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Conto Kaonashi

Na tradição cristã
existem sete pecados capitais.
Soberba, avareza, ira,
inveja,
preguiça, gula e luxúria...
Nem ao menos
poderia alegar ignorância
para suavizar
minha penitencia quando era vivo.

O Deus do ocidente e seus sacerdotes


apenas nomearam aquilo que de mais vil
que poderia ser sentido por um ser humano.
E eu
indiscriminadamente
pratiquei cada um deles.

Vagar pelo mundo


desprovido de minhas memórias
teria sido um golpe de misericórdia que eu
definitivamente
não merecia.
Minha consciência deveria ser
minha prisão.
No entanto
minha vítima vestiu-me de uma máscara,
escondendo minha monstruosidade do mundo.
Até que um dia
o perdão me encontrasse.

Meu corpo era um reflexo de minha alma


apodrecida.
Piche e lodo
no lugar de músculos e coração.
Grunhidos incompreensíveis
saindo de um rasgo em meu peito.
Sem olhos
para poder chorar.
Braços finos demais
para poder abraçar.
Passaria toda a eternidade
como uma aberração.

Talvez
essa fosse a verdadeira natureza
do meu castigo.
Afinal
quem teria coragem
de se aproximar de uma criatura
assustadora
como eu?

Um demônio faminto por piedade.


Um proscrito
Entre os malditos.
Uma sombra
Sem forma.

Talvez meu primeiro pecado


tenha surgido em meu nascimento.
O primogênito
esperado por dezenas de anos,
um herdeiro
enviado diretamente dos céus
depois de muitos sacrifícios e promessas.

De sumo sacerdote,
a curandeiros camponeses,
toda sorte de homem místico
foi consultado por meus progenitores
para que
eu
existisse.

Sangue e lágrimas
cobriram meu berço de marfim
antes mesmo que pudesse repousar nele,
pois
a cada tentativa frustrada
resultava em uma cabeça cortada.
Uma garantia cruel
de que nenhuma outra imperatriz
seria enganada novamente.
Mas
três homens
foram capazes de romper a longa tragédia
que assombrava a família real.

Sua origem era


longínqua e misteriosa.
No entanto pouco precisou ser provado
para que eles conseguissem uma audiência no castelo.
Naquele pedaço de terra
esquecida pelos deuses,
a superstição e morte
alastravam-se facilmente como fogo em palha seca.
E aqueles mágicos homens
eram uma atração por si só:
Trigêmeos
E
Adultos.

A receita macabra
que alegaram ter sido usada pela mãe deles,
mostrando que
definitivamente
o mal
que hoje corre em mim
deriva em parte
de longo sangue
maldito.

Para conceber uma criança saudável,


uma outra
teria de ser sacrificada
toda vez que a lua se escondesse.
O sangue do rebento falecido
deveria ser usado com unguento para o ventre
cada vez mais avantajado da rainha,
e parte dele
seria guardado para o primeiro banho
do pequeno príncipe.

E numa noite
especialmente escura
eu nasci,
literalmente
banhado
pelo sangue de outros 9 pequenos camponeses,
roubados de suas mães
seu primeiro e derradeiro
suspiro de vida.

Nove fantasmas anônimos


e inocentes
que provavelmente
fizeram parte do meu julgamento final
e cujos rostos
não sou capaz de me recordar.
No entanto enquanto vida
tive apenas
alegrias
me foi recepcionado.

A grotesca forma de concepção


fora considerada
milagre dos deuses
e era celebrada por todo reino
como prenuncio de boas novas.

Os três estrangeiros foram prontamente


Transformados em conselheiros
e permaneceriam fieis ao cargo
até muito além
do leito de morte do imperador
que faleceu meses depois
que eu nascera.

Desde então fui criado para pensar


que o mundo girava sob minhas mãos
e para esmagar quem
ousasse
pensar o contrário.

Riqueza e opulência
preenchiam a residência real:
brinquedos eram feitos pelos melhores artesãos do continente,
os tecidos mais nobres importados do além-mar.
As comidas mais finas
e os músicos mais requisitados
me faziam companhia desde o meu despertar.

Nada
me era negado
por mais extravagante que fosse o meu pedido.
Então me lembro
vagamente
de estranhar quando meus serviçais
hesitaram
quando eu pedi para conhecer o que havia
além do palácio.

Devia ter pouco mais que porção de anos:


o suficiente para conseguir puxar o cabelo da minha ama
com tanta força
para que um punhado de mechas escuras ficasse preso
entre meus dedos mas não velho o suficiente
para me regozijar
com o som de seus gritos.

A pobre criadagem
acreditara que em minha tenra idade seria capaz
de me chocar com a dura realidade do mundo exterior.
No entanto,
a paisagem sofrida que via
através das pesadas cortinas do meu palácio
apenas me entediara.
O mundo exterior era
cinzento
e fedido.

Uma tempestade se aproximava naquele dia


e os cidadãos corriam
de um lado
para o outro
procurando meios de remendar seus casebres que desmanchariam
de qualquer jeito
pela mais breve das chuvas.
Quando minha pequena procissão se aproximou
a comoção passou a cercar nossos
passos.
Mãos sujas e bocas desdentadas
tentavam agarrar os tecidos que me ocultavam.
Imploravam por misericórdia, divina e terrena,
e que em suas mentes simplórias
apenas eu;
predestinado dos deuses a fazer dinheiro
e herdeiro ao trono;
poderia a ambas conceder.

Encolhi-me em minhas almofadas,


a repulsa que sentia
não era capaz de conter minha curiosidade infantil.
Havia algo encantador naqueles espectros raquíticos
que me observavam com tanto fervor.
Fosse ver corpos tão esqueléticos
ou o simples fato de ser tão abertamente venerado
pela primeira vez,
não me permiti retornar ao conforto do meu lar.

Estávamos ainda no começo da cidade


Quando uma cor
cruzou o céu,
com um pássaro pequeno e veloz.
Demorei a perceber
que se tratava de um pedaço de tecido vermelho,
que com a força do vento
que castigava a cidade,
acabara de alojando na alça direita do meu palankim,
ao alcance da minha mão.

Estiquei meus dedinhos roliços


para me apossar do lenço rubro
no entanto, a rajada de vento o levou
para longe de mim
antes que pudesse
se quer
encostar nele.

Era a primeira vez na minha vida


em que algo que eu queria
me era tirado. Mas eu era jovem
e soberbo demais
para perceber o claro sinal que o destino me passara,
o começo
de minha derrocada.

Pois enquanto eu ruminava o


quão inútil
era aquele pedacinho de pano
que se recusava a cair nas minhas graças,
ele pousara
suavemente
nas pequeninas mãos de uma criança
a poucos metros da minha liteira.

Nossos olhos se cruzaram por um instante.


Seus lábios se abriram em um sorriso agradecido,
como se eu tivesse lhe entregado o tecido de propósito.
Fechei a cortina encabulado.

Fosse a humildade do seu gesto


ou o fato
de descobrir
que nem todos os camponeses eram desdentados.
De todo o modo
o rosto daquela menininha
ficou gravado na minha memória
por muito mais tempo de que ousaria admitir naquele momento.
Por muito mais anos
do que compõe uma vida humana.

Por todos os séculos


em que vaguei incapaz de recordar
até mesmo
do meu próprio rosto.
Pois aquela menininha
vestida em trapos
seria
minha mais profunda perdição,
minha vítima e
algoz.

Uma obsessão
que me subjugava
mesmo no além vida.
Minha
e apenas minha
Chihiro.

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