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Copyright © 2018 por Rômulo Monteiro.

É proibida a reprodução deste livro sem prévia autorização da editora, salvo em breve citação.

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Yuri Freire

EDIÇÃO DE TEXTO
Yago Martins

REVISÃO
Jean Probst

CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Argemiro Neto

1a edição eletrônica: julho de 2019

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M775c Monteiro, Rômulo – 1976


Caminhando na perfeição : a perseverança dos santos em Hebreus 6 /
Rômulo Monteiro. — 1. ed. — Niterói, RJ : Editora Concílio, 2019.
recurso digital

Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN: 978-85-93125-09-6

1. Bíblia – Hebreus – Interpretações 2. Perseverança dos santos I Título.


CDD 227.87

Publicado no Brasil por EDITORA CONCÍLIO


Copyright © 2019 Editora Concílio
www.editoraconcilio.com.br
contato@editoraconcilio.com.br
Aos meus filhos Natanael, Heitor e Calebe Monteiro
Sumário

Prefácio
Abreviaturas
Introdução
1. Contexto histórico
2. Pressuposição literária
3. Pressuposição teológica
4. O texto
Conclusão
Apêndice: pressuposições linguísticas e gramaticais
Referências bibliográficas
Prefácio

A leitura de Hebreus 6 é daquele tipo que nos deixa perplexos. O calvinista


encarará de entrada uma pergunta desconcertante: pode o crente perder a
salvação? A resposta óbvia para um calvinista é “não”; mas como explicar
um texto como esse? Mesmo assim, o arminiano que se empolgar com esse
texto para defender a perda de salvação terá que se conter, pois esse mesmo
texto diz que é “impossível renovar para arrependimento”. O fato é que
ambos os lados terão que responder a uma série de perguntas feitas ao texto
que poderão compor pelo menos quatro posições distintas que agora são
ampliadas pelo livro Caminhando na perfeição, de Rômulo Monteiro pela
Editora Concílio. Por exemplo: quem são os iluminados? São esses mesmos
que provaram o dom celestial, que se tornaram participantes do Espírito
Santo, que experimentaram a bondade da palavra de Deus e os poderes da
era que há de vir, e caíram (v. 4-6a)? São cristãos genuínos? São crentes
desviados, porém salvos? São crentes apóstatas e condenados? São cristãos
que perderam sua salvação? São pessoas do círculo cristão que não eram
genuinamente cristãs? São um grupo hipotetizado numa linha
argumentativa?
Estudiosos da epístola aos Hebreus chegaram a conclusões bem distintas:
Lane, Lenski, Marshall, Osborne e Westcott acreditam que esses hebreus
eram salvos, mas perderam a salvação (posição de perda de salvação). Se,
de acordo com essa visão, a salvação pode ser perdida e novamente
adquirida, como explicar o “é impossível renová-los”? A resposta aparece
em uma de duas vias: ou se trata de um pecado imperdoável ou se trata de
que a restauração é impossível para o homem, mas não para Deus.
Decker, Gleason, Hodges, Oberholtzer e Dillow interpretam esse texto
não como falando da perda de salvação, mas como perda de recompensa
(posição de perda de galardão). Porém, como a falta de fidelidade torna
impossível a renovação? A resposta destes se parece com a dos primeiros
mencionados acima: a Deus tudo é possível.
Kent, Ryrie e Schreiner-Caneday veem esses hebreus como salvos e
consideram a apostasia e a perda de salvação como hipotéticas (posição de
perda de salvação hipotética). Mas como sustentar a posição hipotética do
“caíram” se na unidade da construção não há um particípio adverbial, mas
adjetival?
Bruce, Compton, Fanning, Grudem, Huges, Kistemaker e Morris
acreditam que se trata de não-salvos que são irremediavelmente perdidos.
Mas se a expressão renovar “de novo” para arrependimento for o remédio,
isso não sugeriria que estes se arrependeram uma vez e foram salvos? A
tendência é querer interpretar que esse arrependimento não é salvífico, a
exemplo de Esaú. Seria isso mesmo?
A verdade é que não existem respostas simples para perguntas
complexas. O que me empolga é que Rômulo Monteiro não tem medo da
exegese e sua pesquisa prova que ele não foi negligente em nenhum aspecto
deste processo. Um trabalho interpretativo que inclua as áreas teológicas,
lexicais, gramaticais, literária e estrutural com tamanha competência
certamente se tornará uma obra de referência e marcará a interpretação de
um texto complexo como Hebreus 6.
Fiquei muito impressionado ao observar como esta obra, apesar de
acadêmica, responde questões eclesiásticas contemporâneas. Há certo
frenesi nos dias atuais, muito presente em correntes neopentecostais e
fundamentalistas, em voltar a celebração de práticas e festas judaicas com
certo glamour. No entanto, se atentarmos para o autor de Hebreus, veremos
que ele nos alerta para o fato de que eles estavam tentando voltar para o
judaísmo, isto é, para os princípios elementares. A apropriação das bênçãos
da Nova Aliança exige o abandono ou a não repetição dos elementos da
religião do Antigo Testamento. O Antigo Testamento aponta profeticamente
para Cristo. E, como toda profecia, é abolida com a chegada do
cumprimento.
O livro Caminhando na perfeição mostra que o sincretismo judaísmo-
cristianismo é impossível. São dois altares que se anulam (cf. 13.10). A
síntese entre o judaísmo e o cristianismo findaria numa igualdade
insustentável entre o sistema antigo de sacrifício e o sacrifício singular de
Cristo, transformando a morte de Cristo em um sacrifício qualquer – a ser
repetido. Isso é o mesmo que rejeitar a crucificação de Cristo, exigindo
assim sua exposição à vergonha novamente (6.6).
Não tenho dúvidas que, de agora em diante, quem for escrever ou pregar
sobre uma das cinco passagens de advertências de Hebreus sem dialogar
profundamente com o trabalho de pesquisa de Rômulo, estará fadado ao
fracasso. Quero parabenizar Rômulo Monteiro por sua maturidade teológica
e perspicácia exegética que agora enriquecem o estudo teológico no Brasil.

Roque N. Albuquerque,
Ph.D. pelo Central Baptist Theological Seminary,
professor no SIBIMA e no Instituto Aubrey Clark e
pastor na Igreja Batista do Calvário
Abreviaturas

AD Análise do Discurso
ARA Almeida Revista e Atualizada
A21 Almeida Século 21
AT Antigo Testamento
BDAG ARNDT, W., DANKER, F. W., & BAUER, W. A Greek-English
lexicon of the New Testament and other early Christian
Literature. 3a ed. Chicago: University of Chicago Press, 2000.
Comp. Compare com
EAC Edição Almeida Contemporânea
ESV English Standard Version
GF Gramática Funcional
HE História Eclesiástica
LF Linguística Funcional
LG Linguística Generativa
LN LOUW, J. P., & NIDA, E. A. Greek-English lexicon of the New
Testament: Based on semantic domains (electronic ed. of the
2nd edition). New York: United Bible Societies, 1996.
LXX Septuaginta
MSS Manuscritos
NA28 NESTLE, E., NESTLE, E., ALAND, B., ALAND, K.,
KARAVIDOPOULOS, J., MARTINI, C. M., & METZGER, B. M. The
Greek New Testament (28th ed.), 2012.
NAB New American Bible
NAS New American Standard
NASB New American Standard Bible
NAU New American Standard Bible (1995)
NIV New International Version
NJB New Jerusalem Bible
NRSV New Revised Standard Version
NT Novo Testamento
NTLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje
RSV Revised Standard Version
TB Tradução Brasileira
Introdução

Precisamos gastar tempo estudando nosso texto detalhadamente, meditando


sobre ele, preocupando-nos com ele como um cachorro se preocupa com seu
osso, até que o sentido fique claro para nós. Esse processo será às vezes
acompanhado de suor e lágrimas.
John R. W. Stott (2005:28)

A doutrina da perseverança dos santos é proclamada direta e indiretamente


na Teologia Reformada através de suas principais confissões e catecismos.
Os Cânones de Dort e a Confissão de Westminster, por exemplo, possuem
artigos específicos quanto à temática. O primeiro afirma que Deus é fiel e
preserva os seus em sua graça salvadora até o fim (Schaff 2007 3:593). Isso
significa que ele nunca permitirá que seus eleitos cometam o pecado que
leva à morte (Schaff 2007 3:593). A explicação calvinista1, tanto para nossa
resposta de fé ao Evangelho quanto para nossa perseverança, está no
decreto eterno de Deus e livre de qualquer influência externa. Westminster
também assegura que a perseverança é garantida na imutabilidade do
decreto da eleição (Schaff 2007 3:636-7).
Mesmo não possuindo artigos específicos, o Catecismo de Heidelberg, os
Trinta e Nove Artigos e a Segunda Confissão Helvética também autenticam
a doutrina. Heidelberg afirma que Cristo “congrega, guarda e protege para
si [seus eleitos] por seu Espírito e sua Palavra” (Janse 2000:76), e ainda
declara que é impossível àqueles que foram implantados em Cristo não
produzirem frutos de gratidão (Janse 2000:76). Os Trinta e Nove Artigos
certificam que os justificados chegam à felicidade eterna (Schaff 2007
3:497), enquanto a Confissão Helvética (cf. X.VII) segue o livro De Dono
Perseverantiae [O Dom da Perseverança2], de Agostinho (especificamente
o capítulo XIV) onde o autor defende que a predestinação (base da
perseverança) não é incompatível com as admoestações (Agostinho
2010:247-252).
Do outro lado, mesmo em suas variações, a teologia arminiana assegura
que a relação de Deus com os salvos é de influência e resposta, ao invés de
causa e efeito (Forlines 2001:313-21). Na teologia arminiana, salvação é
condicionada pela liberdade (Ashby, 2002:148). A mesma liberdade que
condiciona receber a salvação também possibilita, embora seja improvável,
perdê-la (Ashby 2002:148). A despeito de garantir a necessidade da graça
para a salvação, a teologia arminiana não a entende como suficiente (Sproul
2001:143). A palavra final e/ou determinante é a do homem no exercício de
sua liberdade.
Em todo o debate envolvendo a temática da salvação e seus tópicos
imediatos, o antagonismo entre a teologia arminiana e a calvinista é
corroborado pelos chamados “textos arminianos” e “textos calvinistas”.
Seguindo a lógica de tal denominação (porém, não aceitando
cognominação), a primeira impressão é que o texto que nos propomos a
expor (Hebreus 5.11–6.12) não se enquadra em nenhuma dessas
designações, uma vez que tanto o sistema calvinista quanto o arminiano
precisam responder às possíveis implicações geradas pelo texto.
Embora os dois sistemas antagônicos padeçam com a mesma passagem,
o calvinismo se faz mais devedor de uma devida explicação. Segundo
Michael Horton (2002:29), “De todos os textos [das Escrituras] aqueles
encontrados em Hebreus parecem ser os que mais apoiam a posição
arminiana”. E, pensando especificamente em Hebreus, a perícope 5.11–6.12
é considerada uma das passagens mais utilizadas contra a doutrina da
perseverança dos santos (Berkouwer 1958:117).
A passagem de advertência em Hebreus 5.11–6.12 constitui um problema
para a soteriologia calvinista uma vez que, à primeira vista, parece ensinar a
possibilidade de que participantes da Nova Aliança cometam pecado tal que
os prive dos seus benefícios eternos. Nosso problema central pode ser
expresso nos seguintes termos: “Hebreus 5.11–6.12 ensina a possibilidade
de o cristão cometer pecado tal que o impossibilite de voltar-se a Deus em
arrependimento divergindo da doutrina reformada da perseverança dos
santos?”. Desse problema decorrem os chamados problemas corolários de
natureza exegética. São eles:
1. Quem são os iluminados? Aqueles que provaram o dom celestial, que
se tornaram participantes do Espírito Santo, que experimentaram a bondade
da palavra de Deus e os poderes da era que há de vir, e caíram (v. 4-6a)?
São cristãos genuínos? Crentes desviados, porém salvos? Crentes apóstatas
e condenados? Cristãos que perderam sua salvação? Pessoas do círculo
cristão que não eram genuinamente cristãs? Um grupo hipotético numa
linha argumentativa?
2. A terra que absorve a chuva e dá colheita e a terra que produz espinhos
e ervas daninhas e é queimada (cf. v.7-8) são ilustrações aplicadas aos
iluminados ou esses versos iniciam uma nova e/ou segunda explicação para
se manter caminhando na perfeição como exortado em 6.1? Podemos
entender a identidade dos iluminados observando a figura dos dois tipos de
terra? Ou o contrário? As palavras contrastantes na expressão “estamos
convictos de coisas melhores em relação a vocês” (v. 9) se dá somente com
a ilustração da terra condenada (v. 7-8) ou inclui toda a porção dos versos 4-
8? Em outras palavras: qual a relação entre os versos 4-6, 7-8 e 9-12? Como
podemos entender melhor essa estrutura?
3. O que realmente é “impossível”? Trata-se de uma impossibilidade real
ou somente de uma dificuldade? A impossibilidade é uma referência à
fraqueza humana em contraste com o poder de Deus? Se a impossibilidade
é para com a “renovação para arrependimento”, o que vem a ser isso? Seria
a expressão “arrependimento” uma referência ao início da fé cristã ou uma
sinédoque para “os princípios elementares”? Esses “princípios elementares”
são judaicos ou cristãos?
4. O autor tem em mente um tipo de pecado específico ou temos uma
descrição genérica de pecado? Podemos entender a queda pela exortação de
continuar prosseguindo na perfeição em 6.1? Caso tenhamos uma descrição
específica de apostasia, a teologia arminiana teria o problema da completa
extinção da liberdade de retorno à fé. A natureza genérica do pecado, por
outro lado, tropeça no efeito do pecado descrito tanto no próprio texto
quanto no seu paralelo mais exato: “A mim pertence a vingança; eu
retribuirei” (10.30b).
5. Quais são as consequências de se rejeitar a advertência? Quando se
pressupõe dentro dos círculos calvinistas que o texto trata de crentes, alguns
têm entendido as advertências como alertas à perda de galardão (e.g.,
Kendall 1983; Oberholtzer 1988). Desse modo, o fogo referido nos versos
7-8 é equivalente ao fogo de 1Coríntios 3 – fogo de avaliação, não de
condenação. Tal visão deve encarar a dificuldade das descrições vívidas dos
julgamentos tanto no texto a ser tratado (e.g., as expressões “maldição” e
“fogo”), quanto no paralelo do capítulo 10.26ss.
6. Como veremos a seguir, são cinco as passagens de advertência em
Hebreus. Existe uma relação de dependência hermenêutica entre elas? Elas
formam um quiasmo? Devemos lê-las sinteticamente (ou seja, numa
dependência hermenêutica onde uma esclarece a outra)? Há um efeito
crescente entre elas? Qual a relação delas com o material instrutivo?
7. Como devemos entender o conceito de perfeição? É uma referência a
maturidade? Ou devemos ver as duas referências à perfeição no texto (5.14;
6.1) à luz do conceito teológico desenvolvido no restante de toda a obra e
que é representado pelas palavras de raiz τελ- (e.g., perfeição, aperfeiçoado,
perfeitos)?
8. Qual é a natureza e o propósito das advertências em Hebreus? Elas
visam atemorizar ou motivar? Qual sua relação com a realidade? Há a
possibilidade real de o cristão cair de maneira irreversível? O pensamento
arminiano assevera que advertência e possibilidade de queda estão
diretamente relacionadas. Eliminar tal possibilidade tiraria todo o peso da
advertência. Há quem entenda que a salvação em Hebreus é estritamente
futura (Mcknight 1992:58), daí não poder sequer falar em perda de
salvação, uma vez que os leitores ainda não a tinham alcançado. Dentro do
calvinismo, uma solução tem sido tomar as advertências como hipotéticas.
Outros entendem que as advertências visam análise de nosso
comportamento e coração (Owen 1980 v.5:699; MacArthur 1993:141, 162,
166). Geralmente, esses tomam 2Coríntios 13.5 como um tipo de
“paradigma interpretativo”. Outro caminho tem sido observar a função e o
fundamento das advertências não somente as vendo como o meio para a
preservação (Berkhof 1982:548), mas também como abolindo a ideia de
possibilidade de queda.
Decorrente dos problemas, seguem nossos objetivos: (1) identificar as
pessoas descritas nos vv. 4-6; (2) explicar a natureza da ligação sintática
entre os versos 4-6, 7-8 e 9-12; (3) esclarecer a natureza da impossibilidade;
(4) explicitar a metáfora da queda; (5) verificar qual e/ou quais são as
consequências da rejeição da exortação; (6) verificar as advertências em
todo o livro e sua relação com o texto em questão; (7) sintetizar o conceito
de perfeição em toda a obra; e (8) entender a função das advertências em
Hebreus.
Contudo, não existem respostas simples para perguntas complexas. O
livro que está em suas mãos está ancorado exatamente nessa verdade. A
expressão “um longo caminho” constava na proposta inicial de subtítulo
desta obra, e deveria constar em todos os livros que se propõem a lidar com
textos dessa natureza.
O que fazer, então? Diante de um texto obscuro como o nosso,
precisamos primeiramente esclarecer a natureza da dificuldade. Em que
área específica o acesso ao significado se tornou truncado? Na área
teológica? Lexical? Gramatical? Literária? Estrutural? Uma vez
estabelecida a natureza da dificuldade, o intérprete deve buscar em outras
áreas (ou camadas de acesso ao sentido) um apoio, senão positivo, pelo
menos negativo; ou seja, um auxílio que responda ao que o texto não quis
dizer. As respostas “negativas” servirão de balizas protetoras.
Nossa perícope, todavia, bem como todo o livro de Hebreus, traz
dificuldades em todas as áreas citadas acima. Daí a razão da explicitação
(em alguns casos, com argumentações de caráter apologético) de todos os
pressupostos interpretativos (contexto histórico, linguístico [no apêndice],
teológico, literário) ao longo da obra. A análise pormenorizada encontra sua
justificativa nas dificuldades específicas do texto. É ele, o texto, que exige
uma consciência sólida dos pressupostos interpretativos. É ele que nos
direciona ao mundo que o cerca. É importante entender que os pressupostos
foram escolhidos de acordo com a necessidade. Em pressupostos
teológicos, por exemplo, escolhemos o conceito mais importante para
esclarecimento do nosso texto: o aperfeiçoamento de Cristo e dos seus
irmãos; conceito esse formulado exclusivamente com material do próprio
livro. Existem outros conceitos teológicos que poderiam ser acionados,
contudo, entendemos que o citado é suficiente para se ter acesso ao
entendimento básico da nossa perícope.
Portanto, a obra não se limita a aplicação de regras interpretativas.
Recuamos a fim de explicar, em detalhes, os pressupostos que nos dirigiram
à nossa conclusão. Dessa forma, o livro pode ser um tipo de auxílio
metodológico na prática exegética, uma vez que a cada apresentação das
pressuposições e na própria prática interpretativa encontramos explicações
de natureza apologética (tanto dos pressupostos quanto dos princípios
interpretativos). A consciência e a prática interpretativas são elementos
fundamentais no exercício da busca do sentido. A leitura de comentários
dessa natureza alimenta e fortalece esses dois requisitos imprescindíveis.
O livro é dividido em duas partes: (1) análise dos pressupostos
interpretativos. Aqui procuramos estabelecer uma consciência interpretativa
mais sólida. Um de nossos pressupostos foi colocado no Apêndice
(pressuposto linguístico). A explicação para essa escolha está na
tecnicidade do conteúdo. Contudo, sua presença ainda se justifica. E toda
crítica deve passar por ele. (2) Exposição do texto. Aqui lidamos
diretamente com as sentenças, conectivos, relação entre as orações, recursos
retóricos etc., bem como procuramos interagir com os pressupostos.
Numa consulta rápida, o livro poderá dar a falsa impressão de que sua
parte de maior destaque não é a interpretação propriamente dita (a lida
direta com o texto), mas uma apreciação ou preparação (dispensável para
alguns, talvez) desses pressupostos interpretativos. Contudo, reforçando o
que foi colocado acima, existe um mundo (ou um caminho a seguir) fora do
texto que não pode ser ignorado sob a pena de depreciar o próprio texto.
É importante entender que as expressões “fora do texto”, “no próprio
texto”, “análise das pressuposições” e “análise do texto propriamente dito”
têm um caráter um tanto artificial e analítico (ou seja, observa dimensões
específicas, não o todo), pois é difícil assegurar com precisão onde começa
e termina a exegese. O que se pode dizer com segurança é que exegese não
lida somente com o texto, mas com o mundo ao redor do texto. E é isso que
precisamos fazer ao lidar com Hebreus 5.11-6.12. É o caminho a ser
seguido, é o caminho que o texto exige que façamos.
O livro é uma adaptação de uma dissertação de mestrado e tem uma
abundância de informações do rigoroso e reservado mundo acadêmico.
Além disso, como colocado acima, a interpretação de passagens dessa
natureza exige um “longo caminho”. Isso pode, sim, desanimar o leitor
mais dedicado e diligente que, contudo, não é especializado (ou ainda
principia seus primeiros passos) na prática interpretativa partindo das
línguas originais. A obra, contudo, não fica necessariamente presa ao
público seleto da academia. A forma como o conteúdo foi organizado
permite distanciar-se (sem desconsiderar sua importância) das informações
de caráter mais técnico (presente principalmente nos capítulos 2 e 3) sem
com isso perder a proposta central da obra.
Segue uma recomendação de leitura que não eliminará a carga acadêmica
(essencial à obra), mas abreviará o caminho: Do primeiro capítulo leia
apenas “Contexto histórico”. Do segundo capítulo, leve em conta somente
“Considerações finais” em “Identificação das advertências” e leia
integralmente “Exortação e instrução”. Quanto ao terceiro capítulo,
considere unicamente as sínteses de cada passagem e sua conclusão. O
quarto capítulo é a exposição propriamente dita e deve ser contemplado em
sua plenitude. A conclusão apresenta sinteticamente as respostas de cada
uma das oito perguntas apresentadas acima. Quanto ao apêndice, como o
próprio nome sugere, pode-se viver sem ele.
Os quatro fatores motivadores para escrever esse livro são, em primeira
instância, a importância da soteriologia para a teologia produzida na
Reforma Protestante. Das cinco bandeiras da Reforma, três (sola gratia,
sola fide e solus christus) lidam direta e especificamente com a soteriologia.
Segundo Carson (2010:41), na teologia protestante, a justificação pela fé e
sua base textual (Romanos 3.21ss) são tomadas como tema e texto central
de toda a Escritura. A despeito de não ser consenso que a justificação pela
fé é o mitte das Escrituras, jamais se negará sua natureza capital. Os
desacordos quanto à soteriologia, portanto, devem ser sempre matéria de
atenção.
Em segundo lugar, fui motivado pela natureza enigmática do texto. Trata-
se de uma passagem que tem “gerado considerável desconforto na história
da interpretação” (Attridge 1989:167). Ela “permanece ainda como um dos
[textos] mais complicados e enigmáticos para os intérpretes” (Mathewson
1999:209). O número de crux interpretum no mesmo parágrafo faz de
Hebreus 5.11-6.12 uma daquelas passagens que podem mudar
completamente de direção caso o julgamento sobre um detalhe crucial
varie. A natureza decisiva dos detalhes se revela nas inúmeras
possibilidades decorrentes. Tal dificuldade estimula e justifica o exame da
passagem. Além disso, somos policiados a evitar uma postura dogmática,
que seria catastrófica ao lidar com um texto tão complexo. Dessa forma,
mesmo não concordando com as conclusões aqui defendidas, depois da
leitura, o leitor estará mais consciente das questões que deverá encarar
quando o assunto é a interpretação de Hebreus 6.
Em último lugar, a praticidade das possíveis conclusões é claramente
percebida ao longo da história da Igreja. A controvérsia donatista, por
exemplo, tinha em Tertuliano e Hebreus 6 a base de suas convicções
(Berkouwer 1958:117). O possível elo entre a passagem em questão e o
“pecado para morte” descrito em 1João 5.16 exige aplicação direta à prática
da oração e do exercício da comunhão com o autor de tal pecado, afetando
tanto nossa piedade individual quanto a vida na comunidade da aliança.
São muitas as pessoas e instituições que estão por trás dessa obra e
dignas de serem aqui mencionadas em forma de gratidão. Acima de tudo,
sou grato a Deus, que me elegeu soberanamente em sua livre graça gloriosa
e me chamou para o ministério pastoral e o professorado. Minha amada e
doce esposa Franciane Monteiro, que com incansável dedicação e
compreensão foi um instrumento divino de incentivo e apoio. Minha
querida mãe, Vera Tavares, que nunca permitiu que abdicasse dos meus
estudos. À Primeira Igreja Batista de Aquiraz por seu apoio e compreensão
e por confiar a mim o ministério do ensino da Palavra de Deus.
Não poderia deixar de citar o Dr. Roque Albuquerque, irmão, amigo e
mestre sempre presente. Serei eternamente grato por seu apoio constante,
suas inúmeras e longas aulas particulares e sua tese de doutorado que serviu
como uma das colunas para minha exegese. Aos meus alunos que me
providenciaram maravilhosos insights e desafios durante as aulas de grego
bíblico e exegese. Ao Pr. Yago Martins que apresentou minha dissertação de
mestrado (base deste livro) à Editora Concílio, que por sua vez,
prontamente se revelou solícita e empolgada com o projeto. Ao Dr.
Augustus Nicodemus por me orientar na primeira fase da dissertação. Ao
Dr. Leandro Lima que assumiu prontamente a orientação da dissertação
devido a viagem do Dr. Augustus para estudos de pós-doutorado. À banca
do projeto e da apresentação da dissertação: Dr. Mauro Meister, Dr. João
Paulo Thomaz de Aquino e Dr. Daniel Santos. Ao Rev. João Alves que se
dispôs a ler todo o material e trouxe excelente colaboração. Ao Pr.
Guilherme Nunes pelo zelo em analisar o apêndice, bem como me ceder sua
monografia (citada na obra). À Igreja Presbiteriana do Brasil (através do
Centro de Pós-graduação Andrew Jumper) por abrir as portas para membros
de outras denominações e providenciar ao nosso país um curso de altíssima
excelência acadêmica e seriedade para com a revelação escrita do Senhor.

1. Existem duas tendências comuns e inevitáveis no emprego de expressões que trazem referenciais
tanto históricos quanto teológicos como “teologia reformada”, “calvinismo” e “arminianismo”: a
aplicação abrangente ou particularizada demais. Ao lançar mão de expressões dessa natureza
certamente seremos acusados de alguma dessas duas tendências. Títulos como “Arminiano
Reformado” e “Calvinista Moderado” (mesmo para aquele que subscreve somente um único ponto
dos cânones de Dort) são exemplos claros da inevitabilidade da confusão terminológica. Como não
se pode evitar acusações, ou de especificidade, ou de generalidade, escolhemos fugir ao menos da
confusão de sentido por meio da explicitação do que se pretende dizer por “calvinista”. Nessa obra,
“calvinista” (e seus cognatos) equivale a “não-arminiano”. Ou seja, trata-se de uma expressão
exclusivamente soteriológica que se identifica historicamente com o Sínodo de Dort.
2. Em português, pode ser encontrado na coleção Patrística da Editora Paulus, no segundo volume de
A Graça (Agostinho, 2010).
Capítulo 1
CONTEXTO HISTÓRICO
INTRODUÇÃO ÀS PRESSUPOSIÇÕES INTERPRETATIVAS

É sabido e reconhecido, nas mais diversas áreas do conhecimento, que a escolha


de um método já determina, por antecipação, a extensão e o tipo de resultados
da pesquisa.
Augustus Nicodemus Lopes (2005:136).

Interpretar nada mais é do que traduzir às nossas categorias de pensamento


o que acontece à nossa volta. É compreender a realidade. Essa é, por
conseguinte, uma atividade-experiência intuitiva e inata do ser humano. Em
outras palavras, antes de ser um método ou sistema, interpretação é um
exercício de existência. Viver é interpretar. Aplicada às Escrituras, portanto,
podemos assegurar que a interpretação bíblica é tão antiga quanto a própria
Bíblia.
Entretanto, depois de adentrar a academia, a nuança existencial-intuitiva
ou pré-teórica da interpretação aplicada às Escrituras é substituída pelo
método hermenêutico consciente. Na academia, hermenêutica tem nome, é
teorizada, é analítica e implica em método. A importância do método é
muito bem colocada por Augustus Nicodemus Lopes na citação de abertura
deste capítulo: metodologias determinam resultados.
Quanto à relação entre método e pressupostos, entende-se que método é
distinto de pressupostos, uma vez que nem sempre temos uma sincronia
justa e exata entre os dois. O primeiro lida com a prática “em si” (e.g.,
começo pelo contexto histórico ou não? A abordagem lexical tem
prioridade sincrônica ou diacrônica?), enquanto que o último se ocupa com
a relação de prioridade entre as crenças. Por outro lado, entende-se que todo
método é fruto de pressupostos. Ainda se assume que se pode ter os
mesmos pressupostos e métodos diferentes, assim como métodos (práticas)
iguais com pressupostos diferentes. Tudo isso dependerá da abrangência de
sentido e da relação de prioridade dos pressupostos.
Entende-se a natureza de uma pressuposição como “uma crença que toma
precedência sobre outra” (Frame 2010:61). Aplicada à prática da
interpretação, a pressuposição possui variações semânticas, podendo ser
geral/ampla ou específica. Na natureza semântica geral/ampla, o
pressuposto está mais distante na rede de crenças, como, por exemplo, no
reconhecimento: (1) da autoridade da Escritura (inspiração e inerrância); (2)
da existência e possibilidade de entendimento do significado do texto
(fugindo do agnosticismo linguístico ou do subjetivismo da Nova
Hermenêutica1); (3) da dimensão divina e humana (história e gramática) das
Escrituras. Já na natureza semântica mais específica (mais próximas na rede
de crenças), podemos exemplificar com: (1) a prioridade sincrônica (e não
diacrônica) na abordagem dos vocábulos; (2) o fato do aspecto verbal não
lidar com tempo; (3) a natureza menos factiva dos infinitivos; (4) os
critérios de paragrafação; (5) o conceito de gramática etc.
Assim, o título “pressuposições interpretativas” se refere a pressupostos
mais específicos (mais próximos) dentro da rede de crenças. Além da
dificuldade natural do próprio texto de Hebreus, declarar explicitamente
quais são nossos pressupostos interpretativos se faz necessário porque: (1)
exegese é método, e questões metodológicas precisam ser esclarecidas. Ao
invés de avançar a partir das regras de interpretação, é importante recuar e
observar conscientemente o porquê de nossas estruturas. (2) Os métodos
não necessariamente acompanham os pressupostos gerais da hermenêutica
histórica-gramatical. A divergência entre adeptos dessa abordagem é
comum. Ambos afirmam interpretar as Escrituras literalmente. Contudo, em
um dado momento na rede de crenças, um pressuposto não segue o outro.
(3) Entende-se que a passagem a ser interpretada faz parte de um grupo de
cinco passagens de exortação-advertência. Faz-se necessária, portanto, uma
palavra clara sobre as outras passagens, suas funções e a relação estrutural
com o texto a ser analisado. (4) A complexidade e novidade das conclusões
linguísticas. Praticamente todas as gramáticas escritas nos últimos anos
foram produzidas antes dos insights linguísticos modernos (Porter
2002:113).
Pensando ainda no quarto ponto alistado acima, Porter já revelava em
1993 um desânimo por encontrar poucos comentários que incluíssem
insights gramaticais atuais, principalmente pensando na estrutura verbal (cf.
Carson, Porter 1993:26). Já existem hoje comentários que levam em conta
novas descobertas2, mas a realidade americana da década de noventa –
criticada por Porter – é melhor que a brasileira dos nossos dias. Além do
aspecto inovador, as conclusões linguísticas raramente caminham juntas. A
posição tense-less (ausência de marcação de tempo nos verbos gregos) e a
teoria de pressuposição factiva para os particípios (ambas descritas em
nosso apêndice), por exemplo, não têm sido ainda aceitas pela maioria dos
estudiosos e são fundamentais para as decisões de nossa interpretação.
Seguem os pressupostos interpretativos (exegéticos) que trataremos neste
capítulo e nos seguintes: (1) conceito de linguística e gramática funcional;
(2) aspecto verbal; (3) particípios e modulação3; (4) contexto histórico
(autoria, primeiros leitores e circunstâncias); (5) contexto literário
(reconhecimento da estrutura da obra, conteúdo das exortações,
identificação e função das advertências no livro de Hebreus); e (6) contexto
teológico.
CONTEXTO HISTÓRICO
Existem duas categorias fundamentais na produção das perguntas certas:
conteúdo e contexto. Neste ponto da pesquisa, nossas indagações
focalizarão o contexto, especificamente o histórico. Ou seja, o objetivo do
presente capítulo é investigar quem escreveu, para quem foi escrito, em que
circunstância (histórica ou situacional) os leitores e o autor (ou autores) se
encontravam e qual o propósito da produção textual.
Nesse tipo de pesquisa, as informações mais confiáveis derivam do
próprio documento. Em Hebreus, no entanto, não temos identificação
explícita do autor, dos primeiros leitores (quem eram e onde estavam) e de
onde e para onde foi escrita. Contudo, isso não significa que estamos
completamente entregues à ignorância e à especulação. Se por um lado não
temos os nomes do autor e dos leitores, podemos saber muito sobre eles,
bem como sobre as circunstâncias e sobre o(s) propósito(s) do documento.
É importante destacar que cada informação contextual histórica colocada
abaixo foi conscientemente selecionada. Elas foram escolhidas por causa do
seu potencial em nos ajudar no entendimento de todas as advertências que
serão analisadas, para uma melhor compreensão de nossa passagem alvo.

Autoria
Ao longo da história da Igreja, foram muitos os nomes elencados como
candidatos a autor dessa magnífica obra. A razão principal para tanta
especulação envolvendo o nome do autor é simples: não encontramos uma
identificação nominal no próprio documento. Para aumentar a dificuldade,
não temos referência à autoria em outros documentos do NT; e os escritores
mais antigos que citam a obra seguem com o mesmo silêncio (cf. Clemente
de Roma [1 de Clemente 17; 36. c. 964], Policarpo [Aos Filipenses 6, 12. c.
69-155], Hermas [Similitudes 9.13.7, Visões 2.3.2; 3.7.2, c. 120]).
Paulo
Cedo na história da Igreja (séc. II), os cristãos do Oriente (Clemente de
Alexandria [c. 150-215, HE 6.14] e Orígenes [c. 185-253, HE 6.25])
atribuíram ao apóstolo Paulo a autoria (Koester 2001:21). A famosa citação
de Orígenes “quem é o escritor da epístola, Deus verdadeiramente conhece”
vem de Eusébio (HE 6.25). Contudo, o próprio Orígenes comumente (não
sempre e com reservas) se referia a Paulo como o autor.
No papiro mais antigo de Hebreus (P46), o documento segue a carta de
Paulo aos Romanos. Ou seja, está dentro do corpus paulinus. Eusébio (c.
260-339, HE 2.17.12) segue a mesma tendência unindo as cartas de Paulo
com Hebreus5. Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428), embora reconhecendo
que existiam pessoas que pensavam o contrário, também atribuiu a autoria a
Paulo (Ellingworth 1993:6). O mesmo se deu no Sexto Sínodo de Cartago
(419) onde foi atribuída a Paulo a autoria de 14 epístolas do NT.
Existem muitos temas comuns entre Paulo e Hebreus: Jesus (sua pré-
existência e atuação na criação, encarnação, obediência, morte sacrificial,
exaltação e intercessão), a geração do deserto como arquétipo de
desobediência (comp. 1Coríntios 10), a superioridade da Nova Aliança
(comp. 2Coríntios 3), fé como elemento essencial em nossa relação com
Deus (comp. Romanos 1.16-17). Koester (2001:55-5) vai além e alista 29
paralelos entre Paulo e Hebreus.
Contudo, as distinções também nos chamam atenção: vocabulário, forma
de citação, temas exclusivos (sacerdócio de Cristo) e ilustrações (cf. Lane
1991 1:xlix). Em 2.3, por exemplo, o autor se coloca, juntamente com os
leitores, como tendo recebido o Evangelho da primeira geração de cristãos.
Essa, sem dúvidas, é uma postura no mínimo estranha quando comparada
com o que encontramos nos documentos paulinos. Em Romanos 1:1 e
Gálatas 1:11-16, por exemplo, Paulo faz questão de dizer que recebeu o
Evangelho diretamente do Senhor Jesus. Atualmente, poucos defendem a
autoria paulina. “A última grande defesa da autoria paulina de Hebreus foi
escrita há mais de meio século” (Carson, Moo, Morris 1997:438).

Outras possibilidades
No lado ocidental, houve resistência ao nome do apóstolo aos gentios.
Irineu de Lião (c. 130-200), o Cânon Muratoriano (c. 180) e Hipólito de
Roma (c. 170-236) não reconheciam Paulo como autor. Agostinho ([c. 354-
430], 1887:34) apoiou a carta devido à aceitação dela como canônica no
Oriente. Jerônimo (c. 348-420) segue a mesma lógica de Agostinho e nos
informa que a autoria paulina era reconhecida tanto nas igrejas orientais
como também por todas as igrejas que desde o princípio escreviam em
grego.
As primeiras referências à autoria do livro de Hebreus vieram tanto do
Ocidente como do Oriente. Clemente de Alexandria (c. 150-215, cf. HE
3.38.2; 6.14.2) estabeleceu uma relação autoral entre Lucas e Paulo. Ele
afirma que Paulo escreveu em hebraico e Lucas traduziu para o grego. No
lado Ocidental, Tertuliano (c. 160-220) a denomina de Epístola de Barnabé
(De Pudicitia6) e ainda nos revela que Hebreus era mais reconhecida do que
“O Pastor” de Hermas.
Além dos elementos históricos e do próprio texto, a relação de Lucas
com Hebreus é reforçada pelo grego apurado; com o fato do autor não ser
testemunha ocular, antes, como em 2.3, recebeu suas informações de outros;
e da relação com o círculo de Paulo, uma vez que Timóteo é citado no final
do documento (13.23). Contudo, poucos estudiosos modernos fazem
apologia à sua autoria e/ou tradução (e.g., Black, 2001; Allen 20107).
As similaridades entre 1 Clemente de Roma e Hebreus8 levaram alguns a
cogitá-lo como um legítimo candidato (cf. HE 6.25). Não há como negar a
relação entre os documentos. Porém, existem discrepâncias tamanhas que
estabelecem uma separação definitiva. Clemente, por exemplo, não entende
o ensino de Hebreus sobre o sacerdócio de Cristo (tema predominante em
Hebreus). Segundo ele, “o leigo [estabelecendo uma clara distinção entre
sacerdotes e o sumo-sacerdote na igreja] é limitado pelas ordenanças dos
leigos” (Lightfoot, J. B.; Harmer, J. R. 1891:74).

No período da Reforma, a lista de candidatos só aumentou. Zwinglio e


Bullinger seguiram a tradição da autoria paulina (Koester 2001:37). Porém,
Calvino (1979:358), apesar de considerar o documento apostólico, sugeriu
Lucas ou Clemente como os mais prováveis autores. Lutero inovou ao
sugerir Apolo, porém, no prefácio da tradução da carta em 1522, o autor
ainda é tratado como uma figura anônima9.
A grande maioria dos estudiosos modernos (e.g., William L. Lane,
Harold W. Attridge, Paul Ellingworth, Donald Guthrie) tem seguido a
postura de Jerônimo e de Lutero antes de propor Apolo como autor. Ou
seja, não importa quem escreveu, mas o fato de que o documento tem sido
honrado ao longo dos anos. O entendimento predominante atualmente, pois,
é de que todas as tentativas de resolver a questão serão sempre
especulativas.

Um perfil do autor
Enquanto a identificação do autor não determina nosso entendimento do
documento como um todo, bem como da passagem específica a ser tratada,
entende-se que a investigação não é completamente inútil, uma vez que ela
não se restringe a uma “busca por um nome”. Envolve sim, a busca do
perfil, do estilo, dos recursos, das preocupações e dos seus métodos. Isso
seguramente fornecerá elementos importantes na busca pelo significado do
nosso texto.
Seguem algumas características do autor “sem nome”:
1. O autor é um erudito. O autor faz uso dos recursos retóricos
comumente encontrados na literatura e na oratória greco-romana. Attridge
(1989:20-21, 104) arrola uma série de recursos retóricos utilizados pelo
nosso autor: síncrise10 (comparação), exempla11, aliteração12, anáfora
(repetição de um mesmo elemento no começo de vários períodos
sucessivos, e.g., capítulo 11), assonância (repetição de vogais ou
consoantes), elipse13, quiasmo, hendíade14 (dois termos que expressam uma
noção única), hipérbato15 (separação de palavras que naturalmente
permanecem juntas), litotes16 (uso de duplo negativo), paranomásia17, bem
como inúmeras metáforas (e.g., do mundo da agricultura, da educação, dos
esportes). Além disso, ele vê Hebreus se encaixando na retórica epidíctica
(Attridge 1989:14)18.
Segundo Guthrie (s/d:12-3) todos esses recursos são encontrados nos
manuais de retórica da época. Daí a razão de muitos eruditos (Koester
2001:92-96) entenderem que ele fazia parte do mundo gentílico19. Assim,
caso reconheçamos seu background como judaico, é provável que seu
judaísmo era helenista (Lane 1991 1:xlix).
A erudição do autor é revelada também na riqueza de seu vocabulário.
Das 4.942 palavras usadas no livro, 1.038 são palavras diferentes e 169 são
exclusivas (Lane 1991 1:l). Lane (1991 1:xlix) ainda destaca a fineza da
construção das frases. Portanto, podemos assegurar que o autor tinha
educação refinada e era habilidoso com as palavras.
2. O autor é íntimo dos leitores. A presença dos pronomes τὶς ou τὶ
(alguém), seja sozinho (4.11; 12.15) ou ligado ao pronome ὑμεῖς (3.12,
3.13, 4.1), ou do adjetivo ἕκαστος (“cada” 6.11) indica que a preocupação
do nosso autor está em cada membro da congregação. Em 6.9-10 ele faz um
julgamento sobre a vida dos leitores que revela não somente conhecimento,
mas uma extrema proximidade:

Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das coisas que são melhores e
pertencentes à salvação, ainda que falamos desta maneira. Porque Deus não é injusto para
ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome, pois
servistes e ainda servis aos santos.
Em 13.9, ele revela conhecer os perigos doutrinários que tentam solapar a
comunidade. Em 13.19, fica clara uma relação prévia entre o autor e os
leitores. A palavra grega traduzida por “restituído” (ARA, RC, NVI) ou
“restored” (NIV, NAS, KJV, ESV) é ἀποκατασταθῶ. Segundo LN
(2013:173 – itálico nosso), a ideia do vocábulo é “mandar alguém de volta
para um lugar onde havia estado anteriormente”. Ou seja, ele fazia parte da
vida congregacional e, por motivo desconhecido, foi separado do convívio
dos irmãos. O mesmo verso revela que o desejo de retornar era grande, uma
vez que queria estar de volta “rapidamente” (τάχιον).
A identificação do autor com o povo é reforçada também pelo uso
constante da primeira pessoa do plural. A importância de sua preferência
pela primeira do plural é reforçada pelo fato de que ele só usa a primeira do
singular a partir do capítulo 11 e em toda a obra por somente seis vezes
(11.32; 13.19 [duas vezes], 22 [duas vezes] e 23).
Segundo Daniel B. Wallace (1996:393-99), são três as possibilidades de
referência quanto à primeira pessoa do plural: (1) epistolar ou editorial –
uma referência ao autor somente; (2) inclusivo – uma referência ao autor e
os leitores; e (3) exclusivo – grupo associado com o autor, coautores,
pessoas presentes com ele ou que participaram de alguma experiência
comum com o autor.
Wallace (1996:394) nos alerta para o fato de que “[n]ormalmente
devemos pressupor que determinada primeira pessoa do plural não é
editorial”. Quanto à natureza inclusiva ou exclusiva, ele assegura que “para
resolver a questão devemos considerar caso a caso” (1996:397).
Consideramos cada caso, com exceção das citações ou alusões do AT, e
chegamos à seguinte conclusão:
Epistolar (2.5; 6.9, 8.1) – Há também possibilidade de se entender o uso
dessas referências no sentido exclusivo, especificamente, com o significado
de coautoria. Isso se dá porque em 13.18 temos: “orem por nós”
(Προσεύχεσθε περὶ ἡμῶν) como se o autor não estivesse sozinho. O fato de
que o “nós epistolar” não ocorre naturalmente nos casos oblíquos reforça a
ideia (Wallace 1996:396). Contudo, o contexto nos revela que o uso de
ἡμῶν (“de nós”) se dá pela identificação do autor com os demais líderes,
não necessariamente com parceiros presentes ou coautores. Isso, por sua
vez, faz do nosso autor um pastor ou guia. Assim, em 13.18, temos o único
uso com sentido exclusivo para a primeira pessoa do plural.
Inclusivo (2.1, 3, 8-9; 3.6, 14, 19; 4.1-3; 11, 14-16; 6.1, 3, 18; 7.19;
10.10, 22, 23-24, 30, 39; 11.3; 12.1, 9, 28; 13.10, 13, 14-15). Em todos os
casos alistados, o autor usa a primeira do plural como um convite a se unir a
ele em uma argumentação, ou para exortação.
Para Fanning (em Bateman IV 2007:180), toda linguagem que identifica
o autor com os leitores no uso do pronome ἡμῶν, bem como a designação
de “santos” e “irmãos”, revela uma linguagem pastoral caridosa muito
comum, inclusive em nossos dias, onde o pastor se identifica com seu
público, porém, com a preocupação de que nem todos podem ser
verdadeiros crentes. No entanto, cremos que nosso autor se coloca
exatamente na mesma condição junto aos seus leitores. Veremos na análise
da quarta advertência, em Contexto Literário, que a proposta de Fanning
não é satisfatória.
A união entre autor e leitores no uso da primeira pessoa do plural será de
grande importância para o entendimento do nosso texto (6.1, 3),
primeiramente porque, em meio às várias exortações-advertências, ele
nunca se coloca acima dos seus leitores-ouvintes, como se seus avisos não
fossem aplicáveis a ele mesmo – o que nos dá uma noção da natureza das
advertências. Em segundo lugar, nos revela a natureza dos leitores – nosso
próximo ponto.
3. O autor é perito no Antigo Testamento. São várias as citações20,
alusões21 e ecos do AT22. Sobre a importância de se entender o uso que o
autor faz do AT, G. Guthrie (2001:2) nos alerta:
Tentar estudar qualquer porção de Hebreus sem considerar o sistema hermenêutico do autor,
sem reconhecer a forma com que ele utiliza os textos do AT e o fim para os quais essas
formas levam, é um exercício mal orientado ou pelo menos incompleto.

Há um consenso de que o autor se utilizou de uma fonte grega (Lane


1991 1:cxviii; Osborne 2009:434). A partir desse consenso, as pesquisas
passaram a focalizar no tipo de texto usado. Há quem defenda que ele se
valeu de um texto similar ao encontrado no Códex Alexandrino. Outros
entendem que o autor combinou os elementos mais primitivos tanto do
texto Alexandrino (A) quanto do códice Vaticanus (B) (e.g., K. J. Thomas).
O fato é que o uso de uma versão grega (ou uma combinação) reforça sua
relação com o mundo gentílico.
Quanto ao uso que ele faz do texto sagrado, ou seja, as técnicas
hermenêuticas empregadas, “o consenso geral hoje é que ela utiliza
tipologia judaica, em particular, o judaísmo apocalíptico” (Osborne
2009:435), uma vez que a estrutura de pensamento do autor apresenta um
dualismo tanto temporal (9.8, 10-11) quanto espacial – 9.23 (Guthrie
s/d:30). Lane (1991 1:cxix-cxxiv) elenca várias práticas do autor que
coincidem com as técnicas rabínicas usadas por seus contemporâneos nas
escolas e sinagogas (e.g., tipologia, citações em cadeia, midrash
homilético23).
Sobre a relação do nosso autor com a hermenêutica judaica, é importante
algumas ressalvas:
1. As similaridades entre a hermenêutica judaica (ou qualquer outra
escola hermenêutica) e a dos autores do NT “se devem ao fato de que
algumas regras de interpretação são universais, lógicas, e se encontram não
somente na literatura rabínica” (Lopes 2007:62). Ou seja, sempre existirão
paralelos no “mundo interpretativo” por mais díspares e distantes
historicamente que eles sejam. Não é à toa que muitos estudiosos
relacionam a hermenêutica de Hebreus com várias escolas interpretativas
como Filo (e.g., Ceslas Spicq24, James Moffatt, C. K. Barrett25), a
comunidade de Qumran26 (e.g., Peter Enns, Wilson, 2009, p. 175) ou
qualquer outra escola judaica.
2. Sobre a relação com o judaísmo: é importante ressaltar dois fatos: a)
Mesmo que conhecêssemos mais sobre o inter-relacionamento entre
movimentos religiosos como o judaísmo helenista, o essênio, o farisaico ou
outros grupos, nas palavras de David Flusser, “não seria possível cortar o nó
górdio” (Flusser 2000:17). Segundo Anthony Thiselton (2009:1209),
judaísmo “nunca foi algo uniforme”, especialmente as diferenças entre
judaísmo helenista, rabínico, do mar morto etc. b) A questão é que, mesmo
que se trate de um judeu helenista, tal fato não eliminaria tudo de outra
corrente judaica. O mesmo se pode dizer de outras correntes do judaísmo.
Se há diferenças, há igualmente semelhanças. Boa parte dessa semelhança é
explicada pelo uso de material comum – o AT.
Desta forma, seguimos a tese de Harold W. Attridge (1989:29-30): “Não
há um único ramo do judaísmo que providencie uma matriz clara e simples
para entendermos o pensamento do nosso autor ou do seu texto”.
3. Sobre o apocalipcismo: não se trata de uma exclusividade do judaísmo
do segundo templo, ou essênio, mas dos profetas ou, mais amplamente, do
AT. Assim, a relação de Hebreus com a literatura apocalíptica não faz do
documento necessariamente um produto de um provável movimento
apocalipcista de uma determinada corrente judaica. As palavras de John
Collins (2010:365-6 – itálico nosso) são pertinentes nesse ponto: “Tanto os
Evangelhos sinóticos quanto Paulo […] são matizados em um grau
significativo numa visão de mundo apocalíptica”.

Destinatários
Identidade étnica e religiosa
É de grande importância para essa obra o entendimento de que os leitores
em questão são cristãos genuínos27. Aliás, entende-se, seguindo a tese de
Cowan (2012), que a garantia de salvação e a segurança dos leitores têm
sido ignoradas (não pressupostas) quando se analisa as advertências. Dessa
forma, cremos não ser necessária uma longa argumentação neste ponto da
pesquisa em prol de uma identidade cristã para os leitores. Por enquanto, as
seguintes razões são suficientes28:
(1) As exortações a conservar firme a confissão (4.14 e 10.23) e o fato de
que Cristo é seu objeto principal (3.1) deixam claro que estamos lidando
com pessoas que se identificaram como cristãs. (2) Como colocado antes, o
uso da primeira pessoa do plural também nos revela que a relação entre
autor e leitores não era somente de proximidade, mas de equidade de status.
(3) Expressões como “irmãos” (3.1, 12; 10.19; 13.22), “santos” (3.1) e
declarações que só podem ser aplicadas aos salvos reforçam tal julgamento
(e.g., “nós, porém, que cremos” [4.3]29; “estamos persuadidos [quanto aos
leitores] das coisas que são melhores e pertencentes à salvação” [6.9]; “Nós,
porém, não somos dos que retrocedem para a perdição; somos, entretanto,
da fé, para a conservação da alma” [10:39]).
O título προς εβραιους (“aos Hebreus”), presente em todos os MSS, bem
como em todas as versões (antigas ou contemporâneas), pode indicar ao
leitor que não temos problema quanto à identidade étnica dos primeiros
leitores do documento30. Contudo, o julgamento é que desde a primeira
citação com Tertuliano (De Pudicitia, 20) “não temos conhecimento de
qualquer outro título ou qualquer momento que ele esteve ausente” (Morris
1984:4).
Apesar disso, mesmo que se pudesse comprovar que a expressão era
original, isso não determinaria o fim da busca por entender quem realmente
são os leitores. A expressão não é tão clara como se pode imaginar a
princípio. Ela pode ser uma referência a cristãos judeus que tinham como
língua materna o hebraico ou o aramaico, ou cristãos que são judeus de
nascimento, não importando sua língua materna (Carson; Moo; Morris,
1997:446).
Há muitos indícios fornecidos pelo próprio documento de que os leitores
têm um background judaico. Mesmo que não possamos assegurar uma etnia
judaica, é certo que a orientação religiosa dos primeiros leitores, antes do
contato com o Evangelho, seguramente era judaica. Seguem algumas
indicações:
1. Relação com o Antigo Testamento. Todas as argumentações são
construídas sobre fundamento histórico, teológico e litúrgico do AT. São
muitos os tópicos: a geração rebelde que caiu no deserto, o culto no
tabernáculo, o dia da expiação, o sacerdócio e o sumo sacerdote, os tipos de
oferta e as alianças. Os vários personagens mencionados no capítulo 11
também reforçam a ideia. O livro ainda pressupõe uma angelologia bem
desenvolvida – o que era fato entre os judeus.
O número de citações, alusões e ecos do AT é relevante. Segundo G.
Guthrie (2001:6):

Existem rigidamente trinta e cinco citações, trinta e quatro alusões, dezenove casos onde o
material do AT é sumarizado, e treze onde um nome ou tópico do AT é referido sem
referência a um contexto específico.

Pode-se contrapor a tal argumentação alegando que o AT era a Bíblia do


cristão. Portanto, nada mais natural que argumentar utilizando-se dela, bem
como pressupor o conhecimento do seu conteúdo. Contudo, toda
argumentação pressupõe não somente conhecimento do AT, mas um
envolvimento direto com a vida e a liturgia judaica. Um dos objetivos do
livro é mostrar que toda estrutura de culto mudou devido a uma mudança de
sacerdócio (cf. 7.12; 8.13; 10.1-2) e à primeira aliança que já se tornara
“obsoleta” (8.13).
2. Relação com o culto em Jerusalém. Neste ponto, o capítulo 13 é chave.
Ele fornece informações que nos ajudam a entender as circunstâncias e até
mesmo nos fornece dados que podem nos aproximar da data do documento.
Numa leitura rápida, ele revelará que a relação dos leitores com o culto
judaico era viva ao ponto de ser ameaçadora. Segue uma breve exposição
com as devidas implicações sobre a identidade (étnica e religiosa) e
circunstâncias dos nossos leitores.
A passagem começa e termina com uma referência aos ἡγέομαι (guias –
v.7-9; 17-19). A estrutura ou divisão da passagem é a seguinte: v. 7-9, v.10-
16 e finda com v.17-19. O centro da passagem são os v. 10-16. Aqui a
declaração “possuímos um altar fora de Jerusalém” (vv. 10-11) sintetiza
bem o parágrafo. O objetivo da argumentação é claro: ou nos beneficiamos
do altar que está fora de Jerusalém ou vivemos numa dependência da
cidade e seus alimentos que não “fortalecem” ou “confirmam”
(βεβαιοῦσθαι) o coração (13.9).
Sobre os “guias” (ἡγέομαι): (1) são citados três vezes nesse capítulo. (2)
Eles são divididos em dois tipos: “os que eram” (vv. 7-9) e “os que são”
(vv. 17-19). Os primeiros muito provavelmente já estavam mortos31 (não é
primeira vez que o autor nos convida a olhar ou imitar a fé de outros que
morreram). Essa informação é importante, pois distancia nosso documento
da primeira geração de cristãos. (3) A própria léxis de “guia” revela a
autoridade envolvida nessa figura. O vocábulo “[…] é usado no particípio
presente para denotar ‘governador’, literalmente, ‘aquele que governa’”
(Vine 2002:677). A palavra era aplicada a vários ofícios como oficiais
militares, oficiais de estado, políticos e líderes religiosos (Guthrie
1998:438). É usada no sentido mais genérico de líder sem ter uma
referência específica à natureza e função dessa liderança. A ordem
“obedeça” (ARA, ARC, NAS, KJV, NIV, NVI) reforça a semântica de
governo e status elevado (LN 1996:415).
O grande indicativo para a natureza dessa liderança está no fato de que
eles pregavam a Palavra (v. 7). Daí o reconhecimento de uma referência à
autoridade pastoral. O ensino falso combatido, portanto, não vem dos seus
pastores, uma vez que eles devem ser obedecidos.
De importância para a identidade dos nossos leitores é o fato de que o
vocábulo em questão (ἡγέομαι) pode nos levar a Roma, uma vez que é
encontrado em “O Pastor” de Hermas (Visões 2.2.6; 3.9.7) e 1 Clemente
21.6 para se referir aos líderes da igreja. A expressão “os da Itália” (οἱ ἀπὸ
τῆς Ἰταλίας – 13.24), usada para solidificar a relação do documento com
Roma, apesar de não ser clara, não pode ser ignorada. Ela pode significar:

1. O autor está em Roma escrevendo para pessoas que vivem fora da


Itália. Na saudação, ele inclui seus companheiros italianos. Segundo
Kistemaker (2003:610), “[e]ssa visão era comumente defendida pelos
pais da igreja”. Metzger (1994:607) alista vários MSS que explicitam a
origem (ἀπό) da carta como Roma ou Itália (e.g., A P K 1908 460 102
460 1923 425 464 404 431). É consenso que se trata de uma glosa
posterior dos escribas.
2. Pessoas fora da Itália enviando saudação para os que estão na Itália
(Guthrie, 1998:21). O uso de πάντας (“todos”) aplicado aos “guias” e
aos “santos” e não aos da Itália nos faz pensar em um grupo específico
que não se encontra em Roma. Além disso, a expressão pode ter o
sentido de originários da Itália (e.g., οἱ ἀπὸ Κιλικίας καὶ Ἀσίας [At.
6.9], τῆν ἀπὸ Ἰόππης [10:23]).

O verso 8 do capítulo 13 aparentemente não tem conexão com o


precedente. Porém, temos aqui uma referência à palavra pregada – Jesus.
Ele era o tema. A afirmação de que ele é o mesmo serve como ponte para o
verso seguinte. Pessoas estavam abraçando ensinos variados (Διδαχαῖς
ποικίλαις). Jesus, lembra o nosso autor, “é o mesmo”. Ele é o objeto da
nossa fé – que não varia.
O verso 9, portanto, vai condenar o ensino estranho a Cristo. O verso
ainda nos informa no que consiste especificamente esse erro doutrinário:
segurança em alimentos. Quanto à natureza dos alimentos, pode-se
assegurar que:
1. Não se trata da proibição legalista ou imatura do consumo de certos
alimentos – tópico muito comum no NT (cf. Rm. 14; 1Co. 8-10; 1 Tm.
4.3) –, mas de alimentos consumidos (φαγεῖν – v.10) e tomados como
meios de graça e força espiritual.
2. Devido às figuras usadas pelo autor, esses alimentos estão ligados aos
sacrifícios judaicos realizados e/ou dependentes de Jerusalém. Aqui o
autor pode ter em mente a páscoa ou os sacrifícios pacíficos. O ponto é
que a comida era tomada como tendo efeito no coração. Importante
para nosso entendimento sobre os leitores e as circunstâncias é que tal
julgamento elimina a ideia de que se tratam de alimentos sacrificados
aos ídolos, ligando-os assim ao culto pagão. Logo, se são gentios, são
gentios prosélitos. Mais relevante ainda é que essa passagem parece
nos revelar que, devido às perseguições (10.32-37) e provações (12.3),
eles achavam que encontrariam força nos alimentos da liturgia judaica.

A argumentação iniciada no verso 10 pressupõe que o autor, como nos


capítulos 8-10, tem em mente o que acontecia no dia da expiação (Levítico
16). Se em 8-10 o autor focaliza na oferta e na entrada no Santo dos Santos,
aqui a ênfase está no que acontece fora da tenda. O sacrifício era realizado
no arraial, ou dentro da cidade santa. Porém, as carcaças eram levadas para
fora da cidade. As metáforas do autor são construídas nesse evento,
especificamente no fato de estarem fora.
No verso 11, temos uma explicação (γάρ): o corpo do animal sacrificado
era colocado fora do acampamento. A explicação do verso 11 leva a uma
implicação (διό): a referência a fora dos muros aponta para a morte de
Cristo no Gólgota que, por sua vez, corresponde à remoção das carcaças no
acampamento. A palavra “fora” é que estabelece a comparação – é o
elemento comum ou o ponto de contato.
Tudo o que o autor diz aqui está de acordo com o que ele desenvolveu
principalmente nos capítulos 8-10: Jesus, a nossa oferta. Porém, com um
detalhe importante: fora dos muros, fora da cidade. A implicação é clara: se
Jesus Cristo foi colocado para fora dos muros, seus seguidores devem
segui-lo. Isso nos leva ao convite-exortação em 13.13: ἐξερχώμεθα πρὸς
αὐτὸν ἔξω τῆς παρεμβολῆς (“saiamos para ele [Jesus] fora do
acampamento”). O contraste é claro e severo: quem serve no templo não
serve no nosso altar. São duas realidades mutuamente excludentes.
Quanto ao significado do convite-exortação, seguem algumas
considerações:
1. Trata-se de um convite a nos encontrarmos com Cristo. Essa é uma
constante em toda a carta. Em 2.1, os leitores são exortados a ouvirem com
atenção a mensagem que começou com Cristo; em 3.1, a olhar com atenção
a Cristo; em 4.14-16, a se aproximar do trono por meio de Cristo (nosso
Sumo Sacerdote). Essa aproximação de Cristo implica em vitupério,
vergonha e rejeição (v.13 – ὀνειδισμός32). Jesus saiu e nós devemos segui-
lo. Assim como Jesus Cristo saiu e deixou a segurança, a congenialidade
das coisas sagradas, sendo reprovado, da mesma forma os leitores também
deveriam deixar o acampamento, assumindo, como ele, o vitupério.
Isso nos diz muito sobre nossos leitores. Ao que parece, eles buscavam
evitar as implicações vergonhosas de se assumir uma identidade cristã e/ou
de deixar a “vida no templo”. Para nossos leitores, o judaísmo parecia ser
uma opção mais confortável – menos vergonhosa. Como eles são exortados
a manterem a confissão (4.4; 10.23), ao que parece, eles não estavam
entendendo as implicações de se voltar para a primeira aliança, ignorando
assim para quem ela apontava, bem como não queriam pagar o preço do
discipulado.
A exortação “prossigam na ou para a perfeição” em nossa passagem tem
seu aspecto negativo na oração “não lançando novamente o fundamento”.
Se entendermos o fundamento como sendo uma referência ao judaísmo (o
que argumentaremos na exposição do texto), o autor revela não somente
uma tensão de alianças (algo comum em toda a obra), mas uma tendência
sincrética. Essa tendência sincrética é indicada pela declaração: “Temos um
altar, de que não têm direito de comer os que servem ao tabernáculo”
(13.10). Ou seja, são dois “altares” mutuamente excludentes. Para caminhar
na perfeição, eles precisam deixar o judaísmo – deixar Jerusalém.
2. Significa independência de Jerusalém (v.14) e de suas implicações
litúrgicas. Eles estavam olhando para trás enquanto a cidade deles estava à
frente. Novamente, temos indícios da identidade dos nossos leitores
originais. Parece que eles tinham uma vida dependente de Jerusalém. Isso
não implica necessariamente que eles deveriam estar fisicamente na cidade.
Contudo, podemos assegurar que eles eram ou estavam sendo levados a
depender completamente da liturgia do templo. O autor os lembra de que
todas as ofertas que Deus se agrada (louvor, repartir para as pessoas) se dão
por meio (διά) de Jesus (v.15) – o novo Sumo Sacerdote.
Essas colocações têm implicações diretas quanto à data do documento. A
obra pressupõe que o templo ainda estava em pleno funcionamento. Ou
seja, ela foi produzida antes de 68 d.C., quando se deu início o cerco de
Jerusalém.
A exposição de 6.2 abaixo, especificamente o estudo do vocábulo
βαπτισμός (“lavagens”), reforça ainda mais a ligação dos primeiros leitores
com o mundo judaico, uma vez que o vocábulo faz referência ao
“fundamento” (θεμέλιον) de e para Cristo (6.1).

As circunstâncias
A passagem a ser discutida com mais atenção (5.11-6.12) geralmente é
usada para assegurar que os leitores eram imaturos. Contudo, como
argumentaremos abaixo, entendemos que as colocações feitas em 5.11-14
são irônicas. Com isso, não se está negando que temos um quadro real e
perigoso de negligência (5.11 – νωθρός), mas que não podemos confundir a
realidade da negligência com a ironia das palavras que segue essa
constatação.
O capítulo 10.32-34 nos informa que os leitores tinham um passado
marcado por muito sofrimento, insultos públicos, prisões e confisco dos
bens. Tanto aqui como na passagem paralela (6.9-12), é-nos dito que a
resposta deles se deu em ajuda (6.10), compaixão com os presos (10.34) e
comunhão com os que foram insultados (10.33). Como sabiam que teriam
bens superiores e permanentes (como os personagens citados no capítulo 11
[cf. v.10, 13, 16, 26]), não somente ajudaram os demais, como se alegraram
com a perda dos seus bens (10.34).
A afirmação de que o passado dos nossos leitores foi marcado por
perseguição e, mais especificamente, por perda de bens é uma das
informações mais vívidas a respeito de nossos leitores. Muitos estudiosos
relacionam esse fato com o edito de Cláudio em 49 d.C. Lane (1991 1:lxvi)
entende que “insulto, abuso público e especialmente a perda de propriedade
eram normais sob as condições de um edito de expulsão”. Seguindo essa
lógica, nossa carta estaria necessariamente depois de 49 d.C.
Diferente do passado, o abatimento (ἐκλύω), a vontade de desistir (12.3,
12) e o medo da morte (2.15) estavam vencendo a guerra contra a alegria e
a persistência (12.1 – ὑπομονή). Em 12.1ss, temos um indício que pode
explicar essa mudança na comunidade. A palavra chave aqui é ἁμαρτία
(pecado). Em 12.1, ela não tem um enfoque específico; antes, é mais geral e
subjetivo (εὐπερίστατος); era um embaraço a ser evitado em uma corrida
perseverante. Por outro lado, temos em 12.3 uma referência específica e
objetiva (externa) – são os pecadores (12.3 – τῶν ἁμαρτωλῶν). Esses foram
hostis (ἀντιλογία) para com Cristo. O caráter dessa hostilidade é revelado
no verso seguinte, quando nos é dito que os irmãos não sofreram “até o
sangue” – diferente de Cristo.
Se entendermos a menção personificada de pecado em 12.4 como
referência aos pecadores em 12.3, temos uma menção à oposição hostil e
física contra nossos leitores, oposição esta que não chegou “até o sangue” e
nem pode ser comparada com a do Senhor Jesus (12.2-3). Contudo, ainda
assim, hostil e física. Caso tenhamos uma carta a irmãos em Roma escrita
depois de 49 d.C. e antes de 68 d.C., a sugestão mais provável é que nossos
leitores estão sob a perseguição promovida por Nero. Isso colocaria nossa
carta entre o grande incêndio de Roma (64 d.C.) e o suicídio de Nero (68
d.C.)
O conteúdo das exortações (2.1-3; 3.7-15; 4.1; 5.11-14; 12.3) e o fato de
o “deixar de congregar” (10.25) já ser o hábito (ἔθος33) de alguns
(aparentemente eles se reuniam diariamente [ἑκάστην ἡμέραν – 3.13])
reforçam o quadro de abatimento na comunidade. Não nos é dito a razão da
ausência nas reuniões, mas se pode pensar que ela está na perseguição
(12.3), na displicência (6.12) ou no desânimo (12.3), ou ainda numa
combinação desses elementos, ou em todos.
As expressões ἵνα μὴ (“a fim de que não” – 3.13; 4.11; 6.12; 12.3, 13) e
μήποτε34 (2.1; 3.12; 4.1), muito comuns nos contextos de exortação que
confrontam o desânimo, são importantes para entendermos a natureza
dessas ameaças (e.g., desânimo, ausência nas reuniões) bem como o
propósito das exortações, ou seja, do próprio documento, uma vez que o
autor denomina sua obra de “palavras de exortação” (13.22).
Tanto ἵνα μὴ quanto μήποτε são expressões de natureza futurísticas35. Em
outras palavras, elas indicam o que se visa evitar, não necessariamente o
que é real. Ou seja, não podemos confundir o deixar de congregar e/ou o
desânimo com a própria apostasia (que é o que se quer evitar com as
exortações). Há, sim, uma relação direta entre os dois. Deixar de congregar,
desânimo e displicência seriam uma espécie de “prelúdio para a apostasia”
(Lane 1991 2:290). Mas podemos concluir que nosso autor não está
escrevendo para descrentes desviados, mas para crentes desanimados36.

Síntese
Com os dados considerados acima, queremos agora reconstruir o quadro
histórico. Extrairemos dele informações importantes na lida com o nosso
texto, principalmente no que diz respeito ao autor, aos leitores e à situação.
1. Temos um escritor (pastor), extremamente inteligente, versado na
retórica grega e com conhecimento do AT satisfatoriamente apurado que,
longe de suas ovelhas que se encontravam em Roma, toma conhecimento
de que elas estão flertando com o judaísmo e a liturgia do templo.
2. As perseguições e prisões que haviam sido vencidas com alegria nos
dias de Cláudio foram intensificadas nos dias de Nero. O medo da morte
cresceu nos corações. O preço da confissão agora parecia ser alto demais. O
pensamento de desistir já havia tomado alguns e as reuniões já não eram as
mesmas. A ideia de se voltar para o judaísmo sem abandonar
completamente o cristianismo (sincretismo) crescia por parecer ser um
caminho legítimo.
3. Eram muitas as vantagens da vinculação com o judaísmo. Elas podiam
ter seus corações fortalecidos pelos alimentos sagrados, não precisavam se
vincular totalmente com o cristianismo e ter, como decorrência dessa
relação, o vitupério e o risco de derramar sangue.
Apesar de existirem pastores presentes que lutavam contra tal postura,
uma vez que eles eram preocupados com a vida de suas ovelhas, os cristãos,
em insubmissão, alimentavam a ideia de que o vínculo com o judaísmo e o
templo não era nada ameaçador para suas vidas espirituais.
4. O pastor envia a carta-pregação visando incentivar aqueles irmãos a
não desistir. Para isso, ele argumenta que mesclar cristianismo e judaísmo é
o mesmo que abandonar Cristo (seu sacrifício, intercessão, reino e domínio)
e o próprio AT, uma vez que toda a liturgia e prática da primeira aliança
apontavam para Cristo – eram parábolas (παραβολή – 9.9), sombras (σκιά –
10.1) e figuras (ὑπόδειγμα – 8.5; 9.23) de Cristo. Aderir às práticas que
apontam para o Messias, depois da sua vinda, é um desrespeito, um desdém
e uma falta de entendimento da razão da existência delas. Tanto a sombra
quanto o que ela aponta são ignorados. A carta-sermão é explicitamente
centrada em Cristo.
5. Assim como a geração do deserto, nossos leitores estavam sendo
tentados-provados (2.18 – 3.1; 4.15-16) e não deveriam reagir com
incredulidade (3.12). Antes, deveriam viver olhando para Cristo (3.1),
caminhando na perfeição (6.1), cuidando e se admoestando mutuamente
(3.13; 12.14) a fim de que ninguém37 pudesse ser separado da graça, como
Esaú, ou fazer crescer raiz que produza amargura e contaminação (12.15).
O que o autor deseja é que eles mantenham a confiança (παρρησία,
ὑπόστασις), a esperança (ἐλπίς), a prontidão (σπουδή) e a fidelidade (πίστις)
“até o fim” (3.6, 14; 6.11; 13.7).

1. “A nova hermenêutica derruba a rigorosa disjunção sujeito/objeto característico da antiga teoria


hermenêutica. O argumento é que o intérprete que aborda um texto já traz consigo certa bagagem
cultural, linguística e ética. Todas as perguntas que o intérprete faz (ou deixa de fazer) sobre o texto
refletem as limitações impostas por tal bagagem; de alguma forma, elas irão condicionar o tipo de
‘resposta’ que pode voltar do texto e a maneira como o intérprete irá compreendê-la […] Em algumas
exposições da nova hermenêutica, o significado real e objetivo em um texto é uma miragem, e buscá-
lo é tão útil quanto procurar uma agulha em um palheiro” (Carson 1999:118 [itálico nosso]).
2. O comentário do próprio S. E. Porter de Romanos (The Letter to the Romans: A Linguistic and
Literary Commentary) e o comentário da carta de Tiago por William Varner (The Book of James: A
New Perspective) são exemplos de uma “consciência linguística”, bem como da aplicação consistente
em toda a obra. Existem outros comentários que revelam uma certa “consciência” das novas
descobertas linguísticas, contudo, aplicam-nas de forma isolada e, não em poucos casos, apoiam-se
em escolas contrastantes.
3. Os três primeiros serão considerados no apêndice.
4. Todas as datas seguirão Terri Williams (1993), Jonathan Hill (2006) e Earle E. Cairns (2008).
5. πρὸς Ἑβραίους καὶ ἄλλαι πλείους τοῦ Παύλου.
6. Tertuliano (em Roberts, Donaldson, Coxe 1885:97) declara: “Pois existe igualmente uma epístola
aos hebreus sob o nome de Barnabé – um homem suficientemente aprovado por Deus […]”
(1885:97) Segue-se uma citação de Hebreus 6.4-8.
7. A tese de doutorado de David L. Allen foi apresentada a universidade do Texas em Arlington em
1986. Somente em 2010 ela foi publicada na série NAC Studies in Bible & Theology. Em 2016,
Walter Ray Nutt usou a tese de David L. Allen em seu livro Crucifying the Lord Again?
8. 1 Clemente 17:1, cf. Hb. 11:37, 39; 17:5, cf. Hb. 3:5; 21:9, cf. Hb. 4:12; 27:2, cf. Hb. 6:18; 31:3,
cf. Hb. 11:20; 36:2–5, cf. Hb. 1:1–3.
9. Segundo Lutero (2003 8:153 – itálico nosso): “Fica, portanto, evidente que seu autor é um homem
capaz e instruído, ex-discípulo dos apóstolos, que muito deles aprendeu, com profunda experiência
de fé e prática na Escritura […] Entretanto, não se pode equipará-las às epístolas católicas em todos
os aspectos. Agora, quem a teria escrito, não se sabe e, certamente, ainda vai continuar uma incógnita
por mais algum tempo; isso também nem é relevante”. Interessante que o julgamento depreciativo de
Lutero sobre o conteúdo de Hebreus se dá exatamente pelos capítulos 6, 10 e 12. Para Lutero, esses
capítulos negam categoricamente a penitência após o batismo; o que, para ele, contraria todos os
evangelhos e as epístolas apostólicas. Lutero entende que essa “doutrina destoante” é evidente.
10. Em 1996, Timothy W. Seid desenvolveu bem esse recurso em sua tese de doutorado para Brown
University intitulada “Synkrisis in Hebrews 7: The Rhetorical Structure and Strategy”.
11. Para um tratamento mais específico sobre o tópico, a tese de doutorado de Michael R. Cosby, The
Rhetorical Composition and Function of Hebrews 11, in Light of Example Lists in Antiquity (Macon,
GA: Mercer University Press, 1988) sumarizada em “The Rhetorical Composition of Hebrews 11,”
JBL 107 (1988): 257-73.
12. 1.1; 2.1-4; 4.16; 10.11, 34; 11.17; 12.21.
13. Em 12.24, Abel é mencionado ao invés do seu sangue.
14. 2.2; 5.2; 6.10; 8.5; 11.36; 12.18.
15. 2.9, 14; 4.8; 9.15; 12.3, 24.
16. 4.15; 6.10 (οὐ γὰρ ἄδικος ὁ θεὸς – “porque Deus não é injusto); 7.20; 9.7, 18.
17. 2.10; 3.11; 5.8; 7.9, 23-24; 9.16-17; 10.38-39; 12.2.
18. É importante reconhecer que os elementos retóricos não implicam que devemos forçar nossa
leitura aos moldes de um discurso clássico. Lane (1991 1:lxxix) nos assegura que “recursos retóricos
são claramente discerníveis em Hebreus, mas a presença de uma estrutura retórica identificável é
menos evidente”. Quanto à retórica epidíctica, segundo Lane (2013:626 – itálico nosso), “trata de
reforçar as crenças aceitas pelos ouvintes. O tom é mais instrutivo, procurando revigorar as
convicções que os ouvintes já possuem”.
19. Em Contexto Literário se argumenta que a expressão “palavra de exortação” em 13.15 nos leva
para as sinagogas helenísticas.
20. G. Guthrie (2001:4) identifica citação nos usos que envolvem algum tipo de fórmula introdutória.
Em Hebreus, normalmente envolve uma correspondência formal estendida ao texto antecedente ou,
no caso de conflações, aos textos antecedentes.
21. Para G. Guthrie (2001:4), alusão envolve pelo menos uma frase do texto anterior dentro da
fraseologia do próprio autor, sem uma marcação formal desta fraseologia. Às vezes, envolve
mudanças morfológicas nas palavras da citação original.
22. Expressão cunhada por Richard Hays (1989:18-21, 23-24, 29) e de difícil distinção com a alusão.
Usada aqui para se referir àquelas situações onde o autor utiliza termos de contextos mais amplos das
suas citações e alusões claras. Para Hays, citação, alusão e eco representam respectivamente a
seguinte escala: certeza, probabilidade e possibilidade. Douglas J. Moo e Andrew David Naselli (em
Carson 2016) trazem uma análise equilibrada da proposta de intertextualidade de Richard Hays.
23. A palavra midrash pode trazer certa confusão. Segundo G. K. Beale (2013:157), “os escritos
midráshicos consistem em comentários sobre vários livros do AT […]. Esses comentários procuram
explicar os significados do texto veterotestamentário ou aprofundar-se nele para saber aplicá-lo à
vida”. Segundo Klyne Snodgrass (2001:218), “[no midrash] a preocupação é providenciar uma
instrução prática […] o foco está na aplicação do texto ao invés do entendimento do próprio texto”.
Porém, o mesmo Snodgrass (2001: 219) entende que “midrash não é uma aplicação arbitrária do
texto” uma vez que seguia as sete regras que guiavam a interpretação rabínica. O fato é que nosso
autor muda o texto com finalidade teológica e interpretativa (Guthrie, 2001:8-10). Ellis (1978:152-7
apud. Guthrie, 2001:12) denomina essa mudança no texto de “midrash implícito”, pois o autor não
cita e expõe (midrash explícito), mas integra elementos interpretativos dentro da própria citação. Em
12.26, por exemplo, o autor muda o texto de Ageu 2.6. Primeiramente ele inverte “céu” e “terra” e
inclui a frase οὐ μόνον (não somente) e ἀλλὰ καὶ (mas também). Há também muitos exemplos de
midrash explícito: Salmo 39 em Hebreus 10.5-10. Aqui o autor primeiramente cita o texto em 5-7 e
depois explica em 8-10. O mesmo se dá em 7.1-10. Em 7.1, ele resume o evento registrado em
Gênesis 14.17-20 e então passa a discutir vários aspectos da passagem (e.g., a falta de genealogia, o
nome de Melquisedeque).
24. Em 1952, Ceslas Spicq publicou um comentário de Hebreus em dois volumes defendendo um
paralelo entre Hebreus e Filo no método interpretativo, no vocabulário e na cosmovisão.
25. Defendeu que Hebreus contém elementos do idealismo de Filo.
26. Depois da descoberta dos escritos de Qumran, muitos estudiosos que relacionavam Hebreus com
Filo tentaram ajustar suas posições com esse nosso background judaico (e.g., Ceslas Spicq).
27. Assegurar que os leitores são cristãos e de que possuem relação com o culto judaico (seja porque
são judeus, seja porque são gentios convertidos ao judaísmo ou judeus helenistas) não é mesmo que
afirmar que temos um público monolítico.
28. Na análise do conceito de perfeição e sua relação com a Nova Aliança a seguir teremos ratificada
a identidade cristã dos nossos leitores.
29. Contraste feito com a geração do deserto marcada pela incredulidade.
30. Os MSS ‫ א‬C 33 também trazem a mesma expressão no final do documento (Metzger 1994:607).
31. A expressão ἔκβασιν τῆς ἀναστροφῆς pode ser entendida como o “fim da vida” (LN). Mesmo
que o sentido seja de “resultado”, a implicação de final de vida permanece. O verbo Μνημονεύετε
(“lembrar”) com o objeto sendo os próprios líderes (τῶν ἡγουμένων) também reforça nosso
julgamento.
32. Segundo LN (2013, p. 387), “falar de alguém com desprezo, de uma forma que não se justifica –
‘insultar, insulto’”. Em Marcos 15.32 temos: “desça agora da cruz o Cristo, o rei de Israel, para que
vejamos e creiamos. Também os que com ele foram crucificados o insultavam” (ARA). No próprio
livro de Hebreus temos: “ora expostos como em espetáculo, tanto de opróbrio quanto de tribulações,
ora tornando-vos co-participantes com aqueles que desse modo foram tratados” (ARA). Em 10.33 o
autor já havia dito que eles já haviam passado por insultos.
33. “Tomaram, pois, o corpo de Jesus e o envolveram em lençóis com os aromas, como é de uso
entre os judeus na preparação para o sepulcro” (Jo. 19:40 – ARA). “A eles respondi que não é
costume dos romanos condenar quem quer que seja” (At. 25:16a – ARA).
34. Segundo BDAG (648), trata-se de um marcador de propósito negativo. Usado como uma forma
enfática de μή.
35. Ambas as conjunções geralmente são seguidas pelo modo subjuntivo (Wallace 1996:169). Esse,
por sua vez, tem uma semântica de mais projeção do que asserção (cf. Apêndice. Especialmente a
“Rede Semântica de Finitude”).
36. Quanto à possibilidade de caírem realmente, cf. A Função das Advertências em Contexto
Literário.
37. A construção μή τις é usada três vezes pelo autor em 12.15-16.
Capítulo 2
PRESSUPOSIÇÃO LITERÁRIA

Olhar somente para a história do texto não nos diz muito do seu significado.
Precisamos lidar com o próprio texto. As problemáticas textuais a serem
ponderadas aqui são: quais são as passagens de advertência? Onde elas
começam e terminam? Existe uma relação de dependência hermenêutica
entre elas? Elas formam um quiasmo (estrutura concêntrica)? Devemos lê-
las sinteticamente? Há um efeito crescente entre elas? Qual a relação delas
com o material instrutivo? Qual a natureza e o propósito das advertências
em Hebreus? Elas visam atemorizar ou motivar? Qual sua relação com a
realidade? Há a possibilidade real de o cristão cair de maneira irreversível?
Como devemos lidar com esse gênero literário? O que o autor espera
quando adverte? Esperamos responder essas questões.
ESTRUTURA
Referindo-se à dificuldade de se interpretar Hebreus 6.4-6, bem como
outros textos epistolares, Moisés Silva (2009:120 – itálico nosso) declara:

Uma característica importante que descobriremos é que Hebreus 6.4-6 não é a única
passagem desse tipo no texto. De fato, há quatro outras passagens chamadas de “passagens de
advertência” […] Quando tomamos o argumento do livro como um todo, parece menos
provável que essas quatro advertências estivessem tratando de situações diferentes […]

Moisés, como inumeráveis estudiosos (e.g., Mcknight, Fanning), entende


que a passagem em questão não pode ser interpretada ignorando sua relação
com outras quatro do mesmo gênero dentro do livro. É importante ressaltar
que a proximidade entre essas passagens não se dá somente pelo gênero
(exortação-advertência), mas também pelo conteúdo e pelos objetivos
comuns.
Assim, apesar de nosso foco estar na terceira advertência, entende-se ser
necessária uma análise, mesmo que não tão profunda, das demais. A
identificação, o entendimento do relacionamento entre as passagens de
advertência e a compreensão de sua função passam obrigatoriamente pela
compreensão da estrutura do livro. Em outras palavras, “[…] questões
concernentes à estrutura de Hebreus são importantes para entender a
mensagem do livro” (Guthrie 1994:xvii-iii).

Panorama histórico das propostas


A estrutura de Hebreus sempre foi uma questão de grande debate. A
complexidade e o desacordo entre as mais variadas abordagens são
tamanhos que levou D. E Aune (apud. Lane 1991:lxxxv) a uma conclusão
categórica e cética (contudo, realista): “A estrutura de Hebreus permanece
um problema não resolvido”. Seguindo o mesmo clima de Aune,
McCullough (apud. Guthrie 1994:19-20) entende que a discussão sobre a
estrutura de Hebreus continuará por um longo tempo.
G. H. Guthrie (1994:24) reconhece que, devido à complexidade da obra,
muitos têm abordado o livro de forma agnóstica. O mesmo Guthrie
(2006:1) posteriormente declarou para o comitê de Consulta de Hebreus da
Society of Biblical Literature que, mesmo estudando a carta por vinte anos,
a estrutura do livro ainda permanece um assunto intrigante. Em suas
palavras, “um quebra-cabeça que se pode retornar vez após vez para
encontrar novos quebra-cabeças dentro do quebra-cabeça”. A explicação
para tamanha complexidade é bem colocada por Attridge (1989:16): “Uma
das dificuldades de se analisar a estrutura de Hebreus não se dá por falta de
indícios estruturais, mas por sua superabundância”.
A forma de abordar o livro tem sido variada. Alguns têm estruturado o
livro de forma temática; outros, numa abordagem mais literária (e.g.,
Vanhoye) ou retórica (e.g., Attridge 1989:14). Há quem encontre no uso das
passagens chaves do AT (e.g., Salmo 110) um caminho para estruturação, e
há ainda a abordagem linguística (e.g., Análise do Discurso ou Linguística
Textual). É importante entender que essas formas de aproximação do texto
não são mutuamente excludentes.
William L. Lane (1991:lxxxv-xcviii), em sua monumental obra, elenca as
várias fases das abordagens sugeridas com seus principais representantes:
de F. Thien (1902), F. Büchsel (1928), L. Vaganay (1940), A. Descamps
(1954), W. Nauck (1960), A. Vanhoye (1976) até a grande obra de G. H.
Guthrie (1991)1.

Consideremos a colaboração de cada um:


1. F. Busher chamou atenção à importância tanto de se diferenciar o
gênero literário (exposição e exortação [advertência]) quanto de se
reconhecer a alternância entre eles.
2. F. Thien reconheceu que o autor anuncia o tema primário antes da
introdução de uma unidade e desenvolve em ordem inversa. Em 2.17, por
exemplo, Jesus é designado “misericordioso” e “fiel” sumo sacerdote. O
tema, porém, é desenvolvido na ordem inversa (3.1-4.13 [fiel] e 4.14-5.10
[misericordioso]).
3. A colaboração de L. Vaganay foi o reconhecimento de “palavras-
iscas”. A ideia é que palavras chaves no final de uma seção, repetidas no
começo da seção seguinte, marcam formalmente a transição entre duas
unidades. A. Descamps reconheceu “termos característicos” que servem
para identificar os limites temáticos de um bloco.
4. Um marco no estudo da estrutura de Hebreus foi a monografia de A.
Vanhoye La structure littéraire de l’Épîstre aux Hébreux. G. H. Guthrie
(1994:14) considera “a mais influente e debatida obra já escrita sobre a
estrutura de Hebreus”. Para muitos, a obra se tornou um ponto de partida
para pesquisas (O’Brien 2010:27). Sintetizando os insights de outros
estudiosos (Descamps, Gyllenberg, Thien, Vaganay), Vanhoye identificou
cinco dispositivos literários usados pelo autor para abrir e fechar seções.
São eles: (a) anúncio do assunto; (b) “palavras-iscas” de transição; (c)
mudança de gênero; (d) termos característicos; (e) inclusio2. Baseado nessas
indicações, Vanhoye encontrou uma elaborada composição concêntrica
governando o livro de Hebreus.
5. W. Nauck entendeu que o livro é organizado em torno do material
exortativo e não do instrutivo, dividindo o livro em três partes. Em Nauck, a
instrução serve à exortação. Cada uma delas é marcada no começo e no fim
por passagens paralelas. O grande exemplo de paralelismo está em 4.14-16
e 10.19-23.
6. A obra mais recente é a análise de George H. Guthrie em The Structure
of Hebrews: a text-linguistic analysis. Guthrie segue uma abordagem
eclética fazendo uso da análise do discurso. Segundo Guthrie (1994:37 –
itálico nosso), “no coração da análise do discurso [ou linguística textual]
está o esforço de entender os parágrafos no discurso”. Segundo Reed (em
Porter 2002:198 – itálico nosso):

A análise do discurso é uma tentativa de compreender a linguagem além do nível da sentença


(parágrafo, discurso, registro/gênero), mas sem negligenciar a importância semântica da
própria sentença (palavra, frase, cláusula).

Um ponto importante na obra de Guthrie é a identificação dos


limitadores no discurso. São os chamados “pontos de virada”. Segundo
Guthrie, o entendimento deles nos dará condições de apreender como o
tema é desenvolvido. Esses pontos são bem compreendidos e identificados
quando se considera os elementos de coesão3. Ele alista vários, como
gênero, tópico, conexões, coesão lexical, indicadores temporais e
geográficos. Além de alistar, G. Guthrie ainda identifica os elementos de
coesão em todo o livro de Hebreus.
As conclusões de G. Guthrie estimulam o estudo da nossa passagem alvo.
Duas razões persuasivas:

1. O gênero literário. Seguindo W. Nauck, G. Guthrie (1994:143),


entende que o “material expositivo serve ao propósito exortativo de
toda a obra”. O autor ensina para exortar.
2. A estrutura do livro. Reconhece-se uma estrutura quiástica4 onde
Hebreus 6.4-8 é o ponto central do material exortativo. Isso dá um
status inigualável à passagem, uma vez que é o propósito da obra
como um todo o exortar, e a nossa exortação é central.

George H. Guthrie, portanto, ajuda-nos a caminhar em Hebreus fazendo


as paradas e as conexões certas, desfrutando assim do fluxo do pensamento
do autor. Dessa forma, a obra é simplesmente indispensável para todo
aquele que visa identificar e relacionar as passagens de advertência no livro
de Hebreus.
7. Quanto ao lidar com as passagens de advertência, Scott Mcknight
(1992) propõe que devemos lê-las sinteticamente. Para ele, “uma síntese de
cada componente como revelado em cada exortação providencia clareza
sobre o significado de um dado componente numa única passagem”
(1992:26). Assim, expressões ambíguas como “caíram” (6.6) e “desviemos”
(2.1) devem ser analisadas em uma única base cumulativa. Para Mcknight
(1992:27-8), somente uma abordagem sintética providencia entendimento
das problemáticas passagens de exortação-advertência.

Os limites das propostas


Entende-se que todos os sete autores mencionados acima colaboram para
se ter um melhor entendimento da estrutura de Hebreus. Devemos nos
apropriar de cada contribuição. Queremos alistar e/ou reconhecer os limites
de cada proposta.
Os limites da abordagem temática são: (1) ela não reconhece os
elementos repetitivos da carta. É costume do autor mencionar um
determinado assunto, deixá-lo por um momento e retomá-lo posteriormente
(e.g., o sacerdócio de Cristo em 2.17, 3.1; 4.14-5.1-10; 7.1-28). (2) Sua
estrutura é orientada e/ou construída sobre o material instrutivo, não
fornecendo explicação sobre a relação entre os dois gêneros e priorizando
uma interpretação mais dogmática.
Duas considerações à obra de Vanhoye: (1) sua abordagem literária
entendeu que o claro paralelo entre 4.14-16, 10.19-23 e outros textos eram
insignificantes para o entendimento da estrutura do livro. Tentaremos
mostrar abaixo a importância dos paralelos para o entendimento da
estrutura do livro. (2) Os princípios reconhecidos por Vanhoye não exigem
uma estrutura concêntrica.
Se por um lado a abordagem sintética de Mcknight nos ajuda a entender a
relação entre as passagens de advertência, por outro lado: (1) o próprio
Mcknight (1992:27) reconhece que a suposição de que as passagens tratam
da mesma audiência e do mesmo pecado é “sem fundamento”; (2) a
abordagem sintética proposta por Mcknight empobrece as nuanças
particulares de cada seção. No afã de resolver as tensões via síntese dos
parágrafos, há o risco de se perder alguns detalhes encontrados no contexto
imediato que podem responder às ambiguidades e/ou dificuldades
levantadas no próprio parágrafo. A ambiguidade do pecado descrito em
Hebreus 6 poderia ser resolvida observando a própria exortação (“deixemos
nos levar para o que é perfeito”). Em suma, quando enfatizamos o geral
(abordagem sintética), podemos ignorar ou desprezar os detalhes. O bom
intérprete sempre buscará, numa luta nem sempre fácil ou resolvida, o
equilíbrio entre os elementos mais próximos e os mais distantes do texto
estudado.
Concluímos reafirmando a relação próxima entre as passagens de
advertência, pois reconhecemos que: (1) o objetivo final de todas as
advertências é o mesmo, conscientizar os leitores das implicações graves de
se voltar para o judaísmo; (2) as exortações têm como tema maior a Palavra
de Deus (Lane 1991 1:xcviii). Contudo, lutamos para entender as nuanças
particulares de cada advertência. Entende-se ser possível dar um único
nome ao pecado combatido. No entanto, reconhece-se que esse pecado tem
várias facetas e não queremos ignorá-las.
IDENTIFICAÇÃO DAS ADVERTÊNCIAS
Metodologia
Como vimos acima, não há consenso quanto aos limites das seções no
livro de Hebreus. O mesmo se dá, portanto, às passagens de advertência.
Buist Fanning (2007:173), por exemplo, prefere incluir uma ampla gama de
versos visando não negligenciar elementos importantes. Dessa forma, em
sua proposta, a segunda advertência começa em 3.6 e finda em 4.13. A
terceira advertência arremata em 6.20, a penúltima começa bem mais cedo,
em 10.19, enquanto a última toma todo o décimo segundo capítulo.
G. H. Guthrie (1994:144), em caminho oposto ao de Fanning, limita as
passagens de advertência a não mais que seis versos ficando com as
seguintes passagens: 2.1-4; 4.12-13; 6.4-8; 10.26-31; 12.25-29.
Nosso caminho é oposto ao de Fanning, mas não contrário ao de G. H.
Guthrie. Ou seja, buscamos mais delimitações. Contudo, entende-se que as
advertências se dão em um contexto de exortação. Assim, as passagens
ponderadas abaixo incluirão ambas as nuanças (exortação e advertência),
ampliando os limites estabelecidos por G. H. Guthrie, sem os negar. Isso
significa que a compreensão da estrutura será eclética, seguindo as
propostas tratadas anteriormente, bem como reconhecendo seus limites.
Nisto, usaremos da linguística textual, também chamada de análise do
discurso (doravante, AD).
Segundo George H. Guthrie (2001:255), a AD envolve “[u]m processo de
investigação no qual se examina a forma e a função de todas as partes e
níveis de um discurso escrito com o objetivo de um melhor entendimento
tanto das partes como do todo daquele discurso”. A AD tenta identificar
como a linguagem é usada para criar uma comunicação coesa e coerente
(Reed em Porter 2002:193).
Lane (1991 1:lxxxi) esclarece:
O objetivo primário da análise do discurso é um entendimento de parágrafos específicos que
formam blocos de um discurso, visto que é o parágrafo, ao invés de unidades semânticas
individuais como palavras ou sentenças, que providencia a chave para se entender o discurso
como um todo.

O “olhar” da AD, portanto, é extra-sentencial. Como está preocupada


com a relação entre as sentenças, a AD nos fornece muitas ferramentas que
nos auxiliam a identificar os limites de cada passagem. Nossa metodologia
e/ou pressuposto, pois, entende o particular (Hb 5.11-6.12) pelo geral
(estrutura) como também o geral pelo particular. Reconhecemos que nessa
relação não há “pontas”. Não sabemos onde um começa e o outro termina.
Contudo, nesse capítulo, queremos observar o geral.
Reconheceremos: (1) dispositivos literários como o inclusio, introduções
paralelas, quiasmos; (2) mudança de assunto/tema; (3) elementos
limitadores (e.g., conjunções, orações assindéticas, declarações
sintetizadoras, perguntas retóricas, vocativos, mudança de tempo-aspecto,
modo e pessoa); e (4) mudança de gênero. Tudo isso será considerado na
busca pelo “menor irredutível”.

Primeira advertência (Hebreus 2.1-4)


Os limites da passagem
São vários os indícios de que nossa primeira advertência se encontra na
passagem 2.1-4: (1) a seção que antecede a porção proposta possui uma
inclusio que começa no verso 5 e vai até o verso 13 do primeiro capítulo:

INCLUSIO

Verso 5 Τίνι γὰρ εἶπέν ποτε τῶν ἀγγέλων


Pois a qual dos anjos jamais disse

Verso 13 πρὸς τίνα δὲ τῶν ἀγγέλων εἴρηκέν ποτε


Para qual dos anjos jamais disse
(2) A inclusio em questão fecha uma série de citações do AT. (3) Logo
depois da inclusio, temos uma pergunta retórica. Segundo Neeley (apud.
Levinsohn 2000:278), “perguntas retóricas […] podem marcar introdução
[…] pico ou conclusão”. O mesmo pode ser aplicado à seção exortativa,
uma vez que também finda com uma pergunta retórica (cf. 2.3-4). (4) A
quebra de seção em 2.1 é reforçada pela presença de Διὰ τοῦτο5 (“por causa
disso”) no início da seção. Apesar da expressão ter caráter causal (Runge
2010:48-9), voltando nossa atenção ao contexto anterior, Διὰ τοῦτο é
reconhecido também como um indicativo de quebra de parágrafo
(Levinsohn 2000:276). (5) Temos o início de outro gênero literário – a
exortação. Essa é explicitada por δεῖ6 e pelo subjuntivo exortativo
παραρυῶμεν (“desviar”). Depois segue a base da exortação (v.2-4). (6) Há
uma mudança de pessoa: terceira do plural em 1.14 (εἰσὶν) para terceira do
singular em 2.1 (δεῖ). E por último, e não menos importante, (7) a retomada
da comparação de Cristo com os anjos em 2.5 (οὐ γὰρ ἀγγέλοις)7 é
desenvolvida com uma citação do AT e seguida de uma explicação. Isso
sinaliza claramente a volta (ou mudança) ao gênero instrutivo.

Exposição
Como assinalamos acima, faremos uma distinção entre exortação e
advertência. A primeira é positiva, indicando o que deve ser feito, enquanto
a segunda é negativa, alertando para os resultados e/ou consequências
terríveis de não se seguir a exortação. Distinção não implica em total
separação ou ausência de relação semântica direta. Reconhecemos a relação
próxima entre advertência e exortação de forma tal que lidaremos com elas
como uma só unidade.
O reconhecimento dessa relação é de suma importância quando lidarmos
com o nosso texto alvo, pois certamente é consenso que a exortação em 6.1
é dirigida a todos os cristãos (incluindo o autor). Não faz qualquer sentido
entender que a advertência (6.4-6) tem um público distinto quando elas
“facilitam a reflexão quanto ao progresso explícito de uma ação” (Bateman
IV 2007:27 – itálico nosso).8

HEBREUS 2.1-4

Exortação8 δεῖ περισσοτέρως προσέχειν ἡμᾶς τοῖς ἀκουσθεῖσιν...


É necessário dar maior atenção ao que nós ouvimos...

Advertência πῶς ἡμεῖς ἐκφευξόμεθα... ἀμελήσαντες;


Como nós escaparemos...negligenciando?

Nossa passagem inicia com uma exortação, que por sua vez, é uma
implicação (Διὰ τοῦτο) do que foi dito anteriormente – a superioridade de
Jesus em relação aos anjos. A supremacia e/ou superioridade do Filho, pois,
é o fundamento da exortação. Seus leitores deveriam dar atenção especial
(περισσοτέρως)9 à mensagem ouvida (δεῖ… προσέχειν… τοῖς ἀκουσθεῖσιν)
visto que essa palavra foi trazida pelo Filho (1.2) – que é superior. Trata-se,
portanto, de um “imperativo lógico”.
O tom comparativo da instrução da seção anterior tem implicações
práticas na exortação e vai além, perpassando toda a obra. Em certos
momentos, a comparação é explicitada por adjetivos e advérbios
comparativos como κρείσσων ou κρείττων (ον)10. Em outros momentos,
mesmo na ausência de comparativos explícitos, o próprio argumento
assume a forma de comparação. É digno de nota que superlativos estavam
em declínio e que comparativos como περισσοτέρως (“maior”, “mais”)
ganharam uma força elevada (Lane 1991 1:34).
A exortação é seguida por uma declaração de propósito negativo
(μήποτε)11. O objetivo da exortação é o “não desvio” (παραρυῶμεν) da
palavra. Reconhecendo um tom náutico em παραρυῶμεν, Lane (1991 1:37)
declara: “[a] imagem de um navio à deriva, carregado pela corrente além do
ponto fixo, forneceu uma metáfora vívida para a falha em manter um aperto
firme sobre a verdade por meio do descuido […]”. Após a declaração do
propósito negativo, segue-se uma “explicação argumentativa (εἰ γὰρ)”
numa oração condicional que traz uma prótase em duas partes (εἰ…καὶ).

Prótase εἰ γὰρ ὁ διʼ ἀγγέλων λαληθεὶς λόγος ἐγένετο βέβαιος


Porque se a palavra falada através dos anjos permaneceu firme.

καὶ πᾶσα παράβασις καὶ παρακοὴ ἔλαβεν ἔνδικον μισθαποδοσίαν


E toda a transgressão e desobediência recebeu justo castigo.

Apódase πῶς ἡμεῖς ἐκφευξόμεθα τηλικαύτης ἀμελήσαντες σωτηρίας...;


Como nós escaparemos negligenciando tão grande salvação...?

Faz-se necessária uma digressão sobre a abordagem às condicionais


gregas. Elas devem ser estudadas tanto estruturalmente quando
semanticamente. No presente caso, a condicional segue a estrutura de
primeira classe. Segundo Daniel Wallace (1996: 690 – itálico do autor),
esse tipo de construção “indica pressuposição da verdade por causa do
argumento”. Ou seja, a declaração deve ser assumida como verdadeira,
ainda que não seja, mas somente por força do argumento.
Em alguns casos, porém, o locutor atrai o leitor-ouvinte baseando seu
argumento no que ambos tomam como verdade – o que é o caso, como
veremos abaixo (Wallace 1996:694). Assim, a prótase é tomada como
verdadeira tanto pelo autor quanto pelos leitores-ouvintes. Ou seja, a
informação da prótase serve de fundamento ou pressuposto da
argumentação. Todos, pois, concordariam que a palavra trazida por anjos
foi confirmada e quando desobedecida, o autor da desobediência recebia
“justa retribuição” (ἔνδικον μισθαποδοσίαν).
Quanto à semântica, temos uma relação de evidência-inferência. Segundo
Daniel B. Wallace (1996:683), “aqui o locutor infere algo (a apódasis) de
alguma evidência [a prótase]”. É exatamente isso que temos no nosso texto:
na apódase, o autor, em forma de pergunta retórica implicativa, adota a
lógica do menor para o maior. Segundo Turner (1976:107), a pergunta
retórica no verso 3 nos lembra uma diatribe. Para Sterling (em Porter
2002:322), diatribe se refere a um discurso de ensino dialógico que envolve
troca de ideias e usa o método socrático de repreensão e persuasão.
Quanto à lógica do menor para o maior, esse método é também
conhecido com a fortiori ou qal waḥomer. Segundo G. H. Guthrie
(1998:25; 1994:62), essa é uma das principais técnicas hermenêuticas
utilizadas pelo autor de Hebreus (e.g., 10:26-31; 12:3-17; 25-29). Augustus
Nicodemus Lopes (2007:59) nos lembra que ela é uma das sete regras
(middot) de Hillel e pode ser definida da seguinte maneira: “o que se aplica
em casos menos importantes certamente se aplicará em casos mais
importantes”. Assim, o tom comparativo de toda seção instrutiva (1.5-14)
persiste na seção exortativa (cf. περισσοτέρως em 2.1).
O “menor” referido é a palavra (λόγος) de Deus dada através (διά) de
anjos que, uma vez desobedecida, recebia justo castigo. Temos indícios de
que o autor está pensando na Lei de Moisés dada no Sinai: (1) alguns textos
das Escrituras fazem uma ligação entre os anjos e a Lei: (a) segundo a
LXX, temos o seguinte texto em Deuteronômio 33.2: ἐκ δεξιῶν αὐτοῦ
ἄγγελοι μετʼ αὐτοῦ (“Anjos estavam com ele à sua destra”); (b) Em Atos
7.38 temos: “οὗτός ἐστιν ὁ γενόμενος ἐν τῇ ἐκκλησίᾳ ἐν τῇ ἐρήμῳ μετὰ
τοῦ ἀγγέλου τοῦ λαλοῦντος αὐτῷ ἐν τῷ ὄρει Σινᾶ καὶ τῶν πατέρων ἡμῶν,
ὃς ἐδέξατο λόγια ζῶντα δοῦναι ἡμῖν…” (“Este é aquele que estava na
congregação no deserto com o anjo que falava a ele no monte Sinai e com
os nossos pais, que recebeu palavras vivas para nos dá”); (c) no mesmo
discurso, no v. 53 temos: “οἵτινες ἐλάβετε τὸν νόμον εἰς διαταγὰς
ἀγγέλων…” (“vós que recebestes a lei por intermédio de anjos” [ARA]);
(d) Paulo declara que a lei foi “promulgada através de anjos” (διαταγεὶς διʼ
ἀγγέλων – Gl. 3.19).
(2) Textos judaicos como Antiguidades dos Judeus de Josefo 15:36. (3)
As palavras παράβασις12 e παρακοὴ13 e sua relação com ἔνδικον
μισθαποδοσίαν14 reforçam a “atmosfera legal” da palavra trazida pelos
anjos. A escolha de παρακοὴ claramente cria um elo entre a exortação (δεῖ
περισσοτέρως προσέχειν ἡμᾶς τοῖς ἀκουσθεῖσιν) e a advertência.
“Desobedecer” envolve, por um lado, “não dar atenção” (προσέχειν) e/ou
“ignorar” (ἀμελήσαντες) o que se ouviu.
Se a consequência no menor era a morte (subtendido no texto), o que
teríamos no maior (não dar atenção devida à Palavra de Cristo)? O texto
não revela. Ele pressupõe uma punição mais elevada e enfoca na
impossibilidade de se escapar dela. Diante da pergunta retórica “πῶς ἡμεῖς
ἐκφευξόμεθα;” (“como nós escaparemos?”), a resposta esperada seria “Não
podemos escapar, é impossível” (BDAG:901; O’Brien 2010:86). Assim, o
sentido de “desviar15” (2.1 – ARA) é bem mais catastrófico do que o
vocábulo possa conotar.
Em suma, não dar a devida atenção à mensagem de Cristo (ἥτις ἀρχὴν
λαβοῦσα λαλεῖσθαι διὰ τοῦ κυρίου) implica em punição que vai além da
morte. Daí a importância de se ouvir e de se apegar a mensagem de Deus
dada pelo Filho (ὁ θεὸς λαλήσας…ἐλάλησεν ἡμῖν ἐν υἱῷ [1.1-2]).

Considerações finais
1. Não se deve precipitadamente afirmar que o texto está lidando com a
possibilidade de condenação. É fato que a punição mais severa (a fortiori)
virá “se” a palavra da salvação anunciada primeiramente pelo Senhor for
negligenciada e/ou não tomada com a devida atenção. Porém, a realidade da
condenação é um “fato condicionado”.
A despeito das condicionais nos levarem a pensar em categorias de
“possibilidade”, essa não é a única alternativa. As orações condicionais não
lidam somente com o que é possível, mas também com o que é concebível.
O mérito quanto à possibilidade de condenação, portanto, vai além de
elementos gramaticais e contextuais imediatos. Dois fatos não podem ser
negados: (a) se é possível para os leitores, também o é para o autor, uma
vez que o verbo está na primeira do plural (ἐκφευξόμεθα). Esse fato será
importante na lida com as outras advertências; (b) a relação estrutural de
evidência-inferência entre a prótase e a apódase nos ensina que tal
conclusão é lógica. Ou seja, a construção tanto pode implicar o possível
como o concebível. O fato de a advertência vir em forma de pergunta
reforça a segunda opção. A medida em que formos considerando as outras
advertências, veremos que essa alternativa será ratificada.
2. O tema que atravessa toda a passagem é a “palavra”. É ela que deve
ser tomada com atenção, assim como ela foi trazida por anjos. A relação
com a palavra é determinante para a salvação. Salvação em nossa passagem
foi “anunciada”. Há, portanto, uma clara relação entre a palavra e Deus.
Não há como negligenciar a palavra sem negligenciar o próprio Deus e,
como consequência disto, receber justa condenação. É importante ratificar
que a Palavra em questão é a palavra de Cristo.

Segunda advertência (Hebreus 3.1-4.13)


Os limites da passagem
De todas as passagens de advertências, essa (ou essas) é, de longe, a que
apresenta as maiores dificuldades de delimitação (Bateman IV 2007:44).
Parte da dificuldade fica por conta de que as exortações e as advertências
estão “espalhadas” ao longo de uma longa passagem que principia em 3.1 e
só finda em 4.13.
São três imperativos (3.1 “considerai” [κατανοήσατε]; 3.12 “Vede”
[Βλέπετε]; 3.13 “exortai-vos” [παρακαλεῖτε]), dois subjuntivos exortativos
(4.1 “Temamos” [Φοβηθῶμεν]; 4.11 “esforcemos” [Σπουδάσωμεν]) e duas
“advertências indiretas” em forma condicional (3.6 “se a confiança e glória
da esperança mantivermos” [ἐάν[περ] τὴν παρρησίαν καὶ τὸ καύχημα τῆς
ἐλπίδος κατάσχωμεν]; 3.14 “se mantivermos a confiança que tivemos no
começo até o fim” [ἐάνπερ τὴν ἀρχὴν τῆς ὑποστάσεως μέχρι τέλους
βεβαίαν κατάσχωμεν]). Uma exortação se destaca das demais: “...não
endureçais os vossos corações”. Sua importância pode ser vista
primeiramente na repetição em três citações (3.8, 15; 4.7) e uma alusão
(3.13), e em segundo lugar, pela ligação temática (coração) com a
advertência em 4.12-13.
Podemos assegurar, pois, que toda essa longa porção tem um “tom”
exortativo e de alerta. Nosso objetivo nesse ponto é identificar as
exortações e as advertências e entender a relação entre elas.
Seguem algumas considerações estruturais. Os indícios de mudanças que
consideramos suficientes para justificar o entendimento de que temos uma
nova unidade são os seguintes:
1. A conjunção Ὅθεν16. Essa conjunção é um marcador de causa, razão
(LN, 89.25) ou base para uma ação (BDAG:692). As considerações abaixo
nos levam a concluir que a natureza da conexão justifica o início de uma
nova unidade.
2. Mudança de gênero. O vocativo ἀδελφοὶ ἅγιοι (“santos irmãos”)
juntamente com o imperativo κατανοήσατε17 na segunda pessoa do plural
(pela primeira vez em todo o documento) são evidências claras de nova
unidade. A conjunção revela que a exortação é ancorada na instrução em
2.10-18 como vimos na primeira exortação em 2.1. (3) O fim da unidade
em 4.13 é fundamentado na mudança de gênero bem como no fato de que
temos uma inclusio que principia em 4.14-16 e finda em 10.19-25 (cf. na
página 72 Limites da terceira advertência).

Exposição

HEBREUS 3.8, 15; 4.7, 12-13

Exortação μὴ σκληρύνητε τὰς καρδίας ὑμῶν


Não endureçais os vossos corações

Advertência ...ὁ λόγος τοῦ θεοῦ... κριτικὸς...ἐνθυμήσεων καὶ ἐννοιῶν καρδίας·


A palavra de Deus...é apta para discernir...pensamentos e propósitos do coração.

O imperativo κατανοήσατε (3.1 – “fixem seus pensamentos” [NVI])


denota uma “atenção muito cuidadosa a algum assunto” (LN 30.4). A
despeito de não ser claro em todos os contextos, κατανοέω difere de νοέω
na intensidade da atividade mental (LN 30.4). Aqui o objeto de tamanha
atenção é o “apóstolo” e “sumo sacerdote” – Jesus Cristo. Assim como na
seção de exortação-advertência anterior, Cristo novamente deve ser o alvo
da atenção dos leitores.
Novamente, temos uma exortação ancorada em instrução prévia (Ὅθεν).
É na passagem anterior que temos o fundamento da exortação. A conjunção
poderia ser traduzida como “tendo em vista o que foi dito”, “como resultado
disso” ou ainda, “porque isso é verdade…” (Ellingworth, Nida 1994:51).
Assim, em 3.1, a conjunção “olha para trás para tudo que o escritor disse
em 1.1-2.18 acerca da dignidade transcendente do Filho, o mediador da
palavra final de Deus” (Lane 1991 1:73). George Guthrie (1998:127 –
itálico nosso) amplia as palavras de Lane: “O foco da nossa atenção,
portanto, repousa não somente no Senhor exaltado à direita, mas no
supremo exemplo do encarnado que permaneceu fiel à designação de Deus
no meio de circunstâncias adversas enquanto estava na terra”.
A relação entre os parágrafos é confirmada não somente pela conjunção,
mas por “pontos de contato” marcados pelos vocábulos μετέσχεν
(participou) em 2.14 (μέτοχοι em 3.1), ἀρχιερεὺς (sumo sacerdote) em 2.17
(ἀρχιερέα em 3.1) e πιστὸς (fiel) em 2.17 (πιστὸν em 3.2). Em 2.18 temos
um bom resumo e a presença de palavras que serão desenvolvidas após a
exortação.
Como na passagem analisada previamente, aqui também temos
elementos de comparação (ὡς καὶ [v.2] πλείονος [v.3] ὅσον πλείονα [v.3]
ὡς θεράπων [v.5], ὡς υἱὸς [v.6]). Agora, porém, ela se dá entre Jesus e
Moisés. Na primeira comparação, a questão era a palavra trazida; aqui,
temos a natureza da fidelidade.
O tema fidelidade se une ao tema palavra da passagem anterior na
grande citação nos v.7-11 e sua repetição no v.15: a infidelidade é fruto de
um coração18 endurecido (3.12) que não escuta a voz de Deus (3.7, 15) e
por isso nos distancia dele.
A passagem nos apresenta dois exemplos de fidelidade (πιστός – Moisés
[3.5] e Jesus [3.2]), um exemplo de infidelidade (ἀπιστία – geração do
deserto [3.12]) e um desafio-advertência (em forma de condicionais) à
fidelidade para os leitores (3.6 – ἐάν[περ] τὴν παρρησίαν καὶ τὸ καύχημα
τῆς ἐλπίδος κατάσχωμεν e 3.14 – ἐάνπερ τὴν ἀρχὴν τῆς ὑποστάσεως μέχρι
τέλους βεβαίαν κατάσχωμεν).
O texto está disposto a nos revelar: (1) onde está a diferença entre Moisés
e Jesus, (2) a relação entre fidelidade de Moisés e a infidelidade do povo do
deserto, (3) a relação esperada dos leitores (“crer” [4.3]) com a fidelidade
de Cristo e a severidade do julgamento de Deus por meio de sua Palavra
para os incrédulos.
O tema do descanso está diretamente relacionado com o da fidelidade,
pois a geração do deserto ouviu e não creu. Nessa porção, o autor introduz o
tema da desobediência também. Quem não crê, não obedece.
Primeiramente, focalizaremos na distinção entre Moisés e Jesus. São três
as distinções:
1. A fidelidade de Moisés se deu “em toda casa” (πιστὸς ἐν ὅλῳ τῷ
οἴκῳ), enquanto que a fidelidade de Cristo “sobre a casa”19 (ἐπὶ τὸν οἶκον).
Moisés, portanto, era parte da casa (metáfora para “povo” – cf. 3.6;
Números 12.7) enquanto a fidelidade de Cristo é superior por afetar todos
aqueles que “participam” (3.14) dele. Participar de Cristo implica em
perseverar até o final. O mesmo não se pode dizer de Moisés.
2. Jesus é fiel “como filho” (ὡς υἱὸς) e Moisés como “servo” (ὡς
θεράπων). Evidentemente que devemos entender a filiação de Cristo como
exposta nos versos precedentes (e.g., exaltado à direita do Pai). Portanto,
incomparável (Carson, 2015).
3. As perguntas retóricas nos versos 16-18 também nos ajudam a
entender a superioridade de Cristo a Moisés bem como a relação da
fidelidade dele e a infidelidade do povo. Observe que o alvo das perguntas é
apreciar a identidade dos que não entraram na terra prometida. A segunda
pergunta (3.16) liga Moisés (o fiel) com a geração do deserto (os infiéis). O
povo marcado pela desobediência e infidelidade foi guiado por Moisés. Sua
fidelidade, entretanto, não mudou em nada a situação do povo. Se não é a
causa da derrocada do povo do deserto, Moisés também não é a solução
para a incredulidade.
O mesmo não se pode dizer de Cristo. Para nosso autor, todos aqueles
que estão sob Cristo (ou que são participantes) guardarão firmes até o fim a
esperança e a confissão (3.6, 14). Essas colocações pressupõem que
entendemos a relação lógica entre a prótase e a apódase nos dois versos
supracitados como evidência-inferência, como Fanning (2007:207-18)
propõe, e não de causa-efeito.

HEBREUS 3.6

Prótase ἐάν[περ] τὴν παρρησίαν καὶ τὸ καύχημα τῆς ἐλπίδος κατάσχωμεν.


Evidência/Causa Se a confiança e glória da esperança mantivermos

Apódase Χριστὸς δὲ ὡς υἱὸς ἐπὶ τὸν οἶκον αὐτοῦ· οὗ οἶκός ἐσμεν ἡμεῖς
Inferência/Efeito Cristo como filho sobre a sua casa; esta casa somos nós.

HEBREUS 3.14

Prótase ἐάνπερ τὴν ἀρχὴν τῆς ὑποστάσεως μέχρι τέλους βεβαίαν κατάσχωμεν.
Evidência/Causa Se mantivermos a confiança que tivemos no começo até o fim

Apódase μέτοχοι γὰρ τοῦ Χριστοῦ γεγόναμεν


Inferência/Efeito Porque nos tornamos participantes de Cristo.

Há muita discussão aqui. Penso que os apelos gramaticais de ambos os


lados da discussão (causa e efeito versus evidência e inferência) não são
determinantes. Cowan (2012:194-6), por exemplo, rebate as argumentações
de Fanning. Contudo, o que fica claro em todo o seu trabalho é que a
gramática não tem a palavra final. O próprio Cowan finda sua
argumentação apelando para elementos contextuais – o que faremos a
seguir.
Tanto nos versos 1-6, como nas perguntas retóricas no final do capítulo,
temos um contraste entre Moisés e Jesus. Esse contraste é evidenciado pela
infidelidade do povo em detrimento à fidelidade de Moisés. O mesmo não
pode acontecer com aqueles que têm Jesus.
As condicionais em 3.6,14, portanto, focalizam mais em Cristo do que
em seus participantes. Não é tanto (embora por implicação envolva
também) que tenho que estar sob Cristo para que assim continue e/ou
persevere, mas que, se estou sob ele, continuarei. Quem está sob ele
certamente guardará até o fim sua confissão. Certamente isso solidifica a
exortação a buscar e olhar para Cristo no início da seção (3.1), bem como
serve como uma “advertência indireta” (quem estava com Moisés não
entrou no descanso). Voltar para Moisés é voltar para quem não pode mudar
corações.
Como solução prática contra a dureza de coração, o autor incentiva a
“exortação mútua” (3.13), tema que será reiterado na carta (10.25). Em
Hebreus, tanto a comunhão é um caminho (não o fundamento) para a
perseverança (10.25), como também a falta de comunhão é a explicação
para um quadro de negligencia daquela comunidade. É importante ressaltar
que está pressuposto que a exortação mútua estimulada em 3.13 nos leva
sempre para Cristo.
A seguir, focalizaremos a advertência propriamente dita – 4.12-13.
Antes de suas duras palavras em 4.12-13, o autor argumenta que o
descanso dado ao povo por meio de Josué não foi o descanso final. Segundo
ele, “[…] resta (ou restava20) um repouso para o povo de Deus” (Hb. 4:9 –
ARA). Esse é para os que creem (4.3 – οἱ πιστεύσαντες – particípio
adjetival) – um claro contraste com a geração no deserto. O autor se
identifica junto de seus leitores com esse grupo (Εἰσερχόμεθα – primeira do
plural) revelando o aspecto presente21 do descanso.
A exortação em 4.11 pressupõe o conteúdo do verso 3, onde nos é dito
que o descanso para os que exercem fé já era real, assim como a própria
Jerusalém celestial (12.22). A questão aqui é: como ligar, então, o verso 3
com o verso 11? Estamos no descanso ou precisamos nos esforçar para
chegar a ele? Seguimos a explicação de Barret (apud. Lincoln em Carson
2006:218-9):

Justamente pelo fato de pertencer a Deus, o “descanso” é tanto presente quanto futuro; o
homem entra nele e deve se esforçar para entrar nele. Trata-se de uma situação paradoxal,
mas é um paradoxo que Hebreus tem em comum com toda a escatologia cristã primitiva.

Seja qual for a natureza do esforço (Σπουδάσωμεν) pretendido e exigido,


o objetivo (ἵνα) é evitar o exemplo dos israelitas no deserto. Para isso, os
leitores já sabem que a incredulidade é uma questão de “coração” (3.8, 10,
12, 15; 4.7). Portanto, a exortação os leva a Cristo novamente. Participar de
Cristo significa continuar (3.6, 14). A implicação é clara: só ele muda nosso
coração – tema bem desenvolvido nos capítulos 8-10.
A advertência que segue reforça que o coração é o cerne da questão.
Caso falhem, ou seja, não tenham o problema do coração resolvido,
certamente não escaparão da condenação. A palavra e/ou juízo de Deus são
“eficazes” como uma espada de dois gumes (4.12).

Considerações finais
1. O texto não está dizendo que podemos cair no mesmo erro dos
israelitas. É exatamente o contrário: por estarmos ligados a Cristo, a sua
fidelidade garantirá a nossa. Por outro lado, quem não segue a Cristo cai no
mesmo erro da geração do deserto – não entra no descanso. Sobre a relação
tipológica entre Israel e a Igreja, abaixo lidaremos com essa questão.
2. Assim como na porção precedente, temos Cristo como foco maior da
exortação. Confirma-se a tese de que o conteúdo exortativo se mantém o
mesmo, enquanto o material de instrução se desenvolve. Essa unidade nas
exortações-advertências pode revelar a intensão do autor. Isso ratificaria a
tese de W. Nauck de que a instrução visa a exortação.
3. A incredulidade é uma questão de coração. Como veremos, o antigo
sistema não mudava ninguém interiormente, assim como Moisés não
mudou ninguém. Somente Cristo pode mudar nosso coração-consciência
(cf. 10.22) por cumprir a Nova Aliança. A relação entre o ouvir e o coração
é importante para o nosso texto alvo, pois o quadro dos leitores naquela
passagem é de “negligência no ouvir”.

Limites da terceira advertência (Hebreus 5.11-6.12)


Diferente das outras advertências, aqui queremos considerar somente os
limites da passagem e o reconhecimento da exortação-advertência. O
conteúdo será a própria exegese que se encontra no último capítulo.
Nossa porção está dentro de um grande bloco limitado por uma inclusio
(4.14-16 comp. Hb 10.19-25) cujo tema é o sacerdócio do Senhor Jesus
Cristo (ἀρχιερέα μέγαν/ἱερέα μέγαν).

HEBREUS 4.14-16 HEBREUS 10.19-25

Ἔχοντες οὖν Ἔχοντες οὖν


Tendo portanto Tendo portanto

ἀρχιερέα μέγαν ἱερέα μέγαν


Grande sumo sacerdote Grande sacerdote

διεληλυθότα τοὺς οὐρανούς διὰ τοῦ καταπετάσματος


Adentrou os céus Através do véu

Ἰησοῦν Ἰησοῦ
Jesus Jesus

τοῦ θεοῦ, τοῦ θεοῦ


de Deus de Deus

κρατῶμεν τῆς ὁμολογίας κατέχωμεν τὴν ὁμολογίαν


Mantenhamos a confissão Mantenhamos a confissão

προσερχώμεθα οὖν μετὰ προσερχώμεθα μετὰ


Aproximemos com Aproximemos com

Παρρησίας Παρρησίαν
Ousadia Ousadia

εἰς εὔκαιρον βοήθειαν εἰς τὴν εἴσοδον τῶν ἁγίων


Para obter ajuda em tempo oportuno Para o acesso ao Santo dos Santos

Em 5.1, temos o início do material instrutivo cujo tópico é o sacerdócio


de Cristo. Esse tema, por sua vez, é arrematado no fim do capítulo 7
formando um novo inclusio.
Não há dúvidas de que 5.11 começa uma nova seção. A expressão Περὶ
οὗ (acerca disso) ao mesmo tempo em que prefacia um novo
direcionamento não rompe completamente com o texto anterior, tendo
assim um papel de “dobradiça”.
A exortação propriamente dita é explicitada em 6.1 pelo verbo subjuntivo
exortativo φερώμεθα. As palavras que a antecedem (5.11ss) apresentam a
situação da congregação.
A apatia (νωθροὶ) com respeito à Palavra de Deus leva o autor a fazer
considerações contrárias à que encontramos nos versos 6.1ss. Em 5.12, é
declarado que os leitores têm necessidade (χρεία) de leite, de que alguém os
ensine novamente (πάλιν) os elementos básicos (τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν
λογίων τοῦ θεοῦ).
A exortação, que tem um direcionamento positivo, é seguida por uma
orientação participial adverbial negativa, indicando como não poderia se
dar a aplicação da exortação (μὴ πάλιν θεμέλιον καταβαλλόμενοι) e por
uma declaração de dependência de Deus na aplicação da mesma (ἐάνπερ
ἐπιτρέπῃ ὁ θεός).
Seguem, então, uma sentença prefaciada por γὰρ, dois particípios que nos
apresentam causas-explicações, e mais uma sentença prefaciada por γὰρ.
Ou seja, temos uma cadeia de explicações de natureza subordinada.
No verso 9, temos uma mudança de tom e de pessoa (da terceira para a
segunda do plural), o que poderia nos levar a concluir que temos um
elemento de coesão rompido e o início de uma nova seção. Por outro lado,
νωθροὶ γεγόνατε (“tornaram-se negligentes”) em 5.11 e νωθροὶ γένησθε em
6.12 formam um inclusio, estabelecendo uma unidade literária. A mudança
de gênero em 6.13 reforça o estabelecimento desses limites. De 5.11 a 6.12,
temos uma exortação-advertência; em 6.13, temos novamente um material
instrutivo.

HEBREUS 5.11-6.12

Exortação ἐπὶ τὴν τελειότητα φερώμεθα


Deixemos nos levar na perfeição.

Advertência Ἀδύνατον γὰρ... ἀνακαινίζειν... ἀνασταυροῦντας


Porque é impossível... renovar... crucificando a Cristo novamente

Quarta advertência (Hebreus 10.19-32)


Os limites da passagem
Nosso parágrafo é dividido em duas partes. Os versos 19-25 fecham um
inclusio que começou em 4.14-16 (cf. tabela acima). Ou seja, temos uma
indicação estrutural clara que não pode ser ignorada em nosso julgamento
quanto aos limites da passagem. O conteúdo do centro do inclusio (4.14-16-
10.25), por sua vez, trata do sacerdócio de Cristo e de sua oferta perfeita e
única. A perfeição do seu sacerdócio é revelada nos efeitos internos
(“consciência” – Hb. 9.14; 10.22), na singularidade de sua morte-oferta
(ἐφάπαξ, ἅπαξ – Hb 7.27; 9.12, 26; 10.2, 10) e na remoção (μετάθεσις – Hb
7.12) do antigo sistema. Dessas verdades surgem três exortações:
aproximar-se (προσερχώμεθα) do Santo dos Santos, manter a confissão
(κατέχωμεν) e considerar uns aos outros (κατανοῶμεν ἀλλήλους).
O tom muda radicalmente na segunda parte do nosso parágrafo. Ele é
principiado por um particípio condicional de conteúdo genérico (viver
deliberadamente em pecado) que nos convida a refletir numa determinada
hipótese. Essa “argumentação hipotética” segue um padrão comum nas
advertências anteriores: (1) um arranjo a fortiori e (2) uma referência a
condenação. A conjunção γάρ nos lembra que, mesmo com essas
mudanças, a conexão ainda existe. Ou seja, os objetivos e o tom mudam,
porém, estão completamente conectados. É importante destacar que as duas
partes pressupõem toda cristologia da seção, que é o centro do inclusio cujo
tema é “o sacerdócio e a oferta perfeita de Cristo”. Esse tema perpassa todo
o parágrafo.

Exposição

HEBREUS 10.19-32

Exortação Προσερχώμεθα...κατέχωμεν...κατανοῶμεν ἀλλήλους


Aproximemos...mantenhamo-nos...consideremos uns aos outros.

Advertência πόσῳ...χείρονος...τιμωρίας ὁ τὸν υἱὸν τοῦ θεοῦ καταπατήσας...


Quanto mais...pior punição o que rejeita o Filho de Deus.

O parágrafo começa com uma sentença condicional representada por um


particípio (ἁμαρτανόντων). Ou seja, não temos a presença dos prefaciadores
ou marcadores mais comuns nas sentenças condicionais (ἐάν e εἰ). Daniel
B. Wallace (1996:632) assegura que no caso dos particípios condicionais,
são “quase sempre equivalentes às condicionais de terceira classe”. Essas,
por sua vez, são entendidas pelo próprio Wallace (1996:696) como uma
condição “incerta de cumprimento, mas ainda provável”. Wallace
(1996:696) ainda reconhece que a terceira classe pode retratar uma situação
concebível que não se cumprirá. Assim, pois, o pecado descrito nessa seção
pode ser algo tanto provável quanto somente concebível. Seguiremos com
essas possibilidades em vista ao longo da análise. Além disso, como
defendido em Pressuposição linguística (cf. Apêndice), particípios não
gramaticalizam asserções, mas pressuposições.
Segundo LN (30.64), o advérbio Ἑκουσίως (“deliberadamente” ARA,
v.26) se refere a um ato realizado “sem força ou persuasão”. Friberg o
denomina de “voluntário”, e Gingrich de “intencional”22. A expressão μετὰ
τὸ λαβεῖν τὴν ἐπίγνωσιν τῆς ἀληθείας (“depois de receber o pleno
conhecimento da verdade”) esclarece e/ou reforça o porquê de tal pecado
ser Ἑκουσιως – há um conhecimento pressuposto. Não se trata, pois, de um
produto da ignorância. Antes, o conhecimento é o que caracteriza tal pecado
como “voluntário”.
Sobre a verdade (τῆς ἀληθείας) referida, a expressão é reconhecida como
um termo técnico para mencionar a aceitação da vida em resposta ao
Evangelho (Lane 1991:292; O’Brien 2010:374-5). Alguns apelam para o
particípio presente indicando a constância do ato, mas sua “voluntariedade”
se dá pelo conhecimento, e não pela constância.
A leitura mais natural nos leva a concluir que o autor se inclui (ἡμῶν)
como possível ou hipotético agente do pecado descrito (cf. Um perfil do
autor, p. 30). Peter O’Brien (2010:374-5) o entende como um recurso
delicado e diplomático, porém “sem perder de vista a referência a alguns do
verso 25”. Esperemos até aonde o texto nos levará.
Se a prótase se cumprir (viver deliberadamente em pecado), diante de
tudo que foi ensinado anteriormente (principalmente nos capítulos 9-10), a
inexistência de sacrifício pelo pecado simplesmente é seu fruto lógico
(apódase). Ora, “[o] sacrifício único providencia um fundamento único para
o perdão” (Attridge 1989:292 – itálico nosso). Assim, sua rejeição deixa
quem a pratica sem qualquer sacrifício – sem perdão.
O verso 27 segue a lógica da rejeição do sacrifício de Cristo. A apódase
do verso anterior agora é ampliada e/ou explicada. Não ter sacrifício é o
mesmo que esperar juízo (κρίσις). Essa espera ou expectativa (ἐκδοχή) é
descrita como “horrível” (ARA, ARC), “terrível” (NAS, NVI) e “temerosa”
(KJV, NIV).
O autor ainda se utiliza da figura do fogo. Este é denominado de
“vingador” e é destinado aos adversários. Aqui fica claro que qualquer que
abandone o sacrifício de Cristo é inimigo de Deus, e Deus vingará por
tamanha rejeição.
A natureza do julgamento, como quase tudo em Hebreus, também é
objeto de controvérsias. Aqueles que negam o caráter eterno e
condenatório-definitivo do julgamento seguem dois caminhos: (1) entende a
condenação como sendo uma referência à destruição de Jerusalém no ano
70 (Gleason em Bateman 2007:180) ou ainda (2) a ideia de perda de
galardão (Geisler em Gundry 2002; Oberholtzer 1988:410-9) para os
crentes. Como representante do segundo grupo, Oberholtzer (1988:414 –
itálico nosso) argumenta:

É preferível ver a metáfora do fogo contra o pano de fundo do Antigo Testamento, onde a ira
de YAHWEH para com seu povo da aliança é descrita como metáfora do fogo (Is 9.18-19;
10.17). Aqueles que abandonam a assembleia devem esperar a disciplina do Senhor (Hb 12.5-
11). Eles têm voluntariamente escolhido viver de um modo que serão disciplinados pelo
Senhor.

Randall C. Gleason (em Bateman 2007:253, representante do primeiro


grupo) apela para o silêncio do texto de expressões como “eterna” e
“tormento”, bem como à natureza física e temporal dos julgamentos do AT
usados como ilustração. Para Gleason, a comparação entre os julgamentos é
de grau e não de tipo. Como no AT, as punições não foram eternas; antes,
temporárias. O mesmo se daria com os participantes da Nova Aliança. A
diferença, portanto, é em grau somente.
O problema com essas duas perspectivas é o mesmo: primeiro, a
tipologia de hebreus focaliza na mudança de tipo. Os elementos terrenos,
temporais, físicos e externos do AT são substituídos por realidades internas,
espirituais e celestiais. Seria mais natural que o mesmo princípio fosse
aplicado quando contrapostos os julgamentos da Antiga Aliança e da Nova
(como é claramente pressuposto na primeira exortação-advertência). Ou
seja, são categorias diferentes e não se trata somente de uma questão de
grau.
Além disso, essa perspectiva divide perseverança de salvação eterna. A
primeira é para os que recebem a herança da promessa ou galardões, o que
não é o mesmo que salvação. Isso é estranho quando pensamos
especificamente em Hebreus. Para nosso anônimo autor, perseverança não é
a marca de uma categoria de crentes que são premiados, mas dos crentes
autênticos. Em suas próprias palavras: “Porque nos temos tornado
participantes de Cristo, se, de fato, guardarmos firme, até ao fim, a
confiança que, desde o princípio, tivemos” (Hb 3:14 – ARA) ou ainda:
“Mas o meu justo viverá pela fé. E, se retroceder, não me agradarei dele.
Nós, porém, não somos dos que retrocedem e são destruídos, mas dos que
creem e são salvos” (Hb 10:38,39 – NVI).
Por fim, o autor do pecado deliberado não tem o único sacrifício efetivo
em seu benefício. Ou seja, ele é um condenado. O que ele deve esperar é
condenação e juízo. O verso 25 alerta para o fato de que o “Dia” se
aproxima.
A rejeição (ἀθετέω) da lei mosaica “significa repúdio voluntário da lei
divina” (Lane 1991 2:293). Não se trata, porém, de infringir um
mandamento específico, mas de “uma rejeição da lei como um todo”
(O’Brien 2010:376). Segue uma argumentação a fortiori presente em boa
parte das passagens de advertência, menos Hebreus 6.4-6.
Os três particípios adjetivais no verso 29 (καταπατέω [pisar], ἡγέομαι
[considerar profano], ἐνυβρίζω [insultar]) estão em paralelo, regidos por um
único artigo e ligados por καί. Ou seja, há uma relação muito próxima entre
eles. Sendo assim, não podemos entender esses particípios como descrições
de obras completamente distintas e sem qualquer relação, como se o “pisar
o sangue ” fosse algo e “profanar o sangue de Cristo” fosse outro. Entende-
se, pois, que o “calcar aos pés o Filho de Deus” é o mesmo que profanar seu
sangue, que é o mesmo que insultar o Espírito da graça. Isso, por sua vez – é
importante destacar –, explica o viver deliberadamente em pecado.
Diante de tudo que colocamos acima, temos o seguinte quadro geral: o
autor se coloca dentro da argumentação no verso 26 (ἁμαρτανόντων ἡμῶν)
e em seguida apresenta, através desses particípios adjetivais, uma “pessoa
idealizada”. Os atos desse tipo de pessoa interpretam ou esquadrinham a
expressão genérica “viver deliberadamente em pecado” do verso 26. Daí a
apódase no mesmo verso: “não resta sacrifício pelos pecados”. Ora, não
resta mais sacrifício porque o sacrifício único que pode resolver
definitivamente o problema do pecado foi “pisado”, “profanado” e o
Espírito Santo que operou no sacrifício de Cristo foi “insultado”.
Uma questão importante surge aqui: se os três particípios recém
considerados descrevem o “viver deliberadamente em pecado”, qual seria a
relação entre a exortação “considerai o irmão” (que se manifesta na
presença nas reuniões e na admoestação) e o viver deliberadamente em
pecado? A pergunta surge porque a conjunção γάρ no começo do verso 26
estabelece uma ligação entre o pecado hipotetizado (particípio condicional)
e última exortação (considerar o outro), que por sua vez é esclarecida por
dois particípios onde o segundo esclarece o primeiro (cf. tabela a seguir).23

EXORTAÇÃO E OS PARTICÍPIOS

Exortação κατανοῶμεν ἀλλήλους


Considerai uns aos outros

Esclarecimento μὴ ἐγκαταλείποντες τὴν ἐπισυναγωγὴν


(1o particípio) Não abandonando as reuniões

Esclarecimento do esclarecimento παρακαλοῦντες


(2o particípio) Exortando

Γάρ Ἑκουσίως γὰρ ἁμαρτανόντων...


Conjunção Porque se vivermos deliberadamente...

Aqui vale uma palavra sobre a relação entre o conteúdo das exortações
em 19-25 e o conteúdo da advertência em 26-32. Como na seção da
advertência o foco é destacado no sacrifício de Cristo (e.g., pisar no sangue
da aliança), uma vez que as pessoas hipotetizadas rejeitam a Cristo, a
impressão que se pode ter é que a advertência é a consequência lógica de
não se seguir somente as duas primeiras exortações (aproximar-se do Santo
dos Santos e manter a confissão), como se o “não congregar” não tivesse
qualquer relação com a rejeição do sacrifício de Cristo. No entanto, não se
pode esquecer que o “deixar de congregar” era um sinal de abandono e não
se resumia a “deixar de fazer alguma coisa qualquer”, mas em “fazer outra
coisa”. O “deixar de congregar” não pode ser visto como um “ato neutro”.
É, na realidade, uma troca. Nesse contexto específico, “deixar de
congregar” está relacionado ao desprezo ao sangue da aliança. Enquanto se
deixava de congregar, muitos estavam buscando fora de Cristo a força para
os seus corações (cf. Hb 13.9).
Voltemos aos três particípios do verso 29. Nosso primeiro particípio
(καταπατήσας) traz uma figura vívida que não somente vem reforçar o
aspecto da rejeição do sacrifício de Cristo, mas pode também ilustrar um
verdadeiro antagonismo – uma forma mais severa de rejeição.
O segundo particípio (ἡγησάμενος) se refere ao tratamento dado à base
da Nova Aliança (sangue) como um sangue qualquer (κοινός). Até aqui, o
autor de tamanho ultraje foi identificado somente como alguém que tem
conhecimento da verdade. Mas o verso 29 nos assombra ao nos informar
que o autor desse pecado deliberado é alguém que foi “santificado pelo
sangue”. Os capítulos 9 e 10 nos ensinam que a perfeição do sacerdócio de
Cristo é revelada exatamente nos seus efeitos internos (“consciência” – Hb
9.14; 10.22).
A questão aqui é: como uma pessoa santificada internamente pode
chegar a um estágio de rejeição do sacrifício que, a priori, já o
transformou? O contraste entre “profanar” (κοινὸν ἡγησάμενος) e santificar
(ἡγιάσθη) é muito forte. No primeiro, temos a ação do pecador em justa
oposição ao segundo – a ação de Deus em Cristo. Em face dessa realidade,
Lane (1991 2:294) e O’Brien (2010:379) entendem se tratar de um recurso
retórico poderoso – a ironia.
Grudem (2002:670, 677) entende que se trata de uma santificação
externa como a descrita em 1Coríntios 7.14, em que o marido incrédulo é
“santificado” pelo convívio com a esposa crente. Ele ainda cita 9.13 como
exemplo de santificação externa. A dificuldade dessa visão é que o mais
natural (ou diria, exigido) é entendermos o sangue profanado como o
sangue de Cristo, devido ao primeiro particípio. Separar o “filho” (do
primeiro particípio) do “sangue” (do segundo particípio) é violentar a
estrutura de relação entre os particípios. O fato é que o sangue profanado é
o mesmo sangue que santificou, verdade essa já ensinada em 10.10: “Nessa
vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus
Cristo, uma vez por todas”. E ainda no v.14: “Porque, com uma única
oferta, aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados”
(Hb 10:14).
Fanning (2007:137 – itálico nosso) entende que “enquanto os detalhes
dessas descrições tomadas por elas mesmas parecem apontar para uma
verdadeira experiência cristã, as afirmações completas desmentem essa
impressão”. Ele entende que o autor descreve a experiência de conversão
externamente (2007:217 – itálico nosso). Entretanto, à luz de todo o
contraste entre os antigos sacrifícios e o sacrifício de Cristo é impossível
sustentar tal visão. A santificação que o sangue de Cristo realiza
seguramente não é externa. Em Hebreus 9:14, temos: “muito mais o sangue
de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a
Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao
Deus vivo”.
Nosso último particípio revela o quão interligados estão o Espírito Santo
e o ministério sacerdotal de Cristo. Em 9.14, nosso autor misterioso já tinha
nos revelado que Cristo ofereceu a si mesmo através (διά) do Espírito
Eterno. Nosso terceiro particípio reforça a interdependência dos dois
ministérios ao afirmar que calcar aos pés o Filho é o mesmo que “ultrajar”
(ARA) e “insultar” (NAS) o Espírito Santo.
No verso 30, temos uma citação de Deuteronômio 32.35-36. O elemento
comum entre o contexto de Hebreus 10 e Deuteronômio é a inevitabilidade
do juízo. George Guthrie (2007:981) sintetiza bem:

Embora 32.36 no seu contexto original poderia ser tomado como uma referência à vindicação
do Senhor daqueles que verdadeiramente são seus, parece que o autor de Hebreus está lendo o
verso, e especificamente a palavra krino na versão da LXX, como uma confirmação de
julgamento.

Portanto, “o contexto original não determina a aplicação do texto”


(Attridge 1989:294). O autor se apropria da verdade de que Deus julga. O
contexto nos informa a natureza desse julgamento: não há perdão (v.26) e
há fogo para os adversários (v.27).

Considerações finais
1. Como conciliar todas essas informações aparentemente incompatíveis?
Fanning (2008:454) entende que 3.6, 14 são verdadeiras “chaves
hermenêuticas” ou “paradigmas interpretativos” quando o assunto é
soteriologia em Hebreus. Em suas palavras:

O autor afirma que a persistência deles na fé demonstrará que são (tempo presente em grego)
membros da casa de Deus, não que isso os fará membros no futuro. Reter firmemente sua
confiança revelará a realidade de que eles já são participantes (tempo perfeito) de Cristo, não
que participarão.

Assim, perseverança não é a condição para salvação, mas “o teste da


realidade” (Bruce 2009:59). Grande parte da argumentação de Fanning se
dá no campo gramatical. Especificamente na análise da relação entre as
condicionais (2007:206-19). Convincentemente, ele argumenta que a
relação entre a prótase e a apódase é de evidência-inferência e não de causa-
efeito. “Guardar firme até o fim” (3.14) é evidência de ser “participante de
Cristo” (3.14).
Mas, como o próprio Fanning reconhece, ficamos sem a explicação de
alguns detalhes. Em outras palavras, os detalhes devem ser analisados pelo
“paradigma interpretativo”. Aqui, entendo que o paradigma de Fanning
pode se tornar uma cama de Procusto “cortando” (não explicando) a
declaração direta: “o sangue da aliança com o qual foi santificado”. Se os
participantes da Nova Aliança vão até o final, por que os santificados são
descritos como condenados? A conclusão de Fanning sobre 3.14 é
fantástica, mas não responde 10.29.
Horton (2002:37) propõe outro paradigma interpretativo que nos leva
para a mesma conclusão. Em suas próprias palavras: “A Teologia da
Aliança […] reconhece uma terceira categoria além de ‘salvos’ e ‘não
salvos’: as pessoas que pertencem a comunidade da aliança e experimentam
por meio dela a obra do Espírito através dos meios da graça, porém ainda
não são regenerados”. Em outras palavras, “o círculo da aliança era mais
largo que o círculo da eleição” (2002:36). O problema com essa abordagem
é que o que se diz da Antiga Aliança não necessariamente se diz da Nova
Aliança. Aliás, boa parte de Hebreus se preocupara em contrastar as
alianças. A Nova Aliança é apresentada em toda a obra como superior.
Diante do que já foi exposto são três os caminhos a seguir: (1) negar que
esses são crentes autênticos ou, na linguagem do verso 29, negar a
santificação da qual eles foram objeto; (2) aceitar a autenticidade da
santificação e reconhecer a possibilidade real de apostasia para crentes
genuínos; ou (3) tomar as informações como hipotéticas ou como algo que
deve que ser concebido, não necessariamente possível.
A primeira proposta não pode ser aceita por tudo que já foi dito até aqui
na exposição da passagem. A segunda é igualmente descartada, tanto por
propor a perda de salvação, aqui pressuposta como incompatível com a
teologia bíblica, tanto por não se adequar à gramática do texto (como será
apresentado a seguir). A terceira tese se confirma gramaticalmente ao
entendermos, como as grandes versões de língua portuguesa e inglesa (e.g.,
ARA, ARC, KJV, NAS, NAU, NAB, NIV, NVI, ACF, NET, ASV), que o
particípio ἁμαρτανόντων é condicional. Como asseguramos no início da
exposição, as condicionais de terceira classe (ou condicionais participiais)
podem retratar uma situação meramente hipotética que não se cumprirá
(Wallace 1996:696). Além disso, o próprio fato de ser um particípio já
estabelece o uso da língua como reflexão; neste caso, hipotética.
2. O autor, portanto, levanta uma hipótese (algo a ser concebido): caso
sigamos o caminho dos que abandonaram as reuniões (sinal de sua rejeição
ao sacrifício de Cristo), não teremos escapatória. No entanto, essa
abordagem necessita responder à acusação de que “os versículos a respeito
de julgamento soam vazios quando lidos hipoteticamente” (Fanning
2008:451).
Em primeiro lugar, a abordagem hipotética explica as passagens de
reafirmação (6.9-12; 10.32ss) que seguem as palavras de advertência.
Segundo, a situação concebida reforça a superioridade de Cristo em relação
à Antiga Aliança, não no seu efeito (pois ela santificou, mas não salvou),
mas no maior rigor de sua rejeição. Mesmo assim, se a possibilidade não é
real, a questão permanece: por que levar isso em conta? “Não ser real” não
quer dizer o mesmo que “não ser cogitado como real”.
O autor revela a incompatibilidade, mesmo que concebível, de se viver
deliberadamente em pecado e ser salvo. Ele combate tal pensamento à luz
do maior rigor de rejeição da maior aliança. Manter tal pensamento
(abandonar as reuniões) e ainda querer ser salvo se enquadra com o
contexto de perseguição. Os leitores precisavam ter tal hipótese condenada
e entender o porquê. Eles precisavam corrigir sua teologia.

Quinta advertência (Hebreus 12.25-29)


Os limites da passagem
Temos indícios claros da mudança de gênero, o que por sua vez justifica
uma ruptura que marca uma nova seção: os indicativos οὐ προσεληλύθατε
(não chegaram) no v. 18 e ἀλλὰ προσεληλύθατε (mas chegaram) no v. 22
apontam para dois momentos importantes na seção, que começam no verso
18 e findam no verso 24. Já nossa passagem é principiada no verso 25 por
um imperativo (Βλέπετε [Vede] – indicando direção24) e o subjuntivo
exortativo (μὴ παραιτήσησθε [não rejeitem] – indicando projeção).
Assim como na abertura da seção que principia no verso 14, não temos
conjunção prefaciando o parágrafo de nossa seção. Isso leva a O’Brien
(2010:491 – itálico nosso) a considerar a transição da exposição (indicativo)
dos v. 18-24 para a parênese (imperativo-subjuntivo) dos versos 25-29
“bastante abrupta” (Lane 1991 2:474).
A ruptura entre os versos 29 e 13.1 se dá primeiramente pela relação
entre os imperativos: (1) diferente de 13.1 (início de uma nova seção), onde
o conteúdo do que é exortado se encontra na própria léxis de uma série de
imperativos, aqui ele serve como um tipo de “vocativo”25 que prepara o
caminho e/ou chama atenção para uma única exortação (que está no
subjuntivo μὴ παραιτήσησθε) seguida de uma advertência (por meio de
uma argumentação a fortiori); (2) a natureza sintética da declaração “o
nosso Deus é fogo consumidor” (uma alusão a Dt 4.24) indica que toda a
argumentação desenvolvida em 25-29 findou; e por último, (3) diferente da
seção em 12.25-29, os imperativos em série que seguem em 13.1 tem um
intervalo curto (alguns seguidos por uma breve explicação [e.g., 13.2]) e
não necessariamente estão conectados entre si26.
Ficamos com a seguinte disposição:

HEBREUS 12.25-29

Exortação μὴ παραιτήσησθε τὸν λαλοῦντα


Não rejeitem aquele que fala...

Advertência εἰ...οὐκ ἐξέφυγον...πολὺ μᾶλλον ἡμεῖς...


Se...não escaparam...quanto mais nós...

Exposição
Comecemos com os elementos contextuais. “Diferente de 2.1-4, onde a
advertência do autor ocorre no meio de uma discussão sobre o Filho, a
exortação em Hebreus 12.14-29 acontece numa discussão acerca dos
crentes” (Bateman 2007:34 – itálico nosso): eles já chegaram a Jerusalém
Celestial.
As observações estruturais acima revelam uma mudança de modo
(indicativo → imperativo), porém não há mudança de pessoa – segunda do
plural. Assim, a priori não faz nenhum sentido distinguir os que já
chegaram à Nova Jerusalém e ao sangue superior de Jesus dos que são
advertidos nos versos seguintes (25-29). A presença de ἡμεῖς (nós) no verso
25 só reforça tal julgamento.
Assim, a exortação é dirigida para quem chegou em Jesus: não recuseis
ao que fala. O verbo παραιτέομαι foi usado também no verso 19. Segundo
Lane (1991 2: 475) “a sintaxe da oração mostra que ela significa
‘implorar’27 que algo não seja feito” e indica recusa culpável e deliberada.
O autor, portanto, alerta seus leitores sobre a recusa de “ouvir”.
A razão (εἰ γὰρ) para se seguir a exortação acompanha novamente os
termos da argumentação a fortiori (qal wahomer). É importante ressaltar a
natureza factiva (ou não factual) e pressuposicional de qualquer
argumentação. Argumentação está no campo ideacional. No caso do nosso
texto, εἰ (se) prefacia o que os leitores devem tomar como verdade para
benefício do argumento. Se encontramos algo real ou hipotético, quer na
prótase ou na apódase, tal julgamento não é da alçada da gramática.
Sabemos, por exemplo, que nossa prótase é real por estar ancorada na
história do povo de Israel. Já a realidade da apódase pode ficar somente no
campo do concebível – não do real. São elementos teológicos-contextuais,
não gramaticais, que terão a palavra final.
O que é assegurado (dentro do argumento) em forma de pergunta
retórica em 2.3 (“Como nós escaparemos [ἐκφευξόμεθα – de ἐκφεύγω], se
negligenciarmos tão grande salvação?”), aqui é igualmente assegurado pelo
indicativo ἐξέφυγον (de ἐκφεύγω – escapar). Em nosso argumento, quem
rejeita a voz de Deus (cf. argumentação abaixo) e o sangue do perdão que
fala, não tem a mínima chance de escapatória.
Voltando à natureza a fortiori (qal wahomer) do argumento, o menor aqui
se refere ao que aconteceu com a geração do deserto (3.7-19): assim como o
povo rejeitou a palavra de Deus por meio de Moisés, assim também quem
rejeita ao que fala (τὸν λαλοῦντα) sofrerá consequências, porém, maiores e
piores.
Exatamente pela natureza da argumentação (qal wahomer) não nos é
permitido interpretar o “fogo”28 no verso 29 como um fogo de provação.
Assim, a suma da advertência (consequência de não se seguir a exortação) é
idêntica a todas que a antecederam: não recuse a palavra de Deus, caso
contrário, não haverá escapatória.
O contexto que precede nossa exortação-advertência se encontra nos
versos 18-2429. Aqui, é desenvolvido um contraste entre as duas alianças.
Apesar da quebra abrupta da nossa passagem, há um ponto de contato de
natureza lexical entre as duas: λαλοῦντι (v. 24) e λαλοῦντα (v. 25).
No verso anterior, quem “fala” (λαλοῦντι – particípio dativo atributivo) é
a personificação do “sangue da aspersão” (αἵματι ῥαντισμοῦ) – o sangue de
Cristo (cf. 10.22). A presença do comparativo κρεῖττον (melhor) nos faz
pensar que a locução preposicional παρὰ τὸν Ἅβελ tem força comparativa
significando “mais que” (Wallace 1996:378). Assim, a palavra “sangue”,
que explicitamente se refere a Cristo, implicitamente se refere também a
Abel.
A questão aqui é: em que sentido o sangue de Cristo fala coisas
superiores ao sangue de Abel, que também “falou” (Gn 4.10)? Guthrie
(1998:422 – itálico nosso) nos ajuda:

O sangue de Abel testemunhou contra Caim, indicando sua culpa. O sangue de Cristo, por
outro lado, granjeou nosso perdão, ‘clamando’ que pessoas da Nova Aliança já não são
culpadas, tendo sido limpas completamente do pecado.
Ou seja, o sangue de Abel clama por julgamento enquanto o sangue de
Cristo clama por perdão – pena paga completamente. A identidade de “o
que fala” (τὸν λαλοῦντα), contudo, tem sido alvo de discordância entre os
comentaristas. Bateman IV (2007:38) crê se tratar de Jesus. Peter O’Brien
(2010:492) crê que temos uma referência a Deus.
O’Brien (2010:193) apela tanto para o contexto do AT (Dt 5.23-24 LXX;
Ex 20.18-20 LXX) quanto para o texto precedente (especialmente 12.19),
onde temos uma referência à voz de Deus no Sinai. Ele ainda cita alguns
versos do terceiro capítulo de Hebreus (e.g., v. 16, 18), onde temos a
declaração de que o povo ouviu Deus e mesmo assim se recusou a obedecê-
lo.
Sem querer apresentar uma solução simplória e/ou ingênua, penso que
não seria forçar demais entender que Deus fala por meio de Cristo (seu
sacrifício, por exemplo) ou por meio de Moisés. Devemos evitar dicotomias
rígidas quando o texto nos leva para outro caminho. Não podemos ignorar
os instrumentos de Deus (Moisés e Jesus), pois a argumentação também
visa contrastá-los. A rejeição às palavras de Deus via Moisés teve castigo
certo, assim como as palavras de Deus via Jesus (seu sacrifício – seu
sangue) teve muito mais. O reconhecimento de tal realidade só ecoaria o
que o autor já nos apresentou como síntese de sua teologia em 1.1-4: Deus
nos fala hoje pelo filho.
Entendendo dessa forma, temos uma semelhança com a quarta
advertência: o que está sendo negado aqui é o sangue de Cristo – seu
sacrifício. Assim como em 10.19-32, não há como escapar do julgamento
quando não se ouve o “sangue do perdão”.
Nos versos seguintes, temos uma citação de Ageu 2.6 visando ampliar o
sentido e/ou a natureza do julgamento mais severo. Ela sofre algumas
alterações: (1) há uma omissão de “terra seca” e “mar”; (2) foi acrescentado
a expressão οὐ μόνον…ἀλλὰ καὶ (“não somente...mas também”) e (3) a
ordem das palavras foi modificada. Dessas alterações (principalmente a
primeira e a segunda) se conclui que o autor visou destacar o abalo também
“nos céus”. Ou seja, não será como no Sinai onde somente a terra foi
abalada. Haverá um abalo futuro que envolverá não somente a terra, como o
céu também.
Quanto ao uso de σαλεύω30 (“abalar” v. 26-28), ao que tudo indica, a
expressão tem uma relação direta com julgamento. Segundo Lane (1991
2:481), “[o]s tradutores da LXX usaram o verbo σαλεύω metaforicamente
como uma expressão para o efeito do julgamento divino”.
Junto e decorrente (διό) da palavra de julgamento, temos também uma
palavra de salvação, esperança e gratidão. Nem todos serão “abalados”.
Existe o grupo dos que permanecerão (v. 27 – τὰ μὴ σαλευόμενα) mesmo
diante do abalo de Deus.
Aqui o autor segue a mesma estrutura da terceira e quarta exortação, isto
é, exortação-advertência-confirmação. Apesar de argumentar sobre o
julgamento, ele os exorta a serem gratos (ἔχωμεν χάριν [BDAG:1080])
porque eles receberam um reino inabalável (βασιλείαν ἀσάλευτον
παραλαμβάνοντες).31 É através (διʼ ἧς) da gratidão que eles adorarão
(λατρεύω) o Senhor. Sem dúvidas, um “desafio consolador”.

Considerações finais
1. O que é de grande importância para nossos objetivos é saber se
realmente as pessoas advertidas são ou não cristãs autênticas. Não temos
motivos para questionar a genuinidade da salvação daqueles que receberam
a advertência. Os advertidos são exatamente os mesmo que devem ser
gratos por participar de um reino inabalável – livre de condenação.
2. Como foi dito acima, nem sempre o objetivo de uma argumentação é
apresentar o possível, mas o concebível. Rejeição ao sangue de Cristo (que
fala) seguramente trará condenação. Isso é real. Contudo, não é somente o
condenado que convive (ou não) na comunidade da aliança (sem realmente
ser) que deve ser lembrado e/ou advertido quanto a isso. O alvo do nosso
autor não são os incrédulos, mas os participantes do reino. Só esses podem
ser gratos por não serem condenados. É dar ouvidos à verdade – de que não
ouvir o sangue de Cristo implica em condenação – que os livrará de ser
condenados. Esse é o propósito do autor.
3. Como há uma comparação com os acontecimentos de Israel no AT, é
importante entender essa relação (que explicitaremos na exposição de nossa
passagem). Por enquanto, apresentamos a ideia de forma resumida: o que
aconteceu com Israel não pode, nem muito menos irá acontecer, com os
membros da Nova Aliança – dos que escutam a voz de Deus pela cruz.
4. Precisamos ampliar nosso conceito da “palavra de Deus” e o nosso
conceito de “ouvir”. Os leitores primários desse grandioso documento não
estavam ouvindo a voz da cruz – a voz do Pai por meio do Filho. Isso
certamente nos fará observar a nossa passagem com outros olhos.
EXORTAÇÃO E INSTRUÇÃO
Relação de dependência
Muitos comentadores modernos têm visto Hebreus como uma pregação
(cf. Koester 2001:80-82), e existem indícios fortes que nos levam a
confirmar tal proposta:
1. A expressão “palavra de exortação” (τοῦ λόγου τῆς παρακλήσεως)
usada em 13.22. Em Atos 13.15, encontramos a mesma expressão (λόγος
παρακλήσεως) sendo usada para descrever a homilia da sinagoga. Segundo
Lane (1991 1:lxx – itálico nosso), “palavra de exortação parece ser uma
expressão idiomática para um sermão tanto nos círculos judaicos
helenísticos quanto para os primeiros cristãos”.
2. Hebreus se encaixa com a estrutura de uma pregação. Lawrence Wills
(apud. Stanley 1994:249) assegura que uma palavra de exortação segue uma
estrutura tripartida: (a) seção explanatória com citações das Escrituras,
exemplos autoritativos e exposição teológica; (b) uma conclusão baseada na
exposição mostrando a relevância aos endereçados; (c) uma exortação,
geralmente contendo um imperativo ou um subjuntivo de exortação. Para
Wills, esse padrão (com digressões e repetição fora dessa ordem) é
encontrado várias vezes no livro de Hebreus32.
São basicamente dois gêneros em Hebreus: instrução e exortação. O
material instrutivo precede um bloco de exortação que, por sua vez, é
seguido por um recomeço do material expositivo (Guthrie 1994:97). A
questão é: qual a relação entre material exortativo e o instrutivo? O
primeiro é uma digressão do segundo? A instrução é o fundamento da
exortação? Há uma relação entre as exortações? Há uma relação entre as
instruções?
Seguindo G. Guthrie (1994:97), pensando especificamente no gênero
expositivo, entendemos que a presença de “palavras iscas” une o mesmo
gênero em toda a obra. Isso pode sugerir que o autor aponta para alguma
continuação semântica entre as unidades do mesmo gênero (Guthrie
1994:115) – o que Guthrie chama de argumentação “passo-a-passo”.
Pensando especificamente em nosso material (gênero exortativo), qual
seria a relação entre essas seções? Em primeiro lugar, elas não seguem uma
argumentação “passo-a-passo” como no gênero expositivo. Porém,
encontramos elementos comuns: (1) as seções 2.1-4; 3.6-7.11; 10.26-31;
12.25-29 usam argumentos a fortiori (qal wahomer). (2) Temas comuns
perpassam as seções exortativas. Segundo Bateman IV (2007:28):

Das cinco passagens de advertência, duas evocam a necessidade de ouvir ou dar atenção à
mensagem de Deus (2.1-4; 12.14-29), enquanto outras duas produzem necessidade emotiva e
explícita expectativa a confiar em Deus e a obedecê-lo (3.7-4.13; 10.19-39). No coração
dessas passagens de exortação está Hebreus 5.11-6.12.

O’Brien (2010:30 – itálico nosso) reforça as palavras de Bateman:

[…] elas [as seções exortativas] retornam várias vezes aos temas chave similares, por
exemplo, queda, pecado, punição, promessa, necessidade de se receber a mensagem de Deus,
Jesus o filho, fé, obediência, firmeza, entrar em, e o uso de exemplos.

Decorrente das considerações de Bateman, (3) há uma possível estrutura


quiástica. E por fim, (4) a estrutura de 10.19-39 é a mesma de 5.11-6.20.
Começa com uma exortação (5.11-6.3 e 10.19-25) seguida de uma
advertência (6.4-8 e 10.26-31), findando com uma reafirmação (6.9-20 e
10.32-39).
Sobre a importância de se entender o material exortativo, Stanley
(1994:251 – itálico nosso) é incisivo: “[p]ara entender a mensagem de
Hebreus […] é importante reconhecer que tudo de sua teologia tem o
propósito de providenciar uma base firme para sua exortação, que é o ponto
do livro”.

A função das advertências


Em Hebreus 6, a passagem que justifica esse livro, a advertência está
entre uma palavra de exortação e é seguida por uma palavra de
confirmação. A questão aqui é: como relacionar as promessas com as
exigências e/ou a graça com as advertências?

Se examinarmos o testemunho das Escrituras cuidadosamente, observaremos imediatamente


que não é correto afirmar que um escritor bíblico é dinâmico na sua descrição da vida na fé,
enquanto outro trabalha basicamente com dados puramente estáticos, dados de estabilidade e
imutabilidade (Berkouwer 1958:97 – itálico nosso).

Alguns exemplos: a declaração de 1João 5.18 é clara: “Sabemos que todo


aquele que é nascido de Deus não vive em pecado; antes, Aquele que
nasceu de Deus o guarda, e o Maligno não lhe toca”. Não há dúvidas de
que Deus é o autor da preservação da nossa vida. Nas palavras de
Berkouwer, essa seria uma declaração estática – imutável. Contudo, o verso
21 é igualmente claro: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”. Aqui o cristão
deve guardar a si mesmo. Uma declaração “dinâmica”. A questão é que
temos o mesmo documento e autor – o que ratifica as palavras de
Berkouwer.
Para Tiago o “guardar a si mesmo” faz parte da verdadeira religião (Tg
1.27). Encontramos a mesma advertência em Judas 21: “guardai-vos no
amor de Deus”. No entanto, isso não impede Judas de declarar: “àquele que
é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com
exultação, imaculados diante da sua glória…”.
A perspectiva arminiana entende que a relação entre as duas
“preservações” é de cooperação mútua, de complementação e condicional.
Dentro da tradição reformada, encontramos teólogos propondo se tratar de
um mistério. Berkouwer (1958:105), por exemplo, entende que é
exatamente esse mistério o conteúdo da doutrina da perseverança. Por
“misteriosa” ele quer nos alertar para o fato de que “uma abordagem
racionalista nunca será capaz de entender essa harmonia” (Berkouwer
1958:106), e ainda afirma:

A preservação de Deus e nossa autopreservação não permanecem em mera coordenação [ou


complementação], mas de uma maneira maravilhosa elas estão em correlação. […] nossa
autopreservação é inteiramente orientada à preservação de Deus de nós mesmos. […]
autopreservação não pode ser um fator independente de ser preservado. (Berkouwer
1958:103).

A questão é: a doutrina calvinista da perseverança dos santos não


desconsidera as advertências uma vez que se elimina a possibilidade de
queda, e por conseguinte, a função e/ou peso da advertência? Tal
questionamento legítimo nos leva a outro, que entendo ser a questão
central: a condicionalidade embutida ou expressa claramente nas
advertências implica necessariamente em possibilidade de queda?
Aqui declaramos que seguimos a proposta de Thomas Schreiner e Ardel
B. Caneday (2001). Eles propõem que a chave está no entendimento da
função da promessa e da advertência, bem como no entendimento de que
uma serve à outra. Duas passagens paralelas, fora do livro de Hebreus,
porém muito citadas quando o assunto é condicionalidade da perseverança,
devem ser observadas com atenção: Mateus 10.22 (“Sereis odiados de todos
por causa do meu nome; aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse
será salvo” – ARA) e Marcos 13.13 (“Sereis odiados de todos por causa do
meu nome; aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse será salvo”. –
ARA).
Schreiner e Caneday (2001:147-60) observam que: (1) a salvação
referida é escatológica (Jesus usa o tempo futuro33) e não pode ser
confundida com galardão; (2) em ambos os textos, o Senhor Jesus indica
uma condição (ou meio34) necessária para a salvação: a perseverança.
Alguns têm invertido as sentenças, transformando a condição (perseverar
até o fim) em efeito e o efeito (será salvo) em causa, quando asseguram que
aquele que é salvo perseverará. Tal verdade não é negada, contudo,
questiona-se se realmente é essa a intenção do Senhor Jesus (2001:151). O
fato é que perseverança é uma condição necessária. Tal condicionalidade,
contudo, não deveria necessariamente levar seu público a pensar em perda
de salvação.
Sobre a natureza condicional da salvação, é importante se entender que
condição não deve ser confundida com fundamento. A base de nossa
salvação está em Romanos 3.21-31 – a obra de Cristo. O relacionamento
causa e efeito das condicionais não afeta a base da nossa herança.
Sobre a relação entre possibilidade e condicionalidade, Schreiner e
Caneday (2001:199) asseguram que:

[…] exortações condicionais em si não funcionam para indicar nada acerca da possibilidade
de falha ou cumprimento. Ao invés disso, as exortações condicionais apelam para nossa
mente para conceber ou imaginar as consequências invariáveis que vem para todos que
seguem a estrada da apostasia de Cristo. […] Advertências e admoestações não dizem nada
acerca do que é possível no sentido do que é provável ou capaz de acontecer […] elas
expressam o que é capaz de ser concebido com a mente. […] As advertências projetam uma
suposição que nos chama a imaginar que um curso específico de ação tem uma consequência
inequívoca inviolável.

A distinção entre o possível e o concebível de Schreiner e Caneday é de


importância capital para esse trabalho. Quando convido alguém a conceber
uma hipótese, não estou assumindo que a hipótese é necessariamente
possível. “Imagine que eu tente ir a pé de Rio Branco para Curitiba” pode
surgir como um argumento de que aviões não são tão desconfortáveis assim
(hipótese concebível), ainda que não seja factível que alguém vá fazer tal
caminhada por odiar esperar pelo check-in (possibilidade). A figura das
placas de trânsito também nos ajuda a entendermos melhor a natureza das
advertências. Quando alguém coloca o aviso “Abismo a 500 metros”, não
se está afrontando a capacidade ou índole do motorista, como se estivesse
afirmando que a queda é uma possibilidade real àquele que dirige, como se
fosse um suicida inveterado. Antes, está se pressupondo que a presença da
placa fará ele seguir invariavelmente a orientação, de forma que a queda
deixa de ser uma possibilidade real para quem lê a advertência. O objetivo
da placa (advertência) é levar o motorista a conceber a queda e evitá-la, e
não indicar alguma possibilidade moral de queda. Não é isso que está na
mente do autor da advertência. O que ele vê é a obediência, e não o
contrário. A advertência é a placa que evita a queda.
Voltando aos nossos textos: afinal, o que o Senhor Jesus quis dizer? (1)
Perseverança até o fim é o meio (condição) de Deus de salvar alguém até o
fim. (2) Ele nos revela (semelhante a argumentação de Tiago sobre “fé” e
“obras”) o tipo de fé que ele requer de nós. É um tipo de fé que não
descansa quando encontra a dor da perseguição. Talvez o mais importante
para nossos objetivos na lida com as palavras de Cristo é entender o que
Jesus não disse ou não quis dizer:

As palavras de Jesus não dizem nada acerca da possibilidade de alguém perder a salvação;
essa não é a função de uma promessa condicional. Antes, a função de suas palavras é
assegurar a você que você será salvo, se perseverar. Você deve perseverar se quer ser salvo.
[…] Jesus não nos dá um teste de perseverança pelo qual podemos saber se somos salvos ou
não. Note sua orientação. Ele é prospectivo, não retrospectivo. Ele usa o tempo futuro para
eles: ‘serão salvos’ (Schreiner, Caneday 2001:152 – itálico nosso).

A perspectiva prospectiva das palavras de Jesus deve nos levar a


entender que as advertências visam o incentivo a continuar, e não a uma
acusação que exila (2001: 156). Alguns versos depois, Marcos cita outras
palavras de Jesus Cristo: “pois surgirão falsos cristos e falsos profetas,
operando sinais e prodígios, para enganar, se possível, os próprios eleitos”.
(Mc. 13:22 – ARA – itálico nosso). Sobre a relação entre esses versos,
ficamos novamente com Schreiner e Caneday (2001:159-0 – itálico nosso):

Nesse ponto, a tentação é modificar ou as advertências de Jesus como suas palavras de


promessa segura ou sua promessa consoladora com suas advertências duras […] Marcos,
porém, espera que seus leitores recebam tanto a exortação quanto a promessa sem modificar
ambas […]. Portanto, longe de sugerir a apostasia como possível para o eleito de Deus,
Marcos 13.22 realmente afirma o oposto […] Tanto Jesus quanto Marcos assumem completa
compatibilidade entre segurança e advertência urgente contra a apostasia.

Cowan (2012:234-42) dedica quase dez páginas do seu trabalho de


doutorado com citações de autores dos últimos cinco séculos que
interpretaram as advertências (não especificamente de Hebreus) como meio
de salvação. Seguem apenas três:

Existem advertências contra a apostasia que podem parecer realmente desnecessárias, se o


crente não pode cair […] Mas essas advertências consideram toda a questão do lado do
homem e são seriamente significativas. Elas propõem autoexame, e são instrumentos para
manter o crente no caminho da perseverança. Elas não provam que seus destinatários
apostatarão, mas simplesmente que o uso de meios é necessário para impedi-los de cometer
esse pecado. Compare Atos 27.22-25 com o verso 3 para uma ilustração desse princípio
(Berkhof 1982:548).

Comentando a passagem de Marcos 13.21-22 citada acima, Calvino


escreve:

Isso [Marcos 13.21-22] foi acrescentado com o propósito [itálico nosso] de excitar alarme;
que os crentes podem ser mais cuidadosos para estar em guarda; pois quando tal liberdade de
limite de ação é permitida a falsos profetas, e quando eles estão autorizados a exercer tais
poderes de enganar, aqueles que estão descuidados e desatentos seriam facilmente tomados
por suas armadilhas. Cristo, portanto, exorta e desperta seus discípulos a vigiar, e ao mesmo
tempo lembra-lhes que não há razão para estar atribulado pela estranheza da visão, caso
vejam muitas pessoas levadas ao erro. Enquanto ele os estimula ao cuidado, para que Satanás
não os alcance em estado de preguiça, ele concede a eles base abundante de confiança sobre a
qual eles podem calmamente depender; quando ele promete, eles estarão seguros sob a
proteção e defesa de Deus contra todas as ciladas de Satanás. Assim, embora por mais frágil e
escorregadia possa ser a condição do piedoso, ainda existe uma base sólida sobre a qual eles
podem permanecer, pois não é possível eles caírem da salvação, a quem o Filho de Deus é um
guardião fiel. Eles não têm energia suficiente para resistir aos ataques de Satanás, a não ser
por consequência de ser a ovelha de Cristo, que ninguém pode arrancar de sua mão (Jo
10.28). Deve, portanto, ser observado que a permanência de nossa salvação não depende de
nós, mas da eleição secreta de Deus, pois embora nossa salvação seja mantida por meio da fé,
como Pedro nos diz (1Pe 1.5), ainda devemos subir o mais alto e assegurar de que estamos
em segurança, porque o Pai nos deu para o Filho, e o próprio Filho declara que ninguém que
tenha sido dado a ele perecerá (Jo 17.12). (Calvin 1979:141 – itálico do autor)

Expondo o sermão da Montanha, A. W. Pink declarou:

Dizer que cristãos verdadeiros não precisam de tal advertência porque eles não podem
possivelmente cometer esse pecado é, repetimos, perder de vista a conexão que o próprio
Deus estabeleceu entre seus fins predestinados e os meios pelos quais eles são atingidos. O
fim para o qual Deus predestinou Seu povo é sua eterna felicidade no céu, e um dos meios
pelos quais esse fim é alcançado é através da observação a solene advertência que Ele nos deu
contra aquilo que impediria sua chegada ao céu (Pink apud. Cowan 2012:242).

Considerações finais
1. Sobre a relação entre advertência e conhecimento e/ou ensino, ficamos
com as observações de G. Guthrie (1994:139):

A função primária do material exortativo é emocional ao invés de educacional. Aqui ele


[autor de Hebreus] não busca construir o conhecimento dos seus ouvintes sobre um tópico
específico. Antes, ele tenta desafiar seus ouvintes a ações corretas, provocando uma resposta
emocional deles.

2. As advertências são voltadas para os crentes. Elas servem para ampliar


o chamado inicial do Evangelho, convocando-nos implacavelmente à
fidelidade a Jesus Cristo, apontando o caminho para a salvação e
sinalizando para o caminho da perdição.
3. As advertências são conceituais, portanto, lidam com a imaginação e
não com a possibilidade. Assim como as placas nas rodovias que nos
alertam para perigos, as advertências não questionam nossas habilidades,
mas as pressupõem. Tomando o exemplo citado por Berkhof (Atos 27.3; 22-
25), podemos assegurar que as advertências bíblicas são de consequências
concebíveis e não prováveis.
4. E por último, podemos entender que as advertências servem às
promessas, pois é delas (promessas) que as advertências extraem a
confiança de prosseguir. Advertências não são baseadas na fraqueza
humana, mas no poder do Evangelho.

1. William L. Lane serviu de outside reader da tese de doutorado de G. Guthrie e utilizou seu
material na introdução de sua obra.
2. Segundo Walter Kaiser (2009:72-3 – itálico nosso), “[a] inclusão [ou inclusio] se refere a uma
repetição que marca o início e o fim de uma seção […]”. Como no quiasmo, ela pode indicar que o
material contido forma um todo – uma unidade (Levinsohn 2000:277).
3. Segundo Reed (em Porter 2002:205): “Coesão acontece quando a interpretação de algum
elemento no discurso é de um outro. Um pressupõe o outro no sentido de que não pode ser
efetivamente decodificado senão recorrendo a ele”. Para Guthrie, coesão é “uma propriedade
semântica de um texto que dá unidade ao texto”. Há quem faça distinção entre coesão e coerência.
Aqui seguimos o entendimento de Reed e G. Guthrie, que por sua vez seguem M. A. K. Halliday e
Ruqaiya Hasan.
4. Estrutura quiástica proposta por Guthrie (1994:136):
3.1-6 Jesus, o supremo exemplo de um filho fiel.
3.7-19 O exemplo negativo daqueles que caíram por infidelidade.
4.3-11 A promessa de descanso para aqueles que são fiéis.
4.12-13 ADVERTÊNCIA
4.14-16 Agarre-se e aproxime-se.
5.11-6.3 O presente problema dos ouvintes.
6.4-8 ADVERTÊNCIA
6.9-12 Mitigação: a confiança do autor nos ouvintes e seus desejo por eles.
10.19-25 Agarre-se e aproxime-se.
10.26-31 ADVERTÊNCIA
10.32-39 O exemplo positivo do passado dos ouvintes e um admoestação a suportar para
receber a promessa.
11.1-40 O exemplo positivo dos fiéis do Antigo Testamento.
12.1-2 Rejeite o pecado e fixe seus olhos em Jesus, supremo exemplo de perseverança.
5. “Portanto” (ARA); “por essa razão” (ARC), “therefore” (KJV, NIV), “for this reason” (NAS).
6. “Importa” (ARA); “convém” (ARC); “must” (NIV, NAS); “ought” (KJV).
7. “Pois não foi a anjos” (ARA), “Porque não foi aos anjos” (ARC).
8. O conteúdo das exortações e das advertências apresentados nas tabelas são sintéticos.
9. “Mais firmeza” (ARA), “mais diligência” (ARC), “more careful attention” (NIV), “pay much
closer” (NAS).
10. “Melhor” (cf. 1.4; 7.7; 7.19; 7.22; 8.6 [duas vezes]; 9.23; 10.34; 11.16; 11.35; 11.40; 12.24).
11. “Para que…jamais” (ARA), “para que em tempo algum” (ARC), “so that we do not” (NIV).
12. “Transgressão” (ARA, ARC), “transgression” (NAS), “violation” (NIV). Low-Nida (36.28) o
define como “um ato contrário a um costume ou lei, com implicação de intensão”.
13. “Desobediência” (ARA, ARC), “disobedience” (NAS, NIV, KJV).
14. “Justo castigo” (ARA), “justa retribuição” (ARC), “just punishment” (NIV).
15. “Drift away” (ESV, NAS, NIV, RSV).
16. “Por isso” (ARA), “Pelo que” (ARC), “Therefore” (NAS, NIV), “Wherefore” (KJV).
17. “Considerai atentamente” (ARA), “considerai” (ARC), “fix your thoughts” (NIV), “consider”
(KJV, NAS).
18. Para entender a relação entre essa perícope e a temática do “coração endurecido” e sua relação
com a Nova Aliança, confira a análise de Hebreus 5.9 em Pressuposição teológica, cap. 3.
19. ACF: “sobre a sua própria casa”; NVI: “sobre a casa de Deus”; A21: “sobre a Casa”; ARA “em
sua casa”; NTLH “dirige a casa de Deus”; TB: “sobre a casa de Deus”.
20. “A declaração ‘resta’ (4.9) se refere ao descanso da terra prometida. É futuro àquele tempo, ao
tempo de Josué (4.8)” (Lincoln em Carson 2006:219).
21. “O tempo de entrar no descanso é ‘hoje’, não depois da morte, nem na segunda vinda de Cristo.
Nesse sentido, o novo dia de descanso se tornou uma realidade para aqueles que creem, mas continua
sendo uma promessa que alguns não receberão em função de sua desobediência, de modo que todos
são exortados a se esforçar para entrar nele” (Lincoln em Carson 2006:218).
22. Esses dois léxicos foram consultados usando o software Bible Works 8.0.
23. É importante entender que o “congregar” aqui envolve o “admoestar”. Esse verso se encaixa bem
com as colocações de Steve Runge (2010:40): “Ἀλλά geralmente é usado seguindo uma oração
negativa para introduzir uma alternativa positiva. Nesta base, ἀλλά é quase sempre usado na presença
de contraste, servindo para esclarecer”. Observe nosso texto: oração negativa – μὴ ἐγκαταλείποντες
τὴν ἐπισυναγωγὴν... (não abandonando as reuniões...), ἀλλὰ παρακαλοῦντες... (mas admoestando).
Ἀλλά ainda serve como um tipo de corretivo, onde uma expectativa é cancelada e a expectativa
correta é apresentada. Levinsohn (2000:115) ainda nos lembra que a proposição negativa mantém sua
relevância. As orações ligadas por ἀλλά tem status igual. Em suma, a admoestação mútua é um
esclarecimento da presença nas reuniões.
24. Cf. Apêndice.
25. A NVI traduz como “Cuidado!”.
26. Justificar uma ruptura não é o mesmo que dizer que os parágrafos estão completamente
desconectados, mas reconhecer unidades de pensamento. No caso de 13.1ss, por exemplo, a despeito
de entendermos que temos uma nova seção, há um elemento que a une com o texto precedente: servir
(λατρεύωμεν) a Deus de modo agradável. Assim, em 13.1 temos um guia prático de como adorar-
servir a Deus (Guthrie 1994:134).
27. “Suplicaram” (ARA); “pediram” (ARC, NTLH); “rogaram” (TB, NVI).
28. A figura do fogo está presente na terceira, quarta e quinta advertência. Todas com o sentido de
condenação.
29. G. Guthrie (1994:73) confirma a quebra do verso 17 com o verso 18: “[…] a mudança entre
12.17 e 12.18 é realizada via um campo de coesão envolvendo tópico, tempo, espaço, ator, assunto,
tempo verbal, pessoa verbal e número verbal”.
30. “Abalar” (ARA, NVI, A21); “moveu” (ARC); “estremecer” (NTLH), “moveu” (TB).
31. Pressupõe aqui que o particípio nominativo anartro παραλαμβάνοντες indica razão-causa para
eles serem grato. Tal categorização não é gramatical, mas pragmática (cf. Apêndice e a análise dos
particípios no quarto capítulo).
32. Outros exemplos são Atos 13:14-41; 17:24-29; 27:17-35, o sermão de Pedro em Atos 2:14-41;
3:12-26, o discurso do escrivão em Éfeso, Atos 19:35-40, a instrução dos anciãos a Paulo em Atos
21:20-25, 1Coríntios 10:1-14, 2Coríntios 6:14-7:1, 1 e 2Pedro, 1Clemente, as cartas de Inácio de
Antioquia, a epístola de Barnabé e muitos outros.
33. Seguir a teoria do aspecto verbal (cf. Apêndice) não é o mesmo que negar que um evento futuro
possa ser expresso em grego, mas somente que elementos temporais (dêiticos) são pragmáticos e não
semânticos. O contexto das passagens citadas claramente envolve tempo e futuro. Isso é confirmado
pela expressão “εἰς τέλος” (em ambos os textos).
34. As palavras “meio” e “condição” são consideradas intercambiáveis.
Capítulo 3
PRESSUPOSIÇÃO TEOLÓGICA

Não se faz teologia, nem se interpreta (exegese) num vácuo epistemológico.


Todo autor sagrado, à medida que colabora para construção do grande
edifício teológico bíblico, seja como intérprete dos textos que o precedem,
seja como portador de novas revelações, sempre pressupõe conhecimento
teológico comum com seus leitores. Cada livro sagrado é um novo tijolo
colocado sobre fundamentos prévios e comuns.
Pensando especificamente em Hebreus, são muitos os conceitos
teológicos (construídos ou pressupostos) que permeiam a nossa carta-
pregação. O sacerdócio de Cristo, a Nova Aliança, perseverança dos santos,
tipologia do AT e a superioridade de Cristo são alguns exemplos. Um dos
temas teológicos de maior importância desenvolvido em Hebreus é o
aperfeiçoamento de Cristo e dos que o seguem. Em Hebreus, tanto Cristo
(2.10; 5.9; 7.28) como os cristãos são aperfeiçoados (10.14; 11.40; 12.23).
A importância do conceito se manifesta primeiramente no número de
ocorrências dos vocábulos que seguem a raiz τελ-. São três substantivos
(τελειότης [6.1]; τελείωσις [7.11]; τελειωτής [12.2]), um adjetivo (τέλειος
[5.14, 9.11]) e um verbo (τελειόω [2.10; 5.9; 7.19, 28; 9.9; 10.1, 14; 11.40;
12.23]). O conceito está presente não somente em uma porção específica
e/ou isolada do livro, mas ao longo de toda a obra (cf. capítulos 2, 5, 6, 7,
9, 10, 11, 12). Segundo Moisés Silva (1976:60), a alta frequência dos
vocábulos não pode ser explicada como um mero maneirismo; antes,
“sugere que o conceito referido pelos termos estava além da média em
termos de importância para o nosso autor”.
Em segundo lugar, a importância do conceito se manifesta em sua
amplitude e na sua relação com temas de grande valor na carta. Como
veremos abaixo na argumentação, perseverança, santificação e a Nova
Aliança (seus benefícios e superioridade) são tópicos que estão sob o
grande guarda-chuva do aperfeiçoamento de Cristo e de todos que o
seguem. Depois de analisadas as passagens abaixo, concluiremos que
estamos lidando com o tema teológico central dessa obra.
Em terceiro lugar, o entendimento de perfeição é essencial para se
construir alguma conclusão quanto à nossa passagem de Hebreus 6, uma
vez que duas palavras da raiz τελ- estão presentes. Todas as palavras em
5.11-14 visam a exortação em 6.1 – “deixemo-nos levar para o que é
perfeito (τελειότης)”. Segundo nosso texto, a perfeição deveria ser o alvo
ou já era a realidade dos seus leitores. Uma análise específica do conceito
de perfeição em Hebreus é, portanto, um caminho necessário a se seguir.
PROPOSTAS
Segundo Cowan (2012:35), “as interpretações mais influentes da
perfeição de Cristo incluem as visões moral, cúltica, exaltação celestial (ou
escatológica) e vocacional”. Não é nosso objetivo fazer uma análise crítica
de cada visão. Antes, uma concisa explanação sobre cada perspectiva
seguida da análise de cada passagem (a tônica desse capítulo).
A perspectiva moral e ética. A pergunta de Cowan (2012:35) representa o
questionamento mais comum de muitos diante dessa perspectiva: “Como
pode alguém que é dito ser sem pecado (4.15; 7.26; 9.14) se tornar
moralmente perfeito?”. No entanto, é importante reconhecer que dentro da
perspectiva moral temos, sim, aqueles que não defendem que em toda sua
vida Jesus Cristo foi sem pecado como o próprio autor de Hebreus declara
(4.15). Para esses, o questionamento de Cowan faz todo sentido. Outros
(e.g., Dods n.d:265; Westcott 1920:49-50), porém, pensam em um
desenvolvimento moral em sua humanidade. Jesus, então, amadureceu
como uma pessoa humana. Para esses, o desenvolvimento moral não
contradiz sua ausência de pecado.
A Perspectiva cúltica. Devido ao uso no Pentateuco (Ex 29.9, 29, 33, 35;
Lv 8.33; 16.32; 21.10; Nm 3.3) do verbo τελειόω (LXX) ter adquirido uma
nuança técnica cúltica com o sentido de “consagrar” (cf. ACF) para se ter
acesso a presença de Deus (e.g., F. F. Bruce).
Perspectiva de exaltação celestial. Se na perspectiva moral temos Cristo
evoluindo como homem (na encarnação), a perspectiva da exaltação
celestial iguala a perfeição (ou aperfeiçoamento) de Cristo com sua
glorificação.
Perspectiva vocacional. O clássico de David Peterson Hebrews and
Perfection é o grande representante dessa abordagem. Pensando
especificamente no uso do verbo τελειόω, diferente de Ernst Käsemann, por
exemplo, que analisa a perfeição à luz da mitologia gnóstica do “Remidor
Redimido” (cf. Cowan 2012:39), Perterson (1982:47) assegura que
“somente o contexto em geral e o objeto do verbo em particular podem
indicar o sentido particular sobre cada ocasião”.
Segundo essa perspectiva, τελειόω tem o sentido de “qualificar” ou
“fazer completamente adequado”. Para Peterson (1982:73), esse
aperfeiçoamento não diz respeito a um evento único, antes “envolveu toda
uma sequência de eventos: o sofrimento, sua morte redentiva para cumprir
os requerimentos para a expiação perfeita dos pecados e sua exaltação para
glória e honra”.
É importante entender que essas perspectivas não são mutuamente
excludentes. Deve-se entender que o autor de Hebreus tem em mente mais
de uma nuança para o conceito de perfeição. Talvez um dos grandes
problemas de algumas perspectivas acima é restringir a um aspecto somente
um conceito que, por sua riqueza de nuança, não suporta tal circunscrição.
Por essa razão, creio que a perspectiva vocacional é a que representa melhor
a teologia da perfeição de Hebreus.
ANÁLISE DOS TEXTOS
Analisaremos todas as passagens seguindo a ordem estabelecida pelo
próprio documento. Ou seja, começaremos em 2.10 e findaremos em 12.23.
As únicas exceções serão 5.14 e 6.1 – pois estão em nossa passagem alvo.

Hebreus 2.10
Porque convinha que aquele, por cuja causa e por Ἔπρεπεν γὰρ αὐτῷ, διʼ ὃν τὰ πάντα καὶ διʼ
quem todas as coisas existem, conduzindo muitos οὗ τὰ πάντα, πολλοὺς υἱοὺς εἰς δόξαν
filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de ἀγαγόντα τὸν ἀρχηγὸν τῆς σωτηρίας
sofrimentos, o Autor da salvação deles. (ARA) αὐτῶν διὰ παθημάτων τελειῶσαι. (NA28)

Exposição
Nosso versículo (2.10) faz parte da passagem que começa no v. 5,
coincidindo seu final com o do seu capítulo (2.18). Usando várias
expressões sinônimas (e.g., “feito menor que os anjos” [2.9] comp.
“participação comum de carne e sangue” [2.14]), nosso autor enfatiza os
seguintes temas: encarnação, morte e glória de Cristo. A forma como a
obra vincula os temas (e.g., relação de causa e propósito) nos impulsiona a
concluir que eles não podem ser considerados separadamente.
Chamam-nos atenção as várias sentenças de propósito (ὅπως, ἵνα) ao
longo da passagem. Em 2.9, por exemplo, o propósito (ὅπως) da
humilhação (“feito menor que os anjos”) de Jesus foi “provar a morte por
todos” (ὑπὲρ παντὸς γεύσηται θανάτου). Nesse verso, é-nos dito que a
glória e a honra (palavras chave na citação do Salmo 8 nos versos prévios)
de Cristo se deram exatamente por causa (διὰ) da sua morte. Em 2.14-15, a
morte novamente é colocada como propósito (ἵνα) da humilhação-
encarnação de Cristo – “a participação (μετέχω) no sangue e na carne”. Se
em 2.9 sua morte o levou à glória e à honra, aqui, igualmente pela (διὰ)
morte (θάνατος), ele destruiu (καταργέω) o Diabo. Temos, portanto,
novamente a sequência: humilhação (encarnação e morte) e glória.
Em 2.17, encontramos novamente a encarnação, agora em nova
terminologia (“tornar-se semelhantes aos irmãos”), tendo como alvo e/ou
propósito (ἵνα) o exercício da misericórdia por meio da sua morte
expiatória-propiciatória (ἱλάσκομαι). Aqui nos é dito que isso faz parte do
seu ministério como sacerdote fiel – tema desenvolvido logo em seguida na
carta.
Não se pode esquecer que o processo de aperfeiçoamento é considerado
“necessário” (πρέπω). Ficamos com a explicação de Farrar (1893:48-9) de
que o dever diz respeito a uma aptidão moral inerente de Deus.
Quanto à relação e os papéis de Deus Pai e de Cristo nesse processo
(chamado de aperfeiçoamento) que envolve os sofrimentos de Cristo e o
acesso do pecador à glória, precisamos analisar de perto algumas questões
gramaticais.

1. O particípio ἀγαγόντα (trazendo) concorda com o sujeito (αὐτῷ [ele]


no v. 10 referente a θεοῦ [Deus] no v.9) do infinitivo (Dods s.n:265).
Segundo McKay (1994:55): “Em muitas circunstancias o infinitivo é
usado sem qualquer menção específica do seu ‘sujeito’ [...] ou porque
o sujeito é geral [...] ou porque é suficientemente claro pelo contexto”.
Em nosso caso, a indicação é contextual.
2. O título dado a Cristo (ἀρχηγός – [“autor” NVI; “príncipe” ACF) traz
a ideia de movimento (Guthrie 1998:107), unindo assim o sentido com
o ato de Deus conduzir. A NTLH, contudo, entende que o particípio
ἀγαγόντα concorda com o ἀρχηγός. Tal julgamento é completamente
compreensível uma vez que ambos possuem o mesmo número, caso e
gênero. Porém, os conduzidos são chamados “filhos” e não “irmãos”,
como são denominados os cristãos nesse parágrafo.
Em suma: o contexto nos direciona a relacionar o particípio com αὐτῷ,
ou seja, a Deus. Deus, portanto, é quem conduz muitos filhos à glória. Para
isso, ele aperfeiçoou seu Filho.
O aperfeiçoamento está relacionado à glória, ou seja, à ascensão e à
entronização (v. 5-9). Como um novo êxodo, Deus leva (ἄγω) através do
seu “pioneiro”. Porém, agora com um novo “guia” ou “pioneiro” (ἀρχηγός).
Novamente, é importante ressaltar que não se pode confundir a
entronização com o próprio aperfeiçoamento. Trata-se, pois, de um conceito
abrangente que envolve sua encarnação, sofrimento-morte e entronização e
seus objetivos.

Síntese
(1) O autor do aperfeiçoamento é o próprio Deus; (2) o aperfeiçoamento
envolve Deus levar muitos para a glória através de Jesus (pioneiro – guia);
(3) o aperfeiçoamento se deu “mediante sofrimento” (διὰ παθημάτων) – que
incluiu sua morte1. Aqui é importante ressaltar que não podemos confundir
o aperfeiçoamento com o sofrimento em si e que o sofrimento-morte não
foi meramente a preliminar do aperfeiçoamento, mas faz parte do processo
(Peterson 1982:68).

Hebreus 5.9
[…] e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da καὶ τελειωθεὶς ἐγένετο πᾶσιν τοῖς
salvação eterna para todos os que lhe obedecem,[…] ὑπακούουσιν αὐτῷ αἴτιος σωτηρίας
(ARA) αἰωνίου, (NA28)

Exposição
O tema predominante na passagem é o sacerdócio de Cristo. O assunto
foi introduzido no capítulo 2 (considerado acima). Os capítulos 3 e 4
revelam a ineficácia do sistema antigo (primeira aliança), revelando que ele
não afetava o coração (cf. 3.8, 10, 12, 15; 4.7) como se dá com Cristo no
estabelecimento da Nova Aliança (8.1; 10.16). Dessa forma, nosso texto é
uma espécie de dobradiça ou transição onde a ineficácia do sistema antigo o
prefacia enquanto que o tema da eficácia da aliança realizada por Cristo o
segue.
No capítulo 3, o autor estabelece um claro contraste (πλείονα…παρά)
entre a fidelidade de Cristo e a de Moisés. Ou seja, entre a Nova Aliança e a
Primeira Aliança. O primeiro foi fiel sobre a casa (ἐπὶ τὸν οἶκον) como
servo (ὡς θεράπων), enquanto o outro na casa (ἐν ὅλῳ τῷ οἴκῳ) como filho
(ὡς υἱὸς).
A pergunta no verso 16 (“Não foram, de fato, todos os que saíram do
Egito por intermédio [διά] de Moisés?”) mostra que a liderança de Moisés
não garantiu a fidelidade-perseverança do povo. Por implicação do
contraste já estabelecido e pelas palavras colocadas nos capítulos 8-10,
podemos assegurar que o mesmo não se dará com os que estão em Cristo,
uma vez que, diferente da geração sob Moisés, esses receberam as boas
novas com fé (4.3).
O último parágrafo do capítulo quatro termina com uma exortação
extraída das verdades quanto ao sacerdócio de Cristo. Ela é repetida em
10.22-23 formando uma inclusão. Quanto ao conteúdo da exortação:
guardar firme a confissão e se aproximar do trono da graça. Segundo nosso
autor, podemos nos aproximar com confiança de que receberemos graça e
misericórdia porque temos um sumo sacerdote que compadece das nossas
fraquezas (4.15).
A partir do verso 1 do capítulo 5, o autor passa a explicar a função do
sumo sacerdote segundo o sistema antigo. O contraste entre Jesus e o
sistema antigo é novamente posto. No verso 5, ele estabelece uma
comparação entre Cristo e o sumo sacerdote: ambos igualmente (οὕτως καὶ)
não tomam essa honra para si mesmos (οὐχ ἑαυτῷ). É preciso ser chamado
(καλούμενος) por Deus. Jesus, pois, como aqueles que os precedeu, foi
vocacionado ao sacerdócio. A razão da sua vocação é a mesma para o seu
aperfeiçoamento.
O particípio nominativo τελειωθεὶς (aperfeiçoado) é alvo de nossa
atenção nesse ponto. Junto com outro particípio, προσαγορευθεὶς
(designado), ambos possuindo a mesma categoria gramatical (nominativo,
aoristo, passivo e singular), modifica o verbo principal μανθάνω
(“aprender”) nos revelando o resultado (O’Brien 2010:201). Assim, o
resultado do aprendizado que se deu pelo sofrimento e obediência de Cristo
é a perfeição (v.9) e a nomeação como Sumo Sacerdote (v.10).2

ORAÇÃO PRINCIPAL PARTICÍPIOS (RESULTADO2)

ἔμαθεν ἀφʼ ὧν ἔπαθεν τὴν ὑπακοήν τελειωθεὶς ἐγένετο


Ele aprendeu a obediência pelo que padeceu Aperfeiçoado

προσαγορευθεὶς ὑπὸ τοῦ θεοῦ


Designado por Deus

Novamente, assim como foi destacado quando lidamos com o primeiro


texto, não se pode confundir a obediência com a perfeição em si. Ela foi a
causa para a perfeição (resultado). As palavras de Peter O’Brien (2010:202
– itálico nosso) sintetizam bem nossos dois primeiros textos:

Como na referência anterior (2.10), a perfeição de Cristo é melhor entendida em termos


vocacionais, pois ela descreve o processo pelo qual ele foi feito completo ou completamente
equipado para seu ofício. Aqui [5.9] seu aperfeiçoamento é resultado do aprendizado
obediente através do que ele sofreu.

Síntese
Findaremos essa porção ressaltando os elementos de congruência entre o
que temos no capítulo 2 e na passagem em questão que indicam
coesividade: (1) assim como em 2.10, Deus é o autor do aperfeiçoamento
(voz ativa); em 5.9, a voz passiva reforça a ideia de que Cristo sofre a ação
de ser aperfeiçoado. (2) Aqui, nosso autor relaciona a humanidade (ἐν ταῖς
ἡμέραις τῆς σαρκὸς αὐτοῦ) e o sofrimento (πάσχω) de Cristo ao seu
sacerdócio. (3) Novamente, temos uma relação direta e próxima entre o
sacerdócio de Cristo e o aperfeiçoamento. (4) Outro paralelo entre os dois
primeiros textos está nos títulos dados a Jesus Cristo. Em 2.10, Jesus é
denominado de τὸν ἀρχηγὸν τῆς σωτηρίας (autor da salvação), e em 5.9,
αἴτιος σωτηρίας (fonte de salvação). Todos os dois títulos são qualificados
(genitivos) pelo mesmo substantivo (σωτηρία). No primeiro, temos a ideia
de conquista; no outro, a ideia de causa ou fonte. “Embora aqui [em 5.9] a
imagem seja menos dinâmica, a realidade para qual aponta é a mesma”
(Attridge 1989:154).

Hebreus 7.11, 19, 28


Se, portanto, a perfeição houvera sido mediante o Εἰ μὲν οὖν τελείωσις διὰ τῆς Λευιτικῆς
sacerdócio levítico (pois nele baseado o povo ἱερωσύνης ἦν, ὁ λαὸς γὰρ ἐπʼ αὐτῆς
recebeu a lei), que necessidade haveria ainda de que νενομοθέτηται, τίς ἔτι χρεία κατὰ τὴν
se levantasse outro sacerdote, segundo a ordem de τάξιν Μελχισέδεκ ἕτερον [ἀνίστασθαι]
Melquisedeque, e que não fosse contado segundo a ἱερέα καὶ οὐ κατὰ τὴν τάξιν Ἀαρὼν
ordem de Arão? […] (pois a lei nunca aperfeiçoou [λέγεσθαι] […] οὐδὲν γὰρ ἐτελείωσεν ὁ
coisa alguma), e, por outro lado, se introduz νόμος - ἐπεισαγωγὴ δὲ κρείττονος
esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus. ἐλπίδος διʼ ἧς ἐγγίζομεν τῷ θεῷ. […] ὁ
[…] Porque a lei constitui sumos sacerdotes a νόμος γὰρ ἀνθρώπους καθίστησιν
homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do ἀρχιερεῖς ἔχοντας ἀσθένειαν, ὁ λόγος δὲ
juramento, que foi posterior à lei, constitui o Filho, τῆς ὁρκωμοσίας τῆς μετὰ τὸν νόμον υἱὸν
perfeito para sempre. (ARA) εἰς τὸν αἰῶνα τετελειωμένον. (NA28)

Exposição
Nossos versos fazem parte de uma longa porção onde novamente o
assunto é o sacerdócio de Cristo. É o nosso terceiro texto analisado, e o
tema aperfeiçoamento novamente se une com o sacerdócio de Cristo. Como
foi feito com a pessoa de Moisés no capítulo 3, novamente temos uma
comparação – agora entre Melquisedeque (ou a ordem de Melquisedeque) e
Levi (ou a ordem de Arão). O primeiro abençoou o segundo. Ou, nas
palavras do próprio autor de Hebreus, “o menor é abençoado pelo maior”
(7.7). Além disso, diferente do sistema antigo, que foi constituído conforme
a lei de mandamento carnal, a ordem de Melquisedeque foi conforme o
poder de vida indissolúvel (v.16).
A superioridade da ordem de Melquisedeque não se dá somente por ele
ter abençoado Abraão, mas porque não foi por meio (διά) do sacerdócio
levítico que a perfeição (τελείωσις) veio. Essa ênfase na ineficácia do
sistema levítico é apresentada e desenvolvida especificamente entre o verso
11 e o verso 19. Aqui temos uma inclusão. Tanto no começo como no fim
da passagem nos é informado que o sistema antigo nunca aperfeiçoou nada.
Quanto à natureza da perfeição, nosso segundo verso (7.19) tem muito a
nos dizer: (1) a perfeição se dá porque no novo sistema somos introduzidos
a uma esperança superior (κρείττονος ἐλπίδος). É através (διά) dessa
mesma esperança que nos “achegamos a Deus”. (2) A perfeição em questão
claramente não é a perfeição de Cristo, mas a nossa.
No nosso último verso (7.28) novamente temos uma referência à
perfeição de Cristo. Neste ponto da argumentação (20-28) fica indicada
uma relação entre a perfeição de Cristo e a nossa. O tema aproximação é
repetido no verso 24. Através (διά) de Cristo nós podemos nos aproximar
de Deus com a certeza de salvação (σῴζω) eterna, exatamente porque ele
intercede por nós sempre (πάντοτε). Diferente dos sacerdotes do sistema
antigo, marcados pela fraqueza (contraste estabelecido ao longo da
passagem), Cristo foi aperfeiçoado para sempre (εἰς τὸν αἰῶνα
τετελειωμένον).
É interessante observar como a eternidade do sacerdócio é destaque
nessa sessão (cf. v.3, 8,16-17, 23-25). Assim como no capítulo 2 e 5, onde a
perfeição de Cristo está relacionada ao seu sacerdócio, o mesmo acontece
também aqui. Porém, aqui a eternidade do sacerdócio é o foco (Peterson
1982:119). É importante considerar também que a eternidade do sacerdócio
de Cristo não se dá somente porque ele intercede sempre. O verso 27 nos
lembra de que sua obra na cruz é a base do seu sacerdócio eterno.
Síntese
Findamos com quatro verdades importante sobre o aperfeiçoamento: (1)
novamente, a perfeição de Cristo é passiva; (2) o aperfeiçoamento de Cristo
e o nosso estão diretamente relacionados; (3) há uma relação direta entre o
sacerdócio superior de Cristo e o aperfeiçoamento dele e o nosso; e, (4) esse
aperfeiçoamento tem um marco histórico orientador – se deu depois da Lei.

Hebreus 9.9
É isto uma parábola para a época presente; e, segundo ἥτις παραβολὴ εἰς τὸν καιρὸν τὸν
esta, se oferecem tanto dons como sacrifícios, embora ἐνεστηκότα, καθʼ ἣν δῶρά τε καὶ θυσίαι
estes, no tocante à consciência, sejam ineficazes para προσφέρονται μὴ δυνάμεναι κατὰ
aperfeiçoar aquele que presta culto […]. (ARA). συνείδησιν [τελειῶσαι] τὸν
λατρεύοντα, […] (NA28)

Exposição
A seção onde nosso verso se encontra começa com uma palavra sobre o
tabernáculo. Suas duas partes são descritas (primeiro e segundo tabernáculo
[v. 6, 7]) e há uma palavra sobre o ministério dos sacerdotes (somente no
primeiro tabernáculo) e do Sumo sacerdote (no segundo tabernáculo).
O verso em questão (v. 9) começa com o pronome ἥτις (que). A pergunta
aqui é: a que se refere o pronome? Ou, sendo mais específico: o que é uma
“parábola (παραβολή) para a época presente”? Temos duas opções: (1) uma
referência a todo o sistema antigo – ou seja, uma referência mais ampla ao
tema desenvolvido em todos os versos anteriores. Ou, (2) uma referência
mais específica ao “primeiro tabernáculo” como colocado no verso
imediatamente anterior. A leitura mais natural, uma vez que πρώτης σκηνῆς
(primeiro tabernáculo) concorda com ἥτις (que) em gênero e número, é que
temos uma referência ao “primeiro tabernáculo”. Outros exemplos
semelhantes no próprio documento corroboram nossa conclusão: σωτηρίας
→ ἥτις (2.3) διαθήκης μεσίτης → ἥτις (8.6) σκηνὴ ἡ πρώτη → ἥτις (9.2).
Entende-se que somente elementos contextuais fortes deveriam nos levar a
outro caminho – o que não é o caso do nosso texto.
Outro questionamento igualmente importante é: a que tempo específico a
expressão “época presente” (τὸν καιρὸν τὸν ἐνεστηκότα) se refere? Aos
dias do autor? Ao tempo simultâneo com o sistema antigo de adoração
(Guthrie 1998:300)? E ainda: qual sua relação de “época presente” com a
expressão aos “dias de reforma” (v.10)? A “época presente” é a mesma
“época de reforma”?
Como o “tempo presente” é visto de forma negativa – é o tempo da
ineficácia quanto à purificação da consciência; e como os dons e sacrifícios
oferecidos no “primeiro tabernáculo” não são eficazes no aperfeiçoamento
da consciência, pois nele temos somente “regulamentações e/ou ordenança
da carne” (δικαιώματα σαρκὸς) – regras externas – em contraste com o
sacrifício de Cristo (cf. 9.14), é mais natural entendermos o “tempo
presente” como uma referência ao tempo do sistema da Antiga Aliança.
“Assim a sala externa do tabernáculo representa ‘esta era’. A nova era de
Cristo focaliza na sala interna, o lugar da presença de Deus” (Guthrie
1998:301). Dessa forma, se em Paulo a “velha era” é má, em Hebreus
temos uma perspectiva diferente: a velha era é a velha aliança em sua
ineficácia à luz da obra de Cristo. Enquanto Paulo tem a história universal
em mente, o nosso autor misterioso tem a história da redenção vista em
duas fases, tendo como centro a morte e exaltação de Cristo.
Faz-se necessária uma breve digressão para a análise de dois vocábulos:
“consciência” (συνείδησις) e parábola (παραβολή). Quanto ao primeiro, o
vocábulo aparece cinco vezes em Hebreus. Além de 9.9, temos um paralelo
em 9.14. Em 10.2 e 10.22, como também em 9.9 e 9.14, o vocábulo está
relacionado ao conceito de “purificação”. Em 13.18, a consciência é
qualificada como “boa” (tornando-se a única referência positiva quanto à
consciência) e está relacionada ao bom proceder. Assim como uma
consciência purificada capacita as pessoas a aproximarem ou servirem a
Deus, a boa consciência capacita ao bom proceder. Como o vocábulo tem
uma boa consistência em toda a obra, seu uso em determinado ponto pode
nos ajudar a entendê-lo em outro.
Segundo Cowan (2012:84), o vocábulo era “usado tanto para um sentido
não-moral (e.g., ciência, autoconsciência) como no sentido moral
(consciência das ações – geralmente má)”. Como há uma relação estreita
entre o sacrifício de Cristo com a limpeza e/ou purificação, somos
direcionados a nuança moral do vocábulo.
Cowan (2012:84) ainda nos alerta para o fato de que o conceito de uma
consciência acusando e culpando está presente no AT através da referência
ao coração ferido. O próprio livro de Hebreus estabelece essa relação em
10.22 quando “coração” e “consciência” são nitidamente conectados. Isso
nos leva de volta para o capítulo anterior e os termos da Nova Aliança que
envolvem a inscrição da Lei no coração (8.10).
Quanto à παραβολή, o vocábulo ocorre cinquenta vezes no NT. Com
exceção de 9.9 e 11.19, todas as ocorrências estão nos Evangelhos. Segundo
Snodgrass (em Reid 2012:980), “em geral, distinguem-se quatro formas de
parábolas: analogia3, história-modelo4, parábolas e alegoria”. Muitos
questionam tal categorização. Por exemplo, a distinção entre parábola e
alegoria não parece ser tão clara. O’Brien (2010:314), contudo, lembra-nos
de que aqui o vocábulo não quer dizer “parábola narrativa” (todas as demais
ocorrências no NT), mas “símbolo” ou comparação de coisas onde a
semelhança não é óbvia. Como figura, ela tem um tempo limite – até
(μέχρι) a reforma.
Voltando ao tema da perfeição, o verso 10 nos ajuda muito no
entendimento desse conceito. Ele relaciona os conceitos de purificação
(consciência limpa), ineficácia (do antigo sistema) e perfeição. A relação
entre esses conceitos é extremamente esclarecedora. Peterson (1982:134 –
itálico nosso) afirma que “perfeição tão vagamente especificada em 7.11, 19
é aqui definida como tendo especial atenção à consciência da humanidade”.
Não há dúvidas de que perfeição aqui envolve purificação (Lane 1991
2:224). Ou seja, por não purificar a consciência do adorador, o sistema
antigo é ineficaz para nos aproximar de Deus. Aqui, pois, o
aperfeiçoamento do adorador, como na passagem anterior, está relacionado
à aproximação de Deus. O que fica claro é que a consciência não purificada
é um obstáculo à verdadeira adoração (Lane 1991 2:225) e que o sistema
antigo não resolve o problema. Em suma:

Aperfeiçoar o crente no tocante a consciência, então, inclui limpeza da consciência e


subsequente renovação do coração em relação a Deus. Deve-se ser cuidadoso para não igualar
“aperfeiçoar” com “limpar” em 9.9 e 9.14. “Aperfeiçoar o adorador” κατὰ συνείδησιν não é
meramente limpar a τὴν συνείδησιν. Como notado em 7.19, o aperfeiçoamento do crente tem
a ver com sua habilidade de se aproximar de Deus […]. Aperfeiçoar o adorador no tocante a
consciência é limpar a consciência e acarreta numa verdadeira relação com Deus que resulta
em um culto sincero a ele. Em outras palavras, esta perfeição dos crentes cumpre a promessa
da Nova Aliança de escrever a lei de Deus nos seus corações (Cowan 2012:87 – itálico do
autor).

O paralelo no verso 14 também nos ajuda a entender mais a natureza da


perfeição. Aqui aprendemos que a purificação da consciência é efetuada por
Cristo. Novamente, o conceito “purificação da consciência” está
relacionado a “servir” (ou “adorar” [λατρεύω]) a Deus. Sendo mais
específico, a purificação visa (εἰς) o serviço ou adoração.

Síntese
(1) Nosso texto segue a tônica da terceira passagem analisada: a
ineficácia do sistema antigo para o aperfeiçoamento do adorador – daquele
que se aproxima de Deus; (2) novamente, os temas sacerdócio e
aperfeiçoamento se unem; (3) o aperfeiçoamento do crente o capacita a se
aproximar de Deus cumprindo as promessas da Nova Aliança.

Hebreus 10.1, 14
Ora, visto que a lei tem sombra dos bens Σκιὰν γὰρ ἔχων ὁ νόμος τῶν μελλόντων
vindouros, não a imagem real das coisas, nunca ἀγαθῶν, οὐκ αὐτὴν τὴν εἰκόνα τῶν
jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com πραγμάτων, κατʼ ἐνιαυτὸν ταῖς αὐταῖς
os mesmos sacrifícios que, ano após ano, θυσίαις ἃς προσφέρουσιν εἰς τὸ διηνεκὲς
perpetuamente, eles oferecem. […] Porque, com οὐδέποτε δύναται τοὺς προσερχομένους
uma única oferta, aperfeiçoou para sempre τελειῶσαι. […] μιᾷ γὰρ προσφορᾷ
quantos estão sendo santificados (ARA). τετελείωκεν εἰς τὸ διηνεκὲς τοὺς
ἁγιαζομένους. (NA28)

Exposição
No décimo capítulo, temos a última unidade que desenvolve o tema do
sacerdócio de Cristo. Até o verso 18, temos o gênero de instrução, e nos
versos 19ss, temos a penúltima seção de exortação-advertência. Nessa seção
de instrução, temos a culminação de toda a discussão sobre a superioridade
do sacerdócio de Cristo e da oferta da Nova Aliança.
Assim como no capítulo anterior, o contraste entre o sacrifício levítico e
oferta de Cristo é repetido, agora, com mais intensidade. Novamente, o
texto clássico do profeta Jeremias quanto à Nova Aliança é citado formando
uma inclusão com o capítulo 8. De fato, o tema do sacerdócio é fechado
exatamente nessa seção.
A ligação entre a Nova Aliança e o aperfeiçoamento é estabelecida
claramente nos últimos versos instrutivos. Sobre a citação do texto clássico
acerca da Nova Aliança (Jeremias 31) e o uso de “também” no verso 15,
Guthrie (1998:330 – itálico nosso) nos ajuda:

A palavra ‘também’ alude a citação do Salmo 40.7-9 em Hebreus 10.5-7 e ao comentário do


10.8-14, em que Jesus proclamou a ineficácia do sistema da Antiga Aliança e o perdão dos
pecados. Além disso, Salmo 110.1 indica a finalidade do sacrifício do Filho (Hb 10.11-14).
Numa maneira similar, o Espírito também proclama a necessidade de uma Nova Aliança e o
perdão decisivo dos pecados.

Ainda pensando na estrutura de nossa passagem: seguindo Koester


(2001:436-442) e Lane (1991 2:258), Peter O’Brien (2010:344) entende que
nosso parágrafo pode ser divido em quatro seções e é arranjado numa
simetria concêntrica. Assim, temos a Lei e a Nova Aliança no primeiro e no
último parágrafo, e a superioridade do sacrifício de Cristo e o sacerdócio
levítico no último.

A Lei

B Nova Aliança

B’ Superioridade de Cristo

A’ Sacerdócio Levítico

O primeiro verso ecoa as palavras de 8.5: “…os quais ministram em


figura e sombra das coisas celestes, assim como foi Moisés divinamente
instruído”. Peter O’Brien (2010:345) nos lembra que “sombra aqui não se
refere a uma cópia da ‘ideia’ celestial e eterna, em um sentido platônico,
mas a uma prefiguração do que é real. O termo eikōn fala de ‘encarnação’
ou ‘real manifestação’ das realidades em questão”. Assim, a relação
sombra–imagem é temporal e não espacial.
As “coisas boas que hão de vir” (τῶν μελλόντων ἀγαθῶν) representam as
bênçãos da Nova Aliança. Em 9.11, o Senhor Jesus é chamado de sumo
sacerdote “dos bens futuros” (ARC – ἀρχιερεὺς τῶν γενομένων ἀγαθῶν).
Os versos que seguem revelam esses bens. São eles: eterna redenção (9.12),
consciência purificada (9.14), herança eterna (9.15) e aniquilação do pecado
(9.26).
Novamente os temas aproximação (προσερχομένους5) e perfeição
reaparecem vinculados. Nem a Lei, nem o sacerdócio, nem os sacrifícios
(ofertas) são eficazes na aproximação de Deus. O verso 14 assegura que,
em Cristo, temos tal perfeição.
A passagem ainda relaciona os conceitos de santificação, limpeza e
perfeição (10.14). A relação entre santidade e perfeição já foi colocada em
2.11 e a relação entre limpeza, perfeição e santificação já foi colocada em
9.13-14. Há também uma ligação entre a perfeição providenciada por Cristo
e a Nova Aliança.
Há muita discussão quanto à natureza da santificação em Hebreus.
Ficamos com o julgamento de Cowan (2012:103):

Hebreus não apresenta a santificação que Cristo realiza nos crentes como “progressiva”. Nós
fomos santificados por meio da oferta do corpo de Cristo de uma vez por todas (10.10). De
acordo com 13.12, ele sofreu fora do portão “a fim de santificar o povo através do seu próprio
sangue”.

A expressão “única oferta” (ARA – μιᾷ προσφορᾷ) e “os que são


santificados” (ARC) nos remete ao verso 10, onde a oferta é explicitada
como a “oferta do corpo de Cristo” (τῆς προσφορᾶς τοῦ σώματος Ἰησοῦ
Χριστοῦ), também denominada de “sacrifício” (θυσία) no verso 12, e onde
no verso 10 nos é dito que nossa santificação se deu através (διά) do
sacrifício.

Síntese
(1) É Cristo quem aperfeiçoa e o objeto dessa perfeição é seu povo. Ele
não aperfeiçoa o plano de Deus, mas seus irmãos; (2) o meio pelo qual
Cristo aperfeiçoa seu povo é pelo seu próprio sacrifício; (3) seguindo o
julgamento feito na segunda observação, tal perfeição está localizada no
passado, uma vez que foi realizada no sacrifício único de Cristo (ἐφάπαξ –
v. 10); (4) existe uma relação entre a santificação e o aperfeiçoamento; (5)
aperfeiçoamento envolve a qualificação (ou a habilitação) do crente a se
aproximar de Deus uma vez que, em Cristo, as promessas da Nova Aliança
(“coisas boas que hão de vir” – v. 1) são realizadas; (6) há uma relação
estreita entre a Nova Aliança e o aperfeiçoamento – o que é extremamente
importante quando lidamos com Hebreus 6.

Hebreus 11.40; 12.2a


[…] por haver Deus provido coisa superior a nosso […] τοῦ θεοῦ περὶ ἡμῶν κρεῖττόν τι
respeito, para que eles, sem nós, não fossem προβλεψαμένου, ἵνα μὴ χωρὶς ἡμῶν
aperfeiçoados […] olhando firmemente para o τελειωθῶσιν. […] ἀφορῶντες εἰς τὸν τῆς
Autor e Consumador [ou aperfeiçoador] da fé πίστεως ἀρχηγὸν καὶ τελειωτὴν Ἰησοῦν
[…]. (ARA) […]. (NA28)

Exposição
Consideraremos os dois textos por entender que há uma relação estreita
entre eles. Essa proximidade se dá tanto espacialmente como pela natureza
inferencial estabelecida pela conjunção que prefacia 12.1 – Τοιγαροῦν6.
Sobre a superioridade referida no texto, destaque para o comparativo
κρεῖττόν (melhor) tão comum no documento. Ele é usado para nos mostrar
que Jesus é melhor que os anjos (1.3-4), que o sangue de Jesus é melhor que
o de Abel (12.24), que temos uma esperança melhor (7.19), uma melhor
aliança (7.22; 8.6), uma promessa melhor (8.6), um melhor sacrifício (9.23),
um melhor patrimônio (10.34) e uma melhor ressurreição (11.35). Tal
consideração revela a natureza coesa do conceito ao longo da obra. Isso, por
sua vez, leva-nos a concluir que somente um forte apelo contextual nos
direcionaria a uma ideia distinta. Portanto, a superioridade aqui referida faz
eco às referências acima. O mesmo se aplica ao conceito de perfeição.
Consideraremos 11.40, pois, à luz do que aprendemos nos capítulos 9-10.
A relação entre 9.15 e nosso texto é próxima e providencia
esclarecimentos pertinentes. Em 9.15, temos: “ele morreu como resgate
pelas transgressões cometidas sob a primeira aliança”. O autor nos lembra
de que a morte de Cristo tinha o objetivo (ὅπως) de fazer com que aqueles
que estavam “sob a primeira aliança” recebessem “herança eterna” (αἰωνίου
κληρονομίας).
Contudo, em 11.40 há uma distinção entre aqueles que estavam sob a
primeira aliança e os que testemunharam o estabelecimento da Nova
Aliança. O autor declara que todas as personagens alistadas no capítulo 11
não obtiveram o aperfeiçoamento “sem nós”. A explicação desse
“insucesso” (em não obterem o que tinham esperado) não está em algum
pecado da geração antiga, mas no próprio plano de Deus. Foi assim que o
Senhor propôs (προβλέπω) e objetivou (ἵνα). Em suma, a eles foi negada a
experiência histórica da vinda do Messias e os benefícios decorrentes
garantidos. A perfeição, portanto, tem um referencial histórico, como
vimos anteriormente. Daí a razão de Moisés Silva (1976: 67 – itálico nosso)
declarar:

A perfeição da consciência humana (9.9; 10.1, 14) não é uma referência ao perdão ou aptidão
para se aproximar de Deus, coisa que os santos do Antigo Testamento experimentaram (cf. Sl
32 e Rm 4), mas o regozijo do tempo do cumprimento, a nova época introduzida pelo Messias
através da sua exaltação.

Certamente, a perfeição do cristão não pode ser resumida, como coloca


Moisés Silva, ao regozijo do novo tempo. Ela engloba, sim, o perdão, o
acesso a Deus, o aperfeiçoamento de Cristo, seu sacerdócio, oferta e, como
nosso texto destaca, o aspecto histórico de cumprimento. As palavras de
Peterson (1982: 158 – itálico nosso) são pertinentes o suficiente para
justificar a longa citação que segue. Elas contemplam com mais
propriedade o caráter complexo do conceito teológico de perfeição em
Hebreus, bem como dos limites do nosso conhecimento sobre a geração do
AT:

Se em seu contexto 11.40 coloca ênfase na realização final do relacionamento com Deus e
10.14 coloca ênfase na limpeza e santificação disponível aos crentes no presente, isso não
implica em uma dicotomia no pensamento do nosso escritor. O sacrifício de Cristo alcança
tudo que é necessário para o gozo da bênção escatológica (τελείωσις): purificação,
santificação e glorificação […] isso não nos permite afirmações seguras acerca do presente
estado desses homens e mulheres de fé.

A denominação de Cristo em 12.2 como “aperfeiçoador” (τελειωτὴν)


pressupõe o que já foi colocado acima, bem como reforça a relação entre a
perfeição de Cristo com a nossa. A perfeição realizada por Cristo inclui a
glorificação garantida aos crentes. Assim, “a experiência imediata que o
cristão tem de Deus é a garantia de sua transferência definitiva para a
presença real de Deus na cidade celestial” (Peterson 1982: 157 – itálico do
autor).

Síntese
(1) Cristo é o nosso aperfeiçoador; (2) ele aperfeiçoou as pessoas que
viviam nos dias em que a Antiga Aliança estava em voga; (3) todo processo
de aperfeiçoamento (de Cristo e dos seus) se deu na história – encarnação,
morte, ressurreição e ascensão; (4) a geração que seguiu o “evento Jesus
Cristo” usufruiu de privilégios dantes não conhecidos (as bênçãos da Nova
Aliança)

Hebreus 12.23
[…] e igreja dos primogênitos arrolados nos καὶ ἐκκλησίᾳ πρωτοτόκων ἀπογεγραμμένων
céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos ἐν οὐρανοῖς καὶ κριτῇ θεῷ πάντων καὶ
dos justos aperfeiçoados, […] (ARA) πνεύμασι δικαίων τετελειωμένων (NA28)

Exposição
A passagem do nosso último verso se encontra entre os versos 18 e 24.
Novamente temos aqui um contraste entre a Nova Aliança e a Antiga
Aliança (Οὐ γὰρ προσεληλύθατε no v. 18 e ἀλλὰ προσεληλύθατε no v. 22).
Do mesmo modo, o tema aproximação de Deus é a pauta da pregação. Já
aprendemos que esse tema é chave na grande porção marcada pela inclusão
de 4.16ss e 10.19-25 e como ele está vinculado com a Nova Aliança, bem
como à temática da perfeição.
O autor começa relembrando um evento específico na história da
redenção: o encontro do povo de Israel no Sinai depois da saída do Egito.
São alistados setes sinais marcantes daquele encontro. Esses sinais,
diferente do que temos realizado em Cristo, não aproximaram as pessoas de
Deus. Aliás, até mesmo o mediador do pacto do Sinai se sentiu “apavorado
e trêmulo” (ἔκφοβός εἰμι καὶ ἔντρομος).
Em contraste com o Sinai, a realidade depois que a Nova Aliança foi
estabelecida é que já chegamos no Monte Sião. O ambiente de terror foi
substituído por festa (πανήγυρις cf. BDAG:754) e a distância por
aproximação (προσέρχομαι).
Ao se referir ao ponto aonde chegamos (Σιὼν ὄρει – Monte Sião), o autor
expõe uma sequência de dativos em paralelo. Quanto à relação entre eles,
Attridge (1989:375) entende que:

O primeiro e o segundo par tem um elemento aposicional. No primeiro par, Jerusalém se


encontra em aposição com o segundo item. No segundo par, a ordem é inversa e “assembleia
festiva” está em aposição com o primeiro item.

Segue uma expressão gráfica das conclusões de Attridge:

Primeiro par Σιὼν ὄρει Item 1


Monte Sião

καὶ πόλει θεοῦ ζῶντος, Item 2


Cidade do Deus vivo

Aposição Ἰερουσαλὴμ ἐπουρανίῳ


Jerusalém celestial

Segundo par καὶ μυριάσιν ἀγγέλων Item 1


Miríade de anjos

Aposição πανηγύρει
Alegre reunião

καὶ ἐκκλησίᾳ
Assembleia

πρωτοτόκων ἀπογεγραμμένων ἐν οὐρανοῖς Item 2


Primogênitos arrolados nos céus
Itens não καὶ κριτῇ θεῷ πάντων
pareados e ao juiz de todos

καὶ πνεύμασι δικαίων τετελειωμένων


e aos espíritos dos justos aperfeiçoados

A despeito de μυριάσιν ἀγγέλων estar em paralelo com ἐκκλησίᾳ, não


implica necessariamente que temos aqui uma relação sinônima. Entende-se
que a descrição genitiva (“Primogênitos arrolados nos céus” – item 2) que
segue ἐκκλησίᾳ não se aplica a anjos. A expressão “primogênito”
(πρωτοτόκων), por exemplo, remete-nos a figura de Esaú no verso 16. A
rejeição da primogenitura é equiparada com a rejeição da bênção. Assim, a
aplicação da palavra aos que não rejeitam a bênção não força, em nada, o
contexto.
Quanto à última linha do texto, segundo Lane7 (1991 2:470), a expressão
“espírito dos justos” (πνεύμασι δικαίων) na literatura apocalíptica judaica é
uma expressão idiomática para “piedosos mortos”. Esta tese é corroborada
por Attridge (1989:376) e seguida por Guthrie (1998:421). A questão,
contudo, não é tão conclusiva como parece, pois em O Pastor de Hermas,
por exemplo, a expressão se refere a “crentes vivos” (43.15). A
possibilidade de significar “mortos piedosos” permanece e a seguimos,
contudo, sem o peso de que se trata de uma “expressão idiomática”.
Analisemos, pois, o uso de πνεῦμα no próprio documento. São doze as
ocorrências dele em Hebreus. Três delas têm uma conotação antropológica
(4.12; 12.9, 23); duas se referem aos anjos (1.7, 14) e sete se referem ao
Espírito Santo (2.4; 3.7; 6.4; 9.8, 14; 10.15, 29). A referência mais próxima
se encontra em 12.9, onde temos “pai dos espíritos” (τῷ πατρὶ τῶν
πνευμάτων). Eles também são qualificados como “justos” (δίκαιος).
Segundo nosso autor, os justos são caracterizados pela fé (10.37 [citação de
Habacuque 2.3]; 11.4).
Por último, eles foram aperfeiçoados. Temos razões para crer que a
perfeição em questão é a mesma do contexto anterior, ou seja, realização
das bênçãos da Nova Aliança no relacionamento com Deus. Devido ao
contexto escatológico, tende-se a crer que a perfeição em questão envolve a
chegada ao destino celestial.
O verso seguinte ao nosso texto esclarece isso. Ele fala de Cristo como
mediador da Nova Aliança e fala do sangue da aspersão (referência a 9.12-
21). Segundo Cowan (2012:112), “isso traz a mente 10.22”. Assim,
continua Cowan (2012:112-113), “tentar ver perfeição em 12.23 como uma
condição escatológica futura é inconsistente com a ênfase em Hebreus de
que a perfeição dos crentes é uma realidade presente”. Peterson (1982:164)
corrobora tal raciocínio ao nos lembrar de que o uso do particípio passivo
perfeito ao invés do adjetivo aponta para a aplicação precedente do verbo
como a chave para a interpretação da expressão aqui. Assim, nosso autor se
refere aos aperfeiçoados pelo sacrifício de Cristo (10.14). Peterson
(1982:167) crê que os santos da Antiga Aliança “estão incluídos entre ‘os
espíritos dos justos aperfeiçoados’”. De fato, à luz de 11.40, não temos
como os excluir. Porém, vale ressaltar, o que nos é dito sobre a condição
deles tem um certo nível de obscuridade que não nos permite fazer
asserções categóricas.

Síntese
O aperfeiçoamento é (1) presente – podemos e devemos nos aproximar
de Deus com confiança no único e perfeito sacrifício. A teologia da
perfeição ecoa a tensão escatológica que encontramos em boa parte do NT
– já chegamos em Jerusalém, mas ainda não; (2) entendemos melhor sua
natureza quando entendemos a distinção ou contraste entre a Aliança
Sinaítica e Nova Aliança.
CONCLUSÃO
Perfeição ou aperfeiçoamento envolve todo o processo de encarnação,
sofrimentos e o sofrimento de Cristo rumo a glória (ressurreição, ascensão e
entronização). Esse é o grande tema de todo o livro de Hebreus. O Senhor
Jesus é passivo em seu aperfeiçoamento, contudo, ativo no aperfeiçoamento
dos seus irmãos. Há claramente uma relação direta entre esses
aperfeiçoamentos. Os irmãos de Jesus são aperfeiçoados, ou seja,
capacitados (santificados, purificados), por meio do sacrifício de Cristo, a
se aproximar de Deus e da glória perdida. Tudo isso contrasta com a
realidade do AT. Trata-se, pois, do resultado da realização das bênçãos da
Nova Aliança.
Na análise de Hebreus 6, o texto alvo desse livro, veremos que temos
razões suficientes para crer que o conceito teológico de perfeição é coeso
em todo o livro de Hebreus. Portanto, aplica-se as palavras de raiz τελ- em
nossa passagem (5.14; 6.1). Defenderemos que a exortação em 6.1, pois,
não diz respeito a maturidade, mas a apropriação das bênçãos da Nova
Aliança com toda a sua complexidade cristológica.

1. Peterson (1982:68-9) bem observa que enquanto em διὰ τὸ πάθημα τοῦ θανάτου (v.9) temos a base
(διά + acusativo) para a exaltação de Cristo e que o sofrimento referido é descrito como “o
sofrimento da morte”, em διὰ παθημάτων (v.10) temos o processo (διά + genitivo) e uma referência
não específica (singular – τὸ πάθημα) a morte, mas a algo mais amplo (plural – παθημάτων). Em
5.7s, os sofrimentos de Jesus incluem o Getsêmani.
2. Não se trata de uma classificação gramatical. Na exposição de Hebreus 6 (capítulo 4)
desenvolveremos melhor nossa visão dos particípios.
3. A parábola do fermento.
4. O bom samaritano, o rico insensato, o rico e o Lázaro, o fariseu e o publicano.
5. A ARA traduz “…nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios
que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem”. A ARC “…pelos mesmos sacrifícios que
continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam”.
6. “Portanto” ARA, ARC, NVI, ACF, EAC.
7. Ele apresenta como evidência Jubileu 23.30-31 e 1Enoque 22.9; 102.4; 103.3-4.
Capítulo 4
O TEXTO

Toda a lida com texto será controlada pelas primeiras cinco perguntas das
oito apresentadas em nossa introdução, bem como pelos contextos-
pressuposições-paradigmas explicitados e detalhados nos capítulos
anteriores. Entende-se ser desnecessário dedicar um espaço específico para
responder cada pergunta, uma vez que a resposta de uma nos leva a outra. A
natureza da impossibilidade de renovação (terceira pergunta) e da queda
(quarta pergunta), por exemplo, serão exploradas na busca pela identidade
dos descritos nos versos 6.4-6 (primeira pergunta), assim como as
consequências (quinta pergunta) serão consideradas juntas com a relação
entre os parágrafos (segunda pergunta). O importante é que no final desse
capítulo precisamos ter nossas perguntas respondidas. Dividiremos nosso
texto em quatro partes: 5.11-6.3; 6.4-6; 6.7-8; 6.9-12.
Na primeira porção, temos um quadro de negligência; na segunda, temos
uma possível referência a apostasia; na terceira, uma palavra dura de
condenação, e na última, a descrição de um povo marcado por um passado
(διακονήσαντες) e um presente (διακονοῦντες) de serviço que leva nosso
autor a não ter qualquer dúvida (6.9 – Πεπείσμεθα) quanto à salvação deles.
Assim, temos um quadro de negligência, de possível apostasia (e
impossível restauração), condenação e salvação certa. Qual a relação entre
esses elementos? Como a impossibilidade de restauração pode se referir ao
grupo dos salvos? O entendimento da relação entre essas porções é peça
fundamental no quebra-cabeça do significado do nosso enigmático texto.
PRIMEIRA PARTE: HEBREUS 5.11–6.3
O dualismo pactual
Nosso texto começa com a apresentação de uma constatação quanto ao
estado (γεγόνατε – aspecto estativo) dos seus leitores: uma condição de
“negligência” (νωθρός) quanto ao ouvir. Disso se conclui a necessidade
(χρεία) de alguém (τινά) ensinar novamente (πάλιν) os “princípios
elementares”.
Logo em seguida, no verso 14, contrastando com o estado de negligência
recém apresentado, nosso autor introduz com um δέ1 (“mas” [ACF, NVI,
ARA, AS21, TB], “porém” [NTLH]) o conceito de perfeição/maturidade.
Desse conceito, surge em 6.1 a única exortação de toda nossa passagem:
“deixemo-nos levar”. Ela aparece no cenário como uma solução à realidade
do quadro de negligência. Ou seja, ao ir para a perfeição ou caminhar na
perfeição, os leitores estariam vencendo a luta contra esse grande mal – a
“surdez”.
Sobre a relação entre as orações, chamam-nos a atenção os vários
paralelos esclarecedores que começam em 5.11 e vão até 6.2. Nosso autor
os inter-relaciona de forma tal que podemos assegurar que uma expressão
esclarece a outra, de forma que não podemos ter um bom entendimento de
uma sem a outra. Na disposição gráfica a seguir, dividimos as expressões
que nomeiam (ou descrevem por contrastes e paralelos) os leitores e aquelas
que nomeiam (ou descrevem por contrastes e paralelos) o ensino2 referido.
Por último, colocamos em paralelo a problemática (apresentada no começo)
e a solução (apresentada no final).

DESCRIÇÃO DOS EXORTADOS3

νωθροὶ γεγόνατε ταῖς ἀκοαῖς Tardios em ouvir

γεγόνατε χρείαν ἔχοντες γάλακτος Necessitados de leite


ἄπειρος Inexperientes

Νήπιος Crianças

διδάσκαλοι Mestres

τελείων Perfeitos

NATUREZA DO ENSINO

Γάλακτος Leite

τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν λογίων τοῦ θεοῦ Princípios elementares dos oráculos de Deus

οὐ στερεᾶς τροφῆς Não alimento sólido

τῆς ἀρχῆς τοῦ Χριστοῦ λόγον Princípios elementares da palavra de Cristo

Θεμέλιον Fundamento

λόγου δικαιοσύνης Palavra da justiça

ἡ στερεὰ τροφή Alimento sólido

PROBLEMA E SOLUÇÃO

Problema νωθροὶ γεγόνατε Tornaram-se negligentes.

Solução ἐπὶ τὴν τελειότητα φερώμεθα Prossigam na/para a perfeição.

Os contrastes e paralelos nos colocam em uma luta quanto à prioridade


interpretativa. Precisamos escolher: devemos entender τέλειος (perfeitos)
por νήπιος (crianças), ἄπειρος (inexperientes), ἕξις (prática4) ou o
contrário? Ou seja, νήπιος por τέλειος? Entendemos melhor a solução (a
exortação em 6.1) pelo problema (negligência – 5.11), ou devemos seguir o
caminho oposto? O problema pela solução? Um caminho seguro certamente
seria priorizar as expressões e/ou colocações mais claras. Assim, à luz
delas, entenderíamos as demais. Contudo, quando se trata de Hebreus,
nossa luta é priorizar as expressões menos obscuras ou as que trazem menos
dificuldades para o fluxo do pensamento da passagem e de todo o livro.
Segue uma análise de termos e conceitos importantes que se colocam em
lados opostos nesse “cabo de guerra” da clareza e da prioridade
interpretativa.
Partindo de νήπιος, ἄπειρος e ἕξις, temos patente a noção de maturidade
versus imaturidade. Nesse caso, a exortação (solução) em 6.1 seria um
chamado ao amadurecimento – à prática que nos leva ao discernimento
(visão predominante nas versões e em comentários).
Por outro lado, se partirmos das palavras de raiz τελ- (e todo o conceito
teológico implicado e embutido nela como colocamos em Pressuposição
teológica), nas palavras de Craig Allen Hill (2014:728 – itálico nosso):
“[u]m paradigma interpretativo diferente deve governar 5:11-14 deixando
de lado a discussão maturidade cristã versus imaturidade avançando para
imperfeição pactual versus perfeição pactual”. A exortação (solução),
dessa forma, seria um convite a usufruir das bênçãos da Nova Aliança –
prosseguir na ou para a perfeição.
Se deixarmos os termos específicos de lado e partirmos do contexto mais
amplo, somos inclinados a priorizar as palavras de raiz τελ- como ponto de
partida para se entender os outros termos. O texto apresenta duas realidades
distintas e mutuamente excludentes: ou se é mestre ou se é necessitado de
ser ensinado; ou se é criança ou se é τέλειος (perfeito). Um precisa ser
deixado (elementos básicos) para que o outro assuma ou seja reconhecido (a
perfeição). Tal “arranjo contrastivo” não é um elemento novo e/ou estranho,
como se fosse providenciado exclusivamente por nossa passagem. Muito
pelo contrário, tal arranjo é predominante em toda a obra, seja de forma
explícita ou implícita.
Os contrastes entre Cristo e os anjos, Cristo e Moisés, Cristo e Josué,
Cristo e o sistema de sacrifícios etc. são o tema fundamental desse “arranjo
contrastivo” referido logo acima. É o que Craig Allen Hill denomina de
“dualismo pactual”. Nesses contrastes, a depreciação de um (e.g., Moisés)
trabalha em prol da valorização e engrandecimento do outro (no caso,
sempre de Cristo). Ou, seguindo um caminho oposto, mas ainda assim
contrastivo, o elogio a um aponta para a depreciação do outro. É o elemento
valorizado pelo autor que nos dá indicações do que está sendo
desvalorizado pelos ouvintes. É exatamente esse mesmo arranjo que
encontramos em nossa passagem e que nos direciona a tomarmos a teologia
da perfeição como ponto de partida não somente possível, mas como muito
provável.
Ainda pensando na “tônica contrastiva” do livro e da passagem em
questão, observe que a exortação isolada (dos particípios) deve ser aplicada
por todo e qualquer cristão: todos devem buscar ou se manter na perfeição.
Os particípios (principalmente o particípio presente) desenvolvem a
exortação, revelando um indicativo situacional. Eles revelam a forma
específica que os leitores deveriam buscar a perfeição: eles deveriam deixar
os elementos básicos. Se perfeição está ligada a obra de Cristo e “princípios
fundamentais” ao judaísmo (como veremos adiante), temos um indicativo
claro de depreciação da Aliança Mosaica em contraste direto com as
bênçãos superiores da Nova Aliança. Isso só reforça a ideia de que nossa
passagem ecoa a “tônica contrastiva” e/ou o dualismo pactual. Como bem
coloca Craig Allen Hill (2014: 735-6 – itálico nosso):

O autor estabelece um dualismo que, em todos os lugares em Hebreus, pessoas, símbolos e


instituições tratadas no argumento são categorizadas como perfeitas ou imperfeitas. Eles estão
associados com a perfeição da Nova Aliança ou com a imperfeição da aliança anterior.

O caminho do “dualismo pactual” de Craig Allen Hill nos direciona a


reconhecer o status de “paradigma interpretativo” das palavras de raiz τελ-
(com toda sua carga teológica). Confirmada a autenticidade do dualismo em
nossa passagem, seremos direcionados para além dos limites da passagem
em busca do sentido, uma vez que perfeição versus imperfeição não é
marca exclusiva da nossa passagem. Nada absurdo, uma vez que as
exortações têm exatamente a mesma tônica (cf. Pressuposição literária,
cap. 2).
Para que tal abordagem seja viável, precisamos saber se é necessário
estabelecer uma distinção entre o uso de ocorrências dos vocábulos que
seguem a raiz τελ- em todo o livro, como exposto em Pressuposição
teológica, com o que encontramos em nossa passagem. Precisamos saber se
há um uso consistente do conceito de perfeição em toda a obra.
São duas as palavras de raiz τελ- que se encontram em nosso texto
(τελείων em 5.14 e τελειότητα em 6.1). A primeira aparece como um
contraponto positivo de νήπιος (crianças), ἄπειρος (inexperientes), χρείαν
γάλακτος (necessitados de leite), νωθροὶ ταῖς ἀκοαῖς (tardios em ouvir) e
em paralelo com ἕξις (prática – v.14). Aqui, os “perfeitos” são descritos
como tendo suas “faculdades exercitadas” (τὰ αἰσθητήρια γεγυμνασμένα),
capacitando-os a discernir o bem e o mal (5.14).
Temos quatro razões básicas para crer numa unidade conceitual das
palavras de raiz τελ-: (1) a proximidade espacial dessas ocorrências (5.14,
6.1) com τελειωθεὶς (aperfeiçoado) em 5.9 (cf. Pressuposição teológica,
cap. 3); (2) o “arranjo contrastivo” comum em toda a obra; (3) a unidade
conceitual de todas as passagens de exortação-advertência (cf.
Pressuposição literária, cap. 2); e (4) a harmonia do conceito de perfeição
com nossa passagem. Em outras palavras, não existe resistência contextual
– o que estaremos ratificando ao longo da exposição.
Contudo, duas possíveis resistências co-textuais5 não podem ser
ignoradas: (1) a expressão διὰ τὸν χρόνον (por causa do tempo) e (2) o
conceito de “prática” ou “performance” ligado ao vocábulo ἕξις (“prática”
[ARA, TB, NTLH]). A segunda é a grande responsável pelo entendimento
de maturidade. Eliminada essa resistência, o caminho do dualismo pactual
torna-se livre, seguro e, diria mais, necessário.
1. A expressão διὰ τὸν χρόνον (por causa do tempo) pode trazer uma
ideia implícita e/ou tácita de processo. No caso, de aluno a professor.
Assim, não teríamos somente duas realidades contrastantes, mas um
processo temporal de exercício constante pressuposto e devido entre elas.
Ou seja, é preciso muito tempo e dedicação para tornar-se um mestre. Os
leitores, por sua vez, deveriam reagir ao “tempo perdido” correndo em
busca da maturidade possível e perdida. Na seção adiante (A ironia),
encontramos a resposta para esse possível (porém, não real) empecilho.
2. O conceito de “prática” ou “performance” do vocábulo ἕξις. Esse
termo está em paralelo com τέλειος e é comumente entendido como um
meio (e não a causa) de discernimento. Se ἕξις é prática, τέλειος não seria
um estado, mas algo a ser alcançado pelo exercício constante – o que seria
o problema dos leitores. Essa hápax legomenon tem sido determinante para
se entender τελείων em 5.14 como “maturidade”. E, por conseguinte,
τελειότητα em 6.1 como a busca por essa mesma condição madura.
O léxico LN – que organiza os vocábulos não por ordem alfabética, mas
por campo semântico – a coloca no grupo das palavras classificadas em
performance. Os significados sugeridos são “prática” e “fazer algo várias
vezes”. Na edição de 1979 do léxico BDAG temos como significados
propostos “prática”, “habilidade”, “exercício”. Tanto as versões6 mais
antigas quanto as atuais seguem de perto os léxicos citados7.
Importantíssimo para nosso entendimento da passagem é o fato de ἕξις
ser a razão (διά + acusativo – ou seja, não é o meio8) para o
“discernimento”. Seguindo a tradução de nossas versões e dos léxicos, a
explicação para o discernimento dos “perfeitos” está na “prática”. Isso,
claro, aproxima nosso vocábulo à semântica de “maturidade” em τέλειος,
fazendo com que a exortação em 6.1 seja um convite à “prática madura”.
Cowan (2012:115 – negrito nosso), pressupondo a teologia da perfeição
(nos termos da nossa pressuposição teológica), bem como a força ativa de
ἕξις, argumenta: “[…] ‘perfeição’ é algo feito para eles [crentes] através do
sacrifício de Cristo (1.10, 14), não algo que eles alcançam por eles
mesmos ou que devem se esforçar depois”. Portanto, para Cowan, o
conceito de perfeição encontrado e desenvolvido em toda a carta não se
aplica aqui. A tradução sugerida, portanto, é “maturidade”.
Cowan nos lembra que não é somente o significado ἕξις que é
fundamental para nossa análise, mas se ele tem força passiva ou ativa. Mais
adiante, indo de encontro a colocação de Cowan, veremos que tudo que
envolve o conceito perfeição nessa passagem tem, sim, força passiva – até
mesmo na exortação/ordem.
Apesar de Lane (1991 1:131) crer que no nosso texto a força ativa
prevalece por relacionar ἕξις com o particípio γεγυμνασμένα (treinar), ele
reconhece (com evidências documentais sólidas) a possibilidade da força
passiva.
Quando o assunto é o significado de ἕξις, a extraordinária pesquisa de
John A. L. Lee (1997)9 pela Novum Testamentum não tem precedentes. Ela
ratifica a força passiva ao assegurar que o vocábulo focaliza o estado e/ou a
condição e não um processo. A tese de Lee (comprovada por inúmeros
exemplos) é que ἕξις é um exemplo negativo de uma tendência na tradição
lexicográfica do NT: o significado é passado de um léxico para o outro (às
vezes até mesmo de uma tradução para um léxico) sem qualquer análise
crítica. Exatamente o que Lee se propõe e faz em seu artigo. Segundo Lee
(1997:172 – itálico nosso):

O entendimento errado de ἕξις [...] seguiu uma tradição inquebrável de traduções desde a
Vulgata. Além disso, é óbvio que essa é a fonte de significado dado pelos léxicos. Seja qual
for os passos detalhados no processo, os lexicógrafos do NT derivaram seus entendimentos
dessa passagem das traduções ao invés de uma avaliação independente do significado do
grego. De fato, eles não têm evidência para apoiar outro significado que não seja a aceita de
longa data como tradução apropriada.

De acordo com Lee (1997:166), “há clara evidência de que o significado


normal de ἕξις nos dias do NT foi primariamente estado físico e/ou
mental”10. A tradução proposta por ele é: “Mas o alimento sólido é para os
adultos, que por causa de seu estado de maduro têm seus sentidos treinados
para distinguir entre o bom e o mau”.
Perceba que Lee opta por “maduro”. Contudo, aqui sua preferência está
ancorada em τέλειος e não em ἕξις. Além disso, a palavra “maduro” não diz
nada sobre o processo de realização – se foi passivo ou ativo. Importante
para nossa análise é que o estado de perfeição, e não a prática da
maturidade, é a causa do discernimento. Ou seja, os “perfeitos” são aqueles
que, por causa do estado espiritual de perfeição, possuem suas faculdades
de discernimento aptas.
Como isso me ajuda a aplicar o conceito teológico de perfeição e o
dualismo pactual de Hebreus em nossa passagem? Entender que perfeição
tem um caráter passivo une nossa passagem àquelas dentro do próprio
documento que denominam o cristão de “aperfeiçoado” (11.40; 12.23) com
toda carga teológica implicada. Em outras palavras, as bênçãos da Nova
Aliança nos fazem capazes de discernir o certo e o errado.
Isso nos ajuda a entendermos melhor a exortação em 6.1 φερώμεθα
(avancemos) – que também tem força passiva. A chegada à ou caminhar na
perfeição, portanto, não dependem da engenhosidade humana. O pronome
“isso” (τοῦτο) no verso 3 substitui o “caminhar na perfeição” e/ou ao
“deixar os princípios elementares” (uma vez que são diferentes perspectivas
da mesma verdade) e reforça ainda mais a força passiva. É notório que
Deus quer que isso seja evidenciado na vida dos leitores. O verso 3, pois,
deve ser entendido como um lembrete de que a ida ou o caminhar na
perfeição não surge por meios meramente mecânicos. O próprio Deus está
diretamente envolvido.
Se o que temos em 5.11-6.3 é um dualismo pactual, a expressão “palavra
de justiça” e “alimento sólido” estariam ligados à “perfeição” e, por
conseguinte, à Nova Aliança. Os leitores, portanto, seriam os
“aperfeiçoados”. Contudo, não é assim que eles são chamados nessa
passagem; antes, são considerados “crianças” e “inexperientes”. O
reconhecimento da ironia nos ajudará nessa questão.

A ironia
Contradição ou ironia
Uma das dificuldades de nossa passagem fica por conta da difícil relação
entre a primeira porção (5.11-14) e a exortação inferida (διό) que a segue.
Quanto à exortação (subjuntivo exortativo passivo): eles deveriam ir
(φερώμεθα) ou deixar serem levados para ou na perfeição. Os particípios
adverbiais que envolvem o subjuntivo exortativo descrevem a maneira
como a ordem deveria ser aplicada: deixando (ἀφέντες) e não lançando
fundamento novamente (μὴ πάλιν θεμέλιον καταβαλλόμενοι). Ou seja, os
particípios dizem a mesma coisa de duas formas diferentes – é um
paralelismo sinonímico. O primeiro, por estar no aoristo, prepara o
background, enquanto que o último, por estar no presente, traz mais
detalhes. Ambos carregam um aspecto negativo – seja pela presença de μὴ,
seja pela própria léxis de ἀφέντες, ou ainda pela força passiva da própria
exortação. O autor não pede para que façam positivamente algo, mas que
aceitem seu estado de perfeição – que caminhem nele.
Contudo, como aplicar a exortação diante do que foi posto em 5.11-14?
O autor constatou que devido a negligência (νωθρός) e/ou a infantilidade
(νήπιος) dos leitores, tornava-se necessário (χρεία) que alguém ensinasse
novamente11 os princípios elementares dos oráculos de Deus. Nossa
exortação, porém, visa aparentemente a prática oposta do que foi
considerado antes – deixar (ἀφέντες) os “princípios elementares”. A
dificuldade, portanto, é: eles deveriam deixar ou repetir os princípios
básicos?
Aqui o entendimento de θεμέλιος pode ser acionado como solução.
Podemos ensinar várias vezes, mas um “fundamento” não pode ser
estabelecido mais de uma vez (πάλιν) por razões óbvias. Tendo em vista
que o autor toma como mister o ensino dos princípios básicos e ao mesmo
tempo o abandono deles, fica difícil interpretar ἀφίημι (deixar) como
abandono total. Uma possibilidade seria compreender que seu desejo era
que esses irmãos tomassem os fundamentos como ponto de partida e não de
repouso. Contudo, tal raciocínio não é suficiente para explicar o contraste
marcante entre a necessidade (χρεία) de πάλιν (novamente) em 5.12 e a
negação taxativa da repetição em 6.1 (μὴ πάλιν). A ordem só pode ser
cumprida abandonando os princípios básicos. Soma-se a isso o fato de que a
exortação está diretamente ligada a 5.11-14 por διό – uma conjunção
inferencial. Em síntese, teríamos:

Hebreus 5.11-13 Necessidade de repetição dos ensinos básicos.

Inferência Portanto (διό).

Hebreus 6.1-2 Proibição de repetição dos ensinos básicos.

Porter (Clines, Fowl, Porter 1990:127) nos assegura que geralmente


discrepâncias dessa natureza só são resolvidas invocando a ironia12. Lane
(1991 v.1:136) segue o mesmo caminho. Para ele, “a chave para a
interpretação de 12-14 é o reconhecimento da presença de ironia”. Sobre os
primeiros versos do sexto capítulo ele diz: “A palavra inicial διό (dessa
forma), mostra claramente que o escritor não considera os membros da
igreja-casa crianças que precisam de uma dieta à base de leite” (Lane 1991
v.1:139). Para Lane, desconsiderar a ironia é violentar a conjunção διό, o
que certamente acordamos.
As palavras de Porter (Porter, Clines, Fowl 1990:127 – itálico nosso)
aprofundam mais nosso entendimento desse recurso retórico:

Ironia, um dos conceitos mais complexos de delinear na crítica literária, pode ser definido
como uma situação interpretativa na qual uma discrepância explicável entre o que é dito e/ou
feito pelos personagens em uma história dramática e o que é estabelecido pelo estado das
coisas no contexto do mundo é percebida pelo leitor.

Reconhecida a ironia, temos que encarar algumas questões relevantes. A


primeira delas é que a ironia exige uma nova leitura. Para ser mais exato,
uma leitura contrária. No caso, deveríamos ler as qualificações
representadas no gráfico anterior ao contrário, pois ironia é a afirmação
contrária do que realmente se quer dizer. Para a aplicação dessa “leitura
avessa” precisamos saber onde começa e termina a ironia de nosso texto,
pois seguramente não podemos considerar como irônico tudo que foi
colocado em nossa passagem.
Para se reconhecer os limites da ironia, precisamos lembrar que um dos
elementos mais importantes desse recurso retórico é o “conflito factual”. No
caso do nosso texto, o conflito fica por conta da relação entre a constatação
da necessidade de repetição dos ensinos básicos e a exortação. Portanto, a
ironia está presente somente em uma das duas porções, pois uma delas é a
“geradora do conflito do estado das coisas”.
Fica fácil perceber que o recurso não foi aplicado à exortação.
Primeiramente, porque ela segue a mesma tônica de todas as demais na
carta-pregação (cf. Pressuposição literária, cap. 2). Se assim fosse, todas as
exortações seriam irônicas – possibilidade eliminada numa leitura rápida.
Segundo, o autor se coloca junto aos exortados. Todo e qualquer cristão
deve caminhar na (ou para) a perfeição. Não é uma ordem exclusiva para
crianças inexperientes ou negligentes da palavra. Do contrário, nosso autor
seria imaturo. Terceiro, o conteúdo da exortação é tão amplo quanto o
conceito teológico rico e positivo de perfeição. Para ser mais incisivo, a
exortação encapsula o tema teológico de maior importância em toda a carta-
pregação (cf. Pressuposição teológica, cap. 3).
O cerne da ironia, pois, está na necessidade de repetição e no quadro
depreciativo que a segue. Dessa forma, os exortados não são crianças e não
precisam dos princípios elementares, não possuem qualquer necessidade de
serem ensinados novamente, mas de se ajustar ao estado de perfeição – pois
eles são perfeitos e/ou foram aperfeiçoados por Cristo.

A ironia e o estado de negligência


Reconhecer a ironia, contudo, não é o mesmo que negar o quadro e/ou
estado real de negligência. É exatamente essa realidade – não restrita ao
nosso texto, mas presente em todo o livro – que leva nosso autor às suas
colocações irônicas (necessidade de leite, crianças e inexperientes). Aqui
vale uma palavra sobre o estado de negligência.
Os leitores são denominados de νωθροὶ ταῖς ἀκοαῖς13. O dativo plural
ταῖς ἀκοαῖς especifica a natureza da “negligência”. É impossível, depois de
passar pelos capítulos 3 e 4, não associar essa deficiência no ouvir com o
povo de Israel no deserto14. Por duas vezes o autor cita o Salmo 95. A
primeira citação é longa – toma quatro versos (3.7-11). A última (4.7)
repete somente a sentença σήμερον ἐὰν τῆς φωνῆς αὐτοῦ ἀκούσητε... (“Se
hoje vocês ouvirem a sua voz…” NVI). O problema dos israelitas é
exatamente a negligência no ouvir. Eles ouviram; no entanto, se rebelaram
(3.16). A palavra que ouviram de nada lhes valeu porque não foi
acompanhada de fé (4.2). A grande porção dos capítulos 3 e 4 deixa claro
que esse é um problema de “coração endurecido” (μὴ σκληρύνητε τὰς
καρδίας ὑμῶν).
Nesse ponto, faz-se necessário um breve excurso sobre os exemplos de
incredulidade de Israel (povo da Antiga Aliança). Aqui seguimos de perto o
que Thomas Schreiner e Ardel Caneday (2001) propõem15. Segundo eles, o
que temos em passagens que contrastam Israel com a Igreja (e.g.,
1Coríntios 10, Hebreus 3, Judas) é uma relação tipológica (cf. 1Coríntios
10.11 – τυπικῶς) entre a nação Israel e o verdadeiro povo de Deus.
Assim como Adão é um tipo de Cristo (Romanos 5.14 – τύπος) onde
encontramos um contraste entre obediência e desobediência, assim temos a
mesma relação entre Israel e a Igreja – os descendentes terrenos e os
descendentes celestiais de Abraão. Deste modo, nem Judas, nem Hebreus,
nem Paulo argumentam que os israelitas tinham crido para a salvação e
perderam tamanho dom pela incredulidade. Em suma:
Os escritores do Novo Testamento não usam Israel para mostrar que é possível para o filho de
Deus nascido espiritualmente apostatar e perecer. Eles apelam à rebelião de Israel para nos
admoestar a sermos o verdadeiro povo de Deus que Israel não foi (Schreiner, Caneday
2001:226 – itálico nosso).

Retomando a discussão do vocábulo, na primeira ocorrência de νωθρός


(negligentes), ele descreve no que eles se tornaram (γεγόνατε); na segunda
(final de uma inclusio), no que eles não deveriam se tornar (γένησθε). Na
primeira, temos uma referência a uma mudança no quadro da comunidade;
na segunda, o desejo de que esse quadro momentâneo não se torne o quadro
final.
Essa obra pressupõe a teoria do aspecto verbal (cf. Apêndice).
Entendemos também que cada aspecto tem uma posição no relevo
discursivo. São três relevos: plano de fundo, primeiro plano e primeiríssimo
plano. Em sua primeira aparição (no início de uma inclusão), temos um
realce (primeiríssimo plano) no estado dos leitores, enquanto que na
segunda (segunda ponta da inclusio) temos um desejo (subjuntivo) de que
tal estado não se torne, no fim (τέλους), o “quadro final” – a totalidade
(aspecto perfectivo – aoristo). Caso isto acontecesse, eles seriam
considerados descrentes – o que autor não crê que eles são realmente (cf.
6.9).
O tempo e o conteúdo (ταῖς ἀκοαῖς) negligenciados os capacitariam a
serem mestres. Contudo, tornaram-se necessitados de serem ensinados –
não ensinar. O conteúdo negligenciado é revelado pela construção Περὶ οὗ
(acerca disso). No caso, podemos ter uma referência mais específica ao
sacerdócio de Melquisedeque (5.10) ou ainda, se entendermos que temos
uma alusão mais ampla, ao sacerdócio de Cristo. Seja quais forem os temas
ou o tema em mente, a dificuldade não está primariamente num possível
obstáculo intelectual ou na complexidade do assunto. Se ligarmos esse
estado dos leitores ao dos israelitas no deserto, o problema é de
incredulidade. É um problema de coração. Isso se confirma quando, mesmo
depois de afirmar a dificuldade do assunto, o autor ainda o desenvolve a
partir do sétimo capítulo.
Em 6.12, νωθροὶ está em contraste com “imitadores daqueles que, pela fé
e pela longanimidade, herdam as promessas”. Ou seja, está em contraste
com os salvos. Observe a inclusio:

5.11, 12 νωθροὶ γεγόνατε ταῖς ἀκοαῖς καὶ γὰρ ὀφείλοντες [εἶναι] διδάσκαλοι.
negligentes mestres

6.12 ἵνα μὴ νωθροὶ γένησθε, ... κληρονομούντων τὰς ἐπαγγελίας.


negligentes herdam das promessas

A implicação da inclusio e do contraste traz cores dramáticas ao quadro


pintado pelo nosso autor, pois classifica os negligentes como condenados.
Usando as palavras do próprio autor, pessoas que não “herdarão as
promessas”. Um dos elementos de uma aliança são as promessas feitas com
juramento. Em vários contrastes que o autor de Hebreus faz entre as
alianças, um deles é que a Nova Aliança tem as “melhores promessas”
(8.6). Certamente são essas mesmas promessas que se faz referência em
6.12.
Concluímos afirmando que νωθρός representa um estado momentâneo
dos leitores, enquanto a perfeição os descreve como realmente são. Para
não continuar nessa situação, eles deveriam prosseguir para ou na
perfeição.
Desse estado momentâneo de negligência surge o quadro irônico. Mas,
por que a ironia? Trata-se de um recurso retórico que pode ter propósitos e
resultados variados: humilhação e/ou desmoralização do opositor em um
contexto de debate, ou, como no diálogo socrático, “levar o interlocutor a
descobrir, por si só, que não sabia nada daquilo que dizia saber” (Madureira
2008:64). Ou seja, tentar fazer seu leitor compreender algo pelo oposto. É
um recurso retórico-didático. Nesse caso citado por Madureira, o objetivo é
mostrar incoerência. É exatamente o que acontece em nossa passagem. A
argumentação que segue em 6.4-6 (tratada adiante) reforça a ideia de que o
autor intenciona mostrar a incoerência e/ou o absurdo de se voltar para os
princípios elementares.
É importante relembrar as palavras de Guthrie (1994:139) já citadas
nesse livro: “A função primária do material exortativo é emocional ao invés
de educacional”. Não sabemos ao certo o quanto, mas mostrar que eles
poderiam ser mestres e estavam se comportando como crianças
inexperientes – além de falar sobre adultos que preferiam leite – certamente
mexia emocionalmente com os leitores.
Como já colocado por Porter, a participação do leitor é importante na
ironia.
O que o autor queria gerar emocionalmente em seus leitores? A ironia
pode carregar sua didática com elementos de humor, de cinismo, de
sarcasmo e do ridículo. São cores que trazem uma carga mais dramáticas à
repreensão. Contudo, saber quão pesadas são as cores aplicadas em nossa
passagem é tarefa difícil e, em certo sentido, até inútil para qualquer
intérprete.
Há na própria passagem um indicativo que pode sinalizar a tônica da
ironia: a oração εἰ καὶ οὕτως λαλοῦμεν (“mesmo falando dessa forma”
[NVI]) em contraste com Πεπείσμεθα δὲ περὶ ὑμῶν, ἀγαπητοί, τὰ
κρείσσονα καὶ ἐχόμενα σωτηρίας (Amados, estamos convictos de coisas
melhores em relação a vocês, coisas próprias da salvação) no verso 9. Fica
claro que a forma como o autor se dirigiu aos seus leitores poderia levá-los
a pensar que eram considerados pelo escritor-pastor como incrédulos-
condenados. Não fica claro, contudo, se essa colocação se estende ao que
foi dito em 5.11-14 ou somente aos versos imediatamente anteriores (v. 7-
8).

A ironia e o dualismo pactual


Como colocamos acima, um dos empecilhos para a aplicação do conceito
teológico de perfeição (contra o conceito de maturidade) está na declaração
de que os leitores já deveriam ser mestres devido ao tempo passado. A ideia
seria a de que se os leitores tivessem aproveitado bem o tempo, em um
processo de maturação normal, eles já estariam em condições de serem
mestres. Além disso, atrelado ao conceito de mestre (como argumentaremos
mais adiante) temos a maturidade exigida e/ou pressuposta. A exortação,
portanto, visaria reverter esse quadro incentivando a retomada do tempo
perdido olhando para frente – para a maturidade.
Voltemos nossa atenção, portanto, à sentença φείλοντες εἶναι διδάσκαλοι
διὰ τὸν χρόνον (“devendo ser mestres por causa do tempo”) e sua relação
com a ironia. Duas considerações importantes: (1) διδάσκαλος (mestre) não
pode ser considerado uma expressão genérica. Pensando especificamente
no verbo διδάσκω (ensinar) e no substantivo διδάσκαλος (mestres), assim
como no nosso português, o campo semântico dos vocábulos gregos é
extenso. A prática do “ensino” inclui uma grande variedade de formas,
objetivos, graus de autoridade e conteúdo. Os vocábulos são aplicados à
instrução (Mt 28:15), ao ensino formal (Rm 12:7; 1Tm 5:17), ao informal
(Mt 28:20; Cl 3:16) e até impessoal (1Co 11:14). “Ensinar” não era, nem
deveria ser, uma prática exclusiva de um grupo seleto, pois é uma exigência
a todos os discípulos de Cristo no processo do discipulado (Mt 28:20).
Contudo, a expressão διὰ τὸν χρόνον (“por causa do tempo”), que pode ser
claramente entendida como “por causa do longo tempo”, conduz-nos a
pensar numa expressão mais específica de ensino. A exigência de muito
tempo não seria necessária a todo mestre. Assim, nosso autor certamente
não tem em mente “qualquer” educador.
(2) Mais importante ainda é que a oração φείλοντες εἶναι διδάσκαλοι διὰ
τὸν χρόνον (“devendo ser mestres por causa do tempo”) é prefaciada pela
conjunção γάρ (“porque”). A função desse conectivo é reforçar o que é dito
na oração que segue – no caso, a oração principal (πάλιν χρείαν ἔχετε τοῦ
διδάσκειν ὑμᾶς τινὰ τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν λογίων τοῦ θεοῦ – “tendes
novamente a necessidade que alguém vos ensine os princípios elementares
das palavras de Deus”). A ênfase, portanto, está na declaração da
necessidade de serem ensinados novamente como se estivessem começando
toda a caminhada agora – como uma criança. Ou seja, trata-se de um
exagero retórico que tem como objetivo enriquecer a oratória irônica. Ser
criança, pois, é um lado exagerado do quadro irônico da necessidade de
serem ensinados. A obrigatoriedade (ὀφείλοντες) de serem mestres é o
paralelo oposto do mesmo exagero. Em suma, é um exagero – um recurso
retórico para dar mais força a colocação irônica: vocês precisam ser
ensinados novamente.
Uma questão significativa surge aqui: se o ponto mais importante está no
fato de que eles precisam ser ensinados novamente e que isso, na verdade,
não é real, pois trata-se de uma ironia (leitura pelo contrário), afinal, eles
realmente não precisam ser ensinados? Que tipo de pessoas seriam essas?
Aqui acionamos o dualismo pactual, enquanto que ao mesmo tempo o
ratificamos como chave interpretativa. A marca distintiva da Nova Aliança
é que seus participantes não “precisam ser ensinados”. Nas palavras do
profeta Jeremias: “Ninguém mais ensinará (‫ ְי ַל ְּמ ֣ד ּו‬/ διδάξωσιν) ao seu
próximo nem ao seu irmão, dizendo: ‘Conheça ao Senhor’, porque todos
eles me conhecerão, desde o menor até o maior”, diz o Senhor (Jr 31:34a).

O conteúdo do ensino fundamental


Há um elemento conceitual unificador em todos os paralelos e
contrastantes: o ensino. A negligência dos leitores estava no ouvir. Os
termos qualificadores (criança, inexperiente...) e os que indicam a
necessidade dele (leite, princípios...) nos levam para a mesma direção.
Fica evidente que se trata de ensino e que sua natureza é fundamental
e/ou basilar. Todos os vocábulos envolvidos (γάλακτος, στοιχεῖα16, ἀρχῆς17
e θεμέλιον) corroboram tal julgamento. Γάλακτος (leite) e οὐ στερεᾶς
τροφῆς (não alimento sólido) têm, em suas próprias léxis, e reforçadas pelo
contexto, conotações inaugurais e/ou incipientes. O vocábulo ἀρχή
(princípio) aparece duas vezes na passagem. Em 5.12, ligado a τῶν λογίων
τοῦ θεοῦ (da palavra de Deus); e em 6.1, a τοῦ Χριστοῦ (de Cristo).
Segundo Hill (2014:738) a presença de ἀρχή (lidando especificamente em
τῶν λογίων τοῦ θεοῦ) “implica que o referente dessa construção é algo que
o autor acredita ser ontologicamente simples e temporariamente no começo
ou no passado”.
As expressões τῶν λογίων e λόγον (palavras e palavra) explicitam a
existência de um conteúdo específico. Quanto ao conteúdo, discute-se
muito se há ou não elementos cristãos nesse ensinamento basilar. Para
Westcott (1903:135), a expressão se refere à coleção de Escritos do AT que
os leitores falharam em entender (e.g., sacerdócio de Melquisedeque). Ele
usa Atos 7.38 (λόγια), que alude à revelação dada no Sinai, e Romanos 3.2
(τὰ λόγια τοῦ θεοῦ), que se refere ao AT como um todo como uma de suas
bases.
Para Peter O’Brien (2010: 207), por exemplo, a expressão τῶν λογίων
τοῦ θεοῦ (das palavras de Deus) “é uma descrição comum para as
Escrituras do AT, embora aqui […] a expressão provavelmente signifique as
Escrituras interpretadas à luz da morte e exaltação de Cristo”. Contudo, tal
expressão está longe de ser um terminus technicus. Toda restrição
semântica deve vir do contexto.
O genitivo τῆς ἀρχῆς τοῦ Χριστοῦ (rudimentos de Cristo) seria um
indicativo claro de especificidade contextual de conteúdo. Ele parece
apontar a presença de “elementos cristãos” no “leite”. Porém, é importante
entender que, para o autor de Hebreus, a dicotomia rígida entre Cristo e o
AT simplesmente não existe. A distinção é profética. Todo o AT (e.g., o
descanso, o sacerdócio, os sacrifícios, tabernáculo) aponta para o Cristo – o
Messias. Aliás, o conceito de Messias (Χριστός) é fundamentalmente
veterotestamentário, de forma que todo o AT pode ser denominado de τῆς
ἀρχῆς τοῦ Χριστοῦ. A simples presença de τοῦ Χριστοῦ (de Cristo) não
implica necessariamente que o ensinamento referido é algum tipo de
“catequese cristã”. Como bem coloca Craig Allen Hill (2014:735), a
conexão de Χριστός com “cristão” é desnecessária. Diria mais, tal conexão
é minimalista e anacrônica.
A exortação que eles devem ser “deixados” (6.1) e que se voltar para eles
era o mesmo que retardo para pessoas “perfeitas” (5.14) também nos
direciona a entender o ensino como judaico, uma vez que o ensino básico
do cristianismo não pode ser deixado ou a sua repetição proibida.
O indicativo contextual explícito de especificação de conteúdo se
encontra em 6.1-2. São eles: arrependimento de obras mortas, fé em Deus,
batismos (ou abluções), imposição de mão, ressurreição e juízo eterno.
Segundo J. C. Adams (1967, p. 379 – itálico nosso): “O primeiro
problema é que em nenhuma dessas seis coisas existe alguma referência a
algo especificamente cristão. Eles são todos, de fato, partes da fé dos
judeus”. Craig Allen Hill (2014:735) é mais incisivo: “Provavelmente tal
credo ou ensino introdutório ‘cristão’ não teria causado nenhuma
controvérsia na sinagoga ou tensão na audiência. Nada novo ao ensino da
aliança prévia é declarado aqui e, portanto, esses itens não são
exclusivamente ‘cristãos’”.
Uma base sólida para identificação do conteúdo com o judaísmo fica por
conta da expressão βαπτισμός (batismo ou abluções). Nem βαπτισμός nem
βάπτισμα (batismo) aparecem na LXX ou no grego clássico, mas somente
no NT ou em escritos dependentes dele (Trench 1880:369). O vocábulo é
usado nas seguintes passagens: Marcos 7.4,8; Colossenses 2.12, Hebreus
6.2; 9.10. É consenso que o sentido da palavra em Hebreus 9.10 é
“lavagem” – ritual com propósito de purificação (cf. BDAG, VINE, LN). A
única relação da palavra com o batismo cristão se dá primeiramente pela
raiz comum18 e por uma variante que encontramos em Colossenses 2.1219.
F. F. Bruce (1992:141) nos lembra que o número (plural) dificulta
relacionar o vocábulo com o batismo cristão. As palavras de Trench
(1880:371) reforçam e ratificam a observação de Bruce e distanciam
definitivamente βαπτισμός de βάπτισμα:

Por βαπτισμός no uso do N. T. devemos entender como qualquer lavagem ou purificação


cerimonial; tenha sido ordenada por Deus (Hb 9.10) ou inventado pelo homem (Mc 7.4, 8);
mas em nenhum dos casos como possuindo qualquer significância central. Enquanto por
βάπτισμα entendemos em nosso sentido cristão da palavra (Rm 6.4; 1Pe 3.21; Ef 4.5); porém
não tão restrito ao ponto de excluir o batismo de João (Lc 7.29; At 10.37; 19.3).

Deixamos os primeiros dois elementos do fundamento (arrependimento e


fé) por último. A informação mais preciosa e ao mesmo tempo mais
impactante sobre esses dois elementos é que eles não devem ser lançados
novamente. Isso seguramente diz muito sobre a natureza da fé e do
arrependimento que nosso autor tem em mente. Ora, como estando em uma
condição de negligência (um problema de incredulidade), o autor não toma
o arrependimento e a fé como solução; antes, como algo a não ser
considerado?
Não podemos esquecer que na construção participial μὴ πάλιν θεμέλιον
καταβαλλόμενοι (“não lançando de novo o fundamento”) o particípio
desenvolve o conceito de “caminhar na perfeição”. Caminhar na perfeição
(apropriar-se das bênçãos da Nova Aliança), portanto, envolve
necessariamente a ausência de arrependimento e fé. A própria exortação,
entretanto, é um convite à confiança no aperfeiçoamento realizado por
Cristo. Ou seja, à fé. Mesmo que se rejeite o conceito teológico de
perfeição e se adote maturidade como referente de τελειότητα (perfeição), a
pergunta persiste: “Como ir para a maturidade sem fé?”.
Pode-se entender que a fé e o arrependimento em questão são marcas
exclusivas do começo da vida cristã. Em primeiro lugar, isso esbarra no
conceito de abluções (não batismo) argumentado anteriormente. Em
segundo lugar, e mais importante, temos um problema teológico sério: a
fragmentação no conceito de fé cristã e, por conseguinte, a dispensabilidade
do seu aspecto inicial durante toda vida cristã. Como se a “fé inaugural”
não nos acompanhasse em toda a vida cristã. John F. MacArthur (1983:137
– itálico nosso) acertadamente entende que não se pode tratar de um
fundamento do cristianismo. Em suas palavras, “em nenhum momento a
Palavra de Deus sugere que um cristão abandone o básico do
cristianismo...”.
Escrevendo aos gálatas, o apóstolo Paulo corrige os irmãos lembrando
dos seus primeiros dias (Gl 3.1-3). O grande desafio do cristão é
exatamente manter o padrão e o ensinamento dos primeiros dias de sua fé.
Fica claro o conceito uno e coeso de fé. A fé que nos faz continuar é a
mesma do início. Não importa em que estado de maturidade nos
encontramos, sempre precisaremos ir aos elementos básicos – o que não é o
caso dos nossos leitores.
Não é necessário alistar aqui todas as inúmeras passagens que deixam
claro que esses dois elementos são fundamentais para o início e para toda a
caminhada cristã, pois não existe justificação nem santificação sem eles. A
famosa sentença do profeta Habacuque “o justo viverá pela fé” e suas várias
citações/aplicações no NT nos ensinam que a fé é o elemento chave-
essencial em nossa relação com Deus. A expressão ἐκ πίστεως εἰς πίστιν
(“do princípio ao fim é pela fé” – NVI) usada por Paulo em Romanos 1.17
nos lembra a “natureza essencial e onipresente” da fé na vida cristã.
Arrependimento, da mesma forma, está presente no resumo da mensagem
de Cristo nos evangelhos sinóticos: “Arrependei-vos porque é chegado o
reino de Deus”. O mesmo pode-se dizer de sua presença fundamental
durante a vida cristã (cf. 2Tm 2.25).
Dessa forma, o texto exige uma revisão dos conceitos de fé e
arrependimento. Somos tendenciosos a preenchê-los de conteúdo cristão.
Mas é importante destacar que, a priori, são conceitos genéricos. Um
caminho de entendimento seria procurar encaixar a ordem μὴ πάλιν
θεμέλιον καταβαλλόμενοι (não lançar novamente o fundamento) em um
tema maior e buscar no livro referências semelhantes. No caso, o tema
seria: o que deve ser evitado e/ou não repetido. Como vimos anteriormente,
o que deve ser deixado é o que ao longo da obra foi contrastado com Cristo
e as bênçãos da Nova Aliança. Portanto, o arrependimento pode ter uma
relação com os sacrifícios do templo e a fé em questão ser completamente
despida de conteúdo explicitamente cristão.
Segundo Donald Hagner (1997:104):

É notável que esses seis elementos mencionados encontram paralelismos no judaísmo. Isso
poderia sugerir que os leitores estavam tentando de algum modo permanecer dentro do
judaísmo, ao enfatizar os elementos tidos como comuns entre judaísmo e o cristianismo.
Talvez tenham estado tentando sobreviver com um mínimo de cristianismo, com o objetivo de
evitar a alienação imposta por seus amigos e parentes judeus.

Essa “tendência sincrética” (judaísmo e cristianismo) é combatida aqui


(quando se exige que esses fundamentos sejam abandonados) e novamente
no final da obra com as exortações: “Nós temos um altar do qual não têm
direito de comer os que ministram no tabernáculo” (13:10). Em outras
palavras, são dois altares distintos e mutuamente excludentes. A solução do
autor é “...saiamos até ele [Jesus], fora do acampamento, suportando a
desonra que ele suportou. Pois não temos aqui nenhuma cidade permanente,
mas buscamos a que há de vir” (13:13,14).
Uma última consideração. Uma das principais exortações da carta-
pregação incentiva os irmãos a manterem firmes “a confissão” (cf. a
inclusio 4.14; 10.23) – seguramente um elemento fundamental para o
cristão. Chama-nos atenção a ausência (o silêncio) da “confissão” como um
“elemento no fundamento” descrito em 6.2. Evidentemente se reconhece
que o peso da ausência não é tão forte quanto o da presença. Daí a razão
desse indício se encontrar somente no final da argumentação.
Em suma, a presença de βαπτισμός, a ausência de elementos distinta e
claramente cristãos e, principalmente, a dispensabilidade da fé e do
arrependimento confirmam a relação dos princípios básico com o judaísmo.
É importante entender que não temos uma referência nem à catequese
cristã, nem muito menos à catequese judaica. Antes, o reconhecimento de
que o judaísmo (ou a religião do AT) é o “fundamento do cristianismo”. Ou
seja, são elementos fundamentais à luz do plano geral de Deus onde tudo
que precede a Cristo é preparo para o cristianismo.
Há certamente uma relação íntima entre judaísmo e cristianismo.
Contudo, não há qualquer possibilidade de conciliação. É uma relação
semelhante a profecia-cumprimento. O primeiro aponta para o segundo,
mas o segundo revoga o primeiro. Agarrar-se com a profecia quando se tem
o cumprimento é negar tanto o cumprimento quanto a própria profecia.

A exortação: caminhar “na” ou “para” a perfeição?


Diante do que foi colocado acima, a exortação em 6.1 surge de uma
realidade de negligência seguida de um quadro irônico, onde nosso autor
revela que na verdade, como aperfeiçoados, eles não precisam repetir os
elementos básicos do judaísmo, mas caminhar na ou para a perfeição.
Cockehill (em Bateman IV 2007:279) nos lembra que na exortação,
nosso autor usa a preposição ἐπί antes de τελειότητα ao invés de εἰς ou
πρός. Dessa forma, não temos a nuança de moção como a única opção de
entendimento. O autor poderia estar exortando a permanência (ἐπί) na
perfeição.
É fato que entender a preposição como moção não exige maturidade,
nem muito menos nega a teologia da perfeição. Du Plessis (apud. Silva
1976:69), por exemplo, traduz a exortação da seguinte maneira: “Vamos
dirigir-nos à questão da perfeição”. Contudo, não se pode negar que a
nuança de repouso reforçaria ainda mais o sentido teológico de perfeição.
O verbo φέρω ocorre 66 vezes no NT. Traz a ideia evidente de
direcionamento quando usado com as preposições πρός (Mc 1.32; 2.3; 9.17,
19, 20; 11.7) e εἰς (At 12.10; Ap 21.24; 21.26) ou quando seguido de um
dativo (Mt 14.11, 18; 17.17; Mc 7.32; 8.22; 12.15, 16; Jo 2.8; 4.33; 2Pe
1.17). São quatro ocorrências do verbo em Hebreus (6.1; 9.16; 12.20;
13.13). Somente em 6.1, o verbo está ligado a preposição ἐπί. Quanto à
relação específica do verbo com a preposição ἐπί em todo o NT, as
ocorrências são as que seguem abaixo:

Mateus 14.11: καὶ ἠνέχθη ἡ κεφαλὴ αὐτοῦ ἐπὶ πίνακι [cabeça em um prato].
Marcos 6.28: ἤνεγκεν τὴν κεφαλὴν αὐτοῦ ἐπὶ πίνακι [cabeça em um prato].
Lucas 5.18 φέροντες ἐπὶ κλίνης [em uma cama].
Marcos 15.22: Καὶ φέρουσιν αὐτὸν ἐπὶ τὸν Γολγοθᾶν τόπον [ao ou no Gólgota].
Atos 14.13 ταύρους καὶ στέμματα ἐπὶ τοὺς πυλῶνας ἐνέγκας [para a porta].

As duas primeiras são paralelas e, juntas com a terceira, deixam evidente


a ideia de repouso e não de deslocamento e/ou direcionamento. Nesses
casos, ἐπί responde a pergunta “onde?” e não “aonde?”. É importante
destacar que, apesar de descrever o mesmo evento, Mateus 14.11 e Marcos
6.28 devem ser “contabilizados” como dois exemplos distintos, uma vez
que não é incomum passagens paralelas nos sinóticos serem descritas
variando o uso do aspecto verbal, da voz, da léxis etc. No caso dessas duas
passagens, por exemplo, temos a voz passiva em Mateus e a ativa em
Marcos.
São duas ocorrências que trazem uma noção de direcionamento. Em
Marcos 15.22, as versões NVI, ACF, NTLH, A21 e a TB traduzem ao
gólgota. O que fica claro é que, tanto repouso quanto deslocamento estão no
campo semântico de φέρω com preposição ἐπί. Por outro lado, diante do
grande número de usos de φέρω com dativo e com as preposições πρός e
εἰς, a noção de deslocamento pode ser considerada uma exceção.
Em suma, pelo contexto e probabilidade da relação entre o verbo e a
preposição, entendo que a ideia de repouso se encaixa melhor. Em outras
palavras, nosso autor está dizendo que aproveitem dos benefícios do
aperfeiçoador que foi aperfeiçoado. Ele nos aproxima do trono de Deus, de
onde vem a graça e a misericórdia, pois ele já limpou nosso coração e
consciência (10.22).

Síntese interpretativa
Até aqui nossa caminhada interpretativa tem nos levados as seguintes
conclusões:
1. Os leitores primários da carta-pregação estavam em uma condição de
negligência. Tal informação não é exclusiva de nossa passagem, como
podemos constatar em nossa análise contextual. Contudo, trata-se de um
estado temporário. A exortação e a advertência que seguem essa
constatação visam exatamente mudar esse quadro.
2. O autor está certo de que está lidando com salvos – aperfeiçoados. As
palavras depreciativas como “crianças”, “inexperientes” são irônicas. Elas
visam mostrar a incoerência deles e ao mesmo tempo agitá-los
emocionalmente. O reconhecimento do recurso retórico da ironia nos ajuda
a lidar com a aparente contradição entre a constatação feita em 5.11-13 e a
exortação implicada dessa mesma condição.
3. Nossa passagem ecoa um padrão que se repete ao longo de toda a obra:
o dualismo pactual. Reconhecido o padrão, tomamos as palavras de raiz
τελ- com toda sua carga teológica. Passamos a entender que a exortação não
visa a maturidade, mas a aceitação das bênçãos da Nova Aliança. Eles
estavam rejeitando essas bênçãos ao se voltarem para o judaísmo – os
princípios elementares. Contudo, a apropriação das bênçãos da Nova
Aliança exige o abandono ou a não repetição dos elementos da religião do
Antigo Testamento. O Antigo Testamento aponta profeticamente para
Cristo. E, como toda profecia, é abolida com a chegada do cumprimento.
SEGUNDA PARTE: HEBREUS 6.4-6
As dificuldades das possibilidades
O grande desafio nessa porção de nossa passagem é identificar as pessoas
descritas em 6.4-6. Há quem defenda que temos a descrição de cristãos
autênticos, ou seja, não nominais (Geisler 2002:98-9; Fanning 2007:180;
Mcknight 1992:43-55). Nesse caso, o texto aparentemente nos ensina a
apostasia como possível e até provável, indo, pois, de encontro ao
entendimento calvinista exposto em Dort.
Por outro lado, o entendimento de que temos a descrição de ímpios
(Grudem em Schreiner, Ware 1995:133-182; Nicole 1975:358-9) esbarra na
especificidade da experiência descrita nos versos 4-5 por particípios
adjetivais que aparentam descrever algo que vai muito além de uma mera
confissão externa ou fenomenológica de fé – apesar de entender que o NT
reconhece essa categoria de pessoa (os cristãos nominais cf. 1Jo 2.19).
A opção de entender os leitores, não como indivíduos, mas como
comunidade da Aliança (Verbrugge 1980:62) também encontra obstáculos
nos casos onde o autor focaliza claramente o indivíduo (cf. 3.12, 13; 4.1, 11;
6.11; 12.14-16). O embaraço dos que defendem um público dividido
(Peterson, 2008) está na carência de base textual mais sólida e até mesmo
numa certa arbitrariedade, uma vez que os elementos textuais indicatórios
de tal separação são obscuros. A natureza pressupositiva dos particípios
explica melhor (como veremos a seguir) a aparente divisão iniciada em
nossa porção. Além disso, o caminho oposto – tomar os leitores como um
grupo coeso – tem base comparativamente muito mais sólida.
Como já colocado (cf. Limites da terceira advertência), nossa passagem
(v.4-6) é prefaciada por γὰρ onde nosso autor explica o porquê20 que eles
deveriam ir para a perfeição ou deixar os elementos básicos: é impossível
renovar novamente (πάλιν) para arrependimento (εἰς μετάνοιαν) certo tipo
de pessoa. Ao explicar a impossibilidade de renovação, o autor descreve o
grupo dos “impossibilitados” por meio de vários particípios adjetivais (vv.
4-6). Nosso objetivo nesse ponto é identificá-los: são cristãos? São
incrédulos? É o mesmo grupo descrito nos versos seguintes?
O grande dilema do intérprete nesta passagem é comungar o peso da
explicação “é impossível renovar” com o caráter dos indivíduos envolvidos
(iluminados, provaram o dom celestial etc.). Como pessoas iluminadas não
podem ser renovadas? Via de regra, as interpretações têm caminhado em
direção a ênfase ou a desvalorização de um desses dois elementos. Há os
que enfraquecem a gravidade da impossibilidade (e.g., Bruce 1992: 144)21 e
os que duvidam do caráter dos indivíduos descritos (e.g., Calvin 1979) ou
diminuindo o peso da queda ou das bênçãos. Por trás de toda essa luta
exegética está a doutrina da perseverança do crente.
Para um entendimento um pouco mais amplo, precisamos discutir os
limites, objetivos e a metodologia do que se segue: a análise pressupõe um
conhecimento da doutrina da perseverança dos santos. Sabemos que a
possibilidade de queda é completamente pulverizada por inúmeras
passagens claras e didáticas das Escrituras (e.g., Rm. 8.28-30, 35; Jo. 10.28-
29), então não é nosso objetivo desenvolver o tópico “perseverança”. Antes,
o pressupomos – não como uma necessidade anterior para que nossa
exegese faça sentido, como quem tenta proteger sua doutrina do texto que a
condena, mas sim como um dado já sabido pelo leitor. Isso significa que
nossa argumentação não objetiva alcançar adeptos da doutrina arminiana.
Queremos propor que os calvinistas não são obrigados a entender que o
texto lida necessariamente e somente com incrédulos (ou cristãos professos
e não genuínos) para assegurar o que ficou conhecido como quinto ponto do
calvinismo. Por último, quanto à metodologia, partiremos da lida com os
particípios e em seguida a relação entre as orações. Acreditamos que uma
compreensão sólida desses elementos nos ajudará a ratificar ou eliminar
visões equivocadas. Essas, por sua vez, serão apresentadas e refutadas ao
longo da exposição. Nosso capítulo finda com uma proposta.
Os particípios
Os particípios se apresentam em nossa passagem em três momentos
chaves: (1) antecipando e sucedendo adverbialmente a exortação em 6.1;
(2) identificando o grupo dos iluminados-caídos – esses mesmos particípios
preparam o leitor (como background) para a declaração de impossibilidade
de renovação para arrependimento; e, por último, (3) desenvolvendo a
noção de impossibilidade de renovação. Em suma, uma compreensão deles
(natureza e função) é simplesmente imprescindível.

Os particípios e a exortação
Três considerações antes de lidar com nossos primeiros particípios:
1. Adotamos a tese de Martin Culy (2003) de que “[p]articípios
adverbiais serão sempre nominativos, exceto em construções no genitivo
absoluto ou quando eles modificam um infinitivo”. Nosso texto se encaixa
na segunda exceção indicada por Culy.
2. Reconhecemos que o particípio aoristo geralmente vem antes do verbo
principal. Ele prepara o caminho (seja criando expectativas mentais, seja
providenciando um background lógico ou contextual histórico) para o verbo
principal. Seu papel é dirigir a atenção do leitor para além dele mesmo. No
relevo discursivo, ele é o plano de fundo (background)22. Ele cria o terreno
para a apresentação do primeiro plano (foreground), representado pelo
presente (aspecto imperfectivo). “Em exposições, geralmente, o presente é
usado para assinalar um material que é tematicamente proeminente [...]”
(Nunes 2016:51 – itálico nosso).
3. Geralmente o particípio presente segue o verbo principal e desenvolve,
de alguma forma, a ação expressa por este.
Tomando as colocações acima como pressuposições, podemos assegurar
que compreendemos melhor a exortação Φερώμεθα (prossigamos) pelo
particípio Καταβαλλόμενοι (lançando) e ainda, compreendemos melhor a
impossibilidade de renovação pelos particípios ἀνασταυροῦντας
(crucificando) e παραδειγματίζοντας (expondo à vergonha). Veja o gráfico
abaixo.

HEBREUS 6.1

Particípio Verbo principal presente Particípio presente


aoristo

Relevo Plano de fundo Primeiro plano Primeiro plano


discursivo Desenvolvimento

Grego ἀφέντες... Φερώμεθα Καταβαλλόμενοι

Português Deixar... Deixemo-nos levar… Não lançando de novo…

Os dois particípios que cercam nossa ordem (Φερώμεθα) são negativos.


Seja pela presença explícita de μὴ πάλιν (“não novamente”) ou pela própria
léxis de ἀφέντες (abandono). Dos dois, o que pode nos fornecer mais
detalhes é καταβαλλόμενοι. Como vimos na primeira parte da exposição, o
que está sendo proibido é lançar os fundamentos básicos do judaísmo.
Abaixo, mostraremos que a oração que segue o nosso particípio (Ἀδύνατον
γὰρ...) tem como objetivo explicar esse detalhe em particular.

Os particípios e os iluminados-caídos
UM GRUPO COESO
Existem duas informações sobre os particípios que nos fazem pensar em
um grupo coeso. Em primeiro lugar, estamos lidando com particípios
adjetivais que seguem um único artigo. Antes de tudo, é importante
entender que o uso de um único artigo antes dos particípios adjetivais nos
força a crer que se trata de um só individuo, grupo ou classe que incorpora
todas as qualidades apresentadas (Sproule 1981)23.
Em um particípio adjetival, a ênfase está na pessoa ou coisa descrita ou
pensada. No nosso caso, o tipo de pessoa. Ou seja, não podemos dissecar os
particípios isoladamente24. O que o autor quer é que o acompanhemos em
sua argumentação. Para que isso seja realizado, precisamos entender que
tipo de pessoa ele está pensando: iluminados… que caíram (ou pararam) e
são impossibilitados de serem renovados.
Em segundo lugar, como colocamos anteriormente, o particípio aoristo
tem a nuança de background. Assim, reforçando o ponto anterior, o autor
não está interessado nos detalhes das qualidades e do problema (queda),
mas no “quadro geral” a ser idealizado – pessoas iluminadas-caídas.

HEBREUS 6.4

Particípio aoristo Infinitivo presente Particípio presente

Relevo discursivo Background Foreground Foreground


Desenvolvimento

Grego φωτισθέντας, ἀνακαινίζειν ἀνασταυροῦντας


γευσαμένους παραδειγματίζοντας
γενηθέντας
παραπεσόντας

Português Iluminados Renovar Crucificar novamente


Provaram... Expor a vergonha
Tornaram-se...
Caíram

Que grupo nossos particípios representam? Michael Horton (2002), por


exemplo, aplica sua estrutura teológica (Teologia das Alianças) em textos
como o nosso da seguinte maneira: todas as passagens de segurança estão
ancoradas no chamado pacto da redenção. Ou seja, não são baseadas na
resposta humana. Quanto ao papel das advertências (o caso da nossa
passagem), Horton entende que elas não são hipotéticas, ou seja, são reais,
mas não seguem as implicações soteriológicas do sistema arminiano. A
razão é que a Teologia da Aliança reconhece não somente dois tipos de
pessoas (salvas e condenadas), mas três (salvas, não salvas e participantes
da comunidade da aliança que experimentam dos meios da graça, mas não
são regenerados). Em suas palavras: “O círculo da aliança é mais largo que
o círculo da eleição” (Horton 2002:36 – itálico nosso). Assim, o alvo da
nossa advertência são os participantes beneficiados pela aliança, porém não
salvos. São “cristãos fenomenológicos”.
A “leitura teológica” de Michael Horton e a ideia de três tipos de pessoas
(salvas, não salvas e participantes da comunidade da aliança que
experimentam dos meios da graça, mas não são regenerados) e de um
“círculo da aliança” mais largo que o da eleição não se sustenta
exegeticamente no livro de Hebreus. Com isso não se está negando a
existência de pessoas que possuem uma fé exclusivamente externa e/ou
fenomenológica como bem nos informa o apóstolo João em 1João 2.19.
Antes, o que se está afirmando é que o autor de Hebreus nos assegura que
na Nova Aliança, diferente da primeira, temos uma ação direta na
“consciência” e “coração” (interna). Assim, todo aquele que se beneficia
(ou é participante) da Nova Aliança tem seu interior purificado. O círculo
da Nova Aliança é exatamente o mesmo da eleição.
As palavras de D. A. Carson (1993:11-12 – itálico do autor) são
esclarecedoras:

[…] o povo da Nova Aliança é por definição outorgado um novo coração e habilitado pelo
Espírito para andar em santidade, a amar a justiça e demonstrar prazer em Deus. Isso significa
que a medida em que os escritores do NT pensavam neles mesmos como herdeiros da Nova
Aliança, eles não podiam pensar sobre eles mesmos como se não fossem dotados do Espírito
Santo, regenerados e transformados. […]. É da essência da Nova Aliança que aqueles que
estão nela tenham recebido um novo coração, tenham sido purificados e recebido o Espírito
Santo.

Como já vimos, nossa carta-pregação apresenta muitos contrastes entre


as alianças. Faz-se necessário observar um contraste importante destacado
por Williamson (2007:154-157): o que há de novo na Nova Aliança é
exatamente a qualidade da comunidade criada por Deus. Toda a
comunidade tem a lei internalizada. Todos conhecem a Deus no sentido
mais profundo. Não há, pois, na Nova Aliança um círculo mais amplo e/ou
distinto ao círculo da eleição. Dessa forma, Deus não pode falar para os
participantes na Nova Aliança como falava aos participantes da Antiga
Aliança. Se nosso autor tem em mente os participantes da Nova Aliança, ele
visa, então, pessoas purificadas e eleitas.
Ainda numa tônica de abordagem teológica, contudo lidando com apelos
textuais mais sólidos e específicos, Verlyn D. Verbrugge (1980:63) assegura
que entendemos melhor os versos 4-6 se entendermos os versos 7-9. Para
Verbrugge (1980:65), esses últimos nos remetem a Isaías 5. Não somente
isso, a passagem deve ser tomada como a “chave hermenêutica” dos versos
4-6. Para ele:

Isso coloca a interpretação de Hebreus 6 inequivocamente dentro do contexto do


relacionamento de Deus com seu povo como uma comunidade pactual.[…] geralmente
intérpretes olharam para Hebreus 6.4-6 à luz da eleição individual e da preservação individual
dos santos, mas o escritor aos Hebreus está nos dizendo que devemos entender isso em termos
da lida de Deus com seu povo pactual com uma comunidade (Verbrugge 1980:65 – itálico
nosso).

Assim, a linguagem de Hebreus é a mesma aplicada aos membros da


Antiga Aliança (Verbrugge 1980:67). Para Verbrugge, precisamos ler
nossos particípios como representando toda uma comunidade – não
indivíduos.
Cremos que as críticas feitas às conclusões de Horton se aplicam também
às colocações de Verbrugge (palavras dirigidas a comunidade da aliança).
Além disso, como foi colocado acima, o autor de Hebreus claramente tem
uma preocupação com cada membro da congregação. Segue as expressões
que revelam uma perspectiva mais individualizada: ἔν τινι ὑμῶν (nenhum
de vocês – 3.12), ἑκάστην ἡμέραν (cada um de nós – 3.13), τις ἐξ ὑμῶν
(nenhum de vós – 4.1), μὴ ἐν τῷ αὐτῷ τις (nenhum – 4.11), ἕκαστον ὑμῶν
(cada um de vós – 6.11), μετὰ πάντων (com todos – 12.14), μή τις (ninguém
– 12.15) e μή τις (nenhum – 12.16).
Das expressões gregas acima, destacamos o caráter genérico e
abrangente, ainda que extremamente individual e particular, da expressão
ἕκαστον ὑμῶν (“cada um de vós” ACF) em 6.11. Se o autor estivesse
pensando somente em um grupo dentro da comunidade, ele poderia ter
usado a expressão τις ἐξ ὑμῶν (“algum de vós” NVI) como fez em 4.1.
Pressupondo uma “unidade de pensamento” em 5.11-6.12, tal colocação
tem implicações brutais para nossa lida com o texto. Ela, junto com as
colocações sobre quem são os advertidos (perfeitos), mais o caráter
inclusivo da exortação em 6.1 e a argumentação abaixo dos particípios,
leva-nos a rejeitar a visão daqueles que, mesmo sem apelar para a
linguagem e entendimento pactual (como Horton e Verbrugge), defendem
um crente fenomenológico. Ou seja, alguém que, apesar de não ser
genuinamente cristão, exibe um comportamento cristão.
Scot Mcknight (1992:54 – itálico nosso) nos lembra com propriedade que
“o maior obstáculo à interpretação de Verbrugge é que a exortação em
Hebreus visa a perseverança, e quando o autor apresenta os exemplos do
que é perseverança, ele alista indivíduos, não comunidades pactuais”.
Seguindo a ideia de cristãos fenomenológicos, Fanning destaca um tipo
de tensão ou aparente contradição:

As passagens [de advertência de Hebreus] parecem dizer que cristãos genuínos devem
perseverar em fidelidade, mas podem, ao invés disso, repudiar a Cristo e assim caírem em
eterna condenação, mas a obra de Cristo em e por eles absolutamente não falhará em trazê-
los para a vida eterna (2007:205 – itálico nosso).

O próprio Fanning admite a contradição e pergunta: “Como trazer esses


elementos aparentemente discrepantes a uma coerência que é verdadeira ao
texto?”. Resposta: o autor de Hebreus escreve sobre uma estrutura de
pensamento que nos habilita a juntar a aparente contradição de uma forma
coerente. Fanning propõe um “paradigma interpretativo” extraído de duas
passagens da carta: 3.6 e 3.14.
Conhecido por sua erudição na língua grega, Fanning argumenta na
relação semântica das condicionais. Refuta a ideia de que temos uma
relação de causa e efeito entre a prótase e a apódase. Ancorado em
gramáticos como Daniel Wallace e Stanley Porter, Fanning entende que a
relação entre a prótase e a apódase é de evidência–inferência (cf. Segunda
advertência). Fanning (2007:213 – itálico nosso) é convincente ao
assegurar que nessa nuança semântica (evidência-inferência) a apódase
geralmente faz referência a um estado ou condição já existente no tempo
dessa situação. E ainda, “verbos que expressam estado, características ou
identidades não são geralmente vistos como eventos causais”.
Quanto à descrição dos impossibilitados em 6.4-6, Fanning (2007:217)
entende que “o escritor está registrando o fenômeno de suas conversões,
aquilo que a experiência cristã deles exteriormente parece”. Eles estão
muito próximos da fé, mas não são cristãos. Acreditamos que a
consideração mais adiante sobre a natureza reflexiva dos particípios explica
muito melhor a tensão entre os particípios do que a complicada proposta de
Buist Fanning.

GRUPO PRÓXIMO E DISTANTE


Além da presença do artigo regendo os particípios, temos mais uma razão
para crer que nosso autor está pensando em um grupo coeso: no particípio
“algum estado não-existente é hipotetizado ou projetado, qualquer que seja
seu relacionamento com o mundo real” (Porter 1989:167-8 – itálico nosso).
É um convite ao ouvinte/leitor a atuar em alguma parte do discurso, no
caso, a pensar (conceber) esse tipo de pessoa (iluminada, provou do dom
celestial...). Como bem coloca Albuquerque (2013:95 – itálico nosso): “a
escolha de um particípio é a de não se usar uma asserção, a escolha de um
particípio é a escolha de pressupor algo ao invés de assegurar algo”.
Ora, via de regra os calvinistas pensam em diminuir o peso das
expressões participais que indicam graça exatamente junto com a queda
porque as tomam como reais e não como algo que deve ser somente
concebido para benefício do argumento. A importância e a dependência
dessa tese justificam a existência do apêndice Pressuposição linguística.
Junto com o capítulo Pressuposição literária, especificamente A função das
advertências (pág. 97), apreciamos melhor o papel desses particípios e das
exortações. Ambos (exortações e particípios) não lidam primariamente com
asserções. O objetivo primário não é informar, mas emocionar e/ou
mentalizar.
Em Pressuposição linguística, seguindo a tese de doutorado do Dr.
Roque Albuquerque, reforçamos que o particípio não gramaticaliza atitude
(modo). Na verdade, ele é parte da metafunção ideacional (2013:92).
Significado ideacional, por sua vez, refere-se à linguagem como reflexão
(2013:130). Ao usar um particípio, o autor assume a habilidade do leitor de
inferir (2013:174).

[...] cada vez que um autor escolhe um particípio, duas subcategorias do componente
ideacional entram em jogo: 1) a subcategoria experiencial por meio da qual os seres humanos
representam processos, participantes no processo e circunstâncias realizadas com o processo;
2) a subcategoria lógica, onde os seres humanos representam a experiência em termos de
certas relações lógicas fundamentais na linguagem natural. (Albuquerque 2013:72).

A mudança de primeira pessoa do plural em 6.1-3 para a terceira em 6.4-


6 tem levado alguns (e.g., O’Brien 2010:219) a distinguir os dois grupos. O
primeiro, sendo representado pelos leitores (imaturos, porém salvos); o
segundo, por pessoas que fazem parte da comunidade da aliança, porém,
não são realmente convertidos. No caso, os descritos pelos particípios
adjetivais.
Apelar para a mudança de primeira pessoa do plural em 6.1-3 para a
terceira em 6.4-6, visando encontrar uma indicação de um grupo distinto,
tem seus problemas. Primeiro, isola os versos 6.4-6. Como veremos adiante,
nossa passagem é coesa o suficiente para rejeitar qualquer tipo de
isolamento dessa natureza. Os últimos versos unem todos “os personagens”
(negligentes [5.11-13], salvos que não caminham na perfeição [5.14-6.2] e
salvos [6.9-12]).
Segundo, esse isolamento é fruto do não reconhecimento (ou
desconhecimento) da “construção participial argumentativa”. Ela é que
explica esse aparente isolamento. A distinção se dá porque temos uma
argumentação-explicação (γάρ) começando, e o autor deseja que seus
leitores arrazoem com ele e ao mesmo tempo se identifiquem com uma
determinada “categoria de pessoa”. Trata-se, portanto, somente de um
“isolamento reflexivo”.
É importante entender que os leitores não são levados somente a
raciocinar, mas, à medida em que refletem nas pessoas descritas, são
levados a se identificar com o grupo idealizados (iluminados...caídos). A
expressão no verso 9 “εἰ καὶ οὕτως λαλοῦμεν” (“ainda que falamos desta
maneira”) indica que as palavras duras de condenação, que por sua vez,
estão ligadas a impossibilidade de renovação, são dirigidas ao público que é
considerado salvo.
Portanto, ao usar os particípios, o autor espera reflexão e identificação.
Contudo, se o leitor-intérprete rapidamente categoriza esse “grupo coeso”
como “cristãos externos”, ele pode correr o risco de se distanciar da
exortação – o que o próprio autor não faz – e da trilha lógica proposta por
nosso autor. Para que eles acompanhem o argumento, é necessário se
colocar no grupo idealizado. Esse grupo idealizado, por sua vez, representa
a situação dos leitores levada às últimas consequências. Seria muito
precipitado o leitor persistir nessa categorização. Perderíamos todo o peso
da advertência.

Qualidades
Abordaremos agora o significado lexical dos particípios adjetivais.
Começaremos com os de natureza positiva. Antes, porém, de lidar com o
significado de cada particípio, queremos reconhecer a forma com que o
autor os arranjou (cf. tabela abaixo). Há claramente indícios estéticos
(visuais e sonoros). Contudo, também reconhecemos que esse arranjo não é
determinante para o sentido dos vocábulos.

Alternância de finais sonoros idênticos Quiásmo de início sonoros idênticos

φωτισθέντας Παραπεσόντας

γευσαμένους ἀνακαινίζειν

γενηθέντας ἀνασταυροῦντας

γευσαμένους Παραδειγματίζοντας

Além de nossa passagem, nossos “vocábulos positivos” aparecem em


Hebreus 10.32 para φωτίζω, Hebreus 2.9 para γεύομαι e Hebreus 3.1, 14 e
12.8 para μέτοχος. São referências claras a cristãos autênticos. Segue uma
disposição gráfica e uma análise aproximada dessas ocorrências.

Φωτίζω Γεύομαι Γενηθέντας μετόχους

10.32 Lembrem-se dos


primeiros dias, depois
que vocês foram
iluminados, quando
suportaram muita luta
e muito sofrimento
(NVI).

2.9 Vemos, todavia, aquele que por um


pouco foi feito menor do que os anjos,
Jesus, coroado de honra e glória por ter
sofrido a morte, para que, pela graça de
Deus, em favor de todos,
experimentasse a morte (NVI).
Φωτίζω Γεύομαι Γενηθέντας μετόχους

3.1 Portanto, santos irmãos,


participantes do chamado
celestial, fixem os seus
pensamentos em Jesus,
apóstolo e sumo sacerdote
que confessamos (NVI).

3.14 pois passamos a ser


participantes de Cristo,
desde que, de fato, nos
apeguemos até o fim à
confiança que tivemos no
princípio (NVI).

12.8 Mas, se estais sem


disciplina, da qual todos são
feitos participantes, sois
então bastardos, e não
filhos (ACF).

Iluminados
Quanto a φωτίζω, não se nega que o vocábulo pode significar
simplesmente “ser instruído”. Por outro lado, “o termo denota ‘receber luz’
ou ‘perceber’ de uma forma que previamente não teria sido possível (cf. Lc
11.36; Jo 1.9; Ef 1.18; 3.9)” (cf. Mcknight 1992:46). Temos boas razões
para crer que a iluminação referida não é uma mera apresentação ou
exposição à verdade. Dunn (1970:209) entende que as expressões repetidas
de γευσαμένου que seguem esse particípio são “elaborações retóricas” e
explanações dele.
1. Todas as ocorrências em Hebreus estão na voz passiva, contudo sem o
agente explícito. Nestes casos, Wallace (1996:437-8) alista oito
possibilidades. Uma delas é chamada de passivo divino ou teológico. Tal
categorização se dá quando “Deus é o agente óbvio” (Wallace 1996:438 –
itálico do autor), o que cremos ser o caso aqui (O’Brien 2010:221). Até
mesmo os que defendem uma iluminação “superficial” não se veriam
obrigados a negar essa realidade, uma vez que Deus também age nos
incrédulos, e suas ações, apesar de graciosas, não são necessariamente
redentivas.
2. O uso de ἅπαξ. O uso que nosso autor faz desse advérbio é marcante
na obra. Na carta, ἅπαξ não tem somente uma nuança numérica (“uma vez”
– e.g., 9.7, 9.27), mas qualitativa. Ela é usada para qualificar a obra de
Cristo como suficiente, válida e permanente (Lane 1991 v.1:132 – cf. 9.26,
28; 10.2). Se entendermos que há um contraste entre ἅπαξ e πάλιν (não
somente do v.6, mas principalmente com o do v.1), penso que a nuança
qualitativa faria mais sentido (Dunn 1970:209). A ideia, então, seria: assim
como não se pode lançar um fundamento mais de uma vez, pois isso é feito
de uma vez por todas (ou seja, para não ser repetido), assim também os
iluminados “de uma vez por todas” não podem ser renovados novamente.
Tomamos, pois, a iluminação como ato divino de qualidade tal que não
necessita de repetição.

Provaram
Voltemos nossa atenção ao segundo particípio – γευσαμένους. Além da
nossa passagem, o verbo γεύομαι aparece em Hebreus em 2.9. Nessa
passagem, Cristo “prova” a morte. Tem sido argumentado que “provar” não
é o mesmo que “comer” ou ainda, ter uma “digestão completa” (Nicole
1975: 360-1).
As palavras de Scot Mcknight (1992:46-7 – itálico nosso) são
esclarecedoras:

Nunca vi qualquer evidência em qualquer dos contextos que o termo grego signifique “provar
parcialmente” como oposto a “comer e digerir”. Isto é positivamente contrário ao uso
figurativo do termo onde ele nos fala da “participação e experiência” – o grau não é a
questão.
Se a léxis carrega em si a ideia de grau de envolvimento(Chafer 1948
3:303), como entender a morte de Cristo (2.9)? Ele teria provado pouco ou
muito da morte? Provar a morte quer dizer que Cristo não experimentou
uma “digestão mortal completa”? Claramente o uso metafórico aqui
significa simplesmente “experimentar”. Precisaríamos de outros elementos
fora da léxis para avaliar a tal intensidade referida. Assim, se um
determinado autor intenciona diminuir ou aumentar a força do “provar”,
precisaria recorrer a outros elementos para estabelecer tal nuança.
Cowan (2012:184-5) nos lembra que Grudem não cita os cinco usos
figurativos fora de Hebreus (Mt 16.28; Mc 9.1; Lc 9.27; Jo 8.52; 1Pe 2.3)
para ratificar sua tese. Para Cowan (2012:185), nenhuma passagem indica
que essas experiências são vistas como temporais. Trata-se, pois,
simplesmente de uma experiência real.
A expressão δωρεᾶς τῆς ἐπουρανίου (dom celestial) é uma “imagem
geral” para as bênçãos da salvação, como em João 4.10 (τὴν δωρεὰν τοῦ
θεοῦ [o dom de Deus]). O texto não nos fornece recursos para uma
especificação. A própria léxis da construção não permite particularizações.
Muito pelo contrário. Ela pode incluir a doação do Espírito, perdão dos
pecados e a santificação (Attridge 1989: 170).
Quanto ao genitivo ἐπουρανίου (celestial), em 3.1 nos é dito que esses
irmãos participam da vocação “celestial” (ἐπουράνιος). Em 12.22, é-nos
dito que chegaram a Jerusalém “celestial” (ἐπουράνιος). Em 8.5 e 9.23,
temos o contraste entre as figuras e as coisas “celestiais”. É celestial,
portanto, “porque sua fonte e alvo são o reino celestial” (O’Brien 2010:222
– itálico nosso).
Os iluminados também experimentaram da καλὸν θεοῦ ῥῆμα (a boa
palavra de Deus) e δυνάμεις τε μέλλοντος αἰῶνος (poderes do mundo
vindouro). Quanto à primeira expressão, “o termo usado para ‘palavra’ de
Deus (ῥῆμα) é diferente de λόγος usada previamente, mas dificilmente há
alguma mudança de sentido” (Attridge 1989: 170). Em 2.5 encontramos
uma expressão semelhante τὴν οἰκουμένην τὴν μέλλουσαν (“o mundo
futuro” NVI). Ela nos remete a escatologia realizada do autor (1.2).

Participantes
A próxima palavra a ser considerada é “participantes”. Ela está ligada ao
nosso último particípio (μετόχους γενηθέντας). Para Grudem (1995:148 –
itálico do autor), o que se pode dizer com confiança é que “eles foram
participantes de algum dos benefícios que o Espírito Santo dá”. Aqui
novamente é questionado o grau de associação. Contudo, “os usos de
μετόχους em Hebreus 3.1, 3; 3.14 e 12.8 não parece compelir o leitor a
questionar a natureza do grau de associação ou compartilhamento que está
envolvido” (Cowan 2012:188 – itálico do autor). Cada contexto parece nos
indicar somente se há participação ou não – nada mais.

Caídos
Se os iluminados são salvos, por que eles caíram? E por que é impossível
renová-los? A impossibilidade de renovação revela o tamanho da queda?
Ou devemos ver o tamanho da queda pela impossibilidade? Ou ambos? A
queda é a razão/explicação da impossibilidade? A “recrucificação” de
Cristo explica o tamanho da queda? Aqui, as temáticas que envolvem a
impossibilidade de renovação, a queda (παραπίπτω) e o sacrifício de Cristo
se unem. Por isso, precisamos dar toda atenção ao conteúdo e a relação
entre essas colocações.
O vocábulo παραπίπτω (cair), em si, é genérico, metafórico e, além disso,
uma hápax legomenon. Ou seja, estamos em um terreno fértil para a
proliferação de pelo menos duas falácias interpretativas: anacronismo
semântico e falácia de radical (cf. Carson 1999:26-33).
Na LXX, παραπίπτω traduz três verbos hebraicos, sendo o principal ‫ָמ ַע ל‬
(Bauder v. 2:1611). Esse, por sua vez, ocorre 35 vezes, abrangendo uma
grande porção de nuanças que vão do genérico ato de “pecar” (em paralelo
com ‫ )ָח ָט א‬a um ato consciente de traição (Hamilton em Harris, Archer,
Waltke, 2001:863-4).
Aproximando-se mais da nossa passagem, deparamo-nos com a raiz
πίπτω. Ela se encontra não somente no documento, como também no
contexto próximo (3.17; 4.11). Tanto em 3.17 quanto em 4.11 (que
claramente nos remete [ὑποδείγματι] a 3.17) temos uma referência a um
fracasso definitivo. No primeiro caso, são os corpos caídos no deserto; no
segundo, o desejo (subjuntivo) de não cairmos como eles (3.17). Em ambos
os casos temos: (1) uma referência à parada definitiva de uma caminhada; e
(2) o resultado (não um ato) da desobediência (4.11) e da incredulidade
(3.19) – que por sua vez, reforçada no contexto, é uma questão de coração
(3.8, 10, 12, 15, 4.7, 12).
Se nosso autor tem em mente o mesmo referente de 3.17 e 4.11, a queda
indicada pelo vocábulo παραπίπτω é o resultado definitivo da incredulidade
– de um coração endurecido. Se cair é o mesmo que não entrar no descanso,
temos uma figura clara de “condenação”25. Em uma tradução livre,
teríamos: “porque é impossível renovar alguém que experimentou das
bênçãos de Deus e caiu em incredulidade como os israelitas do deserto”.
Novamente, parece que nosso autor deseja que seus leitores se identifiquem
com o povo de Israel que foi marcado pela negligência no ouvir e pela
queda.
A seriedade não está tanto em cair somente (algo concebível), mas que o
cair envolve não se aproximar (10.22) do trono e/ou do santuário (10.19)
para receber graça e misericórdia (4.16), seguir o novo e vivo caminho
(10.20), voltar (repetir) para o judaísmo. Assim, não é tanto somente o cair,
mas visar um outro caminho que exige a repetição da morte de Cristo – o
que é impossível. É tentar retornar para os princípios básicos. O pecado
combatido, portanto, pela exortação em 6.1, não necessariamente é
representado somente por παραπίπτω, mas na concebível recusa em não
permanecer caminhando na perfeição (e nas bênçãos da Nova Aliança).
Usando a linguagem dos versos 7-8: é rejeitar a chuva.
Temos três indícios de que a queda não exige a diminuição do status
redentivo das qualificações positivas (iluminados...):

1. A natureza ideacional dos particípios (veja anteriormente). Essa é


razão mais importante. Não precisamos diminuir, nem aumentar o peso
das qualificações. Estamos no campo da reflexão. Ao usar os
particípios, o autor espera reflexão e identificação. Para que eles
acompanhem o argumento, é necessário se colocar no grupo
idealizado. Esse grupo idealizado representa a situação temporária
(porém, não final) dos leitores, pois o autor está certo da salvação
deles (cf. 6.9).
2. As limitações do aoristo. A única declaração que se pode fazer com
segurança é que “cair” aqui é simplesmente “não continuar”. Ou seja,
não continuar na perfeição (6.1). Se a queda é definitiva, o que a causa
ou ainda se é um ato ou um resultado não nos é informado. O fato é
que o autor não está preocupado em descrever em detalhes a natureza
da “queda” (é uma perspectiva perfectiva), mas mostrar o caráter da
impossibilidade da renovação referida à luz da exigência de se
crucificar a Cristo novamente.
3. A relação entre a queda e a renovação. Aprendemos sobre a queda
quando entendemos melhor a natureza da renovação. Essa, por sua
vez, é melhor compreendida quando entendemos a relação da
renovação com a repetição da morte de Cristo representada pelo
particípio (ἀνασταυροῦντας). Isso só reforça o ponto anterior:
precisamos recorrer a ἀνασταυροῦντας.

Considerações
1. Não se pode negar a importância do estudo dos vocábulos na prática
interpretativa. Contudo, o estudo das Escrituras não pode ser confundido
com filologia ou etimologia. Na lida com um vocábulo, a pergunta não pode
parar no que é possível, mas deve-se buscar incansavelmente o
“estreitamento semântico” no co-texto e contexto – no mundo ao redor do
signo. Quando seguimos uma abordagem unicamente lexical, as
possibilidades só aumentam e as escolhas podem ser controladas
tiranicamente por elementos estranhos ao texto.
No caso de φωτίζω (iluminar), por exemplo, como uma referência a um
“mero conhecimento” se encaixaria em 10.32? Se esse realmente fosse o
caso, nosso autor estaria apelando para um conhecimento sem peso eterno.
O que o texto sugere é que exatamente esse “mero conhecimento” tem uma
relação direta com a perseverança (ὑπεμείνατε παθημάτων) dos leitores em
meio ao sofrimento.
2. Precisamos relacionar os vocábulos à individualidade autoral. Muitos
intérpretes não veem elementos claros de graça redentiva nos particípios
adjetivais pela ausência de expressões como justificação, por exemplo.
Contudo, não podemos, a priori, reduzir o poder das expressões participiais
simplesmente pela ausência de vocábulos soteriológicos consagrados como
“justificação” e “regeneração”. Isso é desprestigiar a contribuição
individual do escritor sagrado. A declaração “sem fé é impossível agradar a
Deus”, por exemplo, é a forma do autor de Hebreus apresentar uma faceta
da doutrina conhecida na teologia cristã como “justificação pela fé”.
Contudo, o nome “justificação” sequer aparece aqui. Quando não
reconhecemos as particularidades de cada documento e autor,
desvalorizamos o aporte da teologia bíblica na construção do grande
edifício da teologia cristã.
Vale a pena lembrar as colocações de Moisés Silva (1976:69-0) sobre
diversidade e unidade na teologia bíblica: “A disciplina da teologia bíblica,
com sua ênfase nas características distintivas dos autores do Novo
Testamento, longe de desorientar nosso compromisso com a unidade
bíblica, estabelece-a”. Portanto, “devemos permitir que cada autor bíblico
use seus próprios conceitos e vocabulário soteriológico” (Cowan 2012:183
n.106).
3. Uma das razões para a resistência à identificação dos descritos em 6.4-
6 seja como cristão, incrédulos ou cristãos fenomenológicos está na junção
e/ou tensão entre a queda e a impossibilidade de renovação. O preço do
equilíbrio na tensão entre as qualificações positivas (iluminados) e a
negativa (caíram) só vem quando um dos elementos que se contrapõem tem
sua força diminuída. Entendido e reconhecido, por exemplo, o “peso
condenatório e definitivo da queda”, perder-se-ia, por consequência, a força
das qualidades “redentivas” dos outros particípios adjetivais. À primeira
vista, o custo de tal postura parece ser pequeno e até razoável:
simplesmente reconhecer a ação graciosa do Senhor, contudo, eliminando
por completo a natureza redentiva dela. Ou seja, os particípios revelam a
graça; porém, não a redenção. Os nossos “iluminados impossibilitados de
renovação”, dessa forma, seriam “cristãos externos”. Contudo, como já
vimos, podemos também diminuir o peso da “queda”. A seguir veremos que
nessa luta para que se mantenha a gangorra do sentido equilibrada não
devemos diminuir o peso das expressões; antes, mantê-las em tensão e com
uma certa ambiguidade.
4. Os particípios adjetivais estão dentro de uma estrutura explicativa
(γάρ). A impossibilidade de renovação dos iluminados-caídos é a
explicação para não se lançar novamente os princípios elementares. Esse
tópico será desenvolvido a seguir quando considerarmos a relação entre as
orações.

Relação entre as sentenças


Apreciaremos melhor nossos particípios ampliando nossa visão e os
encaixando em uma estrutura maior. Acreditamos que nossa passagem
segue uma cadeia de explicações e dois elementos são importantíssimos
para apreciação dela. Primeiro, o entendimento correto da conjunção γάρ.
Em segundo lugar, a compreensão de uma “linha temática” que perpassa
essa cadeia de explicações: a repetição.
Quanto à conjunção γάρ, BDAG (189) nos revela que a conjunção pode
expressar pelo menos três nuanças: causa, esclarecimento e inferência.
Pensando na essência do conectivo, A. T. Robertson (1919:1190) entende
que o caráter natural da conjunção é explicativo. Outras nuanças podem ser
consideradas, porém, o apelo só pode ser feito após considerar a
possibilidade explicativa.
Segundo Steve Runge (2010: 37, 39 – itálico nosso):

Em cada caso, a proposição introduzida por γάρ desenvolve um aspecto do que precede. Pode
ser na forma de informação de base; pode introduzir a razão ou o fundamento de alguma ação
ou estado anterior. [...] Ela suporta o que precede fornecendo background ou detalhe que é
necessário para entender o que se segue.

Levinsohn (apud Runge 2010:37) entende que a presença de γάρ implica


em um reforço em algum aspecto do que foi colocado anteriormente. Ou
seja, a informação que segue a conjunção não envolve uma informação
completamente distintiva. O que segue a conjunção não avança a linha
principal da discussão (como acontece como καί, οὖν e διὰ τοῦτο, por
exemplo), mas introduz um material diferente que reforça e sustenta o que
precede. A ilustração da terra e da chuva nos versos 7-8, portanto, amplia e
reforça o que foi colocado pelos particípios causais no verso 6.
Quanto à linha temática da repetição, segue uma representação gráfica:

5.11-13 REPETIÇÃO dos elementos básicos.

6.1 Não REPETIR os elementos básicos.

6.4 Não REPETIR o arrependimento.

6.6 Não REPETIR a crucificação.

O reconhecimento dessa estrutura nos ajuda a entender melhor a oração


Ἀδύνατον γὰρ...ἀνακαινίζειν (“Porque é impossível...renovar”) com as
sentenças que a cercam. Cremos que ela não explica diretamente a
exortação (ἐπὶ τὴν τελειότητα φερώμεθα – “prossigamos na perfeição”),
mas seu aspecto negativo representado pela frase participial que desenvolve
o verbo principal: μὴ πάλιν θεμέλιον καταβαλλόμενοι (“não lança
novamente fundamento”).
A razão para tal conclusão está na relação entre a conjunção γάρ, o
conceito de repetição presente no advérbio πάλιν e no prefixo ἀνα de
ἀνασταυροῦντας (crucificar novamente). A conjunção desenvolve um
aspecto da oração que a precede. A pergunta aqui é: o que encontramos na
exortação que é desenvolvido na explicação? Qual o elemento comum entre
a exortação e a explicação? A negação da repetição parece ser a melhor
resposta. Ela está presente no “aspecto negativo” da exortação (não lançar
novamente), na primeira explicação (é impossível renovar novamente) e
possivelmente na segunda explicação por meio do particípio
ἀνασταυροῦντας (crucificar novamente).
Para reforçar essa tônica de repetição, temos o contraponto que πάλιν faz
com ἅπαξ. Ou seja, não se pode iluminar novamente aqueles que já
sofreram a iluminação “uma vez” (sentido qualitativo). A presença de πάλιν
como antecedente imediato de ἀνακαινίζειν, a léxis do infinitivo “renovar”
(ἀνακαινίζειν) e o fato de que o infinitivo enfatiza a ação verbal em si
(Albuquerque 2013:250) reforçam a tônica de repetição.
Sendo assim, a sequência em nosso texto é a seguinte: exortação
(especificamente seu aspecto negativo: não lançar novamente os princípios
básicos) → 1a explicação (indicada pela conjunção γάρ) → uma implicação
(2a explicação, indicada pelos particípios ἀνασταυροῦντας e
παραδειγματίζοντας) → 3a explicação da “explicação da implicação”
(novamente indicada pela conjunção γάρ)”26.
CADEIA DE EXPLICAÇÕES

Exortação μὴ πάλιν θεμέλιον καταβαλλόμενοι


(Aspecto Não lançando novamente o fundamento
negativo)

1a explicação Ἀδύνατον γὰρ […]πάλιν ἀνακαινίζειν εἰς μετάνοιαν


Porque é impossível [...] renovar novamente para
arrependimento.

2a explicação27 ἀνασταυροῦντας
(resultado) Crucificando novamente28
παραδειγματίζοντας
Expondo a vergonha

3a explicação γῆ γὰρ ἡ πιοῦσα...


Porque a terra que bebe

A chave interpretativa: a crucificação repetida2728


Vimos anteriormente que temos certo número de ambiguidades em nosso
texto: o peso das qualificações e da queda, a natureza da renovação e a
relação entre renovação e o arrependimento que trataremos aqui.
Nosso próximo particípio a ser analisado (ἀνασταυροῦντας [crucificar
novamente]), junto com a estrutura de repetição, com a natureza reflexiva
dos particípios e a presença do contraste entre as alianças, pode ser uma das
maiores fontes de elucidação para as ambiguidades supracitadas. Para que
ele possa lançar luz sobre toda a passagem, precisamos, em primeiro lugar,
entender seu significado lexical e sua função na oração. Dessa forma, sua
contribuição com o fluxo do pensamento da passagem será apreciada.
Quanto ao significado, a despeito de não necessariamente29 significar
“crucificar novamente”30, temos razões para crer que esse é o caso: (1) o
contexto de repetição ao longo de toda passagem (como vimos acima na
relação entre as sentenças); (2) a presença de ἀνα tanto no particípio quanto
no verbo principal ἀνακαινίζειν; (3) a possibilidade (mesmo que remota) do
advérbio πάλιν não estar ligado a ἀνακαινίζειν (uma vez que ele já traz em
sua léxis o sentido de repetição), mas a ἀνασταυροῦντας; (4) a presença de
πάλιν ἀνακαινίζειν logo antes dele dá suporte à tradução “crucificar uma
segunda vez” (Lane 1991 1:133); e, por último, e não menos importante, (5)
seguindo a lógica da carta, onde a morte de Cristo é vista como única –
impossível de ser repetida (9.25-28) – , o tema da “recrucificação” faz todo
o sentido se o autor visa levar seu leitor ao absurdo numa linha de
argumentação lógica.
Quanto à função, ἀνασταυροῦντας está no acusativo depois de um verbo
no infinitivo – renovar (ἀνακαινίζειν). Como já colocamos, seguimos a tese
de Martin Culy (2003 – itálico nosso) de que “[p]articípios adverbiais serão
sempre nominativos, exceto em construções no genitivo absoluto ou
quando eles modificam um infinitivo”. Isso se dá porque o infinitivo
geralmente tem como sujeito um acusativo. Assim, o particípio modificador
também deveria estar no mesmo caso. Nosso particípio, portanto, tem um
papel adverbial.
Boa parte dos comentaristas classificam ἀνασταυροῦντας como causal:
Bruce (2009), Koester (2001), Lane (1991), Cockerill (2007), Attridge
(1989), Ellingworth (1993). Seja qual for a classificação ou função
adverbial reconhecida para o nosso particípio, é importante ressaltar que ela
não é gramatical (cf. Apêndice). Precisamos, pois, recorrer a fatores
pragmáticos.
Fora do contexto imediato, a expressão parece nos levar a crer que temos
mais uma referência ao desprezo à morte de Cristo, semelhante à que
encontramos ao longo de todo o documento. O pronome reflexivo ἑαυτοῖς
revela que os “caídos” seriam os autores e ao mesmo tempo os beneficiados
ou culpados da “recrucificação”. O dativo (cf. Wallace 1996:142-3) pode
indicar vantagem (significando “para”) ou desvantagem (significando
“contra” [e.g., Mt. 23.31; 11.29]). A recrucificação seria, então, contra eles
mesmos ou a favor deles mesmos. Pelo contexto maior, fica claro que a
primeira opção é única que faria sentido. Certamente, nenhum intérprete
discordaria de tal conclusão. Assim, os iluminados-caídos não podem ser
renovados, pois tal renovação implicaria na repetição (contra eles) da morte
de Cristo, pela qual eles seriam os responsáveis.
O desprezo pela morte de Cristo seria equivalente ao que encontramos no
capítulo 10, onde nos deparamos com a expressão “profanar o sangue da
aliança”, ou ao que encontramos no capítulo 12, onde o autor exorta seus
leitores a não desprezar a “voz do sangue” ou a “voz do perdão”, ou ainda
no capítulo 13, quando os leitores são incentivados a abandonar o sistema
antigo dos sacrifícios (deixar Jerusalém) e ir para fora da cidade onde
“Cristo morreu”.
Dessas passagens, a mais próxima da nossa seria a exortação-advertência
no capítulo 10: (1) ambas possuem o mesmo gênero; e principalmente; (2)
enquanto nos capítulo 12 e 13 temos um incentivo a valorização da morte
de Cristo, o desprezo à morte de Cristo é uma implicação absurda dentro de
uma linha argumentativa tanto em 6.6 quanto no capítulo 10. Lá, pisar o
Filho de Deus é a causa-implicação-explicação de se rejeitar o sacrifício de
Cristo. Isso é um indício que se encaixa bem em uma possível função do
nosso particípio; (3) soma-se a isso o fato de que os autores do desprezo no
capítulo 10 são santificados pelo mesmo sangue que profanam. Aqui, os
que desprezam a morte de Cristo foram iluminados. Lá, eles pisam; aqui,
eles caem. Lá, eles profanam; aqui eles rejeitam a chuva que cai sobre eles
(v.7-8).
Uma breve digressão sobre a relação entre causa-explicação-implicação.
A distinção de nuanças dessas categorias não é fácil, pois em muitos casos,
elas não se excluem. Explicação tem uma semântica bem mais ampla do
que causa e implicação (resultado lógico). Posso explicar com uma causa
ou com uma implicação. Uma implicação, por sua vez, pode ser uma causa
hipotética.
Não podemos esquecer que estamos lidando com pressuposição factiva.
A ideia da pressuposição factiva não deve ser confundida com afirmações
de fatos (factualidade, isto é, aquilo que ocorreu). O particípio “pressupõe
que o falante está comprometido com a verdade da proposição (língua como
reflexão) e não com declaração de fatos” (Albuquerque 2013:8). Assim,
estamos lidando com reflexão. Se for causa, por exemplo, não estamos
lidando com um fato anterior que gerou, mas que, dentro de uma ordem
lógica, seria a causa para não se renovar o iluminado-caído. No caso do
nosso texto, penso que as três nuanças estão presentes. Assim, teríamos: (1)
exortação: a proibição de repetição dos elementos básicos (ou volta para o
judaísmo); (2) explicação: não se pode renovar iluminados-caídos; (3)
causa-implicação-explicação: Cristo deveria morrer novamente – o que é
absurdo.
Renovar pessoas “caídas” é impossível porque elas estariam crucificando
para si mesmos o Filho de Deus. Seja qual for o significado dessa
expressão, ela clara e seguramente tem um tom negativo, ou seja, trata-se de
uma rejeição da cruz. O fato é que não seguir na perfeição (a exortação), ou
tentar repetir o fundamento, mais especificamente, é o mesmo que repetir o
sacrifício de Cristo. Deve-se guardar com atenção redobrada que não é
impossível somente porque eles “caíram”, mas porque estão querendo
voltar (repetir) para o judaísmo – o que exigiria a repetição da morte de
Cristo.
Assim, não podemos (nem devemos) entender a impossibilidade de
renovação somente à luz da queda. Não é a queda que a explica, mas a
repetição da morte (não somente a rejeição da morte) que é exigida ao se
repetir os princípios básicos. Quando colocamos a explicação da
impossibilidade na queda, damos a ela um peso que o contexto não dá. Sem
dúvida, a queda é trágica, porém, no arranjo sintático, ela não foi colocada
como a fonte de explicação para a impossibilidade de renovação. É a
repetição da morte de Cristo que revela o “tamanho da queda” representada
pelo particípio παραπεσόντας.
A repetição de morte de Cristo é representada pelo particípio presente,
que por sua vez desenvolve a impossibilidade de renovação dos caídos. Os
particípios nos lembram que a explicação não pode parar no infinitivo
“renovar”. É necessário apreciá-lo com os particípios. Então, se quisermos
entender melhor a impossibilidade de renovação, precisamos ir para a
repetição da morte de Cristo. Ela é a explicação da impossibilidade de
repetição da renovação, ao invés da queda dos iluminados.
A crucificação repetida (e seu paralelo “expor a ignomínia”) é, pois,
chave para entendermos essa cadeia de explicações e, por conseguinte, a
natureza da queda e da exortação. Ela se encontra no centro (como um tipo
de “dobradiça”) das explicações, indicando o resultado (ou a implicação
lógica) para impossibilidade de renovação (primeira explicação), bem como
apresentando uma explicação para a impossibilidade de renovação.
Mais importante ainda para esse ponto da exegese é saber como,
seguindo a lógica do parágrafo acima, a repetição da morte e da vergonha
de Cristo se encaixa na impossibilidade de renovação dos “iluminados-
caídos”.
A solução mais comum é lidar com a crucificação de Cristo como uma
metáfora de rejeição e de depreciação de sua morte (e.g., Kistemaker
2003:229), semelhante a que encontramos na quarta exortação: profanar o
sangue da aliança. Dessa forma, teríamos a explicação para ausência de
renovação para arrependimento. Nesse caso, repetição seria um sinônimo
de rejeição.
O texto nos diz que é impossível a renovação para arrependimento (εἰς
μετάνοιαν). O conceito de arrependimento também reforça ainda mais a
ideia de rejeição. A palavra “arrependimento” aparece três vezes em
Hebreus, duas em nossa passagem. A primeira está ligada aos princípios
elementares do judaísmo; a segunda é alvo da nossa atenção agora e, fora
do nosso contexto imediato, temos uma referência a Esaú. Segue o texto:
“Porque bem sabeis que, querendo ele ainda depois herdar a bênção, foi
rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, ainda que com
lágrimas o buscou” (12:17 – ARA).
A questão aqui é: Esaú poderia ser usado com um exemplo de alguém
que buscou o arrependimento ou, usando a linguagem de nosso parágrafo,
“renovar para arrependimento” e não encontrou? Primeiramente, é
importante destacar que o objeto da busca de Esaú é representado pelo
pronome αὐτήν. A princípio, tanto μετάνοια (arrependimento) quanto
εὐλογία (bênção) são antecedentes possíveis (ambos são femininos e estão
no singular). Contudo, μετάνοια está no genitivo ligado a “lugar” (τόπον –
masculino singular), que é o objeto do verbo “encontrar”, ao invés do verbo
“buscar”. Assim, a “busca” não é pelo “arrependimento” (como na ARA),
mas pela “bênção” (como na NVI). Há um jogo com os verbos “encontrar”
(εὑρίσκω) e buscar (ἐκζητέω). Ele não “encontrou” o “lugar de
arrependimento”. Contudo, sua “busca” foi outra. Ele procurava a “benção”
rejeitada.
Não se pode negar que existe, sim, alguns pontos de contato entre Esaú e
o personagem idealizado por nosso autor. São basicamente dois: (1) a
impossibilidade de arrependimento e (2) a rejeição da bênção. Nesse caso,
nossos leitores deveriam se identificar com ele (assim como também com a
descrição dos particípios). Quem rejeita a bênção como Esaú deve olhar
para o resultado final de sua atitude.
Não podemos esquecer, entretanto, que nosso autor não crê na
condenação dos seus leitores. Ele está certo de que eles são salvos. Assim,
se existem pontos de contato com Esaú, existem também pontos de
divergência. O texto nos autoriza a usar Esaú somente no que ele tem em
comum com a figura idealizada pelos particípios. Não podemos usá-lo
como um tipo de “paradigma interpretativo”. Ou seja, não podemos recorrer
a ele para entendermos a força e/ou peso das qualificações da iluminação,
por exemplo.
Esaú é, sim, uma figura que serve de advertência – nenhum cristão quer
ter seu fim. Ele, assim como o personagem idealizado pelos particípios em
4-6, adverte-nos. Porém, essa identificação tem limites. Assim, se tivermos
uma vida marcada pela rejeição da bênção, podemos e devemos nos
identificar com ele. Porém, revelamos sermos autênticos cristãos quando o
vemos como um exemplo negativo. Ele é o exemplo claro dos resultados
trágicos de se buscar a bênção depois de rejeitá-la.
No entanto, mesmo entendendo a repetição como rejeição, ainda assim
teríamos dificuldade de manter um fluxo coerente de pensamento. Por que,
afinal, a renovação do caído exigiria (por implicação) a repetição do
sacrifício de Cristo? A rejeição da morte de Cristo é uma explicação mais
que suficiente para a impossibilidade de renovação do arrependimento,
assim como a profanação do sangue no capítulo 10 explica a ausência de
perdão. Porém, permanece ainda a questão da repetição. Não é somente
rejeição da morte, mas sua repetição. A rejeição se dá pelo absurdo da
repetição.
É importante lembrar do que já foi dito sobre os particípios. É linguagem
como reflexão. A lógica dessa repetição não é somente historicamente
impossível, portanto, somente concebível, mas se trata de uma implicação
absurda. O autor está levando o leitor para uma “armadilha lógica”. Ele traz
o ouvinte-leitor às implicações lógicas e absurdas de sua volta ao judaísmo.
Talvez a passagem que mais possa nos auxiliar nesse tópico em especial é
Hebreus 9.24-26. Como em nosso particípio, o tema “repetição hipotética
da morte de Cristo” aparece também. O texto nos diz exatamente o
seguinte:

Pois Cristo não entrou em santuário feito por homens, uma simples representação do
verdadeiro; ele entrou no próprio céu, para agora se apresentar diante de Deus em nosso
favor; não, porém, para se oferecer repetidas vezes à semelhança do sumo sacerdote que
entra no Santo dos Santos todos os anos, com sangue alheio. Se assim fosse, Cristo
precisaria sofrer muitas vezes, desde o começo do mundo. Mas agora ele apareceu uma
vez por todas no fim dos tempos, para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de si mesmo.
(NVI)

Aqui a lógica clara é que a morte de Cristo não pode ser equiparada a dos
sacrifícios do AT, que eram marcados pela repetição. Se Cristo fosse como
os sacerdotes antigos, ele deveria (ἔδει) morrer várias vezes. Porém, como o
próprio autor declara, ele “aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado,
mas para trazer salvação aos que o aguardam” (Hebreus 9:28 – NVI).
Continuar na perfeição, segundo a exortação em 6.1, implicava deixar o
judaísmo com suas repetições que não aperfeiçoavam ninguém. Esse era
um problema para os leitores imediatos do documento: eles não queriam
deixar o judaísmo. Contudo, ainda assim desejavam se manter como
cristãos.
A exortação positiva (“prossigam na perfeição”) e seu lado negativo
(“não lançando novamente”) revelam não somente um contraste pactual,
mas uma tendência sincrética dos leitores. Penso que a explicação para a
exigência lógica de uma repetição está exatamente nesse sincretismo –
nessa mistura.
No sincretismo, a rejeição de Cristo é real e inquestionável, porém, não é
deliberada, aberta e total.31 Não é que o personagem idealizado (com quem
os leitores deveriam se identificar) rejeita a Cristo de tal forma que espera
outro messias. Pelo menos em suas “boas intenções”, ele não troca Jesus, o
Cristo, por outro Messias. Se fosse o caso, Jesus não precisaria morrer
novamente. Teríamos uma rejeição completa e total. Ela não exigiria
repetição. Simplesmente o abandono absoluto. Eles não esperariam
absolutamente nada de Cristo. Se o problema fosse somente ir para o
judaísmo, uma linguagem de rejeição somente seria aplicada.
No entanto, eles buscavam um cristianismo-judaico; ou melhor, um
judaísmo-cristão. “Os judaizantes queriam Cristo e ao mesmo tempo impor
as cerimônias dos cultos do Antigo Testamento” (Sproul, 1998:165 – itálico
nosso). Em outras palavras, não era nem judaísmo, nem cristianismo. É
exatamente a “confusão sincrética” que geraria a figura absurda,
monstruosa e desfigurada de uma hipotética repetição da morte de Cristo.
Nessa figura anômala, Cristo ainda se faz presente, é aparentemente
valorizado; porém, ao mesmo tempo, sua morte é rebaixada igualando-a aos
sacrifícios repetitivos do AT. No particípio ἀνασταυροῦντας temos Cristo e
o sistema antigo juntos.
Por todo o documento, encontramos indicações claras de que os ouvintes
estavam em perigo de voltar para o judaísmo, ou seja, para a primeira
aliança, para o fundamento. O autor alerta que isso seria o mesmo que pisar
e profanar o sangue da aliança (10.29). O convite de olhar e seguir a Jesus
(12.2) implica em deixar Jerusalém e seus alimentos-sacrifícios (13.13).
Eles não têm qualquer proveito para o coração (13.9). É impossível voltar
para a cidade vivendo um novo tempo. Ou se está fora ou dentro da cidade.
Eles se excluem. Quem toma dos sacrifícios de dentro rejeita o de fora e
vice-versa. O desafio do autor, pois, é que aqueles irmãos caminhem na
perfeição. Eles precisavam entender que não podiam viver nos princípios
básicos. O tempo de criança já havia passado. As palavras de Sproul
(1998:167 – itálico nosso) podem esclarecer:
A lógica caminha assim. Se uma pessoa abraçou a Cristo e confiou em sua propiciação pelo
pecado, o que essa pessoa teria se voltasse para aliança de Moisés? Com efeito ela estaria
repudiando a obra acabada de Cristo. Ela seria de novo uma devedora da lei. Se esse fosse o
caso, onde ela iria se voltar para a salvação? Ela repudiou a cruz; não poderia voltar-se para
isso [...]. Sua teologia não permite uma obra acabada de Cristo.

Quem foi iluminado e participou dos poderes desse novo tempo não pode
voltar para aquilo que apontava, ilustrava ou profetizava em sombras. Isso é
o mesmo que rejeitar a crucificação de Cristo exigindo sua repetição e a
exposição de Cristo à vergonha novamente (6.6). A volta ao judaísmo
(fundamentos-arrependimento) implica em rejeição do sacrifício de Cristo –
único meio de salvação.
Os particípios ἀνασταυροῦντας e παραδειγματίζοντας, ao mesmo tempo
em que reforçam a impossibilidade (pois Cristo não pode morrer, nem ser
exposto a vergonha mais uma vez), revelam que a volta aos elementos
básicos seria, na verdade, uma rejeição deliberada do sacrifício de Cristo.
Aqui temos um paralelo com a quarta advertência. Enquanto que em nosso
texto não caminhar na perfeição é o mesmo que “recrucificar” ou rejeitar o
sacrifício de Jesus, lá é o mesmo que profanar o sangue da aliança.
Depois de ter experimentado dos poderes do “mundo vindouro” e ter
livre acesso ao trono onde podemos ter graça e misericórdia, não se pode
retroceder buscando nos princípios básicos, nas sombras e nas parábolas a
resolução para a queda-pecado. “Se alguém rejeita o cumprimento do tipo
(sacrifício de Jesus), então os próprios tipos […] nada podem alcançar”
(Schreiner 2010:80). Não há, pois, a necessidade de se diminuir a força de
Ἀδύνατον (impossível) nem aumentar o peso de παραπίπτω (queda).

Conclusão
Findamos apresentando nossa proposta em forma de paráfrase
interpretativa do texto de Hebreus 6.4-6:
“Queria falar um pouco mais sobre a Nova Aliança; contudo vocês
deixaram de ouvir sobre ela. Estão endurecidos. Talvez pelo sofrimento que
têm passado. Querem se voltar para o sistema antigo. Quando deveriam não
ter necessidade alguma de ensino, vocês se comportam como crianças.
Acho que vou ter que dar leitinho para meus bebês de novo. Os
aperfeiçoados, os que se beneficiam com as bênçãos da Nova Aliança, por
outro lado, exatamente por serem aperfeiçoados, têm discernimento. Por
isso exorto a todos vocês: permaneçam caminhando na perfeição. Usufruam
as bênçãos da Nova Aliança, do acesso livre ao trono, ao Santo dos Santos,
do sangue de Cristo. Escutem a voz do sangue que perdoa. Contudo, não se
pode usufruir dessa bênção e ao mesmo tempo voltar para o judaísmo. É
impossível manter os dois juntos. Ou vocês se apropriam das bênçãos ou
voltam para o judaísmo – o que seria um grande equívoco. A razão para não
se voltar para o judaísmo é a impossibilidade de se renovar alguém que quer
as bênçãos da Nova Aliança enquanto, ao mesmo tempo, abraça o
judaísmo, pois isso desvaloriza a morte de Cristo. Trata-a como as mortes
que apontavam para a dele – repetitivas.”
TERCEIRA PARTE: HEBREUS 6.7-8
Nesse ponto do parágrafo, o texto direciona nossa diligência
interpretativa para: (1) a origem da ilustração (uma vez que ele lança mão
de imagens comuns tanto no AT como no NT – o que despertaria o leitor
familiarizado com a “linguagem sagrada” a fazer associações
interpretativas) e, claro, (2) pelo significado dos elementos da ilustração (as
duas terras, frutos, espinhos e fogo).
A importância da resolução da primeira problemática está numa possível
fonte de esclarecimento. Se temos, por exemplo, uma citação ou alusão,
quer do AT ou do próprio NT, o contexto do texto citado ou aludido seria
uma excelente fonte de auxílio na busca do significado não somente para os
versos em questão (7-8), mas para toda a passagem (5.11-6.12).
Sobre a origem da ilustração, muitos são os candidatos. Do AT temos
Gênesis 3.17-18; Deuteronômio 11.11; 29.23-27; Isaías 5.1-5; 10.17; 28.23-
29; Ezequiel 19.10-14; Oséias 10.8, 12. Do NT temos as parábolas do
Senhor Jesus em Mateus 13.1-9; Marcos 4.3-9, 24-30 e Lucas 8.4-8 e o uso
de Paulo de plantação e galardão juntamente com o fogo que prova as obras
em 1Coríntios 3. Fora do material canônico, Attridge (1989:172) reconhece
imagens similares em Filo e fontes rabínicas.
O número de candidatos só revela as incertezas, imprecisões,
ambiguidades e, por conseguinte, a fragilidade de se acionar qualquer
dessas passagens acima como fonte de sentido. O fato é que não temos uma
citação direta. Uma alusão? Provavelmente um eco (cf. as notas de rodapé
21 e 22 no primeiro capítulo). Sim, existem pontos de contato; contudo, os
pontos de divergências são tamanhos que exigem do interprete uma cautela
redobrada na identificação de um candidato a “texto esclarecedor”. Não
podemos fazer como Verbrugge (1980), por exemplo, que tomou Isaías 5
como a fonte da ilustração e construiu toda sua argumentação a partir dessa
frágil premissa.
George Guthrie (em Beale e Carson 2007:963 – itálico nosso) entende
que, de todos os textos candidatos, as principais fontes do autor de Hebreus
foram Gênesis e Deuteronômio. Em suas palavras: “Hebreus emprestou de
ambas as fontes para construir a declaração proverbial”. Para Guthrie, esse
empréstimo implica em submeter a ilustração a uma “estrutura
deuteronomista” de bênção-maldição. Não há problema algum com essa
proposta contanto que fosse levado em conta o constante contraste de
intensidade por meio de uma argumentação de natureza a fortiori (“quanto
mais”) tanto dos benefícios quanto das condenações que o autor de Hebreus
faz entre as alianças. Submeter essa ilustração a um framework
deuteronomista nos termos do AT só diminuiria o peso da advertência – o
que não encontramos nas demais como vimos nas análises acima. Assim,
não se está negando que podemos encontrar uma estrutura de bênção-
maldição. A questão é que ela precisa ser lida à luz do contraste de alianças
tão comum em Hebreus. Quem “preenche”, pois, o conteúdo da maldição
não é Deuteronômio. Além disso, não há necessidade de se acionar os
elementos dos solos e frutos em outros textos para reconhecer essa estrutura
quando as palavras “benção” e “maldição” estão explicitamente presentes
nos versos.
Dessa forma, das palavras de George Guthrie, destaco a expressão
“construir”. Ou seja, nosso autor produziu sua própria ilustração. O ponto
de contato garantido entre a ilustração e os outros textos citados é o mundo
da agricultura (comum aos escritores bíblicos) e a sua associação a um
“framework deuteronomista” (a ser preenchido pela própria carta-
pregação). Moo e Naselli (em Carson 2016:707) nos lembram que os
autores bíblicos do NT podem acionar uma determinada expressão comum
ao texto do AT sem qualquer mínima intenção de interpretá-la. A razão de
tal comportamento está na intensa proximidade dos autores do NT com o
conteúdo e, por conseguinte, da linguagem do AT. Creio ser esse o caso do
nosso texto. Assim, nosso autor não interpreta nenhum texto, nem está nos
apresentando um paradigma interpretativo fora de sua obra.
Duas implicações importantes: (1) precisamos acionar indícios textuais
próximos na busca pelo sentido. Dessa forma, uma fonte externa (e.g.,
literatura apocalíptica) poderá trazer somente esclarecimentos ou
enriquecimento (o que faremos a seguir), mas não o próprio significado. (2)
O elemento do fogo juntamente com a (ou à luz da) natureza a fortiori da
argumentação serão fontes mais seguras de se entender as imagens da
chuva, dos frutos e dos espinhos e abrolhos. Vamos ao texto!

Duas terras
Assim como os versos 4-6, os versos 7-8 também são prefaciados pela
conjunção explicativa γάρ. Junto com Romanos, Hebreus é um dos livros
que mais usa essa conjunção. Como colocado na tabela anterior de relação
entre as sentenças: temos a explicação da “explicação da explicação” (3a
explicação) – agora em tom de advertência – que reforça a gravidade de
rejeitar Cristo e os benefícios a ele relacionados.
São duas as terras mencionadas. Elas são representadas por três
particípios atributivos (πιοῦσα [bebe], τίκτουσα [dar à luz] e ἐκφέρουσα
[produz]). Os dois primeiros se referem a terra que bebe (πιοῦσα) da água
que cai constantemente (πολλάκις) sobre ela e produz (τίκτουσα) bons
frutos. Resultado: ela recebe bênção de Deus (μεταλαμβάνει εὐλογίας ἀπὸ
τοῦ θεοῦ).
O terceiro particípio (ou a segunda terra) se refere a que produz
(ἐκφέρουσα) espinhos e abrolhos. Não há razões para se crer que a segunda
terra não foi igualmente exposta às mesmas chuvas constantes da primeira.
O diferencial da segunda terra está exatamente em ter sido exposta às
mesmas chuvas a ainda assim produzir espinhos e abrolhos. Sua rejeição as
chuvas a torna reprovável (ἀδόκιμος). Dessa forma, a maldição (κατάρας)
está próxima e seu fim é ser queimada (καῦσιν) – condenada. Assim são
todos os que experimentaram (pelo menos concebivelmente) da bênção da
Nova Aliança e posteriormente as rejeitaram. Só resta condenação. Tal
advertência visava alertar os leitores-ouvintes para o fim de não caminhar
na perfeição – de rejeitar as bênçãos conquistadas por Cristo.
Se nos versos anteriores o autor revelou a impossibilidade de se colocar
novamente os fundamentos e relacionou tal atitude com a rejeição a Cristo,
aqui ele adverte seus leitores quanto ao futuro daqueles que, deixando o
caminho da perfeição (rejeitando a cruz), buscam no alimento para criança
(no fundamento) a força. São como a terra que recebe água e não produz
frutos; antes, espinhos e abrolhos.
Difícil não relacionar a segunda terra com a figura representada pelos
particípios adjetivais (iluminados…caídos). Aqui o tipo de pessoa
idealizada ganha mais cores. Os iluminados-caídos seriam semelhantes a
uma “terra teimosa”, que recebeu tudo o que precisava para produzir bom
fruto e misteriosamente rejeitou a chuva que caiu abundantemente sobre
ela.

Fogo: condenação ou provação?


Alguns estudiosos têm advogado a ideia de que não temos aqui uma
metáfora do julgamento (condenação) final (e.g., Oberholtzer 1988:319-28).
Por outro lado, se entendemos que os versos 7-8 lidam com condenação
escatológica, podemos ligar Hebreus à literatura apocalíptica, uma vez que
“todos os apocalipses […] envolvem uma escatologia transcendente que
visa a retribuição além das fronteiras da história” (Collins 2010:34 – itálico
nosso). A literatura apocalíptica, então, poderá ser uma fonte de
enriquecimento de entendimento.
“Fogo” como uma figura ligada à condenação escatológica é claramente
apocalíptico. Pensando especificamente na literatura apocalíptica canônica
que certamente antecede cronologicamente o livro de Hebreus, temos o
livro de Daniel. Em 7:9-11, o trono do Ancião de Dias era descrito como
“chamas de fogo”. Fica claro pelo contexto que se trata de julgamento
condenatório escatológico. Ficamos, pois, com pouco material para
estabelecer uma comparação enriquecedora de sentido.
Por outro lado, pensando especificamente na literatura apocalíptica não
canônica, temos o exemplo de Enoque, com vastas referências apocalípticas
ao fogo como instrumento de condenação.32 Em 10.6, temos: “E no grande
dia do julgamento lança-o ao fogo”. O contexto trata da destruição da terra
no fim dos tempos (consumação) e de como escapar dela. Segundo Enoque,
o grande dia do julgamento será marcado pelo fogo. O capítulo 54 começa
com uma visão do vale de fogo ardente (54.1). Trata-se do lugar dos
poderosos, monarcas como Azazeel e sua hoste. Os grandes anjos Miguel,
Gabriel, Rafael e Fanuel lançarão todos eles na fornalha de fogo (54.6). É
dia de vingança.
O capítulo 100 faz referência à condenação de criminosos, pecadores e
perversos de coração (100.1,2). E declara: “Ai de vós, pecadores, quando
afligem e queimam os justos; naquele dia da vigorosa angústia sereis
recompensados de acordo com vossos feitos”. Ninguém ajudará esses
condenados. “Em chamas ardentes piores que o fogo sereis queimados”
(100.9). No capítulo 102, novamente, a condenação dos ímpios é repetida.
Aqui ela é chamada de “terrível fogo” (v.1). O texto diz: “Naqueles dias,
quando Ele lançar terrível fogo sobre vós, para onde fugireis, e onde
estareis a salvo?”.
O capítulo 106 conta a história do nascimento de Noé. Lameque, pai de
Noé, compartilha com seu pai, Matusalém, o diferencial da criança recém-
nascida. Ela tem cabelos brancos e seus olhos, como sol, iluminam a casa.
Matusalém, por sua vez, procura seu pai Enoque que revela o mistério desse
nascimento: a vinda do dilúvio e a salvação de Noé e seus filhos. Enoque
revela que mesmo depois do dilúvio a impiedade aumentará. Enoque, então,
escreve sobre os “últimos dias” (108.2). Ele afirma que naqueles dias os
que praticam o mal serão consumidos. Nas palavras de Enoque: “eles
clamarão e lamentarão na vastidão invisível, e no fogo queimarão” (108.3).
Em Enoque, portanto, boa parte das referências ao fogo são
escatológicas-punitivas. Tal informação serve de lembrete ou leva seus
leitores ao temor de tal realidade com o fim da perseverança.
Voltando a Hebreus 6.7-8, Oberholtzer (1988:319) entende que a
impossibilidade do verso 4 é real, bem como que os particípios tratam de
crentes autênticos. Isso o leva a concluir que os versos 6-7 não podem se
referir a crentes. Em suas próprias palavras: “[o] julgamento é de crentes
autênticos: a desobediência pode resultar em disciplina divina nesta vida e a
perda de recompensas futuras no milênio”. Καῦσις (queimada), portanto, é
uma referência ao fogo como um elemento purificador e/ou revelador, não
apocalíptico-punitivo.
A eliminação de qualquer perspectiva de julgamento escatológico foi
também defendida por deSilva (1996:91-116). Ele lê Hebreus através da
lente e/ou background hermenêutico da relação patrão-cliente. Assim, a
violação dessa relação resulta em desonra e vergonha, nunca condenação
eterna.
Mathewson (1999) entende que temos como background a geração do
deserto descrita em Números 14. Isso o leva a implicar que a condenação é
eterna e escatológica, mas não se trata de verdadeiros crentes. O caminho
parece ser sempre o mesmo: se os v. 4-6 se referem a crentes, os seguintes
não podem se referir à condenação e vice-versa.
Rowell (1937:337), seguindo Oberholtzer, entende que ἀδόκιμος
(reprovada) no verso 8 não tem ligação com salvação, mas com obras ou
premiação. Ele cita 1Coríntios 9.27 como um exemplo. Lá, o apóstolo
Paulo faz de tudo para não ser considerado ἀδόκιμος. O fogo aqui, pois,
seria equivalente ao fogo em 1Coríntios 3, que por sua vez não é de
condenação, mas um instrumento revelador das obras e, por conseguinte,
está dentro de um processo de premiação.
A perspectiva de Oberholtzer e de R. T. Kendall (2005) – fogo como
perda de galardão – traz alguns problemas graves:

1. Divide perseverança de salvação eterna. A primeira é para os que


recebem a herança da promessa ou galardões, o que não é o mesmo
que salvação. Isso é estranho quando pensamos especificamente em
Hebreus (Coley 2003:102). Para nosso anônimo autor, perseverança
não é a marca de uma categoria especial de crentes que são premiados,
mas dos crentes autênticos. Em suas próprias palavras: “Nós, porém,
não somos dos que retrocedem para a perdição; somos, entretanto, da
fé, para a conservação da alma” (Hb 10:39 – ARA; cf. 3.6, 1433). E
mais especificamente: “para que não vos torneis indolentes, mas
imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as
promessas” (Hb 6:12 – ARA). A dicotomia salvação/perseverança,
portanto, fica reservada às definições dos compêndios de teologia
sistemática.
2. Dilui todo o peso da palavra “maldição” em 6.7-8 e os argumentos de
natureza a fortiori como em 10.28-29: “Sem misericórdia morre pelo
depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de
Moisés. De quanto mais severo castigo julgais vós será considerado
digno aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue
da aliança com o qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça?”.
3. Essa visão trabalha com bases frágeis, como as distinções entre
“herdar o reino” e “ser salvo”, “ter o galardão” e “ter a salvação”34.
Deve-se ainda considerar que tal perspectiva deixa escancarada a porta
da possibilidade de termos salvação sem perseverança e santificação, o
que vai de encontro a toda a teologia da carta e às declarações
didáticas e explícitas de Hebreus 10.39: “não somos dos que
retrocedem para a perdição” e Hebreus 12.14: “Segui a paz com todos
e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor”.
4. As colocações de Rowell e Oberholtzer não condizem com a
linguagem de maldição que nos remete à aliança sinaítica e à lógica
deuteronomista a ela relacionada. O que é claro para o autor de
Hebreus é que a aliança em questão para o cristão é a Nova Aliança.
No capítulo 10, é claramente revelado que a maldição da Nova Aliança
não é a morte física, mas fogo, que não é revelador, mas consome os
adversários (10.27). É escatológico e punitivo. Assim, a maldição e/ou
condenação é esperada a todos que não produzem frutos. Usando as
palavras dos versos 1-2, para todos que permanecem nos princípios
elementares ou não seguem na perfeição.

A literatura apocalíptica
Uma vez estabelecida a relação entre Hebreus e a linguagem
apocalíptica, podemos buscar alguns paralelos. O texto da literatura
apocalíptica judaica mais próximo de Hebreus se encontra no livro de
4Esdras.
Segue uma introdução-resumo da obra: após seu chamado, Esdras
(também chamado Salatiel) se volta para os gentios devido ao
comportamento reprovado do povo judeu. Ele tem uma visão de uma
grande multidão no monte Sião. É uma visão de premiação. Cada um
recebe uma coroa do Filho de Deus (2.4735). Semelhante ao comportamento
de João em Apocalipse (ou o contrário), Esdras questiona o anjo quanto à
identidade dos coroados. O anjo afirma que são os que confessaram o nome
de Deus (2.45) e do seu Filho (2.47). Seguem-se sete visões. O julgamento
final é descrito na mais longa visão em 6.35-9.25. Em 9.10-12 temos:

Quantos não me reconhecem em suas vidas, embora tenham recebido meus benefícios;
quanto a minha lei é desprezada enquanto eles ainda têm liberdade, enquanto uma
oportunidade de arrependimento ainda está aberta para eles, esses devem reconhecê-la depois
da morte.
Em 4Esdras 9.29-36 temos a quarta visão:

29: Ó Senhor, tu revelaste a ti mesmo entre nós, aos nossos pais no deserto, quando saíram do
Egito e entraram no deserto inexplorado e infrutífero 30: E falaste: Ouvi-me, ó Israel, e dê
atenção às minhas palavras, descendentes de Jacó. 31: Pois eis que eu semeio a minha lei em
ti, e serás glorificado através dela para sempre. 32: Mas, apesar de nossos pais terem recebido
a lei, não a guardaram, não observaram seus estatutos; contudo o fruto da tua lei não pereceu,
nem poderia, pois era teu; 33: No entanto, os que receberam pereceram, porque não observam
o que foi semeado neles. 34: E eis que há um costume de que quando o solo recebe uma
semente, ou o mar um navio, ou qualquer prato alimento ou bebida e acontece de que o que
foi semeado, o que navega e o que foi colocado são destruídos, 35: eles são destruídos, mas
as coisas que os sustentam permanece; contudo conosco as coisas não foram assim. 36: Pois
nós os que receberam a lei e pecamos pereceremos, bem como nosso coração que a recebeu.

E em 10.5536 temos: “Portanto, não temas, e não deixe seu coração ficar
aterrorizado, mas vá e veja o esplendor e a grandeza do edifício tanto
quanto é possível aos teus olhos vê-lo”.
Seguimos o entendimento de Nongbri (275) sobre 4Esdras:

Tanto a linguagem de condenação quanto a de conforto estão presentes, porém com uma
considerável quantidade de texto que separa os dois. […] Tal não é o caso de Hebreus. Em
6:4-12, o autor imediatamente segue sua linguagem de condenação com linguagem de louvor
e exortação. Especificamente, nosso autor expressa confiança na audiência na base de suas
ações passadas.

Nós temos nas passagens consideradas anteriormente, como em Hebreus,


(1) o fogo como condenação escatológica; (2) pessoas que tiveram contato
com a lei de Deus e usufruíram dos seus benefícios; (3) o temor visando a
perseverança como o objetivo das palavras; e (4) uma palavra de ânimo que
segue as palavras de condenação (como as de Hebreus 6.9ss e seus
paralelos em Hebreus 10 e 12).
Por essas razões, entendemos que 4Esdras é um bom background para o
entendimento de Hebreus 6.7-8. É interessante nesse ponto a ressalva de
Collins: “O significado de qualquer obra não é constituído pelas fontes das
quais bebe, mas pela maneira que são combinadas” (Collins 2010:44).
Algumas considerações:
1. Em Enoque 102 temos a descrição da condenação dos ímpios. Trata-se
de uma palavra dada diretamente aos ímpios ou pecadores, porém com o
foco nos justos. O texto claramente é um consolo para os justos diante das
dificuldades de uma vida piedosa. Eles não devem desistir da vida virtuosa,
pois melhor é morrer em grande sofrimento, com gemido, lamentação e
tristeza, mas em retidão, pois os pecadores serão amaldiçoados para sempre,
e não haverá paz para eles (cf. 102.5). Enoque mostra que para os
observadores normais (sem perspectiva apocalíptica), a morte do ímpio tem
o mesmo resultado que a do justo, e tenta corrigir isso através de uma
perspectiva escatológica-apocalíptica. O mesmo se pode dizer do propósito
de Hebreus.
2. Quanto ao Livro dos Vigilantes (parte de Enoque), ele se preocupa
muito com o julgamento final dos justos e malignos. No capítulo 14, entra
em contato com uma “habitação”. Em suas palavras: “Uma chama
queimava ao redor dos muros; e seu portal queimava com fogo. Quando eu
entrei nesta habitação, ela era quente como fogo e frio como o gelo.
Nenhum traço de encanto ou de vida havia lá” (14.12). Sua reação foi de
temor e tremor. O comentário de Collins (2010:90-1) vale ser registrado
aqui: “Se a visão é tão grandiosa que mesmo o justo Enoque se abala e
treme, muito mais o deverão aqueles que arriscam condenação”. Assim, o
sofrimento característico dos leitores desse tipo de literatura deve ser visto a
partir dessa perspectiva. Isso claramente expande nosso entendimento de
Hebreus.
3. Na literatura apocalíptica também encontramos exortações. Aqui
queremos entender a relação entre a exortação e a literatura apocalíptica.
Em primeiro lugar, não há uma direção única. Pensando na condenação
descrita em Enoque 102, não há qualquer sinal de exortação para reagir com
violência contra os ímpios. Já no Apocalipse das Semanas e no Apocalipse
Animal, encontramos tendências militantes. Daí a razão de estabelecerem
relação entre os autores da obra e a revolta macabeia. No entanto, de uma
forma geral, a literatura apocalíptica apoiava uma “atitude quietista”
(Collins 2010:394). Assim, “a natureza das exortações pode variar” (Collins
2010:72). A questão não é somente o problema a ser sanado pela exortação,
mas pela perspectiva apocalíptica. Novamente dependemos de Collins
(2010:73):

Qualquer que seja o problema subjacente, ele é percebido a partir de uma perspectiva
distintamente apocalíptica. […] A função da literatura apocalíptica é moldar a percepção
imaginativa da situação de alguém e, assim, colocar fundamentos para qualquer curso de ação
ao qual ela exorte.

A linguagem de ameaça é comum na literatura apocalíptica. Segundo


Nongbri, (273) “um dos propósitos principais da linguagem apocalíptica é
instilar temor na audiência”. Nongbri (266) entende que esse é o mesmo
propósito do autor de Hebreus – “evocar temor” aos seus leitores. A
linguagem severa de 6:4-8, portanto, é parte do programa de encorajamento
que leva seus leitores a reavaliarem o que eles temem (Nongbri: 274)37.
Deste modo, eles perseverarão.
QUARTA PARTE: HEBREUS 6.9-12
Das quatro partes que dividimos nosso parágrafo, essa é a que menos
desenvolveremos. Nosso objetivo aqui é simplesmente identificar o grupo
descrito nos versos 9-12 como salvos. A dispensabilidade de uma discussão
exegética significante aqui (uma vez que um consenso entre todos os
comentaristas quanto à identidade dos descritos) explica a pequena porção
de texto que segue.
Seguindo as palavras de condenação (τὸ τέλος εἰς καῦσιν [seu fim é ser
queimada]) da porção precedente (v.7-8), o autor traz uma palavra de ânimo
onde revela sua convicção de que está lidando com salvos. Diferente dos
condenados destinados ao fogo, o autor não tem qualquer sombra de dúvida
(Πεπείσμεθα) que eles têm a salvação (σωτηρία). Esse mesmo modelo
(exortação-advertência-ânimo) será repetido logo em seguida nos capítulos
10 e 12.
Certamente, Fanning concorda com esse pressuposto. Seu ponto é que a
apostasia não se aplica a cristãos genuínos, mas a pessoas que possuem uma
“fenomenologia cristã” – o que faz todo o sentido, pois não existe apostasia
para cristãos autênticos. Contudo, se essas palavras não foram dirigidas a
cristãos genuínos, por que declarar: “Amados, mesmo falando dessa forma,
estamos convictos de coisas melhores em relação a vocês, coisas próprias
da salvação”?
Toda a certeza e expectativa (ἐπιθυμοῦμεν) do autor estão ancoradas na
vida dos leitores, que está marcada (presente e passado38) pelo serviço aos
irmãos. A perseverança esperada e incentivada visa que eles não se “tornem
indolentes” (νωθροὶ γένησθε).
Sem dúvidas, a maior dificuldade para os defensores de incrédulos nos v.
4-6 é relacionar essa passagem com sua passagem mais próxima – Hebreus
10.26-3239. Aqueles que foram iluminados em Hebreus 6 são “os
santificados pelo sangue da aliança” em Hebreus 10. Como não entender tal
declaração como sendo uma referência à santificação interna, como defende
Grudem (1995:177)? É um apego exagerado ao vocábulo em detrimento de
tudo o que nos é dito sobre santificação e sobre a Nova Aliança no NT,
principalmente em Hebreus.
Findamos destacando que existem dois elementos nessa última porção
que unem tudo que foi dito anteriormente. Primeiramente, a expressão
νωθρός (negligentes) que fecha a inclusio e une “salvos” (última porção) e
“negligentes” (primeira porção). Segundo, a expressão εἰ καὶ οὕτως
λαλοῦμεν40 une os salvos (última porção) com as duras palavras de
advertência imediatamente precedentes (segunda e terceiras porções). Ela
não nos permite qualquer distinção no público. Tanto a advertência quanto
as palavras de consolo e reafirmação têm exatamente o mesmo público.

1. A lida com as conjunções segue Steve Runge (2010).


2. A posição de F. F. Bruce (1992:112) quanto a variante διδαχήν confirma o que será proposto aqui,
pois assim teríamos διδαχήν paralelo com θεμέλιον indicando que os dois têm a mesma referência,
bem como faz com que βαπτισμῶν (batismos/abluções), ἐπιθέσεώς χειρῶν (imposição de mãos),
wἀναστάσεώς νεκρῶν (ressurreição dos mortos) κρίματος αἰωνίου (juízo eterno) dependam de
διδαχήν. Mesmo seguindo a NA28, pelo contexto e pela léxis esses elementos seriam considerados
“ensinos”. A grande questão é como lidar com fé e arrependimento.
3. Em itálico temos os paralelos sinônimos e em negrito temos os paralelos antitéticos. Um diz o que
é o outro e nos informa o que não é (ou que deveria ser).
4. Adiante segue uma discussão sobre o real significado desse vocábulo onde se rejeita as traduções
correntes.
5. Segundo Jeffrey Reed (em Porter 2002: 195): “Co-texto refere-se a unidades linguísticas que
fazem parte de um discurso e, mais especificamente, de unidades linguísticas que circundam um
ponto particular do discurso. O contexto refere-se a fatores extralinguísticos que influenciam a
produção e interpretação do discurso e pode ser amplamente categorizado em termos do contexto de
situação, isto é, da situação histórica imediata em que ocorre um discurso e do contexto da cultura, ou
seja, a “cosmovisão” em que ocorre um discurso”.
6. A grande maioria das versões segue a força ativa: “prática” (ARA, A21, NTLH, TB), “costume”
(ARC, ACF) “exercício constante” (NVI), “practice” (NAS, NASB, NJB, NRSV, ESV).
7. Grande parte dos eruditos adotam o dualismo maturidade versus imaturidade: Attridge (1989); F.
F. Bruce (2009); Calvin (1979); Cockerill (2007); Ellingworth (1993); Guthrie (1999); Donald
Hagner (1997); Koester (2001); William L. Lane (1991); B. F. Westcott (1903); Cowan (2012);
Thomas Schreiner (2015); Davis (2008).
8. Algumas traduções distorceram o sentido natural dessa construção para que se encaixasse com o
sentido de prática ou performance para ἕξις. Exemplos: “...pelo exercício constante” (NVI); “...pela
prática” (ARA, A21, NTLH).
9. Sua pesquisa foi seguida por George H. Guthrie (1998:203) e Peter O’Brien (2010:210).
10. Interessante observar que na edição de 2000 (disponível no software Logos), não sabemos o
porquê, o BDAG (350) traz como significados possíveis de ἕξις não somente “maturidade”, mas
também “um estado de maturidade”.
11. O sentido de repetição ganha destaque nesse parágrafo com as palavras πάλιν (5.12; 6.1; 6.6) e
ἀνασταυρόω.
12. É importante entender que Porter não está se referindo especificamente ao nosso texto.
13. “Tardios em ouvir” (ARA), “Negligentes em ouvir” (ARC).
14. Essa associação com o povo no deserto é reforçada pela referência a “queda” em 6.6. Veja a
seguir.
15. A despeito de não a detalharmos, essa tese tem peso substancial para nossas conclusões. Em
nossa análise da segunda advertência ela é ratificada.
16. Segundo BDAG (946), “componente básico de algo”. Segundo LN (58.19), “princípio básico que
subjaz a natureza de algo, ‘princípio básico’, ‘princípio elementar’”.
17. Segundo BDAG (138), “base para um entendimento adicional”. LN (58.20), “aspectos
elementares e preliminares que definem a natureza de alguma coisa”.
18. O que não necessariamente deve nos levar ao mesmo referente, pois o significado de uma palavra
não está em sua raiz (cf. Carson 1999:26).
19. James Dunn (1970:207) entende que o uso de βαπτισμός ao invés de βάπτισμα não providencia
garantia nenhuma para se fazer uma distinção rígida entre os vocábulos. Para ele, βαπτισμός tem
leitura bem fundamentada em Colossenses 2.12. Contudo, ele, estranha e descuidadamente, ignora o
uso de βαπτισμός no próprio livro – uma clara referência às abluções das leis mosaicas.
20. Reconhece-se que essa conjunção tem basicamente três funções: explicativa, inferencial ou
causal. O texto parece indicar uma explicação para se deixar os princípios elementares (O’Brien
2010: 219).
21. Erasmo, por exemplo, abandonou a palavra “impossível” por “difícil”. F. F. Bruce entende como
impossível para o homem. Contudo, como veremos, não precisamos diminuir o peso da
impossibilidade. Muito pelo contrário, o contexto exige toda força desse vocábulo.
22. Stanley Porter (1989:92) propõe três níveis de relevos discursivos: background (plano de fundo),
foreground (primeiro plano) e frontground (primeiríssimo plano).
23. Millard J. Erickson (1998:1004), pressupondo a conclusão dos gramáticos H. E. Dana e Julius
Mantey, categoriza esse único particípio παραπεσόντας (caíram) como adverbial e, por conseguinte,
possuindo um significado lógico-pragmático condicional. A presença de um único artigo prefaciando
a sequência de particípios ligados por καί nos direciona para outra conclusão – particípios adjetivais.
Segundo Daniel B. Wallace (1996:617), a primeira pergunta que devemos fazer a um particípio é se
ele tem artigo. Se a resposta for “sim”, é adjetival. Sobre esse texto em especial ele questiona: “Se
esse particípio fosse considerado adverbial, não deveríamos pensar que os dois ou três particípios
anteriores pertencem a mesma classe?” (633).
24. Daí a razão de não investirmos tanto espaço no significado de cada expressão ligada aos
particípios.
25. Evidentemente não se está afirmando que a geração do deserto que não entrou na terra prometida
era completamente condenada, pois pessoas fiéis como Moisés não entraram. Da mesma forma, nem
todos que foram “salvos” do Egito foram salvos eternamente.
26. Outro exemplo de uma cadeia de explicações encontramos em Romanos 1.16-18.
27. Pressupõe-se que explicação é uma categoria semântica mais ampla do que resultado e, portanto,
a engloba.
28. A ideia de repetição pode estar no prefixo ἀνα.
29. Alguns comentaristas e traduções entendem simplesmente como “crucificar” (e.g., RSV).
Geralmente citam Josefus para ratificar essa tese. Life420; War 2.306, 5.449; Ant. 2.73; 11.246. A
ideia seria “levantar sobre a cruz”. O que faz sentido quando consideramos o segundo particípio.
Contudo, nossa argumentação seguirá o julgamento da esmagadora maioria das versões:
“recrucificação”.
30. Exemplo de comentários e traduções que optam por “crucificar novamente”: Calvin (1979),
Kistemaker (2003), Westcott (1903), Lane (1991), NVI.
31. Sproul (1998:165) entende que um dos grandes desafios dessa passagem é reconhecer a natureza
da apostasia combatida. Ele apresenta duas possibilidades: (1) Uma rejeição aberta em um período
de perseguição. Em suas palavras, o texto estaria combatendo pessoas que gritaram e abjuraram sua
fé. Contudo, no esvanecer da perseguição, resolveram voltar à vida em comunidade. (2) Judaizantes.
Esses, como colocado na citação no parágrafo seguinte, rejeitavam indiretamente por meio do
sincretismo. Sproul segue a segunda possibilidade como defendida nessa obra.
32. Enoque não é uma obra, mas uma coletânea de escritos. Os estudiosos têm dividido sua obra em
cinco partes: Livro do Vigilantes (1-36); As Similitudes (37-71); O Livro Astronômico (72-82); o
Livro do Sonhos (83-90) e a Epístola de Enoque (91-108). Dentro da Epístola se encontra o
Apocalipse das Semanas e dentro do Livro dos Sonhos temos o Apocalipse Animal. Todas as
citações de Enoque seguem Charlesworth (1983).
33. Na página 73 mostramos que a relação entre a prótase e a apódase nestas duas passagens é de
evidência e inferência, sendo que a evidência de ser participante de Cristo é perseverar até o fim.
34. O sétimo capítulo da obra de Kendall (2005) trata da relação entre santificação e Reino de Deus.
Enquanto a salvação é imutável, a herança no reino de Deus não é (71). O autor reconhece que
salvação e reino são às vezes igualados (e.g., João 3.3), mas nem sempre. Atos 14.22 é usado para
sustentar sua tese. Kendall entende que há uma incoerência entre o texto e tudo que aprendemos
sobre justificação e adoção em Romanos. Seguem três observações que o levam a distinção referida:
(1) há uma fé continua (diferente da fé como um ato da justificação) antes de entrar do reino; (2) é
necessário sofrimento e (3) os ouvintes de Paulo e Barnabé são chamados de discípulos. Assim,
pode-se dizer que alguém pode ser salvo e não necessariamente obter recompensa da herança.
Comentando 1Coríntios 6.9-11, especificamente a expressão “tais fostes alguns de vós”, Kendall
assegura que Paulo não está se referindo ao passado pré-conversão, mas a forma que alguns estavam
se comportando visto que já eram salvos. Não há ameaça a perda de salvação, mas somente de perda
da herança do Reino – galardão. Reino de Deus pode ser chamado também de “ser cheio do Espírito
Santo”, “andar no Espírito”, “alegria no Espírito Santo”, “o mais excelente caminho”, “comunhão
com o Pai”, “permanecer na luz”. Assim o chamado para a santidade em 1Tessalonicenses 4.7 é um
chamado para o reino (2.12) e “santificação não é pré-requisito para glorificação” (cf. Rm 8.30).
35. Todas as referências a 4Esdras seguirão Charlesworth (1983).
36. Em 10.55-60 temos uma perícope que “forma a conclusão e as injunções da quarta visão” (Stone
1990: 340).
37. Discordo de Nongbri ao defender que a ameaça implica em possibilidade real.
38. διακονήσαντες e διακονοῦντες.
39. Os paralelos estruturais são fortes. Ambas as passagens começam com uma exortação (5.11-6.3 e
10.19-25), seguida de uma advertência (6.4-8 e 10.26-31), findando com uma reafirmação (6.9-20 e
10.32-39).
40. “Ainda que falamos dessa maneira” (ARA); “ainda que assim falamos” (ARC; TB); “mesmo
falando dessa forma” (NVI); “ainda que falemos dessa maneira” (NTLH); “ainda que falemos assim”
(A21).
Conclusão

Como em toda boa exegese, foi uma longa caminhada em busca do sentido.
Encaramos questões contextuais, literárias, teológicas, linguísticas e
gramaticais. Coletamos o maior número de informações úteis possíveis e
lutamos para uni-las harmonicamente a fim de oferecer as melhores
respostas aos oito questionamentos apresentados na introdução deste livro.
Seja para mudança de algum detalhe ignorado, seja para amadurecimento e
enriquecimento de nossas conclusões, creio que ainda temos muito o que
aprender. Por hora, ficamos com as seguintes respostas:
1. Sobre a identidade dos indivíduos em 6.4-6, concluímos que as
pessoas descritas por meio de particípios adjetivais são cristãos autênticos.
São duas as razões que nos direcionam a essa conclusão: a natureza e a
relação entre os particípios e o referente único entre as três porções em 4-6;
7-8 e 9-12 (argumento desenvolvido no ponto 2 mais adiante).
Quanto à primeira razão, tomamos a cadeia de particípios em 6.4-6 como
adjetivais e reconhecemos que eles se relacionam uns com os outros de
forma homogênea construindo assim um todo coeso. Aqui, em especial,
seguimos a tese de que o particípio é um convite ao ouvinte/leitor a atuar
em alguma parte do discurso. No caso específico de nossa passagem, somos
convidados não somente a pensar, mas a se identificar de alguma maneira
com esse tipo de pessoa – os iluminados-caídos-impossibilitados de
renovação. A não identificação com a persona idealizada nos particípios
não somente distancia o leitor das características positivas (e.g.,
iluminados), mas da própria advertência e da argumentação – o que não faz
o menor sentido.
O que pode dificultar a apreciação e a identificação devida desse “tipo
de pessoa” como um salvo é o seu caráter misto (iluminados e caídos),
inconstante (iluminados que depois caíram) e, para alguns, até contraditório
(e.g., renovados que não podem ser renovados). Em outras palavras, os
elementos negativos (caíram e impossibilidade de renovação) poderiam
impedir o reconhecimento de que o referente dos particípios é único e diz
respeito a cristãos autênticos. Contudo, como observamos na exposição do
texto, o “peso condenatório” dos “elementos negativos” possui certa
ambiguidade bem como se encontram em uma linha argumentativa onde os
leitores (considerados salvos) são convidados a participar; ou seja, a priori
eles não necessariamente eliminam ou diminuem as características positivas
(e.g., provaram o dom celestial). A escolha não é binária. Precisamos
manter a tensão e uma certa ambiguidade ou anomalia para seguirmos
corretamente o caminho do argumento.
O texto não nos direciona a escolher entre as categorias “salvos”, “salvos
que apostataram”, ou “crentes fenomenológicos”; antes, ele impulsiona seus
leitores a se identificarem com a “persona dos particípios”. Tal postura
assegura a autenticidade e a genuinidade de todos os qualificativos. Não se
deve questionar, por exemplo, a qualidade da iluminação ou da participação
do Espírito Santo. Se o leitor categoriza esse “grupo coeso” como “cristãos
externos”, por exemplo, ele se distancia da exortação – o que o próprio
autor não faz – e da trilha lógica proposta. Para que eles acompanhem o
argumento e desfrutem do “chacoalhar” da advertência é necessário que
eles se coloquem no grupo idealizado pelos particípios adjetivais.
2. Quanto à relação entre os versos 4-6, 7-8 e 9-12, concluiu-se que essas
porções estão intimamente relacionadas e possuem um vínculo de
dependência de sentido. Através da apreciação da natureza dos particípios e
dos conectivos – principalmente de γάρ –, ficou evidenciada a relação direta
entres essas partes. Isso nos levou a concluir que as designações (1)
“negligentes”, “crianças” em 5.11-6.21 , (2) “iluminados-caídos-
impossibilitados” em 6.4-6 e os (3) “salvos” em 9-12 são, na verdade,
características de um mesmo e único referente. Em outras palavras, essa
unidade referencial nos obriga a ver os “iluminados-caídos...” em v.4-6
como os mesmos “salvos” nos versos 9-12. A expressão “mesmo falando
dessa forma” (NVI) é uma evidência de como as positivas palavras de
salvação em 9-12 devem ser lidas juntas com as palavras de advertência em
4-8.
A aparente distinção e/ou “ruptura estrutural” gerada pela mudança de
pessoa a partir do verso 4 (primeira pessoa nos versos 1-3 e terceira nos
versos 4-6) foi explicada pela natureza do “isolamento reflexivo” gerada
pelos particípios – algo comum com o distanciamento característico da
terceira pessoa.
A figura do solo que produz ervas daninhas e é queimada lança luz aos
particípios (ἀνασταυροῦντας e παραδειγματίζοντας) que se encontram na
porção anterior. Não é uma nova seção ou uma explicação desconectada do
texto imediato acima, mas trata-se de uma ilustração de rejeição descrita
pelos particípios. As duas terras são expostas as mesmas chuvas. A rejeição
por repetição desse grupo é ilustrada, pois, com a figura absurda e
monstruosa de uma “terra teimosa” que rejeita a chuva – as bênçãos
alistadas pelos particípios adjetivais (iluminados...).
3. Concluiu-se que a impossibilidade que o autor menciona é real. Ela
não encontra sua explicação no particípio aoristo παραπεσόντας (ou seja, na
queda [cf. ponto 4]), mas na lógica absurda e inevitável da repetição do
sacrifício de Cristo. Assim, são os particípios presentes ἀνασταυροῦντας e
παραδειγματίζοντας (crucificar novamente e expor à ignomínia) que nos
fornecem a explicação da impossibilidade. Esses particípios foram
considerados a chave elucidativa para as muitas ambiguidades de nosso
texto.
É importante entender a cadeia de explicações que seguem a exortação
em 6.1 (desfrutar das bênçãos da Nova Aliança – cf. ponto 7);
especificamente do seu aspecto negativo: o não lançar de novo o
fundamento. Vale lembrar que tomamos o “fundamento” como uma
referência aos elementos da Antiga Aliança. Temos, pois, a seguinte
sequência ou cadeia de explicações: ao desfrutarem das bênçãos da Nova
Aliança não se voltem (repitam) para a Antiga Aliança → porque é
impossível → isso exigiria a repetição da morte de Cristo → que seria uma
rejeição digna de condenação (fogo).
O autor, portanto, utiliza-se de um tipo de “armadilha lógica” onde os
conceitos de repetição (“renovar novamente”, “lançar de novo”) e rejeição
(“expor à ignomínia”) estão intimamente relacionados. A rejeição de Cristo
(repetição de sua morte) explica o absurdo (ou a impossibilidade) da
repetição do fundamento – uma volta para a Antiga Aliança. Quem foi
iluminado e participou dos poderes do novo tempo inaugurado por Cristo
não pode voltar para aquilo que apontava, ilustrava ou profetizava em
sombras (o AT) e ainda assim se manter cristão. São dois altares que se
anulam (cf. 13.10). A impossibilidade está, pois, na unidade sincrética de
judaísmo com cristianismo. No particípio ἀνασταυροῦντας (crucificar
novamente) temos Cristo e o sistema antigo monstruosamente juntos.
É importante entender que não se trata somente de uma rejeição do
cristianismo, ou uma negação categórica de Cristo, ou ainda uma simples
troca de cristianismo (Cristo) por judaísmo (sacrifícios). A chave aqui é a
repetição hipotética da morte de Cristo. Se fosse somente uma questão de
rejeição, não teríamos a necessidade, mesmo que hipotética, de repetição. O
que é impossível, portanto, é a síntese entre o judaísmo e o cristianismo. O
combate a essa síntese já pode ser visto no contraste entre o lado positivo
(desfrutem das bênçãos da Nova Aliança) e negativo (não lancem de novo
os elementos da Antiga Aliança) da exortação em 6.1.
Essa síntese monstruosa de alianças findaria numa igualdade
insustentável (impossível) entre o sistema antigo e repetitivo de sacrifícios e
o sacrifício singular de Cristo, transformando a morte do Senhor Jesus em
um sacrifício qualquer – a ser repetido. Isso é o mesmo que rejeitar a
crucificação de Cristo, exigindo assim sua exposição à vergonha novamente
(6.6); algo equivalente, por exemplo, ao que encontramos no capítulo 10:
“profanar o sangue da aliança”.
4. Quanto à natureza da queda: a impossibilidade de renovação não se dá
diretamente por causa da queda. Não é a queda que explica a
impossibilidade de renovação, mas a repetição da crucificação de Cristo.
No arranjo sintático, a queda é um particípio aoristo que antecede o verbo
principal. Ou seja, ele tem uma função de background. Não nos é fornecido
os detalhes de sua natureza e razão. Ele não é fonte de explicação. A única
declaração que se pode fazer com segurança é que “cair” aqui é
simplesmente “não continuar”. Se a queda é definitiva, o que a causa ou
ainda se é um ato ou um resultado não nos é informado. O que passar daqui
é especulação.
O pecado combatido pela exortação-solução em 6.1, portanto, não é
representado por παραπίπτω (queda), mas na concebível recusa de
prosseguir na perfeição – rejeitar as bênçãos da Nova Aliança (cf. ponto 7)
por meio do sincretismo. Depois de ter experimentado dos poderes do
“mundo vindouro” e o acesso ao trono pelo sangue de Cristo, não se pode
retroceder buscando nos princípios básicos (primeira aliança) a resolução
para a queda. Usando a linguagem dos versos 7-8: é rejeitar a chuva.
5. Como proposto acima, a advertência esclarecida nos versos 7-8 não é
consequência direta da queda mencionada no verso anterior, mas da não
“aplicação apropriada” da exortação de 6.1 (apropriar-se das bênçãos da
Nova Aliança). Entenda-se apropriada como “não sincrética”. Na cadeia de
explicações, ela é a “explicação da explicação”. Voltar para os princípios
elementares do judaísmo enquanto cristão é absurdo (impossível), pois
implica em repetição do sacrifício de Cristo.
A gravidade dessa monstruosa e hipotética repetição é ilustrada com a
figura da terra improdutiva que é amaldiçoada e queimada. Aqui ele adverte
a seus leitores quanto ao futuro daqueles que, deixando o caminho da
perfeição (rejeitando a cruz e as bênção decorrentes do sangue da aliança),
buscam no alimento para criança (no fundamento) a força. São como uma
“terra teimosa” que, mesmo recebendo água, não produz frutos; antes,
espinhos e abrolhos. As advertências paralelas, principalmente as
encontradas nos capítulos 10 e 12, especificamente a natureza a fortiori das
argumentações dessas passagens, reforçam a nuança de condenação na
figura do fogo.
6. Quanto à relação entre as advertências, concluiu-se que o pecado
combatido é basicamente o mesmo: retroceder no caminho da fé não se
agarrando a Cristo e seu sacrifício perfeito, único e exclusivo. A análise de
cada uma delas se mostrou de grande importância para o entendimento e
esclarecimento da nossa passagem, pois elas estão basicamente na mesma
tônica e, em alguns casos, compartilham de uma mesma estrutura (e.g.,
exortação [5.11-6.3 e 10.32-39], advertência [6.4-8 e 10.26-31] e uma
reafirmação [6.9-20 e 10.32-39]).
7. Quanto ao conceito de perfeição, entendemos tratar-se de um tema rico
e amplo o suficiente para que o reconheçamos como o tema teológico mais
importante de todo o livro. A despeito da complexidade e riqueza dos temas
encapsulados nas palavras de raiz τελ- (e.g., santificação, purificação,
aproximação do trono), podemos ver uma coesão em toda a obra. Não
encontramos motivos, pois, para tratar τελειότης (perfeição) em 6.1 e
τέλειος (perfeitos) em 5.14 de maneira dissonante das outras ocorrências
das palavras de raiz τελ- (τελείωσις [7.11]; τελειωτής [12.2], τέλειος [9.11]
e τελειόω [2.10; 5.9; 7.19, 28; 9.9; 10.1, 14; 11.40; 12.23]) como se elas
tivessem referentes distintos. Assim, diferente da grande maioria dos
comentários e versões, não entendemos que a exortação em 6.1 (continuem
prosseguindo para a perfeição) seja um encorajamento à maturidade. Os
irmãos de Jesus são aperfeiçoados, ou seja, capacitados (santificados,
purificados), por meio do sacrifício de Cristo, a se aproximar de Deus e da
glória perdida. Trata-se, pois, do resultado da realização da Nova Aliança.
A exortação em 6.1 pode ser colocada da seguinte maneira: permaneçam
caminhando na perfeição; usufruam das bênçãos da Nova Aliança, do
acesso livre ao trono, ao Santo dos Santos, do sangue de Cristo. Escutem a
voz do sangue que perdoa. Olhem para Cristo – sua pessoa e obra.
8. Quanto à natureza, embasamento e propósito das advertências,
concluímos que as advertências são instrumentos e/ou meios (não garantia
ou base) de manutenção dos crentes em perseverança. As advertências de
Hebreus (como qualquer outro livro), pois, não fazem menção à
possibilidade de queda e/ou condenação, mas alertam seus leitores como
placas antevendo o problema na certeza de que todos os que caminham em
fé, no sentido final, seguirão as instruções. As advertências em Hebreus não
são acusações indiretas, deixando em aberto a possibilidade de queda;
antes, aquele que adverte espera o melhor dos seus ouvintes. Ele está certo
da salvação deles. A tese de que a advertência não lida com o possível, mas
com o concebível encontrou reforço gramatical na distinção entre
pressuposição factiva (chamada de modulação) e o significado transmitido
pelos modos (ou modalidade).
Em suma, a vida cristã pode ser extremamente fatigante. Muitos homens
e comunidades inteiras responderam à perseguição com abatimento
enquanto flertavam caminhos substitutos e indignos para com a beleza do
Evangelho. Seja qual for a razão imediata para o desânimo, a angústia e o
cansaço decorrentes da fidelidade, a solução será sempre a mesma:
contemplar a Cristo – sua identidade e obra. É isso que o autor de Hebreus
faz em todas as suas exortações. Seja qual for o caminho que se apresenta
como substituto, ele sempre será um insulto ao que foi conquistado por
Cristo e prefigurado no Antigo Testamento: as bênçãos da Nova Aliança.
Findamos, pois, com a exortação central de toda carta-pregação: “deixemos
nos levar na perfeição” (ἐπὶ τὴν τελειότητα φερώμεθα). Em outras palavras,
“perseverem na perfeição”; ou ainda, “permaneçam caminhando na
perfeição; usufruam as bênçãos da Nova Aliança, do acesso livre ao trono,
ao Santo dos Santos, do sangue de Cristo. Escutem a voz do sangue que
perdoa”.

1. Vale ressaltar que argumentamos, ancorados na teoria do aspecto verbal (cf. Apêndice), que a
negligência é momentânea; a infantilidade, por sua vez, foi entendida como ironia.
Apêndice
PRESSUPOSIÇÕES
LINGUÍSTICAS E GRAMATICAIS
LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA FUNCIONAL
Segundo Gordon Fee (2008:206), “a chave para a boa exegese é a
habilidade de fazer as perguntas certas para o texto a fim de captar o
significado pretendido pelo autor”. Duas categorias são fundamentais na
produção das perguntas certas: conteúdo e contexto. Pensando estritamente
em conteúdo, exegese envolve interpretação do texto original (Grassmick
2009:10) e, por conseguinte, gramática.
Segundo Walter Kaiser (1996:48), “se o texto da Escritura é a
preocupação central, então o domínio do hebraico, aramaico e grego é uma
exigência básica”. Quanto à gramática, é fato que a exegese vai além dela,
porém toda exegese deve obrigatoriamente passar por decisões gramaticais.
Assim, a gramática grega é fundamental para a interpretação do NT.
As decisões gramaticais, por sua vez, são construídas sobre fundamentos
linguísticos. Sobre a importância da consciência dos pressupostos
linguísticos no entendimento da gramática, Campbell (2007:16 – itálico
nosso) é muito esclarecedor: “Agora é dever do gramático moderno não
somente adotar conscientemente um modelo linguístico, mas explicitar essa
escolha para seu leitor”. É exatamente isso que pretendemos fazer nesse
apêndice1.
Quanto aos pressupostos linguísticos, existem duas opções gerais:
linguística generativa (doravante LG) e linguística funcional (doravante
LF). A primeira está preocupada com padrões mentais universais, enquanto
a segunda tem seu foco no desenvolvimento dos sistemas gramaticais como
meios de interação entre indivíduos. A orientação da LF é social e não
biológica e/ou inata como na LG. A LF, representada por J. R. Firth e M. A.
K. Halliday, pois, é sociolinguística ao invés de psicolinguística, como a
representada por Chomsky (LG).
Comparando a abordagem estrutural da LG com a funcional da LF,
Stephen H. Levinsohn (2000:vii-viii – itálico nosso) esclarece bem a
questão:

[…] a abordagem estrutural pode te informar, por exemplo, que orações gregas manifestam
todas as seis possíveis ordens envolvendo sujeito (S), objeto (O) e verbo – (SVO, SOV, OSV,
OVS, VSO, VOS) – sem nunca abordar a questão de quando usar cada uma. Uma abordagem
funcional, por outro lado, parte da existência das seis ordens (i. é., ela pressupõe uma análise
estrutural) e concentra-se na identificação dos fatores que determinam a seleção de uma
ordem em detrimento de outra.

Assim, a LF entende que escolha implica em significado. Para M. A. K.


Halliday (grande representante dessa escola), “a língua se organiza em
torno de redes relativamente independentes de escolhas e que tais redes
correspondem a certas funções básicas da linguagem” (Gouveia 2009:15 –
itálico nosso). E ainda: “[…] a escolha de um termo é à custa de outros, isto
é, eles são mutuamente exclusivos” (Halliday 2002:41).
O gráfico abaixo exemplifica a teoria da LF.

Observe que a escolha de C não é possível a menos que o locutor escolha


B, assim como não se chega a F escolhendo B. Na LF, o sistema de rede de
escolhas é a gramática de uma língua.
Aplicando à gramática do grego bíblico, e principalmente ao nosso texto,
pode-se assegurar que a escolha dos particípios adjetivais em Hebreus 6.4-6
em detrimento de um adjetivo ou substantivo, por exemplo, não se explica
somente apelando às questões estilísticas. Antes, entende-se que existem
razões semânticas para determinada escolha. É importante entender o
aspecto negativo na rede de escolhas. Escolher um particípio é não escolher
um verbo finito, assim como escolher um imperativo ou um subjuntivo
exortativo (e.g., Hb. 6.1) não é o mesmo que se fazer uma asserção com o
modo indicativo.
A explicação de Campbell (2007:19) quanto à sua preferência para LF é
seguida nesse estudo:

Dado é que a língua sob exame é antiga e não temos nenhum locutor nativo, parece-me mais
razoável adotar uma abordagem funcional que está preocupada principalmente com o uso da
língua como uma ferramenta de comunicação ao invés dos padrões de pensamento que a
produziram. Uma abordagem generativa […] [é] impedida pelo fato de que as mentes que
geraram a língua são agora inescrutáveis.

As considerações abaixo sobre a teoria do aspecto verbal, modo,


modalidade e modulação acompanharão eruditos que seguem a escola
funcional (e.g., Porter e Albuquerque, Decker).
ASPECTO VERBAL

De agora em diante, tratamentos do sistema de verbos gregos do Novo Testamento que não
interagem profundamente com Porter e Fanning [ou seja, a teoria do aspecto verbal] serão
considerados antiquados.
D. A. Carson (1993:25).

Panorama histórico
As três grandes obras que trouxeram a teoria do aspecto verbal à frente
do cenário das grandes discussões envolvendo verbos são: A New Syntax of
the Verb in New Testament: An Aspectual Approach de K. L. McKay;
Verbal Aspect in the Greek of the New Testament, with Reference to Tense
and Mood de Stanley Porter e Verbal Aspect in New Testament Greek de
Buist Fanning.
Linguista do Grego Clássico, K. L. McKay findou seus trinta anos de
estudos assegurando não somente que tempo não é mais importante que
aspecto, como também que não há qualquer sinal de tempo nas formas
verbais. Toda noção temporal, portanto, advém unicamente de elementos
contextuais (pragmática). Ele foi o primeiro a sugerir que forma verbal se
refere a aspecto.
Ignorando a pesquisa um do outro, Porter e Fanning escreveram suas
teses de doutorado (Sheffield e Oxford respectivamente) no mesmo período.
Eles são os responsáveis por deflagrar o interesse pelo assunto no campo
dos estudos bíblicos (Campbell 2007:2).
A formação de Stanley E. Porter abrange tanto a linguística quanto a
teologia. Toda sua pesquisa é construída sobre o fundamento da LF (cf.
1.2). Comparada à obra de Porter, Fanning não tem tanto rigor linguístico2 e
seu estudo focalizou somente os textos do NT, enquanto Porter foi além.
Há desacordos entre eles. Fanning (1990:112-120; em Carson 1993:49-
50) defende a existência de somente dois aspectos e não três, como Porter,
pois entende “estatividade” como Aktionsart e não aspecto3. Em Fanning,
não temos uma distinção tão forte entre semântica e pragmática (cf. nota 5).
Para ele, aspecto é dominante, porém tempo ainda é uma categoria legítima
na forma verbal e significado lexical tem efeito sobre o aspecto verbal.
Tanto para Porter quanto para Fanning, aspecto é uma categoria mais
importante do que tempo quando o assunto é verbo grego, portanto, é chave
para o entendimento do sistema verbal grego. “Tanto Porter quanto Fanning
argumentam que aspecto verbal está preocupado com o ‘ponto de vista’ do
autor com respeito ao evento representado pelo verbo” (Carson, Porter
1993:21).
Em sua obra Temporal Deixis of the Greek Verbal in the Gospel of Mark
with Reference to Verbal Aspect, focalizando somente o evangelho de
Marcos, Rodney J. Decker confirmou a tese de Porter da atemporalidade
das formas verbais e que toda noção de tempo vem de elementos dêiticos.
Decker ainda oferece um material apologético onde responde a contento as
acusações feitas à teoria de Porter.
A despeito das divergências quanto ao número de aspectos, o consenso
entre eles é que toda exegese deve incorporar uma “sensibilidade aspectual”
– o que se tentou fazer nesta obra.

Definição
A definição mais simples de aspecto verbal é “ponto de vista” (Campbell
2007:7). McKay (1994:27 – itálico nosso) entende como “aquela categoria
do sistema verbal por meio do qual um autor (ou locutor) mostra como vê
cada evento ou atividade a qual ele se refere em relação ao seu contexto”.
Segundo Porter (2007:21), aspecto verbal é definido como uma categoria
semântica4 (significado) por meio da qual a pessoa que fala ou o escritor
gramaticaliza (i. é., representa um significado por meio da escolha de uma
forma verbal) uma perspectiva sobre uma ação por meio da seleção de uma
forma verbal particular.
Rodney J. Decker (2001:26) remodelou e simplificou a definição de
Porter da seguinte forma: “É a categoria semântica pela qual o locutor ou o
escritor gramaticaliza uma visão da situação5 pela seleção de uma particular
forma verbal no sistema verbal”.
Pressupondo gramática como um sistema de rede de escolhas e/ou
possibilidades, a rede verbal é composta por dois subsistemas maiores:
aspecto e finitude. Em outras palavras, diante de um verbo, nossas
preocupações iniciais devem ser duas: (1) qual o ponto de vista do autor? E,
em segundo lugar, (2) qual sua atitude em relação ao que declara?
Isso tem uma implicação negativa: não precisamos, nem muito menos
devemos perguntar “qual o tempo ou tipo de ação (Aktionsart) envolvidos
no verbo?”. Essas perguntas não são de natureza gramatical quando o
assunto é verbo. Informações dessa natureza ficam por conta de questões
contextuais e lexicais. Não podemos ver uma determinada forma verbal
como uma ação objetiva, antes como uma perspectiva. Isso não significa
que o grego não lida com o tempo ou não o tem como um elemento
importante na comunicação. Existem recursos na língua que podem ser
acionados como indicadores temporais. Porém, esse não é o caso das
formas verbais.
Pensando especificamente em aspecto (mais adiante trataremos da
finitude), as mais recentes análises têm demonstrado que o sistema de
formas verbais não tem referência (mesmo que secundária) a tempo ou à
tipo de ação (Aktionsart), mas ao ponto de vista (subjetivo) do escritor. Em
outras palavras, segundo essa teoria, forma verbal não gramaticaliza tempo
ou Aktionsart, somente aspecto (Porter 1989:81, 98).
A lógica da teoria do aspecto verbal é a seguinte: se uma determinada
forma verbal varia de significado, tal alteração evidentemente não pode ser
explicada pela forma, uma vez que essa permanece exatamente a mesma
diante da variação semântica. A explicação, portanto, só pode estar em
elementos contextuais e lexicais. Assim, se “tempo passado” fosse um valor
semântico (ou gramatical) da forma aorista, todo aoristo deveria ser sempre
uma referência ao passado ou ainda outra forma como o presente não
poderia indicar o passado ou o presente não poderia indicar o futuro – o que
não é sustentado numa leitura do NT. O mesmo pode ser dito dos tipos de
ação. Assim, o núcleo semântico dos verbos é revelado no aspecto.
Alguns exemplos: (1) Marcos 1.11b: “...Tu és o meu Filho amado; em ti
me agrado” [“...σὺ εἶ ὁ υἱός μου ὁ ἀγαπητός, ἐν σοὶ εὐδόκησα”]; (2)
Romanos 8.30c: “...aos que justificou, também glorificou” [“...οὓς δὲ
ἐδικαίωσεν, τούτους καὶ ἐδόξασεν”]; (3) João 21.10a: “Disse-lhes Jesus...”
[λέγει αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς].
Para reforçar a importância, bem como as mudanças envolvidas ao se
empregar o aspecto verbal na prática exegética, ficamos com as palavras de
Stanley E. Porter (1993:43): “aspecto verbal como uma categoria da
linguística moderna fornece uma nova orientação para a visualização da
linguagem em si”.

Os aspectos6
Reconhecemos três aspectos:
1. O aspecto perfectivo “vê a ação do verbo como um todo completo”
(Porter, Reed; O’Donnell 2010:33). Ou seja, vê a ação na sua totalidade
como um todo único e completo. (Porter 1989:91). Não se pode confundir o
“ver como um todo” com uma ação “completa” ou “instantânea”7. Nem se
pode confundir “completa”, com “completada” – que tem uma nuança
temporal. Assim, Campbell (2007:11) denomina esse ponto de vista
(aspecto) como externo. Esse aspecto é expresso pela forma verbal aorista.
No gênero narrativo, por exemplo, é o aspecto perfectivo que carrega a
narrativa fornecendo o “esqueleto” da história (Decker 2001:22). Ele
“estabelece uma estrutura básica sobre a qual os itens mais importantes na
narrativa – quer sejam eventos ou descrições – são colocados” (Porter
1993:35). No caso do nosso texto, os particípios adjetivais estão todos nesse
aspecto fornecendo um arcabouço lógico para a argumentação. Contudo,
sem interesse de entrar em detalhes.
2. O aspecto imperfectivo vê uma ação internamente, mas a ação não
precisa necessariamente estar contínua ou em progresso (Campbell
2007:11). Aqui, diferente do aspecto perfectivo pode-se ver os detalhes.
Duas formas verbais expressam esse aspecto: o presente e o imperfeito. A
escolha por esse tipo de aspecto implica que o autor aprecia os detalhes da
ação. No caso do nosso texto, por exemplo, temos os particípios adverbiais
que seguem a declaração de impossibilidade de renovação. Exatamente por
isso que em nossa exposição priorizamos esses particípios para entender a
razão da impossibilidade. Ou seja, se quiser saber os detalhes para
impossibilidade, devemos ir para a “recrucificação”, e não para a queda.
3. O aspecto estativo “vê a ação do verbo como refletindo um dado
(complexo) estado do sujeito. O locutor ou escritor expressa esse aspecto
selecionando a forma temporal perfeita (também o mais-que-perfeito)”
(Porter, Reed, O’Donnell 2010:315). Numa relação espacial, os contornos
básicos do discurso seriam colocados da seguinte maneira: o aspecto
perfectivo serve de background (plano de fundo), o imperfectivo de
foreground (primeiro plano) e o estativo de frontground (primeiríssimo
plano).

Aspecto e tipo de ação (Aktionsart)


Assim que começamos a estudar grego, Aktionsart é uma das primeiras
palavras estranhas que precisamos aprender. O termo foi cunhado por Karl
Burgmann para se referir a “um tipo de ação indicada objetivamente por um
verbo” (Porter 1993:29). Aktionsart descreve como uma ação acontece
(e.g., ingressiva [foco no começo da ação], pontiliar [ação instantânea ou de
uma vez por todas], pontilinear [ação completa no passado, com efeitos no
presente]).
Muitos gramáticos utilizaram o termo para descrever o significado das
formas verbais (e.g., Moulton, A. T. Robertson). Outros usavam o termo de
forma intercambiável com tempo. Ainda existem aquelas gramáticas que,
mesmo reconhecendo alguma distinção (e.g., Rega, Bermann 2004:25-27),
ainda denominam aspecto como durativo, em progresso, não completo ou
completo, confundindo semântica (o aspecto da forma verbal) com a
pragmática (tipo de ação).
A teoria do aspecto verbal, por outro lado, entende que essas categorias
são distintas. Aspecto faz referência a como uma ação foi vista enquanto
que Aktionsart se refere a como a ação aconteceu (e.g., pontiliar,
progressivamente). Além disso, os tipos de ação não são fundamentados na
forma verbal, uma vez que um Aktionsart é atribuído a uma única forma
verbal. O aoristo, por exemplo, pode ter um Aktionsart pontiliar ou
ingressivo. Dessa forma, por exemplo, não podemos basear nossa crença na
realização completa da obra de Cristo em um aoristo – como se pode
testemunhar com certa facilidade em muitos comentários. Assim, a forma
verbal não traz consigo nem tempo, nem tipo de ação (Aktionsart). Todos
esses elementos são contextuais e/ou pragmáticos.
No caso do nosso texto, não posso assegurar que a iluminação foi
completa simplesmente porque está no aoristo, nem muito mesmo que
temos uma ação ingressiva. No primeiro caso (ação completa), poderíamos
apelar para ἅπαξ (uma vez), mas para o aoristo, certamente não.

Afastamento (Remoteness)
Existe divergências quanto ao número de aspectos. Alguns defendem
dois: perfectivo e imperfectivo (e.g., Campbell [2007]); outros, perfectivo,
imperfectivo e estativo (e.g., Porter [1989]). Contudo, um ponto de
concordância fica por conta da coincidência entre formas com o mesmo
aspecto (presente e o imperfeito gramaticalizam o aspecto imperfectivo).
Como resolver então? A distinção entre formas que possuem o mesmo
aspecto (e.g., presente e imperfeito) fica por conta do que eles denominam
de “afastamento”.
Segundo Rodney Decker (2001:41):

Esse é um conceito mais amplo do que tempo passado, embora possa incluir (e geralmente
inclui) tempo remoto como parte da sua variedade de uso. O afastamento pode ser também
distante de uma perspectiva lógica ou narrativa.

Ele tem valor semântico. Logo, é uma categoria mais ampla que tempo
(pragmática). Trata-se de uma categoria espacial e não temporal; não é
física, é figurativa e abstrata (Campbell 2007:15). Pode ser temporal, lógico
e contextual.
MODO, MODALIDADE, MODULAÇÃO
Rede de finitude (Finiteness)
Dentro da rede do sistema verbal grego não há somente a aspectualidade
como opção. Simultaneamente com a aspectualidade, temos o sistema de
finitude. Se na aspectualidade perguntamos “qual o ponto de vista do
escritor?”, na rede de finitude nossa pergunta é: a forma verbal expressa
uma pessoa? Se expressa, a ação está limitada a um sujeito específico.
Segundo Porter (1989:94 – itálico nosso), “[o] sistema de FINITUDE
assinala a distinção semântica entre limitação na expressão verbal através
da pessoa [+finito] e a falta de limitação [-finito]”.
O gráfico abaixo será explicado na sequência.

Aqui é importante entender o significado de modo, uma vez que a


presença do limitador (+ finito) é observada em todos os modos/atitude:
indicativo, subjuntivo, imperativo e optativo.
Segundo Porter, (2007:50) “a forma modal indica a ‘atitude’ do locutor
com respeito ao evento”. Assim, ela pode ou não estar ligada a factualidade,
dependendo da crença do locutor/escritor (Porter 1989:165-66).
Albuquerque (2013:59 – itálico nosso) esclarece: “Atitude é semântica
enquanto modo é a forma que gramaticaliza a atitude”.
O indicativo é chamado de modo por ser +assertivo, enquanto que –
asserção, embora também seja modo, é chamado de modalidade, visto que
é, até certo ponto, um convite ao ouvinte/leitor a atuar em alguma parte do
discurso (Albuquerque 2013:137). É exatamente a participação do leitor
que diminui a natureza assertiva do verbo.
“Grego tem dois grupos distintos de formas inflexionais, o indicativo e o
não-indicativo” (Porter 1989:164). Essa distinção não é somente na forma,
mas na semântica também. O modo indicativo é usado para declarações
assertivas e declarativas enquanto as formas não-indicativas são usadas
para uma variedade de atitudes relacionadas, tendo em comum o fato de que
eles não fazem asserções acerca da realidade, mas gramaticalizam
simplesmente a “vontade” do locutor e, portanto, são deônticos (Porter
1989:165-66). “O sistema de finitude permite o escritor escolher como ele
quer que o leitor apreenda a ação” (Albuquerque 2013:98). No caso do
nosso texto, o autor não pretende que seus leitores tomem as qualificações
em 6.4-6, bem como a “recrucificação” como um fato, mas como algo a ser
pensado – refletido.
Toda exegese da passagem segue a distinção proposta por Albuquerque
(2013:119) entre pressuposição factiva8 (chamada de modulação) e o
significado transmitido pelos modos (ou modalidade). Albuquerque
(2013:119-20) explica bem o último gráfico:

[…] na LSF [linguística sistêmica funcional] todas as opções no sistema de rede verbal
ocorrem em oposição ao outro. Assim, asserção (modos) é dividida dentro de dois
subsistemas, +asserção (modo indicativo) e –asserção (modalidade – imperativo, subjuntivo e
optativo). […] somente o modo indicativo gramaticaliza +asserção. […] tendo feito essa
qualificação [modo e modalidade] é importante prosseguir a uma discussão semântica entre a
forma verbal usada para gramaticalizar atitude (modo e modalidade) e a forma verbal que
bloqueia atitude e gramaticaliza pressuposição (modulação).

Particípio e infinitivo
Como foi colocado acima, “[o] particípio, como o infinitivo, não
gramaticaliza modo ou pessoa” (Porter 2007:181 – itálico nosso). Observe
no último gráfico que os itens na categoria –finito não podem expressar
atitude/modo porque a rota de escolha é bloqueada. Assim, ninguém
escolheria um particípio para fazer uma asserção, uma vez que “ele não
gramaticaliza atitude, visto que não é um modo, nem mesmo modalidade”
(Albuquerque 2013:139).
Sobre o uso dos verbos não-indicativos, Porter (1989:167-8) assegura:

[…] são usados para não-asserção, i.e., eles são usados quando nenhuma reivindicação é feita
sobre o estado do mundo, mas algum estado não-existente é hipotetizado ou projetado
qualquer que seja seu relacionamento com o mundo real.

Assim, “a escolha de um particípio é a de não se usar uma asserção, a


escolha de um particípio é a escolha de pressupor algo ao invés de
assegurar algo” (Albuquerque 2013:95 – itálico nosso).
Tal informação é deveras importante para a compreensão de nossa
perícope. Entre 5.11-6.8, temos exatamente dezenove particípios. Além
disso, na parte mais polêmica do texto (6.4-8), encontramos doze
particípios. Para dar mais força a importância dos particípios, precisamos
entender que toda argumentação é construída por particípios. Ou seja, por
pressuposição factiva, não por asserção. Muitas discussões poderiam ser
minimizadas caso tal consideração fosse levada em conta. Não
perguntaríamos se eram crentes ou não. Comandados pelos particípios,
refletiríamos na figura idealizada e ao mesmo tempo nos identificaríamos
em favor da eficácia do argumento.

1. Na gramática de Daniel B. Wallace (1996), por exemplo, antes de lidar com as questões
específicas propostas, ele apresenta o que denomina de “Abordagem deste livro”, onde ele lida com
questões linguísticas (e.g., prioridade sincrônica, prioridade estrutural, natureza enigmática da
linguagem). Aqui, por questões de alcance, preferimos deixar os pressupostos para o final.
2. O próprio Fanning reconhece que não é um linguista.
3. O perfeito, por exemplo, não é um aspecto para Fanning. A forma perfeita combina três elementos:
tempo, Aktionsart e aspecto.
4. A distinção entre semântica e pragmática é considerada crucial para a teoria do aspecto verbal
(pensando especificamente em Porter, Decker e Campbell). Semântica (não confundir com
“semântica lexical” que lida com uma variedade de significados em uma mesma palavra – estamos
lidando com “semântica verbal” ou “semântica gramatical”) diz respeito aos valores codificados pela
forma verbal. Esses valores são imutáveis. Ou seja, estão sempre presentes quando determinada
forma é usada e/ou escolhida. Como “referência temporal” não é expressa sempre e consistentemente
na forma verbal grega, tempo não tem valor semântico na forma verbal grega. Tempo é pragmática.
Pragmática, por outro lado, lida com a expressão do valor semântico no contexto combinado a outros
fatores (e.g., léxis, gênero, elementos dêiticos). Ou, “a forma que a língua é usada no contexto”
(Campbell 2007:24). Assim, o valor pragmático, diferente do semântico, é mutável. Contudo,
semântica implica em pragmática. E pragmática se constrói em fundamento semântico. Fanning é
criticado por Porter por considerar o efeito do significado lexical inerente no aspecto verbal. Segundo
Porter (1993:37): “o resultado é uma fusão de categorias semânticas gramaticais e lexicais em que
léxico tem predominância sobre a gramática”.
5. “Situação” é entendida como cobrindo todos os tipos de estados, eventos, ações, processos e
atividades.
6. Não lidaremos com a forma futura. Fanning (123), por exemplo, denomina-a de forma não-
aspectual. Porter (1989:403-9) não a considera aspecto, forma indicativa ou não-indicativa.
7. Completude ou instantaneidade são valores pragmáticos e não semânticos.
8. “Factivo” diz respeito ao resultado de um processo mental nos leitores, ou seja, é pressuposição.
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RÔMULO A. T. MONTEIRO é pastor da Primeira Igreja Batista
de Aquiraz, no Ceará. Graduado em Teologia pelo
Seminário Batista do Cariri (Crato/CE) em 2001. Concluiu
seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo
Testamento pelo Centro de Pós-graduação Andrew Jumper
(São Paulo/SP) em 2014. É professor do Instituto Aubrey
Clark (Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear.
Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor
e Calebe.

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A Editora Concílio nasceu em 2016 da amizade de alguns irmãos que foram
unidos pela cruz de Cristo no desejo de disponibilizar mais obras cristãs de
qualidade à igreja brasileira.

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