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Introdução
de, por sua vez, do foco de cada ahordagent Os movimentos insurrecionais da se«
gunda metade do século XVIII, entre os quais se destaca a Inconfidência Mineira,
gtiardariam ou não alguma relação de continuidade com o processo separatista for—
malmente consolidado em 1825?
I debate antigo determinar qual teria sido o “caráter“ da independência, se
coi'iservadora, relbrtnista ou revolucionária. Em outras palavras: o que haveria de
ruptura e o que de continuidade no processo de independência? Quanto à inserção
do Brasil no contexto internacional da chamada “crise do antigo sistema colonial”,
interpretações consagradas sobre os efeitos dessa crise no processo de independên—
cia vêm sendo ultimamente constestadas. () processo político foi razoavelmente
escrutinado, mas as novas abordagens derivadas do crf/mm! tum na historiografia
têm permitido aos historiadores aquilatar melhor a significância de outros fatores
decisivos e ate' recentemente negligenciados. Por exemplo, que peso se deve atri—
buir as radicais trainformações culturais geradas pela abertura de l808 e pelo afluxo
de levas de migrantes de todos os pontos? Ou às transformações civilizacionais
vividas pela população do Rio de janeiro, geradas pela presença e pelas demandas
do rei na arte, na ciência, na educação, nas melhorias urbanas? Atesta—o a criação
do que se poderia chamar de uma “esfera pública" — ou pelo menos o surgimento
de uma opiniao publica «——, de que é. rico testemunho o caloroso debate na im—
prensa nascente.
Novas dúvidas foram levantadas sobre o caráter dos movimentos insurrecionais
ocorridos durante os anos da independência. O período de turbulências regionais
que se seguiu it :il'>clicaçã() de d. Pedro I levou alguns a concluírem que a independên—
eia não estaria totalmente completada senão a partir do desmantelamento dos movi—
mentos contestatorios da primeira metade do seculo XIX, confundindo-se aqui in—
dependência com construção da nação. Este c- um ponto controverso. que aguarda
mais pesquisa e debate. () mesmo pode ser dito do papel desempenhado por parti»
dos e ideologias no contexto da independência.
Se um longo caminho foi percorrido no entendimento das relações entre o movi—
mento de restauração de 1820 em Portugal e a independência do Brasil. o papel desem-
penhado pelo rei e sua casa dinástitn foi praticamente ignorado pela historiografia nas
últimas três décadas., como se as interpretações dos antigos I'iistoriadores nos bastassem
ainda hoje. Novos estudos apareceram sobre a ação de grupos organizados, como a
maçonaria, por exemplo, ou sobre a participação popular no movimento de indepen—
dência. lissa ênfase na história das classes subaltcrnas É. outro desdobramento do (“film-—
171/[2177'2 iniciado nos anos I960. lista última questão sobre a participação popular na
independência, sequer levantada até uma geração atrás, é caríssima à historiografia
Esboço critico da recente bistoriogzafia sobre & mdepcndêncta do Brasil 21
social mais recente e longe está de ser resolvida. Como agiram ou reagiram os grupos
sociais nas diferentes províncias?
Velhas questões que pareciam esgotadas & que insistem em reabrir, como feridas
quc não cicatrizam. Pois o tema da independência ainda divide opiniões históricas c
nutre paixões políticas. A história é viva.
Vciamos a seguir que tratamento rcccbcram da historiografia algumas dessas
questões nas duas últimas décadas.'
No levantamento qua fiz da historiografia da indcpendéflcia.3 dividi essa pro-
dução em cinco períodos, assim didaticamcntc distribuídos:
l Elaborci um primeiro ensaio sobre a riqucza critica da historiografia da indcpcntiência cm Mal—Ctba, 2004.
Para escrever o texto que. sc segue. bcnc'ticici—me grandemente dt: Coma, 2004. Um excelente balanço crítico
da historiografia americana (c brasileira!) sobre a indcpcndéncia do Brasil encontra—sc cm Kraav, 2004. listcs
dois últimos ensaios estão cm vias de publicação nos anais do Seminário Internacional Independência do
Brasil: História t: Historiografia, realizado na USP cm 2003.
lHirata—sc dc pesquisa em andamento na qual se incluem tão-somente obras históricas cujo objeto tª () proces—
so de emancipação política do Brasil. não al'iortlando, portanto. outros gêneros, como literatura ficcional.
livros didáticos, histórias gerais etc.
3 Ver l.,ima. 19-45.
‘l Ver Varnhagen, sd. Pronta desde 187. a [*]/miria (1/1 [liz/qimdtªucid foi publicada postumamente apenas
em Wio, por iniciativa do IHGB, ia no marco das comemorações do primeiro centenario.
22 A independe—“ªmeia brasneiia
com Oliveira Lima assiste—se à inclusão de aspectos sociais e culturais decisivos parao
processo de independência, até então negligenciados no debate historiográfico.S
() quadro anterior permite perceber claramente que a produção histórica sobre
a independencia tem dois momentos fortes no século XX. nos anos que precedem e
sucedem, respectivamente, as efemérides do centenário oficial (1922) e do
sesquieentenário (19,72), quando um volume imenso de títulos veio a lume. Essas
duas datas —— ou as efemérides em torno delas —— imantam a produção historiográfica
e definem & periodização mais ou menos arbitrária que construí com objetivos mera—
mente heurísticos. Os meados do século XX assistiram a uma relativa desaceleração
dessa produção, que marcou igualmente os anos 1980. Na década de 1990. sobretu—
do a partir de sua segunda metade, nota-se uma significativa expansão dos estudos
l'tistórieos sobre a independência. () foco da presente análise e' justamente essa pro—
dução mais recente, desde o inicio da década de 1980 ate' 2002.“
1:in‘1borz1 sua qualidade aguarde ainda avaliação mais cuidadosa, () boom
l'iistoriográlieo dos anos 1970 registrou a publicação de mais títulos sobre o tema da
independência do que toda a produção precedente. Comparativamente as décadas
de 1960 e 1970, muito pouco foi produzido durante os anos 1980. Basta lembar
que. entre os ?ª) títulos inicialmente encontrados entre 1980 e 2002, há inúmeras
reedições, de modo que a bibliografia efetivamente nova contabilizada reduz—se a 66
titulos, seis dos quais publicados pela Revista do Instituto Histórica (* Geográfico Brasi—
Mm. Dos 60 volumes restantes. apenas três datam da década de 1980" e somente 1 1
são anteriores a 19515. Ou seja, a maioria esmagadora da produção historiográfica
sobre a independência nas duas últimas décadas, cerca de 85% dos títulos, coneen«
transe no ultimo lustro do periodo.
Essa produção dos ultimos .20 anos será o foco da análise a seguir. Deixemos de
lado, por um momento, as razões de tal fenômeno, da eclosão desse 1900711 sobre a
independência, e olhemos para o que tem sido publicado. Que questões têm insciga—
(' (lube o registro, tzontutlo que l), Mm) V! W) Brasil, de Oliveira lima. embora fundamental para o entendi—
mento da independência, (entras: no periodo jozinino. Seu () mmimmm {AZ independência pode ser ineluitlo
na mesma linhagem interpretativa que marea (: século XIX.
(ª A mdussnr meu argumento de uma eres/tente retomada de interesse sobre a independência, o qual levou n
um relativo Amim no ultimo lustro. estao os dois eventos realizados em 2003 sobre o tema. () history zuarkr/m/v
Neuf xlp/nm/r/m tu tmn/W Ínrfcymu/mrr, realizado na Universidade de Oxford, em ?.“) e 50 de maio. patro-
cinado pelo Centre for Brazilian Studies daquela instituieão (o conjunto de ensaios reunidos nesta coletânea
(: fruto daquele debate)» e o Seminário Internacional independência do Brasil: História e Historiografia,
realirtitlo em setembro pela USP evento de grandes dimensoes que reuniu eerea de 40 especialistas de vários
países
' "lodos de autores nito-l'uxisileiros: ver Barman, lªl88; Proença 199"; c Silva, 1988.
Esboço critico da recente historiografia sobre a independencia do Brassl 23
Nação
& Kenneth Maxwell, por exen'vplo, entende ”d lnconfidência Mineira como um movimento nacionalista. lim
Maxwell (1986: l/íl e segs.) propôs—se a pensar a seguinte questão: “Mas por que é que. em fins do seculo
XVlll, Minas Gerais foi a base do primeiro mall/menu» alm'urimmmtc naciumr/irm da América portuguesa?
Uma revisão minuciosa da historiografia da inconfidência desde o século XIX encontra—se em Furtado. 2003.
" Ver Novais e Mota. 1996115,
W Ver Lyra, 1995.
24 A independéncua brasileira
“ Ver Silvas WºW. Sobre o papel do "patriarca", ver também uma compilação de documentos em Dolhnilx'olli
lªlªlo.
Esboço critico da recente historiografia sobre a independência do Brasri 25
13 (Mums trabalhos recentes admitem o surgimento da nação antes ou durante o processo de independência.
(il—. Fernandes, 2000.
H Ribeiro, 2002.
15 Buena 1978. Ver também Meneses. 1973), 1977b e 19776: e Saes, 1983.
26 A independência brasileira
lí'Ribeiro,20112119.
l»: (imitam, 21101. Originariamente publicado como Constructing a nation in nineteentliocentur_v Brazil:
old and new visions on Class, culture. and the State. WHj/vzmrmz/oft/wsz/cn'im/Sat/17111, v. 1 . n. 2/5. p. 1156,
200 ll lflilixzxrci as cimgoes da traduçím brasileira.
Esboço critico da recente historiografia sobre a independência do Brasil 27
Com Sérgio Buarque de Holanda e, em sua linha. Maria Odila da Silva Dias e
josé Murilo de Carvalho“% a historiografia começou a atentar para a complexidade
daquele fenômeno histórico, a partir da apropriada consideração. nele, de aspectos
correlatos que devem ser inseridos na análise da independência, como a construção
do Estado imperial e a formação da nação brasileira. Pode-se datar do texto de Maria
Odila Dias o início das periodizações que, guardando aquelas referências, estendem
o processo de independência ate' 1848 e além.
Em texto recente, István ]ancsó e joão Paulo Pimenta cnveredam por tais Cinha-—
tes historiográficos. A partir da análise dos discursos dos deputados brasileiros nas
cortes constituintes de Portugal, os autores procuram demonstrar a complexidade do
fenômeno de emergência de uma “identidade nacional”. como se preiigura na dife—
renciação conceitual dos termos pátria. país e nação. veiculados naqueles discursos.
() primeiro estaria mais vinculado ao lugar de origem; “país” equivaleria a unidade
envolvente dessas províncias; "nação“ seria um conceito mais t—ugidio, pois escaparia de
pix/x e pátria. Uma nação “brasileira“ inexistia ainda quando das cortes constituintes.
)ancsó e Pimenta argumentam que o processo de construção da nação —— e, por
extensão. de consolidação da independência —~ se arrasta por pelo menos toda a
primeira metade do século XIX, ou até pouco mais além, como corroboram os mo—
vimentos insurrecionais eclodidos nas províncias. Sua hipótese é de que a instauração
do Estado brasileiro precede a difusão de um “espírito ou sentimento nacional"
(a expressão é minha), pois convive. de início, com um feixe amplo de diferenciadas
identidades políticas, com trajetórias próprias e respectivos projetos de futuro.
Os autores afirmam, com propriedade, que não se pode. reduzir o processo de
formação do Estado a "ruptura unilateral do pacto político que integrava as partes da
América no império português”.
Os autores indicam em nota, com acerto. que foi obra da historiografia impe—
rial, em meio às crises recorrentes de afirmação do império. procurar conferir ao
listado uma idealizada sustentação por meio do “resgate“ do seu passado imediato,
do que resultou a elaboração do mito da “fundação tanto do Estado como da nação”
a partir do rompimento com Portugal.20
Se atrelarmos a independência ao processo de consolidação da formação da na-
cionalidade brasileira, pode—se encontrar argumentos para alirmar que a independên—
cia e até hoje, parafraseando Carlos Guilherme Mota, uma “viagem incompleta“. Têm
razão autores como Maria Odila da Silva Dias, llrnar Mattos e todos aqueles elencados
por ]ancsó e Pimenta, ao compreenderem que a wmmtçáo (Í/z nação e processo que se
arrasta, pelo menos, por praticamente toda a segunda metade do século XIX. Mas este
não pode se confundir com a formacao do Estado e, menos ainda, com a independên-
cia do Brasil de Portugal, o processo da enmnrzjrzzçãopolítzm (artur/eim. E é esse o proces—
so que nos interessa. A questão para a qual aqui se busca resposta é: por que aconteceu,
do modo e no momento em que se deu. a separação de Portugal e Brasil?
Unidade
20 lª, apontam para as correntes historiográficas que sustentaram as múltiplas possibilidades históricas inscri-
tas no momento do surgimento do listado livre brasileiro. desde Caio Prado _lr. (198.3) até hoje. A historio—
grafia da formacao do l'stado e da nação no Brasil recebeu recentemente contribuições de alta qualidade.
acrescidas aos trabalhos iii clássico», de Sérgio Buarque de Holanda (1970) e de Maria Odila leite da Silva
Dias (Wª—2) ou llrnar R. de Mattos (1987), llzl historiografia revelou a alto complexidade do tema. Um
balanço dessa» perspectiva» encontra—se em _lancsó e Pimenta (3000: 15 l — l "ª), e na coletânea citada (lancsó.
ZUUÉSZL que reúne os ensaios apresentados em congresso homônimo. Ver também Berbel, HQ“); Souza, lªlªlªlz
Batman. 1988; Santos. 19192; c, (illiveira, 199". entre outros.
Esboço Critico da recente historiografia sobre a independência do Brasil 29
(...) no tempo do rei velho o país parecia organizado como uma “espécie de fede—
ração, embora a unidade nacional devesse, ao contrário. ser mais favorável aos
progressos de toda ordem". Essa unidade, que a vinda da corte e a elevação do
Brasil a reino deixam de cimentar em bases mais sólidas, estará ao ponto de esface—
lar—se nos dias que imediatamente antecedem e sucedem & proclamação da Indo
pendência. Daí por diante irá lazer—sc a passo lento, de sorte que só em meados do
seculo pode dizer—se consumada.
Evaldo Cabral de Melo endossa a mesma tese, assim como Graham, no ensaio
já mencionado. Para este último, reiterando proposição clássica de Oliveira Lima, a
chegada da corte representou um marco definitivo da independência do Brasil. Mas
o “Brasil“, em si, sequer existia. De acordo com Graham, independentemente do
desejo de liberdade que nutriam as pessoas das diferentes províncias em relação a
Portugal, a ninguém agradava a ideia do poder centralizado no Rio de Janeiro.
A unidade, nas colônias, não era assegurada por qualquer suposta identidade
nacional, mas pela eficácia da burocracia de Estado metropolitana, conforme de—
monstraram Afonso Carlos Marques dos Santos (1992zl4l) e István Jancsó
(2002210).
Enfim, compartilho da periodização proposta por Sérgio Buarque de Holanda,
corroborada por Evaldo Cabral de Melo, que distingue a independência, entendida
como processo de emancipação política (que se pode situar entre 1808 e, no máxi—
mo, 183 l ), do processo de construção do Estado imperial (que, sem dúvida, se inicia
nesse interregno, com as atividades da Assembléia Constituinte em 1823, a outorga
da Carta em 1824 e a aprtwação do Código Criminal em 1850“) e da formação de
uma nacionalidade brasileira, esta ainda mais posterior. Não obstante, concordo em
que tais processos são umbilicalmente ligados e que a independência não estaria
consolidada antes da finalização da construção do Estado (vale lembrar que o Códi—
go (.Éomercial, simulacro de um Código Civil que só aconteceu na República, e de
“ Para uma contextualimçao desses primordios da estruturaçao do hstado imperial, ver Carvalho. 1981 e
W88; lNlaletba, 18194; e Saes, NS?
Esboço critico da recente historiografia sobre a independência do Brasil 31,
18505) e da difusão de uma concepção de nação (muito beneficiada por nosso ro—
mantismo nativista).
Periodização
O olhar mais atento aos registros da imprensa ou aos discursos politicos sobre os
acontecimentos de 1 822, e sobre as repercussões ocorridas na sociedade da epoca,
ZS Saul. WS“).
2“ Rodrigues. 1975, v. 3‘ p. 255.
32 A independência brasrleira
“Caráter” da independência
()ra. colocada a questão nessa dicotomia, fica de fora um terceiro caminho, que
precisamente nos parece o mais acertado: encarar a independência como momma;
inicial de um longo pzwm‘o de ruptura, ou seja, a desagregação do sistema colonial
e a montagem do listado nacional.
If Cf. tese de doutorado da Kirsten Schultz. pela NYU cm 1998. publicada como Schultz, 2001: Sou/n.
1999: Schwartz, 1998; Sleiman, 2000; Malerba, 2000: e Lope/.. 2001,
38 l'lolanda, 197015, grifo meu.
34 A independencia brasileira
Mas há uma face oculta nesse ponto. Aceitando-se que d. João tenha sido
desafiado quanto às dimensões de seu poder pelos vintistas, pode—se entender a
independência do Brasil como um momento dessa queda—de—braço. Os liberais de
1820 dcflagmram um verdadeiro golpe de Estado contra o rei, ao lhe imporem a
aceitaçãt') de uma (,Íonstitnição ainda por ser feita e seu retorno incondicional ao
reino, assim como u retomada da pauta de discussões sobre as relações bilaterais
entre Brasil e Portugal.-“' Por seu turno. o contragolpe do rei foi desferido contra as
cortes vintistas, um verdadeiro “contragolpc” de listado, ao aceitar a Constituição
e o retorno, mas mantendo o príncipe herdeiro no Brasil. Esse tito sinalizou Clara—
mente que o custo do ;ieinte dos revolucionários vintistas seria a perda definitiva
da colônia um preço caríssimo para os portugueses. Por outro lado, d. Pedro era
herdeiro de d. joão c, morrendo o pai, ironicamente corria Portugal o risco de ser
colonizado pelo filho.
Até então as discussões caminhavam bem, no sentido da construção de um
novo império liberal transoceânico. A pressão dos grupos brasileiros para a permw
nênciit do príncipe e a ferrenha oposição a esta por parte das cortes de Lisboa podem
ser tomadas como o turning“ [mim da separação. A partir daí as possibilidades de
entendimento tornaram—se cada vez mais distantes. A partir daí, também, a capaci—
dade de arregimentação e liderança de Bonifácio foi decisiva para a unificação dos
discursos dos diversos grupos de interesses localizados no Brasil e, doravante, reves—
tiu-se o príncipe de papel político que até então lhe era totalmente estranho. A
simbologia construída em torno do “Fico” serve—lhe de testemunho.
Um segundo momento, este sim derradeiro, deu—se nos embates dentro das
cortes em Lisboa. Em certo sentido, faz nexo a afirmação de Maxwell (1986:587) de
que “o verdadeiro movimento pela independência da colônia verificou—se na Europa.
e foi ele a revolução portuguesa de l820". Foi a ela que d. ]oão respondeu com um
golpe de Estado, franqueando & independência às elites brasileiras com o preço de
nuuuer—se I). COYOQ CII) 51111 ($3521,
)! » « . . . . .. . . ,
"" ltmboru nao se tratasse nuns de restdtnur A antiga condiçao colonial. completamente intznigtvel naquele
mmnento, como promm tis pesquisas mars recentes de Márcia Berbel.
Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência do Brasil 35
Camadas populares
Leslie Bethel] (19851166 e segs.) ia afirmara certa vez que. a independência foi
obra das elites, de segmentos superiores oriundos de ambos os lados do Atlântico.
Trata-se de questão fartamente trabalhada pela historiografia, mas que, ainda sim,
gera controvérsias.
Contundente —— e menos simpático em função de seu aspecto aparentemente
conservador —- é o entendimento de Manuel Correia de Andrade (1ª)ª)ª):65) de que
“o povo não img/Quin das cºnquistas da 171zl€pemlênríd, poixfiu’ um movimenta de dim
para elites”. Conforme mencionado anteriormente. José Honório Rodrigues designa
como ortodoxos e conservadores os historiadores que datam o início da independên—
cia ao tempo da chegada da corte ao Brasil. Tal entendimento negaria o caráter revof
lueionário da guerra da independência, deixando prevalecer o papel desempenhado
por d. joão e () decorrente carater elitista e conciliatório do movimento. Contrarian»
do os rótulos de josé Honório Rodrigues, diria que conservador não é o historiador
36 A independe—neta braseleita
que atribui peso a obra de d. _loão, nem quem relativiza o papel desempenhado pelo
povo. Conservador foi o processo em si?"
Mas o assunto e polêmico e, nas duas últimas décadas, não se avançou muito no
conhecimento do papel desempenhado pelas classes populares —— escravos, libertos,
homens livres pobres —-—— no processo de independência. Por exemplo, os esforços de
Gladys Sabina Ribeiro no sentido de enquadrar a participação popular no movimen—
to de independência acabam pintando o cenário com tintas estranhas ao quadro. Em
seu xl fibe‘z'dddc’ em mmtrzrgúo, a autora procura situar a participação do "povo”, que
sempre surge em seu texto entre aspas e em caixa alta. Mas definir quem era esse.
“povo" torna—sc tarefa malgrada. Vfr-se nos documentos de época “o povo“ assinar
manilestos, posicionando—se contra ou a favor a independência. o povo contra ()
pOVO. liílllírl saber quem ÉbchVlH em [101116 do pOVOl
() “Povo” tinha bastante nitidez quanto aos seus objetivos e sabia as potencialida—
des do país, lançando da mesma forma mão da ameaça. (...) O “Povo" era por
demais organizado. linha em mente. principalmente, os problemas econômicos.
q ue lvodiam abalar ;] “sevurnn'n”
:— ªc e a “atos P cªridade" do Reino.
Gladys Ribeiro (2002138 e segs.) acaba por concluir que o “Povo“ era o “partido
brasileiro”, que pugnava pela preservação da unidade pela Via monárquica e constitu—
cional.
lá Os estudiosos da escravidão avançaram um passo largo na mesma problemática.
Em ensaio muito citado, publicado em 1989~ joao jose Reis analisa a participação dos
negros nas lutas pela independência na Bahia. Para Reis, além dos tradicionais parti—
dos políticos, outros agentes disputavam interesses nas lutas da independência. É o
caso dos escravos, que a viam como uma possibilidade de alcançar sua alforria. A
indeterminação posterior ao contexto turbulento da revolução do Porto, que na Bahia
gerou forte reação militar ao 7 de setembro por parte das tropas portuguesas, possi-
bilitou () surgimento de um cenário tal que permitiu “AOS escravos participarem de
discussões sobre questões candentes como liberdade política. Sem duvida, em suas
pesquisas pioneiras sobre os caminhos da liberdade no Brasil escravista, joão José
7)" Essas linhagens historiográficas; uma que entende a independência como processo revolucionário e outra
que não. perduram. Nu linira de Honorio Rodrigues. Ver Diegues (2004). Nessa obra, a independência é
analisada pelo viés da C.Stmíógiil e dri guerra e, nela, se encontra a ação de Bonifácio, rejeitando o “mito"de
uma independência incritenttt,
Esboço critico da recente historiografia sobre a independencia do Brasrl 37
Esse é ponto central para mim. O ensaio de Kraay trata com propriedade a
questão de como a independência. indiretamente, pela via do recrutamento (ou por
outras vias mais sutis, como a boataria, o imaginário) mexeu com assuntos delicados
como a condição dos cativos e os horizontes de liberdade que a guerra suscitara. Mas
a via contrária não faz parte de seu objeto, nem de outros estudos que eu conheça: em
que ”Hªdid/I a escravidão. enquanto instituição. e os era/war, enquanto grªu/)() 01; classe
sacia/, contribuíram para o processo de independência do Brasil ante Porn/gaff Isso é
muito diferente de se analisar os vários grupos sociais ou camadas populares a época
da independência, ou como a independência incidiu em suas vidas. Sem dúvida, os
trabalhos de autores como Reis, Kraay e Luiz Geraldo Santos da Silva“ contribuem
*“ Ct. Reis. 198917938. Para uma abordagem mais ampla do papel da Bahia no processo da independência
ver Wª'isiaki 2001.
32 Kraay. 3002.
33 Ver os capítulos 10“ de Kraziy, e l l, de Silva, neste livro.
38 A Independénoa brasileira
O “sentido” da independência
Nas próximas duas seções vou tentar sintetizar, numa abordagem ampla, () que
me parece ser o mote (zine fez avançar as interpretações sobre a independência e o
caminho a seguir para continuar esse avanço. Nesse sentido, talvez seja necessário um
deslocamento do eixo da discussão do plano historiográfico para um plano um pou—
co mais estritamente teórico.
Não parece exagero afirmar que 0 enquadramento teórico predominante e mais
influente na historiografia da independência, pelo menos desde os anos 1960, e' aquele
derivado da abordagem de Caio Prado lr. Partindo de um ponto de vista marxista,
ele procurou entender o “sentido" da colonização, inserindo a história do Brasil num
contexto senão planetário, pelo menos ocidental. A história do Brasil explicar—seda,
nessa ética, como um derivativo da história européia, no contexto da expansão do
capitalismo comercial. Nessa tese jaz a base das teorias da dependência.
Quem melhor definiu a independência a partir dessa perspectiva foram Fernando
Novais e Carlos Guilherme Mota, no já clássico 18.22.“ dimensões, organizado por
Mota (1972). Para Os professores da USP, e a subordinação do Brasil a um sistema
econômico mundial, unilicado sob o capitalismo comercial, que dá sentido ao curso
da independência.
(...) qualquer estudo que vise uma síntese compreensiva da emanciapação política
da América portuguesa {dew} situar o processo político da separação colônia—
metrópole no contexto global de que faz parte. e que l/Jf dá sentido; e, só então,
acompanhar o encaminhamento das forças em jogo, marcando sua peculiaridade.
(Novais e Mota, 1996: 17, grifo meu)
tigo Regime são dois aspectos derradeiros, são o pano de fundo da cena histórica.
Para usar a metáfora teatral, o pano de fundo enquadra, estabelece os limites em que
agem os personagens, mas absolutamente não lhes determina as falas e ações. É um
equívoco teórico procurar explicar um fenômeno eminentemente político com ex—
plicações macroestruturais de longa duração. E usar a ferramenta errada, como atirar
um míssil para derrubar uma ave. A política, como ensinou Gramsci (1975), e o
lugar da luta dos grupos e indivíduos, onde projetos e desejos individuais e coletivos
digladiam—se por estabelecer uma hegemonia. Se fôssemos buscar as razões (o sentir
do, por que não?) da independência em movimentos estruturais de longa duração.
poderíamos então atribui—la a queda do lmpério romano, precursora da formação da
sociedade feudal, da qual a crise do Antigo Regime marca () ocaso.
Trata—se de uma interpretação engessada em quadros interpretativos de ferro,
que retiram do processo histórico toda a cor e todo o brilho das relações sociais
vividas pelos agentes. Um processo eminentemente social e político torna-se uma
derivação de um macroprocesso econômico. (f) conceito de “sistema", com seus me—
canismos, deságua numa estrutura rígida, como o autômato de W'alter Benjamin"l
ou as maquinarias com que Thompson (1978) ironizou Altltusser:
“ Benjamin, 19911245—255, Uma excelente, interpretação das “teses“ de Bcniamin encontra-se em Cardoso
lt., 199651430.
40 A independenma brasaleua
“' 'lal interpretação inlluentiou enormemente e continua a influenciar a historiografia brasileira. Ana Rosa
(Í. Silva (1999161) e If)”; e um exemplo. entre varios.
3“ Ver Braudel, 1983; e W'alletsrein. lºl“), 1984 o 1989.
3" Á hrlvliogralia sol—re u problema das mas/m' ”Amyr/(Jr's é imensa. Uma boa compilacao do debate é Roberts,
Zillli Ver também Rosen, 1990. às críticas de historiadores e filósofos pós-modernos e póslcolonialisras
tratam diretamente do assunto. Ver (Írowell, 19138: Klein. 19973; e Nandy, N93.
Esboço critico da recente historiografia sobre a independência do Brawl 41
38 _lancsó, lelllzó.
PM Silva* l98í). V. 8, p. 405. 'llimbém Lyra, lª)()4:l93; « Silva, 20()():2‘)1 e segs,
42 A mdependénaa brasileira
rão. () manuseio desse tipo de fontes (periódicos e panfletos) não pode prescindir do
imperativo da dúvida pirrônica. Não e' possível se aproximar do contexto de enunciação
de seu sentido sem se duvidar, a princípio, do teor do que e veiculado, único modo
de se evitar o chamado “fetichismo do objeto“. As ideias, numa guerra, são armas que
são utilizadas conforme o calor da batalha —— e o historiador tem que ter o distancia—
mento critico necessario para não se deixar corweneer pela retórica da época. () fato
de que pessoas se diziam republicanas, ou mesmo por vezes defendiam em panfletos
teses “libertárias”, não faz daquelas pessoas republicanos ou libertários. Nesse parti—
cular, foi Isabel Lustosa quem melhor apreendeu o sentido das práticas de jornalistas
e panfletários na época da independência.
() maior grau de adesão do auditório ao que se discursa faz parte dos méritos ( o
bom orador, independentemente do maior ou menor grau de verdade contido na
mensagem que se propõe transmitir. (...) Tal como o pregador do alto do seu
púlpito, encarando sua platéia e apurando a garganta para soltar a voz, () iornalisrta
defronte da escrivaninha apontava sua pena de pato e pensava na reação de quem
iria ler as linhas que lançaria sobre o papel. Sm objetivo, principalmente naquele
momento em que se dividiam tão radica/mente as apimfio’ex, em gmzlwr para sua mum
0 púb/ía) leitor. “”
Não e' dizer que aqueles homens a quem Leite categorizou de republicanos e
libertários, como _loaqui m Ledo, Januário da Cunha Barbosa, José Clemente Pereira
e _loâo Soares Lisboa, não acreditassem nas palavras. teses e estratégias que professa-»
vam. Mas parece faltar maiores investigações sobre os motivos que levaram homens
de ideias tão claras e determinadas a mudar de opinião, sem qualquer vacilo. em
determinadas circunstâncias. Não obstante, o livro de Lopes Leite traz uma contri—
buição fundamental ao debate, que precisa ser mais explorada, ao resgatar o papel
desempenhado pelos projetos perdedores no processo de independência.
Aquela dificuldade metodológica básica sobre a relação entre discurso, agente e
ato pode ser estendida a outras formações sociais gregarias da epoca. Quero dizer. as
pessoas não se engajaram contra ou a favor da independência apenas por professar
ideais republicanos ou monárqnico—constitucionais ou monarquico—absolutistas. Nem
porque pertenciam ou deixavam de pertencer a esta ou aquela confraria ou sociedade
secreta. () exemplo da maçonaria e' bastante feliz nesse caso. Alexandre Barata, em
Por Frm, duas palavras sobre o que este ensaio inclui e omite. Conforme procu—
rei mostrar, na última década os estudos sobre a independência avançaram significa»
tivamente no que respeita à discussão sobre nação, no conhecimento das in'iplieaeoes
do período joanino sobre a independência, a composição social dos partidos e facções
politicas, os debates nas cortes de Lisboa, o debate político na imprensa, sobre as di»
mensões simbólicas do poder e. em alguma medida,, no conhecimento da participação
das camadas populares no processo, particularmente no que se refere aos escravos.
As lacunas mais notáveis deste ensaio refletem as próprias opções e exclusões da
historiografia que ele analisou. Nesse sentido, parece-me que. nos próximos anos, os
historiadores da independência deverão se voltar para esses e outros temas ultima—
mente neglicenciados. Assim, necessitawse de mais pesquisas sobre a participação
popular na independência. O papel diferenciado das diversas províncias, particular»
mente Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia e Para, merece maior atenção. 'l'alvez
em função do rºu/zum! mm nos estudos históricos nos últimos anos, muito pouco se
avançou em campos mais “tradicionais”, mas igualmente importantes. como, por
exemplo, na história militar do período. Do mesmo modo, a hisrória diplomática,
particularmente no que se refere ao papel desempenhado pela Grã—Bretanha no pro-'
cesso de emancipação política brasileira, aguarda maiores avanços. Por fim, o deseo—-
nhecimento mútuo das historiografias brasileira e hispano-Aamericanas persiste e muito
investimento em pesquisa e intercâmbio acadêmico ainda tem que ser feito para se
construir um quadro amplo do processo de independência na América Latina. Ana'—
lises comparativas entre o mundo hispânico e a América portuguesa praticamente
inexistem.“
Bibliografia
ALENCASTRO. Luís Felipe de (Org.). Império: a (form [a (l mndvrnitM/le. São Paulo: ('Íompa-
nhia das Letras. 1997. 525p. (História da vida privada no Brasil, ll.
ANDRADE, Manuel Correia de. Os projetos políticos e a independência. ln: fls rir/zu; do
separatismo. São Paulo: Unesp, 1999.
livro.
“ lacuna a ser minimizada com o texto (ie Anthony McFarlane que compoc () capitulo il deste