, é no governo
municipal que melhor se fazem perceber os possíveis benefícios e
riscos[18] da inteligência artificial nas imagináveis geografias do
futuro[19]. A a inteligência artificial será vista como um componente
comum na gestão da cidade[20] e não mais como um elemento
especulativo da ficção científica.
Entre as muitas lições dos mais de quatro mil anos de história
das cidades, que poderiam vir a orientar cientistas (sociais, de
dados etc.) e juristas eventualmente aqui debruçados, talvez a mais
importante para este artigo seja a certeza de que as cidades são
exímias sobreviventes, plenamente capazes de resistir e inovar
para se adaptar a mudanças[21] sociais e tecnológicas. Apesar de as
cidades serem historicamente inábeis em satisfazer todas as as
necessidades de consumo, elas costumam distribuir entre si a
produção especializada de bens e serviços[22] e ditar o
desenvolvimento econômico e tecnológico das nações a que
pertencem. A literatura acadêmica e a ficção científica — até por
um movimento de reciprocidade — realizam vasta especulação
sobre cidades utópicas e autossustentáveis, as quais a ciência e a
tecnologia seriam capazes de permitir em um futuro próximo: o
discurso predominante das cidades inteligentes reflete grande
parte dessa utopia[23].
A utópica City foi construída como uma “nave” urbana
autossuficiente e confortável que deveria transportar “os melhores
e mais brilhantes” seres humanos, “os 10% do topo dos 1%” da
sociedade, para um futuro seguro financiado por seus
“investidores”. Um design de “mãe amorosa” foi codificado em seus
sistemas e executado por ela — como as antigas embarcações, City
é tratada no gênero feminino — por mais de cinquenta anos,
cuidando dos “príncipes, líderes e capitães da indústria”, suas
crianças e descendentes. Contudo, City não pode cumprir essa
tarefa sozinha, pois depende dos serviços de humanos da equipe
de suporte. Roscoe0308, um técnico de suporte que City
acompanha minuciosamente por meio de implantes, é um locatário
permanente na cidade, endividado desde o tempo de seus pais, que
busca somar pontos na esperança de se tornar um cidadão e
expandir seus direitos básicos.
As publicações na mídia sobre “cidades inteligentes”
costumeiramente incluem imagens estilizadas para representar
cidades futuristas baseadas em tecnologias avançadas que
parecem permanecer no limiar de um futuro ao qual não se sabe se
chegaremos. Talvez seja por isso que se faça tanta referência às
cidades inteligentes como cidades da ficção científica. Para se
compreender o que seria essa cidade inteligente cujo significado
parece existir para além das cidades já existentes, pode ser útil
conhecer as projeções[24] que já compuseram suas expectativas em
tempos passados. A cidade do futuro projetada pelo passado já foi
a “cidade automatizada”, a “cidade digital”, a “cidade conectada”,
entre muitos outros adjetivos e termos[25], que hoje ainda se
associam à cidade inteligente, uma ideia flexível que comporta
muitos sentidos e conceitos[26] e que se altera bastante ao longo do
tempo e do espaço.
City sabe não ser única e já “ouviu/leu/viu mitos” sobre outras
cidades diferentes dela, como Paris e Nova York, certa e satisfeita
que nunca será tão grande como suas “irmãs (ou mães, tias ou
primas)”. City considera as outras cidades como parâmetros para o
que não deve se tornar, afinal (segundo ela), uma cidade só deveria
ser considerada “em forma” (ou inteligente?) quando comparada à
outras cidades “inchadas” (ou burras?). É muito instigante imaginar
o que aconteceria se City pudesse dialogar com o avatar da cidade
de San Francisco, descrita por John Shirley em sua obra City Come
A-Walkin’[27] como uma cidade que assume forma humana à noite,
usa óculos espelhados (símbolo do subgênero Cyberpunk) e que
trava conversas interessantes. Ambas seriam cidades inteligentes e
altamente sencientes, porém com perspectivas e preocupações
muito diferentes quanto ao futuro.
A cidade do futuro[28] já foi proposta de diversas formas por
autoridades públicas e empresas de tecnologia: como a cidade que
automatiza as funções urbanas (e.g. semáforos automatizados de
trânsito); a cidade que trata todos os documentos em formato
digital (“governo sem papel”); a cidade que fornece o máximo
acesso os serviços municipais por meios on-line (serviços e-gov) e,
mais recentemente, a cidade que monitora as dinâmicas urbanas e
analisa dados em tempo real para a tomada de decisão (sistemas de
monitoramento e salas de controle). Espera-se, hoje, que uma
cidade inteligente acumule várias gerações interdependentes de
tecnologias e de prioridades[29], bem como exercite várias formas
de “inteligência urbana”[30], ainda que priorize especificamente
mais algumas “inteligências” que outras, de acordo com o
contexto. Às vezes, o que é considerado inteligência (smartness[31])
e segurança[32] na pauta tecnossocial de uma cidade, será
considerado vigilância e violação de privacidade[33] em outras, com
claras referências a distopias[34] da ficção científica.
Planejada como uma cidade utópica para sua elite rentista, City
revela-se como uma distopia que monitora e condiciona a vida de
todos os residentes dela, mesmo a “nata da nata” — a mesma elite
que nos dias de hoje ainda pode pagar por real privacidade[35] —
pois todos os dados possíveis das pessoas são coletados,
mesurados e projetados a cada mo(vi)mento. Apesar de as câmeras
passarem a se desligar pelo longo tempo de uso, City pode
prescindir delas, pois segue capaz de sentir cada passo dado em
suas ruas, as palavras de cada conversa, a temperatura em cada
quarto, o pH em cada banheiro, a pressão arterial em cada
habitante, a flora intestinal em cada estômago. A senciente City
não pode acessar os pensamentos de Roscoe0308, mas sabe que “a
oscilação das suas ondas cerebrais indica ansiedade” e busca
analisar as possibilidades para deduzir o que o preocupa e o que
ele planeja — mas nem sempre ela acerta, o que poderá gerar
graves consequências.
Apesar da justificada fama[36], nem toda cidade inteligente
necessariamente deve ser considerada uma cidade de vigilância[37],
pois há diversidade entre os modelos. A retórica sobre cidades
inteligentes compreende três diferentes dinâmicas: regulação e
eficiência para uma melhor gestão urbana, envolvendo
infraestrutura de tecnologia e tomada de decisão orientada por
dados; desenvolvimento econômico baseado em tecnologia para a
transformação das cidades, lidando com inovação e iniciativas
empreendedoras; e inovação social e participação popular para
uma melhor governança urbana, por meio de ferramentas
tecnológicas para a transparência governamental e o
empoderamento público. A maioria dos projetos de cidades
inteligentes prioriza um aspecto e envolve a combinação de pelo
menos duas dessas lógicas, em que “a ênfase é colocada no que a
autoridade municipal prioriza”[38].
City é a narradora e a única autoridade presente na história.
Portanto, cabe a ela escolher as prioridades a serem cumpridas no
contido espaço que administra, visto que foi programada para
racionalizar e decidir sozinha o melhor a fazer, acima de eventuais
vontades e frustrações dos fundadores e seus descendentes. Ela
“os ama como uma mãe”, com seu “coração com quatro câmaras”,
que renova o oxigênio da cidade e transforma seus “sussurros
sujos da noite” em “puras preces da manhã”. City, uma autoridade
algorítmica que nunca dorme, nada perde e jamais esquece,
aparentemente gosta de Roscoe0308 (“um bom garoto, bom até
demais”), mas, para protegê-lo de um exterior pós-apocalíptico,
ela fará tudo o que a programação a permite. Contudo, algoritmos
podem ir além do previsto; portanto, os residentes dela não sabem
o que lhes aguarda.

2. DO IMAGINÁRIO DOS TÉCNICOS,


FUNDADORES, RESIDENTES E
INVESTIDORES DE CITY

Quando se mencionam cidades inteligentes, muitos imaginários


diferentes emergem no debate, até em um público específico que
supostamente teria mais homogeneidade entre si. Talvez valha o
esforço de tentar descrever parte das expectativas e funções dos
imaginários de quem realiza os projetos de cidades inteligentes na
prática. Afinal, são técnicos como Roscoe0308 (servidores de
carreira, comissionados e terceirizados, por exemplo) que
suportam e mantêm tais projetos, líderes municipais que os
pautam e defendem, assessores de áreas-fim e jurídicos que os
viabilizam e utilizam, bem como empresas que os reproduzem e
direcionam.
Ao conversar com um público da área de tecnologia da
informação (TI), por exemplo, o debate sobre as cidades
inteligentes pode se fixar nos novos (e renovados) modelos
tecnológicos que vêm transformando o meio público nas últimas
décadas. Em um tempo relativamente curto em termos de
gerações populacionais[39], várias gerações de TI obrigaram
servidores públicos a (se) adaptar e inovar governos
municipais[40] nos últimos vinte anos. Ao mesmo tempo em que
uma nova tecnologia recém-implantada ainda nem sequer se
consolidou dentro das dinâmicas de uma prefeitura, uma nova
geração tecnológica já pode se sobrepor — os chamados “projetos-
piloto” — e significativamente influenciar as anteriores, gerando
uma intensa sucessão de novos projetos de tecnologia aos quais a
inteligência artificial recentemente se integrou.
Não há tédio possível na vida de funcionários públicos da área de
tecnologia: é comum que se testemunhem equipes municipais e de
empresas de TI migrando sistemas-legado para novos sistemas
com linguagens e bancos de dados totalmente distintos; enquanto
isso, implantam serviços em computação em nuvem, sabendo que
estes poderão ser modificados para atender demandas internas de
Big Data; ao mesmo tempo, experimentam equipamentos
diferentes de internet das coisas apresentados e disputados por
fornecedores; e, no pouco tempo multitarefa disponível, ainda
estudam e atendem a reuniões sobre “soluções” recentes, como as
de inteligência artificial. É compreensível que tais equipes não
costumem ser capazes de responder a essas demandas e ainda
atender às dúvidas e expectativas internas e externas quanto a
projetos de inteligência artificial. Não é que o “pessoal da TI”[41] não
se foque em resultados ou não se preocupe com os riscos, mas
visto que, costumeiramente, se encontra demasiadamente
ocupado equilibrando múltiplos pratos na ponta das varetas
passadas por outras equipes municipais, não o fará sozinho.
Quanto aos gestores, políticos ou líderes municipais, estes
sofrem outros tipos de pressão, de natureza distinta das equipes
de TI, mas não necessariamente menor em se tratando de cidades
inteligentes. Lideranças à frente de municípios têm sempre em
pauta as infindáveis (e justas) demandas da população, que se
manifesta por diversos pontos de pressão que fluem dos espaços
das ruas à onipresença das redes sociais, das cobranças periódicas
das eleições às notificações ininterruptas dos smartphones. Sejam
quais forem as reivindicações e a pauta priorizada sobre estas —
afinal, “governar é escolher”[42] —, a atual forma de organização
tecnocrática do Estado exige, em maior ou menor grau, uma
aplicação ou adequação tecnológica para quaisquer atividades que
exijam maior mudança institucional. Prefeituras encontram-se
sempre em um processo de mudança em que a TI cumpre um
papel indissociável, tanto como parte das soluções, como parte dos
novos problemas. Enfim, como todos os pacotes tecnológicos para
municípios passaram a ser denominados como “soluções de
cidades inteligentes”, autoridades municipais em diversos países
acabam por involuntariamente incluir o tema em sua pauta de
demandas a enfrentar.
Quando buscam ideias para responder às demandas, gestores-
fundadores comparam (milhares de) projetos de smart cities em
curso ao redor do mundo, midiáticos rankings que comparam a
“inteligência” das cidades com diversos fatores – ninguém quer ter
a própria cidade considerada “burra” — e diversas empresas de TI
que prometem soluções totais do tipo “seus-problemas-
acabaram”. Decisões com grandes consequências são tomadas
sobre as infindáveis combinações possíveis de tecnologias que
buscam compatibilidade com o finito orçamento municipal onde
nunca cabem todas as demandas. Nesse sentido, a inteligência
artificial traz promessas de eficiência para a racionalização dos
custos da prefeitura, mas sob o risco dela mesma gerar custos
imprevistos. Somando-se a esse desafio (e muitos outros não
listados aqui), devem prever o fato provável dos resultados de
projetos de cidade inteligente ocorrerem em um período posterior
aos mandatos eleitorais então em curso: “Governar é prever: nada
prever, não é governar, é correr para a sua perda.”[43]
No papel de residentes na máquina pública — por vezes,
alternando-se no papel de fundação e de suporte — há um terceiro
público interno necessariamente interessado na condução de
projetos de cidades inteligentes: aquele a quem recai as
responsabilidades de pilotar os sistemas, equilibrar os benefícios e
riscos possíveis e gerir as consequências imprevistas das
“soluções-que-trazem-novos-problemas”. Apesar de ser de
comum disseminação a ideia de que os serviços públicos “não são
projetados para criar incentivos, sinalizações e espaços para a
inovação e muitas vezes criam barreiras e aversão ao risco”[44], as
experiências indicam que a inovação no setor público encontra
maior apoio[45] nas administrações municipais. Ainda que
“advogados que dizem ‘não’ aterrorizem chefes de
departamento”[46], servidores públicos de carreira e assessores
jurídicos dos municípios costumam encontrar mais liberdade e
flexibilidade para inovar por meio da adoção de tecnologias
pioneiras, novas metodologias de trabalho e, inclusive, novas
interpretações da lei para adaptar princípios do direito
administrativo às novas condicionantes tecnossociais. Entre essas
condições, por exemplo, está a de que nenhum projeto de
inteligência artificial funciona sem a participação direta e o apoio
contínuo dos residentes que detêm a memória processual e a
inteligência interna das prefeituras — nem sempre respeitadas.
Em um dilema particular, esses servidores de áreas-fim
convivem com as repercussões das opções tomadas para realizar
projetos de cidades inteligentes: por exemplo, entre o modelo
licitatório genérico e o modelo de parceria público-privada (PPP).
A matriz típica de licitação de serviços e produtos encontra
(re)conhecidas dificuldades[47] de contratar TI em condições
equilibradas às partes[48], que sejam compatíveis com os sistemas-
legado[49] e que não “sequestrem”[50] prefeituras em fornecedor
único. A contratação de projetos de smart city por PPP costuma
ser muito recomendada pelo maior acesso a capital[51] de
investimento e menor envolvimento de orçamento municipal.
Contudo, a PPP impõe dificuldades, como a complexidade
normativa que muitas vezes exige reformas[52] para maior
segurança jurídica, geradora de riscos sobretudo para quem fica
para geri-los após findos os projetos.
Considerando todos os motivadores e dilemas listados
anteriormente e considerando a (pouco citada e) alta mortalidade
de projetos-piloto de cidades inteligentes[53] e as compreensíveis
incertezas sobre os benefícios realizáveis e riscos potenciais da
inteligência artificial, há que se convir que o cenário parece exigir
cautela. Há uma merecida crítica de que o modelo dominante de
smart city pode ser entendido como uma panaceia[54] baseada em
um solucionismo tecnológico[55] que utiliza as cidades como
laboratório para testes de protótipos e como plataforma para
coleta de dados pessoais, beneficiando mais as corporações de
tecnologia do que as populações urbanas em si. Isso é ainda mais
compreensível quando se entende que, desde o princípio, foram as
grandes empresas de tecnologia as maiores investidoras[56] da
cidade inteligente, aquelas que patrocinaram os estudos
acadêmicos pioneiros na área e que seguem como responsáveis
por boa parte do vocabulário usado hoje.
É de comum conhecimento que a atual onda tecnológica da
inteligência artificial — ainda longe de qualquer estabilidade[57], por
exigir cada vez mais dados e testes — encontra-se ainda mais
concentrada[58] nas mãos de um punhado de corporações[59], as
quais também formam o restrito grupo de principais investidores
da cidade inteligente. Portanto, não é de se estranhar que essas
empresas venham atuando de forma cada mais próxima[60] junto às
prefeituras e experimentando aplicações de inteligência
artificial[61] nos mais variados ambientes urbanos. Tais experiências
já começaram a se desenvolver e seus riscos não se encontram
mais apenas na ficção científica.

3. DAS OPORTUNIDADES E RISCOS DAS


CIDADES SENCIENTES E ALGORÍTMICAS

As experiências heterogêneas[62] e as conceituações díspares de


cidades inteligentes tendem a se tornar ainda mais complexas com
a inteligência artificial — até pela semelhante dificuldade em
encontrar consensos sobre seus conceitos. É válido estabelecer,
para os fins deste artigo, que inteligência artificial aqui é entendida
como “um conjunto de técnicas destinadas a aproximar alguns
aspectos da cognição humana ou animal usando máquinas”[63]. Tais
aspectos de cognição simulados por máquinas têm permitido
aplicações que levam a enxergar as cidades sob ângulos que
estatísticas e questionários[64] não foram capazes de prover até
hoje, bem como tendem a impactar as próprias formas de
prestação de serviços públicos[65] municipais.
Serviços[66] em que outras smart technologies já prometiam
ganhos — de eficiência, desempenho, qualidade, responsividade,
custo etc. — passam a incorporar uma capacidade de aprendizado
(machine learning) para a identificação de padrões urbanos que
poderão ser analisados, antecipados ou reproduzidos. Como
exemplos, a área de transporte conta com projetos que vão dos
veículos autônomos[67] à análise, em tempo real, de movimentos em
massa[68] no transporte público; áreas fundamentais projetam
serviços como saúde personalizada, educação individualizada e
assistência social preditiva[69]; a área de segurança já comporta
diversas iniciativas de videomonitoramento[70] e de prevenção ao
crime[71] por meio de modelos preditivos.
Portfólios de grandes[72] e pequenas[73] empresas, publicações nas
mídias de massa e eventos especializados[74] descrevem, com
abundância de detalhes, as crescentes aplicações e benefícios da
inteligência artificial em smartcities: será este o tsunami
tecnomidiático que tornará, por cima de todas as demais camadas
de TI que um dia já foram a “grande solução final”, a cidade
realmente “inteligente”?
A ideia de se utilizar a inteligência artificial para analisar,
explicar e planejar o meio urbano dificilmente poderia ser
considerada nova[75], pois há muito tempo que se mira
ambiciosamente no futuro por esse tipo de solução para dar conta
das múltiplas e simultâneas dinâmicas[76] que estão sempre em
movimento e mudança nas cidades. Tampouco são recentes as
ideias de cidades sencientes[77], aquelas que “sentem” dados
urbanos por meio de equipamentos[78] e pessoas[79], e de cidades
algorítmicas[80], em que seus processos tecnocráticos são
acompanhados pelas ruas e redes[81]. O que parece legitimamente
mais recente é que muitas das expectativas da “cidade inteligente
do futuro” — uma referência espaço-temporal muito utilizada[82] —
aparentemente já começam a se realizar agora[83] ou, pelo menos,
já se encontram ao alcance sem a necessidade de se recorrer
apenas à imaginação da ficção científica[84].
Ainda assim, se o imaginário da ficção científica muitas vezes
inspirou cientistas na criação de tecnologias[85] que vemos hoje
sendo aceleradamente desenvolvidas e adotadas nas cidades,
também é verdadeiro que a ficção científica pode nos servir para
inspirar políticas públicas municipais[86] que lidem com os riscos
dessas tecnologias. Deve-se evitar entender os exageros e
especulações da ficção científica como previsões do futuro, pois “é
um formato para reflexões sérias e às vezes ultrajantes sobre o
passado e o presente”[87], mas, ainda assim, pode ser extremamente
útil para áreas que atuam em políticas municipais, como o
urbanismo[88] e o direito[89]. Desde as utopias de sua “era de ouro”
às distopias do seu subgênero cyberpunk[90], a ficção científica tem
influenciado tanto o planejamento urbano[91] quanto a reflexão
jurídica[92], quando da adoção de novos recursos tecnológicos nas
cidades.
A inteligência artificial, ainda que cada vez mais incorporada aos
algoritmos do cotidiano e embutida em apps dos smartphones,
ainda pertence mais ao imaginário da ficção científica[93] do que à
superfície aparente dos tecidos urbanos. A grande popularidade da
ficção científica (sobretudo em suas versões audiovisuais) fornece
vastos recursos culturais[94] sobre inteligência artificial que, por um
lado, são reconhecidos como valiosos para o debate social[95] e, por
outro, são criticados como fontes de desinformação, distração e
desvio dos seus perigos[96] para a sociedade. Um dos temas mais
polêmicos que ilustraria bem essa dicotomia de visões é o temor
midiatizado do “apocalipse da inteligência artificial”[97], vastamente
alimentado pela ficção científica, mas que não encontra
fundamento nem ressonância junto à comunidade científica
atuante na área de inteligência artificial.
No caso do conto PanicCity aqui analisado, a sua contribuição
não se encontra no perigo “apocalíptico” de uma cidade
autoconsciente[98], mas por focar na ideia de uma inteligência
artificial urbana que foi codificada para perpetuar as dinâmicas de
desigualdade social[99], em um contexto de graves desequilíbrios
ambientais. Os riscos da inteligência artificial, infelizmente, não
residem em robôs assassinos[100] — pois seria um assunto mais
divertido e fácil de ser lido e tratado —, mas nos desafios de
reverter os preconceitos codificados nos atuais bancos de dados, a
exclusão social já transformada em algoritmos, a restrição
automática de direitos e liberdades por sistemas de informação
avessos à transparência, entre outros[101]. Dito isso, cabe ressaltar
algo em defesa do comportamento da personagem City: é preciso
revisitar a ideia de inteligências artificiais serem incapazes de agir
fora de sua programação, pois já são e serão cada vez mais capazes
de agir de formas imprevistas.[102]
A margem de imprevisibilidade sempre faz parte dos modelos
tecnológicos do presente, pois há um desequilíbrio fundamental
entre a capacidade de agir da tecnociência moderna e a
capacidade de prever os resultados de suas ações. Nesse sentido, a
ficção científica serve como fonte de prudência para apontar
destinos distópicos nos quais poderemos chegar se seguirmos
insistindo nos caminhos do presente, permitindo-nos desviar para
outros horizontes mais utópicos[103] no futuro. Para tanto, há que se
disputar as narrativas tecnológicas, urbanas e jurídicas[104] para
construir novas formas de governança responsáveis e
verdadeiramente inteligentes.

CONCLUSÃO

O termo “cidade inteligente” comporta conceitos, definições e,


principalmente, pré-compreensões que são de difícil conciliação
mesmo entre as pessoas que atuam cotidianamente na área. Essa
complexidade de percepções e motivações é evidente no debate
público sobre a smart city, por ela comportar uma diversidade de
narrativas que competem por predominância entre si, mas que não
se excluem mutuamente por se relacionarem em rede. O fio
condutor da narrativa sobre a cidade inteligente — afinal, são
muitas as possibilidades em uma sociedade e um direito em rede —
é determinante para identificar os elementos em que se deve
manter o foco e buscar saídas, quando deparamos com tantas
argumentações e conclusões possíveis.
A mera escolha da ficção científica como meio para tratar da
inteligência artificial na cidade, por si só, já indica os caminhos e
conclusões deste artigo. Primeiramente, buscou-se uma tentativa
de conciliar imaginários de cidades futuristas, sejam elas utópicas
ou distópicas, os quais são representados nas cidades ficcionais
projetadas para um tempo cada vez mais próximo. A partir dos
denominadores compartilhados da ficção científica — que informa
e sensibiliza melhor do que qualquer notícia ou teoria — concluiu-
se, com a proposta de utilizá-la para questionar as narrativas das
cidades inteligentes e da inteligência artificial, para seguir rumo a
um futuro mais prudente e que não represente mais do mesmo
que já temos no presente.

Eu não tenho boca, mas preciso gritar.[105]


(Harlan Ellison, 1934-2018)

1. Doutorando em Direito pela Université de


Montréal, pesquisador do Centre de Recherche
en Droit Public (CRDP), bolsista CAPES /
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professor na área de Direito e Tecnologia.
Master en Informática y Derecho pela
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provavelmente o mais amado episódio de Star
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Ecologia: uma narrativa inteligente para a
proteção de dados pessoais nas cidades
inteligentes?

Bruno Ricardo Bioni[1]

INTRODUÇÃO[2]

Este artigo é antes de tudo uma tentativa de encontrar referenciais


teóricos que conectam pessoas de formação e expertise distintas
para investigar os desafios e oportunidades do uso intensivo de
tecnologias da informação e comunicação (TICs) nos espaços
urbanos. Ao retomar o termo “cidades ecológicas”, procura-se
identificar quais são os aportes teóricos e normativos que a
ecologia fornece para que urbanistas, arquitetos, engenheiros,
gestores públicos, advogados, dentre outros profissionais, possam
desenvolver uma visão holística de como o ambiente urbano está
sob reconfiguração, analisando-se em particular as questões
relacionadas à privacidade e à proteção dos dados pessoais dos
cidadãos.

1. CIDADES INTELIGENTES, INFOESFERA


E ECOLOGIA
Os espaços urbanos nunca estiveram tão populosos e as
respectivas infraestruturas nunca foram tão deficitárias para
prover os mais diversos tipos de serviços públicos. É nesse
contexto que o termo cidades inteligentes aparece para descrever
o uso intensivo de TIC como uma das possíveis soluções para os
problemas urbanos e, consequentemente, para a melhoria da
qualidade de vida dos cidadãos.[3]
Em si, o uso de TIC como uma ferramenta da gestão urbana não
é nenhuma novidade[4]. Toda a ideia de planejamento ordenado
sempre esteve apoiada no uso em especial de tecnologias de coleta
e processamento de dados para a formulação de políticas públicas.
Até hoje, essa é a dinâmica, por exemplo, dos censos
sociodemográficos em que a coleta dos dados pessoais dos
cidadãos permite a geração de estatísticas que podem orientar a
expansão e a administração de um território nacional e local.[5]
O que muda é que com os recentes avanços computacionais (big
data, internet das coisas, inteligência artificial etc.) torna-se
possível um uso mais intensivo das TIC. Há, sobretudo, uma
transformação do próprio espaço urbano que passa a ser
arquitetado com artefatos para a coleta e processamento massivo
de dados. A figura ostensiva e única do censor é agregada à de
sensores dispersos e distribuídos[6] por todo o território e uma boa
parcela das ações do gestor público passa a ser automatizada.
Nesse cenário, tão importante quanto a infraestrutura física é a
infraestrutura informacional para o desenvolvimento urbano. No
caso da mobilidade, por exemplo, os dados de tráfego —
infraestrutura informacional — podem tornar mais eficiente toda a
malha viária — infraestrutura física —, a partir da sincronização dos
semáforos e até do redirecionamento das rotas de acordo com os
pontos de congestionamento. O mesmo pode ocorrer com relação
aos sistemas de saúde e educação, de distribuição de energia e
água, dentre outros. Há uma interdependência entre tais
infraestruturas que desencadeia uma nova dimensão para o
(auto)monitoramento e a (auto)gestão da própria cidade.[7]
É em razão dessa imbricação que se fala na existência de uma
infoesfera[8], em que todas as entidades de um ecossistema —
incluindo os cidadãos com seus smartphones e sensores à sua volta
— são organismos que mutuamente se relacionam e interagem
entre si pela troca de dados.[9] Um ambiente cujo funcionamento é
organizado prioritariamente por fluxos informacionais que podem
influir ou definir os mais variados aspectos da vida de um cidadão.
Vive-se, portanto, em um meio não só constituído por elementos
naturais, físicos e biológicos, mas, também, por todas as
tecnologias que mediam nossas relações.[10] Essa acepção mais
ampla sobre o que é o meio ambiente[11] representa um convite
para refletir sobre como se dá a interação dos organismos que o
habitam e se a forma como ela está sendo modelada — pelos
fatores naturais, físicos, biológicos e tecnológicos — é desejável e
sustentável.
A ecologia é justamente o campo de estudo das relações dos
seres (vivos e não vivos) com o meio ambiente, partindo da
premissa de que há uma interdependência e uma interconexão
entre todos eles.[12] O seu mote de análise é compreender o “todo”,
fornecendo uma visão holística da estrutura e do funcionamento
de um ecossistema, isto é, da inter-relação entre os organismos e
o conjunto de fatores à sua volta, que formam o ambiente no qual
estão inseridos.[13]
Uma visão ecológica do uso intensivo das TIC nos espaços
urbanos é útil por colocar em perspectiva outras variáveis que não
só a do discurso da eficiência dos serviços públicos e da solução
dos problemas urbanos, mas incluir tudo à sua “volta” na direção
de um desenvolvimento sustentável.[14] É, sobretudo, uma narrativa
a ser explorada para identificar como essa nova arquitetura dos
espaços urbanos desencadeia uma série de reações no seu
“entorno” e, em especial, no que diz respeito à privacidade e à
capacidade de autodeterminação dos cidadãos.

2. ECOLOGIA DA PRIVACIDADE:
(RE)VISITANDO A INTERDEPENDÊNCIA
ENTRE TECNOLOGIA E PRIVACIDADE

A criação e a consolidação do direito à privacidade sempre


estiveram associadas à existência de uma infraestrutura
tecnológica que o abraçasse e lhe desse vazão. Ou seja, de
condições materiais[15] que capacitassem os indivíduos para o
controle de informações a seu respeito e, com isso, o livre
desenvolvimento da personalidade. Não é por acaso que uma
dentre várias definições e metáforas possíveis ao direito à
privacidade seria a faculdade do indivíduo se privar do convívio
social, recolhendo-se ao seu castelo.
Nesse sentido, direitos corolários ao da privacidade têm sido
igualmente articulados com forte preocupação com a arquitetura
(física) que lhe dá apoio. Por exemplo, algumas Constituições falam
expressamente em “casa” e em “correspondência” ao disporem
sobre a inviolabilidade do domicílio e da comunicação.[16] Mais do
que prescrever a proteção do espaço em que uma pessoa se
estabelece de forma definitiva (domicílio) e a transmissão de
mensagens (comunicação), os textos legais enunciam qual é o tipo
de tecnologia em que tais direitos estão apoiados.
Portanto, a existência de zonas de privacidade[17], em que os
indivíduos retraem e controlam informações ao próprio respeito,
são condicionadas por fatores ambientais. Tão ou talvez mais
importante do que a arquitetura jurídica para o exercício do
direito à privacidade é a arquitetura tecnológica,[18] havendo uma
interdependência que pode enfraquecê-lo ou fortalecê-lo.[19] É a
chamada “ecologia da privacidade”[20] que denota justamente essa
inter-relação entre privacidade e tecnologia.[21]
É óbvio que o uso intensivo de TIC nos espaços urbanos altera
drasticamente a dinâmica de captura, coleta e processamento dos
dados pessoais dos cidadãos, tornando-os uma das engrenagens
principais para o próprio funcionamento da cidade. Isso tende a se
tornar pouco visível para os indivíduos e a reforçar a assimetria
hoje já existente na sua relação com o Estado e, em última análise,
a desafiar a sua capacidade de autodeterminação nesse
ecossistema.
3. PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E
ASSIMETRIA DE INFORMAÇÃO:
(META)TECNOLOGIAS E
TRANSPARÊNCIA

Historicamente, a proteção de dados pessoais foi calibrada por


deveres de transparência por parte dos responsáveis pelo
processamento, exigindo-se, dentre outras coisas, que a coleta se
dê para uma finalidade específica previamente conhecida por seu
titular.[22] Essa foi, por exemplo, a tensão do paradigmático caso em
que a Corte Federal alemã considerou ser parcialmente
inconstitucional uma lei do censo que não especificava de forma
precisa o uso e a finalidade do compartilhamento dos dados
coletados pela administração pública.[23]
Ao cunhar o termo “autodeterminação informacional”, a
racionalidade dessa decisão histórica leva em consideração que o
cidadão deve ter uma esfera mínima de controle sobre como tal
fluxo informacional impactará sua vida, até porque serão seus
dados o ativo para a formulação de políticas públicas das quais será
beneficiário. Já havia a percepção de que a proteção dos dados
pessoais era uma condicionante da própria capacidade de
autodeterminação do indivíduo e da coletividade cujas
personalidade e características eram projetadas nesses dados,[24]
os quais subsidiavam decisões, por parte do gestor público, as
quais impactavam suas vidas.
Essa problemática persiste no cenário das cidades inteligentes:
por um lado, questiona-se se o processamento massivo de dados
pessoais, a partir do uso intensivo de TICs, acarretará de fato uma
melhor qualidade de vida urbana e, por outro, até que ponto ele
pode minar a capacidade de autodeterminação do cidadão, cada
vez mais mediada por processos de decisões automatizadas. Tal
como no paradigmático caso da Corte Federal alemã, um dos
elementos chaves dessa equação parece ser a redução de
assimetria de informação.
Voltando ao conceito de infoesfera, é essencial que a
infraestrutura informacional das cidades inteligentes esteja
submetida ao escrutínio público dos seus habitantes. Isso implica
pensar tecnologias sobre as tecnologias de (auto)monitoramento e
(auto)gestão da cidade. Ou seja, metatecnologias[25] que garantam
uma visualização nítida da sua infoesfera e, principalmente, que
permitam aos cidadãos controle sobre suas informações e do que
delas é extraído para a gestão da cidade.
Toda essa jornada teórica percorrida até aqui tem reverberação
direta no ordenamento jurídico vigente no Brasil. A Lei de Acesso à
Informação (Lei n. 12.527/2011)[26] associa diretamente a proteção
de dados pessoais a uma gestão transparente da informação. Uma
leitura ecológica da Lei de Acesso à Informação coloca justamente
em perspectiva como o dever de transparência ativa e passiva do
gestor público perpassa pelo desenvolvimento de metatecnologias
para tanto.
Em poucas palavras, pensar ecologicamente o uso intensivo de
TIC nos centros urbanos demanda necessariamente o
desenvolvimento de artefatos que permitam a leitura desse
ambiente informacional, especialmente de como os organismos
desse ecossistema estão interligados e de como sua capacidade é
interdependente, do gestor público, passando pelos fatores
ambientais (incluindo os tecnológicos), até o cidadão.

4. DIMENSÃO COLETIVA DA PROTEÇÃO


DE DADOS PESSOAIS: O “TODO” DA
CIDADE INTELIGENTE

Não se trata, portanto, de um indivíduo isolado e específico nesse


ambiente informacional, mas de como todos os seus organismos
formam uma unidade que faz pulsar um conjunto de informações
para o funcionamento da cidade. Com o uso intensivo de TIC nos
espaços urbanos não só se mapeia todo o território, como também
se prevê e modula o comportamento coletivo (de grupos) da
população para a otimização dos recursos da cidade.
Do policiamento preditivo até soluções para o sistema de saúde,
a dinâmica é necessariamente a de agregação dos dados dos
cidadãos para segmentá-los em grupos. Não é o indivíduo em si,
mas o grupo do qual ele faz parte, se de potenciais criminosos ou
dos propensos a certos tipos de doenças, que vai determinar a
investida policial ou a assistência médico-farmacêutica,
respectivamente.[27] Há a formação de entidades coletivas que
projetam e impactam a autodeterminação dos indivíduos que nela
foram categorizados.[28]
Por isso, a proteção de dados pessoais assume, sobretudo, uma
dimensão coletiva, isto é, de uma tutela focada nas externalidades
negativas difusas em jogo.[29] Nesse sentido, são cada vez mais
recorrentes pesquisas que apontam que a vulnerabilidade e a
marginalização de certos grupos nos espaços urbanos tende a ser
reforçada pelo uso de TIC na gestão urbana, como é o caso de
tecnologias de reconhecimento facial e policiamento preditivo
com relação à população afrodescendente.[30]
Esse é um passo importante a ser dado para se pensar a
proteção de dados pessoais não somente como um direito
individual, mas também transindividual. Isto é, de um grupo de
pessoas ou toda uma população que tem a sua vida impactada pela
infraestrutura informacional do ambiente no qual está inserida.
Essa compreensão ampliada do que é meio ambiente é um aporte
teórico relevante no campo da proteção de dados pessoais que
rompe com uma abordagem histórica focada no indivíduo na
direção de uma tutela coletiva.[31]

5. DA TEORIA À PRÁTICA: DECODE E A


CIDADE DE BARCELONA

A partir do projeto Decentralised Citizen-owned Data


Ecosystem/DECODE, a cidade de Barcelona colocou em prática
todo o aporte teórico de uma visão ecológica do uso intensivo de
TIC para a gestão urbana. A própria referência ao termo
“ecossistema de dados” transparece tal fundação teórica, levando
em consideração como os cidadãos — organismos que integram
esse ecossistema — devem fazer parte de um processo de “tomada
de decisão coletiva” para o funcionamento da cidade.[32]
Parte-se da premissa de que aos cidadãos deve ser assegurada
“soberania” sobre seus dados, focando-se prioritariamente na
criação de uma “infraestrutura técnica” que os capacite para tanto.
De forma bastante esquemática, essa infraestrutura, que é
chamada de “smart rules”[33], está subdividida em dois grandes
eixos: i) empoderar os cidadãos com um controle mais significativo
sobre seus dados, tornando escaláveis e granulares suas escolhas
(consentimento) quanto ao uso deles; e ii) garantir que tais
escolhas sejam efetivas, a partir de uma trilha auditável de quem
acessa e quais usos são feitos com os dados dos cidadãos.
Blockchain seria uma das bases de toda essa infraestrutura
técnica por meio da qual uma rede de computadores
descentralizada automatizaria as permissões dos cidadãos sobre o
uso de seus dados, bem como registraria todo o seu acesso e
utilização por terceiros. Em vez de centenas de políticas de
privacidade cujo leque de opções seria binário (aceitar ou recusar),
dependeria da intervenção manual dos cidadãos e que, na prática,
garantiria pouca transparência sobre o seu processamento.
Haveria uma “arquitetura distribuída de gerenciamento dos dados”
controlada de forma granular pelos cidadãos e sob escrutínio
público constante.
Ela é justamente uma abordagem que articula a tecnologia como
um elemento de capacitação e de transparência para que o
cidadão controle seus dados e sobre o que deles são extraídos para
a gestão da cidade. O resultado esperado é que haja um arranjo de
“governança coletivo” em que cada um dos cidadãos contribua
para um “controle democrático” da arquitetura informacional da
cidade.
Não é o objetivo deste ensaio analisar criticamente os aspectos
técnicos e conceituais de toda a iniciativa catalã, mas, a partir dela,
identificar como todo o aporte teórico da ecologia detém
desdobramentos bastante práticos em termos do que se idealiza
com o uso intensivo de TIC nos centros urbanos. Em especial,
como o seu lançamento nos espaços urbanos pode contribuir para
que haja: i) um controle mais significativo dos cidadãos sobre seus
dados, a partir da premissa de que a tecnologia é um elemento
desencadeador dessa habilidade (ecologia da privacidade); ii) o
desenvolvimento de tecnologia de transparência sobre o uso que
se faz de tais dados e de toda a infraestrutura informacional da
cidade (metatecnologias e redução da assimetria de informação); e
iii) o reconhecimento de uma dimensão coletiva da proteção dos
dados pessoais, levando-se em consideração que o
comportamento de grupos da população ou dela como um todo é
modulado pela agregação e processamento massivo dos dados dos
indivíduos (caráter transindividual da proteção dos dados
pessoais).
Tudo isso é fruto de um olhar holístico de como a introjeção de
TIC no espaço urbano afeta todo o seu entorno, especialmente os
cidadãos como organismos integrantes desse ecossistema. Essa
visão alargada leva em consideração até mesmo como a proteção
dos dados pessoais dos cidadãos pode ser um vetor de arranjos de
governança coletiva para a gestão da cidade e, talvez o mais
importante, como parte do escrutínio público sobre se a gestão
das infraestruturas física e informacional da cidade está
acarretando de fato melhoria na qualidade de vida. Em última
análise, trata-se de dar publicidade à própria atuação do Estado
para aferir a eficiência da sua gestão, ainda mais quando um dos
seus principais ativos são bens da personalidade dos cidadãos —
seus dados pessoais.

CONCLUSÃO: CIDADES ECOLÓGICAS

Por ser o campo de estudo das relações dos seres (vivos e não
vivos) com o meio ambiente, a ecologia é útil para entender como
o uso intensivo de TIC nos espaços urbanos impacta os organismos
dele integrantes, em especial os cidadãos. Nesse sentido, o termo
“cidades ecológicas” coloca em perspectiva o “todo” de um
ecossistema sob reconfiguração, cujos novos artefatos podem
alavancar a proteção dos dados pessoais dos cidadãos e, ao mesmo
tempo, gerar transparência a respeito da administração da
infraestrutura informacional e física da cidade e se ela está
acarretando de fato uma melhoria na qualidade de vida. Essa
parece ser uma narrativa inteligente para compreender o
fenômeno das cidades inteligentes, especialmente as suas virtudes
e vicissitudes no que diz respeito à proteção da privacidade e aos
dados pessoais dos cidadãos.
1. Doutorando em Direito Comercial e Mestre em
Direito Civil pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. Advogado do
Núcleo de Informação e Coordenação do
Ponto BR/NIC.br, membro da Rede Latino-
Americana de Estudos sobre Vigilância,
Tecnologia e Sociedade/LAVITS e Fundador
do Data Privacy Brasil. ↵
2. Esse texto foi publicado originalmente em:
BARBOSA, A. (org.). Pesquisa sobre o uso das
tecnologias de informação e comunicação no
setor público brasileiro. São Paulo: Comitê
Gestor da Internet, 2018. v. 3, p. 191-200. ↵
3. MACAYA, J. Smart Cities: tecnologias de
informação e comunicação e o
desenvolvimento de cidades mais sustentáveis
e resilientes. Panorama Setorial da Internet,
ano 9, n. 2, p. 4, set. 2017. ↵
4. NAM, T.; PARDO, T. Conceptualizing Smart
City with Dimensions of Technology, People,
and Institutions. In: J. Bertot & Association for
Computing Machinery (org.). Proceedings of the
12th Annual International Digital Government
Research Conference Digital Government
Innovation in Challenging Times. New York,
NY: ACM, 2011. p. 283. ↵
5. MILLER, A. The assault on Privacy: computers,
data banks, and dossiers. Ann Arbor: University
of Michigan Press, 1971. p. 223. ↵
6. BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser:
vigilância, tecnologia e subjetividade. Rio de
Janeiro: Sulinas, 2013. p. 24-26. ↵
7. NAM, T; PARDO, T, op. cit., p. 285. ↵
8. FLORIDI, L. The 4th revolution: how the
infosphere is reshaping human reality. Oxford:
Oxford Univ. Press, 2014. p. 25. ↵
9. Ibid., p. 45. ↵
10. SPINA, A. Laudato Si’ and Augmented Reality: in
Search of an Integral Ecology for the Digital
Age. Rochester, NY: Social Science Research
Network. p. 3. Disponível em:
https://papers.ssrn.com/abstract=3088487.
Acesso em: 8 mar. 2018. ↵
11. FIORILLO, C. A. Curso de direito ambiental
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 45. ↵
12. MACINTOSH, R. The background of ecology:
concept and theory. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000. p. 08. ↵
13. BOFF, L. Ecologia, Mundialização,
Espiritualidade. São Paulo: Record, 2008. p. 27.

14. NUSDEO, F. Desenvolvimento e ecologia. São
Paulo: Saraiva, 1995. p. 13. ↵
15. DONEDA, D. Da privacidade à proteção de
dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
p. 10-12. ↵
16. Esse é o caso da Constituição Federal do Brasil:
Artigo 5º, XI - a casa é asilo inviolável do
indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar
socorro, ou, durante o dia, por determinação
judicial; Artigo 5º, XII - é inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas, salvo, no último caso, por ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação criminal
ou instrução processual penal; ↵
17. KAYE, D. Promotion and protection of the right
to freedom of opinion and expression. New
York: Organização das Nações Unidas, 2015. p.
10. ↵
18. COHEN, J. E. Examined Lives: Informational
Privacy and the Subject as Object. Stanford
Law Review, v. 52, n. 5), p. 1373-1438, maio
2000). Disponível em:
https://doi.org/10.2307/1229517. Acesso em:
20 mar. 2018. ↵
19. BIONI, B. R.. Autodeterminação informacional:
paradigmas inconclusos entre a tutela dos
direitos da personalidade, a regulação dos
bancos de dados eletrônicos e a arquitetura da
internet. São Paulo: Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, 2016. p. 211. ↵
20. SOMMER, R. The Ecology of Privacy. The
Library Quarterly, v. 36, n. 3, p. 234-248, jul.
1966. ↵
21. HILDEBRANDT, M. Smart technologies and the
end(s) of law: novel entanglements of law and
technology. Cheltenham: EE Edward Elgar
Publishing, 2016. p. 217. ↵
22. DONEDA, D. Princípios e proteção de dados
pessoais. In: LUCCA, N. de; LIMA, C. R. P. de;
SIMÃO FILHO, A. (org.). Direito & Internet III:
Marco Civil de Internet. São Paulo: Saraiva,
2015. p. 378. ↵
23. SCHWABE, J.; MARTINS, L.; WOISCHNIK, J.
Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal
Constitucional Federal Alemão. Montevideo:
Fundación Konrad-Adenauer, 2005. p. 233-238.

24. BIONI, B. R., op. cit., p. 70. ↵
25. FLORIDI, L., op. cit., p. 224. ↵
26. Essa é uma interpretação sistemática que
combina os artigos 4º, IV, 6º, inciso III e 31,
caput. ↵
27. LYON, D. Surveillance as social sorting:
computer codes and mobile bodies. In: LYON,
D. (org.). Surveillance as social sorting: privacy,
risk, and digital discrimination. New York:
Routledge, 2003. p. 12. ↵
28. MANTELERO, A. Personal data for decisional
purposes in the age of analytics: from an
individual to a collective dimension of data
protection. Computer Law & Security Review, v.
32, n. 2, p. 238-255, 2016. ↵
29. Ibid., p.14. ↵
30. GARVIE, C.; BEDOYA, A. M.; FRANKLE, J. The
Perpetual Line-Up: unregulated Police Face
Recognition in America. GeorgeTown Law
Center on Privacy & Technology: Washington,
2016. p. 03. ↵
31. MANTELERO, A., op. cit., p. 8. ↵
32. DECODE. Me, my data and I: the future of the
personal data economy. p. 79. Disponível em:
https://decodeproject.eu/publications/me-
my-data-and-ithe-future-personal-data-
economy. Acesso em: 15 mar. 2018. ↵
33. Ibid., p. 61. ↵
Paisagens urbanas e cenários distópicos: para
quem produzir cidades inteligentes?

Lucas Costa dos Anjos[1]


Maria Clara Oliveira Santos[2]

INTRODUÇÃO

Filmado em 1982, o filme Blade Runner é ambientado na futurística


Los Angeles de 2019, em um cenário repleto de carros voadores,
verticalização de edificações e telões publicitários onipresentes.
Apesar de o mérito da história ir bem além dos efeitos especiais e
estética elaborada, é impossível negar a importância imagética da
distopia de futuro que permeava a mente de Ridley Scott nos anos
1980. Basicamente, sugeriam-se diversos elementos tecnológicos
para compor um modelo de cidade vigilantista, em que passado
(humano) e futuro (androide) disputam os espaços em busca de
reconhecimento, sobrevivência e, até mesmo, amor.
Nesse contexto, uma espécie de delírio envolve espectadores
por meio de recursos visuais e narrativos, entre eles a ubiquidade
das formas de controle: o Voigt-Kampff, uma espécie de polígrafo
de interrogação para verificar se alguém é realmente humano; o
Spinner, carro voador utilizado para vigilância policial; e
inteligências artificiais que percebem variações de humor,
realizam reconhecimento facial e sugerem práticas
comportamentais perfiladas.
A arquitetura da cidade cinematográfica também reflete um
aprofundamento das hierarquias sociais, em conformações
urbanas nas quais os mais ricos vivem em ambientes elevados,
amplos, limpos e silenciosos, enquanto as classes mais baixas
disputam espaço nas ruas sujas e apinhadas, moram em
apartamentos cubiculares e estão sujeitas às milhares de luzes e
sons dos anúncios publicitários que lhes sequestram o olhar.
Dando vida à máxima cyberpunk, com a confluência sem limites
da alta-tecnologia em meio a poucos (e remanescentes) elementos
biológicos, as distopias são, muitas vezes, narrativas centradas na
perda do controle humano sobre o desenvolvimento da sociedade
e da tecnologia, ou sobre os recursos naturais necessários à
sobrevivência. Esse tipo de história relata a escassez, a
marginalização e a insegurança provenientes da alegórica
otimização das ações humanas em favor de um certo grupo e,
costumeiramente, em detrimento de outros.
Embora as cidades ainda não estejam tomadas pelos carros que
voam, o futuro imaginado para 2019 não está tão distante quanto
se pode pensar. Com a crescente incorporação das novas
tecnologias no cotidiano das cidades, vemos alguns desses
mesmos elementos de Blade Runner apresentados sob a forma de
inovações (carros autônomos, reconhecimento facial em redes
sociais, a Alexa da Amazon etc.), que transformam qualitativamente
também as formas de sociabilidade e de produção do espaço das
cidades.
Diante do fenômeno global da cibercultura, é preciso questionar
a chegada do futuro a fim de evitar que a vida imite a arte,
assegurando às cidades sua função hegemônica, mas também
condizente com a heterogeneidade de interesses e grupos que a
compõem. Nessa confluência de fatores, direito, governos, mídias
e tecnologias interagem das mais diversas maneiras. Sob diferentes
perspectivas, objetiva e subjetivamente, as paisagens das cidades
inteligentes revelam mais do que um horizonte de modernização
tecnológica: representam e ressignificam as próprias disputas
sociais no ambiente urbano. Mas a quem estão destinadas?

1. AS CIDADES SE PRODUZEM E SE
TRANSFORMAM

O século passado foi marcado por uma série de transformações no


comportamento humano e social. Entre os inúmeros giros
ocorridos ao longo do período, destacam-se para esta abordagem
o espacial e o tecnológico. Embora também característico das
mudanças do século XX, o giro espacial não se refere à conquista
do espaço sideral, nem da corrida tecnológica e armamentista da
Guerra Fria. Ele acontece aqui, em nosso próprio planeta, em
muito influenciado pelos avanços tecnológicos e pelas
movimentações sociopolíticas da época[3], alicerçando análises
sobre os processos econômicos, sobre as decisões políticas e sobre
os fatores culturais que atuam como linhas de forças nos
territórios.
O espaço produzido pelas sociedades individualmente é o teatro
necessário da produção econômica, das hierarquias sociais, dos
poderes, dos saberes e dos ritos; e é nesse sentido que as
transformações de época são inscritas nos espaços sociais que
traduzem o corpo dos indivíduos, gerando percepções e
representações, ordens de valores e memórias a serem
transmitidas, enraizando a experiência de hoje e acalentando as
esperanças de amanhã. O espaço físico social é, em alguma
medida, o molde de convergência das percepções e expectativas
individuais[4].
Combinado ao giro espacial, o giro tecnológico promove a
homogeneização do espaço do homem a partir de um meio-
técnico-científico-informacional[5] apto a assegurar os processos
encadeados na globalização. A busca pela eficácia mercantil dos
lugares suscita uma série de corridas para alavancar a
produtividade espacial ou geográfica, reproduzindo em diferentes
esferas as características do modelo produtivo.

Os lugares se especializam, em função de suas virtualidades


naturais, de sua realidade técnica e de suas vantagens de
ordem social. Isso responde à exigência de maior
segurança e rentabilidade para capitais obrigados a uma
competitividade sempre crescente. Isso conduz a uma
marcante heterogeneidade entre as unidades territoriais
(Z. Milnar, 1990, p. 58), com uma divisão do trabalho mais
profunda e, também, uma vida de relações mais intensa.[6]
Fenômeno que se propaga ainda mais intensamente no século XXI,
a urbanização marca a passagem da vida rural para a vida urbana
pela maioria dos habitantes do planeta. Atualmente, o fluxo
migratório para essas áreas é de 10 mil pessoas por dia[7] e estima-
se que, em 2050, cerca de 68% da população mundial viverão em
cidades, que contarão com uma população de mais de 6 bilhões de
indivíduos, segundo dados atualizados da Organização das Nações
Unidas[8].
Para lidar com as inúmeras consequências do processo de
urbanização, vários modelos de organização e otimização dos
serviços urbanos foram propostos ao longo das últimas décadas. O
mais famoso e que, até hoje, encontra ecos em modelos de
planejamento urbano é o modelo de cidade global[9], palco de
grandes eventos e centro de políticas públicas que, ao efetivarem
um projeto de transformação urbana capaz de superar a sensação
de crise aguda gerada pela globalização econômica, promoveriam a
negociação entre os diversos atores urbanos, resultando em um
salto econômico, social e cultural decorrente da ação conjunta de
atores públicos e privados. Intensamente propagandeadas na
década de 1990, as adaptações a essa proposta não tardaram a
aparecer e se converteram em inúmeras classificações diferentes
para as cidades que a adotavam, a partir de um marco central
propulsor da nova dinâmica urbana.
Nesse esteio, surgiram também as cidades criativas que, ao
focar no desenvolvimento de uma indústria criativa, promoveriam
novas ações econômicas e o fomento à participação da sociedade
na vida cultural urbana. Esse modelo de cidade busca se utilizar da
revolução da informação para um propósito cultural criativo e
democrático[10] e impulsionou a criação da Rede de Cidades
Criativas da Unesco em 2004. Atualmente, 180 cidades em 72
países concentram as atividades de desenvolvimento econômico,
social e urbano em uma das áreas temáticas propostas: artesanato
e artes folclóricas, design, cinema, gastronomia, literatura, artes
midiáticas e música[11].
Esse modelo de cidade permitiu modificações significativas para
diferentes redes urbanas. Cidades de caráter mais antigo
renovaram seus centros históricos e ofertaram novas atrações,
como exposições e feiras, e promoveram a diversificação do
público-alvo de seus equipamentos culturais, como museus e
bibliotecas públicas. A isso, somam-se a adoção de festivais e uma
agenda de espetáculos em novos e ampliados espaços de lazer e
ação cultural, que se traduziram na conquista de uma faceta mais
jovem (e consequentemente mais dinâmica) para essas áreas
urbanas.
Como exemplo de rejuvenescimento, Londres retomou a
vocação das décadas de 1960 e 1970 — e sua associação com o
mundo do design, da arte pop e da música — para traçar uma
estratégia econômica no cenário pós-industrial que seja capaz de
colocar as atividades criadas a serviço da cidade e de seus
cidadãos — e não o contrário[12]. O caso londrino expressa, no
entanto, problemas colaterais comuns a esse tipo de estratégia de
desenvolvimento: a criação de uma rede de protecionismo em
termos de propriedade intelectual[13] e a baixa inclusão de minorias
étnicas na movimentação econômica gerada.[14]
Em um exemplo de adoção do modelo em países em
desenvolvimento, a Colômbia vem investindo largamente na
adoção de indústrias criativas em várias cidades, com apoio do
British Council e de instituições multilaterais como a Organização
dos Estados Americanos (OEA) e a Unesco. Bogotá, a capital,
traduz as dificuldades do planejamento urbano nas regiões
periféricas do globo. Questões econômicas e sociais, como o
narcotráfico, a violência urbana e a concentração de renda, que
incentivam movimentos migratórios internos, conferem ao tecido
urbano uma permeabilidade constante de volume tal que todo
planejamento deve lidar com a existência inexorável das
contradições que criam impactos extremos em qualquer política
estabelecida.
A grande aposta de Bogotá, então, foi gerir uma série de
programas de cultura cidadã que mesclassem a educação, o
endereçamento de conflitos sociais e a apropriação da cidade pela
população, além das ações de cultura, em uma aplicação prática
das diretrizes do direito à cidade que dão ênfase ao espaço público
e valorizam a diversidade e os espaços culturais, de modo a
ampliar as conexões entre as classes sociais no espaço público.
Para tanto, investiu nas inovações das mais diversas ordens,
promoveu conexões variadas e incentivou a cultura a partir de um
processo de transformação que envolveu também o setor de
transportes e a criação de uma nova rede de bibliotecas.
Por outro lado, o desenvolvimento das áreas urbanas também
passou a levantar preocupações relativas ao uso indiscriminado
dos recursos naturais do planeta, bem como às mudanças
decorrentes da nova configuração espacial. O risco de
exaurimento natural, bem como a contaminação de áreas cada vez
maiores pelos resíduos gerados pelos novos assentamentos
humanos, levou à elaboração de uma série de programas
ambientais para a recuperação e a renovação desses centros
urbanos que, adotando o paradigma do equilíbrio e da
recomposição ambiental, propõem-se a se tornar cidades
sustentáveis.
Esse outro modelo de programa de desenvolvimento urbano
vem ganhando espaço nos últimos anos impulsionado pelas
análises científicas acerca do aumento da temperatura do planeta,
da sua correlação com as emissões de gases, que ocorrem
majoritariamente nas zonas urbanas, e do impacto irreversível das
mudanças climáticas na própria biosfera, levando à extinção de um
sem número de espécies[15]. Para orientar a difusão do modelo, a
ONU criou uma plataforma de Objetivos para o Desenvolvimento
Sustentável e enumera que “tornar as cidades e os assentamentos
humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis” é o 11º
deles[16], a partir de uma série de medidas que devem ser adotadas
até 2030.
A agenda ambiental não é exatamente nova, ganhou espaço
considerável nos debates da segunda metade do século XX e
causou embates ao propor um programa de preservação do meio-
ambiente fundado em um paradigma de interrupção das atividades
humanas que colocavam em risco a pureza do meio ambiente. No
início do século passado, um modelo de planejamento urbano que
incentivava as pessoas a abandonarem as metrópoles e habitarem
cidades-jardins ganhou impulso. Avançava ainda uma perspectiva
bucólica, que apontava a cidade como o grande destruidor da
natureza. Ao condenar a urbanização, “apesar de suas
reivindicações globalizantes, o paradigma ecológico perdeu seu
ponto de encontro mais importante: aquele com o território”.[17] A
devastação causada pelas guerras e pelas disputas coloniais ao
longo do século fortaleceu ainda mais uma doutrina de
manutenção da natureza intocada que enxergava a ação humana
apenas como destruidora do planeta.
No entanto, prevaleceu a onda da urbanização e esse modelo de
ocupação do espaço é visto atualmente como possível salvaguarda
da natureza. O objetivo principal quando se visa equacionar os
impactos da vida urbana é criar redes de eficiência energética e
diminuição da produção de resíduos. Mirando o equilíbrio
ambiental, as cidades são consideradas motores da
prosperidade[18], e a ideia de sustentabilidade aos poucos vai
assegurando um novo conteúdo ao conceito de desenvolvimento.
Uma cidade será definida como sustentável “se suas condições de
produção não destruírem, com o passar do tempo, as condições de
sua reprodução”[19].
É na busca de soluções ecológicas para os problemas da
urbanização que a Europa vem elegendo anualmente, desde 2010,
uma Capital Verde[20]. Para além das áreas verdes convencionais,
como parques, é necessário investir em uma infraestrutura em que
as áreas naturais sejam projetadas para desempenhar uma série de
funções, sem deixar de atender aos requisitos de manutenção da
qualidade do ar, melhorias na rede de transporte e adoção de
medidas para lidar com as mudanças climáticas. Os modelos
sustentáveis europeus investem maciçamente em inovação para a
criação dessa infraestrutura verde.
Por sua vez, o quadro de urbanização brasileiro, com 80% da
população já residindo em áreas urbanas e englobando 65% do PIB
nacional[21], também vem sendo acompanhado da elaboração de
políticas que se alinham aos programas das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Sustentável – notadamente a Agenda 2030 (2015)
e a Nova Agenda Urbana (2016)[22] – embora os resultados ainda não
sejam satisfatórios. Apenas 8 de nossos 5.570 municípios integram
o rol mundial de cidades criativas[23] e nenhum atingiu os objetivos
de desenvolvimento sustentável[24], sendo as grandes cidades
aquelas que concentram as áreas com as melhores estruturas
urbanas e, ao mesmo tempo, os piores problemas de adensamento
e qualidade de habitação, por exemplo[25].
Algumas das tentativas de implementação de políticas de
renovação urbana nas cidades brasileiras sofrem com a descrença
no potencial real de transformação e a associação dessas ideias a
um marketing urbano calcado apenas na formação de uma imagem
artificial, “voltada a suscitar e construir desejos de consumo
infrenes e desnecessários”[26] e criadores de privilégios de serviços
e produtos para grupos específicos, comprometendo, desse modo,
a viabilidade de programas que permitam a integração consciente
e cidadã de todos os que compõem a cidade.

2. PAISAGEM URBANA E INTELIGÊNCIA


A SERVIÇO DA INTEGRAÇÃO DA
CIDADE

A construção de modelos de desenvolvimento e renovação das


cidades remonta a uma ideia constante de que há uma crise
urbana a ser superada e que ela decorre da ausência de
mecanismos para assegurar o crescimento econômico e o bem-
estar social. A produção da cidade, ação humana por excelência,
ocasionaria também o agigantamento do espaço e a
incompreensão humana sobre sua totalidade[27]. Em decorrência
dessa sensação de crise, surge a perda de controle sobre áreas
fundamentais da organização urbana.
Por estabelecerem programas de renovação focados em setores
específicos, as cidades criativas e sustentáveis apresentam sua
capacidade de transformação condicionada a uma visão
fragmentada da cidade. Embora fundamentais para assegurar
qualidade de vida, cultura e equilíbrio ambiental, não são capazes
de, per si, estabelecer uma visão holística dos desafios enfrentados
pelos centros urbanos. Políticas culturais expõem o risco de
privilegiarem as manifestações de determinado grupo social,
enquanto ações ambientais podem excluir o potencial humano ao
considerar apenas os efeitos negativos do impacto na natureza[28].
Às críticas mais comuns aos modelos apresentados anteriormente
podem ser somadas também a pontualidade dos setores que são
afetados pelos programas e índices de sustentabilidade:
principalmente os de energia, água e transportes.
Muito embora esses setores sejam cruciais para o redesenho da
malha urbana, a busca de eficiência localizada impossibilita uma
abordagem compreensiva do fenômeno urbano. As cidades
necessitam de ações que tenham alvos não somente culturais ou
ambientais mas que também vislumbrem a composição de um
ambiente mais seguro, inteligente, saudável e financeiramente
equilibrado. O uso da tecnologia da informação já é imprescindível
para a superação dos desafios criados pela urbanização, e os
programas de renovação e potencialização das cidades devem
adotar plataformas que priorizem a eficiência de custos e de
recursos na elaboração de políticas de desenvolvimento. É
necessário fazer que as cidades sejam, além de criativas e
sustentáveis, verdadeiramente inteligentes. Para isso, é preciso ir
além da tecnologia.[29]
As diferentes tecnologias empregadas na criação dessas cidades
devem se basear em um modelo de inovações que seja, além de
eficiente em termos de custos e recursos, inteligente, confiável e
integrado[30]. Esse deve ser o mote de elaboração do sistema a ser
implementado. As cidades devem operar plataformas capazes de
harmonizar as mais diversas áreas e elementos que as constituem,
a fim de que as perspectivas de realização do indivíduo, seja na
esfera pública, seja no âmbito privado, estejam conectadas na rede
de desenvolvimento e de proteção estabelecida.
É nesse sentido que a adoção do paradigma da paisagem urbana
pode ser um fator de incremento às dinâmicas de inteligência
propostas. Se, por um lado, as cidades inteligentes apresentam
objetivos similares aos das cidades sustentáveis[31], a reconciliação
entre economia e ecologia propagada naquelas[32] deve estar a
serviço não somente da interligação dos espaços verdes e das
áreas construídas (a chamada green-gray integration), como
também na garantia da conectividade e da multifuncionalidade dos
espaços em um plano socialmente inclusivo.
Sendo o espaço da cidade também um espaço de fluxos com três
camadas de suportes materiais[33], caberá ao circuito de impulsos
eletrônicos promover uma estratégia de transformação do espaço
que reafirme as referências culturais e identitárias daquela
comunidade. A proposta é reunir os paradigmas culturais e
ambientais na produção de uma plataforma propensa a revisar e a
atualizar os processos que já ocorrem na cidade, sem desprezar
elementos que anteriormente eram considerados acessórios. A
compreensão do espaço urbano, a partir de sua paisagem, resulta
em uma equação que permite adicionar os elementos dos modelos
anteriores e compor uma visão holística das questões a serem
enfrentadas. A paisagem é o resultado da interação entre a cultura
como agente e a natureza como meio[34].

Paisagem é um termo conectivo, um Zusammenhang


[contexto]. Muito de seu apelo a ecologistas, arquitetos,
planejadores e outros preocupados com a sociedade e o
desenho ambiental está na capacidade que a paisagem tem
de combinar elementos incomensuráveis ou até
dialeticamente opostos: processo e forma, natureza e
cultura, território e vida.[35]

A polissemia do conceito de paisagem carrega o potencial de


estabelecer um sistema apto a delimitar um conjunto e sua
funcionalidade, também no plano operacional, uma vez que a
paisagem “inclui as próprias coisas e também sua imagem, sua
representação que é organizada em tipos, motivos e modelos”[36] e
serve como uma forma caracteristicamente moderna de
representação e encontro com o mundo externo, seja em suas
qualidades gráficas e pictóricas, seja nos meios de conectar o
indivíduo à comunidade, assim como em formas de representação
gráfica como mapas, sinalizações, mobiliários urbanos, pinturas,
fotografias, vídeos e filmes[37]. “Entre as interfaces digitais, o sujeito
e a paisagem nascem uma relação simbiótica e uma forma de
interação contínua”[38] capaz de alterar o sentido de compreensão
dos lugares e as formas de experimentá-los.
A compreensão da paisagem urbana ultrapassa o caráter
meramente estético das formas de expressão e, ainda associada a
seu componente pictórico, passa a incorporar valores e
sentimentos humanos e sociais em uma experiência de referência
mais visceral. Nesse sentido, o território pode produzir também
sensações de bem-estar que são comercializáveis e voltadas aos
interesses não somente das práticas sociais coletivas, mas também
servindo à produção de valor de capital e conveniência transferível
às relações de consumo.
Para lidar com a complexidade que resulta das interações entre
os valores simbólicos, materiais e capitais que exsurgem das
dinâmicas do espaço urbano, o sistema de educação para a
tecnologia deve envolver não somente uma agenda de inspiração
digital, mas também emancipatória. A capacitação dos agentes
interessados na constituição de uma governança multinível, capaz
de sublinhar a diversidade cultural e social que compõe a urbe[39],
deve dialogar com um projeto coletivo de inovações técnicas a
serem implementadas sob o critério de efetividade econômica e
ambiental, mantendo-se com custos acessíveis que assegurem seu
potencial inclusivo[40]. Nesse sentido, a adoção de uma abordagem
learning based pode se apresentar como um desafio estratégico
para assegurar as seis dimensões da inteligência urbana: smart
economy, smart mobility, smart environment, smart people, smart
living e smart governance.
Sob esse aspecto, a formação de bancos de dados inteligentes
sobre a cidade deve captar não apenas o equilíbrio dos caracteres
naturais, da área construída e das relações que se estabelecem
entre eles, mas também considerar paradigmática a viabilização de
uma paisagem urbana que traduza tanto o bem-estar relacionado a
esses caracteres quanto os valores a serem partilhados pelos
indivíduos que transitam e se relacionam nos espaços gerais da
cidade, sejam eles públicos ou privados, com impacto direto na
fruição das áreas públicas.[41] A cibercultura aponta para a presença
de uma civilização da telepresença generalizada[42], na qual a física
da comunicação atende à tendência à hibridização entre o espaço,
o corpo e a informação, estabelecendo uma passagem para as
formas digitais de interação[43] ao criar um universal por contato, a
partir de um contínuo sem fronteiras, em que a humanidade
mergulha com os demais seres em um mesmo banho de
comunicação interativa[44].
3. ACESSIBILIDADES POSSÍVEIS

Entre os principais benefícios do emprego de tecnologia pelas


cidades inteligentes estão as variadas formas de inclusão e
acessibilidade possíveis. A vasta disponibilidade de dados e
métricas, aliada à internet das coisas (IoT – Internet of Things, em
inglês)[45], proporciona possibilidades de conexão há pouco tempo
inimagináveis, até mesmo por diretores de ficção científica:
dispositivos para captação de sons de arrombamento (segurança
pública); sensores de volume de tráfego para a temporização
automatizada de semáforos (eficiência no gerenciamento do
trânsito); rastreamento geolocalizado de cargas e passageiros para
a geração de métricas de fluxo de processos e pessoas (mobilidade
urbana); rega de plantas e árvores de acordo com o clima e a
incidência solar diária (racionamento de recursos hídricos); e
iluminações pública e privada por meio de sensores de movimento
(eficiência energética).
Essas e outras aplicações no contexto urbano corroboram
transformações profundas na paisagem das cidades, desde a
experiência de mobilidade das interações entre automóveis e
pedestres, até as relações estéticas estabelecidas entre a
publicidade perfilada (vide item seguinte) e seus consumidores. Em
constante transformação por intervenções no ambiente, a cidade
inteligente pode também ampliar a capacidade de inclusão. De
acordo com alguns estudos, a larga disponibilidade e acessibilidade
de sensores e conexões de internet incorporam cada vez mais
pessoas e objetos à lógica da produção e processamento de
dados[46].
Por exemplo, portadores de necessidades visuais podem se
beneficiar da liberdade proporcionada por carros autônomos.
Sensores de presença de pedestres podem aumentar o tempo
vermelho do semáforo para veículos, facilitando a travessia das
ruas de acordo com a necessidade de cada pessoa. Quiosques e
mapas interativos de informação podem ajudar turistas a navegar
por uma cidade cujo idioma nativo eles não dominem. Meios de
pagamento não monetário, e até mesmo sem a necessidade de
inserção física (contactless), podem aumentar a segurança das
transações, corroborar a regularização formal da circulação de
dinheiro, evitar fraudes e facilitar o câmbio automático de
diferentes moedas.
Outro exemplo importante de perfilamento publicitário
inteligente foi uma campanha espanhola desenvolvida para
crianças, contra a violência infantil, que era vista apenas por
espectadores com menos de 1,35 metros (devido ao ângulo de
visão dos tótens dos anúncios). Enquanto as crianças observavam
uma imagem que remetia a formas de denúncia contra os
agressores, seus acompanhantes, por serem mais altos, viam outro
conteúdo[47]. Essa foi uma maneira inteligente de direcionar
diferentes mensagens que se gostaria de transmitir, visto que
muitas vezes as crianças estão acompanhadas dos próprios
agressores, mas de forma discreta e em um mesmo espaço, para
espectadores distintos.
4. PERSONALIZAÇÃO E PERFILAMENTOS
PUBLICITÁRIOS EM AMBIENTES
SUPOSTAMENTE DESPESSOALIZADOS

Desenvolvimentos recentes na temática da privacidade e proteção


de dados podem ser constatados nos mais diferentes âmbitos
legislativos (nacionais e internacionais), bem como por meio de
diferentes estratégias: regulação ex ante[48], conceito de
privacidade by design pelas empresas de tecnologia[49], bem como
políticas de conscientização pela sociedade civil organizada[50].
Assim como entrou em vigor, em maio de 2018, na União Europeia,
a General Data Protection Regulation (GDPR), ou, em português, o
“Regulamento Geral de Proteção de Dados”[51], o Brasil também
aprovou a Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), em 14 de agosto
de 2018[52]. A concomitância dessas duas legislações revela a
relevância do tema na contemporaneidade, especialmente porque
a União Europeia implementou verdadeiro padrão-mínimo de
proteção exigido de empresas que atuam não apenas em seu
território, como também daquelas que tratam dados de cidadãos
europeus, independentemente de sua geolocalização. Ou seja, a
fim de manter e aprofundar relações com um dos maiores
mercados digitais do mundo, o europeu, diversos países estão se
adequando a esses parâmetros.
É importante notar que o conceito de privacidade deve ser
contextualizado de acordo com suas contraposições. Em vez de
pensar em um conceito estático do termo, como aquele imaginado
por Samuel Warren e Louis Brandeis, no artigo seminal The Right
to Privacy[53], é necessário refletir sobre a adequação de uma
privacidade dinâmica frente às inovações das tecnologias
pervasivas e ao crescente vigilantismo dos Estados. De acordo com
Daniel Solove:

Como a privacidade é um conceito pluralista, seu valor


deve ser entendido pluralisticamente também. Privacidade
não tem um valor uniforme. Seu valor varia em diferentes
contextos, dependendo de qual forma de privacidade está
envolvida e que gama de atividades está em perigo por um
problema específico. […] Privacidade, em resumo, envolve
um conjunto de proteções contra um grupo de problemas
diferentes, mas relacionados. Esses problemas impedem
atividades valiosas que a sociedade quer proteger e,
portanto, a sociedade elabora formas de abordar esses
problemas. Ao criar essas proteções, a sociedade abre um
domínio particular de liberdade que chamamos de
“privacidade”[54].

Em um modelo de cidades inteligentes, no qual as tecnologias


mediam a relação das pessoas com o espaço urbano, a privacidade
e a proteção de dados pessoais devem também ser uma
preocupação constante. A tecnologia, que aparentemente
despessoaliza relações, conforma comportamentos e diminui
interações sociais, na verdade, também tem o potencial de
individualização dessas intermediações, especialmente em um
contexto de big data:
A grande quantidade de dados reunidos desta forma,
inicialmente, não é muito útil, dado o seu volume massivo.
Isso é chamado de big data. Algoritmos são necessários
para transformar dados de massa em dados inteligentes.
Algoritmos processam pilhas de dados e os convertem em
informações. Com base nos dados que são coletados
continuamente, processos passados ou presentes podem
ser representados, padrões identificados e futuros
processos previstos. Padrões fornecem dados informativos
ou dados inteligentes.[55]

No que diz respeito ao perfilamento de usuários para fins


publicitários, por exemplo, já é possível traçar representações
bastante acuradas de indivíduos a depender dos lugares que
frequentam, das páginas que acessam, das compras que realizam e
dos círculos sociais (digitais) em que se inserem. Por meio de uma
política de rastreamento geolocalizado e de coleta de cookies,
esses dados são agregados durante o tempo que passamos on-line
e embasam a escolha ideal de público-alvo para anúncios
publicitários a que estamos sujeitos, em plataformas como
Facebook, Twitter, Instagram e Google. Além disso, esses dados
geram métricas extremamente precisas quanto ao tempo de
permanência nas páginas, taxas de rejeição, fluxo de navegação e
outras informações sobre o sucesso ou fracasso de determinadas
iniciativas:

Isso resultará em uma paralelização dos mundos real e


virtual, ou em uma imagem dinâmica em tempo real do
mundo físico. Sistemas de auto-otimização e auto-
aprendizado integrarão os dados coletados e começarão a
identificar padrões com base na grande quantidade de
dados disponíveis, ou seja, eles entenderão seu significado.
Humanos, como fonte de erro (por exemplo, na entrada de
dados), e interrupções de processos analógicos serão
progressivamente eliminados. Os sistemas darão
recomendações para ações complexas baseadas em
algoritmos otimizados, uma vez desenvolvidos por
humanos. Eles processarão informações em novas formas,
a partir de novas perspectivas, e em novos contextos, o que
significa que motores de busca poderão responder
questões altamente complexas de forma autônoma, por
exemplo[56].

Por que essa mesma tecnologia não seria utilizada para publicidade
nos ambientes off-line? Na verdade, ela já é. No metrô da cidade de
São Paulo, por exemplo, houve estudos e tentativa de
implementação, nas estações Luz, Pinheiros e Paulista (Linha 4 –
Amarela), de portas interativas digitais, com reconhecimento
facial[57]. A ideia é que sensores de presença e de verificação facial
identificassem número de pessoas, contato visual com os anúncios
exibidos, gênero, tipo de reação (alegria, raiva, neutralidade etc.),
entre outros. Dessa forma, seriam adotadas as mesmas estratégias
de perfilamento publicitário anteriormente restritas às páginas das
redes sociais e às telas dos celulares, em uma verdadeira
materialização da inteligência algorítmica nas ruas (e estações de
metrô) da cidade. Em setembro de 2018, no entanto, o programa de
vigilância foi considerado ilegal, em caráter liminar, pelo Poder
Judiciário do estado de São Paulo, por meio de Ação Civil Pública
promovida pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
(IDEC)[58].
As dúvidas acerca do aproveitamento desses dados
imediatamente se apresentam. Como serão armazenados e
utilizados? Haverá compartilhamento das imagens com os órgãos
de segurança pública, por exemplo, que estão à procura de
suspeitos? No caso de tecnologias empregadas por empresas
participantes de parcerias público-privadas, será possível a
utilização dessas métricas entre empresas pertencentes ao mesmo
grupo econômico para, por exemplo, também verificar as rotas de
deslocamento de consumidores pela cidade (a fim de verificar
residência e local de trabalho e, consequentemente, traçar
predições de poder aquisitivo)? Quais as possibilidades de
integração entre a iniciativa privada e o poder público de um
sistema de perfilamento comum?
Todas essas questões, para além das inquietações referentes à
privacidade do cidadão, também revelam transformações
profundas de sua experiência no âmbito público. Se a experiência
de vivenciar a paisagem é sempre intermediada pelo ambiente à
sua volta, a natureza urbana cada vez mais modificada pelas
mediações tecnológicas impõe ao sujeito vivências estéticas e
sensoriais eminentemente direcionadas e cada vez mais
individualizadas por quem as cria (ou permite sua implementação).
A exemplo do metrô de São Paulo, caso a tecnologia de
intervenção na cidade seja delegada aos anúncios publicitários
perfilados pelos mais variados entes, a sujeição de quem vivencia a
cidade passa a ser, também, a de espectador-consumidor
individualizado. As potencialidades de conformação dessa
experiência do que é público no espaço urbano passam,
igualmente, a ser moduladas de acordo com gênero, raça, faixa
etária, poder aquisitivo etc.
Nesse sentido, precauções com parâmetros mínimos de
privacidade e proteção da individualidade servem também para a
manutenção de vivências essencialmente públicas no espaço
urbano. A individualização publicitária pretendida pelas cidades
inteligentes, cujos embriões também podem ser localizados em
outdoors e anúncios estrategicamente localizados em certos
bairros, revistas e jornais, tem a capacidade de alterar as formas de
percepção da paisagem urbana e condicionar a experiência
humana nesses lugares.
Por sua vez, esse avanço tecnológico da publicidade pode servir
não apenas para impulsionar produtos, mas também pessoas e
grupos a frequentarem ou não determinados locais. O
perfilamento pode ser, em certa medida, criador de uma
segmentação social apta a incentivar ou constranger determinados
grupos de pessoas a interagirem ou não com o ambiente que os
circunda quando estes não forem o público-alvo da publicidade.
Por essa ideia, não seria inviável pensar em regiões inteiras em que
a publicidade esteja direcionada para um grupo de pessoas de
determinada classe social e se apresente a elas de modo positivo,
enquanto expõe uma mensagem de padrão sutil (ou subliminar), a
fim de criar barreira mental a outros grupos sociais. Representa
também uma mudança nas formas de reconhecimento da pessoa
em sociedade. Dos critérios de diferenciação — que, por sua vez,
podem gerar processos de discriminação —,caminha-se para um
reconhecimento impessoal e biotécnico dos seres humanos, sendo
esvaziada a força política da existência e oposição no espaço
coletivo.[59]
Em uma perspectiva integrativa, seria fundamental criar
regulamentação pública capaz de impedir a desincompatibilização
dos espaços públicos daquela que deve ser sua principal
característica: a abertura a todos os cidadãos. No entanto, a
realidade das administrações municipais e suas legislações, as
quais visam a uma proteção da paisagem urbana, encontra-se
alicerçada, em larga escala, em limitações de uso do solo e do
espaço aéreo pela publicidade, em um modelo de regulação das
mídias publicitárias muitas vezes por interdição[60], o qual
desconsidera o conteúdo das mensagens ou o público-alvo a ser
atingido. Esses regulamentos devem estabelecer critérios de uso
do espaço público pela publicidade, os quais possam refletir não
apenas o interesse privado, mas que sejam também condizentes
com a manutenção da complexidade e da heterogeneidade do
tecido urbano.

5. MARGINALIZAÇÕES INTELIGENTES:
GENTRIFICAÇÃO E CONCENTRAÇÃO
GEOLOCALIZADA DOS BENEFÍCIOS
DIGITAIS
O que entendemos por inteligência na organização urbana também
pode significar, a depender da forma como ela é implementada e
aos interesses de quem ela serve, eficiência no desenvolvimento de
processos de gentrificação e de concentração dos benefícios que
inicialmente a justificam. Se o procedimento de “smartização” das
coisas implica o emprego de tecnologia de ponta para a prestação
de serviços no contexto urbano, também é possível que essa
aplicação de recursos, direta e indiretamente, seja enviesada,
assim como o são tantos outros atualmente[61].
Celso Furtado, em estudos sobre a formação econômica
brasileira e latino-americana, enfatiza os processos de acumulação
desigual de riquezas que ensejaram o que ele determina como
subdesenvolvimento, provendo assim explicações sobre as origens
de estruturas assimétricas que se busca eliminar por meio da
indução ao desenvolvimento. Para o autor, seria incongruente que
países e regiões subdesenvolvidas buscassem se desenvolver por
meio de técnicas produtivas inadequadas a suas realidades
culturais e geográficas. Essa importação de técnicas e métodos
produtivos, em detrimento da valorização da natureza, da
criatividade e da engenhosidade local, teria o condão de perpetuar
relações de dependência com países produtores de tecnologia,
além de aumentar o fosso de desenvolvimento entre essas
regiões[62].
O mesmo processo pode ser observado em fenômenos recentes
de assunção tecnológica por países e regiões em desenvolvimento.
Em geral, são fenômenos que envolvem a importação de
tecnologias, exigem o licenciamento de software e demandam a
capacitação técnica de pessoal especializado. Além disso, a
aplicação de novas tecnologias, ou de infraestrutura tecnológica,
seja como política pública, seja como estratégia comercial da
iniciativa privada, não é imediatamente disseminada. São
incorporações pontuais, em locais e em mercados estratégicos.
Essa seria uma reprodução das assimetrias de desenvolvimento
internacionais também no âmbito interno, entre litoral e sertão,
entre Sudeste e Nordeste, entre capital e interior, entre centro e
periferia, e assim por diante[63].
Para Furtado, seria necessária uma “criatividade cultural” para
superar a imposição social, política e econômica do capitalismo na
contemporaneidade. Esse é um dos meios de inovar, seja no
âmbito dos bens de propriedade intelectual, das estruturações
produtivas e até mesmo das atividades sociais. Sem levar em
consideração aspectos culturais e a heterogeneidade dos povos, a
sociedade conforma-se com as velhas estruturas reprodutivas de
uma “marginalidade urbana” e de um “autoritarismo econômico”,
capaz de “bloquear os processos sociais em que se alimenta essa
criatividade, frustrando o verdadeiro desenvolvimento”[64]. Nesse
contexto impositivo, as relações de poder entre os agentes são
assimétricas, a competição não é perfeita e as teorias econômicas
clássicas seriam insuficientes para explicar os contratempos ao
desenvolvimento de regiões não industrializadas ou que
apresentam baixos índices de industrialização. Tendo em vista que
o progresso econômico e a integração comercial dos povos não
são homogêneos, o desenvolvimento regional requer diferentes
estratégias de implementação, a depender dessas características
locais.
Assim como a disseminação econômica e tecnológica não ocorre
de forma homogênea pela sociedade (internacional ou nacional), as
cidades inteligentes também têm o potencial de agravar
marginalizações e concentrar alguns dos benefícios dessa
digitalização do espaço off-line. A própria China experimenta esse
paralelo atualmente: ela apresenta um dos maiores níveis de
desigualdade de renda no mundo[65] e, no entanto, fácil acesso a
tecnologias de ponta, como um dos principais exportadores (e
criadores) do setor[66]. Enquanto metade do país ainda é rural,
pobre e desconectada das redes, a outra metade concentra
investimentos nacionais e estrangeiros, produz inovação
tecnológica nos mais variados setores[67], é hiperconectada[68] e
estabelece algumas das principais tendências internacionais do
mercado tech. Segundo relatório da Thomson Reuters[69], a China
tornou-se, em 2011, o país que mais depositou pedidos de patente
no mundo, superando assim os tradicionais mercados norte-
americano e japonês[70].
Essa distribuição desigual do capital informacional,
especialmente por meio da disseminação tecnológica heterogênea,
também tem seus reflexos no contexto digital, ou on-line.
Denominada divisão digital, essa consequente heterogeneidade
decorre de duplo princípio de fomento: a falta de capital produtivo
e tecnológico, por si só, demanda menos capacitação e emprego
de inteligência informacional em seu cotidiano; além disso, a
desconexão hodierna provoca também preterimento nas escolhas
mercadológicas de quem busca investir (de acordo com critérios
relacionados à renda, grau educacional, raça, gênero, entre outros)
.
[71]

Nesses contextos de desconexão, na ausência de políticas de


desenvolvimento tecnológico estrategicamente direcionadas,
reproduzem-se e aprofundam-se as razões pelas quais a própria
desconexão existe, corroborando assim a conformação de novos
bolsões de marginalização:

O conceito de divisão digital ajudou a enfocar a atenção


pública em uma questão social crítica: até que ponto a
difusão das TIC [tecnologias de informação e comunicação]
promove a estratificação e a marginalização ou o
desenvolvimento e a igualdade? Com a atenção do mundo
voltada para esse problema, agora é a hora de apresentar
uma estrutura conceitual mais refinada para o problema e
uma agenda mais informada de políticas e pesquisas.[72]

Conforme descrito no item anterior, são diversos os benefícios de


acessibilidade, por exemplo, decorrentes do emprego de
tecnologias na paisagem das cidades. No entanto, uma aplicação
igualmente desigual dessas tecnologias tem o potencial de manter
ou aprofundar as desigualdades notórias que enfrentamos no
planejamento urbano. Enquanto a intencionalidade na produção
dos lugares pode lhes atribuir valores de inclusão, inovação,
sustentabilidade e progresso, também é possível que escassez,
segregação e marginalização sejam a tônica da “smartização” das
cidades do século XXI[73].
O endurecimento da cidade é paralelo à ampliação da
intencionalidade na produção dos lugares, atribuindo-lhes
valores específicos e mais precisos, diante dos usos
preestabelecidos. Esses lugares, que transmitem valor às
atividades que aí se localizam, dão margem a uma nova
modalidade de criação de escassez, e a uma nova
segregação. Esse é o resultado final do exercício
combinado da ciência e da técnica e do capital e do poder,
na reprodução da cidade.[74]

Cidades inteligentes exigem tecnologias capacitadoras ou


transformadoras para sua institucionalização. No entanto, essa
dimensão deve ser subsequente a planos estratégicos e
democráticos, no que diz respeito às escolhas de transformação da
cidade. A tecnologia melhora a qualidade de vida, mas a tecnologia
não deve ser um objetivo por si só. Ao contrário, seu
aproveitamento como ferramenta de progresso e evolução dos
conceitos de cidade necessita ser sopesado mediante fatores
também sociais, econômico-desenvolvimentistas e de ampliação
da acessibilidade.

CONCLUSÃO

Em uma das mais belas cenas de Blade Runner 2049, talvez em um


exercício de futurologia ainda maior em relação ao primeiro filme,
o diretor Denis Villeneuve escolhe retratar K, o androide
interpretado por Ryan Gosling, em um momento de reflexão.
Sozinho, K caminha sobre uma cobertura em frente a um outdoor
de neon na chuvosa Los Angeles quando, após direcionar seu olhar
para um outdoor, a personagem retratada no anúncio se aproxima
e afirma: “você parece solitário”. Ao fundo, surge um letreiro que
pisca os dizeres: “Tudo o que você quer ouvir; tudo o que você
quer ver”.
Na paisagem distópica, o diálogo entre máquinas revela-se
sintomático e um subterfúgio do roteiro centro-tecnológico para
refletir o sentimento do protagonista. É o auge da individualização
subjetiva na qual o androide, tendo sempre vivido na certeza de
sua condição, passa a questionar sua própria existência, na
esperança de ser também humano. Sua única possibilidade de
redenção é a alteridade.
Este também deve ser o objetivo central de qualquer sistema
tecnológico e informacional a ser implementado nas cidades
inteligentes. Para que o espaço produzido na urbe continue
convergindo as percepções e expectativas individuais, é necessário
calcar o modelo de inovações na busca da alta eficiência no uso de
recursos e na redução dos custos de forma combinada com as
máximas inteligência, confiabilidade e integrabilidade dos
programas a serem implementados.
Uma cidade que pretenda superar as adversidades da
urbanização de modo inteligente deve não apenas zelar pela
qualidade ambiental com o uso racional dos recursos naturais. É
necessário estabelecer modelos de otimização dos serviços
públicos, mas também um sistema de educação para a tecnologia
que apresente inspiração digital e emancipatória. Desse modo, as
plataformas poderão se combinar em instrumentos de inclusão e
de acessibilidade, assim como de proteção de grupos minoritários
e vulneráveis.
O modelo também precisa ser confiável, prezando pela criação
de programas de governabilidade que permitam accountability e
transparência, bem como convoquem a população para a discussão
acerca do uso e aproveitamento dos dados coletados a fim de
assegurar o uso plural do sistema adotado e dos serviços e espaços
produzidos. A democratização do uso apresenta-se como caminho
para superar a descrença no potencial transformador desses
programas, permitindo inclusive a superação de algumas
disparidades territoriais. A confiabilidade é imprescindível para
transpor as dificuldades e desafios do subdesenvolvimento.
A integração das referências culturais e identitárias na paisagem
urbana visa a superar qualquer fragmentariedade reminiscente dos
modelos desenvolvidos anteriormente ao permitir uma
compreensão holística da composição física e social da urbe.
Embora possibilite a individualização das intermediações
tecnológicas, o paradigma da paisagem combate os processos de
marginalização espacial ao promover a incorporação de elementos
múltiplos em um todo heterogêneo, valorizando, assim, a
pluralidade.
O avanço da tecnologia por meio de um plano de
desenvolvimento que não esteja propositadamente modelado para
incentivar as capacidades culturais, ambientais e sociais levará as
cidades, também elas, a precisarem questionar sua própria
existência. Afinal, o atendimento aos requisitos mais notórios de
formação de uma cidade inteligente — como o desenvolvimento de
uma rede de banda larga que viabilize aplicações digitais e também
o enriquecimento do espaço físico e do mobiliário urbano com
sistemas digitais — não será efetivo para a reprodução da vida
urbana se não estiver voltado à construção de uma estratégia que
englobe a realização de todos os indivíduos.
É nesse sentido que o olhar integrativo da paisagem urbana pode
fornecer subsídios para a constituição de um sistema urbano de
valores, servindo de arcabouço paradigmático para os dados a
serem assimilados na produção e na reprodução dos modelos de
desenvolvimento adotados. Esse caráter integrativo possibilita a
combinação de elementos vários em um movimento polissêmico
capaz de fortalecer a inovação em práticas territoriais e regionais.
Cabe às cidades inteligentes do futuro responderem se também
terão a capacidade de ser tudo o que queremos ouvir e ver. Terão
os indivíduos as mesmas oportunidades de ocupar e experimentar
o espaço, sem que lhes falte um sentimento de humanidade a
alicerçar a própria existência?

1. Membro do Conselho Científico e fundador do


IRIS (Instituto de Referência em Internet e
Sociedade), é doutorando, Mestre e Bacharel
em Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais, com supervisão em cotutela na
Universidade Livre de Bruxelas e apoio da
Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior). É professor do
Departamento de Direito da Universidade
Federal de Juiz de Fora - Campus Governador
Valadares e professor nos cursos de
Especialização em Direito Internacional e
Propriedade Intelectual do Cedin (Centro de
Estudos em Direito e Negócios). Advogado, é
também membro da Associação Brasileira de
Relações Internacionais (ABRI) e coordenador
do Grupo de Estudos em Tecnologia e
Sociedade (GETS). ↵
2. Professora do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de São João
del-Rei, é doutoranda e mestre em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais, com
estágio doutoral no Centro de Direitos
Humanos da Università degli Studi di Padova e
pesquisadora visitante da Georgetown Law
(2018). ↵
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nessuno, centomila. In: DE LUCIA, S. et al.
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metodologie di ricerca, percorsi geocentrati e
poetiche dello spazio in una prospettiva
comparata. Napoli: Marchese, 2014. p. 20. ↵
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battaglia per l’ambiente contro il degrado
civile. Torino: Einaudi, 2012. p. 51-52. ↵
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tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p.
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13. Apesar das indústrias criativas que localizam-
se na cidade, bem como sua grande capacidade
de produção de ativos de propriedade
intelectual (patentes, programas de
computador, direitos autorais das atividades
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Londres ainda é considerada um local de fortes
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Disponível em: https://bit.ly/2v2iiam. Acesso
em: 30 jul. 2018. ↵
25. “O que chamamos de cidade Atópica (Leite,
2016) é justamente a cidade que é a
manifestação mais incisiva, violenta e excessiva
da sociedade de consumo. Atópica é, assim,
uma situação de cidade; cidade que é obscena
pelo fluxo positivo do capital e da excessiva
visibilidade que expõe tudo como valor, e que
subsume as tensões negativas da vida
cotidiana.” (LEITE, R. P. O futuro incerto das
cidades: Uma reflexão niilista sobre as Atopias
urbanas. Tempo Social, revista de sociologia da
USP, v. 30, n. 2, p. 262, 2018.) ↵
26. REIS, A. C. F. Cidades criativas: da teoria à
prática. São Paulo: SESI-SP Editora, 2012. p. 77.

27. BRESCIANI, M. S. A cidade: objeto de estudo e
experiência vivenciada. Revista Brasileira de
Estudos Urbanos e Regionais, [S.l.], v. 6, n. 2, p.
9-26, 2004. p. 15. ↵
28. A crítica de Alain Roger a esse tipo de visão
questiona o porquê da obsessão com o meio
ambiente, com a redução do território e do
espaço a um valor puramente biológico,
excluindo-lhe qualquer caráter cultural. A essa
visão de mundo, confere o título de verdolatria.
ROGER, A. Breve tratado del paisaje. trad. Maysi
Veuthey. Madrid: Biblioteca Nueva, 2013. p.
143-145. ↵
29. MORA, L.; DEAKIN, M.; REID, A. Technological
Forecasting & Social Change, 2018 [Article in
press]. Disponível em:
https://bit.ly/2O4aqw4. Acesso em: 1 ago.
2018. ↵
30. AHVENNIEMI, H. et. al. What are the
differences between sustainable and smart
cities? Cities, [s.l.], n. 60, p. 234,2017. ↵
31. Idem. ↵
32. COLDING, J.; BARTHEL, S. An urban ecology
critique on the “Smart City” model [Letter to
the editor]. Journal of Cleaner Production, n.
164, p. 96, 2017. ↵
33. CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 436. Explicam-nos
também Matos e Braga (2005) que a primeira
dessas camadas seria um circuito de impulsos
eletrônicos; a segunda delas, os nós, ou os
centros de função estratégica e de
comunicação; e a terceira vincula-se à
espacialidade das elites gerenciais dominantes,
porque a organização do espaço de fluxos é
também assimétrica em torno dos interesses
hegemônicos. MATOS, R.; BRAGA, F. Redes
geográficas, redes sociais e movimentos da
população no espaço. In: MATOS, R. (org.).
Espacialidades em rede: população,
urbanização e migração no Brasil
contemporâneo. Belo Horizonte: C/Arte, 2005.
p. 116. ↵
34. SAUER, C. O. The Morphology of Landscape. In:
LEIGHLY, J. (ed.). Land and Life: A Selection
from the writings of Carl Ortwin Sauer.
Berkeley: University of California Press, 1963. p.
315-350. ↵
35. COSGROVE, D. Modernity, community and the
landscape idea. Journal of Material Culture,
London: SAGE Publications, v. 11, n. 1/2, p. 49-
66, 2006. p. 52. ↵
36. DALMAGIONI, A. La construction du paysage:
comprendre, représenter, transformer. In:
MARCEL, O. (dir.). Paysage visible, paysage
invisible: la construction poétique du lieu.
Seyseel: Editions Champ Vallon, 2008. [col. Les
Cahiers de la Compagnie du Paysage, n.1]. p.
26. ↵
37. COSGROVE, D., op. cit., p. 51. ↵
38. DI FELICE, M. Paisagens pós-urbanas: o fim da
experiência urbana e as formas comunicativas
do habitar. São Paulo: Annablume, 2009. p. 227.

39. VAN DEN BRANDE, L. Intercultural Dialogue in
Territorial Cooperation: an Education
Perspective. In: BEKEMANS, Léonce (ed.).
Intercultural dialogue and multi-level
governance in Europe: a human rights based
approach. Bruxelas: P.I.E. Peter Lang, 2012. p.
355-356. ↵
40. GIFFINGER, R.; LÜ, H. The Smart City
perspective: a necessary change from technical
to urban innovation. Milão: Fundação
Gianfranco Feltrinelli, 2015. p. 21. ↵
41. Como exemplo de espaços privados que
interferem no equilíbrio das áreas públicas,
podemos citar as vitrines internas de
empreendimentos que, em muitos casos, não
estão regulamentadas pelo poder público. É
recorrente encontrar luminosos, letreiros e
painéis eletrônicos posicionados no interior de
estabelecimentos comerciais com mensagens
voltadas para o passeio público. Como não
integram a fachada do edifício, encontram-se,
na maioria das cidades brasileiras, à margem
da regulação que os municípios realizam sobre
o formato e o tamanho das mídias publicitárias.
Não deixam de interferir na ambiência dos
lugares em que estão posicionados e em
algumas cidades chegam a ser violações da
legislação. ALFAYA, I. Poluição visual: lojas
usam brecha para driblar a lei Cidade Limpa.
R7. 12 mar. 2018. Disponível em:
https://bit.ly/2M61Egu. Acesso em: 31 jul.
2018. ↵
42. LÉVY, P. Cibercultura. trad. Carlos Irineu da
Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 129. ↵
43. DI FELICE, M. Paisagens pós-urbanas: o fim da
experiência urbana e as formas comunicativas
do habitar. São Paulo: Annablume, 2009. p. 224.

44. LÉVY, P. Cibercultura. trad. Carlos Irineu da
Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 129. ↵
45. “Existem fortes divergências em relação ao
conceito de IoT, não havendo, portanto, um
conceito único que possa ser considerado
pacífico ou unânime. De maneira geral, pode
ser entendido como um ambiente de objetos
físicos interconectados com a internet por
meio de sensores pequenos e embutidos,
criando um ecossistema de computação
onipresente (ubíqua), voltado para a facilitação
do cotidiano das pessoas, introduzindo
soluções funcionais nos processos do dia a dia.
O que todas as definições de IoT têm em
comum é que elas se concentram em como
computadores, sensores e objetos interagem
uns com os outros e processam
informações/dados em um contexto de
hiperconectividade” (MAGRANI, E. A internet
das coisas.Rio de Janeiro: FGV, 2018. p. 20; 84).

46. MIT Technology Review Insights. Smart City
Living Transforms the Urban Landscape.
Disponível em: https://bit.ly/29KObbd.
Acesso em: 29 jul. 2018. ↵
47. CHAVES, A. Violência infantil: só as crianças
conseguem ver esta campanha. P3. 10 abr.
2018. Disponível em: http://bit.ly/2v84T0e.
Acesso em: 31 jul. 2018. ↵
48. Seria a normatização prévia dos parâmetros
mínimos de proteção na coleta, processamento
e descarte de dados pessoais, tanto pelo setor
público quanto pelo setor privado. Ela orienta
empresas e governos quanto aos limites do
tratamento de dados de usuários dos mais
diversos serviços digitais. ↵
49. Contar com profissionais especialmente
designados para observar aspectos
relacionados à privacidade de usuários desde a
concepção de projetos tecnológicos
embrionários pode evitar subsequentes falhas
operacionais com violações a esse direito
fundamental devido a conformações
estruturais dos produtos finais. MAHER, H.
Privacy by design is important for every area of
business. Forbes Technology Council. 10 abr.
2018. Disponível em: http://bit.ly/2uZVKXy.
Acesso em: 28 jul. 2018. ↵
50. Várias iniciativas recentes podem ser citadas
no Brasil e na América Latina: Chupadados;
Lavits; Coalizão Direitos na Rede etc. ↵
51. A GDPR estabelece normas quanto ao
tratamento de dados pessoais por provedores
de aplicação de internet, positiva direitos dos
usuários com relação aos seus dados, incluindo
a necessidade de consentimento prévio
expresso para que os mesmos possam ser
submetidos a tratamento por terceiros, bem
como o direito à desindexação imediata assim
que requisitado pelo indivíduo, bem como
determina multas para seu descumprimento. ↵
52. BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018.
Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e
altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014
(Marco Civil da Internet). Disponível em:
https://bit.ly/2Dxe2Ev. Acesso em: 25 jan.
2019. ↵
53. WARREN, S. D.; BRANDEIS, L. D. The Right to
Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-
220. Disponível em: http://bit.ly/2OqC5s7.
Acesso em: 28 jul. 2018. ↵
54. SOLOVE, D. J. Understanding privacy.
Cambridge: Harvard University Press, 2008. p.
173-174. ↵
55. Tradução livre. ETEZADZADEH, C. Smart city -
future city?: smart city 2.0 as a livable city and
future market. Springer Vieweg, 2016. p. 44. ↵
56. Tradução livre. ETEZADZADEH, C. Smart city -
future city?: smart city 2.0 as a livable city and
future market. Springer Vieweg, 2016. p. 41. ↵
57. YUGE, C. Metrô de São Paulo terá portas
interativas com reconhecimento facial.
Tecmundo, 13 abr. 2018. Disponível em:
http://bit.ly/2NUPPdF. Acesso em: 28 jul.
2018. ↵
58. INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR. Justiça impede o uso de câmera
que coleta dados faciais em metrô em SP, 18 set.
2018. Disponível em https://bit.ly/2G0X16X.
Acesso em: 25 jan. 2019. ↵
59. LEITE, R. P. O futuro incerto das cidades: Uma
reflexão niilista sobre as Atopias urbanas.
Tempo Social, revista de sociologia da USP, v.
30, n. 2, p. 266, 2018. ↵
60. Muito provavelmente a Lei Cidade Limpa, nº
14.223/2006, do município de SP, é a legislação
municipal mais conhecida em termos de
alcance e limitação de uso dos espaços
públicos por mídias de publicidade e
propaganda no Brasil. Ela proíbe a propaganda
em outdoors e regula o tamanho de letreiros e
placas de estabelecimentos comerciais.
Propõe-se a ordenar a paisagem paulistana,
mas é bem limitada em seu alcance. A atual
gestão da prefeitura de São Paulo convidou a
autora da lei para a elaboração do que pode vir
a ser o Plano Diretor de Paisagem, e que, ao
que parece, também terá foco nas
contrapartidas econômicas de uso do espaço
pela publicidade. FERRAZ, A. “'Mãe' do Cidade
Limpa fará plano de paisagem”. O Estado de São
Paulo, 27 jun. 2017. Disponível em:
https://goo.gl/i715aD. Acesso em: 29 jul. 2018.

61. Por essas e outras razões, alguns teóricos
sobre o tema afirmam que: “As principais
questões que impedem essa transformação são
o foco na tecnologia, em vez da prestação de
serviços, uma visão de futuro curta e pouco
clara, falta de liderança política e coordenação,
ausência de diversidade social e econômica
entre as partes envolvidas na criação da
mudança social urbana. e a falta de um plano
claro” (LETAIFA, B. S. How to strategize smart
cities: revealing the SMART model. Journal of
Business Research [on line], 2015, p. 4.
Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1016/j.jbusres.2015.01.024
. Acesso em: 31 jul. 2018). ↵
62. CUNHA, A. M; BRITTO, G. Domination and
Collective Creation or Creativity and
Dependence: parallels between the thought of
François Perroux and Celso Furtado, p. 11.
Disponível em: http://bit.ly/2NGtYq3. Acesso
em: 29 jul. 2018. ↵
63. FURTADO, C. Criatividade e dependência na
civilização industrial. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008. p. 109-110. ↵
64. FURTADO, C. Criatividade e dependência na
civilização industrial. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008. p. 109-110. ↵
65. Apesar de ter mais de 730 milhões de
habitantes conectados, praticamente metade
do país (53%) ainda vive em uma “sombra
digital”. Além disso, o índice Gini, que mede os
níveis de desigualdade, é de 0,46. MILLWARD,
S. China now has 731 million internet users,
95% access from their phones. Tech in Asia [on
line], 23 jan. 2017. Disponível em:
http://bit.ly/2OtKGdk. Acesso em: 31 jul. 2018.

66. BLOOMBERG. China’s Technology Sector
Takes On Silicon Valley. Bloomberg
Businessweek, 10 jul. 2018. Disponível em:
https://bloom.bg/2LM83R5. Acesso em: 31 jul.
2018. ↵
67. “Da criatividade à inovação é preciso galgar
vários degraus, alguns dos quais se mostram
demasiado elevados para muitos países. Falta
de acesso às novas tecnologias, analfabetismo
tecnológico e analfabetismo tout court,
desrespeito a contratos, ausência de uma
governança concertada entre público, privado
e sociedade civil, carência de um sistema de
proteção aos direitos de propriedade
intelectual em moldes revistos,
impermeabilidade de uma política às outras e,
claramente, restrições à livre circulação de
informações, ideias e expressões são alguns
dos entraves à plena concretização da
economia criativa” (REIS, A. C. F. Cidades
criativas: da teoria à prática. São Paulo: SESI-
SP Editora, 2012. p. 219). ↵
68. “O termo hiperconectividade foi cunhado
inicialmente para descrever o estado de
disponibilidade dos indivíduos para se
comunicar a qualquer momento e tem
desdobramentos importantes. Podemos citar
alguns: o estado em que as pessoas estão
conectadas a todo momento (always-on); a
possibilidade de estar prontamente acessível
(readily accessible); a riqueza de informações; a
interatividade; o armazenamento ininterrupto
de dados (always recording). O termo
hiperconectividade está hoje atrelado às
comunicações entre indivíduos (person-to-
person, P2P), indivíduos e máquina (human-to-
machine, H2M) e entre máquinas (machine-to-
machine, M2M) valendo-se, para tanto, de
diferentes meios de comunicação. Há, nesse
contexto, um fluxo contínuo de informações e
massiva produção de dados” (MAGRANI, E. A
internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora,
2018. p. 21). ↵
69. YEE, L. C. China tops U.S, Japan to become top
patent filer. Reuters [on line]. 21 dez. 2011.
Disponível em: https://reut.rs/2LIjtpw.
Acesso em: 31 jul. 2018. ↵
70. Segundo esse mesmo relatório, foram 314 mil
pedidos de patente protocolados em 2010.
Ainda assim, é importante notar que o número
de patentes concedidas a requerentes chineses
ainda é menor que os números do Japão e dos
Estados Unidos. Além disso, a maioria dos
pedidos diz respeito a patentes de modelos de
utilidade, o que denota, de forma geral, menor
grau inovador das patentes chinesas (YEE, L. C.
China tops U.S, Japan to become top patent
filer. Reuters [on line], 21 dez. 2011. Disponível
em: https://reut.rs/2LIjtpw. Acesso em: 31 jul.
2018). ↵
71. A divisão digital é, atualmente, principalmente
de renda e educação, e não de raça ou gênero.
Isso se encaixa na noção de que a internet se
tornou uma extensão da vida cotidiana e é útil
de acordo com os interesses e a localização
social da pessoa. O fato de haver uma brecha
digital baseada em renda e não em raça não
significa que o problema não tenha um
componente racial. É claro que existem
grandes desigualdades de renda entre as
diferenças raciais. Aspectos das culturas de
baixa renda podem dissuadir as pessoas de
adotarem a tecnologia (KATZ, J. E.; RICE, R. E.
Social consequences of internet use: access,
involvement and interaction. Cambridge: The
MIT Press, 2002. p. 323). ↵
72. WARSCHAUER, M. Technology and social
inclusion: rethinking the digital divide.
Cambridge: The MIT Press, 2003. p. 210. ↵
73. Sobre esta questão: HARVEY, D. Cidades
Rebeldes: do direito à cidade à revolução urban.
trad. Jefferson Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 2014. p. 67-74; ARANTES, O. Urbanismo
em fim de linha. In: ARANTES, O. Urbanismo
em fim de linha e outros estudos sobre o colapso
da modernização arquitetônica. 2. ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2014. p. 120-132; MILES, M. Uma cidade
pós‑criativa?. Revista Crítica de Ciências
Sociais, n. 99, p. 09-30, 2012. Disponível em:
http://rccs.revues.org/5091. Acesso em: 31 jul.
2018. ↵
74. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e
tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2014. p.
251. ↵
Smart cities: uma breve investigação crítica
sobre os limites de uma narrativa
contemporânea sobre cidades e tecnologia

Clarice Nassar Tambelli[1]

INTRODUÇÃO

A maior tempestade em 44 anos atingiu o Rio de Janeiro em abril


de 2010[2], causando graves deslizamentos de terra nas áreas da
cidade consideradas de risco e registrando um alto número de
vítimas. O prefeito na ocasião, Eduardo Paes, convencido de que
seria necessário melhorar a capacidade do governo de articular
respostas para esses tipos de situação de emergência e para alguns
outros problemas da cidade — especialmente devido à proximidade
de megaeventos, como a Copa do Mundo FIFA, em 2014, e os Jogos
Olímpicos de Verão, em 2016 —, em parceria com a IBM,
desenvolveu o Centro de Operações do Rio de Janeiro (COR)[3].
Inaugurado em 2010, com custo de quase R$ 70 milhões para o
estado do Rio de Janeiro, o COR integrou cerca de 30 órgãos
municipais e concessionárias com o objetivo de monitorar e
otimizar o funcionamento da cidade.[4] Por meio de alta tecnologia,
a equipe de 500 funcionários gerencia informações advindas dos
diversos tipos de sensores instalados na cidade, das 1200 câmeras
e das agências integradas ao centro.[5]
O COR do Rio de Janeiro é um dos exemplos mais citados na
imprensa e nas discussões acadêmicas sobre a relação entre
desenvolvimento urbano e o uso das tecnologias. A criação e o
funcionamento do COR, portanto, fazem parte de um fenômeno
que não se restringe à cidade do Rio de Janeiro, mas que hoje é
pilar de políticas públicas urbanas em grandes centros ao redor do
mundo, preocupadas com o crescimento da população urbana[6] e
com a incapacidade da infraestrutura e dos recursos atuais em
atender às demandas crescentes. Ao mesmo tempo, o COR
expressa a visão de que o emprego de tecnologias em cidades é
capaz de solucionar, ou ao menos aliviar, problemas urbanos não
só relativos a deslizamentos e enchentes, mas também à
mobilidade, à poluição, ao uso de energia, à violência, entre muitos
outros, otimizando o uso de recursos e da infraestrutura da cidade.
Esse cenário é um conveniente ponto de partida para o
entendimento da eclosão do conceito de smart cities (SC), ou
cidades inteligentes, como discurso dominante na agenda pública,
empresarial e acadêmica atual. À medida que o termo penetra as
agendas, prefeituras, tomadores de decisão e empresas
recorrentemente recheiam seus discursos com referências à
tecnologia inteligente e à melhora da qualidade de vida e eficiência
nas cidades. Estima-se um potencial de mercado combinado de
US$ 1,5 trilhão[7] globalmente para cidades inteligentes, em
segmentos de energia, transporte, saúde, construção,
infraestrutura e governança.
Tendo isso em vista, e na medida que tais projetos avançam no
Brasil, o objetivo deste artigo é chamar atenção para elementos da
narrativa conceitual dominante em torno das smart cities,
contribuindo para um melhor entendimento de alguns argumentos
do discurso e identificando pontos de atenção que não devem ser
assumidos ou reproduzidos de maneira acrítica. A preocupação
subjacente é a de que, ao se tornar um regime discursivo
dominante[8], o discurso sobre smart cities seja capaz de
transformar a realidade, isto é, seja capaz de construir decisões
concretas no espaço urbano com consequências diretas sobre as
concepções contemporâneas da cidade e as políticas urbanas e
cidadãs[9]. Após comentar a escolha bibliográfica utilizada no artigo
e apresentar uma tabela elaborada a partir dela, contendo
definições do termo smart cities, serão explorados alguns limites
dessa narrativa. Ao mesmo tempo em que se admite a importância
da presença de recursos tecnológicos nas cidades, este texto
identifica pontos de atenção no discurso sobre cidades
inteligentes, quais sejam: a fragilidade do termo, a narrativa de
eficiência e sustentabilidade; e a universalidade do discurso.

1. ESCOLHA BIBLIOGRÁFICA

Este artigo se baseia na exploração de pesquisa bibliográfica,


propondo outros ângulos de análise sobre o tema e investigando
problemas que poderão ser utilizados em estudos mais precisos no
futuro. Houve uma tentativa de concentração nos aspectos de
análise discursiva sobre cidades inteligentes, que, como já
mencionado, têm guiado diversas decisões práticas e transformado
a realidade.
Poucos foram os conceitos relacionados à agenda urbana
capazes de atrair tanta atenção em um espaço de tempo tão
reduzido e gerar uma concepção conceitual que despertou
simultaneamente críticos, céticos e entusiastas. A partir da criação
e do consenso de utilização do termo, SC tornou-se conceito
recorrente nos debates atuais: “O imaginário das SC se alimenta e
integra diferentes discursos tecnoculturais recentes, desde a
robotização até o big data, passando pela internet das coisas ou a
antecipação em tempo real, em uma vocação de servir de teoria
totalizante de dinâmicas sociais e técnicas muito diversas”. [10][11]
Diferentes iniciativas de financiamento e investimentos em
projetos de implementação e pesquisa, estratégias nacionais de
urbanização e, até mesmo, projetos de novas cidades, idealizados
por instituições (como o Banco Mundial) ou países (como Portugal,
Coreia do Sul e Índia, entre outros), situam o eixo cidade-
tecnologia na agenda urbana por intermédio do conceito de SC. A
implementação e a reprodução desse conceito alimentou um
circuito muito significativo de eventos, revistas especializadas,
espaços jornalísticos, atividades de relações públicas de empresas
interessadas, infográficos, rankings, vídeos promocionais e outros.
[12]

As literaturas acadêmica, empresarial e governamental


encontram-se, porém, amplamente divididas em relação ao exato
entendimento de uma cidade inteligente, sua retórica ideológica e
sua orientação teórica. Pensando nisso, houve uma preocupação
neste artigo em reunir: publicações recentes sobre cidades
inteligentes de diferentes autores; publicações de empresas que
vendem produtos ou serviços para as iniciativas de cidades
inteligentes; e, publicações de governos que aplicam na prática
essas iniciativas, buscando identificar e examinar, em um primeiro
momento, quais são as definições de smart cities oferecidas por
tais agendas bibliográficas.
Embora a discussão sobre tecnologia e o pensamento sobre as
cidades já ocorra há anos no nível acadêmico[13], foi na segunda
metade da década de 2000 que o conceito de smart cities emergiu
como novo paradigma de gestão urbana. As inúmeras
discrepâncias nos relatos de qual teria sido a primeira vez em que
ocorreu a associação dos termos “cidade” e “inteligente”,
encontrou um consenso básico na bibliografia de que isso teria
acontecido como resultado de uma ação decidida e consciente de
um grupo reduzido de empresas globais. Para muitos dos
estudiosos do tema, a criação do termo foi resultado de um
esforço direto das empresas de tecnologia IBM e Cisco[14][15][16][17][18].
Dessa maneira, para a escolha bibliográfica do setor empresarial,
foi dada preferência às empresas que são consideradas as
responsáveis pela elaboração mais atual do discurso sobre o tema
(IBM)[19].
Como resultado dessa leitura bibliográfica inicial, foi
desenvolvida uma tabela com as definições encontradas. Na
sequência, outra revisão bibliográfica foi realizada, mas, dessa vez,
buscando autores e artigos com viés crítico sobre o tema. Segundo
esse conjunto de autores, as SC são planejadas como a solução
para diversos problemas urbanos, simbolizando um novo tipo de
utopia urbana liderada pela tecnologia[20][21][22][23], e essa nova utopia
urbana visa ao remodelamento da estrutura física, das relações
pessoais, das instituições e dos mecanismos de tomada de decisão,
modificando nossas opções de escolha na cidade.
Da leitura bibliográfica crítica e da tabela elaborada foram
identificados alguns pontos que merecem atenção nos discursos
sobre smart cities. Alguns dos tópicos mapeados e analisados
foram: (1) a fragilidade do termo, (2) a busca por eficiência, (3) o
argumento de sustentabilidade nas iniciativas de smart cities e (4) a
tentativa de universalidade do discurso.

2. DISCUSSÃO

Para Harrison et al.[24], uma SC significa uma cidade instrumentada,


interconectada e inteligente. A instrumentação se refere à captura
de dados em tempo real, por meio de sensores, medidores,
smartphones, dispositivos pessoais, câmeras, dispositivos médicos
implantados, redes sociais, eletrodomésticos e outros sistemas de
obtenção de dados. A interconexão significa a integração entre
esses dados em uma plataforma e a utilização deles em diversos
serviços da cidade. Por fim, a inteligência se refere à incorporação
de análises complexas e à otimização nos processos operacionais
para melhores tomadas de decisão. Em contraste, Bakici et al.
[25] definem a cidade mais inteligente como aquela com a melhor
qualidade de vida, mais verde e mais sustentável. Para Barrionuevo
et al.[26], ser uma SC significa usar toda a tecnologia e recursos
disponíveis de forma coordenada para desenvolver centros
urbanos integrados, habitáveis e sustentáveis. Podemos perceber
que as disputas sobre o tema existem, portanto, no nível
conceitual.
Pensando nisso, a tabela a seguir foi desenvolvida agrupando
definições de smart cities dadas por diversos setores: entidades
governamentais, empresas e acadêmicos, ilustrando as diferentes
abordagens sobre o mesmo conceito.

As cidades também estão sendo habilitadas


tecnologicamente, pois os principais sistemas em que se
baseiam tornaram-se instrumentados e interligados,
permitindo novos níveis de inteligência. Paralelamente, as
cidades enfrentam uma série de desafios e ameaças à sua
sustentabilidade – em todos os seus sistemas empresariais e
de pessoas e infraestruturas essenciais, tais como
transportes, água, energia e comunicação – que precisam
ser abordados de forma holística. Para aproveitar
oportunidades e construir prosperidade sustentável, as IBM (2009[27] e
cidades precisam se tornar “mais inteligentes”. Esta 2011 [28])
instrumentação cria novos pontos de dados sobre, por
exemplo, a eficiência dos sistemas de água ou transporte de
uma cidade. Além de serem instrumentados, diferentes
partes dos sistemas de uma cidade podem ser interligadas,
de modo que a informação flua entre eles. Com a maior
digitalização e interconexão dos sistemas principais de
uma cidade, a informação recém-adquirida pode ser usada
para a tomada de decisões inteligentes e informadas.

Construir um planeta mais inteligente é realista CEO da IBM,


precisamente porque é tão agradavelmente não ideológico. Palmisano (2010)
[29] [30]

A cidade inteligente trabalha para aumentar a eficiência e


a eficácia de seus serviços e atividades. Os recursos que
Brussels Smart
aproveitam para conseguir isso podem ser altamente
City (2017)[31]
variados, mas muitas vezes são tecnologias digitais
(tecnologias de informação e comunicação ou TIC).

Uma cidade inteligente é aquela que coloca as pessoas no


centro do desenvolvimento, incorpora tecnologias da
informação e comunicação na gestão urbana e utiliza esses Banco
elementos como ferramentas que estimulam a formação de Interamericano
um governo que engloba o planejamento colaborativo e a de
participação cidadã. Smart Cities favorecem o Desenvolvimento
desenvolvimento integrado e sustentável tornando-se mais (2017)[32]
inovadoras, competitivas, atrativas e resilientes,
melhorando vidas.

As cidades inteligentes são definidas como locais onde a


tecnologia da informação é combinada com infraestrutura, Townsend (2013)
arquitetura, objetos cotidianos e, até com nossos corpos, [33]

para resolver problemas sociais, econômicos e ambientais.


Na abordagem da missão das cidades inteligentes, o
objetivo é promover cidades que fornecem infraestrutura
Governo da
básica e qualidade de vida decente aos seus cidadãos, em
Índia[34]
um ambiente limpo e sustentável, através de aplicação de
soluções “inteligentes”. O foco é no desenvolvimento
sustentável e inclusivo.

Uma cidade é inteligente quando os investimentos em


capital humano e social e infraestrutura de comunicação
tradicional (transporte) e moderna (TIC) alimentam o Andrea Caragliu
crescimento econômico sustentável e uma alta qualidade de et al.[35]
vida, com uma gestão sábia dos recursos naturais, através
da governança participativa.

Uma cidade inteligente é baseada em trocas inteligentes de


informações que fluem entre seus subsistemas diferentes.
Este fluxo de informação é analisado e traduzido em
Centro de
serviços comerciais e cidadãos. A cidade atuará sobre esse
pesquisa em
fluxo de informações para tornar seu ecossistema mais
tecnologia –
amplo e eficiente em recursos e sustentabilidade. A troca de
Gartner (2011)[36]
informações baseia-se em um quadro operacional de
governança inteligente, projetado para tornar as cidades
sustentáveis.

Dois principais fluxos de ideias de pesquisa: 1) cidades


inteligentes devem fazer tudo relacionado à governança e à
economia usando novos paradigmas de pensamento e 2)
cidades inteligentes são todas sobre redes de sensores, Cretu[37]
dispositivos inteligentes, dados em tempo real e integração
de TIC em todos os aspectos da vida humana.

A tecnologia da informação e das comunicações (TIC) é um


elemento essencial para que as cidades abordem desafios de
Relatório do
forma inteligente.[…] Smart City é um lugar onde as redes e
Parlamento
serviços tradicionais são mais eficientes com o uso de
Europeu[38]
tecnologias digitais e de telecomunicações, em benefício de
seus habitantes e empresas.

As iniciativas de cidades inteligentes tentam melhorar o


desempenho urbano usando tecnologias de dados,
tecnologia da informação (TI,) para fornecer serviços mais
Marsal-Llacuna
eficientes aos cidadãos, monitorar e otimizar
et al.[39]
infraestrutura existente, aumentar a colaboração entre os
diferentes atores econômicos e incentivar modelos de
negócios inovadores nos setores público e privado.

Nas cidades inteligentes, os “desafios” urbanos podem ser


“atenuados através da adoção de soluções escaláveis que
aproveitam as tecnologias da informação e das
comunicações para aumentar a eficiência, reduzir custos e
melhorar a qualidade de vida”[40]. As cidades inteligentes
criam um ambiente que perturba os processos tradicionais
de tomada de decisão e a propriedade do projeto. Isso cria
urgência para os líderes estabelecerem novas regras do Cisco (2012[41] e
jogo. O design colaborativo de propriedade e processos 2013[42])
multissetorial exige novos modelos de governança e
negócios, que são essenciais para alinhar todos os serviços
da cidade. Esta colaboração interfuncional e
interorganizacional é necessária para unificar o
ecossistema cada vez mais complexo necessário para
fornecer soluções de ponta a ponta para cidades
inteligentes.

Uma cidade inteligente infunde informações em sua


infraestrutura física para melhorar as conveniências,
facilitar a mobilidade, aumentar a eficiência, conservar
energia, melhorar a qualidade do ar e da água, identificar Nam and
problemas e corrigi-los, recuperar rapidamente de Pardo[43]
desastres, coletar dados para tomar melhores decisões,
implantar recursos e compartilhar dados permitindo a
colaboração entre entidades e domínios.

A cidade inteligente refere-se a uma entidade local – um


distrito, cidade, região ou país pequeno – que adota uma Governo de
abordagem holística para empregar tecnologias de Singapura (2012)
informação com análise em tempo real que incentiva o [44]

desenvolvimento econômico sustentável.

Fonte: tabela elaborada e traduzida pela autora com base na


leitura bibliográfica.

3. A FRAGILIDADE DO TERMO SMART


CITIES
Como podemos depreender a partir da tabela, não existe
unanimidade sobre a melhor concepção de smart cities. Devido a
esse leque de possíveis definições, a literatura crítica problematiza
que o termo carrega um conceito relativamente vago ou vazio e
que sua utilização é moldável, já que o interlocutor pode escolher
quais aspectos serão definidores.
Vanolo[45] sinaliza que essa brecha existe em decorrência,
principalmente, da fragilidade do conceito de SC, em que o
responsável pela criação do discurso acaba também selecionando
o que será considerado problema urbano e quais serão as soluções
mais adequadas. A literatura crítica[46][47][48][49] considera, assim, as
soluções inteligentes da cidade como respostas técnicas a uma
lista seletiva de questões identificadas como prioritárias por seus
proponentes. Outras mazelas urbanas, como pobreza,
desigualdade e discriminação, parecem estar em grande parte
ausentes dessa narrativa. Para Goodspeed[50], ainda que forçasse
uma redução dos problemas urbanos a problemas essencialmente
de engenharia ou solucionáveis a partir de métodos empíricos ou
quantitativos, as soluções estariam caracterizadas como
tecnoeconômicas ou de gestão apenas. Afirma Vanolo [51] que: “No
mantra da cidade inteligente, a complexidade total de nossos
ecossistemas urbanos é reduzida a um monte de dados que podem
ser monitorados e controlados. A questão urbana não é
considerada social ou política, mas sim uma questão tecnológica
básica, que pode ser resolvida graças às soluções tecnológicas
fornecidas pelas empresas privadas”. [52][53]
O exemplo trazido no começo do texto sobre o Rio de Janeiro
também é ilustrativo desse ponto. Goodspeed[54] destaca que nem
todos os problemas urbanos podem ser resolvidos por soluções
tecnológicas e de engenharia. Assim, embora o COR pudesse ser
útil em determinadas situações, o problema raiz motivador do
investimento, os deslizamentos de moradias em situação de risco,
não foi resolvido.

4. A EFICIÊNCIA DAS SMART CITIES

Certas construções discursivas das smart cities na tabela[55][56][57][58]


promovem um novo conjunto de arranjos institucionais que
enfatizam uma narrativa de eficiência e otimização. Sobre esse
aspecto, Greenfield[59] destaca a contaminação semântica que o
conceito sofre, em que uma ideia endêmica à cultura da
administração de negócios acaba sendo utilizada em outro campo.
Para o autor, esse cruzamento semântico pode ser prejudicial, na
medida em que se pressupõe que o único objetivo dos serviços
urbanos da cidade é a eficiência: “o que pode ser perfeitamente
apropriado em uma organização hierárquica e altamente
estruturada, com metas conhecidas e quantificáveis, é
fundamentalmente inadequado para as entidades complexas que
conhecemos como cidades”[60].

5. A SUSTENTABILIDADE DAS SMART


CITIES

A narrativa que vincula as cidades inteligentes como caminho para


uma cidade sustentável também está presente em praticamente
todas as definições da tabela. Portanto, o argumento da
sustentabilidade ligado a preocupações ambientais muitas vezes
aparece para justificar o compromisso das cidades inteligentes. Em
muitas narrativas, as SC aparecem como um sinônimo melhorado
de cidades sustentáveis, contribuindo para uma otimista visão
sobre a utilização de soluções tecnológicas para problemas
ambientais.
Segundo González[61], a principal preocupação com essa
associação, porém, é o risco de uma despolitização dos debates
sobre o meio ambiente urbano ao atrelar todas as saídas à
tecnologia, já que ao propor soluções para as mudanças climáticas
e de energia, por exemplo, raramente se pensa na mudança
substancial das atividades que praticamos, como a necessidade de
redução dos níveis de consumo.
Nesse sentido, se reforça uma sensação de que a tecnologia é
capaz de solucionar todos os problemas de uma cidade,
independentemente do desenvolvimento, da trajetória, da origem
do problema ou da complexidade do ecossistema. Há o risco de, ao
se abordar soluções tecnológicas para problemas urbanos, a partir
de uma visão simplista, não se trazer para a discussão a
complexidade de um problema. Assim, acaba-se por: “Aplicar
inteligência sobre as tecnologias para que estas tragam uma
solução imediata à problemas intrínsecos à natureza humana, a
problemas presentes ao longo da história, a problemas que
dependem de complexas estruturas de poder, a problemas que
dependem de comportamento individual, a problemas que
possuem ligação com a política, com a sociologia, com a economia
ou, quase sempre, uma mescla de todos estes”.[62]
Para Kitchin[63], a narrativa das SC está recorrentemente atrelada
à imagem de progresso tecnológico, eficiência e prosperidade para
todos, apresentando-a como um desejo intrínseco da sociedade e
como uma inevitabilidade da revolução tecnológica. O autor ainda
reforça que a maneira pela qual o trabalho urbano, o lazer e o
consumo são projetados em uma cidade inteligente acaba sendo
assumida como aquilo que todos querem, ou seja, as smart cities
acabam sendo apresentadas ao público como uma realidade
inquestionável e sem alternativa.
Vanolo[64] também aponta que, ao se pensar a tecnologia como
panaceia para os problemas da humanidade, não necessariamente
se pensa na importância de uma adaptação na mentalidade dos
moradores. Diversas dimensões socioinstitucionais necessitam de
uma adequação simultânea para tornar as novas tecnologias e
inovações acomodadas ao mundo existente, tais como:
preferências e práticas culturais dos usuários, padrões legais,
burocracia, modelos de negócios etc. Por mais que se desenvolva
uma tecnologia de coleta de lixo, por exemplo, a conscientização
da necessidade de redução do consumo ou mesmo da produção
não acontece no mesmo nível nem ao mesmo tempo. Assim, as
iniciativas de educação das pessoas sobre as mudanças trazidas
pelas implementações das cidades inteligentes também são
necessárias e importantes, na medida, inclusive, em que estes
cidadãos serão os responsáveis pela habilidade de se moldar às
mudanças e dar sentido a elas.
Não bastaria, assim, implementar mecanismos sofisticados de
integração tecnológica sem se pensar na necessidade de aumentar
o interesse dos usuários pela utilização desse sistema, ensinar as
habilidades básicas para o uso e, às vezes, também munir o cidadão
do dispositivo eletrônico correto. Em relação a essa última
necessidade, corre-se o risco, ainda, de um aprofundamento das
desigualdades, uma vez que poderiam acentuar exclusões de
pessoas despossuídas financeiramente ou mesmo pessoas que
vivessem em áreas remotas ou periféricas da cidade. O exemplo de
Boston é ilustrativo, criou-se um aplicativo para alertar a
necessidade de se tapar os buracos de vias da cidade. Com o
passar do tempo, o aplicativo mostrou-se bem-sucedido,
reportando mais de 30 mil buracos. No entanto, praticamente não
houve reclamações nas regiões mais pobres da cidade, já que o
serviço se concentrou na região com mais ricos[65].
Nesse sentido, é importante que as oportunidades de uma
cidade inteligente não atropelem outras questões notáveis, como a
desigualdade social, os iletrados tecnológicos e as diferenças de
acesso geracional e, até mesmo, por gênero. Pelo contrário, tais
aspectos precisam ser levantados ao se pensar em uma solução
que envolva a tecnologia, como também devem ser exploradas e
aplicadas outras soluções, que não considerem apenas o uso dela.
6. “TAMANHO ÚNICO DAS SMART CITIES”

Segundo Zygiaris[66], as soluções relacionadas à cidade inteligente


são, muitas vezes, apresentadas de forma universal, como se fosse
possível qualquer cidade integrar à sua infraestrutura as
tecnologias, independentemente de suas circunstâncias políticas,
sociais, técnicas, culturais e demográficas. A expressão “tamanho
único” (one size fits all)[67] é recorrentemente utilizada na
literatura[68][69][70][71] para definir esse enquadramento de soluções
que são usadas nas narrativas.
Essa crítica sugere que, ao se criar a noção de um só modelo, o
discurso da cidade inteligente ajuda a naturalizar o conceito de
cidade como um ator coletivo: as cidades são representadas como
atores únicos, homogêneos e unitários, que ganham ou perdem
nos rankings das cidades inteligentes. A preocupação aqui é como
o uso de um conjunto de indicadores estatísticos pode reduzir a
questão do desenvolvimento urbano inteligente a uma colocação
em posições que possam ser organizadas de forma linear. Nesse
sentido, as cidades, com diferentes tipos de problemas, são
pressionadas por esses rankings e acabam por harmonizar uma
agenda urbana comum. Mais do que isso, às vezes, como no caso
do smart cities and communities[72] da União Europeia, é a partir
desses rankings que são definidos os níveis de auxílio e
investimento externo que a cidade pode vir a receber para
implantar em sua agenda urbana.
González[73] ainda afirma que a imaginação tecnológica particular
da cidade inteligente desempenha uma mensagem genérica ao
colocar uma imagem ou exemplo canônico como aspiração, o que
molda os diferentes projetos de implementação, supostamente
válida em qualquer contexto, seja ele de Londres, Nova York,
Amsterdam, Barcelona ou Xangai[74].
Atualmente, os exemplos emblemáticos de desenvolvimento de
cidades inteligentes, que aparecem em quase todos os artigos
acadêmicos ou de mídia, são Songdo (Coreia do Sul), Masdar
(Emirados Árabes Unidos), PlanIT Valley (Portugal) e Rio de Janeiro
(Brasil). Os três primeiros exemplos são projetos construídos a
partir do zero por parcerias público-privadas. O Rio de Janeiro
também aparece, com o projeto idealizado pela IBM em parceria
com a Prefeitura do Rio, o COR, como visto. Em relação aos
exemplos que estão sendo construídos do zero, pouco já se
concluiu[75].
Quanto a esse aspecto, a lição é que escolher os mesmos
exemplos, como protótipos ideais, e uma definição única para
todos os contextos, muitas vezes, pode não levar em consideração
as diferenças orçamentárias ou mesmo as escolhas políticas de
cada cidade, possivelmente ignorando que essas são constituídas
por um conjunto complexo e diversificado de dinâmicas e
conflitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise dos argumentos selecionados na narrativa


dominante em torno das SC (fragilidade do termo, eficiência,
sustentabilidade e “tamanho único”) depreendidos da bibliografia
lida e da tabela elaborada, este artigo buscou contribuir para uma
melhor compreensão dos desafios conceituais de uma cidade
inteligente. A capacidade dos discursos de construir a realidade
social, às vezes de maneira acrítica, reforça a necessidade de se
analisar com atenção a lógica argumentativa, por vezes implícita,
de alguns defensores, vendedores e idealistas das cidades
conectadas.
O conceito de cidade inteligente, como muitos dos relatos
utópicos relacionados à tecnologia, não deve ser tomado como
uma profecia autocumprida[76]. A noção, se tomada acriticamente,
pode reduzir a política urbana a uma única visão de cidade do
futuro, podendo até restringir o horizonte de quaisquer outros
possíveis planejamentos ou soluções criativas. Sendo assim, é
importante construir uma argumentação alternativa sobre o
desenvolvimento da narrativa dominante sobre o assunto ou, ao
menos, sinalizar para os problemas da argumentação atual. Apesar
de estarem presentes na agenda pública e no imaginário social, as
cidades inteligentes não devem ser concebidas de maneira
acelerada e reducionista, sem abarcar as complexidades de uma
cidade.

1. Mestranda em Ciências pelo programa de


Geografia Humana da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo (USP) e graduada
pela mesma Universidade no Instituto de
Relações Internacionais (IRI). Participante do
grupo de estudos Limites da Acumulação e
Reprodução do Espaço ( LIMIARES) do
Laboratório de Geografia Urbana da USP
(LABUR). Foi participante da 4ª Escola de
Governança da Internet (2017), promovida pelo
Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Realizou intercâmbio com bolsa acadêmica na
Katholieke Universiteit Leuven (KULeuven) na
Bélgica (2015-2016). Foi pesquisadora-bolsista
do Centro de Negociações Internacionais
(CAENI) na faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP (2013). ↵
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mecanismo de busca do Google, possui mais de
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York: Do Projects, 2013. ↵
60. Idem. ↵
61. GONZÁLEZ, M., op. cit., 2015. ↵
62. Traduzido pela autora. ↵
63. KITCHIN, R. Making sense of smart cities:
addressing present shortcomings. Cambridge
Journal of Regions, Economy and Society, v. 8, n.
1, p. 131-136, 2015. Disponível em:
https://goo.gl/5UUWe4. Acesso em: 27 out.
2018. ↵
64. VANOLO, A., op. cit., 2013. ↵
65. FINCH, K.; TENE, O. Welcome to the
Metropticon: Protecting Privacy in a
Hyperconnected Town. Urban Law Journal, v.
41, n. 5, p. 1581-1614, 2015. Disponível em:
https://goo.gl/Rf786J. Acesso em: 27 jan. 2018.

66. ZYGIARIS, S. Smart City Reference Model:
Assisting Planners to Conceptualize the
Building of Smart City Innovation Ecosystems.
Journal of the Knowledge Economy, v. 4, n. 2, p.
217–231, 2013. Disponível em:
https://goo.gl/QRcxRV. Acesso em: 27 out.
2018. ↵
67. One size fits all: é uma descrição para um
produto que caberia em todas as instâncias. O
termo foi estendido para significar que um
estilo ou procedimento caberia em todas as
aplicações relacionadas. ↵
68. ALBINO, V.; BERARDI, U.; DANGELICO, R.
Smart Cities: Definitions, Dimensions,
Performance, and Initiatives. Journal of Urban
Technology, v. 22, n. 1, p. 3–21, 2015. Disponível
em: https://goo.gl/1EuneE. Acesso em: 27 jan.
2018. ↵
69. KITCHIN, R. Making sense of smart cities:
addressing present shortcomings. Cambridge
Journal of Regions, Economy and Society, v. 8, n.
1, p. 131-136, 2015. Disponível em:
https://goo.gl/5UUWe4. Acesso em: 27 out.
2018. ↵
70. GLASMEIER, A.; CHRISTOPHERSON, S.
Thinking about smart cities. Cambridge Journal
of Regions, Economy and Society, v. 8, n. 1, p. 3-
12, 2015. Disponível em:
https://goo.gl/rWuTJp. Acesso em: 27 jan.
2018. ↵
71. Relatório do Parlamento Europeu. Policy
Department: Economic and Scientific Policy.
Mapping Smart Cities in the EU, 2014.
Disponível em:
http://www.europarl.europa.eu/studies.
Acesso em: 27 out. 2018. ↵
72. Parceria pública-privada da União Europeia
que concede financiamento a propostas que
envolvam soluções tecnológicas para
problemas de consumo de energia e
transporte. O último orçamento investido foi
de 375 milhões de euros. Disponível em:
http://ec.europa.eu/eip/smartcities/about-
partnership/what-is-it/index_en.htm. Acesso
em: 15 jun. 2018. ↵
73. GONZÁLEZ, M., op. cit., 2015. ↵
74. Idem. ↵
75. TOWNSEND, A., op. cit., 2013. ↵
76. GONZÁLEZ, M., op. cit., 2015. ↵
Considerações sobre regimes urbanos opressivos
inteligentes

Bernardo Ainbinder[1]

INTRODUÇÃO

Os debates e narrativas em torno da ideia de smart cities ou


cidades inteligentes são comumente associados à invocação de
imaginários utópicos ou distópicos. Com efeito, exercícios de
reflexão e teorização sobre o que se pretende interpretar como
uma cidade inteligente estão relacionados a um olhar sobre o
futuro.
O olhar sobre o futuro implica dois pontos que precisam ser
destacados. O primeiro pressupõe compreender que, desde a
modernidade, o tempo vem se comprimindo em decorrência de
inovações tecnológicas. Consequentemente, o futuro se faz
parecer cada vez mais próximo de nosso presente. O segundo
ponto se relaciona à necessidade de refletirmos sobre o presente e
como ele se configura concretamente (a partir de relações
historicamente construídas), antes de nos debruçarmos sobre
esforços de imaginação teórica sobre o urbano futuro.
É nesse sentido que, no presente artigo, é apresentada uma
breve revisão literária de teorias sobre a questão urbana,
levantadas nas últimas décadas, a partir de perspectivas críticas,
para então apresentar uma crítica ao conceito de cidades
inteligentes e dos potenciais futuros urbanos a ele relacionados.
Para isso, é feita uma interpretação da presente correlação de
forças estabelecida por meio de institucionalidades,
normatividades e estruturas de controle na sociedade urbana
contemporânea.
A eficiência tecnocrática, tida como central ao juízo sobre a
suposta inteligência das smart cities, costuma ser apontada como
força narrativa que corrobora valores neoliberais hegemonizados
nas últimas cinco décadas e ajusta a atual conjuntura ao que
teóricos têm convencionado chamar de pós-democrática. Não
apenas a realidade espacial concreta tem sido radicalmente
transformada por este “fetichismo de mercado”, mas também os
caminhos de subjetivação e interpretação dessa realidade. Este
último ponto pode ser observado nas normatividades dispostas por
teorias positivistas das ciências sociais, que se dizem dotadas de
isenção e neutralidade em sua leitura da realidade.
A Teoria Crítica, no entanto, sustenta justamente que não existe
teoria isenta de valores ideais, uma vez que toda teoria é postulada
por um sujeito que interpreta a realidade na qual ele mesmo está
inserido. E é por essa razão que este artigo se introduz como um
exercício epistemológico crítico sobre a noção de cidades
inteligentes, o fenômeno urbano contemporâneo e a constante
dialética utópica/distópica que enfrentamos no inevitável e
cotidiano processo de transformação do futuro em presente.
1. SOBRE O URBANO

Há quase 50 anos, inspirado pela efervescência político-cultural


que à época emanava das ruas de diversos centros urbanos pelo
mundo, o filósofo francês Henri Lefebvre levantava a hipótese de
que a sociedade capitalista estaria vivendo a transição de uma
ordem capitalista predominantemente industrial para uma
predominantemente urbana (o que chamou de “Revolução
Urbana”). Com efeito, fazia-se necessária uma nova compreensão
epistemológica e política sobre a questão urbana como pré-
condição para se compreender as novas configurações do
processo social contemporâneo.
“Podemos dizer que o urbano […] ascende sobre o horizonte,
lentamente ocupa um campo epistemológico e se torna o episteme
de uma época”[2], escrevia Lefebvre quase 40 anos antes de
organismos internacionais declararem que a maior parte da
população global passara a morar em cidades (e se estima que
alcançará 68% em 2050[3]). Ainda que a noção lefebvriana do
urbano transborde uma definição formal dos limites das cidades e
de seus habitantes, pode-se adjetivar o atual processo urbanizante
de planetário, inclusive relacionando-o a territórios não urbanos
per se.
Lefebvre é tido como um dos precursores do que Soja[4] chamou
de a “virada espacial” (spatial turn) na sociologia crítica, quando a
dimensão espacial do ambiente habitado (natural e transformado)
é introduzida nas reflexões críticas sobre os modelos produtivos
dominantes.
Ainda que já houvesse produção literária sobre o processo
capitalista e questões urbanas já nos escritos de Engels, Lefebvre
foi um dos primeiros a discorrer mais profundamente sobre a
fenomenologia do dia a dia, afirmando ser no cotidiano dos
espaços urbanos nos quais se realiza a experiência humana. Nas
palavras de Soja, a urbanização seria para Lefebvre uma “metáfora
para a espacialização da modernidade e o ‘planejamento’
estratégico da vida cotidiana que tem permitido ao capitalismo
sobreviver e reproduzir de maneira bem-sucedida suas relações
essenciais de produção”[5].
A “Revolução Urbana” de Lefebvre de certa maneira inaugura um
campo de estudos críticos sobre o processo de urbanização que
nasce e se consolida no Norte Global, ainda que incida sobre a
produção acadêmica também do Sul Global. Paralelamente, há
também uma outra vertente epistemológica que Kipfer e
Goonewardena[6] chamam de “anti-imperialismo tricontinental”,
defendida pelos teóricos da dependência e do “sistema-mundo”.
No primeiro campo, ainda na década de 1970, Manuel Castells e
David Harvey responderam às provocações de Lefebvre com obras
até hoje muito influentes: A Questão Urbana[7] e Justiça Social e a
Cidade[8]. Embora discordassem da premissa de Lefebvre de que a
urbanização se tornara o principal modo de produção capitalista,
os dois produziram relevantes análises sobre o fenômeno
urbanizante capitalista. O primeiro, tendo como preocupação o
papel do Estado e dos movimentos sociais urbanos, e o segundo,
teorizando sobre como as desigualdades urbanas são
externalidades inerentes à urbanização capitalista.
Com o surgimento e a consolidação do neoliberalismo como
configuração ideológica e política da globalização capitalista, seu
impacto na transformação da natureza e do ambiente construído,
e as crescentes desigualdades em um mundo cada vez mais
urbanizado, a teoria urbana crítica passa a ter maior espaço nos
debates sobre a fenomenologia das cidades. Há de se notar,
inclusive, que muitas vezes a crítica teórica extravasava as paredes
das Academias e, em muitos momentos, coincidiu com a
resistência prática à urbanização tecnocrata (como no ativismo
urbano de Jane Jacobs).
Com o agravamento das tensões sociais, muitos urbanistas
marxistas passam a refletir sobre os novos contornos e geografias
das injustiças espacializadas nos centros urbanos. Em 1984, Neil
Smith radicaliza as postulações de David Harvey ao afirmar que o
desenvolvimento desigual não é mero produto (externalidade) do
processo capitalista, mas também sua premissa geográfica. Cinco
anos depois, Harvey identifica uma mudança paradigmática sobre
a forma predominante de governança urbana, em que um
“urbanismo gerencialista”[9] (managerial urbanism), relacionado
primariamente ao atendimento de demandas locais, dá espaço a
um “urbanismo empreendedor” (entrepreneurial urbanism), focado
no crescimento econômico e na competitividade global das
cidades para atrair investimentos especulativos, realizar grandes
projetos urbanísticos e privatizar serviços públicos.
Em 1996, Merrifield e Swyngedouw editam The Urbanization of
Injustice[10], uma coletânea de artigos escritos por urbanistas
críticos para celebrar os 20 anos da publicação de Social Justice
and The City, de Harvey, e resgatar o debate sobre a “justiça social”
em um contexto em que alguns pensadores ousaram profetizar
que, com o colapso do campo socialista, a globalização triunfaria
sem oposições e que se haveria até mesmo chegado ao “fim da
História”.
Uma das contribuições ao volume é do próprio Harvey, que
atualiza sua teoria de justiça social a partir da configuração pós-
moderna dos novos conflitos urbanos que se apresentavam em
grandes cidades, como Nova York. Para isso, o autor faz uma
referência à teoria de justiça postulada pela acadêmica feminista
Iris Marion Young em seu livro Justice and the Politics of
Difference[11]. Segundo Young, não haveria um princípio universal
de justiça, uma vez que a justiça seria relativa a relações de poder
estabelecidas. A autora define que uma nova teoria de justiça
deveria ser baseada na ausência de relações de poder opressivas e,
para isso, categoriza o que chama de cinco “faces” da opressão:
marginalização (marginalization), exploração (exploitation),
impotência (powerlessness), imperialismo cultural (cultural
imperialism) e violência (violence).
O objetivo de Harvey era definir linhas gerais para um
“planejamento justo”, que seria pautado em eliminar ativamente as
faces da opressão realizadas no território, em contraposição a uma
urbanização neoliberal que reproduzisse ou intensificasse essas
relações.
Cabe aqui citar Brenner e Theodore[12], que tratam da forma
como a doutrina neoliberal se consolidou nas décadas de 1970 e
1980 como “solução” para a recessão que impactava a economia
global à época e que resultou no desmantelamento de
institucionalidades e valores estabelecidos no pós-guerra. A ênfase
do artigo, no entanto, é mostrar como as estratégias
neoliberalizantes interagem com as estruturas de poder
sociopolíticos existentes nos respectivos territórios. Os autores
apontam que as cidades teriam se tornado “arenas geográficas
estrategicamente cruciais nas quais uma variedade de iniciativas
neoliberais […] tem sido articuladas”[13].
Dentre muitos mecanismos neoliberais listados por Brenner e
Theodore, é possível citar, por exemplo: a imposição de
austeridade fiscal sobre governos locais; o avanço de novas formas
de governança baseadas em Parcerias Público-Privadas;
privatização de serviços públicos municipais básicos; flexibilização
de parâmetros urbanísticos, fiscais e legais em regiões específicas
de grandes centros urbanos; criação de novos espaços privatizados
de consumo de elite (como condomínios fechados) ou usufruto
corporativo; construção de megaprojetos para atrair investimento
e reconfigurar os padrões existentes de uso do solo; e introdução
de novas formas de vigilância e controle, dentre outras. Por ter
sido publicado no início dos anos 2000, é compreensível o fato dos
autores não terem incluído iniciativas de smart cities em sua
extensa lista.
Escrevendo sobre uma suposta crise das epistemologias
urbanas, Brenner e Schmid[14] listam quatro do que chamam de
“metanarrativas derivadas da condição global urbana
contemporânea” predominantes: Triunfalismo Urbano, Debates
sobre sustentabilidade urbana, Debates sobre megacidades, e
Urbanismo Tecnocientífico.
A primeira narrativa se baseia na noção de cidades como
“motores da inovação, civilização, prosperidade e democracia, em
contextos históricos e regionais”. A segunda enxerga as cidades
como locus estratégico para lidar com a crise ecológica planetária,
ainda que frequentemente seja usada como justificativa para
intensificar padrões de exclusão e estigmatização territorial. A
terceira vertente se refere ao estudo das megacidades do chamado
Sul Global, as quais resultam de processos de urbanização em larga
escala, em ritmo acelerado e com desigualdades abissais. Por fim, o
Urbanismo Tecnocientífico se apresenta como uma ideologia
urbana neopositivista, sustentando que as ciências naturais, a
matemática e a computação deveriam ser usadas para analisar e
prever arranjos espaciais.
Um dos fenômenos contemporâneos estudados por essa
vertente são as smart cities, em que “corporações de tecnologia da
informação anunciam agressivamente novos modos de
monitoramento espacial, processamento de informações e
visualização de dados para governos municipais e metropolitanos
‘problemáticos’ ao redor do mundo como uma ‘solução’ para
problemas difíceis de governança”.
Na próxima seção faremos uma análise específica sobre o
discurso das smart cities como estratégias urbanas
contemporâneas.
2. SOBRE AS SMART CITIES

Segundo a Lei de Moore, postulada na década de 1960 pelo


engenheiro fundador da Intel, o número de componentes por
circuito integrado dobraria a cada dois anos. A Lei tem se provado
verdadeira, o que significa, grosso modo, que o avanço tecnológico
nas últimas cinco décadas tem sido exponencial e sem
precedentes. Em paralelo, o processo globalizante torna as novas
tecnologias cada vez mais baratas e territorialmente disseminadas.
No final dos anos 1990, surge na literatura especializada o
conceito de smart cities, consistindo basicamente no uso
estratégico de novas tecnologias para resolver “problemas
urbanos”, por vezes apontando para novas utopias urbanas. Duas
décadas depois, com o conceito já analisado, aplicado e apropriado
de diversas formas, pode-se afirmar que existe um consenso sobre
a falta de definição amplamente aceita sobre a questão (ver
Hollands[15]; O’Grady e O’Hare[16]). É o que concluem também
Albino, Berardi e Dangelico[17] após uma revisão das principais
definições, dimensões e iniciativas de smart cities: “Uma análise
profunda da literatura revelou que o significado de uma Smart City
é multifacetado. […] [A]s definições colocadas por determinadas
cidades que se refere como Smart Cities são desprovidas de
universalidade.”[18]
Em uma revisão literária crítica, Vanolo[19] sugere que as
narrativas dos projetos das smart cities se traduzem em “[…] novas
geometrias de relações de poder que requerem a produção e
circulação de conhecimentos, racionalidades, subjetividades e
moralidades”[20] que os contemplem. A esse processo, o autor se
refere como smartmentalização (smartmentalisation), ecoando o
conceito foucaultiano de governmentality (os mecanismos
disciplinares de “conduta das condutas”).
Vanolo sustenta que o processo de smartmentalização urbana
incorre em duas ameaças. A primeira é a de que determinadas
estratégias políticas sejam vendidas como “naturais” ou mesmo
“inevitáveis”. E “como qualquer outra questão de desenvolvimento
urbana, a smart city vai engatilhar processos reestruturantes que
por sua vez produzirão sujeitos que […] se beneficiarão, e pessoas
marginalizadas dos circuitos de poder”[21] . A segunda ameaça seria
a redução do horizonte utópico urbano para uma única visão
tecnocêntrica da cidade do futuro, que limita o surgimento de
soluções alternativas para os “problemas” apresentados.
Datta apresenta o caso da Smart City de Dholera, em Gujarat, na
Índia[22]. O projeto foi impulsionado por grandes atores privados
(como empresas de tecnologia e consultorias) aliados às elites
locais (que pregavam o lema “governo mínimo, governança
máxima”) e prevê uma governança urbana tecnocrática, além de
espaços residenciais e comerciais privatizados. Além disso, o
projeto também resultou na expulsão em larga escala de
habitantes que não se enquadravam nesse projeto de “utopianismo
desenvolvimentista high-tech”[23].
Com a eleição do então governador de Gujarat, Narendra Modi,
como primeiro-ministro da Índia, o projeto desenvolvimentista
neoliberal adotado no estado logo foi replicado nacionalmente. Em
2014, o governo anunciou um projeto multibilionário para a
construção de cem smart cities no país.
Para Datta, a ideologia das smart cities se apresenta no caso
indiano como um “novo colonialismo urbano”[24], em que o Estado
atua garantindo determinadas narrativas e sustentando o mito da
urbanização como “bom modelo de negócios”, enquanto pratica
crescente repressão a grupos dissidentes e/ou marginalizados.
O caso do Centro de Operações Rio (COR) também é
comumente citado na literatura de smart cities. Estabelecido em
2014 no contexto dos megaeventos que a cidade viria a sediar, o
empreendimento foi montado pela IBM, um dos atores privados
globais que fomentam projetos de smart cities ao redor do mundo
(Cisco, Halcrow e Mckinsey são outros geralmente arrolados). O
COR integra bases de informações de diversos serviços e setores
da administração pública com o objetivo de monitorar a cidade e
responder a eventuais incidentes, crises e emergências.
Ao se referir ao COR, Townsend escreve que “o que começou
como uma ferramenta para prever chuva e gerenciar enchentes se
transmutou em um painel de controle de alta precisão para a
cidade toda”[25]. Lembra também a fala de Eduardo Paes, ex-
prefeito da cidade do Rio de Janeiro, em que ele se gaba afirmando
que “o centro de operações nos permite ter gente olhando todos
os cantos da cidade 24 horas por dia, sete dias por semana”.
Townsend também critica a noção de soluções de smart cities
como sendo escaláveis e facilmente aplicáveis a qualquer contexto
urbano, reproduzida pelos mesmos atores privados que vendem
essas tecnologias. O autor aponta como efeito uma padronização
homogeneizante (observada em outros famosos cases como
Songdo, na Coreia do Sul, e Masdar, nos Emirados Árabes) que vai
de encontro ao que ele, ecoando Jane Jacobs, acredita ser o
principal valor das cidades: a possibilidade de heterogeneizações
espontâneas.
Após breve revisão literária, nota-se que, dentre produções
críticas sobre estudos urbanos, existe um consenso sobre o
caráter difuso do conceito de smart cities. Esse caráter difuso se
apresenta como estratégico para adaptar tecnologias ou soluções
urbanas a realidades distintas e idiossincráticas ao redor do
mundo para resolver problemas de forma tecnocrática,
despolitizando o urbano, se orientando por — e reproduzindo —
racionalidades neoliberais.

3. SOBRE A CONJUNTURA (PÓS-


)POLÍTICA

Após cinco décadas de hegemonização de uma ideologia neoliberal


autocrática, “a Política se tornou mais e mais reduzida à
governança pós-democrática consensualizante e tecnogerenciável
do capital financeirizado”[26].
Essa visão se coaduna com a afirmação de Dardot e Laval de que
o neoliberalismo conduz a sociedade rumo a uma conjuntura pós-
democrática[27]. Isso ocorre porque o neoliberalismo se apresenta
como uma nova razão de mundo, em que os sujeitos e
subjetividades são reduzidos a condição de mercadorias
consumíveis, substituíveis e descartáveis.
Dentro dessa “lógica normativa generalizada”, o poder é
realizado de duas formas: como biopoder, o controle sobre corpos,
e/ou como psicopoder, a incidência sobre o psicológico.
Ao elaborar sobre o papel do Estado nessa nova configuração
pós-democrática, Casara afirma que não vivemos em uma “crise”
do Estado de Bem-Estar Social, mas sim numa nova forma de
governança em que o Estado se apresenta como “um mero
instrumento de controle das populações indesejadas e ampliação
das condições de acumulação do capital e geração de lucros”[28].
No caso brasileiro, Casara vê um “Estado Pós-Democrático, que
não tem qualquer compromisso com a concretização de direitos
fundamentais, com o resultado de eleições, com limites ao
exercício de poder ou com a participação popular na tomada de
decisões”[29]. Nesse contexto, o Estado fortalece seu Sistema de
Justiça Penal em detrimento da garantia de direitos, como no
Estado de Bem-Estar Social. Casara lembra que Nilo Batista e Loic
Wacquant apresentam “os presídios como os novos planos
habitacionais para a miséria”[30].
Enquanto Crouch apresenta o conceito de Pós-Democracia
como um regime no qual a legitimidade democrática se reduz[31],
apesar do funcionamento das instituições, Casara acredita que
essa é uma visão metropolitana, uma vez que no chamado Sul
Global aparece mais visivelmente o papel ativo do Estado no
sentido da exclusão, da violência (física e estrutural), da destruição
da natureza, da privatização do comum etc. Nesse contexto, uma
“fachada democrática” não se faria necessária.
Outra característica da conjuntura pós-democrática introduzida
pelo neoliberalismo é a demonização da alteridade. Afirma Casara
que: “Enquanto incentiva a diferença rentável, aquela capaz de
gerar novas mercadorias, não perdoa a alteridade […] e transforma
em objeto sem valor o que não se encaixa ou mesmo quem pensa
diferente e não reproduz a lógica da mercadoria”[32]. A
desumanização do outro aponta para o horizonte “potencialmente
fascista” que a neoliberalização absoluta possibilita (e em algum
grau, fomenta).

4. SOBRE O PENSAMENTO PÓS-


COLONIALISTA

Cabe nesse momento apontar que a maior parte da literatura


resgatada até aqui está situada em, ou referenciada por, debates
teóricos travados no que se convencionou chamar de Norte Global,
ou mesmo Academia Euroamericana. Com efeito, cabe retomar o
outro campo crítico que surge na “virada espacial” de Soja ao qual
Stefan Kipfer e Kanishka Goonewardena se referem como “anti-
imperialismo tricontinental”[33] (em paralelo a uma “Nova Esquerda
metropolitana”).
Em Urban Marxism and the Post-colonial Question: Henri
Lefebvre and ‘Colonisation’, os mencionados autores tecem uma
crítica aos teóricos urbanos desta “Nova Esquerda metropolitana”
(inclusive Lefebvre) pela ausência ou relativa negligência em
relação aos temas de colonização, imperialismo, Eurocentrismo e
raça.
Nessa crítica pós-colonialista, Kipfer e Goonewardena resgatam
escritos de Lefebvre sobre colonização e imperialismo como
abertura para uma teoria da colonização do urbano para além da
constrição Eurocêntrica deste. Nesse sentido, “‘Colonização’ é
usada para capturar a dominação da vida cotidiana pelo Capital e o
Estado na metrópole imperial”[34]. Para os pós-colonialistas, é
impossível interpretar a forma como o Capitalismo se reproduz
atualmente sem se considerar o legado dos regimes imperialistas,
tanto materialmente quanto psicologicamente/cognitivamente,
para então superá-lo.
Na recente tradição pós-colonialista, comumente referenciam-
se dois autores como precursores: Edward Said e Frantz Fanon.
Em Orientalism[35], Said disseca o Oriente como uma categoria
geográfica sobre a qual o Ocidente construiu narrativas que foram
usadas para legitimar práticas de dominação e exploração. Do
ponto de vista Europeu, o Oriente seria um outro misterioso
passível de ser “descoberto”.
Fanon analisa o regime colonial francófono para escrever uma
teoria radical anticolonialista fortemente marcada pela questão
racial, que também explicasse o processo pelo qual as raças
colonizadas internalizam as ideias de seus colonizadores[36]. Para
Fanon, a colonização não se limitaria somente à dimensão da
dominação material sobre determinado povo, mas também à
dimensão da produção cultural e artística, nas linguagens e nas
metodologias científicas etc.
A obra de Fanon teve grande influência sobre Paulo Freire, que
traduz essa colonialidade numa dialética de opressão. Em A
Pedagogia do Oprimido[37], Freire analisa as dificuldades e as
possibilidades da emancipação dos oprimidos de suas condições
de opressão. Dentre os possíveis horizontes de humanização ou
desumanização, Freire acredita que somente o primeiro é a
verdadeira vocação humana. Nesse sentido, a emancipação
humana só seria possível por meio do que ele se refere como a
“grande tarefa humanística e histórica do oprimido”: não apenas
libertar a si, mas também a seus opressores.
Pode-se dizer que a influência dos pensamentos pós-colonialista
e pós-estruturalista nos debates sobre a teoria urbana são
razoavelmente recentes. King apresenta uma completa teoria
sobre o desenvolvimento urbano colonial, afirmando que as
cidades formavam o nervo central do empreendimento
colonizador[38]. E teria sido a partir do estabelecimento de cidades
portuárias orientadas para fora e de respectivas burocracias
administrativas, religiosas, políticas e militares que se estrutura um
sistema urbano colonial que compreende a maioria das chamadas
cidades globais contemporâneas.
Para o autor, “urbanismo e urbanização na metrópole não
podem ser compreendidos separadamente de empreendimentos
na periferia colonial […] [uma vez que] cidades coloniais eram
grandes links entre economias centrais e periféricas durante o
período do imperialismo, articulando o fluxo de capitais, pessoas,
mercadorias e cultura que fluía entre elas”. E referencia Bergeson e
Schoenenberg para contrastar que, embora se contabilizem 412
jurisdições coloniais ao redor do globo entre 1415 e 1969, consta-se
apenas cinco grandes impérios colonizadores.
Embora a obra de Jane Jacobs mais reconhecida seja Morte e
Vida das Grandes Cidades[39], publicada originalmente em 1961, ela
produziu anos mais tarde Edge of Empire: Postcolonialism and the
City[40], em 1996. Na obra, Jacobs sustenta que ainda hoje se
evidencia uma “colonização interna”, não apenas em cidades
coloniais, nas quais grupos colonizados ainda têm de “lidar com a
força de formações neocoloniais e viver vidas moldadas por
ideologias de dominação e práticas preconceituosas estabelecidas
pelo imperialismo”, mas também nas cidades imperiais, nas quais
“medos xenofóbicos e suavizadas fantasias de um passado mais
certo de poder imperial se manifesta como políticas de racismo,
dominação e deslocamento”.
Miraftab[41] se referencia na noção de subalternidade e cidadania
insurgente[42] para teorizar sobre como movimentos de inclusão e
resistência são articulados dentro e por meio de espaços
“convidados” ou “inventados” de cidadania para produzir
“consciência histórica de sua opressão”. Ela pensa sobre quais
condições seria possível produzir um planejamento urbano
insurgente e cita três elementos que seriam essenciais:
transgressão, contra-hegemonia e imaginação.
Brenner e Schmid, ao fazerem uma revisão das Teorias Críticas
Urbanas, reconhecem a escola pós-colonialista como sendo uma
que tem ganhado maturidade e notoriedade nos últimos anos,
justamente por se colocar em uma postura crítica ao mainstream
das escolas críticas Euro-Americanas. Ainda neste artigo, os
autores fazem uma “convocatória” para que todos que pensam a
realidade compreendendo a dimensão concreta e cotidiana do
urbano passem a explorar novos horizontes epistemológicos
radicalmente reflexivos (críticos) para trazer novas compreensões
sobre a “civilização urbana”.
Sousa e Santo criticam os efeitos do colonialismo na dimensão
epistemológica. Para ele, “[n]a perspectiva das epistemologias
abissais do Norte global, o policiamento das fronteiras do
conhecimento relevante é de longe mais decisivo do que as
discussões sobre diferenças internas. Assim, em razão do
‘epistemicídio’ em massa perpetrado nos últimos cinco séculos,
desperdiçou-se uma imensa riqueza de experiências cognitivas”.
Essa mesma questão aparece em Milton Santos[43], quando
escreve que “[o] ‘espaço subdesenvolvido’ tem um caráter
específico; as prioridades de importância variam, mesmo quando
operam as mesmas forças, já que suas combinações e resultados
são diferentes. É algo que os geógrafos ocidentais têm tido grande
dificuldade em entender. Por que nós não podemos, então, reunir
a experiência surgida nos países subdesenvolvidos: desenvolver
teorias que tenham sentido tanto para os geógrafos como para os
cidadãos? Atualmente a Geografia ‘oficial’ funciona como se o
Ocidente tivesse o monopólio das ideias”.
Em Santos e Meneses[44], uma outra convocatória epistemológica
é feita por uma nova linguagem descolonial para se ler e
representar o complexo sistema-mundo contemporâneo. Com
efeito, os autores propõem diversas perspectivas críticas sobre a
modernidade e a colonialidade a partir de “Epistemologias do Sul”.
Ainda há, portanto, terreno vasto e fértil para experimentar
narrativas radicais que apontem para um horizonte urbano
emancipatório.

5. SOBRE O RIO DE JANEIRO

No ano de 2016, engajei-me no desafio de buscar um arcabouço


teórico que me ajudasse a compreender e interpretar as (limitadas)
realidades que vi, vivi ou convivi em determinados tempos e
espaços no tecido urbano que se convencionou chamar Rio de
Janeiro.
O município do Rio de Janeiro foi fundado em 1535 pelo Império
português. Com a febre dos metais preciosos, Marquês de Pombal
transferiu a sede da colônia de Salvador para o Rio em 1763. A
famosa vinda da Corte portuguesa em 1808 fez da cidade a
primeira capital imperial sediada em território colonial. Catorze
anos mais tarde, a cidade permaneceria sendo capital imperial; não
mais do império de Dom João VI de Portugal, mas do filho Dom
Pedro I, do recém-fundado Império brasileiro. Em 1889, a cidade é
outorgada Distrito Federal da República, e assim permaneceria até
1960, quando se tornou estado (da Guanabara) após a transferência
da capital para Brasília. Em 1975, a cidade é fundida ao estado do
Rio de Janeiro, do qual veio a ser o município-capital.
A razão da brevíssima contextualização histórica é evidenciar as
relações intrínsecas entre a experiência nacional brasileira e os
fatos ocorridos em diferentes espaços e tempos na cidade. Isso se
dá a partir do complexo sistema urbano estabelecido há alguns
séculos na margem oeste da baía de Guanabara, o qual serviu de
centro político-administrativo de empreendimentos coloniais e
imperiais de Portugal e Brasil.
A cidade vive até hoje uma constante contradição entre a
imagem de “cidade maravilhosa”, repleta de belezas naturais, da
bossa nova, do carnaval ou dos megaeventos, versus a imagem de
“cidade de Deus”, em referência ao filme que globalizou a natureza
brutal e injusta da violência material e psicológica cotidiana
praticada e naturalizada em determinados espaços da cidade (e
comumente protagonizada pelo Estado), naturalmente relacionada
à flagrante desigualdade que a cidade expressa tão pitorescamente
na dualidade favela/asfalto.
Na última década, a cidade recebeu relevante destaque
internacional em torno da euforia criada pelo anúncio de que
sediaria jogos da Copa do Mundo FIFA de 2014 e os Jogos
Olímpicos e Paralímpicos de 2016. Atualmente, o cenário é quase o
oposto. A grave crise política que assola diversas instituições do
estado nos três níveis de governo e a recessão econômica
associada à agenda neoliberal acelerada no começo do segundo
governo de Dilma Rousseff (2014-2016), e radicalizada no governo
formado após a deposição desta, fazem crescer as desigualdades
socioeconômicas e as oposições políticas que se concretizam na
dimensão urbana (por exemplo, pelo aumento vertiginoso da
população em situação de rua ou por manifestações contra-
hegemônicas nas ruas da cidade sendo violentamente reprimidas).
O Rio de Janeiro parece, portanto, ser um peculiar caso de
laboratório de colonialidade urbana em diversas escalas e
dimensões, das mais concretas às mais subjetivas, que ainda opera
sem que tenha havido uma ruptura radical das estruturas
colonialistas. Nesse sentido, não encontrei o desejado arcabouço
teórico que contemplasse exatamente os contornos da forma
como vejo o processo urbanizante (a partir de minha experiência
na cidade). Decidi, então, responder às convocatórias
epistemológicas de Brenner e Schmid e Santos e Meneses e
experimentar novas narrativas teóricas que possam contribuir com
um horizonte descolonizador/emancipatório não só da forma de
se ler o urbano, mas também de o viver.

CONCLUSÃO

Em Theoretical considerations on Oppressive Urban Regimes in


Post-Olympic Rio de Janeiro: towards a new urban epistemology[45],
busco contribuir com a literatura crítica de teoria urbana
propondo e definindo duas categorias dialéticas às quais chamei de
“Urbanismo Opressivo” em oposição a um “Urbanismo
Emancipatório”.
Compreendendo o urbano como a condição ontológica de nosso
tempo e a escala em que a realidade se concretiza efetivamente
para a maior parte da população mundial (ainda que de formas
radicalmente distintas), bem como o Humanocomo potencialidade a
ser livremente desenvolvida[46], resgato Freire e Young para sugerir
o olhar sobre o urbano a partir do paradigma da opressão.
Parece-me que mesmo a academia crítica Euro-Americana tem
sido pouco ousada nos debates sobre produção espacial de
injustiças. As teorias sobre Direito à Cidade, muito incidentes na
produção acadêmica crítica e no ativismo urbano brasileiro,
parecem muito esperançosamente institucionalistas para uma
configuração de estado/sociedade que historicamente mais violou
direitos do que os garantiu.
Outro campo da literatura crítica é muito focado no
neoliberalismo como uma nova configuração de reprodução
capitalista, negligenciando que a ideologia de mercantilização
absoluta do outro já estava inserida na racionalidade colonizadora
não apenas desde o Tratado de Tordesilhas, mas desde que a
primeira aglomeração humana decidiu se impor sobre outra. É
preciso expandir o olhar para além da Economia Política para
compreender os contornos mais subjetivos de como o processo
social vem se reproduzindo historicamente. Ainda, é preciso
avançar para além das limitações que o contexto eurocêntrico
moderno/industrial que o cânone Marxista apresenta para
compreender as novas configurações sociais pós-modernas.
O que eu chamo de “Regimes Urbanos Opressivos” são
configurações políticas que limitam o desenvolvimento de
potencialidades distintas e espontâneas pela opressão
(cerceamento de potencialidade). O uso do termo “opressivo” e
não “opressor” foi definido para expandir a compreensão de que
essa limitação, muitas vezes, é inadvertida e continuamente
reproduzida a partir de práticas e estruturas passivamente
opressoras. A escolha do termo também tem por objetivo suscitar
um debate sobre diferentes tipos de violências, que são
reproduzidas direta ou indiretamente, seja para se manter o status
quo, para sujeitar a alteridade (o “outro”) à subordinação, ou
mesmo sua eliminação.
Estratégias opressivas podem ser analisadas como aquelas
perpetradas pelo Estado e/ou pela sociedade para violentamente
manter a ordem atual de diferenciação social na reprodução de
espaços urbanos contra grupos sistemicamente oprimidos e em
favor de elites culturais, políticas e econômicas (historicamente
privilegiadas por tal processo).
Em Theoretical Considerations on Opressive Urban Regimes,
analiso determinadas práticas sistemáticas perpetradas pela
Polícia Militar do Rio de Janeiro (execuções extrajudiciais,
incursões em favelas, encarceramento em massa racializado,
repressão política e repressão cultural) para trazer a dimensão da
segurança pública para a escala do urbano e analisar como estas
formas de opressão têm sido reproduzidas pelo estado como
políticas públicas. Evidencio ainda o fato de a Polícia Militar ser
uma instituição literalmente colonial, criada em 1809 como uma
guarnição militar para proteger os interesses da Coroa portuguesa
e as elites locais. O brasão da instituição presente em todos os
uniformes policiais e viaturas até hoje carrega a figura de uma
coroa e as iniciais G.R.P (Guarda Real Portuguesa), além de um
ramo de café e uma cana de açúcar.
As estratégias opressivas não se restringem somente ao braço
punitivo do estado. Um sistema de transporte orientado somente
ao lucro dos concessionários, que é extremamente caro,
ineficiente, inseguro e desconfortável, em que milhões de
trabalhadores são condicionados a se espremerem durante horas
todas as semanas, pode também ser categorizado como integrante
de uma racionalidade urbana opressiva. A falta de oferta de
moradia digna a preço justo ou de alimentação barata, saudável e
de qualidade, a ausência de canais efetivos de deliberação e o
desenho urbano orientado ao automóvel também são outros
exemplos do que poderia ser enquadrado, grosso modo, como
políticas opressivas.
No lado mais expressamente evidente e violento dessas
estratégias, poder-se-ia fazer uma análise de elementos urbanos
como os campos de concentração, segregação espacial por meio
de guetos e apartheid, os regimes escravocratas antigos e
contemporâneos, remoções forçadas, sistemas penais indignos,
dentre outros. Essas estratégias são invariavelmente voltadas para
os grupos que são tidos pela ordem dominante como os
“indesejados”.
Resgatando o tema de partida da presente reflexão, pode-se
iniciar então um breve exercício de imaginar como operarão, no
futuro próximo, Regimes Urbanos Opressivos
“Smartmentalizados”, ou seja, dotados de novas tecnologias
urbanas e orientados para a eficiência da dominação da respectiva
ordem dominante.
Finch e Tene[47] veem tecnologias de smart cities como baseadas
em “fluxos constantes e onipresentes de dados capturados por
câmeras e sensores fixados em toda a malha urbana […] [que]
coletam todos os tipos de comportamentos, que agora podem ser
agregados, armazenados e analisados de forma barata para tirar
conclusões sobre os seus moradores”. Os autores alertam que:
“Essa vigilância ubíqua ameaça alterar a balança de poder entre os
governos das cidades e seus residentes, e destruir a privacidade e
anonimidade urbana que tem definido a vida urbana desde o
século passado”. Com efeito, resgatam a ideia do panóptico
foucaultiano (vigilância e disciplina constante e hierarquizada) e a
situam no contexto urbano (que constituiria um metróptico).
Os autores afirmam que as smart cities detêm “a promessa da
utopia urbana; ao mesmo tempo em que carregam as sementes de
uma distopia panóptica”. No artigo, eles citam o potencial da
interpretação de grandes bases de dados gerar políticas públicas
discriminatórias, bem como a inevitável vulnerabilidade de grandes
sistemas de informações interconectados em relação a hacks e
bugs.
A crítica de Finch e Tene parece apresentar um olhar otimista
em relação ao uso ético dessas informações, por vezes colhida sem
o devido consentimento dos cidadãos. Após as revelações trazidas
à tona em recentes dumps de informações por hackers, jornalistas,
whistleblowers (como Edward Snowden), grupos como Wikileaks,
entre outros, evidencia-se cada vez mais como operam as relações
criminosas entre atores privados e atores políticos institucionais.
Os autores, no entanto, alertam que “[a] normalização da coleção
de big data por governos de cidades cada vez mais aumenta o
espectro do olhar panóptico”.
Além de exemplos citados pelos autores como o
hipermonitoramento constante por um vasto sistema de câmeras
em cidades como Londres, Dubai e Chongqing ou a relação das
revistas racialmente enviesadas da Polícia de Nova York, podemos
citar o uso de drones pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para vigiar
manifestações políticas e favelas[48], a robotização da polícia de
Dubai[49] ou a robotização da segurança privada. Em um recente
caso em São Francisco pessoas em situação de rua foram
assediadas por um robô alugado por um abrigo de animais[50].
Em todos esses casos, as tecnologias de controle e vigilância têm
sido legitimadas por discursos pautados por relações de poder já
estabelecidas nesses espaços. Parece-me, portanto, que qualquer
debate sobre novas tecnologias urbanas sendo utilizadas por
regimes urbanos parece vazio (e potencialmente opressivo, ainda
que inadvertidamente), caso não se paute por um debate sobre as
relações de poder estabelecidas pelo respectivo regime.
O que proponho é uma mudança paradigmática em que os
parâmetros de desenvolvimento estejam em função do quão
“desopressivo” (emancipatório) sejam os esforços urbanos
comuns. Em outras palavras, o quanto ativamente determinada
comunidade urbana atua coletivamente para reduzir, eliminar e
superar as estruturas urbanas que oprimem aos mais diversos
grupos. A opressão pode se dar não apenas por recortes de gênero,
raça, classe social, identidade e/ou orientação sexual, deficiências
físicas, mas também por idade, território, identidade cultural,
ideologia política etc.
Dikeç e Swyngedouw apontam para a necessidade de se resgatar
o sentido político para a leitura da questão urbana, que estaria
cada vez mais despolitizada. Os autores definem uma categoria
teórica que chamam de insurgências urbanas, que representaria
novos movimentos que espacializam suas utopias urbanas radicais
de forma comum, criando novas subjetivações políticas que podem
vir a abalar ou perturbar o status quo.
Os autores, no entanto, fazem alusões a movimentos que se
sucederam no momento pós-crise financeira de 2008, como as
ocupações e manifestações públicas de grande escala em diversas
cidades ao redor do mundo.
No caso brasileiro, a categoria talvez pudesse ser utilizada para
interpretar tanto as grandes manifestações de junho de 2013,
iniciadas pelo aumento de R$ 0,20 das tarifas de ônibus em várias
cidades ao redor do país e impulsionadas pela brutal resposta
policial, como a Revolta do Vintém, ocorrida 133 anos antes,
iniciada contra um aumento de vinte réis (vintém) na passagem
dos bondes no Rio de Janeiro. Nessa ocasião, mulas foram
esfaqueadas, condutores foram agredidos e o Exército chegou a
abrir fogo contra uma multidão revoltosa.
Para os autores, “a política institucionalizada não pode
endereçar sempre — ou pode fazê-lo de formas coercitivas —
formas de dissenso político trazidos pelos processos desiguais e
contenciosos urbanos, políticos e econômicos contemporâneos.
Nós argumentamos pela necessidade de reconhecer esses levantes
como políticos mesmo apesar deles não serem sempre
organizados na forma de, por exemplo, movimentos sociais,
partidos políticos ou grupos de interesses identitários”.
Dikeç e Swyngedouw estão preocupados em teorizar sobre
como as insurgências urbanas representariam o surgimento de
uma nova espacialização politizada que seria organicamente
urbana e que se propõe a reproduzir uma alternativa radical à
ordem estabelecida. O artigo me parece abrir um horizonte
epistemológico para trazer novas compreensões das “insurgências
urbanas” para outras categorias, como culturais (o carnaval, o funk,
as rodas de samba ou capoeira, o grafite), organizativas (coletivos
de ciclismo ou skatismo) ou, até mesmo, eventuais grupos
paramilitares que disputem o imaginário sobre determinada ordem
urbana.
O resgate das Insurgências Urbanas é feito no sentido de talvez
ilustrar caminhos para a teorização sobre como se dão as
dinâmicas de Urbanismos Emancipatórios, que ainda requerem
mais pesquisa e fundamentação.
Com novas tecnologias crescentemente mais potentes sendo
rapidamente desenvolvidas e difundidas, parece cada vez mais
complicado enxergar os caminhos que tomaremos no futuro
próximo. Os impactos que a blockchain, a internet das coisas, a
computação quântica, a inteligência artificial, a robótica, a
automação, a realidade virtual, a realidade aumentada e a
biotecnologia terão na realidade urbana nas cidades nos próximos
anos ainda é muito incerto.
A certeza que temos, no entanto, é que muito provavelmente
estas tecnologias estarão cada vez mais presentes em nosso dia a
dia. E nesse sentido, seguiremos reproduzindo as injustas
estruturas de poder estabelecidas sobre a maior parte dos
aglomerados urbanos no planeta.
Enquanto o debate de smart cities for acrítico, desprovido de
reflexividade, seguiremos criando tecnologias que serão usadas
para aumentar, reproduzir ou negligenciar as desigualdades
urbanas, ou simplesmente criar formas inovadoras de biopoder e
psicopoder. Afinal, a inteligência ou a tecnologia por si só é
desprovida de valor inerente. O tecnofetichismo nos faz caminhar
possivelmente para um horizonte em que os Estados Nacionais
possam vir a perder o monopólio sobre a política monetária e, até
mesmo, sobre o uso da violência dentro de sua circunscrição
territorial. Nesse ambiente, o novo regime de valores poderá estar
baseado não no trabalho e na transformação da natureza, mas na
capacidade computacional disponível e no acesso a determinados
circuitos de informação.
Se caminhamos rumo à “utopia da exploração ilimitada”[51], o
exercício reflexivo, epistemológico e fenomenológico sobre a
contemporaneidade, quase absolutamente urbana (nas suas
diversas formas), faz-se imprescindível. É o tempo de sermos
radicais: desconstruir as velhas estruturas que herdamos
naturalizadas pelo vício do tempo e do cotidiano e reconstruir as
fundações discursivas, normativas e práticas pautadas por um
horizonte urbano emancipatório e “equalibertário”.
Se a beleza da natureza urbana reside na diferenciação orgânica,
ou heterogeneização espontânea, um Regime Urbano coordenado
por algoritmos parece invariavelmente oferecer menos potencial
para o acaso, a aleatoriedade e a sociabilidade espontânea na
escala cotidiana. Corremos o risco de nos transformarmos, “de
organismos vivos e ricos, em autômatos mecânicos sem graça”[52].
A qualidade urbana não deveria nunca ser mensurada pelo seu
progresso tecnológico, mas pelo esforço comum em garantir um
desenvolvimento pleno e libertador.

1. Bernardo Ainbinder é graduado em Relações


Internacionais pela UFRJ e mestre em
Planejamento e Desenvolvimento pela
Universidade de Cardiff. Já trabalhou com
gestão e desenvolvimento de projetos de
Democracia e Inovação na escala urbana no
terceiro setor, na iniciativa privada e no
governo. ↵
2. BRENNER, N.; SCHMID, C. Towards a new
epistemology of the urban?. City, v. 19, n. 2–3,
p. 151–182, p. 155, abr. 2015. Disponível em:
http://urbantheorylab.net/uploads/Brenner
_Schmid_CITY_2015.pdf. Acesso em: 16 jul.
2018. ↵
3. Disponível em:
https://www.un.org/development/desa/en/
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2018. ↵
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reassertion of space in critical social theory.
London: Verso, 1989. ↵
5. Idem. p. 50. ↵
6. KIPFER, S.; GOONEWARDENA, K. Urban
Marxism and the Post-colonial Question: Henri
Lefebvre and 'Colonisation'. Historical
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Paz e Terra, 2000. ↵
8. HARVEY, D. A justiça social e a cidade. São
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9. HARVEY, D. From Managerialism to
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Geografiska Annaler: Series B, Human
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10. MERRIFIELD, A.; SWYNGEDOUW, E. The
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1996. ↵
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Difference. Princeton: Princeton University
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12. BRENNER, N.; THEODORE, N. Cities and the
Geographies of "Actually Existing
Neoliberalism". Antipode, 34, p. 249-379, 2002.

13. Ibid., p. 349. ↵
14. BRENNER, N.; SCHMID, C.. Towards a new
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2015. ↵
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Technologies, v. 22, n. 1, p. 3-21, 2015. ↵
18. Idem. p. 16. ↵
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20. Idem. p. 894. ↵
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obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. ↵
29. Idem. p. 37. ↵
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31. CROUCH, C. Post-Democracy. Cambridge:
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32. CASARA, R. Estado Pós-Democrático: neo-
obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 51. ↵
33. KIPFER, S.; GOONEWARDENA, K. Urban
Marxism and the Post-colonial Question: Henri
Lefebvre and 'Colonisation'. Historical
Materialism, v. 21, n. 2, p. 76-116, 2013. ↵
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42. HOLSTON, J. Insurgent Citizenship:
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2008. apud MIRAFTAB, F. Insurgent Planning:
Situating Radical Planning in the Global South.
Planning Theory, v. 8, n. 1, p. 39, 2009. ↵
43. SANTOS, M. Geografia, Marxismo e
Subdesenvolvimento. In: PINTO, J. M. Reflexões
sobre a Geografia. São Paulo: AGB, 1980. ↵
44. SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. (org.).
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GLOBO, 29 de janeiro de 2018. Programa de
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https://globoplay.globo.com/v/6457495/.
Acesso em: 17 jul. 2017. ↵
49. ROBOT POLICE OFFICER GOES ON DUTY IN
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Disponível em:
https://www.bbc.com/news/technology-
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50. BIG BROTHER ON WHEELS? FIRED SECURITY
ROBOT DIVIDES LOCAL HOMELESS PEOPLE.
The Guardian, Londres. 16 de dezembro de
2017. Disponível em:
https://www.theguardian.com/us-
news/2017/dec/16/san-francisco-homeless-
robot. Acesso em: 17 jul. 2018. ↵
51. BOURDIEU, P. The essence of neoliberalism. Le
Monde Diplomatique, dez. 1998. ↵
52. TOWNSEND, A. Smart Cities: Big Data, Civic
Hackers, and the Quest for a New Utopia. W.
W. Norton Inc: Nova York, 2015. ↵
Tecnologias inteligentes de vigilância:
percepções sobre segurança e visibilidade nos
centros urbanos

Laura Talho Ribeiro[1]

INTRODUÇÃO

A introdução de dispositivos tecnológicos cada vez mais modernos


e inovadores nos espaços urbanos tem gerado uma nova forma de
se pensar a relação do cidadão com a cidade em que vive, circula e
interage.
Nas últimas décadas, a ideia de criação de centros urbanos que
aliem o uso desses aparatos informacionais às necessidades
citadinas desenvolveu o que se convencionou chamar de “cidades
inteligentes”. Termo esse que, ainda que não apresente um
conceito pré-definido, indica a utilização de tecnologias de
informação e comunicação (TIC) na gestão urbana como forma de
se tentar alcançar uma maior eficácia e eficiência nos
procedimentos em curso e na adoção de políticas públicas pelos
governos.
Os usos dessas tecnologias se tornaram variados, sendo
traduzidos na criação de aparatos sofisticados com o objetivo de
desenvolver espaços urbanos mais sustentáveis e colaborativos.
Estampada na mídia, a locução smart city revela que a inovação
está agora não apenas nos grandes centros, mas também na
corrida tecnológica e informacional que despontou inclusive em
pequenos municípios e também nas cidades desenvolvidas com o
apoio de grandes empresas.[2]
Nos projetos dedicados à implantação de tecnologias para o
desenvolvimento de uma cidade inteligente, frequentemente
vemos o ideal de torná-la mais segura como um dos pontos a
serem alcançados. Diante disso, mostra-se relevante chamar
atenção para o uso de tecnologias inteligentes nas cidades
contemporâneas para uma função específica: a de se pensar em
novas maneiras de se gerar segurança a partir de uma ideia de
controle e vigilância propiciada por estes mecanismos,
constituindo a chamada smart surveillance. Assim é que se vai
buscar refletir de que forma a gestão tecnológica do espaço
urbano tem influenciado os discursos[3] e as práticas para a
redução da criminalidade.
Diversas cidades no Brasil e no mundo começaram a implantar
tais instrumentos, mas buscando, na grande parte das vezes,
atender a regiões estratégicas da cidade, como os centros
financeiros e áreas residenciais mais abastadas, muitas vezes
criando “ilhas de segurança” nesses locais. Além disso, outra
problemática é a transmutação da responsabilidade da contenção
da violência e das ameaças urbanas para os próprios moradores,
que se sentem obrigados a vigiar seus vizinhos e transeuntes, e
passam a implementar uma vigilância do cotidiano.
Hoje, com uma lógica de que as sociedades enfrentam riscos e
distúrbios frequente e intensivamente e precisam lidar com as
diversas formas de “inseguranças”, por meio de um controle cada
vez mais generalizado[4], aposta-se na necessidade generalizada de
colocação de “olhos” em espaços públicos ou privados para
vigilância e sensoriamento de condutas.
Assim, no presente trabalho, vai se buscar refletir sobre como
agem essas tecnologias inteligentes em uma cidade que se propõe
a ser mais segura para seus cidadãos, bem como analisar as
dinâmicas que são empreendidas a partir da instalação desses
dispositivos nos centros urbanos, focando as tecnologias de
vigilância e como se pensar em camadas territoriais que recebem
maior ou menor visibilidade nesse monitoramento. O artigo teve
influência, principalmente, dos trabalhos de Michel Foucault e na
pesquisa empírica de autores, sobretudo, brasileiros, que
buscaram refletir sobre a introdução de tecnologias de smart
surveillance nas cidades brasileiras.

1. A INTRODUÇÃO DE DISPOSITIVOS
TECNOLÓGICOS DE CONTROLE E
VIGILÂNCIA NO COTIDIANO DOS
CENTROS URBANOS

A utilização de dispositivos tecnológicos de maneira corriqueira


para lidarmos com as diversas problemáticas que envolvem nossas
vidas cotidianas nos faz perceber que vivemos em estado
constante de alerta nos grandes centros urbanos. Por meio de
câmeras de segurança e de dados obtidos por outras ferramentas
digitais, o Estado faz um levantamento das informações de seus
serviços, e também sobre os cidadãos, e muitas vezes também nos
convida a criarmos, nós mesmos, outros dados informativos sobre
nosso dia a dia nas cidades.
Os diversos aplicativos que hoje são parte do vocabulário de
quase qualquer pessoa que viva em um centro urbano nos auxiliam
a escolher o melhor caminho para a casa e o trabalho, avisam se
uma linha de ônibus está atrasada, rastreando sua localização[5], e
indicam os bairros com maior incidência de criminalidade[6],
dentre muitas outras funcionalidades. Aponta Botello:

Assim, a vida das sociedades contemporâneas tornou-se


um contínuo movimento entre aparatos eletrônicos que
registram as idas e vindas das pessoas em centros
comerciais, bancos, espaços públicos (como parques e
avenidas), complexos habitacionais, estádios, hotéis,
centros educacionais, estações de metrô, ônibus e, claro —
depois dos atentados de 11 de setembro —, aeroportos.
Nesse sentido, a vigilância sistemática das atividades
cotidianas tornou-se algo trivial[7]. [8]

A introdução dos aparatos tecnológicos como resposta única e


salvadora para os problemas rotineiros passou a ser explorada por
setores de governo, que investem cada vez mais na inovação e em
dispositivos mais modernos e criam uma cultura de naturalização
dessas práticas na vida comum, como o fato de vivermos cercados
de câmeras de videomonitoramento em espaços públicos, sem a
devida problematização de todas as questões que lhes são
referentes, como o uso das informações e das imagens geradas, o
rastreamento e o saber que é produzido acerca dos cidadãos.
Essas narrativas vinculadas ao medo e à insegurança, sejam elas
fruto de um exagero moderno ou apenas a constatação de uma
realidade[9], sugerem um regime de enunciados que traz uma nova
forma de ler o cotidiano e se engajar com a cidade, bem como
possibilita que se criem práticas para a proteção e também para o
controle dos cidadãos, além de novas relações de poder.
Intensificou-se, então, uma política de controle do cotidiano e de
uma possível contenção de riscos, sob um novo paradigma de
gestão da vida urbana.
As justificativas para a introdução desses aparatos estão
relacionadas à segurança pública, por uma propagada sensação de
crescimento da insegurança nas cidades, e a argumentos em
defesa de uma lógica tecnocrática de ganho de eficiência a partir
da tecnologia e modernização de processos[10]. A expansão desses
dispositivos no Brasil, principalmente de câmeras de
monitoramento, deu-se primeiramente em locais públicos que
concentram grande número de pessoas, como parques, praças e
ruas comerciais, e logo se difundiu para espaços privados, como
shoppings e estádios[11].
Logo, com a percepção das empresas de segurança de um
mercado altamente lucrativo, começou-se a difundir a ideia de que
as câmeras poderiam ajudar a inibir depredações e crimes
patrimoniais, e o mercado se estendeu às residências e aos
condomínios fechados[12], cada vez mais comuns a partir da década
de 1980[13].
Com uma intensa “obsessão pela segurança”[14], que se difundiu
pela sociedade contemporânea, os indivíduos foram também
chamados a participar e a colaborar nesse intenso movimento de
(auto) proteção: “as pessoas usam de forma crescente ‘estratégias
de monitoramento como meio de se responsabilizar pela sua
própria segurança’”[15]. Vemos, então, o uso maciço de câmeras
inteligentes no espaço urbano financiadas por projetos privados,
seja por particulares em suas casas, seja por empresas ou
associações comerciais em seus estabelecimentos. Isso ocorre sob
o manto de justificativas como tentar proteger os cidadãos e suas
propriedades ou, ainda, sob o argumento da ineficiência do poder
público na segurança dos espaços urbanos.
Buscando traçar uma espécie de percurso da videovigilância no
Brasil e, mais detidamente, em São Paulo, Kanashiro[16][17]
evidenciou como argumento frequentemente presente, como
justificativa dada para a utilização das câmeras de CFTV, a
ineficiência do Estado no sentido de garantir a segurança pública.
Tal afirmativa parece encontrar relação com o levantamento feito
na Inglaterra por Norris, McCahill & Wood[18], os quais identificam
o início das práticas de videomonitoramento no país
concentradamente no setor privado.[19]
Estamos diante do que diversos autores que se dedicam ao tema
das tecnologias de controle chamam de “cotidianidade da
vigilância”[20][21], que não só implica um rastreamento incessante
das atividades dos cidadãos por dispositivos cada vez mais
sofisticados, como também um incremento no acesso que os
próprios indivíduos passaram a ter a essa vigilância, controlando
intensivamente as condutas dos demais. Somos chamados então,
repetidamente, a assumirmos nosso papel de cidadãos
responsáveis pelo controle e pela prevenção de crimes[22][23].
Firmino e Duarte[24] apontam também que a criminologia
reconhece como um discurso neoliberal ou pós-Keynesiano as
estratégias de responsabilização (responsibilisation strategy) que
estão presentes no meio empresarial, no qual os trabalhadores
tornam-se responsáveis por sua própria segurança no trabalho. As
esferas individuais começam, então, a ser invadidas pela
necessidade de controle imposta por essa racionalidade de
governo[25], de forma coletiva e generalizada.

2. EXEMPLOS DE PROJETOS DE
INTRODUÇÃO DE CÂMERAS EM DOIS
BAIRROS BRASILEIROS

2.1. Bairro de Botafogo, Rio de Janeiro – RJ

Diversos projetos nesse sentido vêm sendo propostos nas últimas


décadas, e foi possível acompanhar, no início de 2016, uma
iniciativa que vinha se desenvolvendo no bairro de Botafogo, no
Rio de Janeiro. Chamado de “Bairro mais Seguro”, o projeto vinha
sendo encampado pela associação de moradores do bairro (AMAB),
sob a liderança de sua presidenta, Regina, e do criador do projeto,
que também vivia na localidade.
A proposta visava à instalação de câmeras de vigilância em
residências e estabelecimentos comerciais que oferecessem
visualização estratégica[26] das ruas do bairro, sob a justificativa de
que havia uma preocupação generalizada com a crescente taxa de
furtos a pedestres e de roubos de automóveis, além da escassez de
efetivo policiamento para conter a situação.[27] De acordo com
André Cardoso, o idealizador da proposta[28], as câmeras poderiam
substituir a falta de servidores estatais de segurança, funcionando
como “olhos” na vigilância dos distúrbios cotidianos.
Dessa forma, seria necessário recorrer aos condomínios,
edifícios residenciais e comerciais e escolas para convencê-los a
ceder uma de suas câmeras (caso já tivessem câmeras com boa
visualização) ou a adquirirem uma câmera com as dimensões
específicas, e que direcionassem o foco do objeto para a rua, e não
mais para o espaço privado. Seria necessário que o
estabelecimento também tivesse acesso à internet, para que
pudesse fazer a transmissão imagética em tempo real para uma
plataforma on-line.
As imagens estariam armazenadas em nuvem e ficariam
disponíveis para serem acessadas, quando necessário, por algumas
entidades públicas, como a Secretaria de Segurança Pública, os
batalhões policiais, o Ministério Público e os smartphones dos
comandantes. A presidenta da Associação de Moradores também
poderia manifestar seu interesse no acesso das imagens, o que, na
opinião de seu coordenador, era essencialmente importante “para
o poder estar na mão da sociedade civil organizada”. [29]
As “smart cameras” são dispositivos programados por meio de
um software para identificar, pelas imagens geradas,
comportamentos, indivíduos ou objetos que não estejam em
conformidade com a cena reproduzida. Ou seja, tais câmeras
funcionam independentemente da participação de um
componente humano para direcioná-las e fazer o reconhecimento
do que é “desviante”[30], gerando um alerta automático para os
agentes responsáveis por averiguar as imagens posteriormente.
O projeto, que contava com um viés voltado para a diminuição
da criminalidade do bairro, também buscava auxiliar na prevenção
de outras perturbações cotidianas, como foi exaltado por um dos
moradores em uma reunião em que estive presente, já que as
imagens seriam transmitidas para o Centro de Operações Rio
(COR). [31]
De acordo com o planejamento, o projeto seria inteiramente
financiado pelos moradores ou comerciantes do bairro, sem contar
com a participação financeira do Estado, o que, no entendimento
de Regina, seria a única maneira de manter o projeto ao longo dos
anos. Porém, o aval dos dirigentes estatais era essencial para dar a
legalidade devida à iniciativa.[32] Segundo a página do projeto no
Facebook, este foi apresentado em 16 de março de 2016, para
algumas autoridades governamentais, dentre elas o chefe da Casa
Civil; o secretário de Segurança Pública à época, José Mariano
Beltrame; o secretário de governo; o chefe do Estado Maior da
PMER; a delegada da 10ª Delegacia Policial, Barbara Lomba; e o
subprefeito da Zona Sul, Bruno Ramos.
Até o momento, a iniciativa não foi implantada.[33] Parece que ela
foi adiada, dentre outros motivos, em razão da troca na
administração municipal e da mudança de chefia da Secretaria de
Segurança Pública do Estado, em outubro de 2016. Contudo, o caso
suscita importantes percepções e questionamentos, que serão
trazidos adiante.

2.2. Bairro desidentificado, em Curitiba – PR

Rodrigo Firmino e Fabio Duarte exploram, em um artigo de 2016, a


introdução de câmeras de segurança em um bairro de classe média
em Curitiba, no Paraná. Os pesquisadores também buscaram
analisar o uso de técnicas de vigilância inteligente por atores
privados em espaços públicos, sob o consentimento tácito do
Estado, e verificam que uma nova camada territorial pode ser
percebida, ou melhor, uma nova forma de expressão de poder na
vida urbana vem sendo imposta, “territory is, after all, the
expression of power”[34].
No bairro observado, grupos de cinco ou seis moradores
vizinhos, laterais e frontais, instalaram duas câmeras em cada
sentido da via, e cada uma delas apontava para o ângulo oposto da
rua, em um sistema de vigilância interligado que era acessado por
todos os seus moradores, de suas casas ou remotamente.
Os autores apontaram que um dos residentes chegou a relatar
ter chamado agentes de segurança privados para expulsarem uma
pessoa aparentemente suspeita que havia permanecido por um
longo período de tempo em um carro estacionado em frente à sua
casa. Porém, logo se revelou que o homem era um empreiteiro da
empresa de abastecimento de água esperando seu compromisso
com outro morador. Interessante notar, conforme dispuseram os
professores, que a moradora estava acessando o sistema de
monitoramento por meio de um smartphone, enquanto “tomava
um drink” em sua casa de praia, a quilômetros de distância.
Os discursos para a introdução dessas ferramentas associam
insegurança ao elemento que vem “de fora”, que é exterior àquilo
que se busca proteger, reproduzindo a lógica da exclusão social e
da viabilidade do controle, a partir de uma violência imposta, e de
outras formas de controle em nome da “segurança”.
Devemos destacar que o olhar está sujeito a construções
anteriores e a interpretação é construída socialmente a partir de
nossas vivências e modos particulares de vida. Ou seja, alguns
grupos se tornam mais sujeitos à vigilância de suas condutas e as
câmeras fazem parte desse novo ambiente urbano controlado e
militarizado[35].
Nesse cenário que articula medo e controle, espaço não vigiado
se tornou espaço do desconhecido, do ilícito e, principalmente,
local de violência. […] A exclusão, portanto, deixa de ser um
fenômeno reservado aos de classes mais baixas para atingir
aqueles que se “guetificam”, enclausuram-se em espaços
destinados para tal. Constituem-se, a partir daí, as comunidades
monitoradas não só por câmeras e seguranças, mas também
autovigiadas, frutos dessa demanda específica e disponível para
aqueles que podem pagar. Sendo assim, pode-se afirmar que uma
espécie de modulação de práticas e ações cotidianas também é
produzida e/ou intensificada como efeito de um espaço urbano
intensamente vigiado. Na medida em que se define algo como
“normal”, estabelecem-se categorias de exclusão dos desviantes,
produz-se certa homogeneização, e a cidade se vê esvaziada de
seu sentido de arena para celebração das diferenças[36][37].
Assim, torna-se necessário apontar que, como os demandantes
desses projetos são atores privados, apenas parte da população é
capaz de usufruir do serviço oferecido por essas novas tecnologias
e do poder que lhes é assim conferido por esses dispositivos,
sendo ilegítimos em sua atuação. Nesses espaços vigiados, o
espaço urbano que é destinado a todos, torna-se um local
privilegiado e demarcado por fronteiras que, ainda que sejam
invisíveis, desafiam a pluralidade e o compartilhamento, tornando-
se verdadeiras “ilhas de segurança”. Conforme apontam Firmino e
Duarte:

Sob o “mantra” do urbanismo inteligente (“smart


urbanism”) e com base na segurança pública, há uma
dispersão de elementos territoriais informativos micro e
macro que se sobrepõem para minar a significância dos
espaços públicos urbanos. […] quando este controle está
em mãos de atores privados ilegítimos desconhecidos e sob
a cobertura tácita do estado, podemos afirmar que o
acordo social sobre o qual o território urbano foi
construído, está sendo, no mínimo, desafiado.[38]
Neste momento contemporâneo, as iniciativas para a resolução de
problemas de criminalidade e violência são pensadas apenas para
alguns espaços, não havendo mais o ideal proposto pelo Welfare
State de se resolver a criminalidade como um todo, mas saber
reconhecer onde ela se tornou importante, ou melhor,
economicamente viável em ser combatida.
Essa é uma das críticas realizadas por estudiosos, no tema das
cidades inteligentes, a muitos dos projetos em voga: a falta de
universalização do acesso a seus benefícios, pelos altos
investimentos que são necessários para a instalação e manutenção
de muitos de seus dispositivos, bem como pela dificuldade de
difusão do conhecimento para que todos consigam acessar seus
conteúdos e plataformas. Conteúdos esses que geralmente deixam
de levar em conta as problemáticas enfrentadas por cidades do Sul
Global, detentoras de baixos índices de escolaridade e de acesso à
informação e à inclusão digital[39], que são marcadas por uma
intensa desigualdade econômica e social.

3. GOVERNAMENTALIDADE,
VIGILÂNCIA E CONTROLE

[…] o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou política


econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma
racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não
apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta
dos governados. [40]
O excerto apresentado, descrito pelos professores Dardot e Laval,
baseado nas reflexões propostas por Michel Foucault, ajuda-nos a
pensar em como a governamentalidade neoliberal, a partir de suas
práticas e saberes, tem viabilizado a introdução de tecnologias e
instrumentos de vigilância direcionados ao controle[41] e ao
monitoramento de diversos aspectos da vida social
contemporânea, produzindo novas configurações sociais e novos
modos de subjetivação.
Segundo o sociólogo Didier Bigo[42], essa nova racionalidade que
passou a ser pensada pelas sociedades liberais, relaciona a
liberdade com a velocidade e o movimento ininterrupto dos fluxos
cotidianos e da circulação. Para que a economia liberal seja
produtiva e eficiente, torna-se necessário garantir a liberdade de
movimento entre pessoas, informações e bens. Assim, as práticas
de controle a serem exercidas tornaram-se mais sutis, passando
muitas vezes a nem serem percebidas pelos indivíduos.
Por meio de práticas como a utilização de smart cameras, a
identificação biométrica, o armazenamento de dados pessoais em
largas bases de dados e a troca desses dados em nível
transnacional[43], um novo controle social[44] viria substituir aquele
imposto pela disciplina[45][46], que age sob os corpos dos indivíduos
e assim busca normalizá-los. Sob esse novo paradigma, não há que
se falar em interferência sob os corpos, mas de um controle que
age diretamente sob o meio em que estão presentes[47].
As tecnologias smart voltadas à vigilância se manifestam na
maior parte das vezes por meio de dispositivos cada vez menores e
invisíveis. Apesar de se localizarem em ambientes em geral de
bastante deslocamento, elas têm nessa característica uma de suas
principais funções. A invisibilidade garante a manutenção do fluxo
cotidiano sem impedir a circulação. Nesse sentido, aponta Bruno:

As tais câmeras inteligentes são programadas para


detecção automatizada e em tempo real de situações
consideradas irregulares e/ou suspeitas em ambientes
específicos: aeroportos, estações de metrô, estádios de
futebol, praças, ruas […]. Espaços que devem conciliar
segurança, consumo e conforto sem interromper a
mobilidade dos corpos. Assim, elas operam no próprio fluxo
das ações, detectando comportamentos suspeitos, de risco
ou simplesmente irregulares que são previamente
classificados como índice de um perigo iminente[48]. Tais
câmeras não se destinam tanto a instaurar uma
normalidade no seio de populações desviantes (como em
certas instituições panópticas), mas antes a flagrar uma
fratura na ordem corrente.[49]

Sendo assim, as pessoas continuariam seguindo seus fluxos diários,


os bens e as informações seriam trocados e os dados seriam
coletados e minerados pelos sistemas inteligentes, porém
mediante a manipulação e o controle constante do Estado ou de
atores privados que têm interesse em receber tais informações.
Nesse ponto, podemos nos recordar da moradora do bairro de
Curitiba que, mesmo estando em sua casa de praia, a quilômetros
de distância da possível ocorrência, não alterou suas atividades
para monitorar sua residência.
Dessa forma, a população anseia por saber que o risco externo
está sendo monitorado, mas esse monitoramento deve ser capaz
de manter sua rotina diária, sem dificultar suas tarefas
corriqueiras. Assim sintetiza o sociólogo: o controle não deve
“interromper, tocar ou ser visível”[50].
Nesse sentido, é por isso que o autor discorre que o controle de
dados é mais direto e intenso do que o controle exercido sobre a
própria pessoa, pois a identidade do indivíduo passa a estar
relacionada às informações públicas e privadas coletadas sobre ele,
que muitas vezes o antecedem, antes mesmo de exercer alguma
atividade, seja ela lícita ou não. Alguns pesquisadores vão ainda
mais longe, ao sugerir que o próprio conceito de indivíduo perde
seu significado:

A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que


marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está
mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos
tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se
amostras, dados, mercados ou “bancos”[51].

Esse grande banco de dados que armazena, analisa e cruza dados


entre si é descrito por Shoshana Zuboff como: o “‘Big Data’ é
lançado como a consequência inevitável de um gigante tecnológico
com uma vida própria inteiramente fora do social. Nós somos
apenas espectadores”[52].
A autora cunhou o termo “capitalismo de vigilância” (surveillance
capitalism) para indicar que passamos a ser monitorados
frequentemente por dispositivos informacionais como forma de
prever os comportamentos humanos para atender à dinâmica
imposta pelo capitalismo e pelo mercado, ou seja, a partir do
momento que estamos inseridos nas esferas que regulam a vida
social contemporânea, temos nossos dados pessoais coletados ou
vendidos por ou para empresas, que os utilizarão em seu próprio
benefício, e não há nada que possamos fazer quanto a isso.
Ou seja, o estudo ressaltou que a dicotomia do que é visível e do
que é invisível é uma questão importante do processo de
smartsurveillance, na busca pela criação de smart cities. Essa
discussão não deve ser apenas no sentido de tornar a tecnologia, o
equipamento de monitoramento, propriamente dito, visível aos
olhos da população. Deve ser, no entanto, no sentido de tornar
conhecidas as necessidades e as motivações que levam ao uso
desse equipamento. Isso indica que o cidadão inteligente, o smart
citizen, não é necessariamente aquele que está munido da
tecnologia, pessoalmente (embora também seja), mas aquele que
está informado sobre a utilização, influência e consequências da
utilização dela no meio[53].
Dessa forma, não basta apenas criarmos cidades que se
proclamem como inteligentes, dotando-as de aparatos
informacionais cada vez mais modernos e sofisticados; devemos
munir os cidadãos para que estejam conscientes de suas escolhas
políticas e econômicas, alertados para a forma como interagem
com as tecnologias e com os demais habitantes de sua cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que há uma cadeia de justificativas para a introdução
de projetos de smart surveillance nas cidades contemporâneas, a
começar pela sua inerente vinculação com a segurança. As áreas
urbanas são constantemente tratadas como locais inseguros, em
que soluções precisam ser encontradas para se conter a
“crescente violência urbana” propagada pelo senso comum e pela
mídia. Difundida a ideia de que soluções precisam ser pensadas
para o problema da insegurança, passa-se a apregoar a narrativa
“modernizante” das tecnologias e do ganho em eficiência trazido
pela automação de processos.
Assim, os discursos que buscam trazer apenas os efeitos
positivos alcançados por cidades que adotaram tais ferramentas
para sua gestão urbana e, principalmente, para a gestão da
criminalidade são difíceis de ser mensurados, pois poucos são os
governos que conseguem fazer a avaliação de políticas públicas
introduzidas e poucos são os dados disponíveis ao público e à
pesquisa.[54]
Dessa forma, este estudo visou levantar algumas discussões
presentes nesse contexto de smart urbanism voltado à proposição
de ideias de redução de criminalidade por meio de dispositivos
inteligentes, focando-se principalmente nas câmeras de vigilância.
O trabalho não buscou comparar os dois casos apresentados,
mas mostrar suas dinâmicas, que são em muito parecidas por seus
contextos se darem em locais similares: bairros abastados de
classe média situados em grandes cidades marcadas por estruturas
sociais desiguais. Baseados no discurso do combate aos problemas
sociais e à violência urbana, os casos nos revelam a problemática
presente em muitos desses projetos: as camadas de visibilidade
que permeiam nossa sociedade.
Interessante à ótica neoliberal, a vigilância e o controle que se
operam criam novas relações sociais, demarcadas pela polarização
entre o certo e o errado[55], pela exclusão de grupos considerados
perigosos e pela criação de fronteiras imaginárias[56]. Essa nova
configuração de áreas privatizadas em meio a espaços públicos, ou
de um espaço público neoliberal[57], vem gerando formas ilegítimas
de utilização de nossas cidades e invadindo nossas esferas como
indivíduos e também como cidadãos.

1. Mestra em Segurança Pública e Administração


Institucional de Conflitos no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito na
Universidade Federal Fluminense
(PPGSD/UFF). Graduada em Direito pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
lauratalho@gmail.com↵
2. Como exemplo de cidades criadas para serem
inteligentes, podemos citar o projeto Smart
City Laguna, desenvolvido por empresas
italianas em parceria com a prefeitura de São
Gonçalo do Amarante, no Ceará, que
posteriormente seria incorporado à
administração deste município; e a Cidade de
Masdar, nos Emirados Árabes Unidos,
desenvolvida pela empresa Masdar, uma
companhia estatal de energia renovável que
investiu 15 bilhões de dólares com o objetivo de
transformá-la na cidade mais sustentável do
mundo. ↵
3. Tal como apresentado em Kanashiro, p. 5: “É
importante sublinhar aqui que se entende por
discurso uma rede, uma trama de palavras que
envolve e é envolvida por pessoas e
instituições, reforçada e reconduzida por
conjunto de práticas e saberes, que definem
verdadeiro e falso, dentre outras produções
(FOUCAULT, 1999a)” (KANASHIRO, M.
Biometria no Brasil e o Registro de Identidade
Civil: novos rumos para a identificação. 2011.
Dissertação (Doutorado em Sociologia) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2011.) ↵
4. GARLAND, D. A Cultura do Controle: crime e
ordem social na sociedade contemporânea. Rio
de Janeiro: Revan, 2014. ↵
5. Aplicativos como “Cadê o ônibus”, que
monitora o transporte público na cidade de
São Paulo e “Moovit”, disponível para as
capitais do Rio de Janeiro e São Paulo.
Disponível em:
http://www.techtudo.com.br/noticias/notici
a/2013/11/conheca-os-melhores-aplicativos-
para-usuarios-de-transporte-publico.html.
Acesso em: 1 abr. 2016. ↵
6. “Há os ‘especializados’ em crimes particulares,
como assassinatos (Boston Crime), abuso
sexual (Sex offenders register; Map sex
offenders), enquanto outros são mais amplos e
abarcam diversos tipos de crime. Quanto às
informações, a maioria fornece os tipos de
crime (roubo, assassinato, vandalismo etc),
local, data e hora. Outros dão mais detalhes,
informando, por exemplo, se houve prisão ou,
no caso de roubo, a quantia roubada. Há ainda
aqueles que abrem espaços para relatos mais
livres da ocorrência (Citix) e os que oferecem
detalhes sobre os criminosos (Criminal
Searches; Family Watchdog) ou as vítimas (Los
Angeles Times Homicide maps)”. BRUNO, F.
Mapas de crime: vigilância distribuída e
participação na cibercultura. E-Compós -
Revista da Associação Nacional dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação, Brasília, v.
12, n. 2, p. 1-16, 2009. ↵
7. ABE, K. Everyday policing in Japan:
Surveillance, media, government and public
opinion. International Sociology, v. 19, n. 2, p.
215-231, 2004 apud BOTELLO, N. A.
Orquestração da vigilância eletrônica: uma
experiência em CFTV no México. In: BRUNO,
F.; KANASHIRO, M.; FIRMINO, R. (org.).
Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação. Editora Sulina: Porto Alegre,
2010. p. 17-35. ↵
8. BOTELLO, N. A. Orquestração da vigilância
eletrônica: uma experiência em CFTV no
México. In: BRUNO, F.; KANASHIRO, M.;
FIRMINO, R. (org.). Vigilância e Visibilidade:
espaço, tecnologia e identificação. Editora
Sulina: Porto Alegre, 2010. p. 17-35. ↵
9. Este trabalho não busca fazer uma análise
sobre os índices da violência no Brasil e no
resto do mundo, assim, não cabe aqui
realizarmos uma negativa ou positivação
dessas questões. ↵
10. FIRMINO et al. I see you but you don't see me!
The spread of CCTV in Brazil: legislation,
debate and market. In: BIANNUAL
SURVEILLANCE AND SOCIETY CONFERENCE
“WATCH THIS SPACE: SURVEILLANCE
FUTURES”, 5., 2012, Sheffield. ↵
11. KANASHIRO, M. Sorria, você está sendo filmado:
as câmeras de monitoramento para segurança
em São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2006. ↵
12. FIRMINO et al. I see you but you don't see me!
The spread of CCTV in Brazil: legislation,
debate and market. In: BIANNUAL
SURVEILLANCE AND SOCIETY CONFERENCE
“WATCH THIS SPACE: SURVEILLANCE
FUTURES”, 5., 2012, Sheffield. ↵
13. CALDEIRA, T. P. R. Enclaves fortificados: a nova
segregação urbana. Novos Estudos, v. 1, n. 47, p.
155-176, 1997. ↵
14. BAUMAN, Z. Medo líquido. Cambridge: Polity
Press, 2006. ↵
15. KOSKELA, H. Assista à fronteira 24/7 do seu
sofá: o Programa de observação virtual da
fronteira do Texas e a política do informante.
In: BRUNO, F.; KANASHIRO, M.; FIRMINO, R.
(org.). Vigilância e Visibilidade: espaço,
tecnologia e identificação. Porto Alegre:
Editora Sulina, 2010. p. 174-187. ↵
16. KANASHIRO, M. Biometria no Brasil e o
Registro de Identidade Civil: novos rumos para
a identificação. 2011. Dissertação (Doutorado
em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2011. ↵
17. KANASHIRO, M. Sorria, você está sendo filmado:
as câmeras de monitoramento para segurança
em São Paulo. 2006. Dissertação (Mestrado em
Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2006. ↵
18. NORRIS, C.; MCCAHILL, M.; WOOD, D.
Editorial. The Growth of CCTV: A global
perspective on the international diffusion of
video surveillance in public assessable space.
Surveillance & Society, v. 2, n. 2/3, p. 110-35,
2004. Disponível em:
http://www.surveillance-and-society.org.
Acesso em: 1 abr. 2016. ↵
19. CASTRO, R. B. Dispositivos de Segurança:
performações de governo articuladas às
câmeras de vídeo. 2013. Dissertação
(Doutorado em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social) – Instituto de
Psicologia da Universidade do Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. ↵
20. Como exemplo de autores que trabalham e
discutem o tema, pode-se citar: HAGGERTY, K.
D.; ERICSON, R. V. (ed.). The New Politics of
Surveillance and Visibility. Toronto: University
of Toronto Press, 2006; ↵
21. LYON, D. 11 de Setembro, sinóptico e
escopofilia: observando e sendo observado. In:
BRUNO, F.; KANASHIRO, M.; FIRMINO, R.
(org.). Vigilância e Visibilidade: espaço,
tecnologia e identificação. Porto Alegre:
Editora Sulina, 2010. p. 115-141; KOSKELA, H.
Assista à fronteira 24/7 do seu sofá: o
programa de observação virtual da fronteira do
Texas e a política do informante. In: BRUNO, F.;
KANASHIRO, M.; FIRMINO, R. (org.). Vigilância
e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação. Porto Alegre: Editora Sulina,
2010. p.174-187. ↵
22. JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. 3.
ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2011. ↵
23. CASTRO, R. B.; PEDRO, R. M. L. R. Redes de
Vigilância: a experiência da segurança e da
visibilidade articuladas às câmeras de
monitoramento urbano. In: BRUNO, F.;
KANASHIRO, M.; FIRMINO, R. (org.). Vigilância
e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação. Porto Alegre: Editora Sulina,
2010. ↵
24. FIRMINO, R.; DUARTE, F. Private video
monitoring of public spaces: The construction
of new invisible territories. Urban Studies
Journal, v. 53, n. 4, p. 741–754, 2016. ↵
25. DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo:
ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Boitempo, 2016. ↵
26. Ao todo foram mapeados 127 pontos, que foram
selecionados após reuniões com a Associação
de Moradores de Botafogo, o Conselho
Comunitário de Segurança, o comandante do
2º Batalhão da PM, a Secretaria de Ordem
Pública e a Guarda Municipal, conforme
entrevista de André Cardoso concedida para o
“Bom dia Rio” em 18 de abril de 2016.
Disponível em:
https://globoplay.globo.com/v/4963585/.
Acesso em: 10 jan. 2017. ↵
27. A presidenta da AMAB alegou que o batalhão
da Polícia Militar presente no bairro chegou a
contar, no passado, com 1200 (mil e duzentos)
policiais, enquanto no momento existiam
apenas 300 (trezentos) homens, servindo a 8
(oito) bairros da região. ↵
28. André Cardoso é engenheiro de
telecomunicações e possui experiência técnica
em projetos de instalação de câmeras para uso
do poder público, e inclusive foi assessor de
tecnologia da Secretaria de Segurança Pública
do Rio de Janeiro de 2003 a 2005, ajudando na
implantação de câmeras do projeto piloto de
segurança em Copacabana e Ipanema, bem
como do videomonitoramento de 22 (vinte e
dois) batalhões da Polícia Militar do Rio de
Janeiro, e do Centro de Comando e Controle
da SSP/RJ (hoje conhecido como CICC).
Disponível em:
https://www.linkedin.com/in/andr%C3%A9-
cardoso-8090a428. Acesso em: 22 nov. 2016 ↵
29. Trecho da fala retirada da reunião do dia
19.04.2016. A reunião foi gravada e transcrita
por mim. ↵
30. Assim aponta Fernanda Bruno: “O aparelho em
questão é a chamada terceira geração das
tecnologias de videovigilância, ou
‘videovigilância inteligente’, cuja peculiaridade
é o monitoramento automatizado de
comportamentos”. E “Costuma-se dividir os
sistemas de videovigilância em três gerações:
videovigilância controlada por operador,
videovigilância de base automatizada e
videovigilância inteligente”. (2012, p. 48) ↵
31. O COR é um Centro de Operações criado em
2010 pela Prefeitura do Rio de Janeiro que
reúne “[...] 30 órgãos (secretarias municipais,
estaduais e concessionárias de serviços
públicos) com o objetivo de monitorar e
otimizar o funcionamento da cidade no dia a
dia e, em especial, em grandes eventos [...]”,
durante 24 horas por dia, sete dias por semana,
conforme disposto no site institucional.
Disponível em:
https://www.facebook.com/pg/operacoesrio
/about/?ref=page_internal. Acesso em: 4 jun.
2017. ↵
32. É necessária a assinatura do convênio entre a
Secretaria de Segurança Pública (SSP) e o
IMETRO (empresa responsável pela criação e
implementação do projeto) para a implantação
do “Bairro mais Seguro”. ↵
33. Em contato com a AMAB, por meio de
mensagem enviada para a página existente no
Facebook, no dia 26 de junho de 2018, foi
afirmado a esta autora que a implantação do
projeto ainda não saiu do papel. ↵
34. FIRMINO, R.; DUARTE, F. Private video
monitoring of public spaces: The construction
of new invisible territories. Urban Studies
Journal, v. 53, n. 4, p. 741–754, 2016. ↵
35. GRAHAM, S. Cidades sitiadas: o novo
urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.

36. PEDRO, R. M. L. R. Tecnologias de Vigilância:
um estudo psicossocial a partir da análise das
controvérsias. In: Anais do XXIX Encontro
Anual da ANPOCS - Associação de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
Caxambu: Editora da ANPOCS, 2005. p. 1-32.
apud CASTRO, R. B.; PEDRO, R. M. L. R. Redes
de Vigilância: a experiência da segurança e da
visibilidade articuladas às câmeras de
monitoramento urbano. In: BRUNO, F.;
KANASHIRO, M.; FIRMINO, R. (org.). Vigilância
e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação. Porto Alegre: Editora Sulina,
2010. ↵
37. CASTRO, R. B.; PEDRO, R. M. L. R. Redes de
Vigilância: a experiência da segurança e da
visibilidade articuladas às câmeras de
monitoramento urbano. In: BRUNO, F.;
KANASHIRO, M.; FIRMINO, R. (org.). Vigilância
e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação. Porto Alegre: Editora Sulina,
2010. ↵
38. Tradução do inglês realizada pela autora.
FIRMINO, R.; DUARTE, F. Private video
monitoring of public spaces: The construction
of new invisible territories. Urban Studies
Journal, v. 53, n. 4, p. 741–754, 2016. ↵
39. SANTOS, B. F. Apesar de expansão, acesso à
internet no Brasil ainda é baixo. 2016.
Disponível em:
https://exame.abril.com.br/brasil/apesar-
de-expansao-acesso-a-internet-no-brasil-
ainda-e-baixo/. Acesso em: 2 maio 2018. ↵
40. DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo:
ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Boitempo, 2016. ↵
41. Segundo Cardoso, “[...] é preciso ter em mente
que o significado de controle não é aquele que
parece mais óbvio em português, que versa
sobre dominação, de si, do outro ou de uma
situação qualquer, mas a utilização mais
comum em francês (controle), indicando
fiscalização, verificação [...]” (CARDOSO, B.
Todos os olhos: Videovigilância, voyeurismos e
(re)produção imagética. Rio de Janeiro: UFRJ;
Faperj, 2014, p. 59). ↵
42. BIGO, D. Freedom and Speed in Enlarged
Borderzones. In: SQUIRE, V. (ed.). The
Contested Politics of Mobility: Borderzones and
Irregularity. Routledge, 2010. p. 31-50. ↵
43. Idem. ↵
44. LIANOS, M. Le Contrôle Social après Foucault.
Surveillance & Society, v.1, n.3, p. 431-438, 2003.
Disponível em: http://www.surveillance-and-
society.org. Acesso em: 2 maio 2018. ↵
45. FOUCAULT, M. Segurança, Território,
População(Curso no Collège de France 1977-
1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. ↵
46. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da
prisão.37. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. ↵
47. BRUNO, F. Vigilância hoje. [03.2013]. Minas
Gerais: Revista Dispositiva. Entrevista
concedida a Eduardo de Jesus. ↵
48. Idem. ↵
49. BRUNO, F. Contramanual para câmeras
inteligentes: vigilância, tecnologia e percepção.
Galaxia, São Paulo, n. 24, p. 47-63, 2012. ↵
50. BIGO, D. Freedom and Speed in Enlarged
Borderzones. In: SQUIRE, V. (ed.). The
Contested Politics of Mobility: Borderzones and
Irregularity. Routledge, 2010. p. 31-50. ↵
51. DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. São
Paulo: Editora 34, 2010. p. 226. apud CARDOSO,
B. Todos os olhos: videovigilância, voyeurismos
e (re)produção imagética. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ; Faperj, 2014. p. 59. ↵
52. Tradução do inglês realizada pela autora.
ZUBOFF, S. Big other: surveillance capitalism
and the prospects of an information
civilization. Journal of Information Technology,
v. 30, p. 75–89, 2015. Disponível em:
http://ssrn.com/abstract=2594754. Acesso
em: 2 maio 2018. ↵
53. BATISTA, M. M.; FARINIUK, T. M. D.; MELLO, S.
Ca. B. Smartsurveillance em aplicações
recentes no Brasil: um estudo de caso nas
cidades de Recife e Curitiba. Revista de Gestão
e Secretariado – GeSec, São Paulo, v. 7, n. 2, p.
104-137, 2016. ↵
54. Como apontou Cardoso sobre a instalação de
câmeras de vigilância: “a tecnologia havia sido
adotada em outros países (‘mais prestigiosos
que o nosso’), e dados de fontes nunca
especificadas afirmavam tratar-se de
incontestável sucesso” (CARDOSO, B.
Segurança Pública e os Megaeventos no Brasil.
Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll Brasil,
2016). ↵
55. CASTRO, R. B.; PEDRO, R. M. L. R. Redes de
Vigilância: a experiência da segurança e da
visibilidade articuladas às câmeras de
monitoramento urbano. In: BRUNO, F.;
KANASHIRO, M.; FIRMINO, R. (org.). Vigilância
e Visibilidade: espaço, tecnologia e
identificação. Porto Alegre: Editora Sulina,
2010. ↵
56. ROLNIK, R. O que é cidade?. São Paulo:
Brasiliense, 2009. Disponível em:
https://arquiteturaeurbanismosite.files.wordp
ress.com/2016/03/rolnik-raquel-o-que-
c3a9-cidade-livro-completo.pdf. Acesso em: 2
maio 2018. ↵
57. FIRMINO, R.; DUARTE, F. Private video
monitoring of public spaces: The construction
of new invisible territories. Urban Studies
Journal, v. 53, n. 4, p. 741-754, 2016. ↵
Cidade dos algoritmos: a ética da informação
nas cidades inteligentes

Caio César Vieira Machado[1][2]

INTRODUÇÃO

Não é novidade que os artefatos de uma cidade materializam


escolhas políticas e orquestram a vida social[3]. Uma ponte, um
túnel, um muro, uma calçada (ou a falta dela) são formas de
orientar, incentivar ou restringir o fluxo de pessoas na cidade.
Muitas vezes imperceptíveis, esses artefatos refletem decisões,
vieses e ideologias. Por exemplo, as pedras embaixo do viaduto
Lacerda no Rio de Janeiro[4] ou os bancos “antimorador de rua” no
metrô de Paris[5] são formas de usar artefatos para se implementar
uma política de afastamento de moradores de ruas de
determinados locais.
Vivemos num período de crescente integração de tecnologias de
informação e comunicação na gestão de cidades. Tecnologias essas
que orientam o comportamento coletivo e que estão se tornando
cada vez mais ubíquas e opacas. Esses artefatos são parte
integrante da arquitetura urbana e, assim como os bancos e as
calçadas, interagem com a vida individual e coletiva[6].
A construção do ambiente urbano é, em si, um ato político de
organização da vida coletiva. Naturalmente, esse processo
acompanha o desenvolvimento tecnológico e está cada vez mais
dependente do uso de tecnologias digitais. Contudo, essas
tecnologias ocultam uma dimensão de complexidade. Por exemplo,
as cores de um semáforo manifestam decisões de equipes de
engenheiros de trânsito que determinam o sentido, o volume e o
fluxo de uma rede de vias de tráfego interdependentes. A alocação
física de pessoas, o controle sobre a fruição de direitos individuais
e mesmo recursos escassos (como o tempo) são dosados por
comandos que se apresentam nas luzes vermelhas e verdes de um
semáforo.
Hoje, novas ferramentas gerenciam o tráfego lado a lado aos
semáforos com uma variedade de comandos menos evidentes, mas
que se manifestam na interface de serviços algorítmicos. O Waze,
por exemplo, monitora o volume de tráfego na via e “recomenda”
trajetos otimizados para os seus 3,5 milhões de usuários apenas na
cidade de São Paulo[7]. O serviço do Waze não emite nenhuma
norma, como um semáforo, mas tem a capacidade de “tocar”[8] ou
mesmo modular a conduta coletiva em larga escala, inclusive
extrapolando as fronteiras e a jurisdição do poder municipal.
No dia a dia das avenidas de São Paulo, o Waze impacta o uso
individual e coletivo de recursos. As pessoas que têm acesso ao
serviço gastam individualmente menos recursos — como tempo e
gasolina — para se deslocar pela cidade. Coletivamente, o Waze
consegue influenciar o fluxo e a distribuição de carros nas vias
públicas, gerenciando pessoas, automóveis e congestionamentos
na cidade. Em suma, a empresa, por meio do seu aplicativo, tem a
capacidade de modular o uso de recursos escassos na vida urbana,
influenciando tanto o uso de bens individuais quanto coletivos[9].
A longo prazo, o serviço acaba se acoplando às infraestruturas
da cidade, tornando-se essencial para o proveito de bens e
serviços públicos. Entretanto, o Waze não rege o trânsito de
acordo com as decisões da equipe municipal de engenharia de
tráfego, mas de acordo com os seus interesses comerciais, sua
organização institucional e valores éticos. Essa interação pode
apresentar benefícios imediatos para a cidade e para a empresa,
como é o caso da parceria de troca de informações entre o Waze e
o município de São Paulo. Por meio da sua influência e arranjos
institucionais, o Waze se estabelece numa posição de poder que
merece análise e escrutínio público, principalmente no que
concerne à legitimação e à orientação de serviços de largo impacto
na vida coletiva urbana.
Neste trabalho, aplicar-se-á uma abordagem derivada da Ética
da Informação e dos Dados voltada a serviços algorítmicos, ou seja,
serviços digitais que dependem do uso de algoritmos. Não é o
hardwareper se que impacta eticamente a sociedade, mas o que o
hardware opera com a ajuda de dados e de software. Nesse sentido,
esses artefatos computacionais se inserem em cadeias de ações
que impactam a vida individual e coletiva e esbarram em desafios
éticos, como privacidade, transparência, anonimato, confiança,
discriminação, entre outros. A Ética dos Dados é entendida aqui
como a ramificação que estuda e avalia problemas morais
relacionados aos dados, algoritmos e suas práticas e empregos na
vida social, visando formular soluções moralmente corretas[10].
Importa notar que se parte do pressuposto de que algoritmos são
também parte da infraestrutura urbana quando se trata de serviços
que são dependentes direta ou indiretamente de um algoritmo[11].
A comparação entre o Waze e o semáforo serve para ilustrar o
importante debate sobre como e quais tecnologias regem a vida
urbana e quais são as instituições públicas e privadas que
desenham, implementam e operam esses serviços. Neste artigo, o
foco será nas ferramentas digitais públicas, privadas ou mistas,
como o Waze, o Google Maps e o COMPAS. Discutir-se-á de que
forma o emprego delas na vida coletiva introduz um elemento
estranho à organização política e jurídica tradicional, que pode
provocar efeitos éticos resultantes tanto do desenho algorítmico
quanto da inserção dessas ferramentas na sociedade e na vida
urbana.
O crescente emprego de tecnologias digitais no ambiente
urbano se traduz no uso de algoritmos cada vez mais complexos,
muito além dos comandos binários dos semáforos (prossiga/pare),
orientando por meio de imagens, mapas, fontes tipográficas, grifos
de texto, notificações, vibrações e uma miríade de outros
estímulos. Algoritmos abrem portas para inúmeras possibilidades
de comandos individualizados e multifacetados, que levam em
conta informações diversas como a identidade do usuário, suas
preferências, a disposição física do ambiente urbano, a distribuição
e o comportamento de indivíduos pela cidade. Esses comandos são
orientados pelas decisões éticas, políticas e econômicas dos atores
que integram a cadeia de oferecimento de um serviço.
Nesse contexto, visa-se a realizar estudo dos efeitos éticos
provocados pelo emprego de serviços algorítmicos na estrutura
social e urbana. Tendo em vista o impacto transformativo dessas
tecnologias, é importante discutir a relação entre o destinatário do
serviço (os que usam) e as diversas estruturas econômicas e
políticas que integram a cadeia que disponibiliza um serviço
digital, incluindo o setor público e o setor privado (os que
produzem).

1. A ÉTICA DOS DADOS E A VIDA


URBANA

“Algoritmo” é um termo empregado de forma bastante ambígua na


mídia e até mesmo no universo acadêmico. O termo pode fazer
referência a um sistema conceitual de passos, gerando um
resultado a partir de um valor de entrada[12], como também mais
amplamente ao resultado da ação conjunta de software, hardware
e atores em cadeia[13]. Nessa parte, discutir-se-á como o uso de
algoritmos pode ter efeitos éticos na sociedade[14] e como
tecnologias podem ocultar a complexidade de suas longas e
intrincadas operações, produto de decisões e políticas individuais
e institucionais.

1.1. Dados como representação da realidade


Quando discutimos os efeitos de algoritmos na sociedade, somos
confrontados com um perigoso discurso que confunde dados com
informações que depreendemos da nossa percepção da realidade e
com a realidade em si. A realidade é uma fonte infinita de
informação, que só pode ser comunicada e representada por meio
de um conjunto finito de significantes[15]. Assim, a coleta de dados é
um ato, consciente ou não, que reduz a complexidade infinita da
realidade e a representa de maneira limitada e caricata, em
migalhas de informação que chamamos de “dados”. Por sua vez, a
mensuração e a representação dessa realidade são feitas por meio
de instrumentos de análise empírica e do uso de escalas
arbitrárias. São distorções inerentes ao processo. Elas geram a
inclusão ou a exclusão de informações no ato comunicativo e são
orientadas por decisões tomadas pelos atores que criam e mantêm
as bases de dados, assim como os instrumentos que as alimentam.
Esse ato comunicativo decide como e qual parcela da realidade
será representada na operação do algoritmo e, por consequência,
na alocação de recursos na sociedade. Esses serviços operam com
pequenas representações de fragmentos da realidade e das nossas
identidades, que são criadas ad hoc e operacionalizadas
internamente nos sistemas dos prestadores de serviço. Os
usuários dos serviços ou outros interessados são impedidos de
perceber ou contestar as decisões e ações que resultam da
utilização de algoritmos[16].
Por exemplo, a coleta de dados sobre gênero, CEP ou idade são
criações conscientes de categorias que serão preenchidas em
alguma base de dados com o propósito de distinguir, avaliar e
agrupar pessoas segundo os interesses próprios da cadeia de
atores que oferece o serviço. A criação de categorias é em si um
ato de predeterminar a inclusão e a relevância de informações.
Contudo, essas formas de representação não condizem
necessariamente com o que os indivíduos e a sociedade
consideram como as informações adequadas e corretas para a
alocação de direitos e recursos.
Esses dados podem, inclusive, servir de intermediários para
outras informações. O CEP pode, por exemplo, ser usado para
representar a classe social dentro da operação de um algoritmo[17],
servindo de indicador da região em que uma pessoa mora. Isso
significa que, além da representação distorcida da realidade, dados
podem mediar políticas discriminatórias e operar categorias que
servirão de critérios de análise, legítimos ou não, dos algoritmos
que operam as ferramentas digitais da cidade.

1.2. Desequilíbrio nos instrumentos de coleta de


dados

Além da formulação de categorias, a distribuição dos instrumentos


de coleta de dados também afeta como e qual parcela da sociedade
será representada no processamento de algoritmos. As
informações que regem as cidades inteligentes podem vir de uma
pluralidade de dispositivos públicos ou privados. Celulares,
relógios, carros, óculos, câmeras de vigilância, redes sociais: são
inúmeros mecanismos que podem metrificar e medir o
comportamento social.
A falta de acesso às estruturas físicas e digitais de coleta de
dados tanto públicos quanto privados pode provocar o aumento de
disparidades sociais. A mesma parcela que dispõe de menos
aparelhos conectados à internet é a parcela mais desfavorecida
economicamente, que não só vive às margens físicas, mas também
estruturais da cidade. Assim, trechos urbanos que dispõem de mais
recursos acabam tendo maior riqueza de dados, alimentando de
forma desigual os algoritmos e bases de dados que gerenciam e
adaptam os serviços informacionais. Inversamente, quem está às
margens da coleta de dados fica também às margens do serviço[18].
Voltando ao exemplo do Waze, usuários de uma rua da periferia
de São Paulo, trafegada por pessoas que não dispõem de
smartphones ou acesso à internet móvel, não vão aproveitar os
mesmos benefícios que usuários de vias movimentadas devido à
simples discrepância na matéria-prima de análise. Além disso, o
Waze não só oferece o serviço de navegação, como também de
publicidade para comércios locais, além de ceder dados para
terceiros. Usando sua plataforma, o Waze consegue influenciar o
consumo do seu próprio serviço, assim como o consumo dos bens
e serviços de terceiros[19]. Cria-se então mercados distintos,
indiretamente baseados em critérios sociais, devido à disparidade
de influência do serviço algorítmico.
Essa questão é menos trivial do que parece, pois se estabelece
uma estrutura de favorecimento àqueles que já detêm uma
vantagem financeira ou tecnológica. Nessa dinâmica, o algoritmo
dá poder àqueles que oferecem mais dados. Um exemplo
importante é o do Google Maps que, em regiões disputadas da
Palestina e de Israel, marcava um território a partir da língua
utilizada e do volume dos usuários[20][21]. O aplicativo coletava
dados sobre a linguagem usada no domínio de acesso para
determinar qual mapa o usuário veria.
A representação cartográfica de uma cidade é um importante
ato político, que comunica aos cidadãos, entre outras coisas, o
território urbano e a sua disposição. A introdução de um serviço
cartográfico privado, surgindo de parcerias não regulamentadas,
insere um outro sistema de legitimação, decisão e comunicação
sobre a realidade urbana. Como no exemplo mencionado, no
Google Maps, o sistema que define a representação de territórios
nacionais usa a quantidade de dados fornecida pelas partes de uma
disputa territorial para determinar a vencedora. Nesse contexto, a
empresa impõe seu próprio método de solução sobre uma disputa
territorial internacional e comunica essas novas fronteiras aos
usuários. Assim, além de ser necessário regular a empresa que está
tomando decisões políticas, também é importante reconhecer que
a questão do acesso a dispositivos privados (smartphones) afeta a
representação tanto nas disputas territoriais quanto na política
imposta pela empresa.

1.3. Ausência de padronização técnica da coleta


de dados
Na linha do que foi dito antes, a pluralidade de aparelhos usados na
coleta de dados também cria disparidades técnicas com relação
aos instrumentos e conteúdo das bases de dados sendo utilizadas.
Instrumentos diferentes coletam dados usando sensores e
procedimentos distintos. Nesse sentido, a diversidade de modelos,
fabricantes e serviços, e mesmo a obsolescência natural (e rápida)
de tecnologias, gera incongruências operacionais de serviços em
larga escala, que não operam em sistemas homogêneos de coleta e
categorização de dados.
A ausência de padronização cria problemas, por exemplo,
quando dados são usados para gerar informações sobre a saúde
dos usuários. A informação obtida é dependente de estruturas e
técnicas detidas por empresas, que não operam necessariamente
no mesmo padrão de instrumentos e de organização de
informação. Isso cria dificuldades sobre como se coleta, processa e
emprega a informação obtida, bem como sobre como usar tal
informação para motivar ações do poder público[22]. Além disso, o
emprego público de dados pode ser usado para legitimar um
procedimento de coleta de dados que favorece interesses
privados[23]. Como elucida Frank Pasquale[24], há uma confusão cada
vez maior entre os papéis dos entes públicos e privados no
tratamento e na aplicação desses dados.
A crescente dependência de serviços privados de coleta e
tratamento de dados não é um processo evidente à sociedade.
Num caso célebre de 2009, a Google conseguiu rastrear a difusão
da epidemia de H1N1 com mais agilidade do que o Centro de
Controle e Prevenção de Doenças[25] americano, usando uma base
de dados contendo aproximadamente 50 milhões de entradas de
pesquisa com “febre” e “tosse”[26]. A agência nacional requereu os
dados da Google e passou a contar com os estudos da empresa
para acompanhar os focos epidêmicos. Vê-se que a empresa
assumiu um papel central na saúde pública por meio da
superioridade técnica.
Ainda no tema da saúde pública, podemos também mencionar o
caso da Aviva, uma seguradora americana que, usando informações
coletadas apenas por meio de smartphones, conseguiu prever com
alto grau de precisão o resultado dos exames de urina de seus
usuários[27]. Esse tipo de informação, obtida em massa, facilmente e
em tempo real, pode ser usada em larga escala para políticas
públicas de saúde e no aprimoramento do serviço público. Apesar
dos potenciais benefícios, há etapas de institucionalização
importantes que estão sendo ignoradas no processo de adoção
desses serviços. Além de não querermos que uma seguradora
tenha acesso a informações tão sensíveis sem nosso
consentimento, não queremos que a superioridade técnica obtida
por meio dessas informações permita que uma empresa privada
paute a elaboração de políticas públicas de saúde.
Dentro do escopo deste estudo, o caso levanta muitas questões.
Quais são as pessoas representadas (especialmente em 2009) pelas
buscas no motor da Google? Como avaliar se entradas em motores
de busca podem ser um critério preciso e legítimo para se mapear
a difusão de uma doença? Sobretudo, como deve ser encarada a
relevância e o poder da Google sobre as decisões de políticas
públicas que vieram na sequência? Mesmo com relação à
epistemologia desses processos, é necessário definir quais tipos de
inferência são consideradas suficientes para motivar e orientar
políticas públicas[28].

1.4. Quantificação da realidade e de direitos

Algoritmos trabalham com métricas de análise. Isso significa que


toda informação que será processada pelo algoritmo tem de ser
convertida em algo (ostensivamente) objetivo e mensurável[29].
Todo ato de tradução da realidade acarreta a representação
distorcida de um fato. Nessa conversão, um atributo singular de
algo infinitamente complexo é escolhido para (i) ser uma
informação comparativa em uma escala arbitrária e (ii) ser
representativo da complexidade de um todo mais amplo.
Para ilustrar esse ponto, podemos partir de uma analogia
simples: o Teste de QI, cuja métrica supostamente avalia a
capacidade cognitiva de um indivíduo e a resume em poucos
dígitos. Esse teste é abstraído e generalizado para representar uma
escala de inteligência, competência que envolve larga variedade de
capacidades. Contudo, essa generalização é tão comum quanto
falaciosa e todas as nuanças de um indivíduo são enquadradas em
uma representação simplista.
O sistema jurídico é repleto de seus “Testes de QIs”. Vestibulares
e concursos públicos são os exemplos mais óbvios, mas muitos
direitos orbitam patamares arbitrários, como idade, renda, gênero,
anos de trabalho entre outros. No emprego de serviços
algorítmicos, os efeitos são semelhantes e temos pequenos testes
de QI em cada instância de produção de dados. Cria-se, assim,
perigosa representação simplista e arbitrária da realidade de forma
sistemática e opaca. Isso se dá, para piorar, por meio de um
discurso que atribui objetividade aos algoritmos e à realidade com
a qual eles interagem, escondendo do escrutínio público os vieses
e as decisões subjacentes[30]. Essa abordagem cria a falsa
percepção de que o algoritmo é instrumento objetivo e que
direitos sempre podem ser operacionalizados a partir de relações
matemáticas. Por exemplo, basta ver como o serviço COMPAS é
usado para a avaliação do risco de reincidência de um réu em um
processo criminal para se avaliar a concessão de fiança[31], mas para
operar coleta informações como etnia, gênero, emprego e idade
para oferecer um dado estatístico que acaba influenciando na
concessão da fiança.
Essas arbitrariedades e distorções, instrumentalizadas por bases
de dados e algoritmos, passam despercebidas e incontestes em
ferramentas privadas e públicas. Quando essas tecnologias se
acoplam a serviços públicos, arbitrariedades invisíveis influenciam
a fruição de direitos, sob o véu de ferramentas “objetivas” e
estudos quantitativos. Essa lógica é fundamentalmente destoante
de como operamos direitos e valores na sociedade.

2. A INTERFACE ENTRE A TECNOLOGIA


E A SOCIEDADE
Além dos efeitos provocados pelo uso de algoritmos nos serviços
digitais, é necessário compreender como essas novas ferramentas
são empregadas pela sociedade e como essa relação pode ter
efeitos éticos. Além do nível do código, é essencial analisar
também como algoritmos influenciam o uso do serviço na
sociedade. Gillespie descreve essa concepção mais ampla como o
uso que atribuímos aos algoritmos dentro de um plano
sociotécnico[32]; ou seja, uma análise do código não como
ferramenta em si, mas como uma peça que a sociedade incorpora
na sua própria dinâmica de interações.
Aqui, alarga-se o conceito de algoritmo para se obter um nível
de análise sociológico. Entendemos o algoritmo não só como uma
ferramenta, mas também como um agente na trama social[33]. A
sociedade sempre dependeu de ferramentas para operacionalizar a
organização social e jurídica. A vida em uma “cidade inteligente”
reflete, por excelência, a integração infraestrutural de tecnologias
da informação e comunicação na gestão de cidades, por isso
precisamos estudar como esses processos impactam a organização
urbana e social.

2.1. Estruturas técnicas como intermediários de


direitos

Com a aproximação de entes públicos e privados na criação e


incorporação de tecnologias e com a crescente complexidade
oculta desses objetos, torna-se difícil compreender como e
quando essas ferramentas estão gerenciando direitos e recursos. O
caso da Palantir Technologies é um bom exemplo de como
algoritmos podem ser usados pelo poder público para a tomada de
decisões que impactam diretamente as liberdades individuais dos
cidadãos. O serviço usa a coleta de dados em larga escala e
algoritmos para fins de investigação criminal e antiterrorista[34]. Os
dados que alimentam esses sistemas vêm das ferramentas públicas
e privadas presentes no ambiente urbano, como smartphones e
câmeras de vigilância.
Inclusive, em alguns casos, essas ferramentas são incorporadas
no aparato burocrático do poder público, sem que esse repertório
operacional passe pelos mecanismos tradicionais de legalidade e
legitimação. Temos exemplos importantes tanto na justiça
estadunidense, como mencionado, quanto no algoritmo de
distribuição aleatória de processos nas cortes brasileiras[35],
impactando em direitos fundamentais, como o juiz natural e o
direito de fiança. A evolução não planejada de uma “cidade
inteligente” pode acabar aprofundando o processo de automação e
enraizamento dessas tecnologias já operantes, orientando o
policiamento, o tráfego e mesmo decisões judiciais. Nos exemplos
apresentados, se não houver controle, transparência e
accountability sobre o sistema de coleta e uso desses dados, a
mesma tecnologia poderá ser usada tanto para orientar o serviço
público de saúde quanto para motivar práticas comerciais
discriminatórias[36].
A tecnologia pode aparentar simplificar processos, mas em
muitos casos ela concentra e oculta uma série de operações[37].
Isso significa que toda uma dimensão de decisões, circunstâncias e
possibilidades é pré-configurada e simplificada por essas
estruturas técnicas e só então oferecida ao usuário, balizando as
alternativas de comportamento.
Essas ferramentas concretizam, assim, decisões e ações e
estabelecem uma cadeia relacional entre os atores que fornecem,
gerenciam e consomem seus serviços, gerando a inclusão ou a
exclusão de poder na cadeia de interessados e prestadores. Temos
a ilusão de que a tecnologia tornou imediato um serviço,
possibilitando a fruição instantânea e acessível por ferramentas
digitais. Na realidade, a tecnologia insere mais intermediários
tanto na execução do serviço quanto nas decisões das pessoas e
instituições encarregadas.
O detentor da plataforma torna-se, então, mais um
intermediário na cadeia entre o fornecimento e uso de um bem
público ou direito individual[38]. Além de balizar o comportamento
individual, os detentores de plataformas e seus parceiros
comerciais podem se tornar gatekeepers (“guardiões”) do acesso a
bens públicos. Num cenário em que o Google Maps dispõe de
superioridade informacional sobre o transporte público, podendo
gerar a rota ótima instantaneamente e informar a demora dos
ônibus com base em inferências estatísticas, ele se torna um
“guardião” desse serviço, sendo um intermediário por vezes
necessário para o usuário (cidadão?) conseguir fruir do transporte
público.
2.2. A relação da cidade e das empresas com o
cidadão-usuário

O acoplamento de serviços privados à fruição de bens e serviços


públicos pode provocar a mistura conceitual de cidadão e
usuário[39]. Um serviço hegemônico usado por todos os habitantes
de uma cidade não presta serviço aos cidadãos, mas sim aos
usuários. O fato de um serviço ser prestado em larga escala e haver
dependência social dele não o torna público nem o legitima para
ser incorporado diretamente como serviço de prestação do poder
público.
Nos serviços algorítmicos privados, os usuários são
simultaneamente consumidores e produtores de um serviço; ou
seja, enquanto utilizam um serviço digital, eles também fornecem
dados que são coletados e rentabilizados pelos prestadores. Essa
lógica é fundamentalmente dissonante do que esperamos do poder
público, pois toda receita gerada pelas prestações estatais
encontra previsão em lei, cuja finalidade é a prestação direta ou
indireta à sociedade.
A ubiquidade entre os “usuários”, ou seja, a hegemonia de
mercado, não legitima a regulação do comportamento dessas
pessoas como cidadãos. Analisando em detalhe, a adoção de
serviços privados para prestações públicas gera mudanças
significativas na dinâmica de poder sobre o uso e a
disponibilização da informação. Existe necessariamente um
desalinhamento entre o público e o privado quanto à estrutura de
coleta de dados e à prestação de serviços[40]. A tendência é que o
público disponibilize seus dados para organizações privadas, tanto
por estruturas jurídicas, como por meio de políticas de dados
abertos ou de acesso à informação, quanto visando aprimorar seus
serviços e obedecer a direitos de acesso à informação (e.g.
disponibilizando informações de trânsito). A iniciativa privada, por
outro lado, tem a tendência de “hermetizar” cada vez mais seus
dados, pois a exclusividade sobre suas bases está diretamente
ligada ao desenvolvimento dos seus serviços e sua vantagem
competitiva no mercado[41].
O desequilíbrio na coleta e troca de informações, junto com a
“hermetização” e concentração de poder por instituições privadas
leva a crescentes parcerias e dependência do poder público sobre
esses serviços. A relação entre os dois torna-se menos clara e
definida. Por exemplo, o caso do Bilhete Único do transporte
público de São Paulo coletar e vender dados dos seus 5 milhões de
usuários[42] aponta para circunstâncias em que o interesse privado
monetiza um vácuo legislativo e estabelece uma relação de troca
com companhias privadas. Essa abundância de dados pessoais, até
então disponível apenas para o poder público, alimenta bases de
dados e algoritmos privados, que têm o usuário de transporte
público como um consumidor e produtor ao mesmo tempo. Uma
estrutura pode servir concomitantemente ao público e ao privado,
e isso pode ferir o direito do cidadão ou do usuário que concede
seus dados a um serviço.

2.3. Filosofia da “Cidade como uma Empresa”


É imprescindível discutir as relações entre o poder público e os
serviços privados no ecossistema urbano. A tendência é que o
município seja obrigado a gerenciar diversos serviços e a garantir a
qualidade e a justiça das prestações, em vez de organizar
mecanismos de prestação direta ou indireta. Nesse cenário, o
município perde seu papel de planejador urbano e se torna uma
“empresa”[43], gestora de um pluralidade de serviços urbanos.
Esse “gestor deliberativo” adquire características de
intermediador entre cidadãos e serviços em vez de prestador.
Muitas discussões devem surgir acerca dessa nova posição do
município como gestor de informação e serviços, por exemplo: (i)
quanto o poder público pode suprir a demanda social e (ii) como
prevenir que serviços concentrem poder econômico excessivo e
político por meio da inovação. Sobre a última, vale questionar se
esse é o modelo institucional que queremos do gestor urbano.
A reconfiguração de poder em cidades inteligentes também é
resposta a uma crescente demanda imediatista por parte da
sociedade. A interação com o município e o ambiente urbano vem
convergindo por meio de plataformas digitais, sendo canalizada
por smartphones e computadores. A sociedade interage com o
poder público pelas diversas mídias e vem se acostumando com o
dinamismo das comunicações digitais. A incorporação de
ferramentas digitais torna os períodos de espera pela burocracia
tradicional incompatíveis com a efervescência de necessidades e
serviços da sociedade urbana atual. Informações, respostas e
decisões precisam vir à sociedade com o dinamismo de um
aplicativo.
De fato, essa celeridade é inerente à vida moderna. A
dinamização das estruturas burocráticas assim como a
complexificação de serviços e atores surgem como reação natural
de sociedades que estão se transformado com ciclos acelerados de
inovação, principalmente na área de tecnologia de informação e
comunicação. A cidade-empresa nasce da insuficiência de
gerenciar demandas sociais e mercados que surgem no plano
diverso e dinâmico da sociedade. O perigo jaz na intermediação
velada dos mecanismos de participação social na governança
pública. É necessário impedir que o processo de domesticação da
tecnologia seja meio de captura de funções e estruturas de
interesse público.

CONCLUSÃO

O uso de tecnologias da informação privadas na gestão de


infraestrutura é tentador e, em alguma medida, inevitável.
Contudo, é imprescindível que haja transparência e participação
pública na criação e implementação desses sistemas. São muitas as
promessas que surgem com a efervescência tecnológica e foge ao
escopo deste artigo discuti-las. Temos a impressão de um vasto
horizonte de ganhos e eficiência, mas os números desses sistemas
omitem uma série de valorações e decisões políticas que são feitas
no desenho, emprego e manutenção de tecnologias.
Serviços algorítmicos são muito pouco úteis para identificar suas
próprias limitações e ineficiências, o que pode facilitar para que
vieses e distorções passem despercebidos e que o dano à
sociedade só seja percebido apenas a posteriori. São muitas as
soluções possíveis para esses desafios, como a implementação de
políticas de dados abertos, de mecanismos de transparência e de
auditoria de algoritmos, assim como o surgimento de instituições
públicas especializadas. A formulação de soluções deve ser objeto
de estudos futuros.
As estruturas de tecnologia da informação podem provocar
importantes efeitos transformativos na sociedade, devendo isso
ser encarado antes de sua implementação. Se não forem analisados
com consciência política, os efeitos éticos dessas tecnologias da
informação serão silenciosamente absorvidos pela sociedade e sua
análise retroativa poderá ver a resistência a essas tecnologias
como ingênua ou absurda[44]. Após sua implementação, instituições
e estruturas jurídicas serão necessárias para identificar e corrigir
vieses e danos provocados pelo emprego da tecnologia, assim
como atribuir responsabilidade na cadeia de atores responsáveis
pela prestação do serviço algorítmico.
Há muito espaço para discussão acerca da relação público-
privada na coleta e tratamento de informação, força motriz do
desenvolvimento tecnológico contemporâneo. Nessa linha,
também é necessário discutir como a cidade se organiza em meio
ao uso de novos serviços e como esses podem ser empregados
visando ao desenvolvimento social. Temos de refletir não apenas
sobre o benefício imediato de prestações mais eficientes, mas
também sobre a promoção e a proteção de direitos na vida urbana.
1. Advogado, pesquisador do Computational
Propaganda Project do Oxford Internet
Institute, pesquisador no Departamento de
Ciência da Computação da University of
Oxford, mestrando em Ciências Sociais da
Internet na University of Oxford, mestre em
Direito e Internet pela Université Paris 1
Panthéon-Sorbonne, bacharel em Direito pela
Universidade de São Paulo. ↵
2. Agradeço à equipe do ITS Rio, especialmente
ao Sérgio Branco, à Chiara de Teffé e ao Victor
Vicente por organizar o Grupo de Trabalho em
Cidades Inteligentes. Agradeço aos meus
colegas pelos encontros do grupo de pesquisa,
que muito me ensinaram ao longo do ano.
Agradeço ao Diego Canabarro pelas conversas,
reflexões e sugestões que deram origem a este
texto. Agradeço também aos amigos André
Ferreira, Beatriz Kira e Marianna de
Vasconcellos e ao meu pai, Flávio Machado,
pelos comentários valiosos. ↵
3. WINNER, L. Do artifacts have politics?. The
MIT Press on behalf of American Academy of
Arts & Sciences, v. 109, n. 1, 1980. ↵
4. Sobre o uso da arquitetura para repelir
moradores de rua de uma região, ver SCARPIN,
P. Morar na rua em Ipanema. Piauí, maio 2010.
Disponível em:
http://piaui.folha.uol.com.br/materia/morar-
na-rua-em-ipanema/. Acesso em: 11 jun. 2018.

5. Sobre o desenho de bancos que impedem
moradores de rua de passar a noite nas
estações de metrô de Paris, ver HASSE, B.
Paris: des bancs anti-SDF dans le métro font
polémique. Le Parisien, 20 mar. 2017.
Disponível em:
http://www.leparisien.fr/paris-75019/paris-
au-metro-stalingrad-les-bancs-anti-sdf-
creent-la-polemique-20-03-2017-
6780054.php. Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
6. LESSIG, L. Code version 2.0. New York: Basic
Books, 2006. ↵
7. Sobre detalhes da parceria de troca de
informações entre a prefeitura de São Paulo e
o Waze, ver SECRETARIA ESPECIAL DE
COMUNICAÇÃO, Prefeitura de São Paulo
anuncia parceria com o Waze. 20 set. 2017.
Disponível em:
http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeit
ura-de-sao-paulo-anuncia-parceria-com-
waze. Acesso em: 11 jun. 2018 ↵
8. SUNSTEIN, C. R. Why Nudge? The Politics of
Libertarian Paternalism. Yale University Press,
2014. ↵
9. JAUME-PALASI, L.; SPIELKAMP, M. Ethics and
algorithmic processes for decision making and
decision support. AlgorithmWatch Working
Paper, n. 2, p. 1-18, 2017. ↵
10. FLORIDI, L.; TADDEO, M. What is data ethics?
Philosophical Transactions of the Royal Society
A: Mathematical, Physical and Engineering
Sciences, v. 374, n. 2083, 2016. Disponível em:
https://doi.org/10.1098/rsta.2016.0360.
Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
11. ANANNY, M. Toward an Ethics of Algorithms:
Convening, Observation, Probability, and
Timeliness. Science Technology and Human
Values, v. 41, n. 1, p. 3-16, 2016. Disponível em:
93–117.
https://doi.org/10.1177/0162243915606523.
Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
12. DONEDA, D.; ALMEIDA, V. A. F. What Is
Algorithm Governance? IEEE Internet
Computing, v. 20, n. 4, p. 60-63, 2016.
Disponível em:
https://doi.org/10.1109/MIC.2016.79. Acesso
em: 24 abr. 2018. ↵
13. GILLESPIE, T.; BOCZKOWSKI, P. J.; FOOT, K. A.
Introduction. In: GILLESPIE, T. et al. (ed.).
Media Technologies: Essays on Communication,
Materiality, and Society. MIT Press Scholarship
Online, 2014. p. 1-22. Disponível em:
https://doi.org/10.7551/mitpress/978026252
5374.001.0001. Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
14. MITTELSTADT, B. D.; ALLO, P.; TADDEO, M.;
WACHTER, S.; FLORIDI, L. The ethics of
algorithms: Mapping the debate. Big Data &
Society, v. 3, n. 2). Disponível em:
https://doi.org/10.1177/2053951716679679.
Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
15. FRIEDLER, S. A.; SCHEIDEGGER, C.;
VENKATASUBRAMANIAN, S. On the
(im)possibility of fairness. Disponível em:
http://arxiv.org/abs/1609.07236. Acesso em:
26 abr. 2018. ↵
16. CHENEY-LIPPOLD, J. We Are Data. New York:
New York University Press, 2017. ↵
17. Sobre como o código postal pode ser usado
como indicador de classe social ver DANESH,
J.; GAULT, S.; SEMMENCE, J.; APPLEBY, P.;
PETO, R. Postcodes as useful markers of social
class: population based study in 26 000 British
households. BMJ, 4 dez. 1998. Disponível em:
http://www.bmj.com/content/318/7187/843.
Acesso em: 11 jun. 18. ↵
18. Por exemplo, vale ver como a medicina
especializada pode reforçar vieses sociais em
MULLIN, E. The high-tech medicine of the
future may be biased in favor of well-off white
men. MIT Technology Review, 26 fev. 2018.
Disponível em:
https://www.technologyreview.com/s/61036
7/the-high-tech-medicine-of-the-future-
may-be-biased-in-favor-of-well-off-white-
men/amp/. Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
19. MAYER-SCHÖNBERGER, V.; RAMGE, T.
Reinventing Capitalism in the Age of Big Data.
Basic Books, 2018. ↵
20. PURCELL, M. The city is ours (if we decide it
is). In: SHAW, J.; GRAHAM, M. (ed.). Our Digital
Rights to the City. Meatspace Press, 2017. p. 30-
33. Disponível em: https://meatspace
press.org/our-digital-rights-to-the-city/.
Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
21. Para mais exemplos, ver o vídeo do projeto
Human Interests no Patreon sobre como a
Google é obrigada a tomar e aplicar decisões
de relevância política territorial em países e
cidades em GOOGLE Maps is Different in
Other Countries. Human Interests. 1 mar. 2018.
6:48 min, son., color. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?
v=q9ZMub2UrKU . Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
22. MITTELSTADT, B. D. et al. The ethics of
algorithms: Mapping the debate. Big Data &
Society, v. 3, n. 2, p. 1-21, 2017. Disponível em:
https://doi.org/10.1177/2053951716679679.
Acesso em: 26 abr. 2018. ↵
23. Sobre o uso de dados públicos para promover
estratégias comerciais, ver como a coleta do
número de CPF nas farmácias pode ser usado
na criação de perfis de consumidores em
MARCHETTI, B. A distopia do 'me fala o CPF'
nas farmácias do Brasil. Vice, 15 fev. 2018.
Disponível em:
https://www.vice.com/pt_br/article/9kzbx5
/por-que-farmacias-insistem-para-ter-seu-
cpf. Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
24. PASQUALE, F. The Black Box Society: The
Secret Algorithms That Control Money and
Information. Harvard University Press, 2015.
Disponível em:
https://doi.org/10.4159/harvard.97806747360
61. Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
25. Tradução livre de U.S Centers for Disease
Control and Prevention.↵
26. SCHÖNBERGER, V. M.; CUKIER, C. Big Data:
como extrair volume, variedade, velocidade e
valor da avalanche de informação cotidiana.
Elsevier, 2013. Disponível em:
https://www.phc.ox.ac.uk/research/big-
data. Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
27. Idem. ↵
28. MITTELSTADT, B. D. et al. The ethics of
algorithms: Mapping the debate. Big Data &
Society, v. 3, n. 2, p. 1-21, 2017. Disponível em:
https://doi.org/10.1177/2053951716679679.
Acesso em: 26 abr. 2018. ↵
29. FRIEDLER, S. A.; SCHEIDEGGER, C.;
VENKATASUBRAMANIAN, S. On the
(im)possibility of fairness. Disponível em:
http://arxiv.org/abs/1609.07236. Acesso em:
26 abr. 2018. ↵
30. GILLESPIE, T.; BOCZKOWSKI, P. J.; FOOT, K. A.
Introduction. In: GILLESPIE, T. et al. (ed.).
Media Technologies: Essays on Communication,
Materiality, and Society. MIT Press Scholarship
Online, 2014. p. 1-22. Disponível em:
https://doi.org/10.7551/mitpress/978026252
5374.001.0001. Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
31. Sobre o estudo da ferramenta COMPAS -
Northpointe feito pela ProPublica ver
ANGWIN, J.; LARSON, J.; MATTU, S.;
KIRCHNER, L. Machine Bias. ProPublica, 23
maio 2016. Disponível em:
https://www.propublica.org/article/machine
-bias-risk-assessments-in-criminal-
sentencing. Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
32. GILLESPIE, T. Algorithm. In: PETERS, B. (ed.).
Digital Keywords. New Jersey: Princeton
University Press, 2016. p. 18–30. ↵
33. LATOUR, B. Reassembling the Social: An
Introduction to Actor-Network Theory.
Politica y Sociedad. Comparative Sociology, v. 7,
n. 4, p. 500-502, 2008. Disponível em:
https://doi.org/10.1163/156913308X336453.
Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
34. Sobre o caso da Palantir Technologies e seu
uso no policiamento preditivo em Nova
Orleans ver WINSTON, A. Palantir has secretly
been using New Orleans to test its predictive
policing technology. The Verge, 27 fev. 2018.
Disponível em:
https://www.theverge.com/2018/2/27/17054
740/palantir-predictive-policing-tool-new-
orleans-nopd. Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
35. Sobre como a distribuição de processos do
Supremo Tribunal Federal usa um algoritmo
opaco ver CHADA, D.; HARTMAN, I. A. Jota, 25
jul. 2016. Disponível em:
https://www.jota.info/stf/supra/distribuicao
-dos-processos-no-supremo-e-realmente-
aleatoria-25072016. Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
36. Sobre a regulação de algoritmos e mecanismos
de accountability e transparência ver
RICHARDSON, R. New York City Takes on
Algorithmic Discrimination. ACLU, 12 dez. 2017.
Disponível em:
https://www.aclu.org/blog/privacy-
technology/surveillance-technologies/new-
york-city-takes-algorithmic-discrimination.
Acesso em: 11 jun. 2018. ↵
37. KATSH, E.; RABINOVICH-EINY, O. Digital
Justice: Technology and the Internet of
Disputes. Oxford University Press, 2017.
Disponível em:
https://doi.org/10.1093/acprof:oso/97801904
64585.001.0001. Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
38. JAUME-PALASI, L.; SPIELKAMP, M. Ethics and
algorithmic processes for decision making and
decision support. AlgorithmWatch Working
Paper, n. 2, p. 1-18, 2017. ↵
39. WALRAVENS, N.; BALLON, P. Smart Cities. In:
SECOND INTERNATIONAL CONFERENCE,
SMART-CT 2017, 2., 2017, Málaga. Anais…
Cham: Springer, 2017. p. 97-106. Disponível em:
https://doi.org/10.1007/978-3-319-59513-9.
Acesso em: 26 abr. 2018. ↵
40. SHELTON, T.; ZOOK, M.; WIIG, A.. The
“actually existing smart city”. Cambridge
Journal of Regions, Economy and Society, v. 8, n.
1, p. 13-25, 2015. Disponível em:
https://doi.org/10.1093/cjres/rsu026. Acesso
em: 24 abr. 2018. ↵
41. PASQUALE, F. The Black Box Society: The
Secret Algorithms That Control Money and
Information. Harvard University Press, 2015.
Disponível em:
https://doi.org/10.4159/harvard.97806747360
61. Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
42. Sobre a comercialização da base de dados do
Bilhete Único ver DANTAS, T.; DANTAS, D.
Doria oferece dados de usuários do Bilhete
Único à iniciativa privada. O Globo, 17 fev. 2017.
Disponível em:
https://oglobo.globo.com/brasil/doria-
oferece-dados-de-usuarios-do-bilhete-unico-
iniciativa-privada-20942133. Acesso em: 24 abr.
2018. ↵
43. BASTIDAS, V.; BEZBRADICA, M.; HELFERT, M.
Cities as enterprises: A comparison of smart
city frameworks based on enterprise
architecture requirements. In:
INTERNATIONAL CONFERENCE ON SMART
CITIES, 1., 2016, Málaga, Spain. Anais... Málaga,
2017. p. 20-28. Disponível em:
https://doi.org/10.1007/978-3-319-59513-
9_3. Acesso em: 24 abr. 2018. ↵
44. WINNER, L. Do artifacts have politics?. The
MIT Press on behalf of American Academy of
Arts & Sciences, v. 109, n. 1, 1980. ↵
Instagramização da vida: distribuindo
vigilâncias e integrando espetáculos

Anna Bentes[1]

Você faz do Instagram um lugar para descobrir as maravilhas no


mundo. Cada foto e vídeo – desde as menores coisas até as mais
épicas – abre uma janela para as pessoas ampliarem suas
experiências e se conectarem de novas maneiras. [2]

INTRODUÇÃO

As empreendedoras Madelyn Markoe e Jessie Barker, ao lançarem


seu primeiro restaurante, o Media Noche[3], na cidade de São
Francisco, estavam sem inspiração para fazer sugestões ao
designer sobre a decoração do ambiente. Porém, uma orientação
foi clara: “nós queríamos que fosse ‘instagrameável’[4]”. Compondo
o restaurante casual de culinária cubana, o design interior
instagrameável incluiu azulejos florais coloridos, papel de parede
com estampas de bananas, um quadro retrô para apresentação do
menu, um mural externo estampado com flamingos rosas e outros
detalhes que comporiam um ambiente esteticamente amigável
para fotos a serem compartilhadas no Instagram.
Essa não foi a primeira e nem última iniciativa voltada à criação
de photo-friendly background materials em espaços privados para
inspirar postagens na rede social[5]. Também em São Francisco, o
restaurante Bellota[6], com suas lâmpadas personalizadas, permite
aos clientes ajustar a iluminação para uma foto perfeita. Nessa
mesma direção, empresas como Paperwhite Studio[7] se
especializam em projetar cardápios, porta-copos e outros itens de
decoração com design atraente, a fim de transformá-los em iscas
para o Instagram. Ou ainda, no bar Mother of Pearl, em Nova York,
o drink Shark Eye, bebida vermelha servida em uma cabeça de
tubarão de cerâmica, foi eleito o coquetel mais digno de Instagram
pela Time Out New York[8] em 2016.
A estilização de ambientes ou produtos instagrameáveis não
aparece como requisito apenas para o circuito gastronômico, mas
vem também entrando na pauta de algumas instituições
culturais[9]. O terraço do San Francisco Museum of Modern Art,
por exemplo, foi em parte desenhado para incluir vistas que
encorajassem a produção de selfies[10]. Já o Getty Museum, em
Brentwood, rearranjou os espelhos decorativos de uma das
galerias a fim de atrair a produção e o compartilhamento de
imagens. Em uma retrospectiva do artista Jeff Koons, no Centre
Pompidou, em Paris, os visitantes podiam seguir as dicas de
adesivos no chão que indicavam “o melhor lugar para tirar uma
selfie” com uma das obras. Ainda, no site do Birmingham Museum
of Art, em Birmingham[11], Alabama, a instituição descreve a série de
arte de verão como “ouro do Instagram” e oferece uma lista com
os melhores lugares do museu para tirar uma selfie.
Além disso, a busca por espaços instagrameáveis vem orientando
também o mercado de turismo. Embora mantenham sugestões de
pontos turísticos tradicionais, alguns guias de viagens incluem
indicações de “lugares mais instagrameáveis”[12] que não
necessariamente estariam no radar de turistas[13] não fosse pela
perspectiva de produzir uma foto a ser compartilhada no
aplicativo. Dentre essas sugestões, estão pontos da cidade com
street art, tampas de bueiro, faixas de pedestre e túneis de metrô.
O Instagram não estaria transformando apenas espaços físicos,
públicos e privados, objetos e modos de se relacionar com as
cidades[14], mas também as próprias mídias e imagens.
Reconhecendo a relevância de tal mídia social nos novos modos
atuais de produção e circulação de imagens, em seu livro
Instagram and the contemporary image[15], Lev Manovich chama de
“instagramismo” a combinação entre as formas de mídia que
incorporam a captura de imagem e técnicas de design a conteúdos
particulares. Ao se perguntar sobre o papel da plataforma na
história das mídias, o autor afirma que, além de atualizar a câmera,
o papel fotográfico, a sala escura de revelação, o espaço de
exibição e as formas de publicação em um mesmo dispositivo, ela
permite editar as imagens, fazer pesquisas, interagir com outras
pessoas, conversar com fotógrafos, criar coleções fotográficas,
entre outras funcionalidades. Por esses e outros motivos, o autor
entende que “esta única plataforma é um notável desenvolvimento
na história da mídia moderna”[16] e que o instagramismo tornou-se
o estilo de uma aula global de design.
Esses e outros processos nos apontam para o papel central que o
Instagram vem assumindo nos modos de produção e consumo de
imagens, assim como na modulação de nossas experiências com o
espaço, o tempo e o visível por meio de tecnologias digitais nas
sociedades contemporâneas. A relevância desse dispositivo nas
formas de sociabilidade e produção de subjetividade no presente,
portanto, qualificaria o processo que denominamos
instagramização da vida. Sendo um dispositivo entre tantos outros,
qual a especificidade do Instagram que o torna tão central aos
modos de ver e de ser hoje? E quais os efeitos implicados nesse
processo de instagramização da vida?

1. APLICATIVO, EMPRESA E REDE


SOCIAL

Quando o Instagram foi lançado em 2010, já existiam outras


plataformas de sociabilidade on-line para o compartilhamento de
imagens, câmeras nos telefones celulares e também o crescente
desejo de se fazer constantemente visível. Até então, as câmeras
integradas aos telefones celulares começavam a se difundir e, a
cada atualização, melhorava-se a qualidade das imagens. Porém,
ainda não havia serviços dominantes que tornassem o tempo entre
a captura da foto e o compartilhamento, de fato, instantâneo. Era
preciso fazer o upload no computador para, então, compartilhar as
fotos. Ainda, até aquele momento, a qualidade das imagens de
celular destoava significativamente das imagens das câmeras
digitais de uma forma geral. Por isso, para atrair usuários, seus
criadores, o brasileiro Mike Krieger e o americano Kevin Systrom,
tiveram a ideia de aplicar filtros às fotos, conferindo uma
qualidade relativamente melhor ou um efeito estético diferenciado
às imagens produzidas originalmente com os telefones celulares.
Desse modo, as fotos compartilhadas poderiam adquirir um
aspecto de pós-produção em uma temporalidade quase
instantânea.
Assim, combinando a ideia de uma “câmera instantânea” e um
“telegrama” (instant camera e telegram), o Instagram é criado
buscando contornar três questões técnicas simples[17]: (i) a
aparência das imagens que, com a aplicação dos filtros, os usuários
poderiam transformar as fotos de celular medíocres em imagens
aparentemente profissionais; (ii) o compartilhamento de imagens
em múltiplas plataformas de uma forma simples e instantânea; e
(iii) a otimização da experiência de fazer uploads das imagens,
tornando o carregamento de fotos mais rápido e eficiente.
Em uma entrevista realizada em 2014, o cofundador Mike
Krieger[18] comenta: “criamos o Instagram para pessoas que gostam
de ver o mundo de uma forma supervisual […]. Para mim, não é só
um aplicativo de comunicação, mas é uma forma diária de cada
pessoa contar a sua história”. Na seção de perguntas frequentes de
seu site institucional, o Instagram se define da seguinte maneira:

Instagram é uma forma divertida e peculiar de


compartilhar sua vida com amigos através de uma série de
imagens. Tire uma foto com seu celular, em seguida,
escolha um filtro para transformar a imagem em uma
memória para manter para sempre. Estamos construindo o
Instagram para permitir que você experimente momentos
na vida e na de seus amigos através de fotos, enquanto eles
acontecem. Nós imaginamos um mundo mais conectado
através de fotos.[19]

Se o Instagram é uma forma específica de compartilhar momentos


por meio de fotos enquanto eles acontecem, precisamos levar em
conta três aspectos associados ao seu funcionamento.
Em primeiro lugar, o Instagram é uma materialidade por meio da
qual é possível dar um tipo específico de forma para cada um
contar a própria história. Sobre esse aspecto não humano, ele é um
aplicativo que envolve softwares, algoritmos, interfaces e recursos
técnicos particulares, os quais definem os limites e as
possibilidades de ação dos usuários na plataforma. Embora estejam
sob constantes atualizações, os recursos técnicos estruturais do
aplicativo permitem aos usuários criarem um perfil por meio do
qual eles podem compor um álbum pessoal com fotos e vídeos e
também compartilhar imagens que irão desaparecer após 24
horas[20] na seção Stories. Além disso, cada perfil tem acesso a um
feed infinito no qual poderão ser visualizados os conteúdos
compartilhados por outros usuários.
Para que essa forma seja de fato colocada em uso, ela implica
empreendimentos racionalizados por aqueles que desenvolverão
seus limites e possibilidades. Nesse sentido, o Instagram também é
uma empresa, com seus funcionários, programas, discursos,
investimentos, estratégias e formas de capitalização específicas. O
modelo de negócios dessa empresa, assim como outros serviços
digitais, opera segundo uma nova lógica de acumulação chamada
por Shoshana Zuboff[21] de capitalismo de vigilância[22], em que o
monitoramento, a análise e o acúmulo dos dados dos usuários são
as principais ferramentas de capitalização.
Na economia digital, o valor dos dados está intrinsecamente
ligado ao valor da atenção. A prosperidade financeira desse
mercado de dados depende da captura e da mobilização da
atenção dos usuários para que eles passem o máximo de tempo em
suas plataformas. Quanto mais tempo passam enganchados[23] e
engajados, maior é a quantidade de dados acumulados e maior será
a acuidade preditiva dos mecanismos algorítmicos, o que, por sua
vez, aumentará o valor das receitas do serviço. Por isso, as
estratégias desse mercado se voltam para desenvolver
mecanismos de captura da atenção, uma vez que é a partir dessa
mobilização atencional do usuário que ele se manterá agindo e
interagindo nesses serviços, alimentando uma quantidade
incomensurável de informações extremamente lucrativas para
essas empresas. Nesse sentido, os mecanismos do capitalismo de
vigilância coincidem hoje com as operações do que alguns autores
têm chamado de uma nova economia da atenção[24].
Por fim, o terceiro nível que define o Instagram envolve aqueles
que de fato usam esta forma para contar ou compartilhar suas
experiências; por isso, ele é também uma rede social. Ao
estabelecer conexões sociais pelo mecanismo denominado seguir,
cada usuário assume uma dupla posição de seguidor (de outros
perfis) e seguido (por outros perfis). Este tipo de interação não
está necessariamente atrelado a uma relação social a priori para
além do aplicativo, como é o exemplo do Facebook, em que as
conexões se estabelecem sob o termo “amigo”. Ao contrário, os
laços sociais costuram-se pelo interesse de acompanhar
regularmente o conteúdo publicado por aqueles que segue e de ser
acompanhado por aqueles que o seguem.
O interesse em seguir é, portanto, a premissa dos modos de
interação no aplicativo, designando a cada usuário a possibilidade
de observar aqueles que segue e de ser observado por aqueles que
o seguem. Seguir alguém é querer ver o que essa pessoa está
fazendo, com quem ela está andando, por onde ela circula, saber
pelo quê ela se interessa. Inversamente, ser seguido é querer
tornar visível aos espectadores aspectos da própria experiência
cotidiana. Enquanto um dispositivo que estabelece relações sociais
fundamentalmente por meio de imagens, as interações implicam
uma constante troca intersubjetiva de atenção entre os usuários,
em que ora são objeto do olhar do outro, ora atêm seu olhar ao
outro.
Na produção de conteúdos visuais, além dos famosos filtros e
das ferramentas para edição, é possível agregar às imagens outras
camadas de informações, tais como geolocalização, legendas de
texto, emojis, hashtags e marcações de outros usuários. Esses
outros elementos agregáveis são essenciais tanto aos mecanismos
de monitoramento da empresa quanto às dinâmicas de interação
entre usuários dentro e fora do aplicativo. Aos olhos da empresa,
essas informações agregáveis à imagem funcionam como
metadados, considerando que o dado é a imagem, mas que são
adicionados voluntariamente pelo usuário[25]. Aos olhares dos
seguidores, eles funcionam como códigos de leitura para as
imagens, conferindo sentidos e valores ao que é visto nelas.
Por meio desses dados agregados, os seguidores formam um
certo saber, sempre parcial e fragmentado, sobre “o que, quem e
onde” são vistos nas imagens. Esses compósitos de imagem e
informações fracionárias despertam a curiosidade dos
observadores, que têm sua vontade de saber gratificada pela
extrema facilidade em seguir de clique em clique (seja no perfil, na
geolocalização, nas hashtags ou nas marcações) navegando o olhar
sobre tantas outras imagens e informações até quando tiver
interesse, mantendo-se por mais tempo conectado ao serviço.
Mesmo que o usuário forme um saber parcial sobre a vida do
outro pelos recursos do aplicativo (sempre variando caso a caso
em relação ao que é apresentado pelos usuários), as lacunas
deixadas ao seguidor, frequentemente, podem ser preenchidas
com fabulações narrativas e suposições diversas sobre aquilo que
está sendo visto. Ora mais, ora menos elaboradas, essas narrativas,
impressões, associações, conexões e projeções são
constantemente formadas por aqueles que observam.
Com os dados de geolocalização, por exemplo, os usuários
podem integrar à imagem o local onde ela supostamente foi tirada,
ainda que o aplicativo não obrigue que a localização compartilhada
seja a que o usuário de fato se encontre no momento da
publicação. Esse dado geográfico pode se referir a um endereço
específico, estabelecimento comercial, instituição pública,
somente ao nome de uma cidade ou de um país, sendo possível,
inclusive, criar um nome para um determinado local como “Minha
casa” ou qualquer outro título[26]. Esse recurso também é
conhecido pelos usuários como check-in, remetendo ao gesto de
chegar em um lugar e postar uma foto com aquela localização. Ao
clicar na geolocalização de uma imagem, o aplicativo direciona o
usuário a uma seção que agrega outras imagens também marcadas
naquele local (isso vale somente para imagens de perfis abertos).
Assim, esse dado geográfico não é somente uma camada de
informação adicionada a imagens específicas, mas também é uma
ferramenta de busca nos mecanismos do aplicativo. Não à toa, por
conta disso, cresce o interesse de estabelecimentos públicos e
privados em criar ambientes instagrameáveis, uma vez que seus
espaços físicos poderão ser acessados por milhões de usuários,
tanto por meio de seus perfis quanto de sua geolocalização,
quando fizerem uma busca no aplicativo.
Para citar um exemplo de como o compósito de imagem e
informações agregadas pode despertar a curiosidade e a fabulação
dos observadores, em entrevista[27], M.S conta a história de uma
amiga que estava saindo com um rapaz, mas desconfiava que ele
mantinha um segundo relacionamento com uma moça estrangeira.
Sem saber notícias dele por alguns dias, ela suspeitou que a
estrangeira estaria em sua cidade, o que, a seu ver, justificaria o
sumiço do rapaz. Por isso, ela “foi fuxicar a mulher para ver se ela
estava postando alguma coisa daqui” (M.S). Ao entrar no perfil da
estrangeira, viu uma foto publicada com a geolocalização de algum
lugar nos Estados Unidos. Não convencida, ela pergunta às amigas
— incluindo a entrevistada — se elas achavam que alguém poderia
postar uma foto associada a um lugar que ela não estivesse
realmente naquele momento. M.S responde que sim, pois o
aplicativo não obriga que a geolocalização marque o local de onde
a foto foi postada e há pessoas que fazem isso “só de zoeira”. Ela
continua desconfiada e supõe, pela visualização daquela imagem e
de seu dado geográfico, que a estrangeira estaria sim em sua
cidade, mas que ela compartilhou a foto de um lugar onde esteve e
não o lugar que ela estaria naquele momento. “Ela estava nessa
noia” é como M.S descreve essa atitude da amiga.
Nesse caso, o que é visto no Instagram opera como gatilho para
alimentar, como diz M.S em relação à amiga, “uma imaginação
louca, que traz paranoia […], criando uma narrativa que nem faz
muito sentido”. Essa narrativa criada pela amiga é efeito não
apenas de sua desconfiança ou ciúme em relação ao rapaz, mas
também de como aqueles conteúdos são visualizados por meio das
ferramentas do Instagram. Os recursos do aplicativo participam
dessa construção narrativa instigando um olhar que não vê
despretensiosamente, mas que está em busca de saber algo. Ela vai
seguir as pistas por ali disponibilizadas e construir uma narrativa,
seja para confirmar ou contestar qualquer elaboração prévia que
ela tenha sobre uma determinada situação.
Certamente nem todas as imagens vistas na rede social
despertam angústias, paranoias ou elaborações tão refinadas, mas,
ao contrário, podem despertar interesse, curiosidade e
idealizações sobre aquilo que é visto. Embora dependa da
curiosidade e interesse de cada um, as ferramentas do aplicativo
são atores não humanos[28] que fazem agir assim como atores
humanos na construção dessas narrativas. Às vezes, inclusive, a
curiosidade pode ser despertada justamente pela extrema
facilidade de transitar despretensiosamente, por meio do
aplicativo, por tantos conteúdos sobre as diferentes pessoas,
lugares, serviços e não necessariamente por uma busca ativa por
informações como no exemplo da amiga.
Comprado pelo Facebook em 2012 — sendo o primeiro grande
membro do que Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook,
chamaria adiante de Family of apps[footnote]Além do Instagram,
em 2014, a segunda grande aquisição da família do Facebook seria
o Whatsapp. Em uma conferência realizada em março de 2015,
Zuckerberg anuncia sua nova estratégia empresarial para a
empresa “mãe”, que deixa de ser um único aplicativo para tornar-
se uma “família de aplicativos”. Disponível em:
http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2014/10/prec
o-de-compra-do-whatsapp-pelo-facebook-sobe-us-22-
bilhoes.htmle
https://www.informationweek.com/mobile/mobile-
applications/zuckerberg-at-f8-facebook-is-a-family-of-
apps/d/d-id/1319629. Acesso em: 15 jul. 2017 Disponível em:
https://business.instagram.com/. Acesso em: 30 jul. 2018.
[/footnote] —, o Instagram é um dos serviços digitais que está
crescendo em escala global. Com estatísticas que não cessam de se
atualizar, ele conta com mais de 1 bilhão de usuários ativos
mensalmente; 500 milhões de usuários ativos diariamente; mais de
400 milhões ativos no Stories[29]; 95 milhões de imagens publicadas
por dia; 4,2 bilhões de curtidas por dia; 25 milhões de perfis
comerciais; e reúne 32% de todos os usuários da internet[30].
Estima-se que usuários com menos de 25 anos passem mais de 32
minutos por dia e usuários com mais de 25 anos passem mais de
24 minutos por dia no aplicativo[31].
No progressivo processo de popularização do serviço, não
apenas passamos quantitativamente mais tempo dedicados a
compartilhar e a assistir conteúdos visuais na rede social, mas,
como vimos, outros âmbitos e espaços para além do aplicativo
passam a ser contagiados pelo processo. Com gestos quase
instantâneos para se produzir e consumir imagens, combinados à
sua palheta de estilização e edição dos conteúdos, o aplicativo
oferece ferramentas desejáveis às demandas das subjetividades
contemporâneas alterdirigidas[32] e exteriorizadas[33].

2. MODULAÇÕES DO VISÍVEL: A HÍBRIDA


RELAÇÃO ENTRE VIGILÂNCIA E
ESPETÁCULO

Expor e compartilhar aspectos da vida íntima e cotidiana na


internet já se tornaram uma prática extremamente familiar às
subjetividades contemporâneas desde a consolidação da chamada
Web 2.0. Nesse contexto, a relevância cada vez mais acentuada da
visibilidade em processos sociais, culturais, econômicos e políticos
nos aponta para um deslocamento histórico em relação ao eixo em
torno do qual as subjetividades se edificam[34]. Passando de uma
configuração topológica interiorizada própria das sociedades
modernas para um formato cada vez mais exteriorizado, as
subjetividades contemporâneas convocam e incitam
constantemente o olhar do outro no processo de constituição de si
e também na relação com o outro. Assim, para os modos de vida
conectados e visíveis do século XXI, ver e ser visto ganham
“sentidos atrelados à reputação, pertencimento, admiração,
desejo, conferindo à visibilidade uma conotação primordialmente
positiva e desejável”[35].
Configurando um espaço privilegiado para ver e fazer ver
diferentes aspectos de experiências cotidianas, aqui tomamos o
Instagram como um dispositivo estratégico para analisar as
diferentes modulações do visível e assimetrias de olhar, que
integram as lógicas do regime de visibilidade contemporâneo. No
agenciamento sociotécnico[36] presente nesse e também em outros
dispositivos digitais, de um lado, a estrutura técnica do aplicativo
permite uma visibilidade dos usuários aos olhos da empresa
conferida pelos mecanismos de monitoramento; de outro, está
implicada uma visibilidade que os usuários produzem de si e
expõem por meio das imagens que apresentam, mas também uma
visibilidade que consomem por meio das imagens compartilhadas
por outros usuários.
Ao articular essas diferentes modulações do visível, dispositivos
como o Instagram atualizam os elos históricos de dois regimes
ópticos de poder: a vigilância e o espetáculo. Por um lado, os
instantâneos processos de produção, estilização e consumo de
imagem instrumentalizam as novas formas de espetáculo. Por
outro, os mecanismos de monitoramento de dados, estruturais às
tecnologias do aplicativo, alimentam um tipo de vigilância que
diversifica seus propósitos e funções nessa plataforma. Ainda, as
práticas de vigilância transbordam também aos modos de olhar
que os próprios usuários exercem uns sobre os outros, tornando-
se uma prática prazerosa e instrumento do exercício de controle
nas relações com o outro.
Portanto, nas condições de visibilidade[37] presentes no
Instagram, a vigilância e o espetáculo se entrecruzam em um
híbrido de disposições e direcionamentos nas relações entre
olhares e imagens. Ao confluir formas mais e menos simétricas de
olhar, a amálgama entre as práticas de vigilância e de espetáculo
organiza as condições do que é possível ser visto nesse dispositivo
e em diversos outros âmbitos de nossas sociedades. Se hoje
vigilância e espetáculo estão emaranhados em processos diversos,
a emergência histórica desses dois regimes de visibilidade é
associada a contextos distintos.
Segundo as análises do filósofo Michel Foucault[38], o advento da
vigilância como instrumento de poder é localizado no seio do
desenvolvimento das instituições disciplinares no fim do século
XVIII e ao longo do século XIX. Ao identificar no Panóptico,
dispositivo óptico-arquitetônico de Jeremy Bentham[39], o modelo
ideal de funcionamento das sociedades modernas, Foucault
percebe na assimetria de olhares — na qual poucos veem muitos —
uma ferramenta de poder importante na produção de corpos e
subjetividades disciplinados. Nessa composição arquitetônica,
aqueles distribuídos pela construção em anel periférico nunca têm
certeza se estão sendo vistos por aqueles na torre central. Assim,
os vigiados são induzidos a um estado consciente e permanente de
visibilidade, tornando o poder ao mesmo tempo visível e
inverificável, o que assegura seu funcionamento automático e
desindividualizado. Nesta forma centralizada e hierárquica, a
vigilância panóptica orquestra um jogo de sombra e luz no qual as
técnicas de ver induzem a efeitos de poder. A partir desta
distribuição espaço-temporal específica, o Panóptico se constitui
como “uma máquina de dissociar o par ver-ser visto”[40].
Já a noção de espetáculo é associada às proposições do teórico e
ativista Guy Debord em seu livro-manifesto A sociedade do
espetáculo[41], publicado originalmente em 1967. Segundo o autor,
em sua definição mais conhecida, “o espetáculo não é um conjunto
de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por
imagens”[42]. Descrevendo os mecanismos alienantes de poder
característicos dos modos de consumo capitalistas e das mídias de
massa, “o espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou
totalmente a vida social”[43], no qual desloca-se a tônica do ter para
o aparecer. Nesse sentido, para Debord, o espetáculo é uma
tendência a fazer ver por diferentes mediações. Nessa primeira
elaboração, o autor descreve duas formas do funcionamento
espetacular características daquele momento: a concentrada,
referente às técnicas midiáticas centralizadas de Estados
totalitários, e a forma difusa, que acompanha a abundância de
mercadorias dos processos de americanização do capitalismo.
Em uma frase célebre de Vigiar e Punir[44], publicado
originalmente em 1975, Foucault afirma: “Nossa sociedade não é de
espetáculo, mas de vigilância”. Comentada com muitas ressalvas
por alguns autores, tal afirmação parece insuficiente para dar
conta de aspectos fundamentais das sociedades modernas, uma
vez que estas apresentam uma relação complexa entre esses dois
regimes ópticos de poder.
Na concepção foucaultiana, as exuberâncias e o dispêndio da
aristocracia nas cortes das sociedades pré-modernas são
entendidos como uma organização espetacular, que define uma
assimetria do visível na qual muitos veem poucos. Já nas
sociedades disciplinares, o foco de visibilidade é invertido
voltando-se aos indivíduos comuns, que são observados por uma
minoria que exerce o poder segundo o modelo do Panóptico.
Concentrando-se sobre esse aspecto assimétrico dos olhares na
análise de Foucault, o sociólogo Thomas Mathiesen[45] propõe
como contraponto o modelo Sinóptico para se referir ao seu
inverso — muitos vendo poucos — que o autor associa à
emergência e difusão dos meios de comunicação de massa. Desse
modo, no Sinóptico[46], o foco de visibilidade se inverte mais uma
vez, voltando-se não mais aos poucos membros da corte e da
aristocracia, mas às celebridades e popstars dos espetáculos das
mídias de massa. Ao contrário da afirmação de Foucault, Mathiesen
sugere que ambos os modelos (Panóptico e Sinóptico) são aspectos
fundamentais da modernidade, os quais não se excluem
mutuamente. Inclusive, além de se desenvolverem em paralelo de
forma descentralizada, os dois estabeleceram historicamente uma
íntima relação e ambos configuram funções decisivas nas formas
de poder e controle nas sociedades modernas.
Em consonância às ideias de Mathiesen, em diferentes obras,
Jonathan Crary[47] reafirma a importância de considerar ambos os
modelos de vigilância e de espetáculo como tecnologias de poder
fundamentais às sociedades modernas. Segundo Crary, as teses de
Debord insistem no fato de o espetáculo ser uma tecnologia da
separação que, assim como a disciplina e suas formas de vigilância,
funciona a partir de estratégias múltiplas de isolamento,
produzindo sujeitos dóceis e diminuindo a força política dos
corpos. Para o autor, “Debord e Foucault descrevem mecanismos
difusos [grifo do autor] de poder, por meio dos quais os
imperativos de normalização ou conformidade permeiam a maioria
das camadas da atividade social e tornam-se subjetivamente
internalizados”[48].
Da mesma maneira que a disciplina individualiza pelo olhar da
vigilância, o espetáculo envolve a construção de condições que
individualizam, imobilizam e separam os sujeitos, embora situadas
dentro de um mundo em que a mobilidade e a circulação são
ubíquas. A disciplina separa, analisa, diferencia, levando seus
processos de decomposição até as singularidades necessárias e
suficientes e “o espetáculo reúne o separado, mas o reúne como
separado [grifo do autor]”[49]. Enquanto Foucault fala de uma
“coleção de individualidades separadas”, Debord se refere a
“multidões solitárias”.
Quando parte das instituições disciplinares já perdiam sua
eficácia em meados dos anos 1960, Crary[50] argumenta que
dispositivos como a televisão introduziram nos lares estratégias
disciplinares moldadas a outro contexto. Segundo o autor, apesar
dos estilos de vida mais desenraizados e transitórios do pós-
guerra, os efeitos da televisão eram sedentarizantes, fixando os
indivíduos em seus lugares e esvaziando-os de sua eficácia política
assim como os mecanismos disciplinares. Sobre a tão enfática
afirmação de Foucault de que viveríamos em sociedades de
vigilância e não de espetáculo, o autor[51] brinca que o filósofo
francês não devia ter passado muito tempo assistindo televisão,
pois, nela, “vigilância e espetáculo não são termos opostos, como
ele insiste, mas colidem um no outro em favor de um aparato
disciplinar mais efetivo”[52]. Ainda, o autor sublinha que, entre essas
duas tecnologias de poder, a atenção é um elemento chave. Tanto
a vigilância quanto o espetáculo constituem técnicas para
administrar a atenção como formas não coercitivas de poder, para
impor uma homogeneidade perceptiva, que fixam e isolam o
observador por meio da separação.
Desse modo, como formas de articular o olhar e o visível, a
vigilância e o espetáculo florescem como duas faces indissociáveis
da experiência de um sujeito vidente no seio da construção
sóciotécnica das sociedades modernas. Como então essas formas
de ver e fazer ver se atualizam nas sociedades contemporâneas?
No início da década de 1990, em Post-scriptum sobre as
sociedades de controle[53], o filósofo Gilles Deleuze propõe a noção
de controle para explicar as novas forças e mecânicas do poder
que se anunciavam sobrepondo progressivamente as lógicas
disciplinares. Nesse seu breve, porém, icônico texto, Deleuze
mapeou mudanças significativas nos modos de funcionamento
deste novo regime, que não cessam de se confirmar nas primeiras
décadas do século XXI. Se hoje as mecânicas do controle
substituem as da disciplina, não significa afirmar que as técnicas
disciplinares desapareceram por completo, mas sim que as formas
de operação do controle emergem como uma lógica mais precisa
para explicar os deslocamentos históricos que vivemos no
presente.
Segundo Deleuze, enquanto a disciplina operava pelo
confinamento dos corpos no espaço, o controle funciona ao ar
livre. Nesse sentido, as tecnologias digitais, em especial as móveis,
têm um papel fundamental no exercício do controle, uma vez que
sua portabilidade nos permite circular sempre conectados,
dispensando o confinamento como principal estratégia para o
exercício do poder. Da mesma maneira, suas infinitas capacidades
de registro e monitoramento das ações criam novas formas de
produzir conhecimento sobre indivíduos e populações. A céu
aberto, as técnicas de poder tornam-se cada vez mais sutis e
menos evidentes[54], mas não menos eficientes em seus efeitos de
sujeição dos corpos e subjetividades. Assim, como destaca Paula
Sibilia[55], enquanto as disciplinas funcionavam sob a lógica da
parede, em nossas atuais sociedades de controle, impera a lógica
da rede.
Além da mudança na coordenada espacial, o controle também
atualiza as técnicas de poder sobre o tempo. No confinamento
disciplinar, não se parava de começar e, de um espaço fechado a
outro, havia quitação aparente das atividades, das fases e dos
processos. Nas sociedades de controle, em contraposição, nunca
se termina nada. Vivendo uma moratória ilimitada de afazeres e
desejos, o desaparecimento das brechas na organização do tempo
descritas por Deleuze coincide com as modalidades de operação
do que Crary chamou de temporalidade 24/7[56], para descrever a
funcionalidade contínua e acelerada das sociedades no capitalismo
tardio. Na temporalidade 24/7 do controle, o mundo em
ininterrupta atividade é também um mundo que está
permanentemente visível, acessível, conectado, sem sombras e
sem nunca desligar completamente.
Cada vez menos pautados pelos horizontes da normalização
típicos da disciplina, os modos de ser conectados, performáticos,
supervisuais e hipervisíveis das sociedades de controle se
direcionam cada vez mais aos horizontes da otimização[57].
Combinando-se aos princípios do neoliberalismo e dos valores de
uma cultura empreendedora[58], o norte da otimização de si
confere aos indivíduos, em sua liberdade, a responsabilidade de
maximizar seu capital humano[59] e sua performance individual.
Constituindo um modelo de ação a ser incentivado em muitos
cenários da vida, o empreendedorismo projeta os parâmetros
tanto de um sucesso profissional quanto de uma realização pessoal
em um sistema de condutas de si que valoriza a autonomia, a
iniciativa, a ambição e a superação dos limites. A ênfase na cultura
empreendedora e no culto à performance é especialmente
relevante às dinâmicas sociais e subjetivas no Instagram, pois ele
dispõe de um espaço que valoriza e estimula espetáculos
empreendedores.
Constituindo um território especializado para relações sociais
mediadas por imagens, o Instagram oferece o palco para as
subjetividades contemporâneas empreenderem a si mesmas pela
apresentação de espetáculos cotidianos. Com suas ferramentas de
edição estética e seus sistemas de avaliação quantitativos (número
de seguidores, de curtidas, de visualizações e de comentários), as
interações no aplicativo prestigiam e estimam a apresentação de
performances, corpos, espaços e imagens otimizados. Desse modo,
o Instagram lança seus usuários na conquista constante pela
atenção do outro, na qual a mensuração das interações funciona
como um sistema fino de avaliação[60] das imagens e das
performances, gratificando ou punindo por meio dos números. No
palco das telas da rede social, os usuários são ao mesmo tempo
artistas e curadores de suas imagens, que seguem critérios
estéticos e performáticos, para serem apresentadas em uma
exposição (aqui, também no sentido museológico) de si otimizada.
Susceptíveis a edições e modulações específicas, essas exposições
de si apresentam variados empreendimentos pessoais e/ou
profissionais, seja dos momentos gloriosos, seja das situações mais
banais, prosaicas e triviais.
Desse modo, as formas de operação e a lógica de funcionamento
do espetáculo também se atualizaram nas sociedades
contemporâneas. Em Comentários sobre a sociedade do espetáculo,
publicado em 1988, Debord mostra como o contexto sociocultural
e econômico ainda mantinha atual muitas de suas ideias
elaboradas em 1967, mas já apresentando algumas mudanças
evidentes. Segundo ele,

[…] a mudança de maior importância, em tudo que


aconteceu há vinte anos, reside na própria continuidade do
espetáculo. Essa importância não decorre do
aperfeiçoamento de sua instrumentação midiática, que já
havia atingido um estágio de desenvolvimento muito
avançado; decorre do fato de a dominação espetacular ter
podido educar uma geração submissa a suas leis[61].

Debord marca, então, a passagem das formas difusas e


concentradas do espetáculo para o que ele chama de sua forma
integrada. Ao combinar as duas formas anteriores, essa terceira se
integra de tal forma à realidade que nada lhe escapa. “O espetáculo
confundiu-se com toda a realidade, ao irradiá-la”[62]. Assim,
correspondendo aos modos de operação das sociedades de
controle tal como formulado por Deleuze poucos anos depois e
intensificado nas primeiras décadas do século XXI, o espetáculo
integrado circula ao ar livre de modo contínuo e ininterrupto por
diversos âmbitos da vida contemporânea.
Além disso, funcionando cada vez menos de forma centralizada
e hierárquica, nas sociedades de controle, tal como sugere
Fernanda Bruno[63], a vigilância assume uma forma
majoritariamente distribuída. Entender as práticas de vigilância
contemporâneas como fenômeno distribuído significa designar
processos reticulares, espraiados e diversificados, plenos de
ambiguidade, que não obedecem a nenhum princípio unificado.
Embora estejamos acompanhando nas últimas duas décadas uma
penetração exponencial das tecnologias de vigilância no cotidiano,
a autora enfatiza que “as mudanças mais importantes se passam
não tanto na intensidade da vigilância, mas no seu modo de
funcionamento, que se encontra em muitos aspectos bastante
distanciado do modelo panóptico”[64].
Distribuindo-se de modo descentralizado, sem hierarquias
estáveis, pelos mais diversos dispositivos, serviços, ambientes,
propósitos, funções e significações, a práticas de vigilância
atuais[65] tendem a se tornar ubíquas. Sem definir os objetos e os
alvos de vigilância a priori, todos podem ser potencialmente vigias
e vigiados. Da mesma maneira, diversos dispositivos não estão
diretos ou intencionalmente voltados para o exercício da vigilância
stricto sensu, mas, em muitos casos, são um efeito colateral ou
característica secundária de um dispositivo cuja função primeira é
outra — como é o caso do Instagram. Podendo ser exercida por
agentes humanos e não humanos, as atuais práticas de vigilância
não estão restritas aos circuitos de controle, segurança e
normalização, mas estão intensamente presentes em circuitos de
entretenimento e prazer, mobilizando formas de desejo, libido,
diversão e sociabilidade. Por fim, convivem modelos mais
hierarquizados e unilaterais com modelos mais participativos e
colaborativos[66]; nesse sentido, a vigilância distribuída continua
incluindo as formas de vigilância hierárquica e centralizada típicas
das sociedades modernas, porém multiplicam outras vias de
simetria e formas de operar.
No Instagram, com os modelos hierárquicos de monitoramento
corporativo convivem formas de vigilância laterais[67], isto é,
aquelas que os usuários exercem uns sobre os outros. Assim, ao
consumirem os espetáculos cotidianos uns dos outros, os usuários
exercitam também um olhar vigilante não hierárquico por meio de
práticas conhecidas como fuxicar e stalkear. Nessa lógica, a
vigilância não somente distribui-se em circuitos de prazer, mas se
torna uma prática em si mesma prazerosa. Esses diferentes níveis
de modulação da vigilância integram-se tanto ao exercício do
controle que a empresa exerce sobre os usuários quanto aos
hábitos dos próprios usuários controlarem a si mesmos e aos
outros. Desse modo, vigiar e ser vigiado constitui uma dinâmica
central nas formas de relação em tecnologias como o Instagram,
que assumem diversas disposições e simetrias de olhar.
À vista disso, a lógica da vigilância distribuída e a do espetáculo
integrado se combinam e se incitam mutuamente. Nesse sentido,
uma vigilância distribuída é também uma vigilância integrada à
miríade de dispositivos, funções e propósitos que participa; da
mesma maneira, inversamente, o espetáculo integrado é também
distribuído pelos mais variados tempos e espaços da vida cotidiana
em nossas sociedades. Em sua integração e distribuição ubíquas,
as lógicas da vigilância e do espetáculo, hoje, se hibridizam em
diferentes modulações do visível que caracterizam o regime de
visibilidade contemporâneo. Como sugere Fernanda Bruno[68],
“Nem panóptico nem sinóptico, mas um modelo reticular e
distribuído onde muitos vigiam muitos ou onde muitos veem e são
vistos de variadas formas”.
No seio desses processos híbridos entre vigilância e espetáculo,
o compósito não humano no qual emerge o Instagram — que reúne
ao mesmo tempo câmera, tela, sistema de registro, edição e
classificação de imagens — monta uma arena privilegiada para a
colisão desses múltiplos modos de ver e ser visto. Fundindo-se na
dupla posição do usuário, como apresentador e espectador de
imagens, vigilância e espetáculo são duas faces dos processos que
configuram as condições de possibilidade do observador
contemporâneo, que emerge como efeito ou função derivada de
um sistema heterogêneo de relações discursivas, sociais,
tecnológicas e institucionais.

INSTAGRAMIZAÇÃO DA VIDA:
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao distribuir vigilâncias e integrar espetáculos, o Instagram


confere à visibilidade o parâmetro valorativo de reconhecimento
social e profissional. Com suas instantâneas e simplificadas
ferramentas para registrar, editar, compartilhar e consumir
imagens bem como sua mobilidade associada aos smartphones, o
aplicativo-empresa-rede social é um dos dispositivos responsáveis
por ampliar significativamente o que hoje é considerado
“fotografável” e “publicável” assim como por intensificar cada vez
mais nossos desejos de ver e sermos vistos. Sua especificidade
reside, portanto, em acentuar os modos de ser supervisuais e
hipervisíveis contemporâneos, a partir do entrecruzamento
desses microespetáculos e microvigilâncias do dia a dia.
Em um espaço majoritariamente dedicado ao aspecto visual, um
dos grandes sucessos do aplicativo é ter conseguido associar o
gesto de registrar uma imagem ao compartilhamento imediato em
sua plataforma. É justamente por isso que o Instagram assume,
hoje, um papel central nas vidas contemporâneas e suas formas de
organizar o espaço, o tempo e as relações sociais.
À vista disso, a instagramização da vida é o processo de
distribuição de vigilâncias e de integração de espetáculos, no qual
é imprescindível tornar cada vez mais visíveis nossas experiências
pela produção, estilização e consumo de imagens no aplicativo.
Trata-se de buscar uma visibilidade que é cuidadosamente
selecionada, produzida, enquadrada e editada a partir de critérios
de uma cultura empreendedora que tomam a otimização como
horizonte. Porém, é importante sublinhar que não se trata de
encenar uma ficção nem de simular o que não se é, mas sim de
produzir a si mesmo no ato de se fazer visível ao olhar do outro de
modos mais ou menos ensaiados, posados ou coreografados.
E essa curadoria do visível não aparece apenas nas imagens
presentes na rede social, mas transborda aos modos de organizar
os espaços por onde circulamos e habitamos, que passam a estar
pautados pela iminência de serem registrados e compartilhados no
aplicativo. Como efeito disso, a instagramização dos espaços
físicos, públicos e privados, dos objetos, das formas de circulação
na cidade e de experiências envolve reordená-los e editá-los para
que sejam visíveis, registráveis e publicáveis. Compondo álbuns de
fotos e vídeos e acrescentando informações às imagens, o
aplicativo permite também que espaços, objetos e experiências
tornem-se mais facilmente buscáveis e rememoráveis.
A instagramização da vida tem como efeito associar nosso olhar,
nosso tempo e nosso modo de circulação pelo espaço à imediata
presença no aplicativo. Capturando cada vez mais nosso tempo e
nossa atenção, este dispositivo modula nossos modos de ver e
sermos vistos, bem como a experiência do corpo no espaço. Assim,
o Instagram não é somente um espaço privilegiado para atender às
demandas por visibilidade das subjetividades alterdirigidas, para as
condições híbridas entre vigilância e espetáculo, mas, ao se
integrar nos hábitos cotidianos dos indivíduos, reforça ainda mais
estes processos em curso, bifurcando suas trajetórias,
multiplicando seus atores e variando suas ferramentas.

1. Doutoranda e mestre em Comunicação e


Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UFRJ. Atualmente é bolsista
da CAPES. Possui graduação em Psicologia pela
UFRJ e formação complementar em Artes pela
EAV-Parque Lage. É pesquisadora e
coordenadora de projetos do MediaLab.UFRJ e
membro da Rede Latino-Americana de Estudos
de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS).
Atua também como coordenadora do projeto
educativo Dynamic Encounters International
Art Workshops, organizando viagens nacionais
e internacionais desde 2014. ↵
2. Tradução nossa: “You make Instagram a place
to discover the wonder in the world. Every
photo and video — from the littlest things to
the most epic — opens a window for people to
broaden their experiences and connect in new
ways”. Disponível em: https://instagram-
press.com/blog/2016/05/11/a-new-look-for-
instagram/. Acesso em: 17 mar. 2017. ↵
3. Disponível em:
https://www.medianochesf.com/. Acesso em:
20 jan. 2018. ↵
4. Disponível em:
https://www.theverge.com/2017/7/20/1600
0552/instagram-restaurant-interior-design-
photo-friendly-media-noche. Acesso em: 20
jan. 2018. ↵
5. Disponível em:
https://www.theverge.com/2017/7/20/1600
0552/instagram-restaurant-interior-design-
photo-friendly-media-noche. Acesso em: 20
jan. 2018. ↵
6. Disponível em:
http://www.bellotasf.com/about/. Acesso
em: 20 jan. 2018. ↵
7. Disponível em:
http://www.grubstreet.com/2017/04/how-
to-make-a-restaurant-go-viral.html. Acesso
em: 20 jan. 2018. ↵
8. Disponível em:
https://www.timeout.com/newyork/bars/th
e-winners-of-the-2016-time-out-new-york-
bar-awards. Acesso em: 20 jan. 2018. ↵
9. Disponível em:
http://www.latimes.com/entertainment/arts
/la-et-cm-museum-selfies-20150608-
story.html. Acesso em: 20 jan. 2018. ↵
10. Em 2013, eleita a palavra daquele ano, o termo
selfie foi incorporado ao Oxford Dictionaries
Online com a seguinte definição: “uma
fotografia que alguém tira de si mesmo,
tipicamente tirada com smartphone ou
webcam e compartilhada via redes sociais”.
Disponível em:
https://en.oxforddictionaries.com/definition
/selfie. Acesso em: 06 jan. 2018. ↵
11. Disponível em: https://artsbma.org/art-on-
the-rocks-is-instagram-gold/. Acesso em: 20
jan. 2018. ↵
12. Disponível em:
https://www.timeout.com/hong-
kong/things-to-do/best-places-to-
instagram-in-hong-kong. Acesso em: 20 jan.
2018. ↵
13. Disponível em:
https://www.smithsonianmag.com/innovatio
n/how-instagram-changing-way-we-design-
cultural-spaces-180967071/. Acesso em: 20 jan.
2018. ↵
14. MACKIE, B. Is Instagram changing the way we
design the world?. The Guardian, 12 jul. 2018.
Life and Style. Disponível em:
https://www.theguardian.com/lifeandstyle/2
018/jul/12/ready-for-your-selfie-why-public-
spaces-are-being-insta-designed?
utm_source=meio&utm_medium=email.
Acesso em: 14 jul. 2018. ↵
15. MANOVICH, L. Instagram and the
contemporary image, 2017. Disponível em:
http://manovich.net/index.php/projects/ins
tagram-and-contemporary-image. Acesso em:
29 set. 2017. ↵
16. Tradução nossa: “This single platform medium
is remarkable development in the history of
modern media.” (Ibid., p. 11). ↵
17. Trecho completo segundo o Instagram: How
did the idea come about? We love taking
photos. We always assumed taking interesting
photos required a big bulky camera and a
couple years of art school. But as mobile phone
cameras got better and better, we decided to
challenge that assumption. We created
Instagram to solve three simple problems: 1.
Mobile photos always come out looking
mediocre. Our awesome looking filters
transform your photos into professional-
looking snapshots; 2. Sharing on multiple
platforms is a pain - we help you take a picture
once, then share it (instantly) on multiple
services; 3. Most uploading experiences are
clumsy and take forever - we've optimized the
experience to be fast and efficient. Este trecho
não está mais disponível no website oficial da
plataforma, mas foi originalmente retirado na
seção “about us”. Disponível em:
https://www.instagram.com/about/us/.
Acesso em: 15 mar. 2017. ↵
18. Disponível em:
http://link.estadao.com.br/noticias/geral,bra
sileiro-que-criou-o-instagram-mike-krieger-
fala-sobre-futuro-do-aplicativo,10000029973.
Acesso em: 20 mar. 2017. ↵
19. Tradução nossa: “ What is Instagram?
Instagram is a fun and quirky way to share
your life with friends through a series of
pictures. Snap a photo with your mobile phone,
then choose a filter to transform the image
into a memory to keep around forever. We're
building Instagram to allow you to experience
moments in your friends' lives through
pictures as they happen. We imagine a world
more connected through fotos”. Este trecho
não está mais disponível no website oficial da
plataforma, mas foi originalmente retirado na
seção FAQ. Disponível em:
https://help.instagram.com/. Acesso em: 15
mar. 2017. ↵
20. Embora a relevância da efemeridade da seção
Stories em dezembro de 2017, o Instagram
incluiu a possibilidade de arquivar esses
conteúdos e também deixar aqueles
selecionados disponíveis em seu perfil com o
Stories Highlights. Disponível em:
https://business.instagram.com/blog/stories
-highlights-and-archive. Acesso em: 30 jul.
2018. ↵
21. ZUBOFF, S. Big other: surveillance capitalism
and the prospects of an information
civilization. Journal of information technology,
n. 30, p. 75-89, 2015; e ZUBOFF, S. Secrets of
Surveillance Capitalism. Frankfurter
Allgemeine, Frankfurt, 5 mar. 2016. Disponível
em:
http://www.faz.net/aktuell/feuilleton/debatt
en/the-digital-debate/shoshana-zuboff-
secrets- of-surveillance-capitalism-
14103616.html?
printPagedArticle=true#pageIndex_2. Acesso
em: 4 abr. 2018. ↵
22. Para a autora, estas formas capitalização
estruturam seus pilares nas práticas de
monitoramento digital que, a partir de seus
mecanismos algoritmos, buscam prever
comportamentos humanos futuros e, assim,
agir sobre eles enquanto eles acontecem. Além
de estarem diretamente ligados aos modelos
de publicidade chamados na linguagem
publicitária de micro-targeting, Zuboff (Ibid.
2015; 2016) enfatiza que o sucesso desta lógica
está menos ligado à venda de dados para
empresas terceirizadas e mais ao potencial de
conhecimento das técnicas algorítmicas para
prever e intervir sob o comportamento
humano. ↵
23. EYAL, N. Hooked: how to build habit-forming
products. New York: Penguin Group, 2014. ↵
24. Sobre o assunto, ver os seguintes autores:
CITTON, Y. The ecology of attention. Malden:
Polity Press, 2016; CALIMAN, L. Os regimes da
atenção na subjetividade contemporânea. Arq.
bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 64, n. 1, p. 02-17,
abr. 2012; CRARY, J. 24/7 – Capitalismo tardio e
os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014;
DAVENPORT, T; BECK, J. The attention
economy: understanding the new currency of
business. Boston: Harvard Business School
Press, 2001; EYAL, op. cit.; FRANCK, Georg. The
economy of attention. Telepolis, dez. 1999.
Disponível em:
https://www.heise.de/tp/features/The-
Economy-of-Attention-3444929.html. Acesso
em: 23 abr. 2017; GOLDHABER, M. H. The
Attention Economy and the Net, 1997.
Disponível em: http://www.well.com. Acesso
em: 15 dez. 2017; WU, Tim. The attention
merchants: the epic scramble to get inside our
heads. New York: Knopf, 2016. ↵
25. Retirado das políticas de privacidade do
Instagram: “Os usuários podem adicionar ou
ter Metadados adicionados ao seu Conteúdo
do Usuário incluindo uma hashtag (por
exemplo, para marcar palavras-chave ao
publicar uma foto), marcação geográfica (por
exemplo, para marcar seu local em uma foto),
comentário ou outros dados. Isso pode tornar
seu conteúdo mais fácil de ser pesquisado por
outros e mais interativo. Se você inserir uma
marcação de localização em sua foto ou
marcar sua foto usando outra API, sua latitude
e longitude serão armazenadas com a foto e
poderão ser pesquisadas (por exemplo, por
meio de um recurso de localização ou mapa) se
a sua foto for disponibilizada publicamente por
você de acordo com suas configurações de
privacidade”. Disponível em:
https://help.instagram.com/155833707900388
. Acesso em: 30 jul. 2018. ↵
26. Neste caso, a localização deve ser criada
previamente no Facebook e, depois, ser
integrada ao Instagram. Disponível em:
https://www.techtudo.com.br/dicas-e-
tutoriais/2017/06/como-criar-uma-
localizacao-nova-no-instagram-e-marcar-
sua-foto-no-local.ghtml. Acesso em: 20 jan.
2018. ↵
27. Tais entrevistas foram realizadas ao longo da
pesquisa de mestrado da autora. Foram
realizadas um total de vinte entrevistas com
usuários que mantinham formas mais e menos
profissionais de uso do Instagram, sendo
quatro do gênero masculino e dezesseis do
feminino, que variam de uma faixa etária entre
18 e 57 anos; residentes na cidade do Rio de
Janeiro (RJ) e em São Paulo (SP), que foram
realizadas presencialmente e por telefone.
Dentre os entrevistados, cinco se descreveram
como influenciadores digitais, alguns no início
de seu percurso de profissionalização,
enquanto outros já consolidados há mais
tempo. BENTES, Anna. Quase um tique:
economia da atenção, vigilância e espetáculo a
partir do Instagram. 2018. Dissertação
(Mestrado em Comunicação e Cultura) –
Escola de Comunicação, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. ↵
28. LATOUR, B. Reagregando o social. Salvador:
Edufba, 2012. ↵
29. Disponível em:
https://business.instagram.com/. Acesso em:
30 jul. 2018. ↵
30. Disponível em:
https://www.omnicoreagency.com/instagra
m-statistics/. Acesso em: 20 jan. 2018. ↵
31. Disponível em: https://instagram-
press.com/blog/2017/08/02/celebrating-
one-year-of-instagram-stories/. Acesso em:
20 jan. 2018. ↵
32. RIESMAN, D. A multidão solitária. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1971.; SIBILIA, P. O show do
eu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016. ↵
33. BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser:
vigilância, tecnologia e subjetividade. 1. ed..
Porto Alegre: Sulina, 2013. ↵
34. SIBILIA, op.cit. ↵
35. BRUNO, op. cit., p. 47. ↵
36. LATOUR, B. Reagregando o social. Salvador:
Edufba, 2012. ↵
37. DELEUZE, G. Foucault. Tradução Claudia
Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense,
2005. ↵
38. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da
prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed..
Petrópolis: Vozes, 2010. ↵
39. BENTHAM, J. O Panóptico ou a casa de
inspeção. In: TADEU, T. (org.). O
Panóptico/Jeremy Bentham. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008. p. 13-88. ↵
40. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da
prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 2010. p.191.↵
41. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997. ↵
42. Ibid., p. 14. ↵
43. Ibid., p. 30. ↵
44. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da
prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed.
Petrópolis: Vozes, 2010. p. 205. ↵
45. MATHIESEN, T. The viewer society: Michel
Foucault’s panopticon revisited. Theoretical
Criminology, v. 1, n. 2, p. 215-234, 1997. ↵
46. LYON, D. 11 de setembro, sinóptico e
escopofilia: observando e sendo observado. In:
BRUNO, F.; KANASHIRO, M.; FIRMINO, R.
(org.). Vigilância e visibilidade: espaço,
tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina,
2010. ↵
47. CRARY, J. Técnicas do observador: visão e
modernidade no século XIX. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012; Id. Suspensões da
percepção: atenção, espetáculo e cultura
moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013; Id.
Spectacle, attention, counter-memory.
October, v. 50, p. 97-107, 1989; Id. 24/7 –
Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo:
Contraponto, 2014. ↵
48. CRARY, J. Suspensões da percepção: atenção,
espetáculo e cultura moderna. São Paulo:
Cosac Naify, 2013. p. 100. ↵
49. DEBORD, 1997. p.23. ↵
50. CRARY, J. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do
sono. São Paulo: Contraponto, 2014. ↵
51. CRARY, J. Spectacle, attention, counter-
memory. October, v. 50, p. 97-107, 1989. p. 105.

52. Tradução nossa de: “In it surveillance and
spectacle are not opposed terms, as he insists,
but collapsed onto one another in a more
effective disciplinary apparatus” (Ibid., 1989, p.
105). ↵
53. DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as
sociedades de controle. In: Conversações. São
Paulo: Ed. 34, 2010. p. 219-226. ↵
54. SIBILIA, P. O Homem pós-orgânico: a alquimia
dos corpos e das almas à luz das tecnologias
digitais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. ↵
55. SIBILIA, P. Redes ou paredes: a escola em
tempos de dispersão. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012. ↵
56. CRARY, J. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do
sono. São Paulo: Contraponto, 2014. ↵
57. SIBILIA, P. O Homem pós-orgânico: a alquimia
dos corpos e das almas à luz das tecnologias
digitais. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. ↵
58. EHRENBERG, A. O culto da performance: da
aventura empreendedora à depressão nervosa.
Aparecida: Ideias & Letras, 2010.; ROSE, Ni.
Inventando nossos selfs: psicologia, poder e
subjetividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. ↵
59. FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica:
curso dado no Colellgè de France (1978-1979).
São Paulo: Martins Fontes, 2008. ↵
60. FERRAZ, M. C. F. Mutações da subjetividade
contemporânea: performance e avaliação.
Caderno de Psicanálise – CPRJ, Rio de Janeiro,
v. 36, n. 30, p. 31-41, jan./jun. 2014. ↵
61. DEBORD, op. cit., p.171. ↵
62. Ibid., p.173. ↵
63. BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser:
vigilância, tecnologia e subjetividade. 1. ed.
Porto Alegre: Sulina, 2013. ↵
64. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da
prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed.
Petrópolis: Vozes, 2010. p. 25. ↵
65. A noção de vigilância distribuída encontra
também muitos pontos em comum com as
teses de Zygmunt Bauman e David Lyon em:
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida: diálogos
com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. ↵
66. HAGGERTY, K.; ERICSON, R. The surveillant
assemblage. British Journal of Sociology, v. 51, n.
4, p. 605-622, dez. 2000. ↵
67. ANDREJEVIC, M. The discipline of watching:
detection, risk, and lateral surveillance. Critical
Studies in Media Communication, v. 23, n. 5, p.
391-407, 2006. ↵
68. BRUNO, 2013. p. 47. ↵
Cidades inteligentes: Motivações e Desafios da
Adoção de Medidores Inteligentes de Água

Ágatha Carolina Hennigen de Mattos[1]

INTRODUÇÃO

Os últimos anos foram marcados pelo lançamento de vários


projetos de cidades inteligentes no Brasil[2] e no mundo[3]. Apesar
do crescente interesse no tema, não existe uma definição única
acerca do que sejam as cidades inteligentes[4] e os planos
propostos apresentam ações bastante distintas, como utilização de
veículos autônomos, moradia a preços acessíveis, monitoramento
do consumo de água e energia, alertas sobre a qualidade do ar,
acesso gratuito à internet, hortas compartilhadas e construções
energeticamente eficientes. Um ponto em comum entre as
iniciativas é que elas buscam “por meio da absorção de soluções
inovadoras, especialmente ligadas às Tecnologias da Informação e
Comunicação (TICs), ao movimento da internet das coisas (IoT) e
ao fenômeno do Big Data, otimiza[r] o atendimento [de] demandas
públicas” nas cidades[5].
Mais de quatro bilhões de pessoas vivem em assentamentos
urbanos e, até 2050, 70% da população mundial residirá nesses
espaços[6]. Centros urbanos já são responsáveis por 80% do
consumo de energia e 67% das emissões de carbono[7], por isso,
tornar as cidades sustentáveis é um desafio e um dos 17 Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas[8]. Nesse
sentido, acredita-se que redes inteligentes, smart grids,
desempenharão um papel significativo na gestão dos recursos
naturais, da sustentabilidade e da resiliência urbana[9][10].
Medidores inteligentes são componentes dos smart grids que,
entre outras funções, permitem a leitura remota do consumo de
água e energia. O Brasil já conta com projetos nos quais foram
empregados smart meters, como o Energia+, uma parceria entre a
Eletrobrás e o Banco Mundial, que promoveu a instalação dos
contadores em seis estados, beneficiando quatro milhões de
brasileiros[11]; e a instalação de medidores inteligentes de água pela
Odebrecht Ambiental em Mauá e Limeira, no interior de São Paulo,
e em Palmas e Araguaína, no Tocantins[12].
Adicionalmente, em julho de 2016, foi promulgada a Lei nº
13.312/16, que entrará em vigor após decorridos cinco anos de sua
publicação e tornará obrigatória a medição individualizada do
consumo hídrico em novas edificações condominiais[13]. Mais de
80% dos brasileiros vivem em áreas urbanas[14] e, desse número,
uma parcela cada vez maior habita condomínios verticais[15] ou
horizontais[16]. Ainda que a lei não estabeleça a adequação de
unidades antigas, a movimentação para a individualização do uso
da água já está acontecendo. Os websites de algumas das maiores
companhias de saneamento do país trazem diretrizes para a
realização do processo e orientam sobre o uso de equipamentos. A
Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo
(SABESP), que atende 27,7 milhões de brasileiros[17], e a Sociedade
de Abastecimento de Água e Saneamento (SANASA), que serve 1,1
milhão[18], apenas aceitam registradores inteligentes[19][20], ao passo
que a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), que
abrange 1,6 milhão de usuários[21], exige medidores com leitura
remota em construções com mais de seis pavimentos[22].
A crescente quantidade de condomínios e a exigência de
instalação de medidores inteligentes por parte das companhias de
água sinaliza um futuro em que esses equipamentos serão a norma
nessas habitações e, consequentemente, nas cidades brasileiras.
Embora a utilização desses dispositivos seja cada vez mais comum,
a quantidade de estudos sobre o assunto ainda é bastante
limitada[23]. Enquanto uma pesquisa no Google Acadêmico por
smart grids encontra 74.500 resultados, smart water grids e smart
water meter trazem apenas 176 e 365 links, respectivamente, para
consulta. Ainda mais preocupante é a busca por artigos em
português, em que “redes inteligentes de água” e “medidores
inteligentes de água” retornam apenas 4 e 6 artigos,
respectivamente[24].
Diante da tempestividade da questão e da carência de estudos
sobre o assunto, o objetivo deste trabalho é inventariar
publicações e analisar as motivações e desafios da adoção de
medidores inteligentes de água no mundo e no contexto nacional.
O estudo foi organizado em quatro seções: revisão sobre
medidores e redes inteligentes de água, motivações, desafios e
considerações finais.
1. REVISÃO SOBRE MEDIDORES E REDES
INTELIGENTES DE ÁGUA

Medidores de água, também chamados de hidrômetros, são


bastante comuns em todo o mundo e permitem que a cobrança
pela água seja proporcional ao consumo. Além disso, em muitos
países, a tarifa varia de acordo com a categoria do usuário e
quantidade utilizada[25]. Essas ações visam coibir o desperdício e
trazer justeza à cobrança pela água, ainda que, por vezes, não
sejam bem recebidas pela população.[26]
O método de registro do volume consumido pode utilizar
diferentes princípios tecnológicos, e os modelos de hidrômetros
são usualmente acomodados em uma das quatro categorias:
velocimétricos, volumétricos, combinados e
eletromagnéticos/sem partes móveis[27] . Independentemente do
modelo, eles possuem um display no qual é possível fazer a leitura
visual do volume acumulado, como no hodômetro de um carro.
Geralmente, a leitura acontece uma vez por mês e é realizada por
um profissional treinado.
Os medidores inteligentes são diferentes, pois podem ser lidos
remotamente, por meio do Automatic Meter Reading (AMR), em um
processo que acontece em quatro etapas: (i) medição; (ii)
transferência dos dados; (iii) processamento e análise; e (iv)
feedback sobre o consumo. A cadência de transferência varia de
acordo com a tecnologia empregada. Na Irlanda, as informações
são coletadas a cada três meses por um veículo[28], enquanto em
Campo Grande foram instaladas torres que recebem os dados a
cada oito segundos[29]. Os meios mais comuns de envio são
radiofrequência (RF), General Packet Radio Service (GPRS)[30], fios
telefônicos e cabos de fibra óptica ou energia[31].
Os usuários muitas vezes não são avisados sobre a instalação dos
registradores inteligentes, o que pode gerar certa apreensão
quanto aos riscos à saúde, prejudicar a aceitação da tecnologia e
reduzir os benefícios do projeto. A Figura 1 traz um exemplo de
ação que busca tranquilizar a população ao comparar a exposição
de um medidor que utiliza radiofrequência a outros equipamentos
que emitem radiação não ionizante, como laptops, roteadores e
micro-ondas[32].
Figura 1: Comparação entre a exposição causada pelo medidor
inteligente e outros equipamentos domésticos[33].

Uma evolução da tecnologia AMR, a Advanced Metering


Infrastructure (AMI), permite a comunicação two-way, isto é, o
acionamento remoto do aparelho[34]. Algumas das funcionalidades
adicionais desses contadores incluem a possibilidade de suspensão
e religação do fornecimento de água, a detecção automática de
fraude, o pagamento pré-pago, o controle da vazão fornecida, o
controle do fluxo (entrada e saída) e a reconfiguração remota[35].
No entanto, apenas a existência desses medidores não é
suficiente para que as redes sejam inteligentes. Para que elas
possam ser assim consideradas, outros ativos envolvidos no
abastecimento precisam ser monitorados e uma camada de
inteligência bem estruturada deve ser desenvolvida[36]. Uma rede
inteligente de água, conforme ilustrada na Figura 2, envolve o
acompanhamento on-line da performance da rede de distribuição,
da gestão de ativos e do controle da pressão, da qualidade da
água[37], da produção e das vazões[38].

Figura 2: Conceito de uma rede inteligente de água[39].


Existem, efetivamente, poucos exemplos de redes inteligentes
de água no mundo[40], estando, muitas vezes, associados à escassez
hídrica, caso dos projetos na Austrália e nos Estados Unidos; da
segurança hídrica, em Singapura; e das mudanças climáticas e do
crescimento populacional exponencial nas cidades, como na
Coreia[41].
Na próxima seção, serão discutidas as principais motivações
para a adoção de redes e medidores inteligentes.

2. MOTIVAÇÕES

Hydroinformatics é o ramo da ciência dedicado à utilização de


novas tecnologias para transformar dados relacionados à água em
informação que pode ser produzida, negociada, comercializada,
transmitida, transformada e, em última instância, consumida de
novas formas[42]. De acordo com Chen e Han[43], dados de
medidores inteligentes, sensores, sensoriamento remoto e
imagens de satélite irão inevitavelmente colocar o
hydroinformatics na era do Big Data e melhorar a gestão de
recursos naturais. No que tange à gestão da água no contexto
urbano, os dados gerados por medidores inteligentes podem ter
implicações significativas na redução das perdas, no aumento da
eficiência na prestação do serviço de abastecimento e na
conscientização ambiental da população.
Conter as perdas de água é um imperativo, e também uma
oportunidade. O relatório Resource Efficiency: Potential and
Economic Implications, produzido pelo International Resource
Panel, mostra que esta é uma ação que, com pequenos custos
sociais, traria resultados econômicos de centenas de bilhões de
dólares[44]. No Brasil, quase 40% da água produzida é perdida. As
perdas reais, ou físicas, estão associadas a vazamentos, enquanto
as perdas aparentes, também chamadas de perdas comerciais,
estão associadas a erros de medição, desgaste de medidores e
furtos de água. Um estudo elaborado pelo Instituto Trata-Brasil
estima que anualmente R$ 1,09 bilhão sejam desperdiçados em
perdas físicas e que R$ 6,74 bilhões poderiam ser arrecadados caso
as companhias investissem no combate às perdas comerciais[45].
Medidores inteligentes auxiliam na redução das perdas
comerciais, pois são menos suscetíveis à corrosão e possuem
melhor sensibilidade a pequenas vazões[46][47]. Além disso, muitos
modelos possuem sensores para detecção do fluxo de água
(entrada e saída) e detecção automática de fraude[48]. Em Campo
Grande, houve um aumento de faturamento de 10% nas ligações
que receberam o aparelho[49] e, no Rio de Janeiro, Leite[50] calcula
que a prestadora local passou a registrar cerca de 300 GWh a mais
em decorrência da tecnologia de medição remota implantada. O
projeto Energia+, citado na introdução, também teve um viés de
redução de fraudes, conforme explica o vídeo sobre a iniciativa[51].
Tendo em vista as capacidades dos medidores inteligentes e a
situação das perdas no país, não surpreende que muitos projetos
implantados no Brasil tiveram a redução da inadimplência e o
combate ao furto como objetivos[52]. A suspensão remota agiliza a
interrupção do consumo nos casos de inadimplência, enquanto a
religação, também remota, pode reduzir o tempo de espera pelo
restabelecimento do serviço, o que é benéfico para o usuário e
para a prestadora, que consegue retomar a geração de receita mais
rapidamente. Já a identificação de fraudes traz justeza à cobrança
da água, embora, como outros mecanismos que produzem dados
dos cidadãos em uma cidade inteligente, também carrega alguns
desafios, como será visto na próxima seção.
Similarmente, em uma situação de escassez hídrica, a
distribuição poderia ser limitada por unidade consumidora, sem a
necessidade de deixar regiões inteiras desabastecidas ou em
rodízio. Esse procedimento poderia trazer equidade em tempos de
seca, se condicionado à clareza e à transparência dos critérios
utilizados para a escolha dos limites de consumo de cada usuário.
Durante períodos de seca, a atenção muitas vezes se volta para
as campanhas contra o desperdício de água, mas cabe ressaltar
que o volume perdido na distribuição é, em grande parte,
semelhante ao consumido pela população e superior ao volume
das perdas comerciais[53]. Sobre essa questão, as empresas
argumentam que combater perdas físicas é custoso[54] e, deveras,
como foi visto anteriormente no estudo elaborado pelo Instituto
Trata-Brasil, o potencial de ganho financeiro atuando em perdas
comerciais é muito maior. Para que os dados de medidores
inteligentes de água possam ser utilizados para calcular o balanço
hídrico[55] e realizar simulações hidráulicas dinâmicas[56][57], a
prestadora de serviço deve automatizar o monitoramento de
outros ativos, ou melhor, investir em uma rede inteligente de água,
o que, como visto na revisão sobre medidores e redes inteligentes,
ainda é pouco comum.
Medidores inteligentes de água também abrem a possibilidade
da cobrança diferenciada por horário. Em Hervey Bay, na Austrália,
e em Bristol, no Reino Unido, os projetos-piloto foram
acompanhados por reformas que instituíram a tarifação por
horário de uso[58]. No Brasil, o governo chegou a sinalizar uma
movimentação nesse sentido, por meio da Resolução Normativa
502/2012[59] da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), mas
apenas para o setor energético. Outra mudança no sistema de
tarifação que poderia contribuir para a adoção de medidores
inteligentes seria a regulamentação do pagamento pré-pago[60].
Um desdobramento da utilização de sensores de detecção do
fluxo de água (entrada e saída) é a cogeração[61]. A utilização de
água de reúso e coleta de água da chuva já acontecem no Brasil,
mas ainda de maneira incipiente[62]. Conforme essas tecnologias
ganhem popularidade e novos equipamentos sejam lançados, como
painéis para a geração de água pelo ar, é provável que medidores
inteligentes também influenciem a dinâmica de produção de água
descentralizada nas cidades.
Do ponto de vista dos usuários, a leitura remota é uma garantia
de que o valor medido está correto. Quando um hidrômetro é lido
manualmente, podem acontecer “erros de leitura” nos quais o
profissional responsável se equivoca e troca algarismos parecidos,
como 3 e 8, ou 1 e 7, por exemplo.
Uma expectativa de programas de instalação de smart meters é
que consumidores bem informados poderiam rever seus hábitos
de consumo. Essa é, todavia, uma visão simplista e debatida na
literatura[63]. Na opinião dos autores, os dados, quando
compartilhados com a população, precisam ser traduzidos em
informações úteis e contextualizadas em um ambiente social e
cultural mais amplo, para maximizar as mudanças e o uso mais
sustentável da água.
Um exemplo de engajamento dos cidadãos é o ocorrido em
Dubai, onde 97% da água é produzida pela dessalinização, um
processo com alto consumo de energia[64]. De acordo com a Dubai
Electricity and Water Authority (DEWA), foram instalados 200.000
medidores em 2016 e a expectativa é que, até 2020, todos os
medidores sejam inteligentes[65]r/innovation/smart-
initiatives/smart-applications-via-smart-meters-and-grids.
Acesso em: 18 fev. 2018.. A mensagem a seguir é uma carta aos
residentes de Dubai, the smartest city, e introduz as novas
funcionalidades do DEWA’s Smart App, um aplicativo que
possibilita acompanhar a evolução do consumo e até limitá-lo[66].

A Smart App. For a Smarter Tomorrow.


Dear residents of the smartest city,
Thank you for contributing in making Dubai the smartest
city, and for that we had to work extremely hard to deliver
an easier, more intuitive experience for you, in our pursuit
to tend to your needs and happiness. We, in Dubai
Electricity and Water Authority, are proud to announce our
smartest app yet[67].

A TechTrade Asia reporta um ganho ambiental, pois milhões de


toneladas de dióxido de carbono deixaram de ser emitidos como
consequência da adesão às plataformas introduzidas pela DEWA[68].
Outros projetos na Austrália também trazem resultados positivos,
embora a quantificação das reduções por mudanças de hábito seja
complexa[69], visto que parte da atenuação da demanda foi
decorrência da localização de vazamentos internos, dentro das
propriedades dos clientes. Em Sydney, foram identificados
vazamentos internos em 80% das residências, totalizando cerca de
3% da demanda total de água[70]. Do mesmo modo, o programa
First Fix Free, na Irlanda, onde todos os medidores são inteligentes,
indica que cerca de 7% das habitações sofrem vazamentos internos
a cada ciclo de leitura[71]. Apesar disso, a revisão de dezenas de
projetos-piloto mostra que, na maioria dos casos, os dados ficaram
restritos às operadoras[72] e que, assim sendo, tanto governos
quanto cidadãos não puderam se beneficiar completamente da
tecnologia implantada.
Nguyen et al.[73] citam dois exemplos nos quais os dados, se
compartilhados, poderiam contribuir para a gestão eficiente de
recursos. No primeiro, dados dos medidores foram analisados por
um algoritmo e desagregados por categoria de uso (Figura 3). A
Figura 4 mostra uma situação na qual, pelo diagnóstico
mencionado, conclui-se que uma campanha efetiva de
conservação poderia solicitar que a população evitasse a irrigação
às 8h e encurtasse os banhos para 5 minutos entre 18h e 19h[74]. De
maneira análoga, os dados dos medidores inteligentes instalados
nas cidades brasileiras poderiam ser utilizados para entender
como o consumo varia entre regiões, com o uso de diferentes
equipamentos e, quem sabe, para fomentar o uso de arejadores de
torneira e outros equipamentos que auxiliam na redução do
desperdício de água.

Figura 3: A análise do uso da água permite desagregá-lo em


categorias de consumo[75].
Figura 4: Previsão do uso da água por categoria de consumo[76].

Uma segunda possibilidade é a utilização desses dados para


cálculos de projeção de demanda e melhor planejamento dos
recursos necessários para atender a população em horários de
pico de consumo. Como parte da infraestrutura de produção de
energia só é operada durante esse período, um controle mais
eficiente da demanda diária de água poderia direcionar a produção
para horários fora da ponta, reduzindo gastos com bombeamento
e, consequentemente, o impacto ambiental causado pela utilização
de fontes de energia mais poluidoras. Em Whitby, no Canadá,
previsões de demanda utilizando redes neurais artificiais
economizaram entre US$ 75 mil e US$ 150 mil e evitaram a geração
de 2.500 a 5.000 toneladas de emissões de carbono[77].
Gastos com eletricidade representam 30% dos custos
operacionais das prestadoras de serviço de água[78] de forma que,
ao reduzir essas despesas, mais recursos poderiam ser
disponibilizados para outros fins, como o aumento da capacidade
instalada e o atendimento de regiões sem infraestrutura ou onde
ela está debilitada.
Ainda na temática, “water-energy nexus” é a designação para a
relação entre água e energia, na qual o abastecimento de água
utiliza energia e a geração de energia, por sua vez, utiliza água[79]
. Com efeito, o Brasil é o quinto país com maior utilização de
[80]

água para geração de energia[81] e, por isso, reduzir a demanda de


energia teria vários outros desdobramentos benéficos para o meio
ambiente.
Não obstante a contribuição para a gestão de recursos naturais,
não está claro, até o momento, como redes inteligentes poderiam
contribuir para a resiliência urbana[82]. A fim de endereçar a
questão, a Fundação Rockefeller e a ARUP, uma consultoria com
“expertise” em cidades, informaram a intenção de lançar o City
Water Resilience Framework (CWRF) e conduzir pesquisa e
desenvolvimento sobre o assunto em cinco cidades[83]. De acordo
com Fred Boltz, professor da Universidade de Massachusetts, que
é parceira na empreitada, o trabalho irá preencher uma lacuna no
entendimento das complexidades dos sistemas de água urbanos e
desenvolverá novas ferramentas práticas para a construção de
cidades mais resilientes[84]. O programa será realizado em
cooperação com o Banco Mundial, com a Universidade de
Massachusetts e com o 100 Resilient Cities, e a expectativa é que a
primeira fase seja lançada até 2019[85].
Neste ínterim, é desejável que novos projetos de medidores e
redes inteligentes estejam atentos aos desafios das cidades
inteligentes e incorporem os aprendizados de experiências
anteriores.

3. DESAFIOS

The term [smart grid] has become almost ubiquitous, wildly


popular, and the subject of considerable enthusiasm. After
all, who wants to be against a “smart grid” or in favor of a
“dumb grid”?[86]

Vários desafios cercam a adoção de medidores inteligentes.


Enquanto alguns estão associados à tecnologia, outros estão
ligados à viabilidade econômica, à utilização dos dados, à
privacidade e à segurança cibernética.
No que tange à tecnologia, talvez um dos maiores entraves seja a
falta de padronização das tecnologias de transmissão e protocolos
utilizados em medidores inteligentes[87][88][89]. Caso a questão não
seja pensada antes da implantação, é possível que a companhia de
água esteja, no futuro, dependente de poucos provedores ou com
uma caixa preta[90][91].
Uma segunda adversidade é a integração dos dados de leitura
remota com os softwares utilizados pelas prestadoras de serviço
público (como o sistema de faturamento, supervisório e
modelagem hidráulica) e com os outros departamentos e serviços
municipais[92][93]. O caso de Barcelona é emblemático, no qual os
sensores de iluminação pública, calçada e medidores de qualidade
da água não conversavam entre si e o município não conseguia se
beneficiar completamente dos dados coletados[94].
Mesmo em um cenário de perfeita interoperabilidade, poderia
haver problemas devido à maneira como diferentes órgãos
cadastram a informação. Por exemplo, um serviço de remoção de
uma árvore caída poderia ser registrado utilizando Geographic
Information System (GIS), enquanto o trabalho de reparo da
calçada danificada poderia ser identificado pelo encontro das ruas
em que ele foi executado, tornando a conexão dos dois eventos
praticamente impossível[95].
As dificuldades, no entanto, nem sempre são de natureza
técnica. De acordo com o relatório produzido pela Bentley, uma
das maiores provedoras de softwares para gestão de
infraestruturas de saneamento, a falta de integração para a
realização de modelos hidráulicos dinâmicos acontece, em parte,
pela presença de firewalls e permissões, mas também por fricções
entre times de engenheiros e equipes de campo e controladores
que, não raramente, tendem a desconsiderar as condições e
práticas de trabalho uns dos outros[96]. Na mesma linha, Michael
Flowers[97] relata a imensa dificuldade de colocar ideias que o time
de analytics tenha em prática: “Imediatamente, desconsideramos
qualquer intervenção que altere a maneira como trabalhamos na
linha de frente. […] Mesmo novos formatos de execução das
tarefas são encarados com cautela, na medida em que esbarram,
ou, pelo menos, mudam a maneira como o trabalho de campo é
realizado”[98].
A existência dessa complicação, no entanto, pressupõe a
existência de um time de analytics e de uma gerência que apoia a
tomada de decisão baseada em dados, o que muitas vezes não é a
realidade. Uma pesquisa realizada em 2017 com 16 mil profissionais
apontou que a falta de talentos é a segunda maior barreira para o
emprego da ciência de dados, seguida pela falta de suporte dos
superiores e, em quinto lugar, informações que não são utilizadas
nas tomadas de decisão[99].
Uma outra categoria de desafio se refere ao investimento
necessário para a implantação dos medidores. Fortes et al.[100] e
Boyle et al.[101] reportam casos de investimento proibitivo, enquanto
para a Marchment Hill Consulting[102], a viabilidade financeira ainda
é inconclusiva e depende de fatores como tarifação da água
durante períodos de seca, elasticidade-preço da demanda e
predisposição da população para adotar a tecnologia. Em vários
países, a utilização desses medidores foi fomentada por programas
governamentais[103] ou por formas de incentivo, como a aplicação
de tarifas diferenciadas dependendo do horário de consumo.
Entretanto, não é claro se a maioria dos consumidores gostaria de
preços que variassem ou se eles realmente prefeririam preços
estáveis e previsíveis[104]. No que tange à viabilidade financeira,
alguns países estão investindo em uma infraestrutura de coleta e
transmissão de dados compartilhada entre prestadoras de serviços
públicos[105], enquanto em outros, as empresas têm oferecido novos
serviços, como seguro contra vazamentos internos[106].
Ademais, existe uma preocupação relacionada à privatização dos
espaços públicos, ao uso dos dados, à privacidade e à segurança
cibernética. Greenfield[107] escreve que, quando se tratam de
cidades inteligentes, é importante questionar quais ideias as
sustentam e quais interesses estão sendo atendidos. Grandes
empresas têm papel relevante no desenvolvimento de cidades
inteligentes, que podem estar implementando tecnologias que não
atendem às demandas da população[108]. Corre-se o risco de que a
“internet das coisas”, assim como a internet, não traga benefícios
para toda a sociedade e reforce estruturas de poder existentes[109].
Os dados gerados viraram uma espécie de commodity” que pode
ser alugada, comprada e vendida em vários mercados[110]. A lista de
interessados nos dados de consumo de água é longa: prestadoras
de serviço público buscam monitorar detalhes do consumo
(horário e quantidade) e ampliar sua receita, grandes empresas
tentam vender produtos adequados ao perfil dos clientes, grupos
ligados à conservação dos recursos naturais almejam influenciar
moradores, responsáveis pelo cumprimento das leis acompanham
atividades suspeitas, companhias de seguro investigam
comportamentos que possam indicar problemas, prefeituras
buscam informações sobre a propriedade, credores avaliam a
credibilidade dos clientes e criminosos perscrutam oportunidades
para roubar itens de valor ou identificar moradias desocupadas[111].
Ainda, em uma conjuntura de dados abertos e escassez hídrica, os
próprios cidadãos poderiam criticar usos abusivos de recursos e,
de certa forma, limitar a liberdade individual uns dos outros.
Em cidades inteligentes, a abertura dos dados e a privacidade
são duas forças que competem entre si. Nesse sentido, algumas
cidades estão investigando qual a melhor forma de abrir os dados.
Em 2016, Seattle publicou uma política de dados abertos e
contratou o think tankThe Future of Privacy Forum (FPF) para
elaborar uma metodologia para a avaliação dos riscos associados à
divulgação de dados abertos que contasse com a participação da
população[112]. Para Shah[113], os dados transferidos devem ser
abertos, sujeitos ao escrutínio do público e proporcionais à tarefa.
Barcelona, que foi citada anteriormente, está considerando o uso
de tecnologia blockchain, criptografia e um sistema de permissões
para acesso e controle dos dados[114].
No Brasil, ainda não existe uma regulação específica para
proteção de dados pessoais. O estudo “Internet das Coisas: um
Plano de Ação para o Brasil” traz no seu produto 8, “Relatório do
Plano de Ação — Capítulo Regulatório”, algumas recomendações,
como: a proteção aos dados pessoais deve ser a mesma para os
dados coletados no setor privado e público; o modelo regulatório
mais adequado consiste na instituição da autoridade central em
modelo de corregulação e incentivo a práticas transitórias de
autorregulação; a coleta de dados pessoais por soluções IoT, pelo
poder público, deve ser feita de forma anonimizada e agregada, por
meio de critérios robustos de criptografia e emprego de práticas
como privacidade diferencial, dentre outras[115].
Como privacidade é uma questão pessoal, vários estudos
procuram entender, catalogar e acompanhar as mudanças no perfil
das populações[116]. Um dos primeiros estudos sobre o tema
estabeleceu três categorias de comportamento em relação à
privacidade: pragmáticos, fundamentalistas e despreocupados.
Pragmáticos são aqueles que pesam os benefícios dos serviços e o
grau de intrusão dos agentes privados e poder público. Eles
procuram ver quais procedimentos estão envolvidos na coleta de
dados e conhecer as avaliações de outros cidadãos envolvidos. Eles
também acreditam que as organizações empresariais ou o governo
devem “ganhar” a confiança do público, em vez de assumir
automaticamente que eles a possuem. Já os fundamentalistas
tendem a desconfiar de organizações que solicitam as suas
informações e preferem privacidade aos benefícios dos serviços.
Por fim, despreocupados confiam nas instituições e estão
confortáveis com a legislação existente. Na primeira pesquisa
realizada, em 1990, 57% do público americano foi classificado como
pragmático, 25% fundamentalista e 18% despreocupado. Mais de
dez anos depois, em 2003, uma pesquisa traz para as mesmas
categorias, 64%, 26% e 10%, respectivamente[117].
Além da coleta dos dados, há uma apreensão em relação ao
processamento deles, pois, ao mesmo tempo em que as
informações podem ser utilizadas para gerenciar os serviços de
maneira mais efetiva e eficiente, garantindo segurança e
resiliência, elas também podem ser utilizadas para infringir a
privacidade dos cidadãos, criar perfis e categorizar as pessoas
socialmente[118]. Dessa forma, o uso de big data e algoritmos
preditivos podem ser entendidos como um meio de governança,
pois são uma maneira de as autoridades gerenciarem o
comportamento dos indivíduos e alocarem recursos[119].
Como uma quantidade cada vez maior de decisões são tomadas
com a ajuda de algoritmos, a governança algorítmica é um tópico
que tem ganhado cada vez mais atenção. Isso porque ao elaborar e
executar um algoritmo, designers incluem, excluem, pesam e
enfatizam ou não informações[120], criando vieses[121]. Para Brauneis
e Goodman[122], o foco não deveria ser em abrir o código dos
algoritmos, algo que pode nem ajudar na transparência, mas em
entender o design, aquisição e implementação das rotinas. Dessa
forma, argumentam os autores, os desenvolvedores podem manter
a sua posição competitiva e a sociedade pode ser informada de
maneira satisfatória sobre o processamento dos dados.
Na mesma linha, cresce o entendimento entre profissionais de
que algoritmos não deveriam focar apenas em uma métrica, mas
sim considerar o benefício de toda a sociedade[123]. Pensando nisso,
no início de 2018, especialistas de todo o mundo se reuniram on-
line e começaram a criar um código de ética para cientistas de
dados[124]. Tendo em vista o contexto brasileiro, no qual os projetos
de instalação de medidores são voltados para a redução da
inadimplência e para o combate ao furto[125], seria relevante
conhecer o desenho dos algoritmos que têm orientado as práticas
das prestadoras de serviço público.
Dispositivos de IoT, como medidores inteligentes, são
especialmente vulneráveis a ataques e podem servir de porta de
entrada para hackers[126][127][128]. Alguns motivos para invadir
medidores incluem desestabilizar o sistema de abastecimento,
reduzir a conta de água, elevar a fatura de outros usuários, roubar
água, evadir restrições de consumo e reduzir a vigilância da
residência[129]. Em 2009, o FBI foi recrutado para investigar furtos
de energia em Porto Rico associados a interferências nos
medidores inteligentes de energia[130] e, em 2015, a Ucrânia foi o
alvo do que ficou conhecido como o primeiro hack para causar
interrupção do abastecimento de energia[131][132].

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adoção de medidores inteligentes de água está em seus


primórdios e ainda existe muita especulação em relação a como
esses objetos serão inseridos na rotina e no planejamento de
cidades inteligentes. No Brasil, os projetos até o momento têm tido
foco na redução de perdas comerciais e na redução de custos sem
necessariamente integrar redes inteligentes de água ou uma
gestão integrada da cidade.
Entende-se que a maximização dos resultados desses medidores
estará condicionada ao atendimento de demandas que
transpassam os interesses da prestadora de serviço. Nesse sentido,
é essencial que os dados obtidos não fiquem restritos às empresas
que os coletam. Se, por um lado, a disponibilização desses dados,
seguindo as recomendações do Manual de Dados Abertos[133], pode
colocar em xeque a privacidade dos usuários, por outro, o
potencial de uso de tais dados, quando dessa forma divulgados, é
muito maior. Uma possível solução para o impasse poderia ser, aos
moldes do exemplo de Seattle, consultar a população sobre os
dados que devem ser abertos ou, capturando os aprendizados de
Barcelona, buscar ferramentas que permitissem que cada um
pudesse individualmente escolher quais dados deseja compartilhar
ou não. Outrossim, é importante que o país avance na regulação da
proteção aos dados pessoais.
Medidores inteligentes podem assumir um papel importante na
gestão dos recursos naturais, da sustentabilidade e da resiliência
urbana, mas, até o momento, ainda não demonstraram todo o seu
potencial.

1. Ágatha é engenheira química pela Universidade


Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
especialista em Gestão de Projetos pela
Universidade de São Paulo (USP). Apaixonada
por desenvolvimento sustentável e cidades
inteligentes, ela atua no setor de saneamento
no qual coordena projetos de inovação que
empregam novas tecnologias e ciência de
dados para aumento da eficiência na gestão do
ciclo da água. E-mail:
agathacarolina@gmail.com. ↵
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20. SANASA. Medição Individualizada de Água em
Condomínios. 2018. Disponível em:
http://www.sanasa.com.br/noticias/not_con
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Challenges, v. 5, n. 1, p. 123–137, 2014. ↵
24. Busca realizada em 26 de fevereiro de 2018
utilizando aspas nos termos mencionados. ↵
25. Por exemplo, no município de São Paulo
existem quatro categorias: residencial,
comercial, industrial e pública; e algumas são
divididas em subcategorias. Um usuário da
categoria residencial/comum que consuma
vinte e um metros cúbicos de água em um mês
pagará um valor diferenciado pelo metro
cúbico conforme a faixa de consumo, que, no
município, varia a cada dez metros cúbicos.
Seriam, portanto, R$ 24,15 pelos primeiros dez,
mais R$ 37,80 pelos dez subsequentes e mais
R$ 9,44 pelo metro cúbico consumido acima de
vinte, totalizando R$ 71,39. Ver em: SABESP.
Agência Virtual. 2017. Disponível em:
https://www9.sabesp.com.br/agenciavirtual/
pages/tarifas/tarifas.iface. Acesso em: 4 fev.
2018. ↵
26. Em fevereiro de 2017, após intensa oposição, a
Irlanda interrompeu o processo de instalação
de hidrômetros. Ver em: BARDON, S. Regulator
says Irish Water should not proceed with
metering. 2017. Disponível em:
https://www.irishtimes.com/news/politics/r
egulator-says-irish-water-should-not-
proceed-with-metering-1.2933685. Acesso em:
5 fev. 2018. ↵
27. BOYLE, T. et al. Intelligent metering for urban
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Água em Campo Grande-MS – YouTube. 2015.
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30. GPRS utiliza a tecnologia de comunicação de
celulares (GSM) para transmissão dos dados.
Ver em: MITCHELL, B. What Is GPRS? –
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packet-radio-service-817466. Acesso em: 15
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Meter Networks, in DEFCON. 2011. Disponível
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33. Idem. ↵
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36. CRAEMER, K.; DECONINCK, G. Analysis of
State-of-the-art Smart Metering
Communication Standards, Proceedings of the
5th Young Researchers Symposium, p. 1-6,
2010. ↵
37. Ye et al. propuseram uma arquitetura para
redes inteligentes com foco na qualidade da
água. Ver em: YE, Y. et al. The System
Architecture of Smart Water Grid for Water
Security. Procedia Engineering, v. 154, p. 361-
368, 2016. ↵
38. BOYLE, T. et al. Intelligent Metering for Urban
Water: A Review. Water, v. 5, n. 3, p. 1052-1081,
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39. Idem. ↵
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de Água: Desafios ao Avanço do Saneamento
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47. Kamstrup. What is the value of your meter
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48. Idem. ↵
49. Medição Inteligente. Inovação na Medição de
Água em Campo Grande-MS – YouTube. 2015.
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De Viabilidade Econômica No Contexto Das
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a eletricidade consumida por mais de 4 milhões
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52. LEITE, D. R. V. Medidores Eletrônicos: Análise
De Viabilidade Econômica No Contexto Das
Redes Inteligentes. Universidade de Brasília.
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53. Instituto Trata-Brasil e GO Associados. Perdas
de Água: Desafios ao Avanço do Saneamento
Básico e à Escassez Hídrica. 2015. Disponível
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54. CARRINGTON, D. Water companies losing vast
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55. O balanço hídrico audita o volume de água
desde a produção, passando pela distribuição,
até as unidades dos clientes. Ver em: American
Water Works Association. IWA/AWWA Water
Audit Method. 2012. Disponível em:
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ao Avanço do Saneamento Básico e à Escassez
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cities-reduce-water-energy-nexus-pressures.
Acesso em: 24 nov. 2017. ↵
67. Uma Smart App. Para um futuro mais
inteligente. Caros moradores da cidade mais
inteligente, obrigado por contribuir para
tornar Dubai a cidade mais inteligente. Para
tanto, trabalhamos duro para oferecer uma
experiência mais fácil e intuitiva para você,
buscando atender às suas necessidades e à sua
felicidade. Nós, da Dubai Electricity and Water
Authority, estamos orgulhosos de anunciar um
aplicativo ainda mais inteligente. Ver em:
DEWA. DEWA Smart App. 2018. Disponível em:
https://www.dewa.gov.ae/en/customer/inn
ovation/smart-initiatives/app-download-
page. Acesso em: 17 fev. 2018. ↵
68. TANG, J. Dubai Electricity and Water Authority
reports more using self-service capabilities.
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69. BOYLE, T. et al. Intelligent Metering For Urban
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70. Idem. ↵
71. DOYLE, K.; O’CONNOR, N. Irish Water has not
installed a domestic meter for five months -
Independent.ie. 2017. Disponível em:
https://www.independent.ie/irish-
news/politics/irish-water-has-not-installed-
a-domestic-meter-for-five-months-
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72. BOYLE, T. et al. Intelligent Metering For Urban
Water: A Review. Water, v. 5, n. 3, p. 1052–1081,
2013. ↵
73. NGUYEN, K. A. et al. Smart technologies in
reducing carbon emission: Artificial
intelligence and smart water meter, ACM
International Conference Proceeding Series,
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74. Idem. ↵
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reducing carbon emission: Artificial
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Management, v. 140, n. 2, p. 146-159, 2014. ↵
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energy nexus pressures?. 2016. Disponível em:
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energy production: An international
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81. SPANG, E. S. et al. The water consumption of
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8-9326/9/10/105002/meta. Acesso em: 01 jul.
2018. ↵
82. O conceito de resiliência em cidades é
bastante amplo e envolve sete qualidades:
reflexiva, que aprende com experiências
anteriores; robusta, capaz de suportar eventos
de alto impacto; redundante, possui
capacidade extra para atender picos de
demanda ou falhas de sistemas; flexível, tem
habilidade de responder a crises; informada,
instituições e cidadãos estão cientes dos riscos
aos quais estão sujeitos; inclusiva, todos se
sentem responsáveis pela construção de
resiliência; e integrada, há consistência nas
decisões tomadas. Ver em: Prairie Climate
Center. Building a Climate-Resilient City:
Electricity and information and communication
technology infrastructure. 2017. Disponível em:
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climate-resilient-city-electricity-and-
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test new water resilience framework – The
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cities-test-new-water-resilience-framework/.
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85. International Water Association. Five cities to
test new water resilience framework – The
Source, 2018. Disponível em:
https://www.thesourcemagazine.org/five-
cities-test-new-water-resilience-framework/.
Acesso em: 10 fev. 2018. ↵
86. O termo [rede inteligente] tornou-se quase
onipresente, muito popular e sujeito de
considerável entusiasmo. Afinal, quem quer
estar contra uma "rede inteligente" ou em
favor de uma "rede estúpida"? Ver em: YERGIN,
D. The Quest: Energy, Security, and the
Remaking of the Modern World. New York: The
Penguin Press, 2011. ↵
87. GOURBESVILLE, P. ICT for Water Efficiency.
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European smart city is giving power back to its
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medidores inteligentes como instrumento da
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power-back-to-its-citizens. Acesso em: 18 jun.
2018. ↵
109. “All disruptive technologies upset traditional
power balances, and the Internet is no
exception. The standard story is that it
empowers the powerless, but that's only half
the story. The Internet empowers everyone.
Powerful institutions might be slow to make
use of that new power, but since they are
powerful, they can use it more effectively.
Governments and corporations have woken up
to the fact that not only can they use the
Internet, they can control it for their interests.
Unless we start deliberately debating the
future we want to live in, and information
technology in enabling that world, we will end
up with an Internet that benefits existing
power structures and not society in general.”
Ver em: SCHNEIDER, B. Power And The
Internet. 2013. Disponível em:
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detail/23818. Acesso em: 17 nov. 2017. ↵
110. KITCHIN, R. Continuous Geosurveillance in the
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proposed Open Data Risk Assessment for the
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O uso de dashboards de Big Data Analytics no
contexto das cidades inteligentes

Taciano Messias Moraes[1]

INTRODUÇÃO

Desde o início do século XX, a humanidade tem vivido uma de suas


mais importantes mudanças: o êxodo rural. Com o crescimento
vertiginoso da população nas cidades, inúmeros problemas
completamente inéditos começaram a impactar a sociedade em
seus mais variados aspectos: organizacional, político, econômico,
cultural, psicológico, de infraestrutura, recursos, saúde, dentre
outros[2].
Com o avanço e a popularização do computador (incluindo
dispositivos móveis e sensores) no fim do século passado, tornou-
se cada vez mais fácil e acessível fazer a análise, planejamento,
execução, monitoramento e automatização de várias das
atividades da gestão pública. Dessa forma, problemas que antes
eram complexos, como poluição, engarrafamentos, escassez de
recursos, desemprego, insegurança, analfabetismo, epidemias e
desperdício, passaram a ser amenizados com a ajuda da tecnologia.
Inovadores de todo o mundo, tanto do meio privado quanto
público, começaram a desenvolver soluções para esses problemas,
baseando-se nas metodologias e tecnologias que surgiram no
início do século XXI, como sensores, etiquetas RFID, softwares de
gestão governamental, crowdsourcing, realidade aumentada,
painéis solares, hackathons, fablabs e uma série de outras
invenções recentes. Devido ao fato de que boa parte dessas
inovações se baseiam no desenvolvimento aberto, colaborativo e
distribuído, hoje se faz possível que cidades de continentes
diferentes possam aprender, copiar, melhorar e criar de forma
conjunta mas independente, gerando uma enorme quantidade de
soluções que podem ser implementadas por qualquer prefeitura
que queira tornar sua cidade “mais inteligente”.
Entretanto, com a quantidade de dados sobre as cidades
aumentando exponencialmente devido ao uso de todas essas
tecnologias, o planejamento, a visualização e a gestão das centenas
de variáveis que compõem a gestão municipal se tornaram ainda
mais complicados. Por essa razão, áreas como Big Data,
Aprendizagem de Máquina e Data Analytics têm se tornado cada
vez mais fundamentais para a organização, a interpretação, a
priorização e a exibição de dados relevantes para o contexto ou a
necessidade em questão.
Convergindo com a evolução dessas áreas, o uso de dashboards
tem se tornado cada vez mais frequente entre as iniciativas de
cidades inteligentes, justamente por causa da enorme quantidade
de indicadores e informações que o sistema deve exibir. Além
disso, estes também possuem importante papel para auxiliar na
tomada de decisões de gestores e outros stakeholders, que
precisam, de forma rápida e efetiva, verificar incidentes, analisar
impactos, compreender tendências e traçar estratégias para a
melhoria das cidades.
Este artigo tem como objetivo discutir como o uso dessas
tecnologias pode contracenar com o conceito de dashboards para
auxiliar a Administração Pública em iniciativas de cidades
inteligentes. Para tal, será utilizada a Iniciativa Cidades
Emergentes e Sustentáveis (ICES) do Banco Interamericano do
Desenvolvimento como estudo de caso para melhor exemplificar
como esses conceitos podem otimizar recursos e serviços, tanto
por parte do setor público quanto do privado, ocasionando, a longo
prazo, um aumento da efetividade das instituições e um maior
igualitarismo e qualidade de vida para os cidadãos.
De maneira a tornar possível uma melhor análise do estudo de
caso da Iniciativa Cidades Emergentes e Sustentáveis (ICES),
inicialmente foi feita uma revisão bibliográfica sobre os conceitos
de cidades inteligentes e o papel da Accountability e dos
Indicadores para estas. Ainda relacionado ao assunto, o artigo
apresenta um breve histórico da iniciativa do BID e suas
fundamentações teóricas.
Em seguida, a pesquisa foi direcionada para algumas das áreas
mais promissoras da Computação Aplicada no contexto das
cidades, como internet das coisas, computação em nuvem, big
data, aprendizagem de máquina e data analytics. Foram levantados
e estudados alguns exemplos de utilização dessas tecnologias e o
impacto delas tanto para a administração pública quanto para a
cidade, a população e o meio ambiente em geral.
Por fim, foi feito um breve estudo sobre como são planejados,
estruturados, implementados e utilizados os dashboards,
comparando sua utilização atual no contexto das organizações
privadas com o que poderia ser feito no contexto das cidades
inteligentes e prefeituras, com todas as suas particularidades,
diferenças organizacionais e culturais.
Finalizada a revisão da literatura, fez-se possível então uma
discussão sobre o estudo de caso da execução da metodologia da
ICES na cidade de Goiânia/GO, bem como sobre quais poderão ser
os ganhos posteriores tanto para a gestão pública quanto para os
cidadãos. Tal estudo teve caráter mais exploratório e menos
analítico e descritivo, de maneira que seu foco foi mais na
investigação das possibilidades de uso futuro do que na forma e
nos detalhes de como a iniciativa foi realizada.

1. CIDADES INTELIGENTES

O conceito de “cidade inteligente” surgiu da interseção entre


várias áreas do conhecimento, dentre as quais se destacam: Gestão
Pública, Tecnologia da Informação e Comunicação, Urbanismo,
Engenharia de Tráfego e Ciências Sociais e Ambientais. Entretanto,
apesar de já existir, desde o final do século passado[3], o conceito
ainda carece de uma definição formal amplamente aceita, uma vez
que ainda está emergindo.
O primeiro autor a utilizar esse conceito foi Nicos Komninos, no
ano de 2002, quando argumentou que as cidades inteligentes
unem comunidades reais com o mundo digital; detêm e
compartilham um alto nível de conhecimento com sua região;
utilizam boas infraestruturas de tecnologia de informação e
comunicação; e possuem gestão do conhecimento otimizada[4].
É consenso entre os vários pesquisadores e metodologias que o
conceito “cidade inteligente” envolve um determinado uso de
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para melhorar a
velocidade, a efetividade e a participação dos cidadãos nas várias
áreas que compõem a gestão municipal: educação, saúde,
transportes, finanças, comércio e indústria, meio ambiente,
segurança, cultura, esportes, habitação e planejamento. Uma
cidade inteligente se caracteriza principalmente por possuir
cidadãos participativos, os quais deixam de apenas se informar
sobre a cidade e passam, cada vez mais, a se empoderar sobre ela,
até que consigam realmente ter poder para controlar seus
aspectos de acordo com suas vontades e necessidades[5].
Porém, muito ainda se diverge com relação a como e quanto a
tecnologia deve se entrelaçar com essas áreas, quais delas são
prioritárias para que uma cidade seja considerada “inteligente”,
quais seriam os fatores a serem observados, quais indicadores a
serem medidos e qual seria o papel e o nível de envolvimento dos
cidadãos. Atualmente, existem dezenas de metodologias, cada uma
com uma visão sobre o uso da tecnologia, o papel da população, as
áreas prioritárias e os indicadores próprios, normalmente
divergindo bastante entre si, tanto em conteúdo quanto na forma
de execução.
Por essa razão, alguns estudos têm sido feitos com a intenção de
unificar os pontos em comum presentes em conceitos de cidades
inteligentes. O estudo a seguir reuniu as seis principais
características destacadas nessas definições[6]:

1. utilização de infraestrutura em rede para melhorar a eficiência


econômica e política e permitir o desenvolvimento social,
cultural e urbano;
2. ênfase no desenvolvimento urbano liderado pelos negócios;
3. foco na inclusão social de boa parte da população nos serviços
públicos;
4. preocupação com o papel crucial das indústrias de alta
tecnologia e criativas no crescimento urbano de longo prazo;
5. atenção ao papel do capital social e relacional no
desenvolvimento urbano; e
6. sustentabilidade social e ambiental como principal
componente estratégico das cidades inteligentes.

Outro estudo levantou as principais definições de cidades


inteligentes e desenvolveu um framework com os principais
fatores de sucesso das iniciativas de cidades inteligentes:[7]
Figura 1: Framework para iniciativas de cidades inteligentes.

A partir da conceituação anterior, pode-se compreender melhor


as características em comum da maior parte dos estudos e
iniciativas de cidades inteligentes ao redor do mundo. Entretanto,
a maior parte das metodologias ainda possuem diferenças
significantes em sua forma de enxergar e avaliar uma cidade
inteligente, como se pode verificar na seção a seguir.
1.1. Metodologias de Avaliação

De acordo com o Ranking Europeu de Cidades Inteligentes de


Tamanho Médio[8], criado pelo Centro de Ciências Regional da
Universidade Tecnológica de Viena e duas outras universidades, o
conceito envolve seis grandes áreas que devem ser “inteligentes”:
Economia, Mobilidade, Meio Ambiente, Governança, Qualidade de
Vida e Pessoas. Além disso, eles consideram ainda 27 domínios e 90
indicadores dentro dessas grandes áreas que permitem às 90
cidades selecionadas em 2015 serem avaliadas, comparadas e
rankeadas de forma mais quantitativa e objetiva.
Já o Cities in Motion Index[9], da IESE Business School, um dos
mais completos do mundo em termos de número de cidades,
apresenta quatro grandes áreas: Sustentabilidade, Conectividade,
Inovação e Coesão Social, em que cada uma delas possui quatro
subáreas. Porém, eles avaliam efetivamente as cidades não nessas
áreas, mas em dez dimensões correlacionadas e 79 indicadores
derivados delas. Na edição de 2017, foram avaliadas 180 cidades de
80 países (de todos os cinco continentes habitados), sendo um dos
únicos com abrangência mundial. É importante ressaltar também
que este índice não possui foco sobre as cidades serem
“inteligentes”, embora acabe possuindo grande equivalência em
vários dos aspectos analisados.
Uma primeira tentativa de padronização surgiu do Global City
Indicators Facility (GCIF), um projeto conjunto do Global Cities
Institute, Banco Mundial, ONU, Fórum Econômico Mundial, OCDE
e governo do Canadá, que já foi testado com mais de 250 cidades
ao redor do mundo. Após décadas de pesquisa pela Universidade
de Toronto e formatação da metodologia, foi criado o World
Council on City Data (WCCD), que desenvolveu o padrão ISO 37120,
primeiro sistema internacional de padronização e certificação de
cidades inteligentes[10]. Ele já conta com mais de 77 cidades de
todos os continentes avaliadas e certificadas em seu sistema e se
utiliza de 17 temas, 100 indicadores e 5 níveis de certificação, que
indicam a maturidade da cidade em termos de seu projeto para se
tornar inteligente, dependendo da quantidade de indicadores que
ela consegue extrair e gerenciar.
O Brasil também já possui um modelo para a avaliação do nível
de maturidade de cidades inteligentes (Br-SCMM), desenvolvido
por pesquisadores da UFPE, UFAL e UFSCar. Neste, são
considerados dez domínios (Água, Educação, Energia, Governança,
Moradia, Ambiente, Saúde, Segurança, Tecnologia e Transporte),
estando cada um relacionado a um único indicador e, de acordo
com seus valores, posicionando a cidade, por sua vez, em cinco
níveis de maturidade: Simplificado, Gerenciado, Aplicado, Medido
e Transformado. Apesar de ser um modelo demasiadamente
simples e limitado, pode ser interessante para as cidades que estão
se iniciando agora no movimento de cidades inteligentes, já que os
indicadores foram propositalmente selecionados prezando-se pela
facilidade em se conseguir dados públicos, de modo que a cidade
pode facilmente identificar em qual nível se encontra e como pode
avançar aos níveis seguintes. Nesse primeiro momento, o estudo
avaliou apenas as 27 capitais brasileiras.
Existe ainda um outro ranking brasileiro criado por duas
empresas privadas, o Connected Smart Cities[11], que avaliou mais
de 700 municípios brasileiros por meio de 70 indicadores divididos
entre 11 setores: Mobilidade, Urbanismo, Meio Ambiente, Energia,
Tecnologia e Inovação, Economia, Educação, Saúde, Segurança,
Empreendedorismo e Governança. Entretanto, apesar de sua
abrangência ser consideravelmente superior ao do estudo
anterior, seu relatório não especifica a metodologia utilizada e,
portanto, não se sabe ao certo qual foi o rigor científico na coleta e
análise dos dados.
Da mesma maneira, existem diversos outros rankings e índices
bastante divulgados pela mídia, como o Programa Cidades
Sustentáveis[12], o Innovation Cities Index[13] e o Sustainable Cities
Index[14], que classificam centenas de cidades no Brasil e no mundo
por meio de indicadores próprios de cada um. Entretanto, eles são
mantidos por empresas privadas e não por instituições
acadêmicas. Embora a questão não seja efetivamente pelo fato de
serem privadas (uma vez que o próprio estudo de caso se utiliza de
uma metodologia de uma empresa privada), todos os três não
divulgam sua metodologia com detalhes sobre coleta e análise,
apenas mencionando as categorias e indicadores que utilizam.
Além disso, alguns deles restringem o acesso a membros do
projeto e outros até cobram taxas para acesso aos dados, fato que
se opõe diametralmente à política de dados abertos
(disponibilidade e universalidade) esperada de iniciativas de
cidades inteligentes.
Nesse quesito, o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) teve grande preocupação, uma vez que não só divulgou sua
metodologia, como também criou um guia bastante completo[15]
(explicando com detalhes sobre os processos, objetivos, fases,
atividades, métodos de coletas e análises, critérios de avaliação dos
indicadores) para que as várias equipes espalhadas nas várias
cidades da América Latina pudessem aplicá-la corretamente e
obter resultados comparáveis.
A Iniciativa Cidades Emergentes e Sustentáveis (ICES) já está
sendo aplicada em 77 cidades na América Latina e Caribe,
coletando 164 indicadores, divididos em 30 temas e 3 dimensões:
Ambiental e Mudança Climática; Desenvolvimento Urbano
Integrado; e Fiscal e Governança[16]. E uma vez que ela possui fases,
atividades, métodos e entregáveis muito bem definidos, isso se
torna um grande facilitador para que outras cidades que já estão
trabalhando de maneira mais avançada (já que é uma metodologia
mais complexa) na direção de se tornar mais “inteligentes” possam
começar a utilizá-la.
É importante destacar dessa iniciativa que o BID resolveu focar
sua aplicação apenas nas cidades consideradas “emergentes”, ou
seja, com áreas urbanas médias, crescimento populacional
sustentado, desenvolvimento econômico contínuo e estabilidade
social e governamental. Por esse motivo, seu ranking acaba
suprimindo grandes e importantes cidades, como São Paulo e Rio
de Janeiro, e focando apenas nas que ainda não possuem muita
experiência com projetos de cidades inteligentes.

1.2. Accountability
Além da conceituação de cidade inteligente e do comparativo
entre as principais metodologias de avaliação existentes, faz-se
importante também discutir dois conceitos relacionados que
possuem grande pertinência para o uso de dashboards nesse
contexto de cidades inteligentes. O primeiro deles é o termo
Accountability que alguns autores defendem poder ser traduzido
como “Responsabilização”, mas que também possui certa relação
com “Prestação de Contas”.
Normalmente, o conceito é utilizado para se referir à
fiscalização, monitoramento e responsabilização do poder público,
governantes, agentes e órgãos (e às vezes utilizado até mesmo para
organizações privadas ou indivíduos) quanto aos atos praticados,
suas obrigações legais e, inclusive, possibilidade de ônus no não
cumprimento destas[17].
Tal termo possui fundamental importância para o planejamento,
desenvolvimento e implantação de dashboards para cidades
inteligentes, uma vez que estes serão a interface física que
permitirá a materialização da accountability junto aos cidadãos.
Sem a correta compreensão desse termo e, mais que isso, sem o
seu devido aculturamento, a visualização de dados se torna
supérflua, mostrando informações destoantes dos objetivos da
administração em questão e das necessidades da população, fato
ainda mais grave.
Previamente à construção do dashboard em si, faz-se crucial
levantar quais são os objetivos que a gestão municipal se propôs,
extrair daí as perguntas que precisam ser respondidas, verificar
quais obrigações legais precisam ser cumpridas, combinar com os
resultados de uma pesquisa de opinião com a população e, por fim,
definir quais são os indicadores relacionados a essas informações,
que ambos os lados consideram importantes. Seguindo-se esses
passos, fica assegurado que o dashboard cumprirá com seu papel
de accountability com a sociedade.

1.3. Indicadores

O uso de indicadores específicos para o contexto urbano teve seu


início após o fim da Segunda Guerra Mundial, popularizados por
agências supranacionais como a Organização das Nações Unidas, a
Organização Mundial de Saúde e a Organização Internacional do
Trabalho, que os utilizavam para comparar as nações com relação
a suas economias, sociedades, saúde, produções etc. Nas últimas
décadas, eles foram incorporados ao contexto das cidades,
permitindo aos cidadãos monitorarem os vários aspectos da
Administração Pública, como: Competitividade, Qualidade de Vida,
Sustentabilidade, Educação, Saúde e Mobilidade.
A definição de indicadores consiste em medidas quantificáveis
que podem ser rastreadas ao longo do tempo para prover
informações sobre determinado fenômeno, geralmente utilizados
em conjunto com outros indicadores para a verificação e a
previsão de tendências ou mesmo análises holísticas[18]. No caso
das cidades, eles permitem a compreensão e o monitoramento de
como as várias áreas da gestão municipal têm desempenhado,
permitindo que gestores, agentes públicos e cidadãos não só
compreendam rapidamente o contexto atual, como também
possam diagnosticar problemas de desempenho e, em alguns
casos, até traçar previsões futuras.
Na etapa inicial do levantamento de métricas e indicadores,
deve-se avaliá-los com relação às seguintes características:
objetividade, disponibilidade, confiabilidade, atualidade,
universalidade e comparabilidade. Em seguida, para a filtragem
inicial, faz-se importante identificar os KPIs (Key Performance
Indicators), os quais são mais críticos ou prioritários para as
iniciativas e objetivos do momento. Por fim, passa-se à
padronização desses indicadores e então à sua categorização, ou
seja, à sua classificação entre as cores vermelho, amarelo e verde
(ou quaisquer outras categorias), de acordo com o seu valor,
respectivamente, se é preocupante, razoável ou bom.
Uma vez que esses dados estão compilados e analisados, eles
podem ser melhor representados nos dashboards, que exibirão
apenas o que for prioritário e não necessariamente pela
representação do indicador em si (como pelas 3 cores do
semáforo), podendo ser também na forma de informações
chamadas actionable (que, com poucos segundos de visualização,
geram ações). Um exemplo disso seria um indicador sobre a
velocidade da internet na cidade, que, estando num nível crítico,
poderia já sinalizar um possível rompimento numa fibra óptica na
região.
É importante ressaltar, porém, que o objetivo central de um
indicador é mostrar, de forma rápida e intuitiva, a gravidade de
determinada questão e permitir que se tomem ações a fim de
solucioná-la. Por essa razão, ele não deve oferecer muitos detalhes
ou soluções prontas, a fim de que o dashboard permaneça sempre
legível e direto ao ponto para a tomada de decisões rápidas.

2. Computação Aplicada

Nessa era de crescimento exponencial da informação, tantas são as


tecnologias, e surgindo num ritmo tão frenético, que
frequentemente as impressões da Administração Pública em
relação à adoção de novas ferramentas estão mais relacionadas a
sobrecarga, desinteresse, inviabilidade, frustração e desperdício do
que a melhoria, progresso, benefício, otimização ou entusiasmo.
Apesar disso, o número de iniciativas de computação aplicada às
cidades tem crescido ano a ano e gerando cada vez mais casos de
sucesso, tanto por meio de parcerias público-privadas, quanto
executadas pelas próprias equipes de prefeituras e órgãos
públicos.
A administração de Michael Bloomberg em Nova Iorque no ano
de 2001 é um excelente exemplo de iniciativa tecnológica bem-
sucedida na área. Dentre as várias ideias implantadas, vale
mencionar a introdução de um portal de accountability dentro do
site da prefeitura, que serviu tanto para a população quanto para
os próprios gestores e agentes públicos acompanharem o
desempenho dos serviços da cidade, por meio de uma interface
simples e com indicadores fáceis de ser comparados com cada
região da cidade. Bloomberg acabou gerindo a cidade como uma
organização completamente orientada a dados, estabelecendo
metas de desempenho para cada departamento, priorizando a
quantidade colossal de indicadores existentes e os comparando
com padrões nacionalmente reconhecidos de performance de
outras cidades grandes[19].
Quase uma década mais tarde, o que permitiu tecnologias ainda
mais avançadas e interconectadas, a cidade do Rio de Janeiro
construiu em 2010 um Centro de Operações (COR) em parceria
com a IBM – que desenvolveu o sistema. Seu datacenter consegue
integrar os dados de 30 agências diferentes em um único software,
permitindo o cruzamento de informações de sensores, câmeras e
dispositivos GPS de veículos públicos, com outras providas pelos
técnicos que operam o sistema, permitindo a tomada de decisões
rápidas sobre enchentes, acidentes, crimes, falhas nos serviços,
engarrafamentos e outros tipos de problemas, sejam estes em
tempo real ou mesmo previsões futuras. O sistema foi pensado
prioritariamente a fim de prover informações acerca da cidade
durante a Copa do Mundo e as Olimpíadas que viriam a acontecer
nos anos seguintes, mas continuou se mostrando bastante útil e de
enorme retorno sobre o investimento mesmo após a finalização
daqueles eventos[20].
Além desses exemplos, inúmeras outras aplicações serão
possíveis com o amadurecimento de áreas da Computação
Aplicada que têm se mostrado promissoras para o contexto das
cidades inteligentes, dentre as quais vale destacar quatro:

Internet das coisas – sensores que coletam umidade,


temperatura, pressão, luz, movimento, velocidade, gases,
resistividade elétrica, acústica etc., possibilitando, dentre
outras coisas, semáforos e sinalizações inteligentes, que se
adaptam dinamicamente de acordo com as condições
meteorológicas ou mesmo no caso de outros acidentes graves,
abrindo o fluxo para bombeiros, policiais ou ambulâncias.
Computação em nuvem – armazenamento e processamento
infinitamente superiores ao que era possível com os
datacenters locais, permitindo, por exemplo, o
reconhecimento facial de imagens de câmeras de segurança
em tempo real combinadas com outras informações policiais
acerca de criminosos foragidos.
Big Data Analytics – interpretação de padrões e cruzamento
de dados do IBGE, PNUD, ANATEL, ANEEL, CPRM, IPEA, DNIT,
DATASUS e SEBRAE com outros dados nos níveis federal,
estadual e municipal, assegurando um melhor planejamento,
tomadas de decisão e utilização dos recursos públicos em
casos como na construção de obras em locais mais críticos ou
que ofereçam maior custo/benefício.
Aprendizagem de Máquina – combinando os dados coletados
de fontes públicas, privadas, internas à Administração Pública,
sensores e outros dispositivos espalhados pela cidade, estes
poderão ser utilizados por algoritmos como o Deep Learning
na identificação preventiva de problemas, como nas redes de
eletricidade, telefonia, saneamento, internet e transporte,
dentre outras possibilidades.
Por meio do uso das tecnologias mencionadas e outras mais, os
governantes e outros agentes públicos terão cada vez mais
informações relevantes ao seu trabalho. Porém, para que estas não
acabem crescendo de maneira desordenada e trazendo mais
confusão do que compreensão, elas precisam ser organizadas e
disponibilizadas de maneira que seja simples e rápida para se
visualizar, compreender e agir, contexto em que se faz crucial o
uso dos dashboards.

3. DASHBOARDS

Com todas as possibilidades apresentadas na seção anterior,


percebe-se que é simples chegar a uma quantidade exorbitante de
informações, o que acaba gerando dois grandes problemas para a
Administração Pública. O primeiro é com relação à infraestrutura,
aumentando a quantidade e o armazenamento dos servidores; ou
ainda que seus dados estejam na nuvem, aumentam-se os custos e
dificulta-se a gestão. O segundo problema se dá em razão da
visualização de um número colossal de informações diferentes
sobre um mesmo objeto (nesse caso não uma empresa, mas uma
cidade), o que torna mais difícil a análise dos dados por aqueles
que precisam fazer planejamentos e tomar decisões.
O primeiro problema acaba por ser intrínseco e improvável de
ser solucionado, podendo ele ser apenas amenizado caso as
informações produzidas cresçam de forma linear e a evolução
tecnológica continue crescendo de forma exponencial, seguindo a
famosa Lei de Moore[21]. Porém, um dashboard (ou um conjunto
deles com diferentes visões) pode fácil e rapidamente solucionar o
segundo problema ou ao menos uma parte significativa dele. Para
que isso aconteça de fato, ele precisa seguir alguns elementos
básicos para garantir que seja um bom dashboard[22]: a) ser e
comunicar-se de maneira simples e fácil; b) possuir o mínimo de
efeitos e distrações para não causar confusão; c) prover
informações úteis e com significado para os stakeholders; e d)
adequar a apresentação visual dos dados com a percepção visual
humana.
Além do enorme auxílio para a tomada de decisão da
Administração Pública e da melhoria na accountability (prestação
de contas) da evolução da cidade para a população, ainda existe
um terceiro motivo pelo qual o uso de dashboards é tão
interessante para cidades inteligentes. Uma vez que duas cidades
utilizem a mesma metodologia de avaliação, garantindo que as
informações estejam padronizadas, não importa se elas se
encontram em continentes com condições geográficas diferentes,
se possuem culturas completamente contrárias ou até mesmo se
utilizam sistemas político-econômicos distintos. Por meio dos
dashboards pode-se estabelecer um benchmarking (comparativo) e
traçar um plano paralelo entre elas, permitindo a verificação de
qual possui melhor desempenho em determinada área.
Tal contraste se faz interessante também para estimular entre as
cidades e as administrações uma certa dose de competição e
ambição, características normalmente ausentes (ou presentes
apenas sob a perspectiva individual e de maneira
contraproducente) nesse âmbito. Uma vez que cidades bem
posicionadas nesses rankings conseguem atrair ainda mais
investimentos e turistas, o estímulo se torna ainda mais real para
governantes.
Além do benefício anterior, o uso de dashboards também traz
algumas outras vantagens[23] que também são aplicáveis para os
próprios gestores e agentes públicos no caso de projetos de
cidades inteligentes: a) apresentação visual de medidas de
desempenho; b) capacidade de identificar e corrigir tendências
negativas; c) economiza tempo em comparação à geração de vários
relatórios; d) medir eficiências / ineficiências; e) capacidade de
tomar decisões mais informadas com base em Business
Intelligence; f) alinhar estratégias e objetivos organizacionais; g)
ganho de visibilidade total de todos os sistemas instantaneamente;
h) capacidade de gerar relatórios detalhados mostrando novas
tendências; e i) identificação rápida de pontos fora da curva
(outliers) e correlações de dados.
Consequentemente, os ganhos anteriores também acabam
sendo repassados à população, em termos de melhoria de
qualidade de vida, uma vez que os serviços públicos passam a ser
oferecidos de maneira mais rápida e efetiva. Com a accountability
provida pelos dashboards, os cidadãos podem conferir se seus
impostos estão sendo bem utilizados, não só se sentindo mais bem
atendidos pela gestão municipal, como também mais motivados,
responsabilizados e empoderados para atuar proativamente nos
problemas da cidade[24].
Existem inúmeras maneiras de se implementar um dashboard.
Ele pode ser disponibilizado num portal on-line para o público
externo, de forma que fique acessível para uma quantidade maior
de pessoas, a fim de garantir a accountability da gestão municipal.
Similarmente, pode ser uma iniciativa estatal na forma de um
comparativo entre as várias cidades de uma região ou até mesmo
partindo de uma ONG que compare cidades de vários países, por
exemplo, o Cities In Motion Index[25]. Ou pode ainda ser
implementado de forma física, por meio de grandes displays em
locais acessíveis somente para um público interno e restrito, com
informações mais voltadas ao aspecto estratégico e operacional.
Um exemplo desse uso é o já mencionado Centro de Operações da
Prefeitura do Rio de Janeiro, que é considerado um dos mais
modernos do mundo e que, por meio de seu dashboard com
informações em tempo real, desempenhou um papel fundamental
durante as Olimpíadas e a Copa do Mundo.
Por meio dos dashboards, tanto gestores e agentes municipais
quanto cidadãos e investidores externos possuem acesso a
informações realmente objetivas, factuais, neutras, comparáveis,
abrangentes e confiáveis, características essas que normalmente
não podem ser encontradas nas informações sobre as cidades
veiculadas pela mídia. Futuramente, com sua popularização, a
sociedade vai viver uma mudança profunda não só na forma como
se governam e administram as cidades, mas inclusive na forma
como compreendemos e vivenciamos a vida urbana.

4. ESTUDO DE CASO
4.1. Implantação da Metodologia

A cidade de Goiânia foi a primeira no Brasil a ser selecionada pelo


BID para compor sua Iniciativa Cidades Emergentes e Sustentáveis
(ICES), que, na época, no ano de 2011, ainda estava em fase piloto
com a metodologia em experimentação. Como critérios de seleção,
foram utilizados[26]:

1. Tamanho e Crescimento Populacional – deveria ser uma


“cidade mediana” (com variação específica para cada país e
região), mas que ainda apresentasse crescimento positivo.
2. Crescimento Social – deveria possuir taxas de crescimento
elevadas para indicadores como o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), comparando-se com outras cidades no país em
questão.
3. Dinamismo Econômico – deveria possuir índices em
crescimento para o Produto Interno Bruto (PIB), níveis de
emprego e renda familiar.

Uma vez finalizada a seleção, o BID estruturou uma equipe


interdisciplinar e multissetorial para trabalhar com as equipes
técnicas da prefeitura da cidade (e até algumas entidades da
sociedade civil) no desenvolvimento de um plano de trabalho que
abordasse as 5 fases da metodologia ICES representadas na Figura
2.
Figura 2: Fases de uma cidade na metodologia ICES[27]

Após a fase predecessora de preparação e a coleta de


informações necessárias para a fase de análise e diagnóstico, as
equipes passaram à coleta e à avaliação dos 79 indicadores na
época (hoje 164), os quais se dividem entre 3 dimensões (urbana,
ambiental e fiscal), 12 pilares e 30 temas. Por meio desse trabalho,
Goiânia pode se incorporar ao Global City Indicators Facility
(GCIF), que desenvolveu um padrão ISO para se comparar
indicadores de cidades mundialmente.
A partir desses dados, foi possível fazer uma análise situacional
sobre o desempenho da cidade e uma priorização de quais seriam
as áreas mais importantes e mais urgentes para se trabalhar. Para
isso, foram considerados três importantes filtros: (I) opinião
pública; (II) vulnerabilidade às mudanças climáticas; e (III) custo
econômico. Estes foram, por sua vez, aplicados por meio de uma
pesquisa de opinião feita com 800 pessoas e algumas outras
análises feitas por equipes de especialistas, chegando-se a cinco
áreas prioritárias de ação:

1. Transporte Público e Mobilidade Urbana;


2. Competitividade e Conectividade;
3. Modernização da Gestão Pública – Gestão por Resultados;
4. Segurança Pública; e
5. Gestão da Expansão Urbana

Finalizada essa etapa de priorização (a qual se faz crucial para a


criação posterior de um dashboard de indicadores), as equipes
passaram a trabalhar em um plano de ação conjunto, com
atividades tanto para o BID quanto para a prefeitura e instituições
civis participantes do projeto. A partir das áreas críticas, foram
traçadas metas, possíveis soluções e seus custos associados para
que se pudesse passar à etapa de pré-investimento e então
execução das soluções, sendo que a seleção destas se deu por
meio de uma avaliação de viabilidade e impacto (avaliado em curto,
médio e longo prazo). Dentre as ações realizadas na cidade de
Goiânia durante esse piloto, que visavam levantar informações
inexistentes e necessárias para ações futuras dentro da
metodologia ICES, vale mencionar: a) elaboração de um
diagnóstico sobre a situação da conectividade por meio da
avaliação da banda larga disponível no município — a partir de uma
cooperação com o governo coreano; b) elaboração de um estudo
sobre a gestão da expansão urbana — “Análises de Crescimento
Urbano e Simulação para Avaliação de Sustentabilidade”; c)
contratação de um Inventário de Emissões de Gases de Efeito
Estufa e os Estudos de Vulnerabilidade às Mudanças Climáticas; e
d) formatação de um PRODEV para fortalecimento dos
conhecimentos e habilidades, atitudes e práticas de funcionários
públicos no governo municipal tendo como objetivo a aplicação da
gestão por resultados.[28]
Para as últimas etapas do processo, monitoramento e execução
do plano de ação, faz-se necessária a construção de um sistema
para o acompanhamento dos indicadores e metas estabelecidos,
consequentemente necessitando de dashboard para a fácil e rápida
visualização dessas informações. Na época, o BID ainda não
possuía tal sistema, de maneira que as informações eram
disponibilizadas em uma única planilha, contando apenas com um
mecanismo de “semaforização” para indicar de maneira simples a
situação do indicador avaliado.
Posteriormente, foi implantado um sistema (desenvolvido pela
empresa Estratec) para que fosse possível uma gestão estratégica
desses indicadores, de maneira a permitir um melhor
acompanhamento da evolução de cada indicador ao longo do
tempo e também fornecer uma quantidade significativamente
superior de informações relacionadas a cada um. Por meio deste,
foi possível centralizar e disponibilizar as informações atualizadas
em tempo real, aumentando assim a organização e a eficiência das
pessoas envolvidas na coleta e atualização destes.[29]
Com a execução de todas as etapas da metodologia ICES, a
cidade constitui uma base de conhecimentos e informações
fundamentais para o desenvolvimento de outras iniciativas e
projetos mais sofisticados de cidades inteligentes.

4.2. Dashboards criados para Goiânia

Atualmente, o BID provê uma plataforma integrada para todas as


cidades da ICES, chamada Urban Dashboard[30], na qual podem ser
visualizadas informações sobre cada um dos indicadores dos 23
temas (aumentados para 30 em 2017) que compõem as três
dimensões (urbana, ambiental e fiscal), podendo ainda comparar os
indicadores entre todas as 77 cidades participantes da
metodologia.
A plataforma também conta com uma linha do tempo para cada
uma dessas cidades, representando quais foram as principais
intervenções executadas ao longo dos anos para as áreas
prioritárias definidas, conforme estipulado no plano de ação da
cidade. Tal site representa, de certa forma, um grande avanço no
quesito accountability para as cidades, permitindo que seus
cidadãos acompanhem a administração da cidade e sua evolução
ao longo do tempo nas áreas da metodologia.
Além disso, o BID acabou criando também um ranking para as
cidades participantes da ICES, no qual apenas 50 indicadores
principais são considerados dos 164 que atualmente compõem a
metodologia. Cada indicador recebe uma pontuação proporcional
ao seu desempenho e de acordo com seu tipo, seja ele numérico,
nominal ou de benchmarking. A cidade de Goiânia se encontra na
7ª posição do ranking, com uma pontuação de 2,26 de um máximo
de 3,0. Conforme exposto anteriormente, tal informação mostra-
se bastante interessante para ser utilizada como publicidade pelos
gestores municipais para a captação de investimentos privados.
Outro tipo de dashboard, agora com função mais restrita aos
agentes públicos e com informações mais em tempo real, também
foi planejado e implantado no Centro de Gestão Integrada (CGI) de
Goiânia, novamente com o apoio financeiro e operacional do BID.
Ele conta com 60 câmeras de videomonitoramento[31], 400 alarmes
eletrônicos em prédios públicos, 1200 ônibus monitorados por
GPS, 600 sensores de tráfego e 10 pluviômetros instalados pela
cidade em áreas estratégicas, que agora fornecem informações
críticas de maneira instantânea para policiais, bombeiros e agentes
de trânsito terem maior agilidade no atendimento de ocorrências.
Apesar de possuir um foco maior na vigilância da segurança
pública e na prevenção e contenção de assaltos e furtos, o CGI
atualmente já consegue fornecer também informações sobre
engarrafamentos, ônibus estragados, acidentes, infrações de
trânsito, alagamentos e quedas de árvores.
Futuramente, além de contar com um banco de dados integrado
que unifique dados de saúde, educação, finanças, mobilidade, meio
ambiente e segurança, o CGI também envolverá um sistema de
informações aos motoristas, de prevenção de incêndios florestais,
de monitoramento de mídias sociais e de atendimento de call
center virtual. Além disso, ele também será o responsável pela
gestão dos projetos e dos serviços públicos, garantindo a
accountability da administração municipal por meio de relatórios e
comunicados à população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a expansão e a popularização da tecnologia, agora aplicada a


todas as outras áreas do conhecimento, cada vez mais os gestores
municipais e os cidadãos têm se mostrado interessados nos
benefícios das tão faladas cidades inteligentes. Entretanto, por
mais que inúmeras cidades ao redor do mundo já sejam intituladas
assim, esses projetos ainda têm se mostrado bastante
desafiadores, falhando em seu planejamento (devido à
complexidade de variáveis), em sua aplicação (por não atender às
necessidades reais da população) e em seus orçamentos
(implantando tecnologias caras e pouco eficientes, com baixo
retorno do investimento realizado).
Para agravar ainda mais a situação, existem atualmente dezenas
de metodologias e rankings, com áreas e indicadores bastante
discrepantes entre si, que prometem mostrar o quão “inteligente”
é a cidade e às vezes se utilizam de abordagens simplistas e
reducionistas. Ainda que estas gerem uma certa accountability,
sozinhas elas não são suficientes para engajar e empoderar a
população a também zelar por sua cidade.
Entretanto, vários estudos e casos de sucesso têm mostrado o
quanto conceitos da Computação Aplicada, como internet das
coisas, computação em nuvem, big data analytics e aprendizagem
de máquina podem revolucionar a administração pública. A adoção
correta de infraestrutura de conectividade, sensores e dispositivos,
centros integrados de operação e interfaces de comunicação com
a população podem certamente trazer inúmeros ganhos para as
cidades.
A fim de possibilitar a visualização da infinidade de dados
gerados, tanto por parte dos gestores quanto pela população,
dashboards devem ser planejados e implementados com foco nas
áreas prioritárias e informações relevantes ao contexto em
questão. O estudo de caso sobre a implementação da metodologia
ICES na cidade de Goiânia fornece uma visão completa sobre todo
esse processo e fornece alguns exemplos de dashboards tanto com
foco no público externo (população e potenciais investidores)
quanto no interno à prefeitura e órgãos públicos.
Apesar do dashboard interno do Centro de Gestão Integrada de
Goiânia ainda possuir uma abordagem meio antiquada de
videomonitoramento, este já consegue fornecer informações
importantes sobre alguns outros aspectos da cidade que não a
segurança. Como possibilidade de trabalho futuro, fica a exibição e
monitoramento em tempo real dessas outras áreas, como saúde,
educação, meio ambiente, dentre outras, o que já vem sendo
planejado com a integração dos bancos de dados de toda a
administração municipal.
Atualmente, a cidade já observa alguns ganhos com esse projeto
ainda em fase de maturação, os quais certamente serão ampliados
com a expansão do dashboard para todas as áreas da cidade,
melhorando não só em termos de rapidez e efetividade as decisões
dos agentes municipais, mas também otimizando os recursos
naturais, econômicos e humanos, melhorando os serviços públicos
e, em última instância, a qualidade de vida dos cidadãos como um
todo.

1. Mestre em Gestão de Software pela Carnegie


Mellon University - Silicon Valley (NASA
campus). Possui curso em Design Thinking pela
Stanford University. Atuou como Gerente de
Produto na Coupa Inc (startup do Vale do
Silício avaliada em mais de U$1B) e no Media
Lab UFG (3º maior do mundo). Premiado pelo
TED, entre os organizadores mais ativos do
mundo, com uma viagem para o Oriente
Médio, no encontro mundial de organizadores
TEDx. Atualmente, é Consultor de Tecnologia
na Rede Pró-Aprendiz, Professor do Instituto
de Informática da UFG e membro da Rede de
Monitoramento Cidadão de Goiânia (projeto
financiado pelo BID em 77 cidades da América
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em: 7 fev. 2018. ↵
Uber: Soluções Regulatórias para Aplicativos de
Transporte de Passageiros nas Smart Cities

Rachel Lopes Telésforo[1]

INTRODUÇÃO

Os aplicativos de caronas remuneradas (ridesharing) trouxeram ao


mercado efeitos disruptivos. Se, antes, mesmo em smart cities, era
comum a carência de concorrência, o que explicava a grande
formação de oligopólios, com a entrada do Uber e semelhantes no
cenário mundial, houve uma movimentação e aquecimento
voltados para mudanças, ainda em processo de configuração e
análise.
Com a intenção de evitar assimetrias de informação e demais
externalidades negativas, o mercado de táxis encontrava-se
bastante regulado[2], basicamente por meio de controle à entrada
de novos players no mercado (licenças e alvarás), além da fixação
de critérios para manutenção de segurança, higiene e preços.
Sendo assim, a qualidade do serviço estaria garantida. Porém, se
faz notória a não adequação desses requisitos à realidade, já que o
serviço se encontrava, indubitavelmente, distante desse ideal.
Até então, a falta de incremento legal capaz de gerar benefícios
efetivos ao coletivo corroborava a hipótese de que o setor de táxis
encontrava-se capturado, haja vista a regulação, que não atingia a
finalidade de benefício público, mas favorecia pequenos grupos de
interesses (donos de licenças de táxis, por exemplo). Na
perspectiva da teoria pública ― e aqui se justifica sua contribuição
para o presente trabalho ― as decisões políticas e econômicas dos
governos estão sujeitas à interceptação de um conjunto de
poderes com finalidade de tomada de decisões que os beneficiem.
Nesse cenário, entra em operação o aplicativo Uber, que conecta
passageiros com motoristas profissionais[3], com a promessa de
redução ― até mesmo eliminação ― das falhas de mercado
encontradas e aparentemente invisíveis à regulação vigente, haja
vista a falta de efetividade de suas normas para assegurar o
benefício público.
O efeito Uber emergiu ao encontro das economias do
compartilhamento, movimento denominado por autores, como
Jeremy Rifkin, como “eclipse” do capitalismo[4], por representar a
possibilidade de novo status social baseado na troca e no aluguel,
em que os direitos de propriedade continuamente perdem a força.
O surgimento da internet das coisas tem levado ao soerguimento
de um sistema econômico voltado aos bens comuns colaborativos,
os quais estão transformando nosso modo de vida.
O formato de comercialização foi repensado: a cadeia de valor
da economia colaborativa tornou os modelos de negócios
“prestadores de serviços”, “fomentadores de mercado” ou
“provedores de plataformas”. No coração da economia colaborativa
estão empresas e projetos que foram criados com base no modelo
do compartilhamento “pessoa para pessoa”, denominado consumo
e negócio colaborativo.
No que se refere especificamente aos serviços de transporte de
passageiros, a presença do Uber trouxe, ao menos em um primeiro
momento, perspectiva de qualidade, mas, na contramão do
sucesso com os usuários, a princípio, o regulador indica seguir
mundialmente o seguinte ciclo de intervenção: (i) proibição; (ii)
proibição indireta do aplicativo, por meio de regulação feita
conforme o sistema tradicional/“à la táxi”, ambas combatidas pelo
setor judiciário; e (iii) estudos para implementação de uma
regulação específica, em parceria com o setor público.[5]
O terceiro ciclo de intervenção regulatória indica um caminho
de interconexão entre as economias de colaboração e medidas
urbanas que beneficiem o interesse coletivo, com redução dos
gastos públicos. O objetivo deste artigo é analisar cidades que já
avançam para uma regulação específica dos aplicativos, vencidos
os dois primeiros momentos regulatórios, com o fito de responder
à seguinte pergunta: Uber — como regular? Busca-se oferecer
soluções alternativas para a regulação de aplicativos de caronas
remuneradas nas smart cities.
O objetivo central do presente artigo, portanto, é analisar os
avanços regulatórios dos transportes de carona remunerada em
cidades que já adotaram o terceiro ciclo de intervenção, de forma
a garantir os direitos dos prestadores de serviço tradicionais nesse
mercado, sem impedir o fomento à tecnologia e sem engessar
economias disruptivas em constante erupção.
No entanto, para adentrar nesse novo modelo regulatório é
necessário que o agente abandone o caráter meramente
fiscalizatório e assuma características de comportamento mais
proativo e analítico, no sentido de aplicar alternativas regulatórias
que impliquem ganhos reais em infraestrutura e urbanização.

1. O SETOR DE TÁXI E OS
CONSUMIDORES

Tradicionalmente, são três os segmentos em que o mercado de


táxis opera: (i) táxis de rua; (ii) fileiras de táxis; e (iii) táxis pré-
agendados.[6] A regulação do serviço de táxis é baseada em alguns
critérios específicos, como a diminuição das assimetrias de
informação; a oferta de melhor qualidade no serviço; e a
diminuição de externalidades negativas[7]. Até o surgimento de
novas tecnologias, isso justificava o excesso de carga regulatória
no segmento.
No Brasil, a regulação do setor taxista segue três tipos
fundamentais: regulação de quantidade, de qualidade e de conduta
de mercado. Na regulação por quantidade, o foco é a fixação de
preços ou controle tarifário (conforme o serviço prestado), bem
como a limitação à entrada de competidores no mercado, o que
ocorre por meio da fixação de licenças para operação[8].
Já a regulação por qualidade avalia o padrão de uso do veículo,
bem como critérios que são exigidos dos motoristas — carros com
menos de sete anos de uso, cursos de direção específicos aos
motoristas, dentre outros. A Lei nº 12.468/11, sancionada pela ex-
presidente Dilma Rousseff, que regulamenta a profissão de taxista
em território nacional, exige que os taxistas façam cursos de
primeiros socorros, relações humanas, direção defensiva,
mecânica e elétrica básica. A regulamentação também prevê que o
taxista atenda os passageiros “com presteza e polidez”, além de
trajes adequados e manutenção do veículo em boas condições de
funcionamento e higiene.
Por fim, a regulação por conduta de mercado abrange a maneira
de abordagem de potenciais clientes e também a forma de filiação
a rádiotáxis. No Regulamento e Código Disciplinar do serviço
individual de passageiros em veículos de aluguel a taxímetro da
cidade do Rio de Janeiro mencionado, o artigo 7º, alínea “m”,
dispõe que os taxistas devem se manter em fila sempre onde
houver pontos de táxi, sendo vedada qualquer combinação para
escolha de passageiros por intermédio de porteiros, carregadores
e outras pessoas, permanecendo dentro do veículo quando for o
primeiro da fila.
São muitas as falhas de mercado relacionadas às assimetrias de
informação dos passageiros, que os colocam em situação de
vulnerabilidade. Por exemplo, no mercado de táxis, o passageiro se
torna muitas vezes refém das situações, sem capacidade de
ponderar sua escolha de maneira mais apropriada. Uma pessoa que
faz sinal na rua não é aquela que irá pesquisar por qualidade e/ou
preço do serviço que contrata. Como ela não sabe se encontrará
outro táxi disponível, em tempo hábil, dificilmente rejeita aquilo
que lhe é primeiramente ofertado. Ou seja, as assimetrias do
mercado de táxis seriam responsáveis por distorcer o equilíbrio
entre o ofertado e o demandado, tornando um lado extremamente
fortalecido em detrimento do outro, levando inclusive a uma
formação de preços equivocada.
É importante observar, portanto, que a regulação econômica, em
determinados momentos e contextos sociais, é desejável. A
intervenção estatal é justificada na tentativa de contenção de
falhas de mercado e na busca por redução/eliminação de
externalidades negativas, diluindo assimetrias de informação e
dispondo de ações que aumentem a qualidade de serviços públicos
e a maximização do bem-estar econômico.
No entanto, a problemática aqui diz respeito ao fato de que,
evidentemente, esse fim não ocorre. Desde 1970, período em que
houve destaque no crescimento do sistema regulatório[9], percebe-
se que a regulação não vem atingindo o objetivo a que se propõe
ou o faz de maneira insuficiente, o que leva a gastos públicos
desnecessários e perda de tempo em manutenções administrativas
malsucedidas. Um efeito negativo, mas usual, do sistema
regulatório diz respeito, por exemplo, às restrições competitivas,
que acabam impactando os consumidores. Nesse sentido, algumas
teorias tentam explicar o motivo para as falhas do sistema
regulatório que vão desde a abordagem acerca do interesse
público (com dúvidas acerca da capacidade técnica do regulador)
até ideias relacionadas à teoria da captura.[10]
A alta concentração de normas reguladoras no mercado taxista é
justificada, portanto, pela necessidade de proteção dos
rendimentos dos condutores de táxi — e a consequente capacidade
de pagamento de impostos — e controle de externalidades
negativas, como poluição e congestionamento, causadas pela
circulação de táxis.
No entanto, o que se destaca é o fato de que decisões são
tomadas no campo regulatório sem justificativas plausíveis ou
planos de implementação, o que leva a uma distorção nas
restrições à entrada e tornam as determinações injustas, em
muitos casos, alterando seu sentido de proteção econômica do
setor taxista.[11] Como resultado do controle na entrada, o preço
das licenças para a circulação de táxis atinge níveis elevados nos
locais em que são exigidas por lei, com o adendo de que não existe
comprovação de que os taxistas saiam economicamente
beneficiados com tais medidas.
Contraditoriamente, vale mencionar, os donos das licenças de
táxis — e não os próprios taxistas — são os grupos que se
beneficiam com tais decisões.[12] Em um mercado competitivo, as
empresas estão constantemente concorrendo umas com as outras,
em busca da diminuição dos custos e do aumento de lucro, de duas
formas: (i) caminhos inovativos e econômicos e (ii) competição por
diferenciação de produtos e serviços dos demais. Essa maneira
dinâmica de negócios encoraja as empresas a descobrirem novas
formas de comércio, além de gerar mais benefícios aos
consumidores.[13]
No momento em que a regulação proíbe a competição por preço
ou por qualidade, ou gera dificuldades a esse processo, ela inibe
um esforço concorrencial benéfico ao consumidor, favorecendo
grupos restritos em detrimento do interesse público, o que resulta
em preços altos, pouca capacidade de escolha, falha de segurança
e qualidade, dentre outros.
Portanto, em que pese o rol de justificativas com relação ao
excesso de regulação no setor de transporte de passageiros, é
imperioso notar que isso não resolve os problemas e falhas no
mercado em questão, já existente há vários anos. Torna-se
imperioso, portanto, observar as interpretações de teorias que
tenham o condão de justificar a falha no alcance das políticas
regulatórias dos táxis e na consequente melhoria consumerista.

2. CAPTURA REGULATÓRIA,
ENGESSAMENTO DO POTENCIAL
TECNOLÓGICO E PREJUÍZO AO
CONSUMIDOR

As agências reguladoras foram criadas por leis específicas e


possuem prerrogativas especiais com o objetivo central de
controlar os responsáveis pela prestação dos serviços públicos,
sob a forma de concessão, permissão e autorização, além de coibir
abusos dos entes regulados advindos da iniciativa privada, em
cumprimento ao dever de defesa do interesse público, seguindo os
princípios definidos na Constituição Federal, em seu artigo 37, e
em especial o princípio da imparcialidade.
Sendo assim, para que a agência reguladora exerça as suas
atividades, ela deve ser independente, não estando vinculada a
nenhum dos grupos sujeitos à regulação nem com nenhum poder
da esfera política. A independência é a característica essencial, o
traço que permite distinguir esses entes com relação a quaisquer
outros da estrutura administrativa.[14]
No entanto, o papel das agências reguladoras e suas motivações
são corriqueiramente postos em xeque por diversas razões e
circunstâncias, casos especialmente estudados pela teoria da
escolha pública (Public Choice). Essa teoria analisa os processos de
decisão política numa democracia, por meio de conceitos
econômicos de comportamento racional e autointeresse, que
definem o “Homo-economicus”. Enfatiza que todo processo político
(legislação, eleições, despachos, dentre outros) esbarra no
interesse pessoal dos próprios envolvidos, o que muitos
denominam de mercado político. A consequência direta desse
processo diz respeito ao fato de que a política pode esbarrar,
portanto, em falhas governamentais.
De acordo com esse raciocínio, no que diz respeito aos políticos
e legisladores, o fato de lidarem com recursos de terceiros os
incentiva a serem capturados, já que o estímulo para que tomem
decisões eficientes é limitado. Sendo assim, é criado um espaço
para a existência de lobbies no desenvolvimento político capaz de
influenciar legisladores, reguladores e burocratas do governo em
suas tomadas de decisões, fazendo com que essas se direcionem
ao lado de seus interesses, em vez de penderem para o bem-estar
público e para uma visão coletiva.
Lobbies são realizados por grupos de interesses, como
mencionado, e podem ter como origem diversos atores ―
comerciais, industriais, científicos, religiosos, dentre outros, e, de
acordo com a teoria da escolha pública, podem interferir no
desenrolar da atividade política e econômica por meio de
mecanismos de influência.
O comportamento dos agentes individuais passa a ser
incentivado por indivíduos que visam à promoção de seus
interesses. Para a Teoria da Escolha Pública, nesse sentido, é
importante a questão da elevação a um grau máximo dos
interesses individuais (Homo economicus), já que o egoísmo e a
busca incessante por lucro, na visão da economia clássica,
funcionam como força motriz dos mercados, e que, num ambiente
de concorrência perfeita, trariam equilíbrio e eficiência.
Na medida em que as pessoas procuram valorar seus interesses
pessoais de modo racional, há uma espécie de “mercado político”,
no qual as empresas podem adquirir determinados benefícios
advindos da instituição de regulação, que são quatro: (i) obtenção
de subsídios e subvenções; (ii) instituição de barreiras de entrada
no setor; (iii) regulação que atinja positivamente os produtos
complementares ao setor econômico e que afete negativamente os
produtos substitutos; e (iv) fixação de preços.[15]
O motivo pelo qual os grupos organizados são tão poderosos
perante os agentes regulatórios (e outros setores formadores de
políticas) é que o potencial benefício da regulação se concentra
nos seus membros, enquanto os custos da regulação são divididos
entre os muitos consumidores, que acabarão arcando com
parcelas diluídas e podem não perceber que existem custos
envolvidos. Assim, como os custos estão diluídos, mesmo com a
existência de diversos afetados por esses mecanismos
regulatórios, eles não pressionam ou apresentam uma
contraproposta aos agentes reguladores, como força diversa ao
lobby industrial. Os consumidores, no setor de táxi, não
apresentam oposição à regulação nem pressão a grupos de
interesse.[16]
Em relação ao sistema de transportes urbanos, foco do presente
artigo, alguns elementos podem demonstrar que o regulador de
táxis se encontrava capturado pelo setor. O principal ponto diz
respeito ao número de licenças para a condução dos veículos de
transporte de passageiros[17]. Em razão de o serviço necessitar de
uma autorização legal para execução, a licença de funcionamento
torna-se automaticamente elemento sujeito à teoria da captura de
seus agentes regulatórios.
No Brasil, o mercado de transporte individual de passageiros,
basicamente composto pelo serviço de táxi, é alvo de imensa
regulação pelo Estado, que é feita de maneira direta (regulação da
entrada por meio do controle na emissão de licenças à
discricionariedade da Administração Pública) e indireta (imposição
de preço das tarifas, padrões de qualidade e segurança, dentre
outros).
A cidade de São Paulo conta com 33.974 táxis, conforme dado
estatístico da Associação de Empresas de Táxis do Município de
São Paulo. Desse total, 30.483 táxis são de pessoas físicas, sendo
seus proprietários representados pelo Sindicato de Taxistas, e
3.491 de pessoas jurídicas, divididos entre 58 empresas de frotas de
táxi.
Nos principais estados brasileiros é possível inferir que a
proporção de táxis para cada habitante é bastante reduzida. O
montante de licenças é resultante de uma atuação estatal que
favorece a captura do regulador, pois torna o valor do bem
relativamente alto e concentrado.
É possível observar que boa parte dos municípios brasileiros se
encontra defasado no que tange à oferta de táxis aos seus
habitantes, o que gera consequentemente uma insatisfação do
consumidor relacionada ao tempo de espera pelo serviço. Além
disso, é nítida a baixa concorrência no setor, com reflexos claros
sobre preço e qualidade.
A regulação do serviço de táxi implica alto risco de captura, por
inúmeras razões: a captura tende a ser maior em casos em que
aqueles que perdem com as decisões regulatórias são diversos e os
que ganham com essas decisões são restritos, sendo que os
últimos recebem ― em termos de valores ― imensamente mais
com a regulação, como é o caso da indústria de táxis.[18]
Portanto, conclui-se que a maioria dos mercados de táxi
caracterizados com altas barreiras à entrada de novos players são
correlatos ao uso de licenças perpétuas, que determinam quem
pode atuar no mercado, o que gera a criação de monopólios no
setor.[19]
As Organizações para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OECD), de diversos países, que claramente adotaram
tais restrições comprovaram esta dinâmica: onde as licenças de
táxi são exigidas, o preço equivalente a elas já existentes
aumentou. Além disso, houve diminuição na quantidade de táxis
relativa ao número populacional. O alto valor das licenças
evidencia a capacidade de monopólio no setor de explorar
recursos escassos no mercado.[20]
A experiência brasileira demonstrou que essa imposição de
entrada gerou falhas de governo no setor de táxis. O número
bastante limitado de licenças no mercado fez dessas permissões
um artigo valioso nas mãos de poucos grupos de poder. Diante
desse cenário, surgem os novos aplicativos de carona remunerada,
alterando os rumos no mercado taxista até então conhecido.

3. UBER E CICLOS DE INTERVENÇÃO


REGULATÓRIA

A entrada do Uber e de aplicativos de transporte de passageiros


similares (Cabify, Didi e demais) modificou a rota traçada pelos
taxistas, repleta de falhas de mercado que a regulação não
conseguiu anteriormente assegurar[21].
O Uber é uma empresa que coloca em contato passageiros e
motoristas por meio de uma plataforma tecnológica. Pelo
aplicativo, é possível que o passageiro acione o motorista para que
o transporte até o local de destino. Para utilizar o serviço, deve-se
fazer o download da mídia e cadastrar os dados e uma conta para
pagamento on-line. O aplicativo foi imediatamente aprovado pela
população, especialmente por representar um avanço tecnológico
e trazer benefícios em preço/qualidade aos consumidores. [22]
Nos últimos anos, muito tem sido o envolvimento da população
na construção de uma sociedade mais cívica. A simplificação e a
criação de mecanismos mais acessíveis para aproximar as pessoas
dos agentes decisórios têm sido particularmente relevantes.[23]
A ideia levantada vai ao encontro da economia do
compartilhamento, movimento que decorre da união de diversas
necessidades sociais, dentre elas, crises econômicas, e de
facilidades tecnológicas.[24] Ela nasce da confluência de diversas
demandas e tendências econômicas e sociais e, mais importante,
de um conjunto de inovações tecnológicas. De um lado,
consumidores cada vez mais conscientes de que preferem alugar a
comprar; de outro, um sistema tecnológico que permite isso.
Utilizando-se de capacidade inovativa e da nova tendência de
desnecessidade de propriedade, o Uber invadiu o cenário mundial
e, claro, trouxe desconforto para o sistema tradicional de táxis,
que reagiu com protestos e pressão perante os órgãos reguladores,
buscando a proibição do aplicativo basicamente em todos os locais
nos quais o Uber iniciou a operação.
No rumo contrário à sinalização positiva do consumidor com
relação ao serviço oferecido pela nova plataforma, os órgãos
reguladores optaram por imediatamente proibir o aplicativo para,
depois, regulamentá-lo. Mas o que explica essa reação sistemática?
Com esse foco e sob o amparo dos desenvolvimentos teóricos
sobre o tema, foi realizada uma pesquisa acerca da padronização
no ciclo regulatório do aplicativo Uber em diversas cidades do
mundo.[25] A premissa é de que, ao redor do mundo, os agentes
responsáveis pela regulação seguiram um padrão relativamente
similar, adotando as posturas a seguir descritas: (i) proibição
imediata do serviço; (ii) aplicação de regulamentação equivalente à
do serviço de táxis com preço e entrada regulados; e (iii) estudo
para implantação de uma regulação diferenciada, que será
retratada em ciclos de intervenção regulatória em cidades com
mais de 7 milhões de habitantes, consideradas megacidades,
conforme definição da ONU.[26]
É possível inferir que o regulador adotou um padrão regulatório
definido em ciclos de intervenção. Nessas circunstâncias, o
primeiro ciclo de intervenção do regulador tem se mostrado como
o imediato bloqueio, proibição e/ou criminalização do aplicativo.
Da análise das megacidades demonstrada, em 100 por cento das
regiões supracitadas houve o pronto bloqueio do aplicativo, o que
caracteriza o primeiro ciclo de intervenção regulatória.
No Brasil, por exemplo, das dez cidades em que o aplicativo
opera, apenas Goiânia não proibiu diretamente o Uber. São Paulo,
Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Curitiba, Porto
Alegre, Recife e Salvador já possuem legislação que impediu o
dispositivo de ser utilizado, logo após o início da operação, apesar
de o Uber permanecer em funcionamento, por intermédio judicial.
A materialização da barreira ao aplicativo Uber tem como base o
processo legislativo: em todas as cidades do Brasil, a proibição
derivou de projeto de lei, que tem como fundamento a norma
federal 12.468, de 2011, que determina que é concernente à
atividade do taxista a utilização de veículo automotor, próprio ou
de terceiros, para o transporte público individual remunerado de
passageiros. Com a proibição, por meio do legislativo, algumas
prefeituras, como São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, aplicaram
multas e apreenderam veículos de motoristas parceiros do Uber,
com a alegação de que os veículos prestavam serviços
clandestinos, já que não possuíam autorização para fazer
transporte remunerado de pessoas.
Dessa maneira, o primeiro ciclo de intervenção do regulador soa
como um movimento imediato, sem a completa racionalização do
ato, o que pode apontar para uma captura regulatória, na medida
em que o órgão sofre pressão dos setores vigentes, com lobby para
manutenção do status quo, e se sujeita a essa motivação.
Mesmo na América do Norte, em que San Francisco é a cidade
natal do aplicativo, o Uber enfrentou, em um primeiro momento,
proibição e/ou criminalização em diversas regiões. No entanto, é
no solo norte-americano que o dispositivo se encontra mais
regulamentado, em momentos posteriores do ciclo de intervenção
(já existem mais de cinquenta jurisdições a favor do aplicativo e
muitas criaram uma nova classe de veículos para enquadrar o Uber
com, inclusive, parcerias com as prefeituras).[27]
Logo, ao fato do atraso legislativo com relação à velocidade das
inovações tecnológicas, somam-se as demandas de grupos de
interesses para a manutenção do sistema vigente que os beneficia,
com receio de perderem mercado para um novo concorrente.
Na análise das megacidades, percebe-se que, na maioria delas, a
primeira atitude do legislador é embarreirar o aplicativo. No
entanto, de maneira contraditória, é justamente na lentidão do
sistema regulatório que o Uber se mantém em operação, já que a
ausência de amarras normativas impulsiona, ao menos
temporariamente, até que ocorra uma proibição efetiva, a criação
de novas soluções para problemas antigos.
O que se observa no Brasil, e na análise das megacidades
escolhidas, é que mesmo com a proibição do aplicativo em boa
parte das regiões, o Uber continua em operação por força de
decisões judiciais.
Após o ciclo anterior, algumas cidades adentraram outro
mecanismo de interferência regulatória. Outras já iniciaram dentro
desse modelo. Trata-se da regulação da atividade de carona
remunerada do Uber dentro do padrão já existente. Ou seja, a
contextualização de um novo serviço dentro de um viés
tradicional/típico da categoria de transportes individuais de
passageiros.
Para ilustrar a ideia central que representa o segundo ciclo, é
interessante mencionar o caso ocorrido em São Paulo. Para tentar
regularizar o serviço na região, a prefeitura criou a modalidade
“táxi preto” ou “táxi virtual”, após as votações na Câmara Municipal
terem vetado o uso do aplicativo.
Apesar do avanço, no que tange aos debates regulatórios
representados pelas audiências públicas na região, a criação da
categoria de “Operadores de Transporte Credenciados” (OTC) não
trouxe um esforço regulatório para a criação de medidas
específicas a um novo mercado, mas a adaptação de um sistema
recém-surgido a conceitos tradicionais.
Ou seja, o que existe de fato é a obrigação de alvará para
funcionamento (os aplicativos somente poderão operar com
número limitado de veículos, que serão sorteados pela Caixa
Econômica Federal, restritos a 38 mil carros), em clara conexão ao
que existia até então no mercado de táxis, com serviço apenas
mediante emissão de licenças.
O ponto principal é que os motoristas do Uber que quiserem
operar na categoria “transporte por aplicativo” precisão ter alvarás
de licenciamento assim como os taxistas, com o adendo de que do
número de licenças, metade seria destinada a taxistas. Além disso,
a norma previa um custo extra por quilometragem rodada, sem
qualquer motivo ou explicação para tal decisão. Tudo indica se
tratar de um mecanismo de controle por proibição indireta, já que
o modelo de negócio desenvolvido pelo Uber tem no preço
disponibilizado à população seu grande atrativo, além da
qualidade.
Dentre as diversas normas criadas para a regulamentação do
Uber, e de outros dispositivos eletrônicos em rede, é possível
perceber um padrão de medidas nas megacidades, as quais
evoluíram para o segundo ciclo. São elas: (i) licenciamento de
veículos; (ii) preservação das informações relativas aos clientes do
aplicativo e proteção de dados pessoais (obrigatoriedade de
manutenção dos dados em servidores especializados); (iii)
incentivo para acesso às áreas menos favorecidas; (iv) divulgação
ao órgão competente do cadastro de veículo e motorista; e (v)
mecanismo responsável por dar notas (avaliação em rede) de
motoristas[28].
Dessa forma, quando se esgota o assunto relativo à proibição,
seja pelo fim per se da matéria, seja pela atuação ativa do
Judiciário, o regulador tende a entrar no segundo ciclo de
regulação, diante do vertiginoso e complexo sistema tecnológico
em expansão, mas nem sempre com o intuito de expandir as
possibilidades tecnológicas.
Muitas vezes, a entrada no segundo ciclo, com a adaptação do
aplicativo ao sistema vigente, é, na verdade, “mais do mesmo”, em
que pese o sistema regulatório ter sido sobrepujado pela inovação,
tecnologia e concorrência[29]. Ou seja, uma maneira encontrada
pelos reguladores de proibir a atuação do aplicativo, o que
indicaria a possibilidade de captura no setor de táxis, já que as
licenças continuariam nas mãos de pequenos grupos de poder e
menos concorrentes teriam condições de participar ativamente no
mercado.
As soluções regulatórias para os aplicativos disruptivos no setor
de transporte individual de passageiros indica caminhar para o
terceiro ciclo de intervenção regulatória.

4. SOLUÇÕES REGULATÓRIAS PARA


APLICATIVOS DISRUPTIVOS NO SETOR
DE TRANSPORTE INDIVIDUAL DE
PASSAGEIROS – TERCEIRO CICLO DE
INTERVENÇÃO

Ultrapassadas as duas primeiras fases de intervenção regulatória,


algumas cidades evoluem para o terceiro ciclo, que trata de uma
regulamentação voltada especificamente para o Uber, tendo em
vista os benefícios da integração das novas tecnologias com a
redução de falhas de mercado, bem como da promoção do
desenvolvimento urbano — e que indicam soluções regulatórias
para aplicativos disruptivos no setor de transporte individual de
passageiros.
Na análise das megacidades citada anteriormente, ainda não
houve regiões adentrando o terceiro ciclo de intervenção
regulatória. No entanto, cidades americanas já começaram a
discutir esse tema de forma mais aprofundada, seja pelo apelo
popular, seja pela pressão judiciária, que sugere, por meio de
liminares, um freio a intervenções mais abrasivas do setor
regulador, até mesmo por entender que as tecnologias erigidas nas
últimas décadas poderiam suprimir as falhas de mercado
existentes até então.
Recentemente, em Nova Iorque, o Uber ganhou importante
batalha política, pois existia nessa megacidade projeto de lei que
visava restringir o crescimento das frotas de carros oferecendo
serviços de transporte. Após pressão da população, contando com
a participação de famosos e celebridades, o prefeito Bill de Blasio
optou por suspender a limitação e estudar como o Uber e outros
serviços de carro de aluguel influenciariam no trânsito e no meio
ambiente para definir a melhor forma de regulação.
O debate acerca do melhor método de regulamentar o Uber e
aplicativos similares ainda não possui uma única resposta, pois não
se sabe ainda a maneira mais indicada de regular um aplicativo tão
novo e polêmico como o Uber, bem como economias do
compartilhamento.
Apesar de resolver problemas e falhas de mercado existentes há
anos no setor tradicional de transporte de passageiros, tais como
assimetria de informação e externalidades negativas, novas
questões são apresentadas com a inovação.
Apenas como exemplo, existem problemas relacionados aos
aplicativos que interconectam passageiros aos motoristas que são
relativamente novos, como a proteção à confidencialidade
referente aos dados fornecidos ao dispositivo, questões
trabalhistas, dentre outros.[30]
Inclusive, vale lembrar que o grande desafio da economia do
compartilhamento é ser capaz de demonstrar reduzir
desigualdades, além de ter um modelo de negócios sustentável. O
primeiro grande teste ao mecanismo do “seja seu próprio chefe”
defendido por tais economias diz respeito a medidas judiciais
relativas a vínculos trabalhistas.[31]
A melhor maneira de regulação do aplicativo tem sido pensada
mundialmente. Recentemente, a Organização para Cooperação
Econômica e Desenvolvimento (OECD) organizou um fórum para
tratar da regulamentação dos aplicativos de carona remunerada,
de forma a reunir sugestões para que os reguladores avancem para
o terceiro ciclo interventivo com estudos e pesquisas relativos ao
tema.
No relatório, algumas sugestões despontavam, tais como
oferecer os dados dos usuários como moeda de troca para uma
regulação mais flexível. Ou seja, os aplicativos poderiam atuar de
maneira mais livre e, em contrapartida, o Estado receberia dados
que seriam interessantes para mensuração de tráfego, quantidade
de veículos, dentre outros. A regulação feita dessa forma permitiria
uma visão geral aos governos, que poderiam monitorar as
condições de transporte e aumentar mecanismos de segurança e
qualidade, com base nos dados obtidos.
No entanto, existe o risco de o foco recair apenas na verificação
da coleta de impostos. O esforço dos reguladores em entender a
dinâmica tecnológica é necessário especialmente pela agilidade
com que as novas ferramentas se apresentam no mercado. O
tempo todo novas disposições são criadas, e o que parece novo se
torna ultrapassado muito rapidamente.
A regulação do Uber soa como um ensaio para algo mais
grandioso que virá adiante, como carros automáticos que serão
dirigidos sem intermédio de um motorista, com fabricação já
anunciada pela Google.
Dessa forma, o caminho para o terceiro ciclo de intervenção
regulatória parece romper com um sistema capturado, na medida
em que ultrapassa os mecanismos que criavam barreiras à entrada
de demais competidores ao serviço de táxis no mercado, como
ocorria nos dois primeiros ciclos.
No entanto, para que se entre no terceiro ciclo de intervenção
regulatória, é necessário um esforço das prefeituras em maximizar
os benefícios que os serviços de ridesharing podem trazer para o
transporte público, em especial no que tange ao escoamento de
indivíduos para áreas sem infraestrutura urbana ou para
interconectar passageiros com outros meios de transporte
coletivo, como ônibus e metrôs, estudando, inclusive, a
possibilidade de substituí-los, se isso representar diminuição de
gastos.
Cidades dos Estados Unidos, por exemplo, estão substituindo
linhas de ônibus, por meio de subsídios dos governos locais. Os
projetos são experimentais e ocorrem no Condado de Pinellas e
Altamonte Springs, ambas na Flórida, e Centennial, subúrbio de
Denver, no Colorado.
Em Pinellas, o governo local extinguiu duas das 48 linhas que
tinham pouca demanda. No lugar, fez uma parceria com o Uber
para atender os passageiros. A iniciativa reduziu em 1/4 o valor das
duas linhas de ônibus que foram extintas para a prefeitura.
Em Centennial, a prefeitura fechou parceria com a empresa Lyft,
que opera de forma semelhante ao Uber, e os carros passaram a
substituir uma linha de ônibus que leva os moradores de um bairro
afastado até uma estação de trem. Tal feito significou uma
diminuição de 1/5 dos valores pagos pelos cofres municipais. Além
disso, a população local se beneficiou, já que segundo a
administração da região o número de viagens é de 280 por dia, seis
vezes mais do que o total realizado tradicionalmente pelos ônibus.
No México, a prefeitura estuda a possibilidade de ter o Uber “em
formato de ônibus” em operação nas ruas. A previsão é de que, até
2018, com a participação de cidades-piloto, o aplicativo ganhe
autorização para colocar veículos de transporte coletivo (ônibus de
dois andares da empresa já iniciaram testes em Tijuana,
Guadalajara e Monterrey).
A intenção é oferecer o serviço para locais com linhas
irregulares, de difícil acesso, o que implicaria redução dos gastos
públicos. Estudo recente realizado na cidade de Lisboa (Portugal),
pelo ITF – International Transport Forum, órgão da OCDE,
concluiu que trocar o uso de carros particulares e táxis pelo “Uber
do ônibus”[32] poderia acabar com engarrafamentos, reduzir os
custos de transportes em 55% e diminuir o tempo de viagem de
quem mora em áreas periféricas[33].
Tal pesquisa testou sistemas de compartilhamento de carros
particulares e apontou o sistema de transporte de alta capacidade
como incremento para as cidades, com diminuição de
engarrafamentos e redução de custos em até 50%.[34] Irlanda,
Finlândia, Nova Zelândia e Austrália fazem estudos semelhantes e,
ao que tudo indica, o trabalho atingirá as megacidades citadas em
análise.
Como apontaram José Viegas e Luiz Martinez, pesquisadores
responsáveis pelo estudo, o cenário de aumento de custos de
transportes (São Paulo, por exemplo, já gasta R$ 2 bilhões por ano
com subsídio para manter o preço das passagens nos níveis atuais)
e a necessidade das prefeituras na redução de gastos, em especial
mediante a grave crise econômica mundial, tende a forçar a
necessidade de novas soluções para o setor de transporte de
passageiros.
No Brasil, o sistema de transporte efetuado por meio de ônibus
está em crise, com empresas em falências, greves de motoristas,
frotas desestruturadas e velhas e demais problemas que envolvem
a queda do número de passageiros nos últimos anos. Como dito,
para continuar operando no mercado, as economias do
compartilhamento e, em especial o Uber, precisam demonstrar sua
capacidade de redução de desigualdades. Nesse quesito, a
possibilidade de interconectar passageiros às áreas desfavorecidas
pela estrutura urbana tradicional, seja pela distância, seja pela falta
de acesso por veículos tradicionais, como metrôs e ônibus, torna-
se importante.
O principal resultado alcançado pelo estudo apontado é a
capacidade de reduzir a desigualdade nos transportes. O trabalho
indicou que, na região da periferia de Lisboa, mais de 75% dos
usuários ficam mais de 30 minutos por viagem no transporte ao
trabalho; por outro lado, nas áreas centrais, mais caras e menos
acessíveis aos mais pobres, menos de 25% das pessoas gastam esse
tempo no transporte. Sendo assim, o uso de tal economia do
compartilhamento faz com que, em praticamente toda a cidade,
mais de 75% dos moradores cheguem ao trabalho em menos de 30
minutos, inclusive com deslocamento para áreas de acesso a
escolas e hospitais.
Em geral, de acordo com o índice criado pelos pesquisadores, a
redução da desigualdade na utilização dos transportes, com o
sistema compartilhado, chegaria à expressiva porcentagem de
90%. Outra possibilidade para incremento das áreas urbanas por
meio das economias do compartilhamento diz respeito às
parcerias entre o setor público e o privado. Recentemente, o Uber
passou a complementar um serviço de inteligência de trânsito nos
Estados Unidos, que busca incentivar a utilização do transporte
público.
A ideia é de que o transporte privado e individual dos carros do
Uber possa ajudar as alternativas coletivas, como ônibus e metrô,
contribuindo com a mobilidade nas grandes cidades.
Um exemplo é a integração entre o Uber e o aplicativo Transloc
Rider com as prefeituras, que permite aos usuários monitorar em
tempo real a localização de ônibus e planejar o trajeto de
deslocamento do Uber até terminais de ônibus e metrôs. A
integração permite que o usuário possa combinar viagens por
transporte público, caminhadas e chamar motoristas do Uber.
O passageiro poderia pegar um carro do Uber para ir de casa até
um ponto de transporte público ou deste para seu destino final, o
que facilitaria o acesso a regiões mais longínquas e periféricas,
distantes dos centros de transportes públicos, reforçando,
inclusive, sua atratividade. Dessa forma, para entrar no terceiro
ciclo de intervenção, o regulador precisa analisar os impactos
positivos que podem erigir da conjunção com as economias do
compartilhamento, haja vista o avanço tecnológico cada vez mais
dinâmico. A regulação pode levar em conta ainda a utilização dos
dados dos passageiros disponibilizados aos aplicativos (desde que
respeitados os direitos individuais e de privacidade dos usuários)
para investir em melhorias urbanas.
Como visto, o comportamento do regulador nas duas primeiras
fases interventivas demonstra alto grau de captura e caminha em
contramão ao interesse público, já que as variáveis que eram
reguladas no mercado de táxi já eram excessivas e não fazem
sentido após a entrada do Uber, uma vez que a tecnologia
introduzida pelo aplicativo reduz os custos de transação e demais
déficits do setor, a ponto de prescindir da regulação.
Para adentrar no terceiro ciclo de intervenção regulatória,
portanto, é necessária uma adequação de postura do regulador,
sendo imperativa uma adaptação em seu comportamento ― até
aqui meramente de cunho fiscalizatório ― para alcançar um
patamar de análise de benefícios e alocação de recursos com fito
de incentivar a geração de valor à mobilidade urbana.
Os estudos apontados podem servir de ideias para que a
regulação do aplicativo seja feita, dentro do terceiro ciclo, de
forma a salvaguardar o interesse público de forma efetiva.

CONCLUSÃO

O presente estudo teve como objetivo demonstrar como a entrada


de um elemento disruptivo no mercado de transporte individual de
passageiros exerceu modificações quanto à sua organização
tradicional, que não sofria incentivos, não recebia efetiva
fiscalização da regulamentação existente nem a introdução de
benefícios ao consumidor por décadas.
O Uber trouxe um avanço tecnológico significativo, responsável
por dirimir as falhas de mercado que justificavam o excesso de
regulação no setor, feita basicamente com base no controle da
entrada de novos players no mercado, por meio de licenças e
alvarás, mas que não atingiam o fim a que se propunham.
O que se observou é que, diante da pressão de taxistas e de
pequenos grupos de interesse, o regulador tende a imediatamente
bloquear o aplicativo e, posteriormente, a regular o Uber e
similares de acordo com o padrão tradicional, ignorando as
diferenças desse novo modelo, por meio da concessão de alvarás e
licenças. Porém, essa é uma forma indireta de proibição, já que tais
licenciamentos somente ocorrem por meio de órgãos de controle
desinteressados na emissão de novas concessões.
Tais ações indicam que o regulador se encontra capturado no
segmento de transporte individual de passageiros, já que tal
postura beneficia apenas pequenos grupos de interesse no setor.
Tais ações regulatórias são prontamente combatidas ― o que
restou demonstrado na análise das megacidades ― pela opinião
popular (apenas no Rio de Janeiro, o aplicativo possui grau de
aprovação de mais de 90%), bem como de decisões judiciais ao
redor do mundo, que, por meio de liminares, impedem reações
mais abrasivas de tais agentes.
O terceiro ciclo de intervenção regulatória indica um caminho
de interconexão entre as economias de colaboração, cada vez mais
em ebulição no constante farfalhar inovatório, com medidas
urbanas que buscam beneficiar o interesse público. Estudos
realizados ao redor do mundo sugerem ser possível alocar
recursos, minimizar custos e garantir a melhoria na condição de
vida de milhares de pessoas por meio da boa utilização do aparato
compartilhado.
No entanto, para que se chegue ao terceiro ciclo, é necessário
que o regulador possa modificar sua postura, evitando o caráter
meramente burocrático e fiscalizatório e adotando
comportamento mais analítico e proativo no sentido de verificar
em quais medidas tais aplicativos podem representar ganhos em
infraestrutura e urbanização. Já que não é possível barrar o tempo
e os avanços inovatórios, é condição fundamental o engajamento
acerca da melhor forma de regular essas novas mídias.

1. Mestre em Direito da Regulação pela Fundação


Getúlio Vargas – Direito Rio, com bolsas de
estudo e pesquisa concedidas pela Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro e FGV-Direito Rio.
Pós-Graduada em Direito das Relações de
Consumo pela Pontifícia Universidade Católica
PUC-RJ. Graduada em Direito e Comunicação
Social pela PUC-RJ. Advogada. E-mail:
rachel@tclaw.adv.br. ↵
2. LOCATELLI, N. C. O. As práticas regulatórias no
setor de táxi: uma análise constitucional das
barreiras de entrada. 2015. Disponível em:
http://bdm.unb.br/bitstream/10483/9880/1
/2014_NiltonCarloOliveiraLocatelli.pdf. Acesso
em: 23 jan. 2018. ↵
3. Cabe frisar que a atividade de prestação de
serviço de transporte individual de passageiros
não é exclusiva de taxistas, por força
constitucional. V., a propósito, artigo de
Gustavo Binenbojm, cujas conclusões
coincidem com as exposições aqui feitas:
BINENBOJM, G. Obsolescência regulatória por
efeito de inovações tecnológicas: vai de Uber
ou de táxi? In: Transformações do Direito
Administrativo: Consequencialismo e
Estratégias. Rio de Janeiro: FGV, 2016. ↵
4. RIFKIN, J. The Zero Marginal Cost Society. The
Internet of Things, the Collaborative Commons
and the Eclipse of Capitalism. New York:
Palgrave/Macmillan, 2014. p. 35. ↵
5. TELÉSFORO, R. L. Uber: Inovação Disruptiva e
Ciclos de Intervenção Regulatória. Lumen
Juris. Rio de Janeiro. 2017. ↵
6. SALANOVA, J. M. et al. A Review of the
Modeling of Taxi Services. Procedia-Social and
Behavioral Sciences, 2011. p. 152. ↵
7. ORGANIZATION FOR ECONOMIC CO-
OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD).
Competition Committee. Taxi Services
Regulation and Competition. Roundtables on
Competition Policy nº81, Paris, out. 2007, p. 18.

8. Veja, por exemplo, o artigo 10 do Regulamento
e Código Disciplinar do Serviço de Transporte
Individual de Passageiros em Veículos de
Aluguel e Taxímetro do Município do Rio de
Janeiro que determina que somente sejam
admitidos para a prestação do serviço de táxi
os veículos licenciados no município na
categoria de aluguel, devidamente registrados
no Órgão Gestor de Transportes, por este
vistoriado e aprovado. ↵
9. From the early 70’s many studies have been
published in relation to the taxi sector. While
first studies (1970-1990) were related to the
profitability of the sector and the necessity for
regulation using aggregated models, later
studies (1990-2010) implemented more
realistic models in the taxi sector: from the
most simple model of Wong developed in 1997
for a little taxi fleet until the most
sophisticated model of Wong (2009) being able
to simulate congestion, elasticity of demand,
different user classes, external congestion and
non linear costs, taking into account different
market configurations. Douglas (1972)
developed the first taxi model in an aggregated
way, using economic relationships from other
sectors (goods and services). Many authors (de
Vany (1975), Beesley (1973), Beesley and Glaster
(1983) and Schroeter (1983)) used the model
proposed by Douglas for developing their
models and tested them in the different
market configurations. Manski and Wright
(1976), Arnott (1996) and Cairns and Liston-
Heyes (1996) developed structural models,
obtaining more realistic results. Yang and
Wong (1997-2010c) developed accurate models,
taking into account the spatial distribution of
demand and supply in the city using traffic
assignment models. Last models proposed by
Wong et al. (2005) and Yang et al. (2010b)
assume a bidirectional function taking account
the willingness to pay of customers, making it
much more realistic. New technologies applied
to the taxi market such as GPS, GIS and GPRS
were also simulated in the different models,
proving their benefits and justifying their use.
Many of the models developed have been
tested in different cities around the world
using data from different sources. Beesley
(1973) and Beesley and Gaister (1983) studied
the data obtained from questionnaires in
different cities in the UK, especially from
London. Schroeter (1983) is the first to use data
from taximeters in his model, using the data
from a taxi company in Minneapolis (EEUU).
Schaller (2007) uses interviews and
questionnaires from taxi agents and customers
in different cities of the EEUU” (SALANOVA, J.
M. et al. Ibid, 2011. p. 150-161). ↵
10. OGUS, A.; POSNER, R. A. Teorias da regulação
econômica. In: MATTOS, P. (coord.) et al.
Regulação econômica e democracia: o debate
norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004.
p. 51-52. ↵
11. OGUS, A.; POSNER, R. A., op. cit., p. 151. ↵
12. Melbourne, na Austrália, possui licenças de
táxis avaliadas em $500.000, mas os
rendimentos dos condutores de táxis estão
estimados em $8 – $14, por hora, conforme
dados da OECD de 2007. ↵
13. KOOPMAN, C.; MITCHEL, M.; THIERE, A. The
Sharing Economy and Consumer Protection
Regulation: The Case for Policy Change. The
Journal of Business, Entrepreneurship & the
Law, v. 8, n. 2, 2015. ↵
14. MOREIRA, V.; MAÇAS, F. Autoridades
reguladoras independentes: estudo e projeto de
lei-quadro. Coimbra: Editora Coimbra, 2003. ↵
15. BAGATIN, A. C. Captura das agências
reguladoras independentes. São Paulo: Saraiva,
2013. p. 39. ↵
16. BLUNDELL, J.; ROBINSON, C. Regulação sem o
Estado. Trad. Vera Nogueira. Rio de Janeiro: IL,
2000. p. 24-25, apud, decisão proferida em 14
de agosto de 2015 no Processo nº 0346273-
34.2015.8.19.0001. 1ª Vara da Fazenda Pública
do Rio de Janeiro. Juiz Bruno Vinicius da Rós
Bodart. Disponível em:
http://s.conjur.com.br/dl/decisao-uber.pdf.
Acesso em: 27 jan. 2018. ↵
17. Válido mencionar que além das restrições à
entrada por meio de licenças, outro fator
importante são as normas com proibições de
descontos e o mercado negro. Sobre o assunto,
veja: COFFMAN, R. B. The Economic Reason for
Price and Entry Regulation of Taxicabs. Journal
of Transport Economics and Policy, v. 11, p. 288.

18. OECD Competition Committee. Taxi Services:
Competition and Regulation. Policy
Roundtables. 2007. ↵
19. HO, L.S. An Optimal Regulatory Framework for
the Taxicab Industry. Department of
Economics, Chinese University of Hong Kong,
1999. ↵
20. “Taxi numbers relative to population numbers
have tended to decline over time, often
substantially. Where taxi licenses are
tradeable, high and rising prices are
commonplace ― for example, a Paris taxi
license costs €125,000, licenses in Sydney and
Melbourne cost a $300,000 and A$500,000
respectively and a New York taxi licence costs
as much as US$600,000. In each of these
cities, licence prices have risen substantially in
recent years. These high licence values reflect
the substantial and increasing monopoly rents
that can be accrued from the exploitation of
increasingly scarce taxi licences”. ↵
21. Estudos apontam que a expansão das
operações do Uber ao redor do mundo, se
deveu principalmente a uma redução na
utilização do sistema tradicional de táxis. Em
Nova Iorque, por exemplo, estado pioneiro na
chamada revolução da economia do
compartilhamento nos Estados Unidos, o uso
de táxis, ônibus e limusines reduziu em 54%
em 2015, indicando ainda que o número de
pessoas que contrata o Uber é maior do que de
pessoas usando táxis. Veja, sobre o assunto:
FRIER, A. Uber usage statistics and revenue.
Business of Apps, 2015. Disponível em:
http://www.businessofapps.com/data/uber-
statistics/. Acesso em: 2 abr. 2018. ↵
22. Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha, das
1.775 pessoas ouvidas pelo Instituto de
Pesquisa, 95% consideraram o aplicativo
agradável ou muito agradável (sendo que desse
total, 78% acreditam que o serviço deve ser
regulado e 17% afirmaram que gostariam que o
Uber continuasse operando como atualmente).

23. OLIVEIRA, A. B.. A economia solidária na
construção da cidade justa. Revista Smart
Cities, Portugal, 2018. p. 15. ↵
24. RAUCH, D.; SCHLEICHER, D. Like Uber, but for
local governmental policy: the future of local
regulation of the ‘Sharing Economy”. George
Mason University Law and Economics. p. 18. ↵
25. TELÉSFORO, R. L. Uber: inovação disruptiva e
ciclos de intervenção regulatória. Lumen Juris.
Rio de Janeiro, 2017. ↵
26. State of the World’s Cities Report, 2015.
Prosperity of Cities. United Nations Human
Settlements Programme (UN-HABITAT) - ONU.
Disponível em: http://unhabitat.org/world-
cities-report-2015-nearingcompletion/.
Acesso em: 30 jan. 2018. ↵
27. É importante mencionar no presente trabalho,
a postura adotada pelo poder judiciário,
mediante a tomada de decisões regulatórias e
legislativas. Como visto, tanto o primeiro como
o segundo ciclo de intervenção regulatória
caminharam no sentido de proibir ― seja por
vias imediatas, seja por vias indiretas ― o
aplicativo. O judiciário tem procurado conter,
de forma coercitiva, e embarreirar
intervenções mais abrasivas ― inclusive por
entender que as falhas de mercado que
existiam no setor tradicional de táxis foram
mitigadas pela tecnologia que os aplicativos
introduziram. V., a propósito, os seguintes
artigos que corroboram com o acima descrito:
ANDRIGHI, F. N. Uber: a regulação de
aplicativos de intermediação de contratos de
transporte. Revista de Direito Administrativo, n.
271, p. 409-416, jan./abr. 2016. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/
rda/article/view/60773/60068. Acesso em:
30 jan. 2018.; WISNIEWSKI, P. C.; ESPOSITO, L.
A. Mobilidade urbana e o caso Uber: aspectos
jurídicos e sociais da startup. Perspectiva, v. 40,
n. 150, p. 63-74, jun. 2016. Disponível em:
http://www.uricer.edu.br/site/pdfs/perspec
tiva/150_573.pdf. Acesso em: 30 jan. 2018. ↵
28. É importante dizer que, além do padrão
regulatório mencionado, outras medidas
pertencentes ao núcleo normativo foram: (i)
pagamento de taxa ou tarifa adicional; (ii)
exigência de treinamento de motoristas; (iii)
limite à quantidade de carros em circulação;
(iv) penalidades; (v) tarifas para inscrição na
atividade de motorista; (vi) obrigatoriedade de
recibo; (vii) seguro; (viii) tempo de espera
mínimo entre uma corrida e outra; (ix)
contribuições à previdência; (x) verificação de
segurança e antecedentes criminais, dentre
outros. É possível perceber, a partir da análise
das megacidades, que a regulação por
quantidade no transporte individual de
passageiros, bem como a regulação de conduta
de mercado são os grandes pilares de
sustentação do segundo ciclo interventor. ↵
29. Alguns doutrinadores indicam que a tríade
inovação, tecnologia e concorrência pode ser
responsável por resolver problemas
consumeristas, alcançando determinados fins a
que a regulação falhou em assegurar. Portanto,
indicam que tal tríade teria a capacidade de
reduzir as falhas de mercado costumeiras há
décadas, diminuindo o monopólio situacional,
externalidades, bem como assimetrias de
informação – prescindindo, portanto, a
regulação no setor. V., por exemplo:
EDELMAN, B. G.; GERADIN, D. Efficiencies and
Regulatory Shortcuts: How Should We
Regulate Companies like Airbnb and Uber?.
Harvard Business School Negotiation,
Organizations and Markets Unit, n. 16-026, p. 3,
2015. Disponível em:
https://ssrn.com/abstract=2658603. Acesso
em: 28 mar. 2018. ESTEVES, L. A. O mercado de
transporte individual de passageiros: regulação,
externalidades e equilíbrio urbano. Brasília:
DEE/CADE, 2015. p. 48. ↵
30. ROGERS, B. The social costs of Uber. The
University of Chicago Law Review. Disponível
em:
https://lawreview.uchicago.edu/page/social-
costs-uber. Acesso em: 30 jan. 2018. ↵
31. ROSEMBLAT, J.; NEWCOMER, E.. Ação judicial
de motoristas da Uber representa primeiro teste
a empresas da chamada “economia de partilha”.
UOL Economia. Publicado em: 4 ago. 2015.
Disponível em:
https://economia.uol.com.br/noticias/bloom
berg/2015/08/04/acao-judicial-de-
motoristas-da-uber-representa-primeiro-
teste-a-empresas-da-chamada-economia-de-
partilha.htm. Acesso em: 28 mar. 2018. ↵
32. Por “Uber do ônibus” entende-se: veículos com
oito lugares e dezesseis lugares, acionados por
smartphones, semelhante ao sistema utilizado
pelo Uber e outros aplicativos de
compartilhamento. ↵
33. A pesquisa teve como base a simulação do
transporte em Lisboa, de 550 mil habitantes,
com o uso do sistema de metrôs e três e dois
tipos de veículos compartilhados, os chamados
“Uber do ônibus” (de 8 e 16 lugares). Os
veículos seriam acionados por smartphones e
parariam em cerca de 320 pontos ao redor da
cidade, com espera de 5 a 10 minutos. Foram
analisadas as 1,1 milhão de viagens/dia e,
comparando parâmetros atuais de tempo,
custo, disponibilidade, dentre outros dados,
com os gerados pelo uso do sistema. ↵
34. Os pesquisadores José Viegas e Luiz Martinez
simularam as 1,1 milhão de viagens/dia na
cidade de 550 mil habitantes comparando o
padrão atual ― em que 50% delas são feitas em
carros, motos e táxis; 21% a pé; e o restante em
transporte público ― com esse novo sistema
com veículos coletivos compartilhados (“Uber
do ônibus”). ↵
Participação Inteligente: o caso do aplicativo
Mudamos

Marco Konopacki[1]
Debora Albu[2]
Diego Cerqueira[3]
Thayane Guimarães[4]

INTRODUÇÃO

Ao falarmos em cidades inteligentes, fazemos referência a um


conjunto de elementos que têm como objetivo tornar cidades mais
eficientes, seja nos gastos financeiros, na gestão de serviços, seja
na utilização de energia. Numa definição geral, cidades inteligentes
são aquelas que aproveitam melhor os seus recursos contando,
para isso, com o suporte das novas tecnologias da informação e
comunicação (TIC)[5]. Para além dessa dimensão de infraestrutura,
cidades inteligentes também são aquelas que utilizam essas
ferramentas para integrar melhor seus cidadãos às decisões
tomadas em relação às questões de interesse público. A partir do
momento em que se distribuem e se multiplicam as plataformas
pelas quais essas escolhas são feitas com o uso das TIC, ocorre
uma diminuição no custo das decisões e o aumento das chances de
consenso sobre estas.
O uso de aparelhos celulares inteligentes (os smartphones), para
essa finalidade, auxilia, por exemplo, no que podemos chamar de
participação cívica inteligente, já que os cidadãos utilizam
tecnologias digitais para se engajarem na vida pública[6]. Esses
aparelhos podem, inclusive, funcionar como mais um ponto de
coleta de informação para governos, além dos sensores e câmeras
instalados nas cidades, cuja finalidade é a obtenção de dados que
sirvam de apoio para as tomadas de decisões governamentais.
Dessa forma, esses aparatos têm uma função dupla de conectar os
cidadãos aos governos e multiplicar pontos de extração de dados.
Nesse sentido, são muitas as oportunidades para transformar a
participação cívica em uma participação inteligente[7]. Os cidadãos
podem, por exemplo, realizar ações de controle social, como a
fiscalização de obras públicas, demandar soluções ou serviços,
(como solicitar consertos de postes ou calçadas por meio de
aplicativos) e até participar de conselhos comunitários do seu
território usando as mídias sociais. São inúmeros os aplicativos e
plataformas criados para dar conta dessas demandas, no Brasil e
no mundo, e já existe, inclusive, a formação de um mercado de
tecnologias cívicas, no qual governos são os clientes principais.
Com essa perspectiva em mente, por que não pensar na
transformação de um mecanismo de democracia direta, a iniciativa
popular, em um mecanismo inteligente por meio da tecnologia?
Partindo desse desafio, a equipe do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio desenvolveu o Mudamos, um aplicativo para a
coleta de assinaturas eletrônicas em projetos de lei de iniciativa
popular. O principal objetivo dessa ferramenta é solucionar
grandes problemas da não efetivação da iniciativa popular no
Brasil. Uma vez que, até o momento, a coleta das assinaturas é
feita em papel, os custos do processo são enormes e a verificação
das subscrições não pode ser feita, dado o tempo e a
impossibilidade de checagem dos dados.
Este artigo visa, então, a explorar o desenvolvimento e o uso do
aplicativo Mudamos como um mecanismo democrático inteligente,
incorporando TIC para tornar o direito à iniciativa popular mais
acessível e inclusivo. Além de contextualizar a iniciativa popular no
Brasil, abordaremos também o uso da tecnologia blockchain e seus
benefícios para o interesse público, bem como a metodologia da
Virada Legislativa, uma ação complementar ao desenvolvimento do
aplicativo. A tecnologia pode potencializar cada vez mais a
democracia, aprofundando e tornando processos antes vistos
como distantes ou difíceis para a população em ações cotidianas,
transformando a participação de maneira inteligente.

1. O APLICATIVO MUDAMOS

Mudamos é o primeiro aplicativo de celular para permitir a


assinatura eletrônica em projetos de lei de iniciativa popular. Com
iniciativa do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS) e
construído com fundos do Prêmio Desafio de Impacto Social
Google 2016[8], o aplicativo foi lançado em março de 2017[9]. Após
seis meses do lançamento, o aplicativo foi baixado por mais de 500
mil usuários (em janeiro de 2019, data em que esta contribuição foi
escrita, foram mais de 670.000 downloads) e se tornou o meio
oficial para coleta de assinaturas eletrônicas na cidade de João
Pessoa, na Paraíba[10]; Divinópolis, em Minas Gerais; e Itu, em São
Paulo. Houve também dois projetos protocolados com as
assinaturas coletadas no Mudamos em Teresópolis (no Rio de
Janeiro) e no Distrito Federal.
Atualmente, o Mudamos é uma das maiores iniciativas brasileiras
de tecnologias cívicas, com grande potencial de impacto
institucional, mobilizando diversos setores da sociedade em prol
de sua causa. Além de João Pessoa, outras cidades do Brasil estão
em processo de formalizar o Mudamos como o principal
mecanismo de proposição de leis de iniciativa popular. Além disso,
o modelo técnico do Mudamos serviu de inspiração para o Projeto
de Lei n. 7.574/2017, que pretende regulamentar as assinaturas
eletrônicas para esse tipo de iniciativa em nível nacional.

2. BREVE HISTÓRICO

Desde a Constituição Federal de 1988, é possível que a população


se mobilize para apresentar propostas de lei às câmaras legislativas
federal, estadual e municipal[11]. O procedimento é relativamente
simples, pois basta que os cidadãos interessados em mobilizar esse
tipo de iniciativa recolham em um formulário dados básicos dos
apoiadores, como nome, endereço e o número do título de eleitor
junto com a assinatura. Até o lançamento do aplicativo Mudamos, a
coleta de assinaturas era realizada exclusivamente em papel, o que
dificultava muito o processo. Para a proposição de uma lei nacional
são necessárias cerca de 1,5 milhão de assinaturas (1% do
eleitorado) distribuídas em pelo menos cinco estados diferentes, o
que corresponde a 2 toneladas de formulários em papel.
Em julho de 2016, quando o aplicativo foi proposto, o problema
que ele pretendia resolver era o de tornar mais fácil, barata e
eficiente a coleta de assinaturas e, assim, fortalecer a participação
por meio da iniciativa popular. Devido ao alto custo da
participação para se propor leis em papel, apenas quatro projetos
de iniciativa popular nacionais tornaram-se leis desde 1988[12].
Com a diminuição dos custos desse canal de participação,
espera-se que mais pessoas se engajem na elaboração de leis. A
proposta de desenvolvimento do aplicativo surgiu da parceria
entre Ronaldo Lemos, diretor do ITS, e o ex-juiz Márlon Reis, um
dos criadores da Lei da Ficha Limpa[13], a qual foi proposta como lei
de iniciativa popular. A partir desse encontro, surgiu a ideia de se
criar um aplicativo que pudesse facilitar o processo de coleta de
assinaturas. O desafio era o de construir um modelo técnico que
desse segurança às assinaturas ao mesmo tempo que tornasse o
processo de coleta auditável e transparente. A solução adotada foi
a proposta de uma arquitetura que combinasse registros de listas
de assinatura em blockchain com assinaturas certificadas por
chaves criptográficas. O desenvolvimento do aplicativo teve seu
início em outubro de 2016 e, no dia 30 de março de 2017, a primeira
versão foi disponibilizada na Apple Store e na Play Store.
No momento do lançamento do Mudamos nas lojas de aplicativo
não houve qualquer divulgação dessa disponibilização, pois a
estratégia adotada para o lançamento foi a de disponibilizar o
aplicativo para download e obter feedbacks dos primeiros usuários
antes de realizar uma ampla divulgação. No entanto, dois dias após
a disponibilização nas lojas, no dia 1 de abril, um vídeo feito por um
dos primeiros usuários do Mudamos tornou-se viral em grupos de
WhatsApp, o que levou a uma viralização de downloads. No dia 30
de abril de 2017, o aplicativo já havia sido baixado por 247 mil
pessoas.
Desde o lançamento, a equipe do aplicativo Mudamos vem
monitorando as formas de uso e também criou uma central de
relacionamento com os usuários, os quais podem reportar erros e
fazer sugestões de melhorias por meio do contato via e-mail,
comentários nas lojas de aplicativos ou por meio de um formulário
de suporte criado especialmente para isso[14]. A partir do aplicativo
Mudamos (mudamos.org), os usuários também podem enviar suas
próprias sugestões de projetos de lei, as quais passam por um
processo de revisão para avaliar a constitucionalidade e a forma
das propostas. Esse processo de revisão é realizado pela equipe de
voluntários Mudamos, instituída em janeiro de 2018, a qual reúne
jovens e engajados advogados que contribuem com o projeto.
Até o momento, dois projetos de lei alcançaram o mínimo de
assinaturas necessário: um em Teresópolis (RJ) e outro no Distrito
Federal. Os dois projetos coletaram assinaturas físicas e também
eletrônicas via Mudamos. Há outras semelhanças entre os
projetos: foram propostos pelos Observatórios Sociais de cada
município e têm como grande tema a eficiência orçamentária. Os
projetos ainda estão sendo analisados e não foram votados em
plenária até a data desta publicação (janeiro de 2019).

3. POR QUE BLOCKCHAIN?

A tecnologia blockchain se tornou bastante conhecida,


especialmente após a supervalorização da moeda digital Bitcoin,
em 2017[15]. Apesar de as moedas digitais serem a primeira e mais
conhecida aplicação dessa tecnologia, ela não se restringe a isso.
Com a sua popularização, surgem cada vez mais diferentes formas
de aplicar a tecnologia. Sua característica descentralizada
associada a um protocolo que garante a segurança total nas
transações promete não só revolucionar o sistema financeiro,
como também a forma como entendemos e estruturamos todas as
organizações do mundo[16]. Seu potencial para construção de
aplicações cívicas vem sendo reconhecido, criando uma verdadeira
febre pela sua implementação em novos projetos do tipo. No
entanto, como deve ser feito com a aplicação de qualquer
tecnologia, é importante analisarmos criticamente as motivações
para se utilizar esta tecnologia, que ainda pode ser considerada
cara e de difícil implementação pela sua complexidade técnica.
O Brasil vive um momento de grande desconfiança nas
instituições políticas. Isso tem levado a uma contaminação de todo
o ambiente político, incluindo partidos políticos, os três poderes
da República e também as organizações da sociedade civil. Mesmo
que estas últimas ainda sejam as menos impactadas por essa
contaminação, ataques políticos motivados por interesses difusos
criam um clima de desconfiança constante, no qual uma instituição
respeitada pode ter sua reputação abalada por divulgações
caluniosas. O impulsionamento desse tipo de ataque, por meio de
notícias falsas suportadas por aparatos tecnológicos que facilitam
a disseminação da mensagem, pode provocar o aprofundamento
do clima generalizado de desconfiança nas instituições, sejam elas
de qual natureza forem.
Esse dilema percebido pela equipe do Mudamos,
especificamente para o sistema político brasileiro, é o mesmo
encontrado em diferentes setores quando se trata de relações
construídas em ambiente digital. A solução para gerar confiança
em transações feitas pela internet, como comprar um livro ou
transferir dinheiro, foi confiar a terceiros a intermediação das
transações. Com isso, sempre se dependeu que alguma instituição
chancelasse as relações estabelecidas por duas partes, limitando a
característica generativa e totalmente descentralizada pela qual a
internet foi criada.
Don e Alex Tapscott, autores do livro Blockchain revolution,
sustentam que essa falta de confiança no ambiente digital é a
reprodução da falta de confiança nas relações fora do ambiente
digital, com a diferença que, no ambiente digital, nunca se sabe se
“é um cachorro ou um humano do outro lado da tela”. A analogia
em tom de brincadeira é para exemplificar a dificuldade em confiar
em transações realizadas pela internet, as quais, para os autores,
seria mais que um “ato de fé”[17].
Em 2008, foi publicado o manifesto que lançou o conceito de
criptomoeda junto com a publicação da primeira versão do Bitcoin.
A grande novidade apresentada por Satoshi Nakamoto (o
pseudônimo utilizado pelo criador do Bitcoin) era a de estabelecer
um sistema que era capaz de garantir a segurança e a integridade
do sistema, sem depender de um ator centralizado para isso[18]. O
modelo foi possível por conta da aplicação de algoritmos
matemáticos de criptografia, que permitem que nenhuma das
partes no sistema tenha toda a informação necessária para
manipular o sistema. Uma analogia para explicar poderia ser a da
necessidade de duas chaves para abrir um cofre, em que nenhuma
só pessoa pode ter as duas chaves ao mesmo tempo. Logo, para
validar qualquer transação nessa rede é necessário que múltiplos
atores chancelem a transação, o que, na prática, impede qualquer
ação arbitrária e centralizada na rede, enquanto todas as
transações são validadas por todos os agentes interessados.
Em modelos centralizados, existe um agente mais importante
que os outros. que é a amálgama que faz com que os agentes
confiem na integridade das transações. Caso esse agente não
consiga demonstrar sua capacidade de garantir a integridade das
transações, ou seja, caso esse seja corrompido, todo o sistema é
comprometido. Ao contrário, os modelos descentralizados são
muito mais resilientes, pois a confiança não está num agente, mas
nas próprias transações, assinadas por cálculos matemáticos, que
as tornam ativos digitais únicos. Nenhum humano, ou mesmo
máquina, conseguiria quebrar esses ativos num intervalo de tempo
capaz de comprometer o sistema. A isso é dado o nome de
Trustless Trust[19] ou, na tradução para o português, “confiança sem
confiança”.
Observando esse cenário, a equipe que pensou na arquitetura do
aplicativo Mudamos estabeleceu, como condição mínima para a
criação da ferramenta, a estruturação de um modelo baseado na
confiança distribuída sobre os processos de coleta de assinatura.
Nele, nem mesmo os organizadores do processo teriam o
completo monopólio do processo de coleta e verificação das
assinaturas. Isso quer dizer que nem mesmo o construtor do
aplicativo, o ITS Rio, seria capaz de manipular, modificar ou gerar
novas assinaturas sem que estas fossem validadas e auditadas pela
comunidade interessada nas coletas de assinaturas e os usuários
do aplicativo.
Para isso, o modelo estabelecido pelo ITS Rio para o Mudamos
previa que nenhum ator do processo de coleta de assinaturas teria
todas as partes de informação necessárias para produzir novas
assinaturas. Ao mesmo tempo, todos os usuários teriam acesso às
informações necessárias para verificar toda e qualquer nova
assinatura gerada dentro do sistema, a partir do uso de técnicas de
criptografia assimétrica. Esse tipo de técnica é baseado em
algoritmos que requerem duas chaves, uma delas sendo secreta
(ou privada) e a outra delas sendo pública. Apesar de diferentes, as
duas partes desse par de chaves são matematicamente ligadas. A
chave pública é usada para verificar uma assinatura digital (Figura
1), já a chave privada é usada para a operação oposta, para criar
uma assinatura digital[20].
Figura 1: Geração do par de chaves Mudamos.

As assinaturas do Mudamos respeitam 3 princípios


fundamentais, os quais foram responsáveis por estabelecer esse
modelo técnico como referência para casas legislativas brasileiras,
inclusive na redação do relatório final da comissão da reforma
política brasileira de 2017[21]: unicidade, verificabilidade e
auditabilidade.
Figura 2: Processo e guarda das assinaturas Mudamos.

A unicidade das assinaturas foi garantida pela associação de


documentos de identificação de número único, combinados com
um carimbo temporal, e a chave privada dos usuários. Com a chave
privada é gerado um hash único baseado nos dados informados
para assinatura (Figura 2).
A verificabilidade foi garantida pela publicação da chave pública
dos usuários junto com os dados informados para assinatura e o
hash de assinatura. Dessa forma, qualquer pessoa interessada em
verificar qualquer assinatura tem autonomia para fazê-lo, sem que,
para isso, dependa do Mudamos ou qualquer outro agente que
chancele a assinatura.
Para garantir a auditabilidade total do processo, foi criado um
sistema de publicação periódico das assinaturas em listas públicas,
inclusive com a autenticação destas em redes de blockchain
públicas. Isso garante que as listas públicas sejam imutáveis e, caso
um agente interessado queira auditar todo o processo de
assinatura, desde a primeira assinatura coletada, ele terá a
capacidade de fazê-lo sem depender de qualquer outro agente,
nem tampouco do Mudamos ou do ITS Rio.

Figura 3: Publicação das listas de assinatura e registro na


blockchain.

Ao mesmo tempo que novos usuários do aplicativo cadastram


dados necessários para assinar uma lei de iniciativa popular (nome,
endereço e título de eleitor), são gerados pares de chaves para que
tais usuários as utilizem para assinar eletronicamente os projetos
de lei. A chave pública fica associada aos dados de cadastro do
usuário para permitir a verificação de todas as assinaturas feitas
com a sua chave privada, à qual, somente o usuário, e mais
ninguém, tem acesso. Essa operação, apesar de parecer
complicada, foi desenvolvida de modo a ser totalmente
imperceptível pelos usuários do Mudamos, para, assim, tornar o
uso desse tipo de tecnologia descomplicado, ao mesmo tempo que
garante a segurança total do processo de assinaturas por meio do
aplicativo.
A técnica de criptografia assimétrica utilizada pelo Mudamos
para assinaturas de projetos de lei de iniciativa popular é a mesma
utilizada por muitas redes de blockchain para assinatura de
transações realizadas por essas redes. A unidade de informação
que estabelece a identidade dos transacionadores nesses
ambientes são as chaves públicas dos usuários. Toda vez que é
realizada uma transação entre partes em redes de blockchain,
essas transações são endereçadas pelas chaves públicas dos
usuários e assinadas pelas chaves privadas. Dessa forma, é possível
garantir a autenticidade de cada transação a partir da validação do
conteúdo assinado utilizando apenas a chave pública dos usuários.
Cada assinatura digital é única e só pode ser verificada pela chave
pública. O Mudamos se inspirou nesse mesmo modelo transacional
para construir uma nova unidade a ser transacionada em redes de
blockchain: assinaturas de projetos de lei de iniciativa popular. Em
outras palavras, enquanto o ativo transacionado em rede
blockchain de criptomoedas é o Bitcoin, por exemplo, no Mudamos
o ativo transacionado são as assinaturas para projetos de lei de
iniciativa popular.
Dessa forma, as tecnologias que estruturam redes de blockchain
no mundo foram muito mais uma inspiração para a construção da
própria tecnologia de assinaturas, do que de fato a aplicação dessa
tecnologia per se. Contudo, com a primeira parte do problema
resolvida, ainda faltava o componente que tornasse todo o
processo de coleta de assinaturas amplamente independente e
auditável.
Para isso, o Mudamos criou um mecanismo de publicação
periódica das listas de assinaturas para cada projeto de lei.
Periodicamente, o Mudamos monta a lista de assinaturas
organizadas por estados e municípios, conforme estabelece a
norma para coleta de assinaturas para leis de iniciativa popular.
Essas listas são arquivos PDF em que constam o nome, o CEP, o
número do título de eleitor e a data e hora da assinatura do
assinante. Além dessas informações, são incluídas na lista a chave
pública do usuário e a assinatura digital, que é um hash de letras, e
números gerados pela chave privada. Com esses três dados,
qualquer usuário ou instituição pública pode verificar
individualmente a autenticidade de cada assinatura. A lista é
assinada por uma blockchain pública, que funciona como o carimbo
de autenticação de um cartório que garante a autenticidade da
lista gerada. Se qualquer pessoa tentar modificar um caractere na
lista de assinaturas geradas, ela não mais será verificável e se
tornará inválida. Esse processo garante a transparência e a
auditabilidade completa do processo, desde o seu nascimento até a
entrega da lista final de assinaturas à casa legislativa para a qual o
projeto de lei se encaminha.
O final do processo de coleta de assinaturas culmina na entrega
da lista final de assinaturas, organizada por estados e municípios,
em PDF, para a casa legislativa. Com esse arquivo, a casa legislativa
tem autonomia, independente do próprio aplicativo Mudamos, de
verificar individualmente cada assinatura, assim como verificar a
autenticidade da lista protocolada. Caso haja dúvidas quanto ao
processo, a casa legislativa pode verificar a evolução do processo
de coleta de assinaturas e os registros realizados ao longo do
processo de coleta. A verificação individual, por se tratar de um
processo eletrônico, também pode ser feita de forma
automatizada, o que garante agilidade e economia de recursos
públicos na apresentação da lista de assinaturas.
Em resumo, o Mudamos decidiu por se utilizar de tecnologias
Blockchain para compartilhar a responsabilidade com todos os
atores envolvidos no processo de coleta de assinaturas na
verificação e auditoria de todas as partes do processo. A
responsabilidade com o processo pode ser exercida de forma
autônoma pelos agentes e independentemente do sistema central
que reúne as assinaturas. Isso quer dizer que, ainda que o
aplicativo Mudamos um dia deixe de existir, as assinaturas serão
verificáveis e seu processo será inteiramente auditável. A garantia
de autonomia no exercício de responsabilidade tem como principal
objetivo criar uma rede de confiança descentralizada, em que
nenhum dos atores depende de nenhuma chancela para acreditar
na validade das informações geradas pelo sistema. O processo na
forma como ele se dá, garantida pela segurança dos algoritmos de
criptografia, é a amálgama que garante a plena impessoalidade na
gestão e na verificação das assinaturas geradas pelo Mudamos.
4. VIRADA LEGISLATIVA

Com o lançamento do aplicativo Mudamos, percebemos que a


população tem muita energia participativa e boas ideias para
propor. No entanto, existe uma grande dificuldade em transformar
essas boas ideias em projetos de lei que possam ser apresentados
para os poderes legislativos. Desde o lançamento do app,
recebemos mais de 8.000 ideias de possíveis projetos de lei, mas
que não foram redigidos como tal. Isso se dá tanto pelo
afastamento da população em relação aos mecanismos de
participação democrática[22] quanto pela dificuldade de
compreensão do texto legislativo[23], muito específico e distante
dos cidadãos.
Dessa forma, construímos a Virada Legislativa: uma metodologia
composta por uma atividade presencial concentrada em uma
temática com um tempo fechado para produção coletiva de um ou
mais projetos de lei de iniciativa popular. A Virada se estrutura em
etapas. As duas primeiras fases são de preparação e reflexão e
focam nos indivíduos se reconhecendo dentro do coletivo que
forma a Virada. As três etapas seguintes são etapas de elaboração,
em que, com base nas etapas de reflexão, o público é dividido em
grupos de trabalho. Os grupos de trabalho recebem o suporte de
mentores (advogados e especialistas da temática da Virada) para
desenvolver a redação dos projetos de lei. As duas últimas etapas
são o teste da lei produzido durante a Virada e sua publicação no
aplicativo Mudamos. Elas servem como fechamento do ciclo de
trabalho. Para apresentar a lei, o grupo elege um representante
que fará a apresentação final da proposta de lei. Finalmente, o
projeto é publicado no Mudamos e é iniciada a coleta de
assinaturas.
A Virada se baseia em três princípios:

1. multisetorialidade: quanto mais diversos os setores


participando da Virada, mais forte será a proposta produzida,
uma vez que considerará diversos pontos de vista e grupos de
interesse.
2. colaboração: os participantes cocriam as propostas, de forma
a trocar ideias e chegar o mais próximo possível de consensos,
com escuta ativa e comunicação não violenta. Isso é mediado
por facilitadores previamente treinados pela equipe do ITS
Rio.
3. interação online/offline: a Virada acontece presencialmente,
mas conta com interação on-line prévia, pela Biblioteca digital
relacionada à temática da virada e ao vivo, por meio de
ferramentas de transmissão, envio de comentários por
plataformas digitais, entre outras.

Desde a criação dessa metodologia, já foram realizadas duas


Viradas Legislativas. A primeira ocorreu em João Pessoa, capital do
estado da Paraíba, em outubro de 2018, e abordou mobilidade
urbana, tendo a parceria da Câmara Municipal, o instituto Minha
Jampa, o coletivo Engajamundo, o Instituto de Arquitetos do Brasil,
o Instituto de Educação Superior da Paraíba e a Universidade
Federal da Paraíba. Contou com a participação de mais de 100
pessoas, além de 20 facilitadores e 15 vereadores. Resultaram da
Virada cinco projetos de lei de iniciativa popular escritos
colaborativamente sobre temas como integração dos modais,
calçadas e transparência dos dados sobre o sistema de transporte
público.
A Virada Legislativa de João Pessoa foi marcante pela sua forte
característica multissetorial e a colaboração ativa entre o poder
legislativo da cidade e os participantes do evento. As duas
primeiras etapas do evento, de sensibilização e definição dos
problemas em torno da temática, contou com a participação de
organizações da sociedade civil, da academia, da Secretaria de
Mobilidade da Prefeitura de João Pessoa, do presidente do
Sindicato das Empresas de Transporte da Paraíba e do vereador
presidente da comissão legislativa municipal de mobilidade urbana.
As atividades da Virada se estenderam pelo dia, com a manutenção
do compromisso dos participantes com o processo. Ao final, o
processo de teste da lei contou com a consultoria de três
vereadores do município, que ouviram e fizeram sugestões aos 5
projetos de lei redigidos naquele dia.
A parceria percebida nesse processo sugere que, ao serem
apresentados os novos projetos, após a coleta do número mínimo
de assinaturas, a empatia gerada com a construção colaborativa
das leis levará ao engajamento também das autoridades públicas
para que as leis que sejam frutos desses projetos promovam os
efeitos esperados pela população que redigiu aqueles projetos.
A segunda Virada Legislativa foi realizada em parceria com o
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(SEBRAE), em novembro de 2017, no Rio de Janeiro, e tratou da
temática empreendedorismo. A Virada Legislativa foi uma
atividade integrante do Colaboramérica, maior evento sobre
economia colaborativa da América Latina. Nela, foi redigida uma
proposta de lei sobre desburocratização de empresas, como um
modelo nacional para permitir a autodeclaração para o registro de
Alvará como forma agilizar a regularização de empresas que não
exerçam atividades de risco.
Assim como em João Pessoa, percebemos o potencial
colaborativo entre o poder legislativo e a sociedade civil na
construção de leis. As atividades de sensibilização reuniram
startups, organizações empreendedoras, acadêmicos e um
deputado federal, para debater a situação do empreendedorismo
no Brasil e no estado do Rio de Janeiro. Esses atores expuseram e
interagiram com os participantes para elencar os principais
problemas para a área, sendo a burocracia para a abertura de
empresas o problema mais citado. A partir dele, o grupo se reuniu
para redigir uma lei que pudesse atacar o problema e daí nasceu o
PL para desburocratização do Alvará, adotando o modelo de
autodeclaração (feito por outras prefeituras no Brasil), como uma
forma viável e simples de facilitar o processo de empresas. Este PL
passou ao final pelo teste com a participação de dois vereadores da
cidade do Rio de Janeiro e dois vereadores da baixada fluminense.
O fenômeno de colaboração entre representantes e
representados percebido na Virada Legislativa de João Pessoa se
repetiu também na Virada Legislativa sobre empreendedorismo no
Rio de Janeiro, o que confirmou a eficácia da metodologia e seu
potencial transformador na forma de produzir leis
colaborativamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Mudamos é uma das principais iniciativas para tecnologias


cívicas em atividade no Brasil. O projeto conseguiu aproveitar a
oportunidade gerada por uma tecnologia inovadora e, dar a ela,
significado político para mobilização e o engajamento. A
viralização e adesão em massa por milhares de usuários
comprovam isso, ao mesmo tempo que reforçam o seu potencial
de transformar a política institucional e a relação entre cidadãos e
cidadãs com a política. A equipe que desenvolve o Mudamos
acredita que a aproximação da cidadania da política pode construir
novas formas para que se pensem soluções para problemas
públicos. A era da política centralizada em pessoas delegadas pela
autoridade do voto deve dar espaço a canais de colaboração que
nos permitam pensar nas soluções de problemas quando estes
acontecem, tornando a participação cívica um pilar de qualquer
cidade inteligente. Quanto mais diverso o ciclo de interação, maior
a chance de conseguirmos produzir massa crítica de ideias para
encontrarmos a melhor forma de resolver problemas.
A inclusão da Virada Legislativa reforçou o sentido colaborativo
para a construção de leis, oferecendo à população uma
metodologia para desmistificar o processo legislativo. A inclusão
dessa metodologia conectada às ações do aplicativo também
demonstra que o Mudamos é um projeto vivo, em constante
construção e em diálogo com o ambiente com o qual interage. Por
isso, entendemos que, para produzir resultados duradouros, o
Mudamos ainda tem um papel pedagógico de fomento e difusão de
valores políticos ligados a participação, deliberação e colaboração
que devem ser reforçados e incentivados. A tríade modelo técnico,
político-institucional e mobilização social demonstrou sua
capacidade de produzir transformações nos territórios nos quais o
Mudamos vem sendo adotado e aplicado. Justamente por
depender também de uma política de ação no território, o trabalho
de incentivo constante aliado a esforços que permitam dar ganhos
de escala ao projeto representa estratégia que deve ser explorada
pelo projeto em suas próximas ações. Novas ferramentas como o
Mudamos vão potencializar cada vez mais a atuação dos cidadãos
por meio da tecnologia.
Entendemos que cidades inteligentes são aquelas que
empoderam seus cidadãos para serem protagonistas na
construção da vida em comunidade. Sendo as cidades organismos
extremamente complexos, que dependem da contribuição de cada
pequena parte para que o todo funcione, é fundamental que os
cidadãos e cidadãs estejam no centro das decisões sobre as
questões que afetam a sua vida. O Mudamos foi lançado como um
aplicativo para mudar a perspectiva de como se fazer leis no Brasil,
apostando na colaboração para produzir leis melhores, mas
também para ser uma experiência de tomada de decisões
distribuídas. O seu potencial ainda não se revelou por completo,
mas certamente não há outro caminho se não o da experimentação
para pensarmos a cidadania do futuro.

1. Marco Konopacki é doutorando em Ciência


Política pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e mestre em Ciência Política
pela Universidade Federal do Paraná. Foi
assessor da Secretaria de Assuntos Legislativos
do Ministério da Justiça, em que coordenou o
debate público para regulamentação do Marco
Civil da Internet. Atualmente, é coordenador
de projetos da área de Democracia e
Tecnologia do ITS Rio. ↵
2. Debora Albu é mestre em Gênero e
Desenvolvimento pela London School of
Economics (LSE) e pesquisadora na área de
Democracia e Tecnologia do ITS Rio. ↵
3. Diego Cerqueira é mestrando no Programa de
Engenharia de Sistemas e Computação (PESC)
COPPE/UFRJ e pesquisador no time de
Democracia e Tecnologia do ITS Rio. ↵
4. Thayane Guimarães é comunicadora social
formada pela Universidade Federal Fluminense
(UFF) e pesquisadora da área de Democracia e
Tecnologia do ITS Rio. ↵
5. NAM, T.; PARDO, T. A. Conceptualizing smart
city with dimensions of technology, people,
and institutions. Proceedings of the 12th Annual
International Digital Government Research
Conference: Digital Government Innovation in
Challenging Times. Nova Iorque, 2011.
Disponível em:
https://doi.org/10.1145/2037556.2037602.
Acesso em: 29 jul. 2018. ↵
6. JOHNSTON, E. W.; HANSEN, D. L. Design
lessons for smart governance infrastructures.
In: Transforming American governance:
Rebooting the public square. Nova Iorque:
Routledge. p. 197-212. ↵
7. MELLOULI, S.; LUNA-REYES, L.; ZHANG, J.
Smart government, citizen participation and
open data. Information Polity, v. 19, p. 1-4, 2014.

8. Disponível em:
https://impactchallenge.withgoogle.com/bra
zil2016. Acesso em: 29 jul. 2018. ↵
9. Link para o download do aplicativo disponível
em: https://www.mudamos.org/. Acesso em:
29 jul. 2018. ↵
10. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/empreendedo
rsocial/2017/11/1932119-aplicativo-que-
permite-aos-cidadaos-propor-leis-tem-500-
mil-downloads.shtml. Acesso em: 29.07. jul.
2018. ↵
11. Conforme disposto no Art. 14 inciso III, Art. 27
§ 4º, Art. 29 inciso XIII e Art. 61 § 2º da
Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti
tuicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em:
29 jul. 18. ↵
12. ITAGIBA, G.; KONOPACKI, M. Projetos de lei de
iniciativa popular no Brasil. Relatório. ITS Rio,
2016. Disponível em: https://itsrio.org/wp-
content/uploads/2017/08/relatorio-plips-
l_final.pdf. Acesso em: 29 jul. 2018. p.19-27. ↵
13. GUISORDI, P. C. Os impactos da Internet sobre
os processos de mobilização política: uma
análise da campanha da Ficha Limpa. 2017.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2017. Disponível em:
http://www.mcce.org.br/wp-
content/uploads/2018/01/OS-IMPACTOS-
DA-INTERNET-SOBRE-OS-PROCESSOS-DE-
MOBILIZACAO-POLITICA-UMA-ANALISE-DA-
CAMPANHA-DA-FICHA-LIMPA.pdf. Acesso em:
26 jan. 2019. ↵
14. O formulário de suporte está disponível no
link: https://itsrio2.typeform.com/to/iulNZI.
Acesso em: 29 jul. 2018. ↵
15. "Bitcoin causa euforia e preocupação;
valorização é de 1.500% em 2017". Correio
Braziliense. Matéria publicada em 12 de
dezembro de 2017. Disponivel em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/
noticia/economia/2017/12/12/internas_econ
omia,647223/o-que-e-bitcoin.shtml. Acesso
em: 29 jul. 2018. ↵
16. TAPSCOTT, D.; TAPSCOTT, A. Blockchain
revolution: how the technology behind bitcoin
is changing money, business, and the world.
Penguin, 2016. ↵
17. TAPSCOTT, D.; TAPSCOTT, A. Blockchain
revolution: how the technology behind bitcoin
is changing money, business, and the world.
Penguin, 2016. p.43-45. ↵
18. NAKAMOTO, S. Bitcoin: A Peer-to-Peer
Electronic Cash System. Disponível em:
https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acesso em: 21
ago. 2018. ↵
19. Disponível em:
http://www.blockchainresearchnetwork.org/
wp-content/uploads/2018/03/Werbach-
2016-Trustless-Trust-Conference-Paper-.pdf.
Acesso em: 21 ago. 2018. ↵
20. Mozilla Foundation. Introduction to Public-Key
Cryptography. Disponível em:
https://developer.mozilla.org/en-
US/docs/Archive/Security/Introduction_to_
Public-Key_Cryptography. Acesso em: 21 ago.
2019. ↵
21. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra?codteor=1541938. Acesso
em: 26 jan. 2019. ↵
22. SANTOS, B. de S. Democratizar a democracia:
os caminhos da democracia participativa. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Disponível em:
http://www.do.ufgd.edu.br/mariojunior/arqu
ivos/boaventura/democratizardemocracia.pdf
. Acesso: 26 jan. 2019. ↵
23. FISCHER, H. Clareza em textos de e-gov, uma
questão de cidadania. Com Clareza: Rio de
Janeiro, 2018. ↵
Criptomoedas complementares para Territórios
Inteligentes: um estudo exploratório

Alexandre Barbosa[1]

INTRODUÇÃO

O fenômeno das smart cities (cidades inteligentes) já foi aderido


por diversas disciplinas, tanto na academia, quanto nos setores
público e privado. Se, por um lado, no entanto, a parte técnica já
está migrando ou retornando para outros conceitos, como digital
city ou ubiquitous city, por outro, muitas cidades estão elaborando
e implementando iniciativas rotuladas de cidades inteligentes.
Essas iniciativas comumente são fruto de parcerias público-
privadas (PPP) e/ou ocorrem por meio de outros modelos de
governança que visam à participação de diversos atores.
Diante da abordagem de análise e planejamento espacial, faz-se
necessário colocar a smart governance (governança inteligente)
como pivô. Além disso, de forma a incentivar o movimento inverso
à formação de grandes centros urbanos, bem como contribuir para
uma transição digital sustentável, o artigo propõe a utilização de
um conceito de territórios inteligentes (smart territories).
Considerando a baixa adoção do termo até os dias de hoje, a ideia
proposta é embasada por ferramentas, definições e abordagens de
temas interdisciplinares. Elementos do desenvolvimento territorial
sustentável (relevância do contexto, autonomia e ativação da
territorialidade) e do planejamento espacial estratégico (planos de
ação visando ao equilíbrio das racionalidades comunicativa e
instrumental) são inseridos na abordagem de governança
inteligente.
O artigo visa, também, promover a consolidação das Distributed
Ledger Technologies (DLTs) no escopo de cidades e territórios
inteligentes. Para tal, e de forma a garantir o caráter pragmático do
planejamento estratégico, avalia-se o papel dos nomeados
sistemas de moedas complementares e das criptomoedas, que
fomentam discussões e reflexões acerca dos sistemas monetários.
A propósito, de acordo com o relatório do Universal Financial
Access para 2020, dois bilhões de adultos não têm acesso a uma
conta bancária básica no mundo, cuja causa principal é a falta de
dinheiro para tal[2]. Dentre esses, 73% vivem em apenas 25 países.
O trabalho procura analisar quais são os limites e possibilidades
da elaboração de criptomoedas locais complementares, como
mecanismos de desenvolvimento sustentável do território no que
concerne à inclusão financeira e digital. Isso por meio de um novo
conceito de território inteligente, orientado por uma governança
que agrega diversas disciplinas com o objetivo de contribuir para a
atenuação e a transformação do impacto das tecnologias
modernas na sociedade e no espaço.

De cidades inteligentes para territórios


inteligentes: por que mais uma buzzword?

Antes de mais nada, é importante deixar claro que o termo “smart


cities” se tornou um rótulo urbano ao longo dos anos, uma
buzzword, e, como tal, tende a ser utilizado de forma a beneficiar
agendas específicas. Por outro lado, esses chavões são importantes
para conectar narrativas, definições e críticas. Nesse sentido, o
termo tem se tornado um campo interdisciplinar com crescente
aceitação de planejadores regionais e urbanos[3].
Embora diversas críticas tenham surgido com relação às cidades
inteligentes, o termo ainda apresenta ampla perspectiva e estará
no cerne da elaboração de políticas e projetos nos próximos anos.
Além disso, é importante mencionar a tendência de cientistas
sociais buscarem debates de abordagens tangíveis e inclusivas,
distanciando-se da crítica pura[4].
Sendo assim, neste artigo, a ideia de território inteligente é
sustentada de forma a promover: a) uma visão mais abrangente do
impacto das tecnologias digitais na sociedade e no espaço; b) o
movimento inverso da formação de grandes centros urbanos
insustentáveis; e c) o desenvolvimento absoluto de territórios
(solução de ganho mútuo), em vez do desenvolvimento relativo, e
consolidar o caráter geográfico.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA I
1.1. Smart City e o território

O fenômeno smart city (SC) começou nos anos 1990, quando o


mencionado termo foi utilizado em uma de suas primeiras vezes,
segundo Cocchia[5]. No final da mesma década, Bollier[6] propôs
novas práticas políticas para melhorar o planejamento urbano e
usou o termo smart growth. Essa é considerada como uma das
principais contribuições do New Urbanism, almejando um uso
compacto e sustentável do solo. Além disso, o termo smart growth
é associado às iniciativas populares de movimentos sociais
urbanos[7]. Essa abordagem, quando associada a conceitos de
intelligent city, digital city e connected city, promoveu o
surgimento do termo smart city.
Como dito anteriormente, o campo das cidades inteligentes é
vasto e abrange diversas disciplinas. Entretanto, o que é
comumente acordado é que falta um entendimento e uma
definição abrangente para o termo. Nessa perspectiva, duas
definições se tornaram convencionais. Uma é mais orientada à
tecnologia e à infraestrutura. A Organização Internacional de
Padronização (ISO) define smart city, por exemplo, como “um novo
conceito e novo modelo, o qual aplica a nova geração de
tecnologias da informação e comunicação para facilitar o
planejamento, construção, gestão e serviços inteligentes de
cidades”[8]. De tal forma, a entidade categoriza smart city como
uma ferramenta em vez de um imaginário urbano. A outra
perspectiva é voltada para o cidadão, a qual é principalmente
focada nos efeitos dessas tecnologias na sociedade. Nesse caso, a
capacidade do indivíduo de responder, interagir e se adaptar a
esses sistemas é o que indica a smartness de uma cidade[9][10][11]. A
questão é que, mesmo a sociedade sendo o elemento mais
importante em uma cidade inteligente, a tecnologia é fundamental
para sua conceitualização.
A principal crítica às iniciativas de smart cities é relacionada ao
seu perfil orientado ao lucro, uma vez que o setor privado é o
principal impulsionador de tecnologias digitais[12][13]. Além disso,
tais projetos normalmente superestimam a capacidade
transformacional da tecnologia e negligenciam outros elementos
das relações humanas fundamentais no processo de tomada de
decisão[14]. Um outro aspecto importante da crítica é em relação à
etimologia. O termo “smart city” inerentemente se refere a
sistemas territoriais urbanos e, portanto, afeta o interesse de
diversos segmentos da gestão de uma cidade, do planejamento e
de políticas públicas. Afeta também a sociedade civil com relação à
acessibilidade digital, à segurança e à privacidade. Ademais, a falta
de um propósito unificado para o uso de dados gera preocupações
quanto à tendência do planejamento territorial voltado ao uso do
big data. De tal forma, uma estratégia de dados ampla, que agregue
o interesse desses diversos atores, é fundamental para um plano
urbano contemporâneo[15].
As smart cities também podem ser interpretadas como sistemas
territoriais de inovação por meio dos chamados third places
(terceiros lugares), como os espaços de coworking, fab labs e living
labs. Esses são ecossistemas para testar e validar teorias em tempo
real e baseiam-se em cocriação e corresponsabilidade[16]. Não
obstante, a aplicação seletiva de inovação, as conjunturas
sociopolíticas e as relações de poder são fatores predominantes na
determinação desses “laboratórios vivos”[17]. É relevante mencionar
que projetos para a implementação de cidades inteligentes são
frequentemente associados à incubação de startups, que não
necessariamente são orientadas por um empreendedorismo social
ou pelo desenvolvimento sustentável, nem necessariamente
suprem desigualdades territoriais. A propósito, diante desse
cenário de incertezas, Ahvenniemi et al.[18] propõem o uso do termo
“smart sustainable city” para guiar as discussões do tema. Neste
artigo, de maneira semelhante, o foco é em território inteligente, a
fim de fomentar o aspecto geográfico.

1.2. Agregando conceitos

1.2.1. Desenvolvimento Territorial Sustentável

O conceito do desenvolvimento local, que desencadeou no


desenvolvimento territorial sustentável, tornou-se a corrente
dominante em paralelo ao surgimento da smart city. Também
ecoou nos anos 1990, no cenário da globalização e pós-Consenso
de Washington. Nesse sentido, faz-se necessário evidenciar as
relações de sua origem e o neoliberalismo[19][20].
O desenvolvimento é habitualmente definido, em uma
perspectiva antropológica e filosófica, como o aumento e/ou
melhoria das capacidades individuais. Em uma abordagem
territorial, desenvolvimento diz respeito à ativação da
territorialidade. Isto é, uma ação coletiva de usos inclusivos e
estratégias cooperativas, uma simbólica, cognitiva e prática
mediação entre os ativos humanos de um lugar e as ações sociais
deste[21]. Ou, nos termos de Raffestin[22], a territorialidade é o link
entre o território e a sociedade. Logo, pode-se afirmar que o
desenvolvimento sustentável é territorialmente incorporado[23].
Ademais, o desenvolvimento local diz respeito ao aumento da
complexidade e ao posterior controle desta em um determinado
lugar.
O desenvolvimento territorial abrange questões de governança e
descentralização de políticas, porém enfatizando as dinâmicas
social, econômica, institucional e cultural de um contexto
específico. De acordo com Pike et al.[24], reconhecer essas
diferenças de um lugar para o outro é um fator chave para a
promoção de ações para um programa inclusivo e amplo. A
maneira pela qual uma comunidade reage a movimentos externos,
por exemplo, as TIC e políticas supralocais, é mutável e se baseia
nos princípios e valores deste dado território. Ou seja, o modo
como um indivíduo ou uma comunidade percebe e interpreta o
desenvolvimento (se ele é “apropriado”, “bem-sucedido”, “bom” ou
“ruim”) depende de um contexto histórico e cultural, determinado
politicamente, que influencia valores sociais e princípios em um
período.
Diante dessa abordagem, uma análise territorial criteriosa é
fundamental para promover o desenvolvimento local e regional. Há
diversas ferramentas que facilitam esse processo, tais como o
Sustainable Livelihood Approach (SLA) ou o Sviluppo Locale
Territoriale (SLoT), entre outras. Elas se assemelham nas questões
de analisar os atores locais e suas relações de poder, os capitais do
território e as limitações políticas e possibilidades de ação. Vale
ressaltar que, embora não seja o enfoque deste trabalho, na esfera
digital, as redes sociotécnicas cumprem papel importante na
avaliação do uso de inovações tecnológicas em relações públicas.
Finalmente, para existir desenvolvimento, ele deve ser holístico e
progressivo[25][26] e deve otimizar os ativos fixos locais com a
hipermobilidade de fatores que circulam na rede supralocal. É
válido enfatizar que, entretanto, o desenvolvimento territorial
ainda encontra dificuldades de ser consolidado, principalmente em
países do dito “Sul Global”.

1.2.2. Do planejamento colaborativo ao planejamento espacial


estratégico

De acordo com Patsy Healey[27], o planejamento colaborativo é


descrito como processos de governança participativa e inclusiva
que orientam as transformações territoriais. É o processo de
permitir e facilitar que os stakeholders se envolvam no processo de
tomada de decisão por meio do controle e da responsabilidade
compartilhada a respeito de iniciativas de desenvolvimento[28].
Consequentemente, isso acarreta soluções multidimensionais
benéficas para as partes envolvidas.
Esse modelo de planejamento emergiu como uma crítica ao
modelo amplo, racional e político-econômico e é pautado na
racionalidade comunicativa, na qual a visão é construída por meio
de relações de confiança e ações em um período curto. A
confiança é associada com a proximidade social devido à
proximidade geográfica[29]. Nesse sentido, a proximidade digital
pode facilitar e melhorar a rede, porém não é suficiente para
estabelecer uma visão coletiva, homogênea e genuína. Contudo, o
planejamento e o orçamento participativo podem guiar a alocação
de recursos em uma perspectiva multiescalar orientada pela
dimensão social como prioridade, a qual é apoiada pela
participação virtual[30]. Nessa perspectiva, é esperável que as
decisões sejam complexas e que possam envolver diferentes
objetivos.
Existem diversos estágios no processo de planejamento por
meio dos quais a participação popular desempenha um papel
importante. Por exemplo, na identificação de um problema, no
contexto socioespacial, nas metas e objetivos comuns, nos
resultados esperados e na legitimação das políticas propostas por
meio da coesão social. No entanto, o paradigma de planejamento
em questão tem sido severamente criticado pelas racionalidades
política e instrumental, principalmente com relação à sua
efetividade em um desenvolvimento de longo prazo, embora seu
papel na construção de consenso seja amplamente reconhecido[31].
Ademais, de acordo com Charles Lindblom[32], o sucesso da decisão
depende dos seus efeitos em transformar conflitos ao mesmo
tempo em que a racionalidade seja assegurada.
O planejamento espacial estratégico pode ser interpretado como
uma importante alternativa para contrabalancear os limites do
planejamento colaborativo. Albrechts[33] argumenta que esse
paradigma do planejamento é um processo público que agrega
diferentes perspectivas pautadas em conhecimento científico,
colaboração e relações socioespaciais. Como produto, constrói-se
um quadro abrangente para o desenvolvimento do território. Além
disso, essa abordagem de planejamento é baseada em um número
limitado de questões, levando em consideração o contexto social,
cultural e político. Esse modelo também visa a uma governança
multinível e a trazer diversidade de atores para o processo de
planejamento, de forma a criar novas formas de compreensão das
dinâmicas territoriais[34]. Recentemente, o planejamento espacial
estratégico tem sido associado à “escola de desempenho”, a qual
afirma que esse modelo é sobre um consenso normativo, o que
deve prevalecer, e epistêmico, pautado no efeito de um projeto,
programa ou política[35].
Para concluir, o planejamento espacial estratégico pode ser
interpretado como o equilíbrio dos métodos top-down e bottom-
up, um modelo de planejamento que é tanto guiado pelo
conhecimento científico quanto pelo comunitário. De forma mais
pragmática, trata-se de quadros para a ação que objetivam não
somente resultados formais, mas também influenciar autoridades
em investimentos futuros e atividades reguladoras. Uma
abordagem holística para o planejamento, em que as decisões, a
resolução de problemas específicos e uma certa abertura para o
futuro devam prevalecer[36].
1.2.3. Governança Inteligente como pivô

A governança inteligente é um dos pilares do amplo conceito de CI,


porém ela pode ser considerada como o principal elemento devido
à sua abrangência e ao papel em coordenar os outros fatores[37],
como mobilidade, economia, meio ambiente e educação, entre
outros. É de comum acordo que algumas características são
cruciais para melhor definir “governança inteligente”, como o uso
das TIC, a colaboração e a participação de organizações não
governamentais, a administração eletrônica, a inteligência de
negócios, a coesão institucional e a tomada de decisão eficiente.
Os resultados são frequentemente associados à inclusão social, à
acessibilidade a serviços públicos, eficiência, interoperabilidade,
transparência e desenvolvimento econômico[38][39].
O termo tem ganhado importância em uma conjuntura na qual o
governo eletrônico (e-government) e a administração eletrônica (e-
administration) têm sido elevados de um nível institucional para
um nível territorial. Paralelamente, especialistas em governança
urbana têm adotado o uso de tecnologias modernas,
principalmente de comunicação e informação, para melhorar e
facilitar a compreensão de sistemas urbanos[40].
Projetos de cidades inteligentes são comumente implementados
por meio de uma parceria triple helix, isto é, acordos entre
representantes do setor público, da indústria (termo que vem
perdendo força) e da academia. O primeiro, por meio da regulação,
da elaboração de políticas públicas e investimentos na
digitalização de sistemas urbanos. O segundo, por meio do capital
físico e digital, uma vez que controlam o setor de tecnologias
modernas e apresentam um interesse particular em inovação e
empreendedorismo. Finalmente, o último grupo contribui,
sobretudo, com capital intelectual em uma esfera mutualística,
para a qual a academia fornece e testa as mais recentes
tecnologias, por exemplo, em sensoriamento, monitoramento e
rede. Congrega-se, assim, incentivos para validar teorias em
cenários de vida real por meio dos já mencionados livings labs[41]. A
questão é que se, por um lado, tais iniciativas normalmente são
executadas em conjunturas políticas, que visam, principalmente,
ao crescimento econômico, de forma a limitar a abordagem das
esferas sociais e ambientais e a comprometer as gerações atuais e
futuras; por outro, partidos ditos progressistas ainda apresentam
certa relutância em ser pioneiros em tais projetos, mesmo as
cidades inteligentes sendo um fenômeno inevitável.
A tecnologia em si não vai resolver os problemas da sociedade,
entretanto, o conhecimento político acerca dela é fundamental
para o desenvolvimento de cidades inteligentes e sustentáveis[42].
Além disso, se de fato essas introduções combaterem
estrategicamente certos desafios urbanos, não haverá razão para
uma oposição a essa tendência. São exemplos Amsterdam, Helsinki
e Eindhoven, em que os cidadãos não somente interagem com as
plataformas digitais ou são beneficiados por serviços
automatizados, mas também carregam responsabilidade no
planejamento, no monitoramento e na gestão da cidade[43]. Esses
centros urbanos adotam modelos de governança mais
abrangentes, tais como o quadruple Helix, no qual a dimensão do
cidadão é adicionada no mesmo nível das outras três. Essa
dimensão é subdividida em cidadão baseado na mídia (redes
sociais e comunicação) e em cidadão baseado na cultura
(princípios, valores e tradições). Em um modelo ainda mais
holístico e não antropocêntrico, o modelo quintuple helix
posiciona o capital natural (os valores dos serviços e funções dos
ecossistemas) como um stakeholder chave na estrutura de
governança[44].
A contribuição de Meijer e Bolivar[45], por meio de uma vasta
revisão bibliográfica, mostrou que existem quatro principais
conceitualizações de governança inteligente, delineadas e
descritas como:

1. a) Smart Government: o governo de uma cidade inteligente.


Nesse aspecto, a governança inteligente consiste na habilidade
de instituições públicas de desenvolver e implementar
políticas efetivas que promovam iniciativas de cidades
inteligentes.
2. b) Smart Decision-Making: relacionado ao processo de tomada
de decisão em si. Logo, a governança inteligente é aquela que
apresenta eficiência em processos de tomada de decisão por
meio do uso de redes de tecnologias, permitindo um nível
maior de racionalidade pelo governo.
3. c) Smart Administration: a administração inteligente pode ser
entendida como uma nova forma de governo eletrônico que
usa uma gama de tecnologias para integrar diversos
departamentos de instituições públicas e seus respectivos
serviços. O modelo demanda uma transformação institucional
interna considerável.
4. d) Smart Urban Collaboration: é a abordagem que necessita do
maior nível de mudança institucional e interoperabilidade
tecnológica e humana. Baseia-se na transformação de ambos:
governo e organizações externas (como o setor privado e a
sociedade civil).

Existe na literatura um consenso de que o Estado é um elemento


chave para promover cidades inteligentes[46], embora seja relevante
enaltecer que uma estrutura consolidada de colaboração entre
diversos stakeholders seja crucial para solucionar problemas
sociais, devendo tal estrutura ir além da elaboração e
implementação de políticas públicas[47]. Nessa perspectiva, a ideia
de colaboração urbana inteligente fomenta o diálogo aberto por
meio de uma plataforma que permite a interação e a articulação de
atores, ideias e iniciativas. Consequentemente, isso gera conflitos
que podem ser transformados em oportunidades por meio de um
planejamento, a fim de garantir uma transição digital sustentável
do território.
No papel da inteligência artificial e computacional, métodos de
otimização são técnicas importantes que auxiliam tomadores de
decisão a promoverem um planejamento territorial eficaz. Por
outro lado, como comentado anteriormente, eficiência e confiança
são medidas que podem ser analisadas por diferentes perspectivas.
Logo, sistemas podem ser elaborados de forma a otimizar as
diversas metas. Essa é uma tarefa complexa que deve ser
alcançada em consenso. A propósito, se, por um lado, protocolos
de negociação estão consideravelmente sendo utilizados no campo
de sistemas multiagentes[48], eles são raramente aplicados em
decisões sociais reais.
É importante frisar que, apesar de defendidas neste artigo, as
abordagens mais abrangentes, que requerem mais mudança
institucional do que conservação, não são mais efetivas
unicamente para cidades “mais inteligentes”. De modo a sintetizar,
governança inteligente diz respeito a uma maneira moderna de
governar um território. Uma maneira que abrange plataformas de
democracia que permitem o diálogo intercultural, que dão voz aos
diversos stakeholders e que integram sistemas e serviços pelo uso
eficiente e resiliente das novas tecnologias de comunicação e
informação.

1.3. Uma conceitualização interdisciplinar de


território inteligente

As perspectivas de territórios inteligentes abordadas na literatura


se referem principalmente ao processo de construção de
resiliência à globalização[49], às inovações sociais que visam a um
imaginário sustentável em um espaço geográfico[50] e à interseção
entre a zona rural e a urbana não metropolitana[51]. Diante dessa
conceitualização, vale propor um novo entendimento para o
termo, de forma a se agregar os principais elementos de
desenvolvimento territorial sustentável, planejamento espacial
estratégico e governança inteligente. Um território inteligente é
um espaço delimitado (de bairro à região) com características
particulares, devido ao caráter antrópico, e cuja transição digital é
fruto de um planejamento participativo, racional e abrangente, a
fim de criar valores sem reduzir o capital territorial próprio e de
outros.

2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA II

2.1. Distributed Ledger Technologies, blockchain


e contratos inteligentes

As Distributed Ledger Technologies (DLT) representam um amplo


escopo de bancos de dados distribuídos, como as blockchains. Essa
tecnologia emergiu sobretudo no notório white paper de Satoshi
Nakamoto[52], em que a bitcoin foi apresentada. Vários entusiastas
veem a blockchain tão influente quanto a web, principalmente
devido à capacidade de solucionar problemas de confiança e
transferência digital de valor[53][54]. Além disso, o Fórum Econômico
Mundial espera que 10% do PIB global esteja armazenado neste
“livro de registros distribuídos” em 2030[55].
Os maiores benefícios estão relacionados ao aumento de
transparência (redução na corrupção e fraude não somente no
setor público, mas também no comércio internacional e logística),
de autonomia individual (sem necessidade de uma autoridade
central), de accountability e de segurança[56]. Diversas aplicações
estão sendo desenvolvidas não somente no setor de tecnologia de
finanças (fintech), mas também no registro de propriedades de
terra, identidades digitais genuínas para participação popular,
rastreamento, entre diversas outras que existem e estão por vir[57].
Contudo, é importante ressaltar que essa tecnologia não vai
resolver cada problema de uma maneira simplista[58].
Essas DLTs, a propósito, são um combinado de diferentes
tecnologias que já estavam presentes no escopo da ciência da
computação por algum tempo, mas que floresceram por
intermédio da criptomoeda bitcoin. Entre essas tecnologias está a
comunicação peer-to-peer (P2P), que está intrinsicamente
relacionada aos sistemas distribuídos. Ela permite uma troca
igualitária entre duas partes sem a necessidade de uma terceira,
aumentando a escalabilidade e reduzindo custos[59]. Outro
elemento é a transação com data/hora carimbada. Cada bloco é
autenticado e correlacionado com o anterior pelos chamados
hashs criptográficos. Além disso, a criptografia assimétrica é
fundamental nos quesitos de segurança e imutabilidade, a fim de
construir o registro de transações na rede. Uma outra ferramenta
é o mecanismo de consenso, basicamente um algoritmo que
garante que os dados na rede sejam os mesmos para todos os
participantes e crucial para a validade das transações. Essa
característica de ser constantemente atualizada de forma a atingir
esse consenso com transações registradas e validadas é o que
difere a DLT de outros bancos de dados[60].
As DLTs também podem ser subdivididas entre pública (aberta
ou sem permissão), privada (permissionária ou fechada) e
consorciadas. A principal diferença é que a pública (Bitcoin,
Ethereum, NEO…) pode ser acessada e usada por qualquer um(a),
caso o acesso à internet se torne disponível. Por sua vez, nas DLTs
privadas (Hyperledger, Corda, Quorum, Chaincore…), não são
todos que podem participar, o que, por um lado, restringe a
participação para um certo grupo, como uma empresa, por outro,
pode promover mais eficiência em setores de back office[61].
Há apenas quatro anos, com a criação da Ethereum Blockchain,
pelo jovem russo-canadense de 19 anos, Vitalik Buterin, as
aplicações de tais bancos de dados distribuídos foram expandidas.
Entre elas, a implementação de smart contracts (contratos
inteligentes), um conceito introduzido por Nick Szabo, em 1993,
smart property (propriedade inteligente) e Distributed Autonomous
Organisations (DAO – Organizações Autônomas Distribuídas).
Atualmente, esses contratos inteligentes podem ser entendidos
como códigos computacionais inseridos em um “bloco de dados”
que tomam decisões automaticamente. Dada a dificuldade e a não
probabilidade de modificação desses blocos, um vasto número de
aplicações são promovidas. Os principais desafios dessa
megatendência estão relacionados à privacidade e à governança[62],
principalmente em relação à imutabilidade das DLTs e ao “direito
de ser esquecido”. Sem contar os elevados níveis de energia
requeridos pelos principais mecanismos de consenso vigentes e o
potencial da computação quântica de derrubar a criptografia
moderna[63]. Por outro lado, cientistas estão engajados em procurar
soluções inovadoras de consenso. São exemplos a Proof-of-
Stake[64][65] e outras estratégias de votos que poderiam utilizar
protocolos de negociação a fim de atingir acordos P2P.

2.2. Criptomoedas complementares

2.2.1. Moedas complementares e digitais

Sistemas de moedas complementares, também chamados de


moedas alternativas, moedas sociais, moedas locais ou
comunitárias, têm sido apresentados como uma importante
estratégia para localizar a economia, reforçando e facilitando o
câmbio entre pares de uma dada comunidade[66]. Ademais, diversos
autores têm evidenciado o importante papel que esse mecanismo
terá em um curto e médio prazo[67][68]. Embora diversas moedas
locais tenham existido por séculos, a pesquisa científica em torno
do tema tem sido abordada principalmente a partir de meados dos
anos 1980. O ponto-chave é que o dinheiro convencional é
entendido como um armazenamento de valores e não como um
acordo de câmbio entre comunidades, o que dificulta sua
circulação[69].
Diversos exemplos de moedas complementares existem ao redor
do mundo, alguns utilizam moedas físicas, outros usam o tempo e
outros moedas digitais. Exemplos de modelos de moedas
complementares são os LETS (Local Exchange Trading Systems)
que são empreendimentos locais sem fins lucrativos, os quais
permitem que os membros de uma comunidade negociem e
estabeleçam os próprios valores e serviços. As principais
características se baseiam nos bancos de crédito mútuo, em que os
membros começam com a quantia igual a zero, não há
obrigatoriedade de câmbio, não há juros e as informações sobre a
balança comercial estão disponíveis para todos eles. Outro
exemplo é o timebank, ou banco do tempo, existente em grande
escala nos Estados Unidos. Basicamente, as necessidades e
recursos são mensurados em escala de tempo. A quantidade de
tempo investido na rede é retribuída, de forma que a expansão e a
durabilidade da rede em si são os principais objetivos. Moedas
locais buscam principalmente fortalecer a coesão territorial em um
espaço delimitado, garantir o controle econômico local e mobilizar
e assegurar a economia onde ela é criada[70].
Inovações tecnológicas, tais como o pagamento eletrônico (e-
payment) ou dinheiro eletrônico (e-money), vêm gerando a adoção
de instrumentos digitais em moedas complementares. A propósito,
existe uma gama de plataformas open source para apoiar tais
iniciativas, como os Sistemas de Câmbio Comunitário (CES®) e o
Cyclos®. Além disso, por exemplo, a Comissão Europeia lançou em
2015 um programa chamado D-CENT que visou incluir moedas
digitais sociais para comunidades que buscavam aumentar a
participação popular em economias locais. A mais interessante no
contexto da blockchain é a Social Kronas, uma moeda municipal da
capital islandesa Reykjavik, em que o cidadão é recompensado pela
participação política. A propósito, esse mecanismo de consenso foi
apelidado de Social Proof-of-Work[71] e abrange também outras
ações no mundo real, de forma a promover os valores coletivos. No
contexto sul-americano, é importante mencionar a MonedaPAR[72],
uma moeda complementar argentina que está sendo
implementada em uma blockchain.
No mesmo escopo de moedas sociais digitais, outros exemplos
que envolvem as criptomoedas valem a pena ser mencionados. Por
exemplo, a FreeCoin[73] que é um conjunto de ferramentas que visa
aumentar o efeito multiplicador local. A tecnologia que
intermedeia as necessidades locais com os recursos não utilizados
do território. A FairCoin, que utiliza em seu escopo demurrage
(sobre-estadia), juros negativos em seu mecanismo de consenso.
Isso favorece a circulação da moeda. No caso, após um certo
tempo, a moeda ainda em estoque é automaticamente transferida
para, por exemplo, um fundo comunitário que possa viabilizar
programas de inovações sociais[74]. Obviamente, estudos de caso
aprofundados são necessários para a identificação de maneira
sistemática das premissas de tais iniciativas, entretanto,
teoricamente, são inovadoras e merecem ser difundidas.
É importante enaltecer o papel dos bancos comunitários como
atores importantes na adoção e difusão de moedas
complementares e, logo, das tecnologias associadas[75], neste
estudo, as DLT e os protocolos, como o Bancor. Além disso, é
fundamental enfatizar que essas “criptomoedas complementares”
visam, sobretudo, promover o desenvolvimento local e não
elaborar programas de tecnologia de ponta que possam ser mais
instáveis e difíceis de se manter a longo prazo.
2.2.2. O protocolo Bancor como exemplo

Bancor é uma startup situada em Tel Aviv, Israel, cuja respectiva


fundação (Bprotocol Foundation) se localiza em Zurique, Suíça. O
protocolo foi lançado em fevereiro de 2017, em um evento em
Paris. Em julho, aconteceu a sua ICO (initial coin offering)
atingindo um recorde de US$ 153 milhões. O protocolo foi
escolhido para esse trabalho porque permite, justamente, a criação
de mercados automatizados descentralizados sem fins lucrativos e
com liquidez.
Segundo o white paper[76], o protocolo tem como objetivo
fomentar o fenômeno de long tail (cauda longa), que se refere à
maior relevância de moedas menores agregadas quando
comparadas às grandes. Por sinal, de acordo com o CoinMarketCap
(2018), atualmente, 10% dos tokens existentes representam 99% do
volume de troca. Segundo os fundadores, garantir a liquidez de
moedas criadas por qualquer pessoa é o ponto-chave para que
esse fenômeno aconteça. Isso tende a desencadear uma
diversidade monetária abundante, fundamental para atingir o
equilíbrio entre a resiliência e a eficiência de sistemas monetários,
consequentemente, promovendo de fato o desenvolvimento
sustentável[77].
Pode-se listar algumas possibilidades mais importantes
disponibilizadas por esse protocolo de código aberto.
Primeiramente, o fato de que a plataforma permite um mecanismo
de descoberta de preço e liquidez para tokens por meio de um
contrato inteligente, nomeado como smart tokens. Segundo, que
qualquer envolvido pode instantaneamente comprar ou liquidar
esse smart token em troca de qualquer uma de suas reservas, o que
soluciona o problema de double coincidence of wants, ou
coincidência dupla de vontades[78]. Terceiro, o fato de o preço ser
continuamente calculado. Outra característica relevante é que o
Bancor elimina o spread, termo da finança tradicional que
representa a diferença entre preços de compradores e vendedores
ao longo do tempo.
O Bancor foi projetado com a obrigatoriedade de uma reserva
que pode ser qualquer token no padrão ERC20 ou a moeda Ether,
da Ethereum. De tal forma, somente criando uma reserva é
possível emitir os smart tokens. Nesse aspecto, o código escrito em
um contrato inteligente ajusta o preço de forma contínua,
garantindo que o token inteligente nunca esgote as reservas.
Conforme as reservas aumentam, novos tokens são emitidos e
sustentados por uma reserva de valor estável. Mais uma vez, o
token inteligente não necessita ser comercializado para se tornar
líquido, e é justamente a falta de liquidez que impede que
pequenas moedas vigorem.
O criador do token é quem define o valor que pretende manter
como reserva constante de acordo com a finalidade requerida.
Uma vez definida, o preço corrigido já pode ser calculado em
função do tamanho da transação. Esse chamado preço efetivo
garante que várias pequenas transações custem o mesmo tanto
que uma grande.
Na Índia, diversos projetos para redução da pobreza a partir de
inovações tecnológicas utilizando Bancor ou estrutura semelhante
vêm sendo discutidos[79]. Na Europa, diversos projetos para
recuperação de crise financeira também têm manifestado o
interesse na tecnologia. Neste artigo, o protocolo Bancor é
apresentado como exemplo, de forma a impulsionar mecanismos
semelhantes.

3. UMA IDEIA DE CRIPTOMOEDAS


COMPLEMENTARES PARA A
TRANSIÇÃO DIGITAL SUSTENTÁVEL DO
TERRITÓRIO

O potencial de implementar uma moeda em uma blockchain é


enorme no que diz respeito à eficiência e à transparência das
transações, e à escalabilidade e à criação de aglomerados de
diversas moedas sociais que trocam não só informações, mas
valores. Por outro lado, é de extrema importância destacar os
riscos desse processo, principalmente a respeito da complexidade
dos sistemas e da necessidade de capital financeiro, físico, humano
e social em larga escala, para que seja implementado. O objetivo
aqui é ilustrar esse cenário e não propor um modelo específico a
ser adotado.
É importante frisar a distinção entre moedas complementares e
criptomoedas. Enquanto a primeira foi apresentada na subseção de
moedas complementares, a segunda se refere principalmente a
moedas baseadas em blockchains, atualizadas com protocolos de
comunicação P2P. Neste trabalho, o termo “criptomoedas
complementares” é utilizado para correlacionar o uso dessas
tecnologias por sistemas de moedas complementares. Até então,
esses sistemas utilizam dinheiro físico ou digital, mas ressaltando o
caráter não lucrativo. Vale ressaltar que o(a) criador(a) pode ser,
por exemplo, um banco comunitário já existente com sua
respectiva moeda complementar.
Segundo Guásca[80], existem três principais níveis de influência
das DLTs nos sistemas de moedas complementares. Primeiro, a
escalabilidade de uma moeda complementar, no caso de uma
moeda que vise ampliar suas atividades de uma escala de bairro
para cidade ou região, por exemplo. Ademais, uma rede de moedas
complementares, em que cada elemento da rede emite a própria
moeda que pode ser trocada com as outras. Terceiro, a capacidade
de câmbio com criptomoedas globais, em que moedas
complementares podem se transformar em tokens e ser trocadas
em plataformas abertas.
A propósito, os riscos associados às DLTs públicas são
principalmente ligados à volatilidade a que as criptomoedas atuais
estão expostas hoje. Na verdade, essas criptomoedas
complementares propostas estão ameaçadas se puderem ser
trocadas por criptomoedas como a bitcoin, que é baseada em
mecanismos totalmente opostos aos objetivos dos sistemas de
moedas complementares vigentes. Talvez o ideal seria
implementar as criptomoedas complementares em redes privadas
e, posteriormente, consorciá-las com blockchains públicas, mas
estudos de viabilidade precisariam ser realizados criteriosamente.
Por sinal, moedas complementares localizadas no nível de bairro já
em funcionamento podem ser drasticamente prejudicadas se
implementadas na blockchain, sendo sua adoção não
recomendada[81]. A interoperabilidade é diretamente proporcional à
complexidade requerida. Além disso, a tecnologia cumpre um
papel secundário nesses sistemas e deve ser entendida como
facilitadora e não como solucionadora.
Moedas complementares devem ser interpretadas como um bem
comum e, para tal, a questão da governança é crucial para a
estabilidade desses sistemas. No caso do Bancor, que foi
implementado na Ethereum blockchain, as DAOs poderiam ser
utilizadas para facilitar e desenvolver estruturas de governança
inclusivas e descentralizadas[82]. A colaboração urbana inteligente
defendida na seção de smart governance deve ser o caminho a ser
seguido. A comunidade, em parceria com planejadores territoriais,
elaboradores de políticas e desenvolvedores de sistemas, devem
definir um conjunto de restrições e princípios de forma a garantir
o comando dessas criptomoedas complementares na dimensão
local. Como dito, as DAOs podem cumprir um papel bastante
significativo nesse processo, uma vez que é possível assegurar uma
governança democrática e transparente enquanto promove a
facilidade do uso desses sistemas monetários inovadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao mesmo que tem perdido força na literatura científica, a


temática das cidades inteligentes vem sendo explorada cada vez
mais por agentes públicos e privados. Os riscos e incertezas
inerentes à digitalização do espaço são ainda mais elevados
quando há uma falta de abordagem unificada. Diante de tal
perspectiva, este artigo visou promover o conceito de territórios
inteligentes agregando conceitos interdisciplinares que envolvem
o desenvolvimento territorial sustentável, o planejamento espacial
estratégico e a governança inteligente. O motivo pelo qual esse
novo termo foi adotado é justamente para consolidar o aspecto
geográfico e a introdução de tecnologias modernas no território,
de forma que as características sociais, culturais e políticas do
contexto sejam traduzidas em planos de ações sustentados pela
inteligência computacional, pela internet das coisas, pela DLT e
outras tecnologias modernas.
Baseando-se no caráter pragmático do planejamento estratégico
do território, procurou-se avaliar o papel das moedas
complementares como ferramenta de desenvolvimento local no
escopo das tecnologias de ledgers distribuídos, como as
blockchains e as criptomoedas. Constatou-se que já existem alguns
casos na literatura, mas se trata de uma temática bem atual e, por
isso, um estudo exploratório foi escolhido. Observou-se, também,
que já existem ferramentas tecnológicas que permitem a criação
de redes de moedas complementares, a escalabilidade desses
sistemas e a troca com as criptomoedas vigentes. Entretanto,
pesquisas futuras para identificar a real viabilidade de uma
implementação são necessárias, uma vez que esta é apenas a fase
embrionária.
A ideia de criptomoedas complementares para territórios
inteligentes, teoricamente, soa como uma valiosa ferramenta de
desenvolvimento local e provavelmente será difundida e explorada
a curto e médio prazos. Este artigo visou antecipar essas
tendências de forma a unir narrativas e abordagens, garantindo a
inclusão financeira em paralelo à inclusão digital, fatores estes
essenciais para a erradicação da pobreza nas próximas décadas.
Há muita pesquisa a ser realizada. No contexto brasileiro,
sobretudo, em como a tecnologia blockchain impactará os bancos
comunitários de desenvolvimento. Isso pode ser dado pelos
estudos de caso, seja mensurando o ponto ótimo entre a eficiência
e a resiliência dessas redes e, principalmente, identificando os
elementos chave de estruturas de governança criptoeconômica.
Esse ponto é fundamental para se garantir o uso equilibrado de
tecnologias digitais sem se comprometer os reais objetivos dos
sistemas de moedas complementares, promovendo, de fato,
territórios inteligentes.

1. Alexandre é mestre em Desenvolvimento


Territorial Sustentável pelas universidades
Panthéon-Sorbonne, KU Leuven e Pádova e
engenheiro de Controle e Automação pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Atuou
como gerente de operações e engenheiro de
projetos em diversas regiões do Brasil. Foi
pesquisador visitante do ITS Rio na área de
inovação e no momento tem um
empreendimento social no campo da
tecnologia blockchain chamado AmazoNeo.
Alexandre tem interesse em políticas públicas,
governança multinível, sistemas sociotécnicos
e transformação digital do governo. ↵
2. WORLD BANK GROUP. Universal Financial
Access for 2020: Global overview and progress
overview, 2015. Disponível em:
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Smart cities, blockchain e defesa da
concorrência: uma análise da aplicação da teoria
das essential facilities em redes de blockchain
privadas

Marina Cyrino[1]
Douglas Leite[2]

INTRODUÇÃO

Não há dúvida de que as novas tecnologias podem ser grandes


aliadas dos seres humanos na busca por mais qualidade de vida,
sobretudo nos espaços urbanos, como tem se verificado no
contexto das smart cities. A rapidez e o dinamismo com que o
avanço tecnológico ocorre nos dias de hoje, contudo, tem trazido
grandes desafios a administradores públicos em relação à
necessidade, ao momento e ao grau de intervenção para
disciplinar o uso dessas inovações.[3] Não é tarefa fácil, afinal,
compreender, em uma primeira análise, os impactos de uma nova
tecnologia sobre um setor econômico ou sobre a própria
sociedade, especialmente quando esses impactos podem ser
observados apenas após certo tempo desde a implementação da
nova prática.
O avanço da humanidade no campo da ciência e da tecnologia,
por essa razão, além de gerar, como consequência, a produção
social de riqueza, igualmente acarreta a produção social de riscos.
[4] É nesse contexto que o Direito tem a difícil missão de garantir
que a sociedade possa usufruir dos benefícios causados pelas
inovações tecnológicas e, ao mesmo tempo, minimizar possíveis
impactos negativos que elas possam apresentar.
A tecnologia conhecida como blockchain, com aplicação ainda
incipiente nos dias de hoje, desponta como promissora no
contexto das smart cities. Seu uso, como já tem sido observado,
pode trazer sensíveis benefícios, viabilizando que transações entre
indivíduos ocorram de forma mais eficiente, com maiores níveis de
transparência e confiança. Contudo, os riscos decorrentes de sua
aplicação, como ocorre com qualquer prática inovadora, não
podem ser desconsiderados. Nesse sentido, o propósito deste
artigo é trazer uma reflexão sobre possíveis implicações que
podem surgir, no campo do direito concorrencial, quando da
implementação de redes de blockchain privadas.
O texto será organizado da seguinte forma: a seção 1 tratará das
smart cities e da blockchain, trazendo conceitos e ideias referentes
a esses temas bem como apresentando algumas das possibilidades
do uso da tecnologia nas chamadas cidades inteligentes. Na
sequência, a seção 2 trará considerações, na área do Direito
Concorrencial, que devem ser examinadas quando da utilização de
redes de blockchain privadas como infraestrutura de rede
compartilhada para o oferecimento de produtos e serviços. Será
abordada a possibilidade da formação de monopólios naturais e,
como consequência, analisada a possível aplicação da teoria das
essential facilities nessas situações. Por fim, a seção 3 trará as
conclusões do artigo.

SMART CITIES E BLOCKCHAIN

Durante a maior parte do século XX, a ideia de que as cidades


poderiam ser inteligentes costumava estar associada, no
imaginário popular, aos filmes futuristas de ficção científica.
Todavia, com o avanço tecnológico e a massiva proliferação de
dispositivos computacionais, a perspectiva de que as cidades sejam
inteligentes passou a se tornar a nova realidade.[5] Um desses
avanços é a tecnologia blockchain, que poderá contribuir
sensivelmente para as smart cities.

1.1. Smart cities

Há diferentes definições na literatura para o conceito de smart


city, mas, em geral, entende-se que as cidades inteligentes são
aquelas nas quais, com o uso de modernas ferramentas
tecnológicas, os serviços urbanos são prestados com maior
eficiência, isto é, com a maximização dos benefícios e a redução
dos custos à sociedade, impactando positivamente a qualidade de
vida dos cidadãos.[6] Além disso, a ideia de smart city costuma estar
associada ao crescimento sustentável dos centros urbanos, à
utilização racional de recursos naturais e à adoção de mecanismos
de participação e transparência na gestão dos serviços de
interesse coletivo.[7]
No entanto, para que uma cidade seja considerada smart, não é
suficiente a implementação de uma melhoria setorial específica ou
limitada. Uma smart city envolve a cumulação horizontal de
elementos relacionados a diferentes áreas, como governança,
mobilidade, moradia, uso de recursos naturais, economia,
segurança, entre outras, devendo todas ser consideradas em
conjunto.[8] Nesse contexto, as smart cities estão intimamente
relacionadas aos avanços tecnológicos. Afinal, nas últimas décadas,
a massificação da internet e das redes de banda larga possibilitou
um aumento na importância dos meios digitais para o
desenvolvimento urbano, enquanto as cidades viram crescer seu
papel crucial na promoção de inovações em áreas como saúde,
inclusão, meio ambiente e negócios.[9]

1.2. Blockchain

Chamada por alguns de “protocolo da confiança”, a tecnologia


blockchain promete, entre outras vantagens, revolucionar a forma
de armazenamento de informações e a realização de transações,
com o objetivo de proporcionar velocidade, menor custo,
segurança, menos erros e eliminação de pontos centrais de ataque
e falha.[10] Ela dispensa o uso de intermediários ou de uma
autoridade centralizada para a ocorrência de transações entre
indivíduos, possibilitando que dados sejam armazenados
publicamente com elevado grau de confiança e de forma segura. A
blockchain é a tecnologia por trás da criptomoeda bitcoin, mas esta
é apenas sua aplicação originária e mais conhecida, pois são
diversas as possibilidades de sua utilização.
A blockchain é um sistema aberto e distribuído de livros-razões,
que pode registrar transações entre duas partes de forma imutável
e transparente. Com o uso dessa tecnologia, informações em geral
podem ser armazenadas com garantia de transparência e de ampla
acessibilidade. Nesse sentido, contratos, pagamentos e processos
podem ser registrados digitalmente, inclusive com verificação de
assinatura, de forma segura, pública e compartilhável.[11]
Possivelmente, a maior vantagem da tecnologia blockchain seja o
fato de ela proporcionar um mecanismo de consenso
descentralizado, permitindo que um grupo de indivíduos
desconhecidos concorde com um determinado estado de coisas e
registre tal concordância de maneira segura e verificável. Antes do
advento dessa tecnologia, não era possível coordenar ações
individuais pela internet sem um órgão centralizador que
garantisse que os dados envolvidos não seriam adulterados. Um
grupo de indivíduos simplesmente não poderia confirmar que
determinado evento ocorreu sem depender de uma autoridade
central para dar validade e confirmar ausência de fraude na
transação.[12]
A blockchain teve êxito em proporcionar esse mecanismo de
consenso ao resolver um conhecido enigma de ciência da
computação e da teoria dos jogos chamado de “o problema dos
generais bizantinos”.[13] Tal enigma apresenta uma situação
hipotética, em que diferentes unidades do exército bizantino
pretendem invadir uma cidade inimiga e estão acampadas em seus
arredores, sendo cada unidade comandada por seu próprio
general. As tropas estão distantes umas das outras e a
comunicação entre elas só é possível mediante mensageiros. Para
que o ataque seja bem-sucedido, as diferentes unidades precisam
se comunicar para estabelecer um plano de ação comum. Contudo,
um ou mais generais podem ser traidores e estar dispostos a
sabotar a operação. Desse modo, é necessária uma solução que
impeça ou neutralize a ação dos generais traidores, que poderiam
orientar seus mensageiros de forma a inviabilizar o ataque.[14]
Esse enigma é solucionado pela tecnologia blockchain, na medida
em que ela possibilita que as informações sejam transmitidas por
uma rede descentralizada de computadores de forma transparente
e verificável, utilizando problemas matemáticos que requerem
significativo poder computacional para serem solucionados. Assim,
torna-se inviável que um fraudador corrompa a base de dados com
a inserção de informação falsa, a não ser que este fraudador
possua a maioria do poder computacional de toda rede de
computadores, o que é virtualmente impossível. É dessa forma que
a blockchain garante confiança, validade e imutabilidade no
armazenamento de transações sem depender da certificação de
uma autoridade central.[15]
As redes de blockchain podem ser públicas ou privadas. Por
blockchain pública entende-se uma rede na qual a submissão de
informações e o acesso aos dados armazenados ocorre de forma
irrestrita. Por outro lado, em uma blockchain privada, a submissão
de informações e o acesso aos dados armazenados na rede são
limitados a um grupo pré-selecionado de usuários.[16] De acordo
com a International Business Machine (IBM), a participação em
uma rede de blockchain privada deve ser validada pelo controlador
da rede ou por alguma regra por ele definida. Além disso, em geral,
a participação estará sujeita a uma permissão. O mecanismo de
controle de acesso pode variar: os participantes podem decidir se
aceitam novos entrantes, uma autoridade regulatória pode
outorgar licenças ou um consórcio pode tomar as decisões, por
exemplo.[17]

1.3. Uso da tecnologia blockchain em smart cities

São muitas as possibilidades do uso de redes blockchain no


contexto de smart cities, sendo relevante citar alguns exemplos
que já vêm sendo observados pelo mundo. Dubai, nos Emirados
Árabes, tem planos de se tornar, em 2020, a primeira cidade do
mundo totalmente alimentada pela tecnologia e, com isso, ser “a
cidade mais feliz do planeta Terra”.[18] Já Moscou, a capital da
Rússia, possui um programa de participação popular que
atualmente utiliza a plataforma blockchain Ethereum,[19] por meio
do qual seus cidadãos podem votar e decidir sobre a adoção de
diferentes medidas, por exemplo, a escolha de um nome para uma
estação de metrô ou a participação em um programa de relocação
residencial.[20]
Outro uso possível da blockchain em smart cities está
relacionado a questões envolvendo segurança e privacidade de
dados. Em setembro de 2016, o Kaspersky Lab produziu um estudo
apontando que diversas soluções presentes em smart cities, como
terminais de aluguel de bicicletas e quiosques de informação, estão
sujeitas a sensíveis falhas de segurança, de modo que criminosos
podem acessar indevidamente informações pessoais e financeiras
dos indivíduos.[21] Partindo desse estudo, dois professores da
Universidade de Griffith, na Austrália, apresentaram, em uma
conferência internacional do Institute of Electrical and Electronics
Engineers (IEEE), um paper propondo uma estrutura de segurança
baseada em blockchain para permitir a comunicação entre
diferentes entidades em uma smart city sem que a privacidade e a
segurança dos dados sejam comprometidas.[22]
Entre as diferentes possibilidades de contribuição da blockchain
para as smart cities,[23] é interessante notar que a tecnologia
permite a criação de uma infraestrutura de certificação de digital,
que pode ser utilizada para garantir a integridade e a autenticidade
de documentos e manifestações em geral.[24] É possível, assim, sua
utilização no âmbito do Poder Legislativo, de modo que aspectos
referentes à tramitação de projetos de lei e suas respectivas
discussões estejam prontamente disponíveis aos cidadãos,
viabilizando, inclusive, a participação popular nas deliberações
legislativas. Da mesma forma, o Poder Judiciário pode se valer da
tecnologia com o propósito de conferir transparência e praticidade
na prática de diversos atos. Ainda, redes de blockchain podem ser
usadas na área da saúde para que indivíduos tenham acesso a
dados médicos, tais como resultados de exames, prontuários e
receitas.
Iniciativas envolvendo blockchain já têm sido estudadas ou
colocadas em prática pelo Poder Público no Brasil. Por exemplo, o
Ministério do Planejamento, em 2017, desenvolveu um projeto-
piloto bem-sucedido para verificação de documentos e
identidades[25]. O Banco Central, por sua vez, tem acompanhado o
desenvolvimento da tecnologia diante de seus possíveis impactos
no sistema financeiro.[26]
Vê-se que, nas smart cities, redes blockchain podem funcionar
como infraestrutura de rede compartilhada para o registro e o
armazenamento de informações de forma transparente e acessível,
atendendo a diferentes propósitos e serviços. Essa possibilidade,
contudo, pode fazer despontarem possíveis implicações no campo
do direito concorrencial, que serão objetos do tópico a seguir.

ASPECTOS DE DIREITO
CONCORRENCIAL

O uso de novas tecnologias, como blockchain, inteligência artificial


e big data, quando examinado sob a ótica do direito concorrencial,
pode revelar os mesmos riscos experimentados com tecnologias
antigas e previamente conhecidas. As preocupações envolvem atos
de concentração, monopólios, concorrência desleal e cartelização.
[27]

No ano de 2015, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos


da América formulou acusações contra executivos do setor
varejista de comércio eletrônico em razão de prefixação de preços,
alegando que os acusados estariam usando um algoritmo para fixar
previamente seus preços, no intuito de eliminar a competição.[28]
Da mesma forma, participantes de uma blockchain privada
poderiam usar dados das transações para definir e monitorar
preços e, artificialmente, evitar sua redução a patamares
indesejados.[29]
Além disso, dependendo de como uma rede de blockchain
privada é desenhada e operada, pode haver implicações no campo
do direito antitruste quanto à formação de monopólios e
realização de transações anticompetitivas, como a exclusão
irrazoável de competidores da rede.[30]

2.1. Blockchain e monopólios naturais

Cabe analisar o conceito de monopólios naturais, que ocorrem


quando se consegue obter um custo de produção mais baixo
somente com um único prestador suprindo todo o mercado. Dessa
forma, determinada indústria é considerada monopólio natural se
a produção de certo bem ou serviço por uma única entidade
minimize os custos.[31] Normalmente, monopólios naturais estão
relacionados à existência de economias de escala, que acontecem
quando um único agente consegue ofertar toda a quantidade
demandada pelo mercado de forma mais barata do que vários
agentes produzindo essa mesma quantidade de maneira separada.
[32][33]

Os setores de serviços de infraestrutura (public utilities) são


historicamente associados à presença de monopólios naturais, em
que os custos de produção com a operação de um agente
monopolista são inferiores aos custos de uma estrutura
competitiva.[34] Exemplos de monopólios naturais ocorrem no setor
de ferrovias, dada a inviabilidade de duplicação da infraestrutura
ferroviária,[35] e no setor de transporte de gás, em que é igualmente
inviável a duplicação da infraestrutura de gasodutos. Tais
características inviabilizam a concorrência ou a tornam ineficiente.
[36]

Em um setor formado a partir de monopólio natural, deve-se


buscar uma solução para a garantia de acesso. Nesse sentido,
Patrícia Sampaio ensina que a solução pode ser (i) de natureza
estrutural, com a copropriedade da infraestrutura por todos os
agentes interessados ou com a titularidade pública, disponível a
todos os agentes do mercado, ou (ii) de natureza comportamental
com a imposição normativa “do dever do proprietário e/ou gestor
da infraestrutura de conceder o seu compartilhamento em bases
isonômicas”.[37]
A solução estrutural apresenta dificuldades. Dentre essas, está o
fato de que nem toda infraestrutura essencial pode ser ofertada ou
administrada por mais de um agente, há o risco de cartelização e
os custos de transação associados à administração conjunta da
infraestrutura poderão ser extremamente elevados.[38] Em relação
à propriedade pública, não haveria incentivos para assegurar uma
operação eficiente[39] e haveria, ainda, a possibilidade de utilização
indevida com criação de cargos com finalidades político-
partidárias e subsídios cruzados ineficientes para a manutenção de
valores cobrados para a prestação do serviço artificialmente
baixos.[40]
Por força das dificuldades mencionadas para a solução ao
compartilhamento de natureza estrutural, “o dever de
compartilhamento por parte de um monopolista detentor da
infraestrutura essencial costuma ser a solução comumente mais
utilizada para se estabelecer concorrência nos mercados
relacionados”[41].
A utilização de redes blockchain privadas como infraestruturas
de rede compartilhadas pode implicar a formação de monopólios
naturais caso a operação de mais de uma rede em concomitância
não seja economicamente viável. Nesse sentido, podem surgir
preocupações do ponto de vista do direito concorrencial. Imagine-
se, por exemplo, uma blockchain privada na área de saúde, utilizada
por hospitais e laboratórios para compartilhamento de
informações com médicos e pacientes. Caso uma única rede de
blockchain atenda a todo o sistema, e a operação de mais de uma
rede não seja eficiente sob o ponto de vista econômico, estar-se-á
diante de um monopólio natural.
Da mesma forma, muito se tem falado sobre os potenciais da
utilização da blockchain nos serviços notariais e de registro.
Segundo Paulo Roberto Gaiger Ferreira, presidente do Colégio
Notarial do Brasil, “[a] blockchain prevê seguranças, certezas, é
uma extraordinária ferramenta fática. Estas características estão
ligadas ao coração e espírito da atividade notarial”[42]. Uma
possibilidade a ser examinada, nesse sentido, é a utilização da
blockchain como infraestrutura de rede compartilhada entre
cartórios extrajudiciais, levando serviços notariais e de registro a
serem prestados com maior eficiência, gerando redução de custos
para a sociedade. Nesse caso também, se a duplicação da
infraestrutura não for economicamente viável, pode haver a
configuração de um monopólio natural.
Diante da potencial formação de monopólios naturais, a
utilização da tecnologia blockchain como infraestrutura de rede
compartilhada, em diferentes setores, pode dar ensejo à aplicação
da doutrina das essential facilities.

a) A teoria das essential facilities e sua aplicação no Brasil

Originada no Direito Antitruste norte-americano, a doutrina das


essentialfacilities compreende que o monopolista detentor da
infraestrutura de rede deve permitir acesso a terceiros,
concorrentes ou não, em condições não discriminatórias.[43] Nesse
sentido, a legislação antitruste prevê sanções em caso de recusas
abusivas de contratação que possam limitar a concorrência.
Nos Estados Unidos, a teoria das essentialfacilities surge como
resposta a esse tipo de comportamento anticoncorrencial.
Precisamente, seu surgimento ocorreu no ano de 1912, quando da
apreciação do caso United States vs. Terminal Railroad Association
of St. Louis[44], em que se discutia o monopólio da propriedade de
todos os meios de infraestruturas ferroviárias de acesso à cidade
de Saint Louis, no Missouri. Por causa do efeito prejudicial à livre
concorrência, decidiu-se que a empresa controladora das
infraestruturas (como linhas ferroviárias, pontes, postos de
controle de entrada e de saída da cidade) estaria obrigada a
compartilhar tais estruturas essenciais necessárias para os demais
competidores, mediante o pagamento de tarifa negociada para
permitir a entrada de novos agentes. Do estudo desse caso, Calixto
Salomão Filho identifica dois pressupostos centrais: “(i) a situação
de dependência com relação ao acesso a certos bens; (ii) a
impossibilidade de superar esta dependência a partir da
construção ou aquisição de bens próprios”[45].
Após uma série de decisões judiciais, a conformação final da
teoria das essentialfacilities, com o estabelecimento dos requisitos
para a sua aplicação, ocorreu no julgamento do caso MCI Corp. vs.
AT&T pelo Sétimo Circuito[46], em que certas condutas que teriam
sido praticadas pela AT&T foram questionadas pela MCI. De acordo
com a MCI, a AT&T (i) teria negado interconexão sem justificativa
em alguns casos, (ii) em casos em que se chegava a um acordo para
viabilizar a interconexão, as tarifas cobradas pela AT&T eram
abusivas e discriminatórias e (iii) o pessoal encarregado para
proceder às interconexões atuava de forma prejudicial, havendo
atrasos, instalações com defeitos e manutenções deficientes. A
corte concluiu que a AT&T tinha o dever de permitir a utilização da
sua infraestrutura por seus concorrentes porque era detentora de
uma essential facility, na medida em que (i) teria o monopólio da
infraestrutura, (ii) a interconexão requerida pela MCI era essencial
para a prestação dos serviços para os quais possuía autorização,
(iii) não haveria razão técnica ou empresarial legítima pela AT&T
para a negativa de interconexão e (iv) não era viável a duplicação
da infraestrutura.
Nessa decisão, foram estabelecidos os requisitos
caracterizadores da teoria das essentialfacilities, quais sejam: (i)
controle da infraestrutura por um monopolista, (ii) impossibilidade
de duplicação da infraestrutura por concorrentes, (iii) negativa de
acesso à infraestrutura pelo proprietário/gestor da infraestrutura
ao concorrente e (iv) viabilidade de compartilhamento da
infraestrutura[47].
Apesar de ser aplicada comumente pelas cortes norte-
americanas, a teoria das essentialfacilities nunca chegou a ser
reconhecida pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Ao revés, a
Suprema Corte estabeleceu uma regra de que não existe um dever
geral, por parte de um monopolista, de cooperar com os seus rivais
e que, na maioria dos casos, um monopolista pode contratar com a
parte que desejar.[48] A ideia é que um monopolista deve ter espaço
considerável para a tomada de decisões sobre com quem irá
contratar e a forma que irá estruturar seus negócios.[49] No
entanto, a Suprema Corte também possui decisões no sentido de
que a ausência de um dever absoluto de cooperar não significa que
toda vez que uma empresa decline da participação em um
empreendimento cooperativo específico, essa decisão possa não
ter importância probatória ou possa não dar origem a
responsabilidade em determinadas circunstâncias,[50] por exemplo,
ser considerada uma ação anticoncorrencial[51].
No Brasil, o artigo 36, caput e §3º, XI, da Lei 12.529/2011[52]
caracteriza como infração da ordem econômica as recusas
abusivas de contratação que possam limitar a concorrência.
A teoria das essentialfacilities já foi aplicada em diversos casos
no Brasil pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica —
CADE. Nos primeiros casos analisados, o CADE concluiu que não
deveria ser dado o acesso requerido, nos casos da Petroquímica
Triunfo e da Directv. Em 1998, o CADE negou a obrigatoriedade de
acesso à Petroquímica Triunfo S.A. pela Companhia Petroquímica
do Sul — COPESUL, por concluir que a esta possuiria fundamentos
econômicos relevantes para excluir a demandante de seus
contratos. Em 2001, o CADE julgou a disputa entre a Globo e a
Directv e negou o acesso da Directv ao sinal da Globo, concluindo
que o sinal desta não seria essencial à prestação de serviços de TV
a cabo pela Directv, pois não preenchia nem mesmo um dos quatro
critérios estabelecidos pelas cortes norte-americanas para
caracterizar uma essential facility. A Directv pretendia aumentar a
competitividade ao ofertar o canal Globo em sua programação
fechada, mas não dependia de tal funcionalidade para subsistir no
mercado e haveria outros meios de o consumidor obter o referido
sinal (pelo uso de antena comum).
Em 2002, o CADE julgou o caso das tarifas telefônicas de longa
distância estabelecidas pela Telesp em favor de sua subsidiária,
Telefônica, prejudicando a concorrente Embratel. O CADE
concluiu que os pressupostos para a aplicação da teoria das
essentialfacilities estavam presentes.
A referida teoria foi adotada em diversos outros casos julgados
pelo CADE.[53] Contudo, ressalta-se que a aplicação da teoria das
infraestruturas essenciais não elimina a necessidade de verificação
de casos em que haja abuso de poder econômico que serão
decididos com base na legislação antitruste.[54] Nesse passo,
Alexandre Nester destaca que, inicialmente, “deve-se considerar o
mercado relevante em que se insere a essential facility” e com base
nas características desse mercado, analisar se o detentor da
infraestrutura, ao exercer o seu poder econômico, estaria
inviabilizando a concorrência por um terceiro. Em caso positivo,
deverá ser verificado se há ou não uma situação de monopólio
nesse mercado relevante “que elimine todas as alternativas
possíveis para o concorrente”, não havendo alternativa para este.
Caso seja assim confirmado, uma última análise será feita: verificar
se há uma recusa injustificada do monopolista para concessão à
infraestrutura essencial em questão.[55]
Um ponto importante é a definição do que seria “recusa
injustificada” do detentor da infraestrutura. De acordo com Tércio
Sampaio Ferraz Junior, não seria uma simples recusa. Ocorreria,
por exemplo, em casos em que “fornecedor altera de modo não
razoável o insumo (ou suas condições de utilização) ou aumenta-
lhe o valor de tal modo que torne impraticável, ou excessivamente
custoso, o acesso a ele”,[56] o que dependeria do mercado em
questão.

b) Blockchain e a teoria das essential facilities


Pelo exposto, discute-se a possibilidade de que a utilização de
blockchains privadas como infraestrutura de rede compartilhada
deem ensejo à aplicação da teoria das essential facilities se a
duplicação da rede se mostrar economicamente inviável, ou seja,
em caso de monopólio natural, e se houver recusa de acesso
injustificada. Tal situação não se vislumbra com relação às
blockchains públicas, pois, nesse caso, o acesso é público por
definição, não sendo possível haver recusa de acesso à rede.
Porém, em relação às blockchains privadas, estudo recente de
Thibault Schrepel, pesquisador da Universidade Pantheon-
Sorbonne, qualifica como “muito provável” a chance de ocorrerem
recusas de contratação, já que o controle de acesso é a própria
causa de existência dessas redes.[57]
De fato, Schrepel aponta que, ao contrário das blockchains
públicas, as redes privadas têm, por design, uma governança que
permite seu controle, possibilitando a recusa de acesso à
infraestrutura. Uma vantagem da tecnologia, porém, é que
quaisquer condutas praticadas na rede, anticompetitivas ou não,
são publicamente visíveis. Isso ocorre certamente em blockchains
públicas e pode ocorrer em blockchains privadas a depender do
design da rede. Como a confiança nas redes de blockchain advém
do nível de transparência que é atribuído às transações, a utilidade
e a percepção de valor sobre uma blockchain privada tende a
aumentar proporcionalmente em relação ao seu nível de
transparência, de modo que não é certo que, no futuro, blockchains
privadas permitirão que transações sejam realizadas sem
transparência.[58]
De todo modo, a recusa de acesso é uma possibilidade nas redes
de blockchain privadas, o que pode ocasionar a aplicação da teoria
das essential facilities. Tal situação, inclusive, foi objeto de recente
análise pelo comitê de ética e compliance da divisão de direito
antitruste da American Bar Association, que produziu, em março
de 2018, um relatório intitulado Blockchain: challenges and
opportunities for antitrust compliance. O estudo aponta que se a
tecnologia blockchain alcançar seu potencial e for efetivamente
implementada de forma ampla, ela deve reduzir significativamente
os custos de transação em diferentes indústrias e, na medida em
que o ganho de eficiência tornar a blockchain essencial à
competição, controladores da tecnologia podem, eventualmente,
sofrer questionamentos na esfera concorrencial, caso sejam
excessivamente restritivos em conferir acesso à rede.[59]
Com efeito, caso a participação em uma blockchain privada se
revele essencial para que um determinado produto ou serviço seja
comercializado de forma competitiva, pode ocorrer fenômeno
semelhante ao que se observa com as chamadas patentes
essenciais, que são aquelas cujo objeto é definido como padrão de
mercado por algum órgão competente. Em razão de normas
concorrenciais, os titulares de patentes essenciais podem ser
compelidos a licenciarem seus títulos de forma equitativa e aberta
ao público, cobrando royalties justos, razoáveis e não
discriminatórios.[60] É possível, então, imaginar um cenário no qual
o controlador de uma blockchain privada igualmente seja obrigado
a garantir acesso à rede em condições razoáveis e não
discriminatórias.[61]
CONCLUSÃO

Conforme analisado ao longo deste artigo, a tecnologia blockchain,


ao proporcionar um ambiente transparente, seguro e confiável
para o registro e a validação de transações entre indivíduos, sem
depender de uma autoridade central, possui alto potencial de
aplicação em smart cities, viabilizando que serviços urbanos sejam
oferecidos aos cidadãos de forma mais eficiente. Nesse sentido,
uma das possibilidades é o uso de redes de blockchain privadas
como infraestrutura de rede compartilhada entre diferentes
fornecedores de produtos ou serviços.
Nesse cenário, caso a duplicação da infraestrutura se revele
inviável sob o ponto de vista econômico, por ser mais barata a
operação por um único agente, estará configurado um monopólio
natural, o que pode vir a justificar a aplicação da teoria das
essential facilities.
No direito da concorrência, essa teoria traz a obrigatoriedade do
compartilhamento de infraestruturas consideradas essenciais em
um determinado mercado relevante aos concorrentes, devendo
ser aplicada quando estiverem presentes, no caso concreto, os
seguintes requisitos: (i) controle da infraestrutura por um
monopolista, (ii) impossibilidade de duplicação da infraestrutura
por concorrentes, (iii) negativa de acesso à infraestrutura pelo
proprietário/gestor da infraestrutura ao concorrente e (iv)
viabilidade de compartilhamento da infraestrutura. Além disso, a
recusa do monopolista para concessão à infraestrutura essencial
em questão deve ser injustificada.
Assim, conclui-se que, na operação de uma blockchain privada, é
possível que todos os elementos mencionados estejam presentes,
o que pode ensejar a aplicação da teoria das essential facilities para
que os controladores da rede sejam obrigados a garantir acesso a
terceiros de forma equânime, em condições razoáveis e não
discriminatórias.

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33. Pinheiro e Saddi explicam que “um Mercado é
um monopólio natural quando a tecnologia de
produção é caracterizada por economias de
escala e de escopo dentro do intervalo
relevante da demanda.” (Ibid., p. 266). ↵
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infraestrutura em transição. In: ENCONTRO
NACIONAL DA ANPEC, 26. Vitória, dez. 1998.
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Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 61. ↵
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atuação do CADE em setores de infraestrutura.
São Paulo: Saraiva, 2013. p. 80-81 e 189. ↵
37. Ibid., p. 191. ↵
38. Ibid., p. 191-192. ↵
39. SAMPAIO, loc. cit. No mesmo sentido: “As for
the second branch, I offered reasons, which
Shepherd characteristically ignores, for
doubting that public ownership is a fetching
alternative to regulation or laissez faire: Under
public ownership there is no profit incentive to
assure efficient operation; the discipline of the
capital market is removed; there is no threat of
corporate takeover; there is an affirmative
danger of political influence; above all, there is
the danger that a public enterprise would be
intolerant of competition, even if changes in
demand or cost made competition feasible.”
(POSNER, R. Natural Monopoly and its
Regulation: a reply. 22 Stanford Law Review
540, 1969. p. 544). ↵
40. SAMPAIO, op. cit., p. 191-192. No mesmo
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41. SAMPAIO, P. R. P. Regulação e concorrência: a
atuação do CADE em setores de infraestrutura.
São Paulo: Saraiva, 2013. p. 191-192. ↵
42. LUIZARI, L. Reportagem na Revista Cartórios
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http://www.anoreg.org.br/site/wp-
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-7.pdf. Acesso em: 19 jan. 2019. ↵
43. DAYCHOUM, M. T.; SAMPAIO, P. R. P.
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Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 85-89. ↵
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em:
https://law.resource.org/pub/us/case/repo
rter/F2/708/708.F2d.1081.80-2288.80-
2171.html. Acesso em: 19 jan. 2019. ↵
47. “The case law sets forth four elements
necessary to establish liability under the
essential facilities doctrine: (1) control of the
essential facility by a monopolist; (2) a
competitor's inability practically or reasonably
to duplicate the essential facility; (3) the denial
of the use of the facility to a competitor; and
(4) the feasibility of providing the facility.” (caso
708 F.2d 1081, 7th Circuit, 1983). Disponível em:
https://law.resource.org/pub/us/case/repo
rter/F2/708/708.F2d.1081.80-2288.80-
2171.html. Acesso em: 19 jan. 2019. ↵
48. Caso Aspen Skiing Co. v. Aspen Highlands
Skiing Corp., 472 U.S. 585, 603 (1985).
Disponível em:
https://supreme.justia.com/cases/federal/us
/472/585/. Acesso em: 19 jan. 2019. ↵
49. OECD – Organization for Economic Co-
operation and Development. The Essential
Facilities Concept, 1996. Disponível em:
http://www.oecd.org/competition/abuse/19
20021.pdf. Acesso em: 19 jan. 2019. ↵
50. Caso Eastman Kodak Co. v. Image Technical
Servs., Inc., 504 U.S. 451, 483 n.32 (1992). ↵
51. OECD, op cit. ↵
52. Lei 12.529/2011, art. 36. Constituem infração da
ordem econômica, independentemente de
culpa, os atos sob qualquer forma
manifestados, que tenham por objeto ou
possam produzir os seguintes efeitos, ainda
que não sejam alcançados: I - limitar, falsear ou
de qualquer forma prejudicar a livre
concorrência ou a livre iniciativa; [...] § 3º As
seguintes condutas, além de outras, na medida
em que configurem hipótese prevista no caput
deste artigo e seus incisos, caracterizam
infração da ordem econômica: [...] XI – recusar
a venda de bens ou a prestação de serviços,
dentro das condições de pagamento normais
aos usos e costumes comerciais. ↵
53. Por exemplo: PA nº 08700.010110/2012-46,
caso envolvendo a Telemar, que trata dos
cortes de cabos telefônicos dos concorrentes
usuários da infraestrutura das caixas de
passagem, além de cancelamento de
portabilidade e PA nº 08012.000504/2005-15,
que analisou a conduta anticoncorrencial
praticada por associação e o sindicato de
transportadores no porto de Santos e do
Guarujá. ↵
54. NESTER, W. Regulação e concorrência:
compartilhamento de infraestruturas e redes.
São Paulo: Dialética, 2006. p. 173. ↵
55. NESTER, loc. cit. ↵
56. FERRAZ JUNIOR, T. S. Lei geral de
telecomunicações e a regulação dos mercados.
Revista de Direito da Associação dos
Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro,
v. 11, 2002. p. 257-265. Disponível em:
http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?
q=/publicacoes-cientificas/117. Acesso em: 4
jan. 2019. ↵
57. SCHREPEL, T. Is blockchain the death of
antitrust law? The blockchain antitrust paradox
(June 11, 2018). 3 Geo. L. Tech. Rev.
(Forthcoming). p. 27. Disponível em:
https://ssrn.com/abstract=3193576. Acesso
em: 20 jan. 2019. ↵
58. SCHREPEL, loc. cit. ↵
59. JUSTL, J.; KIM, K. H.; KOHLMEIER, G. Z. A.
Blockchain: challenges and opportunities for
antitrust compliance. American Bar
Association. Compliance and Ethic Committee.
Special Report. mar. 2018. ↵
60. A essas licenças compulsórias no caso de
patentes essenciais dá-se o nome de FRAND
(Fair, Reasonable, and Non-Discriminatory). ↵
61. Ibid., p. 29-30. ↵

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