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A Vida Cotidiana Dos Primeiros Cristaos (95-197) - A.G.hamman - Ed - Paulus - ESGOTADO
A Vida Cotidiana Dos Primeiros Cristaos (95-197) - A.G.hamman - Ed - Paulus - ESGOTADO
(95-197)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
1. Igreja - História - Igreja primitiva 2. Sociologia cristã - História - Igreja primitiva I. Título. II. Série.
Coleção PATROLOGIA
A VIDA COTIDIANA
DOS PRIMEIROS CRISTÃOS
(95-197)
PAULUS
Título original
La vie quotidienne des premiers chrétiens (95-197)
© Librairie Hachette, Paris 1971
Traduzido da 4S edição, revista e corrigida, de 1992
Tradução
Benôni Lemos
Revisão
Edson Gracindo
Capa
Visa
©PAULUS-1997
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (011) 570-3627
Tel. (011) 575-7362
hrrp://www.paulus.org.br
lísBN 85-349-0834-6
ISBN 2-01-019602-3 (ed. original)
INTRODUÇÃO
7
PRIMEIRA PARTE
O AMBIENTE
CAPÍTULO I
O QUADRO GEOGRÁFICO
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reconhece a expansão do que ele chama “execrável superstição”,
não só na Judéia, onde ela se originou, mas também em Roma. A
polícia reuniu "multidão considerável”, a qual — na expressão do
historiador romano, hábil na elipse — foi sacrificada "não ao inte
resse geral, mas à crueza de um só”. Os que escaparam prepararam
a continuidade.
A lista dos bispos que se sucedem em Roma, depois do apóstolo
Pedro, é instrutiva porque penetra na vida concreta da comunidade,
aberta às influências mais diversas e às vezes contraditórias, cadinho
no qual se fundem as nacionalidades e os nacionalismos.4 Entre os
catorze sucessores de Pedro, até o fim do século II, quatro são roma
nos, três de origem italiana, cinco gregos, um ex-anacoreta, outro Hi-
gino, filósofo; Aniceto é de Emesa, a atual Homs da Síria; Vítor, que
fecha a lista, é africano, o primeiro a escrever em latim em Roma.
Essa sucessão reflete bem a extensão do cristianismo nos dois
primeiros séculos. A Ásia é representada por um só titular; os gre
gos, por um terço. A primeira Igreja de Roma é tão pouco latina
quanto possível. Os cristãos falam o grego. Nela sírios, asiáticos e
gregos apátridas acolheram com fervor a mensagem do Evangelho.
O primeiro núcleo é formado por eles. Seguem-se autóctones e afri
canos.
A penetração cristã se afirma desde o século II pela presença de
um bispo de além-mar em Roma. Agora o povo dos cristãos olha
como todos os povos conquistados, mas com outros olhos, para
Roma, a Urbs, a Cidade, metrópole espiritual consagrada pela pre
sença e pelo martírio de Pedro. Progressivamente, o Evangelho se
liberta da tutela judaica e passa para as nações.
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uma comunidade desde o século I. Sua água dava às lãs coloridas o
mesmo brilho que a tintura do múrice.
Pouco depois da morte de João Evangelista, Inácio atravessa as
cidades asiáticas, cuja vitalidade e cuja organização avançada são
testemunhadas por suas cartas. Às igrejas de Éfeso e Esmima, já
mencionadas, juntam-se as de Trales e Magnésia, uma e outra na
grande estrada para Éfeso.
A população da Ásia Menor tinha uma aptidão excepcional para
o comércio e as disciplinas do espírito. Esmima é a capital inconteste
da “Segunda Sofistica”. Filostrato a compara ao cavalete da lira. O
Império lhe oferecia possibilidades inesgotáveis. De espírito vivo,
instruídos, eloqüentes e flexíveis ao ponto de se adaptarem a todos
os climas e a todas as situações, os habitantes da Ásia rapidamente
abriram caminho na sociedade cosmopolita de Roma. Os comer
ciantes da Itália não tinham outro recurso senão associar-se a eles
ou desaparecer; eles são encontrados por toda parte em Roma e no
Ocidente e em toda parte eles têm loja. Romanos e marselheses
deviam dizer: vamos comprar "no chinês”, referindo-se ao merceeiro.
As inscrições atestam sua presença em Mainz, entre os helvécios e
na Grã-Bretanha.23 No século II, encontramo-los no vale do Ródano.
Provavelmente são mercadores da Ásia e da Frigia que, com os pro
dutos do Oriente e com sua ciência médica, trazem também o Evan
gelho. Dão à capital das Gálias seu bispo mais ilustre.
Terra generosa, na qual os homens são facilmente crédulos e
exaltados e prontos para o delírio místico, a Ásia Menor causou
rapidamente à Igreja preocupações que sombrearam o século II.
Na vila obscura de Ardabau, nas fronteiras da Frigia e da Mísia,
Montano, um recém-convertido de espírito exaltado, certo dia se
pôs a atrair a atenção de seu meio e, depois, das multidões com o
espetáculo de seus êxtases, e acabou tomando-se pelo Espírito San
to.24 O movimento montanista se espalhou da Ásia até Roma e
Cartago, onde iremos encontrá-lo.25
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Ele se abre em leque da Germânia à Mesopotâmia (atual Iraque), do
Reno ao Eufrates e ao Tigre. As fronteiras do império romano são
atingidas e, no Oriente, na direção de Edessa e do reino parto, sem
dúvida ultrapassadas. Trier e Nísibe têm uma comunidade cristã.
A expansão se dá principalmente na costa africana do Mediter
râneo, com seus dois “faróis”: Alexandria e Cartago. A navegação
facilitou a evangelização. O fervor dos convertidos operará o resto
no interior das terras. Desde o fim do século II, as igrejas de Cartago
e Alexandria produzem seus bispos e seus gênios.
Na Gália, os melhores portos onde desembarcam os levantinos
são Narbonne, Aries, Marselha e Frejus.26 Da costa podia-se ir a
Lião e Viena por via fluvial ou terrestre. Dessa região do sudeste, os
romanos formaram uma província, a Narbonesa, a qual subia até
Viena. Depois de Augusto, o resto do país, a “Gália cabeluda”, esta
va dividido em três províncias: Aquitânia, Lionesa e Bélgica, tendo
Lião como capital deferal. O Reno era a fronteira que fechava o
Império ao norte.
Dentro desses limites, graças às trocas comerciais, desenvol
via-se progressiva assimilação dos costumes e da civilização dos
vencedores. As classes dirigentes adotaram rapidamente o latim, e
os emigrados continuavam a falar o grego, ficando os dialetos
célticos confinados nos campos. Irineu se pôs a aprendê-los, mas,
homem culto que era, repugnava-lhe falar “esse dialeto bárbaro”.27
Em Marselha uniam-se a estrada do norte e a via marítima,
pela qual chegavam as mercadorias da Itália ou do Oriente. A ex
portação incluía a cerâmica, a lã, o presunto e os salsichões, elo
giados por Varrão,28 os queijos de Nimes e Toulouse, o óleo e o vi
nho das margens do Reno ou de Beziers. Uma jarra encontrada na
Itália traz a inscrição: Eu sou um vinho de Baziers e tenho cinco
anos.29 Plínio chega a censurar os marselheses porque misturavam
água ao vinho de exportação.30
Toda a nata intelectual da Grécia emigrara para Marselha.31 Os
romanos freqüentavam sua escola de filosofia. A sua “faculdade” de me
dicina era famosa32 e mantinha relações com Alexandria. Adeptos da
nova religião podiam facilmente insinuar-se entre essa migração crôni
ca. Inscrições encontradas em Marselha parecem atestar a presença
cristã33 desde o século II. É bem possível que Crescente, do qual fala
Paulo na segunda carta a Timóteo, tenha sido enviado para a Gália.34
16
No século II, Lião não é só mercado para o comércio do trigo,
do vinho e da madeira, mas também um dos maiores centros de
manufaturas do Império, e muitos de seus artigos serão encontra
dos na Germânia e na Inglaterra.35 Inscrições, esculturas e baixos-
relevos do século II ainda permitem medir o papel desempenhado
pela cidade da seda, centro das Gálias.36
O Império, para mostrar sua presença e sua autoridade, cons
truiu na encosta (do bairro) Croix-Rousse um altar monumental à
glória de Roma e de Augusto.37 A consagração do altar era celebra
da todos os anos com jogos e festas. As festas aniversárias servirão
de quadro para a paixão dos primeiros mártires. Depois das festas,
os gauleses voltavam para casa deslumbrados com o poder romano
e com os benefícios de sua presença.
A prosperidade de Lião atraíra numerosa colônia de orientais
da Ásia e da Frigia.38 Os primeiros cristãos vieram, como seus com
patriotas, por razões profissionais. Alexandre39 era médico e esta
belecera-se na cidade desde longa data. Quando os irmãos toma
ram-se bastante numerosos para se constituir em “igreja”, pelo ano
150, as comunidades-mães lhes enviaram um bispo, Potino.
Em 177, a igreja de Lião, associada à comunidade de Viena,40
já era suficientemente importante para suscitar a atenção e moti
var a perseguição. Os mártires, cujos nomes gregos e latinos conhe
cemos, refletem a imagem da comunidade, na qual se misturavam
asiáticos e autóctones, comerciantes e mulheres ricas.41 Irineu,
que depois da tormenta sucede ao bispo Potino, governa agora as
comunidades, disseminadas da foz do Ródano às margens do
Reno.42 É que o Evangelho, segundo a penetração romana, chegou a
Trier e Colônia, mas não sabemos nada dos autores desse grande
esforço.43
Na costa africana estendem-se, do golfo de Gabes — e mesmo
da grande Sirte44 — ao oceano Atlântico, as três províncias roma
nas da Proconsular, da Numídia e da Mauritânia. Cartago,45 “galera
ancorada na areia líbia” (G. Flaubert), dominadora dos mares e ri
val de Roma, foi fundada pelos fenícios, vindos de Tiro e Sidônia. A
cidade dominava o golfo, na embocadura do Medjerda, na confluên
cia dos dois Mediterrâneos, no lugar da atual Sidi-Bu-Said, de onde
o olhar vigia o mar e pode facilmente defender o istmo que liga o
promontório à terra.
17
Os fenícios, com seus balcões, trouxeram suas divindades, con
tra as quais o Deus do Antigo Testamento levantou-se muitas vezes.
Em Cartago, o Deus dos cristãos foi precedido pelo Baal-Hamon
barbudo, com veste longa, uma tiara na cabeça e carregado por três
esfinges.46 Tanit era associada a ele: “Gorda, barbuda e de pálpe
bras abaixadas, ela parecia sorrir e tinha os braços em torno de seu
grande ventre, polido pelos beijos da multidão”.
O tofet de Cartago e de Sussa imolava a Baal-Hamon e a Tanit
crianças, cujas esteias, no museu do Bardo, ainda hoje nos causam
arrepios. As proibições dos imperadores não conseguiram acabar
com essas práticas bárbaras. “Tomo como testemunhas, diz Tertu-
liano, os soldados de meu pai que executaram essa ordem dos
procônsules romanos. Os próprios pais vinham oferecer seus filhos
e se comprometiam a isso espontaneamente; na hora do sacrifício,
eles os acariciavam para que não chorassem”.47
Através de todas as vicissitudes de sua história, Cartago conser
vou seus vínculos com o Oriente, graças aos navios que estabele
ciam escala em seu porto. Ela fora totalmente destruída por Cipião;
seu solo fora “execrado” e nivelado, e o gado ia pastar em suas ruí
nas. Os Gracos e, depois, César deram prova de realismo, recons
truindo-a, e Augusto restituiu-lhe o brilho antigo. Roma e os númidas
exploraram suas ricas terras para a cultura do trigo. A partir do
século II, os Antoninos desenvolveram a rede de estradas e cons
truíram monumentos, testemunhados até hoje pelas ruínas do aque-
duto, das termas e do anfiteatro, de beleza incomparável, cujos ves
tígios permitem avaliar suas dimensões e sua suntuosidade.48
Quando o cristianismo chegou a Cartago, a cidade era o centro
geográfico, administrativo, cultural e comercial de uma Itália trans-
marina, rival de Alexandria e, como ela, celeiro de Roma e voltada
para o mar, símbolo de acolhida.49 “Nela tudo respira opulência”,
diz o africano Apuleio.50 Era a época da grande prosperidade eco
nômica, alimentada pelo trigo e pela oliveira. A organização militar
do país acompanhava a exploração do solo, parecendo motivada
pelo desejo de estender-se até as estepes e a montanha.51
Nenhum texto, nenhum vestígio, nenhuma alusão literária men
ciona as origens cristãs.52 Tertuliano, ainda próximo dos aconteci
mentos, não fala delas. Agostinho/3 no século IV, contenta-se com
afirmar várias vezes que o Evangelho, como o fundador da cidade,
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veio do Oriente. Muitos são os vínculos arquiteturais e litúrgicos
que unem essa igreja africana à igreja oriental.54 Tertuliano, que
podería ter sido uma figura tanto da literatura grega como da la
tina, era traduzido logo depois de publicado.53 A influência do Orien
te sobre a liturgia africana permite concluir pela dependência. A
arquitetura religiosa da África acusa parentesco certo com a do
Oriente, particularmente com a da Síria.56
Em Cartago, como em Roma, as primeiras conversões devem
ter-se verificado nas colônias judaicas, importantes nos portos da
costa e sem dúvida aumentadas com a chegada dos fugitivos que
haviam deixado Jerusalém, depois da vitória de Tito.57 Na necrópo-
le de Gamart, ao norte de Cartago, e em Hadrumeto (atual Sussa),
os túmulos dos judeus e dos cristãos se encontravam lado a lado.58
Mas as duas religiões não viveram por muito tempo em bons ter
mos; como no resto do Império, não tardaram a se opor uma à
outra. A ruptura se consumou no tempo de Tertuliano.59 O autor do
Apologético conserva a memória do tempo em que o cristianismo
vivia ‘ a sombra" do judaísmo. A separação não o impediu de lem
brar essa união fugaz.
Certo dia, portanto, o Evangelho aportou na cidade, em um na
vio de cabotagem procedente da Palestina, do Egito ou da Síria, a
menos que tenha ido por terra, passando pelo Egito e pela Líbia. Os
primeiros convertidos foram alguns judeus emigrados e os doqueiros
que descarregavam os produtos do Oriente. Podemos imaginar a pri
meira comunidade cristã como das mais mescladas, com seus ju
deus emigrados, seus autóctones necessitados, seus gregos industrio-
sos e, mais tarde, com alguns latinos, cultos ou não. Como em Corinto,
a maioria era formada por pobres e por humildes de sangue mistura
do. Seu temperamento vivo e apaixonado até a exaltação encontrava
afinidade com o que o Oriente religioso levava de fervor e inquieta
ção. Falavam o grego, o púnico e o berbere, o suficiente para as neces
sidades de seus trabalhos ou de seus negócios. Comerciantes e bur
gueses davam preferência à língua púnica,60 especialmente nas cida
des do litoral. Agostinho ainda era obrigado a traduzir para o púnico
palavras latinas que escapavam a uma parte de seu público.
O Evangelho se difundiu como o fogo no canavial, de lugar em
lugar, de cidade em cidade, entre as populações romanizadas do
interior. Essa progressão coincidia com a urbanização dessa pro-
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víncia africana. Na metade do século II, chegou aos lugarejos e às
aldeias obscuras. As tribos gétulas, arredias às influências externas
e à erosão da história, descidas dos altiplanos para o comércio ou a
troca e às vezes para a rapina, foram tocadas pelo Evangelho antes
do fim do século, como afirma Tertuliano.61 O espírito de tolerân
cia, próprio da África, explica, sem dúvida, essa progressão rápida,
que atingiu todas as camadas da sociedade. Como em Lião, os cris
tãos no tempo de Marco Aurélio são bastante numerosos para
atrair os olhares e despertar as suspeitas. Em 180, uma perseguição
põe à prova a jovem igreja. As diligências, provocadas habitualmente
por denúncias populares, têm como alvo principalmente os humil
des. E uma forma de ajuste de contas. Não deixa de ser curioso que
Tertuliano nunca fosse molestado. Sua estatura impunha respeito
aos romanos e admiração aos africanos.
Quando os primeiros mártires provam a vitalidade da igreja da
África, nossos olhos, surpresos, descobrem quão profunda é a pe
netração do Evangelho além das cidades costeiras, até os contrafor
tes do Tell e do deserto.
Felizmente, temos o documento que narra a morte dos primei
ros mártires, os de Scili. É o primeiro texto cristão escrito em latim
e o primeiro documento conservado da igreja da África.62 Em 180,
doze cristãos, cinco aldeãs e sete aldeões — de uma aldeia tão insig
nificante que até hoje não foi possível localizá-la — são denuncia
dos, presos e, depois, decapitados em Cartago, no dia 17 de julho. O
Evangelho ultrapassou, portanto, largamente as cidades, como
Cartago, Madaura, talvez Cirta, Lambese e Hadrumeto, de modo
que a campanha é evangelizada e, pela vitalidade de seus cristãos,
provoca a perseguição. Os doze mártires são rurais, isto é, peque
nos proprietários de terras ou colonos de alguma fazenda ou de
alguma empresa rural, talvez trabalhadores temporários.63 Seus
nomes haviam sido romanizados recentemente. São conduzidos
para Cartago, a fim de lá morrerem. A África conserva fiel e orgu
lhosamente a lembrança de todos os seus mártires e celebra seus
aniversários de morte. Agostinho nos deixou dois sermões para a
festa dos mártires de Scili.64
Sob Marco Aurélio, a comunidade de Cartago, solidamente or
ganizada, atrai a si um advogado brilhante, chamado Quintus Septi-
mus Florens Tertullianus, filho de centurião romano. O Império re-
20
crutava seus funcionários subalternos, civis e militares, entre a popu
lação local, mas mandava da península os dos quadros superiores.65
Na época, a comunidade cristã dispunha de lugares de reu
niões e de cemitérios. Tertuliano fala, com certa ênfase, "de milha
res de pessoas dos dois sexos, de todas as idades e de todas as con
dições”.66 Diz até que "em cada cidade mais da metade dos habitan
tes são cristãos”, e acrescenta com orgulho que, se os cristãos se
retirassem, “as cidades ficariam vazias".67 No ano 197, o autor do
Apologético escreve: “Somos de ontem e já enchemos a terra e tudo
o que é vosso: as cidades, o comércio, os lugares fortificados, os
municípios, os povoados, os campos, as tribos, as escuderias, os
palácios, o senado, o fórum. Deixamos para vós só os templos”.68
Seja qual for a parte de retórica desse texto, não devemos es
quecer-nos que o concilio da África, convocado por Agripino, sem
dúvida em 220 ou antes, reuniu setenta bispos. No fim do século II,
a África romanizada, em uma inversão do movimento, conquistou
seu vencedor: Vítor, bispo de Roma, e o imperador Sétimo Severo
são de origem africana.
Alexandria, cidade talvez de um milhão de habitantes, era a
segunda cidade do Império e seu principal mercado, pela impor
tância de suas mercadorias e de seu comércio. Seu duplo porto,
interno e externo, junção da Arábia, da distante índia e dos países
banhados pelo Mediterrâneo, tornavam-na a ligação entre dois
mundos. Por ela passavam o marfim da África, as gomas e as espe
ciarias da Arábia e o algodão e as sedas da índia. A grande metrópo
le era ligada a Ásia setentrional por terra e por mar. A estrada pas
sava por Pelúsio, Ostracine, Ráfia, Ascalão e Gaza, cuja importân
cia estratégica durou até a guerra dos Seis Dias. Muitos viajantes
que iam da Judéia ou da Síria para Roma embarcavam em Alexan
dria, em algum comboio de trigo. O Egito fornecia vinte milhões de
alqueires de trigo ao Império, um terço de seu consumo.69 Os car
gueiros mistos levavam até seiscentos passageiros.70
A população de Alexandria era tão mesclada, tão colorida como
hoje. Gregos, sírios e árabes andavam lado a lado com comercian
tes, turistas e provincianos, vindos para negócios ou para seguir
cursos de filosofia ou de medicina. O estrangeiro que entrava na
cidade pela porta dita do Sol ficava deslumbrado com o esplendor
das avenidas, ladeadas por colunas até a porta da Lua.
21
Os judeus eram tão numerosos como o são hoje em Nova Iorque.
Sua riqueza — e, dizia-se, a prática da usura — provocava pertur
bações freqüentes, repetidas de século em século e disciplinadas
pelo bispo Cirilo no século V. Quando o Evangelho chegou à cidade,
estavam eles em plena prosperidade e ocupavam dois bairros da
cidade, especialmente o do Delta.71 Suas relações com a Palestina
eram freqüentes, graças às peregrinações a Jerusalém. Alguns deles
podiam estar entre os contraditores de Estêvão.72
É provável que os primeiros adeptos da religião cristã tenham
sido membros da comunidade judaica. Aberta a todas as influên
cias, curiosa de todo saber, cadinho de raças e religiões, no qual a
versatilidade e a inquietação se uniam ao ceticismo e ao sincretismo,
a cidade de Alexandria deve ter dado aos primeiros evangelizadores
a mesma acolhida que daria em breve às elucubrações de Valentino
e de Carpócrates e a Apeles, discípulo de Marcião, que emigrariam
para Roma e Lião, onde Irineu não tardaria a combatê-los.73 Esses
dissidentes supõem a Grande Igreja.
Quando e como o Evangelho de Cristo chegou ao Egito? Na
falta de documentos, é difícil lançar um pouco de luz sobre o pro
blema e separar a verdade da lenda. O historiador Eusébio refere,
sem apoiar, uma tradição que se gloria da ida do evangelista Mar
cos.74 O mesmo autor nos conservou a lista dos dez primeiros bis
pos.75 Graças a eles, pode-se remontar às origens, a partir de Demétrio,
que governava a comunidade em 189. Mas são nomes obscuros,
que nenhum vestígio, nenhum texto esclarecem.
É bem possível que Apoio, mencionado na primeira epístola
aos Coríntios, tenha-se convertido ao cristianismo no Egito, seu país,
como afirma um dos melhores testemunhos do texto.76 Os primei
ros vestígios seguros nos são fornecidos por fragmentos de Evange
lho, os quais remontam ao começo do século II.77 Os mais antigos
papiros cristãos que possuímos são escritos em grego. As traduções
da Bíblia (a começar pelo Novo Testamento e pelos Salmos) para a
língua copta, realizadas sem dúvida em Hermópolis, a Grande, apa
receram no século III e atestam que o Evangelho já havia penetrado
no interior do país, quatrocentos quilômetros Nilo abaixo, o que
explicaria a lenda segundo a qual a Sagrada Família teria ido para
lá durante a perseguição de Herodes.78 Lá havia um bispo, de nome
Colono, o mais tarde em 250.79
22
Na cidade de Alexandria, na qual a cultura e a filosofia flores
ciam, o cristianismo assumiu rapidamente aspecto intelectual, o
qual se tomou o orgulho da cidade, na qual sucediam-se grandes
nomes: Clemente, Orígenes, Dionísio, Atanásio, Ário, Cirilo. Desde
o fim do século II, pode-se falar de uma “escola” de Alexandria. Se
fosse possível provar a origem alexandrina da epístola aos Hebreus,
teríamos nela o primeiro documento sobre a vitalidade intelectual
da comunidade.80 A carta dita de Bamabé, escrita no século II, em
um meio culto judaico-cristão, no qual misturam-se influências di
versas e no qual é inegável o prestígio de Fílon, o grande judeu-
alexandrino, podería assim ter vindo à luz em Alexandria, o que
explicaria em parte a estima que todos os teólogos da cidade ti
nham por essa carta.
Pelo ano 180, Panteno, vindo sem dúvida da Sicília,81 fixou-se
em Alexandria, depois de longo périplo, que, segundo Eusébio,82
levara-o até à índia. Sua pessoa, que gostaríamos de conhecer me
lhor, unia o fervor do evangelista à reflexão do doutor. Dirigiu a
escola dos catecúmenos, espécie de universidade cristã, na qual Cle
mente encontrou o mestre e a luz que o levou à fé.
A comunidade cristã, já organizada, era governada por Demétrio,
bispo de grande estatura. Parece que compreendeu e favoreceu a
exigência intelectual da evangelização, arriscando-se a se indispor
com os mais brilhantes teólogos. Desde então, Alexandria era farol
que se irradiava para o Oriente e para o Ocidente, particularmente
para Roma. Eusébio cita laços estreitos que uniam a comunidade
egípcia aos irmãos da Palestina, fiéis em celebrar a festa da Páscoa
no mesmo dia.83
Parece que o bispo Demétrio ordenou os três primeiros bispos
que deviam dirigir as comunidades de Antinoé, de Naucrátis e de
Ptoloméia, cidades já helenizadas do Egito.84 Vinte outras igrejas
foram atribuídas ao seu sucessor, Heraclas. Segundo Eusébio, cris
tãos do Egito e de toda a Tebaida, a parte meridional do país, foram
martirizados em 202, em Alexandria, o que permite concluir que,
no século II, o cristianismo já estava difundido pelo vale do Nilo.85
Por outro lado, devemos assinalar a penetração cristã na Ásia
oriental até o país do Eufrates e do Tigre (atual Iraque). Entre os
dois rios, Edessa (situada onde é hoje a cidade turca de Urfa), era a
capital de pequeno Estado independente, Osroene, encurralado entre
23
Roma e os partos.86 Graças à sua situação geográfica, era imenso
mercado das caravanas do Oriente, o que a abria para as influências
e as invasões do Leste e do Oeste. Outrossim, a proximidade de Harã,
onde Abraão morou por algum tempo, aumentava seu prestígio.
Trajano conquistou Osroene em 114, época que nos interessa.
O país reencontrou sua independência ao preço de sua sujeição a
Roma. Desde longa data o comércio da seda atraíra para Edessa
muitos judeus, os quais podem ter marcado o caminho da evan-
gelização. Alguns deles foram testemunhas, em Jerusalém, do Pen-
tecostes e da primeira pregação de Pedro.87 O apóstolo presumido
do país, Addai, era provavelmente de origem judaica.88 Eusébio
menciona uma lenda segundo a qual seu rei Abgar ter-se-ia corres
pondido com Cristo — e o apóstolo Tadeu teria ido evangelizar o
país.89
Todos os historiadores antigos90 atribuem a Tomé a evange-
lização dos partos e dos persas, o que já é atestado por Orígenes.91 A
partir do século III, o túmulo desse apóstolo era venerado em
Edessa.92 Sobre essa tradição, talvez lendária, insere-se outra, não
necessariamente incompatível com ela, segundo a qual esse mesmo
apóstolo teria evangelizado a índia,93 convertendo o rei Gundafar;
martirizado, sua primeira sepultura teria sido em Mailapur (ar
rabalde de Madras). É provável, em todo caso, que os atos de Tomé
tenham sido redigidos em siríaco, em Edessa, no começo do século
III. As seitas gnósticas da época tomaram o apóstolo Tomé uma
espécie de personagem mítica, confidente de revelações do Salva
dor. Tradição ou lenda, seu pretenso itinerário apostólico ao menos
traça a rota que o Evangelho tomou logo para chegar ao reino da
índia.
É certo que no fim do século II Edessa estava evangelizada e
tinha uma igreja, que podia parecer-se com a de Dura.94 Durante a
controvérsia pascal, por volta de 190, “bispos de Osroene e das cida
des do país”95 tomaram posição e intervieram em Roma. Resta-nos
o nome do bispo Palut, ordenado por Serapião de Antioquia.96 Aggai,
que parece ter sido seu sucessor, morreu mártir.97
Em todo caso, no fim do século II, o Evangelho estava difundi
do pelo país e várias comunidades estavam fundadas.98 Se é verda
de que o rei Abgar IX (179-214), contemporâneo de Sétimo Severo,
converteu-se ao cristianismo, a longínqua Osroene terá fornecido à
24
Igreja a primeira família cristã reinante e facilitado a penetração do
Evangelho.
Duas outras personagens atestam a vitalidade da nova religião
na Mesopotâmia: Taciano e Bardesanes. A importância literária de
um e outro mostra que o Evangelho já havia sido pregado eficaz
mente aos sábios e aos filósofos até as margens do Tigre. No Discur
so aos gregos, Taciano confessa: “Nasci no país dos assírios e fui
instruído em vossas doutrinas. Mais tarde, convertei-me e fui ini
ciado nos ensinamentos que professo no presente”.99
O berço de Taciano devia situar-se a leste do Tigre. Seus pais
falavam provavelmente o siríaco. A procura da sabedoria o condu
ziu, como a muitos outros, dos confins do mundo civilizado, atra
vés da Grécia, até Roma, onde se converteu e tomou-se discípulo
do filósofo Justino, que tinha lá uma escola. Depois da morte de seu
mestre, escreveu seu Discurso aos gregos, aceitou as teses rigoristas
das seitas gnósticas, voltou para o país de seus antepassados e redi
giu uma Harmonia dos quatro Evangelhos, o Diatessaron, que ficou
por muito tempo em voga na Igreja siríaca e do qual foi encontrado
um fragmento, em 1933, em Dura Europos, às margens do Eufrates.
Outro escritor de Edessa, Bardesanes, nascido em 156, amigo
de infância do rei Abgar IX, foi um dos primeiros poetas a compor
hinos litúrgicos em siríaco. Parece que quis tentar, na confluência
das culturas e dos povos, uma síntese da lei cristã e da ciência.100
Desde o fim do século II, Edessa aparece como foco de intensa vita
lidade literária e intelectual, no qual foi forjada a língua siríaca cristã,
e como o ponto de partida da penetração cristã na Armênia, na
Pérsia e no leste da Ásia.
Bastaram só dois séculos para que os herdeiros espirituais do
“Israel novo”, do qual fala são Paulo, levassem a luz do Evangelho à
terra de seu longínquo antepassado, Abraão, que outrora estreme
ceu ao ouvir a promessa.
25
CAPÍTULO II
As viagens
O fenômeno migratório através do Mediterrâneo no tempo de
Filipe II, do qual fala Femand Braudel,4 já existia sob os imperado
res romanos. O Mediterrâneo sempre teve o gosto da aventura. Da
26
Antiguidade aos nossos dias o que mudou não foi o sentido da via
gem, mas seu ritmo.
A rede viária traçada através do Império pelo deslocamento das
legiões romanas serviu para as trocas e os negócios. As artérias prin
cipais continuaram a ser protegidas militarmente. Todas as vias de
terra e mar convergiam para Roma, capital e centro do Império e
do mundo. É necessário evitar tirar argumento em favor do prima
do romano da passagem de um cristão por Roma: por ela se passa
va necessariamente, como fez Irineu, quando foi para Lião.
De Roma podia-se ir por terra à ponta da Bretanha, à foz do
Reno e do Danúbio, a Atenas e a Bizâncio e, além do Bósforo, atra
vessando a Ásia Menor, até Nínive. Uma via romana ligava o Nilo
ao Atlântico, ao longo da costa africana. Em Alexandria, ela se liga
va à estrada para a Ásia.5 Através do Império, a ordem viária coman
dava a ordem humana. A história da estrada era a história da re
gião. Se o comércio prosperava, a estrada se modernizava; do con
trário, ela se degradava. As estradas fizeram nascer cidades e facili
taram os intercâmbios.
Para os viajantes existiam cartas viárias com as estações de
troca de animais, as distâncias e as estalagens. Em Vicarello, per
to do lago Bracciano, na Itália, lugar muito visitado por causa de
suas águas, as escavações encontraram três vasos de prata, na for
ma de colunas miliares, com o itinerário completo de Gades (Cádiz)
a Roma. Eram de espanhóis que tinham ido lá para tratamento.6
Existe outro guia, o Itinerário de Antonino, que remonta a Diocle-
ciano.
A principal via romana era o Mediterrâneo. Ele banhava todas
as províncias, do Oriente ao Ocidente, unia-as, aproximava-as e favo
recia os intercâmbios e os encontros. É correta, pois, a afirmação
de um historiador: “O Mediterrâneo são estradas’’.7 Estradas que
ligam a terra às ilhas, as ilhas à terra, a Ásia à Grécia, o Egito à África
e à Itália. As rotas marítimas criam os portos e comandam a nave
gação; nos portos os navios encontram o reabastecimento e a segu
rança, e, na estação do inverno, quando as viagens são impossíveis,
abrigo e repouso.
Não é de estranhar, assim, que ilha tão freqüentada como
Chipre se tenha tornado cristã bem cedo.8 O mesmo se diga de
Creta: o Evangelho foi levado a ela, no século II, graças aos navios
27
procedentes da Síria ou da Ásia que invernavam em seus portos.
Os passageiros cristãos, como Paulo anteriormente, dedicavam-
se durante a estação morta — ou seja, durante os quatro meses de
inverno, de 10 de novembro a 10 de março —9 a anunciar o Evan
gelho.
Em todo o contorno do Mediterrâneo os portos tinham impor
tância vital. Roma, como as maiores metrópoles da época — Ate
nas, Antioquia, Éfeso, Alexandria, Cartago —, era um porto.
Os navios mercantes, de forma redonda, tinham apenas vinte
remos, manejados por libertos ou homens livres, que serviam para
fazer o navio virar de modo a aproveitar o vento, não para fazê-lo
avançar.10 O navio romano era de bordas baixas, sem ponte, com cor
redores ou passarelas11 e às vezes com abrigos sumários na proa ou
na popa. Geralmente centenas de passageiros não encontravam pro
teção neles.
No Mediterrâneo muitas vezes se navegava à noite, quando o
vento se levanta, à luz das estrelas,12 na costa ocidental da Itália, de
Pozzuoli a Óstia, mas também na costa da Grécia. Na falta de leme,
o timoneiro guiava o navio com um remo leve;13 evitava o alto-mar
e conduzia a embarcação à vista da costa.
O /szs, grande cargueiro de trigo entre Alexandria e Roma, na
época dos Antoninos, levava 1.146 toneladas de cereais, mais que
uma fragata do século XVIII.14 O navio de Paulo transportava 276
passageiros. O historiador Josefo embarcou para Roma com 600
pessoas a bordo.15 População cosmopolita de sírios e asiáticos,
egípcios e gregos, cantores e filósofos, comerciantes e peregrinos,
soldados, escravos e simples turistas, na qual se misturavam to
das as crenças, todos os cultos, todos os cleros. Que felicidade para
o cristão anunciar o Evangelho como Paulo, o modelo do viajante
cristão.
Os navios eram tão rápidos como no começo do século passado
(século XIX), quando Chateaubriand precisou de cinqüenta dias
para ir de Alexandria a Túnis, e Lamartine, de doze de Marselha a
Malta.16 A velocidade era função do vento: sendo favorável, ia-se de
Corinto a Pozzuoli em cinco dias,17 de Nápoles e Alexandria em
doze,18 de Narbona à África em cinco.19 Catão foi de Roma à África
em menos de três dias.20 Nessa velocidade, teria ido de Liverpool a
Nova Iorque em dezoito dias, sendo que Benjamin Franklin, em
28
1775, realizou esse trajeto em quarenta e dois dias. Segundo um
papiro, uma travessia de Alexandria a Roma durou quarenta e cin
co dias. Tudo dependia das condições atmosféricas e do número
das escalas; de Alexandria a Antioquia, elas eram trinta e seis; de
Alexandria a Cesaréia, dezesseis.21 Cícero, ao voltar da Ásia para
Roma, embarcou em Éfeso, em Io de outubro, e chegou à cidade
eterna em 29 de novembro, após dois meses de viagem.22 É verdade
que a estação avançada não era favorável. Deve-se atribuir, sem
dúvida, à invenção da vela quadrada as velocidades recordes cita
das por Plínio.23 O linho, com o qual era confeccionada a vela, en
curtou as distâncias e aproximou as terras.
As escalas de simples ancoragem e as longas permanências de
inverno permitiam aos viajantes encontrar seus compatriotas no
porto e conseguir novos conhecimentos. O temperamento afável
do oriental, ajudado muitas vezes pela profissão ou pelos negó
cios, e o uso universal da língua grega, falada em todas as cidades
portuárias, de Alexandria a Lião, facilitavam a propagação do Evan
gelho.
No navio, a vida comum e, às vezes, os perigos, criavam laços
espontâneos de solidariedade, que aproximavam naturalmente as
pessoas. A viagem de Paulo para Roma mostra que o naufrágio era
mais freqüente do que um descarrilamento de trem hoje.
A viagem por terra era menos confortável e muitas vezes menos
rápida; e, longe das grandes artérias e nas regiões montanhosas, me
nos segura. Algumas regiões, como a Sardenha e a Córsega, eram
célebres por seus bandos de salteadores.24 Os mais modestos viajavam
a pé, com as vestes arregaçadas, com um mínimo de bagagens e pro
tegidos da chuva por um manto; outros, em dorso de mula ou de
cavalo. O pedestre realizava etapas de trinta quilômetros por dia.25
A carruagem puxada por dois cavalos era o transporte mais con
fortável. Na falta de cabresto, a tração animal perdia eficácia.26 A
carruagem pesada de quatro rodas, de origem gaulesa, puxada por
oito ou dez cavalos ou burros, transportava muitos passageiros e
bagagens.27 As prescrições imperiais limitavam o peso da carga em
veículos de passageiros em 200 a 300 quilos e no máximo em 500
quilos em transportes pesados. Em todas as estações de muda de
animais encontravam-se donos de burros e de animais de carga e
alugadores de carruagens, organizados em corporações.
29
Os viajantes
Nessa época, mais que em qualquer outra da história, a via
gem era a condição da atividade comercial; uma inscrição nos in
forma que um homem de negócios de Hierápolis, na Frigia, a cida
de de Pápias, foi a Roma setenta e duas vezes,28 empreitada impres
sionante mesmo hoje, quando se pode usar o avião!
A prosperidade e a paz, facilitando o intercâmbio, aguçavam os
apetites. O Império do século II ostentava um luxo e um refinamen
to na escolha dos tecidos e dos materiais que justificam o surto da
indústria e a intensa circulação de bens e pessoas, ao que se deve
acrescentar o emprego de uma moeda comum, isto é, da base de
transações cada vez mais numerosas e intensas.
Foi encontrado na Bélgica um basalto negro procedente do gol
fo de Suez.29 A púrpura vinha da Síria, a cera, do mar Negro, as
ostras, de Éfeso, as trufas, de Mitilene (Ásia Menor), o óleo e o vi
nho, das encostas do Ródano, os gansos, de Boulogne-sur-Mer ou,
caso se preferisse do Ponto.30 Roma era insaciável e inventava ne
cessidades que se recomendavam aos privilegiados por sua rarida
de e seu preço elevado.
Os negociantes, especialmente os do Oriente, reunidos em cor
porações nas cidades principais,31 em suas viagens encontravam
estações de muda junto a seus compatriotas, muitas vezes varejis
tas que eles iam abastecer e aos quais levavam notícias do país.
Outros viajavam para satisfazer a curiosidade ou melhorar a
cultura. Os estudantes freqüentavam as escolas ou os mestres céle
bres de Atenas, Alexandria, Roma, Marselha e Lião. Em Atenas, os
estudantes eram tão numerosos que a pureza da língua saía per
dendo.32 Curiosidade de espírito e despertar da inteligência se
uniam, nos mais nobres, para procurar a sabedoria, como no caso
de Justino; em outros, para saciar a ambição — mais utilitária —
de tornar-se retor, sofista, médico, comediante ou escultor.33 Não
havia fronteiras para o saber. O Império concedia a todos o visto
para o conhecimento.
As grandes festas religiosas, os jogos de Roma ou de Olímpia,
os mistérios de Elêusis e os centros médicos, como Pérgamo,
atraíam as multidões e os artistas. Os judeus mobilizavam navios
inteiros (já era o sistema de fretamento) para celebrar a Páscoa em
30
Jerusalém.34 Outros viajavam por prazer, e havia até peregrinos que
eram principalmente “turistas".35 Plínio36 oferece uma observação
que não perdeu nada de sua atualidade: “Nossos compatriotas per
correm o mundo e ignoram o próprio país”.
No século II, os cristãos iam à Palestina como peregrinos.
Melitão foi da Ásia Menor; Alexandre, da Capadócia, a Turquia atual;
Piônio, de Esmirna. Um século mais tarde os peregrinos se tinham
multiplicado. Etéria partiu de Bordéus e percorreu todo o Oriente
bíblico; felizmente, ela nos deixou seu diário de viagem.37
A viagem era acontecimento também para os que ficavam em
casa: parentes e amigos acompanhavam até o porto aquele que par
tia e permaneciam com ele até que os ventos favoráveis levassem o
navio para alto-mar. É o mesmo espetáculo que vemos hoje nos
aeroportos da Ásia e da África. Quando o viajante era cristão, era
acompanhado pela comunidade: era o mensageiro e o nexo vivo
com os outros irmãos e as outras igrejas.
É difícil imaginar a efervescência dessas populações nos navios
e nos portos, essa confusão de soldados e funcionários, de carroças e
animais de carga pelas estradas. Entre tanta gente, alguns são cris
tãos ou em via de sê-lo. Nada os distingue dos outros viajantes, a não
ser uma luz secreta, que os conduz. De cidade em cidade, observaram,
ouviram e acabaram encontrando a luz do espírito e a paz do cora
ção, como Justino e Clemente, discípulos ontem, mestres amanhã.
Outros cristãos, como Hegesipo, viajam para sua informação.
Interrogam as igrejas, em Corinto, em Roma, para conhecer me
lhor “a verdadeira doutrina junto às igrejas mais importantes”.38
Um pouco mais tarde, Júlio Africano, nascido em Emaús, descen
dente de veteranos instalados lá por Tito,39 visitou Edessa, Roma e
Alexandria.40 Abércio, bispo de Hierópolis, na Ásia Menor, foi a Roma
e, depois, percorreu o Oriente até as margens do Eufrates.41
Roma, capital do Império e logo da Igreja, era a comunidade
mais visitada e mais solicitada. Quem ia para a Gália e a Espanha
devia passar por lá. Policarpo foi a Roma procedente de Esmirna,
Valentino, do Egito, Marcião, de Sinope, no mar Negro, Evelpistos,
discípulo de Justino, da Capadócia, Rodon, da Ásia. Alguns foram
contra a vontade, como Inácio de Antioquia e, sem dúvida, os dois
discípulos de Justino, martirizados com ele, levados como escra
vos.42 O herege Hermógenes deixou o Oriente para se fixar em
31
Cartago;43 Apeles foi de Roma para Alexandria.44 Essa migração
cristã se desenvolveu e se ampliou e carregou o melhor e o pior. No
século III, Orígenes se deslocou de Alexandria e de Cesaréia da Pa
lestina para Tiro e Sidônia, para Bosra e Antioquia, para Cesaréia
da Capadócia, Atenas e Roma. A hospitalidade, virtude antiga, tam
bém se tomou cristã.
As hospedarias45
32
No sul da Gália, as hospedarias gastavam mais para atrair os
hóspedes. Em Antibes, pedia-se ao viajante que lançasse os olhos
sobre o cardápio e sobre a carta dos vinhos, gravada em uma placa
de cobre, na entrada da tavema.56 Uma tavemeira síria, mais mali
ciosa, prometia: "Frescor, refeições com queijo e frutas, vinho, dan
ça e amor”.57 Às vezes, um quadro de cobre mostrava os preços.58
Temos informações sobre os preços e sobre os agrados do car
dápio, graças à saborosa conversa de um cliente com o hoteleiro:
“— Patrão, vejamos a conta!
— Bebeste um sextário de vinho (ele parece não incluído na
adição). Pão: um asse.
— De acordo.
— A moça (prostituta): oito asses.
— Ainda de acordo.
— O feno para o burro: dois asses.
— Eis um burro que me está saindo caro”.59 Ele é discreto so
bre as outras despesas!
As tavemas tinham má reputação. O direito romano reconhe
cia que elas praticavam a prostituição;60 o tabemeiro passava por
avaro, ladrão e um pouco proxeneta; sua mulher,61 por feiticeira, e
a criada, por prostituta.62 Acusava-se o tabemeiro de misturar água
ao vinho dos clientes e de roubar o feno dos animais.63 Nenhuma
higiene, pouca honestidade, muita licença; não era necessário ser
exigente ou formalista para não se arriscar em tais lugares.
O humor popular ridicularizava de todas as maneiras o taber-
neiro ladrão; rapidamente ele se tornou personagem tradicional da
sátira, da comédia e dos provérbios. A mais célebre empregada de
albergue foi Helena, mãe do imperador Constantino.64 Ela se con
verteu ao cristianismo e influenciou seu filho e o curso da história.
Em Pompéia foram encontradas muitas tavemas. Uma delas
tem um átrio, duas salas de refeições, uma cozinha e um quarto
decorado com pinturas eróticas que não deixam dúvida sobre sua
destinação.65 Mesmo os luxuosos hotéis das estâncias hidrominerais
eram considerados lugares de encontros amorosos, nos quais as
grandes fortunas não eram raras.
Freqüentados principalmente por pessoas de condição modes
ta, como cocheiros e muleteiros, os caravançarás e as hospedarias
tinham fama de sujeira, barulho e falta de conforto.66 Nelas o hós-
33
pede podia refletir sobre a situação do estrangeiro sem amigos nem
conhecidos. Isso explica a importância que a Antiguidade, tanto
pagã como judaica e cristã, deu à hospitalidade privada e pública.
A hospitalidade
34
viagem, de um modo digno de Deus. É pelo Nome (por Cristo)
que eles se puseram a caminho, sem nada receber dos gentios.
Devemos, pois, acolher esses homens, para que sejamos coope-
radores da Verdade.
35
A Didaqué distingue os profetas itinerantes e os hóspedes de pas
sagem. Os primeiros, como os doutores judeus, viajavam de cidade
em cidade e de comunidade em comunidade, principalmente na época
judaico-cristã. Era necessário assegurar-se de sua ortodoxia e de seu
desinteresse.87 O pregador itinerante estava sujeito às leis habituais
da hospitalidade. Quando trabalhava para a comunidade, tinha direito
a salário, como todo trabalhador. Mas prolongar a permanência sem
motivo era mau sinal. Ao partir, aquele que se tivesse comportado
assim, recebia o pão só para uma etapa. A Didaqué exclui, portanto,
os presentes costumeiramente dados aos hóspedes quando partiam.88
Os outros irmãos que, de passagem, desembarcavam em Corinto
ou Antioquia estavam sujeitos a uma regulamentação tirada parcial
mente do judaísmo.89 Entre eles infiltravam-se, como sempre, explo
radores, que queriam tirar partido da piedade de uns e da generosi
dade de outros.
Os mais dignos de confiança eram aqueles que levavam uma
carta de recomendação da comunidade-mãe.90 Outros se contenta
vam com procurar compatriotas ou correligionários para obterem
ajuda. É possível que tenha existido uma senha ou algo semelhante.
Talvez seja isso que a Didaqué insinue quando fala “do passante que
se apresenta a vós em nome do Senhor".91 Gregos e romanos per-
mutavam uma tessera hospitalis, isto é, um objeto de várias formas
— carneiro ou peixe — do qual cada um dos contratantes tinha
uma parte. Unindo-se as duas, elas coincidiam perfeitamente.92
Quando se tratava de um desses andarilhos modestos que via
javam a pé, de pouso em pouso, a Didaqué recomendava: "Ajudai-o
o melhor que puderdes”.93 A acolhida incluía o pouso e a subsistên
cia. Entre os gregos, o hóspede era convidado para uma só refeição,
no dia da chegada ou no dia seguinte. Se ele chegasse durante uma
refeição festiva, era convidado imediatamente.94 Isso me aconteceu
recentemente em Miconos, onde fui convidado inesperadamente
para um banquete de núpcias. Em Homero, o nome do viajante era
perguntado só depois da refeição que lhe era oferecida.95
O hóspede podia prolongar sua permanência por dois ou três
dias, como ainda é costume entre os arábes.96 Depois disso, o estra
nho devia exercer seu ofício e ganhar seu pão. Aquele que não qui
sesse trabalhar ou que pretendesse não ter profissão comportava-se
como “um traficante de Cristo”, diz a Didaqué?1
36
Para essas regras a Didaqué dá motivação evangélica.98 Trata
va-se, para o cristão, de acolher Cristo na pessoa do estranho e de
reconhecer, assim, a fraternidade que une todos os que o seguem.
Fraternidade e hospitalidade andam juntas, como já o diz a carta
aos Hebreus." Os tempos de denúncias e de perseguições, que pro
vocaram a fuga ou o deslocamento de muitos cristãos, ofereceram
motivo novo para a acolhida. O estranho não era só um irmão, mas
também um confessor da fé, ao qual a comunidade dava tratamen
to privilegiado.
40
CAPÍTULO III
O MEIO SOCIAL
As origens sociais
41
Menos de um século mais tarde, Plínio, o Jovem, pouco suspei
to de parti pris, forneceu ao imperador Trajano, depois de investiga
ção, uma imagem matizada das comunidades cristãs da Bitínia, nas
quais se encontravam fiéis de todas as idades, jovens e velhos, ho
mens e mulheres, escravos e cidadãos romanos, habitantes das ci
dades e dos campos. Ele frisa principalmente “seu grande número”
e a diversidade de suas origens sociais.9
O que sabemos das comunidades contemporâneas de Cartago,
Alexandria, Roma e Lião revela-nos agrupamentos variegados.10 A
fé nivelava as classes e abolia as distinções sociais, enquanto a socie
dade romana se fechava e erguia barreiras. Senhores e escravos,
ricos e pobres, patrícios e filósofos reuniam-se e fundiam-se em
comunhão mais profunda que a do sangue ou da cultura. Todos se
encontravam em uma eleição comum e pessoal, que lhes permitia
chamarem-se mútua e verdadeiramente com o nome de “irmão” e
“irmã".11 O que chocava o pagão malicioso era a surpreendente fu
são de todas as condições na fraternidade cristã. Escravos ou cida
dãos, todos tinham alma de homens livres igualmente,12 e a consciên
cia dessa igualdade era tão forte que nos epitáfios cristãos quase
nunca se alude ao estado servil.13
Três apanhados sobre comunidades — de Roma, Lião e Cartago
— nos permitirão conhecer sua composição social.
A comunidade romana tinha o rosto de uma paróquia de cida
de grande: a lã bruta do manto dos artesãos e dos escravos roçava
os tecidos recamados de ouro, suntuosamente franjados, das
matronas e dos notáveis. Se os estrangeiros e os humildes foram os
primeiros a acolher o Evangelho, desde o fim do século I a corte
imperial se abriu, com o cônsul Clemente e sua esposa Domitila.14
No tempo de Cômodo, encontramos o rico senhor de Calixto, um
cristão chamado Carpóforo, pertencente à “casa de César”.15 Irineu
afirma que havia um grupo importante de fiéis na corte imperial,
na qual se misturavam cavaleiros e escravos.16 Um dos companhei
ros de martírio do filósofo Justino, Evelpisto, vindo da Capadócia,
era escravo na corte.17 A favorita do imperador Cômodo, Márcia, se
não era cristã, estava em relação com a comunidade de Roma.18 No
tempo de Sétimo Severo, a presença de cristãos na corte imperial
era notória, uma vez que Tertuliano a ela alude várias vezes.19 É
provável que houvesse cristãos também na guarda pretoriana.20
42
No tempo de Marco Aurélio, o Evangelho foi abraçado por pes
soas da aristocracia. O mártir Apolônio — do qual são Jerônimo
afirma, sem razão, que era senador — pertencia à nobreza. Vários
membros da família dos Pompônios eram cristãos.21 No reinado de
Cômodo, os romanos mais distinguidos por seu nascimento e sua
riqueza, juntamente com sua família e sua casa, entraram para a
comunidade cristã.22 Justino conta a conversão de dois esposos que
pertenciam à sociedade rica de Roma e levavam vida abastada, com
criadagem.23
Aberta a todas as influências e a todas as escolas, a cidade de
Roma via afluir sofistas e filósofos. Justino, na metade do século II,
foi o primeiro filósofo conhecido da comunidade cristã. Simples
membro da igreja local, fundou uma escola de filosofia cristã perto
das Termas de Timóteo, na casa de um senhor chamado Martinho.24
Justino deu ao pensamento cristão direito de cidadania e aos conver
tidos, o direito de pensar. Graças a ele, pensadores e discípulos, como
Taciano, o Sírio, vieram engrossar as fileiras da Igreja. Marcião, um
rico armador vindo a Roma das margens do mar Negro, atraído pela
fermentação intelectual da comunidade, juntou-se a ela e lhe fez um
legado de 200 000 sestércios, que lhe foram devolvidos quando se
erigiu como fundador de uma escola e uma igreja rivais.23
O rosto da comunidade romana, depois da morte dos apóstolos
Pedro e Paulo, mudou muito. Se grande número dos cristãos cita
dos na epístola aos Romanos têm nomes de escravos e libertos,26 as
famílias abastadas e ricas agora são numerosas entre os cristãos.
Alimentam uma caixa destinada a acudir às necessidades dos irmãos
de Roma e do Império. Desde essa época, sua generosidade era pro
verbial. Inácio de Antioquia e Dionísio de Corinto renderam-lhe
comovente homenagem.27 As economias reunidas eram tais que os
cristãos as puseram no banco; infelizmente, enganaram-se na esco
lha do banqueiro,28 o que se repetirá muitas vezes no decurso da
história. Levada tão longe, a generosidade romana devia sustentar,
em primeiro lugar, os pobres e as viúvas da comunidade. Nela, ri
cos e deserdados são complementares. O Pastor de Hermas os com
para ao olmeiro e à videira, que se sustentam mutuamente.29
Escravos e pequenos astesãos e aldeões vindos da campanha
romana, esmagados pelos impostos, eram contrapeso à riqueza dos
abastados. O luxo caminhava ao lado da miséria, de modo que a
43
assistência tomara-se instituição do Estado. Uma igualização ins
pirada na fraternidade cristã permitia realizar a partilha, como o
atesta Justino: “Aqueles que estão na abundância e que querem dar,
dão livremente, cada um o que quer, para socorrer os órfãos, as
viúvas, os doentes, os pobres, os prisioneiros, os hóspedes, em suma,
todos os que estão passando por necessidade”.30
Cem anos mais tarde, o diácono Lourenço podia mostrar ao
imperador, pronto para apossar-se dos bens da Igreja, as quinhen
tas viúvas e deserdados que recebiam só dela sua subsistência.31
Embora lendário, esse aspecto ilustra a ação da comunidade para
com seus membros necessitados.
Vindos de horizontes diferentes e instalados com seus compa
triotas nos bairros da cidade em grupos nacionais,32 os irmãos to
dos falavam a língua grega, que servia de ligação entre eles. Fala-
vam-na com maior ou menor correção, a julgar pelos textos bastan
te aproximativos dos epitáfios. A língua castiça de um Apolônio res
ponde àquela, rouca e rude, de um plebeu, proveniente da campa
nha, e ao falar incorreto do africano, instalado recentemente em
Roma. A assembléia litúrgica usava a mesma língua grega até o
século III, quando o latim acabou prevalecendo.33
Um fato mostra melhor que todas as estatísticas a que ponto a
comunidade romana praticou a fraternidade. Dois bispos, sem dú
vida Pio e Calixto, eram escravos de origem. Imaginemos os nobres
Comélios, Pompônios e Cecílios recebendo a bênção de um papa
que ainda trazia o estigma de seu antigo mestre! Tal era a revolução
do Evangelho; ela agia sobre as estruturas sociais, transformando
os corações dos homens.
A comunidade de Lião, numericamente muito menos impor
tante que a de Roma, tinha um quadro social mais matizada. Lião
não era Roma. No apogeu do Império, a comunidade, em seu con
junto, parecia jovem. Compunha-se de estrangeiros vindos especial
mente da Ásia e de autóctones de todas as condições. A matrona
encontrava sua escrava na assembléia. A Igreja parecia formada em
grande parte por pessoas provindas da burguesia, cujo bem-estar e
riqueza provocavam a inveja e explicavam as denúncias. A classe
abastada parecia ter propagado o Evangelho entre os empregados e
os escravos. Todos os escritos da comunidade chegados até nós es
tão redigidos em grego, língua da maioria dos cristãos e da liturgia.
44
A história dos primeiros mártires de Lião mostra a composição
social da comunidade. Seus nomes, conservados por Gregório de
Tours, são uma mistura de latim e grego:34 nenhum nome celta.
Átio e Atalo — esse último originário de Pérgamo e vindo a negó
cios — eram de posição elevada.35 Vécio Epágato, nobre de nasci
mento, morava na cidade alta; a populaça não ousou denunciá-lo.
Alexandre era médico oriental e muito conhecido na cidade; Blan-
dina, simples escrava, foi presa com sua senhora, sem dúvida uma
nobre matrona, que discretamente propagara o Evangelho em sua
casa.36 Foram presos até alguns servos pagãos, porque se pensava
que os domésticos e os escravos teriam a mesma religião de seus
senhores.37
O nível social dos cristãos explica parcialmente o comporta
mento iracundo da multidão quando apareceu Atalo. Ele havia pros
perado visivelmente, o que lhe permitiu sustentar financeiramente
a comunidade e tomá-la participante de seu bem-estar.38 As mulhe
res deviam ser numerosas na comunidade, uma vez que o gnóstico
Marcos as escolhe como alvo, especialmente as ricamente vestidas
de púrpura e, por isso, aparentemente opulentas.39
Na comunidade lionesa, na qual os cristãos abastados sacrifi
cavam tudo pela sua fé, o alvo não era propriamente a rica matrona,
cujo nome nem foi conservado pela história, mas a frágil Blandina,
escrava de seu estado, na qual, segundo a narração do martírio, a
paixão de Cristo parecia renovar-se sob os olhos dos mártires e dos
espectadores.40 Nesse momento as divisões sociais são apagadas pela
prática da fraternidade em Cristo.
“Assim se abria o poema extraordinário do martírio cristão, essa
epopéia do anfiteatro, que durou duzentos e cinqüenta anos e da
qual saíram o enobrecimento da mulher e a reabilitação do escra
vo”,41 sendo as pessoas então julgadas segundo sua fidelidade e se
gundo certa nobreza moral, fruto do Evangelho, e não segundo suas
origens.
As informações que Tertuliano nos fornece sobre a comunida
de de Cartago são um pouco posteriores às que temos sobre as co
munidades de Roma e de Lião. Elas nos permitem ao menos conhe
cer os meios nos quais o Evangelho foi anunciado. Os mártires de
Scili eram camponeses, arrendatários ou trabalhadores rurais.42 O
que impressionou Tertuliano nos cristãos e o determinou a se unir
45
a eles foi o espetáculo de seu amor e de sua união, dos quais ele nos
oferece uma descrição no Apologético.^3 Comunidade compósita, na
qual as pessoas ricas ou, ao menos, abastadas eram tão numerosas
e suficientemente generosas para alimentar regularmente a caixa
comum. “A caixa da piedade” servia para dar assistência aos irmãos
pobres ou perseguidos, especialmente, como diz Tertuliano, aos
órfãos, às jovens que não tinham dote para se casar, aos servos en
velhecidos, aos náufragos, sempre numerosos nos portos, aos con
fessores da fé e aos condenados às minas, à prisão ou ao banimento.
Na mesma época, a comunidade cristã de Tuburbo acolhia uma
jovem da aristocracia local, chamada Perpétua, e seu jovem irmão,
para desespero do pai, que continuava pagão. A comunidade, visivel
mente recente, parecia jovem. Foram presas pessoas jovens, na maior
parte catecúmenos, aos quais o catequista foi juntar-se na prisão.44
A insistência da narrativa na condição nobre da jovem prova
seu caráter excepcional. Os outros detidos não se distinguem por
seu nascimento, mas por seu fervor, a única qualidade que real
mente importa. Revocato e Felicidade eram de condição modesta,
mas livres, provavelmente casados,45 à maneira dos humildes, em
segredo, e não segundo o rito das matronas.
As condições se fundiam em uma emulação mútua: a nobre
Perpétua socorre sua companheira plebéia. As separações sociais
desaparecem em Cristo, o reunidor e o único. Isso levou Lactâncio
a dizer, no fim do século III:
Entre nós não existem nem escravos nem senhores. Não es
tabelecemos diferença entre nós e todos nós nos chamamos de
irmãos, porque nos consideramos todos iguais. Servos e senho
res, grandes e pequenos são iguais pela sua modéstia e pelas
disposições de seus corações, as quais os afastam de toda vaida
de.46
As profissões
A profissão situava o cristão na sociedade. Podia ser um “im
pacto” ou um obstáculo para o Evangelho, caso comprometesse o
cristão ou favorecesse sua irradiação. Tudo dependia da profissão e
do emprego e de suas implicações sociais.
46
A Grécia desprezara o trabalho manual, o qual, no tempo do
Império, ainda não era tido em alta estima.47 Nos Estados coloniza
dores, que se enriqueciam com o trabalho dos outros, o trabalho tra
zia algo de desonroso. Para Apolônio de Tiana, comerciar era rebai
xar-se.48 Em Israel o próprio doutor da lei praticava um ofício, Paulo
fabricava tendas. Seguindo essa orientação, a Igreja reabilitou o traba
lho e a condição do operário. Nos epitáfios, louvam-se o operário e a
operária por haverem sido bons trabalhadores.49 Trabalhar para viver,
sem espírito de lucro e sem avareza, era visto como o ideal cristão.50
No século II, a profissão punha um caso de consciência ao cris
tão, que percebia o que estava em jogo: existem profissões honestas
e profissões desonestas?51 Como viver no mundo e evangelizá-lo,
sem se misturar a ele no trabalho e no lazer, nos campos e nas lo
jas? A legislação cristã procura seu caminho e fixa-se só no século
III. Ela é tirada da experiência da vida, sem antecipar-se a ela.
No século II, os fiéis e a Igreja procuram abrir caminho, mistu-
rando-se o mais possível à vida dos outros e exercendo os mesmos
ofícios, isto é, continuando a trabalhar nas mesmas profissões de
antes da conversão. Ela muda mais o espírito de que o tecido diário
da vida.
Habitamos este mundo convosco (diz orgulhosamente Tertu-
liano,52 em 197), freqüentamos vosso fórum, vosso mercado,
vossos banhos, vossas lojas, vossos magazines, vossas feiras e
vossos outros lugares de comércio. Convosco navegamos, con
vosco servimos como soldados, trabalhamos a terra e nos dedica
mos ao comércio. Trocamos convosco o produto de nossa arte e
de nosso trabalho.
Afirmações altaneiras; em breve o polemista de Cartago de
cepcionará. O primeiro movimento dos convertidos consistia em
conservar sua profissão, como recomendara o apóstolo Paulo,53 que
Clemente de Alexandria54 parafraseia ao escrever: “Ara, se és lavra
dor, mas confessa o Deus dos lavradores; navega, tu, que gostas de
navegar, mas invoca o piloto do Céu; se a fé sobreveio a ti no exérci
to, ouve a voz do general que te ordena a justiça”.
O trabalho da terra e do mar e os ofícios manuais que serviam
à coletividade, como o escultor, padeiro, carpinteiro, cortador de
roupa ou de pedras, oleiro e tecelão, não causavam problema, com
47
a condição de que não se trabalhasse para os templos pagãos. Mui
tos cristãos continuavam nesses empregos inferiores, motivo pelo
qual Juvenal os tratou de “ganha-pouco".55 Os jovens cristãos eram
exortados a aprender um desses ofícios.56
O valor humanitário da medicina, que parecia inspirada no
exemplo de Cristo, recomendava essa profissão aos cristãos. Em
Lião, Alexandre a exercia e deveu a ela sua popularidade.57 Em Roma,
Dionísio acumulava o exercício da medicina com o do sacerdócio.58
Em vez de ser um obstáculo, a medicina servia à Igreja. Na Frigia,
um mesmo cristão era buleuta e médico.59
A profissão de jurista ou de juiz não parecia provocar reservas
entre os cristãos. Minúcio Félix e Tertuliano se sentiríam tolhidos
em contestar a legitimidade de sua própria profissão. Aristides pa
rece simplesmente recomendar aos juizes que “profiram julgamen
tos justos". Um dos mártires africanos de 259, Flaviano, era retor,60
em termos modernos, professor de letras.
O comércio, à primeira vista, não provocou reservas. Era o ga
nha-pão de grande número de cristãos. Irineu, bispo de uma cidade
comerciante por excelência, na qual muitos de seus fiéis prospera
vam nos negócios, e suas esposas se vestiam de púrpura, reconhe
cia “a legitimidade dos bens conseguidos com o trabalho de outros
ou antes da conversão. E, depois de admitidos à fé, continuamos a
ter lucro. Quem vende sem querer ganhar do comprador? Reci
procamente, quem compra quer ganhar do vendedor. Quem se de
dica aos negócios sem procurar tirar lucro deles?”61 Sadio realismo
de um asiático-lionês!
O próprio Tertuliano, em um livro que não peca pela modera
ção, reconhece que é lícito dedicar-se ao comércio, com a condição
de evitar a cupidez.62 Por terem reduzido sua margem de lucro ao
que exigia a vida cotidiana, os cristãos parece haverem incorrido
na censura de serem improdutivos e de não prosperarem suficien
temente.63 É possível que a irritação dos pagãos proviesse simples
mente de que os cristãos pagavam honestamente os impostos,64 o
que sempre pareceu suspeito a um mediterrâneo.65
O Pastor de Hermas66 censurava os homens de negócio que pros
peraram, mas se deixavam absorver por suas riquezas, ao ponto de
ofuscar os próprios pagãos, e se esqueciam das coisas de Deus. Vi
vendo como contratestemunhas do Evangelho, perdiam de vista que
48
habitavam uma terra estrangeira. Aos cristãos enriquecidos e "ins
talados” o Pastor lembra a incompatibilidade da Igreja com este
mundo. Advertência que ainda se ressente da espera escatológica e
lembra aos cristãos de todos os tempos sua condição de peregrinos.
Mais matizado, em fase na qual o cristão já havia conquistado
o direito de cidadania, Clemente dá a entender, na rica metrópole
de Alexandria, que os comerciantes corriam o risco de alimentar
necessidades fictícias. A riqueza adquirida gera o gosto pelo luxo.67
O comércio do dinheiro, quer se tratasse de transações bancá
rias, quer de empréstimos a juros, rapidamente provocou reticên
cias, tanto mais que era um perigo permanente para clérigos e lei
gos.68 Todos os que manuseavam dinheiro eram tentados a traficar.
O diácono do qual fala o Pastor não resistiu à tentação.69 Como
encontrar tesoureiros honestos? Calixto, o futuro papa, escravo a
serviço de banqueiro romano, se dermos crédito a Hipólito, que
não lhe era simpático, fugiu com a caixa do banqueiro, na qual “as
viúvas e os irmãos” puseram suas economias. Credores e credoras
procuraram Carpóforo, o senhor de Calixto, para que interviesse. O
culpado, recapturado, foi condenado às minas da Sardenha, o que
obrigou a voltar a melhores sentimentos.70 Beneficiado pela inter-
cessão de Márcia, a favorita de Cômodo, recuperou a liberdade,
tomou-se diácono de Zeferino e finalmente bispo de Roma.
“Banqueiros, sede honestos.” Essa exortação, formulada pela
primeira vez por Clemente de Alexandria,71 atribuída a são Paulo e
ao próprio Cristo e mais tarde introduzida nas Constituições apos
tólicas,72 era pouco ouvida. Cristãos aos quais viúvas e rendeiros
haviam confiado suas economias, até clérigos, bispos ou diáconos,
encarregados da caixa comum, foram reconhecidos culpados de usar
sem pudor a generosidade dos irmãos.73 A corrida ao dinheiro e o
ganho por todos os meios, incluída a usura, erros nos quais caíram
os próprios bispos africanos, terminaram tragicamente no perjúrio
de muitos durante a perseguição.74
O serviço prestado ao Estado, ainda quando se tratava de fun
cionários imperiais e municipais e até de soldados, não trouxe logo
um caso de consciência aos cristãos do século II. Uma vez converti
dos, uns e outros, seguindo o conselho paulino, continuavam a exer
cer sua função anterior, da qual viviam. Um camareiro de Trajano,
chamado Jacinto, morreu mártir.75 A Igreja exprimirá suas reservas
49
só um século mais tarde. A Tradição apostólica™ proíbe aos cristãos
os cargos municipais.
O serviço militar77 tomara-se uma espécie de voluntariado. O
exército subalterno era recrutado nas camadas modestas da socie
dade, e era esse o caso em regiões conquistadas pelo Evangelho
como a Ásia e a África. O serviço militar exigia a lealdade ao Impé
rio e implicava o risco de derramar sangue e o dever de oferecer o
incenso ao imperador.
Do apóstolo Paulo a Justino e a Irineu, a lealdade ao Império
era sem reticências. Orgulhosos de pertencer ao Estado romano e
beneficiados por sua paz e sua prosperidade, os cristãos admira
vam o exército, que era a garantia de ambas. Moviam-se na simbó
lica militar como peixes na água. Nas cartas paulinas ressoam os
tinidos das armas da panóplia romana.78 Clemente, em nome da
comunidade de Roma, com orgulho aponta o exército como exem
plo aos fiéis de Corinto: "Consideremos os soldados que servem sob
nossos chefes; que disciplina, que docilidade!, que submissão na
execução das ordens! Nem todos são prefeitos, nem tribunos, nem
centuriões, nem cinqüentenários, mas cada um, em seu posto, exe
cuta as ordens do imperador e dos chefes".79 A Igreja não se parece
com o Império, do qual o imperador é a alma e a cabeça?80 Estamos
longe dos “acampamentos do diabo”, mas perto de um Cristo
imperator, vestido com a clâmide de ouro dos imperadores bi-
•
zantmos. 81
O filósofo Justino, filho de colono e talvez de veterano romano,
conserva a fibra militar. Lembra com nobreza os soldados do Impé
rio que comprometem sua fé e sacrificam sua existência.82 Os
objetores de consciência aparecerão apenas um século mais tarde.
Na época de Marco Aurélio, muitos são os cristãos que servem
nas legiões romanas, especialmente na XII, estacionada em Melitene
(Turquia), e na III, em Lambese, na África do Norte. “Enchemos
vossos acampamentos”,83 trombeteia Tertuliano, a maior parte, sem
dúvida, nos postos subalternos; o exército era a promoção dos mo
destos, para os quais o posto de centurião representava o bastão de
marechal, e a pensão de veterano, a seguridade.
O milagre ocorrido na legião de Melitene, no tempo de Marco
Aurélio,84 imortalizado na coluna Aurélia, em Roma, atesta a pre
sença de cristãos no exército romano. Os autores cristãos precisam
50
que foi o Deus dos cristãos que veio em socorro de todos os solda
dos, sem exceção. Tertuliano preferiría que ele esmagasse “o acam
pamento do diabo”, e tanto pior para os seus. Seria necessário psi-
canalisar as reações desse filho de centurião romano. Em que me
dida foi ele traumatizado por sua origem militar?
Os soldados cristãos não tinham nenhum escrúpulo em servir
o Império.83 No século III, Tertuliano, Lactâncio e, com mais cam-
biantes, Orígenes se interrogam: o cristão pode escolher o ofício
das armas? Contestação inútil, dada a proporção de soldados entre
os mártires do século III.86 Discussão um tanto acadêmica, porque
os soldados cristãos viviam à margem das comunidades. Raramen
te havia uniformes na reunião litúrgica. Na época constantiniana
os martirológios foram expurgados, eliminando-se os soldados
objetores de consciência.87
É verdade que a Igreja do século II desencorajava os fiéis de
abraçar a carreira militar, quando não a proibia. Essa era uma das
censuras que o patriota Celso88 dirigia aos cristãos: a de minar os
fundamentos do Império. “Que seria se todos realizassem a mesma
coisa? O imperador em pouco tempo estaria sozinho, e o Império
estaria ao alcance dos bárbaros.” Mas, para Orígenes,89 o impera
dor tinha mais necessidades de cristãos que de soldados.
O ofício das armas representa apenas caso particular de princí
pio muito mais amplo. A situação do soldado era tão diferente da
Igreja vivendo no mundo? Como manter-se nele, sem sentir suas
contaminações e seus comprometimentos? Estaria o cristão conde
nado "a viver como eremita ou como gimnossofista”?90 É curioso
constatar que foi Tertuliano quem se ergueu contra semelhante re
clusão. Cedo ou tarde, os cristãos, misturados à vida do mundo,
perguntar-se-iam como conciliar a vida das duas cidades. Vê-lo-emos
em breve.
No século II, filósofos e sofistas eram adulados pelas cidades e
pelos príncipes. A filosofia, na pessoa de Marco Aurélio, dirigia o
Império. Cansados de uma religião sem poesia e sem alma, os ro
manos se voltavam, de longa data, para os mestres do pensamen
to.91 A filosofia era escola espiritual e o filósofo, diretor de consciên
cia e mestre interior. Muitos deles, como escreve Clemente de
Alexandria92 por experiência, vinham para o cristianismo. Essa brus
ca invasão da intelligentsia em uma Igreja mal preparada para acolhê-
51
los representava uma riqueza e um explosivo. Ao lado de um Justino,
quantos filósofos mal convertidos, os quais, na época, punham a
ortodoxia em perigo!
Os filósofos como Justino, tomados cristãos, longe de ver in
compatibilidade entre a fé e a razão, ostentavam com galhardia seu
manto de filósofo. A procura da verdade conduzira-os ao Evange
lho,93 Platão era o pedagogo para o Logos.94 A Igreja forneceu a
eles, a carta de nobreza. Não ofereciam eles recrutas de escol e como
que um testemunho à sabedoria evangélica? Taciano se mostra agres
sivo, e Tertuliano, como de costume, paradoxal.95 A efervescência
dos gnósticos e a pululação das seitas ensinaram à Igreja o difícil
diálogo da fé com o pensamento. Na jovem Igreja, os filósofos de
profissão começaram trabalho de longo fôlego: “Platão, a fim de
dispor para Cristo", segundo a palavra de Pascal; o encontro da alma
platônica com a alma cristã marca uma data.
A conversão dos filósofos e dos juristas pôs à Igreja o problema
da cultura e do estudo da fé e da filosofia, da linguagem e da comu
nicação. As letras pagãs não estavam tão infiltradas de idolatria
como a cidade? Mas como desprezar a mais nobre das heranças
humanas? “Como rejeitar, diz Tertuliano em seu tratado Da idola
tria,96 os estudos profanos, uma vez que sem eles não existem estu
dos religiosos? E como não instruir-se na ciência humana, como
não aprender a pensar e agir, se a educação é a chave da vida?"
Sob essa questão aflora, pela primeira vez, o confronto entre a
fé e a cultura. Tertuliano não condena o estudo, com a condição de
não se aceitar o veneno dos autores pagãos.97 No século III, deli-
neia-se reservas a respeito dos mestres-escolas e dos gramáticos,
que ensinavam as letras profanas. A Tradição apostólica98 indica
como linha de conduta: "Aquele que administra o ensino às crian
ças fará melhor se deixar essa profissão. Se não tiver outra profis
são, ser-lhe-á permitido ensinar". Com efeito, encontramos poucos
epitáfios cristãos de gramáticos e professores.99
Em compensação, a Igreja desaconselhava todas as profissões
que tivessem ligação com a magia e a astrologia100 e com os jogos
do circo: jóqueis, gladiadores e simples empregados. As profissões
do teatro e da dança não recebiam tratamento melhor: comedian
tes, mimos, pantomimos, dançarinos e dançarinas eram recruta
dos na ralé ou destinados a cair nela.101
52
A simples moral excluía as prostitutas e os prostitutos e mais
ainda aqueles e aquelas que tiravam proveito da “mais antiga profis
são do mundo". Não deixa, contudo, de surpreender que a Tradição
apostólica102 se refira explicitamente a eles e elas, como se a coisa
não fosse evidente. A sensibilidade do tempo não era a nossa.
Os cristãos, desde as origens, excluíam todas as profissões que
tivessem alguma relação com os cultos pagãos, como as que tinham
por finalidade construir ou decorar os templos, prover às cerimô
nias e fornecer os ministros.103 Que se havia introduzido certo rela
xamento, “é necessário viver”, e confirmado pela réplica de Ter-
tuliano:104 “Tu os adoras (os ídolos), uma vez que permites que se
jam adorados!” A indignação do sacerdote de Cartago alcança o
auge quando ele fica sabendo que um fabricante de ídolos foi pro
movido a cargos eclesiásticos.105
As proibições da Igreja reduziam ao desemprego muitos con
vertidos, cabendo à comunidade recolocá-los ou mantê-los. Fora
dos cultos pagãos, a arte não tinha em que exercer-se;106 assim,
muitos artistas e artesãos perdiam seu ganha-pão. Para os cristãos,
como viver em cidade invadida pelas divindades? O confronto era
inevitável.
Condição da mulher
57
Com o perdão de Hipólito, que ataca cruelmente o papa Calixto,
devemos prestar homenagem ao realismo de um pastor que soube
libertar a consciência de cristãs envolvidas em situações sem saída.
Os escritos dos autores cristãos da época estão cheios de reco
mendações, que eram o fermento lançado em um mundo em pro
cesso de envelhecimento. Tertuliano consagra um tratado ao “véu
das virgens” para impor e motivar seu uso pelas jovens cristãs. A
Didascália136 recomenda às mulheres casadas que cubram a cabeça
com o véu em lugares públicos e na assembléia para ocultarem sua
beleza e não despertarem desejo. Os banhos mistos, que as disposi
ções do Digestoxy! não puderam proibir, e nos quais se encontravam
mulheres de costumes duvidosos, eram formalmente desacon
selhados aos cristãos dos dois sexos.138
As jovens viúvas, às quais Paulo já recomendava que se casas
sem para não serem vítimas do ócio, eram mantidas pela caixa co
mum. As mais fervorosas se agrupavam em comunidades.139
Em nenhum lugar a dignidade e a igualdade da mulher com o
homem aparecem melhor do que na gesta do martírio. O número
de mulheres que encontramos nessa situação é função de seu
heroísmo. Quase não há narrativa na qual não esteja assinalada a
presença de mulheres ou de moças.140 Os pagãos, por sadismo, pa
reciam acusá-las com predileção, como se personificassem a vi
tória do cristianismo.
Apesar das falhas e dos fracassos, a comunidade cristã, no fer
vor de sua fé, procurava tomar realidade outra sociedade, uma so
ciedade nova, na qual as barreiras sociais, étnicas e sexuais cedes
sem diante da vontade impetuosa de viver em toda verdade a
fraternidade cristã, na reciprocidade e na partilha. O irmão e a irmã,
ricos ou pobres, eram vistos, sob a luz do Evangelho, não nas cate
gorias humanas, mas na comunhão de uma mesma vida e de uma
mesma ação de graças.
58
SEGUNDA PARTE
A PRESENÇA NO MUNDO
CAPÍTULO I
A CONTAMINAÇÃO DA FÉ
61
fervor do primeiro amor, que o tempo aprofundou, mas não reno
vou. Seriam necessárias tintas de pastel para descrever essa prima
vera que permitia ao universo florescer.
Para nos convencermos disso basta compararmos o que sabe
mos e, às vezes, o que adivinhamos da situação e das pessoas do
século II com a geração seguinte, que conhecemos melhor. O clima
é muito diferente no tempo de Tertuliano e Orígenes. Alguma coisa
do primeiro impulso arrefeceu. A Igreja teve suas primeiras experiên
cias e sofreu defecções, foi ferida pelas heresias e mantida firme
pelas perseguições. Era o despertar do cotidiano.
Por isso, as advertências dos bispos, a intransigência agressiva
de Tertuliano e a legislação que estabelecia barreiras. A Igreja se
protegia e defendia sua retaguarda, o que se explica quando se mede
o que estava em jogo e o risco de borrascas — mas já não encontra
mos o impulso dos começos.
Com relação à Igreja apostólica, o período que se seguiu ao
desaparecimento dos doze consumou a ruptura com a sinagoga, a
qual pode ter favorecido a primeira etapa da expansão cristã, mas
podia comprometer a seguinte.
O método da evangelização
64
língua de todo mundo, a língua que mais condições tinha de reper
cutir sua mensagem até as fronteiras do Império. Naquele tempo, o
grego desempenhava o papel exercido pelo inglês atualmente, per
mitindo circular e comunicar-se em todas as metrópoles e em todos
os centros urbanos do mundo. O perigo era contentar-se só com o
grego, porque em Antioquia falava-se o siríaco. E para evangelizar
os gauleses, Irineu usou “seu dialeto bárbaro”:18 a evangelização
merecia que renunciasse à bela língua dos gregos.
O primeiro impulso à expansão missionária foi dado por Paulo
e pelos outros apóstolos. As comunidades de origem apostólica,
como Corinto e Éfeso, conservavam viva a recordação e o orgulho
de sua fundação. O gênio missionário de Paulo impressionou os
espíritos por seu dom inato de simpatia e por seu senso de contato
com as pessoas mais diversas. Como um rio ele contornava todos
os obstáculos e banhava todas as terras. Quantos nomes nas sauda
ções e quantos rostos de mulheres afloram nas cartas daquele que
quiseram fazer passar por misógino!
Depois que os apóstolos desapareceram, as comunidades, em
vez de chorá-los, imitaram-nos. Agora o patrimônio deles estava
confiado a elas. A responsabilidade repousava sobre a comunidade
inteira. Conversão significava missão e fé, partilha. Se o carisma do
apostolado era característica de alguns, a solidariedade na missão
era sentida por todos. O cristianismo tinha “tantos apóstolos quan
tos eram os fiéis. A pregação se difundia sozinha quase em toda
parte, por meio de desconhecidos, sem missão instituída. Os ger
mes da fé se espalhavam pelos movimentos livres das vontades in
dividuais”.19
Raramente a iniciativa missionária vinha da hierarquia, preo
cupada, na época, com estabelecer-se e fazer aceitar a autoridade
episcopal. Não conhecemos nenhum exemplo de missionário envia
do por chefe de comunidade.
A ação missionária sem mandato particular, só pelo dinamis
mo da fé batismal, partia habitualmente dos simples cristãos; havia
entre eles alguns sacerdotes, mas os leigos eram a maioria. O cristia
nismo, qual mancha de óleo, espalhava-se na rede da família, do
trabalho, dos encontros. Pregação modesta, “realizada não em pú
blico, nas praças e nos mercados, mas sem ruído, no ouvido, com
palavras trocadas em voz baixa e no recesso do lar doméstico".20
65
Nada mais certo do que o termo "contágio" empregado por
Tácito e Plínio para caracterizarem a nova religião e sua propagan
da, da boca ao ouvido, da esposa ao marido, do escravo ao senhor e
do senhor ao escravo, do sapateiro ao cliente, no interior da loja,
como o provam os testemunhos que chegaram até nós.
A concepção recente da evangelização do meio pelo meio pare
ce muito estreita para levar em conta o paradoxo de o escravo evan-
gelizar o senhor, e o senhor o escravo, de o médico evangelizar o
doente, e o comerciante, seu cliente. No círculo do filósofo Justino
encontravam-se as mais diferentes pessoas: outro filósofo, Taciano,
o escravo Evelpisto, uma mulher, Carita, e os outros discípulos.
Em Lião, Atalo e Vétio, pessoas da alta sociedade, eram bem
conhecidos do povo simples, comprimido no anfiteatro, ao qual
haviam anunciado a boa-nova enquanto prestavam seus serviços.
O médico Alexandre, junto com sua profissão, exerceu também sua
ação mais junto aos doentes que recorreram a ele do que junto aos
seus confrades, dos quais não se faz nenhuma menção.21
Havia entre os cristãos aqueles que tinham consagrado sua vida
à evangelização, como tinham feito aqueles que, no judaísmo, já
eram chamados “apóstolos” e dos quais a Didaqué22 fala. Como os
profetas e os doutores, eram itinerantes, indo de cidade em cidade.
Uns viviam de seu trabalho, outros, mais numerosos sem dúvida,
eram mantidos pelos irmãos, quando havia comunidade, uma vez
que o operário merece salário.23 Quando não havia grupo hospita
leiro, os missionários proviam às suas necessidades diárias exer
cendo seu ofício, como fizera o apóstolo Paulo. Seu desapego e seu
desinteresse já eram uma pregação e a pedra de toque que permitia
discernir os verdadeiros apóstolos.24
O historiador Eusébio25 nos informa que os apóstolos itinerantes
não desapareceram depois da primeira geração.
66
se com lançar as bases da fé entre os povos estrangeiros e com
instituir pastores, aos quais confiavam aqueles que eles haviam
acabado de levar para a fé. Em seguida, partiam novamente
para outras regiões e outras nações.
Aí Eusébio idealiza e esquematiza. Gostaríamos de mais indi
cações sobre as primeiras gerações de missionários que substituí
ram os apóstolos. Teria Eusébio mais informações? Não sabemos.
Quais eram os nomes dos missionários que partiram para anunciar
o Evangelho, deixando atrás de si comunidades organizadas, com
pastores encarregados de cultivar onde eles tinham desbravado? O
historiador nos conservou apenas o nome de um deles, Panteno,
arauto do Evangelho de Cristo, que levou a mensagem recebida às
nações do Oriente e até à índia.26
Provavelmente não foi ele o único, porque Eusébio acrescenta:
“Havia ainda, naquele tempo, grande número de evangelistas da
palavra, os quais sentiam zelo divino em imitar os apóstolos, a fim
de permitir crescer e edificar a palavra divina. Panteno estava entre
eles”.27Foi missionário antes de se tomar catequista em Alexandria,
sem dúvida para se adaptar aos trabalhos e ao meio da grande me
trópole.
A mesma afirmação se encontra em Orígenes: "Os cristãos não
negligenciam nada que esteja em seu poder para expandir sua dou
trina no universo inteiro. Para isso, alguns decidiram ir de cidade
em cidade, de aldeias a povoados, a fim de levarem os outros ao
serviço de Deus".28 “A expansão missionária se desenvolveu, obser
va Orígenes em outra passagem, sem que o número dos evangelistas
aumentasse”.29 Parece que ele pensava em alguns desses pregado
res, porque falava no presente e comparava-os aos que, em seu tem
po, ainda circulavam através do mundo.
Entre a renúncia total e a vida normal havia lugar para a ação
espontânea dos que pregavam a boa-nova sem sair de seu meio,
continuando a exercer seu ofício ou em viagens cujo motivo não
era o apostolado.30 Celso caçoa desses evangelistas improvisados,
porque não tinham estudos nem cultura.
Observamos nas casas privadas dos tecelões, dos sapateiros
e dos pisoadores pessoas da última ignorância e desprovidas de
toda educação; na presença de mestres, de homens de experiên-
67
cia e de julgamento, elas se guardariam de abrir a boca. Mas,
encontrando as crianças da casa ou mulheres, tão estúpidas quan
to elas mesmas, tagarelam suas maravilhas.31
68
ço, em um lar que dirigia a comunidade há gerações e em época na
qual havia um só bispo para a Gália e a Germânia.
Desde são Paulo, conhecemos famílias nas quais os pais se con
verteram com os filhos e a criadagem, que vivia na casa; judeus e
pagãos designavam-na como "casa”.38 Essa "contaminação” da fa
mília explica a surpreendente difusão do Evangelho na Bitínia, des
crita por Plínio, a qual atingia jovens e adultos.
Inácio de Antioquia, em sua carta aos esmimenses, “saúda as
casas dos irmãos com suas mulheres e seus filhos”.39 Cita particu
larmente a família da Távia e a da viúva de Epítafo, cujos filhos, já
casados, fundaram também lares cristãos.40
Conversão que foi a origem dessas belas famílias cristãs que for
neceram à Igreja mártires e personalidades da têmpera de Orígenes,
Basílio e Gregório de Nissa. A fé do chefe de família assumia papel
decisivo e geralmente levava consigo toda a casa.
Em outros casos, era só a mulher que se convertia; ela não
levava necessariamente seus filhos para a nova comunidade. As
inscrições cristãs nos conservaram o nome do jovem Aproniano,
sem dúvida de pai pagão, que foi batizado a instâncias de sua avó.41
Em muitos lares deve ter havido conflitos entre a mãe cristã, os
filhos e o pai.42 No século II, filhos e filhas de lares cristãos eram
batizados ao nascerem, como os netos de Epítafos, saudados por
Inácio de Antioquia em Esmirna. Os epitáfios conservam o nome
e a recordação de muitas crianças cristãs batizadas em famílias
crentes.43
Em uma casa de posição, servos e escravos normalmente eram
integrados à família e participavam da vida religiosa do lar. Temos
prova disso no interrogatório de uma escrava denunciada como
cristã. “Por que, pergunta-lhe o juiz, sendo escrava, não segues a
religião de teu senhor?”44 A coisa lhe parecia natural.
Os senhores cristãos evangelizavam seus servos e escravos, o
que transformava suas relações e derrubava barreiras. Um fragmento
em papiro da Apologia de Aristides, encontrado recentemente, afir
ma: “Os senhores cristãos persuadem os escravos e as servas e os
filhos, quando os têm, a se tomarem cristãos, para se assegurarem
seu devotamento, e quando eles se tomam cristãos, chamam-nos
irmãos, sem discriminação, por causa de sua unidade em uma mes
ma comunidade”.45
69
Sem dúvida, assim foi que a jovem Blandina encontrou a fé. O
mesmo deve ter-se passado com o escravo de Proxenes, liberto de
Marco Aurélio e de Vero, que se tomou camareiro e tesoureiro. Quan
do morreu, os antigos escravos lhe ergueram um mausoléu, conserva
do em Roma, na villa Borghese. As inscrições celebram os louvores
de seu mestre. Um dos escravos, ausente na hora da morte, ao voltar,
fez questão de acrescentar a elas um testemunho pessoal de sua fé,
da qual ele fora confidente. Escreveu no sarcófago as seguintes pala
vras, hoje mutiladas: Proxenes foi recebido no seio de Deus. Em sua
volta a Roma, seu liberto Ampélio lhe prestou este testemunho.46
Foi Ampélio que levou a boa-nova a seu senhor ou foi o senhor
que encontrou nele um discípulo e um irmão? Os dois casos devem
ter existido. Esse proselitismo exigia tato e discrição, para evitar as
conversões simuladas e as delações. O nobre Apolônio de Roma foi
denunciado por um de seus escravos.47 Atenágoras observa, contu
do, que essas delações eram raras.48 Isso prova que muitos escravos
de senhores cristãos continuaram pagãos. Aliás, afirma-o formal
mente a história dos mártires de Lião, onde escravos pagãos foram
presos com seus senhores cristãos, por serem presumidos cristãos.49
A gesta dos mártires conservou a conversão de alto funcionário
romano chamado Hermes, efetuada por uma velha escrava cega.50
Se esse traço não é histórico, ao menos simboliza o que deve ter-se
passado mais de uma vez: um escravo, tocado pela benevolência de
seu senhor, revela a ele os mistérios da fé. Qual terá sido a influên
cia da nutriz cristã sobre o futuro imperador Caracala? Não foi sem
razão que a história conservou esse pormenor.51
Desde as origens cristãs, a mulher desempenha papel insubs
tituível na difusão evangélica. Foi uma mulher, Priscila, que evan-
gelizou Apoio.52 São Lucas tem o cuidado de relatar esse pormenor.
O próprio Paulo, em suas peregrinações, era mantido por mulheres
devotadas, que serviam e ampliavam as comunidades. Os Atos apó
crifos exageram — empresta-se só aos ricos — ao apresentarem Tecla
como evangelizadora do Apóstolo. Com discrição na Grande Igreja,
com excessos nas seitas, as mulheres também propagavam o Evan
gelho.
Plínio, Celso e Porfírio, com tanta ironia quanto despeito, reco
nheciam o rápido movimento de conversão entre as mulheres. No
Oriente, onde a esposa levava vida bastante retirada, mais que em
70
Roma, a mulher evangelizava as outras mulheres. Clemente de
Alexandria descreve o papel dessas cristãs, impulsionadas pelos
primeiros apóstolos, as únicas que podiam entrar nos gineceus, ser
vir de intermediárias e levar a esses lugares estreitos, escuros e su
focantes a doutrina libertadora do Senhor, “sem que a malevolên
cia pudesse censurá-las ou levantar suspeitas”.53
Bem cedo a Igreja instituiu as diaconisas, encarregando-as do
serviço das mulheres e de visitar em domicílio as cristãs que mora
vam em casas pagãs.54 A condição reclusa explica por que essa ins
tituição nasceu no Oriente e por que não se impôs no Ocidente ro
mano, onde a mulher era mais livre.
A participação das diaconisas na evangelização do mundo fe
minino não levantou nenhuma objeção no Oriente. Ela foi regula
mentada só mais tarde,53 como veremos.
O exército romano não era impermeável ao Evangelho. Sem
irmos ao ponto de encontrarmos conivência entre a milícia de César
e a de Cristo, os fatos provam que houve soldados que se converte
ram ao cristianismo no decorrer de sua carreira militar. Havia cris
tãos nas legiões romanas, ao menos desde o século II. O milagre já
referido, no tempo de Marco Aurélio, é prova disso.56
É possível que os primeiros tenham sido evangelizados — como
insinua Celso57 — por missionários itinerantes, que “percorriam
as cidades e os acampamentos”. Foi já o caso de Paulo pregando às
cortes pretorianas.58 Havia pretorianos cristãos sob Nero.59 Tertu-
liano reconhece que, em seu tempo, os cristãos enchiam os exér
citos.60
A penetração evangélica deve ter sido simultaneamente ocasio
nal e fluida, não tendo quase deixado vestígios, efetuando-se fora
das comunidades organizadas. O soldado cristão, à noite, na vigí
lia, confidenciava a um companheiro a “feliz nova”, totalmente di
ferente do culto de Mitra e de Cibele, espalhado no exército.61 As
virtudes militares — obediência, disciplina, serviço, desprezo da
morte — podiam, ademais, comparar-se às virtudes cristãs.
A vida nos acampamentos, os contatos de homem a homem e
logo o espetáculo dos mártires podem ter favorecido a expansão do
Evangelho entre os soldados. Outrossim, mártires o exército fome-
ceu-os na Itália, na África, no Egito e até às margens do Danúbio. A
última perseguição começou com uma depuração nas legiões.62
71
Paradoxalmente, com a difusão do cristianismo, cresciam os sen
timentos anticristãos. Isso se explica, se pensarmos que o exército
era afastado das influências civis. Mas muitos soldados viviam se
parados de suas unidades, servindo nas stationes e nos ofícios como
agentes da polícia ou como empregados nos departamentos impe
riais. O soldado, em contato com a vida civil, ouvia falatórios, re
cebia informações, encontrava cristãos, prendia suspeitos, julgava
acusados e acusadores. Quantos deles, como Pudêncio, encarrega
do de vigiar Perpétua e seus companheiros, não sentiram a atração
da fé?63
O que impressionava nos cristãos do século II era sua presença
na vida das pessoas, nas lojas, nas oficinas, nos acampamentos e
nas praças públicas. Participavam da vida econômica e social, mis
turavam-se à vida cotidiana e viviam como todo mundo. Em Lião,
os pagãos conheciam perfeitamente os cristãos preeminentes, en
contravam-nos nas termas e nos dois faros, um situado no local da
atual Notre-Dame de Fourvière e o outro no planalto da Sarra.
Policarpo, bispo de Esmima, conta que o apóstolo João freqüen-
tava as termas da cidade e que as deixou quando nelas encontrou o
heresiarca Cerinto.64 Os cristãos de Lião freqüentavam os banhos e
as praças públicas, o que explica sua popularidade; deixaram-nos
quando foram expulsos pelo movimento popular.
Na época imperial, as termas, semelhantes aos nossos cassi
nos, eram construções vastas com numerosas salas, com pórticos
para jogos e conversação e com uma biblioteca65 e galerias de arte.
Em Duga, na África do Norte, havia até um teatro contíguo.
Na participação nessa vida comum preparavam-se conversões.
Como poderíam os cristãos ser o sal da terra se não tivessem conta
to com ela? como poderíam ser a alma do mundo sem se misturar a
ele? A Carta a Diogneto já o afirmava, com intenção apologética, a
fim de defender os cristãos contra as calúnias.
72
de viver, manifestando as leis extraordinárias e paradoxais de
seu modo de viver.66
73
Os mais destemidos aceitavam o diálogo e abriam a discussão.
Respondiam às objeções e refutavam as calúnias. Era o método de
Justino em Roma e de Panteno e Clemente em Alexandria.75 A afluên
cia de filósofos de profissão iniciou nova etapa na evangelização. A
inciativa de Justino parece ter sido puramente privada e sem inves
tidura oficial. Mas em Alexandria, Panteno e, depois, Clemente en
sinavam na escola “de ciência sagrada”, organizada pelos chefes da
comunidade. Os apologistas substituíam agora os primeiros missio
nários.
Na metade do século II, com a conversão de espíritos cultos, a
Igreja passou por surto intelectual que explica a extraordinária
efervescência da gnose, isto é, da vontade de saber — pretenso sa
ber, ademais, essencialmente intelectual. Enriquecimento e amea
ça ao mesmo tempo. A ciência sem o fervor é estéril, mas o fervor
sem a ciência é mais perigoso, como mostra o gnosticismo de ho
mens e mulheres exaltados.
Em Roma, Justino se esforçava para demonstrar o caráter exis
tencial da sabedoria, que ele havia descoberto e ensinava. Enfren
tou o filósofo cínico Crescente, o qual ensinava vestido com seu
manto, com o alforje nos ombros, o cajado na mão e cabelos lon
gos, preocupado mais com clientes do que com discípulos.
O filósofo cristão praticava a maiêutica do limiar. Mantinha a
escola aberta como os outros filósofos que viviam de seu ensina
mento. Conhecida do público, a escola recebia os espíritos mais
diversos, cristãos e pagãos. Aí uns encontravam, na doutrina cristã,
a resposta à sua procura interior; outros a ela iam para aprofundar
e consolidar sua fé. Dos companheiros de martírio de Justino, dis
cípulos seus, sabemos que uns eram cristãos desde o nascimento
ou de longa data, outros se converteram em sua escola. A iniciativa
de Justino não era a única; Taciano, seu discípulo, imitou-o.
Justino não foi o único a evangelizar Roma, uma vez que, como
ele próprio diz, na mesma época outro leigo, Ptolomeu, converteu
uma mulher casada de vida dissoluta.76 A história conservou o nome
do presbítero Jacinto, que exercia influência benéfica na corte im
perial.77
Parece que a maior parte dos mestres cristãos era formada por
leigos. Certo número de catequistas ainda o era um século mais
tarde.78 Prolongavam seu ensinamento por seus escritos, que habitual-
74
mente eram "apologias” do cristianismo dirigidas às autoridades
civis, aos magistrados e até aos imperadores. Esses endereçamentos
corajosos, às vezes presunçosos, provam ao menos que os cristãos,
longe de se confinarem em guetos, enfrentavam sem complexos a
sociedade e os filósofos.
Os motivos da conversão79
76
As observações de Galeno coincidem com as confidências que
nos chegaram. Encontramos nelas três motivações principais, as
quais explicam a rápida extensão do cristianismo sob os Antoninos:
a mensagem evangélica, a fraternidade vivida nos grupos e o teste
munho de santidade, indo até o martírio. Motivações que não se
justapõem, mas se coordenam e agem, multiplicando seus efeitos.
O cristianismo aparece primeiro como a religião do Livro82 e
como a afirmação de uma fé83 perante o ceticismo do ambiente, o
que a aparentava com o judaísmo. Melhor do que nesse último, as
promessas desembocavam nas realizações messiânicas. A vinda de
Cristo, escarnecido por Celso, põe os homens em contato com Deus
e ajuda-os a andarem no caminho reto. A fé cristã se apresenta, ao
mesmo tempo, como proximidade de Deus, como sabedoria de vida
e como força do Espírito, que ilumina, sustenta e conduz.
A ressurreição de Cristo, fundamento da esperança cristã e do
que Luciano e Celso chamam “desprezo da morte", fortalece a cora
gem com verdadeira invulnerabilidade,84 tanto mais que oferece
resposta à angústia da morte e da sobrevida, muito viva na época.
Árrio Antonino queria ver nessa coragem apenas uma forma de sui
cídio: “infelizes, se quereis morrer, não tendes cordas e precipí
cios?"85 Marco Aurélio estava visivelmente irritado com o heroísmo
cristão, inspirado pela esperança, e procurava interpretá-lo como
fanatismo e gosto pela ostentação trágica.86 O imperador filósofo,
que confiava na razão universal, na qual iria dissolver-se na última
hora, parece ter percebido que a coragem dos cristãos diante da
morte e o segredo de sua vida moral vinham dessa esperança.
O que impressionou os pagãos de Lião na doutrina cristã foi a
espera da ressurreição, ponto crucial da nova religião. Por isso dis
persavam as cinzas dos mártires, para “triunfarem de Deus e privar
os mártires da imortalidade”. “É necessário, diziam eles, tirar des
ses homens até a esperança da ressurreição. Por causa dessa cren
ça, introduzem entre nós uma religião nova e estranha, desprezam
as torturas e correm alegres para a morte”.87
A dignidade da vida cristã, levada até à intransigência e à santi
dade, causou admiração aos pagãos. A conversão exige mudança
de vida, mas oferece a força para a concretização de suas exigên
cias. Galeno destaca o rigor da vida sexual não só nas mulheres, às
quais os maridos gostavam de impor a pureza e a fidelidade, mas
77
também nos homens, o que surpreendeu esse médico, pouco habi
tuado com o fato em Roma.
A prática da ascese encheu a literatura apócrifa e caracterizou
os excessos do montanismo. Se nem todos os cristãos a praticavam,
como dá a entender o Pastor de Hermas,88 o rigor moral era a regra
comum.
Embora posterior em cinqüenta anos ao reinado dos Antoninos,
a confissão de Cipriano de Cartago é rica de ensinamentos. Das narra
tivas de conversão que possuímos ela é uma das raras a expor suas
motivações. Esse aristocrata rico e brilhante estava cegado pelas
paixões, invencíveis. “Como, dizia eu, falar em converter-me?”89 Foi,
no entanto, o que lhe aconteceu. Tomou-se um santo, benevolente
com os outros e intolerante consigo próprio.
Justino e Taciano, convertidos na idade adulta, em suas Apolo
gias90 dão importância tão grande à pureza dos costumes porque
foi ela que os impressionou primeiro e porque a experiência da vida
não os desiludiu a respeito dessa “marca registrada” do cristianis
mo. O filósofo cristão de Roma narra que uma rica romana de cos
tumes depravados converteu-se, mudou de vida e esforçou-se para
converter o marido. A integridade de vida dos cristãos, afirmada
por todos os escritores cristãos,91 provocou muitas adesões.
O testemunho cristão se afirmava de maneira espetacular e co
tidiana pela fraternidade, que unia os membros das comunidades e
estabelecia laços de cidade a cidade e de país a país. Os que procu
raram, como Justino, Taciano e Panteno, observaram isso em suas
viagens. Foi o que os levou a decidir-se. O “vede como eles se amam”
era apologia viva, à qual escritores e historiadores pagãos tiveram
de prestar homenagem.
Fraternidade que se exprimia na perfeita igualdade de todos e
na dignidade de cada um, especialmente dos que a Antiguidade es
magava: as crianças, as mulheres e os escravos. Fraternidade sem
promiscuidade, seja o que for que dissessem os caluniadores; fra
ternidade que abolia as barreiras e reunia os corações em grupos,
nos quais todos se conheciam, porque todos tinham dimensão hu
mana.
A designação “irmão” e "irmã” que se davam mutuamente92
exprimia as relações novas entre ricos e pobres, entre senhores e
escravos, até a colocação em comum dos recursos e a manutenção
78
de todos os que, momentânea ou definitivamente, estavam em ne
cessidade. Foi provavelmente o espetáculo dessa fraternidade vivi
da que converteu Tertuliano, como se deduz da leitura atenta da
descrição que dela faz ele em seu primeiro livro, o Apologético ,93
Esse brilhante jurista de Cartago não havia procurado nem acha
do resposta para uma angústia metafísica. No mundo dilacerado e
decadente que o cercava, viu florescer sob seus olhos, na metrópole
africana, um grupo de homens e mulheres para os quais a fortuna
de uns provocava não a inveja nos outros, mas partilha e a iguali-
zação em benefício dos mal providos, todos atentos aos mais humil
des entre eles; pessoas entre as quais os pobres, em vez de serem des
prezados ou considerados como de segunda classe, eram membros
privilegiados, “as crianças da fé”, confiados à ternura dos outros e
sustentados pela caridade de todos. Pela descrição de Tertuliano per
passa uma vibração, um maravilhamento que não enganam sobre
o choque sentido e que decidiram sua conversão. Quantos não fo
ram, em Roma, Efeso e Lião ou nos vilarejos recuados, os que en
contraram na irradiação do amor partilhado o caminho da Igreja?
Fraternidade não fechada, mas aberta, porque a fé reparte com
todos, ainda que pagãos. Dizemos aos pagãos, observa Justino, vós
sois nossos irmãos”.94 E Tertuliano conclui sua descrição da comu
nidade, dirigindo-se ao mundo pagão: “Somos vossos irmãos”,95
apesar das calúnias que circulavam.
A peste que se abateu sobre Cartago e Alexandria deu aos cris
tãos a oportunidade de mostrarem essa fraternidade aos pagãos
como aos cristãos atacados de peste. Pregação mais eficaz do que
as declarações mais retumbantes; ela permitiu que se estendessem
“as cordas da tenda” cristã.96
Na vida dos cristãos, o que impressionou mais profundamente
o ambiente, até ganhá-lo para o Evangelho, foram a firmeza e o
heroísmo dos mártires. Exprime-o de maneira inapagável a fórmu
la lapidar de Tertuliano: “Crescemos cada vez que vós nos ceifais. O
sangue dos mártires é semente de cristãos”.97 Ao que Pascal faz eco:
‘Creio somente nas histórias cujas testemunhas se deixarem dego
lar”.98
O argumento não repousa no número dos mártires, como uma
má apologética o repetiu muitas vezes, mas na significação de seu
sacrifício. Tertuliano o explica na conclusão do Apologético1.
79
A esse espetáculo, quem não se sente abalado e não procura
saber o que está no fundo desse mistério? Quem o procurou e
não se juntou a nós? Quem se juntou a nós e não aspirou a sofrer,
para conseguir a plenitude da graça divina, para obter de Deus
o perdão completo ao preço de seu sangue?"
80
CAPÍTULO II
81
O encontro com a cidade antiga
Ao contrário dos judeus, os cristãos se integram na cidade, afir
mando sua lealdade. Recusam-se a ser raça à parte ou a viver como
imigrantes. Nada os distingue de seus concidadãos, nem a língua,
nem a roupa, nem os costumes.2 Nada de gueto. Quando muito, na
rua, o pagão pode notar a simplicidade de seu traje e, quanto à
mulher cristã, a ausência de enfeites, a austeridade do tecido e a
discrição dos trajes.
Entretanto, em um primeiro tempo, a Igreja era favorecida por
privilégios que o Estado concedia à sinagoga e à religião judaica,
religião estrangeira, não integrada ao panteão romano. As primei
ras perseguições contra os cristãos, das quais nos fala Suetônio,
pareciam conservar a confusão entre “os discípulos de Chrestos” e
os judeus. As acusações eram, outrossim, as mesmas que foram
dirigidas ao judaísmo: ateísmo, exclusivismo, ódio à humanidade.3
Mas, depois que o equívoco judaico terminou, os cristãos se
viram face a face diante do Império. Seu monoteísmo fechado a
todo sincretismo, irredutível a uma raça, como o judaísmo, preten
dia, como a religião romana, estender-se às dimensões do mundo
habitado. Como instalar-se em cidade ocupada por uma religião de
Estado? Como limitar às fronteiras do Império, às suas institui
ções, um Evangelho que por si as transbordava?
Inteiramente aberta às contribuições externas, disposta a natu
ralizar as divindades estrangeiras dos territórios conquistados, a
religião romana era fundamentalmente hermética a toda evolução
espiritual. Subtrair-se aos seus ritos seria faltar ao patriotismo, à
cidade.
O confronto se tomava tanto mais inevitável quanto mais a ação
imperial acentuava a marcha para a unidade política e para a cen
tralização administrativa.4 O cristianismo se apresentava como fer
mento perturbador e refratário. Contestar a religião era contestar o
Estado e, portanto, figurar como revolucionário. É necessário, ade
mais, admitir que seitas cristãs, como o montanismo, atacavam o
poder e iam provocar a justiça no tribunal.
Os primeiros atritos, os primeiros choques apareceram nas re
lações de cada dia, pelas quais o paganismo penetrava na trama da
vida familiar, profissional e cívica, e o homem todo pertencia à ci-
82
dade, com seus bens, seu pensamento e até com sua consciência?
Impossível dar um passo sem encontrar uma divindade. 0 cristão
experimentava cotidianamente a dificuldade de sua posição: estava
à margem da sociedade, era um emigrante do interior.
A provação começava no lar. A conversão de um membro da
família punha casos de consciência e podia transformar-se em dra
ma. O cristão, até em seu interior, era prisioneiro das divindades
pagãs: elas o espreitavam, cercavam-no desde o limiar em que bri
lhava uma lâmpada até os montantes das portas, nos quais flores
ciam loureiros.6 Como tolerá-los, como não transigir com eles?
A mulher que se convertia podia subtrair-se ao sacrifício ofere
cido pelo pai de família, com a ponta da toga levantada até a cabe
ça, no altar do lar, diante dos filhos e dos servos?7 Ela devia respirar
a fumaça do incenso no começo do ano e no primeiro dia de cada
mês.8 Se quisesse ir a uma reunião litúrgica, despertava objeções e
suspeitas. Uma inscrição traduz seu dilaceramento: pagã no meio
dos pagãos, fiel no meio dos fiéis.9
Tertuliano conta com uma ponta de humor a aventura ridícula
de um marido ciumento. Ouvisse o andar de um ratinho e suspeita
va da fidelidade da mulher. De repente, viu-a mudar de comporta
mento e suspeitou que ela se tivesse convertido. Preferiría que ela
arranjasse um amante a sabê-la cristã.10
Os problemas se punham a todo momento, em casa, na rua, no
mercado, onde eram vendidas carnes sacrificadas aos ídolos, e na
assembléia. O nascimento de um filho, a vestição da toga branca,
os noivados, as núpcias impunham gestos cultuais.
Nem o mestre, nem o discípulo podiam escapar ao domínio da
mitologia. O escolar aprendia a ler nas listas de nomes de divinda
des. Recebia a educação lendo poetas como Homero, os quais, na pa
lavra de Tertuliano, eram “um veneno” para a fé e para a moral. O mestre
lhe explicava as três forças da religião antiga, ensinada por Varrão.11
Dois séculos mais tarde, Basílio, em seu célebre Tratado da leitura
dos autores profanos, ainda se esforçava para realizar a triagem deles
e interpretava os poetas à luz do Evangelho. A Didascália12 pedia aos
cristãos que “se abstivessem completamente dos livros pagãos”.
O professor consagrava a Minerva, patrona das escolas, o pri
meiro dinheiro recebido de um aluno cristão. O ensino de literatu
ra torturava a consciência do mestre cristão, especialmente quando
83
era recém-convertido. O fiel obedecia quando a Igreja lhe permitia
ensinar os autores pagãos, e tendia a desobedecer quando ela lho
proibia. A Igreja oscilava entre a tolerância e a recusa.
Na rua, o cristão, cidadão romano ou não, devia descobrir-se
diante dos templos e das estátuas. Como subtrair-se a isso, sem le
vantar suspeitas, como submeter-se, sem dar prova de aceitação?
Se fosse comerciante e tomasse dinheiro emprestado, o emprestador
exigia juramento em nome dos deuses. Podia, devia ele recusar-se?
Fosse ele escultor ou dourador, como não praticar seu ofício ou
sua arte, seu ganha-pão, construindo ídolos ou trabalhando para
um templo? Se aceitasse cargo público, o sacrifício aos deuses era
de rigor. Se recruta, como evitar o juramento e os ritos implicados
no serviço militar?
Em Cartago, em um dia de desfile militar, todos os soldados
traziam na cabeça uma coroa em honra dos deuses. Só um levava a
coroa na mão, era cristão. Foi preso e interrogado. "Sou cristão,
isso me é proibido”. Grande espanto na cidade. Era o acontecimen
to do dia. A reação ameaçava. Os cristãos timoratos censuravam o
gesto: Que loucura, que temeridade!13 Como agir? Como viver? Era
o choque do cristão com a cidade.
A simples omissão provocava dramas. Nas cidades da Bitínia, o
problema que Plínio submeteu ao imperador parece proveniente
do descontentamento dos pagãos — artesãos, comerciantes e sacer
dotes — que viviam dos templos e do culto e viam secar suas fontes
de renda. Quantas vezes as denúncias não eram provocadas pelos
comerciantes de animais, porque já não os vendiam para os sacrifí
cios ou por outros interesses lesados. Toda a vida cívica era pene
trada de religião. “Nenhum ato da cidade se realizava sem que se
recorresse aos deuses; o elemento religioso formava parte a tal pon
to da ordem civil que, em geral, os sacerdotes eram magistrados do
Estado, eleitos para determinado período pelas mesmas assem
bléias que escolhiam os outros funcionários".14 Plínio se alegrava
com sua inclusão no colégio dos áugures, como se se tratasse de
eleição para alguma academia.15 O cristão que aceitasse um cargo
na cidade tomar-se-ia seu sacerdote.
Os romanos compareciam aos ritos da cidade como Voltaire
participava, em sua propriedade, dos ofícios religiosos. Os impera
dores, como Marco Aurélio, nunca levaram seu ceticismo ao ponto
84
de renunciar às suas funções rituais. Sacrificavam grande número
de animais, sem se preocuparem com a economia. Ammien
Marcellin traz a petição burlesca, atribuída aos bois e dirigida ao
imperador-filósofo:
86
Taciano e Justino, seu mestre, não testemunhavam à arte a com
preensão que tinham pela filosofia. Nenhum dos dois reduz a ética
à estética. A salvação não veio de algum belo Apoio, mas do "Ho
mem sem beleza”.31 Para eles, arte e artistas eram cúmplices da
idolatria, serviam-na e a propagavam, erguiam estátuas a Safo e às
cortesãs célebres.32 Não é de surpreender, acrescenta Justino, bem
informado, quando se sabe que eles violam seus modelos!33 Podia
uma virgem cristã, sem enrubescer, deter os olhos sobre arte que
exaltava as curvas e celebrava a volúpia?
Além dos ritos da família e da cidade, Augusto instaurara o cul
to do Império, encarnado na pessoa do imperador.34 Na época dos
Antoninos, o culto a Roma e ao imperador era a forma suprema da
religião pública e a expressão da lealdade ao Império. No Oriente, a
apoteose imperial era a mais popular das exportações romanas. Era
no culto a César que cristãos e mártires tropeçariam, porque
indentificava convicção religiosa e lealdade política35 e não passava
de fachada atrás da qual movimentavam-se os deuses do panteão.
O procônsul da Ásia pediu a Policarpo: “Jura pela fortuna de
César, volta atrás; grita: abaixo os ateus!”36 A divinização de César
chocava a consciência cristã, que reservava sua adoração ao verda
deiro Deus, seu Senhor. Por isso Policarpo, “com ar grave, olhou a
multidão dos pagãos ímpios sentados nos degraus do estádio, mos
trou-os com a mão, deu um suspiro, levantou os olhos para o céu e
disse: Abaixo os ateus!”
O choque e, depois, a perseguição se agravaram à medida que o
Império percebia ameaça e via serem contestados patrícios e filóso
fos, sua estrutura e sua ordem imutável. A existência cristã exigia
dele imaginação e flexibilidade; a burocracia romana, suspeitosa e
conservadora, não era capaz disso. O choque se tomou inevitável, e
a perseguição, endêmica e local no tempo dos Antoninos, estendeu-
se com a ameaça.
A perseguição sangrenta de um imperador sádico, Nero, pri
meiro encontro, com o rosto descoberto, entre a Igreja e o Império,
pesava agora sobre suas relações e provocava desconfiança recí
proca. Os cristãos se sentiam vigiados e objeto de suspeitas. Em
Roma, nos registros da polícia, eles estavam ao lado dos donos de
botecos, dos proxenetas e dos ladrões dos banhos:37 um incidente,
uma malquerença, e ei-los inquietados.
87
Em Roma, um cristão chamado Ptolomeu foi preso a pedido não
do prefeito, mas do marido de uma mulher convertida. O centurião,
oficial das coortes urbanas, o corpo de polícia de Roma, agiu por inicia
tiva própria e impôs a ele a prisão preventiva.38 Essa jurisdição era bastan
te eficaz porque fora instituída para que se pudesse agir rapidamente
e levar perante um tribunal de exceção todos os fautores de perturba
ções e os adeptos de religiões ilícitas.39 Ela pesaria sobre os cristãos.
Nas horas difíceis, se necessário, provocava-se incidente ou se des
cobria alguma tramóia imaginária. O importante era atrair a atenção
sobre a seita cristã e obrigá-la a acautelar-se. A situação das comunida
des era, pois, precária; estavam à mercê da autoridade e da multidão.
Em Roma, qualquer religião devia ser autorizada pelo Senado.
Outrossim, o direito de associação, exigido para qualquer agrupa
mento, era obtido mediante um senatus-consulto ou uma constitui
ção imperial; sem isso, as reuniões eram ilícitas; e a comunidade
não podia ter nem bens nem lugares de culto. Essa era a lei. A suspei
ta e o temor de sedição eram tais que Trajano proibiu a formação
de corpo de bombeiros na Ásia!40
Os fiéis podiam, contudo, apelar para as associações funerárias,41
concedidas ao povo humilde para gerir a caixa comum, recolher uma
vez por mês as cotizações e ter cemitérios. Ter-se-iam os cristãos reu
nido sob o manto jurídico dessas associações? A questão é controver
sa. Mas a lei sobre as associações autorizava os tenuiores (as pessoas
de condição modesta) a se reunir religionis causa42 ("por motivo de
religião"). Os imperadores temiam não o povo, mas os grandes. A
oposição lhes vinha da nobreza, porque muito rapidamente o Evan
gelho penetrou nas camadas superiores da sociedade, o que desper
tou suspeitas. Na verdade, o Império praticava a tolerância religiosa
como um dos axiomas de seu governo.43
Por isso, atacando o cristianismo, Roma punha em causa sua
política tradicional.44 Mas o Estado, autoritário, estava à mercê da
opinião pública e da rua, que punham abaixo os axiomas mais bem
fundados. Qual crime invocar? Existia um delito de cristianismo,
ao ponto de que bastasse ter o nome de cristão para ser perseguido?
Alguns historiadores o afirmaram e o afirmam ainda, apoiados em
Tertuliano.45 Eusébio46 fala de “novos editos" que pesavam sobre os
cristãos. Seja como for, os governadores podiam apelar para seu
dever de velar pela ordem e pela segurança pública, e não deixavam
88
de fazê-lo quando os movimentos populares, hostis aos cristãos,
dessem para isso o pretexto ou o direito.
Não se deve reduzir a perseguição ao seu aspecto jurídico. Os
elementos passionais, psicológicos e políticos muitas vezes foram
determinantes.47 Os cristãos viviam no Império como as minorias
religiosas no império otomano ou nos países muçulmanos de hoje.
Situação sempre precária.
No fim do século I, bastou que o imperador Domiciano, envelhe
cido, desconfiado e criticado pela aristocracia e pelos filósofos, qui
sesse afirmar sua autoridade, para que o cônsul Manílio Acílio Glábrio
e os membros de sua família, cristãos, fossem castigados a pretexto
de terem perturbado a ordem e pretendido destruir o Estado.48
A raiva de Domiciano se abateu até sobre a Ásia Menor, o que
explica os ataques do Apocalipse ao Estado totalitário e ao culto ao
imperador. Paradoxal mudança das coisas, porque o culto aos
Césares era de origem oriental! A carta de Plínio alude também às
agitações provocadas vinte anos antes pela ação imperial.
Depois que Trajano enviou novo legado para a Bitínia, os cris
tãos prosperaram na Ásia e professavam abertamente sua fé. O Esta
do não tinha nada a censurar neles: pagavam os impostos, embe
lezavam e geriam as cidades e estavam sempre prontos a aceitar car
gos públicos. A função episcopal, em algumas famílias, era transmi
tida de pai para filho. Polícrates era o oitavo de sua linhagem a ocupá-
la.49 Nas cidades prósperas, o bispo dispunha de recursos financei
ros muitas vezes consideráveis e era pessoa respeitada. O irenarca de
Esmima, cheio de deferência, fez Policarpo subir à sua carruagem e
sentar-se ao seu lado.50 Plínio, o Jovem, homem de confiança do im
perador, enviado para a Ásia, encontrou cristãos em toda parte.51
Tomado de zelo intempestivo, esse legado começou por punir e
condenou à morte os cristãos que se mostravam obstinados. A ação
empenhada despertou a paixão popular; as denúncias se acumula
ram e os acertos de contas se multiplicaram. Diante dessa situação,
ele, em dificuldade, tomado de pânico, recorreu ao imperador para
se proteger. E era tempo!
A vaidade literária de Plínio, mais preocupado com passar para
a posteridade do que capaz de julgar com independência, valeu-nos
o rescrito de Trajano/2 o qual, daí em diante, faria jurisprudência.
O imperador, com a cabeça fria, deu prova de realismo lúcido. Ele
89
devia proteger as instituições e os deuses do Estado, sem que inter
ferissem uma convicção pessoal ou o fervor religioso.
As fórmulas lapidares mal disfarçam seu embaraço. “Com efei
to, nessa matéria não se pode estabelecer regra fixa para todos os
casos. Os cristãos não devem ser procurados; se forem denuncia
dos e confessarem, devem ser punidos”.
Tertuliano viu logo a ambigüidade do rescrito imperial. “Oh!
estranha sentença, ilógica por necessidade! Diz que eles não devem
ser procurados, como se fossem inocentes, mas prescreve que se
jam punidos como se fossem criminosos! Ela poupa e castiga, fe
cha os olhos e pune. Por que te expores à censura?”
Ao menos o imperador liberal deteve a precipitação do legado.
Rejeitou as denúncias anônimas, aceitas por Plínio, porque eram “pro
cedimento execrável e indigno de nosso tempo”. Era uma desaprova
ção da ação do funcionário. Ele recusou à autoridade a iniciativa
de investigações e limitou suas intervenções às denúncias apresen
tadas segundo as regras.53
Por mais liberal e restritiva que seja, essa disposição colocava a
autoridade à mercê da opinião pública, da vox populi. O imperador
não se explica sobre a natureza do delito e não menciona nenhuma
acusação que fira a moralidade. Vítima do formalismo jurídico, de
fende a letra contra o espírito. Processo de tendência, processo de
religião. Trajano, como Marco Aurélio, estava irritado com a obsti
nação dos cristãos.
O rescrito de Trajano, que daí por diante serviría de norma, pôs
em evidência a precariedade da situação dos cristãos: ela estava à
mercê de uma amotinação popular ou de um funcionário intole
rante. Tertuliano mostrou sua iniqüidade: “O cristão é punível não
por ser culpado, mas por ser descoberto”.54 Funcionários honestos,
como Licínio Graniano,55 ficavam perplexos para justificar proce
dimento que lhes parecia iníquo e autorizava os magistrados a en
viar jovens cristãs para o lupanar!
A gesta dos mártires permite tocar ao vivo o confronto entre a
autoridade e os cristãos. Por mais que o procônsul romano demons
trasse compreensão, o diálogo com o acusado se encerrava logo. Os
dois não falavam a mesma língua.56
“Quereis um prazo para refletir, pergunta Saturnino aos márti
res da África.
90
— Em uma questão tão clara não há nada a refletir”.57
Em 185, foi preso em Roma um homem importante, chamado
Apolônio, patrício letrado e filósofo.58 Ele foi denunciado de ser cris
tão por um escravo. Levado diante de Perênis, prefeito do pretório,
ele se defendeu com dignidade. A benevolência de Perênis para com
ele transparece no interrogatório; queria visivelmente salvá-lo. Con
cedeu-lhe um e, depois, três dias para refletir. Perênis pedia a Apolô
nio apenas que oferecesse alguns grãos de incenso ao gênio de César.
Apolônio explicou o absurdo do culto pagão; ele cometería falta gra
ve se sacrificasse aos ídolos. Até aí Perênis o seguiu; não tinha ele
ouvido outros filósofos expor a mesma tese?
Perênis não compreendeu mais nada quando Apolônio se recu
sou a esse gesto de pura formalidade, tanto mais que estava em
jogo sua vida.
"Então tens vontade de morrer?
— Meu desejo é viver em Cristo; o amor à vida não me faz te
mer a morte”.
Perênis concluiu: "Não compreendo o que queres dizer”. O acu
sado não se surpreendeu. A situação era trágica. O magistrado só
tinha admiração pelo acusado; querería declará-lo inocente, mas
não podia, porque os decretos se opunham a isso. O Império não
compreendia nem aceitava a afirmação da liberdade interior, da
autonomia da consciência traçando suas fronteiras aos impérios
do mundo, em nome da soberania de Deus. Finalmente, a contra
gosto, Perênis pronunciou a sentença de morte.
O problema religioso se complicou com um problema político,
que o filósofo Celso apontou. Os cristãos eram acusados também
de conspirar contra a segurança do Estado e de contestar suas es
truturas. Em vez de ser força conservadora, como lhe censuram os
socialistas e anarquistas de hoje, o cristianismo, sob os Antoninos,
figurava como revolucionário, porque punha em causa a legislação
e as instituições da cidade. Os cristãos se punham à margem da
sociedade.
A acusação era grave, justamente quando os bárbaros esta
vam às portas, nas margens do Reno e do Danúbio, e os persas
atacavam no Oriente. Tratava-se de defender o Império e também
de preservar o patrimônio da cultura e da civilização contra a des
truição.59
91
Mas os cristãos não defendiam os mesmos valores, nem se con
fundiam com o império romano e não podiam nem queriam identi
ficar sua história com a história dele; sua mensagem era mais vasta
e mais duradoura do que os impérios e as civilizações, que se cons
tróem e se destroem. Atitude essa que o Estado romano tachava de
indiferença e de falta de civismo, porque a religião oficial era
inseparável da cidade. Enfrentavam-se duas concepções inconciliá
veis: uma consciência política, encarnada pelo imperador e que
queria impor-se a todos em todos os domínios, e uma consciência
moral pessoal, que rejeitava a religião política, da qual a alma era
excluída, e o culto dos deuses.
A acusação de ateísmo, sinônimo de apostasia da religião, pas
sou a ser o espantalho que bastava agitar para que as turbas se
levantassem e as portas da sociedade se fechassem.60 Foram neces
sárias a grandeza, a coragem e a liberdade de Justino para respon
der à acusação dos pagãos: “Somos ateus de vossas divindades”.61
Ele dissociava cuidadosamente religião e lealdade, rejeitando a pri
meira e afirmando a segunda.
Entre os cristãos da Antiguidade, de Justino à Cidade de Deus,
seria vão procurar alguma simpatia ou uma vontade de compreen
der o paganismo por dentro. Ele era rejeitado em bloco. Nem Ter-
tuliano nem Agostinho se perguntaram se, além das manifestações
chocantes ou imperfeitas, não se exprimiam uma aspiração autên
tica e um valor religioso.
Com relação ao Estado, os cristãos, desde são Paulo, preconiza
vam, com exceção de algumas ilhotas de resistência, uma lealdade
sem falhas. As perseguições endêmicas do século II não chegaram a
comprometer essa atitude. Convencidos — ou obstinados em supor
— que os imperadores agiam de boa fé, os apologistas defendiam
diante deles, com seus escritos, a causa do Evangelho.
Os cristãos, afirmavam eles, professam, enquanto cidadãos,
obediência e lealdade ao Estado. Tão grande é sua admiração pelo
Império que eles se queixam das perseguições das quais são víti
mas. Melitão de Sardes considerava “a Igreja irmã de leite do Impé
rio”.62 Atenágoras63 celebrava a solidariedade que, daí em diante,
ligava os destinos de Roma e da Igreja, a paz romana e a paz cristã.
Belo entusiasmo de um cristianismo jovem, empreendedor, que sen
tia o vento na popa. O século III iria encarregar-se de desenganá-lo.
92
As acusações da rua64
Numa Roma pragmática, mais supersticiosa que religiosa,
na qual os imperadores não eram fanáticos, o perigo que ameaça
va os cristãos estava na rua, porque a opinião pública tinha papel
considerável na Roma imperial como contrapeso ao seu autorita
rismo.
Em tempos normais, o povo não era nem intolerante nem faná
tico. Um astrólogo lhe interessava mais que um pontífice. O comer
ciante o interrogava a respeito de seus negócios, o noivo, sobre o dia
fasto para marcar o casamento. A astrologia, praticada por gregos,
asiáticos e egípcios, era proibida, mas tolerada e muito onerada de
impostos. Apesar disso, os clientes eram tantos que tinham de espe
rar sua vez. O próprio Agostinho confessou que consultara um astró
logo.65
Sensível à astrologia e à magia, o homem da rua não se entusias
mava com um Evangelho que exigia a mudança de vida, e o deixava
generosamente aos outros. Por isso, em tempos normais, os cris
tãos não eram molestados. Mas, sobrevindo acontecimentos, amea
ças, catástrofes, a opinião se desencadeava. O rescrito de Trajano, à
sua maneira, reagiu contra a vindita popular, anônima e descontro
lada.
Por mais que o cristão vivesse com todo mundo, freqüentasse
termas e basílicas e exercesse as mesmas profissões que os outros,
ele punha nisso matizes e, às vezes, reservas. Uma parte de sua exis
tência escapava, surpreendia. Sua fé era tachada de fanatismo; sua
irradiação, de proselitismo, e sua retidão, de censura.
O povo acabou por observar uma mudança. A mulher evitava
os trajes vistosos e o marido já não jurava por Baco ou por Hércules.66
Pagar impostos tomava-se suspeito: “Ele nos quer dar lições", di
ziam esses mediterrâneos. Os cristãos eram conhecidos como es
crupulosos a respeito de pesos e medidas.67 A honestidade se volta
va contra eles e os indicava à atenção dos outros.
O povo gosta de quem se parece com ele e espia quem se distin
gue ou se isola; suspeita desprezo ou dissimulação. Circulavam boa
tos; a ajuda mútua entre cristãos causava admiração, a fraternidade
entre senhores e escravos parecia duvidosa e incompreensível para
um espírito culto: como confraternizar com gente simples, igno-
93
rante e sem letras? Tertuliano nos conservou comentários da rua
que circulavam em Cartago, com os nomes das pessoas:
"É um homem de bem esse Gaius Seius; pena que seja cristão!”
Outro dizia: “Estou surpreso que Lucius Titius, um homem tão es
clarecido, se tenha tomado cristão”. E Tertuliano observa: “Não lhes
passa pela idéia perguntar-se se Gaius não é honesto e Lucius, es
clarecido porque são cristãos; se não se tomaram cristãos porque
um é honesto, e o outro, esclarecido”.68
Na escola dos pagens imperiais, um dos alunos, Alexâmenos, é
cristão. Seus companheiros zombam dele e desenham na parede
um asno crucificado, com a inscrição: Alexâmenos adorando seu
deus! O jovem cristão, corajoso, responde, escrevendo: Alexâmenos
fiel!69 O grafito, descoberto no Palatino, foi conservado e pode ser
visto em Roma, no museu Kirchner.70 Quantas vezes, em circuns
tâncias diferentes, o mesmo diálogo não foi repetido, em todas as
camadas da sociedade, nas quais pagãos e cristãos viviam lado a
lado?71 As ausências eram observadas. Os cristãos evitavam as fes
tas religiosas, e sabe Zeus quantas havia durante o ano! Ele não ia
ao teatro e aos jogos do circo, o que parecia inverossímil a romanos
e africanos, que tinham um gosto inveterado por tais espetáculos.72
A suspeita se agravava quando afloravam fofocas sem conteú
do sobre as reuniões cristãs; reservadas aos iniciados, elas pare
ciam duvidosas. Em todos os tempos, os cultos secretos provoca
vam calúnias. O escândalo das bacanais ainda não havia sido es
quecido. Quando as pessoas se ocultam é sinal de que há alguma
coisa a ocultar, dizia o povo. Circulavam os mexericos como proje
ções de seus próprios vícios sobre os cristãos. Frontão, que era da
confiança do imperador, ria delas e as repetia.73 Os apologistas re
petiam-nos, antes de refutá-las.74
A celebração eucarística, na qual o bispo diz: isto é o meu cor
po, isto é o meu sangue, era apresentada como um rito canibal: os
cristãos imolariam uma criança viva como no festim de Tiestes.
Todos os apologistas viam-se obrigados a desfazer esse boato, que
ia de cidade em cidade, no século II.75
As reuniões da comunidade, nas quais os cristãos chamavam-
se de "irmãos” e “irmãs” e davam-se mutuamente o ósculo da paz,
davam oportunidade para as piores interpretações e passavam por
ser encontros licenciosos.76 É difícil para a plebe acreditar na vir-
94
tude, e para o debochado, reconhecer que existem mulheres e ho
mens castos. Daí a tachar o celibato voluntário de falta de civismo
ou de desvio era só um passo, que muitas vezes foi dado.77 O bom
senso fazia parte do exagero, mas acrescentava maliciosamente:
“Não há fumaça sem fogo”.
O mesmo povo cessava de rir e de escarnecer quando seus inte
resses eram lesados. O descrente se toma sacristão e defensor da
religião quando suas rendas diminuem. Imagine-se a revolta dos
padeiros, se a Igreja suprimisse as comunhões solenes! As denún
cias levadas a Plínio eram da mesma qualidade religiosa.
Eram também contraditórias. Uns eram acusados de serem prós
peros, outros, de serem inertes.78 Para o cristão, era perigoso tanto
evitar os negócios públicos como destacar-se neles. Em Lião, o su
cesso, o bem-estar e a consideração expunham os cristãos e as cris
tãs à denúncia popular. Bastava que o povo, dócil, fosse levado por
propagandistas profissionais, caixeiros viajantes da calúnia, para
que a turba reclamasse reféns.
Em Lião, em 177, a polícia procurou aqueles que a multidão
indicara.79 O tribuno da XIII coorte, na ausência do legado, e a au
toridade local não se interessaram pela perseguição, que proveio da
pressão popular. Os magistrados cederam e instruíram o processo,
passando por cima do rescrito de Trajano. Em Esmima, pela mes
ma época, o velho bispo foi denunciado pelo povo, que gritava: “Pro
curem Policarpo!”80
Se os pagãos tinham a calúnia fácil, os cristãos, mais agressi
vos no século II, tinham a réplica mordaz. Basta ler Tertuliano, as
interpretações dos Oráculos sibilinos81 ou a literatura apocalíptica
da época para se verem a efervescência mística e as ameaças de
catástrofes, levadas à exaltação e ao exagero.
Ó Roma, tu chorarás,
despojada de teu laticlavo,
vestida de luto,
ó rainha orgulhosa,
filha do velho Lácio!
Flagelos, guerras, invasões e fomes
anunciam o revide
que Deus prepara para seus eleitos.82
95
Esses cristãos apocalípticos interpretavam ao pé da letra as
ameaças do Apocalipse joanino. Profetizavam o fim do mundo jun
to com o fim de um mundo e anunciavam a conflagração geral como
um imenso fogo de alegria.
Havia exaltados e mal convertidos. As seitas muitas vezes esca
pavam ao controle da Igreja. Nem sempre a atmosfera era sã, nem
os costumes, irrepreensíveis. A multidão não realizava as distin
ções necessárias, generalizava e misturava cristãos, gnósticos e mon-
tanistas em uma reprovação comum. Os pagãos se assustavam e
contra-atacavam. Era um encontro de ameaças e profecias de des
graças.
A religião popular era formada de superstição e de pragmatismo.
Pedia aos deuses bens temporais, saúde, paz e vitória.83 Se sobrevies
se uma ameaça ou os bárbaros estivessem às portas, era sinal de que
os deuses estavam irritados. A autoridade se enrijecia, os espíritos se
exaltavam e as acusações se multiplicavam: “Os cristãos nos trazem
azar...,84 têm mau olhado e prepararam feitiço contra nós”. Acusa
ção grave em época aterrorizada pelos feiticeiros e quando o povo
temia os malefícios, as bruxarias e os filtros.85 Em Lião, os pagãos
atacaram Potino, pensando que assim acalmariam os deuses.86
As prisões e as perseguições estavam em relação direta com as
ameaças que pesavam sobre o Império. E sabiam os deuses quantos
cataclismos se desencadearam durante o governo de Marco Auré
lio!87 Em 162, os soldados trouxeram da Ásia para o Ocidente a mais
grave das epidemias da Antiguidade. Pouco depois, os germanos
invadiram o Império, atravessando o Danúbio, e penetraram na Itália
e na Grécia. Em 167, a peste se declarou em Roma. A terrível inun
dação do Tibre provocou pogroms. Tempos de apocalipse e de ter
ror. Como os animais da fábula, "nem todos morriam, mas todos
eram atacados”.
O imperador e os sacerdotes acorriam aos templos e sacrifica
vam rebanhos.88 A multidão se comprimia. Os ausentes eram pro
curados com os olhos. Os cristãos faltavam ao encontro. Onde esta
riam eles?
Seca, más colheitas e fome se multiplicavam. Para a popula
ção, os deuses estavam enfurecidos. Eram necessários culpados,
como na fábula. O cristão era “a ovelha sarnenta" apontado como
tal pela vindita popular. Tertuliano descreve a atmosfera: O Nilo
96
transborda? A seca ameaça a colheita? A terra treme? A peste apa
rece na África ou em Esmima? Logo se grita: abaixo os ateus; os
cristãos aos leões!89 Se, por acaso, eles fossem espectadores dessas
manifestações, seu sorriso divertido ou irônico os trairía e denuncia
ria à vingança.90
O furor popular passava por cima dos magistrados, que se es
forçavam em vão para manter a ordem e fazer respeitar a legalida
de. A população investia contra os cristãos com pedras e tochas;
profanava os cemitérios cristãos91 como no tempo da guerra civil
da Espanha, e esse grave crime ficava sem punição.92
Durante séculos os fiéis de Cristo continuaram a ser tomados
como responsáveis pelas desgraças do Império.93 Celso e Apuleio
afirmavam que o progresso do cristianismo enfraquecia o Estado.
Os deuses haviam conseguido a grandeza de Roma, e só eles po
diam mantê-la ou restaurá-la. Agostinho,94 na Cidade de Deus, teve
de tomar a defesa dos cristãos, quando Roma caiu, em 440: os últi
mos pagãos os acusavam de haver desencadeado a ira dos deuses
— o que mostra quão profundamente enraizado estava esse senti
mento na alma pagã.
O assalto da inteligência95
As Homílias clementinas ,96 coleção muitas vezes retocada nos
primeiros séculos, narra cena que parece pintada ao natural. Ela des
creve a história de uma conversão como uma procura da verdade, no
decurso de uma viagem. Certo cidadão romano de nome Clemente
ouve a boa-nova em Roma. Decide partir para a Palestina. Embarca,
mas o navio é desviado pelos ventos, e desembarca em Alexandria.
Lá encontra Bamabé, discípulo de Paulo, o qual estava morando nessa
cidade de intelectuais e expunha ao público as verdades cristãs, em
linguagem simples e direta. A multidão o ouvia com fervor.
Acorreram filósofos, inflados de ciência profana, tentando con
fundir o pregador com muitos argumentos. Bamabé não se deixou
levar pelo jogo deles, mas desenvolveu sua mensagem e apresentou
testemunhas que confirmaram sua palavra. Clemente, conquista
do, foi em socorro do apóstolo e repreendeu a suficiência dos filó
sofos. A multidão estava dividida.
97
Pode-se imaginar Clemente, depois desse primeiro confronto
na cidade de Alexandria, continuando sua busca de informações e
esclarecimentos na mesma ocasião em que Basílides, Isidoro,
Valentino e Carpócrates formavam grupos, diante dos quais expu
nham suas elucubrações sobre a queda da alma e sua libertação
pelo conhecimento ou gnose, que eles levavam.
Os mesmos grupos se formaram em Roma, onde Valentino,
Marcião, Apeles e Rodon se encontraram e se separaram, “por cau
sa de divergências, sustentando cada um opiniões inconciliáveis”.97
Todos eles se opunham à autoridade e à organização hierárquica.
Em Roma, os fiéis, pouco inclinados ao misticismo e à filosofia, des
confiavam, mais que em outros lugares, dos especulativos e dos
agitadores de idéias. “Os simples e os ignorantes se espantavam com
a exegese arrojada e com as interpretações exageradas dos recém-
vindos".98 Muitos foram seduzidos, mas a maioria resistiu ao novo
ensinamento.
A audácia doutrinai caminhava muitas vezes junto com a audá
cia moral. Simão, o mago, era acompanhado de uma ex-prostituta.
Marcião, segundo Tertuliano, fora condenado no Oriente por uma
falta moral, isso antes de ir perturbar a fé em Roma.99 O gosto das
admiradoras jovens e ricas e “o tratamento frutuoso e suave das
almas”100 foram a causa da perdição de muitas. Marcos se aprovei
tou da hospitalidade de um diácono da Ásia para abusar de sua
mulher, de rara beleza; em seguida, levava-a consigo por toda parte,
para grande escândalo das Igrejas.101 Em Cartago, Hermógenes,
seguidor da gnose, pintor e enamorado de seus modelos, misturava
o perfume das mulheres com reminiscências da filosofia grega.102
Gnosticismo de muitas ramificações da Ásia ao Egito, de Cartago
a Lião, passando por Roma,103 a primeira heresia que ameaçou a
Igreja obrigou o cristianismo a tomar consciência de si próprio e da
unidade e coerência de sua mensagem e de sua fé. Bom senso e
sabedoria acabaram triunfando.
Se a afluência de meio-sábios e meio-convertidos podia conta
minar a verdade evangélica com elucubrações estranhas, a eferves
cência intelectual que, de todos os lados, atingiu a Igreja nas comu
nidades vindas do judaísmo e do paganismo era, em princípio, uma
vontade de conhecer e de compreender; era tentativa antes de se
tomar tentação.
98
A gnose ou conhecimento verdadeiro era a cristianização do
helenismo; a pseudognose era a helenização do cristianismo.104 Em
vez de servir para o conhecimento do Evangelho, os gnósticos alexan
drinos, sírios e asiáticos, como Valentino ou Marcião, lançam-se à
mensagem cristã, a fim de inflecti-la no sentido de suas especula
ções, com o perigo de esvaziá-la de sua substância.
De formas variadas, as diversas escolas gnósticas opõem ao mis
tério abissal e impenetrável de Deus a queda e a miséria do homem.
Entre o Criador e sua obra, eles concebiam uma cascata de inter
mediários ou eões, os quais aceleravam e explicavam a queda. A missão
do Logos não podia ser uma encarnação verdadeira — porque assim
ele também poderia ser contaminado —, mas a manifestação do
Arquétipo e o retomo do homem decaído, libertado da matéria em
seu estado primitivo, imperdível quanto ao espírito e enfim liberta
do. Esses temas foram retomados pelo romantismo no século XIX.105
Essa visão pessimista da criação e do homem, inspirada no pen
samento grego e incompatível com os dados da fé, ao menos forne
cerá a Irineu de Lião a ocasião para desenvolver o afresco da econo
mia da salvação, primeira visão cristã da história do mundo.
O que Irineu e os textos gnósticos recentemente encontrados
nos conservaram representa só as recaídas de uma efercescência
incandescente, que iluminou e depois ameaçou a essência do cristia
nismo. O pagão Celso, que assistiu ao confronto, via só divisão e
confusão.106 Os cristãos de Roma e Alexandria, vendo os desacor
dos entre os mestres, as escolas e até entre as igrejas, sentiam algu
ma dificuldade em ver com clareza a verdadeira doutrina e em sub-
trair-se à sedução de sistemas que pretendiam responder às interro
gações da inquietação e esclarecer a confusão da época.
O homem sentia pesar sobre si o jugo do destino. O Deus de
Aristóteles se desinteressava do mundo, o Deus dos estóicos, em vez
de libertá-lo, submetia-o a um determinismo universal. As religiões
orientais forneciam deuses salvadores. À espera do mundo dirigia-
se a resposta de Clemente de Alexandria107 a um valentiniano: “Des
se poder, dessa batalha dos poderes o Senhor nos livra, ele nos dá a
paz; ele veio à nossa terra para no-la trazer”.
A conversão de filósofos de profissão, na metade do século II,
pôs em confronto cristianismo e filosofia, fé e cultura, Jerusalém e
Atenas.108 Em Roma, dois homens personificavam o debate: um cíni-
99
co, Crescente, e um cristão, Justino. Um e outro usavam o manto
curto, grosseiro e escuro, atributo do filósofo, o qual não abrigava a
mesma filosofia.
Na época, a capital estava invadida por filósofos de toda espé
cie, vindos de todas as partes do Império. Marco Aurélio abrira
Roma a todas as escolas para permitir uma confrontação univer
sal. Aos pensadores de renome misturavam-se os parasitas da filo
sofia, ladrões, charlatães e comediantes de rua, andrajosos, com
cabelos mal penteados, barba longa e unhas de animais selvagens,
segundo Taciano,109 que freqüentou esse meio. A sujeira deles era
proverbial e, para muitos deles, era sinal de filosofia. Misturados
à multidão ou postados nos cruzamentos das ruas, assumiam a
atitude de pregadores populares, “monges mendicantes da Antigui
dade”.
“Sua barba lhe vale dez mil sestércios, dizia-se; a esse preço,
seria necessário pagar salário aos bodes!”110 A Crescente o impera
dor pagou seiscentas moedas de ouro a título de uma cátedra impe
rial.111 As fronteiras entre as escolas eram fluidas. Era praticamen
te impossível distinguir estóicos e cínicos por seus raciocínios ou
por sua propaganda.112 As pensões e as isenções das quais gozavam
faziam que fossem considerados como filhos do Estado. Os favores
excitavam os apetites. Mais desinteresse garantiría mais sabedoria,
observava o imperador Antonino, com filosofia.113
Marco Aurélio vivia rodeado de filósofos. Seus mestres toma
vam-se seus ministros. Rústico, ao qual ele era ligado pela mais
tema afeição, era prefeito do pretório e foi quem condenou Justino.
O imperador parecia ter jogado os filósofos contra os cristãos, que
tinham invadido a cidade e, para afirmar-se, levantavam controvér
sias públicas.114
Crescente abriu fogo contra Justino. Se eles lutavam com ar
mas iguais, o primeiro agitava o vento,115 e o segundo falava ouro.
O pagão ensinava a filosofia de Diógenes, que professava o desa
pego e recorria à mendicidade. Luciano, que tinha língua mor
daz, acusa seus seguidores de acumular ouro em seus andrajos.116
Crescente tinha má reputação. Taciano117 diz que ele era
pederasta, sempre cercado de jovens e hábil em extorquir as casas
opulentas que freqüentava. Do outro lado, Justino era o homem da
integridade, da acolhida e do desinteresse. Sua doutrina não era
100
negócio, mas regra de vida. O público não se enganava: escravos e
doutos, homens e mulheres acorriam para ouvi-lo e encontrar a
verdade.
Os filósofos pagãos e cristãos usavam método de ensino idênti
co, baseado em conversas livres, em tom familiar, nas quais um
texto ou um acontecimento da vida cotidiana oferecia matéria para
considerações doutrinais. A formação se prolongava na conserva
particular do mestre e do discípulo, com a presença de um ou dois
companheiros. A vida comum introduzia o discípulo de Justino na
comunidade cristã, que vivia a doutrina ensinada.
Um debate público entre Crescente e Justino bastou para con
fundir o pagão. Frontão, voando em socorro de Crescente, interveio
em pleno Senado. Justino quis renovar o debate perante o impera
dor.118 Mas seu rival, escaldado, não aceitou a discussão. Ele era da
raça dos filósofos dos quais Minúcio Félix diz: “Eles temem enfren-
tar-nos em público”.
Argumentador vencido. Crescente se tomou difamador e, de
pois, na falta de argumentos, denunciador. Rústico e o próprio Marco
Aurélio, em vez de aceitar a discussão, recorrem à força. O impera
dor, que examinava diariamente sua consciência e se acusava de
pecadilhos, não percebia que, em relação a Justino e a alguns cris
tãos, comportava-se como verdadeiro tirano.
Diante do prefeito de Roma, Justino estava cercado de seus dis
cípulos, suprema homenagem a um mestre de sabedoria.
“A qual ciência te consagras?
— Estudei todas as ciências. Acabei por dedicar-me à doutrina
verdadeira, a dos cristãos”.119
O ensinamento que recebeu e que professava permitiu-lhe en
frentar a morte, temida pelo filósofo, com a certeza de que ela era
uma aurora.
Marco Aurélio, “o santo paganismo", era de um metal diferente
do de Crescente, o sino rachado da filosofia.120 Ele reunia em sua
pessoa o poder e a sabedoria. Os autores cristãos, como Tertuliano
e Melitão de Sardes, compraziam-se em louvar “sua humanidade e
sua filosofia", quando não o declaravam protetor dos cristãos.121 A
objetividade exige mais reserva. Não serve para nada integrar à for
ça grandes almas ao cristianismo, como fizeram aqueles que imagi
naram uma correspondência epistolar entre o apóstolo Paulo e
101
Sêneca. Os bustos do imperador filósofo o representam barbudo,
de traços finos, o olhar distante, o queixo de um retraído básico.
O imperador conheceu e freqüentou cristãos até em seu palácio.
O essencial da doutrina deles lhe era conhecido. Em seus Pensamen
tos ele alude aos cristãos, demonstrando seu desprezo por eles.
Que alma a que está pronta, se for necessário, a se desligar
do corpo imediatamente e apagar-se, dispersar-se ou sobrevi
ver! Mas essa disposição deve proceder de um julgamento pes
soal, não de simples espírito de oposição como entre os cris
tãos! Ela deve ser refletida, grave, sem fausto trágico: é a condi
ção para se conseguir persuadir os outros.122
Tomado míope por sua filosofia, Marco Aurélio não compre
endeu o sentido do cristianismo. Não percebeu que a morte de cris
tãos, como Justino e Apolônio, seria capaz de “persuadir outros”,
enquanto sua filosofia lamentável desaparecería com ele. Acossado
pelo pensamento da morte, estava irritado com os cristãos, que não
a temiam, e porque o heroísmo deles, que ele tratava de "fausto trá
gico”, não correspondia a nada em seu sistema. Para ele, não era o
espetáculo do trágico que persuadia, mas a razão. Marco Aurélio,
diz Peguy, não teve a religião que merecia; é pena que tenha chega
do perto dela sem reconhecê-la e que a tenha condenado sem
entendê-la.
A verdade é que existe incompatibilidade entre o estoicismo
como o imperador filósofo o concebia e o cristianismo. A razão
universal guia o homem e o mundo, basta submeter-se às suas leis e
aos seus determinismos.123 Como conceber a mediação de Cristo, a
irrupção do divino na história universal, como admitir a pretensão
do Evangelho de mudar o homem e de renová-lo interiormente?
Por mais que Marco Aurélio afirmasse que todos os homens
são de uma mesma raça124 e todos habitados pelo mesmo ser divi
no, que lhes distribui suas parcelas, ele, excessivamente introvertido
e confiando demasiadamente na razão, não podia amar verdadei
ramente os homens e confiar neles ao ponto de modificar seus com
portamentos. Ele não demonstrava nenhuma simpatia pelos cris
tãos e não se sentia irmão deles.125 O filósofo, tanto quanto o impe
rador, sentia-se agredido por eles, porque haviam levado o debate
para o seu próprio terreno e contestado sua regra de vida.
102
Em vão o filósofo se referia à “lâmpada que brilha no fundo da
alma”,126 porque nenhuma esperança iluminava seu caminho; só a
morte é que podia libertá-lo da vida e do ser; como aceitar a fé dos
mártires, que afirmavam a ressurreição dos corpos, e não só a imor
talidade da alma? Em relação aos gnósticos, Irineu vê na incorrup
tibilidade final da carne a pedra de toque da antropologia cristã, a
realização da promessa inscrita na criação do homem.127 Negar essa
verdade é negar o cristianismo.
Ao mesmo tempo que filósofo, Marco Aurélio era fiel às insti
tuições religiosas do Império. Luciano de Samósata, ao contrário,
era livre-pensador que anunciava Voltaire. Esse sírio helenizado,
cidadão do mundo, e não do Império, ostentava total ceticismo em
relação a toda religião e a toda filosofia. Da divindade ele amava só
as belas estátuas;128 apreciava seus contornos como apreciava a arte
grega e sua cultura. Confundia num mesmo desprezo os construto
res de sistemas, os pregadores de moral e os prometedores de felici
dade. “Usa o presente, passa rindo diante de todo o resto e não te
apegues seriamente a nada”. A conclusão de Menipo é digna de Cân
dido.
Muito superficial e muito frívolo para considerar o fundo das
coisas, Luciano sabia observar. Os cristãos lhe seriam até simpáti
cos, na medida que sua doutrina minava a religião pagã e declarava
guerra às feiticeiras e aos taumaturgos. Ele não repete em nenhum
lugar, como outros escritores da época, acusações populares; nun
ca procura opor a vida dos cristãos à doutrina que eles pregam.
Reconhece, como vimos, seu espírito de fraternidade e de ajuda
mútua.
Quando muito, censura ele os mártires por “seu suicídio pom
poso e teatral”,129 muito leviano para compreender o heroísmo e a
grandeza da fé. Espírito sarcástico e escamecedor, sua ironia era
muito superficial para examinar o fato cristão e não rejeitar, em
comum reprovação, todas as formas de religião e a própria concep
ção da fé e do sobrenatural.
Um amigo de Luciano, sem dúvida tão cético quanto esse “galho-
feiro de Samósata”, escreveu, em 178, a obra crítica mais violenta
do sécúlo contra o cristianismo; o livro, Palavra da verdade,130 foi
salvo do esquecimento pela refutação de Orígenes, setenta anos mais
tarde.
103
Celso era filósofo de profissão, alimentado em Platão, Zenão e
Epicuro.131 Seu livro nos permite compreender, melhor do que qual
quer outro, as dificuldades de crer. O filósofo pode ser cristão? Cer
tamente não! Ele ficaria surpreso, uma geração mais tarde, ao desco
brir a escola de Alexandria.
A crítica de Celso se apóia em uma hermenêutica que não per
deu sua atualidade. O artesão, o escravo, sem ligações com a cultu
ra, estranho na cidade antiga, era capaz de vibrar com a mensagem
evangélica, mas que dizer do herdeiro da civilização de Atenas e de
Roma? Ele procurava a luz no pensamento de seus filósofos. Celso
julgava em nome das idéias que se impunham em sua época como
o homem de hoje fala em nome da ciência, de seus métodos e de
sua técnica.132
Celso pretendia-se informado da literatura bíblica propriamente
dita junto aos próprios cristãos.133 Ele os interrogara, a fim de co
nhecer suas convicções. Crítica e refutação giram em tomo de dois
pólos: a doutrina e o comportamento dos cristãos.
Para começar, ele faz profissão de racionalismo e mistura o cris
tianismo com a maré mística das religiões orientais.134 A própria idéia
de revelação, comum aos cristãos e judeus, parece-lhe presunção.
Judeus e cristãos me parecem um punhado de morcegos ou
de formigas saindo de seus buracos ou de rãs postadas à mar
gem do lago, ou de vermes reunidos no canto de uma pocilga,
dizendo uns para os outros: “É a nós que Deus revela anteci
padamente todas as coisas; ele não cuida do resto do mundo e
deixa os céus e a terra rodar à vontade, para se ocupar só de
nós".135
Isso quanto ao tom. Além dessa ironia, Celso aplica à revela
ção cristã a crítica que um David Strauss ilustraria no século XIX.
Não demonstra conhecer nenhuma ciência exegética, não distin
gue os gêneros literários da Bíblia e usa método comparativo ele
mentar para reduzir as narrações bíblicas às lendas pagãs, a teses
platônicas mal expostas ou a passsagens tiradas das religiões orien
tais de Mitra e Osíris. A narrativa sobre Sodoma e Gomorra se tor
na empréstimo de lenda de Faetonte;136 Moisés, para descrever a
torre de Babel, copiou o episódio de Homero sobre os aloídas, que
queriam tomar o céu de assalto. O que lhe parece válido encontra-
104
se em Platão, que o disse de modo excelente.137 Dir-se-ia a crítica
racionalista do século XVIII.
Celso trata então do Novo Testamento, particularmente dos
Evangelhos. A encarnação de um Deus que veio viver existência
humana parece-lhe incompreensível, para não dizermos absurdo.
Que sentido pode ter para um deus uma viagem como essa?
Seria para aprender o que se passa entre os homens? Mas ele
não sabe tudo? Seria ele incapaz — ele que tem poder divino —
de melhorá-los, sem mandar alguém corporalmente para isso?138
Para Celso, a doutrina cristã rompe a harmonia do cosmo “e
transtorna o universo”. Sem mostrar o pessimismo profundo en
contrado nos gnósticos, ele pensa que “se Deus bom, belo, feliz,
desce para junto dos homens, submete sua natureza imutável às
vicissitudes humanas”.139
A incompreensão, agravada pela zombaria, não permitiu ao fi
lósofo observar nos homens de seu tempo a preocupação e a angús
tia pela salvação. “Nunca a necessidade de perdão, de expiação e de
redenção foi tão forte”. Reação existencial contra a aridez dos cul
tos oficiais.
O mistério de Cristo escapava ao filósofo. A respeito de seu nas
cimento, ele menciona histórias de soldados.140 Nascimento mira
culoso, ministério, curas e ressurreição, tudo é passado em revista
e esmiuçado. Esse charlatão miserável, que não era nem belo, nem
eloqüente, nem homem de senso, como podería ele ser o Logos de
Deus?141 Aí, Orígenes, sentindo-se atingido no ponto central de sua
fé e de sua devoção, reagiu do modo mais violento e respondeu aos
sarcasmos de Celso com paixão e irritação.142
Para Celso, a salvação trazida à terra para curar a humanidade
ferida e o sentido do novo nascimento143 e da conversão são impen
sáveis, porque perturbam a ordem do mundo nos determinismos
de seu movimento. A acolhida dada ao filho pródigo parece-lhe in
compreensível. Para ele, o homem é determinado, “e a natureza das
pessoas não se muda”. Os maus não se corrigem nem pela força,
nem pela bondade.144 A antropologia cristã, a humildade e a contri
ção violentam sua cosmovisão. O deus de Celso se parece com o
deus de Nietzsche, o deus das naturezas altaneiras, e não com o
consolador dos aflitos ou com o mestre dos miseráveis.145 Para ele,
105
o cristianismo era doutrina bárbara para pessoas sem cultura, que
desprezaram os “belos conhecimentos” como obstáculos para o
conhecimento de Deus.146 Ele lembra o helenista que se recusava a
ler o Novo Testamento porque seu grego não era puro. Jerônimo
confessa que teve repugnâncias semelhantes. Orígenes, do alto de
sua cultura e de sua erudição, podia, mais que qualquer outro, dar
uma avaliação de Celso.147 Ele se irritou por ter sido classificado
entre os iletrados.
Da análise doutrinai Celso passa à crítica dos cristãos que ob
servou: censura-os por sua indiferença cívica, porque se subtraíam
à cidade e aos seus encargos. Repete as acusações já mencionadas,
sem mostrar, como outros filósofos, a independência de grande es
pírito:148 a religião cristã não é a religião nacional de ninguém e
impede seus adeptos de participar dos cultos que consolidam a ci
dade.
Recusam-se eles a observar as cerimônias públicas e a pres
tar homenagem aos que a elas presidem? Sendo assim, que re
nunciem também a tomar a toga viril, a se casar, a se tomar
pais e a exercer as funções da vida; que se retirem para longe
daqui, sem deixar a menor semente de si mesmos, e que a terra
fique desembaraçada dessa raça. Mas, se querem casar-se, ter
filhos, comer os frutos da terra e participar das coisas da vida,
boas ou más, devem prestar aos que são encarregados de admi
nistrar tudo as honras que lhes são devidas.149
A censura principal de Celso dirigida aos cristãos era de falta
de civismo e de recusa do juramento ao imperador, o que lhe pare
cia muito grave na ocasião em que os bárbaros estavam às por
tas.150 Sobre esse ponto, a resposta de Orígenes foi a mais fraca, a
menos percuciente: “Ajudamos as autoridades de modo mais efi
caz, vestidos com a armadura de Deus, levando-lhes socorros espi
rituais”.151 Por que não perguntou a Celso se ele se alistara no exér
cito? O polemista zombava das dissensões internas e dos anátemas
que as igrejas lançavam umas contra as outras.152 Ele conhecia as
seitas, que pululavam, e distinguia cuidadosamente o que já cha
mava "a Grande Igreja”.153 Orígenes responde com energia: “Nos
sas assembléias sustentam sem dificuldade a comparação com as
das cidades de Atenas, de Corinto e de Alexandria”.154 Mas é pouco.
106
O próprio martírio não parece novo a Celso e não o impressio
na. Havia exemplos em todas as crenças.155 A esperança da ressur
reição, que o martírio supõe, parece-lhe absurda.156 A isso Orígenes
responde: “A vida dos verdadeiros discípulos fala por Jesus Cristo;
fala mais alto e confunde a impostura”.157
A argumentação de Celso é mais defensiva que ofensiva, defen
de uma civilização ou uma cultura do que uma religião.158 Os filó
sofos, quer se tratasse de Marco Aurélio ou de Celso, estavam muito
presos ao cosmo dos gregos, para conceberem uma mutação ou um
acontecimento em sua ordem eterna. A idéia da intervenção divina,
de mudanças radicais, como a vinda de Cristo, “semelhante idéia
era impossível antes que o cristianismo viesse perturbar o cosmo
dos helenos”.159
Com o passar do tempo, que favoreceu Orígenes, foi fácil ava
liar o quanto Celso, Luciano e Marco Aurélio subestimaram seus
interlocutores. Nos decêncios que se seguiram, a presença, na Igre
ja, de personagens como Tertuliano, Lactâncio, Clemente, Orígenes
e Agostinho mediu a visão estreita dos pagãos.
Celso só via o cristianismo de esguelha e não compreendia sua
significação nem seu sentido vital, que tocavam a alma em suas
profundezas. Orígenes sabia por experiência que ao espírito huma
no é dado decifrar o "enigma divino” do qual fala Celso, a saber,
quando a inteligência penetra mais nos mistérios dos livros santos,
indo até o fim na busca: dentro da fé, ela bebe na fonte que a permi
tiu surgir.
Um século antes, Justino abrira o caminho novo que permitisse
a Platão encontrar Cristo.160 Belo otimismo, que foi retransmitido
pelos mestres de Alexandria e da Capadócia, mas não teve a unani
midade. O Ocidente, mais sensível à linguagem do direito, foi mais
pragmático do que especulativo. Taciano, o Assírio, discípulo de
Justino, já acusava a louca suficiência dos gregos e seu gosto pelo
tinido das palavras.161 As glórias mais puras, Sócrates e Platão, não
encontram graça diante dele. Roma e Cartago, Tertuliano e Cipriano
estavam mais próximos de Taciano que de Justino.
O confronto entre o cristianismo e a religião nacional degene
rou em oposição e, depois, em perseguição aberta. Teria o Império
rejeitado a condição dos cristãos, de cidadãos de duas cidades? Sen
tiu-se ele ameaçado pelo fermento do Evangelho? Em termos cla-
107
ros, a Igreja demoliu o império romano, como pretendem
Montesquieu e Gibbon, Nietzsche e Renan? É verdade que o cristia
nismo foi “o vampiro”,162 o “dissolvente”163 do mundo antigo? Gaston
Boissier164 respondeu à acusação, inspirada mais na polêmica do
que na observação, tomando a história como testemunha. A deca
dência começou antes da propaganda cristã.
O mundo antigo estava envelhecido e fatigado, e sua energia
diminuía; despovoamento, decadência do espírito militar e do
zelo cívico e corrupção dos costumes eram males que podiam
ser constatados desde o fim da República. Essa crise se agrava
va sem cessar, enquanto os bárbaros forçavam as fronteiras no
Danúbio e no Reno.165
Poder que mutilava o homem e não respeitava sua condição e
suas aspirações mais profundas, ainda que fosse mais resistente
que o ferro, devia ele esperar o revide dos homens livres, que des
prezam o poder e a morte. A reação pagã à progressão cristã con
fessou o fim de uma civilização. As civilizações não estão fadadas a
ter fim? A Igreja deve meditar sobre essa advertência.
108
TERCEIRA PARTE
O ROSTO DA IGREJA
CAPÍTULO I
IGREJAS E IGREJA
111
A organização dos quadros
A virada do século I é de importância capital na história cristã.
Já haviam desaparecido, todos os apóstolos, com exceção de João,
a última testemunha; ele se tomara personagem quase lendária;
morou na Ásia durante muito tempo. Clemente diz que organizou
as comunidades dessa região, as quais, ao longo do século II, invo
cavam sua autoridade? Sua sombra ainda se projetava sobre as igre
jas, dispostas na linha do litoral como contas de rosário.
Agora as comunidades já eram dirigidas por chefes que se trans
mitiam as narrativas e os ensinamentos dos Evangelhos. Substituí
ram os primeiros apóstolos e seus colaboradores. Estabeleceu-se
organização flexível e progressiva. Ela procedia por etapas, cujos
vestígios ainda são perceptíveis. As comunidades judaico-cristãs ti
veram durante algum tempo direção colegial (anciãos ou presbíteros)
à sua frente. As que se formaram em terras pagãs eram dirigidas
pelo binômio bispo-diácono. As duas organizações, que coexistiam
harmoniosamente, unificaram-se no decorrer do século II; isso se
efetuou aos poucos, com retardamentos, hesitações e às vezes com
crises. A vida não era uniforme, mas se desenvolvia de modo orgâ
nico e crescia com a vitalidade explosiva dos começos.
A itinerância dos apóstolos e dos profetas durou algum tempo,
mas preparou organização estável, com autoridade local para subs-
tituí-la. Alguns desses itinerantes se fixaram nos lugares de sua ativi
dade missionária. Potino e talvez Irineu de Lião correspondem bem
a essa situação. Outros, sempre móveis, desbravavam novo terreno
e plantavam a cruz sob céus novos. Sua ação se prolongava pelo sé
culo II, mas tendia a desaparecer com ele.
A pregação evangélica dava fruto quando deixava atrás de si um
mínimo de estrutura e organização. Os convertidos encontravam-se,
agrupavam-se e fundiam-se em comunidade, a igreja do lugar. Eusébio
o diz explicitamente: “Os apóstolos distribuem seus bens aos pobres,
deixam sua pátria, põem os fundamentos da fé em regiões estrangei
ras, estabelecem pastores e a eles confiam aqueles que levaram à fé”?
Inácio em Antioquia, Policarpo em Esmirna, Potino em Lião,
Quadrato em Atenas e Dionísio em Corinto eram chefes de suas
comunidades; e eram chamados epíscopos, bispos, termo que sig
nifica inspetores ou superintendentes, título esse que provém da
112
administração civil.5 A denominação bispo, por algum tempo sinôni
ma de presbítero, impôs-se para designar a autoridade monárquica.
Da organização colegial para a responsabilidade episcopal houve
um tempo de flutuação,6 com hesitações e resistências. Algumas
cidades, como Jerusalém e Alexandria, desde as origens cristãs ti
nham seu bispo; outras, como Corinto, parece que não o tinham
ainda quando Clemente de Roma lhes escreveu. Em todo caso, a
carta dele não menciona nenhum; fala apenas da cabala que opu
nha, na comunidade, jovens e velhos presbíteros.
Se, no século II, várias cidades tinham como bispos pessoas de
grande envergadura, como Policarpo e Irineu, as outras escolhiam
alguém mais de acordo com sua condição. Nem todo corso é Napo-
leão! As igrejas locais, muitas vezes de começos humildes, escolhiam
para bispo o homem mais disponível, mais generoso e que se impu
nha por suas qualidades e seu exemplo.
A primeira evangelização era realizada em casa hospitaleira,
posta à disposição do apóstolo itinerante.7 A conversão do chefe de
família que hospedava normalmente era acompanhada da dos ou
tros membros da “casa”.8 A coisa era tão normal que nas comunida
des judaico-cristãs os membros não batizados eram excluídos da
mesa comum.9
O que se passou em Antioquia, onde o centurião Comélio,10 bati
zado, convidou à sua casa parentes e amigos, deve ter-se reproduzido
com freqüência. A casa era, pois, a célula-mãe do serviço do Evange
lho e, depois, da reunião dos evangelizados. Algum cristão, cuja casa
fosse suficiente ampla, punha-a à disposição do missionário e, segun
do as regras da hospitalidade antiga, retinha nela os membros du
rante a permanência do apóstolo ou em cada uma de suas passagens;
os irmãos ficavam sabendo por ele a data da volta do apóstolo.
O quadro doméstico foi assim o berço da comunidade, ofereceu
a ela um centro de irradiação e assegurou sua continuidade.11 Em
tomo dele reuniam-se os convertidos, as famílias e as "casas”. O
lugar ocasional do encontro passava a ser habitual. Quando se toma
va muito pequeno para comunidade de quarenta, cinqüenta mem
bros ou mais, os cristãos alugavam uma sala. Geralmente o proprie
tário fazia doação dela à comunidade; nesse caso, era modificada,
com a eliminação de suas divisões internas, para que o espaço fosse
suficiente. A igreja de Dura Europos era antiga habitação particu-
113
lar. A mesma coisa deve ter-se passado em Roma. O hospedeiro da
reunião acabava tomando-se o chefe natural da comunidade. É a
situação descrita pelo Pastor de Hermas.12
O retrato falado que as cartas pastorais fornecem do bispo cor
responde com exatidão à situação de um pai de família que gere
perfeitamente seus negócios, sua vida pessoal e familiar é irrepreen
sível, ele se mostra hospitaleiro e os outros o estimam.
É preciso que o epíscopo seja irrepreensível, esposo de uma
única mulher, sóbrio, cheio de bom senso, simples no vestir,
hospitaleiro, competente no ensino, nem dado ao vinho, nem
briguento, mas indulgente, pacífico, desinteresseiro. Que saiba
governar bem a própria casa, mantendo os filhos na submis
são, com toda dignidade. Pois se alguém não sabe governar bem
a própria casa, como cuidará da Igreja de Deus?13
Desde o começo, e epíscopo era assistido por colaborador di
reto, habitualmente mais jovem, o diácono, o qual, por suas quali
dades pessoais, familiares e sociais, devia estar em condições de
ajudar eficazmente o chefe da comunidade; juntos, geriam o bem
comum e proviam às necessidades da comunidade.
No século II, a instituição do epíscopo e do diácono fundia-se
com a dos presbíteros ou anciãos, de origem provavelmente judai
ca. No judaísmo, os “anciãos” eram notáveis que formavam parte
do sinédrio ou dirigiam a comunidade e a sinagoga.14 Havia “an
ciãos” em Jerusalém, no tempo dos Doze, quando Tiago era bispo
da cidade.15 Eles assistiram ao primeiro concilio, o de Jerusalém,
junto com os apóstolos.16 No fim do século I, encontramo-los em
Roma, Filipos e Corinto, onde foram objeto do conflito que moti
vou a carta de Clemente de Roma.17
A fusão das duas instituições deu-se progressivamente, segun
do os lugares e as circunstâncias, não sem choques aqui e ali. A car
ta de Paulo a Timóteo, na qual ele descreve o bispo, conhecia o colé
gio presbiteral, o qual, com Paulo, impôs as mãos a Timóteo.18 A
Ti to foi recomendado que instituísse presbíteros.19
A solução mais elegante para passar da autoridade colegial para
a instituição monárquica consistia em escolher o bispo no corpo
presbiterial.20 Os termos presbítero e bispo foram sinônimos du
rante algum tempo. Irineu21 parece empregá-los indiferentemente.
114
No tempo de Inácio de Antioquia, a instauração da autoridade
monárquica e a assimilação do conselho presbiteral eram coisa aca
bada na Ásia, de Jerusalém a Pérgamo. Atestam-no as cartas de Inácio
às várias comunidades pela quais passara. Em outros lugares, pare
ce que a mudança foi algo dolorosa.22 A carta de Clemente à comu
nidade de Corinto, provocada por presbíteros contestados, reconhece
a existência de chefes ou bispos — escolhidos, sem dúvida, pelo
conselho dos anciãos — que presidiam à liturgia e distinguiam-se
claramente dos leigos, mencionados aí pela primeira vez.23
Em Roma, a fusão do conselho dos presbíteros com os sucesso
res de Pedro, ao que parece, não foi concluído sem dificuldades. No
tempo de Clemente, a igreja romana ainda era dirigida por conse
lho presbiteral, com um presidente à sua frente.24 Justino, ao des
crever a assembléia litúrgica, não fala de bispo, mas de presidente.
Quando Policarpo e Hegésipo e, mais tarde, Irineu foram a Roma,
encontraram lá organização semelhante à do Oriente e a de Lião.
A situação romana permite que tenhamos imagem concreta do
que distingue a Igreja das igrejas. Até Constantino, não existia lu
gar no qual se pudessem reunir todos os fiéis da cidade. Os cristãos
se reuniam por afinidades e por grupos étnicos ou lingüísticos, como
os diversos ritos na Beirute ou na Damasco de hoje. Justino23 afir
ma-o claramente, ao responder à interrogação do prefeito Rústico:
“Onde vos reunis?
— Onde cada um quer e pode. Crês que nós todos nos reunimos
em um mesmo lugar?”
Isso explica que os asiatas de Roma, fiéis à tradição de sua igre
ja original, continuassem a celebrar a festa da Páscoa no dia aniver
sário, e não na noite do sábado seguinte, como os outros fiéis da
cidade. Essa diversidade se encontra ainda hoje em Jerusalém, en
tre confissões diferentes, e já irritava o papa Vítor, preocupado com
ordem e unidade. Ele tinha diante dos olhos comunidades nas quais
uns jejuavam enquanto outros já festejavam a alegria pascal; os fiéis
que estavam na sexta-feira santa, encontrando os que festejavam a
Páscoa, podiam pensar “que eles se haviam enganado”.
Nos diversos bairros da cidade, os cristãos se reuniam em tor
no de um mestre ou de um presbítero para ensinamento ou cele
bração. As doutrinas mais audaciosas podiam difundir-se em reu
niões heterodoxas, que escapavam ao bispo. A vinda de mestres da
115
Ásia e do Egito, como Valentino e Marcião, favorecia os grupelhos,
alguns dos quais se erigiram em "Igreja” separada. Diante da amea
ça, a Igreja acentuou a unidade e a ortodoxia, incluindo-as nas res
ponsabilidades dos bispos. Esse movimento de unificação é clara
mente perceptível nas comunidades romanas e orientais.26
No século II, a unidade e a vitalidade de uma comunidade de
pendiam, em grande parte, da personalidade do bispo.27 Ele era o
defensor das pequenas igrejas contra o isolamento e o farol de sua
irradiação. Logo que ficou adulta, no tempo dos Antoninos, a Igreja
teve bispos de grande estatura: Inácio, Policarpo, Melitão, Polícrates,
Irineu.
A comunidade escolhia um homem experimentado e desinteres
sado, competente, aprovado na vida familiar e profissional e com si
tuação independente. O Oriente dava preferência a um cristão rico, ca
paz de ajudar a comunidade em suas necessidades.28 Em algumas
igrejas da Ásia, o cargo era hereditário, também na igreja antiga da
Armênia; em Éfeso, Policarpo foi o oitavo de sua família a exercê-lo.29
A experiência adquirida na condução da casa e do patrimônio e
as qualidades humanas e sociais da pessoa eram condições e garan
tias para a designação do bispo. Normalmente era casado, as exce
ções eram bastante raras para serem destacadas, como o caso de
Melitão de Sardes.30 Habitualmente o bispo era de idade madura. A
Didascália pedia que ele tivesse cinqüenta anos.31 Platão dizia: “São
necessários cinqüenta anos para se fazer um homem".32 Mas essa
regra admitia exceções, como no caso de sabedoria precoce. O bis
po de Magnésia, no tempo de Inácio, era jovem, o que complicava
bastante seu trabalho.33 O bispo de Antioquia exortava os
magnesianos para que ajudassem seu pastor.34
A eleição ocorria em reunião da comunidade, com voto oral. O
nome de um membro, geralmente sacerdote ou diácono,35 era pro
posto ao povo; caso os eleitores fossem pouco numerosos, podiam
pedir a membros experimentados de igreja vizinha que se juntas
sem a eles. Essa prática mostra que para uns e outros a igreja não
se detinha nas fronteiras da cidade.36 Depois da eleição, os bispos
vizinhos impunham as mãos sobre o eleito.37 Desde essa época fa
ziam-se sentir o peso e o consentimento dos chefes de metrópoles,
como Éfeso. Inácio, em Antioquia, exercia sua influência sobre as
outras igrejas da região; ele já era chamado “bispo da Ásia”.
116
As qualidades requeridas não diferiam muito das que são enu
meradas nas cartas pastorais. Aconselhava-se que não tivesse atividade
comercial nem função pública,38 porque os negócios poderíam com
prometer sua reputação de desinteresse, e os cargos públicos lhe impo-
riam presidir as festas religiosas da cidade e sacrificar aos deuses.
Além das qualidades morais, era fundamental o conhecimento
da Escritura.39 "Que o bispo... seja assíduo em ler atentamente a
divina Escritura, a fim de interpretar e explicar corretamente seus
livros”. Alguns bispos chegaram a aprender o hebraico, para expo
rem melhor a palavra de Deus.40 Solidez passa cultura, e zelo trans
mite grande saber. No meio dos perigos internos e do pulular
gnóstico, o bispo devia ser mais apegado à tradição que ao raciocí
nio, à regra da fé que à discussão.
O zelo pela doutrina devia andar junto com a integridade mo
ral, exigida igualmente pelo serviço litúrgico e pelo serviço social.41
O bispo devia ser homem de todos, não fazer acepção de pessoas e
elevar-se acima das rivalidades e facções, que provocam cismas.42
O caráter patriarcal da igreja local tomava-o pai da comunidade,
atento tanto às necessidades dos pobres quanto às exigências espi
rituais de todos. O termo “pastor”,43 que começou a se introduzir,
traduz o espírito de um ministério constituído de serviço e firmeza,
de autoridade e benevolência.
O autor da Didascália,44 que talvez fosse bispo, ao lado do qua
dro de conjunto, oferece informações sobre suas diversas ativida
des — aparentemente as do fim do século II. Se o quadro parece um
pouco idealizado, as tarefas descritas são concretas. O bispo era o
chefe da comunidade e da liturgia; administrava a justiça, harmoni
zava as divergências e demonstrava discernimento e benevolência;
devia alimentar tanto a fé como os pobres. Em suma, na igreja, ele
representava Deus.45 A Didascália conclui: “Ó bispo, procura ser
puro em tuas ações e estima teu cargo, porque és como a imagem
de Deus onipotente e representas o Deus onipotente”.
O conselho dos presbíteros, poderoso em sua origem, eclipsou-
se. Verificou-se mudança. Os notáveis foram substituídos por sacer
dotes, que assistiam o bispo e, eventualmente, o substituíam nas
funções litúrgicas.46
Seu recrutamento (no começo, eram os primeiros convertidos)
tendia a dar preferência a homens de situação independente.47
117
O século II foi a idade de ouro dos diáconos, os ministros jovens
e empreendedores da comunidade e os mais populares. Sua juventu
de contrabalançava-se com a idade do bispo. Eram o braço direito
do bispo48 e os agentes principais da Igreja, acompanhavam o bispo
ou viajavam por ele, eram os intermediários normais entre o bispo e
o povo e mantinham o relacionamento entre pastor e rebanho.
Nos primeiros séculos, a tarefa principal do diácono não era
nem a evangelização nem a liturgia, mas a ação social. Era o minis
tro da caridade e do serviço, como indica seu nome.49 O bispo esco
lhia os diáconos em número proporcional às dimensões e às neces
sidades da comunidade.50 Em 177, em Lião, havia só um diácono;
Inácio e Policarpo falam deles no plural: as comunidades da Ásia já
eram mais desenvolvidas.
O diácono era os olhos e o coração do bispo no meio de suas
ovelhas; estava em relação constante com os fiéis, conhecia-os e
conhecia sua situação material e espiritual. Visitava os pobres e os
doentes, a fim de socorrê-los. Velava particularmente pelas viúvas,
pelos velhos e pelos órfãos.51 Revelava ao bispo as necessidades e as
dificuldades da comunidade, assistia com os presbíteros no tribu
nal, para compor os desentendimentos entre os irmãos, como o
Apóstolo já aconselhava.52
Ministério exigente, que requeria tato e desinteresse. O manu
seio do dinheiro era sempre perigoso: ele podia colar-se aos dedos.
Parece que o Pastor tinha diante dos olhos o escândalo de diáconos
indelicados ou francamente desonestos, quando os acusa de enri-
quecerem-se em vez de servir, de explorar as cristãs ricas e de apro-
priar-se das ofertas destinadas às viúvas e aos órfãos.53
A carta de Plínio, o Jovem,54 sobre os cristãos, já analisada, traz
a primeira menção de duas mulheres, duas diaconisas, que exerciam
ministério preciso na Igreja, como já vimos. Paralelamente aos
diáconos, eram encarregadas do “setor feminino" e consagravam-se
especialmente àquelas que eram pobres, doentes e idosas. As Igrejas
anglicana e protestante do século XIX inspiraram-se nelas.
Não as encontramos no Ocidente. Aquelas que, mais tarde, ti
veram esse nome eram apenas beguinas. Na Ásia, ao contrário, aos
lugares aos quais o bispo e o diácono não podiam ir, sem provocar
suspeitas ou ciúmes, a diaconisa podia. Ela visitava os gineceus,
onde viviam cristãs e catecúmenas casadas com pagãos, a fim de
118
prepará-las para o batismo e velar pela sua perseverança. Assistia o
bispo no batismo das mulheres e procedia às unções.55
A Didascália precisa que as diaconisas não deviam batizar nem
pregar, porque "as mulheres não foram estabelecidas para ensinar”,56
o que concorda com a afirmação de santo Epifânio: se essa tivesse
sido a vontade de Cristo, "é a Maria, antes de qualquer outra mu
lher, que a função sacerdotal teria sido confiada”.57 Sofreadas na
Grande Igreja, as mulheres se recuperavam nas seitas, nas quais
profetizavam e batizavam.
Fora das grandes metrópoles, especialmente de Roma, as igre
jas viviam a dimensão humana; pastores e fiéis se conheciam pes
soalmente e juntos formavam uma mesma família, na qual os car
gos e os ministérios eram diferentes, mas a serviço do mesmo Se
nhor. O Pastor de Hermas compara-os aos operários que constroem
uma torre, a Igreja.58
Carismas e instituição
A organização se verificou no decorrer do século II. Se uma
autoridade estável substituiu progressivamente os itinerantes, após
tolos e profetas, nem por isso a comunidade deveria ser considera
da como rebanho de carneiros mudos, conduzidos pelo báculo do
bispo. Reunida em torno de Cristo, a Igreja é guiada pelo Espírito
Santo. Essa verdade se manifesta no cotidiano. O Espírito dirige
pastores e fiéis, tanto em Corinto como em Roma, e distribui seus
dons com munificência.
Uma fermentação mística, com visões e profecias, agitou a Igre
ja ao longo do século. Se aqui e ali tomou formas anárquicas ou hete
rodoxas, tratava-se de “quedas” ou de “incidentes de percurso”, que
não devem ser confundidos com a efervescência espiritual da qual
saíram. Esta era um fermento que mantinha nas comunidades a es
pera e o fervor das origens e alimentava a vocação para a continência
e o desejo do martírio; ademais, preparava para as provações e rea
gia contra o torpor. Morrer no leito era como que degradação.
Nada seria mais falso do que opor carisma e instituição. Os bis
pos carismáticos eram muitos: Inácio e Policarpo eram conduzidos
pelo Espírito e agraciados com revelações.59 Melitão de Sardes era
119
guiado pelo Espírito.60 Um século mais tarde, visões e revelações
ainda tinham presença impressionante na vida de são Cripriano.61
Em meados do século II, muitos fiéis tinham carismas, sinal de
vitalidade espiritual. O Espírito inspirou o lirismo das Odes de
Salomão,62 escrito judaico-cristão da época, no qual se encontra a
inspiração joanina: “Como a mão se move sobre a citara e como fa
lam as cordas assim fala em meus membros o Espírito do Senhor”.
Justino63 e Irineu64 conheciam cristãos, iluminados pelo Espí
rito, que haviam recebido os dons da cura, das línguas, da presciên-
cia e do conhecimento. "E impossível dizer, escreve o bispo de Lião,
o número de carismas que, no mundo inteiro, a Igreja recebe de
Deus todos os dias”.65
Com efeito, o Espírito mostrava soberana liberdade na escolha
de seus beneficiários. Se os profetas, dos quais fala a Didaqué,66
estavam em declínio, o Espírito escolhia as pessoas mais inespera
das, como o pitoresco Hermas, que redigiu o Pastor. O autor era
homem bom, de cultura limitada e teólogo improvisado, que se con
fundia quando ia além das fórmulas do catecismo.
Hermas se apresenta como um inspirado e favorecido por nu
merosas visões.67 Descontados os artifícios literários tirados dos
apocalípticos e a ficção, vê-se que o Pastor tinha consciência de
haver recebido mensagem a transmitir às igrejas e a confiou aos
presbíteros.68 Ele se apresenta ainda como profeta em ação no meio
de comunidade concreta. Era ouvido com respeito, mas a comuni
dade não tinha necessidade dele para o ensino da doutrina.
O exemplo de Hermas nos ensina que, em vez de pôr-se acima
da autoridade eclesiástica o profeta também estava sujeito a ela, e
que competia a ela discernir os verdadeiros dos falsos profetas, se
parar o joio do trigo e verificar o valor da mensagem, sob a condu
ção do Espírito. Nada permite imaginar rivalidade entre inspiração
e função eclesial. Se houve tensão, não seria mais entre aquele que
castigava e aqueles que recebiam os golpes? A subordinação não
privava o profeta de sua liberdade de falar nem de repreender seve
ramente os diáconos prevaricadores.69
Assim balizado, o profetismo se incluía na vitalidade da Igreja.
Milcíades,70 um dos adversários mais tenazes do montanismo, afirma
va: “o Apóstolo pensa que o carisma profético deve perdurar na Igre
ja até o último dia”.
120
A circunspeção da Igreja a respeito do profetismo não parece
icessiva quando se considera a efervescência carismática da épo-
i, exacerbada pela insegurança política e pela perseguição. A gesta
) sangue é excelente testemunho da exaltação dos confessores da
, em Lião ou em Cartago.71
Em 172, na Frigia — terra mística por excelência —, Montano
i tomado por crises extáticas.72 A região inteira ficou abalada, e
; bispos já não sabiam o que fazer. Os “santos da Frigia” oravam
>m afetação e com a ponta do indicador encostada no nariz, o que
es valeu o apelido de “narizes cavilhados”.73 As localidades do
:puze e Tímion, berços da seita, eram consideradas cidades san-
s; a elas as pessoas afluíam em peregrinação74 e perscrutavam o
ul do céu para ver se a nova Jerusalém estava descendo das nu
ns. Os prosélitos cumulavam profetas e profetisas de ouro, prata
zestes brilhantes.73
A doutrina de Montano se espalhou como o fogo no canavial,
» Oriente à África e até às margens do Danúbio.76 O montanismo
bstituía a autoridade pela docilidade ao Espírito Santo, a vulgari-
de da vida cotidiana pelo apelo incessante à perfeição, pela re-
mcia ao matrimônio ou à sua consumação, pela venda de todos
bens em benefício dos pobres, pela aspiração ao martírio e pela
pera exaltada do fim do mundo.77 Se seguisse os montanistas, o
ando se transformaria em mosteiro.
Esses espíritos simples e exaltados anunciavam a Igreja dos úl-
nos dias com a impetuosidade das seitas pentecostais de hoje,
a imensa mobilização do mundo, sem preocupação com as tare-
; do dia-a-dia. “Que têm a ver com o juízo final os cuidados com
criancinhas?, escrevia Tertuliano, já montanista. Será belo ver
os flácidos, parturientes com náusea e crianças chorando, mis-
~ados, ao aparecimento do Juiz e aos sons da trombeta!"78 O anún-
) do grande dia deteve, depois condenou a procriação.
Fenômenos semelhantes apareceram na Fenícia e na Palestina,
a um verdadeiro contágio místico.
121
um deles nada era mais fácil — nem mais habitual — do que
dizer: "Eu sou Deus, ou, eu sou o Espírito Santo".79
Unidade e diversidade
Desde as origens, a Igreja tinha consciência de ser aberta a to
das as nações. Ela não estava ligada a uma cidade, nem a um im
pério, nem a uma raça, nem a uma classe social. Qualquer particu-
larismo seria a negação de si mesma. Ela não era a Igreja dos escra-
125
vos, nem a dos senhores, nem a dos romanos ou dos bárbaros, mas
a Igreja de todos, ensinando a todos a mesma fraternidade. Uns
têm necessidade dos outros. Os grandes não podem nada sem os
pequenos, nem os pequenos sem os grandes.109 Sua originalidade
está nesse intercâmbio e nessa reciprocidade. Rapidamente, mais
rapidamente do que o dizem seus detratores, como Celso, ela flo
resceu no espaço, de Alexandria a Lião, e atingiu todas as camadas
da sociedade, a corte imperial e a intelligentsia. Unidade e catolici-
dade andavam juntas, sendo uma o fundamento e a vitalidade da
outra. Elas são duas dimensões inextricavelmente imbricadas da
única Igreja católica.
As comunidades das cidades, de Antioquia a Roma, de Cartago
a Lião, tinham consciência de formar juntas uma entidade única,
um corpo, um povo. Inácio110 diz: “Onde está Cristo está a Igreja
universal”. Seria também certo dizer: onde floresce uma igreja flo
resce a Igreja. Essa consciência de, em qualquer lugar, pertencer à
Igreja universal e de, acima do quadro local, estar unido à catoli-
cidade estava profundamente enraizada no coração de cada fiel.
Ao diácono Sanctus,111 de Viena, os carrascos perguntaram por
sua nação e sua cidade de origem; respondeu ele: “Sou cristão”.
Isso, acrescenta a narrativa, era "seu nome, sua cidade, sua raça, seu
tudo”. O juiz Polemon perguntou a Piônio: "És cristão? — Sim. —
De qual igreja? — Da católica. Não existe outra Igreja fundada por
Jesus Cristo”.112
O bispo Inácio de Antioquia deu à Igreja a designação de “cató
lica” em época em que, no Ocidente, só a cidade de Roma tinha
uma comunidade cristã. A catolicidade não “depende da geografia
nem do número”, mas da mensagem e da missão. A Igreja é aberta
e enviada a toda a terra habitada, a qual os romanos pareciam con
fundir com os limites do Império. Os cristãos tiveram rapidamente
consciência de transbordá-lo e de, um dia, sobreviver a ele. As duas
concepções não combinavam e, enfrentando-se, incitaram os pa
gãos a dizer que os cristãos não tinham espírito cívico. Onde Roma
pensava em conquista, a Igreja pensava em missão.
De cidade em cidade, de região em região, as Igrejas dispersas
viviam, no cotidiano, a catolicidade. Os irmãos se visitavam e se in
formavam mutuamente. Conheciam os acontecimentos que os sa
cudiam e as perseguições que os provavam. Graças a Eusébio,113
126
temos ainda uma carta de Esmima a Filomelião, dirigida “a todas
as comunidades da santa Igreja católica, em qualquer lugar que
estejam”. Ela conta a perseguição durante a qual seu bispo, Policar-
po, foi martirizado.
Todas essas correspondências exortam à constância, mas dis
cutem também pontos de disciplina, como a penitência daqueles
que “resvalaram”, dos lapsi, especialmente durante as persegui
ções.114 A carta de Dionísio de Corinto aos atenienses, provados
dentro e fora de sua comunidade, permitiu-lhes recuperar-se.115
Eusébio conservou-nos um dossiê de cartas, encontradas, sem dú
vida, nos arquivos da igreja de Corinto, que ele chama de “católi
cas”, isto é, para todos.116
Pelo fim do século II, as relações entre as igrejas dependem me
nos da iniciativa privada, e as comunidades começam a organizar-se
entre si e a se reunir em sínodos ou assembléias de bispos para tomar
posição sobre os problemas da atualidade, como o montanismo117 e
a controvérsia pascal.118 A reunião da Ásia excluiu os hereges da co
munhão com a Igreja e comunicou essa decisão às outras igrejas,
porque ela empenhava toda a Igreja e tinha valor universal.119
Unidade e universalidade não são uniformidade. A evangelização
respeita o gênio próprio dos povos, sua língua e a diversidade das
culturas, e batiza raças diferentes. A fé, para se exprimir, traduz-se
na língua de cada um. A língua siríaca escrita começa com a desco
lonização cultural de uma Igreja na qual a língua popular traduzia
a palavra das Escrituras e exprimia a oração da assembléia. A diver
sidade não é simplesmente a justaposição pitoresca de sensibilida
des diferentes, mas convite à criatividade de todos e enriquecimen
to mútuo na fidelidade à única fé e ao único Senhor.
A Igreja de Inácio e de Potino, de Policarpo e de Irineu é exis
tencialmente a mesma e diferente. Dentro da mesma Igreja, quantos
contrastes! A rapidez da propaganda na Ásia Menor sublinha a len
tidão dos países latinos a pôr-se em movimento, como já vimos. O
Oriente evangeliza o Ocidente: Esmima evangeliza Lião. Se todas
as comunidades compreendem o grego, quantos o sentem realmen
te? Os dialetos reinam nas portas de Cartago e Antioquia. A África,
hesitante no começo, opta rapidamente pelo latim. Em Lião, Irineu
deve traduzir a mensagem evangélica “para os dialetos bárbaros", a
fim de adaptá-lo aos gauleses.
127
Do Oriente ao Ocidente, o Evangelho favorece os intercâmbios.
A riqueza mística e especulativa, ardente e inquietante da Ásia vem
fecundar Roma, mais positiva que mística, “em nada filósofa, con
servadora à moda camponesa, agrária e primitiva”.120 O Oriente de
cidades inumeráveis, industrial e mercantil, velha terra de velhas
culturas, onde o próprio mendigo é filósofo, com um espírito sutil,
incessantemente trabalhado pelos revivais místicos, vem insuflar
no espírito latino, positivo e prudente, moldado pelo direito, algu
ma coisa de seu dinamismo e de sua experiência religiosa.
Para medirmos a diversidade dentro de uma mesma fé, basta
compararmos as cartas de Inácio, arrebentando de tão cheias e car
reando uma ardente lava mística, com a de Clemente de Roma, co
medida e grave, na qual a emoção é dominada, e a palavra é de um
homem formado pelo e para o governo. As cartas que as igrejas se
enviam, de Antioquia a Roma, de Corinto a Esmima, de Lião a Éfeso,
afirmam a unidade da fé na diversidade das situações e das cidades.
A Igreja do Oriente dá amplo espaço à criatividade e à improvi
sação; sua liturgia é fixada só tardiamente. Seu pensamento está
em perpétua gestação. A Igreja de Roma e a de Cartago se sentem à
vontade só dentro de uma regra, correndo o risco de serem ultra
passadas pelos fatos e pela vida.
Quando se comparam os próprios textos legislativos e litúrgicos,
a Tradição apostólica e a Didascália dos doze apóstolos, que forne
cem uma legislação ao século III cristão, a primeira regulamenta o
que a vida cotidiana já parece desmentir; a segunda concilia as di
retrizes de uma disciplina flexível com o jorrar evangélico. Ainda
quando assimila lentamente as contribuições das diversas regiões
do Império, Roma permanece fiel a si mesma e ao seu gênio.
Pode-se imaginar a provação que foi para o asiano Irineu adap
tar-se à mentalidade dos gauleses, insensíveis à sua sutileza, mas
fiéis à fé recebida, que silenciosamente confessam até o martírio. O
bispo de Lião tinha do oriental a flexibilidade e a diplomacia. Era
homem do diálogo e da conciliação. Sabia aliar a fé mística à mo
deração e ao governo das almas, o respeito das diversidades ao sen
timento da Igreja universal.
A Igreja só podia desenvolver-se na “complementaridade”.
Policarpo, bispo de Esmima, não era Vítor, o Africano, mais roma
no que os romanos, como todos os estrangeiros assimilados. A cele-
128
bração eucarística de Esmima não se desenrolava como a da capi
tal; não obstante, o velho bispo, de passagem por Roma, pôde presi-
di-la sem causar estranheza nem estranhar. A eucaristia é uma só,
como a Igreja, e se exprime na igreja local, mas não é prisioneira
dela, porque é universal.
Unidade já não significava uniformidade centralizadora. O papa
Vítor, por temperamento, menos levado a contornar que a derrubar
os obstáculos, aferrado à idéia de centralização e tentado pelos pro
cessos autoritários, teria facilmente sacrificado as tradições locais e
empregado métodos que seu compatriota, Cipriano, cinqüenta anos
mais tarde, recusaria, porque as igrejas, como os homens, só se for
mam mediante o respeito à sua personalidade e à sua diversidade.
Na controvérsia pascal, o que feriu os asiatas foi menos a data que o
procedimento. O comportamento ditatorial do papa, impondo em vez
de convencer, pareceu-lhes inconciliável com a missão do servo uni
versal. Polícrates, em sua carta, soube exprimi-lo com dignidade.121
O primado romano
A capital da Igreja deslocara-se de Jerusalém para Roma. A
tomada e a destruição da velha Sião impediam agora que a igreja
dessa cidade exercesse papel de piloto na história do cristianismo.
A situação política de Roma, metrópole de todas as cidades do Im
pério, de início, dava à comunidade cristã da cidade importância
incontestada, consagrada pela vinda de Pedro.
As outras grandes metrópoles — Antioquia, Éfeso e Corinto —,
fundadas pelos apóstolos Paulo e João, reconheceram rapidamente
o primado romano. O prestígio de Roma decorria da vinda e do
martírio dos apóstolos Pedro e Paulo. A autoridade de Pedro consa
grou o primado romano. Ele se afirmou não de vez, mas aos pou
cos, ao sabor das circunstâncias e das necessidades, segundo uma lei
que a história da Igreja ilustra. Doutrinadores e hereges procura
vam fazer-se acreditar em Roma, como vimos, porque a comunhão
com Roma lhes assegurava a comunhão com a Igreja inteira.122
Os testemunhos em favor do primado romano aparecem no fim
do século I, durante a perseguição de Domiciano. Sem força indivi
dualmente, eles aumentaram e forneceram rapidamente um dossiê
impressionante. A carta de Roma à Igreja de Corinto, escrita por
129
Clemente, bispo de Roma, interveio em uma crise interna.123 Com
brandura, mas também com firmeza, ela pedia que os presbíteros
destituídos fossem reintegrados em seus cargos. Aos instigadores
do cisma aconselhava que deixassem a cidade.124
Não sabemos qual foi a acolhida dada à carta, mas, pelo bispo
Dionísio,125 sabemos que, sessenta anos mais tarde, ainda era lida
na reunião eucarística do domingo, o que dificilmente se explicaria
se a intervenção não tivesse tido bom êxito. Battifol vê nesse fato “a
epifania do primado romano”.126
Inácio, bispo da prestigiosa cidade de Antioquia, escrevendo à
Igreja de Roma, saúda-a com grande deferência como “aquela que
preside na região dos romanos, presidente da caridade e da frater
nidade”.127 Multiplica os elogios e as provas de estima, tanto mais
admiráveis quanto não se encontram em nenhuma das outras car
tas suas. A carta que Dionísio, chefe de comunidade fundada tam
bém pelos apóstolos Pedro e Paulo, escreveu aos romanos exprime
deferência igualmente significativa.128
Menos solene e mais ingênuo é o testemunho de Abércio, da
distante cidade de Hierópolis, na Ásia Menor. Ele viajara através do
Império e se convencera da predominância da igreja romana:
Sou Abércio; sou discípulo de um santo pastor, que leva suas
ovelhas para pastar nas montanhas e nas planícies e que tem
grandes olhos, cujo olhar chega a toda parte... Ele me enviou a
Roma para contemplar a soberana majestade e ver uma rainha
vestida e calçada de ouro.129
O conflito que opôs a celebração pascal da Ásia à de Roma
mostra que as decisões das igrejas e dos sínodos consultados tive
ram toda a sua autoridade quando receberam a aprovação romana.
Era do papa Vítor que dependia a comunhão universal.130 Seus
métodos podem ser criticados, mas ninguém na Igreja pôs em ques
tão a autoridade que interveio. O próprio Irineu, que negociou em
favor da conciliação, contestou a oportunidade, não a legitimidade
da intervenção romana. Reconheceu explicitamente que a Igreja de
Roma — ele estabeleceu a lista de seus bispos131 — estava investida
de poder maior que o das outras.132 Isso levou Hamack, pouco sus
peito, a escrever:133 "Desde a origem, existe relação estreita entre os
termos católico e romano”.
130
CAPÍTULO II
131
de para o homem amar, socorrer e defender os outros homens”. O
Evangelho de Cristo introduz relações novas entre os homens,
estimula e cria, age e transforma, porque é uma provocação para
a ação. Onde floresce a fé, a caridade recolhe os frutos de sua
ação.
A palavra de Tiago ressoava, lancinante, em todas as comu
nidades da Igreja nascente: “Alguém poderá objetar-lhe: ‘Tu tens
fé, e eu tenho obras! Mostra-me a tua fé sem obras, e eu te mostra
rei a fé pelas minhas obras’ ”.7 O mesmo evangelista une religião e
ação, serviço de Deus e serviço dos homens: “A religião pura e sem
mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e
as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do
mundo”.8
A Igreja, de Cartago ou de Lião, acolhia homens concretos e
diferentes, com sua situação pessoal, profissional, econômica e so
cial; eram ricos e pobres, jovens e velhos, mas todos confraterni
zavam. Uns e outros deviam tomar consciência de que formavam
uma mesma família e que deviam viver a fraternidade, isto é, pra
ticá-la.
Diante desse programa, o oriental e o ocidental, o cristão de Vie
na na França e o de Éfeso agiam e reagiam segundo temperamen
tos próprios,9 o que provocava certa fluidez nas instituições e nas
realizações. As funções e as atividades das viúvas e das diaconisas,
por exemplo, não eram as mesmas no Oriente e no Ocidente, por
que as condições de vida diferiam. O oriental, empírico, inventava e
improvisava; o latino organizava e regulamentava.
A dificuldade era situar uma comunidade cristã média, que
fosse, em escala menor, a imagem de igreja de metrópole. Temos
mais informações sobre Roma do que sobre Tiatira, mas Roma
não era toda a Igreja como Paris não é toda a França. Que dife
rença entre uma paróquia da capital e a de um vilarejo ou de
uma cidade pequena do interior! E Roma não era Cartago, o que
é verdade também do orçamento das duas comunidades cristãs.
O prefeito de Atenas, recentemente de passagem por Montréal,
constatou que a metrópole canadense gasta com a remoção da
neve a totalidade do orçamento de sua capital! Os problemas de
Atenas não são os de Montréal, nem as necessidades e nem os
recursos.10
132
A acolhida na comunidade
Na época em que estamos, a comunidade, fora das grandes
metrópoles, não ia muito além do quadro de uma casa acolhedo
ra. O termo fraternidade tinha nela sentido concreto: os irmãos e
as irmãs se conheciam e se chamavam pelo nome.
A igreja de Dura-Europos, uma das mais antigas já encontra
das, já estava na fase evoluída do edifício transformado em lugar de
reunião. Tratava-se de pequena cidade do século III, com popula
ção média. Ora, a igreja continha apenas sessenta pessoas, isto é, o
efetivo de uma família grande.
A Disdacália siríaca conheceu ainda e descreveu a comuni
dade de dimensão humana, na qual o bispo reservava a si a distri
buição dos socorros, porque conhecia perfeitamente os que esta
vam em dificuldade.11 Se um irmão, em viagem, se juntasse à reu
nião, mais ou menos como um membro de “Rotary Club” em trân
sito, devia mostrar suas credenciais antes de ser aceito na assem
bléia.12
O que chama a atenção nas diretrizes da Didascálicd3 é o cará
ter patriarcal e pessoal. Nada de burocrático nem de administra
tivo. O diácono ficava à porta da igreja para acolher as pessoas.
Todos os rostos lhe eram familiares. Conhecia os abastados e os
deserdados, as crianças felizes e os órfãos, os sem trabalho e as viú
vas. Sabia o que o batismo representava para cada um: a ruptura de
certos laços, os obstáculos de toda ordem e o estabelecimento de
novas relações com a comunidade. Muitos deles, daí por diante,
podiam apoiar-se só na nova família, à qual se juntaram ao preço
de todo o resto!
A Didascália diz: “O diácono seja o ouvido do bispo, sua boca,
seu coração e sua alma’’.14 São recomendações cheias de sentido
para o diácono. “Esse coração, essa alma” são povoados por todos os
irmãos e por todas as irmãs, cada um com sua história, cada um
com suas necessidades materiais e espirituais. Não havia um só para
o qual a fé não representasse risco, desafio, dilaceração. A história
de Perpétua nos permite entrever quão profundamente a conversão
cortava na carne viva das afeições familiares. Mas, ao mesmo tem
po, quanta amizade e delicadeza da comunidade de Cartago para
com Perpétua, Felicidade e os outros companheiros. Os diáconos
133
não saíam das portas da prisão, procurando aliviar, mediante alto
preço, a situação dos prisioneiros. Era a imagem da fraternidade
vivida e partilhada.
A viúva e o órfão
Para nós, defender a viúva e o órfão exprime, por sinédoque, a
generosidade daquele que vai em socorro dos oprimidos e dos rejei
tados da sociedade. De Justino a Tertuliano, encontramos regular
mente entre os casos sociais de primeira urgência as viúvas e os
órfãos.15 A associação deles tem profundas raízes bíblicas. "Não
afligireis a nenhuma viúva ou órfão. Se o afligires e ele clamar a mim,
escutarei o seu clamor; minha ira se acenderá!”16 Os dois represen
tavam aqueles que, por não terem proteção nem defesa, eram os
membros privilegiados da comunidade.
A comunidade primitiva entendia a assistência, segundo a pala
vra de Tiago,17 como a expressão e o prolongamento da fé e do culto.
O próprio Luciano,18 observador sarcástico dos cristãos, descreve o
lugar das viúvas e dos órfãos nos grupos cristãos. Até o mais míope
podia, portanto, conhecer a situação deles na vida da comunidade.
Os órfãos eram como que os “filhos naturais” da Antiguidade.
Estabelecimentos para recolhê-los foram fundados só na época cristã
e no governo de Constantino. A situação das crianças sem pai, legí
timas ou não, era das mais precárias. Legisladores e filósofos per
mitiam a exposição das crianças indesejáveis.19 Tertuliano20 repro
vou violentamente esse crime perante os pagãos de seu tempo. Mas
ele não fala dos bastardos nem dos filhos ilegítimos, os quais talvez
fossem pudicamente igualados aos órfãos.
Na Grécia e em Roma, eram protegidos só os interesses das
crianças nascidas livres e cidadãs. A lei não se ocupava dos outros,
cujo número era proporcional ao dos órfãos cristãos, recolhidos
nas classes trabalhadoras e modestas. Plínio escreveu, da Bitínia,
interrogando o imperador sobre a condição jurídica e a manuten
ção das crianças que, nascidas livres, haviam sido expostas e, de
pois, recolhidas e criadas para a servidão.21 Trajano respondeu, con
sagrando os princípios admitidos pelos gregos, porque não havia
legislação comum a todo o Império, ratificando assim os abusos
dos quais essas crianças eram vítimas.22
134
O grande número das crianças expostas era salvo da morte só
pela escravidão e pela prostituição. Para remediar essa situação,
Plínio realizou doações em favor das crianças pobres de várias ci
dades, particularmente de Como, sua pátria.23 Exortou os amigos a
seguirem seu exemplo.24 Uma mulher, de nome Célia Macrina, em
seu testamento, deixou meios para a manutenção perpétua de cem
crianças, meninos e meninas, até a idade de treze ou dezesseis anos.25
Em Roma, as distribuições de trigo eram insuficientes para as
necessidades das crianças sem família. Trajano foi o primeiro im
perador a organizar assistência pública para as crianças ingênuas,
mas os escravos eram excluídos dela. Essa instituição se estendeu
de Roma para a Itália. Foi a obra social mais meritória de Trajano.26
Uma medalha de bronze comemorava o acontecimento: diante do
imperador sentado, uma mulher lhe apresentava algumas crianças,
sobre as quais se estendia sua proteção.27
Esse contexto sociológico permite situar melhor as disposições
tomadas pelos cristãos da mesma época. Recolhiam eles crianças
abandonadas? Nenhum texto afirma isso explicitamente. Mas como
podería Tertuliano28 acusar tão violentamente de infanticídio o aban
dono das crianças, se os cristãos não pensassem que cometeríam o
mesmo crime, caso não recolhessem “um desses pequeninos”?
Seja o que for com relação às crianças enjeitadas, somos infor
mados pela Didascália29 sobre a atitude dos cristãos para com ór
fãos e órfãs. O bispo era o principal responsável por eles. Pai da
comunidade, não o era ele, em primeiro lugar, daqueles e daquelas
que não tinham mais pai? Geralmente ele confiava o órfão a uma
família cristã.
135
mentas necessárias para ganhar honestamente a vida e não ficar
mais a cargo da comunidade.
Os mais abastados nem sempre se prestavam a uma economia
tão fraterna: receber o batismo não era suficiente para a pessoa
mudar de pele. Àqueles que não sabiam dar bom uso a seus bens, a
Igreja e o bispo repetiam o ditado: “O que os santos não comeram
será comido pelos assírios”.31
Os filhos dos mártires eram as crianças privilegiadas da comu
nidade. Em Cartago, uma mulher acolheu espontaneamente e ado
tou o filho de Felicidade.32 Nada consta a respeito de Perpétua, mas
como sua família era rica, seu filho não ficou sob os cuidados da
comunidade. O jovem Orígenes, depois do martírio de Leônidas,
seu pai, foi também acolhido por uma mulher de Alexandria.33
Eusébio fala de um cristão da Palestina, chamado Severo, que cui
dava das viúvas e dos filhos dos mártires.
Em Pérgamo, na Ásia Menor, a multidão invocou os filhos para
dobrar a coragem da mãe, Agatônica:
"Tem piedade de ti e de teus filhos, como clama a multidão,
reforçou o procônsul.
— Meus filhos? Deus vela por eles!"34
Agatônica sabia que os irmãos e as irmãs na fé acolheríam seus
filhos.
As viúvas, associadas às crianças, punham à comunidade um
caso social muito diferente. Sua vida é alegre só nas operetas; a rea
lidade histórica é outra. Em Roma, morrendo o marido, a mulher
voltava a depender de sua família ou da família do marido.35 Sua
situação se tomava ainda mais incômoda quando nem uma nem a
outra eram cristãs. Além disso, as disposições jurídicas favoreciam
as crianças, não a viúva.
No mundo grego, em caso de viuvez, a lei e os costumes preconi
zavam segundas núpcias.36 A epístola a Timóteo se conforma com
esse uso recebido, quando aconselha: “Que as jovens viúvas se ca
sem!”37 Roma, porém, era menos favorável a novas núpcias; as
mulheres que permanecessem viúvas eram premiadas.38 Essa re
serva era apoiada entre os autores cristãos da época.39
A situação da viúva, precária quando ela tinha filhos pequenos,
agravava-se quando os filhos eram maiores, e os bens passavam
para as mãos deles; eles deveríam prover à subsistência e à moradia
136
dela, mas, segundo um provérbio que é a experiência dos séculos,
“é mais fácil uma mãe alimentar seis filhos do que seis filhos ali
mentar uma mãe”. Ricos ou pobres, raramente os filhos ajudavam
seus pais idosos. As viúvas de condição modesta eram, pois, mantidas
pela comunidade como o haviam sido no judaísmo.40
Sustentando essas mulheres, a Igreja exprimia, diante da dure
za da sociedade antiga, sua humanidade e seu senso social. Cartas e
escritos recomendavam com insistência aos pastores e às comuni
dades que velassem pelas viúvas:41 “É bom e útil visitar os órfãos e
as viúvas, especialmente aquelas que são pobres e que têm muitos
filhos”.42 As viúvas chegaram até a ocupar posição de honra na co
munidade. Policarpo chama-as "altar de Deus”,43 o que significa
que elas viviam das ofertas dos fiéis.
É difícil dizer quando as viúvas começaram a viver em comuni
dade, na casa de um cristão rico e sob a direção de uma dentre elas.
Esse modo de vida permitia às viúvas não se casar de novo e viver
em ascese de certa forma monástica.44
Deus em andrajos
No tempo do papa Comélio, a igreja de Roma sustentava “mil e
quinhentas viúvas e necessitados”.45 Os pobres eram a maioria nes
se número impressionante. O que era verdade de Roma era verdade
de todas as comunidades. Cada uma tinha seus pobres. Situação
que, mesmo na época dourada dos Antoninos, refletia as condições
econômicas de sociedade em que as disparidades eram flagrantes,
e os economicamente fracos eram numerosos, como em alguns
países da América Latina hoje.
As distribuições de trigo em Roma proviam ao essencial. Mas
esse benefício não se estendia às províncias. Aqui e ali apareciam filan
tropos, como o boticário que deixou 300 potes de droga e 60.000
sestércios para o fornecimento gratuito de remédios aos pobres de
sua cidade natal.46 Por mais louváveis que fossem, essas medidas
não passavam de gota d agua em um mar de necessidades.
Os mais atingidos pela situação social eram os doentes, os en
fermos, os necessitados, os desempregados, os idosos e especial
mente os escravos que não podiam mais trabalhar e os náufragos,
137
freqüentes nos portos, onde se concentravam as primeiras comuni
dades. Essa lista aumentava em tempos de más colheitas, de guerra
ou de calamidade.
Tratava-se principalmente de casos sociais, de pessoas sofridas,
sem família, deslocadas, aportadas em tal ou tal lugar, todas
mantidas pelos irmãos. A fraternidade tomava então um sentido e
uma responsabilidade concretos. Que adiantaria, como diz Tiago,47
desejar-lhes a paz, sem dar-lhes abrigo, comida e roupa?
Em função desse sofrimento humano, a Igreja pedia que fosse
escolhido um bispo que “amasse os pobres”:48 “Lembra-te dos po
bres, recomendava-lhe a Didascália, toma-o pela mão e alimenta-o”.49
Quando o bispo tinha fortuna pessoal, ela servia para prover às ne
cessidades maiores da comunidade. O diácono conhecia os casos
individuais, procurava os doentes, estudava as diferentes situações,
examinava os mais dignos de interesse e descobria os pobres enver
gonhados, que ocultavam suas necessidades.
Os pobres eram mais numerosos nas cidades do que nos cam
pos. Em Antioquia como em Roma, podiam representar um déci
mo da população. Na capital, para onde acabavam indo os estran
geiros de todo o Império bem como os camponeses arruinados, os
pobres viviam tradicionalmente de doações do Estado ou de parti
culares, das distribuições de trigo e do abastecimento público. A
caridade cristã tirou dos costumes do tempo os usos aceitos:50
espórtulas e refeições públicas, a fim de adaptar os recursos às ne
cessidades. De certa forma, a Igreja figurava como “Exército da
Salvação”. Um registro continha a lista das pessoas assistidas. A
acolhida dos estrangeiros e dos pobres pesava muito no orçamento.
As visitas domiciliares permitiam descobrir as situações mais
trágicas, principalmente os doentes, aos quais os diáconos levavam
o conforto da comunhão, porque os conheciam bem e muitas vezes
os sustentavam materialmente.51 No século V, o Testamento pedia
ao diácono que “procurasse nas hospedarias enfermos, pobres e
doentes abandonados”.52 No Oriente, como vimos, as diaconisas ou
as viúvas cuidavam das mulheres pobres e doentes.53
A manutenção dessas pessoas era encargo de todos. Os irmãos
não podiam deixar tudo aos ministros da caridade. Não bastava
que pagassem com seu dinheiro, deviam pagar também com a pró
pria pessoa e com o tempo disponível. Recebiam o aprendizado
138
desse trabalho durante o catecumenato, porque a fé lhes abria uma
verdadeira família, com suas alegrias e seus sofrimentos. Sabemos,
pela Tradição apostólica,54 que o examinador dos candidatos ao ba
tismo perguntava, entre outras coisas: “Honraram eles as viúvas?
Visitaram os doentes? Cumpriram todo tipo de boas obras?” O ca
tecismo era aprendido e experimentado na prática.
Caridade concreta essa, que se impunha mais porque ainda não
existiam hospitais. Os médicos podiam ser consultados habitualmente
pelos ricos. Se, desde muito, o Egito e a Grécia tinham médicos para
o povo, na Itália seu estabelecimento foi lento.53 Em Roma, no tem
po dos Antoninos, a maioria deles vinha da Grécia e da Ásia Menor.
Os irmãos e os sacerdotes médicos que conhecemos por epitáfios
tinham um campo imenso no qual exercer sua arte e sua assistência.
Em muitos casos, o diácono procurava encontrar família ou
particular que acolhesse um doente isolado e cuidasse dele. Em
Roma, os escravos enfermos muitas vezes eram abandonados na ilha
do Tibre e confiados ao deus Esculápio. Seu abandono era tal que o
imperador Cláudio obrigou os senhores a cuidar de seus escravos e
determinou que os escravos que sarassem ficassem livres. O senhor
que matasse um escravo doente, para não ter de cuidar dele, seria
perseguido por homicídio.56 Essa lei diz muito sobre a desumani
dade dos costumes romanos na época mais brilhante de sua civili
zação.57
139
com estrangeiros e ao sepultamento dos mortos.59 Essas duas coi
sas estavam unidas, porque os estrangeiros, longe de suas famílias
e de seus países, e às vezes sem parentes, não tinham quem cuidas
se de seus funerais.
A atitude cristã tocou a imaginação dos pagãos porque a Igreja
enterrava não só seus próprios mortos, mas também todos os ou
tros mortos sem sepultamento, vítimas de calamidades públicas e
de naufrágios.60 Essa era uma das obrigações do diácono: “Que ele
os vista e enfeite". "Se ele mora em cidade próxima do mar, percor
ra freqüentemente o litoral, a fim de recolher os que tiverem morrido
em naufrágios. Vista-os e os enterre”.61
A Antiguidade dava a maior importância ao sepultamento, por
que só ele propiciava o repouso e um lugar para o culto aos mortos.
Ainda hoje, os malgaxes dos altiplanos se arruinam literalmente para
sepultar seus antepassados; a vida dura por algum tempo, a morte é
para sempre, dizem eles. Geralmente a família se encarregava das
exéquias, mas os outros também deviam colaborar. Em Atenas, quem
encontrasse o corpo de um morto tinha a incumbência de enterrá-lo.
Foi o drama de Antígona. Seria impiedade deixar alguém sem sepul
tura, ainda que inimigo.62 O ódio não atravessou esse limiar.
Entre os cristãos, pobres e estrangeiros eram enterrados a
expensas da comunidade.63 “Quando um pobre deixa este mundo, e
um irmão fica sabendo, ele se encarrega do sepultamento daquele,
segundo seus meios".64 Tratava-se de enterrar, não de incinerar; es
ses dois modos eram praticados em Roma. Os cristãos evitaram a
cremação, seja por fidelidade aos usos bíblicos, seja para imitar o
sepultamento de Cristo.
Em Roma, as famílias ricas abriam seus jazigos aos pobres da
comunidade.63 Assim, a cripta de Lucino remonta ao século I. As
catacumbas eram ocupadas por cristãos de origem modesta, em
parte por descendentes de libertos, beneficiados pela concessão fu
nerária. Quando o terreno na superfície já não era suficiente, esca
vavam-se galerias subterrâneas. Até na morte, os cristãos, patrícios
ou escravos, afirmavam sua comunhão e sua fraternidade em uma
mesma esperança.
O castigo supremo que os pagãos infligiam aos mártires consis
tia em deixá-los sem sepultura. Em Lião, atiravam os corpos deles
às aves de rapina, mantendo-os sob vigilância militar; embora pa-
140
gando, os cristãos não conseguiam livrá-los dessa ignomínia.66 A
narrativa dá o motivo: “Julgavam que assim podiam triunfar de Deus
e privar suas vítimas da possibilidade da ressurreição. Vejamos, di
ziam, se eles ressuscitarão, se seu Deus os socorrerá e os arrancará
de nossas mãos".
141
A narrativa mais comovente refere-se ao jovem Orígenes, então
com dezoito anos. Durante a perseguição de 203, ele se consagrou
literalmente ao serviço dos mártires.
142
cujo sacrifício era honra para todos.81 Nas diversas comunidades,
os cristãos faziam cópias dessas cartas,82 porque se tratava de uma
história e de uma glória de família.
143
Mais prosaicamente, outros irmãos estavam na prisão por não
terem pago suas dívidas ou seus impostos.87 Na época, o direito
penal era intransigente. Calixto, futuro papa, estava na Sardenha,
condenado às minas, junto com irmãos cristãos, por malversações
financeiras. É a razão pela qual Calixto não figurava na lista de
Vítor. Ele foi, contudo, favorecido pela graça comum. Jacinto
parlamentou bem, e o governador conhecia suas relações na corte.
Os irmãos condenados à prisão e às minas eram carga suple
mentar para a comunidade, que “penava para economizar o dinhei
ro necessário para sustentá-los e eventualmente libertá-los".88 Du
rante a perseguição de Diocleciano, os cristãos condenados às mi
nhas de cobre de Faeno, quarenta quilômetros ao sul do mar Mor
to, eram tão numerosos que formaram uma comunidade.89
Outros cristãos eram vítimas de piratas na África e nas costas
do Mediterrâneo. Assim, uma geração mais tarde, no tempo de
Cipriano, a comunidade de Cartago reuniu rapidamente 100.000
sestércios, ou seja, 26.000 francos-ouro, para o resgate das vítimas.90
Desde as origens, a Igreja encorajava os senhores cristãos a li
bertar seus escravos, sem gravar a caixa comum. Inácio de Antioquia
observava: “Que os escravos não sejam muito impacientes em ser
libertados a expensas da comunidade; isso seria mostrar-se escra
vos de seus próprios desejos”.91 Para ele, como para o apóstolo Pau
lo,92 a verdadeira liberdade era a interior. "Se sou escravo, suporto-
o. Se sou livre, não me gabo".93
As concepções marxistas de alienação, especialmente quando
se tratava de condição do escravo, encontravam-se entre os gnósticos,
não na Grande Igreja;94 ela se preocupava com uma visão mais
teologal do que sociológica do homem e estava certa de que a
fraternidade cristã já havia rompido as barreiras mais eficazmente
do que um nivelamento econômico ou social.95 A Igreja tinha tam
bém consciência de que as condições deste mundo passam e de que
sua tarefa principal era preparar o reino vindouro.
Os problemas da assistência não se punham só em função da
igreja local. Toda comunidade, por definição, era aberta e consciente
de pertencer à Igreja universal, de ser, portanto, solidária das ne
cessidades e das situações dos irmãos que "peregrinavam” em ou
tros lugares. A fraternidade entre as igrejas não se exprimia só pela
acolhida e pela troca de cartas de cidade a cidade, de país a país. O
144
apóstolo Paulo já havia forjado a cadeia de solidariedade, realizando
a coleta nas igrejas da missão em favor da Igreja-mãe de Jerusalém.
Desde o tempo de Domiciano, quando uma comunidade era
provada, pilhada, perseguida, as outras vinham em seu socorro.96
Assim, exprimia-se no cotidiano a consciência da catolicidade.
Nenhuma igreja igualava, na caridade, a de Roma, cuja fama
era legendária. Inácio a chama nobremente de “presidente da cari
dade”, o que se traduz como: aquela que, pela caridade, sempre
mereceu o primeiro lugar.97 O elogio de Dionísio de Corinto não é
menos entusiasta:
Os recursos da comunidade
Roma batia o recorde das pessoas assistidas e o dos recursos. A
gestão desses bens, confiada a um diácono e logo ao arcediago, tor
nava-o a primeira pessoa depois do bispo e seu sucessor normal. Os
recursos romanos representaram em pouco tempo soma igual à de
uma grande paróquia de Paris. Roma não era, porém, toda a cris-
tandade. Em 253, um apelo à comunidade de Cartago em favor dos
irmãos da Numídia reuniu a bela soma de 100.000 sestércios.
Cada comunidade, como toda associação profissional, tinha sua
caixa, alimentada pelas doações dos fiéis. Desde o tempo de são
Paulo os cristãos levavam oferta para a reunião dominical.101 Inicial
mente essas doações eram postas sobre a mesa da celebração.102 As
145
ofertas in natura, vestes e alimentos, concretizam o compromisso
do cristão de ajudar a comunidade em suas necessidades.
Justino de Roma, em sua primeira Apologia, descreve duas ve
zes as ofertas realizadas durante a celebração dominical.103
Aqueles que têm bens vêm em socorro dos que estão em ne
cessidade, e nós nos prestamos assistência mutuamente. Aque
les que estão na abundância e querem dar, dão livremente, cada
um o que quer. O que é recolhido é entregue ao presidente; ele
socorre os órfãos, as viúvas, os doentes, os indigentes, os prisio
neiros e os hóspedes estrangeiros; em uma palavra, todos os
necessitados.104
Como judeus e pagãos, os cristãos levavam oferendas ao culto,
não para “serem consumidas inutilmente pelo fogo, como faziam os
outros105 — Deus não precisa delas —, mas para empregá-las em bene
fício dos mais deserdados”. Purificação e espiritualização do sacrifício
cristão permitem compreender que as ofertas respondem à pedago
gia de Deus, que ensina ao homem, junto com o universal retomo da
criação a ele, a partilha fraterna dos bens dados a todos e para todos.
Parece que, no século II, a comunidade dispunha de duas espé
cies de contribuições: as esmolas espontâneas em dinheiro, postas
em um cofre,106 comparadas por Tertuliano às contribuições men
sais em uso nas associações profissionais, e as ofertas em gêneros,
reunidas pelos diáconos; uma parte do pão e do vinho era tirada para
a celebração, e o resto era destinado aos ministros do culto e aos
pobres. Eis o inventário da rouparia de Cirta (Constantina), provida
pelas doações, em 303: 82 túnicas de mulher, 38 véus, 16 túnicas de
homem, 13 pares de calçados de homem e 47 de mulher.107
O traço característico das ofertas em dinheiro ou em gêneros,
semanais ou mensais, era sua total espontaneidade. Cada um dava
livremente. Alguns cristãos davam até do que lhes era necessário.108
Os mais pobres jejuavam, a fim de levar o fruto do seu jejum e não
ir de mãos vazias.109 Todos queriam afirmar a fraternidade, que ti
nha necessidade de sinais e de partilha para se exprimir. Os cristãos
experimentavam o sentimento de haver ultrapassado e vencido a
concepção legalista e institucional do Antigo Testamento. A era da
servidão fora sucedida pela era do homem novo, que não oferecia
sob a constrição da lei, mas levado pelo fervor de sua gratidão filial.
146
No século III, a Igreja, mais numerosa e menos generosa, viu-
se forçada a voltar às taxas judaicas das primícias e do dízimo.110
Se Tertuliano compara as ofertas levadas às reuniões cristãs
com as cotizações das associações pagãs, é para ressaltar os con
trastes.111 As associações tinham uma organização, uma caixa e um
lugar de reunião, às vezes uma capela dedicada a algum deus prote
tor;112 seus membros se reuniam para fugir ao isolamento ou para
travar relações; sua finalidade era lucrativa e interessada.113
Os cristãos, ao contrário, cultivavam a gratuidade. O direito de
entrada muitas vezes considerável nas associações, não existia en
tre os cristãos: “As coisas de Deus não são adquiridas mediante di
nheiro. A religião cristã não está em leilão!”114 As cotizações eram
livres. Entre os pagãos, o dinheiro aproximava os interesses; aqui
servia “para dar pão aos pobres, enterrá-los, educar os órfãos dos
dois sexos e para socorrer os velhos”.115 Isso as associações pagãs
nunca realizaram; essa iniciativa é do cristianismo.
A comunidade recebia às vezes ofertas excepcionais. Alguns
convertidos realizavam doações por ocasião de seu batismo,116 mas
a Tradição apostólica111 reduziu a proporções modestas os presen
tes dados ao batizante, porque o batismo não pode ser comprado.
Os grandes acontecimentos da vida, por exemplo, um casamento,
eram também marcados por oferta, no momento da celebração
x • 118
eucanstica.
As necessidades excepcionais, como perseguições e calamida
des, provocavam movimento de solidariedade e generosidade es
pontânea. A gesta dos mártires contém muitos exemplos principal
mente de cristãs ricas, que despenderam sua fortuna para socorrer
os confessores da fé. Em 253, os bispos da Numídia apelaram para
Cipriano, de Cartago, a fim de poderem resgatar os cristãos, as vir
gens e as crianças raptados pelos berberes.119
O valor dos recursos era apenas o da fraternidade, que eles
exprimiam. A Igreja recusava qualquer oferta que fosse produto
de ganho ou de profissão ilícitos.120 Ao axioma segundo o qual o
dinheiro não tem odor, os cristãos retorquiam: “É preferível mor
rer na miséria a aceitar as doações dos ímpios e dos pecadores!”
Foi gesto de grandeza o dos cristãos de Roma ao restituírem a
Marcião, reincidente na heresia, o dinheiro que ele dera à comu
nidade.
147
As iniciativas da caridade e da equalização entre os membros
de cada comunidade podem dar a impressão da solução "artesanal”
das desigualdades e dos conflitos. Seu valor reside principalmente
em sua motivação. Para a antiguidade cristã, evangelização e dia-
conia (serviço) eram inseparáveis.121 O culto de Deus bem compre
endido exigia o serviço ao homem concreto, na totalidade de seu
ser, de suas necessidades e de suas aspirações. “Imitai a eqüidade
de Deus, e ninguém será pobre’’,122 diz um texto cristão da época.
A partilha encontrava sua motivação na assembléia eucarística,
na qual ricos e pobres, senhores e escravos, devedores de modo igual,
“mendigos à porta de Deus”,123 eram agraciados e saciados. A Igreja
era a eclusa de Deus. "Verdadeiramente rico é aquele que vem em
socorro dos outros e imita Deus, que dá o que tem; foi ele que nos
deu tudo o que temos. Lembrai-vos, ó ricos, que recebestes mais
que o necessário, a fim de reparti-lo com os necessitados”.124
Aquele que oferece oferece o que recebeu, aquele que recebe
recebe da munificência de Deus. Longe de gloriar-se, o rico toma
consciência que também ele é devedor; e o pobre e o desprovido
aprendem, na economia da salvação, que Deus olha pelos mais aban
donados. Em vez de dar a aparecer as diferenças, a oferta assim
compreendida é o cimento que sela as "pedras vivas”, a Igreja, e
toma-a a epifania de Deus.
148
CAPÍTULO III
RETRATOS DE FAMÍLIA
149
sas. Seu desejo de martírio não o impediu de estigmatizar a cruel
dade imperial - foram mandados “dez leopardos” para vigiá-lo — e
as durezas que ele sofreu: sua benevolência era paga com o mal.
Durante a viagem, expressou sua gratidão às comunidades que o
saudaram; depois, dirigiu-se a Roma, aonde desejava chegar rapi
damente. Pediu aos romanos que não fizessem nada para poupar-
lhe o martírio: “Eu sou o trigo de Deus. Devo ser moído pelos den
tes das feras, a fim de tomar-me pão imaculado de Cristo".2
Conhecemos o homem só pelas suas sete cartas, os únicos do
cumentos que nos permitem penetrar no “jardim fechado de sua
personalidade”. Nelas “o estilo é o homem”. Que homem e que co
ração! Através das frases curtas e densas, de estilo sincopado e duro,
corre um rio de fogo. Nenhuma ênfase, nenhuma literatura; apenas
um homem excepcional, ardente, apaixonado, heróico com modés
tia, benevolente com lucidez, com dom inato de simpatia, como o
apóstolo Paulo, e doutrina segura, clara, apoiando ética exigente.
Inácio tinha a percepção do homem e o respeito por cada um,
ainda que fosse herege. A dificuldade não era amá-los todos, mas
amar cada um, e em primeiro lugar o pequeno, o fraco, o escravo,
aquele que nos fere ou nos põe a sofrer, como ele escreveu e reco
mendou a Policarpo.3 Sabia amar os homens sem demagogia e cor
rigi-los sem humilhá-los. Aplicava com predileção a Cristo4 a ima
gem do médico; ela convém perfeitamente a ele próprio. Ele servia
à verdade da fé quando ela era desconfortável e podia atrair sobre
ele incompreensões e até hostilidade. A afeição que suscitava era,
em primeiro lugar, uma homenagem. “Essa bigorna sob a marreta”
não era homem de concessões.
Conseguiu o domínio sobre si próprio à força de paciência —
palavra que lhe era cara e o caracterizava. Esse fogoso se tomou
brando, de tanto triunfar da irritação, que ele reprovava em si pró
prio. Como ele se conhecia bem quando escreveu: “Imponho a mim
mesmo uma medida, para não me perder pela minha jactância”.5 À
jactância opôs a humildade; às blasfêmias, a invocação; aos erros, a
firmeza da fé, e à arrogância, uma urbanidade sem falhas.
O amadurecimento mudou sua lucidez em vigilância, sua força
em persuasão, sua caridade em delicadeza. “Não vos dou ordens”,6
escreveu. Preferia convencer. Não agia com precipitação e sabia espe
rar com paciência. Nada lhe escapou na comunidade de Esmima.
150
Quando passou por ela, não fez nenhuma crítica; contentou-se com
observar. Aproveitou sua carta de agradecimento7 para traduzir suas
observações em humildes sugestões. Depois de sua partida definiti
va, sua presença e seu olhar não humilhariam ninguém.
A responsabilidade pelos outros não o deixava perder a lucidez
sobre si próprio. Ele se conhecia. Sabia-se acessível à lisonja e leva
do à irritação. Na via triunfal que o conduzia a Roma, cercado de
honras, confessava com humildade: "Estou em perigo”.8 As demons
trações de estima não o perturbavam, mas despertavam sua
circunspecção.
De todas as cartas que escreveu, a que enviou aos romanos é a
que mais fielmente traduz a paixão mística que o abrasava. As pala
vras se atropelam para exprimir o frêmito e o entusiasmo que o sacu
diam. A chama provocava a linguagem e a tomava incandescente.
Que importavam as palavras? Para ele o que contava era unir-se a
seu Cristo e Deus. “Quão glorioso é ser um sol poente, longe do
mundo, na direção de Deus. Possa eu levantar-me em sua presen
ça”.9 Para Inácio, não se tratava simplesmente da espera de uma fé
abstrata, mas também de uma paixão que lhe apertava a garganta;
de um amor que o devorava, e de um ardor que não se podia com
parar com os de nossos corações de carne. “Em mim não há mais
fogo para a matéria, mas só uma água viva, que murmura dentro de
mim e me diz: Vem para o Pai”.10
Quem lê a carta aos romanos sem idéias preconcebidas encon
tra nela um dos testemunhos mais comoventes da fé, o grito do
coração que não pode enganar nem enganar-se, que comove por
que é verdadeiro. À primeira vista, o homem nos parece de outra
época. Basta-nos sacudir um pouco as cinzas; essas páginas conser
vam o fogo que as queimava.
O filósofo Justino
De todos os filósofos cristãos do século II, Justino é, sem dúvi
da, o que nos toca mais profundamente. Esse leigo, esse intelectual
ilustrou o diálogo que se iniciava entre a fé e a filosofia, entre cris
tãos e judeus, entre o Oriente, onde ele nascera, e o Ocidente, onde
abriu uma escola (em Roma), depois de muitas etapas.
151
Sua vida foi uma longa procura da verdade. De sua obra, redigida
com rudeza e sem arte, desprende-se testemunho cujo valor cres
ceu com os séculos. Para esse filósofo, o cristianismo era, em pri
meiro lugar, não uma doutrina, nem um sistema, mas uma pessoa,
o Verbo encarnado e crucificado em Jesus, que lhe revelou o misté
rio de Deus.
A filosofia não foi, para ele, curiosidade do espírito, mas procu
ra da sabedoria. Ele havia pesquisado, praticado e amado o pensa
mento dos filósofos de todas as escolas; conhecia-o por dentro, ten
do sempre procurado a verdade para vivê-la. Havia viajado, interro
gado e sofrido para encontrá-la. É por isso, sem dúvida, que desco
brimos atrás de sua descoberta um despojamento que valoriza su
mamente seu testemunho. Esse filósofo do ano 150 está mais próxi
mo de nós do que muitos pensadores modernos.
Justino nasceu em Nablus, cidade romana e pagã, construída
no local da antiga Sicar, não longe do poço de Jacó, onde Jesus
anunciou o culto novo à samaritana. Nablus era cidade nova, na
qual floresciam a romãzeira e o limoeiro, situada entre duas coli
nas e na metade do caminho que vai da fértil Galiléia a Jerusalém.
Os pais de Justino eram colonos abastados, talvez daqueles ve
teranos que haviam recebido terras do Império, o que explica a re
tidão de caráter do filósofo, seu gosto pela exatidão histórica e as
lacunas de sua argumentação. Ele não tinha a flexibilidade nem a
dialética sutil de um heleno. Vivera em contato com judeus e sama-
ritanos.
Natureza nobre, fascinado pelo absoluto, ainda jovem, teve ele
gosto pela filosofia, no sentido que lhe era dado na época: não espe
culação de diletante, mas procura da sabedoria que leva a Deus. Ela
o conduziu, de etapa em etapa, até o limiar da fé. Ele próprio nos
conta, no Diálogo com o judeu Trifão,11 o longo itinerário de sua
procura, sem que se possa distinguir entre o artifício literário e a
autobiografia. Em Nablus, seguiu as lições de um estóico, depois,
de um discípulo de Aristóteles, que deixou logo por um seguidor de
Platão. Com candura esperava ele que a filosofia de Platão lhe per
mitisse "ver Deus imediatamente".
Retirado na solidão, Justino errava pelas praias, meditando
sobre a visão de Deus, sem que sua inquietação se acalmasse, quan
do encontrou um velho misterioso, o qual dissipou suas ilusões.
152
Mostrou-lhe que a alma humana não pode atingir Deus por seus
próprios meios; só o cristianismo era a filosofia verdadeira, a que
levava a termo todas as verdades parciais: “Platão preparando para
o cristianismo”, disse Pascal.
Instante inesquecível, que marca uma data na história cristã e
que Péguy se comprazerá em lembrar, aquele em que se encontram a
alma platônica e a alma cristã. A Igreja acolheu Justino e, com ele,
Platão. Tomando-se cristão, pelo ano 130, o filósofo, longe de aban
donar a filosofia, afirma ter encontrado no cristianismo a única filo
sofia segura e que satisfazia todos os seus desejos. Andava sempre
com o manto dos filósofos, que, para ele, era título de nobreza.
Justino, que sabia ver o que havia de verdade em todos os siste
mas, dizia que os filósofos eram cristãos sem o saber. Justificava
essa afirmação com o argumento tirado da apologética judaica, se
gundo a qual os pensadores deviam o melhor de sua doutrina aos
livros de Moisés. Para ele, o Verbo de Deus ilumina todos os ho
mens, o que explica as parcelas de verdade que se encontram nos
filósofos.12 Os cristãos não precisam invejá-los, porque têm o Verbo
de Deus, o qual guia não só a história de Israel, mas também toda
procura sincera de Deus. Essa visão generosa da história, apesar da
inabilidade de algumas formulações, encerra intuição de gênio, re
tomada depois de Irineu de Lião, de santo Agostinho a são Boaven-
tura e, mais perto de nós, por Maurice Blondel. Ela está muito pró
xima de nossa problemática de hoje.
Justino não era um literato nem um joalheiro da língua, preo-
cupava-se apenas com a doutrina e a autenticidade do testemunho.
O homem nos impressiona mais que sua obra, a novidade de seu
esforço teológico vale mais que sua criação. Atrás de sua tentativa,
encontramos o testemunho de um filósofo empenhado e a tradução
de uma descoberta e de uma conversão. Os argumentos que aduz
têm uma história, a sua. As tentações contra as quais previne, ele as
conheceu. Para quem consente em seguir Justino até aí, o testemu
nho de sua obra conserva todo o seu valor.
“Ninguém acreditou em Sócrates ao ponto de morrer pelo que
ele ensinou. Mas por Cristo, artesãos e até ignorantes desprezaram
o medo e a morte”.13 Essas nobres palavras, que poderiamos crer de
Pascal, foram dirigidas por Justino ao senado de Roma. E ele tam
bém aceita morrer pela fé que recebera e transmitira. Na hora de
153
seu martírio, esse filósofo cristão não estava sozinho, mas cercado
de seus discípulos; os atos nos citam seis.14 Essa presença, essa fi
delidade até na morte eram a homenagem mais comovente que se
podería prestar a esse mestre de sabedoria.
Por isso nesse homem que viveu há dezoito séculos distingui-
mos o eco de nossas procuras, de nossas objeções e de nossas certe
zas. Por sua abertura de alma, por sua vontade de diálogo e por sua
capacidade de acolher, ele é nosso contemporâneo.
155
Ela voltou para a atmosfera irrespirável do cárcere. A presença
dos irmãos e sua delicadeza sustentavam o mártir. O descanso du
rou pouco. Novos suplícios esperavam os confessores da fé. Blandina
foi suspensa em um poste, sobre um estrado, exposta nua aos olha
res dos espectadores, mais rapaces que as feras, para ser a presa
delas.
Os irmãos só tinham olhos para ela. Um olhar lançado sobre
ela enchia-os de orgulho e coragem. Miúda, frágil, desprezada, ela
era não só o símbolo da coragem, mas também como que a presen
ça de Cristo no meio deles. "Os irmãos, conta a carta, pensavam ver
em sua irmã o Cristo crucificado por eles’’.17 Nenhuma fera tocou
Blandina, como se fossem mais capazes de humanidade que os ho
mens. A populaça não teve nenhum movimento de piedade.
As festas duraram vários dias. Aos jogos dos gladiadores e à
caça ao homem, acossado por causa de sua fé, sucediam-se os con
cursos de eloqüência, em línguas grega e latina.18 Todas as classes
demonstravam seu prazer, dos mais refinados aos camponeses e
aos proletários. Todos os dias, os combates de gladiadores eram
seguidos dos suplícios dos cristãos, introduzidos dois a dois, como
os gradiadores, espetáculo barato oferecido ao povo.
Blandina e Pôntico foram reservados para o último dia. Teste
munhas das provações de seus irmãos e irmãs, nada os abalava. A
multidão, tomada de histeria coletiva — como nos exemplos recen
tes que a história nos forneceu —, irritada por tanta resistência,
não ouviu nem o pudor nem a piedade.
A adolescente Blandina entregou sua alma no meio das tortu
ras. Ela foi a última no último dia das festas, oferecendo-se por si
mesma aos tormentos. Primeiro, a flagelação, que dilacerou seus
ombros; em seguida, exposta às feras, foi apenas mordida. Depois a
cadeira de fogo. Finalmente, encerrada em uma rede, foi atirada
para o ar por um touro enfurecido, caindo muito ferida. Como que
insensível, continuou ela o entretenimento com aquele que seu co
ração havia escolhido e que a esperava. Os carrascos, cansados,
degolaram-na. Os pagãos, talvez envergonhados de sua barbárie,
diziam: “Nunca vimos mulher sofrer tanto”.19
“A serva Blandina mostrou que havia sido operada uma revolu
ção. A verdadeira emancipação do escravo, a emancipação pelo
heroísmo, em grande parte, foi obra sua”.20 Ela é a atração da nar-
156
rativa. Os martirológios antigos, pondo seu nome no começo da
lista, expressam a mesma homenagem. Sua coragem e seu martírio
realçam a condição da mulher e a do escravo. Testemunham a no
breza do coração.
Longe de sufocar a nova religião, a perseguição de 177 a propa
gou por todo o solo gaulês e fora dele. O artífice dessa ação
evangelizadora, herdeiro do velho bispo Potino, morto na tormen
ta, foi Irineu.
157
tempo que a alma, formando uma só coisa com ela. Posso dizer-
te ainda o lugar em que se sentava, para falar conosco, o bem-
aventurado Policarpo, suas idas e vindas, seu modo de vida, sua
aparência, as palavras que dirigia à multidão, como contava suas
relações com João e com os outros que tinham visto o Senhor,
como referia suas palavras, o que ele havia aprendido a respeito
do Senhor, de seus milagres e de seu ensinamento, em uma pala
vra, como Policarpo recebeu a tradição daqueles que tinham vis
to com seus olhos o Verbo da vida. Em tudo o que contava, esta
va de acordo com as Escrituras. Eu ouvia isso atentamente, gra
ças ao favor que Deus quis fazer-me, anotava-o, sem recorrer ao
papel, e, pela graça de Deus, não cesso de ruminá-lo fielmente.
158
Irineu não só era de grande probidade intelectual — estudava
os textos dos gnósticos — como também respeitava a todos, ainda
que adversários. Na refutação, do gnosticismo, não deixava interfe
rir nem paixão, nem agressividade. Quando muito, punha uma pi
tada de humor, que respirava saúde e equilíbrio. Sabia distinguir o
homem de seu erro. Até na controvérsia continuava pastor: os
gnósticos também eram suas ovelhas. Não escreveu ele: “Não há
Deus sem bondade”? Do pastor tinha ele a riqueza doutrinai, o sen
so da medida e a atenção às pessoas. Alguma coisa de joanino se
desprendia dele: um calor, uma paixão contida, um fervor que se
exprimia menos pela eloqüência do que pela ação, o senso do es
sencial e a perspicácia, que descobria a gravidade das primeiras
fendas no edifício.
Irineu escrevia com simplicidade e correção. Às vezes, tomado
pela emoção, seu tom se elevava até a eloqüência. Eis como termi
na o comentário do capítulo quarto dos Atos dos Apóstolos:
Eis a voz da Igreja, voz da qual a Igreja toda recebeu sua
origem; eis a voz da metrópole dos cidadãos da Nova Aliança;
eis as vozes dos apóstolos, eis a voz dos discípulos do Senhor,
desses homens verdadeiramente perfeitos, que receberam a
perfeição do Espírito.23
O homem interior é mais difícil de perceber. Ele era daquela
Ásia na qual floresciam os carismas do Espírito. Como bispo, viveu
no clima espiritual no qual a perspectiva do martírio favorecia a
exaltação mística. Conheceu os rostos de Potino, Alexandre e
Blandina, que haviam confessado a fé em Lião. Foi-lhe atribuída a
carta aos irmãos da Frigia, contando a epopéia maravilhosa desses
mártires.24 Ele tinha tendência para as manifestações extraordiná
rias do Espírito. Esse cristão ponderado era milenarista: acreditava
no reino próximo do Senhor, o qual duraria mil anos.
No Adversus haereses, a oração aflora no texto.25 Ela é como o
jorrar espontâneo de sua alma, como uma confidência que lhe es
capa. Sua discrição dissimula a brasa sob a cinza. Seus arroubos
místicos jorram de uma fé robusta, que se exprime diante de Deus.
A provação e a ameaça se distanciam quando ele se volta para o
Deus de sua vida. Seu livro de refutação foi escrito na presença de
seu Senhor como uma profissão de fé no Deus de Abraão e no Deus
159
de Jesus Cristo. Ele se descreveu quando definiu o cristão como “a
glória viva de Deus”.26
Hoje santo Irineu volta a ser atual. E é de justiça. São poucos
os escritores dos primeiros séculos cristãos que envelheceram me
nos e cujas qualidades são mais realçadas pelo tempo. Não é ele
como a ânfora da qual ele fala, impregnada do perfume que contém?
Poucos teólogos, mesmo de data mais recente, esclarecem melhor os
problemas maiores que nosso tempo submete a nossa reflexão. Não
que ele se preocupasse com responder a eles, mas, sim, que seu pen
samento estimula nossa reflexão e traça uma linha.
Seria fácil multiplicar os exemplos — quer da teologia da histó
ria, quer da antropologia cristã — para demonstrarmos a riqueza
de seu pensamento e as perspectivas que ele abre à reflexão. As
idéias que defendeu impuseram-se a toda a Igreja. Seus pontos de
vista sobre a história figuram como antecipação.
O que impressiona em Irineu, como, mais perto de nós, em
Newman, é a unidade conseguida entre a pessoa e a doutrina. O que
reduz é a qualidade humana de sua fé e sua caridade com o herege,
que ele procura não tanto convencer de erro quanto reconduzir à
verdade. Ele é também o mestre do diálogo ecumênico, em sua au
tenticidade.
Irineu é, ao mesmo tempo, profeta do passado e profeta do
futuro. O enraizamento na verdade recebida permitiu-lhe todas as
audácias e produziu as intuições teológicas das quais ainda vive
mos. Para nosso tempo, que põe tudo novamente em questão, sen
sível ao que é autêntico e soa como verdadeiro, ele é, talvez acima
de tudo, o profeta do presente.
160
Funcionários da África, na cidade de Tuburbo (hoje Teburba),
quarenta e quatro quilômetros a oeste de Cartago, prenderam al
guns cristãos, acusados de haverem violado o edito imperial. Eram
todos jovens, como a própria comunidade; vários ainda eram
catecúmenos. A jovem igreja os recrutara em meios muito diferen
tes: Felicidade e Revocato eram de condição humilde; Úrbia Perpé
tua pertencia a uma das grandes famílias da cidade.
Os pais de Perpétua tinham-lhe dado formação brilhante. Du
rante o processo, seu pai não ocultou que ela sempre fora sua prefe
rida; ela era sua única filha. Toda a cidade ainda falava do casa
mento brilhante que a ligara à aristocracia local. Curiosamente os
Atos nunca falam de seu marido.
Na prisão, sem dúvida vigiados na casa de um magistrado, os
acusados, com a recepção do batismo, agravam seu caso. A jovem
mulher, que podería ser tida como exaltada e dada ao maravilhoso,
anota simplesmente: “O Espírito Santo me inspirou que nada pe
disse à água santa, a não ser a força de resistir em minha carne”.28
Estamos longe da arrogância montanista.
Uma vez batizados, os detentos caem sob a jurisdição pro-
consular e se vêem apanhados em processo capital. Saturo, o evan-
gelizador do grupo, denuncia-se e se junta a ele, para partilhar de
sua sorte como eles tinham partilhado de sua fé. São enviados to
dos a Cartago, a uma prisão anexa ao palácio proconsular, nas encos
tas de Birsa. Temos o diário do cativeiro de Perpétua, no qual a
narração dos acontecimentos e o registro das impressões pessoais
mostra sua personalidade em alto relevo.
Ela era jovem e bela; sua nobreza natural inspirava respeito,
antes da admiração. Até na arena, seu olhar "forçava os espectado
res a baixar os olhos”.29 Temperamento jovial, natureza sensível e
afetuosa, animadora de seu meio, ela era delicada e risonha: “Fui
sempre alegre, registra ela. Serei mais alegre ainda na outra vida".30
Perpétua nascera para a felicidade, para a alegria de viver e para
comunicar sua alegria. Mas era capaz também de decisões heróicas
e de firmeza irreversível, quando a fidelidade a Deus a opunha à
sua família.
Apenas batizada, ela já aspira ao martírio. Todos os seus paren
tes se põem contra sua resolução: sua mãe, seu irmão, principal
mente seu pai, pagão inveterado, e o pequeno ser que ainda não
161
falava, mas cuja existência deveria detê-la, que ela amamentou até
o fim e que iluminou as longas jornadas de seu cativeiro.
A prisão expôs a cruel provação sua sensibilidade de mulher
que conhecera o luxo. Ela anota em seu diário, no primeiro dia:
“Dia doloroso”.31 Sofre com o calor sufocante, com os odores acres
e com a promiscuidade da prisão. Ademais, cristãos e cristãs são
importunados pelos soldados, que procuram extorquir-lhes dinhei
ro. “Mas, Perpétua,32 acima de tudo eu era devorada pela inquieta
ção, por causa de meu filho”.
Depois de alguns dias, escreve ela, "a prisão se tomou repenti
namente para mim como um palácio, e eu me encontrava melhor
do que em qualquer outro lugar”.33 Os diáconos da comunidade de
Cartago levavam ajuda; chegaram a dar dinheiro aos carcereiros
para conseguirem abrandamentos. Os parentes de Perpétua iam vê-
la; o mais importante é que lhe levaram seu filho, que ela continua
va a amamentar regularmente.
Generosa até o heroísmo, sua firmeza não diminuiu sua sensi
bilidade, muito ao contrário. Ela continuou a amar com a mesma
espontaneidade, com a mesma afeição tema os seus, que ela via
sofrer e que queria socorrer. Sofrer não é nada, mas fazer sofrer as
pessoas amadas é um suplício. Sua fé não mudou seu coração, mas
o enriqueceu. Se ela se desolava, vendo sua família triste e abatida,
consolava-se, pensando que os seus acabariam compreendendo sua
decisão e compartilhando de sua esperança. Um de seus irmãos já
era catecúmeno. Não obstante, permaneceu dividida entre sua pie
dade filial, seu amor maternal e seu desejo de martírio, que sua fé
permitira florescer em seu coração. Ela não menciona seu marido
nem uma vez.
Na prisão, o primeiro pensamento foi para o filho. Depois que
pôde recebê-lo e conservá-lo consigo, sua alegria chegou ao auge. O
amor materno era o ponto vulnerável desse grande coração tomado
heróico pelo poder da graça. E é por aí que os seus atacariam sua
resolução. "Olha para teu filho, que não poderá viver sem ti”,34 ob
jeta-lhe seu pai. A cena se repete em pleno tribunal. “Meu pai, conta
Perpétua, apareceu imediatamente com meu filho; puxou-me de
lado e me disse em tom suplicante: 'Tem piedade de teu filho”'. O
magistrado, visivelmente comovido, mostrou-se paternal e a exor
tou: “Poupa teu filho”. A jovem mulher permaneceu inflexível.35
162
De volta à prisão, ela pensa no filho; pede ao diácono que o leve
a ela. “Mas meu pai, anota ela, recusou-se a entregá-lo. Pela vonta
de de Deus, meu filho não pediu mais os seios, e meu leite desapa
receu. Assim, cessaram as inquietações a respeito de meu filho e as
dores de meus seios”.36 Ela foi mulher e mãe até nas situações mais
heróicas. Deus parecia vir em socorro da mãe, para que ela vences
se sua sensibilidade materna.
A luta de Perpétua com seu pai não foi menos dramática. Ela o
amava e se sabia amada por ele. Esse notável de Tuburbo se sentia
ofendido em sua honorabilidade e ferido em sua ternura pela reso
lução de sua filha, que ele tomava por obstinação e loucura.
Sua ofensiva começou desde a prisão preventiva, em Tuburbo.
Perpétua escreve:
Em sua ternura ele se esforçava para abalar minha fé.
“Pai, disse-lhe eu, vês aquele vaso, aquela bilha e os outros
objetos?
— Vejo-os, disse ele.
— Pode-se dar a eles nome diferente do que eles têm?
— Não, respondeu ele.
— Eu também só posso ter meu nome verdadeiro: cristã”.37
O pai não se deu por vencido. Jogou com todos os sentimentos,
ora áspero, ora temo, irritado ou desesperado. Perpétua ficou tão
esgotada que “deu graças a Deus e alegrou-se com sua ausência”,38
que durou alguns dias.
Na prisão de Cartago, não tendo mais argumentos, o pai se tor
nou patético. Apelou à ternura e às recordações de família:
Minha filha, tem piedade de meus cabelos brancos. Tem pie
dade de teu pai, se ainda sou digno de que me chames de pai.
Se te criei com minhas mãos até a flor da idade, se te preferi a
teus irmãos, não me entregues ao riso dos homens. Pensa em
teus irmãos, pensa em tua mãe e em tua irmã, pensa em teu
filho, que não poderá viver sem ti. Volta atrás, não arruines tua
família. Se fores condenada, ninguém de nós poderá mais falar
com homem livre.39
O infeliz pai atirou-se aos pés da filha e cobriu suas mãos de
beijos. A jovem sentiu um calafrio, mas não cedeu. O pai a deixou
desesperado.
163
A mesma cena se repetiu alguns dias depois, durante o interro
gatório. Graças às suas relações, o pai pôde penetrar no pretório.
Mas fez tanto barulho que foi afastado à força e recebeu um golpe
de vara. Perpétua, inquebrantável mas sempre tema, anota o quan
to sofreu com isso. “Esse golpe me atingiu como se fosse eu a
golpeada. Eu sofria por sua velhice desafortunada”.40 O diário trai
sua emoção. Voltando à carga, o pai usou de todos os argumentos e
de todos os sentimentos. Perpétua registra apenas, o que diz muito:
"Ele encontrou palavras que teriam abalado qualquer um”.41 Luta
comeliana, a dessa jovem, dividida entre dois amores, dois univer
sos, e cujo coração só queria amar, mas obrigada a resistir ao pai,
para continuar fiel ao apelo do “Pai dos céus”. A prisão permitiu-
lhe cortar as amarras da carne e da natureza, a fim de viver só para
a felicidade prometida, que uma visão lhe revelara. O diário de Per
pétua termina aqui. A narrativa de sua morte é de outro redator.
A espera do martírio não a fez perder a naturalidade. Ela sabia
aliar humor e grandeza de alma. Tratada com bastante dureza por
um tribuno um tanto supersticioso, ela lhe retorquiu:42 "Por que
recusas abrandamentos a tão nobres condenados, que devem com
bater pelo aniversário de César? Tua reputação não ficará diminuí
da se exibires na arena prisioneiros muito gordos?” O tribuno, de
sapontado, repreendido por uma mulher jovem, “contraiu-se e
enrubeceu”, diz o texto. Era necessária uma personalidade singular
para levar a enrubecer um ajudante de prisão e levá-lo a sentimen
tos mais humanos.
No dia do suplício, os mártires deixaram a prisão e se encami
nharam para o anfiteatro. “Seus rostos estavam radiantes, belos.
Perpétua ia em último lugar, com passo calmo, como uma grande
dama de Cristo, como uma filha bem-amada de Deus”.43 No portão
da arena, quiseram impor às mulheres a veste de sacerdotisa de
Ceres. Perpétua se opôs com tenacidade.
— "Viemos aqui voluntariamente para defendermos nossa li
berdade. A injustiça deve ceder diante da justiça”,44 observa o cro
nista.
Perpétua e Felicidade, despidas, foram encerradas em uma rede,
como Blandina, e levadas para a arena. O público, muitas vezes
covarde, senão fanatizado, “fremiu de vergonha”.45 Acabaram por
entregar-lhes suas vestes. Perpétua, com a alma em festa, cantava.
164
Como sua pequena irmã de Lião, estava perdida em Deus. Em ple
no anfiteatro, ela caiu em uma espécie de êxtase, que a tomou in
sensível ao que se passava, insensível aos ferimentos. Levada para
uma sala próxima da arena, voltou a si e perguntou: “Quando sere
mos expostas a essa vaca furiosa?46 Disseram-lhe que estava acaba
do. Para convencê-la, foi necessário mostrar-lhes os sinais do suplí
cio em seu corpo.
Durante o combate heróico, Perpétua, fiel a si mesma, permane
ceu natural e feminina. Teve momentos de fraqueza, mas conservou
até o fim delicadezas e pudores de mulher, até nos gestos da "vaidade
virtuosa”, pondo em ordem seus cabelos e prendendo-os com gram
po.47 Como a antiga Políxena,48 ela queria morrer com decência.
Quando percebeu que sua túnica estava rasgada de lado, uniu as do
bras para ocultar suas pernas, “atenta mais ao pudor que à dor”.49
Perpétua se preocupou com Felicidade, em recuperação de um
parto, que estava pálida e “de cujos seios escapavam gotas de leite”.50
Quando Perpétua a viu caída, foi até ela, deu-lhe a mão e a aju
dou a levantar-se. Aproveitou um momento de pausa, para chamar
seu irmão, o catecúmeno, e confiar-lhes recomendações para sua
família e os outros cristãos. “Permanecei firmes na fé. Amai-vos uns
aos outros. Que os nossos sofrimentos não sejam escândalo para
x ”51
VOS .
De volta para a arena, Perpétua viu cair um a um seus compa
nheiros e sua companheira. Depois chegou sua vez. O gladiador a
golpeou tão desajeitadamente que ela deu um grito, mas logo caiu
em si e ela mesma dirigiu a mão do gladiador novato para sua gar
ganta. Comeliana até o fim! “Decididamente, tal mulher só podia
morrer por sua própria vontade”,52 observa o narrador.
Assim foi essa admirável mulher cristã, cujo diário, lido e reli
do nas comunidades da África e de toda a cristandade, até na igreja
grega, suscitou em toda parte um frêmito, não mais de espanto,
mas de orgulho e emulação.53 Inscrita nos mais antigos marti
rológios, Perpétua forma parte do cortejo triunfal dos mártires na
igreja de santo Apolinário Novo de Ravena. O mosaísta da cidade a
representou, na capela arquiepiscopal, em traje elegante e porte
nobre: uma grande dama. Ela está entre aquelas que levaram o pa
gão Libânio a exclamar: "Ah! que mulheres se encontram entre os
cristãos!” Elas nos salvam da frouxidão e da mediocridade.
165
QUARTA PARTE
O HEROÍSMO DO COTIDIANO
CAPÍTULO I
169
O dia: trabalho, oração, lazeres
A Roma imperial despertava na hora da aldeia, senão ao pri
meiro clarão da aurora. Ricos e pobres queriam aproveitar ao má
ximo a luz do dia, em uma época na qual a eletricidade ainda não
havia perturbado o ritmo da natureza. “Viver, dizia Plínio, o Velho,
é velar”.2 A luz do dia, cantada pelos poetas, formava a magia sem
pre renascente na sucessão das estações. Na falta de argumentos,
os amigos pagãos que queriam evitar a morte e o martírio do cris
tão Piônio, invocaram a última razão à qual nenhum grego resistia:
"Não vais morrer; a vida é tão doce, e a luz, tão bela".3
Ao aparecimento da luz e da noite, o cristão se recolhe em ora
ção.4 São as duas ocasiões fortes, nas quais o cristão guarda silên
cio, medita a Escritura e canta um salmo.5 O caráter privado dessas
duas orações explica por que não temos textos estereotipados.
De manhã, Tertuliano aconselha o cristão a pôr-se de joelhos
para a primeira oração, que abre o novo dia, em sinal de adoração
e de prostemação diande de Deus.6 O orante fica voltado para o
levante, “de onde vem a verdadeira luz”.7 O Oriente, diz Clemente
de Alexandria, é o símbolo daquele que é nosso Dia; do Oriente
levantou-se a luz da verdade, que brilha sobre nossas cabeças.8 Se
gundo Tertuliano, “cristãos são todos aqueles que, maravilhados,
viram brilhar a luz da verdade".9
Os judeus construíam as sinagogas da dispersão — ao menos
no Oeste — na direção de Jerusalém, sua capital espiritual. Antes
de edificar as igrejas na direção do levante, o cristão se voltava para
o país “entre os dois rios”, onde localizava “o jardim do Éden”, no
qual Cristo o tinha reintroduzido; sua fé lhe ensinava que um dia
ele voltaria de lá.10 O mártir Hiparco havia pintado uma cruz na
parede oriental de sua casa, diante dela rezava sete vezes ao dia.11
Orígenes aconselhava os cristãos a reservar, se possível, um lu
gar em sua casa para a oração.12 Desde o século III, existiam, por
tanto, oratórios nas casas particulares, ao menos entre os cristãos
do Egito de posição elevada.
O cristão orava de novo ao pôr-do-sol.13 Tertuliano lhe pede que
faça um sinal na fronte, em outros termos, que faça o sinal-da-cruz
na forma de tau.14 Texto bíblico e oração espontânea para reanima
rem a vigilância.
170
Segundo a Didaqué,^ os cristãos conservaram o costume ju
daico de orar três vezes ao dia, quadro esse cômodo, no qual o fiel
repetia a oração que Cristo lhe legou, o Pai-nosso. Essa oração
reunia a comunidade, ainda que ela estivesse dispersa, e permitia
orar no “plural” em qualquer lugar e em qualquer tempo. Não é
precisado, porém, em quais horas do dia essas orações eram di
tas, podendo-se concluir disso que as horas ficavam à escolha do
fiel. Um século mais tarde, o espírito latino, mais codificador, fi
xou-as como a terceira, a sexta e a nona horas.16 Na época,
clepsidras e quadrantes solares estavam generalizados e indica
vam as horas no mercado, nos edifícios públicos e na entrada das
termas.17
Os cristãos tinham o costume de rezar de pé, com as mãos levanta
das e as palmas abertas, na atitude dos orantes das catacumbas, como
Cristo, que estendera seus braços na cruz.18 É, sem dúvida, a atitude
tomada pelos fiéis de Antioquia e de Roma, de Cartago e de Alexandria.
Vinda do mundo sumério e do judaísmo, essa atitude parecia a mais
apta para exprimir pelo corpo o movimento da alma e seu desejo de
Deus.19
De joelhos, a oração exprime a humildade e a súplica intensa. Ela
podia ser acompanhada da prostração, com a cabeça encostada na
terra, conservada pelas igrejas da Síria e da Caldéia e do Iraque do
Norte. As mesmas igrejas permaneceram fiéis a outra atitude: a de
orar de pé, com os braços cruzados no peito, como os reis sumérios
e acádicos das estátuas. Em nenhum lugar se rezava com as mãos
juntas; esse é um gesto de origem germânica, que consagra a home
nagem feudal.20
A oração em horas fixas não era a única herança judaica; havia
também a oração de bênção antes das refeições.21 Aqui ainda a co
munidade cristã segue o exemplo de Cristo.22 Para o israelita e para
todos os antigos, a refeição tinha caráter religioso,23 que pode ter-se
atenuado, sem desaparecer completamente, na época do Império, e
que se apresente mais em certas solenidades.
Refeições de importância diferente marcavam o dia: o desjejum,
que, em sentido literal, rompia o jejum. Ele se verificava na terceira
ou quarta hora no meio da manhã e constava habitualmente de pão
molhado no vinho. Nos dias de jejum, quarta e sexta-feiras, os cris
tãos se privavam dessa refeição.24
171
A segunda refeição situava-se na sexta ou sétima hora, isto é,
pelo meio-dia, no retomo do mercado ou dos negócios. Era refei
ção leve. Os pratos podiam ser quentes ou frios. Durante muito tem
po, a comida nacional do romano foi o mingau, preparado com
trigo torrado ou triturado em um almofariz. Nos dias de jejum, essa
refeição era retardada até a hora nona.25 Cristãos fervorosos e sei
tas, como a dos montanistas, jejuavam até à noite.
A terceira refeição, a ceia, realizava-se, em Roma e Alexandria,
a partir da oitava ou da nona hora (pelas três horas da tarde), de
pois de terminados os negócios e o trabalho. Refeição de família ou
de sociedade. A amizade permitia a presença de não convidados e
até que eles levassem amigos, o que deu origem à classe desprezada
dos parasitos. Para os gregos e os romanos, a refeição principal era
essa, situada na hora do descanso. “O grego não acreditava ter jan
tado, se não jantasse com amigos”.26 Temos ainda cartas de convite,
conservadas em papiros do Egito, para jantares familiares ou reli
giosos, em casa ou no Serapeu:27
Chairemon te convida para a mesa
do senhor Serápis no Serapeu,
amanhã, dia 15, a partir da nona hora.
Ou
Herais te convida para o banquete de núpcias
de seu filho, em sua casa,
amanhã, dia 15, a partir da nona hora.
Um mosaico de casa burguesa em Udna (Útica),28 a vinte e cin
co quilômetros de Cartago, do tempo de Tertuliano, permite-nos
conhecer, pelos relevos, o cardápio de uma refeição: cascas de ovos,
espinhas e cabeças de peixe, melões, limões, feijões quebrados e
ervilhas germinadas.
Clemente adverte os cristãos contra o luxo da baixela e o re
quinte na alimentação. A samaritana, diz ele, ofereceu água a Cris
to em simples cântaro, e não em um desses vasos de prata, que dão
mau gosto à água. A regra de ouro à mesa é a modéstia e a conveniên
cia. O Pedagogo nos oferece um código de civilidade que faz pensar
nos costumes dos meios elegantes da época. Para Clemente e para
Tertuliano, a refeição se abria, como o ágape, pela oração e terminava
pela decência.29
172
O caráter religioso da mesa era tal que as casas cristãs excluíam
os pagãos dela; é provável que fossem lidos versículos da Escritura
ou alguma estrofe de salmo. Na hora da refeição, o pai de família
podia recordar o mistério eucarístico.
A oração, que ritmava o dia e o tempo, transformava a vida do
cristão em "longo dia de festa”, dentro de um universo e de uma
história santificados por Cristo. Para o cristão, “orar sem cessar”
significava moldar-se pela oração das horas, que consagram o tem
po, harmonizando a oração pessoal e a comunitária.
Os lazeres punham aos cristãos casos de consciência cotidia
nos. A Igreja, de Taciano a Tertuliano,30 condenava as festas e os
espetáculos por razões religiosas e morais, já analisadas. O autor
do Apologético concede aos fiéis, quando muito, participar das fes
tas de família por ocasião de um casamento ou da tomada da toga
viril, com a condição de que elas não incluíssem compromissos com
a idolatria.31
A educação física, muito apreciada na Antiguidade, tinha seus
defensores e seus detratores. Roma havia aceitado os exercícios
ginásticos a título de higiene, e não de esporte.32 Tertuliano conde
na a nudez completa do ginásio e os cuidados excessivos com o
corpo, fricções e massagens.33 Com mais forte razão condena ele a
palestra, “onde o diabo conduz seus negócios”, sem precisar quais
são eles. Lactâncio não é menos severo no tocante à nudez, que o
faz pensar nos contornos de Cupido e de Vênus.34 Clemente, de sen
sibilidade helênica, admite e recomenda os exercícios do ginásio
praticados com moderação, e encoraja a eles os jovens e os homens.
Para o autor do Pedagogo, o esporte favorece a saúde, dá espírito de
competição e é útil para a alma.35 Ninguém condenava a caça e,
menos ainda, a pesca, que foi o ganha-pão dos primeiros apóstolos.
O jogo era uma distração muito popular no Império. Segundo
Suetônio, o imperador Cláudio era um jogador empedernido.36 O
jogo de dados era muito praticado, enriquecendo a uns, arruinando
a outros e fazendo perder tempo a todos. As apostas eram muitas
vezes consideráveis.37 As escavações nos restituíram tabulae lusoriae
(“tábuas de jogo”). Em Roma foram encontrados jogos gravados no
pavimento da basílica Júlia, onde se reuniam os ociosos; Cícero já
se havia indignado com eles. Outro jogo, encontrado no calçamen
to de Timgad, prova quão generalizada era sua prática. Situado na
173
beirada do passeio, ele permitia que os jogadores ficassem senta
dos em um banco. Roma sozinha forneceu às coleções mais de cem
mesas de jogo.38
As crianças de Roma e Cartago jogavam nozes como as nossas
jogam bolinhas de gude. Elas permitiam muitas combinações. Agos
tinho alude a elas, lembrando seus anos de criança. “Deixar as no
zes” era sinônimo de sair da infância. O baixo-relevo de um sarcó-
fago, em Óstia, mostra dois grupos de crianças jogando nozes. Um
deles aperta em sua túnica as nozes que lhe restam. Ele chora, por
que perdeu.39
O jogo de bola, que divertia as crianças, não era desprezado pe
los grandes. Foi muito apreciado pelo segundo Catão e por Spurinna,
amigo de Plínio.40 Os ossinhos, jogo de crianças, como as nozes, per
mitiam aos adultos jogar cara ou coroa, com apostas. Os jogos de
azar, a ociosidade cultivada e a paixão pelo jogo explicam as reservas
da Igreja. Com razão mais forte ainda os cristãos condenavam a fraude
e o passatempo transformado em meio de subsistência.41
O tratado De aleatoribus, atribuído a Cipriano, mostra os danos
causados pelo jogo até entre os cristãos. Ele conclui: É melhor gas
tar a fortuna em boas obras do que perdê-la no jogo.42 No século IV,
o concilio de Elvira fulminou a excomunhão contra os fiéis surpre
endidos apostando dinheiro nos dados.43 Além disso, os cristãos se
arriscavam a ir para as tavemas, a fim de jogar com pagãos;44 eles,
que tinham cantado de manhã o hino litúrgico da imortalidade,
entoavam, à noite, o refrão:
Bebamos e comamos',
Amanhã morreremos .45
A atmosfera das tavemas levava o fiel a beber com excesso e,
alterado, a ceder aos convites das prostitutas, que, como a aranha,
espreitavam a presa.46 Decididamente era difícil viver o Evangelho
em um mundo pagão.
Durante a semana, os cristãos procuravam encontrar-se. Cele
bravam a eucaristia? Uma coisa é certa: a ceia eucarística já não era
celebrada à noite, segundo o uso primitivo, mas de manhã, com a
comunidade reunida. Ela abria os dois dias de jejum facultativo, a
quarta e a sexta-feiras.47 Tertuliano os chama statio, termo militar
que significa guarda. Era um exercício de vigilância e um descanso
174
privilegiado durante a semana. É provável que existissem, na épo
ca, eucaristias domésticas para grupos restritos, aos quais Cipriano
alude.48
No século II, os cristãos abastados tinham o costume de convi
dar para a ceia em suas casas membros da comunidade, escolhen
do de preferência pessoas necessitadas e também o bispo ou o
diácono. Gregos e africanos davam a esse jantar o belo nome de
refeição de amor ou ágape.49 O número dos convidados não podia
ultrapassar a capacidade do triclínio, até o dia em que a Igreja or
ganizou e adaptou uma sala para esse fim.50 A primeira alusão a
esse costume provém provavelmente do próprio Plínio, o Jovem.
Os cristãos presos, escreve ele,51 “reconheciam que se encontravam
para tomar juntos uma refeição normal e perfeitamente inocente”.
Os convites eram feitos, marcando-se a data, na reunião domi
nical, em um encontro no mercado ou sob os pórticos. É possível
que o diácono aconselhasse ao hospedeiro as pessoas a convidar.
Tertuliano nos deixou, no Apologético, uma descrição colorida
do ágape, a qual contrasta, por sua simplicidade, com a suntuosi-
dade dos festins pagãos, que ele julga severamente: não lhes falta
nem o arroto sonoro,52 o qual, entre os africanos de antigamente
como entre os árabes de hoje, exprime, como quer o costume, o
perfeito contentamento.
Jogando com o nome ágape, o autor do Apologético observa
que foi o grande amor que os cristãos têm entre si que criou a insti
tuição. Essa refeição, que provocara as zombarias mais ignominio-
sas da parte dos pagãos, não tinha nada de comparável com os fes
tins organizados, por exemplo, em honra de Serápis, cujo templo
era muito visitado em Cartago, onde a fumaça das cozinhas “dava o
alarme aos bombeiros”.53
O nome da refeição cristã, ágape, exprime bem o motivo que
lhe deu origem. Os que arcavam com seus gastos guiavam-se pela
vontade de ajudar os pobres sem humilhá-los e de permitir-lhes sa
ciar a fome respeitando-os. Os cristãos tinham para com os deser
dados a mesma benevolência de Deus, ao passo que o anfitrião pa
gão escarnecia de seus hóspedes que se tornavam parasitos.
A mesa do ágape era modesta e frugal, continua Tertuliano. Nela
não havia nem prodigalidade nem desordem. Os convidados, ho
mens e mulheres, deitados em divãs, à moda antiga, não se desvia-
175
vam da disciplina e da dignidade exigidas por uma assembléia reli
giosa.
Antes de começar a refeição, os convidados dirigem uma ora
ção a Deus. Cada um come de acordo com seu apetite, bebe o
quanto convém a pessoas sóbrias e se lembra que, mesmo à noi
te, deve adorar a Deus. As conversas são de pessoas que sabem
que Deus as escuta.54
Iniciada com oração, a refeição terminava pela ação de graças;
o ato de lavar as mãos no fim era de origem e inspiração religiosas.
No tempo do Império, a Grécia aceitou o uso romano do guardana
po, que tinha o mesmo nome que a toalha de mão.55 Ele servia para
os convidados levar porções escolhidas e continuar a festa em casa.
As luzes eram acesas quando a noite caía; cada um era convida
do a se levantar para cantar em honra de Deus um cântico tirado da
Escritura, provavelmente um salmo. O uso do saltério para a ora
ção remontava às origens cristãs. “A refeição terminava como co
meçara: pela oração".
Tertuliano não fala — mas sabemo-lo por outras fontes — do
costume de dar presentes (apophoreta) aos convidados.56 Tratava-se
muitas vezes de porções escolhidas, que o convidado levava para
casa em um cesto ou em um guardanapo. Aos poucos elas substituí
ram a refeição e tomaram-se uma forma autônoma de assistência.
O fim do ágape contrastava mais ainda com os "festins” ruido
sos da época, os quais provocaram os epigramas de Marcial e as
sátiras de Juvenal. Esses festins terminavam em ultrajes aos costu
mes e “em indecências e libertinagem". Os cristãos deixavam seus
ágapes “com pudor e modéstia, como pessoas que, à mesa, toma
ram mais uma lição que uma refeição”.57
Os próprios mártires, como vimos, transformavam em ágape a
última refeição concedida aos condenados — a "refeição livre" —
para significar, na vigília da provação suprema, sua fraternidade e
seu apoio mútuo, em emulação comum.58 É possível que o bispo ou
o diácono estivesse presente, dando a essa última fração do pão
valor eclesial ou litúrgico.
Ligada ou não ao ágape, a bênção da lâmpada ou do lucemário
abria a vigília litúrgica do sábado à noite. Segundo Tertuliano,59
esse costume provinha do judaísmo. Em Trôade, parece que Paulo
176
celebrou, à luz de grande número de lâmpadas,60 um dos primeiros
lucemários cristãos. A lanterna da noite de sábado simbolizava a
ressurreição de Cristo e afirmava que o Ressuscitado é a luz do
mundo. Essa cristianização do tema da luz, no Oriente e na África,
reagia, talvez, contra o culto do Sol, celebrado pelos pagãos.
Temos ainda um dos mais antigos cânticos à luz da noite:
O dia do Senhor62
177
bem como os egípcios e Hiparco, de meia-noite a meia-noite’’.64
Gauleses e germanos, como os judeus e os muçulmanos de hoje,
começavam o dia ao pôr-do-sol.
Seria absurdo imaginar os cristãos, em um domingo, escondi
dos em uma catacumba ou ociosos e bem vestidos, andando a esmo
sob os pórticos. Eles celebravam o domingo como os judeus de Roma
ou de Paris festejam hoje o sábado: ao lado da indiferença compac
ta do mundo que os cercava. Suas cerimônias próprias se acrescen
tavam às do calendário romano.
No tempo de Justino, os romanos, por sincretismo, tinham subs
tituído no primeiro dia, dies solis, da semana planetária o nome de
Satumo-Crono pelo do deus Sol, Helios, em uma ocasião em que se
desenvolvia o culto de Mitra.65 Justino, talvez por contraste, estabe
leceu paralelo entre os mistérios de Mitra e a eucaristia.66 O dia do
Sol, que segue ao sábado judaico, era o dia cristão por excelência, o
dia no qual as comunidades da Ásia, da Grécia e de Roma e todas as
outras se reuniam para celebrar a eucaristia. Em sua carta, Plínio
menciona o “dia determinado, no qual os cristãos costumam reu
nir-se antes da aurora, para cantar em coros alternados um hino a
Cristo como a um deus”.67
Justino afirma de maneira mais precisa ainda: "No dia chama
do dia do Sol, todos, nas cidades e nos campos, se reúnem em um
mesmo lugar".68 Evidentemente o filósofo cristão fala de uma insti
tuição comum a toda a Igreja, mas sua celebração merecería ser
matizada no tocante a uma cidade como Roma, na qual, ao que se
sabe, não havia, naquela época, nenhum lugar de culto capaz de
conter semelhante assembléia.
A importância vital do dia do Senhor para os cristãos aparece
no interrogatório dos fiéis de Abitena, na Tunísia, que poderíam ser
chamados "mártires do domingo". Presos sob a acusação de reu
nião ilícita, eles compareceram diante do procônsul, que os censu
rou por terem violado os editos imperiais e celebrado a eucaristia
na casa de um deles. Saturnino lhe respondeu:
“Devemos celebrar o dia do Senhor; é uma lei nossa".69
Chegou a vez de Emérito.
“Houve assembléias proibidas em tua casa?, perguntou-lhe o
procônsul.
— Sim, nós celebramos o dia do Senhor.
178
— Por que lhes permitiste entrar?
— São meus irmãos; eu não podería proibi-los.
— Devias fazê-lo.
— Eu não podia fazê-lo; não podemos viver, sem celebrar a re
feição do Senhor”.
A escolha do dia e da hora era determinada pelo acontecimento
pascal, pela ressurreição de Cristo, que dá a esse dia seu caráter
"festivo” de ação de graças e de espera.70 Pela mesma razão, nesse
dia, os cristãos oram de pé71 e não jejuam.72
Se, para os judeus, o sábado era o dia feriado, a idéia de repou
so não estava originalmente ligada ao domingo cristão. Numerosos
eram os dias de festa feriados em Roma, nos quais os trabalhadores
e os escravos repousavam e entregavam-se a divertimentos, mas
não existia dia regular de repouso.
Quando e onde se reuniam os cristãos no domingo? Eles de
viam encontrar-se fora das horas de trabalho. Em Trôade,73 eles se
reuniam na noite do primeiro dia da semana judaica, isto é, na noi
te de sábado para domingo. Na aurora, cada um retomava seu tra
balho. E mais ou menos o que diz Plínio, o Jovem, ao situar a reu
nião “antes da aurora”,74 portanto, antes do nascer do Sol. O Sol
levante, símbolo do Ressuscitado, era muito antigo e talvez tenha
influenciado a redação dos Evangelhos.75
Os cristãos se encontravam geralmente na casa de um deles
que tivesse uma sala bastante espaçosa para conter a comunidade.
A casa de Pudente, que recebeu são Pedro em Roma, pode ter servi
do de lugar de reunião. As escavações descobriram, na igreja de
Santa Pudenciana, deformação de titulus Pudentis, a gravação de
Q. Servius Pudens. Em Antioquia, Teófilo celebrava a eucaristia em
sua casa.76 Era o caso de Esmima, no tempo de Inácio de Antioquia.77
No Oriente, a câmara alta se encontrava diretamente sob o teto. Ela
era o compartimento mais tranqüilo e mais discreto. Os orientais
se fechavam facilmente em um espaço bastante restrito, como o
provam as igrejas minúsculas das montanhas do Curdistão78 e da
Etiópia.
O autor do Philopatris descreve uma assembléia litúrgica em
uma casa particular muito rica, no andar superior.79 A história de
Tecla nos fala da jovem pagã, na janela de sua casa, em Icônio,
ouvindo a pregação de Paulo durante uma assembléia litúrgica na
179
casa em frente.80 As reuniões cristãs não autorizadas pela lei não
podiam realizar-se ao ar livre, como as dos pagãos, o que despertou
a suspeita de facções clandestinas.81 Em uma casa romana que con
servara a planta da morada rural primitiva parece que foi dada pre
ferência ao triclínio, vasta sala de refeições. É possível, entretanto,
que, no tempo de Tertuliano, os cristãos de Cartago se reunissem
na area (recinto) de um cemitério, a céu aberto, no meio de um
jardim cercado de muros, ao abrigo de olhares. Em Cherchell, na
África do Norte, foi encontrada uma dessas areae. Assim se explica
ria, talvez, o grito dos pagãos contra os cristãos: Areae non sint,
“não haja cemitérios para eles".82
Em Antioquia, certo Teófilo, o primeiro cidadão da cidade, trans
formou sua casa em basílica e estabeleceu nela a cátedra de são
Pedro.83 Embora não seja histórico, esse fato reflete a situação da
época.
Em Trípoli, na Síria, um cidadão chamado Marcos disse ao
Apóstolo:
“Minha casa é muito grande e pode receber mais de quinhentas
pessoas. Ela tem um jardim.
— Mostra tua casa e teu jardim”.
Pedro viu que o lugar era muito apto para a pregação.84
A grande sala da casa de Amrah, na Síria, media 6,30 m por
7,20 m.85 Mas uma dependência destinada à assembléia litúrgica —
especialmente em casa particular — podia servir para outros usos,
religiosos ou profanos. Afinal, chegou o dia em que o proprietário
ofereceu o edifício à comunidade. Várias igrejas romanas — de são
Clemente, de são João e são Paulo — que foram descobertas pelas
escavações, foram construídas sobre habitações particulares. Exis
tiam, portanto, na Roma do século II, para a população móvel e
dispersa vários lugares de culto, presididos por simples sacerdotes.
Segundo o Liber Pontificalis, os títulos da cidade remontam ao papa
Evaristo, no começo do século II.86
A mais antiga igreja conservada é a de Dura-Europos, no
Eufrates.87 É uma casa como as outras, situada na esquina. A Igreja
tem uma sala grande de reuniões, uma sala para ágape e um
batistério. É de notar que o lugar do culto é voltado para o levante.
Em um dos lados havia uma pequena plataforma e nela a cátedra
do bispo, o que corresponde às diretrizes da Didascália.88
180
Ainda não existia estilo de igreja, uma vez que os lugares do
culto, do Oriente ao Ocidente, eram casas particulares, construídas
segundo a arquitetura do país. No século II, aparecem as primeiras
igrejas edificadas para o culto, principalmente nas regiões mais afas
tadas da capital.89 Edessa tem uma dessa época.
Justino nos deixou uma descrição, a primeira, da reunião do
minical.
Lêem-se, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos após
tolos e os escritos dos profetas. Depois o leitor pára, e o presiden
te toma a palavra e nos exorta a imitar os belos exemplos que
acabam de ser lidos. Em seguida todos se levantam, e se fazem
orações. Enfim, como já descrevemos, terminada a oração, são
trazidos pão, vinho e água. O presidente ora e dá graças por al
gum tempo; o povo responde com a aclamação amém. Os ele
mentos eucarísticos são distribuídos aos presentes e enviados
aos ausentes pelo ministério dos diáconos.90
A assembléia era dirigida pelo bispo ou por seu delegado.91 Os
diáconos o acolhiam e assistiam. Ministros e fiéis usavam a roupa de
todos os dias; nada os distinguia entre si nem do homem da rua. Na
Grécia, as mulheres cobriam a cabeça com o manto (himation), que
elas usavam então como amplo véu, ou dobravam uma ponta do
peplo.92 Em Cartago, Tertuliano deu às vaidosas, como modelos, as
mulheres indígenas, que cobriam não só a cabeça, mas também todo
o rosto.93 O intransigente moralista censurava aquelas que cobriam a
cabeça com um veuzinho muito fino, dava as medidas que o véu
devia ter e indicava como dispô-lo. Por que não se tomou costureiro?
Começava a missa. Ela compreendia duas grandes partes. Uma
era consagrada à liturgia da palavra, dela os catecúmenos podiam
participar; a outra era reservada aos fiéis, e nela se realizava o sa
crifício eucarístico. Fora o domingo, o Oriente celebrava, em al
guns dias, a liturgia da palavra, sem a eucaristia.
A estrutura da missa diferia pouco de Esmima a Roma, já que
o papa convidou o velho bispo Policarpo a celebrar em seu lugar. É
possível que a celebração fosse aberta por uma saudação do bispo,
como: “O Senhor esteja convosco! — E com o teu espírito!” A forma
semítica dessa saudação, semelhante a fórmulas paulinas, garante
sua antiguidade.94 Um leitor, sem dúvida escolhido na assistência,
181
lia os textos dos Evangelhos e do Antigo Testamento. Sabemos, por
Tertuliano,95 que também as cartas dos apóstolos eram lidas. A lei
tura era em grego, a língua corrente em todas as comunidades, da
Síria a Lião. O Antigo Testamento era lido na tradução dos Setenta,
em uso desde os apóstolos. O latim prevaleceu na África na metade
do século II. Nas assembléias bilíngües, em Lião ou Citópolis, é
provável que um intérprete traduzisse o texto à medida que era lido,
como é ainda hoje na África negra.
Além dos livros canônicos, os cristãos liam outras obras, como
a carta de Clemente aos Coríntios e o Pastor de Hermas. Os coríntios
reliam, no domingo, também a carta do papa Soter,96 e os cartagi
neses, o edito do papa Zeferino.97 Cipriano pediu que suas cartas do
exílio fossem lidas à comunidade reunida.98
Entre a leitura e a pregação, intercalava-se o canto dos Salmos.
E provável que a assembléia repetisse um versículo como refrão.
No Egito, os Salmos eram cantados desde essa época.99 Nas origens,
o canto devia ser apresentado com o da sinagoga, parentesco que
existe ainda hoje, como observou o grão-rabino de Roma ao car
deal Tapuni, ao sair de uma missa em rito siríaco.
Assembléia e bispo sentavam-se. O celebrante comentava a lei
tura e exortava suas ovelhas. Essa pregação se adaptava ao gênio do
país: mais lírica entre os sírios; sóbria, com tendência moralizante,
no Ocidente. Uma homilia do século II nos fornece um exemplo da
pregação da época.100
Ela se refere constantemente à palavra de Deus. Descreve a bene
volência do Senhor como salvador dos homens e como juiz da Igre
ja. O caráter dramático da existência cristã no mundo pagão é vigo
rosamente sublinhado: o fiel é dividido por uma luta de todos os
instantes. Os jogos ístmicos de Corinto, onde foi pronunciada a ho
milia, fornecem ao pregador a comparação das competições do es
tádio. O apelo à penitência volta, como um fio condutor, uma deze
na de vezes. "Ajudemo-nos uns aos outros, a fim de levarmos os
fracos ao bem, para que todos sejam salvos”.101 Não é um evange
lho de heróis, mas um encorajamento à fidelidade e à solidariedade
cotidianas.
É possível que as exortações finais, na hora do beijo da paz, a
doxologia — aclamação à glória de Deus — que encerra a segunda
carta de Paulo aos Coríntios, abrissem a liturgia eucarística: "A gra-
182
ça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espíri
to Santo estejam com todos vós!”102
Seguia-se a oração comum. Toda a assistência ficava de pé, com
os braços levantados. O bispo formulava as grandes preocupações da
Igreja e do mundo. Aí se exprimia a consciência da unidade e da
catolicidade. O celebrante orava pela perseverança dos fiéis, pelos
catecúmenos e também “pelos que nos governam” e pela paz no
mundo.103
A oração que termina a carta de Clemente nos fornece modelo
de oração universal. Fiel, sem dúvida, ao uso litúrgico, o velho bispo
Policarpo, ao ser preso, pediu uma hora para rezar.104 “Ele orou em
voz alta”. Nessa imploração, "ele recordou-se de todos aqueles que
conhecera em sua longa vida, pequenos e grandes, pessoas ilustres e
obscuras, e de toda a Igreja católica, espalhada pelo mundo inteiro".
Oração universal, sem dúvida responsorial — isto é, com estro
fes e refrãos —, como na sinagoga, onde a assistência responde com
aclamações tiradas das comunidades que falavam o aramaico, sem
ser traduzidas, como: Alleluia! Maranatha! Amen! Outras orações
vinham do mundo grego, como o Kyrie, eleison! que se encontra
nos ritos latino, copta e sírio.
O beijo da paz era gesto de reconciliação e fraternidade entre
aqueles que iam celebrar juntos a eucaristia. A solidariedade se con
cretizava na oferenda: “Aqueles dentre nós que possuem alguma
coisa venham em ajuda daqueles que não têm nada”.103 Entre as
coisas oferecidas, os diáconos escolhiam pão e vinho misturado com
água e os punham sobre a mesa, diante do celebrante.106
O bispo improvisava uma oração de louvor ao Pai e de ação de
graças pelas obras da salvação, da criação à missão de seu Filho,
que cumpriu e realizou todas as promessas. Ficava entregue à inicia
tiva do celebrante improvisar dentro de temas dados. Sua oração
consagrava as oblações e tomava-as o verdadeiro sacrifício, ofere
cido, segundo a profecia de Malaquias, do nascente ao poente.107 A
ação de graças era tão fundamental que acabou dando seu nome,
eucaristia, a toda a celebração e hoje é novamente usado.
A oração eucarística se abria provavelmente com um convite à
assembléia; a ele talvez aluda ao hino alternado a Cristo, do qual
fala Plínio, o Jovem:
“Corações ao alto! — Demos graças a Deus!”
183
Os fiéis, pela densidade do silêncio, participavam da oração do
celebrante e a selavam, de alguma forma, com o amém final, vocife
rado, como disse mais tarde Jerônimo, como “um trovão de Deus”.
Todos comungavam do pão e do vinho eucarísticos. A taça circula
va, sem dúvida, nas fileiras dos fiéis. Cada um recebia o pão "na
palma da mão”.108 Alguns levavam a eucaristia para casa, onde a
consumiam.109 Uma vez mais os ausentes, os doentes principalmente
e os idosos não eram esquecidos. Os diáconos lhes levavam o dom
de Deus e o dom dos irmãos, misturados na mesma celebração. Os
bispos das diferentes comunidades tinham o costume de enviar do
pão consagrados às outras comunidades para selar sua unidade.110
A aurora clareava o horizonte. Cada um voltava para casa ou
para o trabalho, continuando em seu coração e em sua existência
cotidiana uma ação de graças que não tinha fim.
Um movimento de fluxo e refluxo animava a reunião da comunida
de; vinda "da cidade e dos campos", ela tomava consciência de sua uni
dade até na dispersão. As obras sociais ligadas à celebração dominical
e principalmente a organização do ágape eram seu prolongamento
normal e a aplicação do mistério partilhado à vida cotidiana. Elas não
se detinham nas necessidades físicas, mas se esforçavam para desco
brir e saciar a fome de justiça e a necessidade de fraternidade.
A liturgia dominical ritmava a sucessão dos dias. Encontramos
vestígios dela nos afrescos das catacumbas, nas inscrições das casas,
nos epitáfios, nos sarcófagos, na gesta dos mártires e na literatura de
edificação. Papiros e óstracos nos conservaram fragmentos da liturgia
que alimentava a piedade cotidiana. O Kyrie, eleison e o Maranatha
voltam sem cessar.111 Em Scili e Cartago, os mártires respondiam à
sua condenação com o grito litúrgico de ação de graças: Deo gratias.112
Antes de morrer, os cristãos de Cartago davam-se o beijo da paz, que
selava a liturgia de sua oblação.113 A oração de Policarpo na fogueira,
até em sua estrutura, apresenta o martírio como uma liturgia supre
ma e como o encerramento da eucaristia.114
184
ções entre Roma e a Ásia, mostra, ao menos, o lugar que a celebração
da ressurreição ocupava em todas as igrejas desde as origens.115
As comunidades da Ásia e da Palestina e, sem dúvida, os asianos
de Roma, ligados aos usos judaicos, continuaram a celebrar a Pás
coa como os hebreus, no dia 14 de nisã, o dia da lua cheia da prima
vera, fosse qual fosse o dia da semana em que ele caísse. O acento
era posto em Cristo, nossa verdadeira Páscoa, imolado nesse dia.
A igreja de Roma e todas as igrejas que a seguiam, desligadas
do calendário judaico, consideravam o essencial e punham no pri
meiro plano a ressurreição de Cristo. Elas a celebravam no primei
ro domingo depois do 14 de nisã, lua cheia do equinócio,116 no qual
celebravam “o dia do Senhor".
A solenidade começava com um dia de jejum. No fim do dia, os
fiéis se reuniam para passar a noite em oração. No começo da vigí
lia, acendiam-se as luzes, segundo o costume judaico. Era a grande
vigília, "a mais augusta de todas as vigílias”, diz santo Agostinho;
durava até a aurora e devia dispor os corações para esperar o Se
nhor. Ressurreição e espera do Kyrios se fundiam em uma mesma
celebração.
Vós vos reunireis e não dormireis; velareis durante toda a
noite em orações e lágrimas e lereis os Profetas, os Evangelhos
e os Salmos até a terceira hora da noite que se segue ao sábado.
Então, cessareis de jejuar, oferecereis o sacrifício, comereis e
vos alegrareis e jubilareis, porque Cristo, primícia de nossa res
surreição, ressuscitou!117
As leituras escolhidas tinham relação com o mistério pascal.
Lia-se a narração do cordeiro pascal do livro do Êxodo.118 Em Roma,
o capítulo sexto do profeta Oséias: "Vinde, retomemos a Deus”.119
O celebrante, como nos mostra a maravilhosa homilia de Melitão
de Sardes, desenvolvia o paralelo entre a Páscoa judaica e a Páscoa
cristã. Cristo pôs fim ao tempo das preparações e introduziu defini
tivamente o povo eleito na terra de Deus.
O canto do galo anunciava o dia novo, dia de festa e alegria.
Terminava o jejum. A celebração da eucaristia tomava seu sentido
pleno de memorial da morte e da ressurreição de Cristo. Na aurora,
quando os fiéis voltavam para suas tarefas cotidianas, nunca seus
corações estavam tão ardentes como nesse dia.
185
O que os ocidentais conservaram — muitas vezes alterado —
da noite de Natal, os cristãos do século II, de Antioquia a Cartago,
de Roma a Lião, realizavam, consagrando a mais bela de todas as
noites — a noite pascal — à oração, à leitura bíblica e à espera do
Senhor. A restauração da vigília pascal — adaptada e truncada, para
uso de cristãos apressados — não pôde ter, no Ocidente, a plenitude
espiritual do patrimônio, conservada pela Grécia e pela Rússia. Hoje
ainda os russos passam vinte e quatro horas na igreja para celebrar
a Páscoa. E cristãos que não hesitam em dançar uma noite inteira
são incapazes de dar uma noite para celebrarem o mistério de sua
fé.
Ó noite, mais clara que o dia,
mais luminosa que o sol,
mais doce que o paraíso,
noite esperada um ano inteiro!120
Uma organização dos dias, das semanas e do ano centrada no
mistério do Ressuscitado, com os tempos fortes da oração e das
celebrações litúrgicas, prepara a Igreja e o universo para o dia da
ressurreição universal, no qual brilhará a luz que não se apagará
mais. O “oitavo dia”, no qual o Senhor ressuscitou, anuncia o últi
mo dia e a consumação dos séculos.
Toda celebração litúrgica bem como a vida cotidiana não são,
afinal, para o cristão senão preparação e espera. O desconforto e a
angústia dos cristãos, muitas vezes ameaçados pelo poder, pouco
seguros quanto ao dia de amanhã, dispunham-nos para viver me
lhor essa precariedade. O Maranatha — que significa O Senhor vem
e Vem, Senhor — das assembléias litúrgicas, usual em toda “refei
ção do Senhor”, encerra o último livro da Escritura. E o grito da
Igreja: uma certeza e, ao mesmo tempo, a mais ardente das esperas.
186
CAPÍTULO II
AS ETAPAS DA VIDA
A iniciação cristã
O que hoje, nos países da velha cristandade, é a exceção, no
século II era a regra: "Nós nos tomamos cristãos, não nascemos
tais”, diz Tertuliano.1 A conversão implicava mudança de vida e de
religião que provocava ruptura com a cidade e isolava o cristão de
seu meio e de sua família, se ela permanecesse pagã. Fosse qual
fosse a convicção profunda do grego ou do romano, do egípcio ou
do gaulês, o batismo transformava sua vida familiar, profissional e
social. Os laços com uma religião sociológica eram difíceis de cor
tar. Para nos convencermos, basta-nos considerar a resistência de
um meio sueco ou mesmo francês, muitas vezes agnóstico, à passa
gem de um filho ou de uma filha para o catolicismo!
Não era fácil ser aceito como catecúmeno. O catecumenato era
cercado de precauções de toda sorte para afastar os indesejáveis e
provar os candidatos. Habitualmente algum cristão servia de
introdutor junto à comunidade. O pagão atraído pelo Evangelho
começava por se informar; acompanhava seu amigo cristão ou seu
evangelizador às reuniões da comunidade. Instruía-se nas verdades
187
novas e procurava pô-las em prática — aprendizado longo, organi
zado pela Igreja um século mais tarde.
Em Alexandria, Panteno começou seu trabalho de catequista
na segunda metade do século II.2 O tempo de preparação se chama
va catecumenato, termo grego que passou para o latim, para expri
mir o tempo da catequese e da formação. A afluência de candida
tos, o risco implicado na profissão do cristianismo e a experiência
das perseguições endêmicas e das apostasias tomaram a Igreja pru
dente e exigente.
A gesta dos mártires compreendia cristãos que ainda não ha
viam recebido o batismo, o que revela que a comunidade acolhia
definitivamente só depois de longo tempo de prova. Felicidade e
Revocato, Perpétua e um de seus irmãos ainda eram catecúmenos
quando foram presos.3 Outros quatro catecúmenos foram presos
em Tuburbo. O mesmo ocorreu em Alexandria, no tempo de
Orígenes, com os mártires Heráclides e Herais; esta última saiu da
vida "pelo batismo de fogo”.4
O tempo de prova da fé se adaptava com flexibilidade à vida e
às circunstâncias. Estamos longe das origens, quando Filipe bati
zou logo, na estrada de Gaza, o eunuco da rainha da Etiópia, ou
quando um discurso de Pedro foi suficiente para levar "à água do
batismo multidões entusiasmadas". A pedagogia da fé comandava
o estilo de vida. Justino já alude à instrução preliminar, quando fala
“daqueles que crêem na verdade de nossos ensinamentos e de nossa
doutrina”.5 Essa catequese era acompanhada da oração e do jejum.
O candidato aprendia as grandes verdades da fé e a oração do Se
nhor, que forja a comunidade. Sem dúvida já existia uma fórmula
consagrada do credo batismal.
Irineu, na Demonstração apostólica, no fim do século II, forne
ce-nos o texto da “regra da fé, transmitida pelos presbíteros":
188
Por isso, quando somos regenerados pelo batismo que nos é
dado, em nome das três pessoas, somos enriquecidos, por esse
segundo nascimento, com os bens que estão em Deus Pai, por
meio de seu Filho com o Espírito Santo. Porque aqueles que
são batizados recebem o Espírito de Deus, que os dá ao Verbo,
isto é, ao Filho, e o Filho os toma e os oferece ao Pai, e o Pai lhes
comunica a incorruptibilidade.6
A fé que faz a Igreja faz também o cristão. Ela é proposta a
todas as comunidades dispersas, cujos testemunhos são concordes
do Egito a Cartago, da Ásia Menor a Lião, passando por Roma,
encruzilhada de todas as comunidades disseminadas. Irineu lem
bra as verdades fundamentais da fé no começo de seu livro Contra
as heresias. Depois acrescenta:
189
das “pompas” do demônio, denunciadas pelos autores,9 que pensa
vam principalmente nos espetáculos e nos jogos do circo, que os
africanos apreciavam muito. O ensinamento das “duas vias", que
formava parte da catequese primitiva, destacava o caráter dramáti
co do confronto cristão.
Há dois caminhos: um, da vida, diz a Didaqué, o outro, da
morte; mas entre os dois caminhos há grande diferença. Ora, o
caminho da vida é o seguinte: “Primeiro, amarás a Deus, que te
criou; em segundo lugar, amarás teu próximo como a ti mes
mo, e o que não queres que façam a ti não faças a outrem".10
Os autores cristãos recorriam com predileção às comparações
esportivas e principalmente às militares, para que os candidatos
tomassem consciência de que a luta seria inexorável.
Depois de tudo bem pesado e da experiência feita, o catecúmeno
tomava sua decisão, sabendo que ela seria irrevogável; tratava-se,
como para um soldado, de juramento de fidelidade para a vida e
para a morte, o que, para um africano ou um latino, era expresso
pelo termo sacramentam, “sacramento”. Confessada a fé diante da
Igreja, o cristão devia confessá-la diante do poder e dos tribunais. A
comunidade, por sua vez, dava sua concordância. Ela era a primei
ra interessada na vinda de novos membros e respondia colegialmente
por sua perseverança. Por isso examinava o comportamento do can
didato e seu empenho “em socorrer os pobres e em visitar os doen
tes”.11 A certos catecúmenos o bispo pedia que mudassem de pro
fissão, quando seu antigo gênero de vida lhe parecia incompatível
ou dificilmente conciliável com a nova fé e com os compromissos
assumidos na presença de toda a comunidade.
O rito do batismo cristão não era criação cristã. Surgiu em épo
ca em que os banhos sagrados eram praticados tanto entre os
essênios como nas diversas seitas religiosas. No tempo de Cristo,
existia verdadeiro movimento batista na Palestina. Em todas as re
ligiões orientais, rios sagrados, como o Ganges e o Jordão, purifica
vam e conferiam santidade.
O simbolismo da água teve papel considerável na história da
religião, porque lembrava o nascimento e a fecundidade. Segundo
a narrativa da criação, o mundo de Deus surgiu das águas. Esse tema
se encontra nas outras cosmogonias, nas quais da água nasce a vida.
190
As religiões associavam à idéia de fecundidade a de purifica
ção. Não só da água surge a vida, como também ela a recupera e
restaura. Com efeito, a primeira carta de Pedro e a tradição litúrgica
antiga apresentam a obra de Cristo como vitória sobre o monstro
dos mares, e o batismo como libertação dos homens da goela do
Leviatã. Cristo desceu às grandes águas da morte e voltou, trazendo
em sua vitória a criação e a humanidade renovadas.
As intuições das mitologias religiosas e os temas bíblicos, que
muitas vezes coincidem, afloram na liturgia e na catequese batis
mais. Jorro de vida, purificação das faltas passadas e luz no cami
nho balizado pela fé, essas consonâncias se encontram, às vezes
com deslocamentos de acento, em todos os autores da época.
Dois escritos do século II nos fornecem esclarecimentos sobre
a maneira de batizar: a Didaqué e a Apologia de Justino, tão rica em
ensinamentos sobre a vida litúrgica do tempo. A Didaqué nos ofere
ce o ritual mais antigo:
Quanto ao batismo, administrai-o da maneira seguinte: de
pois de haver ensinado tudo o que precede, batizai em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, em água corrente. Se não
houver água corrente, nem água fria, em água quente. Se não hou
ver nenhuma delas, derrama água três vezes sobre a cabeça, em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Que o batizante, o ba
tizado e outras pessoas que puderem jejuem antes do batismo;
ordena que ao menos o batizado jejue um ou dois dias antes.12
As duas formas do batismo, na água corrente ou em piscina,
por imersão ou por efusão, levam em conta celebrações, que se rea
lizavam primitivamente ao ar livre, nas águas de um regato ou do
mar e, depois, transferidas para os interiores das casas. Os batistérios
de Lalibela, na Etiópia, no século XI, ainda estavam ao ar livre. A
fórmula batismal era claramente trinitária como no Evangelho de
Mateus. As três imersões eram alusão incontestável às três invoca
ções que precedem.
Na Apologia, pelo ano 150, Justino descreve o batismo como
era praticado nas diversas comunidades do mundo greco-romano.
Jejum e oração dispunham o candidato. A comunidade participava
porque se tratava de membros novos que ela devia acolher com
empenho.
191
Em seguida, nós o conduzimos para lugar no qual existe água.
Lá, do mesmo modo que nós fomos regenerados, também eles
são regenerados. Em nome de Deus, Pai e Senhor de todas as
coisas, e de Jesus Cristo, nosso Salvador, e do Espírito Santo,
são eles então lavados com água. Essa ablução chama-se ilumi
nação, porque os que recebem essa doutrina têm o espírito cheio
de luz.
Quanto a nós, depois de termos lavado aquele que crê e que
se juntou a nós, conduzimo-lo para o lugar onde estão reunidos
aqueles que chamamos nossos irmãos. Fazemos com fervor
orações comuns por nós, pelo iluminado e por todos os outros.13
192
ças? Justino o insinua.18 Diante do prefeito Rústico, ele fala daque
les que eram cristãos “desde a infância”; seu companheiro diz a
mesma coisa: “Recebemos de nossos pais essa tríplice doutrina”.19
À tríplice imersão, atestada já pela Didaqué, o bispo, sem dúvi
da, pronunciava a fórmula: “É batizado... em nome do Pai e do Fi
lho e do Espírito Santo”.
Ao sair da água, o batizado provavelmente era vestido, desde
essa época, com veste branca e recebia na cabeça uma coroa, como
se vê nas Odes de Salomão.20 O Pastor de Hermas associa à veste
branca o selo, sinal traçado na testa dos novos batizados, signifi
cando sua integração ao povo de Deus, com as três dimensões: pes
soal, comunitária e escatológica.21
Vários termos exprimem o rito e seus componentes: banho, novo
nascimento, iluminação, usados por Justino, e selo do Espírito, caro
a são Paulo e à primeira comunidade cristã.22 Um cântico batismal
primitivo desenvolvia, sob a imagem da luz, a catequese do novo
nascimento:
Desperta, tu, que dormes,
levanta-te dentre os mortos,
e Cristo te iluminará,
ele, o sol da ressurreição,
gerado antes da estrela da manhã.23
A quando remonta o costume de dar leite e mel ao jovem bati
zado durante a celebração eucarística?24 É difícil dizê-lo. O simbo
lismo é claro: o batismo introduz o neófito na terra prometida. A
iniciação batismal se encerrava na e pela eucaristia.
Justino acrescenta simplesmente que o novo batizado era con
duzido aos seus irmãos, que o acolhiam em sua comunidade. O
beijo da paz selava a fraternidade. A iniciação se encerrava, como
em Emaús, com a fração do pão: encontro, caminhar, comunhão.
“De agora em diante ele deve dar testemunho da verdade, caminhar
nas boas obras e observar os mandamentos, a fim de adquirir a
salvação eterna”.25
Os mártires se referiam sem cessar à sua confissão batismal.
Diante dos procuradores romanos, retomavam as fórmulas consa
gradas. Tivessem eles recebido o batismo de água ou estivessem
preparando-se para ele, o batismo de sangue era visto como incom-
193
paravelmente superior. Em Cartago, no fim dos jogos do anfiteatro,
nos quais os cristãos eram atores e vítimas, soltaram contra Saturo
um leopardo, “o qual, com um golpe das garras, banhou-o em seu
sangue".26 A multidão, informada, gritou-lhe, como que para teste
munhar o segundo batismo: “Ei-lo bem lavado! Ei-lo salvo! Certa
mente, acrescentam os Atos, estava bem salvo aquele que fora lava
do em seu sangue”.27
198
Cinge de flores tua fronte,
de manjerona perfumada.
Toma alegremente teu véu
cor de chama (flammeurn).56
199
Nenhum rito litúrgico nos é conhecido, mas provavelmente o
bispo — ou seu delegado — era convidado para o banquete nupcial;
talvez a comunidade participasse, ao menos fornecendo as teste
munhas, em época na qual os irmãos não eram muito numerosos, e
os laços religiosos e sociais eram mais sólidos. Os Atos de Tomé nos
mostram o apóstolo orando com os esposos na casa nupcial.62 Cle
mente precisa que, em Alexandria, um presbítero impunha as mãos
sobre os esposos.63
Os sarcófagos e a decoração das taças ilustram a cristianização
do matrimônio: o próprio Cristo coroa os esposos e preside à jun
ção das mãos, que se uniam sobre os Evangelhos.64 Um afresco da
catacumba de Priscila representa talvez o velamento da esposa.65
Para o cristão, o matrimônio continuava a obra da Criação, e os
filhos eram a felicidade dos pais. Clemente precisa: belos filhos. No
breza grega obrigava.66 Contraímos matrimônio para termos filhos,
afirmam Justino67 e Aristides,68 dando as regras e os limites da vida
sexual dos esposos. A Igreja se opôs aos "extremistas": uns reprova
vam o matrimônio e toda a vida sexual; outros eram partidários da
libertinagem como praticada nos grandes portos do Mediterrâneo.69
Clemente,70 em seu tratado de moral, o Pedagogo, ergue-se com insis
tência contra a prostituição e a pederastia. Regulamenta a vida con
jugal com tantas reservas que um comentador recente pergunta, não
sem humor, quando o moralista de Alexandria permitia o abraço.71
Aqueles que têm a permissão de casar-se têm necessidade de
um pedagogo; ele lhes ensina a não praticar os ritos misteriosos
da natureza durante o dia, a não se unirem depois de voltarem da
igreja e da ágora; na aurora, como os galos, na hora da oração, da
leitura ou das obras úteis a fazer durante o dia. À noite, depois da re
feição e da ação de graças pelos bens recebidos, convém repousar.72
As relações com a mulher grávida eram explicitamente proibi
das com este pitoresco argumento: “Não se semeia em campo se
meado”.73 O prazer sexual, fora da vontade de gerar, era contrário
"à lei, à justiça e à razão”.74 Os escritores cristãos retomavam as pres
crições bíblicas, mas aumentavam seu rigor. Eram fortemente in
fluenciados pela filosofia popular, de tendência estóica.73 Musônio
reprovava como ilícito o prazer só no uso do matrimônio.76 A vida
sexual, de instinto, lembrava a arte da cortesã, que prosperava em
200
Corinto e em Alexandria. As exposições fastidiosas de Clemente so
bre os costumes da lebre e da hiena anunciam a pior literatura de
pregadores populares.77 “Casuística do cotidiano”78 e do noturno,
sinônimo de torpeza, que cansava o leitor do Pedagogo, aliviado,
enfim, ao ver surgir o Logos libertador, deus ex machina, como últi
ma referência.79 Mais moderados, os legisladores simplesmente afir
mavam a legitimidade da vida conjugal e a inutilidade das lustrações
rituais herdadas do judaísmo.80
Em compensação, a Igreja antiga condenava com extremo rigor
os costumes da Antiguidade, embora a situação econômica os expli
casse em parte: a contracepção, o aborto e a exposição das crianças.81
Alguma limitação dos nascimentos, por meio da continência, era
prova de moderação, diz Clemente.82
A família era vista como célula da Igreja. Paulo e Pedro, e todos
os pastores depois deles, esboçam o quadro do lar cristão em face
aos costumes pagãos. Tertuliano canta a harmonia dos dois espo
sos, que, juntos, aprofundam seu amor, recebendo a eucaristia.83
Por mais que o Evangelho preconizasse a igualdade do homem
e da mulher, a condução do lar exigia autoridade, que a Antiguida
de sempre confiou ao pai de família. Ele reinava na casa, que com
preendia a esposa, os filhos, os domésticos e os escravos; em Roma,
ele era seu chefe temporal e religioso até a morte; também castiga
va e casava seus filhos e suas filhas. A legislação romana do pater-
familias acabou influenciando o mundo helênico. Entre os judeus,
o acento era posto na missão espiritual do pai: ele devia ensinar a
Torá a seus filhos.
Embora o Evangelho não abalasse as estruturas da família an
tiga, ele a transformava em seu espírito, tomando-a a célula vital da
Igreja. Era entre aqueles que haviam dado prova e exemplo de uma
casa bem gerida que ela escolhia seus pastores. Um princípio novo
transformava por dentro as relações entre esposos, pais e filhos.
Paulo84 o formulou e Clemente o repetiu aos coríntios: “Sede sub
missos uns aos outros, no temor do Senhor".85 Daí em diante, o
Senhor é a norma e a autoridade invisível.
A Igreja reconhecia a autoridade paterna sobre a casa, com os
matizes particulares das regiões e das civilizações. O longo desenvol
vimento da Didascália86 sobre seus deveres e suas responsabilidades
mostra claramente sua importância na comunidade. Nessa descri-
201
ção, a ação educadora do pai e da mãe é bem destacada. A autoridade
só é eficaz quando temperada por afeição, como mostra a pedagogia de
Deus: "Nem tirania, nem negligência, mas mistura de firmeza e bran-
dura, de autoridade e bondade”,87 de moderação e encorajamento.
Nas comunidades orientais, a influência religiosa da mãe era
considerável. Nelas encontramos lares felizes e eficazes,88 nos quais
a obra da mãe parece determinante.89 Paulo reconhece o papel de
sempenhado pela mãe de Timóteo,90 e Pedro sabe que a mulher
ganha seu marido para a fé.91
Na Antiguidade, a estrutura da casa facilitava a contaminação
religiosa. Clemente de Alexandria chega a permitir à esposa um
pouco de vaidade para ganhar um marido pagão.92
As crianças, confiadas à mãe ou à governanta, especialmente
no mundo grego e no oriental, sofriam fortemente a ascendência de
mulheres da sociedade. No ambiente alexandrino, onde a mulher
corria o risco de ser absorvida pelo luxo e pelos enfeites, Clemente
insiste para que ela ponha as mãos na massa, assuma responsabili
dades no lar e seja ajuda eficaz para o marido.93
Os epitáfios da época,94 na medida que não são convencionais e
mentirosos como “as saudades eternas” do viúvo casado novamen
te, são comoventes e significativos: unem na morte aqueles que es
tavam unidos na vida. "A Caia Febe, esposa fiel, e a ele, Capiton, seu
marido”; Successus a sua esposa Eusébia, “muito rara, muito casta,
verdadeiramente irrepreensível; por ela ele convida os visitantes a
orar”.95 Muitas vezes é difícil datar uma inscrição, porque os cris
tãos da primeira geração eram discretos sobre suas convicções reli
giosas; habitualmente usavam fórmulas pagãs, que são encontra
das nas diversas épocas da epigrafia.
O Evangelho valorizou a criança, o que transtornou os costu
mes aceitos, já que o direito romano permitia ao pai expor seu fi
lho. A Igreja primitiva sublinhava seu lugar no lar. As crianças eram
sempre mencionadas quando se falava de "casas cristãs”.96 Aristides97
louva sua inocência, Minúcio Félix98 se comovia diante de seus pri
meiros balbucios e Clemente99 desenvolveu longamente, no Peda
gogo, o evangelho da infância espiritual.
Na educação e nos deveres dos pais, não havia distinção entre
meninos e meninas, o que contrastava com o mundo judaico, bem
como com o greco-romano, que favorecia ultrajantemente o sexo
202
masculino. Em Israel, hoje ainda, o pai é felicitado quando nasce
um menino; quando é uma menina, pudicamente se deseja a ele
um menino para a próxima vez.
Um epitáfio, posterior, é verdade, diz mais que as palavras so
bre a afeição de uma mãe:
Magus, filho sem malícia,
estás entre os pequenos inocentes.
Tua vida é feliz longe dos perigos.
A Igreja te acolhe, em tua partida,
materna e alegre.
Ó meu coração, cessa de gemer;
olhos meus, cessai de chorar.100
Nos meios mais modestos que os de Alexandria, o acento era
posto na necessidade de instruir os filhos, de castigá-los, de ensiná-
los a fugir da ociosidade, de proporcionar-lhes uma profissão e fer
ramentas, de vigiar suas freqüentações101 e de casá-los jovens, “para
pô-los ao abrigo do desregramento juvenil”.102
A Igreja, de Paulo de Tarso103 a Clemente de Roma,104 dava con
selhos aos pais cristãos sobre a maneira de educar seus filhos. O
papa de Roma já usava a expressão “educação cristã”, que depois se
tomou de uso corrente: “Educar cristãmente os filhos, permitir-lhes
participar do tesouro da fé e inculcar-lhes uma sã disciplina em
matéria de vida moral é dever fundamental dos pais; nisso há mais
que na tradição romana".103 Nesse ponto, o cristianismo primitivo
prolongou a tradição judaica e despertou nos pais a consciência de
sua responsabilidade educadora. Esse fato era mais acentuado no
Oriente do que no Ocidente. Para convencer-se disso basta ler a
Didascália.
A Igreja não se substituía à escola, mas se esforçava para neu
tralizar a influência nefasta que os escritos e as instituições pagãs
podiam exercer sobre o jovem escolar. O que impressiona é a atitu
de francamente positiva, com poucas exceções, dos cristãos do sé
culo II a respeito da instrução e da cultura.
Se pais como Atenágoras e Teófilo — orientais — se mostram
reservados a respeito do ensino, Irineu afirma sua necessidade para
atacar os gnósticos, que pretendiam saber tudo.106 Tertuliano, seve
ro com os mestres, julgava o ensino da gramática indispensável para
203
a formação de cristãos capazes de enfrentar o paganismo.107 Um
século mais tarde, em 202-203, Orígenes, aos 17 anos, abriu uma
escola de gramática em Alexandria para ajudar a família, uma vez
que, tendo seu pai, Leônidas, sido martirizado, todos os seus bens
foram confiscados.108 Os Padres do século IV, em sua maioria for
mados na universidade, eram favoráveis à cultura clássica. Ficou
célebre o julgamento de Basílio, em uma “carta aos jovens”: Deve-
se seguir o exemplo das abelhas, que retiram o mel e deixam o vene
no.109
As epístolas pastorais haviam levantado a voz contra as jovens
viúvas ociosas, que andavam de casa em casa, e as havia aconselha
do a se casar de novo. “Se fossem apenas desocupadas! Mas são
também bisbilhoteiras e indiscretas e falam a torto e a direito".110
Em nenhum lugar se fala dos viúvos, que, sem dúvida, se casavam
de novo. A Igreja do século II, menos liberal, era mais reservada no
tocante às segundas núpcias,111 talvez por influência do monta-
nismo e das correntes ascéticas. Atenágoras condena-as;112 Irineu
ironiza os “casamentos acumulados”.113 Minúcio Félix permite que
o viúvo se case de novo só uma vez.114 Hermas115 e Clemente de
Alexandria116 renovam o conselho paulino aos coríntios: “A viúva
será mais feliz, em minha opinião, se permanecer como está”. A
Igreja encorajava os celibatários empedernidos a contrair matri
mônio, porque a idade não extingue o fogo, que continua a arder
sob as cinzas.117
O ideal cristão da vida conjugal e familiar se chocava com as
fraquezas humanas, que rapidamente puseram o problema da pe
nitência e da autoridade disciplinar da Igreja. Hermas, que nos nar
ra suas tribulações conjugais, verdadeiras ou fictícias, é testemu
nha importante nessa matéria.
Santidade e misericórdia
206
encontrou-o e falou-lhe: “Sou teu pai, estou desarmado e sou velho;
tem piedade, meu filho, não tenhas medo, ainda há esperança para
a tua vida!”
O bandido, a princípio arredio, deixou-se tocar pelo arrependi
mento e abandonou aquela vida. João o reconduziu à igreja e, “em
fervorosas orações, pediu a Deus sua graça, partilhou seus jejuns
continuados com outros e ganhou seu espírito por meio de inces
santes conversas". Purificação laboriosa, que se encerrou com con
versão e cura. O prestígio do grande apóstolo, “Filho do Trovão"
transformado em misericordioso, pesava muito nas comunidades
do Oriente, às quais ele ensinava o perdão.
Na metade do século II, as perseguições provocaram defecções.
A volta dos apóstatas punha um espinhoso caso de consciência, o
qual se reapresentou mais agudo ainda um século depois, quando a
perseguição de Décio causou um verdadeiro desastre. Na Ásia, pre
valeceu a posição dura. Ela era própria dos ascetas, apóstolos da con
tinência absoluta, cujo rigorismo era a cizânia da virtude forte.126
Dionísio de Corinto lhes escreveu, lembrando-lhes a liberdade
dos cristãos de escolher o matrimônio ou a continência. E lhes “or
denou que recebessem os que se convertessem de qualquer falta
que tivessem cometido”.127
Na Ásia Menor, certo número de mártires preconizava a mes
ma atitude intransigente com os apóstatas e recusava-lhes a peni
tência. A carta de Lião mostrou a atitude oposta de seus mártires,
“que não atavam ninguém e desatavam todo mundo”. A lição é evi
dente.
207
Moderação e humanidade contrastam aí com a intransigência
dos mártires da Ásia; levam a pensar naqueles “resistentes" que atri
buíam a si o direito de falar em nome dos que não falam, porque
estão mortos! A mensagem de Lião, impregnada de espírito evangé
lico, dava eco ao perdão de Cristo e ao de Estêvão e reconhecia
humildemente que só Jesus é “o mártir fiel e verdadeiro”.129
208
Ó morte, velho capitão, chegou a hora! Levanta a âncora!
Esse país nos enfada, ó Morte. Zarpemos!
O procônsul Parênis objetou a Apolônio o argumento que cor
ria pelas ruas: "Com tais idéias, Apolônio, deves amar a morte? —
Amo a vida, Perênis, mas o amor à vida não me leva a temer a mor
te. Nada é melhor que a vida, mas a vida eterna”.133
Para os cristãos, a morte era a porta que abre para a vida e para
o encontro entrevisto.
Deixai-me ser o alimento das feras; graças a elas, ser-me-á
concedido chegar a Deus. Sou o trigo de Deus, sou moído pelos
dentes das feras, a fim de tomar-me pão imaculado de Cristo...
Sou escravo, mas a morte tomar-me-á um liberto de Jesus Cris
to, pelo qual ressuscitarei.134
Os cristãos, mesmo os mais desejosos do martírio, nem sempre
tinham a ocasião de derramar seu sangue. A Igreja proibia toda pro
vocação e condenava toda temeridade. A maior parte dos fiéis mor
ria no leito, consumidos pela espera, pelos anos ou pela doença.
A Igreja velava pelos doentes e pelos fracos; confiava aos diá-
conos o atendimento a eles; para as mulheres, logo apareceram as
diaconisas; também as viúvas as visitavam.135 A unção dos doentes,
da qual fala são Tiago,136 deixou poucos vestígios nos dois primei
ros séculos. Irineu137 alude a uma espécie de exorcismo praticado
pelos marcosianos. É possível que se tratasse de um rito que se re
ferisse à epístola de Tiago:
Alguém dentre vós está doente? Mande chamar os presbíteros
da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome
do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor o porá de
pé; e se tiver cometido pecados, estes serão perdoados.
Esse texto contém mais obscuridade que informações. Refere-
se ao uso do óleo, que judeus e gregos empregavam para curar ou
fortalecer, para as enfermidades do corpo e para as lutas no estádio
e na palestra.138 As unções se encontram nos exorcismos e na ma
gia, como vimos entre os gnósticos de Lião, não sendo fácil encon
trar uma linha de demarcação. O óleo foi escolhido por razões tera
pêuticas ou por seu simbolismo sacramental? É difícil dizer.
209
Os presbíteros administravam a unção colegialmente, como as
igrejas orientais ainda o fazem hoje. Os efeitos esperados eram a
saúde e a remissão dos pecados cometidos durante a vida. Primeiro
rito de perdão na Igreja, antes do uso da penitência pública. A cura
evidentemente não era assegurada, do contrário, os cristãos teriam
tido o dom da longevidade, para não dizer da imortalidade. A famí
lia recolhia o último suspiro, beijando a boca do morto. O romano
acreditava que a alma saía pela boca.
As comunidades cercavam de respeito os corpos de seus defun
tos e cuidavam de sua sepultura. Encarregavam-se também do en
terro dos pobres e dos que não tinham família. Para os pagãos, o
supremo ultraje consistia em recusar a inumação dos cristãos e em
lhes negar os restos dos mártires. Quando podiam, os fiéis reco
lhiam com piedade seus despojos veneráveis. Assim, em Esmima,
não tendo recebido o corpo de Policarpo, eles reuniram “seus os
sos, mais preciosos que as gemas, mais provados que o ouro mais
puro”,139 e os levaram para lugar conveniente. Os milagres, nume
rosos na gesta dos mártires, muitas vezes são de redação posterior.
Os cristãos permaneceram fiéis aos costumes funerários de seus
países, mas evitavam os ritos pagãos, como o óbolo colocado na
boca do morto, para pagar a passagem na barca de Caronte, o bar
queiro dos Infernos; sua visão do além era totalmente diferente da
da mitologia. Mesmo nos epitáfios140 eles pouco diferiam dos pa
gãos, contentando-se com usar fórmulas estereotipadas, às quais
davam significação nova: Em paz! Em Deus! Mais tarde multiplica
ram-se os símbolos: o peixe, a âncora, a pomba, um orante, uma
orante, uma cena pastoril, evocando a felicidade paradisíaca. Nas
catacumbas de Hadrumeto (Sussa), as primeiras inscrições cristãs
eram traçadas com estilete ou com o dedo no gesso fresco.
Entre judeus, gregos e romanos, realizava-se a toalete do mor
to, que era ungido e perfumado, antes de ser embalsamado.141 Os
romanos punham o corpo em um leito enfeitado, vestido com sua
toga, junto com as insígnias de sua função. Em sinal de luto, apaga-
va-se o fogo do átrio doméstico. A Igreja reprovava como idolátrico
o costume de coroar o morto.
Na Grécia, para subtrair o morto ao sol, os funerais eram reali
zados à noite, à luz de tochas. Em Roma, o enterro era de dia; enter
ravam-se à noite só os pobres, os escravos e as crianças. Para eles
210
nada de sarcófago, mas uma caixão miserável, quando não eram
atirados em um poço do Esquilino. Os gregos enterravam em cai
xões de madeira, construídos de cipreste, entre outros. Além da
inumação, Roma praticava a cremação, que a Igreja de então não
adotava, em respeito à ressurreição dos corpos.143
A legislação romana não autorizava enterrar no recinto da ci
dade. As catacumbas de Roma, ao lado das artérias externas, espe
cialmente ao lado da Via Ápia, perto de São Sebastião, eram jazigos
de famílias cristãs, que ofereciam a seus irmãos e irmãs, de origem
modesta ou servil, a última hospitalidade. Foi só no século III que a
Igreja romana adquiriu e organizou seus próprios cemitérios. O
nome de Calixto, incorrigível homem de negócios, está ligado a essa
realização.
A Antiguidade desenvolveu luxo considerável para tudo o que
dizia respeito à morte: sarcófagos revestidos de baixos-relevos, ur
nas funerárias de mármore ou alabastro, de ouro ou prata, encerra
das em um cofrezinho. Desperdício de dinheiro que muitos medi
terrâneos renovam com ostentação. Basta visitar um cemitério corso.
Os cristãos continuaram, durante algum tempo, a ser enterrados,
como os judeus e os pagãos, em sepulturas antepassadas.
Como seus compatriotas, os fiéis da Grécia celebravam a refei
ção fúnebre nos dias 3o, 9o e 40o.144 Em Roma, os funerais termina
vam no nono dia, depois de uma refeição que reunia parentes e
amigos. O mesmo sucedia no dia aniversário, não da morte, mas do
nascimento do defunto.143 Essa refeição era tomada diante do
túmulo, ao ar livre ou em uma sala próxima. As escavações, na Áfri
ca e em Roma, desenterraram perto dos túmulos toda uma mobília,
visível ainda nas catacumbas de Domitila e de Priscila.
No tempo de Tertuliano, celebrava-se a eucaristia no dia ani
versário dos defuntos.146 Pinturas e esculturas das catacumbas re
presentam banquetes, que parecem aproximar em um mesmo sím
bolo a vida batismal, o mistério eucarístico, a refeição pelos mortos
e a felicidade bem-aventurada. O mesmo se pode dizer do Ichthys, o
Peixe, acróstico de Cristo,147 que era, ao mesmo tempo, símbolo
batismal e eucarístico e sacramento da imortalidade.
Como os pagãos, também os cristãos ofereciam refeições em
honra dos mortos, refeições essas chamadas refrigeria, nunca, po
rém, ofereciam ágapes, como às vezes se realiza hoje abusivamente.
211
porque a refeição de caridade, como vimos, era iniciativa puramen
te evangélica. Eles mudavam sua significação e davam-lhe caráter
social, convidando para ele os pobres, as viúvas e as outras pessoas
assistidas.148 As catacumbas nos conservaram pinturas de banque
tes funerários nos quais os pobres participavam da refeição. Isso
provavelmente explica os cestos cheios de pães dos afrescos e dos
relevos dos sarcófagos.149
O culto dos mártires nasceu do culto dos mortos. "A sua come
moração era uma recordação dos defuntos, saídos do quadro da
vida cotidiana".150 Na origem, as honras que lhes eram prestadas
não se distinguiam das que eram prestadas aos outros defuntos.151
Todavia, o testemunho que eles haviam dado pelo seu sacrifício tor-
nara-os membros privilegiados da comunidade, à qual incumbia,
em seu todo, a guarda de seus restos e a conservação de seu túmulo.
Aos poucos, os fiéis passaram a comemorar o dia aniversário de
seu martírio e não mais o de seu nascimento, como praticavam os
pagãos.
Temos a primeira atestação disso na paixão de Policarpo:
Depositamos seus restos em lugar conveniente. Lá nos reu
nimos, quando possível, com júbilo e alegria. O Senhor nos con
cederá festejar o dia aniversário de seu martírio, a fim de cele
brarmos a memória daqueles que já combateram, para formar
mos e prepararmos a substituição.152
A alusão à reunião junto ao túmulo e a celebração “com júbilo e
alegria", na descrição dos atos apócrifos de João, apresentam a reu
nião junto ao túmulo como “uma sinaxe (reunião) eucarística”.153
Tertuliano134 e a Didascália155 afirmam explicitamente que a comuni
dade celebrava a eucaristia sobre as relíquias dos mártires. Muitas
vezes, como no caso dos outros mortos, oferecia-se nessa ocasião
uma refeição em favor dos pobres e dos infelizes.156 Nas catacumbas,
onde dormiam irmãos e irmãs, a comunidade se reunia para cele
brar a eucaristia sobre o túmulo dos mártires e dos mortos. Os cris
tãos cobriam as paredes de orantes, no meio de árvores do paraíso,
para confessar sua fé no país do repouso, da paz e da luz.
A fé em Cristo ressuscitado abriu decididamente para a exis
tência cristã uma dimensão para a eternidade, mediante a transfe
rência do mistério da morte para o mistério da vida.
212
CONCLUSÃO
DO SONHO À REALIDADE
213
ao ar livre, que atraía curiosos, deslumbrava os pagãos e produzia
conversões. A fé parecia propagar-se por uma abundância de mila
gres.
A ingenuidade dos escritos apócrifos não nos deve enganar. A
quem percebe, além do prodígio, a significação, essas narrativas
ingenuamente maravilhosas, reduzidas à sua fonte de inspiração,
querem concretizar em “tecnicolor” a perturbação cósmica revela
da à fé e operada pela ressurreição de Cristo. A imaginação reduz a
lenda dourada o que foi prometido apenas à esperança.
O mesmo sucede quando se trata de perscrutar o acontecimen
to. “Ninguém sabe o dia nem a hora do retomo, nem o Filho do
Homem”, afirma o Evangelho. Em vez de ater-se a essa palavra de
Cristo, que embaraçaria os teólogos, a primeira geração — e o pró
prio Paulo, na primeira parte de sua vida — esperava o retomo
próximo do Senhor e, ao mesmo tempo, o fim do mundo. Toda uma
geração viveu essa tensão, a qual inspirou os escritos do meio ju-
daico-cristão.
O extraordinário sucesso do montanismo, que arrastou uma
cabeça tão bem formada como a de Tertuliano, deve-se inegavel
mente às promessas de uma parusia próxima, de uma redução da
espera e do desconhecido e de um tempo de apocalipse. Nada de
mais humano e mais natural do que refugiar-se nessa espera, com o
perigo de abandonar o cotidiano, a família e as responsabilidades e
de esvaziar o trágico cristão do que constitui sua verdadeira essên
cia. A psicanálise de certo desvio, que ameaçava os cristãos — e que
Nietzsche denunciou — tinha aí terreno da melhor qualidade.
Justino e Irineu, momentaneamente aturdidos pelo sonho, pro
jetaram a espera na realização terrena de um reino de mil anos.
Deve-se reconhecer que esse milenarismo tinha caráter episódico
em seus escritos, não paralisou sua ação nem embalou sua intuição
teológica.
Os pagãos da época, incapazes de discernir a essência do cris
tianismo de seus elementos adventícios, denunciaram em seus adep
tos a tentação da evasão, o gosto do trágico ou a procura da morte.
Desde suas origens e periodicamente no decorrer dos séculos, a Igreja
se viu obrigada a moderar o zelo dos temerários, que pretendiam
deter o tempo e a vida, em vez de situá-los em uma teologia da
história.
214
Outros se instalavam nessa história e reduziam a fé a uma gnose
ou a uma segurança da eternidade que a esvaziava de sua substân
cia e de sua tensão. Eles perdiam de vista que a fé não é instalação
no conforto nem construção de sistema para alegria do espírito,
mas confronto com o cotidiano e retomada diária do projeto, na
“espera ansiosa e obscura do Inaudito”.
O bispo Cipriano foi um modelo de equilíbrio e moderação.
Soube esperar, dando prioridade ao seu trabalho pastoral e não
hesitando em ocultar-se até o dia em que julgou que suas ovelhas
tirariam mais benefícios de sua confissão que de sua presença. Foi
o protótipo da maioria silenciosa e fiel.
Os que se sentiam mal na existência ou que desertavam sempre
foram exceções. Os outros — a grande maioria — viviam o heroísmo
do cotidiano e a tensão existencial da fidelidade criadora. Irineu
não se contentou com esboçar uma teologia da história, mas viveu
a condição cristã em uma liberdade que se construiu e que cons
truiu a obra começada pelas “duas mãos” do Pai.
A tarefa cotidiana que o cristão executava no seio de sua famí
lia, de sua profissão e da cidade não era, em primeiro lugar, a
exaltação de sua obra criadora pessoal, mas a inserção de sua liber
dade na economia regida por Deus. O que constitui o cristão e sua
mensagem ultrapassa sem cessar as realizações humanas, mesmo
as apostólicas. O cristianismo se apresenta como igreja da esperan
ça ou perde sua razão de ser.
Situado entre o presente e o futuro, entre o cotidiano e a pro
messa, o cristão, segundo Irineu, só constrói de maneira duradoura
à medida que aspira, com todo o seu ser, a ver Deus e a caminhar ao
seu encontro. O peso dessa esperança não entrava as responsabili
dades terrenas, mas desloca seu centro de gravidade, ligando-as à
mão invisível que é seu princípio e seu termo.
Inácio e Blandina, Justino e Perpétua e todas as testemunhas
anônimas de Lião, Roma ou Cartago permitem compreender que o
extraordinário do fato cristão não é o prodígio — o qual, não obstante,
multiplicou-se em suas “paixões” —, mas a fé, que transfigura a vida
cotidiana, e a esperança, que doma o trágico e atravessa a noite.
Para quem freqüenta as primeiras gerações cristãs, principal
mente os mártires, diariamente ameaçados e inseguros quanto ao
amanhã, o que impressiona é sua alegria de viver e sua serenidade
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diante da morte. Onde a filosofia só podia adensar a angústia, o
Evangelho, depois da noite, "despertava a aurora”. Os pagãos de
Lião e o imperador Marco Aurélio não puderam ou não quiseram
ler esse testemunho.
Na metade do século II, a espera do fim do mundo ainda levou
a vibrar a última página da Didaqué, mas progressivamente se ate
nuou, decantou-se e interiorizou-se, sendo substituída por desejo
mais pessoal de unir-se a Cristo na glória. O murmúrio de água
corrente que se elevava do mais íntimo da fé em Inácio e dizia:
“Vem para o Pai", era repetido pela geração dos primeiros cristãos
com um fervor que emocionava, com uma segurança que tranqüili-
zava e com a novidade dos corações desimpedidos. Àqueles que a
esperam vigilantes, Deus manifesta a aurora que clareia.
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