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Caminhando Na Perfeição A Perseverança Dos Santos em Hebreus 6 (Rômulo Monteiro) Editora Concílio - 2019 - Portuguese - 9788593125096 - (Z-Library)
Caminhando Na Perfeição A Perseverança Dos Santos em Hebreus 6 (Rômulo Monteiro) Editora Concílio - 2019 - Portuguese - 9788593125096 - (Z-Library)
É proibida a reprodução deste livro sem prévia autorização da editora, salvo em breve citação.
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Yuri Freire
EDIÇÃO DE TEXTO
Yago Martins
REVISÃO
Jean Probst
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN: 978-85-93125-09-6
Prefácio
Abreviaturas
Introdução
1. Contexto histórico
2. Pressuposição literária
3. Pressuposição teológica
4. O texto
Conclusão
Apêndice: pressuposições linguísticas e gramaticais
Referências bibliográficas
Prefácio
Roque N. Albuquerque,
Ph.D. pelo Central Baptist Theological Seminary,
professor no SIBIMA e no Instituto Aubrey Clark e
pastor na Igreja Batista do Calvário
Abreviaturas
AD Análise do Discurso
ARA Almeida Revista e Atualizada
A21 Almeida Século 21
AT Antigo Testamento
BDAG ARNDT, W., DANKER, F. W., & BAUER, W. A Greek-English
lexicon of the New Testament and other early Christian
Literature. 3a ed. Chicago: University of Chicago Press, 2000.
Comp. Compare com
EAC Edição Almeida Contemporânea
ESV English Standard Version
GF Gramática Funcional
HE História Eclesiástica
LF Linguística Funcional
LG Linguística Generativa
LN LOUW, J. P., & NIDA, E. A. Greek-English lexicon of the New
Testament: Based on semantic domains (electronic ed. of the
2nd edition). New York: United Bible Societies, 1996.
LXX Septuaginta
MSS Manuscritos
NA28 NESTLE, E., NESTLE, E., ALAND, B., ALAND, K.,
KARAVIDOPOULOS, J., MARTINI, C. M., & METZGER, B. M. The
Greek New Testament (28th ed.), 2012.
NAB New American Bible
NAS New American Standard
NASB New American Standard Bible
NAU New American Standard Bible (1995)
NIV New International Version
NJB New Jerusalem Bible
NRSV New Revised Standard Version
NT Novo Testamento
NTLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje
RSV Revised Standard Version
TB Tradução Brasileira
Introdução
1. Existem duas tendências comuns e inevitáveis no emprego de expressões que trazem referenciais
tanto históricos quanto teológicos como “teologia reformada”, “calvinismo” e “arminianismo”: a
aplicação abrangente ou particularizada demais. Ao lançar mão de expressões dessa natureza
certamente seremos acusados de alguma dessas duas tendências. Títulos como “Arminiano
Reformado” e “Calvinista Moderado” (mesmo para aquele que subscreve somente um único ponto
dos cânones de Dort) são exemplos claros da inevitabilidade da confusão terminológica. Como não
se pode evitar acusações, ou de especificidade, ou de generalidade, escolhemos fugir ao menos da
confusão de sentido por meio da explicitação do que se pretende dizer por “calvinista”. Nessa obra,
“calvinista” (e seus cognatos) equivale a “não-arminiano”. Ou seja, trata-se de uma expressão
exclusivamente soteriológica que se identifica historicamente com o Sínodo de Dort.
2. Em português, pode ser encontrado na coleção Patrística da Editora Paulus, no segundo volume de
A Graça (Agostinho, 2010).
Capítulo 1
CONTEXTO HISTÓRICO
INTRODUÇÃO ÀS PRESSUPOSIÇÕES INTERPRETATIVAS
Autoria
Ao longo da história da Igreja, foram muitos os nomes elencados como
candidatos a autor dessa magnífica obra. A razão principal para tanta
especulação envolvendo o nome do autor é simples: não encontramos uma
identificação nominal no próprio documento. Para aumentar a dificuldade,
não temos referência à autoria em outros documentos do NT; e os escritores
mais antigos que citam a obra seguem com o mesmo silêncio (cf. Clemente
de Roma [1 de Clemente 17; 36. c. 964], Policarpo [Aos Filipenses 6, 12. c.
69-155], Hermas [Similitudes 9.13.7, Visões 2.3.2; 3.7.2, c. 120]).
Paulo
Cedo na história da Igreja (séc. II), os cristãos do Oriente (Clemente de
Alexandria [c. 150-215, HE 6.14] e Orígenes [c. 185-253, HE 6.25])
atribuíram ao apóstolo Paulo a autoria (Koester 2001:21). A famosa citação
de Orígenes “quem é o escritor da epístola, Deus verdadeiramente conhece”
vem de Eusébio (HE 6.25). Contudo, o próprio Orígenes comumente (não
sempre e com reservas) se referia a Paulo como o autor.
No papiro mais antigo de Hebreus (P46), o documento segue a carta de
Paulo aos Romanos. Ou seja, está dentro do corpus paulinus. Eusébio (c.
260-339, HE 2.17.12) segue a mesma tendência unindo as cartas de Paulo
com Hebreus5. Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428), embora reconhecendo
que existiam pessoas que pensavam o contrário, também atribuiu a autoria a
Paulo (Ellingworth 1993:6). O mesmo se deu no Sexto Sínodo de Cartago
(419) onde foi atribuída a Paulo a autoria de 14 epístolas do NT.
Existem muitos temas comuns entre Paulo e Hebreus: Jesus (sua pré-
existência e atuação na criação, encarnação, obediência, morte sacrificial,
exaltação e intercessão), a geração do deserto como arquétipo de
desobediência (comp. 1Coríntios 10), a superioridade da Nova Aliança
(comp. 2Coríntios 3), fé como elemento essencial em nossa relação com
Deus (comp. Romanos 1.16-17). Koester (2001:55-5) vai além e alista 29
paralelos entre Paulo e Hebreus.
Contudo, as distinções também nos chamam atenção: vocabulário, forma
de citação, temas exclusivos (sacerdócio de Cristo) e ilustrações (cf. Lane
1991 1:xlix). Em 2.3, por exemplo, o autor se coloca, juntamente com os
leitores, como tendo recebido o Evangelho da primeira geração de cristãos.
Essa, sem dúvidas, é uma postura no mínimo estranha quando comparada
com o que encontramos nos documentos paulinos. Em Romanos 1:1 e
Gálatas 1:11-16, por exemplo, Paulo faz questão de dizer que recebeu o
Evangelho diretamente do Senhor Jesus. Atualmente, poucos defendem a
autoria paulina. “A última grande defesa da autoria paulina de Hebreus foi
escrita há mais de meio século” (Carson, Moo, Morris 1997:438).
Outras possibilidades
No lado ocidental, houve resistência ao nome do apóstolo aos gentios.
Irineu de Lião (c. 130-200), o Cânon Muratoriano (c. 180) e Hipólito de
Roma (c. 170-236) não reconheciam Paulo como autor. Agostinho ([c. 354-
430], 1887:34) apoiou a carta devido à aceitação dela como canônica no
Oriente. Jerônimo (c. 348-420) segue a mesma lógica de Agostinho e nos
informa que a autoria paulina era reconhecida tanto nas igrejas orientais
como também por todas as igrejas que desde o princípio escreviam em
grego.
As primeiras referências à autoria do livro de Hebreus vieram tanto do
Ocidente como do Oriente. Clemente de Alexandria (c. 150-215, cf. HE
3.38.2; 6.14.2) estabeleceu uma relação autoral entre Lucas e Paulo. Ele
afirma que Paulo escreveu em hebraico e Lucas traduziu para o grego. No
lado Ocidental, Tertuliano (c. 160-220) a denomina de Epístola de Barnabé
(De Pudicitia6) e ainda nos revela que Hebreus era mais reconhecida do que
“O Pastor” de Hermas.
Além dos elementos históricos e do próprio texto, a relação de Lucas
com Hebreus é reforçada pelo grego apurado; com o fato do autor não ser
testemunha ocular, antes, como em 2.3, recebeu suas informações de outros;
e da relação com o círculo de Paulo, uma vez que Timóteo é citado no final
do documento (13.23). Contudo, poucos estudiosos modernos fazem
apologia à sua autoria e/ou tradução (e.g., Black, 2001; Allen 20107).
As similaridades entre 1 Clemente de Roma e Hebreus8 levaram alguns a
cogitá-lo como um legítimo candidato (cf. HE 6.25). Não há como negar a
relação entre os documentos. Porém, existem discrepâncias tamanhas que
estabelecem uma separação definitiva. Clemente, por exemplo, não entende
o ensino de Hebreus sobre o sacerdócio de Cristo (tema predominante em
Hebreus). Segundo ele, “o leigo [estabelecendo uma clara distinção entre
sacerdotes e o sumo-sacerdote na igreja] é limitado pelas ordenanças dos
leigos” (Lightfoot, J. B.; Harmer, J. R. 1891:74).
Um perfil do autor
Enquanto a identificação do autor não determina nosso entendimento do
documento como um todo, bem como da passagem específica a ser tratada,
entende-se que a investigação não é completamente inútil, uma vez que ela
não se restringe a uma “busca por um nome”. Envolve sim, a busca do
perfil, do estilo, dos recursos, das preocupações e dos seus métodos. Isso
seguramente fornecerá elementos importantes na busca pelo significado do
nosso texto.
Seguem algumas características do autor “sem nome”:
1. O autor é um erudito. O autor faz uso dos recursos retóricos
comumente encontrados na literatura e na oratória greco-romana. Attridge
(1989:20-21, 104) arrola uma série de recursos retóricos utilizados pelo
nosso autor: síncrise10 (comparação), exempla11, aliteração12, anáfora
(repetição de um mesmo elemento no começo de vários períodos
sucessivos, e.g., capítulo 11), assonância (repetição de vogais ou
consoantes), elipse13, quiasmo, hendíade14 (dois termos que expressam uma
noção única), hipérbato15 (separação de palavras que naturalmente
permanecem juntas), litotes16 (uso de duplo negativo), paranomásia17, bem
como inúmeras metáforas (e.g., do mundo da agricultura, da educação, dos
esportes). Além disso, ele vê Hebreus se encaixando na retórica epidíctica
(Attridge 1989:14)18.
Segundo Guthrie (s/d:12-3) todos esses recursos são encontrados nos
manuais de retórica da época. Daí a razão de muitos eruditos (Koester
2001:92-96) entenderem que ele fazia parte do mundo gentílico19. Assim,
caso reconheçamos seu background como judaico, é provável que seu
judaísmo era helenista (Lane 1991 1:xlix).
A erudição do autor é revelada também na riqueza de seu vocabulário.
Das 4.942 palavras usadas no livro, 1.038 são palavras diferentes e 169 são
exclusivas (Lane 1991 1:l). Lane (1991 1:xlix) ainda destaca a fineza da
construção das frases. Portanto, podemos assegurar que o autor tinha
educação refinada e era habilidoso com as palavras.
2. O autor é íntimo dos leitores. A presença dos pronomes τὶς ou τὶ
(alguém), seja sozinho (4.11; 12.15) ou ligado ao pronome ὑμεῖς (3.12,
3.13, 4.1), ou do adjetivo ἕκαστος (“cada” 6.11) indica que a preocupação
do nosso autor está em cada membro da congregação. Em 6.9-10 ele faz um
julgamento sobre a vida dos leitores que revela não somente conhecimento,
mas uma extrema proximidade:
Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das coisas que são melhores e
pertencentes à salvação, ainda que falamos desta maneira. Porque Deus não é injusto para
ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome, pois
servistes e ainda servis aos santos.
Em 13.9, ele revela conhecer os perigos doutrinários que tentam solapar a
comunidade. Em 13.19, fica clara uma relação prévia entre o autor e os
leitores. A palavra grega traduzida por “restituído” (ARA, RC, NVI) ou
“restored” (NIV, NAS, KJV, ESV) é ἀποκατασταθῶ. Segundo LN
(2013:173 – itálico nosso), a ideia do vocábulo é “mandar alguém de volta
para um lugar onde havia estado anteriormente”. Ou seja, ele fazia parte da
vida congregacional e, por motivo desconhecido, foi separado do convívio
dos irmãos. O mesmo verso revela que o desejo de retornar era grande, uma
vez que queria estar de volta “rapidamente” (τάχιον).
A identificação do autor com o povo é reforçada também pelo uso
constante da primeira pessoa do plural. A importância de sua preferência
pela primeira do plural é reforçada pelo fato de que ele só usa a primeira do
singular a partir do capítulo 11 e em toda a obra por somente seis vezes
(11.32; 13.19 [duas vezes], 22 [duas vezes] e 23).
Segundo Daniel B. Wallace (1996:393-99), são três as possibilidades de
referência quanto à primeira pessoa do plural: (1) epistolar ou editorial –
uma referência ao autor somente; (2) inclusivo – uma referência ao autor e
os leitores; e (3) exclusivo – grupo associado com o autor, coautores,
pessoas presentes com ele ou que participaram de alguma experiência
comum com o autor.
Wallace (1996:394) nos alerta para o fato de que “[n]ormalmente
devemos pressupor que determinada primeira pessoa do plural não é
editorial”. Quanto à natureza inclusiva ou exclusiva, ele assegura que “para
resolver a questão devemos considerar caso a caso” (1996:397).
Consideramos cada caso, com exceção das citações ou alusões do AT, e
chegamos à seguinte conclusão:
Epistolar (2.5; 6.9, 8.1) – Há também possibilidade de se entender o uso
dessas referências no sentido exclusivo, especificamente, com o significado
de coautoria. Isso se dá porque em 13.18 temos: “orem por nós”
(Προσεύχεσθε περὶ ἡμῶν) como se o autor não estivesse sozinho. O fato de
que o “nós epistolar” não ocorre naturalmente nos casos oblíquos reforça a
ideia (Wallace 1996:396). Contudo, o contexto nos revela que o uso de
ἡμῶν (“de nós”) se dá pela identificação do autor com os demais líderes,
não necessariamente com parceiros presentes ou coautores. Isso, por sua
vez, faz do nosso autor um pastor ou guia. Assim, em 13.18, temos o único
uso com sentido exclusivo para a primeira pessoa do plural.
Inclusivo (2.1, 3, 8-9; 3.6, 14, 19; 4.1-3; 11, 14-16; 6.1, 3, 18; 7.19;
10.10, 22, 23-24, 30, 39; 11.3; 12.1, 9, 28; 13.10, 13, 14-15). Em todos os
casos alistados, o autor usa a primeira do plural como um convite a se unir a
ele em uma argumentação, ou para exortação.
Para Fanning (em Bateman IV 2007:180), toda linguagem que identifica
o autor com os leitores no uso do pronome ἡμῶν, bem como a designação
de “santos” e “irmãos”, revela uma linguagem pastoral caridosa muito
comum, inclusive em nossos dias, onde o pastor se identifica com seu
público, porém, com a preocupação de que nem todos podem ser
verdadeiros crentes. No entanto, cremos que nosso autor se coloca
exatamente na mesma condição junto aos seus leitores. Veremos na análise
da quarta advertência, em Contexto Literário, que a proposta de Fanning
não é satisfatória.
A união entre autor e leitores no uso da primeira pessoa do plural será de
grande importância para o entendimento do nosso texto (6.1, 3),
primeiramente porque, em meio às várias exortações-advertências, ele
nunca se coloca acima dos seus leitores-ouvintes, como se seus avisos não
fossem aplicáveis a ele mesmo – o que nos dá uma noção da natureza das
advertências. Em segundo lugar, nos revela a natureza dos leitores – nosso
próximo ponto.
3. O autor é perito no Antigo Testamento. São várias as citações20,
alusões21 e ecos do AT22. Sobre a importância de se entender o uso que o
autor faz do AT, G. Guthrie (2001:2) nos alerta:
Tentar estudar qualquer porção de Hebreus sem considerar o sistema hermenêutico do autor,
sem reconhecer a forma com que ele utiliza os textos do AT e o fim para os quais essas
formas levam, é um exercício mal orientado ou pelo menos incompleto.
Destinatários
Identidade étnica e religiosa
É de grande importância para essa obra o entendimento de que os leitores
em questão são cristãos genuínos27. Aliás, entende-se, seguindo a tese de
Cowan (2012), que a garantia de salvação e a segurança dos leitores têm
sido ignoradas (não pressupostas) quando se analisa as advertências. Dessa
forma, cremos não ser necessária uma longa argumentação neste ponto da
pesquisa em prol de uma identidade cristã para os leitores. Por enquanto, as
seguintes razões são suficientes28:
(1) As exortações a conservar firme a confissão (4.14 e 10.23) e o fato de
que Cristo é seu objeto principal (3.1) deixam claro que estamos lidando
com pessoas que se identificaram como cristãs. (2) Como colocado antes, o
uso da primeira pessoa do plural também nos revela que a relação entre
autor e leitores não era somente de proximidade, mas de equidade de status.
(3) Expressões como “irmãos” (3.1, 12; 10.19; 13.22), “santos” (3.1) e
declarações que só podem ser aplicadas aos salvos reforçam tal julgamento
(e.g., “nós, porém, que cremos” [4.3]29; “estamos persuadidos [quanto aos
leitores] das coisas que são melhores e pertencentes à salvação” [6.9]; “Nós,
porém, não somos dos que retrocedem para a perdição; somos, entretanto,
da fé, para a conservação da alma” [10:39]).
O título προς εβραιους (“aos Hebreus”), presente em todos os MSS, bem
como em todas as versões (antigas ou contemporâneas), pode indicar ao
leitor que não temos problema quanto à identidade étnica dos primeiros
leitores do documento30. Contudo, o julgamento é que desde a primeira
citação com Tertuliano (De Pudicitia, 20) “não temos conhecimento de
qualquer outro título ou qualquer momento que ele esteve ausente” (Morris
1984:4).
Apesar disso, mesmo que se pudesse comprovar que a expressão era
original, isso não determinaria o fim da busca por entender quem realmente
são os leitores. A expressão não é tão clara como se pode imaginar a
princípio. Ela pode ser uma referência a cristãos judeus que tinham como
língua materna o hebraico ou o aramaico, ou cristãos que são judeus de
nascimento, não importando sua língua materna (Carson; Moo; Morris,
1997:446).
Há muitos indícios fornecidos pelo próprio documento de que os leitores
têm um background judaico. Mesmo que não possamos assegurar uma etnia
judaica, é certo que a orientação religiosa dos primeiros leitores, antes do
contato com o Evangelho, seguramente era judaica. Seguem algumas
indicações:
1. Relação com o Antigo Testamento. Todas as argumentações são
construídas sobre fundamento histórico, teológico e litúrgico do AT. São
muitos os tópicos: a geração rebelde que caiu no deserto, o culto no
tabernáculo, o dia da expiação, o sacerdócio e o sumo sacerdote, os tipos de
oferta e as alianças. Os vários personagens mencionados no capítulo 11
também reforçam a ideia. O livro ainda pressupõe uma angelologia bem
desenvolvida – o que era fato entre os judeus.
O número de citações, alusões e ecos do AT é relevante. Segundo G.
Guthrie (2001:6):
Existem rigidamente trinta e cinco citações, trinta e quatro alusões, dezenove casos onde o
material do AT é sumarizado, e treze onde um nome ou tópico do AT é referido sem
referência a um contexto específico.
As circunstâncias
A passagem a ser discutida com mais atenção (5.11-6.12) geralmente é
usada para assegurar que os leitores eram imaturos. Contudo, como
argumentaremos abaixo, entendemos que as colocações feitas em 5.11-14
são irônicas. Com isso, não se está negando que temos um quadro real e
perigoso de negligência (5.11 – νωθρός), mas que não podemos confundir a
realidade da negligência com a ironia das palavras que segue essa
constatação.
O capítulo 10.32-34 nos informa que os leitores tinham um passado
marcado por muito sofrimento, insultos públicos, prisões e confisco dos
bens. Tanto aqui como na passagem paralela (6.9-12), é-nos dito que a
resposta deles se deu em ajuda (6.10), compaixão com os presos (10.34) e
comunhão com os que foram insultados (10.33). Como sabiam que teriam
bens superiores e permanentes (como os personagens citados no capítulo 11
[cf. v.10, 13, 16, 26]), não somente ajudaram os demais, como se alegraram
com a perda dos seus bens (10.34).
A afirmação de que o passado dos nossos leitores foi marcado por
perseguição e, mais especificamente, por perda de bens é uma das
informações mais vívidas a respeito de nossos leitores. Muitos estudiosos
relacionam esse fato com o edito de Cláudio em 49 d.C. Lane (1991 1:lxvi)
entende que “insulto, abuso público e especialmente a perda de propriedade
eram normais sob as condições de um edito de expulsão”. Seguindo essa
lógica, nossa carta estaria necessariamente depois de 49 d.C.
Diferente do passado, o abatimento (ἐκλύω), a vontade de desistir (12.3,
12) e o medo da morte (2.15) estavam vencendo a guerra contra a alegria e
a persistência (12.1 – ὑπομονή). Em 12.1ss, temos um indício que pode
explicar essa mudança na comunidade. A palavra chave aqui é ἁμαρτία
(pecado). Em 12.1, ela não tem um enfoque específico; antes, é mais geral e
subjetivo (εὐπερίστατος); era um embaraço a ser evitado em uma corrida
perseverante. Por outro lado, temos em 12.3 uma referência específica e
objetiva (externa) – são os pecadores (12.3 – τῶν ἁμαρτωλῶν). Esses foram
hostis (ἀντιλογία) para com Cristo. O caráter dessa hostilidade é revelado
no verso seguinte, quando nos é dito que os irmãos não sofreram “até o
sangue” – diferente de Cristo.
Se entendermos a menção personificada de pecado em 12.4 como
referência aos pecadores em 12.3, temos uma menção à oposição hostil e
física contra nossos leitores, oposição esta que não chegou “até o sangue” e
nem pode ser comparada com a do Senhor Jesus (12.2-3). Contudo, ainda
assim, hostil e física. Caso tenhamos uma carta a irmãos em Roma escrita
depois de 49 d.C. e antes de 68 d.C., a sugestão mais provável é que nossos
leitores estão sob a perseguição promovida por Nero. Isso colocaria nossa
carta entre o grande incêndio de Roma (64 d.C.) e o suicídio de Nero (68
d.C.)
O conteúdo das exortações (2.1-3; 3.7-15; 4.1; 5.11-14; 12.3) e o fato de
o “deixar de congregar” (10.25) já ser o hábito (ἔθος33) de alguns
(aparentemente eles se reuniam diariamente [ἑκάστην ἡμέραν – 3.13])
reforçam o quadro de abatimento na comunidade. Não nos é dito a razão da
ausência nas reuniões, mas se pode pensar que ela está na perseguição
(12.3), na displicência (6.12) ou no desânimo (12.3), ou ainda numa
combinação desses elementos, ou em todos.
As expressões ἵνα μὴ (“a fim de que não” – 3.13; 4.11; 6.12; 12.3, 13) e
μήποτε34 (2.1; 3.12; 4.1), muito comuns nos contextos de exortação que
confrontam o desânimo, são importantes para entendermos a natureza
dessas ameaças (e.g., desânimo, ausência nas reuniões) bem como o
propósito das exortações, ou seja, do próprio documento, uma vez que o
autor denomina sua obra de “palavras de exortação” (13.22).
Tanto ἵνα μὴ quanto μήποτε são expressões de natureza futurísticas35. Em
outras palavras, elas indicam o que se visa evitar, não necessariamente o
que é real. Ou seja, não podemos confundir o deixar de congregar e/ou o
desânimo com a própria apostasia (que é o que se quer evitar com as
exortações). Há, sim, uma relação direta entre os dois. Deixar de congregar,
desânimo e displicência seriam uma espécie de “prelúdio para a apostasia”
(Lane 1991 2:290). Mas podemos concluir que nosso autor não está
escrevendo para descrentes desviados, mas para crentes desanimados36.
Síntese
Com os dados considerados acima, queremos agora reconstruir o quadro
histórico. Extrairemos dele informações importantes na lida com o nosso
texto, principalmente no que diz respeito ao autor, aos leitores e à situação.
1. Temos um escritor (pastor), extremamente inteligente, versado na
retórica grega e com conhecimento do AT satisfatoriamente apurado que,
longe de suas ovelhas que se encontravam em Roma, toma conhecimento
de que elas estão flertando com o judaísmo e a liturgia do templo.
2. As perseguições e prisões que haviam sido vencidas com alegria nos
dias de Cláudio foram intensificadas nos dias de Nero. O medo da morte
cresceu nos corações. O preço da confissão agora parecia ser alto demais. O
pensamento de desistir já havia tomado alguns e as reuniões já não eram as
mesmas. A ideia de se voltar para o judaísmo sem abandonar
completamente o cristianismo (sincretismo) crescia por parecer ser um
caminho legítimo.
3. Eram muitas as vantagens da vinculação com o judaísmo. Elas podiam
ter seus corações fortalecidos pelos alimentos sagrados, não precisavam se
vincular totalmente com o cristianismo e ter, como decorrência dessa
relação, o vitupério e o risco de derramar sangue.
Apesar de existirem pastores presentes que lutavam contra tal postura,
uma vez que eles eram preocupados com a vida de suas ovelhas, os cristãos,
em insubmissão, alimentavam a ideia de que o vínculo com o judaísmo e o
templo não era nada ameaçador para suas vidas espirituais.
4. O pastor envia a carta-pregação visando incentivar aqueles irmãos a
não desistir. Para isso, ele argumenta que mesclar cristianismo e judaísmo é
o mesmo que abandonar Cristo (seu sacrifício, intercessão, reino e domínio)
e o próprio AT, uma vez que toda a liturgia e prática da primeira aliança
apontavam para Cristo – eram parábolas (παραβολή – 9.9), sombras (σκιά –
10.1) e figuras (ὑπόδειγμα – 8.5; 9.23) de Cristo. Aderir às práticas que
apontam para o Messias, depois da sua vinda, é um desrespeito, um desdém
e uma falta de entendimento da razão da existência delas. Tanto a sombra
quanto o que ela aponta são ignorados. A carta-sermão é explicitamente
centrada em Cristo.
5. Assim como a geração do deserto, nossos leitores estavam sendo
tentados-provados (2.18 – 3.1; 4.15-16) e não deveriam reagir com
incredulidade (3.12). Antes, deveriam viver olhando para Cristo (3.1),
caminhando na perfeição (6.1), cuidando e se admoestando mutuamente
(3.13; 12.14) a fim de que ninguém37 pudesse ser separado da graça, como
Esaú, ou fazer crescer raiz que produza amargura e contaminação (12.15).
O que o autor deseja é que eles mantenham a confiança (παρρησία,
ὑπόστασις), a esperança (ἐλπίς), a prontidão (σπουδή) e a fidelidade (πίστις)
“até o fim” (3.6, 14; 6.11; 13.7).
Olhar somente para a história do texto não nos diz muito do seu significado.
Precisamos lidar com o próprio texto. As problemáticas textuais a serem
ponderadas aqui são: quais são as passagens de advertência? Onde elas
começam e terminam? Existe uma relação de dependência hermenêutica
entre elas? Elas formam um quiasmo (estrutura concêntrica)? Devemos lê-
las sinteticamente? Há um efeito crescente entre elas? Qual a relação delas
com o material instrutivo? Qual a natureza e o propósito das advertências
em Hebreus? Elas visam atemorizar ou motivar? Qual sua relação com a
realidade? Há a possibilidade real de o cristão cair de maneira irreversível?
Como devemos lidar com esse gênero literário? O que o autor espera
quando adverte? Esperamos responder essas questões.
ESTRUTURA
Referindo-se à dificuldade de se interpretar Hebreus 6.4-6, bem como
outros textos epistolares, Moisés Silva (2009:120 – itálico nosso) declara:
Uma característica importante que descobriremos é que Hebreus 6.4-6 não é a única
passagem desse tipo no texto. De fato, há quatro outras passagens chamadas de “passagens de
advertência” […] Quando tomamos o argumento do livro como um todo, parece menos
provável que essas quatro advertências estivessem tratando de situações diferentes […]
INCLUSIO
Exposição
Como assinalamos acima, faremos uma distinção entre exortação e
advertência. A primeira é positiva, indicando o que deve ser feito, enquanto
a segunda é negativa, alertando para os resultados e/ou consequências
terríveis de não se seguir a exortação. Distinção não implica em total
separação ou ausência de relação semântica direta. Reconhecemos a relação
próxima entre advertência e exortação de forma tal que lidaremos com elas
como uma só unidade.
O reconhecimento dessa relação é de suma importância quando lidarmos
com o nosso texto alvo, pois certamente é consenso que a exortação em 6.1
é dirigida a todos os cristãos (incluindo o autor). Não faz qualquer sentido
entender que a advertência (6.4-6) tem um público distinto quando elas
“facilitam a reflexão quanto ao progresso explícito de uma ação” (Bateman
IV 2007:27 – itálico nosso).8
HEBREUS 2.1-4
Nossa passagem inicia com uma exortação, que por sua vez, é uma
implicação (Διὰ τοῦτο) do que foi dito anteriormente – a superioridade de
Jesus em relação aos anjos. A supremacia e/ou superioridade do Filho, pois,
é o fundamento da exortação. Seus leitores deveriam dar atenção especial
(περισσοτέρως)9 à mensagem ouvida (δεῖ… προσέχειν… τοῖς ἀκουσθεῖσιν)
visto que essa palavra foi trazida pelo Filho (1.2) – que é superior. Trata-se,
portanto, de um “imperativo lógico”.
O tom comparativo da instrução da seção anterior tem implicações
práticas na exortação e vai além, perpassando toda a obra. Em certos
momentos, a comparação é explicitada por adjetivos e advérbios
comparativos como κρείσσων ou κρείττων (ον)10. Em outros momentos,
mesmo na ausência de comparativos explícitos, o próprio argumento
assume a forma de comparação. É digno de nota que superlativos estavam
em declínio e que comparativos como περισσοτέρως (“maior”, “mais”)
ganharam uma força elevada (Lane 1991 1:34).
A exortação é seguida por uma declaração de propósito negativo
(μήποτε)11. O objetivo da exortação é o “não desvio” (παραρυῶμεν) da
palavra. Reconhecendo um tom náutico em παραρυῶμεν, Lane (1991 1:37)
declara: “[a] imagem de um navio à deriva, carregado pela corrente além do
ponto fixo, forneceu uma metáfora vívida para a falha em manter um aperto
firme sobre a verdade por meio do descuido […]”. Após a declaração do
propósito negativo, segue-se uma “explicação argumentativa (εἰ γὰρ)”
numa oração condicional que traz uma prótase em duas partes (εἰ…καὶ).
Considerações finais
1. Não se deve precipitadamente afirmar que o texto está lidando com a
possibilidade de condenação. É fato que a punição mais severa (a fortiori)
virá “se” a palavra da salvação anunciada primeiramente pelo Senhor for
negligenciada e/ou não tomada com a devida atenção. Porém, a realidade da
condenação é um “fato condicionado”.
A despeito das condicionais nos levarem a pensar em categorias de
“possibilidade”, essa não é a única alternativa. As orações condicionais não
lidam somente com o que é possível, mas também com o que é concebível.
O mérito quanto à possibilidade de condenação, portanto, vai além de
elementos gramaticais e contextuais imediatos. Dois fatos não podem ser
negados: (a) se é possível para os leitores, também o é para o autor, uma
vez que o verbo está na primeira do plural (ἐκφευξόμεθα). Esse fato será
importante na lida com as outras advertências; (b) a relação estrutural de
evidência-inferência entre a prótase e a apódase nos ensina que tal
conclusão é lógica. Ou seja, a construção tanto pode implicar o possível
como o concebível. O fato de a advertência vir em forma de pergunta
reforça a segunda opção. A medida em que formos considerando as outras
advertências, veremos que essa alternativa será ratificada.
2. O tema que atravessa toda a passagem é a “palavra”. É ela que deve
ser tomada com atenção, assim como ela foi trazida por anjos. A relação
com a palavra é determinante para a salvação. Salvação em nossa passagem
foi “anunciada”. Há, portanto, uma clara relação entre a palavra e Deus.
Não há como negligenciar a palavra sem negligenciar o próprio Deus e,
como consequência disto, receber justa condenação. É importante ratificar
que a Palavra em questão é a palavra de Cristo.
Exposição
HEBREUS 3.6
Apódase Χριστὸς δὲ ὡς υἱὸς ἐπὶ τὸν οἶκον αὐτοῦ· οὗ οἶκός ἐσμεν ἡμεῖς
Inferência/Efeito Cristo como filho sobre a sua casa; esta casa somos nós.
HEBREUS 3.14
Prótase ἐάνπερ τὴν ἀρχὴν τῆς ὑποστάσεως μέχρι τέλους βεβαίαν κατάσχωμεν.
Evidência/Causa Se mantivermos a confiança que tivemos no começo até o fim
Justamente pelo fato de pertencer a Deus, o “descanso” é tanto presente quanto futuro; o
homem entra nele e deve se esforçar para entrar nele. Trata-se de uma situação paradoxal,
mas é um paradoxo que Hebreus tem em comum com toda a escatologia cristã primitiva.
Considerações finais
1. O texto não está dizendo que podemos cair no mesmo erro dos
israelitas. É exatamente o contrário: por estarmos ligados a Cristo, a sua
fidelidade garantirá a nossa. Por outro lado, quem não segue a Cristo cai no
mesmo erro da geração do deserto – não entra no descanso. Sobre a relação
tipológica entre Israel e a Igreja, abaixo lidaremos com essa questão.
2. Assim como na porção precedente, temos Cristo como foco maior da
exortação. Confirma-se a tese de que o conteúdo exortativo se mantém o
mesmo, enquanto o material de instrução se desenvolve. Essa unidade nas
exortações-advertências pode revelar a intensão do autor. Isso ratificaria a
tese de W. Nauck de que a instrução visa a exortação.
3. A incredulidade é uma questão de coração. Como veremos, o antigo
sistema não mudava ninguém interiormente, assim como Moisés não
mudou ninguém. Somente Cristo pode mudar nosso coração-consciência
(cf. 10.22) por cumprir a Nova Aliança. A relação entre o ouvir e o coração
é importante para o nosso texto alvo, pois o quadro dos leitores naquela
passagem é de “negligência no ouvir”.
Ἰησοῦν Ἰησοῦ
Jesus Jesus
Παρρησίας Παρρησίαν
Ousadia Ousadia
HEBREUS 5.11-6.12
Exposição
HEBREUS 10.19-32
É preferível ver a metáfora do fogo contra o pano de fundo do Antigo Testamento, onde a ira
de YAHWEH para com seu povo da aliança é descrita como metáfora do fogo (Is 9.18-19;
10.17). Aqueles que abandonam a assembleia devem esperar a disciplina do Senhor (Hb 12.5-
11). Eles têm voluntariamente escolhido viver de um modo que serão disciplinados pelo
Senhor.
EXORTAÇÃO E OS PARTICÍPIOS
Aqui vale uma palavra sobre a relação entre o conteúdo das exortações
em 19-25 e o conteúdo da advertência em 26-32. Como na seção da
advertência o foco é destacado no sacrifício de Cristo (e.g., pisar no sangue
da aliança), uma vez que as pessoas hipotetizadas rejeitam a Cristo, a
impressão que se pode ter é que a advertência é a consequência lógica de
não se seguir somente as duas primeiras exortações (aproximar-se do Santo
dos Santos e manter a confissão), como se o “não congregar” não tivesse
qualquer relação com a rejeição do sacrifício de Cristo. No entanto, não se
pode esquecer que o “deixar de congregar” era um sinal de abandono e não
se resumia a “deixar de fazer alguma coisa qualquer”, mas em “fazer outra
coisa”. O “deixar de congregar” não pode ser visto como um “ato neutro”.
É, na realidade, uma troca. Nesse contexto específico, “deixar de
congregar” está relacionado ao desprezo ao sangue da aliança. Enquanto se
deixava de congregar, muitos estavam buscando fora de Cristo a força para
os seus corações (cf. Hb 13.9).
Voltemos aos três particípios do verso 29. Nosso primeiro particípio
(καταπατήσας) traz uma figura vívida que não somente vem reforçar o
aspecto da rejeição do sacrifício de Cristo, mas pode também ilustrar um
verdadeiro antagonismo – uma forma mais severa de rejeição.
O segundo particípio (ἡγησάμενος) se refere ao tratamento dado à base
da Nova Aliança (sangue) como um sangue qualquer (κοινός). Até aqui, o
autor de tamanho ultraje foi identificado somente como alguém que tem
conhecimento da verdade. Mas o verso 29 nos assombra ao nos informar
que o autor desse pecado deliberado é alguém que foi “santificado pelo
sangue”. Os capítulos 9 e 10 nos ensinam que a perfeição do sacerdócio de
Cristo é revelada exatamente nos seus efeitos internos (“consciência” – Hb
9.14; 10.22).
A questão aqui é: como uma pessoa santificada internamente pode
chegar a um estágio de rejeição do sacrifício que, a priori, já o
transformou? O contraste entre “profanar” (κοινὸν ἡγησάμενος) e santificar
(ἡγιάσθη) é muito forte. No primeiro, temos a ação do pecador em justa
oposição ao segundo – a ação de Deus em Cristo. Em face dessa realidade,
Lane (1991 2:294) e O’Brien (2010:379) entendem se tratar de um recurso
retórico poderoso – a ironia.
Grudem (2002:670, 677) entende que se trata de uma santificação
externa como a descrita em 1Coríntios 7.14, em que o marido incrédulo é
“santificado” pelo convívio com a esposa crente. Ele ainda cita 9.13 como
exemplo de santificação externa. A dificuldade dessa visão é que o mais
natural (ou diria, exigido) é entendermos o sangue profanado como o
sangue de Cristo, devido ao primeiro particípio. Separar o “filho” (do
primeiro particípio) do “sangue” (do segundo particípio) é violentar a
estrutura de relação entre os particípios. O fato é que o sangue profanado é
o mesmo sangue que santificou, verdade essa já ensinada em 10.10: “Nessa
vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus
Cristo, uma vez por todas”. E ainda no v.14: “Porque, com uma única
oferta, aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados”
(Hb 10:14).
Fanning (2007:137 – itálico nosso) entende que “enquanto os detalhes
dessas descrições tomadas por elas mesmas parecem apontar para uma
verdadeira experiência cristã, as afirmações completas desmentem essa
impressão”. Ele entende que o autor descreve a experiência de conversão
externamente (2007:217 – itálico nosso). Entretanto, à luz de todo o
contraste entre os antigos sacrifícios e o sacrifício de Cristo é impossível
sustentar tal visão. A santificação que o sangue de Cristo realiza
seguramente não é externa. Em Hebreus 9:14, temos: “muito mais o sangue
de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a
Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao
Deus vivo”.
Nosso último particípio revela o quão interligados estão o Espírito Santo
e o ministério sacerdotal de Cristo. Em 9.14, nosso autor misterioso já tinha
nos revelado que Cristo ofereceu a si mesmo através (διά) do Espírito
Eterno. Nosso terceiro particípio reforça a interdependência dos dois
ministérios ao afirmar que calcar aos pés o Filho é o mesmo que “ultrajar”
(ARA) e “insultar” (NAS) o Espírito Santo.
No verso 30, temos uma citação de Deuteronômio 32.35-36. O elemento
comum entre o contexto de Hebreus 10 e Deuteronômio é a inevitabilidade
do juízo. George Guthrie (2007:981) sintetiza bem:
Embora 32.36 no seu contexto original poderia ser tomado como uma referência à vindicação
do Senhor daqueles que verdadeiramente são seus, parece que o autor de Hebreus está lendo o
verso, e especificamente a palavra krino na versão da LXX, como uma confirmação de
julgamento.
Considerações finais
1. Como conciliar todas essas informações aparentemente incompatíveis?
Fanning (2008:454) entende que 3.6, 14 são verdadeiras “chaves
hermenêuticas” ou “paradigmas interpretativos” quando o assunto é
soteriologia em Hebreus. Em suas palavras:
O autor afirma que a persistência deles na fé demonstrará que são (tempo presente em grego)
membros da casa de Deus, não que isso os fará membros no futuro. Reter firmemente sua
confiança revelará a realidade de que eles já são participantes (tempo perfeito) de Cristo, não
que participarão.
HEBREUS 12.25-29
Exposição
Comecemos com os elementos contextuais. “Diferente de 2.1-4, onde a
advertência do autor ocorre no meio de uma discussão sobre o Filho, a
exortação em Hebreus 12.14-29 acontece numa discussão acerca dos
crentes” (Bateman 2007:34 – itálico nosso): eles já chegaram a Jerusalém
Celestial.
As observações estruturais acima revelam uma mudança de modo
(indicativo → imperativo), porém não há mudança de pessoa – segunda do
plural. Assim, a priori não faz nenhum sentido distinguir os que já
chegaram à Nova Jerusalém e ao sangue superior de Jesus dos que são
advertidos nos versos seguintes (25-29). A presença de ἡμεῖς (nós) no verso
25 só reforça tal julgamento.
Assim, a exortação é dirigida para quem chegou em Jesus: não recuseis
ao que fala. O verbo παραιτέομαι foi usado também no verso 19. Segundo
Lane (1991 2: 475) “a sintaxe da oração mostra que ela significa
‘implorar’27 que algo não seja feito” e indica recusa culpável e deliberada.
O autor, portanto, alerta seus leitores sobre a recusa de “ouvir”.
A razão (εἰ γὰρ) para se seguir a exortação acompanha novamente os
termos da argumentação a fortiori (qal wahomer). É importante ressaltar a
natureza factiva (ou não factual) e pressuposicional de qualquer
argumentação. Argumentação está no campo ideacional. No caso do nosso
texto, εἰ (se) prefacia o que os leitores devem tomar como verdade para
benefício do argumento. Se encontramos algo real ou hipotético, quer na
prótase ou na apódase, tal julgamento não é da alçada da gramática.
Sabemos, por exemplo, que nossa prótase é real por estar ancorada na
história do povo de Israel. Já a realidade da apódase pode ficar somente no
campo do concebível – não do real. São elementos teológicos-contextuais,
não gramaticais, que terão a palavra final.
O que é assegurado (dentro do argumento) em forma de pergunta
retórica em 2.3 (“Como nós escaparemos [ἐκφευξόμεθα – de ἐκφεύγω], se
negligenciarmos tão grande salvação?”), aqui é igualmente assegurado pelo
indicativo ἐξέφυγον (de ἐκφεύγω – escapar). Em nosso argumento, quem
rejeita a voz de Deus (cf. argumentação abaixo) e o sangue do perdão que
fala, não tem a mínima chance de escapatória.
Voltando à natureza a fortiori (qal wahomer) do argumento, o menor aqui
se refere ao que aconteceu com a geração do deserto (3.7-19): assim como o
povo rejeitou a palavra de Deus por meio de Moisés, assim também quem
rejeita ao que fala (τὸν λαλοῦντα) sofrerá consequências, porém, maiores e
piores.
Exatamente pela natureza da argumentação (qal wahomer) não nos é
permitido interpretar o “fogo”28 no verso 29 como um fogo de provação.
Assim, a suma da advertência (consequência de não se seguir a exortação) é
idêntica a todas que a antecederam: não recuse a palavra de Deus, caso
contrário, não haverá escapatória.
O contexto que precede nossa exortação-advertência se encontra nos
versos 18-2429. Aqui, é desenvolvido um contraste entre as duas alianças.
Apesar da quebra abrupta da nossa passagem, há um ponto de contato de
natureza lexical entre as duas: λαλοῦντι (v. 24) e λαλοῦντα (v. 25).
No verso anterior, quem “fala” (λαλοῦντι – particípio dativo atributivo) é
a personificação do “sangue da aspersão” (αἵματι ῥαντισμοῦ) – o sangue de
Cristo (cf. 10.22). A presença do comparativo κρεῖττον (melhor) nos faz
pensar que a locução preposicional παρὰ τὸν Ἅβελ tem força comparativa
significando “mais que” (Wallace 1996:378). Assim, a palavra “sangue”,
que explicitamente se refere a Cristo, implicitamente se refere também a
Abel.
A questão aqui é: em que sentido o sangue de Cristo fala coisas
superiores ao sangue de Abel, que também “falou” (Gn 4.10)? Guthrie
(1998:422 – itálico nosso) nos ajuda:
O sangue de Abel testemunhou contra Caim, indicando sua culpa. O sangue de Cristo, por
outro lado, granjeou nosso perdão, ‘clamando’ que pessoas da Nova Aliança já não são
culpadas, tendo sido limpas completamente do pecado.
Ou seja, o sangue de Abel clama por julgamento enquanto o sangue de
Cristo clama por perdão – pena paga completamente. A identidade de “o
que fala” (τὸν λαλοῦντα), contudo, tem sido alvo de discordância entre os
comentaristas. Bateman IV (2007:38) crê se tratar de Jesus. Peter O’Brien
(2010:492) crê que temos uma referência a Deus.
O’Brien (2010:193) apela tanto para o contexto do AT (Dt 5.23-24 LXX;
Ex 20.18-20 LXX) quanto para o texto precedente (especialmente 12.19),
onde temos uma referência à voz de Deus no Sinai. Ele ainda cita alguns
versos do terceiro capítulo de Hebreus (e.g., v. 16, 18), onde temos a
declaração de que o povo ouviu Deus e mesmo assim se recusou a obedecê-
lo.
Sem querer apresentar uma solução simplória e/ou ingênua, penso que
não seria forçar demais entender que Deus fala por meio de Cristo (seu
sacrifício, por exemplo) ou por meio de Moisés. Devemos evitar dicotomias
rígidas quando o texto nos leva para outro caminho. Não podemos ignorar
os instrumentos de Deus (Moisés e Jesus), pois a argumentação também
visa contrastá-los. A rejeição às palavras de Deus via Moisés teve castigo
certo, assim como as palavras de Deus via Jesus (seu sacrifício – seu
sangue) teve muito mais. O reconhecimento de tal realidade só ecoaria o
que o autor já nos apresentou como síntese de sua teologia em 1.1-4: Deus
nos fala hoje pelo filho.
Entendendo dessa forma, temos uma semelhança com a quarta
advertência: o que está sendo negado aqui é o sangue de Cristo – seu
sacrifício. Assim como em 10.19-32, não há como escapar do julgamento
quando não se ouve o “sangue do perdão”.
Nos versos seguintes, temos uma citação de Ageu 2.6 visando ampliar o
sentido e/ou a natureza do julgamento mais severo. Ela sofre algumas
alterações: (1) há uma omissão de “terra seca” e “mar”; (2) foi acrescentado
a expressão οὐ μόνον…ἀλλὰ καὶ (“não somente...mas também”) e (3) a
ordem das palavras foi modificada. Dessas alterações (principalmente a
primeira e a segunda) se conclui que o autor visou destacar o abalo também
“nos céus”. Ou seja, não será como no Sinai onde somente a terra foi
abalada. Haverá um abalo futuro que envolverá não somente a terra, como o
céu também.
Quanto ao uso de σαλεύω30 (“abalar” v. 26-28), ao que tudo indica, a
expressão tem uma relação direta com julgamento. Segundo Lane (1991
2:481), “[o]s tradutores da LXX usaram o verbo σαλεύω metaforicamente
como uma expressão para o efeito do julgamento divino”.
Junto e decorrente (διό) da palavra de julgamento, temos também uma
palavra de salvação, esperança e gratidão. Nem todos serão “abalados”.
Existe o grupo dos que permanecerão (v. 27 – τὰ μὴ σαλευόμενα) mesmo
diante do abalo de Deus.
Aqui o autor segue a mesma estrutura da terceira e quarta exortação, isto
é, exortação-advertência-confirmação. Apesar de argumentar sobre o
julgamento, ele os exorta a serem gratos (ἔχωμεν χάριν [BDAG:1080])
porque eles receberam um reino inabalável (βασιλείαν ἀσάλευτον
παραλαμβάνοντες).31 É através (διʼ ἧς) da gratidão que eles adorarão
(λατρεύω) o Senhor. Sem dúvidas, um “desafio consolador”.
Considerações finais
1. O que é de grande importância para nossos objetivos é saber se
realmente as pessoas advertidas são ou não cristãs autênticas. Não temos
motivos para questionar a genuinidade da salvação daqueles que receberam
a advertência. Os advertidos são exatamente os mesmo que devem ser
gratos por participar de um reino inabalável – livre de condenação.
2. Como foi dito acima, nem sempre o objetivo de uma argumentação é
apresentar o possível, mas o concebível. Rejeição ao sangue de Cristo (que
fala) seguramente trará condenação. Isso é real. Contudo, não é somente o
condenado que convive (ou não) na comunidade da aliança (sem realmente
ser) que deve ser lembrado e/ou advertido quanto a isso. O alvo do nosso
autor não são os incrédulos, mas os participantes do reino. Só esses podem
ser gratos por não serem condenados. É dar ouvidos à verdade – de que não
ouvir o sangue de Cristo implica em condenação – que os livrará de ser
condenados. Esse é o propósito do autor.
3. Como há uma comparação com os acontecimentos de Israel no AT, é
importante entender essa relação (que explicitaremos na exposição de nossa
passagem). Por enquanto, apresentamos a ideia de forma resumida: o que
aconteceu com Israel não pode, nem muito menos irá acontecer, com os
membros da Nova Aliança – dos que escutam a voz de Deus pela cruz.
4. Precisamos ampliar nosso conceito da “palavra de Deus” e o nosso
conceito de “ouvir”. Os leitores primários desse grandioso documento não
estavam ouvindo a voz da cruz – a voz do Pai por meio do Filho. Isso
certamente nos fará observar a nossa passagem com outros olhos.
EXORTAÇÃO E INSTRUÇÃO
Relação de dependência
Muitos comentadores modernos têm visto Hebreus como uma pregação
(cf. Koester 2001:80-82), e existem indícios fortes que nos levam a
confirmar tal proposta:
1. A expressão “palavra de exortação” (τοῦ λόγου τῆς παρακλήσεως)
usada em 13.22. Em Atos 13.15, encontramos a mesma expressão (λόγος
παρακλήσεως) sendo usada para descrever a homilia da sinagoga. Segundo
Lane (1991 1:lxx – itálico nosso), “palavra de exortação parece ser uma
expressão idiomática para um sermão tanto nos círculos judaicos
helenísticos quanto para os primeiros cristãos”.
2. Hebreus se encaixa com a estrutura de uma pregação. Lawrence Wills
(apud. Stanley 1994:249) assegura que uma palavra de exortação segue uma
estrutura tripartida: (a) seção explanatória com citações das Escrituras,
exemplos autoritativos e exposição teológica; (b) uma conclusão baseada na
exposição mostrando a relevância aos endereçados; (c) uma exortação,
geralmente contendo um imperativo ou um subjuntivo de exortação. Para
Wills, esse padrão (com digressões e repetição fora dessa ordem) é
encontrado várias vezes no livro de Hebreus32.
São basicamente dois gêneros em Hebreus: instrução e exortação. O
material instrutivo precede um bloco de exortação que, por sua vez, é
seguido por um recomeço do material expositivo (Guthrie 1994:97). A
questão é: qual a relação entre material exortativo e o instrutivo? O
primeiro é uma digressão do segundo? A instrução é o fundamento da
exortação? Há uma relação entre as exortações? Há uma relação entre as
instruções?
Seguindo G. Guthrie (1994:97), pensando especificamente no gênero
expositivo, entendemos que a presença de “palavras iscas” une o mesmo
gênero em toda a obra. Isso pode sugerir que o autor aponta para alguma
continuação semântica entre as unidades do mesmo gênero (Guthrie
1994:115) – o que Guthrie chama de argumentação “passo-a-passo”.
Pensando especificamente em nosso material (gênero exortativo), qual
seria a relação entre essas seções? Em primeiro lugar, elas não seguem uma
argumentação “passo-a-passo” como no gênero expositivo. Porém,
encontramos elementos comuns: (1) as seções 2.1-4; 3.6-7.11; 10.26-31;
12.25-29 usam argumentos a fortiori (qal wahomer). (2) Temas comuns
perpassam as seções exortativas. Segundo Bateman IV (2007:28):
Das cinco passagens de advertência, duas evocam a necessidade de ouvir ou dar atenção à
mensagem de Deus (2.1-4; 12.14-29), enquanto outras duas produzem necessidade emotiva e
explícita expectativa a confiar em Deus e a obedecê-lo (3.7-4.13; 10.19-39). No coração
dessas passagens de exortação está Hebreus 5.11-6.12.
[…] elas [as seções exortativas] retornam várias vezes aos temas chave similares, por
exemplo, queda, pecado, punição, promessa, necessidade de se receber a mensagem de Deus,
Jesus o filho, fé, obediência, firmeza, entrar em, e o uso de exemplos.
[…] exortações condicionais em si não funcionam para indicar nada acerca da possibilidade
de falha ou cumprimento. Ao invés disso, as exortações condicionais apelam para nossa
mente para conceber ou imaginar as consequências invariáveis que vem para todos que
seguem a estrada da apostasia de Cristo. […] Advertências e admoestações não dizem nada
acerca do que é possível no sentido do que é provável ou capaz de acontecer […] elas
expressam o que é capaz de ser concebido com a mente. […] As advertências projetam uma
suposição que nos chama a imaginar que um curso específico de ação tem uma consequência
inequívoca inviolável.
As palavras de Jesus não dizem nada acerca da possibilidade de alguém perder a salvação;
essa não é a função de uma promessa condicional. Antes, a função de suas palavras é
assegurar a você que você será salvo, se perseverar. Você deve perseverar se quer ser salvo.
[…] Jesus não nos dá um teste de perseverança pelo qual podemos saber se somos salvos ou
não. Note sua orientação. Ele é prospectivo, não retrospectivo. Ele usa o tempo futuro para
eles: ‘serão salvos’ (Schreiner, Caneday 2001:152 – itálico nosso).
Isso [Marcos 13.21-22] foi acrescentado com o propósito [itálico nosso] de excitar alarme;
que os crentes podem ser mais cuidadosos para estar em guarda; pois quando tal liberdade de
limite de ação é permitida a falsos profetas, e quando eles estão autorizados a exercer tais
poderes de enganar, aqueles que estão descuidados e desatentos seriam facilmente tomados
por suas armadilhas. Cristo, portanto, exorta e desperta seus discípulos a vigiar, e ao mesmo
tempo lembra-lhes que não há razão para estar atribulado pela estranheza da visão, caso
vejam muitas pessoas levadas ao erro. Enquanto ele os estimula ao cuidado, para que Satanás
não os alcance em estado de preguiça, ele concede a eles base abundante de confiança sobre a
qual eles podem calmamente depender; quando ele promete, eles estarão seguros sob a
proteção e defesa de Deus contra todas as ciladas de Satanás. Assim, embora por mais frágil e
escorregadia possa ser a condição do piedoso, ainda existe uma base sólida sobre a qual eles
podem permanecer, pois não é possível eles caírem da salvação, a quem o Filho de Deus é um
guardião fiel. Eles não têm energia suficiente para resistir aos ataques de Satanás, a não ser
por consequência de ser a ovelha de Cristo, que ninguém pode arrancar de sua mão (Jo
10.28). Deve, portanto, ser observado que a permanência de nossa salvação não depende de
nós, mas da eleição secreta de Deus, pois embora nossa salvação seja mantida por meio da fé,
como Pedro nos diz (1Pe 1.5), ainda devemos subir o mais alto e assegurar de que estamos
em segurança, porque o Pai nos deu para o Filho, e o próprio Filho declara que ninguém que
tenha sido dado a ele perecerá (Jo 17.12). (Calvin 1979:141 – itálico do autor)
Dizer que cristãos verdadeiros não precisam de tal advertência porque eles não podem
possivelmente cometer esse pecado é, repetimos, perder de vista a conexão que o próprio
Deus estabeleceu entre seus fins predestinados e os meios pelos quais eles são atingidos. O
fim para o qual Deus predestinou Seu povo é sua eterna felicidade no céu, e um dos meios
pelos quais esse fim é alcançado é através da observação a solene advertência que Ele nos deu
contra aquilo que impediria sua chegada ao céu (Pink apud. Cowan 2012:242).
Considerações finais
1. Sobre a relação entre advertência e conhecimento e/ou ensino, ficamos
com as observações de G. Guthrie (1994:139):
1. William L. Lane serviu de outside reader da tese de doutorado de G. Guthrie e utilizou seu
material na introdução de sua obra.
2. Segundo Walter Kaiser (2009:72-3 – itálico nosso), “[a] inclusão [ou inclusio] se refere a uma
repetição que marca o início e o fim de uma seção […]”. Como no quiasmo, ela pode indicar que o
material contido forma um todo – uma unidade (Levinsohn 2000:277).
3. Segundo Reed (em Porter 2002:205): “Coesão acontece quando a interpretação de algum
elemento no discurso é de um outro. Um pressupõe o outro no sentido de que não pode ser
efetivamente decodificado senão recorrendo a ele”. Para Guthrie, coesão é “uma propriedade
semântica de um texto que dá unidade ao texto”. Há quem faça distinção entre coesão e coerência.
Aqui seguimos o entendimento de Reed e G. Guthrie, que por sua vez seguem M. A. K. Halliday e
Ruqaiya Hasan.
4. Estrutura quiástica proposta por Guthrie (1994:136):
3.1-6 Jesus, o supremo exemplo de um filho fiel.
3.7-19 O exemplo negativo daqueles que caíram por infidelidade.
4.3-11 A promessa de descanso para aqueles que são fiéis.
4.12-13 ADVERTÊNCIA
4.14-16 Agarre-se e aproxime-se.
5.11-6.3 O presente problema dos ouvintes.
6.4-8 ADVERTÊNCIA
6.9-12 Mitigação: a confiança do autor nos ouvintes e seus desejo por eles.
10.19-25 Agarre-se e aproxime-se.
10.26-31 ADVERTÊNCIA
10.32-39 O exemplo positivo do passado dos ouvintes e um admoestação a suportar para
receber a promessa.
11.1-40 O exemplo positivo dos fiéis do Antigo Testamento.
12.1-2 Rejeite o pecado e fixe seus olhos em Jesus, supremo exemplo de perseverança.
5. “Portanto” (ARA); “por essa razão” (ARC), “therefore” (KJV, NIV), “for this reason” (NAS).
6. “Importa” (ARA); “convém” (ARC); “must” (NIV, NAS); “ought” (KJV).
7. “Pois não foi a anjos” (ARA), “Porque não foi aos anjos” (ARC).
8. O conteúdo das exortações e das advertências apresentados nas tabelas são sintéticos.
9. “Mais firmeza” (ARA), “mais diligência” (ARC), “more careful attention” (NIV), “pay much
closer” (NAS).
10. “Melhor” (cf. 1.4; 7.7; 7.19; 7.22; 8.6 [duas vezes]; 9.23; 10.34; 11.16; 11.35; 11.40; 12.24).
11. “Para que…jamais” (ARA), “para que em tempo algum” (ARC), “so that we do not” (NIV).
12. “Transgressão” (ARA, ARC), “transgression” (NAS), “violation” (NIV). Low-Nida (36.28) o
define como “um ato contrário a um costume ou lei, com implicação de intensão”.
13. “Desobediência” (ARA, ARC), “disobedience” (NAS, NIV, KJV).
14. “Justo castigo” (ARA), “justa retribuição” (ARC), “just punishment” (NIV).
15. “Drift away” (ESV, NAS, NIV, RSV).
16. “Por isso” (ARA), “Pelo que” (ARC), “Therefore” (NAS, NIV), “Wherefore” (KJV).
17. “Considerai atentamente” (ARA), “considerai” (ARC), “fix your thoughts” (NIV), “consider”
(KJV, NAS).
18. Para entender a relação entre essa perícope e a temática do “coração endurecido” e sua relação
com a Nova Aliança, confira a análise de Hebreus 5.9 em Pressuposição teológica, cap. 3.
19. ACF: “sobre a sua própria casa”; NVI: “sobre a casa de Deus”; A21: “sobre a Casa”; ARA “em
sua casa”; NTLH “dirige a casa de Deus”; TB: “sobre a casa de Deus”.
20. “A declaração ‘resta’ (4.9) se refere ao descanso da terra prometida. É futuro àquele tempo, ao
tempo de Josué (4.8)” (Lincoln em Carson 2006:219).
21. “O tempo de entrar no descanso é ‘hoje’, não depois da morte, nem na segunda vinda de Cristo.
Nesse sentido, o novo dia de descanso se tornou uma realidade para aqueles que creem, mas continua
sendo uma promessa que alguns não receberão em função de sua desobediência, de modo que todos
são exortados a se esforçar para entrar nele” (Lincoln em Carson 2006:218).
22. Esses dois léxicos foram consultados usando o software Bible Works 8.0.
23. É importante entender que o “congregar” aqui envolve o “admoestar”. Esse verso se encaixa bem
com as colocações de Steve Runge (2010:40): “Ἀλλά geralmente é usado seguindo uma oração
negativa para introduzir uma alternativa positiva. Nesta base, ἀλλά é quase sempre usado na presença
de contraste, servindo para esclarecer”. Observe nosso texto: oração negativa – μὴ ἐγκαταλείποντες
τὴν ἐπισυναγωγὴν... (não abandonando as reuniões...), ἀλλὰ παρακαλοῦντες... (mas admoestando).
Ἀλλά ainda serve como um tipo de corretivo, onde uma expectativa é cancelada e a expectativa
correta é apresentada. Levinsohn (2000:115) ainda nos lembra que a proposição negativa mantém sua
relevância. As orações ligadas por ἀλλά tem status igual. Em suma, a admoestação mútua é um
esclarecimento da presença nas reuniões.
24. Cf. Apêndice.
25. A NVI traduz como “Cuidado!”.
26. Justificar uma ruptura não é o mesmo que dizer que os parágrafos estão completamente
desconectados, mas reconhecer unidades de pensamento. No caso de 13.1ss, por exemplo, a despeito
de entendermos que temos uma nova seção, há um elemento que a une com o texto precedente: servir
(λατρεύωμεν) a Deus de modo agradável. Assim, em 13.1 temos um guia prático de como adorar-
servir a Deus (Guthrie 1994:134).
27. “Suplicaram” (ARA); “pediram” (ARC, NTLH); “rogaram” (TB, NVI).
28. A figura do fogo está presente na terceira, quarta e quinta advertência. Todas com o sentido de
condenação.
29. G. Guthrie (1994:73) confirma a quebra do verso 17 com o verso 18: “[…] a mudança entre
12.17 e 12.18 é realizada via um campo de coesão envolvendo tópico, tempo, espaço, ator, assunto,
tempo verbal, pessoa verbal e número verbal”.
30. “Abalar” (ARA, NVI, A21); “moveu” (ARC); “estremecer” (NTLH), “moveu” (TB).
31. Pressupõe aqui que o particípio nominativo anartro παραλαμβάνοντες indica razão-causa para
eles serem grato. Tal categorização não é gramatical, mas pragmática (cf. Apêndice e a análise dos
particípios no quarto capítulo).
32. Outros exemplos são Atos 13:14-41; 17:24-29; 27:17-35, o sermão de Pedro em Atos 2:14-41;
3:12-26, o discurso do escrivão em Éfeso, Atos 19:35-40, a instrução dos anciãos a Paulo em Atos
21:20-25, 1Coríntios 10:1-14, 2Coríntios 6:14-7:1, 1 e 2Pedro, 1Clemente, as cartas de Inácio de
Antioquia, a epístola de Barnabé e muitos outros.
33. Seguir a teoria do aspecto verbal (cf. Apêndice) não é o mesmo que negar que um evento futuro
possa ser expresso em grego, mas somente que elementos temporais (dêiticos) são pragmáticos e não
semânticos. O contexto das passagens citadas claramente envolve tempo e futuro. Isso é confirmado
pela expressão “εἰς τέλος” (em ambos os textos).
34. As palavras “meio” e “condição” são consideradas intercambiáveis.
Capítulo 3
PRESSUPOSIÇÃO TEOLÓGICA
Hebreus 2.10
Porque convinha que aquele, por cuja causa e por Ἔπρεπεν γὰρ αὐτῷ, διʼ ὃν τὰ πάντα καὶ διʼ
quem todas as coisas existem, conduzindo muitos οὗ τὰ πάντα, πολλοὺς υἱοὺς εἰς δόξαν
filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de ἀγαγόντα τὸν ἀρχηγὸν τῆς σωτηρίας
sofrimentos, o Autor da salvação deles. (ARA) αὐτῶν διὰ παθημάτων τελειῶσαι. (NA28)
Exposição
Nosso versículo (2.10) faz parte da passagem que começa no v. 5,
coincidindo seu final com o do seu capítulo (2.18). Usando várias
expressões sinônimas (e.g., “feito menor que os anjos” [2.9] comp.
“participação comum de carne e sangue” [2.14]), nosso autor enfatiza os
seguintes temas: encarnação, morte e glória de Cristo. A forma como a
obra vincula os temas (e.g., relação de causa e propósito) nos impulsiona a
concluir que eles não podem ser considerados separadamente.
Chamam-nos atenção as várias sentenças de propósito (ὅπως, ἵνα) ao
longo da passagem. Em 2.9, por exemplo, o propósito (ὅπως) da
humilhação (“feito menor que os anjos”) de Jesus foi “provar a morte por
todos” (ὑπὲρ παντὸς γεύσηται θανάτου). Nesse verso, é-nos dito que a
glória e a honra (palavras chave na citação do Salmo 8 nos versos prévios)
de Cristo se deram exatamente por causa (διὰ) da sua morte. Em 2.14-15, a
morte novamente é colocada como propósito (ἵνα) da humilhação-
encarnação de Cristo – “a participação (μετέχω) no sangue e na carne”. Se
em 2.9 sua morte o levou à glória e à honra, aqui, igualmente pela (διὰ)
morte (θάνατος), ele destruiu (καταργέω) o Diabo. Temos, portanto,
novamente a sequência: humilhação (encarnação e morte) e glória.
Em 2.17, encontramos novamente a encarnação, agora em nova
terminologia (“tornar-se semelhantes aos irmãos”), tendo como alvo e/ou
propósito (ἵνα) o exercício da misericórdia por meio da sua morte
expiatória-propiciatória (ἱλάσκομαι). Aqui nos é dito que isso faz parte do
seu ministério como sacerdote fiel – tema desenvolvido logo em seguida na
carta.
Não se pode esquecer que o processo de aperfeiçoamento é considerado
“necessário” (πρέπω). Ficamos com a explicação de Farrar (1893:48-9) de
que o dever diz respeito a uma aptidão moral inerente de Deus.
Quanto à relação e os papéis de Deus Pai e de Cristo nesse processo
(chamado de aperfeiçoamento) que envolve os sofrimentos de Cristo e o
acesso do pecador à glória, precisamos analisar de perto algumas questões
gramaticais.
Síntese
(1) O autor do aperfeiçoamento é o próprio Deus; (2) o aperfeiçoamento
envolve Deus levar muitos para a glória através de Jesus (pioneiro – guia);
(3) o aperfeiçoamento se deu “mediante sofrimento” (διὰ παθημάτων) – que
incluiu sua morte1. Aqui é importante ressaltar que não podemos confundir
o aperfeiçoamento com o sofrimento em si e que o sofrimento-morte não
foi meramente a preliminar do aperfeiçoamento, mas faz parte do processo
(Peterson 1982:68).
Hebreus 5.9
[…] e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da καὶ τελειωθεὶς ἐγένετο πᾶσιν τοῖς
salvação eterna para todos os que lhe obedecem,[…] ὑπακούουσιν αὐτῷ αἴτιος σωτηρίας
(ARA) αἰωνίου, (NA28)
Exposição
O tema predominante na passagem é o sacerdócio de Cristo. O assunto
foi introduzido no capítulo 2 (considerado acima). Os capítulos 3 e 4
revelam a ineficácia do sistema antigo (primeira aliança), revelando que ele
não afetava o coração (cf. 3.8, 10, 12, 15; 4.7) como se dá com Cristo no
estabelecimento da Nova Aliança (8.1; 10.16). Dessa forma, nosso texto é
uma espécie de dobradiça ou transição onde a ineficácia do sistema antigo o
prefacia enquanto que o tema da eficácia da aliança realizada por Cristo o
segue.
No capítulo 3, o autor estabelece um claro contraste (πλείονα…παρά)
entre a fidelidade de Cristo e a de Moisés. Ou seja, entre a Nova Aliança e a
Primeira Aliança. O primeiro foi fiel sobre a casa (ἐπὶ τὸν οἶκον) como
servo (ὡς θεράπων), enquanto o outro na casa (ἐν ὅλῳ τῷ οἴκῳ) como filho
(ὡς υἱὸς).
A pergunta no verso 16 (“Não foram, de fato, todos os que saíram do
Egito por intermédio [διά] de Moisés?”) mostra que a liderança de Moisés
não garantiu a fidelidade-perseverança do povo. Por implicação do
contraste já estabelecido e pelas palavras colocadas nos capítulos 8-10,
podemos assegurar que o mesmo não se dará com os que estão em Cristo,
uma vez que, diferente da geração sob Moisés, esses receberam as boas
novas com fé (4.3).
O último parágrafo do capítulo quatro termina com uma exortação
extraída das verdades quanto ao sacerdócio de Cristo. Ela é repetida em
10.22-23 formando uma inclusão. Quanto ao conteúdo da exortação:
guardar firme a confissão e se aproximar do trono da graça. Segundo nosso
autor, podemos nos aproximar com confiança de que receberemos graça e
misericórdia porque temos um sumo sacerdote que compadece das nossas
fraquezas (4.15).
A partir do verso 1 do capítulo 5, o autor passa a explicar a função do
sumo sacerdote segundo o sistema antigo. O contraste entre Jesus e o
sistema antigo é novamente posto. No verso 5, ele estabelece uma
comparação entre Cristo e o sumo sacerdote: ambos igualmente (οὕτως καὶ)
não tomam essa honra para si mesmos (οὐχ ἑαυτῷ). É preciso ser chamado
(καλούμενος) por Deus. Jesus, pois, como aqueles que os precedeu, foi
vocacionado ao sacerdócio. A razão da sua vocação é a mesma para o seu
aperfeiçoamento.
O particípio nominativo τελειωθεὶς (aperfeiçoado) é alvo de nossa
atenção nesse ponto. Junto com outro particípio, προσαγορευθεὶς
(designado), ambos possuindo a mesma categoria gramatical (nominativo,
aoristo, passivo e singular), modifica o verbo principal μανθάνω
(“aprender”) nos revelando o resultado (O’Brien 2010:201). Assim, o
resultado do aprendizado que se deu pelo sofrimento e obediência de Cristo
é a perfeição (v.9) e a nomeação como Sumo Sacerdote (v.10).2
Síntese
Findaremos essa porção ressaltando os elementos de congruência entre o
que temos no capítulo 2 e na passagem em questão que indicam
coesividade: (1) assim como em 2.10, Deus é o autor do aperfeiçoamento
(voz ativa); em 5.9, a voz passiva reforça a ideia de que Cristo sofre a ação
de ser aperfeiçoado. (2) Aqui, nosso autor relaciona a humanidade (ἐν ταῖς
ἡμέραις τῆς σαρκὸς αὐτοῦ) e o sofrimento (πάσχω) de Cristo ao seu
sacerdócio. (3) Novamente, temos uma relação direta e próxima entre o
sacerdócio de Cristo e o aperfeiçoamento. (4) Outro paralelo entre os dois
primeiros textos está nos títulos dados a Jesus Cristo. Em 2.10, Jesus é
denominado de τὸν ἀρχηγὸν τῆς σωτηρίας (autor da salvação), e em 5.9,
αἴτιος σωτηρίας (fonte de salvação). Todos os dois títulos são qualificados
(genitivos) pelo mesmo substantivo (σωτηρία). No primeiro, temos a ideia
de conquista; no outro, a ideia de causa ou fonte. “Embora aqui [em 5.9] a
imagem seja menos dinâmica, a realidade para qual aponta é a mesma”
(Attridge 1989:154).
Exposição
Nossos versos fazem parte de uma longa porção onde novamente o
assunto é o sacerdócio de Cristo. É o nosso terceiro texto analisado, e o
tema aperfeiçoamento novamente se une com o sacerdócio de Cristo. Como
foi feito com a pessoa de Moisés no capítulo 3, novamente temos uma
comparação – agora entre Melquisedeque (ou a ordem de Melquisedeque) e
Levi (ou a ordem de Arão). O primeiro abençoou o segundo. Ou, nas
palavras do próprio autor de Hebreus, “o menor é abençoado pelo maior”
(7.7). Além disso, diferente do sistema antigo, que foi constituído conforme
a lei de mandamento carnal, a ordem de Melquisedeque foi conforme o
poder de vida indissolúvel (v.16).
A superioridade da ordem de Melquisedeque não se dá somente por ele
ter abençoado Abraão, mas porque não foi por meio (διά) do sacerdócio
levítico que a perfeição (τελείωσις) veio. Essa ênfase na ineficácia do
sistema levítico é apresentada e desenvolvida especificamente entre o verso
11 e o verso 19. Aqui temos uma inclusão. Tanto no começo como no fim
da passagem nos é informado que o sistema antigo nunca aperfeiçoou nada.
Quanto à natureza da perfeição, nosso segundo verso (7.19) tem muito a
nos dizer: (1) a perfeição se dá porque no novo sistema somos introduzidos
a uma esperança superior (κρείττονος ἐλπίδος). É através (διά) dessa
mesma esperança que nos “achegamos a Deus”. (2) A perfeição em questão
claramente não é a perfeição de Cristo, mas a nossa.
No nosso último verso (7.28) novamente temos uma referência à
perfeição de Cristo. Neste ponto da argumentação (20-28) fica indicada
uma relação entre a perfeição de Cristo e a nossa. O tema aproximação é
repetido no verso 24. Através (διά) de Cristo nós podemos nos aproximar
de Deus com a certeza de salvação (σῴζω) eterna, exatamente porque ele
intercede por nós sempre (πάντοτε). Diferente dos sacerdotes do sistema
antigo, marcados pela fraqueza (contraste estabelecido ao longo da
passagem), Cristo foi aperfeiçoado para sempre (εἰς τὸν αἰῶνα
τετελειωμένον).
É interessante observar como a eternidade do sacerdócio é destaque
nessa sessão (cf. v.3, 8,16-17, 23-25). Assim como no capítulo 2 e 5, onde a
perfeição de Cristo está relacionada ao seu sacerdócio, o mesmo acontece
também aqui. Porém, aqui a eternidade do sacerdócio é o foco (Peterson
1982:119). É importante considerar também que a eternidade do sacerdócio
de Cristo não se dá somente porque ele intercede sempre. O verso 27 nos
lembra de que sua obra na cruz é a base do seu sacerdócio eterno.
Síntese
Findamos com quatro verdades importante sobre o aperfeiçoamento: (1)
novamente, a perfeição de Cristo é passiva; (2) o aperfeiçoamento de Cristo
e o nosso estão diretamente relacionados; (3) há uma relação direta entre o
sacerdócio superior de Cristo e o aperfeiçoamento dele e o nosso; e, (4) esse
aperfeiçoamento tem um marco histórico orientador – se deu depois da Lei.
Hebreus 9.9
É isto uma parábola para a época presente; e, segundo ἥτις παραβολὴ εἰς τὸν καιρὸν τὸν
esta, se oferecem tanto dons como sacrifícios, embora ἐνεστηκότα, καθʼ ἣν δῶρά τε καὶ θυσίαι
estes, no tocante à consciência, sejam ineficazes para προσφέρονται μὴ δυνάμεναι κατὰ
aperfeiçoar aquele que presta culto […]. (ARA). συνείδησιν [τελειῶσαι] τὸν
λατρεύοντα, […] (NA28)
Exposição
A seção onde nosso verso se encontra começa com uma palavra sobre o
tabernáculo. Suas duas partes são descritas (primeiro e segundo tabernáculo
[v. 6, 7]) e há uma palavra sobre o ministério dos sacerdotes (somente no
primeiro tabernáculo) e do Sumo sacerdote (no segundo tabernáculo).
O verso em questão (v. 9) começa com o pronome ἥτις (que). A pergunta
aqui é: a que se refere o pronome? Ou, sendo mais específico: o que é uma
“parábola (παραβολή) para a época presente”? Temos duas opções: (1) uma
referência a todo o sistema antigo – ou seja, uma referência mais ampla ao
tema desenvolvido em todos os versos anteriores. Ou, (2) uma referência
mais específica ao “primeiro tabernáculo” como colocado no verso
imediatamente anterior. A leitura mais natural, uma vez que πρώτης σκηνῆς
(primeiro tabernáculo) concorda com ἥτις (que) em gênero e número, é que
temos uma referência ao “primeiro tabernáculo”. Outros exemplos
semelhantes no próprio documento corroboram nossa conclusão: σωτηρίας
→ ἥτις (2.3) διαθήκης μεσίτης → ἥτις (8.6) σκηνὴ ἡ πρώτη → ἥτις (9.2).
Entende-se que somente elementos contextuais fortes deveriam nos levar a
outro caminho – o que não é o caso do nosso texto.
Outro questionamento igualmente importante é: a que tempo específico a
expressão “época presente” (τὸν καιρὸν τὸν ἐνεστηκότα) se refere? Aos
dias do autor? Ao tempo simultâneo com o sistema antigo de adoração
(Guthrie 1998:300)? E ainda: qual sua relação de “época presente” com a
expressão aos “dias de reforma” (v.10)? A “época presente” é a mesma
“época de reforma”?
Como o “tempo presente” é visto de forma negativa – é o tempo da
ineficácia quanto à purificação da consciência; e como os dons e sacrifícios
oferecidos no “primeiro tabernáculo” não são eficazes no aperfeiçoamento
da consciência, pois nele temos somente “regulamentações e/ou ordenança
da carne” (δικαιώματα σαρκὸς) – regras externas – em contraste com o
sacrifício de Cristo (cf. 9.14), é mais natural entendermos o “tempo
presente” como uma referência ao tempo do sistema da Antiga Aliança.
“Assim a sala externa do tabernáculo representa ‘esta era’. A nova era de
Cristo focaliza na sala interna, o lugar da presença de Deus” (Guthrie
1998:301). Dessa forma, se em Paulo a “velha era” é má, em Hebreus
temos uma perspectiva diferente: a velha era é a velha aliança em sua
ineficácia à luz da obra de Cristo. Enquanto Paulo tem a história universal
em mente, o nosso autor misterioso tem a história da redenção vista em
duas fases, tendo como centro a morte e exaltação de Cristo.
Faz-se necessária uma breve digressão para a análise de dois vocábulos:
“consciência” (συνείδησις) e parábola (παραβολή). Quanto ao primeiro, o
vocábulo aparece cinco vezes em Hebreus. Além de 9.9, temos um paralelo
em 9.14. Em 10.2 e 10.22, como também em 9.9 e 9.14, o vocábulo está
relacionado ao conceito de “purificação”. Em 13.18, a consciência é
qualificada como “boa” (tornando-se a única referência positiva quanto à
consciência) e está relacionada ao bom proceder. Assim como uma
consciência purificada capacita as pessoas a aproximarem ou servirem a
Deus, a boa consciência capacita ao bom proceder. Como o vocábulo tem
uma boa consistência em toda a obra, seu uso em determinado ponto pode
nos ajudar a entendê-lo em outro.
Segundo Cowan (2012:84), o vocábulo era “usado tanto para um sentido
não-moral (e.g., ciência, autoconsciência) como no sentido moral
(consciência das ações – geralmente má)”. Como há uma relação estreita
entre o sacrifício de Cristo com a limpeza e/ou purificação, somos
direcionados a nuança moral do vocábulo.
Cowan (2012:84) ainda nos alerta para o fato de que o conceito de uma
consciência acusando e culpando está presente no AT através da referência
ao coração ferido. O próprio livro de Hebreus estabelece essa relação em
10.22 quando “coração” e “consciência” são nitidamente conectados. Isso
nos leva de volta para o capítulo anterior e os termos da Nova Aliança que
envolvem a inscrição da Lei no coração (8.10).
Quanto à παραβολή, o vocábulo ocorre cinquenta vezes no NT. Com
exceção de 9.9 e 11.19, todas as ocorrências estão nos Evangelhos. Segundo
Snodgrass (em Reid 2012:980), “em geral, distinguem-se quatro formas de
parábolas: analogia3, história-modelo4, parábolas e alegoria”. Muitos
questionam tal categorização. Por exemplo, a distinção entre parábola e
alegoria não parece ser tão clara. O’Brien (2010:314), contudo, lembra-nos
de que aqui o vocábulo não quer dizer “parábola narrativa” (todas as demais
ocorrências no NT), mas “símbolo” ou comparação de coisas onde a
semelhança não é óbvia. Como figura, ela tem um tempo limite – até
(μέχρι) a reforma.
Voltando ao tema da perfeição, o verso 10 nos ajuda muito no
entendimento desse conceito. Ele relaciona os conceitos de purificação
(consciência limpa), ineficácia (do antigo sistema) e perfeição. A relação
entre esses conceitos é extremamente esclarecedora. Peterson (1982:134 –
itálico nosso) afirma que “perfeição tão vagamente especificada em 7.11, 19
é aqui definida como tendo especial atenção à consciência da humanidade”.
Não há dúvidas de que perfeição aqui envolve purificação (Lane 1991
2:224). Ou seja, por não purificar a consciência do adorador, o sistema
antigo é ineficaz para nos aproximar de Deus. Aqui, pois, o
aperfeiçoamento do adorador, como na passagem anterior, está relacionado
à aproximação de Deus. O que fica claro é que a consciência não purificada
é um obstáculo à verdadeira adoração (Lane 1991 2:225) e que o sistema
antigo não resolve o problema. Em suma:
Síntese
(1) Nosso texto segue a tônica da terceira passagem analisada: a
ineficácia do sistema antigo para o aperfeiçoamento do adorador – daquele
que se aproxima de Deus; (2) novamente, os temas sacerdócio e
aperfeiçoamento se unem; (3) o aperfeiçoamento do crente o capacita a se
aproximar de Deus cumprindo as promessas da Nova Aliança.
Hebreus 10.1, 14
Ora, visto que a lei tem sombra dos bens Σκιὰν γὰρ ἔχων ὁ νόμος τῶν μελλόντων
vindouros, não a imagem real das coisas, nunca ἀγαθῶν, οὐκ αὐτὴν τὴν εἰκόνα τῶν
jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com πραγμάτων, κατʼ ἐνιαυτὸν ταῖς αὐταῖς
os mesmos sacrifícios que, ano após ano, θυσίαις ἃς προσφέρουσιν εἰς τὸ διηνεκὲς
perpetuamente, eles oferecem. […] Porque, com οὐδέποτε δύναται τοὺς προσερχομένους
uma única oferta, aperfeiçoou para sempre τελειῶσαι. […] μιᾷ γὰρ προσφορᾷ
quantos estão sendo santificados (ARA). τετελείωκεν εἰς τὸ διηνεκὲς τοὺς
ἁγιαζομένους. (NA28)
Exposição
No décimo capítulo, temos a última unidade que desenvolve o tema do
sacerdócio de Cristo. Até o verso 18, temos o gênero de instrução, e nos
versos 19ss, temos a penúltima seção de exortação-advertência. Nessa seção
de instrução, temos a culminação de toda a discussão sobre a superioridade
do sacerdócio de Cristo e da oferta da Nova Aliança.
Assim como no capítulo anterior, o contraste entre o sacrifício levítico e
oferta de Cristo é repetido, agora, com mais intensidade. Novamente, o
texto clássico do profeta Jeremias quanto à Nova Aliança é citado formando
uma inclusão com o capítulo 8. De fato, o tema do sacerdócio é fechado
exatamente nessa seção.
A ligação entre a Nova Aliança e o aperfeiçoamento é estabelecida
claramente nos últimos versos instrutivos. Sobre a citação do texto clássico
acerca da Nova Aliança (Jeremias 31) e o uso de “também” no verso 15,
Guthrie (1998:330 – itálico nosso) nos ajuda:
A Lei
B Nova Aliança
B’ Superioridade de Cristo
A’ Sacerdócio Levítico
Hebreus não apresenta a santificação que Cristo realiza nos crentes como “progressiva”. Nós
fomos santificados por meio da oferta do corpo de Cristo de uma vez por todas (10.10). De
acordo com 13.12, ele sofreu fora do portão “a fim de santificar o povo através do seu próprio
sangue”.
Síntese
(1) É Cristo quem aperfeiçoa e o objeto dessa perfeição é seu povo. Ele
não aperfeiçoa o plano de Deus, mas seus irmãos; (2) o meio pelo qual
Cristo aperfeiçoa seu povo é pelo seu próprio sacrifício; (3) seguindo o
julgamento feito na segunda observação, tal perfeição está localizada no
passado, uma vez que foi realizada no sacrifício único de Cristo (ἐφάπαξ –
v. 10); (4) existe uma relação entre a santificação e o aperfeiçoamento; (5)
aperfeiçoamento envolve a qualificação (ou a habilitação) do crente a se
aproximar de Deus uma vez que, em Cristo, as promessas da Nova Aliança
(“coisas boas que hão de vir” – v. 1) são realizadas; (6) há uma relação
estreita entre a Nova Aliança e o aperfeiçoamento – o que é extremamente
importante quando lidamos com Hebreus 6.
Exposição
Consideraremos os dois textos por entender que há uma relação estreita
entre eles. Essa proximidade se dá tanto espacialmente como pela natureza
inferencial estabelecida pela conjunção que prefacia 12.1 – Τοιγαροῦν6.
Sobre a superioridade referida no texto, destaque para o comparativo
κρεῖττόν (melhor) tão comum no documento. Ele é usado para nos mostrar
que Jesus é melhor que os anjos (1.3-4), que o sangue de Jesus é melhor que
o de Abel (12.24), que temos uma esperança melhor (7.19), uma melhor
aliança (7.22; 8.6), uma promessa melhor (8.6), um melhor sacrifício (9.23),
um melhor patrimônio (10.34) e uma melhor ressurreição (11.35). Tal
consideração revela a natureza coesa do conceito ao longo da obra. Isso, por
sua vez, leva-nos a concluir que somente um forte apelo contextual nos
direcionaria a uma ideia distinta. Portanto, a superioridade aqui referida faz
eco às referências acima. O mesmo se aplica ao conceito de perfeição.
Consideraremos 11.40, pois, à luz do que aprendemos nos capítulos 9-10.
A relação entre 9.15 e nosso texto é próxima e providencia
esclarecimentos pertinentes. Em 9.15, temos: “ele morreu como resgate
pelas transgressões cometidas sob a primeira aliança”. O autor nos lembra
de que a morte de Cristo tinha o objetivo (ὅπως) de fazer com que aqueles
que estavam “sob a primeira aliança” recebessem “herança eterna” (αἰωνίου
κληρονομίας).
Contudo, em 11.40 há uma distinção entre aqueles que estavam sob a
primeira aliança e os que testemunharam o estabelecimento da Nova
Aliança. O autor declara que todas as personagens alistadas no capítulo 11
não obtiveram o aperfeiçoamento “sem nós”. A explicação desse
“insucesso” (em não obterem o que tinham esperado) não está em algum
pecado da geração antiga, mas no próprio plano de Deus. Foi assim que o
Senhor propôs (προβλέπω) e objetivou (ἵνα). Em suma, a eles foi negada a
experiência histórica da vinda do Messias e os benefícios decorrentes
garantidos. A perfeição, portanto, tem um referencial histórico, como
vimos anteriormente. Daí a razão de Moisés Silva (1976: 67 – itálico nosso)
declarar:
A perfeição da consciência humana (9.9; 10.1, 14) não é uma referência ao perdão ou aptidão
para se aproximar de Deus, coisa que os santos do Antigo Testamento experimentaram (cf. Sl
32 e Rm 4), mas o regozijo do tempo do cumprimento, a nova época introduzida pelo Messias
através da sua exaltação.
Se em seu contexto 11.40 coloca ênfase na realização final do relacionamento com Deus e
10.14 coloca ênfase na limpeza e santificação disponível aos crentes no presente, isso não
implica em uma dicotomia no pensamento do nosso escritor. O sacrifício de Cristo alcança
tudo que é necessário para o gozo da bênção escatológica (τελείωσις): purificação,
santificação e glorificação […] isso não nos permite afirmações seguras acerca do presente
estado desses homens e mulheres de fé.
Síntese
(1) Cristo é o nosso aperfeiçoador; (2) ele aperfeiçoou as pessoas que
viviam nos dias em que a Antiga Aliança estava em voga; (3) todo processo
de aperfeiçoamento (de Cristo e dos seus) se deu na história – encarnação,
morte, ressurreição e ascensão; (4) a geração que seguiu o “evento Jesus
Cristo” usufruiu de privilégios dantes não conhecidos (as bênçãos da Nova
Aliança)
Hebreus 12.23
[…] e igreja dos primogênitos arrolados nos καὶ ἐκκλησίᾳ πρωτοτόκων ἀπογεγραμμένων
céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos ἐν οὐρανοῖς καὶ κριτῇ θεῷ πάντων καὶ
dos justos aperfeiçoados, […] (ARA) πνεύμασι δικαίων τετελειωμένων (NA28)
Exposição
A passagem do nosso último verso se encontra entre os versos 18 e 24.
Novamente temos aqui um contraste entre a Nova Aliança e a Antiga
Aliança (Οὐ γὰρ προσεληλύθατε no v. 18 e ἀλλὰ προσεληλύθατε no v. 22).
Do mesmo modo, o tema aproximação de Deus é a pauta da pregação. Já
aprendemos que esse tema é chave na grande porção marcada pela inclusão
de 4.16ss e 10.19-25 e como ele está vinculado com a Nova Aliança, bem
como à temática da perfeição.
O autor começa relembrando um evento específico na história da
redenção: o encontro do povo de Israel no Sinai depois da saída do Egito.
São alistados setes sinais marcantes daquele encontro. Esses sinais,
diferente do que temos realizado em Cristo, não aproximaram as pessoas de
Deus. Aliás, até mesmo o mediador do pacto do Sinai se sentiu “apavorado
e trêmulo” (ἔκφοβός εἰμι καὶ ἔντρομος).
Em contraste com o Sinai, a realidade depois que a Nova Aliança foi
estabelecida é que já chegamos no Monte Sião. O ambiente de terror foi
substituído por festa (πανήγυρις cf. BDAG:754) e a distância por
aproximação (προσέρχομαι).
Ao se referir ao ponto aonde chegamos (Σιὼν ὄρει – Monte Sião), o autor
expõe uma sequência de dativos em paralelo. Quanto à relação entre eles,
Attridge (1989:375) entende que:
Aposição πανηγύρει
Alegre reunião
καὶ ἐκκλησίᾳ
Assembleia
Síntese
O aperfeiçoamento é (1) presente – podemos e devemos nos aproximar
de Deus com confiança no único e perfeito sacrifício. A teologia da
perfeição ecoa a tensão escatológica que encontramos em boa parte do NT
– já chegamos em Jerusalém, mas ainda não; (2) entendemos melhor sua
natureza quando entendemos a distinção ou contraste entre a Aliança
Sinaítica e Nova Aliança.
CONCLUSÃO
Perfeição ou aperfeiçoamento envolve todo o processo de encarnação,
sofrimentos e o sofrimento de Cristo rumo a glória (ressurreição, ascensão e
entronização). Esse é o grande tema de todo o livro de Hebreus. O Senhor
Jesus é passivo em seu aperfeiçoamento, contudo, ativo no aperfeiçoamento
dos seus irmãos. Há claramente uma relação direta entre esses
aperfeiçoamentos. Os irmãos de Jesus são aperfeiçoados, ou seja,
capacitados (santificados, purificados), por meio do sacrifício de Cristo, a
se aproximar de Deus e da glória perdida. Tudo isso contrasta com a
realidade do AT. Trata-se, pois, do resultado da realização das bênçãos da
Nova Aliança.
Na análise de Hebreus 6, o texto alvo desse livro, veremos que temos
razões suficientes para crer que o conceito teológico de perfeição é coeso
em todo o livro de Hebreus. Portanto, aplica-se as palavras de raiz τελ- em
nossa passagem (5.14; 6.1). Defenderemos que a exortação em 6.1, pois,
não diz respeito a maturidade, mas a apropriação das bênçãos da Nova
Aliança com toda a sua complexidade cristológica.
1. Peterson (1982:68-9) bem observa que enquanto em διὰ τὸ πάθημα τοῦ θανάτου (v.9) temos a base
(διά + acusativo) para a exaltação de Cristo e que o sofrimento referido é descrito como “o
sofrimento da morte”, em διὰ παθημάτων (v.10) temos o processo (διά + genitivo) e uma referência
não específica (singular – τὸ πάθημα) a morte, mas a algo mais amplo (plural – παθημάτων). Em
5.7s, os sofrimentos de Jesus incluem o Getsêmani.
2. Não se trata de uma classificação gramatical. Na exposição de Hebreus 6 (capítulo 4)
desenvolveremos melhor nossa visão dos particípios.
3. A parábola do fermento.
4. O bom samaritano, o rico insensato, o rico e o Lázaro, o fariseu e o publicano.
5. A ARA traduz “…nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios
que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem”. A ARC “…pelos mesmos sacrifícios que
continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam”.
6. “Portanto” ARA, ARC, NVI, ACF, EAC.
7. Ele apresenta como evidência Jubileu 23.30-31 e 1Enoque 22.9; 102.4; 103.3-4.
Capítulo 4
O TEXTO
Toda a lida com texto será controlada pelas primeiras cinco perguntas das
oito apresentadas em nossa introdução, bem como pelos contextos-
pressuposições-paradigmas explicitados e detalhados nos capítulos
anteriores. Entende-se ser desnecessário dedicar um espaço específico para
responder cada pergunta, uma vez que a resposta de uma nos leva a outra. A
natureza da impossibilidade de renovação (terceira pergunta) e da queda
(quarta pergunta), por exemplo, serão exploradas na busca pela identidade
dos descritos nos versos 6.4-6 (primeira pergunta), assim como as
consequências (quinta pergunta) serão consideradas juntas com a relação
entre os parágrafos (segunda pergunta). O importante é que no final desse
capítulo precisamos ter nossas perguntas respondidas. Dividiremos nosso
texto em quatro partes: 5.11-6.3; 6.4-6; 6.7-8; 6.9-12.
Na primeira porção, temos um quadro de negligência; na segunda, temos
uma possível referência a apostasia; na terceira, uma palavra dura de
condenação, e na última, a descrição de um povo marcado por um passado
(διακονήσαντες) e um presente (διακονοῦντες) de serviço que leva nosso
autor a não ter qualquer dúvida (6.9 – Πεπείσμεθα) quanto à salvação deles.
Assim, temos um quadro de negligência, de possível apostasia (e
impossível restauração), condenação e salvação certa. Qual a relação entre
esses elementos? Como a impossibilidade de restauração pode se referir ao
grupo dos salvos? O entendimento da relação entre essas porções é peça
fundamental no quebra-cabeça do significado do nosso enigmático texto.
PRIMEIRA PARTE: HEBREUS 5.11–6.3
O dualismo pactual
Nosso texto começa com a apresentação de uma constatação quanto ao
estado (γεγόνατε – aspecto estativo) dos seus leitores: uma condição de
“negligência” (νωθρός) quanto ao ouvir. Disso se conclui a necessidade
(χρεία) de alguém (τινά) ensinar novamente (πάλιν) os “princípios
elementares”.
Logo em seguida, no verso 14, contrastando com o estado de negligência
recém apresentado, nosso autor introduz com um δέ1 (“mas” [ACF, NVI,
ARA, AS21, TB], “porém” [NTLH]) o conceito de perfeição/maturidade.
Desse conceito, surge em 6.1 a única exortação de toda nossa passagem:
“deixemo-nos levar”. Ela aparece no cenário como uma solução à realidade
do quadro de negligência. Ou seja, ao ir para a perfeição ou caminhar na
perfeição, os leitores estariam vencendo a luta contra esse grande mal – a
“surdez”.
Sobre a relação entre as orações, chamam-nos a atenção os vários
paralelos esclarecedores que começam em 5.11 e vão até 6.2. Nosso autor
os inter-relaciona de forma tal que podemos assegurar que uma expressão
esclarece a outra, de forma que não podemos ter um bom entendimento de
uma sem a outra. Na disposição gráfica a seguir, dividimos as expressões
que nomeiam (ou descrevem por contrastes e paralelos) os leitores e aquelas
que nomeiam (ou descrevem por contrastes e paralelos) o ensino2 referido.
Por último, colocamos em paralelo a problemática (apresentada no começo)
e a solução (apresentada no final).
Νήπιος Crianças
διδάσκαλοι Mestres
τελείων Perfeitos
NATUREZA DO ENSINO
Γάλακτος Leite
τὰ στοιχεῖα τῆς ἀρχῆς τῶν λογίων τοῦ θεοῦ Princípios elementares dos oráculos de Deus
Θεμέλιον Fundamento
PROBLEMA E SOLUÇÃO
O entendimento errado de ἕξις [...] seguiu uma tradição inquebrável de traduções desde a
Vulgata. Além disso, é óbvio que essa é a fonte de significado dado pelos léxicos. Seja qual
for os passos detalhados no processo, os lexicógrafos do NT derivaram seus entendimentos
dessa passagem das traduções ao invés de uma avaliação independente do significado do
grego. De fato, eles não têm evidência para apoiar outro significado que não seja a aceita de
longa data como tradução apropriada.
A ironia
Contradição ou ironia
Uma das dificuldades de nossa passagem fica por conta da difícil relação
entre a primeira porção (5.11-14) e a exortação inferida (διό) que a segue.
Quanto à exortação (subjuntivo exortativo passivo): eles deveriam ir
(φερώμεθα) ou deixar serem levados para ou na perfeição. Os particípios
adverbiais que envolvem o subjuntivo exortativo descrevem a maneira
como a ordem deveria ser aplicada: deixando (ἀφέντες) e não lançando
fundamento novamente (μὴ πάλιν θεμέλιον καταβαλλόμενοι). Ou seja, os
particípios dizem a mesma coisa de duas formas diferentes – é um
paralelismo sinonímico. O primeiro, por estar no aoristo, prepara o
background, enquanto que o último, por estar no presente, traz mais
detalhes. Ambos carregam um aspecto negativo – seja pela presença de μὴ,
seja pela própria léxis de ἀφέντες, ou ainda pela força passiva da própria
exortação. O autor não pede para que façam positivamente algo, mas que
aceitem seu estado de perfeição – que caminhem nele.
Contudo, como aplicar a exortação diante do que foi posto em 5.11-14?
O autor constatou que devido a negligência (νωθρός) e/ou a infantilidade
(νήπιος) dos leitores, tornava-se necessário (χρεία) que alguém ensinasse
novamente11 os princípios elementares dos oráculos de Deus. Nossa
exortação, porém, visa aparentemente a prática oposta do que foi
considerado antes – deixar (ἀφέντες) os “princípios elementares”. A
dificuldade, portanto, é: eles deveriam deixar ou repetir os princípios
básicos?
Aqui o entendimento de θεμέλιος pode ser acionado como solução.
Podemos ensinar várias vezes, mas um “fundamento” não pode ser
estabelecido mais de uma vez (πάλιν) por razões óbvias. Tendo em vista
que o autor toma como mister o ensino dos princípios básicos e ao mesmo
tempo o abandono deles, fica difícil interpretar ἀφίημι (deixar) como
abandono total. Uma possibilidade seria compreender que seu desejo era
que esses irmãos tomassem os fundamentos como ponto de partida e não de
repouso. Contudo, tal raciocínio não é suficiente para explicar o contraste
marcante entre a necessidade (χρεία) de πάλιν (novamente) em 5.12 e a
negação taxativa da repetição em 6.1 (μὴ πάλιν). A ordem só pode ser
cumprida abandonando os princípios básicos. Soma-se a isso o fato de que a
exortação está diretamente ligada a 5.11-14 por διό – uma conjunção
inferencial. Em síntese, teríamos:
Ironia, um dos conceitos mais complexos de delinear na crítica literária, pode ser definido
como uma situação interpretativa na qual uma discrepância explicável entre o que é dito e/ou
feito pelos personagens em uma história dramática e o que é estabelecido pelo estado das
coisas no contexto do mundo é percebida pelo leitor.
5.11, 12 νωθροὶ γεγόνατε ταῖς ἀκοαῖς καὶ γὰρ ὀφείλοντες [εἶναι] διδάσκαλοι.
negligentes mestres
É notável que esses seis elementos mencionados encontram paralelismos no judaísmo. Isso
poderia sugerir que os leitores estavam tentando de algum modo permanecer dentro do
judaísmo, ao enfatizar os elementos tidos como comuns entre judaísmo e o cristianismo.
Talvez tenham estado tentando sobreviver com um mínimo de cristianismo, com o objetivo de
evitar a alienação imposta por seus amigos e parentes judeus.
Mateus 14.11: καὶ ἠνέχθη ἡ κεφαλὴ αὐτοῦ ἐπὶ πίνακι [cabeça em um prato].
Marcos 6.28: ἤνεγκεν τὴν κεφαλὴν αὐτοῦ ἐπὶ πίνακι [cabeça em um prato].
Lucas 5.18 φέροντες ἐπὶ κλίνης [em uma cama].
Marcos 15.22: Καὶ φέρουσιν αὐτὸν ἐπὶ τὸν Γολγοθᾶν τόπον [ao ou no Gólgota].
Atos 14.13 ταύρους καὶ στέμματα ἐπὶ τοὺς πυλῶνας ἐνέγκας [para a porta].
Síntese interpretativa
Até aqui nossa caminhada interpretativa tem nos levados as seguintes
conclusões:
1. Os leitores primários da carta-pregação estavam em uma condição de
negligência. Tal informação não é exclusiva de nossa passagem, como
podemos constatar em nossa análise contextual. Contudo, trata-se de um
estado temporário. A exortação e a advertência que seguem essa
constatação visam exatamente mudar esse quadro.
2. O autor está certo de que está lidando com salvos – aperfeiçoados. As
palavras depreciativas como “crianças”, “inexperientes” são irônicas. Elas
visam mostrar a incoerência deles e ao mesmo tempo agitá-los
emocionalmente. O reconhecimento do recurso retórico da ironia nos ajuda
a lidar com a aparente contradição entre a constatação feita em 5.11-13 e a
exortação implicada dessa mesma condição.
3. Nossa passagem ecoa um padrão que se repete ao longo de toda a obra:
o dualismo pactual. Reconhecido o padrão, tomamos as palavras de raiz
τελ- com toda sua carga teológica. Passamos a entender que a exortação não
visa a maturidade, mas a aceitação das bênçãos da Nova Aliança. Eles
estavam rejeitando essas bênçãos ao se voltarem para o judaísmo – os
princípios elementares. Contudo, a apropriação das bênçãos da Nova
Aliança exige o abandono ou a não repetição dos elementos da religião do
Antigo Testamento. O Antigo Testamento aponta profeticamente para
Cristo. E, como toda profecia, é abolida com a chegada do cumprimento.
SEGUNDA PARTE: HEBREUS 6.4-6
As dificuldades das possibilidades
O grande desafio nessa porção de nossa passagem é identificar as pessoas
descritas em 6.4-6. Há quem defenda que temos a descrição de cristãos
autênticos, ou seja, não nominais (Geisler 2002:98-9; Fanning 2007:180;
Mcknight 1992:43-55). Nesse caso, o texto aparentemente nos ensina a
apostasia como possível e até provável, indo, pois, de encontro ao
entendimento calvinista exposto em Dort.
Por outro lado, o entendimento de que temos a descrição de ímpios
(Grudem em Schreiner, Ware 1995:133-182; Nicole 1975:358-9) esbarra na
especificidade da experiência descrita nos versos 4-5 por particípios
adjetivais que aparentam descrever algo que vai muito além de uma mera
confissão externa ou fenomenológica de fé – apesar de entender que o NT
reconhece essa categoria de pessoa (os cristãos nominais cf. 1Jo 2.19).
A opção de entender os leitores, não como indivíduos, mas como
comunidade da Aliança (Verbrugge 1980:62) também encontra obstáculos
nos casos onde o autor focaliza claramente o indivíduo (cf. 3.12, 13; 4.1, 11;
6.11; 12.14-16). O embaraço dos que defendem um público dividido
(Peterson, 2008) está na carência de base textual mais sólida e até mesmo
numa certa arbitrariedade, uma vez que os elementos textuais indicatórios
de tal separação são obscuros. A natureza pressupositiva dos particípios
explica melhor (como veremos a seguir) a aparente divisão iniciada em
nossa porção. Além disso, o caminho oposto – tomar os leitores como um
grupo coeso – tem base comparativamente muito mais sólida.
Como já colocado (cf. Limites da terceira advertência), nossa passagem
(v.4-6) é prefaciada por γὰρ onde nosso autor explica o porquê20 que eles
deveriam ir para a perfeição ou deixar os elementos básicos: é impossível
renovar novamente (πάλιν) para arrependimento (εἰς μετάνοιαν) certo tipo
de pessoa. Ao explicar a impossibilidade de renovação, o autor descreve o
grupo dos “impossibilitados” por meio de vários particípios adjetivais (vv.
4-6). Nosso objetivo nesse ponto é identificá-los: são cristãos? São
incrédulos? É o mesmo grupo descrito nos versos seguintes?
O grande dilema do intérprete nesta passagem é comungar o peso da
explicação “é impossível renovar” com o caráter dos indivíduos envolvidos
(iluminados, provaram o dom celestial etc.). Como pessoas iluminadas não
podem ser renovadas? Via de regra, as interpretações têm caminhado em
direção a ênfase ou a desvalorização de um desses dois elementos. Há os
que enfraquecem a gravidade da impossibilidade (e.g., Bruce 1992: 144)21 e
os que duvidam do caráter dos indivíduos descritos (e.g., Calvin 1979) ou
diminuindo o peso da queda ou das bênçãos. Por trás de toda essa luta
exegética está a doutrina da perseverança do crente.
Para um entendimento um pouco mais amplo, precisamos discutir os
limites, objetivos e a metodologia do que se segue: a análise pressupõe um
conhecimento da doutrina da perseverança dos santos. Sabemos que a
possibilidade de queda é completamente pulverizada por inúmeras
passagens claras e didáticas das Escrituras (e.g., Rm. 8.28-30, 35; Jo. 10.28-
29), então não é nosso objetivo desenvolver o tópico “perseverança”. Antes,
o pressupomos – não como uma necessidade anterior para que nossa
exegese faça sentido, como quem tenta proteger sua doutrina do texto que a
condena, mas sim como um dado já sabido pelo leitor. Isso significa que
nossa argumentação não objetiva alcançar adeptos da doutrina arminiana.
Queremos propor que os calvinistas não são obrigados a entender que o
texto lida necessariamente e somente com incrédulos (ou cristãos professos
e não genuínos) para assegurar o que ficou conhecido como quinto ponto do
calvinismo. Por último, quanto à metodologia, partiremos da lida com os
particípios e em seguida a relação entre as orações. Acreditamos que uma
compreensão sólida desses elementos nos ajudará a ratificar ou eliminar
visões equivocadas. Essas, por sua vez, serão apresentadas e refutadas ao
longo da exposição. Nosso capítulo finda com uma proposta.
Os particípios
Os particípios se apresentam em nossa passagem em três momentos
chaves: (1) antecipando e sucedendo adverbialmente a exortação em 6.1;
(2) identificando o grupo dos iluminados-caídos – esses mesmos particípios
preparam o leitor (como background) para a declaração de impossibilidade
de renovação para arrependimento; e, por último, (3) desenvolvendo a
noção de impossibilidade de renovação. Em suma, uma compreensão deles
(natureza e função) é simplesmente imprescindível.
Os particípios e a exortação
Três considerações antes de lidar com nossos primeiros particípios:
1. Adotamos a tese de Martin Culy (2003) de que “[p]articípios
adverbiais serão sempre nominativos, exceto em construções no genitivo
absoluto ou quando eles modificam um infinitivo”. Nosso texto se encaixa
na segunda exceção indicada por Culy.
2. Reconhecemos que o particípio aoristo geralmente vem antes do verbo
principal. Ele prepara o caminho (seja criando expectativas mentais, seja
providenciando um background lógico ou contextual histórico) para o verbo
principal. Seu papel é dirigir a atenção do leitor para além dele mesmo. No
relevo discursivo, ele é o plano de fundo (background)22. Ele cria o terreno
para a apresentação do primeiro plano (foreground), representado pelo
presente (aspecto imperfectivo). “Em exposições, geralmente, o presente é
usado para assinalar um material que é tematicamente proeminente [...]”
(Nunes 2016:51 – itálico nosso).
3. Geralmente o particípio presente segue o verbo principal e desenvolve,
de alguma forma, a ação expressa por este.
Tomando as colocações acima como pressuposições, podemos assegurar
que compreendemos melhor a exortação Φερώμεθα (prossigamos) pelo
particípio Καταβαλλόμενοι (lançando) e ainda, compreendemos melhor a
impossibilidade de renovação pelos particípios ἀνασταυροῦντας
(crucificando) e παραδειγματίζοντας (expondo à vergonha). Veja o gráfico
abaixo.
HEBREUS 6.1
Os particípios e os iluminados-caídos
UM GRUPO COESO
Existem duas informações sobre os particípios que nos fazem pensar em
um grupo coeso. Em primeiro lugar, estamos lidando com particípios
adjetivais que seguem um único artigo. Antes de tudo, é importante
entender que o uso de um único artigo antes dos particípios adjetivais nos
força a crer que se trata de um só individuo, grupo ou classe que incorpora
todas as qualidades apresentadas (Sproule 1981)23.
Em um particípio adjetival, a ênfase está na pessoa ou coisa descrita ou
pensada. No nosso caso, o tipo de pessoa. Ou seja, não podemos dissecar os
particípios isoladamente24. O que o autor quer é que o acompanhemos em
sua argumentação. Para que isso seja realizado, precisamos entender que
tipo de pessoa ele está pensando: iluminados… que caíram (ou pararam) e
são impossibilitados de serem renovados.
Em segundo lugar, como colocamos anteriormente, o particípio aoristo
tem a nuança de background. Assim, reforçando o ponto anterior, o autor
não está interessado nos detalhes das qualidades e do problema (queda),
mas no “quadro geral” a ser idealizado – pessoas iluminadas-caídas.
HEBREUS 6.4
[…] o povo da Nova Aliança é por definição outorgado um novo coração e habilitado pelo
Espírito para andar em santidade, a amar a justiça e demonstrar prazer em Deus. Isso significa
que a medida em que os escritores do NT pensavam neles mesmos como herdeiros da Nova
Aliança, eles não podiam pensar sobre eles mesmos como se não fossem dotados do Espírito
Santo, regenerados e transformados. […]. É da essência da Nova Aliança que aqueles que
estão nela tenham recebido um novo coração, tenham sido purificados e recebido o Espírito
Santo.
As passagens [de advertência de Hebreus] parecem dizer que cristãos genuínos devem
perseverar em fidelidade, mas podem, ao invés disso, repudiar a Cristo e assim caírem em
eterna condenação, mas a obra de Cristo em e por eles absolutamente não falhará em trazê-
los para a vida eterna (2007:205 – itálico nosso).
[...] cada vez que um autor escolhe um particípio, duas subcategorias do componente
ideacional entram em jogo: 1) a subcategoria experiencial por meio da qual os seres humanos
representam processos, participantes no processo e circunstâncias realizadas com o processo;
2) a subcategoria lógica, onde os seres humanos representam a experiência em termos de
certas relações lógicas fundamentais na linguagem natural. (Albuquerque 2013:72).
Qualidades
Abordaremos agora o significado lexical dos particípios adjetivais.
Começaremos com os de natureza positiva. Antes, porém, de lidar com o
significado de cada particípio, queremos reconhecer a forma com que o
autor os arranjou (cf. tabela abaixo). Há claramente indícios estéticos
(visuais e sonoros). Contudo, também reconhecemos que esse arranjo não é
determinante para o sentido dos vocábulos.
φωτισθέντας Παραπεσόντας
γευσαμένους ἀνακαινίζειν
γενηθέντας ἀνασταυροῦντας
γευσαμένους Παραδειγματίζοντας
Iluminados
Quanto a φωτίζω, não se nega que o vocábulo pode significar
simplesmente “ser instruído”. Por outro lado, “o termo denota ‘receber luz’
ou ‘perceber’ de uma forma que previamente não teria sido possível (cf. Lc
11.36; Jo 1.9; Ef 1.18; 3.9)” (cf. Mcknight 1992:46). Temos boas razões
para crer que a iluminação referida não é uma mera apresentação ou
exposição à verdade. Dunn (1970:209) entende que as expressões repetidas
de γευσαμένου que seguem esse particípio são “elaborações retóricas” e
explanações dele.
1. Todas as ocorrências em Hebreus estão na voz passiva, contudo sem o
agente explícito. Nestes casos, Wallace (1996:437-8) alista oito
possibilidades. Uma delas é chamada de passivo divino ou teológico. Tal
categorização se dá quando “Deus é o agente óbvio” (Wallace 1996:438 –
itálico do autor), o que cremos ser o caso aqui (O’Brien 2010:221). Até
mesmo os que defendem uma iluminação “superficial” não se veriam
obrigados a negar essa realidade, uma vez que Deus também age nos
incrédulos, e suas ações, apesar de graciosas, não são necessariamente
redentivas.
2. O uso de ἅπαξ. O uso que nosso autor faz desse advérbio é marcante
na obra. Na carta, ἅπαξ não tem somente uma nuança numérica (“uma vez”
– e.g., 9.7, 9.27), mas qualitativa. Ela é usada para qualificar a obra de
Cristo como suficiente, válida e permanente (Lane 1991 v.1:132 – cf. 9.26,
28; 10.2). Se entendermos que há um contraste entre ἅπαξ e πάλιν (não
somente do v.6, mas principalmente com o do v.1), penso que a nuança
qualitativa faria mais sentido (Dunn 1970:209). A ideia, então, seria: assim
como não se pode lançar um fundamento mais de uma vez, pois isso é feito
de uma vez por todas (ou seja, para não ser repetido), assim também os
iluminados “de uma vez por todas” não podem ser renovados novamente.
Tomamos, pois, a iluminação como ato divino de qualidade tal que não
necessita de repetição.
Provaram
Voltemos nossa atenção ao segundo particípio – γευσαμένους. Além da
nossa passagem, o verbo γεύομαι aparece em Hebreus em 2.9. Nessa
passagem, Cristo “prova” a morte. Tem sido argumentado que “provar” não
é o mesmo que “comer” ou ainda, ter uma “digestão completa” (Nicole
1975: 360-1).
As palavras de Scot Mcknight (1992:46-7 – itálico nosso) são
esclarecedoras:
Nunca vi qualquer evidência em qualquer dos contextos que o termo grego signifique “provar
parcialmente” como oposto a “comer e digerir”. Isto é positivamente contrário ao uso
figurativo do termo onde ele nos fala da “participação e experiência” – o grau não é a
questão.
Se a léxis carrega em si a ideia de grau de envolvimento(Chafer 1948
3:303), como entender a morte de Cristo (2.9)? Ele teria provado pouco ou
muito da morte? Provar a morte quer dizer que Cristo não experimentou
uma “digestão mortal completa”? Claramente o uso metafórico aqui
significa simplesmente “experimentar”. Precisaríamos de outros elementos
fora da léxis para avaliar a tal intensidade referida. Assim, se um
determinado autor intenciona diminuir ou aumentar a força do “provar”,
precisaria recorrer a outros elementos para estabelecer tal nuança.
Cowan (2012:184-5) nos lembra que Grudem não cita os cinco usos
figurativos fora de Hebreus (Mt 16.28; Mc 9.1; Lc 9.27; Jo 8.52; 1Pe 2.3)
para ratificar sua tese. Para Cowan (2012:185), nenhuma passagem indica
que essas experiências são vistas como temporais. Trata-se, pois,
simplesmente de uma experiência real.
A expressão δωρεᾶς τῆς ἐπουρανίου (dom celestial) é uma “imagem
geral” para as bênçãos da salvação, como em João 4.10 (τὴν δωρεὰν τοῦ
θεοῦ [o dom de Deus]). O texto não nos fornece recursos para uma
especificação. A própria léxis da construção não permite particularizações.
Muito pelo contrário. Ela pode incluir a doação do Espírito, perdão dos
pecados e a santificação (Attridge 1989: 170).
Quanto ao genitivo ἐπουρανίου (celestial), em 3.1 nos é dito que esses
irmãos participam da vocação “celestial” (ἐπουράνιος). Em 12.22, é-nos
dito que chegaram a Jerusalém “celestial” (ἐπουράνιος). Em 8.5 e 9.23,
temos o contraste entre as figuras e as coisas “celestiais”. É celestial,
portanto, “porque sua fonte e alvo são o reino celestial” (O’Brien 2010:222
– itálico nosso).
Os iluminados também experimentaram da καλὸν θεοῦ ῥῆμα (a boa
palavra de Deus) e δυνάμεις τε μέλλοντος αἰῶνος (poderes do mundo
vindouro). Quanto à primeira expressão, “o termo usado para ‘palavra’ de
Deus (ῥῆμα) é diferente de λόγος usada previamente, mas dificilmente há
alguma mudança de sentido” (Attridge 1989: 170). Em 2.5 encontramos
uma expressão semelhante τὴν οἰκουμένην τὴν μέλλουσαν (“o mundo
futuro” NVI). Ela nos remete a escatologia realizada do autor (1.2).
Participantes
A próxima palavra a ser considerada é “participantes”. Ela está ligada ao
nosso último particípio (μετόχους γενηθέντας). Para Grudem (1995:148 –
itálico do autor), o que se pode dizer com confiança é que “eles foram
participantes de algum dos benefícios que o Espírito Santo dá”. Aqui
novamente é questionado o grau de associação. Contudo, “os usos de
μετόχους em Hebreus 3.1, 3; 3.14 e 12.8 não parece compelir o leitor a
questionar a natureza do grau de associação ou compartilhamento que está
envolvido” (Cowan 2012:188 – itálico do autor). Cada contexto parece nos
indicar somente se há participação ou não – nada mais.
Caídos
Se os iluminados são salvos, por que eles caíram? E por que é impossível
renová-los? A impossibilidade de renovação revela o tamanho da queda?
Ou devemos ver o tamanho da queda pela impossibilidade? Ou ambos? A
queda é a razão/explicação da impossibilidade? A “recrucificação” de
Cristo explica o tamanho da queda? Aqui, as temáticas que envolvem a
impossibilidade de renovação, a queda (παραπίπτω) e o sacrifício de Cristo
se unem. Por isso, precisamos dar toda atenção ao conteúdo e a relação
entre essas colocações.
O vocábulo παραπίπτω (cair), em si, é genérico, metafórico e, além disso,
uma hápax legomenon. Ou seja, estamos em um terreno fértil para a
proliferação de pelo menos duas falácias interpretativas: anacronismo
semântico e falácia de radical (cf. Carson 1999:26-33).
Na LXX, παραπίπτω traduz três verbos hebraicos, sendo o principal ָמ ַע ל
(Bauder v. 2:1611). Esse, por sua vez, ocorre 35 vezes, abrangendo uma
grande porção de nuanças que vão do genérico ato de “pecar” (em paralelo
com )ָח ָט אa um ato consciente de traição (Hamilton em Harris, Archer,
Waltke, 2001:863-4).
Aproximando-se mais da nossa passagem, deparamo-nos com a raiz
πίπτω. Ela se encontra não somente no documento, como também no
contexto próximo (3.17; 4.11). Tanto em 3.17 quanto em 4.11 (que
claramente nos remete [ὑποδείγματι] a 3.17) temos uma referência a um
fracasso definitivo. No primeiro caso, são os corpos caídos no deserto; no
segundo, o desejo (subjuntivo) de não cairmos como eles (3.17). Em ambos
os casos temos: (1) uma referência à parada definitiva de uma caminhada; e
(2) o resultado (não um ato) da desobediência (4.11) e da incredulidade
(3.19) – que por sua vez, reforçada no contexto, é uma questão de coração
(3.8, 10, 12, 15, 4.7, 12).
Se nosso autor tem em mente o mesmo referente de 3.17 e 4.11, a queda
indicada pelo vocábulo παραπίπτω é o resultado definitivo da incredulidade
– de um coração endurecido. Se cair é o mesmo que não entrar no descanso,
temos uma figura clara de “condenação”25. Em uma tradução livre,
teríamos: “porque é impossível renovar alguém que experimentou das
bênçãos de Deus e caiu em incredulidade como os israelitas do deserto”.
Novamente, parece que nosso autor deseja que seus leitores se identifiquem
com o povo de Israel que foi marcado pela negligência no ouvir e pela
queda.
A seriedade não está tanto em cair somente (algo concebível), mas que o
cair envolve não se aproximar (10.22) do trono e/ou do santuário (10.19)
para receber graça e misericórdia (4.16), seguir o novo e vivo caminho
(10.20), voltar (repetir) para o judaísmo. Assim, não é tanto somente o cair,
mas visar um outro caminho que exige a repetição da morte de Cristo – o
que é impossível. É tentar retornar para os princípios básicos. O pecado
combatido, portanto, pela exortação em 6.1, não necessariamente é
representado somente por παραπίπτω, mas na concebível recusa em não
permanecer caminhando na perfeição (e nas bênçãos da Nova Aliança).
Usando a linguagem dos versos 7-8: é rejeitar a chuva.
Temos três indícios de que a queda não exige a diminuição do status
redentivo das qualificações positivas (iluminados...):
Considerações
1. Não se pode negar a importância do estudo dos vocábulos na prática
interpretativa. Contudo, o estudo das Escrituras não pode ser confundido
com filologia ou etimologia. Na lida com um vocábulo, a pergunta não pode
parar no que é possível, mas deve-se buscar incansavelmente o
“estreitamento semântico” no co-texto e contexto – no mundo ao redor do
signo. Quando seguimos uma abordagem unicamente lexical, as
possibilidades só aumentam e as escolhas podem ser controladas
tiranicamente por elementos estranhos ao texto.
No caso de φωτίζω (iluminar), por exemplo, como uma referência a um
“mero conhecimento” se encaixaria em 10.32? Se esse realmente fosse o
caso, nosso autor estaria apelando para um conhecimento sem peso eterno.
O que o texto sugere é que exatamente esse “mero conhecimento” tem uma
relação direta com a perseverança (ὑπεμείνατε παθημάτων) dos leitores em
meio ao sofrimento.
2. Precisamos relacionar os vocábulos à individualidade autoral. Muitos
intérpretes não veem elementos claros de graça redentiva nos particípios
adjetivais pela ausência de expressões como justificação, por exemplo.
Contudo, não podemos, a priori, reduzir o poder das expressões participiais
simplesmente pela ausência de vocábulos soteriológicos consagrados como
“justificação” e “regeneração”. Isso é desprestigiar a contribuição
individual do escritor sagrado. A declaração “sem fé é impossível agradar a
Deus”, por exemplo, é a forma do autor de Hebreus apresentar uma faceta
da doutrina conhecida na teologia cristã como “justificação pela fé”.
Contudo, o nome “justificação” sequer aparece aqui. Quando não
reconhecemos as particularidades de cada documento e autor,
desvalorizamos o aporte da teologia bíblica na construção do grande
edifício da teologia cristã.
Vale a pena lembrar as colocações de Moisés Silva (1976:69-0) sobre
diversidade e unidade na teologia bíblica: “A disciplina da teologia bíblica,
com sua ênfase nas características distintivas dos autores do Novo
Testamento, longe de desorientar nosso compromisso com a unidade
bíblica, estabelece-a”. Portanto, “devemos permitir que cada autor bíblico
use seus próprios conceitos e vocabulário soteriológico” (Cowan 2012:183
n.106).
3. Uma das razões para a resistência à identificação dos descritos em 6.4-
6 seja como cristão, incrédulos ou cristãos fenomenológicos está na junção
e/ou tensão entre a queda e a impossibilidade de renovação. O preço do
equilíbrio na tensão entre as qualificações positivas (iluminados) e a
negativa (caíram) só vem quando um dos elementos que se contrapõem tem
sua força diminuída. Entendido e reconhecido, por exemplo, o “peso
condenatório e definitivo da queda”, perder-se-ia, por consequência, a força
das qualidades “redentivas” dos outros particípios adjetivais. À primeira
vista, o custo de tal postura parece ser pequeno e até razoável:
simplesmente reconhecer a ação graciosa do Senhor, contudo, eliminando
por completo a natureza redentiva dela. Ou seja, os particípios revelam a
graça; porém, não a redenção. Os nossos “iluminados impossibilitados de
renovação”, dessa forma, seriam “cristãos externos”. Contudo, como já
vimos, podemos também diminuir o peso da “queda”. A seguir veremos que
nessa luta para que se mantenha a gangorra do sentido equilibrada não
devemos diminuir o peso das expressões; antes, mantê-las em tensão e com
uma certa ambiguidade.
4. Os particípios adjetivais estão dentro de uma estrutura explicativa
(γάρ). A impossibilidade de renovação dos iluminados-caídos é a
explicação para não se lançar novamente os princípios elementares. Esse
tópico será desenvolvido a seguir quando considerarmos a relação entre as
orações.
Em cada caso, a proposição introduzida por γάρ desenvolve um aspecto do que precede. Pode
ser na forma de informação de base; pode introduzir a razão ou o fundamento de alguma ação
ou estado anterior. [...] Ela suporta o que precede fornecendo background ou detalhe que é
necessário para entender o que se segue.
2a explicação27 ἀνασταυροῦντας
(resultado) Crucificando novamente28
παραδειγματίζοντας
Expondo a vergonha
Pois Cristo não entrou em santuário feito por homens, uma simples representação do
verdadeiro; ele entrou no próprio céu, para agora se apresentar diante de Deus em nosso
favor; não, porém, para se oferecer repetidas vezes à semelhança do sumo sacerdote que
entra no Santo dos Santos todos os anos, com sangue alheio. Se assim fosse, Cristo
precisaria sofrer muitas vezes, desde o começo do mundo. Mas agora ele apareceu uma
vez por todas no fim dos tempos, para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de si mesmo.
(NVI)
Aqui a lógica clara é que a morte de Cristo não pode ser equiparada a dos
sacrifícios do AT, que eram marcados pela repetição. Se Cristo fosse como
os sacerdotes antigos, ele deveria (ἔδει) morrer várias vezes. Porém, como o
próprio autor declara, ele “aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado,
mas para trazer salvação aos que o aguardam” (Hebreus 9:28 – NVI).
Continuar na perfeição, segundo a exortação em 6.1, implicava deixar o
judaísmo com suas repetições que não aperfeiçoavam ninguém. Esse era
um problema para os leitores imediatos do documento: eles não queriam
deixar o judaísmo. Contudo, ainda assim desejavam se manter como
cristãos.
A exortação positiva (“prossigam na perfeição”) e seu lado negativo
(“não lançando novamente”) revelam não somente um contraste pactual,
mas uma tendência sincrética dos leitores. Penso que a explicação para a
exigência lógica de uma repetição está exatamente nesse sincretismo –
nessa mistura.
No sincretismo, a rejeição de Cristo é real e inquestionável, porém, não é
deliberada, aberta e total.31 Não é que o personagem idealizado (com quem
os leitores deveriam se identificar) rejeita a Cristo de tal forma que espera
outro messias. Pelo menos em suas “boas intenções”, ele não troca Jesus, o
Cristo, por outro Messias. Se fosse o caso, Jesus não precisaria morrer
novamente. Teríamos uma rejeição completa e total. Ela não exigiria
repetição. Simplesmente o abandono absoluto. Eles não esperariam
absolutamente nada de Cristo. Se o problema fosse somente ir para o
judaísmo, uma linguagem de rejeição somente seria aplicada.
No entanto, eles buscavam um cristianismo-judaico; ou melhor, um
judaísmo-cristão. “Os judaizantes queriam Cristo e ao mesmo tempo impor
as cerimônias dos cultos do Antigo Testamento” (Sproul, 1998:165 – itálico
nosso). Em outras palavras, não era nem judaísmo, nem cristianismo. É
exatamente a “confusão sincrética” que geraria a figura absurda,
monstruosa e desfigurada de uma hipotética repetição da morte de Cristo.
Nessa figura anômala, Cristo ainda se faz presente, é aparentemente
valorizado; porém, ao mesmo tempo, sua morte é rebaixada igualando-a aos
sacrifícios repetitivos do AT. No particípio ἀνασταυροῦντας temos Cristo e
o sistema antigo juntos.
Por todo o documento, encontramos indicações claras de que os ouvintes
estavam em perigo de voltar para o judaísmo, ou seja, para a primeira
aliança, para o fundamento. O autor alerta que isso seria o mesmo que pisar
e profanar o sangue da aliança (10.29). O convite de olhar e seguir a Jesus
(12.2) implica em deixar Jerusalém e seus alimentos-sacrifícios (13.13).
Eles não têm qualquer proveito para o coração (13.9). É impossível voltar
para a cidade vivendo um novo tempo. Ou se está fora ou dentro da cidade.
Eles se excluem. Quem toma dos sacrifícios de dentro rejeita o de fora e
vice-versa. O desafio do autor, pois, é que aqueles irmãos caminhem na
perfeição. Eles precisavam entender que não podiam viver nos princípios
básicos. O tempo de criança já havia passado. As palavras de Sproul
(1998:167 – itálico nosso) podem esclarecer:
A lógica caminha assim. Se uma pessoa abraçou a Cristo e confiou em sua propiciação pelo
pecado, o que essa pessoa teria se voltasse para aliança de Moisés? Com efeito ela estaria
repudiando a obra acabada de Cristo. Ela seria de novo uma devedora da lei. Se esse fosse o
caso, onde ela iria se voltar para a salvação? Ela repudiou a cruz; não poderia voltar-se para
isso [...]. Sua teologia não permite uma obra acabada de Cristo.
Quem foi iluminado e participou dos poderes desse novo tempo não pode
voltar para aquilo que apontava, ilustrava ou profetizava em sombras. Isso é
o mesmo que rejeitar a crucificação de Cristo exigindo sua repetição e a
exposição de Cristo à vergonha novamente (6.6). A volta ao judaísmo
(fundamentos-arrependimento) implica em rejeição do sacrifício de Cristo –
único meio de salvação.
Os particípios ἀνασταυροῦντας e παραδειγματίζοντας, ao mesmo tempo
em que reforçam a impossibilidade (pois Cristo não pode morrer, nem ser
exposto a vergonha mais uma vez), revelam que a volta aos elementos
básicos seria, na verdade, uma rejeição deliberada do sacrifício de Cristo.
Aqui temos um paralelo com a quarta advertência. Enquanto que em nosso
texto não caminhar na perfeição é o mesmo que “recrucificar” ou rejeitar o
sacrifício de Jesus, lá é o mesmo que profanar o sangue da aliança.
Depois de ter experimentado dos poderes do “mundo vindouro” e ter
livre acesso ao trono onde podemos ter graça e misericórdia, não se pode
retroceder buscando nos princípios básicos, nas sombras e nas parábolas a
resolução para a queda-pecado. “Se alguém rejeita o cumprimento do tipo
(sacrifício de Jesus), então os próprios tipos […] nada podem alcançar”
(Schreiner 2010:80). Não há, pois, a necessidade de se diminuir a força de
Ἀδύνατον (impossível) nem aumentar o peso de παραπίπτω (queda).
Conclusão
Findamos apresentando nossa proposta em forma de paráfrase
interpretativa do texto de Hebreus 6.4-6:
“Queria falar um pouco mais sobre a Nova Aliança; contudo vocês
deixaram de ouvir sobre ela. Estão endurecidos. Talvez pelo sofrimento que
têm passado. Querem se voltar para o sistema antigo. Quando deveriam não
ter necessidade alguma de ensino, vocês se comportam como crianças.
Acho que vou ter que dar leitinho para meus bebês de novo. Os
aperfeiçoados, os que se beneficiam com as bênçãos da Nova Aliança, por
outro lado, exatamente por serem aperfeiçoados, têm discernimento. Por
isso exorto a todos vocês: permaneçam caminhando na perfeição. Usufruam
as bênçãos da Nova Aliança, do acesso livre ao trono, ao Santo dos Santos,
do sangue de Cristo. Escutem a voz do sangue que perdoa. Contudo, não se
pode usufruir dessa bênção e ao mesmo tempo voltar para o judaísmo. É
impossível manter os dois juntos. Ou vocês se apropriam das bênçãos ou
voltam para o judaísmo – o que seria um grande equívoco. A razão para não
se voltar para o judaísmo é a impossibilidade de se renovar alguém que quer
as bênçãos da Nova Aliança enquanto, ao mesmo tempo, abraça o
judaísmo, pois isso desvaloriza a morte de Cristo. Trata-a como as mortes
que apontavam para a dele – repetitivas.”
TERCEIRA PARTE: HEBREUS 6.7-8
Nesse ponto do parágrafo, o texto direciona nossa diligência
interpretativa para: (1) a origem da ilustração (uma vez que ele lança mão
de imagens comuns tanto no AT como no NT – o que despertaria o leitor
familiarizado com a “linguagem sagrada” a fazer associações
interpretativas) e, claro, (2) pelo significado dos elementos da ilustração (as
duas terras, frutos, espinhos e fogo).
A importância da resolução da primeira problemática está numa possível
fonte de esclarecimento. Se temos, por exemplo, uma citação ou alusão,
quer do AT ou do próprio NT, o contexto do texto citado ou aludido seria
uma excelente fonte de auxílio na busca do significado não somente para os
versos em questão (7-8), mas para toda a passagem (5.11-6.12).
Sobre a origem da ilustração, muitos são os candidatos. Do AT temos
Gênesis 3.17-18; Deuteronômio 11.11; 29.23-27; Isaías 5.1-5; 10.17; 28.23-
29; Ezequiel 19.10-14; Oséias 10.8, 12. Do NT temos as parábolas do
Senhor Jesus em Mateus 13.1-9; Marcos 4.3-9, 24-30 e Lucas 8.4-8 e o uso
de Paulo de plantação e galardão juntamente com o fogo que prova as obras
em 1Coríntios 3. Fora do material canônico, Attridge (1989:172) reconhece
imagens similares em Filo e fontes rabínicas.
O número de candidatos só revela as incertezas, imprecisões,
ambiguidades e, por conseguinte, a fragilidade de se acionar qualquer
dessas passagens acima como fonte de sentido. O fato é que não temos uma
citação direta. Uma alusão? Provavelmente um eco (cf. as notas de rodapé
21 e 22 no primeiro capítulo). Sim, existem pontos de contato; contudo, os
pontos de divergências são tamanhos que exigem do interprete uma cautela
redobrada na identificação de um candidato a “texto esclarecedor”. Não
podemos fazer como Verbrugge (1980), por exemplo, que tomou Isaías 5
como a fonte da ilustração e construiu toda sua argumentação a partir dessa
frágil premissa.
George Guthrie (em Beale e Carson 2007:963 – itálico nosso) entende
que, de todos os textos candidatos, as principais fontes do autor de Hebreus
foram Gênesis e Deuteronômio. Em suas palavras: “Hebreus emprestou de
ambas as fontes para construir a declaração proverbial”. Para Guthrie, esse
empréstimo implica em submeter a ilustração a uma “estrutura
deuteronomista” de bênção-maldição. Não há problema algum com essa
proposta contanto que fosse levado em conta o constante contraste de
intensidade por meio de uma argumentação de natureza a fortiori (“quanto
mais”) tanto dos benefícios quanto das condenações que o autor de Hebreus
faz entre as alianças. Submeter essa ilustração a um framework
deuteronomista nos termos do AT só diminuiria o peso da advertência – o
que não encontramos nas demais como vimos nas análises acima. Assim,
não se está negando que podemos encontrar uma estrutura de bênção-
maldição. A questão é que ela precisa ser lida à luz do contraste de alianças
tão comum em Hebreus. Quem “preenche”, pois, o conteúdo da maldição
não é Deuteronômio. Além disso, não há necessidade de se acionar os
elementos dos solos e frutos em outros textos para reconhecer essa estrutura
quando as palavras “benção” e “maldição” estão explicitamente presentes
nos versos.
Dessa forma, das palavras de George Guthrie, destaco a expressão
“construir”. Ou seja, nosso autor produziu sua própria ilustração. O ponto
de contato garantido entre a ilustração e os outros textos citados é o mundo
da agricultura (comum aos escritores bíblicos) e a sua associação a um
“framework deuteronomista” (a ser preenchido pela própria carta-
pregação). Moo e Naselli (em Carson 2016:707) nos lembram que os
autores bíblicos do NT podem acionar uma determinada expressão comum
ao texto do AT sem qualquer mínima intenção de interpretá-la. A razão de
tal comportamento está na intensa proximidade dos autores do NT com o
conteúdo e, por conseguinte, da linguagem do AT. Creio ser esse o caso do
nosso texto. Assim, nosso autor não interpreta nenhum texto, nem está nos
apresentando um paradigma interpretativo fora de sua obra.
Duas implicações importantes: (1) precisamos acionar indícios textuais
próximos na busca pelo sentido. Dessa forma, uma fonte externa (e.g.,
literatura apocalíptica) poderá trazer somente esclarecimentos ou
enriquecimento (o que faremos a seguir), mas não o próprio significado. (2)
O elemento do fogo juntamente com a (ou à luz da) natureza a fortiori da
argumentação serão fontes mais seguras de se entender as imagens da
chuva, dos frutos e dos espinhos e abrolhos. Vamos ao texto!
Duas terras
Assim como os versos 4-6, os versos 7-8 também são prefaciados pela
conjunção explicativa γάρ. Junto com Romanos, Hebreus é um dos livros
que mais usa essa conjunção. Como colocado na tabela anterior de relação
entre as sentenças: temos a explicação da “explicação da explicação” (3a
explicação) – agora em tom de advertência – que reforça a gravidade de
rejeitar Cristo e os benefícios a ele relacionados.
São duas as terras mencionadas. Elas são representadas por três
particípios atributivos (πιοῦσα [bebe], τίκτουσα [dar à luz] e ἐκφέρουσα
[produz]). Os dois primeiros se referem a terra que bebe (πιοῦσα) da água
que cai constantemente (πολλάκις) sobre ela e produz (τίκτουσα) bons
frutos. Resultado: ela recebe bênção de Deus (μεταλαμβάνει εὐλογίας ἀπὸ
τοῦ θεοῦ).
O terceiro particípio (ou a segunda terra) se refere a que produz
(ἐκφέρουσα) espinhos e abrolhos. Não há razões para se crer que a segunda
terra não foi igualmente exposta às mesmas chuvas constantes da primeira.
O diferencial da segunda terra está exatamente em ter sido exposta às
mesmas chuvas a ainda assim produzir espinhos e abrolhos. Sua rejeição as
chuvas a torna reprovável (ἀδόκιμος). Dessa forma, a maldição (κατάρας)
está próxima e seu fim é ser queimada (καῦσιν) – condenada. Assim são
todos os que experimentaram (pelo menos concebivelmente) da bênção da
Nova Aliança e posteriormente as rejeitaram. Só resta condenação. Tal
advertência visava alertar os leitores-ouvintes para o fim de não caminhar
na perfeição – de rejeitar as bênçãos conquistadas por Cristo.
Se nos versos anteriores o autor revelou a impossibilidade de se colocar
novamente os fundamentos e relacionou tal atitude com a rejeição a Cristo,
aqui ele adverte seus leitores quanto ao futuro daqueles que, deixando o
caminho da perfeição (rejeitando a cruz), buscam no alimento para criança
(no fundamento) a força. São como a terra que recebe água e não produz
frutos; antes, espinhos e abrolhos.
Difícil não relacionar a segunda terra com a figura representada pelos
particípios adjetivais (iluminados…caídos). Aqui o tipo de pessoa
idealizada ganha mais cores. Os iluminados-caídos seriam semelhantes a
uma “terra teimosa”, que recebeu tudo o que precisava para produzir bom
fruto e misteriosamente rejeitou a chuva que caiu abundantemente sobre
ela.
A literatura apocalíptica
Uma vez estabelecida a relação entre Hebreus e a linguagem
apocalíptica, podemos buscar alguns paralelos. O texto da literatura
apocalíptica judaica mais próximo de Hebreus se encontra no livro de
4Esdras.
Segue uma introdução-resumo da obra: após seu chamado, Esdras
(também chamado Salatiel) se volta para os gentios devido ao
comportamento reprovado do povo judeu. Ele tem uma visão de uma
grande multidão no monte Sião. É uma visão de premiação. Cada um
recebe uma coroa do Filho de Deus (2.4735). Semelhante ao comportamento
de João em Apocalipse (ou o contrário), Esdras questiona o anjo quanto à
identidade dos coroados. O anjo afirma que são os que confessaram o nome
de Deus (2.45) e do seu Filho (2.47). Seguem-se sete visões. O julgamento
final é descrito na mais longa visão em 6.35-9.25. Em 9.10-12 temos:
Quantos não me reconhecem em suas vidas, embora tenham recebido meus benefícios;
quanto a minha lei é desprezada enquanto eles ainda têm liberdade, enquanto uma
oportunidade de arrependimento ainda está aberta para eles, esses devem reconhecê-la depois
da morte.
Em 4Esdras 9.29-36 temos a quarta visão:
29: Ó Senhor, tu revelaste a ti mesmo entre nós, aos nossos pais no deserto, quando saíram do
Egito e entraram no deserto inexplorado e infrutífero 30: E falaste: Ouvi-me, ó Israel, e dê
atenção às minhas palavras, descendentes de Jacó. 31: Pois eis que eu semeio a minha lei em
ti, e serás glorificado através dela para sempre. 32: Mas, apesar de nossos pais terem recebido
a lei, não a guardaram, não observaram seus estatutos; contudo o fruto da tua lei não pereceu,
nem poderia, pois era teu; 33: No entanto, os que receberam pereceram, porque não observam
o que foi semeado neles. 34: E eis que há um costume de que quando o solo recebe uma
semente, ou o mar um navio, ou qualquer prato alimento ou bebida e acontece de que o que
foi semeado, o que navega e o que foi colocado são destruídos, 35: eles são destruídos, mas
as coisas que os sustentam permanece; contudo conosco as coisas não foram assim. 36: Pois
nós os que receberam a lei e pecamos pereceremos, bem como nosso coração que a recebeu.
E em 10.5536 temos: “Portanto, não temas, e não deixe seu coração ficar
aterrorizado, mas vá e veja o esplendor e a grandeza do edifício tanto
quanto é possível aos teus olhos vê-lo”.
Seguimos o entendimento de Nongbri (275) sobre 4Esdras:
Tanto a linguagem de condenação quanto a de conforto estão presentes, porém com uma
considerável quantidade de texto que separa os dois. […] Tal não é o caso de Hebreus. Em
6:4-12, o autor imediatamente segue sua linguagem de condenação com linguagem de louvor
e exortação. Especificamente, nosso autor expressa confiança na audiência na base de suas
ações passadas.
Qualquer que seja o problema subjacente, ele é percebido a partir de uma perspectiva
distintamente apocalíptica. […] A função da literatura apocalíptica é moldar a percepção
imaginativa da situação de alguém e, assim, colocar fundamentos para qualquer curso de ação
ao qual ela exorte.
Como em toda boa exegese, foi uma longa caminhada em busca do sentido.
Encaramos questões contextuais, literárias, teológicas, linguísticas e
gramaticais. Coletamos o maior número de informações úteis possíveis e
lutamos para uni-las harmonicamente a fim de oferecer as melhores
respostas aos oito questionamentos apresentados na introdução deste livro.
Seja para mudança de algum detalhe ignorado, seja para amadurecimento e
enriquecimento de nossas conclusões, creio que ainda temos muito o que
aprender. Por hora, ficamos com as seguintes respostas:
1. Sobre a identidade dos indivíduos em 6.4-6, concluímos que as
pessoas descritas por meio de particípios adjetivais são cristãos autênticos.
São duas as razões que nos direcionam a essa conclusão: a natureza e a
relação entre os particípios e o referente único entre as três porções em 4-6;
7-8 e 9-12 (argumento desenvolvido no ponto 2 mais adiante).
Quanto à primeira razão, tomamos a cadeia de particípios em 6.4-6 como
adjetivais e reconhecemos que eles se relacionam uns com os outros de
forma homogênea construindo assim um todo coeso. Aqui, em especial,
seguimos a tese de que o particípio é um convite ao ouvinte/leitor a atuar
em alguma parte do discurso. No caso específico de nossa passagem, somos
convidados não somente a pensar, mas a se identificar de alguma maneira
com esse tipo de pessoa – os iluminados-caídos-impossibilitados de
renovação. A não identificação com a persona idealizada nos particípios
não somente distancia o leitor das características positivas (e.g.,
iluminados), mas da própria advertência e da argumentação – o que não faz
o menor sentido.
O que pode dificultar a apreciação e a identificação devida desse “tipo
de pessoa” como um salvo é o seu caráter misto (iluminados e caídos),
inconstante (iluminados que depois caíram) e, para alguns, até contraditório
(e.g., renovados que não podem ser renovados). Em outras palavras, os
elementos negativos (caíram e impossibilidade de renovação) poderiam
impedir o reconhecimento de que o referente dos particípios é único e diz
respeito a cristãos autênticos. Contudo, como observamos na exposição do
texto, o “peso condenatório” dos “elementos negativos” possui certa
ambiguidade bem como se encontram em uma linha argumentativa onde os
leitores (considerados salvos) são convidados a participar; ou seja, a priori
eles não necessariamente eliminam ou diminuem as características positivas
(e.g., provaram o dom celestial). A escolha não é binária. Precisamos
manter a tensão e uma certa ambiguidade ou anomalia para seguirmos
corretamente o caminho do argumento.
O texto não nos direciona a escolher entre as categorias “salvos”, “salvos
que apostataram”, ou “crentes fenomenológicos”; antes, ele impulsiona seus
leitores a se identificarem com a “persona dos particípios”. Tal postura
assegura a autenticidade e a genuinidade de todos os qualificativos. Não se
deve questionar, por exemplo, a qualidade da iluminação ou da participação
do Espírito Santo. Se o leitor categoriza esse “grupo coeso” como “cristãos
externos”, por exemplo, ele se distancia da exortação – o que o próprio
autor não faz – e da trilha lógica proposta. Para que eles acompanhem o
argumento e desfrutem do “chacoalhar” da advertência é necessário que
eles se coloquem no grupo idealizado pelos particípios adjetivais.
2. Quanto à relação entre os versos 4-6, 7-8 e 9-12, concluiu-se que essas
porções estão intimamente relacionadas e possuem um vínculo de
dependência de sentido. Através da apreciação da natureza dos particípios e
dos conectivos – principalmente de γάρ –, ficou evidenciada a relação direta
entres essas partes. Isso nos levou a concluir que as designações (1)
“negligentes”, “crianças” em 5.11-6.21 , (2) “iluminados-caídos-
impossibilitados” em 6.4-6 e os (3) “salvos” em 9-12 são, na verdade,
características de um mesmo e único referente. Em outras palavras, essa
unidade referencial nos obriga a ver os “iluminados-caídos...” em v.4-6
como os mesmos “salvos” nos versos 9-12. A expressão “mesmo falando
dessa forma” (NVI) é uma evidência de como as positivas palavras de
salvação em 9-12 devem ser lidas juntas com as palavras de advertência em
4-8.
A aparente distinção e/ou “ruptura estrutural” gerada pela mudança de
pessoa a partir do verso 4 (primeira pessoa nos versos 1-3 e terceira nos
versos 4-6) foi explicada pela natureza do “isolamento reflexivo” gerada
pelos particípios – algo comum com o distanciamento característico da
terceira pessoa.
A figura do solo que produz ervas daninhas e é queimada lança luz aos
particípios (ἀνασταυροῦντας e παραδειγματίζοντας) que se encontram na
porção anterior. Não é uma nova seção ou uma explicação desconectada do
texto imediato acima, mas trata-se de uma ilustração de rejeição descrita
pelos particípios. As duas terras são expostas as mesmas chuvas. A rejeição
por repetição desse grupo é ilustrada, pois, com a figura absurda e
monstruosa de uma “terra teimosa” que rejeita a chuva – as bênçãos
alistadas pelos particípios adjetivais (iluminados...).
3. Concluiu-se que a impossibilidade que o autor menciona é real. Ela
não encontra sua explicação no particípio aoristo παραπεσόντας (ou seja, na
queda [cf. ponto 4]), mas na lógica absurda e inevitável da repetição do
sacrifício de Cristo. Assim, são os particípios presentes ἀνασταυροῦντας e
παραδειγματίζοντας (crucificar novamente e expor à ignomínia) que nos
fornecem a explicação da impossibilidade. Esses particípios foram
considerados a chave elucidativa para as muitas ambiguidades de nosso
texto.
É importante entender a cadeia de explicações que seguem a exortação
em 6.1 (desfrutar das bênçãos da Nova Aliança – cf. ponto 7);
especificamente do seu aspecto negativo: o não lançar de novo o
fundamento. Vale lembrar que tomamos o “fundamento” como uma
referência aos elementos da Antiga Aliança. Temos, pois, a seguinte
sequência ou cadeia de explicações: ao desfrutarem das bênçãos da Nova
Aliança não se voltem (repitam) para a Antiga Aliança → porque é
impossível → isso exigiria a repetição da morte de Cristo → que seria uma
rejeição digna de condenação (fogo).
O autor, portanto, utiliza-se de um tipo de “armadilha lógica” onde os
conceitos de repetição (“renovar novamente”, “lançar de novo”) e rejeição
(“expor à ignomínia”) estão intimamente relacionados. A rejeição de Cristo
(repetição de sua morte) explica o absurdo (ou a impossibilidade) da
repetição do fundamento – uma volta para a Antiga Aliança. Quem foi
iluminado e participou dos poderes do novo tempo inaugurado por Cristo
não pode voltar para aquilo que apontava, ilustrava ou profetizava em
sombras (o AT) e ainda assim se manter cristão. São dois altares que se
anulam (cf. 13.10). A impossibilidade está, pois, na unidade sincrética de
judaísmo com cristianismo. No particípio ἀνασταυροῦντας (crucificar
novamente) temos Cristo e o sistema antigo monstruosamente juntos.
É importante entender que não se trata somente de uma rejeição do
cristianismo, ou uma negação categórica de Cristo, ou ainda uma simples
troca de cristianismo (Cristo) por judaísmo (sacrifícios). A chave aqui é a
repetição hipotética da morte de Cristo. Se fosse somente uma questão de
rejeição, não teríamos a necessidade, mesmo que hipotética, de repetição. O
que é impossível, portanto, é a síntese entre o judaísmo e o cristianismo. O
combate a essa síntese já pode ser visto no contraste entre o lado positivo
(desfrutem das bênçãos da Nova Aliança) e negativo (não lancem de novo
os elementos da Antiga Aliança) da exortação em 6.1.
Essa síntese monstruosa de alianças findaria numa igualdade
insustentável (impossível) entre o sistema antigo e repetitivo de sacrifícios e
o sacrifício singular de Cristo, transformando a morte do Senhor Jesus em
um sacrifício qualquer – a ser repetido. Isso é o mesmo que rejeitar a
crucificação de Cristo, exigindo assim sua exposição à vergonha novamente
(6.6); algo equivalente, por exemplo, ao que encontramos no capítulo 10:
“profanar o sangue da aliança”.
4. Quanto à natureza da queda: a impossibilidade de renovação não se dá
diretamente por causa da queda. Não é a queda que explica a
impossibilidade de renovação, mas a repetição da crucificação de Cristo.
No arranjo sintático, a queda é um particípio aoristo que antecede o verbo
principal. Ou seja, ele tem uma função de background. Não nos é fornecido
os detalhes de sua natureza e razão. Ele não é fonte de explicação. A única
declaração que se pode fazer com segurança é que “cair” aqui é
simplesmente “não continuar”. Se a queda é definitiva, o que a causa ou
ainda se é um ato ou um resultado não nos é informado. O que passar daqui
é especulação.
O pecado combatido pela exortação-solução em 6.1, portanto, não é
representado por παραπίπτω (queda), mas na concebível recusa de
prosseguir na perfeição – rejeitar as bênçãos da Nova Aliança (cf. ponto 7)
por meio do sincretismo. Depois de ter experimentado dos poderes do
“mundo vindouro” e o acesso ao trono pelo sangue de Cristo, não se pode
retroceder buscando nos princípios básicos (primeira aliança) a resolução
para a queda. Usando a linguagem dos versos 7-8: é rejeitar a chuva.
5. Como proposto acima, a advertência esclarecida nos versos 7-8 não é
consequência direta da queda mencionada no verso anterior, mas da não
“aplicação apropriada” da exortação de 6.1 (apropriar-se das bênçãos da
Nova Aliança). Entenda-se apropriada como “não sincrética”. Na cadeia de
explicações, ela é a “explicação da explicação”. Voltar para os princípios
elementares do judaísmo enquanto cristão é absurdo (impossível), pois
implica em repetição do sacrifício de Cristo.
A gravidade dessa monstruosa e hipotética repetição é ilustrada com a
figura da terra improdutiva que é amaldiçoada e queimada. Aqui ele adverte
a seus leitores quanto ao futuro daqueles que, deixando o caminho da
perfeição (rejeitando a cruz e as bênção decorrentes do sangue da aliança),
buscam no alimento para criança (no fundamento) a força. São como uma
“terra teimosa” que, mesmo recebendo água, não produz frutos; antes,
espinhos e abrolhos. As advertências paralelas, principalmente as
encontradas nos capítulos 10 e 12, especificamente a natureza a fortiori das
argumentações dessas passagens, reforçam a nuança de condenação na
figura do fogo.
6. Quanto à relação entre as advertências, concluiu-se que o pecado
combatido é basicamente o mesmo: retroceder no caminho da fé não se
agarrando a Cristo e seu sacrifício perfeito, único e exclusivo. A análise de
cada uma delas se mostrou de grande importância para o entendimento e
esclarecimento da nossa passagem, pois elas estão basicamente na mesma
tônica e, em alguns casos, compartilham de uma mesma estrutura (e.g.,
exortação [5.11-6.3 e 10.32-39], advertência [6.4-8 e 10.26-31] e uma
reafirmação [6.9-20 e 10.32-39]).
7. Quanto ao conceito de perfeição, entendemos tratar-se de um tema rico
e amplo o suficiente para que o reconheçamos como o tema teológico mais
importante de todo o livro. A despeito da complexidade e riqueza dos temas
encapsulados nas palavras de raiz τελ- (e.g., santificação, purificação,
aproximação do trono), podemos ver uma coesão em toda a obra. Não
encontramos motivos, pois, para tratar τελειότης (perfeição) em 6.1 e
τέλειος (perfeitos) em 5.14 de maneira dissonante das outras ocorrências
das palavras de raiz τελ- (τελείωσις [7.11]; τελειωτής [12.2], τέλειος [9.11]
e τελειόω [2.10; 5.9; 7.19, 28; 9.9; 10.1, 14; 11.40; 12.23]) como se elas
tivessem referentes distintos. Assim, diferente da grande maioria dos
comentários e versões, não entendemos que a exortação em 6.1 (continuem
prosseguindo para a perfeição) seja um encorajamento à maturidade. Os
irmãos de Jesus são aperfeiçoados, ou seja, capacitados (santificados,
purificados), por meio do sacrifício de Cristo, a se aproximar de Deus e da
glória perdida. Trata-se, pois, do resultado da realização da Nova Aliança.
A exortação em 6.1 pode ser colocada da seguinte maneira: permaneçam
caminhando na perfeição; usufruam das bênçãos da Nova Aliança, do
acesso livre ao trono, ao Santo dos Santos, do sangue de Cristo. Escutem a
voz do sangue que perdoa. Olhem para Cristo – sua pessoa e obra.
8. Quanto à natureza, embasamento e propósito das advertências,
concluímos que as advertências são instrumentos e/ou meios (não garantia
ou base) de manutenção dos crentes em perseverança. As advertências de
Hebreus (como qualquer outro livro), pois, não fazem menção à
possibilidade de queda e/ou condenação, mas alertam seus leitores como
placas antevendo o problema na certeza de que todos os que caminham em
fé, no sentido final, seguirão as instruções. As advertências em Hebreus não
são acusações indiretas, deixando em aberto a possibilidade de queda;
antes, aquele que adverte espera o melhor dos seus ouvintes. Ele está certo
da salvação deles. A tese de que a advertência não lida com o possível, mas
com o concebível encontrou reforço gramatical na distinção entre
pressuposição factiva (chamada de modulação) e o significado transmitido
pelos modos (ou modalidade).
Em suma, a vida cristã pode ser extremamente fatigante. Muitos homens
e comunidades inteiras responderam à perseguição com abatimento
enquanto flertavam caminhos substitutos e indignos para com a beleza do
Evangelho. Seja qual for a razão imediata para o desânimo, a angústia e o
cansaço decorrentes da fidelidade, a solução será sempre a mesma:
contemplar a Cristo – sua identidade e obra. É isso que o autor de Hebreus
faz em todas as suas exortações. Seja qual for o caminho que se apresenta
como substituto, ele sempre será um insulto ao que foi conquistado por
Cristo e prefigurado no Antigo Testamento: as bênçãos da Nova Aliança.
Findamos, pois, com a exortação central de toda carta-pregação: “deixemos
nos levar na perfeição” (ἐπὶ τὴν τελειότητα φερώμεθα). Em outras palavras,
“perseverem na perfeição”; ou ainda, “permaneçam caminhando na
perfeição; usufruam as bênçãos da Nova Aliança, do acesso livre ao trono,
ao Santo dos Santos, do sangue de Cristo. Escutem a voz do sangue que
perdoa”.
1. Vale ressaltar que argumentamos, ancorados na teoria do aspecto verbal (cf. Apêndice), que a
negligência é momentânea; a infantilidade, por sua vez, foi entendida como ironia.
Apêndice
PRESSUPOSIÇÕES
LINGUÍSTICAS E GRAMATICAIS
LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA FUNCIONAL
Segundo Gordon Fee (2008:206), “a chave para a boa exegese é a
habilidade de fazer as perguntas certas para o texto a fim de captar o
significado pretendido pelo autor”. Duas categorias são fundamentais na
produção das perguntas certas: conteúdo e contexto. Pensando estritamente
em conteúdo, exegese envolve interpretação do texto original (Grassmick
2009:10) e, por conseguinte, gramática.
Segundo Walter Kaiser (1996:48), “se o texto da Escritura é a
preocupação central, então o domínio do hebraico, aramaico e grego é uma
exigência básica”. Quanto à gramática, é fato que a exegese vai além dela,
porém toda exegese deve obrigatoriamente passar por decisões gramaticais.
Assim, a gramática grega é fundamental para a interpretação do NT.
As decisões gramaticais, por sua vez, são construídas sobre fundamentos
linguísticos. Sobre a importância da consciência dos pressupostos
linguísticos no entendimento da gramática, Campbell (2007:16 – itálico
nosso) é muito esclarecedor: “Agora é dever do gramático moderno não
somente adotar conscientemente um modelo linguístico, mas explicitar essa
escolha para seu leitor”. É exatamente isso que pretendemos fazer nesse
apêndice1.
Quanto aos pressupostos linguísticos, existem duas opções gerais:
linguística generativa (doravante LG) e linguística funcional (doravante
LF). A primeira está preocupada com padrões mentais universais, enquanto
a segunda tem seu foco no desenvolvimento dos sistemas gramaticais como
meios de interação entre indivíduos. A orientação da LF é social e não
biológica e/ou inata como na LG. A LF, representada por J. R. Firth e M. A.
K. Halliday, pois, é sociolinguística ao invés de psicolinguística, como a
representada por Chomsky (LG).
Comparando a abordagem estrutural da LG com a funcional da LF,
Stephen H. Levinsohn (2000:vii-viii – itálico nosso) esclarece bem a
questão:
[…] a abordagem estrutural pode te informar, por exemplo, que orações gregas manifestam
todas as seis possíveis ordens envolvendo sujeito (S), objeto (O) e verbo – (SVO, SOV, OSV,
OVS, VSO, VOS) – sem nunca abordar a questão de quando usar cada uma. Uma abordagem
funcional, por outro lado, parte da existência das seis ordens (i. é., ela pressupõe uma análise
estrutural) e concentra-se na identificação dos fatores que determinam a seleção de uma
ordem em detrimento de outra.
Dado é que a língua sob exame é antiga e não temos nenhum locutor nativo, parece-me mais
razoável adotar uma abordagem funcional que está preocupada principalmente com o uso da
língua como uma ferramenta de comunicação ao invés dos padrões de pensamento que a
produziram. Uma abordagem generativa […] [é] impedida pelo fato de que as mentes que
geraram a língua são agora inescrutáveis.
De agora em diante, tratamentos do sistema de verbos gregos do Novo Testamento que não
interagem profundamente com Porter e Fanning [ou seja, a teoria do aspecto verbal] serão
considerados antiquados.
D. A. Carson (1993:25).
Panorama histórico
As três grandes obras que trouxeram a teoria do aspecto verbal à frente
do cenário das grandes discussões envolvendo verbos são: A New Syntax of
the Verb in New Testament: An Aspectual Approach de K. L. McKay;
Verbal Aspect in the Greek of the New Testament, with Reference to Tense
and Mood de Stanley Porter e Verbal Aspect in New Testament Greek de
Buist Fanning.
Linguista do Grego Clássico, K. L. McKay findou seus trinta anos de
estudos assegurando não somente que tempo não é mais importante que
aspecto, como também que não há qualquer sinal de tempo nas formas
verbais. Toda noção temporal, portanto, advém unicamente de elementos
contextuais (pragmática). Ele foi o primeiro a sugerir que forma verbal se
refere a aspecto.
Ignorando a pesquisa um do outro, Porter e Fanning escreveram suas
teses de doutorado (Sheffield e Oxford respectivamente) no mesmo período.
Eles são os responsáveis por deflagrar o interesse pelo assunto no campo
dos estudos bíblicos (Campbell 2007:2).
A formação de Stanley E. Porter abrange tanto a linguística quanto a
teologia. Toda sua pesquisa é construída sobre o fundamento da LF (cf.
1.2). Comparada à obra de Porter, Fanning não tem tanto rigor linguístico2 e
seu estudo focalizou somente os textos do NT, enquanto Porter foi além.
Há desacordos entre eles. Fanning (1990:112-120; em Carson 1993:49-
50) defende a existência de somente dois aspectos e não três, como Porter,
pois entende “estatividade” como Aktionsart e não aspecto3. Em Fanning,
não temos uma distinção tão forte entre semântica e pragmática (cf. nota 5).
Para ele, aspecto é dominante, porém tempo ainda é uma categoria legítima
na forma verbal e significado lexical tem efeito sobre o aspecto verbal.
Tanto para Porter quanto para Fanning, aspecto é uma categoria mais
importante do que tempo quando o assunto é verbo grego, portanto, é chave
para o entendimento do sistema verbal grego. “Tanto Porter quanto Fanning
argumentam que aspecto verbal está preocupado com o ‘ponto de vista’ do
autor com respeito ao evento representado pelo verbo” (Carson, Porter
1993:21).
Em sua obra Temporal Deixis of the Greek Verbal in the Gospel of Mark
with Reference to Verbal Aspect, focalizando somente o evangelho de
Marcos, Rodney J. Decker confirmou a tese de Porter da atemporalidade
das formas verbais e que toda noção de tempo vem de elementos dêiticos.
Decker ainda oferece um material apologético onde responde a contento as
acusações feitas à teoria de Porter.
A despeito das divergências quanto ao número de aspectos, o consenso
entre eles é que toda exegese deve incorporar uma “sensibilidade aspectual”
– o que se tentou fazer nesta obra.
Definição
A definição mais simples de aspecto verbal é “ponto de vista” (Campbell
2007:7). McKay (1994:27 – itálico nosso) entende como “aquela categoria
do sistema verbal por meio do qual um autor (ou locutor) mostra como vê
cada evento ou atividade a qual ele se refere em relação ao seu contexto”.
Segundo Porter (2007:21), aspecto verbal é definido como uma categoria
semântica4 (significado) por meio da qual a pessoa que fala ou o escritor
gramaticaliza (i. é., representa um significado por meio da escolha de uma
forma verbal) uma perspectiva sobre uma ação por meio da seleção de uma
forma verbal particular.
Rodney J. Decker (2001:26) remodelou e simplificou a definição de
Porter da seguinte forma: “É a categoria semântica pela qual o locutor ou o
escritor gramaticaliza uma visão da situação5 pela seleção de uma particular
forma verbal no sistema verbal”.
Pressupondo gramática como um sistema de rede de escolhas e/ou
possibilidades, a rede verbal é composta por dois subsistemas maiores:
aspecto e finitude. Em outras palavras, diante de um verbo, nossas
preocupações iniciais devem ser duas: (1) qual o ponto de vista do autor? E,
em segundo lugar, (2) qual sua atitude em relação ao que declara?
Isso tem uma implicação negativa: não precisamos, nem muito menos
devemos perguntar “qual o tempo ou tipo de ação (Aktionsart) envolvidos
no verbo?”. Essas perguntas não são de natureza gramatical quando o
assunto é verbo. Informações dessa natureza ficam por conta de questões
contextuais e lexicais. Não podemos ver uma determinada forma verbal
como uma ação objetiva, antes como uma perspectiva. Isso não significa
que o grego não lida com o tempo ou não o tem como um elemento
importante na comunicação. Existem recursos na língua que podem ser
acionados como indicadores temporais. Porém, esse não é o caso das
formas verbais.
Pensando especificamente em aspecto (mais adiante trataremos da
finitude), as mais recentes análises têm demonstrado que o sistema de
formas verbais não tem referência (mesmo que secundária) a tempo ou à
tipo de ação (Aktionsart), mas ao ponto de vista (subjetivo) do escritor. Em
outras palavras, segundo essa teoria, forma verbal não gramaticaliza tempo
ou Aktionsart, somente aspecto (Porter 1989:81, 98).
A lógica da teoria do aspecto verbal é a seguinte: se uma determinada
forma verbal varia de significado, tal alteração evidentemente não pode ser
explicada pela forma, uma vez que essa permanece exatamente a mesma
diante da variação semântica. A explicação, portanto, só pode estar em
elementos contextuais e lexicais. Assim, se “tempo passado” fosse um valor
semântico (ou gramatical) da forma aorista, todo aoristo deveria ser sempre
uma referência ao passado ou ainda outra forma como o presente não
poderia indicar o passado ou o presente não poderia indicar o futuro – o que
não é sustentado numa leitura do NT. O mesmo pode ser dito dos tipos de
ação. Assim, o núcleo semântico dos verbos é revelado no aspecto.
Alguns exemplos: (1) Marcos 1.11b: “...Tu és o meu Filho amado; em ti
me agrado” [“...σὺ εἶ ὁ υἱός μου ὁ ἀγαπητός, ἐν σοὶ εὐδόκησα”]; (2)
Romanos 8.30c: “...aos que justificou, também glorificou” [“...οὓς δὲ
ἐδικαίωσεν, τούτους καὶ ἐδόξασεν”]; (3) João 21.10a: “Disse-lhes Jesus...”
[λέγει αὐτοῖς ὁ Ἰησοῦς].
Para reforçar a importância, bem como as mudanças envolvidas ao se
empregar o aspecto verbal na prática exegética, ficamos com as palavras de
Stanley E. Porter (1993:43): “aspecto verbal como uma categoria da
linguística moderna fornece uma nova orientação para a visualização da
linguagem em si”.
Os aspectos6
Reconhecemos três aspectos:
1. O aspecto perfectivo “vê a ação do verbo como um todo completo”
(Porter, Reed; O’Donnell 2010:33). Ou seja, vê a ação na sua totalidade
como um todo único e completo. (Porter 1989:91). Não se pode confundir o
“ver como um todo” com uma ação “completa” ou “instantânea”7. Nem se
pode confundir “completa”, com “completada” – que tem uma nuança
temporal. Assim, Campbell (2007:11) denomina esse ponto de vista
(aspecto) como externo. Esse aspecto é expresso pela forma verbal aorista.
No gênero narrativo, por exemplo, é o aspecto perfectivo que carrega a
narrativa fornecendo o “esqueleto” da história (Decker 2001:22). Ele
“estabelece uma estrutura básica sobre a qual os itens mais importantes na
narrativa – quer sejam eventos ou descrições – são colocados” (Porter
1993:35). No caso do nosso texto, os particípios adjetivais estão todos nesse
aspecto fornecendo um arcabouço lógico para a argumentação. Contudo,
sem interesse de entrar em detalhes.
2. O aspecto imperfectivo vê uma ação internamente, mas a ação não
precisa necessariamente estar contínua ou em progresso (Campbell
2007:11). Aqui, diferente do aspecto perfectivo pode-se ver os detalhes.
Duas formas verbais expressam esse aspecto: o presente e o imperfeito. A
escolha por esse tipo de aspecto implica que o autor aprecia os detalhes da
ação. No caso do nosso texto, por exemplo, temos os particípios adverbiais
que seguem a declaração de impossibilidade de renovação. Exatamente por
isso que em nossa exposição priorizamos esses particípios para entender a
razão da impossibilidade. Ou seja, se quiser saber os detalhes para
impossibilidade, devemos ir para a “recrucificação”, e não para a queda.
3. O aspecto estativo “vê a ação do verbo como refletindo um dado
(complexo) estado do sujeito. O locutor ou escritor expressa esse aspecto
selecionando a forma temporal perfeita (também o mais-que-perfeito)”
(Porter, Reed, O’Donnell 2010:315). Numa relação espacial, os contornos
básicos do discurso seriam colocados da seguinte maneira: o aspecto
perfectivo serve de background (plano de fundo), o imperfectivo de
foreground (primeiro plano) e o estativo de frontground (primeiríssimo
plano).
Afastamento (Remoteness)
Existe divergências quanto ao número de aspectos. Alguns defendem
dois: perfectivo e imperfectivo (e.g., Campbell [2007]); outros, perfectivo,
imperfectivo e estativo (e.g., Porter [1989]). Contudo, um ponto de
concordância fica por conta da coincidência entre formas com o mesmo
aspecto (presente e o imperfeito gramaticalizam o aspecto imperfectivo).
Como resolver então? A distinção entre formas que possuem o mesmo
aspecto (e.g., presente e imperfeito) fica por conta do que eles denominam
de “afastamento”.
Segundo Rodney Decker (2001:41):
Esse é um conceito mais amplo do que tempo passado, embora possa incluir (e geralmente
inclui) tempo remoto como parte da sua variedade de uso. O afastamento pode ser também
distante de uma perspectiva lógica ou narrativa.
Ele tem valor semântico. Logo, é uma categoria mais ampla que tempo
(pragmática). Trata-se de uma categoria espacial e não temporal; não é
física, é figurativa e abstrata (Campbell 2007:15). Pode ser temporal, lógico
e contextual.
MODO, MODALIDADE, MODULAÇÃO
Rede de finitude (Finiteness)
Dentro da rede do sistema verbal grego não há somente a aspectualidade
como opção. Simultaneamente com a aspectualidade, temos o sistema de
finitude. Se na aspectualidade perguntamos “qual o ponto de vista do
escritor?”, na rede de finitude nossa pergunta é: a forma verbal expressa
uma pessoa? Se expressa, a ação está limitada a um sujeito específico.
Segundo Porter (1989:94 – itálico nosso), “[o] sistema de FINITUDE
assinala a distinção semântica entre limitação na expressão verbal através
da pessoa [+finito] e a falta de limitação [-finito]”.
O gráfico abaixo será explicado na sequência.
[…] na LSF [linguística sistêmica funcional] todas as opções no sistema de rede verbal
ocorrem em oposição ao outro. Assim, asserção (modos) é dividida dentro de dois
subsistemas, +asserção (modo indicativo) e –asserção (modalidade – imperativo, subjuntivo e
optativo). […] somente o modo indicativo gramaticaliza +asserção. […] tendo feito essa
qualificação [modo e modalidade] é importante prosseguir a uma discussão semântica entre a
forma verbal usada para gramaticalizar atitude (modo e modalidade) e a forma verbal que
bloqueia atitude e gramaticaliza pressuposição (modulação).
Particípio e infinitivo
Como foi colocado acima, “[o] particípio, como o infinitivo, não
gramaticaliza modo ou pessoa” (Porter 2007:181 – itálico nosso). Observe
no último gráfico que os itens na categoria –finito não podem expressar
atitude/modo porque a rota de escolha é bloqueada. Assim, ninguém
escolheria um particípio para fazer uma asserção, uma vez que “ele não
gramaticaliza atitude, visto que não é um modo, nem mesmo modalidade”
(Albuquerque 2013:139).
Sobre o uso dos verbos não-indicativos, Porter (1989:167-8) assegura:
[…] são usados para não-asserção, i.e., eles são usados quando nenhuma reivindicação é feita
sobre o estado do mundo, mas algum estado não-existente é hipotetizado ou projetado
qualquer que seja seu relacionamento com o mundo real.
1. Na gramática de Daniel B. Wallace (1996), por exemplo, antes de lidar com as questões
específicas propostas, ele apresenta o que denomina de “Abordagem deste livro”, onde ele lida com
questões linguísticas (e.g., prioridade sincrônica, prioridade estrutural, natureza enigmática da
linguagem). Aqui, por questões de alcance, preferimos deixar os pressupostos para o final.
2. O próprio Fanning reconhece que não é um linguista.
3. O perfeito, por exemplo, não é um aspecto para Fanning. A forma perfeita combina três elementos:
tempo, Aktionsart e aspecto.
4. A distinção entre semântica e pragmática é considerada crucial para a teoria do aspecto verbal
(pensando especificamente em Porter, Decker e Campbell). Semântica (não confundir com
“semântica lexical” que lida com uma variedade de significados em uma mesma palavra – estamos
lidando com “semântica verbal” ou “semântica gramatical”) diz respeito aos valores codificados pela
forma verbal. Esses valores são imutáveis. Ou seja, estão sempre presentes quando determinada
forma é usada e/ou escolhida. Como “referência temporal” não é expressa sempre e consistentemente
na forma verbal grega, tempo não tem valor semântico na forma verbal grega. Tempo é pragmática.
Pragmática, por outro lado, lida com a expressão do valor semântico no contexto combinado a outros
fatores (e.g., léxis, gênero, elementos dêiticos). Ou, “a forma que a língua é usada no contexto”
(Campbell 2007:24). Assim, o valor pragmático, diferente do semântico, é mutável. Contudo,
semântica implica em pragmática. E pragmática se constrói em fundamento semântico. Fanning é
criticado por Porter por considerar o efeito do significado lexical inerente no aspecto verbal. Segundo
Porter (1993:37): “o resultado é uma fusão de categorias semânticas gramaticais e lexicais em que
léxico tem predominância sobre a gramática”.
5. “Situação” é entendida como cobrindo todos os tipos de estados, eventos, ações, processos e
atividades.
6. Não lidaremos com a forma futura. Fanning (123), por exemplo, denomina-a de forma não-
aspectual. Porter (1989:403-9) não a considera aspecto, forma indicativa ou não-indicativa.
7. Completude ou instantaneidade são valores pragmáticos e não semânticos.
8. “Factivo” diz respeito ao resultado de um processo mental nos leitores, ou seja, é pressuposição.
Referências bibliográficas
Provocações Teológicas
@Rômulo-Monteiro-Provocações-Teológicas
A Editora Concílio nasceu em 2016 da amizade de alguns irmãos que foram
unidos pela cruz de Cristo no desejo de disponibilizar mais obras cristãs de
qualidade à igreja brasileira.
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