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Poucas coisas são tão bonitas quanto uma sexta à noite. Ok, talvez
uma sexta à noite quando você está de férias. Mas a sensação de colocar
uma roupa por prazer e não por obrigação era libertadora. Saí do banho
cantarolando uma música chamada Nocturne, que Olívia havia me
mostrado na volta para casa, e me perdi na sua atmosfera deliciosa ao ponto
de quase me deixar levar entre o vapor da água e seu aroma adocicado.
Fechei a porta da minha suíte e abri o armário para pensar. Parecia o
hábito do meu pai, ele fazia o mesmo, mas com a geladeira. E eu tinha que
concordar com ele, não tinha nada para comer nesse guarda-roupa.
Me joguei na cama com o corpo ainda um pouco úmido e pensei no
que vestiria para ir ao cinema com minhas amigas. Lembro-me de um longo
vestido lilás e esvoaçante que usava no verão, enquanto passeava pelo
jardim de rosas que minha mãe mandou plantar para mim quando descobriu
que estava grávida. Ela me contava que o reino ficou em festa pela primeira
vez desde que a guerra começou, tanto que decidiu construir o jardim mais
afastado do castelo, para que todos pudessem agendar uma visita. Menos no
dia do meu aniversário, esse era o dia em que só nós três íamos passear por
entre o perfume das rosas... Foi ali que eu finalmente convenci meu pai de
que a guerra deveria acabar. Que não deveríamos buscar uma vitória, mas
um fim. Eu tinha dezesseis anos. Ele sorriu e beijou minha testa com
orgulho, e em duas semanas ele e minha mãe partiram.
Eles foram para tão longe.
E agora estão tão distantes.
Eu ainda tenho tanto, tanto a lhes dizer...
Mas eles estão distantes demais.
Limpei uma lágrima assim que ouvi uma batida suave na porta, era
minha mãe.
Claro que era minha mãe, Diana Montecorp, também conhecida como
a melhor-mãe-do-mundo-quando-está-de-bom-humor, estava bem aqui para
avisar que Olívia chegara.
— Pode entrar! — gritei meio atrapalhada enquanto ajeitava o roupão
e limpava as lágrimas do rosto.
— Se você for assim, vai acabar lançando moda, e eu não tô nada
preparada pra ver todo mundo de roupão. — Olívia sorriu me provocando, e
eu só pude reagir com uma careta.
— Eu não sei o que vestir. Estava pensando em um vestido lilás, mas
acho que só imaginei ele.
Tem uma chance de ela ter percebido que eu estava emotiva, e logo
começou a passar as mãos por meus cabides.
— Usa esse aqui! Só colocar uma jaquetinha que vai ficar linda! —
Ela disse enquanto segurava um longo vestido lilás de cetim, com alças
finas e uma fenda na perna. O tom era exatamente como eu tinha sonhado,
até pisquei duas vezes, sem acreditar.
— Sim, esse vai ficar perfeito! Pega a jaqueta preta que vou me
maquiar rapidinho.
Passei o corretivo nas áreas mais escuras em volta dos olhos, blush nas
bochechas, um batom cor de boca nos lábios e uma camada leve de rímel.
Coloquei o vestido, borrifei meu perfume preferido – leve e adocicado – e
por fim soltei meu cabelo que estava preso em um coque, deixando as
ondas levemente rubras se formarem em volta do meu rosto. Me olhei no
espelho e me vi. Por vários dias, em meio a provas e tarefas – em meio à
própria guerra –, não me reconheci. Não tinha tempo para isso.
Eu esquecia como era fácil me parecer com a imagem que eu tinha de
mim mesma.
— Bem melhor, hein? — Olívia me passou a jaqueta. — Muito bom
ser amiga da mulher mais bonita do mundo.
— Aham — respondi, revirando os olhos. Olívia usava uma camiseta
amarela por baixo de uma salopete preta com um coturno estampado de
cobra. Era a própria imagem da It Girl parada à minha frente. Suspirei.
Definitivamente, eu admirava demais as pessoas à minha volta. — Você
está maravilhosa. Aposto que Íris também... A gente vai roubar alguns
olhares hoje. — Do jeito que ela sorriu, sabia que ela mal podia esperar por
isso.
Nós três finalmente pegamos o metrô, que era do lado da casa da Íris, e
fomos conversando sobre todos os assuntos que se passavam pelas nossas
cabeças: O que faríamos nos nossos aniversários, o caráter volátil das
pessoas – especialmente do ex da Íris quando se trata de se comprometer
com o sentimento dos outros –, de uma loja linda que tinha fora do país e
que o frete para cá era surreal. Não falei dos meus sonhos e visões como
algo mais que um desejo longínquo, mas também não disse o quão presente
eles estavam na minha mente.
O Cinema da Estação ficava em frente a uma praça repleta de
restaurantes e bares, e depois de muito chorar assistindo La La Land,
decidimos recuperar o ânimo com batatas fritas e cerveja. Olívia e Íris
reclamavam que era muito amargo, e não vou mentir, eu as zoava por isso.
Elas tinham o paladar superadocicado, e eu... Bom, eu estava acostumada a
sabores consideravelmente mais amargos em circunstâncias totalmente
tensas. Tiramos algumas fotos para postar e logo chamamos o garçom com
nosso pedido.
— Sinceramente, se eu realizar meus sonhos que nem a Mia, não vou
estar nem aí para quem não soube ficar do meu lado — constatou Íris, entre
uma batata e outra.
— Você jura que foi esse efeito que o filme teve em você? Acho que se
eu revir meu Sebastian numa circunstância como aquela, eu me acabo de
chorar. — Olívia não estava mentindo, ela tinha chorado bastante já. — Não
sei se dá para amar duas pessoas.
— Claro que dá, eu amo vocês! — Talvez eu tenha falado isso mais
alto do que deveria. Mas é claro, eu estava um pouco alta. Elas não tinham
desculpas pra essa vibe deprê. — E pelo visto tem alguém ali de olho na
gente — disse em voz baixa, sinalizando com a cabeça. — Então talvez dê
para amar três de uma vez só também.
Nós rimos e disfarçadamente – mentira, elas não sabiam ser discretas –
e olhamos para uma mesa mais ao fundo do bar, onde alguns rapazes
reparavam no quão lindas nós éramos. Ah, homens. Um deles usava uma
camisa branca que realçava a pele castanha-avermelhada, olhos levemente
repuxados que o faziam parecer indiscutivelmente gato, especialmente com
sua cara de artista que não valia um centavo. Ele veio até nós, deu o maior
sorriso de cafajeste que já vi e perguntou se poderia sentar conosco.
Nos entreolhamos, o semblante de Olívia brilhava de um jeito que só
me restou dizer “sim”. Não demorou até que seus amigos se juntassem a
nós e que continuássemos a falar de filmes, séries e músicas. Ótimos
tópicos pra conhecer alguém e procurar por um pingo de afinidade. E tenho
que admitir, eles eram divertidos. E bonitos também. Não perguntamos seus
nomes, mas também não pretendíamos usá-los.
Íris beijou um deles assim que ele declarou que sua frase favorita era
“you are my person.”
Olívia cedeu no momento em que o artista de um centavo contou sobre
um festival de música que foi no Texas e de sua experiência transcendental
durante o show com o misto de luzes ao pôr do sol.
Aham, transcendental era a língua dele na boca da minha amiga.
O terceiro rapaz me contava sobre o mochilão pela Patagônia que ele
faria em algumas semanas logo que mencionei minha ida para a Noruega.
Era adorável como separávamos nossos melhores momentos para
parecermos interessante aos olhos de outro alguém. Um desconhecido que
não se importava com a gente, mas queríamos garantir a melhor avaliação
possível. Como se nós fôssemos feito de brevidades, e não da rotina
massacrante. Mas era legal vestir essa persona. Contar essas histórias era
como se olhar no espelho e sorrir perante o que via.
Talvez fosse a segunda cerveja – eu não costumava ser forte para
bebidas –, mas logo notei que estava rindo um pouco demais de coisas que
não deveriam ser tão engraçadas assim. O homem olhou nos meus olhos, e
percebi no belo tom verde que ele me encarava de volta, assim como os
lábios finos e desenhados se voltavam na minha direção. Eu não havia
reparado em tais detalhes até então. Minha mente começou a se entregar a
possibilidades, mas antes que eu tomasse uma atitude, meu celular vibrou
em cima da mesa. Cortei nosso olhar para ver as notificações, uma
mensagem do meu pai e uma do Blaze confirmando sua ida à minha casa
em algumas horas.
O futuro mochileiro levantou delicadamente meu rosto e passou uma
mecha de cabelo para trás da orelha.
Meus pensamentos voltaram a ter uma forma definida. Eu não podia
continuar naquele bar... Sem condições.
E não era uma questão de querer ou não querer, eu só não confiava em
mim naquele estado.
Já estava enrolada demais.
E já era quase uma da manhã. Decisões precisam ser tomadas até meia
noite, ou só depois do sol nascer. Era a regra. Eu inventei aquela norma
naquele momento, mas parecia ser razoável o bastante para ser
implementada imediatamente.
Não sei se foi anjo da guarda ou fada madrinha, eu só sei que eu estava
prestes a deixar todo mundo na mesa irritado comigo.
— Gente, desculpa, mas sou a única que vai voltar para casa com elas
hoje — disse enquanto me levantava da mesa com um movimento um
pouco mais brusco do que planejei, sacudindo os copos que estavam sobre a
mesa de madeira.
Elas não ficaram felizes. Eles, menos ainda, mas sinto muito.
Na real, não sentia não. Já tinha ouvido a vida inteira que era mandona
demais, mas sempre preferi pensar em mim como alguém decidida. Sentia-
me responsável por elas, e não ia deixar minhas amigas com estranhos. Dei
um pulo no banheiro logo depois que os rapazes se despediram e pegaram o
número delas. Eu não dei o meu.
E de novo, talvez fosse a bebida, talvez fosse o sono, mas perto da
bancada do bar havia alguns panfletos, um deles me chamou atenção. Uma
folha pequena e vermelha com uma lua cheia desenhada, como se fosse
uma carta de tarô, e a frase: “Se conecte com a sua essência e vá para outra
dimensão”. A arte era bonita, e por impulso o guardei na minha bolsa.
Pagamos a conta e logo um Uber nos deixou em casa. Lembro-me de
apagar na cama, e nem me lembro se meu pai me deu uma bronca ou não.
Provavelmente não, ele confiava em mim. Sempre confiou em
absolutamente tudo.
Me despedi de papai com a certeza de que ele estava com tudo o que
precisava em sua mala de mão: Um snack saudável, o remédio da pressão e
um amuleto que fiz para ele quando tinha 6 anos numa atividade da escola.
Ele me deu um beijinho na testa e saiu rapidamente do elevador para
me lembrar que tinha uma lasanha no freezer e uma salada fresca na
geladeira. Sempre pesava um pouco o coração vê-los ir trabalhar. Me
pergunto quantas vezes eles também não sentiam o mesmo quando eu saía.
Provavelmente bem mais.
Ainda doía a lembrança de quando meus pais se despediram de mim
para comparecer à frente da batalha. Eles me abraçaram forte na câmara
real após uma árdua conversa com todas as informações das quais eu
precisaria caso eles não voltassem.
Nenhum dos dois me deixou expressar tristeza ou soltar uma lágrima.
Isso era sobre Montecorp, e não sobre a nossa família, era sobre milhares de
outras e os erros que nossa dinastia precisava corrigir.
Foi nesta despedida que minha mãe me entregou sua coroa favorita, a
mesma que acabei usando na minha coroação. Não que ela estivesse lá para
ver. Não fisicamente, pelo menos. Mas de forma simbólica, ela estava mais
presente que qualquer outro membro da casa real ou da nobreza,
lembrando-me de manter a cabeça erguida por toda a cerimônia.
A última vez que nos vimos, eu ainda sentia o calor de suas mãos
carinhosas na minha cabeça. Ainda ouvia suas palavras no meu ouvido:
“Nós voltamos logo, princesa.”
Esperanças e mentiras entrelaçadas. Nós três sabíamos disso.
A última vez que os vi, eles eram escoltados pela cavalaria real e
marchavam com bandeiras prateadas em direção aos portões da cidade. Era
injusto como meu avô havia levado a guerra até o território do fogo,
mantendo Montecorp intacta e sem contato com o mundo. Banhada na
escassez crescente a cada ano.
Era estranho como doía tanto. Perder algo que nunca tive.
Dei-me conta de que já eram três da tarde e não só ainda estava com
roupa de correr, como também essa roupa estava suja de molho de tomate.
Corri para tomar um banho, passei meu hidratante favorito e um
perfume floral. Não sabia o que a ciência falava sobre aromaterapia, mas
com certeza me sentia mil vezes menos melancólica.
Independente disso, eu realmente estava ansiosa e atrasada. Péssima
combinação. Sinceramente, às vezes parece que o tempo não fica do meu
lado.
Então, se me perguntassem se foi proposital ter escolhido um vestido
branco e justo de alças para passar a tarde estudando, eu respondo que foi a
primeira coisa que achei no armário. Afinal, quem não gosta de usar só um
vestidinho de malha para ficar confortável?
Fui até a penteadeira e repeti a mesma maquiagem da noite anterior.
Leve, suave, só ressaltando o que eu tinha de mais bonito, os cílios longos,
os lábios desenhados e as bochechas rosadas. Tive que usar um pouco mais
de corretivo para cobrir as olheiras de ontem, mas no geral olhei no espelho
e me achei linda.
Faltava um minuto para o horário combinado quando a minha
campainha tocou. Que bom, Blaze não teria nenhuma desculpa para se
atrasar. Ao abrir a porta, vi que se eu estava aparentando estar bonita sem
esforço, ele aparentemente já era lindo sem sequer pensar sobre isso. Estava
usando uma camiseta com uma estampa psicodélica em tons de azul e
cinza, que adorei, e uma calça preta. Ele deixou o chinelo na porta de casa e
deu um beijo no meu rosto. Senti meu rosto ficando quente, e assim que dei
o primeiro passo, fechei a porta.
Imediatamente eu não sabia bem como lidar com a situação. Nessa
tarde, havia uma coisa que eu queria muito fazer e uma coisa que eu não
queria fazer nem um pouco. Eu odiava ter que me debruçar sobre assuntos
tão insuportáveis enquanto estava perto dele. Como eu poderia demonstrar
minha vasta inteligência nos assuntos em que eu tinha habilidade? Se ao
menos nós pudéssemos estudar anatomia, haveria um detalhe ou dois que
eu adoraria repassar com ele. Suspirei, buscando analisar o teto, a parede,
qualquer coisa que me fizesse ter foco novamente. A voz da razão e a
recompensa de alguns momentos de folga falou primeiro.
— Se importa se a gente estudar no meu quarto? Meu material já está
lá e a luz é... melhor? — Essa era a pior e mais patética frase já dita no
universo, e eu sabia disso.
— Jura? Pensei que a gente podia sentar aqui no sofá, a uma distância
respeitável, para discutir a matéria. — Ele sorriu pra mim já cruzando a
sala. De fato, ele sabia o caminho.
Peguei água para nós dois e, ao chegar no quarto, confesso que fiquei
frustrada ao vê-lo organizando a mesa com livros e cadernos. Ele não deu
nenhum sinal de que queria algo além de estudar. Será que eu estava
interpretando os sinais de maneira errada? Não seria a primeira vez.
Foquei ao máximo enquanto ele me explicava sobre funções e
amostras gasosas. Sentia que, a cada tópico que ele falava, ficava mais
difícil respirar. Não sei se pelo exagero do conteúdo ou se pela forma que
ele sorria de lado, como se tudo fosse a coisa mais óbvia do mundo. E
definitivamente não era.
Quando finalmente acertei oito de dez questões, implorei para
fazermos uma pausa como uma recompensa. Só vinte minutos para olhar
para o céu e ver o pôr do sol. Já passava das cinco e meia da tarde, e eu
podia ver da minha janela como o mundo começava a aquarelar em tons de
laranja e púrpura. Bebi o último gole d’água do meu copo e levantei para
contemplar o horizonte.
Respirei fundo. Ouvi o som da cadeira arrastar no chão, e sabia que ele
estaria atrás de mim, possivelmente admirando a vista. Com sorte, não só
ela. Ok, era patético o quanto eu queria que ele me beijasse. Não que fosse
dizer isso em voz alta. Pode ser só um orgulho bobo, mas era o meu orgulho
bobo, e eu não estava disposta a deixá-lo de lado.
Sua presença me fazia sentir observada, e por mais que eu quisesse que
ele me olhasse, não queria transparecer isso de um jeito óbvio. Joguei meu
cabelo para o lado, torcendo para o movimento parecer natural como
sempre foi, e vi de soslaio as mechas rosadas caírem sobre meus olhos.
Blaze me encarou de volta, sorriu e se aproximou mais um passo, de
forma que agora sentia também sua respiração em meu pescoço.
— Você toca? — Ele apontou para o violino apoiado no canto da
minha cabeceira.
— Não, é uma peça decorativa, sabe? — Sarcasmo era como uma
segunda língua.
— Posso ouvir você tocando?
Eu neguei, mas ele deu um passo para trás e juntou as mãos no peito
como se estivesse implorando, e o argumento foi bom o bastante para me
fazer afinar o instrumento e trilhar algumas notas. Meus dedos reclamaram
ao deslizar nas cordas de aço. Há quantos dias eu não praticava? Poderia
fazer mais de uma semana agora?
Girei os pulsos e testei o balanço do arco nos meus dedos.
Infinitamente mais reconfortante do que uma espada. Respirei fundo,
buscando minha concentração aflorar, então meus músculos se
transformaram em uma bússola e deixei a melodia fluir caminhando para o
norte.
Clair de Lune.
A mesma canção que me acompanhou por um ano, mas ainda assim,
minha performance dela não tinha sido boa o bastante para assegurar minha
vaga e garantir que eu pudesse seguir meu sonho.
Imaginei que as horas de prática e o trauma da reprovação teriam me
feito odiar essa canção. Mas o contrário aconteceu. Éramos cúmplices.
Meus pais e minhas amigas acompanharam meu ciclo de dedicação e
decepção. Mas só essa música viveu comigo todos esses momentos de
perto. E eu gostava de acreditar que ela curtia existir através de mim. Por
mais etéreo que isso pareça.
Meus dedos conheciam as notas, mas meu coração conhecia a melodia.
A trama de esperança e saudade que celebrava a luz da lua prateada. Uma
canção sobre voltar para casa e pertencimento.
E como sempre, me dei conta de que chorava enquanto fazia a música
perpetuar no isolamento do meu quarto, trazendo-me por alguns instantes o
propósito que eu tanto buscava em outros momentos da vida e só
encontrava quando o violino tinha seu gentil peso apoiado no meu ombro.
Quando terminei, Blaze tinha os olhos maravilhados. Sem ar. Sem
palavras.
— Você nasceu pra isso, Luna. — A admiração na sua voz fez minhas
pernas balançarem.
— Já pensei assim, mas aparentemente a banca da faculdade de música
discorda.
Ele não conhecia esse lado da minha história.
Não sabia por que era tão sofrido ser obrigada a aprender coisas que
não faziam sentido. Voltei para a janela, distraindo os pensamentos com as
cores do horizonte.
— Você não acha um pouco óbvio demais que a princesa more na torre
do castelo? — Se ele queria me roubar uma risada, funcionou. Blaze passou
uma mecha de cabelo para trás da minha orelha, e senti um arrepio
enquanto ele desviava a atenção entre mim e o céu. Blaze parou bem atrás
de mim, e não sei se encostou propositalmente os braços na minha cintura.
Achei que ia paralisar com o seu toque, mas o efeito foi contrário. Me senti
estranhamente relaxada. Parecia… certo.
— É um jeito de ver. Tem suas vantagens morar no último andar. Mas,
felizmente, da última vez que conferi com o síndico, não tem nenhum
dragão me prendendo aqui. — No fundo da minha mente, ri da ironia em já
ter sido, de fato, vítima de um dragão. Mas não parecia um bom momento
para falar sobre isso. Na verdade, não parecia um momento para falar sobre
nada. Como se as palavras pudessem arruinar a sensação das borboletas
voando dentro de mim.
Virei o rosto para olhar nos olhos dele, e acho que parei
voluntariamente de respirar quando vi de perto seus tons de azul, o cabelo
levemente cacheado em um tom escuro de vermelho e a barba cerrada.
Senti suas mãos me envolvendo enquanto me virava suavemente,
colocando-me de frente para ele.
— Dificilmente, se eu fosse um dragão, estaria disposto a deixá-la sair
— ele sussurrou. Por um segundo, achei que realmente tinha dúvida em sua
voz enquanto subia seus dedos pelas minhas costas em carícias preguiçosas.
— Afinal, eles são colecionadores de tesouros, certo? — Era como se nossa
proximidade indicasse algo além do óbvio. Mas tudo bem, dois poderiam
jogar esse jogo. Passei meus dedos nas pontas dos seus cachos vermelhos
enquanto pensava no que dizer. Nenhuma palavra parecia encaixar. O
sorriso que fluía por mim estava arrepiando meu corpo inteiro.
— Eu posso te ensinar uma coisa ou duas sobre dragões, se você
quiser. — Ousei dar um passo mais próximo dele e senti seus braços me
abraçarem mais forte em resposta. Não contei o tempo, mas senti uma
eternidade em cada instante, como se tudo que existisse fosse a ponta dos
seus dedos na minha pele e o ritmo paciente da nossa respiração. Eu sabia
que estava em um daqueles momentos absolutamente perfeitos, mas ansiava
pelo que viria.
Eu sabia que meu olhar havia quebrado o silêncio assim que vi o brilho
refletido na forma que ele fitava cada parte do meu rosto, como se estivesse
memorizando cada detalhe. Senti seu polegar roçando meus lábios, como se
escolhesse o melhor ângulo para encaixar os seus.
— Me ensina o que sua boca sabe fazer além de falar coisas
maravilhosamente sem sentido — ele passou o polegar pelo meu lábio
inferior — e de lançar esse sorriso lindo.
Meu coração pulou uma batida. Pois bem, agora era então a hora dele
ter uma aula.
Seus lábios, que se repuxaram para cima como se pudesse ler o que
pensei, partiram-se em pura diversão quando finalmente me inclinei na
direção dele. Senti a tensão se misturar à coragem e ao desejo enquanto o
movimento sutil parecia encurtar a distância de um horizonte.
Era um daqueles momentos que eu congelaria se pudesse parar as
areias do tempo. Um raro instante onde absolutamente tudo parece estar em
perfeita harmonia.
Mas as areias continuaram a correr, e eu gostaria de não ter vivido o
que aconteceu depois.
Em um estalo, todo o clima se partiu, e vi seus olhos arregalarem ao
ouvir o barulho da porta de casa se abrindo, a tranca girando, os passos
quebrando tudo o que estava prestes a acontecer. Não acredito que alguém
estava chegando.
Meus pais deveriam estar fora até amanhã. Corri para o meu celular, vi
que havia algumas mensagens do meu pai avisando que o voo fora
cancelado e ele estava voltando mais cedo. Já passava das sete da
noite, quanto tempo a gente passou enrolando? Algo devia estar seriamente
errado nas engrenagens do tempo.
Muitas perguntas sem respostas. Verifiquei se meu vestido estava no
lugar certo –infelizmente estava – e coloquei um casaco por cima. Blaze
rapidamente pegou um livro que estava em cima da mesa e começou a
folhear aleatoriamente. Sentei de volta na cadeira rindo e, totalmente contra
a minha vontade, abri o livro de química inorgânica. Ainda tínhamos um
longo caminho pela frente. Blaze se sentou ao meu lado e deu um beijo
suave no meu ombro, seus olhos ainda em fogo. Dei um sorriso sem graça.
Um pedido de desculpas e um desconforto vazio.
Meu pai nem entrou no quarto, já que eu estava com a porta fechada, e
foi direto para o dele. Acho que eu e Blaze quebramos o silêncio suspirando
em alívio. Era difícil ouvir sobre as batidas estrondosas no meu peito.
— Não sei mesmo o que eu faria se meu pai entrasse aqui. — Eu
sorria, mas era de puro nervosismo misturado a uma insegurança sem
sentido.
— Eu não teria alternativa, a não ser falar a verdade e dizer que tenho
as piores intenções com a filha dele. — A gargalhada que soltei saiu
incontrolavelmente alta. — Honestamente, Luna, vou ter que te ensinar
tudo? — Ele piscou.
A promessa por trás daquela pergunta se firmou no meu peito até me
desfazer.
Capítulo 7
Eu ouvia meus pais reclamando sobre qual era local correto para se
guardar os garfos e colheres após lavar a louça enquanto folheava as
últimas páginas do livro que Íris tinha me emprestado, mas não pude evitar
sorrir ao perceber o quão boba era a discussão deles. Acho que depois de
trinta anos juntos, eles já tinham debatido todos os “assuntos cabeça” e
agora estavam só aparando as arestas da relação.
Parte de mim ficou impressionada em como eu tinha lido um livro
rápido. Mas, para ser franca, quando isso acontecia, era mais mérito do
livro ser bom do que meu por ser rápida.
Por mais que eu tivesse a memória distante de ler sobre dinastias
fantásticas, abençoada pelos deuses da natureza, eu gostava de pensar em
um certo reino de paz que teve seu início em volta de uma muda com folhas
prateadas, que viria a se tornar o símbolo de uma nação. A história vivia em
mim, e eu ainda me lembrava vividamente de cada uma das canções que
ouvíamos nos bailes, que contavam orgulhosamente sobre um legado
milenar de prosperidade. Os festivais da lua azul em homenagem à Deusa
de Prata, quando todo o povo se reunia como um só na escadaria do templo.
Lembro-me das canções entoadas pelos soldados nos acampamentos às
vésperas das batalhas, versões melancólicas dos breves dias festivos.
E ainda assim, nada do que eu sabia estava em algum lugar dos meus
livros de história ou em canto algum da internet.
Eu achava que minhas lembranças iriam esmaecer, mas a cada
momento eu me sentia mais lá do que aqui. Talvez estivesse sonhando
acordada. Talvez minha cabeça estivesse explodindo de novo, ao ponto de
pensar que era impossível não ter nenhuma relação com esses pensamentos
que soavam tão estrangeiros e tão familiares.
Talvez estivesse enlouquecendo.
Mas enquanto me acostumei com a ideia de ir para o “Restaurante no
Fim do Universo” que foi citado no Guia dos Mochileiros das Galáxias, o
livro chegou ao fim em meio aos meus pensamentos confusos. Mas me
apresentou uma ideia interessante. Talvez o tal “gerador de improbabilidade
infinita” realmente existisse. Talvez houvesse outras dimensões e coisas
absurdas do tipo.
Eu não era muito boa em física, mas sempre buscava deixar minha
mente aberta para possibilidades impossíveis. Lembrei, então, que eu
conhecia uma pessoa que seria incrível para tirar essa dúvida.
Peguei meu celular e, sem pensar muito, deixei meus dedos falarem
por mim.
O livro seria um bom motivo para falar com ele. Eu estaria a sós às
cinco horas da tarde, e antes que pudesse repensar, enviei a mensagem com
o convite.
“Tem como acelerar o tempo?”
Foi sua única resposta.
Ele poderia ter respondido com “sim” ou “não”. Mas eu sabia que era
nesses detalhes que ele me ganhava de novo e de novo.
Ok, o encontro estava marcado. Eu era tola demais pensando que ele
estava caindo de amores por mim também? Não era inocente, sabia que ele
claramente me desejava. E isso era estupidamente recíproco. Mas amor? Eu
não sabia nem se eu sentia isso. Se já havia sentido por alguém. Não sabia
se era aquele tipo de coisa que a gente simplesmente sabe, ou o tipo de
coisa que se constrói. Também não sabia mais se o que eu sentia era atração
ou esperança. Uma mistura violenta dos dois, com certeza. Ele já ocupava
meu pensamento 95% do tempo, isso precisava significar alguma coisa.
Avisei que meus pais não estariam em casa. Basicamente o convidei
para me servir em uma bandeja de prata. Nossa relação era para ser apenas
casual, mas acredito que as coisas evoluem para fora do nosso controle.
E sinceramente, eu não queria controlar nada. Pela primeira vez eu só
queria me deixar levar, como uma folha em meio à tempestade. Eu não
sabia se meu coração poderia suportar essa paixão. Não queria confessar
isso em voz alta nem para mim mesma. E ao mesmo tempo, tinha
momentos no dia em que eu só queria me perder sonhando com seu toque
indiscreto e curioso pelo meu corpo, com a forma como seus olhos
pareciam ver a verdade através dos meus e como quando ele falava comigo
parecia simplesmente encaixar todas as minhas questões em seu devido
lugar.
Capítulo 9
Assim como o crepúsculo veio, logo viria a aurora. E entre eles havia
apenas nossas palavras sopradas ao vento e nossa troca indiscreta de
olhares, que insistia em gritar tudo o que o vocabulário não alcançava.
Achava curioso como algo tão etéreo como um pensamento se transformava
em memória a cada instante que se tornava parte da minha história.
Trocamos promessas de futuros impossíveis, assim como cada toque
tinha o sabor do infinito.
Estávamos na hora mais escura. Bem aquela que antecede o
amanhecer, quando não havia mais o que se falar. Nossos corpos já
ansiavam por prazer, e eu não fazia ideia de como aguentamos tantas horas
apenas trocando beijos e carícias deitados na rede, no sofá e na cama do
meu quarto.
— Você precisa aprender a ser mais paciente, Luna. Ninguém te falou
que o prazer é algo criado nos braços da expectativa e que ali ele cresce? —
ele disse, como se fosse óbvio, entre um beijo e outro.
— Eu aprendi que tem outras coisas que crescem na metade do tempo,
mesmo que você faça o possível para desviar minha atenção — respondi.
Blaze segurou minha mão que descia para baixo da linha do seu abdômen e
segurou meus pulsos acima da minha cabeça.
Ele respondeu com um beijo que desceu pelo meu pescoço até a curva
dos meus seios. Eu o xinguei por isso, mas ele não pareceu se ofender.
A meia-luz amarelada do meu abajur refletia nas minhas cortinas
longas esvoaçando com o vento gelado daquela noite, causando breves
arrepios na nossa pele.
Eu sentia como se o mundo estivesse, por fim, parado. Minha
paciência já havia terminado há muito tempo, e aparentemente a dele
também. Como se, por pura sensatez, o tempo tivesse suspendido suas
atividades, dando licença a dois apaixonados. Nos despimos como se
praticássemos uma dança ensaiada, onde ele ora conduzia, ora me deixava
liderar. Absolutamente cada movimento dele me fazia contorcer em sua
direção.
Eu sei que combinamos de só conversar, mas a tal linguagem do corpo
estava gritando. E a única coisa da qual eu tinha certeza era que morreria
dessa sensação se ela fosse letal. E recusaria qualquer chance de
salvamento.
Eu poderia jurar que Blaze lia minha mente, pois não havia uma outra
forma de suas mãos firmes adivinharem tão bem qual parte do meu corpo
mais precisava da sua atenção. Eu o senti firme contra mim, e sorri ao ver
como ele fazia minhas mãos parecerem delicadas e frágeis. Felizmente, de
frágil eu não tinha nada, e eu soube que ele percebeu isso quando me
levantou sobre seu corpo e o leve toque das suas mãos descendo minhas
costas foi o suficiente para me arrepiar por inteira.
Assim que ele percebeu — e se deliciou com meu corpo se contraindo
contra o dele –, senti as palmas quentes de suas mãos me abraçarem em um
movimento gentil e sedutor enquanto encaixou minhas pernas abertas sobre
ele, esperando que eu fizesse o movimento final.
Eu poderia queimar viva. Não tinha certeza se já não estava em
chamas.
Segui o ritmo e fluidez do seu movimento, descendo até onde eu
aguentava. Não podendo mais suportar um segundo de tensão, deixei que
nossos corpos seguissem seu ritmo natural, cada vez mais intenso. Cada vez
mais profundo. Nossas respirações eram ofegantes e o único som que saía
dos meus lábios eram os gemidos que escapavam entre nossos beijos.
Não senti quando Blaze me deitou na cama, seus olhos como labaredas
ao observar cada detalhe do meu corpo. Ele mordeu meus lábios em um
beijo terno, que desceu pelo meu pescoço, meus seios, fazendo cócegas na
lateral da minha cintura e finalmente calando minha risada quando voltou a
dar atenção para o calor pulsante que o aguardava entre minhas pernas.
Mordi meus lábios para tentar conter meu gemido, em vão.
Blaze parecia feliz em me torturar daquela forma, até que eu me sentei
na cama e indiquei para que se levantasse.
Aproximei seu corpo do meu com as mãos. A altura era apenas
perfeita para que eu o beijasse em toda a sua extensão, enquanto isso ele
gentilmente afastava as mechas rosadas do cabelo para trás do meu rosto.
Eu sabia o quão persuasiva poderia ser, mas não havia nada que se
comparasse ao argumento que saía dos meus lábios. E vi que ele concordou
comigo quando me deitou na cama, seu olhar um misto de impaciência e
urgência, e novamente voltou a me penetrar. Era como se cada parte do meu
corpo estivesse agradecendo por seu toque. Como se cada parte de mim
demandasse que ele mantivesse esse mesmo ritmo hipnótico enquanto eu
delirava em transe. De novo, era como se ele pudesse ler minha mente,
dando atenção a cada parte de mim que clamava seu toque. Alcançamos o
prazer ao mesmo tempo e me aconcheguei em seu peito quando ele
finalmente deitou no travesseiro ao meu lado.
Entrelacei sua mão na minha, as pontas dos dedos ainda dormentes.
Era como se meu espírito flutuasse enquanto olhava nos seus olhos, agora
em um tom de azul escuro conforme a luz tênue do meu quarto refletia.
Seus cachos avermelhados estavam uma bagunça, e aposto que eu também
estava. Não importava.
Não sei por quanto tempo ficamos em silêncio. Talvez por já termos
conversado sobre tudo horas atrás, ou então por estarmos sem palavras. Ele
passava as mãos pela minha cintura, subindo pela lateral do meu seio até
chegar no meu colar. A forma que ele analisou a pedra vermelha me deixou
curiosa.
— Você fica ainda mais linda quando está só com isso aqui — disse
quando deu um beijo na minha testa. Meu peito ficou quente sob seu toque,
de algum jeito ainda mais íntimo do que todos os outros que havíamos
trocado.
— Eu o tenho desde... — Não sabia desde quando. — Desde
sempre. Acho que faz parte de mim, não sei explicar.
— Mas é claro que você teria um item misterioso, não é? Se não te
conhecesse, diria que saiu de um livro. É mesmo como uma princesa
perdida.
Parte de mim ficou gelada com essas palavras. Como se minhas
lembranças penduradas exigissem minha atenção em um momento em que
eu realmente não queria. Aquilo era real. Eu, Blaze, a incerteza de um
futuro na faculdade. Era um futuro sem propósito, mas que se desdobrava
perante a mim.
Devo ter ficado em silêncio por tempo demais, seus olhos estavam
fechados, mas seus dedos ainda faziam caricias preguiçosas na minha
perna. Então, só respondi:
— Blaze, desenhe-me como uma das suas garotas francesas.
Ajeitei-me para deitar de lado na cama, com a cabeça sobre minha
mão. O ar de deboche, como sempre, o fez cair na gargalhada enquanto ele
me abraçava e me beijava novamente.
— Você também tem cara de príncipe de um jeito óbvio demais, sabia?
Sempre pensei isso — comentei e afastei o cabelo do seu rosto enquanto
observava suas sardas. Ele franziu a testa, tentando decidir se minha
declaração era um elogio ou não.
— Achei que tínhamos decidido que eu seria o dragão que a mantém
como um tesouro na torre. Mas, se precisar de um príncipe para salvá-la,
pode contar comigo também.
— Acho desnecessário, já sei me cuidar sozinha. — Eu ri, mas estava
falando sério. E como se quisesse provar que eu estava errada, ele me
beijou ainda mais intensamente e se levantou de súbito.
Ah, claro. Era esse o ponto que ele queria provar agora.
— Ok, princesa, vou deixar você se cuidar, então. — Ele vestia a calça
e ajeitava o cabelo enquanto só fiquei sentada assistindo o espetáculo. Ele
certamente achava que estava enganando alguém, mas não a mim.
— Ok, talvez eu precise de você… para algumas coisas e só. — Puxei
o lençol branco para me cobrir enquanto me ajoelhava na cama. Um convite
silencioso para que retornasse.
Ele não pensou duas vezes antes de se deitar ao meu lado e voltar a me
beijar sem parar.
— Eu fico, mas você tem que me prometer uma coisa. — Levantei
as sobrancelhas e esperei que continuasse. — Você nunca mais vai se cobrir
perto de mim se tiver a possibilidade de estar nua, ok?
Não pensei duas vezes antes de deixar de lado qualquer símile de
timidez que ainda podia haver em mim. Em um beijo murmurei “ok” e ele
me abraçou mais forte em resposta, jogando o lençol no chão e se deitando
em cima de mim.
Eu sabia que a noite estava prestes a terminar, mas não queria.
Eu sabia que noites como essa não se repetem nunca. Eu sabia, de
alguma forma, que seria a última vez que viveria um momento assim.
Capítulo 10
Mal dormi naquela noite. Minha cabeça doía demais graças ao choro
que mantive preso. Não vi o sol raiar com as cortinas espessas fechadas. Eu
queria ver a forma que os raios incidiam na copa das árvores ao lado de
Blaze, fingindo que o tempo não iria impor sua crueldade eterna sobre nós.
Mas nem tudo é como a gente quer.
Ou melhor, nada é como a gente quer.
Deixei o cansaço me convidar ao esquecimento e fechei os olhos
tentando cessar meus pensamentos. Até que uma batida na porta me trouxe
à realidade no que pareceu ser um instante depois.
— Luna, hora de acordar! Já são dez e meia da manhã e você ainda
não arrumou a mala. — Mamãe, pelo tom, estava impaciente. Ela sempre
ficava assim no dia de viajar. O que não fazia sentido para mim, já que esse
era literalmente o dia a dia dela.
— A menina está cansada, Diana. Deixa que eu falo com ela.
E assim papai entrou no meu quarto escuro. Esforcei-me para me
sentar na cama, esfregando os olhos. Era como se um caminhão tivesse
passado por cima de mim.
— Bom dia, princesa dorminhoca. — Meu apelido na infância, mais
do que merecido. — Fiz um café bem forte para você se animar e fazer sua
mala em tempo de não pirar sua mãe, que tal?
— Café parece um jeito certo de começar o dia. — Meus olhos não
abriram muito, mas meu sorriso, sim.
— Lunara, não esquece que a primeira coisa que vai na mala é o...
— PASSAPORTE! — eu e papai falamos em uníssono. Quando fiz
dezesseis anos, esqueci o passaporte em casa, o que nos fez perder o voo e
uma boa grana em passagens de última hora. Desde então, ele sempre
repetia esse mantra no dia das férias.
Consegui reunir forças depois do café que meu pai trouxe no meu
quarto, junto da minha habitual mala vermelha. Felizmente, o sol não me
incomodava tanto. O mundo parecia fazer sentido de novo. Eu só precisava
ter foco, fazer as malas e ficar pronta para sair de casa às quatro da tarde.
Mamãe foi para seu quarto fazer uma hidratação no cabelo e logo
puxou meu pai para seu SPA em casa. Achava fofo como eles cuidavam um
do outro.
Abri a mala no chão e comecei a dobrar alguns vestidos aleatórios que
eu tinha certeza de que iam funcionar para qualquer passeio. Um biquíni,
um par de chinelos, uma botinha confortável e a mala já estava
praticamente pronta.
A não ser pelo passaporte! Droga, eles tinham razão.
Fui até a primeira gaveta, onde guardava todos os documentos e
cartões, e peguei sem nem precisar olhar seu interior. Nas minhas mãos, em
vez da usual capa azul, vi um panfleto vermelho um tanto quanto amassado,
familiar. Um desenho antigo, como o esboço de uma lua crescente, atraiu
meu olhar. Lembro-me de me sentir flutuando quando peguei esse papel no
bar, noites atrás, mas só agora parei para reparar com atenção.
Caleb respirou fundo, passando a mão pelos cabelos. Olhei para ele, e
felizmente tive uma resposta antes que eu precisasse formar uma pergunta.
— O nome dela é Anna. Até ser recrutado para o campo de batalha, ela
era a luz de esperança que eu tinha no mundo. Minha certeza em um futuro
melhor... Tudo mudou quando tive que partir. Na incerteza da morte,
ofereci-lhe a vida. Deixei-a livre para que seu coração seguisse seu
caminho. Não queria lhe preocupar ou lhe deixar viúva antes do casamento.
Anos se passaram, e só pude imaginar duas coisas: Ou ela me tomava
por morto, ou tinha seguido seu caminho. Já havia desistido de nós. Eu a
tinha como uma boa memória em meu coração nos dias que me permitia
pensar em coisas boas.
Quando te conheci, vi uma chance de finalmente começar a vida,
Lunara. Uma chance de finalmente voltar para casa. Mas acabei me…
envolvendo com você. Isso confundiu minha mente, afinal você era, digo, é
minha rainha. No fundo, sempre soube que não existia um futuro para nós
dois. O que tivemos foi uma ilusão, e então você desapareceu.
Foram tempos extremamente conturbados. Coisas inimagináveis
aconteceram nas primeiras semanas após seu sumiço. Logo me vi na porta
de sua casa, na periferia da cidade onde crescemos juntos. E tudo o que
sentia voltou de forma arrebatadora. Como se o sentimento não estivesse
adormecido, mas acumulado após tantos anos. Queria lhe agradecer por
isso, mas não achei que teria a oportunidade… até agora.
Um ano depois, eu me tornei pai, e mesmo com o mundo decaindo ao
nosso redor, eu me senti verdadeiramente feliz pela primeira vez em toda
minha vida. — Caleb possuía verdadeiro orgulho em seu olhar.
Toda uma vida de mortes e perdas. Caleb merecia essa alegria, é claro.
De todas as pessoas, foi ele quem derrotou Bólius. Ele que me presenteou
com a pedra do fogo. E poderia ser por puro egoísmo, mas não pude deixar
de sentir uma lágrima escapando pelos meus olhos.
Era reconfortante pensar que tinha alguém esperando por mim. Ainda
morava em mim alguma esperança de ter uma vida feliz, como ele mesmo
disse. Eu também tinha toda uma vida para lembrar e sentir falta. Um vazio
que eu sentia necessidade de preencher com algo que não existia.
Não me permiti pensar em Blaze, era dolorido demais. Em outro
momento eu poderia honrar sua memória. Se é que o que eu tinha com ele
poderia ser chamado assim.
Peguei as mãos de Caleb e disse com toda sinceridade:
— Fico muito feliz em saber que existe amor em sua vida. E pelos
seus serviços prestados a Montecorp, ficarei honrada se você aceitar ser
meu conselheiro real.
— Majestade, é uma honra poder servi-la novamente. — Seu sorriso
foi breve, mas aqueceu meu coração.
E com uma reverência, ele se despediu. Caminhei em direção à
biblioteca, entrando discretamente. Eleanor estava com Amon, então esse
encontro ficaria para mais tarde. Preferi ficar em uma ala silenciosa entre os
livros, recuperando-me de tudo que tinha aprendido sobre o passado que
não vivi.
O dia estava apenas começando, eu via pouquíssimas pessoas entre as
estantes. Mesmo assim, puxei meu capuz e apanhei o primeiro livro que vi,
sem me importar com o título. Duvidava que teria algum foco para ler
naquele momento. Apressei-me a adentrar em um dos casulos de leitura,
uma esfera individual pequena e aconchegante, com uma vista gloriosa para
o reino e uma porta com um sinal de “não perturbe” – que era o ponto alto
do local. Uma das minhas invenções favoritas. Aguardei os minutos
passarem enquanto deixava meus olhos se perderem com a vista para as
pradarias de Montecorp em um tom mais pálido do que eu me recordava.
Só tínhamos uma estação do ano agora?
Essa praga que assolou o reino podia não ser minha culpa, mas era
minha responsabilidade.
Fiquei alguns minutos pairando sobre minha autopiedade, evitando que
meus pensamentos escorregassem para meus lados mais sombrios.
Adoraria parar de choramingar e de lamentar, era patético. Eu
precisava conversar com o conselho e começar a agir como uma rainha. Os
últimos cinco minutos antes do início da reunião levaram uma eternidade.
Até então, eu só sabia como ser uma princesa, e essa verdade estremecia
meus ossos. Não foi para isso que Sienna me deu uma chance. Ou para isso
que Argrinis me mostrou sua compaixão.
Eu estava aqui pelo futuro. Mesmo que cada passo dele parecesse me
devorar.
Capítulo 19
O eco dos meus passos pelos largos corredores eram minha única
companhia. Meus aposentos tinham uma aparência totalmente diferente
desta manhã: Os tecidos brancos que cobriam os móveis não estavam em
nenhum lugar à vista, o ambiente parecia ter sido limpo recentemente e todo
o lugar tinha aroma de baunilha e lavanda. Eu deveria ter me alegrado, mas
o cheiro doce começou a fazer minha cabeça doer e pulsar. Memórias
demais retornavam a mim de uma só vez.
Passei os dedos pelas folhas entalhadas no dossel prateado da minha
cama, grande demais para uma só pessoa. No móvel da cabeceira estava o
mesmo retrato que sempre acompanhou meus sonhos. Meu pai, forte e
sorridente; minha mãe, com olhar determinado e rosto gentil; e eu aos dez
anos, inegavelmente feliz. O papel fotossensível havia sido criado
recentemente pelos alquimistas naquela época, e ficamos mais do que
felizes em testar.
Abracei o porta-retrato como se pudesse sentir o seu calor. Quando na
verdade tudo à minha volta parecia tão imperdoavelmente frio. Tantos
futuros eu imaginei, e agora não era capaz de vislumbrar nenhum. Havia
nomeado Caleb meu conselheiro, mas nem ele seria capaz de me dizer o
que eu precisava ouvir agora.
As lágrimas faziam meus olhos embaçarem, arderem e não paravam de
fluir pelo meu rosto. Sentia minha têmpora pulsar, e mesmo no desespero
de conter minhas emoções, fui domada por elas. A escuridão impiedosa me
embalava como um casulo.
Não me lembro de ter dormido, mas quando abri os olhos já estava
escuro. Senti um esgotamento muito forte, porém precisava de água.
Novamente parecia que cinzas pairavam em minha boca. E se haviam
trocado tudo no meu quarto, certamente teria uma garrafa fresca em algum
lugar.
Assim que me levantei, senti o cômodo rodopiar. Coloquei a mão na
cabeça e respirei fundo antes de tentar mais um passo. O breu não me
incomodava normalmente, a luz das estrelas muitas vezes bastava nas noites
sem luar. Mas isso também tinha mudado. Liguei a luminária, que
rapidamente acionou uma cadeia de chamas por todos os pontos de luz
integrados ao meu redor. Pequenos lampiões irradiavam uma luz
aconchegante e morna. O móvel próximo à escrivaninha tinha uma divisão
refrigerada, feita com sal, cristais e um elixir especial para manter a
temperatura fresca. As prateleiras estavam abastecidas com frutas secas e
castanhas. Felizmente encontrei copos, taças, água e vinho.
Água primeiro. Uma vez que a sede não era mais um problema,
senti necessidade de tomar um longo banho, como se ele pudesse renovar
minha alma. Cada parte minha sentia-se incompleta. Não porque faltava
uma peça, mas porque eu estava inteira e fui partida.
Tirei meu vestido e soltei os grampos que prendiam firmemente meus
cabelos enquanto a banheira enchia de água quente. Minha camisola branca
não estava mais de molho, mas passada e pendurada em um cabide junto ao
biombo. Meu pescoço estava ainda mais vermelho, a ferida do colar agora
começando a criar uma casca frágil. Trouxe o fecho para frente, a fim de
tirar o colar, uma vez que cada movimento meu exigia um esforço
descomunal. Não sabia se pela exaustão emocional ou se pela viagem
interdimensional. Pouco importava.
O colar escorregava nas minhas mãos de novo e de novo, e quando
finalmente consegui posicionar meus dedos sobre o fecho, ele estava
travado. Minhas unhas quebravam enquanto forçava alguma abertura. Mas
todos os elos que preenchiam a corrente eram aparentemente indestrutíveis.
Queria gritar. Queria implorar para alguém tirar esse colar do meu pescoço,
para que eu pudesse devolvê-lo e finalmente me livrar dessa praga. E
quanto mais o desespero tomava conta de mim, mais sozinha eu me sentia.
Meus pés molhados me tiraram do transe de agonia e me apressei em
desligar a água. Escorreguei e bati o joelho com força na lateral do
mármore, mas interrompi o dilúvio. A dor subiu pela minha perna,
chamando-me para a realidade: Não adiantava. Eu, sozinha, jamais poderia
tirar esse colar, precisava encontrar uma outra maneira. De preferência, uma
mais inteligente e menos agonizante.
A água estava quente demais, mas foi bem-vinda em cada parte
dolorida do meu corpo e espírito.
Fiquei ali até ver meus dedos enrugarem. Até a cabeça parar de latejar.
Até que não existisse nenhum pensamento na minha mente, enquanto
mantinha meu olhar fixo no teto.
Segurei a pedra do fogo, sentindo seu calor pulsar tão familiar.
O que eu faço com você?
Senti uma risada baixinha em mim.
O que eu faço comigo?
Capítulo 22
☾
Noite reluzia contra a luz da manhã. Um dos rapazes do estábulo
segurava as rédeas do animal, distraído enquanto acariciava seu nariz. Ele
prontamente reverenciou ao me ver, e eu agradeci assim que subi em sua
cela. Pelo seu olhar de surpresa, palavras de gratidão não eram comumente
ditas por aqui. O que me soava estranho depois de ter passado vinte anos
agradecendo absolutamente qualquer gesto que faziam por mim. Talvez
pudesse ser o início de uma boa mudança.
Eleanor liderava um grupo de cinco cavaleiros, cada um com duas
bolsas grandes presas ao flanco de seu cavalo. Imaginei que fossem as
sementes e os fertilizantes manipulados pelos alquimistas.
Coloquei meu cavalo ao lado dela e a cumprimentei baixinho.
— Eleanor, será um prazer te acompanhar hoje. Peço que me oriente e
delegue funções da mesma forma que os demais.
Um sorriso sutil passou pelo seu rosto indecifrável. Seu cabelo estava
preso em uma trança lateral, e mesmo em sua perfeição, alguns fios se
libertavam com a brisa. Meu coração apertou diante da lembrança de Íris e
Olívia; da sensação de seus dedos em meus cabelos nas infinitas tardes
despreocupadas que desfrutamos.
Voltei a mim quando a voz forte de Eleanor bradou o primeiro
comando à frente de todos. Eu precisava ser mais vigilante, a fim de não me
perder nos meus pensamentos. Eles só me causavam tristeza.
— Vamos até o vilarejo de Foz, onde está localizada a maior parte dos
fazendeiros. A ação acontece a cada dois ciclos lunares e, como sempre,
cada fazenda deverá receber cinquenta doses do tônico e cinquenta sacos de
sementes. São três horas de distância galopando, faremos paradas apenas na
volta. Assim que chegarmos, darei mais instruções. Acredito que seu animal
esteja devidamente alimentado e hidratado. Vamos!
Ainda que estivessem acostumados a Eleanor, os cavaleiros olharam
para mim em busca de aprovação.
— Seguiremos as instruções de Lady Van Doren. — Assenti, em
deferência a Eleanor, sinalizando que estaríamos todos seguindo suas
diretrizes.
Logo seu cavalo liderava o caminho, seguido por mim e por Noite, um
guarda pessoal da Coroa e os cavaleiros designados para a tarefa.
O caminho que fizemos passou pela estrada próxima à praça do dia
anterior, e mesmo em velocidade rápida, pude ver alguns acenos curiosos
em direção à sua rainha. Meu peito se aqueceu ao ver seus rostos.
Não. Não era para mim que olhavam.
Os acenos eram em direção a Eleanor, que cumprimentava a todos com
um sorriso que ainda não havia visto com meus próprios olhos. Quantas
vezes ela veio aqui suprir as necessidades de saúde e fome do meu reino?
Gostaria de sentir gratidão, mas ao ver a multidão que se formava para
saudá-la, senti inveja. Eu era o pior dos seres humanos por sentir inveja da
filha do meu nobre conselheiro, ainda mais pelo motivo dela ter cuidado tão
bem de todos enquanto eu estava ausente.
Lembrei-me de que ninguém podia ler minha mente, com vergonha do
que pensava e sentia, e ajustei minha postura o melhor possível. Obriguei-
me a sorrir e acenei com toda a graciosidade que havia aprendido, fazendo
o melhor para roubar a atenção. Havia desistido de tudo para estar aqui.
Tudo em nome do amor ao meu reino. E conquistaria seus corações
também.
Quando finalmente alcançamos a estrada, um campo de trigo adornava
os arredores, dourado contra o sol. Eleanor cavalgava ao meu lado,
explicando sobre a eficiência dos tônicos fertilizantes e como os alquimistas
conseguiam estabilizar as plantações até certo ponto.
Até ser o suficiente para o povo não morrer de fome. Foram suas
palavras nas entrelinhas.
Ela parecia saber tudo sobre as trocas de bens e capitais, e não tinha
nada além de orgulho em sua voz. Senti-me mais tranquila uma vez que ela
se dispôs a explicar tudo sem que eu pedisse. Ou ela estava mostrando sua
competência para sua rainha, como prova da sua capacidade, mesmo sendo
tão jovem… Ou ela estava se vangloriando de tudo que teve que fazer
graças ao dano que eu provoquei a Montecorp.
Seu rosto permanecia impenetrável, assim como as fortes sombras
provocadas pelo sol a pino. Seu sorriso seguia encantador a cada palavra
que pronunciava. Eleanor não era uma princesa, mas havia nascido com
todo o dom.
Chegando no centro de Foz, segui todas as instruções que deu aos
cavaleiros como se fosse um deles. Os fazendeiros cumprimentaram
Eleanor com um sorriso e um abraço. Não a vi agindo assim em momento
algum na corte. Isso me fazia pensar o quanto havia nela que não conhecia.
Apesar de ter sido apresentada a ela há pouco tempo, a sensação era que
eram pessoas totalmente diferentes.
Inspirada por suas ações, cumprimentei todos os súditos com um
aperto de mão, perguntei o nome de suas esposas e maridos enquanto
explicava o funcionamento do tônico, assim como havia aprendido
momentos atrás. Seus sorrisos gratos pela atenção e pelos produtos eram
sinceros. Finalmente eu sentia que estava desempenhando meu papel da
forma que sempre quis.
Não me lembro quando o primeiro fazendeiro percebeu que eu era a
rainha, mas logo a notícia se espalhou pelo vilarejo. As pessoas começaram
a apontar de longe e confirmar a notícia com Eleanor.
A partir desse momento, não consegui mais cumprimentá-los. Eles se
ajoelhavam na minha frente e beijavam minha mão. Agradeciam a honra de
estar em minha presença, senti que deixei de ser ouvida. A figura da rainha
era maior do que eu. A cega devoção me entristeceu. Não aceitavam mais
as sementes das minhas mãos, nem conseguiam prestar atenção as minhas
instruções. Não entendiam como eu poderia estar ali fazendo algo tão
simples.
Não sei quando me distanciei para além das plantações com a desculpa
de que iria contemplar as terras do reino. Eleanor sumiu aos poucos do meu
campo de visão, sorrindo ao olhar os retratos das famílias, alheia ao meu
comunicado. Apenas minha sentinela particular me acompanhou, ainda
assim, a uma distância segura. Ele era outro que não atrevia se aproximar.
Possivelmente por algum comando de Caleb.
Quando não estava mais no campo de visão do vilarejo, desci do dorso
da montaria e sentei em meio ao trigo. Deixei que minha pele absorvesse os
raios de sol. Deixei que secasse as minhas lágrimas antes que pudessem
cair.
Eu não me encaixava no palácio, nem na cidade e nem aqui no
vilarejo.
Em nenhum lugar, e em nenhuma dimensão.
Fiz uma anotação mental para agradecer Ophelia pelo chá preto e o
café da manhã reforçado que ela me obrigou a comer. Eu estava tão cansada
que parecia mais uma adolescente que não queria sair da cama do que uma
rainha. E certamente ela viu isso e não vacilou no pulso firme. Imaginei se
sua filha também era assim às vezes. Contudo, tive uma condição, ela e Lila
deveriam sentar à mesa comigo. Simplesmente não suportava comer
sentada com pessoas em pé à minha volta me esperando terminar. E
também porque estar com elas, perguntar sobre a procedência da geleia e o
tempo de infusão do chá… era o que eu precisava. A ilusão de ter uma
família de comercial de margarina. Não que aqui soubessem o que era
um “comercial”. Ou “margarina”. Sei que não era a minha família. Mas era
uma família. E, naquele momento, senti-me agradecida por elas me
deixarem fazer parte daquilo.
Caminhei pelos corredores da biblioteca, passando por dezenas de
estantes que subiam até o teto com livros de todas as cores e formatos.
Conforme me aproximava da sala de Amon, sentia a visão se distorcer. Sua
porta parecia mais distante a cada passo, e eu não estava mais acostumada
ao efeito desse truque que ele usava para não ser incomodado.
Resisti a tontura e tentei ignorar minha visão periférica. Foco era a
única coisa capaz de fazer alguém chegar até ele. Passou pela minha mente
que Eleanor deveria ser ainda mais incrível do que eu já sabia, para
conversar com meu tutor em sua própria sala. E, sendo assim, mirei na
safira no centro de sua porta e respirei fundo até que fosse a única coisa que
eu via. Aos poucos, o chão ficou mais estável, os livros não existiam mais
ao meu redor e finalmente consegui tocar na maçaneta. Como sempre,
estava aberta.
Sua sala era ainda maior que toda a ala real do palácio. O teto parecia
ser feito de estrelas que colidiam e dançavam entre si, com uma música que
só elas podiam ouvir. Eu via livros empilhados como dunas por toda a parte.
Alguns, mais especiais, ficavam abertos em cima de uma grande mesa,
próximos a um frasco luminescente. Perfeito para ser usado junto ao papel.
Amon não estava em nenhum lugar à vista, mas sua presença vibrava
pelo ar. Não sei se ele não era muito sociável ou se, assim como eu, sentia-
se incompreendido. Só sei que eu nunca o temi. Sempre me senti acolhida
perto dele. Talvez por eu ser repleta de incertezas e ele, repleto de
perguntas. Havia mais em comum entre mim e a querida esfinge do que eu
percebi anos atrás.
A frase que ouvi quando criança, “decifra-me ou te devoro”, passou
pela minha mente. Já não sabia mais em qual infância a ouvi.
Não importava. As duas se foram.
Olhar em volta de seus aposentos era como contemplar uma fração do
infinito. Não sabia distinguir o que era floresta, deserto ou cidade.
Possivelmente algo totalmente diferente.
Chamei seu nome da mesma forma que sempre fiz. A entonação
curiosa e suave saiu de mim, e por um instante me senti novamente a
princesa cheia de sonhos que atravessava o palácio toda manhã para
aprender. Tudo o que eu queria era voltar a ser aquela princesa.
Amon surgiu ao meu lado, como se já estivesse ali me observando há
um tempo e eu não houvesse reparado. Meu coração sorriu, e eu o abracei.
Sua pelagem macia era aconchegante, e ele me deixou ficar ali pelo tempo
que eu precisava antes de me sentar na poltrona em frente à sua mesa.
Ele esperou em silêncio enquanto eu procurava as palavras.
— Eu estive com Sienna — gaguejei, mas consegui pronunciar seu
nome. — Eu não sabia de nada que estava acontecendo aqui. Tudo era
como um sonho… E eu era feliz. Tão feliz que esqueci totalmente sobre
Montecorp. E agora a culpa por ter perdido duas vidas inteiras me consome.
Não sei como me encaixar nessa terceira. Não sei se tem um lugar para mim
aqui, Amon.
Levei as mãos ao rosto em vergonha por alguns instantes, mas tentei
me recompor e encarar a pedra em seu rosto. Respirei fundo, sentindo meu
peito subir e descer algumas vezes, e mantive a cabeça erguida em um sinal
de respeito a tudo que meu tutor me ensinou. Engoli a emoção a seco
enquanto ouvi suas palavras ressoarem.
— Só existe apenas uma Lunara Montecorp. Como uma pessoa pode
ter três vidas?
— Não pode… Esse é o problema.
— Essa é a solução. — E, como sempre, ele podia fazer tudo parecer
tão dolorosamente simples. Eu o odiava e o amava por isso.
Eu teria que refletir sobre isso depois. Às vezes, levava semanas para
entender nossas conversas. Hoje não seria diferente, pelo visto.
Levei a mão ao pulsar morno da joia que adornava meu pescoço por
toda minha desventura. O olhar de Amon seguiu meu movimento, e pude
jurar que foi curiosidade que passou por seu rosto humanoide.
— A gema que repousava na garganta de Bólius agora descansa
próxima da minha. Não sei se nossos destinos também estão cruzados. Não
sei como tirar ela de mim, Amon. Que dirá como devolvê-la. Está presa —
suspirei, mostrando a ele o fecho do colar.
— Talvez ela não queira se distanciar de você. Talvez ela precise ser
removida por seu portador de direito. Talvez você não queira se distanciar
dela.
— Amon, eu abri mão de tudo só para devolver essa pedra de volta a
Cinaéd. — Mostrei as marcas em minha pele sobre a corrente prateada,
agora mais claras. — Eu não a quero mais em Montecorp.
— E ainda assim, quais são seus planos para ir até Cinaéd?
Mantive-me em silêncio. Não tinha absolutamente nenhuma
informação sobre como ficou o resto do mundo nos últimos vinte anos. Pedi
a Amon que ele separasse os livros com as informações necessárias para
que eu pudesse aprender. Levou vários minutos até ele finalmente decidir
que teria a seleção completa até amanhã.
— Você acha que existe lugar para mim aqui?
— Existe lugar no trono para uma rainha, sim. Mas o lugar da Lunara
não será conquistado apenas por uma herança.
Sua pata apoiou suave no meu ombro. Eu entendia mais o significado
literal do que o sentido de suas palavras.
Ayla me encontrou instantes depois de deixar a biblioteca e me
entregou novamente uma lista com sugestões de tarefas para o dia. O meu
lugar como Lunara poderia esperar. Agora precisava ocupar a posição que a
Coroa exigia.
Capítulo 28
Sei que dormi mais do que deveria, pois acordei com a voz de Ophelia
atravessando as paredes de meus aposentos. O quarto estava escuro, o sol já
pendia em direção ao horizonte. Assim que abri a porta, minha querida
governanta começou a tecer uma série de comentários sobre o horário e o
fato de eu ter perdido já duas refeições. Ela colocou em minha mão um
copo com uma bebida cremosa à base de banana, framboesa e manga.
Estava deliciosa. As melhores frutas eram selecionadas para o palácio. Não
me parecia justo. Então começou a manusear meu cabelo enquanto Lila fez
uma reverência e começou a desembalar o vestido que tinha preparado para
mim.
— Vossa Majestade precisa estar radiante hoje. Sabemos que declinou
o baile em vossa homenagem, mas certamente todos os olhos estarão em
você esta noite. — Ophelia passava as mãos entre meus cabelos,
experimentando alturas e repartições. Acabou optando por prender apenas
as mechas da frente, modelando os fios soltos em cachos largos.
— E por que minha presença haveria de ser o destaque hoje em
especial, Ophelia? A coroa na minha cabeça já rouba atenção até quando
estou indo ao banheiro. — Lila começou a rir ao fundo, mesmo quando sua
mãe lançou um olhar a repreendendo. Se a rainha estava sorrindo, ela
também tinha permissão.
— Majestade, chegou a olhar o céu hoje? — indagou Lila enquanto
terminava de tirar os últimos pedaços de papel de seda da roupa misteriosa.
Eu não havia ido até a sacada ainda. Ophelia prendeu um último
grampo antes que eu caminhasse em direção à janela. O céu violeta tinha
apenas uma única estrela. Ao seu lado, a opulenta lua. A primeira lua cheia
desde o meu retorno. E, principalmente, era noite de lua azul. O Carvalho
de Prata parecia feito de diamante ao refletir seu brilho. Só então me dei
conta de que não havia visitado essa parte do castelo desde… Não me
permiti concluir essa lembrança. Não queria revisitá-la. Ela não era nada
além de inapropriada agora. O ritual no templo de Argrinis seria em
algumas horas, e eu esqueci totalmente graças à viagem inútil dos últimos
dias.
— Quanto tempo eu dormi, Ophelia?
— Mais de um dia inteiro, Majestade. Acredito que a viagem com
Lord Franchot e Ayla foi bastante exaustiva. — Ela sorria na minha direção,
como se imaginasse o meu tormento.
Eu não tinha como agradecer o suficiente por ela ter me acordado. Eu
queria muito presenciar o ritual, não me perdoaria se o perdesse. A forma
com que segurei sua mão e ela retribuiu o toque falou tudo entre nós.
Logo terminei minha bebida de frutas. Felizmente o ritual envolvia
bastante comida, então eu poderia me alimentar adequadamente.
Lila finalmente revelou o vestido mais lindo que eu já tinha visto na
vida. Ele era de um tecido leve e drapeado, que contornava minha silhueta
no tronco enquanto fluía nas pernas. As mangas atravessavam meus
ombros, com detalhes em couro preto na cintura. O tom prateado reluzia o
movimento da luz como um céu estrelado. Quando finalmente estava
vestida, mal pude acreditar no meu reflexo. Minha mãe sempre me falava
que as noites de lua azul eram ideais para se fazer desejos. Como a lua
estava perto de nós, ela poderia ouvir com mais clareza e nos atender. Era a
única noite do ano em que percebia energias que não sabia explicar
circulando livremente pelo palácio. “Como nos velhos tempos”, ela dizia.
Acho que é nossa sina saudar tempos passados.
Não deixei a emoção subir a meus olhos, apenas agradeci Lila com um
abraço sincero. Ela finalizou meus trajes com uma capa preta de veludo
bordada com estrelas prateadas por toda a bainha. Era o costume usar uma
capa como essa ao visitar o templo, ainda mais em dias de ritual. Por isso,
minha coroa foi substituída por um adorno simples feito de prata com um
círculo translúcido no centro. Antes de ser rainha, eu era súdita de Argrinis.
E tinha muito o que agradecer a ela.
Peguei dois pares de brincos que tinha, eram quase idênticos. Um
imitava a lua crescente, e o outro, a lua cheia. Entreguei nas mãos de
Ophelia e Lila antes que pudessem se opor, ordenei que se dirigissem aos
seus aposentos para se arrumarem. Nos veríamos no templo.
Dirigi-me até a carruagem acompanhada do meu sentinela.
Aparentemente todo o conselho já havia sido encaminhado e eu estava
ligeiramente atrasada. Exceto que a rainha nunca se atrasa. Era um
pensamento arrogante, mas era verdade.
A cidade estava muito mais bonita do que dias atrás. Luzes e bandeiras
adornavam a paisagem do céu, o verde dos postes fluorescentes ressaltavam
com o manto estrelado ao fundo. Os telhados das casas formavam uma
silhueta adorável. Se olhasse com atenção, poderia ver o contorno dos
galhos de trigo no horizonte da planície. Eu podia jurar que alguns pontos
luminosos dançavam e seguiam a corrente do ar em direção ao templo.
Da janela, via algumas famílias e casais atravessando as ruas, usavam
suas melhores roupas. A maior parte com tecidos já remendados ou puídos,
mas seus cabelos estavam trançados e penteados. Pareciam sorridentes, e
isso me fez querer sorrir também. Ao menos podíamos dividir essa verdade
juntos. Não sabia dizer quais iriam por devoção à Deusa do Céu e da Terra e
quais iriam pela comida. Senti um vazio ao pensar que Lorde Franchot
ainda pretendia bancar um baile. Ainda mais com o ritual, não havia a
menor necessidade.
As festividades nos uniam como nação, permitiam que, por um dia
pelo menos, nós pudéssemos sorrir e sentir esperança. Eu precisava de um
momento assim também. Já não me interessavam os grandes luxos se eu
não tinha as pequenas alegrias. Eu só desejava ver meus súditos felizes,
usufruindo da comida, bebida e dança da forma que era nos tempos de
glória. Era muito melhor destinar a verba para o povo. E, pelo visto, ao
menos essa orientação Lord Franchot seguiu.
Passei pelas ruas mais largas, normalmente usadas pelos comerciantes,
até chegar ao templo. A escadaria feita de mármore possuía quatrocentos e
quarenta e quatro degraus e ocupava todo o quarteirão. Fiquei feliz por Lila
ter selecionados botinhas tão confortáveis para combinar com o vestido. A
visão só não era mais fascinante que a arquitetura do templo. A construção
possuía três torres, cada uma simbolizando uma fase da lua: Crescente e
minguante nos extremos e a lua cheia ao centro. Era como um pequeno
palácio, mas lá habitavam somente a nossa longínqua história e os
sentimentos de gratidão e esperança. Ultimamente, a esperança reinava
mais do que eu jamais reinaria.
Assim que minha sentinela me ajudou a descer da carruagem real,
ajustei o capuz e comecei a subir. Senti os olhares em mim conforme as
reverências se apresentavam ao meu redor. Energia fervilhou pelo meu
corpo e a pedra de fogo se aqueceu contra minha pele.
— Você está prestes a conhecer a portadora da semente de prata,
sabia? — sussurrei para a pequena pedra. Não sei por que eu falava com
ela, mas queria que, seja lá quem ouvisse meus pensamentos e reflexões,
soubesse que eu não pretendia ter a posse deste artefato por muito mais
tempo.
A cada degrau, uma emoção subiu por mim. Uma sensação de
acolhimento se misturou a todas as memórias que eu havia vivido enquanto
subia esses mesmos degraus. Percebendo a curiosidade entre as cabeças
curvadas, estendi a mão para um homem de vestes simples que estava a
uma distância segura de mim. Ele hesitou, mas percebi que quis retribuir o
gesto. Fui até ele e peguei sua mão. Eu sorri. Ele sorriu.
Olhei para a esquerda e repeti o movimento, dessa vez uma menina
com não mais que oito anos segurou minha mão, sem reverencias ou um
pingo de decoro. Eu adorei. Sua mãe olhou com repreensão para a filha.
Logo sinalizei para que imitassem o gesto e as pessoas começaram a se
unir, formando uma corrente viva. Subimos juntos as centenas de degraus.
Em silêncio, mas compreendendo o momento. E finalmente uma ponta de
esperança surgiu em meu coração. A magia deste lugar era inegável.
Assim que contemplei seu interior prateado, soltei a mão do homem e
da menina, unindo as duas para não partir a corrente. Virei-me para ver que
em cada degrau havia uma corrente me assistindo. Naquele momento,
incrédula pela simplicidade do ato, senti as palavras fugirem de mim. Tentei
resgatá-las, mas ainda assim fiquei com a sensação de que meu discurso
saiu de trás para frente.
— Hoje celebramos todas as graças que a Deusa Argrinis nos
presenteou. Ella Montecorp, minha mãe e herdeira da Deusa do Céu e da
Terra, me dizia que, nas noites de lua azul, podíamos fazer um pedido. A
proximidade da lua com a terra seria o bastante para escutar a verdade em
nosso coração. E assim, ela nos daria ouvidos. Hoje, eu peço por vocês,
nobres súditos de Montecorp! Sejam bem-vindos ao nosso ritual e
aproveitem o banquete. Essa noite, somos todos irmãos!
As primeiras palmas que ouvi vieram de trás de mim. Não me
surpreendi ao ver Ayla radiante em um vestido branco completamente
bordado em cristais. Seu manto prateado parecia ser do mesmo tecido que
meu vestido, como sempre, sua visão me trouxe paz. No altar do templo, os
membros do conselho também aplaudiam sorridentes. A corte ocupava as
primeiras fileiras e parecia radiante. Mas era a visão da escadaria que me
fizera sentir verdadeira realização. Tudo parecia se encaixar agora.
A água de lua já havia sido preparada por Ayla, recebendo a energia da
Deusa Argrinis e da nossa canção. Era sagrada em nossa fé e repleta de
energia capaz de acender as estrelas. Todos podiam beber um gole e
sussurrar uma benção à Deusa que fundou nossa nação. Por uma noite,
todos éramos iguais. Todos éramos felizes.
Por dentro, o templo era todo em madrepérola, de tal forma que
parecia abrigar não só a lua, mas todas as cores do universo. O perfume de
jasmim e mistérios preenchia o ar junto à melodia harmoniosa que fluía
pelos dedos da violinista. Estar ali era como visitar um cômodo no panteão
divino. A cada passo que eu dava em direção ao meu lugar no altar, sentia
que a gravidade falhava aos meus pés. A magia podia ter sido drenada de
Montecorp, mas não dali. Jamais deste local sagrado.
À frente das demais fileiras, havia uma cadeira especial para o
portador da coroa. Lugar ocupado por meu avô, por minha mãe e agora por
mim. Todos os assentos foram preenchidos a tempo de finalizar a segunda
música, mas ainda assim uma multidão permaneceu no lado de fora. A
acústica do lugar ressoava também para fora do templo e podia ser ouvida a
um quilômetro de distância quando se posicionava no local correto. E ali
estava Ayla, da mesma forma que estivera através dos séculos. Em frente ao
delicado tubo de metal com folhas prateadas ao seu redor. Ele funcionava
como um amplificador, e acreditava-se que esses canos continuavam por
toda a estrutura do templo.
Ouvimos com o espírito leve e olhar sereno a bela sacerdotisa entoar
palavras e cânticos à lua. E por mais que ler mentes não fosse uma
habilidade, podia jurar que todos pedimos para restaurar a lendária glória e
liberdade do nosso povo. Quando ela terminou o sermão, um coral
composto por crianças ocupou o lugar da sacerdotisa, que claramente os
havia ensaiado e conhecia por nome cada um dos pequenos.
Nada poderia me preparar para o que ouvi depois. Se anjos pudessem
cantar, certamente não seriam tão sublimes. Cada nota passou pelo meu
corpo como uma benção sonora. Se antes não havia esperança, agora era
impossível sentir algo além da mais pura sensação de felicidade e plenitude.
A canção durou alguns minutos, mas para mim o tempo passou rápido
demais, enquanto o infinito daquela sensação penetrava no meu ser. Percebi
que sentia falta de estar ali. De ser uma agente da música também.
Eu não era a única que chorava. Nem a única que precisou de um
momento para se recompor. Assim como o coral, parecia que nossas palmas
foram ensaiadas. E logo a cidade irrompeu em assobios e espasmos de
alegria. O banquete foi servido logo em seguida.
Desconversei quando Caleb sugeriu que eu cumprimentasse os
membros da corte e que ficasse no altar para receber meus súditos. Era um
dia de festa, e não de formalidades. Quem quisesse me cumprimentar,
poderia me encontrar ao ar livre. Ele disse que seria difícil as sentinelas
cuidarem de mim em meio à multidão, mas sabia que nada poderia me fazer
mal em uma noite tão inesperadamente perfeita.
A festa ocorrera ao ar livre, abaixo dos quatrocentos e quarenta e
quatro degraus do templo. Luzes foram dispostas em um círculo em fios
transparentes, um quinteto de músicos estava posicionado contra a vista do
templo. O som do violoncelo, alaúde, violino, percussão e flauta preenchia
a celebração com ritmo e euforia. A música me chamou e finalmente me
senti em casa. Não com a beleza sublime do coral de crianças, mas com a
pulsação da própria vida que implorava para se transformar em memórias
inesquecíveis.
Ophelia ficou ao meu redor assim que as festividades começaram,
trazendo comidas e bebidas que julgava nutritivas. Claramente havia dito a
Lila que deveria se divertir e ficou de prontidão para atender a rainha.
Precisei de trinta minutos até convencê-la de que já estava alimentada e que
ela deveria encontrar um par para dançar ou eu encontraria outra aia.
Servi-me uma taça de um delicioso coquetel rosado que ficava no
centro da mesa do banquete e aproveitei os instantes desacompanhada para
olhar em volta. Podia notar o olhar preocupado de Caleb ao longe, sempre
falando com as sentinelas. Era sua responsabilidade manter a segurança em
um evento dessa proporção. À distância, vi uma mulher com os cabelos
trançados com tamanho esmero, assim como havia visto em apenas uma
pessoa na corte. Essa então era a Lady Van Doren. Seu olhar era doce, não
impenetrável como do seu marido e de sua filha.
Logo avistei na multidão Eleanor e Lord Franchot. Eles dançavam
juntos uma canção animada, e eu me perguntava o que uma jovem incrível
como ela estaria fazendo ao lado daquele homem irritante. No final da
música, reparei que ele beijou sua mão com doçura. Foi estranho, pois isso
me fez vê-lo como alguém… não tão ruim. Eleanor não sentia ou não se
importava em ser observada. Estava acostumada a ser o centro das atenções
e, assim como Ayla, conhecia cada um dos presentes pelo nome. Percebi
que aquele sorriso que já vi disparar algumas vezes longe da corte tentava
se formar em seu rosto. Por que ela mantinha duas personas, quando uma
delas era tão mais amável que a outra?
Ainda não havia saudado o conselho apropriadamente, então fui em
direção à sua mesa. Caleb beijava a mão de Anna quando me viu chegar.
Pensei que meu peito pudesse ficar apertado ao lembrar da forma com a
qual ele tão sutilmente beijou a minha. Mas não ficou. Os dois sorriram ao
me ver e Anna imediatamente se levantou para fazer uma reverência. Logo
peguei suas mãos para que se levantasse.
— É um grande prazer conhecê-la. Quero agradecer por tudo que sua
família fez e faz por Montecorp.
— É uma grande honra, Majestade. — Seu olhar tímido não subiu aos
meus olhos, mas podia ver seu sorriso.
Eu podia sentir inveja de Eleanor, mas sabia que era certo o que estava
fazendo. Uma mãe deve ter todos os motivos para se orgulhar de sua filha.
Por um momento, procurei por toda a inveja que sentia dentro de mim. Não
encontrei. Havia algo de mágico naquela noite. Pude então sorrir para
Eleanor, estava sinceramente feliz em vê-la. Mas receio que meu sorriso
vacilou ao ver quem estava ao seu lado. E não era Dimas Franchot.
— Majestade, o ritual da lua azul está ainda mais brilhante com vossa
presença. Permita-me apresentar meu irmão gêmeo, Dax Van Doren.
O rapaz ao seu lado tinha o mesmo rosto impassível e belo que
Eleanor. Os mesmos olhos âmbar que Caleb, levemente repuxados. Só que
diferente do pai, que mantinha a presença distante, os do rapaz possuíam
um véu de mistérios. Uma neblina magnética que me fazia imaginar o que
estaria me esperando do outro lado. Diferente das vestes de um típico
alquimista na primeira e única vez que o vi, agora ele usava um traje
festivo: Um longo casaco escuro como a noite adornado com um lenço azul
marinho. Seus cabelos pretos e brilhosos estavam penteados para trás, no
seu rosto eu via o mesmo sorriso indecifrável.
Ele sabia naquele dia que estava falando com a rainha. Não havia
surpresa em parte alguma da sua expressão. Apenas uma satisfação
calculada em finalmente me conhecer oficialmente. Talvez ele quisesse
saber quem eu era sem a coroa. Talvez ele não se importasse com ela.
Talvez ele simplesmente fosse atraído pelo caos ou por quebrar as regras.
Eu não sabia. A curiosidade roía meus ossos.
— É uma honra conhecê-la, Vossa Majestade. — E com um gesto sem
permissão ele tomou minha mão na sua e a levou aos seus lábios. O toque
não me surpreendeu, por mais que sentisse sua mãe ao seu lado arregalar os
olhos diante da ousadia. Suprimi minha surpresa com um sorriso
diplomático e agradável. Sem emoção.
— O prazer é meu. Então quer dizer que você é filho de Caleb Van
Doren. Ainda não tinha ouvido falar de você.
— E o que haveria para ouvir? Minha vida não é tão interessante. — A
ironia pairava na sua voz, mas não acho que seus pais perceberam.
— Por favor, Lorde Van Doren. Certamente há muito sobre você que
eu certamente adoraria ouvir. Mas eu preciso estar em outro lugar agora. —
Com um sorriso satisfeito, despedi-me e dei as costas, com a conversa
propositalmente inacabada.
Então eu dancei, bebi, comi e brindei com cada um que estava ao meu
lado. Sem me preocupar se suas vestes eram de seda ou algodão. Senti que
não se importavam com a minha coroa. Ao menos não de uma forma que os
distanciasse, ainda que as reverências ocorressem normalmente.
Em algum momento, finalmente me recordei que desde que chegara
em Montecorp, semanas atrás, ainda não tinha visitado o sagrado Carvalho
de Prata. E não poderia haver momento melhor do que o ritual da lua azul
para que fosse até ao local que originou meu reino. Sim, o Carvalho era
próximo do palácio e eu levaria muito tempo se fizesse o caminho
atravessando a estrada principal.
Mas, felizmente, eu conhecia uma passagem secreta dentro do templo
que me levaria até lá em poucos minutos.
Capítulo 29
Após três dias na floresta, a ferida que eu levava em mim ainda não
apresentava sinais de melhora. Pelo contrário. A pele em sua volta havia
ficado esverdeada e dura. Eu precisava de doses ainda maiores do tônico,
mas já havia entendido que ele era apenas um anestésico. E que estava
acabando.
A postura inquieta de Dax me fazia acreditar que estava me
escondendo alguma coisa. Ele não me falou até eu dizer que a sua rainha
ordenava saber a verdade. Detestava ter que impor meu poder por um
respeito que eu merecia como uma pessoa.
— Você foi vítima de uma Sombra. É um feitiço antigo que invoca a
própria escuridão. E ela passa a morar em você. Se alimentar da sua luz.
Zoey chorava, calada pela primeira vez desde que nos conhecemos. Eu
senti meu coração afundar, como se pudesse enfim perceber o que agora
estava dentro do meu corpo. Clamando cada parte minha.
— A arma usada contra você feriu seu espírito. Não há nada que eu
possa fazer agora além de aliviar sua dor. Mas essa energia provavelmente
vai continuar devorando sua vitalidade, até que não reste nada.
Abaixei os olhos, a visão embaçada, o corpo pesado. Não poderia ser
assim que acabaria minha história. Não desse jeito, não quando ainda
estávamos apenas no início… Dax levantou meu queixo, passando o
polegar no meu rosto, afastando as lágrimas. Podia ver a expressão pesada
em seu rosto, as olheiras fundas como se não dormisse há dias por pura
preocupação.
— Mas como a Zoey disse, estamos indo para o princípio do mundo.
Estamos cercados de maravilhas que não entendemos. Ainda não sei como,
mas vamos achar um jeito, combinado?
Eu tentei sorrir. Ele estendeu a mão para Zoey, que estava com o rosto
inchado e vermelho de tanto chorar. Foi a primeira vez que o vi sorrindo
para ela.
— Cuide dela — foi tudo o que disse para Zoey depois de beijar minha
testa e sair sem olhar para trás em direção à profunda floresta.
Meu coração pesava como uma âncora junto a cada passo certo que
me levava até o futuro imediato e inevitável. A entrada da arena me
aguardava pacientemente conforme surgia no meu horizonte. Criaturas
aladas fascinantes nos levaram em poucos instantes até o topo de uma
montanha, não tão longe do palácio. Gostaria de ter mais tempo para
identificar o que eram. Adoraria ter clareza mental o suficiente para
apreciar a vista deslumbrante que tomava perspectiva conforme subíamos
em direção às estrelas ainda presentes no céu. A noite estava em seus
últimos suspiros.
Reparei que não estávamos sozinhos. Além de Dax e Zoey,
aparentemente todos os habitantes do Império de Ellioras estavam ali para
nos assistir. Em especial uma bela fêmea com longos cabelos que refletiam
os tons de rosa e violeta. Um belo par de chifres encaracolava de suas
têmporas, mas ela mantinha a doçura no olhar, desviando entre mim e a
multidão. Lembro que Peribelle debochou do meu desafio, chamando-o de
diversão. Que bom que alguém ali estava se divertindo, porque eu
certamente não estava. E é claro que teríamos audiência mesmo beirando as
nuvens... Quase todos que vi ali tinham asas. Enquanto eu... Bom, eu tinha
minha “natural essência cataclísmica”.
Deveria servir para alguma coisa agora.
Um gigantesco círculo estava desenhado na extensão do topo da
montanha, como uma mandala em um rico tom de ouro em contraste com o
chão de terra. Só de me aproximar da beirada, pude sentir uma energia
peculiar que poucas vezes havia experimentado na vida. Penso que parte
dela veio de todos os olhares que estavam sobre mim. Imaginei que de
longe eu pudesse parecer um ponto metálico de sangue.
Olhei para Dax e Zoey. Senti-me em paz. Não importava o que
pudesse acontecer comigo, eu já estava determinada a barganhar o que fosse
preciso pela liberdade deles. Soprei um beijo na direção deles, e o olhar de
tensão e esperança que retribuíram me atingiu como uma flecha.
Há tempos que eu não me sentia tão à vontade com outras pessoas.
Especialmente em situações que eram absolutamente desconfortáveis. Era o
tipo de ironia cósmica que me fazia sorrir, já que depois de viver duas ou
três delas, começam a soar como aquele velho amigo implicante que você
não sabe viver sem.
Meus amigos me acompanharam nessa jornada porque quiseram. Não
porque, assim como meu exército, eram obrigados.
Um vento estrondoso subiu a poeira nos meus olhos e um bater de asas
cortou os céus e pousou no centro da arena. A multidão se calou, apenas o
farfalhar de asas e o vento podiam ser ouvidos. Peribelle estava
deslumbrante em um traje azul claro como o próprio céu estaria em pouco
tempo. O contraste de cores entre sua pele marrom e seu vestido me fazia
pensar se ela mesma não era algum tipo de ironia que eu adoraria
compreender.
Mas conhecendo minha posição neste lugar, permaneci calada
enquanto a espera me corroía de dentro para fora. Ela podia ganhar o duelo
apenas por instalar essa tensão. Mas não deixei transparecer, ou fiz o
melhor que pude para evitar, alongando meus ombros e mantendo a cabeça
erguida, tal como se minha coroa estivesse ali. Eu já havia ficado frente a
frente com um dragão. Peribelle certamente parecia mais razoável, mas não
menos intimidadora.
— O amanhecer anuncia sua chegada e saúda os filhos da noite! —
bradou a imperatriz.
Gritos e assobios em coro arrepiaram minha espinha. Ter uma plateia
torcendo pelo meu fracasso de alguma forma tornava minha missão ainda
mais difícil.
— Assim que o sol irromper no horizonte, o duelo terá início. —
Agora sabia que ela estava falando diretamente comigo, pela forma que seu
rosto se inclinou na minha direção. — Vossa Majestade Lunara Alexandria
Montecorp pediu pela travessia dela e de seus súditos. Tal ousadia se deu
após entrarem e usufruírem de nossas terras sem um convite. Todos os
presentes serão testemunhas se tal concessão é digna da Rainha da Era do
Espectro.
Suas palavras teriam me machucado em outra ocasião, mas agora eu já
sabia o que era dor. Perda. Exoneração. Já havia enfrentado deuses e
dragões e não iria me abater pelas indiretas de uma perua que nada sabia
sobre mim ou minha história.
Ela me vestiu com as cores do fogo, e pude sentir meu colar – o colar
de Cinaéd – pedindo para ser usado. Uma energia tencionava ali,
implorando por alívio.
Eu nada disse quando ela me passou a palavra. Mantive o olhar fixo no
horizonte, aguardando o amanhecer selar mais uma encruzilhada no meu
destino. Nuvens perfeitas pareciam se juntar na beira da montanha,
disfarçando o precipício. Elas agora eram coloridas em um tom violeta.
Despedi-me das estrelas na esperança de vê-las em algumas horas e me
ajoelhei.
Pude ouvir o silvo de Dax, certamente pensando que eu imploraria por
misericórdia e entregaria meu reino. E sim, esse era um ótimo jeito de tentar
me libertar deste duelo, mas não sentia no meu coração que era certo
entregar Montecorp para uma doida alada qualquer. Eu era a rainha de
Montecorp, seja na Era da Paz ou do Espectro. Eu ainda poderia mudar esse
destino, mesmo que quisessem minha coroa. Meus inimigos já haviam
tomado minha vida, minha sanidade. O que era a coroa perto disso? Sim, eu
estava disposta a abdicar do meu trono, mas não aqui. Definitivamente não
agora.
Então segui o conselho de Zoey e agradeci por estar tão perto do céu
como jamais estive enquanto a terra se mantinha firme aos meus pés.
Ajoelhei-me perante a noite que dá lugar ao dia, um dos poucos momentos
em que a mágica flui livremente pelo mundo. O instante em que dois são
um.
Eu tinha a benção de Argrinis, e o céu e a terra, para mim, eram um só.
Uma ponte invisível que preenchia todo o espaço que temos para viver.
Dax estava certo. O mundo se cobriu de vermelho e eu era parte do
horizonte celestial como o fogo que queimava em mim. Queimava por
desespero, por esperança e por um propósito.
Pela primeira vez, essa palavra finalmente fez sentido. Mais do que
qualquer teste que eu já havia feito, mais do que qualquer regra ou
protocolo que fui forçada a seguir. Eu estava neste duelo por escolha
própria, não porque me ensinaram que era o certo a se fazer. Estava
trilhando meu próprio caminho. Mesmo que fosse uma queda livre, a
dúvida de que eu seria capaz de voar foi o bastante para me fazer saltar.
Metaforicamente.
Não pretendia cair da montanha. Pelo contrário. Pretendia movê-la.
Lembro que havia algum ditado em outra dimensão sobre elas serem
movidas pela fé. Precisava trabalhar com o conhecimento que tinha, então
dei uma chance.
Fiz uma prece silenciosa aos deuses, para que intercedessem por mim.
Peribelle flutuava enquanto movimentava suas mãos junto ao seu
peito, articulando seus dedos e suas palavras de uma forma que eu não
considerava possível. Tentei distinguir algo do que falou, mas os sons
pareciam sair dela e do ar em consonância, reverberando por toda a
montanha e fazendo o chão tremer e a multidão se eriçar.
Voltei meus pensamentos para minha prece. Busquei por minha
conexão com Argrinis, visualizei o Carvalho de Prata tal como nos dias de
glória, onde sua energia concedia longevidade e saúde para todo o meu
povo. Desejei de todo o coração a entrada da Era da Paz de volta às minhas
terras. Senti em meu coração absolutamente todos os pensamentos que
embalavam meus sonhos.
Meus pedidos pareciam desesperados e infantis. Algo impossível.
Sentia agora o chão vacilar enquanto a energia púrpura que emanava
de Peribelle começava a mudar o ambiente à nossa volta.
Pedi aos Deuses com mais ardor. Pedi que intercedessem por
Montecorp. Por meus súditos.
Não fui ouvida.
O mundo estava pintado em ouro pelo sol.
Uma cadeia de plantas começou a fechar o círculo entre nós. O som da
terra se movimentando articulava seu próprio tambor de guerra. A
imperatriz se aproximava de mim descendo uma escada de galhos e folhas
que ela invocava do chão. Eu estava no território dela. Ele respondia à sua
governante, não a mim.
Não adiantava apelar para os Deuses, eu estava perdida.
Talvez devesse parar de agir como uma acólita e me comportar como
uma rainha. Não era isso que Madame Sienna exigiu que eu fosse? Era isso
que eu representava agora, então talvez fosse justamente o que eu precisava.
Comandei a terra a se levantar em meu nome. Exigi que, como rainha
legítima, o solo deveria erguer seu poder contra Peribelle. Murmurei
palavras que vieram à minha mente, o som muito mais uma sensação nos
meus lábios. Seu significado era o meu intento, conhecido apenas por mim.
Intimei ao céu que se dobrasse à minha vontade. Clamei às nuvens que
nublassem meu horizonte, que peças de gelo afiadas pudessem agir como
armas. Ordenei ao ar que soprasse Peribelle para longe da arena.
Reivindiquei meu direito, com a certeza de que agora estava gritando,
sentindo cada palavra rasgar minha garganta enquanto a terra vacilava sobre
os meus pés, na certeza de que não respondia a mim.
Eu estava presa ali. Incapacitada. Nenhum apelo foi ouvido, e eu já
me sentia exausta. O rubi morno no meu peito, a única fonte de calor
enquanto o frio dos mortos parecia me cercar novamente.
Talvez eu estivesse usando meus poderes para me defender, mas eles
não fossem tão fortes para atacar.
Talvez não estivesse sendo um esforço tão inútil.
Talvez eu devesse continuar.
Talvez.
De que me servia essa palavra?
Eu já estava exausta para continuar, poderia me matar apenas por
esforço próprio, o que me daria mais satisfação do que perecer nas mãos de
Peribelle.
Ela parecia concentrada em seus métodos próprios para me aniquilar, e
sua figura imponente me deixava inquieta conforme o sol alaranjado
alinhava perfeitamente com suas asas.
Apertei os olhos para conter as lágrimas e o desespero. Olhei na
direção de meus amigos. Seus rostos apreensivos. Dax suplicava algo com o
olhar que eu não entendia. Zoey tentou sorrir. Eu realmente tentei retribuir.
Precisava focar na minha energia. Na minha magia. Pareceu-me uma
forma digna de me exaurir.
Já tinha ouvido falar sobre uma troca e um equilíbrio que deveria
permanecer constante. Lembrei-me então dos momentos em que o céu
iluminou o caminho de meus guerreiros ou quando a terra parecia responder
aos passos dos cavalos.
Coloquei uma palma na terra, sentindo sua textura granulada, e a outra
ergui aos céus. Novamente, pedi que respondessem ao meu chamado. Não
como uma acólita entregue aos seus ensinamentos. Nem como uma rainha
ao seu exército. Mas exatamente como Zoey me ensinou.
Os convoquei como uma amiga.
Capítulo 43
Acordei, mas não me sentia capaz de abrir os olhos. Era como se todo
meu corpo pesasse uma tonelada e a qualquer momento meu próprio peso
pudesse me enterrar no chão pela eternidade. Respirar era um esforço que
eu só conseguia continuar por ser uma necessidade involuntária. Perceber o
movimento dos meus pulmões inspirando e expirando era a prova de que
sobrevivi, mas não podia garantir que estava viva.
Não sei por quanto tempo fiquei assim. Lutando comigo mesma para
me movimentar, para falar alguma coisa, para descobrir onde eu estava. Os
pensamentos eram espaçados, eu não conseguia manter um raciocínio
longo. Sabia que estava em um duelo. Sabia que a terra respondeu ao meu
chamado.
Lembrei do sorriso psicótico de Peribelle, e algo como um murmúrio
de boas-vindas, os quais eu não sabia serem esperança ou chacota. Não
demorou para que o sabor de cinzas me tomasse em sede e vazio.
Eu sabia por que Dax amava aquele canto do palácio. Ninguém ia ali.
Ficamos em silêncio por bastante tempo até que adormeci nos seus braços.
Sentia-me acolhida, com esperança de que tudo ficaria bem. Em paz.
Já não me lembrava exatamente o que era isso, mas começava a
redescobrir.
Um beijo na minha sobrancelha me despertou, e o aroma de mel e
frutas me deixou salivando. Dax insistiu que eu deveria comer e que a
minha sorte era que tudo que crescia em Ellioras tinha propriedades
curativas por causa de Peribelle. Não discuti, pois me senti mais disposta
em alguns minutos.
— Eu não quero, mas acho que precisamos voltar — ele disse e
roubou uma de minhas frutinhas azuis antes de se levantar e estender a mão.
— Eu não quero concordar com você, mas nesse caso eu vou. — De
pé, ele me envolveu e senti suas carícias passando até o final do decote às
minhas costas.
— E não acho que devemos contar sobre isso ainda.
— O que exatamente é isso, Dax? — perguntei cinicamente.
Ele me beijou em resposta.
— Eu adoraria saber o que é isso antes receber opinião de outras
pessoas... E uma rainha não costuma manter seus relacionamentos abertos,
certo?
— Rainhas podem manter sua vida pessoal aberta tanto quanto os reis.
— Peço perdão, você é a primeira rainha que eu beijo. Não conheço o
protocolo. — Ele sorriu.
— Eu preferiria que não tivesse nenhum protocolo — confessei, dando
de ombros.
— Isso quer dizer que eu posso te beijar a hora que eu quiser?
— Se eu quiser também, sim.
— E como eu vou saber? — Seu polegar passava pela minha boca, não
resisti lambê-lo.
— Você é esperto. — Pisquei.
— Normalmente, sim, mas perto de você eu paro de pensar.
— Então vou te deixar sozinho para refletir.
Eu sorri enquanto o deixava para trás, ciente de cada movimento que
meu corpo fazia sinuosamente naquele vestido. Agradeci por estar
anestesiada com prazer e empolgação. A verdade que eu havia acabado de
conhecer revelava a identidade do meu traidor. Eu larguei meu reino com
uma família assassina e não podia voltar antes de cumprir a promessa que
fiz à Madame Sienna. O calor reconfortante da pedra de fogo pulsou
enquanto eu colocava meus pensamentos no lugar.
Eu precisava encontrar com Peribelle e acertar os termos da nossa
partida. Sair de Ellioras e encontrar o herdeiro perdido de Cinaéd. Ele
poderia tirar o colar do meu pescoço, e com sorte eu não recomeçaria uma
guerra com esse movimento de paz.
Eu deveria encontrar um aliado desconhecido para depois combater
um inimigo que um dia teve minha confiança.
Talvez fosse o momento de revisitar tudo aquilo que eu adiava. Eu
poderia definir o que era uma prioridade para mim, longe de tudo que me
fora imposto. Fazia sentido o que Peribelle disse sobre eu agir como uma
vítima. Não era a situação que me definia, mas como eu agia em relação a
ela.
Amon estava certo. Eu não poderia ficar presa em três vidas. Meu
destino sempre seria apenas um só. Cansei de separá-las. Eu tive o prazer de
ter duas mães e dois pais e perdi ambos. Ainda assim, podia me considerar
uma pessoa de sorte por ter sido amada em dobro. Eu podia voltar a tocar
violino eventualmente. Perdi Olivia e Íris, mas quantos amigos vêm e vão
na vida? Nunca mais ouviria o som da voz de Blaze, mas são poucos os
afortunados que passam a eternidade com seu primeiro amor.
A vida insistia em se renovar, desafiando meus limites. E eu estava ali.
Ainda viva. Ainda com uma teimosa esperança no coração de que ficaria
tudo bem, mesmo quando as circunstâncias apontavam o contrário.
As estrelas dançaram, como costumavam fazer na Floresta do Oblívio.
Eu sentia a terra responder a minha energia como se fizesse parte dos meus
pensamentos. Dei-me conta que, de fato, ela era parte de mim. Como se a
própria Argrinis olhasse por mim, a lua pendia no céu quase no seu
esplendor. Quase um mês havia passado desde que deixei meu reino.
Ignorei esse fato. Já não estava mais contando o tempo, mas sim
contando com ele.
Capítulo 47
Após falar com Dax, pedi uma audiência privada com Imperatriz
Peribelle. Não senti que deveria compartilhar o que foi dito entre nós duas
com meus companheiros de viagem, mas fiquei feliz em avisar que ela e a
imperatriz consorte Violeta então ofereceram um jantar, a fim de nos
receber oficialmente no seu reino. Foi ela que vi durante o duelo como um
ponto lilás de luz. Olhares da corte nos analisavam, sem desprezo ou
admiração. Apenas genuína curiosidade.
A fartura do banquete poderia alimentar gerações. A música fluía pelo
salão, fiquei genuinamente emocionada ao ouvir o som das cordas e flautas
mais uma vez. Como sempre, naqueles breves intervalos, o mundo parecia
estar em perfeita harmonia novamente.
Não sabia dizer o que era mais exótico: Os sabores que ultrapassavam
as especiarias conhecidas por mim, certamente vindos de ervas cultivadas
apenas nesse território; os seres que buscavam compreensão e
entretenimento ao nos passar uma taça de vinho ou trocar algumas palavras
com seus pesados sotaques; o quão à vontade Zoey se sentia em lugar tão
diferente de tudo que já conheceu.
A festa estava no fim, a julgar pelas bandejas vazias ao longo das
gigantescas mesas dispostas no salão. Mas eu não esperava que dentre todas
as canções que pudessem ser tocadas naquela noite, eu ouvisse justamente a
que permeava no meu coração. Desde sempre uma certa melodia caminhou
por meus pensamentos, preenchendo os momentos vazios e me guiando
para um destino que nunca soube precisar. Minha primeira composição em
uma vida tão distante. Que agora estava aqui. De alguma forma, me
chamando, como se tivesse esperado por mim também.
Eu estava em um novo ponto de partida, e ela era a seta que me
mostrava que não estava perdida. Que todos os caminhos que trilhei
deveriam mesmo me trazer até aqui.
Violeta era tão gentil quanto Zoey e tão observadora quanto Dax.
Agradeceu a mim por minha contribuição ao império e reafirmou para a
corte que éramos bem-vindos. Antes de me retirar, a Imperatriz Consorte
guardava um inesperado presente de partida para mim.
Acompanhei Dax até seu jardim favorito três vezes, testando meus
poderes ao anoitecer. Passei a criar pequenas frutinhas, que drenavam
minha energia ao mesmo tempo que a devolviam. Eu repousava no seu colo
enquanto seus dedos trilhavam meus cabelos e ouvia sobre seus testes de
observação das estrelas errantes na Floresta do Oblívio e as possíveis
aplicações das plantas luminescentes à nossa volta.
Na véspera da nossa partida, meus dedos estavam calejados graças à
fricção das cordas, e mesmo com a alegria da música, senti o vazio e o
medo desconhecido ao perceber que mais uma mudança esperava por mim.
Eu não sabia quando experimentaria esse nível de conforto e paz
novamente. Não fazia ideia de como nossa jornada iria se suceder.
Precisava de alguma distração, de alívio.
Zoey era maravilhosa para conversar, mas seus conselhos me
deixavam pensativa demais, e a última coisa que queria era ficar presa na
minha mente de novo. Eu precisava de algo que me levasse a um estado de
conforto, relaxamento e confiança para a manhã seguinte.
Bati na porta de Dax o mais suavemente possível, buscando não
acordar Zoey ou fazer Ivy aparecer na nossa porta, já que ela sempre estava
à disposição.
Ele abriu, revelando pouca surpresa ao me ver ali. Como se estivesse
pensando o mesmo que eu. Dax estava sem camisa, usando apenas uma
calça preta e um manto escuro que mais revelava do que cobria. Novamente
ele estendeu a mão e não disse uma palavra enquanto o convite silencioso
pairou sobre nós.
— Posso entrar? — ainda assim, perguntei.
— Se você não precisar estar em nenhum outro lugar agora.
Eu sorri ao ouvir essa mesma frase, a primeira que me disse como uma
tentativa de me conhecer. De mostrar quem ele realmente era para outra
pessoa. Dax foi o primeiro a se dirigir a mim sem necessidade de me
agradar, sem se importar com meu título. Ele esteve ali todas as vezes que
precisei me levantar, estendendo sua mão. Amanhã estaremos em Cinaéd,
um território hostil tomado pelos destroços e pela guerra. Bólius jamais se
importou em ser um governante, e dificilmente um território se ergue sem
uma frente unida. Uma terra sem lei nos aguardava. Merecíamos uma
última noite de sonhos, alívio e despreocupações. Meu coração tremeu ao
ouvir a porta fechar.
Seus dedos entrelaçaram meu cabelo enquanto seus braços me
envolviam com urgência. Provei do seu sabor, sentindo a menta e o mistério
me envolverem. Me procurando como solução.
Dax deslizou as alças prateadas pelos meus ombros, deixando-me
vestida de estrelas no mesmo momento. O manto que vestia logo veio ao
chão, e ele me tomou nos braços, ainda me beijando enquanto me deitava
na sua cama.
Seu toque explorava cada parte do meu corpo que implorava pela sua
atenção, sua boca desviou da minha, deslizando pelo meu pescoço até
finalmente chegar nos meus seios, que aguardavam firmes pela sua atenção.
Deixei um gemido escapar e ele imediatamente voltou à minha boca,
calando-me com um beijo e sussurrando ao meu ouvido.
— Por mais lisonjeado que eu fique em fazer você gemer, não
queremos acordar ninguém. Posso contar com sua descrição?
Antes que pudesse perguntar o que ele queria dizer com isso, sua
mão deslizou até minhas pernas, encontrando toda a evidência do quanto eu
estava pronta para recebê-lo. Ele deslizou um dedo para dentro de mim.
Depois mais um em um movimento dolorosamente lento. Apertei os lábios
para não emitir nenhum som e olhei diretamente nos seus olhos castanhos.
— Muito bem — ele murmurou. Então trilhou todo o caminho de
beijos até abaixo do meu umbigo, fazendo-me contorcer de prazer e agonia
por uma sensação que não parecia ser o bastante. Que ao mesmo tempo me
drenava e me preenchia mais do que qualquer outra.
Ele finalmente fitou meus olhos, e fiquei feliz ao não encontrar
nenhum símile de controle ali. Com um gesto, puxei-o para cima e desfiz o
nó que ainda prendia sua calça para encontrá-lo latejando de desejo tanto
quanto eu estava.
Eu não tinha calma, mas precisava que esse momento demorasse. Dax
passou os dedos pela parte de dentro da minha perna, abrindo-a com
delicadeza o bastante para que se encaixasse em mim. Perdi-me no
devaneio que era seu rosto, o seu toque. E como se não confiasse em mim
para permanecer em silêncio, Dax roubou um beijo ao mesmo tempo que se
empurrou contra mim, mantendo meu quadril ainda na cama para que
nenhum centímetro ficasse de fora. Não pretendia arranhá-lo, mas o gesto
foi involuntário. Ele não pareceu se importar e começou a responder aos
meus movimentos. Precisei manter meus lábios nos dele e mesmo assim
alguns sons escaparam. Eu o culpei por todos os momentos que ele
arrancou sons de mim.
Exploramos as possibilidades dos nossos corpos, nos entrelaçando
entre beijos e mordidas até que finalmente meu corpo não pudesse mais
suportar caminhar no limiar no prazer extremo e me rendi a ele. E com uma
sucessão de movimentos firmes, eu sabia que Dax estava tão extasiado
quanto eu.
Mergulhei na seda da sua cama sentindo o carinho que antes me
atiçava agora me convidando para um profundo relaxamento.
Na manhã seguinte, nossa vida mudaria. Mas por aquela noite eu
queria permanecer daquele jeito.
Acordei no meu quarto logo antes do sol nascer. Meu corpo
aparentemente havia se acostumado a se despertar essa hora. Vi que ainda
estava nua sobre os lençóis e rapidamente corei com as lembranças da noite
anterior.
Lavei-me como o de costume, mas em vez de escolher um dos belos
vestidos, optei por um traje de viagem confortável. Cinaéd era uma zona de
guerra, e eu não pretendia atrair o tipo de atenção errada.
Vesti uma blusa verde com mangas levemente bufantes que trançavam
pelas minhas costas como um espartilho extremamente flexível. Calcei as
botas que vinham até meu joelho por cima da calça de montaria preta.
Trancei meus cabelos, mas alguns fios curtos permaneceram soltos perto
dos meus olhos. A capa preta de viagem era perfeita para terrenos difíceis.
Minha bolsa já estava abastecida, mas prendi o violino nas minhas costas.
Torci para mantê-lo intacto até meu retorno.
Zoey e Dax me esperavam prontos na sala que unia nossos quartos, e
Ivy Lux nos acompanhou após a refeição até os soldados que guardavam a
fronteira do império.
Nossa jornada estava finalmente começando.
Epílogo