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O Destino da Cigana

Contos - Encontros Marcantes


01

G. C. Jimenéz
Copyright © 2019 G. C. Jimenéz
Título: O Destino da Cigana
Série: Encontros Marcantes
Volume: 01
Autora: G. C. Jimenéz
Revisão gramatical: Gabriel Marcos
Capa: L. A. Design de Capas
Diagramação (eBook): Will Nascimento
Edição: Will Nascimento

Sinopse
No ano em que os reis católicos conquistaram Granada, a população das
terras Andaluzas acreditava que a paz finalmente reinaria. No entanto, tudo
não passou de um grave equívoco, pois com a ascensão do Reino de Castela
e Leão, veio também o governo da Igreja Católica e a severa perseguição
religiosa na região, expulsando judeus e pagãos de seus lares. Agora, um
século depois, a Coroa Espanhola precisa combater a Revolta dos
Mouriscos e, para isso, convoca o valente capitão Fernando Lozano. Por
sua vez, ele se valerá de sua missão para fugir da dor em seu coração
machucado, deixando para trás uma jovem cigana com um bastardo em seu
ventre.
Entregue à própria sorte, Dandara sofrerá nas mãos daqueles que
destruíram seu grande amor. Mas o destino se encarregará de trazer Lozano
de volta, para correr contra o tempo e salvar a única mulher que amou em
sua vida.
Em meio a preconceitos, presságios e armações, o amor será posto à
prova e o destino da cigana estará traçado nas rodas do tempo.
Prólogo

Quando eu a conheci, jamais imaginei que minha vida sofreria uma


mudança tão grande de direção e significado. A força de sua presença foi
capaz de romper as barreiras do preconceito enraizadas em meu ser e
ensinou-me o verdadeiro sentido do amor. Écija nunca mais será minha
casa, e as montanhas que percorri, durante toda a minha infância, serão as
únicas guardiãs das lembranças da mulher que amei mais que minha própria
vida. Hoje sei até onde a maldade humana pode chegar, destruindo a
felicidade alheia, bem como o que o ódio e a inveja são capazes de causar;
mas nada disso será capaz de destruir nosso amor, porque, ainda que
existam amores propensos a se apagarem ao longo dos anos, há também
aqueles que perduram como uma chama viva, inextinguíveis até mesmo
pelo tempo.
E o que sinto por essa mulher é intenso o suficiente para esperar
uma eternidade se for necessário, pois Dandara tornou-se meu porto seguro,
minha força, minha razão de viver; ela foi a luz que aboliu a escuridão de
minh’alma, e eu desafio o destino que se impôs entre nós a ousar roubá-la
uma segunda vez de minhas mãos.
Capítulo Um
Espanha, 1569,
Serra Nevada - Acampamento do Exército da Coroa
Espanhola

Ele ainda sonhava com a bela morena de cabelos negros e olhos brilhantes,
ainda sentia a leveza de sua pele na ponta de seus dedos e, por inúmeras
vezes, acreditava ser possível ouvir a doce voz sussurrando ao seu ouvido.
Fernando Lozano era um dos principais capitães do exército espanhol.
Conhecido por seu caráter forte e discreto, era muito bem-conceituado no
meio dos generais devido à sua astucia e à sua frieza em batalha; o homem
que comandava batalhões, no entanto, encontrava-se derrotado diante de
seus sentimentos.
Fernando já havia travado diversas batalhas, ferira-se tantas vezes
que já não conseguia mais contar as marcas dos embates em sua pele; ainda
assim, nada seria tão doloroso quanto a cicatriz deixada em seu coração,
causada pela mulher que outrora o abraçara, fazendo juras de amor e
promessas de lealdade — mulher essa que fora capaz de apunhalá-lo pelas
costas, aplicando-lhe a mais vil das traições.
“Todas as manhãs são tranquilas antes de batalhas e notícias
terríveis, é uma maneira de o destino nos enganar”, costumava dizer para
sua tropa, e daquela vez não poderia estar mais correto. Foi numa dessas
tranquilas manhãs de sol ameno, enquanto aguardava ordens de seus
superiores, que o estado contemplativo de Fernando foi interrompido por
um mensageiro.
O rapaz magricela trazia consigo um envelope pardacento, selado a
sinete com o brasão de sua família em uma cera avermelhada. Sua primeira
reação fora estremecer, temendo notícias assombrosas. Tempos de guerra
despertavam preocupações a partir até dos gestos mais simples. Fernando
tomou a entrega da mão do jovem mensageiro e entregou-lhe uns trocados,
dispensando-o em seguida. O envelope era estufado, carregava em seu
interior algo de dimensões retangulares e de consistência dura; pesava mais
do que aparentava, mas talvez fosse sua apreensão pregando-lhe peça.
Reconheceu a caligrafia primorosa no verso do envelope, mesmo que o
nome de sua irmã não estivesse escrito em canto algum do papel.
Fernando forçou o lacre com uma delicadeza que não lhe era
habitual; postergava o momento mais do que o necessário, como se a
demora para ler o que quer que estivesse ali bastasse para amenizar
qualquer agrura contida na mensagem. Puxou o conteúdo do embrulho,
revelando algumas folhas de papel avulsas e um caderno de capa dura,
desgastado e de páginas amareladas pelo tempo. O jovem capitão respirou
fundo, desdobrou as folhas e leu seu conteúdo com um aperto no peito.
O homem não esperava ler aquelas palavras, não em um dia como
aquele. Vinha se preparando para mais uma batalha contra os mouriscos,
mas nada na Terra ou nos céus o deixariam pronto para o que estava em
suas mãos. Sentia-se como se o tivessem levado à força até o inferno! Se
bem que, de certa forma, dadas as informações que recebia, era lá mesmo
que estava.
— Fernando? — chamou Diego, seu cunhado, ao aproximar-se. Sua
expressão era preocupada, contrastando com o habitual sorriso largo que o
homem costumava ostentar. —As notícias não são boas?
— Piores não poderiam ser. — Havia um misto de pesar e raiva em
sua voz. — Preciso regressar à Écija urgentemente.
— Impossível, meu amigo! Estamos no meio de uma guerra, o
general jamais lhe daria permissão para abandonar o acampamento.
Fernando levou as mãos à cabeça e suspirou, frustrado.
— Tem razão… — lamentou. Decidido, pediu: — Por isso vou
precisar de sua ajuda.
O cunhado retribuiu o olhar de assombro.
— O que está dizendo? O que pode ser tão grave para que você,
logo você, queira abandonar o campo de batalha tão abruptamente?
— Por favor, leia! Talvez assim você compreenda minha urgência
— disse, estendendo ao homem o pedaço de papel.
Diego a tomou nas mãos e reconheceu o selo e caligrafia de
Lucrécia, sua esposa. Havia uma expressão de confusão em seu rosto,
dúvidas começaram a se formar em sua mente, mas antes que pudesse
elencá-las, Fernando o incentivou a ler o conteúdo.
Querido irmão.
Espero que esta carta chegue em suas mãos o quanto antes. Peço
que me perdoe por ser portadora de tais notícias, mas acredite: o que faço
neste momento, faço com a intenção de reparar uma grande injustiça. Por
favor, meu irmão, creia-me, não tive nada a ver com tais eventos. Tanto
você, quanto eu, fomos apenas peças de um jogo sujo e cruel. Rogo a Deus
por seu perdão, pois minh’alma encontra-se sem paz.
Após sua partida, descobri que Dandara jamais o traíra com
Alfredo, e que o filho que cresce em seu ventre é meu sobrinho, seu filho.
Sim, meu irmão, você será pai em poucos meses.
Fernando, tudo o que você viu naquela noite não passou de um
plano para separá-lo de sua amada. Infelizmente, nossa mãe orquestrou
tudo e conseguiu lograr sucesso com a ajuda de sua noiva, Letícia, e seu
cunhado. Assim que você partiu para a guerra, Letícia chamou uma
parteira para realizar o aborto em Dandara, mas graças a Deus consegui
escondê-la em meu palácio. Entretanto um dos criados traiu minha
confiança e fez conhecida a notícia à nossa mãe, que, ao descobrir minha
intervenção, levou-a de volta para seu palácio e obrigou-me a jurar que
jamais lhe contaria nada.
Mas eu não podia esconder-lhe a verdade, irmão meu.
Nesse momento, Dandara encontra-se aprisionada no calabouço.
Recusa-se a comer qualquer coisa, pois teme por sua vida e pela de seu
filho. Por isso eu a tenho visitado às escondidas, levando-lhe algum
alimento.
Ainda assim, seu estado é delicado. Encontra-se muito debilitada.
Nossa mãe está disposta a tudo para mantê-los separados. Por enquanto,
mamãe e eu temos um acordo: em troca de meu suposto silêncio, ela
permitirá que a criança nasça. Contudo, depois de seu nascimento, somente
Deus sabe o que tem planejado para a pobre criatura.
Por isso, preciso que volte para casa, não poderei proteger
Dandara por muito tempo. Caso tenha dúvidas de minhas palavras, envio-
lhe a confissão da criada que as ajudou, bem como o diário de sua amada;
nele encontrará tudo o que necessita para comprovar minhas palavras.
Seus inimigos têm buscado sua família, e eu não tenho tantos aliados para
mantê-los em segurança.
Com amor, de sua irmã,
Lucrécia Sanchez.
— Madre de Dios! — exclamou Diego, estarrecido com o conteúdo
da carta.
— Agora você compreende.
— Sim — Sua voz era baixa, quase inaudível. — Fernando, não
acredito que farei o que farei, mas deve partir o quanto antes! Direi ao
comando que sua mãe está muito enferma, isso será suficiente para lhe
darem uma semana de licença, espero. Dou-lhe cobertura por aqui, querido
amigo.
— Obrigado, meu amigo. — Pousou as mãos sobre os ombros de
Diego, apertando-os em um gesto de cumplicidade. — Jamais me
esquecerei do que fez por mim.
— Fernando… sempre fomos amigos e a sinceridade tem sido a
base de nossa amizade durante esses anos, por isso serei franco com você:
mantenha-se longe da influência de sua mãe, eu sei o quanto ela pode ser
impiedosa para alcançar seus objetivos.
— Infelizmente, é duro ter que admitir, mas tem razão. Minha mãe
faria qualquer coisa para manter o poder e a fortuna da família.
Naquela mesma tarde, o capitão Fernando Lozano partiu para Écija,
acompanhado somente por seu fiel cavalo. Não tinha tempo a perder e
precisaria cavalgar intensamente, pois seu coração estava apertado. Ele não
esperara receber tal mensagem, já havia desistido de seus sonhos e se
acomodado em um noivado fajuto, mas agora sua dor estava perto do fim, e
todos aqueles que foram responsáveis por causá-la seriam castigados.
Fernando seria capaz de ir de fato até o inferno quantas vezes fossem
necessárias para salvar sua amada e, mesmo que ela não o perdoasse, não se
importaria de pagar tal preço, bastava apenas reparar seu erro e salvar
Dandara de seus algozes.
— Estou chegando, minha amada — bradou enquanto cavalgava,
numa promessa que ele cumpriria a todo custo.
Capítulo Dois

Fernando segurava o pequeno diário em suas mãos, não havia tido tempo
para ler sequer uma única página. Desde que recebera a carta de sua irmã,
empenhava-se em deixar o acampamento e seguir para Écija. Porém, agora
que estava sentado diante de uma fogueira — idêntica às que por diversas
vezes o aqueceram durante as noites ardentes de amor que compartilhara
com sua amada —, tomou a coragem necessária para ler as linhas que
gravariam ainda mais em seu coração o mais profundo amor que um
homem poderia sentir por uma mulher.

“Minha avó sempre disse que o dia em que nasci foi o mais alegre e
o mais triste de sua vida. Alegre, porque eu nasci; triste, porque minha mãe
morreu ao dar à luz.
Segundo minha avó, mamãe não queria que eu nascesse naquela
noite e, tentando retardar o parto, acabou falecendo nos braços da
parteira. Tudo porque, na noite de meu nascimento, a lua estava vermelha
como o sangue; um mal presságio para meu povo.
Vovó sempre disse que o destino pode ser implacável com seus
desejos, e nada nesse mundo pode impedi-lo de cumprir suas vontades.
Hoje eu entendo o motivo de suas palavras, pois, pela primeira vez, senti-
me viva, como se eu tivesse nascido para esse dia. Hoje foi a primeira vez
que eu o vi. Fernando Lozano é o seu nome. Sei que sou apenas uma
cigana, e ele um homem importante para a Coroa Espanhola, mas isso não
me importa, porque eu o quero e o terei, não vou deixar que nada se
interponha entre mim e meu caminho…
Fernando. Fernando…”

Fernando cerrou os olhos, e a lembrança de seu primeiro encontro


com ela invadiu sua mente, como se pudesse reviver aquele dia. Conseguia
visualizar Dandara dançando com as outras ciganas, com as castanholas em
suas mãos marcando o ritmo de seus passos, as ancas movimentando-se
com sensualidade, enquanto as chamas da fogueira criavam um jogo de luz
e sombra que abraçava o corpo delgado. A atração por ela fora imediata e
não conseguira manter os olhos longe da bela morena que bailava flamenco
sobre o tablado construído na Praça Maior de Écija. Naquela noite, havia
discutido com sua mãe sobre a possibilidade de se casar com Letícia
Hernandez, algo que estivera fora de seus planos, mesmo que soubesse que
logo teria que contrair matrimônio. Queria ter o direito de escolher sua
noiva, e não estava disposto a deixar sua mãe interferir em seu futuro.
Ao abrir os olhos, desvencilhando-se da terna lembrança, tomou
fôlego, direcionou sua atenção novamente ao diário e continuou a leitura.

“As chamas da fogueira eram suficientes para ver que ele também
olhava para mim. Não resisti e dancei para ele. Querendo ter seus olhos
sobre meu corpo, decidi que brincaria com fogo, pois não tinha medo de
queimar-me. Fernando Lozano era o tipo de homem pelo qual valia a pena
se arriscar.
Pude ver em seus olhos que sentira o mesmo, pois sua expressão
luxuriosa era convidativa, de uma forma que eu jamais havia visto antes.
Sentia-me como se chamas ardessem em minhas entranhas, parecia que
Fernando tinha poder sobre meu corpo. Sentia que o ritmo nos conectava
de alguma maneira, e não estava enganada.
Mas nosso elo se quebrou no momento em que ele ousou sair de seu
lugar e tentar se aproximar de mim. Meu povo jamais permitiria que um
paio se aproximasse de um de nós, somos distintos em muitos aspectos e
costumes…”

Uma sensação calorosa preencheu seu peito ao ter a confirmação do


que ele já suspeitava. Dandara dançara para ele naquela noite e a lembrança
da morena deslizando como névoa sobre a água trouxe-lhe alegria.
Continuou lendo as páginas que continham os segredos de sua
amada. Não se importou de estar invadindo sua privacidade, pois Lucrécia
afirmou que naquelas linhas ele encontraria as respostas que tanto buscava.

“Hoje o escudeiro de Fernando entregou-me seu recado. Ele deseja


ver-me essa tarde próximo ao rio. Temo ser muito arriscado, mas também
desejo vê-lo. Terei que pensar em alguma desculpa para que ninguém
perceba minha ausência, não quero que ninguém saiba de nosso encontro,
principalmente meu pai. Ontem à noite, minha avó disse que ele ficou muito
enfadado com a ousadia de Fernando por tentar dançar comigo diante de
nosso povo, não quero trazer problemas por causa desse incidente. Papai
jamais me perdoaria se fosse pega na companhia de um paio, mas não
posso lutar contra o que sinto, necessito vê-lo essa tarde.”

Fernando sorriu ao se lembrar desse dia. Fora a primeira vez que se


encontraram e trocaram o primeiro beijo, nada inocente. Os lábios de
Dandara eram quentes e envolventes, ela o provocara com a língua em sua
boca, e ele tivera que lutar contra o desejo de tomá-la para si às margens do
rio.
Depois daquela tarde, os encontros deles foram os únicos momentos
pelos quais Fernando ansiara durante o dia, já não conseguindo manter-se
longe de Dandara e não se importando que tivesse que lutar contra os
preconceitos da sociedade e de suas respectivas famílias. Eles estiveram
apaixonados, e nada poderia interferir em seus sentimentos àquela altura.
Lembrou-se também de que, em poucas semanas, convencera sua
mãe a contratar Dandara como ajudante de cozinha, precisara dela por perto
e nada seria melhor do que tê-la como uma das criadas que serviam em seu
palácio. Desse modo, nem seu povo, muito menos sua família, suspeitaria
do envolvimento entre eles. Ingenuamente, Fernando acreditara que sua
mãe pudesse apreciar a companhia de Dandara e tomá-la em breve como
uma de suas criadas pessoais, mas isso não ocorrera; ele não se importara
muito, de todo modo, desde que seus encontros continuassem.
Capítulo Três

Fernando passou toda a noite lendo o diário de Dandara e um incômodo


em seu peito o torturava, uma angústia excruciante que fazia parecer que
seu sangue fervia. Sentia-se um miserável por ter sido cruel e cego diante
dos fatos. Ele conseguia lembrar da dor na voz de Dandara enquanto
implorava para que cresse em sua inocência.

— Fernando! Como pode duvidar de meu amor por você? De minha


lealdade? Eu jamais o trairia, nunca olhei para outro homem. Você sabe
que não minto quando digo que jamais estive com outro homem antes de
você…
— Mas e depois de mim, Dandara? — gritou com ela. — E depois
que a ensinei a seduzir? Com quantos homens você dormiu além de
Alberto?
—Eu jamais dormi com… — A mulher calou-se após o tapa que
estalou em seu rosto, desequilibrando-a e lançando-a ao chão.
—Mentirosa! Minha mãe a viu saindo do quarto dele esta manhã
em trajes menores.
—Eu já disse! — Ódio queimava suas palavras. — Fui chamada às
pressas pelo criado de seu cunhado, que pediu minha ajuda alegando que
Alberto estava com muita febre e que precisava de mim para ajudá-lo. Não
tive tempo de me trocar, por isso estive em seus aposentos… — As mãos
fortes de Fernando a obrigaram a ficar de pé. O homem forçou que
Dandara o encarasse e visse todo o ódio estampado nas írises verdes que
tanto a encantavam, mas que agora ela começava a repudiar. Como ele
podia duvidar de sua palavra? De seu amor? Como?
— Você mente! Pensei que você fosse diferente, mas não é! — O
desprezo em sua voz provocava lágrimas nos olhos negros de Dandara. —
Nunca mais quero ver seu rosto em minha frente, nunca mais ponha os pés
neste palácio, entendeu?
A cena repetia-se em sua mente, e, cada vez que ele a revivia, a
culpa o abraçava como uma mortalha, chamando-o para a morte. Fernando
sabia que não merecia perdão. O que fizera com Dandara era inadmissível.
Por causa de sua fraqueza e debilidade de caráter, a deixara sozinha para ser
devorada por lobos, mas estava disposto a rastejar aos seus pés em busca de
seu perdão. Faria qualquer coisa para tê-la novamente em seus braços; por
isso, impeliu o cavalo com mais força, pois seu destino estava em jogo e o
tempo corria contra ele. Desejava chegar à Écija no dia seguinte.

ÉCIJA – Palácio do Magistrado

Lucrécia esgueirava-se mais uma vez por entre as sombras do calabouço,


trazia consigo um pequeno castiçal contendo uma vela de luz fraca, mas
suficiente para que não permitisse que a mulher de olhar concentrado
tropeçasse nas pedras disformes do chão. O guarda que a mantinha
informada sobre o estado de Dandara a alertou de que a cigana não estava
nada bem e temia que algo houvesse acontecido durante sua ausência. Ela
atravessava o corredor úmido e escuro a passos largos, ansiosa por
encontrar Dandara. Quando a porta pesada da cela foi aberta, ouviu o
soldado dizer:
— Não se preocupe, senhora, sou o único de plantão esta manhã.
— Obrigada! — agradeceu. — Fique de olho, não quero que
ninguém saiba que estive aqui, entendeu?
— Sim, senhora.
Lucrécia levou o lenço até suas narinas para protegê-la do odor
pungente que impregnava o lugar. A pouca claridade a impedia de
distinguir o ambiente.
— Dandara? — chamou em voz baixa, apreensiva. —Dandara?
—Aqui… — Ouviu-se um moribundo sussurro feminino no
silêncio, ao fundo da cela, nas sombras.
— Oh, minha criança… — Lucrécia correu para junto do corpo
jogado ao solo. — O que fizeram com você?
Lucrécia pôs a vela sob uma fresta na parede e jogou-se ao chão,
pouco importando-se com a sujeira do ambiente manchando seu longo
vestido azulado, embalando Dandara em seu colo em seguida. A mulher
tremia de frio e estava cada vez mais magra, apesar de sua gravidez
avançada.
— Não se preocupe… — respondeu com a voz fraca. Ela tinha os
olhos sem brilho. — Não há nada que possam fazer que seu irmão já não
tenha feito comigo…
— Não diga besteiras! — repreendeu Lucrécia com pesar. —
Escrevi uma carta a Fernando, contando toda a verdade e provando sua
inocência. Em breve ele estará aqui e irá tirá-la deste lugar.
— Nunca mais quero ver seu irmão…
— Não diga isso, Dandara. Fernando foi tão vítima quanto você…
— Você c-consegue se ouvir, Lucrécia? — Tossiu, tremendo. —
Tem certeza de que ele é tão vítima quanto eu? Olhe para mim… — O
rompante de raiva ao falar de Fernando foi interrompido por um choro
lamurioso. — Olhe o que fizeram comigo…
Lucrécia deixou que um soluço escapasse de sua garganta,
comovida pela situação de sua amiga.
— Dandara, eu sinto tanto. Tudo isso é culpa minha… —
choramingou.
— Não, minha amiga — consolou baixinho. — Tudo isso é culpa
minha, por ter amado o homem errado.
— Por favor, pare de dizer essas coisas… — repreendeu Lucrécia,
tocando o rosto sujo de sua amiga. — Falei com sua família…
— Meu Deus! Você não contou nada, não é mesmo? Você
prometeu… — repreendeu.
— Calma, eu não contei nada, apenas disse que você está bem, que
precisou acompanhar Letícia em sua viagem para Granada e que acabou
não conseguindo dar notícias, mas que logo estará de volta.
Dandara soltou um suspiro de alívio, não queria que sua família
soubesse o que estava acontecendo com ela, pois sua avó já tinha idade
avançada e não suportaria saber de seu sofrimento; e seu pai certamente
mataria todos eles, a começar pela esposa do magistrado, Carmem Lozano.
— Vou tentar tirá-la daqui, não pode continuar neste lugar… —
disse, olhando ao redor. As paredes continham mofo e musgo por conta da
umidade, a pouca claridade tornava o ambiente assustador. — É desumano
demais!
— Não me importo… — declarou num sussurro quase inaudível.
Após alguns minutos em silêncio, apenas sentindo a presença uma
da outra, Dandara se despediu da amiga e única aliada naquele lugar. Não
queria que ela fosse pega ali e tivesse que enfrentar sua mãe ainda mais do
que já vinha fazendo. Agradeceu mais uma vez pela ajuda, pois se não fosse
por Lucrécia, Carmem já a teria matado.
A dor em seu corpo não se comparava à que flagelava seu coração, e
todas as vezes que lembrava de Fernando, apenas sangrava mais. Seu único
consolo era o filho que crescia em seu ventre. Rogava a Deus para que
conseguisse escapar daquela prisão e pudesse ter seu filho em segurança, de
preferência em um lugar distante.
Capítulo Quatro

Lucrécia adentrou os aposentos de sua mãe determinada a pôr fim àquela


loucura, encontrando-a sentada em sua habitual cadeira de adornos
dourados na varanda de seu quarto, bebericando algo em sua xícara de
porcelana. A jovem precisava interceder mais uma vez por Dandara, sentia
em seu âmago a necessidade de salvar a pobre criatura da crueldade a qual
era submetida. Temia também que a cidade inteira tomasse conhecimento
da infâmia que vinha ocorrendo dentro do palácio, pois, caso isso
acontecesse, todos os membros de sua família seriam condenados à forca.
— Esses são modos de entrar em…?
— Por favor, mamãe! — resmungou, insatisfeita. Lucrécia estava
cansada. — A última de minhas preocupações são os meus modos, até
porque a senhora vem abandonando os seus há algum tempo.
— Como ousar falar assim comigo? — Carmem levantou-se,
encarando sua filha. Cruzou o quarto com passos fortes que martelavam o
mármore do chão. — Não vou admitir esse tipo de comportamento de sua
parte, entendeu?
— Madre! — exclamou, aproximando-se de sua mãe. Os olhos
verdes de Lucrécia, quase tão profundos quanto os de seu irmão, brilhavam
com a raiva, mas Carmem não se intimidou o bastante para mover um dedo
sequer. Lucrécia lembrou-se de que precisava apenas dissuadir sua mãe de
suas decisões, era melhor não conquistar sua inimizade. Sua fala seguinte
saiu um pouco mais branda, quase como uma súplica. — O castigo que
impôs à Dandara é severo demais, não esqueça que está gravida de seu
neto…
— Chega! — repreendeu. — Pensei que já houvéssemos discutido
esse assunto, Lucrécia! Não temos certeza se o filho é de seu irmão…
— A senhora sabe que é, não pode negar esse fato! Por favor,
madre!
Carmem Lozano deu as costas à filha e caminhou em direção às
grandes janelas de seu quarto, evitando encarar seus olhos. Já estava
cansada de sua intromissão naquele assunto. Ela jamais permitiria que seus
planos de casar Fernando com Letícia fossem colocados em risco por uma
cigana qualquer, isso seria horrível para sua família e sua posição social,
principalmente quando a notícia chegasse até Granada.
— Quero que você pare de tocar nesse assunto. Lembre-se de que
temos um acordo — disse com arrogância.
— Madre, estamos falando de uma vida inocente! — Lucrécia
aproximou-se um pouco mais e tomou as mãos de sua mãe entre as suas. —
Por favor! A senhora é mãe também, tenha piedade! Ainda que você não
aceite o fato de que seu neto cresce no ventre dela, permita que saia daquele
lugar.
—Você não entende… Se deixarmos Dandara livre, tenho certeza de
que aproveitará sua liberdade para anunciar sua gravidez e, assim, colocar
em risco o matrimônio de Fernando com Letícia — argumentou,
exasperada.
— Não creio que fará isso. Dandara tem um bom coração e…
Uma sombra de inquietação e raiva passou por Carmem. A mulher
puxou as mãos com força do aperto da filha e deu um passo para trás.
Coçou a testa já enrugada pela idade e fechou os olhos, irritada.
— Lucrécia! Eu a tranquei em um calabouço, claro que buscará
vingar-se de mim assim que puser os pés fora daqui. Por favor, não seja
ingênua, não combina com você.
Lucrécia não podia crer que sua mãe levaria aquele plano adiante,
era monstruoso demais.
— Pelo menos permita que tome um banho e vista roupas limpas…
— implorou, sentindo-se derrotada.
— Ay, Dios mío! — A raiva estava presente em sua voz. Virou-se de
costas para a filha e fitou a paisagem do lado de fora da janela. — Você não
vai desistir, não é mesmo?
— Não posso.
— Sendo assim — começou. — Vou permitir que tome um banho
por semana e troque de roupas…
— Ela precisa de um médico… — acrescentou Lucrécia,
aproveitando-se da condescendência de sua mãe.
— Chega!
— Mãe, ela está gravida! — Lucrécia também tinha um espírito
combativo quando era necessário, portanto não desistiria de dar o mínimo
de conforto e cuidados à Dandara. — Você prometeu que nada aconteceria
ao bebê.
— Está bem! — gritou, ainda mais irritada. A mulher detestava dar
o braço a torcer. Desde que Lucrécia era apenas uma garota, a jovem
sempre fora de insistir até que Carmem mudasse de ideia. O melhor que ela
poderia fazer era ceder um pouco. — Agora que conseguiu o que queria,
deixe-me em paz. Estou cheia de problemas reais. Não tenho tempo para
futilidades.
O choque no semblante da filha a alertou de que havia ido longe
demais, mas não podia mais suportar tê-la ali, tentando ajudar aquela cigana
que havia enfeitiçado seu filho.
Lucrécia fez uma reverência breve demais e deixou os aposentos da
mãe com o sangue fervendo nas veias, mas controlou-se, uma vez que
precisava agir logo e enunciar as ordens necessárias para que Dandara e seu
filho recebessem alguma atenção. Ainda teria que enviar um mensageiro
para que o médico da família viesse o mais rápido possível. Mandaria
também que colocassem uma cama para que ela tivesse onde recostar-se e
exigiria que a cela fosse limpa. Não permitiria que aquela situação
perdurasse por muito mais tempo.
Capítulo Cinco

“Passamos a noite juntos, e sinto que já não posso viver sem Fernando.
Ele é como o sol iluminando os dias escuros de minha miserável vida.
Todas as vezes que me beija, sinto-me queimar de paixão, perdendo o
controle sobre meu corpo, como se pertencesse somente a ele. Parece
loucura, eu sei, mas, em tão pouco tempo, posso afirmar que Fernando é o
homem da minha vida e que não quero nenhum outro. Jamais amarei outra
pessoa como o amo.”
A cada linha lida, o coração de Fernando crescia dentro do peito, na
expectativa de reencontrar Dandara e pedir-lhe perdão, mas ele a conhecia
muito bem e tinha consciência de que a havia magoado demais. Quiçá ela
nem lhe permitisse se aproximar novamente, porém ele não desistiria.
Lutaria por esse amor, pois sabia que não poderia viver sem ela e o fruto do
amor que compartilhavam. Ele planejava chegar à Écija nas primeiras horas
da tarde, e isso estava lhe roubando a paz, pois tinha apenas uma semana de
folga e já estava há dois dias na estrada. Isso significava que quando
chegasse em casa, não teria muito tempo ao lado de sua amada após
precisar tomar todas as precauções para deixá-la em segurança. Agora que
sabia das verdadeiras intenções da marquesa, não vacilaria em resguardar
sua família de seus planos.

∞∞∞

Palácio do Magistrado
O médico confirmou os temores de Lucrécia ao afirmar que Dandara
precisaria de muitos cuidados, pois encontrava-se profundamente
desnutrida, o que era um risco para seu estado atual. O desenvolvimento do
bebê, no entanto, prosseguia apesar de sua condição. Era necessário reforçar
a alimentação da mãe para que o feto não sofresse as consequências de suas
privações. Assegurou ainda que, segundo seus cálculos, a criança nasceria
dentro de dois meses, o que assustou muito a Lucrécia, que rezou para que
Fernando estivesse chegando.
— Senhora Lucrécia? — chamou o médico em um canto, querendo
privacidade. — Sei que não é da minha conta, mas essa jovem não pode
permanecer aqui. O lugar é úmido demais, e a ausência de luz e circulação
de ar não farão bem ao bebê. Se ela continuar aqui, e caso a tosse e a febre
não sejam debeladas, temo pelo pior.
— Eu estou de acordo com o senhor, mas isso logo será arranjado,
eu lhe asseguro.
— Caso precise de meus serviços, mande me chamar — despediu-se
o homem, com uma rápida reverência, e se afastou, indo em direção à saída.
— Doutor? — chamou Lucrécia uma última vez. — Preciso que
este assunto seja um segredo nosso, entendeu?
—Claro, senhora… — anuiu, pesaroso. — Compreendo bem, mas
quando o marquês tomar conhecimento deste fato, espero que me defenda.
— Não se preocupe, tem minha palavra.
Dandara dormia profundamente, estava tão fraca e castigada pela
febre que mal conseguia manter-se desperta por mais que alguns minutos,
por isso Lucrécia a deixou descansando e marchou para comunicar a mãe
das recomendações médicas, na tentativa de, assim, colocar um pouco de
juízo em sua cabeça. Ela mesma já havia sido alvo dos planos
maquiavélicos da mãe; seu próprio casamento, que tinha tudo para dar
errado, por sorte acabou sendo a melhor coisa que lhe acontecera, pois
Diego Sanchez a libertara da influência maligna e dos jogos de poder que a
marquesa sempre exercia em prol de seus próprios interesses. Lucrécia
amava sua mãe, mas não era cega para suas atitudes. Sabia muito bem que
Carmem Lozano seria capaz de qualquer atrocidade para permanecer no
poder; o que jamais imaginara era que sua mãe fosse capaz de ir tão longe.
Já estava próximo ao salão de entrada quando ouviu vozes e uma
grande comoção se formar no pátio. Apressou-se para averiguar o que
ocorria e quase caiu para trás ao ver Fernando desmontando de seu cavalo e
marchando em sua direção. Um sorriso aliviado surgiu em sua face, e ela
correu para os braços do irmão, que a enlaçou em um abraço demorado e
cheio de saudade.
— Meu irmão!
— Irmã!
— Recebeu minha carta? — perguntou ansiosa.
— Sim! Vim o mais rápido que pude. Onde está Dandara?
A pergunta já era esperada, mas Lucrécia não sabia como dizer ao
irmão que ela ainda se encontrava no calabouço e que seu estado de saúde
era delicado.
— O que se passa, irmã? Onde está Dandara? — questionou, com a
voz aflita.
— Sinto muito, Fernando, mas ela ainda está no calabouço…
— O que diz? — Sua voz saiu mais aguda que o normal, os olhos
arregalados em uma expressão horrorizada.
— Consegui que o médico viesse vê-la, acaba de sair, porém não
logrei convencer nossa mãe a transferi-la para um quarto. — Lucrécia
tomou o irmão pelos braços, num aperto desesperado. — Fernando,
Dandara está muito fraca, temo pelo pior…
— Mande preparar meus aposentos, ela ficará comigo. Depois terei
uma conversa séria com nossa mãe! Por último, quero ver Letícia e Alberto
—entabulou com ódio.
— Letícia e Alberto partiram ontem para Granada, devem retornar
no próximo mês.
— Não me importo, esperarei o tempo que for necessário.
— Agora vamos! Dandara não pode permanecer no calabouço por
muito mais tempo.
Enquanto Lucrécia ordenava que os criados organizassem os
aposentos de Fernando, ele desceu as escadas que levavam ao inferno que
era a prisão de Dandara e seu filho. Assim que os guardas o viram, ficaram
confusos com sua presença e, rapidamente, colocaram-se ao seu dispor,
guiando-o à cela reservada para castigar a mulher, cujo único pecado fora
amar um homem da nobreza.
Quando as portas foram abertas e Fernando adentrou o ambiente
fétido, seu coração esmagou-se com a visão do frágil corpo sobre a cama de
palha. Pôde perceber que o ventre já estava evidente e culpou-se por ter
sido tão cego e estúpido, pois se tivesse confiado na palavra dela, isso
jamais teria ocorrido.
— Dandara? — Chamou-a com a voz embargada, mas não obteve
resposta. — Dandara? — insistiu.
Ouviu-a balbuciar algo incompreensível e marchou em sua direção,
tomando-a nos braços e tirando-a daquele lugar. Podia sentir que ela ardia
em febre e que a pele, que um dia fora bronzeada pelo sol, encontrava-se
pálida e sem brilho. Apertou-a nos braços, jurando que a vingaria e que
nada lhe aconteceria, porque agora ele estava ali.
Capítulo Seis

Assim que Fernando deixou Dandara aos cuidados de sua irmã, saiu em
busca da responsável por aquela crueldade. Sabia que o confronto não seria
fácil, mas, apesar de não se esquecer de que Carmem Lozano era sua mãe, o
ódio corria em sua alma. Quando a encontrou em seus aposentos, soube
pelo seu semblante que ela já o esperava.
— Fernando! — exclamou, correndo em sua direção, mas ele a
impediu, segurando-a pelos braços.
— Precisamos conversar — decretou.
— É dessa forma que trata sua mãe após todos esses meses? —
repreendeu-o, pondo as mãos na cintura.
— E como eu deveria tratar a responsável por aprisionar a mulher
que eu amo e que carrega em seu ventre um filho meu? — Fernando
explodiu em fúria.
— Fernando?! Não sei do que…
— Chega! — bradou. Estava determinado a não se deixar manipular
por suas mentiras. — Como foi capaz de maquinar algo tão infame? Não
posso crer que minha própria mãe tramou pelas minhas costas!
— Fernando, meu querido, juro que não sei do que está…
— Eu sei da verdade, madre! — gritou, exasperado. — A criada de
quarto de Letícia confessou tudo.
A mente de Carmem trabalhava loucamente buscando por uma
saída. Parecia que a lealdade dos criados de Letícia não era semelhante à de
seus serviçais.
— Fernando — começou, tentando amenizar os ânimos —, não sei
o que essa criada lhe disse, mas tenho certeza de que mentiu em troca de
dinheiro ou…
— Dios mío! Não posso crer que você vai tentar jogar a culpa numa
pobre coitada — bramiu, dando passos firmes em sua direção. — Pelo
menos uma vez na vida assuma responsabilidade pelos seus atos. Você e
Letícia planejaram me separar de Dandara assim que descobriram sobre
nosso romance.
— Dandara é apenas uma cigana, sem classe, sem nome. E você
será, em breve, o próximo magistrado desta província. Tudo o que fiz foi
pensando no seu bem-estar e no seu futuro. Não podia permitir que se
casasse com uma rameira que carrega um filho de outro homem…
— Cale a boca!
Carmem deu um passo para trás quando percebeu a fúria nos olhos
de seu filho. Jamais o tinha visto daquela forma antes.
— Eu li o diário de Dandara! — declarou.
O rosto de sua mãe ficou lívido.
— O quê?
— É exatamente isso que ouviu. Lucrécia encontrou inocentemente
o diário de Dandara sobre sua cabeceira e, assim que leu as informações
contidas em suas páginas, foi atrás da criada de Letícia e a obrigou a contar
toda a verdade. Depois enviou-me o diário junto com a confissão, contando
exatamente tudo que aconteceu aqui em minha ausência. Agora, olhe para
mim! — exigiu. — Diga olhando em meus olhos que você é inocente e que
tudo isso é uma grande mentira.
Carmem engoliu em seco, não adiantaria negar o obvio.
— Fiz pensando em você…
— Em mim? Como tem coragem de dizer isso?
— Fernando! O futuro de nossa família está em jogo, eu não podia
permitir que você se casasse com uma cigana! Esse matrimônio não nos
traria nenhum benefício, meu filho. Pense bem, Letícia é jovem, instruída,
vem de uma família tradicional e…
— Não quero mais ouvir nenhuma palavra sua…
— Fer…
— Mesmo diante de tamanha crueldade, você só consegue pensar
em títulos e riquezas. Tenho vergonha de ser seu filho, vergonha de ter sido
criado por alguém sem coração…
— Não diga isso!
— Sabe o que mais me impressionou? Não foi o fato de ter armado
para me separar de Dandara, mas de tê-la aprisionado em um calabouço
durante quatro meses. Quatro meses, madre! Você a tratou como um
animal, isso… isso é… monstruoso!
— Meu filho…
— Não sou mais seu filho, esqueça que um dia eu a chamei de mãe.
Carmem ficou sem palavras diante do ódio e da frieza de suas
palavras, não poderia perder seu único filho, mas apenas o assistiu deixar
seus aposentos, abandonando-a para trás com seus próprios pecados.
Capítulo Sete

Fernando escreveu uma carta ao comandante do exército solicitando mais


uma semana de licença e alegando que a enfermidade de sua mãe era mais
grave do que todos pensavam, mesmo que na verdade Carmem Lozano
gozasse de plena saúde. Dandara, por outro lado, estava muito debilitada
devido aos meses em que permaneceu confinada em cativeiro. Os médicos
faziam todo o possível para que ela conseguisse se restabelecer, mas seu
quadro não mudava, e Lucrécia, temendo pelo pior, avisou seus familiares,
que vinham visitá-la diariamente.
Alfonso Ramirez, pai da jovem, ficou arrasado ao encontrar a filha
naquele estado e exigiu saber a verdade sobre sua gravidez, o que fez com
que Fernando contasse toda a história e assumisse parcela de culpa.
O ancião se enfureceu bastante, pois, como líder dos ciganos, não
podia admitir que sua única filha estivesse apaixonada por um paio. No
entanto, o homem era sábio, sempre soube que o destino costumava pregar
peças, e nem ele, nem seu povo poderia se opor aos seus caprichos; portanto
perdoou seu futuro genro e o fez prometer que faria todo o possível para
que Dandara sobrevivesse e fosse feliz ao seu lado. Fernando empenhou sua
palavra, não porque o seu futuro sogro assim exigiu, mas porque seu
coração estaria eternamente comprometido em tornar os dias de Dandara os
mais ternos e felizes de sua existência. Ele nunca havia sido um homem de
fé exacerbada, mas, diante da situação, rendeu-se aos pés do único que
poderia salvar a vida de sua amada, jurando tornar-se um bom cristão se
Dandara e seu filho sobrevivessem àquela provação.
Os dias e as noites em que permaneceu em vigília ao lado de sua
pequena família eram como uma feroz penitência por seus pecados, mas
Fernando Lozano estava disposto a qualquer coisa para receber o perdão —
que ele mesmo considerava ser imerecido. Não conseguia imaginar sua vida
longe daquela mulher, que ousou dançar por entre as labaredas de seu
coração e roubou sua razão de viver.
Infelizmente, os dias iam avançando sem que Dandara abrisse os
olhos, e tudo que lhe restava era a fina esperança que persistia em
permanecer em sua companhia. Desde o dia em que rompera com sua mãe,
não voltou a vê-la e nem respondia aos seus apelos para que a perdoasse. A
única que tinha liberdade para visitá-lo era Lucrécia, sua amada irmã, que
bravamente lutou contra a opressão da matriarca da família Lozano.
Quando o capitão já não tinha mais lágrimas para derramar nem
preces para proferir, Dandara finalmente despertou do vale da morte, mas os
olhos, que antes eram expressivos, agora o fitavam sem qualquer emoção
ou brilho. Fernando percebeu naquele instante que a inocência que antes a
acompanhava já não vivia em sua alma, e seu coração se contraiu diante da
cruel realidade. As palavras que outrora foram de amor, saíram banhadas de
mágoa e ressentimento. Dandara estava no seu direito, afinal, e ninguém na
Terra poderia contrariá-la.
— O que faz aqui? — A voz fraca da mulher estava cheia de dor.
— Dandara, eu sinto muito! — Fernando colocou todo seu esforço
em exprimir sinceridade naquelas palavras, sentindo-as passarem por seus
lábios como água que vertia de uma fonte.
O silêncio de Dandara durou segundos que mais pareceram eras,
pesando no coração do homem como uma rocha.
— Pensei que nunca mais nos veríamos… — disse com pesar.
— Eu sei que está magoada, compreendo-a… Sei que falhei com
você e agi de forma desprezível… V-você tem todo o direito de me odiar
e… — gaguejou.
— Eu não o odeio, Fernando… — Dandara ainda sussurrava, fraca,
mas suas palavras foram claras como o mais puro cristal. A esperança
acendeu uma antiga fagulha no coração de Fernando. — Seria impossível…
Meu coração já não me pertence mais…
— Não sabe como me sinto feliz ao ouvir isso, querida! —
exclamou o homem, alegre como nunca havia se sentido antes.
— Entretanto… — continuou a mulher, num tom mais sério. — Não
posso fingir que tudo será como antes.
— Eu juro que nunca mais tratarão você dessa maneira, dou-lhe
minha palavra…
— E quanto à sua mãe? E sua noiva? — Ela precisava saber.
— Nunca mais tocarão num fio de cabelo seu… Eu não tenho mais
mãe, e o noivado já foi cancelado. Você sabe que eu jamais me casaria com
Letícia e, depois do que fez a você, não quero vê-la nunca mais em minha
vida.
— Fernando… Eu não pertenço ao seu mundo, nunca me encaixaria
nessas normas, sou uma cigana e…
— Não me importo! Eu a amo e jamais permitirei que essas coisas
se interponham entre nós novamente.
— Você sabe que não será fácil e que o preço é alto demais, para um
homem de seu nível… — Dandara esforçou-se para tocar o rosto de
Fernando e deslizou os dedos por entre a barba crescida, enquanto admirava
os olhos verdes e intensos de seu grande amor. — Uma vez eu lhe disse que
desde meu nascimento eu estava predestinada à dor, lembra-se?
— Isso é bobagem. Farei com que esqueça tudo o que lhe ocorreu e
preencherei nossos dias com risos e alegrias.
— Fernando… Fernando, meu pobre capitão… Na noite em que me
tornei mulher em seus braços, você permitiu que eu lesse seu destino,
lembra-se?
— Sim. Você não quis que eu soubesse, disse que seria melhor.
— É verdade, eu disse. Mas agora você deve saber o que li e o que
você deverá fazer muito em breve. — A voz da cigana ainda era fraca e
estava enrouquecida pelo tempo em que ficara acamada.
— Meu destino está diante de meus olhos e não preciso de mais
nada — determinou.
As lágrimas rolaram pela face de Dandara, enquanto admirava seu
grande amor diante de si. Por aquele homem, ela desafiara suas tradições,
submetera-se aos caprichos de Carmem e ousara desafiar toda a sociedade
daquela província, não se importando com os presságios do destino, nem
com as cartas que revelavam sua dor. Ela o amava demais para distanciar-se
de seus olhos. A verdade era que só conseguira suportar todo o seu flagelo
porque sabia que as cartas não mentiam.
Assim como prenunciaram seu sofrimento por se atrever a entregar
seu coração nas mãos de Fernando, também disseram que ele a amaria com
toda a sua alma, que seria provado e que falharia, mas que retornaria para
lhe pedir perdão e uma segunda chance — não sem ser castigado por sua
fraqueza. Ela só pedia a Deus que ele fosse um bom pai para seu filho e que
pudessem se encontrar em breve.
— Quero que descanse e se recupere, não vamos falar sobre a dor
que nos causaram, vamos pensar em nosso futuro e nos filhos que teremos.
Juro que a farei feliz.
— Eu já sou, acredite. Tê-lo ao meu lado é toda a felicidade da qual
necessito.

Dandara recuperou-se com o passar dos dias e Fernando precisou


retornar para suas obrigações no exército. A rebelião dos mouriscos tornou-
se sangrenta, e ele não podia abandonar seu dever à Coroa Espanhola. Por
isso, transferiu Dandara para o palácio de Lucrécia e a deixou aos cuidados
de sua avó, Safira Ramirez, a velha cigana que antes implorara que ele se
afastasse de sua neta, e que agora o tratava como um filho. Na noite que
antecedeu sua partida, Dandara bailou para ele, como havia feito no
primeiro encontro, e, apesar do ventre saliente, a sensualidade de suas ancas
em movimento o deixaram alucinado.
Ele a amou com paixão e loucura durante toda a noite, derramou-se
em seu interior como um peregrino no deserto ao encontrar um oásis. Sim,
assim era como definia Dandara em sua vida: ela era seu oásis. Prometeu
retornar para os braços de sua amada o mais breve possível. Ele deixou o
leito quando os primeiros raios de sol brilhavam através das cortinas da
habitação, lançou um último olhar sobre o corpo de seu anjo adormecido,
observou suas curvas, os seios fartos, os cabelos negros espalhados por
sobre os travesseiros, e depositou um beijo em seus lábios carnudos, saindo
de mansinho para não perturbar seu repouso.
Partiu para sua missão.
No tempo que Fernando permaneceu à frente de seu batalhão, travou
muitos confrontos com seus inimigos e permaneceu em contato com
Dandara por meio das cartas que trocavam com frequência. Fazia questão
de saber das novidades e de como estava indo sua gravidez; também
escrevia à sua irmã, pedindo que zelasse por sua família. Enquanto isso,
Dandara preparava o enxoval de seu pequeno príncipe e continuava a
escrever em seu diário, pois sabia que as palavras ficariam eternizadas e
serviriam de alento no futuro. Todas as vezes que ela jogava as cartas, via as
nuvens negras se formando e rezava com fervor para que tivesse forças
quando esse dia chegasse, pois temia por seu bebê. Desde a noite em que
viera ao mundo, ela fora marcada por um mau presságio, e não havia nada
que pudesse fazer para impedi-lo.
Foi em uma noite fria e úmida que Dandara deu à luz seu pequeno
príncipe. Juan Lozano nasceu com muitas das características físicas de seu
pai, os olhos eram de um verde escuro brilhante como os de Fernando,
porém os lábios e nariz eram de sua mãe. Foi um parto difícil e demorado, a
parteira fez todo o possível para salvar mãe e filho, mas o destino cobrou
seu preço e concretizou sua vontade. Dandara faleceu nos braços de sua
avó, acompanhada por todos os que lutaram ao seu lado. Seu último desejo
foi cumprido com pesar por seu próprio pai, que enviou seu novo diário
junto com a notícia de sua partida para o único homem que ocupou o
coração de sua filha. Jurou que o acolheria como um de seu povo e o
ajudaria a superar o luto, pois ele sabia que apesar de tudo o que sua filha
sofrera nas mãos de Carmem, Fernando sempre a amara com loucura, por
isso não o abandonaria jamais enquanto estivesse vivo.
Fernando recebeu a carta de seu sogro, e todo o acampamento
entristeceu-se ao ver a dor que o subjugou. Os gritos e o choro comoveram
seus homens, e o comandante ordenou três dias de luto oficial, em respeito
a dor do capitão Fernando Lozano. O sentimento que rasgava sua alma o
torturava, mas não tinha permissão para deixar o campo de batalha; não se
importou com isso, pois sabia que já era tarde demais para sepultar sua
amada. Com pesar, escreveu ao seu sogro pedindo que cuidasse de seu filho
até seu retorno.
O homem perdeu toda a vontade de viver, a luz de seu mundo se
apagou, já não lhe restava mais nada pelo que lutar.
Duas noites após a amarga notícia, o capitão finalmente tomou
coragem e leu o diário de sua falecida esposa. Seu coração soube que a
veria mais uma vez.

“Fernando, amor meu, minha vida e meu eterno amante. Neste


diário registro minhas últimas palavras para você. Não desejo contar aqui
como foram meus últimos dias, pois já sabe que foram tão tristes quanto os
seus, uma vez que não estávamos juntos. Por isso, deixarei aqui minha mais
profunda declaração de amor.
Saiba que não guardo comigo mágoa ou rancor, não desejo o mal
de ninguém e fiz as pazes com aqueles que me desejaram o mal, pois desta
vida levarei somente o mais puro sentimento que vivi ao seu lado. Eu o
amei com tanta intensidade, desejei-o com todo o ardor e toda a paixão aos
quais um coração pode se permitir, e de nada me arrependo; pelo
contrário: faria mais mil vezes se fosse necessário, daria mil vidas para
viver apenas uma ao seu lado.
Eu sempre soube do meu destino, assim como conheço o seu, por
isso não se entristeça por minha causa. Seja um bom pai, perdoe e volte a
amar uma vez mais. Você tem muito ainda para oferecer, então permita-se
ser feliz. Acredite, meu amor, é tudo o que lhe desejo: um novo amor,
melhor do que este que lhe dei, mais forte do que o nosso, que lhe traga paz
e consolo. Eu sei que não verei mais seus belos olhos verdes, nem ouvirei
sua forte voz; tampouco sentirei seus lábios nos meus, mas saiba que meu
último pensamento esteve em você. Peço-lhe que não guarde luto por muito
tempo, a vida é curta demais para vivermos tristes pelos que já se foram.
Lembre-se de que você foi muito amado e que me fez a mulher mais feliz de
toda a Terra. Prometo buscá-lo em todas as vidas que ainda viveremos e
amá-lo em todas elas. Será meu, e eu serei sua.”

As palavras de Dandara comoveram o jovem capitão, abalaram de


tal maneira suas forças que o fizeram tomar a decisão mais difícil de toda a
sua vida. Naquela noite, em sua tenda, Fenando Lozano escreveu uma carta
repudiando sua mãe e o nome de sua família, abriu mão de seus direitos
hereditários, conservando apenas a insígnia de capitão. Esse era o castigo
que daria à sua mãe. Para a senhora Lozano, pior que a morte era viver
sabendo que seu filho abandonara o nome e as honrarias da família,
preferindo viver como um pária no meio de ciganos; tal decisão manchava a
honra de Carmem e a torturaria até o fim de seus dias, fazendo-a se lembrar
para sempre do mal que causou. Apesar do pedido de sua amada para que
perdoasse todo o mal que lhe fora causado, ele simplesmente não podia
esquecer, era demasiado para ele.
Fernando lutou com bravura nos campos de Serra Nevada,
contribuindo bravamente para a expulsão dos mulçumanos, imprimindo
castigo duro aos rebeldes da coroa e escrevendo seu nome ao lado de
grandes valentes. Ao voltar para Écija, tomou o filho e abandonou a cidade,
nunca mais sendo visto por aquelas montanhas. Os únicos que sabiam seu
paradeiro eram Lucrécia e seu grande amigo Diego, que o visitavam
periodicamente.
O destino da cigana já estava traçado desde o seu nascimento.
Dandara viveu como muitas, mas foi amada como poucas, e esse foi seu
grande triunfo, em uma época em que o amor não era permitido para as
mulheres. Por isso, todas as vezes que a fogueira é acesa e as castanholas
soam, os descendentes dos Lozano e Ramirez lembram-se da jovem cigana
que bailou por entre as labaredas do inferno e despertou o amor do homem
que a libertou de sua prisão.

“Não me arrependo de ter amado Fernando Lozano,


pois jamais poderia arrepender-me de minha única razão de viver.”
(Dandara)

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