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K. PL
DO C éu
_3 As liistórias,
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-
j f# 1 1#Í
as iceias^ •e1 ^
os personagens
A) AmiGo T estm ento
VOLUME I
^tinas
Um itinerário fascinante e ckeio de surpresas
através áas kistórias, dos personagens, áos
símLolos e áas idéias áo Antigo Testamento.
Um texto indispensável para acompanliar
a leitura da Bítlia.
Paulinas puLlicou:
A Boa Nova:
as kistórias, as idéias e
os personagens do
Novo T estam ento —vol. II
A expectativa do Salvadc
no A ntigo T estam ento
(no prelo)
A N a r r a t iv a
DO C éu
As nistórias, as idéias
e os personagens
do A n tig o T e st a m en t o
G ian fra n co R avasi
A N arrativa
DO C éu
As nistórias, as idéias
e os personagens
.0 A n tig o T estam .h nto
VOLUME
Sulinas
Dados Internacionais dc Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
99-2036 CD D -221.6
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Ab A bdias Jo João
Ag A g eu IJo 1 João
Am A m ós 2Jo 2 João
Ap A p oca lip se 3Jo 3 João
At A tos dos A p óstolos Jr Jeremias
Br Baruc Js Josué
Cl C o lo ssen ses Jt Judite
IC or 1 C oríntios Jz Juizes
2Cor 2 Coríntios Lc Lucas
ICr 1 Crônicas Lm L am entações
2Cr 2 Crônicas Lv L evítico
Ct C ântico dos C ânticos Mc M arcos
Dn D aniel IM c 1 M acabeus
Dt D euteronôm io 2M c 2 M acabeus
Ecl E clesia stes (C oélet) Ml M alaquias
E clo E clesiá stico (Sirácida) Mq M iquéias
Ef E fésio s Mt M ateus
Esd Esdras Na N aum
Est Ester Ne N eem ias
Ex Ê xod o Nm N úm eros
Ez E zequiel Os O séias
El F ilip en ses IPd 1 Pedro
Fm F ilem on 2Pd 2 Pedro
G1 Gálatas Pr Provérbios
Gn G ênesis Rm R om anos
Hab H abacuc IR s 1 R eis
Hb Hebreus 2R s 2 R eis
Is Isaías Rt Rute
Jd Judas Sb Sabedoria
J1 Joel Sf Sofonias
Jn Jonas SI Salm os
Jó Jó IS m 1 Sam uel
2Sm 2 Sam uel IT s 1 T essalonicenses
Tb T obias 2T s 2 T essalonicenses
Tg T iago Tt T ito
ITm I T im óteo Zc Zacarias
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* * *
* * *
O “m anto ” d e D eu s
Vinte e d o is c o rista s
T e rro r na b a rra
G eo g ra fia m ística
n
o rei — “te ó lo g o ” Salom ão, no dia da consagração do
tem plo, preocupa-se em resolver a antinom ia entre a infinitude
de D eu s e sua presença no espaço. R echaçando qualquer co n
cep ção m ágica da divindade “encarcerada” na área sagrada do
tem plo, interroga-se; “Será p o ssív el que D eu s habite na terra? S e
não cab es no céu e no m ais alto dos céu s, m uito m en os neste
tem plo que eu construí!” (IR s 8 ,27). E no entanto o Senhor
havia se preocupado com esse lugar: “L á estará o m eu n o m e!”
(IR s 8,29) — e no m undo sem ítico o nom e é o próprio ser da
pessoa, sua identidade dinâm ica. A tensão entre presença e d is
tância encontra, enfim , um a solução; “O uve as súplicas do teu
servo e do teu p ovo Israel, quando rezarem neste lugar. E scuta
de tua morada no céu. E scuta e perdoa!” (I R s 8,30).
D eus, portanto, ouve do seu “esp aço” infinito, mas aceita
tornar-se “audível” e operante no interior da área sagrada do tem
plo, que não é a residência terrestre da divindade, com o se co n ce
bia nas culturas religiosas adjacentes; é tão-só o sinal de um en
contro entre a liberdade humana e a liberdade divina. E is por que
0 santuário m óvel do deserto se cham ava ‘o h el m o ’ed, “tenda do
encontro”. U m “encontro”, decerto, m as por convocação do S e
nhor (o santuário será definido tam bém com o qahal, “con v o ca
ção” do povo por parte de Jhwh; daí a versão grega ekkiesía,
“igreja”), que reúne os filhos de Israel e com eles dialoga. Por
essa razão, a sacralidade do tem plo não é automática, mas adstrita
e dependente da livre decisão divina, com o recorda uma célebre
página de Jeremias, o capítulo 7 de sua profecia, em que se des-
m itifica a ilusão de deter os exércitos babilônicos dizendo; “Este
é o Tem plo de Javé, T em plo de Javé, T em plo de Javé!” . Se falta o
em penho moral, se o culto é m agia, se a justiça pereceu, o tem plo
é “um covil de ladrões”, e não a sede do Salvador.
N o ve p o r ç õ e s d e d o r
O hom em do sex to d ia
A “v ia -c r u c is ” d e A d ã o
N o ja rd im p e r s a
Um a á rv o re n ão c a ta lo g a d a p e la b o tâ n ica
Uma se rp e n te n ão c a ta lo g a d a p e la z o o lo g ia
O q u adro d efo rm a d o
O " p a ra ís o ” p e r d id o
Um a la b a red a fu m e g a n te na n oite
O riso d e S ara
“Ó E tem o, não largarei sua m ão, sua dura m ão, antes que
m e tenhas abençoado. A bençoa-m e e, sua hum anidade, que so
fre, sofre pelo teu dom de vida! Eu, por prim eiro, sofri tanto,
tanto, pela dor de não poder ser aquilo que queria.” A ssim reza
um personagem da G ra n d e stra d a m a e stra , de A ugust Strindberg
(1909), evocando o capítulo 32 do G ên esis (2 3 -3 3 ), em que
Jacó, filh o de Isaac, en ceta um com bate n otu m o com um ser
m isterioso ao lon go das m argens do rio Jaboc. U m duelo que,
com infinitas variações, fascina há sécu los a arte e a literatura.
N a arte paleocristã, a luta é m odelada co m base nos antigos
grupos estatuários dos lutadores do cla ssicism o greco-rom ano.
Inesquecível é a extraordinária m obilidade e poder do confronto
entre Jacó e o anjo (a tradição transfigurará aquele m isterioso
personagem , sím b olo d ivino, em um a criatura an gelical) na tela
de Berlino di Rembrandt (1 6 5 9 ), superior ao clá ssico afresco de
D elacroix, no S ão Su lp ício de Paris, ou ao ó leo sobre tela de
Chagall e a tantas outras realizações iconográficas.
C onsideram os um a n otável e x c e ç ã o a V isione d o p o il
serm one, de G auguin (1 8 8 8 ), conservada em Edim burgo. Em
primeiro plano, aparecem as típicas toucas de algum as m ulheres
bretãs que acabaram de ouvir um serm ão sobre o G ên esis 32; no
centro, em um a praça cor de sangue, o anjo e Jacó, abaixado,
estão travando a luta. O m istério do encontro-desencontro com
D eus reproduz-se no cotidiano da vida, à saída da igreja, na
praça do vilarejo. O poeta russo M aiakow ski considerava aquela
luta, ao contrário, com o parábola da própria recusa agressiva:
“Já se sabe; entre m im e D eus há m uitíssim as d issen sõ es... A qui
vive 0 soberano de tudo, m eu rival, m eu insuperável in im ig o ” .
Diferente é o sentido do trecho para o J a co b (1 9 7 0 ) do poeta
francês Pierre Emmanuel: “Para que não haja dúvidas sobre o
êxito do com bate, é necessário que D eu s nada p o ssa contra o
hom em e o hom em tudo possa contra D eus. A ssim D eu s luta em
forma de hom em , tendo som ente co m o atributos de m ajestade
nosso selo real, a face hum ana” . M as d eixem os essas e outras
reelaborações (de Lamartine, N orge, B en Jelloun, W iesel) e v o l
tem os ao texto bíblico em seus com ponentes estruturais, na co n
vicção de que em tal passagem se encontra uma outra figura da
fé e da relação entre o hom em e o divino, com o exp eriên cia
dramática no sentido pleno do term o, ou seja, de ação, de busca,
de luta. “O nom e, isto é, a realidade do novo p o v o , Israel”,
observa o teó lo g o americano H arvey C ox, “não se constitui m ais
com base na fé, mas antes em razão da luta com D e u s.”
Jacó, exilado, está para voltar à terra dos pais, dep ois de
ter passado anos com o em igrante na casa de seu tio L abão, m as
no horizonte surge am eaçador o irm ão enganado, Esaú. A o anoi
tecer, ele cam inha pelas m argens espum antes do “rio azul”, o
Jaboc, afluente do Jordão. A li será seu G etsêm ani, onde deverá
viver um a “agonia”, um com bate e um a experiência de morte.
Certam ente não faltam à narrativa elem en tos m íticos e folclori-
cos. Há a id éia da luta contra o espírito (dem ônio ou deus) de
um rio: p en se-se na lenda cristã de são C ristóvão, ou no m otivo
do espírito m align o pod eroso, so zin h o à n oite, presente no
A tifitrione, de Plauto, ou no ato I do H a m let shakespeariano. H á
a explicação “teo ló g ica ” da prescrição alim entar, segundo a qual
seria tabu a carne que contém o nervo ciático, p ois ali é que Jacó
foi atingido p elo ser m isterioso. Há a ju stificação popular da
toponím ia de Fanuel, “rosto de D eu s” : “Eu vi D eu s fa ce a fa c e ”
(Gn 32,3 1 ), declara Jacó. H á o elem ento nacionalista da força do
herói epônim o de Israel, capaz de desafiar até a divindade.
M as o fulcro da narrativa está todo na luta com o ser
m isterioso e no n ovo n om e que sela a história de Jacó: “U m
hom em lutou c o m Jacó até o despertar da aurora. V endo que não
con segu ia d om iná-lo, golp eia-o na articulação do fêm ur... Jacó
lhe diz: ‘N ã o o soltarei enquanto v o c ê não m e abençoar’... E le
replicou; ‘V o cê não se chamará m ais Jacó, mas Israel, porque
lutou com D eu s e co m os hom ens, e v en ceu ’. Jacó pediu-lhe:
‘D iga-m e o seu n o m e ’. M as ele respondeu: ‘Por que v o cê quer
saber m eu n o m e? ’ E aí m esm o o aben çoou ” (Gn 3 2 ,2 5 -3 0 ). O
profeta O séias inteipretará assim o episódio: “Jacó, já adulto,
lutou com D eu s, lutou com o anjo e venceu, chorou e pediu
graça” (Os 1 2,4-5). O evento aparece co m o um “pedido de gra
ça” que, para o livro da Sabedoria, se tom a “piedade” , oração:
“O Senhor... con ced eu a Jacó a vitória em um a dura luta porque
sabia que a pied ade é m ais forte do que tudo” (Sb 10,12),
A enguia d e Jó
Se este é um D eus...
O ou vido e o olho
S ob um. ra m o de a m en doeira
S in cero a p e s a r d e tudo
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insere-se na vertente da liberdade e da graça. Por um lado, com
efeito, há a revolta do hom em exasperado, cansado de ser porta
dor de um a m ensagem que m arginaliza, aborrece, humilha. Por
outro, há a m anifestação de um D eus que irrompe na história de
um hom em , transtom ando-a e subvertendo-a. A dialética se agu
ça: de sim ples contraponto inicial, tom a-se contradição, que Jere
m ias apresenta, com veem ência, no m om ento m ais crítico, quan
do atinge o lim ite e ele quer fugir, lançando às urtigas o m anto de
profeta. E a m ais célebre das suas “C o n fissõ es”, que agora seg u i
rem os nas passagens ilustrativas da tensão vivida pelo profeta,
que o arroja com extrem a sinceridade para o céu.
O testem unho m ais exem plar encontra-se no capítulo 20,7-
10.15-18. P recede-o uma das m uitas prisões do profeta, ordena
da, desta vez, pelo ch efe do alto clero do tem plo de Jerusalém ,
um tal Pascur ben Immer.
C om um a m etáfora audaz. Jerem ias recorda o m om ento
d ecisiv o de sua vida, o da vocação em Anatot. A m etáfora usada
geralm ente induz o leitor a erro: “Tu m e sedu ziste, Senhor, e eu
m e d eixei seduzir. F oste m ais forte do que eu e ven ceste. Sirvo
de piada o dia todo, e todo m undo caçoa de m im ” (Jr 20,7). N ão
se trata da sedução am orosa, m as do engano de um incapaz. N o
“dia da am endoeira”. D eus o seduziu, atraindo-o c o m um fa sc í
nio irracional, co m o quem enreda um a p esso a inexperiente com
falsas prom essas para que dê seu consentim ento às manobras da
própria astúcia. E v io lên cia moral, od iosa e condenável. Cora
um a sinceridade que beira a b lasfêm ia, o profeta acusa D eu s de
covardia e d e engodo. Eis, então, a decisão de abandonar a pró
pria voca çã o , radicalm ente viciada. A o m esm o tem po, porém ,
eis que reaparece o Senhor, c o m sua im placável captura interior.
“Eu m e dizia: ‘N ão pensarei m ais nele, não falarei m ais no seu
n o m e !’ Era com o se h o u v esse no m eu coração um fo g o ardente,
fechado em m eus ossos. E stou cansado de suportar, não agüento
m ais!” (Jr 2 0 ,9 ). A palavra d ivin a volta, inexorável, a penetrar
no íntim o do m aldito eleito. A ssem elh a -se a um in cên d io que
inflam a o coração, uma lava ardente que penetra nos o sso s. E o
hom em d e v e confessar a própria im potência de resistir.
“R u ge o leão: quem não trem erá?” — afirm ava um outro
profeta, A m ó s, tam bém ele um co n vocad o à força — “O Senhor
D eus fala; quem não profetizará?” (A m 3,8). E Paulo: “A i de
m im se não pregar o ev a n g elh o !” (IC o r 9 ,1 6 ). D ram ática urdi
dura entre liberdade hum ana e obra divina: nó górdio para Jere
m ias e para teó lo g o s e filó so fo s. A liberdade, porém , não é
anulada, co m o atesta a últim a e terrível estrofe da “C o n fissã o ”
de Jeremias. A o hom em resta o grito de protesto extrem o e de
desespero: “M aldito seja o dia em que eu nasci. Que jam ais seja
bendito o dia em que m inha m ãe m e deu à luz. M aldito o ho
m em que levou a n otícia a m eu pai dizendo: ‘N asceu um filh o
hom em para v o c ê !’, ench en do-o de alegria. Q ue essa p esso a
sofra igual às cidades que o senhor destruiu sem com paixão;
ouça gritos pela m anhã e rumores de guerra ao m eio-dia. Por
que não m e fez morrer no ventre m atem o? M inha m ãe teria sido
a m inha sepultura, e seu ventre estaria grávido para sem pre! Por
que saí do ventre m atem o? Só para ver torm entos e dores, e
terminar m eus dias na vergonha?” (Jr 2 0 ,1 4 -1 8 ). Jó, no capítulo 3,
retomará o m esm o grito suicida, ou m elhor, o m esm o d esejo de
não ter sequer existid o, em um sonho de liberdade e de paz.
O intrincado nó certam ente não se desata. Surpreendente
m ente, porém , resta o fato de que D eu s não condena a b lasfêm ia
do desesperado, e que Jerem ias retom a sua m issão com ardor. A
relação com D eu s é um capítulo grandioso, lum inoso e tenebro
so da vida de um a pessoa. D e A braão a Jacó, de Jacó a Jerem ias,
delin eia-se um a trajetória nobre e desconcertante, gloriosa e d e
sesperada, clara e emaranhada. M as, para usar um a expressão do
escritor m ístico persa, o m uçulm ano Farid ed-din ‘Attar, não é
m elhor arriscar-se a ser queim ado p elo sol, em um tresloucado
vôo, do que passar anos chafurdando na im undície? N e ste sen ti
do, podem os selar n osso itinerário, na seqüência do “herói da
fé ” , com a citação do célebre M em o ria le, costurado por Pascal
no forro do co lete e encontrado por um em pregado, escrito em
um pergam inho e copiado em um a folh a de papel, por ocasião
da morte do filó so fo . Pascal dera a e sse texto o título de F uoco
[Fogo], e 0 costurava e descosturava no forro das várias roupas
que vestia, d esd e o s 31 anos de idade, em 1654, até sua m orte,
ocorrida em 16 6 2 . “D eus de A braão, D eu s de Isaac, D eu s de
Jacó, não dos filó so fo s, dos doutores. Certeza, certeza. S en ti
m ento. A legria. Paz. D eu s d e Jesus Cristo. M eu D eu s e v o sso
D eus. V o sso D eu s será m eu D eu s. E sq u eço-m e do m undo e de
tudo, m enos de D eus. Só o encontram os nos cam inhos assinala
dos p elo ev a n g e lh o .”
IV
Do pó da história,
um murmúrio
4. A nanativa...
libertação da morte. É uma nova criação, na qual “a terra firme
surge onde antes era água. O mar V erm elho se transforma em
caminho livre, e as ondas violentas se tom am planície verdejante.
Através dele passa todo o teu povo, protegido por tua mão, con
templando prodígios admiráveis. Como cavalos conduzidos ao pasto
e com o ovelhas saltitantes, todos cantam hinos para ti, Senhor, seu
libertador... Os elem entos da natureza trocam suas propriedades
entre si, da m esm a forma que na harpa as notas m odificam o
desenvolvim ento da m úsica, mas conservando sempre o m esm o
tom" (Sb 19,7-9.18). A o contrário, os capítulos 11-19 desse livro
bíblico, com posto talvez em Alexandria do Egito, em grego, por
volta do ano 30 a.C., são uma nova reflexão sobre o êxodo, enten
dido com o um embate definitivo entre o Bem e o Mal, desaguando
na terra prometida da esperança última e perfeita.
O a sso b io e o m artelo
O D eu s d a s m il em b o sca d a s
D e z "nãos" ou d e z “s in s ” ?
O im pério d a lei
A lá p id e p a rtid a
S a g ra d o s ou sa n to s ?
Incenso n ão é d ro g a
O b o i do hom em p e rv e rso
A n tro de crim in o so s
D e 6 1 3 a l l m an dam en tos
Um a d ie ta d e co a lh a d a e m el
“N in gu ém sa b e a té quando... "
Um d o rso fla g e la d o
Um liv ro trilín gü e
б, A rarraliva.
161
m essian ism o da ação. O sentido da p a ssa g em , porém, propende
a exaltar a m eta últim a da história, já que, p o r intervenção d iv i
na, um m isterioso k e-bar-n ash , em aram aico “alguém sem elhan
te a um filho de h o m em ”, receberá de D eu s u m poder de gover
no universal e in d efectível. N o contexto da p assagem , exp lica-se
quem é este gestor do poder có sm ico por d eleg a ção divina: em
outras tom adas repete-se que “os santos do A ltíssim o receberão
0 reino e o possuirão para sem pre... e chegará a hora em que os
santos tom arão p o sse do reino... então o reino, o im pério e a
grandeza de todos os reinos que existem sob o céu serão entre
gues ao po v o dos santos do A ltíssim o, cujo reino será eterno, e
todos os im périos o servirão e o obed ecerão” (D n 7 ,1 8 .2 2 .2 7 ).
C om a linguagem entalhada de criptogram as que lhe é típica,
D aniel personifica, no “filh o de hom em ”, “o p ovo dos santos”,
isto é, o s ju stos e, concretam ente, os heróis da rebelião dos
M acabeus contra opressão sírio-helenística. M ais uma vez, esta
m os diante de uma referência a um a situação histórica precisa,
na qual a esperança é alusivam ente sem eada.
O horizonte, porém , é glorioso e ch ega até o cum e da
história, superando esp aço e tem po. Por isso , a tradição judaica
foi a prim eira a assum ir a p assagem de D aniel em chave m essiâ
nica explícita, intuindo no personagem “sem elhante a um filho
de h om em ” o rosto do M essia s. A gora extinta a dinastia da
vídica, o perfil do n ovo M essia s revela contornos cada vez m ais
destacados dos vínculos cam ais e históricos: d iz-se, por ex em
plo, que e le “aparece entre as nuvens do céu ”, veículo clássico
das teofanias. A centua-se, por isso , a dim ensão transcendente e
gloriosa do M essias. N esta trilha, colocar-se-á, em seguida, a
tradição cristã, que nos ev a n g elh o s assum irá a expressão “Filho
do h om em ” com o título e x c e lso e pleno do M essias Jesus. A
ap licação a si m esm o d essa profecia apocalíptica, problemática
em relação à rigorosa e m onoteísta transcendência bíblica, por
parte de Jesus, no interrogatório diante do sum o sacerdote Caifás,
dará pretexto à acusação d e b lasfêm ia contra ele: “D e agora em
diante, v o c ê s verão o F ilh o do H om em sentado à direita do
T odo-pod eroso, e vindo sobre as núvens do céu. Então o sumo
sacerdote rasgou as próprias vestes, e disse; ‘E le blasfem ou!’”
(M t 2 6 ,6 4 -6 5 ).
Originado do trono de D avi, arrem essado ao pó co m seu
p o v o escravo e elevad o à glória celeste, o M essias percorre um a
parábola aberta que o cristianism o fechará em Jesus de Nazaré.
Para o judaísm o, o M essias perm anece criatura, mas seu itinerá
rio sobe aos céus, sua trajetória ultrapassa o tem po e o espaço
para encontrar o eterno e o infinito. Por isso, proporem os agora
um salto no além -vida, segundo as Escrituras hebraicas, e no
além -con fin s, isto é, para além da terra de Israel. Iniciarem os
com um vôo para além dos esp aços geográficos da terra santa,
em direção a um universalism o conquistado a duras penas.
A antiga bênção abraâmica com preendia este anúncio: “Em
você, todas as fam ílias da terra serão abençoadas” (Gn 12,3). A
eleição de Israel no Sinai com o “propriedade especial de D eus
entre todos os p ovos, reino de sacerdotes e nação santa” (Ex 19,5-
6), antes que m issão e dom , tom ou -se quase uma honra, um privi
légio. Form ou-se assim , em torno de Israel, uma muralha sagrada,
reforçada pela com unidade em ersa do ex ílio , que fizera de Jerusa
lém um a cidadela sagrada e, de seus habitantes, uma “raça santa”,
da qual deviam ser expulsos todos os estrangeiros, in clu sive as
esposas dos casam entos m istos, com o imporá o sacerdote Esdras,
alferes do renascido judaísm o p ó s-ex ílico (Esd 10).
N e ssa atm osfera asfixiada, levanta-se a v o z dos profetas.
Já vim os que o Servo de Jhwh d eve correr até as “ilhas”, ou seja,
as regiões m ais rem otas dos antigos planisférios, para anunciar a
palavra divina. O senhor lhe disse: “É m uito pouco v o cê tom ar-
se m eu Servo, só para reerguer as tribos de Jacó, só para trazer
de volta os sobreviventes de Israel. F aço de v o cê um a luz para
as nações para que a m inha salvação ch egu e até os co n fin s da
terra” (Is 4 9 ,6 ). U m a m issão universafista, reforçada em um o u
tro retrato m essiâ n ico p ó s-ex íiio , aquele oferecido p elo profeta
Zacarias, em um a passagem m uito cara à tradição evangélica:
“D ance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de
Jerusalém , p ois agora seu rei está chegando, justo e vitorioso.
E le é pobre, v em m ontado num jum ento, num jum entinho, filh o
de um a jum enta. E le destruirá os carros de guerra de Efraim e os
cavalos de Jerusalém ; quebrará o arco de guerra. A nunciará paz
a todas as n a ç õ e s...” (Z c 9,9 -1 0 ). U m anúncio universal d e paz
às nações da terra: este é o dom do rei-M essias. Já o Prim eiro
Isaías, em um hino de S ião que se tom ou justam ente célebre,
sonhara para “o fim d o s d ias” um a Tpaz-shalôm m essiân ica c ó s
m ica (Is 2 ,2 -5 ). Correntes de p o v o s, flu x o s de nações, rios de
estrangeiros teriam acorrido em marcha para S ião, à procura de
um a palavra eterna. “C hegando lá em cim a, naq uele m onte que
se ergue co m o um farol de luz em um m undo en v olto em trevas
planetárias, teriam deixado cair das m ãos espadas e lanças para
transform á-las depois em instrum entos técn icos para o d esen v o l
vim en to pacífico: “D e suas espadas eles fabricarão enxadas, e de
suas lanças farão fo ic e s. N en hu m a nação pegará em armas co n
tra outra, e ninguém m ais vai se treinar para a guerra” (Is 2,4).
E é no m esm o livro que lem o s um outro oráculo, con sid e
rado, porém , p elos estu d iosos um texto m uito tardio, talvez do
sécu lo III a.C.: “N aq uele dia, Israel será m ediador entre E gito e
A ssíria; será um a bênção no m eio da terra, porque o Senhor dos
exércitos o abençoa dizendo: ‘B endito seja o E gito, m eu povo, e
a A ssíria, obra das m inhas m ãos, e Israel, m inha herança’ ”
(Is 1 9 ,24 -2 5 ). O olhar se lança para um a plenitude futura e dis
tante, exp ressa pela locu ção “naquele dia” (recorde-se “o dia de
Jhw h”, cantado por A m ós co m o m om ento do in gresso d ecisivo
de D eu s na história humana); o s tradicionais in im igos de Israel,
as duas potências egíp cia e assíria, tom ar-se-ão objeto da aliança
e da bênção divina, enquanto Israel fechará a tríade, revelando-
se sem pre com o “a herança” , isto é, a realidade m ais preciosa,
propriedade esp ecial do Senhor. E um obscuro profeta de nom e
M alaquias, que ocupa o últim o lugar na série dos profetas, criti
cando o culto form alista do tem plo de Jerusalém , chegará a e s
crever: “D o Oriente ao O cid ente, é grande o m eu n om e entre as
nações. E em todo lugar se o ferece incenso ao m eu nom e e uma
oferta pura, pois grande é o m eu nom e entre as nações diz o
Senhor dos exércitos” (M l 1,11).
O m otivo universalista da abertura da salvação a todos “os
con fin s da terra”, isto é, a tod o s o s p ovos, brilha co m um a luz
única na b ela parábola que tem com o protagonista o profeta
Jonas. D atável do tardo p ó s-e x ílio , a narrativa é rica de mudan
ças bruscas de cena e de alu sõ es exóticas que contribuíram para
popularizar o livro na arte: o p ersonagem aparece j á no fam oso
“sarcófago de Latrão”, do sécu lo III; foi pintado por M ichelângelo
na abóbada da capela Sistina, co m o um jo v e m que discute com
D eu s gesticulando (ao lado d ele estão os sím b olos do p eix e e da
árvore de m am ona); C orreggio, na cúpula de S ão João ev a n g e
lista, em Parma, e R ubens, num a tela conservada na cidade de
N an cy, im aginam -no velh o e barbudo; enquanto Jan B ruegel o
apresenta na clá ssica cen a do “v ôm ito” da baleia na praia, onde
em ergirá o pobre profeta. F alam os de alu sões brilhantes e ex ó ti
cas. V ejam os algum as, antes de definir o n ú cleo tem ático da
parábola: a vontade salv ífica universal de D eus.
A m a m o n eira d o p ro fe ta
Luz n eg ra e ca rru a g em de fo g o
" O rto d o x ia ” e “h e te ro d o x ia ”
185
no seu substancial otim ism o, na sua fé serena, em bora percorri
da de alguns arrepios de m edo diante do escândalo do m al e da
injustiça. É com o se um a objetiva cinem atográfica ou telev isiv a
fo sse colocad a em um a casa e, à A ndy W arhol, captasse 24
horas de vida fam iliar ou pessoal. Ou co m o se, numa praça, se
assistisse ao d esfile dos esplendores e das m isérias da vida c o ti
diana, das artes e dos o fíc io s, das estações e dos eventos sociais,
dos nascim entos e óbitos, dos prazeres e dos sofrim entos. Tería
m os diante dos olhos pequenas cenas do cotidiano, com refle
x õ es m ínim as, sem elhantes a um raio, que falam do sentido da
existên cia, do divino e da m oralidade, da in teligência e da estu
pidez. Seria um a religião das pequenas coisas, m as tam bém do
universo, convencid a de que D eus se revela tanto no plano m a
croscóp ico com o no m icroscóp ico. M uitas v e z e s, as cores serão
sim plificadas, em preto-e-branco, sem m atizes nem variações:
ao justo se opõe o ím pio, ao sábio, o estulto, ao ocio so , o d ili
gente, ao fie l a vontade de D eu s, o praticante do que D eus abo
mina. O registro dessas duplas m orais antitéticas não será nunca
frio ou som ente curioso, com o poderia ser o de um B alzac atento
à “com éd ia hum ana” . N ão será tam bém um levantam ento m era
m ente estético de pequenas cenas naturais: há, de fato, só nos
capítulos 2 5 -2 7 , à guisa de exem p lo, as fontes, as pedras, a areia,
os cam pos, a água, o feno, os espinheiros, o vento, as nuvens, a
chuva, a n eve, o frio, o calor do verão, o burro, o cavalo, os
rebanhos, o leão, os pássaros, as cabras, o ourives, o tecelão, o
carpinteiro, o cam ponês... M as estas realidades são sím b olos ou
m esm o o ca siõ es para liçõ es de vida. E não será som ente um a
análise de tipo an trop oló g ico -filo só fico , com o propôs B acone,
co n v en cid o de que “o gên io, a sabedoria e o espírito de uma
nação são descobertos nos seus provérbios”. Os P rovérbios per
m anecem co m o um texto relig io so e moral; o filtro da R evelação
divina joeira as pessoas, as atitudes e as coisas, julgando-as.
Procurem os, antológica e tem aticam ente, traçar um arco-
íris das reflexões do livro dos Provérbios, algo sem elhante ao
que fe z M ilhaud em 1951, c o m sua C antata d e i P ro v e rb i. E sc o
lherem os um a esp écie de arco-íris alfabético, im itando a técnica
com a qual foi construído o últim o hino do livro, aquele da
m ulher ideal, que é um acróstico alfabético: as in iciais de cada
um dos 2 2 versos (Pr 3 1 ,1 0 -3 1 ) com põem o alfabeto hebraico.
N ó s, obviam ente, seguirem os n o sso alfabeto.
A co m o “alegria” : “Tam bém entre risos o coração chora, /
e a alegria termina em tristeza” (Pr 14,13). A curada observação
p sico ló g ic a sobre o riso do palhaço triste; não há alegria em
estado puro, m as sem pre eivada de m edo: “Enquanto ceias com
a Felicidade, a D or te espera na cam a” (Gibran). A com o “am i
zade” : “Certos am igos são a causa de n ossa ruína / m as existem
am igos m ais queridos que um irmão I ... I ó leo e perlrime ale
gram o coração / e co n selh o de am igo acalm a o ânim o / ... /
Tapa de am igo é leal, m as beijo de in im ig o é traiçoeiro” (Pr
18,24; 27,9; 27,6). Curiosa esta últim a aproxim ação entre a agres
são benfazeja de um am igo e o beijo de Judas: em hebraico, há
d ois verbos foneticam ente afins: m ash aq, “beijar”, e nashak,
“morder” ... Sobre a am izade, há um a im ensa seleta de ditos em
todos os livros sapienciais; tam bém um salm o sapiencial, o 133,
que retom arem os m ais adiante, exclam a: “C om o é bom , c o * o é
agradável / os irm ãos viverem u n id o s! / É co m o ó leo fin o sobre
a cabeça, / descendo pela barba / ... / É com o o orvalho do
Herm on, d escen do sobre os m ontes de S iã o ” (SI 133,1-3). A
com o “am or”: “O ódio provoca rixas, m as o amor cobrc todas as
o fen sa s” (Pr 10,1 2 ), em que o hebraico “cobrir” sign ifica “per
doar”, porque “o am or tudo descu lpa” (IC o r 13,7). A co m o
“avareza”: “O avaro corre atrás da riqueza, e não sabe que vai
cair na m iséria” (Pr 28,2 2 ). Com entará o E clesiastes: “E le acu
m ula para sua própria desgraça. Em m au n egócio, porém , ele
perde o patrim ônio” (E clo 5,13).
B com o “b eleza” : “A graça é enganadora e a b eleza é
passageira, m as a m ulher que tem e a D eu s m erece louvor” (Pr
31 ,3 0 ). B eleza que encanta, enfeitiça e perturba, mas está fadada
a perder o v iço e fenecer, e b eleza imorredoura. B com o “b onda
d e” : “Amarre a bondade e a lealdade ao redor do seu p esco ço , e
escreva-as na tábua do seu coração. / A ssim v o cê alcançará fa
vor e aceitação diante de D eus e diante dos hom ens” (Pr 3 ,3 -4 ).
E is o m elhor cola r e o am uleto verdadeiram ente eficaz: bondade
e lealdade.
C co m o “calúnia” : “A s palavras do caluniador são g u lo
seim as que d escem até o fundo do ventre” (Pr 18,8), penetram
no íntim o, transform ando-se em carne e sangue. C co m o “cari
dade” ; “Q uem ajuda o pobre, em presta a D eu s, que lhe dará a
recom pensa d evid a” (Pr 19,17). Jesus dirá: “T odas as v e z e s que
vocês fizeram isso a um dos m enores de m eu s irm ãos, foi a m im
que o fizeram ” (M t 2 5 ,4 0 ). C com o “corrupção” : “O suborno é
talism ã para quem o dá: co m ele, co n seg u e tudo o que quer” (Pr
17,8). O original hebraico fala em “pedra m ágica, talism ã”, para
definir o agrado ou a gen tileza. E p o d em os continuar assim :
“Quando os venais governam , os crim es se m ultiplicam , m as os
honestos verão a ruína daqu eles!” (Pr 2 9 ,1 6 ). C com o “cora
çã o ” : “C oração sereno é vida para o corpo... C oração contente
alegra o rosto, m as coração aflito deprim e o espírito... Coração
alegre ajuda a sarar, m as espírito abatido seca o s o sso s” (Pr
14,30; 15,13; 17,22). O “coração” é, na B íblia, sinônim o de
“c o n sciên cia ”, por isso tem notável relevância: “Guarde seu c o
ração, porque dele brota a vid a” (Pr 4 ,2 3 ).
D co m o “D eus: a lista dos provérbios “te o ló g ic o s” é lon-
gu íssim a, e n ós a d eixarem os para a verificação do leitor. A o
Senhor se abre o coração hum ano (Pr 17,3; 15,11), seu n om e é
torre fortificada (18,10); D eu s é o senhor do co sm o (3 0 ,4 ), res
peitar a D eu s é a lição m agna do m estre sábio (1,7; 3,7-8; 8,13;
15,33; 23,1 7 ), D eus se com praz co m a justiça dos n egócios (11,1),
corrige quem am a (3 ,1 2 ), transm ite sabedoria (2,6; 3,2 0 ), fa v o
rece a vitória (2 1 ,3 1 ), dá luz aos olh os (2 9 ,1 3 ), derruba o palácio
do prepotente (15,25), defende o cam po e a causa do órfão (23,10-
11), decid e a sorte dos dados no tabuleiro da história (1 6 ,3 3 ),
perscruta os cam inhos do h om em (5 ,2 1 ), v ig ia os m aus e os
bons (2,8; 15,3; 2 4 ,1 2 ) e o d eia sete coisas: “olh os altivos, língua
m entirosa, m ãos assassinas, m ente perversa, pés que correm para
0 mal, falso testem unho e litíg io entre irm ãos” (6 ,1 6 -1 9 ).
E co m o “estúpido”, “ím p io ” : “A luz dos ju sto s brilha,
mas a lâm pada do ím pio se apaga” (Pr 13,9), porque “quem
pratica o m al, odeia a luz” (Jo 3 ,2 0 ). “O ím pio fica preso em
suas próprias culpas e é apanhado na armadilha do seu p ecad o”
(Pr 5,2 2 ). R efestela-se no p ecad o, com prazendo-se na prática do
mal (Pr 10,23). M as, “quando morre, sua esperança desaparece,
e a esperança nas riquezas tam bém desaparece” (cf. Pr 11,7).
P oderíam os prosseguir indefinidam ente, porque “ím p io ” é sin ô
nim o de “n é sc io ”, de “m alvado” , de “perverso”, d e “estúpido” .
E co m o “erro” : “Q uem esco n d e seus erros, jam ais tem sucesso;
quem os c o n fessa e se corrige, será perdoado” (Pr 2 8 ,1 3 ), com o
aconteceu a Davi: “P equei contra o Senhor!”, e a Natã, o profe
ta: “A gora 0 Senhor perdoou teu p ecad o” (2 S m 12,13-14).
E então, com o “estup idez”, “estu ltice”, antônim o de sabe
doria. Tam bém n esse caso, com o para o seu oposto, bastaria
percorrer a seqüência dos vários provérbios para descobrir um
d elicio so , irônico e provocador retrato dos estúpidos, que, com o
dizia B acch elli, “im pressionam , m as apenas p elo núm ero” . “A
pedra é pesada e a areia é um a carga, m as a cólera do estúpido
pesa m ais do que am bas” (Pr 2 7,3). O E clesiá stico falava d isso
com um a fulgurante passagem : “O que é m ais pesado que o
chum bo? Q ual é o seu nom e, senão ‘in sen sa to ’? A reia, sal e
barra de ferro são m ais fáceis de carregar do que um in sen sato”
(E clo 2 2 ,1 4 -1 5 ). “É m elhor encontrar um a ursa da quaM-ouba-
ram os filhotes do que um insensato dizendo idiotices” (Pr 17,12);
“C om o cão que volta ao seu vôm ito, assim é o insensato que
repete sua estup idez” (26,11); “M esm o que v o cê soque o im b e
cil no pilão, a estupidez não se separa d ele” (27,22).
F com o “falação”: “Q uem m uito fala, acaba ofendendo; a
p essoa prudente põe freio na boca” (Pr 10,19). F com o “falsid a
de”: “M aça, espada e flech a aguda é aquele que depÕe falsam en
te contra o próxim o” (Pr 25,18). E continua: “U m falso testem u
nho não se preocupa com a justiça... M as quem testem unha em
falso não terá su cesso, não ficará impune: a testem unha falsa
perecerá... Por isso , não testem unhe contra alguém , se não tiver
provas” (cf. 19,28.9; 21,28; 2 4,28). F co m o “fam ília” : bela e
feliz é a fam ília descrita no hino à m ulher forte, a quem nos
referim os m uitas vezes (3 1 ,1 0 -3 1 ). “Os netos são a coroa dos
anciãos, e os pais são a honra dos filh o s”, naturalmente se justos
e sábios (17,6). F com o “filh o”, e aqui com eçam os problemas:
“Filho insensato é desgraça para o pai, e m ulher q ueixosa é go-
teira que não pára” (19,13). D e fato, “a to lice é natural na m ente
da criança, m as dela se afastará pela vara da disciplina” (2 2,15).
S e “filho insensato é desgraça para o pai... tormento para o pai e
amargura para a m ãe” (1 7 ,2 1 .2 5 ), desespero e desonra (10,1 e
15,20), é necessário adotar a tem po a p ed agogia do bastão (a este
propósito, os Provérbios são in eq u ívocos, refletindo um preciso
contexto patriarcal): “Quem poupa a vara, odeia o seu filho; mas
aquele que o am a lhe aplica a correção” (13,24). Por sorte, há
também os “filh os sábios que contentam o pai... ouvem os c o n se
lhos... são a alegria dos genitores” (10,1; 13,1; 15,20).
G com o “gen itores”, que acabam os de citar. N as pegadas
do quarto m andam ento, o texto de Pr 2 0 ,2 0 adverte: “Q uem
am aldiçoa pai e m ãe, verá sua lâm pada apagar-se no m eio das
trevas”, enquanto o Pr 2 3 ,2 2 aconselha: “O uça seu pai, porque
ele gerou vo cê, e não despreze a v elh ice de sua m ãe” .
H co m o hokm ah, “sabedoria”, e hakam , “sáb io”. Para ilu s
trar e sse verbete do n o sso vocabulário ideal sapiencial-proverbi-
al, o problem a é só escolh er dentre as inúm eras referências. O
duplo rosto, d ivin o e hum ano, da Sabedoria já foi delineado nas
páginas precedentes. Agora podem os descobrir outros traços desse
rosto através da leitura direta do livro. V ejam os alguns. A sab e
doria é dom d ivino (Pr 2,6 ) e nasce do amor p elo Senhor (2,5); é
doce com o m el (2 4 ,1 3 ), m ais preciosa do que o ouro, do que a
prata, do que as pérolas ou qualquer outra jó ia (3 ,1 4 -1 5 ); é sabo
rosa com o os frutos de um a árvore vigorosa (3 ,1 8 ), ama aqueles
que a am am (8 ,1 7 ), é co m o um a irmã (7,4), oferece pão e vinho
(9,5-6). Q uando ela falta, “o terror nos atinge com o tem pestade,
e a desgraça se abate com o furacão” (1 ,2 7 ). O sábio respeita o
Senhor (2 3 ,1 7 ), não se deixa embriagar “p elo vinho que provoca
rixa e p elos licores que excitam ” (2 0 ,1 ), não se p avoneia (1 2 ,23),
ensina os outros (1 3 ,2 0 )... Em sum a, “é m elhor ser sábio que ser
forte, e o conhecim ento vale m ais do que a força” (2 4 ,5 ).
H com o “honra”, incom patível com o néscio porque, “com o
neve no verão e chuva na colheita, também a honra não con vém
ao insen sato” (26,1). H co m o “hospitalidade”: “M ais vale um
prato de verdura com amor do que o boi cevado, com rancor”
(15,17). A fim , em bora co m outra finalidade, é o provérbio que
garante ser m elhor “um pedaço de pão seco na tranqüilidade do
que casa ch eia de banquetes e brigas” (17,1).
H co m o “hum ildade” ; “Os frutos da hum ildade são o te
mor a D eu s, a riqueza, a honra e a vida” (Pr 2 2 ,4 ). H com o
“h om em ” : m uitos são os anexins que se referem à existên cia
humana em suas diversas facetas. R elem brem os apenas dois as
pectos. “O espírito do hom em é um a lâmpada do Senhor, que
sonda as profundezas do ser” (Pr 2 0 ,2 7 ), passagem já citada para
explicar aquele “sopro” (nishm ah) que lig a D eus e o h om em (Gn
2,7 ). O outro aspecto recorda a radical solid ão que há no coração
do hom em , nos seus pensam entos m ais profundos: “O coração
co n h ece sua própria amargura, e o estranho não participa da sua
alegria” (Pr 14,10); mas: “M orte e abism o são transparentes para
0 Senhor; quanto m ais o coração hum ano” (Pr 15,11).
I com o “ilu são”, “en gan o” : “C om o lou co que lança setas
envenenadas, assim é o hom em que engana o seu próxim o e
dep ois diz: ‘Foi só brincadeira!’” (Pr 2 6 ,1 8 -1 9 ). “N u ven s e v e n
tos e nada de chuva é aquele que prom ete, m as não cum pre”
(2 5 ,1 4 ). I com o “insaciabilidade” : “M orte e abism o siíe in saciá
v eis, da m esm a form a que a am bição hum ana” (2 7 ,20). “E x is
tem três coisas in saciáveis, e um a Quarta que nunca diz “C h e
g a !” : a m ansão d os m ortos, o lítero estéril, a terra que não se
farta de água, e o fo g o ” (3 0 ,1 5 -1 6 ). O provérbio é, neste caso,
ritmado por um jo g o num érico (três/quatro), m uito apreciado no
antigo Oriente Próxim o. I com o “inveja, cárie nos o sso s” (14,30).
1 com o “im postura”, “h ipocrisia” : “Q uem p isca o olho está tra
m ando qualquer co isa , quem , repreende abertam ente faz o b em ”
(1 0,10). “H á gen te que se considera pura e não se lava de sua
im undície” (3 0 ,1 2 ), e vêm à m ente os “sepulcros caiad os” de
evan gélica m em ória (M t 23,2 7 ).
I com o “in im ig o ” : já nos referim os ao beijo traiçoeiro d
inim igo, sem elhante, na realidade, a um bote (Pr 27,6). Porque,
dirá outro sábio, o E clesiástico, “o in im igo, tem lábios d oces,
mas no coração planeja com o jogar v o cê no buraco” (Eclo 12,16).
T odavia — continuam os Provérbios — , “não se alegre quando
seu inim igo cai em desgraça, e não festeje quando e le tropeça. O
Senhor poderia ver isso , irritar-se, e desviar a ira contra v o c ê ”
(Pr 2 4 ,1 7 -1 8 ). A este propósito, na sabedoria egíp cia de A m en -
em -ope, lê-se: “L evante seu inim igo caído, dê-lh e a m ão e entre
gu e-o nas m ãos de D eus; encha-lhe o estôm ago de pão, para que
se sacie e chore”.
J com o “ju sto ” e “ju stiça”, em um a exten sa série de pro
vérbios a serem descobertos pela leitura direta: a ju stiça faz
chegar à v elh ice (1 6 ,3 1 ), liberta da m orte (1 0 ,2 e 11,4) porque
seu fruto é aquele da árvore da vida (1 1 ,2 8 -3 0 ), dá firm eza aos
tronos (1 6 ,1 2 ), d efende as vítim as (3 1 ,8 ). A oração do ju sto é
gáudio para D eu s, (1 5 ,8 ) que vigia suas trilhas (2,8), aplanando-
as (1 5 ,1 9 ) e o so erguerá m esm o que e le caia sete v ez es (2 4 ,16).
Sobre o justo brilha a luz divina, que dá alegria (1 3,9 e 4,18); ele
sem eia ju stiça (1 1 ,1 8 ), seu fruto é árvore d e vida (1 1 ,2 9 -3 0 ),
tornando-se um a bênção para a socied ad e (11,11): “Quando os
justos governam , o p ovo se alegra” (2 9 ,2 ) e “a cidade prospera
co m a bênção dos ju sto s” (1 1 ,1 0 ).
L co m o “labor”, “trabalho” : “Q uem cu ltiva seu cam po
tem pão em abundância... A fo m e do trabalhador o faz trabalhar,
porque sua boca o empurra” (Pr 12,11 e 16,26). T am bém Plauto
dirá que “o ventre é m estre da arte e do en g en h o”, enquanto
outro provérbio afirma que “a fo m e aguça o en gen h o” . L com o
“litíg io ” que divide os irm ãos, d eixand o-os m ais in acessív eis do
que um a rocha / porque os litíg io s são com o portões de ca ste lo ”
(18,19); “in ício de litígio é com o rachadura na represa; é m elhor
desistir antes do processo” (17,14). O litígio nasce do ódio (10,12)
e há pesso a s que têm o condão de fom entar contendas: “Carvão
para as brasas e lenha para o fo g o , é o briguento para atiçar os
litíg io s” (2 6 ,2 1 ). Em litíg io s é m elhor não se im iseuir. “Agarra
um cão pelas orelhas quem se m ete em briga alheia” (2 6,17).
L com o “louvor”, “e lo g io ” : “Q ue um estranho e lo g ie v o c ê, e
nunca sua própria boca” (27,2); “Própria laus foetet in ore”,
dirão os latinos [“O au to-elogio fede na boca de quem o fa z”].
M co m o “m ulher”, que p od e ser sábia e perfeita: “A m u
lher perfeita é a coroa do m arido... ed ifica sua casa... vale m uito
m ais que p érolas...” (12,4; 14,1; 3 1,10). M as p ode ser tam bém
amoral e insensata: “Esta é a conduta da m ulher adúltera: com e,
lim pa a b o ca e diz: ‘N ão fiz nada de m a l...’ Os lábios da adúltera
destilam m el e suas palavras são m ais suaves do que o azeite.
N o final, porém , ela é am arga co m o fel... A nel de ouro em
focin h o de porco é m ulher bonita, mas sem bom sen so... M ulher
de m á fam a é cárie nos o ss o s ” (30,20; 5,3-4; 11,22; 12,4).
M co m o “m aldição” que não se deve temer: “C om o o
pássaro que fo g e e andorinha que voa, a m aldição injusta não
atinge sua m eta” (Pr 2 6,2). M co m o “m alvado” : “O Senhor de
testa o sacrifício do m alvado” (1 5 ,8 ), porque “explora os fracos”
(28,3) e “aceita suborno às escon d id as, para distorcer o anda
mento da ju stiça ” (17,23). “O s m alvados não dorm em sem ter
feito o m al; perdem o sono enquanto não prejudicam algu ém ”
(4 ,1 6 ). M as, no final, “quando vem o furacão, e le desaparece;
m as 0 justo perm anece firm e para sem pre” (1 0 ,2 5 ). M com o
“m ulher”, “esp o sa ”, que, se “queixosa, é goteira que não pára”
(1 9 ,1 3 ), é “goteira pingando em dia de chu va” (27,15); “é m e
lhor morar no deserto do que junto com briguenta e m al-hum o-
rada” (2 1 ,1 9 ). M co m o “m ercado”, descrito n e sse d e lic io so
esquete; “N ão presta, não presta”, diz o com prador. M as, quan
do vai embora, se gaba do que com prou” (20,14)^
O co m o “ofen sa” : “o amor cobre todas as ofen sa s” (Pr
10,12). “Q uem busca am izade disfarça a ofensa; quem a repete
afasta o am ig o ” (1 7 ,9 ). O com o “opressor” ; “F estejam os a m orte
dos opressores” (1 1 ,1 0 ), porque é prenuncio do triunfo dos ju s
tos perseguidos (28,2 8 ).
7. A narraliva..
31). “Seu cam inho é cercado de esp in h os” (1 5 ,1 9 ). C om m ordaz
ironia, o sábio assim representa o ocio so : “A porta gira nos
gon zos, e o p reguiçoso rola na cam a” (2 6 ,1 4 ). C erca de d ezen o
ve provérbios são dedicados à preguiça, sinal de vivida atenção
a um d efeito que se op õe ao em penho de con hecer e agir próprio
da sabedoria. P com o “pobre” : “Q uem despreza o pobre ofende
seu Criador” (17,5); “Fazer caridade ao pobre é emprestar a
D e u s” (1 9 ,1 7 ); “O pobre é detestado tam bém p elo s seu s irm ãos”
(19,7). M as “m uitos se fin g em de ricos e nada têm; outros pare
cem pobres e possuem m uitos b en s” (13,7).
R co m o “riqueza” : “Q uem con fia na própria riqueza mur
chará” (Pr 11,28) e, “no dia da ira, ela é iniítil, m as a justiça
liberta da m orte” (11,4). A ânsia de acum ular bens é vã porque
“basta v o c ê olhar, e a riqueza não ex iste m ais: bate as asas com o
águia e v oa pelo céu” (2 3 ,5 ). A riqueza torna as p essoas arro
gantes e ridículas: “O rico se considera sábio, m as o pobre inteli
gente o desm ascara” (2 8 ,1 1 ). Infelizm ente, co m o observa outro
sábio, que já citam os várias v ezes, o E clesiá stico , “as pessoas
apreciam até m esm o as to lices do rico... Quando o rico fala,
todos se calam e elevam até as nuvens o seu talento. Quando o
pobre fala, as p essoas perguntam: “Q uem é e sse fu lano?” (E clo
13,22-23).
S c o m certeza, com o “sabedoria”, mas dela já falam os ao
abordar o termo hebraico hokinah. S com o “soberba” : “há p es
soas de olh os altivos e olhar soberbo” (3 0 ,1 3 ), m as “o Senhor
zom ba d o s soberbos” (3,34).
T co m o “tem pos”, referidos principalm ente ao c ic lo das
estações. Verão: “N ev e fresca em tem po de colheita é o m ensa
geiro fie l para quem o en via” (Pr 25,13); “Q uem é previdente,
colh e no verão; quem dorm e na colheita passa vergonha” (10,5).
Outono: “N o outono o p regu içoso não ara, e na co lh eita procura
e nada encontra” (20,4). Inverno: “Quando cai n ev e [a boa dona
de casa], não tem e por seus fam iliares, porque to d os e les têm
roupa forrada” (31,21). Primavera: “Corte o capim e, quando ele
brotar, ajunte o feno dos m o n tes” (27,2 5 ). T co m o “tentação” :
“M eu filh o, se os pecadores lhe disseram: ‘V enha co n o sco , va
m os fazer em boscadas para matar, vam os cercar im punem ente o
in o c e n te ’, não ponha os p és no cam inh o d e le s ” (1 ,1 1 .1 5 ).
T com o “tristeza” : “O bom ânim o sustenta na doença. M as quem
levantará o espírito abatido?” (18,14).
V com o “vaidade” : “N ão se vanglorie na frente do rei,
n em ocupe o lugar d os grandes. É m elhor que digam a você;
‘Suba até aqui’... (Pr 2 5 ,6 -7 ). U m a advertência que será retom a
da por Jesus, na sua m iniparábola dos lugares à m esa; a respeito
de convidad os que se acotovelam nas primeâias posições: o dono
da casa poderá perdir-lhes que cedam o lugar a alguém m ais
im portante (L c 14,8-11). V com o “v e lh ic e ” : a sabedoria é fruto
de experiência e, por isso , muitas v ezes é vista com o apanágio
do idoso. A v elh ice, pois, é o prêm io que retribui a ju stiça de
um a p essoa, considerada a obscura perspectiva do além , no xeol,
os infernos bíblicos: “C abelos brancos são coroa nobre, quando
se encontram no cam inho da justiça” (Pr 16,31). V com o “vin
gança” proibida ao hom em : “N unca diga: ‘V ou d evolver-lh e o
m al que m e fez. V ou lhe pagar co m o ele m erece!...’ ‘V o c ê vai
m e pagar! E sse m a l’. C on fie no Senhor, e ele defenderá v o c ê ”
(Pr 24,29; 2 0 ,2 2 ). V co m o “v inh o” : “Q uem gosta de vinho e
carne boa jam ais ficará rico” (Pr 2 1,17); “O vinho provoca in so
lência, e o licor causa barulho: quem se em briaga com e le s não
ch ega a ser sábio” (Pr 2 0 ,1 ). Brilhante é a advertência presente
em Pr 23,29-35: “Para quem são os g em id os? Para quem os
lam entos? Para quem as brigas? Para quem as queixas? Para
quem os ferim entos sem m otivo? Para quem os olhos verm e
lhos? São para aqueles que bebem o dia inteiro e vivem procu
rando bebidas m isturadas. N ão fique fascinado pelo vinho, v e n
do sua cor e seu brilho, enquanto escorre suavem ente n o cop o.
N o fim , ele p ica co m o cobra e fere co m o víbora. Então seus
olh os verão coisas estranhas, e sua m ente im aginará co isas ab
surdas. V o cê ficará co m o quem está deitado em alto-m ar ou
sentado no topo de um mastro. ‘Bateram em m im , e eu não senti
nada!... Q uando m e levantar, vou continuar a beber” .
Z com o “z o o lo g ia ” : o hom o sa p ie n s era aquele que “n o
m eava os anim ais”, lê -se na narrativa da criação (Gn 2 ,1 9 -2 0 ).
V im os que Salom ão, o sábio, dissertava sobre “quadrúpedes,
pássaros, répteis e p e ix e s” (IR s 5 ,1 3 ). O s anim ais aparecem na
B íb lia com freqüência, e em particular em certos provérbios de
origem agrícola. A qui basta um ún ico exem p lo, extraído de um
provérbio “num érico”, no qual, co m o nas fábulas, os anim ais se
tom am m estres dos hum anos: “N o m undo ex istem quatro seres
p equeninos que são m ais sábios do que os sábios: as form igas,
p ovo fraco, m as que recolhe com ida no verão; as ratazanas,
p ovo sem força, m as que mora nas rochas; os gafanhotos, que
não têm rei, m as avançam todos em ordem; as lagartixas, que se
podem pegar com a m ão, m as penetram até em p alácios de reis”
(Pr 3 0 ,2 4 -2 8 ).
IX
Como cantar
em terra estrangeira?
A L ei en vo lta em tre v a s
F en das na rocha
A í se te d o en ça s d o esp írito
A su cessã o d o s 2 8 tem p o s
A h em -aven tu ra n ça d o o p re sso r
Um a a p o lo g ia d o an átem a
A í p a ix õ e s d e D eu s
O o rá c u lo na g a rg a n ta
O s d ia s d a ira
F ilh os de um D e u s d e a m o r
O c o rp o d e D eu s
A m enina exposta
A e ró tic a b íb lica
O g om o de ro m ã
E ro s e T ânatos
O cu rioso d a B íb lia
N ada im pede, por outro lado, que se leia a B íb lia tam bém
com o livro histórico ou de inform ação cultural sobre um a época.
É preciso recordar apenas que este não é seu gênero literário
primordial, nem tam pouco sua finalidade precípua. N ão d eix a de
ser interessante, contudo, abordar, sem dogm atism o um texto,
esp elh o de um am plo arco histórico (m ais ou m enos um m ilê
nio), que oferece um a portentosa m assa de dados de todo tipo,
contida em um im aginário literário de extraordinário relevo. C om
certeza, o M a h a b h a ra ta , a Escritura sagrada hindu, com suas 95
5 8 6 estrofes (p elo m enos na cham ada recensão “m eridional”),
supera um as quinze v ezes a tam bém “lo n g a ” B íblia. M as a va
riedade, a riqueza, o fascínio e a in flu ên cia da B íblia não são
com paráveis aos de outros textos sagrados da hum anidade, in
clu siv e 0 Corão, que m uito hauriu da B íblia. E nós som os teste
m unhas d isso em n ossa própria lin gu agem cotidiana: o fruto
proibido, a v o z no deserto, as cebolas do E gito, a jerem iada, um
apocalip se, a lavagem das m ãos, o beijo de Judas, o filh o pródi
g o... são apenas alguns dos tantos estereótipos b íb licos. Já o
recordava T om m aseo: “Q uanto as p essoas de igreja contribuem
para a unidade da língua, atestam -no não som en te os valorosos
clérigos escritores e os que por e les são ed ucados, m as tam bém
os m odos b íb licos que im pregnaram a lingu agem com u m ” . Em
um n ível m ais alto, afirm a Northrop Frye; em seu livro II gra n d e
c o d ic e , sobre a relação “B íb lia e literatura” : “A s Sagradas E scri
turas con stituem um un iverso dentro do qual a literatura e a arte
ocidentais operaram até o sécu lo X V III e ainda estão, em larga
escala, operando” .
É legítim o, pois, estudar e sse s dados, e sse s sím b olos, essa
hnguagem . O “cu rioso” da B íb lia — isto é, seu conteúdo co n
creto e o m odo de com preend ê-lo — é, ao m esm o tem po, um
objeto fascinante e um a atitude inteligente. E ntendam os essa
expressão no sentido tanto “o b jetiv o ” — a B íb lia é um a m ina de
curiosidade — com o “su bjetivo” (d ois sentidos que aparecem no
título do rom ance de A lberto B evilacq u a II cu rio so d e lle donne)
— a hum anidade, ao lon go dos sécu lo s, pelas razões m ais diver
sas, sem pre teve curiosidade p ela B íblia. E ainda tem , m esm o
em n o sso s dias, ditos pós-cristãos e, portanto, p ó s-b íb lico s. B a s
ta consultar um dicionário b íb lico (Bauer, D u-B u it e M onloubou,
Corswant e Grollenberg, M cK en zie, ou o m ais nobre D iction n aire
d e la B ib le, ou a E n c y c lo p a e d ia J u d a ica ou a E n c ic lo p é d ia d e lia
B ibbia, ou algum R eallexicon alem ão, isto é, os léx ico s das realía,
das co isa s concretas m encionadas pela B íblia) para aí encontrar
um cam po interm inável. O hom em , suas relações, suas faculda
des e sentim entos, suas virtudes e v ício s, sua con d ição, suas
atrações e repulsas, suas ações e suas preocupações; a fam ília; a
am izade; a hospitalidade; os esportes e os jo g o s; a vida e a
morte, a alim entação; os co sm ético s; o vestuário; as d oen ças e a
m edicina; as profissões e as artes; as ciências; o ensino; a cultu
ra; a m agia e os rituais; o E stado e a magistratura; o direito e a
guerra: estes e outros aspectos da ex istên cia hum ana são objeto
de um a d en sa e m inuciosa d escrição que interessa a historiado
res e antropólogos, etn ólogos e so c io ló g o s, m as tam bém a sim
p les “cu rio so s” .
E o m undo, co m sua planim etria, sua m eteorologia, a flora
e a fauna, o s m inerais, as pedras preciosas, o s m etais, as cores?
E as m edidas de tem po e de esp aço, de p eso e de capacidade, os
núm eros e as m oedas? E o s m il personagens m od estos e glo rio
sos de H abacuc a Z orobabel? E os acon tecim en tos m ais dispara
tados, cotidianos e clam orosos? E a geografia e a arqueologia? E
a extraordinária sim b o lo g ia e a qualidade literária das páginas
b íblicas? Poderíam os continuar enum erando indefinidam ente, ca
pítulos que contêm um a im ensa gam a de “curiosidades” . P od e
ríam os penetrar tam bém n o m undo fantástico das extravagâncias
b íblicas, on de por “extravagância”, se entendem , certam ente, as
co isas estranhas que pululam em m uitas se c ç õ e s abertas ao m a
ravilhoso, mas tam bém algo afim à S travagan za, op. 4, de V ivaldi,
na qual se cond ensam todas as passagens harm ônicas incom uns.
A B íb lia oferece, de fato, diversos ângulos da m esm a realidade,
surpreendendo o leitor m etód ico, afastando o elaborador eletrô
nico, reclam ando prontidão m ental.
O “cu rio so ” pode estar contido no teoló g ico : nom es d iv i
nos estranhos e m utáveis, antropom orfism os em baraçosos, e sp í
ritos e d em ôn ios, teofanias e v isõ e s, idolatrias e um além de
contornos co m p lex o s e fluidos. Entretanto, é justam ente na teo
logia, co m sua ram ificação em um a visã o do ser — hum ano e
có sm ic o — , que se d eve procurar a m en sagem substancia] na
qual a B íb lia em penha a própria autoridade. R evestido d e cu rio
sidade, aquele n ú cleo duro e resistente constitui o que a própria
Escritura cham a de “a palavra de D eu s que perm anece eterna
m ente” . U m a palavra capaz, às v e z e s, de criar a aliança dos
op ostos, tendo reunido em D eu s a revelação e o m istério, a
im anência e a transcendência, a treva e a luz, a m orte e a vida, o
nada e o ser, a ausên cia e a presença, a vingan ça e o perdão, a ira
e 0 amor, e m uito m ais, co m o proclam a o D eu s de Isaías: “Eu
form o a luz e crio as trevas; sou o autor da paz e crio a desgraça,
eu, 0 Senhor, faço tudo isto!” (Is 4 5 ,7 ).
A B íb lia, na interm inável variedade de sua “cu riosidade”,
é adaptada a todos, é capaz de interessar às m ais diversas tip o lo
gias antropológicas, co m o escrevia Erasm o de Roterdam: “G o s
taria que todas as Escrituras fo ssem traduzidas em todas as lín
guas, de m odo que não som ente o s e sc o c e se s ou os irlandeses,
m as tam bém o s turcos e os sarracenos p u d essem lê-las e co m -
preendê-las. Gostaria que o cam ponês p u d esse cantá-las enquan
to trabalha co m o arado, que o tecelão p u d esse cantarolá-las no
ritmo de sua lançadeira, que o viajante p ud esse am enizar o abor
recim ento de sua v ia g em c o m e sse s relatos, que eles falassem a
tod os” . M as a B íblia quer ser m uito m ais: ela olha m ais para o
alto, e m ais árduo é o seu d esafio. C om o diz m uito bem Pascal,
em seus P en sa m en to s: “A Escritura tem passagen s próprias para
consolar todas as co n d içõ es e para inquietar todas as co n d içõ e s”
(n. 5 3 2 ed. B runschvicg).
O to u ro q u e co m e ca p im
“ Um a v o z su til d e s ilê n c io ’’
Q u al D eu s?
T m du zion e E cum ênica delia B ibbia, Leum ann (Turino), Ed. LDC:
tradução do francês de um a ótim a edição, com o texto
b íb lico da C onferência E piscopal Italiana, com o nas ou
tras pu b licações até agora citadas.
I. A n a rr a tiv a do c é u ................................................................................ 15
No princípio, um s o m ........................................................................... 15
A narrativa do c é u ................................................................................. 18
O “m anto” de D e u s............................................................................... 19
Vinte e dois c o ris ta s ............................................................................. 22
Terror na b a rra ....................................................................................... 25
G eografia m ís tic a .................................................................................. 27
Nove porções de d o r ............................................................................. 31
X IL Q u al D e u s ? ............................................................................................ 269
A B íblia nem sem pre tem ra z ã o ......................................................... 269
O curioso da B íb lia ............................................................................... 271
O touro que come c a p im ..................................................................... 274
“Uma voz sutil de silêncio” ................................................................ 276
Qual D e u s ? ............................................................................................. 278