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IS BN 85 - 7431 - 197- 9
9 788574 311975
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
Reitor
Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Vice-reitor
Pe. José Ivo Follman, SJ
Hibridismo cultural
Peter Burke
Diretor
Pe. Pedro Gilberto Gomes , SJ
Conselho Editorial
Alfredo Culleton
Carlos Alberto Gianotti
Pe. Luis Fernando Rodrigues. SJ
Pe. Pedro Gilberto Gomes, SJ
Vicente de Paulo Barretto
EDITORA UNISINOS
Coleção Aldus
18
© 2003 Peter Burke
Título original: Cultural Hybridity, Cultural Exchange, Cultural Translation:
Reflections on History and Theory
Coleção Aldus
18
O símbolo ao lado é a marca do
Sob a direção de Carlos Alberto Gianotti
impressor Aldus Pius Manutius. A
Editor partir de 1501, numa época em que
Carlos Alberto Gianotti
Revisão
os livros eram caros e difíceis de
Renato Deitas manusear, Aldus iniciou a produção
Mateus Colombo Mendes
de livros com formato pequeno.
Editoração
Décio Remigius Ely Para diminuir o volume e o preço,
Capa encomendou do ourives Francesco
Isabel Carballo
Griffo um tipo de letra que permitia
um maior número de caracteres por página. Esse
tipo veio a ser conhecido como itálico.
A reprodução. ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que Hoje, o formato livro de bolso é o preferido
compõem este livro, para uso não individual, mesmo para f1ns d1dat1cos.
sem autorização escrita do editor, é ilícita e se constitui numa
pela maioria dos leitores do planeta. A EDITORA
contrafação danosa à cultura. UNISINOS, mediante esta coleção, em formato
Foi feito o depósito legal.
diferenciado e impressa em papel especial, procura
levar assuntos interessantes aos leitores por um
preço acessível.
Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
EDITORA UNISINOS
Av. Unisinos , 950
93022-000 São Leopoldo RS Brasil
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5
O EDITOR APRESENTA
7
Para Marco e Lara,
crianças multicu/turais.
SUMÁRIO
Introdução 13
1. Variedades de objetos 23
2 . Variedades de terminologias 39
3. Variedades de situações 65
4. Variedades de reações 77
5. Variedades de resultados 1 O1
Todas as culturas são o resultado de uma mixórdia.
Claude Lévi -Strauss
13
14 CoLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 15
Um dos sinais do clima inte lectua l de nossa zen, ao Kung Fu nigeriano ou aos filmes de
época é o uso crescente do termo Bollywood (feitos em Bombaim e que misturam
"essencialismo" como um modo de criticar o canções e danças tradicionais indianas com
oponente em todo tipo de discussão. Nações , convenções holly- woodianasJ. Este processo é
classes sociais, tribos e castas têm todos sido particularmente óbvio no campo musical no caso de
"descontruídos" no sentido de serem descritos formas e gêneros híbridos como o jazz, o reggae , a
como entidades falsas. Um exemplo salsa ou o rock afro-celta mais recentemente 3 .
inusitadamente sofisticado dessa tendência é o Novas tecnologias , inclusive a "mesa de mixagem ",
livro Logiques métisses (1990J, do antropólogo obviamente facilitaram este tipo de hibridização.
francês Jean-Loup Amselle. Amselle, especialista Portanto não é de causar espanto que te-
em África Ocidental, defende que não existem nha surgido um grupo de teóricos do hibridismo,
coisas como tribos , como os fui as ou os eles mesmos muitas vezes de identidade cultural
bambaras. Não existe uma fronteira cu ltural dupla ou mista . Homi Bhabha, por exemplo, é um
nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo indiano que foi professor na Inglaterra e que hoje
contrário, um continuum cultural. Os linguistas está nos Estados Unidos. Stuart Hall, nascido na
há muito vêm defendendo o mesmo ponto de vista Jamaica, de ascendência mista , viveu a maior
a respeito de línguas vizinhas como o ho landês e o parte de sua vida na Inglaterra e descreve a si
alemão. Na fronteira, é impossível dizer quando mesmo como sendo "culturalmente um vi-
ou onde o termina holandês e começa o alemão. ra-latas, o ma is perfeito híbrido cultural " 4 . len
A preocupação com este assunto é natural Ang se descreve como " uma acadêmica etnica-
em um período como o nosso, marcado por mente chinesa, nascida na Indonésia e educada
encontros culturais cada vez mais frequentes e na Europa que hoje vive e trabalha na Aust r ália " 5 .
intensos. A globalização cultural envolve Comparado com estes teóricos, Nestor Canclin i,
hibridização 2 . Por mais que reajamos a ela, não que cresceu na Argentina mas vive no Méxi co,
conseguimos nos livrar da tendência global para a nem parece ser uma mistura. Por outro lado ,
mistura e a hibridização , do curry com batatas Edward Said , palestino que cresceu no Egito , é
fritas - recentemente eleito o prato favorito da
Grã-Bretanha- às saunas tailandesas, ao judaísmo
3 Georg ina Born and David Hesmondhalgh (edsl , Western Music and its
Dthers (8 erke ley an d Los Ange les . 2 000J.
4 Cita do em Chris Rojek , Stuar c Ha/1 (Ca mb r idge, 2 003). p. 4 9.
2 J an Neder veen Pieterse . ''Gioba lizat ion as Hybr idizat ion " . lnternational 5 len Ang . Dn No c Speaking Chinese: Living between Asia and the West (Lo n-
Sociology 9 (1994), p. 161-84. don . 2 001 J, p. 3 .
HIBRIDISMO CULTURAL 17
16 CoLEÇÃO Awus
um simples enriquecimento, esquecendo que às tro fez uma interpretação da história espanhola
vezes ela ocorre em detrimento de alguém . No que privilegiou os encontros e as interações en -
campo da música, por exemplo, especialmente na tre três culturas: a cristã , a judaica e a
música popular, os ocidentais têm emprestado muçulmanas.
de outras culturas, como da dos pigmeus da Áfri - Nos anos 1950 , o historiador britânico
ca Central , fazendo o registro dos direitos auto- Arnold Toynbee refletiu sobre o que ele já chama-
rais dos resultados sem dividir os royalties com va de " encontros" entre culturas, sobre a impor-
os músicos originais. Em outras palavras, eles tânc ia das diásporas e a natur eza da "recepção "
têm tratado a música do Terceiro Mundo como se cultural 9 . Ele dedicou dois volumes de seu Study of
fosse mais um tipo de matéria-prima que é "pro- History [Um estudo de história. Rio de Janeiro , W .
cessada " na Europa e na América do Norte 7 . M . Jackson, 1953) ao que chamou de "contatos
O preço da hibridização , especialmente na- entre civilizações" no espaço e no tempo , "confli-
quela forma inusitadamente rápida que é caracte- tos entre culturas" ou de "difração " de "raios
rística de nossa época, inclui a perda de tradições culturais " 10 . Diferentemente da maioria dos in -
regionais e de raízes locais. Certamente não é gleses de sua geração, Toynbee se interessava
por acidente que a atual era de global ização cu ltu- por todo tipo de s incretismo religioso. Ele regis-
ral, às vezes vista mais superficia lmente como trou uma experiência religiosa na National Gallery
"americanização", é também a era das reações de Londres , em 1951, na qual ele invocou Buda ,
nacionalistas ou étnicas - sérvia e croata, tútsi e Maomé e "Cristo Tammuz, Cristo Adônis, Cristo
hutu, árabe , basca e assim por diante. Gilberto Os íris" 11 .
Freyre louvou notavelmente tanto o regionalismo Algumas pessoas, que poderíamos descre-
quanto a mestiçagem, mas geralmente há uma ver como "puristas" , ficaram profundamente cho-
tensão entre eles. cadas com os argumentos de Freyre , de Castro e
Gilberto Freyre foi um dos primeiros schol- de Toynbee quando suas obras f oram publicadas
ars a dedicar atenção ao hibridismo cultural, em pela pr imeira vez. Hoje , pelo contrário, estamos
Casa Grande e Senzala, de 1933. Pouco tempo
depois, o sociólogo Fernando Ortiz fez o mesmo
em relação a Cuba. Nos anos 1940, Americo Cas- 8 Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (Rio de Janeiro , 19 33) ; Fernando
Ortiz, Contrapunteo cubano (Havana , 1940l; Americo Cast ro, Espana en
su historia (1 9 48l.
9 Arn old J . Toynbee, A St udy of Hist ory, vai. 8 (London, 1954), p. 274ft,
4 72ft, 48 1 ff.
7 St eve n Feld, "The Poet ics and Politics of Pygmy Pop". in Born and 1 O Toynbee, Study, vai. 8, p. 49 5.
Hesmondhalgh, p. 254- 79 . 1 1 Toyn bee , Study, va i. 1 O. p. 143.
20 CoLEÇÃO Awus H IBRI DISMO CULTURAL 21
preparados para encontrar a hibridização quase Em outros locais , a síntese parece ter sido
que em toda parte na história. Os historiadores invisível. Por exemplo, um estudo do cristianismo
da Antiguidade, por exemplo, estão se interes- nos primórdios do Japão moderno alega que os
sando cada vez mais pelo processo de "heleniza- chamados "convertidos" incorporaram símbolos
ção", que estão começando a ver menos como cristãos ao sistema simbólico nativo , produzindo
uma simples imposição da cultura grega sobre o uma religião híbrida às vezes descrita como kiris-
Império Romano e mais em termos da interação hitan, o jeito japonês de pronunciar a palavra
entre o centro e periferia 1 2. "cristão" 15 .
Por sua vez, historiadores da Renascença O assunto é vasto, mas este ensaio é curto.
estão se interessando mais do que antes pelas Ele oferece uma visão panorâmica de um territó -
contribuições bizantinas , judaicas e muçulmanas rio que é imenso , variado e disputado e tenta ver
para aquele movimento 13 . Em uma era de cristia- o atual debate sobre a globalização da cultura a
nismo ecumênico, os historiadores da Reforma partir de uma perspectiva histórica.
hoje estão mais dispostos do que antes a admitir Fernando Ortiz certa feita descreveu a cul-
a importância das trocas culturais entre católi- tura cubana como sendo uma espécie de ensopa-
cos e protestantes. E historiadores das missões do, ajiaco. Um livro sobre culturas híbridas pode
europeias à Ásia, África e América agora reco- facilmente se transformar em um prato seme-
nhecem que os "convertidos" não tanto abando- lhante, no qual os ingredientes , por mais variados
naram suas religiões tradicionais pelo cristianis- que sejam, são liquidificados e homogeneizados.
mo quanto fizeram uma espécie de síntese das No entanto, é certamente mais esclarecedor
duas religiões. Às vezes a mistura era óbvia para analisar a mistura do que fazer uma réplica dela.
os missionários, como no caso da "heresia dos ín - No que se segue, tentarei fazer distinções em ve z
dios" , a santidade de Jaguaripe na Baía em 1580, de tornar tudo indistinto.
estudada por Ronaldo Vainfas 14 . Por esta razão o ensaio a seguir será dividi-
do em cinco partes principais , unidas por sua ên-
fase na variedade. Em primeiro lugar, a variedade
de objetos que são hibridizados . Em segundo lu-
12 Arnaldo Momigliano. Alien W1sdom: the Limits of Hellenism (Cambridge ,
1975J; in, On Pagans. Jews and Chr istians CMiddletown, 198 7); Glynn
Bowers oc k, Hellenism. in Late Antiquity CCambridge , 199Dl
13 Peter Bu rke , The European Renaissance (Oxf ord , 1998), intr oduç ão.
14 Em Cat holics and Protes tant s, ve ja a obra pioneira de J ean Del umea u, 15 Erik Zürcher, "Jesuit Accommodation and the Chinese Cultural Impera-
Naissance et Affir mation de la Réforme (Paris, 1965J. Em The missions, tive", in David E. Mungello (ed.J The Chinese Rites Controversy CNettetal,
Serg e Gruzi nski , La colonisation de l'imaginair e (Par is , 198 8); Ronaldo 1994), p. 31 -64; lkuo Higashibaba, Christianity in Early Modern Japan:
Vai nfas, A heresia dos índios (S ão Paulo , 19 9 5). Ki r ishit an Be lief and Practice[ Leiden, 2 0 0 1 l , especially p. 29, 35, 38.
22 C o LEÇÃO Aw us
ARTEFATOS HÍBRIDOS
nios construíram sua catedral no século XIV, con- locais de templos incas e chegaram a usar pedras
trataram um arquiteto italiano, e o mesmo fize- das construções originais 1s.
ram os ortodoxos quando construíram uma nova Em menor escala , a mobília ilustra o mesmo
igreja no início do século XVII. Artesãos alemães, processo de apropriação e adaptação. De acordo
italianos e armênios contribuíram para a criação com Gilberto Freyre, as linhas retas e os ângulos
de um estilo híbrido de arquitetura que combinava dos móveis ingleses foram suavizados quando
elementos de suas diferentes tradições 16 . seus designs foram copiados no início do século
Alguns exemplos de hibridismo arquitetôni- XIX no Brasil , "O estilo inglês de móvel
co ainda conseguem nos surpreender , qu ando arredondando- se no clima brasileiro", em lugar
não nos chocar, como no caso das igrejas da das " linhas anglicanamente secas" . A mobília e a
Espanha com ornamentos geométricos dos sécu- cerâmica norte-americanas feitas por artesãos
los XV ou XVI , lembrando aqueles das mesquitas, afro-americanos transforma r am os modelos
feitos por artesãos que eram quase que certa- ingleses de forma semelhante 2o. Um caso mais
mente aberta ou dissimuladamente muçulma- consciente de auto-hibridização é o do chippendale
nos17. Por sua vez, na Índia do século XV, algumas chinês, um estilo de móvel inglês do século XVIII
mesquitas foram construídas por artesãos hin- inspirado na China.
dus que utilizaram fórmulas decorativas que ha- As imagens também podem ser híbridas,
viam aprendido em seus próprios templos 18 . Igre- como o historiador Serge Gruzinski mostra em
jas jesuítas de Goa a Cuzco empregaram arte- um estudo notável da arte cristã do Méxi co nas
sãos locais e combinaram estruturas renascen- primeiras décadas depois da chegada dos missio-
tistas itali anas ou barrocas com detalhes deco- nários. A maioria das imagens foi feita por arte -
rativos derivados de tradições locais, hindus , is- sãos locais imitando mestres europeus (como o
lâmicas ou incas. Em Cuzco, igrejas como a de irmão leigo flamengo fray Pedro de GanteJ ou mo -
Santo Domingo foram construídas nos m esm os delos europeus, como pinturas e gravuras . Cons -
ciente ou inconscientemente , os artistas locais
modificavam o que copiavam, assimilando tudo a
suas próprias tradições e produzindo o que às ve- diferentes tradições . Por exemplo, a razão para
zes é conhecido como arte "indo-cristã" 21 . que a Virgem Maria pudesse ter sido assimilada
Por sua vez, quando imagens ocidentais, es- com aparente facilidade a outras deusas, como
pecialmente gravuras, chegaram na China no final Kuan Yin na China ou Tonantzin no México, é que
do século XVI junto com missionários católicos ela representava um pape l essencialmente
como Matteo Ricci, elas ajudaram a transformar semelhante 23.
a tradição chinesa de pintura paisagista. Os ar- Outro tipo importante de artefato é o texto .
tistas chineses não se converteram ao estilo oci- As traduções são os casos mais óbvios de textos
dental- eles resistiram à perspectiva, por exem- híbridos, já que a procura por aquilo que é chama-
plo -, mas o conhecimento de uma alternativa a do de " efeito equivalente" necessariamente en-
suas próprias convenções para a representação volve a introdução de palavras e ideias que são fa -
de paisagens os libertou destas convenções e miliares aos novos leitores mas que poderiam não
permitiu que fizessem suas próprias inovações 22 . ser inteligíveis na cultura na qual o livro foi origi -
Duas questões gerais surgem com particu- nalmente escrito. Há também gêneros literários
lar clareza da discussão das imagens híbridas, híbridos. O romance japonês, o africano e possi-
embora elas tenham uma relevância muito mais velmente também o latino-americano devem ser
ampla. Em primeiro lugar, há a importância dos encarados - e julgados pelos críticos - como hí-
estereótip~s ou esquemas culturais na bridos literários e não como simples imitações do
estruturação da percepção e na interpretação do romance ocidental24.
mundo. No nível microcósmico, o esquema tem A linguagem de muitos "romances" africa-
uma função semelhante à visão de mundo ou ao nos, por exemplo, é característica . Um dos prin-
estado de coisas característico de uma cipais romancistas africanos do século XX , o nige-
determinada cultura. riano Chinua Achebe, descreveu sua linguagem
Em segundo lugar, há a importância do que como "um inglês alterado para se adequar a seu
poderiam ser chamadas de "afin idades" ou novo ambiente africano", que adota palavras e ex-
"convergências" entre imagens oriundas de pressões dos idiomas da África Ocidental ou do
pidgin ang lo-africano. Achebe situa a si mesmo mente novas são exemplos particularmente cla-
em um "cruzamento de culturas", a dos ibos e a ros de hibridização.
dos britânicos. O romance africano também se Por exemplo, a variedade de tradições cultu-
situa em um cruzamento de gêneros, que inclui o rais que contribuíram para a religião vietnamita
conto folclórico oral tradicional, o romance euro- Cao Dai, que fo i extremamente bem-sucedida nos
peu e, entre os dois, o equivalente africano dos anos anteriores ao estabelecimento do regime
folhetos brasileiros, os textos populares produzi- comunista, pode surpreender até os leitores bra-
dos entre a Segunda Guerra Mundial e a guerra sileiros acostumados com o sincretismo. Funda-
civil nigeriana na cidade mercantil de Onitsha. da em 1926, a organização da Cao Da i segue o
Não deve ser por coincidência que tantos roman- modelo da Igreja Católica , com um papa, cardeais
cistas africanos tenham s ido oriundos da região e bispos. Suas doutrinas, por outro lado , são uma
de Onitsha 25 . combinação de budismo com o taoísmo e morali-
dade confucionista. Dentre suas práticas , há o
uso extensivo de médiuns e sessões espíritas , de
forma que a Cao Dai pode ser descrita como uma
PRÁTICAS HÍBRIDAS forma de espiritismo no estilo de Allan Kardec.
Seu panteão de heróis inclui Jesus, Maomé, Joa -
na D'Arc e Victor Hugo. Talvez não devêssemos fi-
Práticas híbridas podem ser identificadas car surpresos com esta mistura , já que o Vietnã ,
na religião, na mús ica, na linguagem, no esporte, como o Laos e o Camboja , se situa no cruzamento
nas festividades e alhures. Mahatma Gandhi, por das culturas da Índia e da China e foi por um perío-
exemplo, foi descrito como tendo criado "sua pró- do colônia francesa 27 .
pria religião , uma mistura idiossincrática de As igrejas não são a única forma de
ideias hindus, islâmicas , budistas e cristãs" 26 . organizações híbridas. Governos também foram
Em um nível coletivo, algumas religiões relativa - descritos nestes termos. Por exemplo, um
especialista francês em questões da Áfr ica
descreveu os Estados deste continente como
"híbridos " no sentido de que são o resultado de
25 Tho ma s Br ückne r, .. Across t he Borde r s : Orality Old and New in t he Afri - uma mescla de formas ocidentais importadas e
can Novel .. . in Pet er O. Stummer and Chri stoph er Balme (eds l, Fusion of
Culturas? (Amsterdam-At lanta, 19 9 6) , p. 1 5 3-60 ; Emmanuel E.
Obi ech ina . An African Popular Literatura (Camb ri dge , 19 7 31 ; id, Culture,
Tradition and Society in t he W est Afr ican Novel (Camb r idge, 19 75 ).
26 Young, Postcolonialism, 338. 27 Victor L. Oliver, Caodai Spiritism (Leiden, 19761.
30 CoLEÇÃo Awus HIBRI DISM O CULTURAL 31
garde, bayonette, cadet, patrouille e o italiano bat- O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro
taglione, bombarda, infanteria, sentinello e squa- de hoje segue a tradição dos cortejos e carros
drone. Ligeiramente modificados, todos estes alegóricos da Florença e da Nuremberg do século
termos podem ser encontrados em uma ampla XV. Mesmo as referências políticas tão comuns
gama de línguas europeias. no carnaval brasileiro têm paralelos na Europa,
A despeito do surgimento de regras inter- por exemplo, na Espanha do século XVII.
nacionais para o esporte, não é difícil encontrar No entanto, como tantos itens da cultura
exemplos de práticas híbridas também neste do- europeia, o carnaval foi transformado durante
mínio. Um filme feito por um antropólogo nas Ilhas sua permanência nas Américas. Por exemplo, a
Trob iand, na Melanésia, tem por título Trobriand importânc ia da dança torna os carnavais do Novo
Cricket. Os habitantes da ilha aprenderam o jogo Mundo tão característicos em Havana, em Bue-
com os ingleses, mas o adaptaram de modo a nos Aires e em Port of Spain quanto no Brasil. A
permitir que centenas de pessoas jogassem de dança, quer a religiosa, quer a secular, era uma
cada lado e portassem lanças 35 . O futebol brasi- forma de arte particularmente importante na
leiro é um exemplo mais ameno de hibridização , já África trad icional. Era um ritual para provocar a
que segue as regras formais internacionais ao possessão dos dançarinos por espíritos ou deu-
mesmo tempo em que apresenta um nítido est il o ses , como no caso dos iorubas de Daomé e da Ni-
nacional de jogo. A hibridização é ainda mais óbvia géria. Nestes ritua is religiosos, as mulheres tra-
em outra das principais instituições culturais dicionalmente representavam um papel importan-
brasileiras: o carnaval. te. São provave lmente estas tradições africanas
Como outras instituições europeias, o car- que expl icam o papel ativo das mulheres no carna-
naval foi transportado para o Novo Mundo, espe- val das Américas , que saem dançando pelas ruas
cialmente para aquela parte que foi colonizada pe- em vez de ficarem observando das sacadas. No
los católicos do Mediterrâneo. O uso de fantasias Brasil, a participação das mulheres no entrudo já
e máscaras era um costume tradicional europeu, era notada no início do século XIX por visitantes
e mesmo algumas das fantasias favoritas segui- estrangeiros como os ingleses Henry Koster e
ram modelos europeus, dos hussardos e arle- John Mawe 36 .
quins do Rio aos pierrôs e polichinelos de Trinidad.
Doutores da Igreja sobre os usos da cultura pagã O lado negativo da ideia de apropriação po-
que eram permitidos aos cristãos. Basil de Cesa- de ser encontrado em acusações de plágio , que
rea , por exemplo, defendeu uma apropriação sele- começaram muito antes das leis de direito auto-
tiva da Antiguidade pagã, seguindo o exemplo das ral entrarem em vigor. No latim clássico , o termo
abelhas, que "nem abordam igualmente todas as plagiarius originalmente se referia a alguém que
flores, nem tentam carregar por in teiro aquelas sequestrasse um escravo, mas foi aplicado pelo
que escolhem, mas pegam apenas aquilo que é poeta Martial ao furto literário. O termo foi revivi-
adequado a seu trabalho e deixam o resto intoca- do na Renascença. Era comum os escritores dos
do". Santo Agostinho , citando o Êxodo , usou a lin- séculos XVII e XVIII se acusarem mutuamente de
guagem mais dramática dos "despojos dos egíp- roubo Uarceny em inglês , /arcin em francês, ladro-
cios ". São Jerônimo se expressou em termos se- neccio em italiano e assim por diante).
melhantes46. Um terceiro termo tradicional é o de " em -
Essa abordagem da troca cultural foi revivi- préstimo " cultural. Foi muitas vezes um termo
da na Renascença e vem sendo revivida novamen- pejorativo, como no caso do scholar e impressor
te em nossa época. Consciente ou inconsciente- francês Henri Estienne, por exemplo, um purista
mente, teóricos contemporâneos da apropriação, da língua que escreveu sobre "chefes de família
notadamente os católicos franceses Michel de incompetentes" Cmauvais ménagersl que empres -
Certeau e Paul Ricoeur, têm se inspirado na tradi- tavam dos vizinhos o que já tinham em casa. E
ção cristã. Poder-se-ia descrever este processo também Adamantios Korais, um dos líderes do
como "os despojos de Santo Agostinho " 47 . As fa- movimento pela independência da Grécia , conde -
mosas discussões sobre "antropofagia " do início nava "emprestar de estrangeiros (. .. ) palavras e
do século XX no Brasil são uma variante desta frases disponíveis na própria língua ". E Euclides
abordagem , interessados como estavam em pe- da Cunha denunciou a cultura brasileira como
gar as coisas estrangeiras e digeri -las ou domes- "uma cultura de empréstimo" 4 8 .
ticá-las . É certamente significativo que o termo "em -
prést imo" tenha adquirido um sentido mais posi -
tivo na segunda metade do século XX. De aco r do
com o historiador francês Fernand Braudel , po r
exemplo , "pour une civilisation, vivre c 'est à la fois
46 Werner Jaeger, Early Christianity and Greek Paideia (Cambridge, MA,
1962).
47 Miche l de Cert ea u, L'invention du quotidien (Paris, 1980J; Paul Ricmur .
"Appropriat ion". in Hermeneutics and the Human Sciences. ed. John B.
Thomp so n (Cambridge, 198 3 l , p. 1 8 2-9 3 . 48 Euc lides da Cun ha, Os Sertões (1902: 2 vo ls , São Pau lo , 1983).
44 CoLEÇÃO Aw us H IBRIDISMO CULTURAL 45
être capable de donner, de recevoir, d'emprunter". pio é um projeto atual de pesquisa coletiva finan -
Mais recentemente, Edward Said declarou que "A ciado pela European Science Foundation e dirigido
história de todas as culturas é a história do em- pe lo historiador francês Robert Muchembled com
préstimo cu ltural" 49 . De forma seme lhante, Pau l o títu lo bilíngue de Cultural Exchange/ Transferts
Ricceur e outros teóricos têm usado o termo culturels.
"apropriação" em um sentido positivo. A expressão "troca cultural " passou a ser
Um termo mais técnico é "aculturação" , cu- usada habitualmente apenas recentemente , em-
nhado em torno de 1880 pelos antropó logos bora já tivesse sido utilizada na obra do scholar
norte-americanos que estavam trabalhando com alemão Aby Warburg no início do século XX53 . Sua
as culturas dos índios 50 . A ideia fundamental era popu laridade hoje, substituindo termos mais anti-
a de uma cultura subordinada adotando caracte- gos como "empréstimo" , se deve em parte a um
rísticas da cultura dominante. Em outras pala- crescente relativismo . No entanto, o termo "tro -
vras, "assimilação " , uma palavra frequentemente ca" não deve ser entendido como implicando que
usada em discussões do início do século XX sobre qualquer movimento cultural em uma direção
a cultura da nova onda de imigrantes nos Estados está assoc iado a um movimento igual mas oposto
Unidos. O sociólogo cubano Fernando Ort iz se na outra direção: a relativa importância do movi-
aproximou mais da ideia contemporânea de reci- mento em diferentes direções é uma questão
procidade quando sugeriu a substituição da noção para a pesquisa empírica.
de "aculturação" de mão única pela de "transcul-
turação" de mão dupla 51.
Outro termo técnico é "transfe r ência", cu-
nhada por historiadores da economia e por histo- ACOMODAÇÃO E NEGOCIAÇÃO
riadores da tecnolog ia e agora usada mais ampla -
mente para se referir a outros tipos de emprésti -
mos52. Um exemplo recente deste uso mais am- Um conceito tradicional que tem reapareci-
do é o de "acomodação" . Na Roma Antiga, Cícero
usou este termo em um contexto retórico para
49 Fe rn an d 8 ra ude l. La M éditerranée et te monde méditerranéen à /'époque se referir à necessidade de os oradores adapta-
de Philippe //(1949: second ed. Par is 1966J; Edward Said. Culture and im-
perialism.
50 Alphonse Dupront . L 'acculturazione CTorino. 1966).
51 Ortiz. Contrapunteo.
52 Peter J . Hugill and O. 8ruce Dickson. The Tr ansfer and Transformaeion of 53 Aby Warburg, "Austausch künstlerische Ku lt ur zwischen Norden und
Ide as and Material Culture (College Statio n Texas , 1988). Süden" C1 9 05l, r pr his Gesammelte Schriften Cleipzig, 1932). p. 179-84.
46 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 47
rem seus estilos às suas plateias. Os europeus ra semelhante, o jesuíta Roberto de Nobili, que
do início da Idade Média, notadamente o papa São trabalhava no sul da Índia vestido como um santo
Gregório, o Grande, adaptaram o conceito a um local e permitia que seus convertidos brâmanes
contexto religioso, observando a necessidade de continuassem usando seus cordões sagrados, se
tornar a mensagem cristã aceitável aos pagãos defendeu da acusação de tolerar o paganismo ci-
da Inglaterra e de outras partes do mundo. De tando São Gregório, o Grande 56 .
acordo com São Gregório, os templos pagãos não Recentemente, o termo "acomodação" foi
deviam ser destruídos, mas convertidos em igre- ressuscitado, notadamente por historiadores da
jas para facilitar a aceitação da nova religião. A religião que criticam os conceitos de "acultura-
construção de igrejas nos locais dos templos, ção " (porque implica modificação completa) e
como no caso de Santo Domingo (supra, 24-5), "sincretismo" (porque ele sugere uma mistura
seguiu as recomendações de São Gregório. deliberada). No entanto, o termo está alterando
Seguindo este modelo, os missionários do seu significado de modo a incluir os dois parceiros
século XVI, como o jesuíta italiano Matteo Ricci, do encontro, o "convertido" assim como os mis-
falavam da "acomodação" do cristianismo a novos sionários . Na medida em que os scholars tentam
ambientes como a China. Foi assim que ele justifi- com mais afinco ver os dois lados dos encontros
cou seu costume de se vestir de mandarim, para religiosos, estão ficando cada vez mais convenci-
aproximar as ideias religiosas que estava pregan- dos de que o resultado não foi tanto conversão
do dos chineses, e permitir aos convertidos con- quanto uma forma de hibridização.
tinuarem com as práticas tradicionais de culto Desta forma, um relato recente dos jesuí-
dos ancestrais, que Ricci interpretava como um tas na China concorda que os mandarins pratica -
costume social e não uma forma de religião 54 . ram a acomodação tanto quanto os jesuítas. Eles
Também no Japão alguns jesuítas seguiram o mé- não viam a si mesmos - como os jesuítas os viam
todo de acomodação, usando quimonos de seda, -como substituindo o confucionismo pelo cristia-
comendo da maneira japonesa e chamando Deus nismo. Pelo contrário, eles encaravam o novo sis-
por um dos nomes de Buda, Oainich155 . De manei- tema de crença como complementar ao tradicio -
nal. A mudança cultural aconteceu, como sói
acontecer, por acréscimo e não por substituição.
54 Johann es Bettray, Die Akkomodationsmethode des Matteo Ricci in China
(Rome, 19551; David Mungello, Curious Land: Jesuit Accommodation and
the Origins of Sinology (Stuttgart, 19851.
55 George Elison, Deus Oestroyed: the lmage of Christianity in Early Modern
Japan (Cambridge, Mass .. 1973), p. 54-84. 56 Pierre Oahmen, Un Jésuite Brahme: Robert de Nobili (Louvain, 19241.
48 CoLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 49
cômicas como Juó Bananére 61 . Neste caso está processos semelhantes incluíram "harmonização" ou
particularmente claro que o hibridismo é muitas conciliatio para descrever as tentativas de alguns
vezes, senão sempre, um processo e não um es- scholars da Renascença de reconciliar o paganismo
tado, já que esta língua macarrônica marcou um com o cristianismos3.
estágio da assimilação dos imigrantes na cultura No século XIX, a palavra "sincretismo" tam-
brasileira. bém adquiriu um significado positivo no contexto
Uma metáfora que tem uma função seme- de estudos de religião na Antiguidade clássica e
lhante é a de "fusão". Deste modo Karl von Marti- especialmente as identificações, tão comuns no
us sugeriu em 1844 que a história do Brasil pode- período helenístico, entre deuses ou deusas de
ria ser escrita em termos da "fusão" de três ra- diferentes culturas (a deusa fenícia Astarté, por
ças, enquanto que Gilberto Freyre escreveu so- exemplo, foi identificada com Afrodite, e o deus
bre a "fusão harmoniosa de tradições diver- egípcio da escrita, Tot, com Hermes) 64 . Dos clás-
sas"62. Hoje, inspirada pela física nuclear, a lin- sicos, o termo passou para a antropologia. O
guagem da fusão é popular em contextos que vão norte-americano Melvil le Herskovits, por exem-
da música à culinária. Asian fusion, por exemplo, plo, descobriu que o conceito de sincretismo "aju-
se refere a restaurantes norte-americanos que dava a aguçar" suas aná lises de contatos entre
servem uma variedade de culinárias orientais. A culturas, especialmente no caso da religião
fusão não está longe da famosa metáfora dos afro-a mericana (por exemplo, a identificação en-
Estados Unidos como "caldeirão" cultural, títu lo tre Santa Bárbara e o deus Xangô)B 5 .
de uma peça que estreou em Nova York em 1908 A metáfora botânica ou racial mais vívida de
que exprimia dramaticamente a aceitação dos "hibridismo" ou hibridização" Cem francês métis-
imigrantes como "americanos". sage, em português mestiçagem, em espanhol
Quanto a "sincretismo", foi originalmente um mestizaje, em italiano /etteratura meticcia, em in-
termo negativo, utilizado para deplorar tentativas glês hybridity ou hibridization) foi especia lmente
como aquela do teólogo alemão Georg Calixtus, no popular nos séculos XIX e XX, tendo surgido a par-
século XVII, de unir diferentes grupos de protestantes. tir de expressões insultuosas como "vira-latas"
Significava "caos religioso". Termos positivos para
ou "bastardo" e dado origem a sinônimos como çou seu ponto máximo durante a Renascença e
"fecundação -cruzada "56. ajudou a estimular inovações literárias e a criati-
Na obra de Gilberto Freyre, esta era uma vidade, de maneira mais óbvia na obra de François
ideia central, descrita em seu rico vocabulário de Rabelais6 8 .
várias maneiras diferentes , incluindo hibridização, Hoje, o termo "hibridismo" aparece com
miscigenação , mestiçagem e interpenetração, as- frequência em estudos pós-coloniais, na obra de
sim como acomodação, conciliação e fusão. Os Edward Said, por exemplo. "Todas as culturas es-
conceitos de métissage e interpénétration foram tão envolvidas entre si", escreve Said a respeito
centrais também nas análises da religião afro - de nossa situação atual, "nenhuma delas é única
americana feitas pelo sociólogo francês Roger e pura, todas são híbridas, heterogêneas" 69 .
Bastide, um admirador, senão exatamente um Embora ele trate o termo com mais ambivalência,
discípulo, de Herskovits e Freyre 67 . ou melhor, enfatize sua ambivalência, a ideia de hi-
Em um local muito diferente, tanto geográfi- bridismo também é central na obra de Homi
ca quanto intelectualmente, na Rússia, e na lin- Bhabha 70 .
guagem e na literatura, em vez de na história so- Muito menos conhecida, mas igualmente
cial ou sociologia, o especialista em teoria literá- esclarecedora na análise da mudança cultural, é o
ria Mikhail Bakhtin, como Freyre, chamou atenção conceito de "ecótipo", empregado pelo folclorista
para a importância do hibridismo cultural. A no- sueco Carl von Sydow. Como "hibridismo", este
ção de Bakhtin de hibridismo estava ligada a dois termo foi originalmente cunhado por botânicos
conceitos que foram centrais para seu pensa- para se referir a uma variedade de planta adaptada
mento, "polifonia" e "heteroglossia", que se refe- a um determinado ambiente pela seleção natural.
rem à variedade de linguagens que podem ser en- Carl von Sydow tomou-o emprestado para analisar
contradas em um mesmo texto. Por exemplo, ele
descreveu a sátira Cartas de homens obscuros,
do século XVI, como um "híbrido linguístico com-
plexo intencional" de latim e alemão, que ilustra a 68 Mikhail 8akhtin, The Dialogical lmagination (Au stin, 1981 J, p. 80 -2,
"estimulação recíproca de linguagens" que alcan- 358-9 (um vo lume de ensaios originalmente publicado na Rússia em
1975). Cf. Ga - ry S. Morson and Caryl Emerson. Mikhail Bakhtin: Cmation
of a Prosaics (Stanford, 1990J, p. 139-45.
69 Edward Said, Culture and lmperialism (London, 1993), xxix; cf Homi K.
Bhabha, The Location of Cultura (London. 1994), p. 112-15; Pnina
66 Robert J. C. Young, Colonial Oesire: Hybridity in Theory, Cultura and Race Werbner and Tariq Modood (edsl, Oebating Cultural Hybridity (London.
(London. 1 995). 1997).
67 Roger Bast ide, Les religions africaines au Brésil; vers une sociologia des 70 Bhabha, Location, especialmente 111-18. On Bhabha, Bart Moore-Gilbert,
interpénétrations des civi!isations (Paris, 1 960J. Postcolonial Theory (London, 1997), p. 114-51.
54 CoLEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 55
modificações em contos folclóricos, que ele via sincretismo, além da lógica da escolha, o que
como adaptados a seus ambientes culturais 71 . precisa ser investigado em especial é até que ponto
Os estudiosos das interações culturais po- os diferentes elementos são fundidos (como quem já
deriam seguir o paradigma de Sydow e discutir, usou um mixer de cozinha sabe, há graus de
digamos, formais locais - arquitetura barroca fusãoF 2 . Quanto ao hibridismo, é um termo
tcheca, por exemplo - como variantes regionais escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e
de um movimento internacional, variantes com metafórico, descritivo e explicativo 73 .
suas próprias regras. A existência de ecótipos Os conceitos de sincretismo, de mistura e
sugere que precisamos tomar consciência de for- de hibrid ismo têm também a desvantagem de pa-
ças centrífugas assim como de forças centrípe- recerem excluir o agente individual. "Mistura" soa
tas. Como a história das linguagens e dos diale- mecânico. "Hibridismo" evoca o observador exter-
tos, a história da cultura em geral pode ser vista no que estuda a cultura como se ela fosse a natu-
como uma luta entre estas duas forças. Às vezes reza e os produtos de indivíduos e grupos como se
uma tendência predomina, às vezes a outra, mas fossem espécimens botânicos. Conceitos como
elas alcançam um certo equilíbrio no longo prazo. "apropriação" e "acomodação" dão maior ênfase
ao agente humano e à criatividade, assim como a
ideia cada vez mais popular de "tradução cultural",
usada para descrever o mecanismo por meio do
CONCEITOS EM QUESTÃO qua l encontros culturais produzem formas novas e
híbridas.
conscientemente desta vez - de um sistema cul- zões de seu apelo original para os antropólogos .
tural para outro. De modo semelhante, a "Tradução" contrasta com termos carregados de
expressão "a tradução de deuses", cunhada pelo valo r es como " mal-entendido , interpretação er-
egiptólogo alemão Jan Assmann , é um modo rônea, engano na leitura, tradu ç ão incorreta , em-
esclarecedor de descrever o que costumava ser prego impróprio " 78 .
conhecido como "sincretismo", em outras Este con t raste entre terminologias mostra
palavras a busca por equivalentes no panteão de a questão da possibilidade de se fazer traduções
uma cultura das principais figuras do panteão de culturais incorretas. O que to r na a questão difícil
outra 76 . de responder é a falta de consenso quanto a quais
Na história da arte ou da música pode ser seriam os critérios para se definir o que seria
esclarecedor pensar em termos semelhantes. uma tradução incorreta. É tentador usar esta ex-
Por exemplo , um estudo recente do estilo de mú - pre s são para descrever a decisão de Matteo Ric -
sica alfa turca, um estilo ocidental inspirado pela co de se vestir como monge budista ao chegar à
música do Império Otomano, descreveu-a como China. Ele tomou esta decisão porque viu os mon -
"um conjunto de princípios de tradução tanto ges budistas como equivalentes locais dos pa-
quanto (ou mais que) um conjunto de dispositivos dres cató li cos, mas abandonou esta ideia quando
de imitação" 77 . Este ínsíght é provavelmente apli- descobriu que os monges budistas tinham uma
cável a outros gêneros e ilustra com particu lar posição soc ial inferior aos olhos da elite confucio-
clareza o valor deste termo como uma alternativa nista que era o alvo principal de suas atividades
a simples ideias de imitação. missionárias.
O termo "tradução " também tem a grande No entanto, nos casos em que indivíduos e
vantagem de enfatizar o trabalho que tem quer grupos , diferentemente de Ricci, persistem em
ser feito por indivíduos ou grupos para domesti- suas traduções culturais , é certamente insensa -
car o que é estrangeiro, em outras palavras, as t o os historiadores tomarem part ido. O que eles
estratégias e as táticas empregadas. É obvia- certamente precisam fazer é levar em conta os
mente um termo neutro, com associações de re- pontos de vista contrários dos doadores - ou
lativismo cultural. Esta foi de fato uma das ra- seja , dos indivíduos da cultura da qual um deter-
minado item foi apropriado - e dos receptores .
76 J ames Cli fford. Person and M yth : M aurice Leenhardt in the M elanesian
W orld (B erkeley , 198 2 ). c h. 5: J an Ass ma nn, "The Translation of Gods",
in 8 ud ick an d !se r, Translatability. 78 Wenchao Li , Die christliche China-M ission im 17. J ht : Verstand nis,
77 M ary Hunt er, "The Alia Turca Style" , in 8 ellma n. p. 43- 73. Unverstan dnis . Mi svers t and ni s (Stuttgart, 2 000J.
60 COLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 61
mar de certo grau de coerência" e "podem juntar uma língua mista que poderia ser descrita como
as coisas de novas maneiras" 82 . Vários scholars um pidgin ou um crioulo científico 84 .
sugeriram a relevância deste modelo linguístico Nestes estudos, a língua funciona não como
para o estudo do desenvolvimento da religião , da uma metáfora, mas como um modelo , utilizado
música, do estilo de moradia, vestuário e culinária consciente e sistematicamente e fazendo uso em
afro-americana. Eles estudaram o processo de particular da distinção entre vocabulário e gra -
convergência cultural em locais e períodos espe - mática ou estrutura profunda. A ideia de " conver-
cíficos, como na Jamaica do século XVII , novamen- gência" está se demonstrando útil fora assim
te utilizando o termo "crioulização" para se refe- como dentro do domínio da linguística no qual foi
rir à emergência de novas formas culturais a par- originalmente formulada.
tir da mistura de antigas formas 8 3 . Pode-se dizer Resumindo esta seção : embora ainda exis -
a mesma coisa a respeito do Brasil, onde diferen- tam termos e conceitos demais em circulação
tes culturas africanas se fundiram e se mesc la- para descrever e analisar os processos que são o
ram com tradições nativas e portuguesas e pro- assunto deste ensaio, precisamos de vários deles
duziram uma nova ordem. para fazer justiça tanto ao agente humano (como
O conceito de crioulização começou a ser no caso da "apropriação " ou da "tradução cultu-
usado de forma mais ampla para discutir as cu ltu- ral") quanto às mod ificações das quais os agen -
ras européias, por exemplo, ou disciplinas intelec- tes não têm consc iência (como no caso da "hibri-
tuais . Até a historia da ciência está começando a dização" e da "criou lização").
ser discutida nestes termos em um trabalho que
descreve grupos das diferentes "subculturas" da
física do século XX (físicos experimentais , por
exemplo , e físicos teóricos) que se comunicam em
senvolveu com o passar dos séculos e se trans- chinês, uma língua sem fle xões , e o japonês , uma
formou em uma religião híbrida. língua cheia de fle xões 88 . Até o sistema imperial
de governo foi originalmente emprestado da China ,
embora importantes aspectos tenham s ido
modificados após o surgiment o dos samu r ais e
TRADIÇÕES DE APROPRIAÇÃO dos xoguns no século XII.
Quando os ocidentais fi zeram contato com o
Japão pela primeira vez . no século XVI, descobri-
Em segundo lugar. pode ser esclarecedor ram uma cultura na qual as pessoas eram aber-
distinguir entre culturas com tradições fracas ou tas a novas ide ias e novos artefatos. do cristia -
fortes de apropriação e adaptação (em outras pa - nismo às armas de fogo. Poderíamos . portanto ,
lavras. tradições de modificação de tradições) . A descrever o Japão como tendo uma tradição
cultura hindu, por exemplo, tem uma propensão "aberta". a despeito da famigerada tentativa do
maior para incorporar elementos estrangeiros do governo de fechar o país no início do século XVII e
que (digamos) o Islã. O Japão é outro exemplo isolá -lo de influências estrangeiras (os espanhóis
clássico de uma tradição de apropriação. foram expulsos em 1624 e os portugueses em
A partir de meados do século XIX até hoje, 1638). O fechamento foi, na verdade , uma reação
os japoneses têm emprestado elementos cultu- à rápida disseminação do cristianismo no Japão.
rais do Ocidente com aparente facilidade: o siste- Como culturas inteiras, há locais específi -
ma parlamentarista da Inglaterra, o sistema uni - cos que são particularmente favoráveis à troca
versitário e as práticas militares da Alemanha, e cultural, especialmente as metrópoles e as fron -
a ma ior parte de sua cultura material dos Esta - teiras.
dos Unidos. A velocidade com que os japoneses
começaram a emprestar desta forma depois de
1850 dificilmente seria inteligível se não houvesse
um precedente.
De fato , os japoneses já haviam emprestado
e adaptado muitas tradições culturais entre os
séculos VIII e XVIII, especialmente da China.
Adotaram o budismo em sua versão chinesa. em
vez da forma indiana. Adotaram o sistema de
88 David Poll ack . The Fraccure of M eaning: Japan's Synthesis of China from
escrita chinês , a despeito do contraste entre o the Eighth through the Eighteenth Centur·ies CPr in ceto n, 19 8 6 1.
70 CoLEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 71
ra urbana local , embora acrescentando algo de traste com uma cultura dos centros opostos ,
novo à mistura. Istambul ou Viena 9 0 .
Outro local que favorece a troca e a hibridi- A Espanha do final da Idade Média fo i outra
zação é a fronteira . Um exemplo famoso de fron- dessas fronteiras onde as trocas cultura is entre
teira cultural é a área intermediária entre o mun- cristãos, judeus e mouros nos domínios da cultu-
do cristão e o Islã no leste europeu. Nos séculos ra material e das práticas sociais, conjuntamen-
XVI e XVII, nobres poloneses e húngaros lutaram te com as produções híbridas resultantes, dura-
regularmente contra os turcos e provavelmente ram muito tempo e têm sido muito estudadas,
odiavam os turcos. Apesar disso, para seus vizi- espec ialmente nos últimos anos. Há poemas que
nhos do lado oeste, eles eram muito parecidos passam do espanhol para o árabe e de volta para
com os turcos, já que usavam túnicas compridas o espanhol, por exemplo, e há construções, inclu-
(caftã) e cim itarras em vez das espadas retas da sive igrejas, que foram ornamentadas por arte -
tradição ocidental. Estes nobres viam a si mes- sãos muçulmanos no estilo geométrico geralmen -
mos como distintos dos turcos por serem cris- te associados às mesquitas (supra, 24) .
tãos, mas se distinguiam dos ocidentais se recu- Estas zonas de fronteira, como cidades
sando a adotar o estilo de vestimenta deles, ou cosmopol itas, podem ser descritas como "inter-
então abandonando o estilo europeu oc idental, culturas", não apenas locais de encontro, mas
como o fizeram os poloneses no século XVII, e vo l- também sobreposições ou interseções entre cul-
tando a suas tradições étnicas. turas, nas quais o que começa como uma mistura
Além disso, havia uma tradição em comum acaba se transformando na criação de algo novo e
de épicos e baladas nos dois lados da fronteira diferente 91 .
entre o império otomano e o dos Habsburgo, que
incluía histórias e canções sobre os mesmos he-
róis, como Marko Kraljevic, e as mesmas bata-
lhas entre cristãos e muçulmanos, embora em
um dos lados da fronteira os cristãos fossem
apresentados como vitoriosos, enquanto que do
outro lado eram mostrados como vencidos. Em
casos assim parece razoável falar, como o prin c i- 90 Halil ln alcik, The Ottoman Empire 1300- 1600 (Lond on , 1973l , p. 106-
202 . Cf. Ge rno t Heiss an d Gret e Kl ing ens t ein (edsl. Oas Osmanische
pal historiador do império otomano, Halil lnalcik, Reich und Europa , 16 83 bis 1 78 9 : Konfl1kt , Entspannung und Austausch
de uma cultura de fronteira em comum em con- lV ie nna , 1983).
91 Em " in te rc ulture s ", A nthony Pym, M ethod in Translation History lM an-
ch es t er. 19 98), p. 1 77 -92.
74 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 75
CLASSES COMO CULTURAS Para uma historiadora alemã mais jovem, por
outro lado, os duelos da classe média são uma prova
da sua emancipação, de seu crescente senso de
Conceitos como encontro, troca e tradu - valor próprio. Se esta historiadora está certa , então
ção são úteis em discussões sobre interações o duelo é um excelente exemplo de apropriação e
dentro de uma cultura assim como entre cultu- transformação cultural, um caso de armas
ras. Poder-se -ia argumentar, por exemplo , que características da nobreza sendo usadas contra ela
em seus famosos estudos de classes, tanto por membros da burguesia 93 . Ainda resta um
Edward Thompson quanto Pierr•· Bourdieu tinham problema. Como, e em que bases, podemos decidir
muito pouco a dizer sobre interações entre a entre estas interpretações ri - vais?
classe média e a classe traba lhadora, quer estas
interações tomassem a forma de imitação quer
de rejeição 92 .
Tomemos o exemplo da nobreza e da burgue -
sia na Alemanha do século XIX. É bem sabido que
médicos, advogados , professores, jornalistas e
funcionários públicos regularmente se bat iam em
duelo na época. Para Norbert Elias, este fenôme-
no ilustra a atração que os modelos das classes
mais altas exerciam sobre a classe média . Era
apenas mais um exemplo do comportamento das
elites influenciando as classes mais bai xas, a in-
f luência da corte sobre a sociedade como um todo
que Elias gostava de enfatizar em seus livros , tal-
ve z em reação a um excesso de ênfase anterior
nas forças de mercado na formação da cultura
moderna.
93 Nor bert Elias, Studien über die Oeutschen (Frankfurt. 1989); Ute
92 Edwa rd P. Thompson. The Making of the English Wor king C/ass (London . Frevert . Ehrenmanner: Das Oue/1 in der bürgerlichen Gesellschaft
1963J; Pierre Bourd ieu, La distinction (Paris, 1979). (München , 19 91 J.
4. VARIEDADES DE REAÇÕES
94 Arturo Graf. L'anglomania e l'influsso inglese in /ta/ia nel seco/o xviii (Tu-
rin. 19111; Freyre, Ingleses; Michael Maurer. Aufklarung und Anglophilie
in Oeutschland CGóttingen. 19871.
77
78 C oLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 79
crita em termos de "ocidentalização", incluindo a "a disparidade entre a sociedade brasileira escra-
moda de tudo o que é estrangeiro na Rússia , no vista e as ideias do liberalismo europeu" B6 .
Império Otomano, no Japão, na China e em tantos Estas modas merecem ser levadas a sério
outros países, assim como reações contra esta pelos historiadores da cultura, analisadas e
moda. Seria necessário obviamente identificar os explicadas, além de descritas. O apelo de estilos
grupos ou os indivíduos que estavam mais envolvi- ita- lianos em outras partes da Europa no século
dos, e seus diferentes motivos para terem aderi- XVI, como o apelo de estilos americanos no século
do, do desejo de lutar contra o Ocidente com XX , foi em parte pelo menos um reconhecimento
suas próprias armas -tanto literal quanto meta- de que os italianos eram mais rápidos e criativos
foricamente - à necessidade de uma geração em reagir a mudanças sociais que estavam
mais jovem de se rebelar contra os mais velhos 95 . acontecendo na Europa como um todo, que em
No Brasil, o padre Lopes Gama já criticava o Florença em particular (como se costumava dizer
que chamava de "londonização" da cultura no iní- dos Estados Unidos nos anos 1850J "o amanhã já
cio do século XIX. Os ternos europeus usados pe- chegou" .
los membros da classe alta no Rio de Janeiro no No entanto, a tendência a assumir que a
século XIX são um exemplo vívido dessa moda. Os troca cultural é sempre um reflexo de tolerância e
homens suavam em roupas de lã a temperaturas mente aberta é algo a que os historiadores devem
de quarenta graus para mostrar que faziam parte resistir. Não se deve esquecer que interação cul-
de uma classe abastada que não precisava fazer tural do final da Idade Média na Espanha, a cha-
trabalho braçal, para se distinguir das pessoas mada cof'tvivencia, ocorreu em uma época de mas-
comuns, ou para demonstrar seu comprometi- sacres de judeus, conversões forçadas e inquisi- li
mento com os valores "civilizados" da zona tem- dores caçando mouriscos e marranos; em outras
perada. Este período de "anglomania", como Gil- palavras , judeus e muçulmanos que praticavam
berto Freyre observou, foi também um período de suas próprias religiões em segredo ao mesmo
"imitação de costumes parlamentares ingleses", tempo em que fingiam ser cristãos. A "harmonia"
a despeito do que Roberto Schwartz chamou de cultural, ou pelo menos a apropriação, aparente-
mente se combinava com a desarmonia sociaiB7 . das próprias culturas de empréstimo. E isso nos
Algo de semelhante poderia ser dito sobre os no- leva à segunda das possíveis estratégias, a es-
bres poloneses e húngaros, mencionados ante- tratégia da res istência, da defesa das fronteiras
riormente, e seus vizinhos muçulmanos . culturais contra a invasãoB8 .
Como pode esta coexistência de harmonia e A identidade cultural é f r equentemente de -
conflito ser explicada? A pergunta crucial , fácil de finida por contraste , como um astuto inglês em
fazer mas difícil de responder, é a questão do sig - viagem pela Rússia , o médico Samuel Collins , já
nificado. É bem possível que aquilo que os histo - havia observado no séc ulo XVII , muito antes de
riadores hoje veem como herança comum possa Lévi -Strauss nos falar sobre pensamento biná-
ter sido percebido tanto por cristãos quanto por rio . "Porque os católicos apostólicos romanos se
muçulmanos como sendo realmente "deles" . ajoelham ao fazer suas preces , eles [os russos]
Cristãos espanhóis ou poloneses podem ter sim- ficam de pé L .. ) Porque os poloneses fazem a bar-
plesmente se esquecido que outros cristãos as- ba, eles consideram um pecado raspá -la . Porque
sociavam ornamentos geométricos ou o uso de os tártaros abom inam carne de porco , eles dão
cimitarras ao Islã. De forma semelhante, os gre - preferência a ela."
gos que hoje fazem objeção à expressão " café Na Renascença , a italianofilia, que era visível
turco" convenientemente se esqueceram do fato nas el ites de muitos países europeus , produziu
histórico bem conhecido de que o café teve sua seu oposto, uma onda de italianofobia . Na Espa -
origem no mundo islâmico (no lêmen do século XV) nha, por exemp lo, os poetas Garcilaso de la Vega
e se disseminou a partir de Istambul. e Joán B.oscán foram crit icados por escreverem
no estilo italiano , abandonando a tradição pátria.
Em Portugal, Francisco de Holanda foi descrito
como o demônio em vestes italianasss.
RES ISTÊNCIA No século XVII foi a ve z dos fr anceses se
transformarem no alvo dos "nativistas irados "
que defendiam a pureza das tradições locais . Na
A aceitação do estrangeiro costuma levar a Alemanha , por exemplo, a censura à invasão da
problemas difíceis que têm sido discutidos no seio língua por palavras francesas, especialmente no
domínio do bom comportamento [compliment, ga- três culturas, a cristã, a muçulmana e a judaica
/ant, mode etc.), foi particularmente intensa em (descrita por América Castro), e a Espanha dos
meados do século. Sociedades linguísticas foram séculos XVII e XVII I é de fato muito marcante, e su-
fundadas tendo a pureza da língua. como um de gere que- como no caso do cristianismo no Japão
seus principais ideais. A campanha linguística fez - pode ter sido a receptividade cultural das pes-
parte de uma reação mais general izada contra soas comuns o que levou as autoridades a toma-
modelos culturais estrangeiros, das roupas à cu- rem uma atitude1oo.
linária, sendo a "imitação dos franceses" [Na- Outros paralelos possíveis com os pakot são
chahmung der Franzosen) denunciada pelo filósofo dois casos notáveis de resistência cultural - ou
Christian Thomasius. pelo menos casos que parecerão notáveis para os
Da mesma forma como algumas culturas leitores que acreditam em progresso tecnológico
são inusitadamente receptivas a ideias ou artefa- -, a rejeição muçulmana à tipografia, que durou
tos estrangeiros, outras são inusitadamente re- até cerca do ano 1800, e a rejeição japonesa à
sistentes, como dois exemplos tirados da África arma de fogo 101 .
podem sugerir. Os ibos da Nigéria, o grupo étnico No caso da tipografia, tem sido argumenta-
de muitos dos principais romancistas africanos do plausivelmente que a razão essencial para
(inclusive Chinua Achebe), são, como os brasilei- essa resistênc ia foi a ameaça ao sistema islâmico
ros e os japoneses, famosos por serem recepti- tradicional de transmissão de conhecimento, um
vos ao que não é familiar. Em contraste, os pakot, sistema pessoa-a-pessoa. Afinal, os grandes im-
do oeste do Quênia, são famosos por sua resis- périos islâmicos do início da era moderna- o im-
tência à mudança e apego a suas próprias tradi- pério otomano, o persa e o mongol -não resisti-
ções. Pode ser instrutivo saber quais culturas ram a todas as formas de inovação ocidental. Eles
europeias ou asiáticas mais se assemelham aos adotaram as armas de fogo com entusiasmo,
pakot. tanto assim que foram descritos como "impérios
Em alguns períodos de sua história, a "Es- da pó lvora". A tipografia, por outro lado, era vista
panha" poderia ser uma resposta adequada a menos como uma ferramenta e mais como uma
esta pergunta. Em meados do sécu lo XVI, houve ameaça .
uma tentativa oficial de fechar o país. Os espa-
nhóis foram proibidos de estudar no exterior para
que não fossem contaminados pelas heresias. O 1 00 Castro, Espanha.
contraste entre a Espanha do final da Idade Mé- 101 Francis Robinson, "Jslam and the lmpact of Print in South Asia" , in The
Transmission of Knowledge in South Asia, ed. Nig el Crook CDelhi, 1996), p.
dia, a era da coexistência e da interação entre 62-97.
84 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 85
1 02 Noel Perrin, Giving up the Gun: Japan's Reversion to the Sword, 1543- 104 Simon Ottenberg, " lbo Receptivity to Change", in William R. Bascom and
1879 CBoston, 1979l. Melville J. Herskovits (edsl, Continuity and Change in African Culturas (Chi-
103 Ta mar Liebes and Elihu Katz (1990J, The Export of Meaning: cago, 1959), p. 130-43: Harold K. Schneider, "Pakot Resistance to
Cross-Cu/tural Readings of Dal/as (Nova York, 1990J. Change", ibid., p. 144-67.
86 C o LEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 87
pria cultura como "uma cultura de empréstimo" Charles de Gaulle, por exemplo, consegu iu encon-
que copiava cega ou mecanicamente o que em ou- trar tempo entre a crise argelina e os aconteci-
tras nações era um produto de um desenvolvi- mentos de maio de 1968 para organizar um comi -
mento orgânico 1o5. tê para a defesa da língua francesa. Em 1975, foi
aprovada a lei Bas -Lauriol, que pro ibia o uso de
palavras estrangeiras (pelo menos por órgãos do
governo) sempre que existisse uma palavra fran-
PURIFICAÇÃO CULTURAL cesa de mesmo significado.
Na Alemanha, por outro lado , a preocupação
com a pureza linguística alcançou seu clímax no
As reações contra a estrangeirice muitas início do século XX. Já em 1885 fora fundada uma
vezes assumiram a forma extrema de movimen- sociedade para a defesa do alemão, o Allgemein
tos pela purificação, inclusive o que hoje é conhe- Oeutsche Sprachverein, com seu jornal Mutters-
cido como "limpeza étnica". prache. Os anos 1930 foram o ponto alto da cha-
No caso da língua, por exemplo, um movi- mada Fremdwortjagd, a busca e substituição de
mento para o retorno ao grego ático puro se ini- termos estrangeiros que haviam se dissimulado
ciou na época helenística em resposta à invasão na língua alemã, particularmente expressões
da língua por palavras estrangeiras 1D6 . O huma- francesas . Assim "plataforma", que fora perron,
nista e impressor protestante Henri Estienne virou Bahnsteig, "Universitat" virou Althochschule
condenou o jargão italianizado da corte francesa e assim por diante. Este programa foi muito ante-
nos anos 1570 com tanta veemência quanto o go- rior aos ideais nazistas de Deutschtum ("germa-
verno francês hoje condena o franglês 1D7. nidade") e purificação cultural, mas se harmoni-
O franglês é o aspecto linguístico daquilo zava com eles. Por isso, os nazistas apoiaram a
que os franceses costumavam chamar de "o de- princípio o Sprachverein, embora tenham dado um
safio americano", lê défi américain. O general fim à busca em 1940 depois que um linguista teve
a ousadia de criticar a linguagem usada pelo Füh-
rer1 08. Desde aquela época os puristas têm esta-
de uma vida dupla dividida entre o mundo pagão e tros . No decorrer das gerações, no entanto , a
o cristão 110 • segregação se transforma em adaptação.
Outro tipo de segregação é muitas vezes
visto nas grandes cidades poliglotas e multiétni-
cas, do passado e do presente, descritas acima
como zonas de encontro. Examinadas de perto, ADAPTAÇÃO
estas cidades muitas vezes lembram mosaicos
culturais, compostos de muitas partes diferen-
tes. A segregação cultural de imigrantes não Uma reação comum a um encontro com ou -
deve ser exagerada. Varia com a própria cultura tra cultura , ou com itens de outra cultura , é a
do imigrante, com o meio urbano dentro do qual adaptação, ou empréstimo no varejo para incor-
estão tentando se estabelecer, e também com a porar as partes em uma estrutura tradicional. É
idade , já que as pessoas mais velhas têm dificul- o que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss
dade de aprender uma nova língua e é menos pro- chamava de "bricolagem" e afirmava ser uma ca-
vável que arrumem trabalho que os afaste de sua racterística de /a pensée sauvage. Mais recente-
"aldeia" urbana. O que geralmente acontece é mente, este processo de apropriação e reutiliza-
que as pessoas vivem uma vida dupla no sentido ção tem sido descrito e analisado também no ca-
japonês da expressão, ou seja, na cultura anfitriã so da cultura ocidental, notadamente pelo cien-
durante o horário de trabalho e em sua cultura tista social francês Michel de Certeau 11 1 .
tradicional nas horas de lazer. A adaptação cultural pode ser analisada
É curioso que parece ter havido poucos es- como um movimento duplo de des-contextualiza-
tudos até agora sobre o colapso da segregação ção e re-contextualização, retirando um item de
cultural na segunda ou na terceira geração, com seu local original e modificando-o de forma a que
o bilinguismo, os casamentos mistos e mais tar- se encaixe em seu novo ambiente. O processo de
de a assimilação. É bom observar que em alguns "tropicalização" tantas vezes discutido e incan-
grupos, entre os poloneses, por exemplo, e em savelmente advogado por Freyre em tantos domí-
certos domínios, como a culinária, as tradições nios, da arquitetura à culinária, é um bom exem-
dos imigrantes sobrevivem melhor do que em ou-
11 O Sobre a vida dupla, ver Edward Seidenstick er. Low City, High City: Tokyo
from Edo the the Earthquake, 1867-1923 (London , 1983); Freyre. 11 1 Claude Lévi-Strauss . La pensée sauvage (Paris , 1962 ); M ichel de
Ingleses, p. 189; Vainfas , Heresia, p. 158. Certeau, L 'invention du quotidien (Paris , 1980l.
92 Co LEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 93
pio deste processo, embora seja necessário dis- outras palavras, estes têxteis eram pr odu zid os
tinguir diferentes tipos de adaptaÇão. em um estilo " oriental" genérico que deve ser en-
A tropicalização no sentido literal ocorre carado como uma produção eurasiana conju n-
ta 112.
quando as roupas ou as casas que foram planeja -
das para países frios são modificadas para serem E também boa parte da porcelana chinesa e
exportadas para países quentes. Um exempl o fa- japonesa fo i exportada para a Europa nos séculos
moso, mas controvertido, é a arq uitetura de Lú- XVI I e XVII I (setenta milhões de peças , de acordo
cio Costa e Oscar Niemeyer, algumas vezes des- com uma estimativa). Novamente os intermediá -
crita como uma bem -sucedida adaptação das r ios foram as Co ·Tlpanhias das Índias Orientais e
ideias e dos designs de Le Corbusier ao meio am- novamente os designs tradicionais foram g,radual -
biente brasileiro , e outras ve zes criticada sob o mente modificados para se adequarem ao gosto
pretexto de que o processo de adaptação não foi dos consumidores ocidentais. As porcelanas de -
longe o suficiente. Por outro lado, se as cadeiras coradas no chamado " padrão de salgueiro " imi-
de design inglês tiveram suas formas alteradas tando as porce lanas ch inesas que são tão popula-
quando copiadas no Brasil (supra, p. 25), as mod i- res na Grã-Bretanha até hoje são um exemplo de
ficações podem ter sido menos de liberadas, quer mod ificações deste tipo. Foi sugerido que a por-
por ter sido o resultado de diferenças entre tra- ce lana foi "o princ ipal ve ículo material para a assi -
dições artesanais locais (inclusive trad ições afri- milação e a transmissão de temas culturais por
canas no caso do BrasiiJ, quer pela substituição grandes distâncias "11 3 .
da madeira inglesa (nogueira, por exemplo) por Por UJTl lado, então, encontramos artistas
madeiras brasileiras como o jacarandá. asiáticos imitando estilos europeus ou no mínimo
O comércio a longa distância, especialmente escolhendo a partir do repertório local os elemen-
o comércio entre a Europa e a Ásia no início do pe- tos que comprovadamente agradam aos consu-
ríodo moderno, proporciona exemplos fascinan- midores ocidenta is. Por outro lado, encontra mos
tes de interação e hibridização cultural. No caso artistas europeus imitando estilos as iáticos e o
dos tê xteis, um exemplo famoso é o do chint z , um surgimento da man ia de coisas exóticas , notada-
tecido estampado produzido na Índ ia para ser ex- mente a mania da Europa do sécu lo XVIII por chino-
portado para a Europa. Os desenhos combinavam
motivos persas , indianos e chineses e seguiam
padrões enviados para a Índia pelos diretores da 1 1 2 John lrwin, "Origins of the 'Orienta l Style"', in Eng lish Oecorative Art'.
Burlington Magazine 9 7 (1955), p. 1 0 6- 14.
Companh ia Holandesa das Índ ias Orientais e da 1 13 Robert Finlay, "The Pilgrim A r t: the Cu lt ure of Porce lain in World His -
Companhia das Índias Orientais de Londres. Em tory", Journa/ of W orld History 9 (1998J, p. 141-87, na 177.
94 C o LEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 95
iserie, artigos que copiam motivos chineses 11 4. outros descobrirem . a arte japonesa , o que
Às vezes é virtualmente impossível dizer se um encorajou artistas ocidentais, já em r evolta con-
dado artefato é obra de europeus asiatizados ou tra suas próprias tradições acadêmicas , a imit a-
de asiáticos europeizados. Os pontos que mere- rem as composições assimétricas , as linhas cali -
cem ser enfatizados são, em primeiro lugar, os gráficas e o uso de áreas de cor un iforme que se
diferentes estágios do processo, em segundo lu- pode encontrar em particular nas xilogravuras 115 .
gar, o número de diferentes pessoas envolvidas, Na música , compositores japoneses como
e , em terce iro lugar, ci fato de que as mudanças Toru Takemitsu fo r am influenciados por composi -
se dão dos dois lados. A metáfora da "negocia- tores ocidentais como Pierre Boulez e John Cage ,
ção " cultura l, discutida anteriormente neste en- que por sua vez haviam sido influenciados pela
saio , parece ser part icularmente út il na análise música japonesa . Puccini se inspirou na música
de processos desse tipo. japonesa para compor sua Madame Butte r fly
( 1907), e os japoneses por sua ve z adaptaram
Puccini em uma série daquilo que historiadores
recentes chamaram de "repatriações " 1 1B. No
CIRCU LAR IDADE caso do c inema, é lícito suspeitar que o surgi-
mento dos f ilmes de samurais de Akira Kurosawà
e de outros diretores japoneses se deve em parte
A metáfora do círculo é útil também para à tradição do filme de faroeste norte-americano.
nos referirmos a adaptações de itens culturais Se este é o .caso, a cortesia foi retribuída quando
estrangeiros que são tão completas que o resul - John Sturges fez "Sete homens e um destino"
tado pode às vezes ser " re-exportado" para o lu - CThe Magnificent SevenJ (1960J , uma "tradução"
gar de origem do item. do famoso " Os sete samurais " CSeven Samurat] ,
A história das relações culturais entre o Ja - de Kurosawa (1954) .
pão e o Ocidente nos séculos XIX e XX proporciona
vários exemplos fascinantes deste tipo de circu -
laridade. Nas artes visuais , por exemplo , os japo -
neses descobriram os impressionistas japoneses
pouco depois de Eduard Manet, Claude Monet e 115 S. Takashina (ed.l , Paris in Japan: the Japanese Encounter with European
Painting ITokyo, 1987).
116 J ohn Co r bett , " Experi mental Oriental" , in Born and Hesmondhalgh,
Western Music , p. 163-86; Arth ur Groos, " Ra mos of the Nat ive : J apan
in Madama But t erfly/M adama But terfly in J apan ", Cambridge Opera Jour·-
11 4 M ade lein e J arry, Chinoiserie (N ova Iorque, 1981 l . na/ 1 (1 989 1, p. 16 7-9 4.
96 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 97
1 1 7 Reiko Tsuki mura . "A Comparison of Yeats' At the Hawk's We/1 and it s Noh
Ver sion" . LiteratureEast and West 11 (19 6 7l , p. 385-9 7 ; Richard Taylor,
The Drama of W. 8. Yeats: lrish M yth and the Japanese No (New Haven, 118 Bernard Lewis, "From Babei to Orago m ans". Proceedings of the British
19 7 6), p. 1 11 -2 0. Academy 101 (1999 J, p. 37 -54.
98 COLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL . 99
119 Frances Kart tunen , Between W orlds: ln&erpre&ers. Guides and Survivors
(New Brunswick, 19 94). p. 1-22, 114-35.
120 Gilroy, At:lant:ic. 121 Frances Yates, John Floria (London. 1934).
5. VARIEDADES DE RESULTADOS
Em outras palavras, todas as tradições que poderia ser chamado de "diglossia cultural",
culturais hoje estão em contato mais ou ménos uma combinação de cultura global com culturas
direto com tradições alternativas. A segregação locais. Em terceiro lugar, a homogeneização, a
só é uma possibilidade no curto prazo, como já fusão de diferentes culturas, a consequência da
vimos, mas não é uma opção viável em la !ongue globalização que muitos hoje tanto pre- veem
durée. Por conseguinte, as tradições são como quanto temem. Em quarto lugar, o surgimento de
áreas de construção, sempre sendo construídas novas sínteses. Pode ser útil discutir estes
e reconstruídas, quer os indivíduos e os grupos quatro cenários em ordem.
que fazem parte destas tradições se deem ou
não conta disto.
Vejamos o caso do candomblé, interpretado
em um ensaio brilhante por Roger Bastide como a CONTRAGLOBALIZAÇÃO
construção simbólica do espaço africano, uma
espécie de compensação psicológica para os
afro-brasileiros pela perda de sua terra nativa 122 . Hoje vemos muita resistência à "intromis-
Apesar disso, foi mostrado que as práticas do sao ou "invasão" de formas globais de cultura.
candomblé se alteraram gradualmente com o Isso não é de causar surpresa. Essa reação é um
tempo. Portanto, não se pode dizer que o can- exemplo daquilo que os sociólogos às vezes cha-
domblé é "puro" enquanto que a umbanda, por mam de "defasagem cultural". Como Fernand
exemplo, é um híbrido. Podemos dizer que as tra- Braudel, historiador francês, costumava dizer, di-
•
ferentes tipos de mudança acontecem a diferen-
dições africanas são mais importantes no can-
domblé do que na umbanda, mas todas as formas tes velocidades.
culturais são mais ou menos híbridas. As mudanças concatenadas que hoje des-
Se a independência e a segregação são crevemos como "globalização" são principalmen-
ambas eliminadas, sobram quatro possibilidades te tecnológicas e econômicas. A tecnologia, es-
principais, ou cenários, para o futuro das culturas pecialmente a tecnologia de comunicação, hoje se
de nosso planeta. Em primeiro lugar, a resistência altera com tanta rapidez que a maioria de nós fica
ou a "contraglobalização". Em segundo lugar, o tonta. As instituições ficam para trás a despeito
da necessidade de serem adaptadas ao mundo
em mudança. Ainda mais lentas são as mudanças
122 Roger Bastide, "Mémoire collective et sociologie du bricolage". Année de atitude, especialmente daquelas atitudes ou
Sociologique (1970J. p. 65-108: Renato Ortiz. A morce branca do feitiçeim
negro- Umbanda (Petrópolis, 1978). suposições fundamentais que - seguindo os his-
1 04 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 105
toriadores franceses novamente - irei descrever exemplo corrente- mas que tem uma longa histó-
como "mentalidades". Mudanças de mentalidade ria - é o dos católicos e protestantes da Irlanda
são necessariamente lentas, considerando-se a do Norte, dois grupos que dividem o mesmo terri-
importância dos primeiros dois ou três anos de tório e têm tanto em comum culturalmente que é
vida para o futuro desenvolvimento de cada pes- difícil para os estrangeiros distingui-los. No en-
soa. Os valores fundamentais da geração que es- tanto, eles continuam - pelo menos uma minoria
tará velha em 2080 já foram instilados. de cada lado continua- a se tratar coma o Outro,
Não é de espantar portanto que em muitas o oposto de si mesmo.
partes do mundo haja reações contra a globaliza- O antropólogo holandês Anton Blok, concor-
ção cultural. Por uma questão de conveniência, dando com Freud, acrescenta que é a ameaça da
vamos falar de "contraglobalização". Neste cená- perda das identidades tradicionais que provoca a
rio, um importante papel é representado pelo fe- narcisismo, muitas vezes se fazendo acompanhar
nômeno coletivo da revolta das regiões, já descri- pela violência contra o Outro 12 5 . O sociólogo in-
to nos anos 1860 por Robert Lafont e outros glês Anthony Cohen concorda: "a expressão sim-
como "revolução regionalista" 123 . De nosso ponto bólica de comunidade e de seus limites aumenta
de vista, não importa se um determinado movi- de importância na medida em que os reais limites
mento- bretão, digamos, ou catalão- utiliza a lin- geossociais da comunidade são destruídos, obs-
guagem da região ou a da nação - ou mesmo a da curecidos ou então enfraquecidos" 12 6.
religião, como no caso da Sérvia ou da Bósnia. O Em outras palavras, é uma reação forte
ponto a se destacar é a ênfase na cultura e na mas que pode não durar muito. A resistência está
identidade local, quer ela assuma a forma dores- fadada ao fracasso no sentido de que os objetivos
tabelecimento de linguagens moribundas, de lim- daqueles q~e fazem parte da resistência, deter a
peza étnica ou de quebrar as janelas do McOo- marcha da história ou trazer de volta a passado,
nald ' s. são inatingíveis. No entanto, a resistência não é
Freud tinha uma boa expressão para a que em vão, porque as ações de resistência terão um
vemos acontecer em tantas partes do globo: "o efeito sobre as culturas do futuro. Não será o
narcisismo das pequenas diferenças" 124 . Um
123 Robert Lafont, La révolution régionaliste (Paris, 1967). 125 Anton Blok, "The Narcissism of Minar Differences", European Journal of
124 Sigmund Freud, "Das Tabu der Virginitat" (1918), traduzido em Complete Social Theory 1 (1998), p. 33-56.
Psychological Works, ed. James Strachey, xi (London, 1957), p. 191 - 126 Anthony Cohen, The Symbolic Construction of Community (Chichester
208. 1985), 50.
106 CoLEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 107
efeito que desejaram, mas apesar de tudo será soas capazes de alternar entre culturas da mes-
um efeito. ma forma como alternam entre línguas ou regis-
tros linguísticos, escolhendo o que consideram
ser apropriado à situação em que se encontram.
A inferência de que hoje somos todos imigrantes,
DIGLDSSIA CULTURAL quer nos demos conta disto ou não, deve ser leva-
da a sério, como a observação de Canclin de que a
fronteira se encontra em toda parte 128 •
Em um mundo futuro de cultura global, po- No longo prazo, por outro lado, podemos
deremos nos tornar todos biculturais, vivendo predizer com segurança que pelo menos algumas
uma vida dupla como os japoneses que foram des- das divisões entre esferas na "vida dupla" irão se
critos em uma seção anterior deste ensaio. To- desfazer. O que poderia ser descrito (do ponto de
dos nós falaremos EFL CEnglish as a Foreign Lan- vista dos puristas) como "contaminação" está
guage, inglês como língua estrangeira) ou qual- fadado a ocorrer, como de fato já aconteceu no caso
quer outra língua mundial (chinês, espanhol, ára- do Japão, assim como no caso dos imigrantes
be) em algumas situações, mas manteremos nos- urbanos descritos supra Cp. 71). Como as fronteiras
sa língua ou dialeto local em outras, participando nacionais, os muros dos guetos não são à prova de
da cultura mundial mas mantendo uma cultura lo- invasão cultural ou infiltração.
cal. Estou chamando este resultado de "diglossia
cultural" (seguindo um modelo proposto por al-
guns sociolinguistas da geração passada) e não
de "bilinguismo cultural" porque os dois elemen- HDMDGENEIZAÇÃD CULTURAL
tos provavelmente não são iguais 127 .
Enquanto descrição do presente de alguns
de nós e do futuro próximo de muitos de nós, este O terceiro cenano é o da homogeneização
cenário me parece ser muito plausível. É uma ver- cultural, venha ela a ocorrer como predito em
são mais amena da segregação cultural conscien- 2050, em 2100 ou mesmo mais tarde. Quem não
te que foi discutida em uma seção anterior deste gosta desta tendência costuma falar da "ameri-
ensaio. Existiram e ainda existem muitas pes-
128 Cf. James Clifford, Routes: Trave/ and Trans/ation in the Late Twentieth
12 7 Charles Ferguson, "Diglossia". Word 15 (19591. p. 325 -40. Century (C ambridge . Mass .. 199 7).
108 C o LEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 109
canização" da cultura ou do "efeito coca-cola" ções. No nível global, o que vemos é o oposto, uma
(cujas insinuações de americanofobia lembram a redução da diversidade.
italianofobia que foi discutida em uma seção ante- Em outras formas de arte, estamos
rior). Os críticos hostis temem a perda do senti- testemunhando outro tipo de homogeneização.
mento de se pertencer a algum lugar, na verdade Graças ao crescimento do mercado global, alguns
da própria perda de um lugar, substituído pe la escritores, como alguns diretores de cinema,
proliferação de "não lugares" como aeropor- como foi observado recentemente, "consciente ou
tos1 29. Confrontados com o cenário da hibridiza- inconscientemente incorporam a traduzibilidade
ção, podem responder que a mistura de todas as em suas formas de arte " 130. No caso dos filmes,
culturas em um caldeirão global é um estágio em Hollywood tem por alvo um mercado global, e
sua subsequente homogeneização. também na Europa as coproduções internacionais
Certamente vemos muitos sinais do surgi- se tornaram cada vez mais comuns. Michelangelo
mento de uma cultura global , quase global ou pelo Antonioni, por exemplo, que construiu sua reputação
menos crescentemente global, especialmente no com filmes falados em italiano rodados na Itália com
Ocidente, mas também no Japão e cada vez mais atores italianos, passou a trabalhar com um elenco
também na China. Veja o caso da arte contempo- internacional e com financiamento internacional e
rânea. Não vemos uma simples homogeneização fazer filmes em inglês como 8/ow-Up -Depois daquele
no sentido do surgimento de um único estilo em beijo (1967) e Zabrislde Point (1969).
detrimento de todos os seus rivais. O que vemos No caso dos romances, uma entrevista re-
é uma homogeneização mais complexa no sentido cente com Milan Kundera (da qual por acaso li,
de uma variedade de estilos rivais, abstratos e nesta era ~ da globalização, sua tradução em um
representacionais, op e pop, e assim por diante, jorna l brasileiro) é certamente reveladora de uma
todos os quais estão disponíveis para os artis- tendência mais ampla. Antes de 1968, Kundera
tas, virtualmente independentemente do local no morava em Praga e escrevia em tcheco, primaria-
qual por acaso vivam. No nível do indivíduo há mais mente para leitores tchecos. Agora ele vive em
escolhas, mais liberdade, uma ampliação de op- Paris, escreve em francês e, como explica na en-
trevista, primariamente para um público interna-
cional.
129 Edward Relph, Place and Placelessness (London. 1976); Joshua Meyrowitz.
No Sense of Place: the impact of electronic media on social behaviour (Nova
York, 1985J; Marc Augé, Non-lieux: introduction à une anthropologie de la 130 Emily Apter, "On Translation in a Global Market", Public Culture 13
surmodernité (Pari s, 1992J. (2001), p. 1-12.
11 O CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 111
Privilegiar um público global em vez de um zação e assim por diante foram essencialmente
público local modifica a própria obra de várias ma- vitoriosos. Hoje, no entanto, há uma f orte ten-
neiras importantes que ainda não foram, que eu dência a negar este sucesso, a argumentar, por
saiba, analisadas em detalhes nem em profundi- exemplo, que os romanos nunca tiveram uma pe-
dade. Os romances de Kundera certamente se netração profunda nas culturas das diferentes
modificaram depois de 1968. Ficaram menos so- partes de seu império. Além disso, as culturas
ciais e mais metafísicos, com menos referências subordinadas ou "submersas" da América Latina,
locais e mais observações sobre a condição hu- da China e até do Japão (por muito tempo tida
mana. como um caso exemplar de unidade cultural) es-
Algo de semelhante pode ser dito a respeito tão recebendo cada vez mais atenção agora que
de outros tipos de obras, inclusive histórias. Pos- há um despertar étnico, uma espécie de "volta
so pessoalmente testemunhar que, na medida em dos reprimidos" . Há alguma razão para se pensar
que me acostumei com a ideia de que meus livros que a globalização será diferente?
poderiam ser traduzidos para várias línguas, te- É certamente revelador que os partidários
nho tentado a cada trabalho (inclusive neste aqui) da tese da homogeneização - amem ou odeiem o
evitar alusões que não seriam facilmente compre- que descrevem - geralmente recorrem a um
endidas fora da Grã-Bretanha, ou mesmo fora da círcu lo restrito de exemplos, de com ida congelada
Europa. Comecei a pensar em termos de um pú- à arquitetura de aeroportos. Os partidários da
blico potencialmente global, imaginando se uma homogeneização frequentemente não levam em
determinada afirmativa ou referência seria clara conta a criatividade da recepção e a renegociação
para leitores japoneses ou bras ileiros. Ao fazer de signific~dos discutidas anteriormente, ou a
isso, parece que estou fazendo uma reconstru - importância do narc1s1smo das pequenas
ção de mim mesmo como cidadão do mundo, e te - difer enças. Até o exemplo favorito da Coca-Cola fo i
nho certeza de que não sou o único. brilhantemente reinterpretado pelo antropólogo
Estas mudanças são certamente inevitá- Daniel Miller em um estudo do que ele chama de
veis , mas não nos aproximam muito do cenário da " a contextualização local da forma global " em
homogeneização total. Deve-se acrescentar que Trinidad 131 .
os historiadores estão ficando cada vez menos
convencidos de que movimentos de homogenei za-
ção foram bem -sucedidos no passado. Eles cos -
tumavam acreditar que processos como os de
131 Daniel Miller, " Coca-Cola: a black sweet drink fr om Tr inidad", in Mat erial
helenização, romanização , hispanização e anglici- Cultures. ed. M iller (London, 1 998), p. 169 -8 7.
112 COLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 113
A visão de que o mundo todo estará em a norte-americana hoje ou a global no futuro) pode
2050, digamos, falando inglês - como língua es- conquistar as outras por completo.
trangeira, obviamente- e assistindo aos mesmos No grupo dos "partidários do hibridismo "
programas de televisão ao mesmo tempo é uma podemos distinguir aqueles que têm uma atitude
caricatura óbvia. As principais línguas do mundo negativa daqueles que veem esta tendência mais
como o chinês, o árabe e o espanhol, para não positivamente.
mencionarmos o francês, o português e o russo, Por um lado, os críticos enfatizam o caos, o
ainda estão muito vivas, assim como as principais que Arnold Toynbee chamava de "desintegração
religiões do mundo, mesmo que agora estejam se cultural" e analistas conscientemente pós-mo-
influenciando mutuamente mais do que antes, dernos costumam descrever como "fragmenta-
como expressões como "catolicismo zen" suge- ção"1 34. Estes críticos enfatizam o que está ~en
rem 132. do perdido no processo de mudança cultural. E di -
fícil negar que estas perdas ocorrem. Voltando a
Kundera por um instante , acredito que seu me-
lhor romance é A brincadeira, escrito em seu pe-
HIBRIDIZAÇÃO CULTURAL ríodo tcheco e enriquecido, mesmo para os leito-
res estrangeiros, por suas referências à cultura
local. Ele pagou um preço por sua emigração. No
A hibridização, seja ela consciente ou entanto, os críticos do processo de hibridização
inconsciente, é o quarto e último cenário possível certamente não veem seu lado positivo, a tendên-
a ser discutido aqui 133. A ideia de que encontros cia à síntese e à emergência de novas formas. Um
culturais levam a algum tipo de mistura cultural é modo esclarecedor de ana lisar estas tendências
uma posição intermediária entre duas visões do é trabalhar com o conceito de "criouli zação" in-
passado que podem ser criticadas como trod uzido anteriormente.
superficiais. Por um lado, há a alegação de que
uma cultura ou uma tradição cultural pode
permanecer "pura". Por outro, temos a afirmativa
de que uma única cultura (a francesa no passado ,
135 Mars hall Sahlin s, Historical M et aphors and M ythical Realities: Str uctur e in
the Early History ofthe Sandwich lslands Kingdom [Ann Arb or . 198 1 J; id . .
lslands of History [Chicago, 1985). 136 Hanne r z, "World"; cf. ld., Complexity.
116 C OLEÇÃO A LDUS