Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Marta Abreu PDF
Marta Abreu PDF
NO RIO DE A IRa:
perspectivas
de controle e tolerância no
século XIX
Martha Abreu
Nota: Este artigo é a veJ"8OO revista de uma comunicação ap' sentada no ConCjCs-o América 92
(UFRJ/USP) e é parte integrante de minha pooquisa de doutoramento. Agradeço a contribuição dOI!
bolsistas de Iniciação Cientrriea. And réia Maisena e Rob80n Martins, oe debate. 1'El8.1im.dDl com meu.
colegna de departamento e ()8 comentários dos pu(::eriata.e de E.tueJo.Hi..Urioo..
de dependência dos leigos. As ordens como Da8 que eram realiza das dentro
religiosas, por sua vez, mais prepara das igrejas. Além das missas oom músi
CAS mundanas , sermões, Te-Deum, no-
das para disseminar um catolicismo
tridentino, dentro da ortodoxia religio VeDaS e procissões, eram parte impor
sa, não conseguiam atingir todos os tante as danças, ooretos, fogos de artifi
cio e barra cas de oomidas e bebidas. Em
fiéis. Desta forma, os leigos tornaram
geral a população escrava e/ou negra
se os maiores agentes do "catolicismo
não perdiA a oportuni dade de tocar SUAS
bal"l'oco", repleto de sobrevivências
músicas e '1latuques" e dançar 811aS
pagãs, com seu politeísmo disfarçado,
danças. Locais privilegiados para a ma
superstições e feitiços, que atraíram
nifestação da religiosidade popular,
também os negros, facilitando sua ade
João Reis viu essas festas oomo rituais
são e paralela transforl!!ação (Remos,
de intercâmbio de energias entre os ho
s/d:31-32). mens e as divinda des, um investimento
Uma das expressões mais típicas no futuro, tornando a vida mais intares
desse catolicismo foram as confrarias sante e segura (Reis, 1991:61-70). Mary
organizadas pelos leigos. Entre elas, dei Priore analisou as festas ooloniais
exiatiam as irmandades e as ordens procurando focalizar a participação dos
terceiras, que se diferenciavam das diferentes atores, setores da elite, in
primeiras por estarem subordina das dios, populares, negros e escravos, o que
às ordens religiOSAS. podiam reunir tornava o seu significado bastante
membros de diferentes origens sociais, multifacetado e dinámico: podiam ser
estabelecendo solidariedades verti um espaço de solidariedade, alegria,
cais, mas também servir como Ass ocia prazer, criatividade, troca cultural e, ao
ções de classe, profissão, nacionalidade mesmo tempo, um local de luta, violên
e "cor", Organizavam-se para incenti cia, educação, controle e manutenção
var a devoção a um santo protetor e dos privilégios e hierarquias (PriOl"9,
para fins beneficentes destinados aos 1994).
seus irmÃos, que se comprometiam Implantado juntamente com a colo
com urna efetiva participação nas ati nização portuguesa, graças ao direito
vidades da irmandade. Esses fins de "padroado", este catolicismo forma
beneficientes, tais como auxílio na va um sistema "único de poder e legiti
doença, na invalidez e na morte, varia mação", Associando numa interpene
vam de acordo com os recursos da ir tração estreita "o Estado e a Igreja", o
mandade, diretamente proporcionais sagrado e o profano (Gomes, 1991:26 e
FESTAS REUGIOSAS NO RIO DE JANEIRO 185
Azzi, 1977:39-73). Por isso, como des No Ílúcio do século XIX, as princi
taca Mary dei Priore, as festas religio pais comemorações religiosas da cida
SBB e oficiais pareciam também acen de, todas com origem no perlodo ante
tuar a identificação entre o rei e a rior, ainda eram muito concorridas: as
religião, consolidando a aliança dos c0- procissões do padroeiro São Sebastião,
lonizadores (Priore, 1994, capo 2 e 7). Cinzas, Semana Santa (passos, En
doenças, Entel'l'o) e Corpo de Deus; as
festas em homenagem aos Santos Reis,
Santana, São Jorge, Santo António,
2. Continuidades e sinais de São João e, a maior delas, a do Divino
mudança Espírito Santo. Devemos levar em con
ta também a persisténcia de.inÚlneras
o novo Estado Imperial inde comemorações de outros santos prote
pendenta manteria, ap6s algumas difí tores, com SUBS procissões de menor
ceis negociações com a Santa Sé, a au extensão e pompa, e as celebrações
toridade sobre a Igreja e garantiria o exclusivamente negras, como as coroa
caráter oficial do catolicismo na própria ções dos reis do Congo, realizadas pela
Constituição, orgulhando...e de ser o igreja Nossa Senhora do Rosário, e os
maior pais católico do mundo. Entre cucumbis, as danças coreográficas que
tanto, apesar da herança recebida do acompanhavam os funerais dos filhos
período colonial, a tradicional prática dos reis africanos aqui falecidoe (Coa
católica enfrentaria uma série de desa raey, 1965:157-217, 313-349; Moraes
fioe decorrentes das transformações da Filho, 1979; Karash, 1987:214-302).
sociedade brasileira ao longo do século Em diferentes períodos do século
XIX: grande parte das elites políticas, X1X encontramos nos jornais indícios
dentro do espírito liberal do século, as
de que a organização da festa dos san
sumiu uma posição anticlerical e, pro
tos protetores continuava sendo a mola
gressivamente, associou o catolicismo
mestra da vida das irmandades gran
ao obscurantismo e ao atraso; algumas
des ou pequenas,2 Era o momento de
autoridades policiais e municipais con
afil'illar a força daquela devoção, e de
denarnrn as festas n98 ruas, com 8UAS
seus próprios membros, e de reunir os
barracas e diversões, por serem locais
fundos necessários para a assistência,
de jogo e vagabundagem; oe médicoe
já que se aproveitava a ocasião para a
passaram a considerar as festividades
cobrança das mensalidades atJ'9sa das.
religiosas como bárbaras, vulgares e
O dia da festa também era o momento
ameaçadoras da ''família higiênica"
(Costa, 1979:133); e, fInalmente, a lide solene da distribuição doe benefícios.
rança religiosa começou a se preocupar Entretanto, começamos a perceber
com as "deficiências" do catolicismo bra· alguns indicativos de mudança. Após
sileiro, marcadas pelo despreparo do 1830, as comemorações negras e os
clero e pela prática religiosa pouco ro Ubatuques" passaram a ser cerceados.
manizada. 'lbdas essas preocupações Até o fil181 do século, o número e a
das diversas autoridades assumiriam pompa das procissões diminuíram; as
uma dimensáo especial na cidade do Rio tradicionais festas perderam popu
de Janeiro, pois era a maior cidade do laridade, e a do Divino Espírito Santo
país e a capital do Império, além de ter transformou-se numa festa de paró
recebido um grande contingente de afri quia (Coaracy, 1965; Moraes Filho,
canos até 1850... 1979).
186
Mais ainda, é uma formA eficaz (e bas gas de rei e rainha em suas comemora
tante antiga) de manter o controle so ções (Cosia, 1886).
bre os escravos e a ordem numa socie As posturas dos anos 1830 deixa
dade escravista. Nas próprias palavras ram transparentes as preocupações
do subdelegado: das autoridades municipais, pois da
tam desta época as proibições dos
"confio em que a Câmara me fará "ajuntamentos de pessoas com tocatas,
justiça de crer que eu, chefe de uma danças ou vozerias" em locais públicos
grande família e de um importante e a legislação sobre a ocorrência dos
estabelecimento, não tolerarei que "batuques" em locais particulares.
se pretenda quebrar uma só das mo Mais precisamente após os levantes
las da máquina governativa da so negros baianos de 1835, os "batuques"
ciedade em que vivo ..." na cidade do Rio de Janeiro não mais
foram vistos como inocentes, e surgi
Interessante a concepção de tole ram muitos motivos para a sua proibi
rância de n0550 subdelegado: a intran ção ou, ao menos, para a tendência de
sigência na manutenção das bases de que a repressão falasse mais alto. Co
sua sociedade, sem sombra de dúvida mo havia 1Ima desconfiança de que es
a própria escravidão, incluía urna tole tava sendo organizada uma insun-ei
rante perspectiva em relação aos "ba ção de "negros" nas provínciss do Rio
tuques de pretos ..... de Janeiro e Minas Gerais, alguns ofi
cios do Ministério da Justiça ao chefe
Pelos poucos argumentos do fiscal e
de polícia da cidade do Rio de Janeiro
pela incisiva posição do subdelegado,
solicitavam que fossem investigados
podemos supor que a tendência da to
"alguns pretos que parecem exercer
lerância em relação a06 "batuques" era
uma autoridade religiosa" (17 de mar
muito forte nos anos 1860. Principal
ço de 1835) e "as irmandades religiosas
mente se levarmos em conta a decisão
de homens de cor para se descobrir
da Câmara, que concorda com O subde
alguma tendência sediciosa" (13 de
legado afirmando que "não se deve
maio de 1835), e que fossem dissolvidos
proibir divertimentos inocentes sem quaisquer ajuntamentos de escravos
motivo algum". 7
(11 de setembro de 1835).
Como vimos, até o início do século
Trinta anos depois, proibidos os en
XIX eram pel'mitidos os grandes encon
contros em locais públicos, afastada a
tros das populações negl1ls na cidade do
ameaça de rebelião e inexistindo o pe
Rio de Janeiro, como as congadas e os
rigo de "se quebrar uma das molas da
cucumbis. Entretanto, Mary Karash sociedade", a tolerância podia ser de
demonstra que a partir dos anos 1820 a fendida, juntamente, é claro, com um
polícia começou a prender os "que dan determinado tipo de controle e fiscali
çavam o batuque" e passou a proibir as zação pessoal. Desta forma, os batu
danças e procissões organizadas pelas ques tinham condições de ser vistos
irlllandades de escravos, como a do R0- como ('divertimentos inocentes", e mui
sário no Campo de Santana, por C91189 tas autoridades imperiais cariocas,
das desordens, bebedeiras e ameaças à dentre elas o subdelegado e a maioria
ordem pública (Karash, 1989:243). Em das de Câmara, pareciam não ver ou
1820, talvez como uma forma de se pre tros inconvenientes de ordem religiosa
venir, a própria Irmandade do Rosário ou moral, por exemplo, para conviver
e São Benedito decretava o fim dos cal' com eles.
190 ESTUDOS IllSTÓRlOOS-1994/14
dos jornais. AfU'lna Karash que isto é era de origem africana ou l""'sula vín
bastante curioso porque o termo "sam culos bem próximos com a Africa, prin
ba" possui uma clara origem angolana. cipalmente com a região central (Ango
O verbo '1rusamba", que significava la e Congo), de onde provinha a gran de
saltear e pular, devia expressar uma maioria. Importantes pesquisas reve
grande sensação de felicidade (Karash, laram que os diferentes povos desta
1987:244 e 245). região compartilhavam uma série de
As danças negras da cidade do Rio traços religiosos e culturais, uma mes·
de Janeiro, na primeira metade do sé ma base lingüística e um mesmo siste
culo XIX, realizavam-se nas festes re· ma de parentesco, que possivelmente
ligioSAS ou acontecimentos sociais, co permitiram a formação de uma deter
mo as coroações ou nascimentos de minada "identidade banta" no Sudeste
reis, todos eles ótimas OCAsiões para o do Brasil (Slenes, 1991/1992:53-59).
encontro dos escravos. O oficio do sub Com esta perspectiva, mesmo em
delegado e a resposta da Câmara pro 1866, podemos supor que os ''batu
curaram dar ênfase ao fato de que os ques: (termo que também tem origem
batuques eram apenas "inocentes na Africa Central), realizados como
divertimentos". Contudo, é dificil pen uma prática religiosa e lúdica, seriam
sar que em meados do século XIX esti uma ótima oportunidade não só para o
vesse tão clara esta separação entre o encontro entra os representantes dos
sag".do e o profano fia. danças de "pre
•
espíritos que podiam contribuir para a mundo invisível. Santana, por sua vez,
boa fortuna, os diversos santos católioos a avó de Jesus Cristo, representada
e S1las imagens. Defende Mary Karash por uma senhora sentada ensinando à
que esta operação não significava neces sua filha Maria um lição, era um
sariamente a conversão dos escravos, atraenta fetiche para se obter alguns
muito menos o sincretismo religioso - objetivos do grupo, como a proteção
1Ima parte católica e outra parte africa familiar, geradora de harmonia, segu
na - ou o ato de esconder os "deuses" rança e saúde. O respeito aos anciãos
africanos atrás das santas imagens. e a08 mais velhos é praticamente uni
Significava, principahnente, a incorpo versal nas culturas africanas (Slenes,
ração das imagens católicas, dos novos
,
1991/1992:61 e Gomes, 1993:355).
símbolos, à religião da Africa Central Negociando com 08 vizinhos e auto
Esta flexibilidade tornou-se a marca da ridades a realização de 811as manifes
prática religiosa dos africanos e seus tações, "diverlindo-se" em dias de san
herdeiros no Rio de Janeiro (Karash, tas católicas ou, mais apropriadamen
8
1978:261-284). te, incorporando suas imagens e feti
Dentre 05 vários santos que encon ches, os "pretos" conseguiam manter
traram seguidores entre a:I escravos ca suas tradições ao mesmo tempo que
riocas, Santana e o c�pírito SantoU ocu criavam identidades próprias, como os
9
pavam lugar de destaque. Santana, "batuques", que mais tarde se amplia
mãe de Nossa Senhora, possuía nma riam e contribuiriam, através do "sam
imagem na igreja de São Gonçalo, onde ba", para a construção da identidade
se reuniam várias irmandades negt'8S. coletiva da própria cidade (Carvalho,
Na igreja que recebeu o seu nome, havia 1986:136). No fundo, com seus "batu
1Ima antiga tradição dos escravos de se ques, cantorias e danças", desencoraja
encontrarem para eventos sociais aos vam os intolerantes, burlavam a re
sábados. O Divino Espírito Santo, por pressão, diminuíam as agruras da es
sua vez, sem deixar de perder sua iden cravidão e afirmAvam a sua existência
tidade específica, representada por1lma na cidade do Rio de Janeiro (Reis e
pomba ou por um pássaro de prata, Silva, 1989:53).
provavehnente foi incorporado e
reconhecido como os espíritos centro
africanos encontrados nos pássaros, os
que marcam O limite entre a vida e a 4. Os casos do Divino
morte (Karash, 1987,275).
Em 1866, como vimos, os "batuques" Várias irmandades pela cidade
aumentaram no dia de Santana, em prestavam homenagens ao Divino Es
locais muito próximos da sua igreja. pírito Santo, mas as grandes festas
Poderia ser uma boa ocasião para os realizavam-se em três locais - no largo
"pretos" "divertirem-se", como havia do Estácio, no largo da Lapa e no Cam
declarado o delegado. Mas, tendo como po de Santana. A irmandade mais rica
referência a religião centro-africana, é era a da Lapa, mas a festa mais con
plausível pensar que o grupo dos 50 corrida era a do Campo.
"pretos" reunidos para batucar e dan Os preparativos iniciavam-se muito
çar buscava um importante caminho antes. No sábado de Aleluia saíam das
para melhorar SUAS dificeis condições igrejas as famosas folias recolhendo
de vida. A música e o canto eram for donativos e anunciando as festas. Elas
mas de cura e de comunicação com o percorriam a cidade com a bandeira do
FESTAS REUGlOSAS NO RIO DE JANEIRO 193
das, sendo que na segunda ainda des aponta a destruição do "Império" per
filavam um padre e personagens bíbli manente, para dar lugar à construção
cos (Moraes Filho, 1979:117-127). Por do Quartel, logo após a chegada da
último, entrava em cena um jongo de famüia real, como principal motivo de
bonecos negros que, "ao ferver de um seu enfraquecimento. Mello Momes já
batuque rasgado e licencioso", canta afirll!a que até o ano de 1855 "nenhu
vam o estribilho: ma festa popular no Rio de Janeiro foi
mais atraenta". Provavelmenta seu
Dá de comê ·marco é a demolição da sede da irllla n
Dá de bebê dade, a igreja de Santana, para a cons
Santa Casa é quem paga trução da Estrada de Ferro D. Pedro II
A você! nessa mesma época. Entretanto, com
uma sede provisória, a igreja foi trans
Com todos esses variados aconteci ferida para bem perto, ao lado do Ros
mentos, a festa do Divino reunia 08 in sio Pequeno, futura pmça Onze, e a
gredientes da festa mais popular da ci irxnsnclade continuou organizando as
dade: as atrações espetaculares e ilusi.,. festas no Campo de Santana. Lima
nistas desafiavam a simplicidade do Barreto, por sua vez, em Feiras e ma,.
dia·a�ja; muita música, dança, sensua fuás, com uma abordagem bem mais
lidade, comida e jogos completavam o política, creditou a responsabilidade
ambiente profano de uma festa religi.,. pelo fim das "folganças" de junho no
58. A presença e a vivência da festa por Campo de Santana às novas diretrizes
diferentes setores sociais também ga.. da República perseguindo as manifes
rantia que ela fosse um local de encontro tações populares (Barreto, 1956).
e, principalmente, de troca e circulação Acompanhando as licenças para fes
entre as diversas manifestações cultu tas no século XIX, foi possível localizar
rais (Soibet, 1994:19-25): do batuque ao os momentos marcados pela tradicio
teatro de Martins Pena; do ambulante nal toleráncia e delimitar aqueles em
que tirava a sorte aos exercícios eqües que se procurou estabelecer algllm tipo
tres e cosmorarnas internacionais. Era de controle. lO Da mesma for",a que
11m local, como diria Bak htin, onde o para os batuques, numa conjuntura
povo se tornava imortal, onde constan nacional ameaçada por insurreições
temente se renovava e desafiava em escmvas, o juiz de paz da freguesia de
plena pmça pública os poderes consti Santana recomendava em maio de
tuídos através da abundáncia, liberda 1836 que a Câmara não autorizasse a
de, irreverência e ironia, expressas MS construção das barracas para a festa
umbigadas. nas peças sobre a criação do do Divino, pois os "ânimos estavam
mundo, Das saudações ao "Imperador" muito indispostos (... ) e é muito mais
profano e nos estribilhos abusando da proficuo prevenir os ajuntamentos que
caridade da Venerável Santa Casa de separá-los (...) pelo interesse da tran
Misericórdia (Bakhtin, 1987, p. 223). qüilidade pública". O problema chegou
ao próprio regente que, através do mi
nistro dos Negócios da Justiça, orde
Por uma história do Divin o nou que a Câmara seguisse as orienta·
ções do juiz e só permltisse as barracas
Os próprios memorialistas não che nos três dias da festa, e não com muita
garam a um acordo sobre as razões da antecedência. Pouco tempo depois, em
decadência da festa. Vivaldo Coaracy 1838 e 1839, as licenças continuavam
FESTAS RElJGlOSAS NO RIO DE JANEIRO 195
a ser dadas apenas para três dias, e os Novos usos e costumes n o Campo
proprietários eram obrigados a Assinar de Santana
um tel'lIlO de "não pernlÍ tir ajuntamen
tos". Mas, a partir dos anos 40, as Por iniciativa da própria Câmara
licenças voltam a ser concedidas sem Municipal, que vinha discutindo dife
condições e até por um més ou um més rentes projetos desde o final dos anos
e meio, retomando a festa o brilho dos 60, e com o apoio do Ministério do
velhos tempos e comprometendo as ex Império, que acabou entrando com o
plicações dadas por Vivaldo Coaracy. financiamento, o famoso Campo de
Contudo, elas não mais deixaram de Santana entrou em obras em 1873.
receber críticas, se é que um dia isto Com isso, a festa passou a ser realiza·
deixou de acontecer. O fIScal da fregue da no adro da igreja de Santana e
sia de Santana, por exemplo, em 1849 circunvizinhanças, não muito longe do
tentou convencera Câmara a não apro- antigo local, mas O suficiente para dei
var as barracas, pois promoviam "de xar de ser a ma is concorrida festa da
sordens, desrespeito às leis, violência e cidade. O Campo de Santana, pelo seu
anarquia". tamanho e posição cenbal, facilitava a
Acrescentava ainda que "esta festa popularidade da festa; era ali que ela
de aldeia, no centro da cidade capital sempre havia ocorrido... A irmandade
do Império, é já olhada pelo homem sabia que a realização de sua festa
civilizado como imprópria", Não conse naquele local era fundamental, e os
gui descobrir se este funcionário da seus insistentes pedidos de licença
prefeitura era o mesmo que pretendeu comprovam isso, pois afirmam que se·
multar os batuques alguns anos mais ria mais cômodo para o público que em
tarde. De qualquer forllla, os fIScais da "glande número comparece às festivi·
populosa freguesia de Santana, por dades quando são feitas no Campo de
suas opiniões, pareciam representar Santana". Em uma solicitação de feve
na cidade uma posição bem pouco tole reiro de 1873, feita com uma antece
rante. dência incomum, a irmandade apela
Os anos 1870, finalmente, foram para a sua própria história e para uma
cruciais para o futuro da festa do Divi prática católica antiga que devia ser
no. Por um lado, assistiu-se à retoma respeitada:
da da construção da igreja de Santana,
e, ceriamente, ao revigoramento da ir.. "estas festividades se fazem desde
mandade, que naqueles anos solicitou muitos anos, transmitindo-se das
autorização para realizar tudo o que a gerações passadas às presentes, o
festa tinha de mais popular: Império, zelo e a Religião Católica de nossos
barracas, arraial de feira franca e fogo Progenitores que sempre foram au
artificial, para durar até o dia de San xiliados pelo antigo Senado ..."
tana, 26 de julho!
Por outro, encontramos indicações Em 1874, a Cãmara ainda concedeu
de que a tradicional toleráncia e convi que se levantassem coretos, jogos pú
vência com a festa iria conviver com blicos e barracas na área do Campo,
algumas ações intolerantes mais orga mas bem em frente à Secretaria da
nizadas, embora ainda indiretas e am Guerra, que logo protestou e pediu pa
bíguas, tanto por parte do governo mu ra que no futuro não se permitisse tal
nicipal como de autoridades eclesiásti licença naquele local. Naquele ano a
cas. festa se dividiu, levantaram-se bana-
196 ESTUDOS msTÓrucos -1994114
pais e por atrair apenas a população carregados d'água com seus burIt>g
ignorante e analfabeta.14 O jornal O e os clássicos quatro barris que cons
Apóstolo, na luta contra essas forças tituem a carga d'água para a lava
'mternacionais", consideradas inimigas gem (...) Já desde o amanhecer o
da religião e da Igreja, meslllo que criti tamplo está franqueado às devotas
casse e desvalor iz.asse a prática católica lavadeiras (... ) Se o católico sabe que
não rornanizada e leiga, precisou refo.... nem tudo é milagre (referindo-se à
çar o catolicismo como um todo e, Assim, sala dos milagn's), tudo edifica e
nunca pôde considerar aquela prática encanta, todo observador sente-se
como um sistema religioso divergente ali vivamente tocado pela fé viva e
(Gomes, 1991:581-588). autêntica das multidões (... ) A nós
Procurando aprofundar esta última compete somente reconhecer, que
direção, foi possível localizar no jornal ali, no templo do Sr. do Bonfim, na
O Apóstolo um importante espaço de festa de seu santo nome, todo o joe
tolerância no pensamento e ação católi lho se dobra..."
ca reforlllsdora. Não uma tolerância pa
ra com as innanclades autônomas, pois, Outro sentido desta tolerância pode
como vimos, estas foram duramente cri ser encontrado na difícil tarefa dos ca
ticadas e deslegitimadas, mas para com tólicos reformistas de terem que manter
as prátiCSls religiosas populares e afro a prática do culto externo, presente nas
brasileiras, e, fundamentalmente, e isso próprias determinações de 'frento, sem
é muito importante, para com os pró ficar subordinados às il'l!1andades. Pre
prios populares. Na luta contra o mate cisavam fazer frente ao avanço do ''ra
rialismo, a liberdade de culto, o CSlsa cionalismo" do século e, ao mesmo tem
rnento e o registro civil, acabav8-ee va po, através da popularidade das procis
lorizando a tradição popular católica do sões, responder às críticas dos que con
país, como base para a própria naciona sideravam essas práticas um atraso pa
lidade brasileira e em oposição a tudo ra a civililBçãO do país. Ou seja, os
que era importado. "bons" católioos foram obrigados a de
Uma das fOl'was de tolerância foi a fender o catolicismo da "mas"" ignoran
valorização das atitudes autênticas da te e analfabeta"; a mostrar aos protes
fé popular. Assim, por exemplo, mesmo tantes que "não havia idolatria por par
que se combatesse o jogo e as bebidas, te dos católicos", que as proc issões "não
procurava-6e deixar claro que nâo se eram opostas à civiJização do século", e
queria uarrefecero entusiasmo do povo", que "as pompas do catolicismoJ} e "o culto
que concorria em grande nÚmero às dos Santos eram benéficos para o povo"
festas. Comentando a festa de Nosso e para o próprio governo, evidenciando,
Senhor do Borúun em Salvador, quatro ao mesmo tempo, a gl1lnde força do culto
artigos doApóstolo no mês de janeiro de católico e a harmonia social do país.15
1888, publicados na seção de varieda Mais ainda, para combater os seus
des, refletem e expressam exemplar maiores inimigos, O liberalismo e o pro
mente a admiração por aquela manifes testantismo, O Apóstolo foi veiculo de
tação religiosa, independentemente das um tipo de tolerância que complemen
exigências da ortodoxia: tava todas as outras. Afirmava a exis
tência de uma nacionalidade católica,
''Desfilam também, partindo do ar incorporando todos os brasileiros, in
rabalde do comércio em longa pro clusive os escravos (em geral, nâo ''tão
cissão, crioulos e africanos bons católioos assim''), numa 56 fami-
FESTAS REUClOSAS NO ruo DE JANEIRO 199
nhamentos, de alguma forma foram cismo popular", sem entretanto muita dis
aceitas e incorporadas à vida da cida tinção em relação aos outros oonceitos C'Ner
de, mesmo que em decorrência de uma neto 1987:17-18).
estratégia política e de controle mais 2. As Contes básicas de minha pesquisa
eficaz que a simples repressão... são: o jorne1 cat6lico O Apóstolo, entre
Lima Barn,to (1881-1922) lembrava 1866-1901, período de existência dojornal;
lS8 das '1JaI'l'aquinhas que se 81'1navam o jorne1 Diário do Rio ele Janeiro nos períe>
no Campo se Santana", no largo em dos 1850-1853 e 1869-1871; e as licenças
frente ao Quartel-General, no tempo em para Cestas requeridas pelas irmandades à
que era menino. Responsabilizou a Re Câmara dos Vereadores entre 1830 e 1910
(Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janei
pública por ter acabado com "aquela
ro). Para este artigo Coram tembém muito
folgança do mês". Entretanto, a festa do
importantes memorialistas citados
Divino Espírito Santo no Campo havia
08 na
bibliografia.
sido condenada muito antes de 1889...
Mais ainda, nos anos 1880, a Câmara,
,
cultura iorubá (Africa Central). Uma inte- to, destaca Moraes Filho, elas nunca tive
ressante e nova perspectiva sobre o "sin ram a popularidade do Divino. Sobre as
cretismo" também pode ser encontrada em festas da Penha e o Carnaval, ver Soihet,
Vogel, Mello e Ban-os. Para os autores, o 1994.
sincretismo deve ser visto como "uma fina 13. O jornal O Apóstolo circulou na ci
arte do compromisso que assenta no pres dade do Rio de Janeiro entre os anos de
suposto de um mundo povoado de deuses, 1866 e 1901 e Coi uma espécie de órgáo
os quais é prudente, sempre que possível, oficial do bispado. 'lbdas as críticas podem
cooptar" (Vogel, Mello e Barros, 1993:166). ser encontradas nos seguintes dias: 19 e 21
9. Os santos de maior preferência foram de abril, 19 de maio, 22 de setembro e 27
São Jorge, Santo Antamo de Pádua e São de outubro de 1876, 12 de fevereiro e 22 de
Benedito (Karash, 1987:282). junho de 1879, 27 de novembro de 1881, 1
de agosto e 18 de dezembro de 1886.
10. As licenças a que faço referência se
encontram no Arquivo Geral da Cidade do 14. Verjornal O Ap6stolo, dentre vários
Rio de Janeiro, códices 58-3-35 e 43-4-7. Ao outros dias, 17 de março de 1873, 28 de
202 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1004/1(
KARASH, Mary. 1987. Slave !ife in Rio tk ta no Brasil", Revista da USP, São Pau
Janeiro. Princeton. Princeton Univer lo, n 12.
sity Presa. SOlHET, RacheI. 1994. "Subversão pelo
�T1�Z, AJ.ssandra. 1994. "Educar e riso: reflexóes sobre resistência e circu
instruir: a educação da criança popular laridade cultural no carnaval carioca,
no Rio de Janeiro no fmal do século 1890-945". Niterói, UFF (mimeo/tes.
XIX". Niterói, UFF (monografia gIa de professor titular).
duaçãoJ, SOUZA, Laura Mello. 1986. O diabo e a
PRIORE, Mary deI. 1994. Feslas e utopiCUl terra tk Sanla Cruz. São Paulo, Cia das
no Brasil Colonial. São Paulo, Brasi Letras.
liense. VOGEL, Amo, MELLO, Marco Antônio
RAMOS, Arthur. s/d. O folclore neclO no da Silva e BARROS, José Flávio Pes
Brasil. Rio de Janeiro, Livraria Casa soa. 1993. A galinha d'angala. Rio de
do Estudante. Janeiro, Pallas.
REIS, João José. 1991. A mor/.e é uma WERNET, Augustin. 1987. A igrej,a pau
fesla. São Paulo, Cia das Letras. lisla no século XIX. São Paulo, Atica.
REIS, João José e SILVA, Eduardo. 1989.
Negociação e conflito. São Paulo, eia (Reoebic/o para publicação em agosto de 1994)
das Letras.
SCHWARCZ, Lilia. 1987. Relralo em
branco e negro. São Paulo, eia dos Le
tras.
Martha Abreu é professora de história
SLE�S, Raber,t. 1991/1992. "Malungu, da América na UFF e doutoranda em his
Ngoma vem: Africa coberta e descober- t6ria na Unicamp .