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G ianfranco R avasi

K. PL

DO C éu
_3 As liistórias,
^
-
j f# 1 1#Í
as iceias^ •e1 ^

os personagens
A) AmiGo T estm ento

VOLUME I

^tinas
Um itinerário fascinante e ckeio de surpresas
através áas kistórias, dos personagens, áos
símLolos e áas idéias áo Antigo Testamento.
Um texto indispensável para acompanliar
a leitura da Bítlia.

*~LJ.Tn dos maiores LiLlistas e cultores contemporâneos da


língua keljraica nos conduz à descoterta da Leleza e do valor dos
textos tíLlicos. Em Á Narrativa do Céu: as histórias, as idéias e
os personagens do A ntigo Testamento, o autor traça um articu­
lado e fascinante itinerário através dos episódios e dos persona­
gens mais significativos, do ponto de vista teológico e literário,
do Antigo Testamento. Seus comentários convidam o leitor a
aproximar-se de xuna oLra na qual, com inigualável força, emer­
gem a dimensão do divino, a valoração do Lem e do mal, o senso
de justiça e os grandes temas da vida (o amor, o pecado, o sofri­
mento, a esperança). Graças a uma sugestiva e original revocação
das otras-primas de pintores, de composições musicais, de fil­
mes, de romances, de poesias e de ensaios inspirados nos eventos
e nos protagonistas testamentários, Ravasi mostra quanto o A n­
tigo Testamento permeou e continua a alimentar nossa cultura e
nossa própria existência.
A Narrativa do Céu: as histórias, as idéias e os personagens do
Antigo Testamento é um guia que nos acompanlia numa viagem
ao longo dos séculos e nos permite remontar às origens da civili­
zação e da espiritualidade modernas.
BíLlia, o livro m ais d ifu n á i-
do no m undo, é, n a realidade, em
m uitos países, um “livro ausen­
te ”: q u an to s p o d em dizer tê -la
c o m p re en d id o e ap reciad o em
to d a a sua riqueza e com plexida­
de? O A n tig o T estam ento, em
particular, co n stitui um extraor­
d in ário p atrim ô n io a ser desco-
te rto ; sua leitu ra oferece a opor­
tu n id ad e de explorar um “m u n ­
do de m aravilkas do pensam en­
to, dos sím to lo s, dos aco n teci­
m entos, das paisagens, das cenas,
dos eventos kum an o s e divinos”.
A lém de histórias universalm en­
te conkecidas, com o a criação do
m undo, o sacrifício de Isaac, a
escravidão no E gito, suas pági­
nas relatam outras kistórias m e­
nos conkecidas, m as igualm ente
sugestivas, com o o casam ento de
O séias e a m isteriosa luta n o tu r­
n a de Jacó com o anjo. O s S al­
m os e o C ântico dos C ânticos são
okras de p rim o r p o ético, os P ro -
vérk io s re fle te m v iv id o s fra g ­
m en to s da sakedoria popular, e,
nas vozes dos p ro fetas (o gran ­
de Isaías, o a to rm e n ta d o Jere­
m ias e o d e sc o n c e rta n te E cle-
siastes), que an u n c ia m u m a ver­
dade tran scen d en te, ressoa um a
n o ta de k u m an id ad e ain d a koje
to can te .
G ianíranco Ravasi nasceu em
1 9 4 2 . E sacerdote da diocese
de M ilão desde 1 9 6 6 , prefeito
da B itlio teca -P in a co tec a
A m tro sia n a , docente de
Exegese B ítlic a n a Faculdade
de Teologia da Itália
S etentrional, m e m tro da
P ontifícia C om issão para os
Bens C ulturais da Igreja,
tiL lista, especialista em C ultura
Judaica, além de au to r de
diversos livros.

Paulinas puLlicou:

A Boa Nova:
as kistórias, as idéias e
os personagens do
Novo T estam ento —vol. II

A expectativa do Salvadc
no A ntigo T estam ento
(no prelo)
A N a r r a t iv a
DO C éu

As nistórias, as idéias
e os personagens
do A n tig o T e st a m en t o
G ian fra n co R avasi

A N arrativa
DO C éu
As nistórias, as idéias
e os personagens
.0 A n tig o T estam .h nto

VOLUME

Sulinas
Dados Internacionais dc Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ravasi, Gianfraiico, 1942-


A narrativa do céu, volum e I: As histórias, as idéias e os personagens do
A ntigo T estam ento / G ianfranco R avasi; [tradução: Suely M endes Brazão]. —
São Paulo: Paulinas, 1999.

Título original: 11 racconto dei cielo.


ISBN 85-356-0245-2

1. Bíblia. A.T. - C rítica e interpretação 2. Bíblia. A.T. - H istória dos even­


tos bíblicos 3. Bíblia. A.T. - T eologia I. Título.

99-2036 CD D -221.6

índices para catálogo sistemático:

1. A ntigo T estam ento: Ensinam entos 221.6


2. A m igo T estam ento: E xegese 221.6
3. A ntigo Testam ento: Interpretação e crítica 221.6
4. A ntigo T estam ento: T eologia 221.6

I M o original da obra: IL R AC C O N TO D E L CIELO


é /4 \rn o ld o M ondadori E ditore SpA, M ilano, 1995.

T radução: Suely M endes Brazão


Direção geral: Ivani Pulga
Coordenação editorial: N oem i D ariva
_Revisão de lexto: Jonas Pereira dos Santos
Gerente de produção: A ntonio Cestaro
Capa: M arta C erqueira Leite
A rte na capa: Detalhe dc "La visione de B a ldassare",
Jusepe de Ribcra, 1635, M ilão, G aleria do A rcehispado

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistem a ou banco de dados sem perm issão escrita da Editora. Direitos reservados.

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@ Pia Sociedade F ilhas de São Paulo - São Paulo, 1999


ABREVIATURAS DOS LIVROS BÍBLICOS

Ab A bdias Jo João
Ag A g eu IJo 1 João
Am A m ós 2Jo 2 João
Ap A p oca lip se 3Jo 3 João
At A tos dos A p óstolos Jr Jeremias
Br Baruc Js Josué
Cl C o lo ssen ses Jt Judite
IC or 1 C oríntios Jz Juizes
2Cor 2 Coríntios Lc Lucas
ICr 1 Crônicas Lm L am entações
2Cr 2 Crônicas Lv L evítico
Ct C ântico dos C ânticos Mc M arcos
Dn D aniel IM c 1 M acabeus
Dt D euteronôm io 2M c 2 M acabeus
Ecl E clesia stes (C oélet) Ml M alaquias
E clo E clesiá stico (Sirácida) Mq M iquéias
Ef E fésio s Mt M ateus
Esd Esdras Na N aum
Est Ester Ne N eem ias
Ex Ê xod o Nm N úm eros
Ez E zequiel Os O séias
El F ilip en ses IPd 1 Pedro
Fm F ilem on 2Pd 2 Pedro
G1 Gálatas Pr Provérbios
Gn G ênesis Rm R om anos
Hab H abacuc IR s 1 R eis
Hb Hebreus 2R s 2 R eis
Is Isaías Rt Rute
Jd Judas Sb Sabedoria
J1 Joel Sf Sofonias
Jn Jonas SI Salm os
Jó Jó IS m 1 Sam uel
2Sm 2 Sam uel IT s 1 T essalonicenses
Tb T obias 2T s 2 T essalonicenses
Tg T iago Tt T ito
ITm I T im óteo Zc Zacarias
2Tm 2 T im óteo

Jhw h são as consoantes com as quais o A n tigo T estam en­


to define o nom e e sp e c ífic o do D eus de Israel: nom e impronun-
ciávcl p elos hebreus por causa de sua sacralidade e vocalizad o
pelos estu d iosos com o J ahw eh . C onservam os as quatro con soan ­
tes que o s hebreus, na leitura nas sin agogas, substituíram por
A d o n a i, “Sen h or”.
INTRODUÇÃO

H oje em dia, tornou-se lugar-com um afirmar que a B íblia


— sobretudo nos p aíses de matriz católica — é um “livro ausen­
te”. T alvez, m aterialm ente, um a edição qualquer, um tanto anti­
ga ou de capa envernizada, das Sagradas Escrituras hebraico-
cristãs esteja exposta nas estantes, quase sem pre com pou cos
livros, das casas d esses países. A am arga afirm ação de Lutero,
que em seus D iscursos à m esa declarava: “N a Itália, a Sagrada
Escritura é tão esquecida que rarissim am ente se encontra um a
B íb lia” , talvez não seja m ais tão verdadeira. T odavia, é verdade
que a leitura e o conhecim ento do texto b íb lico são ainda uma
aventura reservada a pou cos privilegiados, m otivo pelo qual se
poderia repetir a irônica afirm ação do poeta francês Claudel,
con ven cid o de que “os católicos têm grande respeito pela B íblia,
e o dem onstram perm anecendo o m ais distante p o ssív el dela” .
N a verdade, entre os fiéis praticantes italianos, as coisas
mudaram a partir da década de sessenta, quando, sob o im pulso
do C oncilio V aticano II, a liturgia, a catequese, a espiritualidade
e a teolo g ia aproxim aram -se m uito da B íblia, haurindo dela o
alim ento dos fieis.
Entretanto, excetuada essa m inoria, a ausência daquilo
que o poeta in g lês B lake cham ava de “o grande c ó d ic e ” da
cultura ocidental (que dep ois se tornou o título de um im portan­
te livro de Northorp Frye, sobre as relações entre B íb lia e litera­
tura) perm anece um dado incontrastável. Já V in cen zo G ioberti
0 assinalava no sécu lo VIII, quando se adm irava do "fato e x ­
traordinário de que a B íb lia tivera, com parativam ente, tão p o u ­
ca influên cia sobre n osso s escritores” . N aq u ela m esm a época,
não um relig io so co m o Gioberti, m as um autêntico “le ig o ” co m o
F rancesco D e S anctis, se admirava, em sua obra L a g io vin ezza ,
de que “em n ossas esco la s, onde se m anda ler tantas friv o lid a ­
des, ainda não haja penetrado um a an tologia bíblica, apta a
m anter v iv o o sentim ento relig io so , que é o próprio sentim ento
m oral em seu sentido m ais elev a d o ” . A ind a em n o sso s dias,
U m berto E co pergunta-se desolado: “Por que as crianças, nas
esc o la s, p recisam saber tudo sobre os d eu ses de H om ero e qua­
se nada sobre M o isé s? P or que a D iv in a c o m é d ia e não o C â n ti­
co d o s c â n tic o s ! ” .

* * *

A s razões desta “ignorância”, grave em n ív e l cultural e


m oral (C hagall d efin ia a B íb lia co m o o alfabeto colorid o no qual
se abeberou toda a arte ociden tal), são m últiplas. Q uerem os a ssi­
nalar aqui apenas duas, p ois ju stificam este livro. A prim eira
razão da ausên cia da B íb lia, n o con texto c iv il italiano, é d e tipo
“m aterial” : a B íblia é longa e d ifícil, ou p elo m en os m uito varia­
da e com p lex a , com preendendo 73 obras diferentes, com postas
em um arco histórico-literário m ilenar. É n ecessário, portanto,
oferecer u m gu ia rodoviário que perm ita avançar por um terreno
que com preend e paisagens fascinantes e desertos áridos, picos
m ístico-literários e crateras tenebrosas por onde serpenteiam ob s­
curas q u estões legais e em aranhados eventos h istóricos. In feliz­
m ente, a m aior parte dos instrum entos interpretativos d isp on í­
veis con ten ta-se em indicar as várias qu estões de m odo ou extre­
m am ente m in u cio so (os com entários e x eg ético s de cada um dos
livros) ou extrem am ente geral (as introduções e as sín teses). Em
am bos o s c a so s, o leitor, tendo adentrado o texto e m si, sen te-se
desam bientado e não co n seg u e encontrar no corpo da B íb lia
aquilo que tão claram ente se lh e prenunciava.
P en sam os, então, c o m este volu m e, oferecer u m gu ia para
um a v ia g em textual em d oze etapas que não e sg o ta sse todas as
questões, criando um labirinto h istórico-literário-teológico, mas
indicasse a estrada principal, exp lican d o os cruzam entos, as ra­
m ificações e o s d esvios. M etáforas à parte, n o sso itinerário é
um a história das idéias bíblicas; de um lado, se g u e -se a trama
histórica d os acontecim entos capitais e em b lem áticos v iv id o s
por Israel (a “revelação” b íb lica não é estática, m as perpassa a
história e dela aflora); de outro, identifica-se o projeto ideal
proposto p elas Escrituras, que é tam bém um a v isã o original do
hom em , d o m undo e do m istério. C om esta finalidade, apresen­
tam os as páginas ou os textos fundam entais que con stitu em a
chave de abóbada e a ch ave d e interpretação da construção b íb li­
ca. Encontrarem os e lerem os então os capítulos m ais belos e
m ais im portantes e, às v ezes, as obras com pletas, que constituem
a estrutura sobre a qual se ergue toda a arquitetura da Escritura.

* * *

U m esclarecim en to, entretanto, se faz necessário: esta via­


gem se interrom pe nos um brais do N o v o T estam ento; e inclui,
portanto, apenas as Escrituras hebraicas. Ora, a B íb lia — ao
contrário do que m uitos pensam — com preende am bos os T esta­
m entos, a Escritura hebraica e a cristã. N o sso itinerário, p ois, é
parcial e poderá ser com pletado no futuro. N ã o q u isem os u n ifi­
car os d ois T estam entos em um ú n ico texto, não tanto por m oti­
vo s práticos de exten são m aterial, m as antes para afirmar a esp e ­
cífica identidade das duas Escrituras unificadas p elo cristianis­
m o. O s vín cu lo s são certos, de natureza te o ló g ic a e histórico-
literária, e nós farem os c o m que surjam em n o sso texto. N ã o é
legítim o, contudo, subordinar um T estam ento ao outro, enfra­
quecendo 0 A ntigo em proveito do N o v o . A fascinante exp eriên ­
cia daqueles que n o s quiserem acom panhar, tom an d o-se peregri­
nos extasiad os num m undo de m aravilhas do pensam ento, de
sím b olos, de acon tecim entos, de paisagen s, de cenas, de even tos
hum anos e transcendentes, dem onstrará co m o já é relevante e
d e cisiv a esta prim eira aventura do espírito.
A ssin alam os, anteriorm ente, duas razões diversas para ju s­
tificar o descon h ecim en to em relação à Escritura. A segunda se
d eve a um p reconceito “le ig o ”, favorecido, paradoxalm ente, por
um certo m undo e clesiá stico . Trata-se da reação de enfado e até
de irritação que m uitos esboçam diante de tem as religiosos ou
teo ló g ico s. Ora, a m istura sentim ental-devocion al, que p od e in­
teressar à antropologia cultural, é um a coisa; a religião e a teo lo ­
gia, e sobretudo a m en sagem bíblica, são outra. S ilv io P e llic o já
0 d izia claram ente, então ainda reticente quanto ao problem a
religioso, no capítulo V I das M ie P rig io n i: “A leitura da B íb lia
nunca m e deu a m ínim a d isposição para a beatice, isto é, para
aquela d ev o çã o eq u ivocad a que to m a a p e sso a pusilânim e ou
fanática. E n sinou -m e antes a amar a D eu s e aos hom ens, a d e se ­
jar sem pre m ais o reino da ju stiça e a abom inar a iniqüidade.
perdoando aos iníq uos”. E V oltaire, em 13 de outubro de 1759,
escrevend o à senhora D u D effand, con vid ava-a a ler o A ntigo
Testam ento por razões “estética s” : “O nde se poderia encontrar
um a história m ais interessante do que aquela de José, que se
torna Adm inistrador Geral no E gito e recon h ece seus irm ãos? E
tam bém a de D aniel, que com tanta astúcia confunde os dois
velh os? E ainda a de T obias, que, em bora não seja um grande
personagem , m e parece, todavia, preferível a Tom J o n es.” L ogo
d epois, porém , acrescentava que, em tal leitura, era necessária a
“p aixão”, que “m antém o ânim o sem pre ocupado, o que é difícil
de encontrar e não se pode dar” .
Parece, portanto, eviden te que é ind ispensável o co n h eci­
m ento das Escrituras para com preender a cultura e a civ iliza çã o
ocidental co m o um todo. Erich Auerbach, em sua célebre M im esis,
ch egou a distinguir apenas d ois estilo s fundam entais, o do A nti­
go T estam ento e o da O d isséia , m odelos tão cruciais, que gera­
ram e condicionaram todos os outros. N um a perspectiva m ais
restrita, C arducci escreveu que “a Bi^blia lhe era caríssim a com o
obra capital para a n ossa lín gua”. M as, para além d essa função
“cultural” , a Escritura é fundam ental para com preender o ho­
m em ocidental, ou m elhor, o hom em tou t coiirt, na sua m escla
de m oralidade e de transcendência, de realism o e de utopia, de
esplendor e de m iséria, de desespero e de esperança, de v ício e
virtude, de divino e de satânico. A teologia bíblica, que surgirá
nestas páginas, é um perfil e x c e ls o do ser hom em e do m istério
que o en v o lv e.

A ssim , tanto para os crentes, co m o para os a gn ósticos, a


“viagem p ela B íb lia” é indispensável, e este “g u ia”, n ascid o de
um lon go c o n v ív io com o texto das Escrituras hebraicas, espera
servir de subsídio às m uitas p essoas que desejam tentar essa
aventura e àquelas que, dep ois de tê-la tentado, recuaram, por
várias razões desencorajadoras. C om certeza, nunca, c o m o n es­
tes tem pos, foram tão verdadeiras as palavras do antigo profeta,
pastor de Israel, A m ós de T écua: “D ias virão — oráculo do
Senhor Javé — em que vou mandar a fom e sobre o país: não
será fom e de pão, nem sed e de água, e sim fo m e de ouvir a
palavra de Javé. Irão cam baleando de um mar a outro, irão sem
ram o do N orte para o O riente, à procura da palavra de Javé, e
não a encontrarão. N e sse dia, vão desm aiar de sede as jo v en s
m ais belas, e tam bém os rapazes” (A m 8 ,1 1 -1 3 ).
A ntes de em preender o itinerário, que requererá o u so de
um a B íblia com boa tradução e um a leitura/consulta paciente,
querem os traçar um m apa geral. A etapa inicial (“A narrativa do
céu ”) nos c o lo c a diante da catedral cósm ica: o esp aço e tudo
quanto nele há d evem ser, segundo a B íblia, decifrados com o se
fossem um a partitura na qual estão escritos um a m úsica e um
canto. É sobretudo a prim eira página do G ên esis que d ev e guiar-
nos, m as em tom o dela gravita “um en xam e” de outros textos
b íb licos que procuram decifrar aquela partitura, e reconstituir
uma geografia m ística. N a segunda parada ( “Q uem te d isse que
estavas nu?”), entra em cen a h a -'a d a m , em hebraico “o H o­
m em ”, com sua aventura sob um a árvore d escon hecida pela b o ­
tânica, “a árvore do con h ecim en to do B em e do M al”, que su sc i­
ta um a reflexão sim bólica, m uito refinada, sobre ser hom em ,
sobre a liberdade, sobre a culpa, sobre os esplendores e as m isé ­
rias da criatura humana. N a terceira fase da n ossa viagem , apare­
ce Abraão, para revelar a genuína con cep ção da fé, vista com o
luta, risco, espera (“Lute co m D eus, e e le o abençoará”); a seu
lado ergue-se Jacó, o outro patriarca que com baterá D eus; junto
com eles não poderiam faltar Jó, o m ais extraordinário e im pres­
sionante testem unho de fé de todo o A n tigo T estam ento, e o
profeta Jerem ias, o m ais sincero em seu protesto contra D eus.
C om um títu lo ao estilo de Isaías — “D o p ó da história,
um m urm úrio” — , o quarto m om ento do n o sso percurso nos
introduz n o grande ev en to do êx o d o da escravidão do E gito,
even to paradigm ático para ilustrar a v isã o bíb lica da história
co m o centro da rev ela çã o divina. O profeta é aquele que, sob o
em aranhado das v icissitu d es hum anas, m uitas v e z e s esca n d a lo ­
sas e sanguinárias, procura pegar o fio v erm elh o da ação d ivin a
secreta, O Sinai é o cu m e que d om ina um a longa série de
páginas bíblicas; lá em cim a atingim os a quinta etapa para
com preender o sig n ific a d o daquele “im p ério da le i” que tem no
D e c á lo g o sua m ais céleb re expressão, m as que se espraia num
verdadeiro delta leg isla tiv o : escravid ão e lib erd ade são os p ó lo s
entre os quais o sc ila tal sistem a de norm as, co lo c a d a s à som bra
d o m onte da rev ela çã o e sob a autoridade de M o isés. D e ssa s
le is em erg e o cu lto de Israel, venerado p ela tradição, dessacra-
lizad o p elo s profetas, para se reportar à su a g en u ín a alma; o
rito co m o vid a é, de fato, o tem a do sex to cap ítu lo (“In cen so
não é droga”).

Conquistada a terra de Canaã, in icia -se para o povo da


B íb lia a aventura da co n stm çã o de um Estado. A s figuras de
D avi e de sua dinastia transform am -se num sinal te o ló g ic o , e x ­
presso com o termo “M e ssia s”, um a presença capital na história
b íblica (sétim a parte do n o sso projeto de leitura: “Eu sou tenda,
casa, trono!”). E la faz Israel transcender, quer no tem po — abrin­
d o-o ao eterno e à vida no além — , quer no esp aço, abrindo-o ao
universalism o. Salom ão su ced e Davi: n ele se con densa um a n ova
visão filo só fic a e teo ló g ica , a da “sabedoria”, que tem sua e x ­
pressão entusiástica no livro dos Provérbios, o m anual das obras
e dos dias do hom em , objeto da n o ssa oitava p esq u isa (“A in teli­
gên cia infinita”). M as o m undo tam bém revela aos olh os do
sábio feridas, fraturas, buracos negros: um a n o v a sabedoria, em a­
nada de h om en s que sobreviveram à queda de Jerusalém , no ano
586 a.C., ao e x ílio da B ab ilôn ia e à crise do ju d aísm o, interroga-
se sobre “enferm id ades” da realidade e do espírito (nono capítu­
lo: “C om o cantar em terra estrangeira?”). P orta-voz desta refle­
xão é o em baraçoso C oélet [E clesiastes], um sábio do sécu lo III
a.C., em torno do qual se perfilam questionam entos sobre o mal,
a dor, o silê n c io de D eus.
A história de Israel p rossegu e de m odo cin zen to; sofre,
porém , um abalo no sécu lo II a.C., quando eclo d e a revolução
dos m acabeus. São “os dias da ira” (d écim o cap ítulo), que nos
repropõem o tem a da v io lê n c ia sagrada, e fazendo despontar
um a nova visã o de m undo e da história, aquela tem p estu osa da
literatura apocalíptica. E no entanto, exatam ente ao lado de p ági­
nas de fúria “desdobram -se” na B íb lia textos de intensa ternura e
m aviosidade: a história m atrim onial em blem ática d e O séias; o
D eu s pai, m ãe, esp oso; a obra-prim a do C ântico dos C ânticos...
“F ilhos d e um D eus de am or” é, então, o título do d écim o pri­
m eiro capítulo. A últim a etapa de n o sso périplo procura puxar os
fios desta lon ga viagem pela história e p elo pensam ento da B í­
blia, interrogando-se sobre “que D e u s” as Escrituras hebraicas
querem revelar-nos, qual era seu verdadeiro rosto e em que co n ­
sistiria, sua genuína m ensagem . E, no final, a descoberta é ainda
um a vez surpreendente, porque aquele D eu s tão “m ú ltip lo”, car­
nal e espiritual, colérico e apaixonado, c e leste e terreno, presente
e ausente, revela-se num a “v o z de sutil silê n c io ”, fech an d o-se
em um em udecim ento p leno de significado, síntese suprem a de
cada palavra, que em erge de esco lh a s e de ações efica zes, cria­
doras e libertadoras.
A narrativa do céu

N a assem bléia do tem plo de Jerusalém , o solista levan ­


tou-se e entoou o antigo Credo de Israel, transform ado em cânti­
co. Era o “Grande H a llel”, o L ouvor por ex celên cia, o Salm o
136. “C elebrem a Javé, porque ele é bom ... E le fez os céus com
inteligência, / E le firm ou a terra sobre as águas, / E le fe z os
grandes lum inares, / O sol para governar o dia, / A lua para
governar a n o ite...” E o p ovo, após cada verso, respondia kt l e ’
ôlam husdô, “porque o seu amor é para sem pre” . A e sse coro
a ssociava -se a orquestra do tem plo, que o S alm o 150, outro
H allcl, o últim o do Saltério, descreve m inuciosam ente: trombe-
tas, citara e harpa, tím pano, vários instrum entos de corda, flautas
e cím balos ritm avam as danças rituais. N o canto do Salm o 136,
ev o ca v a -se — enquanto subia aos céu s a fum aça dos sacrifícios
do holocausto — o prim eiro artigo da fé de Israel, narrado na
prim eira página da Bíblia.

N o p rin cíp io , um som

L ivro estranho a Bíblia: não só porque com posto, co m o


um m osaico, por dezen as de livros e livretos diversos, m as tam ­
bém porque o redator final, para abri-lo, esco lh eu um a das p á g i­
nas m enos antigas. O célebre capítulo 1 do G ên esis, o b eresh it,
isto é, “N o princípio [D eus criou o céu e a terra]”, de fato só foi
escrito no fm al do sécu lo V I a.C,, quase 5 0 0 anos depois que o
jo v em pastor “ruivo e de b elo asp ecto”, cham ado D avi, tom ou -
se rei de Judá. U m a página curiosa, que parece quase elaborada
no com putador, segun do um com p lexo esqu em a numérico: sete
dias pelos quais se d esen v o lv em oito obras divinas, dispostas em
dois grupos de quatro; sete fórm ulas fix a s usadas para construir
a trama da narrativa; sete v e z e s ressoa o verbo b a r a ’, “criar” ; 35
v e z e s (7 x 5) esca n d e-se o nom e divino; 21 v e z e s (7 x 3) entram
em cena “terra e céu ” ; o prim eiro versículo tem sete palavras; o
segundo, 14 (7 x 2).
U m a cabala hierática, ritmada sobre o sete da sem ana li-
túrgica, núm ero plen o e perfeito, celebra então um infindável
silên cio, rasgado por um im perativo potente, J e h fo r ... W a jje h fo r,
“Q ue se faça a luz... E a luz fo i feita” . T a lv ez seja n ecessário
com entar estas palavras, con fian d o na C ria çã o , d e H aydn, com
sua prodigiosa geração de um celestial e solar D ó m aior do caos
de uma m odulação infinita. Ou evocar o d esafio de W agner, de
H olst e de Schõnberg, o b cecad os pela id éia de captar o despertar
do universo em com p assos m usicais. Ou seguir o esforço de
conquista da sonoridade có sm ica por parte da S a g ra ç ã o da p r i ­
m avera, de Stravinski, em que as sete notas da escala, atreladas
ao acorde de todos os acordes p o ssív eis, percutem do céu à terra
para despertar-lhe o im pulso vital e povoar-lhe de vida a superfí­
cie. Ou criar a laceração dos sons de Licht, a obra co sm o ló g ic a
em sete partes de Stockhausen, enquanto a G en esi, de Battiato,
pareceria sugerir-nos um a com paração entre fés diversas. Para a
Bíblia, a criação é substancialm ente um evento sonoro: é a voz
divina a dar origem ao ser. T am bém na cultura hindu, o Prajapati,
“o Senhor das criaturas”, faz surgir o ser de um a célu la sonora
que se espalhará nos esp aços infinitos para reagrupar-se depois
nos cantos dos fiéis.
A palavra é logo d ecisiva, e o é sobretudo para um p ovo
com o Israel, que optou pelo silên cio das im agens: “N ã o farás
ídolo nem im agem algum a do que está no céu, nem do que está
na terra, nem do que está nas águas, sob a terra” , im porá o
D ecá lo g o (Ex 20,4). O ser não está suspenso sobre um sorved ou ­
ro fatal, co m o im aginavam , ainda antes dos gregos, os antigos
sum ários, que pensavam no d eu s criador EnUl co m o num a “c o n ­
fusão de fios dos quais não se con h ece o costal da m eada”. A
criação tam bém não é fruto de um a luta teogôn ica e intradivina,
com o cantara o poem a acádico-babilônio E num a E lish, no qual
um deus vencedor, Marduk, reduzia à matéria o antagonista
Tiamat, a divindade “abissal” negativa, desconfiada, transform a­
da pela B íb lia no tehôm , o abism o subterrâneo aquático-infem al.
Para a B íb lia, som os “pendurados” naquela Palavra primordial;
“N o princípio, era o L o g o s”, isto é, o V erbo, a Palavra eficaz,
com o escreverá o evangelista João. N ela, concentram -se todos os
sentidos que o F austo de G oethe quis dissociar: o W orí-palavra é
tam bém o A'ra//-potência, S i m — sign ificado e Taí-ação.
N o principio, houve então um som , um a harm onia. D isso
está con ven cid o um outro antigo autor de Israel, aquele que
co lo co u na boca da Sabedoria divina criadora um esplêndido
hino, incluído no capítulo 8 do livro dos Provérbios. R epresenta­
da co m o ‘am ôn, “arquiteto” ou “jo v e m ” — d ifícil é decidir o
valor d esse vocábulo — , a Sabedoria, no fim da criação, entre­
ga-se a um a dança, a um a e sp é c ie de em briaguez ju b ilosa, e x ­
pressa co m um verbo hebraico que im plica delícia, alegria, aban­
dono prazeroso, baile: “Eu estava co m E le co m o ‘am ôn, / Eu era
a sua delícia todos os dias / dançando diante dele a cada instante, /
dançando sobre a superfície terrestre, / encontrando m m ha ale­
gria entre o s filh o s do h om em ” (Pr 8 ,3 0 -3 1 ). Capturado por esta
im agem será tam bém o poeta de Jó, que fará entrar o Criador na
cena do co sm o s em form ação, acom panhado por um coral an gé­
lico: “A s estrelas da m anhã aclam avam em coro / e todos os
filh os de D eu s extravasavam sua alegria” (Jó 3 8 ,7 ).
Perm anecerá sem pre um desafio para o hom em ; captar
aquele canto prim ordial que eco a no tem po e no esp aço, se é
verdade, com o d iz Shakespeare em O m e rc a d o r de Veneza, que
“até o m inúsculo m undo que adm iras, executando seu m o v im en ­
to, canta co m o um anjo [like an a n g el sin g s]” . A té a ciên cia
m oderna recorreu a um sim b olism o análogo, o “B ig B a n g ” —
certamente mais vulgar e biutal — , para descrever aquele bereshit.
E, para as Escrituras, a recriação esca to ló g ica dos “n ovos
céu s” da “nova terra” será confiada, co m o d eixa transparecer o
A p ocalip se, a um a p alin genesia para coro, orquestra e solistas. O
som florescerá sem pre do w a jj’om er, o “dizer” inicial, e do im ­
perativo je h V o r, “faça-se a lu z” ; escuta e visão, palavra e luz,
juntas, se estenderão pelo s sécu los até o entrelaçam ento fin al de
vozes, a de D eu s e a do hom em , n o penúltim o versículo do
A pocalipse: “A q u ele que testem unha estas co isa s diz: ‘S im ! Eu
virei em b rev e!’... V em , Senhor J esu s!” (A p 2 2 ,20). O ex ato
oposto é a D e s c ria ç ã o d o m undo, proposta em 1980 p elo m ú sico
brasileiro M aurício K agel, com o “paródia” escato lógica em hon­
ra de um deus cruel e vingador.
O som do im perativo divino prim ordial, portanto, não se
extinguiu, m as continua a ecoar na concha da criação. Está com o
que cristalizado nas criaturas. D isso está co n v en cid o o poeta
sagrado, autor daquela jó ia lírica que é o S alm o 19, cujo início,
na versão latina, talvez esteja ainda em n o ssa m ente: “C oeli
enarrant gloriam D e i...” . P oderíam os acom panhá-lo c o m o fio
m usical de um a partitura de L iszt sobre o próprio salm o ou com
o S a lm o XIX, que N ic c o lò C astiglion i apresentou em primeira
ex ecu çã o em Perúgia, cm 1980.
P ois bem , na p o esia b íblica destacam -se d ois sóis. O pri­
m eiro é aquele que aparece no fulgurante céu da Palestina; o
segundo é aquele que brilha na alm a de Israel, isto é, a Torá, a
Lei divina, a R evelação bíblica, descrita justam ente co m im a­
gen s solares (“os m andam entos de Jhwh são radiantes, / ilu m i­
nam os olhos; / a palavra de Jhwh é pura, / tam bém teu servo é
por ela ilum in ado”).
M as é o prim eiro sol que nós agora vam os contem plar.
C om o um herói, sai do tálam o nupcial, do seio das trevas, onde
transcorreu a noite; com o um atleta, realiza seu tresloucado vôo
sobre o horizonte, sem pausas nem fadiga, en v o lv en d o o planeta
no calor irresistível do m eio-dia. U m a sim b o lo g ia notável, en ­
contrada tam bém na M esopotâm ia, em um hino ao deus solar
Sham ash: “ó S ol, guerreiro e atleta, e tu, N o ite, sua esposa,
lançar sem pre um olhar lum in oso às m inhas a çõ es ju sta s!” Ou-
çam os o salm ista; “A í ele pôs um a tenda para o s o l,/ e este sai.
qual esp o so de seu quarlo,/ c o m o herói alegre, percorrendo seu
cam in h o./ E le sai de um extrem o do céu, e seu percurso vai até o
outro lado;/ nada escapa ao seu calor” (SI 19,6-7). N o d e se n v o l­
vim ento d e sse m esm o salm o, capta-se a v o z da criação, ou m e ­
lhor, a “narrativa” do céu. O poeta hebreu, de fato, não co n tem ­
pla o universo co m espírito rom ântico; ele está em b u sca da voz
primordial e a descobre na abóbada celestial. N o ite e dia são
representados com o sentinelas que, de posto em p osto, transm i­
tem um a m en sagem divina: “O céu m anifesta a glória de D eu s,/
e 0 firm am ento proclam a a obra de suas m ãos./ O dia p assa a
m ensagem para outro dia,/ a n oite a sussurra para a outra n o ite./
S em fala e sem palavras,/ sem que sua v o z seja o u vid a,/ a toda a
terra ch eg a seu e c o ,/ aos con fin s do m undo a sua lin gu agem ” (SI
19,2-5). U m fam oso com entarista do Saltério, H erm ann Gunkel,
notava que, para o salm ista, “há no universo um a m úsica teoló­
gica ”, um evan gelho có sm ico , que prepara aquele que se en con ­
tra ex p lícito na Torá.
Extraordinária esta m úsica silen ciosa, esta v o z afônica,
este canal de escuta que supera todo lim ite auditivo. N ão é só a
palavra que se difunde por toda a terra, m as tam bém o q a w , raro
vocábulo hebraico que indica quase um urro (SI 4 0 ,2 ). Há, e n ­
tão, um a revelação có sm ica aberta tanto ao hebreu com o a cada
Adão: “N ão há criatura”, escrevia em 1980, em um a de suas
últim as p o esia s, R iccardo B a cch elli, “que d eix e de louvar o cria­
dor... em um a luz arcana, m as aberta a todos e a ninguém : ao
hom em ” . A narrativa do céu inaugura a via das epifanias ocultas
(confiadas ao silên cio “branco”, m ístico, síntese de todos os sons,
oposto ao “preto”, sem son s e desesperador), em bora universais
de D eus. Há um a Torá có sm ica a ser lida sobre o pergam inho
estendido entre terra e céu, para usar um a im agem subtendida
em um hino da sinagoga, cantado na festa do Shavunt, o Pente-
co stes hebraico. “S im ” , observará m ais friam ente o autor alexan­
drino do livro da Sabedoria, “porque a grandeza e a b eleza das
criaturas fazem , por com paração, contem plar o Autor d ela s” (Sb
13,5). E no seu rastro vai co locar-se P aulo, iniciando sua obra-
prima teológica, a Carta aos R om anos, co m estas palavras: “D esd e
a criação do m undo, as perfeições in v isív e is de D eus, tais co m o
seu poder eterno e sua divindade, podem ser contem pladas, atra­
vés da inteligência, nas obras que ele realizou ” (R m 1,20).

O “m anto ” d e D eu s

“D eu s disse: ‘Q ue existem lu zeiros no firm am ento do céu,


para separar o dia da noite e para marcar festas, dias e anos; e
sirvam de luzeiros no firm am ento do céu para ilum inar a terra’.
E assim se fez. E D eu s fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro
m aior para regular o dia, o luzeiro m enor para regular a n oite, e
as estrelas”, con tin ua assim o autor sagrado do G ên esis (Gn
1,14-16). É o quarto dos sete dias da sem ana arquetípica. S e g u n ­
do um apócrifo ju d a ico , o Livro dos Ju bileu s, as m aiores solen i-
dades judaicas caíam exatam ente no quarto dia da sem ana. U m
dia de festa, aquele no qual “as grandes lu zes p endem do céu ” ,
destinadas a ritmar o c ic lo circardiano e sazonal e a “separar”
luz e trevas. Criar é “separar” , distinguir, ordenar em um a parti­
tura harm ônica. A lei b íb lica proibirá tecer juntos, para um a
roupa, lã e linho, em parelhar dois anim ais de e sp éc ie diferente,
sem ear duas esp écies diferentes de sem entes (L v 19,19), porque
seria um atentado à criação.
M as isso não é o m ais sugestivo. Para o antigo Oriente
Próxim o, Sol, Lua e estrelas eram divindades. N o sécu lo X IV
a.C., o faraó Aknáton, encantado por A ton, o d isco solar, inau­
gurou sua reform a “m on oteísta” solar e entoou aquele esp lên d i­
do H ino a A ton , que talvez tenha deixado algum vestígio no
S alm o 104, o “cântico das criaturas” . N a M esop otâm ia, era
Sham ash, o S o l, ou Inanna, a Lua, que inspiravam cantos e
liturgias. E vidente é, ao contrário, a escolh a bíblica: sol, lua e
estrelas são criaturas que trazem a m arca do Criador, que podem
falar dele, mas são, afinal, sim p les relógios có sm ico s. N o m áxi­
m o, p odem tom ar-se seu exército: aquele título tão m arcial de
Jhw h se b a 'ot, “Senhor dos ex ército s”, co m o qual Israel indicará
0 D eu s da arca, rem etia de in ício justam ente às le g iõ e s astrais do
Criador: “A s estrelas brilham alegres, / cada um a em seu lugar; /
ele as cham a, e elas respondem : ‘P resen te!’ / E brilham de ale­
gria para aquele que as criou” (Br 3 ,3 4 -3 5 ).
A B íb lia rejeita o panteísm o dos n ativos cananeus, os ha­
bitantes da terra prom etida, que estavam co n v en cid o s de que a
divindade sc aninhava na fecundidade de suas m ulheres e de
seus rebanhos e na fertilidade do cam po. O S alm o 29, “dos sete
trovões” , m artelado justam ente por sete on om atopaicos q ôl, “tro­
vão”, não é m ais a celebração do deus cananeu B aal, cujo orgas-
m o fecundador era perceptível no furor de um furacão carregado
de chuva, e sim o canto da “v o z ” divina — em hebraico ainda
q ô l — que ju lg a e salva. A tem pestade — colh ida em seu flu xo
progressivo e violento do M editerrâneo (“as águas im en sas”)
para as florestas de cedro do m onte L íbano até a estepe m erid io­
nal de C ades, onde o terror provocado por relâm pagos enceque-
cedores acarreta o parto prematuro das fêm eas dos cerv o s grávi­
das — é apenas um a parábola da história e das suas tragédias,
sobre as quais, porem , Jhwh, o Criador e Senhor “estab eleceu
para sem pre seu reinado” . N ão sem m otivo, o hino acaba na paz
d e Sião, não atingida m inim am ente pela ex p lo sã o d o ciclon e,
enquanto parecem ressoar as palavras do F id elio , de B eeth oven .
“F iquem em paz: nunca se esqu eçam de que a P rovidência vela
por nós, aconteça o que acontecer.”
D iante da tem pestade, o hom em bíblico reencontra, certa­
m ente, aquele som criador d ivin o prim ordial, co m suas notas
m ais baixas e profundas, m as não encerra nisto o Criador. “Q ôl
de Jhv^h sobre águas im ensas. /Q ô l de Jhwh é potente. IQ ôl de
Jhwh é m ajestosa. IQ ô l de Jhwh despedaça os cedros-do-líbano /
faz o Líbano pular co m o bezerro... IQ ô l de Jhwh lança chipas de
fogo. IQ ô l d e Jhwh abala o deserto de C ades. IQ ôl de Jhwh faz
contorcer-se no parto as fêm eas dos cervos, que abortam. / E no
seu T em plo, um só grito: ‘G lória!’” (SI 2 9 ,3 -9 ).
A natureza traz a chancela do d ivino, em bora “dem itiza-
da” ; a contem plação do universo é religiosa e “le ig a ” ao m esm o
tem po; o s deu ses im anentes fo g em para deixar Criador e criatura
em seus resp ectivos patamares. É por isso que tam bém no céu,
em bora continue a representar o infinito e o eterno, perm anece
um a cúpula, um firm am ento ( r a q ia ’), um a abóbada m etálica,
apoiada sobre a plataform a terrestre, da qual pendem as “gran­
des lu zes” do sol, da lua e das estrelas, e na qual se abrem
seteiras para o escoam en to das “águas superiores” das chuvas.
S alom ão não tem dúvidas: “N ão cabes no céu e no m ais alto dos
céu s, Senhor” (IR s 8,27).
D eu s é sem pre transcendência e alteridade. A criação é
sem pre finita e m en su rável, perm an ece con tida nos lim ites:
“Q uem m ediu toda água do mar na co n ch a da m ão? / Q uem
m ediu a palm os o tam anho do céu? / Q uem m ediu num a vasilha
o pó da terra? / Q uem p esou as m ontanhas na balança e as
calinas nos seus pratos? / ...D iante de Javé as nações são co m o
se não ex istisse m ” (Is 4 0 ,1 2 .1 5 .1 7 ). A o contrário, a im ensidade
do céu pode, no m áxim o, ser com parada à tenda que um beduíno
estende e fix a no chão co m pinos. N aturalm ente, o Criador é
quem erige essa tenda colossal: “E le desdobra o céu co m o um
toldo, e o estend e com o tenda que sirva para morar” , lem o s em
Isaías, que co m ironia observa: “Javé se assenta sobre o círcu lo
da terra, e seu s habitantes parecem bando d e gafanhotos” (Is
4 0 ,2 2 ). M as D avi, no Salm o 18, um dos pou q u íssim os que p o ­
d em ser diretam ente atribuído a ele, vai além e im agina que os
céus cobertos de nuvens podem tom ar-se um a e sp éc ie de ta llèd,
isto é, de “m anto” litúrgico de D eus.
O Senhor, de fato, entra em cena c o m o um gigan tesco
cavaleiro, en volto na capa escura das n u vens, cavalgan d o um
querubim , o anjo m ítico da B abilônia de rosto hum ano e corpo
de anim al, na m oldura de um a teofan ia tem pestuosa: “D e suas
narinas subiu a fum aça, / e da sua b oca um fo g o voraz: / dela
saíam brasas ardentes. / E le inclin ou o céu e d esceu , / tendo aos
pés um a nuvem escura; e le cavalgou um querubim , e voou,
planando sobre as asas do vento. / D as trevas fe z seu m anto, /
águas escuras e nuvens esp essa s o rodeavam c o m o tenda / ... /
lançou suas flech as e os dispersou / trovejou no céu / ... / e os
exp u lsou , lançando seus raios” (SI 1 8,9-15). D eu s tenebroso e
suprem o, Jhw h é “totalm ente O utro” ; à sua presença, a natureza
se dobra, e ele cum pre sua função de salvador: “D o alto ele m e
m andou buscar; / tirou-m e das águas torrenciais / ... / E le m e fez
sair para lugar espaçoso; / libertou-m e, porque e le m e am a” (SI
18 ,1 7 .2 0 ). In clina-se de fato c o m amor, para resgatar seu fiel do
sorvedouro infernal do caos aquático e co lo c á -lo a salvo no
litoral da vida.

Vinte e d o is c o rista s

D esp o v o a d o s dos d eu ses, céu e terra perm anecem com o a


grande obra-prim a de D eus, on d e se pode encontrar surpresa e
fantasia, b eleza e deformidade. O filó so fo judeu-alexandrino Filão,
contem porâneo de Paulo, jo g a n d o co m o duplo sentido dos ter­
m os gregos p o ie s is , “ação, p o e sia ”, e p o ie m a ta , “obra, p o em a ”,
escreveu; “S e alguém é capaz de ouvir a p o esia [p o iesis] de
D eu s, é necessariam ente feliz. N a p oesia [poiesis] de D eu s não
se encontrará métrica, ritmo, cad ên cia de voz, que sed u za m usi­
calm ente 0 ouvido, mas se verão p erfeitíssim os poem as-obras
[poiem ata ] da natureza, cada um dotado de um a e sp e c ífic a har­
m onia. O espírito que se põe a auscultar poem as [p o iem a ta ] de
D eus se reg o zija ”.
É sobretudo Jó, em um m agn ífico afresco de 16 estrofes
— pela m ística dos núm eros, o s quatro pontos cardeais de um a
topografia perfeita — , quem faz d esfilar diante do leitor a incon-
tida fantasia do Criador, cujo ‘esah, cujo “p lan o”, escap a à ta-
xion om ia da razão humana, revelando uma m etarracionalidade
onde to u t se tient, tudo perm anece com pacto. São os capítulos
38 -3 9 , sobre a intervenção divina, o m om ento fundam ental na
econ om ia do poem a te o ló g ic o de Jó. A plataform a terrestre sus­
pensa sobre o abism o, o mar, a aurora, luz e trevas, n ev e e
granizo, ch u va-orvalh o-gelo, astros e m ecânica celeste, furacões,
anim ais selvagen s, a genética da corça, a liberdade instintiva do
onagro ou asno selvagem , a p otência do búfalo, a rapidez do
avestruz, a beleza do cavalo, o gosto da presa nas garras do
gavião: um film e supercolorido de m aravilhas que vão das ar­
quiteturas có sm ica s ao m isterioso recolhim ento das cam urças na
ép oca do parto, passando pela elegân cia ousada do cavalo e a
desengon çad a estupidez do avestruz. São estes o s p o ie m a ta do
Criador. D e fato, é o próprio D eu s quem interpela o hom em ;
“V ocê pode dar força ao cavalo e vestir de crina o p escoço dele? /
V ocê o ensina a saltar com o um gafanhoto, / relinchando com
m ajestade e terror? / C heio de força, e le pateia o chão / e se
lança ao encontro das armas. / E le ri do m edo, / não se assusta e
diante da espada não volta para trás. / Sobre e le ressoara o
barulho do escu d o, a lança faiscante e o dardo. / C om ím peto e
estrondo, ele devora a distância e não pára, m esm o que so e o
clarim . / A o toque da trombeta, ele relincha; / fareja de lo n g e a
batalha, as ordens de com ando e os gritos de guerra” (Jó 3 9 ,1 9 -
25). M as, em contraste, eis que avança “o avestruz que bate
alegrem ente as asas / co m o se fo ssem penas e plum as de c e g o ­
nha. / E le deixa seus o v o s no chão, / para ch ocá -los na areia, /
sem pensar que algum pé poderá quebrá-los ou serem pisados
por algum a fera... / D eu s o privou de sabedoria / e não lhe
concedeu in teligên cia. / Contudo, quando se levanta batendo os
f la n c o s ,/e le se ri de cavalos e cav a leiro s” (Jó 3 9 ,1 3-18).
D esconcertante mistura de ordem e extravagância, a cria­
ção atormenta e exalta o hom em . Jerem ias, num a página de luto,
pinta um a terrível seca, flagelo en d êm ico da Palestina, c o m o o
são os gafanhotos devoradores cantados por um outro profeta,
Joel (J1 2,3-9): “O s ricos m andam seus servos em busca d e água.
/ E le s vão até os p o ço s, m as não encontram água, / e voltam com
o s baldes vazios. / E nvergonhados e frustrados, cobrem a cabeça
em sinal d e luto. / Por cau sa do chão que está rachando, p ois não
c h o v e na região, o s lavradores cobrem a cab eça envergonhados
e frustrados. A corça no m ato dá cria e abandona o filhote, / pois
não há capim . O s ju m en tos bravos fica m em pé no alto das
colin as, em busca de ar puro, co m o chacais, porém a vista d eles
se apaga por falta de cap im .” (Jr 14,3-6).
C hega, porém , o inverno, e o furacão do norte “faz descer
a n e v e co m o pássaros que pousam , / e a sua queda é co m o a dos
gafanhotos. O olho admira a b eleza de sua brancura, e o coração
se extasia ao vê-la caindo. E le derrama sobre a terra a geada
co m o sal, que g ela form ando pontas de esp in h o ” (E clo 4 3 ,1 8 -
19). V em dep ois a prim avera c o m suas ch u vas fecundas. C abe
ao S alm o 65 oferecer-nos um quadro prim averil, m atizado de
cores e en v o lto n os son s v iv id o s de um a festa folclórica. P elo
céu passa E le, o “C avaleiro das nuvens e das águas vertidas
pelas estrelas”, co m o diziam o s nativos cananeus, para os quais
— co m o já observam os — a divindade im ergia na criação, co n ­
fundindo-se c o m ela, fa zen d o-a germ inar c o m seu b eijo e seu
sêm en, E is, ao contrário, o id ílio bíblico: “C uidas da terra e a
regas, / e sem m edida a enriqueces. / O riacho de D eu s está
ch eio d ’água, e preparas assim os trigais: / regando os su lcos,
aplainando os terrões, / am olecen d o co m c h u v isc o s a terra, /
abençoando seus brotos. C oroas o ano co m teus bens, / e tuas
trilhas gotejam fartura. / A s pastagens do deserto gotejam , / e as
colinas se enfeitam de alegria. / Os cam pos se cobrem de reba­
nhos / e os vales se vestem de espigas; / dão gritos de alegria e
cantam !” (SI 6 5 ,1 0 -1 4 ).
D eu s dá um a roupagem b otticelliana à primavera: coroa
de flores, cintura, túnica verde m aculada de branco, m anto dou­
rado. O elem en to m ais su g estiv o está, todavia, naquela esp écie
de alegre procissão popular fin al, quando todas as criaturas se
dirigem ao Criador, cantando, dançando e louvando. N ã o há
apenas o canto que D eus c o lo c a na boca do céu para que nos
com unique um a m ensagem transcendente; não há apenas a “p o e­
sia” do S enh or aberta diante d os hom ens. Há tam bém o canto
resp on sivo da criação que lo u v a o Criador. U m outro S alm o, o
148, c o n v o c a de fato vinte e d o is coristas — o alfabeto inteiro
do ser, porque tantas são as letras do alfabeto hebraico — , orga-
n iza-os na abside cósm ica do céu (con ceb id o precisam ente com o
nos tem p os antigos) e, sob a batuta do hom em , liturgo de um rito
universal, faz co m que en toem um pujante aleluia. É o que
Teilhard de Chardin, o fam oso jesu íta cientista, chamará de sua
“M issa có sm ica ”, quando, encontrando-se no deserto chinês, sem
pão nem vinho, celebrará um a liturgia eucarística espiritual e
ideal, na qual, através da oração e da contem plação da natureza,
a própria m atéria será consagrada, louvando, revelando e ado­
rando a D eu s. “T od o ser que respira lou ve a Javé”, diz o final do
Saltério (SI 150,6). A inda um a vez, um fio m usical perpassa o
ser. E a partitura é m ística.

T e rro r na b a rra

C om o os continentes surgem do recuo dos oceanos, assim


a criatura em erge de um retraimento de D eu s, que engendra e
dom ina a realidade criatural, m as não a absorve. Esta im agem de
H õlderlin perm ite-nos ilustrar a v isão b íb lica da finitude da cria­
ção, do seu lim ite, do seu ser suspenso sobre o oceano do nada.
Já se observou várias v e z e s que o nada é “in exp rim ível” em um a
cultura rea iístico-sim b ólica, co m o a sem ítica, que ignora abstra­
çõ es, co n ceito s form ais e essen cia is. E no entanto, na página da
qual partim os, a prim eira do livro do G ên esis e da B íblia, su ge-
re-se um m eio para exprim ir a crea tio ex n ih ilo, com o dirá rigo­
rosam ente a lin guagem teo ló g ica m ed ieval. E le é, obviam ente,
sim b ólico . N o segu n do versículo do G ên esis, lem os: “A terra era
tohu w abohu, e as trevas recobriam o ab ism o.” E sse tohu w abohu,
termo onom atopaico na sua tosca e prim itiva fonética, ev o c a
um a superfície desértica, desolada e, sorum bática, indicando pre­
cisam ente ausência d e vida, silên cio, m orte, isto é, o exato o p o s­
to do que D eu s lo g o fará surgir. Há as “trevas”, n egação da luz;
‘or, a “lu z”, será a prim eira entidade a aparecer. Há, en fim , o
“ab ism o”, em hebraico Tehôm (que rem ete a Tiamat, a divinda­
de m esopotâm ica do caos), que se abre sob a terra, co n ceb id a
justam ente com o um a plataforma sustentada por colunas que se
erguem sobre o ab ism o vertiginoso.
D eserto, treva, abism o — e is a obscura tríade do nada,
que foi vencida pela palavra criadora de D eu s. A criação, que
não é infinita porque se identificaria com D eu s, perm anece sus­
pensa sobre as crateras do nada, de onde saiu m ediante a “pala­
vra” de D eu s e seu b a ra que é aquele verbo co lo cad o no “títu­
lo ” do G ên esis — “N o princípio D eu s criou [b a ra ’] céu e terra”
(G n 1,1) ■— e que sim b olicam ente rem ete ao trabalho do lenha­
dor, daquele que corta os troncos, e do quebrador de pedras.
Pois bem , este equilíbrio instável sobre o qual se m antém
o ser encontra sua representação na linha do barco no litoral
onde parece deslocar-se a fronteira m ovediça entre jam , o “mar”,
e 'eres, a “terra” . N o s m itos cananeus, Jamm era um a divindade
negativa que se opunha a Baal, o deus da vida e do ser. A
Sabedoria divina, no hino já citado do capítulo 8 dos Provérbios,
assiste 0 Criador na delicada operação de suspensão da criação
sobre o mar caótico, sign o do nada: “[Estava co m ele] quando
punha um lim ite para o mar / de m odo que as águas não ultra­
p assassem a praia” (Pr 8 ,29). D ante, no C on vívio , parafraseará
esta passagem : “Quando [D eus] circunscrevia lim ites ao mar e
im punha leis às águas para que não ultrapassassem seus lim i­
tes... eu estava com e le ” (III, 15,16).
O terror do nada, precisam ente com o v a iv ém das águas
na praia, atento ao esplendor da criação, é superado apenas por­
que D eu s se levanta, co m o dedo indicador apontado para o
adversário aparentem ente físic o , mas na realidade m etafísico.
C riança rebelde presa por faixas, ou perigoso d etento m antido
em prisão de segurança m áxim a, o mar, em bora continue a tu­
multuar com suas ondas e seu s m onstros, é subm etido ao im p e­
rativo ferido em um dos fa m o so s d ezesseis quadros do discurso
divino dos capítulos 3 8 -3 9 d o livro de Jó, quando Jhwh interpela
o protagonista da obra: “Q uem fechou o mar co m um a porta, /
quando ele irrompeu, jorrando do seio m aterno? / Q uando eu
co lo q u ei as nuvens com o roupas d ele e n évoas esp essa s com o
cueiros? / Q uando lhe co lo q u ei lim ites com portas e trancas, e
lhe disse: ‘V o c ê vai chegar até aqui, e não passará’. A qui se
quebrará a soberba de suas o n d as?” (Jó 38,8-11).
A força agressiva do mar-nada-abism o será bem tipificada
por Jó nos d ois monstros m arinhos B eem ot, a B esta por e x celên ­
cia, descrita em Jó 4 0 ,1 5 -2 4 com o um colossal hipopótam o, e
Leviatã, o Réptil, representado em Jó 4 0 ,2 5 -4 1 ,2 6 com o um pode­
roso crocodilo, transformado, na citação de M elville, no im placá­
vel cetáceo M oby D ick. Página de aterradora beleza, a descrição
do Leviatã toniar-se-á a matriz da metáfora hobbesiana do Estado
totalitário, sím bolo m aligno no rom ance hom ônim o de Julien
Green, e será o nom e im posto à tresloucada embarcação construí­
da no século X V Ill, incapaz de navegar, dada sua enorm idade, e
transformada em em blem a do velho mundo na L enda dos séculos,
de V ictor H ugo. A canção do Leviatã é para Jó, ao contrário, uma
celebração da soberania do Criador, que pode até permitir-se “brin­
car com ele com o um pássaro, / amarrando-o para divertimento
das crianças” (Jó 40,29). É por isso que, segundo uma tradição
judaica, o Leviatã será assassinado e preparado para o banquete
m essiânico dos justos. É por isso que a humanidade, segundo o
salm ista, pode encarar sem m edo o “vasto mar, / onde fervilham
inum eráveis / esp écies animais, pequenas e grandes, / por onde
circulam os navios / e o Leviatã, que form aste para com ele brin-
cares” (SI 104,25-26). É por isso que Rimbaud, no B attello ebhro,
verá o Leviatã “apodrecer entre os ju n co s”, fazendo “fermentar
enorm es pântanos” . M as a grande surpresa é a recriação apocalíp­
tica, quando João, contem plando “um n ovo céu e uma nova ter­
ra”, percebe que “o mar já não existe” (A p 21,1)- A instabilidade
e o lim ite serão então elim inados.

G eo g ra fia m ística

O refrão da C an ção tu, dos chassidim , m ovim ento espiri­


tual hebraico da Europa central, surgido no sécu lo X V H , diz:
“A onde quer que eu vá, tu; onde quer que eu pare, tu; só tu,
ainda tu, sem pre tu. Céu, tu; terra, tu. Para onde quer que eu m e
vire, para onde quer que eu olhe, tu, tu, tu!” . Há, portanto, a
firm e con vicção de que o espaço, sem ser D eus, é um a epifania
de D eus, um âm bito d e revelação aberto a toda a hum anidade. E
verdade, com o verem os, que Israel privilegiará o tem po, isto é, a
história, com o sed e da m anifestação suprem a do Senhor. A té
m esm o a criação será considerada o prim eiro ato da história da
salvação, e o G rande H allel, o Salm o 136, que já citam os no
in ício, insere, em um a ú n ica seqüência, o ev en to criador e os
even tos histórico do ê x o d o do E gito, da m archa no deserto e da
conquista da terra prom etida. T odavia, na B íb lia, há a co n v icçã o
de que o esp aço não é apenas um a física terrestre ou um a astrofí­
sica, m as d eve ser considerado um a geografia m ística, um a e s ­
p écie de catedral có sm ica onde todos se encontram .
N e sse espaço, há um recinto particular que se revela m ais
“sagrado”, um tem plo no tem plo. Ou m elhor, trata-se de um a
série de círculos concêntricos esp aciais, que revelam , no seu
interior, n ív e is sem pre m aiores de sacralidade. D efin a m o s-lh e
agora o mapa, advertindo, porém , que ele será con clu íd o em
seguida, nas várias etapas da n o ssa viagem pelas Escrituras h e­
braicas. O prim eiro círculo é, com o vim os, o do “tem p lo” do
m undo, que com preende o segun do círculo, o da terra de Israel,
a terra prom etida, a terra santa por ex celên cia . H á um eco que se
propaga de página em página no livro do G ên esis, levan d o co n ­
sig o um a v o z divina endereçada aos patriarcas: “Eu darei esta
terra à sua descendência... Eu darei toda a terra que v o cê está
vendo, a v o c ê e à sua d escen d ên cia, para sem pre... À sua d es­
cen d ên cia eu darei esta terra, desd e o rio do E gito até o grande
rio, o E ufrates... V ou dar a v o c ê , e a seus futuros descen d en tes, a
terra em que agora v o cê v iv e co m o estrangeiro, toda a terra de
Canaã, co m o p o sse perpétua...” (Gn 12,7; 13,15; 15,18; 17,8).
D eten h am os este eco que continua nas páginas b íb licas, e que
gira em tom o de um a palavra hebraica m uito cara à B íblia,
‘eres, “terra”, ou seja, a Terra por definição. Trata-se de um a
m odesta região de cerca de 2 5 0 0 0 km2, p ouco m enor que a
S icília, d ivid id a em três zonas de norte a sul: a fértil G aliléia, a
árida Sam aria, a m ontanhosa e desértica Judéia, delim itada a
ocidente pelo M editerrâneo e a oriente pelo rio Jordão e pela sua
profunda in cisão na superfície terrestre (de 2 0 0 m etros abaixo
do n ível do mar, no lago T iberíades, até m enos de 4 0 0 no mar
M orto, ond e acaba o Jordão).
E ssa dim inuta faixa de terra é prenhe de in fin itos sig n ifi­
cados e valores sim b ólicos. E o objeto da prom essa d iv in a feita a
Abraão, Isaac e Jacó, prom essa realizada com o ê x o d o do E gito.
É, portanto, dom , com p rom isso, sinal, razão pela qual a topogra­
fia b íb lica ultrapassa os lim ites em poesia, a físic a em ideal,
com o aparece no confronto de um território árido e inóspito.
com o é a Palestina, co m este “hino da Terra prom etida”, do
‘eres, apresentado no livro do D euteronôm io: ‘Eres fértil; ‘“ E res
ch eia de ribeirões de água e de fontes profundas que jorram no
vale e na montanha; ‘e res de trigo e cevada, de vinhas, figueiras
e romãzeiras; ‘eres de oliveiras, de azeite e de m el; ‘e re s onde
v o cê com erá pão sem esca ssez, p ois n ela nada lhe faltará; ‘eres
cujas pedras são de ferro, e de cujas m ontanhas v o cê extrairá o
cobre” (D t 8,7-9). O versículo seguinte co n clu i-se introduzindo,
pela sétim a vez, o term o ‘eres: “Q uando v o cê com er e ficar
satisfeito, bendiga a Javé seu D eu s pela boa ‘e res que lhe deu”
(D t 8,10). U m setenário e lo g io so que transfigura aquele territó­
rio que geograficam ente, a partir dos rom anos, será justam ente
cham ado Palestina, isto é, F ilistéia, por causa do n om e de um a
população de origem européia (talvez helên ico-cretense) que dará
m uito trabalho a Israel.
A ‘e res representa, portanto, um sím bolo; tanto é verdade
que Jerem ias a interpelará co m o se fo sse um a pessoa: “ ‘E res,
‘eres, ‘eres\ Escute a palavra do Senhor!” (Jr 2 2 e 29). E lenta­
m ente ela se transformará em im agem da terra perfeita, recriada
por D eu s para os justos: “Q uem é abençoado por D eu s possuirá
a ‘eres / ... / Os ju stos possuirão a ‘e res I e, â habitarão para
sem pre” (SI 3 7 ,2 2 .2 9 ). Palavras que Jesus retomará em seu Ser­
m ão da Montanha: “Bem -aventurados os m ansos, porque herda­
rão a terra!” (M t 5,5). U m a terra na qual a ju stiça triunfará, um a
terra “cum ulada p ela sabedoria do Senhor, / co m o as águas reco­
brem a extensão do mar” (Is 11,9). M as, com o em um espectro
crom ático, as cores se acentuam p ouco a p ouco, e assim os
círculos esp aciais b íb licos restringem -se e sacralizam -se cada
v ez m ais.
N o horizonte, sob a cúpula do céu, alargava-se, então, o
prim eiro círculo, o cósm ico; o segundo lim itava-se a um a p eq u e­
na parte da superfície do n osso planeta, a ‘eres, a terra por
excelên cia , a terra santa. A gora, o círculo reduz-se a um esp aço
urbano, o de Jerusalém -Jerushalajim (do étim o cien tífico “o deus
Shalem fundou-a”, m enos proem inente do que a versão tradicio­
nal e bíblica, “cidade da paz”, cidade perfeita, ligada a um a raiz
verbal hebraica que indica paz e perfeição). A cidade santa será
um pano de fundo constante em nossas páginas, com o nas da
B íblia. Ela tam bém não constituirá m ais um perím etro topográfi-
C O , m as um em blem a, ou m elhor, um a pessoa, a Filha de Sião,
um a E sposa, um a M ãe, co m o cantará o profeta S ofon ias em um
de seus salm os: “A legra-te, filha de Sião..., / alegra-te de todo o
coração, filha de Jerusalém ! I ... I O R ei de Israel é o Senhor em
teu seio I ... I O Senhor teu D eus, o valente libertador, está em
teu se io ” (S f 3 ,1 4 -1 8 ).
C oncebida justam ente co m o “m etro-poli”, isto é, seio fe ­
cundo, Jerusalém encerra um a presença suprema, divina. A Sa­
bedoria divina, de fato, recebeu um a ordem durante a criação:
“Instale-se em Jacó I ... I E assim m e estab eleci em Sião. / N a
cidade am ada ele m e fe z habitar, / em Jem salém exerço m eu
poder. / Finquei raízes em m eio a um p ovo glorioso, / na porção
privilegiada do Senhor, sua herança” (E clo 2 4 ,8 -1 2 ). É por isso
que S iã o é considerada a pedra fundam ental que con tém a arqui­
tetura có sm ica . O S alm o 4 6 d escreve-a com o um oásis fértil e
protegido (m ais um a v ez, a m ística ultrapassa a física, porque
Jerusalém é colocada sobre coün as pedregosas e áridas), que
en v o lv e o fiel com o um ventre paradisíaco, enquanto externa­
m ente se agitam as águas caóticas do mar primordial e se desen­
cad eia a tem pestade planetária que abala reinos e faz a terra
esboroar-se: “N ão tem em os se a terra vacila, / se as montanhas
se abalam no seio do mar; / se as águas do mar estrondam e
fervem , / e por sua fúria estrem ecem os m ontes. / O correr das
águas alegra a cidade de D eu s, / o A ltíssim o consagra a sua
moradia. / D eus está em seu m eio: ela é inabalável. / ... / P ovos
estrondam reinos sofrem abalos, / m as ele ergue sua v o z, e a
terra estrem ece. / Javé dos E xércitos está con osco, n o ssa fortale­
za é o D eu s de Jacó! (SI 4 6 ,3 -8 ).
É neste círculo restrito que se encontra a quarta e últim a
circunferência sagrada, a do tem plo, a sede suprem a da epifania
d ivina sobre a terra. A í, sob um lastro de ouro puro — do nom e
en igm ático de kapp o ret, “cobertura” da arca e “ex p iatório” dos
p ecados do hom em — , Jhwh tem seu trono terreno. P áginas e
páginas cantam o amor de Israel por e sse ed ifício sagrado, m o­
desto, m as en volto em luz infinita. O peregrino, ao chegar aos
átrios do tem plo salom ônico, invejará até o pássaro e a andori­
nha que p odem construir seu s ninhos sob aquelas enorm es m ol­
duras, p o is “m ais vale um dia em teus átrios do que m ilhares em
m inha c a sa ” (SI 84 ,4 ,1 1 ).

n
o rei — “te ó lo g o ” Salom ão, no dia da consagração do
tem plo, preocupa-se em resolver a antinom ia entre a infinitude
de D eu s e sua presença no espaço. R echaçando qualquer co n ­
cep ção m ágica da divindade “encarcerada” na área sagrada do
tem plo, interroga-se; “Será p o ssív el que D eu s habite na terra? S e
não cab es no céu e no m ais alto dos céu s, m uito m en os neste
tem plo que eu construí!” (IR s 8 ,27). E no entanto o Senhor
havia se preocupado com esse lugar: “L á estará o m eu n o m e!”
(IR s 8,29) — e no m undo sem ítico o nom e é o próprio ser da
pessoa, sua identidade dinâm ica. A tensão entre presença e d is­
tância encontra, enfim , um a solução; “O uve as súplicas do teu
servo e do teu p ovo Israel, quando rezarem neste lugar. E scuta
de tua morada no céu. E scuta e perdoa!” (I R s 8,30).
D eus, portanto, ouve do seu “esp aço” infinito, mas aceita
tornar-se “audível” e operante no interior da área sagrada do tem ­
plo, que não é a residência terrestre da divindade, com o se co n ce­
bia nas culturas religiosas adjacentes; é tão-só o sinal de um en­
contro entre a liberdade humana e a liberdade divina. E is por que
0 santuário m óvel do deserto se cham ava ‘o h el m o ’ed, “tenda do
encontro”. U m “encontro”, decerto, m as por convocação do S e­
nhor (o santuário será definido tam bém com o qahal, “con v o ca ­
ção” do povo por parte de Jhwh; daí a versão grega ekkiesía,
“igreja”), que reúne os filhos de Israel e com eles dialoga. Por
essa razão, a sacralidade do tem plo não é automática, mas adstrita
e dependente da livre decisão divina, com o recorda uma célebre
página de Jeremias, o capítulo 7 de sua profecia, em que se des-
m itifica a ilusão de deter os exércitos babilônicos dizendo; “Este
é o Tem plo de Javé, T em plo de Javé, T em plo de Javé!” . Se falta o
em penho moral, se o culto é m agia, se a justiça pereceu, o tem plo
é “um covil de ladrões”, e não a sede do Salvador.

N o ve p o r ç õ e s d e d o r

C om o v im o s, para a B íblia a g eo g ra fia é, ao m esm o tem ­


po, física e m etafísica; dinam ism o, energias, tem po e esp aço
entrelaçam -se c o m m ensagens secretas, transcendentes e te o ló ­
gicas. E m blem ática é a situação da própria Jerusalém, cidade
histórica lacerada, morta e ressuscitada, m as tam bém sinal da
salvação e da esperança, porque um dia, por suas ruas — com o
diz o A p oca lip se — , não passarão m ais os lúgubres cidadãos
que trazem o n om e de M orte, Luto, L am ento, Fadiga, e D eu s
enxugará as lágrim as dos olh os de m ulheres e hom ens (Ap 21,4;
Is 25,8). Por enquanto, a cidade santa, co m o a terra santa, en co n ­
tra-se em um estado no qual risos e lágrim as, b eleza e feiúra,
grandeza e lim ite se confundem . U m texto da tradição judaica
figura que, no m om ento da criação, um anjo adiantou-se, levan ­
do ao Criador d ez porções de beleza, isto é, a totalidade da
beleza. D eu s tom ou n ove e as reservou para Jerusalém , destinan­
do a outra ao resto do m undo. F ez o m esm o c o m as d ez porções
de sabedoria, de verdade, de ju stiça etc. Por fim , v eio o anjo que
detinha as d ez porções de dor. E sperava-se, naturalm ente, a in­
versão: m ais dor para o m undo e m ais alegria para a cidade
santa. D eu s, contudo. D eu s continuou in exoravelm ente, a infun­
dir em S ião, depois da b eleza, da sabedoria e da ju stiça supre­
m as, tam bém a im ensidão do sofrim ento. “N o v e p orções de dor
o Senhor reservou a Jerusalém , e um a só para o m u ndo.”
O universo (nem m esm o suas áreas m ais sagradas) não se
confunde co m o corpo de D eu s, co m o sustentava a teologia
panteísta difundida no antigo O riente Próxim o, e com o afirm ava
um a certa corrente heterodoxa da cabala judaica na Idade M édia.
O Senhor é suprem o, prim az e transcendente em relação à cria­
ção, en globan do-a e exced en d o-a. E ste é o sig n ificad o do co n ­
ceito de criação que a mãe dos sete irmãos mártires da ép oca dos
inacabeus (sécu lo II a.C.) proclam ará de m odo form alm ente inob-
jetável. A o m enor de seus filh o s, “abaixou-se e, enganando o
cm el soberano, usou a língu a dos antepassados e assim falou;
‘M eu filh o, eu lhe imploro: o lh e o céu e a terra, e ob serve tudo o
que n eles ex iste. D eus criou tudo isso do nada, e a hum anidade
teve a m esm a origem ” (2M c 7 ,2 7 -2 8 ). S écu los dep ois, R ousseau,
em bora perm anecendo “em respeitosa dúvida”, repetirá, na “pro­
fissão de fé do vigário de S a b ó ia ”, contida no E m ílio , palavras
análogas: “A idéia de criação confun de-m e e ultrapassa a m inha
com preensão: creio nela até ond e m e atrevo a im aginá-la; mas
sei que D eu s form ou o universo e tudo o que existe, que fe z tudo
e ordenou tu do.”
R estam ainda muitas questão que, em n o sso percurso pe­
las Escrituras hebraicas, em ergirão, serão resolvidas ou descarta­
das, para elucubração do espírito e do coração de crentes e de
agnósticos, de teólogos e filó so fo s. D e ix e m o s agora o tem plo
có sm ico , onde ressoou a narrativa do céu, com as palavras do
E clesiástico, sábio deuterocanônico, já citado, que viv eu no sé ­
culo II a.C., cujo livro nos chegou na versão integral grega (por
obra do sobrinho) e em am plos fragm entos do original hebraico:
“Poderíam os falar muitas co isa s e nunca term inaríam os. M as,
para concluir, p odem os dizer: ‘E le é tu d o.’ E le é o Grande, e
está acim a de todas as suas obras... A inda há m uitos m istérios
m aiores do que esses, p ois contem plam os poucas coisas de suas
obras. D e fato, o Senhor criou todas as c o isa s” (E clo 4 3 ,2 7 -2 8 ;
32 -3 3 ). Para Isaías, sobre e sse panoram a de obras m anifestas e
secretas ergue-se apenas aquela voz: “ ‘A m Jhwh d ib b a ríi w e 'asitT'
( “Eu, Jhwh, d isse e fiz ” ; Is 6 0 ,2 2 ). E is-n o s m ais um a v e z diante
do sím bolo do som , da palavra que rasga o silên cio do nada.
Palavra eficaz que precede, cria e transforma, penetrando a reali­
dade lim itada do m undo, em bora se m antenha transcendente:
“D a m esm a form a co m o a chuva e a n eve, que caem do céu e
para lá não voltam sem antes m olhar a terra, tom ando-a fecunda
e fazendo-a germinar, a fim de produzir sem en te para o sem ea ­
dor e alim ento para quem precisa com er, assim acontece com a
m inha palavra que sai de minha boca: ela não volta para m im
sem efeito, sem ter realizado o que eu quero e sem ter cum prido
com su cesso a m issão para a qual eu a m and ei” (Is 5 5 ,1 0 -1 1 ).
Quem te disse que estavas nuP

E, rasgando de repente o silên cio , ressoa a voz do D en s


absôndito: Onde estás? E os b osques olham atônitos e os gran­
des ciprestes, verdes habitantes da floresta, olham -m e espanta­
dos, perguntando em m ajestade e em silêncio: Q ue faz e sse aí no
m eio de nós?” A ssim o poeta judeu N achm an B ialik, num a lírica
com posta em 1905, reatualizava a pergunta dilaceradora que D eus
faz ao hom em escon d id o entre as árvores, na realidade — com o
d izia outro poeta, o cristão Charles P éguy em sua E va — , oculto
“nos lam entos de um a prolongada dor” e envergonhado por sua
agora obscena nudez.
Se a aparição do universo é im portante, para as Escrituras
é d ecisiv o o surgim ento do hom em entre as criaturas. N ão por
acaso, o capítulo 1 do livro do G ên esis, página até agora sob
análise em n o ssa viagem textu al-cósm ica, insere a criação do
hom em no vértice, em um sexto e extrem o dia, com o a oitava e
suprem a obra divina.

O hom em do sex to d ia

“N o instante em que pude tomar m eu filh o nos braços,


experim entei um distante reflexo daquela inefável e sublim e bem -
aventurança que d eve ter invadido o Criador no sexto dia, quan­
do E le viu sua obra im perfeita, em bora acabada. Enquanto se g u ­
rava nos braços aquele ser m inúsculo, gritando, feio, arroxeado,
sentia claram ente a m utação que estava ocoiTendo em m im . Por
m enor, feio e averm elhado que fo sse o ser entre m eus braços,
d ele em anava um a força in d izível.” É Joseph Roth, em sua C r ip ­
ta d e i C app u ccin i, quem ilustra bem a dualidade do hom em ,
criatura com pleta, m as im perfeita. O hom em , d e fato, entra em
cena no áp ice da criação, após um a so len e declaração divina
pronunciada na prim eira p esso a do plural, dirigida, portanto, a
toda a corte celeste (um sím bolo retom ado do panteão oriental,
m as “d em itizad o” p ela B íblia, porque os d eu ses inferiores são
reduzidos ao status de anjos): “F açam os o hom em à nossa im a­
g em e sem elhança. Q ue ele dom ine os p eix es do mar, as aves do
céu, os anim ais d om ésticos, todas as feras e todos os répteis que
rastejam sobre a terra” (Gn 1,26).
É quase a n om eação de um vicário do poder d ivino, de um
vice-rei planetário, tanto é verdade que a tradição judaica, cristã
e m uçulm ana narrará o descncadeam ento de um a e sp écie de
revolta palaciana entre os anjos. Para o Islã, o anjo Iblis, o futuro
Satanás, se recusará a inclinar-se diante de um ser material; ele,
com p osto de cham a ardente e espírito, não pode subm eter-se a
um a criatura plasm ada do barro. D eu s, porém , não transigirá, e
Iblis será cassado pela corte celeste, seguid o p elo cortejo dos
anjos rebelados, que se tom aram dem ônios.
L o g o verem os onde se encontra o esplendor do hom em .
Por ora, procurem os circunscrever-lhe o lim ite criatural, para em
seguida definir seu lim ite m oral e existencial, um lim ite que não
é considerado pelo autor da prim eira página do G ên esis, mas
que será posteriorm ente introduzido pela leitura tradicional. San­
to A m brósio, por exem p lo, escreve, em seu E sa m eron e, m edita­
ção sobre os “seis dias” da criação; “Criou o céu, m as não leio
que D eu s repousou. Criou a terra m as não leio que D eu s repou­
sou. Criou o sol, a lua e as estrelas e ainda não leio que repou­
sou. L eio , ao contrário, que fe z o hom em e então D eu s repou­
sou. T inha ele agora a quem perdoar os p ecad os.” M as, para o
autor do capítulo 1 do G ên esis, o pecado do h om em não co n sti­
tui um tem a. Entretanto, há um lim ite n essa obra-prim a de Deus:
o h om em é o ser do sexto dia. N a n um erologia bíblica, o seis é o
núm ero da im perfeição, sendo o sete o núm ero perfeito. O nú­
m ero da B esta do A p ocalip se será exatam ente 6 6 6 (A p 13,18),
um abism o de negatividade. O h om em é relegado, portanto, à
prisão do lim ite do tem po e à im p erfeição da criatura.
Encerra em si, porém , um a grandeza, que lh e permitirá
sair do cárcere e penetrar no sétim o dia dedicado ao “repouso”
divino, ou seja, n o tem po de D eu s que é etem o . A via será a do
culto: não é por acaso verdade que o sábado, o dia festiv o h e­
braico, é o sétim o dia, o tem po perfeito, tam bém não é verdade
que o sábado — co m o afirm a a apócrifa V ida d e A d ã o e E va —
é o “sinal da ressurreição e do m undo futuro”? M as vo ltem o s ao
elem en to d ecisiv o : qual é o com p onen te estrutural que perm ite
ao h om em transpor a prisão do sexto dia? A resposta está toda
naquele ser à “im agem e sem elh ança de D eu s” . E m hebraico, o
prim eiro vocáb u lo (im agem ) é selem e rem ete a um a estátua
que, no realism o sim b ó lico sem ítico, se aproxim a prepotente­
m ente do tem a representado; o segundo (sem elh ança) é dem üt:
indica distância e exclu i a identidade total. O h om em é, por isso ,
a representação m ais sem elhante de D eu s que se p od e conceber,
mas não é D eu s. D iante das outras sete obras, o Criador “viu que
eram co isa s bela s e boas [tâb]"’; quanto ao hom em , ao contrário,
percebe ter criado sua obra-prima, “e eis que era c o isa m uito
bela e b oa” (Gn 1,31).
N ão é som en te um a m aravilha “estrutural”, com o dirá, em
um a esplêndida estrofe, o Salm o 139, que representa a ação do
Criador no seio materno, utilizando sím b o lo s “p lá sticos” e têx­
teis: “Tu form aste m eus rins, / tu m e teceste no seio m aterno. /
Eu te agradeço por tão grande prodígio, I e m e m aravilho co m as
tuas m aravilhas! / C onhecias até o fundo de m inha alm a, / e
m eus o sso s não te eram escon d id os. / Q uando eu era form ado,
em segredo, tecido na terra m ais profunda, / teus olhos viam as
m inhas ações, / e eram todas escritas no teu livro. / Os m eus dias
já estavam calcu lad os, / antes m esm o que ch eg a sse o prim eiro”
(SI 139,13 -1 6 ).
Jó recorrerá à im agem — retom ada do m undo beduíno —
do queijo m odelado, segundo a c o n v icçã o , ligada à fisio lo g ia da
época, de que o em brião se form a c o m o esperm a e o sangue
menstruai: “N ã o m e derramaste co m o leite / e coalhaste c o m o
queijo? / Tu m e revestiste de p ele e carne, / e m e te ce ste de
o ssos e n e r v o s ? ” (Jó 10,10-11).
0 autor da página do G ên esis procura, ao contrário, a
m aravilha do ser hum ano em chave teo ló g ica .
T entem os, portanto, adentrar m ais profundam ente no m is­
tério da grandeza humana. O esplendor d ivin o que perpassa o
hom em tem sido, há m uito tem po, procurado na alm a e na inteli­
gência, no rastro de um a tradição grega estab elecida. Já o pri­
m eiro coro da A ntígone, de S ó fo c le s, declarava que “m uitas são
as coisas adm iráveis, m as nenhum a é m ais adm irável do que o
hom em . A raça de seres d esprovidos de pensam ento, com o os
pássaros, os anim ais selvagen s e as esp écies m arinhas, é m uito
engenhosam ente capturada pelo hom em , que os aprisiona nos
laços de suas redes.” A gostin ho, em seu com entário sobre o
G ênesis, alinhava-se com o trágico grego: “Q ue o hom em foi
feito à im agem de D eus, é algo afirm ado pela parte íntim a do
hom em , onde têm sede a razão e a inteligência. O h om em é feito
à im agem e sem elhança de D eu s, sobretudo no que se refere à
alm a.” N o ta -se, contudo, que a antropologia bíblica não distin-
guia tão claram ente alm a e c o ip o , matéria e espírito. B a sa r,
“carne”, referia-se à fragilidade criatural do ser hum ano, sem e­
lhante à erva que “de manhã germ ina e brota / e à tarde a cor­
tam, e ela seca ” (SI 90,6). R üah, “espírito”, indicava o princípio
vital infundido por D eus no ser criado: “E nvias o teu sopro e
eles são criados... retiras d eles a respiração, e expiram , voltando
a ser p ó” (SI 104,30 e 29). N efesh , costum eiram ente identificado
com “alm a” , é na realidade o ser v iv o enquanto tal, em sua
densidade psicofísica.
U m a resposta à nossa pergunta sobre o sign ificad o do
hom em co m o “estátua” e “aparência” do divino talvez se en con ­
tre em um a observação estilística. É fácil com preender que a
poesia bíb lica é ritmada em “p aralelism o”, isto é, um a repetição
do m esm o con ceito ou da m esm a im agem em d ois ou m ais
versos. N ão se trata de reiteração oblíqua, m as da reproposição a
partir de um ângulo diferente, co m cruzam entos, retom adas no
negativo, progressões, com p lem entos. São exem p los claros de
paralelism o estes versos proféticos: “Serei um leão para Efraim /
com o um filh o te de leão para a casa de Judá, / Estraçalho tudo e
vou-m e em bora, / carrego m inha presa e ninguém vai tirá-la de
m im ” (O s 5,14); “com o cera diante do fogo, co m o águas derra­
madas sobre um d ecliv e...” (M q 3,4); “dia de ira aquele dia, dia
de angústia e de aflição, / dia de ruína e de exterm ínio, dia de
trevas e de escuridão, / dia de nuvens e de obscuridade, / dia de
sons de trompa e de alarm es” (S f 1,15).
Pois bem , em Gn 1,27 (“D eus criou o hom em à sua im a­
gem ; / à im agem de D eus ele o criou; / h om em e m ulher e le os
criou”) encontram os um curioso paralelism o acróstico-progres-
sivo que podem os assim visualizar:

D eu s criou o hom em à sua im agem


à im agem de D eu s — o criou
I I
hom em e m ulher o s criou

O olho atento não pode ignorar que “im agem de D e u s”


tem com o suipreendente paralelo exp licativo “hom em e m ulher”.
D eus, então, é sexuado, e junto dele se c o lo c a um a com panheira
divina, co m o a Ishtar-Astarte da B abilônia? A resposta é ob via­
m ente negativa, sabendo-se quanto e com que ênfase a B íb lia
com bate as hierogam ias, isto é, os casam entos e os casais sagra­
dos, e contra os cultos da fertilidade e da m aterialização da
divindade, difundidos na área cananéia e em todo o antigo Ori­
ente Próxim o. A “im agem ” divina estam pada no hom em d eve
ser procurada em outro lugar.
A larguem os a visão sobre todo o G ênesis, segu in d o as
páginas elaboradas pelo m esm o autor d esse texto, cham ado c o n ­
vencionalm ente “Sacerdotal”, porque rem ete a círculos sacerdo­
tais presentes entre os hebreus exilad os na B abilônia. O bom
observador v ê um a cadeia de gen ea lo g ia s, de gerações, co m o
um a trama sobre a qual se sucedem even tos hum anos e d ivin os
(Gn 1,28; 2,4; 9,1.7; 17,2.6.16; 25 ,1 1 ; 28,3; 35,9.11; 47,27; 4 8 ,3 -
4). A capacidade de gerar é o cam inho sobre o qual se d esenrola
a história santa: D eu s continua transcendente, mas opera sua
salvação entrando nas descendências hum anas, no tem po do h o­
m em que procede de geração em geração, de pai para filh o, de
época em época. A fecundidade hum ana é, portanto, paralela ao
ato criativo de D eu s, é um sinal do D eu s criador e salvador. A
hum anidade é a im agem de D eus enquanto “hom em e m ulher”;
não basta a parte m asculina para representar Deus; nem é um
andrógino que sai da mão do Criador, co m o se suspeitava n o
m undo grego, ou c o m o im aginou o escritor francês M ich el
T oum ier, que introduziu na “F am ília A d ão”, da obra II g a llo
ced ro n e (1 9 7 8 ), um A dão b issexual. Para n o sso autor, o hom em
e a m ulher saem das m ãos divinas; os d ois jun tos são a im agem
v iv a de D eu s na terra; som en te a p esso a hum ana, em sua bipola-
ridade sexual, em sua fecundidade, em seu possuir e dar vida, é
e fíg ie de D eu s. U m D eu s que não hesitará em revelar seus traços
“fem in in o s”, evocan d o seus rahamím, suas “vísceras m aternas” :
M as pode a m ãe se esqu ecer do seu nenê, pode ela deixar de ter
amor pelo filh o de suas entranhas? A inda que ela se esqueça, eu
não m e esq u ecerei de v o c ê ” (Is 4 9 ,1 5 ).
Saudem os este hom em bíblico, co n scien te — com o dirá
Lutero co m base em um provérbio m ed ieval — de que “appetitus
ad m ulierem est bonum donum D e i” (isto é, de que a sexualida­
de de sua natureza é dom d ivin o), um hom em con scien te de ser
a obra-prim a de D eu s, sua “im a g em ”, seu representante régio no
universo, co m o no canto sálm ico, o esplêndido Salm o 8, trans­
crito pelo s astronautas am ericanos num a placa que fo i fincada
nas areias lunares em 1969, canto noturno em honra de um
hom em lim itado por ser criatura, em bora nobre, caniço frágil,
mas capaz de com preender e dom inar o ser, segundo um a c o ­
nhecida citação de Pascal. C onfrontado co m os g igan tescos sis­
temas estelares, e le é um grãozinho m icroscópico; e é ainda
mais insignifican te se com parado a um D eus criador que com
seus dedos borda nos céu s co n stela çõ es e planetas. C ontudo, ele
é “pouco inferior a ‘E lo h im ”, isto é, ao próprio D eu s, porque foi
o próprio ‘E lohim quem se in clin ou sobre o hom em e o coroou
soberano do horizonte có sm ico . E is o coração do Salm o, na
versão poética de D avid M. Turoldo: “Quando contem plo o céu,
a lua e as estrelas que acendes no alto, / pergunto-m e diante da
criação: que é o hom em para que tu d ele te lem bres? Q ue é este
filho do hom em por quem tens tanta solicitude? / M enor que um
deus, coroado de poder e glória! / Tu o fizeste senhor da criação,
confiando a ele todas as coisas: / ovelhas e bois todos eles, as
feras do cam po também. / A s a v es do céu e os peixes do oceano,
que percorrem as sendas dos m ares” (SI 8,4-9). U m canto à
hum anidade, portanto, mas um a oração perigosa, se o hom em se
tornar tirano. É por isso que Jó baixa o tom, parodiando-o: “O
que é 0 h om em , para fazeres tanto caso dele, para fixares tua
atenção sobre ele, a ponto de exam iná-lo a cada m anhã e testá-lo
a cada m om en to” (Jó 7 ,1 7 -1 8 ). É por isso que, no N o v o T esta­
m ento, a Carta aos H ebreus preferirá aplicar o salm o a Cristo,
h om em perfeito, “coroado de glória e de honra, por causa da
m orte que sofreu em favor de to d o s” (Hb 2 ,6 -9 ). D o s fatos sobre
o hom em A dão, está-se adensando um a tem pestade; do rei A dão
está nascendo um projeto insensato; do casal estão para nascer
C aim e A bel, um crim inoso e um a vítima.

A “v ia -c r u c is ” d e A d ã o

A rquivado o prim eiro capítulo do G ên esis, abram os a se­


gunda e a terceira página; de in ício s, tem os a im pressão de que
estam os diante de um “a cap o” m usical (volta ao co m eço ), que
parece retomar a execu çã o de um trecho da partitura. L ogo,
porém , percebem os que, nesta repetição da criação, as im agens
mudam com o em um caleid oscóp io; os sons se desfiam , se tor­
nam plangentes, o estilo se diferencia, o resultado muda.
Os ex egetas encontraram há tem po um a explicação: em
Gn 2-3, a pena está na m ão de um outro autor ou esco la te o ló g i­
ca, cham ada convencionalm en te “Jahvista” (recorde-se o n om e
d ivin o Jhwh, im pronunciável p elo hebreu p ied oso), situada na
ép oca salo m ô n ica (sécu lo X a.C .). O resultado, com o verem os,
será diferente, ainda que muitas cenas sejam retomadas (lem b re­
m os tudo 0 que dissem os sobre o paralelism o). É verdade que,
para atingir aquele resultado, será p reciso rem over m uito entu­
lhos interpretativos, nobres e vulgares. Sobre aqueles dois cap í­
tulos, de fato, acum u lou -se um a m assa enorm e de esp ecu la çõ es
teológicas, b em co m o um a corrente de lugares-com uns p op u la­
res. A dão fo i sobrecarregado de tantas “cru zes” teoréticas atra­
v és dos sécu los da sua longa história! B asta pensar em todas as
teorias sobre o “pecado original” que certam ente se radicam
n essas páginas, m as que proliferaram até se tornar um a esp e ssa
floresta, que não vem ao caso aqui m apear ou desbastar. Para
alguns, trata-se de um arquetípico e resgatado pecado sexual: a
con cu p iscên cia agostiniana rompia no h o m em um equilíbrio d e­
licado. A inda nos anos 70, um exegeta, o franciscano E m m anuele
T esta, não hesitava em escrever, sem pudor, que “o s o lh o s de
Eva, ch eios de m alícia, pousaram con cup iscen tes sobre a nudez
de A dão e o s de A dão sobre a d e Eva. D esequilíbrio físico do
qual decorre o moral interno” . Outros, m ais sofisticados (e tam ­
bém m ais sérios), elaboraram um a doutrina do pecado original
com o “solidariedade no p eca d o ”: o pecado primordial é o arqué­
tipo da natureza do pecado que se m anifesta em todo hom em e
em toda mulher. Há, entretanto, quem tenha substituído esse
paradigm a teo ló g ico por outro de matriz “so c io ló g ic a ” : o pecado
on gin al é a coerção que a injustiça estrutural social provoca no
hom em . Há quem aprecie o paradigm a p sico ló g ico do pecado
original co m o A n gst, “angústia”, e há quem opte por um para­
digm a co sm o ló g ico -m eta físico , segundo o qual o pecado origi­
nal é a iTiptura na ev o lu çã o e a conseqüente inércia. Há ainda o
paradigm a fem inista, que vê no pecado original a prevaricação
do patriarcado m achista e do sexism o, voltando, de qualquer
m odo, ao ponto de partida “sex u a l” agostiniano. C om o se não
bastasse, n esse debate interveio tam bém G eorge Bernard Shaw ,
0 fa m o so escrito r irland ês, q ue, na prim eira parte do seu
“pentateuco m eta b io ló g ico ”, B a ck to M alhusalein, vê no pecado
original a v iolação do princípio m etafísico da “força vital” : a
serpente ajuda A dão e E va a descobrir a morte para subtrair-se
ao pesadelo do insustentável p eso da vida eterna.
B em m enos nobres são os detritos que se acumularam
sobre essa s páginas por obra de interpretações populares, sarcás­
ticas, fabulosas, fundam entalistas, agnósticas, d evocionais, m o­
ralistas. R ecordem os alguns ex em p lo s. Pensem os na ironia que
se fe z em torno da costela da qual foi extraída a m ulher, um
sim b olism o que terem os o ca siã o de explicar em seu genuíno
sign ificad o. P en sem os na história da m açã, de todo ausente na
narrativa bíblica: “a árvore do con h ecim en to do bem e do m al”
não con sta de nenhum catálogo botânico, p elo sim ples m otivo
de que c um a árvore “m etafísica” . O equívoco decorre de um
jo g o de palavras, p ossível som ente em latim, entre m alus, “m a­
cieira”, m alu m , “m al”, e m alu s, “m au” : foi daqui que saiu a
m acieira c o m a m açã de Eva.
O próprio termo “A d ã o ” não é um nom e próprio: em h e­
braico, é h a - ’a dam (onde ha- é o artigo) e significa sim p lesm en ­
te “o h om em ”, sím bolo daquela hum anidade à qual todos nós
pertencem os. A dão está em n ó s, em n osso pai e em n o sso s fi­
lhos, e sua história — recordará Paulo — en volverá também
Cristo. Sua v icissitu d e atravessa os sécu los no bem e no mal;
cada um de nós se cham a, então, A dão, e a via-crúcis daquele
A dão, uma via que passa p ela dor e pela m orte, m as que se abre
à redenção e ao resgate, é a n ossa via-crúcis, que o N o v o T esta­
m ento conduzirá até a m anhã da Páscoa, para além da cruz e do
G ólgota. Tinha razão, portanto, o célebre poeta alem ão Friedrich
G. K lopstock, em seu m onum ental poem a ép ico D e r M essia s,
com posto em 25 anos, de 1748 a 1773, ao fazer cam inhar A dão,
isto é, toda a hum anidade, ao lado de Jesus, na V ia D olorosa. Já
os cruzados, sob a rocha do Calvário, haviam fundado um a ca ­
pela, dedicando-a a Adão: im aginava-se que o sangue que pinga­
va da cruz de Cristo banhasse a caveira e o esq ueleto do proge-
nitor sepultado, segundo a tradição, exatam ente na colin a d en o­
minada G ólgota, em aram aico “caveira, crânio” (em latim, C al­
vário). É por isso que, em inúmeras representações da c m c ifica -
ção de Jesus, aparece um crânio ao pé da cruz. É o de A dão e,
portanto, de cada hom em , pecador e redim ido.

N o ja rd im p e r s a

Encerrado o longo “paratexto” que ininterruptamente p e ­


netrou, am pliou, enriqueceu e, muitas v e z e s, desvirtuou a m en­
sagem original, procurem os agora identificar o verdadeiro “tex ­
to ” de Gn 2-3. A ntes dele, há um “p ré-texto”, ligado às co sm o -
gonias m ito ló g ica s do antigo O riente Próxim o, que a B íblia,
com o verem os, às v ezes assum e, “d em itizan d o-o” e incorporan­
do-o, portanto, a seu quadro teo ló g ico . A ntes de nos lançarm os
em “tão vasto ocean o de m istérios, co m o quem , aventurando-se
no mar, a bordo de barquinho, é tom ado por um a im ensa angús­
tia, ao confiar um pequeno pedaço de m adeira à im ensidade das
ondas” (são palavras de O rígenes, escritor cristão do sécu lo III,
em um a h om ilia sobre o G ênesis), defin irem os as coordenadas
do texto a ser percorrido. U sarem os um a catalogação “c ie n tífi­
ca” e um a im agem .
Em sua so len e e sofisticada h ngu agem técnica, os exegetas
classificam os capítulos 2-3 do G ênesis co m o gênero da “etiolo-
gia m etaistórica sapiencial”. D ito em term os m ais acessíveis, e s­
tam os diante de um a aparente narração histórica (com eventos,
m udanças bruscas de situação e um a trama), que tem, porém,
valor te o ló g ic o -filo só fic o e, portanto, “sapien cial” . E la quer re­
montar idealm ente à origem da hum anidade para encontrar-lhe o
sentido, a exp licação, a finalidade: é, por isso , “etio lo g ia ”, busca
das causas, do significado, da nascente do rio da vida humana
que ch ega até nós. A finalidade não é explicar o que aconteceu
nas origens, mas caracterizar o hom em no contexto da criação: é,
portanto, um a “m etaistória”, ou seja, o fio secreto subjacente aos
eventos, ao tem po e às vicissitu des humanas. R em onta-se ao ar­
quétipo não para contar o que aconteceu a um personagem singu­
lar, m as para identificar, na sua raiz, o estatuto de cada criatura
humana. N ão por acaso, o protagonista cham a-se h a -’adam , o
H om em , e a m ulher H aw w ah (E va), a V ivente, a m ãe da vida.
C om preendido que n o sso tóp ico não é um a história rem o­
tíssim a das origens, m as um a reflexão sobre a realidade histórica
constante, que toca avoen gos e descen den tes, nós, os antepassa­
dos e n o sso s su cessores neste planeta, ou m elhor, o “ser h o­
m em ” onde quer que surja, propom os a im agem . Trata-se de um
díptico cujo prim eiro quadro é lum inoso e colorido (capítulo 2
do G ên esis), enquanto o segundo é obscuro e trágico (capítulo 3).
A m bos são construídos em três registros paralelos que descre­
vem unicam en te as três relações fundam entais que ligam o ho­
m em ao transcendente (D eu s), ao co sm o (m atéria e anim ais), ao
seu sem elh ante (a mulher). D eten ham o-n os diante do primeiro
quadro. E le tem co m o pano de fundo um jardim m atizado, c o lo ­
cado a É den, isto é, a oriente, que a versão grega da B íblia e a
tradução subseqüente cham arão co m um termo — presente não
aqui, m as em outras, raras, passagen s bíblicas — de origem
persa: p a ir id a e z a , no irânico antigo, p a r d e s em hebraico, p a rá -
d eiso s em grego, “paraíso” . O vocáb ulo rem etia a um jardim
delim itado, fértil e florido. N ã o faltaram insensatos que se enca­
minharam para a Arábia, para o lêm en , ou para a M esopotâm ia
em busca do verdadeiro jardim do Éden. 0 autor, sem dúvida,
tinha em m en te algum a cena e x ó tic a das terras d o O riente, mas
aquele jardim perm anece co m o o sím b olo de um co sm o p a cifi­
cado e sereno; é um a p aisagem existencial ideal, na qual o h o­
m em p a sseia sereno e feliz.
É curioso observar que, se o G ênesis situa este “paraíso
terrestre” nos prim órdios da criação e da história (esquem a “pro-
to ló g ic o ”, com o se costum a dizer na supracitada lin gu agem teo ­
lógica), Isaías e outras páginas bíblicas o deslocaram para o fim
(esquem a “esc a to ló g ic o ”). O profeta canta, de fato, a era m essiâ ­
nica futura com o um “paraíso” no qual “o lob o será hóspede do
cordeiro, / a pantera se deitará ao lado do cabrito, / o bezerro e o
leãozinh o pastarão juntos í ... 1 1 suas crias ficarão deitadas lado
a lado. / O leão com erá capim com o o boi, / o bebê brincará no
buraco da cobra venenosa, / a criancinha enfiará a m ão na co v a
da serpente / ... / a terra estará ch eia do conh ecim ento de Javé,
com o as águas ench em o mar” (Is 11,6-9). “A n tes” e “além ” da
história é um m odo sim b ólico de indicar a eternidade que trans­
cen d e a própria história.
O jardim do Éden é, portanto, a representação do projeto
divino da criação; é a m aquete do sonho de D eu s, um sonho que
será dilacerado p elo hom em livre. D eus, porém , reagirá à d ev a s­
tação e realizará seu sonho por m eio do seu M essias, do seu
F ilh o, segundo a v isã o cristã.

í/m q u a d ro p o lic ro m á tic o

V am os discorrer agora sobre os três registros d esse pri­


m eiro quadro “paradisíaco” . N o registro superior, tem os a im ­
pressão de encontrar a inesq uecível cen a da criação de A dão,
pintada por M ich ela n g elo na C apela S istina. A qui, porém , entre
o Criador e o hom em , não há os dois d ed os indicadores que se
encontram , m as sim um a leve respiração. N a m aterialidade lim i­
tada e decaída d o hom em (o “pó do ch ã o ”) corre um a nishm at-
hajjim , geralm ente traduzida com o “hálito de vid a” (Gn 2,7). N a
realidade, e sse vocá b u lo nishm at (ou n esh am ah ) tem um sig n ifi­
cado diferente da respiração ou do espírito vital (rüah), d o qual
são dotados tam bém os anim ais. O term o é aplicado som ente a
D eu s e ao hom em , e, no livro dos P rovérbios, é definido pitores­
cam ente assim; “A nesham ah do h o m em é um a lâm pada de
Jhwh / que perscruta as profundezas do ser” (Pr 20,27). Trata-se,
portanto, da cap acidade de penetrar n o s m istérios da co n sciên cia
e até do incon sciente: é o poder de in trosp ecção e de intuição, é
0 recolhim ento e m si m esm o por m eio da autoconsciência.
Prossigam os contem plando o quadro que retrata — com o
diz um poem a lírico do poeta am ericano Robert L o w ell — “o
tem po da delicadeza, quando o hom em , ainda autorizado a cres­
cer, não decaído e sem com panheira, ou via apenas o incriado
Verbo d iv in o ” . C hegam os à descrição da segunda relação funda­
mental do hom em com seu entorno. O hom em não olha apenas
para o alto; sen te-se atraído tam bém para baixo. E le é tam bém ,
com o já vim os, “pó do ch ã o ” . N ão por acaso, cham a-se ‘adam ,
termo que em hebraico rem ete a ‘edom , “averm elhado” , a cor
ocre da argila plasm ada p elo oleiro. E é justam ente no o fício do
oleiro que o autor b íb lico pensa quando considera a m aterialida­
de da criatura humana. C om certeza, no hom em b íblico corre a
nesluim ah divina, e não — co m o ensinava o Enuina E lish, p oe­
m a c o sm o g ô n ico acád ico-b ab ilôn ico — o sangue de um deus
rebelde m orto pelo deus criador, m esclad o com argila, revelando
a con cep ção do hom em co m o ser radicalm ente corrom pido. T o­
davia, sua m aterialidade atrair o hom em tam bém para baixo. É a
relação c o m os outros seres m ateriais, viv o s e inanim ados. O
“cultivar e guardar” o jardim (Gn 2,15) c o alim entar-se dos
frutos das árvores (Gn 2 ,1 6 ) são sinal do trabalho do hom em .
Atribuir n om e aos anim ais é, ao contrário, sím bolo de co n h eci­
m ento e de dom ínio, de ciên cia e técnica.
Sab em os que no O riente o nom e é a síntese cifrada de
um a realidade, exprim indo-lhe o sentido e o m istério. O hom o
fa h e r trabalha a terra, o h om o sa p ien s nom eia os seres, revelan­
do sua superioridade, m esm o na “fratem idade” m aterial. Nas
suas R eflex õ es, W alter Benjam in declarava que “a criação divina
se com p leta quando as co isa s recebem o nom e dos h om en s”. A
sabedoria clá ssica gostava de listar os nom es dos anim ais e das
coisas (por exem p lo, no papiro eg íp cio A nastasi I), na convicção
de remontar, através da m ultiphcidade das reconstituições, a prin­
cíp ios universais e totais. O h om em , na segunda parte do nosso
quadro policrom ático, é, portanto, definido em sua função de
trabalhador, de hom em de ciên cia , de elaborador cultural do
cosm o. O hom o fa b e r e t tech n icu s, porém, ao chegar ao fim de
sua jornada de trabalho e d e estudo, é ainda incom pleto. A ho-
m inização com pleta se dá c o m a terceira relação fundam ental,
aquela do ú ltim o registro do quadro.
o hom em agora olha de frente, procurando o “auxílio ke-
n eg d ô ” (Gn 2,18.20): a locu ção hebraica indica, m ais do que
qualquer co isa de “sem elhan te”, co m o m uitas v ezes se traduz,
um a realidade que seja parecida, que esteja “de frente” ; e v o ca -se
a idéia de “com panheirism o”, isto é, o relacionam ento com o
próxim o, com outra criatura humana, na qual espelhar os pró­
prios olh os e verter a própria dor e a própria alegria, com quem
com partilhar ansiedades e esperanças. O relacionam ento é tip ifi­
cado na união am orosa co m a m ulher (Gn 2 ,2 1 -2 5 ). O d iálogo
com as coisas é descendente e inferior; o d iálogo com D eu s é
ascendente e transcendente; e o d iálogo com o próxim o é hori­
zontal e im anente. O rom ancista am ericano Saul B e llo w escre­
via ironicam ente: “A té A dão, que tinha o Senhor em p esso a com
quem falar, reclam ou, no fim , um p ou co de com panhia hum a­
na”. O hom o sa p ie n s sa p ie n s só existe em sua plena identidade
quando é “socia l” e m asculino e fem inino. R eencontram os aqui
um m otivo já abordado na primeira página do G ênesis. A igu al­
dade, o ke-n eg d ô , é representada através de d ois sím bolos.
Há, antes de tudo, o recurso à “costela”. Ora, na língua
suméria, o ideogram a ti significa concom itantem ente “costela” e
“vida, vivente”. 0 sentido da imagem, para além das banalidades
dlLas e escritas a esse respeito, é o da solidariedade “carnal" e,
portanto, existencial entre ambos os seres, o hom em e a mulher.
Conhecendo bem o valor do corpo com o signo de com unicação no
âmbito sem ítico, pode-se intuir o significado do sím bolo “costela”,
por m eio de sua explícita decifração feita no canto de amor de
Gn 2,23, primeiro e eterno canto de amor do homem e da mulher
que se amam: Z ot h a p p a ’am ‘esem m e ’asa m a j ubasar m ibsari,
“Esta sim / é osso dos meus ossos / e carne da minha carne!”.
O segundo sím bolo é, ao contrário, de tipo lin gü ístico.
Joga-se, de fato, co m a assonância entre ‘ish, “hom em , m ach o”,
e ‘isshah, “m ulher” . Em bora os dois vocáb ulos tenham um a
matriz etim o ló g ica diferente, eles p odem , por assonância, ser
considerados co m o o m asculino ( ‘ish) e o fem inino ( ‘isshah) do
m esm o term o, criando, assim , a su gestão de com plem entaridade
na unidade do m esm o ser, da diversidade sexu al na identidade
da realidade hum ana. “E la será cham ada ‘isshah / porque fo i
tirada de ‘ish” (G n 2 ,2 3 ). O hom em e a m ulher são, portanto,
segundo o G ên esis, “um a só carne” (b a s a r ‘ehad\ Gn 2 ,2 4 ), seja
no ato físic o de amor, seja na dim ensão ex isten cia l e hum ana
(recorde-se o sentido b íb lico de “carne”), seja, en fim — com o
ex p lica um fam oso ex eg eta alem ão, Gerhard von Rad — , no
filho que d eles nascerá, carne única de duas p essoas. Já a tradi­
ção judaica sublinhava tal identidade na seg u in te distinção: no
amor entre hom em e mulher, o um tom a-se igual ao dois! “A quele
que era A d ã o ”, com entava o siro santo E frem , “era um e era
d ois, porque fo i criado m acho e fêm ea.

Um a á rv o re n ão c a ta lo g a d a p e la b o tâ n ica

O prim eiro quadro do n o sso d íptico ideal esb oçou , nos


seus três registros, a tríade fundam ental das relações hum anas na
versão cod ificad a sobretudo pela literatura sapiencial: a relação
hom em -D eu s, h om em -cosm o, h om em -h om em . A ntes de passar
ao segund o quadro, destinado a retratar o escardeam ento d esse
projeto con ceb id o por D eu s para sua m ais e x c e lsa criatura, é
n ecessário exam inar a articulação dos dois quadros. Trata-se de
um sím b olo vegetal ao qual já n os referim os. É aquela “árvore
do con h ecim en to do bem e do m al” (Gn 2 ,9 .1 7 ), que d esem p e­
nhará um a função d ecisiv a n o capítulo 3 do G ên esis e, portanto,
no segund o quadro do díptico. D izía m o s que, em bora se tenha
referido a um a m acieira, a ‘es d a ’a t to b w a r a ' era com p letam en ­
te ignorada por Lineu e p elo s botânicos posteriores. É que se
trata não de um a árvore física , m as m etafísica. A s antigas cos-
m ologias — pensem os, neste caso, na E p o p é ia d e G ilg a m esh —
preferiam introduzir a de “árvore da vida”, sinal da im ortalidade
negada ao hom em ; tam bém n o sso texto a e v o ca (G n 2,9; 3,22),
mas à m argem . Para a narrativa Javista, d ecisiv a é outra árvore,
ignorada pelas literaturas da M eia Lua Fértil.
Ora, a árvore, na B íblia, rem ete tradicionalm ente à sabedo­
ria divina e humana: no capítulo 24 do E clesiástico, a Sabedoria
personificada é comparada a um exuberante b osque co m cerca de
quinze esp écies vegetais (E clo 2 4 ,1 3 -1 7 ), enquanto o S alm o 1
apresenta o justo com o um a árvore enraizada nas proxim idades
de um riacho, cujas folhas nunca murcham e cujos frutos são
saborosas e constantes (SI 1,3; o m esm o con ceito é repetido em
Jr 17,8). É, portanto, a representação m etafórica de um sistem a
de vida. Há, além d isso, o “conh ecim ento” : a d a ’a t bíblica não é
só intelectual, m as tam bém volitiva, afetiva e efetiva, é um ato
global da con sciên cia, um a opção fundam ental que en v o lv e a
vida. “B em e m al” constituem o que tecnicam ente se define com o
“polarism o”, quer dizer, os dois pólos da realidade considerada
segundo o aspecto moral. P odem os agora identificar essa árvore;
é a árvore da moral em sua plenitude, m anifestada ao hom em ,
árvore que se ram ifica no céu da harm onia do jardim do Éden.
J. D . Salinger, em um de seus N o ve racconti, prolongando
o eq u ívoco da m açã, propunha um a interpretação: “Sabe o que
havia dentro da m açã que A dão com eu? A lógica. A ló g ica e a
m ania intelectual. E is o que havia. A ssim , m eu princípio é este:
se se quiser ver as coisa s com o elas verdadeiram ente são, d ev e
vom itá-las, livrar-se delas... O problem a é que a m aior parte das
pessoas não quer ver as co isa s co m o elas verdadeiram ente são.
Q uerem apenas corpos n ovos, ao in v és de parar e perm anecer
co m D eu s, c o m quem ficam os m uito b em .”
M as v oltem os ao texto b íb lico. L o g o o h om em pegará o
fruto daquela árvore, a con vite da m ulher, convidada, por sua
vez, pela serpente. E sse detalhe nos interessa desde já. O g esto
tem um claro sign ificad o, d ecisiv o para com preender o “p ecado
original”, ou m elhor, todo pecado, ou, se se preferir, a raiz v e n e ­
nosa de todo delito, segundo as Escrituras. O hom em , violando o
m andam ento divino, quer decidir autonom am ente sobre o b em e
o m al, recusando-se a recebê-los co d ifica d o s por D eus. O h o ­
m em esco lh e a si m esm o com o árbitro da m oral, repelindo qual­
quer definição transcendente. R eprova, assim o projeto de D eu s.
E ssa é a raiz últim a do pecado, de qualquer pecado; é a
própria origem do pecado, é o pecado em sua estrutura radical
de orgulho, d e h ybris, de desafio, de “ser com o D eus c o n h ec e­
dor do bem e do m a l” (Gn 3,5). S eu desaguadouro é a morte,
entendida em seu sentido “sim b ó lico ”, ou seja, global, físic o -
espiritual — a term inologia utilizada, em hebraico (m ôl tam üt,
“certam ente morrerá”) é típica da con d en ação pela v io la çã o da
lei — , a separação do D eu s da vida físico-espiritual. D escob re-
se, assim , que o h om em bíblico — diferentem ente do m esopotâ-
m ico, em cujas veias corre o sangue do deus rebelde e que só
pode ser votado ao m al — está só diante daquela árvore; tem
diante de si d ois cam inhos, e é livre por ex celên cia . C om o dirá
m uito bem um sábio, sete sécu los depois, o já citado E clesiásti­
co; “N ão diga: ‘Eu m e afastei por culpa do S en h or.’. Porque
D eu s não faz aquilo que ele próprio detesta. N ão diga; ‘Foi ele
quem m e fez d esviar.’ Porque D eu s não tem necessidade do
pecador... D esd e o princípio, D eus criou o hom em e o entregou
ao poder de suas próprias d ecisõ es. Se v o cê quiser, observará os
m andam entos, e sua fidelidad e vai depender da b o a vontade que
vocc m esm o tiver. E le pôs v o c ê diante do fo g o e da água, e você
poderá estender a m ão para aquilo que quiser. A vida e a morte
estão diante dos hom ens, e a cada um será dado o que cada um
escolh er” (E clo 15,11-17).
Grande e dramática qualidade, a liberdade do hom em é um
retraimento de D eus ainda m aior do que seu retraimento da cria­
ção. E le não quer ter diante de si apenas estrelas que obedecem à
m ecânica celeste, ou estações que respondem a ritmos obrigatóri­
os, ou anim ais que seguem seus instintos naturais. E le quer ter
um interlocutor audaz, pronto a respeitá-lo em suas iniciativas
temerárias, ainda que não a justificá-lo ou ignorá-lo. N a sua fa­
m osa O ra tio d e hoininis dign itate, P ico della M irandola escrevia:
“N ão te dei nem rosto nem lugar que te sejam próprios, nem dom
algum que te seja particular, ó A dão, para que o rosto, o lugar e o
dom que desejares, tu os conq u istes e os possuas, segundo tua
escolha e teu alvitre. A natureza predeterm inada subm ete os d e­
mais seres a leis por nós estatuídas de antemão. M as tu não te
subm etes a nenhum limite; co m teu próprio arbítrio, ao qual te
confiei, lu te definirás por ti próprio. Eu te coloquei no centro do
mundo para que possas contem plar m elhor o que e le contém .
N ão te fiz nem celestial nem terrenal, nem mortal nem imortal,
para que por ti m esm o, liberrim am ente, com o um bom pintor ou
um experiente escultor, possas plasm ar tua im agem ”.

Uma se rp e n te n ão c a ta lo g a d a p e la z o o lo g ia

É chegado o m omento de lerraos o capítulo 3, o quadro


obscuro e deturpado do já célebre díptico javista. A ntes, porém,
devem os interrogar-nos sobre a causa dessa ruptura e dessa detur­
pação. O autor sagrado quer responder à eterna e inquietante per­
gunta: de onde provém o mal? Qual a origem do pecado? E sua
resposta é confiada à m agia de uma história, m odelada sobre o
relato de uma sedução. O pecado é pintado psicologicam ente em
Gn 3,6 com o um fruto “apetitoso”, isto é, en volve sentidos e
desejo, mas também “agradável aos olh os”, ou seja, en volve o
n ível estético e “desejável para adquirir sabedoria”, isto é, en v o l­
ve 0 nível intelectual-cognoscitivo, com o declarou Salinger. Para
seduzir, é necessária uma mulher, segundo o m odelo clássico vi-
vissim am ente representado no capítulo 7 dos Provérbios (procure
na B íblia e leia esta extraordinária e “pictórica” cena de sedução).
A mulher, portanto, é a tentadora, não tanto p elo propalado
antifem inism o quanto pela exig ên cia de narração. M as com um
acréscim o importante: a sedutora na B íb lia não é, senão raramen­
te, um a “leig a ” ou indecente prostituta; ao contrário, é a “estran­
geira”, com um a referência aos cananeus, que Israel considerava
estranhos, em bora con v iv essem na m esm a terra, c suas sacerdoti­
sas, dedicadas ao culto da fertilidade. E, então, o fascín io da
idolatria que entra em cena. Esta interpretação con solid a-se com
a aparição de um a estranha serpente, com certeza não id en tificá­
vel com esp écie herpetológica algum a. C om o nas fábulas m orais,
a serpente fala e é definida com um a qualidade própria do sábio
bíblico, isto é, a astúcia (Gn 3,1). A tradição judaica e a cristã
não tiveram dúvidas em ver nessa serpente o Tentador por e x c e ­
lência: Satanás, a som bra de D eu s, aquele que insta a liberdade
hum ana à esco lh a perversa. N o livro deuterocanônico da S abedo­
ria lem os: “Foi por inveja do diabo / que entrou no m undo a
morte, / que é experim entada por aqueles que lhe pertencem" (Sb
2,24). Em Ap 12 e 20, a terrível “serpente antiga” , o dragão, é
“Satanás, o d iabo” (Ap 20,2). M esm o que o expulsem os, e le
sempre nos enfrenta, com o diz G oethe no Fausto: “E xpulsaram o
Grande M aligno, mas ficaram todos os pequenos m alvados”.
Em n o sso texto, todavia, o valor de tal sím bolo é d iferen ­
te, embora, ao final, sua função seja a m esm a da do M align o
Tentador. A serpente, de fato, no antigo Oriente P róxim o, era
signo de ju ventud e perene, de im ortalidade, de fecundidade e
vida, sobretudo por causa das m u tações de pele. Isso evoca,
m ais um a v e z , a idolatria cananéia, tão fascinante para os p o v o s
agrícolas e nôm ad es que queriam consubstanciar D eus em algu ­
m a realidade experienciável. N um a civ iliza çã o rural e pastoral,
os filh os, as crias do rebanho e a fertilidade dos cam pos eram
vistos quase com o o sêm en da divindade infundido na vida e na
terra. O tentador por e x celên cia é, portanto, o íd olo. E o pecado
con siste exatam ente em colocar a si m esm o ou um íd olo no
lugar do D eu s vivo e criador. A liás, a serpente, no Oriente, era
tam bém o sím bolo do caos: Tiamat, a divindade negativa das
cosm o g o n ia s m esopotâm icas, era representado com o um a ser­
pente gigantesca.
Para a B íblia, continua verdadeira a frase escrita, sécu los
depois, p elo filó so fo in glês D avid Hume: “O s erros da filo so fia
são apenas ridículos; os da religião são sem pre p erig o so s”. O
pecado é um a questão religiosa, e não m eram ente ética e jurídi­
ca. A provocação da serpente se insere em uma trajetória teoló­
gica. Inicia-se co m uma falsidade relativa a D eus: o Senhor, com
efeito, não d isse que o hom em não devia com er de nenhum a
árvore d o jardim , co m o a serpente insinua em sua prim eira inter­
venção (Gn 3,1). D eus não restringiu todas as p otencialidades da
liberdade; ele quis apenas definir os valores morais a partir dos
quais se exerceria a liberdade (a árvore do conhecim ento do
B em e do M al). É isso a m ulher sabe m uito bem , co m o atesta
explicitam en te sua réplica à serpente (Gn 3,2-3). M as, aberta a
passagem , a serpente acena co m a possibihdade de rom per qual­
quer vín cu lo, de desafiar a D eu s tam bém em seu único e, funda­
mental m andam ento. O preceito d ivino é m aliciosam ente c o n si­
derado co m o um absurdo e hostil ciúm e em relação ao hom em :
“D eus sabe que... os olhos de v o cês vão se abrir, e v o c ês se
tornarão co m o deuses, conhecedores do B em e do M a l” (Gn
3,5). E is a arrematada definição do pecado no sentido teológico:
ato de rebeldia, por m eio do qual o hom em se substitui a D eu s,
arrogando-se sua sabedoria, sua divindade, sua soberania sobre o
B em e o M al.

Quem te d is s e q u e esta va s nu?

“Os d ois andavam nus, o hom em e sua mulher, mas não


sentiam vergonha... [D epois de terem com ido o fruto da árvore do
conhecim ento do B em e do M al] abriram-se os olhos dos dois, e
eles então perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de
figueira e fizeram tangas... O Senhor D eus cham ou o homem:
‘Onde v o cê está?’ O hom em respondeu: ‘O uvi teus passos no
jardim: tive m edo, porque estou nu, e m e escondi. O Senhor co n ­
tinuou: ‘Quem te disse que estavas nu?’ ” (Gn 2,25; 3,7.9-11). A
nudez tem uma função relevante na narrativa do pecado de Adão,
com o tem tam bém em todas as culturas que atribuem à vestim en ­
ta uma série de significados em blem áticos: não é verdade que
tam bém nós, para definir a atribuição de um cargo público ou de
um poder, usam os o termo “investidura”? U m estudioso francês,
Edgar Haulotte, escreveu, em 1964, um ensaio revelador sobre La
sym boliqu e du vêtem ent selon la Bible: m esm o num léx ic o pobre
com o é o hebraico bíblico (apenas 5 7 5 0 vocábulos), as palavras
que indicam vestuário e atavios são m últiplas. A lém disso, curio­
sam ente, 0 vocábulo “nu”, em hebraico {'arüm ), é hom ófono da­
quele que indica a astúcia da serpente.
A nudez na B íb lia representa quase visualm ente o lim ite
da criaturalidade, a situação existen cial do hom em e da m ulher,
sem revestim entos artificiais ou extrínsecos: “N u eu saí do v en ­
tre de m inha m ã e”, exclam a Jó, “e nu a e le voltarei” (Jó 1,21).
C oélet, outro sáb io bíblico, con hecid o co m o E clesiastes, lh e fará
eco: “N u e le saiu do ventre de sua m ãe, e assim voltará” (Ecl
5 ,14). A ntes do pecado, quando estão serenos e em paz com
D eus, o hom em e a m ulher acolhem seu lim ite de criaturas,
estão em paz co n sig o m esm os, aceitam a sexualidade co m o um
com ponente de interdependência e não de onipotência. D ep o is
do pecado, surge a vergonha de estar nu, ou seja, a incapacidade
de aceitar-se co m o criatura, querendo ser co m o D eus, O pecado
co n segu e dram atizar o lim ite hum ano antes serenam ente aceito.
O hom em e a m ulher v êem c o m m edo a própria reaüdade criatu­
ral; sentem -se não só nus, m as despojados e, portanto, h u m ilh a­
dos: um dos prim eiros g estos, no ca so de adultério da esp osa,
era despojá-la de sua dignidade de esp osa, co m o pensa fazer o
profeta O séias, em relação a G om er, a esp o sa infiel (“vou d eixá-
la com pletam ente nua...”. Os 2,5).
O p ecad o rom pe a harm onia p e sso a l e cria a vergonha de
si, um a sensação bem distinta e m ais dram ática do que o sim p les
pudor perdido ou violado. O recurso à cobertura fictícia com
folhas de figueira é o sinal de um a irrisória defesa da dignidade
ora corrom pida, de um a im potente e m ela n có lica tutela da gran­
d eza ora atingida da natureza humana. M as a con sciên cia do
lim ite p essoal se m antém , p enosa e vergonhosa. A nudez m esm a
do outro torna-se exp eriên cia da própria m iséria, e a presença de
D eu s transform a-se em fon te de m edo, de julgam ento, de tensão.
T am bém o recurso da fuga (“escon d er-se”) de D eus é um ex p e­
diente de autodefesa que D eu s lo g o afasta. A nudez tem , portan­
to, um valor sim b ólico discrim inador, inocuam ente carregado,
de sign ifica d o s sexuais ou pruriginosos. E stes são apenas um
aspecto m arginal, um a observação que rem ete a um a sig n ifica ­
ção bem m ais radical.
A vicissitud e da nudez adquire, então, um relevo particu­
lar na sim b ólica do pecado e um papel d ecisiv o . S u gestiva é a
observação final: “O Senhor D eu s fez túnicas de p ele para o
hom em e sua mulher, e os vestiu ” (Gn 3,21). D eus é representa­
do aqui co m o o pai de fam ília que se preocupa em cobrir com
roupas os seus filh os. É e le quem con segu e dar à sua criatura
rebelde um a certa dignidade ex tem a que escon d e aquele lim ite
que o h om em agora não sabe m ais aceitar e do qual, ao contrá­
rio, se envergonha. C om esta observação, o autor sagrado quer
tam bém explicar sim bolicam ente com o surgiu o costum e de v e s­
tir-se. M as, ao m esm o tem po, faz vislum brar algo m ais superior,
abrindo um a fresta de luz na tenebrosa narração do pecado. U m
exegcta, W alter V og els, exprim e-o m uito bem: “D eu s só pode
cobrir a nudez profunda do ser hum ano. O h om em ergue-se
agora vestid o diante de D eus. S eu s lim ites são reais e estão
sem pre ali, mas são cobertos por D eus, que oferece túnicas de
pele ao hom em . O m edo que o ser humano sentira de início
diante de D eu s poderá agora dar lugar à confiança” .

O q u adro d efo rm a d o

A gora podem os contem plar os três registros antitéticos do


quadro que o hom em arranhou e obscureceu. A narrativa do ju l­
gam ento d ivin o sobre o pecado é pautada pelo gênero processual.
A o delito, narrado segundo a tip ologia da sedução, su ced e-se
um a instrução conduzida por D eu s, representado co m o um sob e­
rano que d esce para passear em seu parque real, ao sopro da brisa
vespertina. A instrução (Gn 3 ,9 -1 0 ) desem boca em um interroga­
tório (G n 3 ,1 1 -1 3 ) e ch ega a um a tríplice sentença (Gn 3,1 4 -1 9 )
que terá pronta execu ção (Gn 3,20-24). A tríplice sentença (con­
tra a serpente, a m ulher e o hom em ) corresponde aos três enqua-
dam entos de nossa tela: esta delineia eficazm ente o projeto alter­
nativo que 0 hom em realizou, decidindo “ser com o D eu s, conhe­
cedor do B em e do M al” (Gn 3,5), isto é, árbitro da moral.
Antes de tudo, d efine-se, na sentença contra a m ulher (Gn
3,16), a relação hom em -m ulher: “V ou fazê-la sofrer m uito em
sua gravidez; entre dores, v o cê dará à luz seus filhos; a paixão
vai arrastar v o cê para o m arido, e ele a dom inará” . D o is são os
sím bolos para representar a quebra da relação interpessoal, quando
destituída de m oralidade. D e um lado, o parto, fonte de vida e de
alegria, é acom panhado de dores atrozes (“C om o a m ulher grá­
vida na hora de dar à luz, / con torce-se e grita de d or...” [Is
2 6 ,1 7 ], que surgem com o sinal da desarm onia que agora se in­
troduziu na sexualidade e na relação do casal. N ão se quer ler o
parto co m o punição, nem tam pouco im pedir o parto indolor:
trata-se de um a m etáfora sobre a insinuação do m al e da desar­
m onia na realidade m ais gloriosa da vida. D e outro lado, intro-
du z-se um a análise acurada da ruptura da harm onia do casal que
antes se sentia um só ser, “um a só carne” . A gora, o hom em e a
m ulher encontram -se em uma relação de atração fatal; à pulsão-
desejo-instinto {teshü qah ) da m ulher corresponde a dom inação-
p osse bmtal do m acho (o verbo usado, m a sh a l é o do potente, do
tirano, do senhor). Tam bém neste caso, não se quer por certo
condenar o d esejo erótico; no C ântico dos C ânticos, a m ulher
c o n fe ssa , Ju bilosa; “Eu sou do m eu am ado, e seu d e se jo
[teshãqah] o traz para m im ” (cf. Ct 7 ,1 1 ). Trata-se, ao contrário,
da constatação d e que o d iálogo am oroso e erótico foi interrom ­
pido, abrindo esp a ço a um a tensão e a um a violên cia surda.
N a segunda sentença divina pronunciada contra o hom em ,
registra-se a deterioração de sua relação com a terra: “Enquanto
você viver, v o cê dela se alimentará com fadiga. A terra produzirá
para você espinhos e ervas daninhas, e v o cê com erá a erva dos
cam pos. V o cê com erá seu pão com o suor do seu rosto, até que
volte para a terra, pois dela foi tirado. V o c ê é pó, e ao pó voltará”
(Gn 3,17-19). Im placável e inesquecível é o final, 'afar 'attah
w e ’e l- ’a fa r tashüb, prelúdio das amargas e ainda mais im piedosas
palavras do E clesiastes: “O destino do hom em e o do animal são
idênticos: do m odo co m o morrem estes, assim morrem também
aqueles. U ns e outros têm o m esm o sopro vital, sem que o hom em
tenha vantagem algum a sobre o animal, porque tudo é fugaz. Uns
e outros vão para o m esm o lugar; vêm do pó, e voltam para o pó...
o pó volta para a terra de onde v eio (Ecl 3 ,1 9 -2 0 e 12,7). Pétreas
palavras que procuraremos explicar oportunamente.
D o is são, de qualquer m odo, os aspectos sob os quais o
autor do G ên esis apresenta a crise da relação entre o hom em e a
matéria. D e um lado, relem brando a p assagem “O Senhor D eu s
plasm ou o hom em co m a argila do so lo ...” (Gn 2,7), repropõe a
ligação do hom em com a terra, não m ais, porém , p elo ângulo
p ositivo da criação, mas antes p elo n egativo da m orte e dos
infernos. E m hebraico, de fato, “p ó ” pode ser sin ôn im o d e x eo l,
a m ansão dos m ortos, à qual os seres baixam , aí levando um a
vida larval e espectral. C o m o verem os, um a lém -vid a diferente
— m ais p o sitiv o e lum inoso — abrirá cam inho a duras penas no
A n tigo T estam ento. Por outro lado, a sentença d ivin a rem ete à
advidade d o hom o fa b e r , cham ado a “cultivar e custodiar” a
terra, agora, entretanto, alienado em um trabalho que produz
apenas o m ínim o para a sob revivência, em um a terra hostil,
exp erien ciável no deserto de Judá, que o autor tem diante dos
olhos. A relação com o c o sm o não é m ais enobrecedora, não é
m ais um a experiência sublim e, m as um fardo suportado com
“afã e suor do rosto”. U m a experiên cia que o hom em m oderno
percebe c o m m ais clareza nos pesad elos nucleares, na deteriora­
ção e na d evastação do m eio am biente.

O " p a ra ís o ” p e r d id o

Durante sete anos, de 1667 a 1674, o poeta in g lês John


M ilton trabalhará em sua obra-prim a, aquele P a ra íso p e rd id o
que tanto in flu ên cia terá na cultura dos sécu los seguintes; o dra­
m aturgo in g lê s John Dryden o en cenou quando M ilton ainda o
escrevia; H aydn se inspirará em M ilton para sua C riação, e
assim o fará o russo Anton R ubinstein co m o oratório h o m ô n i­
m o, execu ta d o pela primeira v e z em 1855, em W eim ar; não
faltará segu ir um a revisitação cô m ica na com édia A d ã o e Eva,
que Peter H acks encenará em 19 7 2 , apresentando o p ecad o ori­
ginal co m o o prim eiro p asso do hom em para a maturidade, co n ­
tra toda m anifestação de d ivin o e hum ano.
O “paraíso perdido” funda-se exatam ente no terceiro e
últim o registro do quadro deform ado de G ên esis 3: “O Senhor
D eu s exp u lsou o hom em do jardim do É den... E xpulsou o h o ­
m em e co lo co u diante do jardim do Éden os querubins e a esp a­
da cham ejante, para proteger o cam inho da árvore da vid a” (Gn
3 ,2 3 -2 4 ). A expulsão do “jardim persa” do Éden é o sím b olo
espaço-ex isten cia l da ruptura da relação entre D eu s e o hom em ,
antes exaltada co m o um sereno d iálogo vespertino, quando o
Senhor se encontrava com sua criatura “p asseando no jardim à
brisa do dia” (Gn 3,8).
“Então vi que tam bém dos portões do paraíso partia um
cam inho direto ao inferno” , assim John B unyan, poeta in glês
puritano batista, co n clu ía em 1684 seu p oem a II v ia g g io d e i
p e lle g rin o . E diante dos n o sso s olh os não p od e deixar de surgir a
com oven te cena que M asaccio, entre 1425 e 1428, pintou nas
paredes da C apela B rancacci de Santa M aria do Carmo, em
Florença, ou o angustiado e potente paralelo de M ich elân gelo,
na cúpula da C apela Sistina. D o jardim da intim idade d ivin a o
hom em pula para as terras desoladas e desérticas da história.
A gora, D eu s e h om em são d ois estranhos em m útua concorrên­
cia. O hom em iludira-se ao tentar usurpar à divindade a prerro­
gativa de ser o Senhor da moral. D oravante, verá D eus co m o um
antagonista a ser ven cid o e a moral, um a cid adela a ser assalta­
da. A divindade fecha-se, então, em seu m undo perfeito, tutela­
do por querubins, seres m íticos considerados, no antigo O riente
Próxim o, com o espíritos protetores d os recintos sagrados (tem ­
plos e palácios reais) e representados c o m o esfin g es sem i-hum a-
nas e sem i-anim alescas, transform ados em anjos pela B íblia. A
“espada cham ejante”, isto é, o raio fulm inado p elos querubins,
assinala a ruptura consum ada e a relação de hostilidade que se
estab elece entre os dois grandes adversários.
Para o autor b íb lico, o pecado é fonte de solidão, e a falsa
“divindade” do h om em , de m iséria e isolam en to. Embora c o m
diferentes coordenadas teológicas, o m ito grego de Prom eteu
reflete o m esm o resultado, não obstante a evid en te simpatia gran-
jeada pelo herói rebelde ao longo dos sécu lo s. Charles P égu y,
em sua já citada E va (1 9 1 3 ), se deterá diante do túm ulo da
esp osa de A dão, “sepultada fora do prim eiro jardim ”, aquela
E va que se tom ou “a prim eira m endicante, a prim eira criatura
subm etida à lei da m orte” . Isaías, em um a p oesia de grande
vigor, personificará o pecado original d e A dão na h yb ris do rei
da B abilônia, “estrela da manhã, filh o da aurora”, que pensava:
“Subirei ao céu / acim a das estrelas de D eus erigirei m eu trono, /
sentar-m e-ei na m ontanha da A ssem b léia, no cum e da montanha
celeste, I ... I Subirei aos píncaros das nuvens, / tom ar-m e-ei
igual ao A ltíssim o ” (Is 14,1 3 -1 4 ). E ei-lo , ao contrário, arrem es­
sado aos infernos, de cujas profundezas as Som bras se levantam
para dele escarnecer; “O esplendor dele foi atirado na sepultura,
junto com a m úsica de suas haipas. D eb aixo de v o cê há um
colch ão de podridão, seu cobertor é feito de verm es” (Is 14,11).
U m outro profeta, E zeq uiel, m aterializará e sse pecado na
figura do rei de Tiro, ao qual reservará duas elegias satíricas.
Sentado na fortaleza do prom ontório, onde se erguia sua cidade,
o m onarca não hesitava em proclamar: “Sou um deus, / sentado
em trono divino, bem no coração dos m ares”, con ven cid o de ter
“igualado sua m ente à de D eu s” (E z 2 8 ,2 ), tornando-se, com o
A dão, “con hecedor” e árbitro do B em e do M al. N a verdade, ele
era “um m odelo de perfeição, ch eio de sabedoria, pleno de bele­
za, coberto de pedras preciosas / no Éden, jardim d e D eu s I ... I
sem elhante a um querabim protetor de asas abertas” (Ez 28,11-
13). M as “o orgulho se apoderara do seu coração”, e ele foi
precipitado do zênite “paradisíaco” para o nadir infernal: “Farão
você descer à co v a e v o c ê morrerá de m orte violenta, bem no
coração do mar. Será que v o c ê ousará dizer diante de seus assas­
sinos: ‘Sou um D e u s’? M as v o c ê é apenas hom em , e não um
deus [ ‘atta h ‘adam w e lo ’ V /]!” (E z 2 8 ,8 -9 ). E ssa adm oestação:
“V o c ê é um hom em , e não um d eus!”, é quase a epígrafe para
cada A dão, ao final de sua aventura de criatura livre e pecadora.
O G ênesis, em seus prim eiros capítulos, esforça-se por
seguir 0 rastro da m aldade que o hom em secreta. O crim e de
Caim , o grito bestial de L am ec ( “Por um a ferida, eu matarei um
hom em , e por uma cicatriz matarei um jovem . S e a vingança de
Caim valia por sete, a de L am ec valerá por setenta e sete”)
[Gn 4 ,2 3 -2 4 ], o pecado “junto à porta” de casa co m o fera acuada
(Gn 4 ,7 ), a “acrescente m aldade do hom em na terra e a perversi­
dade inerente aos projetos engendrados pelo coração hum ano”
(Gn 6 ,5 ), a superveniência julgadora do dilú vio, o im perialism o
de B abel (Gn 11,1-9) são apenas etapas dolorosas e em blem áti­
cas de um a história sem fim .

U m a esp era n ça p a r a E va?

D iante d esse rio de lam a que inunda e afeta os sécu los e


todos os A dões, em qualquer época e lugar, haverá esperança de
redenção? A B íb lia encara a frágil liberdade hum ana com certo
p essim ism o. M as ainda se dispõe a apostar no hom em , diferen­
tem ente de Satanás, que, na narrativa de Jó, está con ven cid o de
que o hom em é um caso perdido para D eus (Jó 1,7-12).
A tradição judaico-cristã vislum brou um raio de esperança
na passagem em que D eus pronuncia sua inexorável sentença de
m aldição contra a serpente: “Suscitarei inim izade entre v o cê e a
mulher, / entre sua estirpe e os descendentes dela. Estes esm aga­
rão sua cabeça, e v o cê ferirá o calcanhar d e le s” (Gn 3 ,1 5 ). O
autor, na realidade, tem em m ente apenas a im agem de um a luta
renhida e perm anente entre a hum anidade (a “estirpe” da m u­
lher) e a serpente, co m sua “estirpe” de tentadores. Em hebraico,
0 verbo utilizado é sh ãp, que significa — segundo a perspectiva
da im agem — ora “esm agar”, ora “insidiar” ; há, portanto, um a
e sp écie de paridade no duelo entre as duas estirpes.
Todavia, co m o dizíam os, a tradição quis adensar de esp e ­
rança a passagem supracitada, vendo no pronom e h ü \ “este”,
referente à estirpe (que em hebraico é term o m asculino), um
“e ste ”, isto é, o M essias, sem ente perfeita da estirpe da m ulher,
capaz de “esm agar”, para sempre, “o grande Dragão, a Serpente
antiga, aquele que é cham ado D iabo ou Satanás e que seduz
todos os habitantes da terra” (cf. A p 12,9). O cristianism o foi
além e, no pronom e “ela ”, não viu m ais a descendência de Eva,
isto é, a hum anidade, mas a Eva perfeita, Maria, mãe do M e s­
sias. U m a reinterpretação livre, da qual derivaram as im agens da
Im aculada co m o a V irgem M ãe que esm aga co m o pé a serpente
agarrada ao g lo b o terrestre. O texto do G ên esis tom ava-se, a s­
sim , um “p roto-evan gelh o”.
N a verdade, seu valor é m ais realístico e pessim ista: a
história hum ana perm anece um cam po aberto no qual se co n ­
frontam e se digladiam h om em e serpente, c o m um resultado,
infelizm ente, trágico para o hom em . N ão há, então, esperança
para o autor javista? N ão, a cad eia da m aldição p ode ser inter­
rompida, e isso acontecerá quando o próprio D eus, desiludido
com sua criatura, m as não sem esperança de reconduzi-la ao
jardim perdido, decidir voltar à cena, escolh en d o um hom em ,
Abraão, co m o n ovo interlocutor. A história de Abraão, de fato,
com eça co m a raiz verbal hebraica da bênção, brk, repetida cin ­
co vezes; “A bençoarei v o c ê ” — diz o Senhor a Abraão —
“e v o cê m esm o se tomará um a bênção. A bençoarei aqueles que
abençoarem v o cê ... E m v o cê, todas as fam ílias da terra serão
abençoadas” (Gn 12,2-3).
M uitos leitores “le ig o s ” da história até agora longam ente
narrada aqui, história parabólica e m etafísica, resignaram -se, co n ­
tudo, a abandonar A dão à periferia do “jardim persa” do Éden.
Gostaria apenas de evocar um a im agem e um texto p ouco c o ­
nhecidos entre os inúm eros derivados dos capítulos 2-3 do G ê­
nesis. R efiro-m e ao húngaro Imre M adach, com seu poem a La
tra g é d ia deW u o m o (1 8 6 1 ), que se tom ou a base de um a obra
m usical do seu com patriota M ór V avrinecz (sobre o libreto ale­
mão D ie T ragõdie d e s M en sch en ) e que dep ois fo i escolh id o
com o trama de um film e, A nnunciazione, de outro conterrâneo,
0 diretor Andras Jeles (1 9 8 4 ). O pecado original de A dão c o n ­
siste, segundo M adach, em querer conhecer o futuro. L úcifer
ajuda-o, oferecen do-lhe um a “tele-v isã o ” da história: desfilam
quadros terríveis de guerras, cen as de morte e de m iséria, sold a­
dos im p lacáveis, crim inosos e todas as vicissitu d es da Europa,
até um a rem ota futura era g la cia l a que se reduzirá n o sso plane­
ta... A dão desperta desesperado, nauseado; pode evitar tudo isso
com seu suicídio. M as, quando está prestes a pôr fim à vida,
seus olh o s se voltam para E va, que lhe co n fessa estar grávida.
A gora, a linha da vida continuará, encarnada na afirm ação da
vida própria de Eva, mas representada também por aquela su ce s­
são de m aldades, sangue e vio lên cia .
O leitor talvez esteja se perguntando por que até agora não
se fez sequer um a m enção às problem áticas cien tíficas do evolu -
cion ism o e do p oligen ism o. Ou talvez, se seguiu a com p lexa
argum entação co m atenção, tenha entendido por que a aborda­
g em de sem elhantes questões fo g e, substancialm ente ao esco p o
da discussão. O autor do G ênesis certam ente recorria a um m o ­
delo cien tífico fixista e m onogenista. M as a finalidade de seu
discurso não era responder à pergunta científica; “O que aconte­
ceu nas origens do cosm o e do h om em ?”, e m uito m enos à
questão teológica: “Q ual o sentido do hom em no co sm o e em si
m esm o?” Sua análise não é de natureza astrofísica ou paleoan-
tropológica, m as filo só fic a e teológica, de “sabedoria”. E le pre­
tende definir o m istério da liberdade da criatura humana, suas
relações existen ciais básicas. C om o declarou tam bém o papa
João Paulo II, o texto b íb lico, por m eio de sua antropologia e de
sua c o sm o lo g ia narrativa, quer “colocar o hom em criado, desde
0 prim eiro m om ento da sua existência, diante de D eus, em busca
da definição de si m esm o, da própria identidade” . Já santo A g o s ­
tinho, na sua D e G en esi a d littera m , afirmava: “N ão se lê no
evangelh o que o Senhor teria dito: ‘Eu m andarei o Paráclito, que
vos ensinará os m ovim en tos do sol e da lua. E le queria formar
cristãos, não m atem áticos”.
Oscar W ild e estava justam ente con ven cid o de que “todo
m undo é capaz de dar respostas, m as é preciso um gên io para
fazer as perguntas certas”. Portanto, é p reciso interrogar a B íb lia
corretam ente para não forçá-la a dar respostas que não pretende
e que só artificiosam ente podem os extrair dela. A “inerrância”
das Escrituras não diz respeito à ciên cia, m as às afirm ações
religiosas. Ou m elhor, a “verdade” que se quer com unicar não é
de tipo cien tífico , m as teológico, co m o ressaltou o C on cilio V a­
ticano II: “Os livros da Escritura ensinam com certeza, fielm en te
e sem erro a verdade que D eus, em v ista d a n o ssa sa lv a ç ã o , quis
que fo sse con sign ada nas Sagradas Escrituras” (“C onstituição
D ogm ática sobre a R evelação R ev ela çã o ”, D e i Verbum, n. 11).
G alileu, portanto, tinha razão quando escrevia a C astelli, abade
beneditino de Pisa, que “a autoridade do Espírito Santo v isa
persuadir os hom ens sobre aquelas verdades que, sendo n ecessá -
rias à sua salvação e superando qualquer discurso hum ano, não
podem , por outra ciên cia nem por outro m eio, ser conhecidas,
senão pela b oca do próprio Espírito Santo”.
D ecerto, a tentação de ultrapassar os lim ites é grande, até
porque o objeto, o universo e o hom em são idênticos: o teólogo
muitas v ezes se sente tentado a pronunciar veredictos de caráter
cien tífico e o cientista, a escarnecer de teses religiosas. Fiorenzo
Facchini, cientista e também religioso, procurou estabelecer cer­
tos m arcos, p elo m enos os m ais gerais: “Grande parte dos equí­
vocos sobre o problem a das origens surgiu da pretensão de negar
o que a ciên cia não pode afirmar (a dem onstração do espírito),
ou de levar a B íblia a dizer o que ela não quer (conteúdos de
ordem cien tífica). A os dois interlocutores incum bem questões
atinentes aos respectivos cam pos do conhecim ento: cabe à B í­
blia se pronunciar sobre a questão do sentido da existên cia, e, à
ciência, investigar as circunstâncias da form ação da vida... A
verdadeira alternativa não está entre a evolu ção e criação, mas
entre v isã o de um m undo em evolu ção, dependente do D eus
criador, segundo seus desígn ios, e a visão de um m undo auto-
suficiente, capaz de criar-se e de transform ar-se por si m esm o,
através de even tos apenas im anen tes.”
III
Lute Gom Deus
e ele o abençoará

O u tr o r a , seus antepassados, Taré, pai de Abraão e de


N acor, habitavam do outro lado do rio Eufrates e serviam a
outros deuses. Eu, porém , tom ei Abraão, antepassado de v o cês,
e o fiz sair do outro lado do Eufrates para percorrer toda a terra
de Canaã. M ultipliquei a d escend ên cia d ele e lhe dei Isaac. Para
Isaac, dei Jacó e E saú...” (Js 24,2 -4 ). Em Siquém , sede de um
antigo santuário, Josué, que guiou a entrada de Israel na terra
prom etida, co n v o co u todo o p ovo e, diante das tribos, dos an­
ciãos, dos p olíticos, dos ju izes, dos intelectuais ( “os escribas”),
proclam ou aquele Credo que, diverso na form a, se encontra no
Salm o 136, o Grande H allel, do qual já falam os. Em suas pala­
vras, avultam os pais de Israel, os patriarcas, a partir do perfil de
Abraão, que rom pera a cadeia das m ald ições. M ais um a v ez.
D eu s decide entrar no teatro do m undo, m as o encontro c o m o
hom em não será fácil. “O In co g n o scív el ergue-se silen cio so e
salvador” (R ilke).

Um a la b a red a fu m e g a n te na n oite

“A visão m anifestou-se a Abraão durante a noite, enquan­


to ele gem ia e chorava. Dom inado por tristes pensam entos, Abraão
não con segu ia dormir; por isso, lev a n to u -se e com eçou a orar;
enquanto orava, em m eio à tem pestade que se abatia sobre seu
íntim o. D eus lhe apareceu e falou fam iliarm ente con sigo, de
m odo que Abraão, em bora desperto, fo i arrebatado totalm ente
de si por aquela v isã o .” A ssim Lutero, p ou co s m eses antes d e
sua morte, com en tava o capítulo 15 d o G ên esis, introduzido por
um Abraão profeta e visionário, m as que se sentia amargurado
por saber que morreria sem deixar filh os, tendo por herdeiro seu
m ordom o, E liezer de D am asco. C om eça d esse m odo o íngrem e
cam inho que o fiel deverá enfrentar (descobrindo-o ch eio de
obstáculos), em cujo céu se inscreve um a prom essa tão retórica
quanto im provável; “C onte as estrelas, se puder: assim será sua
descendência” (Gn 15,5). O patriarca d ecid e percorrer aquela
senda. “A braão acreditou no Senhor, e isso lhe fo i creditado com
justiça” (Gn 15,6). V ersículo célebre este, repetidam ente com en ­
tado e predileto de Paulo, que n ele via o âm ago de sua teologia
da ju stificação através da fé (R m 4 e G1 3).
Crer é um ato de confiança; o verbo hebraico que o indica,
e do qual resultou n osso a m ém , p osto co m o um a chancela nas
orações, exprim e o “estar apoiado”, o “b asear-se” em alguém ou
em algum a coisa, entregando-se com pletam ente a um a pessoa
ou a um a realidade. Crer, portanto, é arriscar-se em relação a
alguém altam ente m isterioso, co m o D eu s, e é por isso que a fé
não pode perder com pletam ente o sabor do m edo e da suspeita.
L uzes e trevas interagem reciprocam ente, com pon do um in ces­
sante contraponto. Para a B íb lia, contrariam ente ao prim eiro ver­
so de um a p o esia de Soljenítsin, não “é fácil crer em ti, Senhor” .
Em D io e s is te l, Hans Küng afirm a que a fé “não garante seg u ­
rança absoluta: não se parte de um a dem onstração ou ex p lica ­
ção, em term os racionalm ente estritos, da existên cia de D eus,
para chegar à fé. O reconhecim ento confiante não é precedido de
um con h ecim en to racional. A realidade oculta de D eu s não se
im põe im periosam ente à razão. Trata-se antes de um a racionali­
dade interior, que pode legitim ar um a certeza fundam ental: na
aplicação de um a corajosa co n fian ça em D eus, o h om em experi­
menta, em bora exp osto à tentação da dúvida, a racionalidade da
sua confiança, radicada na identidade últim a, na plenitude últim a
de sentido e de valor da realidade, no seu fundam ento, sentido e
valor originário” .
C om preender e crer se entrelaçam , mas não se identifi­
cam, sob pena de se extinguirem .
A braão, após a ilum inação da prom essa, v iv ên c ia um ou­
tro aprendizado a respeito da fé, “encenado” ainda no capítulo
15 do G ên esis, que reflete um a arcaica tradição. Terror e revela­
ção se cruzam sobre o pano de fundo de um crepúsculo que vara
a noite. Prim eiram ente, p ed e-se ao patriarca que cum pra um
ritual truculento de juram ento ou de aliança. Sobre o pó da pla­
n ície são dispostas duas filas de alguns anim ais esquartejados e
sanguinolentos. É um ritual de autom aldição: os estipuladores de
um pacto, passando em m eio àqueles pedaços de cam e, augu­
ram -se a m esm a sorte (o esquartejam ento), em caso de violação
do pacto. Jerem ias exp licita o sign ificado sim b ó lico do ritual
quando ameaça: “A q u eles hom ens não respeitaram m inha alian­
ça: não cumpriram o s term os da aliança que fizeram com igo.
V ou reservcir-lhes a sorte do novilh o que cortaram ao m eio, em
dois p ed a ço s” (Jr 3 4 ,1 8 ). É curioso notar que, em hebraico, “e s ­
tipular um p acto” se diz k a ra t berít, isto é, “cortar um pacto” .
N o entanto, sobre o patriarca esten d e-se um véu não só de sono,
m as tam bém de terror: “Q uando o so l ia se pondo, um torpor
caiu sobre Abraão, e ele sentiu m uito m ed o ” (Gn 15,12).
A teofania com porta para o hom em o estab elecim ento de
contato co m o trem endu m do m istério, e o son o e a v isã o co n sti­
tuem a representação sim bólica da necessid a d e de um canal di­
verso de conh ecim ento para ouvir e dialogar com D eus. M as,
“quando o sol se pôs e v eio a n o ite”, eis a surpresa: “um a labare­
da fum egante e um a tocha de fo g o passaram em m eio aos ani­
m ais divididos em dois p ed aços” (Gn 15,1 7 ). Sab e-se que o fo g o
é, por excelên cia , um sinal do divino, que é inapreensível, in con -
trolável, v iv o com o o fo g o e, portanto, transcendente, mas capaz
de aquecer e ilum inar, e , portanto, próxim o e im anente. É então,
surpreendentem ente, só D eu s, sob o em b lem a ígn eo da labareda
e da tocha, quem transita em m eio aos anim ais esquartejados;
Abraão assiste, m as não entra naquele corredor sanguinolento. A
alian ça-i)en í, da qual se falará m uito na B íblia, é um dom que
nasce de um a in iciativa divina unilateral e gratuita. A o h om em
só resta a colh ê-la na fé ou rejeitá-la na incredulidade. A s razões
do crer se fundam , em últim a instância, na fidelidade divina, A
descendência e a terra são apenas “p rom essas” que se b aseiam
n o juram ento de D eus: “À sua d escen d ên cia eu darei esta terra,
desde o rio do E gito até o grande rio, o E ufrates” (Gn 15,18).
São d ois horizontes distantes, para o s quais o hom em d ev e
encam inhar-se através de um lo n g o e fatigante itinerário, que
representa a d ialética da fé, sem pre ligada à prom essa e ao risco.
É 0 que m ais tarde se cham ará de primado da graça. U m teó logo
importante, com o O scar Cullm ann, afirm ava que “crer sign ifica
fazer, hum ildem ente, abstração de m im m esm o e contem plar a
luz radiante de um evento para o qual não contribuo”. N a reali­
dade, Abraão contribui: o ritual dos anim ais é preparado por ele,
a ação hum ana é ocasião para a revelação divina. O ato de fé não
é m agia sagrada e o hom em não é um autôm ato m ovido a preva­
ricação. P elo contrário, Abraão reagirá de maneira decisiva. Há
um a bela estrofe do m ístico m uçulm ano sufi R um í (sécu lo X III),
m estre dos “dervixes dançantes”, que diz: “N ós som os alaúdes,
e tu. Senhor, aquele que nos toca. N ão és tu quem em ite suspiros
através dos instrum entos? N ó s som os flautas, mas o sopro é teu,
ó Senhor! N ós som os m ontes, m as o eco é teu, ó Senhor!” Esta
visão prevalentem ente “instrum ental” do hom em não é aceita
pela B íblia, con vencida de que é só o forno ardente, sím bolo do
divino, que pode passar entre os anim ais esquartejados sem cor­
rer o risco de autom aldição. Fracos, sim, m as não objetos. Fiéis,
talvez, m as não prevaricadores.

O riso d e S ara

Exatam ente por ser risco, a fé conhece a dúvida, a suspeita,


a hesitação, a suspensão. Tais atitudes não devem ser confundidas
com a incredulidade, que é, ao contrário, a recusa do risco, da
aceitação daquela im previsível iniciativa divina, da prom essa de
um D eus que se revela e se oculta. D a dialética da fé fazem parte
também o riso de Sara e o de Abraão. O patriarca deixa escapar o
primeiro sorriso de dúvida diante da prom essa de um filho só seu
e de Sara. C om o se diz em Gn 17,17, ele “prostra-se com o rosto
por terra” na adoração do D eus que promete. Mas não pode senão
rir, opondo a objeção de uma racionalidade que alega suas razões:
“Alguém com o eu, com cem anos, pode ter um filho? E Sara, na
idade de noventa anos, poderá parir?” M ais sonoro é o riso de
Sara, que eco a atrás dos bastidores da cena da ilustre visita dos
três hóspedes (Gn 18,1-15), encarnação da própria divindade (sua
realidade perm anece indecidível entre ser hom ens, anjos e o pró­
prio Deus: os três são, de qualquer m odo, um instrumento narrati­
vo teofânico para impedir o envolvim ento excessivo de D eus com
as coordenadas humanas histórico-espaciais).
A cena de hospitalidade do capítulo 18 do G ênesis, am bi­
entada nos Carvalhos de M ambré, sob um sol escaldante (“na
hora m ais quente do dia”), chega-nos transfigurada pela tradição
cristã, que tem seu em blem a no íco n e de Andrej R ublèv (entre
1360 e 1430), a célebre Trinità (e o título é um program a),
reproduzida in fin ita s v e z e s e exaltad a no film e de Andrej
Tarkovski dedicado ao grande pintor russo. N a realidade, seu
sentido é m ais im ediato e é con exo à prom essa divina: “Dentro
de um ano. Sara, sua mulher, terá um filh o ” (Gn 18,10). A
m ulher do patriarca, que está co m o ou vido colad o à tenda dos
hom ens, reage rindo. “Sara riu por dentro, pensando: ‘A gora que
sou velha vou provar o prazer, e c o m um m arido tão v elh o ? ’ ” O
autor observa, m aliciosam ente que “Abraão e Sara eram velh os,
de idade avançada, e Sara já não tinha regras” (Gn 18,11). U m
hom em velh o e im potente, um a m ulher não m ais m enstruada, já
frígida e estéril, e a prom essa de um parto feliz: um a evid en te
p rovocação que não p ode senão suscitar a ironia. M as a reação
do Senhor (os três hom ens transform am -se no m istério que ocu l­
tavam ) é cortante: “Por que Sara riu, dizendo: ‘Será que vou dar
à luz agora que sou velh a?’ Há por acaso, algum a co isa im p o ssí­
vel para o Senhor? N este m esm o tem po, no próxim o ano, eu
voltarei a você, e Sara já terá um filh o .”
Embaraçada e um pouco assustada, Sara tenta um a im pro­
vável defesa: “Eu não ri!” M as o Senhor não admite fin g im en ­
tos: “N ão negue, v o cê riu” (Gn 1 8 ,1 0 -1 5 ). N o final, porém , ao
riso de dúvida e ceticism o de Abraão e de Sara vai opor-se o riso
eficaz e criador de D eus: “Abraão deu o nom e de Isaac ao filho
que lhe nasceu... E Sara disse: ‘D eu s m e deu m otivo de riso, e
todos os que souberem disso vão rir de m im ” (Gn 2 1 ,3 .6 ). O
autor, de fato, nestas palavras, propõe um a etim ologia popular
do nom e “Isaac” com o “Jhwh riu” . Por últim o, ressoa então o
riso alegre da criança, que é o próprio riso de D eus que d issip a
dúvidas e perplexidades. U m riso que liquida as infâm ias e o
m al dos hom ens, com o dirá o S alm o 2, diante da rebelião dos
povos: “A q uele que habita no céu ri, o Senhor se diverte à custa
d e les” (SI 2 ,4 ). T am bém no Corão ao riso satânico o p õ e -se o
riso divino: “Será A lá a rir d eles” (II, 14,15). W em er T h ied e
quis intitular seu en saio sobre “o hum orism o e a teo lo g ia ” com
um sugestivo A h ila rid a d e p ro m e tid a . O risonho Isaac é a encar­
nação de um riso transcendente, que liquida n os láBios hum anos
0 riso do sarcasm o ou da dúvida. U m outro teó logo alem ão,
Gerhard E beling, em sua obra Sui Salm i, escreveu que aquele
riso de D eu s “é um riso que desarma, no sentido m ais verdadei­
ro, privando de sua força o aparente potente predom ínio da in­
credulidade e da arrogância”.
A fé é, portanto, um riso de dois aspectos. H á o tem po em
que se ri de desespero, em que a dialética do crer se precipita no
abism o, em que a esperança atinge n íveis de vigilância. É o riso
de Abraão e Sara que, de qualquer m odo, não é o riso perverso,
estúpido, arrogante ou incrédulo, muitas v ezes condenado pela
B íblia. Os Padres da Igreja, não con segu ind o atribuir um a falha
à fé de Abraão e ignorando que a hesitação não contam ina, mas
faz parte do próprio crer, operaram até um a distinção entre os
dois “risos”, considerando legítim o o de Abraão e pecam inoso o
de Sara. O escritor sírio Ishodad di M erv (sécu lo IX), em sua
série de citações patrísticas, sintetizava bem a distinção: “Por
que Sara fo i censurada por ter rido, enquanto Abraão, que fizera
o m esm o, não foi? Foi porque Sara duvidou da Palavra, enquan­
to Abraão riu não duvidando, mas prostrando-se, adorando, glo-
rificando e agradecendo a D eus, com alegria, que aquilo aconte­
ce sse a um hom em de cem anos. D esse m odo, ele riu, isto é,
alegrou -se”. A qui, para além da distinção artificiosa, faz-se v is­
lumbrar tam bém o segundo aspecto do riso, aquele da festa pela
prom essa cum prida, aquele riso que prorrompe dos lábios de
D eus e do filh o “im p ossível”, Isaac-”Jhwh riu”.

Ó m eu Senhor, amado e cruel!

“U m carvalho fulm inado era o V elho. / N u ven s aladas


cingiam -lh e a fronte / qual cu m e altaneiro e desguarnecido. /
M as, atrelada à albarda ao jum ento, / cortou com lúcida calm a a
lenha. / Então, a m ão da criança, / perdida na sua m anopla, /
tom ou a som bra dele / a ondear sobre a planície / ... / Ó V elho,
com o era o rosto de D eus? / T a lv ez um manto de sangue? / Ou
uma rocha negra, um a cratera de cham as? / ... / Ó m eu Senhor,
amado e cruel!” Citam os aqui som ente o primeiro e o últim o
versos da b ela poesia, sem elhante a um a balada, que D avid M.
Turoldo dedicou a um a das m ais célebres, dilaceradoras e fa sci­
nantes passagens do G ên esis e de toda a B íb lia, o capítulo 2 2 do
prim eiro livro sagrado. S entim o-n os quase im potentes, co m os
instrum entos da análise e x eg ética e herm enêutica, diante de um a
página com o aquelas, que alim entou sécu lo s de fé e de arte. U m
fam oso exeg eta alem ão, já citado por nós, Gerhard von Rad, no
opúsculo. II sa crifício d i A b ra m o , exam inou quatro interpreta­
çõ es exem plares do evento: a de Lutero, a extraordinária elab o­
ração de Sõren Kierkegaard — sobre a qual nos deterem os m ais
adiante — , a do filó so fo p olon ês L eszlek K olakow ski e, fin al­
m ente, 0 quadro do m useu Erm itage, no qual Rembrandt repre­
senta Abraão cobrindo o rosto do filh o co m a m ão esquerda para
que não veja e não grite, enquanto a direita já está erguida para
desferir o golp e fatal.
Já no sécu lo III, a cena de Isaac carregando a lenha do
sacrifício aparecia na catacum ba rom ana de P riscilla e será, du­
rante sécu los, uma referência da arte cristã, que intuía n essa cena
um a prefiguração do sacrifício de Cristo: até o judeu C hagall,
nos vitrais das catedrais de M etz (1 9 5 8 ) e di R eim s (1 9 7 4 ),
associará Isaac a Jesus, segundo um a co n ex ã o clássica na litera­
tura dos Padres da Igreja. U m a exten sa lista de oratórios, c o m ­
postos por m ú sicos m odestos, m as tam bém célebres — com o
G iacom o C arissim i (Abram o e Isacco) e A lessandro Scarlatti (//
sacrifício d i A b ra m o ) — , atesta a função litúrgica e catequética
da releitura do G ênesis 22, feita sobretudo durante o período
pascal, oferecen do, assim , ocasião para m editar sobre o valor
redentor do sacrifício da cruz de Cristo. U m dos livretos m ais
usados fo i 0 de M etastasio, eloqüentem ente intitulado Isacco,
f ig u r a d e i R e d e n to r e , m u sicad o, por e x e m p lo , por N ic c o lò
Jom m elli e G iuseppe Torelli.
Im enso é o esp aço literário posterior dedicado a este tema;
de Teodoro di B eza, no século V, a Kierkegaard, de B illy B udd,
de Herman M e lv ille , a L ’orso, de W iU iam Faulkner; de Carl
G ustav Jung a Thom as Mann; de Franz K afka a Jean-Paul Sartre
e Sim one de B eauvoir; do poem a Isa c c o e A b ra m o, de J o sif A.
Brodskij (1963), à P rière d ’Abraham , de Pierre Enunanuel (1943);
da antim ilitarista P a r a b o la d e i vecch io e d e i G iovane, de W ilfred
O w en (1 9 1 8 ) até um desafinado W o o d y A llen ... O próprio dei
Em busca d o tem p o p e rd id o , de Proust, in icia -se com a m enção
da cen a do G ên esis 22: N ão ou sava m over-m e, ele estava
ainda diante d e nós, grande em sua ca m iso la branca, com o
lenço de casim ira da ín d ia roxo e rosa, que costum ava aman-ar
na cabeça quando tinha nevralgia, co m o gesto de Abraão, no
corte levado por B en o zzo G o zzo li, que m e fora presenteado pelo
senhor Sw ann, enquanto diz a Sara que d eve separar-se de Isaac”.
M as a prova do m onte M oriá representa, para Proust, a separa­
ção sofrida pela m ãe. T inha razão N ietzsch e quando, na A u rora,
con fessav a que, “para nós, Abraão é m ais do que qualquer outra
p essoa da história grega ou alem ã” . M as qual é o verdadeiro
segredo d essa grandiosa e escand alosa página?
Para a análise estruturalista, “o centro de gravidade da
narrativa encontra-se nos versículos 6-8: A decisão de Abraão
resistirá às perguntas do filh o que, ingenuam ente, atormenta seu
amor paterno? Abraão resiste e supera a tentação... O que D eus
preparou é um sacrifício-em -lu gar-do-filho, m as que im plica,
para Abraão, a própria vontade de sacrificar o filh o ” (R ém i Lack,
em suas L ettu re sln ittu ra liste d e lia B ib b ia ). Pcira a análise psica-
nalítica, co m o a proposta por H enri Linard de G uertechin, nessa
narrativa celeb ra-se o contraste entre a paternidade tirânica e a
filiação: Abraão é libertado da onipotência ilusória da falsa pa­
ternidade através da renúncia a um a filiação-p osse, obscuro ob­
jeto de d esejo. O bedecendo a D eu s, Abraão tam bém volta a ser
filho. Para a análise da antropologia cultural, elaborada por R ené
Girard, no sacrifício final do bode, em lugar do filho, exorciza-
se e d isso lv e -se a violên cia socia l que atravessa as várias gera­
ções ou os com ponentes da sociedad e. Os filó so fo s interpreta­
ram o sentido do trecho bíblico de m odo diferente. Para Kant, a
ordem divina de sacrificar o filh o era um engano satânico por­
que contrariava a lei moral do “não matar”. Já para o citado
K olakow ski, m arxista heterodoxo, a narrativa seria um a paródia
da ob ed iên cia à razão de Estado e aos avais que esta recebe “em
nom e de D e u s” .
Para além da floresta de hvres interpretações ou de leituras
parciais, qual é o significado original dessa página, poderosa em
sua sobriedade narrativa? A resposta pode ser encontrada no elo
que liga os vários parágrafos do n o sso capítulo, dedicado acim a e
antes de tudo aos patriarcas de Israel: estam os diante do tem a da
fé “nua”, que não tem outro substrato senão a Palavra transcen­
dente. Fé que con hece, porém , o precipício da obscuridade, que
anda às cegas à procura de um sentido, que depara com o m isté­
rio. Fé reconduzida ao seu estado m ais puro: o terrível cam inho
silen cio so de três dias, enfrentado por Abraão, em direção ao
cum e da prova que se tom ou o paradigma de todo itinerário de
fé. É um percurso tenebroso e com batido, acom panhado som ente
daquela primeira e im placável ordem: “T om e seu filho, seu único
filh o, a quem v o cê ama, Isaac [note-se a insistência], e ofereça-o
em holocausto” (Gn 22,2). D epois o silên cio. S ilên cio de D eus,
silên cio de Abraão, silên cio do filho que, um a única vez, com
extrem a ingenuidade, m antém um diálogo profundam ente m arca­
do p elo contraste afetivo, sinal da solidariedade humana sob um
céu tão indiferente e cruel: “M eu pai! ... Aqui estou, meu filho...
O nde está o cordeiro para o holocausto?... O próprio D eus o
proverá, meu filh o !” (Gn 22,7-8).
R etom ado o silên cio, a ação sacrifical — definida depois
pela tradição judaica com o, a ‘a q ed a h de Isaac, isto é, sua “amar­
ração” sobre o altar para o sacrifício, cuja narração se tornará
um gênero literário para celebrar os mártires das p ersegu ições
anti-sem itas — assum e o rigor de um ritual no qual cada gesto é
escrupulosam ente observado. Sobre o m onte Moriá, “Abraão
construiu o altar, pôs a lenha, amarrou o filh o Isaac, co lo co u -o
sobre o altar, em cim a da lenha; em seguid a Abraão estendeu a
m ão e pegou a faca para im olar seu filh o ” (Gn 2 2 ,9 -1 0 ). A té
onde se chegará? C ria-se um a tensão espasm ódica que será d is­
solvid a pelo grito de D eus, que fin alm en te quebra o silên cio,
cham ando novam en te o patriarca, co m o no início: “A braão,
A braão!” só D eus podia, naquele m om ento, deter a fé ob ediente
e desesperada de Abraão. A fé é agora reconduzida ao seu esta­
do m ais puro, absoluto e trágico, desprovida de qualquer lastro
humano, racional e religioso. Há, todavia, um a lógica: com o
filho carnal, Isaac deveria morrer para que Abraão renunciasse
tam bém ao esteio de sua paternidade e não tivesse sequer as
razões da carne e do sangue para crer na prom essa, m as só a da
palavra divina. Por isso , D eus o con vid a à destruição do vín cu lo
hum ano p a tem o-filial. Abraão, dep ois da prova, recebe Isaac
não mais co m o filh o, m as enquanto “prom essa” divina, graça
pura e absoluta. N ão por acaso, o final da narrativa é preenchido
pela prom essa: “Eu o abençoarei, m ultiplicarei seus d escen d en ­
te, com o as estrelas do céu e a areia das praia...” (Gn 2 2 ,1 7 ).
G ên esis 2 2 é, portanto, um texto exem plar e paradigm áti­
co sobre a fé co m o luta, e Abraão é seu arquétipo, com o recor­
dará Paulo e repetirá a neotestam entária Carta aos H ebreus, no
capítulo d edicado aos heróis da fé (Hb 11,8-19).
A fé entra em con flito seja co m a m oral, seja co m a razão:
“A braão acreditou e não duvidou”, escreve Kierkegaard em Te­
m o r e trem o r, “acreditou naquilo que contradizia a razão”. O
filó so fo dinam arquês, em páginas de forte tensão, im agina diver­
sos resultados em relação ao que foi proposto na narração bíbli­
ca: Abraão que ced e à prova e refuta, Abraão que duvida, Abraão
que blasfem a, Abraão que recorre a um álibi racional, , e assim
por diante. O escândalo do texto bíb lico está em que D eu s chega
a contradizer, para além da razão, sua própria prom essa, criando
um a contradição interna ao crer: Isaac não era, com efeito, um
dom da prom essa de D eus? Sua elim inação não acarretaria um a
quebra da própria prom essa? A fé, portanto, supera a si m esm a,
sem desem bocar, no entanto, com o já vim os, no absurdo, mas
em um dom e em um estado superior.
E justam ente pelo paradoxal despojam ento da moral, da
razão, dos afetos e da racionalidade da fé que Isaac se m anifesta
com o palavra divina puríssim a, prom essa de D eus encarnada. O
filho da carne e do sangue desaparece idealm ente em Moriá:
Abraão d ev e renunciar a ele; aquele que, ao descer do m onte, o
acompanhará, não será mais um sim ples herdeiro ou um filho de
Sara, m esm o tendo sido obtido de m odo prodigioso, m as um
filho-dom , o verdadeiro filho “prom etido”. Para recebê-lo, p o ­
rém, 0 patriarca teve de golpear sua paternidade. Som ente renun­
ciando a tudo, no tem pestuoso dia da prova, é que se obtém tudo,
com o repetirá também Jesus, ao introduzir a lei do perder para
achar, do deixar para receber (L c 1 8,28-30). “V en erável pai
Abraão, ao voltar para casa, vindo do m onte M oriá”, continua
Kierkegaard, “havias ganhado tudo e conservado Isaac. O Senhor
não o tom ou de ti; tu te sentavas à m esa com ele, serenam ente,
em tua casa, co m o o fazes, agora, lá em cim a, na eternidade”.
A ob ediência da fé, no final, dá paz e revela que, por trás
do rosto aparentem ente cruel de D eu s, se oculta um projeto não
de morte, mas de vida e de graça. A citada Carta aos Hebreus,
q ue d esen v o lv e o tem a em chave cristológica, ciiegará a afirmar
q ue Abraão ofereceu seu filho porque pensava “que D eus é capaz
de ressuscitar os mortos; por isso , recuperou seu filho, tom ando-
se sím b o lo ” (Hb 11,19), um a lição de esperança na ressurreição.
Kierkegaard, entretanto, se aproxim a m ais do significado origi­
nário do texto bíblico do G ênesis ao explicar o rosto de D eus,
escon d id o para além d o céu do m onte M oriá, com esta bela im a­
g em materna: “Q uando a criança d eve ser desm am ada, a m ãe
tinge de preto seu próprio seio. Seria cruel que e le continuasse
desejável quando a criança não d eve mais mamar. A ssim , a criança
acha que o seio materno se m odificou. A m ãe, porém , continua a
m esm a, seu olhar perm anece sem pre ch eio de ternura e de am or” .
A descendência de Abraão prosseguirá, então, com Isaac, o ju b i­
lo so filho da prom essa. M as a prom essa conservará intacto seu
valor enigm ático: onde está a prole num erosa com o as estrelas e
os grãos de areia da praia? A fé perm anece pregada à cruz do
risco. Jacó, o neto m ais célebre de Abraão, o testemunhará.
E le entra em cena co m o o “h om em do calcanhar”, segu n ­
do a exp licação popular que o G ên esis dá ao seu nom e. R ebeca,
sua mãe, gerara, co m efeito, dois gêm eos: “Saiu o primeiro: era
ruivo e peludo co m o um m anto de p êlo s, e lhe deram o n om e de
Esaú [o Edom , “o verm elho”]. Em seguida, saiu seu irmão, com
a m ão segurando o calcanhar de Esaú, e lhe deram o n om e de
[Já 'aqôb, de ‘a q eb , “calcanhar”, e de ‘a q a b , “suplantar”] ” (Gn
2 5 ,2 5 -2 6 ). A história daquele “suplantador” do irmão é bastante
conhecida para ser narrada. D ebruçar-nos-em os, ao contrário,
sobre a história do seu segundo n om e, patroním ico de todo o
povo: Israel. M ais um a vez, trata-se de um a página de extraordi­
nária pujança, m ais literária do que teo ló g ica .

Lute com D e u s e se rá s a b en çoado

“Ó E tem o, não largarei sua m ão, sua dura m ão, antes que
m e tenhas abençoado. A bençoa-m e e, sua hum anidade, que so ­
fre, sofre pelo teu dom de vida! Eu, por prim eiro, sofri tanto,
tanto, pela dor de não poder ser aquilo que queria.” A ssim reza
um personagem da G ra n d e stra d a m a e stra , de A ugust Strindberg
(1909), evocando o capítulo 32 do G ên esis (2 3 -3 3 ), em que
Jacó, filh o de Isaac, en ceta um com bate n otu m o com um ser
m isterioso ao lon go das m argens do rio Jaboc. U m duelo que,
com infinitas variações, fascina há sécu los a arte e a literatura.
N a arte paleocristã, a luta é m odelada co m base nos antigos
grupos estatuários dos lutadores do cla ssicism o greco-rom ano.
Inesquecível é a extraordinária m obilidade e poder do confronto
entre Jacó e o anjo (a tradição transfigurará aquele m isterioso
personagem , sím b olo d ivino, em um a criatura an gelical) na tela
de Berlino di Rembrandt (1 6 5 9 ), superior ao clá ssico afresco de
D elacroix, no S ão Su lp ício de Paris, ou ao ó leo sobre tela de
Chagall e a tantas outras realizações iconográficas.
C onsideram os um a n otável e x c e ç ã o a V isione d o p o il
serm one, de G auguin (1 8 8 8 ), conservada em Edim burgo. Em
primeiro plano, aparecem as típicas toucas de algum as m ulheres
bretãs que acabaram de ouvir um serm ão sobre o G ên esis 32; no
centro, em um a praça cor de sangue, o anjo e Jacó, abaixado,
estão travando a luta. O m istério do encontro-desencontro com
D eus reproduz-se no cotidiano da vida, à saída da igreja, na
praça do vilarejo. O poeta russo M aiakow ski considerava aquela
luta, ao contrário, com o parábola da própria recusa agressiva:
“Já se sabe; entre m im e D eus há m uitíssim as d issen sõ es... A qui
vive 0 soberano de tudo, m eu rival, m eu insuperável in im ig o ” .
Diferente é o sentido do trecho para o J a co b (1 9 7 0 ) do poeta
francês Pierre Emmanuel: “Para que não haja dúvidas sobre o
êxito do com bate, é necessário que D eu s nada p o ssa contra o
hom em e o hom em tudo possa contra D eus. A ssim D eu s luta em
forma de hom em , tendo som ente co m o atributos de m ajestade
nosso selo real, a face hum ana” . M as d eixem os essas e outras
reelaborações (de Lamartine, N orge, B en Jelloun, W iesel) e v o l­
tem os ao texto bíblico em seus com ponentes estruturais, na co n ­
vicção de que em tal passagem se encontra uma outra figura da
fé e da relação entre o hom em e o divino, com o exp eriên cia
dramática no sentido pleno do term o, ou seja, de ação, de busca,
de luta. “O nom e, isto é, a realidade do novo p o v o , Israel”,
observa o teó lo g o americano H arvey C ox, “não se constitui m ais
com base na fé, mas antes em razão da luta com D e u s.”
Jacó, exilado, está para voltar à terra dos pais, dep ois de
ter passado anos com o em igrante na casa de seu tio L abão, m as
no horizonte surge am eaçador o irm ão enganado, Esaú. A o anoi­
tecer, ele cam inha pelas m argens espum antes do “rio azul”, o
Jaboc, afluente do Jordão. A li será seu G etsêm ani, onde deverá
viver um a “agonia”, um com bate e um a experiência de morte.
Certam ente não faltam à narrativa elem en tos m íticos e folclori-
cos. Há a id éia da luta contra o espírito (dem ônio ou deus) de
um rio: p en se-se na lenda cristã de são C ristóvão, ou no m otivo
do espírito m align o pod eroso, so zin h o à n oite, presente no
A tifitrione, de Plauto, ou no ato I do H a m let shakespeariano. H á
a explicação “teo ló g ica ” da prescrição alim entar, segundo a qual
seria tabu a carne que contém o nervo ciático, p ois ali é que Jacó
foi atingido p elo ser m isterioso. Há a ju stificação popular da
toponím ia de Fanuel, “rosto de D eu s” : “Eu vi D eu s fa ce a fa c e ”
(Gn 32,3 1 ), declara Jacó. H á o elem ento nacionalista da força do
herói epônim o de Israel, capaz de desafiar até a divindade.
M as o fulcro da narrativa está todo na luta com o ser
m isterioso e no n ovo n om e que sela a história de Jacó: “U m
hom em lutou c o m Jacó até o despertar da aurora. V endo que não
con segu ia d om iná-lo, golp eia-o na articulação do fêm ur... Jacó
lhe diz: ‘N ã o o soltarei enquanto v o c ê não m e abençoar’... E le
replicou; ‘V o cê não se chamará m ais Jacó, mas Israel, porque
lutou com D eu s e co m os hom ens, e v en ceu ’. Jacó pediu-lhe:
‘D iga-m e o seu n o m e ’. M as ele respondeu: ‘Por que v o cê quer
saber m eu n o m e? ’ E aí m esm o o aben çoou ” (Gn 3 2 ,2 5 -3 0 ). O
profeta O séias inteipretará assim o episódio: “Jacó, já adulto,
lutou com D eu s, lutou com o anjo e venceu, chorou e pediu
graça” (Os 1 2,4-5). O evento aparece co m o um “pedido de gra­
ça” que, para o livro da Sabedoria, se tom a “piedade” , oração:
“O Senhor... con ced eu a Jacó a vitória em um a dura luta porque
sabia que a pied ade é m ais forte do que tudo” (Sb 10,12),

N o Jaboc, eu te ven cerei!

M ais um a vez, a fé com parece acom panhada p elo seu


cortejo de sombras: a noite, o rio im petuoso, o m istério do ad­
versário, 0 ferim ento, a luta. O próprio d iá lo g o orante co m D eu s
é representado co m o um a contenda. O hom em , à prim eira vista,
parecia ser o vencedor; consegue enfrentar D eu s (“... ven d o que
não con seg u ia vencer Jacó”) em um duelo que, por fim , obriga o
Senhor a reconhecer: “V o c ê lutou com D eus e co m os hom ens, e
v en ceu !” A liberdade hum ana ergue-se sobre as praias do Jaboc
em toda a sua grandeza. P od e até pedir a D eu s que lhe con ced a a
“b ên ção”, ou seja, sua energia vivificadora e criadora. N o entan­
to, a vitória final e bem m ais triunfal é de D eu s, o lutador m iste­
rioso. E não só porque Jacó sai do cam po de com bate claudican-
te e ferido. E le é constrangido a revelar ao A dversário o próprio
n om e (“C om o v o cê se cham a?” “Jacó!” [Gn 3 2 ,2 8 ], o que, se ­
gundo a con cepção oriental, significava entregar às m ãos do
antagonista toda a sua personalidade. M as não é só. Seu nom e
antigo, “suplantador”, é substituído por um novo: “Israel” , popu­
larm ente interpretado co m o “com bater co m D e u s” (“com bateu
com D eu s e com os hom ens, e ven ceu ” [32,2 9 ], se b em que a
etim o lo g ia exata perm aneça incerta (“D eu s sincero, brilha, sal­
va, reina, com bate” ou “que D eu s com bata!” etc.).
R evela-se, assim , que o ventre daquela noite gera um n ovo
hom em , não m ais aquele do litígio tribal com Esaú, m as o prota­
gonista do com bate divino. Jacó morre para deixar espaço a
Israel. “D espontava o sol quando Jacó passou por F anuel”, diz o
final da narrativa (Gn 3 2 ,3 1 ). Surge a aurora de um a n ova era,
abre-se um n ovo dia de salvação, nasce um a nova criatura das
cinzas d o hom em velho (para usar um a im agem paulina). A luta
com a n oite desvela-nos não m ais Jacó, um ch efe tribal, mas
Israel, tod o o p o v o hebraico n e le encarnado. A q u ele que agora
obtém a bênção representa o p o v o abençoado e eleito.
D eu s, o m isterioso lutador, não revela porém o próprio
nom e. D e le se p od e ter um a exp eriên cia direta, p o d e-se até “vê-
lo face a fa c e ” (Gn 32 ,3 1 ) — o que, em outras páginas da B íblia,
é considerado insuportável para a criatura — , m as sua íntim a
natureza, representada pelo nom e, continua in acessível. N o rio
Jaboc, a vitória final cabe a D eu s, que marca na carne d o hom em
sua presença efica z, mas não se tom a totalm ente d isp on ível.
C o m efeito, m uitos estu d iosos estão con ven cid os de que a
fam osa p assagem do êxodo em que o Senhor aparece a M oisés,
revelando-lh e seu nom e (“Eu sou aquele que sou” [E x 3,1 4 ], é
— para além das várias interpretações ligadas ao verbo “ser” —
a declaração d e um segredo que perm anece, a afirm ação de um
silên cio pelo qual aquele nom e, com p osto de quatro consoantes,
JHW H, d eve perm anecer m udo, inefável e in co g n o scív el, m e s­
m o send o sinal de um Criador e Salvador. O substrato da fé é
um a certa obscuridade, devida ao e x c e sso de luz, um silên cio,
expressão de um a com unicação transcendente, um infinito nunca
com pletam ente “com p reen sív el”.
É esta a experiência da oração que dá e esconde, que é
sed e de um a presença e de um a ausência e que é, por isso,
lim pidam ente representável com o luta — P aulo exorta os “ir­
m ãos” de R om a “a lutar co m ig o (syn -a g o n izo m a i) nas orações”
(R m 15,30). T estem unha-o tam bém o Saltério, o livro b íblico da
oração. T estem unha-o ainda um a obra-prim a de poesia, de fé e
de m ística bíblica, o livro de Jó.

A enguia d e Jó

“A gora estou relendo e copiando todo o livro de Jó: trans­


crevo-o com os textos grego e latino. C om o gostaria de saber a
língua dos caldeus e o hebraico! Q ue livro sublim e! C om o é
plen o de grande e m agnânim a dor! C om o fala com D eu s sem
superstição, e c o m as próprias desgraças, sem baixeza! O h o ­
m em in feliz contem pla, com certa com p lacên cia, m elan cólica os
reveses de sua vida: as p aixões são m ais consoladas naquela
efusâo de amargura e de lutas do que em todas as gloriosas
sentenças de E picteto. Q ue livro sublim e! E hou ve quem p en sas­
se em traduzi-lo em versos e rim as, c o m fria elegância?” A ssim
escrevia U go F o sco lo , no dia 19 de janeiro de 1808, a Isabella
T eotoch i A lbrizzi, exprim indo um a adm iração que nunca esm a e­
ceu porque, c o m o declarava Francesco Flora, “com parada com
esta lírica da dor hum ana, qualquer lírica posterior p arece
apequenar-se, afigurando-se, talvez, co m o pálida oleo g ra fia ” .
Francesco D e Sanctis acrescentou: “R elancei o livro de Jó. F i­
quei aterrado. N ã o encontrava na m inha erudição clássica nada
com parável àquela grandeza.” É uma corrente interminável aquela
que se liga a Jó. Em n osso com entário a e sse livro b íb lico ,
publicado em 1979 e m uitas v e z e s reeditado, m ostram os em
centenas de páginas a “tradição de Jó”, que tem precursores no
E gito (o D ia lo g o d i un su icida con la su a anim a, do ano 2 20 0
a.C .) e na M esopotâm ia {L udlu l b e l n em eqi, poem a babilônico),
m as atravessa todos os sécu los.
Já a Carta de T iago cunhava o estereótipo do “Jó pacien­
te” (T g 5 ,11), am pliado nos 35 livros dos M o ra lia in Job, de são
G regório M agno, e m ais ou m en os dom inante na iconografia
cristã e na hom ilética de B ossu et ou no pensam ento de Pascal e
de R acine. Presente no T estam ento de V illo n , identificado por
Federico II no C ân dido de V oltaire, “um Jó em roupagem m o­
dernas”, essa obra bíblica tangenciou os p rólogos do F au sto de
G oethe, era um a das leituras preferidas de Flaubert e tom ou -se
um tem a rom ântico com Chateaubriand, que aí lia “as passagens
m ais tristes” co m a imnã L ucille. M ais ainda: para H ugo, Jó
representava “um titã no estrum e” ; fo i reescrito filo soficam en te
por Kierkegaard em Ripresa', penetrou, com seu Leviatã, no M ohy
D ic k de M elv ille, alim entou o debate entre Ivan e A lio sh a sobre
o m istério do m al nos Irm ã o s K a ra m a zo v , de D ostoiévsk i: nele
se inspiraram Lautréamont e Rim baud, foi objeto da réplica de
Jung, em sua R isp o sta a G io b b e\ Jó; M alraux o exaltou com o o
hom em que desafia o silên cio d ivin o, enquanto G ide, em sua
obra Se il g ra n o non m uare, recon h eceu -lh e um a in flu ên cia d e­
cisiva, sobretudo em sua ad olescência. D issecad o na “história de
um hom em sim p les”, o J ó de Joseph Roth, Jó está na raiz da
P este, de Cam us, do A teísm o n e l cristia n esim o , de B lo ch , e das
M ille estra d e a p e rte , de Julien Green.
Subjacente aos m eandros do P ro c e sso de Kafka, tom ou -se
em lo n e s c o , qu e n e le se a u to -id e n tific a em Un u o m o in
discussion e, latente em Barth e Jaspers, encontrado em todos os
cam inhos da Europa por W iesel, em sua C ele b ra zio n e b ib lic a ,
contem porâneo de B eckett (assim o definiu lo n e sco ), sign o da
perturbação hebraica para a S hoah, m orto em A u sch w itz (segu n ­
do A d om o ), ressuscitado m essianicam ente nos Q u a ttro sp ecch i,
de W olfsk eh l, Jó norteia as am argas reflexões de F ede e c ritica ,
de M orselli, lastreia a “casa de lam a” do livro h om ôn im o de
Turoldo, II c o ccio di te rra c o tta , de B acch elli, e II N a ta le de
1833, de P o m ilio , para tom ar-se tam bém peça teatral n o J. B ., de
M cL eish, e no G o d ’s fa v o r ite , de Sim on , e presença cin em ato­
gráfica em G rito s e su ssu rros, de Bergm an e m uito, m uito m ais.
Tinha razão Lamartine, em seu C ours fa m ilie r de littérature
ao dizer. “Li, hoje, todo o livro de Jó. N ão é a v o z de um hom em ,
é a voz de um tem po. O sotaque vem das profundezas dos sécu ­
los, e é o primeiro e o últim o vagido da alma, de cada alm a” .
Jó assum iu m il rostos, m as qual é seu verdadeiro rosto?
São fam osas as palavras de são Jerônimo: “E xplicar Jó é com o
tentar segurar um a en guia ou um a pequena moréia; quanto m ais
a apertam os, m ais rapidam ente ela nos escap a” . D ifíc il tam bém
é definir-lhe o gênero: é um escrito “sap iencial”? um a tragédia?
um a disputa entre sábios (Jó, de um lado, e os três am igos E lifaz,
Baldad e Sofar, a quem se juntará d ep ois Eliú, de outro)? um
processo sim b ólico? um a grande lam entação dramatizada? Q ual­
quer outra co isa ou tudo isso ao m esm o tem po? E m uito d ifícil
elim inar as con otações de um a língua refinada e dilacerada ao
m esm o tem po, de um estilo único e desconcertante; é tarefa
ardua delinear-lhe a estrutura, ora rigorosa, ora fluida, ora aber­
ta, ora adulterada, talvez, por censuras posteriores ou por inter­
ven ções diversas e estratificadas.
M as, diante d esse ciclo p e incabado (no sentido “d efin iti­
v o ” do termo, com o o é a Sinfonia in a ca b a d a , de Schubert, e a
P ie tà R ondanini, de M ich elângelo), o grande enigm a, ainda hoje
resistente à perícia exegética, é precisam ente o do seu sig n ifica ­
do últim o.

Se este é um D eus...

A in son e presença de Jó ao lo n g o dos séculos baseou-se


freqüentem ente em um equívoco. P erson ificação da paciência, da
resignação e da perseverança, ele foi reduzido a uma prom essa
de con solação depois da provação. Isso porque a leitura raramen­
te ia além do prólogo e do ep ílo g o em prosa (capítulos 1-2 e
4 2 ,7 -1 7 ), baseados em um a antiga parábola usada p elo poeta
com o moldura para seu grandioso texto dialogado. N a realidade,
bastaria incursionar por algum as poucas páginas do poem a para
encontrar um Jó que é tudo, m enos paciente; trata-se antes d e um
fiel que percorre um a estrada perigosa, ladeada por dois abism os:
o da fé e 0 da rebelião. F azendo-lhe com panhia, embora a distân­
cia, numa pista protegida e sinalizada, estão os am igos, que re­
presentam as várias disciplinas teológicas (a profecia, o direito
sacral, a sabedoria antiga e a nova), em sum a, a ortodoxia. Eles
se tom am cada vez m ais entediantes; “V o cês são apenas m anipu­
ladores de mentiras, são todos m eros charlatães. O xalá vocês
ficassem calados! Seria o m elhor ato de sabedoria!” (Jó 13,4-5).
O sofrim ento e seu m istério não são o centro da obra, com o se
afirma freqüentem ente, mas apenas pretexto para os personagens
realizarem um a viagem extrem a, sem in côm odos nem demoras
desguarnecidos e tensos. A m eta a atingir não é um a clara, exau s­
tiva e sistem ática explicação d o m istério da dor inocente.
Esta é a ilusão dos am igos, que o fazem beber, de um a só
vez, um a “poção com sabor de m alva” : assim Jó liquida suas
argum entações (Jó 6,6). E les tecem teorem as em tom o de um nó
teo ló g ico clá ssico na literatura sapiencial de Israel, rebatido até a
esclerose ideológica: é o dogm a da retribuição, segundo o qual
se há dor, há pecado e, vice-versa, se há delito, há castigo. N o
frio m old e de sua receita teológica, estão co n ven cid os de co agu ­
lar a incandescência do drama moral do h om em que sofre e do
drama transcendente do D eus soberano. Jó, ao contrário, está
con ven cid o de que o nó é bem m ais com p lexo. E o é dos dois
lados. A ntes de tudo, do lado do hom em , cuja tragicidade e x is ­
tencial é im ensa. E m páginas e páginas de suprem a fragrância e
de odores nefastos, delineia-se este “h om em que v iv e na terra
cum prindo um serviço militar, cujos dias são com o os do diaris­
ta: tal qual um escravo, ele suspira pela som bra e, co m o o diaris­
ta, espera p elo seu salário. A ssim , m inha herança são m eses de
ilusão, e a m im couberam n oites de fadiga... A noite é m uito
longa, e m e canso de ficar rolando na cam a até a aurora” (Jó 7,1-
4). “O h o m em nascido de mulher; tem vida curta e cheia de
inquietação. E le se abre com o flor, e lo g o murcha; fo g e com o a
sombra, sem parar” (Jó 14,1-2). E le mora em “casas de barro e
tem a poeira por alicerce” (Jó 4 ,1 9 ).
O drama do hom em é, p ois, radical, m etafísico: “O ho­
m em , e ss e verm e; o ser hum ano, essa larva” (Jó 2 5 ,6 ). M as é
tam bém um drama físico que ex p lo d e no sofrim ento: “M inha
carne está cheia de verm es e feridas, e m inha p ele se rom pe e
supura” (Jó 7 ,5 ). É um drama p sic o ló g ic o que se m anifesta na
solidão e na incom unicabilidade: “A m inha m ulher tem nojo do
meu hálito, e m eus irmãos têm nojo do m eu cheiro. A té as
crianças m e desprezam e, quando tento m e levantar, elas m e
cobrem de insultos. A s pesso a s m ais íntim as têm horror de m im ,
e contra m im se voltam os in im igos m ais p róxim os” (Jó 19,17-
19). É, enfim , um drama moral: “Q uem p od e extrair o puro do
im puro? N in g u ém ” (Jó 14,4). O hom em — d iz -se em Jó 15,16
— é n it’a b e n e ’elah , “d etestável e corrom pido (...) bebe injusti­
ça com o água” .
0 segundo lado, co m o qual e le p od e se m edir de m odo
bem m ais relevante e dram ático, é o de D eu s. E le é o verdadeiro
protagonista do livro, com o acertadam ente afirm ou o filó so fo
francês P hilippe N em o , em seu G io b b e o 1’ecc esso d e i m ale
(1978): “Jó por com p leto é o n om e d iv in o ”.
Um n om e terrível que sobressai em todo o horizonte do
ser; “N as m ãos d e D eus está a vida de todos os viventos e a
respiração de todo ser hum ano... O que ele destrói; ninguém
reconstrói, se ele aprisiona, não há escapatória. S e ele retém a
chuva, tudo se resseca; se ele a solta, a terra se inunda” (Jó
12,10.14-15). A o hom em m iserável e sofredor, ele se apresenta
com o um leopardo, co m o um general sádico, co m o o Inim igo por
excelên cia, e Jó não hesita em recorrer à blasfêm ia talvez m ais
aceitável a D eus, com o dizia Lutero, do que o louvor com edido
do burguês bem -pensante durante o culto dom inical: "A ira de
D eus m e ataca e m e dilacera, range os dentes contra m im e crava
em m im seus olhos hostis... Eu v iv ia tranqüilo, e e le m e esm a­
gou. A garrou-m e pela nuca e m e triturou, fazendo de m im o seu
alvo. C om seus arqueiros ele m e rodeou, m e atravessou os rins
sem piedade, e derramou por terra o m eu fel. Abriu m inha carne
com m il brechas e com o guerreiro m e assaltou” (Jó 16,9.12-14).
E no entanto só ele pode dar um a resposta ao escândalo do
existir e do ser, e é para ele que Jó se volta para ter um átim o de
respiração, m as, sobretudo, para constrangê-lo a depor em um
processo ideal, a portas abertas, no qual também D eu s poderá
apresentar suas alegações, sem se valer de defensores p ro fissio ­
nais, os teó lo g o s, capazes unicam ente de “sofism as de cin za” , de
esquem as racionais insuficientes, de devotada adulação. “O que
vocês sabem , eu também sei. / N ão sou inferior a v ocês. C ontu­
do, eu quero acusar o O nipotente, desejo discutir com D eu s” (Jó
13,2-3). E, no final, depois de um ato provocatório co m o o “jura­
m ento de in ocên cia” (seu valor é: “que D eus m e castigue se não
é verdade o que d ig o ”: capítulo 31), Jó subscreve sua exp osição
contra D eus: “E sta é a m inha últim a palavra. Que o Todo-Pode-
roso m e responda. Q ue o m eu adversário escreva a acusação. Eu
a levarei sobre os m eus om bros e a usarei co m o se fo sse coroa...
e m e apresentaria a ele com o um príncipe” (Jó 31,3 5-37).

O ou vido e o olho

“O xalá eu so u b esse com o encontrá-lo, co m o chegar até o


seu tribunal! D iante dele eu apresentaria a m inha causa, com a
boca ch eia de argum entos. Eu saberia finalm ente com que pala­
vras ele m e replica, e com preenderia o que e le m e d iz” (Jó 23,3-
5). O sonho de Jó tom a-se realidade. D eus aceita depor no pro­
c esso instaurado p elo hom em . A rm ado som ente de sua fé (ainda
que m e m ate, continuarei a procurá-lo e a crer nele — parece
declarar, paradoxalm ente, Jó no m om ento crucial), sem interes­
ses nem precon ceitos, reduzido a um esq ueleto físic o e interior,
o grande lutador, que im piedosam ente revelou a nudez do h o­
m em e da teologia, encontra-se diante de S h addai, o O nipotente,
com o Jó cham a muitas v ezes D eus. É o ápice do livro, contido
nos dois grandiosos discursos div in o s que já tivem os ocasião de
citar (Jó 3 8-39; 40 -4 1 ). Aqui não se tem a solução do enigm a da
dor e do m al, m as o d esvelam en to da verdadeira realidade de
D eus. O m al, “fortaleza do a teísm o” (G eorg Büchner), esp aço de
celebração das apostasias, é para Jó a m elhor razão, em bora
árdua, para encontrar a D eus, para obter sua epifania.
D e sse m odo, o livro revela a tese que o sustenta e a fin ali­
dade oculta que quer atingir: descobrir o “verdadeiro D eu s d es­
conhecido do velho hom em ” (Jean-D om inique Barthélem y). A
própria estrutura da obra m ostra esta tensão de fundo: a teofania
e os discursos finais de Jhwh con stituem o coroam ento do trajeto
percorrido p elo protagonista co m seus inúteis am igos e o desa-
guadouro do desafio pertinaz para envolver seu verdadeiro e
últim o interlocutor. A té m esm o o “m ediador” sonhado por Jó,
para funcionar co m o árbitro isento e acim a das partes no litígio
entre o h om em e D eus, só p ode ser D eu s, pois n inguém pode
reivindicar superioridade e autoridade em relação a D eu s senão
o próprio D eus. P od em os dizer co m Jean L évéq ue, estu d ioso da
obra, que Jó v iv e sua provação “com o um a interpelação sobre
D eu s, que só a D eu s quer form ulá-la” . Irá respondê-la não tanto
o “ou vid o”, isto é, “o ouvir dizer”, o estereótipo da tradição
teológica, quanto o “o lh o ”, isto é, o ver, a contem plação, a ex p e­
riência direta da fé pura e purificada através da via-crúcis da dor
e do questionam ento radical. O verdadeiro ápice do livro não
está no original “happy end” do e p ílo g o p reexistente ao poem a,
m as na profissão de fé final: “Eu te con h ecia só de ouvir. A gora,
porém , m eus olh os te v êem ” (Jó 4 2 ,5 ). E o que os olhos de Jó
viram é explicado nos discursos de D eu s, nos quais o grande
A cusado e D esafiad o torna-se, por sua vez, desafiador.
D eus, com efeito , quer im pedir que seu próprio “projeto”
( ’esah) seja reduzido a um esquem a racional hum ano. O que não
sign ifica desem bocar na irracionalidade. N o quadro dos arcanos
do universo aos quais já fizem o s referência, o hom em se reco­
n hece capaz de sondar apenas algum as partículas m icroscóp icas.
O ser, contudo, é com pacto, coerente, im plantado em um a estru­
tura coesa, ainda que in d efin ível e “in com p reen sível”, ou seja,
não esquem atizável logicam en te em n ív el hum ano. E xiste, en ­
tão, um a m etarracionalidade, um a ló g ic a suprem a que não se
adquire através do “ouvir dizer” teo ló g ico , m as sim graças à
com unicação que D eus faz de si m esm o pela revelação e pela
visão. N esta ‘esah transcendente in sere-se o m isterioso parto da
corça (Jó 3 9 ,1 -4 ), o s m áxim os sistem as có sm ico s (capítulo 38) e
o planeta obscuro do mal. Contra o racionalism o ético da teoria
retributiva, contra o racionalism o teo ló g ico dos am igos, Jó, no
final, descobre o verdadeiro estatuto da fé e da autêntica busca
de D eus e sobre D eu s, enfatizando a necessid ade do “tem er a
D eus por nada”, isto é, a gratuidade da fé, e a ex ig ê n cia do
“ver”, ou seja, a experiência genuína do m istério.
L ivro árduo, para ler e reler, en gu ia que nos fo g e da m ão
quando estam os con ven cid os de tê-la definitivam ente capturado,
Jó é, de qualquer m odo, em seu n ú cleo central, urn livro sobre
D eu s e sobre a aventura trágica e su blim e do crer, É a p o ssib ili­
dade de um a esperança para todos aqueles que estão num cam i­
nho incerto, entre espera e blasfêm ia, contanto que tenham Jó
com o guia. Kierkegaard sugeria, na sua Ripresa, co m base em
Jó: “S e eu n ão tivesse Jó! N ã o p o sso explicar-lhes m in u ciosa e
sutilm ente que sign ificad o e quantos sig n ifica d o s ele tem para
m im . N ão o leio co m os olh os, co m o se lê um outro livro;
c o lo c o -o , por assim dizer, no coração e, em um estado de
c la irvo ya n c e [clarividência], interpreto as singulares passagens
dos m ais diferentes m odos. C om o a criança que p õ e o livro sob
0 travesseiro, para estar certo de não ter esq u ecid o a lição ao
acordar pela manhã, assim , à noite, vou para a cam a com o livro
de Jó. Cada palavra sua é alim ento, vestim enta e bálsam o para
m inha pobre alm a. À s vezes, ao acordar-m e de m inha letargia,
sua palavra desperta-m e um a nova inquietação, outras vezes apla­
ca a estéril fúria que há em m im , e outras, ainda, acaba com o
que de m ais atroz existe nos m udos espasm os da p aixão” .

S ob um. ra m o de a m en doeira

A seis quilôm etros a nordeste de Jerusalém , encontra-se o


vilarejo de Anatot. Lá, por volta do ano 6 5 0 a.C ., nasceu Jere­
m ias, filh o do sacerdote H elcias. N o m esm o lugar, no ano 626
a.C., sob um a am endoeira do pom ar paterno, o jo v e m Jeremias
recebeu a vocação profética.
T ím ido, em baraçado —- “não ju lgu em D eu s p elo balbuciar
de seus servidores” , adm oestava M auriac — , só a custo se c o n ­
venceu a aceitar o encargo. O Senhor recorreu exatam ente àque­
la am endoeira, confiando nela co m o escudo de proteção: “O que
você vê, Jerem ias?... U m ramo de am endoeira... V o cê viu bem ,
Jeremias, porque eu estou vigian d o para cumprir a m inha pala­
vra” (Jr 1,11-12); em hebraico, “am endoeira”, sh a q ed , so a com o
shoqed, “aquele que vela” para defender.
Q uerem os, então, propor, no final do lon go capítulo dedi­
cado à fé bíblica, a história p esso a l d esse profeta, que assistirá
ao singular e trágico evento da destruição de Jerusalém , no ano
586 a.C., p elo s exércitos babilônicos.
Jerem ias talvez seja o profeta m ais autobiográfico, com o
dem onstram as cham adas “C o n fissõ e s”, dispersas nos capítulos
10-20 do seu livro profético, quase um diário íntim o da sua alm a
rom ântica e em otiva. Tím ido e provinciano, é induzido pela pró­
pria m issão a entrar no m undo corrupto e ilusório da p o lítica de
Jerusalém , no lim iar dos eventos catastróficos já m encionados.
Sua palavra será incôm oda, tendente a despojar os hebreus de
então dos m itos n acionalistas, a repropor a seus olh os briguentos
o precipício para o qual prazerosam ente estão se lançando. A de
laceração é profunda porque e le é um hom em que am a sua pá­
tria, é sen sível aos afetos, à religião e à vida serena, m as é
levad o a ser a Cassandra de sua nação — será apelidado m a g ô r
m issa b ib , “terror ao redor” (Jr 6,25; 20,3; 46,5; 4 9 ,2 9 ) — , a ser
excom un gado (3 6 ,5 ), perseguido p elo s próprios conterrâneos de
A natot (1 1 ,2 8 -1 2 ,6 ) e denunciado p elos parentes e am igos (12,6;
18,18.22; 2 0 ,1 0 ), a não poder constituir fam ília com a m ulher
am ada (1 6 ,1 -1 3 ). U m sentim ental, d isp on ível às relações hum a­
nas e condenado ao celibato, um estado civ il considerado e x c ê n ­
trico em Israel, além de fonte de solidão.
Tendo em volta de si apenas o ód io (Jr 15,17; 16,1-2),
am aldiçoado (2 0 ,1 0 ), espancado e torturado (2 0 ,1 -2 ), sob o p e­
sadelo de atentados (1 8 ,1 8 ), errante (3 6 ,2 6 ), acusado de colab o-
racionism o c o m o in im igo (1 7 ,1 6 ), obrigado a terminar seus dias
exilad o no E gito (capítulos 4 0 -4 4 ), Jerem ias repropõe a “via
estreita” que o fie l d eve percorrer, dem onstrando, porém , um
aspecto particular que ilustrarem os a seguir. Para o profeta, a dor
e o torm ento interiorizam a religião, liberando-a da exterioridade
m ágica; a oração tom a-se sincera; a relação com D eu s, livre e
espontânea; a espiritualidade, genuína e não-form al; a intim ida­
de com o m istério, profundíssim a. Tudo isto reflete a exp eriên ­
cia de Jó, e entre os dois livros há tangenciam entos tem áticos e
poéticos. C om o em Jó, para Jerem ias o sofrim ento engrandece a
co n sciên cia p essoal, im pedindo a dispersão na m assa de h om en s
superficiais, perdidos entre os m itos, inebriados de ilu sões, inun­
dados de um a alegria que prenuncia a m orte. O profeta é o único
que intui nitidam ente o turvo destino que está se desenhando no
horizonte de Judá e é o único, não ouvido, a caracterizar o cam i­
nho da salvação, in clu sive política. A dor tom a-se, então, um
grande p ed agogo para encontrar D eu s e o eu pessoal.

S in cero a p e s a r d e tudo

A originalidade de Jeremias, no contexto do discurso sobre


o crer que estam os d esen volvend o, é antes de m ais nada sutil, e

85
insere-se na vertente da liberdade e da graça. Por um lado, com
efeito, há a revolta do hom em exasperado, cansado de ser porta­
dor de um a m ensagem que m arginaliza, aborrece, humilha. Por
outro, há a m anifestação de um D eus que irrompe na história de
um hom em , transtom ando-a e subvertendo-a. A dialética se agu­
ça: de sim ples contraponto inicial, tom a-se contradição, que Jere­
m ias apresenta, com veem ência, no m om ento m ais crítico, quan­
do atinge o lim ite e ele quer fugir, lançando às urtigas o m anto de
profeta. E a m ais célebre das suas “C o n fissõ es”, que agora seg u i­
rem os nas passagens ilustrativas da tensão vivida pelo profeta,
que o arroja com extrem a sinceridade para o céu.
O testem unho m ais exem plar encontra-se no capítulo 20,7-
10.15-18. P recede-o uma das m uitas prisões do profeta, ordena­
da, desta vez, pelo ch efe do alto clero do tem plo de Jerusalém ,
um tal Pascur ben Immer.
C om um a m etáfora audaz. Jerem ias recorda o m om ento
d ecisiv o de sua vida, o da vocação em Anatot. A m etáfora usada
geralm ente induz o leitor a erro: “Tu m e sedu ziste, Senhor, e eu
m e d eixei seduzir. F oste m ais forte do que eu e ven ceste. Sirvo
de piada o dia todo, e todo m undo caçoa de m im ” (Jr 20,7). N ão
se trata da sedução am orosa, m as do engano de um incapaz. N o
“dia da am endoeira”. D eus o seduziu, atraindo-o c o m um fa sc í­
nio irracional, co m o quem enreda um a p esso a inexperiente com
falsas prom essas para que dê seu consentim ento às manobras da
própria astúcia. E v io lên cia moral, od iosa e condenável. Cora
um a sinceridade que beira a b lasfêm ia, o profeta acusa D eu s de
covardia e d e engodo. Eis, então, a decisão de abandonar a pró­
pria voca çã o , radicalm ente viciada. A o m esm o tem po, porém ,
eis que reaparece o Senhor, c o m sua im placável captura interior.
“Eu m e dizia: ‘N ão pensarei m ais nele, não falarei m ais no seu
n o m e !’ Era com o se h o u v esse no m eu coração um fo g o ardente,
fechado em m eus ossos. E stou cansado de suportar, não agüento
m ais!” (Jr 2 0 ,9 ). A palavra d ivin a volta, inexorável, a penetrar
no íntim o do m aldito eleito. A ssem elh a -se a um in cên d io que
inflam a o coração, uma lava ardente que penetra nos o sso s. E o
hom em d e v e confessar a própria im potência de resistir.
“R u ge o leão: quem não trem erá?” — afirm ava um outro
profeta, A m ó s, tam bém ele um co n vocad o à força — “O Senhor
D eus fala; quem não profetizará?” (A m 3,8). E Paulo: “A i de
m im se não pregar o ev a n g elh o !” (IC o r 9 ,1 6 ). D ram ática urdi­
dura entre liberdade hum ana e obra divina: nó górdio para Jere­
m ias e para teó lo g o s e filó so fo s. A liberdade, porém , não é
anulada, co m o atesta a últim a e terrível estrofe da “C o n fissã o ”
de Jeremias. A o hom em resta o grito de protesto extrem o e de
desespero: “M aldito seja o dia em que eu nasci. Que jam ais seja
bendito o dia em que m inha m ãe m e deu à luz. M aldito o ho­
m em que levou a n otícia a m eu pai dizendo: ‘N asceu um filh o
hom em para v o c ê !’, ench en do-o de alegria. Q ue essa p esso a
sofra igual às cidades que o senhor destruiu sem com paixão;
ouça gritos pela m anhã e rumores de guerra ao m eio-dia. Por
que não m e fez morrer no ventre m atem o? M inha m ãe teria sido
a m inha sepultura, e seu ventre estaria grávido para sem pre! Por
que saí do ventre m atem o? Só para ver torm entos e dores, e
terminar m eus dias na vergonha?” (Jr 2 0 ,1 4 -1 8 ). Jó, no capítulo 3,
retomará o m esm o grito suicida, ou m elhor, o m esm o d esejo de
não ter sequer existid o, em um sonho de liberdade e de paz.
O intrincado nó certam ente não se desata. Surpreendente­
m ente, porém , resta o fato de que D eu s não condena a b lasfêm ia
do desesperado, e que Jerem ias retom a sua m issão com ardor. A
relação com D eu s é um capítulo grandioso, lum inoso e tenebro­
so da vida de um a pessoa. D e A braão a Jacó, de Jacó a Jerem ias,
delin eia-se um a trajetória nobre e desconcertante, gloriosa e d e­
sesperada, clara e emaranhada. M as, para usar um a expressão do
escritor m ístico persa, o m uçulm ano Farid ed-din ‘Attar, não é
m elhor arriscar-se a ser queim ado p elo sol, em um tresloucado
vôo, do que passar anos chafurdando na im undície? N e ste sen ti­
do, podem os selar n osso itinerário, na seqüência do “herói da
fé ” , com a citação do célebre M em o ria le, costurado por Pascal
no forro do co lete e encontrado por um em pregado, escrito em
um pergam inho e copiado em um a folh a de papel, por ocasião
da morte do filó so fo . Pascal dera a e sse texto o título de F uoco
[Fogo], e 0 costurava e descosturava no forro das várias roupas
que vestia, d esd e o s 31 anos de idade, em 1654, até sua m orte,
ocorrida em 16 6 2 . “D eus de A braão, D eu s de Isaac, D eu s de
Jacó, não dos filó so fo s, dos doutores. Certeza, certeza. S en ti­
m ento. A legria. Paz. D eu s d e Jesus Cristo. M eu D eu s e v o sso
D eus. V o sso D eu s será m eu D eu s. E sq u eço-m e do m undo e de
tudo, m enos de D eus. Só o encontram os nos cam inhos assinala­
dos p elo ev a n g e lh o .”
IV
Do pó da história,
um murmúrio

A p ó s O som brio inverno, ch ega a desejada prim avera.


N o s cam pos já despontaram as prim ícias. O hebreu fiel recolheu
um a parte, c o lo co u -a num a cesta e fo i ao santuário para oferecê-
la ao sacerdote. E ste a recebe, co lo ca -a sobre o altar e con v id a o
fiel a pronunciar o Credo de Israel; “M eu pai era um aram eu
errante: e le desceu ao E gito e aí residiu c o m poucas p essoas.
D ep ois to m o u -se um a nação grande, forte e num erosa. Os eg íp ­
cio s, porém , nos maltrataram e hum ilharam , im pondo um a dura
escravidão sobre nós. C lam am os então ao Senhor, D eu s dos n o s­
sos pais, e Javé ouviu n ossa vo z. E le viu nossa m iséria, n o sso
sofrim ento e n ossa opressão. E Javé nos tirou do E gito com m ão
forte e braço estend ido, em m eio a grande terror c o m sinais e
prodígios. E nos trouxe a este lugar, d ando-nos esta terra, onde
corre leite e m e l” (D t 2 6 ,5 -9 ). D ep o is do canto do Grande H allel,
isto é, 0 S alm o 136, depois da proclam ação de Josué em S iq u ém
(Js 24), eis um outro Credo — talvez o m ais arcaico — , no qual
Israel professa a própria fé no D eu s da história.

O "fio verm elh o ”

E xodus era o n om e do n avio que conduzia os Judeus so ­


breviventes d os cam pos nazistas para a Palestina, e que se tor­
nou título do fam oso film e de Otto Prem inger. M as o ê x o d o do
Israel b íb lico da escravidão do E gito — ou seja, o ê x o d o por
excelên cia , co m o desde então p assou a ser cham ado e que c o n s­
tituirá tem a e denom inação do segu n d o livro da B íb lia — é
agora um arquétipo universal, caro à “teologia negra”, àquela
“p olítica” e àquela da libertação, im portante para a filo so fia
( L ’ateism o n el cristia n esim o , de E m st B lo ch , traz com o subtítu­
lo “Para um a religião do êxo d o e do rein o”) e para a psican álise
(com o verem os a propósito do M oisés de Freud), d e cisiv o para a
socied ad e hebraica com o sion ism o (que lhe retom ou o ideal em
ch ave leiga), e até para o resgate dos p o v o s oprim idos. C om
efeito, M arcus G arvey, defen sor do ê x o d o dos negros am erica­
nos para a áfrica, se autodenom inou B la ck M o ses, “M o isés N e ­
gro”, deixando atrás de si um rastro de mártires, esperanças,
histórias, um drama e um film e sobre as G reen p a stu re s, as
verdejantes pradarias da Á frica sonhada com o terra prom etida.
Tinha razão o tratado talm údico sobre a P áscoa quando
afirm ava que “cada geração d ev e considerar a si m esm a com o
saída do ê x o d o ”. Em certo sentido, a afirm ação se aplica até as
gerações não-hebraicas; se tom arm os a sim bologia do “fio ver­
m elh o” (utilizada pelo filó so fo B loch), podem os seguir-lhe o cur­
so serpenteante na história da cultura e da espiritualidade religio­
sa. M as farem os isso à guisa de ilustração e não rigorosam ente,
porque do contrário nos verem os de repente, em m eio a um labi­
rinto iconográfico, m usical e literário. B asta falar, m esm o a um
“profano”, de M oisés salvo das águas, da sarça ardente, das pra­
gas do E gito, da travessia do Mar V erm elho, do deserto do Sinai,
do maná, da água na rocha, das tábuas da lei do Sinai, do bezerro
de ouro, para imaginar um a m ente povoada de cenas fam ihares e
ver os lábios articular frases feitas (as pragas ou m esm o as ce b o ­
las do Egito!). E se q u iséssem os escolher um fundo m usical para
este capítulo? D eixando de lado um raro M o sè lib e ra to re , de
B ellin i (1 8 0 4 ), um m ais fa m o so M o sè in E gitto, de R ossini (N á­
poles 1818, que se tornou M osè em 1827, em Paris), os esq u eci­
dos M o sè de M ax Bruch (1 8 9 4 ) e de Perosi (1 9 0 1 ) e o fascinante
M osè e A ronne de Schõnberg, sobre os quais falarem os m ais
adiante, é indispensável citar (e ouvir) o esplêndido Israele in
E gitto de H aendel (1739), cuja verdadeira partitura espiritual é
justam ente o livro do Ê xod o. N a versão original, o oratório ini­
cia-se com o lam ento fúnebre pela m orte de José, o patriarca que
foi para o Egito; a segunda parte é dom inada pela história da
opressão de Israel e pelas dez pragas, evocadas em coros muitas
vezes onom atopaicos (m osquitos, granizo, rãs...); a terceira parte
é centrada no cântico de M o isés. O coro é concom itantem ente, o
narrador sagrado e o p ovo hebraico.
o fio verm elho enrola-se e desenrola-se em tom o do gran­
de guia do êxodo, M o isés, nom e “faccio sa m en te” explicado pela
B íb lia com o “retirado das águas” (Ex 7 ,1 0 ), e que, na realidade,
rem ete ao m ais m odesto m ose, “filh o ”, term o eg íp cio que en co n ­
tramos nos nom es teofânicos bem con h ecid os, com o Tut-m ose,
A h -m ose, R a -m ose/m sés (“filho do deus Tot, Ah e R a”). Israel,
durante séculos, p elo m enos até o sécu lo IX d.C., quando apare­
ce um estudioso da B íb lia cham ado M osh e B en A sher, recusar-
se-á a pôr aquele venerado nom e em um de seus filh os. Ficará
som ente com M ôrenü , “o n osso M estre”, am ado e respeitado.
Sua epígrafe de santidade já constava na própria Bíblia: “M o isés
era o hom em m ais hum ilde entre todos os hom ens da terra... E le
é o m eu servo, h om em de confiança em toda a m inha casa: com
ele eu falo face a face, às claras e sem enigm as; e ele v ê a figura
do Senhor” (N m 1 2,3.7-8). E, depois da m orte, será ainda ca n o ­
nizado pela Bíblia: “E m Israel, nunca m ais surgiu outro profeta
com o M oisés, a quem o Senhor con h ecia face a face... H om em
de bem , estim ado por todos, amado por D eu s e p elos hom ens:
foi M oises, cuja lem brança é um a bênção. D eus o tornou g lo rio ­
so com o os santos, e o engrandeceu, provocando temor entre os
in im ig o s” (Dt 34,10; E clo 4 5 ,1 -2 ).
O filó so fo e teólo g o hebreu — alexandrino Filão d edicou-
lhe uma biografia rom anceada, ao estilo das Vite p a ra lle le , de
Plutarco; São G regório de N issa, Padre da Igreja capadócia, co m ­
pôs um a Vita d i M osè, il leg isla to re, em que a história do c é le ­
bre guia do êxo d o é vista com o um itinerário de perfeição m oral
e de contem plação m ística. H istória que é retom ada p asso a
passo, acrescida de m atizes anedóticos e espirituais, p elo C orão,
que considera M o isés um dos m aiores profetas. H istória que será
recuperada pela biografia teológica M o sè (1946), do filó so fo
judeu personalista Martin Buber. “H om em excelente, não n asci­
do para pensar ou para refletir, mas todo inclinado à ação... um a
figura que, desde o prim eiro gesto [isto é, o assassínio de um
carcereiro que perseguia os hebreus oprim idos] até seu desapare­
cim ento, forn ece um a im agem sign ifica tiv a e digna de um h o ­
m em que, por natureza, é vocacion ado a coisa s ex c elsa s” , escre­
veu G oethe em algum as de suas notas de caráter bíblico {Isra ele
n el d ese rto , 1797). M as há tam bém o M o isés rom ântico, do
poem a hom ônim o de Alfred de V ig n y (1 8 3 7 ), com sua hum anís­
sim a solidão do eleito , alquebrado por u m a m issão que em vão
tentara recusar (ver E x 3 ,13-15; 4,1 -1 7 ; 5 ,2 2 -2 3 ), decidido a não
descer m ais do Sinai. P o d e-se recorrer então ao Scendi, M o sè, de
Faulkner (1 9 4 2 ), no qual o herói hebreu se tom a um a figura
n ecessária para que todas as vítim as de cada faraó sejam liberta­
das, ou ao M o sè, série de 23 poem as c o lig id o s pelo poeta fran­
cês Em m anuel em um a obra m ais vasta, Tu.
T hom as E liot, ao contrário, na sua M o rte d i M osè, apre­
senta um hom em apegado à sua vida de glórias, que não se
resigna a morrer no cum e do N eb o , diante daquela terra prom eti­
da, tão sonhada e a ele proibida, e que os próprios anjos se
recusam a acom panhar ao céu, por lhes faltar coragem de arran­
car-lhe a alm a. H á nessa lírica o eco de um form idável com entá­
rio narrativo judaico sobre a m orte de M o isés, descrito no cap í­
tulo 34 do D euteronôm io (D e v a rtm R a b b a ’). V am os ler as prin­
cipais passagens: “O uviu -se um a v o z do céu que d isse a M oisés:
‘M o isés, acabou; o tem po de sua m orte ch e g o u !’ M o isés disse a
D eus: S u p lico-lh e, não m e abandone nas m ãos do anjo da m or­
te !’... M as D eu s d esceu do alto dos céus para tomar a alm a de
M o isés e lhe disse: ‘M o isés, fech e os o lh o s!’ E M o isés os fe ­
chou. D ep o is, D eus disse: ‘Ponha as m ãos sobre o p e ito !’ E
assim ele o fez. D ep ois disse: ‘A gora repouse os p é s!’ E M oisés
repousou-os. Então D eu s cham ou a alm a de M o isés, dizendo-
lhe: ‘M inh a filha, fix ei um tem po de 120 anos, durante o qual
v o cê deveria habitar o corpo de M oisés. A gora ch egou seu fim .
P ode partir, quero d eixá-lo. Então D eus beijou M o isé s e tom ou
sua alm a co m um beijo de sua boca. E depois D eu s chorou pela
m orte de M o isé s” .

F uga ou expu lsão?

A pergunta que propom os agora é “radical” , no sentido


literal do termo: sob esta m assa de extratos literários, artísticos,
teó lo g o s, qual é a pedra fundam ental? Sob essa árvore gigantesca
e ram ificada, qual a raiz ainda individual? N o antigo Credo de
Israel, conservava-se uma m em ória pálida e reelaborada de um
evento histórico de libertação: é p ossível reconstituir-lhe pelo
m enos a substância? “Jhwh nos fez sair do E g ito ” — escreveu
um estudioso alem ão, Martin N oth — “é a con fissão de fé origi­
nária de Israel.” Que n úcleo histórico conservam páginas do livro
do Ê xodo que descrevem o desenvolvim ento dessa fé, m esm o
sendo “história sagrada”, m esm o contendo interpretações religio­
sas e am phficações épicas? A s diversas tradições de Israel, às
quais os exegetas deram nom es conven cionais que já evocam os,
com o Javista, Eloísta, Sacerdotal e outros, filtraram um aconteci­
m ento ou um m ito? N ão faltam os opostos extrem os entre os
intérpretes dessas passagens (sobretudo dos prim eiros 24 capítu­
los do Êxodo): para alguns, estam os diante de teorem as teo ló g i­
cos revestidos de história; para outros, d e crônicas respeitáveis.
Quanto a nós, que queremos reconstituir esses eventos por
razões não puramente historiográficas, contentam o-nos com o es­
boço de um tríptico no qual os personagens e as ações são incertos
e raros, embora dotados de consistência e probabilidade próprias.
O prim eiro quadro é povoado por um grupo tribal am plo,
subm etido à escravidão: “O s egíp cio s im puseram sobre Israel
capatazes que os exploravam em trabalhos forçados. E assim
construíram para o faraó as cidades-arm azéns de Pitom e R am sés”
(E x 1,11). C onform e a B íblia, um a n ova dinastia, de tendências
m ais nacionalistas — poder-se-ia pensar na X IX , com Set I, que
sob e ao trono no ano 1306 a.C. — , dá um a guinada em relação
aos núcleos de estrangeiros residentes em suas fronteiras, im ­
pondo-lhes “corv éia s” para a construção de cidades-fortalezas,
P itom (“casa do deus A tom ”) e R am sés (talvez a cidade de
A varis). A parece, provavelm ente, o n om e glorioso de R am sés II,
0 faraó que reinou por quase todo o sécu lo XIII a.C. (1 2 9 0 -1 2 2 4
a.C .), cuja “grandeur” é percebida até p elo viajante distraído que
visita 0 E gito co m um guia pouco inform ado e pelo aficionado
por Verdi, c o m escassas leituras bíblicas.
Segun do quadro: os materiais b íb licos são guarnecidos de
duas cores que criam com o que duas cen as distintas. Há, neles,
um a tentativa enérgica de quebrar o ju g o egípcio. É um a fuga
para além das fronteiras, ocorrida, provavelm ente no governo do
sucessor de R am sés II, seu filho M em eptah. N o M useu E gíp cio
do Cairo, a um canto, ergue-se, esq uecida pelos turistas, m as
apreciadíssim a pelo s bibhstas, uma esteia de basalto preto, e n ­
contrada em T ebas em 1895, na qual o faraó fez constar, pela
prim eira vez, em um docum ento antigo que ch egou até nós, o
nom e de Israilu , num a m enção sumária: “Israel fo i devastado,
sem inalm ente” . A té um a fuga, na retórica propagandística do
poder, pode tom ar-se um triunfo. M as, de par co m aquele que se
tom ará o êxod o clá ssico , cantado por sécu los e sécu los e d escri­
to pela B íb lia com o um a epop éia c ó sm ico -teo ló g ica , aflora aqui
e ali, no texto b íb lico, a presença de um outro êxod o, m enos
exaltante e exaltado, o da exp ulsão de Israel co m o população
indesejável. E ste êx o d o “m enor”, ao invés de pegar o d esv io na
península do Sinai — ló g ico para o êxod o -fu g a , que deveria
evitar os bloq ueios e o controle — , tom a o “cam inho do mar” ,
m ais curto e norm al, “via do mar”, ao lon go da costa mediterrâ­
nea, im p ossível aos “fu g itiv o s” do outro êx o d o , já que era v igia­
do por pequenas fortalezas egíp cias.
D everíam os passar agora ao terceiro quadro, mas im agina­
m os a objeção do n osso leitor: e o clam oroso êxod o-fu ga, ao qual
nos habituou C ecil D e M ille, com as duas muralhas de água,
efeito de duas tom adas, habilm ente m anipuladas, das cataratas do
Niágara, aonde vai dar? Sem querer entrar no m érito de com p le­
xas e sofisticadas operações de crítica literária, podem os apontar
alguns dados. U m a tradição, a m ais antiga (a Javista), propõe
uma exp licação do evento “ê x o d o ” que não deixa de ter uma
certa con sistên cia histórica: dado que a passagem , para a B íblia,
se situa no “mar dos C an iços” (isto é, através dos pântanos e dos
charcos da região dos L agos Salgados, a oriente do D elta), a
travessia teria sido favorecida por um forte vento que, soprando
toda a noite, teria secado um a vasta área, afastando as águas (Ex
14,21). Israel con segue passar, m as os egíp cio s são surpreendi­
dos p elo refluxo das águas. N ão se descarta um a referência às
marés, dada a Hgação daqueles pântanos com o Mar V erm elho.
B em diferente é a versão m ais tardia, proposta pela tradição Sa­
cerdotal (sécu lo VI a.C.), de maior relevo e exten são na narrati­
va. A e sse autor bíblico interessa a interpretação teo ló g ica do
evento. Por isso , ele abandona as referências históricas diretas e
se entrega a uma cenografia teofânica: M oisés estende a insígnia
de seu poder taumaturgo, o bastão-cetro, e os hebreus desfilam
triunfalm ente em procissão por entre as duas muralhas de água,
que assistem ao prodígio, prontas a desencadear sua fúria devas­
tadora tão lo g o 0 faraó e seu exército tentem atravessá-las. Trata-
se, portanto, de um a reelaboração sim bólica e teológica.
E ssa dupla versão do evento “ê x o d o ” perm ite-nos anteci­
par a questão central do n o sso capítulo: qual o teor esp ecífico da
história bíblica? A raiz histórica certam ente é indispensável por­
que é nela que se busca a presença da ação divina. A finalidade
da busca não é, porém , historiográfica, mas teológica. O evento
é afinnad o e docum entado de m odo essen cia l, m as o que inte­
ressa é lê-lo religiosam ente, tentando decifrar a qualidade salví-
fica. S e a tradição Javista n os oferece a base histórica, e um a
interpretação branda, a Sacerdotal insiste, ao contrário, na inter­
pretação sim bólica: D eu s com bate com sua armadura có sm ica
ao lado de seu p ovo, vencendo as forças do m al (o mar). D o
sepulcro de água sai o n ovo Israel libertado e n ele morre o
opressor, vítim a do julgam ento d ivino. É fácil com preender que,
na m esm a trajetória, se colocará a interpretação batism al cristã,
que lerá a experiência do êxod o em chave p essoal, atribuindo-a
ao batizando, que entra na fonte batism al co m o pecador e de lá
sai salvo e liberto.
O últim o quadro do tríptico tem com o cenário o deserto e
o Sinai, e registra diversas v icissitu des, patrim ônio do êx o d o -
fuga. A s pistas dos m ineiros egíp cios, que na península do Sinai
procuravam ônix, dioritos e turquesas para a estatúaria faraôni­
ca, são seguidas pelo s fugitivos. D ifíc il é, todavia, a id en tifica­
ção topográfica exata dos percursos e do m onte da teofania. M as
sobre isso voltarem os a falar brevem ente, no próxim o capítulo.
É chegado o m om ento de enfrentar um a questão funda­
m ental. A revelação bíblica não é “estática”, não con vid a a d e­
colar das v icissitu d es históricas para céus m íticos ou para hori­
zontes íntim os e espirituais. O Credo de Israel, ao qual fizem o s
referência muitas vezes, evocando seus diversos m odelos (SI 136;
Js 24; D t 2 6 ), não é um a abstrata co letân ea de teorem as te o ló g i­
cos, e sim um a história da salvação e um a salvação da história.
O D eu s b íb lico é um D eu s da história e sua revelação é a h istó­
ria de D eus. O êx o d o é seu em blem a m ais nítido.

D o p ó d a h istória, um m urm úrio

A história hum ana — a da “d escen d ên cia” prom etida a


Abraão — é a sed e das m ais sublim es epifanias divinas. A histó-
95
ria é o lugar onde D eu s e o hom em se encontram : o hom em ,
porque nela tem sua morada, porque lh e é inerente, sendo o
tem po a sua pele; D eu s a ela se adapta, m as depositando nela
um a sem ente de eternidade. Por isso , a história, segundo a B íb lia
é “apocalip se”, isto é, revelação divina; por isso , a história, se ­
gundo a B íblia, é redim ida, salva, e tom a-se “história sagrada” ;
por isso, a história, segundo a B íblia, não é só pesquisa no
arquivo da m em ória, m as descoberta da presença divina e de
valores perm anentes. O êxod o, n esse sentido, é sign ificativo. E le
não é m era evocação de um fato gerador da história so ciop olítica
de Israel; é, acim a de tudo, um evento que tem em si um a d i­
m ensão “eterna”, por isso pode renovar-se toda v e z que Israel se
torna escravo, nôm ade, peregrino, exilad o, e em seu horizonte se
representa D eus reatualizando e oferecen do n ovam ente o dom
da liberdade.
O êx o d o , portanto, é ligeiram en te d efinid o pela B íb lia em
suas coordenadas históricas (em bora n ecessárias) e m uito acura­
dam ente em suas coordenadas teoló g ica s. N ã o é só um passado
sobre o qual se estende o véu do pó do arquivo; é um a presença
que v iv e no hoje do fiel e se irradia por todo o tem po: o ato
divino não é, de fato, eterno e, portanto, capaz de transcender o
tem po? C om o terem os o casião de repetir, é m ais provável que
alguém , abrindo a B íb lia ao acaso, depare c o m um a guerra, um
evento p o lítico e social, c o m o protesto de um sofredor, do que
com o canto sereno de um tem plo, um coro an gelical ou um a
ascética reflexão espiritual. H á um a bela p a ssa g em de Isaías
que vê o pó da história on d e rastejam as vítim as co m o o lugar
no qual o próprio D eu s entra em cena, curvando-se até lam ber a
terra, para trazer ju stiça e esm agar os opressores. R eferin d o-se a
Jerusalém , reduzida a ruínas, o profeta a interpela assim : “H u­
m ilhada, v o c ê estará falando desde o chão; e sua palavra sairá
abafada p ela poeira, e a sua v o z subirá da terra co m o sussurro
de um fantasm a da tum ba” (Is 2 9 ,4 ), M as o Senhor se inclina do
céu de sua transcendência e reduz a pó os opressores: “A m ulti­
dão dos seu s in im igos será c o m o a poeira m ais fina, e a m ulti­
dão dos seu s agressores será co m o a palha que voa. M as, de
repente, sem avisar, o S en hor dos exércitos virá em seu auxí­
lio ...” (Is 2 9 ,5 -6 ).
o m esm o profeta, em bora co m finalidade diferente, nos
oferecerá, por interm édio da idêntica im agem do pó, um a síntese
sim b ólica das relações história-etem idade, hum ano-divino, tem-
p o-escato lo g ia . D e um lado, há justam ente o pó, sinal do lim ite e
da m orte (recorde-se Jo 2,7; 3,19); de outro, há o orvalho celeste
fecundador, sem elhante a um sêm en de eternidade, depositado
na m ortalidade hum ana. ‘T e u s m ortos hão de reviver, e seus
cadáveres se levantarão. O s que dorm em no pó vão acordar e
cantar, pois o teu orvalho é um orvalho de luz, e a terra das
som bras dará à lu z” (Is 2 6 ,1 9 ). N esta perspectiva, o êx od o, sem
deixar de ser um evento do passado de Israel, é elum inado e
apresentado sob significados perm anentes. A ssim , por exem plo,
o profeta a n ô n im o , c o n v e n c io n a lm e n te ch am ad o “S e g u n d o
Isaías”, cuja obra — por ocasião da volta do e x ílio na B abilônia
— é narrada nos capítulos 4 0 -5 5 de Isaías, celebra a experiência
que está v iven d o (a queda da B ab ilôn ia sob o s g o lp es do persa
Ciro e o repatriamento de Israel) co m o se se tratasse de um novo
e glorioso êxod o, calcado no do E gito, e tom a n ovam ente pre­
sente o poder libertador de D eu s. E is alguns versos do seu p o e ­
m a exodial: “A ssim diz o Senhor, aquele que abriu um cam inho
no mar, um a passagem entre as ondas violentas, aquele que fe z
entrar o carro e o cavalo, o exército e a força. E les caíram para
não m ais se levantar, apagaram -se co m o pavio que se extingue.
N ão fiquem lem brando o passado não p ensem nas co isa s anti­
gas; vejam que estou fazendo um a c o isa nova: ela está brotando
agora, e v o c ê s não percebem ? A brirei um cam inho no deserto,
rios em lugar seco... para matar a sed e do m eu p ovo, do m eu
escolh id o , o p o v o que eu form ei para m im , para que proclam e o
m eu louvor” (Is 4 3 ,1 6 -2 1 ).
A história bíblica reproduz-se não através de um a pálida
com em oração do passado, mas por m eio de uma “coisa nova”, e
“n ovo”, na hnguagem bíblica é sinônim o de “eterno”, de d ecisivo
e perfeito. É a salvação, a libertação agora oferecida a Israel,
exilado na B abilônia, convidado a colocar-se a cam inho para atra­
vessar 0 novo mar, o do deserto que m edeia a M esopotâm ia e a
terra de seus antepassados. À frente de tudo estará ainda o S e ­
nhor, que fará outra v ez jorrar água da rocha para saciar seu povo.
O Livro da Sabedoria irá além e imaginará o êxodo perfeito,
que selará a marcha de toda a humanidade e todo o cosm o rumo à

4. A nanativa...
libertação da morte. É uma nova criação, na qual “a terra firme
surge onde antes era água. O mar V erm elho se transforma em
caminho livre, e as ondas violentas se tom am planície verdejante.
Através dele passa todo o teu povo, protegido por tua mão, con ­
templando prodígios admiráveis. Como cavalos conduzidos ao pasto
e com o ovelhas saltitantes, todos cantam hinos para ti, Senhor, seu
libertador... Os elem entos da natureza trocam suas propriedades
entre si, da m esm a forma que na harpa as notas m odificam o
desenvolvim ento da m úsica, mas conservando sempre o m esm o
tom" (Sb 19,7-9.18). A o contrário, os capítulos 11-19 desse livro
bíblico, com posto talvez em Alexandria do Egito, em grego, por
volta do ano 30 a.C., são uma nova reflexão sobre o êxodo, enten­
dido com o um embate definitivo entre o Bem e o Mal, desaguando
na terra prometida da esperança última e perfeita.

O te rce iro êxodo

A B íblia apresenta, portanto, um a seq üên cia histórica s e ­


cular e paradigm ática. Sob um elen co de dados e de datas, de-
se n v o lv e -se um projeto transcendente, em si acabado, m as que
requer adaptação à história humana, desdobrando-se em etapas,
em fases progressivas, em um antes e um depois. O cristianism o
reencontrará a eficácia libertadora do êxodo de Israel na história
de Jesus e da Igreja.
A p ós 0 segundo êxod o, o da B abilônia, o terceiro seria o
cristão, inaugurado por Jesus m enino, o qual volta do E gito
(M t 2,15: “D o E gito cham ei m eu filh o ”), que é tentado no deser­
to com o Israel, que na Transfiguração fala com E lias e M oisés
sobre o “êx o d o que iria se consum ar em Jerusalém ” (Lc 9,31),
que na últim a ceia repropõe a páscoa do E gito sob n ova luz, que
é apresentado com o o cordeiro im olado da refeição pascal, cujos
m ilagres (sobretudo em João) rem etem aos “sin a is” do êxod o
(o pão e o maná, por ex em p lo ), e assim por diante, em um c o n s­
tante contraponto tem ático e sim bólico. O batism o cristão será
considerado um a reedição da passagem através das águas do
mar (IC o r 10,1-5) e a eucaristia será vista co m o um a ceia pascal
com n o v o s pães ázim os e c o m um surpreendente cordeiro que é
o próprio Cristo (IC or 5 ,6 -8 ). O A p ocalipse, repleto de alusões,
citações e sim bolism os exod iais, retrata o êx o d o últim o, para
além da opressão dos im périos, da B esta, do D ragão e da Prosti­
tuta, rumo à cidade perfeita, incrustada co m o um a pérola nos
“n ovos céu s” e na “n ova terra” (capítulos 2 1 -2 2 ).
N essa linha se inserirá a teologia cristã, que verá no êxod o
um a categoria destinada a interpretar a esperança de salvação e
de libertação dos p o v o s. U m notável teó lo g o alem ão, Jürgen
M oltm ann, em sua obra m áxim a, La te o lo g ia d e lia sp era n za ,
definirá a Igreja com o “com unidade em ê x o d o ”, afirm ando que
“a cristandade d ev e ousar o êx o d o e considerar seus papéis so ­
ciais com o um n ovo cativeiro babilônico do qual se libertar”. A
M oltm ann segu iu -se o “te ó lo g o -filó so fo ateu” B loch , que, em
seu A teisino n el cristia n esim o e no P rin cip io S p era n za , insiste
na exem plaridade do êx o d o para um a leitura eficaz da B íblia,
que assim adquiriria um a grande força u tópico-revolucionária. O
D eu s do êx od o é um D eus dos oprim idos, dos pobres, do futuro
livre, profundam ente solidário c o m os hom ens e co m todo an­
seio hum ano de liberdade. É por este m otivo que o êx o d o repre­
senta um a im agem privilegiada da cham ada “teologia p o lítica ”,
ou daquela latino-am ericana, a teo lo g ia da libertação. Para o
teó lo g o am ericano H arvey C ox, o êx o d o ajuda a dessacralizar a
religião e a política, im pedindo que a prim eira se torne desencar­
nada e a segunda, absoluta. Para o teólogo francês Jean Cardonnel,
ser criado por D eu s eqüivale a ser livre, razão pela qual o êx o d o
é a expressão da criação. O D eus b íb lico é diferente dos deuses e
do deus da m etafísica, exatam ente por escolh er entrar na história
e libertá-la da injustiça.
C om o dizíam os, tinha razão a tradição hebraica quando
afirm ava que cada geração d eve sentir-se filha do êxod o, ou
m elhor, sua contem porânea, sendo o êxo d o um evento histórico
que encerra no âm ago de sua realidade um a sem ente de eternida­
de. Sabem -no até os agnósticos. C itam os B loch , m as não p o d e­
m os ignorar Freud e seus três en sa io s sobre M oisés, c o lig id o s
em 1939 em M o sè e la relig io n e m on oteístíca. N a base está
indubitavelm ente a matriz hebraica do pai da psicanálise. Há
tam bém a leitura do ensaio de Schiller, La m issione de M o sè
(1790), em que o célebre dramaturgo exalta o êxodo não som en ­
te enquanto libertação política, m as tam bém com o vitória inte­
rior sobre o en volvim en to espiritual dos cultos e das doutrinas
m ísticas egíp cias, às quais Israel escravo era sujeito. Intuição
fe liz porque na antigüidade, escravidão p olítica e religiosa co in ­
cidiam : não é à toa que Israel celebra sua p áscoa exatam ente na
noite da libertação. M as atrás de Freud há, particularmente, um a
estátua. Sim , é o in esq u ecível M o isé s de M ich elân gelo, na igreja
de San Pietro in V in co li, Rom a.
Em 1913, Freud passou um as três sem anas em m editação
solitária diante daquele rosto inquietante e poderoso. D aí nasceu
a im agem de um M o isés eg íp cio e não hebreu, seguidor do faraó
m onoteísta solar A knáton, “grande estrangeiro que, sob pressão
da dor e da solidão, cria um p o v o ”, im pondo aos “pobres escra­
vos hebreus” seu deus de verdade e de justiça, A ton, disco solar,
senhor v isív e l e in v isív el de um im pério có sm ico . N a cam inhada
ao lon go das trilhas do deserto, o deus se transforma, tom ando o
nom e Jhwh da divindade adorada p elos m adianitas, dos quais
M o isés recebe tam bém sua mulher, Séfora. M as o povo hebraico
rejeitará este pai estranho, fautor de um a religião dem asiado
severa e espiritual, matará M o isés, e o “parricídio” o consolidará
co m o verdadeira nação, ou m elhor, com o nação eleita e única. O
m esm o assassinato, dep ois de um a longa latência, reem ergirá na
m em ória de Israel, e o “arrependim ento pelo a ssassín io de M o i­
sé s” fará brotar o desejo e a espera do M essias. O even to exodial,
livre e discu tivelm en te reconstituído por Freud, torna-se um a
parábola, seja pela “hebraicidade”, dotada de forte “ideal do E u”
e de um a sólida autoconsciência, seja pela v icissitu d e humana,
nas suas etapas p sico ló g ica s dramáticas e libertadoras. Tam bém
por este cam inho “le ig o ”, o êx o d o revela a própria qualidade de
evento “transcendente” e perm anente, sem pre pronto a exercer
sua função eficaz.

O a sso b io e o m artelo

R esta-nos ainda um a questão: à parte o envoltório fenom ê-


nico dos eventos, quais são os cam inhos ou passagens através dos
quais Israel penetra para isolar a quahdade salvífica e transcen­
dente da história? D ois são os canais privilegiados, que teremos
ocasião de cruzar, nas diversas retomadas de n ossa viagem bíbli­
ca. O primeiro é o profético. Já vim os que a B íb lia retrata M oisés
com perfil de profeta, em bora os profetas entrem em cena séculos
depois: “N unca m ais apareceu em Israel um profeta com o M o i­
sé s” (Dt 34,10). Sabem os que o profeta, m ais que anunciador de
um futuro remoto, é um hom em batalhador em seu presente histó­
rico. Sua tarefa primordial é exatam ente revelar o sentido teo ló g i­
c o oculto da história que Israel está vivendo. Chamado nabV em
hebraico, “enviado” da divindade para com unicar uma m ensa­
gem , ou hozeh, “vidente”, porque capaz, pela “v isã o”, de intuir o
m istério e obter um conhecim ento superior, ele é bem definido,
em sua m issão, pelo termo grego com o qual foi indicado, profètes,
isto é, “aquele que fala em nom e de” um outro, “diante de” outros
e “antes de” um acontecim ento. Fundam entalm ente, é o primeiro
sentido que faz do profeta um “porta-voz de D eu s”.
É curiosa a descrição do relacionam ento entre M o isé s e
seu irm ão “falador”, Aarão, m odelado na relação entre D eu s e o
profeta: “Eu te fiz co m o um deus, e Aarão, teu irmão, será teu
profeta... ele será tua boca, e tu serás para e le um d eu s” (E x 7,1;
4 ,1 6 ). O profeta é o hom em que recebe um a m ensagem alheia
para com unicá-la. É um personagem “inspirado” e carism ático
que anuncia um a palavra transcendente, revestindo-a de cam c,
m uitas v e z e s colorin do-a c o m sua hum anidade: n ote-se o estilo
radicalm ente diferente de um Isaías, o “D ante da p oesia hebrai­
ca”, em relação ao de um rom ântico, com o Jerem ias, de um
“barroco”, co m o E zequiel, de um cam ponês vigoroso com o A m ós.
O profeta é in com preensível fora de seu próprio tem po, p ois sua
m issão é por ex celên cia descobrir “o s sinais dos tem p os”. O
profeta é, por isso , “datado” em todos o s sentidos, até m esm o na
m oldura histórico-espacial que se lhe atribui (leia m -se as prim ei­
ras linhas dos livros de Isaías, Jerem ias, E zequiel, A m ós, O séias,
A geu ). M as é tam bém “universal” porque em sua história parti­
cular e le d e v e revelar aquele projeto eterno, aquela “palavra de
D eu s que perm anece para sem pre”, aquela salvação que repercu­
tirá ao lon go dos sécu los, chegando até nós.
Por esta razão, toda a história narrada pela B íb lia é “pro­
fética ”. E têm razão os hebreus quando cham am os livros histó­
ricos do A n tigo T estam ento de “Profetas anteriores”, em relação
aos “Profetas posteriores”, isto é, os profetas com um ente c o n si­
derados. O profeta, pela sua capacidade carism ática de penetrar
além da superfície dos eventos, à procura do divino n eles e sc o n ­
dido, m ais do que por dotes m etapsíquicos de previdência, sabe
intuir a ló g ica de fundo co m a qual D eus traça o plano salvífico
e, portanto, entrever os desdobram entos futuros. H om em do pre­
sente, 0 profeta apresenta um a m en sagem que supera os marcos
tem porais lim itados e difun de-se em um a validade futura e uni­
versal, Hgada às constantes da ação de D eu s na história.
Um exem p lo da interpretação teo ló g ica da história, opera­
da pelo profeta, pode ser encontrado — entre os m últiplos e mais
im ediatos exem p los sugeridos por um a leitura direta dos escritos
proféticos — em um a proposta original, definida pelos estudio­
sos com o “teologia do instrum ento”. D eus, à primeira vista, pare­
ceria ser surpreendido todas as vezes que Israel é vencido pelas
superpotências p olítico-m ilitares, ou pelas várias provações às
quais a história o subm ete. O profeta mostra, ao contrário, que o
m utável destino do p ovo eleito pode ter um sign ificado recôndito
e que as potências agem não com o árbitros absolutos da história,
mas com o “instrum entos” da ação divina. A ssim , com um antro-
pom orfism o audaz, Isaias descreve o Senhor que, com um asso­
bio poderoso, convoca, com o se fossem insetos perturbadores, os
dois grandes im périos, E gito e A ssíria, para que venham atacar
Judá, mas sem aniquilá-lo: “O Senhor assobiará para as m oscas
da foz do rio do E gito e para as abelhas do país da Assíria. Elas
virão todas e pousarão nas grotas dos morros e nas fendas das
rochas, em todas as m oitas de espinhos e em todos os bebedou­
ros” (Is 7 ,1 8 -1 9 ). A o assobio do com andante suprem o da história
d ev e-se ob edecer im ediatam ente: “O Senhor dará um sinal para
um p ovo distante, assobiará para ele do extrem o da terra. Vejam!
E sse pov o ch ega v elo z e ligeiro” (Is 5 ,26). Outras vezes, uma
grande potência militar é vista com o o martelo com o qual D eus
golpeia. É 0 caso da A ssíria, lançada pelo Senhor contra Israel,
“nação ím pia”, “p ovo da m inha cólera” : “A i da A ssíria, vara da
m inha ira, bastão do meu furor” (Is 10,5-6).
“M arteladora” em nív el sim bólico e estilístico é a im agem
escolh id a por Jeremias para a Babilônia: “V o c ê , B abilônia, foi o
martelo, a m inha arma de guerra: con tigo m artelei nações, con ti­
go destruí reinos, con tigo m artelei cavalo e cavaleiro, contigo
m artelei carro a cocheiro, con tigo m artelei hom ens e m ulheres,
con tigo m artelei velhos e jo v e n s, contigo m artelei m oços e m o­
ças, con tig o m artelei pastores e rebanhos, con tigo m artelei lavra­
dores e juntas de b ois, contigo m artelei governadores e prefei­
tos” (Jr 5 1 ,2 0 -2 3 ). A i da superpotência, porém , que tiver v e le i­
dades de autonom ia no teatro da história, esq u ecen d o-se de que
é instrum ento nas m ãos divinas! Contra a A ssíria, que acha que
será bem -sucedida “d eslocan do as fronteiras nacionais e saque­
ando tesouros... com a força de sua m ão e com a sua sabedoria”,
Isaías retruca: “A caso o m achado se gloria contra aquele que o
segura? Ou a serra se engrandece contra aquele que a maneja?
C om o se o bastão pud esse balançar quem o engueu, ou a vara
levantar aquele que não é m adeira!” (Is 10,15).

A an tiga n o ite d a tran su m ân cia

À s v ésp era s da e c lo s ã o da I G uerra M u n d ial, Isaac


B asch evis-S in ger, o célebre escritor iídiche, prêm io N o b el de
literatura de 1978, é ainda um m enino, mas um a im agem se lhe
impregna: a de sua fam ília, que, na véspera da tragédia, sob o
pesadelo da guerra, prepara, co m o todos os judeus do gueto de
V arsóvia, o sed er, o conjunto dos rituais da páscoa judaica. D ez
anos depois, exilad o nos Estados U nid os, no conto 11 ve stito de
seta, da antologia Un gio rn o d i fe lic ità , e le relembra, com ovid o,
aqueles id os tem pos. O m esm o tem a é retom ado p elo escritor
judeu A lbert C ohen no L ib ro d i m ia m adre, se bem que, no seu
caso, o p esad elo seja representado pela II Guerra M undial e
p elos “pogrom ” nazistas. M esm a m oldura e m esm a tensão na
páscoa celebrada pelas fam ílias do gueto de V arsóvia, assediado
p elos nazistas, e que M arvin C hom sky reproduziu na fam osa
série de televisão H o lo ca u sto (1 9 7 9 ).
A p áscoa é intrinsecam ente ligada à noite, co m o esp len ­
dor de luz, à opressão, com o sign o de liberdade, à hum ilhação,
com o esperança de resgate. B asta ler o capítulo 12 do êxod o,
que d escreve a g ên ese e o ritual d essa festa, a qual entrou tam ­
bém para o cristianism o, em bora c o m fundam ento diferente, com
a cena eucarística e a morte e ressurreição de Cristo. M as a
princípio não era assim . E a definição da m udança ocorrida per-
m ite-nos caracterizar a segunda via através da qual a história
bíblica revela sua qualidade oculta e transcendente.
A princípio, a p áscoa era a festa prim averil da transumân-
cia dos pastores do Oriente. E is com o um grande arqueólogo e
historiador bíblico, R oland de V aux, em L e istitu zion i delV A n tico
Testam ento (lendo suas observações, d evem os procurar confrontá-
las com a relação do êx o d o ), descreve o arcaico ritual: “Q ue a
p áscoa seja festa de nôm ades ou sem inôm ad es, é fato v isív e l nos
seus ritos essenciais; é celebrada fora de um santuário, sem sa­
cerdotes nem liturgias oficiais; a vítim a do rebanho, assada e
não fervida, é com id a pelo s beduínos c o m pão ázim o (não-fer-
m entado) e co m ervas co m estív eis do deserto, todos vestid os
com o pastores a cam inho (cinto amarrado, sandálias nos pés,
bastão na m ão). É celebrada à noite, quando não há preocupa­
ç õ es com 0 rebanho, e de lua cheia, porque é m ais clara e porque
é a primeira lua da primavera, quando se parte para a transumân-
cia. É um m om ento d e c isiv o e perigoso, em virtude das con d i­
ções da estrada, da lo calização incerta dos pastos, das am eaças
de pequenos anim ais. E sses perigos eram personificados por um
dem ônio, o Destruidor, e, para proteger-se de seus ataques, eles
ungiam as tendas com sangue, E sse sacrifício p ré-israelítico pas­
cal guarda estreitas relações c o m o dos árabes pré-islâm icos,
esp ecialm en te co m o sacrifício do m ês de Radjab, a prim avera,
quando as vítim as são im oladas e consum idas para assegurar a
preservação e a fecundidade do rebanho”.
O que acontece, porém , com a inserção da p áscoa no co n ­
texto da noite da libertação do êxod o? A reviravolta é radical; a
festa, de sazonal e naturalista, tom a-se histórica; de celebração
ritmada p elo m ecanism o c íc lic o da natureza, to m a -se exaltação
da ação livre e surpreendente de D eu s, que irrom pe na história
de um p ovo. O nom e hebraico p e sa c h , m uitas v e z e s associado à
“p assagem ” do mar V erm elh o, é na realidade expressão da sal­
vação oferecid a a Israel p elo Senhor, o qual “ultrapassa, salta,
poupa” (co m o quer) as tendas dos israelitas, assinaladas pelo
sangue da vítim a pascal. A s roupas dos pastores em m archa são
as dos fu g itiv o s, e os pães sem ferm ento são sinal da pressa na
fuga; já, no D euteronôm io (1 6 ,3 ), e sse s pães to m a m -se “os pães
da m iséria”, enquanto as ervas amargas do deserto serão inter­
pretadas p elo rabino G am aliel co m o “a vida am arga que os eg íp ­
c io s nos fizeram passar”. A p áscoa, enfim , é integrada ao êxodo,
constituin d o-se na m em ória histórica do dom da libertação feito
por D eu s aos antepassados. Operada esta integração, efetu a-se
um a outra reviravolta. A liturgia, o rito e o culto em qualquer
civ ilizaçã o , m as de m od o sistem ático em Israel, não são lem ­
branças com em orativas e nostálgicas de even tos antigos ou pri­
m ordiais, e sim sua reatualização eficaz.
Para explicar m elhor, recorrerem os a um ex em p lo m ais
claro e evidente aos leitores de cultura ou origem cristã. A E uca­
ristia, isto é, a c e ia do Senhor, é a presença real de Cristo, de sua
m orte e glorificação, sob os sinais do pão e do vinho. A p áscoa
de Cristo é um even to histórico, único e pontual { e f hapax, d iz a
Carta aos H ebreus, “um a só v e z ”), m as p o ssu i um a carga de
eternidade que a faz transcender o esp aço e o tem po, perm itin­
d o-lh e tom ar-se presente tam bém no “h oje” m últiplo da história
e na diversidade espacial. É o que se costum a definir tecn ica­
m ente com o “sacram ento” . D á-se m ais ou m enos a m esm a co isa
tam bém com a p áscoa hebraica. N ão se trata apenas de m em ória
nacional-religiosa, m as de zikkarôn, “m em orial” v iv o e eterno
que co n seg u e “trespassar” o tem po, repropondo sua força salví-
fica. N o “h oje” da geração presente, reproduz-se o antigo evento
de liberdade e salvação, porque n ele opera o “hoje” d ivin o, ou
seja, 0 eterno. S ign ifica tiv a a e sse respeito é a h a ggadah , a
“narração” ritual que acom panha a p áscoa judaica; se os ritos
têm agora um a outra trama, sua finalidade é idêntica: “E m cada
geração, cada um d eve considerar-se co m o saído do E gito... O
Santo (D eu s) não redim e apenas n o sso s antepassados, m as com
eles tam bém n os redim e, com o está escrito: F ez-nos tam bém sair
de lá, para conduzir-nos e dar-nos a terra que prom etera aos
n o sso s antepassados. Por isso , tem os o dever de agradecer, de
celebrar e louvar A q u ele que, por n o sso s antepassados e por nós,
fe z todos aqueles prod ígios”.

O D eu s d a s m il em b o sca d a s

A liturgia é, portanto, o lugar no qual a “história santa” se


m anifesta, ligan do o presente aos grandes eventos sa lv ífic o s p as­
sados e abrindo-o a um futuro de plenitude. A tríade das princi­
pais solenidades do ano sagrado de Israel tem exatam ente essa
função. Já 0 v im o s em relação à P áscoa. E podem os dem onstrá-
lo tam bém no que tange à festa das Sem anas, ou P entecostes (50
dias dep ois da páscoa); a celebração da colh eita transform a-se,
no judaísm o, em m em ória da aliança histórica entre Jhwh e Israel
no Sinai, aliança preparada co m N o é (Gn 9), firmada depois
com Abraão (Gn 17) e renovada, sucessivam en te, pelo anúncio
de um novo pacto co m o Espírito divino por parte de Jerem ias
(3 1 ,3 1 -3 4 ). U m a aliança que não se exaure no Sinai, m as en v o l­
ve cada hom em ao lon go dos séculos. A m esm a evolu ção se
verifica na ju b ilosa festa da vindim a, cham ada das Cabanas, por
causa dos abrigos (tendas) erguidos nas vinhas durante a c o lh e i­
ta da uva. A s cabanas transfiguraram -se na liturgia de Israel,
tornando-se m em ória do período histórico da cam inhada pelo
deserto do Sinai e da vid a nôm ade sob as tendas e os abrigos
fortuitos: “M orarão em cabanas durante sete dias; todos os natu­
rais de Israel morarão em cabanas, para que seus descendentes
saibam que eu fiz os filh os de Israel habitar em cabanas quando
os tirei do E gito” (Lv 2 3 ,4 2 -4 3 ).
A B íb lia tira o rito do m ito, a liturgia, da energia cósm ica,
e transform a o culto em participação histórica eficaz do fiel na
história da salvação, que é m isteriosam ente subm etida à ator­
m entada vicissitu d e d e Israel, O profeta e o sacerdote, a palavra
sagrada e a ação sagrada são dois p ólos em to m o dos quais se
d esen v o lv e a história sagrada, isto é, aquele d esígn io de reden­
ção, de re-criação, de libertação que D eus im plem entou para
fazer frente à m iséria, à injustiça e às rupturas instauradas pelo
hom em e pelo m istério do m al na harmonia do ser.
Toda a história b íb lica é, na superfície, um a seqüência de
pequenos e grandes eventos e de vicissitud es humanas; em pro­
fundidade, é um itinerário oculto de luz. “D eus das m il em b os­
cadas e de um só interm inável silê n c io ”, escreveu o teó lo g o Pier
A n gelo Sequeri, A epifania de D eus, suas em boscadas nas raas
de D am asco m ultiplicam -se, “cavando” as incrustações da histó­
ria. E m baixo, d e sen v o lv e-se o perfeito e plen o silên cio de sua
eternidade, para o qual ele quer atrair-nos. O olh o do profeta e o
tem po da oração identificam seu aparecim ento, que é captado
tam bém pelo hom em briguento ou distraído. Isaías, surpreen­
dendo até m esm o Paulo, que o cita (R m 10,20), ch ega a se
referir a esta declaração divina; “Eu m e apresentei para aqueles
que não perguntavam por m im ; deixei que m e encontrassem
aqueles que não m e procuravam ” (Is 6 5 ,1 ). A obstinada fuga de
D eu s deságua sem pre no m esm o lugar, co m o canta o glorioso
S alm o 139: “Para onde irei, longe do teu sopro? / Para onde
fugirei, lon ge da tua presença? / S e subo ao céu , tu aí estás. / Se
m e deito no abism o, aí te encontro. / S e levanto v ô o para as
m argem da aurora, / se em igro para os con fin s do mar, / aí m e
alcançará tua esquerda, / e tua direita m e sustentará. / S e eu
digo: ‘A o m enos as trevas m e cubram, / e a luz se transform e em
noite ao m eu redor’, / m esm o as trevas não são trevas para ti, / e
a noite é clara com o o dia” (SI 139,7-12).
A história e o espaço são repletos de presenças transcen­
dentes, esperadas e tem idas, serenas e inquietantes. P ois se D eus,
no livro dos Provérbios, vem ao n osso encontro, com o nos qua­
dros de C hagall, nas encruzilhadas, d escend o quase às cum eeiras
das casas, sentando-se às m íseras m esas dos cam p oneses, esprei­
tando nos tribunais e nos palácios dos reis, é verdade tam bém
que, para A m ós, ele persegue os perversos co m m etódica pa­
ciên cia e inexorável constância. É o que o profeta cham a de jô n i-
Jhwh, “o dia do Senhor”, a inesperada irrupção divina na e n v ie ­
sada e escandalosa história humana, para executar o seu lento
m as justo e severo julgam ento. A m ós representa esta em boscada
com im agens da estepe percorrida pelas feras, im agens tiradas
da sua experiência de cam ponês de Judá. A cena é m ovim enta-
díssim a. Atrás do fu gitivo, ou v e-se o rugido do leão. D e repente
eis que surge um terrível urso à sua frente. E scapando com
habilidade de am bos os perigos, o fu g itiv o precipita-se para um
casebre. F ech a a porta, ofegante, e enco sta a m ão na parede:
um a serpente ven en osa se enrosca nela e a pica. “C om o será
para v o cês o D ia do Senhor? Será trevas, e não luz. Será co m o o
indivíduo que fo g e do leão e topa com o urso; ou com o a p e sso a
que, entrando em casa, apóia a m ão na parede e é picado p ela
cobra” (A m 5 ,1 8 -1 9 ).
0 império da lei

R e c o r d e - s e do dia em que v o c ê com pareceu diante do


Senhor seu D eus no Horeb [Sinai] e o Senhor m e disse: ‘R eúna
0 p ovo junto a m im , para que eu os faça ouvir m inhas pala­
vras...’ V o cês se aproxim aram e ficaram ao pé da m ontanha. A
m ontanha ardia em fo g o até o céu, em m eio a trevas e nuvens
escuras. O Senhor falou a v o cês do m eio do fo g o . V o c ês o u v i­
ram o som das palavras, mas não viram nenhum a forma; ouvia-
se apenas um a voz. E le lhes com unicou então a sua A liança,
para que vocês a cum prissem : as D e z Palavras, que ele escreveu
em duas tábuas de pedra.” A ssim o D euteronôm io, o quinto livro
da B íblia, construído sobre três grandes hom ilias de M oisés,
com entando as leis prom ulgadas n o Sinai, retoma, de m odo so ­
lene e pontual, a experiência do Sinai, o berço natalício de Israel,
com o qah tal, isto é, assem bléia convocad a pelo próprio D eu s,
com unidade religiosa e nacional (D t 4 ,1 0 -1 3 ). É o grande guia
do êxod o, M o isé s, o ún ico adm itido no d iálogo solitário e m ísti­
co com o Senhor, no cum e do m onte, quem se dirige a Israel
evocando o even to vivid o no Sinai.

D o cum e d o S in ai se a v ista a B a b ilô n ia

A narrativa do êxod o, contida nos capítulos 16-24 — do


mar dos C aniços ao Sinai (Horeb, segundo outra tradição) — ,
não d eve ser lid a co m o se fo sse um guia turístico-cultural da
península sinaítica. Certam ente que não faltam referências a lo ­
gradouros, estradas, even tos ocorridos n essa área geográfica: por
exem p lo, o m aná é um dom inesperado de D eu s, m as é tam bém
um a substância nutriente e resinosa que escorre da ta m a rix
m annifera, um a arvorezinha da qual os beduínos daquela região
ainda hoje tiram alim ento e essên cias alcoólicas. N ão raro o
“m ilagre” b íb lico é considerado com o tal m ais pelas circunstân­
cias de sua ocorrência do que pela substância de seu evento,
mantida sem pre a qualidade de “sin al”, isto é, de revelação de
um a presença d ivina na história que ele representa. N o Sinai,
c om o se sabe, em um a esp écie de antecipação sim bólica do
Israel fu gitivo, já estava, fugitivo da ira do faraó, M oisés, que,
na m oldura teofânica da sarça ardente, encontrara pela primeira
vez “Eu so u ”, Jhwh, o D eu s in v isív el, inom inável, inatingível, a
não ser m ediante sua palavra. E xatam ente pela finalidade te o ló ­
gica, dom inante na narrativa que diz respeito a M o isés e a Israel
no Sinai, torna-se problem ática a identificação topográfica do
m onte da aliança e da lei. A s hipóteses são su cessivas, m ultipli­
can d o-se até os n o sso s dias.
A tradição escolh eu três m ontes, em cujos pés se ergue o
m osteiro de Santa Catarina d e A lexandria, construído pelo im pe­
rador Justiniano, em 527. “C om o todo m osteiro de Santa Catari­
na, virgem e esp osa de Cristo, também a igreja de Santa Catarina
está localizada entre grandes montanhas, tendo do lado direito o
m onte Sinai. Há ali um b elo jardim e, no m esm o m osteiro, m ui­
tas celas de m onges que lá fazem penitência.” A ssim introduzia
seus registros de viagem um peregrino venezian o do século X VI.
O m osteiro ortodoxo, célebre por sua bib lioteca (3 5 0 0 preciosos
códigos: lá foi descoberto, por m ero acaso, em 1844, o C ódigo
do Sinai, que contém a B íb lia em grego), visitado por M aom é,
que deixou a im pressão da própria m ão sobre um a plataforma,
em sinal de reconhecim ento, lugar de espiritualidade perturbado
hoje por hordas de visitantes nem sempre m ísticos, tem atrás de
si, sobranceiro, além do m onte de Santa Catarina e do Ras Safsaf,
tam bém o G ebel M usa, o m onte de M oisés, a cujo cum e se chega
através de três mil degraus escavados na rocha. Lugar de grande
fascín io, atingido pelo sol e por ventos uivantes, rico em rochas
furta-cores, conform e o prism a do sol, este Sinai é o pano de
fundo sim bólico, se não real, perfeito para a experiência religiosa
vivid a por Israel em fuga da escravidão do Egito.
M as, com o d issem os no título, do cum e d o m onte Sinai,
paradoxalm ente, co n seg u e-se avistar, co m o olhar teológico, até
a B abilônia, passando por Jerusalém . Procurem os explicar esta
m etáfora, absurda em termos geográficos, m as pertinente h istó­
rica e teologicam ente. A tradição arcaica do Sinai, com a prim ei­
ra constituição de Israel, em p o v o dotado de estatuto nacional-
religioso próprio, tem , segundo os estu d iosos, g ê n e se autônom a
em relação às narrativas do êxodo do E gito e é de com p lexa
defin ição em seu n úcleo originário. A ssen te é, contudo, o fen ô ­
m en o posterior. C om efeito, Israel procurará reportar ao Sinai
co m o a um a fonte Santa, todo o sistem a legislativo religioso e
civ il do “E stado” hebraico então constituído. A s norm as que
regiam Israel estabelecid o na terra de Canaã, conquistada depois
da longa m archa p elo deserto, foram “retroprojetadas” sobre o
pano de fundo do Sinai, para que o b tivessem um a esp écie de
aval oficial e a canonização d ecisiva. C om efeito, com o um
m osaico de tribos nôm ades, que durante décadas, no deserto, se
preocupara única e ex clu sivam en te co m a própria sobrevivência,
teria podido instituir, com precisão e rigor, um corpo de normas
de direito c iv il, penal, social e religioso, co m artigo, parágrados,
in cisos, alíneas, e x c e ç õ es, elem entos de conexão m inudentes e
casuísticos?
Há, porém , algo m ais que nos lev a até a B abilônia e ao
sécu lo VI a.C. A tradição Sacerdotal, que já con h ecem os, está
preocupada em reconstruir, na terra dos antepassados novam ente
conquistada d ep ois do e x ílio na B abilônia, um Estado teocrático,
base indispensável para o futuro p olítico e religioso da renascida
nação hebraica. P roced e-se então à d efin ição de um sistem ático
projeto legisla tiv o , que os sacerdotes e escribas elaboram com
n g o r e acuidade. M as constata-se tam bém a n ecessid ad e de um a
sanção sagrada para tal sistema: há algo m ais sagrado do que
depor os c ó d ig o s à som bra do m onte de M oisés, do m onte da
aliança co m o Senhor, selada no Sinai, à som bra da figura do
grande “m estre” e guia do êxod o? É por isso que um a série de
textos leg isla tiv o s que dom inam páginas e páginas do livro do
êxod o, todo 0 L evítico e as m uitas passagen s legislativas que
perpassam o livro d os N úm eros — todos de índole sacerdotal-
“b ab ilôn ico”, em bora baseados em precedentes m ateriais n acio-
nal-jerosolim itanos — rem ontam aos S inai e ao tem po da mar­
cha pelo deserto, ocorrida sete sécu lo s antes. Subam os, p ois, nós
tam bém , ao cu m e da lei.
Israel d eixou atrás de si o E gito e o mar. A gora poderia,
idealm ente, cantar o salm o litúrgico pascal 114, aquele “In exitu
Isra el d e A e g y p to / que cantavam todos juntos a um a só v o z /
com quanto daquele S alm o é p ós-escrito” , co m o diz D ante (Pur­
gatório II, 4 6 -4 8 ). Cantaram -no durante sécu lo s o s hebreus (cri­
ando, no sécu lo XII, um a m elod ia rítm ica, próxim a do gregoria­
no católico), m as tam bém M endelssohn com p ôs um Salm o 11 4
op. 5 1 , bem com o o cató lico Bruckner e K odàly, para não falar
dos n egro sp iritu a l am ericanos. “Q uando Israel saiu do E gito / e
a casa de Jacó de um p o v o balbuciante, / Judá se tom ou seu
santuário [de D eu s], / e Israel o seu dom ínio. / A o v ê-lo s, o mar
fugiu / ... / o s m ontes saltitaram co m o carneiros, / e as colin as
com o cordeiros” (SI 1 14,1-4). M antido a distância por um perí­
m etro sagrado que transform a o m onte em um tem plo, Israel —
que fora definido com o “um reino de sacerdotes e um a nação
santa” (E x 19,6) — assiste à teofania acom panhada do costu m ei­
ro cortejo de nuvens, raios, terrem otos, erupções vulcânicas, sím ­
b olos do trem endum , isto é, da transcendência divina.
A voz que rasga esta colch a de prodígios có sm ico s é, no
entanto, o sinal do fa scin o su m , ou seja, da proxim idade e da
im anência de D eus na história do hom em . O destinatário privile­
giado é M o isés, que doravante será o m ediador entre o cum e
sagrado e o vale, entre a transcendência intocável de D eu s e sua
vontade a ser obedecida, entre Jhwh e Israel. A s prim eiras pala­
vras que D eu s pronuncia tom ar-se-ão, no decorrer dos séculos,
as D e z p a la v r a s por ex celên cia , o D ecá lo g o , a L ei suprema não
só de Israel, m as tam bém da cristandade e de m uitos “le ig o s” . E
até aqueles que, co m o G ide, em N utrim en li te rre n i (1 8 9 7 ), rea­
girão às lápides gravadas na história, porque “entorpecem a alm a”,
não poderão deixar de reconhecer-lhes o poder “lapidar” e a
força ordenadora ou subversora. S e Cristo responde, ao doutor
da lei, que lhe pede orientação para o cam inho da vida eterna,
co m um decisivo: “V o cê co n h ece os m andam entos”, Lutero, em
um a das “liç õ e s” do seu C a tecism o , ensinará: “N ã o há espelho
m elhor, em que se p o ssa ver aquilo de que se tem necessidade
do que justam ente os dez m andam entos, nos quais se encontra
aquilo que não se tem e aquilo que se d eve buscar”.
R etom em os essa página que a B íb lia repete duas v ezes
(E x 2 0 e D t 5) e que para m uitos talvez seja um a pálida lem ­
brança “catequética” da adolescência, sobre a qual se abateu o
véu do esqu ecim ento e da infidelidade. R etom em o-la, não para
escandir, m oralística ou ingenuam ente, seu s im perativos, à m a­
neira dos D e z m a n d a m en to s d e D e M ille (1 9 5 6 ), m as para aí
encontrar a ética perene, religiosa e natural, co m o fe z o diretor
le ig o K ieslow ski, autor d os esp lênd id os d ez film es do D e c á lo g o
(1 9 8 8 ). Ética natural e religiosa, dizíam os. Natural, não decerto
no sentido de um a proposta antropológica universal, m as no
sentido m ais existen cial de um perfil moral que Israel m esm o
hauriu de outras n ações e culturas; é fácil, com efeito, encontrar
a m aior parte dos im perativos do d ecálogo, sob form as diversas.
B abilônia ou n o E gito. N o entanto, distinta é a qualidade últim a
do D ecá lo g o bíblico: e le é um texto religioso. E o é por im por a
observância do sábado (o culto à divindade está presente, toda­
via, tam bém em outro lugar, co m relação ao m istério, ao sagra­
do, ao transcendente), m as sobretudo por causa do prim eiro m an­
dam ento e do quadro teo ló g ico geral. Sobre o quadro geral fala­
rem os mais adiante, ao abordar a “aliança”. Considerarem os agora
o primeiro preceito.
O prim eiro m andam ento não apenas abre m aterialm ente a
lista dos d ez preceitos, com o tam bém é sua chave religiosa;
tanto é verdade que ele será cham ado p elo s estu d iosos de m an­
dam ento “príncipe” ou principal, e o livro do D euteronôm io
tecerá sobre ele m ais de um a m editação. Basta lembrar o S h e m a ’,
o “Ouça, Israel!”, a profissão d e fé orante m ais cara ao hebreu
de todos os tem pos, extraída do D euteronôm io: “Ouça, Israel! O
Senhor n o sso D eu s é o único. Portanto, am e o Senhor seu D eus
com todo 0 seu coração, com toda a sua alm a e com toda a sua
força” (D t 6 ,4 -5 ). U m m andam ento de tal im portância que tem
três form ulações. A primeira é de tipo teológico: “N ã o tenha
outros deu ses diante de m im [ou contra m im ]” (Ex 2 0 ,3 ). N ão é
tanto a declaração de um m on oteísm o teórico, aliás, d e d efícil
expressão na lin guagem concreta e sim b ólica oriental. C om e fe i­
to, Israel estava saindo de etapas histórico-religiosas eivad as de
p oliteísm o ou de henoteísm o (um deus próprio ú n ico, prescin­
dindo daqueles das outras tribos ou n ações). Trata-se, antes, de
um m onoteísm o “afetivo” , o “amar Jhw^h co m todo o coração,
alm a e força” de que já falam os, independentem ente da questão
teórica m onoteísta. É ainda Lutero quem com en ta em seu C a te ­
cism o, de m odo pertinente: “Ter um só D eu s sign ifica ter aquilo
a que o coração se abandona totalm ente” .
Há um a segunda form ulação, de tipo “pastoral”, ou seja,
orientada para escolh as religiosas concretas: é o preceito que
varre, com o já tivem os ocasião de sublinhar, os ídolos e as im a­
gen s do Senhor D eu s de Israel, capazes de gerar idolatria ou
m agia (Ex 2 0 ,4 ). Jhwh, diferentem ente dos outros deuses que
escolh iam estátuas e sím b olos com o instrum entos de sua presen­
ça eficaz junto ao hom em , não é redutível a figura algum a, não
pode ser encerrado em um lugar, não é m anipulável com o um
objeto. E le é só voz, palavra, presença p esso a l e viva, mas não
objetivável e definível.
A terceira form ulação é de tipo cultuai: “N ão se prostre
diante d esses deuses, nem sirva a e le s ” (E x 2 0 ,5 ). O s dois verbos
indicam atos litúrgicos: em Israel, não se adm ite sincretism o
algum ; o D eu s de Israel é “ciu m en to”, co m o se afirma logo
dep ois, não quer repartir c o m nenhum outro o am or e a “proprie­
dade” do seu povo. A to de acusação contra toda idolatria, contra
toda degeneração religiosa e contra toda superstição, o primeiro
m andam ento é a afirm ação de um vínculo p essoal ex clu siv o de
am or entre D eu s e o p o v o . A partir daí, os preceitos seguintes
serão respeitados não tanto porque estão inscritos na con sciên cia
natural do hom em (ainda que esta seja um a realidade moral
afirm ada por muitas culturas), m as enquanto vontade revelada
p elo Senhor. São acolhidos em razão do vín culo de aliança entre
Jhwh e Israel, em razão de um a m otivação teo lógica, e não
antropológica, por fé e amor, e não por razão e filosofia. Se
q u iséssem o s um clim a ideal para acolher o D e c á lo g o , devería­
m os pensar na adoração, c o m o fundo m usical das Tre p ic c o le
litu rg ie d e lia p re se n za d ivin a , de O livier M essiaen (1 9 6 4 ).

D e z "nãos" ou d e z “s in s ” ?

C h ega a ser enfadonho, n o rol dos m andam entos do D ecá­


logo, o tom apodíctico, o dedo indicador em riste, am eaçador, a
negatividade sobranceira naq u ele contínuo “N ão fazer!” , inter-
114
rom pido apenas p elo s preceitos do sábado e do honrar os pais.
N a realidade, estam os diante de um recurso lin g ü ístico de matriz
sem ítica, destinado a exaltar a in cisivid ad e “lapidar” do com an­
do e sua generalidade, que não adm ite atenuantes, réplicas e
ex c e ç õ es . M as o sentido é certam ente tam bém p ositivo e criati­
vo. T entem os descobri-lo um pouco sob a glacialidade do im p e­
rativo negativo. T om em os o segundo m andam ento: “N ão pro­
n u n cie em vão o n om e do Senhor seu D e u s...” (E x 20,7). T od os
lo g o pensam na condenação da blasfêm ia, elem ento porém au­
sente, do m odo com o o con ceb em os, no antigo O riente Próxim o.
D e fato, está em xeque o “n om e”, que, para o sem ita, é a realida­
de m esm a de um ser, pronunciado “em v ã o ” : em hebraico, "em
vão” é sh a w ’, termo do lé x ic o idolátrico que indica a “vaidade”,
a “vacuidade” do ídolo. O preceito, então, veda toda deform ação
da realidade de D eu s; para usar ainda um a im agem de Lutero,
con d en a-se a sim ia D e i, a “m acaqueação de D eu s”, o D eu s M e ­
dusa ou “tapa-buracos” denunciado por B onhoeffer, o teó lo g o
enforcado em um cam po de concentração nazista. O preceito
torna-se, portanto, um apelo à pureza da religião, ao recon h eci­
m ento glorioso da grandeza e da santidade divinas (“Santificado
seja o seu n om e”).
O sábado, terceiro m andam ento, é o oásis no tem po, onde
se encontra a harm onia da criação e se entra no “rep ou so” de
D eu s, isto é, na eternidade (Ex 2 0,8-11; ver Gn 2 ,2 -3 ), ou onde
se redescobre o dom da liberdade religiosa e social (D t 5 ,1 2 -1 5 ).
A oração e o culto são um a esp écie de canal aberto no infinito e
no eterno de D eu s. É o tesouro da intim idade oferecido por Jhwh
a Israel, co m o afirm a um texto rabínico; “D eus d isse a M oisés:
‘M o isé s, p ossu o em m inha tesouraria um dom p recioso que se
cham a sábado. Quero presenteá-lo som ente a Israel’” .
O quarto m andam ento, o “honrar pai e m ãe” (E x 2 0 ,1 2 ), é
o e ix o da vida social; tanto é verdade que ele é seg u id o por uma
bênção (“para que se prolonguem o s seus d ia s...”). N o pai e na
m ãe, que são o e ix o do clã fam iliar, resum em -se todas as rela­
çõ es fam iliares, tribais e nacionais.
O “não matar” do quinto m andam ento, que se tom ou fa­
m o so por suas diversas adaptações, tam bém p olêm icas (p en se­
m os no film e hom ônim o de C laude Autant-Lara), celebra positi-
vãm ente o direito à vida, considerada realidade sagrada: “Q uem
esparge o sangue do hom em , p elo h om em seu sangue será espar­
gid o, porque à im agem de D eus o h om em fo i feito ” (Gn 6,9).
N egativam ente, co m o se sabe, é necessário recordar que nem
todos os assassínios são proibidos pelo A n tigo Testam ento: bas­
ta pensar na lei de talião em caso de h om icíd io, no “anátem a”
{h erem ), isto é, no m orticínio enquanto h olocausto a ser ofereci­
do a D eu s na “guerra santa”, na pena capital, em alguns casos
regulam entada pela lei bíblica. O verbo hebraico usado pelo
preceito d iz respeito a toda ação violenta sobre alguém indefeso,
isto é, o assassinato.
O "não com eter adultério” — sex to m andam ento (Ex
2 0 ,1 4 ), am pliado pela tradição posterior — exalta o direito ao
m atrim ônio, codificado m inuciosam ente segundo os cânones so ­
ciais e h istóricos, m uitas v ezes datados, em várias outras passa­
gens legislativas bíblicas.
O sétim o m andam ento (E x 2 0 ,1 5 ), m ais que a tutela da
propriedade tribal, tem em mira a liberdade pessoal: “não rou­
bar” sign ifica, na realidade, não seqüestrar alguém ” para fins
escravocratas.
A verdade no âm bito processual, fundam ental em civiHza-
çõ es de perfil oral, é o objeto do oitavo m andam ento (Ex 20,16).
que tutela o direito de honra contra o “falso testem unho” em
um a corte judicial. A im portância d essa norm a é atestada pelo
fato de ela constar da introdução do fam oso C ód igo de Hamurábi.
O n on o e o décim o m andam entos (Ex 2 0 ,1 7 ) tutelam o
direito à propriedade familiar: d os bens (casa, escravos, bois e
asnos) faz parte tam bém a mulher, considerada, em um a estrutu­
ra social de caráter m achista, um tesouro do clã, enquanto gera­
dora de filh o s, e não um “tesouro” no sentido afetivo! O “não
cobiçar” do m andam ento, m uitas v ezes alvo de ironias leigas, é
m ais sério e realista do que p o ssa parecer à prim eira vista. Em
hebraico, h a m a d não indica, de fato, um vago d esejo ou uma
atração instintiva, mas sim um a esco lh a radical, um a m aquina­
ção para realizar um projeto. É, portanto, um a d ecisão da vonta­
de a evitar, diferente da sim p les em oção ou tensão espontânea
em relação à m ulher ou à p o sse alheia. Por essa perspectiva
d evem os entender tam bém a adm oestação de Jesus: “T odo aque­
le que olha para um a m ulher e deseja p ossu í-la, já com eteu
adultério com ela no coração” (M t 5 ,2 8 ). Pronto a perdoar a
adúltera por fraqueza, Jesus é severo, in dependentem ente até do
resultado da “cob iça ”, co m quem decide firm em ente pecar em
sua con sciên cia.
Princípios morais fundamentais, divididos em duas tábuas
ideais, a “vertical” para D eu s (do primeiro ao terceiro m andam en­
to) e a “horizontal” para o próxim o (do quarto em diante), os dez
mandam entos trazem certam ente a marca de sua contingência h is­
tórica e social. A ssim com o toda a B íblia, se é verdade — com o
exphcam os no capítulo precedente — que ela é a narração de uma
história humana em cujo bojo se abriga a presença do divino. Sob
o ônus do negativo, do interdito am eaçador, dos condicionam en­
tos socioculturais, do moraUsmo, m anifesta-se, todavia, um proje­
to de hom em que reconhece o m istério sem subm etê-lo, que res­
peita 0 transcendente, que se com prom ete com a sociedade em
prol da vida, do m atrim ônio, da liberdade, da dignidade hum ana e
da realização individual com os bens obtidos. O D ecálogo não é
tanto um m onótono rosário de proibições; é a construção de um
perfil ético e religioso. Os dez m andam entos são dez “nãos” pro­
nunciados prelim inarm ente, para que se tom em depois dez “sin s”
na existên cia pessoal e social do hom em .

O im pério d a lei

Influenciado por Freud, em 1944 T hom as M ann publicou


um rom ance intitulado D a s G esetz, [A le i], um texto su g estiv o
no qual e x p õ e um a interpretação própria sobre o aparato de leis
que tom am pesada a leitura im ediata do Pentateuco (cham ado
justam ente “L e i”, em bora o hebraico T ôrah rem eta m ais a um
“ensinam ento”). M oisés, segundo o fa m o so escritor alem ão, nas­
ceu da união ileg a l da filh a do faraó c o m um hebreu. N o íntim o,
oculta um ressentim ento p elo próprio estado, que se m anifesta,
prim ariam ente, no tem peram ento co lérico e passional e, subli-
m adam ente, no desejo p elo “inabalável, p ela ordem, p ela proibi­
ção, p elo espiritual, p elo puro, p elo santo” que resgatam as pul-
sõ es e as origens de sua existência. A ssim , ele opta p e lo deus
in v isív el dos m adianitas, cujo n om e era Jahweh, transform ando-
o no deus dos patriarcas hebreus. É esta divindade que in veste
M o isés de um a m issão; a “de fazer de um a horda de prim itivos
um a civ iliza çã o ” . E e le executa sua tarefa através da lei. O “não
com eter adultério” será, em certo sentido, o resgate das suas
origens, m as não im pedirá que o hom em M o isés tenha ligação
com um a “etío p e”, isto é, uma m ulher negra, prolongando o
drama de sua gên ese. N ã o obstante, as leis que ele im porá em
n om e de D eu s serão universalm ente válidas e, na sua pureza,
nascerão da “in visibilidad e”, isto é, da transcendência de Jahweh,
o in v isív el deus m adianita tom ado deus de Israel.
Para além da fantasia do argumento histórico e dos con d i­
cionam en tos freudianos, na parábola m osaica de Mann podem os
encontrar dois elem entos significativos para ilustrar o sistem a
legal bíblico. D e um lado, há a firm e con vicção de que suas
origens são reveladas. Por exem plo, o assim cham ado “cód igo
da aliança”, prom ulgado idealm ente no Sinai co m o protocolo da
aliança com Jhwh (E x 2 0 -2 3 ), inicia-se com esta asserção: “O
Senhor d isse a M oisés: ‘D ig a aos filhos de Israel: V o cês viram
que eu lhes falei lá do c é u ...” (E x 2 0 ,2 2 ). Entretanto, nas normas
de direito civ il, penal, relig io so e social contidas no có d igo, os
exegetas isolaram certos contatos com remotos có d igos sum é-
rios ou babilônicos de Lipit-Ishtar e de Hamurábi, com o egíp cio
de H orem heb e com os hititas, todos com raízes no direito con-
suetudinário arcaico e secular do antigo Oriente Próxim o. A
qualidade divina con siste no selo colocado nas normas; consiste,
um a v e z m ais, na co n sciên cia de manter relação co m um a d ivin ­
dade que não assiste, rem ota e im passivelm ente, em sua fausta e
im perial eternidade, m ínim as vicissitudes humanas, m as que, ao
contrário, esco lh e o cam inho da história, do pó das estradas
terrenas, dos usos e costu m es hum anos, para revelar-se e para
oferecer sua presença e sua salvação.
Por outro lado, porém , as leis não deixam de ser humanas
e, portanto, caducas, variáveis, m inuciosas, contingentes, proble­
m áticas, adaptadas a con textos socio-culturais datados e circuns­
critos. A ssim , se no L ev ítico encontram os uma p assagem tão
nobre, que conquistou tam bém Jesus de Nazaré, o céleb re “N ão
guarde ódio contra o seu irm ão... N ão seja vingativo, nem guar­
de rancor contra seus con cid ad ões. A m e o seu próxim o com o a
si m e sm o ” (L v 19,17-18), p oucas páginas antes encontram os
um a interm inável casu ística sobre a assim cham ada “lepra”, que
na realidade com preendia tumores da pele, pústulas, úlceras, m an­
chas, afecçõ es do couro cabeludo, exantem as e até ca lv ície, além
de um a assom brosa lepra que se alastrava sobre a p ele, até cobrir
o doente dos pés à cabeça (L v 13-14). S e o D euteronôm io nos
oferece um a “lei predicativa”, isto é, acom panhada de calorosas
m otivações, de apelos ao amor, à pureza da fé, à integridade da
religião e do culto a ser praticado em um ún ico tem plo, para
evitar degenerações, é tam bém o m esm o livro — de origem não-
sacerdotal e de forte alento espiritual — que regulam enta os
parapeitos dos terraços (D t 2 2 ,8 ), as borlas nas quatro pontas do
m anto (2 2 ,1 2 ), a captura dos passarinhos (2 2 ,6 -7 ), que im pede à
m ulher vestir-se co m o hom em , e ao hom em vestir-se co m o m u­
lher, por considerar isso um a prática idolátrica estrangeira (22,5),
que salvaguarda as árvores frutíferas do inim igo durante os a ssé­
d ios (2 0 ,1 9 -2 0 ), e assim por diante.
Instituições n obilíssim as, com o a do ano sabático (a cada
sete anos) e a do ju b ileu (a cada cinqüenta anos), que visavam a
restabelecer um a certa paridade social entre os m em bros do povo
(Lv 25; D t 15), aparecem de perm eio com d eliciosas, e para nós
surpreendentes, norm as alim entares concretas, que listam p ei­
xes, pássaros, anim ais e até insetos co m estív eis ou não, com
base em arcaicos tabus folcló rico s, am bientais e religiosos (Lv
H ; D t 14). P rescrições rituais de alta espiritualidade, co m o as
atinentes à solenidad e do Kippur, o grande dia da E xpiação, no
qual os pecados do p o v o eram con fessa d o s e sim bolicam ente
transm itidos a um bode expiatório, enviado depois paia m o n er
no deserto (L v 16), são justapostas, "em duas cópias", a pedan-
tíssim as regras referentes à arca da presença divina, isto é, o
santuário m ó v el dos hebreus no deserto, com seus acessórios,
paramentos sacerdotais, sacrifícios, oferendas, m ateriais a serem
u tilizados e centenas de m inu ciosas particularidades rituais (Ex
25-31; 3 5 -4 0 ).
A leitura dessas e de outras páginas pode resultar árida e
desconcertante, em bora se trate de um a preciosa fonte para os
estudiosos de so cio lo g ia bíblica, de antropologia cultural, de et-
nografia. C on solid a-se, acim a de tudo, a visão de um “im pério
da le i” que, no Estado nascido das cinzas do ex ílio , descrito nos
livros de Esdras e N eem ias, assum e traços teocráticos e revela
um form alism o e x c e ssiv o , contra o qual — com o verem os —
reagirão os profetas (e em seguida Jesus). A Tôrah assim crista­
lizada tom a-se carta constitucional e có d ig o civ il e penal; o sa­
grado é com o um m anto que procura cobrir todos os aspectos da
vida do povo; o que ficar de fora será autom aticam ente co n sid e­
rado “im puro” e, portanto profano, condenado, não-válido. S e o
“im pério dos sentidos”, co m o ensinou o lúgubre film e de N agisha
O shim a (1 9 7 6 ), é im placável e m ortífero fisicam ente, o im pério
da lei pode ser igualm ente inexorável e mortal em n ível espiri­
tual. M as a leg isla çã o bíblica, em bora am eaçada de tal risco,
representado pela prática ob sessiv a de certas tardo-observâncias
e p elo s m ovim entos integralistas e fundam entalistas, exorciza o
perigo de um sacralism o m ágico. C om o se dá esta “santificação”
do sagrado — os term os serão explicados a seguir — , esta prisão
da onipresença da lei sagrada e sua recondução a um com pro­
m isso deliberadam ente aceito? É o que observarem os de im edia­
to, evocan d o um a outra cen a Sinaítica.

A s b a c ia s d e san gue d o Sinai

D ificilm en te um leitor conseguiria perceber que o capítulo


24 do êx o d o (versículos 1-11) é um engaste de duas narrativas
diferentes co m o m esm o tem a. N o entanto, há um sinal na super­
fíc ie, para além dos m icro scó p ico s sinais literários, que só os
exeg eta s podem relevar e revelar. O tem a é de fácil com preen­
são: está-se realizando um rito da aliança, isto é, liturgicam ente,
está-se aperfeiçoando a n ova relação que se estabeleceu, no Sinai,
entre Israel e Jhwh. O portunam ente, já con hecem os um arcaico
ritual d e aliança; recorda-se o leitor dos anim ais esquartejados,
co lo c a d o s em duas fileiras por Abraão, do terror noturno e do
fo m o fum egante narrados n o capítulo 15 do G ên esis? A gora o
rito é diferente, apesar d os aspectos igualm ente sanguinolentos.
O uçam os a narração do êxod o: “M o isés mandou alguns joven s
de Israel oferecer holocaustos e im olar novilhos ao Senhor com o
sacrifício de com unhão, M o isé s p egou a m etade do sangue e
co lo c o u em bacias; a outra m etade do sangue, ele a derramou
sobre o altar. P egou o livro da A liança e o leu para o p ovo. E les
disseram : ‘Farem os tudo o que o Senhor mandou e obedecere­
m o s ’. M o isés pegou o sangue e o espalhou sobre o p o vo, d izen ­
do: ‘E ste é o sangue da aliança que o Senhor faz co m vocês
através de todas essas clá u su la s’” (E x 2 4 ,5 -8 ).
O term o indicativo do n ú cleo tem ático do trecho aparece
duas v ezes, bertt, “ahança”, “p acto”, “c o m p ro m isso” . Claro é
tam bém o sacrifício, o holocausto no qual a vítim a é totalm ente
queim ada com o oferta que sob e a D eus, enquanto seu sangue é
recolhido e aspergido. E exatam ente n esse ponto que o rito de
aliança se tom a transparente. M etade do sangue é derramada
sobre o altar, sím b olo do Senhor, o parceiro superior, o sobera­
no; a outra m etade, recolhida nas bacias, é aspergida sobre o
p ovo, o segundo contratante, o vassalo. O s dois atores do pacto
se vinculam por um laço de sangue, por um a com unhão vital,
sendo o sangue o sím bolo da vida. O com p rom isso de D eu s é o
de salvar seu aliado, de gu iá-lo para a terra prom etida, de ofere­
cer-lhe a sua palavra. O com p rom isso de Israel co n siste na a c o ­
lhida do “có d ig o da aliança”, isto é, na aceitação da lei anterior­
m ente definida. A lei tom a-se, assim , com p rom isso p esso a l e
social para que Israel perm aneça unido ao próprio D eus: é um a
resposta livre ao seu ato livre. A s norm as, então, não são m ais
um m eteorito caído do céu que atinge Israel, esm agando-o, mas
um a d ecisão vital, livre e conscientem en te assum ida em um tra­
tado bilateral (segu n do o m od elo de análogos tratados ditos “de
vassalagem ”, em u so na M eia-L ua Fértil e estipulados entre um
Grande R ei e o s príncipes v assalos, de co n d içõ es inferiores e
dependentes).
D izía m o s que no capítulo 24 do Ê xo d o há a m arca de um a
outra narrativa da berit-aliãnça. do Sinai. É um a narrativa m ais
velada, m as igualm ente sugestiva. M o isés, Aarão e o “sen ad o”
de Israel sob em ao topo do m onte e lá, não obstante a proibição
ritual e m etafísica de “ver a D e u s”, co n seg u em ter um a percep­
ção direta: “V iram o D eu s de Israel; sob seus pés, h avia um a
esp écie de pavim ento de safira, tão pura co m o o próprio céu. E o
Senhor não estendeu a m ão contra os notáveis de Israel; eles
contemplaram a Deus e depois comeram e beberam” (Ex 24,10-11).
C uriosa esta observação final sobre a co m id a consum ida sobre o
pavim ento de safira do trono divino: para m uitos intérpretes, ela
rem ete a um dos cham ados “sacrifícios de com unhão ou de p a z”,
sacrifícios n o s quais sacerdotes e fié is se alim entavam das car­
nes da vítim a. C om o exp lica L évi-Strauss, em seu O cru e o
co zid o , todas as civ iliza çõ es antigas e recentes, prim itivas ou
evoluídas, vêem na refeição a com un icação da alegria, do amor
(o banquete nupcial), do nascim ento, e até m esm o da m orte (a
P an ich id a fúnebre da liturgia ortodoxa). O alim ento é sinal de
intim idade, de com unhão, de aliança m esm o. Sangue e alim ento,
holocausto e sacrifício de com unhão tornam -se, então, expressão
de um com prom isso que vinculará D eu s e Israel pelos séculos,
fazendo de Jhwh o com panheiro de via g em da história de um
p ovo. O próprio Jesus, na últim a ceia, reportar-se-á ao rito de
sangue do Sinai, pronunciando sobre o c á lice as palavras: “E ste
cá lice é a nova aliança do m eu sangue, que é derramado por
v o c c s” (L c 2 2,20). N a sua frase há um a insinuação a um outro
texto bíb lico que lo g o m ais considerarem os.
M as a história desta aliança não foi gloriosa. Sulcada por
infidelidad es, dilacerada por rebeliões, revogada por idolatrias, a
aliança Sinaítica tinha seu ponto fraco na observância da lei, isto
é, no com prom isso de Israel. B astou, com efeito , que se d escesse
do m onte para se descobrir quão frágil era a fidelidade do par­
ceiro hum ano. “B em d epressa se esqu eceram das obras [de
D eu s],... não confiaram no seu projeto / ... / E m Horeb fabrica­
ram um novilho, / adoraram um íd olo de m etal, / trocaram sua
G lória p ela im agem de um touro, com edor de capim . / E sq u ece­
ram 0 D eu s que salvou ” (SI 1 0 6 ,1 3 .1 9 -2 1 ).

A lá p id e p a rtid a

“M o isés voltou e d esceu da montanha, co m as duas tábuas


da aliança na mão, tábuas escritas nos dois lados, na frente e no
verso. A s tábuas eram obra de D eus, e a escritura era feita por
D eu s, gravada nas tábuas... Quando se aproxim ou do acam pa­
m ento e viu 0 bezerro e as danças, M oisés fico u enfurecido,
jo g o u as tábuas e as quebrou no pé da m ontanha. P egou o bezer­
ro que haviam feito, o queim ou e o m oeu até reduzi-lo a pó.
D ep o is espalhou o pó na água e fez os filhos de Israel beber”
(E x 3 2 ,1 5 -2 0 ). N em R afael, que — com o tantos outros artistas
— inseriu esta cena no conjunto de suas oito obras sobre o
êx o d o , representadas nos pórticos do V aticano, co n segu iu repro­
duzir de m odo tão icástico o delito do “touro que co m e capim ”,
venerado com o sím bolo do Senhor.
Israel acabara de selar a aliança co m Jhwh, acabara de se
com prom eter c o m o prim eiro e principal m andam ento, que im ­
punha a pureza absoluta da fé, e já estava entregue ao fascínio
do cu lto cananeu da fertilidade. É evid en te que se quer sintetizar
e reportar às raízes sinaíticas um a g en ealogia constante de infi­
delidades consum adas por Israel ao longo dos sécu los de sua
história. Basta pensar na d ecisão do rei Jeroboão I, que, separan-
d o-se de Jerusalém e constituindo um reino hebraico indepen­
dente, no norte da Palestina, “preparou dois bezerros de ouro e
d isse a todo o povo: ‘E is aqui, Israel, o seu D eu s, aquele que
tirou v o cê da terra do E g ito ’” (IR s 12,28-29).
O im pério da lei na B íb lia não suprim e a liberdade, que
p ode ainda “em pastar-se”, ora sob a árvore do con hecim ento do
B em e do M al, ora junto ao m onte da lei e da palavra divina. O
autor sagrado fala com desprezo de um bezerro, em bora — com o
sabem os — esteja em cena o touro, forte e fecundo com o Baal
Hadad, o deus cananeu da tem pestade, geralm ente representado
sobre um touro com um raio na m ão, ou o touro eg íp cio Á pis de
H elióp olis, sím b olo de Osíris, ou o touro M nevis, deus solar
eg íp cio de M ênfis. A o contrário do que se pensa, não é que
Israel adore o touro de Baal e, portanto, com eta um a apostasia
radical. N a realidade, apenas resolve representar m aterialm ente
Jhwh, divindade m uito transcendente. O s estu diosos estão m e s­
mo con v en cid o s de que o bezerro de ouro devia ser um sim ples
pedestal sobre o qual se im aginava que Jhwh se sentasse, com o
sobre um trono terreno. D e resto, tam bém a arca tinha o s queru­
bins, que sustentavam um lastro de ouro puro, considerado o
“estrado dos pés de D eu s”, ou o sinal de sua presença terrena.
M as isso é su ficien te para desencadear a ira de um D eus que não
quer ser m anipulado, reduzido a objeto, considerado um a ener­
gia cósm ica, hum ilhado com o um a “vaidade”, ou seja, um ídolo.
D iante d esse pecado capital, avalizado pela com p lacen te
aceitação de Aarão, o irmão sacerdote de M oisés, a reação é
duríssim a. A lápide quebrada da lei é seu em blem a eloqüente:
naqueles b lo co s de pedra partidos, sobre os quais ainda palpita a
“escritura de D eu s”, isto é, sua e fic a z palavra hum ilhada, c o n fi­
gura-se claram ente a ruptura entre D eu s e o hom em . O bezerro,
im potente e inerte, é estilhaçado p ela irrupção do ju ízo divino.
B eb en d o -lh e com o um a provação, o s fragm entos esparsos na
água, os israelitas con fessa m sim boU cam ente a incorporação do
pecado que lhes penetrou até as entranhas. A m aldição pela
violação da aliança tom a-se, assim , sangue do seu sangue, carne
da sua carne. A cadeia de infidelidades à aliança e à lei divina se
estenderá p elo s sécu lo s, repropondo-se co m o sucessão de p eca­
dos teo ló g ico s, e não m eram ente éticos. N a cen a do bezerro de
ouro, tip ifica-se a genuína essên cia do pecado bíblico, que é
religioso no sentido m ais profundo do term o, pois viola aquele
“liam e” co m D eu s que a re lig io d eve estab elecer e estreitar.
A iconografia tradicional contenta-se em ver na cena a
condenação da idolatria enquanto tal: é este o pensam ento que
surge espontaneam ente quando, passeando sob os arcos dos Pór­
ticos do V aticano, erguem os o olhar para o afresco de R afael, ou
quando, sobre o pavim ento da capela m aior central da Catedral
de Siena, percebem os a m esm a cena representada por B eccafum i,
por volta de 1525. T a lv ez nos p ossa ajudar principalm ente o
M o sè e A ronn e, de Schõnberg, obra m usical extraordinária, m ag­
n ífica reflexão sonoro-vocal sobre o con ceito bíblico de D eus
(espírito, pensam ento, pureza absoluta), inacabada depois do pri­
m eiro e do segundo ato (1 9 2 8 e 1930-32) e executada som ente
após a m orte do autor, o corrida em 1951. A partir da trama de
sua partitura, dois diretores, Jean-M arie Straub e D anièle H uillet,
rodaram em A b m zzo , em 1975, um film e de título hom ônim o.
N o prim eiro ato, entra em cen a a vocação de M oisés. S eg u e-se o
encontro, no deserto, entre e le e Aarão, um relacionam ento que
terá grande im portância n o desenrolar dos fatos. M oisés é o
m ediador de D eus, mas se sente incapacitado para atingir o ou ­
tro term o da m ediação; o p ovo. Aarão, que na obra de Schõnberg
decantará a palavra de D eu s, m ediada por M o isés, revela-se um
filtro infiel. M o isés p ercebe que a idéia divina é traída no pró­
prio m om ento em que é transm itida por Aarão. Traição c o n s­
ciente, ou necessária e obrigatória, toda v ez que a instituição
m ed eia o transcendente. O segun do ato é todo dedicado ao ep i­
sód io do bezerro de ouro, enquanto o registro superior da cena
apresenta M o isés dialogando co m D eus no Sinai. O terceiro ato
fo i co m p o sto com base n o projeto de Schõnberg, não realizado
em n ív el m usical, e representa a virulenta condenação de Aarão
por parte de M oisés.
N o film e, co m o na obra m usical, confrontam -se duas co n ­
cep çõ es de D eu s. A de Aarão é B ild e rn ”, isto é, “em im a­
g en s”, e é a oferta de um D eu s “hum ano” d em a g ó gico, alienante
na louca orgia do culto sexual cananeu, um D eu s fácil e próxi­
m o. O D eu s de M o isés é, ao contrário, “m B eg rijfen ”, isto é,
“em co n ceito s” ; é desum ano, exigen te, transcendente, que se dá
apenas por sua palavra, in v isív el e, no entanto, paradoxalm ente,
libertador. E le põe fim ao ritualism o, rom pe os grilhões da e s­
cravidão e leva Israel a um destino glorioso. N o film e, porém ,
acrescenta-se um aspecto inexistente na obra de Schõnberg: o
D eu s de M o isés tam bém é visto co m o in im igo do direito hum a­
no à plena autodeterm inação. O con vite a se desem baraçar de
d eu ses e líderes, a tomar as rédeas da própria sorte, a reivindica­
ção de autonom ia, é algo de todo estranho a Schõnberg, que,
com essa obra, parece remontar às suas m atrizes espirituais. A
opção entre as duas divindades, entre as duas teologias, é, de
qualquer m odo, fundam ental nas páginas bíblicas de E x 32-34,
dedicadas à aliança violada em virtude antes de um pecado teo ­
ló g ico do que em razão do pecado “original”, radical, capital.

A lei não é p a r a a esc ra v id ã o

A aliança é para a liberdade; portanto, a lei não é para a


escravidão. O hom em pode escolh er aderir à vontade divina,
expressa na lei, vivend o, em conseq üên cia, a ahança co m o S e ­
nhor de m od o constante e fiel. R om pido o vínculo, D eu s se
dispõe à reconciliação e ao reatam ento do fio da berit. N a narra­
tiva de Ex 3 2 -3 4 , de fato, consum ado o delito, celebra-se, com
arrependim ento, o perdão que desem bocará na renovação da ali­
ança e em um no v o D ecá lo g o de ín d ole ritual (na realidade,
trata-se de um docum ento arcaico de m andam entos litúrgicos
aqui inserido p elo narrador). A o culto idolátrico do touro sagra­
do cananeu o p õ e-se, então, a verdadeira liturgia espiritual do
santuário hebraico, esboçada co m abundância de detalhes em
toda a segunda parte do livro do êx o d o (capítulos 2 5-31; 35 -4 0 ).
V ivid a na liberdade, a lei não é m ais um a insuportável capa de
preceitos, m as “luz para os cam in hos” da vida, com o diz o S al­
m o 119 (versículo 105). E é justam ente ao S alm o 119 que quere­
m os nos reportar para com preender a alegria experim entada pelo
fiel cuja observância se pauta p elo amor, e não pela obrigação.
Dietrich B onhoeffer escreveu em P re g a re i Salm i con C ris­
to: “S em dúvida, o S alm o 119 é particularm ente pesado por sua
exten são e m onotonia, mas devem os justam ente proceder pala­
vra por palavra, frase por frase, bem lenta, tranqüila e paciente­
m ente. D escobrirem os, então, que as aparentes repetições são,
na realidade, aspectos n o v o s de um a única e m esm a realidade: o
amor pela palavra de D e u s”. D e fato, a Tôrah, cantada n esse
longo salm o, o m ais lo n g o de todo o Saltério, não é som enle a
“le i” divina, m as a palavra revelada, pela qual o canto se trans­
form a em um “alfabeto de louvor e da adesão a D eu s”, com o foi
observado. O contínuo paralelism o, que estrutura todo o salm o e
que é característico da p o esia sem ítica, assem elha esse “m oto
perpetuo” da fidelidad e jahvista à m úsica oriental, que repete
ininterruptam ente as suas células sonoras, desatando-as em uma
espiral que, em bora debulhada sobre círculos paralelos, se d e­
sen v o lv e na direção de n o v o s espaços. É um a im agem que já
usam os para o paralelism o e que agora repetim os porque no
“salm o da lei de D eu s” a técnica paralelística tem sua aplicação
m ais evidente. A repetição tem a finalidade de gerar a assim ila­
ção e a adesão, mas se abre tam bém à progressão para m istérios
insuspeitados.
E ste co lo ssa l hino sapiencial — que Pascal recitava todos
os dias — é regulado por um com p lexo sistem a acróstico alfabé­
tico e lexical. A primeira palavra dos 22 octonários e de cada um
dos 176 versículos de que se com p õe o Salm o 119 inicia-se com
um a letra do alfabeto hebraico, sucessivam ente: assim , por exem ­
plo, o prim eiro octonário designad o pela prim eira letra hebraica,
‘alef, tem oito palavras (um a para o com eço de cada versículo),
iniciadas por ‘alef, oito palavras com eçadas por b e t marcam os
in ício s dos versículos do segundo octonário, e assim por diante,
até o tau, vig ésim a segunda e últim a letra do alfabeto hebraico.
É um a celebração da lei de A a Z, poderíam os dizer, recorrendo
ao n o sso alfabeto. M as há um outro elem ento destinado a fa v o ­
recer a m em ória e a en v o lv er o orante: em cada versículo está
presente p elo m enos um d os oito termos co m os quais se define
a lei de D eus: tôrah , “le i” , d a b a r, “palavra”, ‘edüt, “testem u­
n h o ” , m is h p a t, “j u í z o ” , ‘im ra h , “d ita d o ” , h ô q , “d e c r e to ” ,
p iq q ü d im , “preceitos”, m isw ah , “ordem ”.
A s 1064 palavras do Salm o con densam -se, então, em tor­
no de um núm ero bastante reduzido de vocábu los, que são mar­
telados com insistência. O sím bolo dom inante é o do cam inho,
sinônim o de vida cotidiana e de existência. N ão falta a tensão
causada pelo pesadelo das tentações, dos sofrim entos, das hosti­
lidades do am biente. M as, acim a de tudo, dom ina um a grande
serenidade, um verdadeiro abandono à Palavra lu m inosa (versí­
cu los 130 e 135), saborosa com o o m el (versícu lo 103), m ais
preciosa do que o ouro (versículo 127). A síntese ideal d esse
cântico, “cuja recitação dispensa exp licação” (Artur W eiser), está
no versículo 47 , que une alegria, liberdade e amor: “M inhas
d elícias são os teus m andam entos”. Porém , não obstante a boa
vontade, o hom em é atraído pelo ídolo; sua liberdade é frágil, e
sua fidelidade dura o espaço de um a manhã. A história bíblica
de Israel é um a constante prova d isso. D eus toma, então, uma
decisão: em bora con serve-lhe a liberdade de escolh a, vai aproxi­
m ar-se posteriorm ente de sua criatura para sustentá-la; sua so li­
citude extrem ada chegará ao âm ago m esm o do coração do h o ­
m em , para sustentá-lo na tentação e arrancá-lo do pecado da
infidelidade.
É o que anuncia Jerem ias ao falar daquela “n ova aliança”,
à qual nos referim os anteriormente. Trata-se de um oráculo co n ­
tido no cham ado “L ivro da co n solação de Jerem ias” , os capítu­
los 30-31 de sua obra profética, ev o ca d o por Jesus nas palavras
pronunciadas sobre o cálice, na últim a ceia (Lc 2 2 ,1 9 -2 0 ; IC or
11,23-25), e transform ado, na Carta aos Hebreus (Hb 8 ,8 -1 2 ), na
m ais longa citação do A ntigo T estam ento no N o v o . L eiam os a
passagem de Jeremias: “Eis que chegarão dias — oráculo do
Senhor — em que eu farei um a aliança nova cora Israel e Judá:
N ão será co m o a aliança que fiz co m seus antepassados, quando
os peguei p ela m ão para tirá-los da terra do Egito; aliança que
eles quebraram, em bora fo sse eu o senhor deles... A aliança que
eu farei com Israel depois d esses dias é a seguinte: C olcarei
m inha lei em seu peito e a escreverei em seu coração; eu serei o
D eus deles, e e les serão o m eu p ovo. N inguém m ais precisará
ensinar seu próxim o ou seu irm ão, dizendo: ‘Procure conhecer
ao Senhor’. Porque todos, grandes e pequ en os, m e conhecerão.
P ois eu perdôo suas culpas e esq u eço seus erros” (Jr 3 1 ,3 1 -3 4 ).
A ên fase é colo ca d a no adjetivo “n o v a ” : de fato, a aliança
sinaítica entre D eus e Israel, de caráter quase político-diplom áti-
co, é substituída agora por um a relação íntim a, baseada radical­
m ente no “coração”, ou seja, na co n sciên cia e na interioridade.
À s tábuas de pedra su ced em -se as tábuas de carne do coração
hum ano transformado; a im p osição legal extrínseca é substituída
pelo “con h ecim en to”, isto é, pela adesão pessoal, na inteligên­
cia, na vontade, no afeto e na ação; à lei se sobrepõe a graça; ao
pecado sucede o perdão; ao tem or, a com unhão íntim a, que cria
um a sintonia profunda entre p esso a co g n o scen te e conhecida. O
ser hum ano é invadido por D eu s que está não só do seu lado,
m as tam bém interiorm ente, no m om ento d e c isiv o da escolha.
Franz W erfel, em sua biografia romanceada de Jeremias, A scoltate
la voce! (1 9 3 7 , editada em 1956 com o G erem ia ), descobre exa­
tam ente, na nova aliança entre D eu s e Israel, a originalidade
absoluta da fé b íblica em relação à do E gito ou da M esopotâm ia.
U m a aliança que não elim in a as provações, m as que tem com o
m eta para o profeta e para Israel um “para que v iv a ”, isto é, a
vida e a plenitude.
VI
Incenso não é droga

“ O Senhor d isse a M oisés: ‘P roviden cie essên cias aro­


máticas: resina, âmbar, bálsam o, aromas e incenso puro, em quan­
tidades iguais. C om elas faça um in cen so perfum ado, com p osto
segundo a arte da perfumaria, m isturando com sal; será puro e
santo. Pulverize um a parte dele, co lo q u e-o diante da arca da
aliança, na tenda da reunião, onde m e encontrarei com você.
Será para v o cês um a c o isa santíssim a. N ão façam para u so de
v o cês um in cen so de fórm ula sem elhante, v o cês o considerarão
co m o co isa santa e consagrada ao Senhor,” (E x 3 0 ,3 4 -3 7 ). D a
vasta leg isla çã o litúrgica do êx o d o e do L evítico, destinada a
regulam entar não tanto o culto diante da arca da aliança — a
“caixa” de madeira de acácia, sinal da presença divina junto a
seu p ovo e santuário m óvel do deserto — , m as antes o culto do
tem plo de Jerusalém , esco lh em o s o in cen so co m o sím b olo do
rito, do sagrado, da liturgia. Suas espirais que sobem ao céu são
quase o sinal da oração e da d evoção do fie l que sobem a D eu s,
co m o se diz no Salm o 141: “Suba a m inha prece com o in cen so à
tua presença, / m inhas m ãos erguidas co m o oferta vespertina!”
(versículo 2).

S a g ra d o s ou sa n to s ?

O culto é fundamental em todas as culturas, m esm o nas


“profanas”, porque os rituais fazem parte da com unicação sim b ó­
lica inserida no hom em . É natural que, nas culturas religiosas, o
espaço ocupado pelo rito seja enorm e, com o o atestam a B íb lia e
suas páginas reservadas à üturgia do tem plo de Sião, em bora com
as reservas que constituirão o nervo tem ático do nosso capítulo.
A inda aos pés do Sinai, m as estendendo o oliiar para as
fum aças dos sacrifícios efetuados sobre o altar dos holocaustos,
ou para a fum aça do in cen so no átrio do tem plo de Jerusalém ,
p egu em os um livro p ou co lido do Pentateuco, o terceiro da B í­
blia, de título sign ificativo, “L ev ítico ”, ou, livro dos Levitas, dos
sacerdotes. N ão querem os, co m certeza, infligir aos nossos leito ­
res um m apa dessa obra, com suas m inu ciosas prescrições legais
sobre vários tipos de sacrifício, sobre ritos de consagração dos
sacerdotes, sobre norm as de pureza e im pureza, sobre santidade
e profanidade, sobre calendários e até sobre tarifas cultuais. Q ue­
rem os, antes concentrar-nos sobre um a só palavra que tem, p o ­
rém, um relevo excep cio n a l no livro e que está inserida na frase:
“Sejam santos, porque eu sou santo” (L v 11,44 e 45; 19,2).
A palavra “santo” rem ete ao hebraico qadôsh, termo ba­
seado na raiz verbal q dsh , que sign ifica, em primeira instância,
“separar”, colocar um a fronteira entre o recinto do tem plo e do
palácio real c a área profana. M ais correta, então, seria a versão
“sagrado”, que rem ete autom aticam ente a algo de sacerdotal,
tem plário, sacrifical, litúrgico, e que e v o ca incensos e rituais. O
“sagrado” é a definição de um a área “pura” (sinônim o usado
p elo L evítico) onde D eu s pode se instaurar, o qual, por d efin i­
ção, é “sacrossanto”, co m o recorda a Isaías o coro an gélico que
ele ou ve no tem plo, no dia de sua vocação, em 740-739 a.C.:
“Santo, santo, santo é o Senhor dos ex ército s” (Is 6,3) e com o
repete o L evítico. O sagrado, por sua natureza, divide porque se
op õe ao que é lim itado, im perfeito, hum ano. É significativa a
expressão do profeta O séias, colocada na b oca de Deus; “Eu sou
D eus e não um hom em , sou o santo” (O s 11,9). Só quem é
habilitado com o os sacerdotes, os p rofissionais do sagrado, só
quem é reconhecido co m o consagrado, ou pelo m enos purifica­
do através dos rituais d efin id os precisam ente pelos gestores do
âm bito sagrado, só os objetos subtraídos ao uso profano (vim os
que o in cen so do tem plo não pode ser usado em casa) e bentos,
só 0 que é sagrado, co m o D eu s é sagrado, pode transpor a fron­
teira do qadôsh , o “sagrado” bíblico.
A tradição Sacerdotal elaborou o livro do Levítico e ou­
tras norm as sacrais exatam ente porque d ev ia remeter Israel, que
vivera no ex ílio na B ab ilôn ia e que, portanto, estava m aculado e
contam inado, a um estatuto sacral renovado. O próprio profeta
do ex ílio , 0 sacerdote E zequ iel, não hesitará, nas suas últim as
páginas, em esboçar um projeto de pátria futura inteiram ente
baseado num a série de filtros e de áreas sagradas de diversos
graus (E z 40 -4 8 ). N este ponto surge naturalm ente um a pergunta:
que valor e que riscos com porta a visã o sacral? A resposta é
fácil e é confirm ada em n ossos dias (com todos os m atizes do
caso), pelo s vários m ovim en tos ou id eo lo g ia s integralistas. D e
um lado, o sagrado tutela a pureza do con ceito e da realidade de
D eu s, sua transcendência e distância, im pedindo sua redução a
um a realidade m anipulável e conservando sua qualidade de to­
talm ente Outro. D e outro, porém , o sagrado isola, rejeita e se
tensiona em relação ao profano; torna-se auto-suficiente, e tudo
o que não pertence à sua esfera transm uta-se era mal, pecado,
impuro; seu sonho é sacralizar o m aior âm bito p o ssív el (política,
cultura, sociedad e), de m odo a co lo cá -lo sob a própria férrea
tutela. Em A th alie, de R acine, o sacerdote proclama: “C e tem ple
est m on pays; je n ’en connais point d ’autre” [o tem plo é m eu
país; não co n h eço nenhum outro]. O tem plo se torna pátria única
c, vice-versa, a pátria ideal deveria tornar-se um grande tem plo.
A o sacralism o op õ e-se o “santo”, entendido em sentido
existen cial e moral: a santidade não se isola; conquanto conserve
sua identidade, c o e x iste com o profano, fecu n d a n d o -o sem
absorvê-lo. O santo anim a a existên cia e as realidades m undanas
sem aniquilá-las, m as perm itindo sua con sistên cia. E sse eq u ilí­
brio delicado e n ecessário é m uitas v ezes enfatizado pela B íblia,
que não dessagra o sagrado, secularizando-o (form a inversa de
integralism o), mas o dessacraliza santificando-o, historicizando-o.
N ão é verdade, co m o vim os, que as festas de Israel tinham m a­
trizes m ágico-sacrais, ancoradas num a visão naturalística-im a-
nentista, e que a B íb lia as transferiu para a trama da história
hebraica, sem , porém , despojá-las de sua qualidade sagrada, isto
é, da presença do divino? N ão é verdade que o sábado, de tônica
sagrada da sem ana, com o dia proibido à ação, torna-se m em ória
da criação d ivina e da libertação exodial? O rito não d ev e ser
um a ilha, m as, para usar um a im agem do filó so fo m ístico hebreu
Abraham Joshua H esch el, d eve ser sem elhante à retícula d e um a
folha que estrutura o tecido conectivo: a folha, se fo sse só nervu­
ra, se enrugaria m onstruosam ente; se fo sse só tecido, sem su s­
tento e alim ento, murcharia.
Para realizar essa obra de dessacralização, que não é des-
sagração, m as antes santificação, existem , acim a de tudo, os
profetas. A m esm a frase de O séias que citam os há p ouco soa
plenam ente assim: “Eu sou D eus, e não um hom em . Eu sou o
Santo no m eio de v o c ê s ” (Os 11,9). U m “santo” que se estab ele­
ce no m eio de seu p o v o e de sua história, não se isolando nem
rejeitando o hom em , m as en volven do-o e santificando-o. Isaías
cunhará um a locu ção sugestiva para definir D eu s, cham ando-o
“o Santo de Israel” (ver, por exem plo. Is 1,4; 5,19.24; 10,20;
12,6; 30,1 1 -1 2 ; 4 3 ,3 .1 4 ; 49,7; 60,14); um a fórm ula que procura
unificar dois com ponentes em si antitéticos: a transcendência e a
im anência, a alteridade e a proxim idade, a santidade sacral e a
pertença a um povo, a inalterabilidade e a partilha das contin­
gências de um a nação. A profecia sublinhará bem , de m aneira
aparentem ente exclu sivista, a santidade existen cial, com batendo
o sacralism o. É o que agora verem os, dando prosseguim ento a
n osso percurso de conhecim ento do profetism o. M as antes de
entrar nesta proclam ação — tão importante que fo i definida p e­
los estu d iosos com o “o kerygm a p rofético”, isto é, o “anúncio”
fundam ental dos profetas, usando o termo grego c o m o qual se
indica o anúncio central cristão — querem os apenas mostrar
quão vigoroso é o amor de Israel pelo culto do tem plo.
C o n fiem o -n o s ao retrato que o E clesiá stico , sábio bíb lico
do sé c u lo II a.C., pinta no capítulo 5 0 do seu livro. N o centro
está o su m o sacerdote S im ão II, que presidiu o cu lto de Jerusa­
lém entre os anos 2 20 e 195, aproxim adam ente, p o u co antes da
co m p o siç ã o da própria obra. “C om o era m ajestoso S im ão, filho
de O nias, sum o sacerdote, cercado pelo p o v o , quando saía do
santuário por trás da cortina! E le era co m o a estrela da m anhã
entre as n u ven s, com o a lua nos dias em que está cheia! Era
c o m o o so l fulgurante sobre o tem plo do A ltíssim o , co m o o
arco-íris brilhante entre nuvens de glória! Era c o m o a rosa na
prim avera, co m o lírio junto da água corrente, c o m o ram o de
árvore de in cen so no verão! Era co m o fo g o e in c e n so no turí-
b ulo, co m o vaso de ouro m aciço ornado c o m todo tipo de
pedras preciosas! Era co m o oliveira carregada d e frutos e com o
cip reste elev a n d o -se até as nuvens! C om o e le era m ajestoso
quando v estia os param entos so len es e usava seus en feites m ais
b elos! Q uando subia ao altar sagrado e enchia de glória tod o o
santuário. ...D e pé, jun to ao braseiro do altar, cercado de um a
coroa de irm ãos, co m o brotos de ced ros-d o-líb an o, que o rode­
avam co m o troncos de palm eiras! E stendia a m ão sobre a taça
e fa zia a lib ação c o m su co de uva, derram ando-o sobre as bases
do altar, co m o p erfum e agradável ao A ltíssim o , R ei do univer­
s o ” (E clo 5 0 ,5 -1 5 ).

Incenso n ão é d ro g a

A luta dos profetas contra o sacralism o cultuai é tão renhi­


da que dá a im pressão de guerra sem quartel. N a realidade, não
d evem os nos enganar com a linguagem sem ítica, que d escon h e­
ce com parações e nuanças, procedendo de m odo claro e radical.
Por isso, os estu diosos falam de negação “paradoxal” ou “d ialé­
tica” do culto por parte dos profetas. U m a célebre frase de O séias,
citada tam bém por Jesus (M t 9,13; 12,7), “quero am or e não
sacrifícios, con hecim ento de D eu s m ais do que h o lo ca u sto s”
(O s 6,6), é, a esse respeito, em blem ática. E la parece rejeitar
totalm ente o aparato sacrifical do tem plo, preconizando sua subs­
tituição por um culto interior, feito de amor e de fid elid ad e a
D eus. N a realidade, a negação é expressa de m odo absoluto, mas
seu conteúdo é relativo e “d ialético” ; “Quero sobretudo amor, e
não apenas sacrifícios, con hecim en to de D eus, e não apenas h o ­
locau stos”. A paradoxalidade e o absolutism o da negação têm
um a função p sico ló g ica , querem instigar incisivam ente o c o n c e i­
to. N ão é um a disjunção, m as um a conjunção harm ônica. Os
profetas, por isso , recusam um culto isolad o da vida, um a litur­
gia separada da justiça, um a oração apartada do com prom isso
cotidiano, um tem plo alienado da sociedade, uma religiosid ad e
destituída d e fé, um a fé despojada de obras. D o contrário, o rito
se reduz à farsa, o culto vira m agia, o incenso, um a droga sagra­
da, o m arco litúrgico invade a fronteira do folclórico. U m te ó lo ­
go russo deste século, Pavel E vd ok im ov, afirm ava que entre a
rua e o tem plo não havia um a barreira intransponível, m as que
os incensos, pela m oção do Espírito de D eus, santificavam tam ­
bém os odores da existência cotidiana.
D izía m o s que este é o fio te o ló g ic o dom inante da p rofe­
cia. E le aparece já com Sam uel, profeta e “ju iz ”, ou seja, “p olíti­
c o ”, na linguagem bíblica, artífice hesitante do trespasse institu­
cion al de Israel do sistem a tribal à instituição da monarquia,
com Saul e D avi. A Saul, que violou um a norm a divina e sp e c ífi­
ca e que aduziu um sacrifício em sua defesa, Sam uel replica: “O
que é que o Senhor prefere? Q ue lhe ofereçam holocaustos e
sacrifícios, ou que obedeçam à sua palavra? O bedecer vale m ais
do que oferecer sacrifícios. Ser d ócil é m ais importante do que a
gordura de carneiros” (IS m 15,22). O prim eiro profeta “escri­
tor” — do qual nos chegaram não apenas excertos ou narrativas,
co m o no caso de E lias e E liseu, m as verdadeiros livros de orácu­
los — é A m ós, um cam ponês de Técua, vilarejo a 20 km ao sul
de Jerusalém . C onduzido pela sua vocação profética a Samaria,
capital do reino setentrional separatista, em penhado na denúncia
da corrupção das altas cla sses com palavras inflam adas, repro-
põe a tese da autêntica relação entre culto e vida, e o faz com a
veem ên cia da sua sensibilidade de hom em do cam po. “Eu detes­
to e desprezo as festas de vocês; tenho horror dessas reuniões.
A inda que vocês m e ofereçam sacrifícios, suas ofertas não m e
agradam, nem olharei para as oferendas gordas. L on ge de m im o
barulho de seus cânticos, nem quero ouvir a m úsica de suas
liras. Eu quero, isto sim , é ver brotar o direito com o água e
correr a ju stiça com o riacho que não seca” (A m 5 ,2 1 -2 4 ).
A ironia é cortante. D eu s vira o rosto e não acolhe o
aparato sacrifical dos tem plos; as m úsicas e os hinos são, para
ele, um estrépito quando — co m o acontece em Sam aria — , fora
do santuário, “vendem o ju sto por dinheiro e, o n ecessitado por
um par de sandálias; p isoteiam os fracos no chão e d esviam o
cam inho d os pobres!” (A m 2 ,6 -7 ). É a justiça, o direito d issem i­
nado na sociedade, que tom a o culto aceito a D eus. U sando um a
fam osa distinção de Karl Barth entre religião (ritualidade, sacra-
lidade) e fé (adesão p essoal e existencial), pod em os dizer que o
profeta propugna pela união entre as duas realidades, declarando
o prim ado da fé. A m ós, em um a outra estrofe do capítulo 5,
ataca com sarcasm o b lasfem o o culto hipócrita dos grandes san­
tuários israelitas de seu tem po (sécu lo VIII a.C.), B etei, G uilgal,
B ersabéia, ven do-os com o c o v is de pecado a serem evitados e
não visitad os em peregrinações.
R eaparecem a radicalidade da negação da qual falam os
anteriorm ente e a força de provocação da m ensagem profética
(seria com o atacar hoje em dia os santuários marianos de Lourdes,
Fátim a ou Loreto, se fo ssem som ente um álibi religioso em rela­
ção ao com prom isso de fé e de amor). Eis as palavras do profeta
A m ós, pastor e cultivador de árvores de sicôm oro, ch eio de d es­
prezo por um a espiritualidade tão artificial: “D irijam -se a B etei,
e pequem ; vão a G uilgal e pequem ainda m ais! O fereçam , de
m anhã seus sacrifícios... P ois é disso que v o cês gostam ! — Orá­
culo do Senhor... Procurem a m im e v o c ê s viverão. N ão procu­
rem B etei, não façam romarias a G uilgal, nem corram para
Bersabéia. P ois G uilgal irá toda para o ex ílio , e B etei será redu­
zida a nada. Procurem o Senhor, e v o cês viverão.” (A m 4,4-5;
5,4 -6 ). C om o vim os, tam bém o contem porâneo O séias repete a
m esm a m ensagem (O s 6,6) e desfere um outro ataque à vã m ul­
tiplicação de atos rituais, sem a correspondente adesão moral ã
lei do Senhor: “Efraim m ultiplicou seus altares para pecar; só
para pecar lhe serviram ... A inda que ofereçam sacrifícios e c o ­
mam carne não agradarão ao senhor. E le se lembrará das culpas
deles, castigará seus pecados e os mandará de volta para o E g i­
to” (O s 8,1 1 .1 3 ).

O b o i do hom em p e rv e rso

A rejeição dos ex ercícios cultuais utilizados com o álibi


para um a existên cia iníqua aparece, porém , tam bém na espiritua­
lidade do antigo Egito; tanto é verdade que já no ano 2 1 0 0 a.C.,
na Istru zion e p e r M erikare, um texto de form ação sapiencial,
podem os ler: “À divindade agrada m ais a qualidade do hom em
de coração ju sto do que o boi do sacrifício do hom em perverso” .
S écu los dep ois, em um a outra área cultural, o poeta m ístico
hindu Tukaram (século X V I) afirma: “N ão se pode sem pre per­
m anecer diante de D eus agitando um turíbulo de in censo, m as se
pode sem pre oferecer a ele o próprio coração” . O grande Isaías,
autor de cerca dos primeiros quarenta capítulos do livro que tem
seu nom e, sacerdote de classe aristocrática que viveu em Jerusa­
lém na segunda m etade do sécu lo VIII a.C., reproporá o tem a,
com grande originalidade, na prim eira página do seu rolo profé­
tico, recorrendo a um curioso gênero literário, o rib, isto é, da
lide judicial, na qual D eus interpela seu povo, contestando-lhe
graves v io la çõ es da aliança. N o tem plo de Jerasalém , o profeta
vê a parada oficial das cla sses no poder, dos p olíticos e dos altos
burocratas que estão oferecen do um sacrifício solene. Isaías, en ­
tão, dedo em riste, avança contra eles em nom e de D eus: “E scu ­
tem a palavra do Senhor, ch efes de Sodom a... ó po vo de G om or-
ra; Q ue m e interessa a quantidade dos seu s sacrifícios? Estou
farto dos h olocaustos de carneiros e da gordura de n ovilh os. N ão
gosto do sangue de bois, carneiros e cabritos” (Is 1,10-11).
E coam aqui, quase ao pé da letra, as palavras de A m ós.
M as Isaías vai além e repele todo o sistem a cultuai do tem plo,
enxertado em um a cidade corrom pida e injusta. “Quando v o cês
vêm à m inha presença e pisam m eus átrios, quem ex ig e algo da
m ão de v o cês? Parem d e trazer ofertas inúteis. O in cen so é co isa
nojenta para m im ; luas novas, sábados, assem b léias... não supor­
to injustiça junto com solenidade. Eu detesto suas luas novas e
solenidad es, Para m im se tom aram um peso que eu não suporto
m ais. Quando v o cês erguem para m im as m ãos, eu d esv io o meu
olhar; ainda que m ultipliquem as orações, eu não escutarei. A s
m ãos de v o cês estão cheias de sangue. L avem -se, purifiquem -se,
tirem da m inha vista as m aldades que v o cês praticam. Parem de
fazer o m al, aprendam a fazer o bem: busquem o direito, socor­
ram o oprim ido, façam ju stiça ao órfão, defendem a causa da
viú va” (Is 1,12-17). O rito so len e tom a-se um a deplorável farsa
quando das m ãos que oram goteja sangue e do lado de fora do
tem plo se ergue o clam or d os pobres, que em vão se tenta abafar
com C ân ticos htúrgicos. R ecord e-se tam bém a ad m oestação de
Jesus: “S e v o c ê for até o altar para levar sua oferta, e aí se
lembrar de que seu irmão tem algum a coisa contra v o cê, d eixe a
oferta aí, diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu
irmão; dep ois volte para apresentar a oferta” (M t 5 ,2 3 -2 4 ). T o ­
davia, a in vectiva de Isaías, n o final, transmuta-se num apelo à
tratativa; e o escarlate, a cor de sangue da púrpura, típica dos
crim es, será substituído p ela candura da neve e da lã, isto é, pela
pureza do perdão: “V enham e discutirem os — d iz o Senhor —
A inda que seus pecados sejam verm elhos com o púrpura, ficarão
brancos co m o a neve; ainda que sejam verm elhos c o m o escarla­
te, ficarão co m o a lã” (Is 1,18).
U m a precatória processual sem elhante é elaborada com
m uita vivacid ad e por um outro profeta cam ponês, contem porâ­
n eo e d iscíp u lo de Isaías, M iquéias de M orasti. E m um a esp écie
de debate denso e m elancólico, D eus interpela Israel; “M eu p ovo,
o que é que eu fiz contra você? E m que o m altratei? R esponda-
m e!” Israel procura apaziguar o Senhor co m um a série de rituais
e sacrifícios: “A presentar-m e-ei ao D eu s das alturas com holo-
caustos, levando bezerros de um ano? Será que m ilhares d e car­
neiros ou a oferta de rios de azeite agradarão ao Senhor?” , M as
D eu s replica: “ó hom em , já fo i explicado o que é bom e o que o
Senhor e x ig e de você: praticar o direito, amar a m isericórdia,
cam inhar hum ildem ente co m seu D e u s!” (M q 6 ,3 -8). A fórm ula
da precatória, o rib , é adotada tam bém p elo Salm o 50, no qual
D eu s pronuncia dois discursos. N o prim eiro (v ersícu los 7 -15),
aparece um rol sacrifical de sete anim ais (n ovilh os, cabritos,
feras, gado, pássaros, in setos, touros) que em vão Israel oferece
ao Senhor para apaziguá-lo. A eles D eu s opõe o único ato de
culto agradável a ele, isto é, “o louvor” puro que n asce da c o n s­
ciên cia e da vida. O segundo discurso (versícu los 14-23) tenta,
ao contrário, rasgar o véu da hipocrisia religiosa com o qual o
ím pio se cobre. D eus elen ca sete tipos de delito que o hipócrita
acredita reparar com g estos sacrais, e não com atos santos de
justiça: furto, adultério, boca iníqua, língua impura, ju lgam en to
injusto, palavra ím pia, calúnia (a insistência na palavra é típica
de um a civ iliza çã o de índole oral). E, m ais um a vez. D eu s subli­
nha 0 único gesto agradável a ele, o do “lou vor” que se exprim e
através da fid elid ade moral (“a retidão”).

A n tro de crim in o so s

Q uerem os insistir na docum entação desta tese porque ela


nos perm ite enfatizar a qualidade fundam ental da religião b íb li­
ca: é um a fé “encarnada”, que não tem aversão ao cotidiano, que
não segrega D eu s da história, que não o p õ e o profano ao sagra­
do, sem , todavia, levar a perigosas m iscigen ações ou identida­
des, com o ocorria no im anentism o caneineu. Tal insistên cia per­
m ite-nos tam bém caracterizar um traço quase que constante da
profecia, a exp eriên cia espiritual e “teofân ica” mais sublim e que
Israel teve. P assem os, então, novam ente, a palavra a um profeta,
o bem -con h ecid o Jerem ias, testem unha do fim de Jerusalém . O
escritor austríaco Stefan Z w eig (nascido em V iena, em 1881, e
falecid o no Brasil, em 1942, que se suicidou junto com sua
esposa, desesperado co m a queda da Europa com o sím bolo de
civilizaçã o , sob a barbárie da guerra e do nazism o) escreveu em
1917 — em plena I Guerra M undial -— um drama intitulado
sim plesm ente J erem ias. O profeta, apresentado com o "baluarte
do sentido contra a insensatez do tem po”, joga por terra todos os
m eios ilusórios de salvação, chegando às perigosas raias do d e­
sespero e da blasfêm ia. A queda, contudo, não é para a morte,
sua e do povo, e sim para a ressurreição: “N o sso corpo se fragi-
lizou ó Senhor, m as o espírito se robusteceu”, declara o profeta
no drama.
P ois bem , um a das instituições que Jerem ias pôs abaixo
co m sua palavra, antes m esm o que os exércitos b abilônicos re­
d u zissem suas muralhas a pó, foi o templo de S ião. A denúncia
profética é vazada em um discurso de caráter judicial, tecnica­
m ente distinto, porém , daqueles até então apresentados, se bem
que sem elhante na finalidade. Os hebreus de então, vendo o
perigo babilônio avultar-se no horizonte, confiavam m agicam en­
te na presença “física ” do tem plo no perímetro da cidade, com o
se e le pu d esse salvar autom aticam ente Jerusalém do assalto do
in im igo. O profeta ironiza as aclam ações entusiásticas que subi­
am ao céu durante os ritos processionais no santuário: “E ste é o
T em plo do Senhor, T em p lo do Senhor, T em plo do S enhor!”
(Jr 7,4). A reação do profeta reporta-nos ao âm ago do verdadeiro
culto e da verdadeira fé. A shekinah, isto é, a “p resença” divina
no tem plo (com o dirá o ju d aísm o posterior), é condicionada ao
com p rom isso do hom em c o m sua existência, e não algo m ágico
e necessário: sem ju stiça n o s tribunais, sem a d efesa do estran­
geiro, do órfão e da viúva, e sem o fim dos h om icíd ios, sem a
observância da lei divina, o tem plo é uma construção qualquer.
É antes um “co v il de ladrões” , duríssima expressão retomada
d ep ois por Jesus em sua denúncia de corrupção da vida no tem ­
plo (M c 11,17).
O uçam os um trecho da acusação de Jerem ias, proclam ada
exatam ente diante “da porta do tem plo”: “V o cês se iludem com
palavras m entirosas que não trazem proveito nenhum . N ã o é
assim ? Roubar, matar, com eter adultério, jurar fa lso , queimar
in cen so a Baal, seguir d eu ses estrangeiros que v o c ês nunca c o ­
nheceram ... E dep ois v o cês se apresentam diante de m im , neste
T em plo, onde o m eu n om e é invocado, e dizem : ‘Estam os sa l­
v o s !’, para depois continuarem praticando essas abom inações.
E ste T em plo, onde o m eu nom e é invocad o, será por acaso e s­
conderijo de ladrões? Estejam atentos, porque eu estou vendo
tudo is s o ” (Jr 7 ,8 -1 1 ). O a cesso ao tem plo para o culto tom a-se,
paradoxalm ente, um a ofen sa infligida a D eu s, se o orante carre­
g a um passado de v io la çõ es do D ecá lo g o , sintetizado em quatro
m andam entos (sétim o, quinto, sexto e prim eiro), propostos em
ordem diversa, em relação ao texto de Ex 20 e D t 5. O tem plo,
in festa d o de ladrões e in fa m es, perde a sacralidade e vira
valhacouto, abrigo de bandidos e facínoras, refúgio de perver­
sos, que, não obstante, cantam , rezam , oferecem sacrifícios, g e s­
tos de pura fachada. T am bém o fiel hipócrita profana o tem plo,
tanto quanto o babilônio destruidor, ou até m ais, dada sua co n s­
ciên cia religiosa.
A té certos atos religiosos tradicionais, quando faltos de
“revestim ento” existencial, perdem o valor, em bora sejam , apa­
rentem ente, onerosos e m eritórios. É o caso do jejum , que o
cham ado Terceiro Isaías, um dos profetas reunidos sob o nom e
do grande Isaías (capítulos 56 -6 6 ), dem itiza. E ssa prática era, no
entanto, um dos solen es atos penitenciais de Israel (leia -se Lv
2 3 ,2 6 -3 2 ) e o é ainda hoje, por ocasião, por exem plo, do Kippur,
o dia da E xpiação (L v 16), co m o o é para o Islã no m ês do
Ramadã. C item os apenas algum as passagens de um texto “grita­
do a plenos p u lm ões” pelo profeta: “N o dia do seu jejum [nota-
se a carga de desprezo “seu”], v o cês só cuidam dos próprios
interesses e continuam explorando quem trabalha para v o cês.
Vejam ! V o cês jejuam entre rixas e d iscu ssõ es, dando so co s sem
piedade. N ão é jejuando dessa form a que farão chegar lá em
cim a a vo z de v ocês. Vejam ! O jejum que eu aprecio não d eve
ser desta maneira: curvar a cab eça co m o se fo sse um a vara,
deitar de luto na cinza... É isso que v o c ê s cham am de jejum , um
dia para agradar ao Senhor? O jeju m que eu quero é este: acabar
com as prisões injustas, desfazer as correntes do ju g o , pôr em
liberdade os oprim idos... repartir a com id a com quem passa fom e,
hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se
encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. S e v o c ê fizer
isso, sua luz brilhará co m o a aurora, suas feridas vão sarar rapi­
dam ente... Então v o c ê clam ará, e o S en h or responderá; você
chamará por socorro e o senhor respondera: ‘E stou aqui!’. Isso,
se v o c ê tirar do seu m eio o ju lgo, o g esto am eaçador e a lingua­
gem injuriosa; se v o c ê der o seu pão ao fam into e matar a fom e
do oprim ido. Então sua luz brilhará nas trevas, e a escuridão será
para v o cê com o a claridade do m eio-d ia” (Is 5 8 ,3 -1 0 ).

D e 6 1 3 a l l m an dam en tos

A s palavras de Isaías dispensam com entário: rejeitam de


plano qualquer ato penitencial que pretenda substituir o com pro­
m isso moral e existen cial. Todavia, nunca é d em ais lembrar que
esta atitude radical e rigorosa da p rofecia não sig n ific a negação
do culto, m as antes sua valorização. N o T alm ud, a grande seleta
das tradições judaicas, afirm a-se que “D eu s não p recisa das víti­
m as, m as quer que, por m eio delas, o h o m em c o n fe sse D eu s”. E
Jesus, polem izan d o c o m o ritualism o, dirá; “A i de v o cês, fari­
seus, que pagam o d ízim o da hortelã, da arruda e de todas as
outras ervas, m as deixam de lado a ju stiça e o am or de Deus.
V o cê s deveriam praticar isso, sem deixar d e lado aquilo” (Lc
11,42). A este propósito é sign ificativo m en cion ar aqui um g ê­
nero particular de salm os, cham ados “liturgias de entrada” ou
“liturgias da porta” do tem plo (SI 15; 24; 26; 9 5 ). V am os nos
basear em um d esses, o S alm o 15, para d escrever um a cena ideal
que se desenrola na soleira do tem plo de S iã o . U m grupo de
peregrinos chega à porta do santuário e pergunta quais as condi­
çõ es necessárias para participar das celebrações: “Ó Senhor, quem
p od e hospedar-se em tua tenda, e habitar em teu m onte santo?
(versícu lo 1). Os levitas respondem , exp licita n d o as condições
d e acesso: um a série d e ob rigações, um a e s p é c ie de exam e de
con sciên cia , que o fiel d e v e satisfazer para que seja reconhecido
d ign o d e adm issão à presença do Senhor.
T am bém no E gito e na B abilônia, na fach ada dos templos,
constavam as cond ições de a cesso, mas se tratava de normas
fundam entalm ente diferentes em relação àquelas listadas no Sal­
m o 15. N o antigo O riente P róxim o, ex ig ia -se, antes e acim a de
tudo, a pureza ritual e exterior e os atavios sagrados. Isto era
ex ig id o tam bém em Israel, co m o já vim o s no L e v ític o e com o o
atesta o judaísm o posterior, que no Talm ud advertia; “N ão suba
o hom em ao m onte do tem plo nem c o m sapatos, n em co m bolsa,
nem com pó nos pés; não reduza os átrios do tem plo a um atalho
e m uito m enos cuspa n eles” . D iante da m esquita há um a fonte
para as abluções rituais e, diante das portas das igrejas cristãs,
em particular se visitadas por turistas, não faltam cartazes reco­
m endando roupas conven ientes. P ois bem , as co n d ições previs­
tas no n osso salm o têm, ao contrário, um a p erspectiva bem d ife­
rente: os o n ze in cisos listados contêm ex ig ên cia s de tipo m oral e
existen cial, e não legalista ou form alista. Eis algum as delas:
“Q uem age co m integridade / e pratica a justiça; / quem fala
sinceram ente o que pensa / e não usa a língua para caluniar; /
quem não prejudica seu próxim o / e não difam a seu vizinho; /
quem despreza o injusto / e honra os que tem em o Senhor; /
quem sustenta o que jurou, / m esm o co m prejuízo seu, / quem
não em presta dinheiro co m juros, / n em aceita suborno contra o
in ocen te” (S alm o 15,2-5).
N o Talm ud, citam -se estes on ze preceitos, em com para­
ção aos 613 que a tradição judaica isolara na lei bíblica (365,
núm ero de dias do ano, negativos, e 2 4 8 , número de m em bros
do corpo hum ano, p ositivos, num total exato de 6 1 3), e se d ecla ­
ra: “D avi reduziu [no Salm o 15] os 613 m andam entos da tôrah a
apenas 11”. Teríam os, portanto, um a síntese de toda a m oralida­
de e espiritualidade bílalica, afirmada co m o condição e pré-re­
quisito para a adm issão ao culto (recorde-se tam bém o C on fiteor,
isto é, 0 ato penitencial prévio na liturgia eucarística cristã). N o
salm o, os prim eiros três com prom issos co m que se afere a co n s­
ciên cia são de ordem geral e exprim em um a escolha fundam en­
tal pela justiça. S eg u em -se três preceitos “horizontais” e m rela­
ção ao próxim o, aos quais se su ced e um a outra tríade social,
ilum inada porém , tam bém p elo tem a “vertical” da fé ( “tem er o
Senhor”). O s d ois com p rom issos fin ais com preendem a corrup­
ção p olítica e a econôm ica: a usura era um a chaga difundida no
Oriente, se é verdade que as taxas de juros oscilavam , na M eso -
potâm ia, entre 17% e 50% , enquanto a B íb lia as reduzira a zero
(E x 22,24)!
O elem en to sign ificativo desta e de outras “liturgias de
entrada” é o fato de conjugarem moral e culto, sociedade e tem ­
plo, vida e fé. O Salm o 24 frisará o m esm o esquem a: “Q uem
pode subir à m ontanha do Senhor? Q uem pode estar no seu
lugar santo? / A q u ele que tem m ãos inocentes e coração puro, /
que não confia nos íd olos, / nem faz juram ento para enganar" (SI
24 ,3 -4 ). O célebre M ise re re , o Salm o 51, atribuído pela tradição
a D avi, m as exp ressão da espiritualidade profética do ex ílio (Je­
rem ias, E zequiel), fundirá adm iravelm ente os dois aspectos. Dir-
se-á, antes de tudo: Tu não queres sacrifício, / e nenhum h o lo ­
causto te agrada”, porque “o espírito contrito é o sacrifício per­
feito, / o coração contrito e esm agado, / “Tu não o despreza.”
(SI 5 1 ,1 8 -1 9 ). E, até aqui, estam os no espírito m ais puro da
profecia, com o com entará também o célebre texto espiritual da
Idade M édia, conh ecid o co m o Im itação de C risto: “A hum ilde
contrição dos pecados é para ti o sacrifício agradável, um perfu­
m e m uito m ais suave do que a fum aça e o in cen so” (III, 52,4).
M as, no final, o Salm o 51, que já olha para a Jerusalém reedifi-
cada, se abre à liturgia celebrada no novo tem plo. Lá, tu. Senhor,
“aceitarás os sacrifícios rituais, / ofertas totais e h olocau stos, / e
no teu altar se im olarão n o v ilh o s!” (versículo 21).
VII
Eu SOU tenda, casa, trono!

E l e brincou entre leõ es co m o s e e stiv esse no m eio de


cabritos, e se divertiu com ursos co m o se fo ssem cordeiros. A in ­
da jo v em , ele m atou o gigante... atirou a pedra com a funda e
abateu a arrogância de G olias... Então o exaltaram p elos seus
d ez m il e o louvaram pelas bênçãos do Senhor, oferecen d o-lh e
um a coroa de glória. Porque ele exterm inou os in im igos v iz i­
nhos, aniquilou os filisteu s in im igos e abateu para sem pre o
poder d eles... Cantou hinos de todo o coração e am ou aquele que
0 havia criado. C olocou diante do altar tocadores de harpa, para
em belezar o s cân ticos com o som da m úsica... fazendo louvar o
santo nom e do Senhor e enchendo de harm onia o santuário d es­
de 0 am anhecer. O Senhor perdoou os pecados que ele com eteu
e elevou o seu poder para sem pre, conceden do-lh e um a aliança
real e um trono g lorioso em Israel.” C om olhar adm irado, o
E clesiástico ( 4 7 ,3 -H ) pinta assim o retrato do rei m ais am ado
p elos hebreus, D avi, nom e que talvez signifique “com andante,
capitão, herói”, m as fo i associad o pela tradição às suas raízes
d w d e d o d í, “o m eu am ado”, do C ântico dos C ânticos. Por outro
lado, a tradição atribuirá a ele toda a coletânea dos S alm os,
fazendo de sua vida um a p oesia e um louvor hínico contínuo, e
sugerindo a Petrarca, no B u colicu m carm en, sua equiparação a
H om ero e V irgílio.

"E m ruivo, d e b e lo s olhos e tinha b o a a p a r ê n c ia ’’

N a realidade, dois são os rostos de D avi. M as se nós,


dadas as finalidades de n ossa v ia g em às Escrituras hebraicas,
escolherm os aquele “típico” , transfigurado, teológico, não pode-
143
rem os deixar de evocar o outro perfil, m uito m ais hum ano, até
frágil e fendido, que nos é fornecido p elo s d ois livros de Sam uel,
livros ch eio s de g esto s in esq uecíveis, de páginas literariam ente
sublim es, de cenas que há sécu los alim entam a arte, a literatura,
a m úsica e a espiritualidade. É da leitura d esses capítulos que a
dim ensão hum ana de D avi adquire vivacid ade e consistência.
Por ora, querem os apenas — um pouco aridam ente, porque de­
vem os nos ater ao m apa do n o sso itinerário — elencar os e v e n ­
tos que não d evem ser desprezados naquelas páginas, e todos
aqueles que ouvirem n osso con selh o e pegarem na estante um a
B íblia de boa tradução, para ler a história de D avi (que talvez
achem que já con hecem ), ficarão fascinados. S e quiserem fazer
um a leitura acom panhada de m úsica, é só escolher. E não só no
que se refere aos Salm os, repetida e esplendidam ente m usicados
no decorrer dos séculos p elos m ais célebres com positores (para
um a “sín tese”, basta ouvir a Sinfonia d e i S alm i, de Stravinski),
m as tam bém no que diz respeito às obras especificam en te dedi­
cadas ao rei de Judá e às suas vicissitud es. P en sem os som ente no
D a v id e e G ionata, de C arissim i, reproduzido por Charpentier,
seu discípulo; nos cinco oratórios davídicos de Telem ann; no
D a v id ís p u g n a e t victo ria , de Scarlatti; no D a v id p e n ite n te , de
M ozart; no D a v id e e B etsa b eá , de Porpora; no R e D a v id , de
H onegger; na S to ria d i D a v id e e G olia, de Stem berg; no D a v id ,
escrito por M ílhaud, em 1954, cuja estréia ocorreu em Jerusa­
lém , apenas para citar os nom es m ais conh ecid os.
Sobre o pano de fundo da história de D avi destacam -se
duas figuras de relevo. D e um lado, Sam uel, profeta e juiz, que
garantiu a transição institucional de Israel da estrutura tribal para
a monárquica, transição atribulada e m aculada de sangue (a guer­
ra contra a tribo de Benjam im , acusada de um crim e gravíssim o;
as guerras com os filisteus, as tensões internas às tribos). D e
outro, Saul, o primeiro e trágico rei de Israel, celebrado por Alfieri,
em tragédia hom ônim a (1782), por Voltaire, em um drama “anti-
clerical” (1 7 6 3 ), e no drama “hom ossexual” de G ide (1898). Per­
turbado pela loucura e pela inveja, em razão da superioridade do
antagonista D avi, rejeitado por Sam uel, que, no entanto, o consa­
grara e que o encontra, pela últim a vez, na cen a espectral da
necrom ante de Endor, para lançar-lhe, do além -túm ulo, o extrem o
oráculo de condenação (IS m 28), Saul morre durante uma d eses­
perada batalha contra os filisteus: “Saul disse ao escudeiro: ‘D e-
sem bainhe a espada e m e atravesse... M as o escudeiro se recusou
porque estava aterrorizado. Então Saul pegou a espada e atirou-se
sobre ela ” (IS m 31,4). D avi, na ocasião, dedicou ao seu caro
in im igo e sogro uma com ovente elegia, uma jó ia literária de su ­
prema beleza, um dos m onum entos literários da p oesia hebraica
antiga, citada em Sam uel (2Sm 1,19-27): “A honra de Israel pere­
ceu nas alturas. / C om o fo i que os valentes caíram? /.../ M onta­
nhas de G elboé, / que o orvalho e a chuva / não caiam sobre
vocês / pois 0 escudo dos valentes foi desonrado. / O escudo de
Saul não foi ungido / com óleo, / mas com o sangue dos feridos /
... Jônatas, sua morte rasgou-m e / o coração! / C om o sofro por
você, Jônatas, meu irmão! / C om o eu lhe queria bem! / Para m im,
o seu amor / era m ais caro / do que o amor das mulheres!..."
Para D avi, tudo com eço u co m a vasilha de ó leo sagrado
derramado sobre ele, pastorzinho “ruivo, de b elos olh os e boa
aparência” (I S m 16,1-13), pelo profeta Sam uel, que assim o
preparara para ser o antagonista de Saul, o eleito então rejeitado.
O in esq u ecível duelo com o corpulento herói filisteu, G olias,
ven cid o co m um seix o lançado co m a funda em nom e do Senhor
(IS m 17), o ingresso na corte, d e in ício com o m ú sico, depois
com o genro d o rei, o afeto profundo p elo filho de Saul, Jônatas
(a term inologia utilizada, erroneam ente julgada por alguns com o
h om ossexu al, é na realidade a lin guagem política das alianças
entre clã e partidos), a vida partidária no deserto, sob a pressão
constante do exército regular, m arcam a prim eira fase da vida de
D avi, contida no Primeiro L ivro de Sam uel. E le herda do seu
adversário um reino fragm entado, prem ido pelos vitoriosos filis ­
teus e reprim ido dentro do partido favorável ao rei Saul. E leito
pela sua tribo, Judá, D avi percebe a n ecessidad e de encontrar
um a nova capital, despojada de vín cu lo s tribais. C onquista, as­
sim , Jerusalém — ocupada por um grupo étnico cananeu, os
jebuseus — , para lá transfere a arca, em blem a das origens sinaí-
ticas e da unidade nacional de Israel, e inicia a co n stitu ição de
um Estado em sentido estrito. N a sombra, aparece a obscura e
poderosa figura do filho de sua irmã, Joab, m inistro da d efesa,
artífice realista de um a estrutura político-m ilitar, não raro basea­
da no sangue, pronto a elim inar qualquer obstáculo do cam inho
do tio, m esm o contra sua vontade.
N as páginas do Segundo Livro de Sam u el, D avi, ao co n ­
trário, em erge em toda a sua queixosa e até frágil hum anidade.
Bastaria a carnal e ensolarada B etsa b ea a l b a g n o , de Rembrandt,
tela conservada no Louvre, ou aquela, m ais angelical mas não
m enos fascinante, de Chagall, no m useu da “M en sagem B íb li­
c a ”, em N ice, para evocar a história de am or e de morte, de
paixão e crim e que lig a o rei à m ulher de U rias, o ficial rigoroso,
elim inad o em nom e de um a razão de Estado. Contra o silên cio
cúm plice dos súditos, que fingem não ver o adultério e o a ssa ssi­
nato perpetrado pelo soberano levanta-se a v o z intimorata do
profeta N atã, que denuncia Davi: “Pois e sse hom em é v o c ê m es­
m o !” (2S m 11-12), o hom em que pegou a o v elh a do pobre,
com o diz a bela parábola narrada pelo profeta. E xpiado o crim e,
casado co m B etsabéia e gerado com ela o futuro herdeiro do
trono, Salom ão, sobre D a v i abate-se a tem pestade do go lp e de
estado urdido por seu filh o A bsalão (2Sm 1 3-19), ep isód io m o ­
vido a estupros, fulgor de punhais, traições, violên cias, trapaças,
a hum ilhação de uma fuga pelo deserto e, no final, aquele grito
que e co a por todos os côm o d o s da residência provisória do rei
e x ila d o na T ransjordânia: “M eu filh o A b sa lã o ! M eu filh o
A bsalão! Por que não morri eu em v ez de v o cê? A bsalão, meu
filho, m eu filh o !” E, não obstante a dor lancinante, D avi é leva­
do por Joab, o terrível sobrinho, artífice da vitória, m as tam bém
do assassinato do b elíssim o A bsalão, a assistir à parada m ilitar
pela derrota do rebelde.
U m D avi incapaz de odiar o filho aspirante parricida, e. ao
contrário, pronto a dar sua vida por ele: é este o D a vi “hum ano”
apreciado p ela literatura (basta lembrar o P ia n to d e i fig lio di
Líüs, de B achelli; o D a v id e , de C occioli; mas tam bém o transtor­
nado personagem que em erge no Kõnig D a v id s B erich t. “o rela­
to sobre o rei D a v i”, publicado em 1972 por H eym , ou a figura
um p ou co canalha proposta p elo americano H eller, que em seu
rom ance L o sa D io lhe atribui o Cântico dos C ânticos com o
canto carnal em honra da b ela Betsabéia). U m D a v i que cai em
desgraça até perante Deus quando ordena o cen so co m o ato de
orgulho p olítico -relig io so , arrostando a virulenta reação divina,
mas que ao m esm o tem po inaugura, junto à eira de Areúna, o
altar vo tiv o , primeira pedra ideal do futuro tem plo erguido pelo
filho S alom ão (2S m 24). E, por fim, eis o velho D a vi, alquebra-
do. quase cadavérico, em vão aquecido por um a virgem , A bisag,
de Sunam , ainda espiritualm ente atraído por B etsab éia que o
guia nos atos sucessórios (IR s 1-2). À s suas costas corre um rio
de intrigas, de crim es, d e m isérias. U m retrato desconcertante,
quase escand aloso, para aquele que se tornará a raiz da esperan­
ça de Israel, antecipação do rosto do M essias. D esd e aquela
tarde ensolarada e m odorrenta em Jerusalém , quando seus olh os
se fixaram sobre a pele nua e sed osa de B etsabéia, D a v i expe-
rienciou um a e sp écie de d escid a aos infernos, em círculos forja­
dos de crim es, p aixões, dores, revoltas e m ortes. N o entanto, ele
permanecerá na mem ória, lum inoso e transfigurado, com o o D a v id
de D on atello, de M ich elân gelo, de Bernini, de G entileschi, de
Reni e de tantos outros escultores e pintores. S ó R ouault nos
transmitirá o amargo crepúsculo do V ecchio re (19 3 6, Pittsburgh).

Eu sou tenda, casa, trono!

Os exegetas vêem na base da historiografia b íb lica dos


dois livros de Sam uel — que registram as vicissitu d es que aca­
bam os de narrar — e dos dois que os sucedem , os livros dos
R eis, a obra de um a esco la teo ló g ica (m ais do que histórica),
d esejosa de reconstruir a trama evolu tiva de Israel em chave
religiosa, a m esm a esco la que, por volta do sécu lo VII a.C ., deu
origem ao livro do D euteronôm io e que por isso foi co n v e n c io ­
nalm ente d efin id a co m o “deuteron om ista” . Os autores a ela
filiá v eis inseriram em seus textos um a série de sinais que servi­
ram co m o instrum ento interpretativo da história de Israel. U m
destes sinais constitui o eix o da reflexão que querem os d esen ­
v olver aqui. Encontram o-lo no capítulo 7 do S egundo L ivro de
Sam uel: é um oráculo pronunciado p elo profeta N atã, cuja pre­
sen ça tangenciará a de D avi em alguns m om entos d e c isiv o s da
vida pesso a l e pública do soberano. A o desejo de D avi de erigir
um tem plo na capital recém -constituída, Jerusalém, para que as­
sim tam bém Jhwh se tom asse cidadão de seu reino, N atã o p õ e a
inesperada esco lh a de D eus. O próprio Senhor, que fora nôm ade
com Israel peregrino no deserto, tornando-se tenda santa que se
armava ju nto às tendas das fam ílias do p ovo, decide agora ser
casa co m a casa de D avi, e ser a estabilidade do trono, ou seja, a
causa da d issid ên cia dinástica davídica.
o Senhor prefere estar presente na “ca sa ” que ele erguerá
para D avi, isto é, sua fam ília, a ser enquadrado no espaço sagra­
do da “casa” m aterial do tem plo; “O Senhor te fará grande, pois
que fará para ti um a casa” (I S m 7 ,1 1 ). Em hebraico, joga-se
c o m a am bivalência do term o b a jit, “casa” e “fam ília” . N a pro­
m essa feita a D avi através de N atã (que será tam bém o profeta
do julgam ento do pecado do rei), encontram os antes de tudo
um a tese, que dem onstram os no quarto capítulo, quando d efin i­
m os a qualidade esp ecífica da teologia histórica bíblica. A “casa”
dinástica, co m a su cessão das suas gerações, das suas vicissitu-
des, de seus m arcos cro n o ló g ico s, de sua história, portanto, é o
cam po privilegiado no qual D eu s age e se revela. M as há um
outro aspecto que agora d ev em o s aprofundar. A aliança entre
Jhwh e D avi prenuncia um a presença d ivin a esp ecial na “casa”
do rei: por dentro daquele fio dinástico, m uitas v ezes contorcido
e em aranhado, corre a prom essa de um “filh o de D avi”, quer
dizer, de um descendente perfeito, que será presença suprem a de
D eu s e da sua palavra na história.
Está pronta, assim , a base da esperança m essiânica real:
m ash iah , em hebraico, sig n ifica sim p lesm ente “consagrado, un­
g id o ”, e é 0 título do rei hebraico, o título do “m essias” ; o
perfeito “filho de D a v i” será, na verdade, o “M essia s”, o con sa­
grado por ex celên cia. Traduzido literalm ente para o grego com o
ch ristó s (de chrio, “un gido”), triunfou, em uma nova chave e
qualidade, co m “Cristo”, d esign ação aplicada, no cristianism o, a
.lesus de N azaré. Há, porém , um a diferença que d evem os logo
destacar. O M essias hebraico perm anece solidam ente ancorado
na "casa” de D avi; ainda que a linhagem genética vá se romper
com o fim da dinastia, na ép o ca do e x ílio babilônico, o M essias
esperado sem pre estará ligad o à carne de D avi, de Judá e de
Israel, será sem pre uma criatura — embora, de alto quilate esp i­
ritual — , constitu ind o-se no portador da m ensagem últim a de
D eu s e n o artífice da atuação do projeto divino de salvação. O
cristianism o, porém , verá em Jesus de Nazaré não só a figura do
M essias, m as tam bém a do F ilh o de D eus. O estatuto p essoal de
Jesus C risto fundirá em si as duas naturezas, a divina e a hum a­
na, e e le se tom ará o m ediador ideal entre D eus e o hom em , no
sentido m ais rigoroso do term o, indo além do m essianism o daví-
dico em sentido estrito.
V oltem os à prom essa de Jhwh a D a v i, sublinhada pelo rei
no seu “testam ento” (2 S m 23,5: “M inha casa está firm e junto a
D eu s, p ois sua aliança co m ig o é para sem pre, em tudo ordenada
e bem segura”). E la sustentará Israel até nos m om entos tenebro­
sos: o “consagrado” de D eu s é o herdeiro da prom essa divina,
um a prom essa que não pode extinguir-se porque n asce de D eu s
e p od e atuar-se através de cam inhos às v ezes surpreendentes. Já
d issem os que a m esm a tesoura do ex ílio , que parece ter truncado
b iologicam en te a fam ília davídica, não interrom pe seu flu xo e s­
piritual. É 0 que faz transparecer o m onum ental Salm o 89, em
cujo centro brilha a retom ada poética do oráculo de N atã (versí­
cu los 2 0 -3 8 ). Sugerim os a leitura direta d esse p oem a m essiân ico
que lê a p o s te r io r i a história da dinastia davídica, agora term ina­
da, e a vê cravejada — com raras e x c e ç õ es — de indivíduos
desprezíveis que “abandonaram m inha lei, violaram m eus esta­
tutos, ignoraram m eus m andam entos”. A justiça divina seguiu
seu curso, m as a fidelidade não se quebrou porque D eu s não
revoga suas prom essas. O final do salm o tom a-se, então, su g es­
tivo (versícu los 39 -5 2 ). O presente é trágico e só vale um pro­
longado lam ento: o céu turvou-se, a glória de D avi, agora redu­
zida a ca co s, transform ou-se em m otivo de vergonha; a estab ili­
dade virou m alogro; o triunfo, hum ilhação. A s perguntas de or­
dem teo ló g ica surgem aos tropéis; A prom essa foi traída? A
fidelidade divina acabou? A crise é definitiva? A reproposição,
c o m faustosa solenidade, do oráculo de Natã, em so len e co n tex ­
to cósm ico , é a resposta confiante e “m essiân ica” que o S alm o
89 dá a tais perguntas, jorradas da co n sciên cia de Israel diante
da catástrofe do ano 5 86 a.C.
U m outro salm o, o 132, considerado por m uitos arcaico e
um a esp écie de ritual da procissão com em orativa do traslado da
arca para S ião, por parte de D a v i (2 S m 6), já antecipara os
termos do drama, bem co m o as razões da esperança. O juram en­
to divino estava con dicion ad o por um s e respeitoso da liberdade
do aliado hum ano: “O Senhor jurou a D a v i / um a prom essa que
jam ais retratará; / É um fruto do seu ventre / que eu vou colocar
em seu trono. / S e seus filh o s guardarem a m inha alian ça / e o
testem unho que lhes ensin ei, / tam bém o s filh o s d eles, para sem ­
pre, / irão sentar-se em seu trono” (SI 132,11-12). E o final é
lum inoso, dom inado por sím bolos de vida e de luz. O "consagra­
d o ” — M essias é um broto que desponta v ig o ro so (verem os que
a im agem terá seu peso na tip ologia m essiân ica); a coroa real
florescerá, dem onstrando-se viva e fecunda; D eu s iluminará seu
M essias com um a tocha in extin guível. Q uando a cham a do fo ­
gão dom éstico está apagada, é sinal de que a casa está vazia e a
fam ília, extinta; m as, se estiver brilhando, poderá ser transmitida
d e geração em geração. E is as palavras do salm ista: “Farei bro­
tar 0 vigor de D avi, / acenderei um a lâm pada para o m eu m es­
sias [consagrado], / vestirei os seus in im igos de vergonha, / e
sobre e le vai brilhar a m inha coroa” (SI 1 3 2 ,1 7 -1 8 ).

Um p ro fe ta que viveu d o is sécu lo s

E m 1947, um jo v em pastor beduíno, M oham m ed el-D ib ,


seguindo um a cabra rebelde sobre as rochas que se recortam no
lado nordeste do Mar M orto, descobriu — co m o agora é univer­
salm ente sabido — em um a gruta aqueles que, tam bém depois
de su cessiv a s pesquisas, viriam a ser cham ados de m anuscritos
de Qúmran, devid o ao lugar da descoberta, sed e de um a antiga
com unidade judaica de características realm ente originais e au­
tônom as. Pois bem , entre os achados da prim eira gruta havia um
rolo form ado por d ezessete p eles curtidas juntam ente, de m odo a
com por um pergam inho de sete m etros, com 2 0 centím etros de
altura, conven cionalm ente indicado com a sig la IQIs". N esse
pergam inho, 54 colunas de 2 9 linhas cada um a traziam uma
cóp ia do texto do profeta Isaías, executada por aquela com unida­
de, datável do século I a.C. D ocu m en to p recioso para os estudio­
sos, 0 rolo de Qúmran repropõe o relevo de um profeta, cuja
obra se estende por dois sécu lo s. N o livro, de fato, são narradas,
com o já tivem os ocasião de dizer, os testem unhos do Prim eiro
Isaías, o profeta clássico que v iv eu na segunda m etade do século
VIII a.C. (textos abundantes, esparsos nos prim eiros 39 capítu­
los), d o cham ado Segundo Isaías, profeta do retom o de Israel da
B abilônia, por volta do fim do século V I a.C ., presente nos
capítulos 4 0 -5 5 , e de um Terceiro Isaías (talvez m ais de um
autor), que viveu quando Israel já se havia estabelecido na terra
dos antepassados, depois do ano 5 20 a.C., responsável pelos
capítulos 56 -6 6 .
Isaías é, portanto, um profeta que idealm ente viveu por
m ais de dois sécu los, a partir de 7 4 0 -7 3 9 a.C., quando teve a
v isã o -voca çã o no tem plo de Jerusalém (Is 6), objeto tem ático do
grande oratório espiritual em sete partes, todas cantadas por um
coral da com unidade fiel, criado, nos anos 30, p elo com positor
su íço W illy Burkhard (1 9 0 0 -1 9 5 5 ), co m o título de D a s G esich t
Isa ía s. [“A visão de Isaías”]. A v o z profética do Prim eiro Isaías
prosseguirá co m outras v o zes, sua pena passará a outros, que a
m olharão em outros tinteiros, exprim indo-se, assim , em diferen­
tes estilo s e temas, m as conservando elem en tos do prim eiro gran­
de profeta e m estre. V am os nos debruçar agora sobre um d esses
m otivos, o m essiân ico, que fe z de Isaías um a das presenças ico-
nográficas constantes na arte cristã. E ele, provavelm ente, a fi­
gura que, ao lado de M aria e do M enino Jesus, indica um a
estrela nas catacum bas romanas de P riscilla (sécu lo III). É seg u ­
ram ente ele quem aparece na ala esquerda do átrio do altar de
Isenheim , pintado por G rünew ald entre os anos 1513 e 1515,
com o presença profética na cena da A nunciação. É ele, co m o
texto que ora analisarem os, o que aparece no celebérrim o M essia
de H aendel (1 7 4 2 ), m úsica que poderem os manter com o pano de
fundo ideal, talvez acrescentando os m enos fam osos Isaia il p r o ­
fe ta , de A lexandre Tansm an (1 9 5 0 ) e a P ro m e ssa d i D io , que
Darius M ilhaud com p ôs em 1971 co m base em textos de Isaías e
E zequiel.
O teor original dos passos “m essiânicos" de Isaías é, na
realidade, diferente daquele atribuído a eles pela releitura cristã
que, na figura do rei-Em anuel de Isaías, viu claramente os co n ­
tornos de Jesus Cristo. A m ensagem do profeta é, antes de tudo,
ligada ao seu tem po, embora se abra para horizontes grandiosos e
distantes. D ev em o s agora exam inar um b lo co de capítulos do
livro de Isaías, do 7 ao 12, definidos co m o “o livro de E m anuel”,
nom e hebraico im m an ú -’el) que sig n ifica “D eu s-c o n o sc o ”. A
aderência a um preciso arco h istórico é lo g o indicada p ela aber­
tura (Is 7 ,1 -9 ), e refere-se ao p esad elo da guerra sírio-efraim ita,
isto é, à preocupação com a instauração de um eix o D am asco-
Samaria, entre a Síria e o reino separatista setentrional hebraico,
contra Jerusalém e seu rei, A caz, soberano descendente de D avi,
mas asperam ente condenado p elo Segun do Livro dos R eis e por
Isaías. E stam os no ano 7 34 a.C.; diante do pesadelo b élico , A caz
recorre ao protetorado assírio, ignorando o parecer negativo do
profeta, o qual, porém , proclam a um a m ensagem de esperança,
centrada num futuro descendente davídico, finalm ente justo e fiel
à aliança com D eus. A alusão é quase certam ente ao filho de
A caz, E zequ ias, rei exem plar que bem m erecerá o título de
Em anuel. Porém — e isto é relevante para um a correta interpre­
tação do texto em todo o seu potencial — , naquele rosto concre­
to, Isaías faz aparecer traços tão lum inosos que o tom am figura
de um a esperança m ais elevada. Procedam os por ordem e anali­
sem os, prim eiro, o capítulo 7 e sua anunciação do nascim ento de
um herói-salvador, gênero literário já laudatório para descrever
um a irrupção divina na história através de um personagem eleito.

Um a d ie ta d e co a lh a d a e m el

Isaías 7,10-17: este é o trecho da anunciação do nascim en­


to do Em anuel, interpretado autom aticam ente pelos cristãos com o
a anunciação do nascim ento de Jesus. V ejam os, contudo, a in­
tenção im ediata de Isaías. Quatro são os tem as do trecho. Em
prim eiro lugar, a con cep ção e o nascim ento do filho de um a m ãe
m isteriosa, definida alusivam ente com o ‘alm ah, “jo v em m ulher” :
“U m a ‘a lm ah conceberá e dará à luz um filh o ” (Is 7,14). A
versão grega antiga da B íblia e a tradição cristã traduziram ‘alm ah
por p a rth é n o s, “virgem ” , encontrando assim o cam inho para in­
troduzir Maria, m ãe de Jesus. O texto de Isaías não determina
esta figura materna, que poderia ser a m ãe de Ezequias, cham ada
A bia, jo v e m esp o sa do rei A ca z. N o gênero citado das anuncia­
çõ e s, a m ãe d eve ter um estatuto particular — sói ser estéril —
para recordar que o filh o n ascid o dela é sobretudo dom divino e
instrum ento da ação direta do Senhor. O segundo elem ento im ­
portante da narrativa é o n om e do m enino: “E la o chamará
E m anuel” (Is 7 ,1 4 ), nom e que é a síntese perfeita da prom essa
da “ca sa ”, feita p elo profeta N atã a D avi (2S m 7), sinal da pre­
sença d ivin a na descendência do trono de Judá. O terceiro dado
é a dieta do m enino, sinal sim b ó lico am bíguo, porque o profeta
não usa o tradicional estereótipo bíblico do “leite e m el”, indica­
dor do bem -estar da terra prom etida, mas “coalhada e m e l”: “Ele
com erá coalhada e m el” (Is 7 ,1 5 ), Ora, a nata (ou coalhada),
indica frescor no calor (G n 18,6-8) e, portanto, felicid ad e, é
tam bém o alim ento precioso nos m om entos de perigo, com o se
lê um pouco m ais adiante (Is 7 ,2 2 ). O m esm o se p ode dizer do
m el. O alim ento sim b ó lico do E m anuel revela, então, um a situa­
ção de variabilidade e de dualidade, na qual se entrelaçam paz e
tensão, salvação e julgam ento. O últim o com pon ente do oráculo
isaiano é o futuro da criança ao atingir a m aioridade ( “até que
aprenda a rejeitar o m al e a escolh er o b em ” [Is 7,15]): “M as,
antes que o m enino aprenda a rejeitar o m al e escolh er o bem , a
terra d esses d ois reis que lhe estão causando m edo será arrasa­
da” (Is 7 ,1 6 ), isto é, os soberanos da Síria e da Samaria, p esad e­
lo de A ca z e do reino de Judá. O anúncio de Isaías fixa-se,
então, em um contexto histórico concreto e sobre um preciso
“m essias-consagrado”, talvez E zequias, sucessor de A caz, ao qual
se augura um reino de justiça, sinal da presença divina na h istó­
ria (Em anuel). M as o oráculo tem contornos tam bém m ais so le ­
nes e abertos, que serão explicitad os — sem pre alusivam ente —
nas passagens seguintes.
Farem os agora referência a duas páginas esplêndidas e ce-
lebradíssim as. A primeira é o hino de libertação de Is 9,1-6, no
qual os dois planos — o histórico e aquele m ais alto e “m essiân i­
c o ” — , se dehneiam com maior nitidez. O coral isaiano abre-se
com um a estrofe de luz e de alegria: é co m o se estivéssem os
diante de um a n ova criação e de uma perfeita teofania: “O p ovo
que andava nas trevas viu um a grande luz, e um a luz brilhou para
os que habitavam um pais tenebroso. M ultiplicaste o p ovo, au-
m entaste o seu prazer. V ão alegrar-se diante de ti, com o na ale­
gria da colheita, com o no prazer dos que repartem despojos de
guerra” (Is 9 ,1 -2 ). A felicidade é elem entar, e, com os sím b olos
da colheita e do butim, ev ocam -se os p ólos extrem os da história
de um povo: a paz e a guerra. A s duas estrofes seguintes ex p li­
cam com três “porquês” as razões desta n ova alegria có sm ica (Is
9,3-4; 9,5-6). A primeira causa de felicid ad e está na libertação da
opressão: os sinais da escravidão (canga, vara, bastão) são d esp e­
daçados. “Porque quebraste a canga de suas cargas, a vara que
batia em suas costas e o bastão do capataz...” (9,3). A segunda
causa é a paz, retratada pela im agem de um a fogueira que c o n so ­
m e todos os apetrechos ensangüentados da guerra; “Porque toda
bota que pisa com barulho e toda capa em papada de sangue serão
queim adas, devoradas pelas cham as” (9,4).
o cúm ulo da felicid a d e que se espraia pelo m undo está na
terceira m otivação, o dom do Em anuel (evocad o na repetição do
pronom e da prim eira p esso a do plural: “nasceu p a r a nós um
m enino, um filho n o s fo i dado...”): “Porque nasceu para nós um
m enino, um filh o nos fo i dado: sobre seu om bro esta o m anto
real, e ele se cham a ‘C onselheiro M aravilh oso’, ‘D eu s F orte’,
‘Pai para sem pre’, Príncipe da paz” (Is 9,5). Os quatro títulos
reais elencam , de par co m as funções de corte (“C on selh eiro”,
para a p olítica interna; “P oderoso” ou “H erói”, para a política
externa; “Pai”, em relação aos súditos; “P ríncipe”, título do so ­
berano hebraico co m o d elegad o de D eus, rei suprem o), qualida­
des excepcionais e gloriosas (“adm irável” ou “m aravilhoso” com o
D eu s, que realiza “m aravilhas” ; partícipe do m esm o, poder de
D eus, da sua eternidade, e autor da pa z-sh a lô m perfeita). E claro
que agora o louvor ao Em anuel concreto se expande para hori­
zontes, transcendentes, “m essiâ n ico s”, m esm o: com o diz o últi­
m o verso: “Grande será seu dom ínio, e a paz não terá fim sobre
o trono de D avi e seu reino, firmado e reforçado com o direito e
a justiça, desde agora e para sem pre” (Is 9,6).

O s q u atro ven to s m essiâ n ico s

A inda m ais voltado para esta dim ensão total e “m essiâni­


ca” está 0 cântico da outra página do “livro do E m anuel” que
querem os considerar, isto é, o hino de Is 11,1-9. N a sua base
talvez esteja o m om ento da entronização de E zequias, mas o
even to se enfraquece, to m an d o-se quase o lim iar de um novo e
futuro paraíso, cujo soberano é sem pre m enos “m e ssia s” e sem ­
pre m ais “M essia s”, isto é, sem pre m ais desatrelado da realidade
histórica im ediata e sem pre m ais ligado àquele projeto de har­
m onia que D eus concebera para sua criação, n os prim órdios
m esm o do ser, e que agora é rem etido à ação final, “escatológi-
ca” , do M essias. R ecorde-se, co m efeito, que, na prim eira etapa
do n o sso itinerário b íb lico, falam os d esse p oem a isaiano, estru­
turado co m o díptico. O prim eiro quadro (1 1 ,1 -5 ) é vazado em
sím b olos vegetais que se lig a m depois a im agens reais. D o res­
sequido trono da dinastia d avídica (Jessé é o pai de D avi) des­
ponta um broto, um princípio absolutam ente gratuito de vida:
“D o tronco de Jessé sairá um ramo, um broto nascerá de suas
raízes” (11,1).
Já ev ocam os, ao citar o Salm o 132, a im agem do broto:
em bora co m term os diferentes, tornar-se-á m etáfora e até nom e
do rei-M essias. Jerem ias, por exem p lo, talvez ironizando o últi­
m o inepto rei de Judá, S ed ecias, em hebraico “O Senhor é ju sti­
ça ”, proclam ará assim o perfeito rei esperado: “V ejam que vão
chegar dias — oráculo do Senhor — em que eu farei brotar para
D avi um broto justo. E le reinará co m o verdadeiro rei e será
sábio, pondo em prática o direito e a ju stiça no país. E m seus
dias, Judá estará a salvo e Israel viverá em paz; e a ele darão o
nom e de “Javé, n ossa ju stiça ” (Jr 2 3 ,5 -6 ). Zacarias, profeta pós-
ex ílic o , o fará tom ar-se o nom e próprio do M essias: “E is que
enviarei o m eu servo Germ e... A qui está um hom em ; seu nom e é
Germ e, e onde ele está vai germinar. E le construirá o T em plo do
Senhor” (Zc 3,8; 6,12). T am bém neste caso, o profeta se refere a
um a figura concreta, Zorobabel, o guia p olítico do repatriam ento
dos exilados hebreus da Babilônia. M as o olhar vai m ais além;
um reino ideal e um tem po perfeito.
V oltem os, porém , ao hino de Isaías. A im agem do rami­
nho verde ev o ca a idéia do vento: ora, em hebraico, um único
vocábulo, ríiah, indica tanto o “v en to ” com o o “espírito” . O
vento que faz sussurrar a nova fronde do tronco de Jessé e,
portanto, tam bém o espírito de D eu s derramado sobre o M es-
sias-G erm e. A plenitude de tal efu são é declarada pela quádrupla
m enção do vocáb ulo rüah: os quatro ventos rem ete aos quatro
pontos cardeais, e, portanto, ao m apa perfeito do m undo m e ssiâ ­
nico e, concom itantem ente, à perfeição carism ática do Em anuel.
“Sobre ele pousará râah do Senhor, rüah de sabedoria e in teli­
gência, n ia h de co n selh o e fortaleza, rüah de con h ecim en to e
tem or ao Senhor” (Is 11,2). O vento-espírito expande-se em três
abundâncias de dons (que se tornam, com o acréscim o da “p ie­
dade”, os sete dons do Espírito Santo, na tradição grega e latina
da passagem de Isaías): “sabedoria e in teligên cia” apontam para
a plenitude hum ana geral do rei-M essias; “conselh o e fortaleza”
exaltam as qualidades políticas e m ilitares do soberano; “co n h e­
cim ento e tem or ao Senhor” d efin em -lh e a atitude religiosa fun­
dam ental. M as o sétim o dom ideal, sem pre cantado com o grande
sinal de identificação do M essias, é a justiça (leia-se o Salm o 72).
Isaías in siste neste tem a através de um a série de elem entos da
investidura real: “E le não julgará pelas aparências, nem dará a
sentença só por ouvir. E le julgará os fracos com justiça, dará
sentenças retas aos pobres da terra. E le ferirá o violento com o
cetro de sua boca, e matará o ím pio com o sopro de seus lábios.
A ju stiça é a correia de sua cintura, e a fid elid ade que lhe aperta
os rins” (Is 11,3-5).
O segundo quadro do díptico p oético (1 1 ,6 -9 ) já foi por
nós citado na representação daquele m undo “paradisíaco” alm e­
jado por D eu s, m as degenerado p elo pecado do hom em . Trata-se
de um cântico das criaturas do n ovo m undo e de um a celebração
do sh alô m bíblico, a qualidade característica de paz e bem -estar,
de serenidade e prosperidade da era m essiânica, traduzido p icto­
ricam ente em m undo entusiástico pela tradição judaica. Predo­
m ina agora no hino a sim b o lo g ia animal de pacificação: as pare­
lhas antitéticas de feras (lob o, pantera, leãozin ho, ursos, leões,
áspide) e de anim ais d om ésticos (carneiro, cabrito, bezerro, vaca,
boi, cãezin h os) co n v iv em em sólida harm onia. A té m esm o o
grande adversário do hom em , a serpente do capítulo 3 do G êne­
sis, se reconcilia com a hum anidade, voltando a ser um animal
da criação. É claro que não pode faltar a presença alusiva da
“criança” que guia esta criação renovada e que tom a inofensiva
a serpente venenosa. C om essa im agem , fech a -se o livro do
E m anuel, aberto justam ente c o m o anúncio do nascim ento de
um filh o, dom grandioso de D eu s.

“N in gu ém sa b e a té quando... "

A linhagem dinástica de D avi percorre p ouco m ais de


quatro sécu lo s, com raras lu zes (Salom ão, Asa, Josafá, Ezequias-
Em anuel, Josias) e m uitas som bras, até atingir o trágico marco
do ano 5 8 6 a.C., freqüentem ente lembrado: “N o dia sete do
quinto m ês, correspondendo ao ano d ezen ove de N abucodono-
sor, rei da B abilônia N abuzardã, ch efe da guarda e o ficial do rei
da B ab ilôn ia, chegou a Jerusalém . E le pôs fo g o no T em plo do
Senhor, n o palácio real e em todas as casas de Jerusalém e
incendiou todos as m ansões. A o m esm o tempo, o exército caldeu,
que acom panhava Nabuzardã, ch efe da guarda, destruiu as m u­
ralhas que rodeiam Jerusalém . Nabuzardã ex ilo u o p o v o ...” (2R s
2 5 ,9 -1 1 ). A assepsia d esse boletim de guerra contrasta com a
pungência com a qual as L am entações, atribuídas pela tradição a
Jerem ias, e os Salm os cantam aquele fatídico dia. A s Lam enta­
ções deveriam ser lidas integralm ente, p ela sua extraordinária
intensidade e por sua trágica beleza, talvez acom panhadas da
Jerem iah Sym phony, com m eio-soprano e orquestra, de B em stein
(1 9 4 9 ), ou da com p osição para coro e orquestra Threni (assim se
diz em grego “lam entações”), de Stravinski (1958).
A s L am entações não são, porém , apenas elegias n a cio­
nais, entoadas ora por um espectador, ora pela própria cidade,
representada com o um a viúva in con so lá v el que lança ao céu a
interrogação (que é tam bém a primeira palavra da prim eira la­
m entação) ‘ekah, “co m o isto aconteceu?” Estam os diante sobre­
tudo de um a acurada m editação sobre as causas dessa tragédia,
considerada co m o julgam ento contra o pecado de Israel. N ão são
os babilônios que incendeiam e m assacram , mas sim o próprio
D eus, com o o vindim ador que esm aga a uva da vinha de Israel,
extraindo-lhe o m osto verm elho, sem elhante ao sangue; “C om o
num tanque, o Senhor esm agou a donzela, a capital de Judá”
(Lm 1,15). E fo i justo “porque m e revoltei contra sua palavra”
(1,18). T am bém veem entes são certos Salm os, co m o o 74: “Os
opressores rugiram no lugar das tuas assem bléias, / e puseram
suas insígnias no frontão da entrada, / insígnias que não eram
conhecidas. / C om o quem brande o m achado no bosque, / e les
destroçaram as esculturas, / golpeando c o m m achado e c o m o
m artelo. / A tearam fo g o no teu santuário, / profanaram até o
chão a m oradia do teu nom e. / ... Já não v em o s n ossos sinais, já
não existem profetas, / e ninguém de nós sabe até quando...” (SI
7 4 ,4 -9 ). A estrofe termina com esta suspensão trágica que sela o
estroJido da destruição.
Sobrevêm o silêncio: D eus já não en via profetas e se m an­
tém indiferente, co m o um velho de m ãos encolhidas, num a o b ­
servação quase im potente: “Por que retiras tua m ão esquerda / e
m anténs a direita escondida no p eito ? ” (SI 74,11). O Senhor
perm anece indiferente até à vista das caravanas dos deportados.
Lá, “junto aos canais a B abilônia”, os hebreus conhecerão um
destino de atônito silên cio, com o diz o bardo do m agn ífico la­
m ento que é 0 S alm o 137: o Su per flu m in a B abylon is, m u sicad o
por C arissim i, B ach, L iszt e outros, em vão seguido por um a
p o esia de Q uasím odo e por m uitos escritores e leitores... “Junto
aos canais de B abilônia / nos sentam os e choram os, / com sauda­
des de Sião. / N o s salgueiros de suas m argens / penduram os
nossas harpas. / Lá, os que nos exilaram pediam canções, nossos
raptores queriam diversão: / ‘Cantem para nós um canto de siã o !’
/ C om o cantar um canto do Senhor / em terra estrangeiras? / Se
eu m e esquecer de ti Jerusalém , / que seque m inha m ão direita. /
Q ue m inha língua se c o le ao paladar, se eu de ti não m e lembrar,
/ e se eu não elevar Jerusalém ao topo da m inha alegria!”
(SI 137,1-6). A lem brança de Sião en v o lv e a m ão, o palato, a
voz, a alegria, a m ente, as lágrim as. A esquecer Sião é m elhor
que a direita — m ão indispensável para o tocador de citara —
“m e esqueça”, tornando-se inerte. A língua é im prescindível para
o cantor. Pois bem , exclam a o poeta, que a língua se cole para
sem pre ao palato se o exila d o se esquecer de Sião, fonte única
d e vida e de alegria. Em vão os beleguins da B abilônia tentarão
quebrar este silêncio: os cantos de Israel não são folclore, mas
orações, e só na liberdade de culto de Sião poderão voltar a ser
entoados ao céu.

Um d o rso fla g e la d o

N o entanto, nesses e em todos os demais poem as, dedica­


dos à tragédia do ano 5 86 a.C ., o pano nunca cai sobre a trevas.
Um raio de luz sempre se desprende para o horizonte. O Salm o
89 — co m o já recordam os — se perguntava sobre o destino da
prom essa divina feita a D avi, agora que a dinastia se esboroara
deploravelm ente, — o últim o rei sobrevivente, Joaquim, ceg o e
prisioneiro na B abilônia, morreria no exílio. Mais um a vez, é a
profecia que mantém acesa a cham a da esperança, na pessoa
daquele “profeta que viveu dois séculos” . D e fato, e o Segundo
Isaías, 0 m enestrel do repatriamento (ocorrido depois que Ciro
conquistou a Babilônia e, p elo edito de 538 a.C., autorizou as
nações deportadas pelos babilônios a voltar a seus territórios),
que renova a confiança em Israel e faz surgir, talvez, um novo
tipo de M essias. D issem os “talvez” porque as páginas que irem os
analisar foram fortem ente entendidas em chave m essiânica pela
tradição cristã, m as com extrem a reserva pela judaica (o testem u­
nho m ais claro só será oferecido pelos m anuscritos de Qúmran).
O personagem que v em à baila agora se cham a “Servo de
Jhw h”, “servo” aí entendido em sentido honorífico, quase com o
se fo sse um m inistro do Senhor para um projeto a ser im p lem en ­
tado. O m esm o título é aplicado na B íb lia a Abraão, M oisés,
Josué, D avi, aos profetas, a Ciro, e assim por diante. Tam bém
neste caso, a identificação é difícil porque deve conjugar a con-
cretude do anúncio profético (a referência poderia ser a Zorobabel,
Jerem ias, ao próprio profeta, ao Israel do retom o à terra santa...)
com sua idealidade e sua projeção para a esperança. Os traços
que aparecem nos quatro trechos, que v êem com o protagonista o
S ervo e que lo g o adiante descreverem os, rem etem à tipologia
profética: a salvação não será m ais m ediada, doravante, pela
instituição davídica, já em crise, m as sim pela figura dc um
profeta ideal, herdeiro da prom essa divina, que atuará com estilo
novo e surpreendente. Façam os um a incursão panorâm ica às qua­
tro passagens nas quais o S egundo Isaías esb oça o perfil e a
m issão d esse personagem , que consideram os o herdeiro da esp e ­
rança m essiânica.
N o primeiro canto (Is 42,1 -4), o Servo é solenem ente apre­
sentado pelo próprio D eus à corte celeste: o Espírito derramado
sobre ele o equipara ao rei Em anuel, sobre o qual, com o já
vim os, pousa o Espírito d ivino (Is 11,1-2), Sua m issão é anun­
ciar a lei de D eus, isto é, a revelação da vontade divina, às
“ilh as”, que representam os con fin s m ais rem otos da terra. Surge
aí um a dim ensão universalista que, dentro em pouco, con sid era­
rem os com m aior atenção. O m étodo d esse anúncio não é m ais o
do julgam ento, agora exaurido co m a queda de Jerusalém , m as o
da graça e da esperança: o Servo, de fato, reutiliza o bastão
quebrado, não o jo g a fora, nem apaga a candeia mortiça; antes a
abastece de azeite para que volte a luzir. N o segundo canto
(Is 4 9 ,1 -6 ), é o próprio servo que se apresenta em prim eira p es­
soa. O cham ado é para que anuncie a palavra. E ele faz da língua
um a espada afiada e uma seta pontiaguda para atingir o alvo.
A ludindo à voca çã o de Jeremias, o Servo de Jhwh recorda ter
feito objeção a um a m issão im portante, que lhe sobrepujara as
forças. M as a proteção de D eus, representada pela som bra de sua
m ão e p ela “caixa de flech a s”, d issip ou todas as dúvidas, e o
Servo pôde, assim , anunciar a salvação até os confins da terra.
C heio de alu sões a Jerem ias e às con testações sofridas por
ele (exp lica -se assim a identificação do S ervo com Jerem ias,
discutida por alguns ex eg eta s), o terceiro canto (Is 50,4-9) revela
um aspecto n ovo e original do Servo: e le é um sofredor, é fla g e ­
lado nas costas co m o os estultos, mas é o sábio por excelên cia e
o porta-voz da palavra de D eus. É alvo do m ais profundo d es­
prezo e de m aus-tratos, e oferece o q u eixo a quem lhe queira
arrancar a barba, e o rosto aos insultos e escarros. N o entanto,
ele vai con scien tem ente ao encontro das conseqüências do seu
m inistério, certo do apoio d e D eus e da vitória. C hegam os assim
ao quarto canto (Is 5 2 ,1 3 e 5 3 ,1 2 ), o m ais célebre, construído
sobre o tem a da dor e da hum ilhação do Servo, m anancial de
redenção e glorificação. R eaparece, na abertura, a im agem da
“vergôntea” que brota no deserto (recorde-se do broto que d es­
ponta do tronco de Jessé, em Is 11,1); o Servo é uma presença
de vida e graça em um m undo morto. E le é retratado aqui com o
um hom em desfigurado e desprezado, julgado pecador e punido.
N a realidade, são os espectadores que d evem confessar o próprio
pecado, depositado sobre ele; por isso, sua dor torna-se expiação
de p ecad os alheios: o castig o seria n osso, m as a expiação é dele.
Su a doação é total e d ócil, com o a do cordeiro sacrifical, e
o que o espera é a m orte e a sepultura, em bora não tenha “c o m e ­
tido v io lên cia nem usado de m entira em suas palavras”. M as a
m orte não é a fo z defin itiva para a qual corre a vida do Servo.
A o contrário, a m orte faz brotar o m istério da fecundidade que a
vergôntea continha: “pelas suas chagas fom os curados”. Seu so ­
frim ento expiatório libertou o s hom ens, que agora serão os des-
p ojos do seu triunfo e da sua vitória sobre o m al. O Servo, ao
final, con tem p la a luz e sa cia -se do conhecim ento e da intim ida­
d e divina. É claro que a figura do M essias, assim concebida,
m uda radicalm ente de perspectiva, em virtude do acosso dos
próprios eventos da história de Israel. O Servo assum e sobre si o
sofrim ento do p ovo, fruto do julgam ento divino contra os p eca­
dos de infidelidade de Israel, e reconcilia a humanidade com
D eu s. N ão é m ais pela via da realeza que se reconstitui o paraíso
devastado pelo pecado, e sim pelo cam inho da doação sacrifical
de um Servo que v eio ao m undo para trazer a palavra de D eus e
sua salvação. É fácil im aginar que, para os cristãos, essa trama
de hum ilhação e exaltação representa a chave interpretativa da
paixão, m orte e glorificação de Jesus Cristo. N ão que o profeta
tenha entrevisto Jesus de N azaré cin co sécu lo s antes. Seu anún­
cio do Servo, lançado com o fonte de esperança aos hebreus
ex ila d o s na B abilônia e prestes a retom ar a Jerusalém , era de
contornos tão am plos e transfigurados, que perm itiu aos ev an ge­
listas inseri-los no perfil de Jesus e utilizar os textos do Segundo
Isaías co m o base para introduzir a m orte e a p áscoa de Cristo no
arco do projeto sa lv ífico já desenhado no A n tigo T estam ento.

Um liv ro trilín gü e

O m essianism o é a tentativa sistem ática de trazer à luz a


meta para a qual está se orientando aquela história velada que
corre sob o fluxo dos eventos mundanos e que já ilustram os no
quarto capítulo do n osso plano de interpretação da m ensagem
bíblica (“D o pó da história, um murmúrio”). A concepção resul­
tante da história é de tipo retilíneo, m esm o se a superfície dos
dados e dos fatos se revele sinuosa e às v ezes emaranhada. U m a
vigorosa pincelada do m essianism o bíblico assim concebido nos é
oferecida por uma última tipologia, que sói ser definida com o
“apocalíptica”, porque aparece em D aniel, um livro colocad o pela
tradição cristã entre os textos proféticos, mas que pertence a um
gênero literário definido justam ente com o “apocalíptico” e que
terem os ocasião de conhecer m elhor. Estam os no período glorio­
so, mas tam bém atormentado, da era dos M acabeus (sécu lo II
а.C.) e, na parte escrita em aramaico d esse livro trilíngüe (aramai-
co, nos capítulos 2-7; grego, nos capítulos 13-14 e em outros
trechos m enores; hebraico, no restante), em m eio a uma saraban-
da g m n d gu ig n o l de visões, feras m onstruosas, números m ísticos,
catástrofes e enigm as, eis que aparece um personagem m isterioso,
“alguém com o um filho de^hom em ” . E le chega perto do “A n ­
cião”, isto é, do Eterno, D eus, que “lhe dá poder, glória e reino, e
todos os p ovos, n ações e línguas o serviram. Seu poder é eterno, e
0 seu reino é tal que jam ais será destruído” (Dn 7,13-14).
E m 1907, em tom o dessa cena, o escritor polonês Stanislaw
W yspianski con figurou a trama de seu drama D an iel, tentando,
porém , subverter-lhe o valor m essiâ n ico -esca to ló g ico, reforçado
ainda pelas aspirações do tardo rom antism o, para introduzir um

б, A rarraliva.
161
m essian ism o da ação. O sentido da p a ssa g em , porém, propende
a exaltar a m eta últim a da história, já que, p o r intervenção d iv i­
na, um m isterioso k e-bar-n ash , em aram aico “alguém sem elhan­
te a um filho de h o m em ”, receberá de D eu s u m poder de gover­
no universal e in d efectível. N o contexto da p assagem , exp lica-se
quem é este gestor do poder có sm ico por d eleg a ção divina: em
outras tom adas repete-se que “os santos do A ltíssim o receberão
0 reino e o possuirão para sem pre... e chegará a hora em que os
santos tom arão p o sse do reino... então o reino, o im pério e a
grandeza de todos os reinos que existem sob o céu serão entre­
gues ao po v o dos santos do A ltíssim o, cujo reino será eterno, e
todos os im périos o servirão e o obed ecerão” (D n 7 ,1 8 .2 2 .2 7 ).
C om a linguagem entalhada de criptogram as que lhe é típica,
D aniel personifica, no “filh o de hom em ”, “o p ovo dos santos”,
isto é, o s ju stos e, concretam ente, os heróis da rebelião dos
M acabeus contra opressão sírio-helenística. M ais uma vez, esta­
m os diante de uma referência a um a situação histórica precisa,
na qual a esperança é alusivam ente sem eada.
O horizonte, porém , é glorioso e ch ega até o cum e da
história, superando esp aço e tem po. Por isso , a tradição judaica
foi a prim eira a assum ir a p assagem de D aniel em chave m essiâ­
nica explícita, intuindo no personagem “sem elhante a um filho
de h om em ” o rosto do M essia s. A gora extinta a dinastia da
vídica, o perfil do n ovo M essia s revela contornos cada vez m ais
destacados dos vínculos cam ais e históricos: d iz-se, por ex em ­
plo, que e le “aparece entre as nuvens do céu ”, veículo clássico
das teofanias. A centua-se, por isso , a dim ensão transcendente e
gloriosa do M essias. N esta trilha, colocar-se-á, em seguida, a
tradição cristã, que nos ev a n g elh o s assum irá a expressão “Filho
do h om em ” com o título e x c e lso e pleno do M essias Jesus. A
ap licação a si m esm o d essa profecia apocalíptica, problemática
em relação à rigorosa e m onoteísta transcendência bíblica, por
parte de Jesus, no interrogatório diante do sum o sacerdote Caifás,
dará pretexto à acusação d e b lasfêm ia contra ele: “D e agora em
diante, v o c ê s verão o F ilh o do H om em sentado à direita do
T odo-pod eroso, e vindo sobre as núvens do céu. Então o sumo
sacerdote rasgou as próprias vestes, e disse; ‘E le blasfem ou!’”
(M t 2 6 ,6 4 -6 5 ).
Originado do trono de D avi, arrem essado ao pó co m seu
p o v o escravo e elevad o à glória celeste, o M essias percorre um a
parábola aberta que o cristianism o fechará em Jesus de Nazaré.
Para o judaísm o, o M essias perm anece criatura, mas seu itinerá­
rio sobe aos céus, sua trajetória ultrapassa o tem po e o espaço
para encontrar o eterno e o infinito. Por isso, proporem os agora
um salto no além -vida, segundo as Escrituras hebraicas, e no
além -con fin s, isto é, para além da terra de Israel. Iniciarem os
com um vôo para além dos esp aços geográficos da terra santa,
em direção a um universalism o conquistado a duras penas.
A antiga bênção abraâmica com preendia este anúncio: “Em
você, todas as fam ílias da terra serão abençoadas” (Gn 12,3). A
eleição de Israel no Sinai com o “propriedade especial de D eus
entre todos os p ovos, reino de sacerdotes e nação santa” (Ex 19,5-
6), antes que m issão e dom , tom ou -se quase uma honra, um privi­
légio. Form ou-se assim , em torno de Israel, uma muralha sagrada,
reforçada pela com unidade em ersa do ex ílio , que fizera de Jerusa­
lém um a cidadela sagrada e, de seus habitantes, uma “raça santa”,
da qual deviam ser expulsos todos os estrangeiros, in clu sive as
esposas dos casam entos m istos, com o imporá o sacerdote Esdras,
alferes do renascido judaísm o p ó s-ex ílico (Esd 10).
N e ssa atm osfera asfixiada, levanta-se a v o z dos profetas.
Já vim os que o Servo de Jhwh d eve correr até as “ilhas”, ou seja,
as regiões m ais rem otas dos antigos planisférios, para anunciar a
palavra divina. O senhor lhe disse: “É m uito pouco v o cê tom ar-
se m eu Servo, só para reerguer as tribos de Jacó, só para trazer
de volta os sobreviventes de Israel. F aço de v o cê um a luz para
as nações para que a m inha salvação ch egu e até os co n fin s da
terra” (Is 4 9 ,6 ). U m a m issão universafista, reforçada em um o u ­
tro retrato m essiâ n ico p ó s-ex íiio , aquele oferecido p elo profeta
Zacarias, em um a passagem m uito cara à tradição evangélica:
“D ance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de
Jerusalém , p ois agora seu rei está chegando, justo e vitorioso.
E le é pobre, v em m ontado num jum ento, num jum entinho, filh o
de um a jum enta. E le destruirá os carros de guerra de Efraim e os
cavalos de Jerusalém ; quebrará o arco de guerra. A nunciará paz
a todas as n a ç õ e s...” (Z c 9,9 -1 0 ). U m anúncio universal d e paz
às nações da terra: este é o dom do rei-M essias. Já o Prim eiro
Isaías, em um hino de S ião que se tom ou justam ente célebre,
sonhara para “o fim d o s d ias” um a Tpaz-shalôm m essiân ica c ó s­
m ica (Is 2 ,2 -5 ). Correntes de p o v o s, flu x o s de nações, rios de
estrangeiros teriam acorrido em marcha para S ião, à procura de
um a palavra eterna. “C hegando lá em cim a, naq uele m onte que
se ergue co m o um farol de luz em um m undo en v olto em trevas
planetárias, teriam deixado cair das m ãos espadas e lanças para
transform á-las depois em instrum entos técn icos para o d esen v o l­
vim en to pacífico: “D e suas espadas eles fabricarão enxadas, e de
suas lanças farão fo ic e s. N en hu m a nação pegará em armas co n ­
tra outra, e ninguém m ais vai se treinar para a guerra” (Is 2,4).
E é no m esm o livro que lem o s um outro oráculo, con sid e­
rado, porém , p elos estu d iosos um texto m uito tardio, talvez do
sécu lo III a.C.: “N aq uele dia, Israel será m ediador entre E gito e
A ssíria; será um a bênção no m eio da terra, porque o Senhor dos
exércitos o abençoa dizendo: ‘B endito seja o E gito, m eu povo, e
a A ssíria, obra das m inhas m ãos, e Israel, m inha herança’ ”
(Is 1 9 ,24 -2 5 ). O olhar se lança para um a plenitude futura e dis­
tante, exp ressa pela locu ção “naquele dia” (recorde-se “o dia de
Jhw h”, cantado por A m ós co m o m om ento do in gresso d ecisivo
de D eu s na história humana); o s tradicionais in im igos de Israel,
as duas potências egíp cia e assíria, tom ar-se-ão objeto da aliança
e da bênção divina, enquanto Israel fechará a tríade, revelando-
se sem pre com o “a herança” , isto é, a realidade m ais preciosa,
propriedade esp ecial do Senhor. E um obscuro profeta de nom e
M alaquias, que ocupa o últim o lugar na série dos profetas, criti­
cando o culto form alista do tem plo de Jerusalém , chegará a e s­
crever: “D o Oriente ao O cid ente, é grande o m eu n om e entre as
nações. E em todo lugar se o ferece incenso ao m eu nom e e uma
oferta pura, pois grande é o m eu nom e entre as nações diz o
Senhor dos exércitos” (M l 1,11).
O m otivo universalista da abertura da salvação a todos “os
con fin s da terra”, isto é, a tod o s o s p ovos, brilha co m um a luz
única na b ela parábola que tem com o protagonista o profeta
Jonas. D atável do tardo p ó s-e x ílio , a narrativa é rica de mudan­
ças bruscas de cena e de alu sõ es exóticas que contribuíram para
popularizar o livro na arte: o p ersonagem aparece j á no fam oso
“sarcófago de Latrão”, do sécu lo III; foi pintado por M ichelângelo
na abóbada da capela Sistina, co m o um jo v e m que discute com
D eu s gesticulando (ao lado d ele estão os sím b olos do p eix e e da
árvore de m am ona); C orreggio, na cúpula de S ão João ev a n g e­
lista, em Parma, e R ubens, num a tela conservada na cidade de
N an cy, im aginam -no velh o e barbudo; enquanto Jan B ruegel o
apresenta na clá ssica cen a do “v ôm ito” da baleia na praia, onde
em ergirá o pobre profeta. F alam os de alu sões brilhantes e ex ó ti­
cas. V ejam os algum as, antes de definir o n ú cleo tem ático da
parábola: a vontade salv ífica universal de D eus.

A m a m o n eira d o p ro fe ta

O nom e do profeta, Jonas, sign ifica, em hebraico, “p om ­


ba”, e, se se quiser m anter o gênero, “P om b o”, em bora, para a
id eologia — co m o verem os — , Jonas tenha sido m ais sem elh an ­
te a um falcão integralista. A pom ba, entre outros, era o anim al
sagrado da deusa Ishtar, cujo santuário m ais aclam ado ficava
exatam ente em N ín ive, a capital da A ssíria, para onde o profeta
fora enviado em m issão por D eus. O sinal cuneiform e que indica
essa cidade é o m esm o da casa e do p eix e. A lguns term os náuti­
cos usados p elo livro parecem derivar do fen ício, enquanto o
“navio que vai direto a Társis”, no qual Jonas em barca para fugir
da ordem do Senhor, rem ete-nos a um a colô n ia fenícia, talvez
Gibraltar ou N ora-P ula, perto de C agliari. O p eix e m onstruoso
— recordem os o L eviatã de Jó (Jó 4 0 ,2 5 -4 1 ,2 6 ) — é o sím b olo
do mar, do caos aquático que atenta contra a vida, do ju ízo
divino. N a fantasia popular, tom ar-se-á um a baleia, co m o d iz o
título do negro spiritual Jonah a n d th e w h a le. N ão falta sequer
um a pitada de ironia quando, no in ício da narrativa, Jonas, “d e s­
cendo ao porão do navio, deita-se e dorm e profurj*iamente” (Jn
1,5), enquanto os m arinheiros pagãos, “tem entes ao Senhor, ofe-
recem -lh e sacrifícios e fazem v o to s” (1 ,1 6 ) para aplacar a bor­
rasca que se d esencadeou.
E xatam ente por tais “ingredientes”, Jonas estava fadado à
celebridade. S e, em 1669, G iacom o C arissim i o inseria em u m
oratório, ainda em 1952 o com positor M ario C astelnuovo-T edesco
repropunha um a ópera intitulada 11 lib ro d i G iona. M as fo i na
literatura que o profeta renitente ao cham ado profético co n h eceu
um estrondoso su cesso, m uitas v ezes com co n otações satíricas,
com o já fazia em 1620, o fam oso poeta espanhol Francisco de
Q ueved o no soneto A la b a llen a y a Jon as. Jonas vem sendo
em balado entre as m ais diversas ondas até n o sso século. Em
1900, 0 b elg a Iwan G ilkin, no rom ance Jon as, retrata-o com o
herói m ilitarista e racista, con ven cid o da n ecessid ad e da guerra
para salvar a Europa das hordas asiáticas. O húngaro M ihály
B abits, no poem a ép ico 11 lib ro d e G iona (1 9 4 0 ), transform a-o
em um intelectual acusado de silenciar diante de crim es históri­
cos. O teó lo g o alem ão D ietrich B onhoeffer, no poem a Jona,
escrito em 1944, em um cam po de concentração nazista, faz de
Jonas, que se entrega aos m arinheiros para ser lançado ao mar, a
encarnação da coragem m oral, enquanto outro alem ão, o roman­
cista Stefan Andres, em seu L ’uom o n e lp e s c e (1 9 6 3 ), identifica
o profeta c o m o pároco-doutor Jona, que funda um a obra a ssis­
tência! para depois abandoná-la; Jonas e o doutor Jona se encon­
trarão n o ventre da baleia, co m o espaço atem poral. A lista das
id en d fica çõ es poderia continuar co m num erosos exem p los. B a s­
te-nos dizer que o próprio Jesus extraiu da perm anência de três
dias no ventre do p eix e um “sinal de Jonas” (M t 12,39-40;
Lc 11,30), que se tornou sím b o lo do sepulcro pascal, enquanto o
p eixe, por seu acróstico grego {ichthús, “Jesus Cristo, filh o de
D eus, salvador”), transform ou-se em um dos sinais iconográfi­
co s m ais caros ao cristianism o das origens.
O tem a que a narrativa quer ilustrar, porém é outro: trata-
se do c o n v ite a Israel, fechado em si m esm o, para que supere
seus lim ites geográficos. A m isericórdia divina é universal e
com preende até a Assíria, o tradicional inim igo, o opressor, a
nação pagã e idólatra, p ersonificada na sua capital, N ín iv e. D e ­
signado para um a m issão que causa aversão a seu coração puri­
tano e integralista, Jonas, a contragosto, anuncia aos ninivitas a
palavra da penitência e da conversão e assiste, agastado, ao re­
sultado p ositivo de sua pregação: da base ao topo do Estado
assírio, todos passam a jejuar inclusive, antropom orficam ente,
os anim ais. Jonas, intim am ente, sonhava com o fracasso da pró­
pria m issã o , para que se d esen cad easse a cólera d e D eu s, e se
sente profundam ente d ecep cion ado, acusando o próprio D eus de
ser m uito paciente, gen eroso, “hum ano”: “Senh or” — reza o
profeta c o m m aldissim ulada ironia, “não era justam ente isso que
eu d izia quando estava na m inha terra? F oi por isso que eu corri,
tentando fugir para Társis pois eu sabia que tu és um D eu s
m isericordioso e clem en te, lento para a ira e ch eio de amor, e
que voltas atrás nas am eaças feita s” (Jn 4,2).
O D eu s que é para todos m ais “p ai” que ju iz oferece então
ao intolerante profeta e a seus seguidores no decorrer dos sécu ­
los, até n o sso s dias, um a d elicio sa lição que é um a parábola na
parábola. A m am oneira em cuja som bra Jonas se protege do sol
escaldante, e que seca, carcom ida por um verm e, transform a-se
em um sím b olo cujo valor é esp ecifica d o na pergunta final, à
qual cada leitor é convidado a responder (este é o único livro
b íb lico que term ina com um a interrogação): “Jonas, v o c ê está
com pena de um a m am oneira, que nãó lhe deu trabalho, que não
foi v o cê quem a fe z crescer, que brotou num a noite e na outra
morreu? E eu, será que não vou ter pena de N ín ive, esta cidade
enorm e, onde m oram m ais de cento e vinte m il p essoas... além
de tantos anim ais?” (Jn 4 ,1 0 -1 1 ).

Luz n eg ra e ca rru a g em de fo g o

Há um a outra transcendência que desponta do m essia n is­


m o e supera o tem po e a vida terrena. Já d issem os que o reino do
Em anuel, retratado por Isaías co m o um “paraíso” restaurado
(Is 11), tem contornos esca to ló g ico s, esten d e-se para além das
atuações históricas parciais, revelando-se com o o projeto de um a
nova criação, que coin cid e com o projeto inicial da criação se ­
gundo 0 Criador (Gn 2). V im os tam bém que o M essias ap ocalíp ­
tico de D an iel se situa para além do tem po e do espaço, na
dim ensão do divino; está entre as nuvens, e é capaz de abaríjar,
com um olhar transcendente, séculos e reinos em sua totalidade.
E, em bora d ev êssem o s entendê-lo co m o um M essias co letiv o ,
síntese do “p o v o dos santos”, seria verdadeiro o que D an iel
ainda afirma em relação ao destino últim o dos justos: “O s sábios
brilharão co m o brilha o firm am ento, e os que ensinam a m uitos
a justiça, resplandecerão para sem pre co m o estrelas” (D n 12,3).
É preciso recordar que, para a filo so fia pitagórica, as alm as dos
justos atingiam , após a morte, um a e sp é c ie de im ortalidade as­
tral, transform ando-se nas estrelas da V ia Láctea.
Para o antigo Israel, os um brais da m orte continuaram,
por m uito tem po, com o um a fronteira som bria, transposta a qual
a alm a se precipitava no x eo l, região abissal envolta por uma
esp écie de “luz negra”, assim descrita por Jó: “P aís da treva e da
som bra da m orte, onde a aurora é noite negra, onde a som bra da
m orte, cobre a confusão, onde a claridade é escuridão” (Jó 10,21-
22). A sobrevivência lá em baixo é espectral, sem elhante a um
negativo da preciosa existência terrena, com o canta o rei Ezequias,
saído in cólu m e de um a grave doença: “A m ansão dos mortos
não te louva, Senhor, nem a m orte te entoa hinos. Q uem baixa à
co v a não espera m ais a tua fidelidade. Q uem está v iv o é que vai
te louvar, com o eu estou fazen do agora” (Is 3 8 ,1 8 -1 9 ). Contra­
riam ente ao que dirá Paulo, para o qual “o morrer é lucro” (F1
1,21), para o hebreu a m orte é um a perda, e é “ilum inação da
existên cia ” — segundo a d efin ição de Martin H eid egger — só
no sentido de que faz ressaltar a b eleza perdida. N ão é por acaso
que a bênção do justo é representada pela v elh ice lon geva e pela
m orte rem ota, que chega depois de estarm os “fartos de dias”. O
am argo realism o do E clesiá stico , que ev o ca o G ên esis (3,19),
faz o hom em agarrar-se ao presente: “D a terra o Senhor criou o
hom em , e para ela o faz voltar novam ente. C oncedeu aos h o ­
m ens dias contados e tem po m ed id o ” (E clo 1 7,1-2). Poderíam os
nos delongar sobre o morrer bíb lico (a raiz verbal de “morrer”
e co a m ais de m il v ezes nas Escrituras hebraicas), o desejo de
viver, a ânsia de subtrair-se àquela sob revivência larval ofereci­
da p elo x eo l, a inelutabilidade do destino, que equipara hom ens
e anim ais (E cl 3 ,1 8 -2 1 ). Preferim os, no entanto, deter-nos breve­
m ente apenas sobre alguns tex to s que rasgam o lúgubre sudário
da m orte, deixando entrever a possib ilid ad e de sua superação.
À “luz negra” do x e o l o p õ e -se a carruagem de fo g o de
Elias, que é “elev a d o ” ao céu: o verbo hebraico Iqh, “tom ar”, na
v oz passiva, tom a-se quase “técn ico ” para indicar um a além -
vida do zênite celeste, isto é, de com unhão divina na eternidade.
O d estin o do profeta de Israel é bem conhecido para ser descrito:
o filó so fo judeu Martin Buber, co m seu drama E lija (1963),
desprendeu o significado sim b ó lico (Elias entra n a etem idade
sem experim entar a morte, por ser o m ensageiro da eterna pre­
sença de D eu s no hom em ju sto ). M as foi a arte que lhe traduziu
a em o çã o cênica: entre as n u m erosíssim as retom adas iconográfi-
cas, gostaríam os de citar as duas talvez m ais intensas: a da porta
de m adeira da igreja de Santa Sabina, em R om a (m ais ou m enos
do ano 4 3 0 ), co m a carruagem de fo g o transformada em biga,
enquanto um anjo arrebata Elias para D eus; e a da tela setecen-
tista de Piazzetta, conservada em W ashington, de forte tensão
m ística. D e im pacto ainda m aior, porém , é a esplêndida interpre­
tação que desta e da outra cena do cic lo de E lias nos o ferece o
oratório E lias, de M endelssohn-B artholdy (1 8 4 7 ).
N a ascensão radiosa do profeta ao céu, há a representação
de um esquem a vertical que intercepta a queda vertiginosa do
hom em em direção à fauce abissal ‘que nunca d iz C h eg a !’
(Pr 30,15 -1 6 ). A quele que, durante a existência terrena, viveu em
com unhão profunda com D eus, “cam inhou com ele” — com o se
afirm a a respeito do patriarca H enoc, “tom ado” por D eus depois
da morte (Gn 5,24) — das trevas da morte ascenderá à luz celeste.
A tese é bastante nítida e será reforçada em todas as passa­
gens claramente “im ortais” do A ntigo Testam ento. “A justiça é
raiz de im ortalidade” (Sb 1,15; 15,3). Q uem vive, durante sua
existência terrena, em com unhão com D eus, o eterno por e x ce lên ­
cia, está quase que irradiado e transfigurado. Trata-se de uma
osm ose de vida sobre a qual a m orte não tem poder; é um a atra­
ção vital que D eus sela. M uito bem o diz Salm o 16 — retom ado
também por Pedro para a ressurreição de Cristo (At 2,2 5 -2 8 ) — ,
na sua estrofe final, que contrapõe a senda despenhosa da sepultu­
ra e a alam eda celeste da vida etem a: “N ão m e abandonarás no
túmulo, / Senhor, nem deixarás o teu fiel ver a sepultura. / Tu m e
ensinarás o cam inho da vida, cheio de alegria em tua presença, / e
de delícias à tua direita, para sem pre” (SI 16,10-11). O orante, *
provavelm ente um sacerdote, celebra, na intim idade terrena com
D eus, 0 desafio à morte, à “sepultura”, ao x eol, ao nada. D ep ois
da morte, de fato, abre-se não o lim iar escorregadio do sepulcro,
considerado a b oca do xeol, mas o cam inho lum inoso do ingresso
no m istério do próprio D eus.
O ex eg eta A ntonin C ausse, em L e s p a u v r e s d ls r a é l , afir­
ma: “O hom em que experienciou a com u nh ão com o divino sabe
que nada no m undo poderá separá-lo do seu D eus, que n ele
colocou um a sem ente de eternidade. D eu s está com ele, e ele
está com D e u s” . É m ais ou m enos o que diz D o sto iév sk i nos
Demônios-, “M inha im ortalidade é indispensável porque D eu s
não quererá com eter um a iniqüidade, extin gu ind o com pletam en­
te o fo g o do amor, d ep ois de tê-lo ateado no m eu coração... S e
p assei a am á-lo, e se m e com prazo co m seu amor, seria ele
capaz de apagar a m im e a cham a de m inha alegria, aniquilando-
m e? S e ex iste D eus, eu tam bém sou im ortal” . N a base da fé do
h om em b íblico, está a co n v icçã o de que a im ortalidade não é
tanto um atributo m eta físico da alm a espiritual, co m o argum en­
tava Platão no F édon. E la é antes um dom , porque não é tanto a
vida sem fim quanto a própria vida divina partilhada pela criatu­
ra. N ão é, p ois, som ente um ato divino que n os rem ete à vida,
segundo o Salm o 4 9 , adm irável “oratório da morte"; “O hom em
não pode comprar seu próprio resgate, / nem pagar a D eu s o
preço de si m esm o,/ É tão caro o resgate da vida, / que nunca
bastará / para ele viver perpetuam ente,/ sem nunca ver a cova. /
... / Q uanto a m im . D eus resgata a minha vida, tira-m e das garras
da m orte, e m e tom a c o n sig o ” (SI 4 9 ,8 -1 0 .1 6 ). O dinheiro não
resgata da morte, ensinam os sábios de todas as culturas: "Não
levarás nenhum a de tuas riquezas às m argens do A queronte” —
declara Propércio — “célere irás, ó insensato, d esguarnecido aos
infernos” (E legia III, 3).

O sso s secos, revestid o s d e n ervos, carne, p ele...

A im ortalidade bíblica é, antes participação em um estatu­


to superior, não inserido na criatura, mas doado n o d iálogo de
am or entre criatura e Criador. E o que repete outra jó ia da espiri­
tualidade sálm ica, aquela “história de um a alm a”, ou "canto do
coração” (Buber), que é o Salm o 73, relato autobiográfico de
um a crise superada que desem b oca na perfeita intim idade d iv i­
na. “Eu estou sem pre co n tig o . / Tu m e agarraste pela m ão direi­
ta. / T u m e guias co m o teu con selh o / e com gló ria m e condu­
zes. / C ontigo, de quem necessitarei no céu? / C on tigo, nada
m ais m e satisfaz na terra. / M inha carne e m eu coração podem
se consum ir: / m inha rocha e porção é D eus para sem pre! I ... I
M eu bem é estar perto de D e u s ...” (SI 7 3 ,2 3 -2 8 ). C o m o fez com
o rei no dia da coroação, Jhw h tom a seu fiel p ela m ão e o guia
p elo s cam inhos da glória, para um 'ahar, um “depois", um desti­
n o lum inoso de intim idade, bem expresso pelas últim as palavras,
e sp é cie de testam ento final; “M eu bem é estar perto de D e u s” . A
fórm ula hebraica é, porém , m ais intensa do que a tradução italia­
na, porque “b em ” sugere tam bém felicidad e, prazer, satisfação,
beleza, entusiasm o, e “estar perto” é um con ceito dinâm ico que
im plica um a adesão profunda, um “estar en lea d o ” num a intim i­
dade total, com o diz a versão latina do versículo a d h a ere re D io,
m agnificam ente m usicado, em quatro coros m asculinos e órgão,
por L iszt, em 1868.
A tese b íb lica de um a im ortalidade que arranca a criatura
de seu lim ite para cond uzi-la ao eterno d iálogo com D eu s é,
enfim , d esen volvid a na primeira parte (capítulos 1-5) do livro
deuterocanônico grego da Sabedoria, do qual já falam os em ou ­
tras ocasiõ es. A atm osfera platônica respirada pelo autor, prova­
velm ente em A lexandria do E gito, to m a a lin guagem do livro
sem elhante à grega. M as a visão subjacente é diferente e notória;
a atlian a sía , a “im ortalidade”, e a afth a rsía , a “incorruptibilida­
de”, não são prerrogativa ontológica da alma, mas dom e graça,
porque im plicam plena com unhão com D eu s, eflorescên cia da­
quela intim idade de que o fiel já goza v a durante a existên cia
terrena, através de sua ju stiça e de sua adesão ao Senhor. “A os
olhos dos n é sc io s, parece que os justos morrem, que seu fim é
um a desventura, sua partida do n o sso m eio, um aniquilam ento.
M as eles agora estão na paz. A s p esso a s pensam que os justos
estão cum prindo um a pena, m as eles aguardam a im ortalidade /
... / R esplandecerão, correndo co m o fagulhas no m eio da palha”
(Sb 3 ,2 -4 .7 ). A im agem das fagulhas que deixara su lcos d e luz
na escuridão do firm am ento realça o destin o glorioso do ju sto,
apesar das trevas da morte. A o s perversos, contudo, está reserva­
do o xeol, 0 H ades, que, de morada indiferenciada dos m ortos,
se transforma naquilo que a tradição judaico-cristã posterior c o n ­
ceberá co m o inferno.
A qui cabe um a observação final quanto à questão da res­
surreição. C om preendida m aterialm ente, e la pode criar em bara­
ço e suscitar hilaridade, com o aconteceu em A tenas, durante o
discurso de P aulo no A reópago: “Q uando ouviram falar em res­
surreição dos m ortos, alguns caçoavam e outros diziam; “O u v i­
rem os v o c ê falar sobre e sse tem a em outra o ca siã o ’” (A t 17,32).
A inda hoje, m uitos cristãos co n ceb em a ressurreição n o sen tid o
crasso de reanim ação de cadáveres. S em dúvida, o sím bolo de
b ase é esse, m agistralm ente esboçado por um profeta exilado na
B abilônia, E zeq u iel, e m página surreal e grandiosa, m erecedora
de inserção em um a antologia ideal da B íb lia. É um a poderosa e
barroca cena de m orte que se transmuta em quadro de vida pela
irrupção do espírito criador de D eu s. Em visão, o profeta co n ­
tem pla um a grande quantidade de ossadas calcinadas, abandona­
das em um vale. M as d eix em o s a palavra ao próprio Ezequiel,
n o parágrafo central do capítulo 37 do seu livro, em que D eus
lhe ordena profetizar àquela m assa im ensa de esq u eletos, dizen­
do: “O ssos seco s, ouçam a palavra do Senhor!... V ou infundir
um espírito, e v o cês reviverão. V ou cobrir v o cês de nervos, vou
fazer co m que v o cês criem carne, e se revistam de pele. Em
seguida, infundirei m eu espírito, e v o cês reviverão... Profetizei
conform e m e foi ordenado. Enquanto eu estava profetizando,
ouvi um barulho e vi um m ovim ento entre os o sso s, que com e­
çaram a se aproximar um do outro, cada um co m seu correspon­
dente. O bservando bem , vi que apareciam nervos, que iam sendo
cobertos de carne e que a p ele os recobria; m as não havia espíri­
to neles: Espírito, venha dos quatro ventos e sopre nestes cadá­
veres, para que revivam . P rofetizei co m o ordenado, e o espírito
penetrou n eles, e reviveram , colo ca n d o -se de pé. Era um exérci­
to im e n so ’ (E zequiel 3 7 ,4 -1 0 ).
A cen a já aparecia pintada na sinagoga de Dura Europos,
na Síria, em m eados do sécu lo III, e será m uitas v e z e s retomada
na arte cristã (Luca S ign orelli, por exem p lo, na cap ela de São
B rísio da Catedral de O rvieto). A inda em n o sso s dias, Walter
Jacob, m aestro de órgão em Stocarda, nascido em 1938, m usicou
a v isão co m o título latino D e visio n e resu rrectio n is\ além disso,
ela é evocad a, com outras v isõ e s de E zequiel, no L ib ro d ’organo,
de O livier M essiaen (1 9 5 1 ). Para o m undo cristão, a cena prefi-
gura a ressurreição final dos ju stos. N a realidade, o profeta usa a
ressurreição cam al co m o sím b olo, para representar o esperado
renascim ento nacional de Israel, então escravo e, portanto, “mor­
to” n o e x ílio da Babilônia. N ão por acaso, entra em cena, no
final, “um exército im en so ” . A m aterialidade da ressurreição
nasce da antropologia b íb lica, que, co m o já tiv em os ocasião de
dizer, é profundam ente unitária e com pacta. O que se destina à
vida eterna não é, então, a porção espiritual do ser hum ano, mas
o próprio ser em sua integridade. Por este prisma, a visão de
E zequiel tom a-se ilum inadora.
A ressurreição é “fisicam en te” representada com o um a
n ova criação; os osso s ressecados têm a m esm a função do pó
evo ca d o no G ên esis (2,7 e 3 ,19), e o espírito que sopra é o ato
criador divino, a rüah que infunde a vida. F az-se necessária, por
isso, um a n ova intervenção divina que resgate o hom em de sua
caducidade criatural e o introduza num a existên cia renovada.
M ais um a vez, a irrupção do Criador “destrói a m orte... de m odo
que os m ortos revivem e seus corpos ressurgem ” (Is 2 5 ,8 e
2 6 ,1 9 ). A m ãe dos sete mártires da perseguição sírio-helenística,
durante a revolta dos M acabeus, com o já recordam os, repropõe
aos filh os a fé na criação, com o base e sustento da fé na ressur­
reição, considerada um a recriação: “N ão sei co m o v o cê s apare­
ceram no m eu ventre. N ão fui eu que lh es infundi o espírito e a
vida, nem plasm ei a form a dos m em bros de cada um de v ocês.
F oi o Criador do m undo que m odela a hum anidade e determ ina
a origem de tudo. E le na sua m isericórdia, lhes restituirá o e sp í­
rito e a vida” (2M c 7 ,2 2 -2 3 ).
VIII
A inteligência infinita

D e u s con ced eu a Salom ão sabedoria e in teligên cia e x ­


traordinárias, e m ente aberta com o as praias do mar. A sabedoria
de Salom ão fo i m aior que a de todos os filhos do O riente e
m aior que toda a sabedoria do E gito... E le com p ôs três m il pro­
vérbios, e m il e cin co cânticos. Falou sobre plantas, desde o
cedro-do-líbano até h issop o que cresce na parede. Falou tam bém
sobre anim ais, a ves, répteis e p eixes. D e todas as nações vinha
gente para ouvir a sabedoria de Salom ão. V inham tam bém os
reis dos países onde se havia espalhado a fam a da sua sabedoria”
(JR s 5 ,9-1 4 ). A este retrato g lorioso do filh o de D avi, Salom ão,
0 M agn ífico, associam os o auto-retrato que o livro tardio da
Sabedoria, escrito em grego, lhe p õ e na boca: “D eus con ced eu -
m e 0 con h ecim en to exato de tudo o que existe, para eu com pre­
ender a estrutura do m undo e a propriedade dos elem en tos, o
co m eço, o m eio e o fim dos tem pos, a alternância dos so lstíc io s
e as m udanças de estações, os c ic lo s do ano e a p osição dos
astros, a natureza dos anim ais e o instinto das feras, o poder dos
espíritos e o raciocín io dos hom ens, a variedade das plantas e a
propriedade das raízes. Aprendi tudo o que está oculto e tudo o
que se pode ver” (Sb 7 ,1 7 -2 1 ).

O rei qu e viveu d e z sécu lo s

A lista das disciplinas praticadas por Salom ão, segundo o


trecho da Sabedoria ora citado, corresponderia às m atérias de
ensino do M u seon , que era a “u n iversid ade” de A lexandria, no
E gito. Já o livro dos R eis introduzia na cultura de Salom ão, ao
lado da literatura, a botânica e a z o o lo g ia . O horizonte cultural
estendia-se, por isso , bem além da teo lo g ia e do culto. É esta
um a das características — que m ais adiante analisarem os — da
hokm ah, da “sabedoria”, um a visão de m undo e um a form ação
humana de matriz estrangeira, que justam ente com Salom ão apa­
rece em Israel e que dará origem a um a série de livros b íb licos
cham ados exatam ente “sapienciais”, ditos ketubim , “os escritos”
por ex celên cia da tradição judaica. Salom ão encarna, no perfil
oferecido p elos prim eiros onze capítulos do Prim eiro L ivro dos
R eis (a obra que reúne as biografias e os eventos da m onarquia
de Judá e do reino separatista d e Israel ou Sam aria), a figura do
perfeito sábio e, portanto, do rei ideal, pois a sabedoria não é
tanto pesq u isa “teórica” sobre a realidade, mas m étodo experi­
m ental de investigação sobre o ser e o existir.
É por isso que S alom ão inaugura o próprio reino com um
so len e rito no qual im plora a D eus som ente o dom da sabedoria,
e recebe em acréscim o os dons da riqueza e da glória: "Ensina-
m e a ouvir”, ele ora, “para que eu saiba governar o teu povo e
discernir entre o bem e o m al” (IR s 3,9). Era, portanto, a sabe­
doria com o qualidade política e ética. E, de fato, lo g o depois, eis
0 rei em ação no célebre julgam ento das duas m ulheres que
disputam um filho (IR s 3 ,1 6 -2 8 ), episódio que se tom ou célebre
p ela s in fin ita s retom adas ico n o g rá fica s (S ig n o r e lli, R afael,
G iorgion e, P ou ssin ) e m usicais, com o no oratório Judicium
S alom on is, de C arissim i (1669), cujo libreto fo i novam ente m u­
sicado por seu discípulo Charpentier. A justiça é, então, um dos
prim eiros frutos “p o lítico s” da sabedoria. Sabedoria e arte p olíti­
ca sem pre cam inham juntas: nas m esm as páginas se enaltecem
as transações internacionais que Salom ão inaugura co m o E gito,
casan d o-se com a filha do faraó (IR s 3,1; 9 ,1 6 ) e criando um
harém de sultão, com posto de princesas estrangeiras (IR s 11,1-
3). O com ércio é d esen volvid o sobretudo com o pod eroso v izi­
nho, a F enícia, em particular com o rei Hiram, de Tiro. Graças à
sua p olítica externa, aum entam os intercâm bios culturais, com o
aquele — celebradíssim o pela B íblia (IR s 10) e pela tradição
(tem a até de um film e de V idor, em 1959) — c o m a rainha de
Sabá, soberana talvez de um pequeno Estado ao sul da Arábia,
ou de um a colônia ao norte da Arábia, e não da distante Etiópia,
com o im aginará a lenda que se criou.
A ação p olítica de S alom ão en v o lv e tam bém o governo
in tem o de Israel; é e le quem constitui um a verdadeira estrutura
estatal, c o m um sistem a de prefeituras (I R s 4); é ele quem im ­
plem enta um a arrojada atividade m unicipal, que com preende a
construção do tem plo de Jerusalém e do palácio real, c o m a
reorganização da cidade santa (IR s 5-9) e a construção de um a
série de fortalezas espalhadas p elo território. T am bém a p olítica
econ ôm ica é im pulsionada co m a organização de um a frota para
explorar os m inérios de ouro de O fir e co m a construção do
porto de A siongaber, no Mar V erm elho. M as Salom ão não é
som ente um grande político; é tam bém , com o já vim os no retra­
to citado na abertura, um sábio. N a verdade, ele se tom ará o
ponto de referência de uma vasta porção da literatura sapiencial
bíblica. S ão-lh e atribuídos os Provérbios, um a coletânea d e tex ­
tos heterogêneos por conteúdo e ép oca histórica, m as que encer­
ram um n ú cleo que certam ente rem onta ao soberano que v iveu
no sécu lo X a.C. (capítulos 1 0-22 e, talvez, alguns m ateriais do
capítulo 2 5 -2 9 ).
A Salom ão, além d isso, a tradição atribuirá, sem hesita­
ção, 0 C ântico dos Cânticos: o b elíssim o poem eto de am or —
que, conform e verem os, é na realidade posterior ao rei sábio —
traz de fato o título “C ântico dos C ânticos de S a lom ão” (Ct 1,1).
M as se vai além: um sábio frio e p essim ista com o C oélet, tam ­
bém objeto de n o ssa pesquisa, que viveu talvez no in ício do
sécu lo III a.C ., não v ê em baraço em envergar o m anto real e em
assum ir a identidade de Salom ão já no título da sua obra: “Pala­
vras de C oélet, filh o de D avi, rei de Jerusalém ” (Ecl 1,1). M as
não é só. À distância de dez sécu lo s, o anônim o autor do livro
grego da Sabedoria assum e a figura de Salom ão, evocan d o-lh e
os sentim entos e revivendo-lhe a experiência, a ponto de a tradi­
ção intitular e sse livro de “A Sabedoria de S alom ão”, pudica-
m ente transform ado, em seguida, p elo s estud iosos no P seudo-
Salom ão. D e z sécu lo s de sabedoria recobertos por um rei que se
tom ou um sím b olo da visão de m undo que agora ilustrarem os.
U m sím b olo caro tam bém à cultura muçulm ana: basta pensar no
grande Suleim an, ou Solim ão II, dito o M agnífico, o sultão turco
(1 4 9 5 - 1 5 6 6 ) q u e a ssu m e o n o m e d e S a lo m ã o (e m árabe,
Suleim an) e que ergue os atuais m uros de Jerusalém, em b eleza n ­
do-a esplendidam ente, querendo im itar o distante rei hebraico.
P ensem os ainda na arte cristã. C item os som en te dois exem p los
eloqüentes; o c ic lo de Salom ão que R afael pintou em afrescos
n os Pórticos do V aticano (e nas salas do Tribunal A p ostólico) e
o oratório tríptico de H aendel (1 7 4 9 ), que se abre com a consa­
gração do tem plo, prossegue com o julgam ento de Salom ão e se
encerra co m a visita admirada da rainha de Sabá, selada por uma
exaltação da sabedoria deste perfeito rei e sábio.

" O rto d o x ia ” e “h e te ro d o x ia ”

“Foi do E gito que saiu a sabedoria para atingir o país no


qual v iv o ”, assim escrevia, no sécu lo X I a.C., o eg íp cio W en
A m on, exila d o na Fenícia, S e o E gito fo i o berço do gênero
literário sapiencial, co m quinze textos antigos que chegaram até
nós (entre os quais um, a S apien za d i A m en -em -o p e, foi reelabo-
rado no livro bíblico dos Provérbios), tam bém é verdade que a
sabedoria se estabelecera ainda na M esopotâm ia. Inicialm ente,
ela teve um a função aristocrática e prática: tratava-se de treinar e
formar os n ovos grupos do poder, os altos m agistrados e os altos
esc a lõ es do exército. A escrita, a florescente organização e sc o ­
lar, o surgim ento da cla sse dos escribas, que p od em os equiparar
a docentes e intelectuais, favoreceram a expansão e o refinam en­
to da sabedoria, cuja função primordial era “aparelhar” p olíticos
e funcionários para as relações sociais, a etiqueta, a gestão do
poder. O m étodo adotado era substancialm ente em pírico, experi­
mental, indutivo; dados e observações hom ogêneas ou contras­
tantes eram recolhidos e classifica d o s, extraindo-se daí deduções
constantes e generalizações. N aturalm ente, essa prática lo g o se
expandiu para além da finalidade m eram ente operativa, tornan­
d o-se um ato intelectual m ais sistem ático, tendente a sondar o
sentido do ser e do existir.
C om o sugeriu o estu dioso Bem hard Lang, n a scia então
uma verdadeira G esta lt do pensam ento sem ítico, isto é, uma
perspectiva de análise da realidade de perfil “racional” (ainda
que na form a sim bólica oriental), voltada à d efin ição das rela­
ções entre o hom em , a natureza, a sociedade e o m istério do
divino. S ã o os três registros d os d ois quadros d o d íp tico do
G ênesis 2-3 , que exam inam os anteriorm ente e d efin im os exata-
m ente com o sapiencial: hom em -cosm o, hom em -hom em , hom em -
D eu s. D e par co m essa sabedoria nobre, d esen v o lv ia -se um a
outra, de tipo popular, ligada aos provérbios, à form ação profis­
sional, às norm as éticas m inudentes, aos trabalhos e aos dias (a
obra hom ônim a do grego H esío d o vai na m esm a direção, reve­
lando a universalidade do gênero sapiencial). A pergunta funda­
m ental que a sabedoria popular e aristocrática se form ula é bem
expressa por um sábio bíblico, o C oélet, na página de abertura
do seu livro: “Q ue proveito tira o h om em de todo o trabalho cora
que se afadiga d ebaixo do so l? ” (E clo 1,3). D uas são as resp os­
tas oferecidas em n ível “teórico”, em bora m ediadas pela análise
prática dos fen ôm en os objetivos.
U m a prim eira linha, às v e z e s definida pou co adequada­
m ente co m o “ortodoxa”, de perfil conservador, contenta-se em
assinalar os resultados p o sitivos da existência, oferecen do um a
visão pragm ática e utilitarista quase protoburguesa, m esclad a de
retidão e b om -sen so , m as intencionalm ente desatenta às contra­
d ições do real. O recurso à teoria da retribuição, segundo a qual
a história é regida p elo duplo b in ô m io crim e-castigo/justiça-re-
com pensa, produz um otim ism o inabalável que procura ordenar
um a realidade que é, ao contrário, bem m ais enigm ática e com-_^
plexa. O livro d os Provérbios, que considerarem os m ais adiante,
m o v e-se n essa direção, com o tam bém o s am igos de Jó, co n v en ­
cid os de que o ím pio será, ao final, castigado, o m al, v en cid o e o
bem , exaltado.
U m a segunda linha de pensam ento, ao contrário, m ais rea­
lista, m en os dogm ática e m ais “in telectual” — às v eze s im pro­
priam ente cham ada de “heterodoxa” — , questiona um balanço
final tão id ílico e tem em mira as contradições da história, que
esgarçam a ordem estab elecid a p ela teoria da retribuição. N ã o é
verdade, afinal, que m uitas v ezes a história humana é perpassada
p elo clam or do ju sto vitim izado e do inocente sofredor? T am ­
bém não é verdade que a história hum ana freqüentem ente se
instaura co m o cam po de dom inação dos maus e dos vio len to s?
O pensam ento recorre a Jó e ao C oélet, expressões desta corren­
te m ais dram ática, mas não raro m ais genuína.
A su til u rdidu ra d a m en te d e D eu s

Para todas as culturas do antigo O riente P róxim o de m a­


triz religiosa, e em particular para a B íb lia , a sabedoria, co m o
sentido últim o da realidade, não p od e ter outra fonte senão
D eu s. É de tal fon te que a sabedoria flui para atingir o hom em ,
cristalizan d o-se na ordem có sm ica . A lgu m as páginas b íb licas
procuram , então, definir a qualidade profunda da sabedoria,
rem ontando exatam ente àquela nascente. Q uanto a nós, fare­
m os com que ela d eflu a essen cia lm en te do gênero literário,
b em atestado p elo “a u to-lou vor” e, m ais gen ericam ente, p elo
hino sapien cial. A sabedoria, a hokm ah, não é m ais um a sim ­
ples qualidade da m ente hum ana, m as p erso n ificação de um a
figura fem in ina, a Senhora Sabedoria, que entoa um cântico
próprio. E la é considerada quase a assistente do Criador na sua
obra criadora; é, de qualquer m od o, a representação d o projeto
d iv in o e d e sua própria atualização. D e v e m o s atentar para este
duplo asp ecto, dada sua sig n ifica çã o para se com preender quem
e o que é a Sabedoria.
D e um lado, co m efeito , é pensam ento d ivin o em sua
urdidura criadora e, enquanto tal, atributo de D eu s, transcenden­
te, puríssim a e perfeita. M as os pensam entos divin os não são
co m o os n o ssos, muitas v e z e s suspensos no vazio, entregues
apenas à especulação, incapazes de encam ar-se e atualizar-se, O
pensam ento do Criador é e fic a z e torna-se realidade, natureza e
hom em : “Q ue se faça a luz! E a luz foi feita” . A Sabedoria
revela, assim , um outro lado, criado, finito, lim itado, con tin gen ­
te; tom a-se, portanto, sabedoria (com s m inúsculo) presente na
m ente d o h om em e na harm onia cósm ica.
E ssa dualidade de Sabedoria divina e de sabedoria hum a­
na é cantada “autobiograficam ente” pela M ulher Sabedoria nos
"auto-hinos”. E xem plar é o hino dos Provérbios 8 ,2 2 -3 1 , em que
a Sabedoria “é precedente a toda obra” de D eu s, “estabelecida
desde a eternidade, desde o princípio, antes que a terra c o m eça s­
se a existir... gerada quando ainda não existiam o s abism os...
antes das co lin a s” (Pr 8 ,2 3 -2 5 ). C om tais expressões, apresenta-
se o rosto transcendente e d ivin o da Sabedoria, preexistente e
superior à realidade criada. E la está presente co m o um arquiteto
ou com o um a jo v e m que dança diante de D eu s no im enso “ate­
liê ” da criação: im agens que procuram externar e concretizar o
ato criador de D eu s, lev e e solto com o o de um artista ou de um a
bailarina (sim b o lo g ia à qual já nos referim os, aparece na prim ei­
ra etapa do n o sso itinerário). N a outra vertente, porém , a S ab e­
doria en volvid a nas co isa s criadas; um a série de "quandos” indi­
ca um a contem poraneidade com o m undo (“quando fixava a
abóbada d os céu s... quando traçava os lim ites do abism o, quan­
do no alto con d ensava as n u vens...” Pr 8 ,2 7 -2 8 ). A Sabedoria se
faz realidade finita, céus, abism os, nuvens, nascentes, mar, terra
firm e, porque agora o pensam ento sapiente de D eus está atuali­
zando-se. N o m esm o capítulo 8 dos Provérbios, na abertura (vv.
2 -2 1 ), a Sabedoria co lo ca -se “nas e lev a çõ es, ao lo n go do cam i­
nho, nas encruzilhadas... junto às portas da cidade” e entoa um
outro auto-louvor. D esta vez, o dom que oferece é a m oral e a
plena realização. Estas tam bém são, em inentem ente, atributos de
D eus, m as a Sabedoria as com unica aos hom ens: “A través de
m im é que os reis governam e os príncipes decretam leis justas.
Através de m im , o s ch efes governam e os nobres dão sentenças
ju stas” (Pr 8 ,1 5 -1 6 ). i
N o capítulo 2 4 do E clesiá stico , a Sabedoria celebra sua
procedência divina: “Eu saí da boca do A ltíssim o... arm ei m inha
tenda nas alturas, e m eu trono fica v a sobre um a coluna de nu­
v en s” (E clo 2 4 ,3 -4 ). M as lo g o d ep ois acrescenta ter-se instalado
em m eio aos hom ens, armando sua “tenda em Jacó” e se "esta­
b elecendo em S ião, na cidade am ada” (2 4 ,8 - 1 1). A co n clu são do
autor é que a Sabedoria se id entifica com o “livro da A lian ça do
D eus A ltíssim o ”, isto é, com a Torá, o Pcnlateuco, a "Lei que
M oisés nos deu” (2 4 ,2 2 ). A Torá não é então, ao m esm o tem po,
palavra d e D eu s e com p rom isso do hom em , revelação e ob e­
diência, realidade divina e hum ana? E m síntese, a sabedoria per­
sonificada é sem elhante ao anjo que pertence ao horizonte in fi­
nito de D eu s, m as estab elece contato co m o hom em para com u-
nicar-lhe a vontade divina. S u sp en sa na infinita e eterna m ente
de D eus, a Sabedoria é enviada a penetrar o cosm o e a hum ani­
dade, transm itindo-lhes harm onia, perfeição, consistência, ofere­
cendo ao h om em justiça e verdade.
É por isso que, em um hino m agnífico, contido no capítu­
lo 28 de Jó, a Sabedoria é m isteriosam ente inatingível quando a
procuram os apenas co m a ciên cia e com o dinheiro, porque ela
está “além ” das co isa s (“D e onde provém ? O nde se situa?” per­
gunta-se o poeta); ela é captável unicam ente na fé (“tem er a
D eu s”). A o m esm o tem po, porém , um outro b elíssim o hino litâ-
nico, presente no livro da Sabedoria, retrata-a com o algo que
pervade toda a realidade, quase com o se fo sse um “espírito su ­
til”. O autor a celebra c o m 21 adjetivos (para a m ística dos
núm eros, 3 x 7 é sím bolo de plenitude suprem a e perfeita), al­
guns de matriz estóica, revelando, assim , sua cultura grega. Ora,
estes atributos delineiam a sutil urdidura da m ente de D eu s, que
se ram ifica nas coisas: “espírito inteligente, santo, único, m últi­
plo, sutil, m óvel, penetrante, im aculado, lúcido, invulnerável,
am igo do bem , agudo, livre, b en éfico, am igo d os hom ens, está­
vel, seguro, sereno, que tudo p od e e tudo abrange, que penetra
todos os espíritos” (Sb 7 ,2 2 -2 3 ). M as logo d ep ois o autor sagra­
do recorda que, em bora im anente, a Sabedoria tem um a vertente
transcendente: “Sua pureza atravessa e penetra tudo”, mas é “em a­
nação do poder de D eus, um eflú v io genuíno da glória do O ni­
potente,... reflexo da luz eterna, espelho im aculado da atividade
divina... Perm anece sem pre a m esm a, mas tudo renova, e p en e­
tra nas alm as santas, form ando o s am igos de D eu s e os profetas”
(Sb 7 ,2 4 -2 7 ).
C om esta reflexão, dispersa ao longo dos sécu los, m as
id eologica m en te com pacta, Israel soube unir a Sabedoria divina
à Sabedoria humana, estab elecen d o um traço de união original.
Para usar um a sugestiva exp ressão da sabedoria africana banto,
“ligou o arado a uma estrela”, isto é, reportou a m oral cotidiana,
a ex istên cia nobre e m odesta, a natureza, a in teligên cia, a so c ie ­
dade, à sua alm a superior. D e sv e lo u a sem ente de eternidade, de
sentido e valor depositada no coração do hom em e nos enigm as
do universo. U m a sem ente que fecunda, mas que não elim in a de
todo a caducidade, o pecado, o m al, a dor, o lim ite. E is por que a
sabedoria bíblica se reportará tam bém às rupturas da harmonia,
ao outro lado da luz, à in sip iên cia que acom panha a inteligência,
à estupidez que fere a dignidade humana.
A in telig ên cia infinita

R em ontando à sua vertente transcendente, descobrim os,


então, um a Sabedoria d ivina que é apanágio da in teligên cia in fi­
nita do Criador, daquela in teligên cia que os “discursos de Jhw h”
dos capítulos 38-41 do livro de Jó — já analisados anteriorm ente
— , procuraram sugerir em todo o seu esplendor. A Sabedoria
“m aiúscula” de D eus, porém , por sua natureza, é efu siv a na
criatura e no hom em , tom and o-se sabedoria “m inú scula” do c é ­
rebro e do coração hum ano, in teligên cia in-finita, isto é, nunca
com pletam ente acabada, com pleta, exaustiva. A literatura sa-
piencial está totalm ente contida entre estes dois p ó los inter-rela-
cionados: a inteligência infinita e inexaurível de D eu s e a in teli­
gên cia in-finita do hom em , que, em bora prossiga em sua busca
de geração em geração, não poderá nunca esgotar a Sabedoria
divina infinita. H averá sem pre um m estre que dirá: “M eu filh o,
não se esq u eça do m eu ensinam ento. C onserve na m em ória os
m eus p receitos” (Pr 3,1). E um pai que advertirá; “Ouça, m eu
filho, a instrução de seu pai, e não d espreze o ensinam ento d^
sua m ãe” (Pr 1,8). Ilustrarem os esta corrente infindável e in e­
xaurível de ensinam entos, preceitos, observações, co n selh os, ad-
m oestações, descobertas e intuições através de um livro cuja
leitura integral assegura um prazer sereno, o livro b íb lico dos
Provérbios.
O título hebraico remete a um gênero literário, o do m ashal,
que de p e r se abarca um a vasta gam a de acepções (parábola,
provérbio, p oesia, alegoria, oráculo p oético etc.). Fundam ental­
m ente, porém , m anteve o sentido de “provérbio, dito, aforism o”,
elem ento presente em todas as culturas, sobretudo as populares.
S ão fragm entos de reflexões, de in tu ições, de ob servações práti­
cas e folclóricas, ju ngidos à força quase m ilagrosa da fórm ula
lapidar que en foca de m odo essen cia l, m nem ônico, assonante
(“Á gua m o le em pedra dura tanto bate até que fura”. “Q uem
com ferro fere, co m ferro será ferid o”), um dado ligado à nature­
za humana, à vida, ao mundo. O provérbio pode ser parcial e
tendencioso, conservador e conform ista, contraditório e m rela­
ção a outros ditos, em bora tenha sem pre um fundo de verdade.
Qual destes d ois “provérbios”, que d izem exatam ente o contrá­
rio, tem ou não razão; “N ão responda ao insensato... para não se
igualar a e le ” (Pr 26,4); “R esponda ao insensato... para que ele
não se con sid ere sáb io” (Pr 26,5 )?
N o livro dos Provérbios, entretanto — co m o já vim os a
propósito do seu oitavo capítulo — , não há apenas aforism os.
D ecerto, e le s predom inam , revelando-se, às v ezes, de d ifícil tra­
dução, porque vazados em jo g o s d e palavras, trocadilhos, m etá­
foras p o ssív eis som ente na língua original; “B atendo o leite, sai
manteiga; apertando o nariz, sai sangue, e apertando a ira sai
briga” (Pr 3 0 ,3 3 ), provérbio ju stificá v el em suas contigüidades,
dado que, em hebraico, “nariz” e “raiva”, de um lado, e “m antei­
g a” e “briga”, de outro, são h om ófon os. Entre os Provérbios,
encontram -se tam bém hinos sapienciais, pequenos tratados m o­
rais, verdadeiros esquetes, co m o naquela obra-prima que é o
capítulo 7 , sobre a atração de um jo v em por um a prostituta (já
aconselh am os sua leitura).
O volu m e dos Provérbios é evidentem ente com pósito.
primeira coletânea (Pr 1-9) é a m ais recente e prima pelos hinos,
pelas grandes cenas, pelas narrativas h om ogên eas e, com o ex p li­
ca a parábola dos dois banquetes do capítulo 9, é um co n v ite à
escolh a decidida e radical entre a Senhora Sabedoria e a Senhora
Loucura. A segunda coletân ea (Pr 10-22) com preende, ao co n ­
trário, 375 provérbios de origem arcaica, rem ontáveis à m esm a
época salom ônica. R eordenada ao tem po do rei E zequias (sécu ­
los V lll-V II a.C.) e com posta de materiais m ais antigos, é a
terceira coletân ea (Pr 2 5 -2 9 ), à qual se acrescentou um a antolo­
gia de “palavras de sáb ios” d e várias origens (Pr 2 2 ,1 7 -2 4 ,3 4 ),
em que não falta a presença “ecu m ên ica ” dos preceitos do e g íp ­
cio A m en -em -o p e (Pr 2 2 ,1 7 -2 4 ,2 2 ). A parte fin al (Pr 30-3 1 )
reúne quatro docum entos d iversos, ligados ainda à sabedoria
extra-israelítica.
A aparente heterogeneidade do livro é, na realidade, res­
gatada por um a perspectiva didática constante. É co m o se um
m estre ou um pai, com base em vários textos, d e se n v o lv e sse um
lon go program a de educação e form ação do d iscíp u lo-filh o so ­
bre os trabalhos e os dias, sobre v íc io s e virtudes, sobre natureza
e existên cia . O capítulo final (Pr 3 1 ,1 0 -3 1 ) contém o retrato da
mulher ideal, dona de casa em penhada na gestão e co n ô m ica e
nas relações sociais da sua fam ília: é quase co m o se o m estre
cum prim entasse o discípulo, diligen te e constante, agora pronto
para entrar no m undo de m odo autônom o, capaz de formar um a
fam ília, casando-se com a m ulher adequada ou, se se preferir,
u nindo-se idealm ente à Senhora Sabedoria. O p seu d o-S alom ão
do livro da Sabedoria confessava: “A m ei a sabedoria e a busquei
d esde a m inha juventude, e procurei tom á-la co m o esposa, p ois
fiquei enam orado de sua form osura... D ecid i, portanto, tom á-la
por com panheira de m inha vida (Sb 8,2.9).
O livro dos Provérbios perm anece um texto religioso, nã
obstante a aparência cotidiana, concreta, experiencial, co m o o
são os escritos p roféticos quando parecem tratar de questões
sociais e políticas. E ste confronto sabedoria-profecia p ode ser
esclarecedor para com preender a qualidade religiosa paralela m as
distinta dos dois gêneros. Em am bos entá em cena a história
hum ana, co m seus esplendores e suas m isérias; em am bos há a
co n v icçã o de que no bojo da contin gên cia hum ana opera um a
presença divina efica z, que redim e a história e, lenta e progressi­
vam ente — “m essianicam ente”, diríam os — , a conduz para unlS
m eta de salvação, sem , porém , violentar a liberdade humana. A
diferença está toda na perspectiva e no cam po das respectivas
pesquisas teo ló g ica s. Para a sabedoria, diferentem ente da profe­
cia, a palavra e a ação de D eus não são m ais (ou não apenas)
p ercep tív eis n o s grandes acon tecim en tos h istó r ic o -sa lv ífic o s,
com o 0 êxo d o ou a conquista da terra prom etida, ou nos ev en tos
ligados à m onarquia de Judá e Israel, m as antes nos pequenos
fatos cotidianos, n o s sin gelos ep isó d io s rurais e urbanos, no lin ­
guajar do dia-a-dia, no vento e na chuva, no fo g o e no trigo, nos
espinhos e nas árvores frondosas, nas relações fam iliares e so ­
ciais, nos v ício s e nas virtudes. E a existên cia cotidiana, o D a sein ,
isto é, o ser incerto tem poral e espacial, o objeto da p esq u isa
religiosa e o lugar das epifanias divinas. A lg o sem elhante apare­
c e nos quadros de C hagall, nos quais o prodígio e a teofania
surgem no sh tetl, isto é, nas vielas e nas pracinhas do vilarejo
hebraico da Europa central.

Um a rc o -íris a lfa b é tic o

Entrem os, p o is, nós também, neste m undo “saboroso” , nas


suas paisagens, n o seu arguto m odo de ver o hom em e a m ulher,

185
no seu substancial otim ism o, na sua fé serena, em bora percorri­
da de alguns arrepios de m edo diante do escândalo do m al e da
injustiça. É com o se um a objetiva cinem atográfica ou telev isiv a
fo sse colocad a em um a casa e, à A ndy W arhol, captasse 24
horas de vida fam iliar ou pessoal. Ou co m o se, numa praça, se
assistisse ao d esfile dos esplendores e das m isérias da vida c o ti­
diana, das artes e dos o fíc io s, das estações e dos eventos sociais,
dos nascim entos e óbitos, dos prazeres e dos sofrim entos. Tería­
m os diante dos olhos pequenas cenas do cotidiano, com refle­
x õ es m ínim as, sem elhantes a um raio, que falam do sentido da
existên cia, do divino e da m oralidade, da in teligência e da estu ­
pidez. Seria um a religião das pequenas coisas, m as tam bém do
universo, convencid a de que D eus se revela tanto no plano m a­
croscóp ico com o no m icroscóp ico. M uitas v e z e s, as cores serão
sim plificadas, em preto-e-branco, sem m atizes nem variações:
ao justo se opõe o ím pio, ao sábio, o estulto, ao ocio so , o d ili­
gente, ao fie l a vontade de D eu s, o praticante do que D eus abo­
mina. O registro dessas duplas m orais antitéticas não será nunca
frio ou som ente curioso, com o poderia ser o de um B alzac atento
à “com éd ia hum ana” . N ão será tam bém um levantam ento m era­
m ente estético de pequenas cenas naturais: há, de fato, só nos
capítulos 2 5 -2 7 , à guisa de exem p lo, as fontes, as pedras, a areia,
os cam pos, a água, o feno, os espinheiros, o vento, as nuvens, a
chuva, a n eve, o frio, o calor do verão, o burro, o cavalo, os
rebanhos, o leão, os pássaros, as cabras, o ourives, o tecelão, o
carpinteiro, o cam ponês... M as estas realidades são sím b olos ou
m esm o o ca siõ es para liçõ es de vida. E não será som ente um a
análise de tipo an trop oló g ico -filo só fico , com o propôs B acone,
co n v en cid o de que “o gên io, a sabedoria e o espírito de uma
nação são descobertos nos seus provérbios”. Os P rovérbios per­
m anecem co m o um texto relig io so e moral; o filtro da R evelação
divina joeira as pessoas, as atitudes e as coisas, julgando-as.
Procurem os, antológica e tem aticam ente, traçar um arco-
íris das reflexões do livro dos Provérbios, algo sem elhante ao
que fe z M ilhaud em 1951, c o m sua C antata d e i P ro v e rb i. E sc o ­
lherem os um a esp écie de arco-íris alfabético, im itando a técnica
com a qual foi construído o últim o hino do livro, aquele da
m ulher ideal, que é um acróstico alfabético: as in iciais de cada
um dos 2 2 versos (Pr 3 1 ,1 0 -3 1 ) com põem o alfabeto hebraico.
N ó s, obviam ente, seguirem os n o sso alfabeto.
A co m o “alegria” : “Tam bém entre risos o coração chora, /
e a alegria termina em tristeza” (Pr 14,13). A curada observação
p sico ló g ic a sobre o riso do palhaço triste; não há alegria em
estado puro, m as sem pre eivada de m edo: “Enquanto ceias com
a Felicidade, a D or te espera na cam a” (Gibran). A com o “am i­
zade” : “Certos am igos são a causa de n ossa ruína / m as existem
am igos m ais queridos que um irmão I ... I ó leo e perlrime ale­
gram o coração / e co n selh o de am igo acalm a o ânim o / ... /
Tapa de am igo é leal, m as beijo de in im ig o é traiçoeiro” (Pr
18,24; 27,9; 27,6). Curiosa esta últim a aproxim ação entre a agres­
são benfazeja de um am igo e o beijo de Judas: em hebraico, há
d ois verbos foneticam ente afins: m ash aq, “beijar”, e nashak,
“morder” ... Sobre a am izade, há um a im ensa seleta de ditos em
todos os livros sapienciais; tam bém um salm o sapiencial, o 133,
que retom arem os m ais adiante, exclam a: “C om o é bom , c o * o é
agradável / os irm ãos viverem u n id o s! / É co m o ó leo fin o sobre
a cabeça, / descendo pela barba / ... / É com o o orvalho do
Herm on, d escen do sobre os m ontes de S iã o ” (SI 133,1-3). A
com o “am or”: “O ódio provoca rixas, m as o amor cobrc todas as
o fen sa s” (Pr 10,1 2 ), em que o hebraico “cobrir” sign ifica “per­
doar”, porque “o am or tudo descu lpa” (IC o r 13,7). A co m o
“avareza”: “O avaro corre atrás da riqueza, e não sabe que vai
cair na m iséria” (Pr 28,2 2 ). Com entará o E clesiastes: “E le acu ­
m ula para sua própria desgraça. Em m au n egócio, porém , ele
perde o patrim ônio” (E clo 5,13).
B com o “b eleza” : “A graça é enganadora e a b eleza é
passageira, m as a m ulher que tem e a D eu s m erece louvor” (Pr
31 ,3 0 ). B eleza que encanta, enfeitiça e perturba, mas está fadada
a perder o v iço e fenecer, e b eleza imorredoura. B com o “b onda­
d e” : “Amarre a bondade e a lealdade ao redor do seu p esco ço , e
escreva-as na tábua do seu coração. / A ssim v o cê alcançará fa ­
vor e aceitação diante de D eus e diante dos hom ens” (Pr 3 ,3 -4 ).
E is o m elhor cola r e o am uleto verdadeiram ente eficaz: bondade
e lealdade.
C co m o “calúnia” : “A s palavras do caluniador são g u lo ­
seim as que d escem até o fundo do ventre” (Pr 18,8), penetram
no íntim o, transform ando-se em carne e sangue. C co m o “cari­
dade” ; “Q uem ajuda o pobre, em presta a D eu s, que lhe dará a
recom pensa d evid a” (Pr 19,17). Jesus dirá: “T odas as v e z e s que
vocês fizeram isso a um dos m enores de m eu s irm ãos, foi a m im
que o fizeram ” (M t 2 5 ,4 0 ). C com o “corrupção” : “O suborno é
talism ã para quem o dá: co m ele, co n seg u e tudo o que quer” (Pr
17,8). O original hebraico fala em “pedra m ágica, talism ã”, para
definir o agrado ou a gen tileza. E p o d em os continuar assim :
“Quando os venais governam , os crim es se m ultiplicam , m as os
honestos verão a ruína daqu eles!” (Pr 2 9 ,1 6 ). C com o “cora­
çã o ” : “C oração sereno é vida para o corpo... C oração contente
alegra o rosto, m as coração aflito deprim e o espírito... Coração
alegre ajuda a sarar, m as espírito abatido seca o s o sso s” (Pr
14,30; 15,13; 17,22). O “coração” é, na B íblia, sinônim o de
“c o n sciên cia ”, por isso tem notável relevância: “Guarde seu c o ­
ração, porque dele brota a vid a” (Pr 4 ,2 3 ).
D co m o “D eus: a lista dos provérbios “te o ló g ic o s” é lon-
gu íssim a, e n ós a d eixarem os para a verificação do leitor. A o
Senhor se abre o coração hum ano (Pr 17,3; 15,11), seu n om e é
torre fortificada (18,10); D eu s é o senhor do co sm o (3 0 ,4 ), res­
peitar a D eu s é a lição m agna do m estre sábio (1,7; 3,7-8; 8,13;
15,33; 23,1 7 ), D eus se com praz co m a justiça dos n egócios (11,1),
corrige quem am a (3 ,1 2 ), transm ite sabedoria (2,6; 3,2 0 ), fa v o ­
rece a vitória (2 1 ,3 1 ), dá luz aos olh os (2 9 ,1 3 ), derruba o palácio
do prepotente (15,25), defende o cam po e a causa do órfão (23,10-
11), decid e a sorte dos dados no tabuleiro da história (1 6 ,3 3 ),
perscruta os cam inhos do h om em (5 ,2 1 ), v ig ia os m aus e os
bons (2,8; 15,3; 2 4 ,1 2 ) e o d eia sete coisas: “olh os altivos, língua
m entirosa, m ãos assassinas, m ente perversa, pés que correm para
0 mal, falso testem unho e litíg io entre irm ãos” (6 ,1 6 -1 9 ).
E co m o “estúpido”, “ím p io ” : “A luz dos ju sto s brilha,
mas a lâm pada do ím pio se apaga” (Pr 13,9), porque “quem
pratica o m al, odeia a luz” (Jo 3 ,2 0 ). “O ím pio fica preso em
suas próprias culpas e é apanhado na armadilha do seu p ecad o”
(Pr 5,2 2 ). R efestela-se no p ecad o, com prazendo-se na prática do
mal (Pr 10,23). M as, “quando morre, sua esperança desaparece,
e a esperança nas riquezas tam bém desaparece” (cf. Pr 11,7).
P oderíam os prosseguir indefinidam ente, porque “ím p io ” é sin ô ­
nim o de “n é sc io ”, de “m alvado” , de “perverso”, d e “estúpido” .
E co m o “erro” : “Q uem esco n d e seus erros, jam ais tem sucesso;
quem os c o n fessa e se corrige, será perdoado” (Pr 2 8 ,1 3 ), com o
aconteceu a Davi: “P equei contra o Senhor!”, e a Natã, o profe­
ta: “A gora 0 Senhor perdoou teu p ecad o” (2 S m 12,13-14).
E então, com o “estup idez”, “estu ltice”, antônim o de sabe­
doria. Tam bém n esse caso, com o para o seu oposto, bastaria
percorrer a seqüência dos vários provérbios para descobrir um
d elicio so , irônico e provocador retrato dos estúpidos, que, com o
dizia B acch elli, “im pressionam , m as apenas p elo núm ero” . “A
pedra é pesada e a areia é um a carga, m as a cólera do estúpido
pesa m ais do que am bas” (Pr 2 7,3). O E clesiá stico falava d isso
com um a fulgurante passagem : “O que é m ais pesado que o
chum bo? Q ual é o seu nom e, senão ‘in sen sa to ’? A reia, sal e
barra de ferro são m ais fáceis de carregar do que um in sen sato”
(E clo 2 2 ,1 4 -1 5 ). “É m elhor encontrar um a ursa da quaM-ouba-
ram os filhotes do que um insensato dizendo idiotices” (Pr 17,12);
“C om o cão que volta ao seu vôm ito, assim é o insensato que
repete sua estup idez” (26,11); “M esm o que v o cê soque o im b e­
cil no pilão, a estupidez não se separa d ele” (27,22).
F com o “falação”: “Q uem m uito fala, acaba ofendendo; a
p essoa prudente põe freio na boca” (Pr 10,19). F com o “falsid a­
de”: “M aça, espada e flech a aguda é aquele que depÕe falsam en ­
te contra o próxim o” (Pr 25,18). E continua: “U m falso testem u­
nho não se preocupa com a justiça... M as quem testem unha em
falso não terá su cesso, não ficará impune: a testem unha falsa
perecerá... Por isso , não testem unhe contra alguém , se não tiver
provas” (cf. 19,28.9; 21,28; 2 4,28). F co m o “fam ília” : bela e
feliz é a fam ília descrita no hino à m ulher forte, a quem nos
referim os m uitas vezes (3 1 ,1 0 -3 1 ). “Os netos são a coroa dos
anciãos, e os pais são a honra dos filh o s”, naturalmente se justos
e sábios (17,6). F com o “filh o”, e aqui com eçam os problemas:
“Filho insensato é desgraça para o pai, e m ulher q ueixosa é go-
teira que não pára” (19,13). D e fato, “a to lice é natural na m ente
da criança, m as dela se afastará pela vara da disciplina” (2 2,15).
S e “filho insensato é desgraça para o pai... tormento para o pai e
amargura para a m ãe” (1 7 ,2 1 .2 5 ), desespero e desonra (10,1 e
15,20), é necessário adotar a tem po a p ed agogia do bastão (a este
propósito, os Provérbios são in eq u ívocos, refletindo um preciso
contexto patriarcal): “Quem poupa a vara, odeia o seu filho; mas
aquele que o am a lhe aplica a correção” (13,24). Por sorte, há
também os “filh os sábios que contentam o pai... ouvem os c o n se ­
lhos... são a alegria dos genitores” (10,1; 13,1; 15,20).
G com o “gen itores”, que acabam os de citar. N as pegadas
do quarto m andam ento, o texto de Pr 2 0 ,2 0 adverte: “Q uem
am aldiçoa pai e m ãe, verá sua lâm pada apagar-se no m eio das
trevas”, enquanto o Pr 2 3 ,2 2 aconselha: “O uça seu pai, porque
ele gerou vo cê, e não despreze a v elh ice de sua m ãe” .
H co m o hokm ah, “sabedoria”, e hakam , “sáb io”. Para ilu s­
trar e sse verbete do n o sso vocabulário ideal sapiencial-proverbi-
al, o problem a é só escolh er dentre as inúm eras referências. O
duplo rosto, d ivin o e hum ano, da Sabedoria já foi delineado nas
páginas precedentes. Agora podem os descobrir outros traços desse
rosto através da leitura direta do livro. V ejam os alguns. A sab e­
doria é dom d ivino (Pr 2,6 ) e nasce do amor p elo Senhor (2,5); é
doce com o m el (2 4 ,1 3 ), m ais preciosa do que o ouro, do que a
prata, do que as pérolas ou qualquer outra jó ia (3 ,1 4 -1 5 ); é sabo­
rosa com o os frutos de um a árvore vigorosa (3 ,1 8 ), ama aqueles
que a am am (8 ,1 7 ), é co m o um a irmã (7,4), oferece pão e vinho
(9,5-6). Q uando ela falta, “o terror nos atinge com o tem pestade,
e a desgraça se abate com o furacão” (1 ,2 7 ). O sábio respeita o
Senhor (2 3 ,1 7 ), não se deixa embriagar “p elo vinho que provoca
rixa e p elos licores que excitam ” (2 0 ,1 ), não se p avoneia (1 2 ,23),
ensina os outros (1 3 ,2 0 )... Em sum a, “é m elhor ser sábio que ser
forte, e o conhecim ento vale m ais do que a força” (2 4 ,5 ).
H com o “honra”, incom patível com o néscio porque, “com o
neve no verão e chuva na colheita, também a honra não con vém
ao insen sato” (26,1). H co m o “hospitalidade”: “M ais vale um
prato de verdura com amor do que o boi cevado, com rancor”
(15,17). A fim , em bora co m outra finalidade, é o provérbio que
garante ser m elhor “um pedaço de pão seco na tranqüilidade do
que casa ch eia de banquetes e brigas” (17,1).
H co m o “hum ildade” ; “Os frutos da hum ildade são o te­
mor a D eu s, a riqueza, a honra e a vida” (Pr 2 2 ,4 ). H com o
“h om em ” : m uitos são os anexins que se referem à existên cia
humana em suas diversas facetas. R elem brem os apenas dois as­
pectos. “O espírito do hom em é um a lâmpada do Senhor, que
sonda as profundezas do ser” (Pr 2 0 ,2 7 ), passagem já citada para
explicar aquele “sopro” (nishm ah) que lig a D eus e o h om em (Gn
2,7 ). O outro aspecto recorda a radical solid ão que há no coração
do hom em , nos seus pensam entos m ais profundos: “O coração
co n h ece sua própria amargura, e o estranho não participa da sua
alegria” (Pr 14,10); mas: “M orte e abism o são transparentes para
0 Senhor; quanto m ais o coração hum ano” (Pr 15,11).
I com o “ilu são”, “en gan o” : “C om o lou co que lança setas
envenenadas, assim é o hom em que engana o seu próxim o e
dep ois diz: ‘Foi só brincadeira!’” (Pr 2 6 ,1 8 -1 9 ). “N u ven s e v e n ­
tos e nada de chuva é aquele que prom ete, m as não cum pre”
(2 5 ,1 4 ). I com o “insaciabilidade” : “M orte e abism o siíe in saciá­
v eis, da m esm a form a que a am bição hum ana” (2 7 ,20). “E x is­
tem três coisas in saciáveis, e um a Quarta que nunca diz “C h e­
g a !” : a m ansão d os m ortos, o lítero estéril, a terra que não se
farta de água, e o fo g o ” (3 0 ,1 5 -1 6 ). O provérbio é, neste caso,
ritmado por um jo g o num érico (três/quatro), m uito apreciado no
antigo Oriente Próxim o. I com o “inveja, cárie nos o sso s” (14,30).
1 com o “im postura”, “h ipocrisia” : “Q uem p isca o olho está tra­
m ando qualquer co isa , quem , repreende abertam ente faz o b em ”
(1 0,10). “H á gen te que se considera pura e não se lava de sua
im undície” (3 0 ,1 2 ), e vêm à m ente os “sepulcros caiad os” de
evan gélica m em ória (M t 23,2 7 ).
I com o “in im ig o ” : já nos referim os ao beijo traiçoeiro d
inim igo, sem elhante, na realidade, a um bote (Pr 27,6). Porque,
dirá outro sábio, o E clesiástico, “o in im igo, tem lábios d oces,
mas no coração planeja com o jogar v o cê no buraco” (Eclo 12,16).
T odavia — continuam os Provérbios — , “não se alegre quando
seu inim igo cai em desgraça, e não festeje quando e le tropeça. O
Senhor poderia ver isso , irritar-se, e desviar a ira contra v o c ê ”
(Pr 2 4 ,1 7 -1 8 ). A este propósito, na sabedoria egíp cia de A m en -
em -ope, lê-se: “L evante seu inim igo caído, dê-lh e a m ão e entre­
gu e-o nas m ãos de D eus; encha-lhe o estôm ago de pão, para que
se sacie e chore”.
J com o “ju sto ” e “ju stiça”, em um a exten sa série de pro­
vérbios a serem descobertos pela leitura direta: a ju stiça faz
chegar à v elh ice (1 6 ,3 1 ), liberta da m orte (1 0 ,2 e 11,4) porque
seu fruto é aquele da árvore da vida (1 1 ,2 8 -3 0 ), dá firm eza aos
tronos (1 6 ,1 2 ), d efende as vítim as (3 1 ,8 ). A oração do ju sto é
gáudio para D eu s, (1 5 ,8 ) que vigia suas trilhas (2,8), aplanando-
as (1 5 ,1 9 ) e o so erguerá m esm o que e le caia sete v ez es (2 4 ,16).
Sobre o justo brilha a luz divina, que dá alegria (1 3,9 e 4,18); ele
sem eia ju stiça (1 1 ,1 8 ), seu fruto é árvore d e vida (1 1 ,2 9 -3 0 ),
tornando-se um a bênção para a socied ad e (11,11): “Quando os
justos governam , o p ovo se alegra” (2 9 ,2 ) e “a cidade prospera
co m a bênção dos ju sto s” (1 1 ,1 0 ).
L co m o “labor”, “trabalho” : “Q uem cu ltiva seu cam po
tem pão em abundância... A fo m e do trabalhador o faz trabalhar,
porque sua boca o empurra” (Pr 12,11 e 16,26). T am bém Plauto
dirá que “o ventre é m estre da arte e do en g en h o”, enquanto
outro provérbio afirma que “a fo m e aguça o en gen h o” . L com o
“litíg io ” que divide os irm ãos, d eixand o-os m ais in acessív eis do
que um a rocha / porque os litíg io s são com o portões de ca ste lo ”
(18,19); “in ício de litígio é com o rachadura na represa; é m elhor
desistir antes do processo” (17,14). O litígio nasce do ódio (10,12)
e há pesso a s que têm o condão de fom entar contendas: “Carvão
para as brasas e lenha para o fo g o , é o briguento para atiçar os
litíg io s” (2 6 ,2 1 ). Em litíg io s é m elhor não se im iseuir. “Agarra
um cão pelas orelhas quem se m ete em briga alheia” (2 6,17).
L com o “louvor”, “e lo g io ” : “Q ue um estranho e lo g ie v o c ê, e
nunca sua própria boca” (27,2); “Própria laus foetet in ore”,
dirão os latinos [“O au to-elogio fede na boca de quem o fa z”].
M co m o “m ulher”, que p od e ser sábia e perfeita: “A m u­
lher perfeita é a coroa do m arido... ed ifica sua casa... vale m uito
m ais que p érolas...” (12,4; 14,1; 3 1,10). M as p ode ser tam bém
amoral e insensata: “Esta é a conduta da m ulher adúltera: com e,
lim pa a b o ca e diz: ‘N ão fiz nada de m a l...’ Os lábios da adúltera
destilam m el e suas palavras são m ais suaves do que o azeite.
N o final, porém , ela é am arga co m o fel... A nel de ouro em
focin h o de porco é m ulher bonita, mas sem bom sen so... M ulher
de m á fam a é cárie nos o ss o s ” (30,20; 5,3-4; 11,22; 12,4).
M co m o “m aldição” que não se deve temer: “C om o o
pássaro que fo g e e andorinha que voa, a m aldição injusta não
atinge sua m eta” (Pr 2 6,2). M co m o “m alvado” : “O Senhor de­
testa o sacrifício do m alvado” (1 5 ,8 ), porque “explora os fracos”
(28,3) e “aceita suborno às escon d id as, para distorcer o anda­
mento da ju stiça ” (17,23). “O s m alvados não dorm em sem ter
feito o m al; perdem o sono enquanto não prejudicam algu ém ”
(4 ,1 6 ). M as, no final, “quando vem o furacão, e le desaparece;
m as 0 justo perm anece firm e para sem pre” (1 0 ,2 5 ). M com o
“m ulher”, “esp o sa ”, que, se “queixosa, é goteira que não pára”
(1 9 ,1 3 ), é “goteira pingando em dia de chu va” (27,15); “é m e­
lhor morar no deserto do que junto com briguenta e m al-hum o-
rada” (2 1 ,1 9 ). M co m o “m ercado”, descrito n e sse d e lic io so
esquete; “N ão presta, não presta”, diz o com prador. M as, quan­
do vai embora, se gaba do que com prou” (20,14)^
O co m o “ofen sa” : “o amor cobre todas as ofen sa s” (Pr
10,12). “Q uem busca am izade disfarça a ofensa; quem a repete
afasta o am ig o ” (1 7 ,9 ). O com o “opressor” ; “F estejam os a m orte
dos opressores” (1 1 ,1 0 ), porque é prenuncio do triunfo dos ju s­
tos perseguidos (28,2 8 ).

F orm igas, esquilos, gafanhotos, la g a rta s

P co m o “palavra”, outro dos tem as clá ssico s da literatura


sapiencial, que surge em âm bitos da orahdade popular. Há, as­
sim , a palavra b oa e a palavra má, “que apunhala o coração (Pr
15,4); há a falsa palavra aduladora, que é “co m o verniz recobrin­
do argila” (26,23); há a palavra sincera (1 2 ,1 9 ); há a boa palavra
que reanim a (1 2 ,2 5 ); há a palavra serena que aplaca a cólera e a
palavra m ordaz que atiça a ira (15,1); há a palavra m exeriqueira
que é “com o o vento que traz a ch uva” (2 5 ,2 3 ), perturbando a
serenidade; há a palavra sábia “dita no m om ento oportuno: é
com o m açã de ouro em bandeja d e prata” (2 5 ,1 1 ) ... P co m o
“pecado” : “Q uem poderá dizer que tem co n sciên cia pura, livre
de qualquer p ecado?” (20,9). O pecado se volta com o bum eran­
g u e contra quem o perpetra: “Q uem abre um buraco, n ele cairá;
quem rola um a pedra, esta para cim a d ele voltará” (2 6 ,2 7 ). P
com o “p reg u iço so ”; “V am os, pregu içoso, olh e a form iga, obser­
v e os hábitos dela, e aprenda” (6,6); “V inagre nos dentes e fu­
m aça nos olhos, é o p reguiçoso para quem o envia” (10,26); “O
p reguiçoso não ganha seu sustento, m as o trabalhador se tom a
rico” (12,27); “Sobre o p reguiçoso cairá a pobreza do vagabun­
do e a indigên cia do m en digo” (6 ,1 1 ). “N o outono o p regu içoso
não ara, e na colh eita procura e nada encontra” (20,4); “o cam p o
do preguiçoso é ch eio de urtigas, coberto de espinhos” (2 4 ,3 0 -

7. A narraliva..
31). “Seu cam inho é cercado de esp in h os” (1 5 ,1 9 ). C om m ordaz
ironia, o sábio assim representa o ocio so : “A porta gira nos
gon zos, e o p reguiçoso rola na cam a” (2 6 ,1 4 ). C erca de d ezen o­
ve provérbios são dedicados à preguiça, sinal de vivida atenção
a um d efeito que se op õe ao em penho de con hecer e agir próprio
da sabedoria. P com o “pobre” : “Q uem despreza o pobre ofende
seu Criador” (17,5); “Fazer caridade ao pobre é emprestar a
D e u s” (1 9 ,1 7 ); “O pobre é detestado tam bém p elo s seu s irm ãos”
(19,7). M as “m uitos se fin g em de ricos e nada têm; outros pare­
cem pobres e possuem m uitos b en s” (13,7).
R co m o “riqueza” : “Q uem con fia na própria riqueza mur­
chará” (Pr 11,28) e, “no dia da ira, ela é iniítil, m as a justiça
liberta da m orte” (11,4). A ânsia de acum ular bens é vã porque
“basta v o c ê olhar, e a riqueza não ex iste m ais: bate as asas com o
águia e v oa pelo céu” (2 3 ,5 ). A riqueza torna as p essoas arro­
gantes e ridículas: “O rico se considera sábio, m as o pobre inteli­
gente o desm ascara” (2 8 ,1 1 ). Infelizm ente, co m o observa outro
sábio, que já citam os várias v ezes, o E clesiá stico , “as pessoas
apreciam até m esm o as to lices do rico... Quando o rico fala,
todos se calam e elevam até as nuvens o seu talento. Quando o
pobre fala, as p essoas perguntam: “Q uem é e sse fu lano?” (E clo
13,22-23).
S c o m certeza, com o “sabedoria”, mas dela já falam os ao
abordar o termo hebraico hokinah. S com o “soberba” : “há p es­
soas de olh os altivos e olhar soberbo” (3 0 ,1 3 ), m as “o Senhor
zom ba d o s soberbos” (3,34).
T co m o “tem pos”, referidos principalm ente ao c ic lo das
estações. Verão: “N ev e fresca em tem po de colheita é o m ensa­
geiro fie l para quem o en via” (Pr 25,13); “Q uem é previdente,
colh e no verão; quem dorm e na colheita passa vergonha” (10,5).
Outono: “N o outono o p regu içoso não ara, e na co lh eita procura
e nada encontra” (20,4). Inverno: “Quando cai n ev e [a boa dona
de casa], não tem e por seus fam iliares, porque to d os e les têm
roupa forrada” (31,21). Primavera: “Corte o capim e, quando ele
brotar, ajunte o feno dos m o n tes” (27,2 5 ). T co m o “tentação” :
“M eu filh o, se os pecadores lhe disseram: ‘V enha co n o sco , va­
m os fazer em boscadas para matar, vam os cercar im punem ente o
in o c e n te ’, não ponha os p és no cam inh o d e le s ” (1 ,1 1 .1 5 ).
T com o “tristeza” : “O bom ânim o sustenta na doença. M as quem
levantará o espírito abatido?” (18,14).
V com o “vaidade” : “N ão se vanglorie na frente do rei,
n em ocupe o lugar d os grandes. É m elhor que digam a você;
‘Suba até aqui’... (Pr 2 5 ,6 -7 ). U m a advertência que será retom a­
da por Jesus, na sua m iniparábola dos lugares à m esa; a respeito
de convidad os que se acotovelam nas primeâias posições: o dono
da casa poderá perdir-lhes que cedam o lugar a alguém m ais
im portante (L c 14,8-11). V com o “v e lh ic e ” : a sabedoria é fruto
de experiência e, por isso , muitas v ezes é vista com o apanágio
do idoso. A v elh ice, pois, é o prêm io que retribui a ju stiça de
um a p essoa, considerada a obscura perspectiva do além , no xeol,
os infernos bíblicos: “C abelos brancos são coroa nobre, quando
se encontram no cam inho da justiça” (Pr 16,31). V com o “vin ­
gança” proibida ao hom em : “N unca diga: ‘V ou d evolver-lh e o
m al que m e fez. V ou lhe pagar co m o ele m erece!...’ ‘V o c ê vai
m e pagar! E sse m a l’. C on fie no Senhor, e ele defenderá v o c ê ”
(Pr 24,29; 2 0 ,2 2 ). V co m o “v inh o” : “Q uem gosta de vinho e
carne boa jam ais ficará rico” (Pr 2 1,17); “O vinho provoca in so ­
lência, e o licor causa barulho: quem se em briaga com e le s não
ch ega a ser sábio” (Pr 2 0 ,1 ). Brilhante é a advertência presente
em Pr 23,29-35: “Para quem são os g em id os? Para quem os
lam entos? Para quem as brigas? Para quem as queixas? Para
quem os ferim entos sem m otivo? Para quem os olhos verm e­
lhos? São para aqueles que bebem o dia inteiro e vivem procu­
rando bebidas m isturadas. N ão fique fascinado pelo vinho, v e n ­
do sua cor e seu brilho, enquanto escorre suavem ente n o cop o.
N o fim , ele p ica co m o cobra e fere co m o víbora. Então seus
olh os verão coisas estranhas, e sua m ente im aginará co isas ab­
surdas. V o cê ficará co m o quem está deitado em alto-m ar ou
sentado no topo de um mastro. ‘Bateram em m im , e eu não senti
nada!... Q uando m e levantar, vou continuar a beber” .
Z com o “z o o lo g ia ” : o hom o sa p ie n s era aquele que “n o­
m eava os anim ais”, lê -se na narrativa da criação (Gn 2 ,1 9 -2 0 ).
V im os que Salom ão, o sábio, dissertava sobre “quadrúpedes,
pássaros, répteis e p e ix e s” (IR s 5 ,1 3 ). O s anim ais aparecem na
B íb lia com freqüência, e em particular em certos provérbios de
origem agrícola. A qui basta um ún ico exem p lo, extraído de um
provérbio “num érico”, no qual, co m o nas fábulas, os anim ais se
tom am m estres dos hum anos: “N o m undo ex istem quatro seres
p equeninos que são m ais sábios do que os sábios: as form igas,
p ovo fraco, m as que recolhe com ida no verão; as ratazanas,
p ovo sem força, m as que mora nas rochas; os gafanhotos, que
não têm rei, m as avançam todos em ordem; as lagartixas, que se
podem pegar com a m ão, m as penetram até em p alácios de reis”
(Pr 3 0 ,2 4 -2 8 ).
IX
Como cantar
em terra estrangeira?

.^ ío s s o s antepassados ficaram in dóceis e se revoltaram


contra ti. D esprezaram tua L ei e mataram os profetas que os
advertiam a se converterem para ti. E com eteram graves ofensas.
Então tu os entregaste aos in im igos que os oprimiram. N a an­
gústia, porém , eles clam aram a ti, e do céu tu os escutaste. C om
tua grande com paixão, en viaste salvadores que os libertaram dos
in im igos. M as lo g o que recuperavam a paz, faziam de n o v o
aquilo que reprovas, e tu os abandonavas aos in im igos que os
oprim iam ...” É som ente um fragm ento de um a oração torrencial,
pronunciada p elos levitas do tem plo de Jerusalém , recém -con s-
truído, e citada no capítulo 9 de N eem ia s, que, com Esdras, foi
um dos artífices do renascim ento da com unidade p ós-ex ílica . É
um a esp écie de “m oto perpetuo” que revela, em reiterados círcu­
los tem áticos, a con sciên cia de um a culpa. O e x ílio não nasceu
da hostilidade e da indiferença de Jhwh, nem é fruto da fatalida­
de ou do determ inism o cego. É, ao contrário, um ju lgam en to
d ivin o contra o pecado humano. Introduz-se, nesta e em m uitas
súplicas p ó s-ex ílica s afins (Esd 9; N e 1; D n 3; D n 9; Br 1-3;
E clo 36; SI 106; Is 6 3 -6 4 ), um a interpretação da história, calcada
na “teoria da retribuição”, fundada n o n ex o necessário entre cu l­
pa e castigo.

A L ei en vo lta em tre v a s

O período que se sucede ao e x ílio babilônico transcorre,


portanto, sob o sign o de um a provação que se reflete nestas
orações, mas que está presente tam bém na literatura sapiencial.
197
N o capítulo anterior, falam os de um a sabedoria cham ada “h ete­
rodoxa”, que não partilhava “o otim ism o da retribuição”, pelo
qual, cedo ou tarde, o m au é punido e o ju sto exaltado. A os
am igos, obstinados defensores desta tese, Jó, estribando-se na
realidade, que desm entia sua esquem ática interpretação da histó­
ria, replicava: “Por que os injustos continuam v iv os, e en v elh e­
cem cada v ez m ais ricos? Sua d escend ên cia está segura na c o m ­
panhia d eles, e eles v êem seus filh os crescer. Suas casas são
tranqüilas e sem temor: o bastão de D eu s não os atinge. Seus
touros reproduzem sem falhar, e suas vacas dão cria sem abortar.
E les deixam suas crianças correr com o cabritos, e seus pequenos
saltam alegrem ente. Cantam ao som de cítaras e pandeiros, e se
divertem ao som da flauta. Suas vidas transcorrem docem ente, e
eles d escem tranqüilos à sepultura...” (Jó 2 1 ,7 -1 3 ), e assim por
diante em todo o capítulo 21, que é um viv id o retrato do su cesso
do perverso e do injusto e um ataque às “b analidades” e às
“im posturas” dos am igos (Jó 2 1 ,3 4 ). O próprio profeta Jeremias
assim se dirigia a Deus: “Tu és justo, ó Senhor, para que eu
p ossa discutir contigo. N o entanto, eu gostaria, de fazer-te uma
pergunta em matéria de justiça: Por que os n eg ó cios dos ím pios
prosperam e os traidores v iv em todos em paz?” (Jr 12,1-2).
U m salm ista, talvez um sacerdote, autor do salm o 73, tem
um a crise de con sciên cia e de vocação, justam ente diante do
escândalo do su cesso dos corruptos e dos perversos. E m um
quadro m uito viv o , ele op õe a descarada “d oce vida” do m alva­
do à “v id a am arga” do justo. E ssa é a pedra de tropeço da fé. O
bosquejo que o salm ista faz do ím pio causa aversão e indigna­
ção: a soberba é seu colar; a v io lên cia o en v o lv e com o veste; o
coração é um a usina de projetos m alévolos; a b oca d esafia céus
e terra, o pecado lhe brota da gordura; seus segu id ores bebem
servilm ente suas blasfêm ias. A virtude é inútil, se o ju sto é a co s­
sado por provações e dores, e o salm ista se d eix a tentar pela
m iragem do cam inho largo e cô m o d o da injustiça: “Por pouco
m eus pés não tropeçavam; um nada, e m eus passos escorrega­
vam, porque in vejei os arrogantes, vendo a prosperidade dos
injustos” (SI 7 3 ,2 -3 ). É com esta ev id ên cia da realidade, inocua-
m ente toldada pelas veleidad es id eológicas dos a m igos de Jó,
que a sabedoria d eve se confrontar. A bem dizer, não apenas a
sabedoria, m as toda a teologia de Israel e, nos sécu lo s seguintes,
a teo lo g ia corrente. O jud aísm o falava de um a sebe que circun­
daria a L ei tou t co u rt para proteger-lhe a perfeição, a plenitude,
seu aspecto de “paraíso”, de tut^ a, de d efesa e de luz. Percebe-
se, porém , que um a densa cam ada de trevas e um silên cio in-
quietante en v o lv em essa sebe.
O tem a da dor im erecida constitui um dram ático d esafio
cotidiano tanto para os fié is com o para os teó lo g o s. Certamente,
a dor do ex ílio pode ser “sistem atizada” — p elo m enos em parte
— com o sofrim ento decorrente do pecado, co m o ex ig ên cia g e ­
nuína de um D eus moral. O absurdo que desborda d esse hori­
zonte, contudo, é por dem ais e x c e ssiv o , em bora aceitável. B oa
parte do m al que se alastra p elo m undo pode ser creditada à
injustiça humana: mas por que D eus não quebra essa corrente,
investindo contra o prepotente e o opressor? U m outro quinhão
de sofrim ento pode ser justificado com base na reconhecida fini-
tude e lim itação da criatura; o ser hum ano é constitutivam ente
frágil, sujeito a d oen ças, im p erfeições e caducidade, co m o de
resto o é a própria natureza: m as por que a distribuição do m al é
co m freqüência, tão absurda e desequilibrada, a ponto de en g en ­
drar sofrim entos, outros, que parecem proliferar cada v ez m ais,
num a perversa dinâm ica de circularidade e cum ulatividade? E s­
tas e outras perguntas não são, a rigor, tem atizadas nas E scritu­
ras hebraicas, de m odo a permitir isolar um a teod icéia que parta
do célebre sta tu s qu a estio n is, form ulado por Epicuro e citado
por Lactâncio, escritor cristão dos sécu lo s III-IV, no capítulo 13
do seu D e ira D ei: “S e D eus quer erradicar o mal e não pode, é
im potente; se pode m as não quer, é cruel para com o hom em ; se
não quer nem pode, é im potente e cruel; se quer c pode, então
por que o m al e x iste e não é aniquilado?” .
Em torno d esses dilem as, a filo so fia e a teologia se deba­
tem fragorosam ente há séculos, com os resultados os m ais d isp a­
ratados: do p essim ism o radical ao otim ism o integral, do d u alis­
m o ao ev olu cion ism o histórico-social, do retribucionism o ao exis-
tencialism o, e assim por diante. D izía m o s que as próprias sabe-
dorias do A n tig o Oriente já se form ulavam o problem a. C item os
apenas o D ia lo g o d i un su icid a con la sua anim a (Papiro de
B erlim 3 0 2 4 ), texto eg íp cio do ano 2 2 0 0 a.C,, de m eras 156
linhas, em que co m quatro argum entações, se co n ven ce u m su i­
cida a deixar a vida terrena, por ser e la m uito m iserável e esca n ­
dalosa: “A m orte está diante de m im , hoje, co m o a cura para o
doente, co m o a libertação para o prisioneiro. A m orte está diante
de m im , hoje, co m o o perfum e da mirra, co m o o prazer de
d eslizar num barco a vela num dia de brisa”. S o lu ção pessim ista,
devida à em briaguez da flor de lótus da m orte, tem perada por
um a fé inabalável na sobrevivência ultraterrena, típica da teo lo ­
gia egípcia, destituída, porém , de im p licações m orais.
A B íb lia não oferece respostas sistem áticas nem exau sti­
vas. Substancialm ente, ela d eixa entrever a dor co m o um a esp é­
cie de cidad ela cravada na rocha, na qual podem ser abertas
algum as brechas, mas cujo centro perm anece inexpugnável.

F en das na rocha

A teoria da retribuição, com o vim os, desem penha um pa­


pel relevante e tem um certo fundo de verdade, porque o pecado,
indubitavelm ente, gera injustiça e, portanto, dor no pecador e
sobretudo em seu entorno. O capítulo 3 do G ên esis transforma-
se num a e sp é c ie de exam e de co n sciên cia que cada A dão deve
fazer para reconhecer a própria responsabilidade no m al que
sem eia na hum anidade e no m undo. A liberdade desviada, o
coração obstinado, o p esco ço altivo, a teim osia hum ana — com o
m uitas v e z e s repetem os profetas — são ex p lica çõ es suficien tes
para tantos sofrim entos que acom etem a história. M as é preciso
reconhecer desde já que existe um a enorm e parcela de sofrim en­
to que prescinde de qualquer referência à responsabilidade hu­
mana. A rocha perm anece, por isso , bem resistente. A lgu m as
in cisões, porém , lhe podem ser feitas. L em brem os três.
O livro do D euteronôm io sugere que se com preenda a dor
com o p ed agogia divina. Ela é expressão da p a id e ia de um D eus
pai e m estre que, no deserto da provação, educa, purifica, faz
am adurecer e enriquece seu filho. Por entre h um ilhações e co n ­
solações, aviltam entos e esperanças pendulares, o hom em cresce
em plenitude, com o em n ovo parto, d oloroso m as fecu n d o. D e ­
vem os citar, a este propósito, um a am pla passagem do D eutero­
nôm io: “R ecord e-se de todo o cam inho que o Senhor seu D eu s o
fez percorrer durante quarenta anos no deserto, para hum ilhá-lo
e co lo cá -lo à prova, para con hecer suas intenções... E le o hum i-
Ihou e 0 fe z passar fo m e, mas Sépois o alim entou com o maná...
para fa zê-lo entender que o hom em não v iv e só de pão, m as de
tudo quanto sai da b oca do Senhor. A s roupas que v o c ê usava
não se gastaram, n em seu p é inchou durante e sse s quarenta anos.
Portanto, reconheça em seu coração que o Senhor seu D eu s
ed ucava-o com o o hom em educa o próprio filh o ” (D t 8 ,2 -6 ). A
m esm a função tem a “tentação”, quando parte de D eus: basta
pensar na prova de A braão para o sacrifício de Isaac (Gn 22),
prova dilacerante, m as destinada a tom ar a fé do patriarca pura e
radiosa. N o livro de Jó, esta visão é adotada p elo últim o dos
am igos a intervir, Eliú, nos capítulos 3 2 -3 7 (talvez se trate de
um acréscim o posterior). E le está co n v en cid o de que, através da
provação da dor, o hom em “é d esviad o das m ás ações, protegido
do orgulho, poupado de descer ao túm ulo e de cruzar a fronteira
da m orte” (Jó 3 3 ,1 7 -1 8 ). Tam bém Jerem ias, forjado p ela dor,
ergu e-se co m o profeta de D eus, capaz de com preender p len a­
m ente 0 sentido da história que está viven do.
U m a segunda brecha é aberta por um a página que já c o ­
m entam os anteriorm ente, sob a rubrica do m essianism o. Trata-
se do fam oso quarto canto do Servo do Senhor, constante do
capítulo 53 de Isaías. A dor do justo com porta uma força e x p ia ­
tória para o m al d o m undo; o sofrim ento a ssem elh a-se a um
parto em m eio a dores, que não são em vão nem se encerram em
si m esm as, porque dão à luz um a n ova criatura. A história agô-
nica e infam e é redim ida pelo sangue dos mártires que fecundam
0 deserto dos sécu lo s, libertam a hum anidade de suas injunções,
conduzind o-a a um a plenitude inesperada.
A té aqui, para usar a expressão do exegeta alem ão Otto
E issfeld t, estam os diante de ex p lica çõ es teo ló g ica s do sofrim en ­
to, mas não de um a lídim a teologia do sofrim ento. Esta n os é
oferecida som ente por Jó, que em grande parte incide sobre
aquele rochedo m isterioso. C om o já sabem os pela análise do
significad o últim o do seu livro, Jó não pretende oferecer so lu ­
ç õ es antropológicas para o enigm a que lancina a carne e fere a
co n sciên cia fiel ou agnóstica. Seu cam inho é aberto no m istério.
D ores im erecidas e lágrim as a cântaros pavim entam o cam inho
m ais íngrem e e m ais sério, para com preender a verdadeira reali­
dade da fé e de D eu s. A s exp licações “racionais” deixam a d e se ­
jar porque a dor é reflex o de um m istério e x c e lso , transcendente
à razão, penetrável apenas através da revelação. U m m istério
que não se reso lv e e que não se reporta à alçada do absurdo, do
fatalism o, do irracional, e sim a um a suprem a racionalidade que
delineia seu projeto.
Jó não é um apocalíptico, con ven cid o de que o presente se
desenrola sob o sign o da atribulação, do d esa sso sseg o e da inde-
term inação e d e que o futuro esca to ló g ico procederá a um a reen-
genharia da realidade, dem olindo o existen te para em seu lugar
erigir um a n ova e perfeita ordem de relações, e instaurar um a
alegria sem fim . Tam bém esta é, decerto, um a teo lo g ia do sofri­
m ento. Jó, ao contrário, perm anece na história e procura-lhe não
a elim inação catártica, m as a interpretação teo ló g ica. D or e D eus
não são contraditórios, e sua coerên cia é um con teúdo funda­
m ental da fé. É neste cam inho que se insere a súplica saim ódica,
que, co m o fe z Jó, floresce em m eio à d esolação assinalada por
aqueles “Por quê?” , “A té quando?” (SI 6,4; 13,2-3; 35,17; 42,10;
43,2; 9 0 ,1 3 ) que dilaceram a alm a. N o final, porém , a dor é
entregue a D eu s. Os S alm os de súplica e de lam entação se en ­
cerram sem pre com um encontro, co m o aconteceu a Jó. É um
d iálogo p esso a l co m D eus; é a e le que se form ula a questão e é
ele quem responde, propiciando, desta vez, a alegria e a liberta­
ção, transform ando, outras v e z e s, “a refutação em in vo ca çã o ”
(Gabriel M areei), ou abrindo um a espiral sobre sua 'esah, sobre
aquele “projeto” que em si co n cilia dor e alegria, nada e ser,
lim ite e con sistên cia.

C om o c a n ta r em terra estra n g eira ?

É p o ssív el, portanto, cantar m esm o na terra estrangeira do


sofrim ento? “C om o cantar os cantos de Jhwh em terra estrangei­
ra?”, perguntava-se o autor do célebre Salm o 137, o S u p erflu m in a
B a bylon is, e sua resposta era negativa, porque o canto litúrgico
não d evia ser profanado em sarcasm o ou folclore, com o teriam
querido o s perseguidores babilônicos. É lícito, entretanto, cantar
no deserto da provação. Ou m elhor, é um dever. U m terço do
repertório do Saltério é com p osto de orações do doente, do in fe­
liz, do m iserável, do caluniado, do hom em solitário, “qual p elica­
no do deserto, m ocho das ruínas... e ave solitária no telhado” (SI
102,7-8). M esm o quando a libertação não é concedida, este canto
estridente e dissonante dá sentido à dor, apaziguando-a, não com o
terapia p sicológica, mas com o experiência m ística. Isso é percep­
tível m esm o quando o canto atinge as raias da rejeição e do
desespero, m esm o quando D eus aparece apenas com o obscuro
objeto de um desejo im p ossível. Bastam dois exem plos.
“T alvez seja a m ais bela de todas as eleg ia s do Saltério”,
assim Heinrich G .A . Ew ald definiu o Salm o 39, dilacerante la­
m entação p essoal, que surge do m al de viver, da radical m iséria
da condição humana. V em -n os lo g o à m ente um a série de para­
lelos literários: “N ó s, co m o as folhas fazem nascer a florida
estação prim averil, tão lo g o desabrocham os aos raios do sol,
co m o elas, por um átim o das flores da juventude usufruím os...
M as liígubres estão, ao n osso lado, as Parcas, e logo é m elhor
morrer do que v iver”, assim , nos sécu los V II-V I a.C., escrevia o
poeta grego M inerm o, traduzido dep ois por Q uasím odo. A s pa­
lavras do salm ista rem etem -nos ao sábio “p essim ista” que lo g o
encontrarem os, o C oélet ou E clesiastes. Em n osso Salm o, de
fato, ressoa três v ezes a palavra-tem a do C oélet, isto é, hehel,
geralm ente traduzida por “vaidade” (quem não se recorda do
fam oso van ita s van itatu m in icia o E clesia stes na versão latina da
Vulgata?). C oélet a usa 38 vezes, contra um total de cerca de 70
m en ções no A ntigo Testam ento. H e b e l é o “sopro” de ar, algo
tão inconsistente co m o a neblina da m anhã que o sol derrete,
com o 0 flo co de nuvem tangido pelo vento, ou com o a gota de
orvalho que se evapora pela m anhã às prim eiras ondas de calor.
Para o S alm o 39, o hom em é u m “sopro am bulante”, um a
“w alking shadow ”, um a som bra que cam inha, para usar um a
expressão do M a cb eth de Shakespeare. É um estrangeiro na ter­
ra, sem pre peregrino e nôm ade, co m o eram os antepassados no
deserto, “triste andarilho em paragens som brias” (G oethe), cujos
dias não e x ced em de um palm o e cujo term o é o xeol, m ela n có ­
lico e tenebroso porto de espectros. N ão obstante, o poeta elev a
a D eu s um a prece, entregando a si m esm o e a esta desconcertan­
te realidade, que é a existên cia hum ana, a ele que é o Criador e
que lhe dá sentido. É um final de grande despojam ento espiri­
tual, ao estilo das in v oca çõ es de Jó (leia -se Jó 1 0,20-22), fínal
que Stravinski inseriu em sua Sinfonia d e i Salm i: “Senhor, ou ve
a m inha prece! / D á ouvido aos m eus gritos! N ão fiques surdo ao
m eu pranto: / porque sou h ósp ed e junto a ti, / inquilino com o
m eus antepassados. / A fasta de m im o teu olhar, / e deixa-m e
respirar! / A ntes que eu m e v á e não exista m ais” (SI 3 9 ,1 3 -1 4 ).
S ó um m om ento de paz pede o suplicante, um “en golir a saliva”,
com o diz 0 pitoresco termo original hebraico, por nós traduzido
com o “respirar”, ainda hoje usado em árabe para indicar um
m om ento de trégua. Tudo o m ais é entregue a D eu s, que ou ve e
sabe encontrar um sentido.
M ais profundo ainda é o Salm o 88, “o C ântico dos Cânti­
cos do p essim ism o, a m ais tenebrosa de todas as lam entações do
Saltério, um longo grito de deso la çã o baseado no m od elo de Jó”,
segundo as várias definições dos exegetas. U m destes. Paul Joüon,
acrescentou, porém: “Se, co m o dizia A lfred de M usset, os can­
tos m ais desesperados são os m ais belos, deveríam os entregar a
palm a da b eleza ao Salm o 8 8 ” . Canto de solidão (vv. 9 -19) e de
morte ( w . 4 -8 ), o poem a perfila um hom em acabrunhado pelo
fardo de desventuras insuportáveis, reduzido a um espectro das
trevas infernais, fustigado por um D eu s que se enfurece co m ele
sem cessar, solitário e m arginalizado, atirado a um calabouço
inescapável, rechaçado continuam ente por um D eu s que é in v o ­
cado até o extrem o, condenado a um a existên cia pontilhada de
infelicidad e desde o in ício, torturado por p esad elos e fraquezas.
U m hom em que bebe o cálice dos dissabores até a últim a gota,
m as que m esm o assim não perm ite que a dor lhe vare os olhos e
não se d eixa submergir no oceano do próprio sofrim ento. D e
fato, este hom em , que tem co m o “com panhia som ente as trevas”
(v. 19) e que se encam inha para o x eol sem entrever sequer um a
n esga de luz no horizonte de sua vida, lança a D eu s seu últim o
grito: “A ti. Senhor, peço auxílio, / de m anhã ch ega a ti m inha
oração” (v. 14).
U m a co isa é certa: o canto no deserto da dor não acaba em
um eco d ev o lv id o pela abóbada celeste, nem as lágrim as term i­
nam no p ó do deserto. É o que declara com extraordinária subli­
m idade poética e espiritual um versícu lo do Saltério: “A n ota em
teu livro a m inha vida errante, / recolhe m inhas lágrim as em teu
odre!” (SI 56,9). D eus, no m onum ental livro-razão do seu proje­
to h istórico-cósm ico, registra todo o acervo de acontecim entos, a
peram bulação dos hom ens. M as, acim a de tudo, está atento às
lágrim as vertidas, que ele n ão quer que reguem o nada. Para
D eu s, elas são algo tão p recioso com o a água, o vinho, o leite, as
substâncias vitais que o beduíno conserva em seu odre. N esse
registro civ il da história e n essa arca, D eu s escritura e conserva,
com o tesouros, os sofrim entos da hum anidade, ao m esm o tem po
que os classifica, os valora e lhes dá sentido. O antropom orfism o
urbano (o livro de registros) e pastoral (o odre) do versículo
sálm ico revela-se, assim , co m o fonte de esperança. Sim , é p o ssí­
vel cantar tam bém em terra estrangeira!

A í se te d o en ça s d o esp írito

Constantin N o ica , solitária figura de pensador e “sáb io”,


que viveu sem pre na R om ênia, seu país natal, m esm o quando o
manto do obscurantism o e da opressão o en volveu , intitulou
a s s im um g r a n d e liv r o seu : L e s e i m a l a t t ie d e W u o m o
con tem p o râ n eo . A ntes d ele, com outra sensibilidade, o etó logo
Konrad Lorenz dissertara sobre os O ito p e c a d o s c a p ita is da n o s­
sa civ iliza ç ã o , livro que teve m ais de vinte ed içõ es só na versão
italiana. Para ficar na sim b ólica num érica bíblica, pensam os em
falar do E clesiastes, o sábio m ais p essim ista da B íblia, ordenan­
do sua m ensagem num a lista de sete d oen ças que atacam o ser e
0 espírito. M as não pod em os deixar de sugerir a leitura integral
d esse opúsculo de p ouco m enos de 3 0 0 0 palavras hebraicas,
distribuídas em 2 2 2 versículos e 12 capítulos, talvez o texto
m ais original e “escan d aloso” do A ntigo Testam ento. E le é, com o
já d issem o s, co lo ca d o sob um a ideal e im provável autoria salo-
m ônica. O pseudônim o C oélet rem ete, porém , ao hebraico qah al,
que indica “assem b léia”, em grego ek k lesía , donde o greco-lati­
no E cclesia stes, que em n ossa língua deu “E clesia stes” . M as a
assem bléia de seus d iscíp ulos m íngua à proporção que suas pa­
lavras, sim ples m as corrosivas, devastam os lugares-com uns e se
tom am inquietantes, não obstante a “can o n iza çã o” do escrito,
efetuada pelo redator final no ep ílogo, justaposto à coletânea dos
ditos do m estre (E cl 12,9-14).
Interpretado co m o texto p essim ista , cético, até m esm o
“ateu”, considerado expressão da id eo lo g ia au rea m e d io crita s,
influenciado pela filo so fia grega do sécu lo III a.C., tido por gu ia
ascético de desap ego e desprezo do m undo por parte da tradição
cristã (a Im itação de C risto traz na sua abertura, exatam ente a
fam osa citação do V anitas vanitatu m ), o livro fo i redim ensiona-
do por alguns ex egetas, nas últim as décadas, em termos de um
otim ism o m ais alentador, por causa de algum as passagens (Ecl
2,2 4 -2 5 ; 3,12-13; 3,22; 5,17; 8,15; 1 1 ,9 -1 2 ,1 ) das quais em ergi­
ria um apelo ao sereno prazer proporcionado pelas escassas ale­
grias que a vida reserva. E ssa interpretação seria subscrita, para­
doxalm ente, até por Cam us, quando, no M ito d e Sísifo, v ê em
D on G iovanni “um hom em nutrido p elo E clesia stes”, “um louco
que é um grande sáb io” porque “esta vida o satisfaz” .
N a realidade, C oélet é um testem unho m ais frio e distante
do que o de Jó, mas com ele concorda na representação da crise
da sabedoria tradicional. C oélet não chega, porém , a encontro
algum nem a “visã o ” algum a. Tinha razão G eorges Bernanos,
em G ran d i cim iteri so tto la luna, quando aproxim ava os dois
sábios co m o antídoto contra a banalidade generalizada: “M uitas
p essoas v iv em a repetir entre si um certo núm ero de lugares-
c o m u n s c o m o se f o s s e m , p a p a g a io s , c o m a a fe ta ç ã o , a
pom posidade e as piscadelas de olhos daquele pássaro. M as os
papagaios não podem degustar o vinho arom ático do livro de Jó
ou do E clesia stes” .
C oélet é um dram ático capítulo da história da salvação,
m as tam bém da história do hom em . N o com entário que dedica­
m os a e ssa obra bíblica em 1988, reservam os am plo esp aço aos
“m il E clesia stes”, isto é, a todos aqueles que se encontraram e
até se identificaram com sua sábia e amarga v isã o de m undo,
m as tam bém aos seus antepassados ou contem porâneos egíp cios,
m esopotâm icos, gregos, latinos, hebreus. Omar K hayyam , o gran­
de poeta persa que viveu entre o s sécu lo s X I e X II, fo i con sid e­
rado por m uitos um C oélet árabe, com o o foi M ontagne em sua
acerba crítica ao antropocentrism o renascentista, cod ificad a nos
E n saios (1 5 8 0 -8 8 ). C oélet m sso fo i T olstói, que, nas suas C o n ­
fis s õ e s , citava essencialm ente os capítulos 1-2 e 9 ,2 -6 (segundo
a versão sinodal russa) do E clesiastes. O rol de citações poderia
englobar ainda G uicciardini e Leopardi, Eliot, co m Q u atro q u a r­
tetos, H em ingw ay, Shaw , co m conto L a ra g a zza n eg ra in cerca
di D io , B eckett, Voltaire, que, em 1791, escrevia um P ré c is de
l 'E cclésia ste, bem com o de H ein e ao existen cia lism o, de Cioran
a C hatw in, e assim por diante. Poderíam os tam bém relacionar a
“rapsódia hebraica” S ch elo m o , de B loch , m úsico ju d eu -su íço
(1 9 1 5 -1 6 ), o E c c le sia ste do com positor francês M igot (1 9 6 3 ) e,
por que não?, os Q u a ttro ca n ti seri, de Brahm s (1 8 9 6 ).
M as d eix em o s e sse rio que atravessa os sécu los e v o lte ­
m os ao canto do silên cio e do absurdo, da v elh ice e da obscuri­
dade, do h a vei h avalim , do “im enso v a zio ” que agride a realida­
de. U m livro do qual, com o d isse o exeg eta André Barucq, “não
se sai incólum e, m as adulto, ou pronto a s ê -lo ” . C om o já anun­
ciam os, escolh erem os sete doenças que, para C oélet, acom etem
0 espírito hum ano e a própria realidade.
A primeira diz respeito à linguagem : “A s palavras se exau ­
riram, e o hom em não pode m ais u sá-las” (E cl 1,8). A idéia é
extraordinariam ente m oderna, se considerarm os a crise atual por
que passa a linguagem , ou seja, o “m al” que acom ete a palavra,
sintom atizado p elo esvaziam ento do seu sentido, pelo seu uso
abusivo, pela tagarelice e p ela proliferação dos clich ês. Em he­
braico, porém , considerada a eficácia do term o, d ebarím , “pala­
vras”, sig n ifica tam bém “fato s”: há um a lassidão nas co isa s,
um a deterioração; “tudo se desgasta, tudo en velhece; palavras e
situações. Todas as palavras já foram ditas” (Joseph Roth, no
M erca n te d i co ra lli). A palavra im pressa corre o m esm o risco:
“E screver livros é um trabalho sem fim ” (Ecl 12,12). Elias Canetti,
no A u to da f é , introduz C oélet no sonho de K ien, o protagonista:
“U m a v o z anuncia -— esta v o z sabe tudo e é a v o z de D eu s —
A qui não há livros. Tudo é vaidade” . A té a lingu agem visu al e
m usical experim enta e sse esgotam ento: “O olho não se farta de
ver, nem o ou vid o se farta de ouvir. O que aconteceu, de n o v o
acontecerá; e o que se fez, de n ovo será feito: debaixo do sol não
há nenhum a n ovid ad e” (E cl 1,8-9).
A segunda doen ça do espírito está ligada ao agir ou, com o
prefere C oélet, ao ‘a m a i, ao “fatigar-se”, para quem o trabalho é
labor, isto é, “fadiga” (Gn 3 ,17), alienação, faina (o tra v a il fran­
cês!). Estam os b em lo n g e do entusiasm o dem onstrado pela sab e­
doria proverbial ao descrever as capacidades ex cep cion ais do
hom o fa b e r . A pergunta inicial do livro é lapidar; “Que proveito
tira o hom em de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do
sol?” (E cl 1,3). P arece que estam os ouvindo o Petrarca do Tríonfo
d elia m orte: “ó ceg o s, que resulta de tanta lida!?” . D e n ovo,
lem os em E cl 2,18: “D etesto todo o trabalho co m que m e afadi-
go deb aixo do so l”, palavras colocadas na b oca de Salom ão! E,
poucas linhas depois: “F iquei com o coração desesperado por
causa de todo o trabalho com que m e afad igu ei debaixo do so l”
(E cl 2,2 0 ), fadiga cujo resultado está votado à dissipação dos
herdeiros. M ais eloqüente ainda é o questionam ento que se lê
em 5,15: “Q ue proveito tirou em ter se afadigado por nada?” ,
indaga C oélet, assum indo a í a identidade de Salom ão: “R ealizei
grandes obras: construí palácios para m im , plantei vinhas, fiz
jardins e pom ares com todo tipo de árvores e construí reservató­
rios de água para regar as árvores do pomar. C om prei escravos e
escravas, e tive m uitos criados nascidos na m inha casa. P ossui
m uitos rebanhos de vacas e ovelh as, m ais do que todos os que
reinaram em Jerusalém antes de m im . A cu m u lei prata e ouro, e
tesouros de reis e províncias” (Ecl 2 ,4 -8 ).

A s v o lta s que o vento d á

A terceira doença do espírito tem a ver com a crise da


inteligência. C oélet é um sábio, um escriba, um intelectual, com o
diz tam bém a epígrafe final (Ecl 12,9-10). D espreza a estupidez:
por cerca de 85 vezes, introduz suas reflexões em prim eira p es­
soa, conscien te de sua originahdade de pensam ento. Entretanto, o
resultado final do conhecim ento é amargo: “Eu resolvi pesquisar
e investigar com sabedoria tudo o que acontece d ebaixo do céu.
Essa é um a tarefa penosa que D eus entregou aos hom ens, para
com ela ficarem ocupados. Então exam inei as coisas que se fa­
zem debaixo do sol: tudo é fugaz, um a corrida atrás do vento...
P ensei e d isse para mim m esm o ‘fiquei maior e m ais sábio do
que todos os que reinaram em Jerusalém antes de m im , e a m inha
m ente adquiriu muita sabedoria e ciên cia !’. D ecid i então con h e­
cer a sabedoria e a ciência, assim com o a tolice e a loucura. E
com preendi que também isso é correr atrás do vento, porque,
onde há m uita sabedoria, há tam bém m uita tristeza; e onde há
mais conhecim ento, há tam bém m ais sofrim ento” (E cl 1,13-14.16-
18). C om pelido pela m aldição do saber, estruturalmente inerente
à natureza humana, o hom o sa p ien s descobre que o objeto do
conhecim en to é o vazio, a reiteração, a inconsistência: “A s v e ­
zes, ouvim os dizer: ‘Veja: esta é uma co isa n o v a !’ M as ela já
existiu em outros tem pos, m uito antes de n ó s” (ü c l 1,10). “A té o
filó so fo , que se crê condutor do m undo” — escreve o com enta­
rista D aniel L ys — , “na realidade, não conduz senão o vento. O
paradoxo da sabedoria é que a suprema sabedoria con siste em
saber que a sabedoria é vento quando pretende ser suprem a.”
N ã o há, então, diferença algum a entre sabedoria e estulti-
ce? N ão, responde C oélet, ex ceto esta, que é terrível; o sábio é
atormentado, enquanto o ignaro v iv e fe liz na sua estupidez. S ó o
indivíduo inteligen te percebe a vacuidade do ser e a nulidade do
que se executa d ebaixo do sol. C oélet u sa o vocáb ulo ka 'as para
exprim ir o sofrim ento do sábio, term o que sugere d esgosto, p e ­
sar e opressão física, mas tam bém indignação diante de um a
hum ilhação sofrida. O m estre rabínico m ed ieval Saadiá Gaon
com entava: “A ciên cia d esvelou a C o élet a im perfeição inerente
às c o isa s”, d etectável apenas através da com p ulsão absurda e
in ven cível da com preensão. Estam os diante de um dos lugares-
com uns da sabedoria intelectual de todas as culturas, com o ates­
ta ironicam ente o chinês Su-shih (1 0 3 6 -1 1 0 1 ): “T oda fam ília, ao
lhe nascer um a criança, a quer inteligente. Eu, com a m inha
inteligência, sofri e arruinei toda a m inha vida. S ó espero que
meu filh o seja estúpido e ignorante: levará assim um a vida tran­
qüila, e se tom ará m inistro” .
A Quarta enferm idade ataca o ser co m o um todo, ou seja, o
cosm os e a história sobre os quais o sábio clássico se lançava com
grande paixão, co n v en cid o de poder penetrá-los, estu d á -lo s,
plasm á-los. C om ecem os com a natureza, para descobrir com o o
Eclesiastes a considerava. É uma estrofe de grande beleza, “um a
pérola do livro”, segundo a definição do estudioso Thom as K.
Cheyne. Leiam o-la: “... a terra perm anece sempre a m esm a. O sol
se levanta, o sol se põe, voltando depressa para o lugar de onde
novam ente se levantará. O vento sopra para o sul, depois gira para
0 norte e, girando e girando, vai dando as suas voltas. T odos os
rios correm para o mar, e o mar nunca transborda; em bora ch e­
guem ao fim do seu percurso, os rios sem pre continuam a correr”
ÍEcl 1.4-7). O horizonte cósm ico é representado por um a tétrade:
a terra, o sol, o vento, o mar. D a í poden^amos intuir os quatro
elem entos dos m estres jônicos: terra, fo g o , ar, água. Ou ainda os
quatro pontos cardeais, com o costum avam fazer os antigos eg íp ­
cios. A lei que tudo regula é a repetição m ecânica e fechada em si
m esm a, im produtiva e deduzida. O sol não é m ais o astro glorio­
so, cantado com o herói e esposo no Salm o 19, m as um lavrador
que aspira ao repouso vespertino: o verbo hebraico usado é exata­
m ente 0 do escravo que espera ansiosam ente o cair da tarde para
ser dispensado da árdua labuta (Jó 7,2).
Sign ifica tiv a é, sobretudo, a ação do vento, a girar in d efi­
nidam ente aos quatro cantos, delineando espirais que recobrem
0 céu em form a de redem oinhos, tom ados, sorvedouros ciclôn i-
cos. Por quatro v ezes ressoa o verbo “girar”, de m odo a abarcar
os quatro ventos que condensam a terra em um único vórtice.
N ão é m ais o vento solen e da criação, “espírito de D eu s que
pairava sobre as águas” (Gn 1,2), nem o vento-espírito que so ­
prava na fronde verdejante do tronco de Jessé (Is 11,1-2), nem o
vento da teofania sinaítica de E has (1 Rs 19,12-13); o vento ago­
ra é só um em aranhado que se desenrola entre o céu e a terra,
sem m eta, sem d esígn io, abandonado aos seus arabescos, inca­
paz de falar de D eus ou de um projeto có sm ico . É m ero em b le­
ma de um eterno agitar-se. Há, enfim , a água (no in ício aparecia
a terra firm e), representada na relação rio-mar. U m m ovim ento
cíclico perene; atingido o im en so reservatório m arítim o, as águas
retom am seu curso ou se evaporam , ou m elhor, segundo a cos-
m o logia oriental, se d issolvem sob a terra em form a de nascen­
tes, dep ois de terem percorrido o A b ism o subterrâneo. O s quatro
grandes sistem as — , o terrestre, o solar, o m eteorológico e o
hídrico — , não são m ais sinais le g ív e is, não falam m ais de D eus
nem de sua criação, com o fn ito de um projeto de harm onia e de
salvação. P adecem , antes, das m esm as doenças d o hom em : o
absurdo, a repetição, a incon sistên cia, o cansaço, o téd io, a agi­
tação sem sentido. A criação não é m ais um pergam inho ilustra­
do, m as um eterno palim psesto sobre o qual, ininterruptamente,
se escrev em e se apagam garatujas repetitivas,
A lém da natureza, há a história. A referência clá ssica é
uma das páginas m ais populares do E clesiastes, que lo g o lere­
mos. Ela é poderosa na sua pobreza estilística, d evido à árida e
litânica brutalidade do paralelism o, rigidam ente repetido, uma
verdadeira e infinita sucessão de “tem pos e estações” (E cl 3,1-9).
O s acontecim en tos giram em torno de um e ix o predeterminado;
sua in exorável dinâm ica é m onótona com o um a cantilena, im ­
p lacável co m o um a goteira, estridente co m o um a im plosão. À
vista dessa infinita recursividade levanta-se a pergunta radical:
que sentido tem tudo isso? O flu xo do tem po e da história não
avança para um sentido, para outra fo z que não a redundância
pura e sim ples.

A su cessã o d o s 2 8 tem p o s

C hega-se, assim , a catorze duplas de “polaridades”, isto é,


de extrem os destinados a representar, cada um no seu gênero,
um a pequena totalidade: para a m ística dos núm eros, cara ao
Oriente, trata-se de um conjunto de 28 elem en tos d ecom p on íveis
em duas totalidades sim bólicas: o 7 da plenitude do ser e o 4 dos
pontos cardeais. Ou, se se preferir, um a totalidade de 7 e uma
polaridade de 2 repetições (7 x 2 = 14 x 2 = 28). O uçam os,
então, esta célebre litania dos tem pos: “D eb a ix o do céu há m o ­
m ento para tudo e tem po certo para cada coisa: T em po para
nascer e tem po para morrer. T em po para plantar e tem po para
arrancar a planta. T em po para matar e tem po para curar. T em po
para destruir e tem po para construir. T em po para chorar e tem po
para rir. T em po para gem er e tem po para bailar. T em po para
atirar pedras e tem po para recolher pedras. T em po para abraçar e
tem po para se separar. T em po para procurar e tem po para per­
der. T em po para guardar e tem po para jogar fora. T em po para
rasgar e tem po para costurar. T em po para calar e tem po para
falar. T em po para amar e tem po para odiar. T em po para a guerra
e tem po para a paz” (E cl 3 ,1 -8 ). A história está, portanto, d oen ­
te; não há trajetória algum a em direção a um a meta. A história
se reflete sobre si m esm a, ininterrupta e reiteradam ente. N ão há
m ais um a projeção escatológico-m essiân ica: é curioso que o ú l­
tim o “tem p o” seja o shalôm , a “p az” m essiân ica, reduzida agora,
porém , a um a das tantas épocas que se repetem sobre a fa ce da
terra, aprisionada nos ciclo s fix o s e nas alternâncias determ inís-
ticas do ser e do tem po.
P assem os a um a nova página e a um a outra d oen ça, a
quinta, a da sociedade. “E xam inei tam bém todas as op ressões
que se com etem debaixo do sol. A í está o choro dos oprim idos, e
não há quem os con sole; ninguém o s apóia contra a v io lê n c ia de
seus opressores...” (E cl 4,1). A com unidade hum ana e a vida dos
p o v o s padecem v io lên cia e injustiça. O m undo é um a selva em
que o hom em en loq u ece, esperando morrer ou ser morto. T am ­
b ém os profetas registraram esta situação, contra a qual se insur­
giram com veem ên cia, denunciando o mal e tentando subverter a
ló g ica da destrutividade. A té m esm o os m oderados Provérbios
continham advertências contra a injustiça: “Q uem oprim e o p o ­
bre ofen d e seu Criador” (Pr 14,31). Já C oélet contenta-se em
retratar com amargura a desordem social, sem deixar transpare­
cer desdém , nem m uito m en os um encorajam ento à luta. A o
contrario, sua con clusão é bem pessim ista; “Então proclam ei os
m ortos, e sse s que já morreram, m ais fe liz e s do que os vivos,
e sse s que ainda vivem . M ais feliz que os d ois é quem não nas­
ceu ainda, p ois não v ê todo o m al perpetrado sob o so l” (Ecl 4,2-
3). Triste e terrível beatitude!
Outras tantas observações amargas a respeito da socied a­
de podem ser lidas no livro, politicam en te conservador, mas
nem por isso m enos ex p lo siv o (p en sem os no conservanüsm o
anárquico de certos escritores co m o C éline, Cioran, lo n e sco ...).
Interessante, por exem p lo, é a crítica às revolu ções, exposta em
um quadro tão essen cial e alusivo que se torna obscuro, ainda
que exp lícito na substância. É um a parábola talvez inspirada na
crônica de um golpe de Estado, m as que a transcende por tornar-
se um a a p ologia do poder sem pre opressivo. “M ais vale um
jo v e m pobre e sábio do que um rei velho e insensato, que não
aceita m ais con selh o, m esm o que o jo v em tenha saído da prisão
para reinar, e ainda que tenha nascido m endigo no reino. Eu vi
todos os que se m ovem deb aixo d o sol ficarem com o jo v e m que
sucedeu ao v elh o rei, e que p assou a liderar im ensa m ultidão.
C ontudo, aqueles que vierem dep ois, não ficarão contentes com
ele. T am bém isso é fugaz e um a corrida atrás do ven to ” (Ecl
4 ,1 3 -1 6 ). Identificar o ep isó d io do jo v e m revolucionário, encar­
cerado por um soberano esclerosad o, liberto pela m ultidão e
aclam ado rei, e que se tornou d ep ois, por sua vez, opressor, é
difícil (S eria José no E gito?, ou D avi? Ou Jeroboão, rebelado
contra S a lom ão e fundador do reino separatista de Israel? Ou se
trataria de acontecim entos contem porâneos ao autor?). Clara é,
ao contrário, a condenação do poder, ao qual o E clesiastes pespega
o termo que lhe é caro: h eb el/h a b el, “v a zio ” .
A sexta e ainda m ais radical doença é aquela que in feccio-
na a existência humana. Já tivem os ocasião de dizer que, para
C oélet, o hom em se define por uma “bestialidade” profunda, não
só pelo seu com portam ento, m as também pela sua estrutura co n s­
titutiva; quando D eus retira a respiração, isto é, seu ato criador e
princípio vital, o hom em sucum be ao pó com o o animal, e C oélet
não vê espaços para um a ultravida lum inosa (E cl 3,18-21; 12,7).
É em um a de suas páginas m ais grandiosas, do ponto de vista
p oético, que C oélet retrata sua visão da existên cia humana, fo ca li­
zando-a da perspectiva do crepúsculo, ou seja, da velhice. É o
últim o canto do livro (Ecl 11,7-12,8), de tonalidade lírica e m e­
lancólica, construído em díptico, de m odo a contrastar a lum inosi­
dade da juventude e o encanto dos “cabelos escuros” com a tétrica
visão do hom em senil, entrado nos anos “horríveis e tenebrosos"
do ocaso da vida. É uma esp écie de “adeus à vida”, desvelada,
justam ente na velh ice, em sua verdadeira realidade de fragilidade
e inconsistência. D eix em o s entre parênteses o quadro contrastivo
da efêm era e bela juventude, que é som ente “um sopro” (Ecl
11,7-10), nos concentrem os em outro quadro, que representa a
velh ice e a morte sob o signo do crepúsculo e da desintegração.

D o inverno em um c a ste lo em ruínas

C om eça -se c o m um a cena in vem al, de par com um apelo


sapiencial para que o hom em “recorde-se do Criador” nos dias
da juventude: todavia, em hebraico, “Criador” soa co m o “seu
túm ulo” ! A cor predom inante é o preto da obscuridade de um
céu sem luz: “L em b re-se do seu Criador, nos dias da m ocidade,
antes que venham o s dias tristes e ch eg u em o s anos em que v o cê
dirá: ‘N ã o sinto m ais gosto para nada’; antes que se escureçam o
sol e a luz, a lua e as estrelas, e antes que voltem as nuvens
d ep ois da ch u v a ” (E cl 12,1-2). U m páü o de trevas recobre tem ­
po e espaço; é a im agem de um inverno sem fim , em que o sol
nunca se levanta; são dias de apatia e de tédio. O inverno, aliás,
é a verdadeira estação do hom em , aquela que m elhor d efin e seu
estatuto existen cial.
Ora, com o na G ita a l Faro, de W o o lf, C oélet nos con d u z a
um castelo em ruínas. À porta, deparam os com seus guardiães:
são velh os trêm ulos, incapazes de deter-nos. Transpostos os por­
tões, eis-n os diante dos “hom ens fortes”, isto é, a polícia particu­
lar, os guarda-costas, m as estes só nos causam com paixão, de tão
decrépitos e alquebrados que são, Estam os agora no saguão do
palácio. A s últim as m ulheres que devem triturar o trigo para o
pão estão velhas e fracas dem ais para fazer girar o pesado m o i­
nho. O olhar se ergue para os gradis das janelas, em uso ainda
hoje, nos palácios árabes, para proteger do calor e dos raios do
sol: não con segu im os entrever, do outro lado, o brilho dos olhos
fem ininos. M ais insuportável ainda é o silên cio que nos en volve
em um a fix id ez atemporal. Parece que até os pássaros fugiram:
seus trinados, aliás, não seriam ouvidos pelo s vetustos habitantes
do palácio. Tam bém as canções (em hebraico, são “as filhas do
canto” !), com suas m elodias e seus ritm os, se enfraqueceram , ou
em udeceram , porque os anciãos não gostam de cantar nem pre­
zam a com panhia da m úsica, sinais de alegria e de juventude
despreocupada. L eiam os a estrofe do Eclesiastes: “N aquele dia,
os guardiães da casa tremerão e os hom ens fortes se curvarão; as
m ulheres, um a a uma, pararão de moer, e cairá a escuridão sobre
aquelas que olham pelas janelas; a porta da rua se fechará e
dim inuirá o barulho do m oinho; acordar-se-á com o canto dos
passarinhos, e todas as can ções em udecerão” (E cl 12,3-4).
A cena, neste ponto, m uda. S om os con du zidos aos pro­
m ontórios que circundam o castelo no cam po, através de vielas,
em m eio à vegetação. O velh o tem e as alturas porque é su scetí­
vel a vertigens. M as tem m edo tam bém das estradas que levam
às colin as porque lhe provocam falta de ar. A li está um a am en­
doeira, a prim eira a florir na primavera; a candura de sua coroa
de flores ev o ca agora as cãs do v elh o que a contem pla. O olhar
pousa agora sobre um prado: e is um gafanhoto irrequieto, cuja
presença não faz pensar se não na agilidade perdida do velho,
agora pesado e lento, Eis, m ais adiante, um a alcaparreira, cujo
fruto foi, celebrado por Plutarco com o condim ento excitante e
d igestivo. T alv ez a alcaparra seja citada nesta passagem de C oélet
tam bém por suas propriedades afrodisíacas, agora inócuas para o
velho, cujo apetite gastronôm ico e sexual não responde m ais a
nenhum estím u lo. A cena vai se esfum ando cada v e z m ais em
alegoria da v elh ice. A s palavras do E clesiastes acabam no sa­
guão do ca stelo , de onde haviam partido: ali já estão a postos as
carpideiras, as m ercenárias que prantearão nos funerais já prepa­
rados para o velh o, a cam inho do túm ulo, a m orada eterna,
quando se ficar co m m edo das alturas, e se levar sustos pelo
cam inho. Quando a am endoeira estiver em flor, o gafanhoto
ficar pesado, e o tem pero perder o sabor: é porque o hom em já
está a cam inho de sua morada eterna, e os que choram a sua
m orte, já com eçam a rondar p ela rua” (Ecl 12,5).
O tem a da m orte dom ina a últim a estrofe, coberta por um
véu funerário. A s im agens são secas, ev o can d o objetos que se
trincam, se quebram, se estilhaçam , se arrebentam. Quatro são
os sím b olos usados. Inicia-se com um fio de prata que se rom pe
(das Parcas?). N o fio está pendurada um a esfera de ouro, um a
bola dourada, talvez um a lâm pada ou um vaso para banquete (a
“cratera” grega): esta lâm pada-taça quebra-se ao cair no chão,
porque agora a festa acabou. A parece um a bilha de recolher
água: colo ca d a na borda de um a fonte borbulhante, é atingida
por um pé e cai, partindo-se em m il pedaços. A im agem final é
um poço, sinal ev o ca tiv o da morte no antigo O riente Próxim o;
amarrada ao p o ço está a roldana, introduzida na P alestina exata­
m ente no sécu lo III a.C. (elem ento sig n ifica tiv o para a datação
do E clesia stes). T am bém esta se rom pe, deixando a água fora de
alcance; a ligação com a vida é cortada. A gora a m orte está
diante do velho, que encarna a situação de toda a hum anidade,
fadada a morrer; ele volta ao pó de que fora plasm ado, enquanto
D eu s retira o sopro vital da sua criatura (Gn 2,7). E is as palavras
de C oélet: “O fio de prata se romperá, e a taça de ouro se partirá,
o jarro se quebrará na fonte e a roldana se arrebentará no poço.
Então 0 pó voltará para a terra de onde v eio, e o sopro vital
retom ará para D eu s que o conced eu ” (E cl 12,6-7).
U m a observação geral a propósito do canto final do E c le ­
siastes; por trás do castelo em ruínas há um a evidente alusão à
fisio lo g ia do velho. O corpo — co m o sabem os — é para o
sem ita, expressão da existên cia em sua totalidade. Os “guardiães
da casa” são o s braços, os “hom ens fortes”, as pernas, as “m ó s”,
os dentes, as m ulheres que olham pelas janelas, os olhos, a c e s ­
sação dos rum ores refere-se à surdez do ouvido, e a ssim por
diante. M as isso fica nas entrelinhas, em um a tênue alusão.
Seja com o for, avulta, acim a de tudo, o m ote de C oélet,
verdadeiro brasão de abertura e selo de encerramento de seu livro:
“ó suprema fugacidade”, diz ele, “tudo é fu gaz!” {havei havalím ...
hakkol h a vei [1,2 e 12,8]). N um m undo de aparências, de questio­
nam entos e redundâncias, a única certeza é a morte, que ilum ina,
um pouco turvamente, o sentido do existir hum ano. Com preende-
se, então, a horrorosa declaração que C oélet faz em 6,3-5: “Ga­
ranto que o aborto é mais feliz. D e fato, o aborto veio inutilm ente
e se foi para as trevas, e as trevas sepultaram o seu nom e. N ão viu
o sol nem o conheceu, mas sua sorte é sem pre m elhor”.

“D eu s e stá no céu e v o c ê e stá na te rra ”

C hegam os assim à últim a — para o hom em bíb lico — e


m ais grave doença, a da teologia. O D eus do E clesiastes é verda­
deiram ente um D eu s absconditus: “A im ensid ão de D eus nada
tem, para C oélet, de exultante; m aravilhosa em si, tom a-se pura
im penetrabilidade” (Horst S eebass). Os bons m otivos que Deus
— cham ado 3 2 v ezes em 4 0 de h a - ’elohim , isto é, “o D eu s”, de
m odo frio e distante — p o ssa ter não nos afetam porque nos são
desconhecid os. Sua obra com porta um a incom preensibilidade tal
que anula qualquer questionam ento, e tom a irrelevante não só a
contestação, mas também toda tentativa de decifração. S ign ifica­
tiva é a única declaração estritam ente religiosa de C o élet (4,17-
5.6) sobre o culto e seus votos; “Quando v o c ê falar com D eus,
não seja precipitado, e seu coração não se apresse em falar, por­
que D eu s está no céu e você está na terra! Por isso , fale p ou co!”
(Ecl 5,1). O hom em “não pode com bater com quem é m ais forte
do que e le ” (E cl 6 ,1 0 ) e d ev e resignar-se. “C om o v o c ê ignora o
cam inho por onde o sopro vital entra nos o sso s, dentro do ventre
da m ulher grávida, assim tam bém ignora a obra de D eu s, que fez
todas as c o isa s” (Ecl 11,5). D iante de tal visão, todo d iálogo com
D eus ou é podado ou se reduz a “poucas palavras”.
C o m o p odem os, a esta altura, definir C o élet c o m o “pala­
vra de D e u s ”? Ou ainda, co m o procedeu o cânone das Escrituras
hebraicas e, portanto, a com unidade judaico-cristã, para acolher
no seu m eio um texto tão “e sca n d a lo so ”? D ecerto, a interpreta­
ção “ascética ”, que viu na obra um apelo ao d esa p ego das c o i­
sas, ajudou a inserção de C o élet nas Escrituras, ou, p elo m enos,
serviu para refrear-lhe o teor provocador, com o, aliás, aparece já
n o ep flogo do redator fínal, que reduz o ensinam ento do E cle-
siastes à dogm ática sabedoria clássica: “T em a a D eu s e observe
seus m andam entos, porque e sse é o dever de todo hom em . D eus
julgará toda obra, até m esm o a que estiver escondida, seja boa,
seja m á” (E cl 12,1 3 -1 4 ). O s rabinos, para “ju stificar” C oélet,
recorreram, posteriorm ente, aos seus apelos ao g o z o das alegrias
lícitas, ou a curiosos argum entos lexicais: a prim eira e a últim a
palavra do livro (respectivam ente: d ib rê, “palavras”, e r a ' , “per­
verso, m au”) encontram -se na Torá, isto é, na L ei! N a realidade,
há ura m eio de com preender co m o esta teologia, tão crua e
pobre, pode, a justo título, integrar e com patibilizar-se com a
“revelaçã o ” bíblica, sem o recurso a retificações herm enêuticas
que tom am o texto in o fen siv o e “ortodoxo” .
V im o s que, para a B íblia, a palavra d ivin a en cam a-se e
exp rim e-se através da história e da existência. Por isso, ela assu ­
m e roupagens hum ildes, podendo tornar-se interpelação, súplica
(S alm os), e até im precação (Jó) e dúvida (E clesiastes). Q uer-se
afirmar co m isso , que, na própria crise do h o m em e no silên cio
de D eu s, pode ocultar-se um a palavra, um a presença, um a secre­
ta epifania divina. O terreno hum ano da interpelação amargura­
da, co m o aquela de Jó, p o d e ser m isteriosam ente fecundado por
D eu s. A revelação, portanto, pode filtrar-se através da obscuri­
dade de um hom em com o C oélet, desencantado e em crise inte­
lectual, agora p róxim o da fronteira do silên cio e da negação. O
silên cio de D eus e da vida não é, para a B íb lia, necessariam ente
um a m aldição, m as um a paradoxal o casião de encontro ao lo n g o
de cam inhos inéditos e surpreendentes. O E clesiastes é, portan­
to, o testem unho de um D eus pobre e próxim o a nós, não em
virtude de sua onipotência, mas de sua “encarnação”, e é nesta
fraternidade que e le salva e se revela.
A palavra “inspirada” do E clesia stes d eve, enfim , ser in ­
terpretada à luz da concepção gerai da história de tipo retilíneo-
m essiân ico que a B íb lia oferece e que C oélet rejeita, propondo
sua visão cíclica (E cl 3). A linearidade é apenas teológica, isto é,
opera no pano de fundo da história, em n ív el transcendente. O
d esen volv im en to histórico é, ao contrário, sinusoidal, sujeito a
interrupções e trajetórias tortuosas, a etapas lentas de atualiza­
ç õ es e n egações. C oélet, con vencid o de que “o que aconteceu,
de novo acontecerá; e o que se fez, de n o v o sera feito ” (E cl 1,9),
confirm a, co m sua con cep ção, exatam ente este realism o históri­
co dentro do qual D eu s opera. M as, co m seus questionam entos
radicais, tom a-se tam bém um apelo à superação, a um a resposta
con clu siv a e não evasiva. E é o que oferece a revelação bíblica,
m ostrando a C o élet e aos seus m uitos irm ãos a possibilidad e de
transcendência da repetição, m esm o porque — com o a ele se
dirigia D avid Turoldo, na sua narrativa p oética N e l segn o d e i tau
— “... ó, C oélet: / nunca a m esm a onda volta / ao mar, e nunca /
a m esm a luz se levanta sobre a rosa; / nem raia um a m anhã / em
que v o cê já / não seja outro!” E, de fato, lo g o d epois do E cle-
siastes, a B íblia, traz o C ântico dos C ânticos.
Os dias da ira

F e s te je m -lh e a glória os h a síd ím , / e, em filas, cantem


ju b ilo so s. / C om exaltações a D eus na garganta, / e nas m ãos
espadas de d ois gum es, / para tom ar vingan ça dos p ovos, / e
aplicar o castigo às nações, / para prender seus reis com a lg e­
m as, / e seus nobres com grilhões de ferro. / Cumprir n eles a
sentença prescrita / é um a honra para todos os h a síd im \” A ssim ,
na base da “cruz em um a m ão e a espada na outra” do C h an t du
p é le rin a g e d ’H a ro ld , d e A lp hon se Lam artine, avançam , cantan­
do, os h asídim , isto é, “os p ios, os fié is ” hebreus, durante a
rebelião contra o rei h elenista da Síria, A n tíoco IV E pífanes,
rebelião urdida pelo s m acabeus, entre os quais se destacava Ju­
das (segu id o pelo s irm ãos Jônatas e S im ão), cujos feitos são
exaltados, retórica e epicam ente, nos dois livros deuterocanôni-
cos gregos dos M acabeus. “N aqueles dias” — lê-se no prim eiro
dos livros — “aos m acabeus uniu -se o grupo dos assideus [isto
é, os h asídím ], que eram israelitas fortes, corajosos e fié is à L e i”
(I M c 2,42). O canto que citam os é reportado no Salm o 149, que
fo i, provavelm ente, o hino de batalha e de fé d esses com batentes
do sécu lo II a.C. pela liberdade religiosa e p olítica de Israel.

A h em -aven tu ra n ça d o o p re sso r

A presentados com o sacerdotes da guerra santa, os hasidim


são os herdeiros de uma sagrada v io lên cia que perpassa não p o u ­
cas páginas do A ntigo Testam ento e, que criou muitas dificu ld a­
des, não só para as belas almas, mas tam bém para a própria tradi­
ção teológica cristã, às v ezes “hereticam ente” tentada (pensem os
em M ani e em M arcione) a colocar todo o A ntigo Testamento sob
a égid e de um D eu s negativo e violen to, dualisticam ente oposto
ao D eus cristão do amor. Os santos m ilitares cantam hinos “em
seus leito s” nas noites que antecedem as batalhas. E, de manhã,
ei-los com os cantos de Israel na boca e, nas m ãos, a mortífera
espada de dois gum es. Os cavaleiros de Sião lançam -se na peleja
im placáveis, desencadeando represáhas, acorrentando reis e g en e ­
rais, convencidos do apoio de D eus, co m o exeqüentes de sua
“sentença já prescrita” . M as em sua v o z parece ecoar um outro
grito, 0 dos hebreus exilados há quase quatro séculos, antes de
lançarem contra o opressor babilônico esta beatitude sarcástica do
massacrador: “Ó devastadora capital de B abilônia, / feliz quem
lhe devolver o m al que v o cê nos fez! / F eliz quem agarrar e
esm agar seus nenês contra o rochedo!” (SI 137,8-9). A furiosa
im precação, form ulada segundo a lei de talião, ev oca uma trucu­
lenta praxe oriental das conquistas militares: o esfacelam ento de
crianças contra os rochedos e a extirpação de m ulheres grávidas
pretendiam provocar, sim bólica e concretam ente, o exterm ínio de
um p ovo em suas próprias raízes.
R em ontando o rio da história bíblica, p o d em os chegar até
a conquista da terra prom etida, acom panhada por u m cortejo de
sagradas atrocidades: “Josué ordenou ao p ovo: ‘Gritem , porque
o Senhor entregou Jerico a v o cês. A cidade, co m tudo o que nela
existe, será consagrada ao exterm ínio em honra do Senhor...
Quanto a v o cês, cuidado c o m as coisa s consagradas ao exterm í­
nio; não pegu em aquilo que v o cês consagraram ao exterm ínio.
Isso faria o acam pam ento de Israel se tom ar consagrado ao e x ­
term ín io...’ Consagraram ao exterm ínio tudo o que havia na c i­
dade: hom en s e m ulheres, jo v e n s e velh o s, vacas, ovelh as e
burros; passaram tudo ao fio da espada”. E co a na narrativa do
livro de Josué (6 ,1 6 -1 8 .2 1 ), quase com o um lúgubre refrão, a
expressão “consagrar ao exterm ínio”, baseada no v ocáb u lo herem
(presente tam bém no árabe h a rem , usado por n ó s), que por si só
in d ica um a realidade intangível, porque de propriedade divina
ou superior, e, por extensão, um a realidade a ser sacrificada, a
ser con su m id a totalm ente em um h olocausto oferecid o ao le g íti­
m o proprietário, D eus, o condutor na guerra santa.
O refrão ritma o ataque contra a cidade de Hai: “Josué não
retirou a m ão co m que h a v ia estendido a lança, enquanto não
foram consagrados ao exterm ínio todos os habitantes de H ai”
(Js 8,2 6 ). E assinala a cam panha contra as cidad es m eridionais
de Canaã, sem pre por o ca siã o da conquista da terra prometida;
“Josué tom ou M aceda, passou os habitantes ao fio da espada,
consagrando ao exterm ínio o rei e todas as p esso as que nela se
encontravam . N ão d eixou nenhum sob reviven te.” (Js 1 0 ,28-30).
A litania prossegu e pelas cidades de Laquis, E glon, Hebron,
D abir e por todo o N eg u eb , sendo selada por um a conclusão
im pressionante: “Josué não deixou nenhum sobrevivente, m as
consagrou ao exterm ínio todo ser v iv o , co m o Javé, o D eu s de
Israel, havia ordenado” (Js 10,40). É realm ente terrível essa or­
dem de D eu s, um D eu s que chega para o leitor a condenar a
com p aixão hum ana para c o m o prisioneiro indefeso: é em seu
n om e que o profeta S am u el lança um a m aldição contra o rei
Saul, que havia poupado A g a g , rei dos am alecitas, e conservado
um a parte dos butins de guerra (I S m 15). Em bora o h erem vá
desaparecer progressivam ente, a em baraçosa figura do D eu s guer­
reiro e vingador im p lacável, presente em não poucas páginas,
constitui um estorvo da B íblia.
E sse estorvo im pediu que os ca tó lico s, depois do C on cilio
V aticano II, adotassem , na liturgia os cham ados “salm os de im -
precação”, carregados de in vectivas e fulm inações: “Ó D eu s,
quebra-lhes os dentes na boca! / Senhor, arranca as presas d esses
leõezin h os! / Q ue se diluam co m o água escorrendo! / ... / Sejam
co m o lesm a, que se derrete ao cam inhar, / co m o aborto, que não
ch ega a ver o sol! / A n tes que brotem , co m o espinhos no esp i-
nheiro, / verdes ou se c o s, que o furacão os carregue! / Q ue o
justo se alegre ao ver a vingança, / e lave seus pés no sangue do
injusto!” (cf. SI 5 8 ,7 -11 ; ver tam bém SI 109). U m estorvo que
e v o ca certos fantasm as, com o, por ex em p lo , o “G ott m it u n s”
dos nazistas, quando se lê o arcaico grito de guerra dos hebreus,
registrado no livro do êxodo: “Jhwh é o n o sso estandarte de
guerra!” (E x 17,1 5 ). U m estorvo que se m antém quando o leitor
v ê, na B íblia, D eu s repetidam ente retratado com o um com an ­
dante suprem o, um “Senhor poderoso [ou general] em batalha”,
en volto num a armadura in v en cív el (E x 15,3), enquanto arrem es­
sa granizo e raios contra os in im ig o s de Israel (Js 1 0 ,1 0 -1 1 ),
suscitando p ân ico nas hastes adversárias (E x 2 3 ,2 7 -2 8 ). O c o ­
m ando estratégico das guerras de Israel é, de fato, con fiad o a
Jhwh, presente em seu trono m óvel, a arca da aliança, con d u zid o
nos cam pos de batalha quase co m o um paládio de vitória (IS m
4,7; 2S m 11,11). Os soldados tom am -se sacerdotes de um ritual
sanguinário: antes da guerra, d evem ser “san tificados”, isto é,
purificados e consagrados. E m sum a, a guerra em Israel — o
m esm o acontecerá dep ois com a jih a d m uçulm ana — pode ser
santa, e as guerras de Israel podem tom ar-se “as guerras de
Jhw h”, co m o freqüentem ente se afirm a (E x 17,16; N m 21,14;
ISm 25,28).
D iante d esse quadro, incom pleto m as suficiente, com o ju s­
tificar que tanta carnificina, tanta traculência sagrada faça parte
de um livro sacro, tido p elos fiéis com o inspirado por D eus e
com o “lâm pada para seus p a sso s” no cam inho da vida? M uitas
ju stificaçõ es das guerras de religião foram baseadas em tais pas­
sagens, e os leitores fundam entalistas da B íb lia d evem ou aban­
donar sua interpretação “literal”, ou prazerosam ente se dedicar à
dizim ação do in im igo infiel, co isa que não raro fazem , lim itando-
se hoje, porém , à v io lên cia verbal. N a realidade, essas páginas
m erecem um a interpretação correta que não os “despregam entos”
da própria historicidade, nem as canon izações automáticas em
seu teor im ediato. O principal m eio para com preender esses tex ­
tos m arciais e b elicosos é, m ais um a vez, a constante considera­
ção da qualidade estrutural e essen cia l da revelação bíblica; ela é
histórica por excelên cia, isto é, inserida na árdua e atormentada
contingên cia humana. N ão é um a palavra que paira no ar, com u ­
nicável apenas estaticam ente, m as antes um germ e que abre pas­
sagem sob o solo bruto e opaco da existên cia terrena. A B íblia se
co lo ca com o história progressiva de um a revelação de D eus e
revelação progressiva do sentido de nossa história, aparentem en­
te insensata ou pelo m enos co n v u lsiv a e confusa.

Um a a p o lo g ia d o an átem a

N esta econ om ia geral da Escritura, as páginas violentas


são a representação de um D eu s paradoxalm ente paciente que,
adaptando-se à bm talidade e à finitude do hom em , procura co n ­
d uzi-lo para um outro horizonte. É por este m o tiv o que, com o já
indicam os, ao lado do herem , se encontram exp ressões de c o m ­
paixão, de am or e de acolhida ao estrangeiro, que d eixam entre-
ver u m certo universalism o e um ideal de tolerância: “Tu, deten­
tor da força, ju lgas c o m brandura. G o v em a -n o s co m m uita in ­
d ulgência... C om tal m odo de agir, tu ensinaste ao teu p ovo, que
0 ju sto d eve amar os h o m en s” (Sb 1 2 ,1 8 -1 9 ). N o livro do D eute-
ronôm io (capítulo 20 ), tam bém se tentará “secularizar” a guerra
santa, delim itando-se seu âm bito político; posteriorm ente, pare­
ce que surge em Israel um a m ilícia p rofissional, de m odo a
separar cada v ez m ais a fé e as questões p olítico-m ilitares, esva-
ziando-as de co n otações sagradas. N ão p od em os, por outro lado,
ignorar um dado à prim eira vista in significan te, m as útil para um
correto redim ensionam ento do fen ôm eno b élico sacral. E screvia
0 ex egeta am ericano John L. M cK en zie, em seu D icio n á rio b í­
b lico: “Os leitores m odernos consideram a con cep ção hebraica
da guerra santa co m o um gênero prim itivo de m oralidade: é
verdade, mas tam bém é verdade que tal con cep ção não era m ui­
to m ais prim itiva do que a atual co n cep ção da guerra” .
Exatam ente porque jungidas a coordenadas históricas bem
precisas e a um a situação sociocultural circunscrita, essas v io ­
lentas páginas não d evem ser assum idas sim plistam ente em sua
roupagem sim bólica, m as “dem itizadas”, para que se isolem al­
guns valores considerados fundam entais para Israel. P en sem os,
por exem p lo, no constante d esv elo em salvaguardar a pureza da
fé e a própria identidade religiosa. N um a religiosidade sim b ó li­
ca, a preocupação principal em salvar qualquer co isa da destrui­
ção m ilitar não estava ligada a m otivos hum anitários, nem a
interesses eco n ô m ico s im ediatos, m as antes a razões que a B í­
blia considera de luta contra a idolatria. Conquistar os íd olos do
p ovo ven cid o sign ificava alargar a própria esfera de proteção
divina e enriquecer o panteão do deus nacional. É por isso que
se pede a destruição sacrifical dos desp ojos de guerra: “R eúna
todos os despojos no m eio da praça e queim e a cidade e os
despojos para o Senhor seu D eu s” (D t 13,17). O “anátem a” , ou
herein, é co m o um grande h olocausto oferecid o a quem guiou
Israel na vitória: tudo d eve ser con su m ido p elo fogo, e quem
subtrai qualquer co isa por idolatria ou e g o ísm o com ete sacrilé­
gio. D ecerto, não d eixa de ser um procedim ento prim itivo e
superável para educar a autenticidade e a pureza religiosa, mas
e le surge, se d e se n v o lv e e se ex p lica no âm bito de um a m en tali­
dade habituada à concretude, ao m undo d os sím bolos, própria de
um a determ inada socied ade e cultura.
Esta m entalidade b em definida exp rim e-se, entre outras
co isas, através de um a lingu agem que prim a p elo e x c esso , pela
exasperação dos tons, pelas cores vividas, p elo u so de im agens
barrocas ou surreais. O pitoresco repertório de im precações do
S alm o 58 ou do 109 rem ete e se tom a co m p reen sível no co n tex ­
to de um a p sico lin g ü ística que preza o realce, a in cisividade, o
im pressionism o. N a base de um a estrutura cultural com o essa o
m al d eve ser sem pre personificado em um adversário concreto,
m esm o que se trate de um a entidade social ou m etafísica. N o u ­
tros term os, o ódio ao m al e a ânsia de ju stiça se m anifestam
plenam ente, pelo ataque aos in im igos, representados com o seres
v iv o s e concretos, ou seja, personificados. Os salm os de im pre-
cação exprim em sua paixão p elo bem e seu alinham ento co m a
ju stiça através da investid a contra um mal personificado nos
“in im ig o s”, um a ex ig ên cia ditada tam bém p ela propensão sem í-
tica à concretude, e não à obstração. A própria con cep ção de
Jhwh co m o general suprem o, que oferece ao seu p ovo, quase
que num a bandeja, as cidades conquistadas, é um m odo sim b ó li­
c o de indicar-lhe a personalidade. D eu s não é um a energia c ó s­
m ica m isteriosa, não é um a entidade vaga ou um ser m ítico,
m as, para a B íblia, um a p esso a que age, que entra na história,
que faz alianças, atua, intervém , revelan do-se dotado de paixão e
vontade, de com preensão e amor. N o ssa ap ologia do anátem a ou
herem con d u z-n os, portanto, a um a im agem d ivin a p essoal, m o ­
ral, viva, m esm o que o m étodo adotado para d elen eá-la seja
oblíquo e alheio à n ossa sensibilidade. É n essa im agem divina
que deverem os agora centrar n o sso interesse, neste e no capítulo
seguinte, segundo duas perspectivas opostas.

A í p a ix õ e s d e D eu s

“O nde estão as flechas que tu lanças, ó grande D eu s, em


tua ju sta ira? Já não és o D eu s cium ento? N ão és m ais o D eu s da
vingança?” E ste grito ressoa no ato IV da tragédia A ta lie , de
R acine (1 6 9 1 ). N o D ecá lo g o , a advertência do prim eiro m anda­
m ento a ssim se expressa: “N ã o se prostre diante d os íd olos e não
os sirva, porque eu, o Senhor, sou o seu D eu s, um D eu s ciu m en ­
to” (E x 2 0 ,5 ). ‘E l q a n n a ’, “D eu s cium ento” , é u m título que
ressoa solenem ente tam bém no co m eço do segundo D ecá lo g o , o
da renovação da aliança no Sinai, dep ois do ep isód io delituoso
d o bezerro de ouro: “N ã o se prostre diante d e outro deus, porque
o Senhor se cham a C ium ento: ele é um D eu s cium ento” (Ex
3 4 ,1 4 ). Q a n n a ’ to m a -se quase um dos n om es próprios do D eu s
de Israel. A o ciúm e se a sso cia a im agem do fo g o devorador: “O
Senhor seu D eu s é um fo g o devorador. E le é um D eu s cium en­
to” (D t 4 ,2 4 ). O “ciú m e” do Senhor age contra a injustiça e em
d efesa da paz (Is 9,6); salva um “resto” de hebreus fiéis que
saem incólu m es da turbulência da história (Is 37 ,3 2); é um ciú ­
m e ardente, com con o ta çõ es m arciais (Is 4 2 ,1 3 ), e que, parado­
xalm ente, só aterroriza Israel quando se esv a i (Is 6 3 ,1 5 ), pois
queim a o s in im igos (Z c 1,15). A m ais b ela representação d essa
paixão divina, considerada por Isaías co m o o m anto nobre de
D eu s (5 9 ,1 7 ), encontra-se na declaração do Senhor dos exércitos
registrada p elo profeta Zacarias: “T enho m uito ciúm e de Sião;
estou fervendo de ciú m es por sua causa” (Z c 8,2).
O que sig n ifica concretam ente este antropom orfism o? O
ponto de partida é fácil de ser identificado, se for verdade, com o
escreveu o antropólogo Peter V an Som m ers, no ensaio L a g e lo ­
sia [“O ciú m e”] (1 9 9 1 ), que é “extrem am ente d ifícil, se não de
todo im p o ssív el, encontrar um a socied ad e na qual o ciú m e não
ex ista ”. N a B íblia, o m otivo aparece m uitas v e z e s e é correlato à
experiência nupcial: “O ciúm e provoca a raiva do m arido” (Pr
6,3 4 ), enquanto, no C ântico dos C ânticos, se recorda que “o
ciú m e é inexorável co m o a m orte” (Ct 8,6), e no capítulo 5 dos
N úm eros encontra-se um fo lcló rico “ordálio do ciú m e”, um a
esp écie de verificação fisio ló g ico -sa cra l de u m adultério não pro­
vado docum entalm ente. M as, considerando o contexto socio cu l-
tural de Israel, em que a m ulher era, antes de tudo, um bem de
propriedade do m arido, que a adquiria m ediante um m oh ar, isto
é, um “dote”, p assa-se do con ceito d e am or violado ao de p o sse
alienada. O francês B em ard Renaud, q ue em 1963 publicou, em
Paris, um estudo de título em blem ático, Je su is un D ieu ja lo u x ,
recorda que “este tem a, sem pre recorrente na p olêm ica contra os
íd olos, não im p lica apenas a dim ensão nupcial, m as sobretudo a
reivindicação de p o sse que Jhwh faz a Israel, sua “propriedade”,
não tolerando que seja alienada... P ositivam ente, o ciú m e traduz
a segurança total do fie l” .
C om efeito , já nas prelim inares à grande teofania d o S inai,
D eus proclam a Israel sua “propriedade entre todos os p o v o s”
(E x 19,5); em hebraico, u tiliza -se o vocábu lo seg u lla h , que indi­
ca 0 rebanho de propriedade direta do pastor, e não a ele co n fia ­
do por um outro, sob gestão. Justam ente, são Jerônim o, na V u l-
gata, traduz p ecu liu m , rem etendo a p e c u s, “rebanho” . O íd olo
subtrai este tesouro a D eu s, suscitando-lhe a ira candente, isto é,
o ciú m e ardente: “E les lhe provocaram o ciú m e c o m d eu ses
estranhos... E les provocaram m eu ciú m e com u m deus falso, e
m e irritaram c o m seus íd olos va zio s... C om seus ídolos o en ciu ­
m avam. D eu s ouviu e ficou enfurecido...” (D t 3 2,16.21; SI 78,58).
V em o s em ergir, assim , em co n exão com o ciú m e, um a outra
p aixão de D eu s, a indignação, a ira, que em hebraico é m uitas
v ezes exp ressa por um vocáb u lo onom atopaico, ‘af, que tem a
ver co m “narinas” e “b u fo” . Por isso, é acom panhado de im a­
gen s de tem pestades c o m raios e vento: “O lhem : o Senhor em
p esso a v em de longe! Sua ira é ardente e seu furor é intolerável.
Seus lábios estão ch eios de indignação e sua língua é fo g o abra­
sador. Seu sopro é co m o o rio na enchente, que sobe até o
p esco ço ... O Senhor fará ouvir sua v o z m ajestosa e mostrará seu
braço que golp eia com ira ardente em m eio a um fo g o abrasador,
raios, tem pestade c chuva de pedras” (Is 3 0 ,2 7 -2 8 .3 0 ). A m etá­
fora do “fervor da ira” d ivina é freqüente (N m 12,9; 2S m 24,1).
Outras vezes, recorre-se a um sím bolo su gestivo, o do cá li­
c e da ira; “N a m ão do Senhor existe uma taça, / co m vinho espu­
m ando, ch eio de mistura. / E le o derrama, e eles o sugarão até o
fim , / todos os injustos da terra o beberão” (SI 7 5,9). A taça da ira
divina esta cheia de vinho que hipnotiza, entorpece, embriaga,
nauseia, provoca delírios, atordoa e en ceguece, descontrola e der­
ruba. É um a taça derramada nos lábios de todos os ím pios, cujo
conteúdo d eve ser sorvido até a últim a gota, porque o ju ízo divino
é im placável, eficaz e total. Tam bém o profeta Jerem ias retoma a
m esm a im agem , aplicando-a às potências da terra: “P egue da m i­
nha m ão esta taça de vinho da minha ira e faça que bebam dela
todas as nações... Elas beberão, ficarão embriagadas e perderão o
ju ízo diante da espada que eu mandarei para o m eio delas” (Jr
25 ,1 5 -1 6 ). A cólera divina, portanto, é o sinal do ju ízo contra o
mal, a opressão, a injustiça. A esta paixão do D eu s de Israel
associa-se outra, igualm ente ardorosa: a vingança.
o Salm o 9 4 abre-se co m um grito: “Jhwh, D eu s das vin ­
ganças! / A parece, ó D eu s das vingan ças!”, um grito que escan ­
daliza m uitos tradutores, que preferem atenuá-lo com um “D eu s
que faz justiça. Senhor, D eu s que faz ju stiça ”. M as Jerem ias não
adm ite subterfúgios: “É hoje o dia do Senhor Jhwh dos exérci­
tos: dia de vingança, para vingar-se dos seus in im igos. A espada
devora, fica saciada e se em briaga de san gu e” (Jr 4 6 ,1 0 ). O
canto da espada vingadora de D eu s tom a-se frenético em E ze-
quiel: “Espada, espada afiada e polida! A fiada para matar de
verdade, e falida, tam bém para brilhar... Ela fo i bem polida,
pronta para ser em punhada. E le afiou a espada e tam bém a p o ­
liu, para co lo cá -la na m ão de alguém disp osto a matar... Q ue a
espada se duplique e se triphque; é a espada que m assacra...”
(E z 2 1 ,1 4 -1 6 .1 9 ). U m canto que se tom a tm cu len to tam bém em
Isaías: “A espada de Jhwh ficou em briagada no céu... A espada
do Senhor está pingado sangue, está banhada de gordura... A
terra se em papa de sangue, o chão está banhado de gordura: esse
é um dia de vingança para o Senhor!” (Is 3 4 ,5 -8 ). N a realidade,
para além das im agens exasperadas, típicas do estilo sem ita, a
d elegação da vingança a D eus já é por si só um a interdição ao
livre curso da vingança humana.
Há, todavia, um a outra referência, de caráter jurídico: na
socied ad e hebraica, com o já tivem os ocasião de recordar, ex iste
a figura do g o ’el, o “vingador”, aquele que tem o dever de
restabelecer a ju stiça violada, vingando os crim es perpetrados
contra o próprio clã. É um encargo que com pete ao parente m ais
próxim o. Ora, no êxod o. D eu s reconhecera oficialm ente Israel
com o seu “filh o prim ogênito” (Ex 4 ,2 2 ). É natural, portanto, que
Jhwh seja in vocad o com o g o ’el, co m o vingador, dos ju sto s hu­
m ilhados e d os fracos oprim idos, porque e les são seu p o v o , sua
fam ília. N o S alm o 6 8 ,6 , ele é invocad o co m o “pai dos órfãos e
defensor das v iú v a s”, e em Isaías ele se dirige ao seu p o v o nos
seguintes term os: “N ão tenha m edo, verm ezinho Jacó, bichinho
Israel. Eu m esm o o ajudarei... Seu g o ’el é o Santo de Israel!” (Is
4 1 ,1 4 ). E ste título d ivin o é caro ao S egu n d o Isaías, que o repete
constantem ente nas introduções aos seus oráculos de esperança:
“A ssim diz o Senhor, seu g o ’e l ..r (Is 43,1 4 ; 44,6.24; 47,4; 4 8 ,17).
E o suplicante do Salm o 19 con clu i seu hino invocando o “S e ­
nhor, m inha rocha e m eu g o e /” (v. 15). E viden cia-se, assim ,
que a vingança divina está intim am ente ligada à justiça.
E a ju stiça é a suprem a paixão de D eu s. C iúm e, ira e
vingança não são senão diferentes facetas da m esm a e funda­
m ental qualidade m oral do D eu s de Israel. O suplicante se dirige
ao Senhor p edin do-lhe sobretudo que “faça ju stiça” (SI 26,1;
3 5,1) neste m undo tão deturpado e caótico. Os profetas procla­
m am constantem ente oráculos de ju stiça divina. B asta ler A m ós.
Isaías, naquela jó ia que é o canto da vinha (Is 5 ,1 -7 ), um poem a
centrado n esse sím bolo de Israel e perpassado pela desilu são que
D eu s sente ao perceber que sua vinha, conquanto bem cultivada,
só produz uvas azedas, para concluí-la, esc o lh e um verso que,
em hebraico, resum e a amargura de D eu s c o m um a aliteração
irrecuperável nas traduções, a não ser à custa de um a sim p lifica­
ção. O Senhor esperava de seu p o v o sed a q a h ( “ju stiça ”), e eis
que recebeu s e ’a q a h (“gritos das vítim as”), esperava m ish p a t
(“direito”), e eis que recebeu m ispah (“derram am ento de san­
gu e”). Poderíam os parafrasear assim : “E le esperava o direito, e
produziram injustiça; esperava justiça, e sobreveio a iniqüidade”
(Is 5,7). A paixão do Senhor é a justiça, m as em vão ele espera
vê-la brotar na terra. P ela ju stiça, ele se exaspera, se con som e,
brame, revelando-se co m o o D eus da moral. A grande esperança
para todos os justos é que desponte o dia no qual “brilhará o sol
da ju stiça que cura com seus raios. Os justos, então, poderão sair
pulando livres, com o saem os bezerros do curral” (M l 3,20).

O o rá c u lo na g a rg a n ta

O antropom orfism o — a representação da divindade em


traços hum anos — tem um a finalidade teo ló g ica bem precisa;
marcar a “personalidade” do D eu s bíblico. “Por isso , Jhwh é um
D eu s passional, um D eu s que con h ece os p ó lo s extrem os do
ódio e do amor, da ira e da ternura. Por isso, e le p o d e ser provo­
cado, instado a reagir, revelan d o-se co m o ser v iv o , e não com o
ídolo inerte, fabricado. M uitas v ezes, nos S alm os (co m o tam bém
em Jó, de m aneira bem acentuada e extrem a). D eu s é dem anda­
do, interpelado, instado a reagir. A lin gu agem é contundente:
“D esperta, Senhor! Por que dorm es? / Acorda! N ã o nos rejeites
m ais! / Por que escon des a tua fa ce? ” (SI 4 4 ,2 4 -2 5 ); “Por que, ó
D e u s, arder em ira con tra as o v e lh a s / do teu reb a n h o ? ”
(SI 74,1); “A té quando, Senhor, / ficarás irado? Para sem pre?”
(SI 79,5); “Senhor D eu s dos exércitos, / até quando ficarás irado
/ enquanto teu p o v o suplica?” (SI 80,5); “A té quando. Senhor, te
esconderás? / A té quando arderá o fo g o de tua cólera?” (SI 89,47);
“D eu s dos m eus louvores, não te c a le s!” (SI 1 09,1), e assim por
diante. U m a co isa é certa: “N o sso D eus vem , e não vai se calar. /
A sua frente, vem um fo g o devorador / e, ao seu redor, tem p es­
tade violen ta” (SI 50,3).
D eus, portanto, reage, não fica em silên cio , e sua palavra
é m uitas v ezes agressiva. Os profetas, em particular, têm co n s­
ciên cia de manejar um ferro quente que não pode deixar de
queim ar, para usar um a célebre expressão de B em an os em rela­
ção à palavra divina. Suas im agens são claras: a palavra de D eus
é ferina, dinâm ica, incisiva. D ecerto, às v e z e s é d oce co m o m el,
m as com porta um azedum e que arrepia. Jerem ias, que já d escre­
vera essa palavra co m o lava ardente que queim a os o sso s do
eleito (Jr 2 0 ,9 ), assim continua: “M inha palavra não é co m o
fo g o ? — oráculo do senhor — ou co m o um m artelo que tritura a
pedra?” (Jr 2 3 ,2 9 ). E ainda: “E is que farei que m inha palavra
seja um fo g o em sua boca, e este p o v o , a lenha que o m esm o
fo g o vai devorar” (Jr 5 ,1 4 ). Para Isaías, o profeta — n este caso o
Servo do Senhor — “tem na b oca um a espada afiada ...um a seta
pontiaguda” (Is 4 9 ,2 ). U m a palavra que se transforma em um
riso có sm ico que g ela os in im igos e os rebeldes: “A q u ele que
habita no céu ri, / O Senhor se diverte a custa d eles... / Tu,
Senhor, ris à custa d eles, e te divertes c o m todas as n a ç õ e s” (SI
2,4; SI 59,9).
A lém de Jerem ias, tam bém E zeq u iel, profeta dele con tem ­
porâneo e exila d o em B abilônia, atesta quão severa é a palavra
divina. E o faz sim bolicam ente, na segunda narração da sua
vocação (E z 2 ,3 -3 .1 1 ; a primeira, surreal e barroca, bem ao e sti­
lo do profeta, encontra-se no capítulo 1), um trecho escan d id o da
locu ção “filh o do h om em ”, com o qual é interpelado o profeta.
O texto é d ivid id o em três m om entos.
O prim eiro m om ento in icia -se c o m um anúncio da futura
m issão do profeta, m issão esp in h osa porque dedicada a “um
p ovo rebelde”. E les podem “escutar ou n ã o ”. D e qualquer m odo,
ficarão sabendo que existe um profeta aqui no m eio d ele s. Por
isso , “filho do hom em , não tenha m edo d eles, n em de suas pala­
vras. M esm o quando v o c ê ficar rodeado de esp inhos e se sentar
em cim a de esco rp iõ es, não fique co m m edo de suas palavras,
nem se assuste co m a cara d eles, porque são um a casa de rebel­
d e s...” (E z 2,3-7).
O segundo m om ento é central e revela que a consagração
profética é a aceitação vital e total da palavra divina, m esm o
quando ela parece terrível e amedrontadora: “F ilho do hom em ,
abra a boca e com a o que vou lhe dar. Então n otei que certa m ão
se estendia para m im co m um rolo de pergam inho. A m ão d e­
senrolou o pergam inho diante de mim: estava escrito por dentro
e por fora, e o que n ele estava escrito eram lam entações, g e m i­
dos e gritos de dor. E le m e disse: ‘F ilho do hom em , com a isso;
com a e sse rolo, e depois vá levar a m en sagem para a casa de
Israel’. Então eu abri a boca e e le m e deu o rolo para com er. E
continuou: ‘F ilh o do hom em , que seu estôm ago e sua barriga se
saciem co m este rolo escrito que estou lhe d an d o’. Eu com i e
pareceu d o ce com o o m e l” (E z 2,8-9; 3 ,1 -3 ). O rolo na garganta
do profeta: im agem forte para indicar que a palavra divina d eve
tom ar-se carne da própria carne de E zeq uiel. N ão é só ingestão,
mas tam bém digestão. A doçura é sinal de adesão total àquela
palavra. M as o sabor am argo não desaparece, co m o ensina um
admirador de E zequiel, o autor do A p o ca lip se neotestam entário:
“P egu ei da m ão do A njo o livrinho e o com i. N a b oca era d oce
com o m el, m as, quando o en g o li, m eu estôm ago virou puro
amargor” (A p 10,10).
O terceiro m om ento (E z 3 ,4 -9 ) sublinha a dureza de um a
vocação que será luta, ataque, tensão: “E is farei co m que seu
rosto fique duro com o o d eles, e a sua cabeça dura co m o a deles.
Eu farei que sua cabeça seja dura com o diam ante, que é m ais
duro do que pedra” (Ez 3 ,8 -9 ). A palavra divina quer sobressal­
tar, inquietar, até m esm o subverter, co m o fo i dito a Jerem ias no
dia da sua vocação: “H oje eu esta b eleço v o c ê sobre nações e
reinos, para arrancar e arrasar, para dem olir e destruir, para co n s­
truir e plantar” (Jr 1,10). U m em bate ao fim do qual o m al é
erradicado e se instaura um a n o v a civ iliza çã o , fundada na ju sti­
ça. U m a in cisão que drena o m al e cura. O autor neotestam entá­
rio da Carta aos Hebreus d eix o u um a fam osa d efin ição que sin­
tetiza b em o que d issem os até agora sobre o A n tigo Testam ento:
“A palavra de D eu s é viva, efica z e m ais penetrante do que
qualquer espada de d ois gum es; ela penetra até o ponto onde a
alm a e o espírito se encontram , e até onde as juntas e m edulas se
tocam ; ela sonda os sentim entos e pensam entos m ais ín tim os”
(H b 4,1 2 ).

O s d ia s d a ira

Durante os séculos III-II a.C., co m eça a florescer em Israel


um tipo de literatura que predominará até o in ício da era cristã,
estendend o-se para além desta, e que deitará fundas raízes no
sen so com um , exasperando os ânim os e criando toda um a sim bo-
lo gia e um repertório im agético, com o reflexo da crise vivida por
Israel sob a égid e do fen ôm en o político-cultural do helenism o.
E ssa literatura era, com o sem pre, expressão de uma nova e radi­
cal v isã o de m undo. C h am ar-se-á “a p o ca líp tica ” , do grego
a p o k a ly p sis, “revelação” : a conotação, porém , rem ete logo a um a
exp losão pirotécnica de v isõ es, a cenas de grande im pacto, a
vaticínios có sm ico s, da conflagrações planetárias e a palingene-
sias lum inosas. N ão podem os rastrear as densas e com plexas
trajetórias dessa perspectiva teológico-cultural-social, que é para
todos, em blem aticam ente, representada p elo A p ocalipse neotes-
tam entário de João, obra na verdade m enos “apocalíptica” do que
se im agina. E que, para tanto, teríam os de adentrar o substancio­
so universo da literatura apócrifa judaica, de resto objeto de uma
boa apresentação em A p o crifi delV A n tico T estam ento, organiza­
da pelo professor P aolo Sacchi e sua esc o la de Turim (os textos
m ais im portantes são o Livro de H enoc e o Livro dos Jubileus).
A qui nos lim itarem os a algum as p rospecções das páginas
bíblicas canônicas. L istem os, então, os principais textos que p o ­
dem ser catalogados n esse gênero. A paternidade da apocalíptica
bíblica, ju d aica e cristã, pode ser atribuída a E zequiel, com suas
cdnhosas v isõ es, com a transfigurada planim etria do futuro Israel
(capítulos 4 0 -4 8 ) e, sobretudo, co m os exuberantes capítulos 38-
39 do seu livro, que têm por destinatário um fantasioso príncipe
G og de M ag o g , líder bárbaro, criatura perversa e sanguinária.
A o lado de E zeq uiel, p odem os co lo ca r Zacarias, cujos escritos
são obra de duas m ãos distintas, um Prim eiro e um S egundo
Zacarias, de sécu lo s diferentes. O livro de Isaías, por sua v ez,
con solid ou dois “ap oca lip ses” posteriores: o prim eiro, cham ado
“grande”, com preende os capítulos 24-27; o segundo, cham ado
“pequeno”, abarca os capítu los 3 4 -3 5 . Fragm entos apocalípticos
encontram -se ainda em Joel (em particular, os capítulos 3-4) e
em M alaquias (capítulo 3). O texto apocalíptico m ais com p leto
é, de qualquer m odo, o livro de D aniel.
S eja co m o for, a apocalíptica é objeto de d iscu ssão entre
os estudiosos: há quem a considere fruto da p rofecia e da sua
esperança em um a saída diferente da história; há quem a sinta
germ inar da sabedoria (decifração dos en igm as da realidade e
descoberta dos seus segredos); e há quem a veja co m o reação à
crise do ju d aísm o que co n h ece op ressões, incertezas, tentações.
O certo é que a apocalíptica introduz um a forte tensão esp i­
ritual, fazendo pressentir um a reviravolta radical no bojo de um a
história anôm ala e moribunda. Os dias da ira divina são im inen­
tes: as estruturas perversas serão desm anteladas, a iniqüidade será
banida, e dos escom bros da história surgirá um a era de paz e
felicidade. A apocalíptica é extrem am ente pessim ista em relação
ao presente; para ela, a história é dom inada por satanás, o corifeu
do mal. N a sua vertende apócrifa m ais radical, op õe-se até à
concepção bíblica clássica, segundo a qual a história, apesar do
gravam e do mal, é guiada progressivam ente pela ação subjacente
de D eus rumo à redenção e à plenitude. Se D eu s se afasta da
perversa evolução humana, então é inevitável que só com a super-
veniência de “n ovos céus e de nova terra” se poderá instaurar o
R eino de D eu s. Por isso, o Juiz suprem o deve irromper na histó­
ria, banindo im périos e Estados, potentados e leviatãs da vio lên ­
cia: 0 ardume de sua irá consum irá “este sécu lo” { ‘olam hazzeh) e
dará origem ao “século futuro” { ‘olam h a b b a ’), d efinitiva e per­
feita versão da criação, da história, do shalôm -pa.z m essiânico.
E m rota de colisão c o m a tradicional v isão co esiv a , da
B íblia, que procura unir história e escatologia, terra e céu, pre­
sente e futuro, hum ano e d iv in o em um abraço sa lv ífico , a apo­
calíptica, tendenciosam ente, introduz um dualism o que traça um a
linha d ivisória entre os dois âm bitos, colo ca n d o -o s em op osição
e em superação, se não de form a absoluta, pelo m en os nas obras
bíblicas. A centua-se, assim , o d ivórcio entre B e m e M al, entre
anjos e dem ônios, entre D eu s e Satanás, entre eleito s e e x clu í­
dos, c o m a certeza de um final positivo: não é por acaso que os
atuais m ovim en tos ap ocalípticos nascem co m o antídoto contra
as crises epocais, as co n fu sõ es e os tem ores so ciais, contra as
d ificu ld ad es hum anas e religiosas.
O m essian ism o apocalíptico do F ilh o do hom em , que v i­
m os de ilustrar, o poder representado sob a form a de despojos
b estiais, ou c o m im agens de desintegração e de instabilidade (o
sonho de N abucodonosor, no capítulo 2 de D aniel, co m a estátua
c o lo ssa l de prata, bronze, ferro e barro), a ressurreição final dos
ju sto s, o ju ízo universal e o R eino dos céu s são com ponentes
q ue exercerão um a m arcada influência sobre a co n cep ção cristã,
a p on to de u m teó lo g o , E m st K ãsem ann, chegar a declarar, um
p o u co apressadam ente, que a apocalíptica é a m ãe da teo lo g ia
cristã das origens. D ecerto, pelo m en os no que d iz respeito à
esca to lo g ia , a apocalíptica teve um a profunda incidência na tra­
d ição cristã. B asta pensar, por exem p lo, na arte m edieval e nas
suas representações dos N o v íssim o s, Em alguns m anuscritos ilu s­
trados co m ilum inuras do A p ocalip se de João, co m o aquele de
S ain t-S ev er (sécu lo X I), por exem p lo, se justapõe o texto n eo-
testam entário ao livro de D aniel.

U m chifre com olh os e boca

Para expressar o horizonte esperado e desconhecido, a apo­


calíptica recorre a uma linguagem cifrada e a um variegado arse­
nal sim bólico. O primado pertence à visão ou ao sonho, um m eio
de expressão precioso para criar caleidoscópios nos quais o real é
transfigurado em com binações inexauríveis e m isteriosas. M as
deste aspecto falarem os amplam ente a seguir. Por enquanto, va­
m os nos contentar em assinalar as con stelações sim bólicas m ais
im ediatas e circunscritas. Pensem os no sim bolism o “teriom órfi-
c o ” : enorm es seres bestiais e verdadeiros monstros p ovoam as
páginas apocalípticas, para gáudio da arte cristã posterior. B asta
consultar o capítulo 7 de Daniel: o Filho do hom em aparece ro­
deado por quatro bestas m edonhas, fruto de cópulas não-naturais
(leão com asas de águia e coração humano; urso com três costelas
na boca; leopardo de quatro cabeças e quatro asas; enfim , um
monstro com dentes de ferro, dez chifres, um chifre menor com
olhos e um a boca que falava com arrogância!). É sobretudo o
poder, no seu aspecto bestial, que se encarna em tais perfis surreais;
por exem plo, o extravagante chifre que termina em um a cabeça
com olhos e um a boca que profere blasfêm ias é provavelm ente o
detestado A ntíoco IV , o soberano sírio-helênico, besta negra dos
m acabeus (D aniel, refere-se a esta ép oca histórica, o século II
a.C., embora o texto seja am bientado na B abilônia). N o capítulo
8, ao contrário, aparecerão um carneiro de chifres desiguais (os
reinos da M édia e da Pérsia) e um bode, im agem do efêm ero,
em bora grandioso, reino de A lexandre M agno.
Fascinante é o sistem a sim b ó lico “aritm ético” que atribui
aos núm eros valores qualitativos: os persas elaboraram um a nu-
m erologia que influiu sobre a hebraica, a qual, por sua v ez, se
d issem in ou p elo islam ism o e pelo cristianism o, atingindo picos
vertiginosos co m a C abala m edieval judaica. F ácil é intuir o
valor do 7 (e dos seus m últiplos ou das suas frações), bem com o
do 1000, sinal de im ensid ão e infinitude, e do núm ero 12. O
capítulo 9 d e D an iel é, por exem p lo , um a tentativa de e x e g e se
num erológica do oráculo de Jerem ias 2 5 ,1 1 -1 2 , que introduzia
70 anos entre a ruína e o e x ílio babilônico e o renascim ento de
Jerusalém . Para reportar a profecia até seus dias, o autor do livro
d e D an iel recorre a um jo g o num érico; Jerem ias não quis dizer
7 0 anos, m as 7 0 sem anas de anos, chegando assim a 4 9 0 anos,
subdivididos em 62 sem anas de ano e em um a su cessiv a sem ana
de anos, por sua vez dividida p ela m etade. Entra-se, assim , na
criptografia, necessária para d escrever um futuro ignorado, em
relação a um presente con h ecid o , onde não raro a con tecem in ci­
dentes de resultados m ais ou m en os desejados: por ex em p lo, a
duração da perseguição de A n tío co IV , em D an iel 7 ,2 5 , é de
“um tem po [isto é, um ano], m ais tem pos e m etade do tem p o”,
na prática 3 anos e m eio, c o m o se d izia em 9 ,2 7 , c o m a m eia
sem ana de anos, num total de 4 2 m eses e 1260 dias; m as, em
8,14, a duração da persegu ição tom a-se “2 3 0 0 n oites e m anhãs”,
isto é, 2 3 0 0 dias (m uitos), ou 1150 (m uito p o u co s), se se enten­
der a exp ressão com o ind icação do sacrifício duplo m atutino e
vespertino e, portanto, de u m ú nico dia sagrado.
U m outro sím b olo se refere às co n v u lsõ es có sm ica s, com
m etam orfoses do sol, da lu a e das estrelas, que preludiam um a
nova criação: “Farei p rodígios no céu e na terra: sangue, fo g o e
colunas de fum aça. O sol vai se mudar em trevas e a lua, em
sangue, diante da chegada do D ia de Jhwh, grandioso terrível!...
O so l e a lua se escurecerão, e as estrelas perderão seu fu lgor”
(J1 3,3-4; 4 ,1 5 ). O n ovo m undo que nasce desta revolução c ó s­
m ica é pintado co m im agens paradisíacas: “N aqu ele dia”, escre­
v e sem pre Joel, profeta do sécu lo V a.C ., “as m ontanhas goteja­
rão vinho novo, das colin as escorrerá leite, e a água correrá em
todos os riachos de Judá” (J1 4 ,1 8 ). T am bém a v elh a hum anida­
de abrirá passagem para um n ovo m od elo de hom em , com p leta­
m ente habitado p elo espírito de Deus: “Infundirei m eu espírito
sobre todos os viventes, e os filh o s e filhas d e v o c ê s se tom arão
profetas; entre v o cês, os v elh os terão sonhos e os jo v e n s terão
v is õ e s ! N aq u eles dias, até sobre os escravos e escravas derrama­
rei m eu espírito!”, diz ainda Joel (3 ,1 -2 ), que será citado por
Pedro no seu discurso de P entecostes (A t 2 ,1 7 -2 1 ). N as palavras
d esse profeta, que retratará tam bém o dia do ju ízo final no V ale
da D ecisã o , em Jerusalém (J1 4 ,1 2 -1 4 ), a visão é considerada
co m o sinal dos n o v o s tem pos.
E zeq uiel, co m suas v isõ es, suas ações sim b ólicas, suas
colorid íssim as parábolas, preparara um repertório para os apoca­
líp ticos, que bordarão, aprofundarão, am pliarão suas tramas m e­
tafóricas. Em d oses m aciças, introduzirão, porém , um sentido do
trágico, um a atm osfera da últim a hora: basta citar o “noturno”
celebradíssim o do banquete de Baltazar, últim o rei babilônico,
destituído p elo n o v o astro nascente, Ciro da Pérsia. S egu n d o um
m odelo já con h ecid o em paralelos orientais, um a m ão m isteriosa
traça na parede da sala um a escrita funesta e incom preensível:
m ene, tekel, p e r e s , “contado, pesado, d iv id id o ”, em aram aico.
E stam os no capítulo 5 de D aniel; será, por isso, o ju sto D an iel,
intérprete da história e do seu destino, que revelará, interpretan­
do estas três palavras, a sorte dos im périos terrenos que cairão
sob o cutelo d o ju íz o divino. “N aq u ela m esm a noite, de fato,
Baltazar, rei dos caldeus, foi assassin ado” (D n 5 ,30). N o sso lei­
tor ficará encantado com esta estupenda narrativa. M uitos tam ­
b ém ficaram , d esd e Chaucer, n os C o n to s d e C an terbu ry, até La
cena d e i rey B altasar, esp écie de “auto sacram ental”, de Calderón
de la Barca (1 6 3 4 ), obra rica em alegorias: Baltazar celebra
núpcias com a Idolatria, m as encontra a V aidade e a M orte, e
lentam ente a m esa se to m a um altar... G oeth e se m edirá co m o
personagem , retirando-se derrotado (queim ará o fragm ento tea­
tral, incorporando parte d ele em um a obra m enor); Byron intitulará
To B e lsh a zza r (1 8 1 4 ) u m poem a parenético ded icado aos sober­
bos, e retomará o tem a na Vision o f B e lsh a zza r (1 8 1 5 ). Inquie-
tante é a balada B e lza tza r, de H ein e (1 8 2 2 ): “E eis que, na
branca parede / um a m ão hum ana aparece. / Letras de fo g o
escreve. / E d esaparece” . E ssa m esm a cena inspirará, dep ois, a
m úsica dos oratórios, de C arissim i, H aen del, S pohr (na sua
C aduta d i B abilô n ia ), Telem ann, até o drama m usical II banchetto
d í B a ld a ssa r, do fin lan d ês S ib eliu s, e a balada para so lo e
pianoforte B elsa za r, de Schum ann, sobre o texto citado de H eine.
Isso, sem falar da arte: basta citar Rem brandt, com um a escura e
tensa tela de 1634...
A s v isõ e s oferecerão à arte e à literatura um material bas­
tante su g estiv o e poderoso. Procurem os, por isso , apresentar al­
gum as, recordando que aquela teologicam en te m ais relevante já
foi abordada no capítulo sobre o m essianism o: é a visã o do Filho
do hom em , da página central de D aniel (capítulo 7). Entre pa­
rênteses, assin alem os que as v isõ es, sendo representações do
destino transcendente da história, requerem um “anjo intérpre­
te”, que p od e ser, em qualquer caso, o profeta ou o autor, en ­
quanto a com unidade, os d iscíp u lo s, o s “filh o s” são con vid ad os
à escuta e à conversão.

G afanhotos, fo g o , prum o, fig o s, esco m b ro s

“V id en te”, em hebraico hozeh, era um dos term os antigos


para definir o profeta: através d esse canal m etarracional de c o ­
nhecim en to, ele entrava em com un icação c o m a divindade para
dela receber a m ensagem . A visã o tom ava-se, assim , um a esp é ­
cie de cenário dos conteúdos da palavra divina. O prim eiro pro­
feta a usar este gênero para lançar um anúncio do ju íz o , destina­
do a exortar a pândega corrom pida capital Sam aria, fo i A m ós,
no séc u lo V III a.C.. Sobre e le já sabem os m uito; basta, agora,
fazer referên cia às cin co v isõ e s que con clu em seu op ú scu lo de
oráculos (capítulos 7-9).
A prim eira (7 ,1 -2 ) tem por núcleo um a praga clássica da
agricultura do antigo O riente Próxim o, a dos gafanhotos, que
avançam co m o um a falan ge contra os cam pos verdejantes, d izi­
m ando-os (a cena será retom ada pelo profeta Joel, em 2,4-5).
E screve A m ós; “Isto m e m ostrou o Senhor Jhwh; A pareceu um a
n u vem de gafanhotos p ou co antes da colh eita do feno, depois de
cortado o feno do rei. Q uando iam acabar c o m todo o verde da
terra, eu disse: ‘Por favor Jhwh, perdoa! Jacó é tão pequeno!
C om o poderá resistir?’” (A m 7 ,1 -2 ). É clara a sim b o lo g ia do
ju lgam en to d ivin o, representada com a irrupção dos gafanhotos
e co m a intercessão do profeta no dia da ira (recordem os que foi
exatam ente A m ós quem cunhou a expressão jô m -J h w h , “dia do
Senhor”, para definir a intervenção, antes latente, depois patente,
do D eu s ju iz ju sto na história hum ana injusta e escandalosa).
A segunda visão am osiana ev o ca um outro fla g elo da agri­
cultura, a seca (ver tam bém J1 1,10-12; Jr 14). É co m o se o fo g o
devorasse as nascentes de água e o verde dos cam pos: “O S e ­
nhor con v o ca v a o fo g o para fazer o julgam ento. O fo g o con su ­
m ia 0 grande oceano e devorava as roças. E eu disse: ‘Por favor,
pára. Senhor Jhwh! Jacó é tão pequeno! C om o poderá resistir?’”
(A m 7 ,4 -5 ). M ais um a vez, diante do D eu s colérico por cau sa da
injustiça humana, o profeta se ergue com o intercessor, pedindo
clem ên cia para o h om em pequeno e frágil.
A terceira visão e o terceiro sím bolo são o fio de prumo
sobre um a parede torta: “O Senhor estava sobre um muro e, na
mão, tinha um prumo... E le m e disse: ‘V ou tirar o n ível do meu
povo Israel. N ão o perdoarei mais. Serão arrasados os lugares
altos, os santuários de Israel serão destruídos” (A m 7 ,7 -9 ). O
profeta anuncia tanto a elim inação das distorções que o Senhor
observa no ed ifício social e religioso de Israel com o a d em olição
de todas as estruturas sociorreligiosas iníquas. D eus, de fato, esta­
b eleceu “o direito por m edida e a ju stiça com o fio de prum o” (Is
28,17). O “prumo do caos e o n ível da con fu são” , com o a cham a­
rá Isaías (34,11), não deixa pedra sobre pedra, principalm ente nos
“lugares altos”, onde se erguiam os tem plos idolátricos.
“D eu s m e perguntou: ‘O que v o c ê vê, A m ó s? ’ R espondi:
‘U m cesto de fig o s m aduros’. E le m e disse; ‘Está maduro o fim
para o m eu p o v o Israel. N ão o perdoarei m ais. N aquele dia, as
cantoras do p alácio gem erão. H averá cadáveres atirados por toda
parte. S ilê n c io !’” (A m 8,2-3). Imitada tam bém por Jerem ias, com
a visão dos d ois cesto s de fig o s (capítulo 2 4 ), esta quarta cen a
tem seu cerne interpretativo em dois vocá b u lo s hebraicos hom ó-
fon os, p elo m en os em um a das várias pronúncias antigas: q a is,
“fig o ou fruto m aduro”, e qes, “fim ” . O fruto saboroso prenuncia
0 fim do verão e a chegada do inverno. A alegria está para se
transformar em luto, a paz em julgam ento, o canto em silên cio, a
vida em morte. U m silên cio funéreo e n v o lv e toda a nação por­
que é ch egad o o m om ento da ira santa: “Transformarei suas
festas em funerais e seus cânticos em gem id os. V estirei todos
c o m roupas de luto e, no lugar da cabeleira, haverá cabeça ras­
pada. Será com o o luto pela m orte de um filh o ún ico, e seu fim
será co m o um dia de am argura” (A m 8 ,1 0 ).
C om a quinta e últim a visã o de A m ó s, retom a-se ao sím ­
bolo, já presente na terceira visão, do esboroam ento e dos e s­
com bros, que provocam um a hecatom be: “V i o Senhor perto do
altar. E le m e dizia: ‘B ata no alto das colin as para fazer trem er os
um brais. Quebre a cabeça de todos que o resto eu matarei pela
espada. N in gu ém conseguirá fugir, ninguém con seguirá escapar”
(A m 9,1). Rui o capitel, a arquitrave se despedaça, o ed ifício
desaba. S e alguém conseguir se levantar dos escom bros, o in im i­
g o estará pronto para abatê-lo. E is o sig n ifica d o da parábola:
quem d esfere a espada é o próprio D eus; quem faz ruir o ed ifício
é o m ensageiro, o profeta, não m ais revestido da função de inter-
cessor, m as de colaborador do ju ízo divino. U m ju ízo inexorá­
vel, in voca d o pelos ju stos, ignorado pelo s p od erosos.
A m ó s ofereceu, portanto, um am plo acervo de v isõ es, que
influenciará a tradição profética subseqüente. A p rofecia apoca­
líptica coligirá tal herança, co m o já d issem os. E é exatam ente a
um d esse s profetas que agora darem os espaço. Seu nom e é Za­
carias, m as, com o no caso de Isaías, sob esse m esm o nom e
ex istem dois autores: se o Prim eiro Zacarias (cap ítulos 1-8) ini­
cia sua pregação nas portas d e entrada da B ab ilôn ia, no ano 520
a.C., 0 Segu n d o (capítulos 9 -1 4 ) irá atuar pelo m en os dois sécu ­
los d ep ois, quando surge A lexan d re M agno. O Prim eiro prepara,
com suas oito v isõ es, o m aterial de que se alim entará a esperan­
ça ap ocalíptica do Segundo.
A presentem os, então — quase co m o se fo sse um film e
surreal — , as oito v isõ es que ocupam os prim eiros seis capítulos
do livro de Zacarias, ev ocan d o-as apenas co m algum as p in cela­
das, extraídas de um a verdadeira fantasm agoria crom ática e sim ­
b ólica. ‘T iv e um a visã o durante a noite. H avia um h om em m on ­
tado num cavalo marrom, parado entre as árvores de murta, no
fundo de um abism o. Atrás dele estavam cavalos marrons, alazões
e brancos. Então perguntei: Q uem são e le s, m eu Senhor?” (Z c
1,8-9). A prim eira visã o m ostra um cavaleiro na garupa de um
cavalo marron, em m eio a um b osqu e de murta, repleto de cava­
los de diversas cores. D ev a n eio ou m en sagem ? A resposta pare­
ce aflorar no restante do capítulo, em que Zacarias fala de m en ­
sageiros en viad os p elo Senhor para inspecionar a terra: “Percor­
rem os a terra, e ela toda repousa tranqüila” (Zc 1,11). A murta,
posteriorm ente utilizada na liturgia ju d aica dos T abernáculos, é
sím b olo de alegria. A cen a de abertura é, então, positiva; d escor­
tina o m undo que apraz ao Senhor, pleno de paz e harmonia.
S egunda visão: “L evantei os olh os e vi quatro chifres.
Perguntei ao anjo que falava com igo: ‘Q ue sign ificam e sse s c h e ­
fe s? ’. E le respondeu: ‘São os chifres que dispersaram Judá, Israel
e Jerusalém ” (Z c 2 ,1 -2 ). Quatro chifres, sinal de força, de agres­
são, de hostilidade; quatro, co m o os p on tos cardeais: são as p o ­
tências políticas m undiais, hostis aos d esígn ios pacíficos de D eu s,
anteriorm ente descritos. O profeta e v o c a o s tristes dias do ano
58 6 a.C., quando Jerusalém fo i arrasada p elos babilônios. H á na
história, portanto, um a presença m aligna que procura realizar
um projeto alternativo ao de D eu s, u san do a força, a v io lên cia, a
opressão. M as os m onstros de pod erosos chifres não p revalecem
contra a reação divina: “O Senhor m ostrou -m e quatro ferreiros.
Perguntei: O que e les vão fazer? E le respondeu: “Os ferreiros
vieram para aterrorizá-los, para cortar os chifres dessas nações
que investem contra a terra de judá, espalhando sua gente pelo
m undo” (Zc 2 ,3 -4 ). A o s quatro chifres destruidores o p õ em -se
quatro ferreiros, artífices da libertação. E les con segu em , de fato,
quebrar o s chifres e neutralizar seu poder devastador. É a luta
contra o m al, um duelo que a apocalíp tica tipificará, em seguida,
num em bate final.
“L evantei os olh os e v i um h om em c o m o cordel de m e­
dir. Perguntei: A on d e v o c ê vai? R espondeu ele: vou m edir Jeru­
salém , para ver qual é a sua largura e com prim ento” (Z c 2 ,5 -6 ).
A terceira v isã o de Zacarias tem co m o protagonista um "geôm e-
tra” com um instrum ento de m ed ição na m ão (recordem os o fio
de prumo da terceira v isão de A m ó s). A im a g em já aparecia em
Jerem ias (3 1 ,3 9 ) e em E zeq u iel (4 1 ,1 3 ), exatam ente para descre­
ver a nova Jerusalém , que seria soerguida dos destroços a que a
reduziram os b ab ilôn ios. T am bém o anjo da Jerusalém ce leste
do A p oca lip se Joanino tem nas m ãos “um a vara de ouro para
m edir a cidade, os portões e a muralha” (A p 2 1 ,1 5 ). A ssiste-se,
portanto, à inauguração de um a cidade ideal, planejada p elo pró­
prio D eu s, através de seu anjo geôm etra, um a cidade santa e
feliz: “F esteje e exulte, filha de Sião, porque estou vindo para
morar co m v o c ê — O ráculo d o Senhor” (Z c 2 ,1 4 ). Cai o pano
sobre a terceira visão.
A quarta nos leva ao recinto sagrado d essa futura cidade e
apresenta-nos o sum o sacerdote daqueles anos, Josué, que guia­
ra, junto co m o ch efe p olítico Z orobabel, a v o lta do e x ílio babi-
lôn ico. Suas vestes estão sujas, sím b olo do estado de im pureza
em que se encontrava Israel durante sua perm anência na terra
estrangeira do ex ílio . “D ep o is o Senhor m e fe z ver Josué... E le
estava vestid o co m roupas sujas e parado diante do anjo do
Senhor. Então, o anjo falou aos que estavam de pé, à sua frente:
‘Tirem d ele as roupas sujas’. E disse a Josué: ‘V eja, eu afastarei
de v o c ê a sua culpa e o revestirei com roupas lim p as’” (Zc 3,1 .3 -
4). Josué aparece, então, com as so len es v estes sacerdotais da
liturgia festiva: um n ovo culto, perfeito, está por ser inaugurado.
M as a visão se am plia, introduzindo um p ersonagem sim b ólico
que já conh ecem os: “E stou fazen do vir m eu servo G erm e. E is a
pedra que coloq u ei diante de Josué: sobre esta pedra há sete
olh os. Eu m esm o gravarei n ela um a in scrição” (Z c 3 ,8 -9 ). A pa­
rece, então, um a figura m essiân ica, cham ada ju stam ente G erm e
(recorde-se Is 11,1-2), cuja m issã o é correlata à pedra apresenta­
da a Josué, isto é, o n o v o tem plo a ser ed ificad o. Trata-se de
um a pedra basilar, “co m sete o lh o s”, sím bolo da v isã o perfeita
de D eu s e, portanto, da sua providência e proteção. Ou talvez
tam bém dos sete planetas, segun do a co sm o lo g ia babilônica, sen­
do este tem plo a pedra fundam ental de toda a n o v a ordem c ó s­
m ica. C om certeza, o G erm e terá um a função p recisa em relação
ao tem plo: “A qui está um hom em ; seu n om e é G erm e” — con ti­
nuará Zacarias em 6 ,1 2 — “e onde e le está vai germinar. E le
construirá o T em plo de Javé”.
M as v oltem os as n o sso film e. “O anjo m e perguntou; ‘O
que v o c ê v ê? ’ R espondi: ‘U m candelabro de ouro m aciço, tendo
na ponta um reservatório de azeite e sete lâm padas nos sete
b ico s que há na extrem idade. E junto d ele vejo tam bém duas
oliveiras, um a à direita e outra à esquerda” (Zc 4 ,2 -3 ). A gora
surge o m enorá, o típico candelabro de sete braços do judaísm o,
ladeado por duas oliveiras. O candelabro, elem en to ritual im por­
tante do tem plo, é o sinal da retom ada do culto perfeito, c o m a
presença lu m in osa de D eu s. A s oliveiras, co m o se dá a entender
dep ois, são os dois vicários do Senhor, talvez o rei e o sacerdote,
Zorobabel (ch efe p o lítico ) e Josué (ch efe relig io so da com unida­
de hebraica repatriada de B abilônia). É um projeto de harm onia
para um a socied ade hum ana e religiosa agora pacificada.
M ais im pressionante é a sexta visão, em que aparece um
im enso pergam inho que se desdobra p elo céu: “L evantei nova­
m ente os olh os e vi um livro voando... O anjo m e explicou: ‘É a
m aldição que se espalha sobre a su perfície de todo o país. E,
assim com o o livro, todo ladrão será exp u lso daqui” (Zc 5 ,1 -3 ).
A s palavras escritas no livro voador não são alvissareiras, m as
portadoras de m aldição. Ladrões e perjuros são execrados. Os
crim es até agora im punes são denunciados e ju lgad os no livro da
vida, guardado por D eu s. M as m al tem os tem po de acom panhar
o vôo do rolo, e já desponta a sétim a e surpreendente visão.
“O anjo disse-m e: ‘L evante os olh os e veja isto que vem
v in d o ’. Perguntei: ‘O que é isso ? ’ E le respondeu: ‘E um alqueire
que vera vindo. É a m aldade que está no país todo. E rgueu-se a
tam pa de chum bo e dentro havia um a m ulher sentada. O anjo
disse: ‘E la é a m ald ad e” ’ (Zc 5 ,5 -8 ). O alqueire, unidade de
m edida dos cereais, é descrito em hebraico co m o capaz de c o n ­
ter um ‘efa, isto é, 36 litros (contra os norm ais 2 2 dos alqueires
agrícolas). Trata-se, então, de um a grande ânfora, um a esp écie
de vaso de Pandora. C om efeito, retirada a tampa, surge um a
mulher, cujo n om e é M aldade. É ela, sem dúvida, a grande se­
nhora da história; sua sedutora presença conquista toda a terra.
A esperança está na tam pa de chum bo, que só D eu s pode levan ­
tar e fechar novam ente.
C hegam os, assim , à oitava e últim a visão: “L evantei os
o lh os e vi quatro carros. V inham saindo do m eio de duas m onta­
nhas, e as m ontanhas eram de bronze. O prim eiro carro era
puxado por cavalos verm elhos; o segundo, por ca valos pretos; o
terceiro, por cavalos brancos; e o quarto, por ca v a los m alhados”
(Z c 6 ,1 -3 ). R etom a-se, evidentem ente, o sím b o lo da primeira
visão (Zc 1,8-9), co m os cavalos de p êlos de diferentes cores. A s
montanhas d e bronze indicam a estabilidade da n ova criação. Os
carros m ilitares correm em m eio a essas m ontanhas e ocupam os
quatro pontos cardeais. M ais um a vez, aparece a crítica ao poder
político-m ilitar, considerado satânico. D eu s deverá afugentar os
carros, co m o galop e de seus cavalos e com o barulho ensurde­
cedor de suas ferragens, trazendo novam ente paz e serenidade.

O b a stã o “F a vo r" e o b a stã o “L a ç o s ”

Encerrada a exib içã o das oito v isõ e s zacarianas, passem os


agora às páginas m ais “ap ocalípticas” do Segu n d o Zacarias, fa­
m oso no âm bito cristão pela aplicação, por parte dos ev a n g elis­
tas, de m uitos de seus textos e sím bolos a Jesus. P revalece a
p o esia nos capítulos 9 -1 4 (não faltam estu d iosos prontos a d is­
tinguir um T erceiro Zacarias, autor dos capítulos 1 2 -14!), e pre­
dom ina um a atm osfera som bria, dissipada, porém , p ela entrada
radiante do esperado rei-M essias, “que cavalga um burro” (Zc
9 ,9 -10). N o ssa atenção se volta para a visão-pan tom im a alegóri­
ca do pastor e dos dois cajados, narrada em Zc 11,4-17; 13,7-9.
A p assagem é obscura e alusiva, de tonalidade apocalíptica, m as
não in com p reen sível em sua substância. T entem os segu ir-lh e a
trama essen cia l. Por ordem divina, o profeta assu m e o papel de
pastor de um rebanho abandonado, não vendido, pronto para o
matadouro: é o po v o oprim ido e hum ilhado p elo s seus pastores
egoístas e hipócritas (o profeta se inspira no capítulo 3 4 de E ze-
quiel). E ste pastor justo tem nas m ãos dois bastões d e nom es
significativos; “F avor” e “L a ç o s” .
E m v ão ele tenta dirigir o rebanho, que lo g o se revela
rebelde. “Então, eu disse: ‘N ão serei m ais seu pastor’” (Z c 11,9).
E, co m o gesto de raptura, quebra o bastão cham ado “F avor”,
rom pendo sim bolicam ente a harm onia e a aliança entre pastor e
rebanho. Entram em cen a o s m ercadores que antes desfrutavam
do rebanho (os falsos pastores), os quais pagam ao b om pastor
um a indenização de 3 0 siclo s de prata, o preço de um escravo
(E x 2 1 ,3 2 ), que são lançados no tesouro do tem plo (Zc 11,12-
13; é fá cil perceber a referência que o evan g elista M ateus fará a
esta passagem para explicar a traição de Judas). N este ponto, o
b om pastor quebra o segundo bastão, “L a ço s”, sim bolizando o
rom pim ento d efinitivo entre os dois reinos; o de Jerusalém e o
da Sam aria.
A bre-se um segundo ato. O profeta é con vid ado por D eus
a imitar o com portam ento de um falso pastor “que não se preo­
cupa com a ovelha desaparecida, nem procura a que se extra­
viou, não cura a m achucada, nem sustenta as fam intas” (Zc 11,16).
Sobre ele se abate, im p lacável, o ju ízo d ivin o, que lhe paralisa o
braço (a ação) e lhe c e g a o olh o (o pensam ento).
P assa-se, assim , ao terceiro ato: o bom pastor é m orto e o
rebanho se dispersa: dois terços são elim inados e s6 resta um
terço. E é justam ente d esse terço sobrevivente, purificado pelo
sofrim ento, que D eu s fará surgir a n ova com unidade fie l a ele.
D esp on ta um a nova era, em que “não haverá m ais luz, nem frio
nem g elo . Será um dia único. N ão haverá m ais dia e n oite, mas
ao entardecer a luz brilhará” (Zc 14,6-7). O tem po da ira, das
iniqüidades e das dilacerações dará v e z a um verão sem fim . O
ritm o da vida, baseado na alternância de dias e noites, calor e
frio, risos e lágrim as, amor e ódio, se regulará por um único
tom: o da luz que nunca se extingue, o da festa que nunca acaba.
A o fim e ao cabo, se fará verdade o que proclam ara o salm ista:
“A cólera de D eu s é de instante, m as seu amor é para toda a
v id a” (SI 3 0 ,6 ). Com parada à eternidade, a história é um instan­
te: a cólera d ivin a é m om entânea, m as, sua bondade é para sem ­
pre, para a n o v a criação.
A s v isõ e s, portanto, são um instrum ento sim b ólico d e du­
plo perfil: anunciam um ju ízo in exorável que finalm ente purifi­
cará a história, mas pretendem , sobretudo, descortinar o perfeito
dia da bondade, aquele que suplantará de v e z os dias da ira.
Kl
Filhos de um Deus de amor

J h w h , Jhwh, D eu s de com paixão e piedade, lento para a


cólera e ch eio de amor e fidelidade. E le conserva seu amor por
milhares de gerações, tolerando a falta, a transgressão e o pecado,
mas não deixa ninguém impune: castiga a falta dos pais nos fi­
lhos, netos e bisn etos.” E ssa profissão de fé, cham ada de “carteira
de identidade de D eu s” (Albert G elin), fo i colocada na boca do
próprio D eus no Sinai, depois da grande crise do bezerro de ouro
(Ex 34,6-7). A ju stiça irada de D eu s não se revoga, m as o prima­
do é deixado ao amor: às três ou quatro gerações da punição
op õem -se os m ilhares de gerações do amor e do perdão. Por isso,
a resposta fundamental que o D eus bíblico espera do seu fiel é
aquela form ulada na outra profissão de fé do hebreu, o S h e m a ', o
“Ouça, Israel!” : “A m e Jhwh seu D eus com todo o seu coração,
com toda a sua alm a e com todas as suas forças” (D t 6,5).
É necessário extirpar da c o n v icçã o popular o lugar-co­
m um de um A n tigo Testam ento dom inado por um rosto divino
som ente iracundo e judicante e por um a espiritualidade apenas
legalista e preceitista. D ecerto, a ira de Jhwh contra a injustiça
está presente e operante, m as não elim in a a ternura de u m D eu s
que se reveste de toda a gam a de sentim entos am orosos para
co m um a criatura da qual espera amor.

F ilh os de um D e u s d e a m o r

N o sso percurso p elo am or segundo as Escrituras hebraicas


se pautará p elo essen cia l porque, não obstante clich ê ao qual nos
referim os, o m aterial textual é abundante e diversificado a com ­
panhado de um a vasta bibliografia. D o is m arcos assinalarão o
d esen volvim en to do n o sso itinerário; o rosto divino que brilha e
é propício, co m o se d iz na bênção sacerdotal de N m 6 ,2 4 -2 6 , e o
rosto hum ano que am a o seu Senhor e seu irm ão. Iniciarem os
co m um a representação bíblica de D eu s erroneam ente c o n sid e ­
rada por m uitos co m o só neotestam entária, quando, na realidade,
está presente em num erosas religiosidades, in clu sive a veterotes-
tam entária (evidentem ente, não se pretenda exclu ir as diferen­
ças, m uitas v ezes relevantes). R eferim o-nos ao D eu s pai e m ãe.
R ecordem os que a análise da antropologia de Gn 1,27, segundo
a qual o hom em e a m ulher são “im agem e sem elhança” de
D eu s, perm itiu-nos estabelecer um paralelo entre a atividade cria­
dora de D eus e a atividade geradora do hom em . G oethe, su gesti­
vam ente, afirm ava que “p od em os falar antropom orficam ente de
D eu s porque nós m esm os so m o s teo m ó rfico s”.
D eu s é, portanto, “p a i” das suas criaturas, não por gera­
ção, co m o se im aginava nas v isõ e s im anentistas do antigo Ori­
ente Próxim o, sobretudo do rei (o faraó gerado pela divindade,
ou o príncipe cananeu que sugava o leite do seio da deusa), mas
por amor, por ligação “p sic o ló g ic a ” e espiritual, por sentim ento
e paixão. S ão vinte as passagen s que deveriam ser levadas em
consideração (in clu sive aquelas nas quais, tam bém para Israel, o
rei é considerado filho de D eu s, m as não por geração física); nós
nos lim itarem os a um a sim p les m enção, a partir da declaração
fundam ental, constante da abertura do êxod o, em que D eu s afir­
m a Israel co m o seu “filh o prim ogênito” (E x 4 ,2 2 ), assum indo,
assim , a responsabilidade d e g o ’el, de tutor e redentor paterno.
Iniciarem os co m um a pergunta que e x ig e um ex am e de co n s­
ciên cia e que foi lançada contra Israel rebelde por M o isés no seu
“cân tico” , conservado no capítulo 3 2 do D euteronôm io: “O s f i­
lhos degenerados pecaram contra ele, são um a geração deprava­
da e pervertida. / E isso que v o c ê s d ev o lv em ao Senhor, / p ovo
idiota e sem sabedoria? / E le não é o pai e criador d e vocês? /
E le próprio fe z v o cê e o sustentou” (D t 3 2 ,5 -6 ). S e form os ao
outro extrem o da B íb lia hebraica, p elo m enos no âm bito da pro­
fecia tardia, e folhearm os o op ú scu lo de M alaquias, encontrare­
m os um a no v a pergunta: “Por acaso, não tem os todos um ú n ico
Pai? Por acaso, não foi só o D eu s que nos criou?” (M l 2,10).
A oração de Israel convertido, que recon h ece o próprio
pecado — infâm ia com etida não contra um im perador im p assí­
v el, m as contra um pai ferido — , é deste m odo form ulada pelo
T erceiro Isaías: “Tu és o n o sso pai, pois Abraão não nos reco­
n h ece m ais, e Israel não se lem bra de nós. Senhor, tu é s o n osso
pai. Teu n om e é, desde sem pre, n osso G o ’e l” (Is 6 3 ,1 6 ). Tam ­
b ém 0 fie l individual in voca a D eus n estes termos: “Senhor, tu
és m eu pai... não m e abandones no dia da p rovação...” (E clo
5 1 ,1 0 ). A im agem paterna de D eu s aparece em sim b io se com a
do educador, em particular durante a peregrinação p elo deserto e
nas dificuldades lá encontradas; “R econ h eça em seu coração que
Jhwh seu D eu s educava v o cê com o o h om em educa o próprio
filh o ” (D t 8,5). O livro dos P rovérbios faz e c o a essa visão de
D eu s educador paterno: “O Senhor corrige aqueles que ama,
com o o pai corrige o filho preferido” (Pr 3 ,1 2 ). E a Sabedoria
recorda que D eus “prova os ju stos co m o pai que corrige seus
filh o s” (Sb 11,10). E le está pronto até a suportar a desilusão,
vendo o filh o que recusa o s seus cuidados, co m o d iz o profeta
O séias, referindo-se à experiência p esso a l e fam iliar que em
seguida ilustraremos: “Q uando Israel era m enino, eu o am ei. D o
E gito cham ei m eu filho; no entanto, quanto m ais eu o cham ava,
m ais e le se afastava de m im ... Fui eu que en sin ei Efraim a andar,
segurando-o pela m ão. M as ele não percebeu que era eu quem
cuidava dele. Eu o atraí com laços de bondade, com cordas de
amor. F azia com ele co m o quem levanta até seu rosto um a crian­
ça; para dar-lhe de com er, eu m e ab aixava até ele... C om o p o d e­
ria eu abandoná-lo, Efraim ? C om o haveria de entregar v o cê a
outros, Israel?... O m eu coração salta no m eu peito, as m inhas
entranhas se c o m o v em dentro de m im ” (O s 11,1-4.8). S obeja
qualquer com entário a e sse so liló q u io d ivin o, ch eio de ternura,
m as tam bém de m elancolia. D eu s é um pai tem o que se inclina
sobre sua criatura para ensiná-la a caminhar; levanta-a quando
está cansada, carregando-a; no co lo , estim u la-a a com er quando
ela faz birra; no final, a im agem d ivin a até se m atem iza, co m a
alusão às “víscera s”, ao ventre fem inino.
N o livro do D euteronôm io, toda a m archa de Israel p elo
deserto é descrita co m esta pincelada: “N o deserto, v o c ê viu que
Jhwh seu D eu s o carregou, com o o h o m em carrega seu filh o,
durante todo o cam inho percorrido” (D t 1,31). E a m ais bela
oração do filh o é o S alm o 103, um canto ao D eu s pai reelabora-
do poeticam en te por T om m aseo e por C laudel, citado por P ég u y
no P o rtic o d e i M iste ro d e lia S eco n d a Virtü e considerado por
N ietzsch e testem unho de um a ju stiça n ão-altem ativa ao perdão.
E is algum as passagens: “O Senhor perdoa suas culpas todas, / e
cura todos o s seus m ales. / E le redim e da c o v a a sua vida, / e a
coroa de am or e com p aixão. / ... Jhwh é com p a ix ão e piedade, /
lento para a cólera e ch eio de am or /.../ C o m o u m pai é com p as­
siv o com seus filh o s, / Jhwh é co m p a ssiv o c o m aqueles que o
tem em ” (SI 1 0 3 ,3 -4 .8 .1 3 ).

O c o rp o d e D eu s

M esm o um leitor ocasion al da B íb lia percebe o am plo


recurso a m etáforas antropom órficas ligadas à fisio lo g ia hum ana
para definir a ação e a personalidade de D eus: há o olho que
vigia, o ou vid o que ou ve, o nariz do sopro irado, a boca que
pronuncia oráculos, a m ão que cria e salva, o braço que se levan ­
ta e pune, os pés que se apóiam sobre a arca, o rosto que brilha
de lu z e que se escon d e, o coração que ju lg a e ama, e assim por
diante. A tradição ju daica m ed ieval, cham ada M erk a va h (é o
“carro” c e leste da vocação de E zeq u iel), usará o retrato do esp o ­
so, pintado no C ântico dos C ânticos (Ct 5 ,1 0 -1 6 ), co m o perfil do
“corpo” de D eu s, oferecen d o até fantasiosas m edidas em um
tratado intitulado justam ente S h i’ur Q om ah, “m edida da grande­
za” divina, e dando origem a esp ecu la çõ es heterodoxas de extra­
ção panteísta; a altura de D eu s era de 2 3 6 0 0 0 parasangas (cada
parasanga eq üivale a três m ilhas)! U m a outra tradição não se
contentava co m tais m edidas e calcu lava em três m ilh ões de
parasangas som ente o com prim ento da planta do p é divino!
Fantasias à parte, sub linh em os um elem ento significativo:
0 corpo, para o sem ita — co m o já sabem os — , é o princípio da
com u n icação pessoal e interpessoal. N ão é, aplicado a D eus, sua
m aterialização, m as sim um a exaltação da sua personalidade, da
sua revelação e com un icação ao hom em . P o is bem , entre os
vários órgãos ou m em bros d e D eu s, há tam bém o ventre, ou
m elhor, o útero, se é verdade que o plural rah am tm , “v ísceras”
fem ininas, é m uitas vezes aplicado a ele co m o qualidade e sp e c í­
fica, m esm o no sentido m etafórico do termo, de am or e m iseri­
córdia. O vocáb u lo é, além d isso , usado na d efin ição do D eus
“clem en te e m iserico rd io so ”, que abre todas as suras ou capítu­
lo s do Corão (a raiz árabe é a m esm a). Há, portanto, um a “m a­
ternidade” de D eu s e um a “fem in ilid ad e” : a estu d iosa alem ã
H anna-Barbara G eri, e m um en saio de 1990, listou, ao lado de
oitenta im agen s m ascu lin as, vinte retratos fem in in os, estudados
am plam ente p ela cham ada “e x e g e se fem inista” .
E is apenas alguns p o u co s exem p lo s das figuras bíblicas
do D eu s-m ã e. C éleb re é a declaração divina citada p elo S egu n d o
Isaías: “P o d e a m ãe se esq u ecer do seu nenê, p od e ela deixar de
ter am or p elo filh o d e suas entranhas? A inda que ela se esqueça,
eu não m e esq u ecerei de v o c ê .” (Is 4 9 ,1 5 ). O Terceiro Isaías,
que representa Jerusalém co m o um a m ãe que am am enta os fi­
lhos, registra estas psilavras de D eus: “C o m o a m ãe co n so la seu
filh o, assim eu vou con so la r v o c ê s” (Is 6 6 ,1 3 ). O cân tico de
M o isés, que já citam os por causa de um a im agem divina paterna
n ele contida, tem um a estrofe d ifícil, m as de grande b eleza, que
funde os sim b o lism o s paterno e materno: “E le encontrou Israel
em um a terra árida, / num deserto solitário e c h e io de u iv o s. /
C ercou-o, cu id ou d ele e o guardou / co m carinho, / co m o se
fo sse a m en in a de seu s olhos. / C om o águia que cuida de seu
ninho / e revoa por cim a dos filhotes, / ele o tom ou, estendendo
suas asas, e o carregou em cim a de suas p en a s...” (D t 3 2 ,1 0 -1 1 ).
Entre parênteses, n o trecho encontram os a im a g em dos o lh o s de
D eu s, um sím b o lo m uito querido ao Saltério, p ois o d iálogo
orante com p reen d e a contem plação: “C ontem plem -no e ficarão
radiantes” (SI 3 4 ,6 ; o verbo hebraico aqui usado para indicar a
contem plação e v o c a um a “esca v a çã o ”, um a “penetração”). “S eu s
o lh os con tem p la m o m undo, / suas pupilas exam inam os h o ­
m en s” (SI 1 1,4), co n seg u em devassar a noite, as trevas infernais
e 0 ventre da m ã e (SI 139); eis então a in v ocação apaixonada:
“Guarda-m e c o m o a pupila dos o lh o s” (SI 17,8), e o em p en h o do
fiel lu m in osam en te ex p resso p elo S a lm o 123; “Para ti eu levanto
os m eus o lh o s, / para ti, que habitas no céu. / C om o os o lh o s dos
escravos, fix o s nas m ãos do seu senhor, / e com o os olh os da
escrava, fix o s nas m ãos da sua senhora, / assim estão os n o sso s
olh os / fix o s e m Jhwh n o sso D eu s, / até que se com p ad eça de
n ó s” (SI 1 2 3 ,1 -2 ).
E, fin alm en te, sem pre no Saltério, leiam os um a d o c e e
breve oração q u e u sa o sim b olism o m aterno para indicar a rela­
ção existen te entre D eu s e seu fiel: “Eu fiz calar e repousar m eus
d esejos, / co m o criança desm am ada no c o lo d e sua m ãe” (SI
131,2). A criança descrita pelo poeta — fisio n o m ia ideal do fie l
plenam ente abandonado à con fiança em D eu s — foi vista m uitas
vezes com o o recém -nascido saciado e tranqüilo, depois de surgar
o leite do seio m aterno. N a realidade, o termo hebraico indica o
“criança desm am ada”, provavelm ente carregada pela m ãe às c o s­
tas, segundo o u so oriental. Ora, o desm am e o ficia l no Oriente
ocorria m uito tarde, por volta dos três anos, com um a solen e
cerim ônia tribal (Gn 21,8; IS m 1 ,20-23). A criança protagonista
do Salm o é descrita, portanto, em um laço de intim idade c o n s­
ciente com a m ãe, e não tanto num a relação de pura dependência
instintiva e b io ló g ica . A “infância espiritual”, exaltada pela m ís­
tica (p en se-se, por ex em p lo , em santa T eresa de L isieu x), supõe
um vínculo intenso e sereno entre a “m aternidade” de D eu s e o
abandono confiante do filho.

O p ro fe ta que se caso u com um a p ro stitu ta

T em os encontrado, aqui e ali, a figura do profeta O séias,


que viveu no século VIII a.C ., contem porâneo de A m ós. E por
sua história que agora nos interessarem os, um a história narrada
em seu livro, num a con fissão-desab afo, escrita em terceira p es­
soa, n o capítulo 1, e em prim eira pessoa, no capítulo 3, e inter­
pretada teologicam ente no capítulo 2, que é um adm irável “C ân­
tico dos C ânticos” em miniatura. O séias assum e, de fato, a pró­
pria in feliz experiência m atrim onial e fam iliar co m o sím bolo para
delinear o rosto de D eus co m o esp oso enam orado e traído. O
profeta assinala um a reviravolta na teologia da aliança, até então
confiada ao esquem a diplom ático-político-m ilitar do Sinai: re­
cordem -se, a tal propósito, os tratados de vassalagem do antigo
O riente Próxim o, nos quais talvez se tenha m odelado, no livro do
Ê xodo, a relação entre o Grande R ei, Jhwh, e seu vassalo, Israel.
A aventura humana e espiritual de O séias in icia-se com
um a estranha ordem divina que, na realidade, é o se lo de um
evento já em m ovim ento, destinado a receber um sign ificad o
transcendente: “D isse o Senh or a O séias: ‘Vá! T o m e um a prosti­
tuta e filh o s da prostituição, porque o país se prostituiu, afastan­
d o -se do Senhor’” (O s 1,2). A m ulher cham a-se G om er bat-
D iblaim , e é difícil saber se era um a sacerdotisa dos cultos se ­
xuais dos nativos cananeus (a B íb lia as d esign a com o título
depreciativo de prostitutas), ou se se tornou d epois, ou ainda se
era sim plesm en te um a adúltera; pode ser tam bém que a história
toda não tenha passado de um artifício literário-teológico para
desenvolver o tem a das atormentadas relações entre Jhwh e Israel.
E stam os con v en cid o s, tam bém pela intensidade das p ági­
nas de O séias, que se tratou de um a experiência autobiográfica
real do profeta, que transforma a própria d escid a ao inferno da
amargura e da tensão em um a parábola religiosa. D o seu ator­
m entado m atrim ônio nasce um prim ogênito, cujo nom e, Jezrael,
rem ete intencionalm ente à cidade onde foram consum ados os
delitos do rei A cab e da rainha Jezabel, culpados p elo assassin a­
to de um cam ponês h onesto, N abot (IR s 21 ), e pela im p osição a
Israel da idolatria cananéia-fenícia. Em Jezrael, verificou-se, além
disso, um golp e de Estado urdido pelo general Jeú e con clu íd o
com um banho de sangue (2R s 20). E sse m enino inocente traz,
por isso , um n om e ensangüentado e sim b ó lico . C om o sim b ólico
é tam bém o nom e, da m enina, segunda filha do profeta: L o ’-
ruham ah, “N ão-am ada” ; em seu nom e intui-se o term o raham im ,
já citado, que indica o amor “v isceral” fem in in o de D eu s. A
filha “O diada” e v o ca o am or d ivino desilud ido e sua rejeição
pela com unidade amada. A n álogo é o n om e esco lh id o para o
terceiro filh o L o ’- ’am m i, “N ã o -m eu -p o v o ”, isto é, “E stranho” ,
sinal da ruptura entre D eu s e seu p ovo, se é verdade que a
fórm ula típica para indicar a aliança era: “V o c ê é o m eu p o v o e
eu sou o seu D e u s” . É n este ponto que, no capítulo 2, se d esen ­
v o lv e um vigoroso solilóq u io de O séias, h om em traído m as apai­
xonado, que queria detestar a m ulher de sua vida, mas sem pre se
achava sutilm ente ligado a ela.
D iante dos filh os, o profeta institui um verdadeiro tribunal
judiciário: “P ro cessem a m ãe de v o c ê s, processem ! P ois ela não
é m ais m inha esposa, e eu não sou m ais o seu marido. Q ue ela
tire do rosto as suas prostituições e de entre os seios o seu
adultério. S e não, eu a deixarei com pletam ente nua, com o no dia
em que nasceu ” (O s 2,4-5). O séias pronuncia a fórm ula de d i­
vórcio ( “ela não é m ais m inha esp o sa e eu não sou m ais seu
m arido”) e am eaça co m o gesto oficia l da “condenação das adúl­
teras” (E z 1 6 ,3 7 -3 8 ), o do desnudam ento: um a v e z despojada de
sua dignidade de esp osa, G om er será um a estranha. O lancinante
canto do profeta apaixonado e traído introduz as palavras vu lga­
res pronunciadas pela m ulher, que dos am antes esperava m ais
presentes do que amor, quando sai de casa: “Eu vou com m eus
am antes; eles m e dão o m eu pão e a m inha água, a m inha lã e o
m eu linho, o m eu vinho e o m eu a zeite” (O s 2 ,7 ). Lautas refei­
çõ e s e abundância agrícola são, obviam ente, um a alusão ao bem -
estar que Israel esperava obter através dos rituais pagãos da
fertilidade. O m arido experim enta, então, adotar um a tática radi­
cal, trancando a m ulher em casa, im pedindo-a de encontrar-se
co m seus amantes: “V ou fechar c o m espinheiros o seu cam inho,
vou cercá-lo com um a barreira para que ela não encontre suas
veredas” (O s 2,8).
O lam ento de O séias abre-se, depois, quase que para um
sonho e um a esperança: abandonada pelos am antes, Gom er, d esi­
ludida, retomará seu lugar n o lar, que perm aneceu vago. Dirá,
usando o verbo “voltar”, que em hebraico tem tam bém o valor de
“converter-se”: “Voltarei para o m eu prim eiro marido: naquele
tem po, eu era bem m ais fe h z do que agora” (O s 2,9). O séias
sonha abraçar novam ente sua m ulher e celebrar co m ela um novo
noivado e um a nova lua-de-m el. E le a cortejará ainda; juntos,
voltarão aos lugares de sua juventude, ficarão unidos, sozinhos
na im ensidão do deserto, abraçados um ao coração do outro (em
hebraico tem os: “Eu lhe falarei com o coração”): “A gora, sou eu
que vou seduzi-la, vou lev á -la ao deserto e conquistar seu cora­
ção / ... / Lá ela m e responderá com o nos dias de sua juventude”
(Os 2,1 6 -1 7 ). É fácil perceber nas entrelinhas a experiência de
Israel no deserto, lugar da traição com o bezerro de ouro, mas
tam bém sed e da intim idade silen cio sa com o Senhor, que guiava
seu povo para a liberdade, nutrindo-o com o m aná e m atando sua
sede com a água da rocha. T am bém Jeremias colocará na boca de
D eus palavras cheias de ternura e nostalgia: “Eu m e lem bro do
seu afeto de jovem , do seu am or de noiva, quando v o cê m e
acom panhava pelo deserto, num a terra sem plantação” (Jr 2,2).
A m ulher amada pronuncia a palavra esperada: só tu és
meu hom em , m eu marido. O sonho de O séias parece ir além da
realidade: “N aq uele dia v o c ê m e chamará: ‘M eu m arido’ e não
mais: m eu Patrão’. V ou tirar de seus lábios o n o m e dos íd olos, e
e sse s nom es nunca m ais serão lem brados” (O s 2 ,1 8 -1 9 ). N a de­
claração da mulher, encerra-se sutilm ente o sign ificad o te o ló g i­
co que a história fam iliar do profeta está adquirindo: “patrão”,
em hebraico, é b a ’al, o term o co m o qual os cananeus cham a­
vam a divindade da fertilidade. N a boca de Israel, então, não
ressoa m ais a palavra da in v ocação idolátrica (“patrão”, b a a l ) ,
m as a da intim idade co m Jhwh, “e sp o so ” da com unidade hebrai­
ca (“m arido”). Por três v ezes, neste ponto, O séias, d irigindo-se à
m ulher perdida e reencontrada, proclam a a fórm ula m atrim onial:
“Eu m e casarei co m v o c ê para sem pre, m e casarei com v o c ê na
justiça e no direito, no am or e na ternura. Eu m e casarei com
v o cê na fidelid ade e v o cê conhecerá o Senh or” (O s 2 ,2 1 -2 2 ).
C inco são os dons nupciais: justiça, direito, ternura, am or e fid e ­
lidade. O dote nupcial m ostra a qualidade sim b ólica que o profe­
ta quer im prim ir à sua história p essoal, porque estas virtudes não
regem apenas a relação conjugal, m as tam bém a aliança entre
D eu s e Israel. T udo d esem b oca no verbo b íb lico do am or carnal
e espiritual, o “con hecer”, sinal de um a intim idade reconquista­
da entre O séias e G om er e entre D eu s e Israel.
O arremate do canto de amor que O séias tece no capítulo 2
de sua p rofecia rem ete-nos ao in ício do acontecim ento, quando
apareceram os três filh os tidos com a m ulher infiel. Seus nom es
— Jezrael (assa ssín io ), N ão-am ada e N ão -m eu -p ovo — eram
em blem as da tragédia do profeta e, sobretudo, da tragédia do
povo bíblico. Q uando, porém , o am or desponta novam ente no
horizonte, os n om es se transformam, indicando a n ova realidade
de alegria e de paz que se criou. O termo Jezrael é conservado,
mas no seu sentido etim o ló g ico de “sem en te de D e u s”, “sem ente
fecunda” ; a m enina N ão-A m ad a to m a -se A m ada e do N ão-M eu -
P ovo sairá M eu-P ovo: “Eu a sem earei na terra, terei com p aixão
de N ão-am ada e direi a N ão-M eu -P ovo: ‘V o c ê é o M e u -P o v o ’.
E ele responderá: M eu D eu s” (O s 2 ,2 5 ). A invocação final é a
ch ave interpretativa de toda a história: a aliança quebrada e v io ­
lada é reconstruída co m base em um a n ova relação de am or
entre D eu s e Israel. A sim b ologia nupcial, exig id a tam bém p elo
tipo de pecado perpetrado (a idolatria sexual), transfigura a anti­
ga aliança do S inai, tom ando-a m ais íntim a e m ais pessoal.
N as pegadas de O séias irá a p rofecia subseqüente. Já cita­
m os Jerem ias (2,2); con vidam os agora o leitor a ler o capítulo 54
de Isaías, um outro canto sim b ólico sobre o am or atorm entado e
resgatado entre Israel e Jhwh (“Por um instante eu abandonei
você, mas retom arei c o m infinito am or” [Is 5 4 ,7 ]). Ou o admirá­
v e l poem a de Isaías 6 2 ,1 -5 , que atinge píncaros de puríssim a
beleza: “C om o o jo v e m se casa com um a jo v e m , o seu criador
casará com você; co m o o esp o so que se alegra co m a esposa, seu
D eu s se alegra co m v o c ê ” (Is 62,5).

A m enina exposta

Q uerem os fazer um a m enção esp ecial a um determ inado


texto, dada sua originalidade estilística. R eferim o-nos à m onu­
m ental alegoria do capítulo 16 do profeta E zequ iel, uma página
sobrecarregada de retoques, repetições e inserções posteriores, e
livrem ente retom ada na história das duas irmãs O ola e O oliba
(“sua tenda” (dela), “M inha tenda (está) nela”), transposição m e­
tafórica dos dois reinos hebraicos de Jerusalém e de Samaria (Ez
23). Tam bém E zequiel, co m o O séias, viveu pessoalm ente uma
dram ática experiência am orosa. N ão pela traição daquela que ele
cham a ternam ente de “desejo dos m eus o lh o s”, mas sim pela
m orte repentina e prematura da esposa (Ez 2 4 ,1 5 -2 7 ), evento que
se tom ou sím bolo da tragédia do ano 586 a.C., isto é, da queda
de Jerusalém. A parábola da enjeitada do capítulo 16 é, porém,
com pletam ente fictícia: a sim b ologia do amor é agora diretam en­
te apHcada à tumultuada evolu çã o das relações entre Jhwh e
Israel; a exp hcitação é m ais clara; a insistência no julgam ento,
mais marcada. O apólogo é retratado com cores intensas e vivas,
típicas do estilo de E zequiel, um profeta que prim a p ela ênfase,
pela exuberância e pelo esplendor solen e do barroco literário.
A parece um a estrada à m argem da qual se v ê um a m enina
abandonada, ainda com o cordão um bilical, e toda suja de san­
gue; não fo i sequer lavada n em esfregada co m sal, com o era
costu m e no Oriente, por razões higiênicas e tam bém de sorte (o
sal in d ica paz e bem -estar). F ilh a ilegítim a de u m am orreu e de
um a m ulher hitita, portanto de origens bastardas e im puras, e x ­
posta “co m o objeto repugnante” num a estrada do deserto, a p e ­
quena cham a a atenção com seu grito: “P assei por aí, e vi você
se debatendo no seu próprio san gu e” (E z 16,6). U m rico andari­
lho, assem elhado ao Senhor, recolhe a pequena e a lev a para
criar; na verdade, o profeta, co m um a seqü ên cia efica z, im agina
que basta a sim ples p assagem do salvador para fazer florescer a
vida da enjeitada: “P assei por aí”, repete, “e a vi: notei que
estava na idade do am or... co m seio s firm es e os p êlos n ascen ­
d o ” (E z 1 6,7-8). C om o típ ico gesto nupcial, o Senhor estende a
borda de seu m anto e cobre a esplêndida m enina, fazendo-a
tornar-se m ulher e princesa. E le lhe dá banho, u n ge-lh e o corpo
co m ó leo , veste-a co m roupas bordadas, calça-a c o m sapatos de
couro fino, co lo ca -lh e um laço de linho, enfeita-a c o m pulseiras
n os p u lsos e colares no p esco ço , argola no nariz, brincos nas
orelhas e um a b elíssim a coroa na cabeça: “V o c ê se tom ava cada
dia m ais linda, e ia assum indo porte de rainha” (E z 16,13).
E is, porém , a reviravolta, assinalada por uma forte antítese:
“V o cê, porém , confiou dem ais em sua beleza. Sua fam a a tom ou
prostituta, e você passou a se entregar ao prazer com qualquer
transeunte” (Ez 16,15). A parábola tom a-se explicitam ente didáti­
ca: “prostituição” é o termo com o qual a B íblia define o pecado
de idolatria. A lém disso, logo em seguida se faz m enção às “altu­
ras”, isto é, as colinas sobre as quais se erigiam os santuários,
cujos cultos estavam infiltrados pelo paganism o cananeu; repete-
se o crim e do bezerro de ouro (“P egou as jóias de ouro e prata
que lhe dei, e com elas fez im agens de hom ens, com as quais você
se prostituiu” , [Ez 16,17]); realizam -se rituais de fertilidade para
obter farinha, azeite e mel; em suma, a fartura agrícola. A narra­
ção do profeta se amplia depois na representação do rio lam acen­
to de infâm ias, opróbrios, crim es e ignom ínias com etidos pela
“despudorada prostituta” (Ez 16,30). A recom pensa da m ulher a
seu salvador é uma penca de traições, um feix e de obscenidades e
selvagerias (os sacrifícios de crianças), um a enfiada de iniqüida-
des capazes de fazer inveja a Sodom a: soberba, gula, ócio despre­
zo pelo pobre e pelo indigente” (Ez 16,49).
S e a tônica recai na idolatria e nas abom inações a ela
equiparadas, não faltam os pecados contra o próxim o, no espíri­
to do D ecá lo g o . A história se tom a, por isso, cada v e z m ais
explícita, afigurando-se com o um ex a m e de con sciên cia a que
E zequiel queria subm eter. Israel para que percebesse a gravida­
de de seus atos, acentuada ainda m ais p ela perfídia do amor.
T odavia, segundo um a constante que não é ex clu sivam en te pro­
fética, m as de toda a teo lo g ia bíblica, o ú ltim o ato não é a
apoteose da traição. O am or do S en h or-esp oso não se rende,
co m o não se rendeu o de O séias, em relação à sua esp osa Gomer;
p elo contrário, triunfa. Sobre a vilania da p esso a amada. O esp o ­
so con vid a a esp o sa in fiel para um a n o v a e “eterna aliança” (E z
16,60), indestrutível e perene, aliança que não se estab elece pela
conversão da enjeitada-princesa infiel, m as antes, novam ente,
p elo am or gratuito e in v en cív el do S en hor-rei-esposo. D iante
d essa iniciativa, a m ulher “se lem bra e se en vergonha e, hum i­
lhada, nem quer m ais falar quando a perdôo por tudo o que fez
— oráculo do Senhor Jhw h” (E z 16,63).

A e ró tic a b íb lica

A alegoria teo ló g ica do amor flana nos céu s da metáfora,


liga-se ao m istério e recorta sign ificad os transcendentes e te o ló ­
g ico s. M as, co m o vim os no caso de O séias, ela d eco la da reali­
dade, tem um ponto de partida concreto. Contrariam ente à op i­
nião corrente, a B íb h a co n h ece o eros e o transfigura em amor,
sem nunca n egá-lo num ascetism o espiritualista. O sábio bíblico
se detém , perplexo, diante das “quatro realidades m isteriosas: o
cam inho da águia no céu, o cam inho da serpente nas pedras, o
cam inho do navio em alto-m ar e o cam inho do h om em com um a
jo v e m ” (Pr 3 0 ,1 8 -1 9 ). A antropologia do G ên esis v ê no casal a
plena realização do ser hum ano. O Salm o 4 5 canta em epitalâ-
m io a celebração das núpcias principescas; os sábios figuram a
relação co m a sabedoria em term os nupciais e eróticos; o E c le ­
siástico oferece um retrato fem in in o de grande b eleza e fascín io
(E clo 2 6 ,1 -4 .1 3 -1 8 ), e o livro dos Provérbios exorta o leitor a
viver 0 m atrim ônio com alegria e fidelidade: “B eb a a água da
sua cisterna, a água que jorra do seu poço. N ão derram e pela rua
a água de sua fonte, n em pela s praças a água d os seus riachos.
Sejam ela s som ente para v o c ê , sem repartir c o m estrangeiros.
Seja bendita a sua fonte, a legre-se co m a esp o sa de sua juventu­
de: ela é corça querida, g a z e la form osa. Que as carícias dela
em briaguem sem pre a v o cê, e o am or dela o satisfaça continua­
m ente” (Pr 5 ,1 5 -1 9 ).
o livro b íblico que, de m od o suprem o, exalta a pureza do
eros e do amor, sem nunca d isso ciá -lo s em erotism o e espiritua-
lism o, m as unindo-os na m aravilha de um sím b olo perfeito, é
certam ente S hir hasshtrim , o C ântico dos C ânticos, um superla­
tivo sem ítico para indicar o “canto por e x c e lê n c ia ”, o “canto
su b lim e”, o “H o h e lie d ”, co m o o traduzem os alem ães, isto é, o
canto m ais alto. Robert M u sil, em seu O hom em sem q u a lid a d es,
co lo ca na boca de um personagem seu esta adm irável definição:
“N ada há m ais b elo do que o C ântico dos C ânticos”. O ex egeta
se sente im potente para analisar a fragrância dessas 1250 pala­
vras (núm ero do original hebraico), distribuídas em 117 versos e
8 páginas: se nos for perm itido fazer um a co n fissã o pessoal, nós,
em n o sso com entário ao C ântico dos C ânticos, publicado em
1992, dedicam os a essas 1250 palavras de extrem a pureza quase
m il páginas de observações e citações, procurando, além d isso,
acom panhar o im enso paratexto que floresceu em torno texto
poético b íblico. C om o sintetizar, m esm o à gu isa de am ostragem ,
as retom adas alegóricas do p oem a bíb lico nos escritos cristãos
dos Padres da Igreja, na liturgia, na tradição m edieval e nas
ex e g e se s m odernas? C om o recensear o acervo ju d aico que, da
S in agoga à p oesia hebraica dos sécu lo s m ais recentes, se inspi­
rou no C ântico? Que dizer de sua influ ência sobre outras litera­
turas estrangeiras, que lhe reservaram um con sid erável espaço
em suas produções? E das traduções literais, poéticas e m esm o
dialetais (há um a no dialeto dos carbonários do N orthum berland
in glês, estab elecid o às m argens do T yne!)?
E 0 C ântico pintado? C aravaggio, no R ip o so n e lla fu g a in
E g ytto , retrata José, que rege, diante de um anjo que toca v io li­
no, a partitura de um m otete do com p ositor fran co-flam en go
N o él B auldew ijn, que retom a alguns versícu los do C ântico dos
C ânticos (Ct 7,7-8; 7,6a.5a; 7 ,1 2 a .13), enquanto C hagall nos d e i­
xou p elo m en os cin co ó leo s sobre tela, conservados no m useu
“A M en sagem B íb lica ”, de N ice. Isto para não falar d o im en so
“pentagram a” do C ântico, que atravessa a m úsica litúrgica, so ­
bretudo a mariana, a partir da p o lifo n ia renascentista, q u e triunfa
com Palestrina (29 m otetes sobre o C ântico); passando p elos
sécu lo s X V II, com M onteverdi, Charpentier, B u xteh u d e p elo
X V III, c o m H a e n d e l p e lo s é c u lo X IX , c o m o C a n tic u m
C an ticoru m op. 120, de B o ssi e pelo sécu lo X X , c o m H on egger,
B lo ch , P izzetti, Stravinski, B erio, P enderecki e até com a canção
The m an I lo ve, de G ershw in... S ão apenas algum as in d icações
para recordar um verdadeiro universo am oroso que encontrou no
C ântico sua estrela, co m o o dem onstram os am plam ente no n o s­
so com entário citado anteriorm ente. Outro ex eg eta do C ântico,
André Robert, afirm a que “não há livro b íb lico que tenha exerci­
do sobre a alm a cristã um efeito de sedução com parável ao do
C ântico. N enhum outro, ex c e to este breve p oem a, desafiou tanto
os esfo rço s d os intérpretes” .
A crítica tem o scila d o entre op ostos extrem os e infinitos
m atizes: hino ao am or hum ano, celebração do am or nupcial en ­
tre D eu s e Israel, canto do eros e da paixão, charada alegórico-
espiritual, densa de criptogram as por decifrar, partitura de um
ritual litúrgico, cop ião de um drama pastoral ou sacro... T alvez
tenha razão, p elo m enos à vista d esse carrossel de interpreta­
ç õ e s, um antigo com entarista rabínico, Saadia ben Josef, que
com parava o C ântico a um a fechadura cuja ch a v e se perdeu
(im agem m ais ou m enos incon scien tem en te erótica). N um a ver­
tente extrem a, co lo ca -se a e sc o la ex eg ética ironicam ente cham a­
da “é c o le volup tu euse”, que lê o poem a co m o um a variante da
p o esia erótica oriental. Renan, por exem p lo, a sso cia v a o C ântico
ao E clesiastes, para afirmar que são, respectivam ente, “um libreto
erótico e um optísculo de V oltaire escond ido entre as grandes
páginas in f o lio de um a b ib lioteca de teo lo g ia ” . A tal con cep ção
“literal”, no sentido m ais rígido do termo, o p ô s-se , na outra
extrem idade, a interpretação alegórico-espiritual, triunfante no
ju d aísm o e na ex e g e se cristã antiga, que co m paixão entrevia no
C ântico a celebração da relação entre D eu s e Israel, entre D eu s e
a Igreja, entre Cristo e a alm a, entre o Espírito Santo e M aria. O
texto, aparentem ente erótico, tom ava-se um en igm a cifrado que
continha outros am ores e outros personagens, não m ais carnais,
m as espirituais.
A ssim , a b elíssim a afirm ação da m ulher em Ct 1,13 — “O
m eu am ado é para m im um saquinho de mirra repousando entre
m eus s e io s ” — , co m a im agem original do saquinho de mirra
que “repousa” entre seus braços, representação do abandono ter­
no e perfum ado dos dois enam orados no abraço de am or, ev o ca ­
ção de u m refúgio sereno, sem elh ante a um jardim d e d elícias,
to m a -se, na interpretação alegórica, uma d escrição do gabinete
n otu m o do fiel, que lê os “dois se io s” do A n tigo e do N o v o
T estam ento. D eixan do entre parênteses os m ú ltiplos m atizes do
espectro herm enêutico, que vai de um extrem o ao outro, o hiper-
realista e o hiperespiritual, estam os con v en cid o s de que esse
p oem eto , de fascinante sonoridade no original hebraico (a m étri­
ca b íblica não é quantitativa, m as jo g a com as cores dos sons), é
um texto saborosam ente sim b ó lico , onde “sím b o lo ” não d ev e ser
entendido na acepção popular de vaga im agem e m etáfora, m as
em seu valor esp ecífico de realidade concreta, que con tém um a
potencialidade ulterior de sign ificado. O sím bolo, do grego 5 ym -
b a llein , “juntar”, reúne em si “um fe ix e de sig n ifica d o s” (M ircea
E liad e) sem dispersa-los, m utilá-los nem adulterá-los.
O C ântico parte, portanto, do eros, do am or conjugal em
sua plenitude carnal, mas en v o lv e m últiplas iridescências e vai
além . O amor hum ano plen o, em que tam bém corporalidade e
eros estão em com unhão, sem se d isso lv er no espiritual, atinge
naturalm ente, por assim dizer, o m istério do am or que tende ao
infinito e p ode chegar à realidade transcendente e divina. A té
G uido Ceronetti, em sua discutível e um p ou co apressada inter­
pretação erótica do C ântico, reconhece que “a leitura erótica não
tem sentido se o leito dos am ores não for ilum inado por um a
pequena lâm pada que clareia, através daqueles am ores transpa­
rentes, o A b scô n d ito ” . H ino m últiplo e variado do amor, o C ân­
tico celebra hum anidade, paixão e eros, m as tam bém a cap acid a­
de do am or hum ano de ser sinal de infinitude, de plenitude, de
totalidade. Plantado na terra, o am or hum ano autêntico floresce
e ram ifica-se n os céus. N ão é exangu e e incipiente m etáfora de
sign ificad o s espirituais, e sim , justam ente em sua genuína reali­
dade humana, sed e de um a teofania. O nde hom em e m ulher se
amam de m odo verdadeiro e com p leto, surge o m istério do A m or
suprem o divino. A i, porém , se se quebra e sse sím bolo: terem os
som ente corpos agarrados ou anjos dançantes, e não a realidade
da sexualidade, do eros, do amor e do ágape (o A m or), entreteci-
d os na harm onia de um sinal perfeito.

O g om o de ro m ã

A partitura do C ântico foi objeto de infinitas “radiografias


literárias”, que o dividiram em um núm ero instável de unidades
ou partes: v a i-se das quatro cogitadas por Rainer K essler às 52
(sic!) de L eo K rinetzki. Q uerem os agora propor um guia para a
leitura breve e sim ples do C ântico, em d oze etapas, na esperança
de que os leitores se d eix em conquistar p elo original na sua
integridade, na sua tenra b eleza, no seu “jardim de sím b o lo s” . É
sobretudo a sim b ologia que tom a o texto tão fragrante. A sim bo-
lo g ia d o amor; aquele ‘aní, “eu ”, m artelado, o célebre d ô d i,
“m eu am ado”, que e co a 38 v e z e s, pelo m en os na sua raiz dw d,
que p ode ser um a referência a D a w td , “D a v i”, e toda a lingua­
g em da paixão (“am or de m inha alm a”, “fascinan te”, “encanta­
d o”, “m inha com panheira, esposa, n oiva”, “m inha p erfeição”,
“ú nica”, “m inha pom binha” ...). A sim b o lo g ia do corpo: do rosto
ao seio , dos cabelos aos pés, passando por todos os m em bros,
vistos co m o um sinal de b eleza, m as tam bém co m o instrum ento
de com u n icação, de eros, de intim idade, de referência a outros
horizontes (em particular à terra tão amada, a terra prom etida). E
depois a sim b ologia vegetal, acom panhada de um a festa de per­
fum es: videiras, lírios verm elh os palestinos, narcisos, cedros, ju-
níperos, m açãs, m andrágoras, palm eiras, trigo, plantas odorífe-
ras, figueiras, sarças, nogueiras e a apreciadíssim a rom ãzinha
sím b olo de fem inilidade e de fecundidade: “M etades de romã
são suas faces m ergulhadas sob o véu /.../ Eu o levaria e introdu­
ziria na casa de m inha m ãe, / e v o c ê m e iniciaria. / Eu lhe daria a
beber vin ho perfum ado / e licor de m inhas rom ãzeiras” (Ct 4,3;
6,7; 8,2). U m estudioso já citado, Roland de V aux, observa que
“ainda hoje, no casam ento dos cam p on eses ou dos beduínos da
Palestina, se quebra, na porta da casa ou na entrada da tenda dos
n ovos esp o so s, um a romã cu jos grãos sim b olizam os num erosos
filh os que se lhes deseja” . O sim b olism o animal: por sobre o
jardim do C ântico voejam pom bas, em blem a de amor, ternura,
fidelidade e fecundidade; dentro d ele saltitam cervos e gazelas,
marcham rebanhos, correm ca v a lo s, leõ es e leopardos, há corvos
e raposas, abelhas e vacas. A com p anh em os a trama delicada,
mas su gestiva, do livro sagrado, no qual “D eu s fala a linguagem
dos apaixon ad os” (R aym ond J. T ou m ay).
O s b e ijo s d e sua b o ca (C t 1,1-4): esta apaixonada estrofe
inicial é quase o prefácio p o ético no qual, co m o na sin fon ia de
uma ópera lírica, se enunciam e se condensam os tem as que
serão am plam ente d esen v o lv id o s na com p o siçã o subseqüente. A
m ulher, o hom em e o coro estão já em cena, bem co m o o pano
de fundo da natureza. T udo co m eça co m um beijo inebriante:
“B eije-m e co m os beijos de sua boca! / Sim , m ais inebriantes do
que o vinho são as suas carícias, / m ais inebriantes do que o odor
do seu perfu m e!” (1 ,2 -3 ).
U m a bu sca na ta rd e en so la ra d a (Ct 1,5-8). Im ersa na
im obilidade de um a tarde ensolarada e absorta do Oriente, na
atm osfera rarefeita e carregada de m iragens, co m os rebanhos
recolhidos em volta de um p oço , ou sobre um pico m ais arejado,
ou em um d os e sca sso s o ásis, esta cen a m ostra um a figura fem i­
nina que corre sôfrega por entre um bivaque e outro dos p asto­
res, à procura do “amor da sua alm a” . A objetiva do poeta d eixa
o cam po lo n g o da tarde para fixar-se no rosto da mulher, em sua
p ele escura, bronzeada por um sol im placável.
O d u eto d o en con tro (Ct 1 ,9-2,7). E le e ela finalm ente se
encontram , e o poeta fo ca liza seu d iálogo de amor, em oldurado
de felicid a d e e p ovoado de im agens m uitas v e z e s exóticas: fio s
de pérolas, brincos, o perfum e intenso do nardo, o saquinho de
mirra, o cacho de cipro florido, as pom bas, as flores e as árvores,
a poldra da carruagem do faraó, a adega, os b olos de passas,
alim ento afrodisíaco... M as no centro da cena estão os dois ena­
m orados, abraçados em um Éden m aravilhoso, sobre um ex u b e­
rante leito de relva, em um quarto cujas paredes são cedros
altíssim os e cujo teto é com posto p elo entrelaçam ento das copas
arrancadas dos juníperos e dos ciprestes. T odo o fa scín io da
cena é exp resso com um d ístico construído, em hebraico, com
apenas cin co palavras: “Sua m ão esquerda / está sob m inha ca­
beça, / e com a direita ele m e abraça” (2,6).
A su rp re sa d a p rim a v e ra (Ct 2 ,8 -1 7 ). D e m anhã, após
um a n oite de espera e de distância, o am ado está para chegar à
casa de sua amada. E la sabe que o s lo n g o s e m elan cólicos dias
ch u vosos de inverno, sím bolo de desam or, acabaram: a desejada
prim avera, sím bolo da proxim idade e da festa do amor, voltou
com sua brisa tépida, o farfalhar das folh as novas, o perfum e das
flores, o germ inar das videiras e das figueiras, a corrida v e lo z
das raposas, os cantos d os podadores, o arrulhar da pom ba. U m
grito sufocado sai dos lábios da mulher: “U m rumor! É o m eu
am ado!” E le, de fato, está junto do gradil da janela e olh a para
dentro: sua agilidade o to m a sem elhante ao cabrito, celebração
da juventude. Sua v o z é um con vite à fruição da primavera,
dep ois da n év o a glacial do inverno: “L evan te-se, m inha amada, /
form osa m inha, venha a m im !” (2 ,1 0 .1 3 ). A m ulher pronuncia a
sua grande profissão d e am or, escan did a p elo so m i d o pronom e
da prim eira p esso a do singular: d ô d i lí w a ’a n i lô... ‘ani le d ô d i
w e d ô d t li, “o m eu am ado é m eu e eu sou d ele... eu sou do meu
am ado, e o m eu am ado é m eu” (2 ,1 6 e 6,3). O hom em , por sua
vez, com para a amada à pom ba que faz seu ninho nas fendas dos
pen h ascos, anim al que é exp ressão sim b ó lica da solicitu d e e da
fidelidade. T od o o paralelo é centrado no rosto e na v o z, na luz e
no som . A esp o sa é a pom ba que se fecha, enquanto o esp oso
im plora-lhe que revele seu rosto e sua voz: “d eixe-m e ver sua
face, / d eix e-m e ouvir sua v o z / p ois sua face é tão form osa / e
tão d o ce sua v o z !” (2 ,1 4 ).
D e noite, na c id a d e (C t 3 ,1 -5 ). Este é o prim eiro dos dois
“noturnos” que o C ântico nos apresenta na seqü ência dos seus
quadros, um a seqüência que pod em os definir com o im pressio­
nista. O am or não exclu i o tem or; a presença às v e z e s faz contra­
ponto co m a ausência. Por alguns considerada c o m o um a cena
onírica, en volta na n év o a do sonho, o trecho é escan d id o pelos
verbos “procurar-encontrar” e pela intensa expressão “am or da
m inha alm a”, co m a qual a m ulher defin e seu d ô d i, o amado
perdido e reencontrado.
A lite ira d e S a lom ã o (C t 3 ,6 -1 1 ). C ham ada de “procissão
nu p cial”, esta parte, a sexta da nossa divisão estrutural, é um
fragm ento de bravura estilística, talvez o trecho de um epitalâ-
m io incrustado no poem a. A liteira de Salom ão, acom panhada
de um a esco lta armada, é descrita quase com o um a obra a cinzel
e revigora a representação — aqui e ali notada n o C ântico e
fam osa no antigo e n ovo O riente — do casal nupcial co m o casal
real que avança, solene, no dia da celebração das núpcias. N o
palanquim aparece apenas S alom ão, o rei, que p ou co a pouco
abre esp a ço para o “am ado”, o protagonista do C ântico.
''Seus se io s com o f d h o te s d e g a ze la ” (C t 4 ,1 -5 ,1 ). R einsta­
lado 0 silên cio , após a grandiosa procissão nupcial, levanta-se o
canto de am or do esp o so . A atm osfera deveria ser aquela da
intim idade na tenda nupcial. O C ântico não tem um a seqüencia-
lidade, m as procede por “im p ressõ es”, oscilan d o entre p osse e
conquista, espera e encontro, noivado e casam ento, intim idade e
ausência. O am ado entoa o prim eiro dos dois w a s f (cantos eróti­
c o s da p o esia árabe que deram nom e a u m gênero literário),
tendo no centro o retrato da m ulher. E is, em sín tese, os com p o­
nentes deste canto do corpo fem inino. Atrás do véu nupcial, vê-
se o brilho dos olh os encantadores e v iv íssim o s, en trevê-se o
negrum e d os cab elos, em contraste co m a alvura dos dentes. N o
feitio típico do wasf, as im agens se contraem e exp lo d em em
cores e — no original — em delicadas variações sonoras. F io de
púrpura são o s lábios, g o m o d e rom ã é a face, firm e e altaneiro é
0 p esco ç o , qual torre que se ergue para o céu, enquanto o seio
livre, sob as v estes, fa z lembrar ao poeta o saltitar dos filh o tes de
gazela na pradaria. U m canto puro, não obstante a forte carga
erótica, que é a contem plação da b eleza e da harm onia. U m
canto que se expande, dep ois, em um outro retrato da mulher,
desta v e z im ersa, ou p osta em co n ex ã o alusiva, co m um p a rd e s,
isto é, co m um “paraíso”, o florido jardim persa que d escrev e­
m o s em relação ao Éden (Ct 4 ,8 -5 ,1 ). O texto, de refinadíssim a
elaboração e de fascín io in esq u ecív el, abre-se co m o verso “C o­
m ig o venh a do Líbano, ó esp o sa !” , que D ante retom a no P u rg a ­
tó rio quando, em um a nuvem de flores levantada p elos anjos,
aparece B eatriz coberta, “e um d eles, quase p elo céu p osto, /
Venha, esposa, d o L íban o cantando / grita três v ezes, e todos os
outros d ep o is...” {P u rg a tó rio X X X , 10-12).
D e n oite, a a u sên cia d o a m a d o (Ct 5 ,2 -6 ,3 ). D ep o is da
em briaguez do encontro n o “jardim ” , c o m um a de suas não raras
m udanças bruscas de cena, o C ântico nos leva para um horizonte
com pletam en te diferente: a claridade solar precedente é substitu­
ída por um noturno (o segundo, d ep ois d aquele de 3 ,1 -5 ), no
qual ao abraço sucede a solidão, à presença, a ausência. O e p isó ­
dio é linear e co m eça com o surpreendente: “Eu dorm ia / m as
m eu coração v elava, que em hebraico soa: ‘ani je sh e n a h w e lib b i
‘er, “eu estava adorm ecida, m as m eu coração, vigilan te” (5 ,2 ). A
m ulher, fechada em seu quarto, não receb e o am ado, m as, por
hábito ou por preguiça, deixa-o ir em bora. L ogo, porém , bate o
arrependim ento, ou a saudade, e a protagonista sai em frenética
b usca pela cidade, m ergulhada em trevas, on d e é vítim a d e um
desagradável incidente com os guardas da ronda. U m dueto c o m
o coro perm ite à m ulher esboçar um apaixonado retrato do corpo
do seu am ado, segundo os cânones do gênero literário que o
esp o so usara na página precedente para representá-la. U m desta­
que do coro introduz um a quadra final de poucas pinceladas, que
não d escreve, apenas m ostra a alegria do reencontro. Sem pre
subsiste o m edo; a com unhão nunca é perfeita e e x ig e um a co n ­
tínua busca e purificação que ajude a superar o s percalços e as
crises. A o final, porém , tudo se resolve, e os d ois estão ainda
juntos, enquanto ela, verdadeira protagonista do C ântico, repete
sua profissão de amor: “Eu sou do m eu am ado / e o m eu am ado
é m eu !” (6,3).
O n o vo can to d o c o rp o fem in in o (Ct 6 ,4 -7 .1 0 ). Superada a
n oite de ausência, a palavra passa a ele, ao ausente por e x c e lê n ­
cia, que proclam a o am or p ela própria mulher. S eg u in d o o fluxo
em espiral da p oesia do C ântico, volta-se a um canto do corpo
da amada, no qual, num a e sp é c ie de ca leid o scó p io , reaparecem
cores e sím b olos con h ecid os e surgem outros, n o v o s. O fio c o n ­
dutor deste trecho é a “u n icid ad e” : a esp osa é única; ela, e so ­
m ente ela, p ode saciar o desejo de b eleza e de am or do seu
amado; só ela preenche o v a zio e o desejo do coração. M as o
lo n g o canto encontra seu cam inh o em um outro retrato da m u­
lher (é o terceiro ou o quarto desde o co m e ç o do C ântico),
palpitante, pleno, de m ovim en to, de entrega v eem en te, d e eros.
O perfil fem inin o é agora desenhado de m od o “ascendente”,
partindo dos pés, irresistivelm en te ritm ados p ela dança; “V ire-
se, vire-se, Sulam ita, / vire-se, vire-se, / querem os adm irá-la!”
(7 ,1). E m seguida, d escrev em -se novas partes do seu corpo,
acom panhadas de outras tantas com parações, segu ndo um a nar­
ração que não con h ece pruridos ou m elindres puritanos. À m u­
lher se atribui o título de Shulam m it, interpretado de maneiras
diversas, m as co m certeza ligad o à raiz hebraica shlm , presente
tam bém n o n om e de Salom ão, evocadora de paz e perfeição,
serenidade e plenitude, intensidade e beleza.
N a s vin has e em c a sa d e m inha m ãe (Ct 7 ,1 1 -8 .4 ). E m um
díptico, entram ainda em cen a e le e ela: o prim eiro quadro é
cam pestre e prim averil, en v o lto no frescor da manhã; o segundo
é, ao contrário, urbano. A s rígidas co n v en çõ es orientais im p e­
diam a espontaneidade das efu sõ es em público, m esm o entre
esp osos. A m ulher parece, então, abandonar-se a um sonho: se o
esp o so fo sse seu irmão, ao andar pela rua, poderia beijá-lo livre­
m ente. Im agina depois lev á -lo à casa de sua m ãe para viver sua
aventura am orosa. É su gestivo o entrelaçam ento p sico ló g ic o e v o ­
cado p ela m ulher, que desejaria quase experim entar com o am a­
do toda a gam a de amor: co m o am iga, irmã, m ãe e am ante. “Sua
m ão esquerda está sob m inha cabeça, / e com a direita m e abra­
ça. / E sconjuro-as, filhas de Jerusalém: / não despertem , não
acordem o amor / até que e le o queira!” (8 ,3 -4 ).

E ro s e T ânatos

C hegam os agora ao vértice do Cântico: vinte palavras em


hebraico (as fundam entais, que se tom am 4 8 co m os advérbios e
o s indicadores do acusativo), centradas sobre o eterno d ilem a
entre Eros e Tânatos, entre A m or e M orte. A celebração do amor
atinge seu ápice, revelando a centelha divina que n ele se encerra.
N ada m ais poderá conspurcar esta realidade que parece partici­
par da própria esfera de D eu s.
‘azza h k a m m a w et ‘a h abah (Ct 8 ,5 -7 ), “o am or é forte, é
co m o a m orte”, frase tão célebre que se tom ou título de um
rom ance de G uy de M aupassant. O texto, no seu ápice, soa do
seguinte m odo: “G rave-m e com o selo em seu coração, / com o
selo em seu braço; / pois o amor é forte, é co m o a morte! / Cruel
com o o abism o é a paixão. / Suas cham as são cham as de fo g o , /
um a faísca de Jhwh! / A s águas da torrente jam ais poderão /
apagar o amor, / nem os rios a fo g á -lo ” (8 ,6 -7 ). O selo de autenti­
cação dos d ocum entos representa quase a própria p esso a e sua
identidade: no am or — d iz a m ulher — esp ecifica -se a transm u­
tação, dando-se e p ertencendo-se reciprocam ente. A M orte se
insurge in exorável contra a V ida que tem no A m or sua suprem a
expressão. A s cham as do A m or são, porém , in d ebeláveis, são
com o d iz o original, “um a faísca de Jah". P ela primeira e única
v ez, cita-se no C ântico o n om e d ivino (na form a abreviada Jah,
de Jhwh): aí e le tem um valor de superlativo e, ao m esm o tem ­
po, quer revelar a qualidade transcendente do amor hum ano au­
têntico. O sím b olo do fo g o suscita por antítese aquele da água
caótica, sign o prim ordial do nada e da m orte, da v io lên cia e da
anticriação. A força do nada e do ó d io não pode desfazer o nó do

10. A n a rr a iiv a ...


ciúm e, entendido — ■co m o já vim o s — no sentido de um a p osse
tutelada e p essoal, de um a paixão ardente, própria tam bém de
D eu s. O am or participa da eternidade e da infinitude de D eus.
M u ralh a e vinh a (8 ,8 -1 4 ). O C ântico parecia ter atingido
seu vértice na seção precedente, mas eis que, depois daquele
“agu d o” quase extrem o, a trama p oética continua em form a de
anticlím ax, com o d izem os estu d iosos, isto é, num “calando”
inesperado. N ão querem os n em p od em os resolver aqui os e n ig ­
m as deste final. R ecordam os apenas que o apelo co n clu siv o do
C ântico é a fuga, deixando para trás os in teresses, os fam iliares,
o cotidiano, as con ven ções: “Fuja lo g o , m eu am ado, com o gam o,
/ um filh o te de gazela / p elo s m ontes de b álsam os” (8 ,1 4 ). A
últim a palavra do livreto é, portanto, “bálsam o”, perfum e exalá-
vel em um m onte ideal da transfiguração. A últim a im agem é a
da gazela, im agem de vivacid ade e m ovim en to, conotando viço,
jovialid ad e. O últim o termo am oroso é d ô d i que, co m o sabem os,
é o m ais tem o e intenso que o C ântico utiliza. A últim a realidade
é, portanto, a intim idade, a com unhão, que nunca é d efin itiva­
m ente alcançada, devendo ser sem pre conquistada, enquanto rea­
lidade infinita e divina.
Q uisem os oferecer a partitura do C ântico, em bora de m odo
esq u em á tico , porque desejaríam os que fo sse lid o integralm ente
n a sua m onum ental b eleza . O rígenes, o grande m estre cristão
de A lexa n d ria do E gito, afirm ava: “F e liz aquele que com p reen ­
de e canta o s cân ticos da S agrada Escritura! B e m m ais feliz,
entretanto, é quem canta e co m p reen d e o C ân tico dos C ânti­
c o s !” E le c o n se g u e m ostrar n ão só a c o n cep çã o an trop ológica
b íblica, unitária na sua celeb ração de corpo e alm a, de eros e
amor, de concretud e e espiritualidade, m as tam bém a v isão
te o ló g ic a segu n d o a qual D e u s d eix o u m arcas e v e stíg io s de si
na realidade criada. O am or d iv in o é c o g n o sc ív e l partindo-se
daquela cen telh a sagrada in serid a no amor total e autêntico do
casal hum ano. Por isso , após fo ca liza r as histórias de am or dos
profetas, que exp licitam a reverberação divina, q u ise m o s pro­
por 0 C ântico, que contém e m si, co m o um a p érola, o reflex o
c e le s t e , se m e x p lic it á - lo , m a s d e ix a n d o - o u n id o “ s im ­
b o lic a m e n te ” no amor hum ano.
Enquanto filh os de um D eus de amor, os fiéis devem ,
segu n d o a B íb lia, amar o pai do am or e os outros irm ãos da
fam ília de D eus. N o D ecá lo g o , aos três m andam entos te o ló g i­
cos, seg u em -se os sete preceitos sociais. A s razões da justiça,
expressas na lei de talião — m uito apressadam ente considerada
vingativa, m as na realidade apenas orientada para a ju stiça dis-
tributiva — , não são alternativas às do am or, co m o adverte o
L ev ítico na fam osa p assagem citada por Jesus e já referida por
nós: “N ã o guarde ódio contra seu irm ão... N ão seja vingativo,
nem guarde rancor contra seus concidadãos. A m e seu próxim o
com o a si m esm o ” (Lv 1 9 ,1 7 -1 8 ). N a letra do texto, o “p róxim o”
é d efinid o com o “filh os do seu p o v o ”, circunscrito, portanto, a
Israel. T odavia, dem onstram os co m o se operou, no próprio A n ti­
go T estam ento, um a abertura universalista, dem andada particu­
larm ente p elo s profetas e p elos sábios, após a experiência do
e x ílio na B abilônia.
O amor ao próxim o, preceito firm em ente enfatizado pelos
profetas, perm anece, d e qualquer m odo, co m o um am or que
d eve ter por objeto privilegiado os pobres. O sonho é um a so c ie ­
dade na qual “não haverá nenhum pobre” (D t 15,4); por isso , “se
no seu m eio houver um pobre..., não endureça o coração, nem
fech e a m ão para e sse irmão pobre. P elo contrário, abra a m ão e
em preste o que está faltando para ele, na m edida do que o n e c e s­
sitar” (D t 1 5,7-8). E o s sábios aconselham : “N ão se recuse a
ajudar o pobre, e não seja in sen sív el ao olhar dos necessitados.
N ão faça sofrer aquele que tem fom e, e não piore a situação de
quem está em dificuldade. N ão perturbe m ais ainda a quem já
está desesperado, e não se negue a dar algum a co isa ao n e c e ssi­
tado. N ão rejeite a súplica de um pobre, e não d esv ie do in d igen ­
te o seu olhar. N ã o d esv ie o olhar d aquele que pede algum a
co isa ...” (E clo 4 ,1 -5 ).
O am or esten d e-se ao inim igo: tam bém neste caso, é pre­
c iso afastar a co n v icçã o segundo a qual, para o A ntigo T esta­
m ento, em relação ao adversário, vale apenas a lei de talião.
S ign ificativ a a e s s e respeito é a norm a co d ificad a no C ó d ig o da
aliança do Sinai: “S e v o c ê encontrar, extraviados, o boi ou ju ­
m ento do seu adversário, lev e-o s ao dono. S e v o cê encontrar o
jum ento do seu adversário caído debaixo da carga, não se d es­
vie, m as ajude a erg u ê-lo ” (E x 2 3 ,4 -5 ). Há, portanto, a c o n v ic ­
ção de que existem instâncias superiores que lev a m a superar a
hostilidade. A utopia do Israel b íblico é um a com unidade que
exprim a na sua ex istên cia um ideal de fraternidade. É o que diz
poeticam ente o S alm o 133, sem elhante a um a m iniatura a ser
posta em um tríptico c o m os S alm os 127 e 128, que exaltam a
unidade fam iliar co m o raiz daquela sociedade. É um canto da
fraternidade reh giosa que se estende por toda a com unidade ci­
v il, em um retrato idealizado e otim ista de um p ovo no qual
reinam a concórdia, a paz, a alegria. Leonard B em stein m usicou
a abertura do Salm o 133, co m o em b lem a de união fraterna, reli­
g io sa e humana, nos seus C h ich ester P salm s.
“V ejam co m o é bom , co m o é agradável / os irm ãos v iv e ­
rem unidos. / É co m o ó le o fin o sobre a cabeça, / descen d o pela
barba, / a barba de Aarão; d escend o / sobre a g o la de suas
vestes. / É com o o orvalho do H erm on, d escen d o / sobre os
m ontes de Sião. Porque aí Jhwh manda a bênção / e a vida para
sem pre” (SI 133,1-3). O salm ista esco lh e um a sim b o lo g ia um
p ouco exótica, ligada a duas realidades preciosas para o oriental,
o óleo e o orvalho, para indicar o que representa o amor na
com unidade religiosa e civ il. O ó le o é sinal de hospitalidade, de
cordialidade e de alegria, m as é tam bém a matéria da consagra­
ção sacerdotal e real. Por isso , a im agem que o salm ista adota é
a da consagração de um sacerdote, tipificado em Aarão, o pai do
sacerdócio b íb lico. A fraternidade é um a força sagrada que per-
vade todo o ser de Israel, seu próprio físico (a barba é sinal de
virilidade e de vitalidade) e sua dignidade (as v estes). Já o orva­
lho, num a situação g eo clim á tica árida com o a da Palestina, é
sinal im ediato de vida e de alegria. A fraternidade é o orvalho da
vida p esso a l e nacional. O m on te Herm on é o m ajestoso cum e,
perenem ente nevado, que assinala o lim ite setentrional da terra
prom etida. O poeta sonha em ver o rico orvalho do H erm on
difundir-se de m odo prod igioso, inundar m ilagrosam ente a terra
santa, en v o lv en d o em seu exuberante manto tam bém as lon gín ­
quas e áridas colinas de Jerusalém . O amor deve, portanto, per­
mear e fecundar todo o m apa espiritual e social do p o v o dos
filh os de um D eu s de amor.
XII
Qual DeiisP

Q u e grande nação tem um D eu s tão próxim o, com o


Jhwh n o sso D eus, todas as v e z e s que o in v o ca m o s?” A s palavras
colocad as na b oca de M o isés pelo D euteron ôm io (4,7) celebram
lum inosam ente a constante co n sciên cia das Escrituras hebraicas
de serem exp ressão de um a presença divina. U m a presença que
banha a história, dirige o co sm o e acom panha até o m ais co m e-
zinho e poeirento cotidiano. N o Salm o 76 , declara-se com alti­
vez que “D eu s é con h ecid o em Judá” (7 6 ,2 ), e o “con h ecer”
sem ítico é m uito m ais do que um a aventura intelectual: é um a
experiência integral de relação e com unhão.
A o final deste périplo histórico e id e o ló g ic o p elo A n tigo
T estam ento, procurem os articular n o sso discurso, não para um a
sín tese final — sintéticas já foram as etapas da peregrinação
p elo s desertos e pelo s jardins reais e sim b ó lico s — , m as para um
últim o perfil que sele n o sso p asseio textual.

A B íb lia nem se m p re tem razã o

O popular e deletério livro do jornalista W em er K eller,


L a B ib b ia a v e v a ragion e, difundiu, tam bém no m undo leig o ,
um a co n v icçã o que os teó lo g o s e os leitores atentos da B íb lia
evitam endossar: a de que as Escrituras constituem um repertó­
rio d e doutrinas espirituais, literárias, históricas e cien tíficas,
verdadeiras e in falíveis. O fundam entalism o radicalizou esta co n ­
vicçã o , chegando a afirmar que a verdade está na própria “letra” ,
ou seja, na form ulação lingüístico-Iiterária, assum ida d e m od o
cristalizado, de tais doutrinas. C om o reação, foi fácil aos “cé ti­
c o s ” ou aos “libertinos” do passado e do presente dem onstrar
que a co sm o lo g ia b íb lica é m ítica, que a terra não é um a plata­
form a, que o geocen trism o é insensato, que N o é estava já na
M esopotâm ia, que a lebre não é um rum inante, co m o se afirma
no L ev ítico (1 1 ,6 ) e no D euteronôm io (1 4 ,7 ), que o ep isód io da
descoberta de M o isés em um cesto sobre as águas faz parte da
lenda do rei Sargão de A kkad, que os dados sobre a conquista da
terra de Canaã são incoerentes, que a p erigosa m escla de prodí­
gio e história com prom ete m ais de um a página b íblica... O mal-
estar provocado por a leg a çõ es co m o essas é d esfeito por gente
co m o K eller, com seus elaborados e até divertidos “concordis-
m o s”, co m esforços sobre-hum anos e totalm ente inesperados,
com seus m aldissim ulados subterfúgios e truques variados.
É n ecessário, portanto, rebater p elo m en os duas pressupo­
siçõ es que nortearam n o sso percurso. O prim eiro con vid a-n os a
considerar a B íb lia co m o livro relig io so em sentido estrito, o que
não é ób vio, dados os inoportunos questionam entos a que m uitos
— crentes ou não-crentes — subm etem o texto b íb lico, além das
falsas expectativas que têm a seu respeito. A finalidade prim or­
dial das Escrituras é oferecer, através de m eio s e linguagens a
serem defin id os e interpretados, um a visão de D eu s, um m od elo
de vida m oral, um a co n cep ção teo ló g ica do m undo e da história.
É esta a “verdade” com a qual a B íb lia se com prom ete, à qual
faz referência o fiel e pela qual se interessa tam bém o agnóstico,
d esejoso de conhecer um a m ensagem que, bem ou m al, con d i­
cionou, e ainda hoje cond iciona, a vida e a cultura de todo o
O cidente. É um con ceito que o C on cilio V aticano II reform ulou
claram ente em um de seus d ocum entos, a co n stitu ição sobre a
R evelação, rem ontando a A gostin h o e a um a constante tradição
eclesial, em um a passagem que já citam os, m as querem os relem ­
brar: “Os livros da Escritura en sinam co m certeza, fielm en te e
sem erro a verdade que D eu s, em vista da n ossa salvação, quis
fo sse con sign ad a nas Sagradas Escrituras {D ei V erbum n. 11). A
verdade “sa lv ífica ”, e não a cien tífica, histórica ou filo só fic a , é,
portanto, o objeto primordial da B íblia.
Por que, então, as Escrituras não são um a coletân ea de
teses teo ló g ica s cuidadosam ente form uladas, m as sim um acervo
de reis e d e even tos, de plantas e de anim ais, de céu e de terra,
de m ística e de pecados? É este o segundo ponto que querem os
precisar e que, por outro lado, fo i um a esp écie de estrela polar
em n ossa viagem textual bíblica. A s Escrituras hebraico-cristãs
estão con ven cid as de que a verdade sa lv ífica não é com unicada
estaticam ente, mas através dos desdobram entos históricos. A e v o ­
lução hum ana não é um a m assa dispersa ou sistem ática de fatos
im anentes: ela com porta um projeto transcendente e nela aflo­
ram sinais superiores cuja identificação é o objeto esp e cífico da
assim cham ada R evelação. Os sinais e o projeto estão en voltos
em acon tecim en tos h istóricos evoca d o s e registrados para fins
não historiográfícos, mas sim religiosos, em últim a instância. Os
even tos são reais, em bora reelaborados, am pliados, d issecad os,
redim ensionados, para d eles se extrair a essên cia teo lógica, a
única c o m a qual a B íb lia está d efinitivam ente com prom etida. O
que não sig n ifica nem a sistem ática historicidade, nem a co n s­
tante falsidade do evento narrado. Este é verdadeiro, para o autor
sagrado, em sua realidade m ais profunda, o m ais das v e z e s aco­
plada ao acontecim ento, ao fato, ao personagem histórico.
O objetivo de n osso itinerário foi romper o envoltório h is­
tórico, mostrar-lhe a consistência ou a fragilidade, mas sobretudo
fazer brilhar a m ensagem religiosa que, com o sem ente, n ele se
encerra. N o sso procedim ento aqui foi sobretudo herm enêutico.

O cu rioso d a B íb lia

N ada im pede, por outro lado, que se leia a B íb lia tam bém
com o livro histórico ou de inform ação cultural sobre um a época.
É preciso recordar apenas que este não é seu gênero literário
primordial, nem tam pouco sua finalidade precípua. N ão d eix a de
ser interessante, contudo, abordar, sem dogm atism o um texto,
esp elh o de um am plo arco histórico (m ais ou m enos um m ilê ­
nio), que oferece um a portentosa m assa de dados de todo tipo,
contida em um im aginário literário de extraordinário relevo. C om
certeza, o M a h a b h a ra ta , a Escritura sagrada hindu, com suas 95
5 8 6 estrofes (p elo m enos na cham ada recensão “m eridional”),
supera um as quinze v ezes a tam bém “lo n g a ” B íblia. M as a va­
riedade, a riqueza, o fascínio e a in flu ên cia da B íblia não são
com paráveis aos de outros textos sagrados da hum anidade, in ­
clu siv e 0 Corão, que m uito hauriu da B íblia. E nós som os teste­
m unhas d isso em n ossa própria lin gu agem cotidiana: o fruto
proibido, a v o z no deserto, as cebolas do E gito, a jerem iada, um
apocalip se, a lavagem das m ãos, o beijo de Judas, o filh o pródi­
g o... são apenas alguns dos tantos estereótipos b íb licos. Já o
recordava T om m aseo: “Q uanto as p essoas de igreja contribuem
para a unidade da língua, atestam -no não som en te os valorosos
clérigos escritores e os que por e les são ed ucados, m as tam bém
os m odos b íb licos que im pregnaram a lingu agem com u m ” . Em
um n ível m ais alto, afirm a Northrop Frye; em seu livro II gra n d e
c o d ic e , sobre a relação “B íb lia e literatura” : “A s Sagradas E scri­
turas con stituem um un iverso dentro do qual a literatura e a arte
ocidentais operaram até o sécu lo X V III e ainda estão, em larga
escala, operando” .
É legítim o, pois, estudar e sse s dados, e sse s sím b olos, essa
hnguagem . O “cu rioso” da B íb lia — isto é, seu conteúdo co n ­
creto e o m odo de com preend ê-lo — é, ao m esm o tem po, um
objeto fascinante e um a atitude inteligente. E ntendam os essa
expressão no sentido tanto “o b jetiv o ” — a B íb lia é um a m ina de
curiosidade — com o “su bjetivo” (d ois sentidos que aparecem no
título do rom ance de A lberto B evilacq u a II cu rio so d e lle donne)
— a hum anidade, ao lon go dos sécu lo s, pelas razões m ais diver­
sas, sem pre teve curiosidade p ela B íblia. E ainda tem , m esm o
em n o sso s dias, ditos pós-cristãos e, portanto, p ó s-b íb lico s. B a s­
ta consultar um dicionário b íb lico (Bauer, D u-B u it e M onloubou,
Corswant e Grollenberg, M cK en zie, ou o m ais nobre D iction n aire
d e la B ib le, ou a E n c y c lo p a e d ia J u d a ica ou a E n c ic lo p é d ia d e lia
B ibbia, ou algum R eallexicon alem ão, isto é, os léx ico s das realía,
das co isa s concretas m encionadas pela B íblia) para aí encontrar
um cam po interm inável. O hom em , suas relações, suas faculda­
des e sentim entos, suas virtudes e v ício s, sua con d ição, suas
atrações e repulsas, suas ações e suas preocupações; a fam ília; a
am izade; a hospitalidade; os esportes e os jo g o s; a vida e a
morte, a alim entação; os co sm ético s; o vestuário; as d oen ças e a
m edicina; as profissões e as artes; as ciências; o ensino; a cultu­
ra; a m agia e os rituais; o E stado e a magistratura; o direito e a
guerra: estes e outros aspectos da ex istên cia hum ana são objeto
de um a d en sa e m inuciosa d escrição que interessa a historiado­
res e antropólogos, etn ólogos e so c io ló g o s, m as tam bém a sim ­
p les “cu rio so s” .
E o m undo, co m sua planim etria, sua m eteorologia, a flora
e a fauna, o s m inerais, as pedras preciosas, o s m etais, as cores?
E as m edidas de tem po e de esp aço, de p eso e de capacidade, os
núm eros e as m oedas? E o s m il personagens m od estos e glo rio ­
sos de H abacuc a Z orobabel? E os acon tecim en tos m ais dispara­
tados, cotidianos e clam orosos? E a geografia e a arqueologia? E
a extraordinária sim b o lo g ia e a qualidade literária das páginas
b íblicas? Poderíam os continuar enum erando indefinidam ente, ca­
pítulos que contêm um a im ensa gam a de “curiosidades” . P od e­
ríam os penetrar tam bém n o m undo fantástico das extravagâncias
b íblicas, on de por “extravagância”, se entendem , certam ente, as
co isas estranhas que pululam em m uitas se c ç õ e s abertas ao m a­
ravilhoso, mas tam bém algo afim à S travagan za, op. 4, de V ivaldi,
na qual se cond ensam todas as passagens harm ônicas incom uns.
A B íb lia oferece, de fato, diversos ângulos da m esm a realidade,
surpreendendo o leitor m etód ico, afastando o elaborador eletrô­
nico, reclam ando prontidão m ental.
O “cu rio so ” pode estar contido no teoló g ico : nom es d iv i­
nos estranhos e m utáveis, antropom orfism os em baraçosos, e sp í­
ritos e d em ôn ios, teofanias e v isõ e s, idolatrias e um além de
contornos co m p lex o s e fluidos. Entretanto, é justam ente na teo ­
logia, co m sua ram ificação em um a visã o do ser — hum ano e
có sm ic o — , que se d eve procurar a m en sagem substancia] na
qual a B íb lia em penha a própria autoridade. R evestido d e cu rio­
sidade, aquele n ú cleo duro e resistente constitui o que a própria
Escritura cham a de “a palavra de D eu s que perm anece eterna­
m ente” . U m a palavra capaz, às v e z e s, de criar a aliança dos
op ostos, tendo reunido em D eu s a revelação e o m istério, a
im anência e a transcendência, a treva e a luz, a m orte e a vida, o
nada e o ser, a ausên cia e a presença, a vingan ça e o perdão, a ira
e 0 amor, e m uito m ais, co m o proclam a o D eu s de Isaías: “Eu
form o a luz e crio as trevas; sou o autor da paz e crio a desgraça,
eu, 0 Senhor, faço tudo isto!” (Is 4 5 ,7 ).
A B íb lia, na interm inável variedade de sua “cu riosidade”,
é adaptada a todos, é capaz de interessar às m ais diversas tip o lo ­
gias antropológicas, co m o escrevia Erasm o de Roterdam: “G o s­
taria que todas as Escrituras fo ssem traduzidas em todas as lín ­
guas, de m odo que não som ente o s e sc o c e se s ou os irlandeses,
m as tam bém o s turcos e os sarracenos p u d essem lê-las e co m -
preendê-las. Gostaria que o cam ponês p u d esse cantá-las enquan­
to trabalha co m o arado, que o tecelão p u d esse cantarolá-las no
ritmo de sua lançadeira, que o viajante p ud esse am enizar o abor­
recim ento de sua v ia g em c o m e sse s relatos, que eles falassem a
tod os” . M as a B íblia quer ser m uito m ais: ela olha m ais para o
alto, e m ais árduo é o seu d esafio. C om o diz m uito bem Pascal,
em seus P en sa m en to s: “A Escritura tem passagen s próprias para
consolar todas as co n d içõ es e para inquietar todas as co n d içõ e s”
(n. 5 3 2 ed. B runschvicg).

O to u ro q u e co m e ca p im

Já tiv em o s oportunidade de fazer alusão à grave ruptura


p rovocada p elo pecado da idolatria com etid o por Israel aos pés
do Sinai: “Trocaram sua G lória pela im agem de um touro, c o ­
m edor de capim ” (SI 106,20). T oda a B íb lia v isa definir o verda­
deiro n om e de D eus, ou seja, a verdadeira identidade e persona­
lidade divina. A o final da n o ssa viagem , p od em os tentar in d ivi­
dualizar d ois traços fundam entais daquele “n o m e” , daquele rosto
que perm anece, todavia, in v isív el, porque “nenhum hom em pode
ver D eu s e perm anecer v iv o ”, co m o fo i repetido a M o isés, d ese­
jo so de fixar o s olh os no rosto m isterioso do Senhor. E le deverá
contentar-se co m a palavra divina e co m a con tem p lação das
costas de Jhwh: “Fique em cim a da rocha. Q uando a m inha
glória passar, eu colocarei v o c ê na fenda da rocha e o cobrirei
com a palm a da m ão, até que eu tenha passado. D e p o is tirarei a
palm a da m ão e v o cê m e verá p elas costas. M inha face, porém ,
v o cê não poderá ver” (E x 3 3 ,1 8 -2 3 ).
O prim eiro traço d ivin o é delineado por contraste, em
n egativo. É a recusa do touro que com e capim , isto é, da idola­
tria, da m aterialização do d iv in o , da captura do m istério em uma
armadilha hum ana. N a sua S um a te o ló g ic a , santo T om ás de
A quino u sa um a frase su g estiv a em sua am bigüidade original:
“Et hoc om n es intelligunt D e u m ” (I,q.2,ad3). A expressão pode
sign ificar “todos com preendem que este é D e u s”, afirm ando,
assim , a p ossib ilid ad e aberta a cada um de con hecer D eus; mas
pode tom ar-se tam bém um a denúncia da redução de D eu s opera­
da na história da hum anidade: “E sta co isa é entendida com o
D e u s” , enquanto m ero objeto. O lin:iite entre a representação
idolátrica da divindade e a representação relig io sa é m uitas v e ­
zes m uito tênue, co m fáceis desv io s em am bas as direções.
A s páginas bíblicas que dem olem os íd olos são m últiplas e
m uitas v ezes se contentam em polem izar com o elem ento m ais
im ediato da degeneração religiosa, isto é, a m aterialidade inerte
do ídolo, oposta à personalidade viva do verdadeiro D eus. Basta
ler no parágrafo satírico de Is 4 4 ,9 -2 0 , a pitoresca encenação do
nascim ento de um deus-ídolo. U m ferreiro que martela e forja,
prostrando-se; um carpinteiro que m ede e desenha com g esso
um a figura sobre um tronco, e dep ois a corta e esculpe: com as
sobras e as aparas, ele cozinha sua com ida e se aquece, enquanto
com a parte principal do tronco faz o deus que lo g o depois adora
e im plora. “E les não sabem e não entendem , porque seus olhos
estão grudados para não ver, e sua in teligên cia não pode mais
com preender. N enhum deles cai em si, ninguém percebe nem
com preende, para dizer: ‘C om a m etade eu acendi o fo g o , assei
pão nas suas brasas, cozinhei um pedaço de carne e com i; e cora
0 resto eu iria fazer uma coisa abom inável? V ou ajoelhar-m e
diante de um pedaço de madeira? E sse hom em se alim enta de
cinza. Sua m ente enganada o iludiu, de m odo que ele não c o n se ­
gue salvar a própria vida e nem é capaz de dizer: ‘N ão será
mentira isso que tenho nas m ãos?” ’ (Is 4 4 ,1 8 -2 0 ). A n á lo g o é o
texto brilhante de Jr 10,1-16, que ironiza: “O que é terror para os
p ovos não passa de um nada, é apenas um pedaço de pau cortado
no m ato, obra de quem trabalha com m achado. C om prata e ouro
eles enfeitam o que fizeram , com pregos e martelo o firm am num
lugar, para que não fique balançando. Os ídolos são com o esp an ­
talho num a plantação de pepinos: não sabem falar e precisam ser
carregados, porque também não sabem andar...” (Jr 10,3-5).
U m a p o lêm ica que no livro da Sabedoria tom a-se sistem á­
tica, dando origem a um a esp écie de tratado sobre as diversas
tipologias da degeneração religiosa. O autor, de fato, constrói,
segundo o n ível de gravidade, um setenário de infâm ias, a partir
da idolatria astral (Sb 13,1-9), considerada m enos grave, porque
as realidades celestes, com o as có sm ica s, são tão fascinantes que
con segu em seduzir com sua fulgurante aparência. S e g u e -se a
idolatria m aterialista (Sb 1 3 ,1 0 -1 9 ), estigm atizada do m esm o
m odo que em Isaías e Jeremias. H á a idolatria náutica, isto é, o
uso de beques, íd olos, estátuas para propiciar a n avegação e
exorcizar tem pestades e furacões (Sb 14,1-11). H á tam bém a
idolatria fúnebre, que n asce de um a dor respeitável, m as d eg en e­
rada: “U m pai, atorm entado por um luto prematuro, m anda fazer
um a im agem do filh o tão ced o arrebatado. A gora honra com o
deus aquele que antes era apenas um hom em m orto...” (Sb 14,15-
16). M ais vulgar é a idolatria im perial (Sb 1 4 ,1 7 -2 1 ), ou seja, a
“ap oteose” ou d ivinização de um imperador, fruto da arrogância
d o poder e do servilism o d os súditos. A penúltim a form a de
idolatria é a econôm ica; através dos objetos sagrados, p od em ser
realizados ótim os lucros, especulando-se com a credulidade alheia,
na co n v icçã o de que “é preciso tirar proveito de tudo, até m esm o
do m al” (Sb 15,7-13). E m últim o lugar o autor lista a zoolatria
(Sb 1 5 ,1 4 -1 9 ), a form a considerada m ais grave, porque expe-
rienciada diretam ente p elo sábio b íb lico, que v iv ia em um a c o ­
m unidade da D iáspora hebraica do E gito, talvez em A lexandria.
A adoração dos anim ais co m o sím b olos d ivin os era, de fato,
com um na religião egípcia, sobretudo em n ív el popular.

“ Um a v o z su til d e s ilê n c io ’’

N a B íb lia, a mera p o lêm ica contra a degeneração religiosa


abre lo g o esp aço para a proposta positiva, aquela proposta que,
substancialm ente, foi objeto das análises que d esen v o lv em o s em
nossa v ia g em pelas Escrituras. E vid en cia-se o esfo rço para m an­
ter 0 equilíbrio entre um a transcendência não contam inada, que
não seja, porém , transcendentalism o, e um a im anência efica z na
história, que não se transforme em im anentism o. É este o segu n ­
do perfil do D eu s da B íb lia que querem os traçar; e le é transcen­
dente e ativo, “c e leste”, e no entanto presente no arco da ev o lu ­
ção humana. O ateu bíblico diz: “D eu s não e x iste” (SI 14,1), não
no sentido d e um a negação teórica, de resto in com p atível co m a
m entalidade sem ítica, concreta e sim bólica em suas form ula­
çõ es, m as no sentido da n eg a çã o de um a presen ça prática e
operante ( “D eu s não ex iste aqui e agora”, no tem po e no esp aço
do h om em ). D eu s não está em um a estátua, em um a im agem , em
um íd o lo , co m o adverte o D e c á lo g o . D eus está em um verbo
perfeito e acabado era si; “E u sou aquele que so u ” , revela-se a
M o isés no H oreb-Sinai (E x 3 ,1 4 ). D eu s é um a v o z, um a palavra
não cristalizável em um a fórm ula m ágica, m as suspensa no céu:
“V o c ês se aproxim aram e ficaram ao pé da m ontanha. A m onta­
nha ardia em fo g o até o céu, em m eio a trevas e n uvens escuras.
Então Jhwh falou a v o cês do m eio do fo g o . V o c ê s ouviram o
som das palavras, m as não viram nenhum a forma; ou v ia -se ape­
nas um a v o z ” (D t 4 ,1 1 -1 2 ).
M a is ainda: D eu s é por e x c e lê n c ia silên cio , um silên c io
que id ealm en te reúne em si o esp ectro d e todos os son s e de
todas as palavras, qual lu z que encerra em si toda a gam a de
cores. N ã o será por isso que seu n om e, Jhw h, se fix o u na
tradição ju d aica c o m quatro con so a n tes im pronu nciáveis? M as
é sobretudo em um a outra teofan ia d o H oreb -S inai q u e D e u s
aparece co m o o S ilê n c io suprem o do m istério. E lias, p erseg u i­
do p ela rainha Jezabel, so b e ao cu m e das origens de Israel,
num a e sp é c ie de peregrinação e d e v o lta às origens. L á em
cim a ele reencontrará, através de um a teofan ia que encerra fa l­
sas epifan ias, sua v o c a ç ã o profética, precipitada na crise da
so lid ã o e da hostilidade. E lias im agin a que o Senhor esteja no
“furacão que de tão v io len to rachava as m ontanhas e quebrava
as rochas. M as o Senhor não estava no furacão. D e p o is do
furacão h o u v e um terrem oto. O Senhor, porém , não estava no
terrem oto. D e p o is d o terrem oto apareceu fo g o , e o Sen h or não
estava no f o g o ” . É n este ponto que se abre a verdadeira te o fa ­
nia: “D e p o is do fo g o , o u v iu -se um a v o z sutil de silên c io [q ô l
d em a m a h d a q q a h \. A ssim que a ou viu , E lias cobriu o rosto
com o m anto...” (I R s 1 9 ,1 1 -1 3 ).
S u g estiv a e poderosa em sua antítese é essa “voz sile n c io ­
sa”, muitas v ezes traduzida co m o “m urm úrio da brisa su a v e”
(antiga versão grega dos Setenta). N a realidade, a teofania se
d eve à força destruidora de toda sacralização do divino em “o b ­
je to s”, in clu siv e o da palavra, que, não obstante, é tão d ecisiv a
para a B íblia. D eu s é um a vo z, sim , m as tem seu vértice no
silên cio, no m istério, no transcendente. É inatingível e irredutí­
vel a esquem as ou figuras, a sons ou im agens, in visível e in efá ­
vel. Por outro lado, este D eu s é sile n c io so m as não mudo; ativo,
mas não perdido nas coisas. Sua presença revela-se na m oralida­
de, no fazer ju stiça, n o salvar. P u ríssim o no seu m istério d e
silên cio , e le está em penhado na condução da história, corrigindo
os d esv io s que a liberdade hum ana — que e le quer e respeita —
provoca. S e o silên cio é o sím b olo da sua transcendência intan­
g ív el, que o revela com o D eu s e não co m o íd o lo , a m oralidade
que ele m anifesta e que quer im plem entar é o sinal da sua ima-
nência, da sua proxim idade, da sua ação.

Q u al D eu s?

É claro que, para a B íb lia, a questão te o ló g ica fundam en­


tal não é tanto a existên cia de D eu s, ela se pergunta antes qual o
verdadeiro D eu s, qual a sua identidade profunda, in co g n o scív el,
conquanto revelável, pelo m en os no seu perfil geral: D eu s vivo,
D eus providente, D eu s ju iz, D eu s salvador, D eu s santo, D eu s
presente. E ste últim o traço, naturalm ente am bíguo, um a v ez que
pode resvalar para o panteísm o, co m o ocorreu co m a religião de
Canaã, desperta o interesse bíblico; um estu d io so do Segundo
Isaías, Pierre-E . Bonnard, listou cerca de 63 ex p ressões diferen­
tes, usadas p elo profeta para representar o com portam ento de
D eus em relação à história. N ó s, agora, à vista d essa m u ltip lici­
dade de figuras nas quais individualizam os a presença histórica
de Jhw h, querem os evocar um a, que consideram os extrem a e
em blem ática. Ela se m anifesta num a constante e arbitrária e sc o ­
lha que o D eu s b íb lico faz entre seu s interlocutores. Para a im ­
plem entação do seu projeto, ele co n v o ca sobretudo os últim os,
os segu n d os, os m enores, derrotando a ló g ica e a eco n o m ia do
su cesso e do m érito.
O fraco, o inferior, a estéril, o pobre tornam -se, assim , os
p rivilegiad os na eleiçã o divina, co m um a estranha subversão das
ordens e d os graus hum anos que Paulo tão bem form ulou: “D eus
esco lh eu o que é loucura n o m undo, para confundir os sábios; e
D eu s e sco lh eu o que é fraqueza no m undo, para confundir o que
é forte. E aquilo que o m undo despreza, acha v il e d iz que não
tem valor, isso D eus escolh eu para destruir o que o m undo pensa
que é im portante” (IC o r 1 ,2 7 -2 8 ). Esta estranha “p o lítica ” tem,
naturalm ente, a função de exaltar o primado da graça na salva­
ção e na libertação, mas é tam bém um m odo d e reafirmar a
transcendência do projeto d ivino em face da racionalidade hu­
mana: “O s m eus projetos não são os projetos de v o cês, e os
cam inhos de v o cês não os m eu s cam inhos — oráculo do Senhor.
Tanto quanto o céu está acim a da terra, assim os m eus cam inhos
estão acim a dos cam inhos de v ocês, e os m eus projetos estão
acim a dos seus projetos” (Is 5 5 ,8 -9 ). E no entanto a esco lh a não
é absurda; ao contrário, a parcialidade divina revela-se com o
verdadeira im parcialidade. V ejam os alguns ex em p los de tais e s ­
colh as surpreendentes.
P en sem os no prim ado de Jacó-Israel em relação ao prim o­
gênito Esaú-E dom . D ecerto, estam os diante da celebração n a cio­
nalista de um p ovo, mas o D euteronôm io redim ensiona este as­
p ecto, reportando o evento ao enquadre teológico: “S e Jhwh se
a feiçoou a v o c ê s e os escolh eu , não é porque v o c ê s são os m ais
n um erosos entre todos os outros povos; p elo contrário, v o cês são
o m enor de todos os p ovos! Foi por am or a v o c ê s...” (D t 7,7-8).
P en sem os tam bém na salvação con ced id a a Israel através de
José, 0 filh o de Jacó, detestado pelos irm ãos e vendido co m o
escravo. É o próprio Jacó quem diz a José que os cam inhos
divin os seg u em trajetórias diferentes em relação aos troncos h e ­
reditários ou g en ea ló g ico s. A o abençoar os d ois filh os de José,
Jacó inverte as m ãos e im põe a direita — sinal do prim ado —
sobre Efraim , o segundo filho em relação a M anassés. A o pro­
testo de José, o patriarca replica, reafirm ando o princípio te o ló ­
gico: “Eu sei, m eu filh o, eu sei que M anassés é o prim ogênito:
tam bém e le se tom ará um po v o e crescerá. M as seu irmão m enor
será m aior do que ele, e sua d escen d ên cia tom ar-se-á um a m u lti­
dão de n a çõ es” (Gn 4 8 ,1 -2 0 ).
Para salvar Israel e gu iá-lo no ê x o d o . D eu s escolh eu M o i­
sés, m ais inexperiente e incapaz de falar do que seu irmão Aarão,
m ais sábio e m ais nobre (o m esm o acontecerá ao “balbuciante”
Jerem ias). Para salvar Israel dos cananeus. D eu s elegeu um a
mulher, D ébora, e não o general hebreu Barac (Jz 4-5). Para
salvar Israel dos m adianitas, o esco lh id o fo i G edeão, do “clã
m ais fraco da tribo de M anassés, sendo o caçula da casa de seu
pai” (Jz 6 ,1 6 ). Para salvar Israel dos am onitas, surgiu Jefté, um
bandido, filh o de um a prostituta (Jz 11). Para salvar Israel dos
filisteus, será esco lh id o D avi, em o p o siçã o a Saul. O prim eiro é
um jo v em e sim p les pastor, esq u ecid o até m esm o por Jessé, seu
pai: c o m efeito , no capítulo 16 do Prim eiro L ivro de Sam uel,
narra-se que, diante do profeta Sam uel, que fora a B elé m para
consagrar o futuro n o v o rei de Israel, Jessé apresenta seus filh os,
e se esq u ece de D avi, o m enor que estava tom ando conta do
rebanho. M as “o Senhor disse a Sam uel: ‘N ão se im pressione
co m a aparência ou estatura dele. N ão é e s s e que eu quero,
porque D eus não vê co m o o hom em , porque o hom em olha as
aparências e Jhwh olha o co ração” ’ (I S m 16,7).
A tese da esco lh a do m enor encontra um a extraordinária
representação cên ica no d u elo entre D a v i e G olias (I S m 17,40-
5 1 ), em que se confrontam guerreiro e pastor, p od eroso e p e­
queno, ideal hum ano e ideal d ivin o. O discu rso co lo ca d o na
b oca do pastorzinho D avi é ex p lícito n e sse sentido: às três ar­
m as do filiste u (espada, lança, hasta), D a v i o p õ e a ajuda de
D eu s, presente co m os seus três nom es e fica zes, o N o m e por
e x ce lên c ia (Jhw h), “Senhor d os ex ército s” e “Senhor das tropas
de Israel” (I S m 1 7 ,4 5 -4 7 ). D a q u ele m om ento em diante, à reta­
guarda de D a v i ergu e-se o Senhor, que se torna o verdadeiro
artífice da vitória alcançada c o m o seix o , e não c o m a im p on ên ­
cia da força m ilitar. M esm o quando D a v i atin ge o auge do
poder, 0 narrador b íb lico — c o m o já d issem o s — procura sem ­
pre sublinhar a fraqueza, até o p ecado, para ilum inar o prim ado
de D eu s, que p od e lançar m ão de instrum entos im p erfeitos para
a realização do seu projeto.
E ste aspecto original do D eu s b íblico será cantado justa­
m ente por um a “últim a”, um a m ulher, Ana, m ãe do ju iz e profe­
ta Sam uel. “D im inuída” já enquanto mulher, em um a estrutura
social m achista, e m ais “inferiorizada” ainda por ser estéril, por­
tanto, “inútil” ao seu m arido e à sua fam ília, sem elhante a um
ramo se c o e co m um ventre reduzido a um túm ulo, A n a é, contu­
do, esco lh id a por D eus e preferida à sua rival, a fecu n d a e orgu­
lh osa F en en a (I S m 1). A o gerar Sam uel pela graça divina, A na
entoa u m hino que é a exaltação do D eus de Israel nas suas
escolh as extravagantes, m as justas: “N ão m ultipliquem palavras
soberbas, / n em saia arrogância da boca de v o cês, / porque Jhwh
é um D e u s que sabe, / é e le quem p esa as ações. / O arco dos
poderosos é quebrado, / e o s fracos são fortalecidos. / Os sacia­
dos se em pregam por com ida, / enquanto os fam intos engordam
co m despojos. / A m ulher estéril dá à lu z sete filh o s, / e a m ãe de
m uitos filh o s se esgota. / Jhwh faz morrer e fa z viver, / faz
descer ao abism o e d ele subir. / Jhwh tom a pobre e tom a rico, /
ele hum ilha e tam bém levanta. / E le ergue da poeira o fraco / e
tira do lix o o indigente, / fazen d o-os sentar-se co m os príncipes /
e herdar um trono glorioso; / pois a Jhwh pertencem as colunas
da terra, / e sobre elas ele assentou o m undo!” (I S m 2 ,3 -8 ).
NOTA BIBLIOGRAFICA

É fácil im aginar quão frondosa é a floresta bibliográfica


surgida em to m o das Sagradas Escrituras hebraicas. N ã o v em ao
caso tentar sequer um a seleção, porque o texto que oferecem os
ao leitor é, por sua natureza, circunscrito: pretende, de fato, ser
um a síntese, um perfil essen cia l m as com p leto da história das
idéias do A ntigo T estam ento. C onstitui, portanto, um a base in­
d isp en sável, em si autônom a. Os percursos ulteriores deverão
ser defin id os segundo linhas novas e m últiplas: leitura de livros
avu lsos, aprofundam entos tem áticos, pesquisas historiográficas
esp ecífica s, análises literárias setoriais, e assim por diante. Para
o n o sso livro, ju lg a m os ind ispen sáveis som ente d ois elem en tos
bibliográficos.
O prim eiro é ób vio e insubstituível: um a B íblia, bem tra­
duzida e suficien tem ente com entada. Indiquem os as principais
ed içõ es em língua italiana:

La B ib h ia d i G eru salem m e, B olo g n a , Ed. D ehoniane: versão


italiana de um a edição francesa já clássica, m as apresenta­
da com 0 texto b íb lico da C onferência E piscopal Italiana;
texto que, substancialm ente, predom ina em quase todas as
ed içõ es hoje com entadas que estão à venda.

L a B ibbia, p a r o la d i D io sc ritta p e r noi, Turino, Marietti: em


três v o lu m es, com am plo com entário.

L a B ib b ia d e lia C iviltà C a tto lica , C asale M onferrato, Ed. C iviltà


C attolica-P iem m e: com com entário de natureza pastoral e
d ocum entação iconográfica.

T m du zion e E cum ênica delia B ibbia, Leum ann (Turino), Ed. LDC:
tradução do francês de um a ótim a edição, com o texto
b íb lico da C onferência E piscopal Italiana, com o nas ou ­
tras pu b licações até agora citadas.

N u o vissim a V ersione d elia B ib b ia d a i te sti origin ali, M ilano,


E d izion i Paoline: d ispon ível em volu m e ún ico, c o m notas
essen cia is, ou em três volu m es, co m notas m uito ricas e
um a versão própria do texto bíblico.

L a B ibbia . T radu zion e in terco n fessio n a le in lin gu a co rren te,


Leum ann (T urino)-R om a, Ed. L C D -A B U : é um a versão
da B íb lia em “lingu agem corrente”, im portante para uma
prim eira aproxim ação do texto bíblico.

La B ib b ia C o n co rd a ta , M ilano, M ondadori: obra d e exp oen tes


de várias c o n fissõ e s religiosas, h eterogênea em suas vá­
rias partes.

Principais ed içõ es da B íb lia em língua portuguesa:

A B íb lia d e J eru sa lém — São P aulo, Paulus, 1985.

B íb lia S a g ra d a — E d içã o P a s to r a l — São P aulo, P aulus, ] 990

A B íb lia — TEB — São Paulo, P aulinas/L oyola, 1995.

O seg u n d o subsídio q u e consid eram os n ec essá rio para


acom panhar n o sso itinerário é um a introdução geral ao A n tigo
T estam en to, a os seu s vários liv ro s, às q u estões histórico-literá-
rias, às tem áticas teo ló g ica s. N o s s o texto c o lo c a -se , por isso,
em co n e x ã o co m um o p ú scu lo por nós já publicado: A n tig o
T esta m en to . Introduzione, M ila n o , O scar M ondadori, 1993, no
qual se fo rn ece tam bém um a b iblio g ra fia e ssen cia l de acom p a­
nham ento à prim eira leitura e aos aprofundam entos in icia is do
texto b íb lico .
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Aarão, 101, 121, 123, 124, 125, Auerbach, Erich, 10


268, 279 A utant-Lara, Claude, 115
Abel, 41
Abia, 152 Baal, divindade cananéia, 20, 26,
A bisag de Sunão, 147 123, 138
A braão, 11, 28, 60, 63, 64, 65, 66, Baal H adad, divindade cananéia,
67, 6 8 ,6 9 , 7 0 ,7 1 ,7 2 , 7 3 ,8 7 , 123
95, 106, 120, 159, 201, 247, Babits, M ihály, 166
285 Bacchelli, Riccardo, 1 9 ,7 8 ,1 8 9
A bsalão, 146 Bach, Johannes Sebastian, 158
Acab, rei de Israel, 251, 288 Bacone, Francesco, 186
Acaz, rei de Judá, 1 5 1 ,1 5 2 ,1 5 3 Baltazar, rei da Babilônia, 235
Adão, 1 9 ,3 7 ,4 0 , 4 1 , 4 2 , 4 3 , 4 5 , Balzac, H onoré de, 186
47, 48, 49, 50, 53, 57, 58, 59, Barac, 279
6 0 ,6 1 ,2 0 0 , 285 Barth, Karl, 78, 134
Adorno, Theodor W., 78 B arthélem y, Jean-D om inique, 82
Agag, rei dos amalecitas, 221 B arucq, André, 207
Agostinho, Aurélio de Hipona, san­ B attíato, Franco, 16
to, 3 8 ,6 1 ,2 7 0 Bauer, Bruno, 272
Ah, divindade egípcia, 91 Bauldew ijn, Noél, 257
A knáton, faraó, 20, 100 B eauvoir, Sim one de, 69
A lexandre Magno, imperador, 234, B eccafum i, D omenico, 124
238 Beckett, Samuel, 78, 206
A lfieri, Vittorio, 144 Beem ot, 26
Alighieri, Dante, 26, 101, 112, 263 Bellini, V incenzo, 90
Allen, W oody, 69 Bellow, Saul, 47
A m brósio, santo, 36 B enjam in, W alter, 46
Amen-em -ope, 178, 184, 191 Bergm an, Ingm ar, 78
Amon, W en, 178 Berio, Luciano, 258
Amós, 10, 86, 101, 107, 134, 135, B ernanos, G eorges, 206, 229
136, 164, 228, 236, 237, 238, B ernini, Giovanni Lorenzo, 147
240, 250 B ernstein, Leonard, 157,268
Ana, 280 B etsabéia, 146, 147
A ndres, Stefan, 166 Bevilacqua, Alberto, 272
Antíoeo IV Epífanes, rei da Síria, B ialik, N achman, 35
219, 234 B ildad, 79
Apis, ver Osiris Blake, W illiam , 7
Asa, rei de Judá, 156 Bloch, E m st, 78, 90, 99, 207, 258
A tom, divindade egípcia, 93 B onhoeffer, D ietrich, 115, 126,
Aton, divindade egípcia, 20, 100 166
Bonnard, Pierre E., 278 Ciro, rei dos persas, 97, 158, 159,
Bossi, M arco Enrico, 257 235
Bossuet. Jacques-Bénigne, 78 Claudel, Paul, 7 ,2 4 7
B rahm s, Johannes, 207 C occioli, Cario, 146
B rodskij, Jo sif A., 69 Coélet, v er Eclesiastes
Bruch, Max, 90 Cohen, A lbert, 103
Bruckncr, Anton, 112 C orreggio, 165
B ruegel, Jan, 165 Cox, Harvey, 74, 99
Buber, M artin, 91, 168, 170 Cristóvão, são, 75
B üchner, Georg, 82 Cullm ann, O scar, 66
Bunyan, John, 57
B u o n a rro ti, M ic h e la n g e lo , v e r D aniel, 10, 161, 162, 167, 209,
M icheliangelo 232, 233, 234, 235, 236
Burkhard, W illy, 151 Davi, rei dos hebreus, 12, 15, 22,
Buxtchude, Dietrich, 257 134, 141, 142, 143,144,145,
Byron, lord Gcorgc Gordon, 236 146, 147, 148, 149,150,151,
152, 154, 155, 156,158,159,
C ailas, 162 163, 175, 177, 189,212,260,
Caim , 41, 58 279, 280
Calderón de la Barca, Pedro, 235 De M ille, Cccil Blount, 94, 113
C amus, Albert, 78, 206 D c Sanctis, Francesco, 7, 77
Canetti, Elias, 207 D ébora, 279
C aravaggio, 257 D cffand, M aric de C ham rond de
Cardonnci, Jean, 99 Vichy, m arquesa de, 10
Carducci, G iosuè, 10 Delacroix, Eugène, 74
C arissim i, G iacom o, 69, 144, 158, D onatello, 147
165, 176,236 Dostoiévski, Fiodor M ichailovich,
C aslclli, B enedclto, 61 78, 169
Caslelnuovo-Tedesco, Mario, 165 Dryden, John, 56
Castiglioni, N iccolò, 18
Causse, A ntonin, 169 Ebeling, G erhard, 68
C éline, L ouis-Ferdinand, 212 Eclesiastes, ver Coélet
C cronelti, Guido, 259 Eclesiástico, 9, 33, 48, 50, 132,
Chagall, M arc, 8, 69, 74, 107, 146, 143, 168, 181, 189, 19l’, 194,’
1 85,257 256
C harpentier, M arc-Antoine, 144, Eco, Umberto, 7
176, 257 Edom , ver Esaú
C hateaubriand, François-R ené de, Efraim, 38, 135, 163, 247, 279
78 Efrem Siro, são, 48
C hateaubriand, Lucille de, 78 Eissfeldt, Otto, 201
Chatw in, Bruce, 206 Eliade, M ircea, 259
Chaucer, G eoffrey, 235 Elias, 98, 134, 168, 169, 207, 210
Cheyne, T hom as K., 209 277
Chom sky, M arvin, 103 Eliezer de D am asco, 64
C ioran, É m ile M., 206, 212 Elifaz, 79
Eliot, Thom as, 92, 206 G ioberti, V incenzo, 7
Eliseu, 134 G iorgione, 176
Eliú, 79, 201 Girard, René, 70
E m m anuel, Pierre, 69, 74, 92 Goethe, Hohann W olfgang von, 17,
Enlil, divindade suméria, 16 5 1 ,7 8 ,9 1 ,2 0 3 ,2 3 6 , 246
Epicteto, 77 Golias, 1 4 3 ,1 4 5 ,2 8 0
E picuro, 199 G omer, bat-D iblaim , 5 3 ,2 5 1 ,2 5 2 ,
Erasm o de Roterdã, 273 253, 256
Esaú, 6 3 ,7 3 ,7 5 ,7 6 ,2 7 9 Gozzoli, Benozzo, 70
Esdras, 1 1 9 ,1 6 3 ,1 9 7 Green, Julien, 27, 78, 90
Eva, 35, 37, 42, 44, 56, 58, 59, 60 G regório I M agno, são, 78
Evdokim ov, Pavel, 133 G regório Nisseno, são, 91
Ew ald, H einrich G, A., 203 G rünewald, M athias, 151
Ezequias, rei de Judá, 152, 153, Guicciardini, Francesco, 206
154, 156, 168, 184 G unkel, Hermann, 19
Ezequiel, 58, 101, 131, 142, 151,
172, 173,227, 229, 230, 231, Habacuc, 273
235, 240, 242, 248, 254, 255 Hacks, Peter, 56
H aendel, Georg Friedrich, 90, 151,
Facchini, Fioreazo, 62 178, 236, 257
Farid ed-din ‘Attar, 87 H aulotte, Edgar, 53
Faulkner, W illiam , 69, 92 Haydn, Franz Joseph, 16, 56
Federico II de H ohenzollem , rei da Heideggcr, M artin, 168
Prússia, 78 Heine, H einrich, 206, 236
Fenena, 280 Helcias, 84
Filão, de A lexandria, 22,91 Heller, Joseph, 146
Flaubert, G ustave, 78 H em ingw ay, Ernest Miller, 206
Flora, Francesco, 77 Henoc, 169,231
Foscolo, Ugo, 77 H eschel, Abraham Joshua, 131
Freud, Sigm und, 90, 99, 100, 117 Hesíodo, 179
Frye, Northorp, 7, 272 Heym, Slefan, 146
Hiram , rei de Tiro, 176
G alilei, Galileu, 61 H õlderlin, Friedrich, 25
Gam aliel, 104 Holst, G ustav, 16
Gaon, Saadia, 209 H om ero, 8 ,1 4 3
Garvey, M arcus, 90 Honegger, Arthur, 1 44,257
G auguin, Paul, 74 Hugo, V ictor, 27, 78
Gedeão, 279 Huillet, Danièle, 124
Gelin, Albert, 245 H um e, David, 52
G entileschi, Orazio, 147
Geri, H anna-Barbara, 249 Iblis, v er Satanás
G ershwin, G eorge, 258 Inanna, divindade mesopotâmica, 20
G ibran, Kahlil G ibran, 187 lonesco, Eugène, 7 8 ,2 1 2
Gide, André, 78, 112, 144 Isaac, 28, 63, 67, 68, 69, 70, 71,
Gilkin, Iwan, 166 7 2 ,7 3 ,7 4 , 87, 103,201
Isaías, 1 1 , 2 1 , 3 3 , 4 5 , 5 8 , 9 6 , 9 7 , Jom m elli, N iccolò, 69
101, 102, 103, 106, 130, 132, Jonas, 164, 165, 166, 167
135, 136, 137, 139, 140, 150, Jônatas, 1 4 5 ,2 1 9
151, 152, 153, 155, 156, 158, Josafâ, rei de Judá, 156
159, 161, 164, 167, 201, 225, José, 10, 90, 212, 257, 279
227. 228, 229, 232, 237, 238, Josias, rei de Judá, 156
247, 249, 254, 273, 275, 278 Josué, 63, 89, 159, 220, 221, 240,
Ishodad di M erv, 68 241
Ishtar-A starte, divindade babilôni- Joüon, Paul, 204
ca, 39 Judas da Galiléia, o M acabeu, 219
Israel, verJacó Judas Iscariotes, 243, 272
Jung, Carl G ustav, 69, 78
Jacó, 1 1 ,2 8 ,3 0 ,6 3 ,7 3 ,7 4 ,7 5 , Justiniano, im perador do Oriente,
76, 87, 112, 163, 181, 227, 110
237, 279
Jacob, W alter, 74, 172 Kafka, Franz, 6 9 ,7 8
Jam m, divindade cananéia, 26 Kagel, M aurizio, 17
Jaspers, Karl, 78 Kant, Im manuel, 70
Jefté, 279 Kàsemann, Ernst, 233
Jeles, A ndras, 60 Keller, W ener, 2 6 9 ,2 7 0
Jelloun, Ben, 74 Kessler, Rainer, 260
Jerem ias, 11, 23, 29, 31, 65, 84, K hayyam, Ornar, 206
85, 86, 87, 101, 102, 106,127, Kierkegaard, Sõren, 69, 72, 73, 78,
128, 137, 138, 142, 155, 157, 83
159, 160, 198, 201, 226, 227, Kieslowski, K rysztof, 113
229, 230, 234, 238, 240, 252, Klopstock, Friedrich G ottlieb, 43
253, 275, 279 Kodàly, Zoltan, 112
Jcroboão I, rei de Israel, 123, 212 Kolakowski, Leszlek, 69, 70
Jerônim o, são, 79, 226 Krinetzki, Leo, 260
Jessé, 1 5 4 ,1 5 5 ,1 6 0 ,2 1 0 ,2 8 0 Kiing, Hans, 64
Jesus Cristo, 87, 148, 151, 161,
166 Labão, 74
Jczabel, rainha de Israel, 251, 277 Lack, Rémi, 70
Jezrael, 25 1 ,2 5 3 Lactâncio, Firm iano, 199
Jó, 11, 17, 23, 26, 27, 37, 40, 41, Lam artine, A lphonse-M arie-L ouis
5 3 ,5 9 , 77, 78, 79, 8 0 ,8 1 ,8 2 , de, 7 4 ,7 9 ,2 1 9
83, 84, 85, 87, 165, 168, 179, Lamec, 58
182, 183, 198, 201, 202, 203, Lang, Bernliard, 178
204, 2 0 6 ,2 1 0 ,2 1 7 , 228 L a u tré a m o n t, Is id o re - L u c ie n
Joab, 145, 146 D ucasse de, 78
João E vangelista, são, 165 Leopardi, Giacom o, 206
João Paulo II, papa Karol Jo sef Lévêque, Jean, 83
W ojtyla, 61 Lévi-Strauss, Claude, 122
Joaquim, rei de Israel, 158 Leviatã, 2 7 ,7 8 , 165
Joel, 2 3 ,2 3 2 ,2 3 5 ,2 3 7 Linard de G uertechin, H enri, 70
Linneo, Cario, 48 M oisés, 8, 12, 76, 90, 91, 92, 94,
Liszt, Franz, 18, 158, 171 98, 99, 100, 101, 109, 110,
L o ’- ’am m í, 251 111, 112, 115, 117, 118, 120,
L o ’-rüham ah, 251 121, 122, 123, 124, 125, 129,
Lorenz, Konrad, 205 159, 181, 246, 249, 269, 270,
Lowell, R obert, 46 274, 277, 279
Lücifer, 60 M oltm ann, Jürgen, 99
Lutero, M artinho, 7, 40, 63, 69, M ontaigne, M ichel E y q u em de,
81, 112, 114, 115 206
Lys, D aniel, 209 M onteverdi, C láudio, 257
M oshe Ben A sher, 91
M acabeus, dinastia, 161, 162, 173, M ozart, W olfgang A m adeus, 144
219 M usil, Robert, 257
M adach, Imre, 60 M usset, A lfred de, 204
M ajakovskij, V ladim ir V., 74
M alaquias, 1 6 4 ,2 3 2 ,2 4 6 N abot, 251
M alraux, André, 78 N abucodonosor, rei da Babilônia,
M anassés, 279 156, 233
M ani, 219 N abuzardã, 156, 157
M ann, Thom as, 69, 117, 118 Nahor, 63
M aom é, 110 N ão-A m ada, v er L o’-rüham ah
M areei, Gabriel, 202 N ão-M eu-Povo, v e rL o ’- ’am m í
M arcione de Sinope, 219 Natã, 146, 147, 148, 149. 152, 189
M arduk, divindade m esopotâm ica, Neemias, 119,197
16 Nemo, Philippe, 81
M aria, 5 7 ,5 9 ,1 5 1 , 152,258 N ietzsche, Friedrich W ilhelm , 70,
M asaccio, 57 248
M ateus Evangelista, são, 243 Noé, 106,270
M aupassant, Guy de, 265 Noica, C onstantin, 205
M auriac, François Charles, 84 Noth, M artin, 93
M cK enzie, John L „ 223, 272
M cLeish, A rchibald, 78 O nias, 132
M elville, Herman, 27, 69, 78 Orfgenes de Alexandria, 43, 266
M endelssohn-Bartholdy, Felix, 169 Oséias, 1 2 ,5 3 ,7 5 ,1 0 1 ,1 3 0 ,1 3 2 ,
M erneptah, faraó, 93 133, 135, 247, 250, 251, 252,
M essiaen, Olivier, 114,172 253, 254, 256
M etastasio, Pietro, 69 O shim a, N agisha, 120
M ichelângelo, 57, 79, 100, 147, O síris, divindade egípcia, 123
164 O w en, W ilfred, 69
Migot, G eorges, 207
M ilhaud, D arius, 144, 151,186 Falestrina, G iovanni Pierluigi da,
M ilton, John, 56 257
M im nerm o, 203 Pascal, B laise, 40, 69, 78, 87, 126,
M iquéias, 137 274
M nevis, divindade egípcia, 123 P ascur ben Im mer, 86
Paulo, são, 19, 22, 43, 64, 72, 77, Rousseau, Jean-Jacques, 32
86, 106, 168, 171,278 Rubens, Peter-Paul, 165
Pedro, são, 169,235 Rubinstein, A nton G „ 56
Péguy, Charles, 35, 57, 247 Rublev, A ndrei, 67
Pellico, Silvio, 9 Rumí, G ialal ad-D in Rumí, 66
Penderecki, Krysztof, 258
Perosi, Lorcnzo, 90 Saadia ben Josef, 258
Petrarca, Francesco, 143,207 Sabá, rainha de, 176,178
Piazzctta, G iovanni Battista, 169 Sacchi, Paolo, 231
Pico delia M irandola, Giovanni, 50 Salinger, Jerom e David, 49, 51
Pizzeiti, Ildebrando, 258 Salom ão, o M afnífico, rei dos he-
Platão, 170 breus, 1 2 ,2 1 ,3 1 ,1 4 6 ,1 5 6 ,
Plauto, 75, 192 175, 176, 177, 178, 185, 195,
Plutarco de Q ueronéia, 9 1 ,2 1 4 208, 212, 262, 264
Pom ilio, M ario, 78 Samuel, 133, 134, 144, 145, 146,
Porpora, N icola A ntonio, 144 147, 2 2 1 ,2 8 0
Poussin, Nicolas, 176 Sanzio, R afael, ver Rafael
Prajapati, divindade hindu, 16 Sara, 6 6 ,6 7 ,6 8 ,7 0 ,7 2
Prem ingcr, Otto, 89 Sargão, rei dc A cad, 270
Priscilla, santa, 69, 151 Sartrc, Jean-Paul, 69
Propí5rcio, Sexto, 170 Satanás, 36, 51, 59, 232, 233
Prousl, M areei, 69, 70 Saul, rei dos hebreus, 47, 134, 144,
Pseudo-Salom ão, 177, 185 1 4 5 ,2 2 1 .2 7 9
Scarlatti, A lessandro, 6 9 ,1 4 4
Q uasím odo, Salvatore, 158,203 Schiller, Johann Christoph Friedrich
Quevedo y V illegas, Francisco de, von, 99
166 SchõnbergArnold, 1 6 ,9 0 ,1 2 4 ,1 2 5
Schubert, Franz, 79
Ra, divindade egípcia, 91,2 1 7 Schumann, R obert A lexander, 236
Racine, Jean-Bapliste, 7 8 ,1 3 1 ,2 2 4 Sedecias, rei de Judá, 155
Rad, G erhard von, 48, 69 Seebass, Horst, 216
Rafael, 1 2 2 ,1 2 4 ,1 7 6 ,1 7 8 Sefora, 100
Ram sés (R am sés II), faraó, 93 Sequeri, Pier A ngclo, 106
Rebeca, 73 Sethi I, faraó, 93
Rembrandt, H annenszoon van Rijn, Shakespeare, W illiam , 17,203
69, 74, 146, 236 Shamash, divindade m esopitâm ica,
Renan, Joseph-Ernest, 258 18,20
Renaud, Bernard, 225 Shaw, George B ernard, 42, 206
R eni.G uid o, 147 Sibelius, Johan Julius, 236
Rilke, R ainer M aria, 63 Signorelli, Luca, 1 7 2 ,1 7 6
Rim baud, Jean-A rthur, 27, 78 S im ão II, 132
Robcrt, A ndré, 46, 257, 258 Simon, Neil, 78
Rossini, G ioacchino, 90 Singer, Isaac B aschevis, 103
R oth .Jo sep h , 3 5 ,7 8 ,2 0 7 Sirácida, ver Eclesiástico
Rouault, G eorges, 147 Sofar, 79
Sofonias, 30 Tournier, M ichel, 40
Solim ão II, o M agnífico, Suleiman, Tukaram , 135
sultão, 177 Turoldo, D avid Maria, 40, 69, 78,
Soljenitsin, Aleksandr, 64 218
Som m ers, Peter Van, 225
Spohr, Ludwig, 236 Urias, 146
Sternberg, Erich, 144
Stockhausen, Karl Heinz, 16 Vaux, Roland de, 10 4,2 60
Slraub, Jean-M arie, 124 Vavrinecz, Mór, 60
Stravinski, Igor, 16, 144, 157, 203, Vidor, King, 176
258 V igny, A lfred de, 91
Strindberg, August, 73 Villon, François, 78
Su-shih, 209 Virgílio, 143
Vivaldi, Antonio, 273
Tansm an, A lexandre, 151 V ogels, W alter, 54
Tarkovski, A ndrei, 67 V oltaire, 10, 7 8 ,1 4 4 , 206, 258
Teilhard de C hardin, Pierre, 25
Telemann, Georg Philipp, 144,236 W agner, W ilhelm Richard, 16
Tcodoro di Besa, 69 W arhol, Andy, 186
Teotochi, Isabella A lbrizzi, 77 W eiser, Artur, 127
Terah, 63 W erfel, Franz, 128
Teresa de Lisieux, santa, 250 W iesel.E lie, 7 4 ,7 8
Testa, Em m anuele, 41 W ilde, Oscar, 61
Thiede, W erner, 67 W olfskehl, Karl, 78
Tiam at, divindade m esopotâm ica, W oolf, V irginia, 213
1 6 ,2 5 ,5 2 W yspianski, Stanislaw, 161
Tobias, 10
Tolstói, Lev N ikolaiévich, 206 Zacarias, 155, 163, 225, 231, 232,
Tom ás de Aquino, santo, 274 2 3 8 ,2 3 9 ,2 4 0 ,2 4 1 ,2 4 2
Tomm aseo, N iccolò, 247, 272 Zippora Zorobabel, 1 5 5 ,1 5 9 ,2 4 0 ,
Torelli, Giuseppe, 69 2 4 1 ,2 7 3
Tot, divindade egípcia, 91 Zw eig, Stefan, 138
Tournay, R aym ond J., 260
ÍNDICE

In tro d u ção ........................................................................................................... 7

I. A n a rr a tiv a do c é u ................................................................................ 15
No princípio, um s o m ........................................................................... 15
A narrativa do c é u ................................................................................. 18
O “m anto” de D e u s............................................................................... 19
Vinte e dois c o ris ta s ............................................................................. 22
Terror na b a rra ....................................................................................... 25
G eografia m ís tic a .................................................................................. 27
Nove porções de d o r ............................................................................. 31

II. Q uem te disse que estavas n u ? ......................................................... 35


O homem do sexto d ia .......................................................................... 35
Um Deus macho e fêm ea?................................................................... 38
A “via-crucis” de A d ã o ....................................................................... 41
No jardim p e r s a ..................................................................................... 43
Um quadro policrom ático.................................................................... 45
Uma árvore não catalogada pela b o tân ica ....................................... 48
Uma serpente não catalogada pela zo o lo g ia.................................... 50
Q uem te disse que estavas n u ? ........................................................... 52
O quadro d efo rm ad o ............................................................................. 54
O “paraíso" p erd id o .............................................................................. 56
Um a esperança para E v a ? .................................................................... 58
Galileu, o teólogo, tinha raz ã o ............................................................ 61

III. L u te com D eus e ele o a b e n ç o a r á .................................................... 63


Um a labareda fum egante na n o ite ..................................................... 63
O riso de S a r a ........................................................................................ 66
6 meu Senhor, amado e c ru e l!............................................................ 68
O seio tingido de p r e to ........................................................................ 72
Lute com Deus e serás abençoado..................................................... 73
No Jaboc, eu te vencerei! .................................................................... 75
A enguia de J ó ....................................................................................... 77
Se este é um D eus.................................................................................. 79
O ouvido e o o lh o ................................................................................. 82
Sob um ram o de am endoeira.............................................................. 84
Sincero apesar de tu d o ......................................................................... 85

IV . D o pó d a h istó ria , um m u r m ú r io .................................................... 89


O “fio verm elho” ................................................................................... 89
Fuga ou ex p u lsão ?................................................................................. 92
Do pó da história, um m u rm ú rio ....................................................... 95
O terceiro ê x o d o .................................................................................... 98
O assobio e o m a rte lo ........................................................................... 100
A antiga noite da tran su m ân c ia.......................................................... 103
O Deus das mil em b o scad as............................................................... 105

V. O im p é rio d a l e i ..................................................................................... 109


Do cume do Sinai se avista a B a b ilô n ia ............................................ 109
O espelho m elhor................................................................................... 112
D ez “nãos” ou dez “sins”? ................................................................... 114
O império da l e i ..................................................................................... 117
As bacias de sangue do Sinai .............................................................. 120
A lápide p a rtid a ..................................................................................... 122
A lei não é para a escrav id ão .............................................................. 125

V I. In cen so n ão é d r o g a ............................................................................. 129


Sagrados ou santos?.............................................................................. 129
Incenso não é d ro g a .............................................................................. 133
O boi do homem p e rv e rso ................................................................... 135
Antro de crim in o so s............................................................................. 137
De 613 a 11 m an d am en to s.................................................................. 140

V II. E u so u te n d a, casa, tr o n o ! .................................................................. 143


“Era ruivo, de belos olhos e tinta boa aparência” ........................... 143
Eu sou lenda, casa, Irono!.................................................................... 147
Um profeta que viveu dois sécu lo s.................................................... 150
Um a dieta de coalhada e m e l.............................................................. 152
Os quatro ventos m essiânicos............................................................. 154
“N inguém sabe até quando...” ............................................................ 156
Um dorso flag elad o .............................................................................. 158
Um livro trilíngüe.................................................................................. 161
Enxadas, e não espadas; foices, e não la n ç a s .................................. 163
A m am oneira do pro feta....................................................................... 165
Luz negra e carruagem de f o g o .......................................................... 167
O ssos secos, revestidos de nervos, carne, pele................................ 170

V III. A in teligência in f in ita ......................................................................... 175


O rei que viveu dez sé c u lo s................................................................. 175
“O rtodoxia” e “heterodoxia” .............................................................. 178
A sutil urdidura da mente de D e u s .................................................... 180
A inteligência in fin ita........................................................................... 183
Ura arco-íris alfabético......................................................................... 185
A garrar um cão pelas o re lh a s ............................................................. 190
Form igas, esquilos, gafanhotos, la g a rta s......................................... 193
IX . C om o c a n ta r em te r r a e s tra n g e ira ? ............................................... 197
A Lei envolta em tre v a s....................................................................... 197
Fendas na ro c h a ..................................................................................... 200
Como cantar em terra estran g eira?.................................................... 202
As sete doenças do e s p írito ................................................................ 205
As voltas que o vento d á ...................................................................... 208
A sucessão dos 28 te m p o s................................................................... 211
Do inverno em um castelo em ru m a s ............................................... 213
“Deus está no céu e você está na terra” ............................................ 216

X. Os dias da i r a ........................................................................................ 219


A bem -aventurança do o p re sso r......................................................... 219
Uma apologia do a n á te m a ................................................................... 222
A s paixões de D e u s .............................................................................. 224
O oráculo na g arganta........................................................................... 228
Os dias da i r a .......................................................................................... 231
Um chifre com olhos e b o c a ............................................................... 233
G afanhotos, fogo, prum o, figos, escom bros.................................... 236
A mulher na ânfora e o rolo v o a d o r.................................................. 239
O bastão “Favor” e o bastão “Laços” ............................................... 242

X I. F ilhos de u m D eus de a m o r ............................................................. 245


Filhos de um Deus de a m o r................................................................. 245
O corpo de D e u s .................................................................................... 248
O profeta que se casou com um a pro stitu ta..................................... 250
A m enina e x p o sta .................................................................................. 254
A erótica b íb lic a .................................................................................... 256
O gomo de ro m ã .................................................................................... 259
Bros e T â n a to s....................................................................................... 265
O burro do in im ig o ................................................................................ 267

X IL Q u al D e u s ? ............................................................................................ 269
A B íblia nem sem pre tem ra z ã o ......................................................... 269
O curioso da B íb lia ............................................................................... 271
O touro que come c a p im ..................................................................... 274
“Uma voz sutil de silêncio” ................................................................ 276
Qual D e u s ? ............................................................................................. 278

N ota b ib lio g ráfica............................................................................................. 283

índice o n o m ástico ............................................................................................. 285

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