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A VIDA COTIDIANA DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

(95-197)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hamman, A.-G., 1910-


Avida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197) /A.-G. Hamman ; tradução Benôni Lemos. — São
Paulo : Paulus, 1997. — (Patrologia)

Título original: La vie quotidienne des premiers chrétiens 95-197.


Bibliografia.
ISBN 85-349-0834-6

1. Igreja - História - Igreja primitiva 2. Sociologia cristã - História - Igreja primitiva I. Título. II. Série.

96-3241 CDD- 270.1

índices para catálogo sistemático:


1. Igreja cristã primitiva : História 270.1

Coleção PATROLOGIA

• Antologia dos Santos Padres, C. Folch Gomes


• Os padres da Igreja, A.-G. Hamman
• História da Igreja, P. Pierrard
• Patrologia, B. Altaner e A. Stuiber
• Santo Agostinho e seu tempo, A.-G. Hamman
• História da teologia I— Período patrístico, R. Frangiotti
• História da teologia II — Período medieval, R. Frangiotti
• A leitourgia libertadora de Basílio Magno, Paulo D. Siepierski
• A vida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197), A.-G. Hamman
A.-G. HAMMAN

A VIDA COTIDIANA
DOS PRIMEIROS CRISTÃOS
(95-197)

PAULUS
Título original
La vie quotidienne des premiers chrétiens (95-197)
© Librairie Hachette, Paris 1971
Traduzido da 4S edição, revista e corrigida, de 1992

Tradução
Benôni Lemos

Revisão
Edson Gracindo

Capa
Visa

©PAULUS-1997
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (011) 570-3627
Tel. (011) 575-7362
hrrp://www.paulus.org.br

lísBN 85-349-0834-6
ISBN 2-01-019602-3 (ed. original)
INTRODUÇÃO

O historiador que explora período tão recuado como o século II


cristão tem a impressão de penetrar em uma caverna, de trocar a luz
pela escuridão. Nada se destaca, tudo está envolto em sombras. Ele
deve acostumar os olhos antes de explorar e descobrir. A descoberta
se toma longa paciência, e a paciência, fascinante descoberta: ver e
fazer reviver o que parecia definitivamente tragado pelo tempo!
Extraordinário quebra-cabeça, no qual devemos reunir as pe­
ças que o compõem — esparsas, incompletas e mutiladas —, a fim
de assistirmos à Igreja das origens reviver.
Renan chama de “embriogênese do cristianismo"1 a esse perío­
do; nele “a criança tem todos os seus órgãos, separa-se da mãe e
viverá, daí por diante, de sua própria vida”. A morte de Marco Auré­
lio, em 180, assinala, de alguma forma, o fim da antiguidade, a qual
ainda no século II brilhou com esplendor incomparável; assinala,
também, a chegada de um mundo novo.
No século III, a situação será outra, tanto para a Igreja como
para o Império. As comunidades cristãs, já florescentes, deixarão
vestígios impressionantes. É a época de grandes obras cristãs e de
grandes figuras cristãs, até de gênios; Cartago e Alexandria são os
lugares privilegiados desse florescimento.
Nada de comparável no século II. Os apóstolos desapareceram,
um após o outro; por último, João. Os que asseguram a continuida­
de cristã, impregnados de recordações apostólicas, unem a fideli­
dade à audácia, levam o patrimônio a frutificar e abrem largos ho­
rizontes para as novas gerações. No fim do século, Irineu de Lião
ainda lembra palavras do apóstolo João, colhidas da boca de
Policarpo, discípulo direto dele. E a Igreja, em vez de fechar-se em
um gueto, mostra-se à luz do dia e se põe perante a cidade e os
filósofos. Como se fustigada por sua juventude e sua vitalidade, não
5
teme o confronto, porque, vencedora ou vencida, ela é sempre be­
neficiada.
Geograficamente, a Igreja é mediterrânea e quase não ultra­
passa as fronteiras do Império. É auxiliada pelos meios de comuni­
cação: estradas e navegação, saneadas pelapax romana. Indústria e
comércio prosperam, favorecendo viagens e trocas. Os primeiros men­
sageiros do Evangelho são obscuros camelôs provenientes da Ásia
Menor, que vendem tapetes e especiarias em Marselha e Lião, em
Alexandria e Cartago.
Para a Igreja como para o Império, o Mediterrâneo é o grande
regulador das comunicações e das trocas, sejam comerciais, cultu­
rais ou religiosas. Não é tanto um mar quanto uma "sucessão de
planícies líquidas, que se comunicam entre si por meio de portas
mais ou menos largas”.2 A evangelização se adapta às estações da
navegação e aos ritmos das escalas nos portos, quando os navios pa­
ram, reabastecem-se e vendem suas cargas, continuando de roche­
do em rochedo, “de promontórios a ilhas e de ilhas a promontórios".3
Os cristãos levam a vida cotidiana das pessoas de seu tempo.
Residem nas mesmas cidades, passeiam pelos mesmos jardins, fre-
qüentam os mesmos lugares públicos — se bem sejam menos vistos
nas termas e nos teatros —, caminham pelas mesmas estradas e são
passageiros dos mesmos navios. Multiplicam os contatos, sempre
prontos a ajudar e a agir pessoalmente, exercendo todas as profis­
sões, menos as que não combinam com sua fé. Casam-se como os
outros, de preferência com correligionárias, a fim de terem a mes­
ma preocupação de rigor moral e de fidelidade recíproca.
Essa vida de todos os dias, a qual forma a trama da existência
cristã, apenas aflora nos historiadores, atentos mais aos grandes
acontecimentos e às grandes personalidades.
Para os adeptos de Cristo não há dificuldade em ligar o céu à
terra, porque, para eles, o gesto mais corriqueiro é carregado de sig­
nificação. Ligação com o mundo visível, mas também ruptura, em
nome do mundo invisível, seguindo-se uma situação pouco confor­
tável de presença e distanciamento, de participação e solidão, de
simpatia e confrontação.
Para reconstituirmos a vida dos primeiros cristãos, devemos
ter constantemente presente essa ambivalência e nunca perder de
vista seu ambiente humano e social. Temos alguns indícios e mui-
6
tas alusões, mas, para explicá-las, devemos recorrer às fontes co­
muns — historiadores, geógrafos e autores contemporâneos — as
quais nos permitirão recompor o contexto social e político da Igre­
ja em marcha.
Essa confrontação da antiguidade pagã e da antiguidade cristã
— raramente empreendida do ponto de vista do cotidiano — mos­
trará os cristãos entre seus contemporâneos, ao mesmo tempo pró­
ximos e diferentes, simpáticos a uns, suspeitos a outros e cada vez
menos despercebidos, em um período decisivo para o desenvolvi­
mento e a autonomia de suas comunidades. Resta-nos dessa época
certo número de documentos: livros, cartas, inscrições — funerá­
rias entre outras — e atos de mártires, aos quais vêm juntar-se os
testemunhos dos não-cristãos: funcionários, filósofos e escritores,
muitas vezes hostis ou céticos; viram a Igreja de fora, com os pre­
conceitos de suas castas ou de suas profissões, transmitindo-nos
assim o ambiente geral no qual o cristianismo cresceu.
No tocante às fontes, foi posta uma questão: podemos usar os
escritos de Tertuliano e de Clemente de Alexandria, ao menos os
que se situam nos primeiros anos de sua produção literária? Esses
escritos refletem muitas vezes uma situação mais antiga, encontra­
da por esses autores quando se converteram. Usá-las-emos com dis­
crição, na medida que corroboram ou esclarecem as informações
fornecidas por seus predecessores.
A releitura dos autores do século II exige tanto de imaginação
quanto de discernimento para se encontrar a história no presente e
descobrir os frêmitos da vida exaltante e frágil do cristão daquele
tempo: fazer ver, é certo, mas fazer ver os fatos.
Procederemos por patamares, da circunferência ao centro, isto
é, partiremos do ambiente para chegarmos à organização interna
da Igreja; de passagem, traçaremos o retrato dos membros mais
característicos da família cristã.4
E a vida de cada dia, pontuada pelas festas ou pelos ritos, per­
mitirá perceber a passagem do tempo. A conclusão surgirá por si: a
fé ilumina e transfigura a existência cotidiana como a lâmpada da
qual fala a carta de Pedro, a qual “brilha em lugar escuro, até que
raie o dia e surja a Estrela d’Alva, Cristo, em nossos corações" (2Pd
1,19).5

7
PRIMEIRA PARTE

O AMBIENTE
CAPÍTULO I

O QUADRO GEOGRÁFICO

Jerusalém-Roma: primeira etapa da progressão cristã.1 Nasci­


da na cidade santa dos judeus, a Igreja planta a cruz, durante a vida
de Pedro e Paulo, na capital do Império, para a qual convergem to­
das as vias terrestres e marítimas. Podemos imaginar o espanto do
pescador da Galiléia e de Paulo de Tarso, quando, entrando em
Roma, viram aqueles templos, aquelas termas, aqueles palácios cujas
ruínas, desafiando o tempo, ainda hoje nos causam emoção.
Bastou um apóstolo de gênio e uma geração de homens para
percorrer — em sentido inverso — as estradas abertas pelas legiões,
para sulcar toda a bacia mediterrânea e evangelizar Éfeso, Filipos,
Corinto e Atenas, para atingir, além de Roma, "os limites do Oci­
dente”,2 os quais, para os bem informados, só podem designar a
Espanha.
A implantação da nova religião foi suficientemente vigorosa para
inquietar o imperador Nero e desencadear, em 64, a primeira perse­
guição, a qual custou a vida a Pedro, primeiro bispo da Cidade Eter­
na, e ao Apóstolo das nações, decapitado fora da cidade, sem dúvida
na via Ápia, em 67. Não se ataca o que não existe e não ameaça.
Tácito traçou nos Anais o quadro patético de uma cidade arra­
sada pelo incêndio, na qual eram lançadas contra o imperador me­
galomaníaco as acusações mais infamantes. “Para cessar esse boa­
to, Nero suscitou acusados e infligiu as torturas mais refinadas a
homens — odiosos por causa de suas abominações — que o povo
chamava cristãos. Aquele do qual eles tomavam esse nome fora
entregue ao suplício pelo prefeito romano Pôncio Pilatos, no reina­
do de Tibério”.3
Pôncio Pilatos-Cristo: o Império como o juiz do Galileu, como
a testemunha de sua passagem e de sua ação. Virá a hora, e ela já
soa, em que o poder romano reconhecerá a vitória de Cristo. Tácito

11
reconhece a expansão do que ele chama “execrável superstição”,
não só na Judéia, onde ela se originou, mas também em Roma. A
polícia reuniu "multidão considerável”, a qual — na expressão do
historiador romano, hábil na elipse — foi sacrificada "não ao inte­
resse geral, mas à crueza de um só”. Os que escaparam prepararam
a continuidade.
A lista dos bispos que se sucedem em Roma, depois do apóstolo
Pedro, é instrutiva porque penetra na vida concreta da comunidade,
aberta às influências mais diversas e às vezes contraditórias, cadinho
no qual se fundem as nacionalidades e os nacionalismos.4 Entre os
catorze sucessores de Pedro, até o fim do século II, quatro são roma­
nos, três de origem italiana, cinco gregos, um ex-anacoreta, outro Hi-
gino, filósofo; Aniceto é de Emesa, a atual Homs da Síria; Vítor, que
fecha a lista, é africano, o primeiro a escrever em latim em Roma.
Essa sucessão reflete bem a extensão do cristianismo nos dois
primeiros séculos. A Ásia é representada por um só titular; os gre­
gos, por um terço. A primeira Igreja de Roma é tão pouco latina
quanto possível. Os cristãos falam o grego. Nela sírios, asiáticos e
gregos apátridas acolheram com fervor a mensagem do Evangelho.
O primeiro núcleo é formado por eles. Seguem-se autóctones e afri­
canos.
A penetração cristã se afirma desde o século II pela presença de
um bispo de além-mar em Roma. Agora o povo dos cristãos olha
como todos os povos conquistados, mas com outros olhos, para
Roma, a Urbs, a Cidade, metrópole espiritual consagrada pela pre­
sença e pelo martírio de Pedro. Progressivamente, o Evangelho se
liberta da tutela judaica e passa para as nações.

O mapa da Igreja no século II

Até o século II, a geografia cristã é mediterrânea e marítima.


Um mapa mostra que as Igrejas, no fim da época apostólica, estão
dispostas como um colar de pérolas ao longo da costa, de porto em
porto, de Azoto a Antioquia, passando por Jope, Sebaste, Cesaréia
da Palestina, Ptolemaida, Tiro e Sidônia.5 Bastava tomar um pe­
queno navio de cabotagem para ir de um porto a outro ou a uma
cidade da costa oriental.6
12
O rosto da Igreja no ano 112
Na virada do século I, a Igreja toma seu segundo fôlego. Penetra
no interior das terras na Síria e na Ásia Menor. Plínio, o Jovem, en­
contra muitos cristãos até nas margens do mar Negro. Esse procura­
dor de Roma, amigo do imperador Trajano, aceitara uma missão de
exploração na Bitínia, ao sul do mar Negro, com o título pomposo de
“legado para a província do Ponto e da Bitínia, com poder consular”.7
Uma carta de Plínio, de autenticidade incontestável,8 descreve
a progressão cristã. Estamos em 112, o século II mal começou e na
Bitínia, a mil quilômetros de Jerusalém e a dois mil e quatrocentos
de Roma, não só já é pregada a Boa Nova como também a comunida­
de cristã é bastante atuante para provocar inveja e denúncias e pôr
o legado romano em situação embaraçosa. Funcionário conscien­
cioso, mas escrupuloso, recorre ele ao imperador.
Sua carta é documento estritamente administrativo, mas da mais
alta importância, por causa das informações que contém, para ava­
liar a progressão do Evangelho, oitenta anos depois da morte de
Cristo. A resposta do imperador define pela primeira vez em um
rescrito a situação jurídica dos cristãos no Império.
A carta de Plínio a Trajano é também um lampejo da vida co­
tidiana dos fiéis da Ásia. O legado percorreu a região sob sua respon­
sabilidade, observou, comparou, julgou: os cristãos formavam "mul­
tidão considerável”.9 Seu número põe em perigo as instituições re­
ligiosas e sociais oficiais. "Vilas e campos estão invadidos": eis a
prova de expansão surpreendente, e isso no começo do século II.
Em geral, a evangelização começava pelas metrópoles e cidades e
limitava-se às grandes artérias e às principais vias de comunicação.
Em muitos lugares da Síria e da Grécia, da Itália e da Gália será
necessário esperar até o século IV, e mesmo o século V, para atingir
a zona rural. Nosso legado, preocupado com o estilo e o rigor jurí­
dico, não usa nenhuma hipérbole quando compara a um "contá­
gio" a nova religião, que já infectou a província do Ponto.
No tempo de Trajano, o centro de difusão do cristianismo na Ásia
já não é Jerusalém, mas Antioquia, encruzilhada de onde as estradas se
irradiam em todas as direções: a leste, para Palmira, o Eufrates e
Babilônia; ao norte, para Samosata e Zeugma. Graças ao porto de
Selêucia, era fácil viajar para Sidônia, Cesaréia e Jerusalém.10
13
Antioquia é cidade fervilhante, animada de dia e de noite, na
qual os homens de negócio e os cavaleiros-de-indústria do Oriente
e do Ocidente encontram-se para estabelecer relações frutuosas e
comerciar. Cidade magnífica, uma das mais belas do Império, com
suas ruas pavimentadas, seus templos, seus pórticos... A comuni­
dade cristã, aumentada com os fugitivos de Jerusalém, compõem-
se principalmente de fiéis de origem pagã, dentre os quais sairá, no
século II, o bispo Inácio, uma das nobres figuras de seu tempo. E o
percurso de Antioquia a Roma, que Inácio percorrerá, será empre­
endido também por muitos de seus compatriotas, por terra e por
mar. Na capital, são milhares, o que levou Juvenal a dizer: “O Orontes
sírio derramou suas águas no Tibre”.11 Os sírios espalham-se por
toda parte: no vale do Pó, na Gália e até nas bordas do Reno. Um
deles tem um albergue na Sicília;12 outro, uma casa comercial em
Pozzuoli,13 onde Paulo já encontra cristãos.14
Toda a costa oriental do Mediterrâneo, de Antioquia a Pérgamo,
já está estruturada em “igrejas", que gravitam em tomo de Éfeso e
Esmima. Era a província romana "da Ásia e da Frigia”, aberta, ao
norte, para o Bósforo e Bizâncio e, ao sul, para a Síria.
O porto de Éfeso oferecia seus vastos entrepostos, os quais o
transformaram no mercado mais próspero da Ásia:15 importava os
vinhos do mar Egeu e da Itália, e exportava a madeira e a cera do
Ponto, a lã de Mileto e o açafrão da Cilícia. Feiras de mercadorias e
festas religiosas atraíam multidões para ela. Era de tradição na ci­
dade uma grande efervescência espiritual. O templo de Ártemis con­
vidava o povo para lá.16 Os frígios veneravam Cibele, “a mãe dos
deuses”, que teve seu culto espalhado pelo Império até o Reno17 e
em todas as cidades de guarnição romana.18
A ação e a irradiação de Paulo e João provocaram o estabelecimen­
to de várias comunidades cristãs na Ásia Menor. As cidades mencio­
nadas no Apocalipse19 estavam situadas nas grandes artérias: o Evan­
gelho seguia a conquista romana e beneficiava-se de suas redes de
estradas. Pérgamo, no norte de Esmima, berço de Átalo, martiriza-
do em Lião, era uma espécie de “Lourdes” da antiguidade pagã. Tiatira
era conhecida por sua tintura de púrpura;20 Sardes, rica em reba­
nhos, era um mercado de tecidos: seu bispo, Melitão, em breve a
tomará célebre; Filadélfia era cidade industrial, na estrada para
Laodicéia,21 e mercado de lã; Hierápolis,22 mais no interior, tinha

14
uma comunidade desde o século I. Sua água dava às lãs coloridas o
mesmo brilho que a tintura do múrice.
Pouco depois da morte de João Evangelista, Inácio atravessa as
cidades asiáticas, cuja vitalidade e cuja organização avançada são
testemunhadas por suas cartas. Às igrejas de Éfeso e Esmima, já
mencionadas, juntam-se as de Trales e Magnésia, uma e outra na
grande estrada para Éfeso.
A população da Ásia Menor tinha uma aptidão excepcional para
o comércio e as disciplinas do espírito. Esmima é a capital inconteste
da “Segunda Sofistica”. Filostrato a compara ao cavalete da lira. O
Império lhe oferecia possibilidades inesgotáveis. De espírito vivo,
instruídos, eloqüentes e flexíveis ao ponto de se adaptarem a todos
os climas e a todas as situações, os habitantes da Ásia rapidamente
abriram caminho na sociedade cosmopolita de Roma. Os comer­
ciantes da Itália não tinham outro recurso senão associar-se a eles
ou desaparecer; eles são encontrados por toda parte em Roma e no
Ocidente e em toda parte eles têm loja. Romanos e marselheses
deviam dizer: vamos comprar "no chinês”, referindo-se ao merceeiro.
As inscrições atestam sua presença em Mainz, entre os helvécios e
na Grã-Bretanha.23 No século II, encontramo-los no vale do Ródano.
Provavelmente são mercadores da Ásia e da Frigia que, com os pro­
dutos do Oriente e com sua ciência médica, trazem também o Evan­
gelho. Dão à capital das Gálias seu bispo mais ilustre.
Terra generosa, na qual os homens são facilmente crédulos e
exaltados e prontos para o delírio místico, a Ásia Menor causou
rapidamente à Igreja preocupações que sombrearam o século II.
Na vila obscura de Ardabau, nas fronteiras da Frigia e da Mísia,
Montano, um recém-convertido de espírito exaltado, certo dia se
pôs a atrair a atenção de seu meio e, depois, das multidões com o
espetáculo de seus êxtases, e acabou tomando-se pelo Espírito San­
to.24 O movimento montanista se espalhou da Ásia até Roma e
Cartago, onde iremos encontrá-lo.25

Sob Marco Aurélio


Cinqüenta anos mais tarde, Marco Aurélio (161-180), o impera­
dor filósofo, sucede a Antonino. Sob seu reinado, a Igreja entra em
nova etapa. No tempo de uma geração, o mapa da Igreja se desdobra.

15
Ele se abre em leque da Germânia à Mesopotâmia (atual Iraque), do
Reno ao Eufrates e ao Tigre. As fronteiras do império romano são
atingidas e, no Oriente, na direção de Edessa e do reino parto, sem
dúvida ultrapassadas. Trier e Nísibe têm uma comunidade cristã.
A expansão se dá principalmente na costa africana do Mediter­
râneo, com seus dois “faróis”: Alexandria e Cartago. A navegação
facilitou a evangelização. O fervor dos convertidos operará o resto
no interior das terras. Desde o fim do século II, as igrejas de Cartago
e Alexandria produzem seus bispos e seus gênios.
Na Gália, os melhores portos onde desembarcam os levantinos
são Narbonne, Aries, Marselha e Frejus.26 Da costa podia-se ir a
Lião e Viena por via fluvial ou terrestre. Dessa região do sudeste, os
romanos formaram uma província, a Narbonesa, a qual subia até
Viena. Depois de Augusto, o resto do país, a “Gália cabeluda”, esta­
va dividido em três províncias: Aquitânia, Lionesa e Bélgica, tendo
Lião como capital deferal. O Reno era a fronteira que fechava o
Império ao norte.
Dentro desses limites, graças às trocas comerciais, desenvol­
via-se progressiva assimilação dos costumes e da civilização dos
vencedores. As classes dirigentes adotaram rapidamente o latim, e
os emigrados continuavam a falar o grego, ficando os dialetos
célticos confinados nos campos. Irineu se pôs a aprendê-los, mas,
homem culto que era, repugnava-lhe falar “esse dialeto bárbaro”.27
Em Marselha uniam-se a estrada do norte e a via marítima,
pela qual chegavam as mercadorias da Itália ou do Oriente. A ex­
portação incluía a cerâmica, a lã, o presunto e os salsichões, elo­
giados por Varrão,28 os queijos de Nimes e Toulouse, o óleo e o vi­
nho das margens do Reno ou de Beziers. Uma jarra encontrada na
Itália traz a inscrição: Eu sou um vinho de Baziers e tenho cinco
anos.29 Plínio chega a censurar os marselheses porque misturavam
água ao vinho de exportação.30
Toda a nata intelectual da Grécia emigrara para Marselha.31 Os
romanos freqüentavam sua escola de filosofia. A sua “faculdade” de me­
dicina era famosa32 e mantinha relações com Alexandria. Adeptos da
nova religião podiam facilmente insinuar-se entre essa migração crôni­
ca. Inscrições encontradas em Marselha parecem atestar a presença
cristã33 desde o século II. É bem possível que Crescente, do qual fala
Paulo na segunda carta a Timóteo, tenha sido enviado para a Gália.34
16
No século II, Lião não é só mercado para o comércio do trigo,
do vinho e da madeira, mas também um dos maiores centros de
manufaturas do Império, e muitos de seus artigos serão encontra­
dos na Germânia e na Inglaterra.35 Inscrições, esculturas e baixos-
relevos do século II ainda permitem medir o papel desempenhado
pela cidade da seda, centro das Gálias.36
O Império, para mostrar sua presença e sua autoridade, cons­
truiu na encosta (do bairro) Croix-Rousse um altar monumental à
glória de Roma e de Augusto.37 A consagração do altar era celebra­
da todos os anos com jogos e festas. As festas aniversárias servirão
de quadro para a paixão dos primeiros mártires. Depois das festas,
os gauleses voltavam para casa deslumbrados com o poder romano
e com os benefícios de sua presença.
A prosperidade de Lião atraíra numerosa colônia de orientais
da Ásia e da Frigia.38 Os primeiros cristãos vieram, como seus com­
patriotas, por razões profissionais. Alexandre39 era médico e esta­
belecera-se na cidade desde longa data. Quando os irmãos toma­
ram-se bastante numerosos para se constituir em “igreja”, pelo ano
150, as comunidades-mães lhes enviaram um bispo, Potino.
Em 177, a igreja de Lião, associada à comunidade de Viena,40
já era suficientemente importante para suscitar a atenção e moti­
var a perseguição. Os mártires, cujos nomes gregos e latinos conhe­
cemos, refletem a imagem da comunidade, na qual se misturavam
asiáticos e autóctones, comerciantes e mulheres ricas.41 Irineu,
que depois da tormenta sucede ao bispo Potino, governa agora as
comunidades, disseminadas da foz do Ródano às margens do
Reno.42 É que o Evangelho, segundo a penetração romana, chegou a
Trier e Colônia, mas não sabemos nada dos autores desse grande
esforço.43
Na costa africana estendem-se, do golfo de Gabes — e mesmo
da grande Sirte44 — ao oceano Atlântico, as três províncias roma­
nas da Proconsular, da Numídia e da Mauritânia. Cartago,45 “galera
ancorada na areia líbia” (G. Flaubert), dominadora dos mares e ri­
val de Roma, foi fundada pelos fenícios, vindos de Tiro e Sidônia. A
cidade dominava o golfo, na embocadura do Medjerda, na confluên­
cia dos dois Mediterrâneos, no lugar da atual Sidi-Bu-Said, de onde
o olhar vigia o mar e pode facilmente defender o istmo que liga o
promontório à terra.
17
Os fenícios, com seus balcões, trouxeram suas divindades, con­
tra as quais o Deus do Antigo Testamento levantou-se muitas vezes.
Em Cartago, o Deus dos cristãos foi precedido pelo Baal-Hamon
barbudo, com veste longa, uma tiara na cabeça e carregado por três
esfinges.46 Tanit era associada a ele: “Gorda, barbuda e de pálpe­
bras abaixadas, ela parecia sorrir e tinha os braços em torno de seu
grande ventre, polido pelos beijos da multidão”.
O tofet de Cartago e de Sussa imolava a Baal-Hamon e a Tanit
crianças, cujas esteias, no museu do Bardo, ainda hoje nos causam
arrepios. As proibições dos imperadores não conseguiram acabar
com essas práticas bárbaras. “Tomo como testemunhas, diz Tertu-
liano, os soldados de meu pai que executaram essa ordem dos
procônsules romanos. Os próprios pais vinham oferecer seus filhos
e se comprometiam a isso espontaneamente; na hora do sacrifício,
eles os acariciavam para que não chorassem”.47
Através de todas as vicissitudes de sua história, Cartago conser­
vou seus vínculos com o Oriente, graças aos navios que estabele­
ciam escala em seu porto. Ela fora totalmente destruída por Cipião;
seu solo fora “execrado” e nivelado, e o gado ia pastar em suas ruí­
nas. Os Gracos e, depois, César deram prova de realismo, recons­
truindo-a, e Augusto restituiu-lhe o brilho antigo. Roma e os númidas
exploraram suas ricas terras para a cultura do trigo. A partir do
século II, os Antoninos desenvolveram a rede de estradas e cons­
truíram monumentos, testemunhados até hoje pelas ruínas do aque-
duto, das termas e do anfiteatro, de beleza incomparável, cujos ves­
tígios permitem avaliar suas dimensões e sua suntuosidade.48
Quando o cristianismo chegou a Cartago, a cidade era o centro
geográfico, administrativo, cultural e comercial de uma Itália trans-
marina, rival de Alexandria e, como ela, celeiro de Roma e voltada
para o mar, símbolo de acolhida.49 “Nela tudo respira opulência”,
diz o africano Apuleio.50 Era a época da grande prosperidade eco­
nômica, alimentada pelo trigo e pela oliveira. A organização militar
do país acompanhava a exploração do solo, parecendo motivada
pelo desejo de estender-se até as estepes e a montanha.51
Nenhum texto, nenhum vestígio, nenhuma alusão literária men­
ciona as origens cristãs.52 Tertuliano, ainda próximo dos aconteci­
mentos, não fala delas. Agostinho/3 no século IV, contenta-se com
afirmar várias vezes que o Evangelho, como o fundador da cidade,
18
veio do Oriente. Muitos são os vínculos arquiteturais e litúrgicos
que unem essa igreja africana à igreja oriental.54 Tertuliano, que
podería ter sido uma figura tanto da literatura grega como da la­
tina, era traduzido logo depois de publicado.53 A influência do Orien­
te sobre a liturgia africana permite concluir pela dependência. A
arquitetura religiosa da África acusa parentesco certo com a do
Oriente, particularmente com a da Síria.56
Em Cartago, como em Roma, as primeiras conversões devem
ter-se verificado nas colônias judaicas, importantes nos portos da
costa e sem dúvida aumentadas com a chegada dos fugitivos que
haviam deixado Jerusalém, depois da vitória de Tito.57 Na necrópo-
le de Gamart, ao norte de Cartago, e em Hadrumeto (atual Sussa),
os túmulos dos judeus e dos cristãos se encontravam lado a lado.58
Mas as duas religiões não viveram por muito tempo em bons ter­
mos; como no resto do Império, não tardaram a se opor uma à
outra. A ruptura se consumou no tempo de Tertuliano.59 O autor do
Apologético conserva a memória do tempo em que o cristianismo
vivia ‘ a sombra" do judaísmo. A separação não o impediu de lem­
brar essa união fugaz.
Certo dia, portanto, o Evangelho aportou na cidade, em um na­
vio de cabotagem procedente da Palestina, do Egito ou da Síria, a
menos que tenha ido por terra, passando pelo Egito e pela Líbia. Os
primeiros convertidos foram alguns judeus emigrados e os doqueiros
que descarregavam os produtos do Oriente. Podemos imaginar a pri­
meira comunidade cristã como das mais mescladas, com seus ju­
deus emigrados, seus autóctones necessitados, seus gregos industrio-
sos e, mais tarde, com alguns latinos, cultos ou não. Como em Corinto,
a maioria era formada por pobres e por humildes de sangue mistura­
do. Seu temperamento vivo e apaixonado até a exaltação encontrava
afinidade com o que o Oriente religioso levava de fervor e inquieta­
ção. Falavam o grego, o púnico e o berbere, o suficiente para as neces­
sidades de seus trabalhos ou de seus negócios. Comerciantes e bur­
gueses davam preferência à língua púnica,60 especialmente nas cida­
des do litoral. Agostinho ainda era obrigado a traduzir para o púnico
palavras latinas que escapavam a uma parte de seu público.
O Evangelho se difundiu como o fogo no canavial, de lugar em
lugar, de cidade em cidade, entre as populações romanizadas do
interior. Essa progressão coincidia com a urbanização dessa pro-
19
víncia africana. Na metade do século II, chegou aos lugarejos e às
aldeias obscuras. As tribos gétulas, arredias às influências externas
e à erosão da história, descidas dos altiplanos para o comércio ou a
troca e às vezes para a rapina, foram tocadas pelo Evangelho antes
do fim do século, como afirma Tertuliano.61 O espírito de tolerân­
cia, próprio da África, explica, sem dúvida, essa progressão rápida,
que atingiu todas as camadas da sociedade. Como em Lião, os cris­
tãos no tempo de Marco Aurélio são bastante numerosos para
atrair os olhares e despertar as suspeitas. Em 180, uma perseguição
põe à prova a jovem igreja. As diligências, provocadas habitualmente
por denúncias populares, têm como alvo principalmente os humil­
des. E uma forma de ajuste de contas. Não deixa de ser curioso que
Tertuliano nunca fosse molestado. Sua estatura impunha respeito
aos romanos e admiração aos africanos.
Quando os primeiros mártires provam a vitalidade da igreja da
África, nossos olhos, surpresos, descobrem quão profunda é a pe­
netração do Evangelho além das cidades costeiras, até os contrafor­
tes do Tell e do deserto.
Felizmente, temos o documento que narra a morte dos primei­
ros mártires, os de Scili. É o primeiro texto cristão escrito em latim
e o primeiro documento conservado da igreja da África.62 Em 180,
doze cristãos, cinco aldeãs e sete aldeões — de uma aldeia tão insig­
nificante que até hoje não foi possível localizá-la — são denuncia­
dos, presos e, depois, decapitados em Cartago, no dia 17 de julho. O
Evangelho ultrapassou, portanto, largamente as cidades, como
Cartago, Madaura, talvez Cirta, Lambese e Hadrumeto, de modo
que a campanha é evangelizada e, pela vitalidade de seus cristãos,
provoca a perseguição. Os doze mártires são rurais, isto é, peque­
nos proprietários de terras ou colonos de alguma fazenda ou de
alguma empresa rural, talvez trabalhadores temporários.63 Seus
nomes haviam sido romanizados recentemente. São conduzidos
para Cartago, a fim de lá morrerem. A África conserva fiel e orgu­
lhosamente a lembrança de todos os seus mártires e celebra seus
aniversários de morte. Agostinho nos deixou dois sermões para a
festa dos mártires de Scili.64
Sob Marco Aurélio, a comunidade de Cartago, solidamente or­
ganizada, atrai a si um advogado brilhante, chamado Quintus Septi-
mus Florens Tertullianus, filho de centurião romano. O Império re-

20
crutava seus funcionários subalternos, civis e militares, entre a popu­
lação local, mas mandava da península os dos quadros superiores.65
Na época, a comunidade cristã dispunha de lugares de reu­
niões e de cemitérios. Tertuliano fala, com certa ênfase, "de milha­
res de pessoas dos dois sexos, de todas as idades e de todas as con­
dições”.66 Diz até que "em cada cidade mais da metade dos habitan­
tes são cristãos”, e acrescenta com orgulho que, se os cristãos se
retirassem, “as cidades ficariam vazias".67 No ano 197, o autor do
Apologético escreve: “Somos de ontem e já enchemos a terra e tudo
o que é vosso: as cidades, o comércio, os lugares fortificados, os
municípios, os povoados, os campos, as tribos, as escuderias, os
palácios, o senado, o fórum. Deixamos para vós só os templos”.68
Seja qual for a parte de retórica desse texto, não devemos es­
quecer-nos que o concilio da África, convocado por Agripino, sem
dúvida em 220 ou antes, reuniu setenta bispos. No fim do século II,
a África romanizada, em uma inversão do movimento, conquistou
seu vencedor: Vítor, bispo de Roma, e o imperador Sétimo Severo
são de origem africana.
Alexandria, cidade talvez de um milhão de habitantes, era a
segunda cidade do Império e seu principal mercado, pela impor­
tância de suas mercadorias e de seu comércio. Seu duplo porto,
interno e externo, junção da Arábia, da distante índia e dos países
banhados pelo Mediterrâneo, tornavam-na a ligação entre dois
mundos. Por ela passavam o marfim da África, as gomas e as espe­
ciarias da Arábia e o algodão e as sedas da índia. A grande metrópo­
le era ligada a Ásia setentrional por terra e por mar. A estrada pas­
sava por Pelúsio, Ostracine, Ráfia, Ascalão e Gaza, cuja importân­
cia estratégica durou até a guerra dos Seis Dias. Muitos viajantes
que iam da Judéia ou da Síria para Roma embarcavam em Alexan­
dria, em algum comboio de trigo. O Egito fornecia vinte milhões de
alqueires de trigo ao Império, um terço de seu consumo.69 Os car­
gueiros mistos levavam até seiscentos passageiros.70
A população de Alexandria era tão mesclada, tão colorida como
hoje. Gregos, sírios e árabes andavam lado a lado com comercian­
tes, turistas e provincianos, vindos para negócios ou para seguir
cursos de filosofia ou de medicina. O estrangeiro que entrava na
cidade pela porta dita do Sol ficava deslumbrado com o esplendor
das avenidas, ladeadas por colunas até a porta da Lua.
21
Os judeus eram tão numerosos como o são hoje em Nova Iorque.
Sua riqueza — e, dizia-se, a prática da usura — provocava pertur­
bações freqüentes, repetidas de século em século e disciplinadas
pelo bispo Cirilo no século V. Quando o Evangelho chegou à cidade,
estavam eles em plena prosperidade e ocupavam dois bairros da
cidade, especialmente o do Delta.71 Suas relações com a Palestina
eram freqüentes, graças às peregrinações a Jerusalém. Alguns deles
podiam estar entre os contraditores de Estêvão.72
É provável que os primeiros adeptos da religião cristã tenham
sido membros da comunidade judaica. Aberta a todas as influên­
cias, curiosa de todo saber, cadinho de raças e religiões, no qual a
versatilidade e a inquietação se uniam ao ceticismo e ao sincretismo,
a cidade de Alexandria deve ter dado aos primeiros evangelizadores
a mesma acolhida que daria em breve às elucubrações de Valentino
e de Carpócrates e a Apeles, discípulo de Marcião, que emigrariam
para Roma e Lião, onde Irineu não tardaria a combatê-los.73 Esses
dissidentes supõem a Grande Igreja.
Quando e como o Evangelho de Cristo chegou ao Egito? Na
falta de documentos, é difícil lançar um pouco de luz sobre o pro­
blema e separar a verdade da lenda. O historiador Eusébio refere,
sem apoiar, uma tradição que se gloria da ida do evangelista Mar­
cos.74 O mesmo autor nos conservou a lista dos dez primeiros bis­
pos.75 Graças a eles, pode-se remontar às origens, a partir de Demétrio,
que governava a comunidade em 189. Mas são nomes obscuros,
que nenhum vestígio, nenhum texto esclarecem.
É bem possível que Apoio, mencionado na primeira epístola
aos Coríntios, tenha-se convertido ao cristianismo no Egito, seu país,
como afirma um dos melhores testemunhos do texto.76 Os primei­
ros vestígios seguros nos são fornecidos por fragmentos de Evange­
lho, os quais remontam ao começo do século II.77 Os mais antigos
papiros cristãos que possuímos são escritos em grego. As traduções
da Bíblia (a começar pelo Novo Testamento e pelos Salmos) para a
língua copta, realizadas sem dúvida em Hermópolis, a Grande, apa­
receram no século III e atestam que o Evangelho já havia penetrado
no interior do país, quatrocentos quilômetros Nilo abaixo, o que
explicaria a lenda segundo a qual a Sagrada Família teria ido para
lá durante a perseguição de Herodes.78 Lá havia um bispo, de nome
Colono, o mais tarde em 250.79

22
Na cidade de Alexandria, na qual a cultura e a filosofia flores­
ciam, o cristianismo assumiu rapidamente aspecto intelectual, o
qual se tomou o orgulho da cidade, na qual sucediam-se grandes
nomes: Clemente, Orígenes, Dionísio, Atanásio, Ário, Cirilo. Desde
o fim do século II, pode-se falar de uma “escola” de Alexandria. Se
fosse possível provar a origem alexandrina da epístola aos Hebreus,
teríamos nela o primeiro documento sobre a vitalidade intelectual
da comunidade.80 A carta dita de Bamabé, escrita no século II, em
um meio culto judaico-cristão, no qual misturam-se influências di­
versas e no qual é inegável o prestígio de Fílon, o grande judeu-
alexandrino, podería assim ter vindo à luz em Alexandria, o que
explicaria em parte a estima que todos os teólogos da cidade ti­
nham por essa carta.
Pelo ano 180, Panteno, vindo sem dúvida da Sicília,81 fixou-se
em Alexandria, depois de longo périplo, que, segundo Eusébio,82
levara-o até à índia. Sua pessoa, que gostaríamos de conhecer me­
lhor, unia o fervor do evangelista à reflexão do doutor. Dirigiu a
escola dos catecúmenos, espécie de universidade cristã, na qual Cle­
mente encontrou o mestre e a luz que o levou à fé.
A comunidade cristã, já organizada, era governada por Demétrio,
bispo de grande estatura. Parece que compreendeu e favoreceu a
exigência intelectual da evangelização, arriscando-se a se indispor
com os mais brilhantes teólogos. Desde então, Alexandria era farol
que se irradiava para o Oriente e para o Ocidente, particularmente
para Roma. Eusébio cita laços estreitos que uniam a comunidade
egípcia aos irmãos da Palestina, fiéis em celebrar a festa da Páscoa
no mesmo dia.83
Parece que o bispo Demétrio ordenou os três primeiros bispos
que deviam dirigir as comunidades de Antinoé, de Naucrátis e de
Ptoloméia, cidades já helenizadas do Egito.84 Vinte outras igrejas
foram atribuídas ao seu sucessor, Heraclas. Segundo Eusébio, cris­
tãos do Egito e de toda a Tebaida, a parte meridional do país, foram
martirizados em 202, em Alexandria, o que permite concluir que,
no século II, o cristianismo já estava difundido pelo vale do Nilo.85
Por outro lado, devemos assinalar a penetração cristã na Ásia
oriental até o país do Eufrates e do Tigre (atual Iraque). Entre os
dois rios, Edessa (situada onde é hoje a cidade turca de Urfa), era a
capital de pequeno Estado independente, Osroene, encurralado entre
23
Roma e os partos.86 Graças à sua situação geográfica, era imenso
mercado das caravanas do Oriente, o que a abria para as influências
e as invasões do Leste e do Oeste. Outrossim, a proximidade de Harã,
onde Abraão morou por algum tempo, aumentava seu prestígio.
Trajano conquistou Osroene em 114, época que nos interessa.
O país reencontrou sua independência ao preço de sua sujeição a
Roma. Desde longa data o comércio da seda atraíra para Edessa
muitos judeus, os quais podem ter marcado o caminho da evan-
gelização. Alguns deles foram testemunhas, em Jerusalém, do Pen-
tecostes e da primeira pregação de Pedro.87 O apóstolo presumido
do país, Addai, era provavelmente de origem judaica.88 Eusébio
menciona uma lenda segundo a qual seu rei Abgar ter-se-ia corres­
pondido com Cristo — e o apóstolo Tadeu teria ido evangelizar o
país.89
Todos os historiadores antigos90 atribuem a Tomé a evange-
lização dos partos e dos persas, o que já é atestado por Orígenes.91 A
partir do século III, o túmulo desse apóstolo era venerado em
Edessa.92 Sobre essa tradição, talvez lendária, insere-se outra, não
necessariamente incompatível com ela, segundo a qual esse mesmo
apóstolo teria evangelizado a índia,93 convertendo o rei Gundafar;
martirizado, sua primeira sepultura teria sido em Mailapur (ar­
rabalde de Madras). É provável, em todo caso, que os atos de Tomé
tenham sido redigidos em siríaco, em Edessa, no começo do século
III. As seitas gnósticas da época tomaram o apóstolo Tomé uma
espécie de personagem mítica, confidente de revelações do Salva­
dor. Tradição ou lenda, seu pretenso itinerário apostólico ao menos
traça a rota que o Evangelho tomou logo para chegar ao reino da
índia.
É certo que no fim do século II Edessa estava evangelizada e
tinha uma igreja, que podia parecer-se com a de Dura.94 Durante a
controvérsia pascal, por volta de 190, “bispos de Osroene e das cida­
des do país”95 tomaram posição e intervieram em Roma. Resta-nos
o nome do bispo Palut, ordenado por Serapião de Antioquia.96 Aggai,
que parece ter sido seu sucessor, morreu mártir.97
Em todo caso, no fim do século II, o Evangelho estava difundi­
do pelo país e várias comunidades estavam fundadas.98 Se é verda­
de que o rei Abgar IX (179-214), contemporâneo de Sétimo Severo,
converteu-se ao cristianismo, a longínqua Osroene terá fornecido à
24
Igreja a primeira família cristã reinante e facilitado a penetração do
Evangelho.
Duas outras personagens atestam a vitalidade da nova religião
na Mesopotâmia: Taciano e Bardesanes. A importância literária de
um e outro mostra que o Evangelho já havia sido pregado eficaz­
mente aos sábios e aos filósofos até as margens do Tigre. No Discur­
so aos gregos, Taciano confessa: “Nasci no país dos assírios e fui
instruído em vossas doutrinas. Mais tarde, convertei-me e fui ini­
ciado nos ensinamentos que professo no presente”.99
O berço de Taciano devia situar-se a leste do Tigre. Seus pais
falavam provavelmente o siríaco. A procura da sabedoria o condu­
ziu, como a muitos outros, dos confins do mundo civilizado, atra­
vés da Grécia, até Roma, onde se converteu e tomou-se discípulo
do filósofo Justino, que tinha lá uma escola. Depois da morte de seu
mestre, escreveu seu Discurso aos gregos, aceitou as teses rigoristas
das seitas gnósticas, voltou para o país de seus antepassados e redi­
giu uma Harmonia dos quatro Evangelhos, o Diatessaron, que ficou
por muito tempo em voga na Igreja siríaca e do qual foi encontrado
um fragmento, em 1933, em Dura Europos, às margens do Eufrates.
Outro escritor de Edessa, Bardesanes, nascido em 156, amigo
de infância do rei Abgar IX, foi um dos primeiros poetas a compor
hinos litúrgicos em siríaco. Parece que quis tentar, na confluência
das culturas e dos povos, uma síntese da lei cristã e da ciência.100
Desde o fim do século II, Edessa aparece como foco de intensa vita­
lidade literária e intelectual, no qual foi forjada a língua siríaca cristã,
e como o ponto de partida da penetração cristã na Armênia, na
Pérsia e no leste da Ásia.
Bastaram só dois séculos para que os herdeiros espirituais do
“Israel novo”, do qual fala são Paulo, levassem a luz do Evangelho à
terra de seu longínquo antepassado, Abraão, que outrora estreme­
ceu ao ouvir a promessa.

25
CAPÍTULO II

VIAS E MEIOS DE PENETRAÇÃO

"A presença de Roma deu unidade ao mundo. Todos devem re­


conhecer os serviços que ela prestou à humanidade, facilitando suas
rélações e permitindo-lhes gozar em comum dos benefícios da paz”.1
De fato, no século II, o império romano explorava plenamente sua
vitória e desfrutava de prosperidade nunca atingida. A paz romana
não era um mito: aos cristãos da época, parecia dom do céu. Aristides,
em sua célebre filípica “sobre Roma”, afirmou: "O universo inteiro
não é mais que uma cidade”. A terra e o mar estavam seguros; as
cidades, tranqüilas e prósperas; as montanhas e os vales, cultivados,
e os mares, sulcados por navios que transportavam os produtos do
universo inteiro.2 Podia-se ir do Oriente ao Ocidente,3 do Reino e do
Ródano ao Eufrates e ao Tigre sem deixar a terra romana.
Cristãos e pagãos da época elogiavam a era de paz que, de Augusto
a Marco Aurélio, favorecia a organização e o cultivo das terras con­
quistadas, o surto da indústria e da agricultura, os negócios e a ri­
queza, mas também os intercâmbios culturais e religiosos, pelos
quais o Oriente se vingou de seu vencedor, levando-lhe sua língua,
sua arte e sua religião.
Com a paz, Roma trouxera a segurança, limpando a terra dos
salteadores e o mar, dos piratas. O contraste era muito grande para
quem se aventurasse além das fronteiras do Império. Díon Crisós­
tomo, no tempo de Trajano, sentiu-o na pele ao viajar pela Trácia (Bul­
gária) e pela Rússia.

As viagens
O fenômeno migratório através do Mediterrâneo no tempo de
Filipe II, do qual fala Femand Braudel,4 já existia sob os imperado­
res romanos. O Mediterrâneo sempre teve o gosto da aventura. Da

26
Antiguidade aos nossos dias o que mudou não foi o sentido da via­
gem, mas seu ritmo.
A rede viária traçada através do Império pelo deslocamento das
legiões romanas serviu para as trocas e os negócios. As artérias prin­
cipais continuaram a ser protegidas militarmente. Todas as vias de
terra e mar convergiam para Roma, capital e centro do Império e
do mundo. É necessário evitar tirar argumento em favor do prima­
do romano da passagem de um cristão por Roma: por ela se passa­
va necessariamente, como fez Irineu, quando foi para Lião.
De Roma podia-se ir por terra à ponta da Bretanha, à foz do
Reno e do Danúbio, a Atenas e a Bizâncio e, além do Bósforo, atra­
vessando a Ásia Menor, até Nínive. Uma via romana ligava o Nilo
ao Atlântico, ao longo da costa africana. Em Alexandria, ela se liga­
va à estrada para a Ásia.5 Através do Império, a ordem viária coman­
dava a ordem humana. A história da estrada era a história da re­
gião. Se o comércio prosperava, a estrada se modernizava; do con­
trário, ela se degradava. As estradas fizeram nascer cidades e facili­
taram os intercâmbios.
Para os viajantes existiam cartas viárias com as estações de
troca de animais, as distâncias e as estalagens. Em Vicarello, per­
to do lago Bracciano, na Itália, lugar muito visitado por causa de
suas águas, as escavações encontraram três vasos de prata, na for­
ma de colunas miliares, com o itinerário completo de Gades (Cádiz)
a Roma. Eram de espanhóis que tinham ido lá para tratamento.6
Existe outro guia, o Itinerário de Antonino, que remonta a Diocle-
ciano.
A principal via romana era o Mediterrâneo. Ele banhava todas
as províncias, do Oriente ao Ocidente, unia-as, aproximava-as e favo­
recia os intercâmbios e os encontros. É correta, pois, a afirmação
de um historiador: “O Mediterrâneo são estradas’’.7 Estradas que
ligam a terra às ilhas, as ilhas à terra, a Ásia à Grécia, o Egito à África
e à Itália. As rotas marítimas criam os portos e comandam a nave­
gação; nos portos os navios encontram o reabastecimento e a segu­
rança, e, na estação do inverno, quando as viagens são impossíveis,
abrigo e repouso.
Não é de estranhar, assim, que ilha tão freqüentada como
Chipre se tenha tornado cristã bem cedo.8 O mesmo se diga de
Creta: o Evangelho foi levado a ela, no século II, graças aos navios
27
procedentes da Síria ou da Ásia que invernavam em seus portos.
Os passageiros cristãos, como Paulo anteriormente, dedicavam-
se durante a estação morta — ou seja, durante os quatro meses de
inverno, de 10 de novembro a 10 de março —9 a anunciar o Evan­
gelho.
Em todo o contorno do Mediterrâneo os portos tinham impor­
tância vital. Roma, como as maiores metrópoles da época — Ate­
nas, Antioquia, Éfeso, Alexandria, Cartago —, era um porto.
Os navios mercantes, de forma redonda, tinham apenas vinte
remos, manejados por libertos ou homens livres, que serviam para
fazer o navio virar de modo a aproveitar o vento, não para fazê-lo
avançar.10 O navio romano era de bordas baixas, sem ponte, com cor­
redores ou passarelas11 e às vezes com abrigos sumários na proa ou
na popa. Geralmente centenas de passageiros não encontravam pro­
teção neles.
No Mediterrâneo muitas vezes se navegava à noite, quando o
vento se levanta, à luz das estrelas,12 na costa ocidental da Itália, de
Pozzuoli a Óstia, mas também na costa da Grécia. Na falta de leme,
o timoneiro guiava o navio com um remo leve;13 evitava o alto-mar
e conduzia a embarcação à vista da costa.
O /szs, grande cargueiro de trigo entre Alexandria e Roma, na
época dos Antoninos, levava 1.146 toneladas de cereais, mais que
uma fragata do século XVIII.14 O navio de Paulo transportava 276
passageiros. O historiador Josefo embarcou para Roma com 600
pessoas a bordo.15 População cosmopolita de sírios e asiáticos,
egípcios e gregos, cantores e filósofos, comerciantes e peregrinos,
soldados, escravos e simples turistas, na qual se misturavam to­
das as crenças, todos os cultos, todos os cleros. Que felicidade para
o cristão anunciar o Evangelho como Paulo, o modelo do viajante
cristão.
Os navios eram tão rápidos como no começo do século passado
(século XIX), quando Chateaubriand precisou de cinqüenta dias
para ir de Alexandria a Túnis, e Lamartine, de doze de Marselha a
Malta.16 A velocidade era função do vento: sendo favorável, ia-se de
Corinto a Pozzuoli em cinco dias,17 de Nápoles e Alexandria em
doze,18 de Narbona à África em cinco.19 Catão foi de Roma à África
em menos de três dias.20 Nessa velocidade, teria ido de Liverpool a
Nova Iorque em dezoito dias, sendo que Benjamin Franklin, em

28
1775, realizou esse trajeto em quarenta e dois dias. Segundo um
papiro, uma travessia de Alexandria a Roma durou quarenta e cin­
co dias. Tudo dependia das condições atmosféricas e do número
das escalas; de Alexandria a Antioquia, elas eram trinta e seis; de
Alexandria a Cesaréia, dezesseis.21 Cícero, ao voltar da Ásia para
Roma, embarcou em Éfeso, em Io de outubro, e chegou à cidade
eterna em 29 de novembro, após dois meses de viagem.22 É verdade
que a estação avançada não era favorável. Deve-se atribuir, sem
dúvida, à invenção da vela quadrada as velocidades recordes cita­
das por Plínio.23 O linho, com o qual era confeccionada a vela, en­
curtou as distâncias e aproximou as terras.
As escalas de simples ancoragem e as longas permanências de
inverno permitiam aos viajantes encontrar seus compatriotas no
porto e conseguir novos conhecimentos. O temperamento afável
do oriental, ajudado muitas vezes pela profissão ou pelos negó­
cios, e o uso universal da língua grega, falada em todas as cidades
portuárias, de Alexandria a Lião, facilitavam a propagação do Evan­
gelho.
No navio, a vida comum e, às vezes, os perigos, criavam laços
espontâneos de solidariedade, que aproximavam naturalmente as
pessoas. A viagem de Paulo para Roma mostra que o naufrágio era
mais freqüente do que um descarrilamento de trem hoje.
A viagem por terra era menos confortável e muitas vezes menos
rápida; e, longe das grandes artérias e nas regiões montanhosas, me­
nos segura. Algumas regiões, como a Sardenha e a Córsega, eram
célebres por seus bandos de salteadores.24 Os mais modestos viajavam
a pé, com as vestes arregaçadas, com um mínimo de bagagens e pro­
tegidos da chuva por um manto; outros, em dorso de mula ou de
cavalo. O pedestre realizava etapas de trinta quilômetros por dia.25
A carruagem puxada por dois cavalos era o transporte mais con­
fortável. Na falta de cabresto, a tração animal perdia eficácia.26 A
carruagem pesada de quatro rodas, de origem gaulesa, puxada por
oito ou dez cavalos ou burros, transportava muitos passageiros e
bagagens.27 As prescrições imperiais limitavam o peso da carga em
veículos de passageiros em 200 a 300 quilos e no máximo em 500
quilos em transportes pesados. Em todas as estações de muda de
animais encontravam-se donos de burros e de animais de carga e
alugadores de carruagens, organizados em corporações.
29
Os viajantes
Nessa época, mais que em qualquer outra da história, a via­
gem era a condição da atividade comercial; uma inscrição nos in­
forma que um homem de negócios de Hierápolis, na Frigia, a cida­
de de Pápias, foi a Roma setenta e duas vezes,28 empreitada impres­
sionante mesmo hoje, quando se pode usar o avião!
A prosperidade e a paz, facilitando o intercâmbio, aguçavam os
apetites. O Império do século II ostentava um luxo e um refinamen­
to na escolha dos tecidos e dos materiais que justificam o surto da
indústria e a intensa circulação de bens e pessoas, ao que se deve
acrescentar o emprego de uma moeda comum, isto é, da base de
transações cada vez mais numerosas e intensas.
Foi encontrado na Bélgica um basalto negro procedente do gol­
fo de Suez.29 A púrpura vinha da Síria, a cera, do mar Negro, as
ostras, de Éfeso, as trufas, de Mitilene (Ásia Menor), o óleo e o vi­
nho, das encostas do Ródano, os gansos, de Boulogne-sur-Mer ou,
caso se preferisse do Ponto.30 Roma era insaciável e inventava ne­
cessidades que se recomendavam aos privilegiados por sua rarida­
de e seu preço elevado.
Os negociantes, especialmente os do Oriente, reunidos em cor­
porações nas cidades principais,31 em suas viagens encontravam
estações de muda junto a seus compatriotas, muitas vezes varejis­
tas que eles iam abastecer e aos quais levavam notícias do país.
Outros viajavam para satisfazer a curiosidade ou melhorar a
cultura. Os estudantes freqüentavam as escolas ou os mestres céle­
bres de Atenas, Alexandria, Roma, Marselha e Lião. Em Atenas, os
estudantes eram tão numerosos que a pureza da língua saía per­
dendo.32 Curiosidade de espírito e despertar da inteligência se
uniam, nos mais nobres, para procurar a sabedoria, como no caso
de Justino; em outros, para saciar a ambição — mais utilitária —
de tornar-se retor, sofista, médico, comediante ou escultor.33 Não
havia fronteiras para o saber. O Império concedia a todos o visto
para o conhecimento.
As grandes festas religiosas, os jogos de Roma ou de Olímpia,
os mistérios de Elêusis e os centros médicos, como Pérgamo,
atraíam as multidões e os artistas. Os judeus mobilizavam navios
inteiros (já era o sistema de fretamento) para celebrar a Páscoa em
30
Jerusalém.34 Outros viajavam por prazer, e havia até peregrinos que
eram principalmente “turistas".35 Plínio36 oferece uma observação
que não perdeu nada de sua atualidade: “Nossos compatriotas per­
correm o mundo e ignoram o próprio país”.
No século II, os cristãos iam à Palestina como peregrinos.
Melitão foi da Ásia Menor; Alexandre, da Capadócia, a Turquia atual;
Piônio, de Esmirna. Um século mais tarde os peregrinos se tinham
multiplicado. Etéria partiu de Bordéus e percorreu todo o Oriente
bíblico; felizmente, ela nos deixou seu diário de viagem.37
A viagem era acontecimento também para os que ficavam em
casa: parentes e amigos acompanhavam até o porto aquele que par­
tia e permaneciam com ele até que os ventos favoráveis levassem o
navio para alto-mar. É o mesmo espetáculo que vemos hoje nos
aeroportos da Ásia e da África. Quando o viajante era cristão, era
acompanhado pela comunidade: era o mensageiro e o nexo vivo
com os outros irmãos e as outras igrejas.
É difícil imaginar a efervescência dessas populações nos navios
e nos portos, essa confusão de soldados e funcionários, de carroças e
animais de carga pelas estradas. Entre tanta gente, alguns são cris­
tãos ou em via de sê-lo. Nada os distingue dos outros viajantes, a não
ser uma luz secreta, que os conduz. De cidade em cidade, observaram,
ouviram e acabaram encontrando a luz do espírito e a paz do cora­
ção, como Justino e Clemente, discípulos ontem, mestres amanhã.
Outros cristãos, como Hegesipo, viajam para sua informação.
Interrogam as igrejas, em Corinto, em Roma, para conhecer me­
lhor “a verdadeira doutrina junto às igrejas mais importantes”.38
Um pouco mais tarde, Júlio Africano, nascido em Emaús, descen­
dente de veteranos instalados lá por Tito,39 visitou Edessa, Roma e
Alexandria.40 Abércio, bispo de Hierópolis, na Ásia Menor, foi a Roma
e, depois, percorreu o Oriente até as margens do Eufrates.41
Roma, capital do Império e logo da Igreja, era a comunidade
mais visitada e mais solicitada. Quem ia para a Gália e a Espanha
devia passar por lá. Policarpo foi a Roma procedente de Esmirna,
Valentino, do Egito, Marcião, de Sinope, no mar Negro, Evelpistos,
discípulo de Justino, da Capadócia, Rodon, da Ásia. Alguns foram
contra a vontade, como Inácio de Antioquia e, sem dúvida, os dois
discípulos de Justino, martirizados com ele, levados como escra­
vos.42 O herege Hermógenes deixou o Oriente para se fixar em
31
Cartago;43 Apeles foi de Roma para Alexandria.44 Essa migração
cristã se desenvolveu e se ampliou e carregou o melhor e o pior. No
século III, Orígenes se deslocou de Alexandria e de Cesaréia da Pa­
lestina para Tiro e Sidônia, para Bosra e Antioquia, para Cesaréia
da Capadócia, Atenas e Roma. A hospitalidade, virtude antiga, tam­
bém se tomou cristã.

As hospedarias45

Nas grandes artérias havia estações de muda para cavalos e


burros, hospedagens para a noite e tavemas para a comida e a bebi­
da. Os Atos dos Apóstolos mencionam as Três Tavemas,46 estação
de muda na estrada de Pozzuoli a Roma, a quarenta e sete quilôme­
tros da Cidade.
As estações de muda não tinham nem o conforto nem a quali­
dade dos hotéis de praia ou das cidades turísticas. Na cidade, o
viajante podia escolher. Às vezes o proprietário — ou sua mulher —
ficava de espreita na porta para apregoar sua casa e atrair o clien­
te,47 mas esse procedimento nem sempre dava bons resultados.
Aristides se queixa da falta de conforto das hospedarias na es­
trada de Kavala para Dyrracchium (Durrês), na Albânia.48 Em ge­
ral, as hospedarias eram mais rudimentares na Europa do que na
Ásia, porque o mesmo Aristides, viajando entre Esmima e Pérgamo,
considera muito natural passar por uma hospedaria, renomada por
seu conforto, antes de dirigir-se a uma casa amiga.49 O Itinerário de
Antonino menciona três tavemas na estrada de Durrês a Bizâncio.
Muitas tavemas tinham placas com nomes de animais: Ao Ca­
melo,50 Ao Elefante51 (em Pompéia), Ao Galo, na Gália e na Espanha,52
Ao Jumento, na Inglaterra.53 As inscrições querem ser convidativas:
“Bons serviços, banhos, conforto como na capital".54 Eis outra, das
mais sedutoras, de Lião:

Aqui Mercúrio te promete negócios,


Apoio, a saúde,
E Septumanus (o proprietário), acolhida e repouso.
Quem entra se sentirá melhor.
Considera onde te encontras.55

32
No sul da Gália, as hospedarias gastavam mais para atrair os
hóspedes. Em Antibes, pedia-se ao viajante que lançasse os olhos
sobre o cardápio e sobre a carta dos vinhos, gravada em uma placa
de cobre, na entrada da tavema.56 Uma tavemeira síria, mais mali­
ciosa, prometia: "Frescor, refeições com queijo e frutas, vinho, dan­
ça e amor”.57 Às vezes, um quadro de cobre mostrava os preços.58
Temos informações sobre os preços e sobre os agrados do car­
dápio, graças à saborosa conversa de um cliente com o hoteleiro:
“— Patrão, vejamos a conta!
— Bebeste um sextário de vinho (ele parece não incluído na
adição). Pão: um asse.
— De acordo.
— A moça (prostituta): oito asses.
— Ainda de acordo.
— O feno para o burro: dois asses.
— Eis um burro que me está saindo caro”.59 Ele é discreto so­
bre as outras despesas!
As tavemas tinham má reputação. O direito romano reconhe­
cia que elas praticavam a prostituição;60 o tabemeiro passava por
avaro, ladrão e um pouco proxeneta; sua mulher,61 por feiticeira, e
a criada, por prostituta.62 Acusava-se o tabemeiro de misturar água
ao vinho dos clientes e de roubar o feno dos animais.63 Nenhuma
higiene, pouca honestidade, muita licença; não era necessário ser
exigente ou formalista para não se arriscar em tais lugares.
O humor popular ridicularizava de todas as maneiras o taber-
neiro ladrão; rapidamente ele se tornou personagem tradicional da
sátira, da comédia e dos provérbios. A mais célebre empregada de
albergue foi Helena, mãe do imperador Constantino.64 Ela se con­
verteu ao cristianismo e influenciou seu filho e o curso da história.
Em Pompéia foram encontradas muitas tavemas. Uma delas
tem um átrio, duas salas de refeições, uma cozinha e um quarto
decorado com pinturas eróticas que não deixam dúvida sobre sua
destinação.65 Mesmo os luxuosos hotéis das estâncias hidrominerais
eram considerados lugares de encontros amorosos, nos quais as
grandes fortunas não eram raras.
Freqüentados principalmente por pessoas de condição modes­
ta, como cocheiros e muleteiros, os caravançarás e as hospedarias
tinham fama de sujeira, barulho e falta de conforto.66 Nelas o hós-
33
pede podia refletir sobre a situação do estrangeiro sem amigos nem
conhecidos. Isso explica a importância que a Antiguidade, tanto
pagã como judaica e cristã, deu à hospitalidade privada e pública.

A hospitalidade

Deve-se ter presente ao espírito essas condições de viagem para


se compreenderem bem as exortações das cartas apostólicas67 e dos
escritos cristãos quando falam da hospitalidade.68 A Antiguidade
atribui a ela caráter quase sagrado. O estrangeiro que passava a so­
leira da porta era considerado mensageiro dos deuses ou de Deus.
As cidades, as corporações e os membros das associações pratica­
vam o dever recíproco da hospitalidade.69
O judaísmo tinha em alta estima a recordação de seus pais e
mestres que haviam acolhido os hóspedes de passagem: Abraão,
Ló,70Rebeca,71 Jó72 e a cortesã Raab.73 De Jó está escrito:
O estrangeiro não passava a noite fora,
Eu abria minha porta ao viajante.
Esses modelos antigos são lembrados por Clemente em sua carta
aos cristãos de Corinto, quando ele, como bispo de Roma, exorta-os
à hospitalidade.74 O elogio da hospitalidade está no Evangelho;75 os
outros escritos do Novo Testamento insistem no dever da acolhida
e explicam sua motivação espiritual. Quem recebe o estrangeiro
recebe o próprio Cristo.76 Esse é um dos critérios para ser acolhido
na casa de Deus.
A terceira carta de João ou de João, o Ancião, enviada a Gaio, leva-
nos a uma comunidade da Ásia Menor — e, com isso, permite-nos
diminuir a idealização da comunidade primitiva. O chefe local era
pouco acolhedor e não aceitava os pregadores itinerantes. Demétrio,
sem dúvida o portador da carta, é da confiança de João e provavel­
mente um missionário do Evangelho. Ao destinatário, conhecido por
sua prudência e pela afabilidade de sua acolhida, o autor escreve:77
Caríssimo, procedes fielmente agindo assim com teus irmãos,
ainda que estrangeiros. Deram testemunho da tua caridade
diante da Igreja. Farás bem provendo-os do necessário para a

34
viagem, de um modo digno de Deus. É pelo Nome (por Cristo)
que eles se puseram a caminho, sem nada receber dos gentios.
Devemos, pois, acolher esses homens, para que sejamos coope-
radores da Verdade.

Se o teto fraterno punha ao abrigo de maus encontros o cristão


preocupado com sua moralidade, a afluência de hóspedes devia tor­
nar o dever da hospitalidade um dos mais onerosos nos grandes
centros, nas cidades de passagem, como Corinto, e mais ainda em
Roma. Imagine-se o peso que a acolhida devia representar para uma
cidade na qual a passagem de irmãos era cotidiana. Hoje, ainda,
alguns conventos de Paris, Londres e Estrasburgo vêem com apreen­
são a chegada das férias!
Isso explica a lassidão dos irmãos de Corinto, grande cidade
portuária, que Clemente78 exorta a reagir, e a gratidão de Inácio de
Antioquia pela acolhida que lhe foi dispensada em toda parte.
Melitão de Sardes, no século II, compôs um escrito, hoje perdido,
sobre a hospitalidade.79 A solicitude das comunidades em receber
os irmãos de passagem era motivo de admiração para os pagãos.
Aristides escreveu sobre eles em sua Apologia:80 "Quando vêem um
estranho, acolhem-no sob seu teto e se alegram como se chegasse
um verdadeiro irmão”. Mas, para alguns, como Luciano, a liberali­
dade cristã era motivo para zombarias.81
O ônus da acolhida cabia a toda a comunidade, particularmen­
te aos bispos, aos diáconos e às viúvas.82 Desde a metade do século
II, existia em Roma e Cartago uma caixa, alimentada todos os do­
mingos pela comunidade, para receber os estrangeiros.83 Em prin­
cípio, o hóspede de passagem levava uma carta de recomendação.84
Quando necessário, um exame discreto permitia descartar os para-
sitos. Mais tarde, a Igreja organizou hospedarias.85
No século II esboça-se uma legislação sobre a hospitalidade
cristã. As diretrizes da Didaqué’86 em cerca de 150, são dirigidas
principalmente às comunidades cristãs vindas do judaísmo e per­
mitem que se conheçam seus problemas cotidianos. Elas não são
para os particulares, mas para as "igrejas responsáveis”. Impunha-
se prudência, tanto mais que os falsos irmãos e os fautores de here­
sia começavam a multiplicar-se. A cizânia crescia tanto como a boa
semente.

35
A Didaqué distingue os profetas itinerantes e os hóspedes de pas­
sagem. Os primeiros, como os doutores judeus, viajavam de cidade
em cidade e de comunidade em comunidade, principalmente na época
judaico-cristã. Era necessário assegurar-se de sua ortodoxia e de seu
desinteresse.87 O pregador itinerante estava sujeito às leis habituais
da hospitalidade. Quando trabalhava para a comunidade, tinha direito
a salário, como todo trabalhador. Mas prolongar a permanência sem
motivo era mau sinal. Ao partir, aquele que se tivesse comportado
assim, recebia o pão só para uma etapa. A Didaqué exclui, portanto,
os presentes costumeiramente dados aos hóspedes quando partiam.88
Os outros irmãos que, de passagem, desembarcavam em Corinto
ou Antioquia estavam sujeitos a uma regulamentação tirada parcial­
mente do judaísmo.89 Entre eles infiltravam-se, como sempre, explo­
radores, que queriam tirar partido da piedade de uns e da generosi­
dade de outros.
Os mais dignos de confiança eram aqueles que levavam uma
carta de recomendação da comunidade-mãe.90 Outros se contenta­
vam com procurar compatriotas ou correligionários para obterem
ajuda. É possível que tenha existido uma senha ou algo semelhante.
Talvez seja isso que a Didaqué insinue quando fala “do passante que
se apresenta a vós em nome do Senhor".91 Gregos e romanos per-
mutavam uma tessera hospitalis, isto é, um objeto de várias formas
— carneiro ou peixe — do qual cada um dos contratantes tinha
uma parte. Unindo-se as duas, elas coincidiam perfeitamente.92
Quando se tratava de um desses andarilhos modestos que via­
javam a pé, de pouso em pouso, a Didaqué recomendava: "Ajudai-o
o melhor que puderdes”.93 A acolhida incluía o pouso e a subsistên­
cia. Entre os gregos, o hóspede era convidado para uma só refeição,
no dia da chegada ou no dia seguinte. Se ele chegasse durante uma
refeição festiva, era convidado imediatamente.94 Isso me aconteceu
recentemente em Miconos, onde fui convidado inesperadamente
para um banquete de núpcias. Em Homero, o nome do viajante era
perguntado só depois da refeição que lhe era oferecida.95
O hóspede podia prolongar sua permanência por dois ou três
dias, como ainda é costume entre os arábes.96 Depois disso, o estra­
nho devia exercer seu ofício e ganhar seu pão. Aquele que não qui­
sesse trabalhar ou que pretendesse não ter profissão comportava-se
como “um traficante de Cristo”, diz a Didaqué?1

36
Para essas regras a Didaqué dá motivação evangélica.98 Trata­
va-se, para o cristão, de acolher Cristo na pessoa do estranho e de
reconhecer, assim, a fraternidade que une todos os que o seguem.
Fraternidade e hospitalidade andam juntas, como já o diz a carta
aos Hebreus." Os tempos de denúncias e de perseguições, que pro­
vocaram a fuga ou o deslocamento de muitos cristãos, ofereceram
motivo novo para a acolhida. O estranho não era só um irmão, mas
também um confessor da fé, ao qual a comunidade dava tratamen­
to privilegiado.

As cartas que estreitavam os vínculos

A carta que viajava de comunidade em comunidade, de país


em país era antes de tudo um vínculo entre os irmãos dispersos,
sempre empenhados na unidade. Eles se escreviam, consultavam-
se e ajudavam-se mutuamente. Os viajantes muitas vezes eram por­
tadores de uma mensagem da comunidade de origem. As igrejas se
escreviam umas às outras; os bispos, de modo especial, mantinham
entre si e com as comunidades uma correspondência que se foi am­
pliando.100
As escavações permitiram tirar das areias do Egito certo núme­
ro de cartas escritas em materiais diversos, como o metal, o papiro
e pedaços de cerâmica. Os particulares usavam geralmente o papi­
ro, exportado do Egito, e que podia ser comprado em folhas avulsas
nas papelarias; o preço dependia do formato. No pergaminho es­
crevia-se nos dois lados; no papiro, só em um lado. Os mais pobres
do Egito e da África usavam óstracos ou pedaços de cerâmica para
todas as necessidades; correspondência, livros de contas etc.101
Escrita a carta, o papiro era dobrado, enrolado e atado com
barbante, cujas extremidades eram seladas. O endereço constava
na face externa. Depois do uso, a face não escrita servia para exercí­
cios de escrita das crianças ou de rascunho para os adultos.
A noção de carta era muito elástica, indo do simples bilhete à
composição literária, da mensagem à exortação. Muitas vezes é di­
fícil traçar uma fronteira entre os diversos gêneros. Mas que dife­
rença entre a epístola aos romanos e o bilhete a Filêmon! Certo
número delas foi conservado nos arquivos das igrejas, como, em
37
Corinto, as cartas recebidas e enviadas.102 Formaram-se também
coleções.103 Clemente de Roma já conhecia uma coleção das cartas
paulinas.104
A correspondência de Cícero é obra-prima literária e documen­
to histórico de primeira ordem. Plínio, o Jovem, reuniu para pu­
blicação as cartas que endereçou à posteridade.105 O mesmo fez
Gregório de Nazianzo.106
Depois das epístolas canônicas, as cartas cristãs eram freqüen-
temente mensagens de exortação, espécie de homilias que as comu­
nidades costumavam ler durante a celebração eucarística para edi­
ficação de todos. Entre elas incluíam-se os atos e as paixões dos
mártires, de uso litúrgico manifesto.
A oportunidade era muito boa para não tentar os falsários. As
cartas apócrifas começaram a se multiplicar. Os mais mudos dos
apóstolos inesperadamente se tomam loquazes. Inventou-se uma
correspondência de catorze cartas entre Paulo e Sêneca.107 O pró­
prio Cristo foi mobilizado e supostamente escreveu ao rei Abgar.108
Pôncio Pilatos, em uma carta a Cláudio, atesta a ressurreição de
Cristo.109 Isso não surpreende em uma época que cultivava o mara­
vilhoso e na qual multiplicavam-se as “cartas do céu".110 Luciano, o
zombador, escreveu uma para ridicularizar a credulidade popular
de seu tempo.111
As cartas permitiam a Roma informar e informar-se e, desde
97, exercer papel moderador. A vinda de Pedro conferiu ao bispo
de Roma autoridade que se firmou desde a carta de Clemente "à
igreja de Deus que está em Corinto".112 Informado das dificulda­
des que sacudiam a comunidade, enviou para lá três legados, por­
tadores de uma carta na qual toma posição com tato, mas com
firmeza, como quem quer ser obedecido. Quase um século mais
tarde, segundo Dionísio de Corinto, a carta ainda era lida na reu­
nião dominical.113
A solidariedade entre as diversas igrejas se fortalecia principal­
mente em tempos de crise. Assim, na época do montanismo, esta­
beleceu-se correspondência ativa entre Roma e as igrejas da Ásia e
da Gália.114 O mesmo se deu no tempo do papa Víctor, por causa da
controvérsia pascal.115 Dionísio de Corinto reuniu as cartas trocadas
entre Roma e as diversas comunidades da Grécia, de Creta e da
Ásia Menor, motivadas pelas posições rigoristas de alguns irmãos.116
38
Desde o século II, os bispos se escrevem, consultam-se, anun­
ciam sua nomeação, solicitam apoio e põem os outros ao corrente
dos conflitos doutrinais ou disciplinares.117 Correspondência que
permite levantar uma ponta do véu que nos oculta um período de
contornos bastante vagos. Hereges e gnósticos usavam o mesmo
procedimento para divulgar suas doutrinas.118
As sete cartas de santo Inácio às comunidades asiáticas e a Roma
são uma jóia da literatura cristã antiga. Sobrecarregadas, elas são
um testemunho, uma exortação e um hino ao Senhor. Felizmente
foi-nos conservada uma carta de Policarpo "à igreja de Deus que
está como estrangeira em Filipos”.119
Em tempos de perseguição, as cartas trocadas sustêm a uns e
confortam a perseverança de outros.120 A primeira gesta dos márti­
res nos chegou na forma de cartas, que serviam à informação, à
instrução e à edificação dos irmãos reunidos. O martírio de Policarpo
nos é narrado como uma liturgia.121
Uma das cartas mais comoventes foi enviada pelas igrejas de
Viena e Lião às igrejas da Ásia e da Frigia.122 O exemplo dos márti­
res de Lião era uma lição aos confessores de Éfeso, os quais pare­
ciam recusar a penitência aos apóstatas da comunidade.123 Ela é, à
sua maneira, expressão da fraternidade, acima das falhas huma­
nas!
Como a carta de Lião chegou a Éfeso? O correio imperial, cria­
do por Augusto124 e que durou até o fim do Império, era reservado à
função pública. Era uma espécie de “mala diplomática”. Para usá-
la, era necessário documento especial, chamado combina, com o
nome e o selo do imperador. Os soldados muitas vezes mandavam
suas cartas pelas ligações entre as guarnições. Foi o caso de um
jovem egípcio que, orgulhoso de seu novo nome romano, escreveu
a seu pai e enviou-lhe seu retrato, pelo qual pagou ao pintor as três
primeiras moedas de ouro que havia recebido; a “fotografia” do
militar foi posta em lugar de honra no lar paterno.125
O meio mais simples e mais corrente para enviar uma carta era
confiá-la a um mensageiro. Carta por portador, com um bilhete de
recomendação. Podia-se pagar um mensageiro por conta própria
ou com mais pessoas. Outros passavam por agentes de sociedades
para encaminhar sua correspondência. Existiam tabellarii (“men­
sageiros”) privados, atestados pelos autores da época.126 Sabemos
39
de sua existência, entre outras, por uma inscrição encontrada em
Pozzuoli,127 na Itália meridional, o que não tem nada de surpreen­
dente quando se sabe que nessa cidade embarcavam muitos viajan­
tes. Pagando-se uma gratificação na partida e na chegada, era fácil
confiar uma carta a um conhecido, a um compatriota ou a um via­
jante do comércio, de partida. O presente “ao portador", ao se lhe
entregar a carta, garantia fiel execução. Foram mercadores que le­
varam as cartas de Inácio às diversas igrejas.128
A carta dos irmãos de Lião deve ter tomado, primeiro, o cami­
nho de Roma; as relações entre as duas cidades eram freqüentes.
Pela mesma época, Irineu, que esteve na capital, foi portador de
uma carta da comunidade.129 De Roma era fácil confiar o escrito a
algum irmão ou compatriota que embarcava em Pozzuoli ou Óstia
para Éfeso.
Quando a estação era favorável, ela podia chegar ao destino em
cinqüenta dias. Uma carta enviada a Cícero, da Capadócia, chegou
às suas mãos depois de cinqüenta dias.130 Outra, da Síria a Roma,
precisou do dobro desse tempo.131 Uma carta comercial, de 23 de
julho de 174, de uma fábrica de Pozzuoli, chegou a Tiro em 8 de
dezembro, isto é, depois de cento e sete dias.132 O filho de Cícero
recebeu de seu pai, em Atenas, uma carta enviada quarenta e seis
dias antes, e esse tempo lhe pareceu curto.133
Grande quantidade dessas cartas se perdeu. O admirável não é
que se tenham perdido, mas que algumas tenham chegado até nós.
Oficiais ou privadas, literárias ou íntimas, elas nos permitem co­
nhecer a vida cotidiana das comunidades, as dificuldades e as cri­
ses, as divergências e as defecções. As mais modestas, como a carta
de certo Irineu a seu filho, avisando-o que o carregamento de trigo
egípcio chegara bem a Roma,134 ou a carta de negócios de um cris­
tão do Egito, para o qual o bispo parece ter servido de agente de
ligação entre alguns cristãos e um armador de Roma,135 mostram-
nos a vida ao vivo, sem maquilagem nem ênfase, com a consciência
aguda que os irmãos dispersos tinham de formar uma só e mesma
grande família.

40
CAPÍTULO III

O MEIO SOCIAL

Apenas fundado, o cristianismo já se espalhava como o fogo no


matagal. Se nele os pobres e os humildes são a maioria, como na
rida, desde a primeira hora ele recruta discípulos em todas as clas­
ses da sociedade. Essa interpenetração não é menos notável do que
a expansão geográfica; uma e outra põem abaixo as barreiras so­
ciais, étnicas e culturais, não por oposição, mas por fraternidade.

As origens sociais

O filósofo grego Celso escarnece da nova religião porque seu


fundador teve como mãe uma trabalhadora e como primeiros mis­
sionários alguns pescadores da Galiléia.1 Pela mesma época, os pa­
gãos zombam das comunidades cristãs porque formadas principal­
mente por pessoas de condição humilde.
O Evangelho, ironizavam eles, exerce sua sedução somente so­
bre “os simples, os humildes, os escravos, as mulheres e as crian­
ças”.2 Taciano traça o retrato do cristão de seu tempo: ele foge do
poder e da riqueza e é, antes de tudo, "pobre e sem exigências".3
Uma interpretação política do sucesso cristão quer descobrir
nele o revide do proletariado contra o Império capitalista. Deve-se
evitar extrapolações tão tendenciosas e esquematizações des­
mentidas pela análise mais rigorosa.4 São Paulo converteu o pro-
cônsul de Chipre, Sérgio Paulo, em Tessalônica,5 e em Beréia, “mui­
tas mulheres nobres”.6 Os judeus convertidos, Áquila e Priscila, ti­
nham uma casa em Roma e outra em Éfeso, ambas bastante vastas
para acolher a igreja local no triclínio ou no átrio.7 Desde as ori­
gens, a Igreja converteu pessoas abastadas, às vezes de fortuna. Em
Corinto, o tesoureiro da cidade juntou-se à comunidade.8

41
Menos de um século mais tarde, Plínio, o Jovem, pouco suspei­
to de parti pris, forneceu ao imperador Trajano, depois de investiga­
ção, uma imagem matizada das comunidades cristãs da Bitínia, nas
quais se encontravam fiéis de todas as idades, jovens e velhos, ho­
mens e mulheres, escravos e cidadãos romanos, habitantes das ci­
dades e dos campos. Ele frisa principalmente “seu grande número”
e a diversidade de suas origens sociais.9
O que sabemos das comunidades contemporâneas de Cartago,
Alexandria, Roma e Lião revela-nos agrupamentos variegados.10 A
fé nivelava as classes e abolia as distinções sociais, enquanto a socie­
dade romana se fechava e erguia barreiras. Senhores e escravos,
ricos e pobres, patrícios e filósofos reuniam-se e fundiam-se em
comunhão mais profunda que a do sangue ou da cultura. Todos se
encontravam em uma eleição comum e pessoal, que lhes permitia
chamarem-se mútua e verdadeiramente com o nome de “irmão” e
“irmã".11 O que chocava o pagão malicioso era a surpreendente fu­
são de todas as condições na fraternidade cristã. Escravos ou cida­
dãos, todos tinham alma de homens livres igualmente,12 e a consciên­
cia dessa igualdade era tão forte que nos epitáfios cristãos quase
nunca se alude ao estado servil.13
Três apanhados sobre comunidades — de Roma, Lião e Cartago
— nos permitirão conhecer sua composição social.
A comunidade romana tinha o rosto de uma paróquia de cida­
de grande: a lã bruta do manto dos artesãos e dos escravos roçava
os tecidos recamados de ouro, suntuosamente franjados, das
matronas e dos notáveis. Se os estrangeiros e os humildes foram os
primeiros a acolher o Evangelho, desde o fim do século I a corte
imperial se abriu, com o cônsul Clemente e sua esposa Domitila.14
No tempo de Cômodo, encontramos o rico senhor de Calixto, um
cristão chamado Carpóforo, pertencente à “casa de César”.15 Irineu
afirma que havia um grupo importante de fiéis na corte imperial,
na qual se misturavam cavaleiros e escravos.16 Um dos companhei­
ros de martírio do filósofo Justino, Evelpisto, vindo da Capadócia,
era escravo na corte.17 A favorita do imperador Cômodo, Márcia, se
não era cristã, estava em relação com a comunidade de Roma.18 No
tempo de Sétimo Severo, a presença de cristãos na corte imperial
era notória, uma vez que Tertuliano a ela alude várias vezes.19 É
provável que houvesse cristãos também na guarda pretoriana.20

42
No tempo de Marco Aurélio, o Evangelho foi abraçado por pes­
soas da aristocracia. O mártir Apolônio — do qual são Jerônimo
afirma, sem razão, que era senador — pertencia à nobreza. Vários
membros da família dos Pompônios eram cristãos.21 No reinado de
Cômodo, os romanos mais distinguidos por seu nascimento e sua
riqueza, juntamente com sua família e sua casa, entraram para a
comunidade cristã.22 Justino conta a conversão de dois esposos que
pertenciam à sociedade rica de Roma e levavam vida abastada, com
criadagem.23
Aberta a todas as influências e a todas as escolas, a cidade de
Roma via afluir sofistas e filósofos. Justino, na metade do século II,
foi o primeiro filósofo conhecido da comunidade cristã. Simples
membro da igreja local, fundou uma escola de filosofia cristã perto
das Termas de Timóteo, na casa de um senhor chamado Martinho.24
Justino deu ao pensamento cristão direito de cidadania e aos conver­
tidos, o direito de pensar. Graças a ele, pensadores e discípulos, como
Taciano, o Sírio, vieram engrossar as fileiras da Igreja. Marcião, um
rico armador vindo a Roma das margens do mar Negro, atraído pela
fermentação intelectual da comunidade, juntou-se a ela e lhe fez um
legado de 200 000 sestércios, que lhe foram devolvidos quando se
erigiu como fundador de uma escola e uma igreja rivais.23
O rosto da comunidade romana, depois da morte dos apóstolos
Pedro e Paulo, mudou muito. Se grande número dos cristãos cita­
dos na epístola aos Romanos têm nomes de escravos e libertos,26 as
famílias abastadas e ricas agora são numerosas entre os cristãos.
Alimentam uma caixa destinada a acudir às necessidades dos irmãos
de Roma e do Império. Desde essa época, sua generosidade era pro­
verbial. Inácio de Antioquia e Dionísio de Corinto renderam-lhe
comovente homenagem.27 As economias reunidas eram tais que os
cristãos as puseram no banco; infelizmente, enganaram-se na esco­
lha do banqueiro,28 o que se repetirá muitas vezes no decurso da
história. Levada tão longe, a generosidade romana devia sustentar,
em primeiro lugar, os pobres e as viúvas da comunidade. Nela, ri­
cos e deserdados são complementares. O Pastor de Hermas os com­
para ao olmeiro e à videira, que se sustentam mutuamente.29
Escravos e pequenos astesãos e aldeões vindos da campanha
romana, esmagados pelos impostos, eram contrapeso à riqueza dos
abastados. O luxo caminhava ao lado da miséria, de modo que a
43
assistência tomara-se instituição do Estado. Uma igualização ins­
pirada na fraternidade cristã permitia realizar a partilha, como o
atesta Justino: “Aqueles que estão na abundância e que querem dar,
dão livremente, cada um o que quer, para socorrer os órfãos, as
viúvas, os doentes, os pobres, os prisioneiros, os hóspedes, em suma,
todos os que estão passando por necessidade”.30
Cem anos mais tarde, o diácono Lourenço podia mostrar ao
imperador, pronto para apossar-se dos bens da Igreja, as quinhen­
tas viúvas e deserdados que recebiam só dela sua subsistência.31
Embora lendário, esse aspecto ilustra a ação da comunidade para
com seus membros necessitados.
Vindos de horizontes diferentes e instalados com seus compa­
triotas nos bairros da cidade em grupos nacionais,32 os irmãos to­
dos falavam a língua grega, que servia de ligação entre eles. Fala-
vam-na com maior ou menor correção, a julgar pelos textos bastan­
te aproximativos dos epitáfios. A língua castiça de um Apolônio res­
ponde àquela, rouca e rude, de um plebeu, proveniente da campa­
nha, e ao falar incorreto do africano, instalado recentemente em
Roma. A assembléia litúrgica usava a mesma língua grega até o
século III, quando o latim acabou prevalecendo.33
Um fato mostra melhor que todas as estatísticas a que ponto a
comunidade romana praticou a fraternidade. Dois bispos, sem dú­
vida Pio e Calixto, eram escravos de origem. Imaginemos os nobres
Comélios, Pompônios e Cecílios recebendo a bênção de um papa
que ainda trazia o estigma de seu antigo mestre! Tal era a revolução
do Evangelho; ela agia sobre as estruturas sociais, transformando
os corações dos homens.
A comunidade de Lião, numericamente muito menos impor­
tante que a de Roma, tinha um quadro social mais matizada. Lião
não era Roma. No apogeu do Império, a comunidade, em seu con­
junto, parecia jovem. Compunha-se de estrangeiros vindos especial­
mente da Ásia e de autóctones de todas as condições. A matrona
encontrava sua escrava na assembléia. A Igreja parecia formada em
grande parte por pessoas provindas da burguesia, cujo bem-estar e
riqueza provocavam a inveja e explicavam as denúncias. A classe
abastada parecia ter propagado o Evangelho entre os empregados e
os escravos. Todos os escritos da comunidade chegados até nós es­
tão redigidos em grego, língua da maioria dos cristãos e da liturgia.
44
A história dos primeiros mártires de Lião mostra a composição
social da comunidade. Seus nomes, conservados por Gregório de
Tours, são uma mistura de latim e grego:34 nenhum nome celta.
Átio e Atalo — esse último originário de Pérgamo e vindo a negó­
cios — eram de posição elevada.35 Vécio Epágato, nobre de nasci­
mento, morava na cidade alta; a populaça não ousou denunciá-lo.
Alexandre era médico oriental e muito conhecido na cidade; Blan-
dina, simples escrava, foi presa com sua senhora, sem dúvida uma
nobre matrona, que discretamente propagara o Evangelho em sua
casa.36 Foram presos até alguns servos pagãos, porque se pensava
que os domésticos e os escravos teriam a mesma religião de seus
senhores.37
O nível social dos cristãos explica parcialmente o comporta­
mento iracundo da multidão quando apareceu Atalo. Ele havia pros­
perado visivelmente, o que lhe permitiu sustentar financeiramente
a comunidade e tomá-la participante de seu bem-estar.38 As mulhe­
res deviam ser numerosas na comunidade, uma vez que o gnóstico
Marcos as escolhe como alvo, especialmente as ricamente vestidas
de púrpura e, por isso, aparentemente opulentas.39
Na comunidade lionesa, na qual os cristãos abastados sacrifi­
cavam tudo pela sua fé, o alvo não era propriamente a rica matrona,
cujo nome nem foi conservado pela história, mas a frágil Blandina,
escrava de seu estado, na qual, segundo a narração do martírio, a
paixão de Cristo parecia renovar-se sob os olhos dos mártires e dos
espectadores.40 Nesse momento as divisões sociais são apagadas pela
prática da fraternidade em Cristo.
“Assim se abria o poema extraordinário do martírio cristão, essa
epopéia do anfiteatro, que durou duzentos e cinqüenta anos e da
qual saíram o enobrecimento da mulher e a reabilitação do escra­
vo”,41 sendo as pessoas então julgadas segundo sua fidelidade e se­
gundo certa nobreza moral, fruto do Evangelho, e não segundo suas
origens.
As informações que Tertuliano nos fornece sobre a comunida­
de de Cartago são um pouco posteriores às que temos sobre as co­
munidades de Roma e de Lião. Elas nos permitem ao menos conhe­
cer os meios nos quais o Evangelho foi anunciado. Os mártires de
Scili eram camponeses, arrendatários ou trabalhadores rurais.42 O
que impressionou Tertuliano nos cristãos e o determinou a se unir
45
a eles foi o espetáculo de seu amor e de sua união, dos quais ele nos
oferece uma descrição no Apologético.^3 Comunidade compósita, na
qual as pessoas ricas ou, ao menos, abastadas eram tão numerosas
e suficientemente generosas para alimentar regularmente a caixa
comum. “A caixa da piedade” servia para dar assistência aos irmãos
pobres ou perseguidos, especialmente, como diz Tertuliano, aos
órfãos, às jovens que não tinham dote para se casar, aos servos en­
velhecidos, aos náufragos, sempre numerosos nos portos, aos con­
fessores da fé e aos condenados às minas, à prisão ou ao banimento.
Na mesma época, a comunidade cristã de Tuburbo acolhia uma
jovem da aristocracia local, chamada Perpétua, e seu jovem irmão,
para desespero do pai, que continuava pagão. A comunidade, visivel­
mente recente, parecia jovem. Foram presas pessoas jovens, na maior
parte catecúmenos, aos quais o catequista foi juntar-se na prisão.44
A insistência da narrativa na condição nobre da jovem prova
seu caráter excepcional. Os outros detidos não se distinguem por
seu nascimento, mas por seu fervor, a única qualidade que real­
mente importa. Revocato e Felicidade eram de condição modesta,
mas livres, provavelmente casados,45 à maneira dos humildes, em
segredo, e não segundo o rito das matronas.
As condições se fundiam em uma emulação mútua: a nobre
Perpétua socorre sua companheira plebéia. As separações sociais
desaparecem em Cristo, o reunidor e o único. Isso levou Lactâncio
a dizer, no fim do século III:
Entre nós não existem nem escravos nem senhores. Não es­
tabelecemos diferença entre nós e todos nós nos chamamos de
irmãos, porque nos consideramos todos iguais. Servos e senho­
res, grandes e pequenos são iguais pela sua modéstia e pelas
disposições de seus corações, as quais os afastam de toda vaida­
de.46

As profissões
A profissão situava o cristão na sociedade. Podia ser um “im­
pacto” ou um obstáculo para o Evangelho, caso comprometesse o
cristão ou favorecesse sua irradiação. Tudo dependia da profissão e
do emprego e de suas implicações sociais.

46
A Grécia desprezara o trabalho manual, o qual, no tempo do
Império, ainda não era tido em alta estima.47 Nos Estados coloniza­
dores, que se enriqueciam com o trabalho dos outros, o trabalho tra­
zia algo de desonroso. Para Apolônio de Tiana, comerciar era rebai­
xar-se.48 Em Israel o próprio doutor da lei praticava um ofício, Paulo
fabricava tendas. Seguindo essa orientação, a Igreja reabilitou o traba­
lho e a condição do operário. Nos epitáfios, louvam-se o operário e a
operária por haverem sido bons trabalhadores.49 Trabalhar para viver,
sem espírito de lucro e sem avareza, era visto como o ideal cristão.50
No século II, a profissão punha um caso de consciência ao cris­
tão, que percebia o que estava em jogo: existem profissões honestas
e profissões desonestas?51 Como viver no mundo e evangelizá-lo,
sem se misturar a ele no trabalho e no lazer, nos campos e nas lo­
jas? A legislação cristã procura seu caminho e fixa-se só no século
III. Ela é tirada da experiência da vida, sem antecipar-se a ela.
No século II, os fiéis e a Igreja procuram abrir caminho, mistu-
rando-se o mais possível à vida dos outros e exercendo os mesmos
ofícios, isto é, continuando a trabalhar nas mesmas profissões de
antes da conversão. Ela muda mais o espírito de que o tecido diário
da vida.
Habitamos este mundo convosco (diz orgulhosamente Tertu-
liano,52 em 197), freqüentamos vosso fórum, vosso mercado,
vossos banhos, vossas lojas, vossos magazines, vossas feiras e
vossos outros lugares de comércio. Convosco navegamos, con­
vosco servimos como soldados, trabalhamos a terra e nos dedica­
mos ao comércio. Trocamos convosco o produto de nossa arte e
de nosso trabalho.
Afirmações altaneiras; em breve o polemista de Cartago de­
cepcionará. O primeiro movimento dos convertidos consistia em
conservar sua profissão, como recomendara o apóstolo Paulo,53 que
Clemente de Alexandria54 parafraseia ao escrever: “Ara, se és lavra­
dor, mas confessa o Deus dos lavradores; navega, tu, que gostas de
navegar, mas invoca o piloto do Céu; se a fé sobreveio a ti no exérci­
to, ouve a voz do general que te ordena a justiça”.
O trabalho da terra e do mar e os ofícios manuais que serviam
à coletividade, como o escultor, padeiro, carpinteiro, cortador de
roupa ou de pedras, oleiro e tecelão, não causavam problema, com
47
a condição de que não se trabalhasse para os templos pagãos. Mui­
tos cristãos continuavam nesses empregos inferiores, motivo pelo
qual Juvenal os tratou de “ganha-pouco".55 Os jovens cristãos eram
exortados a aprender um desses ofícios.56
O valor humanitário da medicina, que parecia inspirada no
exemplo de Cristo, recomendava essa profissão aos cristãos. Em
Lião, Alexandre a exercia e deveu a ela sua popularidade.57 Em Roma,
Dionísio acumulava o exercício da medicina com o do sacerdócio.58
Em vez de ser um obstáculo, a medicina servia à Igreja. Na Frigia,
um mesmo cristão era buleuta e médico.59
A profissão de jurista ou de juiz não parecia provocar reservas
entre os cristãos. Minúcio Félix e Tertuliano se sentiríam tolhidos
em contestar a legitimidade de sua própria profissão. Aristides pa­
rece simplesmente recomendar aos juizes que “profiram julgamen­
tos justos". Um dos mártires africanos de 259, Flaviano, era retor,60
em termos modernos, professor de letras.
O comércio, à primeira vista, não provocou reservas. Era o ga­
nha-pão de grande número de cristãos. Irineu, bispo de uma cidade
comerciante por excelência, na qual muitos de seus fiéis prospera­
vam nos negócios, e suas esposas se vestiam de púrpura, reconhe­
cia “a legitimidade dos bens conseguidos com o trabalho de outros
ou antes da conversão. E, depois de admitidos à fé, continuamos a
ter lucro. Quem vende sem querer ganhar do comprador? Reci­
procamente, quem compra quer ganhar do vendedor. Quem se de­
dica aos negócios sem procurar tirar lucro deles?”61 Sadio realismo
de um asiático-lionês!
O próprio Tertuliano, em um livro que não peca pela modera­
ção, reconhece que é lícito dedicar-se ao comércio, com a condição
de evitar a cupidez.62 Por terem reduzido sua margem de lucro ao
que exigia a vida cotidiana, os cristãos parece haverem incorrido
na censura de serem improdutivos e de não prosperarem suficien­
temente.63 É possível que a irritação dos pagãos proviesse simples­
mente de que os cristãos pagavam honestamente os impostos,64 o
que sempre pareceu suspeito a um mediterrâneo.65
O Pastor de Hermas66 censurava os homens de negócio que pros­
peraram, mas se deixavam absorver por suas riquezas, ao ponto de
ofuscar os próprios pagãos, e se esqueciam das coisas de Deus. Vi­
vendo como contratestemunhas do Evangelho, perdiam de vista que

48
habitavam uma terra estrangeira. Aos cristãos enriquecidos e "ins­
talados” o Pastor lembra a incompatibilidade da Igreja com este
mundo. Advertência que ainda se ressente da espera escatológica e
lembra aos cristãos de todos os tempos sua condição de peregrinos.
Mais matizado, em fase na qual o cristão já havia conquistado
o direito de cidadania, Clemente dá a entender, na rica metrópole
de Alexandria, que os comerciantes corriam o risco de alimentar
necessidades fictícias. A riqueza adquirida gera o gosto pelo luxo.67
O comércio do dinheiro, quer se tratasse de transações bancá­
rias, quer de empréstimos a juros, rapidamente provocou reticên­
cias, tanto mais que era um perigo permanente para clérigos e lei­
gos.68 Todos os que manuseavam dinheiro eram tentados a traficar.
O diácono do qual fala o Pastor não resistiu à tentação.69 Como
encontrar tesoureiros honestos? Calixto, o futuro papa, escravo a
serviço de banqueiro romano, se dermos crédito a Hipólito, que
não lhe era simpático, fugiu com a caixa do banqueiro, na qual “as
viúvas e os irmãos” puseram suas economias. Credores e credoras
procuraram Carpóforo, o senhor de Calixto, para que interviesse. O
culpado, recapturado, foi condenado às minas da Sardenha, o que
obrigou a voltar a melhores sentimentos.70 Beneficiado pela inter-
cessão de Márcia, a favorita de Cômodo, recuperou a liberdade,
tomou-se diácono de Zeferino e finalmente bispo de Roma.
“Banqueiros, sede honestos.” Essa exortação, formulada pela
primeira vez por Clemente de Alexandria,71 atribuída a são Paulo e
ao próprio Cristo e mais tarde introduzida nas Constituições apos­
tólicas,72 era pouco ouvida. Cristãos aos quais viúvas e rendeiros
haviam confiado suas economias, até clérigos, bispos ou diáconos,
encarregados da caixa comum, foram reconhecidos culpados de usar
sem pudor a generosidade dos irmãos.73 A corrida ao dinheiro e o
ganho por todos os meios, incluída a usura, erros nos quais caíram
os próprios bispos africanos, terminaram tragicamente no perjúrio
de muitos durante a perseguição.74
O serviço prestado ao Estado, ainda quando se tratava de fun­
cionários imperiais e municipais e até de soldados, não trouxe logo
um caso de consciência aos cristãos do século II. Uma vez converti­
dos, uns e outros, seguindo o conselho paulino, continuavam a exer­
cer sua função anterior, da qual viviam. Um camareiro de Trajano,
chamado Jacinto, morreu mártir.75 A Igreja exprimirá suas reservas
49
só um século mais tarde. A Tradição apostólica™ proíbe aos cristãos
os cargos municipais.
O serviço militar77 tomara-se uma espécie de voluntariado. O
exército subalterno era recrutado nas camadas modestas da socie­
dade, e era esse o caso em regiões conquistadas pelo Evangelho
como a Ásia e a África. O serviço militar exigia a lealdade ao Impé­
rio e implicava o risco de derramar sangue e o dever de oferecer o
incenso ao imperador.
Do apóstolo Paulo a Justino e a Irineu, a lealdade ao Império
era sem reticências. Orgulhosos de pertencer ao Estado romano e
beneficiados por sua paz e sua prosperidade, os cristãos admira­
vam o exército, que era a garantia de ambas. Moviam-se na simbó­
lica militar como peixes na água. Nas cartas paulinas ressoam os
tinidos das armas da panóplia romana.78 Clemente, em nome da
comunidade de Roma, com orgulho aponta o exército como exem­
plo aos fiéis de Corinto: "Consideremos os soldados que servem sob
nossos chefes; que disciplina, que docilidade!, que submissão na
execução das ordens! Nem todos são prefeitos, nem tribunos, nem
centuriões, nem cinqüentenários, mas cada um, em seu posto, exe­
cuta as ordens do imperador e dos chefes".79 A Igreja não se parece
com o Império, do qual o imperador é a alma e a cabeça?80 Estamos
longe dos “acampamentos do diabo”, mas perto de um Cristo
imperator, vestido com a clâmide de ouro dos imperadores bi-

zantmos. 81
O filósofo Justino, filho de colono e talvez de veterano romano,
conserva a fibra militar. Lembra com nobreza os soldados do Impé­
rio que comprometem sua fé e sacrificam sua existência.82 Os
objetores de consciência aparecerão apenas um século mais tarde.
Na época de Marco Aurélio, muitos são os cristãos que servem
nas legiões romanas, especialmente na XII, estacionada em Melitene
(Turquia), e na III, em Lambese, na África do Norte. “Enchemos
vossos acampamentos”,83 trombeteia Tertuliano, a maior parte, sem
dúvida, nos postos subalternos; o exército era a promoção dos mo­
destos, para os quais o posto de centurião representava o bastão de
marechal, e a pensão de veterano, a seguridade.
O milagre ocorrido na legião de Melitene, no tempo de Marco
Aurélio,84 imortalizado na coluna Aurélia, em Roma, atesta a pre­
sença de cristãos no exército romano. Os autores cristãos precisam
50
que foi o Deus dos cristãos que veio em socorro de todos os solda­
dos, sem exceção. Tertuliano preferiría que ele esmagasse “o acam­
pamento do diabo”, e tanto pior para os seus. Seria necessário psi-
canalisar as reações desse filho de centurião romano. Em que me­
dida foi ele traumatizado por sua origem militar?
Os soldados cristãos não tinham nenhum escrúpulo em servir
o Império.83 No século III, Tertuliano, Lactâncio e, com mais cam-
biantes, Orígenes se interrogam: o cristão pode escolher o ofício
das armas? Contestação inútil, dada a proporção de soldados entre
os mártires do século III.86 Discussão um tanto acadêmica, porque
os soldados cristãos viviam à margem das comunidades. Raramen­
te havia uniformes na reunião litúrgica. Na época constantiniana
os martirológios foram expurgados, eliminando-se os soldados
objetores de consciência.87
É verdade que a Igreja do século II desencorajava os fiéis de
abraçar a carreira militar, quando não a proibia. Essa era uma das
censuras que o patriota Celso88 dirigia aos cristãos: a de minar os
fundamentos do Império. “Que seria se todos realizassem a mesma
coisa? O imperador em pouco tempo estaria sozinho, e o Império
estaria ao alcance dos bárbaros.” Mas, para Orígenes,89 o impera­
dor tinha mais necessidades de cristãos que de soldados.
O ofício das armas representa apenas caso particular de princí­
pio muito mais amplo. A situação do soldado era tão diferente da
Igreja vivendo no mundo? Como manter-se nele, sem sentir suas
contaminações e seus comprometimentos? Estaria o cristão conde­
nado "a viver como eremita ou como gimnossofista”?90 É curioso
constatar que foi Tertuliano quem se ergueu contra semelhante re­
clusão. Cedo ou tarde, os cristãos, misturados à vida do mundo,
perguntar-se-iam como conciliar a vida das duas cidades. Vê-lo-emos
em breve.
No século II, filósofos e sofistas eram adulados pelas cidades e
pelos príncipes. A filosofia, na pessoa de Marco Aurélio, dirigia o
Império. Cansados de uma religião sem poesia e sem alma, os ro­
manos se voltavam, de longa data, para os mestres do pensamen­
to.91 A filosofia era escola espiritual e o filósofo, diretor de consciên­
cia e mestre interior. Muitos deles, como escreve Clemente de
Alexandria92 por experiência, vinham para o cristianismo. Essa brus­
ca invasão da intelligentsia em uma Igreja mal preparada para acolhê-
51
los representava uma riqueza e um explosivo. Ao lado de um Justino,
quantos filósofos mal convertidos, os quais, na época, punham a
ortodoxia em perigo!
Os filósofos como Justino, tomados cristãos, longe de ver in­
compatibilidade entre a fé e a razão, ostentavam com galhardia seu
manto de filósofo. A procura da verdade conduzira-os ao Evange­
lho,93 Platão era o pedagogo para o Logos.94 A Igreja forneceu a
eles, a carta de nobreza. Não ofereciam eles recrutas de escol e como
que um testemunho à sabedoria evangélica? Taciano se mostra agres­
sivo, e Tertuliano, como de costume, paradoxal.95 A efervescência
dos gnósticos e a pululação das seitas ensinaram à Igreja o difícil
diálogo da fé com o pensamento. Na jovem Igreja, os filósofos de
profissão começaram trabalho de longo fôlego: “Platão, a fim de
dispor para Cristo", segundo a palavra de Pascal; o encontro da alma
platônica com a alma cristã marca uma data.
A conversão dos filósofos e dos juristas pôs à Igreja o problema
da cultura e do estudo da fé e da filosofia, da linguagem e da comu­
nicação. As letras pagãs não estavam tão infiltradas de idolatria
como a cidade? Mas como desprezar a mais nobre das heranças
humanas? “Como rejeitar, diz Tertuliano em seu tratado Da idola­
tria,96 os estudos profanos, uma vez que sem eles não existem estu­
dos religiosos? E como não instruir-se na ciência humana, como
não aprender a pensar e agir, se a educação é a chave da vida?"
Sob essa questão aflora, pela primeira vez, o confronto entre a
fé e a cultura. Tertuliano não condena o estudo, com a condição de
não se aceitar o veneno dos autores pagãos.97 No século III, deli-
neia-se reservas a respeito dos mestres-escolas e dos gramáticos,
que ensinavam as letras profanas. A Tradição apostólica98 indica
como linha de conduta: "Aquele que administra o ensino às crian­
ças fará melhor se deixar essa profissão. Se não tiver outra profis­
são, ser-lhe-á permitido ensinar". Com efeito, encontramos poucos
epitáfios cristãos de gramáticos e professores.99
Em compensação, a Igreja desaconselhava todas as profissões
que tivessem ligação com a magia e a astrologia100 e com os jogos
do circo: jóqueis, gladiadores e simples empregados. As profissões
do teatro e da dança não recebiam tratamento melhor: comedian­
tes, mimos, pantomimos, dançarinos e dançarinas eram recruta­
dos na ralé ou destinados a cair nela.101

52
A simples moral excluía as prostitutas e os prostitutos e mais
ainda aqueles e aquelas que tiravam proveito da “mais antiga profis­
são do mundo". Não deixa, contudo, de surpreender que a Tradição
apostólica102 se refira explicitamente a eles e elas, como se a coisa
não fosse evidente. A sensibilidade do tempo não era a nossa.
Os cristãos, desde as origens, excluíam todas as profissões que
tivessem alguma relação com os cultos pagãos, como as que tinham
por finalidade construir ou decorar os templos, prover às cerimô­
nias e fornecer os ministros.103 Que se havia introduzido certo rela­
xamento, “é necessário viver”, e confirmado pela réplica de Ter-
tuliano:104 “Tu os adoras (os ídolos), uma vez que permites que se­
jam adorados!” A indignação do sacerdote de Cartago alcança o
auge quando ele fica sabendo que um fabricante de ídolos foi pro­
movido a cargos eclesiásticos.105
As proibições da Igreja reduziam ao desemprego muitos con­
vertidos, cabendo à comunidade recolocá-los ou mantê-los. Fora
dos cultos pagãos, a arte não tinha em que exercer-se;106 assim,
muitos artistas e artesãos perdiam seu ganha-pão. Para os cristãos,
como viver em cidade invadida pelas divindades? O confronto era
inevitável.

Condição da mulher

A Igreja era pela mulher ou misógina? Não seria difícil formar


um dossiê em favor da primeira ou da segunda tese. A realidade era
mais complexa. Ademais, não devemos perder de vista que conhe­
cemos a antiguidade só pelo que dela disseram os homens; as mu­
lheres permaneceram mudas. É certo que tinham papel ativo nas
comunidades cristãs. No Oriente como em Roma, na Grande Igreja
como nas seitas dissidentes, mulheres, muitas vezes ricas, contri­
buíam para a expansão cristã, a tal ponto que se pode perguntar se,
nas origens, as mulheres não predominavam na Igreja como predo­
minaram na sociedade burguesa do século XIX.
Foi constatado que, na época imperial, as mulheres davam o
tom no fervor e na prática religiosos;107 mas como explicar a atra­
ção que o cristianismo exerceu sobre elas? Tanto mais que a fre-
qüentação dos templos, especialmente do de ísis, podia satisfazer
53
aspirações de toda natureza?108 As mulheres procuravam neles — e
achavam — mais homens que a divindade.
Uma das novidades do Evangelho era a de ensinar a igualdade
do homem e da mulher, a grandeza da virgindade e a dignidade e
indissolubilidade do matrimônio. O Evangelho unia a prática reli­
giosa à pureza dos costumes. Essas afirmações se opunham às idéias
recebidas e condenavam a moral pagã.
No império, a jovem ficava noiva na idade em que ainda brinca­
va com bonecas. Os matrimônios eram arranjados por terceiros ou
por agências especializadas.109 Feita sem atração, a união era vivida
sem dignidade. A fidelidade conjugal era ridicularizada: espetáculos,
termas e festins favoreciam os encontros sem compromissos.110
Às mulheres desiludidas ou de nobres exigências o Evangelho
trouxe um ar mais puro, um ideal. Patrícias e plebéias, escravas e
ricas matronas, jovens ou pecadoras arrependidas, no Oriente como
em Roma ou Lião, vinham engrossar as comunidades,111 mantidas
pelas mais abastadas. Na Grande Igreja como na dissidência gnóstica
e principalmente montanista, a mulher se impunha tanto que sus­
citava as reticências ou o mau humor algo misógino dos homens e
dos clérigos. Para alguns Padres, a começar por Tertuliano112 — o
qual era casado ainda por cima —, a tentação era mulher, e a mu­
lher era tentação.
Em Hierápolis, na Ásia Menor, as duas filhas de Filipe, que cer­
tamente não era o apóstolo, eram cercadas de veneração.113 O bispo
Pápias ouviu-as com admiração. Outra profetisa, Âmia, em Filadél­
fia, no fim do século II, era muito influente. Os Atos apócrifos dos
vários apóstolos dão muita importância às mulheres no apostolado
de João, de Paulo114 e de Tomé. Bela reabilitação das Evas, acusa­
das de todos os males.
A conversão de Flávia Domitila, irmã do imperador Domiciano,
se é provada, mostra que a corte imperial fora atingida no fim do
século I. Em represália, seu marido foi executado, e ela, exilada em
uma ilha.113 É possível que Márcia, a favorita do imperador Cômo­
do, cujo harém compreendia trezentas mulheres e prostitutas e tre­
zentos jovens,116 tenha sido cristã, por mais estranho que isso pare­
ça à nossa sensibilidade moderna. Ela ao menos afirmou sua sim­
patia pelos cristãos, conseguindo libertar os confessores condena­
dos às minas da Sardenha.117 J. B. de Rossi118 encontrou entre os
54
epitáfios cristãos os nomes das grandes famílias romanas aparen­
tadas com os imperadores antoninos.
A evangelização da mulher impressionou profundamente a so­
ciedade antiga. Outros, como Plutarco, haviam lutado pela igualda­
de cultural. Os estóicos preconizavam a mesma formação para os
dois sexos. Votos platônicos, sem impacto na sociedade. O cristia­
nismo agiu mais do que ensinou. Deu à mulher sua carta de nobre­
za cristã e a dignidade de uma existência desprezada pelo paganis­
mo, ensinou com insistência sua igualdade com o homem.119
O celibato voluntário pelo reino de Deus afirmava a liberdade e
a autonomia da mulher e o primado da esperança cristã sobre os
desejos da carne, em época que continuava a dar à prostituição uma
consagração religiosa. Os pagãos tropeçavam constantemente em
um testemunho que ultrapassava a espessura de seus sentidos. O
próprio Galeno tinha dificuldade em compreender "essa espécie de
pudor que inspirava aos cristãos o distanciamento do uso do matri­
mônio”. Se existia corrente cristã que não se contentava com res­
taurar a dignidade do matrimônio, mas também punha sob suspei­
ta sua legitimidade, ela não exprimia a posição da Grande Igreja.
“Os cristãos se casam como todo mundo, afirma a Carta a Dio-
gneto.120 Têm filhos, mas não abandonam seus recém-nascidos".
Indissolubilidade e fidelidade, restabelecidas, especialmente no to­
cante ao marido, pareciam exigências inauditas. Minúcio Félix121
podia fechar a boca dos caluniadores sem esforço: "Vós nos acusais
de falsos incestos; vós os cometeis verdadeiros!”
É verdade que a harmonia conjugal e a igualdade dos esposos
eram menos acentuadas do que a submissão da mulher e seu papel
de educadora. A reabilitação da condição feminina se efetuou lenta
e progressivamente.
Ao mesmo tempo que a dignidade da mulher, o cristianismo
pregava o respeito à vida, em época em que o aborto era moeda
corrente em todas as classes da sociedade, no Egito como em Roma.
0 imperador Domiciano obrigou sua sobrinha a abortar; isso pro­
vocou sua morte,122 o que causou forte impressão. A exposição das
crianças não era flagelo menor. Temos a carta de um trabalhador
egípcio a sua mulher grávida, da qual ele estava afastado porque
trabalhava em Alexandria, pedindo-lhe que fizesse desaparecer a
criança, se fosse mulher.123
55
Devemos precaver-nos para não idealizarmos a antiguidade cris­
tã a todo preço, especialmente ao preço da verdade. O Evangelho
não mudou miraculosamente os homens nem eliminou todas as
fraquezas. O Pastor124 aconselhou a saber perdoar e, se necessário,
a retomar a vida comum com o arrependido. É melhor perdoar,
ensinava ele, do que ver o cônjuge voltar à idolatria.
Esse realismo contrasta com o espírito exaltado de algumas
seitas que proibiam à mulher sua função maternal. Tomé, nos Atos
que trazem seu nome, ensinou à filha do rei Gundafar, no dia de seu
casamento, junto com a fé, a continência absoluta. “Vim acabar
com as obras da mulher”.125
Houve gnósticos que chegaram a apresentar o matrimônio como
prostituição. No extremo oposto, gnósticos de outras seitas, como
Simão, Apeles e Marcos, exploravam a credulidade das mulheres
ao ponto de perturbar muito seu espírito, a fim de que elas consen­
tissem em liberdades que a simples moral reprova.126
As dificuldades se acumulavam para a mulher casada, quando
se convertia sozinha ao cristianismo, isto é, não acompanhada do
marido. Situação certamente freqüente em todas as classes da so­
ciedade, nos primeiros séculos. A Didascália127 trata de sua situa­
ção, sem dramatizar; até o tempo de Mônica e Agostinho, a mulher
cristã devia mostrar a seu marido o verdadeiro rosto do cristianis­
mo; finalmente sua qualidade de alma podia levar o cônjuge ao Evan­
gelho. Em todo caso, os pagãos andavam repetindo: "Eles introdu­
zem a discórdia nas famílias”.128
Os exemplos são muitos. Justino129 conta a história de uma ro­
mana de alta sociedade que, convertida ao cristianismo, esforçou-
se em vão para afastar o marido do vício, e acabou divorciando-se.
Despeitado, o marido a denunciou como cristã. Ressentimento con­
jugal que esclarece os dramas domésticos de todos os dias.
Tertuliano130 refere o caso de Cláudio, governador da Capadócia, o
qual, para vingar-se da conversão da mulher, perseguiu os cristãos.
A experiência explica as reticências da Igreja a respeito dos ca­
samentos mistos entre um pagão e uma cristã. Tertuliano131 descre­
ve o perigo dessa situação para a mulher casada: “Ser-lhe-á impos­
sível cumprir seus deveres para com o Senhor, tendo ao seu lado
um servo do diabo, encarregado por esse senhor de entravar o fer­
vor e a piedade dela. Se ela quiser ir à assembléia litúrgica, o mari-
56
Io a convocará imediatamente para os banhos. Se ela quiser jejuar,
> marido organizará nesse dia um festim. Se ela precisar sair, nun-
:a haverá tanto trabalho em casa como nessa ocasião”. Quadro pin­
ado por um homem casado!
A conversão de uma moça empanava seu futuro. Como encon-
rar um noivo em grupo no qual as mulheres eram a maioria? Se a
ovem pertencesse à aristocracia ou às classes dirigentes, sua esco-
ha era ainda mais reduzida, porque seria realizada em comunida-
le na qual os jovens eram de condição mais modesta. No tempo de
darco Aurélio, a patrícia que desposasse um plebeu perdia seu tí-
ulo de claríssima (“ilustríssima”). Por isso, viam-se moças aristo-
:ratas vivendo em concubinato com libertos e até com escravos,
>ara não perderem seu título.132
Tertuliano reprovava essa maneira de agir e exortava vivamen-
e a jovem cristã a preferir a nobreza da fé à nobreza do sangue. A
íarmonia da fé em amor autêntico devia compensar largamente a
liferença social.133 O papa Calixto confirmou essa prática mor-
*anática e, a despeito do direito romano, chegou a autorizá-la entre
ima pessoa de condição superior e um plebeu nascido livre ou até
ím escravo.

Às mulheres sem marido e na força da idade, ardendo de amor


por um homem indigno de seu nível (isto é, de nível inferior ao
seu) e não querendo sacrificar sua condição, ele permitiu, nar­
ra Hipólito, escandalizado, como coisa lícita unir-se ao homem,
escravo ou livre, que elas escolheram como companheiro de lei­
to, e, sem ser casadas diante da lei, considerá-lo como marido.134

Essas uniões livres, freqüentes na época, foram autorizadas


pelo papa, com a condição de que fossem sancionadas pela Igreja e
se submetessem às regras comuns da fidelidade e da indissolubi-
[idade.135 O perigo desses matrimônios, legítimos no foro interno,
contraídos mais ou menos na clandestinidade — porque o direito
romano) não os reconhecia — era o de serem estéreis ou de levar
ds cônjuges a recorrer a práticas abortivas, para não reconhecerem
a criança como filha de um liberto ou de um escravo. O próprio
concubinato, autorizado pela lei, dispunha para a esterilidade vo-
untária.

57
Com o perdão de Hipólito, que ataca cruelmente o papa Calixto,
devemos prestar homenagem ao realismo de um pastor que soube
libertar a consciência de cristãs envolvidas em situações sem saída.
Os escritos dos autores cristãos da época estão cheios de reco­
mendações, que eram o fermento lançado em um mundo em pro­
cesso de envelhecimento. Tertuliano consagra um tratado ao “véu
das virgens” para impor e motivar seu uso pelas jovens cristãs. A
Didascália136 recomenda às mulheres casadas que cubram a cabeça
com o véu em lugares públicos e na assembléia para ocultarem sua
beleza e não despertarem desejo. Os banhos mistos, que as disposi­
ções do Digestoxy! não puderam proibir, e nos quais se encontravam
mulheres de costumes duvidosos, eram formalmente desacon­
selhados aos cristãos dos dois sexos.138
As jovens viúvas, às quais Paulo já recomendava que se casas­
sem para não serem vítimas do ócio, eram mantidas pela caixa co­
mum. As mais fervorosas se agrupavam em comunidades.139
Em nenhum lugar a dignidade e a igualdade da mulher com o
homem aparecem melhor do que na gesta do martírio. O número
de mulheres que encontramos nessa situação é função de seu
heroísmo. Quase não há narrativa na qual não esteja assinalada a
presença de mulheres ou de moças.140 Os pagãos, por sadismo, pa­
reciam acusá-las com predileção, como se personificassem a vi­
tória do cristianismo.
Apesar das falhas e dos fracassos, a comunidade cristã, no fer­
vor de sua fé, procurava tomar realidade outra sociedade, uma so­
ciedade nova, na qual as barreiras sociais, étnicas e sexuais cedes­
sem diante da vontade impetuosa de viver em toda verdade a
fraternidade cristã, na reciprocidade e na partilha. O irmão e a irmã,
ricos ou pobres, eram vistos, sob a luz do Evangelho, não nas cate­
gorias humanas, mas na comunhão de uma mesma vida e de uma
mesma ação de graças.

58
SEGUNDA PARTE

A PRESENÇA NO MUNDO
CAPÍTULO I

A CONTAMINAÇÃO DA FÉ

A rápida expansão do cristianismo, em contraste com a deca­


dência das religiões pagãs, surpreendeu e às vezes aterrou os pa­
gãos. O mundo greco-romano não se convertera ao culto de Mitra
nem de Cibele; não se convertera ao judaísmo, apesar da propagan­
da desenvolvida, mas converteu-se ao Evangelho. Menos de dois
séculos depois da morte de Cristo, os cristãos ocupavam no Impé­
rio posição que não podia ser erradicada. Nas vésperas da paz
constantiniana, seu número era estimado em 5 a 10 por cento da
população do Império.1
O efeito surpresa explica a dificuldade do estado romano em
avaliar o perigo e sua lentidão em reagir. Quando ele se pôs em
movimento, o contágio já havia ganho o universo. As medidas jurí­
dicas que foram elaboradas estavam atrasadas em relação aos acon­
tecimentos.
Como explicar o sucesso onde todas as outras religiões vindas
do Oriente fracassaram? A rapidez e a profundidade, em paralelo
com a universalidade social e geográfica da progressão, merecem
reflexão, se queremos descobrir suas motivações.
O espírito ocidental não compreende a evangelização sem uma
estratégia bem preparada e sem métodos de ação devidamente con­
trolados pelos sociólogos de plantão. A escola, a imprensa, as orga­
nizações e os movimentos nos pareceram, durante séculos, como
indispensáveis à evangelização.
A penetração cristã, nos dois primeiros séculos, quando a Igre­
ja, longe de ser favorecida pelo Estado, era alvo das suspeitas e da
hostilidade da população, dependeu mais da vida que da estratégia.
A Igreja estava na juventude de sua história. "A primavera estava
diante de seus olhos”.2 Ela proclamava a boa-nova nas fronteiras
do mundo,3 com o mesmo entusiasmo com que a recebera e com o

61
fervor do primeiro amor, que o tempo aprofundou, mas não reno­
vou. Seriam necessárias tintas de pastel para descrever essa prima­
vera que permitia ao universo florescer.
Para nos convencermos disso basta compararmos o que sabe­
mos e, às vezes, o que adivinhamos da situação e das pessoas do
século II com a geração seguinte, que conhecemos melhor. O clima
é muito diferente no tempo de Tertuliano e Orígenes. Alguma coisa
do primeiro impulso arrefeceu. A Igreja teve suas primeiras experiên­
cias e sofreu defecções, foi ferida pelas heresias e mantida firme
pelas perseguições. Era o despertar do cotidiano.
Por isso, as advertências dos bispos, a intransigência agressiva
de Tertuliano e a legislação que estabelecia barreiras. A Igreja se
protegia e defendia sua retaguarda, o que se explica quando se mede
o que estava em jogo e o risco de borrascas — mas já não encontra­
mos o impulso dos começos.
Com relação à Igreja apostólica, o período que se seguiu ao
desaparecimento dos doze consumou a ruptura com a sinagoga, a
qual pode ter favorecido a primeira etapa da expansão cristã, mas
podia comprometer a seguinte.

A salvação vem dos judeus4

Em um primeiro tempo, que pode ter-se estendido pelo século I,


o desenvolvimento do cristianismo foi favorecido pela organização
das judiarias, espalhadas pelo mundo inteiro, do Ebro ao Eufrates.
Paulo e seus colaboradores, originários do judaísmo, estavam certos
de ser acolhidos por seus correligionários nas principais cidades do
Império. Os hospedeiros foram os primeiros a ouvir a “boa-nova"
que vinha do país dos antepassados. Como não vibrar, ao saber que o
tempo dos profetas não havia passado em Israel?
Houve, no judeu-cristianismo, uma primeira geração de missio­
nários, apóstolos e doutores itinerantes, mencionados pela DzWaçwé,5
que se puseram espontaneamente a serviço do Evangelho, segundo
as tradições do judaísmo. Judeus convertidos em Jerusalém ou em
suas viagens de negócios levaram consigo a “boa-nova” para Alexan­
dria e Cartago e se tomaram propagandistas da religião de Cristo.
Os numerosos “fiéis” — homens e mulheres — que Paulo saúda no
62
fim de sua carta aos Romanos,6 antes de ir visitá-los, em parte po­
dem ter sido encontrados e convertidos desse modo. Áquila e Prisca,
retomados a Roma, não ficaram de braços cruzados. Como não
difundir a mensagem, depois de tê-la ouvido da boca do Apóstolo!
De Júnia e Andrônico, de origem judaica, a carta aos Romanos afir­
ma explicitamente que precederam Paulo em Roma e principalmente
que eram “missionários” ativos.7
Dos sucessores de Pedro em Roma, Evaristo é o único do qual é
precisado que era de origem judaica.8 Os outros bispos de Roma já
parecem provir de famílias pagãs. O mesmo sucedia em Antioquia,
onde todos os sucessores de Pedro traziam nomes gregos.9 Em
Edessa e Alexandria e na África do Norte, a mensagem evangélica
— levada por algum judeu convertido em Jerusalém ou por algum
peregrino de volta com a nova fé — difundia-se entre as judiarias
locais. As primeiras gerações cristãs de Cartago dormiam o último
sono ao lado de seus irmãos judeus.10
No século I, a vida cristã estava tão misturada com o judaísmo
que o Estado romano não os distinguia e confundia-os ao ponto de
reconhecer-lhes os mesmos privilégios: livre exercício do culto, dis­
pensa do serviço militar, isenção de todos os encargos, obrigações e
funções incompatíveis com o monoteísmo.11 A dispensa do culto ao
imperador era compensada por uma prece por ele. Os cristãos per­
maneceram fiéis a essa prática.12
Pondo de lado a breve perseguição estritamente urbana de Nero,
a jovem Igreja foi favorecida até o fim do século I pelo estatuto ju­
daico. É possível que os judeus, conscientes da novidade cristã, te­
nham cuidado de afastar toda ambigüidade perante a autoridade
romana. Outros convertidos ao cristianismo, mas nostálgicos de seu
passado, separaram-se e organizavam-se em comunidades próprias.
As coisas mudaram no começo do século II, quando a distinção
foi realizada com clareza. O Estado reconhecia, como atesta a carta
de Plínio, a originalidade da autonomia do movimento cristão.13
Quando a tempestade se abateu sobre o judaísmo, em 135, os cris­
tãos não foram molestados e continuaram vivendo em paz e pros­
peridade.14
Os próprios cristãos se distanciaram do judaísmo e afirmaram
sua independência. Em Jerusalém, o bispo Marcos, que dirigia en­
tão a Igreja, era de origem pagã. Alimentada pela experiência
63
paulina, a Igreja tomou consciência da ambigüidade dessa situa­
ção, a qual podia tomar-se alienante para o Evangelho.
Não obstante, o judaísmo da diáspora balizara o caminho para
o cristianismo, afirmando o Deus único, criador do céu e da terra e
observando a Lei.15 Em terra pagã, Israel tomara consciência do
sentido providencial de sua dispersão e da responsabilidade mis­
sionária de sua presença. O proselitismo judaico despertou a aten­
ção das elites e introduziu exigência ao mesmo tempo doutrinai e
moral, à qual a mensagem evangélica respondia.16
A autonomia da Igreja em relação à sinagoga não significava
ruptura. O diálogo continuou ao longo do século II. Os cristãos não
temiam a discussão. Houve controvérsias sobre os livros santos e
principalmente sobre as profecias cumpridas por Cristo. Os judeus
eram os interlocutores privilegiados dos apologistas Ariston de Pela
e de Justino. O Diálogo com o judeu Trifão é modelo do gênero e,
enfim, uma homenagem a Israel. A discussão prosseguiu nos séculos
seguintes, em novas bases.
Mas a discussão já tinha alguma coisa de acadêmico, porque as
forças vivas dos cristãos agora agiam no meio dos pagãos. Livre,
enfim, de toda tutela, a Igreja, tomada adulta, enfrentou o mundo
greco-romano.

O método da evangelização

O Evangelho foi beneficiado pelo que era, ao mesmo tempo,


movimento e coesão do mundo mediterrâneo. A facilidade das co­
municações e a importância dos intercâmbios comerciais e culturais
provocavam a migração. O Orontes, o Nilo e o Bagradas lançavam
suas águas no Tibre e no Ródano. A Igreja era mediterrânea e falava
o grego, a língua das relações literárias e das transações comerciais.
Compreendida em todas as cidades do Império, ela favorecia a pro­
gressão, permitia os intercâmbios e mantinha a coesão entre as co­
munidades evangélicas. A língua é poderoso fator de unidade: cessa­
mos de entender-nos quando cessamos de compreender-nos. 17
O ter deixado o aramaico pelo grego foi uma intuição de gênio
e uma inserção do fermento evangélico em plena massa humana.
Com isso, a Igreja realizou uma opção missionária, ao escolher a

64
língua de todo mundo, a língua que mais condições tinha de reper­
cutir sua mensagem até as fronteiras do Império. Naquele tempo, o
grego desempenhava o papel exercido pelo inglês atualmente, per­
mitindo circular e comunicar-se em todas as metrópoles e em todos
os centros urbanos do mundo. O perigo era contentar-se só com o
grego, porque em Antioquia falava-se o siríaco. E para evangelizar
os gauleses, Irineu usou “seu dialeto bárbaro”:18 a evangelização
merecia que renunciasse à bela língua dos gregos.
O primeiro impulso à expansão missionária foi dado por Paulo
e pelos outros apóstolos. As comunidades de origem apostólica,
como Corinto e Éfeso, conservavam viva a recordação e o orgulho
de sua fundação. O gênio missionário de Paulo impressionou os
espíritos por seu dom inato de simpatia e por seu senso de contato
com as pessoas mais diversas. Como um rio ele contornava todos
os obstáculos e banhava todas as terras. Quantos nomes nas sauda­
ções e quantos rostos de mulheres afloram nas cartas daquele que
quiseram fazer passar por misógino!
Depois que os apóstolos desapareceram, as comunidades, em
vez de chorá-los, imitaram-nos. Agora o patrimônio deles estava
confiado a elas. A responsabilidade repousava sobre a comunidade
inteira. Conversão significava missão e fé, partilha. Se o carisma do
apostolado era característica de alguns, a solidariedade na missão
era sentida por todos. O cristianismo tinha “tantos apóstolos quan­
tos eram os fiéis. A pregação se difundia sozinha quase em toda
parte, por meio de desconhecidos, sem missão instituída. Os ger­
mes da fé se espalhavam pelos movimentos livres das vontades in­
dividuais”.19
Raramente a iniciativa missionária vinha da hierarquia, preo­
cupada, na época, com estabelecer-se e fazer aceitar a autoridade
episcopal. Não conhecemos nenhum exemplo de missionário envia­
do por chefe de comunidade.
A ação missionária sem mandato particular, só pelo dinamis­
mo da fé batismal, partia habitualmente dos simples cristãos; havia
entre eles alguns sacerdotes, mas os leigos eram a maioria. O cristia­
nismo, qual mancha de óleo, espalhava-se na rede da família, do
trabalho, dos encontros. Pregação modesta, “realizada não em pú­
blico, nas praças e nos mercados, mas sem ruído, no ouvido, com
palavras trocadas em voz baixa e no recesso do lar doméstico".20

65
Nada mais certo do que o termo "contágio" empregado por
Tácito e Plínio para caracterizarem a nova religião e sua propagan­
da, da boca ao ouvido, da esposa ao marido, do escravo ao senhor e
do senhor ao escravo, do sapateiro ao cliente, no interior da loja,
como o provam os testemunhos que chegaram até nós.
A concepção recente da evangelização do meio pelo meio pare­
ce muito estreita para levar em conta o paradoxo de o escravo evan-
gelizar o senhor, e o senhor o escravo, de o médico evangelizar o
doente, e o comerciante, seu cliente. No círculo do filósofo Justino
encontravam-se as mais diferentes pessoas: outro filósofo, Taciano,
o escravo Evelpisto, uma mulher, Carita, e os outros discípulos.
Em Lião, Atalo e Vétio, pessoas da alta sociedade, eram bem
conhecidos do povo simples, comprimido no anfiteatro, ao qual
haviam anunciado a boa-nova enquanto prestavam seus serviços.
O médico Alexandre, junto com sua profissão, exerceu também sua
ação mais junto aos doentes que recorreram a ele do que junto aos
seus confrades, dos quais não se faz nenhuma menção.21
Havia entre os cristãos aqueles que tinham consagrado sua vida
à evangelização, como tinham feito aqueles que, no judaísmo, já
eram chamados “apóstolos” e dos quais a Didaqué22 fala. Como os
profetas e os doutores, eram itinerantes, indo de cidade em cidade.
Uns viviam de seu trabalho, outros, mais numerosos sem dúvida,
eram mantidos pelos irmãos, quando havia comunidade, uma vez
que o operário merece salário.23 Quando não havia grupo hospita­
leiro, os missionários proviam às suas necessidades diárias exer­
cendo seu ofício, como fizera o apóstolo Paulo. Seu desapego e seu
desinteresse já eram uma pregação e a pedra de toque que permitia
discernir os verdadeiros apóstolos.24
O historiador Eusébio25 nos informa que os apóstolos itinerantes
não desapareceram depois da primeira geração.

Grande número de discípulos de então sentiam sua alma


tocada pelo Verbo divino e animada de forte amor pela filosofia
(doutrina cristã). Começavam pondo em prática o conselho do
Salvador: distribuíam seus bens aos pobres, depois deixavam
sua pátria e partiam para exercer a missão de evangelistas. Aos
que ainda não haviam ouvido o ensinamento da fé eles iam pre­
gar e transmitir o livro dos divinos evangelhos. Contentavam-

66
se com lançar as bases da fé entre os povos estrangeiros e com
instituir pastores, aos quais confiavam aqueles que eles haviam
acabado de levar para a fé. Em seguida, partiam novamente
para outras regiões e outras nações.
Aí Eusébio idealiza e esquematiza. Gostaríamos de mais indi­
cações sobre as primeiras gerações de missionários que substituí­
ram os apóstolos. Teria Eusébio mais informações? Não sabemos.
Quais eram os nomes dos missionários que partiram para anunciar
o Evangelho, deixando atrás de si comunidades organizadas, com
pastores encarregados de cultivar onde eles tinham desbravado? O
historiador nos conservou apenas o nome de um deles, Panteno,
arauto do Evangelho de Cristo, que levou a mensagem recebida às
nações do Oriente e até à índia.26
Provavelmente não foi ele o único, porque Eusébio acrescenta:
“Havia ainda, naquele tempo, grande número de evangelistas da
palavra, os quais sentiam zelo divino em imitar os apóstolos, a fim
de permitir crescer e edificar a palavra divina. Panteno estava entre
eles”.27Foi missionário antes de se tomar catequista em Alexandria,
sem dúvida para se adaptar aos trabalhos e ao meio da grande me­
trópole.
A mesma afirmação se encontra em Orígenes: "Os cristãos não
negligenciam nada que esteja em seu poder para expandir sua dou­
trina no universo inteiro. Para isso, alguns decidiram ir de cidade
em cidade, de aldeias a povoados, a fim de levarem os outros ao
serviço de Deus".28 “A expansão missionária se desenvolveu, obser­
va Orígenes em outra passagem, sem que o número dos evangelistas
aumentasse”.29 Parece que ele pensava em alguns desses pregado­
res, porque falava no presente e comparava-os aos que, em seu tem­
po, ainda circulavam através do mundo.
Entre a renúncia total e a vida normal havia lugar para a ação
espontânea dos que pregavam a boa-nova sem sair de seu meio,
continuando a exercer seu ofício ou em viagens cujo motivo não
era o apostolado.30 Celso caçoa desses evangelistas improvisados,
porque não tinham estudos nem cultura.
Observamos nas casas privadas dos tecelões, dos sapateiros
e dos pisoadores pessoas da última ignorância e desprovidas de
toda educação; na presença de mestres, de homens de experiên-
67
cia e de julgamento, elas se guardariam de abrir a boca. Mas,
encontrando as crianças da casa ou mulheres, tão estúpidas quan­
to elas mesmas, tagarelam suas maravilhas.31

É evidente que Celso exagera; seus ataques são violentos. Ele


visa baixo para vencer melhor. Sua cultura insolente ataca a nova
“quimera”, que abalava a sociedade e a civilização às quais ele era
profundamente apegado.
É verdade que, antes de escrever, Celso observou, tomou conta­
to com grupos cristãos, a fim de descobrir os métodos e a tática da
expansão. Insolência e preconceitos à parte, a observação de Celso
é exata. Viu bem em que meio e por quais processos se exercia, de
modo geral, o proselitismo cristão.
A ação individual era a regra. Ela estava ao alcance de todos.
Cada cristão podia comunicar sua descoberta aos membros de sua
família, aos companheiros de trabalho e aos amigos. Os primeiros
a se maravilhar com a boa-nova foram os humildes, os pobres, os
doqueiros e os artesãos, próximos uns dos outros, amalgamados
por uma comunidade de destino, solidários nas mesmas provações
e acolhedores a quem lhes falasse de salvação e liberdade,32 de paz
e dignidade. É verdade que era no meio desse mesmo povo simples
que se espalhavam as calúnias mais ignominiosas. A acolhida do
Evangelho era, enfim, questão de generosidade, e esta não é distri­
buída segundo a escala social.
Os primeiros evangelizadores eram os membros da família. Não
são raros os testemunhos segundo os quais o Evangelho se estendia
a todo o lar, ao cônjuge e às crianças. Justino cita o exemplo de
cristãos que o eram "desde a infância”.33 Um dos companheiros desse
mártir-filósofo disse a Rústico, prefeito de Roma: "Recebemos essa
confissão de nossos pais”.34 Policarpo afirmou que servia a Cristo
há oitenta e seis anos, o que permite supor que fora batizado em
tenra idade.35 Também Papilo, em Pérgamo, respondeu ao procônsul
que “servia a Deus desde sua infância”.36
Polícrates, bispo de Éfeso e contemporâneo de Irineu, diz em
sua carta ao papa Vítor37 que nasceu em família tipicamente cristã:
sete de seus parentes próximos haviam sido bispos, e ele era o oita­
vo. Afirma que tinha sessenta e cinco anos, o que significa provavel­
mente que, tendo nascido de família cristã, trazia a fé desde o ber-

68
ço, em um lar que dirigia a comunidade há gerações e em época na
qual havia um só bispo para a Gália e a Germânia.
Desde são Paulo, conhecemos famílias nas quais os pais se con­
verteram com os filhos e a criadagem, que vivia na casa; judeus e
pagãos designavam-na como "casa”.38 Essa "contaminação” da fa­
mília explica a surpreendente difusão do Evangelho na Bitínia, des­
crita por Plínio, a qual atingia jovens e adultos.
Inácio de Antioquia, em sua carta aos esmimenses, “saúda as
casas dos irmãos com suas mulheres e seus filhos”.39 Cita particu­
larmente a família da Távia e a da viúva de Epítafo, cujos filhos, já
casados, fundaram também lares cristãos.40
Conversão que foi a origem dessas belas famílias cristãs que for­
neceram à Igreja mártires e personalidades da têmpera de Orígenes,
Basílio e Gregório de Nissa. A fé do chefe de família assumia papel
decisivo e geralmente levava consigo toda a casa.
Em outros casos, era só a mulher que se convertia; ela não
levava necessariamente seus filhos para a nova comunidade. As
inscrições cristãs nos conservaram o nome do jovem Aproniano,
sem dúvida de pai pagão, que foi batizado a instâncias de sua avó.41
Em muitos lares deve ter havido conflitos entre a mãe cristã, os
filhos e o pai.42 No século II, filhos e filhas de lares cristãos eram
batizados ao nascerem, como os netos de Epítafos, saudados por
Inácio de Antioquia em Esmirna. Os epitáfios conservam o nome
e a recordação de muitas crianças cristãs batizadas em famílias
crentes.43
Em uma casa de posição, servos e escravos normalmente eram
integrados à família e participavam da vida religiosa do lar. Temos
prova disso no interrogatório de uma escrava denunciada como
cristã. “Por que, pergunta-lhe o juiz, sendo escrava, não segues a
religião de teu senhor?”44 A coisa lhe parecia natural.
Os senhores cristãos evangelizavam seus servos e escravos, o
que transformava suas relações e derrubava barreiras. Um fragmento
em papiro da Apologia de Aristides, encontrado recentemente, afir­
ma: “Os senhores cristãos persuadem os escravos e as servas e os
filhos, quando os têm, a se tomarem cristãos, para se assegurarem
seu devotamento, e quando eles se tomam cristãos, chamam-nos
irmãos, sem discriminação, por causa de sua unidade em uma mes­
ma comunidade”.45
69
Sem dúvida, assim foi que a jovem Blandina encontrou a fé. O
mesmo deve ter-se passado com o escravo de Proxenes, liberto de
Marco Aurélio e de Vero, que se tomou camareiro e tesoureiro. Quan­
do morreu, os antigos escravos lhe ergueram um mausoléu, conserva­
do em Roma, na villa Borghese. As inscrições celebram os louvores
de seu mestre. Um dos escravos, ausente na hora da morte, ao voltar,
fez questão de acrescentar a elas um testemunho pessoal de sua fé,
da qual ele fora confidente. Escreveu no sarcófago as seguintes pala­
vras, hoje mutiladas: Proxenes foi recebido no seio de Deus. Em sua
volta a Roma, seu liberto Ampélio lhe prestou este testemunho.46
Foi Ampélio que levou a boa-nova a seu senhor ou foi o senhor
que encontrou nele um discípulo e um irmão? Os dois casos devem
ter existido. Esse proselitismo exigia tato e discrição, para evitar as
conversões simuladas e as delações. O nobre Apolônio de Roma foi
denunciado por um de seus escravos.47 Atenágoras observa, contu­
do, que essas delações eram raras.48 Isso prova que muitos escravos
de senhores cristãos continuaram pagãos. Aliás, afirma-o formal­
mente a história dos mártires de Lião, onde escravos pagãos foram
presos com seus senhores cristãos, por serem presumidos cristãos.49
A gesta dos mártires conservou a conversão de alto funcionário
romano chamado Hermes, efetuada por uma velha escrava cega.50
Se esse traço não é histórico, ao menos simboliza o que deve ter-se
passado mais de uma vez: um escravo, tocado pela benevolência de
seu senhor, revela a ele os mistérios da fé. Qual terá sido a influên­
cia da nutriz cristã sobre o futuro imperador Caracala? Não foi sem
razão que a história conservou esse pormenor.51
Desde as origens cristãs, a mulher desempenha papel insubs­
tituível na difusão evangélica. Foi uma mulher, Priscila, que evan-
gelizou Apoio.52 São Lucas tem o cuidado de relatar esse pormenor.
O próprio Paulo, em suas peregrinações, era mantido por mulheres
devotadas, que serviam e ampliavam as comunidades. Os Atos apó­
crifos exageram — empresta-se só aos ricos — ao apresentarem Tecla
como evangelizadora do Apóstolo. Com discrição na Grande Igreja,
com excessos nas seitas, as mulheres também propagavam o Evan­
gelho.
Plínio, Celso e Porfírio, com tanta ironia quanto despeito, reco­
nheciam o rápido movimento de conversão entre as mulheres. No
Oriente, onde a esposa levava vida bastante retirada, mais que em
70
Roma, a mulher evangelizava as outras mulheres. Clemente de
Alexandria descreve o papel dessas cristãs, impulsionadas pelos
primeiros apóstolos, as únicas que podiam entrar nos gineceus, ser­
vir de intermediárias e levar a esses lugares estreitos, escuros e su­
focantes a doutrina libertadora do Senhor, “sem que a malevolên­
cia pudesse censurá-las ou levantar suspeitas”.53
Bem cedo a Igreja instituiu as diaconisas, encarregando-as do
serviço das mulheres e de visitar em domicílio as cristãs que mora­
vam em casas pagãs.54 A condição reclusa explica por que essa ins­
tituição nasceu no Oriente e por que não se impôs no Ocidente ro­
mano, onde a mulher era mais livre.
A participação das diaconisas na evangelização do mundo fe­
minino não levantou nenhuma objeção no Oriente. Ela foi regula­
mentada só mais tarde,53 como veremos.
O exército romano não era impermeável ao Evangelho. Sem
irmos ao ponto de encontrarmos conivência entre a milícia de César
e a de Cristo, os fatos provam que houve soldados que se converte­
ram ao cristianismo no decorrer de sua carreira militar. Havia cris­
tãos nas legiões romanas, ao menos desde o século II. O milagre já
referido, no tempo de Marco Aurélio, é prova disso.56
É possível que os primeiros tenham sido evangelizados — como
insinua Celso57 — por missionários itinerantes, que “percorriam
as cidades e os acampamentos”. Foi já o caso de Paulo pregando às
cortes pretorianas.58 Havia pretorianos cristãos sob Nero.59 Tertu-
liano reconhece que, em seu tempo, os cristãos enchiam os exér­
citos.60
A penetração evangélica deve ter sido simultaneamente ocasio­
nal e fluida, não tendo quase deixado vestígios, efetuando-se fora
das comunidades organizadas. O soldado cristão, à noite, na vigí­
lia, confidenciava a um companheiro a “feliz nova”, totalmente di­
ferente do culto de Mitra e de Cibele, espalhado no exército.61 As
virtudes militares — obediência, disciplina, serviço, desprezo da
morte — podiam, ademais, comparar-se às virtudes cristãs.
A vida nos acampamentos, os contatos de homem a homem e
logo o espetáculo dos mártires podem ter favorecido a expansão do
Evangelho entre os soldados. Outrossim, mártires o exército fome-
ceu-os na Itália, na África, no Egito e até às margens do Danúbio. A
última perseguição começou com uma depuração nas legiões.62
71
Paradoxalmente, com a difusão do cristianismo, cresciam os sen­
timentos anticristãos. Isso se explica, se pensarmos que o exército
era afastado das influências civis. Mas muitos soldados viviam se­
parados de suas unidades, servindo nas stationes e nos ofícios como
agentes da polícia ou como empregados nos departamentos impe­
riais. O soldado, em contato com a vida civil, ouvia falatórios, re­
cebia informações, encontrava cristãos, prendia suspeitos, julgava
acusados e acusadores. Quantos deles, como Pudêncio, encarrega­
do de vigiar Perpétua e seus companheiros, não sentiram a atração
da fé?63
O que impressionava nos cristãos do século II era sua presença
na vida das pessoas, nas lojas, nas oficinas, nos acampamentos e
nas praças públicas. Participavam da vida econômica e social, mis­
turavam-se à vida cotidiana e viviam como todo mundo. Em Lião,
os pagãos conheciam perfeitamente os cristãos preeminentes, en­
contravam-nos nas termas e nos dois faros, um situado no local da
atual Notre-Dame de Fourvière e o outro no planalto da Sarra.
Policarpo, bispo de Esmima, conta que o apóstolo João freqüen-
tava as termas da cidade e que as deixou quando nelas encontrou o
heresiarca Cerinto.64 Os cristãos de Lião freqüentavam os banhos e
as praças públicas, o que explica sua popularidade; deixaram-nos
quando foram expulsos pelo movimento popular.
Na época imperial, as termas, semelhantes aos nossos cassi­
nos, eram construções vastas com numerosas salas, com pórticos
para jogos e conversação e com uma biblioteca65 e galerias de arte.
Em Duga, na África do Norte, havia até um teatro contíguo.
Na participação nessa vida comum preparavam-se conversões.
Como poderíam os cristãos ser o sal da terra se não tivessem conta­
to com ela? como poderíam ser a alma do mundo sem se misturar a
ele? A Carta a Diogneto já o afirmava, com intenção apologética, a
fim de defender os cristãos contra as calúnias.

Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pelo


país, nem pela língua, nem pelas vestes. Não moram em cida­
des próprias, não falam dialeto extraordinário; seu modo de
vida não tem nada de singular. Habitam nas cidades gregas e
bárbaras segundo a sorte que coube a cada um; conformam-se
com os usos locais quando às vestes, ao alimento e à maneira

72
de viver, manifestando as leis extraordinárias e paradoxais de
seu modo de viver.66

Clemente de Alexandria descreve, no Pedagogo, não sem certa


complacência, a veste do cristão. Censura tanto as excentricidades
como o apuro. Nada de tecidos bordados em Mileto ou na Itália,
nada de tecidos brocados com fios de ouro, mas roupas simples, de
cor natural, geralmente brancas, as mesmas para os homens e as
mulheres. Quando muito ele autoriza a mulher a ter mais elegância
no corte e a escolher tecido mais macio.67
Nada de calçados para os homens, precisa Clemente, o que se
compreende em Alexandria. Para as mulheres, recomenda ele calça­
dos simples, condena os “cotumos persas e etruscos”,68 e mais ain­
da as botinas com pregos, que as mundanas batiam nas lages do
calçamento, fazendo soar as palavras: segue-me, segue-me.69 O mo­
ralista de Alexandria descreve os cristãos sentados com os pa­
gãos nas tavemas, os quais espreitavam a passagem dessas prosti­
tutas.70
Tertuliano, com seu rigor costumeiro, proíbe até o anel e o uso
de perfumes e coroas.71 Em Cartago, contudo, os cristãos usavam
anéis que serviam de selo. O mártir Saturno, companheiro de Feli­
cidade, deu o seu ao soldado Pudêncio, em sinal de gratidão.72 As
pinturas das catacumbas mostram mulheres ricamente enfeitadas,
o que permite medir até que ponto eram ouvidos os moralistas cris­
tãos73 e também pagãos.74
Sem dúvida, vontade de presença e participação na condição
comum eram afirmações matizadas por um “sim, mas”. As reservas
apareciam e com Tertuliano cresceram. Se, na época do Apologético,
ele se mostrava eufórico, nas obras posteriores enrijeceu-se e con­
denou o mundo, para subtrair os cristãos de suas influências. No
fim do século II, manifestou-se uma divagem.
Pode-se discernir como que dois tempos na evangelização da
bacia mediterrânea no tempo dos Antoninos: o primeiro, sem com­
plexos, no frescor da descoberta evangélica e na alegria da partilha;
no segundo, diante da resistência da cidade antiga, os cristãos sen­
tiram a que ponto este mundo, contaminado pela idolatria e inclina­
do à calúnia e ao preconceito, era impermeável ao Evangelho. Eles
diminuíram seu otimismo inicial e tomaram-se mais circunspectos.

73
Os mais destemidos aceitavam o diálogo e abriam a discussão.
Respondiam às objeções e refutavam as calúnias. Era o método de
Justino em Roma e de Panteno e Clemente em Alexandria.75 A afluên­
cia de filósofos de profissão iniciou nova etapa na evangelização. A
inciativa de Justino parece ter sido puramente privada e sem inves­
tidura oficial. Mas em Alexandria, Panteno e, depois, Clemente en­
sinavam na escola “de ciência sagrada”, organizada pelos chefes da
comunidade. Os apologistas substituíam agora os primeiros missio­
nários.
Na metade do século II, com a conversão de espíritos cultos, a
Igreja passou por surto intelectual que explica a extraordinária
efervescência da gnose, isto é, da vontade de saber — pretenso sa­
ber, ademais, essencialmente intelectual. Enriquecimento e amea­
ça ao mesmo tempo. A ciência sem o fervor é estéril, mas o fervor
sem a ciência é mais perigoso, como mostra o gnosticismo de ho­
mens e mulheres exaltados.
Em Roma, Justino se esforçava para demonstrar o caráter exis­
tencial da sabedoria, que ele havia descoberto e ensinava. Enfren­
tou o filósofo cínico Crescente, o qual ensinava vestido com seu
manto, com o alforje nos ombros, o cajado na mão e cabelos lon­
gos, preocupado mais com clientes do que com discípulos.
O filósofo cristão praticava a maiêutica do limiar. Mantinha a
escola aberta como os outros filósofos que viviam de seu ensina­
mento. Conhecida do público, a escola recebia os espíritos mais
diversos, cristãos e pagãos. Aí uns encontravam, na doutrina cristã,
a resposta à sua procura interior; outros a ela iam para aprofundar
e consolidar sua fé. Dos companheiros de martírio de Justino, dis­
cípulos seus, sabemos que uns eram cristãos desde o nascimento
ou de longa data, outros se converteram em sua escola. A iniciativa
de Justino não era a única; Taciano, seu discípulo, imitou-o.
Justino não foi o único a evangelizar Roma, uma vez que, como
ele próprio diz, na mesma época outro leigo, Ptolomeu, converteu
uma mulher casada de vida dissoluta.76 A história conservou o nome
do presbítero Jacinto, que exercia influência benéfica na corte im­
perial.77
Parece que a maior parte dos mestres cristãos era formada por
leigos. Certo número de catequistas ainda o era um século mais
tarde.78 Prolongavam seu ensinamento por seus escritos, que habitual-
74
mente eram "apologias” do cristianismo dirigidas às autoridades
civis, aos magistrados e até aos imperadores. Esses endereçamentos
corajosos, às vezes presunçosos, provam ao menos que os cristãos,
longe de se confinarem em guetos, enfrentavam sem complexos a
sociedade e os filósofos.

Os motivos da conversão79

A evangelização cristã dependia mais da vida do que da tática.


De onde vinha sua eficácia no meio das religiões e das seitas que se
espalhavam pelo Império? Por que o mundo se tornou cristão?
As numerosas conversões da época não se reduzem a um só
motivo. Não podemos explicá-las senão na medida em que os con­
vertidos nos expõem as causas de sua reviravolta. São raros os tes­
temunhos e provêm principalmente de cristãos instruídos e de
apologistas, que conceituavam as razões intelectuais. Que dizer das
pessoas humildes, dos escravos e comerciantes, dos artesãos e dos
soldados?
É difícil tirar argumento das condições históricas: podiam tan­
to facilitar como contrariar o desenvolvimento do cristianismo.
Roma, tão acolhedora com os novos cultos vindos das margens do
Orontes, não era menos apegada às tradições da religião romana,
que sustentava a cidade. Naquela época, a admiração pela filosofia
e pelos filósofos andava ao lado de um ceticismo geral, do qual Marco
Aurélio, desiludido, era o representante típico. A mesma admiração
provocou a explosão das seitas, que ameaçavam a unidade e a inte­
gridade da fé cristã.
Os observadores do fenômeno cristão no Império que podemos
interrogar acolhiam facilmente bisbilhotices e calúnias. Há, contu­
do, dois testemunhos que parecem menos superficiais e que mere­
cem, portanto, que nos detenhamos neles.
Em primeiro lugar, Luciano de Samósata, pouco posterior a
Justino e a Taciano, espécie de "voltairiano", originário da Síria e
estabelecido em Atenas, de onde observava. Refratário ao sobrena­
tural, não se arriscava a julgar o cristianismo do interior. Em a Morte
de Peregrino, põe em cena uma personagem que deve ter existido e
que freqüentou os cristãos e inscreveu-se em suas fileiras.
75
Da freqüentação dos cristãos, Luciano pinta um quadro que
tem tudo para ser caricatural, mas no qual alguns traços foram bem
observados. Dentre elas, cita a importância dos livros sagrados, o
respeito demonstrado pela comunidade aos confessores da fé, pro­
curando suavizar sua sorte, cercando-os de cuidados e ajudando-
os; a fraternidade revelada pelo fundador, a qual unia os membros
entre si e além dos grupos locais; a pouca importância dada ao di­
nheiro, usado para as necessidades dos que sofriam; enfim, seu des­
prezo pela morte, por causa da esperança de viver etemamente.80
Embora superficial, a descrição de Luciano retém o que na vida
cristã impressionou os espíritos e atraiu os mais generosos. Temos
outra descrição, de autenticidade reconhecida, quase contemporâ­
nea da de Luciano, a do célebre médico Galeno, que Justino conhe­
ceu em Roma. Ele nos fornece do fato cristão um diagnóstico cau­
teloso e sem paixão, como homem de ciência que analisou antes de
falar e estudou antes de julgar, sem confiar, como tantos outros, nos
boatos que podiam circular à sua volta.
A maior parte das pessoas não pode seguir uma demonstra­
ção com atenção prolongada, por isso se deve falar a eles em pa­
rábolas. Assim, em nosso tempo, vimos os homens chamados
cristãos tirar sua fé de parábolas. Não obstante, agem de tem­
pos em tempos como verdadeiros filósofos. Seu desprezo pela
morte nós o temos, por assim dizer, sob os olhos. Direi a mes­
ma coisa do fato de que uma espécie de pudor inspira-lhes o
afastamento do uso do matrimônio. Entre eles, há mulheres e
homens que se abstiveram da união sexual durante toda a vida.
Há também os que, pela orientação espiritual, pela disciplina
da alma e por rigorosa aplicação moral, avançaram tanto que
não são em nada inferiores aos verdadeiros filósofos.81
Análise crítica do fato cristão que tem grande valor. O que re­
tém a atenção de Galeno não é a doutrina, sobre a qual não se es­
tende, certamente porque não teve ocasião de aprofundá-la, mas a
atitude existencial dos cristãos, que ele observou e viu viver “sob
seus olhos”, como diz ele. Quis ver como se comportavam cotidia­
namente. De sua observação retém o desprezo da morte, a vida cas­
ta de homens e mulheres — a qual, em alguns, chega à continência
absoluta —, a disciplina e o rigor dos costumes.

76
As observações de Galeno coincidem com as confidências que
nos chegaram. Encontramos nelas três motivações principais, as
quais explicam a rápida extensão do cristianismo sob os Antoninos:
a mensagem evangélica, a fraternidade vivida nos grupos e o teste­
munho de santidade, indo até o martírio. Motivações que não se
justapõem, mas se coordenam e agem, multiplicando seus efeitos.
O cristianismo aparece primeiro como a religião do Livro82 e
como a afirmação de uma fé83 perante o ceticismo do ambiente, o
que a aparentava com o judaísmo. Melhor do que nesse último, as
promessas desembocavam nas realizações messiânicas. A vinda de
Cristo, escarnecido por Celso, põe os homens em contato com Deus
e ajuda-os a andarem no caminho reto. A fé cristã se apresenta, ao
mesmo tempo, como proximidade de Deus, como sabedoria de vida
e como força do Espírito, que ilumina, sustenta e conduz.
A ressurreição de Cristo, fundamento da esperança cristã e do
que Luciano e Celso chamam “desprezo da morte", fortalece a cora­
gem com verdadeira invulnerabilidade,84 tanto mais que oferece
resposta à angústia da morte e da sobrevida, muito viva na época.
Árrio Antonino queria ver nessa coragem apenas uma forma de sui­
cídio: “infelizes, se quereis morrer, não tendes cordas e precipí­
cios?"85 Marco Aurélio estava visivelmente irritado com o heroísmo
cristão, inspirado pela esperança, e procurava interpretá-lo como
fanatismo e gosto pela ostentação trágica.86 O imperador filósofo,
que confiava na razão universal, na qual iria dissolver-se na última
hora, parece ter percebido que a coragem dos cristãos diante da
morte e o segredo de sua vida moral vinham dessa esperança.
O que impressionou os pagãos de Lião na doutrina cristã foi a
espera da ressurreição, ponto crucial da nova religião. Por isso dis­
persavam as cinzas dos mártires, para “triunfarem de Deus e privar
os mártires da imortalidade”. “É necessário, diziam eles, tirar des­
ses homens até a esperança da ressurreição. Por causa dessa cren­
ça, introduzem entre nós uma religião nova e estranha, desprezam
as torturas e correm alegres para a morte”.87
A dignidade da vida cristã, levada até à intransigência e à santi­
dade, causou admiração aos pagãos. A conversão exige mudança
de vida, mas oferece a força para a concretização de suas exigên­
cias. Galeno destaca o rigor da vida sexual não só nas mulheres, às
quais os maridos gostavam de impor a pureza e a fidelidade, mas
77
também nos homens, o que surpreendeu esse médico, pouco habi­
tuado com o fato em Roma.
A prática da ascese encheu a literatura apócrifa e caracterizou
os excessos do montanismo. Se nem todos os cristãos a praticavam,
como dá a entender o Pastor de Hermas,88 o rigor moral era a regra
comum.
Embora posterior em cinqüenta anos ao reinado dos Antoninos,
a confissão de Cipriano de Cartago é rica de ensinamentos. Das narra­
tivas de conversão que possuímos ela é uma das raras a expor suas
motivações. Esse aristocrata rico e brilhante estava cegado pelas
paixões, invencíveis. “Como, dizia eu, falar em converter-me?”89 Foi,
no entanto, o que lhe aconteceu. Tomou-se um santo, benevolente
com os outros e intolerante consigo próprio.
Justino e Taciano, convertidos na idade adulta, em suas Apolo­
gias90 dão importância tão grande à pureza dos costumes porque
foi ela que os impressionou primeiro e porque a experiência da vida
não os desiludiu a respeito dessa “marca registrada” do cristianis­
mo. O filósofo cristão de Roma narra que uma rica romana de cos­
tumes depravados converteu-se, mudou de vida e esforçou-se para
converter o marido. A integridade de vida dos cristãos, afirmada
por todos os escritores cristãos,91 provocou muitas adesões.
O testemunho cristão se afirmava de maneira espetacular e co­
tidiana pela fraternidade, que unia os membros das comunidades e
estabelecia laços de cidade a cidade e de país a país. Os que procu­
raram, como Justino, Taciano e Panteno, observaram isso em suas
viagens. Foi o que os levou a decidir-se. O “vede como eles se amam”
era apologia viva, à qual escritores e historiadores pagãos tiveram
de prestar homenagem.
Fraternidade que se exprimia na perfeita igualdade de todos e
na dignidade de cada um, especialmente dos que a Antiguidade es­
magava: as crianças, as mulheres e os escravos. Fraternidade sem
promiscuidade, seja o que for que dissessem os caluniadores; fra­
ternidade que abolia as barreiras e reunia os corações em grupos,
nos quais todos se conheciam, porque todos tinham dimensão hu­
mana.
A designação “irmão” e "irmã” que se davam mutuamente92
exprimia as relações novas entre ricos e pobres, entre senhores e
escravos, até a colocação em comum dos recursos e a manutenção

78
de todos os que, momentânea ou definitivamente, estavam em ne­
cessidade. Foi provavelmente o espetáculo dessa fraternidade vivi­
da que converteu Tertuliano, como se deduz da leitura atenta da
descrição que dela faz ele em seu primeiro livro, o Apologético ,93
Esse brilhante jurista de Cartago não havia procurado nem acha­
do resposta para uma angústia metafísica. No mundo dilacerado e
decadente que o cercava, viu florescer sob seus olhos, na metrópole
africana, um grupo de homens e mulheres para os quais a fortuna
de uns provocava não a inveja nos outros, mas partilha e a iguali-
zação em benefício dos mal providos, todos atentos aos mais humil­
des entre eles; pessoas entre as quais os pobres, em vez de serem des­
prezados ou considerados como de segunda classe, eram membros
privilegiados, “as crianças da fé”, confiados à ternura dos outros e
sustentados pela caridade de todos. Pela descrição de Tertuliano per­
passa uma vibração, um maravilhamento que não enganam sobre
o choque sentido e que decidiram sua conversão. Quantos não fo­
ram, em Roma, Efeso e Lião ou nos vilarejos recuados, os que en­
contraram na irradiação do amor partilhado o caminho da Igreja?
Fraternidade não fechada, mas aberta, porque a fé reparte com
todos, ainda que pagãos. Dizemos aos pagãos, observa Justino, vós
sois nossos irmãos”.94 E Tertuliano conclui sua descrição da comu­
nidade, dirigindo-se ao mundo pagão: “Somos vossos irmãos”,95
apesar das calúnias que circulavam.
A peste que se abateu sobre Cartago e Alexandria deu aos cris­
tãos a oportunidade de mostrarem essa fraternidade aos pagãos
como aos cristãos atacados de peste. Pregação mais eficaz do que
as declarações mais retumbantes; ela permitiu que se estendessem
“as cordas da tenda” cristã.96
Na vida dos cristãos, o que impressionou mais profundamente
o ambiente, até ganhá-lo para o Evangelho, foram a firmeza e o
heroísmo dos mártires. Exprime-o de maneira inapagável a fórmu­
la lapidar de Tertuliano: “Crescemos cada vez que vós nos ceifais. O
sangue dos mártires é semente de cristãos”.97 Ao que Pascal faz eco:
‘Creio somente nas histórias cujas testemunhas se deixarem dego­
lar”.98
O argumento não repousa no número dos mártires, como uma
má apologética o repetiu muitas vezes, mas na significação de seu
sacrifício. Tertuliano o explica na conclusão do Apologético1.
79
A esse espetáculo, quem não se sente abalado e não procura
saber o que está no fundo desse mistério? Quem o procurou e
não se juntou a nós? Quem se juntou a nós e não aspirou a sofrer,
para conseguir a plenitude da graça divina, para obter de Deus
o perdão completo ao preço de seu sangue?"

Os exemplos são muitos e ilustram as afirmações de Tertuliano.


O homem que conduziu o apóstolo Tiago, irmão de João, ao tribu­
nal, ficou espantado ao vê-lo dar testemunho, e ali mesmo confes­
sou que era cristão e morreu com o apóstolo.100 Também o martírio
de Perpétua provocou conversões.101 O soldado Basílides, da escol­
ta do prefeito, encarregado de conduzir a jovem Potamiana ao su­
plício, ao ver tanta coragem, confessou que também era cristão e
morreu com a virgem mártir.102 O filósofo Justino afirma que a vis­
ta dos cristãos intrépidos diante da morte convenceu-o das doutri­
nas cristãs.103 O testemunho de Tertuliano104 é semelhante. E
Hipólito103 conclui: “Os que vêem se admiram. Muitos deles encon­
tram nisso a fé e tomam-se também testemunhas de Deus”.
A gesta do sangue contém muitos traços análogos.106 Os exage­
ros literários não tiram nada da força imperiosa do testemunho, ao
menos para as pessoas de boa fé. O exemplo e a coragem dos márti­
res, dos mais humildes aos maiores, levam a refletir. Na alma como
na Igreja é necessário dar tempo para que a semente germine e dê
frutos.
A eficácia do Evangelho provém, de que veio saciar a fome es­
piritual da época — e certamente de todas as épocas —, cansada
dos retores e dos filósofos, deprimida pelo pessimismo ambiente e
disponível para um ideal. A multidão, semelhante à população de
nossos grandes conjuntos habitacionais, esmagada pelo trabalho,
amontoada e mal alojada, só conhecia a vida de sofrimento. Ne­
nhum poeta, nenhum filósofo compreendera-lhe o sofrimento nem
exprimira sua queixa silenciosa. O cristianismo veio proporcionar-
lhe, com a salvação e a esperança, uma ilha de paz, com a consciên­
cia de sua dignidade.

80
CAPÍTULO II

O CONFRONTO COM A CIDADE

A imagem estereotipada da Igreja dos mártires enterrada nas


catacumbas não traduz a situação real nos dois primeiros séculos,
em Roma ou no Império de Marco Aurélio. A presença cristã se ma­
nifestou de maneira, antes, agressiva e conquistadora: ela invadiu o
espaço e enfrentou o público. Impôs-se em toda parte: na família,
nas profissões, na cidade. Depois da timidez dos começos, passou à
ofensiva, afirmou-se e afirmou. Interpelou magistrados e filósofos.
A proclamação de um monoteísmo militante, a novidade da
instituição, o rigor dos costumes nos adeptos e a prática de ritos
insólitos em lugares separados da sociedade despertavam suspeitas
e provocavam calúnias. Aqueles mesmos que não tinham nenhuma
fé nela tomaram-se seus propagandistas.
Pregando uma religião internacional, universal, o cristianismo
se chocava inevitavelmente com o paganismo oficial e com o ceti­
cismo dos filósofos, para os quais as cartas já estavam dadas. O
intruso podia abalar as estruturas estabelecidas ou comprometer
privilégios inveterados. O confronto se firmou, pois, no plano da
cidade, da opinião pública e do pensamento.
O cristão descobriu duas cidades que o solicitavam e interfe­
riam em sua vida, e cumpriu o aprendizado de pertencer a ambas.
A Carta a Diogneto descreve o caminho sobre a linha divisória que o
cristão seguia em toda terra, que era sua pátria, e em toda pátria,
que, para esse peregrino do Invisível, era terra estrangeira.1
Como viver em um mundo no qual a estrutura religiosa do cris­
tianismo era provocação? Como viver a fé, sem desafiar as crenças
e os ritos tradicionais da casa, da rua e da cidade? Como apelar
para outra cidade, sem se ver acusado de deserção e ameçado de
ostracismo? Para quem refletia, a vida cotidiana acumulava ques­
tões e dificuldades.

81
O encontro com a cidade antiga
Ao contrário dos judeus, os cristãos se integram na cidade, afir­
mando sua lealdade. Recusam-se a ser raça à parte ou a viver como
imigrantes. Nada os distingue de seus concidadãos, nem a língua,
nem a roupa, nem os costumes.2 Nada de gueto. Quando muito, na
rua, o pagão pode notar a simplicidade de seu traje e, quanto à
mulher cristã, a ausência de enfeites, a austeridade do tecido e a
discrição dos trajes.
Entretanto, em um primeiro tempo, a Igreja era favorecida por
privilégios que o Estado concedia à sinagoga e à religião judaica,
religião estrangeira, não integrada ao panteão romano. As primei­
ras perseguições contra os cristãos, das quais nos fala Suetônio,
pareciam conservar a confusão entre “os discípulos de Chrestos” e
os judeus. As acusações eram, outrossim, as mesmas que foram
dirigidas ao judaísmo: ateísmo, exclusivismo, ódio à humanidade.3
Mas, depois que o equívoco judaico terminou, os cristãos se
viram face a face diante do Império. Seu monoteísmo fechado a
todo sincretismo, irredutível a uma raça, como o judaísmo, preten­
dia, como a religião romana, estender-se às dimensões do mundo
habitado. Como instalar-se em cidade ocupada por uma religião de
Estado? Como limitar às fronteiras do Império, às suas institui­
ções, um Evangelho que por si as transbordava?
Inteiramente aberta às contribuições externas, disposta a natu­
ralizar as divindades estrangeiras dos territórios conquistados, a
religião romana era fundamentalmente hermética a toda evolução
espiritual. Subtrair-se aos seus ritos seria faltar ao patriotismo, à
cidade.
O confronto se tomava tanto mais inevitável quanto mais a ação
imperial acentuava a marcha para a unidade política e para a cen­
tralização administrativa.4 O cristianismo se apresentava como fer­
mento perturbador e refratário. Contestar a religião era contestar o
Estado e, portanto, figurar como revolucionário. É necessário, ade­
mais, admitir que seitas cristãs, como o montanismo, atacavam o
poder e iam provocar a justiça no tribunal.
Os primeiros atritos, os primeiros choques apareceram nas re­
lações de cada dia, pelas quais o paganismo penetrava na trama da
vida familiar, profissional e cívica, e o homem todo pertencia à ci-

82
dade, com seus bens, seu pensamento e até com sua consciência?
Impossível dar um passo sem encontrar uma divindade. 0 cristão
experimentava cotidianamente a dificuldade de sua posição: estava
à margem da sociedade, era um emigrante do interior.
A provação começava no lar. A conversão de um membro da
família punha casos de consciência e podia transformar-se em dra­
ma. O cristão, até em seu interior, era prisioneiro das divindades
pagãs: elas o espreitavam, cercavam-no desde o limiar em que bri­
lhava uma lâmpada até os montantes das portas, nos quais flores­
ciam loureiros.6 Como tolerá-los, como não transigir com eles?
A mulher que se convertia podia subtrair-se ao sacrifício ofere­
cido pelo pai de família, com a ponta da toga levantada até a cabe­
ça, no altar do lar, diante dos filhos e dos servos?7 Ela devia respirar
a fumaça do incenso no começo do ano e no primeiro dia de cada
mês.8 Se quisesse ir a uma reunião litúrgica, despertava objeções e
suspeitas. Uma inscrição traduz seu dilaceramento: pagã no meio
dos pagãos, fiel no meio dos fiéis.9
Tertuliano conta com uma ponta de humor a aventura ridícula
de um marido ciumento. Ouvisse o andar de um ratinho e suspeita­
va da fidelidade da mulher. De repente, viu-a mudar de comporta­
mento e suspeitou que ela se tivesse convertido. Preferiría que ela
arranjasse um amante a sabê-la cristã.10
Os problemas se punham a todo momento, em casa, na rua, no
mercado, onde eram vendidas carnes sacrificadas aos ídolos, e na
assembléia. O nascimento de um filho, a vestição da toga branca,
os noivados, as núpcias impunham gestos cultuais.
Nem o mestre, nem o discípulo podiam escapar ao domínio da
mitologia. O escolar aprendia a ler nas listas de nomes de divinda­
des. Recebia a educação lendo poetas como Homero, os quais, na pa­
lavra de Tertuliano, eram “um veneno” para a fé e para a moral. O mestre
lhe explicava as três forças da religião antiga, ensinada por Varrão.11
Dois séculos mais tarde, Basílio, em seu célebre Tratado da leitura
dos autores profanos, ainda se esforçava para realizar a triagem deles
e interpretava os poetas à luz do Evangelho. A Didascália12 pedia aos
cristãos que “se abstivessem completamente dos livros pagãos”.
O professor consagrava a Minerva, patrona das escolas, o pri­
meiro dinheiro recebido de um aluno cristão. O ensino de literatu­
ra torturava a consciência do mestre cristão, especialmente quando
83
era recém-convertido. O fiel obedecia quando a Igreja lhe permitia
ensinar os autores pagãos, e tendia a desobedecer quando ela lho
proibia. A Igreja oscilava entre a tolerância e a recusa.
Na rua, o cristão, cidadão romano ou não, devia descobrir-se
diante dos templos e das estátuas. Como subtrair-se a isso, sem le­
vantar suspeitas, como submeter-se, sem dar prova de aceitação?
Se fosse comerciante e tomasse dinheiro emprestado, o emprestador
exigia juramento em nome dos deuses. Podia, devia ele recusar-se?
Fosse ele escultor ou dourador, como não praticar seu ofício ou
sua arte, seu ganha-pão, construindo ídolos ou trabalhando para
um templo? Se aceitasse cargo público, o sacrifício aos deuses era
de rigor. Se recruta, como evitar o juramento e os ritos implicados
no serviço militar?
Em Cartago, em um dia de desfile militar, todos os soldados
traziam na cabeça uma coroa em honra dos deuses. Só um levava a
coroa na mão, era cristão. Foi preso e interrogado. "Sou cristão,
isso me é proibido”. Grande espanto na cidade. Era o acontecimen­
to do dia. A reação ameaçava. Os cristãos timoratos censuravam o
gesto: Que loucura, que temeridade!13 Como agir? Como viver? Era
o choque do cristão com a cidade.
A simples omissão provocava dramas. Nas cidades da Bitínia, o
problema que Plínio submeteu ao imperador parece proveniente
do descontentamento dos pagãos — artesãos, comerciantes e sacer­
dotes — que viviam dos templos e do culto e viam secar suas fontes
de renda. Quantas vezes as denúncias não eram provocadas pelos
comerciantes de animais, porque já não os vendiam para os sacrifí­
cios ou por outros interesses lesados. Toda a vida cívica era pene­
trada de religião. “Nenhum ato da cidade se realizava sem que se
recorresse aos deuses; o elemento religioso formava parte a tal pon­
to da ordem civil que, em geral, os sacerdotes eram magistrados do
Estado, eleitos para determinado período pelas mesmas assem­
bléias que escolhiam os outros funcionários".14 Plínio se alegrava
com sua inclusão no colégio dos áugures, como se se tratasse de
eleição para alguma academia.15 O cristão que aceitasse um cargo
na cidade tomar-se-ia seu sacerdote.
Os romanos compareciam aos ritos da cidade como Voltaire
participava, em sua propriedade, dos ofícios religiosos. Os impera­
dores, como Marco Aurélio, nunca levaram seu ceticismo ao ponto

84
de renunciar às suas funções rituais. Sacrificavam grande número
de animais, sem se preocuparem com a economia. Ammien
Marcellin traz a petição burlesca, atribuída aos bois e dirigida ao
imperador-filósofo:

Pedido dos bois brancos a César.


Se fores vencedor, estamos perdidos!16

Indiferença religiosa e ceticismo não impediam gregos e lati­


nos de "seguirem a disciplina dos antepassados, nem de honrar os
deuses que haviam adorado e com os quais estavam familiarizados
desde a juventude".17 O pagão Cecílio, em Octavius, vê na religião
instituição universal, “comum a todos as províncias, às cidades e
aos impérios”.
Cada cidade tinha suas festas, celebradas com fausto. Como
podería o cristão subtrair-se a elas? Como recusar gestos de pieda­
de elementar, quase maquinais, pelos quais as pessoas se reconhe­
ciam solidárias de longo passado?18
Tertuliano19 descreve o embaraço do cristão, solidário com a
vida da cidade, com suas celebrações e com seus júbilos, que fe­
riam o senso moral e as convicções religiosas. Podemos participar,
com os pagãos, dessas festas, dessas refeições, desses divertimen­
tos? No dia em que era celebrada a deusa padroeira da corporação,
seus devotos, com cestos cheios de víveres, iam em peregrinação ao
seu santuário. Lá comiam, cantavam e dançavam; sob a ação do vi­
nho, a temperatura subia, e o comportamento e as palavras se abai­
xavam. Os alegres compadres desejavam-se mutuamente tantos anos
de vida quantos eram os copos que esvaziavam.20 Assim, sua longe­
vidade estava assegurada! À noite, todos voltavam para casa, uns
mais, outros menos bêbados!
E os basbaques se juntavam na entrada das portas para verem
a procissão passar.
Em Roma, os dias feriados, de origem e inspiração religiosa —
uma e outra muitas vezes esquecidas —, ocupavam a metade do
ano. No tempo de Trajano, havia dois dias feriados para cada dia de
trabalho.21 Assim, Roma impunha sua dominação à massa. Mas
cada dia feriado isolava o cristão e permitia-lhe sentir melhor seu
deslocamento.
85
As festas religiosas em todo o Império eram temperadas com
cerimônias e espetáculos.22 “Os jogos eram a marca principal da fes­
ta e, por assim dizer, de obrigação”. Os jogos do circo, acompanha­
dos de apostas, favoreciam, na confusão da multidão, as ocasiões nas
quais floresciam as aventuras. Os pantomimos da época encenavam
o Festim de Tiestes?3 que deleitou os sentidos e pôs as mulheres em
angústias, antes de inspirar as acusações contra os cristãos. O teatro
tinha do vaudeville e do music-hall e punha em cena maridos traídos
e triângulos amorosos.24 As liberdades das atrizes levavam o strip­
tease ao nu integral. Uma inscrição contemporânea de Hipona a Real
conservou-nos o título de uma peça que deve ter causado furor: O
marido cornado?5 Podia um cristão freqüentar e aplaudir um espetá­
culo que ridicularizava a moral elementar e punha a enrubescer até o
pagão Marcial?26 Como evitá-lo, sem atrair a atenção dos outros?
Os jogos do anfiteatro ofereciam à multidão arrebatada as ma­
tanças ferozes e os sacrifícios humanos que nos estremecem. "Ne­
les o homem se alimentava do sangue do homem”.27 Entre os con­
denados pelo direito comum havia irmãos e irmãs: Inácio em Roma,
Potino, Atalo e Blandina em Lião, Felicidade e Perpétua em Cartago
eram atirados em pasto aos leões e à ferocidade de multidão antro­
pófaga! O heroísmo dos mártires servia de espetáculo às celebra­
ções pagãs.
Atacando a paixão pelo teatro e pelo circo, a Igreja enfrentaria
forte adversário.28 Havia fiéis que deixavam a comunidade e iam as­
sistir a esses divertimentos. Ainda no tempo de Agostinho, em certos
dias, a igreja ficava vazia, porque os fiéis iam ver os mimos ou as
corridas de carruagens. E o bispo Agostinho confessa, com humilda­
de que não exclui o humor: “Em outros tempos, também nós fomos
tão estúpidos para irmos assistir a eles. Que pensais? Quantos futu­
ros cristãos não estão sentados lá? Quem sabe? Quantos futuros bis-
pos?i»29
Além da música, da comédia e da dança, o século II conheceu
intensa atividade artística. Arquitetos e artífices, procedentes da
Grécia, amealhavam fortuna, vulgarizando até nas casas modestas
as obras-primas da plástica helênica.30 Mas os cristãos eram quase
tão reservados em relação ao culto da beleza quanto o eram em
relação ao dos ídolos; ademais, os dois estavam ligados, e os artis­
tas que consagravam seu talento a eles eram os mesmos.

86
Taciano e Justino, seu mestre, não testemunhavam à arte a com­
preensão que tinham pela filosofia. Nenhum dos dois reduz a ética
à estética. A salvação não veio de algum belo Apoio, mas do "Ho­
mem sem beleza”.31 Para eles, arte e artistas eram cúmplices da
idolatria, serviam-na e a propagavam, erguiam estátuas a Safo e às
cortesãs célebres.32 Não é de surpreender, acrescenta Justino, bem
informado, quando se sabe que eles violam seus modelos!33 Podia
uma virgem cristã, sem enrubescer, deter os olhos sobre arte que
exaltava as curvas e celebrava a volúpia?
Além dos ritos da família e da cidade, Augusto instaurara o cul­
to do Império, encarnado na pessoa do imperador.34 Na época dos
Antoninos, o culto a Roma e ao imperador era a forma suprema da
religião pública e a expressão da lealdade ao Império. No Oriente, a
apoteose imperial era a mais popular das exportações romanas. Era
no culto a César que cristãos e mártires tropeçariam, porque
indentificava convicção religiosa e lealdade política35 e não passava
de fachada atrás da qual movimentavam-se os deuses do panteão.
O procônsul da Ásia pediu a Policarpo: “Jura pela fortuna de
César, volta atrás; grita: abaixo os ateus!”36 A divinização de César
chocava a consciência cristã, que reservava sua adoração ao verda­
deiro Deus, seu Senhor. Por isso Policarpo, “com ar grave, olhou a
multidão dos pagãos ímpios sentados nos degraus do estádio, mos­
trou-os com a mão, deu um suspiro, levantou os olhos para o céu e
disse: Abaixo os ateus!”
O choque e, depois, a perseguição se agravaram à medida que o
Império percebia ameaça e via serem contestados patrícios e filóso­
fos, sua estrutura e sua ordem imutável. A existência cristã exigia
dele imaginação e flexibilidade; a burocracia romana, suspeitosa e
conservadora, não era capaz disso. O choque se tomou inevitável, e
a perseguição, endêmica e local no tempo dos Antoninos, estendeu-
se com a ameaça.
A perseguição sangrenta de um imperador sádico, Nero, pri­
meiro encontro, com o rosto descoberto, entre a Igreja e o Império,
pesava agora sobre suas relações e provocava desconfiança recí­
proca. Os cristãos se sentiam vigiados e objeto de suspeitas. Em
Roma, nos registros da polícia, eles estavam ao lado dos donos de
botecos, dos proxenetas e dos ladrões dos banhos:37 um incidente,
uma malquerença, e ei-los inquietados.
87
Em Roma, um cristão chamado Ptolomeu foi preso a pedido não
do prefeito, mas do marido de uma mulher convertida. O centurião,
oficial das coortes urbanas, o corpo de polícia de Roma, agiu por inicia­
tiva própria e impôs a ele a prisão preventiva.38 Essa jurisdição era bastan­
te eficaz porque fora instituída para que se pudesse agir rapidamente
e levar perante um tribunal de exceção todos os fautores de perturba­
ções e os adeptos de religiões ilícitas.39 Ela pesaria sobre os cristãos.
Nas horas difíceis, se necessário, provocava-se incidente ou se des­
cobria alguma tramóia imaginária. O importante era atrair a atenção
sobre a seita cristã e obrigá-la a acautelar-se. A situação das comunida­
des era, pois, precária; estavam à mercê da autoridade e da multidão.
Em Roma, qualquer religião devia ser autorizada pelo Senado.
Outrossim, o direito de associação, exigido para qualquer agrupa­
mento, era obtido mediante um senatus-consulto ou uma constitui­
ção imperial; sem isso, as reuniões eram ilícitas; e a comunidade
não podia ter nem bens nem lugares de culto. Essa era a lei. A suspei­
ta e o temor de sedição eram tais que Trajano proibiu a formação
de corpo de bombeiros na Ásia!40
Os fiéis podiam, contudo, apelar para as associações funerárias,41
concedidas ao povo humilde para gerir a caixa comum, recolher uma
vez por mês as cotizações e ter cemitérios. Ter-se-iam os cristãos reu­
nido sob o manto jurídico dessas associações? A questão é controver­
sa. Mas a lei sobre as associações autorizava os tenuiores (as pessoas
de condição modesta) a se reunir religionis causa42 ("por motivo de
religião"). Os imperadores temiam não o povo, mas os grandes. A
oposição lhes vinha da nobreza, porque muito rapidamente o Evan­
gelho penetrou nas camadas superiores da sociedade, o que desper­
tou suspeitas. Na verdade, o Império praticava a tolerância religiosa
como um dos axiomas de seu governo.43
Por isso, atacando o cristianismo, Roma punha em causa sua
política tradicional.44 Mas o Estado, autoritário, estava à mercê da
opinião pública e da rua, que punham abaixo os axiomas mais bem
fundados. Qual crime invocar? Existia um delito de cristianismo,
ao ponto de que bastasse ter o nome de cristão para ser perseguido?
Alguns historiadores o afirmaram e o afirmam ainda, apoiados em
Tertuliano.45 Eusébio46 fala de “novos editos" que pesavam sobre os
cristãos. Seja como for, os governadores podiam apelar para seu
dever de velar pela ordem e pela segurança pública, e não deixavam
88
de fazê-lo quando os movimentos populares, hostis aos cristãos,
dessem para isso o pretexto ou o direito.
Não se deve reduzir a perseguição ao seu aspecto jurídico. Os
elementos passionais, psicológicos e políticos muitas vezes foram
determinantes.47 Os cristãos viviam no Império como as minorias
religiosas no império otomano ou nos países muçulmanos de hoje.
Situação sempre precária.
No fim do século I, bastou que o imperador Domiciano, envelhe­
cido, desconfiado e criticado pela aristocracia e pelos filósofos, qui­
sesse afirmar sua autoridade, para que o cônsul Manílio Acílio Glábrio
e os membros de sua família, cristãos, fossem castigados a pretexto
de terem perturbado a ordem e pretendido destruir o Estado.48
A raiva de Domiciano se abateu até sobre a Ásia Menor, o que
explica os ataques do Apocalipse ao Estado totalitário e ao culto ao
imperador. Paradoxal mudança das coisas, porque o culto aos
Césares era de origem oriental! A carta de Plínio alude também às
agitações provocadas vinte anos antes pela ação imperial.
Depois que Trajano enviou novo legado para a Bitínia, os cris­
tãos prosperaram na Ásia e professavam abertamente sua fé. O Esta­
do não tinha nada a censurar neles: pagavam os impostos, embe­
lezavam e geriam as cidades e estavam sempre prontos a aceitar car­
gos públicos. A função episcopal, em algumas famílias, era transmi­
tida de pai para filho. Polícrates era o oitavo de sua linhagem a ocupá-
la.49 Nas cidades prósperas, o bispo dispunha de recursos financei­
ros muitas vezes consideráveis e era pessoa respeitada. O irenarca de
Esmima, cheio de deferência, fez Policarpo subir à sua carruagem e
sentar-se ao seu lado.50 Plínio, o Jovem, homem de confiança do im­
perador, enviado para a Ásia, encontrou cristãos em toda parte.51
Tomado de zelo intempestivo, esse legado começou por punir e
condenou à morte os cristãos que se mostravam obstinados. A ação
empenhada despertou a paixão popular; as denúncias se acumula­
ram e os acertos de contas se multiplicaram. Diante dessa situação,
ele, em dificuldade, tomado de pânico, recorreu ao imperador para
se proteger. E era tempo!
A vaidade literária de Plínio, mais preocupado com passar para
a posteridade do que capaz de julgar com independência, valeu-nos
o rescrito de Trajano/2 o qual, daí em diante, faria jurisprudência.
O imperador, com a cabeça fria, deu prova de realismo lúcido. Ele
89
devia proteger as instituições e os deuses do Estado, sem que inter­
ferissem uma convicção pessoal ou o fervor religioso.
As fórmulas lapidares mal disfarçam seu embaraço. “Com efei­
to, nessa matéria não se pode estabelecer regra fixa para todos os
casos. Os cristãos não devem ser procurados; se forem denuncia­
dos e confessarem, devem ser punidos”.
Tertuliano viu logo a ambigüidade do rescrito imperial. “Oh!
estranha sentença, ilógica por necessidade! Diz que eles não devem
ser procurados, como se fossem inocentes, mas prescreve que se­
jam punidos como se fossem criminosos! Ela poupa e castiga, fe­
cha os olhos e pune. Por que te expores à censura?”
Ao menos o imperador liberal deteve a precipitação do legado.
Rejeitou as denúncias anônimas, aceitas por Plínio, porque eram “pro­
cedimento execrável e indigno de nosso tempo”. Era uma desaprova­
ção da ação do funcionário. Ele recusou à autoridade a iniciativa
de investigações e limitou suas intervenções às denúncias apresen­
tadas segundo as regras.53
Por mais liberal e restritiva que seja, essa disposição colocava a
autoridade à mercê da opinião pública, da vox populi. O imperador
não se explica sobre a natureza do delito e não menciona nenhuma
acusação que fira a moralidade. Vítima do formalismo jurídico, de­
fende a letra contra o espírito. Processo de tendência, processo de
religião. Trajano, como Marco Aurélio, estava irritado com a obsti­
nação dos cristãos.
O rescrito de Trajano, que daí por diante serviría de norma, pôs
em evidência a precariedade da situação dos cristãos: ela estava à
mercê de uma amotinação popular ou de um funcionário intole­
rante. Tertuliano mostrou sua iniqüidade: “O cristão é punível não
por ser culpado, mas por ser descoberto”.54 Funcionários honestos,
como Licínio Graniano,55 ficavam perplexos para justificar proce­
dimento que lhes parecia iníquo e autorizava os magistrados a en­
viar jovens cristãs para o lupanar!
A gesta dos mártires permite tocar ao vivo o confronto entre a
autoridade e os cristãos. Por mais que o procônsul romano demons­
trasse compreensão, o diálogo com o acusado se encerrava logo. Os
dois não falavam a mesma língua.56
“Quereis um prazo para refletir, pergunta Saturnino aos márti­
res da África.

90
— Em uma questão tão clara não há nada a refletir”.57
Em 185, foi preso em Roma um homem importante, chamado
Apolônio, patrício letrado e filósofo.58 Ele foi denunciado de ser cris­
tão por um escravo. Levado diante de Perênis, prefeito do pretório,
ele se defendeu com dignidade. A benevolência de Perênis para com
ele transparece no interrogatório; queria visivelmente salvá-lo. Con­
cedeu-lhe um e, depois, três dias para refletir. Perênis pedia a Apolô­
nio apenas que oferecesse alguns grãos de incenso ao gênio de César.
Apolônio explicou o absurdo do culto pagão; ele cometería falta gra­
ve se sacrificasse aos ídolos. Até aí Perênis o seguiu; não tinha ele
ouvido outros filósofos expor a mesma tese?
Perênis não compreendeu mais nada quando Apolônio se recu­
sou a esse gesto de pura formalidade, tanto mais que estava em
jogo sua vida.
"Então tens vontade de morrer?
— Meu desejo é viver em Cristo; o amor à vida não me faz te­
mer a morte”.
Perênis concluiu: "Não compreendo o que queres dizer”. O acu­
sado não se surpreendeu. A situação era trágica. O magistrado só
tinha admiração pelo acusado; querería declará-lo inocente, mas
não podia, porque os decretos se opunham a isso. O Império não
compreendia nem aceitava a afirmação da liberdade interior, da
autonomia da consciência traçando suas fronteiras aos impérios
do mundo, em nome da soberania de Deus. Finalmente, a contra­
gosto, Perênis pronunciou a sentença de morte.
O problema religioso se complicou com um problema político,
que o filósofo Celso apontou. Os cristãos eram acusados também
de conspirar contra a segurança do Estado e de contestar suas es­
truturas. Em vez de ser força conservadora, como lhe censuram os
socialistas e anarquistas de hoje, o cristianismo, sob os Antoninos,
figurava como revolucionário, porque punha em causa a legislação
e as instituições da cidade. Os cristãos se punham à margem da
sociedade.
A acusação era grave, justamente quando os bárbaros esta­
vam às portas, nas margens do Reno e do Danúbio, e os persas
atacavam no Oriente. Tratava-se de defender o Império e também
de preservar o patrimônio da cultura e da civilização contra a des­
truição.59
91
Mas os cristãos não defendiam os mesmos valores, nem se con­
fundiam com o império romano e não podiam nem queriam identi­
ficar sua história com a história dele; sua mensagem era mais vasta
e mais duradoura do que os impérios e as civilizações, que se cons­
tróem e se destroem. Atitude essa que o Estado romano tachava de
indiferença e de falta de civismo, porque a religião oficial era
inseparável da cidade. Enfrentavam-se duas concepções inconciliá­
veis: uma consciência política, encarnada pelo imperador e que
queria impor-se a todos em todos os domínios, e uma consciência
moral pessoal, que rejeitava a religião política, da qual a alma era
excluída, e o culto dos deuses.
A acusação de ateísmo, sinônimo de apostasia da religião, pas­
sou a ser o espantalho que bastava agitar para que as turbas se
levantassem e as portas da sociedade se fechassem.60 Foram neces­
sárias a grandeza, a coragem e a liberdade de Justino para respon­
der à acusação dos pagãos: “Somos ateus de vossas divindades”.61
Ele dissociava cuidadosamente religião e lealdade, rejeitando a pri­
meira e afirmando a segunda.
Entre os cristãos da Antiguidade, de Justino à Cidade de Deus,
seria vão procurar alguma simpatia ou uma vontade de compreen­
der o paganismo por dentro. Ele era rejeitado em bloco. Nem Ter-
tuliano nem Agostinho se perguntaram se, além das manifestações
chocantes ou imperfeitas, não se exprimiam uma aspiração autên­
tica e um valor religioso.
Com relação ao Estado, os cristãos, desde são Paulo, preconiza­
vam, com exceção de algumas ilhotas de resistência, uma lealdade
sem falhas. As perseguições endêmicas do século II não chegaram a
comprometer essa atitude. Convencidos — ou obstinados em supor
— que os imperadores agiam de boa fé, os apologistas defendiam
diante deles, com seus escritos, a causa do Evangelho.
Os cristãos, afirmavam eles, professam, enquanto cidadãos,
obediência e lealdade ao Estado. Tão grande é sua admiração pelo
Império que eles se queixam das perseguições das quais são víti­
mas. Melitão de Sardes considerava “a Igreja irmã de leite do Impé­
rio”.62 Atenágoras63 celebrava a solidariedade que, daí em diante,
ligava os destinos de Roma e da Igreja, a paz romana e a paz cristã.
Belo entusiasmo de um cristianismo jovem, empreendedor, que sen­
tia o vento na popa. O século III iria encarregar-se de desenganá-lo.
92
As acusações da rua64
Numa Roma pragmática, mais supersticiosa que religiosa,
na qual os imperadores não eram fanáticos, o perigo que ameaça­
va os cristãos estava na rua, porque a opinião pública tinha papel
considerável na Roma imperial como contrapeso ao seu autorita­
rismo.
Em tempos normais, o povo não era nem intolerante nem faná­
tico. Um astrólogo lhe interessava mais que um pontífice. O comer­
ciante o interrogava a respeito de seus negócios, o noivo, sobre o dia
fasto para marcar o casamento. A astrologia, praticada por gregos,
asiáticos e egípcios, era proibida, mas tolerada e muito onerada de
impostos. Apesar disso, os clientes eram tantos que tinham de espe­
rar sua vez. O próprio Agostinho confessou que consultara um astró­
logo.65
Sensível à astrologia e à magia, o homem da rua não se entusias­
mava com um Evangelho que exigia a mudança de vida, e o deixava
generosamente aos outros. Por isso, em tempos normais, os cris­
tãos não eram molestados. Mas, sobrevindo acontecimentos, amea­
ças, catástrofes, a opinião se desencadeava. O rescrito de Trajano, à
sua maneira, reagiu contra a vindita popular, anônima e descontro­
lada.
Por mais que o cristão vivesse com todo mundo, freqüentasse
termas e basílicas e exercesse as mesmas profissões que os outros,
ele punha nisso matizes e, às vezes, reservas. Uma parte de sua exis­
tência escapava, surpreendia. Sua fé era tachada de fanatismo; sua
irradiação, de proselitismo, e sua retidão, de censura.
O povo acabou por observar uma mudança. A mulher evitava
os trajes vistosos e o marido já não jurava por Baco ou por Hércules.66
Pagar impostos tomava-se suspeito: “Ele nos quer dar lições", di­
ziam esses mediterrâneos. Os cristãos eram conhecidos como es­
crupulosos a respeito de pesos e medidas.67 A honestidade se volta­
va contra eles e os indicava à atenção dos outros.
O povo gosta de quem se parece com ele e espia quem se distin­
gue ou se isola; suspeita desprezo ou dissimulação. Circulavam boa­
tos; a ajuda mútua entre cristãos causava admiração, a fraternidade
entre senhores e escravos parecia duvidosa e incompreensível para
um espírito culto: como confraternizar com gente simples, igno-

93
rante e sem letras? Tertuliano nos conservou comentários da rua
que circulavam em Cartago, com os nomes das pessoas:
"É um homem de bem esse Gaius Seius; pena que seja cristão!”
Outro dizia: “Estou surpreso que Lucius Titius, um homem tão es­
clarecido, se tenha tomado cristão”. E Tertuliano observa: “Não lhes
passa pela idéia perguntar-se se Gaius não é honesto e Lucius, es­
clarecido porque são cristãos; se não se tomaram cristãos porque
um é honesto, e o outro, esclarecido”.68
Na escola dos pagens imperiais, um dos alunos, Alexâmenos, é
cristão. Seus companheiros zombam dele e desenham na parede
um asno crucificado, com a inscrição: Alexâmenos adorando seu
deus! O jovem cristão, corajoso, responde, escrevendo: Alexâmenos
fiel!69 O grafito, descoberto no Palatino, foi conservado e pode ser
visto em Roma, no museu Kirchner.70 Quantas vezes, em circuns­
tâncias diferentes, o mesmo diálogo não foi repetido, em todas as
camadas da sociedade, nas quais pagãos e cristãos viviam lado a
lado?71 As ausências eram observadas. Os cristãos evitavam as fes­
tas religiosas, e sabe Zeus quantas havia durante o ano! Ele não ia
ao teatro e aos jogos do circo, o que parecia inverossímil a romanos
e africanos, que tinham um gosto inveterado por tais espetáculos.72
A suspeita se agravava quando afloravam fofocas sem conteú­
do sobre as reuniões cristãs; reservadas aos iniciados, elas pare­
ciam duvidosas. Em todos os tempos, os cultos secretos provoca­
vam calúnias. O escândalo das bacanais ainda não havia sido es­
quecido. Quando as pessoas se ocultam é sinal de que há alguma
coisa a ocultar, dizia o povo. Circulavam os mexericos como proje­
ções de seus próprios vícios sobre os cristãos. Frontão, que era da
confiança do imperador, ria delas e as repetia.73 Os apologistas re­
petiam-nos, antes de refutá-las.74
A celebração eucarística, na qual o bispo diz: isto é o meu cor­
po, isto é o meu sangue, era apresentada como um rito canibal: os
cristãos imolariam uma criança viva como no festim de Tiestes.
Todos os apologistas viam-se obrigados a desfazer esse boato, que
ia de cidade em cidade, no século II.75
As reuniões da comunidade, nas quais os cristãos chamavam-
se de "irmãos” e “irmãs” e davam-se mutuamente o ósculo da paz,
davam oportunidade para as piores interpretações e passavam por
ser encontros licenciosos.76 É difícil para a plebe acreditar na vir-

94
tude, e para o debochado, reconhecer que existem mulheres e ho­
mens castos. Daí a tachar o celibato voluntário de falta de civismo
ou de desvio era só um passo, que muitas vezes foi dado.77 O bom
senso fazia parte do exagero, mas acrescentava maliciosamente:
“Não há fumaça sem fogo”.
O mesmo povo cessava de rir e de escarnecer quando seus inte­
resses eram lesados. O descrente se toma sacristão e defensor da
religião quando suas rendas diminuem. Imagine-se a revolta dos
padeiros, se a Igreja suprimisse as comunhões solenes! As denún­
cias levadas a Plínio eram da mesma qualidade religiosa.
Eram também contraditórias. Uns eram acusados de serem prós­
peros, outros, de serem inertes.78 Para o cristão, era perigoso tanto
evitar os negócios públicos como destacar-se neles. Em Lião, o su­
cesso, o bem-estar e a consideração expunham os cristãos e as cris­
tãs à denúncia popular. Bastava que o povo, dócil, fosse levado por
propagandistas profissionais, caixeiros viajantes da calúnia, para
que a turba reclamasse reféns.
Em Lião, em 177, a polícia procurou aqueles que a multidão
indicara.79 O tribuno da XIII coorte, na ausência do legado, e a au­
toridade local não se interessaram pela perseguição, que proveio da
pressão popular. Os magistrados cederam e instruíram o processo,
passando por cima do rescrito de Trajano. Em Esmima, pela mes­
ma época, o velho bispo foi denunciado pelo povo, que gritava: “Pro­
curem Policarpo!”80
Se os pagãos tinham a calúnia fácil, os cristãos, mais agressi­
vos no século II, tinham a réplica mordaz. Basta ler Tertuliano, as
interpretações dos Oráculos sibilinos81 ou a literatura apocalíptica
da época para se verem a efervescência mística e as ameaças de
catástrofes, levadas à exaltação e ao exagero.

Ó Roma, tu chorarás,
despojada de teu laticlavo,
vestida de luto,
ó rainha orgulhosa,
filha do velho Lácio!
Flagelos, guerras, invasões e fomes
anunciam o revide
que Deus prepara para seus eleitos.82

95
Esses cristãos apocalípticos interpretavam ao pé da letra as
ameaças do Apocalipse joanino. Profetizavam o fim do mundo jun­
to com o fim de um mundo e anunciavam a conflagração geral como
um imenso fogo de alegria.
Havia exaltados e mal convertidos. As seitas muitas vezes esca­
pavam ao controle da Igreja. Nem sempre a atmosfera era sã, nem
os costumes, irrepreensíveis. A multidão não realizava as distin­
ções necessárias, generalizava e misturava cristãos, gnósticos e mon-
tanistas em uma reprovação comum. Os pagãos se assustavam e
contra-atacavam. Era um encontro de ameaças e profecias de des­
graças.
A religião popular era formada de superstição e de pragmatismo.
Pedia aos deuses bens temporais, saúde, paz e vitória.83 Se sobrevies­
se uma ameaça ou os bárbaros estivessem às portas, era sinal de que
os deuses estavam irritados. A autoridade se enrijecia, os espíritos se
exaltavam e as acusações se multiplicavam: “Os cristãos nos trazem
azar...,84 têm mau olhado e prepararam feitiço contra nós”. Acusa­
ção grave em época aterrorizada pelos feiticeiros e quando o povo
temia os malefícios, as bruxarias e os filtros.85 Em Lião, os pagãos
atacaram Potino, pensando que assim acalmariam os deuses.86
As prisões e as perseguições estavam em relação direta com as
ameaças que pesavam sobre o Império. E sabiam os deuses quantos
cataclismos se desencadearam durante o governo de Marco Auré­
lio!87 Em 162, os soldados trouxeram da Ásia para o Ocidente a mais
grave das epidemias da Antiguidade. Pouco depois, os germanos
invadiram o Império, atravessando o Danúbio, e penetraram na Itália
e na Grécia. Em 167, a peste se declarou em Roma. A terrível inun­
dação do Tibre provocou pogroms. Tempos de apocalipse e de ter­
ror. Como os animais da fábula, "nem todos morriam, mas todos
eram atacados”.
O imperador e os sacerdotes acorriam aos templos e sacrifica­
vam rebanhos.88 A multidão se comprimia. Os ausentes eram pro­
curados com os olhos. Os cristãos faltavam ao encontro. Onde esta­
riam eles?
Seca, más colheitas e fome se multiplicavam. Para a popula­
ção, os deuses estavam enfurecidos. Eram necessários culpados,
como na fábula. O cristão era “a ovelha sarnenta" apontado como
tal pela vindita popular. Tertuliano descreve a atmosfera: O Nilo
96
transborda? A seca ameaça a colheita? A terra treme? A peste apa­
rece na África ou em Esmima? Logo se grita: abaixo os ateus; os
cristãos aos leões!89 Se, por acaso, eles fossem espectadores dessas
manifestações, seu sorriso divertido ou irônico os trairía e denuncia­
ria à vingança.90
O furor popular passava por cima dos magistrados, que se es­
forçavam em vão para manter a ordem e fazer respeitar a legalida­
de. A população investia contra os cristãos com pedras e tochas;
profanava os cemitérios cristãos91 como no tempo da guerra civil
da Espanha, e esse grave crime ficava sem punição.92
Durante séculos os fiéis de Cristo continuaram a ser tomados
como responsáveis pelas desgraças do Império.93 Celso e Apuleio
afirmavam que o progresso do cristianismo enfraquecia o Estado.
Os deuses haviam conseguido a grandeza de Roma, e só eles po­
diam mantê-la ou restaurá-la. Agostinho,94 na Cidade de Deus, teve
de tomar a defesa dos cristãos, quando Roma caiu, em 440: os últi­
mos pagãos os acusavam de haver desencadeado a ira dos deuses
— o que mostra quão profundamente enraizado estava esse senti­
mento na alma pagã.

O assalto da inteligência95
As Homílias clementinas ,96 coleção muitas vezes retocada nos
primeiros séculos, narra cena que parece pintada ao natural. Ela des­
creve a história de uma conversão como uma procura da verdade, no
decurso de uma viagem. Certo cidadão romano de nome Clemente
ouve a boa-nova em Roma. Decide partir para a Palestina. Embarca,
mas o navio é desviado pelos ventos, e desembarca em Alexandria.
Lá encontra Bamabé, discípulo de Paulo, o qual estava morando nessa
cidade de intelectuais e expunha ao público as verdades cristãs, em
linguagem simples e direta. A multidão o ouvia com fervor.
Acorreram filósofos, inflados de ciência profana, tentando con­
fundir o pregador com muitos argumentos. Bamabé não se deixou
levar pelo jogo deles, mas desenvolveu sua mensagem e apresentou
testemunhas que confirmaram sua palavra. Clemente, conquista­
do, foi em socorro do apóstolo e repreendeu a suficiência dos filó­
sofos. A multidão estava dividida.
97
Pode-se imaginar Clemente, depois desse primeiro confronto
na cidade de Alexandria, continuando sua busca de informações e
esclarecimentos na mesma ocasião em que Basílides, Isidoro,
Valentino e Carpócrates formavam grupos, diante dos quais expu­
nham suas elucubrações sobre a queda da alma e sua libertação
pelo conhecimento ou gnose, que eles levavam.
Os mesmos grupos se formaram em Roma, onde Valentino,
Marcião, Apeles e Rodon se encontraram e se separaram, “por cau­
sa de divergências, sustentando cada um opiniões inconciliáveis”.97
Todos eles se opunham à autoridade e à organização hierárquica.
Em Roma, os fiéis, pouco inclinados ao misticismo e à filosofia, des­
confiavam, mais que em outros lugares, dos especulativos e dos
agitadores de idéias. “Os simples e os ignorantes se espantavam com
a exegese arrojada e com as interpretações exageradas dos recém-
vindos".98 Muitos foram seduzidos, mas a maioria resistiu ao novo
ensinamento.
A audácia doutrinai caminhava muitas vezes junto com a audá­
cia moral. Simão, o mago, era acompanhado de uma ex-prostituta.
Marcião, segundo Tertuliano, fora condenado no Oriente por uma
falta moral, isso antes de ir perturbar a fé em Roma.99 O gosto das
admiradoras jovens e ricas e “o tratamento frutuoso e suave das
almas”100 foram a causa da perdição de muitas. Marcos se aprovei­
tou da hospitalidade de um diácono da Ásia para abusar de sua
mulher, de rara beleza; em seguida, levava-a consigo por toda parte,
para grande escândalo das Igrejas.101 Em Cartago, Hermógenes,
seguidor da gnose, pintor e enamorado de seus modelos, misturava
o perfume das mulheres com reminiscências da filosofia grega.102
Gnosticismo de muitas ramificações da Ásia ao Egito, de Cartago
a Lião, passando por Roma,103 a primeira heresia que ameaçou a
Igreja obrigou o cristianismo a tomar consciência de si próprio e da
unidade e coerência de sua mensagem e de sua fé. Bom senso e
sabedoria acabaram triunfando.
Se a afluência de meio-sábios e meio-convertidos podia conta­
minar a verdade evangélica com elucubrações estranhas, a eferves­
cência intelectual que, de todos os lados, atingiu a Igreja nas comu­
nidades vindas do judaísmo e do paganismo era, em princípio, uma
vontade de conhecer e de compreender; era tentativa antes de se
tomar tentação.

98
A gnose ou conhecimento verdadeiro era a cristianização do
helenismo; a pseudognose era a helenização do cristianismo.104 Em
vez de servir para o conhecimento do Evangelho, os gnósticos alexan­
drinos, sírios e asiáticos, como Valentino ou Marcião, lançam-se à
mensagem cristã, a fim de inflecti-la no sentido de suas especula­
ções, com o perigo de esvaziá-la de sua substância.
De formas variadas, as diversas escolas gnósticas opõem ao mis­
tério abissal e impenetrável de Deus a queda e a miséria do homem.
Entre o Criador e sua obra, eles concebiam uma cascata de inter­
mediários ou eões, os quais aceleravam e explicavam a queda. A missão
do Logos não podia ser uma encarnação verdadeira — porque assim
ele também poderia ser contaminado —, mas a manifestação do
Arquétipo e o retomo do homem decaído, libertado da matéria em
seu estado primitivo, imperdível quanto ao espírito e enfim liberta­
do. Esses temas foram retomados pelo romantismo no século XIX.105
Essa visão pessimista da criação e do homem, inspirada no pen­
samento grego e incompatível com os dados da fé, ao menos forne­
cerá a Irineu de Lião a ocasião para desenvolver o afresco da econo­
mia da salvação, primeira visão cristã da história do mundo.
O que Irineu e os textos gnósticos recentemente encontrados
nos conservaram representa só as recaídas de uma efercescência
incandescente, que iluminou e depois ameaçou a essência do cristia­
nismo. O pagão Celso, que assistiu ao confronto, via só divisão e
confusão.106 Os cristãos de Roma e Alexandria, vendo os desacor­
dos entre os mestres, as escolas e até entre as igrejas, sentiam algu­
ma dificuldade em ver com clareza a verdadeira doutrina e em sub-
trair-se à sedução de sistemas que pretendiam responder às interro­
gações da inquietação e esclarecer a confusão da época.
O homem sentia pesar sobre si o jugo do destino. O Deus de
Aristóteles se desinteressava do mundo, o Deus dos estóicos, em vez
de libertá-lo, submetia-o a um determinismo universal. As religiões
orientais forneciam deuses salvadores. À espera do mundo dirigia-
se a resposta de Clemente de Alexandria107 a um valentiniano: “Des­
se poder, dessa batalha dos poderes o Senhor nos livra, ele nos dá a
paz; ele veio à nossa terra para no-la trazer”.
A conversão de filósofos de profissão, na metade do século II,
pôs em confronto cristianismo e filosofia, fé e cultura, Jerusalém e
Atenas.108 Em Roma, dois homens personificavam o debate: um cíni-
99
co, Crescente, e um cristão, Justino. Um e outro usavam o manto
curto, grosseiro e escuro, atributo do filósofo, o qual não abrigava a
mesma filosofia.
Na época, a capital estava invadida por filósofos de toda espé­
cie, vindos de todas as partes do Império. Marco Aurélio abrira
Roma a todas as escolas para permitir uma confrontação univer­
sal. Aos pensadores de renome misturavam-se os parasitas da filo­
sofia, ladrões, charlatães e comediantes de rua, andrajosos, com
cabelos mal penteados, barba longa e unhas de animais selvagens,
segundo Taciano,109 que freqüentou esse meio. A sujeira deles era
proverbial e, para muitos deles, era sinal de filosofia. Misturados
à multidão ou postados nos cruzamentos das ruas, assumiam a
atitude de pregadores populares, “monges mendicantes da Antigui­
dade”.
“Sua barba lhe vale dez mil sestércios, dizia-se; a esse preço,
seria necessário pagar salário aos bodes!”110 A Crescente o impera­
dor pagou seiscentas moedas de ouro a título de uma cátedra impe­
rial.111 As fronteiras entre as escolas eram fluidas. Era praticamen­
te impossível distinguir estóicos e cínicos por seus raciocínios ou
por sua propaganda.112 As pensões e as isenções das quais gozavam
faziam que fossem considerados como filhos do Estado. Os favores
excitavam os apetites. Mais desinteresse garantiría mais sabedoria,
observava o imperador Antonino, com filosofia.113
Marco Aurélio vivia rodeado de filósofos. Seus mestres toma­
vam-se seus ministros. Rústico, ao qual ele era ligado pela mais
tema afeição, era prefeito do pretório e foi quem condenou Justino.
O imperador parecia ter jogado os filósofos contra os cristãos, que
tinham invadido a cidade e, para afirmar-se, levantavam controvér­
sias públicas.114
Crescente abriu fogo contra Justino. Se eles lutavam com ar­
mas iguais, o primeiro agitava o vento,115 e o segundo falava ouro.
O pagão ensinava a filosofia de Diógenes, que professava o desa­
pego e recorria à mendicidade. Luciano, que tinha língua mor­
daz, acusa seus seguidores de acumular ouro em seus andrajos.116
Crescente tinha má reputação. Taciano117 diz que ele era
pederasta, sempre cercado de jovens e hábil em extorquir as casas
opulentas que freqüentava. Do outro lado, Justino era o homem da
integridade, da acolhida e do desinteresse. Sua doutrina não era

100
negócio, mas regra de vida. O público não se enganava: escravos e
doutos, homens e mulheres acorriam para ouvi-lo e encontrar a
verdade.
Os filósofos pagãos e cristãos usavam método de ensino idênti­
co, baseado em conversas livres, em tom familiar, nas quais um
texto ou um acontecimento da vida cotidiana oferecia matéria para
considerações doutrinais. A formação se prolongava na conserva
particular do mestre e do discípulo, com a presença de um ou dois
companheiros. A vida comum introduzia o discípulo de Justino na
comunidade cristã, que vivia a doutrina ensinada.
Um debate público entre Crescente e Justino bastou para con­
fundir o pagão. Frontão, voando em socorro de Crescente, interveio
em pleno Senado. Justino quis renovar o debate perante o impera­
dor.118 Mas seu rival, escaldado, não aceitou a discussão. Ele era da
raça dos filósofos dos quais Minúcio Félix diz: “Eles temem enfren-
tar-nos em público”.
Argumentador vencido. Crescente se tomou difamador e, de­
pois, na falta de argumentos, denunciador. Rústico e o próprio Marco
Aurélio, em vez de aceitar a discussão, recorrem à força. O impera­
dor, que examinava diariamente sua consciência e se acusava de
pecadilhos, não percebia que, em relação a Justino e a alguns cris­
tãos, comportava-se como verdadeiro tirano.
Diante do prefeito de Roma, Justino estava cercado de seus dis­
cípulos, suprema homenagem a um mestre de sabedoria.
“A qual ciência te consagras?
— Estudei todas as ciências. Acabei por dedicar-me à doutrina
verdadeira, a dos cristãos”.119
O ensinamento que recebeu e que professava permitiu-lhe en­
frentar a morte, temida pelo filósofo, com a certeza de que ela era
uma aurora.
Marco Aurélio, “o santo paganismo", era de um metal diferente
do de Crescente, o sino rachado da filosofia.120 Ele reunia em sua
pessoa o poder e a sabedoria. Os autores cristãos, como Tertuliano
e Melitão de Sardes, compraziam-se em louvar “sua humanidade e
sua filosofia", quando não o declaravam protetor dos cristãos.121 A
objetividade exige mais reserva. Não serve para nada integrar à for­
ça grandes almas ao cristianismo, como fizeram aqueles que imagi­
naram uma correspondência epistolar entre o apóstolo Paulo e
101
Sêneca. Os bustos do imperador filósofo o representam barbudo,
de traços finos, o olhar distante, o queixo de um retraído básico.
O imperador conheceu e freqüentou cristãos até em seu palácio.
O essencial da doutrina deles lhe era conhecido. Em seus Pensamen­
tos ele alude aos cristãos, demonstrando seu desprezo por eles.
Que alma a que está pronta, se for necessário, a se desligar
do corpo imediatamente e apagar-se, dispersar-se ou sobrevi­
ver! Mas essa disposição deve proceder de um julgamento pes­
soal, não de simples espírito de oposição como entre os cris­
tãos! Ela deve ser refletida, grave, sem fausto trágico: é a condi­
ção para se conseguir persuadir os outros.122
Tomado míope por sua filosofia, Marco Aurélio não compre­
endeu o sentido do cristianismo. Não percebeu que a morte de cris­
tãos, como Justino e Apolônio, seria capaz de “persuadir outros”,
enquanto sua filosofia lamentável desaparecería com ele. Acossado
pelo pensamento da morte, estava irritado com os cristãos, que não
a temiam, e porque o heroísmo deles, que ele tratava de "fausto trá­
gico”, não correspondia a nada em seu sistema. Para ele, não era o
espetáculo do trágico que persuadia, mas a razão. Marco Aurélio,
diz Peguy, não teve a religião que merecia; é pena que tenha chega­
do perto dela sem reconhecê-la e que a tenha condenado sem
entendê-la.
A verdade é que existe incompatibilidade entre o estoicismo
como o imperador filósofo o concebia e o cristianismo. A razão
universal guia o homem e o mundo, basta submeter-se às suas leis e
aos seus determinismos.123 Como conceber a mediação de Cristo, a
irrupção do divino na história universal, como admitir a pretensão
do Evangelho de mudar o homem e de renová-lo interiormente?
Por mais que Marco Aurélio afirmasse que todos os homens
são de uma mesma raça124 e todos habitados pelo mesmo ser divi­
no, que lhes distribui suas parcelas, ele, excessivamente introvertido
e confiando demasiadamente na razão, não podia amar verdadei­
ramente os homens e confiar neles ao ponto de modificar seus com­
portamentos. Ele não demonstrava nenhuma simpatia pelos cris­
tãos e não se sentia irmão deles.125 O filósofo, tanto quanto o impe­
rador, sentia-se agredido por eles, porque haviam levado o debate
para o seu próprio terreno e contestado sua regra de vida.
102
Em vão o filósofo se referia à “lâmpada que brilha no fundo da
alma”,126 porque nenhuma esperança iluminava seu caminho; só a
morte é que podia libertá-lo da vida e do ser; como aceitar a fé dos
mártires, que afirmavam a ressurreição dos corpos, e não só a imor­
talidade da alma? Em relação aos gnósticos, Irineu vê na incorrup­
tibilidade final da carne a pedra de toque da antropologia cristã, a
realização da promessa inscrita na criação do homem.127 Negar essa
verdade é negar o cristianismo.
Ao mesmo tempo que filósofo, Marco Aurélio era fiel às insti­
tuições religiosas do Império. Luciano de Samósata, ao contrário,
era livre-pensador que anunciava Voltaire. Esse sírio helenizado,
cidadão do mundo, e não do Império, ostentava total ceticismo em
relação a toda religião e a toda filosofia. Da divindade ele amava só
as belas estátuas;128 apreciava seus contornos como apreciava a arte
grega e sua cultura. Confundia num mesmo desprezo os construto­
res de sistemas, os pregadores de moral e os prometedores de felici­
dade. “Usa o presente, passa rindo diante de todo o resto e não te
apegues seriamente a nada”. A conclusão de Menipo é digna de Cân­
dido.
Muito superficial e muito frívolo para considerar o fundo das
coisas, Luciano sabia observar. Os cristãos lhe seriam até simpáti­
cos, na medida que sua doutrina minava a religião pagã e declarava
guerra às feiticeiras e aos taumaturgos. Ele não repete em nenhum
lugar, como outros escritores da época, acusações populares; nun­
ca procura opor a vida dos cristãos à doutrina que eles pregam.
Reconhece, como vimos, seu espírito de fraternidade e de ajuda
mútua.
Quando muito, censura ele os mártires por “seu suicídio pom­
poso e teatral”,129 muito leviano para compreender o heroísmo e a
grandeza da fé. Espírito sarcástico e escamecedor, sua ironia era
muito superficial para examinar o fato cristão e não rejeitar, em
comum reprovação, todas as formas de religião e a própria concep­
ção da fé e do sobrenatural.
Um amigo de Luciano, sem dúvida tão cético quanto esse “galho-
feiro de Samósata”, escreveu, em 178, a obra crítica mais violenta
do sécúlo contra o cristianismo; o livro, Palavra da verdade,130 foi
salvo do esquecimento pela refutação de Orígenes, setenta anos mais
tarde.
103
Celso era filósofo de profissão, alimentado em Platão, Zenão e
Epicuro.131 Seu livro nos permite compreender, melhor do que qual­
quer outro, as dificuldades de crer. O filósofo pode ser cristão? Cer­
tamente não! Ele ficaria surpreso, uma geração mais tarde, ao desco­
brir a escola de Alexandria.
A crítica de Celso se apóia em uma hermenêutica que não per­
deu sua atualidade. O artesão, o escravo, sem ligações com a cultu­
ra, estranho na cidade antiga, era capaz de vibrar com a mensagem
evangélica, mas que dizer do herdeiro da civilização de Atenas e de
Roma? Ele procurava a luz no pensamento de seus filósofos. Celso
julgava em nome das idéias que se impunham em sua época como
o homem de hoje fala em nome da ciência, de seus métodos e de
sua técnica.132
Celso pretendia-se informado da literatura bíblica propriamente
dita junto aos próprios cristãos.133 Ele os interrogara, a fim de co­
nhecer suas convicções. Crítica e refutação giram em tomo de dois
pólos: a doutrina e o comportamento dos cristãos.
Para começar, ele faz profissão de racionalismo e mistura o cris­
tianismo com a maré mística das religiões orientais.134 A própria idéia
de revelação, comum aos cristãos e judeus, parece-lhe presunção.
Judeus e cristãos me parecem um punhado de morcegos ou
de formigas saindo de seus buracos ou de rãs postadas à mar­
gem do lago, ou de vermes reunidos no canto de uma pocilga,
dizendo uns para os outros: “É a nós que Deus revela anteci­
padamente todas as coisas; ele não cuida do resto do mundo e
deixa os céus e a terra rodar à vontade, para se ocupar só de
nós".135
Isso quanto ao tom. Além dessa ironia, Celso aplica à revela­
ção cristã a crítica que um David Strauss ilustraria no século XIX.
Não demonstra conhecer nenhuma ciência exegética, não distin­
gue os gêneros literários da Bíblia e usa método comparativo ele­
mentar para reduzir as narrações bíblicas às lendas pagãs, a teses
platônicas mal expostas ou a passsagens tiradas das religiões orien­
tais de Mitra e Osíris. A narrativa sobre Sodoma e Gomorra se tor­
na empréstimo de lenda de Faetonte;136 Moisés, para descrever a
torre de Babel, copiou o episódio de Homero sobre os aloídas, que
queriam tomar o céu de assalto. O que lhe parece válido encontra-
104
se em Platão, que o disse de modo excelente.137 Dir-se-ia a crítica
racionalista do século XVIII.
Celso trata então do Novo Testamento, particularmente dos
Evangelhos. A encarnação de um Deus que veio viver existência
humana parece-lhe incompreensível, para não dizermos absurdo.
Que sentido pode ter para um deus uma viagem como essa?
Seria para aprender o que se passa entre os homens? Mas ele
não sabe tudo? Seria ele incapaz — ele que tem poder divino —
de melhorá-los, sem mandar alguém corporalmente para isso?138
Para Celso, a doutrina cristã rompe a harmonia do cosmo “e
transtorna o universo”. Sem mostrar o pessimismo profundo en­
contrado nos gnósticos, ele pensa que “se Deus bom, belo, feliz,
desce para junto dos homens, submete sua natureza imutável às
vicissitudes humanas”.139
A incompreensão, agravada pela zombaria, não permitiu ao fi­
lósofo observar nos homens de seu tempo a preocupação e a angús­
tia pela salvação. “Nunca a necessidade de perdão, de expiação e de
redenção foi tão forte”. Reação existencial contra a aridez dos cul­
tos oficiais.
O mistério de Cristo escapava ao filósofo. A respeito de seu nas­
cimento, ele menciona histórias de soldados.140 Nascimento mira­
culoso, ministério, curas e ressurreição, tudo é passado em revista
e esmiuçado. Esse charlatão miserável, que não era nem belo, nem
eloqüente, nem homem de senso, como podería ele ser o Logos de
Deus?141 Aí, Orígenes, sentindo-se atingido no ponto central de sua
fé e de sua devoção, reagiu do modo mais violento e respondeu aos
sarcasmos de Celso com paixão e irritação.142
Para Celso, a salvação trazida à terra para curar a humanidade
ferida e o sentido do novo nascimento143 e da conversão são impen­
sáveis, porque perturbam a ordem do mundo nos determinismos
de seu movimento. A acolhida dada ao filho pródigo parece-lhe in­
compreensível. Para ele, o homem é determinado, “e a natureza das
pessoas não se muda”. Os maus não se corrigem nem pela força,
nem pela bondade.144 A antropologia cristã, a humildade e a contri­
ção violentam sua cosmovisão. O deus de Celso se parece com o
deus de Nietzsche, o deus das naturezas altaneiras, e não com o
consolador dos aflitos ou com o mestre dos miseráveis.145 Para ele,

105
o cristianismo era doutrina bárbara para pessoas sem cultura, que
desprezaram os “belos conhecimentos” como obstáculos para o
conhecimento de Deus.146 Ele lembra o helenista que se recusava a
ler o Novo Testamento porque seu grego não era puro. Jerônimo
confessa que teve repugnâncias semelhantes. Orígenes, do alto de
sua cultura e de sua erudição, podia, mais que qualquer outro, dar
uma avaliação de Celso.147 Ele se irritou por ter sido classificado
entre os iletrados.
Da análise doutrinai Celso passa à crítica dos cristãos que ob­
servou: censura-os por sua indiferença cívica, porque se subtraíam
à cidade e aos seus encargos. Repete as acusações já mencionadas,
sem mostrar, como outros filósofos, a independência de grande es­
pírito:148 a religião cristã não é a religião nacional de ninguém e
impede seus adeptos de participar dos cultos que consolidam a ci­
dade.
Recusam-se eles a observar as cerimônias públicas e a pres­
tar homenagem aos que a elas presidem? Sendo assim, que re­
nunciem também a tomar a toga viril, a se casar, a se tomar
pais e a exercer as funções da vida; que se retirem para longe
daqui, sem deixar a menor semente de si mesmos, e que a terra
fique desembaraçada dessa raça. Mas, se querem casar-se, ter
filhos, comer os frutos da terra e participar das coisas da vida,
boas ou más, devem prestar aos que são encarregados de admi­
nistrar tudo as honras que lhes são devidas.149
A censura principal de Celso dirigida aos cristãos era de falta
de civismo e de recusa do juramento ao imperador, o que lhe pare­
cia muito grave na ocasião em que os bárbaros estavam às por­
tas.150 Sobre esse ponto, a resposta de Orígenes foi a mais fraca, a
menos percuciente: “Ajudamos as autoridades de modo mais efi­
caz, vestidos com a armadura de Deus, levando-lhes socorros espi­
rituais”.151 Por que não perguntou a Celso se ele se alistara no exér­
cito? O polemista zombava das dissensões internas e dos anátemas
que as igrejas lançavam umas contra as outras.152 Ele conhecia as
seitas, que pululavam, e distinguia cuidadosamente o que já cha­
mava "a Grande Igreja”.153 Orígenes responde com energia: “Nos­
sas assembléias sustentam sem dificuldade a comparação com as
das cidades de Atenas, de Corinto e de Alexandria”.154 Mas é pouco.
106
O próprio martírio não parece novo a Celso e não o impressio­
na. Havia exemplos em todas as crenças.155 A esperança da ressur­
reição, que o martírio supõe, parece-lhe absurda.156 A isso Orígenes
responde: “A vida dos verdadeiros discípulos fala por Jesus Cristo;
fala mais alto e confunde a impostura”.157
A argumentação de Celso é mais defensiva que ofensiva, defen­
de uma civilização ou uma cultura do que uma religião.158 Os filó­
sofos, quer se tratasse de Marco Aurélio ou de Celso, estavam muito
presos ao cosmo dos gregos, para conceberem uma mutação ou um
acontecimento em sua ordem eterna. A idéia da intervenção divina,
de mudanças radicais, como a vinda de Cristo, “semelhante idéia
era impossível antes que o cristianismo viesse perturbar o cosmo
dos helenos”.159
Com o passar do tempo, que favoreceu Orígenes, foi fácil ava­
liar o quanto Celso, Luciano e Marco Aurélio subestimaram seus
interlocutores. Nos decêncios que se seguiram, a presença, na Igre­
ja, de personagens como Tertuliano, Lactâncio, Clemente, Orígenes
e Agostinho mediu a visão estreita dos pagãos.
Celso só via o cristianismo de esguelha e não compreendia sua
significação nem seu sentido vital, que tocavam a alma em suas
profundezas. Orígenes sabia por experiência que ao espírito huma­
no é dado decifrar o "enigma divino” do qual fala Celso, a saber,
quando a inteligência penetra mais nos mistérios dos livros santos,
indo até o fim na busca: dentro da fé, ela bebe na fonte que a permi­
tiu surgir.
Um século antes, Justino abrira o caminho novo que permitisse
a Platão encontrar Cristo.160 Belo otimismo, que foi retransmitido
pelos mestres de Alexandria e da Capadócia, mas não teve a unani­
midade. O Ocidente, mais sensível à linguagem do direito, foi mais
pragmático do que especulativo. Taciano, o Assírio, discípulo de
Justino, já acusava a louca suficiência dos gregos e seu gosto pelo
tinido das palavras.161 As glórias mais puras, Sócrates e Platão, não
encontram graça diante dele. Roma e Cartago, Tertuliano e Cipriano
estavam mais próximos de Taciano que de Justino.
O confronto entre o cristianismo e a religião nacional degene­
rou em oposição e, depois, em perseguição aberta. Teria o Império
rejeitado a condição dos cristãos, de cidadãos de duas cidades? Sen­
tiu-se ele ameaçado pelo fermento do Evangelho? Em termos cla-
107
ros, a Igreja demoliu o império romano, como pretendem
Montesquieu e Gibbon, Nietzsche e Renan? É verdade que o cristia­
nismo foi “o vampiro”,162 o “dissolvente”163 do mundo antigo? Gaston
Boissier164 respondeu à acusação, inspirada mais na polêmica do
que na observação, tomando a história como testemunha. A deca­
dência começou antes da propaganda cristã.
O mundo antigo estava envelhecido e fatigado, e sua energia
diminuía; despovoamento, decadência do espírito militar e do
zelo cívico e corrupção dos costumes eram males que podiam
ser constatados desde o fim da República. Essa crise se agrava­
va sem cessar, enquanto os bárbaros forçavam as fronteiras no
Danúbio e no Reno.165
Poder que mutilava o homem e não respeitava sua condição e
suas aspirações mais profundas, ainda que fosse mais resistente
que o ferro, devia ele esperar o revide dos homens livres, que des­
prezam o poder e a morte. A reação pagã à progressão cristã con­
fessou o fim de uma civilização. As civilizações não estão fadadas a
ter fim? A Igreja deve meditar sobre essa advertência.

108
TERCEIRA PARTE

O ROSTO DA IGREJA
CAPÍTULO I

IGREJAS E IGREJA

“Formamos um só corpo pela consciência de uma religião, pela


unidade da disciplina e pelo vínculo da esperança”.1 Orgulhosa afir­
mação de Tertuliano que descreve, na linguagem de todos os dias,
uma realidade mais fluida, que intriga e desconcerta o mundo pa­
gão. A Igreja é, antes de tudo, agrupamento de homens e mulheres
que têm a mesma fé e a mesma esperança e, dispersos, encontram-
se e se reúnem, conscientes de sua unidade.
Se existe uma Igreja, existem antes igrejas, isto é, pessoas que
se reúnem. O cristianismo é religião de cidades, nas quais são funda­
das comunidades, as quais se organizam e se coordenam, conscientes
de que, acima de sua dispersão e de sua diversidade, formam a úni­
ca Igreja de Deus.
As igrejas locais, em Antioquia e Corinto, em Filipos e Lião,
ligavam-se todas à única Igreja-mãe de Jerusalém. As comunida­
des que se reuniam em casas particulares sabiam que constituíam
a Igreja, termo grego que significa “aqueles que são convocados" e
que o Oriente e o Ocidente adotaram, sem traduzi-lo. Acima das
classificações correntes — gregos, judeus, bárbaros —, nasceram
um povo novo e uma realidade histórica diferente de todas as ou­
tras, "a terceira raça”,2 como eram designados pelos pagãos. Eles
não imaginavam que diziam verdade tão grande.
Os cristãos, que despertavam suspeitas e provocavam panfle­
tos, tão próximos e tão diferentes, solidários e desapegados, quem
eram eles, que queriam, qual era a luz que brilhava em seus olhos?
Tinham consciência de ser diferentes de todos os outros grupos re­
ligiosos e de, na diversidade dos rostos e das pessoas, dispersas em
todas as latitudes, formar um só todo, um corpo, um povo, uma
Igreja.

111
A organização dos quadros
A virada do século I é de importância capital na história cristã.
Já haviam desaparecido, todos os apóstolos, com exceção de João,
a última testemunha; ele se tomara personagem quase lendária;
morou na Ásia durante muito tempo. Clemente diz que organizou
as comunidades dessa região, as quais, ao longo do século II, invo­
cavam sua autoridade? Sua sombra ainda se projetava sobre as igre­
jas, dispostas na linha do litoral como contas de rosário.
Agora as comunidades já eram dirigidas por chefes que se trans­
mitiam as narrativas e os ensinamentos dos Evangelhos. Substituí­
ram os primeiros apóstolos e seus colaboradores. Estabeleceu-se
organização flexível e progressiva. Ela procedia por etapas, cujos
vestígios ainda são perceptíveis. As comunidades judaico-cristãs ti­
veram durante algum tempo direção colegial (anciãos ou presbíteros)
à sua frente. As que se formaram em terras pagãs eram dirigidas
pelo binômio bispo-diácono. As duas organizações, que coexistiam
harmoniosamente, unificaram-se no decorrer do século II; isso se
efetuou aos poucos, com retardamentos, hesitações e às vezes com
crises. A vida não era uniforme, mas se desenvolvia de modo orgâ­
nico e crescia com a vitalidade explosiva dos começos.
A itinerância dos apóstolos e dos profetas durou algum tempo,
mas preparou organização estável, com autoridade local para subs-
tituí-la. Alguns desses itinerantes se fixaram nos lugares de sua ativi­
dade missionária. Potino e talvez Irineu de Lião correspondem bem
a essa situação. Outros, sempre móveis, desbravavam novo terreno
e plantavam a cruz sob céus novos. Sua ação se prolongava pelo sé­
culo II, mas tendia a desaparecer com ele.
A pregação evangélica dava fruto quando deixava atrás de si um
mínimo de estrutura e organização. Os convertidos encontravam-se,
agrupavam-se e fundiam-se em comunidade, a igreja do lugar. Eusébio
o diz explicitamente: “Os apóstolos distribuem seus bens aos pobres,
deixam sua pátria, põem os fundamentos da fé em regiões estrangei­
ras, estabelecem pastores e a eles confiam aqueles que levaram à fé”?
Inácio em Antioquia, Policarpo em Esmirna, Potino em Lião,
Quadrato em Atenas e Dionísio em Corinto eram chefes de suas
comunidades; e eram chamados epíscopos, bispos, termo que sig­
nifica inspetores ou superintendentes, título esse que provém da

112
administração civil.5 A denominação bispo, por algum tempo sinôni­
ma de presbítero, impôs-se para designar a autoridade monárquica.
Da organização colegial para a responsabilidade episcopal houve
um tempo de flutuação,6 com hesitações e resistências. Algumas
cidades, como Jerusalém e Alexandria, desde as origens cristãs ti­
nham seu bispo; outras, como Corinto, parece que não o tinham
ainda quando Clemente de Roma lhes escreveu. Em todo caso, a
carta dele não menciona nenhum; fala apenas da cabala que opu­
nha, na comunidade, jovens e velhos presbíteros.
Se, no século II, várias cidades tinham como bispos pessoas de
grande envergadura, como Policarpo e Irineu, as outras escolhiam
alguém mais de acordo com sua condição. Nem todo corso é Napo-
leão! As igrejas locais, muitas vezes de começos humildes, escolhiam
para bispo o homem mais disponível, mais generoso e que se impu­
nha por suas qualidades e seu exemplo.
A primeira evangelização era realizada em casa hospitaleira,
posta à disposição do apóstolo itinerante.7 A conversão do chefe de
família que hospedava normalmente era acompanhada da dos ou­
tros membros da “casa”.8 A coisa era tão normal que nas comunida­
des judaico-cristãs os membros não batizados eram excluídos da
mesa comum.9
O que se passou em Antioquia, onde o centurião Comélio,10 bati­
zado, convidou à sua casa parentes e amigos, deve ter-se reproduzido
com freqüência. A casa era, pois, a célula-mãe do serviço do Evange­
lho e, depois, da reunião dos evangelizados. Algum cristão, cuja casa
fosse suficiente ampla, punha-a à disposição do missionário e, segun­
do as regras da hospitalidade antiga, retinha nela os membros du­
rante a permanência do apóstolo ou em cada uma de suas passagens;
os irmãos ficavam sabendo por ele a data da volta do apóstolo.
O quadro doméstico foi assim o berço da comunidade, ofereceu
a ela um centro de irradiação e assegurou sua continuidade.11 Em
tomo dele reuniam-se os convertidos, as famílias e as "casas”. O
lugar ocasional do encontro passava a ser habitual. Quando se toma­
va muito pequeno para comunidade de quarenta, cinqüenta mem­
bros ou mais, os cristãos alugavam uma sala. Geralmente o proprie­
tário fazia doação dela à comunidade; nesse caso, era modificada,
com a eliminação de suas divisões internas, para que o espaço fosse
suficiente. A igreja de Dura Europos era antiga habitação particu-

113
lar. A mesma coisa deve ter-se passado em Roma. O hospedeiro da
reunião acabava tomando-se o chefe natural da comunidade. É a
situação descrita pelo Pastor de Hermas.12
O retrato falado que as cartas pastorais fornecem do bispo cor­
responde com exatidão à situação de um pai de família que gere
perfeitamente seus negócios, sua vida pessoal e familiar é irrepreen­
sível, ele se mostra hospitaleiro e os outros o estimam.
É preciso que o epíscopo seja irrepreensível, esposo de uma
única mulher, sóbrio, cheio de bom senso, simples no vestir,
hospitaleiro, competente no ensino, nem dado ao vinho, nem
briguento, mas indulgente, pacífico, desinteresseiro. Que saiba
governar bem a própria casa, mantendo os filhos na submis­
são, com toda dignidade. Pois se alguém não sabe governar bem
a própria casa, como cuidará da Igreja de Deus?13
Desde o começo, e epíscopo era assistido por colaborador di­
reto, habitualmente mais jovem, o diácono, o qual, por suas quali­
dades pessoais, familiares e sociais, devia estar em condições de
ajudar eficazmente o chefe da comunidade; juntos, geriam o bem
comum e proviam às necessidades da comunidade.
No século II, a instituição do epíscopo e do diácono fundia-se
com a dos presbíteros ou anciãos, de origem provavelmente judai­
ca. No judaísmo, os “anciãos” eram notáveis que formavam parte
do sinédrio ou dirigiam a comunidade e a sinagoga.14 Havia “an­
ciãos” em Jerusalém, no tempo dos Doze, quando Tiago era bispo
da cidade.15 Eles assistiram ao primeiro concilio, o de Jerusalém,
junto com os apóstolos.16 No fim do século I, encontramo-los em
Roma, Filipos e Corinto, onde foram objeto do conflito que moti­
vou a carta de Clemente de Roma.17
A fusão das duas instituições deu-se progressivamente, segun­
do os lugares e as circunstâncias, não sem choques aqui e ali. A car­
ta de Paulo a Timóteo, na qual ele descreve o bispo, conhecia o colé­
gio presbiteral, o qual, com Paulo, impôs as mãos a Timóteo.18 A
Ti to foi recomendado que instituísse presbíteros.19
A solução mais elegante para passar da autoridade colegial para
a instituição monárquica consistia em escolher o bispo no corpo
presbiterial.20 Os termos presbítero e bispo foram sinônimos du­
rante algum tempo. Irineu21 parece empregá-los indiferentemente.

114
No tempo de Inácio de Antioquia, a instauração da autoridade
monárquica e a assimilação do conselho presbiteral eram coisa aca­
bada na Ásia, de Jerusalém a Pérgamo. Atestam-no as cartas de Inácio
às várias comunidades pela quais passara. Em outros lugares, pare­
ce que a mudança foi algo dolorosa.22 A carta de Clemente à comu­
nidade de Corinto, provocada por presbíteros contestados, reconhece
a existência de chefes ou bispos — escolhidos, sem dúvida, pelo
conselho dos anciãos — que presidiam à liturgia e distinguiam-se
claramente dos leigos, mencionados aí pela primeira vez.23
Em Roma, a fusão do conselho dos presbíteros com os sucesso­
res de Pedro, ao que parece, não foi concluído sem dificuldades. No
tempo de Clemente, a igreja romana ainda era dirigida por conse­
lho presbiteral, com um presidente à sua frente.24 Justino, ao des­
crever a assembléia litúrgica, não fala de bispo, mas de presidente.
Quando Policarpo e Hegésipo e, mais tarde, Irineu foram a Roma,
encontraram lá organização semelhante à do Oriente e a de Lião.
A situação romana permite que tenhamos imagem concreta do
que distingue a Igreja das igrejas. Até Constantino, não existia lu­
gar no qual se pudessem reunir todos os fiéis da cidade. Os cristãos
se reuniam por afinidades e por grupos étnicos ou lingüísticos, como
os diversos ritos na Beirute ou na Damasco de hoje. Justino23 afir­
ma-o claramente, ao responder à interrogação do prefeito Rústico:
“Onde vos reunis?
— Onde cada um quer e pode. Crês que nós todos nos reunimos
em um mesmo lugar?”
Isso explica que os asiatas de Roma, fiéis à tradição de sua igre­
ja original, continuassem a celebrar a festa da Páscoa no dia aniver­
sário, e não na noite do sábado seguinte, como os outros fiéis da
cidade. Essa diversidade se encontra ainda hoje em Jerusalém, en­
tre confissões diferentes, e já irritava o papa Vítor, preocupado com
ordem e unidade. Ele tinha diante dos olhos comunidades nas quais
uns jejuavam enquanto outros já festejavam a alegria pascal; os fiéis
que estavam na sexta-feira santa, encontrando os que festejavam a
Páscoa, podiam pensar “que eles se haviam enganado”.
Nos diversos bairros da cidade, os cristãos se reuniam em tor­
no de um mestre ou de um presbítero para ensinamento ou cele­
bração. As doutrinas mais audaciosas podiam difundir-se em reu­
niões heterodoxas, que escapavam ao bispo. A vinda de mestres da
115
Ásia e do Egito, como Valentino e Marcião, favorecia os grupelhos,
alguns dos quais se erigiram em "Igreja” separada. Diante da amea­
ça, a Igreja acentuou a unidade e a ortodoxia, incluindo-as nas res­
ponsabilidades dos bispos. Esse movimento de unificação é clara­
mente perceptível nas comunidades romanas e orientais.26
No século II, a unidade e a vitalidade de uma comunidade de­
pendiam, em grande parte, da personalidade do bispo.27 Ele era o
defensor das pequenas igrejas contra o isolamento e o farol de sua
irradiação. Logo que ficou adulta, no tempo dos Antoninos, a Igreja
teve bispos de grande estatura: Inácio, Policarpo, Melitão, Polícrates,
Irineu.
A comunidade escolhia um homem experimentado e desinteres­
sado, competente, aprovado na vida familiar e profissional e com si­
tuação independente. O Oriente dava preferência a um cristão rico, ca­
paz de ajudar a comunidade em suas necessidades.28 Em algumas
igrejas da Ásia, o cargo era hereditário, também na igreja antiga da
Armênia; em Éfeso, Policarpo foi o oitavo de sua família a exercê-lo.29
A experiência adquirida na condução da casa e do patrimônio e
as qualidades humanas e sociais da pessoa eram condições e garan­
tias para a designação do bispo. Normalmente era casado, as exce­
ções eram bastante raras para serem destacadas, como o caso de
Melitão de Sardes.30 Habitualmente o bispo era de idade madura. A
Didascália pedia que ele tivesse cinqüenta anos.31 Platão dizia: “São
necessários cinqüenta anos para se fazer um homem".32 Mas essa
regra admitia exceções, como no caso de sabedoria precoce. O bis­
po de Magnésia, no tempo de Inácio, era jovem, o que complicava
bastante seu trabalho.33 O bispo de Antioquia exortava os
magnesianos para que ajudassem seu pastor.34
A eleição ocorria em reunião da comunidade, com voto oral. O
nome de um membro, geralmente sacerdote ou diácono,35 era pro­
posto ao povo; caso os eleitores fossem pouco numerosos, podiam
pedir a membros experimentados de igreja vizinha que se juntas­
sem a eles. Essa prática mostra que para uns e outros a igreja não
se detinha nas fronteiras da cidade.36 Depois da eleição, os bispos
vizinhos impunham as mãos sobre o eleito.37 Desde essa época fa­
ziam-se sentir o peso e o consentimento dos chefes de metrópoles,
como Éfeso. Inácio, em Antioquia, exercia sua influência sobre as
outras igrejas da região; ele já era chamado “bispo da Ásia”.

116
As qualidades requeridas não diferiam muito das que são enu­
meradas nas cartas pastorais. Aconselhava-se que não tivesse atividade
comercial nem função pública,38 porque os negócios poderíam com­
prometer sua reputação de desinteresse, e os cargos públicos lhe impo-
riam presidir as festas religiosas da cidade e sacrificar aos deuses.
Além das qualidades morais, era fundamental o conhecimento
da Escritura.39 "Que o bispo... seja assíduo em ler atentamente a
divina Escritura, a fim de interpretar e explicar corretamente seus
livros”. Alguns bispos chegaram a aprender o hebraico, para expo­
rem melhor a palavra de Deus.40 Solidez passa cultura, e zelo trans­
mite grande saber. No meio dos perigos internos e do pulular
gnóstico, o bispo devia ser mais apegado à tradição que ao raciocí­
nio, à regra da fé que à discussão.
O zelo pela doutrina devia andar junto com a integridade mo­
ral, exigida igualmente pelo serviço litúrgico e pelo serviço social.41
O bispo devia ser homem de todos, não fazer acepção de pessoas e
elevar-se acima das rivalidades e facções, que provocam cismas.42
O caráter patriarcal da igreja local tomava-o pai da comunidade,
atento tanto às necessidades dos pobres quanto às exigências espi­
rituais de todos. O termo “pastor”,43 que começou a se introduzir,
traduz o espírito de um ministério constituído de serviço e firmeza,
de autoridade e benevolência.
O autor da Didascália,44 que talvez fosse bispo, ao lado do qua­
dro de conjunto, oferece informações sobre suas diversas ativida­
des — aparentemente as do fim do século II. Se o quadro parece um
pouco idealizado, as tarefas descritas são concretas. O bispo era o
chefe da comunidade e da liturgia; administrava a justiça, harmoni­
zava as divergências e demonstrava discernimento e benevolência;
devia alimentar tanto a fé como os pobres. Em suma, na igreja, ele
representava Deus.45 A Didascália conclui: “Ó bispo, procura ser
puro em tuas ações e estima teu cargo, porque és como a imagem
de Deus onipotente e representas o Deus onipotente”.
O conselho dos presbíteros, poderoso em sua origem, eclipsou-
se. Verificou-se mudança. Os notáveis foram substituídos por sacer­
dotes, que assistiam o bispo e, eventualmente, o substituíam nas
funções litúrgicas.46
Seu recrutamento (no começo, eram os primeiros convertidos)
tendia a dar preferência a homens de situação independente.47
117
O século II foi a idade de ouro dos diáconos, os ministros jovens
e empreendedores da comunidade e os mais populares. Sua juventu­
de contrabalançava-se com a idade do bispo. Eram o braço direito
do bispo48 e os agentes principais da Igreja, acompanhavam o bispo
ou viajavam por ele, eram os intermediários normais entre o bispo e
o povo e mantinham o relacionamento entre pastor e rebanho.
Nos primeiros séculos, a tarefa principal do diácono não era
nem a evangelização nem a liturgia, mas a ação social. Era o minis­
tro da caridade e do serviço, como indica seu nome.49 O bispo esco­
lhia os diáconos em número proporcional às dimensões e às neces­
sidades da comunidade.50 Em 177, em Lião, havia só um diácono;
Inácio e Policarpo falam deles no plural: as comunidades da Ásia já
eram mais desenvolvidas.
O diácono era os olhos e o coração do bispo no meio de suas
ovelhas; estava em relação constante com os fiéis, conhecia-os e
conhecia sua situação material e espiritual. Visitava os pobres e os
doentes, a fim de socorrê-los. Velava particularmente pelas viúvas,
pelos velhos e pelos órfãos.51 Revelava ao bispo as necessidades e as
dificuldades da comunidade, assistia com os presbíteros no tribu­
nal, para compor os desentendimentos entre os irmãos, como o
Apóstolo já aconselhava.52
Ministério exigente, que requeria tato e desinteresse. O manu­
seio do dinheiro era sempre perigoso: ele podia colar-se aos dedos.
Parece que o Pastor tinha diante dos olhos o escândalo de diáconos
indelicados ou francamente desonestos, quando os acusa de enri-
quecerem-se em vez de servir, de explorar as cristãs ricas e de apro-
priar-se das ofertas destinadas às viúvas e aos órfãos.53
A carta de Plínio, o Jovem,54 sobre os cristãos, já analisada, traz
a primeira menção de duas mulheres, duas diaconisas, que exerciam
ministério preciso na Igreja, como já vimos. Paralelamente aos
diáconos, eram encarregadas do “setor feminino" e consagravam-se
especialmente àquelas que eram pobres, doentes e idosas. As Igrejas
anglicana e protestante do século XIX inspiraram-se nelas.
Não as encontramos no Ocidente. Aquelas que, mais tarde, ti­
veram esse nome eram apenas beguinas. Na Ásia, ao contrário, aos
lugares aos quais o bispo e o diácono não podiam ir, sem provocar
suspeitas ou ciúmes, a diaconisa podia. Ela visitava os gineceus,
onde viviam cristãs e catecúmenas casadas com pagãos, a fim de
118
prepará-las para o batismo e velar pela sua perseverança. Assistia o
bispo no batismo das mulheres e procedia às unções.55
A Didascália precisa que as diaconisas não deviam batizar nem
pregar, porque "as mulheres não foram estabelecidas para ensinar”,56
o que concorda com a afirmação de santo Epifânio: se essa tivesse
sido a vontade de Cristo, "é a Maria, antes de qualquer outra mu­
lher, que a função sacerdotal teria sido confiada”.57 Sofreadas na
Grande Igreja, as mulheres se recuperavam nas seitas, nas quais
profetizavam e batizavam.
Fora das grandes metrópoles, especialmente de Roma, as igre­
jas viviam a dimensão humana; pastores e fiéis se conheciam pes­
soalmente e juntos formavam uma mesma família, na qual os car­
gos e os ministérios eram diferentes, mas a serviço do mesmo Se­
nhor. O Pastor de Hermas compara-os aos operários que constroem
uma torre, a Igreja.58

Carismas e instituição
A organização se verificou no decorrer do século II. Se uma
autoridade estável substituiu progressivamente os itinerantes, após­
tolos e profetas, nem por isso a comunidade deveria ser considera­
da como rebanho de carneiros mudos, conduzidos pelo báculo do
bispo. Reunida em torno de Cristo, a Igreja é guiada pelo Espírito
Santo. Essa verdade se manifesta no cotidiano. O Espírito dirige
pastores e fiéis, tanto em Corinto como em Roma, e distribui seus
dons com munificência.
Uma fermentação mística, com visões e profecias, agitou a Igre­
ja ao longo do século. Se aqui e ali tomou formas anárquicas ou hete­
rodoxas, tratava-se de “quedas” ou de “incidentes de percurso”, que
não devem ser confundidos com a efervescência espiritual da qual
saíram. Esta era um fermento que mantinha nas comunidades a es­
pera e o fervor das origens e alimentava a vocação para a continência
e o desejo do martírio; ademais, preparava para as provações e rea­
gia contra o torpor. Morrer no leito era como que degradação.
Nada seria mais falso do que opor carisma e instituição. Os bis­
pos carismáticos eram muitos: Inácio e Policarpo eram conduzidos
pelo Espírito e agraciados com revelações.59 Melitão de Sardes era

119
guiado pelo Espírito.60 Um século mais tarde, visões e revelações
ainda tinham presença impressionante na vida de são Cripriano.61
Em meados do século II, muitos fiéis tinham carismas, sinal de
vitalidade espiritual. O Espírito inspirou o lirismo das Odes de
Salomão,62 escrito judaico-cristão da época, no qual se encontra a
inspiração joanina: “Como a mão se move sobre a citara e como fa­
lam as cordas assim fala em meus membros o Espírito do Senhor”.
Justino63 e Irineu64 conheciam cristãos, iluminados pelo Espí­
rito, que haviam recebido os dons da cura, das línguas, da presciên-
cia e do conhecimento. "E impossível dizer, escreve o bispo de Lião,
o número de carismas que, no mundo inteiro, a Igreja recebe de
Deus todos os dias”.65
Com efeito, o Espírito mostrava soberana liberdade na escolha
de seus beneficiários. Se os profetas, dos quais fala a Didaqué,66
estavam em declínio, o Espírito escolhia as pessoas mais inespera­
das, como o pitoresco Hermas, que redigiu o Pastor. O autor era
homem bom, de cultura limitada e teólogo improvisado, que se con­
fundia quando ia além das fórmulas do catecismo.
Hermas se apresenta como um inspirado e favorecido por nu­
merosas visões.67 Descontados os artifícios literários tirados dos
apocalípticos e a ficção, vê-se que o Pastor tinha consciência de
haver recebido mensagem a transmitir às igrejas e a confiou aos
presbíteros.68 Ele se apresenta ainda como profeta em ação no meio
de comunidade concreta. Era ouvido com respeito, mas a comuni­
dade não tinha necessidade dele para o ensino da doutrina.
O exemplo de Hermas nos ensina que, em vez de pôr-se acima
da autoridade eclesiástica o profeta também estava sujeito a ela, e
que competia a ela discernir os verdadeiros dos falsos profetas, se­
parar o joio do trigo e verificar o valor da mensagem, sob a condu­
ção do Espírito. Nada permite imaginar rivalidade entre inspiração
e função eclesial. Se houve tensão, não seria mais entre aquele que
castigava e aqueles que recebiam os golpes? A subordinação não
privava o profeta de sua liberdade de falar nem de repreender seve­
ramente os diáconos prevaricadores.69
Assim balizado, o profetismo se incluía na vitalidade da Igreja.
Milcíades,70 um dos adversários mais tenazes do montanismo, afirma­
va: “o Apóstolo pensa que o carisma profético deve perdurar na Igre­
ja até o último dia”.
120
A circunspeção da Igreja a respeito do profetismo não parece
icessiva quando se considera a efervescência carismática da épo-
i, exacerbada pela insegurança política e pela perseguição. A gesta
) sangue é excelente testemunho da exaltação dos confessores da
, em Lião ou em Cartago.71
Em 172, na Frigia — terra mística por excelência —, Montano
i tomado por crises extáticas.72 A região inteira ficou abalada, e
; bispos já não sabiam o que fazer. Os “santos da Frigia” oravam
>m afetação e com a ponta do indicador encostada no nariz, o que
es valeu o apelido de “narizes cavilhados”.73 As localidades do
:puze e Tímion, berços da seita, eram consideradas cidades san-
s; a elas as pessoas afluíam em peregrinação74 e perscrutavam o
ul do céu para ver se a nova Jerusalém estava descendo das nu­
ns. Os prosélitos cumulavam profetas e profetisas de ouro, prata
zestes brilhantes.73
A doutrina de Montano se espalhou como o fogo no canavial,
» Oriente à África e até às margens do Danúbio.76 O montanismo
bstituía a autoridade pela docilidade ao Espírito Santo, a vulgari-
de da vida cotidiana pelo apelo incessante à perfeição, pela re-
mcia ao matrimônio ou à sua consumação, pela venda de todos
bens em benefício dos pobres, pela aspiração ao martírio e pela
pera exaltada do fim do mundo.77 Se seguisse os montanistas, o
ando se transformaria em mosteiro.
Esses espíritos simples e exaltados anunciavam a Igreja dos úl-
nos dias com a impetuosidade das seitas pentecostais de hoje,
a imensa mobilização do mundo, sem preocupação com as tare-
; do dia-a-dia. “Que têm a ver com o juízo final os cuidados com
criancinhas?, escrevia Tertuliano, já montanista. Será belo ver
os flácidos, parturientes com náusea e crianças chorando, mis-
~ados, ao aparecimento do Juiz e aos sons da trombeta!"78 O anún-
) do grande dia deteve, depois condenou a procriação.
Fenômenos semelhantes apareceram na Fenícia e na Palestina,
a um verdadeiro contágio místico.

Muitos, obscuros e sem nome, a propósito de qualquer coi­


sa, nos santuários e fora deles, punham-se a gesticular como se
tomados de furor profético; outros percorriam, mendigando,
as cidades e os exércitos, dando o mesmo espetáculo. A cada

121
um deles nada era mais fácil — nem mais habitual — do que
dizer: "Eu sou Deus, ou, eu sou o Espírito Santo".79

Celso exagera talvez o quadro, mas certamente não inventa.


Em Lião, os energúmenos místicos, como Marcos, atacavam
com predileção as mulheres belas e ricas, mas lhes prometiam, como
os gnósticos, graças extáticas.80
“Eis, a graça desce sobre ti. Abre a boca e profetiza.” — “Nunca
profetizei, não sei profetizar,” respondia a mulher, transtornada. O
mago redobrava as invocações. Abre a boca. Agora toda palavra é
profecia.
Fora de si, entregue à embriaguez do orgulho, com a imaginação
agitada, a mulher pronunciava as palavras loucas, incoerentes e até
impudentes que lhe vinham à boca. Começada na exaltação mística,
a sessão terminava na voluptuosidade do abraço carnal, nas palavras
de Irineu, que recebeu o arrependimento das belas profetisas obriga­
das "a esconder-se com o fruto de suas relações com a gnose”.81
Os fatos narrados por Tertuliano, pouco suspeito de deturpá-
los, dão-nos idéia desses fenômenos extáticos, mais próximos do
espiritismo do que do Espírito Santo. Em Cartago, durante a reu­
nião dominical, uma mulher piedosa, arrebatada em espírito, con­
versou com os anjos, ouviu coisas ocultas e leu nos corações; ade­
mais, sugeria remédios aos que a consultavam.82
Outra mulher foi açoitada por um anjo, à noite, por causa de
sua vaidade. O mesmo mensageiro indicou-lhe o comprimento exa­
to do véu que ela devia usar.83 O número de mulheres invadidas
pelo Espírito era impressionante — e suspeito. Algumas delas se
apoderaram dos ministérios da Igreja. Uma dentre elas batizava;84
outras, durante as celebrações litúrgicas, caíam em êxtase, profeti­
zavam, pregavam e convertiam a assistência atordoada.85
Os profetas de todas as origens percorriam as ruas e, apesar da
grosseria de seus artifícios, perturbavam os espíritos e encontra­
vam crédito e acolhida entre as pessoas boas,86 tão ávidas do mara­
vilhoso e de emoções fortes como nossos contemporâneos o são de
aparições e de estigmas.
A prudência e as reticências da Igreja se explicam não só quan­
do Irineu tinha diante dos olhos os comportamentos de um Mar­
cos, mas também e mais ainda na presença de comunidades intei-
122
ras, com o bispo à frente, vítimas de visionários. Em Ancira, os
presbíteros ficaram atônitos.87 O próprio bispo de Roma, Zeferino,
pareceu hesitar um pouco.88 Na Síria, um profeta “persuadiu mui­
tos irmãos a partirem para o deserto, com mulheres e crianças, ao
encontro de Cristo”.89 Todo o rebanho se pôs em marcha, mas per­
deu-se nas montanhas. E pouco faltou para que o governador os
exterminasse, tomando-os por bandidos. Felizmente, sua mulher,
que era cristã, explicou-lhe a situação.
Outro bispo,90 nas margens do mar Negro, teve uma visão, de­
pois duas, depois três, pôs-se a realizar predições, como se fosse
um profeta e chegou à loucura ao ponto de dizer: “Sabei, meus ir­
mãos, que dentro de um ano virá o Julgamento”. Os irmãos, em sua
pusilanimidade, ficaram tão aterrados que abandonaram sua cida­
de e suas terras, e a maioria deles vendeu seus bens.
Os próprios Justino e Irineu, espíritos moderados, imaginam um
reino de Cristo na terra, com os justos, o qual duraria mil anos.91
Esse milenarismo perseguiría o espírito do Oriente e do Ocidente no
século seguinte. As seitas modernas, como os Adventistas e as Teste­
munhas de Jeová, esperam ainda hoje seu renascimento, seu revival.
Decantado das manifestações extáticas, o ascetismo feroz dos profe­
tas se encontrava em Marcião e em seus discípulos. Eles pregavam a
continência absoluta e concediam o batismo só aos celibatários. Não
contentes com pregar esse rigorismo moral, organizaram seus gru-
pelhos como igrejas em Lião, Cartago, Alexandria e Roma, com uma
hierarquia própria, com ascetas e mártires.92 Grande Igreja e seitas
se excomungavam reciprocamente. Aproximados ocasionalmente
pelo martírio, eles queriam ignorar-se e não ter nada em comum.93
Um traço desses movimentos, e também da Grande Igreja, era
a prática da ascese, que geralmente compreendia a continência e a
abstinência (de vinho). Um desses ascetas, Alcibíades, estava entre
os mártires de Lião. Foi necessária uma intervenção do Céu para
fazê-lo renunciar à abstinência na prisão.94 Mesmo na eucaristia,
os sectários em questão substituíam o vinho pela água. Por isso
eram chamados “aquarianos”.95
O rigorismo dos ascetas cristãos não era novo, já havia sido
praticado por filósofos pagãos, como Apolônio de Tiana, e no judaís­
mo.96 Desde a idade apostólica, a continência perfeita era vista como
uma das maravilhas do Espírito. Ela floresceu em Corinto, encora-
123
jada pelo apóstolo Paulo.97 Mas, no fim do século, os ascetas se
mostraram contestadores e, em nome de seus carismas, erigiram-
se em críticos e juizes da comunidade, ao ponto de provocar seitas
e divisões.98 No fundo, se Paulo voltasse, constataria que seus paro-
quianos não tinham mudado muito.
Especialmente na Síria, a continência era tida como a realiza­
ção ideal da vida cristã. É possível que o encratismo judaico tenha
exercido lá alguma influência. Os continentes eram batizados em
primeiro lugar;99 casados eram considerados cristãos de segunda
categoria. O perigo que ameaçava os ascetas era não só o orgulho,
mas ainda e principalmente o desprezo, senão a condenação do
matrimônio, como inconciliável com o fervor cristão, a rejeição da
jurisdição episcopal e a usurpação de poderes e privilégios nas comu­
nidades. Sua autoridade se acentuou ao ponto de tomar-se, às ve­
zes, opressão, quando os ascetas confessavam corajosamente sua
fé e vangloriavam-se do título de mártir.
Era a situação da Ásia e da Frigia, quando a carta dos irmãos
de Lião a essas igrejas moderou o rigorismo penitencial, a absti­
nência e a continência absoluta pregadas pelos ascetas. Eles se iso­
lavam no prestígio de sua perseverança, excluíam os pecadores da
comunidade e rejeitavam a penitência e a absolvição da Igreja. Só
outros mártires é que poderíam fazer contrapeso a eles, defenden­
do posições mais moderadas. Foi o objeto da carta.100
Os ascetas provocavam tensões nas igrejas; sabemo-lo pela cor­
respondência do bispo de Corinto, Dionísio.101 Se o exemplo do ri­
gor moral era estímulo para o fervor, existiam também a tentação e
o perigo de certo farisaísmo. Muitas vezes os ascetas, como os pro­
fetas, arvoravam-se em juizes, tachavam os outros de relaxados e
condenavam o uso do vinho e do matrimônio. Pelo fim do século II,
alguns, como Taciano e seus discípulos, organizaram-se em seitas e
erigiram-se em “igrejas dos santos”.
Outros ascetas coincidiam com Marcião e o gnosticismo na rejei­
ção do matrimônio, afirmado, como Satomil, que ele é obra do de­
mônio.102 Acabam no cisma e erigindo-se como contra-Igreja.103
Esses desvios não devem permitir perder de vista a inspiração pro­
funda suscitada pela fermentação evangélica; longe de pactuar com
o mundo, ela manteve e revivificou a época dos carismas apostólicos
e a convicção de que era necessário preparar os últimos tempos.
124
Toda essa efervescência, carregada de entusiasmo e exaltação,
explosiva e ao mesmo tempo dissolvente, exigia autoridade respon­
sável, que discernisse e balizasse, acolhesse e rejeitasse, dirimisse e
controlasse as questões de doutrina e de fé. A Igreja confiou essa
responsabilidade em primeiro lugar ao bispo. No meio de tantas
especulações gnósticas e dos delírios carismáticos, era ele que de­
via separar o joio do trigo, traçar o caminho verdadeiro e apontar a
doutrina certa. Na tensão vital de uma comunidade em construção,
o bispo contrabalançava com o profeta, em uma fidelidade comum
ao depósito e à regra da fé.
A Igreja se esforçou para expurgar o carisma de suas manifes­
tações extravagantes e, longe de limitá-lo a elas, para discernir a
ação do Espírito de Deus, que cria, desperta, suscita e chama.104
Ela reconhecia o carisma do apostolado,103 do discernimento dos
espíritos106 e mesmo o do governo.107 Longe de extinguir o Espírito,
os pastores se esforçavam para tomar suas ovelhas dóceis à sua
ação e capazes de distinguir o verdadeiro de sua contrafação.
Entre a ascese feroz e o relaxamento anárquico, os pastores
procuravam uma linha de conduta baseada na moderação e na hu­
manidade. Não opunham a luz do Espírito à regra da fé, mas situa­
vam uma e outra na mesma Igreja de Cristo, conduzida por seu
Espírito. Longe de extinguir o Espírito, eles se esforçavam para
percebê-lo na comunidade, a fim de que a iluminasse, porque, para
ela, ele era dom.
A Igreja condenava o anátema lançado sobre os bens da cria­
ção e sobre o matrimônio. Apoiando o fervor dos mártires, ela mo­
derava os exaltados e proibia-lhes denunciar a si mesmos aos tribu­
nais.108 Consciente da fragilidade dos homens, mas maternal, ela
não impelia os pecadores ao desespero, permitindo-lhes, ao contrá­
rio, redimir-se e cumprir penitência, para encontrarem a paz.

Unidade e diversidade
Desde as origens, a Igreja tinha consciência de ser aberta a to­
das as nações. Ela não estava ligada a uma cidade, nem a um im­
pério, nem a uma raça, nem a uma classe social. Qualquer particu-
larismo seria a negação de si mesma. Ela não era a Igreja dos escra-
125
vos, nem a dos senhores, nem a dos romanos ou dos bárbaros, mas
a Igreja de todos, ensinando a todos a mesma fraternidade. Uns
têm necessidade dos outros. Os grandes não podem nada sem os
pequenos, nem os pequenos sem os grandes.109 Sua originalidade
está nesse intercâmbio e nessa reciprocidade. Rapidamente, mais
rapidamente do que o dizem seus detratores, como Celso, ela flo­
resceu no espaço, de Alexandria a Lião, e atingiu todas as camadas
da sociedade, a corte imperial e a intelligentsia. Unidade e catolici-
dade andavam juntas, sendo uma o fundamento e a vitalidade da
outra. Elas são duas dimensões inextricavelmente imbricadas da
única Igreja católica.
As comunidades das cidades, de Antioquia a Roma, de Cartago
a Lião, tinham consciência de formar juntas uma entidade única,
um corpo, um povo. Inácio110 diz: “Onde está Cristo está a Igreja
universal”. Seria também certo dizer: onde floresce uma igreja flo­
resce a Igreja. Essa consciência de, em qualquer lugar, pertencer à
Igreja universal e de, acima do quadro local, estar unido à catoli-
cidade estava profundamente enraizada no coração de cada fiel.
Ao diácono Sanctus,111 de Viena, os carrascos perguntaram por
sua nação e sua cidade de origem; respondeu ele: “Sou cristão”.
Isso, acrescenta a narrativa, era "seu nome, sua cidade, sua raça, seu
tudo”. O juiz Polemon perguntou a Piônio: "És cristão? — Sim. —
De qual igreja? — Da católica. Não existe outra Igreja fundada por
Jesus Cristo”.112
O bispo Inácio de Antioquia deu à Igreja a designação de “cató­
lica” em época em que, no Ocidente, só a cidade de Roma tinha
uma comunidade cristã. A catolicidade não “depende da geografia
nem do número”, mas da mensagem e da missão. A Igreja é aberta
e enviada a toda a terra habitada, a qual os romanos pareciam con­
fundir com os limites do Império. Os cristãos tiveram rapidamente
consciência de transbordá-lo e de, um dia, sobreviver a ele. As duas
concepções não combinavam e, enfrentando-se, incitaram os pa­
gãos a dizer que os cristãos não tinham espírito cívico. Onde Roma
pensava em conquista, a Igreja pensava em missão.
De cidade em cidade, de região em região, as Igrejas dispersas
viviam, no cotidiano, a catolicidade. Os irmãos se visitavam e se in­
formavam mutuamente. Conheciam os acontecimentos que os sa­
cudiam e as perseguições que os provavam. Graças a Eusébio,113
126
temos ainda uma carta de Esmima a Filomelião, dirigida “a todas
as comunidades da santa Igreja católica, em qualquer lugar que
estejam”. Ela conta a perseguição durante a qual seu bispo, Policar-
po, foi martirizado.
Todas essas correspondências exortam à constância, mas dis­
cutem também pontos de disciplina, como a penitência daqueles
que “resvalaram”, dos lapsi, especialmente durante as persegui­
ções.114 A carta de Dionísio de Corinto aos atenienses, provados
dentro e fora de sua comunidade, permitiu-lhes recuperar-se.115
Eusébio conservou-nos um dossiê de cartas, encontradas, sem dú­
vida, nos arquivos da igreja de Corinto, que ele chama de “católi­
cas”, isto é, para todos.116
Pelo fim do século II, as relações entre as igrejas dependem me­
nos da iniciativa privada, e as comunidades começam a organizar-se
entre si e a se reunir em sínodos ou assembléias de bispos para tomar
posição sobre os problemas da atualidade, como o montanismo117 e
a controvérsia pascal.118 A reunião da Ásia excluiu os hereges da co­
munhão com a Igreja e comunicou essa decisão às outras igrejas,
porque ela empenhava toda a Igreja e tinha valor universal.119
Unidade e universalidade não são uniformidade. A evangelização
respeita o gênio próprio dos povos, sua língua e a diversidade das
culturas, e batiza raças diferentes. A fé, para se exprimir, traduz-se
na língua de cada um. A língua siríaca escrita começa com a desco­
lonização cultural de uma Igreja na qual a língua popular traduzia
a palavra das Escrituras e exprimia a oração da assembléia. A diver­
sidade não é simplesmente a justaposição pitoresca de sensibilida­
des diferentes, mas convite à criatividade de todos e enriquecimen­
to mútuo na fidelidade à única fé e ao único Senhor.
A Igreja de Inácio e de Potino, de Policarpo e de Irineu é exis­
tencialmente a mesma e diferente. Dentro da mesma Igreja, quantos
contrastes! A rapidez da propaganda na Ásia Menor sublinha a len­
tidão dos países latinos a pôr-se em movimento, como já vimos. O
Oriente evangeliza o Ocidente: Esmima evangeliza Lião. Se todas
as comunidades compreendem o grego, quantos o sentem realmen­
te? Os dialetos reinam nas portas de Cartago e Antioquia. A África,
hesitante no começo, opta rapidamente pelo latim. Em Lião, Irineu
deve traduzir a mensagem evangélica “para os dialetos bárbaros", a
fim de adaptá-lo aos gauleses.
127
Do Oriente ao Ocidente, o Evangelho favorece os intercâmbios.
A riqueza mística e especulativa, ardente e inquietante da Ásia vem
fecundar Roma, mais positiva que mística, “em nada filósofa, con­
servadora à moda camponesa, agrária e primitiva”.120 O Oriente de
cidades inumeráveis, industrial e mercantil, velha terra de velhas
culturas, onde o próprio mendigo é filósofo, com um espírito sutil,
incessantemente trabalhado pelos revivais místicos, vem insuflar
no espírito latino, positivo e prudente, moldado pelo direito, algu­
ma coisa de seu dinamismo e de sua experiência religiosa.
Para medirmos a diversidade dentro de uma mesma fé, basta
compararmos as cartas de Inácio, arrebentando de tão cheias e car­
reando uma ardente lava mística, com a de Clemente de Roma, co­
medida e grave, na qual a emoção é dominada, e a palavra é de um
homem formado pelo e para o governo. As cartas que as igrejas se
enviam, de Antioquia a Roma, de Corinto a Esmima, de Lião a Éfeso,
afirmam a unidade da fé na diversidade das situações e das cidades.
A Igreja do Oriente dá amplo espaço à criatividade e à improvi­
sação; sua liturgia é fixada só tardiamente. Seu pensamento está
em perpétua gestação. A Igreja de Roma e a de Cartago se sentem à
vontade só dentro de uma regra, correndo o risco de serem ultra­
passadas pelos fatos e pela vida.
Quando se comparam os próprios textos legislativos e litúrgicos,
a Tradição apostólica e a Didascália dos doze apóstolos, que forne­
cem uma legislação ao século III cristão, a primeira regulamenta o
que a vida cotidiana já parece desmentir; a segunda concilia as di­
retrizes de uma disciplina flexível com o jorrar evangélico. Ainda
quando assimila lentamente as contribuições das diversas regiões
do Império, Roma permanece fiel a si mesma e ao seu gênio.
Pode-se imaginar a provação que foi para o asiano Irineu adap­
tar-se à mentalidade dos gauleses, insensíveis à sua sutileza, mas
fiéis à fé recebida, que silenciosamente confessam até o martírio. O
bispo de Lião tinha do oriental a flexibilidade e a diplomacia. Era
homem do diálogo e da conciliação. Sabia aliar a fé mística à mo­
deração e ao governo das almas, o respeito das diversidades ao sen­
timento da Igreja universal.
A Igreja só podia desenvolver-se na “complementaridade”.
Policarpo, bispo de Esmima, não era Vítor, o Africano, mais roma­
no que os romanos, como todos os estrangeiros assimilados. A cele-
128
bração eucarística de Esmima não se desenrolava como a da capi­
tal; não obstante, o velho bispo, de passagem por Roma, pôde presi-
di-la sem causar estranheza nem estranhar. A eucaristia é uma só,
como a Igreja, e se exprime na igreja local, mas não é prisioneira
dela, porque é universal.
Unidade já não significava uniformidade centralizadora. O papa
Vítor, por temperamento, menos levado a contornar que a derrubar
os obstáculos, aferrado à idéia de centralização e tentado pelos pro­
cessos autoritários, teria facilmente sacrificado as tradições locais e
empregado métodos que seu compatriota, Cipriano, cinqüenta anos
mais tarde, recusaria, porque as igrejas, como os homens, só se for­
mam mediante o respeito à sua personalidade e à sua diversidade.
Na controvérsia pascal, o que feriu os asiatas foi menos a data que o
procedimento. O comportamento ditatorial do papa, impondo em vez
de convencer, pareceu-lhes inconciliável com a missão do servo uni­
versal. Polícrates, em sua carta, soube exprimi-lo com dignidade.121

O primado romano
A capital da Igreja deslocara-se de Jerusalém para Roma. A
tomada e a destruição da velha Sião impediam agora que a igreja
dessa cidade exercesse papel de piloto na história do cristianismo.
A situação política de Roma, metrópole de todas as cidades do Im­
pério, de início, dava à comunidade cristã da cidade importância
incontestada, consagrada pela vinda de Pedro.
As outras grandes metrópoles — Antioquia, Éfeso e Corinto —,
fundadas pelos apóstolos Paulo e João, reconheceram rapidamente
o primado romano. O prestígio de Roma decorria da vinda e do
martírio dos apóstolos Pedro e Paulo. A autoridade de Pedro consa­
grou o primado romano. Ele se afirmou não de vez, mas aos pou­
cos, ao sabor das circunstâncias e das necessidades, segundo uma lei
que a história da Igreja ilustra. Doutrinadores e hereges procura­
vam fazer-se acreditar em Roma, como vimos, porque a comunhão
com Roma lhes assegurava a comunhão com a Igreja inteira.122
Os testemunhos em favor do primado romano aparecem no fim
do século I, durante a perseguição de Domiciano. Sem força indivi­
dualmente, eles aumentaram e forneceram rapidamente um dossiê
impressionante. A carta de Roma à Igreja de Corinto, escrita por

129
Clemente, bispo de Roma, interveio em uma crise interna.123 Com
brandura, mas também com firmeza, ela pedia que os presbíteros
destituídos fossem reintegrados em seus cargos. Aos instigadores
do cisma aconselhava que deixassem a cidade.124
Não sabemos qual foi a acolhida dada à carta, mas, pelo bispo
Dionísio,125 sabemos que, sessenta anos mais tarde, ainda era lida
na reunião eucarística do domingo, o que dificilmente se explicaria
se a intervenção não tivesse tido bom êxito. Battifol vê nesse fato “a
epifania do primado romano”.126
Inácio, bispo da prestigiosa cidade de Antioquia, escrevendo à
Igreja de Roma, saúda-a com grande deferência como “aquela que
preside na região dos romanos, presidente da caridade e da frater­
nidade”.127 Multiplica os elogios e as provas de estima, tanto mais
admiráveis quanto não se encontram em nenhuma das outras car­
tas suas. A carta que Dionísio, chefe de comunidade fundada tam­
bém pelos apóstolos Pedro e Paulo, escreveu aos romanos exprime
deferência igualmente significativa.128
Menos solene e mais ingênuo é o testemunho de Abércio, da
distante cidade de Hierópolis, na Ásia Menor. Ele viajara através do
Império e se convencera da predominância da igreja romana:
Sou Abércio; sou discípulo de um santo pastor, que leva suas
ovelhas para pastar nas montanhas e nas planícies e que tem
grandes olhos, cujo olhar chega a toda parte... Ele me enviou a
Roma para contemplar a soberana majestade e ver uma rainha
vestida e calçada de ouro.129
O conflito que opôs a celebração pascal da Ásia à de Roma
mostra que as decisões das igrejas e dos sínodos consultados tive­
ram toda a sua autoridade quando receberam a aprovação romana.
Era do papa Vítor que dependia a comunhão universal.130 Seus
métodos podem ser criticados, mas ninguém na Igreja pôs em ques­
tão a autoridade que interveio. O próprio Irineu, que negociou em
favor da conciliação, contestou a oportunidade, não a legitimidade
da intervenção romana. Reconheceu explicitamente que a Igreja de
Roma — ele estabeleceu a lista de seus bispos131 — estava investida
de poder maior que o das outras.132 Isso levou Hamack, pouco sus­
peito, a escrever:133 "Desde a origem, existe relação estreita entre os
termos católico e romano”.
130
CAPÍTULO II

UM CORAÇÃO, UMA ALMA

“Antes de Cristo, o mundo era sem amor": esse julgamento de


um historiador talvez seja exagerado.1 Procura ao menos explicar a
surpreendente sedução do cristianismo sobre as massas e as elites.
O evangelho da caridade vinha explicar e realizar a fraternidade
humana, inscrita no mais íntimo do ser humano e que nenhuma
filosofia levara além desse ponto, para os atos cotidianos. A Igreja
queria ser fundamentalmente uma fraternidade, como observa já
Inácio de Antioquia.2 O que impressionava o pagão era ver pessoas
que se amavam, que viviam a unidade, a ajuda mútua, a partilha, e
encontrar sociedade que estabelecia a igualação dos bens entre ri­
cos e pobres, em autêntica fraternidade. O imperador Juliano reco­
nheceu, dois séculos mais tarde, que o segredo do cristianismo era
“sua humanidade para com os estrangeiros e sua previdência com
relação ao enterro dos mortos",3 em suma, a qualidade de sua cari­
dade.
Os pagãos do século II dão o mesmo testemunho: "Vede como
se amam uns aos outros!"4 Tertuliano contundente e exagerado, como
sempre, acrescenta: “E eles se detestam uns aos outros”. Sêneca, o
santo pagão, também pede que se estenda a mão ao náufrago, que se
abra a casa ao exilado e a bolsa ao necessitado, a fim de dividir os bens
com os outros. Mas acrescenta: “O sábio se guardará de afligir-se por
causa da sorte do miserável; sua alma deve permanecer insensível
aos males que ele alivia; a piedade é fraqueza, doença”.5 Esses acen­
tos “nietzscheanos” medem a distância que separa o paganismo do
Evangelho.
Diante da difusão das filosofias e dos cultos orientais, o cristia­
nismo não trouxe nem sistema novo nem religião nova; segundo a
palavra de Lactâncio,6 ele é, para o mundo, uma "graça de humanida-

131
de para o homem amar, socorrer e defender os outros homens”. O
Evangelho de Cristo introduz relações novas entre os homens,
estimula e cria, age e transforma, porque é uma provocação para
a ação. Onde floresce a fé, a caridade recolhe os frutos de sua
ação.
A palavra de Tiago ressoava, lancinante, em todas as comu­
nidades da Igreja nascente: “Alguém poderá objetar-lhe: ‘Tu tens
fé, e eu tenho obras! Mostra-me a tua fé sem obras, e eu te mostra­
rei a fé pelas minhas obras’ ”.7 O mesmo evangelista une religião e
ação, serviço de Deus e serviço dos homens: “A religião pura e sem
mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e
as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do
mundo”.8
A Igreja, de Cartago ou de Lião, acolhia homens concretos e
diferentes, com sua situação pessoal, profissional, econômica e so­
cial; eram ricos e pobres, jovens e velhos, mas todos confraterni­
zavam. Uns e outros deviam tomar consciência de que formavam
uma mesma família e que deviam viver a fraternidade, isto é, pra­
ticá-la.
Diante desse programa, o oriental e o ocidental, o cristão de Vie­
na na França e o de Éfeso agiam e reagiam segundo temperamen­
tos próprios,9 o que provocava certa fluidez nas instituições e nas
realizações. As funções e as atividades das viúvas e das diaconisas,
por exemplo, não eram as mesmas no Oriente e no Ocidente, por­
que as condições de vida diferiam. O oriental, empírico, inventava e
improvisava; o latino organizava e regulamentava.
A dificuldade era situar uma comunidade cristã média, que
fosse, em escala menor, a imagem de igreja de metrópole. Temos
mais informações sobre Roma do que sobre Tiatira, mas Roma
não era toda a Igreja como Paris não é toda a França. Que dife­
rença entre uma paróquia da capital e a de um vilarejo ou de
uma cidade pequena do interior! E Roma não era Cartago, o que
é verdade também do orçamento das duas comunidades cristãs.
O prefeito de Atenas, recentemente de passagem por Montréal,
constatou que a metrópole canadense gasta com a remoção da
neve a totalidade do orçamento de sua capital! Os problemas de
Atenas não são os de Montréal, nem as necessidades e nem os
recursos.10

132
A acolhida na comunidade
Na época em que estamos, a comunidade, fora das grandes
metrópoles, não ia muito além do quadro de uma casa acolhedo­
ra. O termo fraternidade tinha nela sentido concreto: os irmãos e
as irmãs se conheciam e se chamavam pelo nome.
A igreja de Dura-Europos, uma das mais antigas já encontra­
das, já estava na fase evoluída do edifício transformado em lugar de
reunião. Tratava-se de pequena cidade do século III, com popula­
ção média. Ora, a igreja continha apenas sessenta pessoas, isto é, o
efetivo de uma família grande.
A Disdacália siríaca conheceu ainda e descreveu a comuni­
dade de dimensão humana, na qual o bispo reservava a si a distri­
buição dos socorros, porque conhecia perfeitamente os que esta­
vam em dificuldade.11 Se um irmão, em viagem, se juntasse à reu­
nião, mais ou menos como um membro de “Rotary Club” em trân­
sito, devia mostrar suas credenciais antes de ser aceito na assem­
bléia.12
O que chama a atenção nas diretrizes da Didascálicd3 é o cará­
ter patriarcal e pessoal. Nada de burocrático nem de administra­
tivo. O diácono ficava à porta da igreja para acolher as pessoas.
Todos os rostos lhe eram familiares. Conhecia os abastados e os
deserdados, as crianças felizes e os órfãos, os sem trabalho e as viú­
vas. Sabia o que o batismo representava para cada um: a ruptura de
certos laços, os obstáculos de toda ordem e o estabelecimento de
novas relações com a comunidade. Muitos deles, daí por diante,
podiam apoiar-se só na nova família, à qual se juntaram ao preço
de todo o resto!
A Didascália diz: “O diácono seja o ouvido do bispo, sua boca,
seu coração e sua alma’’.14 São recomendações cheias de sentido
para o diácono. “Esse coração, essa alma” são povoados por todos os
irmãos e por todas as irmãs, cada um com sua história, cada um
com suas necessidades materiais e espirituais. Não havia um só para
o qual a fé não representasse risco, desafio, dilaceração. A história
de Perpétua nos permite entrever quão profundamente a conversão
cortava na carne viva das afeições familiares. Mas, ao mesmo tem­
po, quanta amizade e delicadeza da comunidade de Cartago para
com Perpétua, Felicidade e os outros companheiros. Os diáconos

133
não saíam das portas da prisão, procurando aliviar, mediante alto
preço, a situação dos prisioneiros. Era a imagem da fraternidade
vivida e partilhada.

A viúva e o órfão
Para nós, defender a viúva e o órfão exprime, por sinédoque, a
generosidade daquele que vai em socorro dos oprimidos e dos rejei­
tados da sociedade. De Justino a Tertuliano, encontramos regular­
mente entre os casos sociais de primeira urgência as viúvas e os
órfãos.15 A associação deles tem profundas raízes bíblicas. "Não
afligireis a nenhuma viúva ou órfão. Se o afligires e ele clamar a mim,
escutarei o seu clamor; minha ira se acenderá!”16 Os dois represen­
tavam aqueles que, por não terem proteção nem defesa, eram os
membros privilegiados da comunidade.
A comunidade primitiva entendia a assistência, segundo a pala­
vra de Tiago,17 como a expressão e o prolongamento da fé e do culto.
O próprio Luciano,18 observador sarcástico dos cristãos, descreve o
lugar das viúvas e dos órfãos nos grupos cristãos. Até o mais míope
podia, portanto, conhecer a situação deles na vida da comunidade.
Os órfãos eram como que os “filhos naturais” da Antiguidade.
Estabelecimentos para recolhê-los foram fundados só na época cristã
e no governo de Constantino. A situação das crianças sem pai, legí­
timas ou não, era das mais precárias. Legisladores e filósofos per­
mitiam a exposição das crianças indesejáveis.19 Tertuliano20 repro­
vou violentamente esse crime perante os pagãos de seu tempo. Mas
ele não fala dos bastardos nem dos filhos ilegítimos, os quais talvez
fossem pudicamente igualados aos órfãos.
Na Grécia e em Roma, eram protegidos só os interesses das
crianças nascidas livres e cidadãs. A lei não se ocupava dos outros,
cujo número era proporcional ao dos órfãos cristãos, recolhidos
nas classes trabalhadoras e modestas. Plínio escreveu, da Bitínia,
interrogando o imperador sobre a condição jurídica e a manuten­
ção das crianças que, nascidas livres, haviam sido expostas e, de­
pois, recolhidas e criadas para a servidão.21 Trajano respondeu, con­
sagrando os princípios admitidos pelos gregos, porque não havia
legislação comum a todo o Império, ratificando assim os abusos
dos quais essas crianças eram vítimas.22

134
O grande número das crianças expostas era salvo da morte só
pela escravidão e pela prostituição. Para remediar essa situação,
Plínio realizou doações em favor das crianças pobres de várias ci­
dades, particularmente de Como, sua pátria.23 Exortou os amigos a
seguirem seu exemplo.24 Uma mulher, de nome Célia Macrina, em
seu testamento, deixou meios para a manutenção perpétua de cem
crianças, meninos e meninas, até a idade de treze ou dezesseis anos.25
Em Roma, as distribuições de trigo eram insuficientes para as
necessidades das crianças sem família. Trajano foi o primeiro im­
perador a organizar assistência pública para as crianças ingênuas,
mas os escravos eram excluídos dela. Essa instituição se estendeu
de Roma para a Itália. Foi a obra social mais meritória de Trajano.26
Uma medalha de bronze comemorava o acontecimento: diante do
imperador sentado, uma mulher lhe apresentava algumas crianças,
sobre as quais se estendia sua proteção.27
Esse contexto sociológico permite situar melhor as disposições
tomadas pelos cristãos da mesma época. Recolhiam eles crianças
abandonadas? Nenhum texto afirma isso explicitamente. Mas como
podería Tertuliano28 acusar tão violentamente de infanticídio o aban­
dono das crianças, se os cristãos não pensassem que cometeríam o
mesmo crime, caso não recolhessem “um desses pequeninos”?
Seja o que for com relação às crianças enjeitadas, somos infor­
mados pela Didascália29 sobre a atitude dos cristãos para com ór­
fãos e órfãs. O bispo era o principal responsável por eles. Pai da
comunidade, não o era ele, em primeiro lugar, daqueles e daquelas
que não tinham mais pai? Geralmente ele confiava o órfão a uma
família cristã.

Se um cristão ficar órfão, seja menino ou menina, será bom


que um dos irmãos que não tem filho receba o menino por filho;
se já tem um filho, tome a jovem e a dê a ele por esposa, quando
seu tempo vier, a fim de coroar sua obra no serviço de Deus.30
Não se tratava, portanto, de explorar a situação, a fim de se
tirar proveito, mas de se abrirem os lares para que o órfão tivesse
família, fosse formado e colocado na vida. O bispo devia cuidar que
a órfã se casasse com um cristão e arranjar-lhe o dote requerido.
Quando se tratava de órfão, o chefe da comunidade devia providen­
ciar para que ele aprendesse uma profissão e adquirisse as ferra-

135
mentas necessárias para ganhar honestamente a vida e não ficar
mais a cargo da comunidade.
Os mais abastados nem sempre se prestavam a uma economia
tão fraterna: receber o batismo não era suficiente para a pessoa
mudar de pele. Àqueles que não sabiam dar bom uso a seus bens, a
Igreja e o bispo repetiam o ditado: “O que os santos não comeram
será comido pelos assírios”.31
Os filhos dos mártires eram as crianças privilegiadas da comu­
nidade. Em Cartago, uma mulher acolheu espontaneamente e ado­
tou o filho de Felicidade.32 Nada consta a respeito de Perpétua, mas
como sua família era rica, seu filho não ficou sob os cuidados da
comunidade. O jovem Orígenes, depois do martírio de Leônidas,
seu pai, foi também acolhido por uma mulher de Alexandria.33
Eusébio fala de um cristão da Palestina, chamado Severo, que cui­
dava das viúvas e dos filhos dos mártires.
Em Pérgamo, na Ásia Menor, a multidão invocou os filhos para
dobrar a coragem da mãe, Agatônica:
"Tem piedade de ti e de teus filhos, como clama a multidão,
reforçou o procônsul.
— Meus filhos? Deus vela por eles!"34
Agatônica sabia que os irmãos e as irmãs na fé acolheríam seus
filhos.
As viúvas, associadas às crianças, punham à comunidade um
caso social muito diferente. Sua vida é alegre só nas operetas; a rea­
lidade histórica é outra. Em Roma, morrendo o marido, a mulher
voltava a depender de sua família ou da família do marido.35 Sua
situação se tomava ainda mais incômoda quando nem uma nem a
outra eram cristãs. Além disso, as disposições jurídicas favoreciam
as crianças, não a viúva.
No mundo grego, em caso de viuvez, a lei e os costumes preconi­
zavam segundas núpcias.36 A epístola a Timóteo se conforma com
esse uso recebido, quando aconselha: “Que as jovens viúvas se ca­
sem!”37 Roma, porém, era menos favorável a novas núpcias; as
mulheres que permanecessem viúvas eram premiadas.38 Essa re­
serva era apoiada entre os autores cristãos da época.39
A situação da viúva, precária quando ela tinha filhos pequenos,
agravava-se quando os filhos eram maiores, e os bens passavam
para as mãos deles; eles deveríam prover à subsistência e à moradia

136
dela, mas, segundo um provérbio que é a experiência dos séculos,
“é mais fácil uma mãe alimentar seis filhos do que seis filhos ali­
mentar uma mãe”. Ricos ou pobres, raramente os filhos ajudavam
seus pais idosos. As viúvas de condição modesta eram, pois, mantidas
pela comunidade como o haviam sido no judaísmo.40
Sustentando essas mulheres, a Igreja exprimia, diante da dure­
za da sociedade antiga, sua humanidade e seu senso social. Cartas e
escritos recomendavam com insistência aos pastores e às comuni­
dades que velassem pelas viúvas:41 “É bom e útil visitar os órfãos e
as viúvas, especialmente aquelas que são pobres e que têm muitos
filhos”.42 As viúvas chegaram até a ocupar posição de honra na co­
munidade. Policarpo chama-as "altar de Deus”,43 o que significa
que elas viviam das ofertas dos fiéis.
É difícil dizer quando as viúvas começaram a viver em comuni­
dade, na casa de um cristão rico e sob a direção de uma dentre elas.
Esse modo de vida permitia às viúvas não se casar de novo e viver
em ascese de certa forma monástica.44

Deus em andrajos
No tempo do papa Comélio, a igreja de Roma sustentava “mil e
quinhentas viúvas e necessitados”.45 Os pobres eram a maioria nes­
se número impressionante. O que era verdade de Roma era verdade
de todas as comunidades. Cada uma tinha seus pobres. Situação
que, mesmo na época dourada dos Antoninos, refletia as condições
econômicas de sociedade em que as disparidades eram flagrantes,
e os economicamente fracos eram numerosos, como em alguns
países da América Latina hoje.
As distribuições de trigo em Roma proviam ao essencial. Mas
esse benefício não se estendia às províncias. Aqui e ali apareciam filan­
tropos, como o boticário que deixou 300 potes de droga e 60.000
sestércios para o fornecimento gratuito de remédios aos pobres de
sua cidade natal.46 Por mais louváveis que fossem, essas medidas
não passavam de gota d agua em um mar de necessidades.
Os mais atingidos pela situação social eram os doentes, os en­
fermos, os necessitados, os desempregados, os idosos e especial­
mente os escravos que não podiam mais trabalhar e os náufragos,

137
freqüentes nos portos, onde se concentravam as primeiras comuni­
dades. Essa lista aumentava em tempos de más colheitas, de guerra
ou de calamidade.
Tratava-se principalmente de casos sociais, de pessoas sofridas,
sem família, deslocadas, aportadas em tal ou tal lugar, todas
mantidas pelos irmãos. A fraternidade tomava então um sentido e
uma responsabilidade concretos. Que adiantaria, como diz Tiago,47
desejar-lhes a paz, sem dar-lhes abrigo, comida e roupa?
Em função desse sofrimento humano, a Igreja pedia que fosse
escolhido um bispo que “amasse os pobres”:48 “Lembra-te dos po­
bres, recomendava-lhe a Didascália, toma-o pela mão e alimenta-o”.49
Quando o bispo tinha fortuna pessoal, ela servia para prover às ne­
cessidades maiores da comunidade. O diácono conhecia os casos
individuais, procurava os doentes, estudava as diferentes situações,
examinava os mais dignos de interesse e descobria os pobres enver­
gonhados, que ocultavam suas necessidades.
Os pobres eram mais numerosos nas cidades do que nos cam­
pos. Em Antioquia como em Roma, podiam representar um déci­
mo da população. Na capital, para onde acabavam indo os estran­
geiros de todo o Império bem como os camponeses arruinados, os
pobres viviam tradicionalmente de doações do Estado ou de parti­
culares, das distribuições de trigo e do abastecimento público. A
caridade cristã tirou dos costumes do tempo os usos aceitos:50
espórtulas e refeições públicas, a fim de adaptar os recursos às ne­
cessidades. De certa forma, a Igreja figurava como “Exército da
Salvação”. Um registro continha a lista das pessoas assistidas. A
acolhida dos estrangeiros e dos pobres pesava muito no orçamento.
As visitas domiciliares permitiam descobrir as situações mais
trágicas, principalmente os doentes, aos quais os diáconos levavam
o conforto da comunhão, porque os conheciam bem e muitas vezes
os sustentavam materialmente.51 No século V, o Testamento pedia
ao diácono que “procurasse nas hospedarias enfermos, pobres e
doentes abandonados”.52 No Oriente, como vimos, as diaconisas ou
as viúvas cuidavam das mulheres pobres e doentes.53
A manutenção dessas pessoas era encargo de todos. Os irmãos
não podiam deixar tudo aos ministros da caridade. Não bastava
que pagassem com seu dinheiro, deviam pagar também com a pró­
pria pessoa e com o tempo disponível. Recebiam o aprendizado

138
desse trabalho durante o catecumenato, porque a fé lhes abria uma
verdadeira família, com suas alegrias e seus sofrimentos. Sabemos,
pela Tradição apostólica,54 que o examinador dos candidatos ao ba­
tismo perguntava, entre outras coisas: “Honraram eles as viúvas?
Visitaram os doentes? Cumpriram todo tipo de boas obras?” O ca­
tecismo era aprendido e experimentado na prática.
Caridade concreta essa, que se impunha mais porque ainda não
existiam hospitais. Os médicos podiam ser consultados habitualmente
pelos ricos. Se, desde muito, o Egito e a Grécia tinham médicos para
o povo, na Itália seu estabelecimento foi lento.53 Em Roma, no tem­
po dos Antoninos, a maioria deles vinha da Grécia e da Ásia Menor.
Os irmãos e os sacerdotes médicos que conhecemos por epitáfios
tinham um campo imenso no qual exercer sua arte e sua assistência.
Em muitos casos, o diácono procurava encontrar família ou
particular que acolhesse um doente isolado e cuidasse dele. Em
Roma, os escravos enfermos muitas vezes eram abandonados na ilha
do Tibre e confiados ao deus Esculápio. Seu abandono era tal que o
imperador Cláudio obrigou os senhores a cuidar de seus escravos e
determinou que os escravos que sarassem ficassem livres. O senhor
que matasse um escravo doente, para não ter de cuidar dele, seria
perseguido por homicídio.56 Essa lei diz muito sobre a desumani­
dade dos costumes romanos na época mais brilhante de sua civili­
zação.57

Mortos sem sepultura


Na Antiguidade, a sepultura assumia sentido mais religioso que
familiar ou social. Senhores e escravos, libertos e artesãos, ainda
no vigor da idade, já tomavam disposições a respeito de suas exé­
quias. Era importante não “falhar na saída” e executá-la segundo o
figurino. As diversas associações, profissionais ou não, organiza­
vam uma caixa de solidariedade, administrada por curadores; pa­
gava-se soma de até 750 denários, mais a cotização mensal. A asso­
ciação podia também receber legados e donativos.58
Na comunidade cristã, o sepultamento era o último ato de cari­
dade para com os pobres. O imperador Juliano, como vimos, atri­
buía a expansão do cristianismo antes de tudo à filantropia para

139
com estrangeiros e ao sepultamento dos mortos.59 Essas duas coi­
sas estavam unidas, porque os estrangeiros, longe de suas famílias
e de seus países, e às vezes sem parentes, não tinham quem cuidas­
se de seus funerais.
A atitude cristã tocou a imaginação dos pagãos porque a Igreja
enterrava não só seus próprios mortos, mas também todos os ou­
tros mortos sem sepultamento, vítimas de calamidades públicas e
de naufrágios.60 Essa era uma das obrigações do diácono: “Que ele
os vista e enfeite". "Se ele mora em cidade próxima do mar, percor­
ra freqüentemente o litoral, a fim de recolher os que tiverem morrido
em naufrágios. Vista-os e os enterre”.61
A Antiguidade dava a maior importância ao sepultamento, por­
que só ele propiciava o repouso e um lugar para o culto aos mortos.
Ainda hoje, os malgaxes dos altiplanos se arruinam literalmente para
sepultar seus antepassados; a vida dura por algum tempo, a morte é
para sempre, dizem eles. Geralmente a família se encarregava das
exéquias, mas os outros também deviam colaborar. Em Atenas, quem
encontrasse o corpo de um morto tinha a incumbência de enterrá-lo.
Foi o drama de Antígona. Seria impiedade deixar alguém sem sepul­
tura, ainda que inimigo.62 O ódio não atravessou esse limiar.
Entre os cristãos, pobres e estrangeiros eram enterrados a
expensas da comunidade.63 “Quando um pobre deixa este mundo, e
um irmão fica sabendo, ele se encarrega do sepultamento daquele,
segundo seus meios".64 Tratava-se de enterrar, não de incinerar; es­
ses dois modos eram praticados em Roma. Os cristãos evitaram a
cremação, seja por fidelidade aos usos bíblicos, seja para imitar o
sepultamento de Cristo.
Em Roma, as famílias ricas abriam seus jazigos aos pobres da
comunidade.63 Assim, a cripta de Lucino remonta ao século I. As
catacumbas eram ocupadas por cristãos de origem modesta, em
parte por descendentes de libertos, beneficiados pela concessão fu­
nerária. Quando o terreno na superfície já não era suficiente, esca­
vavam-se galerias subterrâneas. Até na morte, os cristãos, patrícios
ou escravos, afirmavam sua comunhão e sua fraternidade em uma
mesma esperança.
O castigo supremo que os pagãos infligiam aos mártires consis­
tia em deixá-los sem sepultura. Em Lião, atiravam os corpos deles
às aves de rapina, mantendo-os sob vigilância militar; embora pa-

140
gando, os cristãos não conseguiam livrá-los dessa ignomínia.66 A
narrativa dá o motivo: “Julgavam que assim podiam triunfar de Deus
e privar suas vítimas da possibilidade da ressurreição. Vejamos, di­
ziam, se eles ressuscitarão, se seu Deus os socorrerá e os arrancará
de nossas mãos".

Os que sofreram pela justiça


A precariedade da situação aproximava os cristãos entre si;
eram solidários na mesma fé e viviam sob a mesma ameaça. Se, em
tempos normais, essa solidariedade já era praticada entre os mem­
bros da comunidade, a perseguição e as provações reforçavam ain­
da mais os laços entre todos. Todos se interessavam uns pelos ou­
tros, combinavam e se cotizavam.
Foi assim que Sabina, abandonada em uma montanha, por cau­
sa da fé, por uma senhora indigna, foi socorrida clandestinamente
pelos irmãos, que conseguiram libertá-la.67 Os que ainda não ha­
viam sido presos cuidavam dos irmãos que estavam nas prisões,
visitando-os,68 levando-lhes provisões e, por meio de presentes, me­
lhorando sua sorte e seu alojamento.69 Assim, em Cartago, dois
diáconos, Tércio e Pompônio, mediante pagamento, obtiveram auto­
rização para que Perpétua e seus companheiros repousassem por
algumas horas em um lugar melhor da prisão. Alguns confessores
recusavam esses abrandamentos, para não serem pesados à comuni­
dade.70 E os carcereiros, frustrados, vingavam-se nos prisioneiros.
Às vezes os irmãos pagavam resgate pela libertação completa.71
Em Roma, Lúcio protestou junto ao prefeito da cidade contra a
prisão de Ptolomeu — essa intervenção custou-lhe a vida.72 Vettius
Epagathus, de ilustre família de Lião, tomou publicamente a defesa
de seus irmãos: pagou sua coragem com seu sangue.73
O próprio Luciano, apesar de seu sarcasmo, descreveu cristãos e
cristãs assediando a prisão onde seu irmão estava preso e fazendo
tudo para libertá-lo: passavam a noite com ele, levavam-lhe comida e
procuravam ganhar os carcereiros, dando-lhes dinheiro.74 Luciano,
mesmo caricaturando, teve de reconhecer a fraternidade e a solida­
riedade dos cristãos e a dedicação que tinham aos confessores da
fé.

141
A narrativa mais comovente refere-se ao jovem Orígenes, então
com dezoito anos. Durante a perseguição de 203, ele se consagrou
literalmente ao serviço dos mártires.

Com efeito, ele os assistia não só quando estavam na prisão,


nem só quando eram interrogados e até a sentença suprema,
porque, depois dela, ainda permanecia com os santos mártires
quando eram conduzidos à morte, usando da maior ousadia e
expondo-se, assim, aos perigos. Muitas vezes, quando avança­
va corajosamente e, com audácia extraordinária, saudava os
mártires com um ósculo, a multidão de pagãos que os cercava
enfurecia-se e queria precipitar-se sobre ele, mas todas as vezes
a mão socorredora de Deus o fazia escapar miraculosamente.75
A fraternidade era a mais intensa entre aqueles e aquelas que
sofriam pela mesma causa. Quanta delicadeza, quantas atenções
recíprocas entre os confessores da fé! Em Lião, a jovem Blandina
sustentou a coragem de Pôntico, de quinze anos.76 A gesta dos már­
tires foi uma epopéia da fraternidade. As situações sociais não exis­
tiram mais. Em Lião, a vedete era a grácil Blandina, pela qual toda
a comunidade tremia. Ela demonstrou tanta resistência que “esgo­
tou e cansou os carrascos”;77 graças a ela, irmãos que tinham apos-
tatado voltaram atrás e confessaram sua fé.
Em Cartago, quanta delicadeza entre Felicidade e Perpétua!
Uma velava para que o pudor da outra não fosse ferido. Como essas
jovens mães se compreendiam, como eram mulheres, no sentido
mais nobre do termo! Elas tinham as mesmas apreensões antes do
parto. Perpétua, forte na fé, não cessava de pensar em seu filho, que
ela ainda amamentava.78 Na véspera dos jogos sangrentos do anfi­
teatro, Perpétua e Felicidade se confortavam mutuamente.
Estabelecia-se clima de calor e ternura em tomo dos mais jo­
vens, dos mais fracos e dos que tinham medo ou que fraquejavam, a
fim de que se sentissem confortados e, depois da fraqueza, se reer­
guessem. Quando chegava a hora suprema, os irmãos e as irmãs da­
vam-se mutuamente o ósculo da paz, como quando ofereciam juntos
o sacrifício eucarístico, a fim de selarem sua comunhão fraterna.79
Além da perseverança e da morte, quanta audácia nos que fica­
vam! Com quanta piedade recolhiam eles os ossos das vítimas!80
Escreviam às outras igrejas, contando a história de seus mártires,

142
cujo sacrifício era honra para todos.81 Nas diversas comunidades,
os cristãos faziam cópias dessas cartas,82 porque se tratava de uma
história e de uma glória de família.

‘‘Um membro sofre? Todos sofrem com ele”


Nem todos os confessores da fé eram condenados a morrer
pela espada ou na fogueira. Alguns eram enviados às minas, com­
paráveis aos trabalhos forçados da Sibéria. “Um pouco menos
cruéis que a morte”, dizia-se. Entre gregos e romanos, a mão-de-
obra das minas provinha do mundo servil. Ao lado dos escravos, os
romanos empregavam homens livres, geralmente condenados. A du­
ração dos trabalhos forçados era de dez anos.83 Essa sorte coube a
muitos cristãos, homens e mulheres, na África, na Itália e na Pales­
tina, durante as perseguições.
Os condenados eram marcados com ferro em brasa no braço ou
na mão, para serem facilmente reconhecidos. Trabalhavam acor­
rentados, as equipes se sucediam sem interrupção e a duração das lam­
parinas marcava a duração das vigílias. Nas galerias, o ar era irrespi­
rável; o mineiro, de bruços, sofria com o calor sufocante durante dez
horas e mais; nesses lugares, nem a saúde mais robusta resistia. Sol­
dados e guardas vigiavam, castigavam e intervinham à menor falta.84
Os irmãos não se contentavam com orar pelos irmãos conde­
nados às minas, mas os socorriam de várias outras maneiras. A co­
munidade de Roma, muito vigiada, periodicamente atingida por
castigos, enviava recursos para aliviar os irmãos que trabalhavam
nas minas, como atesta Dionísio, bispo de Corinto.85 A igreja de
Roma mantinha em dia o registro dos proscritos. Enviava-lhes ir­
mãos para confortá-los, atenuar de alguma forma o rigor de sua
condição e fazê-los sentir que a fraternidade não era palavra vã,
mas queria afirmar-se nas horas mais dolorosas.
Vítor, bispo de Roma, tinha a lista dos fiéis que trabalhavam
nas minas de ferro da Sardenha. Conseguiu a libertação deles por
intermédio de um sacerdote (em 190), graças à intervenção todo-
poderosa de Márcia, amante do imperador Cômodo; Jacinto, que a
havia criado, levou a carta de clemência ao governador da Sardenha,
o qual libertou os cristãos.86

143
Mais prosaicamente, outros irmãos estavam na prisão por não
terem pago suas dívidas ou seus impostos.87 Na época, o direito
penal era intransigente. Calixto, futuro papa, estava na Sardenha,
condenado às minas, junto com irmãos cristãos, por malversações
financeiras. É a razão pela qual Calixto não figurava na lista de
Vítor. Ele foi, contudo, favorecido pela graça comum. Jacinto
parlamentou bem, e o governador conhecia suas relações na corte.
Os irmãos condenados à prisão e às minas eram carga suple­
mentar para a comunidade, que “penava para economizar o dinhei­
ro necessário para sustentá-los e eventualmente libertá-los".88 Du­
rante a perseguição de Diocleciano, os cristãos condenados às mi­
nhas de cobre de Faeno, quarenta quilômetros ao sul do mar Mor­
to, eram tão numerosos que formaram uma comunidade.89
Outros cristãos eram vítimas de piratas na África e nas costas
do Mediterrâneo. Assim, uma geração mais tarde, no tempo de
Cipriano, a comunidade de Cartago reuniu rapidamente 100.000
sestércios, ou seja, 26.000 francos-ouro, para o resgate das vítimas.90
Desde as origens, a Igreja encorajava os senhores cristãos a li­
bertar seus escravos, sem gravar a caixa comum. Inácio de Antioquia
observava: “Que os escravos não sejam muito impacientes em ser
libertados a expensas da comunidade; isso seria mostrar-se escra­
vos de seus próprios desejos”.91 Para ele, como para o apóstolo Pau­
lo,92 a verdadeira liberdade era a interior. "Se sou escravo, suporto-
o. Se sou livre, não me gabo".93
As concepções marxistas de alienação, especialmente quando
se tratava de condição do escravo, encontravam-se entre os gnósticos,
não na Grande Igreja;94 ela se preocupava com uma visão mais
teologal do que sociológica do homem e estava certa de que a
fraternidade cristã já havia rompido as barreiras mais eficazmente
do que um nivelamento econômico ou social.95 A Igreja tinha tam­
bém consciência de que as condições deste mundo passam e de que
sua tarefa principal era preparar o reino vindouro.
Os problemas da assistência não se punham só em função da
igreja local. Toda comunidade, por definição, era aberta e consciente
de pertencer à Igreja universal, de ser, portanto, solidária das ne­
cessidades e das situações dos irmãos que "peregrinavam” em ou­
tros lugares. A fraternidade entre as igrejas não se exprimia só pela
acolhida e pela troca de cartas de cidade a cidade, de país a país. O

144
apóstolo Paulo já havia forjado a cadeia de solidariedade, realizando
a coleta nas igrejas da missão em favor da Igreja-mãe de Jerusalém.
Desde o tempo de Domiciano, quando uma comunidade era
provada, pilhada, perseguida, as outras vinham em seu socorro.96
Assim, exprimia-se no cotidiano a consciência da catolicidade.
Nenhuma igreja igualava, na caridade, a de Roma, cuja fama
era legendária. Inácio a chama nobremente de “presidente da cari­
dade”, o que se traduz como: aquela que, pela caridade, sempre
mereceu o primeiro lugar.97 O elogio de Dionísio de Corinto não é
menos entusiasta:

Desde o começo escreve ele, é costume entre vós praticar o


bem, de diversos modos, a todos os irmãos e enviar socorros às
numerosas igrejas de cada cidade; vós aliviais a situação dos
indigentes e sustentais os irmãos que estão nas minas, median­
te os recursos que lhes enviais desde o começo.98
Um século mais tarde, o mesmo elogio continuava verdadeiro.
Roma sustentou as comunidades da Síria99 e ajudou a Capadócia100
a resgatar do poder dos bárbaros os prisioneiros cristãos. Ela era a
grande metrópole na qual se realizavam os negócios, na qual o di­
nheiro rolava e se ganhava e se gastava. Testemunha disso é o ar­
mador rico que considerou pequeno o "cheque” de dez milhões de
francos antigos que legou à comunidade.

Os recursos da comunidade
Roma batia o recorde das pessoas assistidas e o dos recursos. A
gestão desses bens, confiada a um diácono e logo ao arcediago, tor­
nava-o a primeira pessoa depois do bispo e seu sucessor normal. Os
recursos romanos representaram em pouco tempo soma igual à de
uma grande paróquia de Paris. Roma não era, porém, toda a cris-
tandade. Em 253, um apelo à comunidade de Cartago em favor dos
irmãos da Numídia reuniu a bela soma de 100.000 sestércios.
Cada comunidade, como toda associação profissional, tinha sua
caixa, alimentada pelas doações dos fiéis. Desde o tempo de são
Paulo os cristãos levavam oferta para a reunião dominical.101 Inicial­
mente essas doações eram postas sobre a mesa da celebração.102 As

145
ofertas in natura, vestes e alimentos, concretizam o compromisso
do cristão de ajudar a comunidade em suas necessidades.
Justino de Roma, em sua primeira Apologia, descreve duas ve­
zes as ofertas realizadas durante a celebração dominical.103

Aqueles que têm bens vêm em socorro dos que estão em ne­
cessidade, e nós nos prestamos assistência mutuamente. Aque­
les que estão na abundância e querem dar, dão livremente, cada
um o que quer. O que é recolhido é entregue ao presidente; ele
socorre os órfãos, as viúvas, os doentes, os indigentes, os prisio­
neiros e os hóspedes estrangeiros; em uma palavra, todos os
necessitados.104
Como judeus e pagãos, os cristãos levavam oferendas ao culto,
não para “serem consumidas inutilmente pelo fogo, como faziam os
outros105 — Deus não precisa delas —, mas para empregá-las em bene­
fício dos mais deserdados”. Purificação e espiritualização do sacrifício
cristão permitem compreender que as ofertas respondem à pedago­
gia de Deus, que ensina ao homem, junto com o universal retomo da
criação a ele, a partilha fraterna dos bens dados a todos e para todos.
Parece que, no século II, a comunidade dispunha de duas espé­
cies de contribuições: as esmolas espontâneas em dinheiro, postas
em um cofre,106 comparadas por Tertuliano às contribuições men­
sais em uso nas associações profissionais, e as ofertas em gêneros,
reunidas pelos diáconos; uma parte do pão e do vinho era tirada para
a celebração, e o resto era destinado aos ministros do culto e aos
pobres. Eis o inventário da rouparia de Cirta (Constantina), provida
pelas doações, em 303: 82 túnicas de mulher, 38 véus, 16 túnicas de
homem, 13 pares de calçados de homem e 47 de mulher.107
O traço característico das ofertas em dinheiro ou em gêneros,
semanais ou mensais, era sua total espontaneidade. Cada um dava
livremente. Alguns cristãos davam até do que lhes era necessário.108
Os mais pobres jejuavam, a fim de levar o fruto do seu jejum e não
ir de mãos vazias.109 Todos queriam afirmar a fraternidade, que ti­
nha necessidade de sinais e de partilha para se exprimir. Os cristãos
experimentavam o sentimento de haver ultrapassado e vencido a
concepção legalista e institucional do Antigo Testamento. A era da
servidão fora sucedida pela era do homem novo, que não oferecia
sob a constrição da lei, mas levado pelo fervor de sua gratidão filial.

146
No século III, a Igreja, mais numerosa e menos generosa, viu-
se forçada a voltar às taxas judaicas das primícias e do dízimo.110
Se Tertuliano compara as ofertas levadas às reuniões cristãs
com as cotizações das associações pagãs, é para ressaltar os con­
trastes.111 As associações tinham uma organização, uma caixa e um
lugar de reunião, às vezes uma capela dedicada a algum deus prote­
tor;112 seus membros se reuniam para fugir ao isolamento ou para
travar relações; sua finalidade era lucrativa e interessada.113
Os cristãos, ao contrário, cultivavam a gratuidade. O direito de
entrada muitas vezes considerável nas associações, não existia en­
tre os cristãos: “As coisas de Deus não são adquiridas mediante di­
nheiro. A religião cristã não está em leilão!”114 As cotizações eram
livres. Entre os pagãos, o dinheiro aproximava os interesses; aqui
servia “para dar pão aos pobres, enterrá-los, educar os órfãos dos
dois sexos e para socorrer os velhos”.115 Isso as associações pagãs
nunca realizaram; essa iniciativa é do cristianismo.
A comunidade recebia às vezes ofertas excepcionais. Alguns
convertidos realizavam doações por ocasião de seu batismo,116 mas
a Tradição apostólica111 reduziu a proporções modestas os presen­
tes dados ao batizante, porque o batismo não pode ser comprado.
Os grandes acontecimentos da vida, por exemplo, um casamento,
eram também marcados por oferta, no momento da celebração
x • 118
eucanstica.
As necessidades excepcionais, como perseguições e calamida­
des, provocavam movimento de solidariedade e generosidade es­
pontânea. A gesta dos mártires contém muitos exemplos principal­
mente de cristãs ricas, que despenderam sua fortuna para socorrer
os confessores da fé. Em 253, os bispos da Numídia apelaram para
Cipriano, de Cartago, a fim de poderem resgatar os cristãos, as vir­
gens e as crianças raptados pelos berberes.119
O valor dos recursos era apenas o da fraternidade, que eles
exprimiam. A Igreja recusava qualquer oferta que fosse produto
de ganho ou de profissão ilícitos.120 Ao axioma segundo o qual o
dinheiro não tem odor, os cristãos retorquiam: “É preferível mor­
rer na miséria a aceitar as doações dos ímpios e dos pecadores!”
Foi gesto de grandeza o dos cristãos de Roma ao restituírem a
Marcião, reincidente na heresia, o dinheiro que ele dera à comu­
nidade.

147
As iniciativas da caridade e da equalização entre os membros
de cada comunidade podem dar a impressão da solução "artesanal”
das desigualdades e dos conflitos. Seu valor reside principalmente
em sua motivação. Para a antiguidade cristã, evangelização e dia-
conia (serviço) eram inseparáveis.121 O culto de Deus bem compre­
endido exigia o serviço ao homem concreto, na totalidade de seu
ser, de suas necessidades e de suas aspirações. “Imitai a eqüidade
de Deus, e ninguém será pobre’’,122 diz um texto cristão da época.
A partilha encontrava sua motivação na assembléia eucarística,
na qual ricos e pobres, senhores e escravos, devedores de modo igual,
“mendigos à porta de Deus”,123 eram agraciados e saciados. A Igreja
era a eclusa de Deus. "Verdadeiramente rico é aquele que vem em
socorro dos outros e imita Deus, que dá o que tem; foi ele que nos
deu tudo o que temos. Lembrai-vos, ó ricos, que recebestes mais
que o necessário, a fim de reparti-lo com os necessitados”.124
Aquele que oferece oferece o que recebeu, aquele que recebe
recebe da munificência de Deus. Longe de gloriar-se, o rico toma
consciência que também ele é devedor; e o pobre e o desprovido
aprendem, na economia da salvação, que Deus olha pelos mais aban­
donados. Em vez de dar a aparecer as diferenças, a oferta assim
compreendida é o cimento que sela as "pedras vivas”, a Igreja, e
toma-a a epifania de Deus.

148
CAPÍTULO III

RETRATOS DE FAMÍLIA

O fervor da vida fraterna e a qualidade da vida cristã — deve­


mos agora personalizá-los, a fim de encontrarmos cristãos concre­
tos, clérigos e leigos, homens e mulheres, e compreender as palpita­
ções da vida em seres de carne e sangue, visitados e transformados
pela graça. Eles eram o fermento e a “marca” da Igreja dispersa.

Um bispo mártir: Inácio de Antioquia1


Inácio foi bispo de Antioquia no começo do século II, quando
a Igreja já existia há cinqüenta anos. De Paulo a Inácio há a mesma
distância que entre um missionário adaptando-se ao indianismo e
um índio convertido refletindo sobre o cristianismo. Vindo do pa­
ganismo, Inácio tinha sido formado pelos filósofos. Suas letras eram
de um grego para o qual a língua grega era a expressão de sua alma
e de sua sensibilidade, de sua cultura e de seu pensamento.
Sua língua e suas imagens permitiam-lhe traduzir suas aspira­
ções místicas em fórmulas que um discípulo de Platão não desa­
provaria. Exprimindo o amor mais puro a Cristo, a língua e o pen­
samento gregos receberam sua consagração suprema. Agora eles
serviam ao Senhor novo, que batizara com seu sangue o mundo da
gentilidade e todos os valores autênticos.
O bispo de Antioquia, ocupado com seu rebanho e com seu
martírio, não deixava de preocupar-se com as outras igrejas que
passavam por dificuldades. Ele viveu a colegialidade episcopal com
tato e medida, sem se esquecer de que era servo de Jesus Cristo.
Sob o imperador Trajano, o bispo foi preso, julgado e condena­
do às feras. Tomou o caminho dos confessores e dos apóstolos, para
ser executado em Roma, que reservava a si as vítimas mais prestigio-

149
sas. Seu desejo de martírio não o impediu de estigmatizar a cruel­
dade imperial - foram mandados “dez leopardos” para vigiá-lo — e
as durezas que ele sofreu: sua benevolência era paga com o mal.
Durante a viagem, expressou sua gratidão às comunidades que o
saudaram; depois, dirigiu-se a Roma, aonde desejava chegar rapi­
damente. Pediu aos romanos que não fizessem nada para poupar-
lhe o martírio: “Eu sou o trigo de Deus. Devo ser moído pelos den­
tes das feras, a fim de tomar-me pão imaculado de Cristo".2
Conhecemos o homem só pelas suas sete cartas, os únicos do­
cumentos que nos permitem penetrar no “jardim fechado de sua
personalidade”. Nelas “o estilo é o homem”. Que homem e que co­
ração! Através das frases curtas e densas, de estilo sincopado e duro,
corre um rio de fogo. Nenhuma ênfase, nenhuma literatura; apenas
um homem excepcional, ardente, apaixonado, heróico com modés­
tia, benevolente com lucidez, com dom inato de simpatia, como o
apóstolo Paulo, e doutrina segura, clara, apoiando ética exigente.
Inácio tinha a percepção do homem e o respeito por cada um,
ainda que fosse herege. A dificuldade não era amá-los todos, mas
amar cada um, e em primeiro lugar o pequeno, o fraco, o escravo,
aquele que nos fere ou nos põe a sofrer, como ele escreveu e reco­
mendou a Policarpo.3 Sabia amar os homens sem demagogia e cor­
rigi-los sem humilhá-los. Aplicava com predileção a Cristo4 a ima­
gem do médico; ela convém perfeitamente a ele próprio. Ele servia
à verdade da fé quando ela era desconfortável e podia atrair sobre
ele incompreensões e até hostilidade. A afeição que suscitava era,
em primeiro lugar, uma homenagem. “Essa bigorna sob a marreta”
não era homem de concessões.
Conseguiu o domínio sobre si próprio à força de paciência —
palavra que lhe era cara e o caracterizava. Esse fogoso se tomou
brando, de tanto triunfar da irritação, que ele reprovava em si pró­
prio. Como ele se conhecia bem quando escreveu: “Imponho a mim
mesmo uma medida, para não me perder pela minha jactância”.5 À
jactância opôs a humildade; às blasfêmias, a invocação; aos erros, a
firmeza da fé, e à arrogância, uma urbanidade sem falhas.
O amadurecimento mudou sua lucidez em vigilância, sua força
em persuasão, sua caridade em delicadeza. “Não vos dou ordens”,6
escreveu. Preferia convencer. Não agia com precipitação e sabia espe­
rar com paciência. Nada lhe escapou na comunidade de Esmima.
150
Quando passou por ela, não fez nenhuma crítica; contentou-se com
observar. Aproveitou sua carta de agradecimento7 para traduzir suas
observações em humildes sugestões. Depois de sua partida definiti­
va, sua presença e seu olhar não humilhariam ninguém.
A responsabilidade pelos outros não o deixava perder a lucidez
sobre si próprio. Ele se conhecia. Sabia-se acessível à lisonja e leva­
do à irritação. Na via triunfal que o conduzia a Roma, cercado de
honras, confessava com humildade: "Estou em perigo”.8 As demons­
trações de estima não o perturbavam, mas despertavam sua
circunspecção.
De todas as cartas que escreveu, a que enviou aos romanos é a
que mais fielmente traduz a paixão mística que o abrasava. As pala­
vras se atropelam para exprimir o frêmito e o entusiasmo que o sacu­
diam. A chama provocava a linguagem e a tomava incandescente.
Que importavam as palavras? Para ele o que contava era unir-se a
seu Cristo e Deus. “Quão glorioso é ser um sol poente, longe do
mundo, na direção de Deus. Possa eu levantar-me em sua presen­
ça”.9 Para Inácio, não se tratava simplesmente da espera de uma fé
abstrata, mas também de uma paixão que lhe apertava a garganta;
de um amor que o devorava, e de um ardor que não se podia com­
parar com os de nossos corações de carne. “Em mim não há mais
fogo para a matéria, mas só uma água viva, que murmura dentro de
mim e me diz: Vem para o Pai”.10
Quem lê a carta aos romanos sem idéias preconcebidas encon­
tra nela um dos testemunhos mais comoventes da fé, o grito do
coração que não pode enganar nem enganar-se, que comove por­
que é verdadeiro. À primeira vista, o homem nos parece de outra
época. Basta-nos sacudir um pouco as cinzas; essas páginas conser­
vam o fogo que as queimava.

O filósofo Justino
De todos os filósofos cristãos do século II, Justino é, sem dúvi­
da, o que nos toca mais profundamente. Esse leigo, esse intelectual
ilustrou o diálogo que se iniciava entre a fé e a filosofia, entre cris­
tãos e judeus, entre o Oriente, onde ele nascera, e o Ocidente, onde
abriu uma escola (em Roma), depois de muitas etapas.
151
Sua vida foi uma longa procura da verdade. De sua obra, redigida
com rudeza e sem arte, desprende-se testemunho cujo valor cres­
ceu com os séculos. Para esse filósofo, o cristianismo era, em pri­
meiro lugar, não uma doutrina, nem um sistema, mas uma pessoa,
o Verbo encarnado e crucificado em Jesus, que lhe revelou o misté­
rio de Deus.
A filosofia não foi, para ele, curiosidade do espírito, mas procu­
ra da sabedoria. Ele havia pesquisado, praticado e amado o pensa­
mento dos filósofos de todas as escolas; conhecia-o por dentro, ten­
do sempre procurado a verdade para vivê-la. Havia viajado, interro­
gado e sofrido para encontrá-la. É por isso, sem dúvida, que desco­
brimos atrás de sua descoberta um despojamento que valoriza su­
mamente seu testemunho. Esse filósofo do ano 150 está mais próxi­
mo de nós do que muitos pensadores modernos.
Justino nasceu em Nablus, cidade romana e pagã, construída
no local da antiga Sicar, não longe do poço de Jacó, onde Jesus
anunciou o culto novo à samaritana. Nablus era cidade nova, na
qual floresciam a romãzeira e o limoeiro, situada entre duas coli­
nas e na metade do caminho que vai da fértil Galiléia a Jerusalém.
Os pais de Justino eram colonos abastados, talvez daqueles ve­
teranos que haviam recebido terras do Império, o que explica a re­
tidão de caráter do filósofo, seu gosto pela exatidão histórica e as
lacunas de sua argumentação. Ele não tinha a flexibilidade nem a
dialética sutil de um heleno. Vivera em contato com judeus e sama-
ritanos.
Natureza nobre, fascinado pelo absoluto, ainda jovem, teve ele
gosto pela filosofia, no sentido que lhe era dado na época: não espe­
culação de diletante, mas procura da sabedoria que leva a Deus. Ela
o conduziu, de etapa em etapa, até o limiar da fé. Ele próprio nos
conta, no Diálogo com o judeu Trifão,11 o longo itinerário de sua
procura, sem que se possa distinguir entre o artifício literário e a
autobiografia. Em Nablus, seguiu as lições de um estóico, depois,
de um discípulo de Aristóteles, que deixou logo por um seguidor de
Platão. Com candura esperava ele que a filosofia de Platão lhe per­
mitisse "ver Deus imediatamente".
Retirado na solidão, Justino errava pelas praias, meditando
sobre a visão de Deus, sem que sua inquietação se acalmasse, quan­
do encontrou um velho misterioso, o qual dissipou suas ilusões.
152
Mostrou-lhe que a alma humana não pode atingir Deus por seus
próprios meios; só o cristianismo era a filosofia verdadeira, a que
levava a termo todas as verdades parciais: “Platão preparando para
o cristianismo”, disse Pascal.
Instante inesquecível, que marca uma data na história cristã e
que Péguy se comprazerá em lembrar, aquele em que se encontram a
alma platônica e a alma cristã. A Igreja acolheu Justino e, com ele,
Platão. Tomando-se cristão, pelo ano 130, o filósofo, longe de aban­
donar a filosofia, afirma ter encontrado no cristianismo a única filo­
sofia segura e que satisfazia todos os seus desejos. Andava sempre
com o manto dos filósofos, que, para ele, era título de nobreza.
Justino, que sabia ver o que havia de verdade em todos os siste­
mas, dizia que os filósofos eram cristãos sem o saber. Justificava
essa afirmação com o argumento tirado da apologética judaica, se­
gundo a qual os pensadores deviam o melhor de sua doutrina aos
livros de Moisés. Para ele, o Verbo de Deus ilumina todos os ho­
mens, o que explica as parcelas de verdade que se encontram nos
filósofos.12 Os cristãos não precisam invejá-los, porque têm o Verbo
de Deus, o qual guia não só a história de Israel, mas também toda
procura sincera de Deus. Essa visão generosa da história, apesar da
inabilidade de algumas formulações, encerra intuição de gênio, re­
tomada depois de Irineu de Lião, de santo Agostinho a são Boaven-
tura e, mais perto de nós, por Maurice Blondel. Ela está muito pró­
xima de nossa problemática de hoje.
Justino não era um literato nem um joalheiro da língua, preo-
cupava-se apenas com a doutrina e a autenticidade do testemunho.
O homem nos impressiona mais que sua obra, a novidade de seu
esforço teológico vale mais que sua criação. Atrás de sua tentativa,
encontramos o testemunho de um filósofo empenhado e a tradução
de uma descoberta e de uma conversão. Os argumentos que aduz
têm uma história, a sua. As tentações contra as quais previne, ele as
conheceu. Para quem consente em seguir Justino até aí, o testemu­
nho de sua obra conserva todo o seu valor.
“Ninguém acreditou em Sócrates ao ponto de morrer pelo que
ele ensinou. Mas por Cristo, artesãos e até ignorantes desprezaram
o medo e a morte”.13 Essas nobres palavras, que poderiamos crer de
Pascal, foram dirigidas por Justino ao senado de Roma. E ele tam­
bém aceita morrer pela fé que recebera e transmitira. Na hora de

153
seu martírio, esse filósofo cristão não estava sozinho, mas cercado
de seus discípulos; os atos nos citam seis.14 Essa presença, essa fi­
delidade até na morte eram a homenagem mais comovente que se
podería prestar a esse mestre de sabedoria.
Por isso nesse homem que viveu há dezoito séculos distingui-
mos o eco de nossas procuras, de nossas objeções e de nossas certe­
zas. Por sua abertura de alma, por sua vontade de diálogo e por sua
capacidade de acolher, ele é nosso contemporâneo.

Blandina, a escrava de Lião


Ela se chamava Blandina. De porte pequeno e de corpo frágil,
tinha ela uma alma delicada. Era pessoa meiga como seu nome,
que era latino, mas ela podia ser de origem esmimense ou frigia.
Era escrava, o que significa que não tinha existência social. Uma
mulher entre os dois milhões de seres que sofriam a alienação em
sua carne e em sua honra; até os laços de família lhes eram proibi­
dos. Para ela, como para tantos outros, não havia nenhuma espe­
rança de viver como todo mundo, nem de escolher quem ela ama­
va. Todo sonho de jovem se chocava contra as barreiras da condi­
ção servil. Nada podia apagar de sua mão a queimadura que lhe
lembrava dia e noite que ela era objeto, e não uma pessoa, que ela
pertencia a outrem e não a si própria.
Um raio de luz iluminava sua existência: ela estava a serviço de
rica senhora de Lião cuja verdadeira riqueza eram sua delicadeza e
sua bondade para com os mais humildes. Ela era cristã; sua fé lhe
ensinara a maneira de transformar a ordem social injusta, amando
os outros, a começar pelos menos providos de bens, e a encontrar
no menor deles a ternura do Pai dos céus, que vela sobre ele.
A rica lionesa não podia guardar em si a alegria de sua desco­
berta. A quem falar? A quem comunicar sua fé toda nova? Tinha ela
a seu serviço uma escrava débil, mas cativante, Blandina. Contou a
ela a grande nova que mudara sua vida. Para a escrava foi um des­
lumbramento. Pareceu-lhe ouvir cair suas cadeias, quando aquela
que, até então tinha sobre ela direito de vida e de morte, inespera­
damente apareceu-lhe como uma grande irmã, como uma mãe
amada, colocada por Deus em seu caminho.
154
Blandina foi introduzida na comunidade dos irmãos e das ir­
mãs de Lião por aquela cujo nome a história nos calou. Na comuni­
dade ela encontrou o nobre Atalo, Alexandre, o médico vindo da
Frigia e todos os outros, os quais impressionaram sua timidez. Seu
frescor, sua espontaneidade e a força de seu fervor rapidamente
conquistaram todos aqueles que, mais providos de bens e de posi­
ção social, compreenderam a qualidade dessa escrava. Basta ler a
carta da comunidade para ver o lugar que ela passara a ocupar.15
Todos a cercaram com sua presença cálida, quando o velho bispo
Potino lhe administrou o batismo. Aquela que a levara à fé foi, pro­
vavelmente, a garantia de sua fidelidade.
A vida cotidiana retomou seu curso. O trabalho não mudou,
mas se tomou mais leve. Blandina não deixava transparecer nada
da mudança e demonstrava à sua senhora o mesmo respeito, pres­
tando-lhe os mesmos serviços. Mas suas relações se haviam modifi­
cado em profundidade e em significação. Onde as diferenças de
condição se chocavam a fé teceu laços invisíveis. Mas essa festa de
todos os dias não durou.
Aproximavam-se as festividades que, todos os anos, no mês de
agosto, reuniam, na confluência dos dois rios, as três Gálias, repre­
sentadas por seus delegados. A multidão acorria de todas as provín­
cias. Na cidade em festa abria-se um grande mercado, espécie de
feira universal. Nunca as autoridades tiveram tanto cuidado em vi­
giar as emoções da plebe. Fora proibida a presença de cristãos em
lugares públicos. A presença dos presunçosos bastava para desen­
cadear tumulto. Mas o movimento popular não se deteve nisso. Os
cristãos foram espiados em suas casas e procurados pela polícia; os
escravos pagãos foram submetidos à tortura para que denuncias­
sem seus senhores cristãos. Sob a pressão dos soldados, eles os acu­
saram de todos os crimes que passavam pela imaginação popular.
As autoridades, cúmplices, fingiram ignorar o rescrito de Trajano.
Blandina foi presa com sua senhora, a Anônima, que se esque­
ceu de sua própria sorte para só pensar em sua escrava, tão frágil,
pensava ela, que seria incapaz de afirmar sua fé em público. Blandina
foi de energia e coragem prodigiosas. Condenada aos suplícios, sua
força esgotou e cansou os carrascos. Eles se revezavam o dia todo e,
à noite, exaustos, admiravam-se de ver corpo tão ferido ainda respi-

155
Ela voltou para a atmosfera irrespirável do cárcere. A presença
dos irmãos e sua delicadeza sustentavam o mártir. O descanso du­
rou pouco. Novos suplícios esperavam os confessores da fé. Blandina
foi suspensa em um poste, sobre um estrado, exposta nua aos olha­
res dos espectadores, mais rapaces que as feras, para ser a presa
delas.
Os irmãos só tinham olhos para ela. Um olhar lançado sobre
ela enchia-os de orgulho e coragem. Miúda, frágil, desprezada, ela
era não só o símbolo da coragem, mas também como que a presen­
ça de Cristo no meio deles. "Os irmãos, conta a carta, pensavam ver
em sua irmã o Cristo crucificado por eles’’.17 Nenhuma fera tocou
Blandina, como se fossem mais capazes de humanidade que os ho­
mens. A populaça não teve nenhum movimento de piedade.
As festas duraram vários dias. Aos jogos dos gladiadores e à
caça ao homem, acossado por causa de sua fé, sucediam-se os con­
cursos de eloqüência, em línguas grega e latina.18 Todas as classes
demonstravam seu prazer, dos mais refinados aos camponeses e
aos proletários. Todos os dias, os combates de gladiadores eram
seguidos dos suplícios dos cristãos, introduzidos dois a dois, como
os gradiadores, espetáculo barato oferecido ao povo.
Blandina e Pôntico foram reservados para o último dia. Teste­
munhas das provações de seus irmãos e irmãs, nada os abalava. A
multidão, tomada de histeria coletiva — como nos exemplos recen­
tes que a história nos forneceu —, irritada por tanta resistência,
não ouviu nem o pudor nem a piedade.
A adolescente Blandina entregou sua alma no meio das tortu­
ras. Ela foi a última no último dia das festas, oferecendo-se por si
mesma aos tormentos. Primeiro, a flagelação, que dilacerou seus
ombros; em seguida, exposta às feras, foi apenas mordida. Depois a
cadeira de fogo. Finalmente, encerrada em uma rede, foi atirada
para o ar por um touro enfurecido, caindo muito ferida. Como que
insensível, continuou ela o entretenimento com aquele que seu co­
ração havia escolhido e que a esperava. Os carrascos, cansados,
degolaram-na. Os pagãos, talvez envergonhados de sua barbárie,
diziam: “Nunca vimos mulher sofrer tanto”.19
“A serva Blandina mostrou que havia sido operada uma revolu­
ção. A verdadeira emancipação do escravo, a emancipação pelo
heroísmo, em grande parte, foi obra sua”.20 Ela é a atração da nar-
156
rativa. Os martirológios antigos, pondo seu nome no começo da
lista, expressam a mesma homenagem. Sua coragem e seu martírio
realçam a condição da mulher e a do escravo. Testemunham a no­
breza do coração.
Longe de sufocar a nova religião, a perseguição de 177 a propa­
gou por todo o solo gaulês e fora dele. O artífice dessa ação
evangelizadora, herdeiro do velho bispo Potino, morto na tormen­
ta, foi Irineu.

Um bispo e um missionário: Irineu de Lião


Irineu unia em sua pessoa qualidades e tendências que, geral­
mente, não estão juntas: a inflexibilidade da doutrina, a flexibilida­
de nas relações humanas, a intrepidez diante das afirmações
gnósticas e a mansidão com as pessoas prontas ao arrependimento.
Polemista vigoroso, mordaz, irônico, ele era sempre pastor; a luta
leal não o impedia de respeitar aquele que ele combatia, ainda que
fosse herege, nem de procurar a paz quando as verdades essenciais
estavam preservadas. Era, para retomarmos as palavras de Juliano,
“o homem de Estado que entrara para a Cidade de Deus”.
Na perseguição de 177, Irineu estava na força da idade: inteli­
gente, discreto, ponderado, zeloso do Evangelho, pronto para es­
crever e combater e atento em proteger e propagar a fé. Foi ele que
a comunidade escolheu para dirigir a igreja de Lião e de Viena.
Quem era esse jovem bispo? De onde viera? Como muitos de
seus fiéis, ele viera da Frigia, talvez de Esmima, cuja comunidade
cristã conhecia e onde freqüentou o velho bispo Policarpo, como
ele próprio conta na carta a Florino, carta essa que nos foi conser­
vada pelo historiador Eusébio.21
Florino havia caído na heresia. Irineu se esforça para reconduzi-
lo à ortodoxia.

Eu te vi, escreve ele, quando eu ainda era criança, na Ásia


inferior, junto de Policarpo; tinhas situação brilhante na corte
imperial e procuravas ser bem visto por ela. Lembro-me me­
lhor desses acontecimentos de outrora do que dos de hoje. Com
efeito, o que aprendemos na infância se desenvolve ao mesmo

157
tempo que a alma, formando uma só coisa com ela. Posso dizer-
te ainda o lugar em que se sentava, para falar conosco, o bem-
aventurado Policarpo, suas idas e vindas, seu modo de vida, sua
aparência, as palavras que dirigia à multidão, como contava suas
relações com João e com os outros que tinham visto o Senhor,
como referia suas palavras, o que ele havia aprendido a respeito
do Senhor, de seus milagres e de seu ensinamento, em uma pala­
vra, como Policarpo recebeu a tradição daqueles que tinham vis­
to com seus olhos o Verbo da vida. Em tudo o que contava, esta­
va de acordo com as Escrituras. Eu ouvia isso atentamente, gra­
ças ao favor que Deus quis fazer-me, anotava-o, sem recorrer ao
papel, e, pela graça de Deus, não cesso de ruminá-lo fielmente.

Apenas uma geração separava Irineu do apóstolo João. Sua


juventude se banhara na recordação que as testemunhas das ori­
gens cristãs cultivavam com piedade; essa recordação marcou-o por
toda a vida. Os fiéis de Lião, que o enviaram em missão a Roma,
destacaram essa fidelidade, que o caracterizava: “Nós o temos em
grande estima, escreveram eles, por causa de seu zelo pelo testa­
mento de Cristo”.22
Como bispo de Lião, Irineu desdobrou sua ação em duas fren­
tes: consagrou-se à população gaulesa, principalmente dos campos,
cuja língua "bárbara” conhecia e falava. Levou a evangelização para
o norte: Dijon, Langres, Besançon e até às margens do Reno. A pro­
liferação dos gnósticos nas Gálias provocou de sua parte ação lite­
rária e teológica para defender a integridade da mensagem cristã,
contra as intenções gnósticas, que queriam atomizá-la. De certa
forma, o bispo de Lião era a consciência da Igreja em momento
crucial de sua história. Contestava nos chefes de escola sua autori­
dade. Eles não ensinavam a verdade recebida, mas as elucubrações
de seu espírito. Já a Igreja e os bispos recebem sua autoridade não
de seu valor pessoal, mas do cargo no qual foram investidos e de
sua fidelidade à tradição, à fé transmitida.
Suas obras conservadas nos permitem julgá-lo melhor como
homem. Sua linguagem é fluente, conhece os autores pagãos e os
filósofos, às vezes cita Homero. Mas desconfia do pensamento pro­
fano, que não é a pátria de sua alma; vê nele o lixo da gnose, cuja
ação devastadora avalia melhor que ninguém.

158
Irineu não só era de grande probidade intelectual — estudava
os textos dos gnósticos — como também respeitava a todos, ainda
que adversários. Na refutação, do gnosticismo, não deixava interfe­
rir nem paixão, nem agressividade. Quando muito, punha uma pi­
tada de humor, que respirava saúde e equilíbrio. Sabia distinguir o
homem de seu erro. Até na controvérsia continuava pastor: os
gnósticos também eram suas ovelhas. Não escreveu ele: “Não há
Deus sem bondade”? Do pastor tinha ele a riqueza doutrinai, o sen­
so da medida e a atenção às pessoas. Alguma coisa de joanino se
desprendia dele: um calor, uma paixão contida, um fervor que se
exprimia menos pela eloqüência do que pela ação, o senso do es­
sencial e a perspicácia, que descobria a gravidade das primeiras
fendas no edifício.
Irineu escrevia com simplicidade e correção. Às vezes, tomado
pela emoção, seu tom se elevava até a eloqüência. Eis como termi­
na o comentário do capítulo quarto dos Atos dos Apóstolos:
Eis a voz da Igreja, voz da qual a Igreja toda recebeu sua
origem; eis a voz da metrópole dos cidadãos da Nova Aliança;
eis as vozes dos apóstolos, eis a voz dos discípulos do Senhor,
desses homens verdadeiramente perfeitos, que receberam a
perfeição do Espírito.23
O homem interior é mais difícil de perceber. Ele era daquela
Ásia na qual floresciam os carismas do Espírito. Como bispo, viveu
no clima espiritual no qual a perspectiva do martírio favorecia a
exaltação mística. Conheceu os rostos de Potino, Alexandre e
Blandina, que haviam confessado a fé em Lião. Foi-lhe atribuída a
carta aos irmãos da Frigia, contando a epopéia maravilhosa desses
mártires.24 Ele tinha tendência para as manifestações extraordiná­
rias do Espírito. Esse cristão ponderado era milenarista: acreditava
no reino próximo do Senhor, o qual duraria mil anos.
No Adversus haereses, a oração aflora no texto.25 Ela é como o
jorrar espontâneo de sua alma, como uma confidência que lhe es­
capa. Sua discrição dissimula a brasa sob a cinza. Seus arroubos
místicos jorram de uma fé robusta, que se exprime diante de Deus.
A provação e a ameaça se distanciam quando ele se volta para o
Deus de sua vida. Seu livro de refutação foi escrito na presença de
seu Senhor como uma profissão de fé no Deus de Abraão e no Deus

159
de Jesus Cristo. Ele se descreveu quando definiu o cristão como “a
glória viva de Deus”.26
Hoje santo Irineu volta a ser atual. E é de justiça. São poucos
os escritores dos primeiros séculos cristãos que envelheceram me­
nos e cujas qualidades são mais realçadas pelo tempo. Não é ele
como a ânfora da qual ele fala, impregnada do perfume que contém?
Poucos teólogos, mesmo de data mais recente, esclarecem melhor os
problemas maiores que nosso tempo submete a nossa reflexão. Não
que ele se preocupasse com responder a eles, mas, sim, que seu pen­
samento estimula nossa reflexão e traça uma linha.
Seria fácil multiplicar os exemplos — quer da teologia da histó­
ria, quer da antropologia cristã — para demonstrarmos a riqueza
de seu pensamento e as perspectivas que ele abre à reflexão. As
idéias que defendeu impuseram-se a toda a Igreja. Seus pontos de
vista sobre a história figuram como antecipação.
O que impressiona em Irineu, como, mais perto de nós, em
Newman, é a unidade conseguida entre a pessoa e a doutrina. O que
reduz é a qualidade humana de sua fé e sua caridade com o herege,
que ele procura não tanto convencer de erro quanto reconduzir à
verdade. Ele é também o mestre do diálogo ecumênico, em sua au­
tenticidade.
Irineu é, ao mesmo tempo, profeta do passado e profeta do
futuro. O enraizamento na verdade recebida permitiu-lhe todas as
audácias e produziu as intuições teológicas das quais ainda vive­
mos. Para nosso tempo, que põe tudo novamente em questão, sen­
sível ao que é autêntico e soa como verdadeiro, ele é, talvez acima
de tudo, o profeta do presente.

Uma jovem mãe da África: Perpétua


O imperador Sétimo Severo, que se situa entre o século II e o
III, endurecera a posição do Estado perante a propaganda cristã.
Foi responsável pelo martírio de Potamiano e Basílides em
Alexandria, e de Felicidade e Perpétua em Cartago. Perpétua, nasci­
da, sem dúvida, no ano em que morreram os primeiros mártires
africanos, em Scili, pertence ainda ao século II. Os documentos que
nos restam traçam dela um retrato vigoroso.27

160
Funcionários da África, na cidade de Tuburbo (hoje Teburba),
quarenta e quatro quilômetros a oeste de Cartago, prenderam al­
guns cristãos, acusados de haverem violado o edito imperial. Eram
todos jovens, como a própria comunidade; vários ainda eram
catecúmenos. A jovem igreja os recrutara em meios muito diferen­
tes: Felicidade e Revocato eram de condição humilde; Úrbia Perpé­
tua pertencia a uma das grandes famílias da cidade.
Os pais de Perpétua tinham-lhe dado formação brilhante. Du­
rante o processo, seu pai não ocultou que ela sempre fora sua prefe­
rida; ela era sua única filha. Toda a cidade ainda falava do casa­
mento brilhante que a ligara à aristocracia local. Curiosamente os
Atos nunca falam de seu marido.
Na prisão, sem dúvida vigiados na casa de um magistrado, os
acusados, com a recepção do batismo, agravam seu caso. A jovem
mulher, que podería ser tida como exaltada e dada ao maravilhoso,
anota simplesmente: “O Espírito Santo me inspirou que nada pe­
disse à água santa, a não ser a força de resistir em minha carne”.28
Estamos longe da arrogância montanista.
Uma vez batizados, os detentos caem sob a jurisdição pro-
consular e se vêem apanhados em processo capital. Saturo, o evan-
gelizador do grupo, denuncia-se e se junta a ele, para partilhar de
sua sorte como eles tinham partilhado de sua fé. São enviados to­
dos a Cartago, a uma prisão anexa ao palácio proconsular, nas encos­
tas de Birsa. Temos o diário do cativeiro de Perpétua, no qual a
narração dos acontecimentos e o registro das impressões pessoais
mostra sua personalidade em alto relevo.
Ela era jovem e bela; sua nobreza natural inspirava respeito,
antes da admiração. Até na arena, seu olhar "forçava os espectado­
res a baixar os olhos”.29 Temperamento jovial, natureza sensível e
afetuosa, animadora de seu meio, ela era delicada e risonha: “Fui
sempre alegre, registra ela. Serei mais alegre ainda na outra vida".30
Perpétua nascera para a felicidade, para a alegria de viver e para
comunicar sua alegria. Mas era capaz também de decisões heróicas
e de firmeza irreversível, quando a fidelidade a Deus a opunha à
sua família.
Apenas batizada, ela já aspira ao martírio. Todos os seus paren­
tes se põem contra sua resolução: sua mãe, seu irmão, principal­
mente seu pai, pagão inveterado, e o pequeno ser que ainda não

161
falava, mas cuja existência deveria detê-la, que ela amamentou até
o fim e que iluminou as longas jornadas de seu cativeiro.
A prisão expôs a cruel provação sua sensibilidade de mulher
que conhecera o luxo. Ela anota em seu diário, no primeiro dia:
“Dia doloroso”.31 Sofre com o calor sufocante, com os odores acres
e com a promiscuidade da prisão. Ademais, cristãos e cristãs são
importunados pelos soldados, que procuram extorquir-lhes dinhei­
ro. “Mas, Perpétua,32 acima de tudo eu era devorada pela inquieta­
ção, por causa de meu filho”.
Depois de alguns dias, escreve ela, "a prisão se tomou repenti­
namente para mim como um palácio, e eu me encontrava melhor
do que em qualquer outro lugar”.33 Os diáconos da comunidade de
Cartago levavam ajuda; chegaram a dar dinheiro aos carcereiros
para conseguirem abrandamentos. Os parentes de Perpétua iam vê-
la; o mais importante é que lhe levaram seu filho, que ela continua­
va a amamentar regularmente.
Generosa até o heroísmo, sua firmeza não diminuiu sua sensi­
bilidade, muito ao contrário. Ela continuou a amar com a mesma
espontaneidade, com a mesma afeição tema os seus, que ela via
sofrer e que queria socorrer. Sofrer não é nada, mas fazer sofrer as
pessoas amadas é um suplício. Sua fé não mudou seu coração, mas
o enriqueceu. Se ela se desolava, vendo sua família triste e abatida,
consolava-se, pensando que os seus acabariam compreendendo sua
decisão e compartilhando de sua esperança. Um de seus irmãos já
era catecúmeno. Não obstante, permaneceu dividida entre sua pie­
dade filial, seu amor maternal e seu desejo de martírio, que sua fé
permitira florescer em seu coração. Ela não menciona seu marido
nem uma vez.
Na prisão, o primeiro pensamento foi para o filho. Depois que
pôde recebê-lo e conservá-lo consigo, sua alegria chegou ao auge. O
amor materno era o ponto vulnerável desse grande coração tomado
heróico pelo poder da graça. E é por aí que os seus atacariam sua
resolução. "Olha para teu filho, que não poderá viver sem ti”,34 ob­
jeta-lhe seu pai. A cena se repete em pleno tribunal. “Meu pai, conta
Perpétua, apareceu imediatamente com meu filho; puxou-me de
lado e me disse em tom suplicante: 'Tem piedade de teu filho”'. O
magistrado, visivelmente comovido, mostrou-se paternal e a exor­
tou: “Poupa teu filho”. A jovem mulher permaneceu inflexível.35
162
De volta à prisão, ela pensa no filho; pede ao diácono que o leve
a ela. “Mas meu pai, anota ela, recusou-se a entregá-lo. Pela vonta­
de de Deus, meu filho não pediu mais os seios, e meu leite desapa­
receu. Assim, cessaram as inquietações a respeito de meu filho e as
dores de meus seios”.36 Ela foi mulher e mãe até nas situações mais
heróicas. Deus parecia vir em socorro da mãe, para que ela vences­
se sua sensibilidade materna.
A luta de Perpétua com seu pai não foi menos dramática. Ela o
amava e se sabia amada por ele. Esse notável de Tuburbo se sentia
ofendido em sua honorabilidade e ferido em sua ternura pela reso­
lução de sua filha, que ele tomava por obstinação e loucura.
Sua ofensiva começou desde a prisão preventiva, em Tuburbo.
Perpétua escreve:
Em sua ternura ele se esforçava para abalar minha fé.
“Pai, disse-lhe eu, vês aquele vaso, aquela bilha e os outros
objetos?
— Vejo-os, disse ele.
— Pode-se dar a eles nome diferente do que eles têm?
— Não, respondeu ele.
— Eu também só posso ter meu nome verdadeiro: cristã”.37
O pai não se deu por vencido. Jogou com todos os sentimentos,
ora áspero, ora temo, irritado ou desesperado. Perpétua ficou tão
esgotada que “deu graças a Deus e alegrou-se com sua ausência”,38
que durou alguns dias.
Na prisão de Cartago, não tendo mais argumentos, o pai se tor­
nou patético. Apelou à ternura e às recordações de família:
Minha filha, tem piedade de meus cabelos brancos. Tem pie­
dade de teu pai, se ainda sou digno de que me chames de pai.
Se te criei com minhas mãos até a flor da idade, se te preferi a
teus irmãos, não me entregues ao riso dos homens. Pensa em
teus irmãos, pensa em tua mãe e em tua irmã, pensa em teu
filho, que não poderá viver sem ti. Volta atrás, não arruines tua
família. Se fores condenada, ninguém de nós poderá mais falar
com homem livre.39
O infeliz pai atirou-se aos pés da filha e cobriu suas mãos de
beijos. A jovem sentiu um calafrio, mas não cedeu. O pai a deixou
desesperado.

163
A mesma cena se repetiu alguns dias depois, durante o interro­
gatório. Graças às suas relações, o pai pôde penetrar no pretório.
Mas fez tanto barulho que foi afastado à força e recebeu um golpe
de vara. Perpétua, inquebrantável mas sempre tema, anota o quan­
to sofreu com isso. “Esse golpe me atingiu como se fosse eu a
golpeada. Eu sofria por sua velhice desafortunada”.40 O diário trai
sua emoção. Voltando à carga, o pai usou de todos os argumentos e
de todos os sentimentos. Perpétua registra apenas, o que diz muito:
"Ele encontrou palavras que teriam abalado qualquer um”.41 Luta
comeliana, a dessa jovem, dividida entre dois amores, dois univer­
sos, e cujo coração só queria amar, mas obrigada a resistir ao pai,
para continuar fiel ao apelo do “Pai dos céus”. A prisão permitiu-
lhe cortar as amarras da carne e da natureza, a fim de viver só para
a felicidade prometida, que uma visão lhe revelara. O diário de Per­
pétua termina aqui. A narrativa de sua morte é de outro redator.
A espera do martírio não a fez perder a naturalidade. Ela sabia
aliar humor e grandeza de alma. Tratada com bastante dureza por
um tribuno um tanto supersticioso, ela lhe retorquiu:42 "Por que
recusas abrandamentos a tão nobres condenados, que devem com­
bater pelo aniversário de César? Tua reputação não ficará diminuí­
da se exibires na arena prisioneiros muito gordos?” O tribuno, de­
sapontado, repreendido por uma mulher jovem, “contraiu-se e
enrubeceu”, diz o texto. Era necessária uma personalidade singular
para levar a enrubecer um ajudante de prisão e levá-lo a sentimen­
tos mais humanos.
No dia do suplício, os mártires deixaram a prisão e se encami­
nharam para o anfiteatro. “Seus rostos estavam radiantes, belos.
Perpétua ia em último lugar, com passo calmo, como uma grande
dama de Cristo, como uma filha bem-amada de Deus”.43 No portão
da arena, quiseram impor às mulheres a veste de sacerdotisa de
Ceres. Perpétua se opôs com tenacidade.
— "Viemos aqui voluntariamente para defendermos nossa li­
berdade. A injustiça deve ceder diante da justiça”,44 observa o cro­
nista.
Perpétua e Felicidade, despidas, foram encerradas em uma rede,
como Blandina, e levadas para a arena. O público, muitas vezes
covarde, senão fanatizado, “fremiu de vergonha”.45 Acabaram por
entregar-lhes suas vestes. Perpétua, com a alma em festa, cantava.

164
Como sua pequena irmã de Lião, estava perdida em Deus. Em ple­
no anfiteatro, ela caiu em uma espécie de êxtase, que a tomou in­
sensível ao que se passava, insensível aos ferimentos. Levada para
uma sala próxima da arena, voltou a si e perguntou: “Quando sere­
mos expostas a essa vaca furiosa?46 Disseram-lhe que estava acaba­
do. Para convencê-la, foi necessário mostrar-lhes os sinais do suplí­
cio em seu corpo.
Durante o combate heróico, Perpétua, fiel a si mesma, permane­
ceu natural e feminina. Teve momentos de fraqueza, mas conservou
até o fim delicadezas e pudores de mulher, até nos gestos da "vaidade
virtuosa”, pondo em ordem seus cabelos e prendendo-os com gram­
po.47 Como a antiga Políxena,48 ela queria morrer com decência.
Quando percebeu que sua túnica estava rasgada de lado, uniu as do­
bras para ocultar suas pernas, “atenta mais ao pudor que à dor”.49
Perpétua se preocupou com Felicidade, em recuperação de um
parto, que estava pálida e “de cujos seios escapavam gotas de leite”.50
Quando Perpétua a viu caída, foi até ela, deu-lhe a mão e a aju­
dou a levantar-se. Aproveitou um momento de pausa, para chamar
seu irmão, o catecúmeno, e confiar-lhes recomendações para sua
família e os outros cristãos. “Permanecei firmes na fé. Amai-vos uns
aos outros. Que os nossos sofrimentos não sejam escândalo para
x ”51
VOS .
De volta para a arena, Perpétua viu cair um a um seus compa­
nheiros e sua companheira. Depois chegou sua vez. O gladiador a
golpeou tão desajeitadamente que ela deu um grito, mas logo caiu
em si e ela mesma dirigiu a mão do gladiador novato para sua gar­
ganta. Comeliana até o fim! “Decididamente, tal mulher só podia
morrer por sua própria vontade”,52 observa o narrador.
Assim foi essa admirável mulher cristã, cujo diário, lido e reli­
do nas comunidades da África e de toda a cristandade, até na igreja
grega, suscitou em toda parte um frêmito, não mais de espanto,
mas de orgulho e emulação.53 Inscrita nos mais antigos marti­
rológios, Perpétua forma parte do cortejo triunfal dos mártires na
igreja de santo Apolinário Novo de Ravena. O mosaísta da cidade a
representou, na capela arquiepiscopal, em traje elegante e porte
nobre: uma grande dama. Ela está entre aquelas que levaram o pa­
gão Libânio a exclamar: "Ah! que mulheres se encontram entre os
cristãos!” Elas nos salvam da frouxidão e da mediocridade.
165
QUARTA PARTE

O HEROÍSMO DO COTIDIANO
CAPÍTULO I

O RITMO DOS DIAS

“A vida toda dos cristãos é um longo dia de festa’’,1 escreve Cle­


mente de Alexandria. Daí em diante a fé ilumina o tempo cinzento. O
crente divide seus dias entre sua família, seu trabalho e sua comuni­
dade. Misturados aos pagãos, sempre ameaçados pela contaminação
ou pela denúncia, os cristãos sentiam a necessidade de se encontrar
e de participar do pão da palavra e do pão da ceia eucarística em um
fervor comum. Eles se reuniam em um mesmo lugar e formavam
uma parocchia, expressão que traduzimos por “paróquia”, mas de­
signa de modo mais apropriado “aqueles que moram como estran­
geiros” neste mundo, com a consciência de sua existência efêmera.
Por sua condição, o cristão é cidadão e estrangeiro, enraizado e
peregrino; com seus compatriotas ele participa de uma mesma ci­
dade, mas todo o seu ser tende para a cidade prometida. Todo cren­
te participa da mesma fé junto com todos os que o cercam, acolhi­
do que foi no dia de seu batismo, e todas as vezes que os irmãos e as
irmãs se encontram, é para lembrar juntos que o Senhor está cami­
nhando com eles.
No quadro da vida cotidiana, sozinho ou em família, o fiel nun­
ca perde de vista que é parte de um povo que caminha. Com todo o
seu ser ele quer partilhar essa convicção com seus parentes. Que
provação para ele, para ela não poder falar aos seres mais caros,
mais próximos, ao pai, ao marido, dessa esperança invisível aos
olhos. Perpétua convenceu seu irmão, abalou sua mãe, mas com
seu pai chocou-se contra um muro.
O tempo do cristão — o dia, a semana, o ano — era ritmado
pela fé, que o mobilizou e indicava-lhe o caminho. O fiel, como o
judeu, sabia que o tempo e a história são conduzidos, visitados e
habitados por seu Senhor. O Deus vivo dá ao tempo plenitude e
sentido, isto é, significado e polaridade.

169
O dia: trabalho, oração, lazeres
A Roma imperial despertava na hora da aldeia, senão ao pri­
meiro clarão da aurora. Ricos e pobres queriam aproveitar ao má­
ximo a luz do dia, em uma época na qual a eletricidade ainda não
havia perturbado o ritmo da natureza. “Viver, dizia Plínio, o Velho,
é velar”.2 A luz do dia, cantada pelos poetas, formava a magia sem­
pre renascente na sucessão das estações. Na falta de argumentos,
os amigos pagãos que queriam evitar a morte e o martírio do cris­
tão Piônio, invocaram a última razão à qual nenhum grego resistia:
"Não vais morrer; a vida é tão doce, e a luz, tão bela".3
Ao aparecimento da luz e da noite, o cristão se recolhe em ora­
ção.4 São as duas ocasiões fortes, nas quais o cristão guarda silên­
cio, medita a Escritura e canta um salmo.5 O caráter privado dessas
duas orações explica por que não temos textos estereotipados.
De manhã, Tertuliano aconselha o cristão a pôr-se de joelhos
para a primeira oração, que abre o novo dia, em sinal de adoração
e de prostemação diande de Deus.6 O orante fica voltado para o
levante, “de onde vem a verdadeira luz”.7 O Oriente, diz Clemente
de Alexandria, é o símbolo daquele que é nosso Dia; do Oriente
levantou-se a luz da verdade, que brilha sobre nossas cabeças.8 Se­
gundo Tertuliano, “cristãos são todos aqueles que, maravilhados,
viram brilhar a luz da verdade".9
Os judeus construíam as sinagogas da dispersão — ao menos
no Oeste — na direção de Jerusalém, sua capital espiritual. Antes
de edificar as igrejas na direção do levante, o cristão se voltava para
o país “entre os dois rios”, onde localizava “o jardim do Éden”, no
qual Cristo o tinha reintroduzido; sua fé lhe ensinava que um dia
ele voltaria de lá.10 O mártir Hiparco havia pintado uma cruz na
parede oriental de sua casa, diante dela rezava sete vezes ao dia.11
Orígenes aconselhava os cristãos a reservar, se possível, um lu­
gar em sua casa para a oração.12 Desde o século III, existiam, por­
tanto, oratórios nas casas particulares, ao menos entre os cristãos
do Egito de posição elevada.
O cristão orava de novo ao pôr-do-sol.13 Tertuliano lhe pede que
faça um sinal na fronte, em outros termos, que faça o sinal-da-cruz
na forma de tau.14 Texto bíblico e oração espontânea para reanima­
rem a vigilância.
170
Segundo a Didaqué,^ os cristãos conservaram o costume ju­
daico de orar três vezes ao dia, quadro esse cômodo, no qual o fiel
repetia a oração que Cristo lhe legou, o Pai-nosso. Essa oração
reunia a comunidade, ainda que ela estivesse dispersa, e permitia
orar no “plural” em qualquer lugar e em qualquer tempo. Não é
precisado, porém, em quais horas do dia essas orações eram di­
tas, podendo-se concluir disso que as horas ficavam à escolha do
fiel. Um século mais tarde, o espírito latino, mais codificador, fi­
xou-as como a terceira, a sexta e a nona horas.16 Na época,
clepsidras e quadrantes solares estavam generalizados e indica­
vam as horas no mercado, nos edifícios públicos e na entrada das
termas.17
Os cristãos tinham o costume de rezar de pé, com as mãos levanta­
das e as palmas abertas, na atitude dos orantes das catacumbas, como
Cristo, que estendera seus braços na cruz.18 É, sem dúvida, a atitude
tomada pelos fiéis de Antioquia e de Roma, de Cartago e de Alexandria.
Vinda do mundo sumério e do judaísmo, essa atitude parecia a mais
apta para exprimir pelo corpo o movimento da alma e seu desejo de
Deus.19
De joelhos, a oração exprime a humildade e a súplica intensa. Ela
podia ser acompanhada da prostração, com a cabeça encostada na
terra, conservada pelas igrejas da Síria e da Caldéia e do Iraque do
Norte. As mesmas igrejas permaneceram fiéis a outra atitude: a de
orar de pé, com os braços cruzados no peito, como os reis sumérios
e acádicos das estátuas. Em nenhum lugar se rezava com as mãos
juntas; esse é um gesto de origem germânica, que consagra a home­
nagem feudal.20
A oração em horas fixas não era a única herança judaica; havia
também a oração de bênção antes das refeições.21 Aqui ainda a co­
munidade cristã segue o exemplo de Cristo.22 Para o israelita e para
todos os antigos, a refeição tinha caráter religioso,23 que pode ter-se
atenuado, sem desaparecer completamente, na época do Império, e
que se apresente mais em certas solenidades.
Refeições de importância diferente marcavam o dia: o desjejum,
que, em sentido literal, rompia o jejum. Ele se verificava na terceira
ou quarta hora no meio da manhã e constava habitualmente de pão
molhado no vinho. Nos dias de jejum, quarta e sexta-feiras, os cris­
tãos se privavam dessa refeição.24

171
A segunda refeição situava-se na sexta ou sétima hora, isto é,
pelo meio-dia, no retomo do mercado ou dos negócios. Era refei­
ção leve. Os pratos podiam ser quentes ou frios. Durante muito tem­
po, a comida nacional do romano foi o mingau, preparado com
trigo torrado ou triturado em um almofariz. Nos dias de jejum, essa
refeição era retardada até a hora nona.25 Cristãos fervorosos e sei­
tas, como a dos montanistas, jejuavam até à noite.
A terceira refeição, a ceia, realizava-se, em Roma e Alexandria,
a partir da oitava ou da nona hora (pelas três horas da tarde), de­
pois de terminados os negócios e o trabalho. Refeição de família ou
de sociedade. A amizade permitia a presença de não convidados e
até que eles levassem amigos, o que deu origem à classe desprezada
dos parasitos. Para os gregos e os romanos, a refeição principal era
essa, situada na hora do descanso. “O grego não acreditava ter jan­
tado, se não jantasse com amigos”.26 Temos ainda cartas de convite,
conservadas em papiros do Egito, para jantares familiares ou reli­
giosos, em casa ou no Serapeu:27
Chairemon te convida para a mesa
do senhor Serápis no Serapeu,
amanhã, dia 15, a partir da nona hora.
Ou
Herais te convida para o banquete de núpcias
de seu filho, em sua casa,
amanhã, dia 15, a partir da nona hora.
Um mosaico de casa burguesa em Udna (Útica),28 a vinte e cin­
co quilômetros de Cartago, do tempo de Tertuliano, permite-nos
conhecer, pelos relevos, o cardápio de uma refeição: cascas de ovos,
espinhas e cabeças de peixe, melões, limões, feijões quebrados e
ervilhas germinadas.
Clemente adverte os cristãos contra o luxo da baixela e o re­
quinte na alimentação. A samaritana, diz ele, ofereceu água a Cris­
to em simples cântaro, e não em um desses vasos de prata, que dão
mau gosto à água. A regra de ouro à mesa é a modéstia e a conveniên­
cia. O Pedagogo nos oferece um código de civilidade que faz pensar
nos costumes dos meios elegantes da época. Para Clemente e para
Tertuliano, a refeição se abria, como o ágape, pela oração e terminava
pela decência.29

172
O caráter religioso da mesa era tal que as casas cristãs excluíam
os pagãos dela; é provável que fossem lidos versículos da Escritura
ou alguma estrofe de salmo. Na hora da refeição, o pai de família
podia recordar o mistério eucarístico.
A oração, que ritmava o dia e o tempo, transformava a vida do
cristão em "longo dia de festa”, dentro de um universo e de uma
história santificados por Cristo. Para o cristão, “orar sem cessar”
significava moldar-se pela oração das horas, que consagram o tem­
po, harmonizando a oração pessoal e a comunitária.
Os lazeres punham aos cristãos casos de consciência cotidia­
nos. A Igreja, de Taciano a Tertuliano,30 condenava as festas e os
espetáculos por razões religiosas e morais, já analisadas. O autor
do Apologético concede aos fiéis, quando muito, participar das fes­
tas de família por ocasião de um casamento ou da tomada da toga
viril, com a condição de que elas não incluíssem compromissos com
a idolatria.31
A educação física, muito apreciada na Antiguidade, tinha seus
defensores e seus detratores. Roma havia aceitado os exercícios
ginásticos a título de higiene, e não de esporte.32 Tertuliano conde­
na a nudez completa do ginásio e os cuidados excessivos com o
corpo, fricções e massagens.33 Com mais forte razão condena ele a
palestra, “onde o diabo conduz seus negócios”, sem precisar quais
são eles. Lactâncio não é menos severo no tocante à nudez, que o
faz pensar nos contornos de Cupido e de Vênus.34 Clemente, de sen­
sibilidade helênica, admite e recomenda os exercícios do ginásio
praticados com moderação, e encoraja a eles os jovens e os homens.
Para o autor do Pedagogo, o esporte favorece a saúde, dá espírito de
competição e é útil para a alma.35 Ninguém condenava a caça e,
menos ainda, a pesca, que foi o ganha-pão dos primeiros apóstolos.
O jogo era uma distração muito popular no Império. Segundo
Suetônio, o imperador Cláudio era um jogador empedernido.36 O
jogo de dados era muito praticado, enriquecendo a uns, arruinando
a outros e fazendo perder tempo a todos. As apostas eram muitas
vezes consideráveis.37 As escavações nos restituíram tabulae lusoriae
(“tábuas de jogo”). Em Roma foram encontrados jogos gravados no
pavimento da basílica Júlia, onde se reuniam os ociosos; Cícero já
se havia indignado com eles. Outro jogo, encontrado no calçamen­
to de Timgad, prova quão generalizada era sua prática. Situado na

173
beirada do passeio, ele permitia que os jogadores ficassem senta­
dos em um banco. Roma sozinha forneceu às coleções mais de cem
mesas de jogo.38
As crianças de Roma e Cartago jogavam nozes como as nossas
jogam bolinhas de gude. Elas permitiam muitas combinações. Agos­
tinho alude a elas, lembrando seus anos de criança. “Deixar as no­
zes” era sinônimo de sair da infância. O baixo-relevo de um sarcó-
fago, em Óstia, mostra dois grupos de crianças jogando nozes. Um
deles aperta em sua túnica as nozes que lhe restam. Ele chora, por­
que perdeu.39
O jogo de bola, que divertia as crianças, não era desprezado pe­
los grandes. Foi muito apreciado pelo segundo Catão e por Spurinna,
amigo de Plínio.40 Os ossinhos, jogo de crianças, como as nozes, per­
mitiam aos adultos jogar cara ou coroa, com apostas. Os jogos de
azar, a ociosidade cultivada e a paixão pelo jogo explicam as reservas
da Igreja. Com razão mais forte ainda os cristãos condenavam a fraude
e o passatempo transformado em meio de subsistência.41
O tratado De aleatoribus, atribuído a Cipriano, mostra os danos
causados pelo jogo até entre os cristãos. Ele conclui: É melhor gas­
tar a fortuna em boas obras do que perdê-la no jogo.42 No século IV,
o concilio de Elvira fulminou a excomunhão contra os fiéis surpre­
endidos apostando dinheiro nos dados.43 Além disso, os cristãos se
arriscavam a ir para as tavemas, a fim de jogar com pagãos;44 eles,
que tinham cantado de manhã o hino litúrgico da imortalidade,
entoavam, à noite, o refrão:
Bebamos e comamos',
Amanhã morreremos .45
A atmosfera das tavemas levava o fiel a beber com excesso e,
alterado, a ceder aos convites das prostitutas, que, como a aranha,
espreitavam a presa.46 Decididamente era difícil viver o Evangelho
em um mundo pagão.
Durante a semana, os cristãos procuravam encontrar-se. Cele­
bravam a eucaristia? Uma coisa é certa: a ceia eucarística já não era
celebrada à noite, segundo o uso primitivo, mas de manhã, com a
comunidade reunida. Ela abria os dois dias de jejum facultativo, a
quarta e a sexta-feiras.47 Tertuliano os chama statio, termo militar
que significa guarda. Era um exercício de vigilância e um descanso
174
privilegiado durante a semana. É provável que existissem, na épo­
ca, eucaristias domésticas para grupos restritos, aos quais Cipriano
alude.48
No século II, os cristãos abastados tinham o costume de convi­
dar para a ceia em suas casas membros da comunidade, escolhen­
do de preferência pessoas necessitadas e também o bispo ou o
diácono. Gregos e africanos davam a esse jantar o belo nome de
refeição de amor ou ágape.49 O número dos convidados não podia
ultrapassar a capacidade do triclínio, até o dia em que a Igreja or­
ganizou e adaptou uma sala para esse fim.50 A primeira alusão a
esse costume provém provavelmente do próprio Plínio, o Jovem.
Os cristãos presos, escreve ele,51 “reconheciam que se encontravam
para tomar juntos uma refeição normal e perfeitamente inocente”.
Os convites eram feitos, marcando-se a data, na reunião domi­
nical, em um encontro no mercado ou sob os pórticos. É possível
que o diácono aconselhasse ao hospedeiro as pessoas a convidar.
Tertuliano nos deixou, no Apologético, uma descrição colorida
do ágape, a qual contrasta, por sua simplicidade, com a suntuosi-
dade dos festins pagãos, que ele julga severamente: não lhes falta
nem o arroto sonoro,52 o qual, entre os africanos de antigamente
como entre os árabes de hoje, exprime, como quer o costume, o
perfeito contentamento.
Jogando com o nome ágape, o autor do Apologético observa
que foi o grande amor que os cristãos têm entre si que criou a insti­
tuição. Essa refeição, que provocara as zombarias mais ignominio-
sas da parte dos pagãos, não tinha nada de comparável com os fes­
tins organizados, por exemplo, em honra de Serápis, cujo templo
era muito visitado em Cartago, onde a fumaça das cozinhas “dava o
alarme aos bombeiros”.53
O nome da refeição cristã, ágape, exprime bem o motivo que
lhe deu origem. Os que arcavam com seus gastos guiavam-se pela
vontade de ajudar os pobres sem humilhá-los e de permitir-lhes sa­
ciar a fome respeitando-os. Os cristãos tinham para com os deser­
dados a mesma benevolência de Deus, ao passo que o anfitrião pa­
gão escarnecia de seus hóspedes que se tornavam parasitos.
A mesa do ágape era modesta e frugal, continua Tertuliano. Nela
não havia nem prodigalidade nem desordem. Os convidados, ho­
mens e mulheres, deitados em divãs, à moda antiga, não se desvia-

175
vam da disciplina e da dignidade exigidas por uma assembléia reli­
giosa.
Antes de começar a refeição, os convidados dirigem uma ora­
ção a Deus. Cada um come de acordo com seu apetite, bebe o
quanto convém a pessoas sóbrias e se lembra que, mesmo à noi­
te, deve adorar a Deus. As conversas são de pessoas que sabem
que Deus as escuta.54
Iniciada com oração, a refeição terminava pela ação de graças;
o ato de lavar as mãos no fim era de origem e inspiração religiosas.
No tempo do Império, a Grécia aceitou o uso romano do guardana­
po, que tinha o mesmo nome que a toalha de mão.55 Ele servia para
os convidados levar porções escolhidas e continuar a festa em casa.
As luzes eram acesas quando a noite caía; cada um era convida­
do a se levantar para cantar em honra de Deus um cântico tirado da
Escritura, provavelmente um salmo. O uso do saltério para a ora­
ção remontava às origens cristãs. “A refeição terminava como co­
meçara: pela oração".
Tertuliano não fala — mas sabemo-lo por outras fontes — do
costume de dar presentes (apophoreta) aos convidados.56 Tratava-se
muitas vezes de porções escolhidas, que o convidado levava para
casa em um cesto ou em um guardanapo. Aos poucos elas substituí­
ram a refeição e tomaram-se uma forma autônoma de assistência.
O fim do ágape contrastava mais ainda com os "festins” ruido­
sos da época, os quais provocaram os epigramas de Marcial e as
sátiras de Juvenal. Esses festins terminavam em ultrajes aos costu­
mes e “em indecências e libertinagem". Os cristãos deixavam seus
ágapes “com pudor e modéstia, como pessoas que, à mesa, toma­
ram mais uma lição que uma refeição”.57
Os próprios mártires, como vimos, transformavam em ágape a
última refeição concedida aos condenados — a "refeição livre" —
para significar, na vigília da provação suprema, sua fraternidade e
seu apoio mútuo, em emulação comum.58 É possível que o bispo ou
o diácono estivesse presente, dando a essa última fração do pão
valor eclesial ou litúrgico.
Ligada ou não ao ágape, a bênção da lâmpada ou do lucemário
abria a vigília litúrgica do sábado à noite. Segundo Tertuliano,59
esse costume provinha do judaísmo. Em Trôade, parece que Paulo
176
celebrou, à luz de grande número de lâmpadas,60 um dos primeiros
lucemários cristãos. A lanterna da noite de sábado simbolizava a
ressurreição de Cristo e afirmava que o Ressuscitado é a luz do
mundo. Essa cristianização do tema da luz, no Oriente e na África,
reagia, talvez, contra o culto do Sol, celebrado pelos pagãos.
Temos ainda um dos mais antigos cânticos à luz da noite:

Luz radiosa da glória,


do imortal e bem-aventurado Pai celeste,
ó Jesus Cristo.
Chegados ao pôr-do-sol,
olhamos para a claridade da noite
e cantamos o Pai e o Filho
e o Espírito Santo de Deus.
Tu és digno para sempre
de ser cantado por vozes puras,
ó Filho de Deus, que dás a Vida.
Por isso o universo proclama a tua glória.61

O dia do Senhor62

A divisão da semana em sete dias é um compromisso entre a


semana judaica e a semana astral, de origem babilônica, usada nos
países orientais. Os gregos dividiam o tempo em dez dias; os roma­
nos, em oito. As denominações do domingo conservaram a sedi­
mentação de influências diferentes. Ingleses e alemães conservam
o nome que era corrente no tempo de Justino: dia do Sol (Sunday,
Sonntag). Franceses, italianos, espanhóis e portugueses usam a de­
nominação cristã, empregada desde o fim do século I: dimanche
(domenica, domingo), dia do Senhor, ao passo que o Oriente e a
Rússia falam do dia pascal ou da ressurreição (voskresenie), atesta­
do desde o século III.63 O domingo é o primeiro dia da semana. A
Igreja reformada da França ainda canta: “Nesse primeiro dia da
semana, a qual outro iríamos senão a ti?”
“Os babilônios contavam o dia entre um e outro pôr-do-sol, diz
Plínio; os atenienses, entre dois pores-do-sol; os úmbrios, de meio-
dia a meio-dia; os pontífices romanos e os que fixaram o dia civil,

177
bem como os egípcios e Hiparco, de meia-noite a meia-noite’’.64
Gauleses e germanos, como os judeus e os muçulmanos de hoje,
começavam o dia ao pôr-do-sol.
Seria absurdo imaginar os cristãos, em um domingo, escondi­
dos em uma catacumba ou ociosos e bem vestidos, andando a esmo
sob os pórticos. Eles celebravam o domingo como os judeus de Roma
ou de Paris festejam hoje o sábado: ao lado da indiferença compac­
ta do mundo que os cercava. Suas cerimônias próprias se acrescen­
tavam às do calendário romano.
No tempo de Justino, os romanos, por sincretismo, tinham subs­
tituído no primeiro dia, dies solis, da semana planetária o nome de
Satumo-Crono pelo do deus Sol, Helios, em uma ocasião em que se
desenvolvia o culto de Mitra.65 Justino, talvez por contraste, estabe­
leceu paralelo entre os mistérios de Mitra e a eucaristia.66 O dia do
Sol, que segue ao sábado judaico, era o dia cristão por excelência, o
dia no qual as comunidades da Ásia, da Grécia e de Roma e todas as
outras se reuniam para celebrar a eucaristia. Em sua carta, Plínio
menciona o “dia determinado, no qual os cristãos costumam reu­
nir-se antes da aurora, para cantar em coros alternados um hino a
Cristo como a um deus”.67
Justino afirma de maneira mais precisa ainda: "No dia chama­
do dia do Sol, todos, nas cidades e nos campos, se reúnem em um
mesmo lugar".68 Evidentemente o filósofo cristão fala de uma insti­
tuição comum a toda a Igreja, mas sua celebração merecería ser
matizada no tocante a uma cidade como Roma, na qual, ao que se
sabe, não havia, naquela época, nenhum lugar de culto capaz de
conter semelhante assembléia.
A importância vital do dia do Senhor para os cristãos aparece
no interrogatório dos fiéis de Abitena, na Tunísia, que poderíam ser
chamados "mártires do domingo". Presos sob a acusação de reu­
nião ilícita, eles compareceram diante do procônsul, que os censu­
rou por terem violado os editos imperiais e celebrado a eucaristia
na casa de um deles. Saturnino lhe respondeu:
“Devemos celebrar o dia do Senhor; é uma lei nossa".69
Chegou a vez de Emérito.
“Houve assembléias proibidas em tua casa?, perguntou-lhe o
procônsul.
— Sim, nós celebramos o dia do Senhor.
178
— Por que lhes permitiste entrar?
— São meus irmãos; eu não podería proibi-los.
— Devias fazê-lo.
— Eu não podia fazê-lo; não podemos viver, sem celebrar a re­
feição do Senhor”.
A escolha do dia e da hora era determinada pelo acontecimento
pascal, pela ressurreição de Cristo, que dá a esse dia seu caráter
"festivo” de ação de graças e de espera.70 Pela mesma razão, nesse
dia, os cristãos oram de pé71 e não jejuam.72
Se, para os judeus, o sábado era o dia feriado, a idéia de repou­
so não estava originalmente ligada ao domingo cristão. Numerosos
eram os dias de festa feriados em Roma, nos quais os trabalhadores
e os escravos repousavam e entregavam-se a divertimentos, mas
não existia dia regular de repouso.
Quando e onde se reuniam os cristãos no domingo? Eles de­
viam encontrar-se fora das horas de trabalho. Em Trôade,73 eles se
reuniam na noite do primeiro dia da semana judaica, isto é, na noi­
te de sábado para domingo. Na aurora, cada um retomava seu tra­
balho. E mais ou menos o que diz Plínio, o Jovem, ao situar a reu­
nião “antes da aurora”,74 portanto, antes do nascer do Sol. O Sol
levante, símbolo do Ressuscitado, era muito antigo e talvez tenha
influenciado a redação dos Evangelhos.75
Os cristãos se encontravam geralmente na casa de um deles
que tivesse uma sala bastante espaçosa para conter a comunidade.
A casa de Pudente, que recebeu são Pedro em Roma, pode ter servi­
do de lugar de reunião. As escavações descobriram, na igreja de
Santa Pudenciana, deformação de titulus Pudentis, a gravação de
Q. Servius Pudens. Em Antioquia, Teófilo celebrava a eucaristia em
sua casa.76 Era o caso de Esmima, no tempo de Inácio de Antioquia.77
No Oriente, a câmara alta se encontrava diretamente sob o teto. Ela
era o compartimento mais tranqüilo e mais discreto. Os orientais
se fechavam facilmente em um espaço bastante restrito, como o
provam as igrejas minúsculas das montanhas do Curdistão78 e da
Etiópia.
O autor do Philopatris descreve uma assembléia litúrgica em
uma casa particular muito rica, no andar superior.79 A história de
Tecla nos fala da jovem pagã, na janela de sua casa, em Icônio,
ouvindo a pregação de Paulo durante uma assembléia litúrgica na

179
casa em frente.80 As reuniões cristãs não autorizadas pela lei não
podiam realizar-se ao ar livre, como as dos pagãos, o que despertou
a suspeita de facções clandestinas.81 Em uma casa romana que con­
servara a planta da morada rural primitiva parece que foi dada pre­
ferência ao triclínio, vasta sala de refeições. É possível, entretanto,
que, no tempo de Tertuliano, os cristãos de Cartago se reunissem
na area (recinto) de um cemitério, a céu aberto, no meio de um
jardim cercado de muros, ao abrigo de olhares. Em Cherchell, na
África do Norte, foi encontrada uma dessas areae. Assim se explica­
ria, talvez, o grito dos pagãos contra os cristãos: Areae non sint,
“não haja cemitérios para eles".82
Em Antioquia, certo Teófilo, o primeiro cidadão da cidade, trans­
formou sua casa em basílica e estabeleceu nela a cátedra de são
Pedro.83 Embora não seja histórico, esse fato reflete a situação da
época.
Em Trípoli, na Síria, um cidadão chamado Marcos disse ao
Apóstolo:
“Minha casa é muito grande e pode receber mais de quinhentas
pessoas. Ela tem um jardim.
— Mostra tua casa e teu jardim”.
Pedro viu que o lugar era muito apto para a pregação.84
A grande sala da casa de Amrah, na Síria, media 6,30 m por
7,20 m.85 Mas uma dependência destinada à assembléia litúrgica —
especialmente em casa particular — podia servir para outros usos,
religiosos ou profanos. Afinal, chegou o dia em que o proprietário
ofereceu o edifício à comunidade. Várias igrejas romanas — de são
Clemente, de são João e são Paulo — que foram descobertas pelas
escavações, foram construídas sobre habitações particulares. Exis­
tiam, portanto, na Roma do século II, para a população móvel e
dispersa vários lugares de culto, presididos por simples sacerdotes.
Segundo o Liber Pontificalis, os títulos da cidade remontam ao papa
Evaristo, no começo do século II.86
A mais antiga igreja conservada é a de Dura-Europos, no
Eufrates.87 É uma casa como as outras, situada na esquina. A Igreja
tem uma sala grande de reuniões, uma sala para ágape e um
batistério. É de notar que o lugar do culto é voltado para o levante.
Em um dos lados havia uma pequena plataforma e nela a cátedra
do bispo, o que corresponde às diretrizes da Didascália.88
180
Ainda não existia estilo de igreja, uma vez que os lugares do
culto, do Oriente ao Ocidente, eram casas particulares, construídas
segundo a arquitetura do país. No século II, aparecem as primeiras
igrejas edificadas para o culto, principalmente nas regiões mais afas­
tadas da capital.89 Edessa tem uma dessa época.
Justino nos deixou uma descrição, a primeira, da reunião do­
minical.
Lêem-se, enquanto o tempo o permite, as Memórias dos após­
tolos e os escritos dos profetas. Depois o leitor pára, e o presiden­
te toma a palavra e nos exorta a imitar os belos exemplos que
acabam de ser lidos. Em seguida todos se levantam, e se fazem
orações. Enfim, como já descrevemos, terminada a oração, são
trazidos pão, vinho e água. O presidente ora e dá graças por al­
gum tempo; o povo responde com a aclamação amém. Os ele­
mentos eucarísticos são distribuídos aos presentes e enviados
aos ausentes pelo ministério dos diáconos.90
A assembléia era dirigida pelo bispo ou por seu delegado.91 Os
diáconos o acolhiam e assistiam. Ministros e fiéis usavam a roupa de
todos os dias; nada os distinguia entre si nem do homem da rua. Na
Grécia, as mulheres cobriam a cabeça com o manto (himation), que
elas usavam então como amplo véu, ou dobravam uma ponta do
peplo.92 Em Cartago, Tertuliano deu às vaidosas, como modelos, as
mulheres indígenas, que cobriam não só a cabeça, mas também todo
o rosto.93 O intransigente moralista censurava aquelas que cobriam a
cabeça com um veuzinho muito fino, dava as medidas que o véu
devia ter e indicava como dispô-lo. Por que não se tomou costureiro?
Começava a missa. Ela compreendia duas grandes partes. Uma
era consagrada à liturgia da palavra, dela os catecúmenos podiam
participar; a outra era reservada aos fiéis, e nela se realizava o sa­
crifício eucarístico. Fora o domingo, o Oriente celebrava, em al­
guns dias, a liturgia da palavra, sem a eucaristia.
A estrutura da missa diferia pouco de Esmima a Roma, já que
o papa convidou o velho bispo Policarpo a celebrar em seu lugar. É
possível que a celebração fosse aberta por uma saudação do bispo,
como: “O Senhor esteja convosco! — E com o teu espírito!” A forma
semítica dessa saudação, semelhante a fórmulas paulinas, garante
sua antiguidade.94 Um leitor, sem dúvida escolhido na assistência,

181
lia os textos dos Evangelhos e do Antigo Testamento. Sabemos, por
Tertuliano,95 que também as cartas dos apóstolos eram lidas. A lei­
tura era em grego, a língua corrente em todas as comunidades, da
Síria a Lião. O Antigo Testamento era lido na tradução dos Setenta,
em uso desde os apóstolos. O latim prevaleceu na África na metade
do século II. Nas assembléias bilíngües, em Lião ou Citópolis, é
provável que um intérprete traduzisse o texto à medida que era lido,
como é ainda hoje na África negra.
Além dos livros canônicos, os cristãos liam outras obras, como
a carta de Clemente aos Coríntios e o Pastor de Hermas. Os coríntios
reliam, no domingo, também a carta do papa Soter,96 e os cartagi­
neses, o edito do papa Zeferino.97 Cipriano pediu que suas cartas do
exílio fossem lidas à comunidade reunida.98
Entre a leitura e a pregação, intercalava-se o canto dos Salmos.
E provável que a assembléia repetisse um versículo como refrão.
No Egito, os Salmos eram cantados desde essa época.99 Nas origens,
o canto devia ser apresentado com o da sinagoga, parentesco que
existe ainda hoje, como observou o grão-rabino de Roma ao car­
deal Tapuni, ao sair de uma missa em rito siríaco.
Assembléia e bispo sentavam-se. O celebrante comentava a lei­
tura e exortava suas ovelhas. Essa pregação se adaptava ao gênio do
país: mais lírica entre os sírios; sóbria, com tendência moralizante,
no Ocidente. Uma homilia do século II nos fornece um exemplo da
pregação da época.100
Ela se refere constantemente à palavra de Deus. Descreve a bene­
volência do Senhor como salvador dos homens e como juiz da Igre­
ja. O caráter dramático da existência cristã no mundo pagão é vigo­
rosamente sublinhado: o fiel é dividido por uma luta de todos os
instantes. Os jogos ístmicos de Corinto, onde foi pronunciada a ho­
milia, fornecem ao pregador a comparação das competições do es­
tádio. O apelo à penitência volta, como um fio condutor, uma deze­
na de vezes. "Ajudemo-nos uns aos outros, a fim de levarmos os
fracos ao bem, para que todos sejam salvos”.101 Não é um evange­
lho de heróis, mas um encorajamento à fidelidade e à solidariedade
cotidianas.
É possível que as exortações finais, na hora do beijo da paz, a
doxologia — aclamação à glória de Deus — que encerra a segunda
carta de Paulo aos Coríntios, abrissem a liturgia eucarística: "A gra-
182
ça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espíri­
to Santo estejam com todos vós!”102
Seguia-se a oração comum. Toda a assistência ficava de pé, com
os braços levantados. O bispo formulava as grandes preocupações da
Igreja e do mundo. Aí se exprimia a consciência da unidade e da
catolicidade. O celebrante orava pela perseverança dos fiéis, pelos
catecúmenos e também “pelos que nos governam” e pela paz no
mundo.103
A oração que termina a carta de Clemente nos fornece modelo
de oração universal. Fiel, sem dúvida, ao uso litúrgico, o velho bispo
Policarpo, ao ser preso, pediu uma hora para rezar.104 “Ele orou em
voz alta”. Nessa imploração, "ele recordou-se de todos aqueles que
conhecera em sua longa vida, pequenos e grandes, pessoas ilustres e
obscuras, e de toda a Igreja católica, espalhada pelo mundo inteiro".
Oração universal, sem dúvida responsorial — isto é, com estro­
fes e refrãos —, como na sinagoga, onde a assistência responde com
aclamações tiradas das comunidades que falavam o aramaico, sem
ser traduzidas, como: Alleluia! Maranatha! Amen! Outras orações
vinham do mundo grego, como o Kyrie, eleison! que se encontra
nos ritos latino, copta e sírio.
O beijo da paz era gesto de reconciliação e fraternidade entre
aqueles que iam celebrar juntos a eucaristia. A solidariedade se con­
cretizava na oferenda: “Aqueles dentre nós que possuem alguma
coisa venham em ajuda daqueles que não têm nada”.103 Entre as
coisas oferecidas, os diáconos escolhiam pão e vinho misturado com
água e os punham sobre a mesa, diante do celebrante.106
O bispo improvisava uma oração de louvor ao Pai e de ação de
graças pelas obras da salvação, da criação à missão de seu Filho,
que cumpriu e realizou todas as promessas. Ficava entregue à inicia­
tiva do celebrante improvisar dentro de temas dados. Sua oração
consagrava as oblações e tomava-as o verdadeiro sacrifício, ofere­
cido, segundo a profecia de Malaquias, do nascente ao poente.107 A
ação de graças era tão fundamental que acabou dando seu nome,
eucaristia, a toda a celebração e hoje é novamente usado.
A oração eucarística se abria provavelmente com um convite à
assembléia; a ele talvez aluda ao hino alternado a Cristo, do qual
fala Plínio, o Jovem:
“Corações ao alto! — Demos graças a Deus!”
183
Os fiéis, pela densidade do silêncio, participavam da oração do
celebrante e a selavam, de alguma forma, com o amém final, vocife­
rado, como disse mais tarde Jerônimo, como “um trovão de Deus”.
Todos comungavam do pão e do vinho eucarísticos. A taça circula­
va, sem dúvida, nas fileiras dos fiéis. Cada um recebia o pão "na
palma da mão”.108 Alguns levavam a eucaristia para casa, onde a
consumiam.109 Uma vez mais os ausentes, os doentes principalmente
e os idosos não eram esquecidos. Os diáconos lhes levavam o dom
de Deus e o dom dos irmãos, misturados na mesma celebração. Os
bispos das diferentes comunidades tinham o costume de enviar do
pão consagrados às outras comunidades para selar sua unidade.110
A aurora clareava o horizonte. Cada um voltava para casa ou
para o trabalho, continuando em seu coração e em sua existência
cotidiana uma ação de graças que não tinha fim.
Um movimento de fluxo e refluxo animava a reunião da comunida­
de; vinda "da cidade e dos campos", ela tomava consciência de sua uni­
dade até na dispersão. As obras sociais ligadas à celebração dominical
e principalmente a organização do ágape eram seu prolongamento
normal e a aplicação do mistério partilhado à vida cotidiana. Elas não
se detinham nas necessidades físicas, mas se esforçavam para desco­
brir e saciar a fome de justiça e a necessidade de fraternidade.
A liturgia dominical ritmava a sucessão dos dias. Encontramos
vestígios dela nos afrescos das catacumbas, nas inscrições das casas,
nos epitáfios, nos sarcófagos, na gesta dos mártires e na literatura de
edificação. Papiros e óstracos nos conservaram fragmentos da liturgia
que alimentava a piedade cotidiana. O Kyrie, eleison e o Maranatha
voltam sem cessar.111 Em Scili e Cartago, os mártires respondiam à
sua condenação com o grito litúrgico de ação de graças: Deo gratias.112
Antes de morrer, os cristãos de Cartago davam-se o beijo da paz, que
selava a liturgia de sua oblação.113 A oração de Policarpo na fogueira,
até em sua estrutura, apresenta o martírio como uma liturgia supre­
ma e como o encerramento da eucaristia.114

“Ó noite, mais clara que o dia!"


O acontecimento pascal ritmava a história. Os dias e a semana
se articulavam sobre o mistério da ressurreição, que iluminava toda a
linha do tempo. A grande controvérsia pascal, que sombreou as rela-

184
ções entre Roma e a Ásia, mostra, ao menos, o lugar que a celebração
da ressurreição ocupava em todas as igrejas desde as origens.115
As comunidades da Ásia e da Palestina e, sem dúvida, os asianos
de Roma, ligados aos usos judaicos, continuaram a celebrar a Pás­
coa como os hebreus, no dia 14 de nisã, o dia da lua cheia da prima­
vera, fosse qual fosse o dia da semana em que ele caísse. O acento
era posto em Cristo, nossa verdadeira Páscoa, imolado nesse dia.
A igreja de Roma e todas as igrejas que a seguiam, desligadas
do calendário judaico, consideravam o essencial e punham no pri­
meiro plano a ressurreição de Cristo. Elas a celebravam no primei­
ro domingo depois do 14 de nisã, lua cheia do equinócio,116 no qual
celebravam “o dia do Senhor".
A solenidade começava com um dia de jejum. No fim do dia, os
fiéis se reuniam para passar a noite em oração. No começo da vigí­
lia, acendiam-se as luzes, segundo o costume judaico. Era a grande
vigília, "a mais augusta de todas as vigílias”, diz santo Agostinho;
durava até a aurora e devia dispor os corações para esperar o Se­
nhor. Ressurreição e espera do Kyrios se fundiam em uma mesma
celebração.
Vós vos reunireis e não dormireis; velareis durante toda a
noite em orações e lágrimas e lereis os Profetas, os Evangelhos
e os Salmos até a terceira hora da noite que se segue ao sábado.
Então, cessareis de jejuar, oferecereis o sacrifício, comereis e
vos alegrareis e jubilareis, porque Cristo, primícia de nossa res­
surreição, ressuscitou!117
As leituras escolhidas tinham relação com o mistério pascal.
Lia-se a narração do cordeiro pascal do livro do Êxodo.118 Em Roma,
o capítulo sexto do profeta Oséias: "Vinde, retomemos a Deus”.119
O celebrante, como nos mostra a maravilhosa homilia de Melitão
de Sardes, desenvolvia o paralelo entre a Páscoa judaica e a Páscoa
cristã. Cristo pôs fim ao tempo das preparações e introduziu defini­
tivamente o povo eleito na terra de Deus.
O canto do galo anunciava o dia novo, dia de festa e alegria.
Terminava o jejum. A celebração da eucaristia tomava seu sentido
pleno de memorial da morte e da ressurreição de Cristo. Na aurora,
quando os fiéis voltavam para suas tarefas cotidianas, nunca seus
corações estavam tão ardentes como nesse dia.

185
O que os ocidentais conservaram — muitas vezes alterado —
da noite de Natal, os cristãos do século II, de Antioquia a Cartago,
de Roma a Lião, realizavam, consagrando a mais bela de todas as
noites — a noite pascal — à oração, à leitura bíblica e à espera do
Senhor. A restauração da vigília pascal — adaptada e truncada, para
uso de cristãos apressados — não pôde ter, no Ocidente, a plenitude
espiritual do patrimônio, conservada pela Grécia e pela Rússia. Hoje
ainda os russos passam vinte e quatro horas na igreja para celebrar
a Páscoa. E cristãos que não hesitam em dançar uma noite inteira
são incapazes de dar uma noite para celebrarem o mistério de sua
fé.
Ó noite, mais clara que o dia,
mais luminosa que o sol,
mais doce que o paraíso,
noite esperada um ano inteiro!120
Uma organização dos dias, das semanas e do ano centrada no
mistério do Ressuscitado, com os tempos fortes da oração e das
celebrações litúrgicas, prepara a Igreja e o universo para o dia da
ressurreição universal, no qual brilhará a luz que não se apagará
mais. O “oitavo dia”, no qual o Senhor ressuscitou, anuncia o últi­
mo dia e a consumação dos séculos.
Toda celebração litúrgica bem como a vida cotidiana não são,
afinal, para o cristão senão preparação e espera. O desconforto e a
angústia dos cristãos, muitas vezes ameaçados pelo poder, pouco
seguros quanto ao dia de amanhã, dispunham-nos para viver me­
lhor essa precariedade. O Maranatha — que significa O Senhor vem
e Vem, Senhor — das assembléias litúrgicas, usual em toda “refei­
ção do Senhor”, encerra o último livro da Escritura. E o grito da
Igreja: uma certeza e, ao mesmo tempo, a mais ardente das esperas.

186
CAPÍTULO II

AS ETAPAS DA VIDA

O Cristão pode marcar com uma pedra branca as grandes datas


de sua vida: a conversão, o batismo, o matrimônio, a morte. Elas
lhe permitem medir o que o aproxima ou afasta da sociedade que
ele freqüenta no dia-a-dia. Valores novos e diferentes iluminam seu
caminho e comandam suas escolhas. O amor, a vida e a morte, que
ritmam toda a existência humana, tiram da fé valor de eternidade.
Cristãos e mártires, como Joana na fogueira, sabem que “o amor é
mais forte que a morte... que o amor é o mais forte”, porque, no dia
do batismo, o cristão descobriu o rosto do Eterno, que é Vida.

A iniciação cristã
O que hoje, nos países da velha cristandade, é a exceção, no
século II era a regra: "Nós nos tomamos cristãos, não nascemos
tais”, diz Tertuliano.1 A conversão implicava mudança de vida e de
religião que provocava ruptura com a cidade e isolava o cristão de
seu meio e de sua família, se ela permanecesse pagã. Fosse qual
fosse a convicção profunda do grego ou do romano, do egípcio ou
do gaulês, o batismo transformava sua vida familiar, profissional e
social. Os laços com uma religião sociológica eram difíceis de cor­
tar. Para nos convencermos, basta-nos considerar a resistência de
um meio sueco ou mesmo francês, muitas vezes agnóstico, à passa­
gem de um filho ou de uma filha para o catolicismo!
Não era fácil ser aceito como catecúmeno. O catecumenato era
cercado de precauções de toda sorte para afastar os indesejáveis e
provar os candidatos. Habitualmente algum cristão servia de
introdutor junto à comunidade. O pagão atraído pelo Evangelho
começava por se informar; acompanhava seu amigo cristão ou seu
evangelizador às reuniões da comunidade. Instruía-se nas verdades

187
novas e procurava pô-las em prática — aprendizado longo, organi­
zado pela Igreja um século mais tarde.
Em Alexandria, Panteno começou seu trabalho de catequista
na segunda metade do século II.2 O tempo de preparação se chama­
va catecumenato, termo grego que passou para o latim, para expri­
mir o tempo da catequese e da formação. A afluência de candida­
tos, o risco implicado na profissão do cristianismo e a experiência
das perseguições endêmicas e das apostasias tomaram a Igreja pru­
dente e exigente.
A gesta dos mártires compreendia cristãos que ainda não ha­
viam recebido o batismo, o que revela que a comunidade acolhia
definitivamente só depois de longo tempo de prova. Felicidade e
Revocato, Perpétua e um de seus irmãos ainda eram catecúmenos
quando foram presos.3 Outros quatro catecúmenos foram presos
em Tuburbo. O mesmo ocorreu em Alexandria, no tempo de
Orígenes, com os mártires Heráclides e Herais; esta última saiu da
vida "pelo batismo de fogo”.4
O tempo de prova da fé se adaptava com flexibilidade à vida e
às circunstâncias. Estamos longe das origens, quando Filipe bati­
zou logo, na estrada de Gaza, o eunuco da rainha da Etiópia, ou
quando um discurso de Pedro foi suficiente para levar "à água do
batismo multidões entusiasmadas". A pedagogia da fé comandava
o estilo de vida. Justino já alude à instrução preliminar, quando fala
“daqueles que crêem na verdade de nossos ensinamentos e de nossa
doutrina”.5 Essa catequese era acompanhada da oração e do jejum.
O candidato aprendia as grandes verdades da fé e a oração do Se­
nhor, que forja a comunidade. Sem dúvida já existia uma fórmula
consagrada do credo batismal.
Irineu, na Demonstração apostólica, no fim do século II, forne­
ce-nos o texto da “regra da fé, transmitida pelos presbíteros":

Primeiramente ela nos obriga a nos lembrarmos que recebe­


mos o batismo para a remissão dos pecados em nome do Pai,
em nome de Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, morto e
ressuscitado, e no Espírito Santo de Deus. Por ela sabemos que
esse batismo é o selo da vida eterna e da regeneração em Deus,
a fim de que não sejamos mais filhos só dos homens mortais,
mas também filhos desse Deus eterno e indefectível.

188
Por isso, quando somos regenerados pelo batismo que nos é
dado, em nome das três pessoas, somos enriquecidos, por esse
segundo nascimento, com os bens que estão em Deus Pai, por
meio de seu Filho com o Espírito Santo. Porque aqueles que
são batizados recebem o Espírito de Deus, que os dá ao Verbo,
isto é, ao Filho, e o Filho os toma e os oferece ao Pai, e o Pai lhes
comunica a incorruptibilidade.6
A fé que faz a Igreja faz também o cristão. Ela é proposta a
todas as comunidades dispersas, cujos testemunhos são concordes
do Egito a Cartago, da Ásia Menor a Lião, passando por Roma,
encruzilhada de todas as comunidades disseminadas. Irineu lem­
bra as verdades fundamentais da fé no começo de seu livro Contra
as heresias. Depois acrescenta:

Tal é o ensinamento e tal é a fé que a Igreja recebeu. E, embora


ela esteja disseminada por todo o universo, ela a guarda diligen­
temente como uma casa na qual ela habitasse. Com a mesma fé,
ela crê em toda parte nessas verdades. Da mesma maneira ela as
prega, as ensina, as transmite como se fosse com uma mesma
boca. As línguas diferem no mundo, mas o poder da tradição é
uno e idêntico. E a mesma a fé que professam e transmitem as
igrejas fundadas nas Germânias, nas Ibérias, entre os celtas, no
Oriente, no Egito, na Líbia e no centro do mundo (Palestina).7
O catequista explicava a grandeza da fé e a exigência do rito
batismal e ensinava a medir a mudança de vida e o risco que ela
implicava: a religião cristã era ilegal, e as reuniões litúrgicas, vitais
para o fiel, caíam sob os golpes da lei. O Estado golpeava de impro­
viso e golpeava duro.
Confessar-se cristão era declarar-se indigno da boa sociedade e
pôr-se em conflito com o meio. Não bastava considerar abstrata­
mente essa situação; era necessário experimentá-la, realizar seu
aprendizado e vivê-la por dentro para se envolver com conhecimen­
to de causa. A Igreja insistia nesse tempo de noviciado, que não era
praticado nem pelos pagãos, nem pelos hereges. As religiões mis-
téricas não exigiam nenhuma mudança moral. Os marcionitas, na
África, batizavam ávida e indiscriminadamente.8 Em compensação,
a iniciação cristã implicava que a pessoa se afastasse dos ídolos e

189
das “pompas” do demônio, denunciadas pelos autores,9 que pensa­
vam principalmente nos espetáculos e nos jogos do circo, que os
africanos apreciavam muito. O ensinamento das “duas vias", que
formava parte da catequese primitiva, destacava o caráter dramáti­
co do confronto cristão.
Há dois caminhos: um, da vida, diz a Didaqué, o outro, da
morte; mas entre os dois caminhos há grande diferença. Ora, o
caminho da vida é o seguinte: “Primeiro, amarás a Deus, que te
criou; em segundo lugar, amarás teu próximo como a ti mes­
mo, e o que não queres que façam a ti não faças a outrem".10
Os autores cristãos recorriam com predileção às comparações
esportivas e principalmente às militares, para que os candidatos
tomassem consciência de que a luta seria inexorável.
Depois de tudo bem pesado e da experiência feita, o catecúmeno
tomava sua decisão, sabendo que ela seria irrevogável; tratava-se,
como para um soldado, de juramento de fidelidade para a vida e
para a morte, o que, para um africano ou um latino, era expresso
pelo termo sacramentam, “sacramento”. Confessada a fé diante da
Igreja, o cristão devia confessá-la diante do poder e dos tribunais. A
comunidade, por sua vez, dava sua concordância. Ela era a primei­
ra interessada na vinda de novos membros e respondia colegialmente
por sua perseverança. Por isso examinava o comportamento do can­
didato e seu empenho “em socorrer os pobres e em visitar os doen­
tes”.11 A certos catecúmenos o bispo pedia que mudassem de pro­
fissão, quando seu antigo gênero de vida lhe parecia incompatível
ou dificilmente conciliável com a nova fé e com os compromissos
assumidos na presença de toda a comunidade.
O rito do batismo cristão não era criação cristã. Surgiu em épo­
ca em que os banhos sagrados eram praticados tanto entre os
essênios como nas diversas seitas religiosas. No tempo de Cristo,
existia verdadeiro movimento batista na Palestina. Em todas as re­
ligiões orientais, rios sagrados, como o Ganges e o Jordão, purifica­
vam e conferiam santidade.
O simbolismo da água teve papel considerável na história da
religião, porque lembrava o nascimento e a fecundidade. Segundo
a narrativa da criação, o mundo de Deus surgiu das águas. Esse tema
se encontra nas outras cosmogonias, nas quais da água nasce a vida.
190
As religiões associavam à idéia de fecundidade a de purifica­
ção. Não só da água surge a vida, como também ela a recupera e
restaura. Com efeito, a primeira carta de Pedro e a tradição litúrgica
antiga apresentam a obra de Cristo como vitória sobre o monstro
dos mares, e o batismo como libertação dos homens da goela do
Leviatã. Cristo desceu às grandes águas da morte e voltou, trazendo
em sua vitória a criação e a humanidade renovadas.
As intuições das mitologias religiosas e os temas bíblicos, que
muitas vezes coincidem, afloram na liturgia e na catequese batis­
mais. Jorro de vida, purificação das faltas passadas e luz no cami­
nho balizado pela fé, essas consonâncias se encontram, às vezes
com deslocamentos de acento, em todos os autores da época.
Dois escritos do século II nos fornecem esclarecimentos sobre
a maneira de batizar: a Didaqué e a Apologia de Justino, tão rica em
ensinamentos sobre a vida litúrgica do tempo. A Didaqué nos ofere­
ce o ritual mais antigo:
Quanto ao batismo, administrai-o da maneira seguinte: de­
pois de haver ensinado tudo o que precede, batizai em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, em água corrente. Se não
houver água corrente, nem água fria, em água quente. Se não hou­
ver nenhuma delas, derrama água três vezes sobre a cabeça, em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Que o batizante, o ba­
tizado e outras pessoas que puderem jejuem antes do batismo;
ordena que ao menos o batizado jejue um ou dois dias antes.12
As duas formas do batismo, na água corrente ou em piscina,
por imersão ou por efusão, levam em conta celebrações, que se rea­
lizavam primitivamente ao ar livre, nas águas de um regato ou do
mar e, depois, transferidas para os interiores das casas. Os batistérios
de Lalibela, na Etiópia, no século XI, ainda estavam ao ar livre. A
fórmula batismal era claramente trinitária como no Evangelho de
Mateus. As três imersões eram alusão incontestável às três invoca­
ções que precedem.
Na Apologia, pelo ano 150, Justino descreve o batismo como
era praticado nas diversas comunidades do mundo greco-romano.
Jejum e oração dispunham o candidato. A comunidade participava
porque se tratava de membros novos que ela devia acolher com
empenho.
191
Em seguida, nós o conduzimos para lugar no qual existe água.
Lá, do mesmo modo que nós fomos regenerados, também eles
são regenerados. Em nome de Deus, Pai e Senhor de todas as
coisas, e de Jesus Cristo, nosso Salvador, e do Espírito Santo,
são eles então lavados com água. Essa ablução chama-se ilumi­
nação, porque os que recebem essa doutrina têm o espírito cheio
de luz.
Quanto a nós, depois de termos lavado aquele que crê e que
se juntou a nós, conduzimo-lo para o lugar onde estão reunidos
aqueles que chamamos nossos irmãos. Fazemos com fervor
orações comuns por nós, pelo iluminado e por todos os outros.13

O tema da luz batismal é muito caro a Justino, porque exprime


a fé em Cristo e traça o itinerário espiritual. Põe-se uma primeira
questão: Quando e onde se batizava? A Igreja primitiva recebia o
candidato, quando ele estava preparado, provavelmente em um
domingo. O batismo durante a vigília pascal estava em relação com
a organização do catecumenato e da quaresma, que foi estabelecida
só no século III.14 Antes, parece que as coisas eram mais flexíveis.
Perpétua e seus companheiros foram batizados na prisão, mas o
domingo não é mencionado. A descrição de Justino, ao contrário,
parece situar-se em uma reunião dominical.
Onde se batizava? Se o lugar da reunião se encontrasse perto
de um curso de água ou na margem do mar, como as sinagogas de
Filipos e Delos, é provável que o batismo fosse administrado na
"água corrente”; em Roma, talvez no Tibre.15 As casas particulares
que podiam servir como lugar de culto deviam dispor de uma ou de
várias salas de banho, com piscina, chamadas batistérios,16 nome
esse que passou para as fontes batismais.
A organização dos lugares de culto implicava o rápido estabele­
cimento de um batistério. A igreja de Dura-Europos já tinha local
reservado para o batismo no começo do século III. As fontes batis­
mais eram cobertas. Pinturas lembravam os temas do Paraíso ou do
bom Pastor e apresentavam uma catequese batismal em imagens.
O ritual rudimentar punha em relevo a simbólica da água. Os
catecúmenos, totalmente nus, entravam na água até a cintura. As
mulheres deixavam flutuar seus cabelos, que eram longos, menos
os das escravas, e tiravam todas as jóias.17 Batizavam-se as crian-

192
ças? Justino o insinua.18 Diante do prefeito Rústico, ele fala daque­
les que eram cristãos “desde a infância”; seu companheiro diz a
mesma coisa: “Recebemos de nossos pais essa tríplice doutrina”.19
À tríplice imersão, atestada já pela Didaqué, o bispo, sem dúvi­
da, pronunciava a fórmula: “É batizado... em nome do Pai e do Fi­
lho e do Espírito Santo”.
Ao sair da água, o batizado provavelmente era vestido, desde
essa época, com veste branca e recebia na cabeça uma coroa, como
se vê nas Odes de Salomão.20 O Pastor de Hermas associa à veste
branca o selo, sinal traçado na testa dos novos batizados, signifi­
cando sua integração ao povo de Deus, com as três dimensões: pes­
soal, comunitária e escatológica.21
Vários termos exprimem o rito e seus componentes: banho, novo
nascimento, iluminação, usados por Justino, e selo do Espírito, caro
a são Paulo e à primeira comunidade cristã.22 Um cântico batismal
primitivo desenvolvia, sob a imagem da luz, a catequese do novo
nascimento:
Desperta, tu, que dormes,
levanta-te dentre os mortos,
e Cristo te iluminará,
ele, o sol da ressurreição,
gerado antes da estrela da manhã.23
A quando remonta o costume de dar leite e mel ao jovem bati­
zado durante a celebração eucarística?24 É difícil dizê-lo. O simbo­
lismo é claro: o batismo introduz o neófito na terra prometida. A
iniciação batismal se encerrava na e pela eucaristia.
Justino acrescenta simplesmente que o novo batizado era con­
duzido aos seus irmãos, que o acolhiam em sua comunidade. O
beijo da paz selava a fraternidade. A iniciação se encerrava, como
em Emaús, com a fração do pão: encontro, caminhar, comunhão.
“De agora em diante ele deve dar testemunho da verdade, caminhar
nas boas obras e observar os mandamentos, a fim de adquirir a
salvação eterna”.25
Os mártires se referiam sem cessar à sua confissão batismal.
Diante dos procuradores romanos, retomavam as fórmulas consa­
gradas. Tivessem eles recebido o batismo de água ou estivessem
preparando-se para ele, o batismo de sangue era visto como incom-

193
paravelmente superior. Em Cartago, no fim dos jogos do anfiteatro,
nos quais os cristãos eram atores e vítimas, soltaram contra Saturo
um leopardo, “o qual, com um golpe das garras, banhou-o em seu
sangue".26 A multidão, informada, gritou-lhe, como que para teste­
munhar o segundo batismo: “Ei-lo bem lavado! Ei-lo salvo! Certa­
mente, acrescentam os Atos, estava bem salvo aquele que fora lava­
do em seu sangue”.27

Aqueles que construíram a Igreja

Um corte em uma comunidade concreta permite dar o inventá­


rio de sua composição. Além dos ministros do culto, encontramos
nela aqueles e aquelas que viviam na virgindade e na ascese, e os
pais e as mães de famílias cristãs, que eram a maioria.
Na manhã de seu batismo, o novo cristão voltava à vida diária.
A jovem, o homem influente, a mulher casada com pagão, o jovem
escravo perseverariam? A espera da parusia — o retorno do Senhor
— e a ameaça das perseguições sustentavam o fervor e mantinham
exaltação mística, habilmente explorada pelos montanistas e por
seus assemelhados.
Por outro lado, para certo número de candidatos, o batismo
era uma entrada em religião, no sentido que o século XVII dava a
essa expressão, isto é, o de uma vida consagrada a Deus na pobreza
e na castidade. Para a igreja síria de modo particular, batismo e
virgindade andavam juntos: os que queriam abraçar a continência
eram os primeiros a ser batizados, como cristãos perfeitos. Essa
espiritualidade, ligada talvez à concepção do batismo como volta
ao estado paradisíaco, anterior à sexualidade,28 marcou profunda­
mente a literatura apócrifa e o monaquismo primitivo. Irineu e a
teologia de Antioquia se recusaram a dar interpretação “sexual” à
narrativa e à falta dos primeiros homens. Convertidos, como Ci-
priano de Cartago, sem lançar o menor descrédito sobre o matri­
mônio, viviam, depois de seu batismo, na continência integral.
Em muitas comunidades havia, ao mesmo tempo, pessoas ca­
sadas, virgens, continentes e ascetas, e esse contato era estimulante
para todos. Entre os homens, alguns consagravam sua vida de con­
tinência à evangelização, como já vimos no caso dos apóstolos.29
194
Eles eram responsáveis por sua decisão somente diante de Deus,
mas podiam renunciar a ela e casar-se, sem incorrer em censura e,
menos ainda, em punição.
Situação nova e em violento contraste com o judaísmo oficial e
o mundo greco-romano. Entre os judeus, "aquele que não gerasse
pecaria contra o mandamento de Deus”. O matrimônio era, pois,
dever estrito. O judaísmo como tal tinha uma concepção equilibra­
da e ordenada da vida sexual, mas já era atacado pelas comunida­
des essênias e pelos terapeutas.30
A legislação romana impunha ao cidadão o dever de casar-se, a
fim de perpetuar a família e o culto doméstico e dar ao Estado cida­
dãos e soldados. A harmonia conjugal passava para segundo plano.
O imperador Augusto dera uma série de leis que puniam os celiba­
tários com a degradação e procuravam impeli-los ao matrimônio,31
mas eram decisões puramente políticas, nas quais a moral não en­
trava. A ascese não era, todavia, desconhecida de certas correntes
filosóficas; Apolônio de Tiana, por razões religiosas, viveu na casti­
dade absoluta.32
A moral pagã não impunha a fidelidade aos maridos, nem a
continência aos celibatários. Fomicar com uma prostituta do tem­
plo, uma hieródula, era até considerado ato religioso. "Nós toma­
mos uma prostituta para o nosso prazer, uma concubina para ter­
mos os cuidados diários exigidos pela nossa saúde; tomamos uma
esposa para termos filhos legítimos e uma fiel guardiã de tudo o
que está em nossa casa”.33 Realismo “burguês”, que o cristianismo
enfrentou em todas as épocas de sua história.
Diante dessa licença confortável, o Evangelho proscreveu ener­
gicamente a fomicação e introduziu as exigências da nova moral.
As filhas do diácono Filipe,34 consagradas à virgindade, tomaram-
se lendárias em Cesaréia, com o nimbo suplementar do profetismo.
O mesmo sucedeu na turbulenta comunidade de Corinto, assolada
por tendências contrárias: libertinagem e ascese, rigidez e licença,
ansiedade e fantasias. Coríntios e coríntias não haviam mudado
muito quando Clemente de Roma repreendeu a jactância das vir­
gens, que obscurecia a qualidade de seu testemunho.35
Os ascetas, quando havia, eram casos excepcionais nas comu­
nidades. As virgens viviam habitualmente em suas famílias e con­
servavam seus bens, sob a proteção de seu pai ou de seu tutor. Sua
195
decisão era inteiramente livre e motivada pela espera do reino.36
Elas comunicavam sua opção ao bispo.37 Algumas começavam a
viver a vida de “beguina” em grupos ou se associavam às comunida­
des de viúvas já organizadas.38 Havia grupos mistos de ascetas,39 os
quais, nos séculos III e IV, foram motivo de preocupação constante
das autoridades, que, por causa dos desvios e das desordens, proi­
biram-nos formalmente.
Ascetas e virgens representavam, na Igreja, uma espécie de aris­
tocracia, o que era obstáculo para a humildade. A comunidade os
considerava como "os eleitos dos eleitos”.40 Uns e outras corriam o
risco de confiar nesse jogo. A tentação do orgulho era mais inebriante
em Corinto. As advertências se sucediam, de Policarpo a Tertuliano,
em Filipos como em Cartago. Nada é mais universal do que as ten­
dências da natureza humana, nem mais sutil do que o orgulho da
virtude. Mais grave era a disposição de impor um gênero de vida a
todos e de condenar o uso do matrimônio. Em Lião, Alcibíades pra­
ticava ascese exagerada; os cristãos obrigaram-no a voltar ao uso
dos bens da criação41 e a uma alimentação normal.
Essas sombras põem mais em evidência o testemunho brilhan­
te prestado ao Evangelho por virgens e ascetas. Os apologistas os
brandiam perante os costumes pagãos.42 O próprio arquiatra Galeno
assinala com espanto o exemplo desses homens e dessas mulheres
que se abstinham de toda vida sexual.43
A Grande Igreja, com raras exceções, reconhecia a legitimidade
do matrimônio e da vida sexual, que eram praticados pela maioria
dos fiéis. Maioria silenciosa diante de minoria loquaz, que queria
transformar a Igreja em mosteiro de virgens ou de eunucos. Os ho­
mens não esperaram a grande imprensa e a televisão para dar prio­
ridade ao sensacional!
Grande número de cristãos, com bispos e diáconos à frente,
eram casados. Os escritos da época notam que um bispo era “conti­
nente”, porque o fato era excepcional. Não deixa de ser verdade que
o cristão, como o estóico da época, punha a si mesmo a questão que
mais tarde excitou a verve de Rabelais: Deve-se casar?44
Como vimos, o cristianismo transformou a condição da mu­
lher e modificou a legislação do matrimônio; santidade e indis-
solubilidade, desconhecidas do direito antigo, liberdade de escolha
entre matrimônio e celibato, obrigação de cada um respeitar a cas-
196
tidade de seu estado e possibilidade para todos, também para os
escravos, de contrair uma união segundo os princípios cristãos. Os
que se apresentavam ao batismo deviam normalizar sua situação,
desposar ou deixar uma concubina e aceitar a monogamia,45 o que
deve ter parecido exorbitante em uma época na qual patrícios, com
seus divórcios, competiam com nossas estrelas de cinema.
A Igreja conservou da legislação civil o que não contrariava sua
concepção do matrimônio e se opôs ao que a contrariava.46 A histó­
ria do divórcio, ontem na França, hoje na Itália, mostra claramente
essa linha de conduta.
Estamos, outrossim, mal informados sobre o matrimônio das
primeiras gerações cristãs. Inácio de Antioquia escreveu a Policarpo:
“Convém aos homens e às mulheres que se casam, que contraiam
sua união ouvindo o parecer do bispo, a fim de que seu matrimônio
seja segundo o Senhor e não segundo a paixão. Que tudo se cumpra
para a honra de Deus!”47
Inácio era muito influenciado por são Paulo48 e, como ele, rei­
vindicava o direito de ser ouvido. O conselho — eventualmente a
autorização — do bispo era solicitado principalmente quando o
matrimônio não era ratificado pela lei, por exemplo, entre escravo
e escrava ou entre patrícia e liberto.49 Esse direito de ser ouvido era
exercido mais ainda no caso de matrimônio dos órfãos que ele (o
bispo) tinha sob seus cuidados. A dimensão das comunidades per­
mitia ao bispo conhecer as situações individuais das pessoas e pe­
sar os riscos.
A inclinação dos esposos, principalmente da esposa, não era tida
como importante. A própria Didascália exorta os pais cristãos “a es­
colher as mulheres para seus filhos e casá-los”.50 As considerações
sociológicas deviam ceder às motivações religiosas, “agir segundo o
Senhor, e não segundo a paixão”, como disse Inácio. A autoridade
consultada decidia se a união não punha em perigo o ideal cristão. É
provável que o bispo se informasse junto ao diácono e à comunidade
para aconselhar ou desaconselhar o casamento. Sua experiência de
pai de família podia ser-lhes valiosa. Parece que a diretriz de Inácio
se referia apenas à sua igreja. Tomaram-na lei só os montanistas.51
Os cristãos, no dizer de Aristides e Amóbio, seguiam a legisla­
ção, que mudava de cidade para cidade. Com exceção do harus-
picínio e dos sacrifícios, "todo o ritual nupcial romano foi conserva-
197
do na praxe cristã”, escreve Dom Duchesne.52 O mundo grego e o
oriental realizavam o casamento em duas etapas, que eram suas
partes integrantes: a promessa de matrimônio e sua celebração. Na
igreja caldéia, até os últimos anos, o futuro esposo pagava resgate à
família da noiva. Houve gritaria quando o patriarca o suprimiu.
Em Roma e Cartago, na hora das promessas recíprocas, o noi­
vo entregava à noiva um anel, primitivamente de ferro, que ela pu­
nha no quarto dedo da mão esquerda, chamado depois anular, por­
que, segundo Aulo Gélio (f 180), esse dedo terminava no nervo que
vem do coração. A troca de presentes era costume vindo do Orien­
te. No Egito, a forma elegante das uniões era o casamento por car­
tas de um ao outro, as quais ratificavam o acordo entre dois espo­
sos. As vezes, a própria mulher se dava em casamento, o que prova
sua emancipação.
Em Roma, era exigido o consentimento pessoal da mulher como
elemento essencial do matrimônio. Era a vontade recíproca de se
tomar como esposos que conferia à mulher a dignidade de uxor e o
nível social do marido, com a intenção de procriar e educar os fi­
lhos.53 O anel nupcial não é mencionado.
Nos países gregos, na véspera do casamento, a cerimônia era in­
troduzida pelo banho da noiva, o qual devia ser praticado em Éfeso,
uma vez que o apóstolo Paulo fala dele.54 No Egito, ainda hoje a
mãe desce com sua filha ao Nilo para o banho nupcial. A noiva
pagã se despedia de sua vida de solteira, oferecendo seus brinque­
dos e sua veste a Ártemis.
Na celebração do matrimônio, os cristãos, conformando-se com
os ritos costumeiros de sua cidade, evitavam cuidadosamente tudo
o que tivesse sabor de idolatria e os cânticos licenciosos do cortejo
nupcial. Em nenhum outro domínio, a fé transformou tão profun­
damente, trazendo tão poucas mudanças externas. Mas os diverti­
mentos não ficavam excluídos. Na metade do século III, um cam­
ponês egípcio, certamente cristão, reconhecia que era costume pas­
sar a noite toda festejando.55
Na manhã do casamento, a noiva punha sobre seus cabelos,
divididos em seis tranças, uma coroa de flores de murta ou de la­
ranjeira, colhidas por ela mesma. Ela saía usando o flammeum, véu
cor de fogo, com o qual ela podia ser vista de longe. Era o sinal para
o começo dos cânticos. Catulo canta a noiva:

198
Cinge de flores tua fronte,
de manjerona perfumada.
Toma alegremente teu véu
cor de chama (flammeurn).56

O verbo latino mibere significava originalmente “cobrir-se com


o véu”. Toda a vizinhança se alvoroçava, e os passantes se detinham.
A cerimônia começava na casa da noiva: leitura do contrato,
quando ele era escrito, assinado em seguida — em Roma, por dez
testemunhas57 —, manifestação do consenso mútuo, pela fórmula
consagrada: ubi Caias, ibi Caia5S (“onde está Caio, aí está Caia”), e
entrega da nova esposa ao esposo. Eles se davam as mãos, juntan-
do-as, em Roma como em Atenas. Na Grécia, a união das mãos era
o rito essencial ainda no século IV. Os pagãos ofereciam um sacrifí­
cio, que os cristãos substituíram rapidamente por um rito litúrgico,
talvez pela eucaristia.
Tertuliano,59 sem dúvida alude à junção das mãos diante de uma
mulher casada quando escreve: “Arrebatado por tal espetáculo, Cris­
to envia sua paz aos esposos cristãos. Onde eles estão, está também
Cristo”.
E começava o banquete. O epitalâmio era de regra na Grécia
antiga e até hoje, como pude constatar em Miconos, recentemente.
Terminado o festim, a esposa, coberta com o véu e coroada de flo­
res, era conduzida solenemente à habitação conjugal.
Cai a noite. O cortejo encena um rapto: algumas pessoas fin­
gem arrebatar a jovem esposa à sua mãe, para conduzi-la à sua
nova morada. Os portadores de tochas abrem a marcha; tocadores
e tocadoras de flauta ritmam a núpcia. Os cânticos fesceninos —
originários de Fescênia, na Etrúria — demonstram bufonaria e obs­
cenidades. A esposa grega deixava a casa em seu carro, cena que a
arte imortalizou:60 o marido a suspendia suavemente da terra, e ela,
emocionada, sentava-se no carro nupcial. Três crianças a acompa­
nhavam, uma delas levando um facho feito de ramos de loureiro.
Atrás iam o fuso e a roca.
A pompa era de bom tom. Apuleio61 ironiza os gastos com um
grande casamento celebrado em Roma, os quais se elevaram a
50.000 sestércios, equivalente a cerca de 2.000 dólares. Os cristãos
certamente procuraram ter mais discrição.

199
Nenhum rito litúrgico nos é conhecido, mas provavelmente o
bispo — ou seu delegado — era convidado para o banquete nupcial;
talvez a comunidade participasse, ao menos fornecendo as teste­
munhas, em época na qual os irmãos não eram muito numerosos, e
os laços religiosos e sociais eram mais sólidos. Os Atos de Tomé nos
mostram o apóstolo orando com os esposos na casa nupcial.62 Cle­
mente precisa que, em Alexandria, um presbítero impunha as mãos
sobre os esposos.63
Os sarcófagos e a decoração das taças ilustram a cristianização
do matrimônio: o próprio Cristo coroa os esposos e preside à jun­
ção das mãos, que se uniam sobre os Evangelhos.64 Um afresco da
catacumba de Priscila representa talvez o velamento da esposa.65
Para o cristão, o matrimônio continuava a obra da Criação, e os
filhos eram a felicidade dos pais. Clemente precisa: belos filhos. No­
breza grega obrigava.66 Contraímos matrimônio para termos filhos,
afirmam Justino67 e Aristides,68 dando as regras e os limites da vida
sexual dos esposos. A Igreja se opôs aos "extremistas": uns reprova­
vam o matrimônio e toda a vida sexual; outros eram partidários da
libertinagem como praticada nos grandes portos do Mediterrâneo.69
Clemente,70 em seu tratado de moral, o Pedagogo, ergue-se com insis­
tência contra a prostituição e a pederastia. Regulamenta a vida con­
jugal com tantas reservas que um comentador recente pergunta, não
sem humor, quando o moralista de Alexandria permitia o abraço.71
Aqueles que têm a permissão de casar-se têm necessidade de
um pedagogo; ele lhes ensina a não praticar os ritos misteriosos
da natureza durante o dia, a não se unirem depois de voltarem da
igreja e da ágora; na aurora, como os galos, na hora da oração, da
leitura ou das obras úteis a fazer durante o dia. À noite, depois da re­
feição e da ação de graças pelos bens recebidos, convém repousar.72
As relações com a mulher grávida eram explicitamente proibi­
das com este pitoresco argumento: “Não se semeia em campo se­
meado”.73 O prazer sexual, fora da vontade de gerar, era contrário
"à lei, à justiça e à razão”.74 Os escritores cristãos retomavam as pres­
crições bíblicas, mas aumentavam seu rigor. Eram fortemente in­
fluenciados pela filosofia popular, de tendência estóica.73 Musônio
reprovava como ilícito o prazer só no uso do matrimônio.76 A vida
sexual, de instinto, lembrava a arte da cortesã, que prosperava em
200
Corinto e em Alexandria. As exposições fastidiosas de Clemente so­
bre os costumes da lebre e da hiena anunciam a pior literatura de
pregadores populares.77 “Casuística do cotidiano”78 e do noturno,
sinônimo de torpeza, que cansava o leitor do Pedagogo, aliviado,
enfim, ao ver surgir o Logos libertador, deus ex machina, como últi­
ma referência.79 Mais moderados, os legisladores simplesmente afir­
mavam a legitimidade da vida conjugal e a inutilidade das lustrações
rituais herdadas do judaísmo.80
Em compensação, a Igreja antiga condenava com extremo rigor
os costumes da Antiguidade, embora a situação econômica os expli­
casse em parte: a contracepção, o aborto e a exposição das crianças.81
Alguma limitação dos nascimentos, por meio da continência, era
prova de moderação, diz Clemente.82
A família era vista como célula da Igreja. Paulo e Pedro, e todos
os pastores depois deles, esboçam o quadro do lar cristão em face
aos costumes pagãos. Tertuliano canta a harmonia dos dois espo­
sos, que, juntos, aprofundam seu amor, recebendo a eucaristia.83
Por mais que o Evangelho preconizasse a igualdade do homem
e da mulher, a condução do lar exigia autoridade, que a Antiguida­
de sempre confiou ao pai de família. Ele reinava na casa, que com­
preendia a esposa, os filhos, os domésticos e os escravos; em Roma,
ele era seu chefe temporal e religioso até a morte; também castiga­
va e casava seus filhos e suas filhas. A legislação romana do pater-
familias acabou influenciando o mundo helênico. Entre os judeus,
o acento era posto na missão espiritual do pai: ele devia ensinar a
Torá a seus filhos.
Embora o Evangelho não abalasse as estruturas da família an­
tiga, ele a transformava em seu espírito, tomando-a a célula vital da
Igreja. Era entre aqueles que haviam dado prova e exemplo de uma
casa bem gerida que ela escolhia seus pastores. Um princípio novo
transformava por dentro as relações entre esposos, pais e filhos.
Paulo84 o formulou e Clemente o repetiu aos coríntios: “Sede sub­
missos uns aos outros, no temor do Senhor".85 Daí em diante, o
Senhor é a norma e a autoridade invisível.
A Igreja reconhecia a autoridade paterna sobre a casa, com os
matizes particulares das regiões e das civilizações. O longo desenvol­
vimento da Didascália86 sobre seus deveres e suas responsabilidades
mostra claramente sua importância na comunidade. Nessa descri-

201
ção, a ação educadora do pai e da mãe é bem destacada. A autoridade
só é eficaz quando temperada por afeição, como mostra a pedagogia de
Deus: "Nem tirania, nem negligência, mas mistura de firmeza e bran-
dura, de autoridade e bondade”,87 de moderação e encorajamento.
Nas comunidades orientais, a influência religiosa da mãe era
considerável. Nelas encontramos lares felizes e eficazes,88 nos quais
a obra da mãe parece determinante.89 Paulo reconhece o papel de­
sempenhado pela mãe de Timóteo,90 e Pedro sabe que a mulher
ganha seu marido para a fé.91
Na Antiguidade, a estrutura da casa facilitava a contaminação
religiosa. Clemente de Alexandria chega a permitir à esposa um
pouco de vaidade para ganhar um marido pagão.92
As crianças, confiadas à mãe ou à governanta, especialmente
no mundo grego e no oriental, sofriam fortemente a ascendência de
mulheres da sociedade. No ambiente alexandrino, onde a mulher
corria o risco de ser absorvida pelo luxo e pelos enfeites, Clemente
insiste para que ela ponha as mãos na massa, assuma responsabili­
dades no lar e seja ajuda eficaz para o marido.93
Os epitáfios da época,94 na medida que não são convencionais e
mentirosos como “as saudades eternas” do viúvo casado novamen­
te, são comoventes e significativos: unem na morte aqueles que es­
tavam unidos na vida. "A Caia Febe, esposa fiel, e a ele, Capiton, seu
marido”; Successus a sua esposa Eusébia, “muito rara, muito casta,
verdadeiramente irrepreensível; por ela ele convida os visitantes a
orar”.95 Muitas vezes é difícil datar uma inscrição, porque os cris­
tãos da primeira geração eram discretos sobre suas convicções reli­
giosas; habitualmente usavam fórmulas pagãs, que são encontra­
das nas diversas épocas da epigrafia.
O Evangelho valorizou a criança, o que transtornou os costu­
mes aceitos, já que o direito romano permitia ao pai expor seu fi­
lho. A Igreja primitiva sublinhava seu lugar no lar. As crianças eram
sempre mencionadas quando se falava de "casas cristãs”.96 Aristides97
louva sua inocência, Minúcio Félix98 se comovia diante de seus pri­
meiros balbucios e Clemente99 desenvolveu longamente, no Peda­
gogo, o evangelho da infância espiritual.
Na educação e nos deveres dos pais, não havia distinção entre
meninos e meninas, o que contrastava com o mundo judaico, bem
como com o greco-romano, que favorecia ultrajantemente o sexo
202
masculino. Em Israel, hoje ainda, o pai é felicitado quando nasce
um menino; quando é uma menina, pudicamente se deseja a ele
um menino para a próxima vez.
Um epitáfio, posterior, é verdade, diz mais que as palavras so­
bre a afeição de uma mãe:
Magus, filho sem malícia,
estás entre os pequenos inocentes.
Tua vida é feliz longe dos perigos.
A Igreja te acolhe, em tua partida,
materna e alegre.
Ó meu coração, cessa de gemer;
olhos meus, cessai de chorar.100
Nos meios mais modestos que os de Alexandria, o acento era
posto na necessidade de instruir os filhos, de castigá-los, de ensiná-
los a fugir da ociosidade, de proporcionar-lhes uma profissão e fer­
ramentas, de vigiar suas freqüentações101 e de casá-los jovens, “para
pô-los ao abrigo do desregramento juvenil”.102
A Igreja, de Paulo de Tarso103 a Clemente de Roma,104 dava con­
selhos aos pais cristãos sobre a maneira de educar seus filhos. O
papa de Roma já usava a expressão “educação cristã”, que depois se
tomou de uso corrente: “Educar cristãmente os filhos, permitir-lhes
participar do tesouro da fé e inculcar-lhes uma sã disciplina em
matéria de vida moral é dever fundamental dos pais; nisso há mais
que na tradição romana".103 Nesse ponto, o cristianismo primitivo
prolongou a tradição judaica e despertou nos pais a consciência de
sua responsabilidade educadora. Esse fato era mais acentuado no
Oriente do que no Ocidente. Para convencer-se disso basta ler a
Didascália.
A Igreja não se substituía à escola, mas se esforçava para neu­
tralizar a influência nefasta que os escritos e as instituições pagãs
podiam exercer sobre o jovem escolar. O que impressiona é a atitu­
de francamente positiva, com poucas exceções, dos cristãos do sé­
culo II a respeito da instrução e da cultura.
Se pais como Atenágoras e Teófilo — orientais — se mostram
reservados a respeito do ensino, Irineu afirma sua necessidade para
atacar os gnósticos, que pretendiam saber tudo.106 Tertuliano, seve­
ro com os mestres, julgava o ensino da gramática indispensável para
203
a formação de cristãos capazes de enfrentar o paganismo.107 Um
século mais tarde, em 202-203, Orígenes, aos 17 anos, abriu uma
escola de gramática em Alexandria para ajudar a família, uma vez
que, tendo seu pai, Leônidas, sido martirizado, todos os seus bens
foram confiscados.108 Os Padres do século IV, em sua maioria for­
mados na universidade, eram favoráveis à cultura clássica. Ficou
célebre o julgamento de Basílio, em uma “carta aos jovens”: Deve-
se seguir o exemplo das abelhas, que retiram o mel e deixam o vene­
no.109
As epístolas pastorais haviam levantado a voz contra as jovens
viúvas ociosas, que andavam de casa em casa, e as havia aconselha­
do a se casar de novo. “Se fossem apenas desocupadas! Mas são
também bisbilhoteiras e indiscretas e falam a torto e a direito".110
Em nenhum lugar se fala dos viúvos, que, sem dúvida, se casavam
de novo. A Igreja do século II, menos liberal, era mais reservada no
tocante às segundas núpcias,111 talvez por influência do monta-
nismo e das correntes ascéticas. Atenágoras condena-as;112 Irineu
ironiza os “casamentos acumulados”.113 Minúcio Félix permite que
o viúvo se case de novo só uma vez.114 Hermas115 e Clemente de
Alexandria116 renovam o conselho paulino aos coríntios: “A viúva
será mais feliz, em minha opinião, se permanecer como está”. A
Igreja encorajava os celibatários empedernidos a contrair matri­
mônio, porque a idade não extingue o fogo, que continua a arder
sob as cinzas.117
O ideal cristão da vida conjugal e familiar se chocava com as
fraquezas humanas, que rapidamente puseram o problema da pe­
nitência e da autoridade disciplinar da Igreja. Hermas, que nos nar­
ra suas tribulações conjugais, verdadeiras ou fictícias, é testemu­
nha importante nessa matéria.

Santidade e misericórdia

Grave é a tentativa — e a tentação — de edificar a Igreja dos


santos, a Igreja da qual o pecado seja banido, e o pecador, afastado.
Dos montanistas aos cátaros e dos encratitas aos jansenistas, en­
contramos sem cessar as mesmas intransigências e os mesmos os-
tracismos.
204
A experiência cotidiana sempre desmente o idealismo, em con­
tradição com a vida. A comunidade primitiva, apesar da idealização
de Lucas, o espetáculo das comunidades paulinas e as censuras do
Apocalipse a diversas igrejas levam a uma visão mais objetiva. Quer
queira, quer não, a Igreja encontra o pecado e os pecadores.
A comunidade de Corinto, de são Paulo a Clemente de Roma,
sacudida pelas dissensões, dá, uma vez mais, o espetáculo de fiéis
que levam vida dissoluta. Clemente pede aos fautores de desordens
“que se submetam filialmente à penitência e que dobrem os joelhos
do coração. Aprendei a obedecer e a rejeitar vossa soberba e a arro-
• i i ft 118
gancia de vossas palavras .
a.

A comunidade de Filipos não passa por menos vicissitudes.


Policarpo recomenda aos presbíteros sua tarefa pastoral e, ao mes­
mo tempo, judiciária, a qual consiste em “ser compassivos e miseri­
cordiosos com todos. Que eles reconduzam os desgarrados. Que
não sejam rígidos em seus julgamentos e saibam que nós todos so­
mos devedores do pecado”.119
A fraqueza cotidiana, o cristão a remedeia pela oração, pelo
jejum e pela esmola, que a Igreja associara umas às outras como o
fizera o Evangelho. Hermas, além dos exercícios em horas e dias
fixos, da oração e do jejum, praticava “jejuns excepcionais”, a título
pessoal, os quais preparavam as revelações divinas e asseguravam-
lhe o atendimento de suas preces.120 A esse jejum ele chama “mon­
tar a guarda”, expressão que passou para a literatura cristã. O je­
jum em benefício dos pobres punha a caridade ao nível de todas as
bolsas e remediava todos os pecados cotidianos. Depois da Didaqué,
a confissão das faltas era parte da reunião litúrgica; a oração de
Clemente lhe consagra longo desenvolvimento:
Perdoa-nos nossos pecados e nossas injustiças,
nossas quedas e nossos desgarramentos.
Não contes as faltas
de teus servos e de tuas servas,
mas nos purifica com a pureza de tua verdade.121
Confissão dos pecados e obras de misericórdia não só forma­
vam parte da assembléia litúrgica como também prolongavam o
sacramento na vida cotidiana. Apolônio resume a fé cristã ao pre­
feito do pretório, em Roma: “Cada dia, só para Deus farás subir
205
tuas preces e o sacrifício não sangrento e puro aos seus olhos, por
atos de piedade e de humanidade”.122
Que dizer dos pecados maiores e conhecidos publicamente:
Adultério, assassínio, apostasia? Os rigoristas, espécie de jansenistas
da Antiguidade — e havia deles entre os bispos —, recusavam a
penitência e o perdão a esses pecadores e a essas pecadoras, sem
temor de levá-los ao desespero. Irineu descreve o drama de mulhe­
res que haviam caído: “com a consciência ardendo em fogo, elas,
em silêncio, desesperavam da vida de Deus”.123
A Igreja, guiada pela experiência, devia reconhecer a fragilida­
de dos batizados e, na hora do naufrágio, estender-lhes uma tábua
de salvação. O meio cristão descrito por Hermas, verdadeiro ou fic­
tício, abrangia ricos que desprezavam os pobres, homens de negó­
cio que só pensavam no ganho, diáconos que dilapidavam as eco­
nomias das viúvas e até apóstatas, que haviam renegado o selo de
seu batismo.
O Pastor pinta a Igreja sob os traços de mulher que está cons­
truindo uma torre. Ele se aproxima, intrigado com as pedras esco­
lhidas e com as rejeitadas e a interroga. A mulher responde:
“As pedras quadradas e brancas, que se ajustam exatamen­
te, são os apóstolos, os bispos, os doutores e os diáconos.
— E essas pedras tiradas do fundo da água, postas sobre a
construção e que se ajustam perfeitamente às outras já utiliza­
das, quem são elas?
— São aqueles que sofreram pelo nome de Deus.
— E as que foram repelidas e rejeitadas, quem são elas?
— São aqueles que pecaram, mas querem cumprir penitên­
cia; por isso elas não foram atiradas para longe; uma vez que se
arrependam, poderão servir para a edificação da torre”.124
O Pastor lança a advertência de que é urgente converter-se, mas
também a afirmação de que existe remissão para todos os pecados
cometidos depois do batismo. Uma anedota, narrada por Clemen­
te,125 ilustra a mesma verdade. Em uma comunidade perto de Éfeso,
o apóstolo João percebeu entre os catecúmenos um jovem muito
belo. Recomendou-o ao bispo e se esqueceu dele. O protegido se
desviou para o mau caminho e tomou-se chefe de bandidos. Pas­
sando novamente por lá, João, informado, partiu à sua procura,

206
encontrou-o e falou-lhe: “Sou teu pai, estou desarmado e sou velho;
tem piedade, meu filho, não tenhas medo, ainda há esperança para
a tua vida!”
O bandido, a princípio arredio, deixou-se tocar pelo arrependi­
mento e abandonou aquela vida. João o reconduziu à igreja e, “em
fervorosas orações, pediu a Deus sua graça, partilhou seus jejuns
continuados com outros e ganhou seu espírito por meio de inces­
santes conversas". Purificação laboriosa, que se encerrou com con­
versão e cura. O prestígio do grande apóstolo, “Filho do Trovão"
transformado em misericordioso, pesava muito nas comunidades
do Oriente, às quais ele ensinava o perdão.
Na metade do século II, as perseguições provocaram defecções.
A volta dos apóstatas punha um espinhoso caso de consciência, o
qual se reapresentou mais agudo ainda um século depois, quando a
perseguição de Décio causou um verdadeiro desastre. Na Ásia, pre­
valeceu a posição dura. Ela era própria dos ascetas, apóstolos da con­
tinência absoluta, cujo rigorismo era a cizânia da virtude forte.126
Dionísio de Corinto lhes escreveu, lembrando-lhes a liberdade
dos cristãos de escolher o matrimônio ou a continência. E lhes “or­
denou que recebessem os que se convertessem de qualquer falta
que tivessem cometido”.127
Na Ásia Menor, certo número de mártires preconizava a mes­
ma atitude intransigente com os apóstatas e recusava-lhes a peni­
tência. A carta de Lião mostrou a atitude oposta de seus mártires,
“que não atavam ninguém e desatavam todo mundo”. A lição é evi­
dente.

Eles não mostraram, pois, nenhuma arrogância com os fra­


cos; ao contrário, com seus bens espirituais, nos quais abunda­
vam, socorreram aqueles que tinham mais necessidade deles,
tendo para com eles entranhas de mãe; por eles derramavam
lágrimas abundantes diante do Pai. Pediram-lhe a vida, e ele a
deu, e eles a comunicaram àqueles que estavam à sua volta, e,
vencedores em todos os combates, foram-se para Deus. Sem­
pre amaram a paz; transmitiam-na a nós e com ela partiam
para junto de Deus; não deixavam nenhuma dor às suas mães
nem a seus irmãos, nenhuma perturbação nem dissensão, mas
alegria, paz, concórdia e caridade.128

207
Moderação e humanidade contrastam aí com a intransigência
dos mártires da Ásia; levam a pensar naqueles “resistentes" que atri­
buíam a si o direito de falar em nome dos que não falam, porque
estão mortos! A mensagem de Lião, impregnada de espírito evangé­
lico, dava eco ao perdão de Cristo e ao de Estêvão e reconhecia
humildemente que só Jesus é “o mártir fiel e verdadeiro”.129

Como uma aurora

As primeiras gerações se familiarizaram com a morte, no dia-


a-dia; a espera de sua fé, o desconforto de sua existência e a ameaça
de perseguição obrigaram-nas, querendo ou não, a perscrutar sem
cessar o horizonte. A atitude dos cristãos a respeito do além e a
afirmação tranqüila da ressurreição da carne impressionaram pro­
fundamente os pagãos.
A espera da parusia não desaparecera com a idade apostólica;
ela teve “revivescências” com o montanismo. Embora seja histori­
camente inexato representar os cristãos escondidos nas catacumbas,
essa imagem, ao menos, ilustra como o pensamento cotidiano da
morte provocava mais esperança do que ansiedade.
Batismo e eucaristia, martírio e confissão da fé eram polariza­
dos por Cristo na glória e ritmavam a marcha na noite. Profecias e acon­
tecimentos da história, diz Justino, encaminham os fiéis para a res­
surreição.130 Nesse ponto os pagãos não se enganaram. Os filósofos
que reconheceram a vacuidade de sua filosofia diante da morte con­
fessaram essa coragem. Justino afirma que essa segurança dos cris­
tãos diante da morte o levou a decidir-se a juntar-se à comunidade.131
Para as primeiras gerações cristãs, dar a própria vida, à imita­
ção de Cristo, era a condição normal do cristão; e o mártir era o
cristão exemplar, que esgotava a essência da mensagem evangélica.
Um procônsul romano, não compreendendo a obstinação de Piônio,
procurava livrá-lo do suplício:
“Para que te serve correr para a morte?” Piônio respondeu: “Não
para a morte, mas para a vida!"132
Os pagãos procuravam minimizar o alcance dessa coragem e
ver nela “um fausto trágico" ou uma recusa da alegria de viver, como
se encontra no poeta:

208
Ó morte, velho capitão, chegou a hora! Levanta a âncora!
Esse país nos enfada, ó Morte. Zarpemos!
O procônsul Parênis objetou a Apolônio o argumento que cor­
ria pelas ruas: "Com tais idéias, Apolônio, deves amar a morte? —
Amo a vida, Perênis, mas o amor à vida não me leva a temer a mor­
te. Nada é melhor que a vida, mas a vida eterna”.133
Para os cristãos, a morte era a porta que abre para a vida e para
o encontro entrevisto.
Deixai-me ser o alimento das feras; graças a elas, ser-me-á
concedido chegar a Deus. Sou o trigo de Deus, sou moído pelos
dentes das feras, a fim de tomar-me pão imaculado de Cristo...
Sou escravo, mas a morte tomar-me-á um liberto de Jesus Cris­
to, pelo qual ressuscitarei.134
Os cristãos, mesmo os mais desejosos do martírio, nem sempre
tinham a ocasião de derramar seu sangue. A Igreja proibia toda pro­
vocação e condenava toda temeridade. A maior parte dos fiéis mor­
ria no leito, consumidos pela espera, pelos anos ou pela doença.
A Igreja velava pelos doentes e pelos fracos; confiava aos diá-
conos o atendimento a eles; para as mulheres, logo apareceram as
diaconisas; também as viúvas as visitavam.135 A unção dos doentes,
da qual fala são Tiago,136 deixou poucos vestígios nos dois primei­
ros séculos. Irineu137 alude a uma espécie de exorcismo praticado
pelos marcosianos. É possível que se tratasse de um rito que se re­
ferisse à epístola de Tiago:
Alguém dentre vós está doente? Mande chamar os presbíteros
da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome
do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor o porá de
pé; e se tiver cometido pecados, estes serão perdoados.
Esse texto contém mais obscuridade que informações. Refere-
se ao uso do óleo, que judeus e gregos empregavam para curar ou
fortalecer, para as enfermidades do corpo e para as lutas no estádio
e na palestra.138 As unções se encontram nos exorcismos e na ma­
gia, como vimos entre os gnósticos de Lião, não sendo fácil encon­
trar uma linha de demarcação. O óleo foi escolhido por razões tera­
pêuticas ou por seu simbolismo sacramental? É difícil dizer.

209
Os presbíteros administravam a unção colegialmente, como as
igrejas orientais ainda o fazem hoje. Os efeitos esperados eram a
saúde e a remissão dos pecados cometidos durante a vida. Primeiro
rito de perdão na Igreja, antes do uso da penitência pública. A cura
evidentemente não era assegurada, do contrário, os cristãos teriam
tido o dom da longevidade, para não dizer da imortalidade. A famí­
lia recolhia o último suspiro, beijando a boca do morto. O romano
acreditava que a alma saía pela boca.
As comunidades cercavam de respeito os corpos de seus defun­
tos e cuidavam de sua sepultura. Encarregavam-se também do en­
terro dos pobres e dos que não tinham família. Para os pagãos, o
supremo ultraje consistia em recusar a inumação dos cristãos e em
lhes negar os restos dos mártires. Quando podiam, os fiéis reco­
lhiam com piedade seus despojos veneráveis. Assim, em Esmima,
não tendo recebido o corpo de Policarpo, eles reuniram “seus os­
sos, mais preciosos que as gemas, mais provados que o ouro mais
puro”,139 e os levaram para lugar conveniente. Os milagres, nume­
rosos na gesta dos mártires, muitas vezes são de redação posterior.
Os cristãos permaneceram fiéis aos costumes funerários de seus
países, mas evitavam os ritos pagãos, como o óbolo colocado na
boca do morto, para pagar a passagem na barca de Caronte, o bar­
queiro dos Infernos; sua visão do além era totalmente diferente da
da mitologia. Mesmo nos epitáfios140 eles pouco diferiam dos pa­
gãos, contentando-se com usar fórmulas estereotipadas, às quais
davam significação nova: Em paz! Em Deus! Mais tarde multiplica­
ram-se os símbolos: o peixe, a âncora, a pomba, um orante, uma
orante, uma cena pastoril, evocando a felicidade paradisíaca. Nas
catacumbas de Hadrumeto (Sussa), as primeiras inscrições cristãs
eram traçadas com estilete ou com o dedo no gesso fresco.
Entre judeus, gregos e romanos, realizava-se a toalete do mor­
to, que era ungido e perfumado, antes de ser embalsamado.141 Os
romanos punham o corpo em um leito enfeitado, vestido com sua
toga, junto com as insígnias de sua função. Em sinal de luto, apaga-
va-se o fogo do átrio doméstico. A Igreja reprovava como idolátrico
o costume de coroar o morto.
Na Grécia, para subtrair o morto ao sol, os funerais eram reali­
zados à noite, à luz de tochas. Em Roma, o enterro era de dia; enter­
ravam-se à noite só os pobres, os escravos e as crianças. Para eles

210
nada de sarcófago, mas uma caixão miserável, quando não eram
atirados em um poço do Esquilino. Os gregos enterravam em cai­
xões de madeira, construídos de cipreste, entre outros. Além da
inumação, Roma praticava a cremação, que a Igreja de então não
adotava, em respeito à ressurreição dos corpos.143
A legislação romana não autorizava enterrar no recinto da ci­
dade. As catacumbas de Roma, ao lado das artérias externas, espe­
cialmente ao lado da Via Ápia, perto de São Sebastião, eram jazigos
de famílias cristãs, que ofereciam a seus irmãos e irmãs, de origem
modesta ou servil, a última hospitalidade. Foi só no século III que a
Igreja romana adquiriu e organizou seus próprios cemitérios. O
nome de Calixto, incorrigível homem de negócios, está ligado a essa
realização.
A Antiguidade desenvolveu luxo considerável para tudo o que
dizia respeito à morte: sarcófagos revestidos de baixos-relevos, ur­
nas funerárias de mármore ou alabastro, de ouro ou prata, encerra­
das em um cofrezinho. Desperdício de dinheiro que muitos medi­
terrâneos renovam com ostentação. Basta visitar um cemitério corso.
Os cristãos continuaram, durante algum tempo, a ser enterrados,
como os judeus e os pagãos, em sepulturas antepassadas.
Como seus compatriotas, os fiéis da Grécia celebravam a refei­
ção fúnebre nos dias 3o, 9o e 40o.144 Em Roma, os funerais termina­
vam no nono dia, depois de uma refeição que reunia parentes e
amigos. O mesmo sucedia no dia aniversário, não da morte, mas do
nascimento do defunto.143 Essa refeição era tomada diante do
túmulo, ao ar livre ou em uma sala próxima. As escavações, na Áfri­
ca e em Roma, desenterraram perto dos túmulos toda uma mobília,
visível ainda nas catacumbas de Domitila e de Priscila.
No tempo de Tertuliano, celebrava-se a eucaristia no dia ani­
versário dos defuntos.146 Pinturas e esculturas das catacumbas re­
presentam banquetes, que parecem aproximar em um mesmo sím­
bolo a vida batismal, o mistério eucarístico, a refeição pelos mortos
e a felicidade bem-aventurada. O mesmo se pode dizer do Ichthys, o
Peixe, acróstico de Cristo,147 que era, ao mesmo tempo, símbolo
batismal e eucarístico e sacramento da imortalidade.
Como os pagãos, também os cristãos ofereciam refeições em
honra dos mortos, refeições essas chamadas refrigeria, nunca, po­
rém, ofereciam ágapes, como às vezes se realiza hoje abusivamente.
211
porque a refeição de caridade, como vimos, era iniciativa puramen­
te evangélica. Eles mudavam sua significação e davam-lhe caráter
social, convidando para ele os pobres, as viúvas e as outras pessoas
assistidas.148 As catacumbas nos conservaram pinturas de banque­
tes funerários nos quais os pobres participavam da refeição. Isso
provavelmente explica os cestos cheios de pães dos afrescos e dos
relevos dos sarcófagos.149
O culto dos mártires nasceu do culto dos mortos. "A sua come­
moração era uma recordação dos defuntos, saídos do quadro da
vida cotidiana".150 Na origem, as honras que lhes eram prestadas
não se distinguiam das que eram prestadas aos outros defuntos.151
Todavia, o testemunho que eles haviam dado pelo seu sacrifício tor-
nara-os membros privilegiados da comunidade, à qual incumbia,
em seu todo, a guarda de seus restos e a conservação de seu túmulo.
Aos poucos, os fiéis passaram a comemorar o dia aniversário de
seu martírio e não mais o de seu nascimento, como praticavam os
pagãos.
Temos a primeira atestação disso na paixão de Policarpo:
Depositamos seus restos em lugar conveniente. Lá nos reu­
nimos, quando possível, com júbilo e alegria. O Senhor nos con­
cederá festejar o dia aniversário de seu martírio, a fim de cele­
brarmos a memória daqueles que já combateram, para formar­
mos e prepararmos a substituição.152
A alusão à reunião junto ao túmulo e a celebração “com júbilo e
alegria", na descrição dos atos apócrifos de João, apresentam a reu­
nião junto ao túmulo como “uma sinaxe (reunião) eucarística”.153
Tertuliano134 e a Didascália155 afirmam explicitamente que a comuni­
dade celebrava a eucaristia sobre as relíquias dos mártires. Muitas
vezes, como no caso dos outros mortos, oferecia-se nessa ocasião
uma refeição em favor dos pobres e dos infelizes.156 Nas catacumbas,
onde dormiam irmãos e irmãs, a comunidade se reunia para cele­
brar a eucaristia sobre o túmulo dos mártires e dos mortos. Os cris­
tãos cobriam as paredes de orantes, no meio de árvores do paraíso,
para confessar sua fé no país do repouso, da paz e da luz.
A fé em Cristo ressuscitado abriu decididamente para a exis­
tência cristã uma dimensão para a eternidade, mediante a transfe­
rência do mistério da morte para o mistério da vida.
212
CONCLUSÃO

DO SONHO À REALIDADE

Os cristãos dos primeiros séculos se encontravam diante de


duas realidades: o Evangelho e a vida cotidiana. Como adaptar a
vida à fé recebida, sem trair uma vírgula, mas também sem aban­
donar as ocupações terrenas, as responsabilidades com a família e
a profissão e sem procurar um álibi, como tinham feito certos cris­
tãos de Salônica, que transformaram a espera em inação?
As formas de evasão do cotidiano eram muitas e sutis. Todas
elas se reduziam ao conflito entre o presente e o futuro, entre o enrai­
zamento na vida diária e a recusa a ser prisioneiro seu, ao ponto de
exacerbar a tensão para o reino vindouro. Os primeiros cristãos
experimentavam em sua carne quão dilacerante era o trágico cris­
tão, mas sabiam que tinham em suas mãos as pontas dos cordéis.
A esse respeito, o florescimento dos escritos apócrifos nos dois
primeiros séculos é sintomático. A magia do maravilhoso e do sonho
contrastava com a sobriedade do Evangelho, mas respondia a uma
curiosidade e à impaciência com o provisório, mediante a conivên­
cia da imaginação e do colorido. Esse museu do imaginário cristão
não deve pôr a perder de vista que há sangue misturado com o pre­
paro das cores.
Uma faixa da comunidade cristã queria preencher os silêncios
da Escritura, reduzir a zona da fé e da espera e tocar imediatamen­
te — como Madalena, no dia da ressurreição — um mistério que
era apenas promessa. Nos evangelhos apócrifos, uma fé que se muda
em crença, às vezes em credulidade, se vinga, se “auto-sugestiona”
e se agita no reino do sonho. O nascimento de Jesus e sua infância,
descritos com uma discrição de pastel no evangelho de Lucas, pro­
vocavam aí uma multiplicação de prodígios. A evangelização dos
apóstolos se enriqueceu com iluminuras do maravilhoso. Basta lem­
brar o combate que opôs Pedro ao mago Simão, espécie de pregação

213
ao ar livre, que atraía curiosos, deslumbrava os pagãos e produzia
conversões. A fé parecia propagar-se por uma abundância de mila­
gres.
A ingenuidade dos escritos apócrifos não nos deve enganar. A
quem percebe, além do prodígio, a significação, essas narrativas
ingenuamente maravilhosas, reduzidas à sua fonte de inspiração,
querem concretizar em “tecnicolor” a perturbação cósmica revela­
da à fé e operada pela ressurreição de Cristo. A imaginação reduz a
lenda dourada o que foi prometido apenas à esperança.
O mesmo sucede quando se trata de perscrutar o acontecimen­
to. “Ninguém sabe o dia nem a hora do retomo, nem o Filho do
Homem”, afirma o Evangelho. Em vez de ater-se a essa palavra de
Cristo, que embaraçaria os teólogos, a primeira geração — e o pró­
prio Paulo, na primeira parte de sua vida — esperava o retomo
próximo do Senhor e, ao mesmo tempo, o fim do mundo. Toda uma
geração viveu essa tensão, a qual inspirou os escritos do meio ju-
daico-cristão.
O extraordinário sucesso do montanismo, que arrastou uma
cabeça tão bem formada como a de Tertuliano, deve-se inegavel­
mente às promessas de uma parusia próxima, de uma redução da
espera e do desconhecido e de um tempo de apocalipse. Nada de
mais humano e mais natural do que refugiar-se nessa espera, com o
perigo de abandonar o cotidiano, a família e as responsabilidades e
de esvaziar o trágico cristão do que constitui sua verdadeira essên­
cia. A psicanálise de certo desvio, que ameaçava os cristãos — e que
Nietzsche denunciou — tinha aí terreno da melhor qualidade.
Justino e Irineu, momentaneamente aturdidos pelo sonho, pro­
jetaram a espera na realização terrena de um reino de mil anos.
Deve-se reconhecer que esse milenarismo tinha caráter episódico
em seus escritos, não paralisou sua ação nem embalou sua intuição
teológica.
Os pagãos da época, incapazes de discernir a essência do cris­
tianismo de seus elementos adventícios, denunciaram em seus adep­
tos a tentação da evasão, o gosto do trágico ou a procura da morte.
Desde suas origens e periodicamente no decorrer dos séculos, a Igreja
se viu obrigada a moderar o zelo dos temerários, que pretendiam
deter o tempo e a vida, em vez de situá-los em uma teologia da
história.
214
Outros se instalavam nessa história e reduziam a fé a uma gnose
ou a uma segurança da eternidade que a esvaziava de sua substân­
cia e de sua tensão. Eles perdiam de vista que a fé não é instalação
no conforto nem construção de sistema para alegria do espírito,
mas confronto com o cotidiano e retomada diária do projeto, na
“espera ansiosa e obscura do Inaudito”.
O bispo Cipriano foi um modelo de equilíbrio e moderação.
Soube esperar, dando prioridade ao seu trabalho pastoral e não
hesitando em ocultar-se até o dia em que julgou que suas ovelhas
tirariam mais benefícios de sua confissão que de sua presença. Foi
o protótipo da maioria silenciosa e fiel.
Os que se sentiam mal na existência ou que desertavam sempre
foram exceções. Os outros — a grande maioria — viviam o heroísmo
do cotidiano e a tensão existencial da fidelidade criadora. Irineu
não se contentou com esboçar uma teologia da história, mas viveu
a condição cristã em uma liberdade que se construiu e que cons­
truiu a obra começada pelas “duas mãos” do Pai.
A tarefa cotidiana que o cristão executava no seio de sua famí­
lia, de sua profissão e da cidade não era, em primeiro lugar, a
exaltação de sua obra criadora pessoal, mas a inserção de sua liber­
dade na economia regida por Deus. O que constitui o cristão e sua
mensagem ultrapassa sem cessar as realizações humanas, mesmo
as apostólicas. O cristianismo se apresenta como igreja da esperan­
ça ou perde sua razão de ser.
Situado entre o presente e o futuro, entre o cotidiano e a pro­
messa, o cristão, segundo Irineu, só constrói de maneira duradoura
à medida que aspira, com todo o seu ser, a ver Deus e a caminhar ao
seu encontro. O peso dessa esperança não entrava as responsabili­
dades terrenas, mas desloca seu centro de gravidade, ligando-as à
mão invisível que é seu princípio e seu termo.
Inácio e Blandina, Justino e Perpétua e todas as testemunhas
anônimas de Lião, Roma ou Cartago permitem compreender que o
extraordinário do fato cristão não é o prodígio — o qual, não obstante,
multiplicou-se em suas “paixões” —, mas a fé, que transfigura a vida
cotidiana, e a esperança, que doma o trágico e atravessa a noite.
Para quem freqüenta as primeiras gerações cristãs, principal­
mente os mártires, diariamente ameaçados e inseguros quanto ao
amanhã, o que impressiona é sua alegria de viver e sua serenidade

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diante da morte. Onde a filosofia só podia adensar a angústia, o
Evangelho, depois da noite, "despertava a aurora”. Os pagãos de
Lião e o imperador Marco Aurélio não puderam ou não quiseram
ler esse testemunho.
Na metade do século II, a espera do fim do mundo ainda levou
a vibrar a última página da Didaqué, mas progressivamente se ate­
nuou, decantou-se e interiorizou-se, sendo substituída por desejo
mais pessoal de unir-se a Cristo na glória. O murmúrio de água
corrente que se elevava do mais íntimo da fé em Inácio e dizia:
“Vem para o Pai", era repetido pela geração dos primeiros cristãos
com um fervor que emocionava, com uma segurança que tranqüili-
zava e com a novidade dos corações desimpedidos. Àqueles que a
esperam vigilantes, Deus manifesta a aurora que clareia.

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