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Capítulo 1

Eu me lembro do nosso primeiro beijo. Ele me pegou de surpresa embaixo


do sagrado Carvalho de Prata. Eu não sei como posso explicar o que
aconteceu para vocês, mas vou tentar o melhor que puder.
Há apenas algumas horas, fui coroada rainha de Montecorp. Estava tão
feliz por termos vencido a guerra contra Bólius, o terrível dragão de Cinaéd
e seus lacaios que, conforme o peso da coroa tomava seu lugar de direito
sobre minha cabeça, fechei os olhos e mentalizei as palavras de sabedoria
dos meus ancestrais: “Deixe que a coragem cresça suas raízes e a liberdade
surgirá como asas”.
E de fato, a gigantesca e suntuosa copa do carvalho permanecia
prateada e cintilante, inspirando leveza com o farfalhar das folhas.
Como foi desde o início dos tempos.
Desde quando meus ancestrais plantaram a semente de prata,
abençoada pela Deusa do Céu e da Terra, Argrinis, logo antes que o portal
entre os mundos fosse selado para sempre.
Meu traje de cerimônia era pesado, o vestido branco de mangas
compridas parecia ter sido bordado com diamantes e o manto cinza e
cintilante me seguia por metros, assim como a lua cheia que me
acompanhava pelo caminho até o bosque. O palácio havia sido construído
nos arredores, sem alterar em nada o que meus ancestrais cultivaram para o
povo de Montecorp: Um legado de estabilidade e ascensão. Ainda assim,
meu território agora ficava às margens da Floresta do Oblívio, um território
proibido para todos. Inclusive para a sua rainha.
Se meu avô não tivesse iniciado o levante contra o reino de Cinaéd,
alegando que também era merecedor da Pedra de Fogo, eu teria crescido
conhecendo a tal paz que só me visitava nas histórias.
Seis décadas se passaram desde o início da guerra até que eu
finalmente tivesse idade o bastante para cumprir meu treinamento e pudesse
visitar o campo de batalha. No início me chamavam de princesa prateada,
por causa dos meus cabelos longos e acinzentados, marca de toda a minha
dinastia. Mas não demorou muito até que eu fosse conhecida como a
princesa carmim. Ainda graças aos meus cabelos, que ficavam rubros com
o sangue de nossos inimigos. Até hoje, ele continua em um tom pálido de
vermelho rosado, um eterno lembrete de quem eu precisei me tornar para
que meu povo fosse livre.
Lembro-me bem de quando Caleb entrou na minha tenda e se ajoelhou
perante a mim. Ele apresentou sua espada e fez o juramento de me proteger
com a própria vida com a maior má vontade que já vi na minha vida.
Segurei uma risada e pedi que se levantasse.
Sim, eu entendia que o melhor e mais experiente cavaleiro queria estar
na linha de frente comandando seus soldados, e não cuidando da
princesinha inexperiente recém treinada e recém-chegada no acampamento
da guerra que já estava na terceira geração.
De fato, era a minha primeira vez longe de um treino. Eu não poderia
me dar ao luxo de errar ou de ter um tutor disposto a me dar dicas. O risco
era real. E o que os soldados não compreendiam era que eu não temia por
minha vida. Eu morria de medo de falhar com meu povo.
Por eles, eu buscaria terminar essa guerra. Para que cada criança de
Montecorp não tivesse que se separar de seus pais, assim como eu precisei
me separar dos meus. O reino perdeu seu rei e sua rainha. Eu perdi minha
família.
Convidei Sir. Caleb para jantar comigo. Já que passaríamos muito
tempo juntos, precisaríamos de algum tipo de cumplicidade. Não esperava
simpatia, mas ter sua expressão de desgosto ao meu lado frequentemente
estava me desconcentrando. Somente quando ele se levantou foi que eu
percebi como era alto, e certamente tinha o porte mais atlético do que
qualquer outro soldado que eu tivesse visto antes. Seus cabelos estavam
trançados para trás e seus olhos permaneciam mirando o chão, em sinal de
subserviência e respeito que eu sabia não ser genuínos.
Ele podia ser o melhor cavaleiro de Montecorp, mas eu era Lunara
Alexandria Montecorp, herdeira legítima da Deusa Argrinis. Havia passado
minha vida toda me preparando para esse momento, sonhando com a paz.
Eu ganharia o respeito e a admiração de cada um dos meus soldados que
davam sua vida pelo meu povo desde antes de eu nascer.
De cada. Um. Deles.
Eu sabia que uma parte de Sir. Caleb havia ficado minimamente
impressionada com a minha atuação, para uma jovem de 20 anos que nunca
havia pisado em um campo de guerra. Ele devia ter pelo menos uma década
a mais, o que significava que o tempo que eu tinha de vida, ele tinha de
treino. Mas ele não contava com a bênção dos ancestrais, que faziam céu e
terra perceberem minhas aflições e meus desejos — alguns deles, pelo
menos.
O treino de magia possuía um nível de dificuldade muito maior, e o
Grande Amon não teve tempo o suficiente para lecionar sobre as
implicações dessas habilidades, tampouco de explorar os detalhes que eu
precisaria saber. Ele havia dito que chegaria o momento em que eu poderia
estar em contato com a forma mais pura de magia e ela falaria comigo
como se fosse minha língua materna.
Mas ainda assim, eu sentia uma inspiração. Já sentiu algo assim? E
mesmo sem dominar o meu dom, sabia que de alguma forma não era
coincidência a estabilidade que nossos cavalos encontravam ao pisar no
chão, ou a clareza da visão do exército ou as noites de céu limpo que
silenciosamente enviavam mensagens de esperança.
Levou uma semana até que ele finalmente concluísse uma conversa
olhando nos meus olhos, e pude ver que os seus tinham o tom de mel mais
lindo que já tinha visto. Dois meses até que finalmente tocasse minha mão.
E acredito que só fez isso porque eu havia sido ferida em campo e ele se
sentia culpado por ter falhado com seu propósito.
Eu já respirava com dificuldade, o círculo de fogo à minha volta
denunciava que a batalha finalmente seria decidida e que eu deixaria ali a
minha vida. Um soldado coberto por labaredas veio em minha direção. Sua
armadura era totalmente vermelha, tal como as escamas do dragão. A besta
agora se unia mais uma vez contra meu exército. Assim que vi seu enviado
humano, eu sabia que estava tudo acabado. Seus olhos brilhavam como o
fogo azul, o poder territorial que emanava dele foi o bastante para me avisar
de que não havia possibilidade de paz ou barganha entre nós. Lembro da
minha armadura pesar e da minha defesa não sustentar o terceiro golpe que
recebi. A espada dele confirmou minhas expectativas.
Quando recobrei a consciência, ouvi a voz baixa e espantada de Caleb.
“Minha princesa.” A forma que falou meu nome carregava urgência. Seu
olhar refletia mais do que a honra e responsabilidade dignas de seu cargo.
Denunciava culpa genuína. Lembro-me de segurar sua mão mais forte e
tentar sorrir por cima da dor. Prometi a ele que me sentia segura por tê-lo ao
meu lado.
Ele apenas repetia meu nome, como se não soubesse o que mais
poderia, ou deveria, falar para mim. Era difícil traduzir, mas tinha algo no
jeito como que ele sorriu em alívio e gratidão. Algo na forma em que levou
meus dedos ainda sujos de sangue e terra aos seus lábios e os beijou
suavemente, quase como se a suavidade fosse o suficiente para se desculpar
pela ousadia de tocar em mim.
— Ainda não, princesa — ele disse. Mas algo na forma que ele disse
“princesa” ecoou na minha mente. E em meu sonho nebuloso pelas ervas,
revisitei essas palavras que me aconchegavam da dor aguda. Naquela noite,
enquanto o mundo morria antes de renascer, ficou claro para mim que ele
era responsável por mais do que minha vida. Era responsável também pelo
bem-estar do meu reino.
O dia seguinte foi o palco para a batalha final. Eu estava adormecida
por tônicos que diminuíam a dor e curavam devagar a ferida em minha
perna, mas lembro-me de ser acordada por Caleb segurando uma pequena
gema vermelha, que parecia... viva.
De alguma forma.
Suspirei com dor ao me sentar, mas já sabia o que isso significava.
Bólius havia sido derrotado. Cinaéd era nossa. E agora eu era a guardiã dos
poderes do céu, da terra e do fogo. Estava a apenas um passo de tudo que
meu avô queria: As sementes dos quatro elementos.
Em nome desse poder, três gerações foram jogadas fora. Em nome da
sua ambição, eu não tinha mais meus pais há quase um ano. Graças à sua
ambição, fui enviada para presenciar o pior que o mundo pode
oferecer. Não me parecia ser uma recompensa digna pelo sofrimento
causado.
Mas, agora, ao menos eu poderia oferecer o melhor. Eu tentaria
transformar essa tragédia em uma canção. Mas antes eu precisava voltar
para casa. Todos nós precisávamos.
Olhei para Caleb, procurando por algum sinal de ferimento, e me
espantei ao ver que seu braço estava pior do que minha perna, enfaixado em
um ângulo que eu não compreendia. Provavelmente quebrado em alguns
pontos diferentes. A gema ficava no centro da garganta de Bólius, e o fato
dele ter atravessado suas grossas escamas me fez estremecer. Percebendo
meu olhar aflito, ele se apressou em me tranquilizar:
— Estou bem. Você não viu o que aconteceu na minha primeira
batalha. Isso aqui... é só um arranhão. — E sorriu. Em nenhuma hipótese
aquilo era só um arranhão, mas me senti mais tranquila.
Ainda assim, não sei como ele estava de pé, exibindo quase nenhum
sinal de dor. Bom, ele era um cavaleiro. E eu... uma princesa descobrindo a
realidade de governar sozinha. E de ter os louros quando outra pessoa vence
uma batalha por você.
— Caleb. — Tentei segurar o sorriso, mas falhei. — É uma grande
honra o que você fez por Montecorp. Como posso agradecê-lo em nome do
meu povo e de meus ancestrais?
O sorriso dele vacilou, mas manteve o olhar firme:
— Só cumpri meu dever de acordo com minha honra.
Havia palavras não ditas em seu discurso, mas nós dois estávamos
feridos, disfarçando as fisgadas de dor, e ainda precisávamos lidar com uma
série de trâmites antes de voltar para o palácio.
Eu finalmente seria a rainha da paz. O pensamento deveria me fazer
sorrir. Mas havia um preço amargo na paz banhada em sangue. Ainda
assim, esse pensamento me movia. Me fazia acreditar que todo o sacrifício,
perder toda minha família e dizimar um reino teria valido a pena. Teríamos
paz. Poderíamos aprender o que isso significa. Repeti isso para mim mesma
incontáveis vezes, como uma luz no futuro me pedindo para suportar o
presente. Não era meu sonho ideal, mas era o sonho possível. Não seria
mais a princesa prateada, muito menos a princesa carmim. Mas uma rainha
gloriosa e pacífica, da mesma forma que Argrinis nos ensinou no início dos
tempos. Assim como a poderosa Alma Antiga a instruiu... Mais um dos
conhecimentos perdidos em meio a ambição e cobiça.
Caleb já havia deixado claro que seu desejo era alcançar a maior
patente no exército. Acredito que bradar o golpe que decidiu o futuro das
nações, terminar uma guerra e salvar a última herdeira Montecorp poderia
lhe conferir essa honra.
Os pensamentos me acompanharam por três semanas, até que
finalmente avistei no horizonte meu belo palácio prateado, com as folhas
mais altas do Carvalho de Prata acenando no horizonte em boas-vindas.
O povo também aplaudia e assobiava. Ouvi a multidão gritando:
“Princesa Lunara! Princesa Lunara!”. Desci da cabine da carruagem e
ordenei que um dos soldados passasse as rédeas de seu cavalo. Trocamos de
lugar e eu ri ao ver sua expressão ao sentar nas minhas almofadas
acolchoadas.
Fiz um carinho nas bochechas do animal e logo subi. Queria estar mais
perto do meu povo. Queria que eles pudessem me ver e, principalmente,
queria poder vê-los.
Conhecer seus olhares esperançosos, como sempre li nos diários da
minha bisavó. Estava a mais um passo do tal sonho possível. Do sonho de
todos nós. Havia algo sublime na forma que a terra nos abençoava, uma
leveza que corria pelo céu com aroma de baunilha. Um sabor de infância, o
qual eu sabia que seria experimentado pelas crianças que agora se
equilibravam nas costas dos pais e acenavam com seus sorrisos banguelas.
Ouvir seus gritos empolgados abafava as incertezas que sussurraram na
minha mente durante nosso retorno.
Eu podia jurar que ouvi música tocar, mesmo sendo impossível definir
uma melodia em meio ao alvoroço de felicidade. Mas não podia evitar a
canção que crescia dentro de mim, o som fluido de cordas pedindo para
existir em algum outro lugar que não meu coração.
Esperamos duas noites até a lua cheia, a fase indicada para a coroação,
onde acredita-se que um eco entre as dimensões pode ser ouvido e nossas
preces, enfim, atendidas.
Eu estava pronta para me tornar Rainha Lunara, assim como me
preparei por toda vida em longas aulas revezadas com odiosos treinos de
espada. Pela graças dos deuses, eu jamais sentiria o equilíbrio de sua lâmina
de novo na vida. Eu finalmente poderia voltar a tocar violino. A
necessidade imediata da minha presença na linha de frente fez com que eu
largasse meus estudos de música. Eu não podia me dar ao luxo de fazer algo
que amava. Mas isso finalmente mudaria. Minha mãe e meu pai ficariam
orgulhosos se pudessem me ver. Mas eles não estariam aqui para
testemunhar quando eu finalmente conseguisse tocar como uma
instrumentista, e não como se arranhasse o mármore do palácio. Eu
desejava mais o arco do violino do que o cetro e a coroa. “Perdão” parecia
uma palavra irreal quando pensava em meu avô e na responsabilidade que
ele tinha por ter iniciado uma guerra que roubou a vida de Ella e Yohan
Montecorp, por ter tirado meus pais de mim cedo demais.
Engoli o pensamento como se pedras atravessassem minha garganta.
Essa era uma noite de alegria. O reino estava em festa, e eu também deveria
celebrar. Mas que filha comemora tomar o lugar de seus pais em tão tenra
idade?
A pedra do fogo estava agora em uma redoma de vidro, que se
destacava como um ponto de sangue conforme eu a segurava firmemente, a
fim de apresentá-la ao meu povo.
Meus súditos se reuniram em volta do templo de Argrinis, e a
cerimônia foi rápida. Estonteante. Após meses em um acampamento, estava
desacostumada ao luxo do palácio. Sozinha eu entrei, segurando em uma
mão a espada de meu pai, que estava presa à bainha do meu vestido, e na
outra, o cetro de minha mãe. A sacada principal do palácio estava envolta
de luzes esverdeadas, as quais rivalizavam com os astros que brilhavam
naquela noite. Ayla, a sacerdotisa do Templo de Prata, levantou seus braços
exibindo a coroa: Uma bela joia feita de prata branca moldada em estrelas,
com um reluzente diamante redondo no topo, representando a lua cheia.
— Luz e prosperidade ao glorioso reino de prata, Montecorp — ela
disse, com sua voz firme e orgulhosa, na língua antiga – conhecida agora
por poucos, nos lembrando as tradições de tempos de paz. Mantive o queixo
erguido ao repeti-la, e respirei o mais fundo possível ao sentir suas arestas
geladas tocarem minha cabeça entre as tranças.
Meus súditos repetiram as palavras de ordem que escolhi no idioma
comum. Eu iria procurar entregar essa promessa para meu povo como a
mais sincera prova de confiança. Eles me viam como uma descendente dos
céus. Mas eu era apenas humana, uma com a promessa que não seria
quebrada durante o meu legado.
Eu me sentia sublime, como se pudesse flutuar. Não saberia dizer se
meus pés estavam, de fato, no chão.
Vida longa à rainha Lunara, a rainha da paz!
Montecorp estava em festa! Mas mesmo que o reino continuasse
celebrando a semana inteira – pelo mês todo –, eu precisava estar em outro
lugar.
E assim fui até o Carvalho de Prata, que contei para vocês lá no início,
lembram-se?
Eu precisava falar com meus antepassados. Para agradecer, para
comemorar. Para pedir conselhos e acalmar o desespero crescente que eu
buscava ignorar. Já estava reclinada no tronco da árvore sagrada há uma
hora, admirando a lua e descansando do meu vestido e da minha coroa. Eu
entendia o peso, entendia a metáfora. A roupa da cerimônia era
demasiadamente suntuosa, pois eu precisava agir com cautela a respeito do
meu povo. E a coroa pesava como as minhas responsabilidades.
Honestamente, eu havia acabado de vencer uma guerra, a coroa parecia uma
pluma perto disso.
Só que... não fui eu que venceu. Foi Caleb. Só não percebi que estava
falando tudo em voz alta, muito menos que ele estava ali para ouvir.
— Foi você que venceu essa guerra, sim. Primeiro, você convenceu
seu pai ainda quando criança de que ela precisava acabar. Depois, quando
fez disso sua missão de vida. — Seu traje de cavaleiro cerimonial era
absurdamente elegante, com fino acabamento em linhas azul marinho e
prateado. Contive um suspiro de admiração, e sei que, mesmo surpresa,
comecei a sorrir. — Lutou conosco, lado a lado. Mesmo não sendo tão boa
nisso — meu sorriso virou uma careta —, não tratou nenhum de nós com
nada além de bondade. Vossa Majestade é a líder mais inspiradora que um
exército poderia pedir. Que um povo poderia sonhar. — Ele sorria, e dessa
vez meus olhos estavam marejados. Suas palavras aliviavam a gravidade
crescente em meu peito.
— Como soube que eu estava aqui? — indaguei enquanto me
levantava para olhar para ele diretamente. Ele estendeu a mão ilesa, a fim
de me ajudar devido ao peso do vestido, mas logo se ajoelhou perante a
mim. Dessa vez, olhando nos meus olhos.
— Você não achou mesmo que ficaria sem supervisão logo agora que
foi coroada rainha, não é? — Um questionamento óbvio demais, só poderia
concordar.
— Imaginei que agora que conquistamos a paz — a palavra ainda
soava estranha, irreal — eu poderia andar livremente pelo bosque sagrado
do meu reino.
— Não acredito que já alcançamos a paz. É um caminho, e tenho
certeza de que chegaremos lá. Mas ainda não. — Ele continuava a segurar
minhas mãos. Assenti às verdades amargas que compartilhou.
— Não te vi durante a cerimônia em momento algum. — Consegui
dizer.
— Eu seria um péssimo guarda-costas se não soubesse me infiltrar.
— Você é muito mais do que um guarda-costas. É um cavaleiro.
Aquele que guarda minha vida e confiança. — Segurei suas mãos com
carinho e percebi que seu olhar reluzia enquanto fitava os detalhes da minha
coroa e da minha capa. Imaginava que eu parecia outra pessoa, agora longe
dos campos de batalha. Nossa diferença ficava clara, assim como a
impossibilidade de nossos futuros permanecerem entrelaçados. — Eu
acredito que me ajudará a guiar Montecorp para a glória histórica que nos é
ensinada. Mas... Não há nada que você queira? Não Sir. Caleb, mas...
Caleb. — Inclinei a cabeça em dúvida e sorri para ele. Tinha uma ponta de
esperança em meu sorriso, e eu esperava que no dele tivesse uma ponta de
ousadia.
Ele então sorriu, admirando cada parte do meu rosto, e beijou o nó de
meus dedos, assim como fez no final da guerra.
— Espero que não tenha cruzado nenhum limite, Vossa Majestade.
Mas tudo o que eu quero não sou destinado a ter. A menos que estivesse
disposta a mudar o curso de sua própria sina.
Eu sorri e o puxei para que se levantasse, ainda de mãos dadas, dedos
entrelaçados, um passo mais próxima dele. Senti sua respiração pausar.
— E o que você deseja, Caleb? — Uma pergunta e um pedido. Ele
olhou para baixo como se procurasse a resposta. Ou a coragem. Pelo visto,
enfrentar dragões era mais fácil do que enfrentar garotas.
Poucas vezes ouvi uma palavra soar tão baixo, quase engolida pelo
silêncio do bosque.
— Tudo — ele disse como se confessasse. Levantei seu rosto para
que seus olhos encontrassem os meus. E sorri como se todas as respostas
das minhas perguntas estivessem ali. Beijei suas mãos com um sorriso e
deixei que elas tocassem meu rosto, meu pescoço, naturalmente diminuindo
a distância entre nós.
Mesmo assim, eu sabia que ele não teria coragem de dar um passo
mais adiante. Não, ele deve tê-la gastado por inteiro falando que me
desejava. Então eu encostei meu rosto no dele e deixei que nossos lábios se
tocassem por um segundo. A respiração dele ficou incerta, eu já nem sabia
se meu coração pulsava. Nós nos olhamos por um segundo, estávamos perto
demais. Ele hesitou, mas me puxou pela cintura. Fiquei ainda mais colada a
ele, passei os braços por seu pescoço e o beijei.
Ele reagiu ao beijo com surpresa, sem saber como prosseguir o
movimento. Eu esperava que ele soubesse que ali não estavam mais uma
rainha e um cavaleiro, apenas um homem e uma mulher. Pausei nosso beijo,
não mais do que a pluma de um toque, e pedi que ele esperasse um
momento.
Tirei meu manto e o coloquei no chão, próximo ao Carvalho de Prata.
Minha coroa também. A cerimônia já havia terminado, se estivesse no
palácio, já usaria camisola. Caleb me olhava com incredulidade, me
pedindo silenciosamente para que não desafiasse seu autocontrole. Mas eu
era a rainha e podia fazer tudo que eu quisesse. Especialmente – não,
principalmente – com meu corpo.
— Lunara, algumas coisas exigem tempo. E agora que tenho sua
confiança, tenho certeza de que nossos destinos serão abençoados pela
Alma Antiga. — Enquanto ele se acomodava no chão ao meu lado,
observei-o apoiar o braço ferido no joelho casualmente.
— Hoje... hoje me parece ser um daqueles dias perfeitos, Caleb. Do
tipo que lemos nos finais dos livros. O verso que encerra as canções, não sei
se entende o que digo. — As pessoas raramente entendiam. — Quando o
mundo está em paz. Aqui. — Apontei para a árvore e o céu à nossa volta.
— Com você. — Ele me interrompeu com um dedo sobre meus lábios,
percebi que o momento poderia simplesmente... fluir.
Deitamos lado a lado no manto sob o Carvalho de Prata. E em silêncio
ficamos, como se tivéssemos todo o tempo do mundo, vendo as estrelas
preguiçosamente mudarem de posição. Podia sentir seu olhar pesado sobre
mim, como se buscasse pelas palavras certas. Decidi que aceitaria o tempo
dele, então. Caleb não falava muito, mas suas ações o representavam. Senti
que o sono começou a clamar minha atenção, em uma mistura entre
aconchego e alívio. Ele finalmente levantou-se do chão e, apoiando o braço
ileso no solo, beijou minha testa, como se ele se desculpasse de tudo que
aconteceu nos últimos meses. Na última era.
Enquanto estávamos na quietude da noite, falávamos a mesma língua
do vento que permanecia vigilante sobre Montecorp, minha eterna
testemunha das minhas escolhas, sacrifícios e vontades.
Ele me acompanhou até a porta do meu quarto, e pedi que entrasse.
Não gostaria de passar aquela noite sozinha. O sorriso dele se iluminou com
meu convite de tal forma que, por um instante, jurei que era dia.
Antes do sol amanhecer, ele me despertou com uma surpresa. Ainda
confusa, abri os olhos e busquei as últimas lembranças que tinha. Pela
Deusa de Prata, parecia um sonho.
Ainda levaria pelo menos uma hora até uma aia entrar no meu
quarto. Tínhamos tempo. Mas nenhum treinamento me preparou para reagir
com a forma que ele se ajoelhou mais uma vez perante a mim.
— Achei que tinha deixado claro que você não precisa mais se
ajoelhar.
— Há algumas coisas que só podemos fazer de joelhos. — E em sua
mão estava o rubi de fogo preso em um lindo colar de prata. Ele
definitivamente parecia vivo, de alguma forma. Um tom rubro que exalava
poder, vingança e paixão. Senti-me estranhamente atraída por ele. Era
tradição em Montecorp oferecer uma joia assim em um pedido de
casamento. — Isso é pelo futuro do nosso reino. Por um sonho que sei que,
de alguma forma, é nosso.
Agora, com os três poderes elementais em Montecorp, eu não seria
mais obrigada a firmar uma aliança com outro território. A Casa Pristine
havia nos oferecido passagem segura até Cinaéd, mas eu não me sentia
obrigada a aceitar sua proposta para unir os territórios.
Eu disse que sim sem pensar duas vezes, e o sorriso de Caleb
aumentou como se tivesse acabado de conquistar o mundo. Meu quarto
começou a transcender do azul pálido da noite para o laranja encantador do
dia. Abracei-o forte enquanto ele prendia o colar no meu pescoço, seu toque
arrepiando minha pele. A euforia tomou conta de mim. A calma do seu
toque foi rompida por um sino agudo que começava a soar lá fora. Seria um
mau presságio? Uma retaliação perdida da batalha?
Agitados, fomos até a sacada do meu quarto, buscando a fonte do som
estridente. Logo tudo era neblina e sombras e só permanecia o eco infernal.
Eu gritei, mas não me ouvi diante do vendaval que borrava toda a
minha vista. Fechei os olhos para me proteger, e quando finalmente os abri,
o som ainda estava ali. Demorei para reconhecer a paisagem à minha volta.
Eu estava com a cabeça debruçada na mesa, aguardando a hora do
intervalo. E é por isso que estou contando isso para vocês.

Olívia e Íris me olhavam perplexas. Gastei todo nosso tempo livre


narrando um delírio que tive na aula de história.
— Assim... Não tô dizendo que não seria um bom filme, Luna. Eu
assistiria. Mas agora acorda, que tem simulado de biologia e não quero me
atrasar. Bora! — Íris se apressou, seguida por Olívia, que gesticulou para
que eu as acompanhasse.
Vi as meninas se distanciarem. Meu uniforme parecia anormalmente
leve perto da roupa da coroação.
Mas se foi só um sonho...
Por que eu sentia que em algum lugar muito distante, Caleb estava
pensando em mim?
E...
Por que o colar ainda estava no meu pescoço?
Capítulo 2

Tive que vasculhar minha mente em busca de informações sobre


membranas plasmáticas e células eucariontes. Por Ártemis, eu não sei
mesmo se as ligações entre os aminoácidos são covalentes, iônicas ou
peptídicas. Ou nenhuma das três. Por que isso era importante?
Mas espera... Não era Ártemis o nome da Deusa do meu sonho. Era
Argrinis. Eu estava começando a esquecer os detalhes, então pedi uma folha
de rascunho durante o simulado e anotei tudo que ainda me lembrava. Sobre
a gema de fogo, os sessenta anos em guerra contra Cinaéd, o fogo de
Bólius, a paz que sentia toda vez que via o Carvalho de Prata, o sorriso de
glória do meu povo, a forma que Caleb me olhava...
Minha cabeça doía com tantos pensamentos amontoados, lembrei-me
então de alguma aula sobre interrupção do ciclo do sono e como isso
poderia causar cansaço, desconforto e mau humor.
Mirei meu colar novamente. A forma que o sol entrava pela janela da
sala e refletia no rubi era quase como estar em Montecorp. Por mais que
tivesse sido um doce e misterioso sonho, eu tinha plena consciência de que
o vestibular era no final deste ano e que a galera que pode me colocar na
graduação de psicologia está muito mais preocupada com a droga das
células eucariontes do que com um reino fictício destituído de sua rainha. E
menos ainda com o crush imaginário de uma garota.
Dobrei a folha de rascunho o mais discretamente que pude e coloquei
no bolso da minha calça. Ainda bem que a prova era de múltipla escolha.
Marquei tudo alternativa C.
Normalmente era a letra C a certa, né?
Tem C de “certo”, fazia sentido.
Só que não.
Nada disso fazia sentido.
Ou fazia tudo, menos sentido.
Se eu tivesse sido aprovada no curso de música ano passado, não
estaria presa entre decisões sem sentido.
Entreguei a prova com um sorriso amarelo e o coração pesaroso por
saber que não tinha ido bem. Pelo menos possuía algum tempo livre até
chegar em casa... A única vantagem dos dias de prova. Íris continuava tão
focada nas perguntas que mal se mexeu enquanto peguei minha mochila e
me levantei. Aquela ali já estava com todos os trotes das melhores
faculdades desenhados na testa de tão boa aluna que era.
Já Olívia estava no portão me esperando com um brigadeiro na mão.
Nós duas odiávamos provas, testes e simulados. Nada disso media nossa
inteligência. Então ela sempre comprava um docinho na hora da saída com
a moça que ficava na porta do curso. Ela fazia bolos de pote divinos, mas
esses eram reservados para as vésperas de provas oficiais.
Minha amiga estava certa, comer docinhos era a melhor forma de
mostrar que podíamos fazer boas escolhas para nossa vida. Olívia era de
uma beleza nada óbvia e cativante, com sua pele marrom clara, olhos
levemente puxados e adoráveis sardas. Parecia uma versão crescida da Lilo,
se ela tivesse crescido para ser uma modelo.
— Marquei C em tudo — confessei enquanto arrumava a forminha do
brigadeiro.
— Marquei B e D. — Ela riu. — E do jeito que é a “probabilidade
matemática” — ela disse, fazendo as aspas com os dedos e com uma voz
debochada adorável —, vamos tirar a mesma nota.
Tentei não me lambuzar com o doce, mas era difícil.
— Isso aqui tá perfeito, Olívia. É de quê? — Comeria uns cem, se
pudesse.
— Brigadeiro com raspas de laranja. Acho que a moça capricha
quando é semana de prova. Pena que são tão pequenos. Deveriam ser do
tamanho de uma bola de tênis. — Ela não estava brincando. Eu sorri.
As caminhadas de volta pra casa eram minha parte favorita do dia. Era
um verdadeiro tormento quando Olívia faltava. Ela ter se mudado para o
meu bairro há três anos, a tempo de se formar comigo na escola e agora
estar no mesmo curso preparatório que eu, foi uma das melhores coisas da
minha vida.
A gente simplesmente não parava de rir e conversar. Íris era a mais
inteligente de nós três, ela já tinha passado de primeira para o curso de
física, mas, após um ano, ela decidiu que sua vocação era medicina, então
cá estava, nas mesmas aulas que a gente.
Quanto a mim... Meu cabelo longo e rosado chamava atenção de
vários professores, que diziam que eu não conseguiria um emprego sério
assim. Outros diziam que era só “uma fase”. Argh, não aguentava isso. A tal
da fase já durava alguns anos, e até agora não dava sinais de que passaria
tão cedo.
Olívia, para minha alegria, era tão estranha quanto eu. Usava todos os
anéis que tinha todos os dias e sempre me mostrava uma banda pela qual
ela era perdidamente apaixonada — e, se eu for sincera, acho que só ela.
Sinceramente, não sei onde ela conhecia tantas bandas indie.
Nos separamos na mesma esquina de sempre, com um toque de
dedinho, igual víamos em nossa série favorita. Ela também era minha
“kindred spirit”.
Ainda faltava uma rua e uma ladeira até chegar ao meu prédio, e
aquela calçada familiar, de qual eu conhecia cada buraco, cada canteiro de
flor, me parecia totalmente estranha sem a copa prateada no horizonte.
Até que vi no chão algumas flores miúdas e brancas. Olhei para cima.
Seria o Carvalho de Prata?
Não...
Claro que não.
Uma árvore tinha florescido por completo, parecendo ser feita de
nuvens brancas. Estava deslumbrante. Podia jurar que o aroma de baunilha
estava no ar, mas poderia ser o papel do brigadeiro que eu ainda carregava
em minhas mãos. Era bem possível que eu não tivesse reparado neste
florescer pela manhã, enquanto corria atrasada para o curso, e de alguma
forma meu subconsciente registrou esse fenômeno e me agraciou com
aquele sonho sem sentido.
Insano e maravilhoso. Ainda assim, sentia o peso do colar no meu
pescoço. Se fechasse os olhos, quase conseguia sentir o toque de Caleb com
toda a reverência que ele tinha por mim.
Exceto pelo fato que ele não existia.
Tive que desviar os pensamentos para não corar por inteiro. Blaze
estava na portaria, e eu podia jurar que estava me esperando. Não que fosse
admitir isso, mas era no que eu queria acreditar. Podia só estar esperando
alguém, ou sei lá. Céus, quase doía o quanto ele estava bonito. A camisa de
botão cinza levemente aberta, uma corrente pendendo de sua calça preta.
Enquanto o admirava, ele ajeitou os cabelos curtos e avermelhados, um
gesto tão simples, mas que sempre me parecia quase mágico, hipnótico. E
aqueles olhos azuis? Me avistando ao longe, quase tropecei quando seu
olhar cruzou com o meu. Mesmo depois de três meses o vendo
esporadicamente, ainda não tinha me acostumado com a profundidade por
trás de seus olhos, como se ele pudesse ver a minha essência, meus
pensamentos mais secretos.
Que saco, ele certamente tinha percebido que eu o estava encarando.
Era difícil agir naturalmente perto dele. Blaze parecia um príncipe, de um
jeito quase óbvio demais. Como se alguém, em algum lugar, tivesse escrito
sobre ele, inspirado em sonhos de outono. O sol forte incomodava meus
olhos. Levei a mão ao rosto na tentativa de fazer uma sombra, que se tornou
um aceno acidentalmente, e Blaze logo retribuiu com um sorriso que parou
uma batida do meu coração.
Ele não era um cavaleiro, apesar de ter o porte para isso.
Foi quando me dei conta do meu uniforme amarrotado e suado da
caminhada. Uma das desvantagens de ser bolsista em um curso pré-
vestibular: Eu precisava ser uma garota-propaganda-ambulante. Não
gostava da minha rotina, mas meus pais insistiam que era necessário se eu
quisesse ter um futuro.
Eu queria ter um presente, mas não valia a pena entrar nessa discussão.
De novo. Eles apoiaram meus sonhos por dois anos, e eu falhei. Agora eu
teria que “aceitar a realidade” e “ser grata por todas as minhas
oportunidades”.
No momento, eu estava grata pela oportunidade de encontrar algo que
não fosse patético para falar. Eu quase sempre me achava bem atraente,
sobretudo quando me arrumava com as minhas próprias roupas, mas
definitivamente não estava no meu melhor momento. Faz parte.
Blaze era exatamente o melhor e o pior vizinho que eu poderia ter. O
melhor porque ele tinha acabado de entrar para a faculdade, mas ainda
aceitava tirar minhas dúvidas, já que a matéria ainda estava fresca na sua
mente. Ele também adorava maratonar as mesmas séries que eu e criava as
teorias mais incríveis sobre o que aconteceria nos próximos episódios. E
principalmente porque, semana passada, eu estava convicta de que ele
deveria beijar extremamente bem. Mas o fato é que agora eu queria ter
certeza. Não sei se eu era sortuda ou idiota por isso.
E isso fazia dele o pior vizinho do universo, pois eu tinha certeza de
que, um dia, ele traria outra garota para casa, como acontecera tantas vezes
antes de ficarmos mais próximos nos últimos meses. E eu processaria a
informação em duas etapas:
1. Saber da situação em primeira mão e ficar com ciúmes;
2. Não poder fazer nada sobre, porque não temos nada sério além
de um breve clima quando me despedi dele semana passada após
estudarmos a tarde toda para a minha prova de matemática.
Foi um dia que eu viveria de novo? Sem dúvidas. Só que, de
preferência, sem minha mãe entrando no quarto a cada dez minutos com um
copo de suco ou uma fatia de torta.
Tentei afastar esse pensamento também. Parecia errado criar
expectativas, principalmente quando o colar que Caleb me deu estava bem
ali.
Meu Deus, isso queria dizer que eu estava noiva?
— Oi, Luna! — Quando eu alcancei a portaria, ele logo me
cumprimentou com um daqueles abraços que duram um pouquinho a mais
do que o normal e me apertou de forma um pouco mais intensa. — Foi bem
na prova? — Quando senti seu beijo estalar no meu pescoço antes de me
soltar, rezei para que ainda estivesse cheirosa. Respirei fundo e, sim,
percebi que estava com um leve cheiro de chocolate. Melhor do que nada.
Precisei de um segundo para firmar os pés no chão e conter meus
lábios para não sorrir demais. Ele não precisava saber o efeito que surtia em
mim.
— Me ferrei. E você? — Não custava pensar mais um segundo antes
de responder, né, Lunara? Esqueci que ele não teve nenhum simulado,
porque ele não precisava mais fazer cursinho. Minha nossa, era igual
quando alguém fala “feliz aniversário” e você responde “pra você também”,
e aí fica um clima estranho, com todo mundo sorrindo por fora e chorando
por dentro. — Digo, sua aula foi boa?
O estrago estava feito. Ele notou isso e, debochado como sempre foi,
não iria deixar passar.
— É, gatinha... — Ele pegou minha mochila e passou o braço pela
minha cabeça, apoiando-se em meus ombros. — Se você errou essa
pergunta tão simples, não tenho muitas esperanças pra você nesse simulado.
Eu vou ter que te ensinar tudo mesmo. Quer uma ajuda hoje? — Ele piscou
sorrindo, e o convite ficou pendurado.
Eu consegui impedir meus lábios que dissessem “sim”. A prova
amanhã era de história, e mesmo dormindo na aula hoje, eu ainda era muito
boa. Na próxima semana, enfrentaria uma maratona de física e química, e
eu realmente precisava de uma ajuda. Uma benção. Qualquer coisa.
— Palhaço! — Passei por baixo de seu braço, sorrindo. — Amanhã eu
me garanto. Mas, pra semana que vem, vou realmente precisar de uma
ajuda. O que acha de passar seu sábado relembrando os fascínios da
química inorgânica? — enfatizei de um jeito dramático e irônico.
— Não há nada que envolva química e você que eu não me interesse.
— Ele não precisava me responder olhando na linha logo abaixo do meu
queixo, então eu o empurrei de leve, peguei minha mochila e me apressei
para o elevador.
— Te mando mensagem — gritei já de longe e o espiei da porta. Não
havia nada de inocente no jeito que ele me olhava. Nem no meu.
Tomei um banho bem frio assim que cheguei em casa. Precisava focar
na história da Segunda Guerra Mundial, e não nas histórias que ocupavam
minha mente, meu coração e outras... partes do corpo.
Vestibular aos 20 anos, bem no auge dos hormônios de um ser
humano. É sério mesmo que a bancada entendia de química e biologia?
Capítulo 3

Ainda bem que minha mãe é um anjo e deixou um prato de


estrogonofe para mim na geladeira. Isso me daria uns quarenta minutos
entre comer, ver uma reprise de alguma sitcom e descansar um pouco.
Tomei um analgésico que ficava na caixinha de remédios do banheiro para
melhorar a dor que ainda pressionava minha cabeça. Para a minha sorte, ele
fez efeito rapidinho.
Ok, hora de estudar. Separei minha agenda, o livro, o caderno, uma
caneta e abri o notebook também. História pelo menos era legal. Eu amava
ver como a arte registrava o tempo.
Eu adorava entender os trâmites entre as dinâmicas do tempo e das
sociedades. E, entendendo as linhas cronológicas, podia deduzir os fatos se
usasse uma guia de pensamento correta.
Mesmo assim, estudar a Segunda Guerra Mundial era tão doloroso.
Parecia que muito da matéria focava no que o ser humano fez usando a
própria crueldade como rosa dos ventos. E é claro que era importante saber
isso, principalmente para não repetir os erros do passado, da mesma forma
que meu avô fez.
Não...
Meu avô, pai do meu pai, era contador. E o pai da minha mãe era
médico aposentado. Os dois eram super fofos comigo e nenhum deles era
um rei que iniciou uma guerra por sessenta anos.
Mordisquei a caneta como se ela pudesse me dar respostas. Logo me
levantei e abri o armário do lado da minha escrivaninha, onde guardava
meus outros materiais do curso. Tinha certeza de ter visto esses dias um
livro que eu usava no primário, no ano que aprendemos sobre reinos e
mitos. Lembrava que ele tinha uma capa azul e verde, e após revirar papéis
antigos, logo o tinha nas mãos.
Segurar aquele livro meio amassado tinha gosto de nostalgia. Lembro
que ele parecia até maior em minhas mãos. Mudei tanto assim em oito
anos?
Deitei-me de bruços na cama e comecei a folhear as páginas com
carinho. Aquela matéria era tão mais fácil do que eu estava acostumada a
estudar agora.
Ali eu passeava de novo por uma época que abrigava meus sonhos
entre suas lendas. Entre os castelos que um dia foram familiares às minhas
anotações e datas de acontecimentos importantes, logo vi gravado na página
um desenho ainda a lápis de uma árvore suntuosa com a lua no topo.
A página seguinte do livro tinha algumas curiosidades sobre o folclore
mundial. Leprechauns, curupira, sereias, minotauro, dragões.
Eu amava pensar nas possibilidades, ponderar o que existia em meio a
tanta imaginação. Dentre as figuras, não pude deixar de notar a imagem de
um carvalho cinza, conhecido como “Carvalho Prateado”. Um estranho
sentimento familiar fez cócegas no meu peito e tentei afastar o pensamento.
Aparentemente ele estava em alta hoje, aparecendo em todas as
oportunidades.
As mulheres que tinham conexão com a natureza, que mais tarde na
história vieram a ser queimadas como bruxas, costumavam se reunir e fazer
rituais dançando nuas sob suas folhas, iluminadas apenas pelas estrelas, em
celebração à comunhão da sua própria natureza com o universo.
Finalmente algo que fazia sentido. Provavelmente foi por isso que eu
fiquei tão impressionada com esse sonho. Ele mexeu nas memórias da
minha pré-adolescência das quais eu, sem saber, sentia saudades.
Pensei que seria por causa do vestibular. Eu finalmente me dei conta
de que estava crescendo e a vida estava mudando, talvez rápido demais.
Esfreguei os olhos, e respirei fundo analisando meu quarto. O armário
estava entreaberto, alguns livros estavam no chão, e a penteadeira
definitivamente precisava ser arrumada. Mas não foi a bagunça que fez meu
peito apertar.
Meu violino ficava encostado no canto da parede, implorando por uma
atenção que eu não podia mais lhe dar. E a culpa era minha. Eu tive a
chance de seguir meu sonho e fracassei. Não receberia uma segunda. Já
havia me resignado a esse fato, repetindo para mim mesma que a música
seria um hobby… Mas minhas mãos estavam tão macias que possivelmente
não aguentaria uma hora de prática sem os calos familiares.
Passei os dedos pela imagem do Carvalho de Prata e meu coração
começou apertar de saudade, a vontade era de chorar. Será que eu estava
com TPM de novo?
Nesse momento, ouvi a fechadura girar, e logo corri para abraçar meus
pais, me livrando dos pensamentos. Eles finalmente estavam de volta após a
última ponte aérea.
— Mãe, que bom que chegou!
Ela estava linda, mesmo com um único fio de cabelo fora do lugar em
seu belo penteado. Recebi um abraço apertado, enquanto meu pai deu um
beijo na minha cabeça. O uniforme de piloto o deixava extremamente
distinto. Senti vontade de chorar, como se parte de mim acreditasse que
nunca mais os veria.
— Estávamos com saudade, princesa! Foi tudo bem no curso? O
estrogonofe estava gostoso? — perguntou meu pai sorridente.
— E você já viu estrogonofe da minha mãe não estar uma delícia, pai?
Foi a melhor parte do dia... Junto com o brigadeiro da Olívia. — Peguei a
mala de mão para ajudá-los a tirar os sapatos antes de entrar em casa.
— Prova difícil, Lunara? — indagou minha mãe.
— Ah mãe, difícil pra quem não sabe, né? E, no meu caso, não sei
mesmo. Tem certas coisas que eu não sei por que preciso aprender.
— É só pra passar, filha. E vai passar. — Ela piscou o olho. — Assim
como eu e seu pai também já passamos por isso.
— Deus me livre da quantidade de contas que vocês tiveram que fazer
para trabalhar com aviação! — Eu ri, eles riram. Amava tê-los em casa. Só
esperava que isso não se tornasse uma daquelas discussões sem sentido
sobre carreira e meritocracia.
Quando era criança, odiava essas despedidas e ter que passar a semana
com meus avós. A saudade doía, mas era o sonho deles. Eles eram felizes
assim, isso eu entendia. Mas, para uma jovem, ter algumas noites sozinha
em casa por mês até que era bem legal. Quiçá necessário.
Meus pais às vezes eram escalados para vários voos internacionais e
passavam alguns dias fora, mas ultimamente estavam na escala nacional, o
que permitia mais tempo em casa.
Nós tínhamos milhas e milhas para viajar todo ano, o que garantia as
férias mais maneiras do mundo, sempre. Daqui a duas semanas iríamos à
Noruega, e eu estava extremamente empolgada. Um pouco ofendida por
eles terem marcado para logo depois da semana de aulas de reforço, mas
isso realmente tirava a pressão dos meus ombros.
Era difícil pensar em pais melhores do que Luiz e Diana. Cada vez que
olhava para dentro de mim e via meu amor por eles, sentia um misto de
acolhimento e vazio.
Eles eram bons demais para ser verdade, e no fundo eu sabia disso.
Capítulo 4

Acordei de um sono sem sonhos, com o despertador que mais era um


desesperador gritando ao meu lado. No visor, esforcei-me para enxergar a
terrível mensagem: “6:30 – Prova de História”.
Sim, eu sabia disso. Fiquei até tarde conversando com meus pais sobre
nossa ida a Berlim e tudo que vimos na Topografia do Terror. Mamãe dizia
ser muito importante um povo manter viva a memória de suas maiores
falhas, para assim se levantar com sua face oposta.
Lembrei-me de que ela ouviu isso em um passeio que fizemos a um
templo taoísta na China, sobre a moral aparecer nos momentos em que mais
nos distanciamos dela, na tentativa de manter um equilíbrio. Na época, eu
tinha cerca de oito anos e só queria visitar os pandas, mas agora, dez anos
depois, fazia certo sentido. Será que Montecorp precisaria fazer um
monumento em praça pública para que nenhuma geração voltasse a repetir
os mesmos erros?
Eu podia até ver a inauguração, que só funcionaria precedida de um
grande discurso, para que o povo entendesse a importância daquele marco.
E para que contassem a história para seus filhos, que contariam para os
deles. Caleb também adoraria essa ideia, uma forma de proteger nosso
futuro. Não havia nada mais importante para ele do que o bem-estar de
Montecorp, e isso nós tínhamos em comum. Meu coração dava cambalhotas
ao perceber o amor que ele tinha pelo meu povo. Lembrei-me de uma vez
em que os lacaios de Bólius deram uma trégua, e eu pude me sentar com os
soldados em volta da fogueira, falando sobre o futuro.
Ousamos sonhar com dias melhores naquela noite, e eu os garanti que
a aurora de paz em breve romperia. Uma parte de mim simplesmente sabia.
E a outra parte queria desesperadamente acreditar nisto. O importante é que
eles acreditaram em mim, e quando desmontamos o acampamento para ir
para casa, eu brindei minha caneca de vinho com cada um deles. Caleb
bradou: “A rainha da paz!”, e os outros o seguiram, em coro.
A imagem se rompeu em minha mente com um sabor ácido. Agora o
despertador tocou e era “6:45 – Prova de História”. O som estridente do
maldito alarme já me deixava em um péssimo humor logo cedo. O dia mal
havia começado e já sentia minha cabeça latejando.
Droga, eu havia dormido de novo! Quando corri para colocar a calça, a
camiseta e a mochila, peguei mais um comprimido para dor no banheiro e
fui para a cozinha. Minha mãe me entregou um copo de iogurte, que engoli
o mais rápido possível. Dei um beijinho nela e no meu pai, então corri para
a porta e fui colocar meu coturno branco.
— É por isso que a gente não pode ficar conversando até muito tarde,
Lulu. — Meu pai lia as notícias no celular bebendo café, minha mãe riu. Eu
olhei para ela quase que em súplica.
— Se não fizermos isso, ela não vai ter uma história de vida pra contar,
Luiz! — Adorava como ela fazia tudo ser tão simples. Eles me desejaram
sorte enquanto eu saía apressada pela porta.
Eu preferia minha rotina como era no ano passado, quando saía
empolgada para o curso preparatório de música. Eu podia voltar para casa e
passar o dia debruçada em partituras. Agora, eu precisava encarar meu
futuro possível... Mas tê-los aqui, torcendo por mim, transferia a energia
que eu precisava.
Nunca corri tanto. Mentira, a verdade é que quase nunca eu realmente
conseguia ir com calma. Ainda bem que existiam os cinco minutos de
tolerância – e ainda bem que eles me toleravam todo dia. Sentei na minha
cadeira de sempre, próxima à janela, com Íris à minha frente e Olívia ao
meu lado. Falamos um pouco sobre um filme que iria estrear naquele dia e
ficamos de combinar a saída na hora do intervalo.
A prova estava fácil, e não demorou até que eu estivesse no pátio
esperando minhas amigas. Íris chegou logo depois de mim, sorridente e
com os maiores e mais fofos olhos castanhos do mundo.
— Estou ouvindo o sino do recesso de inverno! — ela cantarolou. Eu
não sabia por que queria medicina, a voz dela parecia de um anjo.
— Mal posso esperar para me ver livre daqui. Visitar alguns castelos e
meditar no topo de montanhas... Parece o jeito certo de passar o tempo
livre.
— Você merece esses dias de princesa, só promete que não vai
esquecer da gente, tudo bem?
— Não esqueceria de vocês nem se eu tentasse — disse para ela com
um sorriso. Olívia vinha mais adiante no horizonte. A cara dela com certeza
significava brigadeiro na saída. — Como sua amiga, preciso dizer que você
não parece nada bem. Você quer um doce ou precisa que eu bata em
alguém?
— Você é pacifista, Luna. Esqueceu?
— Não quando fazem mal a alguém que eu amo. O que aconteceu?
— Todas as provas são um saco! Parece que drenam minha vida. Eu
aceito uma ida gloriosa ao cinema e um pote de sorvete, pra tentar esquecer
que ainda falta uma semana de tortura e simulados. — No dia que eu
negasse algo para aquele doce de pessoa estaria maluca.
— Sorvete é sempre uma boa ideia — concordei.
— Você quer ver aquele filme que vai estrear hoje, com a Emma
Watson? — Íris já ria, puxando uma mecha do seu cabelo preto para
trançar.
— É com a Emma Stone. As duas são ótimas. — Olívia pediu uma
trança embutida francesa, e estava ficando linda. Eu realmente admirava
demais as pessoas à minha volta, mas não ligava. Eu as amava demais para
vê-las como algo menos fantástico do que são. — Você tá bem, Luna? Não
para de mexer na cabeça desde que saiu da sala.
— É só uma dorzinha. Eu ando tendo uns sonhos... intensos. Acabo
não descansando direito. — Esforcei-me para sorrir. — Vamos só nós três,
umas seis da noite de hoje?
— Pode ser... — Eu sentia que Íris queria alguma coisa. — Mas vamos
no Cinema da Estação? Não quero correr o risco de encontrar com meu ex.
Ainda não tô bem pra isso, sabe? — O que ela sentia era tristeza, mas o que
eu sentia era raiva. O safado estava enrolando minha amiga, pediu duas
garotas em namoro ao mesmo tempo por mensagem e no dia seguinte não
teve o cuidado de não beijar a que respondeu primeiro na frente da Íris. Eles
estudavam no curso preparatório no outro lado da rua e era um drama
frequente ter que evitar esbarrar com os dois. Eu não suportava esse tipo de
traição.
— Ninguém aqui quer encontrar com eles, relaxa. — Olívia comentou
e olhou para cima, piscando contra o sol. — O Cinema da Estação tem uma
pipoca muito melhor.
— E de metrô é rapidinho. — Eu estava vibrando de empolgação com
o símile de liberdade à vista.
As meninas riram e logo o sinal bateu, indicando que era hora de
voltar à sala para uma aula desestimulante de química e física.
— Preparadas para mais um “ensaio da loucura”? Eu frequentemente
não entendo nada nessa aula — suspirou Olívia.
— E nos momentos “não frequentes”? — indaguei, curiosa.
— Eu durmo, e as ideias surgem como mágica. — Olívia sustentou o
olhar por alguns segundos antes de explodir numa gargalhada.
— Ué, eu estudo com você no sábado, meu amor! — Íris ofereceu,
estendendo o convite para mim. Passei o braço por entre os delas e falei
baixinho:
— Eu gostaria, mas... Blaze já vai estudar comigo.
Elas riram com sons idiotas e me cutucaram. Eu ri mais alto ainda.
Capítulo 5

Poucas coisas são tão bonitas quanto uma sexta à noite. Ok, talvez
uma sexta à noite quando você está de férias. Mas a sensação de colocar
uma roupa por prazer e não por obrigação era libertadora. Saí do banho
cantarolando uma música chamada Nocturne, que Olívia havia me
mostrado na volta para casa, e me perdi na sua atmosfera deliciosa ao ponto
de quase me deixar levar entre o vapor da água e seu aroma adocicado.
Fechei a porta da minha suíte e abri o armário para pensar. Parecia o
hábito do meu pai, ele fazia o mesmo, mas com a geladeira. E eu tinha que
concordar com ele, não tinha nada para comer nesse guarda-roupa.
Me joguei na cama com o corpo ainda um pouco úmido e pensei no
que vestiria para ir ao cinema com minhas amigas. Lembro-me de um longo
vestido lilás e esvoaçante que usava no verão, enquanto passeava pelo
jardim de rosas que minha mãe mandou plantar para mim quando descobriu
que estava grávida. Ela me contava que o reino ficou em festa pela primeira
vez desde que a guerra começou, tanto que decidiu construir o jardim mais
afastado do castelo, para que todos pudessem agendar uma visita. Menos no
dia do meu aniversário, esse era o dia em que só nós três íamos passear por
entre o perfume das rosas... Foi ali que eu finalmente convenci meu pai de
que a guerra deveria acabar. Que não deveríamos buscar uma vitória, mas
um fim. Eu tinha dezesseis anos. Ele sorriu e beijou minha testa com
orgulho, e em duas semanas ele e minha mãe partiram.
Eles foram para tão longe.
E agora estão tão distantes.
Eu ainda tenho tanto, tanto a lhes dizer...
Mas eles estão distantes demais.
Limpei uma lágrima assim que ouvi uma batida suave na porta, era
minha mãe.
Claro que era minha mãe, Diana Montecorp, também conhecida como
a melhor-mãe-do-mundo-quando-está-de-bom-humor, estava bem aqui para
avisar que Olívia chegara.
— Pode entrar! — gritei meio atrapalhada enquanto ajeitava o roupão
e limpava as lágrimas do rosto.
— Se você for assim, vai acabar lançando moda, e eu não tô nada
preparada pra ver todo mundo de roupão. — Olívia sorriu me provocando, e
eu só pude reagir com uma careta.
— Eu não sei o que vestir. Estava pensando em um vestido lilás, mas
acho que só imaginei ele.
Tem uma chance de ela ter percebido que eu estava emotiva, e logo
começou a passar as mãos por meus cabides.
— Usa esse aqui! Só colocar uma jaquetinha que vai ficar linda! —
Ela disse enquanto segurava um longo vestido lilás de cetim, com alças
finas e uma fenda na perna. O tom era exatamente como eu tinha sonhado,
até pisquei duas vezes, sem acreditar.
— Sim, esse vai ficar perfeito! Pega a jaqueta preta que vou me
maquiar rapidinho.
Passei o corretivo nas áreas mais escuras em volta dos olhos, blush nas
bochechas, um batom cor de boca nos lábios e uma camada leve de rímel.
Coloquei o vestido, borrifei meu perfume preferido – leve e adocicado – e
por fim soltei meu cabelo que estava preso em um coque, deixando as
ondas levemente rubras se formarem em volta do meu rosto. Me olhei no
espelho e me vi. Por vários dias, em meio a provas e tarefas – em meio à
própria guerra –, não me reconheci. Não tinha tempo para isso.
Eu esquecia como era fácil me parecer com a imagem que eu tinha de
mim mesma.
— Bem melhor, hein? — Olívia me passou a jaqueta. — Muito bom
ser amiga da mulher mais bonita do mundo.
— Aham — respondi, revirando os olhos. Olívia usava uma camiseta
amarela por baixo de uma salopete preta com um coturno estampado de
cobra. Era a própria imagem da It Girl parada à minha frente. Suspirei.
Definitivamente, eu admirava demais as pessoas à minha volta. — Você
está maravilhosa. Aposto que Íris também... A gente vai roubar alguns
olhares hoje. — Do jeito que ela sorriu, sabia que ela mal podia esperar por
isso.
Nós três finalmente pegamos o metrô, que era do lado da casa da Íris, e
fomos conversando sobre todos os assuntos que se passavam pelas nossas
cabeças: O que faríamos nos nossos aniversários, o caráter volátil das
pessoas – especialmente do ex da Íris quando se trata de se comprometer
com o sentimento dos outros –, de uma loja linda que tinha fora do país e
que o frete para cá era surreal. Não falei dos meus sonhos e visões como
algo mais que um desejo longínquo, mas também não disse o quão presente
eles estavam na minha mente.
O Cinema da Estação ficava em frente a uma praça repleta de
restaurantes e bares, e depois de muito chorar assistindo La La Land,
decidimos recuperar o ânimo com batatas fritas e cerveja. Olívia e Íris
reclamavam que era muito amargo, e não vou mentir, eu as zoava por isso.
Elas tinham o paladar superadocicado, e eu... Bom, eu estava acostumada a
sabores consideravelmente mais amargos em circunstâncias totalmente
tensas. Tiramos algumas fotos para postar e logo chamamos o garçom com
nosso pedido.
— Sinceramente, se eu realizar meus sonhos que nem a Mia, não vou
estar nem aí para quem não soube ficar do meu lado — constatou Íris, entre
uma batata e outra.
— Você jura que foi esse efeito que o filme teve em você? Acho que se
eu revir meu Sebastian numa circunstância como aquela, eu me acabo de
chorar. — Olívia não estava mentindo, ela tinha chorado bastante já. — Não
sei se dá para amar duas pessoas.
— Claro que dá, eu amo vocês! — Talvez eu tenha falado isso mais
alto do que deveria. Mas é claro, eu estava um pouco alta. Elas não tinham
desculpas pra essa vibe deprê. — E pelo visto tem alguém ali de olho na
gente — disse em voz baixa, sinalizando com a cabeça. — Então talvez dê
para amar três de uma vez só também.
Nós rimos e disfarçadamente – mentira, elas não sabiam ser discretas –
e olhamos para uma mesa mais ao fundo do bar, onde alguns rapazes
reparavam no quão lindas nós éramos. Ah, homens. Um deles usava uma
camisa branca que realçava a pele castanha-avermelhada, olhos levemente
repuxados que o faziam parecer indiscutivelmente gato, especialmente com
sua cara de artista que não valia um centavo. Ele veio até nós, deu o maior
sorriso de cafajeste que já vi e perguntou se poderia sentar conosco.
Nos entreolhamos, o semblante de Olívia brilhava de um jeito que só
me restou dizer “sim”. Não demorou até que seus amigos se juntassem a
nós e que continuássemos a falar de filmes, séries e músicas. Ótimos
tópicos pra conhecer alguém e procurar por um pingo de afinidade. E tenho
que admitir, eles eram divertidos. E bonitos também. Não perguntamos seus
nomes, mas também não pretendíamos usá-los.
Íris beijou um deles assim que ele declarou que sua frase favorita era
“you are my person.”
Olívia cedeu no momento em que o artista de um centavo contou sobre
um festival de música que foi no Texas e de sua experiência transcendental
durante o show com o misto de luzes ao pôr do sol.
Aham, transcendental era a língua dele na boca da minha amiga.
O terceiro rapaz me contava sobre o mochilão pela Patagônia que ele
faria em algumas semanas logo que mencionei minha ida para a Noruega.
Era adorável como separávamos nossos melhores momentos para
parecermos interessante aos olhos de outro alguém. Um desconhecido que
não se importava com a gente, mas queríamos garantir a melhor avaliação
possível. Como se nós fôssemos feito de brevidades, e não da rotina
massacrante. Mas era legal vestir essa persona. Contar essas histórias era
como se olhar no espelho e sorrir perante o que via.
Talvez fosse a segunda cerveja – eu não costumava ser forte para
bebidas –, mas logo notei que estava rindo um pouco demais de coisas que
não deveriam ser tão engraçadas assim. O homem olhou nos meus olhos, e
percebi no belo tom verde que ele me encarava de volta, assim como os
lábios finos e desenhados se voltavam na minha direção. Eu não havia
reparado em tais detalhes até então. Minha mente começou a se entregar a
possibilidades, mas antes que eu tomasse uma atitude, meu celular vibrou
em cima da mesa. Cortei nosso olhar para ver as notificações, uma
mensagem do meu pai e uma do Blaze confirmando sua ida à minha casa
em algumas horas.
O futuro mochileiro levantou delicadamente meu rosto e passou uma
mecha de cabelo para trás da orelha.
Meus pensamentos voltaram a ter uma forma definida. Eu não podia
continuar naquele bar... Sem condições.
E não era uma questão de querer ou não querer, eu só não confiava em
mim naquele estado.
Já estava enrolada demais.
E já era quase uma da manhã. Decisões precisam ser tomadas até meia
noite, ou só depois do sol nascer. Era a regra. Eu inventei aquela norma
naquele momento, mas parecia ser razoável o bastante para ser
implementada imediatamente.
Não sei se foi anjo da guarda ou fada madrinha, eu só sei que eu estava
prestes a deixar todo mundo na mesa irritado comigo.
— Gente, desculpa, mas sou a única que vai voltar para casa com elas
hoje — disse enquanto me levantava da mesa com um movimento um
pouco mais brusco do que planejei, sacudindo os copos que estavam sobre a
mesa de madeira.
Elas não ficaram felizes. Eles, menos ainda, mas sinto muito.
Na real, não sentia não. Já tinha ouvido a vida inteira que era mandona
demais, mas sempre preferi pensar em mim como alguém decidida. Sentia-
me responsável por elas, e não ia deixar minhas amigas com estranhos. Dei
um pulo no banheiro logo depois que os rapazes se despediram e pegaram o
número delas. Eu não dei o meu.
E de novo, talvez fosse a bebida, talvez fosse o sono, mas perto da
bancada do bar havia alguns panfletos, um deles me chamou atenção. Uma
folha pequena e vermelha com uma lua cheia desenhada, como se fosse
uma carta de tarô, e a frase: “Se conecte com a sua essência e vá para outra
dimensão”. A arte era bonita, e por impulso o guardei na minha bolsa.
Pagamos a conta e logo um Uber nos deixou em casa. Lembro-me de
apagar na cama, e nem me lembro se meu pai me deu uma bronca ou não.
Provavelmente não, ele confiava em mim. Sempre confiou em
absolutamente tudo.

Poucas coisas na vida eram tão gostosas quanto acordar em um


sábado. Sei que dizia isso sobre muitas coisas, mas tinha uma magia nos
finais de semana. Vi o sol querendo se espreguiçar entre as cortinas e por
hábito me sentei na cama para puxar as persianas.
E definitivamente não é tão legal acordar um pouco atordoada e com
uma enorme dor de cabeça, sinal de que realmente a noite ontem foi boa.
Esfreguei meus olhos, tentando adaptar minha cabeça ao eixo do meu
corpo, e meus pensamentos divagaram... Acho que minha última ressaca foi
logo quando a guerra acabou.
Eu estava me recuperando ainda, mas já conseguia me levantar.
Provavelmente a gema ajudou. Lembro do reflexo do rubi contra o fogo
impossivelmente vermelho. Lembro dos olhos de Caleb me fitando pelas
labaredas impossivelmente brilhantes. Nós sorríamos de longe, com nossos
olhares tão dolorosamente próximos, trocando pensamentos totalmente
inapropriados para uma princesa proferir em voz alta com seu exército tão
próximo. Mas, de alguma forma, sentia que ele poderia ler cada um deles.
Percebi que estava imaginando coisas quando voltei a olhar em volta
do meu quarto, procurando Caleb no horizonte. Mas, como sempre, ele
permanecia um lapso de algo que não sabia dizer se era uma memória ou
um sonho.
Meu laptop estava em cima da mesa, o vestido lilás jogado na cadeira,
a jaqueta no chão e as maquiagens dispostas de forma aleatória em cima da
penteadeira. Levantei da cama percebendo que não me dei ao trabalho de
colocar um pijama para dormir, então vesti a primeira camiseta que achei –
preta com uns arco-íris e unicórnios e escrito nela estava Led Zeppelin. Não
fazia sentido algum, mas era impossível não gostar daquela roupa.
Joguei as maquiagens em uma maleta, o vestido foi pendurado no
cabide assim como a jaqueta. Parecia que o ar fluía melhor. Vi de relance no
chão um papel vermelho meio amassado com um bonito desenho da lua
cheia. Alguma lembrança borrada na minha mente me chamava, mas me
assustei com um grito do meu pai me chamando e, sem saber onde colocá-
lo, deixei-o na primeira gaveta da escrivaninha.
— Luna, vem tomar café! Sua mãe já vai sair! — A voz de papai era
alta demais para aquele dia e hora. Mas mamãe só voltaria amanhã, eu
precisava me apressar e me despedir dela.
— Tô indo, paieeeeê.
Coloquei um short e vi mamãe lindamente arrumada com seu uniforme
azul de comissária, seus cabelos loiros e nariz empinadinho, curtindo o
aroma do café. Eu parecia uma mendiga ao lado dela, com o cabelo ainda
embaraçado e olheiras que denunciavam minha diversão na noite anterior.
Papai me estendeu uma xícara de café e um analgésico. Quantos desses será
eu poderia tomar dias seguidos? Retribui com um sorriso sem graça.
— Quando você volta, mãe? — falei após um gole quente e
reconfortante.
— Amanhã, meu amor, junto com seu pai. Nós dois fomos escalados
para uma conexão de São Paulo para cá, então umas cinco da tarde já
devemos estar em casa. Podemos pedir pizza, que tal?
— Acho que pizza tem cara, cheiro e gosto de domingo, eu topo... Mas
achei que papai não tinha trabalho hoje.
— Também achei, princesa, mas alguém tem que colocar os aviões no
ar, não é? Meu colega não estava se sentindo bem, me pediram para
substituir — ele disse e me entregou uma torrada com requeijão. — Mas só
vou umas três e meia da tarde, a gente ainda vai almoçar. Podemos dar uma
corrida no parque agora de manhã, se quiser.
Não sei o que tinha no café do meu pai, mas me sentia tão melhor que
umas voltas trotando com meu velho me pareciam uma ótima ideia.
Me despedi da mamãe, e quando fui para o meu quarto colocar uma
roupa mais adequada para fazer exercício na rua, mandei uma mensagem:

Senti meu rosto vermelho e a adrenalina preencheu meu sangue


mesmo antes de começar a correr.
Capítulo 6

Me despedi de papai com a certeza de que ele estava com tudo o que
precisava em sua mala de mão: Um snack saudável, o remédio da pressão e
um amuleto que fiz para ele quando tinha 6 anos numa atividade da escola.
Ele me deu um beijinho na testa e saiu rapidamente do elevador para
me lembrar que tinha uma lasanha no freezer e uma salada fresca na
geladeira. Sempre pesava um pouco o coração vê-los ir trabalhar. Me
pergunto quantas vezes eles também não sentiam o mesmo quando eu saía.
Provavelmente bem mais.
Ainda doía a lembrança de quando meus pais se despediram de mim
para comparecer à frente da batalha. Eles me abraçaram forte na câmara
real após uma árdua conversa com todas as informações das quais eu
precisaria caso eles não voltassem.
Nenhum dos dois me deixou expressar tristeza ou soltar uma lágrima.
Isso era sobre Montecorp, e não sobre a nossa família, era sobre milhares de
outras e os erros que nossa dinastia precisava corrigir.
Foi nesta despedida que minha mãe me entregou sua coroa favorita, a
mesma que acabei usando na minha coroação. Não que ela estivesse lá para
ver. Não fisicamente, pelo menos. Mas de forma simbólica, ela estava mais
presente que qualquer outro membro da casa real ou da nobreza,
lembrando-me de manter a cabeça erguida por toda a cerimônia.
A última vez que nos vimos, eu ainda sentia o calor de suas mãos
carinhosas na minha cabeça. Ainda ouvia suas palavras no meu ouvido:
“Nós voltamos logo, princesa.”
Esperanças e mentiras entrelaçadas. Nós três sabíamos disso.
A última vez que os vi, eles eram escoltados pela cavalaria real e
marchavam com bandeiras prateadas em direção aos portões da cidade. Era
injusto como meu avô havia levado a guerra até o território do fogo,
mantendo Montecorp intacta e sem contato com o mundo. Banhada na
escassez crescente a cada ano.
Era estranho como doía tanto. Perder algo que nunca tive.
Dei-me conta de que já eram três da tarde e não só ainda estava com
roupa de correr, como também essa roupa estava suja de molho de tomate.
Corri para tomar um banho, passei meu hidratante favorito e um
perfume floral. Não sabia o que a ciência falava sobre aromaterapia, mas
com certeza me sentia mil vezes menos melancólica.
Independente disso, eu realmente estava ansiosa e atrasada. Péssima
combinação. Sinceramente, às vezes parece que o tempo não fica do meu
lado.
Então, se me perguntassem se foi proposital ter escolhido um vestido
branco e justo de alças para passar a tarde estudando, eu respondo que foi a
primeira coisa que achei no armário. Afinal, quem não gosta de usar só um
vestidinho de malha para ficar confortável?
Fui até a penteadeira e repeti a mesma maquiagem da noite anterior.
Leve, suave, só ressaltando o que eu tinha de mais bonito, os cílios longos,
os lábios desenhados e as bochechas rosadas. Tive que usar um pouco mais
de corretivo para cobrir as olheiras de ontem, mas no geral olhei no espelho
e me achei linda.
Faltava um minuto para o horário combinado quando a minha
campainha tocou. Que bom, Blaze não teria nenhuma desculpa para se
atrasar. Ao abrir a porta, vi que se eu estava aparentando estar bonita sem
esforço, ele aparentemente já era lindo sem sequer pensar sobre isso. Estava
usando uma camiseta com uma estampa psicodélica em tons de azul e
cinza, que adorei, e uma calça preta. Ele deixou o chinelo na porta de casa e
deu um beijo no meu rosto. Senti meu rosto ficando quente, e assim que dei
o primeiro passo, fechei a porta.
Imediatamente eu não sabia bem como lidar com a situação. Nessa
tarde, havia uma coisa que eu queria muito fazer e uma coisa que eu não
queria fazer nem um pouco. Eu odiava ter que me debruçar sobre assuntos
tão insuportáveis enquanto estava perto dele. Como eu poderia demonstrar
minha vasta inteligência nos assuntos em que eu tinha habilidade? Se ao
menos nós pudéssemos estudar anatomia, haveria um detalhe ou dois que
eu adoraria repassar com ele. Suspirei, buscando analisar o teto, a parede,
qualquer coisa que me fizesse ter foco novamente. A voz da razão e a
recompensa de alguns momentos de folga falou primeiro.
— Se importa se a gente estudar no meu quarto? Meu material já está
lá e a luz é... melhor? — Essa era a pior e mais patética frase já dita no
universo, e eu sabia disso.
— Jura? Pensei que a gente podia sentar aqui no sofá, a uma distância
respeitável, para discutir a matéria. — Ele sorriu pra mim já cruzando a
sala. De fato, ele sabia o caminho.
Peguei água para nós dois e, ao chegar no quarto, confesso que fiquei
frustrada ao vê-lo organizando a mesa com livros e cadernos. Ele não deu
nenhum sinal de que queria algo além de estudar. Será que eu estava
interpretando os sinais de maneira errada? Não seria a primeira vez.
Foquei ao máximo enquanto ele me explicava sobre funções e
amostras gasosas. Sentia que, a cada tópico que ele falava, ficava mais
difícil respirar. Não sei se pelo exagero do conteúdo ou se pela forma que
ele sorria de lado, como se tudo fosse a coisa mais óbvia do mundo. E
definitivamente não era.
Quando finalmente acertei oito de dez questões, implorei para
fazermos uma pausa como uma recompensa. Só vinte minutos para olhar
para o céu e ver o pôr do sol. Já passava das cinco e meia da tarde, e eu
podia ver da minha janela como o mundo começava a aquarelar em tons de
laranja e púrpura. Bebi o último gole d’água do meu copo e levantei para
contemplar o horizonte.
Respirei fundo. Ouvi o som da cadeira arrastar no chão, e sabia que ele
estaria atrás de mim, possivelmente admirando a vista. Com sorte, não só
ela. Ok, era patético o quanto eu queria que ele me beijasse. Não que fosse
dizer isso em voz alta. Pode ser só um orgulho bobo, mas era o meu orgulho
bobo, e eu não estava disposta a deixá-lo de lado.
Sua presença me fazia sentir observada, e por mais que eu quisesse que
ele me olhasse, não queria transparecer isso de um jeito óbvio. Joguei meu
cabelo para o lado, torcendo para o movimento parecer natural como
sempre foi, e vi de soslaio as mechas rosadas caírem sobre meus olhos.
Blaze me encarou de volta, sorriu e se aproximou mais um passo, de
forma que agora sentia também sua respiração em meu pescoço.
— Você toca? — Ele apontou para o violino apoiado no canto da
minha cabeceira.
— Não, é uma peça decorativa, sabe? — Sarcasmo era como uma
segunda língua.
— Posso ouvir você tocando?
Eu neguei, mas ele deu um passo para trás e juntou as mãos no peito
como se estivesse implorando, e o argumento foi bom o bastante para me
fazer afinar o instrumento e trilhar algumas notas. Meus dedos reclamaram
ao deslizar nas cordas de aço. Há quantos dias eu não praticava? Poderia
fazer mais de uma semana agora?
Girei os pulsos e testei o balanço do arco nos meus dedos.
Infinitamente mais reconfortante do que uma espada. Respirei fundo,
buscando minha concentração aflorar, então meus músculos se
transformaram em uma bússola e deixei a melodia fluir caminhando para o
norte.
Clair de Lune.
A mesma canção que me acompanhou por um ano, mas ainda assim,
minha performance dela não tinha sido boa o bastante para assegurar minha
vaga e garantir que eu pudesse seguir meu sonho.
Imaginei que as horas de prática e o trauma da reprovação teriam me
feito odiar essa canção. Mas o contrário aconteceu. Éramos cúmplices.
Meus pais e minhas amigas acompanharam meu ciclo de dedicação e
decepção. Mas só essa música viveu comigo todos esses momentos de
perto. E eu gostava de acreditar que ela curtia existir através de mim. Por
mais etéreo que isso pareça.
Meus dedos conheciam as notas, mas meu coração conhecia a melodia.
A trama de esperança e saudade que celebrava a luz da lua prateada. Uma
canção sobre voltar para casa e pertencimento.
E como sempre, me dei conta de que chorava enquanto fazia a música
perpetuar no isolamento do meu quarto, trazendo-me por alguns instantes o
propósito que eu tanto buscava em outros momentos da vida e só
encontrava quando o violino tinha seu gentil peso apoiado no meu ombro.
Quando terminei, Blaze tinha os olhos maravilhados. Sem ar. Sem
palavras.
— Você nasceu pra isso, Luna. — A admiração na sua voz fez minhas
pernas balançarem.
— Já pensei assim, mas aparentemente a banca da faculdade de música
discorda.
Ele não conhecia esse lado da minha história.
Não sabia por que era tão sofrido ser obrigada a aprender coisas que
não faziam sentido. Voltei para a janela, distraindo os pensamentos com as
cores do horizonte.
— Você não acha um pouco óbvio demais que a princesa more na torre
do castelo? — Se ele queria me roubar uma risada, funcionou. Blaze passou
uma mecha de cabelo para trás da minha orelha, e senti um arrepio
enquanto ele desviava a atenção entre mim e o céu. Blaze parou bem atrás
de mim, e não sei se encostou propositalmente os braços na minha cintura.
Achei que ia paralisar com o seu toque, mas o efeito foi contrário. Me senti
estranhamente relaxada. Parecia… certo.
— É um jeito de ver. Tem suas vantagens morar no último andar. Mas,
felizmente, da última vez que conferi com o síndico, não tem nenhum
dragão me prendendo aqui. — No fundo da minha mente, ri da ironia em já
ter sido, de fato, vítima de um dragão. Mas não parecia um bom momento
para falar sobre isso. Na verdade, não parecia um momento para falar sobre
nada. Como se as palavras pudessem arruinar a sensação das borboletas
voando dentro de mim.
Virei o rosto para olhar nos olhos dele, e acho que parei
voluntariamente de respirar quando vi de perto seus tons de azul, o cabelo
levemente cacheado em um tom escuro de vermelho e a barba cerrada.
Senti suas mãos me envolvendo enquanto me virava suavemente,
colocando-me de frente para ele.
— Dificilmente, se eu fosse um dragão, estaria disposto a deixá-la sair
— ele sussurrou. Por um segundo, achei que realmente tinha dúvida em sua
voz enquanto subia seus dedos pelas minhas costas em carícias preguiçosas.
— Afinal, eles são colecionadores de tesouros, certo? — Era como se nossa
proximidade indicasse algo além do óbvio. Mas tudo bem, dois poderiam
jogar esse jogo. Passei meus dedos nas pontas dos seus cachos vermelhos
enquanto pensava no que dizer. Nenhuma palavra parecia encaixar. O
sorriso que fluía por mim estava arrepiando meu corpo inteiro.
— Eu posso te ensinar uma coisa ou duas sobre dragões, se você
quiser. — Ousei dar um passo mais próximo dele e senti seus braços me
abraçarem mais forte em resposta. Não contei o tempo, mas senti uma
eternidade em cada instante, como se tudo que existisse fosse a ponta dos
seus dedos na minha pele e o ritmo paciente da nossa respiração. Eu sabia
que estava em um daqueles momentos absolutamente perfeitos, mas ansiava
pelo que viria.
Eu sabia que meu olhar havia quebrado o silêncio assim que vi o brilho
refletido na forma que ele fitava cada parte do meu rosto, como se estivesse
memorizando cada detalhe. Senti seu polegar roçando meus lábios, como se
escolhesse o melhor ângulo para encaixar os seus.
— Me ensina o que sua boca sabe fazer além de falar coisas
maravilhosamente sem sentido — ele passou o polegar pelo meu lábio
inferior — e de lançar esse sorriso lindo.
Meu coração pulou uma batida. Pois bem, agora era então a hora dele
ter uma aula.
Seus lábios, que se repuxaram para cima como se pudesse ler o que
pensei, partiram-se em pura diversão quando finalmente me inclinei na
direção dele. Senti a tensão se misturar à coragem e ao desejo enquanto o
movimento sutil parecia encurtar a distância de um horizonte.
Era um daqueles momentos que eu congelaria se pudesse parar as
areias do tempo. Um raro instante onde absolutamente tudo parece estar em
perfeita harmonia.
Mas as areias continuaram a correr, e eu gostaria de não ter vivido o
que aconteceu depois.
Em um estalo, todo o clima se partiu, e vi seus olhos arregalarem ao
ouvir o barulho da porta de casa se abrindo, a tranca girando, os passos
quebrando tudo o que estava prestes a acontecer. Não acredito que alguém
estava chegando.
Meus pais deveriam estar fora até amanhã. Corri para o meu celular, vi
que havia algumas mensagens do meu pai avisando que o voo fora
cancelado e ele estava voltando mais cedo. Já passava das sete da
noite, quanto tempo a gente passou enrolando? Algo devia estar seriamente
errado nas engrenagens do tempo.
Muitas perguntas sem respostas. Verifiquei se meu vestido estava no
lugar certo –infelizmente estava – e coloquei um casaco por cima. Blaze
rapidamente pegou um livro que estava em cima da mesa e começou a
folhear aleatoriamente. Sentei de volta na cadeira rindo e, totalmente contra
a minha vontade, abri o livro de química inorgânica. Ainda tínhamos um
longo caminho pela frente. Blaze se sentou ao meu lado e deu um beijo
suave no meu ombro, seus olhos ainda em fogo. Dei um sorriso sem graça.
Um pedido de desculpas e um desconforto vazio.
Meu pai nem entrou no quarto, já que eu estava com a porta fechada, e
foi direto para o dele. Acho que eu e Blaze quebramos o silêncio suspirando
em alívio. Era difícil ouvir sobre as batidas estrondosas no meu peito.
— Não sei mesmo o que eu faria se meu pai entrasse aqui. — Eu
sorria, mas era de puro nervosismo misturado a uma insegurança sem
sentido.
— Eu não teria alternativa, a não ser falar a verdade e dizer que tenho
as piores intenções com a filha dele. — A gargalhada que soltei saiu
incontrolavelmente alta. — Honestamente, Luna, vou ter que te ensinar
tudo? — Ele piscou.
A promessa por trás daquela pergunta se firmou no meu peito até me
desfazer.
Capítulo 7

Papai acabou descobrindo que eu estava estudando com Blaze e


aproveitou para agradecer ao vizinho por estar revisitando matéria de
vestibular com a sua filha. De novo. Claro que ele também pediu pizza para
todo mundo, era a cara dele. Assistimos pela milésima vez o grupo de
amigos visitando o mesmo café em NY, e confesso que foi bem mais legal
do que eu imaginava.
Blaze e meu pai pareciam amigos de infância com vinte anos de
diferença entre eles. Já eram quase meia-noite quando eu não tinha mais
nenhuma desculpa boa o suficiente para manter Blaze em casa, e era tarde
demais para sair a qualquer lugar, então tudo o que fiz foi dar um aceno sem
graça na porta e dizer o mais genérico “a gente se fala”.
Coloquei meu pijama e corri para contar para minhas amigas o que
tinha acontecido. Para minha surpresa, o cara que não parecia valer nem um
centavo se chamava Arthur e tinha levado Olívia a um rodízio de batatas
fritas. Eu nem sabia que existia algo assim. Confesso que achei a ideia
genial. Íris viajaria, no dia seguinte, para uma cidade na serra do nosso
estado, e estava torcendo para conhecer alguém que realizasse seu sonho de
se mudar para uma cidade turística.
Eu amava nossos dramas, parecíamos peças de um quebra cabeça
perdido, tentando encontrar um lugar em que a gente encaixasse, sem ao
menos saber a qual figura nós pertencíamos.
Eu sabia que, no quadro da minha vida, elas eram a parte mais
colorida.
A luz do celular começou a incomodar quando desliguei o abajur.
Despedi-me das meninas e coloquei o aparelho para carregar.
Levantei-me e fui até a janela observar como as nuances de cores
agora eram um manto de escuridão salpicado de estrelas. Senti vontade de
tocar mais, só que já estava tarde, e eu não queria incomodar os vizinhos.
Eu até comecei a pensar no que estava fazendo, para onde iria. Não
queria quebrar a cara. Mas sabia que, para voar, a gente precisa dar um salto
de fé.
Mesmo que no meu caso eu me sentisse à beira de um precipício que
cedia sob meus pés a cada instante.
Era um sentimento tão estranho para mim. Eu ainda não havia tirado o
colar que ostentava a transparente pedra vermelha. Uma parte minha se
lembrava do sentimento que nasceu no final de uma guerra.
O medo me assombrava e a determinação era minha fortaleza. Eu tinha
uma missão a cumprir.
Eu não sabia quem eu era de verdade. Mas sabia que ainda queria a
mesma coisa: Paz e um mundo melhor.
Na noite antes da coroação, Caleb estava fazendo a guarda do meu
quarto, e eu pedi que entrasse. Lembro que compartilhei todas as dúvidas
que tinha em relação à expectativa do meu povo. Eles nem sabiam o que era
paz! E agora que a tinham, para onde o reino estaria indo?
Caleb conversou pela noite toda comigo. Eu o via naquele momento,
longe dos olhares de todos, como um rapaz que pela primeira vez na vida se
permitia sonhar, graças à futura rainha à sua frente.
Ouvi sobre a época de sua avó, uma plebeia comum que fazia os
melhores bolos da região. E de como a praça era repleta de música e dança
a cada nova fase da lua. Uma realidade tão calorosa e distante da história
fria que conhecia de dentro dos muros do castelo. Acho que não tiveram
tempo para me ensinar sobre festas populares além das comemorações dos
solstícios. Ou sobre simplesmente história de gente comum que fazia bolos
no meio da tarde para alegrar o dia.
Ele sugeriu que eu instruísse mais tutores, e que eles deveriam se
reunir todas as manhãs com os mais novos da cidade, a fim de passar
ensinamentos e atividades, diferente do aprendizado familiar que era feito
até agora. Suas ideias de prosperidade me cativaram, e me peguei sorrindo a
cada palavra que saía de seus lábios.
Quando o sol finalmente nasceu, o quarto se encheu de raios
preguiçosos e dourados. Ele olhava o horizonte com o semblante da beleza
e da esperança. Não sei por qual dos dois meu coração foi mais tocado.
Como se lembrasse de um compromisso urgente que havia esquecido,
ele se levantou e beijou minha mão. E com uma reverência ele partiu. Eu
poderia ter ordenado que ficasse, mas a nossa relação nunca foi assim.
Então o vi partir e continuei a vislumbrar um futuro mais brilhante que a
aurora perante meus olhos. Eu me sentia mais preparada do que nunca.
Mas, diferente do meu sonho, eu não era rainha de nada aqui.
Adorava ter o controle e cada detalhe dos meus próximos passos
planejados, mas agora eu me via refém de um sonho inacessível, de provas
que tomavam meu tempo e minha mente e de mil pensamentos de “talvez”
envolvendo um garoto. Eu, que uma vez me preocupei com o futuro de um
reino, agora só pensava em beijar a boca de alguém. Oh, céus.
Meu coração estava refém de duas realidades, e eu tinha medo de
escolher a qual eu pertencia de verdade.
Sentia que os devaneios estavam cada vez mais presentes, mas não
podia evitar. Parecia que havia um pulso do outro lado do tecido do tempo
chamando por mim. Tentei não chorar, mas o conflito que inundava minha
mente pesava tanto, tanto, que falhei miseravelmente. Lágrimas doídas
escorriam pelo meu rosto, como se em luto por tudo que eu sofrera por
Montecorp, por não ver meu reino finalmente viver em paz e por todos os
desafios que este mundo me reservava.
Peguei um lenço para enxugar meu rosto, pressionando meus olhos
devido ao desconforto. Como se isso fizesse a dor parar. Se funcionou, foi
placebo. Olhei para minhas mãos e o papel estava repleto de manchas
vermelhas. Corri para o banheiro e meu nariz sangrava. Muito.
Lembro que meus pais disseram que eu tinha isso às vezes quando
criança, mas francamente, eles que lidavam com a situação. Coloquei papel,
a fim de estancar o sangramento, e tentei não gargalhar com a imagem no
meu espelho. Uma jovem descabelada com papel higiênico pateticamente
enfiado no nariz – uma solução que não era bonita e muito menos
confortável. Uma garota com uma imaginação fértil demais para o seu
próprio bem. Uma mulher que sonhava com um futuro melhor.
Claro que eu não tinha poder nenhum sobre isso. Eu era ludibriada
com as novidades que o mundo apresentava para mim e com meus delírios
de grandeza surreais.
Passei a mão pelo cabelo rosado como se isso ajudasse os pensamentos
a irem para o lugar certo.
Não funcionou.
Deitei de pernas para cima e fiquei assim por um tempo. Uma hora,
trinta minutos, não sei dizer. Não importava.
Assim que me senti um pouco melhor, acendi um incenso, arrisquei
algumas notas no violino. A mesma melodia que insistia em encontrar meus
dedos preencheu o quarto. Parecia ser a única da qual eu não me esquecia,
mesmo passando às vezes semanas sem conseguir praticar. Dessa vez, não
era nenhuma peça famosa, mas minha primeira composição.
Peguei um livro que adorava, que falava sobre um jovem que sonhava
em aprender a chamar o vento. Abri em uma página aleatória e comecei a
ler. Ali, em aventuras distantes, eu podia viver uma terceira vida, na qual eu
não tinha responsabilidades. Eu queria isso. Um momento só meu, para ser
outro alguém.
Horas se passaram e me deitei na cama, meus pensamentos navegaram
de volta para Blaze. Ainda podia sentir o cheiro do seu perfume no meu
travesseiro.
Eu estava alegremente prestes a perder a minha sanidade.

Dormir naquela noite foi uma das coisas mais difíceis que já tinha
feito. Mais até do que a prova que me aguardava na segunda-feira.
Felizmente, acordei bem. Sem sangue, sem apitos, sem dor. Nada mal.
O domingo foi repleto de risadas com meus pais enquanto andávamos
pelo museu de história natural da nossa cidade. A arquitetura barroca do
prédio era linda, com detalhes que a curadora do museu jurava serem de
ouro.
Troquei fotos com minhas amigas quando paramos para almoçar em
um bistrô. Meu coração pulou uma batida quando vi uma mensagem de
Blaze perguntando quando eu estaria em casa, pois ele havia esquecido algo
no dia anterior.
Falei que ele podia passar lá umas seis da tarde e tentei fazer meu
sorriso não me denunciar. Coração idiota que acelerava por qualquer
besteira, que saco.
Ok, eu sorri. Não aguentei.
Mas logo voltei a atenção à minha mãe, que ainda estava comentando
empolgadíssima sobre a ala egípcia do museu, que havia recebido novos
artefatos. De fato, anos atrás, quando fomos ao Egito, ela chorou de emoção
ao ver as pirâmides. E eu simplesmente amava ver como ela sabia misturar
inteligência e sensibilidade de uma forma que, em vez de parecer frágil,
demonstrava claramente como ela era uma fortaleza.

Eu havia acabado de tomar banho e estava escovando os cabelos
molhados quando a campainha tocou.
Blaze não esperou um convite para entrar quando viu meu sorriso se
abrir. Ele vestia uma camisa azul que ressaltava a cor dos seus olhos, os
botões de cima abertos revelando uma fina corrente dourada em seu
pescoço, e tinha o cabelo com alguns cachos levemente bagunçados. Fiz
que sim com a cabeça, um tanto desconcertada enquanto ele tirava os
sapatos. Meus pais estavam no quarto deles, descansando do passeio, e acho
que nem ouviram nada.
— Preciso ir ao seu quarto. Você me fez esquecer uma coisa lá.
— Era impressionante como o tom de deboche estava até nas frases
mais comuns que ele dizia. Eu não iria admitir em voz alta o quanto
adorava isso.
— Isso não é exatamente um pedido. — Minha indignação foi
derrubada pelo meu sorriso traidor.
— Você disse mais cedo que eu poderia vir. Achei que já estava
implícito.
— Não vou discutir isso. Mas se você quiser, só se sentir que vai
ajudar, dividir comigo o que você esqueceu, fica mais fácil de achar,
porque juro que não vi nada.
Entramos no meu quarto, e por um segundo desejei que estivesse mais
arrumado do que estava. Parecia que um breve furacão tinha passado por
ali. E uma avalanche. E possivelmente um vulcão de pequeno porte, a julgar
o estado dos meus incensos.
— Já sei que você vai dizer que não dá para achar nada nesse
caos, mas hoje cedo eu não sabia o que vestir para sair e a zona saiu
um pouco do meu controle.
Não que eu estivesse envergonhada. O quarto era meu, podia
ficar do jeito que eu quisesse. Joguei meu cabelo ainda molhado para o
lado e analisei o local. Pelo menos estava bastante cheiroso. Para
minha surpresa, ele começou a arrumar meu quarto. Pendurou os
vestidos nos cabides que encontrou, esticou minha toalha nas costas da
cadeira e colocou o que julgava apropriado nas gavetas.
— É sério mesmo que você veio aqui para pegar uma coisa, não
vai me falar o que é e, em vez de me dizer, vai ficar mexendo nas
minhas roupas?
— Se quiser, guardo essa que está usando também. Vai ficar
ainda mais linda sem ela. — Seu tom era baixo e alegre, como se
tivesse ignorado metade do que eu tinha dito. Ignorei o que disse de
volta também e segurei suas mãos antes que pegasse mais um cabide.
— Blaze, eu tô morrendo de curiosidade. Me fala o que você tá
procurando e para de ser enxerido. — A essa altura eu já estava rindo,
o que não ajudava a colocar a moral na minha exigência. Ele
rapidamente apoiou as mãos no meu rosto. Seus lábios estavam tão
perto dos meus que o som de sua resposta ecoou na minha pele.
— Isso aqui.
Antes que pudesse ter qualquer reação ou perceber o que estava
acontecendo, eu senti a agilidade das suas mãos ao laçarem meu corpo. Ele
me levantou, ao passo que seus lábios suavemente encostaram nos meus.
Sem hesitação, sem calma, como se clamasse seu direito em me conquistar.
Seus braços apertaram minha cintura contra ele, a mão subindo pelas
minhas costas, minha nuca, até parar no meu cabelo.
Delicadamente ele fechou as mechas em um punho, me arqueando
mais para trás enquanto descia sua boca agora pelo meu pescoço, oscilando
entre beijos intensos e mordidas suaves. Vi fogo em seus olhos e deixei sair
um leve gemido, que ele logo tornou a calar com seus lábios. Seu beijo
tinha gosto de história inacabada, e a cada movimento que sua língua fazia
dentro da minha boca, eu sabia que não era o bastante. Crescia em mim
uma vontade avassaladora de sentir mais do seu toque, da sua pele, do seu
gosto. Pressionei meu corpo contra o dele, seus braços musculosos me
apertavam ainda mais, despertando em mim o mais insano fogo selvagem.
Nada que eu já havia experimentado era como isso. Uma necessidade de
queimar como a única prova de que realmente estava viva. Estava sendo
assim com o nosso primeiro beijo, com o segundo que sucedeu
imediatamente, e algo me dizia que toda vez que a gente se encontrasse eu
sentiria que não era o suficiente.
Dessa vez, realmente não foi. Com o mesmo movimento repentino, ele
desfez nosso enlace e me colocou de volta no chão. Disse que precisava ir.
Eu não sabia se deveria amar ou odiar esse homem. No segundo
seguinte, estava sozinha no quarto, os lábios inchados sentindo o frio que
sua ausência deixou. O som da porta emitiu um eco que me tirou das
nuvens em que eu estava literalmente flutuando instantes atrás.
Ele dava as cartas de um jeito que eu não me importava em ganhar ou
perder. Só não podia ficar sem jogar.

Meu final de semana foi uma montanha russa de emoções positivas,


mas passou breve como um suspiro, e logo eu estava frente a uma prova
que me fazia sentir entorpecida. Mas eu me recusava a gastar mais da
minha vida com coisas assim, então fiz o meu melhor com o que estudei.
Sorri para mim mesma ao pensar que Blaze também era um excelente
professor e que eu realmente tinha aprendido a matéria. Só não aprendi a
como deixá-lo atordoado com o mesmo efeito que ele tinha sobre mim.
Entreguei a prova, que foi corrigida na hora. Meu professor de química
não me suportava. Dava para ver nos olhos dele o desdém assim que pegou
minha prova. Eu sorri ao notar seu rosto fechar ao ver que eu de fato tinha
aprendido a matéria, que talvez a culpa fosse dele por destratar os piores
alunos, em vez de dar a devida atenção a eles. Meu sorriso só cresceu a
cada correção.
Acertei 80% da prova, o que me permitiu, com surpresa, dar boas-
vindas ao recesso. Eu teria finalmente uma semana de folga antes de viajar.
Era tudo o que eu queria, e sinceramente nem acreditei que tinha
conseguido. Uma semana inteira para apenas ser eu mesma, sem
preocupações. Sem ninguém para me dizer como e o que fazer com meu
tempo. Era estranha a ideia de possuir algo tão abstrato, mas eu estava tão
feliz que nem ligava.
Antes de tudo, mandei uma mensagem para o meu tutor. Convidei-o
para celebrar as férias. Ele disse que não poderia hoje, mas que quarta-feira
poderia brindar com um vinho na minha adega preferida.
Brinquei com meu pingente para cima e para baixo na corrente presa
ao meu pescoço. O calor familiar em minhas mãos me distraía. Não
perguntei por que ele estaria ocupado nos próximos dois dias. Era direito
dele contar ou não o que quisesse, mesmo que me matasse de curiosidade.
Às vezes eu queria ter menos respeito pela privacidade alheia e ser um
pouco mais intrometida.
Respondi a mensagem aceitando o convite e corri para encontrar com
Olívia e Íris no pátio. Nos três merecíamos uma tarde de milkshakes,
conversas e fotos.
Fomos ao mercado comprar sorvete e Nutella, então passamos a tarde
na casa da Íris falando sobre a vida, o universo e tudo mais. Íris estava
lendo a saga O Guia do Mochileiro das Galáxias, que parecia bastante
divertida. Olívia havia escrito uma canção suave como ela e pediu que eu
compusesse o violino para a música. Meu coração aqueceu com seu
convite.
Nenhuma de nós viu a hora passar e dormimos lá mesmo. Eram
momentos assim dos quais iríamos nos lembrar daqui a alguns anos, quando
a vida obrigasse a gente a se distanciar. Não me parecia justo o quão
perecíveis eram os momentos de alegria.
Parei então de me perguntar os porquês da vida. Não era como se eu
tivesse as respostas ou como se fosse procurá-las.
Capítulo 8

Eu ouvia meus pais reclamando sobre qual era local correto para se
guardar os garfos e colheres após lavar a louça enquanto folheava as
últimas páginas do livro que Íris tinha me emprestado, mas não pude evitar
sorrir ao perceber o quão boba era a discussão deles. Acho que depois de
trinta anos juntos, eles já tinham debatido todos os “assuntos cabeça” e
agora estavam só aparando as arestas da relação.
Parte de mim ficou impressionada em como eu tinha lido um livro
rápido. Mas, para ser franca, quando isso acontecia, era mais mérito do
livro ser bom do que meu por ser rápida.
Por mais que eu tivesse a memória distante de ler sobre dinastias
fantásticas, abençoada pelos deuses da natureza, eu gostava de pensar em
um certo reino de paz que teve seu início em volta de uma muda com folhas
prateadas, que viria a se tornar o símbolo de uma nação. A história vivia em
mim, e eu ainda me lembrava vividamente de cada uma das canções que
ouvíamos nos bailes, que contavam orgulhosamente sobre um legado
milenar de prosperidade. Os festivais da lua azul em homenagem à Deusa
de Prata, quando todo o povo se reunia como um só na escadaria do templo.
Lembro-me das canções entoadas pelos soldados nos acampamentos às
vésperas das batalhas, versões melancólicas dos breves dias festivos.
E ainda assim, nada do que eu sabia estava em algum lugar dos meus
livros de história ou em canto algum da internet.
Eu achava que minhas lembranças iriam esmaecer, mas a cada
momento eu me sentia mais lá do que aqui. Talvez estivesse sonhando
acordada. Talvez minha cabeça estivesse explodindo de novo, ao ponto de
pensar que era impossível não ter nenhuma relação com esses pensamentos
que soavam tão estrangeiros e tão familiares.
Talvez estivesse enlouquecendo.
Mas enquanto me acostumei com a ideia de ir para o “Restaurante no
Fim do Universo” que foi citado no Guia dos Mochileiros das Galáxias, o
livro chegou ao fim em meio aos meus pensamentos confusos. Mas me
apresentou uma ideia interessante. Talvez o tal “gerador de improbabilidade
infinita” realmente existisse. Talvez houvesse outras dimensões e coisas
absurdas do tipo.
Eu não era muito boa em física, mas sempre buscava deixar minha
mente aberta para possibilidades impossíveis. Lembrei, então, que eu
conhecia uma pessoa que seria incrível para tirar essa dúvida.
Peguei meu celular e, sem pensar muito, deixei meus dedos falarem
por mim.
O livro seria um bom motivo para falar com ele. Eu estaria a sós às
cinco horas da tarde, e antes que pudesse repensar, enviei a mensagem com
o convite.
“Tem como acelerar o tempo?”
Foi sua única resposta.
Ele poderia ter respondido com “sim” ou “não”. Mas eu sabia que era
nesses detalhes que ele me ganhava de novo e de novo.
Ok, o encontro estava marcado. Eu era tola demais pensando que ele
estava caindo de amores por mim também? Não era inocente, sabia que ele
claramente me desejava. E isso era estupidamente recíproco. Mas amor? Eu
não sabia nem se eu sentia isso. Se já havia sentido por alguém. Não sabia
se era aquele tipo de coisa que a gente simplesmente sabe, ou o tipo de
coisa que se constrói. Também não sabia mais se o que eu sentia era atração
ou esperança. Uma mistura violenta dos dois, com certeza. Ele já ocupava
meu pensamento 95% do tempo, isso precisava significar alguma coisa.
Avisei que meus pais não estariam em casa. Basicamente o convidei
para me servir em uma bandeja de prata. Nossa relação era para ser apenas
casual, mas acredito que as coisas evoluem para fora do nosso controle.
E sinceramente, eu não queria controlar nada. Pela primeira vez eu só
queria me deixar levar, como uma folha em meio à tempestade. Eu não
sabia se meu coração poderia suportar essa paixão. Não queria confessar
isso em voz alta nem para mim mesma. E ao mesmo tempo, tinha
momentos no dia em que eu só queria me perder sonhando com seu toque
indiscreto e curioso pelo meu corpo, com a forma como seus olhos
pareciam ver a verdade através dos meus e como quando ele falava comigo
parecia simplesmente encaixar todas as minhas questões em seu devido
lugar.
Capítulo 9

Os próximos dois dias abriram uma exceção no universo para


durarem o dobro do tempo. Quarenta e oito horas uma ova. Nunca fiz tantas
coisas a fim de manter minha mente no presente para ignorar a ansiedade
pelo futuro.
Terminei a leitura de O Nome do Vento, listei os lugares que queria
visitar na Noruega, convenci Íris e Olívia a correrem comigo no parque,
ajudei meus pais a fazer comidas para congelar e fiz, com sucesso, um
pudim para a janta, que sequer viu o sol nascer.
Eu estava sozinha há quatro horas, já havia tomado banho, feito a
mesma maquiagem leve, dessa vez com um delineado verde esmeralda nos
olhos, que ficou lindo com o tom avermelhado do meu cabelo. Prendi
minhas madeixas em um meio rabo com duas mechas finas soltas na frente
e coloquei um vestido leve de alças preto, que ia até um pouco acima dos
meus joelhos, com um profundo decote em V, deixando minhas costas nuas.
Com sorte, não só as costas, se tudo desse certo.
Já eram quase sete horas da noite quando a campainha finalmente
tocou. E eu não tinha recebido uma única mensagem com um aviso dele, o
que definitivamente não me deixou no melhor humor.
O mínimo que alguém precisa que fazer é avisar um imprevisto. Isso é
questão de consideração com o tempo do outro. Não queria que ele achasse
que eu era só um passatempo garantido, e isso realmente me fez repensar
todas as ações que eu estava tomando até agora.
Abri a porta e Blaze não tinha um pingo da sua aura debochada
natural. Que bom.
— Eu quero saber por que você atrasou? — Meu tom era tudo, menos
complacente.
— Se eu disser que é porque meu celular quebrou e tive que ir à loja
comprar outro que ainda nem configurei, você acredita? — Ele mostrou o
celular com um meio sorriso, o modelo novo ainda com o plástico a ser
tirado da tela.
— Se você me deixar puxar a película, eu te perdoo. — E eu estava
falando sério. Puxei o aparelho da sua mão, ele riu aliviado, tirou os sapatos
e entrou. Sentamos no sofá e puxei a película tentando conter o gemido de
satisfação.
— Tirar essa coisa dá um prazer quase sexual! — Pena que acaba tão
rápido, pensei. Ele riu e passou a mão para trás da cabeça em uma posição
mais confortável, como se estivesse em casa. Acho que depois de comer
pizza com meu pai aqui, Blaze ganhou esse direito.
— A gente precisa mudar seus conceitos de prazer sexual
urgentemente, então — ronronou.
— E não é só para isso que você está aqui? — A frase saiu tão
naturalmente que eu não poderia negar as palavras que saíram da minha
boca.
O que eu disse.
Ah, meu Deus, o que eu disse?
Não dá para desdizer.
LUNARA ALEXANDRIA MONTECORP, O QUE VOCÊ DISSE?
Acho que parei de piscar. Ou de respirar.
Como se faz os dois ao mesmo tempo?
Ele se virou para mim, claramente desconfortável, e eu vi que tinha
jogado um balde de água fria em uma situação que mal estava morna.
Primeiros três minutos do encontro e eu sugiro que ele é meu gigolô. Eu
poderia escrever um manual do que não fazer em um encontro, e seriam
150 páginas explicando esta história.
— Lunara, você realmente acha que eu estou aqui só para transar com
você? — A ênfase na palavra “só” me contorceu, e não de um jeito bom.
Ok, a gente estava falando sobre isso. Tarde demais para fingir que não
aconteceu. Não ia adiantar jogar um charme, disfarçar, então fui sincera. Já
estava sendo até demais, né?
— Eu só quis dizer que eu gostaria disso e que é inapropriado dizer o
quanto se não for recíproco. — Eu definitivamente não estava respirando.
— Mas a verdade é que eu odiaria a você e a mim se fosse “só” para isso.
— Verdade por verdade, preferi desabafar. — Mas eu não sei nada sobre
você, Blaze. Não sei quem são seus amigos, com quem você mora, se você
está enrolado com outra pessoa além de mim. — Ok, além de não respirar,
não estávamos colocando filtro nas palavras hoje também. Ótimo. Me
depilei para desabafar. — Só sei que, quando estou com você, tem uma
parte minha que para de funcionar. E a outra que parece que nunca esteve
tão viva.
Eu me sentia extremamente exposta. Talvez eu não tivesse nascido
para ser como essas mulheres que dominam o jogo da sedução, que
controlam suas palavras e o que sentem. Eu só sabia amar ou odiar
intensamente. E eu odiava a forma que estava lidando com a situação, livre
de barreiras que pudessem proteger meu coração da humilhação.
Blaze saiu da sua posição confortável e dominante e se curvou,
colocando as mãos no rosto. Não conseguia ver sua expressão até que ele
começou a tremer. Ele estava chorando?
Não.
Ele estava rindo. O desgraçado estava rindo de mim depois de eu ter
aberto meu coração. Isso que dá ser sincera. Eu tinha que quebrar muito a
cara para aprender, mas não passaria por isso nunca mais na minha vida.
Levantei furiosa ajustando a alça do meu vestido e fui em direção à porta,
quando ele interrompeu meu segundo passo. Sua expressão ainda era
sorridente, mas pelo menos não gargalhava alto. Seu olhar era gentil, apesar
do sorriso ser irritantemente lindo.
— Luna, para de se enrolar tanto com os próprios pensamentos. — A
voz calma e baixa reverberou pelo meu corpo. Eu odiaria admitir o quanto
meus pensamentos estavam enrolados esses tempos.
— Você ri de mim, debocha de tudo que eu falei como se eu fosse a
droga de um jogo para você e quer que eu fique tranquila? — Eu
definitivamente não estava pensando antes de falar.
— Lunara. — Meu nome passou devagar por seus lábios. — Eu não ri
de você, eu não achei nada do que você disse engraçado. — Senti
finalmente o ar voltar a fluir com mais naturalidade em alívio, apesar do
rosto estar quente e potencialmente corado. — Eu realmente preciso te
ensinar mais uma coisa ou duas. — Ele segurou minhas mãos e nos
sentamos novamente no sofá, mais próximos dessa vez. — Essa cidade,
esse lugar... Tudo aqui é novo para mim. Tem algo em você que me faz
sentir em casa. Mesmo que a gente se conheça há pouco tempo, acho que
parei de pensar em qualquer outra coisa desde que te vi. — Ele tirou uma
mecha de cabelo do meu rosto enquanto parecia procurar as palavras certas
para se expressar. Ele deixou um sopro fluir por um sorriso. — Eu jamais
imaginaria que encontraria a menina mais linda, divertida e geniosa do
mundo vivendo tão ridiculamente perto de mim. É como se o destino
estivesse sendo, pela primeira vez, gentil comigo.
Era doloroso o quanto eu percebia que cada minuto com ele poderia
durar uma eternidade. E o quão rápido passava, mesmo assim.
— E nada me faria mais feliz neste momento do que arrancar o seu
vestido, beijar cada parte do seu corpo e de transar com você até apagar a
memória de qualquer outra pessoa que já passou pela sua vida.
Ok, voltamos a não respirar, então. E a não nos movermos. Ou a não
saber como, pelo menos. Ele passou a mão em um gesto carinhoso pelo
meu braço e tocou na minha própria mão que repousava na perna.
Entrelaçou seus dedos nos meus como se fosse o gesto mais natural do
mundo, então senti o calor da sua mão me invadindo. Não pude evitar
imaginar o que aconteceria se ele decidisse deslizar seu toque pelo restante
da pele que agora estava exposta. Contudo, eu tinha mais coisas para ouvir,
e já estava parando de processar as informações.
— Mas, em vez disso, o que acha de gente se deitar naquela rede, ver o
sol se pôr de novo e só conversar? — Blaze me puxou pela mão, e eu só
consegui sorrir em resposta. Meu coração vacilou diante da sua sinceridade,
por mais que a tensão entre as minhas pernas discordasse veementemente
da sua proposta. Dei um abraço de corpo inteiro nele e o beijei não com
malícia, mas com cumplicidade. — Você disse que queria falar de um livro
que terminou de ler, não é?
— “Só” conversar então? — Ele fez que sim com a cabeça e me puxou
até a varanda. — Acho que não sei fazer só isso.
— Mais uma coisa que posso te ensinar.
Já tinha entendido que essa noite seria um sonho. E eu faria o possível
para não acordar.

Assim como o crepúsculo veio, logo viria a aurora. E entre eles havia
apenas nossas palavras sopradas ao vento e nossa troca indiscreta de
olhares, que insistia em gritar tudo o que o vocabulário não alcançava.
Achava curioso como algo tão etéreo como um pensamento se transformava
em memória a cada instante que se tornava parte da minha história.
Trocamos promessas de futuros impossíveis, assim como cada toque
tinha o sabor do infinito.
Estávamos na hora mais escura. Bem aquela que antecede o
amanhecer, quando não havia mais o que se falar. Nossos corpos já
ansiavam por prazer, e eu não fazia ideia de como aguentamos tantas horas
apenas trocando beijos e carícias deitados na rede, no sofá e na cama do
meu quarto.
— Você precisa aprender a ser mais paciente, Luna. Ninguém te falou
que o prazer é algo criado nos braços da expectativa e que ali ele cresce? —
ele disse, como se fosse óbvio, entre um beijo e outro.
— Eu aprendi que tem outras coisas que crescem na metade do tempo,
mesmo que você faça o possível para desviar minha atenção — respondi.
Blaze segurou minha mão que descia para baixo da linha do seu abdômen e
segurou meus pulsos acima da minha cabeça.
Ele respondeu com um beijo que desceu pelo meu pescoço até a curva
dos meus seios. Eu o xinguei por isso, mas ele não pareceu se ofender.
A meia-luz amarelada do meu abajur refletia nas minhas cortinas
longas esvoaçando com o vento gelado daquela noite, causando breves
arrepios na nossa pele.
Eu sentia como se o mundo estivesse, por fim, parado. Minha
paciência já havia terminado há muito tempo, e aparentemente a dele
também. Como se, por pura sensatez, o tempo tivesse suspendido suas
atividades, dando licença a dois apaixonados. Nos despimos como se
praticássemos uma dança ensaiada, onde ele ora conduzia, ora me deixava
liderar. Absolutamente cada movimento dele me fazia contorcer em sua
direção.
Eu sei que combinamos de só conversar, mas a tal linguagem do corpo
estava gritando. E a única coisa da qual eu tinha certeza era que morreria
dessa sensação se ela fosse letal. E recusaria qualquer chance de
salvamento.
Eu poderia jurar que Blaze lia minha mente, pois não havia uma outra
forma de suas mãos firmes adivinharem tão bem qual parte do meu corpo
mais precisava da sua atenção. Eu o senti firme contra mim, e sorri ao ver
como ele fazia minhas mãos parecerem delicadas e frágeis. Felizmente, de
frágil eu não tinha nada, e eu soube que ele percebeu isso quando me
levantou sobre seu corpo e o leve toque das suas mãos descendo minhas
costas foi o suficiente para me arrepiar por inteira.
Assim que ele percebeu — e se deliciou com meu corpo se contraindo
contra o dele –, senti as palmas quentes de suas mãos me abraçarem em um
movimento gentil e sedutor enquanto encaixou minhas pernas abertas sobre
ele, esperando que eu fizesse o movimento final.
Eu poderia queimar viva. Não tinha certeza se já não estava em
chamas.
Segui o ritmo e fluidez do seu movimento, descendo até onde eu
aguentava. Não podendo mais suportar um segundo de tensão, deixei que
nossos corpos seguissem seu ritmo natural, cada vez mais intenso. Cada vez
mais profundo. Nossas respirações eram ofegantes e o único som que saía
dos meus lábios eram os gemidos que escapavam entre nossos beijos.
Não senti quando Blaze me deitou na cama, seus olhos como labaredas
ao observar cada detalhe do meu corpo. Ele mordeu meus lábios em um
beijo terno, que desceu pelo meu pescoço, meus seios, fazendo cócegas na
lateral da minha cintura e finalmente calando minha risada quando voltou a
dar atenção para o calor pulsante que o aguardava entre minhas pernas.
Mordi meus lábios para tentar conter meu gemido, em vão.
Blaze parecia feliz em me torturar daquela forma, até que eu me sentei
na cama e indiquei para que se levantasse.
Aproximei seu corpo do meu com as mãos. A altura era apenas
perfeita para que eu o beijasse em toda a sua extensão, enquanto isso ele
gentilmente afastava as mechas rosadas do cabelo para trás do meu rosto.
Eu sabia o quão persuasiva poderia ser, mas não havia nada que se
comparasse ao argumento que saía dos meus lábios. E vi que ele concordou
comigo quando me deitou na cama, seu olhar um misto de impaciência e
urgência, e novamente voltou a me penetrar. Era como se cada parte do meu
corpo estivesse agradecendo por seu toque. Como se cada parte de mim
demandasse que ele mantivesse esse mesmo ritmo hipnótico enquanto eu
delirava em transe. De novo, era como se ele pudesse ler minha mente,
dando atenção a cada parte de mim que clamava seu toque. Alcançamos o
prazer ao mesmo tempo e me aconcheguei em seu peito quando ele
finalmente deitou no travesseiro ao meu lado.
Entrelacei sua mão na minha, as pontas dos dedos ainda dormentes.
Era como se meu espírito flutuasse enquanto olhava nos seus olhos, agora
em um tom de azul escuro conforme a luz tênue do meu quarto refletia.
Seus cachos avermelhados estavam uma bagunça, e aposto que eu também
estava. Não importava.
Não sei por quanto tempo ficamos em silêncio. Talvez por já termos
conversado sobre tudo horas atrás, ou então por estarmos sem palavras. Ele
passava as mãos pela minha cintura, subindo pela lateral do meu seio até
chegar no meu colar. A forma que ele analisou a pedra vermelha me deixou
curiosa.
— Você fica ainda mais linda quando está só com isso aqui — disse
quando deu um beijo na minha testa. Meu peito ficou quente sob seu toque,
de algum jeito ainda mais íntimo do que todos os outros que havíamos
trocado.
— Eu o tenho desde... — Não sabia desde quando. — Desde
sempre. Acho que faz parte de mim, não sei explicar.
— Mas é claro que você teria um item misterioso, não é? Se não te
conhecesse, diria que saiu de um livro. É mesmo como uma princesa
perdida.
Parte de mim ficou gelada com essas palavras. Como se minhas
lembranças penduradas exigissem minha atenção em um momento em que
eu realmente não queria. Aquilo era real. Eu, Blaze, a incerteza de um
futuro na faculdade. Era um futuro sem propósito, mas que se desdobrava
perante a mim.
Devo ter ficado em silêncio por tempo demais, seus olhos estavam
fechados, mas seus dedos ainda faziam caricias preguiçosas na minha
perna. Então, só respondi:
— Blaze, desenhe-me como uma das suas garotas francesas.
Ajeitei-me para deitar de lado na cama, com a cabeça sobre minha
mão. O ar de deboche, como sempre, o fez cair na gargalhada enquanto ele
me abraçava e me beijava novamente.
— Você também tem cara de príncipe de um jeito óbvio demais, sabia?
Sempre pensei isso — comentei e afastei o cabelo do seu rosto enquanto
observava suas sardas. Ele franziu a testa, tentando decidir se minha
declaração era um elogio ou não.
— Achei que tínhamos decidido que eu seria o dragão que a mantém
como um tesouro na torre. Mas, se precisar de um príncipe para salvá-la,
pode contar comigo também.
— Acho desnecessário, já sei me cuidar sozinha. — Eu ri, mas estava
falando sério. E como se quisesse provar que eu estava errada, ele me
beijou ainda mais intensamente e se levantou de súbito.
Ah, claro. Era esse o ponto que ele queria provar agora.
— Ok, princesa, vou deixar você se cuidar, então. — Ele vestia a calça
e ajeitava o cabelo enquanto só fiquei sentada assistindo o espetáculo. Ele
certamente achava que estava enganando alguém, mas não a mim.
— Ok, talvez eu precise de você… para algumas coisas e só. — Puxei
o lençol branco para me cobrir enquanto me ajoelhava na cama. Um convite
silencioso para que retornasse.
Ele não pensou duas vezes antes de se deitar ao meu lado e voltar a me
beijar sem parar.
— Eu fico, mas você tem que me prometer uma coisa. — Levantei
as sobrancelhas e esperei que continuasse. — Você nunca mais vai se cobrir
perto de mim se tiver a possibilidade de estar nua, ok?
Não pensei duas vezes antes de deixar de lado qualquer símile de
timidez que ainda podia haver em mim. Em um beijo murmurei “ok” e ele
me abraçou mais forte em resposta, jogando o lençol no chão e se deitando
em cima de mim.
Eu sabia que a noite estava prestes a terminar, mas não queria.
Eu sabia que noites como essa não se repetem nunca. Eu sabia, de
alguma forma, que seria a última vez que viveria um momento assim.
Capítulo 10

A última coisa da qual me lembro é dos seus olhos alaranjados pelo


amanhecer antes de se despedir de mim com um beijo sorridente nos lábios
e outro no rosto.
Ouvi o som da janela de metal fechando, senti meu corpo relaxar com
a ausência da brisa do suave inverno. Não me queixei da cama, agora
grande demais, e abracei os travesseiros enquanto deixei minha mente me
levar por pensamentos aleatórios.
Logo o quarto estava morno, minha pele reagia à luz do sol com
gentileza.
Não. Não era o sol que tocava minha pele, mas um santuário de fogo.
E um olhar reptiliano me observava ao longe, feito das mesmas chamas que
me cercavam. Bólius me confrontava pela última vez, na noite que
antecedeu o final da guerra.
Senti as palavras me sufocarem. Pela fumaça e pelo peso do sonho. Eu
já sabia que não haveria barganha. Após tantos anos, somente um de nós
poderia reinar com o poder do céu, da terra e do fogo. Ele sabia que não
poderia vencer a guerra, então mirou na única estratégia possível.
Privar o povo de sua futura rainha. A última herdeira viva Montecorp.
Fazia sentido, minha dinastia aniquilou a sua. Agora seria a retribuição
perfeita.
Bólius mirou pelo meu coração. Apenas um toque da garra da besta
seria o suficiente para acabar com meu frágil corpo. Ele poderia ter ateado
fogo em mim, mas algo nele hesitou. Como se ele não quisesse me ver
queimar.
A pedra vermelha parecia não mais que um ponto de luz, presa entre
suas escamas. Assustadoramente encantador. Eu lamentava que não
houvesse tratado de paz, mas não poderia tomar a decisão por ele. E não
seria tola o bastante para dar as costas ao meu inimigo.
Infelizmente, nenhum treino me preparou para esse combate. Eu era
boa com a espada, mas nada se compara a um dragão. De alguma forma, eu
desviei. De algum jeito, o soldado vermelho me alcançou. Minha
imaturidade cobrou a conta.
Tentei me defender, sem enxergar nenhuma brecha para atacar. Um
segundo depois, senti minha perna ficar dormente e caí brutalmente no
chão. Sangue vazava pelas frestas de minha armadura e uma dor lancinante
subia por todo o meu corpo.
Seria o meu fim. Mas o peso que estava sobre o meu corpo era o de
Caleb, que me levantou com a agilidade que pôde e me levou o mais rápido
possível para minha tenda no acampamento.
Tola. Era isso que eu era. Uma princesa tola por achar que poderia
acabar com a guerra só na base da conversa. Destreinada e sem exército. E
por que eu estava fazendo tudo isso? Para quê? O fardo da coroa e da minha
dinastia ora parecia motivo o bastante, ora pareciam palavras vazias de
significado. Eu queria mostrar minha boa vontade, mas só demonstrei
inexperiência e ignorância. Mais de 200 soldados foram queimados vivos
neste dia graças à minha atitude romântica e impetuosa.
Caleb, uma vez que me assistiu, finalizou a guerra com as próprias
mãos. Não sei como ele fez isso até hoje. Não sei se foi por mim ou por
seus companheiros de batalha. Mas a verdade é que graças a ele – e não a
mim, como contam as histórias e canções –, Montecorp finalmente
alcançaria uma geração de paz.
Abri os olhos suando frio e apalpei minha perna antes de perceber que
estava no meu quarto. Era como se tivesse corrido uma maratona. Minha
pele ainda estava arrepiada pelo contraste entre o calor e o frio. Percebi que
ainda estava nua, e ao me mexer na cama, notei, pela sensação ardente entre
as minhas pernas, que eu tinha vivido mais do que um sonho essa noite.
E sim, um dos dois era real.
Capítulo 11

Passei a manhã preparando um belo almoço para meus pais. Eles


sempre me mandavam uma mensagem a caminho de casa e uma sugestão
de qual comida pedir. Estavam cansados demais para pensar em cozinhar
depois de tantas conexões.
Dessa vez, eu quis fazer algo mais mimoso. Eu estava de excelente
humor e com muita disposição. Peguei uma receita de torta de legumes e
cogumelos da minha tia avó, liguei a soundbar da sala e deixei a casa toda
tocando as músicas da Halsey. Eu teria mais uma semana até viajar para a
Noruega, o que significava algumas saídas com Íris e Olívia e, com sorte,
algumas noites sem dormir com Blaze.
Ele havia me enviado uma mensagem logo cedo.
Se eu disser que eu abracei o celular, vou soar um pouco ridícula. Mas
a verdade é que eu estava sozinha em casa, a música estava no último
volume e eu não era uma pessoa de reprimir reações.
Em poucas horas a torta estava pronta, assim como um suco de
maracujá com um toque de pimenta que minha mãe amava. Pedi um gelato
pelo celular que já estava no freezer esperando a hora de ser servido.
Meus pais chegaram quando estava na metade de um filme, e logo
pausei para cumprimentá-los e ajudá-los com as malas. Disse que a comida
já estava chegando, e enquanto eles tomavam banho, coloquei a mesa com
o cardápio especial. Torcia para a torta estar no ponto. Segui a receita à
risca, então minhas chances eram boas.
— Lulu, de quem é a festa? — papai perguntou, empolgado com
tudo, como de costume.
— Bom, eu achei que como eu já estou de férias oficialmente e
como a nossa viagem está chegando, isso merecia uma comida
especial! Até porque a gente nunca come direito nesses passeios.
— Filha, isso é maravilhoso! — Mamãe, ainda de cabelos
molhados, me deu um abraço. — Essa é a torta da tia Neusa?
Papai já cortava e servia um pedaço generoso em cada um dos pratos.
Ele amava comer essa torta quando começou a namorar minha mãe.
— Fiz também seu suco favorito. — Me atrapalhei um pouco
com papai pegando a jarra transparente, mas logo enchi os copos e
entreguei um para ela.
— Está perfeito — foi tudo que mamãe conseguiu responder
depois de provar.
Comemos em silêncio por vários minutos, saboreando a torta que fiz.
Era realmente a receita mais gostosa da família. Tirando a lasanha da minha
mãe.
— Lulu, aproveitando que estamos comemorando, temos uma
boa notícia. — Mamãe limpava o canto da sua boca com o guardanapo
enquanto apoiava a mão no joelho do meu pai, para que continuasse a
frase. Sempre foi assim, cada um falava uma parte. Me pergunto se
eles ensaiavam. Papai levou uns instantes para descobrir qual era a
notícia que aparentemente ele era o responsável por falar. Estava tão
distraído com o segundo pedaço de torta que nem ouviu mamãe
falando.
— Luna, já que você já está de férias, nós conseguimos adiantar
as passagens para a nossa viagem! Vamos amanhã à noite para a
Noruega. E vamos passar também pela Suécia e Finlândia, para
aproveitar o verão europeu.
Eles estavam tão sorridentes que eu sentia que deveria estar também.
Normalmente eu era a primeira a pular de empolgação quando eles
anunciavam os próximos destinos de viagem. Mas eu realmente estava
contando com a próxima semana para... outros planos.
Para viver uma fantasia amorosa com o cara mais gato que já tinha
visto. Para curtir com minhas melhores amigas antes dos nossos caminhos
se distanciarem. Para curtir um pouco meu quarto sem livros de vestibular
por toda parte. Para praticar música antes que meus dedos enferrujassem de
vez e eu esquecesse tudo que levei anos para aprender.
Eles devem ter percebido minha reação – ou a falta dela – e seus
sorrisos discretamente caíram. Não pude fazer nada além de oferecer minha
sinceridade.
— É que eu tinha umas coisas marcadas essa semana e agora vou
ter que desmarcar... Mas tudo bem, nossa viagem vai ser ótima! —
Logo me levantei para buscar o gelato na cozinha.
— Luna, a gente podia ter te consultado. Mas foi uma
oportunidade imperdível de passar o voo para três assentos da primeira
classe, acabamos nem pensando nisso — explicou meu pai com o tom
mais animado possível quando falou da primeira classe. Como ele era
um amor, tentei melhorar meu tom de voz por eles enquanto pegava
colheres de sobremesa.
— Pai, você sempre disse que a primeira classe de verdade é a
cabine do piloto. — Eu tentei meu melhor sorriso enquanto pensava as
mil coisas que teria que fazer em apenas dois dias. A começar pela
mala. Oh, céus.
— E é! Mas posso dar a vez para o colega pilotar se isso
significa passar um tempo com minhas meninas favoritas — ele disse.
Mamãe sorriu com a piscada que papai deu para ela.
Tomamos sorvete enquanto mamãe falava das refeições da primeira
classe e como a que eu preparei era muito melhor. Sorri, sabia que eles
estavam querendo me animar. O gelato de flocos estava ajudando, era
apenas delicioso.
— Eu ia passar a tarde com vocês, mas posso ver minhas amigas
hoje, já que vou ficar fora por um tempo?
Os dois fizeram que sim. E, para minha sorte, Íris e Olívia estavam em
casa. Marcamos de nos encontrar no parque. Eu teria algumas horas até me
encontrar com Blaze. Isso significava que eu precisava me arrumar agora.
Papai viu isso no meu olhar e sinalizou que fosse para meu quarto
enquanto ele e mamãe tiravam a mesa e cuidavam da louça.

O sol ainda estava a pino quando cheguei na entrada do parque. O


grande portão de bronze, esverdeado com o tempo, ainda conseguia refletir
a luz a essa hora.
Andei por uns dez minutos até encontrar a área de piquenique,
passando pela pista de corrida onde várias famílias se exercitavam e
andavam de bicicleta. Quando andava pelo caminho de terra batida que
ficava na lateral do lago, apressei-me ao avistar as altas pilastras de
mármore que adornavam a entrada do gramado.
Pedi licença a algumas crianças que jogavam bolas gigantes e
coloridas por cima de suas cabeças. Eram tantas que não vi um caminho
onde não precisaria desviar.
Elas estavam histéricas e sorridentes. Os joelhos sujos de terra e as
bocas, de sorvete. Não pareciam se importar, então eu também não me
importaria.
Era como ver as próprias crianças de Montecorp na parada que
fizemos de volta ao reino quando finalmente nossas tropas voltaram para
casa. Elas não tinham ainda experimentado uma infância como essa. Meu
coração apertou. Quantas crianças tiveram sua infância roubada pela
escassez de recursos? Nesse e em outros mundos. Esta parecia a única
realidade em comum entre os dois mundos que habitavam em mim.
Íris estava na sombra de uma árvore frondosa, fazia uma trança nos
longos cabelos escuros de Olívia quando me viu e logo levantou uma das
mãos. Tentei me apressar ao subir a pequena colina, apoiei minha cesta de
vime e mesmo ofegante abracei as duas ao mesmo tempo, quase as
derrubando no chão com um “oiii” extremamente alegre.
— A sorte que eu dei de vocês estarem livres hoje não tá no gibi —
falei enquanto comecei a trançar o cabelo da Íris como se fossemos um
totem.
— Eu não estava livre, tinha marcado com a minha prima. Mas não ia
deixar de me despedir de você, né? — Olívia me passou um pente enquanto
falava.
— Eu também nunca na minha vida que ficaria sem te ver. Três
semanas fora, né, Luna? — Íris tentou perguntar sem virar a cabeça, mas
ainda assim entortou um pouco a trança espinha de peixe que eu fazia pelos
seus cabelos.
— Uhum. Meus pais nem me consultaram. Isso era legal anos atrás,
mas eu só sinto que minhas decisões precisam ser levadas em consideração,
sabe?
— Eles não entendem quando a gente começa a crescer. — Olívia
estava pronta em uma trança embutida lateral que refletia o brilho dos seus
cabelos pretos e se sentou de pernas cruzadas na toalha que trouxe, virando
para mim.
— Eles decidem para o que a gente cresce. A verdade é essa... Não
acho que é de propósito — falei. Terminei de atar as pontas da Íris e puxei
os fios com delicadeza para que ficasse com mais volume. Eu gostava da
nossa dinâmica. As ações simplesmente fluíam enquanto os assuntos se
emendavam. — Mas me fala de vocês, quais os planos para o recesso?
— Eu quero fazer uma maratona de filmes de terror para escrever o
meu. Tipo o que a Netflix fez para criar Stranger Things. — Olívia formava
uma silhueta contra o sol.
— Só que você não é um robô, já te disse que um software que fez
isso! — Íris a empurrou pelo braço, rindo de leve.
— Mas o meu gatinho disse que vai me ajudar com a trilha sonora. Vai
ser divertido!
— Vocês são dois chicletes, quem diria, ein? Jurava que ele não valia
nada. — Nunca fiquei tão feliz de estar enganada. — Você pensa em fazer o
que, Íris?
— Vou passar duas semanas com minha tia que mora em Nova Jersey
para melhorar meu inglês. Tipo um mini intercâmbio, sabe. Acho que vai
ser divertido.
— E fica pertinho de Nova York, então você pode fazer uns mil
programas culturais. Você vai amar. — Íris e Olívia se sentaram atrás de
mim e começaram a separar meu cabelo em mechas.
— Você bem que podia ter uma tia na Califórnia, né? Vai ter um
festival de música irado lá. Meu sonho ir! — Olívia comentou. Se tinha
uma pessoa que merecia estar lá, era ela.
— Você vai fazer sucesso com seu filme e vai, ué! E ainda vai levar a
gente. Aliás, o que vocês estão fazendo no meu cabelo? — Tentei não
franzir a testa e peguei a câmera frontal do celular. Vi algumas tranças finas
na lateral da minha cabeça, com algumas mechas soltas intercaladas. O rosa
pálido tinha um tom diferente a essa hora do sol.
— Você vai ficar linda, não se preocupa. Mais linda, no caso. Aliás,
você e Blaze já passaram dessa palhaçada de fingir que estão estudando
para dar uns beijos? Essa desculpa não cola para sempre — Olívia era a
amiga mais realista e puxa saco do mundo. Que sorte a minha.
— Vou na casa dele mais tarde. — Não sabia como colocar em
palavras o que sentia. Era um misto de saudade do que não viveríamos essa
semana, com despedida e com um “não exagera, são só três semanas!”. —
Tomar um vinho. Me despedir, sabe? Mas sei lá o que a gente vai ter
quando voltar. Vou ter que descobrir, né?
— Se ele não for um idiota, não vai deixar você escapar. — Olívia não
fazia ideia do quanto ela estava certa.
Nos sentamos em círculo, cada uma com uma trança diferente
adornando nossos rostos. Olhando de longe, acho que pareceríamos
comuns, se não fosse pela aura de cada uma.
Íris sempre com seu olhar bondoso e prestes a se emocionar por
qualquer coisa.
Olívia em uma mistura deliciosa de distração e curiosidade e que se
fascinava com absolutamente tudo.
Parte de mim queria ser assim. Ter um brilho especial que me
destacasse na multidão. Foi por isso que comecei a tingir meu cabelo de
rosa desde os 14 anos. Por isso que eu usava o humor como mecanismo de
defesa.
Eu trazia isso para a superfície com tanta força, até que eu me
convencesse de que era isso que eu era. Era tão, tão mais fácil do que
encarar as incertezas que me faziam companhia dia e noite. Era muito mais
fácil agir como se soubesse de tudo em vez de deixar o mundo perceber que
você não sabe de nada. Era como se toda minha vida fosse apenas uma
falácia de... — Ouch!
Alguma coisa bateu na minha cabeça. Não com força, mas me
assustou. Devo ter viajado, porque percebi que minhas amigas estavam
atirando pão para os patos no lago e que eu devo ter ficado fora do ar por
tempo o suficiente para merecer um miolo de pão bem na testa.
Levantei da canga limpando meu vestido, peguei o miolo e corri na
direção delas, que estavam agachadas na beira da água.
— Desculpa, gente, viajei. Bateu aquela nostalgia do presente. — Se é
que isso era uma coisa. Joguei um pãozinho e foi difícil não derreter quando
o patinho chegou tão perto de mim.
— Tá tudo bem ser avoada e cheia de mistério, Luna. — Olívia sorria
de um jeito que era o retrato da travessura. — Só acho que você podia
ACORDAR!
A próxima coisa que eu percebi é que meu rosto estava encharcado e
gelado. Ela ria como se tivesse ouvido a melhor piada do mundo.
Íris, que era a mais esperta de nós duas, já tinha corrido de volta para
nossa toalha de piquenique e se apressava a tirar fotos nossas jogando água
uma na outra, arruinando nossas tranças enquanto esse dia encerrava mais
um capítulo da nossa vida.
Eu devia mesmo ter muita sorte de ter coisas tão boas assim para sentir
saudades.

Não tinha tempo de me trocar. Nem de tomar banho. A minha sorte é


que o dia estava fresco e que a água do lago ressaltou um aroma de baunilha
delicioso que vinha dos meus cabelos. Apesar de tudo, eles ficaram com um
efeito ultra ondulado lindo quando soltei as tranças e me ajeitei o melhor
que pude antes de tocar a campainha de Blaze.
Era estranho que já tivéssemos feito e dito tantas coisas e ainda assim
eu não soubesse como era o lugar onde ele morava. Ou com quem. Ou
qualquer detalhe sobre sua vida além de todas as coisas das quais eu tinha
certeza que me tiravam o fôlego.
Aliás, quando a gente finalmente se acostuma e o coração para de
acelerar porque você vai encontrar o cara mais gato do mundo? Tomara que
nunca.
Toquei a campainha uma vez, respirando fundo e tendo certeza de que
tinha tudo o que precisávamos, duas taças de vinho e um pacote de
amêndoas caramelizadas, que já tinha colocado na minha cesta de
piquenique por precaução. Não sei por que essa combinação dava certo,
mas eu gostava.
Não deu tempo de respirar fundo três vezes, pois Blaze logo abriu a
porta – e um sorriso – como se já estivesse com a mão na maçaneta.
Agindo por puro impulso, deixei a cesta no chão e passei os braços por
seu pescoço em um abraço terno enquanto sentia seu perfume amadeirado
em fogo, com notas de tangerina. Nada foi mais fluido e natural do que o
beijo que ele me deu em seguida, assim que nossos olhos tiveram um
instante inteiro para se encontrar. Essa noite eu não teria pressa. Tínhamos
todo o tempo do mundo, até o sol nascer.
Parecia que essa era a nossa história.
— Hey — ele finalmente sussurrou. — Quer entrar ou a gente
continua dando um show para seja lá quem for que assiste às câmeras de
segurança?
Foi difícil não rolar os olhos.
— Você é impossível, sabia?
— Você gosta. — Ele piscou. Não tinha um argumento para isso, então
só tirei meu coturno, peguei minhas coisas do chão e finalmente vi seu
apartamento.
Os móveis eram simples e aconchegantes: Um sofá marrom grande o
suficiente para caber quatro pessoas deitadas, um bar montado e uma
belíssima pedra escura na bancada que dividia a sala e cozinha, que se
integravam como um só ambiente. Havia também uma mesa lateral, onde
seu laptop estava aberto com uma playlist rolando na tela, e uma TV quase
do tamanho da própria parede. De fato, ele não parecia economizar nos
eletrônicos, ou nos outros objetos, mas a TV era fora de série. Eu devia
trazer meu pai para assistir Friends aqui. Por mais que isso agora fosse uma
péssima ideia.
A varanda dele dava vista direta para a copa de uma árvore, agora
escurecida com a noite. Ao amanhecer, deveria ser belíssimo.
Blaze colocou minha cesta sobre a bancada da cozinha, deixando-me à
vontade para explorar o lugar.
— Que bom que além das taças você trouxe papéis de biscoito. É uma
falta de respeito vir a um encontro sem isso.
Ah, que raiva. Me irritava loucamente o quanto ele me fazia sorrir
quando eu queria ignorá-lo. Ele posicionou os pacotes vazios ao lado das
taças e das amêndoas com uma risada, como se fizessem parte da
decoração.
— Se você não fosse tão engraçado, eu faria cookies pra gente. Tenho
uma receita muito boa.
— Me parece uma boa ideia. A gente pode colocar alguns para assar
enquanto tomamos o vinho.
Ele sabia que eu havia concordado quando sorri e comecei a ditar os
ingredientes da receita. Ele começou a abrir e fechar os armários da cozinha
em busca de tudo que eu precisava.
— Eu fui com minhas amigas ao parque. A gente fez um piquenique
para nos despedirmos hoje à tarde.
— Despedida, sério? Poxa, qual delas está indo embora?
— Eu.
— Você? — Havia algo como tristeza genuína em seus olhos. Como se
precisasse de um segundo a mais para continuar a frase. Respirei fundo e
disse com o máximo de naturalidade possível:
— Meus pais adiantaram nossa viagem. Como uma surpresa, vamos
passar três semanas de férias juntos. Meu voo sai amanhã... — E só temos
essa noite juntos, sei lá o que vai ser de nós quando eu voltar.
Pode ter sido impressão, mas como foi se o vermelho dos seus cabelos
inundasse seu rosto em um tom rubro e aborrecido. Como se ele não
soubesse o que me dizer em seguida. Eu também não sabia.
Blaze foi até a adega em um móvel embutido perto do chão da sala.
— Branco ou tinto? — Sua voz era firme, mas eu não sabia dizer qual
sentimento tinha no seu timbre.
Era só isso, então? A conversa acabou? Segue o script original?
— Prefiro o branco.
Ele aumentou o som com o controle em cima da bancada, então
percebi que estava tocando Aerosmith no fundo. Crying, para ser mais
específica. Que apropriado. Assisti em silêncio enquanto ele enchia as duas
taças, sem saber muito bem como me posicionar naquele ambiente.
Ele me estendeu uma taça com um olhar carinhoso. Eu peguei,
olhando para o chão.
Blaze encurtou a distância entre nós com poucos passos e levantou
meu queixo com sua mão vazia, encontrando meu olhar tímido e incerto em
sua direção.
Senti seu polegar passando pelos meus lábios antes que ele me beijasse
intensamente. Ele estendeu a taça em direção à minha, que eu segurava na
lateral do meu corpo, tilintando as duas em um brinde.
— Ao tempo que temos — ele sussurrou.
— E a cada instante infinito.
Nós bebemos a isso, e o mundo pareceu leve de novo.
Capítulo 12

Banho era a opção mais sensata. Não sei exatamente em qual


momento fazer biscoitos transformou a cozinha em um cenário pós-
apocalíptico. Havia farinha por toda parte, mas eu culpava Blaze por não
guardar o pó em um pote, mas direto no saco. Também o culpo por não ter
nenhum avental por perto. E principalmente, o culpo por ter achado graça
em sujar a ponta do meu nariz de manteiga.
— É sério que você não acha que já chega de caos nessa cozinha? —
Incrédula, tentei ficar brava, fazer cara de brava ou voz de brava. Mas só
sabia sorrir.
— Claro que não. Se eu quiser ordem, preciso do caos para equilibrar.
— Ele bebeu o último gole em sua taça, apoiando-a na pia.
— Você continua lindinha.
— Lindinha?
— Sim. — Blaze verificou a temperatura do forno antes de colocar a
travessa no seu interior.
— Essa é uma péssima forma de elogiar uma garota. Tudo com “inha”
é ruim.
Ele ponderou por um instante.
— “Rainha” não é legal? — perguntou enquanto bebia um gole da
taça.
Droga, odiava quando ele tinha razão.
— Toda regra tem uma exceção. Rainha, na verdade é... bem legal. —
Tentei não levar meu pensamento muito além disso. Para minha coroa
imaginária e meu reino perdido.
— Então, minha rainha, qual é sua ordem agora? — Como sempre, eu
esqueci de respirar com o jeito que ele piscou para mim.
E pensando que eu já tinha sentado na grama, feito uma guerra de água
na beira de um lago e agora tinha farinha e manteiga em lugares aleatórios
do meu corpo...
— Prepare–me um banho. — A voz que saiu de mim era de uma
rainha. Ignorei o quanto me sentia bem em usá-la.
Ele hesitou, mas não ousou me questionar. Apenas deu um beijo na
minha mão e levou consigo um sorriso malicioso em seus lábios. Apoiei-me
na pia e terminei os últimos goles que me aguardavam na taça. O vinho não
estava mais gelado, mas era saboroso o suficiente para eu não me importar.
E para me dar um pouco de coragem para fazer o que passava pela minha
mente.
Em menos de cinco minutos, Blaze voltou e estendeu a mão para que o
acompanhasse até o banheiro. Ainda não tinha chegado nessa parte do seu
apartamento. Assim como na sala, não era nada gigantesco ou suntuoso,
mas elegante. O banheiro todo branco estava quase totalmente coberto por
uma névoa morna e aconchegante. O aroma de hortelã e baunilha me
envolveu e percebi que a música também ecoava aqui. Um daqueles alto-
falantes à prova d'água tocava Castle da Halsey, como se ele quisesse deixar
a mensagem clara.
— Peço licença, Vossa Majestade — a ironia dele me tirava do sério
—, mas preciso prepará-la para o seu banho.
Mais curiosa do que irritada, eu olhei nos seus olhos e deixei que
seguisse com seu ato. Eu disfarcei, mas percebi que suas mãos estavam
levemente trêmulas.
Ele pegou na barra do meu vestido florido na altura dos meus joelhos e
contornou seu caminho até o topo da minha cabeça. Logo minha camiseta já
estava no chão ao seu lado, deixando-me apenas com minha lingerie de
renda lilás que escolhi cuidadosamente mais cedo.
Tadinho dele que pensa que só um pode jogar este jogo. Mantive meu
olhar firme e indiferente, como se ele de fato fosse um plebeu disposto a me
servir. Levantei a sobrancelha em um desafio silencioso quando ele hesitou
em ir na direção do fecho do meu sutiã. Respirei fundo o mais lentamente
que consegui, tentando lidar com a inquietação pulsante entre minhas
pernas.
— Acredito que ainda estou demasiadamente vestida para um banho,
não? — Era quase injusto como eu gostava de usar essa voz. Apesar de
estar totalmente derretida por dentro, ela não vacilava. Se eu não o estava
impressionando, definitivamente estava impressionando a mim mesma.
— Luna... — Meu nome em seus lábios eram uma interjeição sem
jeito. Mas ele objetivamente soltou o fecho em minhas costas e por um
segundo tudo que ouvi foi esse click. No instante seguinte, absolutamente
todas as peças que eu vestia estavam no chão. — Agora eu acredito que
você está limpa demais para entrar no chuveiro.
Antes que pudesse pensar em algo para falar, senti seus lábios em
mim, clamando por cada fôlego meu enquanto suas mãos passeavam
livremente pela minha pele exposta, acariciando meus seios, minha cintura,
até finalmente chegar no ponto onde mais ansiava seu toque.
Da mesma forma que ele se desfez das minhas roupas, eu me livrei das
que ele usava. O azulejo do banheiro estava molhado pelo vapor que nos
cercava.
Nos deitamos ali mesmo, no chão. Não pude deixar de apreciar a
maciez das toalhas que estávamos em cima. Era como se o tempo tivesse
parado.
Logo senti meu cabelo colar no meu rosto e nas minhas costas
enquanto passava minhas mãos e minhas unhas pelas suas costas e seu
abdômen, descendo até finalmente encontrar seu membro rígido esperando
pacientemente pelo meu toque.
Nós éramos o fogo selvagem que renovava as estações. E cada parte de
mim queimava ao ver o azul dos seus olhos incendiando os meus. Seus
cabelos vermelhos estavam mais escuros agora que estavam molhados, e eu
percebi na forma que ele se encaixou entre as minhas pernas que nossa
brincadeira de plebeu subserviente e rainha esnobe havia acabado. E eu
estava totalmente entregue à dança não ensaiada que era cada encontro da
nossa relação.
Uma parte de mim sabia que tanta química assim só poderia significar
explosão. E foi exatamente assim que me senti quando Blaze, em um ritmo
dolorosamente lento, mordeu meu pescoço, lambendo tudo desde meus
seios até minha boca em um beijo intenso. E eu só queria mais, mais e
mais.
— Agora sim, acho que podemos entrar na água. — Ele soube que eu
havia concordado quando sorri sem acreditar.
Nossos gemidos ressoavam entre as paredes de vidro como se ele
pudesse quebrar. Não ligamos nem um pouco para isso. Ali, na tempestade
de fogo que caía sobre nossas cabeças, eu senti que cada parte de mim
pertencia a ele. E de todas as incertezas que eu tinha na minha vida, eu
sabia que essa não era uma delas. Eu o queria com cada parte do meu ser.
Vi a marca da minha mão no vidro quando finalmente abri os olhos,
recobrando os sentidos enquanto sentia a leve dormência tomar a ponta dos
meus dedos. Ele me abraçou como se percebesse que eu poderia precisar de
um apoio a mais. E ali fiquei, esperando sair da hipnose provocada pelo
prazer que ele havia me proporcionado.

Sentei no sofá, aconchegando-me ao máximo nas almofadas, e liguei a


câmera frontal do meu celular para ver como estava. Sua camisa de botão
ficou um pouco grande demais, mas de um jeito que achei indubitavelmente
sexy. Consegui ter consciência o suficiente para passar condicionador nas
pontas do meu cabelo, para que não ficasse com um aspecto seco.
Blaze colocou uma bermuda e uma camiseta e disse para eu descansar
enquanto buscava os biscoitos no forno. Um prato branco repleto de cookies
estava na minha frente logo em seguida.
— Essa camisa fica melhor em você do que em mim.
— Também acho, mas eu devolvo, tá? — Sorri enquanto pegava um
biscoito. Estavam macios e com um aroma perfeito de chocolate com
baunilha. — Como eles não queimaram?
— É que a gente queimou por eles — constatou Blaze, como se fizesse
sentido.
— Você não consegue falar sério? — perguntei, eu só podia rolar os
olhos.
— E perder a chance de te fazer sorrir? — ele provocou.
Ok, eu sorri. Mas seria impossível fazer o contrário nesta situação.
— O forno tem timer. Eu sabia que a gente podia... — ele procurou a
palavra certa — demorar.
— É perfeito. — Se eu vendesse aquilo, faria fortunas.
— Eu? Obrigado. Você também. — Ele pegou um cookie do prato e
passou o braço pela minha cabeça, abraçando-me.
A ideia era retrucar, mas, como sempre, ele falou de uma forma que eu
não conseguia. Então só terminei meu biscoito enquanto tentava não corar.
Era difícil perceber que se está vivendo um momento que vai ficar
eternamente na memória. Mais difícil ainda foi perceber que ele já estava na
metade. Em algumas horas o sol iria nascer. Meu sorriso logo se fechou.
— Alguma coisa errada, Luna?
— Só estou com saudade antecipada. — Conseguimos fingir que
tínhamos todo tempo do mundo por algumas horas. Como elas passaram
correndo, eu não sei. Acho que, para cada momento que se passa em
câmera lenta, ganhamos dois acelerados. — Se é que tenho o direito de
sentir isso.
— Você tem direito de sentir absolutamente o que quiser, ok? — Seu
olhar me penetrou agora de uma forma diferente. Como se me acolhesse e
compartilhasse da mesma sensação.
— É bom ouvir isso, sabe. — Suspirei por um momento. — Mas esse
sentimento é muito ruim. — Senti seu braço colando meu corpo contra o
seu peito forte. Deitei minha cabeça ali e fechei os olhos, ouvindo seu
coração bater, sentindo o calor da sua pele passar para a minha.
— Não existem sentimentos ruins. Alguns só são desconfortáveis.
Soltei uma risada baixinha.
— Tá vendo como você é sábio quando não está me zoando?
— Sabedoria e ironia não são opostas. Na verdade, é muito difícil ser
irônico quando não se é muito inteligente.
— Ok, preciso concordar com você. — Beijei sua mão, sentindo sua
pele quente nos meus lábios, contrastando com meu cabelo ainda gelado no
meu rosto.
— Já, já, você volta pra mim, minha Luna. — O beijo que ele deu na
minha cabeça de repente me aqueceu por completo.
— Sim, daqui três semanas. Vai passar rapidinho, vai ser divertido.
— Vai mesmo. Se dependesse de mim, você não iria a lugar nenhum.
Ficaria na sua torre para sempre. — Blaze me abraçou para dar ênfase ao
seu argumento, mas me desprendi do seu laço.
As coisas estavam indo rápido demais. Como assim não iria a lugar
nenhum? Toda essa brincadeira de dragão, princesa, torre e tesouro era
legal, mas… o fundo de verdade nela me preocupava. Ele olhou para mim,
a dúvida passando pelo seu rosto. Não tinha entendido o que tinha me
incomodado. E nem eu sabia ao certo como explicar.
— Blaze, eu sempre quis muito minha independência. Não sei como
ou onde vou consegui-la, mas liberdade sempre vai ser meu horizonte,
sabe?
Ele pegou nas minhas mãos.
— Lunara, só disse isso porque parte de mim tem medo de você ir
para tão longe, para um lugar onde eu jamais vou conseguir te alcançar. —
Ele fitou meu rosto, procurando respostas para as perguntas subentendidas.
— Já perdi muita coisa assim. — Seu olhar ficou vazio, mas eu tinha
certeza de que havia uma história ali que eu não conhecia. Provavelmente
da mesma forma que eu perdi Caleb, meus pais e todo o meu reino. Mesmo
assim, era diferente.
— Blaze, é isso que você não está entendendo. Eu não sou uma coisa
para ser achada ou perdida. Não é assim que pessoas funcionam. — Senti a
majestade autoritária que vivia em mim falar, e pedi para ela ser o mais
gentil possível.
— Lu, foi mal. Não quis dizer que você é um objeto, mas que vou
sentir sua falta.
— E no que dependesse de você, eu não iria a lugar algum?
Por que ele estava demorando tanto para me responder?
— Desculpa, Luna, mas no que dependesse unicamente de mim, eu
gostaria que ficasse ao meu lado. E iríamos a todos os lugares juntos.
— Aí que tá, Blaze. Eu não tenho vocação para ser um bichinho de
estimação, não posso ter essa responsabilidade emocional por alguém.
Eu já tinha por um povo inteiro e era mais do que eu podia suportar.
Senti faíscas transbordarem pela sua face.
— Lunara, eu não estou te dizendo o que fazer. Nem o que não fazer.
Mas não vou pedir desculpas por querer você ao meu lado. Eu achava que
você queria também.
Nossa, como eu queria. Meus olhos se encheram de água. Não sabia
lidar com tudo aquilo, e parte de mim estava surtando. De alguma forma, o
colar em meu pescoço pesava, minha cabeça começava a doer.
Blaze se aproximou de mim, colocou a mão no meu rosto e pincelou
um beijo em meus lábios.
Eu cedi ao meu desejo o beijando de volta, sentindo uma lágrima cair
pelo meu rosto. Não sei se foi proposital, mas seu polegar logo passou pela
minha bochecha, secando seu rastro.
— Blaze, eu gosto de você. Gosto mesmo. Mas acho que a gente
precisa de um tempo para entender o que é isso. Não acha?
— Você tá terminando comigo? — Juro que vi um pesar sombrio na
forma que me olhou.
— Eu que vou ter que te ensinar tudo? — Sorri, tentando roubar um
sorriso dele. Consegui. — Não cabe aos humanos terminar ou mesmo
começar um sentimento. Eles só acontecem na gente e lidamos com eles,
né?
— Falou a palavra da sabedoria agora.
Dei mais um beijo em seu rosto. Respirei fundo e peguei no pingente
no meu colar. Senti um calor familiar nos meus dedos. Havia tanta coisa em
minha mente que, antes de mergulhar fundo, eu precisava me libertar de
tudo aquilo que me prendia.
Não era Blaze que estava sendo a âncora da minha liberdade.
Mas um certo reino misterioso que ainda buscava pela paz, e só iria
encontrá-la através das ações da sua rainha – e, principalmente, um certo
cavaleiro que havia pedido sua mão.
Vesti minhas roupas ainda úmidas no banheiro, vi no vidro a marca da
minha mão quase apagada. Mesmo com a música ainda tocando, era como
se todo o lugar estivesse em silêncio.
— Na volta, a gente vai saber o que é tudo isso — disse sorrindo, mas
não havia nada de alegre no tom da minha voz.
— Acho que quando vai tudo muito rápido, a vida obriga a gente a
desacelerar. — Seu sorriso não chegou aos olhos.
— Eu gosto quando você vai devagar. — E pisquei. Finalmente o fiz
sorrir de verdade.
— E eu gosto quando você volta para mim.
Eu poderia morar no seu abraço. E conforme esperei o elevador
chegar, ainda sentia o calor dos seus lábios na minha testa. Como um
terceiro olho guardião que espiava meu futuro em uma profecia que eu não
conseguia ler.
Capítulo 13

Mal dormi naquela noite. Minha cabeça doía demais graças ao choro
que mantive preso. Não vi o sol raiar com as cortinas espessas fechadas. Eu
queria ver a forma que os raios incidiam na copa das árvores ao lado de
Blaze, fingindo que o tempo não iria impor sua crueldade eterna sobre nós.
Mas nem tudo é como a gente quer.
Ou melhor, nada é como a gente quer.
Deixei o cansaço me convidar ao esquecimento e fechei os olhos
tentando cessar meus pensamentos. Até que uma batida na porta me trouxe
à realidade no que pareceu ser um instante depois.
— Luna, hora de acordar! Já são dez e meia da manhã e você ainda
não arrumou a mala. — Mamãe, pelo tom, estava impaciente. Ela sempre
ficava assim no dia de viajar. O que não fazia sentido para mim, já que esse
era literalmente o dia a dia dela.
— A menina está cansada, Diana. Deixa que eu falo com ela.
E assim papai entrou no meu quarto escuro. Esforcei-me para me
sentar na cama, esfregando os olhos. Era como se um caminhão tivesse
passado por cima de mim.
— Bom dia, princesa dorminhoca. — Meu apelido na infância, mais
do que merecido. — Fiz um café bem forte para você se animar e fazer sua
mala em tempo de não pirar sua mãe, que tal?
— Café parece um jeito certo de começar o dia. — Meus olhos não
abriram muito, mas meu sorriso, sim.
— Lunara, não esquece que a primeira coisa que vai na mala é o...
— PASSAPORTE! — eu e papai falamos em uníssono. Quando fiz
dezesseis anos, esqueci o passaporte em casa, o que nos fez perder o voo e
uma boa grana em passagens de última hora. Desde então, ele sempre
repetia esse mantra no dia das férias.
Consegui reunir forças depois do café que meu pai trouxe no meu
quarto, junto da minha habitual mala vermelha. Felizmente, o sol não me
incomodava tanto. O mundo parecia fazer sentido de novo. Eu só precisava
ter foco, fazer as malas e ficar pronta para sair de casa às quatro da tarde.
Mamãe foi para seu quarto fazer uma hidratação no cabelo e logo
puxou meu pai para seu SPA em casa. Achava fofo como eles cuidavam um
do outro.
Abri a mala no chão e comecei a dobrar alguns vestidos aleatórios que
eu tinha certeza de que iam funcionar para qualquer passeio. Um biquíni,
um par de chinelos, uma botinha confortável e a mala já estava
praticamente pronta.
A não ser pelo passaporte! Droga, eles tinham razão.
Fui até a primeira gaveta, onde guardava todos os documentos e
cartões, e peguei sem nem precisar olhar seu interior. Nas minhas mãos, em
vez da usual capa azul, vi um panfleto vermelho um tanto quanto amassado,
familiar. Um desenho antigo, como o esboço de uma lua crescente, atraiu
meu olhar. Lembro-me de me sentir flutuando quando peguei esse papel no
bar, noites atrás, mas só agora parei para reparar com atenção.

Acho que segurei o papel por mais de um instante. Algo naquelas


palavras prendeu minha atenção, como naquele estranho momento em que
você sabe que seu destino está se distorcendo perante seus olhos.
“Mais de um futuro aguarda por você.”
Eu não tinha paz nas últimas semanas desde que esses sonhos tomaram
todo meu sono. Tudo que queria era viajar com a mente tranquila, ter uma
vida normal, curtir minhas amigas e meu – possível – namorado.
No mínimo, o efeito placebo poderia funcionar. Valia a tentativa.
Coloquei uma calça jeans, um top vermelho e dobrei o panfleto no
meu bolso. Eram onze e meia da manhã, daria tempo de sobra para ir, voltar
e ir ao aeroporto.
— Mãe, pai, esqueci uma jaqueta que quero levar na casa da Olívia.
Vou buscar com ela e já volto, ok? — menti. Meus pais sempre confiaram
em mim, mas eu ia levar muito tempo para explicar por que queria visitar
uma vidente logo hoje. Era por uma boa causa.
— Tá bem, Luna. Vai rapidinho e dá um beijo nela por mim — disse
mamãe com um sorriso. Ela já estava com os cabelos castanhos
emoldurando seu rosto em cachos largos. Linda. Papai estava babando atrás
dela. O coração apertou um pouco com a mentira e tentei ignorar o
sentimento, que parecia um buraco cedendo cada vez mais.
— Pode deixar. Amo vocês, tchau!
— Tchau, filha, até daqui a pouco!

O metrô nunca demorava. Logo hoje, ele resolveu fazer uma parada
longa devido à manutenção, e uma jornada de quinze minutos já
completava trinta. Eu deveria saltar na próxima estação, então decidi andar
o restante do caminho.
Só mais dez minutinhos andando e eu chegaria antes da uma da tarde.
Para um dia de inverno, até que estava bastante quente. Ou era porque eu
corria contra o tempo em um bairro que não conhecia tão bem.
Estava ofegante e cheguei à conclusão de que o GPS não ia funcionar,
já que eu estava sem sinal. Mas finalmente encontrei o endereço que dizia
no panfleto: Alameda da Pedra, casa 05.
Aparentemente, ver o futuro não necessariamente previa algo muito
próspero para Madame Sienna. O casebre era minúsculo, como se já fosse
castigado pelo tempo há gerações. Na verdade, tudo nas redondezas parecia
já ter visto dias melhores que vieram a findar. A poeira do asfalto
completava o tom cinza da paisagem com um cheiro desagradável de
piche.
Eu nem sabia se ela estaria ali. Com certeza eu não deveria ter perdido
meu tempo e mentido para as duas pessoas que mais amo no mundo em
troca disso. Mas já que estava ali, toquei a campainha com algum tipo de
esperança insana e desnorteada.
Esperei alguns instantes, já começando a sentir a garganta arranhar
com o aspecto seco do local.
Nada.
Já estava prestes a desistir, chutando algumas pedras soltas no chão.
Senti-me uma tola. Claramente eu era uma. Mas no momento em que
comecei o caminho de volta, um rangido me fez voltar.
A porta se entreabriu, e pela fresta pude observar uma luz esverdeada e
forte. Cada instinto do meu corpo me dizia para sair correndo, mas então
uma voz bela e suave disse:
— Entre.
Senti-me compelida a dar os primeiros passos em direção ao casebre.
Seu interior não era como eu esperava.
Tecidos roxos pendiam do teto como cortinas aleatórias em um espaço
suntuoso, com um aroma almiscarado de incenso.
— Entre, Princesa Carmim.
Eu gelei. Eu nunca tinha falado desse nome para ninguém, não era
possível que ela me chamasse assim por puro acaso. Procurei palavras para
responder. Não encontrei nenhuma.
Conforme passei pelos tecidos sedosos, vi uma mesa centrada em um
tapete luxuoso no nível do chão, e uma mulher – a dona da bela voz – me
aguardava. Ela estendeu sua mão quase esquelética para a minha, traçando
as unhas geladas e afiadas pelas linhas na minha palma. Seu manto bordado
cobria seu rosto em uma melodia ronronante. Ela então apontou para a
almofada à sua frente.
Sem ver outra opção, sentei-me, ainda calada. Perplexa.
— Ora, ora, para alguém repleto de perguntas, você está bem
silenciosa. — Senti o desafio ácido nas suas palavras ecoando por todas as
paredes à minha volta, ele era mascarado pela maciez disfarçada de
educação em seu tom de voz.
— Eu vim para ouvir, Madame Sienna. Obrigada por me receber sem
aviso prévio — consegui dizer, mesmo que sem impacto.
— Aviso prévio? — Ela balançava a cabeça em negação, mas ainda
não podia ver sua face coberta pelo manto. — Eu estou há décadas
aguardando por você, nobre princesa. Afinal, você não teve tempo o
bastante em seu reinado para poder se intitular uma rainha, não é? Tudo o
que teve foi uma coroa. Isso qualquer ladrão pode possuir.
Eu gelei e senti uma corrente de ar invisível prendendo meus braços
junto ao meu corpo. Como se a gravidade me puxasse para o chão com
ainda mais força. Eu não seria capaz de me levantar, nem se quisesse.
— Mas, se está aqui para ouvir — finalmente pude ver seu rosto
refletindo no verde radioativo dos seus cristais. Seus olhos brilhantes eram
como o fogo, e seu rosto provavelmente foi belo um dia, mas agora estava
esquálido e opaco — é isso que você fará, pequena ladra.
Ladra? Eu não roubei nada!
— Deve haver algum engan... — Senti mais uma das correntes de ar
sobre meus lábios, cortando meus sons.
— LADRA! — Sua voz ressoou irada nas paredes e dentro do meu
próprio corpo. — Há certas coisas, princesa, que não pertencem a você.
Não pertencem à linhagem dos Montecorp. Mas, apesar de serem
agraciados pela tola da Argrinis, ainda quiseram colocar as mãos na pedra
do fogo. Vidas foram perdidas graças à ganância que corre em seu sangue.
Mas a verdade — percebi a mesma sedução gentil na entonação — é que
Princesa Carmim é um apelido bastante apropriado para alguém que tem a
preciosa paz — ela cuspiu ao pronunciar a palavra — banhada na vida dos
inimigos. Me diga, então, princesa, é assim que vocês regam seu precioso
Carvalho de Prata?
Senti o movimento retornar à minha boca, e percebi que lágrimas
caíam pelo meu rosto em vergonha e pavor. Era tudo real? Por mais que a
história encaixasse, eu ainda não conseguia acreditar. Mesmo que cada
centímetro do meu corpo reagisse às palavras de Madame Sienna. Meus
pensamentos não eram um delírio, mas um clamor urgente do reino
abandonado por mim enquanto aproveitava uma vida de alegria e conforto.
Mas ela tinha falado em décadas? Como isso seria
possível? Mergulhei nos meus devaneios para responder a furiosa entidade
perante mim.
— A guerra não foi minha escolha, e toda minha vida eu fiz o possível
para cessá-la. Ela só chegou ao fim por minha causa.
— E mesmo assim, você não pôde se contentar com isso? Precisava
aniquilar o último dragão conhecido no mundo por uma batalha que
Montecorp levou até Cinaéd?
— Eu tentei conversar com Bólius. Fui chamada de ingênua pelo meu
exército, mas a violência nunca foi minha primeira escolha. O ataque que
selou seu fim não foi desencadeado pelas minhas ações, mas pelas dele.
— Você é uma Montecorp. É parte do peso da coroa as ações dos seus
antepassados. Uma rainha deveria saber disso, não acha?
Nada além de ironia cruel vinha de Madame Sienna, se é que era
mesmo esse seu nome. Mas sim, eu sabia disso. E doía nos meus ossos
saber que ela estava certa. O peso da coroa me sufocava. Eu desejava que
esse fosse o delírio. Mas não era, e eu não tinha tempo para me adaptar.
— Ainda assim, eu não roubei ninguém. E estou aqui para acertar as
coisas.
— Sabe qual o pior tipo de ladrão? — Ela sorriu. — O inocente. Quer
dizer que esse belo colar vermelho não significa nada para você?
Suas mãos ásperas envolveram meu pescoço, acariciando a corrente
que sustentava a pedra vermelha. Não qualquer pedra vermelha.
— A pedra de fogo não poderia ter vindo para mim. — As palavras
não eram mais que um suspiro em meus lábios.
— Mas é claro que não, linda princesa. — Novamente, a crueldade
disfarçada de gentileza. Era como se eu merecesse isso. — Os Montecorp
não podem possuir todas as bênçãos dos Deuses e deixar o resto do mundo
sem nada. Isso não passou pela sua cabecinha pacífica e progressista?
Não passou. E, de fato, deveria. Mas eu estava tão feliz que vi a pedra
como um símbolo de liberdade para nosso povo. Uma prova de que as
fronteiras seriam reabertas, de que a escassez teria um fim. De que
poderíamos ser felizes novamente.
— Me desculpe — foi tudo que consegui dizer. Tudo que seria justo
dizer enquanto as lágrimas corriam pelo meu rosto. — Eu só quero fazer
com que as coisas se acertarem. Se você souber de uma forma, por favor,
me fale! Eu lhe imploro!
— Veja só quem precisa de ajuda agora! Quem finalmente decidiu que
precisa honrar suas responsabilidades como governante. — Um riso de
escárnio. — Tarde demais, princesa. Isso foi um teste, e você falhou. Acho
que essa realidade era sedutora e confortável demais para você encarar a
verdade dos seus atos, não é? Eu falei que você não seria diferente dos
outros. Argrinis foi uma tola em acreditar em você.
Eu estava em um vórtice de memórias que competiam pela minha
atenção. Rainha. Eu era uma rainha. Estava tudo acontecendo rápido
demais, e eu não sabia no que acreditar.
Na verdade, eu não queria acreditar. Mas não tive escolha. Foi quando
eu me lembrei de estudos há muito tempo, no que parecia ser outra vida,
quando Ayla, sacerdotisa do Templo de Prata, me falou sobre Sienna. A
Alma Antiga. A matriarca do panteão dos Deuses, que agora habitavam
outra dimensão, ainda mais evoluída. Os Deuses a deixaram em meu mundo
como um presente para seus governantes, a fim de manter o equilíbrio e a
prosperidade. Isso indicava então que eu estava em alguma outra dimensão
paralela. Real ou não, eu não saberia dizer. Já não sabia há um bom tempo
agora.
E se eu tinha conseguido irritar um ser supremo ancestral, era um
péssimo, péssimo sinal.
Abaixei a cabeça em reverência, sentindo uma lágrima quente
encontrar minha perna através do tecido da calça.
— Sienna, perdão. Eu fui tola e egoísta, e só quero consertar as coisas.
Limpar o nome dos Montecorp e fazer valer a dádiva concedida por
Argrinis. Ajude-me a voltar para meu reino, eu te imploro. Não vou te
decepcionar.
Foi a primeira vez que não senti seu olhar sobre mim me cortar. Sua
face atenuou a expressão irada.
— Argrinis me disse que ainda havia inocência em você. — Suas mãos
tocaram meu rosto com suavidade, reconhecendo meus traços. — Pois bem,
princesa, você terá a chance de se tornar uma rainha de verdade. Não só
uma boneca vestida com uma coroa.
Assenti engolindo em seco, aceitando o desafio que ela colocara nas
entrelinhas.
— Mas nem eu mesma tenho o poder sobre o tempo. É o poder que
rege a todos nós. Cada dimensão tem suas regras... Mas te desejo boa sorte.
Por um segundo, vi sinceridade na forma que falou comigo. No
segundo seguinte, senti uma dor lancinante cortar meu pescoço, quando
Sienna arrancou o colar em um forte puxão, estilhaçando a pedra do fogo
contra a mesa em mil pedaços. Os fractais reluziam a luz esverdeada
enquanto sua risada aguda ensurdecia meus ouvidos.
Senti a gravidade pesar ainda mais, as correntes de ar me envolviam
agora em um casulo de vento e mistério. Sons ancestrais me embalavam
enquanto formas bizarras apareciam nas sombras perante a mim. Era como
se os Deuses estivessem entediados e decidissem interferir na vida dos
humanos.
Logo, tudo que eu podia perceber era o caos, e já não sabia mais se
ouvia o som estridente da risada de Sienna ou se eram apenas os meus
gritos, perdendo-se entre os tempos enquanto eu definitivamente voltava
para casa.
Como um filme, vi os sorrisos despreocupados de Íris e Olívia. Senti a
pressão morna do beijo que Blaze deu na minha testa ao nos despedirmos.
As lágrimas eram como navalhas em meu rosto. Meu último pensamento
foi Luiz e Diana e como a última coisa que eu tinha dito a eles havia sido
uma mentira. E eu nem sabia se eles eram reais ou se eram parte desse jogo
doentio, onde eu era apenas um peão.
Não uma rainha.
Foi o suficiente para desistir e deixar a escuridão me consumir.
Capítulo 14

Poderia ter se passado um segundo ou uma eternidade em meio ao


redemoinho de vento e incertezas que me cercava. Eu sentia meu próprio
espírito se esticando e se contorcendo através da realidade.
Já havia desistido de gritar, mas o sabor de cinzas permanecia na
minha boca. Sentia minha garganta cortada, meu pescoço ardia.
Ainda de olhos fechados, percebi que estava parada. Abaixada em uma
superfície firme e gelada, cercada pelo silêncio. Respirei devagar, tentando
fazer minha cabeça parar de latejar. Era como se eu pudesse sentir uma
órbita pulsante, e eu pressionava minhas têmporas com as mãos como se
isso fosse ajudar a melhorar.
Abri os olhos, percebendo a luz do raiar do dia. Suave, mas o
suficiente para causar incômodo. Senti um mal-estar urgente subindo pelo
meu corpo, passando pelo meu estômago em um enjoo forte, até finalmente
vomitar.
O cheiro ácido que subiu no ar me deixou ainda mais atormentada.
Andei para trás, buscando entender onde estava, até que finalmente as
formas começaram a fazer sentido na minha visão embaçada.
O cômodo era grande, mas os móveis estavam todos cobertos por
tecidos brancos. Como se ninguém entrasse ali há muito, muito tempo. A
vista, contudo, era inconfundível.
Ainda abaixada no chão, vi através do vão da sacada esculpida em
mármore branco o horizonte de planícies esverdeadas. À esquerda, uma
árvore cinza e metálica saudou meu olhar. O Carvalho de Prata não
cintilava como eu me lembrava, tampouco estava tão frondoso. Mas
definitivamente era ele que estava ali. Reconheci-o com o coração
aquecendo, como avistar um velho amigo do outro lado da rua. Só podia
significar uma coisa.
Eu não sabia em qual momento da história, mas eu finalmente havia
voltado a Montecorp.
Capítulo 15

Levantei com dificuldade de me equilibrar em minhas próprias


pernas. Ao sentir o ar ainda se retorcer à minha volta, apoiei-me na parede
perto da sacada. O dia estava nascendo cinza, e eu podia jurar que as folhas
do carvalho cintilavam, mas não confiava tão bem na minha própria visão.
Apressei-me em tirar as roupas que vestia, percebendo o tecido gelado
e imundo contra minha pele. Era a mesma camisola que usei na última vez
que estive neste quarto. Há uma vida inteira.
Fui até o banheiro dos aposentos reais e molhei a camisola, usando-a
para limpar o chão sujo enquanto tentava não me contorcer com o fedor
ácido.
Lavei minhas mãos e meu rosto na pia, buscando alguns momentos
para me recompor. A imagem no espelho ainda era minha. E sim, depois de
tudo que vivi nos últimos momentos, isso era um alívio, de certa forma.
— Meu nome é Lunara Alexandria Montecorp, sou a última herdeira
viva da Deusa Argrinis, guardiã do Céu e da Terra. Da última vez que estive
neste quarto, havia sido coroada rainha. Agora é a hora de reinar — repeti
essas palavras até ouvi-las do meu próprio reflexo. Até acreditar. Até fingir
o suficiente para parecer que realmente acreditava nelas.
Tentei não sentir um arrepio fantasmagórico enquanto a voz ancestral
de Madame Sienna ainda ressoava por todo o meu ser. Tentei não sentir as
lágrimas queimarem meus olhos por todas as despedidas que me foram
tomadas.
Em outro momento. Sim, eu teria tempo para naufragar no mar de
lágrimas em minha alma pela vida da qual abri mão. Mas não agora. Eu
estava sozinha para descobrir o que tinha acontecido enquanto fiquei fora.
A começar por quanto tempo fiquei fora.
Com sorte, o conselho não teria mudado. Com muita sorte, a guerra
não teria se reestabelecido. E hesitei ao pensar nisso, mas com alguma
esperança, Caleb ainda estaria por perto.
Céus, que os Deuses permitissem que sim.
Respirei fundo mais uma vez, contemplando minha coleção de
incertezas. O quão ridiculamente poéticas as tragédias conseguiam ser.
Olívia adoraria ouvir essa história.
Parei meu sorriso antes que ele pudesse se formar. Olívia não existia.
Nem todas as histórias fantásticas pelas quais ela era apaixonada. Talvez em
algum outro momento eu pudesse inventá-la. Ela gostaria disso. Não sabia
que podiam existir sorrisos amargos, mas existiam, soube no momento que
uma lágrima me escapou.
Não, minhas queridas e ansiadas lágrimas. Ainda não é a hora de
conhecerem meu rosto.
Coloquei minha camisola em uma bandeja com água e um sabão
partido e velho que encontrei no armário.
Fui até a porta branca, conectada com o banheiro onde guardava
minhas roupas, e senti um aroma forte de ervas. Provavelmente para as
traças não consumirem meus trajes. Aparentemente, meu retorno era
desejado. Mas, pela forma que conservaram meus aposentos,
provavelmente não esperavam mais por isso. Pela Deusa de Prata, quanto
tempo se passou? Meu coração acelerava diante das possibilidades.
Respirei fundo uma vez. Duas. Dez não pareceram o suficiente ainda,
mas fiz meu melhor para me recompor.
Escolhi um vestido azul escuro justo, com mangas longas. Simples, a
não ser pelo bordado prateado que adornava o caminho entre meus ombros.
Peguei a capa um tom mais escuro e vesti por cima. Não sabia ainda se eu
queria – ou se deveria – ser identificada.
Prendi meus reconhecíveis cabelos rosados em um coque alto, com
algumas mechas soltas. A pedra vermelha ainda adornava meu pescoço. A
corrente arranhava minha pele ferida, mostrando que não havia muito
tempo desde que eu estava frente a frente com Madame Sienna.
Na minha penteadeira, a antiga maquiagem ainda me aguardava.
Curioso chamá-la assim agora. Aqui em Montecorp era um “jogo de
pinturas de beleza”, feito a partir de ingredientes naturais pelos alquimistas
do reino. Parte de mim se rendeu à nostalgia ao puxar o pano branco e
revelar as embalagens com que minha mãe me presenteou aos quatorze
anos. Ela que me ensinou como aplicar o rouge e a delinear os olhos
elegantemente usando o kajal.
Mais uma memória para me acompanhar. Ao menos eram memórias
felizes.
Eu deveria ser sortuda, afinal, para ter tantas coisas das quais sentir
saudades.
Pintei meu rosto como sempre, ressaltando suavemente a beleza dos
meus traços. Ninguém precisava saber o caos que morava dentro de mim.
Isso poderia esperar. Eu havia feito uma promessa a Sienna, uma que
pretendia cumprir. Nem que minha vida dependesse disso.
Agora era hora de enfrentar o que o destino guardava para mim.
Capítulo 16

Não posso dizer que me surpreendi ao abrir a porta principal da


minha câmara e me encontrar absolutamente sozinha. Não havia guardas de
prontidão junto às pilastras de mármore branco, tampouco ao longo do
caminho. Os altos vitrais permaneciam cristalinos contra o sol pálido, que
buscava em vão aquecer este dia tão cinza, irradiando tons suaves de azul e
verde no palácio. No alto verão, atravessar os corredores da ala real era
como caminhar por um caleidoscópio. Hoje, era como o limbo.
Quando criança, eu esperava o dia raiar e espreitava meu caminho até
os aposentos do rei. Os guardas sempre me deixaram acordar suas
majestades pulando em sua cama. Fiz isso até ter idade o bastante para
entender que estávamos em guerra e que, muitas vezes, meus pais se
levantavam antes do próprio sol, a fim de se encontrar com o conselho para
traçar estratégias. Por um tempo, essa foi a palavra que mais ecoou pelas
paredes à minha volta.
Passar em frente à porta do quarto que abrigou minha infância foi um
teste de resistência. Ao ver as flores e estrelas que subiam pelo entalhe da
madeira, meu coração derreteu. A realidade parece mais intensa quando
você percebe que a infância já passou. Contudo, por mais que eu quisesse
revisitar – e até mesmo morar – nessas memórias, eu precisava me apressar
em encontrar outras pessoas. Precisava descobrir o que aconteceu durante
minha ausência. Eu poderia voltar aqui mais tarde. A porta não iria a lugar
algum.
Acelerei o passo, cruzando os largos corredores, saudando as
memórias que paravam para me cumprimentar e pedindo desculpas pela
minha pressa. Se havia alguma chance de as coisas terem permanecido da
mesma forma que eu me recordava, as atividades no palácio teriam início
em poucas horas.
Chegando finalmente no portal da ala leste, a ala real, hesitei ao
contemplar sua magnitude. A porta era muito mais alta do que me
lembrava, finamente entalhada na sua lateral de mármore que acompanhava
até seu acabamento abaloado no topo. Na sua superfície em alto relevo
estava o carvalho, símbolo de nosso reino, com a lua crescente logo acima.
Era intimidador adentrar a ala. Um chamado para a responsabilidade
do poder. Toquei no aro dourado que a selava e respirei fundo ao perceber
que nunca estaria realmente preparada para o que quer que me esperasse do
outro lado. Logo, não havia motivo para delongas.
Ainda assim, precisei de toda coragem que tinha e finalmente dei um
forte puxão.
Em vão.
Estava trancada.
Pelos Deuses, eu agora seria uma estrangeira em meu próprio reino?
Tive que pensar por um instante. Mas é claro que estaria trancada,
como pude ser tão tola? Pouquíssimas pessoas têm acesso a esses cômodos.
Felizmente, ainda sabia exatamente como abri-la.
Os alquimistas do reino haviam encantado o aro para que reconhecesse
quem possuísse o sangue da família real. Era o método mais seguro.
Bastava apenas uma gota do sangue do rei, da rainha e da princesa para
fundir com o metal. Junto a um antigo encantamento, o aro forjado já teria
inteligência o bastante para nos reconhecer. Apenas duas chaves foram
feitas com o mesmo método: Uma para a governanta, que liderava a
arrumação dos aposentos, e outra para o chefe da guarda real.
Pousei minha mão no centro do aro, sentindo sua superfície lisa e
gelada na minha palma. Imediatamente ouvi o click que indicava que a
porta estava aberta.
Os guardas que estavam a postos recuperaram sua compostura como se
presenciassem uma aparição. Imediatamente curvaram suas cabeças e
cruzaram seu braço direito junto ao peito em sinal de reverência. Isso
deveria ser um bom sinal. Meus lábios se repuxaram para cima. Ainda
assim, eu queria observar, e não ser observada, então puxei o capuz da
minha capa e segui meu caminho pelas familiares alas do palácio.
Alguns criados adiantavam seu serviço, e felizmente estavam
compenetrados o bastante para não olhar duas vezes na minha direção. Eu
era só mais uma jovem da corte, ótimo. Era justamente a liberdade que eu
precisava nesse momento.
Apressei-me a andar pelas alas usando todos os atalhos que conhecia.
Enquanto isso, alguns lordes e damas já cruzavam os corredores apressados
entre breves reverências. Verificavam seus relógios, a fim de atender seus
compromissos pontualmente. Não era bem-visto culpar as engrenagens
pelos próprios atrasos. Algumas damas acenavam para mim como se me
conhecessem, e eu retribuí o gesto com naturalidade. Reconheci ao longe
uma voz estridente, era Lady de Franchot disparando ordens para algum
coitado. Não fiquei por perto para entender o que ela dizia, mas era
reconfortante saber que estava viva. A eterna cordialidade da realeza
aparentemente estava intacta.
Eu já sabia então exatamente para onde deveria ir. Tracei a rota mais
rápida possível em direção à biblioteca. Precisava falar com Amon, meu
querido tutor.
Os tons do palácio mudavam conforme eu atravessava seus corredores.
Ao leste, a construção ostentava um trabalho em mármore, representando a
superfície da lua. Já havia atravessado metade do palácio, as claraboias
evidenciando uma claridade opaca. Em pouco tempo, esses corredores
estariam lotados e eu precisava me apressar para chegar à ala oeste. Por
enquanto, poucos lordes e ladies passavam por mim, também apressados
com cumprimentos vagos. Não reconheci nenhum em particular, também
não liguei, encantada pela maneira que os tons de madeira ganhavam
destaque e ornavam os arredores de tal forma que me sentia atravessando o
tronco de um carvalho. Como havia me esquecido de tais detalhes?
A sala de reuniões com acesso à biblioteca, escritórios e centros de
pesquisa foram construídos ali eras atrás. Cada recinto com um portal
próprio, absolutamente belíssimo. Sentia-me ofegante, mas suspirei com
alívio quando avistei o corredor que me levaria ao meu tutor.
A passos apressados, ouvi algumas vozes ecoarem pelos corredores,
até que uma delas me paralisou. Não entendi o que ele disse, mas reconheci
o timbre em meu coração. Meus olhos ficaram marejados quando virei à
esquerda e reconheci os olhos âmbar que me acompanharam por
dimensões.
Não me surpreendi com a incredulidade em seu olhar. Sempre senti
que ele nunca realmente acreditou que estávamos frente a frente. Mas é
claro que ele me reconheceu. Mesmo vendo as linhas ganharem seu rosto
em uma expressão mais endurecida, em um milhão de anos nós nos
reconheceríamos. Tal como flecha e alvo.
Seu nome foi um suspiro em meus lábios quando Caleb finalmente se
ajoelhou perante meus pés.
Capítulo 17

Eu estendi a mão para que se levantasse, e no meu peito senti um


misto de adrenalina e alívio por estar ali.
— Não acreditava que poderia te ver novamente. — A sinceridade em
sua voz me fez engolir em seco. Eu não achava que você era real. Mas não
tive coragem de dizer. Apenas assenti enquanto ele se levantava.
— Também não achei que acharia meu caminho de volta. — A
respiração lhe falhava. Não havia me preparado para esse momento. Não
sabia nem como começar a explicar minha jornada. — Independente do que
passei, agora estou aqui, Caleb. E não consigo pensar em alguém mais
apropriado para me encontrar agora. Podemos conversar em algum lugar?
— Sempre estarei disponível para falar com minha rainha.
Não havia emoção em sua voz, certamente ainda atônito com a minha
chegada. Caminhamos lado a lado até a sala do conselho, e busquei respirar
fundo. Eu precisava compreender que agora havia uma vida inteira de
distância entre nós. Alguns fios prateados riscavam seus cabelos, e algo em
sua própria voz havia se tornado mais rígido. Mas, ao sentir sua presença ao
meu lado, um peso saiu de minhas costas. Caleb sempre quis o melhor para
Montecorp, então certamente o estrago da minha ausência não teria sido
drástico.
Ele abriu a porta para mim e mil memórias voltaram ao contemplar o
salão. A mesa oval permanecia no centro, recebendo a luz esverdeada do
vitral que ocupava quase toda parede acima de um sinuoso estofado. O
telescópio ao seu lado permanecia intacto, frequentemente usado para
alinhar os eventos do reino com os acontecimentos astronômicos. Lembro
que foi assim que definimos a data da minha coroação. No teto, estava
pintada a história da fundação de Montecorp. Sentei-me perto da janela e
sinalizei que Caleb se juntasse a mim, ainda um pouco incerta de como agir.
Abaixei meu capuz, ajeitando as mechas acobreadas que caíam sobre meus
olhos. Eu gostava de quando elas eram cor-de-rosa.
— Preciso saber de absolutamente tudo que aconteceu em Montecorp
na minha ausência. — Busquei não demonstrar a urgência que tinha nessas
informações.
— E eu preciso saber onde você estava, Lunara. Passamos cinco anos
buscando por você em toda parte do reino. Vasculhamos cada pedra, cada
caverna por você. Muitos dos soldados não voltaram. Cinco anos até
suspendermos a busca e simplesmente pedir a Argrinis que trouxesse você
de volta.
— Caleb, eu não estava aqui. Não em Montecorp, nem em outro
qualquer reino conhecido. — Minha voz falhou diante da impossibilidade
de explicar o que realmente havia ocorrido. Eu mal compreendia, como
poderia, então, justificar?
Seus olhos pareciam não acompanhar o que eu dizia.
— O que isso quer dizer? Para onde você foi? — Senti sua mão no
meu rosto, aquele toque tão familiar me lembrava que eu estava,
finalmente, no meu reino. — E como o tempo não passou para você?
— Caleb, eu não tenho as respostas que busca. Temos as mesmas
dúvidas em relação ao meu paradeiro. Eu não sei como, mas estava em um
outro mundo.
— Você diz em outro reino?
— Eu digo uma outra dimensão… Minhas memórias de Montecorp
eram como um sonho que invadiam minha mente dia e noite. Eu sentia um
chamado para retornar, mas era como um eco adormecido. — Não sabia o
quanto eu deveria contar, e quando vi estava segurando suas mãos. — O
que importa é que estou aqui agora e não vou a lugar algum. E
sinceramente, meu coração suspira de alívio ao saber que você esteve à
frente de nossa terra todo esse tempo. Mas preciso saber o que aconteceu.
Você tem essas respostas, então compartilhe-as comigo. Quanto tempo se
passou?
A julgar pelo seu rosto, meio século deveria ter passado. Ou mais.
Caleb manteve a voz firme, mas sua aura estava inquieta.
— Majestade, vinte anos se passaram — ele declarou.
Senti como se estivesse descendo as escadas e perdesse um dos
degraus sob meus pés. Eu estava caindo. Não poderia ser. Parecia muito
mais. Algo estava doentiamente errado em Montecorp. Eu podia sentir um
calafrio gritando em alerta por meus ossos.
— Vinte anos, Caleb? Só isso? Mas... — As perguntas estavam presas
na garganta, mas as palavras permaneciam engasgadas. — O que
aconteceu? — perguntei pausadamente. Incrédula. Meu olhar corria pelo
seu rosto, ele entendeu as palavras que suprimi.
— Quando você partiu... A terra e o céu sentiram. Era como se a
magia não corresse mais pelas águas. Como se ela não chegasse até nós
pelos raios de sol. Montecorp começou dia após dia a adoecer. E perder sua
longevidade — ele explicou. — As plantações não vingavam como antes.
Não demorou para o povo começar a falecer. O fogo ficou mais frio e
pálido, como se debochasse da guerra que vencemos. Como se soubesse. E
não importavam nossos esforços para reaver nossos recursos. Tivemos que
eventualmente aceitar nossas perdas e essa realidade. Aprender a viver com
ela.
Ouvi com pesar e atenção cada palavra que ele disse sobre a
decadência dos recursos, sobre os dias pálidos e sobre os anos sem troca de
estação. Ouvi histórias de famílias que deveriam ter vivido 200 anos e que
foram enterradas com poucas décadas. Investigadores, alquimistas e
cavaleiros por todo o reino buscaram uma cura, mas seus esforços foram
em vão. Logo o número de curandeiros não era o bastante para a quantidade
de enfermos. A morte e a decomposição se tornaram rotina.
Senti meus dedos procurarem pela superfície morna da pedra do fogo
enquanto andava inquieta pela sala. Eu levei comigo esse presente dos
Deuses para longe daqui. O desequilíbrio mencionado por Madame Sienna
e a decadência de Montecorp deveriam ter alguma relação. Ou seria a
distância e o fato de uma ladra ter a posse da gema mágica que não lhe
pertence? Eu poderia ser culpada por tais infortúnios. Senti uma onda de
pânico subir pelo meu peito enquanto tateava a lapidação da pedra com a
ponta de meus dedos.
Isso era o passado, eu repeti para mim. Eu estava aqui pelo futuro.
Levaria tempo, mas as coisas finalmente se acertariam. Tinham que se
acertar. Poderia ser a última coisa que eu fizesse, mas descobriria uma
forma de reestabelecer o equilíbrio.
Respirei fundo, levei a mão de Caleb até meus lábios e a beijei em
agradecimento. Por tudo que ele fez por mim e pelo meu povo.
— Ei, vamos resolver isso. Já vencemos uma guerra, não é?
Montecorp não verá mais mortes agora que sua rainha está de volta ao
trono. Precisamos fazer um pronunciamento oficial aos meus súditos.
Senti seu sorriso aquecer meu coração, seus olhos âmbar relembrando
cada parte do meu rosto, como se pudesse ler em mim toda a nossa história.
— Agora Montecorp tem uma chance. Afinal, você é a Rainha da
Paz.... Ainda é lembrada assim.
Meus olhos marejaram ao ouvir essa expressão. Haveria esperança,
afinal. Eu poderia honrar meu acordo com a Alma Antiga.
— Obrigada por manter minha memória viva — sussurrei.
Ele apenas assentiu. Eu precisava conhecer Caleb novamente, mas
teríamos tempo. Ele era como um querido desconhecido para mim, mas
nele morava minha confiança. Provavelmente eu era um mistério não
solucionado para ele. Minha sorte é que sempre me atraí por enigmas.
— Hoje é dia da lua, começaremos a reunião do conselho em uma
hora.
Dia da lua. Segunda-feira. Havia me esquecido da nossa forma de
contar o tempo.
— Perfeito — declarei. — Em qual Era estamos?
— Agora que você voltou, tenho esperança de que começaremos a Era
da Revelação. — Caleb abriu um breve sorriso enquanto andava pela sala.
— Em qual Era vocês estavam até ontem? — Temi a resposta no
momento em que as palavras deixaram meus lábios.
— Na Era do Espectro. — Seu sorriso desapareceu. Ele permanecia
com os olhos arregalados como se estivesse diante de uma aparição. Não
podia culpá-lo por isso.
Um silêncio caiu pesado sobre nós enquanto analisava o significado da
palavra. Mal podia imaginar o que meu povo sofreu com minha ausência,
partindo da Era da Expedição, que durou sessenta anos, com a promessa de
entrar na Era da Paz. E em vez do tão merecido descanso, os cidadãos
encontraram somente um espectro de esperanças e promessas. Tiveram sua
saúde e longevidade drenadas pela própria natureza, graças ao desequilíbrio
causado pela ganância que corre em meu sangue maldito.
Levei as mãos ao meu rosto, buscando suprimir minhas lágrimas o
melhor que pude, odiando o fato de eu ser tão fraca a ponto de não conter
minhas emoções na frente do meu mais leal cavaleiro. Eu deveria ser seu
ponto de inspiração e fortaleza. Eu deveria ser um exemplo. Mas era fraca
demais para isso. Fraca demais para encarar as consequências.
Seu abraço me envolveu suave e gentil, e, sincronizando nossas
respirações, eu pude me acalmar. Ele podia entender o transtorno que se
passava em meu âmago, e tal conforto era tudo que eu precisava naquele
momento.
Sim, eu estava em casa.
Meu coração saltou assim que a porta da sala abriu de repente e seus
braços se desvencilharam de mim com urgência. Fiz o melhor para retomar
minha compostura, enxugando discretamente as lágrimas do meu rosto. Ao
me virar, vi uma bela jovem com cabelos longos e escuros eloquentemente
trançados. Seu vestido verde água era repleto de transparências e suave em
contraste com seu rosto, que ostentava uma expressão perplexa ao me ver.
Ao nos ver.
Caleb se levantou com incrível naturalidade e a conduziu pela mão até
mim.
Seus olhos âmbar me contaram sua história antes que precisasse ouvi-
la, e senti o chão se abrir sob meus pés, ainda que estivesse sentada.
— Eleanor, te apresento Sua Majestade Rainha Lunara Montecorp.
Ela se apressou em fazer uma reverência profunda enquanto Caleb
finalizava as apresentações.
— Majestade, Eleanor Van Doren. Minha filha.
Capítulo 18

O som de suas palavras ressoou em meu corpo como um eco. Eu


estava pegando minha vida do ponto em que parei. A vida dele – e de todos
– continuou. Claro que estaria casado, pai de uma linda jovem e totalmente
distante de qualquer possibilidade de que existisse algo entre nós. Era tão
óbvio que não sei como o pensamento não me ocorreu antes. Não sabia o
que sentir. Eleanor ainda estava ajoelhada perante a mim quando finalmente
sinalizei com um movimento dos dedos para que se levantasse, fazendo o
possível para manter meu rosto neutro.
— É uma grande alegria conhecê-la, Lady Van Doren. — E de fato,
era surreal reconhecer Caleb em seu semblante. Sua pele estava bronzeada
pelo sol e um conjunto de sardas adoráveis salpicava seu rosto. Ela
segurava um grande livro preto junto ao seu corpo. Seu olhar era penetrante
e translúcido em minha direção. O olhar de alguém que sabe o que quer – e
sabe como conseguir.
— É uma grande honra estar na presença da lendária rainha perdida.
Espero que com o retorno de Vossa Majestade possamos enfim recuperar a
antiga glória de Montecorp. — Sua voz monotônica preencheu a sala.
— Temo que nosso legado seja de guerras, e não de glórias, Lady Van
Doren. Mas compartilho do mesmo desejo que o seu — lamentei.
— Será um privilégio tê-la em nossa reunião. — Seus olhos
discretamente analisavam minhas vestes, simples demais para uma rainha.
Simples demais para o colar que pendia em meu colo. Olhei para Caleb, a
pergunta pairando no ar entre nós.
— Eleanor é Guardiã dos Recursos Naturais, integrou o Conselho há
três anos graças à sua expertise em álgebra. Ela foi capaz de reorganizar as
provisões do reino, diminuindo o eco da escassez.
Percebi o sorriso em seu rosto lutando para se formar.
— Estou ansiosa para vê-la em alguns momentos na reunião. — E
realmente estava. Não necessariamente uma ansiedade boa.
— Peço licença a Vossa Majestade, preciso rever algumas últimas
anotações com Amon. — Eleanor passava seu olhar confuso entre mim e
seu pai, como se não soubesse qual dos dois seria a maior autoridade sobre
ela.
Assenti, e com uma reverência ela se virou e partiu em direção ao
portal nos fundos que dava acesso à biblioteca.

Caleb respirou fundo, passando a mão pelos cabelos. Olhei para ele, e
felizmente tive uma resposta antes que eu precisasse formar uma pergunta.
— O nome dela é Anna. Até ser recrutado para o campo de batalha, ela
era a luz de esperança que eu tinha no mundo. Minha certeza em um futuro
melhor... Tudo mudou quando tive que partir. Na incerteza da morte,
ofereci-lhe a vida. Deixei-a livre para que seu coração seguisse seu
caminho. Não queria lhe preocupar ou lhe deixar viúva antes do casamento.
Anos se passaram, e só pude imaginar duas coisas: Ou ela me tomava
por morto, ou tinha seguido seu caminho. Já havia desistido de nós. Eu a
tinha como uma boa memória em meu coração nos dias que me permitia
pensar em coisas boas.
Quando te conheci, vi uma chance de finalmente começar a vida,
Lunara. Uma chance de finalmente voltar para casa. Mas acabei me…
envolvendo com você. Isso confundiu minha mente, afinal você era, digo, é
minha rainha. No fundo, sempre soube que não existia um futuro para nós
dois. O que tivemos foi uma ilusão, e então você desapareceu.
Foram tempos extremamente conturbados. Coisas inimagináveis
aconteceram nas primeiras semanas após seu sumiço. Logo me vi na porta
de sua casa, na periferia da cidade onde crescemos juntos. E tudo o que
sentia voltou de forma arrebatadora. Como se o sentimento não estivesse
adormecido, mas acumulado após tantos anos. Queria lhe agradecer por
isso, mas não achei que teria a oportunidade… até agora.
Um ano depois, eu me tornei pai, e mesmo com o mundo decaindo ao
nosso redor, eu me senti verdadeiramente feliz pela primeira vez em toda
minha vida. — Caleb possuía verdadeiro orgulho em seu olhar.
Toda uma vida de mortes e perdas. Caleb merecia essa alegria, é claro.
De todas as pessoas, foi ele quem derrotou Bólius. Ele que me presenteou
com a pedra do fogo. E poderia ser por puro egoísmo, mas não pude deixar
de sentir uma lágrima escapando pelos meus olhos.
Era reconfortante pensar que tinha alguém esperando por mim. Ainda
morava em mim alguma esperança de ter uma vida feliz, como ele mesmo
disse. Eu também tinha toda uma vida para lembrar e sentir falta. Um vazio
que eu sentia necessidade de preencher com algo que não existia.
Não me permiti pensar em Blaze, era dolorido demais. Em outro
momento eu poderia honrar sua memória. Se é que o que eu tinha com ele
poderia ser chamado assim.
Peguei as mãos de Caleb e disse com toda sinceridade:
— Fico muito feliz em saber que existe amor em sua vida. E pelos
seus serviços prestados a Montecorp, ficarei honrada se você aceitar ser
meu conselheiro real.
— Majestade, é uma honra poder servi-la novamente. — Seu sorriso
foi breve, mas aqueceu meu coração.
E com uma reverência, ele se despediu. Caminhei em direção à
biblioteca, entrando discretamente. Eleanor estava com Amon, então esse
encontro ficaria para mais tarde. Preferi ficar em uma ala silenciosa entre os
livros, recuperando-me de tudo que tinha aprendido sobre o passado que
não vivi.
O dia estava apenas começando, eu via pouquíssimas pessoas entre as
estantes. Mesmo assim, puxei meu capuz e apanhei o primeiro livro que vi,
sem me importar com o título. Duvidava que teria algum foco para ler
naquele momento. Apressei-me a adentrar em um dos casulos de leitura,
uma esfera individual pequena e aconchegante, com uma vista gloriosa para
o reino e uma porta com um sinal de “não perturbe” – que era o ponto alto
do local. Uma das minhas invenções favoritas. Aguardei os minutos
passarem enquanto deixava meus olhos se perderem com a vista para as
pradarias de Montecorp em um tom mais pálido do que eu me recordava.
Só tínhamos uma estação do ano agora?
Essa praga que assolou o reino podia não ser minha culpa, mas era
minha responsabilidade.
Fiquei alguns minutos pairando sobre minha autopiedade, evitando que
meus pensamentos escorregassem para meus lados mais sombrios.
Adoraria parar de choramingar e de lamentar, era patético. Eu
precisava conversar com o conselho e começar a agir como uma rainha. Os
últimos cinco minutos antes do início da reunião levaram uma eternidade.
Até então, eu só sabia como ser uma princesa, e essa verdade estremecia
meus ossos. Não foi para isso que Sienna me deu uma chance. Ou para isso
que Argrinis me mostrou sua compaixão.
Eu estava aqui pelo futuro. Mesmo que cada passo dele parecesse me
devorar.
Capítulo 19

Faltavam apenas dois minutos para o início da reunião, mas o trovão


em meu peito não permitia que eu continuasse na biblioteca, observando os
segundos passarem. Eu podia negar para mim mesma, mas estava mais
perdida do que nunca. Não sabia quem iria encontrar ou como me dirigir a
essas pessoas. Não sabia como curar Montecorp e muito menos tinha noção
de como liderar um reino totalmente desconhecido. Ou pior, como liderar
um reino que não me conhecia. No retorno da guerra, eu era aclamada pelo
meu povo. Podia sentir o amor emanar de seus sorrisos. Por mim, ou pela
possibilidade de um novo futuro. Um futuro que não veio. Será que eles
aceitariam uma rainha que os abandonou? Mais uma incerteza na minha
coleção.
A única coisa que eu tinha certeza era de que não me atrasaria para a
primeira reunião. Nem perderia a oportunidade de conhecer os membros do
conselho. Ao menos após a conversa com Caleb, sentia-me mais preparada
para as possíveis notícias.
Fiquei frente à cadeira posicionada na curva mais estreita da mesa
oval. Ali, de frente para a porta, mantive-me em pé. Segurei minhas mãos
junto ao corpo, procurando manter a respiração estável. O tecido macio do
vestido roçava em minha pele. Minhas vestes eram simples para uma
rainha, isso o olhar de Eleanor havia deixado claro. Possivelmente, fora de
moda. Contudo, eu não estava ali para brincar de boneca. Estava ali para
reinar. Eu ainda me lembrava do balanço das decisões, do peso da
responsabilidade. Do sabor inebriante do poder.
O som crescente de passos acelerava meu coração, ansioso pela
chegada iminente.
Caleb estava no recinto, mas meus olhos se atentaram ao relógio. Ao
anunciar a primeira das nove badaladas seguintes, tanto a porta ao meu
lado, que eu acabara de usar, quanto a porta à minha frente se abriram
simultaneamente. Eleanor olhou para mim e em seguida diretamente para as
três figuras diante do portal de carvalho. Se eu pudesse ler intenções, veria
tudo que foi falado no silêncio entre eles.
Caleb prontamente cumprimentou o restante do conselho à distância.
Senti uma fragrância acre enquanto entrou um homem alto e
demasiadamente esbelto. Seus cabelos curtos e loiros faziam contraste
suave com seu rosto pontudo. Ele sorria, mas não vi emoção em seus olhos.
Sem notar minha presença, ele gesticulava para uma mulher encapuzada,
com um longo vestido prateado. Não o conhecia. Senti a apreensão subir
pelos meus dedos e implorei calma a mim mesma. Ao seu lado, a mulher ria
com uma voz bela e familiar. Ao virar seu rosto na minha direção, seu
sorriso se abriu ainda mais. Ayla, a sacerdotisa do Templo de Prata agora
era parte do conselho. Fazia todo sentido. Ela me ensinou tudo sobre o
panteão dos Deuses e sobre a herança da minha coroa. Ela era a voz da
esperança e persistência em tempos de guerra, e agora também em tempos
de escassez.
Apesar da minha ausência, não vi o tempo escrever sua história no
rosto de Ayla. Sua pele escura como a noite seguia cintilante, e seu sorriso
tinha efeito tranquilizador em qualquer ser vivo que conhecia. Ela já estava
presente desde que minha mãe havia chegado no palácio, e os rumores
diziam que o Carvalho de Prata foi plantado pelos meus antepassados na
primeira cerimônia conduzida por ela nesta dimensão. Não duvidava. Ela e
Amon pareciam ser parte deste mundo tanto quanto as rochas em si. O que
me fazia pensar agora sobre o quão cruel fora tirar Bólius de Cinaéd.
Era difícil saber que eu era a vilã na história de todo um reino. Um
pensamento que foi desaparecendo a cada passo que Ayla dava em minha
direção. Na sua posição, ela era a única que não tinha obrigação de se
curvar perante a coroa. Senti seu abraço como a melhor forma de boas-
vindas possível e lamentei por ter que interrompê-lo rápido demais.
Amon nos observava da entrada da biblioteca com o olhar confiante.
Como se já soubesse que eu retornaria e tudo o que diria em seguida. Ainda
assim, a presença suntuosa exalava sua essência. Não de divindade, como a
da sacerdotisa, porém a mais pura e antiga magia. Aquela que agora tão
desesperadamente faltava a Montecorp vinha dele naturalmente. Seu corpo
de leão possuía a habitual graça felina ao passar pelos móveis dispostos na
sala, e seu rosto de homem permanecia indecifrável. Ótimo, nada mudou
com meu querido tutor. E o mistério em seu olhar... até então foi o mais
fácil de resolver. Ele estava feliz em me ver ali.
O salão permanecia em silêncio enquanto os demais presentes estavam
ajoelhados, esperando meu pronunciamento antes de agir. Não me dei conta
de quando iniciaram suas reverências.
— É com grande alegria que finalmente retorno a Montecorp. Sir
Caleb Van Doren me deixou a par da atual situação, e lhes adianto que
compartilho da mesma urgência para restaurar a glória em nosso reino.
Felizmente, agora haverá tempo e oportunidade para reinar em paz, uma
vez que o trono será ocupado pela herdeira do Céu e da Terra mais uma vez.
Ao meu sinal, todos estavam de pé, tomando seu usual lugar na mesa.
Sentei-me e todos seguiram o movimento.
— Aproveito para comunicá-los de que Sir Van Doren aceitou ser o
conselheiro real. Dito isso, peço que sigam a pauta original para este
encontro. Permanecerei como ouvinte até estar totalmente inteirada dos
assuntos discutidos. — Não sei como as palavras saíram de mim com
firmeza. Ou como me lembrei do jeito formal de falar. — Antes disso, peço
que se apresentem com seus respectivos títulos e responsabilidades
delegadas.
Ayla foi a primeira a falar. Sua voz era suave como um mantra.
— Rainha Lunara Alexandria Montecorp, sua chegada ilumina nosso
conselho e nosso reino. Fui convidada para fazer parte da Tríplice dois
meses após sua partida, e desde então mantenho relações diplomáticas com
nossas fronteiras. — Ela hesitou antes de continuar a falar. — Mas, se me
permite a pergunta, eu digo em nome de todos o quanto pedimos aos
Deuses pelo seu retorno. Procuramos por céu, terra e mar. Poderia
compartilhar conosco onde estava, Vossa Majestade?
Eu não sabia como explicar e não tinha por que esconder. Escolhi a
versão mais simples.
— Fui transportada para um outro mundo por um feitiço ancestral.
Minha ausência é o eco do erro de gerações. Eu levei vinte anos para
conseguir voltar a Montecorp, e já passou do momento de recuperar o
tempo perdido.
Os olhares da mesa permaneciam firmes em mim. Sentia Eleanor e o
outro lorde de cabelos amarelos analisando cada movimento, buscando me
reconhecer.
Não.
Buscando reconhecer a rainha de quem tanto ouviram falar. Mantive
meu foco no homem desconhecido.
— Apresente-se. — Sentia nos meus instintos que não o conquistaria
através da gentileza.
— Majestade, é uma honra e um privilégio estar em vossa legendária
presença. — Seu sorriso tinha o mesmo tom que seus cabelos, que
novamente permaneceu apenas em seus lábios, ressoando a simpatia usual
da corte. — Sou Lorde Dimas Franchot, Guardião da Prata. Assumi o
assento de meu pai há dez anos, quando ele veio a falecer. Certamente
Vossa Majestade se lembra dos excelentes serviços prestados pela família
Franchot há duas gerações.
Era ele que ouvia os gritos de Lady Franchot?
— Meus pais confiavam plenamente em Lord Franchot, e agradeço
pelos serviços em memória de nossos pais. — Seu sorriso parecia mais
largo a cada palavra minha. — Estou ansiosa para conhecer os seus e
construir o nosso próprio laço de confiança.
Dito isso, senti sua postura murchar. Não dei tempo para sua reação
enquanto me direcionei a Eleanor, que mantinha sua atenção em Dimas até
perceber que eu gostaria, sim, que ela se apresentasse de novo. Mesmo que
já soubesse exatamente o que iria dizer.
— Majestade, sou Eleanor Van Doren, Guardiã dos Recursos Naturais
e membro do conselho há três anos. Desde que minha iniciativa mostrou
otimização na partilha de mantimentos, Lord Franchot sugeriu minha
participação como uma forma de resguardar o cofre da coroa.
— Agradeço por todas as suas nobres ações, Lady Van Doren.
Amon me encarava, mas era impossível olhar uma esfinge nos olhos
por muito tempo. A lenda dizia que essa perspectiva possui não todos os
enigmas, mas todas as respostas do universo. E um décimo dessa
compreensão era o bastante para cegar um homem. Mas, antes disso, ele
seria levado à loucura. Mirei, então, na safira azul que ele usava na testa.
— Em uma situação sem respostas, recorreram ao guardião das
perguntas. Nos tempos de dúvidas, procuramos por certezas, mas o
crescimento é fruto da incerteza. Aqui somos todos parte do Céu e da Terra,
mas ganhamos no espaço da sua ausência um motivo de uma nova
urgência.
Minha mente deu um nó prazeroso ao ver as palavras se formarem à
minha volta. Precisei de alguns momentos até compreender novamente a
maneira de Amon se comunicar.
— Você fundou a Tríplice? — Senti um sorriso se formando em mim.
A esfinge assentiu. — Quem compõe a terceira parte?
Caleb levantou a mão discretamente e se pronunciou.
— Eu, Sir Caleb Van Doren, Cavaleiro da Guarda Real. Mantenho o
mesmo afinco que Vossa Majestade presenciou durante o final da batalha de
Cinaéd. Minhas tropas buscam manter a ordem no reino e nas fronteiras.
Enquanto ele sorria, eu podia sentir o gelo que Eleanor emanava
em direção ao pai. Esperava do fundo do coração que ela não imaginasse
coisas inexistentes. Muito menos que soubesse das que de fato quase
existiram, em um passado distante demais. Respirei fundo, afastando o
pensamento.
— Agradeço todas as apresentações, agora peço que prossigam sua
pauta original.
— Majestade, acredito que nossos assuntos agora são secundários
diante de vossa presença — enfatizou Lord Franchot. — Devemos
comunicar ao povo que a bela rainha está de volta.
— Beleza não é um tema de importância quando vivemos em uma era
em que a terra está doente, Lord Franchot. Ninguém deseja comunicar meu
retorno ao povo mais do que eu. Mas podemos convocar uma sessão
extraordinária para tal fim. Agora eu só desejo assistir à reunião que
aconteceria se eu não estivesse aqui.
— Eu compartilho do desejo de Lord Franchot, rainha Lunara. Mas
seguiremos o seu comando. — Ayla abriu um sorriso reconfortante.
Antes que pudesse seguir, Eleanor abriu o livro que carregava quando
a conheci e começou a falar sobre uma série de números que repassou com
Amon a respeito do consumo de água e trigo no reino desde a última lua
cheia.
Capítulo 20

Quando o terceiro serviçal trouxe uma infusão de frutas e ervas para o


conselho, junto a chás e biscoitos sem que houvesse necessidade, ficou
evidente o ar curioso em seu rosto. Já sabíamos que o retorno da rainha
estava se espalhando pelo palácio. Em breve estaria sendo mencionado por
todos e perderíamos a oportunidade de direcionar o pensamento dos meus
súditos... E fofoca são retalhos de informações que formam de colchas a
trapos.
Durante as longas horas, ouvi atentamente cada uma das deliberações
da longa reunião:
— Ayla ainda não conseguira passagem livre para os cidadãos do reino
além do território da casa Piran e Sostine. O bloqueio completaria duas
décadas em breve;
— Lord Franchot lamentava a necessidade iminente do reajuste do
tributo, que deveria iniciar já na próxima lua;
— Lady Van Doren retrucou apresentando sugestões de racionamento
propostas por Amon. Ayla sugeriu que ambas as ações fossem iniciadas,
mas Caleb temia uma revolta popular.
E durante o tempo passado em busca de um consenso, eu apenas ouvi,
como disse que faria.
Então decidi reinar, como jurei que faria. Assim que me levantei, todos
se calaram.
— Devo comunicar algumas considerações. Não haverá sessão
extraordinária. Amanhã, ao meio-dia, espero toda a corte na sala do trono
para um comunicado oficial.
Os olhares surpresos cortaram a mesa entre si.
— Mas não deveríamos ter mais cautela nesse pronunciamento,
Majestade? Não sabemos ainda como a revelação do seu retorno pode
impactar as preocupações do glorioso povo de Montecorp. — Dimas
parecia preocupado demais com minha declaração.
— A notícia de que a Rainha retornou ao trono é motivo de alegria
para seu povo. Precisamos alcançar glória verdadeira além de uma frase que
é repetida.— Amon deu um sorriso abstruso. — E também não há
necessidade imediata de aumentar o tributo. Vamos seguir com o plano
apresentado por Lady Van Doren. Se preciso, racionaremos o consumo do
palácio.
— Majestade, se me permite interromper, a instabilidade causada pelo
bloqueio tem nos prejudicado em demasia. Felizmente, Vossa Majestade
não esteve aqui para presenciar.
— Não há nada de feliz em deixar de compartilhar a dor do meu povo,
Ayla — declarei, encontrando compreensão na sacerdotisa.
— Durante a guerra, fizemos isso por opção própria, como deve se
recordar. Agora os territórios vizinhos nos isolam, com medo de serem
assolados pela mesma sina condenada pelos Deuses. — Ayla mantinha a
calma mesmo com notícias drásticas.
— Isso é ridículo, os Deuses não os castigariam por manter relações
comerciais conosco. Eles já não olham por nós, basta observar tudo que
aconteceu nas últimas décadas para perceber. — Respirei fundo antes de me
dirigir para ninguém em particular. — Iremos juntas falar com Lady Piran e
Lord Sostine. Toda a realidade que vocês conhecem muda hoje. Não
retornei ao trono para cultivar a maldição que assola Montecorp. Retornei
para quebrá-la.
O ar de tensão na sala pesava sobre nós. Claramente o conselho estava
desacostumado a ordens diretas. Que pena.

Na volta para a ala real, não me preocupei em esconder meus cabelos


ou meu rosto. A Rainha de Montecorp estava de volta para qualquer um
capaz de reconhecê-la. Caminhei pelo palácio respondendo às reverências
que aconteciam sem aviso, um tanto quanto desengonçadas.
Antes que pudesse entrar na ala real, ouvi passos apressados atrás de
mim e me virei preocupada. Ainda não tinha nomeado um guarda particular.
Sua respiração estava ofegante, mas Eleanor seguia bela como uma pintura
de gelo.
— Majestade! — A voz aguda ressoava pelo corredor.
— Lady Van Doren, acalme-se. Está tudo bem com você?
— Me chame de Eleanor, se possível, Majestade. — Enfim um raio de
sol em seu olhar âmbar.
— Tudo bem. — Meus lábios repuxaram brevemente diante do pedido.
— Eleanor, o que houve?
— Sobre seu pronunciamento de amanhã, gostaria de lhe dar um
conselho — ela disse baixinho.
— Estou ouvindo.
— Seu povo só precisa saber o quanto você lutou para voltar. Só isso
importa — declarou Eleanor.
Ah, se eles soubessem que eu nem fazia ideia de que eles existiam de
verdade. Vida longa à rainha. A jovem me olhava fixamente, alheia a tudo
que se passava na minha mente.
— Obrigada pelas palavras, Eleanor. Nos vemos amanhã.
Na entrada da ala, percebi que estava intimidada pelo meu próprio lar.
Com a mão sobre a argola, o portal se abriu. Ouvi seu estrondo ao caminhar
em direção aos meus aposentos.
Finalmente, eu estaria só após o dia vivendo um verdadeiro inferno
emocional. Teria algumas horas para descansar, mas temia meus
pensamentos. O sol ainda pairava pálido no horizonte. Sentia a verdade de
tudo o que vivi grudando em mim como se fosse uma teia. Só não sabia se
era a aranha ou a mosca.
Mas tudo bem, eu sabia de muito pouco nos últimos tempos.
Capítulo 21

O eco dos meus passos pelos largos corredores eram minha única
companhia. Meus aposentos tinham uma aparência totalmente diferente
desta manhã: Os tecidos brancos que cobriam os móveis não estavam em
nenhum lugar à vista, o ambiente parecia ter sido limpo recentemente e todo
o lugar tinha aroma de baunilha e lavanda. Eu deveria ter me alegrado, mas
o cheiro doce começou a fazer minha cabeça doer e pulsar. Memórias
demais retornavam a mim de uma só vez.
Passei os dedos pelas folhas entalhadas no dossel prateado da minha
cama, grande demais para uma só pessoa. No móvel da cabeceira estava o
mesmo retrato que sempre acompanhou meus sonhos. Meu pai, forte e
sorridente; minha mãe, com olhar determinado e rosto gentil; e eu aos dez
anos, inegavelmente feliz. O papel fotossensível havia sido criado
recentemente pelos alquimistas naquela época, e ficamos mais do que
felizes em testar.
Abracei o porta-retrato como se pudesse sentir o seu calor. Quando na
verdade tudo à minha volta parecia tão imperdoavelmente frio. Tantos
futuros eu imaginei, e agora não era capaz de vislumbrar nenhum. Havia
nomeado Caleb meu conselheiro, mas nem ele seria capaz de me dizer o
que eu precisava ouvir agora.
As lágrimas faziam meus olhos embaçarem, arderem e não paravam de
fluir pelo meu rosto. Sentia minha têmpora pulsar, e mesmo no desespero
de conter minhas emoções, fui domada por elas. A escuridão impiedosa me
embalava como um casulo.
Não me lembro de ter dormido, mas quando abri os olhos já estava
escuro. Senti um esgotamento muito forte, porém precisava de água.
Novamente parecia que cinzas pairavam em minha boca. E se haviam
trocado tudo no meu quarto, certamente teria uma garrafa fresca em algum
lugar.
Assim que me levantei, senti o cômodo rodopiar. Coloquei a mão na
cabeça e respirei fundo antes de tentar mais um passo. O breu não me
incomodava normalmente, a luz das estrelas muitas vezes bastava nas noites
sem luar. Mas isso também tinha mudado. Liguei a luminária, que
rapidamente acionou uma cadeia de chamas por todos os pontos de luz
integrados ao meu redor. Pequenos lampiões irradiavam uma luz
aconchegante e morna. O móvel próximo à escrivaninha tinha uma divisão
refrigerada, feita com sal, cristais e um elixir especial para manter a
temperatura fresca. As prateleiras estavam abastecidas com frutas secas e
castanhas. Felizmente encontrei copos, taças, água e vinho.
Água primeiro. Uma vez que a sede não era mais um problema,
senti necessidade de tomar um longo banho, como se ele pudesse renovar
minha alma. Cada parte minha sentia-se incompleta. Não porque faltava
uma peça, mas porque eu estava inteira e fui partida.
Tirei meu vestido e soltei os grampos que prendiam firmemente meus
cabelos enquanto a banheira enchia de água quente. Minha camisola branca
não estava mais de molho, mas passada e pendurada em um cabide junto ao
biombo. Meu pescoço estava ainda mais vermelho, a ferida do colar agora
começando a criar uma casca frágil. Trouxe o fecho para frente, a fim de
tirar o colar, uma vez que cada movimento meu exigia um esforço
descomunal. Não sabia se pela exaustão emocional ou se pela viagem
interdimensional. Pouco importava.
O colar escorregava nas minhas mãos de novo e de novo, e quando
finalmente consegui posicionar meus dedos sobre o fecho, ele estava
travado. Minhas unhas quebravam enquanto forçava alguma abertura. Mas
todos os elos que preenchiam a corrente eram aparentemente indestrutíveis.
Queria gritar. Queria implorar para alguém tirar esse colar do meu pescoço,
para que eu pudesse devolvê-lo e finalmente me livrar dessa praga. E
quanto mais o desespero tomava conta de mim, mais sozinha eu me sentia.
Meus pés molhados me tiraram do transe de agonia e me apressei em
desligar a água. Escorreguei e bati o joelho com força na lateral do
mármore, mas interrompi o dilúvio. A dor subiu pela minha perna,
chamando-me para a realidade: Não adiantava. Eu, sozinha, jamais poderia
tirar esse colar, precisava encontrar uma outra maneira. De preferência, uma
mais inteligente e menos agonizante.
A água estava quente demais, mas foi bem-vinda em cada parte
dolorida do meu corpo e espírito.
Fiquei ali até ver meus dedos enrugarem. Até a cabeça parar de latejar.
Até que não existisse nenhum pensamento na minha mente, enquanto
mantinha meu olhar fixo no teto.
Segurei a pedra do fogo, sentindo seu calor pulsar tão familiar.
O que eu faço com você?
Senti uma risada baixinha em mim.
O que eu faço comigo?
Capítulo 22

O ar da madrugada fria pousava em meus cabelos enquanto meus


pensamentos me congelavam por dentro. Yohan e Ella Montecorp não
existiam mais. Luiz e Diana nunca existiram. Ou será que existiram? O
pensamento latejava como mil flechas perfurando minha mente e meu
coração. Seria fácil assumir que tudo que vivi até então foi apenas um
sonho bom. O chão faltava aos meus pés, como se a cada passo eu perdesse
um degrau. Eu sentia a queda, mas permanecia de queixo erguido. O último
resquício das minhas forças, a fim de não derrubar minha coroa. Esse era o
primeiro ensinamento de todo futuro monarca.
Minha história agora era uma brincadeira divina de mau gosto.
Ninguém de quem eu me lembro ter amado na última semana, nos últimos
meses, era real. Tinha certeza de que Íris jamais deixaria que eu refletisse
sobre a vida na varanda após o banho. Olívia seria a primeira a me trazer
um cobertor. A gente sorriria e pularia na cama gigante, planejando viagens
e comendo pipoca. Mas elas não estavam aqui, nem jamais estariam. E não
importava o quanto eu levasse minha mão ao peito, o vazio ainda parecia
estrangular meu coração.
A mentira que disse aos meus pais ainda pulsava em mim. Reais ou
não, a última coisa que lhes disse foi uma mentira. Assim como tudo que
imaginei que dividiria com Caleb. Ao menos ainda poderíamos dividir o
nosso amor pelo reino. Na verdade, eu não pensava nele dessa forma desde
que Blaze entrou na minha vida. Mais uma doce ilusão. Ao menos estava
livre desse sentimento de culpa. Se ele tivesse esperado por mim enquanto
meu coração pertencia a outro, eu conseguiria estar ainda pior.
O pequeno infinito que dividimos foi o suficiente para aquecer meu
coração mesmo em dias como hoje. Isso que eu era: Um apanhado de
memórias e fantasias. Eu estava literalmente apaixonada pelo homem dos
meus sonhos e não conseguia nem conceber o quão ridículo isso era.
Como poderia uma pessoa ter duas vidas dentro de si e ainda assim
precisar viver uma terceira? Tudo era tão alienígena. E o conceito de
alienígena não existia em Montecorp. Era um milagre eu ter conseguido me
comunicar ao longo do dia.
O mármore gelado da sacada adormecia meus dedos, e a copa do
Carvalho de Prata não cintilava nas noites sem luar. Eu costumava me
deixar ser hipnotizada pelo balançar de suas folhas brilhantes no horizonte.
Olhei por cima do ombro, para o suntuoso aposento real, as sombras se
projetando altas com a fraca iluminação. Minha casa não parecia ser meu
lar. Eu sentia o cômodo exatamente como era: Um apanhado de pedras frias
e histórias incógnitas.
E eu... era minha própria história desconhecida. Será que alguém viria
a conhecer? Eu amava enigmas, mas quem seria capaz de me decifrar?
Respirei fundo, buscando me encontrar. Não tinha ninguém em casa.
Ou melhor, tinha. Mas esse alguém não era eu. Ou era, em uma versão
totalmente perdida de mim.
Nada fazia sentido.
Nada.
A pedra do fogo era a única coisa que trocava calor com meu corpo. Já
tinha alguns cortes nos dedos graças à fricção contra sua lapidação afiada.
Mesmo no escuro, podia ver seu brilho de soslaio. Precisava devolvê-la
para seu lugar de direito. Mas, para isso, primeiro ela precisaria sair de
Montecorp. Romper o bloqueio, restaurar as relações comerciais.
Reapresentar-me à corte e aos meus súditos.
Sabia em meu coração que, para a cumprir a promessa que fiz à Alma
Antiga, eu precisaria restaurar o equilíbrio que nunca conheci. Não saberia
dizer se isso seria o bastante para entrarmos em uma Era de Paz, mas o
mundo merecia essa tentativa.
Eu poderia ser melhor que as gerações passadas. Não deixaria que toda
essa perda fosse em vão. Eu encontrei uma forma de voltar para Montecorp,
poderia muito bem descobrir uma forma de levar essa pedra para casa. Nem
que fosse minha última ação.
O relógio marcava as dez badaladas noturnas. Olhei para o céu e senti
as estrelas me fitarem de volta. Eu não as reconhecia.
Argrinis, estou aqui.
Senti uma rajada forte e suspirei ao vento, implorando que levasse
minha mensagem pelo Céu e Terra: Estou de volta. E o que foi tomado já
está procurando seu caminho de volta.
Eu me referia à pedra de fogo, mas meu coração estava na mesma
situação.
Quem diria que a solidão poderia ser uma companhia tão expansiva.
Eleanor

Procurei de esguelha por algum soldado no corredor. Felizmente, o


horário da troca de rondas ainda era o mesmo da última semana. E não tinha
nenhum guardião na minha porta. A vigia que papai colocava sobre mim às
vezes era insuportável. Ele não entenderia por que eu precisava escapar.
Nem minha mãe. Nenhum dos dois me via como algo além de um ábaco
vivo.
Passei por dois corredores até chegar nos seus aposentos dele. Dei
duas batidas na porta. Depois mais três.
Dimas abriu a porta radiante... Como sempre. Com um sorriso largo,
puxou-me pela mão para que eu entrasse logo. O sol estava a se pôr, mesmo
assim fechei as cortinas. Não poderia arriscar que alguém nos visse.
— O dia de hoje foi completamente inesperado. O que você achou,
“Lady Van Doren”?
Meu nariz torceu com o título. Detestava ser chamada assim. Lady Van
Doren era minha mãe, não eu. Ignorei como de costume e servi uma taça de
licor para mim.
— Tudo que ouvi sobre a rainha perdida não se encaixava com o que
vi hoje. Papai falava que ela agia como uma menina mimada… Foi o que
pensei a princípio, mas tem uma diferença entre mimo e determinação.
— Nossa Majestade Real é uma menina mimada, Eleanor. — Não
pude deixar de sorrir ao som do meu nome. — Ela pretende mudar toda a
administração que vem sendo feita há duas décadas após ter sido rainha por
apenas um único dia. Isso é um ato de egoísmo e ignorância. Ela não sabe
nada, absolutamente nada sobre o próprio reino!
O som do seu punho cerrado na mesa me fez pular de sobressalto e
derramar um pouco do líquido em meu decote. Vendo que me assustei,
Dimas se levantou, ajeitou os cabelos loiros e alinhados enquanto andava na
minha direção. Bebi o gole da taça, sentindo o calor da avelã correr pela
minha garganta.
Ele passou as mãos pela minha cintura e senti meu corpo estremecer.
Olhando nos seus olhos verdes, eu não poderia desviar para lugar algum.
— Mas sua chegada muda tudo. Podemos dizer adeus aos nossos
planos agora, Dimas — declarei. Meu pai já havia mencionado uma chance
muito pequena de seu retorno, mas nunca acreditei. Nunca quis acreditar.
— Não, El. — Coloquei minha cabeça sobre seu peito enquanto seus
dedos corriam pelas minhas tranças. — Vai tudo seguir de acordo com o
que sempre sonhamos. Isso eu te prometo. Só vou precisar fazer algumas
mudanças de percurso.
Dito isso, forcei-me a sorrir. Eu tinha medo, mas com ele isso não
parecia ter importância. Dimas levantou meu rosto e deixei que provasse a
avelã direto dos meus lábios. Seus dedos correram pelas alças do meu
vestido, em direção aos meus seios. Provou do licor que repousava na
minha pele. E, como sempre, me rendi aos seus desejos.

Já estava de volta ao meu quarto na calada da noite e me peguei mais


uma vez sonhando com o céu estrelado do qual tanto falavam. Será que é
mesmo possível iluminar uma noite sem a lua? Pela primeira vez, era como
se eu pudesse sentir que estava prestes a descobrir.
Sim, tudo estava prestes a mudar.
Vida longa à rainha.
Capítulo 24

Já havia levantado há muito tempo quando ouvi as batidas na porta.


Mal consegui dormir, os círculos escuros em volta dos meus olhos
denunciavam meu cansaço. Ainda faltavam horas para o meio-dia, mas
parecia pouco tempo para me preparar. Perdi minha noite afogada em meus
próprios problemas em vez de planejar o que diria à minha corte. E o que
faria para conquistá-la.
O amor é mais poderoso que o medo. Esse era o lema de Ella
Montecorp, a rainha mais amada da história. Um contraste com o olhar
calculista do meu pai.
Duas sentinelas estavam de prontidão, certamente sob as ordens de
Caleb. Uma senhora e uma jovem se reverenciaram no momento em que
abri a porta. Certamente a ama do palácio e a nova aia designada a mim.
— Majestade, sou Ophelia Coralia. E esta é minha filha, Lila Coralia.
Estamos à disposição para atender todas as suas necessidades. É uma
grande alegria tê-la novamente conosco.
Coralia. Há quanto tempo não ouvia o sobrenome da família que
cuidava da organização do palácio. Não possuíam terras ou influência, mas
conquistaram nossa confiança através da atenção aos detalhes e expertise
em estilo. Provavelmente foi algum parente de Ophelia que planejou o
jardim presenteado à rainha pelo rei quando soube que eu estava a caminho.
Estávamos as três no quarto, e como eu queria conquistar o povo,
achei melhor começar por quem estava por perto. Mas definitivamente eu
estava desacostumada a tanta formalidade, então falei antes que o silêncio
se tornasse constrangedor.
— Ophelia e Lila, a alegria de ver vocês aqui é toda minha. Por
décadas, tudo o que eu mais sonhava era poder olhar meu povo nos olhos
novamente. — Ao toque das minhas mãos, senti as duas paralisarem em
surpresa. — Hoje começa uma nova era. Vocês são parte dela.
O sorriso entre mãe e filha aqueceu meu coração.
— A honra é toda nossa, Majestade.

Pedi a Ophelia e Lila que me contassem sobre os últimos anos de


Montecorp. Algo me dizia que eu poderia confiar mais em suas palavras do
que no conselho. Lila era muito parecida com sua mãe: Tinha seus cabelos
castanhos presos em uma trança embutida entrelaçada com um fio prateado.
Seu vestido era branco e simples, destacando suas costas elegantes e com
belas mangas compridas. Falava pouco, mas se mostrou grata pela sua vida
confortável no palácio, confeccionando vestidos para a nobreza. Ela se
ofereceu para me trazer outros modelos, e mesmo sem a necessidade, disse
que adoraria. A jovem parecia bastante feliz com minha resposta.
Ophelia tinha o ar da sabedoria conquistada com o tempo e confirmou
tudo que eu já sabia: As estações estacionadas, o sumiço das estrelas, os
raios de sol frios e tudo mais que me causava calafrios. A distração que
buscava em nossa conversa se transformou em apreensão. E, mesmo sem
garantias, dei-lhe a certeza de que as cores voltariam.
Quando elas terminaram, quase não reconheci o reflexo no espelho.
Metade do meu cabelo estava habilmente trançado, formando uma rosa
atrás da minha cabeça que combinava com a coroa de folhas prateadas. Lila
escolheu um vestido verde escuro com sobreposições transparentes e
detalhes em couro preto nos braços e na cintura. Correntes pendiam das
alças pelos meus ombros e combinavam com o cinto feito de folhagens de
prata. Uma pequena lua crescente cravejada em diamantes estava pendurada
no final da corrente. Nunca vi uma roupa tão linda. Infinitamente mais
confortável que o traje da minha coroação.
Enquanto admirava os detalhes, reparei que a superfície do metal
brilhava; Ophelia ao meu lado viu o mesmo que eu, e foi apressada até a
sacada. Incrédula. Ao abrir as cortinas, ouvi os suspiros agudos conforme
ela procurava pela mão da filha. Aproximei-me também, curiosa pelo que
chamava tanto sua atenção. Elas sorriram na minha direção, e podia jurar
que o que vi em seus olhos foi gratidão.
Um raio de sol dourado furava as nuvens, cobrindo todo o meu quarto
com ouro celeste. Enfim, um sinal de esperança. A magia dos céus estava
respondendo a mim. O sol estava quase a pino, sinal de que a sala do trono
me aguardava.

A ala norte estava exatamente como eu me lembrava. Uma grande


escadaria no horizonte de mármore levava à gigantesca cadeira de carvalho.
Ela se mesclava com as árvores frondosas e verdes que compunham a
mesma floresta que deu origem à nossa nação. Muito maiores que qualquer
árvore comum, a impressão era que essas sementes vieram de reinos
gigantes. O verdadeiro significado de majestoso. As bandeiras prateadas
com nossa insígnia pendiam do teto por metros, cintilantes a qualquer olhar.
O sol entrava imponente pela claraboia que honrava nossa conexão com os
céus. Era loucura querer se sentir poderoso nesse salão. Eu sentia como se
ele pudesse me engolir.
Mas o peso no meu peito não foi graças a sua dimensão.
Apenas Ayla, Caleb, Eleanor, e Lord Franchot estavam presentes.
Amon permaneceu na biblioteca, mas era esperado. O passado deixou claro
que multidões não são a companhia ideal para uma esfinge. Segurei a
emoção no meu olhar e parei em frente ao trono, olhando para meu fiel
conselho abaixo.
— Sir Van Doren — declarei com a voz firme.
Em poucos instantes, Caleb já estava no topo da escadaria aos meus
pés.
— Majestade, eu lhe imploro seu perdão. Eu fiquei responsável e me
esqueci totalmente de enviar os comunicados para a corte. Estão na sala do
conselho, mas não foram distribuídos.
— Caleb, você sabia que meu pronunciamento hoje era vital para mim.
Para Montecorp! — sussurrei entre os dentes, mas seu olhar arrependido me
quebrou. — Pois isso deverá ser resolvido agora mesmo. Reúna todos os
soldados presentes e recrute todos os membros da corte imediatamente. Não
importa o que estejam fazendo. Espero todos aqui em uma hora. — Não
havia nada de complacente em minha voz.
Eleanor corria os olhos entre mim e Lord Franchot. Ayla me observava
fixamente. Desci as escadas até eles ao dispensar Caleb com um gesto de
urgência.
— Ayla, confio a você uma missão especial. Quero que faça um
pronunciamento e que me apresente antes da minha entrada. Acredito que
os ânimos estarão mais calmos com você à frente.
— Não vejo por que esperar um momento além, Majestade —
declarou solenemente.
Por fim, dirigi-me a Eleanor, que parecia prender a respiração, e Lord
Franchot, que mantinha seu sorriso forçado aparente.
— Lady Van Doren e Lord Franchot, acredito que possam ajudar Sir
Van Doren em sua missão. Vejo vocês em uma hora.
Sem esperar uma resposta, retirei-me do salão, as sentinelas apressadas
a me acompanhar. Acelerei meus passos e logo estava em frente ao portão
principal do palácio de prata. Os olhares surpresos se curvavam ao
reconhecer a coroa presa em meus cabelos. A princesa carmim ainda era
lembrada, não havia dúvidas de quem eu era.
Ao passar pelo estábulo, ordenei a ninguém em particular para que me
desse as rédeas de um animal manso. Torci secretamente que fosse o belo
cavalo preto que mirava. Algo nele me chamou. E sem tempo a perder,
acarinhei seu focinho e lhe estendi um torrão de açúcar antes de começar a
galopar. Não me importei se estava sendo acompanhada pelos soldados ou
não.
Ordenei que abrissem os portões e acelerei em direção ao centro da
cidade, que ficava na fronteira do palácio. Ouvi os cascos do cavalo
ecoarem pelas ruas de pedra, tão acelerados quanto meu coração ameaçando
pular do peito. Adrenalina corria pelo meu sangue, alimentando meu
impulso. Eu não sabia o que dizer quando finalmente tivesse a atenção dos
meus súditos. Mas sentia um chamado forte que precisava respeitar, ou iria
me consumir.
Desviei das casas de mármore branco, encantada com suas colunas
entalhadas. Os comerciantes observavam deslumbrados da porta de suas
lojas, e eu estava encantada novamente em ver as ruas arborizadas da minha
cidade natal. Pequenos grupos de pessoas com olhares arregalados ou
curiosos começavam a me seguir, em busca do que eu diria ou faria. Eu
tinha a surpresa ao meu lado, e iria usá-la para restaurar o astral do meu
povo.
Cheguei finalmente até o chafariz da praça principal, com todos os
olhos da cidade sobre mim. Nenhum deles acreditando no que via.
— Cidadãos de Montecorp, eu sou Lunara Montecorp, filha de Yohan
e Ella Montecorp. Herdeira legítima da Deusa Argrinis, guardiã do Céu e da
Terra. Há vinte anos, uma maldição me levou para longe do meu reino e dos
meus amados súditos. — Agora mais pessoas se aproximavam de mim. —
Vocês sofreram com a ausência da magia natural. Eu sofri em isolamento.
Mas agora acaba a era de dor e perdas!
Eu sentia uma energia tão forte pelo meu corpo que poderia estar
flutuando. Não respirei fundo para continuar, enquanto gritava a todo
pulmão as palavras não planejadas.
— Aqueles que estavam aqui há vinte anos, no final da grande guerra,
deem um passo à frente. Vocês conhecem o meu rosto. Naquele dia,
trocamos sorrisos e promessas. E hoje, vamos cumpri-las. Nós somos o
povo do Céu e da Terra. Não somos as cicatrizes do nosso passado, mas as
sementes do nosso futuro!
Eu tinha certeza de que essas palavras não saíam de mim. Saíam de
uma rainha.
A sensação de orgulho não durou muito ao ver os olhos sem esperança,
julgando cada movimento meu. A vontade que eu tive foi de sair correndo
dali e me esconder. Uma atitude covarde que não ajudaria em nada. Eles
sabiam que eu era a rainha. Só não acreditavam que algo poderia mudar
após décadas provando que a descrença supera a fé. Não podia culpá-los.
Então olhei mais atentamente. Algumas pessoas, mais velhas,
puxavam as mais novas para perto e apontavam na minha direção com
esperança nos olhos. Era como se eu reconhecesse os sorrisos das crianças
naquele dia em que voltei ao reino.
Desci do cavalo, pisando no chão, então olhei para cima. Ajoelhei,
sentindo a terra sujar meu vestido, e peguei um punhado com uma das
mãos. Toquei no morno pingente com a ponta dos dedos. Não sabia o que
estava fazendo, mas o sentimento estava certo em meu coração.
É engraçado como funciona a fé. A forma como se manifesta nos
momentos de maior desespero, em que ela ainda persiste. Olhei para o céu
como quem busca por respostas. E como se eu pudesse me comunicar com
a própria magia, simplesmente falei baixinho, para qualquer um que
quisesse ouvir.
— Estamos aqui. Devolva o calor para o meu povo. O calor dos raios
de sol e o calor das cores. Estamos aqui.
Nada aconteceu.
— O que foi perdido será restaurado. Peço piedade pelo meu povo,
não por mim. Eles merecem ter esperança novamente. — O vazio no peito
começava a me inundar. — Eu imploro.
A multidão começava a se dissipar. O sabor do fracasso subia pela
garganta enquanto as lágrimas pesavam em meus olhos. Não tive opção a
não ser abaixar a cabeça e fechar os olhos, sentindo vergonha correr pelo
meu rosto.
Subi no cavalo e respirei fundo. Ainda não tinha falhado com a corte.
Teria mais uma chance hoje. Alisei o dorso do animal e me dei conta de que
não sabia seu nome. Iria chamá-lo de Noite, por enquanto.
Não olhei para trás quando comecei a cavalgar, mas vi no chão minha
sombra amorfa começando a ter o seu desenho bem definido no chão. O
calor do sol começava a incidir sobre a minha roupa, aquecendo cada
camada de tecido. Então desacelerei.
Olhei para cima com uma das mãos sobre os olhos, assistindo o dia
nublado se dissolver. O palácio à minha frente parecia reluzir, e poderia
jurar que a floresta ao longe ostentava tons de verdes fluidos em contraste
ao dourado solar.
Algumas pessoas olhavam para mim das janelas, outras das ruas.
Poucas repararam, mas sorriram. Era o suficiente nesse momento.
Havia esperança, não era só um delírio. Nem todos eram capazes de
sentir ou de reparar… Mas a magia logo tornaria a fluir.
Galopei em direção à sala do trono, não descendo do cavalo em
momento algum. Se mais cedo eu havia pensado em um protocolo, agora já
o havia mandado para os infernos. Eu estava suada, a maquiagem
possivelmente borrada e o vestido sujo de terra.
A corte me esperava atônita e surpresa, tanto pela minha presença
quanto pelo meu estado. Não me importei. Desci do dorso da Noite apenas
quando cheguei ao último degrau e finalmente pisei no altar do trono. Pedi
a um guarda que devolvesse o animal e avisasse que ele seria minha
montaria oficial. Acenei para Ayla que, como sempre, elevou a calma e
concentração de todos que ouviam sua voz.
Assim que ela falou sobre meu retorno, repeti a todos as mesmas
palavras que disse há alguns minutos no coração da cidade. Dessa vez, fui
recebida com aplausos. Não significava nada, vindo desses bajuladores.
Apenas algumas famílias mostravam real lealdade aos Montecorp.
Eleanor sorria dentre eles. Fez-me querer sorrir por dentro também.
Seu conselho não foi o suficiente para conquistar meu povo, mas foi o
bastante para que me sentisse em paz com meu discurso.
Passei as próximas horas cumprimentando cada família influente do
reino, ouvindo seus relatos de preces pedindo meu retorno e agradecendo
aos deuses pela minha presença.
Eu também teria o que agradecer, mais tarde.
Capítulo 25

Não esperava que no fim das contas eu fosse me sentir revigorada. O


dia não fora nem um sucesso nem um fracasso. Pelo menos foi um começo.
Mas, para quem não tinha tempo a perder, ainda não era bom o suficiente.
Ayla fez uma prece final segurando minhas mãos, então me despedi da
corte com o salão lotado em uma saída triunfante. Os ombros para trás
disfarçavam meu cansaço físico e emocional. Ainda estava entalado o fato
de Caleb ter esquecido de enviar os comunicados. Lorde Franchot tentou
me convencer de que um baile seria uma oportunidade mais elegante, mas
não havia necessidade para tanto. Ainda mais se não podíamos desperdiçar
recursos.
Lila estava por perto, e pedi que guardasse minha coroa e que
providenciasse o jantar nos meus aposentos. Não lembrava da última vez
que fiz uma refeição completa. Pedi que os guardas mantivessem uma boa
distância enquanto caminhava pelo palácio. Era boa a sensação de não
precisar me esgueirar pelos cantos ao me aventurar pelos largos corredores
em direção à ala real. Eu estava exausta dos cumprimentos, então coloquei
o capuz do meu manto e fingi ser só mais um membro da corte.
Eu torcia para não ser apenas minha imaginação, mas jurava que os
vitrais estavam mais coloridos no final da tarde do que no dia anterior.
Comecei a andar mais devagar, a fim de apreciar o belíssimo painel. Será
que outras pessoas notaram? Ainda não era uma melhora expressiva. Não
podia dizer que as plantações vingariam, ou que as enfermidades cederiam
simplesmente porque as cores estavam mais brilhantes. Eu percebia na
minha pele que era um sinal, mas precisava de fatos concretos.
Olhando para cima, sentia as cores refletindo nos meus olhos enquanto
andava pela lateral da grande parede. Vermelho, azul, violeta, amarelo e
laranja combinavam entre si em um arco-íris impossível. Pergunto-me o
que poderia ser mais belo que esse caleidoscópio. Assustei-me assim que
olhei para frente, esbarrando em alguém aparentemente tão distraído quanto
eu.
Vários livros caíram no chão, e me apressei a pegá-los.
— Me perdoe! Estava totalmente distraída, não tive a intenção de...
derrubar tudo. Mas o crepúsculo está tão... — As capas pretas com
símbolos dourados dos livros eram encantadoras. “A mecânica dos quatro
elementos”, “Universos polivalentes” foram os únicos títulos que consegui
ler antes de ser cortada pela voz ríspida.
— Você deveria estar mais atenta, tem noção do dano que poderia ter
causado?
Me assustei com o tom imperativo, e fitei o estranho. Seus olhos
escuros e desafiadores estavam fixos em mim, espelhando a explosão de
cores à nossa volta. Ele vestia um longo casaco preto, repleto de fivelas e
bolsos aparentes. Ele era bonito, de um jeito que não era óbvio. Não tinha o
mesmo comportamento polido e pomposo da corte, mas parecia seguir um
código de elegância próprio. Eu não queria desviar da sua presença, mesmo
que ela preenchesse o ambiente como uma sombra invisível. Alguns colares
com símbolos desconhecidos pendiam do seu pescoço. Ao passo que
assimilava suas vestes, senti seu olhar analisando as curvas do meu vestido.
A capa havia caído para trás. As correntes permaneciam no lugar, mas a
saia agora estava suja de terra e possivelmente com alguns rasgos. Eu não
parecia uma rainha naquele momento. Mas depois de toda uma tarde sendo
aclamada pela minha coroa, era bom me sentir como uma desconhecida.
Por mais ríspido que fosse, parecia ser mais... honesto.
— Eu não tive a intenção de lhe fazer mal — eu disse, e antes que
pudesse perguntar quem era, ele me interrompeu.
— Todos os males do mundo começam sem nenhuma intenção. — Ele
saiu em disparada sem olhar duas vezes na minha direção, destilando
arrogância.
— Nunca vi tais títulos na coleção de Amon — observei enquanto ele
estava a apenas dois passos de distância.
— Talvez esses títulos não pertençam à coleção do Guardião das
Palavras. — Ele parou, mas não se deu o trabalho de virar o rosto na minha
direção.
— Talvez. — Eu definitivamente estava curiosa. Ele podia ser
grosseiro, mas eu estava em uma conversa normal, e gostava disso.
Estendi um último livro que ainda estava caído no chão em sua
direção, mil perguntas se formavam na minha mente.
— Eu gostaria de conhecer as demais coleções de livros que existem
neste palácio.
— Então venha comigo se não precisar estar em algum lugar agora. —
Sua voz grave não vacilou, e eu não podia fazer nada além de segui-lo, uma
vez que começou a andar sem verificar se eu o acompanhava.
Cruzamos todas as alas do palácio, indo além dos corredores da
biblioteca. Imaginei a princípio que iríamos ao setor de alquimia, mas ao
passar direto por ele, já não reconhecia os arredores. Acho que nunca estive
ali antes.
Sem saber ao certo o que dizer, fiquei calada, ainda mais com o
silêncio indiferente. A cada curva, os corredores ficavam mais estreitos. A
iluminação, mais pacata. Até que estávamos de frente para uma porta preta
de metal abaloada no topo.
Ele finalmente se virou na minha direção e seu olhar passou por mim.
A sobrancelha levantada não me dizia se era em curiosidade ou
desconfiança.
— São poucas as pessoas que entram neste lugar. Mas, para ser justo,
também são poucas que parecem se interessar. — O rapaz colocou uma mão
sobre a maçaneta e ouvi o clic ao destrancar.
Fiquei totalmente deslumbrada. O teto continuava por metros acima da
minha cabeça, provavelmente chegando até o topo do castelo. Uma escada
em espiral dava acesso ao mezanino, enquanto livros e mais livros coloriam
as paredes em tons de vermelho, preto e verde. À minha frente, vi uma larga
bancada com tubos e potes de vidro com líquidos de todas as cores,
rodeados por anotações. Como ninguém me mostrou esse lugar antes?
— Esse lugar é seu? — As palavras saíram confusas, mas eram as
únicas que eu tinha no momento.
— Era do meu mestre, mas o herdei quando ele veio a falecer, anos
atrás. — Não havia emoção no seu rosto, mas sua aparência apática me fez
desviar o olhar, procurando alguma outra coisa para justificar minha
atenção. Tinha algo sobre ele que eu não sabia decifrar. — Venha comigo,
você disse que queria ver os livros.
Subi atrás dele, tomando cuidado com cada passo. O lugar era gigante
e estava lotado de todo tipo de poções e criaturas conservadas. Podia
detectar vários tipos de energias no ambiente. Algumas boas, outras…
desconhecidas. O cômodo estava quente, mas senti os pelos dos meus
braços arrepiarem.
Chegamos até o segundo andar, e em um gesto que passaria por
gentileza, ele gesticulou para que andasse à sua frente, deixando que eu
passeasse livremente pelas estantes e ele se retirasse do ambiente. O aroma
cítrico me envolvia. Palavras como “sol”, “dimensão”, “transmutação”
apareciam com bastante frequência. Não sei quanto tempo fiquei ali até ele
voltar, agora com um avental marrom por cima da roupa.
— Preciso confessar que sua coleção é fascinante. Nunca vi nada
assim — falei baixo, como se os objetos à minha volta pudessem capturar
meus pensamentos caso minha voz fosse alta demais.
— Nada assim foi feito para ser visto. Ao menos não pelos olhos de
qualquer pessoa. Mas assumo que deve haver algo diferente em você, caso
contrário não se perderia idiotamente nas cores de um vitral. Posso assumir
que estou correto?
Seu olhar me penetrava intensamente, estudando meu rosto em
estranha curiosidade. Certamente não ele não recebia muitas visitas. Ou
interagia com muitas pessoas. De perto, alguns pontos ocre saltavam de
seus olhos, e pude ver os traços finos de sua beleza fria. E ali, entre ele e os
livros, vi-me hipnotizada.
— Não acredito em pessoas incapazes de perceber nuances no espectro
de luz — consegui dizer. Ele emitiu um som que não sabia dizer se foi uma
risada genuína ou escárnio ao subir um lance de escada. Logo retornou com
um exemplar de capa vermelha. A única grafia era um círculo dourado com
um ponto no centro, nenhuma palavra aparente.
Ele estendeu o braço e me entregou o livro com certa reverência, que
imitei ao pegá-lo cuidadosamente. Era muito mais pesado do que parecia.
Há tempos que não via esse símbolo, mas o reconheci.
— Um livro sobre o sol? — Era mais uma afirmação do que uma
pergunta.
Ele assentiu.
— E quando eu preciso te devolver?
— É um presente. Nenhuma coleção é completa com exemplares
repetidos. Algo que vi em você me lembra este livro.
O sangue aqueceu meu rosto. Ele não parecia ter visto absolutamente
nada que eu pudesse interpretar como uma coisa boa.
— Sendo assim, eu lhe agradeço. — Antes de terminar de falar, ele
virou as costas para mim e se distanciou para uma bancada de madeira. O
cansaço começava a clamar meu corpo, junto com a fome e a estafa, o que
fez minha voz vacilar. — Infelizmente, agora preciso estar em algum outro
lugar. Nos vemos em breve! — Não acenei conforme caminhei em direção
à saída, desconfortável e sem compreender nada do rapaz misterioso.
— Certifique-se de que a porta está fechada. — Ouvi enquanto me
distanciava.
Apressei-me a chegar nos meus aposentos, incerta de que conseguiria
fazer todo o percurso sem desmaiar. Na mesa do meu quarto, já alimentada,
busquei o livro e comecei a folhear as primeiras páginas. O aroma de
laranja se misturava ao incenso doce do meu quarto de uma forma
reconfortante. Vi na minha mente o semblante do rapaz enigmático. E só
quando meus sentidos começaram a voltar a mim, enquanto lia sobre as
incidências solares, que me dei conta:
Não havia perguntado seu nome.
Capítulo 26

Ouvi a batida na porta enquanto Lila terminava de ajeitar a coroa:


Uma bela peça feita de fios de prata retorcidos como raízes que desciam
pela minha testa enquanto uma lua crescente repousava sobre uma pequena
pedra branca cintilante. Eu amava ver como as joalheiras do reino
traduziam tão lindamente a essência de Montecorp. Mesmo quando lendas e
promessas eram tudo o que tínhamos no último século.
Ayla irradiava em um vestido azul como o céu, contrastando com sua
pele escura. Ela era a personificação do dia e da noite. Levantei-me para
Lila terminar de me vestir com um cinto metálico sobre a saia longa
marsala, enquanto isso Ayla caminhava em nossa direção.
— Majestade, é uma verdadeira alegria contar com sua presença em
Montecorp. Sinto em meu coração que os ventos de mudança são prósperos.
O reino está novamente cercado por cores — disse ao apontar para a
belíssima vista.
Eu queria sorrir. Muito. Mas não conseguia ainda.
— Obrigada, Lila. Posso terminar de me arrumar sozinha.
Logo estava a sós com a sacerdotisa no quarto e a convidei até a
sacada.
— Há duas décadas não vemos um dia como esse, Lunara. Isso tem
relação com seu retorno.
— Eu adoraria acreditar nisso, Ayla — suspirei com as mãos na
sacada. — Mas a essa altura você já sabe da minha visita desesperada até a
cidade.
— Foi um ato de liderança e coragem. — Sua mão pousou sobre a
minha.
— Foi um fracasso — falhei na última palavra. — Meus súditos não
querem mais ter esperança. Já estão há um século a cultivando e sabendo
que ela não floresce.
— Esperança não é uma erva-daninha, Lunara.
— Não. É uma piada de mau gosto — declarei amargamente.
O rosto de Ayla se contorceu em reprovação.
— As mudanças demoram. Às vezes o tempo de uma geração. Não é
justo, mas é como as coisas são. Agora estamos finalmente em um ponto de
virada.
Respirei fundo. Não estava ali para reclamar, nem para desabafar.
Estava em Montecorp para reinar, lembrei a mim mesma.
— Preciso saber quais ações estão sendo feitas diretamente com meu
povo. Quero participar, Ayla. Não quero reinar à distância, e você sabe
disso.
— Sei disso desde que você determinou que iria para o campo de
batalha.
— Meu lugar é com o povo, com meus soldados. Sempre foi.
Ayla sorriu e tirou de sua capa um pergaminho enrolado.
— Sei disso, Lunara. Anotei aqui todas as ações realizadas diretamente
na cidade. Você pode escolher de quais deseja participar.
Desenrolei o papel com cuidado e vi ali uma série de atividades.
Seleção de grãos, verificação da água potável, treinamento de cavalos,
reunião com as casas Piran e Sostine, construção de moinhos, colheita e
plantio de ervas medicinais, aulas em praças públicas, dentre outras várias.
Segundo ela, a distribuição de sementes e tônicos fertilizantes
aconteceria em uma hora, liderada por Eleanor. Pretendia conversar com
Amon, mas já havia esperado tanto tempo que poderia falar com meu
querido tutor mais tarde.
— Peça para Eleanor me aguardar nos portões do palácio. E gostaria
de cavalgar no mesmo animal que conheci ontem. Acredito que os guardas
possam dar maiores diretrizes.
— Perfeitamente, Lunara. — Ayla já se encaminhava para a porta,
quando se virou. — Em breve celebraremos a lua cheia. Faremos o ritual do
novo ciclo no templo de Argrinis. Posso contar com vossa presença?
Como senti saudades dos rituais de celebração à abundância e à
plenitude. A noite em que nos uníamos para cantar e dançar como irmãos.
Senti pela primeira vez um sorriso brotar em meu rosto, mesmo que não
fosse aparente.
— Estarei lá.

Lila me aguardava na porta, e assim que mencionei que iria cavalgar,


ela fez uma careta e se apressou para trocar a saia por uma calça de
montaria. Encontrei Caleb na porta da ala real, ele passava alguma instrução
aos guardas.
— Lord Van Doren.
— Majestade.
Com um gesto, nos distanciamos dos sentinelas. O sol irradiava pelas
altas janelas, refletindo na sua armadura prateada.
— Caleb, preciso que reporte os movimentos do conselho hoje. Estarei
o dia todo com Eleanor e Amon. Não terei tempo de verificar assuntos
administrativos.
— Pode ficar tranquila, Majestade.
Eu olhei em volta, sinalizando que não tinha ninguém por perto. Logo,
não tinha necessidade de formalidade.
— Lunara, você pode ficar tranquila. Já venho administrando
Montecorp nos últimos anos. O que te faz pensar que não conseguirei
continuar o bom trabalho agora?
— Em momento algum duvidei que o reino estaria em boas mãos com
você, Caleb. Mas, pelo que vi ontem, sou muito mais necessária nas cidades
do que em reuniões. — Pelo meu olhar desapontado, ele já sabia que eu
estava me referindo ao meu discurso. Provavelmente todos no palácio já
sabiam sobre ele.
— Você está fazendo o certo, minha rainha. — Seu sorriso me
reconfortou. — Só peço que tenha cuidado. Montecorp não é mais tão
segura quanto antes.
E lá estava o cavaleiro que dividiu a frente da batalha comigo. Que me
salvou de tantos perigos, que me presenteou com a semente do fogo. Caleb
havia mantido os cuidados com o reino, e nenhum gesto de gratidão seria
grande o bastante. Ao menos reconfortava meu coração saber que ele havia
reencontrado o amor da sua vida. Que tinha uma vida feliz aqui no palácio.
Era o mínimo para o herói de sua rainha – e de seu reino.
Despedi-me em silêncio, saboreando as palavras que não se formaram
para serem ditas.


Noite reluzia contra a luz da manhã. Um dos rapazes do estábulo
segurava as rédeas do animal, distraído enquanto acariciava seu nariz. Ele
prontamente reverenciou ao me ver, e eu agradeci assim que subi em sua
cela. Pelo seu olhar de surpresa, palavras de gratidão não eram comumente
ditas por aqui. O que me soava estranho depois de ter passado vinte anos
agradecendo absolutamente qualquer gesto que faziam por mim. Talvez
pudesse ser o início de uma boa mudança.
Eleanor liderava um grupo de cinco cavaleiros, cada um com duas
bolsas grandes presas ao flanco de seu cavalo. Imaginei que fossem as
sementes e os fertilizantes manipulados pelos alquimistas.
Coloquei meu cavalo ao lado dela e a cumprimentei baixinho.
— Eleanor, será um prazer te acompanhar hoje. Peço que me oriente e
delegue funções da mesma forma que os demais.
Um sorriso sutil passou pelo seu rosto indecifrável. Seu cabelo estava
preso em uma trança lateral, e mesmo em sua perfeição, alguns fios se
libertavam com a brisa. Meu coração apertou diante da lembrança de Íris e
Olívia; da sensação de seus dedos em meus cabelos nas infinitas tardes
despreocupadas que desfrutamos.
Voltei a mim quando a voz forte de Eleanor bradou o primeiro
comando à frente de todos. Eu precisava ser mais vigilante, a fim de não me
perder nos meus pensamentos. Eles só me causavam tristeza.
— Vamos até o vilarejo de Foz, onde está localizada a maior parte dos
fazendeiros. A ação acontece a cada dois ciclos lunares e, como sempre,
cada fazenda deverá receber cinquenta doses do tônico e cinquenta sacos de
sementes. São três horas de distância galopando, faremos paradas apenas na
volta. Assim que chegarmos, darei mais instruções. Acredito que seu animal
esteja devidamente alimentado e hidratado. Vamos!
Ainda que estivessem acostumados a Eleanor, os cavaleiros olharam
para mim em busca de aprovação.
— Seguiremos as instruções de Lady Van Doren. — Assenti, em
deferência a Eleanor, sinalizando que estaríamos todos seguindo suas
diretrizes.
Logo seu cavalo liderava o caminho, seguido por mim e por Noite, um
guarda pessoal da Coroa e os cavaleiros designados para a tarefa.
O caminho que fizemos passou pela estrada próxima à praça do dia
anterior, e mesmo em velocidade rápida, pude ver alguns acenos curiosos
em direção à sua rainha. Meu peito se aqueceu ao ver seus rostos.
Não. Não era para mim que olhavam.
Os acenos eram em direção a Eleanor, que cumprimentava a todos com
um sorriso que ainda não havia visto com meus próprios olhos. Quantas
vezes ela veio aqui suprir as necessidades de saúde e fome do meu reino?
Gostaria de sentir gratidão, mas ao ver a multidão que se formava para
saudá-la, senti inveja. Eu era o pior dos seres humanos por sentir inveja da
filha do meu nobre conselheiro, ainda mais pelo motivo dela ter cuidado tão
bem de todos enquanto eu estava ausente.
Lembrei-me de que ninguém podia ler minha mente, com vergonha do
que pensava e sentia, e ajustei minha postura o melhor possível. Obriguei-
me a sorrir e acenei com toda a graciosidade que havia aprendido, fazendo
o melhor para roubar a atenção. Havia desistido de tudo para estar aqui.
Tudo em nome do amor ao meu reino. E conquistaria seus corações
também.
Quando finalmente alcançamos a estrada, um campo de trigo adornava
os arredores, dourado contra o sol. Eleanor cavalgava ao meu lado,
explicando sobre a eficiência dos tônicos fertilizantes e como os alquimistas
conseguiam estabilizar as plantações até certo ponto.
Até ser o suficiente para o povo não morrer de fome. Foram suas
palavras nas entrelinhas.
Ela parecia saber tudo sobre as trocas de bens e capitais, e não tinha
nada além de orgulho em sua voz. Senti-me mais tranquila uma vez que ela
se dispôs a explicar tudo sem que eu pedisse. Ou ela estava mostrando sua
competência para sua rainha, como prova da sua capacidade, mesmo sendo
tão jovem… Ou ela estava se vangloriando de tudo que teve que fazer
graças ao dano que eu provoquei a Montecorp.
Seu rosto permanecia impenetrável, assim como as fortes sombras
provocadas pelo sol a pino. Seu sorriso seguia encantador a cada palavra
que pronunciava. Eleanor não era uma princesa, mas havia nascido com
todo o dom.
Chegando no centro de Foz, segui todas as instruções que deu aos
cavaleiros como se fosse um deles. Os fazendeiros cumprimentaram
Eleanor com um sorriso e um abraço. Não a vi agindo assim em momento
algum na corte. Isso me fazia pensar o quanto havia nela que não conhecia.
Apesar de ter sido apresentada a ela há pouco tempo, a sensação era que
eram pessoas totalmente diferentes.
Inspirada por suas ações, cumprimentei todos os súditos com um
aperto de mão, perguntei o nome de suas esposas e maridos enquanto
explicava o funcionamento do tônico, assim como havia aprendido
momentos atrás. Seus sorrisos gratos pela atenção e pelos produtos eram
sinceros. Finalmente eu sentia que estava desempenhando meu papel da
forma que sempre quis.
Não me lembro quando o primeiro fazendeiro percebeu que eu era a
rainha, mas logo a notícia se espalhou pelo vilarejo. As pessoas começaram
a apontar de longe e confirmar a notícia com Eleanor.
A partir desse momento, não consegui mais cumprimentá-los. Eles se
ajoelhavam na minha frente e beijavam minha mão. Agradeciam a honra de
estar em minha presença, senti que deixei de ser ouvida. A figura da rainha
era maior do que eu. A cega devoção me entristeceu. Não aceitavam mais
as sementes das minhas mãos, nem conseguiam prestar atenção as minhas
instruções. Não entendiam como eu poderia estar ali fazendo algo tão
simples.
Não sei quando me distanciei para além das plantações com a desculpa
de que iria contemplar as terras do reino. Eleanor sumiu aos poucos do meu
campo de visão, sorrindo ao olhar os retratos das famílias, alheia ao meu
comunicado. Apenas minha sentinela particular me acompanhou, ainda
assim, a uma distância segura. Ele era outro que não atrevia se aproximar.
Possivelmente por algum comando de Caleb.
Quando não estava mais no campo de visão do vilarejo, desci do dorso
da montaria e sentei em meio ao trigo. Deixei que minha pele absorvesse os
raios de sol. Deixei que secasse as minhas lágrimas antes que pudessem
cair.
Eu não me encaixava no palácio, nem na cidade e nem aqui no
vilarejo.
Em nenhum lugar, e em nenhuma dimensão.

A volta, como esperado, foi exaustiva. O crepúsculo estava a poucas


horas de distância, e aquelas estradas eram feitas para o dia. Mesmo assim,
recebi com alegria o momento em que paramos próximo a um riacho, a fim
de descansar por alguns minutos. Naquele momento, a única coisa que me
reconfortava era saber o quanto Noite gostava de carinho na bochecha, e
enquanto o cavalo bebia água, aproveitei para me refrescar. Ao olhar em
volta, percebi que nenhum dos cavaleiros também estava acostumado ao
retorno do calor. Eles enchiam os cantis e se alongavam à distância.
Enquanto lavava as mãos e o pescoço, ouvi alguns passos se
aproximando. As botas estavam sujas de terra, mas o modelo delicado só
poderia pertencer a uma pessoa.
— Olá, Eleanor. — Ela permaneceu de pé enquanto eu estava
agachada na beira do rio. Podia ser orgulho, mas não queria ajoelhar para
ela, então me apressei a levantar. Olhei em seus olhos, novamente
analíticos.
— Gostaria de agradecer a Vossa Majestade pela colaboração na ação
de hoje. — Sua voz era firme e suave.
— Não precisa agradecer. — O fato dela tentar me feria.
— Claro que precisa, Majestade! Já executamos essa distribuição há
anos, porém nunca com a supervisão da Coroa. — Seu olhar pousou no
adorno na minha cabeça. Eu o sentia muito mais como um enfeite naquele
momento.
— Pelo que vi hoje, Eleanor, você sabe muito bem o que está fazendo.
Não precisa de supervisão alguma. — Virei-me para montar e terminar a
conversa, mas ela continuou a falar enquanto ajustava as rédeas nas mãos.
— Vossa opinião significa muito para mim, Majestade. Eu busco tratá-
los com o mesmo amor e respeito que você tem pelos seus súditos. — Um
sorriso desafiador tentava se formar no seu rosto. — Majestade, você
acredita que eles possam me amar também?
Claro que amavam. O tipo de amor mais puro, onde você dá ouvidos à
pessoa e há uma conexão verdadeira. Não a paixão cega que tinham por
mim e o que quer que a coroa representasse. Eu não era uma mulher. Era
apenas a personificação do objeto na minha cabeça. Senti vontade de tirar a
coroa e arremessá-la no rio. Perguntei-me se Eleanor fez essa pergunta só
para me provocar. Mas engoli a seco e falei com a maior naturalidade
possível.
— Eleanor, claramente você é tratada como parte da família deles.
Ela finalmente sorriu gentilmente, mesmo enquanto seu olhar me
perfurava. A inveja que corria pelas minhas veias era ácida.
— Mas você é uma Lady, não uma plebeia. Ele sabem que você dorme
em lençóis de seda enquanto eles rezam pela próxima colheita.
Fingi que não vi seu sorriso se desmanchando conforme galopei para a
estrada, a sentinela me acompanhando. Os outros poderiam voltar no seu
tempo.
Foi o arrependimento que me acompanhou enquanto eu via o céu
alaranjar pela estrada. Não deveria ter falado assim com Eleanor. Eu disse
palavras que não concordava apenas movida por meu ciúme. Porque sabia
que ela me daria ouvidos e que doeria. Eleanor era absolutamente dedicada
ao meu povo, tratava-o da melhor forma possível. Sendo filha de um Sir, ela
poderia desfrutar de bailes, doces e vestidos. Mas, em vez disso, pertencia
ao conselho.
Perguntei-me se minha inveja era feita da mesma matéria-prima da
cobiça do meu avô, que nos trouxe tanta desgraça. Eu tinha a chance de ser
uma pessoa melhor e a desperdicei. Não era digna das bênçãos de Argrinis.
Não sabia nem se os Montecorp eram dignos de sua graça. Senti o chão
tremer e vacilar conforme meus pensamentos ficavam mais obscuros. Sim,
eu tinha certeza de que o céu e a terra respondiam ao chamado do meu
coração. Mas a minha busca parecia errada.
A pedra do fogo pesava em meu pescoço, sentia suas arestas cortarem
minha pele enquanto cavalgava. A dor suave e aguda foi bem-vinda
enquanto o palácio, que parecia ser feito de lua, reluzia azulado. Algumas
estrelas surgiam no céu. Esperava que isso fizesse diferença para alguém,
mesmo que as pessoas não soubessem que o retorno dos astros e o meu
estivessem ligados.
Entreguei Noite ao estábulo enquanto acariciava sua testa junto à
minha, já com saudades do animal. Cavalgar no seu dorso era um dos
poucos momentos em que eu podia experimentar a liberdade. Estava
cansada demais para ver Amon, teria que adiar mais uma vez. Chegando à
ala real, dispensei Ophelia e Lila com meu melhor sorriso e tomei um longo
banho sozinha. Na cama, convidei o esquecimento a me ninar. A próxima
coisa de que me lembro é sentir o sol se esticando no quarto além das
cortinas. E eu definitivamente não estava preparada para o dia seguinte.
Capítulo 27

Fiz uma anotação mental para agradecer Ophelia pelo chá preto e o
café da manhã reforçado que ela me obrigou a comer. Eu estava tão cansada
que parecia mais uma adolescente que não queria sair da cama do que uma
rainha. E certamente ela viu isso e não vacilou no pulso firme. Imaginei se
sua filha também era assim às vezes. Contudo, tive uma condição, ela e Lila
deveriam sentar à mesa comigo. Simplesmente não suportava comer
sentada com pessoas em pé à minha volta me esperando terminar. E
também porque estar com elas, perguntar sobre a procedência da geleia e o
tempo de infusão do chá… era o que eu precisava. A ilusão de ter uma
família de comercial de margarina. Não que aqui soubessem o que era
um “comercial”. Ou “margarina”. Sei que não era a minha família. Mas era
uma família. E, naquele momento, senti-me agradecida por elas me
deixarem fazer parte daquilo.
Caminhei pelos corredores da biblioteca, passando por dezenas de
estantes que subiam até o teto com livros de todas as cores e formatos.
Conforme me aproximava da sala de Amon, sentia a visão se distorcer. Sua
porta parecia mais distante a cada passo, e eu não estava mais acostumada
ao efeito desse truque que ele usava para não ser incomodado.
Resisti a tontura e tentei ignorar minha visão periférica. Foco era a
única coisa capaz de fazer alguém chegar até ele. Passou pela minha mente
que Eleanor deveria ser ainda mais incrível do que eu já sabia, para
conversar com meu tutor em sua própria sala. E, sendo assim, mirei na
safira no centro de sua porta e respirei fundo até que fosse a única coisa que
eu via. Aos poucos, o chão ficou mais estável, os livros não existiam mais
ao meu redor e finalmente consegui tocar na maçaneta. Como sempre,
estava aberta.
Sua sala era ainda maior que toda a ala real do palácio. O teto parecia
ser feito de estrelas que colidiam e dançavam entre si, com uma música que
só elas podiam ouvir. Eu via livros empilhados como dunas por toda a parte.
Alguns, mais especiais, ficavam abertos em cima de uma grande mesa,
próximos a um frasco luminescente. Perfeito para ser usado junto ao papel.
Amon não estava em nenhum lugar à vista, mas sua presença vibrava
pelo ar. Não sei se ele não era muito sociável ou se, assim como eu, sentia-
se incompreendido. Só sei que eu nunca o temi. Sempre me senti acolhida
perto dele. Talvez por eu ser repleta de incertezas e ele, repleto de
perguntas. Havia mais em comum entre mim e a querida esfinge do que eu
percebi anos atrás.
A frase que ouvi quando criança, “decifra-me ou te devoro”, passou
pela minha mente. Já não sabia mais em qual infância a ouvi.
Não importava. As duas se foram.
Olhar em volta de seus aposentos era como contemplar uma fração do
infinito. Não sabia distinguir o que era floresta, deserto ou cidade.
Possivelmente algo totalmente diferente.
Chamei seu nome da mesma forma que sempre fiz. A entonação
curiosa e suave saiu de mim, e por um instante me senti novamente a
princesa cheia de sonhos que atravessava o palácio toda manhã para
aprender. Tudo o que eu queria era voltar a ser aquela princesa.
Amon surgiu ao meu lado, como se já estivesse ali me observando há
um tempo e eu não houvesse reparado. Meu coração sorriu, e eu o abracei.
Sua pelagem macia era aconchegante, e ele me deixou ficar ali pelo tempo
que eu precisava antes de me sentar na poltrona em frente à sua mesa.
Ele esperou em silêncio enquanto eu procurava as palavras.
— Eu estive com Sienna — gaguejei, mas consegui pronunciar seu
nome. — Eu não sabia de nada que estava acontecendo aqui. Tudo era
como um sonho… E eu era feliz. Tão feliz que esqueci totalmente sobre
Montecorp. E agora a culpa por ter perdido duas vidas inteiras me consome.
Não sei como me encaixar nessa terceira. Não sei se tem um lugar para mim
aqui, Amon.
Levei as mãos ao rosto em vergonha por alguns instantes, mas tentei
me recompor e encarar a pedra em seu rosto. Respirei fundo, sentindo meu
peito subir e descer algumas vezes, e mantive a cabeça erguida em um sinal
de respeito a tudo que meu tutor me ensinou. Engoli a emoção a seco
enquanto ouvi suas palavras ressoarem.
— Só existe apenas uma Lunara Montecorp. Como uma pessoa pode
ter três vidas?
— Não pode… Esse é o problema.
— Essa é a solução. — E, como sempre, ele podia fazer tudo parecer
tão dolorosamente simples. Eu o odiava e o amava por isso.
Eu teria que refletir sobre isso depois. Às vezes, levava semanas para
entender nossas conversas. Hoje não seria diferente, pelo visto.
Levei a mão ao pulsar morno da joia que adornava meu pescoço por
toda minha desventura. O olhar de Amon seguiu meu movimento, e pude
jurar que foi curiosidade que passou por seu rosto humanoide.
— A gema que repousava na garganta de Bólius agora descansa
próxima da minha. Não sei se nossos destinos também estão cruzados. Não
sei como tirar ela de mim, Amon. Que dirá como devolvê-la. Está presa —
suspirei, mostrando a ele o fecho do colar.
— Talvez ela não queira se distanciar de você. Talvez ela precise ser
removida por seu portador de direito. Talvez você não queira se distanciar
dela.
— Amon, eu abri mão de tudo só para devolver essa pedra de volta a
Cinaéd. — Mostrei as marcas em minha pele sobre a corrente prateada,
agora mais claras. — Eu não a quero mais em Montecorp.
— E ainda assim, quais são seus planos para ir até Cinaéd?
Mantive-me em silêncio. Não tinha absolutamente nenhuma
informação sobre como ficou o resto do mundo nos últimos vinte anos. Pedi
a Amon que ele separasse os livros com as informações necessárias para
que eu pudesse aprender. Levou vários minutos até ele finalmente decidir
que teria a seleção completa até amanhã.
— Você acha que existe lugar para mim aqui?
— Existe lugar no trono para uma rainha, sim. Mas o lugar da Lunara
não será conquistado apenas por uma herança.
Sua pata apoiou suave no meu ombro. Eu entendia mais o significado
literal do que o sentido de suas palavras.
Ayla me encontrou instantes depois de deixar a biblioteca e me
entregou novamente uma lista com sugestões de tarefas para o dia. O meu
lugar como Lunara poderia esperar. Agora precisava ocupar a posição que a
Coroa exigia.
Capítulo 28

Logo meus dias começaram a obedecer a uma rotina semelhante.


Começava a manhã dividindo o café da manhã com Lila e Ophelia, que
passaram a se sentir mais à vontade ao dividir a mesa comigo, ainda que
nossas conversas fossem bastante corriqueiras. Normalmente Lila me
arrumava, trançando meus cabelos como era a moda da corte para receber a
coroa. Nos dias que ela trazia um modelo feito por ela, podia perceber sua
apreensão e excitação. Ela tinha um excelente gosto, misturando tecidos
leves e transparentes, com detalhes em prata, correntes e um tecido que
parecia couro, mas, segundo ela, era de fibras naturais.
Ayla batia à minha porta ao soar da oitava badalada com uma lista de
atividades sugeridas para que eu escolhesse. Finalmente, ao pôr do sol, eu
estava livre para estudar o material que Amon mandou entregar nos meus
aposentos, sobre Cinaéd e os demais territórios.
Antes de dormir, visitava o misterioso livro de capa vermelha sobre o
sol, que recebi do sujeito estranho. Era incrível como o exemplar era
semelhante ao seu antigo dono. Imaginava por onde ele andaria nesse
palácio, já que nunca mais o havia encontrado. Fui até o mesmo vitral uma
vez, mas não o vi em parte alguma.
Até eu ter um plano para sair de Montecorp e ir para Cinaéd, precisava
cuidar do meu reino. A última coisa que queria era sair em uma jornada e
deixar meu povo com seu conhecido sentimento de abandono.
O que pude aprender com o passar das noites através dos livros,
registros e pergaminhos é que Cinaéd sucumbiu às chamas da batalha. O
opulento reino, agora estava entregue à barbárie. Não havia registros do
herdeiro do trono em lugar algum. Era uma terra sem lei. A cada palavra
que aprendia sobre os territórios além das minhas fronteiras, sentia minha
espinha se arrepiar e a respiração oscilar. Eu era responsável por tal sina.
Pelo que pude entender, enquanto a magia parecia ter sido drenada de
Montecorp, os registros apontavam que em Cinaéd a magia estava em
desequilíbrio. Mais vigorosa, de alguma forma. Não entendia como isso
acontecia, já que a pedra estava em meu poder. Aliás, não encontrei
registros sobre ela em lugar algum. Apenas sobre o dragão dourado que a
portava. Não podia imaginar o que encontraria ali. Se o herdeiro estava
desaparecido, talvez pudesse ainda haver alguma sacerdotisa em algum
lugar. Eu precisava de alguém para tirar o colar de mim.
Os livros indicavam que as criaturas mágicas que habitavam as terras
do meu reino já não eram encontradas por aqui. Lembro que minha mãe me
levou para ver um unicórnio quando eu ainda era criança. Ela dizia que
vários andavam próximos ao Carvalho de Prata nas gerações passadas.
Foram criados por Argrinis, assim como eu e ela, mas mantiveram em si
sua essência pura. Por serem criaturas pacíficas, pouco a pouco se afastaram
de nós.
Lembro que alguns seres pequenos e luminosos me visitavam após o
crepúsculo em meu quarto. Flores apareciam na minha janela toda noite –
até que não apareceram mais.
Pensando bem, acho que foi no dia em que eu parei de reparar que elas
estavam ali, na certeza de que estariam. Foi o primeiro erro que cometi na
vida. Até que comecei a me perguntar se tudo havia sido minha imaginação
infantil enquanto entendia, por fim, o que significava ser uma princesa.
O ensinamento longínquo das minhas noites solitárias contrastava com
a realidade crua das manhãs. Presenciei algumas atividades internas, como
almoços e jantares com famílias influentes da corte. Reuni-me com Lord
Dimas Franchot para convencê-lo de que não queria um baile de boas-
vindas. Ele aceitou a contragosto, então finalmente pude me distanciar de
sua presença. Tive também mais uma reunião geral com o conselho, onde
discutimos o efeito do meu retorno ao reino. A maioria das notícias não foi
fácil de ouvir. Caleb disse que meus súditos permaneciam céticos em
relação a mim. Tentou me acalentar argumentando que isso era só uma
questão de tempo. Não funcionou.
Não pude dizer que estava surpresa, mas podia dizer que estava triste.
Mas é claro que não disse. Ayla e Amon viram o sentimento no meu rosto,
mas também não mencionaram nada.
Mas a percepção de que as cores haviam voltado... Aparentemente era
um assunto popular entre os comerciantes. Os alquimistas do reino fizeram
testes nas terras e em alguns enfermos, e o resultado sairia em poucos dias.
Ainda precisariam de anos de observação para assegurar que a melhora era
expressiva.
Gostava mais das atividades externas, quando podia cavalgar no dorso
de Noite. Mesmo nos dias em que não saía do palácio, eu descia para o
estábulo e levava maçãs e cenouras para o animal. Seu olhar era tão doce
que me fazia esquecer por alguns momentos a solidão que me assolava.
Eleanor me convidou pessoalmente para suas próximas missões.
Segundo ela “a presença da rainha fortalece o vínculo com o fruto da
dedicação”. Mas eu sentia seu olhar observador, como se percebesse que eu
não conseguia me conectar com meus súditos apesar meus esforços. O que
mais me irritava é que ela estava certa. Permanecia radiante entre as pessoas
comuns, como se meu comentário na beira do rio não surtisse nenhum
efeito nas suas ações. Eu sentia a ardência de cada olhar carinhoso na sua
direção. Gostaria que alguém me olhasse assim. Mas ali, eu era não mais
que uma desconhecida.
Acompanhei Ayla e Lord Franchot até as fronteiras de Montecorp.
Levamos 4 dias de carruagem em um trajeto que seria belíssimo, se a
companhia não fosse insuportável. Arrependi-me de não ter exigido uma
carruagem particular nas primeiras cinco horas desde que partimos. Dimas
não parava de falar. Em hipótese alguma. Felizmente eu tinha uma tenda
para dividir com Ayla à noite, quando montávamos acampamento para os
cavalos descansarem. Certamente Dimas falava também durante o sono. Ao
menos pude compreender melhor o que estaríamos a conversar quando
finalmente chegássemos.
As Casa Prian e Sostine estavam em festa, pois recentemente reuniram
suas terras através de um casamento. Ambas pertenciam a famílias
poderosas, donas de um largo terreno que permanecia saudável e fértil nos
últimos anos. Poderiam ser um reino por conta própria, com a quantidade
suficiente de vassalos.
E justamente pela realidade do meu reino ser oposta, elas proibiram
juntas qualquer contato físico ou comercial com Montecorp. Ayla
lamentava enquanto repassava a história sobre como meu povo ficou preso
ao próprio território, como nos tempos da guerra. Só que não por opção
própria. Segundo Dimas, isso resultou em escassez de mantimentos para o
reino, já que a vitalidade natural da terra estava comprometida (graças ao
belíssimo artefato que levei comigo para outra dimensão). Esse último
detalhe eu ainda não havia compartilhado com ninguém além de Amon.
Sem as trocas comerciais de alimentos e suplementos alquímicos,
Montecorp pereceu e se reinventou com os anos.
— Vossa Majestade deve compreender o quão significante é essa
visita! O quanto nós aguardamos por uma oportunidade válida de mostrar
para as Casas Prian e Sostine que não deveriam virar as costas para
Montecorp em nome de superstições tolas. Mas é claro que eles não
ouviram... Até agora! Eu duvido que eles sejam capazes de manter seu
bloqueio sem sentido agora que a ilustre presença de Montecorp, enviada da
fabulosa Deusa Argrinis, está novamente entre nós. Não concorda,
Majestade? — Lord Franchot mal respirava enquanto falava, e mesmo se eu
tivesse algum interesse em conversar com ele, não tinha força de vontade
para interrompê-lo. Estávamos em uma missão diplomática, e eu deveria
fazer o melhor para meu povo.
Lord Franchot me alertou que agora a Casa Prian-Sostine estava
prestes a declarar independência. De acordo com seu último encontro com
eles, há um ano, eles teriam recursos o suficiente para declarar esse tipo de
poder. Mas ainda assim, eram cercados pela Floresta do Oblívio assim
como nós. E sabíamos que esse território guardava mistérios que não
compartilhava com meros mortais. Ninguém retornou das poucas jornadas
para explorar seus segredos. Era assim por gerações, ainda que todas elas
decidissem se arriscar.
Ayla explicou que, a cada conquista significativa dos alquimistas, eles
tentavam barganhar um contrato comercial. Caleb poderia invadir suas
terras, mas não queria dispensar vidas em mais uma batalha.
E agora que eu estava de volta, tínhamos a oportunidade perfeita para
fazer uma aliança em termos de paz. Negociar uma estrada, uma passagem,
qualquer coisa que pudesse abrir Montecorp de volta para o mundo.
Fomos enfim bem recebidos na nova casa que construíram no centro
das duas propriedades para o jovem casal. Ian e Kin Prian-Sostine
esperavam por nós em frente à belíssima propriedade e logo nos
encaminharam para a sala, onde finalmente conversamos.
Eu estava com o corpo e a mente exaustos da viagem e de tanto ouvir a
voz irritante de Dimas. Mas sabia que era um grande avanço, pois
anteriormente nem mesmo Ayla havia sido recebida além das fronteiras.
Após uma breve conversa, que certamente não valeu os dias de
estrada, já estávamos de volta à carruagem. A frustração e decepção
embalaram a primeira hora da jornada. A sensação de tempo perdido nos
perfurava. Sem sair de Montecorp, eu não fazia ideia de como chegar a
Cinaéd.
O retorno foi ainda mais barulhento, enquanto Dimas falava e falava
“Vossa Majestade pra cá” e “Vossa Majestade pra lá”. Ele gostaria que
ficássemos mais tempo, tinha dezenas de argumentos furados e preparados
que não me convenceram e duvido que convenceriam alguém. Eu podia
jurar que explodiria se ouvisse outro “mas Majestade” saindo daquele
sorriso amarelado.
Mas, infelizmente, não explodi.
Ian e Kin foram objetivos. Felicitaram Montecorp pelo retorno da
rainha e disseram que se isso bastasse para restaurar o equilíbrio, em poucos
anos veríamos as diferenças. Ainda não podiam negociar uma passagem
pelo seu território e nenhuma das nossas evoluções alquímicas os
interessavam. Aparentemente estavam trabalhando em algo muito mais
poderoso em sigilo.
Uma simples questão de segurança. Como se fôssemos uma praga
contagiosa. Só pude desejar felicidades ao casal e dizer que ambos eram
bem-vindos a qualquer momento no meu palácio. Despedi-me com meu
sorriso diplomático e me apressei a voltar para a carruagem.
Quase beijei a escadaria do palácio de prata quando cheguei. Falei para
Ayla cancelar qualquer compromisso para o dia seguinte e mandei avisar
que Ayla e Ophelia só aparecessem na minha porta na hora do almoço.

Sei que dormi mais do que deveria, pois acordei com a voz de Ophelia
atravessando as paredes de meus aposentos. O quarto estava escuro, o sol já
pendia em direção ao horizonte. Assim que abri a porta, minha querida
governanta começou a tecer uma série de comentários sobre o horário e o
fato de eu ter perdido já duas refeições. Ela colocou em minha mão um
copo com uma bebida cremosa à base de banana, framboesa e manga.
Estava deliciosa. As melhores frutas eram selecionadas para o palácio. Não
me parecia justo. Então começou a manusear meu cabelo enquanto Lila fez
uma reverência e começou a desembalar o vestido que tinha preparado para
mim.
— Vossa Majestade precisa estar radiante hoje. Sabemos que declinou
o baile em vossa homenagem, mas certamente todos os olhos estarão em
você esta noite. — Ophelia passava as mãos entre meus cabelos,
experimentando alturas e repartições. Acabou optando por prender apenas
as mechas da frente, modelando os fios soltos em cachos largos.
— E por que minha presença haveria de ser o destaque hoje em
especial, Ophelia? A coroa na minha cabeça já rouba atenção até quando
estou indo ao banheiro. — Lila começou a rir ao fundo, mesmo quando sua
mãe lançou um olhar a repreendendo. Se a rainha estava sorrindo, ela
também tinha permissão.
— Majestade, chegou a olhar o céu hoje? — indagou Lila enquanto
terminava de tirar os últimos pedaços de papel de seda da roupa misteriosa.
Eu não havia ido até a sacada ainda. Ophelia prendeu um último
grampo antes que eu caminhasse em direção à janela. O céu violeta tinha
apenas uma única estrela. Ao seu lado, a opulenta lua. A primeira lua cheia
desde o meu retorno. E, principalmente, era noite de lua azul. O Carvalho
de Prata parecia feito de diamante ao refletir seu brilho. Só então me dei
conta de que não havia visitado essa parte do castelo desde… Não me
permiti concluir essa lembrança. Não queria revisitá-la. Ela não era nada
além de inapropriada agora. O ritual no templo de Argrinis seria em
algumas horas, e eu esqueci totalmente graças à viagem inútil dos últimos
dias.
— Quanto tempo eu dormi, Ophelia?
— Mais de um dia inteiro, Majestade. Acredito que a viagem com
Lord Franchot e Ayla foi bastante exaustiva. — Ela sorria na minha direção,
como se imaginasse o meu tormento.
Eu não tinha como agradecer o suficiente por ela ter me acordado. Eu
queria muito presenciar o ritual, não me perdoaria se o perdesse. A forma
com que segurei sua mão e ela retribuiu o toque falou tudo entre nós.
Logo terminei minha bebida de frutas. Felizmente o ritual envolvia
bastante comida, então eu poderia me alimentar adequadamente.
Lila finalmente revelou o vestido mais lindo que eu já tinha visto na
vida. Ele era de um tecido leve e drapeado, que contornava minha silhueta
no tronco enquanto fluía nas pernas. As mangas atravessavam meus
ombros, com detalhes em couro preto na cintura. O tom prateado reluzia o
movimento da luz como um céu estrelado. Quando finalmente estava
vestida, mal pude acreditar no meu reflexo. Minha mãe sempre me falava
que as noites de lua azul eram ideais para se fazer desejos. Como a lua
estava perto de nós, ela poderia ouvir com mais clareza e nos atender. Era a
única noite do ano em que percebia energias que não sabia explicar
circulando livremente pelo palácio. “Como nos velhos tempos”, ela dizia.
Acho que é nossa sina saudar tempos passados.
Não deixei a emoção subir a meus olhos, apenas agradeci Lila com um
abraço sincero. Ela finalizou meus trajes com uma capa preta de veludo
bordada com estrelas prateadas por toda a bainha. Era o costume usar uma
capa como essa ao visitar o templo, ainda mais em dias de ritual. Por isso,
minha coroa foi substituída por um adorno simples feito de prata com um
círculo translúcido no centro. Antes de ser rainha, eu era súdita de Argrinis.
E tinha muito o que agradecer a ela.
Peguei dois pares de brincos que tinha, eram quase idênticos. Um
imitava a lua crescente, e o outro, a lua cheia. Entreguei nas mãos de
Ophelia e Lila antes que pudessem se opor, ordenei que se dirigissem aos
seus aposentos para se arrumarem. Nos veríamos no templo.
Dirigi-me até a carruagem acompanhada do meu sentinela.
Aparentemente todo o conselho já havia sido encaminhado e eu estava
ligeiramente atrasada. Exceto que a rainha nunca se atrasa. Era um
pensamento arrogante, mas era verdade.
A cidade estava muito mais bonita do que dias atrás. Luzes e bandeiras
adornavam a paisagem do céu, o verde dos postes fluorescentes ressaltavam
com o manto estrelado ao fundo. Os telhados das casas formavam uma
silhueta adorável. Se olhasse com atenção, poderia ver o contorno dos
galhos de trigo no horizonte da planície. Eu podia jurar que alguns pontos
luminosos dançavam e seguiam a corrente do ar em direção ao templo.
Da janela, via algumas famílias e casais atravessando as ruas, usavam
suas melhores roupas. A maior parte com tecidos já remendados ou puídos,
mas seus cabelos estavam trançados e penteados. Pareciam sorridentes, e
isso me fez querer sorrir também. Ao menos podíamos dividir essa verdade
juntos. Não sabia dizer quais iriam por devoção à Deusa do Céu e da Terra e
quais iriam pela comida. Senti um vazio ao pensar que Lorde Franchot
ainda pretendia bancar um baile. Ainda mais com o ritual, não havia a
menor necessidade.
As festividades nos uniam como nação, permitiam que, por um dia
pelo menos, nós pudéssemos sorrir e sentir esperança. Eu precisava de um
momento assim também. Já não me interessavam os grandes luxos se eu
não tinha as pequenas alegrias. Eu só desejava ver meus súditos felizes,
usufruindo da comida, bebida e dança da forma que era nos tempos de
glória. Era muito melhor destinar a verba para o povo. E, pelo visto, ao
menos essa orientação Lord Franchot seguiu.
Passei pelas ruas mais largas, normalmente usadas pelos comerciantes,
até chegar ao templo. A escadaria feita de mármore possuía quatrocentos e
quarenta e quatro degraus e ocupava todo o quarteirão. Fiquei feliz por Lila
ter selecionados botinhas tão confortáveis para combinar com o vestido. A
visão só não era mais fascinante que a arquitetura do templo. A construção
possuía três torres, cada uma simbolizando uma fase da lua: Crescente e
minguante nos extremos e a lua cheia ao centro. Era como um pequeno
palácio, mas lá habitavam somente a nossa longínqua história e os
sentimentos de gratidão e esperança. Ultimamente, a esperança reinava
mais do que eu jamais reinaria.
Assim que minha sentinela me ajudou a descer da carruagem real,
ajustei o capuz e comecei a subir. Senti os olhares em mim conforme as
reverências se apresentavam ao meu redor. Energia fervilhou pelo meu
corpo e a pedra de fogo se aqueceu contra minha pele.
— Você está prestes a conhecer a portadora da semente de prata,
sabia? — sussurrei para a pequena pedra. Não sei por que eu falava com
ela, mas queria que, seja lá quem ouvisse meus pensamentos e reflexões,
soubesse que eu não pretendia ter a posse deste artefato por muito mais
tempo.
A cada degrau, uma emoção subiu por mim. Uma sensação de
acolhimento se misturou a todas as memórias que eu havia vivido enquanto
subia esses mesmos degraus. Percebendo a curiosidade entre as cabeças
curvadas, estendi a mão para um homem de vestes simples que estava a
uma distância segura de mim. Ele hesitou, mas percebi que quis retribuir o
gesto. Fui até ele e peguei sua mão. Eu sorri. Ele sorriu.
Olhei para a esquerda e repeti o movimento, dessa vez uma menina
com não mais que oito anos segurou minha mão, sem reverencias ou um
pingo de decoro. Eu adorei. Sua mãe olhou com repreensão para a filha.
Logo sinalizei para que imitassem o gesto e as pessoas começaram a se
unir, formando uma corrente viva. Subimos juntos as centenas de degraus.
Em silêncio, mas compreendendo o momento. E finalmente uma ponta de
esperança surgiu em meu coração. A magia deste lugar era inegável.
Assim que contemplei seu interior prateado, soltei a mão do homem e
da menina, unindo as duas para não partir a corrente. Virei-me para ver que
em cada degrau havia uma corrente me assistindo. Naquele momento,
incrédula pela simplicidade do ato, senti as palavras fugirem de mim. Tentei
resgatá-las, mas ainda assim fiquei com a sensação de que meu discurso
saiu de trás para frente.
— Hoje celebramos todas as graças que a Deusa Argrinis nos
presenteou. Ella Montecorp, minha mãe e herdeira da Deusa do Céu e da
Terra, me dizia que, nas noites de lua azul, podíamos fazer um pedido. A
proximidade da lua com a terra seria o bastante para escutar a verdade em
nosso coração. E assim, ela nos daria ouvidos. Hoje, eu peço por vocês,
nobres súditos de Montecorp! Sejam bem-vindos ao nosso ritual e
aproveitem o banquete. Essa noite, somos todos irmãos!
As primeiras palmas que ouvi vieram de trás de mim. Não me
surpreendi ao ver Ayla radiante em um vestido branco completamente
bordado em cristais. Seu manto prateado parecia ser do mesmo tecido que
meu vestido, como sempre, sua visão me trouxe paz. No altar do templo, os
membros do conselho também aplaudiam sorridentes. A corte ocupava as
primeiras fileiras e parecia radiante. Mas era a visão da escadaria que me
fizera sentir verdadeira realização. Tudo parecia se encaixar agora.
A água de lua já havia sido preparada por Ayla, recebendo a energia da
Deusa Argrinis e da nossa canção. Era sagrada em nossa fé e repleta de
energia capaz de acender as estrelas. Todos podiam beber um gole e
sussurrar uma benção à Deusa que fundou nossa nação. Por uma noite,
todos éramos iguais. Todos éramos felizes.
Por dentro, o templo era todo em madrepérola, de tal forma que
parecia abrigar não só a lua, mas todas as cores do universo. O perfume de
jasmim e mistérios preenchia o ar junto à melodia harmoniosa que fluía
pelos dedos da violinista. Estar ali era como visitar um cômodo no panteão
divino. A cada passo que eu dava em direção ao meu lugar no altar, sentia
que a gravidade falhava aos meus pés. A magia podia ter sido drenada de
Montecorp, mas não dali. Jamais deste local sagrado.
À frente das demais fileiras, havia uma cadeira especial para o
portador da coroa. Lugar ocupado por meu avô, por minha mãe e agora por
mim. Todos os assentos foram preenchidos a tempo de finalizar a segunda
música, mas ainda assim uma multidão permaneceu no lado de fora. A
acústica do lugar ressoava também para fora do templo e podia ser ouvida a
um quilômetro de distância quando se posicionava no local correto. E ali
estava Ayla, da mesma forma que estivera através dos séculos. Em frente ao
delicado tubo de metal com folhas prateadas ao seu redor. Ele funcionava
como um amplificador, e acreditava-se que esses canos continuavam por
toda a estrutura do templo.
Ouvimos com o espírito leve e olhar sereno a bela sacerdotisa entoar
palavras e cânticos à lua. E por mais que ler mentes não fosse uma
habilidade, podia jurar que todos pedimos para restaurar a lendária glória e
liberdade do nosso povo. Quando ela terminou o sermão, um coral
composto por crianças ocupou o lugar da sacerdotisa, que claramente os
havia ensaiado e conhecia por nome cada um dos pequenos.
Nada poderia me preparar para o que ouvi depois. Se anjos pudessem
cantar, certamente não seriam tão sublimes. Cada nota passou pelo meu
corpo como uma benção sonora. Se antes não havia esperança, agora era
impossível sentir algo além da mais pura sensação de felicidade e plenitude.
A canção durou alguns minutos, mas para mim o tempo passou rápido
demais, enquanto o infinito daquela sensação penetrava no meu ser. Percebi
que sentia falta de estar ali. De ser uma agente da música também.
Eu não era a única que chorava. Nem a única que precisou de um
momento para se recompor. Assim como o coral, parecia que nossas palmas
foram ensaiadas. E logo a cidade irrompeu em assobios e espasmos de
alegria. O banquete foi servido logo em seguida.
Desconversei quando Caleb sugeriu que eu cumprimentasse os
membros da corte e que ficasse no altar para receber meus súditos. Era um
dia de festa, e não de formalidades. Quem quisesse me cumprimentar,
poderia me encontrar ao ar livre. Ele disse que seria difícil as sentinelas
cuidarem de mim em meio à multidão, mas sabia que nada poderia me fazer
mal em uma noite tão inesperadamente perfeita.
A festa ocorrera ao ar livre, abaixo dos quatrocentos e quarenta e
quatro degraus do templo. Luzes foram dispostas em um círculo em fios
transparentes, um quinteto de músicos estava posicionado contra a vista do
templo. O som do violoncelo, alaúde, violino, percussão e flauta preenchia
a celebração com ritmo e euforia. A música me chamou e finalmente me
senti em casa. Não com a beleza sublime do coral de crianças, mas com a
pulsação da própria vida que implorava para se transformar em memórias
inesquecíveis.
Ophelia ficou ao meu redor assim que as festividades começaram,
trazendo comidas e bebidas que julgava nutritivas. Claramente havia dito a
Lila que deveria se divertir e ficou de prontidão para atender a rainha.
Precisei de trinta minutos até convencê-la de que já estava alimentada e que
ela deveria encontrar um par para dançar ou eu encontraria outra aia.
Servi-me uma taça de um delicioso coquetel rosado que ficava no
centro da mesa do banquete e aproveitei os instantes desacompanhada para
olhar em volta. Podia notar o olhar preocupado de Caleb ao longe, sempre
falando com as sentinelas. Era sua responsabilidade manter a segurança em
um evento dessa proporção. À distância, vi uma mulher com os cabelos
trançados com tamanho esmero, assim como havia visto em apenas uma
pessoa na corte. Essa então era a Lady Van Doren. Seu olhar era doce, não
impenetrável como do seu marido e de sua filha.
Logo avistei na multidão Eleanor e Lord Franchot. Eles dançavam
juntos uma canção animada, e eu me perguntava o que uma jovem incrível
como ela estaria fazendo ao lado daquele homem irritante. No final da
música, reparei que ele beijou sua mão com doçura. Foi estranho, pois isso
me fez vê-lo como alguém… não tão ruim. Eleanor não sentia ou não se
importava em ser observada. Estava acostumada a ser o centro das atenções
e, assim como Ayla, conhecia cada um dos presentes pelo nome. Percebi
que aquele sorriso que já vi disparar algumas vezes longe da corte tentava
se formar em seu rosto. Por que ela mantinha duas personas, quando uma
delas era tão mais amável que a outra?
Ainda não havia saudado o conselho apropriadamente, então fui em
direção à sua mesa. Caleb beijava a mão de Anna quando me viu chegar.
Pensei que meu peito pudesse ficar apertado ao lembrar da forma com a
qual ele tão sutilmente beijou a minha. Mas não ficou. Os dois sorriram ao
me ver e Anna imediatamente se levantou para fazer uma reverência. Logo
peguei suas mãos para que se levantasse.
— É um grande prazer conhecê-la. Quero agradecer por tudo que sua
família fez e faz por Montecorp.
— É uma grande honra, Majestade. — Seu olhar tímido não subiu aos
meus olhos, mas podia ver seu sorriso.
Eu podia sentir inveja de Eleanor, mas sabia que era certo o que estava
fazendo. Uma mãe deve ter todos os motivos para se orgulhar de sua filha.
Por um momento, procurei por toda a inveja que sentia dentro de mim. Não
encontrei. Havia algo de mágico naquela noite. Pude então sorrir para
Eleanor, estava sinceramente feliz em vê-la. Mas receio que meu sorriso
vacilou ao ver quem estava ao seu lado. E não era Dimas Franchot.
— Majestade, o ritual da lua azul está ainda mais brilhante com vossa
presença. Permita-me apresentar meu irmão gêmeo, Dax Van Doren.
O rapaz ao seu lado tinha o mesmo rosto impassível e belo que
Eleanor. Os mesmos olhos âmbar que Caleb, levemente repuxados. Só que
diferente do pai, que mantinha a presença distante, os do rapaz possuíam
um véu de mistérios. Uma neblina magnética que me fazia imaginar o que
estaria me esperando do outro lado. Diferente das vestes de um típico
alquimista na primeira e única vez que o vi, agora ele usava um traje
festivo: Um longo casaco escuro como a noite adornado com um lenço azul
marinho. Seus cabelos pretos e brilhosos estavam penteados para trás, no
seu rosto eu via o mesmo sorriso indecifrável.
Ele sabia naquele dia que estava falando com a rainha. Não havia
surpresa em parte alguma da sua expressão. Apenas uma satisfação
calculada em finalmente me conhecer oficialmente. Talvez ele quisesse
saber quem eu era sem a coroa. Talvez ele não se importasse com ela.
Talvez ele simplesmente fosse atraído pelo caos ou por quebrar as regras.
Eu não sabia. A curiosidade roía meus ossos.
— É uma honra conhecê-la, Vossa Majestade. — E com um gesto sem
permissão ele tomou minha mão na sua e a levou aos seus lábios. O toque
não me surpreendeu, por mais que sentisse sua mãe ao seu lado arregalar os
olhos diante da ousadia. Suprimi minha surpresa com um sorriso
diplomático e agradável. Sem emoção.
— O prazer é meu. Então quer dizer que você é filho de Caleb Van
Doren. Ainda não tinha ouvido falar de você.
— E o que haveria para ouvir? Minha vida não é tão interessante. — A
ironia pairava na sua voz, mas não acho que seus pais perceberam.
— Por favor, Lorde Van Doren. Certamente há muito sobre você que
eu certamente adoraria ouvir. Mas eu preciso estar em outro lugar agora. —
Com um sorriso satisfeito, despedi-me e dei as costas, com a conversa
propositalmente inacabada.
Então eu dancei, bebi, comi e brindei com cada um que estava ao meu
lado. Sem me preocupar se suas vestes eram de seda ou algodão. Senti que
não se importavam com a minha coroa. Ao menos não de uma forma que os
distanciasse, ainda que as reverências ocorressem normalmente.
Em algum momento, finalmente me recordei que desde que chegara
em Montecorp, semanas atrás, ainda não tinha visitado o sagrado Carvalho
de Prata. E não poderia haver momento melhor do que o ritual da lua azul
para que fosse até ao local que originou meu reino. Sim, o Carvalho era
próximo do palácio e eu levaria muito tempo se fizesse o caminho
atravessando a estrada principal.
Mas, felizmente, eu conhecia uma passagem secreta dentro do templo
que me levaria até lá em poucos minutos.
Capítulo 29

O interior do templo agora estava vazio. Enquanto a festa ocorria,


esbanjando vida lá fora, ordenei que minha sentinela me aguardasse no final
da escadaria. Meus passos ecoavam pelas paredes da bela construção em
um ritmo que acelerava meu coração. Poucas pessoas conheciam essa
passagem. Possivelmente Ayla sabia da existência dela, mas a verdade é
que a descobri ao olhar um dos mapas de Amon – o que parece ter
acontecido eras atrás. A madrepérola das paredes refletia a luz da lua como
um banho de estrelas, conforme a luminosidade atravessava o teto abaloado
de vidro.
Apressei-me até chegar na última pilastra de mármore, próxima do
altar. Ela parecia idênticas às outras, exceto que seu toque era mais quente.
Pousei minha mão sobre uma mancha que pareceria o padrão natural da
pedra, mas logo meus dedos encontraram o relevo discreto. Senti um clic
sutil ao pressioná-lo e, ao olhar para trás, vi a fenda na parede. Atrás dela,
uma escadaria descia antes de apresentar o longo e estreito corredor. A
caminhada era levemente claustrofóbica e escura, então foquei-me apenas
nos meus passos e na imagem da floresta em minha mente. Em alguns
minutos, encontrei os degraus que subiam em direção ao fim da passagem.
Uma porta pequena, na altura de uma criança. Sem poder confiar na
minha visão, tateei até encontrar o relevo e finalmente avistar a imensidão
frondosa e reluzente à minha frente. Fechei o suporte da estátua que selava
o túnel e sorri para mim mesma. Eu amava a sensação de cruzar essa
passagem até chegar aqui. Era como visitar um outro mundo através de um
caminho que só eu conhecia. Parecia ironia do destino eu já ter
experimentado a real sensação de trocar de universo. Não era nada, nada
parecido.
Ao ver o Carvalho de Prata, senti que pertencia àquele lugar, já minhas
memórias perdidas eram meu constante convite à solidão da perda. Ainda
assim, me emocionei ao ver a copa prateada reluzindo absoluta, como se a
luz da lua azul a alimentasse e fortalecesse. Naquele momento, existia
apenas eu, o céu e a terra. E, por esse momento, bastou.
Desci o capuz e soltei os cabelos, deixando o vento acariciar minha
pele. O aroma de baunilha junto ao frescor da noite me envolveu como se
me saudasse. Foi impossível evitar as lágrimas de emoção. Aproximei-me
com respeito da árvore sagrada. Ao colocar minha mão tão pequena em seu
tronco, senti sua energia adentrar meu corpo. O vento parecia responder,
soprando mais forte. Procurei as palavras, mas só soube sorrir. Fiquei vários
minutos apenas relembrando o desenho das fibras das folhas, que pareciam
ser feitas de estrelas. Cantarolei baixinho a melodia que havia ouvido há
algumas horas na voz do jovem coral, buscando memorizar e reviver aquele
momento. Tentando, de uma forma tão simples e precária, dividi-lo com a
semente que formou meu reino.
A pedra do fogo parecia ainda mais quente e inquieta em meu pescoço.
Como se pedisse para voltar para casa. Como se a proximidade com o
cristal de prata a fizesse sentir saudades do lugar ao qual ela realmente
pertencia. Eu a segurei gentilmente e jurei que iria devolvê-la. Mas que, só
naquela noite, precisava saudar meus antepassados. Podia jurar que ela
piscou em resposta, e a agradeci por isso.
Deitei no chão verde, aproveitando a suavidade da minha capa, e olhei
para a lua. Sei que era impressão minha, mas é como se ela ocupasse
metade do céu com o seu brilho. Como se estivesse atenta a cada um dos
meus movimentos e palavras. Como se a própria Argrinis estivesse ali.
Chamei por ela, em uma esperança infantil. Então comecei a falar com ela –
ou sozinha.
— Eu, por vezes demais, insisti em ter fé quando a vida me mostrou o
fogo e a noite. Mas como eu poderia fugir do meu destino, se nasci para
herdar a lua? Ah, que legado você deixou nas minhas mãos, Argrinis. Você
me culpa por, apesar de ter esperança, ainda hesitar quando penso em um
final feliz? Eu costumava sonhar em viver em um reino de glória... Em
liderar um povo pela paz, e não pela guerra. Hoje eu vivi em harmonia, mas
como será o dia de amanhã? Ainda não sei o que fazer, mas tem uma
estranha sensação no meu peito... Uma urgência que clama por mim. Mas
não sei para que lado devo ir. Eu sinto que o vento mora dentro de mim e
que ele me implora para estar em algum outro lugar. E não sei se estou
bêbada em meus próprios pensamentos ou em solidão, mas... É falando com
a lua que não me sinto tão só. Você foi a mesma aqui e a mesma lá, não é?
Suspirei, deixando as palavras ressoarem no silêncio à minha volta.
Algumas folhas farfalhavam e água tilintava ao longe. Passei os dedos
preguiçosamente na grama enquanto meus olhos relaxavam ao contemplar o
céu. Não havia palavras em mim, apenas sensações. De amor, esperança e
solidão. Eu estava em casa, mas me sentia perdida. A última vez que
estivera ali, imaginava que a vida seria tão diferente. Eu teria me casado
com Caleb pelos motivos errados. Esse sentimento era apenas como uma
história que eu sei de trás para frente, mas não como se me pertencesse.
Definitivamente não agora que havia conhecido sua esposa e sua filha.
Bem, seus filhos, na verdade. Havia algo em Dax que me intrigava, e ainda
não sabia se essa sensação me faria bem ou mal, mas eu não conseguia
ignorá-la. Quando eu me perguntava se queria conhecê-lo mais, a resposta
era um indubitável “sim”.
— Sorte a sua que eu estou aqui agora e podemos começar a nos
conhecer apropriadamente, Majestade.
A voz indiferente e monotônica me pegou de surpresa, senti meu corpo
todo gelar. Sentei-me rapidamente, tentando me endireitar e agir com
naturalidade, mas não estava enganando ninguém.
Eu estava surpresa.
Estava imperceptivelmente acompanhada. E eu estava falando
sozinha.
Ou pior, falando sozinha enquanto alguém ouvia.
Argrinis, depois a gente conversa, olha para o outro lado!
— Ai, que mico, minha nossa… — falei baixinho. A rainha que existia
em mim provavelmente estava escondida aqui dentro com vergonha,
tentando lembrar de tudo que deixei escapar para tentar adivinhar quanto
Dax teria ouvido.
Duas tarefas inúteis.
— O que seria um mico, Majestade? — Sem precisar de um convite, o
rapaz se sentou ao meu lado, sorrindo prazerosamente ao ver meu
desconforto e vergonha.
Claro que ele não saberia o que era um mico. Muito menos o que é
pagar um mico. Ainda desconsertada, tentei explicar o melhor que pude.
— Lord Van Doren, “mico” é um animal. Um pequeno símio, para ser
específica.
— Não sabia que tínhamos essas espécies aqui, mas acredito que já
tenha visto alguma nos livros — disse enquanto ele começava a se levantar,
olhando em volta e procurando o que havia descrito. Não pude evitar e
comecei a rir.
— Dax, não é isso. — Peguei sua mão para que se sentasse
novamente. — Quando eu estava longe de Montecorp, estava presa em
um… lugar onde as pessoas chamavam “mico” algum tipo de situação
embaraçosa.
— Por acaso esses “micos” são animais desastrados?
— Não que eu saiba. — Franzi a testa.
— Então realmente não entendi.
— Não é para entender, Dax — bufei. — Era só um jeito de falar. Que
nem aqui falamos “bordar o pó da estrela”, sobre fazer algo complicado.
— Mas isso faz sentido, Majestade. Implica o nível de dificuldade.
Sinto muito que Vossa Majestade tenha ficado presa em um lugar
desprovido de lógica. — Ele pareceu ter decidido que o chão não era o
lugar para um lorde, então estendeu a mão para que me levantasse também,
e aceitei.
Eu não tinha como discordar na parte da lógica. Muitas das coisas da
outra dimensão não faziam o menor sentido. Como a poluição desenfreada
ou o Wi-fi. Nossa, como eu sentia falta do Wi-fi. Torcia para que os
alquimistas do reino conseguissem inventar o celular em algum momento.
Reparei que Dax ainda segurava minha mão enquanto fitava os detalhes do
meu vestido. Ele a soltou rapidamente assim que meus olhos pousaram no
toque. Afastei um passo, tentando ignorar o desconforto que parecia passar
por ele.
— Quando decidiu me chamar de Majestade? Não parecia ser algo
relevante da última vez que nos encontramos.
— E se eu não soubesse que você era a rainha na única vez que nos
encontramos, Majestade?
Levantei uma sobrancelha e o encarei. Ele permaneceu sério, como se
tivesse constatado o óbvio, e tornou a falar:
— Vossa Majestade é claramente cataclísmica, mas parece ser
observadora o suficiente. Já deve ter percebido que eu não me encaixo nos
afazeres diplomáticos repletos de pompa que a gloriosa corte de Montecorp
exige. Achei que seria mais divertido falar com a pessoa mais importante do
reino sem usar tantos títulos. Livros precisam de títulos. Pessoas... nem
tanto. — Eu tentava entender o que havia de verdade no seu olhar enquanto
ele falava. Ele agora estava apoiado em um pé só contra o tronco de uma
árvore. — Veja só, agora eu sou Lorde Van Doren. Tornei-me meu pai. E
você é Vossa Majestade Rainha Lunara Alexandria Montecorp.
— E que tal você voltar a ser Dax e eu voltar a ser Luna?
— Como Vossa Majestade desejar — respondeu Dax. Eu o empurrei
de surpresa, fazendo-o se desequilibrar e cair no chão. Levei a mão à boca
em susto. — Claramente cataclísmica, como disse — murmurou baixinho.
Antes de se levantar, ele pegou uma flor branca de quatro pétalas que estava
no chão e estendeu para mim antes que eu pudesse começar a me
desculpar.
Não tinha reparado que os pequenos pontos de prata estavam ali mais
cedo, mas agora, perto de onde estava sentada, havia várias. Pareciam
estrelas na grama que cintilavam ao luar. Olhei para o céu procurando
respostas, mas lembrei que pedi para Argrinis não olhar na minha direção
agora. Quando fiz menção de pegar a flor, ele se aproximou alguns passos e
levou sua mão ao meu rosto. Tudo que eu fiz foi ficar parada. O que ele
estava fazendo?
Olhei no fundo de seus olhos negros, ainda sem saber como reagir. Ele
passou uma mecha de cabelo para trás no meu rosto e prendeu a flor atrás
da minha orelha. Vi o sorriso se formar, mas tão breve quanto seu gesto foi
o seu distanciamento.
— Está gostando? — ele perguntou com naturalidade.
— Muito. — A resposta saiu de mim imediatamente.
— Me avise quando chegar no capítulo vinte e três. Fala sobre a lenda
da origem dos eclipses, é fascinante.
Ele estava falando do livro. Claro que estava, do que mais poderia ser?
Do nosso breve momento em que “nada” aconteceu? Torci para que ele não
visse a pontada de decepção no meu rosto naquela hora hora, mas apenas
respondi que sim. E de fato, eu estava adorando esse livro.
— Acho que devemos voltar à celebração agora, Dax. Minha sentinela
certamente está procurando por mim.
— Luna, minha cara Majestade, eu já tive minha dose de interação
social por hoje. Então, me perdoe, mas vou declinar seu pedido. — A
decepção deve ter sido visível daquela vez. — Mas insisto em acompanhá-
la até a cidade.
— Então ficarei honrada com vossa companhia, Lorde Dax Van Doren.
— Dessa vez ele não saiu andando à minha frente, mas ao meu lado.
Enquanto ouvia a grama fofa aos nossos pés, me surgiu a dúvida. — A
propósito, como soube dessa passagem?
— Antigos túneis não estão mais nos registros principais, mas eles
também nunca foram minha primeira opção para aprender. Sinto dizer, mas
há muitos detalhes que você ainda não sabe sobre o acervo que possuo,
Luna.
— Tantos segredos assim? Quer compartilhar algum comigo?
Ele parou de andar, seu olhar era sério. Então se aproximou do meu
ouvido, com cuidado para não encostar na minha pele, e sussurrou. Cada
palavra morna contra meu pescoço.
— Há só um que você precisa saber. Atenção aos membros do
conselho. Eles almejam o seu poder. E não esse aqui. — Ele apontou para a
coroa. — Mas esse aqui. — Ele segurou uma de minhas mãos rapidamente
para dar ênfase. A magia que eu havia herdado e jamais soube como usar.
Jamais a entendi. Senti que petrifiquei. Seu pai e sua irmã estavam no
conselho. Esse aviso era bastante sério.
— E você, Dax? Não deseja poder? — As palavras foram baixas, senti
que recuava como se estivesse em perigo ali. Meu coração acelerou. Mas
ele entrelaçou seus dedos nos meus, e subitamente me senti mais calma.
— Há outras coisas que desejo, Luna. — Sua voz agora era leve, como
se quisesse me animar após me dar um belo motivo para ficar preocupada.
— E quer ouvir outro segredo? — Ele se abaixava para abrir a pequena
passagem. Fiz que sim com a cabeça. Dax se virou, olhou para cima e disse
como se não fosse nada:
— Cresci ouvindo histórias sobre a rainha perdida. Mas as lendas não
fizeram jus a você.
A porta se abriu.
E assim andamos em um silêncio pacífico até a passagem no templo,
onde ele se despediu com um aceno discreto ainda no túnel. Olhei em volta,
as belas pilastras do templo agora eram as únicas guardiãs. Ele parecia
menor, de alguma forma. Ouvi a música transbordando vida lá fora, como
se minha ausência não tivesse sido sentida. Que bom. Acreditava que estava
sozinha, até ouvir passos atrás de mim. Certamente algum súdito querendo
cumprimentar a rainha. Ou a sentinela à minha procura.
Me virei com o melhor sorriso que tinha, contemplando a figura alta
com armadura feita de sombras. Mas seu rosto era como vulto preto e
amorfo, nada parecido com qualquer um que já tenha visto. Uma energia
cruel invadiu meu peito, meu instinto gritava para que eu saísse dali, para
bem longe do que quer que fosse aquela coisa. Então eu gritei e fiz menção
de correr.
Só que ele foi mais rápido.
Dax

Todo o horizonte que eu conhecia pareceria tão pequeno diante dela.


Lunara.
Seu nome era como um mapa em meus lábios, em direção ao destino
incógnito que eu almejava desvendar. Precisava. Era como se tudo que eu já
li, vi e ouvi fosse apenas para estar preparado para conhecê-la. O objeto do
meu fascínio. Eu podia ver suas auras meu lado, fragmentadas em um
espectro de cores, tal como o vitral que fora testemunha das nossas
primeiras palavras. Mesmo no escuro ela irradiava. Estava hipnotizado por
ela e não me importava. Ficaria louco se fosse necessário.
Eu sabia que a rainha perdida estava longe demais de Montecorp para
voltar por conta própria. Entendia onde ela estava, mesmo que ninguém
mais nesse reino ignorante pudesse compreender. Todos os aprendizes de
alquimia foram destinados a estudar o plantio e enfermidades. Se
contentaram em estudar algo para evitar a morte certa, em vez de se
dedicarem a evitar a própria morte. Ou revertê-la. Nos despedimos, mas
relutei em deixá-la ir.
Agora, depois da morte do meu mestre, eu finalmente poderia retomar
os meus estudos. Só precisaria estar mais perto dela. O túnel escuro
embalava meus pensamentos. A pressão dos seus dedos ainda estavam nos
meus. Era como se eu pudesse sentir o toque do infinito que emanava de
sua pele. Se pudesse chegar até o laboratório, poderia analisar sua energia.
Era tão forte que sentia que poderia moldá-la se quisesse. Ela ainda me
repelia, mas só da mesma maneira que as coisas misteriosas relutam para
permanecerem desconhecidas. O meu tipo favorito de cataclisma.
Ah, Luna. Quando será que vou poder colocar minhas mãos em você?
Não estava distante quando ouvi um grito longínquo que arrepiou
minha espinha.
Eu havia esquecido de algo extremamente importante.
Capítulo 31

Em um segundo, tudo era música e promessas de danças e alegria.


No outro, uma sombra me atacou como se pudesse drenar a felicidade
do mundo, transformando-a em desespero. Desviei do primeiro golpe,
algum reflexo dos meus dias de treinamento. Busquei encarar meu agressor
nos olhos, mas não havia nada que eu pudesse confrontar onde deveria estar
seu rosto. Apenas um vórtice de agonia. Ele acertou um dos bancos de
madeira, partindo-o em dois.
No segundo golpe, não tive tanta sorte. Senti um impacto contra o meu
tronco, acompanhado de calor, que eu sabia ser meu sangue.
Depois não senti mais nada.
Capítulo 32

Recobrei a consciência com dificuldade para respirar. Pressionei a


mão contra meu abdômen como um reflexo, mas não tinha força para
estancar o sangue. Sentia como se ainda tivessem cem facas dentro de mim.
Tentei me levantar em vão. Esforcei-me para rastejar em busca de socorro,
mas não conseguia me mover. Tentei pedir por ajuda, mas a música parecia
ainda mais alta lá fora, e eu estava sozinha. E depois, não havia nada além
da dor e do frio do chão de mármore passando para mim.
Com a visão turva, a lua azul projetava sombras amorfas no templo.
Minha coroa, jogada no chão ao meu lado, também refletia seu brilho. A
delicada flor branca amassada por ela. E então tudo ficou escuro de repente.
Eu não estava com medo. Já conhecia a solidão. Perguntei-me quanto
tempo até ela me abraçar por completo. Minhas mãos eram um borrão
vermelho, meu interior parecia se rasgar a cada momento que se passava e
meu corpo se contorcia de dor.
Um toque quente veio até meu rosto e ouvi sua voz murmurando meu
nome: “Luna”.
Conhecia aquela voz, mas soava tão distante da indiferença de alguns
minutos atrás. Dax pousou a mão em minha testa e procurou no seu casaco
por alguma coisa que aplicou na ferida.
— Não podemos esperar que faça efeito imediato, mas você precisa
confiar em mim que vai ficar bem. Diga que entende o que estou dizendo,
Lunara!
Ele percebeu que disse “sim” mais pela forma que o ar saiu da minha
boca do que pelo som. Então me pegou no colo, olhando em volta com os
olhos arregalados e atentos. Eu tentei não gemer de dor, mas em alguns
momentos era inevitável. Ele me levou por todo o túnel e logo estávamos
novamente sob o Carvalho de Prata.
— Dax, eu preciso sair daqui. Preciso sair de Montecorp — finalmente
consegui dizer. O desespero nos meus olhos era genuíno. — Preciso que
você me ajude. Preciso que me acompanhe até o estábulo.
Após alguns minutos, a dor já não era insuportável e consegui ficar de
pé com dificuldade. Dax me amparou, e felizmente ninguém nos viu.
Reconheci os olhos de Noite à distância, e mesmo com dificuldade
tentei me apressar. Dax ficou ao longe, de vigia. Chegando à sua porteira,
ouvi uma melodia linda sendo cantada. A mesma do coral que ficou na
minha mente.
Uma jovem estava deitada, olhando para a lua pela janela e alheia ao
fato de que alguém a observava coberta de sangue. Sua pele era de um rico
castanho dourado e seus cabelos cacheados reluziam como ouro.
— Olá! Preciso levar Noite comigo imediatamente.
A garota se espreguiçou lentamente, como se despertasse de um sonho
acordada, e disse para mim:
— A linda Noite é a montaria oficial da rainha e não está disponível.
— Espera. Linda? Noite não é um cavalo? — Não podia perder tempo,
mas queria muito voltar àquele ponto mais tarde. Concentrei-me o máximo
possível e perguntei: — Qual seu nome, jovem?
— Noite é uma égua, é claro. — Ela tinha uma calma natural na fala
que de algum jeito me tocou. — A mais doce que temos aqui, se quer saber.
Ah sim, nome é Zoey… E o seu?
Meus olhos arregalados concluíram as apresentações.
— Majestade, como não a reconheci! Me perdoe! — A reverência
atrapalhada mostrava algumas palhas em seus cabelos. Em outras
circunstâncias, eu estaria rindo. Quando ela se levantou e olhou para mim,
começou a desesperar-se. — Majestade, o que fizeram com você? Minha
nossa, você precisa de aju…
— Zoey, é Zoey seu nome, certo? Tentaram me matar não tem quinze
minutos. Eu preciso sair de Montecorp imediatamente, entende? Preciso de
dois cavalos prontos para viagem agora mesmo. Ou, no caso, a minha égua
de sempre e mais um cavalo, que seja.
A garota fez que sim e se apressou em colocar a sela em Noite, junto
com a minha bolsa de viagem que sempre levava comigo.
Em pouco tempo ela já tinha os dois animais preparados. Zoey
entregou as rédeas e olhou para mim com um certo asco. Foi então que
reparei que meu belíssimo vestido estava encharcado com meu sangue. O
prateado havia adquirido o tom carmesim medonho que assombrava meus
pesadelos sobre as batalhas na guerra. Ela prontamente foi até um cômodo
anexo ao estábulo, provavelmente onde vivia o cavalariço, e trouxe uma
calça de montaria preta.
Verifiquei se Dax estava realmente olhando para fora e suprimi um
grito de dor enquanto cortei a saia do vestido na altura do ferimento e vesti
a calça e as botas com ajuda da garota tão prestativa. Minha capa preta seria
discreta o bastante para sair na calada da noite. Chamei Dax para buscar o
seu cavalo, mas antes ele perguntou a Zoey se tinha algumas faixas para
enrolar meu ferimento. Ele pediu que esperasse por ele e entrou no palácio
para buscar alguns pertences. Olhei para Noite, acariciei suas bochechas e
minha linda égua – não cavalo – farejou o ferimento ainda fresco. Ela se
abaixou para que eu pudesse montar. Mesmo com dificuldade, consegui
uma posição confortável.
Já estava na porta do estábulo verificando todos os pertences quando
ouvi uma voz doce chamando por mim.
— Majestade! — Os olhos sonhadores de Zoey estavam fixos em
mim, sua voz baixa e firme enquanto ela montava um cavalo com
graciosidade. — Eu não sei o que aconteceu, mas quero ajudar.
Assenti. Ao meu comando, Noite começou a cavalgar.
— Para onde vamos, Lunara? — Dax surgiu ao meu lado e perguntou.
— Não podemos atravessar a cidade. Não podemos pegar a estrada
guardada pela Casa Prian-Sostine. Montecorp permanece bloqueada… A
não ser por um caminho.
— Vamos pela Floresta do Oblívio? — indagou Zoey com o que podia
jurar ser empolgação. Eu assenti. Os olhos de Dax brilharam.
— Vamos nos lembrar do que costumam esquecer — disse ele com
fascínio. Talvez eu mesma pudesse sentir isso, se não fosse pela inquietação
da fuga iminente e o medo por estar novamente sendo retirada à força de
Montecorp. Era quase como se meu próprio reino me repelisse.
Assim, cavalgamos em direção ao lugar que todas as gerações
insistiam em desvendar, o local que transformava o legado em memória,
saudade e esquecimento. O sol amanheceria em breve, iniciando mais uma
era em que Montecorp tinha uma rainha desaparecida. Ou dada por morta,
eu não estaria aqui para descobrir. Se não fosse pelo medicamento de Dax,
eu não teria sobrevivido. Mas percebi que ele tinha uma dose alta de
anestésico, pois a dor voltava a fisgar meu corpo inteiro em momentos
esparsos.
Então, a aurora anunciou sua aparição quando já estávamos distantes,
entre árvores desconhecidas. Encontramos um riacho para refrescar os
cavalos. Eu precisava me deitar um pouco, a dor já crescia a um ponto
quase insuportável. Zoey colheu algumas frutas e Dax checou meus
ferimentos antes de abrir um mapa, o qual nunca havia visto. Mostrava uma
disposição diferente do mundo como eu tinha estudado. Eu deveria ter
prestado atenção, mas o cansaço clamou minha atenção.
Encostada em uma árvore, caí em um sono profundo. Nele eu tivera
finalmente a chance de devolver a pedra do fogo. Podia ser o delírio
causado pela febre ou uma premonição, mas o calor fluía por todo meu
corpo como se fosse parte de mim. Era assustador e fascinante. Sonhei que
não existia mais o bloqueio contra meu reino. Quando percebi que meus
olhos se esforçavam para abrir, lembrei-me de que estava muito longe de
qualquer um desses objetivos. Mas, talvez, pela primeira vez na vida,
estivesse mais próxima de encontrar algum lugar no mundo em que eu
finalmente me encaixasse.
Capítulo 33

— Majestade, consegue me entender? — A floresta estava


silenciosa, mas reconheceria sua voz bela e enigmática em qualquer lugar.
— Achei que tínhamos decidido por “Luna”, Lord Van Doren. —
Tentei sorrir o melhor que podia enquanto Dax envolvia os braços nas
minhas costas. Eu o abracei de volta, tarde demais para perceber que ele
estava tentando me ajudar a sentar, a fim de verificar meus ferimentos.
Mesmo fraca, comecei a pedir “desculpas”, com desconforto demais para
me sentir sem graça. Para minha surpresa, ele me abraçou de volta. E podia
ser somente pelo fato de eu me sentir mais exposta e frágil do que nunca.
Ou porque algo no seu cheiro me lembrava os corredores do palácio e ele
era o mais próximo que eu tinha de casa. Mas o apertei com a pouca força
que ainda tinha.
— Não precisa pedir desculpas, eu não vou deixar Vossa Majestade
“pegar o mico”. Falei certo?
Uma risada genuína escapou de mim.
— O mais certo que poderia.
Então fiquei parada enquanto ele afastava com cuidado o delicado
tecido prateado da minha roupa. Meu lindo vestido agora havia se tornado
algo levemente parecido com um top. Não sabia como dizer isso a Lila, se
eu voltasse a vê-la um dia.
As mãos de Dax eram hábeis conforme trocava as ataduras, agora
menos sujas de sangue, por outras limpas. Ele aplicou algumas gotas do que
imaginei ser o mesmo tônico que usou quando me salvou. Eu deveria estar
extasiada de dor na primeira vez, pois agora sentia a ardência lancinante
corroendo das beiradas até o interior do meu corpo conforme minha pele
reagia à substância. Trinquei os dentes e Dax segurou minha mão,
certamente ciente do que estava sentindo enquanto as lágrimas fluíam pelo
meu rosto. Ele me garantiu que em alguns minutos eu não sentiria mais
nada, então esperei.
Mantive os olhos apertados. Por quanto tempo, não sei ao certo. Olhei
em volta, finalmente conseguindo respirar e me movimentar sem dor. Os
três cavalos bebiam água, Noite a mais brilhante entre eles. Foi quando
percebi que, se havia três cavalos, era sinal de que havia três cavaleiros.
Onde estaria a garota que veio conosco? Dax me fitava como se
acompanhasse meus pensamentos, assistindo-os de camarote na minha
mente.
Eu deveria me lembrar do seu nome, mas não conseguia. Mas me
lembrava do seu jeito espontâneo e desajeitado de se movimentar, como se
deixasse um rastro de bondade em cada pequena ação. E acho que essa
lembrança era mais importante do que saber como chamá-la.
— Ela foi buscar mais lenha. Perto do rio, a madeira é totalmente
úmida, muito mais difícil para acender uma fogueira.
— Já vai anoitecer? — Uma constatação em forma de pergunta. Só
então percebi que havia dormido aproveitando a preciosa luz do dia. E estar
aqui, neste lugar desconhecido ao léu durante a noite…
Dax apenas assentiu. Percebi que ele hesitou uma, duas vezes antes de
perguntar:
— Por que você trouxe uma estranha conosco, Luna? Não sabemos
nada dessa garota. Até onde sei, ela pode estar envolvida no atentado contra
a sua vida — disse ele com a voz ríspida.
Revirei os olhos.
— Ela não me parece uma grande ameaça, Dax. Ela queria ajudar, e
na situação que eu estou — apontei para meu ferimento — aceito todo tipo
de ajuda.
Ele chutou uma pedra e se sentou ao meu lado. A garota aparecia no
horizonte, equilibrando os gravetos. Mesmo enquanto alguns caíam no
chão, ela se mantinha injustamente charmosa.
— Dax, como ela se chama mesmo?
— Zoey — murmurou.
— Isso! Zoey. Não conta para ela que me esqueci, acho que ela…
Ele me interrompeu, quase como se não quisesse fazê-lo.
— Luna, eu sei que provavelmente você não teve tempo para pensar
nisso, mas precisa colocar na sua lista de prioridades… O que faremos?
Qual o plano?
Eu viveria duzentos anos e não teria a resposta certa para aquela
pergunta. Muitas pessoas acreditam que tomar uma decisão é descobrir o
final de alguma coisa, quando na verdade é só o princípio. Eu já havia
deixado coisas demais pela metade na minha vida. E só uma delas estava
comigo desde o começo. Primeiro como uma ideia, depois como um
presente, então como um adorno e, finalmente, como um fardo.
Segurei o rubi de fogo, sentindo seu calor familiar nos dedos. Eu podia
jurar que ele também se importava com o meu destino agora. Como se
soubesse de toda a injustiça que passamos juntos. A diferença era que eu
tinha responsabilidade total e ele… só queria voltar para casa. Nós dois
queríamos.
Bom, eu sabia onde era o seu lar.
Novamente, senti o olhar penetrante de Dax caminhar pelas minhas
feições como se pudesse ler minhas entrelinhas. Eu me sentiria invadida se
o mistério na sua proeza não fosse tão fascinante. Ainda assim, me afastei
dele alguns centímetros.
— Preciso ir à Cinaéd. — E, da forma que falei, podia muito bem ter
dito que ia ao banheiro.
— Você não pode simplesmente andar até Cinaéd. — A calma usual de
Dax se foi ao alegar apressadamente a impossibilidade da nossa missão.
— Frodo andou até Mordor — suspirei. — Eu certamente posso andar
até Cinaéd.
— Quem andou até onde, Luna?
— É uma longa história... Aprendi quando estava ausente de
Montecorp. — Ele sabia de que lugar estava falando, seus olhos brilhavam
de curiosidade. Como se não soubesse por onde começar a fazer perguntas.
— “Mornor” é um lugar como Cinaéd?
Parei para pensar sobre isso.
— Mordor é onde fica a Montanha de Perdição. Um lugar terrível,
onde o mal habita e é forjado. Cinaéd é o reino do fogo. Mas não é mau. Só
deu o azar de possuir algo que meus antepassados julgavam que lhes era
merecido. E cá estou eu, agora, com este presente de grego.
— “Presente de grego”?
— É tipo um presente que parece bom, mas é ruim. Faz referência à
história do “Cavalo de Troia”.
Ele não entendeu, mas escolheu bem a próxima pergunta, como se não
quisesse me sobrecarregar com elas. Eu via a velocidade em que elas se
formavam na sua mente.
— Esse “Frodo” é um herói nesse mundo?
Ponderei, balançando a cabeça.
— É uma forma de ver. Mas todo mundo sabe que o Sam é o
verdadeiro herói. — Sinto que, se revelasse que estava me referindo a um
livro, ele ficaria decepcionado, então estendi a mão para que me ajudasse a
levantar.
Logo estávamos de pé, e ele correu em direção à Zoey, que agora
estava com ainda menos gravetos para nossa fogueira. Ainda bem que Dax
refez seus últimos passos, caso contrário nossa fogueira seria minúscula.
Enquanto isso, a voz doce da menina preencheu o espaço entre nós como
jasmim no verão.
— Majestade, está acordada! Está se sentindo melhor?
— Tão bem quanto poderia, graças a vocês. E pode me chamar de
Luna, Zoey. Uma rainha não se sente tanto uma rainha sem o seu reino. —
Forcei meus lábios em um sorriso simpático.
— Luna. — Senti o esforço em parecer natural. — Perdoe-me, mas
acredito que esteja enganada. Não é o reino que faz de você uma rainha.
São as suas ações pelo seu povo e… Eu estava no início das festividades
pela lua azul. Meu pai cuidou do estábulo para que eu assistisse à
cerimônia. E você foi absolutamente brilhante!
Aquela noite de alegria no templo de prata agora era mais uma
memória que parecia pertencer a outra vida. Infelizmente, percebi que todas
as minhas boas lembranças tinham essa mesma sensação. De que a
felicidade jamais seria uma rotina.
— Zoey, há sabedoria nas suas palavras... Mas agora eu não sou
apenas a rainha que sofreu uma tentativa de assassinato. Sou uma garota,
assim como você, que está ferida, assustada e com muito medo do que pode
acontecer com a gente aqui nesse fim de mundo. Então tudo que eu quero
agora é ser a Luna. Assim eu posso dizer em voz alta tudo isso que acabei
de falar sem precisar ser a fortaleza impenetrável que a coroa pede de mim.
Dax juntou os galhos no centro do nosso acampamento improvisado. A
irritação passeava pelo seu rosto, reprimi um sorriso.
— Você deixou cair vinte e seis gravetos, Zoey. Eu contei, um por um
– disse Dax.
Ela começou a explicar a dinâmica com que a madeira equilibrava de
forma desigual pelo seu corpo, mas Dax a interrompeu bruscamente:
— Tente achar dois seixos lisos. Acredito que consiga trazer um em
cada mão sem derrubar no caminho!
Ela levantou alegremente e como se não percebesse seu tom ríspido.
Seu cabelo cacheado balançava no horizonte quando virei o rosto na direção
de Dax.
— Você não deveria falar assim com ela. Zoey é um pouco distraída só
— declarei firmemente.
— Luna, você é um pouco distraída. Aquela garota está fora de órbita.
— Dax empilhava a madeira o melhor que podia.
— Nem todo mundo consegue ser tão inteligente e atento quanto você,
não é?
Ele não transpareceu, mas percebi que sorriu.
Zoey voltou com duas pedras e as entregou imediatamente para Dax.
De um pequeno bolso, ele retirou um frasco. Salpicou um pouco do pó do
seu interior sobre os galhos. Assim que chocou as pedras, uma faísca
imediatamente se transformou em chama. Aquecemos em um galho uma
das comidas que trouxemos conosco nos suprimentos de viagem. Uma
massa recheada com queijos, surpreendentemente saborosa no calor da
fogueira.
Comemos em silêncio, e em seguida eu podia ler a pergunta que estava
em seus rostos. Não podíamos nos dar ao luxo de perder mais tempo. A
noite de lua cheia parecia mais clara que o normal ali, mesmo com a densa
copa das árvores.
— Qual caminho, Luna? — Na voz de Dax havia apenas compreensão.
Ele iria a Mordor comigo se fosse preciso.
— Sabemos que esse rio deságua próximo ao Carvalho de Prata.
Vamos seguir sua margem. Sinto que há algo interessante na sua nascente.
— O começo do mundo — sussurrou Zoey, encarando a correnteza do
rio enquanto trazia os cavalos para perto de nós.
— O que disse? — A forma que ela pronunciou cada uma das palavras
fez os pelos do meu braço arrepiarem. Da mesma forma quando
encontramos uma verdade do mundo perdida por aí quando estamos
distraídos. Talvez ela fosse assim por isso. Talvez Zoey só prestasse atenção
nas coisas mais importantes. Então ela continuou saboreando cada sílaba:
— Dizem que a Floresta do Oblívio começou com a primeira árvore
que surgiu à beira das pedras da primeira nascente. Um presente da Deusa
da água. Sei que nunca ouvimos o seu nome em Montecorp, ele era
pronunciado em um idioma antigo que não é capaz de soar pelos nossos
lábios. A língua dos rios e das ondas… O mesmo idioma que fala o sangue
que corre em nossas veias. — Ela suspirou e olhou nos meus olhos, como
se pedisse desculpas. — Você tinha dito que estávamos no fim do mundo.
Na verdade, estamos indo ao princípio.
— Achei que não existiam histórias sobre esse lugar.
— Nenhuma escrita nos livros… Mas quando se trabalha no estábulo,
a gente aprende a juntar os fragmentos. E percebe coisas que existem coisas
similares demais para serem coincidência. E verdades muito profundas para
serem apenas um mito.
E enquanto cavalgávamos, ela começou a contar uma história que
preenchia o silêncio da floresta. Como se tudo que era vivo à nossa volta
também parasse para ouvi-la.
— Minha avó me contou essa história com a língua do vento. Ela diz
que a história do mundo começou a ser contada por ele, o grande
responsável por mudar todas as coisas de lugar. Ele moldou as montanhas e
definiu o tamanho das ondas dos mares. Assim como assoprou a vida em
nossos corpos e toda inspiração que qualquer artista foi capaz de ouvir em
sua vida. Uma vez que o ar fluía por cada pessoa, planta ou criatura, seus
ruídos foram compreendidos como o que entendemos que são palavras. O
curioso é que são apenas sons, quase aleatórios. É a vontade que colocamos
nele que dá o significado. Tanto que o grito não possui idioma. Mas, para
aqueles povos que aprenderam a compreender os próprios sons, o vento
passou a carregá-lo pelas gerações, levando a marca de cada uma.
— Sua avó aprendeu tudo isso apenas ouvindo de gerações antigas? —
indagou Dax, descrente da jovem garota.
— Uhum — murmurou Zoey. Ela ficou em silêncio, como se
decidindo o que deveria compartilhar em seguida. — Minha avó não era de
Montecorp. Nem a avó dela.
— De onde elas vieram, Zoey? — perguntei curiosa.
— Daqui. — Ela simplesmente sorriu, maravilhada com a floresta
desconhecida à nossa volta. Uma visão brilhante e orgulhosa de alguém que
tinha orgulho de suas origens. Imaginei como deveria ser essa sensação.
Então ela continuou:
— Nós aprendemos ainda no berço sobre como Argrinis presenteou os
Montecorp com a semente de prata, que deu origem ao Carvalho de Prata e
a todo nosso belo reino.
Senti um arrepio caloroso em meu coração ao lembrar da voz da minha
mãe repetindo essa história todas as noites. Algo em Zoey me passava a
mesma sensação. A mesma paz. Sua voz continuou ecoando pela floresta:
— Então partiu para outra dimensão. Não sentia mais que havia espaço
para ela neste mundo.
Bólius não demostrava desejo algum em partir, tampouco em
presentear os humanos com sua preciosa pedra do fogo. Mas desejava ficar
entre eles e ser adorado. Então Cinaéd foi crescendo conforme as pessoas
uniam-se em amor e medo pelo dragão. Mas enquanto nosso mundo
mudava, as revoltas ocuparam mais o tempo dos seus súditos devotos do
que suas oferendas. Ele percebeu que precisava de uma instituição. Alguma
coisa para regulamentar os ânimos do povo, a fim de permanecer suas eras
nesta dimensão colhendo todo o ouro, joias, harpas e riquezas que poderia.
Ele podia ser acomodado em luxo e conforto, mas tinha o conhecimento de
todas as gerações deste mundo. Já não podia mais ignorar a necessidade de
formar uma família real que pudesse governar seu território.
O feitiço ao qual ele precisaria submeter sua forma poderosa lhe
causava asco. Mas havia nele uma inegável curiosidade. Bólius, que sempre
foi seduzido pela ganância dos tesouros e da música, não compreendia
como seus súditos encontravam sua fraqueza na carne. Então, movido como
sempre pelo próprio egoísmo e interesses, ele conjurou um ritual e invocou
uma feiticeira poderosa. Seu nome era desconhecido e podia ser
pronunciado apenas em uma linguagem perdida.
Bom, algo perdido precisa ser achado em algum momento antes,
certo? Seu nome nunca foi pronunciado neste plano. É desconhecido até
mesmo pelo vento.
Suas palavras eram capazes de levar o melhor dos homens à loucura.
Bólius sabia disso, então voou até o pico mais alto de Cinaéd, a fim de
realizar o sortilégio. As lendas contam que sombras e gritos dançaram
naquela montanha, mesmo em uma noite sem lua e sem estrelas.
E há pouco mais de um século, o dragão assumiu a forma de um
homem apenas por essa noite de lua nova. Diziam que sua beleza era
mortal, mas que não havia nada humano nos seus olhos. Ainda assim, ele
não teve problema para encontrar… pretendentes. E até o nascer do sol,
quando finalmente voltou para sua forma, ele havia conseguido gerar alguns
herdeiros. Em nove meses, seu reino foi estabelecido. Ele nomeou os
cuidadores e tutores para os bebês. Ordenou que todos o visitassem a cada
ano de vida completo. Mas ainda assim, o reino era novo e inexperiente
quando a guerra começou. Não teve tempo para consolidar um sentimento
além de medo e devoção. E o restante da história vocês conhecem. — Zoey
respirou fundo antes de continuar, como se aguardasse nossa confirmação
de que estávamos interessados em saber o restante. — Enquanto Montecorp
nasceu e nossas leis eram novas, nós já dividíamos o espaço com tudo isso.
— Ela gesticulou em volta. Seus olhos vasculhando as estrelas vigilantes
acima de nós, como se também relembrassem a versão resumida das
histórias que aconteceram. Ela suspirou, procurando as palavras em seus
lábios. — Luna, Lorde Van Doren, olhem para cima.
Nós olhamos, e percebi o reflexo do infinito nos olhos de Dax e Zoey.
Perguntei-me se também era visível nos meus. Ela então prosseguiu.
— As estrelas não são as mesmas que vemos do palácio. Não
poderíamos nos guiar por elas mesmo se quiséssemos. Não da forma que
aprendemos.
Dax soltou uma expressão de espanto, arregalou os olhos ainda mais.
Começou a tatear o casaco em busca de papel e algo com o que anotar. Ele
continuou escrevendo o melhor que pôde enquanto cavalgava. Zoey
prosseguiu como se não reparasse na agitação.
— Se prestarem atenção, o rio já está correndo em uma direção
diferente. Como se, durante a noite, quisesse voltar para casa. Tudo aqui é
volátil. Não tenham dúvidas de que estamos sendo observados neste
momento por criaturas que certamente estão com medo de se aproximar de
nós. Um dia, quando tudo era novo, nós fomos amigos. Mas a violência e a
cobiça separa todas as coisas.
— A Floresta do Oblívio então não é sobre quem desaparece quando a
desbrava… — percebi, e ela completou meu pensamento.
— É sobre tudo que nós deveríamos nos lembrar, mas já foi esquecido.

Seguimos então o rio, que sempre mudava a direção do seu curso


quando estávamos distraídos. As estrelas a cada noite formavam um
desenho diferente, e Dax registrava tudo entre símbolos e anotações. Zoey
ocasionalmente compartilhava alguma pequena história que a língua do
vento havia contado para ela, sobre a noite que sussurrava segredos de
sabedoria para quem calava os pensamentos; sobre espíritos que visitavam
nosso mundo ao amanhecer; sobre mulheres que nasceram na forma de
árvores e agora vagavam o mundo com suas raízes em volta do pescoço;
sobre como você nunca deveria pegar um anel que acha perdido no chão da
floresta.
Fiz o mínimo de pausas possíveis, apenas quando o efeito do tônico
começava a passar e a dor voltava a assolar meu corpo. Noite caminhava o
mais suavemente possível, mas eu não conseguia me mover nessas horas.
Dax eventualmente parou de reclamar com Zoey pela forma que ela
derrubava a lenha, a comida e até as ataduras. Ela não parou de se desculpar
por ser quem era. Me parecia desigual.

Após três dias na floresta, a ferida que eu levava em mim ainda não
apresentava sinais de melhora. Pelo contrário. A pele em sua volta havia
ficado esverdeada e dura. Eu precisava de doses ainda maiores do tônico,
mas já havia entendido que ele era apenas um anestésico. E que estava
acabando.
A postura inquieta de Dax me fazia acreditar que estava me
escondendo alguma coisa. Ele não me falou até eu dizer que a sua rainha
ordenava saber a verdade. Detestava ter que impor meu poder por um
respeito que eu merecia como uma pessoa.
— Você foi vítima de uma Sombra. É um feitiço antigo que invoca a
própria escuridão. E ela passa a morar em você. Se alimentar da sua luz.
Zoey chorava, calada pela primeira vez desde que nos conhecemos. Eu
senti meu coração afundar, como se pudesse enfim perceber o que agora
estava dentro do meu corpo. Clamando cada parte minha.
— A arma usada contra você feriu seu espírito. Não há nada que eu
possa fazer agora além de aliviar sua dor. Mas essa energia provavelmente
vai continuar devorando sua vitalidade, até que não reste nada.
Abaixei os olhos, a visão embaçada, o corpo pesado. Não poderia ser
assim que acabaria minha história. Não desse jeito, não quando ainda
estávamos apenas no início… Dax levantou meu queixo, passando o
polegar no meu rosto, afastando as lágrimas. Podia ver a expressão pesada
em seu rosto, as olheiras fundas como se não dormisse há dias por pura
preocupação.
— Mas como a Zoey disse, estamos indo para o princípio do mundo.
Estamos cercados de maravilhas que não entendemos. Ainda não sei como,
mas vamos achar um jeito, combinado?
Eu tentei sorrir. Ele estendeu a mão para Zoey, que estava com o rosto
inchado e vermelho de tanto chorar. Foi a primeira vez que o vi sorrindo
para ela.
— Cuide dela — foi tudo o que disse para Zoey depois de beijar minha
testa e sair sem olhar para trás em direção à profunda floresta.

Noite estava deitada no chão, e eu me recostava na égua em busca de


uma posição confortável.
Há horas eu não podia me mexer.
Falar se tornara incômodo.
Eu torcia para Dax não ter se perdido ao adentrar a floresta em busca
de qualquer esperança que tinha consigo em alcançar uma chance de
melhora. Zoey permanecia ao meu lado, e me recolhi no seu colo. Senti
seus dedos hesitarem ao passarem pelo meu cabelo. Era um gesto de
piedade por alguém que estava morrendo, e eu sabia disso. Não sabia muito
sobre Zoey, mas sabia que poderíamos ser amigas se tivéssemos tempo para
isso. Ela murmurava a canção que tocou meu coração no dia que nos
conhecemos. Eu imaginei como ela ficaria ao som do violino, como
encaixaria em sua voz.
Eu sabia que não tinha muito mais tempo. Estava fraca demais para
seguir em frente ou para retornar ao palácio, se assim decidisse. Então me
tornei cada nota, cada detalhe da melodia que sussurrava nos meus ouvidos.
De olhos fechados, poderia ter jurado ver estrelas. E achei que seria piedade
partir deste mundo ouvindo anjos.
Capítulo 34

Abri os olhos, incerta se havia passado alguns minutos ou horas.


Ainda estava no colo de Zoey, e não me mexi. Sua cabeça reclinava em seu
ombro numa posição que imaginei que provocaria um torcicolo terrível. O
céu tinha um inconfundível tom de anil, anunciando o amanhecer. A copa
das árvores ameaçava irromper em tons de dourado e laranja, e por alguns
segundos testemunhei a aurora como se ela fosse tudo que importava.
Porque era. Eu tive essa certeza, antes que meu corpo pudesse se
lembrar da dor que me consumia. Ela não importava. Não para este mundo
maravilhoso. Independentemente do que acontecesse comigo, amanhã um
novo diria insistiria em romper. E outro. E outro.
E podia ser a febre ou os meus sentidos falhando, mas me perguntei se
isso não seria algum tipo de milagre. Não daqueles que a gente implora para
vivenciar, mas o tipo de dádiva que você recebe por simplesmente existir.
Existir.
Eu sentia que a existência esvaía de mim. Já não era mais uma rainha.
Ou uma jovem. Ou uma coleção de memórias. Eu era um fantoche
controlado por uma agonia injusta. E agora finalmente eu sentia a
maleficência fincando raízes no meu ser. Na outra dimensão em que estive,
lembrei-me de que as pessoas mal podiam provar a existência de um
espírito. Mas aqui, onde tudo era de verdade, o espírito era tão real que
podia ser ferido.
Contei até dez. Dax ainda não havia retornado. Fechei os olhos como
se pudesse convocar através de magia sua presença. Claro que não
funcionou.
Eu não sabia como, mas precisávamos ir até ele. Eu mal podia me
mover, mas a incerteza de onde ele estava me deixava inquieta.
Acordei Zoey o mais delicadamente que pude e, apesar das suas
objeções, ela me ajudou a montar em Noite, sentando-se junto a mim. Eu
não conseguiria cavalgar por conta própria.
Seguimos os rastros de Dax, evidentes no terreno úmido. Eu tentava
manter o foco na busca por rastros ou galhos partidos entre as árvores.
Minha nova amiga me perguntava a cada dois minutos como eu estava me
sentindo, lembrava a forma que Olívia costumava falar comigo quando
estava ao meu lado. Mas… ela nunca esteve.
Eu continuava mentindo deliberadamente que estava bem o bastante
para fazer aquilo. Eu não estava. Mas não me perdoaria se algo acontecesse
com ele por minha culpa. Não Dax. Mesmo parecendo um idiota
convencido e arrogante à primeira vista, tudo o que ele fez foi buscar meios
de me ajudar.
Então pedi para Zoey me contar mais histórias. Dessa vez, não sobre a
floresta. Mas sobre ela. Sobre essa garota tão doce e distraída, que parecia
fazer o mundo sorrir à sua volta mesmo em dias cinzentos.
Supreendentemente, ela pouco teve a dizer sobre si. Segundo ela, seus dias
eram tão iguais que muitas vezes ela se perguntava se estava presa em
algum feitiço do tempo. Eu tinha alguma experiência no assunto, mas
preferi não falar nada.
— Não há muita emoção na vida da filha do cavalariço. Nunca fui
além da cidade, não podia cansar os animais... Mas adorava cuidar dos
cavalos! São criaturas muito inteligentes, mesmo que adorem julgar uns aos
outros. Não dá para levar muito em consideração, entende? — Ela franzia a
testa como se estivesse desabafando algo que já pensava há muito tempo.
Apesar do incômodo, eu sorri.
— Honestamente, não entendo — respondi. — Mas sei que Noite
adora você.
Podia jurar que a égua concordou com um movimento de cabeça.
— Eu que fiz o parto dela, sabia? — Havia orgulho em sua voz
enquanto acariciava o dorso da égua. — Era tão pequenina e franzina, não
imaginei que cresceria tão linda e forte.
Então ela me falou sobre seus afazeres no estábulo, sobre suas noites
solitárias contando as estrelas e sobre sua curiosidade em conhecer a
Floresta do Oblívio. Não tive coragem de perguntar se ela estava atendendo
às suas expectativas. Quis saber mais sobre sua descendência, mas parecia
ser um tema íntimo demais. E francamente, eu mal sabia por onde começar
o assunto.
Seguimos pela trilha que parecia mais óbvia pela floresta, cada vez
mais afastadas da margem do rio. As árvores ali eram mais espaçadas, em
um tom impossivelmente verde. Ainda assim, não cruzamos com animais
ou criaturas, por mais que houvesse vestígios. Ninhos montados nos galhos,
tocas que não esperavam uma visita surpresa no tronco das árvores,
algumas frutinhas mordidas nos arbustos. Zoey murmurou sobre voltar por
esse caminho, a fim de colher algumas.
Prestei atenção em cada palavra dela. Parte para saber mais sobre
Zoey, parte para me distrair da dor. Os sons das ferraduras contra a terra e
de sua linda voz nos acompanharam na primeira hora, mas logo eu não
podia ignorar o pânico crescente em não ver nenhum sinal de Dax. Na hora
seguinte, cavalgamos chamando pelo seu nome. Não importava quem ou o
que poderia nos ouvir. Eu precisava achá-lo.
Finalmente nos calamos quando o sol já havia rompido totalmente,
suor agora escorrendo de nossa pele. Era mais quente ali do que na beira do
rio. Mas o calor que senti consumindo meu coração de dentro para fora não
foi causado pelo sol. Ou pela febre.
Foi o mais puro desespero ao ver Dax caído no chão enquanto sangue
parecia escorrer de sua mão.
E o que mais me assustou foram os olhos inumanos que me encaravam
com uma expressão furiosa e intolerante.
Capítulo 35

Não me importei com a dor e com o ferimento que carregava. Não


quando eu precisava saber se ele ainda estava vivo. Se teria uma chance.
Tinha que ter. Não aceitaria nada diferente. A minha vida estava em risco,
não a dele.
Senti a adrenalina me dar a força que eu não experimentava há tempos,
do que parecia ser outra vida, e desci do cavalo. Dei o comando para que se
afastasse daquele lugar, levando Zoey consigo. Não deixaria que aquela
criatura fizesse mal a ela também.
Nem em meus sonhos eu saberia que estava prestes a conhecer algo
tão indescritível. Seu poder emanava uma onda de energia que era
igualmente hipnotizante e amedrontadora. Uma criatura forjada de sonhos
agora protagonizava meu pesadelo. Ali de longe, a besta me encarava.
Tinha o dobro do tamanho de um cavalo normal, a pelagem branca como
um cristal como se pudesse atrair toda a luz do ambiente para si. Um chifre
prateado como a lua brilhava do centro da sua testa. Absolutamente
ninguém seria capaz de montar nesse ser. Ele queria que eu mantivesse
distância, mas eu não cederia.
Naquele momento, senti a corrente de poder que fluía por mim cada
vez que eu reinava. Eu havia sido criada para carregar a coroa, cederia
apenas aos meus próprios comandos. Eu não era uma jovem indefesa. Não
naqueles breves instantes de coragem insana. Eu era uma rainha, e meu
súdito estava em perigo. Não importava que o unicórnio carregasse toda a
majestade em si, defender alguém que esteve disposto a me salvar quando
eu já não tinha mais esperanças era um motivo bom o suficiente para entrar
em conflito com alguém. Parte de mim ficou assustada com esse
pensamento vibrar no meu sangue como uma verdade tão absoluta. Eu
pensaria nisso depois.
Corri até Dax, que permanecia desacordado, e o abracei contra meu
peito. Senti o seu peso ao fazer o movimento, meu ferimento fisgou com o
esforço. Depois. Depois nós voltaríamos a isso. Agora não.
Peguei sua mão e vi que estava com a lateral rasgada. Sangue ainda
jorrava, e fiquei grata apenas por ver que todos os seus dedos ainda estavam
presos ali. Perfurada sem dúvida pelo chifre daquele unicórnio. Chamei por
seu nome baixinho contra o seu ouvido. Não obtive resposta. Ele
provavelmente teve uma concussão durante a queda.
Ouvi a criatura relinchar, desviando a atenção que eu tinha da
respiração de Dax, certificando-me de que ele estava vivo. O som ressoou
como um alerta primário no meu corpo.
Saia daqui.
Fuja.
Você não pode estar aqui.
Ignorei.
— Vou tirar a gente dessa — sussurrei no seu ouvido. Mirei na adaga
que estava presa ao seu cinto. Uma arma pequena, provavelmente não
muito afiada, mas melhor do que nada.
Senti a dor começar a fisgar novamente, e implorei para a adrenalina
não deixar meu sangue. Não agora. Conforme vi o unicórnio correr na
minha direção, senti a energia voltar a correr nas minhas veias. Tentei
buscar na minha mente tudo que já havia ouvido falar sobre a criatura que
agora ameaçava tudo o que eu ainda tinha. Minha vida. Meu amigo. A
fagulha de esperança que me mantinha seguindo em frente.
Eu lembrava que eles se afastaram dos humanos por causa da nossa
crueldade, cada vez mais longe conforme a guerra se instalou. Nessa lógica,
provavelmente segurar uma arma contra ele não melhorava minha imagem,
apenas confirmaria que os humanos resolviam qualquer situação pagando o
preço do sangue.
Eu não tinha ideia se eles podiam comunicar entre si, contar histórias.
Se a criatura por algum motivo temia nossa presença. Nos via como
ameaça.
Busquei pela memória alguma outra informação que pudesse usar.
Sabia que minha mãe gostava dessas criaturas. Possivelmente eram
amigáveis, dependendo das circunstâncias. Sabia que eram filhos de
Argrinis, criados com uma conexão especial com o céu e a terra.
Talvez eu pudesse me comunicar com eles. Talvez pudesse implorar
para a própria terra fazer isso por mim. Talvez a língua do vento pudesse
traduzir minha linguagem para a dele. Eu não poderia testar qual a melhor
forma de vencer. Precisava escolher uma, e meu tempo estava acabando.
Ouvi Dax gemer ao fundo, e foi o suficiente para tomar uma decisão.
Ele estava aqui para me ajudar, para curar o ferimento nefasto que eu
carregava desde que fui forçada a deixar meu reino. E se os unicórnios eram
repelidos pela maldade… Eu tinha à minha disposição uma arma muito
mais útil do que a pequena adaga. Mas claro, isso era uma aposta. E há
muito tempo eu não vencia uma partida de cartas com o destino.
Ainda assim, não parecia certo atacá-lo. Só porque não entendia suas
ações, mesmo que discordasse delas. Então por que eu faria isso? Podia ser
a decisão de um tolo, mas foi a que tomei.
Rapidamente o unicórnio encurtou a distância entre nós. Eu me
ajoelhei perante ele antes que me alcançasse. Ouvi aquela voz linda, uma
vez misteriosa e agora fraca, chamar meu nome. Tentei não vacilar minha
postura enquanto suspirei de alívio.
Comecei a desenrolar o mais rápido que pude as ataduras em meu
tronco, e logo deixei minha ferida totalmente exposta. Ousei olhar para ela.
A pele parecia retorcida e necrosada, seu odor ácido logo preencheu o ar
entre nós. Estiquei os ombros para não me contorcer com a repulsa. Ao
contrário do que esperei, ela não doía tanto agora.
O unicórnio parou perto do meu rosto, o bastante para sentir sua
respiração selvagem encostar na minha pele.
Não me mexi. Não havia pensado em absolutamente nada a partir dali.
Apenas tinha alguma esperança tola em mim de que ele compreenderia
a situação. De alguma forma. Era o tipo de milagre que eu estava disposta a
implorar para conseguir. O tipo de barganha que eu faria com qualquer deus
que quisesse interceder.
Quase ri ao pensar no quão persuasivo o desespero sabia ser.
Senti a fúria em seu olhar dissipar sobre mim. Agora era como se ele
estivesse… triste. E bastou ver essa transparência no seu olhar para que eu
começasse a chorar também. Não sabia se de medo, de dor ou por estar
perto do limite do que podia suportar antes de partir. Eu já me sentia
quebrada, remendada por memórias que eram tão minhas quanto qualquer
outra fantasia.
Coloquei uma mão na terra e virei a palma que estava apoiada no meu
joelho para o céu, como se fosse a reação mais natural do mundo. Como se
já tivesse feito isso centenas de vezes. Então falei tudo que sentia. Não sei
se usei a língua do vento, do coração ou a que havia aprendido com os
homens. Mas deixei meu coração transbordar com a tristeza de ter tido
minha vida roubada de mim, agora pela terceira vez. Sobre meu desejo de
chegar a Cinaéd e devolver a pedra do fogo. Sobre como Dax e Zoey
largaram absolutamente tudo para me ajudar. E não sabia se a criatura
diante de mim podia me entender, se absolutamente alguém podia
compreender o vazio que eu usava como um distintivo. Mas, pela primeira
vez, eu entendi. Se eu não era parte de nada, aquele vácuo era parte de tudo.
Eu não tinha um propósito, mas tinha uma missão.
A voz de Zoey soou abafada ao fundo, mas não ousei me virar.
Continuei ali, encarando o unicórnio. Vi os detalhes em seu chifre, como se
fossem feitos do próprio brilho que o sol faz ao tocar a superfície da água.
Seus pelos eram a própria luz, reluzindo em todas as cores do arco-íris.
Enquanto ele me olhava, perguntei-me se ele poderia saber que a própria
cor do meu cabelo era também minha maldição pessoal por todas as vidas
que tirei.
A testa dele tocou na minha, logo abaixo do seu chifre, e meu mundo
se calou por um momento. Parei de respirar, incerta de que se inspirasse ar
demais pudesse romper a conexão. Levei a mão que apontava para o céu
devagar até sua bochecha, e de repente tudo que eu queria era que minha
mãe pudesse me ver ali.
Paz encheu meu espírito de tal forma que se todo esse momento fosse
apenas uma ilusão, ainda assim teria valido a pena estar viva. Lentamente
ele afastou sua enorme cabeça da minha e levou seu chifre até meu
abdômen. Fechei os olhos por reflexo, com medo do efeito da superfície
pontuda contra a pele ferida, então levei a mão aos olhos para proteger-me
da luz que vi irrompendo pelo meu corpo.
O toque gelado e efervescente me surpreendeu. Senti as raízes
macabras murchando e retraindo para longe do meu espírito, do meu corpo
e, por fim, estava livre. Totalmente abismada pelo que havia acabado de
acontecer. Eu deveria ter agradecido, mas de imediato só conseguia pensar
em Dax. Não conhecia a gravidade de seus ferimentos. Acarinhei a têmpora
do unicórnio, olhei no fundo dos seus olhos, torcendo para que a conexão
ainda estivesse ativa, e andei até meu amigo sem movimentos bruscos.
A criatura me acompanhou e logo desceu o chifre até sua mão. Luz e
paz irromperam na floresta.
— Ah, eu queria ter me machucado em algum lugar também! — Foi
assim que Zoey quebrou o silêncio. Eu me forcei para não rir, mas a encarei
em silenciosa repreensão.
Não sabia o quanto o unicórnio era capaz de entender. Se via nossas
auras, nossos pensamentos ou se compreendia nossas palavras. Mas ele foi
até ela e permitiu que o dorso de sua mão o tocasse. Por um instante, tive
certeza de que Zoey explodiria de alegria se pudesse.
O unicórnio já estava a metros de distância quando finalmente comecei
a entender que estava curada. Não só do ferimento, mas de uma tristeza
profunda que eu nunca deixei de carregar comigo. Uma parte de mim tinha
mais que esperança, mas uma dose de genuína alegria.
E finalmente buscamos nossos cavalos e prosseguimos nosso caminho.
Capítulo 36

Uma vez liberta do malefício que corria meu corpo e espírito, eu


finalmente podia perceber os arredores da floresta com mais clareza. Eu já
conseguia fazer movimentos simples – como respirar – e caminhar não era
mais um problema. Dax estava maravilhado com a cura total, mas a fina
cicatriz em meu abdômen permanecia. Sentia que cada folha, flor e rocha
exalava um brilho e um perfume diferente. Cada detalhe ali possuía uma
presença que valia a pena contemplar. Mesmo sendo dia, o orvalho
rivalizava com o brilho das estrelas. Eu poderia jurar que flutuavam para o
céu como alguém que volta para casa.
Provavelmente estive bastante distraída com as cores intensas que
agora pousavam nos meus olhos, eu sentia como se estivesse
experimentando a vida pela primeira vez. E, de certa forma, não é
justamente o ato de fazer coisas novas que permite que a existência se
renove?
Percebi que estava tagarelando sem parar quando Zoey – sim, Zoey –
me interrompeu.
— Luna, não me leve a mal, mas... Mas nós precisávamos encontrar
nossos cavalos e a beira do rio. Se não percebeu, ainda não conseguimos
nem ouvir o som da água e já estamos andando há pelo menos duas horas
— disse com sua voz doce e firme.
— Eu não queria concordar com essa cabeça de vento, mas estou me
convencendo de que você é pior do que ela se ainda não reparou que
estamos perdidos — declarou Dax, irritado.
— Você não deveria falar que eu sou cabeça de vento, Dax. Achei que
já tínhamos passado disso — interveio Zoey com firmeza.
— Seu cabelo é cacheado, logo tem ar entre os cachos. É impossível o
vento não entrar na sua cabeça desse jeito. — Dax deu de ombros, como se
tivesse declarado algum tipo de certeza.
Antes que Zoey pudesse retrucar, ela sorriu sabendo que ele estava
brincando, mesmo com o rosto fechado e indecifrável. Alguns enigmas não
são resolvidos a olho nu, pensei.
— Zoey, longe de mim roubar o posto de distraída do grupo. Mas
agora que vocês disseram isso, estou preocupada.
— Sua preocupação está cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos
atrasada, lamento informar — constatou Dax.
— E sua sugestão também. Se estamos tão perdidos, por que ninguém
liderou o caminho? — Não quis soar estúpida, mas a indignação era real.
— Não sei ele, mas eu não aprendi durante a minha criação como se dá
ordens a uma rainha.
— Isso é tolice, Zoey. Primeiro porque já disse que neste momento não
sou uma rainha...
— Lembro-me de já ter discordado disso — ela cantarolou,
interrompendo.
— E segundo, rainhas recebem ordens todo o tempo. Somos
comandadas pelas guerras, pragas e necessidades de formar alianças.
Asseguramos a liberdade de nossos súditos sem nunca desfrutar por conta
própria.
— Você fala como se não quisesse a coroa. — Eu sabia que, vindo de
Dax, isso era uma pergunta.
— Eu falo como se nunca tivesse tido uma escolha — suspirei,
ponderando o que deveria ou não compartilhar sobre minhas memórias. —
Eu sei como é não ter uma coroa e um legado para honrar. — Eles me
olhavam como se eu estivesse prestes a fazer uma grande revelação. Quase
senti por decepcioná-los. — A verdade é que, de uma forma ou de outra,
sabendo ou não o que precisa ser feito, eu sempre me senti perdida.
E era verdade. Absolutamente todos os dias da minha vida eu fui
tomada por uma dúvida existencial asfixiante. Nunca senti como se eu
pertencesse a algum lugar. Como se alguma das minhas ações servisse a um
propósito em que eu realmente acreditasse. Guerras e provas pareciam um
desperdício de energia sem sentido e desnecessário. Eu aprendi a ser quem
esperavam que eu fosse. Mas, para ser franca, tiveram alguns raros
momentos em que senti que estava no lugar certo.
De alguma forma inédita, estar ali naquela floresta trazia um estranho
aconchego semelhante. Após devolver o rubi, eu estaria livre. Não faço
ideia do que faria com minha liberdade, mas estava disposta a descobrir.
Eu os avisei que não me incomodaria em encontrar um caminho, uma
vez que a impossibilidade de saber a direção certa era óbvia. Então
seguimos nosso caminho colhendo frutas e cogumelos que apareciam,
revezando a montaria em Noite, a fim de descansar nossos pés.
O manto de estrelas noturno já estava prestes a nos cobrir quando
chegamos ao consenso de que estávamos irremediavelmente perdidos. A
floresta longe do rio era como um labirinto. Passamos pelo mesmo lugar
algumas vezes, a julgar pelas raízes arrancadas nos arbustos. Zoey colhia
flores selvagens e as prendia no cabelo de forma aleatória. Não sei se ela
fazia isso para passar o tempo e desviar a mente de preocupações ou para se
sentir mais bonita. E de fato, mesmo com os dias dormindo ao relento
marcando delicados círculos roxos ao redor dos seus olhos, ela mantinha o
sorriso radiante como se estivesse dormido em um palácio. Acho que é
assim que se parecem os sonhos realizados. Uma gloriosa mistura de
plenitude e estafa. Já Dax não parecia afetado pela viagem, apenas pela
própria impaciência. Reparei que ele tomava todas as tardes uma pílula, e
deduzi que deveria ser um dos seus experimentos alquímicos para saúde e
vitalidade.
Eu não queria saber como estava. Tinha certeza de que parecia alguma
coisa perto o bastante de um trapo, com minha blusa rasgada, manchada de
sangue e dor. As calças estavam intactas, porém imundas com lama e suor,
além do sangue próximo ao cós, graças aos curativos. Trancei meus
cabelos, mas os fios estavam duros ao toque. Ainda mais depois de um dia
inteiro andando longe do rio, sem poder lavar as mãos ou refrescar o corpo.
Acredito que por isso começamos a andar lado a lado, em um voto de amor
silencioso aos nossos narizes.
Ainda que as noites na Floresta do Oblívio fossem claras o bastante
para seguir a jornada, estávamos exaustos. O assunto havia acabado, e a
sensação de falar fazia a garganta arder de sede. Nenhum de nós mencionou
o unicórnio. Eu, pelo menos, não tinha encontrado as palavras certas para
descrever o que tinha acontecido. Além do mais, precisávamos racionar a
água até encontrar um lago, rio ou outra fonte de água. Encontramos uma
clareira plana o bastante para dormir. Deveríamos ter escolhido alguém para
revezar o turno de vigia, mas como não encontramos ninguém até então, o
cansaço enevoou nossas mentes e clamou nossos corpos em questão de
poucos minutos. Senti os olhos pesarem e devo ter adormecido
imediatamente, antes que a sensatez falasse com algum de nós.
Senti uma luz incandescente atravessar minhas pálpebras, e logo o som
doce de flautas e a intensa batida de tambores me convidou a um estado de
transe.
Eu estaria sonhando?
Não. Abri os olhos imediatamente. Tínhamos companhia.
Capítulo 37

Já andávamos há vários minutos quando entendemos que qualquer


tentativa de comunicação seria recebida com uma repreensão física. Severa.
Não era necessário falar a língua das criaturas humanoides para entender
que deveria manter os olhos no chão enquanto éramos levados para o
destino desconhecido. Ainda assim, desviei o olhar o máximo possível sem
movimentar meu pescoço, a fim de observar nossos captores. Era como se
algum ser humano vivesse tanto tempo na floresta que era também parte
planta e fungo. Não soube dizer se eram burros ou intolerantes. Mas, na
segunda vez que tentei argumentar que não queríamos fazer nenhum mal,
recebi a resposta estalar em meu rosto. O aroma de terra preencheu meus
sentidos enquanto senti um corte fino arder. Dax logo entendeu o mesmo
que eu. Felizmente Zoey soube ler as entrelinhas da minha preocupação e se
manteve calada, seguindo nossos movimentos. Não pude expressar meu
alívio ao ver que Noite permaneceu totalmente ilesa. Nossas mãos estavam
amarradas pelo que entendi ser algum tipo de cipó, não apertadas ao ponto
de travar a circulação, mas a textura amadeirada roçava bruscamente contra
a pele em cada movimento indelicado.
Desafiando a sorte e olhando de soslaio, pude perceber que nossos
captores eram ainda mais diferentes de tudo que já havia imaginado.
Andavam no que parecia ser uma superfície de dois apoios, assim como
nós. Mas seus braços despendiam de todos os lados, como galhos. E,
estranhamente, o topo de suas cabeças me lembrava a superfície de um
cogumelo expressivamente anormal.
A cada passo adiante, mais e mais plantas luminescentes surgiam em
meu limitado campo de visão. Desde que adentramos os primeiros metros
na Floresta do Oblívio, eu tive a impressão de estar rodeada não de coisas
vivas, mas da vida em si. Doía pensar que não éramos bem-vindos. A
incerteza na súbita mudança do nosso destino deixava meu coração inquieto
e descompassado. Mas, para ser justa, já estávamos gloriosamente perdidos.
E quando não se sabe para onde se está indo, qualquer lugar serve, certo?
Esse pensamento nunca pareceu tão inexato e apropriado. Folhas
prateadas adornavam a trilha invisível pela qual éramos guiados, e por cima
das raízes das árvores, pequenos olhos curiosos se esgueiravam para
observar a novidade. Me perguntei se eles seriam os responsáveis pelas
flores que recebia em minha janela quando era criança, e parte de mim
pediu a Argrinis que sim. O som etéreo da flauta preenchia o silêncio da
noite como se soprasse sua própria canção, mas o ritmo percussivo dos
tambores me lembrava a cada instante de que eu precisava ficar alerta, não
deslumbrada.
A respiração tensa de Dax atrás de mim me deixava em cólera. Queria
tanto poder conversar com ele, saber o que estava pensando. Arrisquei mais
um olhar para trás, e por um instante vi o desafio que estampava em seu
rosto. Zoey mantinha a cabeça baixa, mas sabia que estava sorrindo. Em
pouco tempo ela transformaria essa história em mais um de seus contos,
daqueles que até o vento fazia silêncio para escutar.
Após um tempo que me pareceu infinito, mesmo sabendo que as
estrelas mal haviam se movimentado, as poderosas criaturas começaram a
disparar um som indecifrável aos meus ouvidos. Algo como uma seiva
gosmenta misturando folhas secas e uivos baixos. Do que estariam falando?
A dúvida não durou muito tempo na minha mente quando vi as
estruturas magníficas das raízes luminescentes apresentarem padrões cada
vez mais complexos. Como se fossem a construção de um edifício
totalmente orgânico, que cresceu pela própria vontade e maestria.
Não me contive e lancei um olhar discretamente para cima. Fiquei
totalmente sem fôlego ao ver luzes tal como de uma cidade deslumbrante
perante a mim. Torres mais altas que árvores pareciam subir até as estrelas,
reluzindo como se pertencessem ao céu noturno. Pontes esculpidas em
madeira conectavam todo o lugar, ainda que muitos de seus cidadãos não
parecessem necessitar delas, usando suas asas translúcidas para se deslocar.
Pude ver um lago adiante, no que julguei ser a parte central da bela
cidade. A lua preenchia toda sua superfície, como se fossem feitos para
encaixar um no outro. Logo senti meu rosto arder e estalar em repreensão, o
encanto logo partiu, trazendo-me de volta para a realidade. Não estávamos
ali por lazer. Não éramos convidados.
Éramos prisioneiros, e ainda não sabia por qual crime.
Conhecendo protocolos de guerra e captura, sabia que não podia fazer
nada até ser levada para algum superior, ou até finalmente ser jogada em
uma cela. E aí sim pensar em um plano de fuga, caso necessário.
Eu esperava que pudesse falar com alguém – que de preferência
conhecesse meu idioma – para nos livrar dessa situação o quanto antes.
Chegamos à beira de uma das torres, senti-me minúscula perante o
portão de entrada, que certamente foi desenhado para que todos os
moradores daquele lugar pudessem passar com a cabeça erguida. Não
importa o quão gigantescos fossem. Engoli em seco, sentindo o gosto de
cinzas na minha boca. Pelos Deuses, eu ainda estava exausta. Mais uma
vez, o descanso precisaria esperar. Toquei na pedra do fogo e, como sempre,
senti-me acolhida. Era irônico me apegar justamente a esse objeto, quando
devolvê-lo era meu objetivo de vida. Mas ainda assim, como se ele pudesse
me entender, falei que sairíamos daquela cilada também.

Passamos pela escadaria principal, chegando a um grande salão de


alabastro. Senti uma pancada firme nas costas ao cair de joelhos no chão,
mas o som de dor roubado de Dax e Zoey ao caírem no chão em seguida foi
o que mais me machucou. Eu me sentia responsável por tê-los colocado
nessa situação.
Um idioma estrangeiro chegou até meus ouvidos, suave como água no
córrego. Uma parte primitiva de mim reagiu e entendeu – não as palavras –
mas o sentido. Devagar, levantei a cabeça para encontrar os soldados que
nos capturaram na lateral do grande salão.
À minha frente, reluzia uma figura alta de beleza transcendental. A
feérica era mais alta que um homem humano adulto, mas usava com
graciosidade vestes da cor da noite e um manto bordado em flores e
estrelas. Seus olhos inumanos eram de um verde profundo e certamente
seriam capazes de levar um mero mortal a um delírio irremediável. Seus
cabelos castanhos mesclavam-se ao tom da sua pele conforme caía por seus
ombros. Em nada ela se assemelhava com seus guardiões, que poderiam
facilmente se passar por árvores mal-educadas.
Não precisava saber qual língua ela falava para compreender que a
dúvida em seu rosto exigia respostas imediatas.
Ousei me levantar com toda leveza que me havia sido ensinada,
ignorando meus trajes sujos e gastos e o cansaço óbvio em meu rosto. Fiz
uma reverência modesta e sustentei seu olhar, tentando não me abalar pelo
mistério que emanava dela sobre nosso destino.
Como se fosse a memória perdida de um sonho, as palavras correram
pelos meus lábios. Eu sabia que não falava mais a língua comum. Os sons
que saíam de mim pertenciam a um idioma que eu sentia como se
conhecesse a vida toda, mas de alguma forma havia esquecido. Era como
falar e ouvir em meio a um sonho. Não fazia o menor sentido, e eu podia
revisitar esse pensamento com tranquilidade depois. Não agora.
— Minhas sinceras e pacíficas saudações! Sou Lunara Alexandria
Montecorp, rainha de todo glorioso Montecorp.
Percebi que Dax e Zoey se entreolharam, tão ou mais confusos do que
estavam momentos antes.
No momento que terminei minha fala, busquei manter o rosto
confiante e sereno, tentando ao máximo disfarçar meu nervosismo. A bela
feérica suavizou a expressão em seu rosto. Quase suspirei em alívio. Afinal,
há um certo protocolo quando duas rainhas tem o prazer de se conhecer pela
primeira vez.
Capítulo 38

Eu poderia cortar o silêncio no suntuoso salão com uma faca, se ela


tivesse a lâmina especial para momentos embaraçosos. Mantive o queixo
erguido e o olhar fixo nos olhos profundamente verdes da governante
perante a mim. Era como se a própria floresta fizesse residência neles, pois
conforme os instantes se passaram, mais e mais pude reparar os faiscantes
pontos dourados como fractais em constante mutação. Sua expressão era
indecifrável, e eu imaginava que tipo de nome poderia estar à altura de
corresponder tamanha majestade.
Eu já tinha ouvido falar do povo feérico, tal como do povo pequenino.
Mas o que estava à minha volta naquele momento superava qualquer
descrição que me foi sussurrada através do tempo. E imaginei se eles já
tinham ouvido falar do meu pequeno reino exilado e amaldiçoado há tantos
anos. Glorioso. A palavra me roubava um sorriso de tristeza. De esperança.
Eu esperava que ela não pudesse perceber a mentira intrincada, mesmo
quando cada instinto em mim tinha certeza do contrário.
— Eu, Peribelle III, em nome do Império de Ellioras, gostaria de
saudar os inusitados viajantes — declarou a imperatriz no idioma comum
com um satisfeito sorriso no rosto.
Percebi que Dax e Zoey fizeram uma menção de se levantar, mas,
sentindo o tom da imperatriz, fiz um gesto sutil com os dedos para se
manterem ajoelhados.
— Mas as circunstâncias em que tivemos o prazer de nos encontrar,
Majestade, não são as mais indicadas para começarmos uma amizade entre
nossos territórios. — O prazer na sua voz tinha um indubitável tom de
cinismo.
Respirei fundo para não fechar as mãos em punhos e ignorei as batidas
no meu peito acelerando a cada palavra.
— Eu lhe garanto que é de meu maior interesse corrigir qualquer
indisposição que eu ou algum dos meus súditos possamos ter causado para
Vossa Majestade Imperial. — Eu deveria ter contido minha língua. Não
consegui. — Mas não posso imaginar o que fizemos durante nosso sono que
justifique uma recepção tão imediata e hostil.
— Sugiro que guarde sua insolência, Majestade. Ou é comum em seu
glorioso reino Montecorp que forasteiros atravessem suas fronteiras,
profanem suas terras e ainda assim sejam recebidos de braços abertos? —
Um riso de escárnio. — Não me surpreenderia se esse fosse o protocolo.
Justificaria os anos que escolheram definhar entre guerras e pragas.
Então ela sabia sobre nossa história. É claro, nenhuma criatura
mágica se aproximava do meu castelo há muitos anos. Elas se afastaram por
vontade própria. Encarei o chão plácido e vi no meu rosto o reflexo da
minha própria história. Uma inegável balbúrdia.
— Preciso dizer que lhe invejo, Peribelle, se em seu tempo como
imperatriz, o que ousaria dizer que ultrapassa exponencialmente o meu
tempo de vida, Vossa Majestade jamais se encontrou em uma situação em
que teve que arcar com o peso da decisão de seus antepassados. Pois o meu
reinado infelizmente não foi construído em decisões, mas em
consequências. — Eu não queria desabafar, mas não tinha por que fingir
uma pose de superioridade quando eu claramente estava atolada de
problemas até o pescoço. Ainda assim, a imperatriz inclinou a cabeça.
Minha resposta não era o que ela esperava.
— Cara Lunara, me inveje então por já ter passado por exatamente a
mesma situação que descreveu e por ter a dignidade de não me colocar no
papel de vítima, assim como está fazendo agora. — O sorriso em seus
lábios perfeitos era ácido. — Mas como acredito que a experiência de fato
influa nas suas ações, darei uma chance para explicar por que profanaram
meu território.
Lembrei-me subitamente de todas as frutas e cogumelos que colhemos
nos últimos dias. Será que arrancamos algo precioso para o Império de
Ellioras? Será que ela pensou que eu desejava invadir e conquistar seu
território? Guerras já haviam começado por tão menos. Eu precisava deixar
tudo o mais explicado possível.
Nosso encontro com o Unicórnio foi um feliz acaso, mas havia chance
de ele ter acabado em mais sangue. Não imaginávamos que tocá-lo poderia
causar tamanho desequilíbrio.
Percebi que ela queria saber não por que pretendia oferecer
compreensão e misericórdia, mas porque estava curiosa. Disso eu entendia,
e uma pontada em mim disse que poderia gostar da besta maravilhosa e
arrogante que estava perante meus olhos. Desatei o laço da minha capa
junto ao meu pescoço e deixei que caísse no chão. Queria ter fotografado a
sua expressão de espanto ao ver a pedra do fogo.
Contei a ela então tudo que havia vivido até aqui. A forma como Caleb
derrotou Bólius, minha coroação como a Rainha da Paz e o momento que
fez com que Montecorp adentrasse a Era do Espectro. Não falei da minha
vida em outra dimensão. Pensar em me permitir lembrar dos meus pais, das
minhas amigas ou de Blaze era uma tristeza forte demais, tanto que decidi
trancá-los em meu coração só para mim. Eu prometia para mim mesma que
teria um momento para falar deles, nem que fosse para transformá-los em
histórias ou lendas, mas não agora. A verdade é que eu permaneceria
adiando o quanto pudesse.
Falei que meu reino estivera definhando graças ao meu
desaparecimento. Contei da minha tentativa de assassinato e de como um
encontro com um unicórnio salvou meu corpo e meu espírito. Mostrei a
marca da ferida, que agora possuía um estranho brilho graças ao chifre
mágico que me curou. Expliquei tudo sobre como Dax e Zoey eram leais e
fiéis companheiros e amigos.
Mas, principalmente, falei sobre a pedra do fogo. Como ela esteve
comigo desde o princípio e como meu coração se partia um pouco desde
que ela parou em minhas mãos. Eu precisava devolvê-la para Cinaéd e
depois lidaria com o resto. O mais importante era consertar o erro dos meus
antepassados, se eu quisesse ter uma chance de reinar sobre meus próprios
comandos. Enfatizei o quanto era necessário que Noite permanecesse ilesa e
que eu gostaria muito de me reencontrar com ela, para que eu e meus
amigos pudéssemos partir pacificamente de volta para nossa jornada.
Peribelle ouviu cada palavra, e podia jurar que estava entretida. Que
finalmente estava ganhando sua simpatia. Ou ao menos sua empatia.
Pelos Deuses, eu estava enganada.
— Sua jornada de fato é fantástica, Lunara Alexandria Montecorp,
Rainha da Paz. O artefato que possui é um dos mais valiosos que existem.
Eu mesma arrancaria sua cabeça se eu estivesse disposta a arranjar
problemas para meu Império. Eu garanto que nenhum mal virá à sua égua.
Não somos bárbaros, como em seu mundo. As criaturas da natureza sempre
são bem-vindas aqui. Eu gostaria de lhe desejar boa viagem, mas ainda
temos a questão de que entraram no meu território sem um convite. Vocês
não têm como nos deixar. Estão presos aqui.
— Majestade, eu lhe imploro que nos liberte. Após cumprir minha
missão, eu seria sua prisioneira de bom grado, mas deve entender a
gravidade da situação e a urgência em restaurar o equilíbrio.
— O que você deve entender é que não sou eu quem estou prendendo
vocês. Trouxeram essa sina para si mesmos, ao comer, beber e se fartar nas
terras do meu Império, dispondo de convite ou conhecimento algum. Uma
vez que alguém entra aqui, jamais pode sair. Não sem deixar algo em troca
— explicou a imperatriz sem emoção na voz.
— E não há nada que possa fazer? — insisti. Estava prestes a fazer
algo estúpido, podia sentir um nó se formando em minha garganta.
— Não há nada que eu queira fazer. — Ela sorriu. A desgraçada abriu
um belíssimo sorriso em nossa direção, e senti minha cautela se partir.
— Eu se eu a desafiasse para um duelo?
Arrependi-me das palavras assim que as ouvi em voz alta. Tarde
demais.
Ouvi Dax começando a falar meu nome, mas o silenciei com um olhar.
Não me atrevi a ver a expressão de Zoey.
— Seria a primeira diversão em séculos. — Flocos de luz dançavam
hipnoticamente em seus olhos.
— Ao amanhecer?
Não saberia dizer de onde tirei forças para manter a voz estável. Se me
perguntassem, eu diria que foi fruto de pura coragem. Mas eu sabia que eu
fui movida pelo desespero, e não por estratégia e cautela. Não seria a
primeira vez.
Com um gesto da imperatriz, seus guardas truculentos nos buscaram e
arrastaram para uma cela. Eu gritei algo que sabia que Zoey e Dax não
poderiam compreender, como um desafio e uma súplica. Pude jurar ouvir
uma risada se dissipando conforme passávamos pelos corredores.
Capítulo 39

— Você tem um desejo de morte. É a única explicação plausível.


Dax mal esperou os guardas fazerem a curva no corredor para falar.
— Você não acha que situações absurdas pedem soluções criativas? —
provoquei com o que restava de humor em mim.
— Criativas, sim. Mas não imbecis, Lunara!
— Então, por favor, ilumine minhas decisões idiotas com sua vasta
sabedoria e nos tire daqui antes do amanhecer.
Quase chorei de alegria quando vi que tínhamos água e uma refeição
esperando por nós, mesmo que fria. Não podia dizer se era graças à minha
ascendência, por bondade ou piedade, mas senti cada parte da minha boca e
garganta se alegrar enquanto bebia. Zoey estava estranhamente quieta ao se
alimentar. Não sabia dizer se estava catatônica ou apenas assustada. De
qualquer forma, a reação dela era a única coisa que fazia sentido nas
últimas horas. Dax mal tomou um gole de água, preferindo andar em
círculos pela sala. Pensei que o buraco que ele formaria com os próprios
passos talvez fosse nossa forma de escapar. Não pude conter um riso baixo.
— E só para constar, eu chamei sua decisão de imbecil, não de idiota
— murmurou Dax.
— Não faz diferença. — Dei de ombros.
— Na verdade, faz. Uma alega um comportamento desprovido de
razão, e a outra fala sobre falta de conhecimento.
— Eu sei, Dax! Mas, sinceramente, olha em volta. — Eu gesticulei ao
redor da cela cinzenta e úmida. — Você acha que estamos em um momento
ideal para discutir semântica?
— Infelizmente, como ninguém nunca está disposto a discutir
semântica, imagino que seja um momento tão bom como qualquer outro.
Ele sorriu. Ou tentou. Os três estávamos tentando, à nossa maneira,
pensar que não estávamos a poucas horas de distância do nosso fim.
— Seu senso de humor precisa ser estudado — disse e sentei-me ao
lado de Zoey. Levantei seu rosto e procurei pela luz que sempre tinha,
mesmo nos momentos improváveis.
Felizmente estava ali, mas ela encarou o teto como se pudesse ver algo
que era desconhecido para nós.
— Talvez o nível de compreensão das pessoas precise ser estudado, e
não eu. — Dito isso, Dax sentou-se ao meu lado e virei-me em sua direção.
Seus olhos estavam sérios e senti enquanto fitava cada traço meu. — Luna,
minha querida Vossa Majestade — meus olhos arregalaram no querida —,
vamos repassar o que acabou de acontecer, ok?
— Para mim, está bastante claro o que aconteceu, mas vá em frente.
— É que você não parece entender a gravidade da situação. Mesmo
que esteja na linha de frente para morrer. Vamos recapitular: Você desafiou
uma imperatriz feérica, possivelmente milenar, para um duelo debaixo do
teto dela. Ainda que haja qualquer oportunidade de vencer, acha de verdade
que conseguiríamos deixar esse lugar sem retaliação? — Ele passava as
mãos pelo cabelo como se ajudasse a pôr as ideias no lugar. — Eu acredito
que o mais sensato seja você implorar por misericórdia. Oferecer parte do
território de Montecorp para ela governar. Impérios são feitos de novas
conquistas, e bem ou mal você ainda possui o domínio sobre seu reino.
Mesmo que alguém tenha atentado contra sua vida dias atrás. — Ele parou
por um segundo antes de continuar. — Aliás, algum motivo em particular
para tanta gente assim querer te matar?
Eu levantei a sobrancelha para ele e, com um meio sorriso, desviei o
olhar para a pedra do fogo.
— Desde que coloquei essa joia no pescoço, tudo o que eu tenho feito
é perder a vida que conquisto — suspirei. — Sinceramente, Peribelle não
pode matar algo que já morreu.
— Mas pode ferir — instigou Dax.
— Eu sei — repliquei.
— De um modo terrível e incrivelmente doloroso — insistiu.
— Aham.
— E te fazer acreditar que não existe nenhuma outra sensação possível
no universo além de agonia e desespero.
— Estou a par da situação.
— Por todos os Deuses! Será que vocês podem parar de falar por um
segundo? — a voz de Zoey irrompeu em um tom esganiçado e autoritário.
Gostei ainda mais dela assim. Quando percebi, eu e Dax estávamos em
silêncio, o que ela recebeu com uma expressão satisfeita.
— Você não deveria estar a par, Luna, pois essa é uma situação ímpar.
Você nunquinha, em momento algum da sua vida imaginou que estaria aqui,
certo? — Assenti. — E posso presumir também que jamais e em hipótese
nenhuma pensou que enfrentaria um ser milenar em um duelo.
— Bom, eu tive um determinado embate com Bólius.
— Não foi um duelo — ela praticamente soletrou cada sílaba, então
devia estar mais irritada do que se permitiu demonstrar.
— Verdade, meu pai estava lá. Havia outros cavaleiros junto à
princesa. Mas quando o dragão sucumbiu, eles estavam a sós — Dax
apontou como se tivesse ouvido essa história dezenas de vezes. Todos nós
ouvimos, cada um de uma fonte. Eu através das minhas memórias. Dax da
boca do próprio pai, possivelmente em encontros familiares, e Zoey com a
sabedoria da cidade que era passada de um para outro, sempre com mais
pontos e vírgulas.
— Isso sim é um duelo, obrigada pelo exemplo esclarecedor, Dax.
Ele sorriu, vendo finalmente a acidez que vivia na jovem mais doce
que havíamos conhecido.
— Eu entendo que a situação é singular, Zoey. Eu sei que estou há
anos sem pegar em uma espada e que provavelmente implorar por
misericórdia é o caminho menos doloroso. Mas se você tiver alguma
sugestão, por favor, fale.
— Aí é que você está se sabotando, Luna. Até o fungo daquela pedra
sabe que não pode derrotar Peribelle com a força bruta! Na verdade, não
duvido nada que eles sejam uma versão em miniatura dos soldados dela...
Mas o ponto é que você está se esquecendo do recurso mais precioso que
possui. O mesmo que fez sua vida reiniciar tantas e tantas vezes. — Eu
sabia para onde ela estava indo antes mesmo de terminar o pensamento. E
pelo brilho de Argrinis, ela estava certa. Minha mão correu para o rubi
rubro e morno junto ao meu peito. Zoey, percebendo o movimento, pegou
nos meus dedos com gentileza e os colocou sobre meu coração. — Você
não precisa de uma pedra para acessar a magia que mora aqui. — Ela
pressionou sua mão para enfatizar. — Você é a herdeira da Deusa do Céu e
da Terra. Mas age como se esquecesse desse detalhe, ou como se ele não
importasse. — Ela estava basicamente rindo agora, mas não de alegria. — E
nesse meio tempo, faz questão de relembrar de tudo aquilo que te
enfraquece ou te machuca. Não vou mentir, isso me faz pensar às vezes que
você age ainda como uma princesa, e não uma rainha. — Essa frase doeu
como se um espinho fosse puxado do meu coração. — Mas independente
disso, não consigo pensar em pessoa mais digna da coroa do que você.
Dax pegou na mão que eu apoiava no chão sem se importar se estava
suja e a segurou firme, olhando para mim e para nossa amiga.
— Zoey está certa. — Ele a encarou especificamente antes de voltar
para mim. — Não pretendo repetir isso tão cedo, ok? Você tem a benção da
Sagrada Deusa de Prata. E querendo ou não, é portadora da pedra de fogo.
Seu poder pode ser equiparado ao da imperatriz.
— Estamos nos esquecendo de que não tenho treinamento mágico ou
experiência.
— Vamos torcer então para que tenha sorte de principiante.
Capítulo 40

Zoey insistiu que eu deveria descansar o quanto pudesse e pediu que


me deitasse no seu colo. Dax parecia lidar com suas aflições de forma
independente, então ficou recluso em outro canto da cela. Não era possível
ver o céu e dizer se o amanhecer estava próximo, o que fazia cada instante
parecer infinito e efêmero. Meu coração quase não podia suportar a
incerteza, e percebi que não havia por que mentir para mim mesma e dizer
que ia ficar tudo bem.
Eu não fazia ideia do que aconteceria. Talvez aceitar isso fosse mais
reconfortante do que qualquer pensamento otimista ou pessimista demais.
Zoey perguntou se poderia fazer algo para ajudar, então pedi que cantasse
alguma música. Consegui fechar os olhos e pensar somente na melodia
doce que entrava em meus ouvidos, mesmo que acompanhada pelo silêncio
árduo da prisão nos intervalos dos versos. Senti uma lágrima quente
escorrer pelo meu rosto. Não por tristeza ou desespero, mas pelo contraste
de experimentar algo tão sublime em circunstâncias tão miseráveis.
Parecia que a história se repetia todo o tempo. Foi assim quando
encontramos o unicórnio, nos deparando com sua imponência fatal e sua
bondade mágica. E também todas as vezes em que tocava meu colar
naquela estranha dimensão, sempre me sentindo à parte de tudo que me
cercava. Exceto quando estava com Blaze. Lembro que ele me disse que
algo em mim o fazia se lembrar de casa... E estar com ele me fazia sentir
completa, de alguma forma. Senti que contraí o rosto inteiro para suprimir o
vazio que queria implodir. Ainda não era o momento para pensar nisso, meu
coração precisava entender. Para o bem de todos nós.
Senti os dedos de Zoey passarem pelos fios emaranhados do meu
cabelo. Pelos Deuses, se sobrevivêssemos eu passaria as próximas horas da
minha vida em uma banheira totalmente coberta de bolhas de sabão. Voltei
a pensar na música que me embalava e imaginei que estava flutuando pelas
notas, como se estivesse a bordo de um cometa. De repente, era como se o
mundo irrompesse em cores que nunca havia imaginado. Tinha essa mesma
impressão quando entrava na sala de Amon, quando sabia que as
maravilhas do infinito estavam a poucos passos de distância.
Uma sensação que parecia advir do mesmo lugar, mas como a outra
face de uma moeda, eu experimentei quando conheci Madame Sienna.
Acho que nunca me senti tão intimidada quanto no dia em que tive a
completa certeza de que tudo que vivia era uma grande ilusão. Sienna era
sábia, mas “complacente” não estava entre suas qualidades. Ela não
permitiu que eu voltasse. Eu tinha uma barganha que precisava cumprir, um
único propósito para estar aqui. Devolver a pedra do fogo. Ok, eu faria isso
de bom grado se conseguisse sair do Império de Ellioras. Que Zoey não me
escutasse, mas como rainha eu era uma excelente mensageira. Pulando de
batalha em batalha, vida em vida e dimensão em dimensão, a fim de gastar
minha energia para fazer qualquer coisa, menos algo que eu realmente
julgasse necessário.
Por outro lado, eu finalmente estaria livre depois disso tudo. Poderia
liberar as fronteiras de Montecorp, punir aqueles que me queriam
assassinada e reconquistar meu povo. Ou então poderia declinar a coroa e
viajar o mundo. Esse plano fez borboletas voarem na minha barriga, mas
sorri mesmo assim. Como estava foragida, muitos provavelmente
assumiriam que eu estava morta. Percebi que Zoey já estava de olhos
fechados, sua melodia não mais que um murmúrio agora. Ela jamais
concordaria com isso. Dax provavelmente também não. Mas se ela sonhava
em conhecer o mundo, e se Dax também não se encaixava na corte, como
poderiam esperar diferente de mim?
Pensei se a liberdade não era por si própria um tipo de magia. O rubi
que permanecia morno e reluzente em meu pescoço não parecia tentar ser
mágico. Era o mesmo que dizer que ele era vermelho. Não havia nada que a
pedra fizesse para ser qualquer coisa além do que era.
E quanto a mim... Eu fazia várias coisas para tentar ser da realeza.
Desde estratégias de guerras, reuniões diplomáticas, reverências, discursos
com palavras que me foram ensinadas na entonação correta, protocolos sem
fim para situações que nem começaram.
Os momentos em que fui mais feliz foram justamente aqueles que eu
não sabia exatamente o que fazer. Os momentos sozinha sob o Carvalho de
Prata, a queda no lago com Olívia e Íris em uma vida tão, tão distante. O
primeiro beijo que Blaze encontrou em mim. Até mesmo o café da manhã
ocasional com Ophelia e Lila. O dia que esbarrei com Dax, banhada pelas
cores do vitral. Até mesmo o encontro com o unicórnio, onde meu único
guia foi o meu coração.
Não é como se eu não soubesse o que deveria fazer. Nunca me foi
ensinado. De repente, entendi que a magia deve ser percebida para ser
liberada. Não é algo que pode ser aprendido, como a alquimia, que dobrava
o conhecimento e forças do mundo à sua vontade.
Para conjurar a magia que corria nas linhas invisíveis deste mundo, eu
precisava estar em sintonia com ela. Pela primeira vez em todas as minhas
vidas, eu soube o que fazer.
Capítulo 41

Senti o corpo pesar assim que um guarda destrancou a porta de nossa


cela. Não havia fechaduras convencionais, mas algum tipo de relevo em um
de seus vários galhos encaixava com a mesma madeira da porta.
Sem hesitar, levantei-me do colo de Zoey, que estava com a cabeça
apoiada na parede e a boca entreaberta. Estendi a mão para ela, que
esfregou os olhos ao perceber os barulhos e a movimentação. No canto da
cela, Dax também apoiava o joelho no chão para ficar de pé. Permanecemos
em silêncio, mas nenhum de nós curvou a cabeça. Por estar em uma cela,
não esperava receber um tratamento digno, mas eu acreditava que
oponentes deveriam ser tratados com dignidade.
Um duelo só poderia ter uma vitória justa se ambos os participantes
compartilhassem das mesmas condições. Eu gritei que deveríamos ser
tratados como convidados do Império de Ellioras até que a disputa fosse
finalizada. Não esperava que ela atendesse minha súplica. O amanhecer
deveria estar a pouco mais de uma hora de distância, então não poderíamos
desfrutar de muitas regalias.
Caminhamos pelos corredores da prisão, raízes luminescentes
acendendo conforme os gigantescos soldados passavam por elas. De
alguma forma, eles se comunicavam. Não conseguia entender se era um
comando consciente ou uma resposta involuntária. Subimos escadas e
cruzamos alguns túneis rústicos e intrincados o bastante para me fazer
acreditar que estávamos dentro da raiz de alguma árvore maior do que tudo
que poderia imaginar. Fomos levados até uma escada em espiral e subimos
por incontáveis minutos.
Minhas pernas já estavam doloridas devido ao cansaço e à fome. Não
quis estender o pensamento para quanto isso poderia me atrapalhar.
Finalmente, chegamos a um corredor de alabastro semelhante ao que vi na
sala do trono. Delicadas heras circundavam as pilastras, como se a
abraçassem. Algumas flores douradas estavam dispostas por todo o
corredor, mantendo a luminosidade no local suave e... encantadora. Só
precisei de um olhar para Zoey e soube que, para variar, ela estava
deslumbrada. E certamente Dax estava catalogando tudo mentalmente,
pensando nas possibilidades de como usá-las em experimentos e invenções.
Virei-me para ele e encontrei a curiosidade de seus olhos, não no cenário ao
nosso redor, mas fixos em mim. Congelei por um segundo, como sempre
senti que paralisava quando ele me analisava dessa forma. Como se
quisesse saber do que eu era feita por dentro. Senti meu rosto aquecer com
o pensamento e voltei a atenção quando finalmente paramos.
Uma figura pequena, esguia e adorável aguardava inquieta junto a uma
bela porta cravejada em mármore. Sua pele era marrom como bronze, e a
luz amarelada que advinha das flores mantinha seu brilho metálico. Os
olhos verde-escuros estavam entediados a princípio, mas assim que
percebeu que estávamos ali, se arregalaram, junto a um sorriso que parecia
ocupar todo seu rosto. Seu cabelo curto pendia em cachinhos pretos por
toda a parte, certamente para não enroscar nas asas esverdeadas que
despontavam de suas costas.
— Oh, aí estão vocês. Atrasados! O amanhecer não espera, e eu
também não gosto de esperar. Espero que saibam disso numa próxima vez.
— Sua mão estava apoiada no quadril e sua voz aguda falava o idioma
comum com um pesado sotaque. O que eu chamava de comum, pelo menos.
Aparentemente era uma língua exótica, a julgar pela forma que o R soava,
como se tivesse sido triturado.
Eu duvido que haverá um próximo duelo. Independentemente se eu
vencer esse ou não. Desafiar uma imortal é o tipo de surto de
irresponsabilidade que eu só gostaria de fazer uma vez na vida. Mas ainda
assim, comecei a murmurar um pedido de desculpas, que ela imediatamente
interrompeu encostando o dedo na minha boca. A fada se deslocava tão
rápido que era difícil acompanhar seus movimentos. Logo ela estava acima
de nós, encarando os gigantes frente a frente. Não parecia se intimidar pelo
seu tamanho ou constituição. Ela desatou a falar algo incompreensível, mas
que percebi ser a mesma língua dos seres feito de árvore e fungos.
Sem tempo a perder, ela abriu a porta de mármore com algum esforço.
Era pesada para sua pequena estrutura, percebi. Ela não parecia se
considerar frágil, independente disso. Entramos em uma sala totalmente
vazia, apenas com um lustre de cristais pendendo do alto teto e uma sacada
que ilustrava o céu noturno adiante começando a se preparar para o nascer
do sol. Inquieto, de alguma forma.
— Meu nome é Ivy Lux, e tenho exatamente pouquíssimo tempo para
deixá-los com uma aparência digna da poderosa Imperatriz Peribelle III. —
Ela falava tão rápido que era difícil acompanhar. — Vocês podem reparar
que as portas possuem uma placa de identificação para cada um de vocês,
oh, ilustres convidados do Império de Ellioras.
Percebi que esse era um discurso que ela deveria repetir com
frequência. Possivelmente em mais idiomas do que eu poderia conhecer, a
dizer pela alegria irritada em seus lábios e o tédio em seus olhos. Procurei a
identificação nas portas e reparei em delicadas placas com o desenho de
uma coroa em uma, algo que parecia ser um cabelo cacheado na segunda e
dois triângulos transpassados na última. Como eles notaram o símbolo que
vinha na fivela de Dax, eu não sabia.
— Vocês encontrarão em cada aposento uma câmara de banho e uma
muda de roupa que foi gentilmente fornecida por Sua Vossa Majestade
Imperial. Peço que se sintam à vontade, mas não demais, pois a única coisa
que não posso lhes oferecer é mais tempo, como já esclareci no princípio.
Alguma dúvida? — Antes que qualquer um de nós fizesse um som, ela
continuou. — Ótimo.
Ivy Lux movimentou as mãos com agilidade. Sem questionar, abrimos
cada um sua respectiva porta pesada. Virei-me e murmurei um
agradecimento antes de me fechar no belíssimo quarto.
Encontrei em tons terrosos e esverdeados um quarto digno da realeza.
Lembrava o meu em termos de disposição dos móveis, mas em vez das
lamparinas de fogo criadas pelos nossos alquimistas, ali tinha aquela
maravilha luminescente.
Em uma pequena mesa, vi um jarro de água fresca, um prato repleto de
frutas, pão e mel. Não sabia quando seria minha próxima refeição e mal me
lembrava da última vez que comi decentemente. Eu poderia enfrentar
Peribelle suja, mas não de estômago vazio. Lavei rapidamente as mãos,
envergonhada do quanto a água ficou turva em seguida e comi o máximo
que pude o mais rápido que consegui. Eu sabia que não deveria provar dos
alimentos feéricos, com o risco de ficar presa ali para sempre. Mas não era
justamente para isso que eu estava ali?
Foi incrivelmente difícil mastigar cada morango de um tom impossível
de vermelho que reluzia até a meia luz e os engolir como se não fosse nada.
O sabor era incrível, adocicado e levemente ácido. Provei do pão, que
desmanchava como uma nuvem na minha boca, e tomei do mel. Peribelle
era de fato gentil ao oferecer uma última refeição tão boa. Eu ri para
disfarçar de mim mesma o desespero. Logo me despi e corri para a
banheira. Surpreendi-me com a água morna que envolveu minha pele. Eu
poderia alegremente ficar ali para sempre. Tudo naquele lugar era tão
deslumbrante que comecei a questionar por que eu queria sair dali. Usei o
sabonete que estava à minha disposição com um doce aroma de laranja e
fiquei perfeitamente limpa. Ou o mais limpa que é possível com uma fada
contando os segundos do lado de fora e o amanhecer insistindo em chegar
cada vez mais depressa.
Sobre a cama estava um vestido com mangas longas e fluidas em um
tom profundamente rubro. Vários detalhes prateados contornavam as bordas
da manga, no colo e na saia. Deixei a toalha cair no chão e deslizei o tecido
sedoso por meu corpo. No espelho de ferro que ficava ao lado da janela, vi
que o céu já estava perdendo seu breu. Encarei meu reflexo. Os cabelos
molhados destoavam do que via ali, então busquei a toalha para secá-los da
melhor forma possível com o tempo quase inexistente que tinha.
A comida deveria ter algum componente mágico além do sabor
indescritível, pois não estava mais com os círculos roxos em volta dos olhos
ou com a aparência abatida pela doença e dias de viagem.
Agora o tom do vestido. Era certamente uma indireta de Peribelle. Ali
eu estava como a rainha do fogo, e não da lua. O tecido e a pedra eram
exatamente do mesmo tom. Seria isso uma piada de mau gosto ou um
desafio para usar o poder que não me pertencia?
Talvez fosse um convite.
Ouvi um clic atrás de mim e dei um pulo para trás ao avistar Dax. Ele
estava em uma belíssima túnica preta, os cabelos ainda molhados e um
lenço mais escuro que a noite em volta de seu pescoço.
— Não percebi que nossos quartos eram conectados. — Foi tudo que
consegui dizer. Uma frase idiota, porém, verdadeira.
— Recomendo você aguçar sua percepção a partir de agora. E rápido.
— Acho que não preciso de mais um me apressando. — Olhei para a
porta, tentando imitar os gestos de Ivy e falhando na velocidade.
— Mas acho que precisa de mais um lhe desejando sorte. — Dax
encurtou a distância entre nós. Mais um passo e eu poderia abraçá-lo,
poderia... — Na próxima vez, marque seu acerto de contas ao anoitecer. Eu
detesto acordar cedo.
— Por que as pessoas falam como eu estivesse disposta a repetir essa
experiência?
— Talvez seja porque você exala sua essência cataclísmica por onde
passa.
— Isso deveria ser um elogio encorajador?
— Definitivamente não foi uma ofensa.
Revirei os olhos e caminhei em direção à porta. Não tinha por que
esperar. Meu coração se contraía a cada segundo em ansiedade. Dax me
puxou pelo braço antes que pudesse abrir a porta.
— Você está absolutamente maravilhosa. Isso é um elogio claro o
suficiente para você?
Há chances de eu ter corado ao ponto de ter mesclado com o vestido
que usava. Sem saber como responder, tirei do peito algo que estava me
tirando o foco.
— Ela me vestiu com as cores de Cinaéd. Peribelle insiste em não me
reconhecer por quem eu sou — sussurrei.
— Discordo. Ela te reconhece por quem você é. Neste momento, você
é quem a história fez você se tornar.
Eu não tinha pensado assim, mas ele estava certo. Para variar.
— O amanhecer vai irromper em breve — disse. Eu precisava dizer
que estava com medo. Desnorteada. Apavorada. Mas que bem isso poderia
trazer? Senti meu peito começar a afundar na areia movediça que eu me
transformava toda vez que eu via uma encruzilhada na minha vida. Pouco
sei sobre linhas retas.
— E por um segundo, absolutamente tudo se cobrirá de vermelho.
Então me parece que você já começou com uma vantagem. — Dax piscou e
foi o suficiente para jogar meus braços em volta dele. Ele não hesitou em
me abraçar de volta. Um agradecimento. Uma despedida. Uma chance
única de estar perto de alguém que adorava se esquivar. — Ei, Luna?
— Humm? — murmurei em resposta, ainda com o rosto no seu
pescoço, sentido as notas de erva-doce que vinham de sua pele.
— Peribelle pode ser imortal, mas duvido que tenha metade da sua
coragem.
— Inconsequência — corrigi.
— Estou tentando te elogiar de algum jeito que você assimile.
Rindo, desprendi-me do abraço e finalmente forcei a suntuosa porta
para abri-la.
— Você está muito bonito também, Dax.
E saímos em direção ao primeiro dia de muitos. Ou o último de todos.
Capítulo 42

Meu coração pesava como uma âncora junto a cada passo certo que
me levava até o futuro imediato e inevitável. A entrada da arena me
aguardava pacientemente conforme surgia no meu horizonte. Criaturas
aladas fascinantes nos levaram em poucos instantes até o topo de uma
montanha, não tão longe do palácio. Gostaria de ter mais tempo para
identificar o que eram. Adoraria ter clareza mental o suficiente para
apreciar a vista deslumbrante que tomava perspectiva conforme subíamos
em direção às estrelas ainda presentes no céu. A noite estava em seus
últimos suspiros.
Reparei que não estávamos sozinhos. Além de Dax e Zoey,
aparentemente todos os habitantes do Império de Ellioras estavam ali para
nos assistir. Em especial uma bela fêmea com longos cabelos que refletiam
os tons de rosa e violeta. Um belo par de chifres encaracolava de suas
têmporas, mas ela mantinha a doçura no olhar, desviando entre mim e a
multidão. Lembro que Peribelle debochou do meu desafio, chamando-o de
diversão. Que bom que alguém ali estava se divertindo, porque eu
certamente não estava. E é claro que teríamos audiência mesmo beirando as
nuvens... Quase todos que vi ali tinham asas. Enquanto eu... Bom, eu tinha
minha “natural essência cataclísmica”.
Deveria servir para alguma coisa agora.
Um gigantesco círculo estava desenhado na extensão do topo da
montanha, como uma mandala em um rico tom de ouro em contraste com o
chão de terra. Só de me aproximar da beirada, pude sentir uma energia
peculiar que poucas vezes havia experimentado na vida. Penso que parte
dela veio de todos os olhares que estavam sobre mim. Imaginei que de
longe eu pudesse parecer um ponto metálico de sangue.
Olhei para Dax e Zoey. Senti-me em paz. Não importava o que
pudesse acontecer comigo, eu já estava determinada a barganhar o que fosse
preciso pela liberdade deles. Soprei um beijo na direção deles, e o olhar de
tensão e esperança que retribuíram me atingiu como uma flecha.
Há tempos que eu não me sentia tão à vontade com outras pessoas.
Especialmente em situações que eram absolutamente desconfortáveis. Era o
tipo de ironia cósmica que me fazia sorrir, já que depois de viver duas ou
três delas, começam a soar como aquele velho amigo implicante que você
não sabe viver sem.
Meus amigos me acompanharam nessa jornada porque quiseram. Não
porque, assim como meu exército, eram obrigados.
Um vento estrondoso subiu a poeira nos meus olhos e um bater de asas
cortou os céus e pousou no centro da arena. A multidão se calou, apenas o
farfalhar de asas e o vento podiam ser ouvidos. Peribelle estava
deslumbrante em um traje azul claro como o próprio céu estaria em pouco
tempo. O contraste de cores entre sua pele marrom e seu vestido me fazia
pensar se ela mesma não era algum tipo de ironia que eu adoraria
compreender.
Mas conhecendo minha posição neste lugar, permaneci calada
enquanto a espera me corroía de dentro para fora. Ela podia ganhar o duelo
apenas por instalar essa tensão. Mas não deixei transparecer, ou fiz o
melhor que pude para evitar, alongando meus ombros e mantendo a cabeça
erguida, tal como se minha coroa estivesse ali. Eu já havia ficado frente a
frente com um dragão. Peribelle certamente parecia mais razoável, mas não
menos intimidadora.
— O amanhecer anuncia sua chegada e saúda os filhos da noite! —
bradou a imperatriz.
Gritos e assobios em coro arrepiaram minha espinha. Ter uma plateia
torcendo pelo meu fracasso de alguma forma tornava minha missão ainda
mais difícil.
— Assim que o sol irromper no horizonte, o duelo terá início. —
Agora sabia que ela estava falando diretamente comigo, pela forma que seu
rosto se inclinou na minha direção. — Vossa Majestade Lunara Alexandria
Montecorp pediu pela travessia dela e de seus súditos. Tal ousadia se deu
após entrarem e usufruírem de nossas terras sem um convite. Todos os
presentes serão testemunhas se tal concessão é digna da Rainha da Era do
Espectro.
Suas palavras teriam me machucado em outra ocasião, mas agora eu já
sabia o que era dor. Perda. Exoneração. Já havia enfrentado deuses e
dragões e não iria me abater pelas indiretas de uma perua que nada sabia
sobre mim ou minha história.
Ela me vestiu com as cores do fogo, e pude sentir meu colar – o colar
de Cinaéd – pedindo para ser usado. Uma energia tencionava ali,
implorando por alívio.
Eu nada disse quando ela me passou a palavra. Mantive o olhar fixo no
horizonte, aguardando o amanhecer selar mais uma encruzilhada no meu
destino. Nuvens perfeitas pareciam se juntar na beira da montanha,
disfarçando o precipício. Elas agora eram coloridas em um tom violeta.
Despedi-me das estrelas na esperança de vê-las em algumas horas e me
ajoelhei.
Pude ouvir o silvo de Dax, certamente pensando que eu imploraria por
misericórdia e entregaria meu reino. E sim, esse era um ótimo jeito de tentar
me libertar deste duelo, mas não sentia no meu coração que era certo
entregar Montecorp para uma doida alada qualquer. Eu era a rainha de
Montecorp, seja na Era da Paz ou do Espectro. Eu ainda poderia mudar esse
destino, mesmo que quisessem minha coroa. Meus inimigos já haviam
tomado minha vida, minha sanidade. O que era a coroa perto disso? Sim, eu
estava disposta a abdicar do meu trono, mas não aqui. Definitivamente não
agora.
Então segui o conselho de Zoey e agradeci por estar tão perto do céu
como jamais estive enquanto a terra se mantinha firme aos meus pés.
Ajoelhei-me perante a noite que dá lugar ao dia, um dos poucos momentos
em que a mágica flui livremente pelo mundo. O instante em que dois são
um.
Eu tinha a benção de Argrinis, e o céu e a terra, para mim, eram um só.
Uma ponte invisível que preenchia todo o espaço que temos para viver.
Dax estava certo. O mundo se cobriu de vermelho e eu era parte do
horizonte celestial como o fogo que queimava em mim. Queimava por
desespero, por esperança e por um propósito.
Pela primeira vez, essa palavra finalmente fez sentido. Mais do que
qualquer teste que eu já havia feito, mais do que qualquer regra ou
protocolo que fui forçada a seguir. Eu estava neste duelo por escolha
própria, não porque me ensinaram que era o certo a se fazer. Estava
trilhando meu próprio caminho. Mesmo que fosse uma queda livre, a
dúvida de que eu seria capaz de voar foi o bastante para me fazer saltar.
Metaforicamente.
Não pretendia cair da montanha. Pelo contrário. Pretendia movê-la.
Lembro que havia algum ditado em outra dimensão sobre elas serem
movidas pela fé. Precisava trabalhar com o conhecimento que tinha, então
dei uma chance.
Fiz uma prece silenciosa aos deuses, para que intercedessem por mim.
Peribelle flutuava enquanto movimentava suas mãos junto ao seu
peito, articulando seus dedos e suas palavras de uma forma que eu não
considerava possível. Tentei distinguir algo do que falou, mas os sons
pareciam sair dela e do ar em consonância, reverberando por toda a
montanha e fazendo o chão tremer e a multidão se eriçar.
Voltei meus pensamentos para minha prece. Busquei por minha
conexão com Argrinis, visualizei o Carvalho de Prata tal como nos dias de
glória, onde sua energia concedia longevidade e saúde para todo o meu
povo. Desejei de todo o coração a entrada da Era da Paz de volta às minhas
terras. Senti em meu coração absolutamente todos os pensamentos que
embalavam meus sonhos.
Meus pedidos pareciam desesperados e infantis. Algo impossível.
Sentia agora o chão vacilar enquanto a energia púrpura que emanava
de Peribelle começava a mudar o ambiente à nossa volta.
Pedi aos Deuses com mais ardor. Pedi que intercedessem por
Montecorp. Por meus súditos.
Não fui ouvida.
O mundo estava pintado em ouro pelo sol.
Uma cadeia de plantas começou a fechar o círculo entre nós. O som da
terra se movimentando articulava seu próprio tambor de guerra. A
imperatriz se aproximava de mim descendo uma escada de galhos e folhas
que ela invocava do chão. Eu estava no território dela. Ele respondia à sua
governante, não a mim.
Não adiantava apelar para os Deuses, eu estava perdida.
Talvez devesse parar de agir como uma acólita e me comportar como
uma rainha. Não era isso que Madame Sienna exigiu que eu fosse? Era isso
que eu representava agora, então talvez fosse justamente o que eu precisava.
Comandei a terra a se levantar em meu nome. Exigi que, como rainha
legítima, o solo deveria erguer seu poder contra Peribelle. Murmurei
palavras que vieram à minha mente, o som muito mais uma sensação nos
meus lábios. Seu significado era o meu intento, conhecido apenas por mim.
Intimei ao céu que se dobrasse à minha vontade. Clamei às nuvens que
nublassem meu horizonte, que peças de gelo afiadas pudessem agir como
armas. Ordenei ao ar que soprasse Peribelle para longe da arena.
Reivindiquei meu direito, com a certeza de que agora estava gritando,
sentindo cada palavra rasgar minha garganta enquanto a terra vacilava sobre
os meus pés, na certeza de que não respondia a mim.
Eu estava presa ali. Incapacitada. Nenhum apelo foi ouvido, e eu já
me sentia exausta. O rubi morno no meu peito, a única fonte de calor
enquanto o frio dos mortos parecia me cercar novamente.
Talvez eu estivesse usando meus poderes para me defender, mas eles
não fossem tão fortes para atacar.
Talvez não estivesse sendo um esforço tão inútil.
Talvez eu devesse continuar.
Talvez.
De que me servia essa palavra?
Eu já estava exausta para continuar, poderia me matar apenas por
esforço próprio, o que me daria mais satisfação do que perecer nas mãos de
Peribelle.
Ela parecia concentrada em seus métodos próprios para me aniquilar, e
sua figura imponente me deixava inquieta conforme o sol alaranjado
alinhava perfeitamente com suas asas.
Apertei os olhos para conter as lágrimas e o desespero. Olhei na
direção de meus amigos. Seus rostos apreensivos. Dax suplicava algo com o
olhar que eu não entendia. Zoey tentou sorrir. Eu realmente tentei retribuir.
Precisava focar na minha energia. Na minha magia. Pareceu-me uma
forma digna de me exaurir.
Já tinha ouvido falar sobre uma troca e um equilíbrio que deveria
permanecer constante. Lembrei-me então dos momentos em que o céu
iluminou o caminho de meus guerreiros ou quando a terra parecia responder
aos passos dos cavalos.
Coloquei uma palma na terra, sentindo sua textura granulada, e a outra
ergui aos céus. Novamente, pedi que respondessem ao meu chamado. Não
como uma acólita entregue aos seus ensinamentos. Nem como uma rainha
ao seu exército. Mas exatamente como Zoey me ensinou.
Os convoquei como uma amiga.
Capítulo 43

Contra todas as minhas expectativas, a terra respondeu. O céu


também, e eu sabia disso agora pela forma que todos pousavam seus olhos
em mim. Como se eu merecesse seu respeito. Certamente ganhara a atenção
da imperatriz.
Ela não percebeu que, ao me provocar me vestindo com as cores do
reino de fogo, transformou-me na própria alvorada. Nenhum dos
alquimistas de Montecorp foi capaz de explicar o que acontece durante o
amanhecer e o anoitecer. Há algo na transição dos poderes entre o sol e a
lua que potencializa a magia no mundo. Uma daquelas coisas que todos
sabemos, mas costumamos esquecer em vista de coisas menos importantes
e mais frequentes.
Apesar do Império de Ellioras conhecer o passado de Montecorp, sei
que nada assim aconteceu nos últimos séculos. Nenhum outro descendente
de Argrinis jamais pôde controlar as forças da natureza. Por isso meu avô
queria a pedra de fogo. Seu poder poderia canalizar feitiços e outros
experimentos de maneira mais prática. Isso que eu estava fazendo era
totalmente subjetivo.
Sentia no meu coração um quê de inocência serpenteando como luz e
estrelas. Vi o estranho brilho fluindo pela ponta de meus dedos conforme
heras subiam ao meu redor como uma moldura. Peribelle repetiu o
movimento, e uma trança verde luminescente a elevou. Seu vestido a
misturava com o céu agora. Podia ver no seu rosto um curioso sorriso de
satisfação enquanto ela invocava seu poder. A terra respondia seu chamado
como se fossem uma só, e do alto do céu ela desceu pela escada que criou
diante dos olhos de todos. Como se brincasse.
Concentrei-me novamente no arabesco natural que se desenhava ao
meu redor. Como isso me ajudaria a vencer? Não parecia ser a questão mais
importante agora. Era um poder tão puro que me pareceu uma violência
grande demais pedir que fosse usado contra alguém. Então pedi que me
protegesse. E da mesma forma que amigos não pedem permissão para
ajudar o outro, uma barreira de espinhos cresceu logo antes da imperatriz
colocar seus pés no chão. Ela poderia ter só voado até mim, mas claramente
ela não perdia uma chance de dar um show.
Eu não podia vê-la, mas sei que Peribelle tentou transpassar a barreira.
Ela não conseguiu.
Estava funcionando. Não sabia exatamente o quê, mas podia pensar
nisso depois. Eu tinha uma longa lista de questionamentos para revisitar.
Instantes longos demais se passaram e ninguém ousou emitir um som.
Testei os limites dos meus poderes, mas tudo que encontrei foi isso.
Limites. Não fazia ideia de como usar essa habilidade para alguma coisa
que eu quisesse. E já estava começando a sentir sinais de exaustão. A
mesma energia que me protegia agora me drenava.
Eu era inexperiente demais, crua demais para sequer sonhar em
controlar uma força tão antiga quanto o próprio mundo.
Os espinhos começaram a ceder. Minha frágil muralha começou a
vacilar. Eu soube que estava caída pela forma que as pequenas folhas
faziam cócegas no meu pescoço. A Imperatriz de Ellioras estava diante de
mim. Seus olhos escuros pareciam satisfeitos. Triunfantes. Vi neles o toque
de insanidade que só os líderes possuem.
Ajoelhei-me perante ela. Talvez a ideia de Dax pudesse ser útil agora.
Eu usaria uma barganha para libertá-los a qualquer custo.
De joelhos, tinha minhas palavras finais na ponta da língua. Antes que
pudesse proferir um som, Peribelle ergueu sua mão em um movimento
circular e alongado. Não acreditei que ela me daria um golpe de
misericórdia sem um discurso final. Seu sorriso ocupava todo seu rosto em
uma beleza alucinada. Minha cabeça pesava como se estivesse prestes a
explodir. Talvez isso pudesse realmente acontecer.
Apertei os olhos e me forcei encarar os seus. Os espinhos agora eram
apenas um eco de instantes atrás. As heras permaneciam atrás de mim. Não
percebi no momento como pequenas flores brancas apareciam sobre elas.
Como estrelas. Como lágrimas.
A imperatriz pegou na minha mão, e eu sabia que não podia prever seu
próximo movimento. A voz morreu na minha garganta enquanto ela me
levantou. Peribelle ajustou a pegada em um cumprimento diplomático. Eu
permaneci atônita, caminhando na beira de um desmaio. Zoey correu na
minha direção enquanto a multidão bradava e assobiava. Minha amiga me
manteve de pé, mas o mundo girava. Peribelle ergueu meu queixo em sua
direção, e podia ser apenas um equívoco graças à exaustão que sentia, mas
ela parecia... satisfeita.
— Bem-vinda a Ellioras, Lunara Alexandria Montecorp.
Foi a última coisa que ouvi antes dos meus joelhos vacilarem e Dax
amparar nós duas ao cairmos no chão.
Capítulo 44

Acordei, mas não me sentia capaz de abrir os olhos. Era como se todo
meu corpo pesasse uma tonelada e a qualquer momento meu próprio peso
pudesse me enterrar no chão pela eternidade. Respirar era um esforço que
eu só conseguia continuar por ser uma necessidade involuntária. Perceber o
movimento dos meus pulmões inspirando e expirando era a prova de que
sobrevivi, mas não podia garantir que estava viva.
Não sei por quanto tempo fiquei assim. Lutando comigo mesma para
me movimentar, para falar alguma coisa, para descobrir onde eu estava. Os
pensamentos eram espaçados, eu não conseguia manter um raciocínio
longo. Sabia que estava em um duelo. Sabia que a terra respondeu ao meu
chamado.
Lembrei do sorriso psicótico de Peribelle, e algo como um murmúrio
de boas-vindas, os quais eu não sabia serem esperança ou chacota. Não
demorou para que o sabor de cinzas me tomasse em sede e vazio.

Eu não conseguia dormir, mas também não podia me levantar. Estava


presa na minha própria consciência, de novo entre mundos. Só que agora eu
estava sozinha. No meu coração, torci pela segurança de Zoey e Dax. Eu fui
fraca. Não barganhei por sua liberdade como planejei. Falhei como sua
rainha. Pior. Falhei como sua amiga.
Senti no meu peito uma faísca de calor que chamava por mim.
Reconfortante, dominante. Alguém que eu conhecia há muito tempo, que
mesmo em silêncio era minha única constante em todas as minhas vidas.
Senti essa chama despertar uma corrente de energia pelo meu corpo. Um
gesto de misericórdia pelo meu sofrimento ou uma forma de me guiar até
seu destino?

A ponta dos meus dedos começou a perceber o tecido macio que me


envolvia. Gelado e escorregadio. Meu corpo agora começava a flutuar. Era
assim que me sentia ao receber o ar sem pontadas de dor tão invasivas. Um
travesseiro macio e cobertas me aconchegavam, e mesmo usando toda
minha força restante, fiz o possível para me aconchegar neles.
E finalmente, depois do que me pareceu uma terceira eternidade,
dormi.
Capítulo 45

Risadas baixas me puxaram de um sono sem sonhos. Ainda me sentia


destruída, mas agora no ponto em que poderia ser consertada. Senti minhas
pálpebras descolarem, mesmo a luz cálida que atravessava as cortinas
fechadas feria minha retina.
Eu conhecia aquele quarto. Era o mesmo que usei logo antes do meu
encontro com a imperatriz. Se eu estava ali e não em uma cela, isso
significava... que eu venci?
Ainda atordoada, testei alguns passos no chão assim que me senti
firme o bastante para sentar na cama sem cambalear. Bebi toda a água
fresca na moringa perolada ao lado da minha cama e fui até a câmara de
banho me lavar.
Eu usava uma camisola prateada, como meu cabelo fora um dia. Meu
rosto definitivamente já havia visto dias melhores. Eu parecia esquálida,
com a pele pálida em um tom quase cadavérico. Os largos círculos roxos
nos meus olhos praticamente exigiam que eu voltasse para cama e que me
levantasse somente quando estivesse verdadeiramente descansada.
Eu poderia descansar mais tarde. Pensei que talvez eu deveria parar de
procrastinar pensamentos importantes e cuidados básicos com meu corpo.
Um armário branco de madeira com duas portas guardava alguns
vestidos que serviam meu tamanho. O vermelho que usei durante o duelo
estava ali, cheirando a flor do campo e sem nenhuma marca de uso. As
poucas opções ali eram mais do que o suficiente, mas a empolgação passou
quando um medo frio correu por mim. Seria isso um novo tipo de
armadilha?
Escolhi um vestido azul como o que Peribelle usava, mas
diferentemente do luxo da imperatriz, esse modelo tinha um corte simples,
justo e com a saia solta. Nenhum detalhe bordado. Apenas alças finas com
leves tiras de tecido nas costas que pendiam atrás de mim como uma capa
enquanto deixava minhas costas nuas. Belisquei minhas bochechas,
tentando resgatar um pouco de vida ao meu semblante, e suguei meus lábios
para atrair o sangue para eles. Não tinha forças para trançar meus cabelos,
mas coloquei os fios de lado e os trouxe para o lado do meu pescoço. No
espelho, vi que agora ele pendia até minha cintura. Estava opaco, mas esse
era definitivamente o melhor que eu poderia parecer hoje.
Risadas agora mais agudas ecoaram do lado de fora, e me apressei até
a sala comum que unia os quartos.
Zoey parecia uma princesa, usava um vestido dourado escuro como
seus cabelos, que estavam mais cacheados e brilhosos do que nunca. Ele
reluzia no tom castanho de sua pele. Ela limpava lágrimas dos olhos,
claramente prendendo os lábios para não gargalhar. Dax usava uma túnica
branca desamarrada, com calças e botas pretas. Ele olhava para cima como
se desse o braço a torcer em sorriso satisfeito. No alto da sala, Ivy Lux
estava sentada no lustre, contorcendo-se de tanto rir.
Murmurei um “oi”, sentindo a voz soar rouca ao sair. Há quanto tempo
eu não falava? Zoey gritou meu nome como se não houvesse problema
algum gritar no castelo de uma potencial rival e correu para me abraçar. Ela
falou um número impossível de perguntas em poucos segundos. Como eu
estava me sentindo. Se algo doía. Se eu estava bem. Se eles haviam me
acordado. Se eu queria me inteirar na conversa. Eu a abracei de volta e me
sentei ao lado de Dax. Estava cansada de fazer o percurso entre a cama, o
espelho e o sofá. Pelos Deuses...
— Então, do que estamos rindo? — Fiz meu melhor para sorrir. Não
por tristeza, mas por exaustão. Poderia voltar para a cama e dormir mais
uma semana.
— Ivyzinha estava contando sobre outros convidados de honra da
imperatriz. Um deles passou o dia andando nu por todo o palácio! — Zoey
prendia o riso, buscando forças para terminar a frase. — E ele não fazia
ideia de que estava pelado!
— Eu daria a minha coleção de livros para passar um só dia com esse
nível de abstração e relaxamento — completou Dax.
— Jura? — Falar ainda era difícil, mas não pude conter um sorriso ao
vê-los se divertindo tanto.
— Definitivamente não.
Ivy pousou no chão e apoiou a mão no meu ombro como se fôssemos
amigas.
— Precisei levá-lo até um espelho, pois ele sabia que algo estava
errado, mas não conseguia compreender bem o que exatamente. Dei a ele
um robe, o homem deixou Ellioras no mesmo instante, sem levar nenhum
de seus pertences.
— Ele deve estar andando assim até agora, deixando o resto da floresta
confusa. — A teoria de Zoey colocou a sala toda às gargalhadas. Inclusive
eu.
Não pela história. Confesso que não entendi metade do que aconteceu
ou por que era tão engraçado. Mas as coisas pareciam... bem.
Ivy Lux se aprumou, voltando à sua postura formal e indiferente
enquanto prendia o riso. Logo depois, pratos de frutas, pães e mel
apareceram na pequena mesa de madeira à nossa frente servidos em uma
fina porcelana azul e violeta pintada à mão.
Comi um pouco de tudo enquanto eles me enturmavam no que
estavam conversando, histórias absurdas sobre pessoas aleatórias: A fêmea
que teve um surto de magia e transformou toda a água do andar em geleia.
O guerreiro que chorava ao declamar poesias. O bardo que transformava em
penas brancas os cabelos de qualquer um que não o aplaudisse.
As palavras pareciam enevoadas, mas a cada mordida que provava,
sentia a força retornar ao meu corpo. Devagar, mas o cansaço não era tão
devastador. A garganta não estava mais tão rouca. Não era à toa que meus
amigos aparentavam estar tão bem quando certamente estavam se
alimentando assim há algum tempo.
Não sabia quanto tempo fiquei desacordada. Pensando de forma mais
clara, não entendia a naturalidade do momento. Ivy continuava
compartilhando suas histórias, mas sua voz decidida e estridente agora
atuava como um pano de fundo para meus pensamentos. Ela falava sobre os
convidados de honra de Peribelle III. Isso significava que...
— Eu ganhei? — interrompi a conversa no que pareceu ser o pior
momento para fazê-lo. A fada parecia estar chegando na melhor parte de
um caso que não prestei nenhuma atenção.
Os três olharam na minha direção. A fada parecia ser feita de bronze,
mas voou até mim como se fosse uma pluma.
— Ninguém vence a Vossa Majestade Imperial, cara Vossa Majestade
não-imperial. — Era isso que eu temia. Ela faria de nós seus escravos?
Estariam enfeitiçando essa comida para tomar nossas mentes? Prendi a
respiração e Ivy ajeitou o vestido curto e branco enquanto voava até a
sacada atrás de nós, indo sozinha rumo aos céus.
O silêncio caiu pesado na sala, e imediatamente senti falta do ruído das
palavras, das risadas. Virei-me para Dax e Zoey, aguardando uma resposta.
— Eu... perdi? — Zoey pegou minha mão, meus olhos começaram a
marejar, mas ela fez que não com a cabeça. Sabia que ela não estava
mentindo, mas não acreditei.
Dax se levantou, ajeitou sua roupa e passou a mão pelo cabelo liso.
Reparei que ele estava mais longo desde a primeira vez que o vi em
Montecorp. Agora chegava na altura do seu queixo, e uma barba discreta
começava a emoldurar seu rosto. Ele vestiu seu sobretudo e estendeu a mão
para me levantar, não hesitei em retribuir o movimento. Acolhi seu toque
morno e suave, recebendo de bom grado a estranha eletricidade que sentia
ao seu lado.
— Deixa que eu falo com ela — foi tudo o que disse para Zoey
enquanto se levantava e me guiava para fora do quarto.
Capítulo 46

Os corredores que pareciam vazios no amanhecer que precedeu o


duelo agora estavam repletos de vida. Seres de todas as cores andavam e
conversavam entre si ativamente. Alguns tinham o tamanho de uma criança
humana, embora eu soubesse que eram adultos. Outros, bem maiores do
que um homem alto. Alguns possuíam chifres, outros, caudas, e ainda
outros, asas. Vi desde escamas cintilantes até peles que pareciam uma barra
de ouro. Não consegui identificar uma raça entre eles, e tampouco parecia
que nossa presença causava alvoroço, mesmo sentindo que comentários
surgiam às nossas costas.
Dax não falou uma palavra, e eu não sabia o que dizer. Ele não havia
soltado minha mão, mas percebendo meu andar cambaleante, passou meu
braço pelo dele, oferecendo mais apoio. Um verdadeiro lorde. A situação
era estranha, mas eu já não sabia o que era normalidade.
Caminhamos até uma larga área externa iluminada com os últimos
raios dourados do dia. Um suntuoso jardim despendia flores coloridas que
pareciam estar ali por vontade própria. Heras subiam pelas pilastras de
pedra como se a montanha tivesse se moldado em um palácio. Como se a
natureza tivesse se organizado em um império. Cachoeiras tímidas corriam
livremente, ecoando seu som de paz junto ao canto das cigarras. Descemos
as escadas mal definidas pelas rochas, meu corpo ainda mais inclinado no
dele, seu braço em volta da minha cintura com uma firmeza reconfortante.
Chegamos até uma sacada, onde as conversas da corte não nos
alcançavam. O silêncio da noite nos embalava em uma melodia própria e
minha respiração parecia escandalosa. Segurei o ar por alguns instantes, e
mesmo estando sozinha com Dax, era como se absolutamente tudo voltasse
sua atenção para nós dois.
O céu começou a ganhar um tom de violeta, as árvores e cachoeiras
desenhavam sua silhueta no horizonte. Pequenos vagalumes surgiam no
jardim, acordando para assistir às estrelas enquanto cumpriam seu papel
formando constelações entre os arbustos. A luminescência das plantas
começava a despertar também. Percebi que uma parte de mim rezava
involuntariamente, desesperada para conservar essa memória sem perder
nenhum detalhe.
Me desfiz do seu toque com delicadeza, sentindo a brisa fria arrepiar
minhas costas nuas. Recebi a sensação com um sorriso, fechando meus
olhos para ver o que se escondia ali. Algo em mim havia mudado. Não
sabia explicar, mas minha percepção estava mais clara. Eu poderia ouvir o
que estava sendo dito ali se prestasse atenção o suficiente.
— Imaginei que você ia gostar desse lugar. — Voltei minha atenção
para Dax. Cálidas luzes douradas refletiam no seu rosto. Ele parecia mais
forte, diferente do rapaz franzino e arrogante que esbarrei no corredor sei-
lá-quanto-tempo-atrás.
— Acho que podemos usar uma palavra um pouco mais forte do que
gostar.
— Zoey também tem seus cantos favoritos no palácio, mas esse aqui é
o meu.
— Você pretende me contar o que aconteceu ou vamos continuar
conversando sobre aleatoriedades e passeando por Ellioras?
— Não podemos fazer os dois?
— Estamos fazendo um só. Eu perdi ou ganhei o duelo, Dax? Ivy disse
que ninguém pode vencer a imperatriz. — Eu temia a resposta, mas cada
segundo sem ela era agonizante.
— Nem um, nem outro.
— Você está conversando muito com aquela fada, pois isso não é
resposta.
— Pelo que entendi, vocês empataram. Peribelle se viu em um
empasse... E decidiu que não faria nenhum mal a nós.
— Mas ainda estamos presos aqui?
— Eu não sei. O companheiro de viagem de uma rainha intrusa
desacordada não consegue uma audiência com a imperatriz. Mas, nas
semanas que estamos aqui, não nos faltou nada.
Semanas. O tempo passava na minha vida como uma piada de mal
gosto. Eu era seu fantoche, sua refém.
— Ótimo, agora que estou acordada, será um prazer falar com ela.
Saber que vocês estão bem já é um alívio enorme.
— Digo o mesmo, Luna. — Ele sorriu e apoiou os braços na sacada de
pedra ao meu lado. — Só gostaria que você se recuperasse antes de decidir
sair por ali. No estado que você está, não iríamos longe além das fronteiras.
É loucura continuar viajando numa situação de vulnerabilidade.
— Não estou discordando de você...
— Mesmo assim, eu sinto que vai — disse Dax, revirando os olhos.
— Não, não vou. Posso falar? — Eu queria sorrir, mas não cederia tão
facilmente.
— Claro, Vossa Majestade.
Eu o empurrei levemente com o ombro e virei-me de frente para ele,
mantendo a mão na pedra fria, reconhecendo sua energia na superfície da
minha pele.
— Alguma teoria de como eu consegui esse impasse?
— Várias hipóteses — falou sem nenhum indício que continuaria a
explicação.
— Sua rainha ordena que você as revele, Lorde Van Doren. — Revirei
os olhos em um gesto debochado e entediado.
Ele fez uma careta que me roubou um sorriso.
— Pelo que já li e ouvi falar, pelas fofocas da corte e principalmente
por tudo que a tagarela da Zoey disse...
— Achei que você já tinha parado de implicar com ela. — Minha
dúvida pairou no ar enquanto sentia a textura gelada e levemente áspera da
pedra entre os dedos.
— Mas a base da nossa amizade é a implicância. E ela não para de
falar. Sorte sua que está há dezesseis dias desacordada. — Ele contou nos
dedos rapidamente para evidenciar.
— Dax!
— Você está me interrompendo.
— Oh, peço perdão. — Levei a mão ao peito em um gesto dramático.
— Está perdoada, Vossa Majestade. — Ele sorriu e piscou para mim,
feliz por ter beliscado meus nervos.
— O empate?
— Ah, sim. — Ele pegou na minha mão ainda apoiada na varanda de
pedra e sussurrou mesmo sem ninguém em volta. — Você sente algo
diferente?
E sim, eu sentia. Algo despertava dentro de mim que poderia me salvar
ou me destruir de dentro para fora. Algo que me aterrorizava ao passo que
me fascinava. Eu precisava saber o que era. Precisava conhecer essa nova
sensação que corria dentro de mim.
— Vamos deixar as perguntas para o final. Conte-me o que você sabe.
— Vou te contar o que eu ouvi, o que eu pensei. Não posso afirmar que
sei de nada disso, combinado Luna? — Assenti impaciente, apressando-o.
— Ok, desculpa. Perguntas no final. Peribelle é uma imperatriz, como já
sabemos. Isso é mais do que uma simples conquista de território e união de
diferentes raças... O próprio solo que estamos pisando reconhece sua
autoridade. Seus poderes são interligados. A forma que ela conquista
territórios não é pela força... Mas é como se o território clamasse por ela
também. E isso é totalmente diferente do que acontece com você. A sua
magia é algo mais selvagem e natural. Nada como já ouvi falar antes. E
preciso confessar, Luna, o que eu mais desejo no mundo é descobrir do que
é feita a energia que flui por você e te faz tão…
Esperei o final da frase, mas ele não disse.
— Tão o que, Dax? — Minhas palavras não foram mais que um
suspiro. Ele subiu os dedos que descansavam na minha mão pelo meu braço
e deu um passo na minha direção, mesmo que já estivéssemos próximos.
Levantei o rosto, acompanhando o movimento que seu toque fez até o
meu pescoço, olhando-o nos olhos. Metade do seu rosto era feito de
sombras provocadas pelo seu cabelo escuro. A outra metade era feita de luz
e curiosidade. Ele estudava cada parte do meu rosto, deixando a resposta
que pedi suspensa enquanto mil novas perguntas surgiam na minha mente.
Talvez eu pudesse revisitar essas questões depois. O tempo
escorregava tão rápido comigo. Eu queria me agarrar àquele momento tanto
quanto me prendia na certeza de que ele iria acabar. Levei minha mão ao
seu cabelo e cruzei meus dedos entre os fios, afastando-os para trás. Sempre
o achei atraente de um jeito óbvio demais, mas não havia reparado no
quanto ele podia parecer doce. Até agora. Ele sorriu enquanto seu polegar
subia pela lateral do meu rosto. O ar frio que tocava minhas costas nuas
pareceu desaparecer. Até mesmo a pedra no meu colar parecia fria contra
minha pele. Correndo o risco de me arrepender ao romper o silêncio, eu
repeti a pergunta.
— Tão o que, Dax?
— Tão impossivelmente cataclísmica.
— E eu achei que você estava falando sério — bufei.
— Agora mais do que nunca. — Dax deslizou seu toque para meus
cabelos, tirando algumas mechas bagunçadas pelo vento. Ninguém jamais
havia olhado para mim com tanta atenção. Ninguém exceto... — Eu já sabia
que Montecorp pereceu graças à sua ausência. Era como se faltasse uma
parte do equilíbrio necessário para nosso reino prosperar. Isso se estendeu
por todo nosso território, e até então eu pensava que você poderia ter a
mesma ligação com o nosso reino que a imperatriz.
Mas então me lembrei das histórias da batalha de Vlomort. De como
você inspirou os soldados e como a sua presença ali foi decisiva para a
guerra terminar. Fiquei me lembrando de como você se comunicou com o
unicórnio e das muitas, muitas histórias que Zoey contou ao longo dos dias.
O que eu vi na manhã do duelo me deixou ainda mais intrigado. O seu
poder não está ligado a um lugar. Nem a uma pedra. — Ele passou o dedo
pelo meu colar e sibilou, como se o toque o queimasse. Dax pausou,
procurando as palavras certas. — Mas sim de alguma forma muito
fundamental com os próprios elementos. Como se você tivesse o poder
bruto de Argrinis. Talvez seja por isso que você atravessou dimensões,
Luna. Mas se eu afirmasse qualquer coisa que fosse, estaria mentindo — ele
finalizou.
Por mais que isso encaixasse, eu ainda não compreendia. Parecia certo
e ao mesmo tempo tão distante. Desvencilhei-me do seu toque devagar,
buscando respirar melhor. Não me importava que já estava ao ar livre. Não
sabia o que dizer, e mesmo não me sentindo forte o bastante, caminhei até a
beira do rio, ouvindo a grama reluzente afundar sob meus pés. Algumas
flores miúdas e prateadas nasciam à sua margem. A mesma espécie que eu
costumava observar sob o Carvalho de Prata.
Virei-me para encontrar Dax com as mãos nos bolsos, jogando o
cabelo para trás com sua típica indiferença.
— Você quer se sentar?
— Não quero sujar meu vestido — respondi.
— Isso é resposta para outra pergunta. — Ele tirou o sobretudo e o
estendeu na grama seca. Sentou-se no chão e bateu com a mão ao seu lado,
me convidando.
Uma cena tão semelhante em uma situação diferente. Já havia
aprendido a rir das coincidências. O que eu poderia fazer além de me juntar
a ele? Não havia muito espaço, mas pude me acomodar sem precisar sentar
no seu colo. Não que isso fosse uma possibilidade.
— Dax, de jeito nenhum eu tenho o poder de Argrinis. Nenhum
Montecorp teve, não acredito que eu seria a primeira — disse ainda
confusa, tentando encaixar as informações.
— Você não tem o poder dela. — Ele sorriu debochadamente,
balançando a cabeça.
— Então não entendi nada. — Busquei brincar com uma mecha do
meu cabelo, desviando minha impaciência.
— Você tem o seu.
— E você definitivamente passou bastante tempo conversando com
Zoey. — Inclinei a cabeça para trás, olhando para o céu como se nele
estivessem escritas as respostas que eu precisava em letras de forma.
— Ela certamente passou bastante tempo conversando comigo. Com
todo mundo, na verdade. Você sabia que ela fala sozinha?
— Jura? — Voltei com calma minha atenção a ele.
Ele fez que sim e soltou uma risada. Eu ri também. Dax virou na
minha direção e me ajustei um pouco também. Podia olhar nos seus olhos,
mesmo estando lado a lado.
— Você quer me ajudar a entender um pouco esse tal poder bruto ou é
mais divertido aprender por conta própria? — debochei.
— Já disse, não há nada que eu gostaria mais do que entender do que
você é feita.
Como se não pudesse resistir ao movimento, Dax entrelaçou seus
dedos nos meus. A floresta ao redor pareceu se calar. Ou era meu coração
que pulsava alto demais no meu peito.
— E você tem algum palpite de como poderíamos entender a minha...
magia? — sussurrei.
Dax passou seu braço livre pela minha cintura e senti a palma da sua
mão subindo e descendo nas minhas costas. Ele soltou meus dedos, com a
mão livre eu toquei nos seus braços, sentindo o suave algodão de sua túnica
e a pele morna sob meu toque. Dax empurrou meu cabelo rosado para trás e
correu os olhos pelo meu corpo, subindo da minha cintura para o delicado
decote azul do meu vestido, que revelava apenas a curva dos meus seios.
Ele revezou o olhar entre meu colar e minha boca, até finalmente se
aproximar para sussurrar perto o bastante da minha boca para que eu
sentisse o movimento mais do que ouvisse as palavras:
— Só posso afirmar depois de provar.
Dax colou seus lábios junto aos meus por um instante, dando-me
tempo para consentir com um gesto ou para me distanciar. Levei minha mão
até seu pescoço e balancei a cabeça suavemente, encaixando melhor meu
rosto no dele, sentindo a maciez da sua boca, esperando que ele fizesse o
próximo movimento. Foi resposta o suficiente.
Sua boca abriu a minha com uma doce pressão, sua língua começou a
me explorar, observando como eu respondia ao sabor dele. Logo parecia
que ele estava faminto, e a eletricidade entre nós conduzia mais e mais
desejo de pertencer um ao outro. Eu não sabia que sentia tanta falta de ser
tocada dessa forma, mas não imaginava que fosse me render aos seus
braços. Era a primeira vez que eu me sentia assim. Sem saber como agir
para não me tornar refém do seu enlace.
Ele não me beijou apenas com seus lábios, mas todo o seu toque agora
clamava e explorava cada parte exposta da minha pele. Eu não precisava de
fôlego, pois não queria respirar longe dele. O envolvi com toda força que
tinha, buscando também sentir mais da sua língua acariciando a minha, do
calor do seu corpo colado ao meu, do seu toque que procurava meus
segredos intensamente, mas não o suficiente.
Não precisei me mexer para que ele me passasse minhas pernas por
cima dele. Seu beijo desceu pelo meu pescoço e senti o arrepio provocado
pela sua barba levemente cerrada enquanto me acomodei no seu colo.
Enterrei minha cabeça na sua nuca, sentindo o cheiro de pinho, menta e
terra fresca me embalar. Mordi sua orelha enquanto deixei escapar um
gemido, já que Dax empurrava o tecido do vestido que já estava no meio da
minha perna um pouco mais para cima. Senti sua risada vibrar no meu
corpo e me afastei um pouco para olhar nos seus olhos.
A mera distância entre nós parecia gelar minha pele com sua ausência.
Seus olhos brilhavam com fascínio e algo que eu queria acreditar ser
devoção. Em volta, a floresta resplandecia em tons de azul. Atrás de mim, a
cachoeira fluía prateada. Dax virou meu rosto na sua direção novamente e
pousou mais um beijo terno em meus lábios fechados. Retribui com uma
leve mordida e um beijo breve e intenso.
Seus dedos traçavam círculos nas minhas costas e nas minhas pernas, e
percebi que ainda estava sentada sobre ele. Eu podia sentir cada parte do
seu corpo, e assim que ele percebeu isso, deitou-me ao seu lado como se
quisesse esconder a evidência do seu desejo por mim. Antes que eu pudesse
contestar algo a respeito disso, ele me beijou, apoiou o braço na grama e
olhou para mim de cima. Dax traçava seus dedos pelos meus braços e pelo
meu rosto como se pudesse me decifrar. Ele mesmo também parecia um
mistério a ser solucionado.
O silêncio permaneceu pendurado entre nós, e eu podia ouvir música
tocando dentro de mim. Percebia a terra irradiando uma energia que nunca
havia notado antes. Fiquei de costas para Dax, que aproveitou para beijar
meus ombros enquanto eu colocava uma mão na terra.
Concentrei-me o máximo que pude, sentindo minha cabeça pulsar e a
respiração arder. Apertei os olhos. Ao abrir, lá estava. Uma flor branca de
quatro pétalas, tal qual a que Dax me presenteou no festival da lua azul.
Deitei a cabeça. Estava rindo e exausta. Confusa e satisfeita.
— Eu não sabia que podia fazer isso — confessei de olhos ainda
fechados. Abri-los parecia tão difícil.
— Você não deveria fazer, Luna. Não agora, pelo menos. O esforço
pode acabar te matando.
— Odeio concordar com você, mas realmente não me sinto revigorada
— suspirei.
— Luna, olhe para mim. — E com um carinho nos cabelos eu olhei
para Dax. Lindo, como se fosse parte do céu noturno ao fundo. — Pense em
você como um vaso de cristal extremamente delicado.
— Essa é a pior cantada que já ouvi. — Mas se eu estava sorrindo,
talvez não fosse tão ruim.
— O que é cantada?
— Hum... Um cortejo. Alguma frase feita para ludibriar alguém que
você acha atraente.
— É, não foi isso o que eu quis dizer. Teria sido um mico. — Ele
piscou e inclinei meu rosto para o dele, convidando-o para me beijar. Dax
não pensou duas vezes antes de tocar meus lábios com os seus.
— Quando você disse que queria “provar minha magia” — disse ainda
tocando em sua boca — foi uma boa cantada.
Pude sentir seu sorriso se formando colado ao meu enquanto ele
mantinha o olhar fixo em mim.
— Pelos Deuses, é difícil me concentrar em um assunto quando você
me olha assim. — Ele reclinou para trás, e eu pude sentir o ar fresco onde
nossas peles se encostavam. — Mas voltando ao vaso, imagine o que
acontece quando você coloca várias peças de chumbo e tenta deslocá-lo de
um ponto ao outro.
— Ele pode quebrar? — indaguei.
— Exatamente. Você tem acesso aos mesmos poderes da Deusa que
abençoou Montecorp. Mas não tem resistência o bastante para dominá-los.
Sua existência beneficia Montecorp, mas você continua sendo parte do céu
e da terra em qualquer parte do mundo. E eles, em tese, respondem a você
da mesma forma que semelhante atrai semelhante.
— Achei que opostos se atraíam. — Abri um sorriso satisfeito,
enamorada com a paisagem ao longe.
— Também. Depende da perspectiva... — Ele desviou o olhar de mim
para ele. — No nosso caso, acho que funciona.
Dax se deitou ao meu lado, estendendo o braço para que repousasse no
seu ombro. Eu aceitei.
— Você sabe tanto sobre como o mundo funciona. Não só sobre as
trocas políticas e história, como eu. Mas da química e dinâmica. O que
realmente importa, o que realmente existe. Nunca fui muito boa nisso.
Tentei aprender uma época, mas não lembro de muita coisa. — Puxei meus
pensamentos antes que pudessem me lembrar de uma certa maratona de
estudos que tive em outra vida.
— Quando eu era criança, meu pai era amigo do meu antigo mestre.
Ele mesmo disse que adorava passar as tardes ali, antes de entrar para o
exército. Ele que me ensinou os princípios dos elementos, sobre as leis
fundamentais. — Dax tinha um sorriso largo e satisfeito. Imaginei que ele
não fosse mais tão próximo do pai. — Sir. Van Doren foi o primeiro a me
falar sobre as trocas de energia que eram desencadeadas com sacrifícios,
rituais dimensionais que só podiam ser feitos em momentos específicos e
outros segredos alquímicos.
A história meiga de sua infância começou a arder no meu peito. Eu
não devia ter ouvido direito, mas as informações se encaixavam com
clareza. Apoiei o braço no chão a fim de vê-lo por inteiro.
— Quais momentos específicos, Dax?
— O básico, sabe? O amanhecer, o anoitecer, alinhamentos de
planetas, eclipses. Você chegou a ler sobre isso no livro que eu te dei, não?
— Não, eu não cheguei no capítulo vinte e três. — A frase morreu em
meus lábios. Ele me encarou, esperando que eu preenchesse as lacunas do
meu pensamento.
Lembrei-me da noite que fui coroada. De Caleb alegando que queria o
melhor para o reino. Do momento em que ele colocou o colar no meu
pescoço enquanto o amanhecer irrompia. Eu confiei em Caleb com meu
reino, com minha vida. Acreditei que ele era o meu herói. Eu senti saudade
dele! O pensamento era amargo, como mil agulhas em cada parte sensível
do meu corpo. Passei semanas achando que estava louca, presa em um lugar
com uma vida totalmente irreal. Eu perdi as pessoas que eu conheci ali.
Elas nunca existiram e ainda assim, eu estava de luto. Me senti tola e irada.
Fogo subia por minhas veias e eu queria explodir.
As lágrimas já estavam escorrendo enquanto senti o sabor da traição e
da vida que me fora roubada. Meu destino foi arrancado de mim por uma
ambição que nunca tive, e agora eu carregava uma missão presa como uma
coleira no meu pescoço.
— Dax, o seu pai fez isso comigo. Você sabia que ele fez isso comigo.
Eu estava gritando. Não me importava. Tentei me levantar ainda
cambaleando e procurei ir para qualquer lugar até a vida voltar a ter sentido.
Vacilei os passos e Dax imediatamente me deu suporte. Eu queria socá-lo,
mas o abracei e chorei enquanto soluçava. A indignação me tomava por
inteiro.
— Eu não sabia, Luna. Não sabia. Aconteceu antes de eu nascer, não
tinha como ter certeza. — Continuei chorando, me odiando por me sentir
tão frágil, tão idiota. Assim que parei de soluçar um pouco, ele beijou
minha testa e afastou as lágrimas. — Mas... eu suspeitava. Nunca me
envolvi com a corte o bastante para saber sua agenda, mas reparei que
alguns materiais estavam faltando nas noites que antecederam a lua azul.
— Deixa eu adivinhar, um outro bom momento para conjurar algum
feitiço — falei enquanto soltava o ar.
— Adivinhou certo, minha linda rainha. Por isso te segui, por isso
tinha alguns tônicos comigo... Eu achei que você ficaria bem, mas falhei. —
Suas palavras cambalearam no final da frase.
— Você não falhou, Dax. Você se importou comigo quando eu estava
totalmente sozinha e não tenho como te agradecer o bastante por tudo que
fez. Tudo o que tem feito.
— Eu preciso de você bem. Você não compreende o quanto, Luna —
declarou com uma fúria adormecida em sua voz.
— Você sabe que eu não vou poder deixar essa situação impune, não
sabe? Um reino não pode ter um traidor no conselho. — Não havia emoção
em minha voz.
— Eu não vou defender um traidor da Coroa. — Dax hesitou antes de
sussurrar. — Mas peço por minha irmã e minha mãe que não tome nenhuma
decisão precipitada.
— Inocentes não têm por que temer em Montecorp.
— Oh, Luna... Normalmente são os inocentes que mais precisam temer
se quiserem sobreviver. Mas você pode pensar nisso depois. Por favor?
Assenti. Com meu rosto em suas mãos, eu recebi mais um beijo.
Parecia que ele não queria que eu passasse por seus dedos e desaparecesse.
Eu o abracei, procurando pelo seu carinho e pelo seu apoio. Era difícil ficar
de pé. Não só pela exaustão, mas porque o chão parecia se dissolver aos
meus pés.
Dax ajoelhou, colheu a flor que eu criei usando meu poder e a prendeu
no meu cabelo. Eu sorri, afastando as lágrimas e buscando colocar meus
pensamentos no lugar. Era melhor prestar atenção somente no que eu podia
controlar.
— É sério que eu me exauri para criar essa flor e você simplesmente a
arrancou do chão?
— Você pareceu gostar da primeira vez.
Eu gostaria de contrariá-lo, mas estaria mentindo.
Ainda assim, a gentileza do seu gesto não apagava o sabor ácido que
crescia no meu peito. Caleb havia me traído. Eu não ficaria impressionada
por um golpe, é basicamente assim que as relações de poder são escritas.
Mas ser traída pelo soldado que havia conquistado o final da guerra...
Alguém que eu possuía na minha mais alta estima. Ele teve vinte anos para
inserir sua teia de influência, e agora, mais uma vez, eu estava longe demais
para consertar as coisas. Por enquanto.

Eu sabia por que Dax amava aquele canto do palácio. Ninguém ia ali.
Ficamos em silêncio por bastante tempo até que adormeci nos seus braços.
Sentia-me acolhida, com esperança de que tudo ficaria bem. Em paz.
Já não me lembrava exatamente o que era isso, mas começava a
redescobrir.
Um beijo na minha sobrancelha me despertou, e o aroma de mel e
frutas me deixou salivando. Dax insistiu que eu deveria comer e que a
minha sorte era que tudo que crescia em Ellioras tinha propriedades
curativas por causa de Peribelle. Não discuti, pois me senti mais disposta
em alguns minutos.
— Eu não quero, mas acho que precisamos voltar — ele disse e
roubou uma de minhas frutinhas azuis antes de se levantar e estender a mão.
— Eu não quero concordar com você, mas nesse caso eu vou. — De
pé, ele me envolveu e senti suas carícias passando até o final do decote às
minhas costas.
— E não acho que devemos contar sobre isso ainda.
— O que exatamente é isso, Dax? — perguntei cinicamente.
Ele me beijou em resposta.
— Eu adoraria saber o que é isso antes receber opinião de outras
pessoas... E uma rainha não costuma manter seus relacionamentos abertos,
certo?
— Rainhas podem manter sua vida pessoal aberta tanto quanto os reis.
— Peço perdão, você é a primeira rainha que eu beijo. Não conheço o
protocolo. — Ele sorriu.
— Eu preferiria que não tivesse nenhum protocolo — confessei, dando
de ombros.
— Isso quer dizer que eu posso te beijar a hora que eu quiser?
— Se eu quiser também, sim.
— E como eu vou saber? — Seu polegar passava pela minha boca, não
resisti lambê-lo.
— Você é esperto. — Pisquei.
— Normalmente, sim, mas perto de você eu paro de pensar.
— Então vou te deixar sozinho para refletir.
Eu sorri enquanto o deixava para trás, ciente de cada movimento que
meu corpo fazia sinuosamente naquele vestido. Agradeci por estar
anestesiada com prazer e empolgação. A verdade que eu havia acabado de
conhecer revelava a identidade do meu traidor. Eu larguei meu reino com
uma família assassina e não podia voltar antes de cumprir a promessa que
fiz à Madame Sienna. O calor reconfortante da pedra de fogo pulsou
enquanto eu colocava meus pensamentos no lugar.
Eu precisava encontrar com Peribelle e acertar os termos da nossa
partida. Sair de Ellioras e encontrar o herdeiro perdido de Cinaéd. Ele
poderia tirar o colar do meu pescoço, e com sorte eu não recomeçaria uma
guerra com esse movimento de paz.
Eu deveria encontrar um aliado desconhecido para depois combater
um inimigo que um dia teve minha confiança.
Talvez fosse o momento de revisitar tudo aquilo que eu adiava. Eu
poderia definir o que era uma prioridade para mim, longe de tudo que me
fora imposto. Fazia sentido o que Peribelle disse sobre eu agir como uma
vítima. Não era a situação que me definia, mas como eu agia em relação a
ela.
Amon estava certo. Eu não poderia ficar presa em três vidas. Meu
destino sempre seria apenas um só. Cansei de separá-las. Eu tive o prazer de
ter duas mães e dois pais e perdi ambos. Ainda assim, podia me considerar
uma pessoa de sorte por ter sido amada em dobro. Eu podia voltar a tocar
violino eventualmente. Perdi Olivia e Íris, mas quantos amigos vêm e vão
na vida? Nunca mais ouviria o som da voz de Blaze, mas são poucos os
afortunados que passam a eternidade com seu primeiro amor.
A vida insistia em se renovar, desafiando meus limites. E eu estava ali.
Ainda viva. Ainda com uma teimosa esperança no coração de que ficaria
tudo bem, mesmo quando as circunstâncias apontavam o contrário.
As estrelas dançaram, como costumavam fazer na Floresta do Oblívio.
Eu sentia a terra responder a minha energia como se fizesse parte dos meus
pensamentos. Dei-me conta que, de fato, ela era parte de mim. Como se a
própria Argrinis olhasse por mim, a lua pendia no céu quase no seu
esplendor. Quase um mês havia passado desde que deixei meu reino.
Ignorei esse fato. Já não estava mais contando o tempo, mas sim
contando com ele.
Capítulo 47

Após falar com Dax, pedi uma audiência privada com Imperatriz
Peribelle. Não senti que deveria compartilhar o que foi dito entre nós duas
com meus companheiros de viagem, mas fiquei feliz em avisar que ela e a
imperatriz consorte Violeta então ofereceram um jantar, a fim de nos
receber oficialmente no seu reino. Foi ela que vi durante o duelo como um
ponto lilás de luz. Olhares da corte nos analisavam, sem desprezo ou
admiração. Apenas genuína curiosidade.
A fartura do banquete poderia alimentar gerações. A música fluía pelo
salão, fiquei genuinamente emocionada ao ouvir o som das cordas e flautas
mais uma vez. Como sempre, naqueles breves intervalos, o mundo parecia
estar em perfeita harmonia novamente.
Não sabia dizer o que era mais exótico: Os sabores que ultrapassavam
as especiarias conhecidas por mim, certamente vindos de ervas cultivadas
apenas nesse território; os seres que buscavam compreensão e
entretenimento ao nos passar uma taça de vinho ou trocar algumas palavras
com seus pesados sotaques; o quão à vontade Zoey se sentia em lugar tão
diferente de tudo que já conheceu.
A festa estava no fim, a julgar pelas bandejas vazias ao longo das
gigantescas mesas dispostas no salão. Mas eu não esperava que dentre todas
as canções que pudessem ser tocadas naquela noite, eu ouvisse justamente a
que permeava no meu coração. Desde sempre uma certa melodia caminhou
por meus pensamentos, preenchendo os momentos vazios e me guiando
para um destino que nunca soube precisar. Minha primeira composição em
uma vida tão distante. Que agora estava aqui. De alguma forma, me
chamando, como se tivesse esperado por mim também.
Eu estava em um novo ponto de partida, e ela era a seta que me
mostrava que não estava perdida. Que todos os caminhos que trilhei
deveriam mesmo me trazer até aqui.
Violeta era tão gentil quanto Zoey e tão observadora quanto Dax.
Agradeceu a mim por minha contribuição ao império e reafirmou para a
corte que éramos bem-vindos. Antes de me retirar, a Imperatriz Consorte
guardava um inesperado presente de partida para mim.

O topo da montanha onde nos enfrentamos passou a ser meu lugar


favorito para meditar. Um dos conselhos que recebi da Vossa Majestade
Imperial, a fim de controlar meu poder sem desmaiar em seguida foi buscar
a aurora ou o crepúsculo. O portal entre os mundos ficava entreaberto nesse
momento, e isso otimizava minha magia. Então todo amanhecer que vi
romper em Ellioras eu buscava por essa fenda entre as realidades, a qual
potencializava a troca de energia entre tudo que era ou já foi vivo.
Em alguns dias, eu podia fazer truques simples, como o nascer de um
círculo de flores ou chamar o sopro de uma brisa fresca sem dormir por
várias horas em seguida. A comida do império me dava mais resistência, eu
já havia recuperado as formas do meu corpo, meu rosto estava corado e
saudável, mas não poderia contar com isso ao longo da viagem.
Eu conhecia Cinaéd, mas havia duas décadas desde minha última
visita. Precisava aproveitar a melhor chance que eu tinha para treinar. Eu
seria uma tola se entrasse em um território hostil totalmente despreparada
em relação às minhas novas habilidades. Montecorp estava isolada do
mundo, então era seguro acreditar que os mapas que vi estavam
desatualizados. Que tipo de devastação nos aguardaria em seguida? Eu
temia a resposta, mas não deveria ser pior do que um dragão.
Zoey não parou de aplaudir no dia que consegui acordá-la cedo o
bastante para mostrar meu progresso. Ela tratou de colher as flores e as
trançou em uma linda coroa branca. Eu só vi quando ela me surpreendeu
colocando o presente na minha cabeça.
— Ela fica brava quando arrancamos as flores que ela cria — avisou
Dax.
— Fico brava com você, não com ela.
Zoey fez uma careta para ele, que foi ignorada com um riso preso. Eu
não entendia a dinâmica entre os dois, mas ninguém parecia estar
incomodado.
— Nada mais perfeito para uma rainha do que uma coroa feita com a
própria magia. — Eu a abracei forte, enterrando meu rosto nos seus cachos
dourados selvagens e ela completou baixinho: — Eu falei que não existia
ninguém mais digna do que você.

Gostaria de ter mais tempo para conhecer Ellioras. Jamais em minha


vida vi algo tão majestoso. Zoey insistiu que eu a acompanhasse até um
templo dedicado aos livros e às histórias. Era seu lugar favorito. Montamos
no dorso da Noite e cavalgamos até a construção azulada repleta de
pergaminhos, manuscritos e livros para todos os lados. Passamos a tarde ali,
enquanto conhecia suas lendas favoritas e ela me mostrava a origem dos
mitos que dividiu conosco ao longo da jornada.
Não me importei com as mãos sujas de poeira enquanto folheávamos
pelas páginas raras. A pele castanho-dourada de Zoey mesclava entre a capa
de alguns exemplares, e de longe eu poderia jurar que ela foi nascida e
criada em meio à magia indomável desse lugar.
— Zoey...
— Luna. — Seu sorriso branco e olhos curiosos me convidaram a
continuar.
— Você sabe que é a mais corajosa de nós três, certo? Não te vi vacilar
por um segundo desde que deixamos Montecorp. E desculpa se minha
pergunta é sem jeito, mas você cresceu em um castelo…
— Nos aposentos dos criados do castelo, na verdade — Zoey corrigiu.
— E eu espero sinceramente que nunca tenha lhe faltado nada. Eu me
lembro que todos do reino eram bem tratados, independente de pertencer à
corte. Antes de… tudo acontecer. — Eu não sabia como explicar a urgência
em meu peito de fazer algo verdadeiramente útil sobre tudo isso.
— Nunca me faltou nada, Luna. — Ela deu de ombros, mas sua
curiosidade perene estava ali, esperando que eu chegasse em um ponto.
— Você não temeu vir à Floresta do Oblívio por causa das histórias
que nos contou?
Zoey pensou por alguns instantes enquanto devolvia alguns livros para
a estante. Caminhamos até um jardim coberto por uma curiosa grama lilás,
lavandas e violetas. Deduzi que seria o lugar favorito da Imperatriz
Consorte. A simples concepção de que tal lugar existia me fazia querer
chorar, correr e tudo que existia no meio.
— Eu acho, sim, que as histórias preparam a gente para enfrentar o
desconhecido… Mas o que fez diferença, pensando agora, é que eu nunca
imaginei que teria a chance de sair de Montecorp. A esperança da liberdade
é algo que não se discute mais. Alguns ainda rezam por ela.... Pelo menos
era assim até você voltar.
— Eu espero que isso mude finalmente — confessei. O ar pesado
enquanto analisava tudo que ainda teria que fazer para conquistar tal feito.
Minha amiga gesticulou para o jardim perante nós, convidando-me
para segui-la em direção ao infinito violeta. Seu vestido verde claro
ressaltava o tom escuro da sua pele, enquanto disse a única frase que seria
possível sair da sua boca:
— E você ainda duvida?
Não deixei minha mente responder enquanto a segui, imitando seus
movimentos e sentindo a barra do meu vestido lilás se misturar com o chão,
andando na sua direção até experimentar a tal da liberdade que Zoey havia
citado e começar a correr.

Apesar de me deslumbrar com os seres da corte, com as construções


que naturalmente formavam o império e a comida deliciosa que renovava
minhas energias, eu ansiava ficar sozinha no meu quarto tocando violino.
Quando Violeta sugeriu que eu ficasse com ele após todos terem
partido do banquete, não pude fazer nada além de agradecer sua
generosidade. Ela disse que observou o efeito que suas notas provocavam
em mim e imaginei que tipo de magia ela dominava para ter uma atenção
tão plena aos detalhes invisíveis e sentimentos guardados.
Ele encaixava nos meus dedos como se soubesse o espaço que
memorizei para cada nota. A melodia deslizava da minha mente para o
mundo, preenchendo o vazio com o propósito que eu tanto buscava. Com o
toque do arco e os intervalos entre as notas, o mundo fazia sentido.
Zoey, Dax e até mesmo Ivy Lux, que sempre estava presente para nos
assistir, imploravam para que eu os deixasse ouvir tocar. E, de preferência,
não através da porta.
Era tão mais seguro tocar sem olhares gravitacionando minha atenção.
Onde o violino funcionava como uma extensão do meu corpo. Ainda mais
quando eu estava tão fora de prática que me fechava no armário para tocar
antes de me sentir à vontade para praticar perto da janela.
Um dia eu ainda tocaria para eles. E com essa promessa em mente,
continuei saboreando as notas que fluíam enquanto tateava as escalas na
distância de meus dedos em um prazer solitário.

Acompanhei Dax até seu jardim favorito três vezes, testando meus
poderes ao anoitecer. Passei a criar pequenas frutinhas, que drenavam
minha energia ao mesmo tempo que a devolviam. Eu repousava no seu colo
enquanto seus dedos trilhavam meus cabelos e ouvia sobre seus testes de
observação das estrelas errantes na Floresta do Oblívio e as possíveis
aplicações das plantas luminescentes à nossa volta.
Na véspera da nossa partida, meus dedos estavam calejados graças à
fricção das cordas, e mesmo com a alegria da música, senti o vazio e o
medo desconhecido ao perceber que mais uma mudança esperava por mim.
Eu não sabia quando experimentaria esse nível de conforto e paz
novamente. Não fazia ideia de como nossa jornada iria se suceder.
Precisava de alguma distração, de alívio.
Zoey era maravilhosa para conversar, mas seus conselhos me
deixavam pensativa demais, e a última coisa que queria era ficar presa na
minha mente de novo. Eu precisava de algo que me levasse a um estado de
conforto, relaxamento e confiança para a manhã seguinte.
Bati na porta de Dax o mais suavemente possível, buscando não
acordar Zoey ou fazer Ivy aparecer na nossa porta, já que ela sempre estava
à disposição.
Ele abriu, revelando pouca surpresa ao me ver ali. Como se estivesse
pensando o mesmo que eu. Dax estava sem camisa, usando apenas uma
calça preta e um manto escuro que mais revelava do que cobria. Novamente
ele estendeu a mão e não disse uma palavra enquanto o convite silencioso
pairou sobre nós.
— Posso entrar? — ainda assim, perguntei.
— Se você não precisar estar em nenhum outro lugar agora.
Eu sorri ao ouvir essa mesma frase, a primeira que me disse como uma
tentativa de me conhecer. De mostrar quem ele realmente era para outra
pessoa. Dax foi o primeiro a se dirigir a mim sem necessidade de me
agradar, sem se importar com meu título. Ele esteve ali todas as vezes que
precisei me levantar, estendendo sua mão. Amanhã estaremos em Cinaéd,
um território hostil tomado pelos destroços e pela guerra. Bólius jamais se
importou em ser um governante, e dificilmente um território se ergue sem
uma frente unida. Uma terra sem lei nos aguardava. Merecíamos uma
última noite de sonhos, alívio e despreocupações. Meu coração tremeu ao
ouvir a porta fechar.
Seus dedos entrelaçaram meu cabelo enquanto seus braços me
envolviam com urgência. Provei do seu sabor, sentindo a menta e o mistério
me envolverem. Me procurando como solução.
Dax deslizou as alças prateadas pelos meus ombros, deixando-me
vestida de estrelas no mesmo momento. O manto que vestia logo veio ao
chão, e ele me tomou nos braços, ainda me beijando enquanto me deitava
na sua cama.
Seu toque explorava cada parte do meu corpo que implorava pela sua
atenção, sua boca desviou da minha, deslizando pelo meu pescoço até
finalmente chegar nos meus seios, que aguardavam firmes pela sua atenção.
Deixei um gemido escapar e ele imediatamente voltou à minha boca,
calando-me com um beijo e sussurrando ao meu ouvido.
— Por mais lisonjeado que eu fique em fazer você gemer, não
queremos acordar ninguém. Posso contar com sua descrição?
Antes que pudesse perguntar o que ele queria dizer com isso, sua
mão deslizou até minhas pernas, encontrando toda a evidência do quanto eu
estava pronta para recebê-lo. Ele deslizou um dedo para dentro de mim.
Depois mais um em um movimento dolorosamente lento. Apertei os lábios
para não emitir nenhum som e olhei diretamente nos seus olhos castanhos.
— Muito bem — ele murmurou. Então trilhou todo o caminho de
beijos até abaixo do meu umbigo, fazendo-me contorcer de prazer e agonia
por uma sensação que não parecia ser o bastante. Que ao mesmo tempo me
drenava e me preenchia mais do que qualquer outra.
Ele finalmente fitou meus olhos, e fiquei feliz ao não encontrar
nenhum símile de controle ali. Com um gesto, puxei-o para cima e desfiz o
nó que ainda prendia sua calça para encontrá-lo latejando de desejo tanto
quanto eu estava.
Eu não tinha calma, mas precisava que esse momento demorasse. Dax
passou os dedos pela parte de dentro da minha perna, abrindo-a com
delicadeza o bastante para que se encaixasse em mim. Perdi-me no
devaneio que era seu rosto, o seu toque. E como se não confiasse em mim
para permanecer em silêncio, Dax roubou um beijo ao mesmo tempo que se
empurrou contra mim, mantendo meu quadril ainda na cama para que
nenhum centímetro ficasse de fora. Não pretendia arranhá-lo, mas o gesto
foi involuntário. Ele não pareceu se importar e começou a responder aos
meus movimentos. Precisei manter meus lábios nos dele e mesmo assim
alguns sons escaparam. Eu o culpei por todos os momentos que ele
arrancou sons de mim.
Exploramos as possibilidades dos nossos corpos, nos entrelaçando
entre beijos e mordidas até que finalmente meu corpo não pudesse mais
suportar caminhar no limiar no prazer extremo e me rendi a ele. E com uma
sucessão de movimentos firmes, eu sabia que Dax estava tão extasiado
quanto eu.
Mergulhei na seda da sua cama sentindo o carinho que antes me
atiçava agora me convidando para um profundo relaxamento.
Na manhã seguinte, nossa vida mudaria. Mas por aquela noite eu
queria permanecer daquele jeito.
Acordei no meu quarto logo antes do sol nascer. Meu corpo
aparentemente havia se acostumado a se despertar essa hora. Vi que ainda
estava nua sobre os lençóis e rapidamente corei com as lembranças da noite
anterior.
Lavei-me como o de costume, mas em vez de escolher um dos belos
vestidos, optei por um traje de viagem confortável. Cinaéd era uma zona de
guerra, e eu não pretendia atrair o tipo de atenção errada.
Vesti uma blusa verde com mangas levemente bufantes que trançavam
pelas minhas costas como um espartilho extremamente flexível. Calcei as
botas que vinham até meu joelho por cima da calça de montaria preta.
Trancei meus cabelos, mas alguns fios curtos permaneceram soltos perto
dos meus olhos. A capa preta de viagem era perfeita para terrenos difíceis.
Minha bolsa já estava abastecida, mas prendi o violino nas minhas costas.
Torci para mantê-lo intacto até meu retorno.
Zoey e Dax me esperavam prontos na sala que unia nossos quartos, e
Ivy Lux nos acompanhou após a refeição até os soldados que guardavam a
fronteira do império.
Nossa jornada estava finalmente começando.
Epílogo

— Você é louca por aceitar o preço que te pedi, Luna — declarou a


envolvente voz milenar.
— Achei que tinha percebido isso assim que nos conhecemos, Belle.
Um sorriso oculto de nossos rostos pintava o mistério em nossas
feições.
Seus gigantescos soldados nos escoltaram como árvores vivas até a
fronteira enquanto cavalgamos ao seu lado, tentando acompanhar o ritmo.
Com muito pesar me despedi da imperatriz e de sua parceira em um abraço
apertado.
Guardei nossa última conversa de Dax e Zoey. Ainda não era o
momento de lhes revelar a verdade sobre como barganhei nossa saída de
Ellioras. Do porquê nos tornamos convidados de honra no império e fomos
presenteados com alazões. Apenas disse que Peribelle nos concedeu livre
passagem. A mentira era amarga, mas a verdade doía apenas em mim.
No final do dia, paramos em uma taverna que avistamos na estrada.
Após a semana de luxo, era difícil a ideia de montar
acampamento. Estávamos na última fronteira de Ellioras que ainda possuía
o domínio da imperatriz. Os conflitos não chegavam ali. Na beira da
estrada, um povoado de refugiados repletos de esperança – ou cansado das
mortes – parecia construir sua própria terra sem lei e sem mortes.
Encontramos um estabelecimento modesto, mas que servia uma
refeição quente e suficientemente saborosa. Eu podia ver alguns seres
semelhantes ao diverso povo de Ellioras, feéricos e feéricas com o aspecto
aventureiro, a julgar por suas roupas de couro batido e armas embainhadas.
Dax reservou um quarto com três camas com o estaleiro e pedimos a
refeição do dia para nossa mesa antes de subirmos. A noite iria cair, e o
território era inóspito à noite. Nenhum rio para seguir. Nenhum ser
encantado prestes a sair de trás das árvores para conjurar uma cura mágica,
se necessário.
Em um pequeno palco, alguns músicos tocavam uma canção.
Enquanto esperava, reparei que o palco era aberto a qualquer um que
estivesse disposto a se apresentar. Eu hesitei, mas não vi por que não tocar
ali. Eu queria. Estava praticando havia algum tempo, certamente estava boa
o suficiente para um palco na beira da estrada. Com a insistência de Dax e
Zoey para finalmente me ouvir tocar, eu cedi.
Aguardei minha vez, e quando subi no palanque de madeira
improvisado, afinei o violino e toquei uma das canções que sabia ser
popular em todos os cantos. Uma melodia animada com um refrão que
todos conheciam. Sorri satisfeita ao ver que desafinei muito pouco. Meus
amigos aplaudiam ao fundo, e aquela sensação encaixou em um espaço
vazio que eu nem sabia que tinha.
Eu estava guardando meu instrumento, a fim de dar espaço ao próximo
artista, quando ouvi uma voz familiar se dirigir a mim.
— Você foi maravilhosa, parece que nasceu para isso.
Meu peito gelou e eu não sabia como me mover. Levantei devagar,
observando as botas gastas, a camisa de segunda mão e o inconfundível
cabelo vermelho escuro repleto de cachos que eu achava que só existir na
minha memória. Antes que pudesse compreender totalmente o que estava
acontecendo, uma voz animada cortou meus pensamentos. Uma jovem de
pele marrom tinha seu cabelo preso em longas tranças lisas e olhos
intensamente verdes.
— Um dia eu ainda aprendo a tocar um instrumento que nem você,
menina. — Ela falava tão rápido que demorei para entender o que dizia. —
Mas pensei em algo como uma flauta, ainda não sei. O que você acha,
Blaze?
— Blaze? — Eu podia ter ouvido errado. Eu definitivamente não
estava respirando. Não poderia ser. Ele não era daqui. Não é possível. Não é
possível. Não é possível.
E ainda assim, ele está aqui.
— Seu nome é Blaze? — A pergunta foi repleta de desespero junto a
uma esperança tola.
— E o meu é Molly, muito prazer. — A jovem estendeu a mão coberta
por luvas gastas e cobertas de terra. Retribui o gesto, sentindo a poeira roçar
nos meus dedos.
— Luna — falei por reflexo, sem consciência.
— Viu, ela tem nome de artista. Com certeza nasceu para isso! — Ela
deu um tapa nas costas de Blaze e gesticulou que iria pegar uma caneca de
cerveja.
— O seu nome é mesmo Blaze?
— Você tem dificuldade para memorizar nomes? — perguntou
enquanto seus olhos azuis perfuravam os meus.
Eu lembro dessa atitude sarcástica, desse olhar analítico, da sua
presença que preenche todo o ambiente.
— Não... É só que... Você me lembra alguém que conheço.
— Acho que me lembraria de alguém como você. — Ele apertou
minha mão e partiu em direção a Molly.
Zoey acenou na minha direção, nossa comida estava servida. Ela e Dax
esperavam por mim.
Meu coração pesou e não prestei atenção em mais nada pelo resto da
noite.
Blaze não se lembrava de nada. E ninguém acreditaria em mim. Ele
não acreditaria em mim. Eu precisava que ele soubesse? Como ele veio
parar aqui?
Não sabia como eu me sentia. Eu seria capaz de ainda ser apaixonada
por alguém que não sabia quem eu era? Perguntei ao meu coração. Sua
resposta veio em silêncio.
Eu imaginei que meu maior desafio seria chegar a Cinaéd. Encontrar o
desaparecido herdeiro de Bólius. Destruir a teia que Caleb construiu no meu
reino. Cumprir meu acordo com Sienna e Peribelle.
Não imaginei que a batalha mais difícil aconteceria dentro de mim.
Agradecimentos

Esse livro começou como uma brincadeira, e terminou como um sonho


que agora se torna realidade.
Agradeço a você, leitor, por me deixar ser parte do seu imaginário de
fantasia. Espero que assim como a Lunara, você saiba escolher seu destino.
Agradeço ao Gimmy, meu amor em todas as vidas, por sempre acreditar
em mim.
Agradeço à Nadja Lírio, por ter me condecorado a continuar espalhando
magia pelo mundo e por ter me ajudado a lapidar Era de Sombras e
Lembranças.
Agradeço à minha mãe por todas as vezes que incentivou meu amor por
contos de fadas.
E finalmente agradeço ao meu pai, que nunca lerá essas palavras, por
me levar para assistir “O Senhor dos Anéis” no cinema quando eu era
criança. Ele disse que se eu entendesse o que significava a sociedade do
anel, me daria o presente que eu quisesse. Eu pedi um cachorro. Não
ganhei um cachorro. Mas ainda assim, levei no meu coração algo especial:
a vontade de contar histórias.

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