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COLEÇÃO ALDUS www.edunisinos .br/aldus

IS BN 85 - 7431 - 197- 9

9 788574 311975
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

Reitor
Pe. Marcelo Fernandes de Aquino, SJ

Vice-reitor
Pe. José Ivo Follman, SJ
Hibridismo cultural

Peter Burke

ri1lJ EDITORA UNISINOS Tradução


Leila Souza Mendes

Diretor
Pe. Pedro Gilberto Gomes , SJ

Conselho Editorial
Alfredo Culleton
Carlos Alberto Gianotti
Pe. Luis Fernando Rodrigues. SJ
Pe. Pedro Gilberto Gomes, SJ
Vicente de Paulo Barretto

EDITORA UNISINOS
Coleção Aldus
18
© 2003 Peter Burke
Título original: Cultural Hybridity, Cultural Exchange, Cultural Translation:
Reflections on History and Theory

2003 Direitos editoriais em língua portuguesa reservados à


Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos A COLEÇÃO ALOUS
EDITORA UNISINOS
ISBN B5-7431-197-9
3a reimpressão, primavera de 201 O, feita conforme o
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor desde 2009

Coleção Aldus
18
O símbolo ao lado é a marca do
Sob a direção de Carlos Alberto Gianotti
impressor Aldus Pius Manutius. A
Editor partir de 1501, numa época em que
Carlos Alberto Gianotti
Revisão
os livros eram caros e difíceis de
Renato Deitas manusear, Aldus iniciou a produção
Mateus Colombo Mendes
de livros com formato pequeno.
Editoração
Décio Remigius Ely Para diminuir o volume e o preço,
Capa encomendou do ourives Francesco
Isabel Carballo
Griffo um tipo de letra que permitia
um maior número de caracteres por página. Esse
tipo veio a ser conhecido como itálico.
A reprodução. ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que Hoje, o formato livro de bolso é o preferido
compõem este livro, para uso não individual, mesmo para f1ns d1dat1cos.
sem autorização escrita do editor, é ilícita e se constitui numa
pela maioria dos leitores do planeta. A EDITORA
contrafação danosa à cultura. UNISINOS, mediante esta coleção, em formato
Foi feito o depósito legal.
diferenciado e impressa em papel especial, procura
levar assuntos interessantes aos leitores por um
preço acessível.
Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
EDITORA UNISINOS
Av. Unisinos , 950
93022-000 São Leopoldo RS Brasil

Telef.: 51.3590B239
Fax: 51.3590B23B
editora @unisinos. br

5
O EDITOR APRESENTA

A voz do povo diz que há males que vêm para


o bem: mas há também males que vêm para o mal,
assim como há bens que vêm para o bem ou para o
mal. Há coisas que se planejam de um modo e o
resultado que se obtém é diferente do esperado-
para o bem ou para o mal.
Faz cerca de um ano, li um artigo do professor
Peter Burke sobre a inserção do dicionário na vida
letrada. Achei aque la página fantástica. Por isso,
entrei em contato com ele para ver se seria possível
estender aquele artigo para transformá-lo, numa
versão alongada, em mais um título desta Coleção
Sobre o autor
Aldus. O professor Peter sugeriu, então, um outro
Peter Burke é professor de ~ i stória cu ltura l na tema para compor um livro: hibndismo cultural.
Universidade de Cambridge. E autor de 22 Aceitei a proposta. Ele preparou a matéria e aqui a
livros , 12 deles traduzidos e editado~ em temos em livro, com a tradução cuidadosa da Leila
português. Com sua mulher, Maria Lucia Mendes. Há bens que vêm para o bem.
Pallares-Burke , está escrevendo um livro sobre
Gilberto Freyre. Nov. /2003

7
Para Marco e Lara,

crianças multicu/turais.
SUMÁRIO

Introdução 13

1. Variedades de objetos 23

2 . Variedades de terminologias 39

3. Variedades de situações 65

4. Variedades de reações 77

5. Variedades de resultados 1 O1
Todas as culturas são o resultado de uma mixórdia.
Claude Lévi -Strauss

A história de todas as culturas


é a história do empréstimo cultural.
Edward Said

Hoje, todas as culturas são culturas de fronteira.


Nestor Canclini

Em uma discussão recente da pós-


modernidade, o historiador britânico Perry An-
derson descreve a tendência do período em que
vivemos de "celebrar o crossover, o híbrido, o
pot-pourri" 1 • Para ser mais exato , algumas
pessoas - como o escritor anglo-indiano Salman
Rushdie em seus Versos satânicos - louvam estes
fenômenos enquanto outras os temem ou os
condenam. A reprovação procede , deve- se
acrescentar, de diferentes posturas políticas, já
que dentre os críticos do hibridismo encontramos
fundamenta listas muçulmanos, segregacionistas
brancos e separatistas negros.

Perry Anderson , Origins o f Post-Modernity (London, 19981.

13
14 CoLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 15

Um dos sinais do clima inte lectua l de nossa zen, ao Kung Fu nigeriano ou aos filmes de
época é o uso crescente do termo Bollywood (feitos em Bombaim e que misturam
"essencialismo" como um modo de criticar o canções e danças tradicionais indianas com
oponente em todo tipo de discussão. Nações , convenções holly- woodianasJ. Este processo é
classes sociais, tribos e castas têm todos sido particularmente óbvio no campo musical no caso de
"descontruídos" no sentido de serem descritos formas e gêneros híbridos como o jazz, o reggae , a
como entidades falsas. Um exemplo salsa ou o rock afro-celta mais recentemente 3 .
inusitadamente sofisticado dessa tendência é o Novas tecnologias , inclusive a "mesa de mixagem ",
livro Logiques métisses (1990J, do antropólogo obviamente facilitaram este tipo de hibridização.
francês Jean-Loup Amselle. Amselle, especialista Portanto não é de causar espanto que te-
em África Ocidental, defende que não existem nha surgido um grupo de teóricos do hibridismo,
coisas como tribos , como os fui as ou os eles mesmos muitas vezes de identidade cultural
bambaras. Não existe uma fronteira cu ltural dupla ou mista . Homi Bhabha, por exemplo, é um
nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo indiano que foi professor na Inglaterra e que hoje
contrário, um continuum cultural. Os linguistas está nos Estados Unidos. Stuart Hall, nascido na
há muito vêm defendendo o mesmo ponto de vista Jamaica, de ascendência mista , viveu a maior
a respeito de línguas vizinhas como o ho landês e o parte de sua vida na Inglaterra e descreve a si
alemão. Na fronteira, é impossível dizer quando mesmo como sendo "culturalmente um vi-
ou onde o termina holandês e começa o alemão. ra-latas, o ma is perfeito híbrido cultural " 4 . len
A preocupação com este assunto é natural Ang se descreve como " uma acadêmica etnica-
em um período como o nosso, marcado por mente chinesa, nascida na Indonésia e educada
encontros culturais cada vez mais frequentes e na Europa que hoje vive e trabalha na Aust r ália " 5 .
intensos. A globalização cultural envolve Comparado com estes teóricos, Nestor Canclin i,
hibridização 2 . Por mais que reajamos a ela, não que cresceu na Argentina mas vive no Méxi co,
conseguimos nos livrar da tendência global para a nem parece ser uma mistura. Por outro lado ,
mistura e a hibridização , do curry com batatas Edward Said , palestino que cresceu no Egito , é
fritas - recentemente eleito o prato favorito da
Grã-Bretanha- às saunas tailandesas, ao judaísmo
3 Georg ina Born and David Hesmondhalgh (edsl , Western Music and its
Dthers (8 erke ley an d Los Ange les . 2 000J.
4 Cita do em Chris Rojek , Stuar c Ha/1 (Ca mb r idge, 2 003). p. 4 9.
2 J an Neder veen Pieterse . ''Gioba lizat ion as Hybr idizat ion " . lnternational 5 len Ang . Dn No c Speaking Chinese: Living between Asia and the West (Lo n-
Sociology 9 (1994), p. 161-84. don . 2 001 J, p. 3 .
HIBRIDISMO CULTURAL 17
16 CoLEÇÃO Awus

professor nos Estados Unidos e se descreve suas expressões , concretizações ou simbolizações


como "deslocado" onde quer que se encontre (de em artefatos, práticas e representações.
forma semelhante Jawaharlal Nehru, o primeiro Em um ensaio informal , pessoal , desse tipo ,
primeiro-ministro da Índia depois da independên- é melhor deixar logo claro nosso ponto de vista .
cia, uma vez declarou que havia se tornado uma Permitam-me portanto dizer que enquanto euro -
"estranha mescla de Oriente e Ocidente, deslo- peu do norte que sempre sentiu atração pelas
culturas latinas (da Itália ao Brasill, assim como
cado em qualquer lugar"J 6 .
O trabalho destes e de outros teóricos tem ocidental fascinado com aquilo que os europeus
cada vez mais atraído o interesse para várias dis - costumavam chamar de Oriente Médio e Extremo
ciplinas, da antropologia à literatura, da geografia Oriente, minha própria experiência de interação
à história da arte e da musicologia aos estudos cultural (seja entre indivíduos , disciplinas ou cul -
de religião . Os historiadores também, inclusive eu turas) tem sido extremamente positiva. De qual-
mesmo, estão dedicando cada vez mais atenção quer forma , acho convincente o argumento de
aos processos de encontro, contato, interação, que toda inovação é uma espécie de adaptação e
que encontros culturais encorajam a criatividade.
troca e hibridização cultural.
O que resolvi apresentar aqui, no entanto, No entanto , não escolhi este assunto para
não é um estudo de história da cultura, mas um louvar as trocas culturais ou o hibridismo cultu -
ensaio tão híbrido quanto seu assunto, interessado ral , mas para analisar estes fenômenos. Na análi-
no presente assim como no passado, em teori~s se que se segue tentare i ser o mais imparcial
assim como em práticas e em processos gera1s possível. Imparcial , e não objetivo , já que é impos-
assim como em acontecimentos específicos. sível fugirmos de nossa posição social e de nosso
Embora processos de hibridização possam ser condicionamento histórico. Todavia, acredito fir-
encontrados na esfera econômica , social e política, memente na importância de se manter o distan-
para não mencionar a miscigenação, este ensaio se ciamento, pelo menos temporariamente, de nos-
restringe a tendências culturais, definindo o termo sa situação, e desta forma examinar tudo de uma
cultura em um sentido razoavelmente amplo de perspectiva mais ampla do que é possível em ou -
forma a incluir atitudes , mentalidades e valores e tras circunstâncias. Esta é a contribuição tipica-
mente acadêmica para um debate que hoje é do
interesse de todos, e que é especialmente apro-
priado para um historiador da cultura.
Neste caso em particular, não tenho a me-
6 Edward Said, "Out of Place"; Nehru citado in Robert J. Young . Post;colonialism: nor intenção de apresentar a troca cultural como
an Historical lntroduction (Qxford, 2001 l. p. 348.
18 C OLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 19

um simples enriquecimento, esquecendo que às tro fez uma interpretação da história espanhola
vezes ela ocorre em detrimento de alguém . No que privilegiou os encontros e as interações en -
campo da música, por exemplo, especialmente na tre três culturas: a cristã , a judaica e a
música popular, os ocidentais têm emprestado muçulmanas.
de outras culturas, como da dos pigmeus da Áfri - Nos anos 1950 , o historiador britânico
ca Central , fazendo o registro dos direitos auto- Arnold Toynbee refletiu sobre o que ele já chama-
rais dos resultados sem dividir os royalties com va de " encontros" entre culturas, sobre a impor-
os músicos originais. Em outras palavras, eles tânc ia das diásporas e a natur eza da "recepção "
têm tratado a música do Terceiro Mundo como se cultural 9 . Ele dedicou dois volumes de seu Study of
fosse mais um tipo de matéria-prima que é "pro- History [Um estudo de história. Rio de Janeiro , W .
cessada " na Europa e na América do Norte 7 . M . Jackson, 1953) ao que chamou de "contatos
O preço da hibridização , especialmente na- entre civilizações" no espaço e no tempo , "confli-
quela forma inusitadamente rápida que é caracte- tos entre culturas" ou de "difração " de "raios
rística de nossa época, inclui a perda de tradições culturais " 10 . Diferentemente da maioria dos in -
regionais e de raízes locais. Certamente não é gleses de sua geração, Toynbee se interessava
por acidente que a atual era de global ização cu ltu- por todo tipo de s incretismo religioso. Ele regis-
ral, às vezes vista mais superficia lmente como trou uma experiência religiosa na National Gallery
"americanização", é também a era das reações de Londres , em 1951, na qual ele invocou Buda ,
nacionalistas ou étnicas - sérvia e croata, tútsi e Maomé e "Cristo Tammuz, Cristo Adônis, Cristo
hutu, árabe , basca e assim por diante. Gilberto Os íris" 11 .
Freyre louvou notavelmente tanto o regionalismo Algumas pessoas, que poderíamos descre-
quanto a mestiçagem, mas geralmente há uma ver como "puristas" , ficaram profundamente cho-
tensão entre eles. cadas com os argumentos de Freyre , de Castro e
Gilberto Freyre foi um dos primeiros schol- de Toynbee quando suas obras f oram publicadas
ars a dedicar atenção ao hibridismo cultural, em pela pr imeira vez. Hoje , pelo contrário, estamos
Casa Grande e Senzala, de 1933. Pouco tempo
depois, o sociólogo Fernando Ortiz fez o mesmo
em relação a Cuba. Nos anos 1940, Americo Cas- 8 Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (Rio de Janeiro , 19 33) ; Fernando
Ortiz, Contrapunteo cubano (Havana , 1940l; Americo Cast ro, Espana en
su historia (1 9 48l.
9 Arn old J . Toynbee, A St udy of Hist ory, vai. 8 (London, 1954), p. 274ft,
4 72ft, 48 1 ff.
7 St eve n Feld, "The Poet ics and Politics of Pygmy Pop". in Born and 1 O Toynbee, Study, vai. 8, p. 49 5.
Hesmondhalgh, p. 254- 79 . 1 1 Toyn bee , Study, va i. 1 O. p. 143.
20 CoLEÇÃO Awus H IBRI DISMO CULTURAL 21

preparados para encontrar a hibridização quase Em outros locais , a síntese parece ter sido
que em toda parte na história. Os historiadores invisível. Por exemplo, um estudo do cristianismo
da Antiguidade, por exemplo, estão se interes- nos primórdios do Japão moderno alega que os
sando cada vez mais pelo processo de "heleniza- chamados "convertidos" incorporaram símbolos
ção", que estão começando a ver menos como cristãos ao sistema simbólico nativo , produzindo
uma simples imposição da cultura grega sobre o uma religião híbrida às vezes descrita como kiris-
Império Romano e mais em termos da interação hitan, o jeito japonês de pronunciar a palavra
entre o centro e periferia 1 2. "cristão" 15 .
Por sua vez, historiadores da Renascença O assunto é vasto, mas este ensaio é curto.
estão se interessando mais do que antes pelas Ele oferece uma visão panorâmica de um territó -
contribuições bizantinas , judaicas e muçulmanas rio que é imenso , variado e disputado e tenta ver
para aquele movimento 13 . Em uma era de cristia- o atual debate sobre a globalização da cultura a
nismo ecumênico, os historiadores da Reforma partir de uma perspectiva histórica.
hoje estão mais dispostos do que antes a admitir Fernando Ortiz certa feita descreveu a cul-
a importância das trocas culturais entre católi- tura cubana como sendo uma espécie de ensopa-
cos e protestantes. E historiadores das missões do, ajiaco. Um livro sobre culturas híbridas pode
europeias à Ásia, África e América agora reco- facilmente se transformar em um prato seme-
nhecem que os "convertidos" não tanto abando- lhante, no qual os ingredientes , por mais variados
naram suas religiões tradicionais pelo cristianis- que sejam, são liquidificados e homogeneizados.
mo quanto fizeram uma espécie de síntese das No entanto, é certamente mais esclarecedor
duas religiões. Às vezes a mistura era óbvia para analisar a mistura do que fazer uma réplica dela.
os missionários, como no caso da "heresia dos ín - No que se segue, tentarei fazer distinções em ve z
dios" , a santidade de Jaguaripe na Baía em 1580, de tornar tudo indistinto.
estudada por Ronaldo Vainfas 14 . Por esta razão o ensaio a seguir será dividi-
do em cinco partes principais , unidas por sua ên-
fase na variedade. Em primeiro lugar, a variedade
de objetos que são hibridizados . Em segundo lu-
12 Arnaldo Momigliano. Alien W1sdom: the Limits of Hellenism (Cambridge ,
1975J; in, On Pagans. Jews and Chr istians CMiddletown, 198 7); Glynn
Bowers oc k, Hellenism. in Late Antiquity CCambridge , 199Dl
13 Peter Bu rke , The European Renaissance (Oxf ord , 1998), intr oduç ão.
14 Em Cat holics and Protes tant s, ve ja a obra pioneira de J ean Del umea u, 15 Erik Zürcher, "Jesuit Accommodation and the Chinese Cultural Impera-
Naissance et Affir mation de la Réforme (Paris, 1965J. Em The missions, tive", in David E. Mungello (ed.J The Chinese Rites Controversy CNettetal,
Serg e Gruzi nski , La colonisation de l'imaginair e (Par is , 198 8); Ronaldo 1994), p. 31 -64; lkuo Higashibaba, Christianity in Early Modern Japan:
Vai nfas, A heresia dos índios (S ão Paulo , 19 9 5). Ki r ishit an Be lief and Practice[ Leiden, 2 0 0 1 l , especially p. 29, 35, 38.
22 C o LEÇÃO Aw us

gar, a variedade de termos e teorias inventados


para se discutir a interação cultural. Em tercewo
lugar, a variedade de situações nas quais os en-
contros acontecem. Em quarto lugar, a variedade 1. VARIEDADES DE OBJETOS
de possíveis reações a itens culturais não
familiares. E em quinto e último lugar, a variedade
de possíveis resultados ou consequências da
hibridização em longo prazo.
Exemplos de hibridismo cultural podem ser
encontrados em toda parte, não apenas em todo
o globo como na maioria dos domínios da cultura-
religiões sincréticas, filosofias ecléticas, línguas
e culinárias mistas e estilos híbridos na
arquitetura, na literatura ou na música. Seria
insensato assumir que o termo hibridismo tenha
exatamente o mesmo significado em todos estes
casos. Para segurar o touro pelos chifres, pode
ser útil começar distinguindo e discutindo três
tipos de hibridismo, ou processos de hibridização,
que envolvem respectivamente artefatos, práticas
e finalmente povos.

ARTEFATOS HÍBRIDOS

A arquitetura proporciona muitos exemplos


de artefatos híbridos. Por exemp lo , entre os sé-
culos XIV e XVII, Lvóv (L'viv, LehmbergJ , no oeste
da Ucrânia, era uma cidade multicultural na qual
interagiam diferentes culturas. Quando os armê-
23
----- - - - - - - - -- -

24 C oLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 25

nios construíram sua catedral no século XIV, con- locais de templos incas e chegaram a usar pedras
trataram um arquiteto italiano, e o mesmo fize- das construções originais 1s.
ram os ortodoxos quando construíram uma nova Em menor escala , a mobília ilustra o mesmo
igreja no início do século XVII. Artesãos alemães, processo de apropriação e adaptação. De acordo
italianos e armênios contribuíram para a criação com Gilberto Freyre, as linhas retas e os ângulos
de um estilo híbrido de arquitetura que combinava dos móveis ingleses foram suavizados quando
elementos de suas diferentes tradições 16 . seus designs foram copiados no início do século
Alguns exemplos de hibridismo arquitetôni- XIX no Brasil , "O estilo inglês de móvel
co ainda conseguem nos surpreender , qu ando arredondando- se no clima brasileiro", em lugar
não nos chocar, como no caso das igrejas da das " linhas anglicanamente secas" . A mobília e a
Espanha com ornamentos geométricos dos sécu- cerâmica norte-americanas feitas por artesãos
los XV ou XVI , lembrando aqueles das mesquitas, afro-americanos transforma r am os modelos
feitos por artesãos que eram quase que certa- ingleses de forma semelhante 2o. Um caso mais
mente aberta ou dissimuladamente muçulma- consciente de auto-hibridização é o do chippendale
nos17. Por sua vez, na Índia do século XV, algumas chinês, um estilo de móvel inglês do século XVIII
mesquitas foram construídas por artesãos hin- inspirado na China.
dus que utilizaram fórmulas decorativas que ha- As imagens também podem ser híbridas,
viam aprendido em seus próprios templos 18 . Igre- como o historiador Serge Gruzinski mostra em
jas jesuítas de Goa a Cuzco empregaram arte- um estudo notável da arte cristã do Méxi co nas
sãos locais e combinaram estruturas renascen- primeiras décadas depois da chegada dos missio-
tistas itali anas ou barrocas com detalhes deco- nários. A maioria das imagens foi feita por arte -
rativos derivados de tradições locais, hindus , is- sãos locais imitando mestres europeus (como o
lâmicas ou incas. Em Cuzco, igrejas como a de irmão leigo flamengo fray Pedro de GanteJ ou mo -
Santo Domingo foram construídas nos m esm os delos europeus, como pinturas e gravuras . Cons -
ciente ou inconscientemente , os artistas locais
modificavam o que copiavam, assimilando tudo a

16 Yevsina, "L'viv", Oictionary of Art. (ed.J Jane Turner, vai. 19 (London,


N. A.
1996), p. 835-7.
17 Henri Terrasse (1958), /s/am d'Espagne: une rencontre de f'Orient et de 19 Mitter, 181 -2; Gauvin A. Bailey,The Jesuits and the Great Moguf: Renais-
f'Occident (Paris, 1958J; lgnacio Henares Cuéllar and Rafael López sance Art at the Imperial Court of fndia, 1580-1630 (Washington OC,
Guzman. Arquitectura mudéjar granadina, (1989J; Gonzalo M. 8orrás 1998).
Gualis, E/ fsfam de Córdoba a/ Mudéjar (Madrid, 1990J, p. 191 -219. 20 G. Freyre, Ingleses no Brasil (1948; Rio de Janeiro, 2000J, p. 223;
18 Partha Mitter. fndian Art (Oxford, 2001), p. 87. Sharon F. Patton, Afro-American Art (Oxford, 1998), p. 25 , 39, 41.
26 CoLEÇÃo Awus H IBRIDISMO CULTURAL 27

suas próprias tradições e produzindo o que às ve- diferentes tradições . Por exemplo, a razão para
zes é conhecido como arte "indo-cristã" 21 . que a Virgem Maria pudesse ter sido assimilada
Por sua vez, quando imagens ocidentais, es- com aparente facilidade a outras deusas, como
pecialmente gravuras, chegaram na China no final Kuan Yin na China ou Tonantzin no México, é que
do século XVI junto com missionários católicos ela representava um pape l essencialmente
como Matteo Ricci, elas ajudaram a transformar semelhante 23.
a tradição chinesa de pintura paisagista. Os ar- Outro tipo importante de artefato é o texto .
tistas chineses não se converteram ao estilo oci- As traduções são os casos mais óbvios de textos
dental- eles resistiram à perspectiva, por exem- híbridos, já que a procura por aquilo que é chama-
plo -, mas o conhecimento de uma alternativa a do de " efeito equivalente" necessariamente en-
suas próprias convenções para a representação volve a introdução de palavras e ideias que são fa -
de paisagens os libertou destas convenções e miliares aos novos leitores mas que poderiam não
permitiu que fizessem suas próprias inovações 22 . ser inteligíveis na cultura na qual o livro foi origi -
Duas questões gerais surgem com particu- nalmente escrito. Há também gêneros literários
lar clareza da discussão das imagens híbridas, híbridos. O romance japonês, o africano e possi-
embora elas tenham uma relevância muito mais velmente também o latino-americano devem ser
ampla. Em primeiro lugar, há a importância dos encarados - e julgados pelos críticos - como hí-
estereótip~s ou esquemas culturais na bridos literários e não como simples imitações do
estruturação da percepção e na interpretação do romance ocidental24.
mundo. No nível microcósmico, o esquema tem A linguagem de muitos "romances" africa-
uma função semelhante à visão de mundo ou ao nos, por exemplo, é característica . Um dos prin-
estado de coisas característico de uma cipais romancistas africanos do século XX , o nige-
determinada cultura. riano Chinua Achebe, descreveu sua linguagem
Em segundo lugar, há a importância do que como "um inglês alterado para se adequar a seu
poderiam ser chamadas de "afin idades" ou novo ambiente africano", que adota palavras e ex-
"convergências" entre imagens oriundas de pressões dos idiomas da África Ocidental ou do

21 S. Gruzinski, La pensée métisse (Paris , 1999).


22 Mi c hael Sull iva n, The M eeting of Eastern and W estern Art from the Six-
teenth Century to the Present Oay (London, 1973), especia lm ente 63-4; 23 Cha r les Boxer , M ary and M isogyny (London, 1975); Serge Gru zi nsk i. La
Jame s Cahill, The Compe/ling lmage: Nature and Style in Seven- guer r e des images (Par is, 1989), p. 15 2-6; David A. Br ad ing , M exican
teenth-Centur y Chinese Pain ting (Cambridge, M ass . , 1982), p. 7 0 -5, 91, Phoenix: Our Lady of Guadalupe (Cambridge , 2 00 2 ).
176. 24 Angel Rama , Transculturación narr ativa in América Latina CM exico . 1982J.
28 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTU RAL 29

pidgin ang lo-africano. Achebe situa a si mesmo mente novas são exemplos particularmente cla-
em um "cruzamento de culturas", a dos ibos e a ros de hibridização.
dos britânicos. O romance africano também se Por exemplo, a variedade de tradições cultu-
situa em um cruzamento de gêneros, que inclui o rais que contribuíram para a religião vietnamita
conto folclórico oral tradicional, o romance euro- Cao Dai, que fo i extremamente bem-sucedida nos
peu e, entre os dois, o equivalente africano dos anos anteriores ao estabelecimento do regime
folhetos brasileiros, os textos populares produzi- comunista, pode surpreender até os leitores bra-
dos entre a Segunda Guerra Mundial e a guerra sileiros acostumados com o sincretismo. Funda-
civil nigeriana na cidade mercantil de Onitsha. da em 1926, a organização da Cao Da i segue o
Não deve ser por coincidência que tantos roman- modelo da Igreja Católica , com um papa, cardeais
cistas africanos tenham s ido oriundos da região e bispos. Suas doutrinas, por outro lado , são uma
de Onitsha 25 . combinação de budismo com o taoísmo e morali-
dade confucionista. Dentre suas práticas , há o
uso extensivo de médiuns e sessões espíritas , de
forma que a Cao Dai pode ser descrita como uma
PRÁTICAS HÍBRIDAS forma de espiritismo no estilo de Allan Kardec.
Seu panteão de heróis inclui Jesus, Maomé, Joa -
na D'Arc e Victor Hugo. Talvez não devêssemos fi-
Práticas híbridas podem ser identificadas car surpresos com esta mistura , já que o Vietnã ,
na religião, na mús ica, na linguagem, no esporte, como o Laos e o Camboja , se situa no cruzamento
nas festividades e alhures. Mahatma Gandhi, por das culturas da Índia e da China e foi por um perío-
exemplo, foi descrito como tendo criado "sua pró- do colônia francesa 27 .
pria religião , uma mistura idiossincrática de As igrejas não são a única forma de
ideias hindus, islâmicas , budistas e cristãs" 26 . organizações híbridas. Governos também foram
Em um nível coletivo, algumas religiões relativa - descritos nestes termos. Por exemplo, um
especialista francês em questões da Áfr ica
descreveu os Estados deste continente como
"híbridos " no sentido de que são o resultado de
25 Tho ma s Br ückne r, .. Across t he Borde r s : Orality Old and New in t he Afri - uma mescla de formas ocidentais importadas e
can Novel .. . in Pet er O. Stummer and Chri stoph er Balme (eds l, Fusion of
Culturas? (Amsterdam-At lanta, 19 9 6) , p. 1 5 3-60 ; Emmanuel E.
Obi ech ina . An African Popular Literatura (Camb ri dge , 19 7 31 ; id, Culture,
Tradition and Society in t he W est Afr ican Novel (Camb r idge, 19 75 ).
26 Young, Postcolonialism, 338. 27 Victor L. Oliver, Caodai Spiritism (Leiden, 19761.
30 CoLEÇÃo Awus HIBRI DISM O CULTURAL 31

tradições africanas 28 . Algo similar poderia rock", é a combinação de elementos das


obviamente ser dito a respeito de Estados de tradições da Europa e da África que faz maior o
várias partes do mundo, do Japão ao Brasil, que sucesso 30 . O jazz é um exemplo famoso. A música
adotaram e adaptaram instituições políticas do Brasil é outro, enquanto que um terceiro
ocidentais como o parlamento. exemplo vem de Cuba, as "músicas mulatas"
A música fornece outra rica gama de exem- estudadas por Alejo Carpentier e Fernando
plos de hibridização. A Ásia tem sido uma grande Ortiz 31 . A salsa é uma mistura em grau ainda
fonte de inspiração para compositores clássicos , maior, já que se originou em Cuba nos anos 1940
nos últimos cem anos. Dentre os compositores e mais tarde foi influenciada pelo jazz e pela
franceses, por exemplo, Claude Debussy se inspi- música de Porto Rico.
rou na música de gamelão de Java, enquanto que O que o último exemplo sugere- assim como
tanto Albert Roussel quanto Maurice Delage visi- muitos outros exemplos - é que devemos ver as
taram a Índia e recorreram a suas tradições mu- formas híbridas como o resultado de encontros
sicais. No caso de Debussy, tem sido dito que a múltiplos e não como o resultado de um único en-
função que Java representou em seu caso foi a de contro, quer encontros sucessivos adicionem no-
intensificar "técnicas que já estavam latentes em vos elementos à mistura, quer reforcem os anti-
sua música " 29 . Em outras palavras, como no caso gos elementos, como no caso da visita de Gilber-
das imagens das deusas discutido acima, a hibri- to Gil a Lagos para dar à sua música um sabor
dização mus ical pode ser analisada em termos de mais africano.
afinidades ou convergências . A atração que o exó- Outro exemplo de hibridização múltipla é o
tico exerce, pelo menos em alguns casos, parece reggae, uma forma de música que se originou na
estar em uma combinação peculiar de semelhan- Jamaica nos anos 1970 e que desde então
ça e diferença, e não apenas na diferença. conquistou a maior parte do mundo, da Alemanha
No caso da música popular, a despeito do ao Japão (onde aparentemente é compreendido
interesse de George Harrison por Ravi Shankar e por meio de esquemas culturais derivados da
de outros casos do que foi chamado de "raga música associada a um festival local, 0-BonJ. Esta
música inclui elementos britânicos, africanos e

28 Jean -Franço is 8ayart, L'Etat en Afrique: la politique du ventre (Paris,


1989),
29 On Debussy , Mervyn Cooke, "The East in the West", in Jonathan 8ellman 30 Jonathan 8ellman, "lndian Resonances in the 8ritish lnva s ion, 1965-
Ced.l The Exotic in Western Music CBoston, 1998), p. 258-80 ; on Roussel 1968", in 8ellman, p. 292-306.
and Delage, Jann Pasler, "Race, Orientalism and Distinction", in Born 31 Alejo Carpentier , Música in Cuba; Fernando Ortiz, Música Afro-cubana
and Hesmondhalgh, p. 86-11 8. (Madrid, 1975), p. 25.
32 C oLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 33

norte-americanos. O reggae foi introduzido na ossos, as durezas, só deixando para a boca do


Grã- Bretanha por imigrantes jamaicanos, que vez menino branco as sílabas moles" 34 . O paralelo com
por outra moravam na mesma parte de Londres o que Gilberto Freyre diz sobre os artesãos
que outros indianos recém-chegados. Um inglês brasileiros suavizarem os ângulos dos móveis
do Punjab, Steve Kapur, que se denomina "indiano ingleses ao imitá-los é mais que óbvio.
apache", cresceu neste ambiente e passou a Também na Europa, exemplos de hibridiza-
combinar a tradição do reggae com a da música ção linguística não são difíceis de encontrar. Nos
bhangra indiana32 . , séculos XVI e XVII, por exemplo, aumentou o grau
Este é o momento apropriado para introdu- de mistura das línguas europeias entre si porque
zir uma ideia que irá voltar à baila nas páginas se- os contatos entre elas foram ficando cada vez
guintes, a ideia de circularidade cultural. Alguns mais numerosos. Por um lado, aumentou a migra-
músicos do Congo se inspiraram em colegas de ção dentro da própria Europa . Por outro, o gra-
Cuba, e alguns músicos de Lagos em colegas do dual dec línio do latim e o crescente uso de línguas
Brasil 33 . Em outras palavras, a África imita a Áfri- vernáculas em textos impressos tornou mais ne-
ca por intermédio da América, perfazendo um tra- cessário do que antes que os europeus aprendes-
jeto circular que, no entanto, não termina no sem uns as línguas dos outros.
mesmo local onde começou, já que cada imitação Outra razão para a hibridização linguística
é também uma adaptação. na época foi que os exércitos europeus estavam
Como a música, a linguagem oferece muitos ficando maiores, especialmente durante a Guerra
exemplos notáveis de hibridização. As letras dos dos Trinta Anos, de 1618 a 1648, e também se
reggae são compostas em uma língua mista, o tornando mais internacionais. A comunidade de
crioulo jamaicano. No caso do Brasil, uma vigorosa fala mi lit ar deu uma importante contribuição para
passagem de Casa Grande e Senzala descreve como a mistura das línguas porque os exércitos merce-
o português, "ao contato do senhor com o escravo", nários do período eram organizações internacio-
"sofreu L . .J um amolecimento de resultados às nais, po li glotas e de grande mobilidade. O espa-
vezes deliciosos para o ouvido", porque "a ama negra nhol, por exemplo, forneceu termos técnicos
fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com como armada, camarada, emboscada, escalada e
a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas , os parada, enquanto que o francês forneceu avant-

32 George Lipsitz. Oangerous Cross-Roads: Popular Music, Postmodernism


and the Poetics of Place (London, 1994), p. 14-15. 34 Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1933: Rio de Janeiro 2000J , p.
33 Lipsitz. p. 4, 18. 387.
34 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 35

garde, bayonette, cadet, patrouille e o italiano bat- O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro
taglione, bombarda, infanteria, sentinello e squa- de hoje segue a tradição dos cortejos e carros
drone. Ligeiramente modificados, todos estes alegóricos da Florença e da Nuremberg do século
termos podem ser encontrados em uma ampla XV. Mesmo as referências políticas tão comuns
gama de línguas europeias. no carnaval brasileiro têm paralelos na Europa,
A despeito do surgimento de regras inter- por exemplo, na Espanha do século XVII.
nacionais para o esporte, não é difícil encontrar No entanto, como tantos itens da cultura
exemplos de práticas híbridas também neste do- europeia, o carnaval foi transformado durante
mínio. Um filme feito por um antropólogo nas Ilhas sua permanência nas Américas. Por exemplo, a
Trob iand, na Melanésia, tem por título Trobriand importânc ia da dança torna os carnavais do Novo
Cricket. Os habitantes da ilha aprenderam o jogo Mundo tão característicos em Havana, em Bue-
com os ingleses, mas o adaptaram de modo a nos Aires e em Port of Spain quanto no Brasil. A
permitir que centenas de pessoas jogassem de dança, quer a religiosa, quer a secular, era uma
cada lado e portassem lanças 35 . O futebol brasi- forma de arte particularmente importante na
leiro é um exemplo mais ameno de hibridização , já África trad icional. Era um ritual para provocar a
que segue as regras formais internacionais ao possessão dos dançarinos por espíritos ou deu-
mesmo tempo em que apresenta um nítido est il o ses , como no caso dos iorubas de Daomé e da Ni-
nacional de jogo. A hibridização é ainda mais óbvia géria. Nestes ritua is religiosos, as mulheres tra-
em outra das principais instituições culturais dicionalmente representavam um papel importan-
brasileiras: o carnaval. te. São provave lmente estas tradições africanas
Como outras instituições europeias, o car- que expl icam o papel ativo das mulheres no carna-
naval foi transportado para o Novo Mundo, espe- val das Américas , que saem dançando pelas ruas
cialmente para aquela parte que foi colonizada pe- em vez de ficarem observando das sacadas. No
los católicos do Mediterrâneo. O uso de fantasias Brasil, a participação das mulheres no entrudo já
e máscaras era um costume tradicional europeu, era notada no início do século XIX por visitantes
e mesmo algumas das fantasias favoritas segui- estrangeiros como os ingleses Henry Koster e
ram modelos europeus, dos hussardos e arle- John Mawe 36 .
quins do Rio aos pierrôs e polichinelos de Trinidad.

36 Peter Burke, "A tradução da cultura: o Carnaval em dois ou três


35 O filme está preservado no Departamento de Antropologia da Universidade mundos". in Variedade de história cultural (1997: t rad. Port. Rio de Ja-
de Cambridge. neiro, 2000J, p. 213-30.
36 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 37

POVOS HÍBRI DOS (como em Woman Warrior, da sino -americana


Maxine Hong Kingston) e em outros tipos de tex-
to. inclusive em um livro de prosa e poesia mistas
Os povos híbridos são crucia is em todos es- pub licado pela escritora norte-americana de ori-
tes processos. Dentre eles. temos grupos híbri- gem mexicana Gloria Anzalduá 39 . Uma vida entre
dos como os anglo -irlandeses, os ang lo-indianos e culturas com frequência resulta em uma "cons-
os afro-americanos. O periódico Diasporas Cque ciência dúplice". para usar a famosa expressão de
começou a ser publicado em 1991) é testemunha W. Ou Bois sobre os negros norte-americanos 40 .
do crescente interesse pelo estudo de grupos Os historiadores também têm explorado es-
que por razões religiosas, po líticas ou econômi- tes temas. como a scholar norte-americana Na-
cas se transferiram de uma cultura para outra: tal ie Davis, por exemplo, em um estudo sobre
os gregos de Constantinopla depois de sua cap- três mulheres europeias do século XVII que vive-
tura pelos turcos em 1453; judeus e muçulma- ram na periferia ou no cruzamento de culturas. O
nos da Andaluzia depois da queda do Reino de Gra- fenômeno da conversão, quer voluntária. quer for-
nada em 1492; os italianos depois de 1870 para çada. também tem atraído a atenção, como no
a América do Norte, a América do Sul e a caso dos chamados "renegados" no Império Oto-
Austrália; os chineses para o sudeste da Ásia ou mano . cristãos que viraram muçulmanos 41 .
para a Califórnia nos séculos XIX e XX. Inversamente. o geógrafo do século XVI co-
Não devemos nos esquecer dos indivíduos nhecido no Ocidente como Leão, o Africano foi
híbridos. quer os que já nasceram nesta situação convertido do islamismo ao cristianismo. Ha-
por suas mães e pais serem origin ários de cultu- san-a l Wazzân. seu nome islâmico. nasceu em
ras diferentes. quer os que se viram nela ma is Granada. Depois da expulsão dos muçulmanos em
tarde. de bom grado ou não. por terem sido. por 1492, sua famí li a se mudou para Fez. onde ele fez
exemplo. convertidos ou capturados 37 . O tema de brilhante carreira como diplomata a serviço do
toda uma vida "entre" diferentes cu lturas apare- governante local. Capturado por piratas sicilianos
ce repet idamente em autobiografias recentes Ca
de Edward Said, por exemplo. ou a de len AngJ3 8 .
Pode ser encontrado também em romances 39 Maxine Hong Kingston, Woman Warrior(1976J; Gloria Anzalduá, Bordar-
lands/La Frontara: tha Naw Mestiza (San Francisco. 1987).
40 Paul Gilroy, Tha Black Atlantic (London, 1993).
41 Natalie Z. Davis, Women on the Margins: Thrae Savanteanth-Cantury livas
CCambridge, Mass. , 1995J; 8artholomé 8ennassar and Luci lle 8ennassar .
37 Linda Colley , Captives (London. 2002). Las chrétians d'AIIah (Paris, 1989); Lucetta Scaraffia, Rinnegati: per una
38 Said, Out of Placa; Ang. On Not Spaaking Chinesa. storia del/'idantitá occidenta/e CRome, 1993).
38 CoLEÇÃO Awus

em 1518, Hasan foi levado a Roma e apresentado


ao papa Leão X. Convertido ao cristianismo e bati-
zado pelo papa, Hasan assumiu o nome Leão e es-
creveu sua famosa descrição da África. Recente- 2. VARIEDADES DE TERMINOLOGIAS
mente foi transformado no protagonista de um
romance, assim como no tema de uma monogra-
fia erudita. Os autores dos dois livros são tam-
bém híbridos culturais, árabes que escrevem em
francês 42 , o que é muito apropriado. A variedade de objetos híbridos é superada
Hasan-al Wazzân é um bom exemplo do hí- pela quantidade de termos que hoje podem ser
brido como mediador cultural, assim como vários encontrados nos textos de scholars que descre -
tradutores, a serem discutidos mais tarde neste vem o processo de interação cultural e suas
ensaio Cp. 56, p. 97). E também alguns scholars, consequências. De fato, temos palavras demais
entre eles Ananda Coomaraswamy. Nascido no em circulação para descrever os mesmos fenô-
Sri Lanka em 1877 de pai cingalês e mãe inglesa, menos. No mundo acadêmico, a América foi re -
levado para a Inglaterra aos dois anos, mas retor- descoberta e a roda reinventada muitas vezes,
nando para o Sri Lanka aos vinte e poucos anos, essencialmente porque os especialistas de uma
Coomaraswamy transformou a mediação entre o área não têm tomado ciência daquilo que seus vi-
Oriente e o Ocidente em carre ira, escrevendo li- zinhos andavam pensando.
vros como Medieval Sinha/ese Art (1808), The ln- Muitos dos termos são metafóricos, o que os
dian Craftsman ( 1808) e Rajput Painting ( 181 6) e torna ao mesmo tempo mais vívidos e mais
enfatizando paralelos entre a arte asiática e enganosos do que a linguagem simples. Cinco
aquela da Idade Média europeia na visão dos gurus metáforas em particular dominam as discussões,
britânicos de Coomaraswami, John Ruskin e Wil- extraídas respectivamente da economia, zoologia,
liam Morris (dono da famosa gráfica em Kelm- metalurgia, culinária e linguística. Estarei, portanto,
scott que ele usava para imprimir seus livros). discutindo as ideias de empréstimo, hibridismo ,
caldeirão cultural, ensopadinho cultural e finalmente,
tradução cultural e "crioulização".
O objetivo desta seção não é dizer que al-
guns dos termos de nossa cai xa de ferramentas
42 Amin Malouf. Léon /'Africain (Paris, 1986); Oumelbanine Zhiri, L 'Afrique au intelectual estão corretos e outros não. E tam-
miroir de I'Europe: Fortunes de Jean Léon /'Africain à la Renaissance,
Geneva (1991 J.
bém não é condenar as metáforas que se prolife-
39
40 C o LEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 41

ram nesta área, de "hibridismo" a "crioulização " , IMITAÇÃO E APROPRIAÇÃO


muito embora mais tarde eu vá argumentar que
as metáforas linguísticas são mais esclarecedo -
ras do que suas rivais. Minhas principais teses Na história do Ocidente, uma das maneiras
são que todos os termos, metafóricos ou não , como a interação cultural tem sido discutida des-
precisam ser manuseados com cuidado e que é de a Antiguidade Clássica é por intermédio da
mais fácil fazer isso se virmos a linguagem da ideia de imitação. O lado positivo pode ser encon-
análise como sendo ela mesma parte da história trado na teoria literária clássica e na da Renas-
da cultura . cença·, nas quais a imitação criativa foi apresen-
A teoria da cultura não foi inventada ontem. tada como a emulação de Cícero , Virgílio e de ou-
Pelo contrário, ela se desenvolveu gradualmente a tros modelos de prestígio 44.
partir do modo como indivíduos e grupos têm No entanto , humanistas que se descreviam
refletido sobre as mudanças culturais através dos como estando engajados em imitação criativa
séculos. É certamente axiomático que os scholars ainda podiam descrever seus colegas como
devem levar muito a sério as opiniões expressas estando imitando de modo servil, "macaqueando ".
pelos povos que eles estudam. Este axioma implica A mesma acusação foi feita contra quem seguia
prestar atenção não apenas ao "saber local", como modelos estrangeiros na vida diária, modelos
o antropólogo norte-americano Clifford Geertz italianos na Renascença, modelos franceses nos
admiravelmente recomendou, mas também ao que séculos XVII e XVIII, modelos ingleses nos séculos
poderia ser chamado de "teoria local", a conceitos XVIII e XIX. No Brasil, a crítica à "macaqueação" ,
como "imitação" ou "acomodação"43. feita pelo padre Lopes Gama e outros, seguia,
ironicamente, os modelos estrangeiros que os
críticos estavam condenando 45.
Uma alternativa à imitação era a ideia de
apropriação ou, mais vividamente, "espoliação " ,
cujo contexto original eram as discussões trava-
das pelos teólogos agora reverenciados como

44 G. W. Pigman 111 . "Versions of lmit at ion in the Renaissance". Renaissance


Quarterly 33 (1 980l . p. 1-32.
45 Maria Lúc ia Pallares -Burke , Nísia Floresta, O Carapuceiro e Outros En-
43 Cliffor d Geert z, Local Knowledge (New York, 1983). saios de Tradução Cult ural (São Pau lo, 1996).
42 C oLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTU RAL 43

Doutores da Igreja sobre os usos da cultura pagã O lado negativo da ideia de apropriação po-
que eram permitidos aos cristãos. Basil de Cesa- de ser encontrado em acusações de plágio , que
rea , por exemplo, defendeu uma apropriação sele- começaram muito antes das leis de direito auto-
tiva da Antiguidade pagã, seguindo o exemplo das ral entrarem em vigor. No latim clássico , o termo
abelhas, que "nem abordam igualmente todas as plagiarius originalmente se referia a alguém que
flores, nem tentam carregar por in teiro aquelas sequestrasse um escravo, mas foi aplicado pelo
que escolhem, mas pegam apenas aquilo que é poeta Martial ao furto literário. O termo foi revivi-
adequado a seu trabalho e deixam o resto intoca- do na Renascença. Era comum os escritores dos
do". Santo Agostinho , citando o Êxodo , usou a lin- séculos XVII e XVIII se acusarem mutuamente de
guagem mais dramática dos "despojos dos egíp- roubo Uarceny em inglês , /arcin em francês, ladro-
cios ". São Jerônimo se expressou em termos se- neccio em italiano e assim por diante).
melhantes46. Um terceiro termo tradicional é o de " em -
Essa abordagem da troca cultural foi revivi- préstimo " cultural. Foi muitas vezes um termo
da na Renascença e vem sendo revivida novamen- pejorativo, como no caso do scholar e impressor
te em nossa época. Consciente ou inconsciente- francês Henri Estienne, por exemplo, um purista
mente, teóricos contemporâneos da apropriação, da língua que escreveu sobre "chefes de família
notadamente os católicos franceses Michel de incompetentes" Cmauvais ménagersl que empres -
Certeau e Paul Ricoeur, têm se inspirado na tradi- tavam dos vizinhos o que já tinham em casa. E
ção cristã. Poder-se-ia descrever este processo também Adamantios Korais, um dos líderes do
como "os despojos de Santo Agostinho " 47 . As fa- movimento pela independência da Grécia , conde -
mosas discussões sobre "antropofagia " do início nava "emprestar de estrangeiros (. .. ) palavras e
do século XX no Brasil são uma variante desta frases disponíveis na própria língua ". E Euclides
abordagem , interessados como estavam em pe- da Cunha denunciou a cultura brasileira como
gar as coisas estrangeiras e digeri -las ou domes- "uma cultura de empréstimo" 4 8 .
ticá-las . É certamente significativo que o termo "em -
prést imo" tenha adquirido um sentido mais posi -
tivo na segunda metade do século XX. De aco r do
com o historiador francês Fernand Braudel , po r
exemplo , "pour une civilisation, vivre c 'est à la fois
46 Werner Jaeger, Early Christianity and Greek Paideia (Cambridge, MA,
1962).
47 Miche l de Cert ea u, L'invention du quotidien (Paris, 1980J; Paul Ricmur .
"Appropriat ion". in Hermeneutics and the Human Sciences. ed. John B.
Thomp so n (Cambridge, 198 3 l , p. 1 8 2-9 3 . 48 Euc lides da Cun ha, Os Sertões (1902: 2 vo ls , São Pau lo , 1983).
44 CoLEÇÃO Aw us H IBRIDISMO CULTURAL 45

être capable de donner, de recevoir, d'emprunter". pio é um projeto atual de pesquisa coletiva finan -
Mais recentemente, Edward Said declarou que "A ciado pela European Science Foundation e dirigido
história de todas as culturas é a história do em- pe lo historiador francês Robert Muchembled com
préstimo cu ltural" 49 . De forma seme lhante, Pau l o títu lo bilíngue de Cultural Exchange/ Transferts
Ricceur e outros teóricos têm usado o termo culturels.
"apropriação" em um sentido positivo. A expressão "troca cultural " passou a ser
Um termo mais técnico é "aculturação" , cu- usada habitualmente apenas recentemente , em-
nhado em torno de 1880 pelos antropó logos bora já tivesse sido utilizada na obra do scholar
norte-americanos que estavam trabalhando com alemão Aby Warburg no início do século XX53 . Sua
as culturas dos índios 50 . A ideia fundamental era popu laridade hoje, substituindo termos mais anti-
a de uma cultura subordinada adotando caracte- gos como "empréstimo" , se deve em parte a um
rísticas da cultura dominante. Em outras pala- crescente relativismo . No entanto, o termo "tro -
vras, "assimilação " , uma palavra frequentemente ca" não deve ser entendido como implicando que
usada em discussões do início do século XX sobre qualquer movimento cultural em uma direção
a cultura da nova onda de imigrantes nos Estados está assoc iado a um movimento igual mas oposto
Unidos. O sociólogo cubano Fernando Ort iz se na outra direção: a relativa importância do movi-
aproximou mais da ideia contemporânea de reci- mento em diferentes direções é uma questão
procidade quando sugeriu a substituição da noção para a pesquisa empírica.
de "aculturação" de mão única pela de "transcul-
turação" de mão dupla 51.
Outro termo técnico é "transfe r ência", cu-
nhada por historiadores da economia e por histo- ACOMODAÇÃO E NEGOCIAÇÃO
riadores da tecnolog ia e agora usada mais ampla -
mente para se referir a outros tipos de emprésti -
mos52. Um exemplo recente deste uso mais am- Um conceito tradicional que tem reapareci-
do é o de "acomodação" . Na Roma Antiga, Cícero
usou este termo em um contexto retórico para
49 Fe rn an d 8 ra ude l. La M éditerranée et te monde méditerranéen à /'époque se referir à necessidade de os oradores adapta-
de Philippe //(1949: second ed. Par is 1966J; Edward Said. Culture and im-
perialism.
50 Alphonse Dupront . L 'acculturazione CTorino. 1966).
51 Ortiz. Contrapunteo.
52 Peter J . Hugill and O. 8ruce Dickson. The Tr ansfer and Transformaeion of 53 Aby Warburg, "Austausch künstlerische Ku lt ur zwischen Norden und
Ide as and Material Culture (College Statio n Texas , 1988). Süden" C1 9 05l, r pr his Gesammelte Schriften Cleipzig, 1932). p. 179-84.
46 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 47

rem seus estilos às suas plateias. Os europeus ra semelhante, o jesuíta Roberto de Nobili, que
do início da Idade Média, notadamente o papa São trabalhava no sul da Índia vestido como um santo
Gregório, o Grande, adaptaram o conceito a um local e permitia que seus convertidos brâmanes
contexto religioso, observando a necessidade de continuassem usando seus cordões sagrados, se
tornar a mensagem cristã aceitável aos pagãos defendeu da acusação de tolerar o paganismo ci-
da Inglaterra e de outras partes do mundo. De tando São Gregório, o Grande 56 .
acordo com São Gregório, os templos pagãos não Recentemente, o termo "acomodação" foi
deviam ser destruídos, mas convertidos em igre- ressuscitado, notadamente por historiadores da
jas para facilitar a aceitação da nova religião. A religião que criticam os conceitos de "acultura-
construção de igrejas nos locais dos templos, ção " (porque implica modificação completa) e
como no caso de Santo Domingo (supra, 24-5), "sincretismo" (porque ele sugere uma mistura
seguiu as recomendações de São Gregório. deliberada). No entanto, o termo está alterando
Seguindo este modelo, os missionários do seu significado de modo a incluir os dois parceiros
século XVI, como o jesuíta italiano Matteo Ricci, do encontro, o "convertido" assim como os mis-
falavam da "acomodação" do cristianismo a novos sionários . Na medida em que os scholars tentam
ambientes como a China. Foi assim que ele justifi- com mais afinco ver os dois lados dos encontros
cou seu costume de se vestir de mandarim, para religiosos, estão ficando cada vez mais convenci-
aproximar as ideias religiosas que estava pregan- dos de que o resultado não foi tanto conversão
do dos chineses, e permitir aos convertidos con- quanto uma forma de hibridização.
tinuarem com as práticas tradicionais de culto Desta forma, um relato recente dos jesuí-
dos ancestrais, que Ricci interpretava como um tas na China concorda que os mandarins pratica -
costume social e não uma forma de religião 54 . ram a acomodação tanto quanto os jesuítas. Eles
Também no Japão alguns jesuítas seguiram o mé- não viam a si mesmos - como os jesuítas os viam
todo de acomodação, usando quimonos de seda, -como substituindo o confucionismo pelo cristia-
comendo da maneira japonesa e chamando Deus nismo. Pelo contrário, eles encaravam o novo sis-
por um dos nomes de Buda, Oainich155 . De manei- tema de crença como complementar ao tradicio -
nal. A mudança cultural aconteceu, como sói
acontecer, por acréscimo e não por substituição.
54 Johann es Bettray, Die Akkomodationsmethode des Matteo Ricci in China
(Rome, 19551; David Mungello, Curious Land: Jesuit Accommodation and
the Origins of Sinology (Stuttgart, 19851.
55 George Elison, Deus Oestroyed: the lmage of Christianity in Early Modern
Japan (Cambridge, Mass .. 1973), p. 54-84. 56 Pierre Oahmen, Un Jésuite Brahme: Robert de Nobili (Louvain, 19241.
48 CoLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 49

Termos alternativos a "acomodação" são MISTURA, SINCRETISMO, HIBRIDIZAÇÃO


"diálogo" e "negociação", ambos enfatizando uma
visão de baixo para cima e as in ic iativas dos con-
vert idos assim como as dos missionários57_ Nos séculos XVI e XVII, o pr ocesso de aco -
O conceito de negociação em particu lar se modação foi por vezes cri t icado por levar a mistu-
tornou cada vez mais popular em estudos cu ltu- ra ou sincretismo. Mistura, " miscelânea" ou "mi -
rais em vários contextos. No nível microcósmi- xórdia" era visto como desordem. No México do
co, tem sido usado para analisar as discussões sécu lo XVI, o frade dominicano Durán usou termos
entre pacientes e médicos a respe ito das doen- como mezc!ar e até "salada" para se referir à reli-
ças, conversas que levam os do is lados a revisar gião do povo 59 .
seus diagnósticos originais. No nível macrocósmi- Como a mistura de crenças religiosas, a
co, o termo tem sido empregado para ana li sar o mistura de línguas foi muitas vezes criticada, às
diálogo entre dois s istemas intelectuais, o da eli- vezes em termos culinários como latim macarrô-
te e o popular, por exemplo. É frequentemente nico. O inglês e o iídiche foram condenados como
empregado em análises de etn icidade porque ex- línguas corruptas ou mistas. Por outro lado , Mar-
pressa consciência da multiplicidade e da fluidez tinha Lutero, antecipando os linguistas moder-
da identidade e o modo como ela pode ser modifi- nos , em certa ocasião observou que "Todas as lín-
cada ou pelo menos apresentada de diferentes guas são mistas" Wmnes linguae inter se permix-
modos em diferentes s ituações5 8 . tae sunt). Hoje, o conceito de língua mista setor-
nou respeitáve l em linguística, e a media !engua
do Equador e o mix-mix das Filipinas são agora ob-
jeto de estuda 6 o.
Os historiadores brasileiros poderiam da r
atenção semelhante ao ítalo-português fa lado em
São Pau lo no iníc io do século XX, utilizando as car-
tas de imigrantes recentes assim como a lingu a-
gem macarrônica estilizada de figuras literárias
57 Lou ise M. Burkhart . Th e Slippery Earth: Nahua-Christian Moral Dialogue in
Sixteenth-Century Mexico (Tuc s on, 1989); Amo s M eg ged. Exporting the
Reformation: Local Religion in Early Colonial Mexico (Lei den , 199 6 ), p.
5- 1 2.
58 Anthony O. Buckley and Mary C. Kenney, Negotiating ldentity: Rhetoric, 59 Gru zin s ki, Pensée, p. 235, 2 80.
Metaphor and Social Drama in Northern lreland (Was hington. 199 5); 60 Pet er Bakk er e Maarten M aus (eds .l Mixed Languages (Am s t erdam,
Jeffrey Lesser, Negotiating Nationalldentity (Stanford. 1999l. 199 4).
50 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 51

cômicas como Juó Bananére 61 . Neste caso está processos semelhantes incluíram "harmonização" ou
particularmente claro que o hibridismo é muitas conciliatio para descrever as tentativas de alguns
vezes, senão sempre, um processo e não um es- scholars da Renascença de reconciliar o paganismo
tado, já que esta língua macarrônica marcou um com o cristianismos3.
estágio da assimilação dos imigrantes na cultura No século XIX, a palavra "sincretismo" tam-
brasileira. bém adquiriu um significado positivo no contexto
Uma metáfora que tem uma função seme- de estudos de religião na Antiguidade clássica e
lhante é a de "fusão". Deste modo Karl von Marti- especialmente as identificações, tão comuns no
us sugeriu em 1844 que a história do Brasil pode- período helenístico, entre deuses ou deusas de
ria ser escrita em termos da "fusão" de três ra- diferentes culturas (a deusa fenícia Astarté, por
ças, enquanto que Gilberto Freyre escreveu so- exemplo, foi identificada com Afrodite, e o deus
bre a "fusão harmoniosa de tradições diver- egípcio da escrita, Tot, com Hermes) 64 . Dos clás-
sas"62. Hoje, inspirada pela física nuclear, a lin- sicos, o termo passou para a antropologia. O
guagem da fusão é popular em contextos que vão norte-americano Melvil le Herskovits, por exem-
da música à culinária. Asian fusion, por exemplo, plo, descobriu que o conceito de sincretismo "aju-
se refere a restaurantes norte-americanos que dava a aguçar" suas aná lises de contatos entre
servem uma variedade de culinárias orientais. A culturas, especialmente no caso da religião
fusão não está longe da famosa metáfora dos afro-a mericana (por exemplo, a identificação en-
Estados Unidos como "caldeirão" cultural, títu lo tre Santa Bárbara e o deus Xangô)B 5 .
de uma peça que estreou em Nova York em 1908 A metáfora botânica ou racial mais vívida de
que exprimia dramaticamente a aceitação dos "hibridismo" ou hibridização" Cem francês métis-
imigrantes como "americanos". sage, em português mestiçagem, em espanhol
Quanto a "sincretismo", foi originalmente um mestizaje, em italiano /etteratura meticcia, em in-
termo negativo, utilizado para deplorar tentativas glês hybridity ou hibridization) foi especia lmente
como aquela do teólogo alemão Georg Calixtus, no popular nos séculos XIX e XX, tendo surgido a par-
século XVII, de unir diferentes grupos de protestantes. tir de expressões insultuosas como "vira-latas"
Significava "caos religioso". Termos positivos para

63 Michael Albrecht , Eklektik: Eine Begriffsgeschichte mit Hinweisen auf die


Philosophie und Wissenschaftsgeschichte (Stuttgart, 19941.
61 Mario Carelli, Carcamanos e Comendadores: Os italianos de São Paulo da 64 Ulrich Berner. Der Synkretismus-Begriff (Wiesbaden, 19821.
realidade à ficção (1919-1930J (São Paulo, 1985), especialmente p. 65 Melville J. Herskovits , "African Gods and Catholic Saints in New World
52-3, 103-22. Negro 8e lief" . American Anthropologist (19371, p. 635-43; cf. Andrew
62 Freyre, Casa Grande, 123. Apter (19911, "Herskovits's Heritage", Oiaspora 1, p. 235-60.
52 CoLEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 53

ou "bastardo" e dado origem a sinônimos como çou seu ponto máximo durante a Renascença e
"fecundação -cruzada "56. ajudou a estimular inovações literárias e a criati-
Na obra de Gilberto Freyre, esta era uma vidade, de maneira mais óbvia na obra de François
ideia central, descrita em seu rico vocabulário de Rabelais6 8 .
várias maneiras diferentes , incluindo hibridização, Hoje, o termo "hibridismo" aparece com
miscigenação , mestiçagem e interpenetração, as- frequência em estudos pós-coloniais, na obra de
sim como acomodação, conciliação e fusão. Os Edward Said, por exemplo. "Todas as culturas es-
conceitos de métissage e interpénétration foram tão envolvidas entre si", escreve Said a respeito
centrais também nas análises da religião afro - de nossa situação atual, "nenhuma delas é única
americana feitas pelo sociólogo francês Roger e pura, todas são híbridas, heterogêneas" 69 .
Bastide, um admirador, senão exatamente um Embora ele trate o termo com mais ambivalência,
discípulo, de Herskovits e Freyre 67 . ou melhor, enfatize sua ambivalência, a ideia de hi-
Em um local muito diferente, tanto geográfi- bridismo também é central na obra de Homi
ca quanto intelectualmente, na Rússia, e na lin- Bhabha 70 .
guagem e na literatura, em vez de na história so- Muito menos conhecida, mas igualmente
cial ou sociologia, o especialista em teoria literá- esclarecedora na análise da mudança cultural, é o
ria Mikhail Bakhtin, como Freyre, chamou atenção conceito de "ecótipo", empregado pelo folclorista
para a importância do hibridismo cultural. A no- sueco Carl von Sydow. Como "hibridismo", este
ção de Bakhtin de hibridismo estava ligada a dois termo foi originalmente cunhado por botânicos
conceitos que foram centrais para seu pensa- para se referir a uma variedade de planta adaptada
mento, "polifonia" e "heteroglossia", que se refe- a um determinado ambiente pela seleção natural.
rem à variedade de linguagens que podem ser en- Carl von Sydow tomou-o emprestado para analisar
contradas em um mesmo texto. Por exemplo, ele
descreveu a sátira Cartas de homens obscuros,
do século XVI, como um "híbrido linguístico com-
plexo intencional" de latim e alemão, que ilustra a 68 Mikhail 8akhtin, The Dialogical lmagination (Au stin, 1981 J, p. 80 -2,
"estimulação recíproca de linguagens" que alcan- 358-9 (um vo lume de ensaios originalmente publicado na Rússia em
1975). Cf. Ga - ry S. Morson and Caryl Emerson. Mikhail Bakhtin: Cmation
of a Prosaics (Stanford, 1990J, p. 139-45.
69 Edward Said, Culture and lmperialism (London, 1993), xxix; cf Homi K.
Bhabha, The Location of Cultura (London. 1994), p. 112-15; Pnina
66 Robert J. C. Young, Colonial Oesire: Hybridity in Theory, Cultura and Race Werbner and Tariq Modood (edsl, Oebating Cultural Hybridity (London.
(London. 1 995). 1997).
67 Roger Bast ide, Les religions africaines au Brésil; vers une sociologia des 70 Bhabha, Location, especialmente 111-18. On Bhabha, Bart Moore-Gilbert,
interpénétrations des civi!isations (Paris, 1 960J. Postcolonial Theory (London, 1997), p. 114-51.
54 CoLEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 55

modificações em contos folclóricos, que ele via sincretismo, além da lógica da escolha, o que
como adaptados a seus ambientes culturais 71 . precisa ser investigado em especial é até que ponto
Os estudiosos das interações culturais po- os diferentes elementos são fundidos (como quem já
deriam seguir o paradigma de Sydow e discutir, usou um mixer de cozinha sabe, há graus de
digamos, formais locais - arquitetura barroca fusãoF 2 . Quanto ao hibridismo, é um termo
tcheca, por exemplo - como variantes regionais escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e
de um movimento internacional, variantes com metafórico, descritivo e explicativo 73 .
suas próprias regras. A existência de ecótipos Os conceitos de sincretismo, de mistura e
sugere que precisamos tomar consciência de for- de hibrid ismo têm também a desvantagem de pa-
ças centrífugas assim como de forças centrípe- recerem excluir o agente individual. "Mistura" soa
tas. Como a história das linguagens e dos diale- mecânico. "Hibridismo" evoca o observador exter-
tos, a história da cultura em geral pode ser vista no que estuda a cultura como se ela fosse a natu-
como uma luta entre estas duas forças. Às vezes reza e os produtos de indivíduos e grupos como se
uma tendência predomina, às vezes a outra, mas fossem espécimens botânicos. Conceitos como
elas alcançam um certo equilíbrio no longo prazo. "apropriação" e "acomodação" dão maior ênfase
ao agente humano e à criatividade, assim como a
ideia cada vez mais popular de "tradução cultural",
usada para descrever o mecanismo por meio do
CONCEITOS EM QUESTÃO qua l encontros culturais produzem formas novas e
híbridas.

Supõe-se que os conceitos nos ajudem a re-


solver problemas intelectuais, mas frequentemente
criam problemas próprios. No caso da
"apropriação", por exemplo, o grande problema é
descobrir a lógica da escolha, o fundamento lógico,
consciente ou inconsciente, para a seleção de
72 Charles Stewart and Rosalind Shaw (edsl Syncretism/anti-Syncretism
alguns itens e a rejeição de outros. No caso do (London, 1994J; Sergio F. Ferretti, Repensando o sincretismo (São
Paulo, 1995J; Stephan Palmié, "Against Syncretism : Africaniz ing and
Cubanizing Oiscourses in North American Orisa Worship". in Richard
Fardon (edl, Counterworks (London, 1995), p. 73-1 04; Charles Stewart,
"Syncretism and its Synonyms: Reflections on Cultural Mixture". Oia-
71 Carl von Sydow. Selected Papers on Folklore (Copenhagen, 1948). p. 11 ff, critics 29.3 C1999l: p. 40-62.
44ff. 73 Young, Colonial Oesire.
56 CoLEÇÂO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 57

TRADUÇÃO CULTURAL mentos e as ações de todos. O insight crucial por


trás desta extensão foi expresso com brevidade
exemplar por Georg Steiner. "Quando lemos ou
Das diferentes metáforas usadas para des- ouvimos qualquer enunciado do passado ... nós
crever o assunto deste ensaio, a metáfora traduzimos ". Ou ainda : " no interior de um idioma
linguística me parece ser a mais útil e a menos ou entre idiomas, comunicação humana é o mes-
enganosa. Uma das formas que assume é a ex- mo que tradução" 75 .
pressão "tradução cultural", usada pela primeira Um historiador da cultura poderia querer
vez por antropólogos. Bronis law Mal inowski, por acrescentar a sugestão de que a metáfora des-
exemplo (polonês que imigrou para a Inglaterra e creve algumas situações humanas melhor do que
estudou a Melanésial , sustentou que "aprender outras, especialmente situações nas quais o en-
uma cultura estrangeira é como aprender uma contro é entre as pessoas de culturas diferen -
língua estrangeira" e que em seus livros ele esta- tes. Por exemplo, quando Vasco da Gama e seus
va tentando "traduzir as condições da Melanésia homens entraram em um templo indiano em Cal-
para as nossas". No entanto, a ideia de que com- cutá e se defrontaram com uma imagem com a
preender uma cultura estrangeira era análogo ao qual não estavam fami liarizados, as cabeças uni-
trabalho de tradução começou a se tornar co - das de Brahma , Vishnu e Shiva, eles perceberam
mum entre antropólogos nos anos 1950 e 1960 a imagem como uma representação da Santíssi-
no círculo de Edward Evans-Pritchard. ma Trindade. Em outras palavras, eles "traduzi-
O contexto original para o surg imento desta ram" a imagem para termos familiares recorren-
metáfora foi o problema prático de como traduzir do aos esquemas visuais ou estereótipos corren-
termos-chave usados pelos povos sendo estuda- tes em sua própria cultura. Neste caso, a tradu -
dos quando não havia termos equivalentes a eles ção foi pr ovavelmente inconsciente.
nas línguas faladas pelos antropólogos. Como os Além disso, podemos descrever missioná- rios
historiadores enfrentam um problema semelhan- como Matteo Ricci, interessados na "acomodação"
te , era mesmo de se esperar que alguns deles se religiosa, como tentando traduzir o cris-tianismo-
sentiriam atraídos para esta ideia 7 4 .
No entanto, o uso da metáfora "tradução da
cultura" não está mais confinado a discussões fi - 74 Thomas O. Beidelman (ed. l , The Translation of Cu/tures (London, 197 1);
Gisli Pálsson (ed. l . Beyond Boundaries: Understanding Translation and An-
losóficas ou semifilosóficas a res peito do que os thropologica/ Oiscourse (Qxford. 1993l ; Pallares-Burke, Nísia Floresta;
antropólogos ou os historiadores da cultura fa - Sanford Bud ick and Wolfgang lser (eds.l , The Translatability of Cultures
(Stanford, 1996).
zem. Foi estendido de modo a incluir os pensa- 75 Geor ge Steiner, After Babel (London, 1975), 28, 47.
58 C o LEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 59

conscientemente desta vez - de um sistema cul- zões de seu apelo original para os antropólogos .
tural para outro. De modo semelhante, a "Tradução" contrasta com termos carregados de
expressão "a tradução de deuses", cunhada pelo valo r es como " mal-entendido , interpretação er-
egiptólogo alemão Jan Assmann , é um modo rônea, engano na leitura, tradu ç ão incorreta , em-
esclarecedor de descrever o que costumava ser prego impróprio " 78 .
conhecido como "sincretismo", em outras Este con t raste entre terminologias mostra
palavras a busca por equivalentes no panteão de a questão da possibilidade de se fazer traduções
uma cultura das principais figuras do panteão de culturais incorretas. O que to r na a questão difícil
outra 76 . de responder é a falta de consenso quanto a quais
Na história da arte ou da música pode ser seriam os critérios para se definir o que seria
esclarecedor pensar em termos semelhantes. uma tradução incorreta. É tentador usar esta ex-
Por exemplo , um estudo recente do estilo de mú - pre s são para descrever a decisão de Matteo Ric -
sica alfa turca, um estilo ocidental inspirado pela co de se vestir como monge budista ao chegar à
música do Império Otomano, descreveu-a como China. Ele tomou esta decisão porque viu os mon -
"um conjunto de princípios de tradução tanto ges budistas como equivalentes locais dos pa-
quanto (ou mais que) um conjunto de dispositivos dres cató li cos, mas abandonou esta ideia quando
de imitação" 77 . Este ínsíght é provavelmente apli- descobriu que os monges budistas tinham uma
cável a outros gêneros e ilustra com particu lar posição soc ial inferior aos olhos da elite confucio-
clareza o valor deste termo como uma alternativa nista que era o alvo principal de suas atividades
a simples ideias de imitação. missionárias.
O termo "tradução " também tem a grande No entanto, nos casos em que indivíduos e
vantagem de enfatizar o trabalho que tem quer grupos , diferentemente de Ricci, persistem em
ser feito por indivíduos ou grupos para domesti- suas traduções culturais , é certamente insensa -
car o que é estrangeiro, em outras palavras, as t o os historiadores tomarem part ido. O que eles
estratégias e as táticas empregadas. É obvia- certamente precisam fazer é levar em conta os
mente um termo neutro, com associações de re- pontos de vista contrários dos doadores - ou
lativismo cultural. Esta foi de fato uma das ra- seja , dos indivíduos da cultura da qual um deter-
minado item foi apropriado - e dos receptores .

76 J ames Cli fford. Person and M yth : M aurice Leenhardt in the M elanesian
W orld (B erkeley , 198 2 ). c h. 5: J an Ass ma nn, "The Translation of Gods",
in 8 ud ick an d !se r, Translatability. 78 Wenchao Li , Die christliche China-M ission im 17. J ht : Verstand nis,
77 M ary Hunt er, "The Alia Turca Style" , in 8 ellma n. p. 43- 73. Unverstan dnis . Mi svers t and ni s (Stuttgart, 2 000J.
60 COLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 61

Para os doadores, qualquer adaptação ou tradu- CRIOULIZAÇÃO


ção de sua cultura parece ser um erro , enquanto
que os receptores podem igualmente perceber
seus próprios ajustes como correção dos enga- Outro modelo linguístico que foi estendido a
nos. Em uma deliciosa e esclarecedora evocação outras formas de cultura é o da "crioulização".
de sua área de trabalho, a antropó loga Laura Bo- Generalizando estudos sobre o Caribe, os linguistas
hannan descreveu o que acontece u quando con - passaram a empregar este termo para descrever
tou a história de Hamlet para um grupo de africa- uma situação na qual uma língua franca ou pidgin an-
nos ocidentais . Os mais velhos insistiam em cor- terior desenvolve uma estrutura mais complexa na
rigir seus " enganos " e em exp licar a ela o "verda- medida em que as pessoas começam a utilizá-la
deiro significado" da história , adaptando-a à sua para propósitos gerais ou mesmo a aprendê-la como
cultura 79 . sua primeira língua 80 . Usando como base suas
Um dos problemas que estes desacordos afin idades ou congruências, duas línguas em
revelam com clareza é o problema da traduzib ili- contato se modificam e ficam mais parecidas e
dade. Só porque muitas tentativas de tradução ass im "convergem" e criam uma terceira, que
cultural foram feitas não quer dizer que os ele- freq uentemente adota a ma ior parte de seu
mentos da cultura sejam plenamente traduzíve is. voca bu lário de uma das línguas originais e sua
De fato, pensando na possível direção da pesqui- estrutura ou sintaxe da outra. No caso da media
sa futura. poderia ser frutífero que os scholars lengua do Equador, por exemplo, o vocabulário é
prestassem mais atenção àquilo que em uma principalmente espanhol enquanto que a
dada cultura mais resiste à tradução, e ao que se estrutura é oriunda do quíchua 81 .
perde no processo de tradução de uma cultura Seguindo mas também ampliando este mo-
para outra. delo, alg uns scholars escreveram a respeito da
"criou lização" de culturas inteiras. O antropólogo
sueco Ulf Hann erz descreve culturas crioulas
como aq uelas que tiveram tempo de "se aprox1-

80 Dell Hymes (ed.l, Pidginisation and Creolisation of Languages (Cambridge.


1971).
79 Laura Bohannan. "Shakespeare in the Bush" (1966, reimpresso em Da- 81 Peter Bakker and Maarten Maus (eds.l, Mixed Languages (Amsterdam,
vid S. Kaston, (ed.J, Critica/ Essays on Shakespeare's Hamlet. New York 1994); cf. Sara h G. Thomason, Language Contact (Edinburgh, 2001 l, p.
1995, p. 9-18). 89-90, 125.
62 C OLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 63

mar de certo grau de coerência" e "podem juntar uma língua mista que poderia ser descrita como
as coisas de novas maneiras" 82 . Vários scholars um pidgin ou um crioulo científico 84 .
sugeriram a relevância deste modelo linguístico Nestes estudos, a língua funciona não como
para o estudo do desenvolvimento da religião , da uma metáfora, mas como um modelo , utilizado
música, do estilo de moradia, vestuário e culinária consciente e sistematicamente e fazendo uso em
afro-americana. Eles estudaram o processo de particular da distinção entre vocabulário e gra -
convergência cultural em locais e períodos espe - mática ou estrutura profunda. A ideia de " conver-
cíficos, como na Jamaica do século XVII , novamen- gência" está se demonstrando útil fora assim
te utilizando o termo "crioulização" para se refe- como dentro do domínio da linguística no qual foi
rir à emergência de novas formas culturais a par- originalmente formulada.
tir da mistura de antigas formas 8 3 . Pode-se dizer Resumindo esta seção : embora ainda exis -
a mesma coisa a respeito do Brasil, onde diferen- tam termos e conceitos demais em circulação
tes culturas africanas se fundiram e se mesc la- para descrever e analisar os processos que são o
ram com tradições nativas e portuguesas e pro- assunto deste ensaio, precisamos de vários deles
duziram uma nova ordem. para fazer justiça tanto ao agente humano (como
O conceito de crioulização começou a ser no caso da "apropriação " ou da "tradução cultu-
usado de forma mais ampla para discutir as cu ltu- ral") quanto às mod ificações das quais os agen -
ras européias, por exemplo, ou disciplinas intelec- tes não têm consc iência (como no caso da "hibri-
tuais . Até a historia da ciência está começando a dização" e da "criou lização").
ser discutida nestes termos em um trabalho que
descreve grupos das diferentes "subculturas" da
física do século XX (físicos experimentais , por
exemplo , e físicos teóricos) que se comunicam em

82 Lee Dru mm ond , "The Cultural Cont inuum", M an 15 (1980J, p. 352-74:


Ulf Hannerz . "The Wo r ld in Creolization", Africa 57 (19871, 546-59. Uma
crit ica a essa abordagem pode ser encontrada em J onathan Fried man,
Culturalldentity and Global Pr ocess (Lon don. 19941, p. 195-232.
83 Ch ar les J oyner (19 8 91 , "Cre ol iza t ion", in Encyclopaedia ofSouthern Cul-
t ure, (ed.1 C. R. W ilson and W . Ferri s , Chapel Hill , p. 147-9: Ulf Hannerz,
Cult ural Complexity (Nova York, 199 21, p. 264: Davi d Bui sseret and Ste-
ven G. Rei nhardt (eds1. Creo/ization in the Americas (A rlingto n, 2 000J , p. 84 Pet er Ga lis on, lmage and Logic : A M ater·ial Culture of Microphysics (Chi-
19-33 . cago , 19971, p. 47.
3. VARIEDADES DE SITUAÇÕES

Outra razão para se manter um r ico vocabu -


lário neste domínio é que a variedade de situa-
ções, contextos e locais nos quais ocorrem en-
contros cu lturais torna necessário um vocabulá-
rio apropriado para sua aná lise , distinguindo en-
tre encontros de iguais e de desiguais, por exem -
plo, entre trad ições de apropriação e resistência,
e entre locais de encontro, da metrópo le à fron-
te ira.

IGUAIS E DES IGUAIS

Os re latos de encontros culturais entre


iguais em termos de poder e aqueles entre desi-
guais têm enredos diferentes. Havia, por exem-
plo, um profundo contraste entre as técnicas dos
missionários católicos na China CMatteo Ricci ,
por exemplo) e as de seus colegas no México,
Peru ou Brasil. Na China, os missionários eram
uma minoria m inúscula. A situação portanto favo-
recia os que faziam o empréstimo cultural e não
65
66 C oLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 67

os emprestadores. Os missionários europeus fo - nos. Os missionários acreditavam que haviam


ram forçados a convencer seus ouvintes , em ou - conseguido convertê-los , mas há provas de que
tras palavras a se adaptar à cultura nativa, a fa - os dirigentes viam a si mesmos como simples-
zer concessões. Seguindo seu mote (pego em- mente incorporando novas e poderosas práticas
prestado por Inácio de Loyola de São Paulo) de se- à sua religião tradicional. É pos sível que os dois
rem "tudo para todos", os jesuítas se acomoda- lados estivessem pelo menos em parte cientes de
ram à cultural local tão eficazmente que foram suas diferenças, mas preferiram não falar a res-
acusados por seus críticos de terem sido conver- peito delas , criando assim o que tem sido chama-
tidos pelos chineses 85 . do de " mal-entendido tácito" , que evitava o confli -
No México e no Peru, assim como no Brasil, to expl ícito 87 .
os missionários, por outro lado, puderam usar a Esta situação pode ser comparada àquela
força ou ameaçar usar a força para impor o cris- dos escravos africanos nas Américas, que às ve-
tianismo aos índios. A troca cultural nas colônias zes aparentemente se adequavam ao cristianis -
espanholas e na colônia portuguesa na América mo, principalmente as primeiras gerações de es-
não se deu em pé de igualdade. A iniciativa esteve cravos, ao mesmo tempo em que mantinham
geralmente com os emprestadores, mesmo que suas crenças tradic ionais. A "tradução" de
seja possível perceber exemplos do que tem sido Ogum , Xangô ou lemanjá para seus equivalentes
descrito como "aculturação inversa" em alguns católicos, São M iguel, Santa Bárbara ou a Virgem
domínios, já que os colonizadores gradualmente Maria, permitiu aos cu ltos africanos sobrevive-
adotaram elementos da cultura nativa, do tabaco rem disfarçados entre os escravos no Novo Mun-
à rede 86 . do. A invocação a Santa Bárbara pode ter sido
No caso da interação entre o cristianismo e "para inglês ver". No entanto, o que começou
as re ligiões africanas , dois tipos muito diferentes como um mecanismo con sciente de defesa se de-
de situação precisam ser distinguidos. Um é o da
aceitação do cristianismo pelos dirigentes africa-

87 O. C. Dorward (1974), " Ethnography and Administration: The St udy of


Anglo-Tiv 'Working Misunderstand ing ' ", Journal of African History 15, p.
85 J acques Gernet . Chine et christianisme: action et réaction (Paris, 19821. 457-77; Gwyn Prins , The Hidden Hippopotamus !Cambridge, 1982); cf.
86 Nat han W achtel , La vision des vaincus (Paris, 19731 ; Solange Alber ro , Wyat t Mac Gaffey, "Dialogues of the Oeaf: Europeans on the Atlantic
Les espagnols dans te Mexique colonial: histoire d'une acculturation (Paris, Coast of Africa ", in lmplicit Understandings, ed. St uart Schwartz !Cam-
19 9 2 ). bridge, 1994), p. 2 4 9 -6 7 .
68 C o LEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 69

senvolveu com o passar dos séculos e se trans- chinês, uma língua sem fle xões , e o japonês , uma
formou em uma religião híbrida. língua cheia de fle xões 88 . Até o sistema imperial
de governo foi originalmente emprestado da China ,
embora importantes aspectos tenham s ido
modificados após o surgiment o dos samu r ais e
TRADIÇÕES DE APROPRIAÇÃO dos xoguns no século XII.
Quando os ocidentais fi zeram contato com o
Japão pela primeira vez . no século XVI, descobri-
Em segundo lugar. pode ser esclarecedor ram uma cultura na qual as pessoas eram aber-
distinguir entre culturas com tradições fracas ou tas a novas ide ias e novos artefatos. do cristia -
fortes de apropriação e adaptação (em outras pa - nismo às armas de fogo. Poderíamos . portanto ,
lavras. tradições de modificação de tradições) . A descrever o Japão como tendo uma tradição
cultura hindu, por exemplo, tem uma propensão "aberta". a despeito da famigerada tentativa do
maior para incorporar elementos estrangeiros do governo de fechar o país no início do século XVII e
que (digamos) o Islã. O Japão é outro exemplo isolá -lo de influências estrangeiras (os espanhóis
clássico de uma tradição de apropriação. foram expulsos em 1624 e os portugueses em
A partir de meados do século XIX até hoje, 1638). O fechamento foi, na verdade , uma reação
os japoneses têm emprestado elementos cultu- à rápida disseminação do cristianismo no Japão.
rais do Ocidente com aparente facilidade: o siste- Como culturas inteiras, há locais específi -
ma parlamentarista da Inglaterra, o sistema uni - cos que são particularmente favoráveis à troca
versitário e as práticas militares da Alemanha, e cultural, especialmente as metrópoles e as fron -
a ma ior parte de sua cultura material dos Esta - teiras.
dos Unidos. A velocidade com que os japoneses
começaram a emprestar desta forma depois de
1850 dificilmente seria inteligível se não houvesse
um precedente.
De fato , os japoneses já haviam emprestado
e adaptado muitas tradições culturais entre os
séculos VIII e XVIII, especialmente da China.
Adotaram o budismo em sua versão chinesa. em
vez da forma indiana. Adotaram o sistema de
88 David Poll ack . The Fraccure of M eaning: Japan's Synthesis of China from
escrita chinês , a despeito do contraste entre o the Eighth through the Eighteenth Centur·ies CPr in ceto n, 19 8 6 1.
70 CoLEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 71

A METRÓPOLE E A FRONTE IRA explicar o estilo arquitetônico híbrido dos prédios


da cidade de Lvóv, descrita supra, precisamos
entender a importância daquela cidade no final da
Sempre que ocorre uma troca cultural, Idade Média como posto intermediário no comér-
podemos falar metaforicamente de uma "zona de cio entre a Europa Ocidental e a região do Mar
comércio", como o faz o historiador da ciência Pe- Negro.
ter Galison em um estudo do que ele chama de A importância dos portos como locais de en-
"subculturas" da física do século XX, no qual contro cultural é notável- a Veneza do século XV,
descreve estas zonas como espaços onde "dois a Lisboa e a Sevilha do século XVI, a Amsterdã do
grupos dessemelhantes podem encontrar uma século XVII e assim por diante. Nos séculos XVII e
base para o entendimento mútuo", trocar itens ao XVIII, os portos de Nagasaki e Cantão eram locais
mesmo tempo em que discordam sobre a importantes de troca cultural entre a Europa e a
importância do que é trocado 89 . Que a troca possa Ásia. Mesmo na era da aviação, a importância de
ter significados diferentes para os diferentes Nova Orleans e de Liverpool como pontos de en-
grupos envolvidos é uma questão importante que contro de tradições musicais europeias e africa-
reaparece em outros campos de pesquisa, nas é obvia.
notadamente no estudo da conversão religiosa, O que tornou e ainda torna a metrópole um
como no caso do "mal-entendido tácito" discutido importante local de troca cultural é a presença
supra. de diferentes grupos de imigrantes. A Veneza re-
Também é útil considerar locais em um sen- nascentista era um lar para alemães, gregos, ju-
tido mais literal. Um local importante de troca é a deus, eslavos (principalmente da costa da Dalmá-
metrópole, o cruzamento tanto de comércio cia) e turcos. Lisboa tinha suas minorias de fran-
quanto de cultura, onde pessoas de diferentes ceses, alemães, espanhóis (geralmente da Galí-
origens se encontram e interagem. Nova Iorque, cial e africanos. Amsterdã tinha seus holandeses
Londres, Lagos, Los Angeles, Bombaim e São do sul , alemães, escandinavos, judeus e turcos.
Paulo são exemplos contemporâneos óbvios. Para Estes grupos muitas vezes tentavam se isolar,
trabalhar juntos, casar com membros do mesmo
grupo, morar em uma parte específica da cidade-
uma espécie de aldeia urbana- e manter sua lín-
gua e portanto sua identidade original. A despeito
destas tentativas, a maioria dos grupos mencio-
89 Galison, lmage, p. 46, 803. Meus agradecimentos a Richard Drayton,
colega de Cambridge, por me chamar a atenção para este estudo inovador.
nados acima foi gradualmente assimilada à cultu-
72 COLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 73

ra urbana local , embora acrescentando algo de traste com uma cultura dos centros opostos ,
novo à mistura. Istambul ou Viena 9 0 .
Outro local que favorece a troca e a hibridi- A Espanha do final da Idade Média fo i outra
zação é a fronteira . Um exemplo famoso de fron- dessas fronteiras onde as trocas cultura is entre
teira cultural é a área intermediária entre o mun- cristãos, judeus e mouros nos domínios da cultu-
do cristão e o Islã no leste europeu. Nos séculos ra material e das práticas sociais, conjuntamen-
XVI e XVII, nobres poloneses e húngaros lutaram te com as produções híbridas resultantes, dura-
regularmente contra os turcos e provavelmente ram muito tempo e têm sido muito estudadas,
odiavam os turcos. Apesar disso, para seus vizi- espec ialmente nos últimos anos. Há poemas que
nhos do lado oeste, eles eram muito parecidos passam do espanhol para o árabe e de volta para
com os turcos, já que usavam túnicas compridas o espanhol, por exemplo, e há construções, inclu-
(caftã) e cim itarras em vez das espadas retas da sive igrejas, que foram ornamentadas por arte -
tradição ocidental. Estes nobres viam a si mes- sãos muçulmanos no estilo geométrico geralmen -
mos como distintos dos turcos por serem cris- te associados às mesquitas (supra, 24) .
tãos, mas se distinguiam dos ocidentais se recu- Estas zonas de fronteira, como cidades
sando a adotar o estilo de vestimenta deles, ou cosmopol itas, podem ser descritas como "inter-
então abandonando o estilo europeu oc idental, culturas", não apenas locais de encontro, mas
como o fizeram os poloneses no século XVII, e vo l- também sobreposições ou interseções entre cul-
tando a suas tradições étnicas. turas, nas quais o que começa como uma mistura
Além disso, havia uma tradição em comum acaba se transformando na criação de algo novo e
de épicos e baladas nos dois lados da fronteira diferente 91 .
entre o império otomano e o dos Habsburgo, que
incluía histórias e canções sobre os mesmos he-
róis, como Marko Kraljevic, e as mesmas bata-
lhas entre cristãos e muçulmanos, embora em
um dos lados da fronteira os cristãos fossem
apresentados como vitoriosos, enquanto que do
outro lado eram mostrados como vencidos. Em
casos assim parece razoável falar, como o prin c i- 90 Halil ln alcik, The Ottoman Empire 1300- 1600 (Lond on , 1973l , p. 106-
202 . Cf. Ge rno t Heiss an d Gret e Kl ing ens t ein (edsl. Oas Osmanische
pal historiador do império otomano, Halil lnalcik, Reich und Europa , 16 83 bis 1 78 9 : Konfl1kt , Entspannung und Austausch
de uma cultura de fronteira em comum em con- lV ie nna , 1983).
91 Em " in te rc ulture s ", A nthony Pym, M ethod in Translation History lM an-
ch es t er. 19 98), p. 1 77 -92.
74 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 75

CLASSES COMO CULTURAS Para uma historiadora alemã mais jovem, por
outro lado, os duelos da classe média são uma prova
da sua emancipação, de seu crescente senso de
Conceitos como encontro, troca e tradu - valor próprio. Se esta historiadora está certa , então
ção são úteis em discussões sobre interações o duelo é um excelente exemplo de apropriação e
dentro de uma cultura assim como entre cultu- transformação cultural, um caso de armas
ras. Poder-se -ia argumentar, por exemplo , que características da nobreza sendo usadas contra ela
em seus famosos estudos de classes, tanto por membros da burguesia 93 . Ainda resta um
Edward Thompson quanto Pierr•· Bourdieu tinham problema. Como, e em que bases, podemos decidir
muito pouco a dizer sobre interações entre a entre estas interpretações ri - vais?
classe média e a classe traba lhadora, quer estas
interações tomassem a forma de imitação quer
de rejeição 92 .
Tomemos o exemplo da nobreza e da burgue -
sia na Alemanha do século XIX. É bem sabido que
médicos, advogados , professores, jornalistas e
funcionários públicos regularmente se bat iam em
duelo na época. Para Norbert Elias, este fenôme-
no ilustra a atração que os modelos das classes
mais altas exerciam sobre a classe média . Era
apenas mais um exemplo do comportamento das
elites influenciando as classes mais bai xas, a in-
f luência da corte sobre a sociedade como um todo
que Elias gostava de enfatizar em seus livros , tal-
ve z em reação a um excesso de ênfase anterior
nas forças de mercado na formação da cultura
moderna.

93 Nor bert Elias, Studien über die Oeutschen (Frankfurt. 1989); Ute
92 Edwa rd P. Thompson. The Making of the English Wor king C/ass (London . Frevert . Ehrenmanner: Das Oue/1 in der bürgerlichen Gesellschaft
1963J; Pierre Bourd ieu, La distinction (Paris, 1979). (München , 19 91 J.
4. VARIEDADES DE REAÇÕES

A troca é uma consequência dos encontros;


mas quais são as consequências da troca? Pode
ser út il distinguir quatro estratégias, modelos ou
cenários possíveis de reação a "importações" ou
"invasões" culturais. Estas reações são aceita-
ção, rejeição, segregação e adaptação.

A MODA DE TUDO O QUE É ESTRANGEIRO

A primeira estratégia possível é a da


aceitação ou até a da acolhida. A italianofilia da
Renascença, por exemplo, foi seguida no século
XVI I pela francofilia e nos séculos XVIII e XIX pela
"angloman ia", da França, Itália e Alemanha à
Rússia e Brasil 94 .
Em termos mais gerais, a história da cultu-
ra do mundo nos séculos XIX e XX poderia seres-

94 Arturo Graf. L'anglomania e l'influsso inglese in /ta/ia nel seco/o xviii (Tu-
rin. 19111; Freyre, Ingleses; Michael Maurer. Aufklarung und Anglophilie
in Oeutschland CGóttingen. 19871.

77
78 C oLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 79

crita em termos de "ocidentalização", incluindo a "a disparidade entre a sociedade brasileira escra-
moda de tudo o que é estrangeiro na Rússia , no vista e as ideias do liberalismo europeu" B6 .
Império Otomano, no Japão, na China e em tantos Estas modas merecem ser levadas a sério
outros países, assim como reações contra esta pelos historiadores da cultura, analisadas e
moda. Seria necessário obviamente identificar os explicadas, além de descritas. O apelo de estilos
grupos ou os indivíduos que estavam mais envolvi- ita- lianos em outras partes da Europa no século
dos, e seus diferentes motivos para terem aderi- XVI, como o apelo de estilos americanos no século
do, do desejo de lutar contra o Ocidente com XX , foi em parte pelo menos um reconhecimento
suas próprias armas -tanto literal quanto meta- de que os italianos eram mais rápidos e criativos
foricamente - à necessidade de uma geração em reagir a mudanças sociais que estavam
mais jovem de se rebelar contra os mais velhos 95 . acontecendo na Europa como um todo, que em
No Brasil, o padre Lopes Gama já criticava o Florença em particular (como se costumava dizer
que chamava de "londonização" da cultura no iní- dos Estados Unidos nos anos 1850J "o amanhã já
cio do século XIX. Os ternos europeus usados pe- chegou" .
los membros da classe alta no Rio de Janeiro no No entanto, a tendência a assumir que a
século XIX são um exemplo vívido dessa moda. Os troca cultural é sempre um reflexo de tolerância e
homens suavam em roupas de lã a temperaturas mente aberta é algo a que os historiadores devem
de quarenta graus para mostrar que faziam parte resistir. Não se deve esquecer que interação cul-
de uma classe abastada que não precisava fazer tural do final da Idade Média na Espanha, a cha-
trabalho braçal, para se distinguir das pessoas mada cof'tvivencia, ocorreu em uma época de mas-
comuns, ou para demonstrar seu comprometi- sacres de judeus, conversões forçadas e inquisi- li
mento com os valores "civilizados" da zona tem- dores caçando mouriscos e marranos; em outras
perada. Este período de "anglomania", como Gil- palavras , judeus e muçulmanos que praticavam
berto Freyre observou, foi também um período de suas próprias religiões em segredo ao mesmo
"imitação de costumes parlamentares ingleses", tempo em que fingiam ser cristãos. A "harmonia"
a despeito do que Roberto Schwartz chamou de cultural, ou pelo menos a apropriação, aparente-

96 Gilberto Freyr e, Ordem e Progresso (1959, new ed . Rio de J aneiro 2 0 0 0J.


p. 78 6; Roberto Sc hwar tz. "As idéias for a do lugar", in Ao Vencedor as
Batatas (São Pa ulo. 1977J, p. 13-28 , na 13 ; J effrey O. Needell, A Tropical
95 Uma breve análise comparativa pode ser encontrada em Arnold J. Bel/e Epoque: Elita Cu/ture and Society in turn-of-the-century Rio de Janeiro
Toynbee . The World and the West (London . 1953). (Cambr idge, 1987), p. 166 -71.
80 C o LEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 81

mente se combinava com a desarmonia sociaiB7 . das próprias culturas de empréstimo. E isso nos
Algo de semelhante poderia ser dito sobre os no- leva à segunda das possíveis estratégias, a es-
bres poloneses e húngaros, mencionados ante- tratégia da res istência, da defesa das fronteiras
riormente, e seus vizinhos muçulmanos . culturais contra a invasãoB8 .
Como pode esta coexistência de harmonia e A identidade cultural é f r equentemente de -
conflito ser explicada? A pergunta crucial , fácil de finida por contraste , como um astuto inglês em
fazer mas difícil de responder, é a questão do sig - viagem pela Rússia , o médico Samuel Collins , já
nificado. É bem possível que aquilo que os histo - havia observado no séc ulo XVII , muito antes de
riadores hoje veem como herança comum possa Lévi -Strauss nos falar sobre pensamento biná-
ter sido percebido tanto por cristãos quanto por rio . "Porque os católicos apostólicos romanos se
muçulmanos como sendo realmente "deles" . ajoelham ao fazer suas preces , eles [os russos]
Cristãos espanhóis ou poloneses podem ter sim- ficam de pé L .. ) Porque os poloneses fazem a bar-
plesmente se esquecido que outros cristãos as- ba, eles consideram um pecado raspá -la . Porque
sociavam ornamentos geométricos ou o uso de os tártaros abom inam carne de porco , eles dão
cimitarras ao Islã. De forma semelhante, os gre - preferência a ela."
gos que hoje fazem objeção à expressão " café Na Renascença , a italianofilia, que era visível
turco" convenientemente se esqueceram do fato nas el ites de muitos países europeus , produziu
histórico bem conhecido de que o café teve sua seu oposto, uma onda de italianofobia . Na Espa -
origem no mundo islâmico (no lêmen do século XV) nha, por exemp lo, os poetas Garcilaso de la Vega
e se disseminou a partir de Istambul. e Joán B.oscán foram crit icados por escreverem
no estilo italiano , abandonando a tradição pátria.
Em Portugal, Francisco de Holanda foi descrito
como o demônio em vestes italianasss.
RES ISTÊNCIA No século XVII foi a ve z dos fr anceses se
transformarem no alvo dos "nativistas irados "
que defendiam a pureza das tradições locais . Na
A aceitação do estrangeiro costuma levar a Alemanha , por exemplo, a censura à invasão da
problemas difíceis que têm sido discutidos no seio língua por palavras francesas, especialmente no

98 Fernand 8rau del, La Médit erranée et /e monde méditerranéen à /'époque


97 David Ni r enberg, Com munities of Violence: Persecution of M inorities in the de Phil1ppe 11 C1949 : secon d ed.. Paris 1 966), voi. 2. p. 1 O1 -5.
M iddle Ages CPri nc eton , 1996J. 99 Sylvie Deswarte , 11 ''perfetto cortegiano" O. M1gue/ de Silva CRome. 1989J.
82 CoLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 83

domínio do bom comportamento [compliment, ga- três culturas, a cristã, a muçulmana e a judaica
/ant, mode etc.), foi particularmente intensa em (descrita por América Castro), e a Espanha dos
meados do século. Sociedades linguísticas foram séculos XVII e XVII I é de fato muito marcante, e su-
fundadas tendo a pureza da língua. como um de gere que- como no caso do cristianismo no Japão
seus principais ideais. A campanha linguística fez - pode ter sido a receptividade cultural das pes-
parte de uma reação mais general izada contra soas comuns o que levou as autoridades a toma-
modelos culturais estrangeiros, das roupas à cu- rem uma atitude1oo.
linária, sendo a "imitação dos franceses" [Na- Outros paralelos possíveis com os pakot são
chahmung der Franzosen) denunciada pelo filósofo dois casos notáveis de resistência cultural - ou
Christian Thomasius. pelo menos casos que parecerão notáveis para os
Da mesma forma como algumas culturas leitores que acreditam em progresso tecnológico
são inusitadamente receptivas a ideias ou artefa- -, a rejeição muçulmana à tipografia, que durou
tos estrangeiros, outras são inusitadamente re- até cerca do ano 1800, e a rejeição japonesa à
sistentes, como dois exemplos tirados da África arma de fogo 101 .
podem sugerir. Os ibos da Nigéria, o grupo étnico No caso da tipografia, tem sido argumenta-
de muitos dos principais romancistas africanos do plausivelmente que a razão essencial para
(inclusive Chinua Achebe), são, como os brasilei- essa resistênc ia foi a ameaça ao sistema islâmico
ros e os japoneses, famosos por serem recepti- tradicional de transmissão de conhecimento, um
vos ao que não é familiar. Em contraste, os pakot, sistema pessoa-a-pessoa. Afinal, os grandes im-
do oeste do Quênia, são famosos por sua resis- périos islâmicos do início da era moderna- o im-
tência à mudança e apego a suas próprias tradi- pério otomano, o persa e o mongol -não resisti-
ções. Pode ser instrutivo saber quais culturas ram a todas as formas de inovação ocidental. Eles
europeias ou asiáticas mais se assemelham aos adotaram as armas de fogo com entusiasmo,
pakot. tanto assim que foram descritos como "impérios
Em alguns períodos de sua história, a "Es- da pó lvora". A tipografia, por outro lado, era vista
panha" poderia ser uma resposta adequada a menos como uma ferramenta e mais como uma
esta pergunta. Em meados do sécu lo XVI, houve ameaça .
uma tentativa oficial de fechar o país. Os espa-
nhóis foram proibidos de estudar no exterior para
que não fossem contaminados pelas heresias. O 1 00 Castro, Espanha.
contraste entre a Espanha do final da Idade Mé- 101 Francis Robinson, "Jslam and the lmpact of Print in South Asia" , in The
Transmission of Knowledge in South Asia, ed. Nig el Crook CDelhi, 1996), p.
dia, a era da coexistência e da interação entre 62-97.
84 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 85

Os japoneses também, notadamente o líder O contraste entre tradições abertas e fe-


militar Oda Nobunaga, ficaram entusiasmados chadas levanta um problema intrigante, o de ex-
com os canhões quando os viram pela primeira plicar as diferenças de receptividade 104 . É, por
vez no século XVI. De fato, Nobunaga encomendou exemplo, a cultura bem integrada a que é relativa-
quinhentos deles para seu exército. Mesmo as- mente fechada, enquanto que a cultura aberta a
sim, a nova tecnologia foi rejeitada no século XVII ideias de fora é dividida? Ou será que a questão
porque a classe militar que estava então no po- fundamental é de autoconfiança? Quando as pes-
der, os samurais, os via como incompatíveis com soas têm confiança na superioridade de sua cul-
seu etos. Parece que as espadas tinham um valor tura, elas têm pouco interesse nas ideias estran-
simbólico ainda maior para os samurais do que geiras. No caso do Império Otomano, por exem-
para os cavaleiros medievais 102 . plo, as derrotas no final do século XVII parecem
A educação pode ser e na verdade é usada ter encorajado a elite governante a levar o
para apoiar a resistência cultural deste tipo (cur- Ocidente mais a sério do que anteriormente. Pa-
sos de história local, aulas compulsórias de irlan- rece haver momentos favoráveis e desfavoráveis
dês ou basco e assim por diante). Ainda mais im- para a troca cultural.
portante dentre as forças de resistência à cultu- Não devemos esquecer, no entanto, que as
ra global é o que poderia ser chamado de "resi- culturas são heterogêneas e que diferentes gru-
liência" das mentalidades locais tradicionais. O pos podem reagir de modos muito diversos aos
poder do mal-entendido -ou, melhor dizendo, da encontros culturais. Em alguns casos, a questão
reinterpretação inconsciente - não deve ser su- do emprést1mo se tornou objeto de controvérsia.
bestimado. Mesmo que todas as pessoas de to- Na Rússia do século XIX, por exemplo, os eslavófi-
das as regiões do globo vissem imagens idênticas los, como eram chamados, resistiram ao movi-
pela televisão ao mesmo tempo, não interpreta- mento de ocidentalização, e insistiram que as
riam o que viam do mesmo modo. Isso é algo que ideias estrangeiras estavam "fora do lugar" em
surgiu com muita clareza de estudos empíricos seu país e eram estranhas a suas tradições. Eu-
da recepção da novela de televisão Dal/as em vá- clides da Cunha estava reagindo de maneira se-
rios países, de Israel a Fiji 103 . melhante aos eslavófilos quando criticou sua pró-

1 02 Noel Perrin, Giving up the Gun: Japan's Reversion to the Sword, 1543- 104 Simon Ottenberg, " lbo Receptivity to Change", in William R. Bascom and
1879 CBoston, 1979l. Melville J. Herskovits (edsl, Continuity and Change in African Culturas (Chi-
103 Ta mar Liebes and Elihu Katz (1990J, The Export of Meaning: cago, 1959), p. 130-43: Harold K. Schneider, "Pakot Resistance to
Cross-Cu/tural Readings of Dal/as (Nova York, 1990J. Change", ibid., p. 144-67.
86 C o LEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 87

pria cultura como "uma cultura de empréstimo" Charles de Gaulle, por exemplo, consegu iu encon-
que copiava cega ou mecanicamente o que em ou- trar tempo entre a crise argelina e os aconteci-
tras nações era um produto de um desenvolvi- mentos de maio de 1968 para organizar um comi -
mento orgânico 1o5. tê para a defesa da língua francesa. Em 1975, foi
aprovada a lei Bas -Lauriol, que pro ibia o uso de
palavras estrangeiras (pelo menos por órgãos do
governo) sempre que existisse uma palavra fran-
PURIFICAÇÃO CULTURAL cesa de mesmo significado.
Na Alemanha, por outro lado , a preocupação
com a pureza linguística alcançou seu clímax no
As reações contra a estrangeirice muitas início do século XX. Já em 1885 fora fundada uma
vezes assumiram a forma extrema de movimen- sociedade para a defesa do alemão, o Allgemein
tos pela purificação, inclusive o que hoje é conhe- Oeutsche Sprachverein, com seu jornal Mutters-
cido como "limpeza étnica". prache. Os anos 1930 foram o ponto alto da cha-
No caso da língua, por exemplo, um movi- mada Fremdwortjagd, a busca e substituição de
mento para o retorno ao grego ático puro se ini- termos estrangeiros que haviam se dissimulado
ciou na época helenística em resposta à invasão na língua alemã, particularmente expressões
da língua por palavras estrangeiras 1D6 . O huma- francesas . Assim "plataforma", que fora perron,
nista e impressor protestante Henri Estienne virou Bahnsteig, "Universitat" virou Althochschule
condenou o jargão italianizado da corte francesa e assim por diante. Este programa foi muito ante-
nos anos 1570 com tanta veemência quanto o go- rior aos ideais nazistas de Deutschtum ("germa-
verno francês hoje condena o franglês 1D7. nidade") e purificação cultural, mas se harmoni-
O franglês é o aspecto linguístico daquilo zava com eles. Por isso, os nazistas apoiaram a
que os franceses costumavam chamar de "o de- princípio o Sprachverein, embora tenham dado um
safio americano", lê défi américain. O general fim à busca em 1940 depois que um linguista teve
a ousadia de criticar a linguagem usada pelo Füh-
rer1 08. Desde aquela época os puristas têm esta-

105 Euclid es da Cunha, Os Sertões, vol. 1. p. 140. 23 7. 249.


1 06 Simon Sw ain, Hel/enism and Empire: Language, Classicism and Power in
the Greek W orld, AO 5 0-250 (Qxfor d, 1996), p. 1-64.
107 Henri Estie nn e, Deux dialogues du nouveau /angage trançais (1578: ed. 1 08 Pet er von Polenz, "Sprachpurismus und Nationalsozialismus", in Germanistik.
Pauline M . Smith, Geneva 1980J. ed. Eberhar d Uimmert (Frankfurt , 1967), p. 11 3-65.
88 C o LEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 89

do relativamente quietos na Alemanha, talvez eles, era da artilharia ou da engenharia ociden-


porque o purismo seja associado ao nazismo , e a ta 11 °9 .
língua alemã tenha passado a ser extremamente O Japão da segu nd a metade do s éculo XIX
cordia l para com as importações americanas. é outro exemp lo de segregação cultu r al.
Naquela época , pe lo menos alguns ho mens da
classe mais alta começaram a viver o que foi
chamada de "vida dupla " , uma vida ao mesmo
SEGREGAÇÃO CULTURAL tempo ocidental e trad icional, a consumir dois
tipos de comidas (de acordo com a ocasião), a
usar dois tipos de roupas (quimono em casa ,
Uma terceira estratégia possível, ou reação por exemplo, e terno ocidental no trabalho) , a
consciente, a uma invasão cultural é a da segre- ler livros em dois sistemas de escrita e a morar
gação. Neste caso, a linha divisória é t r açada não em casas tradiciona is que passaram a ter um
entre ela mesma e a outra, mas no interior da cul - cômodo mobiliado no est ilo ocidental.
tura doméstica, desistindo da ideia de defender o Este tipo de segregação persiste até hoje,
território inteiro e se concentrando em manter embora o cômodo ocidental em um apart amento
parte dele livre de contaminação por influências de estilo japonês esteja gradualmente sendo
estrangeiras. substituído por um cômodo japonês em um apar-
Há muito existem grupos para os quais a tamento de esti lo ocidental. De forma semelhan-
aceitação indiscriminada de tudo o que é estran - te, GilbertoJ=reyre descreveu brasileiros do sécu-
geiro e a rejeição indiscriminada de emprésti- lo XIX que usavam casacos de casimira e gravata
mos parecem igualmente absurdas. Nos sécu- fora de casa, mas casaco de brim tradic ional em
los XIX e XX , os turcos e os chineses, dentre ou - casa. E em sua dis cussão sobre a santidade de
tros , queriam adotar a tecnologia ocidental sem Jaguari pe , Ronaldo Vainfas fala não do verdadeiro
aceitar os valores ocidentais. Por exemplo, os jo- sincretismo no sentido da fusão de cren ças de di-
vens otomanos criticaram o governo de Fuad Pas- ferentes origens , mas de "disjunção cultural " e
ha por ele acreditar que ocidentalizar era o mes -
mo que aquilo que um deles descreveu como
"construir t eatros , ir a bailes, ser liberal em rela-
çã o à infidelid ade da es posa e utili za r va so s anitá-
rio ". Aquilo de que precisavam , de acordo com 109 Serif Mardin. The Genesis of Young Ottoman Thought(Princeton. 9621. p.
115: cf. Joseph R. Levenson. Liang Chi-Ch'ao and the Mind of Modern
China (Cambridge . MA. 19531.
90 CoLEÇÃO Awus HI BRIDISMO CULTURAL 91

de uma vida dupla dividida entre o mundo pagão e tros . No decorrer das gerações, no entanto , a
o cristão 110 • segregação se transforma em adaptação.
Outro tipo de segregação é muitas vezes
visto nas grandes cidades poliglotas e multiétni-
cas, do passado e do presente, descritas acima
como zonas de encontro. Examinadas de perto, ADAPTAÇÃO
estas cidades muitas vezes lembram mosaicos
culturais, compostos de muitas partes diferen-
tes. A segregação cultural de imigrantes não Uma reação comum a um encontro com ou -
deve ser exagerada. Varia com a própria cultura tra cultura , ou com itens de outra cultura , é a
do imigrante, com o meio urbano dentro do qual adaptação, ou empréstimo no varejo para incor-
estão tentando se estabelecer, e também com a porar as partes em uma estrutura tradicional. É
idade , já que as pessoas mais velhas têm dificul- o que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss
dade de aprender uma nova língua e é menos pro- chamava de "bricolagem" e afirmava ser uma ca-
vável que arrumem trabalho que os afaste de sua racterística de /a pensée sauvage. Mais recente-
"aldeia" urbana. O que geralmente acontece é mente, este processo de apropriação e reutiliza-
que as pessoas vivem uma vida dupla no sentido ção tem sido descrito e analisado também no ca-
japonês da expressão, ou seja, na cultura anfitriã so da cultura ocidental, notadamente pelo cien-
durante o horário de trabalho e em sua cultura tista social francês Michel de Certeau 11 1 .
tradicional nas horas de lazer. A adaptação cultural pode ser analisada
É curioso que parece ter havido poucos es- como um movimento duplo de des-contextualiza-
tudos até agora sobre o colapso da segregação ção e re-contextualização, retirando um item de
cultural na segunda ou na terceira geração, com seu local original e modificando-o de forma a que
o bilinguismo, os casamentos mistos e mais tar- se encaixe em seu novo ambiente. O processo de
de a assimilação. É bom observar que em alguns "tropicalização" tantas vezes discutido e incan-
grupos, entre os poloneses, por exemplo, e em savelmente advogado por Freyre em tantos domí-
certos domínios, como a culinária, as tradições nios, da arquitetura à culinária, é um bom exem-
dos imigrantes sobrevivem melhor do que em ou-

11 O Sobre a vida dupla, ver Edward Seidenstick er. Low City, High City: Tokyo
from Edo the the Earthquake, 1867-1923 (London , 1983); Freyre. 11 1 Claude Lévi-Strauss . La pensée sauvage (Paris , 1962 ); M ichel de
Ingleses, p. 189; Vainfas , Heresia, p. 158. Certeau, L 'invention du quotidien (Paris , 1980l.
92 Co LEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 93

pio deste processo, embora seja necessário dis- outras palavras, estes têxteis eram pr odu zid os
tinguir diferentes tipos de adaptaÇão. em um estilo " oriental" genérico que deve ser en-
A tropicalização no sentido literal ocorre carado como uma produção eurasiana conju n-
ta 112.
quando as roupas ou as casas que foram planeja -
das para países frios são modificadas para serem E também boa parte da porcelana chinesa e
exportadas para países quentes. Um exempl o fa- japonesa fo i exportada para a Europa nos séculos
moso, mas controvertido, é a arq uitetura de Lú- XVI I e XVII I (setenta milhões de peças , de acordo
cio Costa e Oscar Niemeyer, algumas vezes des- com uma estimativa). Novamente os intermediá -
crita como uma bem -sucedida adaptação das r ios foram as Co ·Tlpanhias das Índias Orientais e
ideias e dos designs de Le Corbusier ao meio am- novamente os designs tradicionais foram g,radual -
biente brasileiro , e outras ve zes criticada sob o mente modificados para se adequarem ao gosto
pretexto de que o processo de adaptação não foi dos consumidores ocidentais. As porcelanas de -
longe o suficiente. Por outro lado, se as cadeiras coradas no chamado " padrão de salgueiro " imi-
de design inglês tiveram suas formas alteradas tando as porce lanas ch inesas que são tão popula-
quando copiadas no Brasil (supra, p. 25), as mod i- res na Grã-Bretanha até hoje são um exemplo de
ficações podem ter sido menos de liberadas, quer mod ificações deste tipo. Foi sugerido que a por-
por ter sido o resultado de diferenças entre tra- ce lana foi "o princ ipal ve ículo material para a assi -
dições artesanais locais (inclusive trad ições afri- milação e a transmissão de temas culturais por
canas no caso do BrasiiJ, quer pela substituição grandes distâncias "11 3 .
da madeira inglesa (nogueira, por exemplo) por Por UJTl lado, então, encontramos artistas
madeiras brasileiras como o jacarandá. asiáticos imitando estilos europeus ou no mínimo
O comércio a longa distância, especialmente escolhendo a partir do repertório local os elemen-
o comércio entre a Europa e a Ásia no início do pe- tos que comprovadamente agradam aos consu-
ríodo moderno, proporciona exemplos fascinan- midores ocidenta is. Por outro lado, encontra mos
tes de interação e hibridização cultural. No caso artistas europeus imitando estilos as iáticos e o
dos tê xteis, um exemplo famoso é o do chint z , um surgimento da man ia de coisas exóticas , notada-
tecido estampado produzido na Índ ia para ser ex- mente a mania da Europa do sécu lo XVIII por chino-
portado para a Europa. Os desenhos combinavam
motivos persas , indianos e chineses e seguiam
padrões enviados para a Índia pelos diretores da 1 1 2 John lrwin, "Origins of the 'Orienta l Style"', in Eng lish Oecorative Art'.
Burlington Magazine 9 7 (1955), p. 1 0 6- 14.
Companh ia Holandesa das Índ ias Orientais e da 1 13 Robert Finlay, "The Pilgrim A r t: the Cu lt ure of Porce lain in World His -
Companhia das Índias Orientais de Londres. Em tory", Journa/ of W orld History 9 (1998J, p. 141-87, na 177.
94 C o LEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 95

iserie, artigos que copiam motivos chineses 11 4. outros descobrirem . a arte japonesa , o que
Às vezes é virtualmente impossível dizer se um encorajou artistas ocidentais, já em r evolta con-
dado artefato é obra de europeus asiatizados ou tra suas próprias tradições acadêmicas , a imit a-
de asiáticos europeizados. Os pontos que mere- rem as composições assimétricas , as linhas cali -
cem ser enfatizados são, em primeiro lugar, os gráficas e o uso de áreas de cor un iforme que se
diferentes estágios do processo, em segundo lu- pode encontrar em particular nas xilogravuras 115 .
gar, o número de diferentes pessoas envolvidas, Na música , compositores japoneses como
e , em terce iro lugar, ci fato de que as mudanças Toru Takemitsu fo r am influenciados por composi -
se dão dos dois lados. A metáfora da "negocia- tores ocidentais como Pierre Boulez e John Cage ,
ção " cultura l, discutida anteriormente neste en- que por sua vez haviam sido influenciados pela
saio , parece ser part icularmente út il na análise música japonesa . Puccini se inspirou na música
de processos desse tipo. japonesa para compor sua Madame Butte r fly
( 1907), e os japoneses por sua ve z adaptaram
Puccini em uma série daquilo que historiadores
recentes chamaram de "repatriações " 1 1B. No
CIRCU LAR IDADE caso do c inema, é lícito suspeitar que o surgi-
mento dos f ilmes de samurais de Akira Kurosawà
e de outros diretores japoneses se deve em parte
A metáfora do círculo é útil também para à tradição do filme de faroeste norte-americano.
nos referirmos a adaptações de itens culturais Se este é o .caso, a cortesia foi retribuída quando
estrangeiros que são tão completas que o resul - John Sturges fez "Sete homens e um destino"
tado pode às vezes ser " re-exportado" para o lu - CThe Magnificent SevenJ (1960J , uma "tradução"
gar de origem do item. do famoso " Os sete samurais " CSeven Samurat] ,
A história das relações culturais entre o Ja - de Kurosawa (1954) .
pão e o Ocidente nos séculos XIX e XX proporciona
vários exemplos fascinantes deste tipo de circu -
laridade. Nas artes visuais , por exemplo , os japo -
neses descobriram os impressionistas japoneses
pouco depois de Eduard Manet, Claude Monet e 115 S. Takashina (ed.l , Paris in Japan: the Japanese Encounter with European
Painting ITokyo, 1987).
116 J ohn Co r bett , " Experi mental Oriental" , in Born and Hesmondhalgh,
Western Music , p. 163-86; Arth ur Groos, " Ra mos of the Nat ive : J apan
in Madama But t erfly/M adama But terfly in J apan ", Cambridge Opera Jour·-
11 4 M ade lein e J arry, Chinoiserie (N ova Iorque, 1981 l . na/ 1 (1 989 1, p. 16 7-9 4.
96 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 97

E o poeta irlandês William Butler Yeats es- TRADUTORES


creveu uma peça, At the Hawk's We/1 (1917) , no
estilo do tradicional teatro nô japonês, embora
tenha localizado sua peça na "idade heróica" irlan- O exemplo de At the Hawk's We/1 traz à
desa e ela possa portanto ser descrita como um tona outro tópico que é central para este
híbrido de Ocidente .e Oriente. Yeats se interes- ensaio. As discussões sobre hibridização cul -
sou pela tradição japonesa porque a utilização de tural frequentemente falam das tendências
máscaras e dançarinos dava a ele um meio de gerais e ignoram os indivíduos. Estas
romper com as tradições do teatro "realista" de discussões estão dando as prioridades corretas
sua época. Um escritor japonês, Yokomichi Ma- às questões no sentido de que as tendências são
rio, por sua vez adaptou At the Hawk's We/1 e a muito mais importantes do que os indivíduos.
transformou em uma peça do teatro nô que foi Mesmo assim, faz sentido perguntar quem faz a
montada em Tóquio em 194911 1 . adaptação. Vejamos o exemplo dos tradutores .
Estes exemplos de circularidade sugerem Os tradutores são frequentemente pes -
que a cultura do Ocidente ajudou os japoneses soas deslocadas . Em muitas culturas, os intér-
modernizantes a redescobrir ou a reavaliar algu- pretes têm formado um grupo característico no
mas de suas próprias tradições . A combinação de qual membros de comunidades periféricas eram
afastamento com semelhança parece ser um fa- importantes. As relações entre o Império Otoma-
tor-chave no sucesso de artigos culturais de ex- no e a Europa Ocidental , por exemplo , por muito
portação ou, melhor dizendo, "transplantes". E tempo dependeu dos préstimos de judeus e gre-
assim voltamos à questão, evocada anteriormen- gos como intermediários linguísticos 118 .
te, das congruências e convergências . As pessoas que transferiram suas lealda-
des de uma cultura para a outra têm muitas ve -
zes representado um papel importante no pro-
cesso de interpretação, como Dona Marina, "La
Mal inche" , que se passou para os espanhóis no
México, ou os "renegados" que se converteram

1 1 7 Reiko Tsuki mura . "A Comparison of Yeats' At the Hawk's We/1 and it s Noh
Ver sion" . LiteratureEast and West 11 (19 6 7l , p. 385-9 7 ; Richard Taylor,
The Drama of W. 8. Yeats: lrish M yth and the Japanese No (New Haven, 118 Bernard Lewis, "From Babei to Orago m ans". Proceedings of the British
19 7 6), p. 1 11 -2 0. Academy 101 (1999 J, p. 37 -54.
98 COLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL . 99

do cristianismo ao Islã, ou os "novos cristãos" italiano e compilou um dicionário inglês-italiano,


(em outras palavras, judeus convertidos) que ser- além de ter feito uma tradução agora famosa dos
viam de intérpretes para os portugueses no sul ensaios de Montaigne do francês para o inglês 121 .
da Ásia 119 .
Também na Europa os tradutores da Renas-
cença eram muitas vezes emigrantes, exilados ou
refug iados. Valiam-se de sua situação liminar e
transformavam em profissão a mediação entre
dois países aos quais deviam lealdade de alguma
forma. É provável que estas pessoas tivessem
"consciência dúplice" (supra. p. 37). e que esta
consciência dúplice os ajudassem na tarefa de
tradução 120 .
É curioso que estes anfíbios europeus te -
nham sido menos estudados do que seus equiva-
lentes nas Américas e na Ásia. Por exemplo, os
refugiados gregos da Itália antes e depois da que-
da de Constantinopla foram responsáveis por al-
gumas traduções importantes do grego antigo
para o latim. E os refugiados protestantes italia-
nos representaram um importante papel na re-
cepção da Renascença no norte da Europa. John
Floria, por exemplo, cujo nome híbrido expressa
uma identidade híbrida , era de uma família italiana
protestante que se mudou para a Inglaterra para
fugir à perseguição. Ganhou a vida dando aulas de

119 Frances Kart tunen , Between W orlds: ln&erpre&ers. Guides and Survivors
(New Brunswick, 19 94). p. 1-22, 114-35.
120 Gilroy, At:lant:ic. 121 Frances Yates, John Floria (London. 1934).
5. VARIEDADES DE RESULTADOS

Como conclusão deste ensaio eu gostaria de


discutir os resultados ou as consequências da in-
teração cu ltural no longo prazo. Daqui por diante,
estarei falando menos como historiador da cultu-
ra e mais como um indivíduo preocupado, como
todos nós, com o destino das culturas do mundo
em nossa era de crescente globalização, esco-
lhendo exemplos do passado para tecer comentá-
rios sobre possíveis futuros. Ao passo que a últi-
ma seção se concentrou em reações conscientes
e estratég ias deliberadas, esta aqui está mais
preocupadéi com o que mais provavelmente acon-
tecerá, independentemente das intenções, dese-
jos ou expectativas de indivíduos ou grupos.
Menciono uma possibilidade, apenas para
rejeitá-la de imediato: a sobrevivência de culturas
independentes. Em nosso mundo, nenhuma cultu-
ra é uma ilha. Na verdade, já há muito que a maio-
r ia das culturas deixaram de ser ilhas. Com o pas-
sar dos séculos, tem ficado cada vez mais difícil
se manter o que poderia ser chamado de "insula-
ção" de culturas com o objetivo de defender essa
insularidade.
102 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 103

Em outras palavras, todas as tradições que poderia ser chamado de "diglossia cultural",
culturais hoje estão em contato mais ou ménos uma combinação de cultura global com culturas
direto com tradições alternativas. A segregação locais. Em terceiro lugar, a homogeneização, a
só é uma possibilidade no curto prazo, como já fusão de diferentes culturas, a consequência da
vimos, mas não é uma opção viável em la !ongue globalização que muitos hoje tanto pre- veem
durée. Por conseguinte, as tradições são como quanto temem. Em quarto lugar, o surgimento de
áreas de construção, sempre sendo construídas novas sínteses. Pode ser útil discutir estes
e reconstruídas, quer os indivíduos e os grupos quatro cenários em ordem.
que fazem parte destas tradições se deem ou
não conta disto.
Vejamos o caso do candomblé, interpretado
em um ensaio brilhante por Roger Bastide como a CONTRAGLOBALIZAÇÃO
construção simbólica do espaço africano, uma
espécie de compensação psicológica para os
afro-brasileiros pela perda de sua terra nativa 122 . Hoje vemos muita resistência à "intromis-
Apesar disso, foi mostrado que as práticas do sao ou "invasão" de formas globais de cultura.
candomblé se alteraram gradualmente com o Isso não é de causar surpresa. Essa reação é um
tempo. Portanto, não se pode dizer que o can- exemplo daquilo que os sociólogos às vezes cha-
domblé é "puro" enquanto que a umbanda, por mam de "defasagem cultural". Como Fernand
exemplo, é um híbrido. Podemos dizer que as tra- Braudel, historiador francês, costumava dizer, di-

ferentes tipos de mudança acontecem a diferen-
dições africanas são mais importantes no can-
domblé do que na umbanda, mas todas as formas tes velocidades.
culturais são mais ou menos híbridas. As mudanças concatenadas que hoje des-
Se a independência e a segregação são crevemos como "globalização" são principalmen-
ambas eliminadas, sobram quatro possibilidades te tecnológicas e econômicas. A tecnologia, es-
principais, ou cenários, para o futuro das culturas pecialmente a tecnologia de comunicação, hoje se
de nosso planeta. Em primeiro lugar, a resistência altera com tanta rapidez que a maioria de nós fica
ou a "contraglobalização". Em segundo lugar, o tonta. As instituições ficam para trás a despeito
da necessidade de serem adaptadas ao mundo
em mudança. Ainda mais lentas são as mudanças
122 Roger Bastide, "Mémoire collective et sociologie du bricolage". Année de atitude, especialmente daquelas atitudes ou
Sociologique (1970J. p. 65-108: Renato Ortiz. A morce branca do feitiçeim
negro- Umbanda (Petrópolis, 1978). suposições fundamentais que - seguindo os his-
1 04 CoLEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 105

toriadores franceses novamente - irei descrever exemplo corrente- mas que tem uma longa histó-
como "mentalidades". Mudanças de mentalidade ria - é o dos católicos e protestantes da Irlanda
são necessariamente lentas, considerando-se a do Norte, dois grupos que dividem o mesmo terri-
importância dos primeiros dois ou três anos de tório e têm tanto em comum culturalmente que é
vida para o futuro desenvolvimento de cada pes- difícil para os estrangeiros distingui-los. No en-
soa. Os valores fundamentais da geração que es- tanto, eles continuam - pelo menos uma minoria
tará velha em 2080 já foram instilados. de cada lado continua- a se tratar coma o Outro,
Não é de espantar portanto que em muitas o oposto de si mesmo.
partes do mundo haja reações contra a globaliza- O antropólogo holandês Anton Blok, concor-
ção cultural. Por uma questão de conveniência, dando com Freud, acrescenta que é a ameaça da
vamos falar de "contraglobalização". Neste cená- perda das identidades tradicionais que provoca a
rio, um importante papel é representado pelo fe- narcisismo, muitas vezes se fazendo acompanhar
nômeno coletivo da revolta das regiões, já descri- pela violência contra o Outro 12 5 . O sociólogo in-
to nos anos 1860 por Robert Lafont e outros glês Anthony Cohen concorda: "a expressão sim-
como "revolução regionalista" 123 . De nosso ponto bólica de comunidade e de seus limites aumenta
de vista, não importa se um determinado movi- de importância na medida em que os reais limites
mento- bretão, digamos, ou catalão- utiliza a lin- geossociais da comunidade são destruídos, obs-
guagem da região ou a da nação - ou mesmo a da curecidos ou então enfraquecidos" 12 6.
religião, como no caso da Sérvia ou da Bósnia. O Em outras palavras, é uma reação forte
ponto a se destacar é a ênfase na cultura e na mas que pode não durar muito. A resistência está
identidade local, quer ela assuma a forma dores- fadada ao fracasso no sentido de que os objetivos
tabelecimento de linguagens moribundas, de lim- daqueles q~e fazem parte da resistência, deter a
peza étnica ou de quebrar as janelas do McOo- marcha da história ou trazer de volta a passado,
nald ' s. são inatingíveis. No entanto, a resistência não é
Freud tinha uma boa expressão para a que em vão, porque as ações de resistência terão um
vemos acontecer em tantas partes do globo: "o efeito sobre as culturas do futuro. Não será o
narcisismo das pequenas diferenças" 124 . Um

123 Robert Lafont, La révolution régionaliste (Paris, 1967). 125 Anton Blok, "The Narcissism of Minar Differences", European Journal of
124 Sigmund Freud, "Das Tabu der Virginitat" (1918), traduzido em Complete Social Theory 1 (1998), p. 33-56.
Psychological Works, ed. James Strachey, xi (London, 1957), p. 191 - 126 Anthony Cohen, The Symbolic Construction of Community (Chichester
208. 1985), 50.
106 CoLEÇÃo Awus HIBRIDISMO CULTURAL 107

efeito que desejaram, mas apesar de tudo será soas capazes de alternar entre culturas da mes-
um efeito. ma forma como alternam entre línguas ou regis-
tros linguísticos, escolhendo o que consideram
ser apropriado à situação em que se encontram.
A inferência de que hoje somos todos imigrantes,
DIGLDSSIA CULTURAL quer nos demos conta disto ou não, deve ser leva-
da a sério, como a observação de Canclin de que a
fronteira se encontra em toda parte 128 •
Em um mundo futuro de cultura global, po- No longo prazo, por outro lado, podemos
deremos nos tornar todos biculturais, vivendo predizer com segurança que pelo menos algumas
uma vida dupla como os japoneses que foram des- das divisões entre esferas na "vida dupla" irão se
critos em uma seção anterior deste ensaio. To- desfazer. O que poderia ser descrito (do ponto de
dos nós falaremos EFL CEnglish as a Foreign Lan- vista dos puristas) como "contaminação" está
guage, inglês como língua estrangeira) ou qual- fadado a ocorrer, como de fato já aconteceu no caso
quer outra língua mundial (chinês, espanhol, ára- do Japão, assim como no caso dos imigrantes
be) em algumas situações, mas manteremos nos- urbanos descritos supra Cp. 71). Como as fronteiras
sa língua ou dialeto local em outras, participando nacionais, os muros dos guetos não são à prova de
da cultura mundial mas mantendo uma cultura lo- invasão cultural ou infiltração.
cal. Estou chamando este resultado de "diglossia
cultural" (seguindo um modelo proposto por al-
guns sociolinguistas da geração passada) e não
de "bilinguismo cultural" porque os dois elemen- HDMDGENEIZAÇÃD CULTURAL
tos provavelmente não são iguais 127 .
Enquanto descrição do presente de alguns
de nós e do futuro próximo de muitos de nós, este O terceiro cenano é o da homogeneização
cenário me parece ser muito plausível. É uma ver- cultural, venha ela a ocorrer como predito em
são mais amena da segregação cultural conscien- 2050, em 2100 ou mesmo mais tarde. Quem não
te que foi discutida em uma seção anterior deste gosta desta tendência costuma falar da "ameri-
ensaio. Existiram e ainda existem muitas pes-

128 Cf. James Clifford, Routes: Trave/ and Trans/ation in the Late Twentieth
12 7 Charles Ferguson, "Diglossia". Word 15 (19591. p. 325 -40. Century (C ambridge . Mass .. 199 7).
108 C o LEÇÃO Awus HIBRIDISMO CULTURAL 109

canização" da cultura ou do "efeito coca-cola" ções. No nível global, o que vemos é o oposto, uma
(cujas insinuações de americanofobia lembram a redução da diversidade.
italianofobia que foi discutida em uma seção ante- Em outras formas de arte, estamos
rior). Os críticos hostis temem a perda do senti- testemunhando outro tipo de homogeneização.
mento de se pertencer a algum lugar, na verdade Graças ao crescimento do mercado global, alguns
da própria perda de um lugar, substituído pe la escritores, como alguns diretores de cinema,
proliferação de "não lugares" como aeropor- como foi observado recentemente, "consciente ou
tos1 29. Confrontados com o cenário da hibridiza- inconscientemente incorporam a traduzibilidade
ção, podem responder que a mistura de todas as em suas formas de arte " 130. No caso dos filmes,
culturas em um caldeirão global é um estágio em Hollywood tem por alvo um mercado global, e
sua subsequente homogeneização. também na Europa as coproduções internacionais
Certamente vemos muitos sinais do surgi- se tornaram cada vez mais comuns. Michelangelo
mento de uma cultura global , quase global ou pelo Antonioni, por exemplo, que construiu sua reputação
menos crescentemente global, especialmente no com filmes falados em italiano rodados na Itália com
Ocidente, mas também no Japão e cada vez mais atores italianos, passou a trabalhar com um elenco
também na China. Veja o caso da arte contempo- internacional e com financiamento internacional e
rânea. Não vemos uma simples homogeneização fazer filmes em inglês como 8/ow-Up -Depois daquele
no sentido do surgimento de um único estilo em beijo (1967) e Zabrislde Point (1969).
detrimento de todos os seus rivais. O que vemos No caso dos romances, uma entrevista re-
é uma homogeneização mais complexa no sentido cente com Milan Kundera (da qual por acaso li,
de uma variedade de estilos rivais, abstratos e nesta era ~ da globalização, sua tradução em um
representacionais, op e pop, e assim por diante, jorna l brasileiro) é certamente reveladora de uma
todos os quais estão disponíveis para os artis- tendência mais ampla. Antes de 1968, Kundera
tas, virtualmente independentemente do local no morava em Praga e escrevia em tcheco, primaria-
qual por acaso vivam. No nível do indivíduo há mais mente para leitores tchecos. Agora ele vive em
escolhas, mais liberdade, uma ampliação de op- Paris, escreve em francês e, como explica na en-
trevista, primariamente para um público interna-
cional.

129 Edward Relph, Place and Placelessness (London. 1976); Joshua Meyrowitz.
No Sense of Place: the impact of electronic media on social behaviour (Nova
York, 1985J; Marc Augé, Non-lieux: introduction à une anthropologie de la 130 Emily Apter, "On Translation in a Global Market", Public Culture 13
surmodernité (Pari s, 1992J. (2001), p. 1-12.
11 O CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 111

Privilegiar um público global em vez de um zação e assim por diante foram essencialmente
público local modifica a própria obra de várias ma- vitoriosos. Hoje, no entanto, há uma f orte ten-
neiras importantes que ainda não foram, que eu dência a negar este sucesso, a argumentar, por
saiba, analisadas em detalhes nem em profundi- exemplo, que os romanos nunca tiveram uma pe-
dade. Os romances de Kundera certamente se netração profunda nas culturas das diferentes
modificaram depois de 1968. Ficaram menos so- partes de seu império. Além disso, as culturas
ciais e mais metafísicos, com menos referências subordinadas ou "submersas" da América Latina,
locais e mais observações sobre a condição hu- da China e até do Japão (por muito tempo tida
mana. como um caso exemplar de unidade cultural) es-
Algo de semelhante pode ser dito a respeito tão recebendo cada vez mais atenção agora que
de outros tipos de obras, inclusive histórias. Pos- há um despertar étnico, uma espécie de "volta
so pessoalmente testemunhar que, na medida em dos reprimidos" . Há alguma razão para se pensar
que me acostumei com a ideia de que meus livros que a globalização será diferente?
poderiam ser traduzidos para várias línguas, te- É certamente revelador que os partidários
nho tentado a cada trabalho (inclusive neste aqui) da tese da homogeneização - amem ou odeiem o
evitar alusões que não seriam facilmente compre- que descrevem - geralmente recorrem a um
endidas fora da Grã-Bretanha, ou mesmo fora da círcu lo restrito de exemplos, de com ida congelada
Europa. Comecei a pensar em termos de um pú- à arquitetura de aeroportos. Os partidários da
blico potencialmente global, imaginando se uma homogeneização frequentemente não levam em
determinada afirmativa ou referência seria clara conta a criatividade da recepção e a renegociação
para leitores japoneses ou bras ileiros. Ao fazer de signific~dos discutidas anteriormente, ou a
isso, parece que estou fazendo uma reconstru - importância do narc1s1smo das pequenas
ção de mim mesmo como cidadão do mundo, e te - difer enças. Até o exemplo favorito da Coca-Cola fo i
nho certeza de que não sou o único. brilhantemente reinterpretado pelo antropólogo
Estas mudanças são certamente inevitá- Daniel Miller em um estudo do que ele chama de
veis , mas não nos aproximam muito do cenário da " a contextualização local da forma global " em
homogeneização total. Deve-se acrescentar que Trinidad 131 .
os historiadores estão ficando cada vez menos
convencidos de que movimentos de homogenei za-
ção foram bem -sucedidos no passado. Eles cos -
tumavam acreditar que processos como os de
131 Daniel Miller, " Coca-Cola: a black sweet drink fr om Tr inidad", in Mat erial
helenização, romanização , hispanização e anglici- Cultures. ed. M iller (London, 1 998), p. 169 -8 7.
112 COLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CULTURAL 113

A visão de que o mundo todo estará em a norte-americana hoje ou a global no futuro) pode
2050, digamos, falando inglês - como língua es- conquistar as outras por completo.
trangeira, obviamente- e assistindo aos mesmos No grupo dos "partidários do hibridismo "
programas de televisão ao mesmo tempo é uma podemos distinguir aqueles que têm uma atitude
caricatura óbvia. As principais línguas do mundo negativa daqueles que veem esta tendência mais
como o chinês, o árabe e o espanhol, para não positivamente.
mencionarmos o francês, o português e o russo, Por um lado, os críticos enfatizam o caos, o
ainda estão muito vivas, assim como as principais que Arnold Toynbee chamava de "desintegração
religiões do mundo, mesmo que agora estejam se cultural" e analistas conscientemente pós-mo-
influenciando mutuamente mais do que antes, dernos costumam descrever como "fragmenta-
como expressões como "catolicismo zen" suge- ção"1 34. Estes críticos enfatizam o que está ~en­
rem 132. do perdido no processo de mudança cultural. E di -
fícil negar que estas perdas ocorrem. Voltando a
Kundera por um instante , acredito que seu me-
lhor romance é A brincadeira, escrito em seu pe-
HIBRIDIZAÇÃO CULTURAL ríodo tcheco e enriquecido, mesmo para os leito-
res estrangeiros, por suas referências à cultura
local. Ele pagou um preço por sua emigração. No
A hibridização, seja ela consciente ou entanto, os críticos do processo de hibridização
inconsciente, é o quarto e último cenário possível certamente não veem seu lado positivo, a tendên-
a ser discutido aqui 133. A ideia de que encontros cia à síntese e à emergência de novas formas. Um
culturais levam a algum tipo de mistura cultural é modo esclarecedor de ana lisar estas tendências
uma posição intermediária entre duas visões do é trabalhar com o conceito de "criouli zação" in-
passado que podem ser criticadas como trod uzido anteriormente.
superficiais. Por um lado, há a alegação de que
uma cultura ou uma tradição cultural pode
permanecer "pura". Por outro, temos a afirmativa
de que uma única cultura (a francesa no passado ,

132 Graham Aelr ed, Zen Catholicism (London, 1964).


133 Piet er se. "Giobalizat ion". 134 Toyn bee . Study. vai. 8, p. 498-521.
114 CoLEÇÃO Awus H IBRIDISMO CU LTURAL 11 5

A CRIOULIZAÇÃO DO MUNDO padrão. Para usarmos a linguagem do sociólogo


Norbert Elias, há uma nova "configuração". É difí-
cil , se não impossível, dizer como o processo fun-
O motivo de se introduzir esta palavra rela- ciona, a que ponto a cristalização e a reconfigura-
tivamente desconhecida em um debate no qual, ção são inconscientes e coletivas e até que ponto
como vimos , há expressões demais é enfatizar dependem de indivíduos criativos . Mesmo assim ,
tendências a síntese , à criação daquilo que o an- este aspecto da troca cultural certamente mere -
tropólogo norte-americano Marshall Sahlins des- ce ser enfatizado , quer estejamos pensando no
creve como a criação de uma nova "ordem cultu- passado , no presente ou no futuro.
ral", um esquema cultural em grande escala. Em Para resumir os últimos parágrafos e torná -los
seus estudos sobre o Havaí de antes e depois do relevantes para o problema das consequências da
encontro com o Capitão Cook, Sahlins esboça globali zação, eu gostaria, seguindo Hannerz e
uma teoria dialética de mudança cultural na qual outros, de sugerir que estamos vendo a
ideias, objetos ou práticas de fora são absorvidas emergência de uma nova forma de ordem cu~
ou "ordenadas" por uma determinada cultura, tural 136 , uma ordem cultural global, mas que- se
mas que no decorrer do processo (quando um de- Carl von Sydow, o teórico dos ecótipos está certo
terminado limiar crítico é ultrapassado) a cultura -pode rapidamente se diversificar, adaptando-se
é "reordenada" 135 . a diferentes ambientes locais. Em outras
Outra metáfora que pode ser útil é a da palavras, .as formas híbridas de hoje não são
"cristal ização". Eu a utilizo aqui para sugerir que, necessariamente um estágio no cam inho para
quando ocorrem encontros e trocas culturais, uma cultura global homogênea.
um período de relativa fluidez ("liberdade" no caso Não devemos descartar os insights incômo -
de você o aprovar, "caos" no caso de desaprovar) dos dos teóricos da homogeneização ou dos críti -
é rapidamente seguido por um período em que o cos do hibridismo. É possível que o equilíbrio entre
que era fluido se solidifica, congela e vira rotina e forças centrípetas e centrífugas tenha finalmen -
se torna resistente a mudanças posteriores. Ve - te se inclinado na direção das centrípetas. Mes-
lhos elementos foram rearranjados em um novo mo assim, a análise de nossa cultura (ou cultu-
ras) passada, presente e futura que acredito ser

135 Mars hall Sahlin s, Historical M et aphors and M ythical Realities: Str uctur e in
the Early History ofthe Sandwich lslands Kingdom [Ann Arb or . 198 1 J; id . .
lslands of History [Chicago, 1985). 136 Hanne r z, "World"; cf. ld., Complexity.
116 C OLEÇÃO A LDUS

a mais convincente é aquela que vê uma nova or-


dem surgindo, a formação de novos ecótipos, a
cristalização de novas formas, a reconfiguração
de culturas, a "crioulização do mundo ".
Os outros títulos da Coleção Aldus

·:· (Bio)ética ambiental, dejosé Roquejunges


·:· Quem pensas tu que eu sou?, de Abrão Slavutzky
••• O prazer de ler jornal - Da Acta Diurna ao blog, de Walter Calvani
·:· A ciência é masculina?, de Attico Chassot
·:· O inconsciente, de Christiane Lacôte-Destribats, trad . Mario Fleig e
Carolina Cubert Viola
•:• Os oceanos, de Anne-Sophie Arclwmbeau, trad . Fernando Althoff
••· Releituras do óbvio, de lván lzquierdo
·:· Isso é grego para mim, de Nélio Schneider
•:• Sociologia dos intelectuais, de Cerard Leclerc, trad. Paulo Neves
·:· Sobre a ansiedade, de Renata Sa/ec/, trad. André de Codoy Vieira
·:· As pulsões, de Dominique SeU/fone, trad . Paulo Neves
·:· Questões sobre memória, de Iván Izquierdo
·:· Que devo fazer?- A filosofia moral, de Monique Canto-Sperber e
Ruwen Ogien, trad. Benno Dischinger
·:· Na diagonal do campo, de Carlos Eugênio Simon
·:· Vamos dormir?, de Geraldo Nunes Vieira Rizzo
·:· Proteção da privacidade, de Diógenes V. Hassan Ribeiro
·:· Hibridismo cultural, de Peter Burke, trad. Lei/a Mendes
·:· Hobbes e a teoria clássica do riso, de Quentin Skinner, trad .
A/essandro Zir
·:· Vai chover no fim de semana?, de Ronaldo Rogério de Freitas
Mourão
·:· Silêncio, por favor!, de Jván lzquierdo
·:· O piano, de C. Michaud Pradeiller e C. Helffer, trad. Paulo Neves
·:· Que dia é hoje?, de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão
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depressão nos corpos, de Ricardo Maximiliano Pelosi
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