Você está na página 1de 198

Table of Contents

PREFÁ CIO
O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃ O?
FÉ E RAZÃ O
INSPIRAÇÃ O E LINGUAGEM
REVELAÇÃ O E MORALIDADE
DEUS E O MAL
1
 

RELIGIÃ O, RAZÃ O E REVELAÇÃ O


 
 
 
 
 
GORDON H. CLARK
 

Copyright @ 2012, de Laura K. Juodaitis


Publicado originalmente em inglês sob o título
Religion, Reason, and Revelation
pela The Trinity Foundation,
Post Office 68, Unicoi, Tennessee, 37692, EUA.
 
 

 
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
EDITORA MONERGISMO
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
 

 
1ª ediçã o, 2020
 
Tradução : Marcelo Herberts
Revisão : Felipe Sabino de Araú jo

 
 

 
 

Sumário
PREFÁ CIO
O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃ O?
FÉ E RAZÃ O
INSPIRAÇÃ O E LINGUAGEM
REVELAÇÃ O E MORALIDADE
DEUS E O MAL

PREFÁCIO
 

Religião, razão e revelação é uma das maiores defesas da fé cristã já escritas. É um modelo
de erudiçã o e aná lise; nele o Dr. Clark refuta tanto os movimentos filosó ficos amplos que se
opõ em ao cristianismo quanto as contendas específicas de muitos autores modernos. É
espantoso notar quã o abrangente é a defesa deste livro: Clark devasta a noçã o superficial
de que o cristianismo nã o é ú nico — de que o cristianismo pertence a uma categoria
chamada religiã o —, uma ideia que é a base de todos os movimentos ecumênicos dos
ú ltimos dois séculos. Ele eviscera o pragmatismo e o positivismo ló gico; castra o
empirismo, o racionalismo e o materialismo; e de forma imparcial desmembra e descarta
Tomá s de Aquino, Kant, Hegel, Kierkegaard, Marx, Bentham, Nietzsche e Dewey.

Porém, Religião, razão e revelação nã o se limita a fazer a destruiçã o filosó fica de filosofias
nã o cristã s; Clark segue adiante e mostra como o cristianismo bíblico responde questõ es e
resolve problemas — incluindo o problema do mal — que outras filosofias e religiõ es
deixam sem resposta e sem soluçã o. O resultado é um esplêndido banquete para a mente e
uma defesa triunfal da verdade cristã . Religião, razão e revelação faz jus à reputaçã o de
obra-prima apologética. Que estudantes, bem como professores, leiam estas pá ginas e
aprendam como a fé deve ser defendida.

 
 
— John W. Robbins
Junho de 1995

O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃO?


 
 
Existe algo chamado religião , do qual o cristianismo é uma manifestaçã o? Essa pergunta é
importante por duas razõ es: sua resposta influenciará e revelará o que uma pessoa acredita
ser o cristianismo; e em escala mais ampla determinará o método que deve ser usado na
formulaçã o de uma filosofia da religiã o. Façamos, portanto, a pergunta uma segunda vez de
forma ligeiramente diferente: o cristianismo é uma espécie de que gênero? Quer isso seja
respondido afirmativamente, quer negativamente, certos problemas adicionais sã o
introduzidos. Se o cristianismo é uma espécie do gênero religião , como entã o religião deve
ser definido e quais as características diferenciadoras do cristianismo? E se nã o é, que tipo
de filosofia da religiã o pode existir e que tipo de filosofia do cristianismo pode existir? Ao
que parece, o primeiro passo no exame dessas questõ es deve ser a definiçã o de religião . O
que é religiã o?
 
 
Unidade e multiformidade
 
Religiã o é algo familiar ao homem comum em todas as épocas e naçõ es. O homem realiza
seus ritos simples ou complexos e acredita nas doutrinas desses ritos. Por justificada que
seja a queixa ortodoxa ou a exaltaçã o ateísta de que certa religiã o está perdendo seu poder
sobre o povo, as experiências indeléveis continuam a ser uma força familiar. Também entre
as pessoas letradas, como matéria de discussã o, a religiã o é algo familiar. E a confecçã o de
muitos livros sobre o tema geral da religiã o, da psicologia da religiã o, da filosofia da religiã o
e da histó ria da religiã o é algo que nã o tem fim. Mas, conquanto a religiã o seja um
fenô meno tã o multiforme quanto familiar, essas duas características contribuem para a
dificuldade em compreendê-la.
Ninguém nega a multiformidade. Há o cristianismo e há o maometismo; e há ainda o
judaísmo, o hinduísmo, o budismo e as religiõ es do interior da Á frica e das ilhas dos mares.
Mas, apesar das suas grandes diferenças, elas sã o popularmente unificadas sob o ró tulo
ú nico religião . Pode tal unificaçã o sobreviver à aná lise acadêmica? É realmente possível
reunir todas elas sob uma ú nica definiçã o para que possam ser discutidas juntas como um
só assunto? Na botâ nica, por exemplo, Jurubeba,  Medeola virginiana , Uvulá ria, Lírio-do-
Vale, Selo-de-Salomã o, Aspargo e Estrela-de-Belém sã o reunidos e discutidos sob a família
das liliá ceas. Todos os membros da família das liliá ceas têm certas características em
comum, características que os unem em uma mesma família e ao mesmo tempo os
diferenciam das demais famílias. Nã o pode o mesmo ser feito com as religiõ es?
Como seria esperado, esse modo de olhar para o assunto já foi tentado. Nã o só isso, é o
método usual de procedimento. Parece apenas seguir o senso comum. Por exemplo,
Winston L. King em sua obra Introduction to Religion [Introduçã o à religiã o] escreve que as
religiõ es sã o uma coisa só assim como muitas. Embora faça a obscura negaçã o de que elas
nã o possuem nenhum denominador comum “de um tipo neutro”, existe “certo tipo de
unidade” e existem “semelhanças reais”. Ao final de 80 pá ginas ele conclui: “Temos buscado
usar o termo ‘religiã o’ e ‘religiõ es’ com a confiança de que ele tem algum significado
distintivo”. Frases como essa, numa tentativa de 80 pá ginas de definir religiã o, apontam a
presença de dificuldades. Aparentemente, botâ nica é um assunto mais fá cil do que religiã o.
Mas outro autor mostra mais confiança.
O professor William E. Hocking, em Living Religions and a World Faith [Religiõ es vivas e
uma fé mundial], começa afirmando: “Por natureza, a religiã o é universal e una”. Na
verdade, com essa afirmaçã o, Hocking está querendo dizer mais que o fato de que a religiã o
é una no mesmo sentido que todos os membros da família das liliá ceas sã o uma família,
pois vai além e reclama que a pluralidade das religiõ es é um escâ ndalo para o pró prio
homem religioso, para o filó sofo e para o estadista que deseja unificar sua comunidade. Mas
por que deveria ser um escâ ndalo? A pluralidade das liliá ceas nã o é um escâ ndalo para o
botâ nico. Deveria a pluralidade das religiõ es ser escandalosa para o filó sofo? E, por mais
escandalosa que a pluralidade das religiõ es possa ser para o “estadista” que deseja unificar
sua comunidade, essa mesma pluralidade pode parecer uma bênçã o para indivíduos
amantes da liberdade que pensam que algumas sociedades já foram unificadas até demais.
O que a religiã o pode ser, se é uma unidade mais perfeita que as unidades genéricas da
botâ nica? Por que a unidade da religiã o deveria excluir diferenças específicas?
Num volume posterior, The Coming World Civilization [A vindoura civilizaçã o mundial], o
professor Hocking repete suas vigorosas declaraçõ es de unidade. Na quinta seçã o do livro,
para justificar a identificaçã o de todas as religiõ es na essência, ele argumenta que
“afirmaçã o nã o é exclusã o” (p.137). De acordo com Hocking, a fé cristã e a fortiori a
doutrina budista nã o se oferecem como hipó teses que competem com outras hipó teses.
Cada uma diz “Este é um Caminho para a paz”; e essa afirmaçã o nã o exclui outros
Caminhos. Há , num sentido, um Ú nico Caminho, mas nã o é o Ú nico Caminho de uma
religiã o específica. É um caminho universal. A essência dos preceitos e doutrinas que os
místicos de todas as religiõ es discernem é igual. As concordâ ncias nem sequer sã o meras
similaridades; sã o identidades. Assim, o Ú nico Caminho nã o é o Caminho que diferencia
uma religiã o da outra, mas “o Caminho já presente em todas [ … ] As vá rias religiõ es
universais já estão fundidas, por assim dizer, no auge ”.
[1]

Naturalmente, essa visã o suscita muitos questionamentos. Por exemplo, pode-se


perguntar: Hocking baseia suas declaraçõ es num estudo empírico das vá rias religiõ es? É
isso o que as religiõ es afirmam ou admitem? Como Hocking chega à conclusã o de que as
doutrinas de todas as religiõ es sã o essencialmente idênticas? Se isso é apenas o que alguns
místicos de cada religiã o dizem, pode o estudante de religiã o aceitar a avaliaçã o mística e
desconsiderar o que os demais membros dessas mesmas religiõ es afirmam? Quando
menos, é inegá vel que o princípio de Hocking, “afirmaçã o nã o é exclusã o”, está em conflito
com os ensinamentos explícitos de algumas religiõ es. A declaraçã o de Cristo no Evangelho
“[…] ninguém vem ao Pai senã o por mim” (Jo 14.6) é decisivamente exclusiva. Assim
também disse o apó stolo: “abaixo do céu nã o existe nenhum outro nome, dado entre os
homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). Hocking teria de sustentar que
Cristo nã o é essencial para o cristianismo. Mas essa crítica é evidentemente prematura,
pois a princípio parece razoá vel — especialmente para quem está escrevendo um livro
sobre religiã o — assumir que deve haver algum tipo de unidade, quer uma unidade
genérica, quer algum tipo ainda mais profundo, que faça da religiã o uma matéria ú nica de
discussã o.
 
 
Uma disjunção desconcertante
 
Por promissor e mesmo necessá rio que esse princípio possa parecer, contudo, já se pode
ver que sua aplicaçã o é acompanhada de grande dificuldade. Talvez a pró pria natureza
familiar da experiência religiosa seja uma causa da sua teimosa rebeldia à aná lise. Em todo
caso, uma comparaçã o de muitos volumes sobre religiã o revela uma disjunçã o
desconcertante. Ou, apesar da similaridade dos títulos, os autores nã o estã o escrevendo
sobre o mesmo assunto, ou, apesar da extensã o dos livros e do seu vocabulá rio erudito, eles
nã o sabem do que estã o escrevendo.
A primeira metade dessa disjunçã o reflete aqueles autores que — a exemplo de King —
formulam de maneira franca, corajosa e louvá vel uma definiçã o explícita de religiã o. Uma
tentativa franca é algo razoá vel porque se espera, de um autor, que ele mostre o assunto
que pretende estudar. Mas um levantamento rá pido dessas definiçõ es mostra que quanto
mais definidos sã o os autores mais é evidente que eles nã o estã o falando da mesma coisa.
King inclui praticamente uma crença em Deus na sua definiçã o — pelo menos escreve
Objeto de devoçã o com O maiú sculo e ainda enfatiza isso no capítulo seguinte (p. 74 ss.).
Julian Huxley, por outro lado, em Religion Without Revelation [Religiã o sem revelaçã o] diz
que a realidade religiosa essencial nã o é Deus, mas um senso do sagrado que, a exemplo da
sensaçã o da fome ou da emoçã o da raiva, é irredutível. Embora esta ú ltima definiçã o nã o
seja tã o definida em sua afirmaçã o quanto em sua negaçã o, é definida o suficiente para
vermos que King e Huxley nã o estã o falando da mesma coisa quando usam o termo
religião . Há ainda outras definiçõ es humanistas de religiã o que podem ser consideradas
vagas ou definidas, a depender de como se olhe para elas. O Manifesto humanista engloba
como religiã o aquelas açõ es, propó sitos e experiências que sã o humanamente
significativos. Ora, isso pode ser vago e sem sentido; mas se é levado literalmente ao pé da
letra e lhe é atribuído um significado inteligível, uma questã o interessante vem à tona. A
apendicectomia nã o é algo humanamente significativo? Entã o se segue que
apendicectomias sã o exercícios religiosos. É evidente, portanto, que aquilo que os
humanistas chamam de religiã o nã o é a mesma coisa que outros autores estã o discutindo.
Novamente, William James foi suficientemente específico quando falou que religiã o sã o as
experiências dos homens em sua solidã o; mas outros autores sã o específicos ao definir
religiã o como algo social. E o adorador devoto de qualquer das vá rias religiõ es pode nã o
gostar de nenhuma dessas definiçõ es. Claramente, o que um homem chama de religiã o,
outro nã o reconhece como tal. Quanto mais específica a definiçã o, mais claro é que os
autores nã o estã o escrevendo sobre o mesmo assunto.
Essa dificuldade dá origem à segunda metade da disjunçã o acima: alguns autores nã o
sabem do que estã o escrevendo. Eles reconhecem a impossibilidade de se definir religiã o e
confiam no cará ter familiar do termo para satisfazer o leitor. L. W. Grensted, em The
Psychology of Religion [A psicologia da religiã o], observa em seu prefá cio que o assunto é
nebuloso e mal definido; nenhuma de suas partes tem qualquer primazia ló gica ou
científica; “há sempre uma dú vida à espreita sobre se a religiã o é de fato um estudo
apropriado para a psicologia”. E em algumas pá ginas adiante reconhece: “A definiçã o de
religiã o é impossível […] Logo, o ú nico meio de expressar o que queremos dizer com
religiã o deve ser empírico, descritivo e cumulativo. Devemos nos voltar, na verdade, para
[…] o que as pessoas comuns entendem por comportamento religioso”. Essa admissã o
[2]

inicial de fracasso, contudo, nã o impede o cavalheiro de escrever seu livro — um paradoxo


cô mico do qual ele pró prio parece gostar.
Ora, há razõ es poderosas para se aceitar a posiçã o de que religião é algo que nã o pode ser
definido. Na verdade, essa é a principal conclusã o deste capítulo. Será mostrado de forma
definitiva que nã o podemos confiantemente, para repetir uma frase de King, assumir que
religião tem um significado distinguível. Essa conclusã o leva por vezes à confusã o mental
lú cida de Grensted. Há , todavia, outra alternativa que deve ser mencionada mais tarde. Mas
para o momento, e particularmente na abertura da discussã o, nã o devemos simplesmente
assumir a impossibilidade de se definir religiã o. O melhor é examinar os dois principais
métodos que sã o usados na tentativa de fabricar uma definiçã o; e se ao fazê-lo acabarmos
sendo razoavelmente convencidos de que o problema é insolú vel, teremos aprendido as
razõ es precisas para o fracasso.
 
 

A ABORDAGEM PSICOLÓ GICA


 
Em geral, dois métodos têm sido usados para distinguir a religiã o de outros assuntos de
estudo. O segundo método — baseado no exame da multiformidade do maometismo,
xintoísmo, bramanismo e assim por diante — pode ser chamado de método comparativo.
Mas a primeira coisa que deve ser considerada é a abordagem psicoló gica, com base na
familiaridade íntima da experiência.
 
 
Emoção versus intelecto
 
Há muitas pessoas, eruditas ou nã o, que acreditam que a essência da religiã o, o fator
comum em todas as religiõ es, é algum tipo de experiência emocional. De uma forma ou de
outra, essas pessoas minimizam o conteú do intelectual. Embora Hocking fale de uma busca
por justiça — e justiça, sem dú vida, é algo diferente de emoçã o —, a ênfase de Hocking
recai na paixã o da busca e nã o no conteú do da justiça. Ele nã o nega totalmente que há
fatores intelectuais na religiã o, mas afirma que nenhuma proposiçã o teorética é verdadeira
à parte do sentimento. Isso parece implicar que até mesmo a verdade da matemá tica
depende da paixã o. Talvez ele nã o dissesse que toda paixã o é religiosa ou louvá vel, mas que
a paixã o é a tal ponto o meio da religiã o que qualquer coisa que tenha paixã o “tende a ser”
religiosa. King também enfatiza a natureza emocional da religiã o e menospreza o
intelectual. Em seu prefá cio ele se refere “à estrutura das afirmaçõ es intelectuais do dogma
religioso” como oposta aos “pró prios fenô menos vitais das religiõ es pautadas na respiraçã o
e no movimento”.
Ou considere um pouco mais detalhadamente as opiniõ es de outro bem conhecido
estudioso que coloca a ênfase na emoçã o. James Bissett Pratt, em The Religious
Consciousness [A consciência religiosa], ciente das dificuldades em se moldar uma definiçã o,
reconhece que em muitos aspectos sua pró pria definiçã o é provavelmente tã o ruim quanto
qualquer outra; mas sustenta que uma palavra nela é bastante certeira. A religiã o, diz ele, é
uma atitude séria para com aqueles poderes que as pessoas acreditam controlar seu
destino. Ele enfatiza a palavra atitude , e é com tal palavra que faz pouco caso do intelecto.
Em seu estudo da conversã o, afirma que “o essencial na conversã o é a unificaçã o do
cará ter” e que essa é “a ú nica parte essencial e realmente importante dela […]” (p. 123).
Isso envolve vontade, emoçã o e pensamento, mas é principalmente algo “moral”. “Nem por
isso o lado intelectual do processo deve ser negligenciado; mas é francamente o menos
perceptível dos três. No mais das vezes parece representar apenas uma parte negativa.”
 
 
Noções preconcebidas
 
Correndo o risco de antecipar muito do argumento posterior, talvez seja melhor já neste
ponto questionar se toda unificaçã o de propó sito ou cará ter é religiosa. Como exemplo de
conversã o, Pratt escolhe a experiência de um certo Ardigo, que renunciou ao sacerdó cio
cató lico-romano para se tornar cientista positivista. Ora, isso é sem dú vida um tipo de
conversã o; mas é uma conversã o religiosa? A resposta a essa pergunta, é claro, depende da
definiçã o de religião . Pratt defende sua escolha de exemplos baseado no fato de nã o se
permitir influenciar por noçõ es pré-concebidas derivadas da teologia cristã . Supostamente,
escolher como exemplos de conversã o apenas aqueles casos que concordam com a teologia
cristã seria comprometer a alegaçã o de objetividade científica. Ao mesmo tempo, embora
possa nã o ter selecionado seu material pelo ponto de vista de qualquer das religiõ es bem
conhecidas do mundo, Pratt ainda assim fez sua seleçã o baseado em outros princípios pré-
concebidos, que podem ser considerados a sua religiã o particular. De um ponto de vista
ló gico, nã o faz diferença se as suposiçõ es de uma pessoa sã o filosó ficas ou teoló gicas,
cristã s ou nã o. Se é condená vel operar sobre pressuposiçõ es cristã s, é menos grave fazê-lo
sobre outras pressuposiçõ es? A ú nica diferença parece ser que o autor com princípios
cristã os está provavelmente mais consciente do fato, enquanto o escritor científico é visto
à s vezes afirmando nã o ter noçõ es pré-concebidas. Em outras palavras, Pratt — tentando
evitar o viés de uma visã o cristã de conversã o — parece estar inconsciente do seu pró prio
viés quando assume que a conversã o de Ardigo foi uma conversã o religiosa e que a
essência da religiã o é a unificaçã o do cará ter.
 
 
John Bunyan e Jonathan Edwards
 
O interesse de Pratt na conversã o revela, além do mais, a importâ ncia que ele atribui à
emoçã o. Além do caso duvidoso de Ardigo, ele relata as experiências mais obviamente
religiosas de David Brainerd e John Bunyan. Nesses dois casos, o processo foi
essencialmente o mesmo. Quando começaram a pensar na condiçã o de sua alma, seu estado
anterior neutro da mente deu lugar a uma depressã o cada vez maior. Eles se sentiam
totalmente impotentes. Desejosos de salvaçã o, estavam condenados pelo pecado e nã o
podiam livrar-se das tentaçõ es. A impossibilidade de se recomendarem a Deus pelos
esforços humanos independentes aumentou o desespero. Entã o, de sú bito, veio uma
grande paz de mente. E, conclui Pratt, “todo o drama se resumiu a sentimentos, e tudo o
que aconteceu foi a substituiçã o de um sentimento por outro” (p. 147). O sentimento é
ainda mais enaltecido no capítulo seguinte por uma séria má -interpretaçã o da teologia
protestante. Da tese de que o homem pelos pró prios esforços nã o pode satisfazer as
exigências de Deus, Pratt extrai a conclusã o errô nea de que “a atençã o de todos que
desejavam a salvaçã o — visto que era inú til centrá -la no pensamento, na açã o ou na
vontade — estava inevitavelmente fixada no sentir. O sentimento poderia de fato ajudar —
o sentimento da pró pria maldade e desespero —, e nada mais poderia” (p. 149). Com essa
interpretaçã o da situaçã o, Pratt menospreza a conversã o de Bunyan.
Corrigir os mal-entendidos de Pratt sobre a teologia protestante complicaria demasiado a
discussã o. É suficiente mencionar um ponto que é mais aparente. Uma vez que a tese
protestante é que o homem nã o pode pelos pró prios esforços satisfazer as exigências de
Deus, resulta que o sentimento e a emoçã o nã o podem ser de mais ajuda do que o
pensamento, a açã o ou a vontade. Assim, a necessidade de uma ajuda divina graciosa nã o
demandaria por si só mais atençã o aos pensamentos e à s açõ es do que aos sentimentos.
Porém, em vez de corrigir as visõ es de Pratt sobre a religiã o evangélica, é mais relevante
ver como ele usa sua interpretaçã o para menosprezar a conversã o de Bunyan. Ele se queixa
de que Bunyan nã o obteve nenhuma nova percepçã o através da sua experiência; nenhuma
mudança de cará ter ou vontade foi efetuada; nenhuma nova unificaçã o de propó sito foi
alcançada. Mas essa queixa envolve Pratt em uma curiosa inconsistência. Se nenhuma
mudança de vontade ou cará ter foi efetuada, Pratt nã o deveria ter incluído essa experiência
numa lista de conversõ es, pois havia antes dito que “o essencial na conversã o é a unificaçã o
do cará ter” (p. 123). Assim como no caso de Ardigo, Pratt tropeça numa conversã o que nã o
era religiosa (ao menos no sentido popular de “religiosa”); entã o comete aqui uma gafe e se
contradiz ao selecionar uma experiência que é religiosa mas em sua pró pria exposiçã o nã o
é considerada uma conversã o. Confusã o é evidência de um método ruim.
Ademais, nã o se justifica o menosprezo de Pratt à s emoçõ es de Bunyan, ainda que elas nã o
constituam uma conversã o. De um ponto de vista psicoló gico, um ponto de vista que
enfatiza a descriçã o dos fenô menos e se gaba de que a teologia nã o tem nenhuma influência
sobre as suas conclusõ es, uma sequência de emoçõ es é um objeto de estudo tã o legítimo
quanto a unificaçã o do cará ter. No método descritivo o menosprezo é algo inadequado,
quer o objeto seja as emoçõ es, quer seja a física nuclear. Particularmente para quem
considera a religiã o antes de tudo uma atitude ou sentimento, Bunyan deveria ser um
exemplo muito feliz de experiência religiosa. Mas o estilo desdenhoso de Pratt mostra, em
vez disso, que ele atribui de forma sub-reptícia mais valor ao conteú do intelectual da
religiã o do que explicitamente reconhece e que avalia Bunyan de uma posiçã o em que nã o
falta preconceito teoló gico.
Uma evidência desse procedimento parcial é novamente vista na referência de Pratt a
Jonathan Edwards. Este grande puritano da Nova Inglaterra é também assimilado pela
frase geral de que “o sentir poderia de fato ajudar […] e nada mais poderia”. Ora, é verdade,
como aponta Pratt em sua nota de rodapé (p. 150), que Edwards disse que “a religiã o
consiste em grande parte de afeiçã o santa”, e ninguém que leia a explicaçã o de Edwards
poderia discordar. Mas note, primeiro, que Edwards disse em grande parte ; ele nã o disse
que a religiã o ou mesmo a conversã o consistem totalmente de afeiçõ es. Entã o, em segundo
lugar, em Edwards a palavra afeição nã o significa o que Pratt diz que ela significa. Pratt
havia dito que “era inú til centrá -la no pensamento, na açã o ou na vontade”. Mas para
Edwards o termo afeição inclui a vontade, e de fato tem mais a ver com a vontade do que
com o puro sentimento. Em terceiro, Edwards gasta a maior parte de seu livro advertindo
os leitores a nã o confiarem em seus sentimentos. E em quarto, longe de dizer que nada
além do sentimento pode ser ú til, longe de desdenhar o conteú do intelectual, Jonathan
Edwards coloca grande ênfase na doutrina. Na verdade, sua ênfase na teologia é com mais
frequência objeto de desaprovaçã o secular do que sua real ou mesmo suposta aprovaçã o
das emoçõ es. O que parece entã o é que essas imprecisõ es sã o resultado de um método
ruim e de uma decisã o prévia de se definir religiã o em termos de emoçã o.
Por outro lado, quem deseja colocar alguma ou mesmo grande ênfase no lado intelectual da
religiã o nã o precisa concluir que é inú til estudar as emoçõ es. Jonathan Edwards as estudou
e, com base em sua teologia, deu certas advertências contra elas. A obra muito interessante
de William James, Varieties of Religious Experience [As variedades da experiência religiosa],
procede sobre uma base teoló gica diferente. O Novo Testamento em si, do seu pró prio
ponto de vista, é claro, descreve as circunstâ ncias emocionais muito distintas que advêm de
uma série de conversõ es. Mas a avaliaçã o que se faz depende da pró pria teologia. A religiã o
inclui sem dú vida as emoçõ es; mas disso nã o resulta que a vontade e o intelecto sã o fatores
negativos, nã o essenciais, menos perceptíveis e elementares.
 
 
A descrição explica?
 
Em geral, qualquer que seja o valor ou mesmo a importâ ncia indiscutível desses estudos
psicoló gicos, pode-se perguntar se descriçõ es estritamente psicoló gicas sã o de grande
ajuda para explicar a religiã o ou mesmo descobrir sua natureza. Primeiro, quanto à
explicaçã o. Certamente, a filosofia do positivismo ló gico sustenta que descriçã o é
explicaçã o. Nenhuma declaraçã o de causalidade é permitida; nenhuma declaraçã o de
propó sito é permitida; nã o se admite nenhuma possibilidade de dizer que um fenô meno
deve ser como ele é; nem mesmo uma avaliaçã o é permitida. A ú nica declaraçã o legítima é
que o fenô meno é tal como observado. Uma vez que nã o é possível empreender aqui uma
crítica do positivismo ló gico, deve ser suficiente mostrar que os positivistas ló gicos
constantemente violam o que prescrevem. Além do mais, fazer uma identificaçã o entre
descriçã o e explicaçã o equivale a negar a explicaçã o. Sem dú vida os fatos a seguir sã o tal
como descritos: uma bola de golfe sobe e desce; uma pintura ou sonata é algo agradá vel
para mim; o Congresso promulga uma nova lei. Mas ainda mais que a descriçã o do evento
queremos uma explicaçã o dele. Por que o evento ocorreu? A qual generalizaçã o ele pode
ser subordinado? Qual foi seu propó sito e quais serã o seus efeitos? E deveríamos, se
possível, tentar repeti-lo ou impedir a sua recorrência? Os positivistas ló gicos vã o além de
seus pró prios princípios quando limitam a explicaçã o à descriçã o, pois a limitaçã o em si
nã o é uma descriçã o de nada observá vel, exceto da pró pria conduta deles.
Reconhecidamente, a descriçã o fornece alguns elementos que contribuem para um
entendimento; quando menos, a descriçã o fornece material a ser explicado. Mas é prima
facie irracional confundir as duas coisas.
Ora, se o entendimento vai além do alcance da descriçã o, deveríamos explicar a religiã o
como sendo o ó pio do povo? Ou deveríamos ser um pouco menos radicais e explicá -la como
sendo o resultado da compulsã o parental e da pressã o social? Ou, novamente, seria a causa
da religiã o uma resposta estética inata ao sublime ou um medo abjeto do desconhecido?
Ou, finalmente, seria o caso de uma explicaçã o adequada transcender esses fatores e exigir
Deus como causa? Nenhuma descriçã o psicoló gica pode dar qualquer dessas respostas nem
fazer uma escolha entre elas.
 
 
A descrição descobre?
 
Logo acima foi questionado se o método psicoló gico pode explicar a religiã o ou mesmo
descobrir sua natureza. Há vá rias razõ es por que a psicologia nã o pode descobrir o que é
religiã o. Uma razã o, embora nã o a mais profunda ou mais independente, é que os relatos
descritivos das emoçõ es só se preocupam com fenô menos superficiais. Como as
consideraçõ es a seguir irã o mostrar, essas descriçõ es nã o apreendem o que é
essencialmente religioso. Que as mesmas emoçõ es sejam encontradas em diferentes
religiõ es é algo que nã o perturbaria mas seria bem recebido por um escritor como Hocking,
que insiste na unidade de todas as religiõ es e nã o está interessado em distinguir uma
religiã o da outra; que diferentes emoçõ es sejam encontradas na mesma religiã o é algo que
meramente poderia resultar numa maior dificuldade em encontrar aquele estado
emocional complexo pelo qual a religiã o deve ser definida; mas o que é fatal para esse
método de procedimento é que essas emoçõ es sã o encontradas em experiências que
geralmente nã o sã o consideradas religiosas. Por exemplo, o amor é hoje enfatizado por
alguns escritores religiosos como a emoçã o religiosa par excellence . É considerado a soma
e a essência, a natureza interior e a fonte mais profunda da verdadeira religiã o, a essência
do pró prio Deus. Mas, quando a emoçã o do amor é deixada indefinida, dificilmente se
restringe à s situaçõ es religiosas. No tocante à emoçã o per se , a descriçã o psicoló gica seria a
mesma, nã o importando quais pudessem ser as causas, o objeto, as circunstâ ncias ou o
valor. Alguns tipos de amor sã o bastante humanos; alguns sã o irreligiosos ou até mesmo
profanos. Mas, se o amor religioso deve ser definido de modo a excluir os exemplos
indesejá veis, o procedimento se torna logicamente circular. O amor primeiro é usado para
se definir religião e entã o um conceito independente de religiã o é usado para diferenciar
entre tipos de amor. Entã o, mais uma vez, nã o só é impossível confinar uma dada emoçã o
como o amor (ou um complexo de emoçõ es) à experiência religiosa, como também
igualmente impossível confinar a experiência religiosa a uma dada emoçã o. A emoçã o da
raiva é geralmente considerada uma emoçã o antirreligiosa, mas a raiva de Jesus (Mc 3.5)
era preeminentemente religiosa. Essas consideraçõ es mostram que nenhuma descriçã o
puramente psicoló gica das experiências, nenhuma emoçã o, nenhum estado particular de
consciência afetiva nem qualquer combinaçã o dos mesmos pode ser escolhido como o
elemento uniforme e definitivo da religiã o. Pode haver uma sequência de mente calma,
entã o depressã o seguida de jú bilo — como observa Pratt no caso de John Bunyan — mas a
mesma sequência também ocorre regularmente na noite de eleiçã o de políticos. Nã o há
nada distintamente religioso nas emoçõ es.
 
 
Descrição e pressuposição
 
Os escritores mais perspicazes reconhecem as deficiências da descriçã o puramente
psicoló gica. Grensted diz abertamente:
 
As questõ es ú ltimas sobre a real existência dos constituintes da nossa
experiência, por si mesmas e à parte do seu contexto nessa experiência, nã o
podem ser decididas ou sequer discutidas por métodos psicoló gicos […] A
psicologia nã o pode nem mesmo escolher seus pró prios objetivos, que sã o
selecionados pelos psicó logos com base em valores acerca dos quais a
psicologia nã o pode dar nenhuma explicaçã o completa. [3]

 
Porém, há alguns, embora nã o sejam positivistas ló gicos professos, que escrevem como se a
descriçã o psicoló gica respondesse a todas as questõ es. Mas se verificará que seus volumes,
nã o menos que as obras dos melhores autores, contêm muitas pressuposiçõ es e juízos de
valor que nã o podem ser obtidos pela observaçã o. Bem no início, embora esses escritores
nã o o reconheçam, é necessá rio um princípio normativo ou nã o descritivo para selecionar o
que se vai descrever. É bastante plausível argumentar que ninguém deveria filosofar sobre
religiã o antes de descrever os fenô menos que requerem explicaçã o. Os fatos, assim se diz,
devem preceder a teoria. Mas o problema é que um procedimento descritivo jamais pode
isolar o que deve ser descrito. Uma teoria deve preceder a escolha dos fatos. A descriçã o
pura jamais poderia tomar a decisã o de colocar a ênfase na emoçã o e nã o na intelecçã o. De
acordo com a conotaçã o popular vaga do termo, a religiã o é um fenô meno muito complexo.
Alguns cultos religiosos sã o bastante emotivos, e as pessoas gritam e cantam, sapateiam
forte no chã o, agitam seus braços e agem de maneira indigna. Outras pessoas, como os
presbiterianos e puritanos, costumam sentar-se em silêncio buscando entender um sermã o
doutriná rio de duas horas. Há também grupos dentro e fora da esfera da cristandade que se
limitam quase totalmente a um ritual elaborado. E há ainda outros que equiparam a
religiã o ao serviço social. Portanto, só um julgamento nã o observacional de valor é que
poderia motivar a afirmaçã o de que nã o vale a pena investigar os princípios intelectuais de
uma religiã o. E só esse mesmo julgamento a priori que poderia selecionar qual parte do
fenô meno complexo se deve descrever.
Cada autor, portanto, decide o que acha importante e significativo, quer seja um ritual, um
dogma ou uma emoçã o. Tal decisã o nã o pode ser evitada, mas nã o deve ser encoberta. Deve
ser feita conscientemente. Nã o deve ser apresentada como se fosse uma descoberta
objetiva e descritiva. O autor mais enganoso e mais enganado é aquele que pensa estar
simplesmente descrevendo o que existe. O que existe nã o pode em si mesmo ser
selecionado sem pressuposiçõ es. Se uma dada emoçã o ou algum outro estado afetivo de
consciência, por complexo que seja, é selecionado como sendo a essência da religiã o, a
implicaçã o é que outro estado, seja ele qual for, nã o é religioso. Deste modo a religiã o é
nitidamente separada do esporte, da política ou das demais atividades humanas
consideradas nã o religiosas. Esse é o equivalente psicoló gico da distinçã o comum entre
religiã o dominical e prá tica semanal. Indubitavelmente há pessoas que têm uma religiã o
dominical para exibiçã o pú blica — se isso pode de fato ser chamado de religiã o. Assim
também, pode haver pessoas cuja religiã o professa é alguma emoçã o isolada. Mas nã o
poderia haver outras cuja religiã o permeia todas as atividades? Para elas, política, oraçã o e
procriaçã o sã o todos deveres religiosos. É possível reunir esses dois tipos de religiã o sob
uma só descriçã o? Com que direito o ú ltimo é excluído ao se tentar isolá -los? Obviamente,
entã o, o pró prio psicó logo deve ter uma filosofia da religiã o que controle sua psicologia da
religiã o, e é este material mais profundo que o presente capítulo acredita ser o mais
significativo.
 
 
A integração da personalidade
 
Até este ponto, a discussã o tem enfatizado a visã o de que a emoçã o é a essência da religiã o.
Mas essa restriçã o nã o faz justiça ao método psicoló gico nem à exclusã o geral das
definiçõ es intelectuais. A explicaçã o da religiã o como sendo uma experiência nã o racional
admite outra possibilidade — uma possibilidade que era evidente no material de Pratt, mas
que ainda nã o foi examinada. Pratt falou sobre a unificaçã o do cará ter e usou a conversã o
secular de Ardigo como exemplo. Esse é um tema popular entre os humanistas modernos.
Confinar a religiã o a uma emoçã o, como por exemplo o sentimento de dependência de
Friedrich Schleiermacher, dizem eles, é uma visã o demasiado estreita; e embora uma
experiência religiosa possa à s vezes ser caracterizada por esse sentimento, outra
experiência igualmente religiosa pode nã o o ser. O senso de dependência nã o é essencial à
religiã o. Portanto, os humanistas em geral tentam localizar a religiã o nas necessidades mais
universais do homem — nã o nas necessidades nã o religiosas do alimento e do abrigo, mas
especificamente na necessidade de integrar os pró prios impulsos, emoçõ es e desejos
dispersos e conflitantes. Isso quer dizer que a religiã o é o processo de alcançar uma
personalidade unificada, coerente e efetiva. A consciência do pecado, como os cristã os a
chamam, é a consciência do fracasso em alcançar esse eu unificado, e a redençã o é o
sucesso subsequente. Mas o sucesso nã o depende de ideias cristã s. Esse foi o erro do
liberalismo protestante, comumente chamado de modernismo. Tendo rejeitado a teologia
tradicional, esse movimento religioso ainda buscava a soluçã o dos problemas da vida
dentro de um quadro cristã o. Mas essa restriçã o é inconsistente com a substituiçã o de um
livro de autoridade pela experiência religiosa. O humanismo, consistentemente empírico,
insiste em que a integraçã o do cará ter é frequentemente obtida por outros métodos. Se
examinarmos todos os métodos de integraçã o bem-sucedidos, restará claro que o
cristianismo nã o é ú nico ou mesmo superior. Os principais bens sã o a busca da verdade, a
criaçã o da beleza e a concretizaçã o do amor e da amizade. Os métodos usados para
alcançar esses bens podem ser igualmente chamados de religiosos, se alguém quiser falar
de religiã o.
Há duas principais dificuldades nessa tese humanista. A primeira é o estabelecimento da
verdade, da beleza e da amizade como sendo coisas boas. Nietzsche negou que a verdade
fosse sempre boa. Poderia o humanismo, especialmente um humanismo relativista e
experimental, defender-se dos argumentos de Friedrich Nietzsche? Talvez o bem fosse
menos ainda encontrado na beleza e na amizade. É possível entã o, com base em
pressupostos humanistas, justificar essas preferências ou mostrar de fato que qualquer
linha definida de conduta é boa ou má ? Essa questã o, uma vez que levanta o problema geral
da ética, será examinada em um capítulo posterior. O ponto aqui, simplesmente, é que se
trata de uma questã o difícil. Tã o difícil que à s vezes os humanistas fogem dela e abraçam
outra dificuldade. E fogem tanto mais porque a seleçã o de determinados bens (como a
verdade e a beleza) e a ênfase dos humanistas na sociedade, na cooperaçã o e no
coletivismo — levando-os por vezes a falar mesmo de uma reverência pelo bem social — é
inconsistente com a sua visã o da religiã o.
Se a integraçã o pessoal é a essência da religiã o, se — como diz um de seus nú meros — o
método empírico nã o pode demonstrar para o cristã o que a soluçã o nã o cristã é inferior, se
portanto a verdadeira religiã o é apenas um absorvimento sincero em qualquer grandeza
imaginada que traz empiricamente uma integridade da individualidade (e os humanistas
usam todas essas frases), segue-se que a integraçã o de propó sitos, emoçõ es e sentimentos
alcançada por Adolf Hitler e Joseph Stá lin nã o pode, por qualquer método empírico, ser
julgada inferior a nenhuma outra. Esses dois ditadores poderiam com tanta verdade quanto
o apó stolo Paulo dizer “Isso é algo que faço”. Todos os três se caracterizavam por uma
completa unidade de mente. Para uma tal visã o de religiã o, os exemplos de avarentos e
eremitas que também alcançaram uma grande integraçã o de emoçõ es e sentimentos sã o só
um pouco menos constrangedores.
A desvantagem dessa tentativa de definir religiã o deve estar agora clara. A definiçã o é tã o
ampla e vaga que abarca uma variedade incontrolá vel de experiências. O místico hindu, o
apó stolo Paulo, o ditador e o avarento sã o exemplos igualmente perfeitos de religiã o. Mas,
embora sejam sem dú vida exemplos igualmente perfeitos de personalidade integral, os
tipos de personalidade sã o tã o incompatíveis uns com os outros que se um é chamado de
bom o outro deve ser chamado de mau. Ninguém, nem mesmo o humanista, admitiria nã o
ter alguma preferência entre esses modos de viver. E, neste caso, nã o se pode dizer tout
court que a integraçã o da personalidade é algo bom. Essa conclusã o é um ponto essencial
na mensagem de um evangelista cristã o. Muitas das pessoas a quem ele prega sã o
personalidades integradas: e é exatamente esse o problema delas. Seus desejos e interesses
estã o completamente harmonizados num sistema naturalista de valores. Elas estã o
completamente satisfeitas consigo mesmas. Nenhum sentimento de culpa perturba sua
tranquilidade. A mensagem cristã deve destruir essa integraçã o; e, ainda que a mensagem
nã o consiga fornecer a elas um substituto tã o perfeitamente harmonizado, a semi-
integraçã o produzida é algo melhor do que a integraçã o anterior completa.
O método psicoló gico, portanto, falha em descobrir, definir e explicar a religiã o; e ao
mesmo tempo falha em justificar sua alegaçã o de imparcialidade científica. Nã o é por pura
descriçã o que a psicologia super-enfatiza a emoçã o: esse é um julgamento normativo. E é
um julgamento que impossibilita fazer uma distinçã o entre a religiã o e outras experiências
emocionais, como a política. A influência controladora de pressuposiçõ es filosó ficas nã o
descritivas é igualmente revelada no menosprezo a certos tipos de conversã o. O
menosprezo é obviamente avaliativo. Se agora essas pressuposiçõ es sã o tornadas
definitivas e valores específicos sã o colocados acima de outros, o problema geral da ética se
torna inescapá vel. Mas, se valores específicos sã o deixados vagos e todo tipo de integraçã o
é permitido, o problema geral da ética pode ser contornado, pois tipos incompatíveis de
vida sã o colocados no mesmo patamar. Visto que esse método resulta nessas confusõ es,
visto que os termos sã o deixados sem um significado definido, algum outro método parece,
portanto, imperativo.
 
 
O MÉ TODO COMPARATIVO
 
O ideal de classificar as religiõ es da mesma forma que os membros da família das liliá ceas
na botâ nica é atraente demais para ser descartado só por causa do fracasso de uma
tentativa. Outro método de abordar o problema é o método das religiõ es comparadas. Se
emoçõ es parecidas florescem em diferentes religiõ es, e emoçõ es divergentes dentro de
uma mesma religiã o, e todas elas sem o benefício de nenhuma religiã o, talvez a natureza da
religiã o deva ser encontrada em seu aspecto intelectual. Certamente, a exclusã o sistemá tica
dos “esqueletos” do conteú do intelectual é uma posiçã o extrema. Um estudo das crenças ou
da teologia de uma religiã o é indispensá vel para um entendimento dela. Só se pode evitar
abstraçõ es vagas e enganosas quando se apreende o sistema doutrinal ou intelectual de
cada fé. E a despeito da primeira impressã o, de que há diferenças incompatíveis entre as
religiõ es, nã o seria o caso de haver algumas semelhanças bá sicas? Do contrá rio, por que
todas elas deveriam ser chamadas de religiã o?
 
 
Deus é essencial para a religião?
 
À primeira vista parece haver uma maior variedade de crenças do que de emoçõ es e que a
natureza da religiã o jamais pode residir em qualquer formulaçã o teoló gica; mas a
esperança dos estudos comparativos é evidentemente encontrar nessa confusã o de crenças
algum denominador comum, algum consenso mínimo, algum acordo geral. Sem dú vida, o
maometismo e o cristianismo têm concepçõ es distintas de Deus, mas ambos creem em
algum tipo de divindade. Talvez, entã o, este seja o elemento comum e a natureza essencial
de todas as religiõ es.
[4]

Karl L. Stolz, em The Psychology of Religious Living [A psicologia da vida religiosa],


argumenta que o humanismo nã o é uma religiã o porque ele “usa a palavra ‘religiã o’ com
uma conotaçã o que lhe é absolutamente estranha […] Uma religiã o sem deus é uma
contradiçã o de termos” (p. 75-76). Para o momento, admitamos que Stolz e King estã o
certos ao negarem ser possível uma religiã o nã o ter um deus. Somos agora confrontados
com a filosofia de Spinoza e com as superstiçõ es de tribos selvagens. Spinoza tinha uma
religiã o? Spinoza tinha um deus? Algumas pessoas o chamaram de ateu; e se isso é verdade,
ele nã o poderia ter tido uma religiã o no sentido da palavra dado por Stolz. Mas outros o
chamaram de Gottbetrunkener Mensch — um homem embriagado de Deus. Ele
frequentemente falava de Deus, de Deus sive Natura . Portanto deve ter sido muito
religioso. Infelizmente, porém, se Deus e a natureza sã o identificados e se o Deus de
Spinoza é o pró prio universo, é possível dizer que ele acreditava em Deus? Nã o é Deus algo
diferente do universo? O que se entende pelo termo Deus ? Ou, para nos voltarmos da
filosofia complicada de Spinoza para as superstiçõ es de povos nã o civilizados, qualquer que
tenha sido o deus reconhecido pela religiã o inca ou quaisquer que sejam os deuses
adorados nos vá rios cultos animistas, eles nã o sã o o Deus do cristianismo. Se o termo Deus
é ampliado a ponto de poder incluir o uso tanto por Spinoza quanto pelos animistas, o
termo e a definiçã o de religião na qual ele é usado se tornam sem sentido. Assim, se
“religiã o” deve ser definido em termos de crença, entã o talvez deva ser uma crença em
espíritos, ou meramente na imortalidade, ou alguma outra crença generalizada que a
inspeçã o mostrará ser o ingrediente uniforme de toda religiã o.
Todavia, esse expediente de substituir o termo mais inclusivo espírito pelo termo mais
definido Deus enfrenta exatamente as mesmas dificuldades. Espírito precisaria ser definido,
e teríamos de questionar se sub specie aeternitatis de Spinoza pode ser devidamente
incluído na noçã o de imortalidade. Mas além dessas dificuldades detalhadas, há razõ es
decisivas por que o método em si, a pró pria busca de um elemento comum, é algo
insatisfató rio.
 
 
A caça ao snark
 
O método é insatisfató rio porque requer desde o início o conhecimento que almeja obter no
final. Para se descobrir o elemento comum de todas as religiõ es, primeiro seria necessá rio
distinguir as religiõ es de todos os fenô menos nã o religiosos. Se houvesse uma lista
autoritativa de religiõ es, um estudante poderia começar examinando-as em busca de um
elemento comum. Mas antes que o elemento comum fosse conhecido, como uma lista
autoritativa poderia ser compilada? Se Lewis Carroll falasse a Alice para examinar todos os
snarks e buscar a natureza comum do snark, Alice (pelo menos em seus momentos
despertos) nã o saberia dizer se todos os objetos diante dela, ou pelo menos algum, sã o
snarks. Ora, nã o estamos em uma posiçã o muito melhor do que Alice. Na tentativa de
encontrar a natureza comum da religiã o, acreditamos ser prudente assumir que o
cristianismo e o maometismo sã o religiõ es. Mas o budismo hinayana é uma religiã o? Se é,
entã o a crença em Deus nã o é essencial para uma religiã o; mas se a crença em Deus é
essencial, essa forma de budismo nã o é uma religiã o. Devemos examinar o budismo ou
nã o? Devemos incluir o budismo em nossa lista? Para responder à pergunta, teríamos
primeiro de conhecer a natureza essencial da religiã o; todavia essa natureza essencial
ainda é o objeto desconhecido da busca. De nada serve sermos aconselhados a iniciar com
uma lista menor e indiscutível. Em primeiro lugar, nã o existe nenhuma lista indiscutível.
Até que “religiã o” seja conhecido, nada pode ser colocado na lista. E, em segundo lugar,
ainda que tivéssemos uma lista pequena e indiscutível, seus elementos comuns nã o
poderiam ser tomados como se constituíssem a natureza da religiã o, porque no caso da
religiã o (ainda mais que no da botâ nica) o elemento comum de uma lista mais longa nã o
seria provavelmente o primeiro elemento comum observado na lista mais curta.
Além do mais, o budismo nã o é a ú nica dificuldade ou a mais embaraçosa. Considere o
comunismo. Ele é ostensivamente inimigo de todas as religiõ es, fundamental e
enfaticamente antirreligioso. De fato, é religiosamente antirreligioso. Seu zelo
antirreligioso faz com que seja uma religiã o para seus adeptos. Deveria o estudante de
religiã o, portanto, listar o comunismo como uma das religiõ es do mundo e buscar pelo
denominador comum do comunismo, cristianismo e budismo? Como o estudante pode
decidir o que fazer? A menos que primeiro saiba o que é religiã o, ele nã o saberá se deve ou
nã o examinar o comunismo junto dos demais na esperança de descobrir a natureza
essencial da religiã o.
Além dessa objeçã o ao método, há também uma objeçã o à s conclusõ es usuais que ele
oferece. Suponha que o cristianismo, o maometismo e inclusive o budismo foram
examinados. Talvez se alegue que o elemento comum é a crença em um Ser Original. A
fraseologia em que esses elementos comuns sã o declarados deve ser tã o geral e é
interpretada pelas vá rias religiõ es de maneiras tã o incompatíveis e antagô nicas que nada
comum parece restar, exceto um nome ou forma fazia de palavras. Para o budismo o Ser
Original pode ser o Nirvana; para o cristianismo é a Trindade; para o comunismo sã o os
á tomos. Mas se a Trindade é espírito e nã o matéria, se os á tomos sã o matéria e nã o espírito
e se o Nirvana nã o é nem uma coisa nem outra, é difícil ver que há um elemento real em
comum. Ser Original é apenas um nome, um nome de nada, um som no ar.
 
 
Necessidades humanas comuns
 
Se em resposta a essa crítica é dito que os três Seres Originais realizam funçõ es aná logas
nos três sistemas e que essa funçã o é um elemento comum real, a resposta será uma
repetiçã o do argumento. A defesa amiú de fala que as vá rias religiõ es cumprem as
necessidades de seus adeptos, de modo que o fator comum em todas as religiõ es é que elas
satisfazem certas necessidades. Mas essa resposta nã o funcionará . Nã o funcionará porque
as vá rias religiõ es nã o concordam sobre o que o homem necessita. Claro, pode haver a
concordâ ncia verbal de que os homens têm necessidade do que é bom para eles, mas
quando os conteú dos específicos do bem ou da necessidade sã o esclarecidos, descobrimos
que diferem entre si. O homem precisa do céu onde Cristo está sentado à destra do Pai, ou
precisa do Nirvana e da extinçã o pessoal? Nenhum cristã o devoto admitirá que o Nirvana
(ou os á tomos) pode realizar a mesma funçã o que a Trindade; nem o comunista ou o
budista admitirá que a Trindade pode fazer o que o Nirvana ou os á tomos podem. Só os
críticos sem religiã o podem tã o despreocupadamente fazer uma identificaçã o entre eles. Os
pró prios adeptos nã o alegam que seu Ser Original realiza a mesma funçã o alegada para o
Ser Original de outras religiõ es. Função e necessidade , bem como Ser Original , nã o passam
de nomes vazios. Nã o há , portanto, nenhum elemento em comum entre aqueles fenô menos
que sã o popularmente declarados como religiosos.
Que é entã o religiã o? Coloquialmente a palavra é aplicada ao maometismo, budismo e
cristianismo. Mas porque é vaga, também pode ser aplicada ao comunismo. Portanto, as
definiçõ es de religiã o assumem a forma “daquilo em razã o do que um homem viverá e
morrerá ”. Essas definiçõ es sã o completamente ausentes de conteú do e nã o especificam
nenhum assunto definido de investigaçã o científica.
 
 
Palavras significativas
 
Em contrapartida, para se ter um tema definido e significativo de estudo, a palavra
coloquial e vazia deve ser abandonada e alguns conteú dos específicos devem ser
selecionados. Por exemplo, a palavra Deus nã o pode ser simplesmente qualquer princípio
primeiro. O Deus sive Natura de Spinoza e o Deus de Abraã o, Isaque e Jacó — como tã o bem
viu Pascal — nã o sã o a mesma coisa. E salvaçã o nã o pode significar tanto o Nirvana quanto
o Céu. Portanto, se queremos usar a palavra religião , devemos defini-la minuciosamente.
Podemos desejar discutir o maometismo ou podemos desejar discutir o cristianismo. Neste
sentido existem religiõ es, embora nã o haja nenhuma religiã o. É verdade que pode ser difícil
definir cristianismo ou maometismo , mas nã o é impossível. Quem sabe, no interesse da
precisã o, tenhamos de alterar um pouco o significado coloquial, mas a definiçã o técnica nã o
estará tã o longe do significado comum ao ponto do absurdo. Seja como for, precisamos de
conceitos claros para evitar confusã o. Quando um termo como Deus é expandido para
incluir todos os princípios primeiros que alguém já tenha cogitado — e todo fetiche,
espírito e superstiçã o, apesar de nã o serem princípios primeiros — o termo nã o significa
nada. Como insistiu Hegel, toda determinaçã o é uma negaçã o. Ou como argumentou
Aristó teles, um termo nã o deve apenas significar algo, mas também nã o significar algo.
Apó s séculos de discussã o filosó fica, defender a indispensabilidade da linguagem
inequívoca nã o deveria ser algo necessá rio, mas tal é o caos nas discussõ es em religiã o e tal
é a antipatia a que se tome um determinado ponto de vista que os resultados desastrosos
das generalidades vagas devem ser enfatizados. Tentemos, portanto, evitar confusã o sendo
explícitos. A maioria das palavras no dicioná rio possuem três, quatro ou até cinco
significados um tanto diferentes; mas se qualquer palavra tivesse mil significados, ou
melhor, se qualquer ú nica palavra pudesse significar todas as demais palavras no
dicioná rio, ninguém poderia dizer o que ela significa. Se uma palavra significa tudo, nã o
significa nada. Nã o ter nenhum significado definido ou limitado é nã o ter significado algum.
 
 
CRISTIANISMO
 
Daqui em diante a discussã o seguirá o ponto de vista do cristianismo. O termo cristianismo
é muito mais definido do que religião . O cristianismo tem certas doutrinas sobre um Deus
pessoal, sobre Cristo o Redentor e sobre céu e inferno que nã o podem ser confundidas com
comunismo, maometismo ou spinozismo. Mas se a certeza do conteú do intelectual é uma
virtude, por que parar tendo apenas um pouco? Até mesmo a palavra cristianismo é usada
coloquialmente em vá rios sentidos, e somos forçados a admitir que frequentemente
cristã os professos têm eles pró prios ideias inadequadas do que é o cristianismo.
Certamente as imagens, medalhas, rosá rios e outras paraferná lias do romanismo nã o sã o a
mesma religiã o do puritanismo iconoclasta.
 
 
Uma definição de cristianismo
 
É essencial, portanto, definir o cristianismo de forma mais exata mediante um sistema
doutriná rio específico. Nã o estamos falando de romanismo. Por cristianismo nos referimos,
para usar nomes comuns, ao que se chama de calvinismo. Ou, para ser mais específico, a
definiçã o de cristianismo deve ser os artigos da Confissão de fé de Westminster . Com uma
base tã o definida, nã o será mais necessá rio girar vertiginosamente num turbilhã o de
discussõ es ambíguas. Agora podemos saber do que estamos falando.
Visto que a causa de confusã o na filosofia da religiã o tem sido a terminologia vazia e sem
sentido, a esperança agora é que o afastamento da ambiguidade venha a contribuir para a
soluçã o de vá rios problemas. Os principais temas — a relaçã o entre razã o e fé, inspiraçã o e
revelaçã o, a base da moralidade — serã o considerados nos capítulos que seguem. Será feita
uma tentativa de mostrar que por causa da posiçã o doutriná ria bá sica é possível chegar a
conclusõ es definidas e consistentes. Nã o há nenhuma alegaçã o hipó crita de que o
argumento nã o tem pressuposiçõ es. Ao contrá rio: apenas porque a Confissão de fé de
Westminster está sendo conscientemente adotada é que o progresso pode ser esperado.
Mas antes que as principais questõ es sejam colocadas, certos pontos menores provam ser
exemplos satisfató rios do procedimento e podem ser usados para concluir esta introduçã o.
 
 
As religiões
 
Em primeiro lugar, um ponto de vista cristã o definido pode fornecer a soluçã o para o
paradoxo do presente capítulo. Como pode haver religiõ es e ainda assim nenhuma religiã o?
Se nã o há nenhuma qualidade em comum, emocional ou intelectual, por que esses
fenô menos sã o uniformemente classificados juntos e chamados de religiã o? Por que há
também casos duvidosos que algumas vezes parecem ser religiosos e outras vezes
“meramente” filosofia ou talvez política? Claro, pode-se simplesmente apelar à ignorâ ncia e
estupidez da populaçã o e sua falta de pensamento claro. Mas há algo mais. A resposta cristã
começa com Deus criando Adã o à sua pró pria imagem e lhe dando uma revelaçã o especial.
Aqui estava o início da religiã o. Com a Queda, no entanto, e a resultante depravaçã o, os
homens se alienaram de Deus e distorceram a revelaçã o e sua reaçã o a ela. À medida que as
geraçõ es passavam, essas distorçõ es divergiam em muitas direçõ es, dando origem a todas
as formas de idolatria, adoraçã o de animais, fetichismo e bruxaria, para nã o mencionar a
rebeliã o mais descarada de ateísmo. Assim, nã o havia nenhuma possibilidade de qualquer
conteú do intelectual permanecer igual em todos esses desenvolvimentos. As religiõ es de
hoje, portanto, sã o descendentes da ú nica religiã o original; e por causa dessa origem
comum sã o coloquialmente chamadas de religiã o. Se a divergência nã o é tã o grande a ponto
de obscurecer essa origem, as pessoas nã o hesitam em chamar os fenô menos de religiosos.
Assim, o islamismo é sempre chamado de religiã o por causa de sua herança do judaísmo.
Quando a divergência se torna maior, a hesitaçã o e perplexidade se instalam. Isso é visto
onde as pessoas se perguntam se o budismo é uma religiã o ou apenas uma filosofia. E se ela
se torna extrema, as pessoas estã o geralmente bastante convictas de que nã o se trata de
uma religiã o. Mas a classificaçã o ló gica falha, pois as divergências têm ocorrido sem ser
através de qualquer princípio ló gico. A inspiraçã o desinibida se lança em todas as direçõ es
de uma só vez. Portanto, o ú nico resultado abrangente da tentativa de se definir religião é
agora a mais vaga das declaraçõ es sem sentido.
 
 
Conversão cristã
 
Um segundo exemplo da confusã o que é gerada por noçõ es vagas já foi visto na discussã o
sobre conversã o. Mas considere outro exemplo: Strickland [5]
observa que a psicologia nã o
deveria tentar dizer o que deve ser, mas de acordo com os ideais científicos deveria
simplesmente tentar descobrir o que é. Aplicando esse princípio à s experiências de
conversã o, Strickland nã o prescreverá quaisquer elementos necessá rios ou essenciais sem
os quais a conversã o nã o pode ocorrer, mas coletará dados de relatos de conversõ es e fará
quaisquer generalizaçõ es que esses dados permitirem. Como foi explicado antes, isso
equivale a caçar o snark antes de saber o que é um snark. Strickland portanto segue adiante
apontando que os casos que ele coletou nem sempre exibem tristeza pelo pecado. Isso, diz
ele, é evidente tanto a partir de relatos de experiências cristã s quanto de experiências
hindus modernas. Nessa linha de argumentaçã o, Strickland assume que as experiências
hindus sã o casos de conversã o. Mas qual é a definiçã o de conversão ? O reconhecimento da
Confissão de fé de Westminster como pressuposto fornece uma definiçã o e uma soluçã o do
problema. Nesta base, conversão é o voltar-se inicial do pecador para a misericó rdia de
Deus em Cristo apó s uma compreensã o do pecado como contrá rio à lei justa de Deus.
Embora isso nã o seja uma citaçã o literal da confissã o, é uma avaliaçã o bastante aproximada
do significado puritano ou calvinista; e se é isso o que se entende por conversão , é claro
que as experiências hindus nã o podem ser chamadas de experiências de conversã o. É
apenas um pouco menos claro que muitas experiências chamadas de cristãs por
pensadores descuidados nã o sã o conversõ es e podem nem sequer ser cristã s. O estado
confuso de mente dos psicó logos seculares que misturam toda sorte de experiências, as
quais na melhor das hipó teses têm apenas uma similaridade mais superficial, torna suas
investigaçõ es quase completamente inú teis. Poderíamos com a mesma facilidade anunciar
como grande descoberta que as cristas dos galos, a luz do planeta Marte e os comunistas
sã o todos vermelhos. Se os psicó logos nã o devem legislar, o cristianismo, nã o obstante,
deve.
 
 
Pecado
 
Um terceiro e ú ltimo exemplo de mal-entendido que resulta de termos definidos de forma
descuidada, também surgindo em conexã o com os fenô menos de conversã o, é o senso de
pecado. Para voltar pela ú ltima vez a Pratt, notamos que ele dificilmente disfarça sua
antipatia pela experiência de Bunyan. A objeçã o que ele expressa é que Bunyan sofria sob
um senso de pecado sem particularizar um ou alguns pecados definidos. Pratt dá a
impressã o de que Bunyan seria mais compreensível se tivesse mostrado tristeza por algum
ato ó bvio de transgressã o. Tivesse ele cometido um assassinato ou praticado roubo, tivesse
difamado ou ferido seu vizinho de porta, ele teria entã o algo por que se desculpar e sua
depressã o poderia de alguma forma se justificar. Mas, diz Pratt em tom depreciativo,
Bunyan sofria meramente de um senso de pecado e nã o por causa de quaisquer atos
definidos. A razã o por que Pratt passa da simples descriçã o psicoló gica para a aberta
condenaçã o nã o é difícil de ver. Ele tacitamente define pecado como um ato manifesto e
voluntá rio, possivelmente o restringindo a atos bastante sérios, e mostra nã o ter nenhum
entendimento da visã o do pecado como alguém estar aquém dos padrõ es de Deus. Na sua
visã o nã o cristã , os pecadilhos, possivelmente — e certamente o cará ter herdado,
involuntá rio — nã o sã o considerados pecados. Assim, com seus pressupostos, Pratt nã o
pode apreciar nem sequer entender a doutrina cristã da depravaçã o humana. Ele está
tentando aplicar uma noçã o secular de pecado à experiência cristã de Bunyan, e o resultado
nã o é mais relevante do que imparcial.
É o que acontece vez apó s vez. Nos capítulos a seguir, no que diz respeito a vá rios
problemas importantes, será visto em profundidade como os termos ambíguos e
deslocados do método comparativo produzem dificuldades e paradoxos insolú veis, levam a
absurdos ó bvios ou chegam ilogicamente a conclusõ es hostis ao cristianismo. Os
argumentos nã o cristã os normalmente pressupõ em, antes de começar, o ponto em disputa.
As perguntas sã o assim formuladas de modo a excluir a resposta cristã desde o início. Ao
examinarmos esse procedimento para ver como ele funciona, veremos também como
conceitos cristã os inequívocos se combinam em um sistema consistente.

FÉ E RAZÃO
 
 
Ao longo da histó ria da teologia e filosofia — em toda a “guerra entre a ciência e a religiã o”,
bem como em textos mais devocionais sobre a relaçã o entre Deus e o homem — a antítese
entre fé e razã o tem sido um foco frequente de discussã o. Mas sã o a fé e a razã o antitéticas?
No sentido em que eram usados por Agostinho, os termos sã o praticamente idênticos. Em
alguns contextos certamente sã o dispostos em cooperaçã o amigá vel. Mas têm sido, claro,
frequentemente colocados em mú tua oposiçã o.
A presente discussã o será condensada em quatro subtítulos que podem ser facilmente
lembrados. Em primeiro lugar, a visã o cató lico-romana virá sob o título “Razã o e fé”. Em
segundo, “Razã o sem fé” resumirá a filosofia moderna de Descartes a Hegel. Em terceiro, as
erupçõ es de irracionalismo que vieram apó s Hegel — incluindo o misticismo, a neo-
ortodoxia, bem como Nietzsche e o instrumentalismo — serã o tomadas como exemplos de
“Fé sem razã o”. E em quarto lugar a ú nica combinaçã o restante será “Fé e razã o”.
 
 
RAZÃ O E FÉ
 
Teologia natural
 
A ideia de que a verdadeira religiã o é precedida pela atividade da razã o natural ou de
alguma forma baseada nela foi e continua a ser amplamente predominante. O
procedimento adequado é descrito como começando com uma prova da existência de Deus.
Assim que o incrédulo é convencido por um argumento extraído da natureza, pode ser
mostrado a ele em seguida a probabilidade antecedente de uma revelaçã o especial e, por
fim, a razoabilidade das Escrituras.
Essa teologia natural em sua forma medieval nã o apenas foi adotada como a posiçã o oficial
do romanismo, como também muitos teó logos protestantes a aceitam de alguma forma ou
de outra . Mas nem todos, verdade seja dita. A. H. Strong, em sua Teologia sistemática , diz:
“Tais argumentos sã o prová veis, mas nã o demonstrativos”. [6]
No entanto o professor
luterano Leander S. Keyser expõ e os argumentos racionais para a existência de Deus em A
System of Natural Theism [Um sistema de teísmo natural]. Sua aná lise e rejeiçã o do
argumento ontoló gico só ressalta sua dependência dos demais argumentos. A. E. Taylor é
mais ambíguo em sua posiçã o eclesiá stica, em seu conceito de Deus e até mesmo na força
precisa que atribui à sua argumentaçã o; mas escreveu um livro, Does God Exist? [Deus
existe?], para cuja pergunta sua resposta nã o é certamente negativa. J. Oliver Buswell, Jr.,
Stuart Hackett e a seu pró prio modo Edward John Carnell se juntam a vá rios escritores
protestantes que aceitam as provas teístas. Antes de todos esses homens, porém, e de uma
forma muito mais elaborada e sistemá tica do que feito por qualquer um deles, Tomá s de
Aquino declarou os argumentos naturais para a existência de Deus, sobre cuja base erigiu
entã o uma teologia revelada .
A visã o tomista faz uma distinçã o entre o processo de chegar à verdade pela razã o natural
desassistida do homem e a aceitaçã o voluntá ria da verdade com base na autoridade da
revelaçã o divina. O primeiro é uma filosofia demonstrá vel; o segundo, aceito sem
demonstraçã o, é a esfera da fé. A fé e a razã o sã o, portanto, num sentido, incompatíveis.
Esse sentido, claro, nã o é aquele em que os humanistas ou materialistas fazem ser
mutuamente antagô nicas. Ao contrá rio, elas sã o psicoló gica ou subjetivamente
incompatíveis. Se demonstramos racionalmente uma proposiçã o, é impossível acreditar
nela por mera autoridade. Temos agora a prova, e isso nã o deixa espaço para a fé. Por
exemplo, um professor de escola secundá ria pode dizer a um aluno que triâ ngulos planos
têm 180 graus, e o aluno, se tem alguma noçã o do que é grau, pode acreditar no que seu
professor diz. Mas, uma vez que tenha entendido a prova, o aluno nã o acredita mais no
teorema com base na autoridade do professor; ele conhece o teorema porque o provou.
Tomá s de Aquino e Aristó teles admitiriam até mesmo um exemplo que partisse da
experiência sensorial. Um norte-americano poderia dizer a um europeu que Denver fica a
oeste de St. Louis; mas se o europeu viesse aos EUA e visitasse as cidades, nã o acreditaria
mais com base na autoridade; ele saberia por experiência. É impossível, portanto, saber e
acreditar a mesma coisa ao mesmo tempo. O princípio vale igualmente para a proposiçã o
de que Deus existe.
Todavia, a incompatibilidade subjetiva entre saber e acreditar a mesma coisa ao mesmo
tempo nã o impede que a mesma proposiçã o faça parte da teologia de um homem e da
filosofia de outro. Deus se acomodou à fragilidade humana e, como a religiã o cristã nã o
deve se restringir a eruditos, Deus sobrenaturalmente revelou algumas verdades que os
eruditos podem descobrir por si mesmos. Assim, Deus revelou sua existência de uma forma
que os camponeses e os idiotas podem acreditar nele; e eles têm fé. Mas Tomá s de Aquino
nã o acredita mais na existência de Deus; ele sabe que Deus existe porque provou isso.
Em outro sentido mais importante, a razã o e a fé nã o sã o incompatíveis. Sã o
complementares. Há muitas verdades sobre Deus que sã o indemonstrá veis. Todavia,
embora nã o possam ser obtidas naturalmente, elas sã o necessá rias para uma religiã o
positiva. Portanto, Deus graciosamente as revelou. Pode ser demonstrado, por exemplo,
que Deus existe e que ele é a causa do mundo, mas a doutrina da Trindade nã o pode ser
demonstrada. Porém, a doutrina da Trindade nã o é incompatível com a razã o; ela nã o
contradiz nenhuma proposiçã o demonstrá vel na filosofia. Ao contrá rio, as doutrinas da
revelaçã o completam o que a filosofia precisou deixar inacabado. Os dois conjuntos de
verdades sã o complementares.
A verdadeira fé e verdadeira razã o nã o podem se contradizer. O conhecimento natural e as
verdades da fé vêm ambos de Deus — embora de diferentes maneiras. Mas, como ambos
vêm de Deus, devem ser consistentes. Por causa disso, segue-se que a fé é frequentemente
uma ajuda para a razã o. Sempre que um pensador em seus raciocínios especulativos chega
a uma proposiçã o inconsistente com a fé, como foi o caso de Averró is ao concluir contra a
imortalidade individual, deve aceitar a advertência da revelaçã o de que ele cometeu um
erro na argumentaçã o. A fé nunca é um obstá culo para a razã o; nã o se deve imaginar o
crente como um prisioneiro que precisa ser libertado; a fé apenas restringe do erro. Razã o
e fé estã o, portanto, em harmonia.
Nessa representaçã o tomista dos assuntos, o significado de fé e razão deve ser considerado.
Esses termos-chave nã o sã o usados no mesmo sentido por todos os autores, e portanto, as
discussõ es histó ricas nem sempre se referem ao mesmo assunto. Para Tomá s de Aquino, fé
se refere a verdades recebidas pela comunicaçã o sobrenatural de informaçõ es; mas nã o é o
que posteriormente F. H. Jacobi e Friedrich Schleiermacher queriam dizer por fé . Razão ,
neste contexto, significa um processo que começa com a sensaçã o, passa pela imaginaçã o,
faz uso da abstraçã o e chega ao conhecimento conceitual. Porém, na filosofia do século XVII
a razã o era nitidamente separada da sensaçã o. Razão entã o significava ló gica somente. Por
causa dessas variaçõ es no uso, é preciso ter cautela. As restriçõ es que um autor faz à fé
podem se aplicar na verdade a um significado de fé , sendo ao mesmo tempo totalmente
irrelevantes para outro. A falha em observar isso — nã o apenas pelos leitores, mas
especialmente pelos escritores — tem sido uma fonte de confusã o sem fim.
Antes de examinar o argumento cosmoló gico para determinar se a razã o pode satisfazer ou
nã o as expectativas de Tomá s de Aquino, será melhor considerar algumas objeçõ es ao
programa geral, conforme delineado. Em seu Types of Religious Philosophy [Tipos de
filosofia religiosa], Edwin A. Burt parece ratificar a seguinte crítica: Se a razã o do homem é
naturalmente incompetente para chegar à doutrina da Trindade ou a outras verdades da fé,
deve ser incompetente para provar a existência de Deus em primeiro lugar. Por que uma
verdade deveria ser demonstrá vel e outras nã o? E, além do mais, mesmo que a existência e
a bondade de Deus sejam provadas, nã o se conclui que uma revelaçã o sobrenatural é
necessá ria. Deus poderia mostrar sua bondade de outras formas.
O romanista, diz ele, enfrenta o seguinte dilema:
 
Se a razã o do homem é competente para dizer que a bondade de Deus implica
a provisã o de uma revelaçã o sobrenatural, ela nã o precisa dessa revelaçã o,
sendo capaz de decidir igualmente bem o que se requer para a realizaçã o do
bem pelo pró prio homem; se ela é incompetente para apontar o caminho
para a salvaçã o humana, é ainda mais incompetente para concluir qualquer
coisa sobre a providência infinita.[7]

 
Ora, pode haver falhas, e falhas sérias, na filosofia tomista, mas a crítica do professor Burtt
parece errar o alvo. Pode parecer estranho que uma discussã o que chegará a uma completa
rejeiçã o do tomismo faça uma pausa para defendê-la de ataques contemporâ neos. Todavia,
nã o apenas devemos tentar ser justos, mas também o interesse pró prio nos leva a ter
cautela para nã o confiar em críticas deficientes. E parece de fato que o professor Burtt
coloca um fardo sobre o tomismo que este nã o precisa carregar.
Em primeiro lugar, nã o é necessá rio defender que a bondade de Deus implica uma
revelaçã o sobrenatural. Já é suficiente dizer que a bondade de Deus permite a possibilidade
de uma revelaçã o. Sem dú vida, Deus poderia mostrar sua bondade de outras formas, como
defende Burtt, mas isso nã o exclui racionalmente uma revelaçã o especial.
Entã o, em segundo lugar, ainda que a bondade de Deus implique uma revelaçã o especial,
nã o sucede de forma alguma que a razã o pode sozinha descobrir o conteú do dessa
revelaçã o. Admitindo sem reservas que poderíamos a partir da bondade de Deus
validamente inferir que deve haver uma revelaçã o — isto é, admitindo que reconhecemos a
necessidade de termos mais informaçõ es sobre o método de obter nossa felicidade ú ltima
— ainda assim nã o há razã o para concluir que essa informaçã o pode ser descoberta
unicamente pelos nossos esforços. Bem pelo contrá rio: nã o foi em grande parte a nossa
incapacidade de descobrir as exigências de Deus que nos levou em primeiro lugar a
concluir que há a necessidade de uma revelaçã o?
A crítica de Burtt depende totalmente do princípio de que, se é possível demonstrar uma
dada proposiçã o, é possível demonstrar todas as demais. Isso é implausível. Nã o há nada
irracional ou autocontraditó rio — certamente nada obviamente autocontraditó rio — em
afirmar a demonstrabilidade de algumas verdades e a indemonstrabilidade de outras. Até
mesmo Hegel, que pelas exigências do seu sistema deveria ter tornado tudo demonstrá vel,
admitia a existência de contingências na natureza. Na construçã o de Hegel essa admissã o
pode de fato ser um defeito. O idealismo absoluto pressupõ e que todo conhecimento está
tã o inter-relacionado que toda parte envolve o todo. Toda a natureza é supostamente
apreendida através de uma manifestaçã o dialética de conceitos que está totalmente
debaixo do nosso controle. Mas tomismo nã o é hegelianismo. Se , com Tomá s de Aquino, as
premissas da demonstraçã o devem ser buscadas na experiência sensorial, cada homem é
limitado pela faixa relativamente estreita de sua pró pria experiência e toda a humanidade
estaria entã o limitada por um universo de experiências que nã o inclui premissas para todas
as verdades. Sem essas premissas nã o podemos chegar à s conclusõ es desejadas. Aqui
entram consideraçõ es epistemoló gicas intricadas que nã o podem ser discutidas no
momento, mas, pelo menos de um ponto de vista mais ordiná rio, a incapacidade de
demonstrar os eventos da histó ria nã o parece invalidar a prova dos teoremas na geometria.
Burtt faz entã o a suposiçã o de que o romanista, como resposta à crítica de que qualquer
competência racional torna a revelaçã o desnecessá ria, apontaria a Bíblia como sendo de
fato uma revelaçã o. Mas, defende Burtt, essa é uma resposta inadequada à crítica: “A
aceitaçã o de qualquer suposta revelaçã o como um fato real depende da convicçã o prévia de
que existe no universo um Deus capaz e disposto de fornecê-la” (p. 406, ediçã o revisada).
Essa afirmaçã o também erra o alvo, mas em certo aspecto descreve melhor a posiçã o do
que o dilema anterior. O dilema dependia do ponto de que um argumento para a existência
de Deus implicaria uma revelaçã o. Isto é, Burtt primeiro argumentou que uma
demonstraçã o da existência de Deus, caso seguisse, também demonstraria a existência e o
conteú do de uma revelaçã o. Essa observaçã o posterior meramente insiste que uma
convicçã o da existência de Deus deve preceder a aceitaçã o de uma revelaçã o. Nã o se trata
aqui da questã o de a existência de Deus implicar uma revelaçã o; mas a posiçã o mais
modesta de que revelaçã o pressupõ e um Deus capaz de se revelar e disposto a fazê-lo.
Obviamente, Tomá s de Aquino afirma ter demonstrado a existência desse Deus. Logo, o
passo seguinte é pesquisar o mundo para descobrir se uma revelaçã o real ocorreu ou nã o.
E mais uma vez, obviamente, Tomá s de Aquino acha a Bíblia. Ora, Burtt afirma que essa
descoberta é uma resposta inadequada à crítica; mas se aceitamos a primeira parte da
filosofia de Tomá s de Aquino, nã o é fá cil ver por que esse passo deveria ser chamado de
inadequado.
No entanto, há ainda outra fonte de confusã o. A bem da verdade, a aceitaçã o de uma
revelaçã o pode nã o depender de nenhuma convicçã o prévia da existência de Deus .
Certamente, uma revelaçã o pressupõ e Deus; mas a aceitaçã o de uma revelaçã o nã o requer
uma crença prévia em Deus. Um homem poderia aceitar a Bíblia e no pró prio ato ser pela
primeira vez convencido da existência de Deus . Isto é, ele poderia encontrar Deus na
revelaçã o. De fato, visto que nã o muitas pessoas sã o competentes para entender as provas
da existência de Deus e visto que muitas que sã o competentes nã o estudam as provas,
parece que a maior parte das pessoas que aceitam a revelaçã o nã o foram primeiro
convencidas intelectualmente da existência de Deus. Elas aceitam a existência de Deus e os
conteú dos da Bíblia igualmente pela fé.
Logicamente, claro, o fato de uma revelaçã o pressupõ e que um Deus existe. Neste ponto
Burtt está obviamente certo. Mas isso nã o é uma crítica prejudicial, já que Tomá s de Aquino
admitiria isso. É algo que está perfeitamente de acordo com a distinçã o feita por Tomá s de
Aquino, mas ignorada por Burtt, entre a ordem da realidade e a ordem do saber. Na
realidade, Deus vem primeiro e tudo o mais vem depois; mas o processo humano de
aprendizagem, segundo Tomá s de Aquino, começa primeiro com outras coisas e chega
depois a Deus como uma conclusã o. Por essas razõ es, complicadas que possam ser, as
críticas de Burtt a Tomá s de Aquino devem ser julgadas incorretas.
Uma reflexã o sobre as críticas de Burtt pode sugerir que as questõ es que ele discute têm no
fim das contas uma importâ ncia secundá ria. O cerne da questã o está na pró pria
demonstraçã o. Se a demonstraçã o é vá lida, as objeçõ es automaticamente falham. Mas a
demonstraçã o é vá lida? Tomá s de Aquino provou realmente a existência de Deus? Esta que
é a questã o importante.
 
 
O argumento cosmológico
 
Neste argumento está pendente o destino de toda a teologia natural em oposiçã o à teologia
revelada; e sua força decidirá se os labores dos séculos valeram a pena ou se foram mal
direcionados. Ora, se o argumento cosmoló gico (sem fazer aqui uma consideraçã o do
argumento ontoló gico) é invá lido, entã o ou o cristianismo nã o tem fundamento racional ou
é preciso buscar um significado para razão que seja independente da filosofia tomista. Para
apontar o rumo que esta discussã o irá tomar, podemos dizer que o argumento de Tomá s de
Aquino se mostrará invá lido e o uso da razã o por ele, indefensá vel ; proporemos entã o um
significado alternativo de razã o, o qual, em adiçã o a qualquer referência tomista, revelará a
ambiguidade nas acusaçõ es humanistas modernas de que o cristianismo é irracional.
O argumento cosmoló gico para a existência de Deus, desenvolvido mais plenamente por
Tomá s de Aquino, é uma falá cia. Nã o é possível partir da experiência sensorial e seguir
pelas leis formais da ló gica para a existência de Deus como conclusã o disso. Os termos
falácia , leis formais da lógica , invalidade , demonstração e assim por diante se referem
à quelas regras de pensamento que nã o admitem qualquer exceçã o. Elas se referem à
inferência necessá ria. Alguns teó logos protestantes descrevem o raciocínio vá lido como
sendo matemá tico. Por exemplo, David S. Clark busca “distinguir entre prova e
demonstraçã o matemá tica”. [8]
Pelo termo prova ele quer dizer evidências como as usadas
em tribunais de justiça. A razã o por que o termo matemática é usado com demonstraçã o é
que a á lgebra e especialmente a geometria consistem de inferências necessá rias. As
demonstraçõ es da geometria sã o claramente vá lidas. Sã o exemplos notá veis de
pensamento correto. Se as premissas sã o admitidas, as conclusõ es nã o podem ser evitadas.
Num tribunal de justiça, um elemento de evidência — e amiú de todas as evidências juntas
— nã o exige decisã o. O uso do termo matemática , contudo, é infeliz, porque a prova dos
teoremas geométricos nã o é mais vá lida do que o silogismo nã o matemá tico usado por
séculos em livros-texto de ló gica: Todos os homens sã o mortais; Só crates é homem;
portanto Só crates é mortal. Essa também é uma inferência necessá ria. Ora, Tomá s de
Aquino pretendia, e a teologia natural exige, que o argumento a favor da existência de Deus
seja uma demonstraçã o formalmente vá lida. A conclusã o deve seguir necessariamente das
premissas. Nisto, sustento eu, o argumento falha.
A primeira razã o por que o argumento falha é muito complicada para ser aqui explicada.
Como resumido na Summa Theologiae I, Q. 2, o argumento cosmoló gico depende de um
extenso fundo filosó fico emprestado de Aristó teles. Inclui uma teoria do movimento que
afirma que nada pode mover a si mesmo. Essa tese repousa nos conceitos de potência e ato.
Tomá s de Aquino define movimento como a reduçã o da potência a ato. A causa de um
movimento deve ser no ato o que a coisa movida é em potência. E como nada pode ser ato e
potência no mesmo contexto, sucede que nada pode mover a si mesmo. Infelizmente, os
conceitos de ato e potência permanecem indefinidos. Aristó teles tentou explicá -los por uma
analogia. Nesse contexto movimento é usado na explicaçã o e entã o os conceitos de ato e
potência sã o usados para definir movimento . O argumento é, portanto, circular. Há por trá s
uma grande quantidade de metafísica e epistemologia. Essas complexidades nã o podem ser
aqui discutidas, mas é preciso notar que, se qualquer silogismo essencial em toda a extensa
argumentaçã o é invá lido, todo o sistema e a prova da existência de Deus colapsam.
Uma segunda razã o para repudiar o argumento cosmoló gico pode ser mais bem detalhada.
Na tentativa de concluir com um primeiro Motor Imó vel, Tomá s de Aquino argumenta que
as séries de coisas movidas por outras coisas em movimento nã o podem regredir
infinitamente. A razã o que Tomá s de Aquino dá para negar que causas mó veis possam
regredir infinitamente é que essa visã o descartaria um Primeiro Motor. Mas essa razã o que
ele dá é essencialmente a conclusã o que deseja provar. Naturalmente, uma série infinita de
causas mó veis é incoerente com um primeiro Motor Imó vel. Mas, se o argumento é
projetado para demonstrar o Motor Imó vel, sua existência nã o pode ser usada antes do
tempo como uma das premissas no argumento.
Uma terceira razã o, de um tipo ligeiramente diferente, diz respeito à identidade do Motor
Imó vel. Suponha que todos os silogismos até este ponto sejam vá lidos. Suponha que a
existência do Motor Imó vel foi demonstrada. Mas, quando Tomá s de Aquino acrescenta “ao
qual [o Primeiro Motor] todos dã o o nome de Deus”, nó s podemos objetar. O argumento,
tomado absolutamente ao pé da letra, só provaria a existência de alguma causa do
movimento físico; poderíamos até dizer que só provaria a existência de alguma causa física
do movimento. Para evitar isso, Aristó teles enfrenta certa dificuldade para provar que o
Motor Imó vel nã o tem magnitude; mas essa é uma das partes mais insatisfató rias do seu
argumento. Seja como for, é bastante claro que o Motor Imó vel da prova nã o tem as
qualidades de uma personalidade transcendente. Nã o há nada sobrenatural nessa causa. Na
verdade — se o argumento é vá lido e se esse Motor Imó vel explica o processo da natureza
— o Deus de Abraã o, Isaque e Jacó é supérfluo e de fato impossível.
Esse é um ponto para o qual um grande teó logo contemporâ neo chama a atençã o. Karl
Barth, o fundador da neo-ortodoxia, dá em sua Dogmática Eclesiástica II, 1, p. 79 ss.
algumas de suas razõ es para rejeitar o ponto de vista cató lico-romano. Em contraste com a
decisã o do Concílio Vaticano de 24 de abril de 1870 de que Deus, que é o princípio e fim de
todas as coisas, pode ser certamente conhecido a partir dos fenô menos da natureza criada
pela luz natural da razã o humana, Barth declara que Deus só pode ser conhecido através de
Deus. A principal razã o para isso, diz Barth, é que estamos falando do Deus cristã o, o Deus
Triú no. Evidentemente, o Concílio Vaticano nã o pretendia falar de outro Deus e nem sobre
apenas uma parte desse Deus, mas seu método leva a um particionamento de Deus e, por
conseguinte, a outro deus. O decreto usa o título “Nosso Senhor”, mas o argumento alude
apenas ao “princípio e fim de todas as coisas”. Ora, diz Barth, o cristianismo sustenta que
Deus é o princípio e fim de todas as coisas, mas também sustenta que Deus é o Redentor; e
se levarmos a unidade de Deus a sério, nã o será possível separarmos um do outro para
tornar um conhecimento de Deus como princípio e fim de todas as coisas dependente da
natureza e outro conhecimento de Deus como Senhor e Redentor dependente da revelaçã o.
Nã o, diz Barth; o conhecimento de Deus nã o pode ser particionado. Nã o pode existir um
conhecimento de Deus como o princípio e fim sem um conhecimento de Deus como
Redentor; tampouco podemos conhecer Deus como Redentor sem conhecê-lo como o
princípio e fim de todas as coisas.
 
Nã o é o Deus Dominus et creator dessa doutrina uma construçã o do
pensamento humano — pensamento que em ú ltima aná lise nã o está
delimitado pela base e essência da Igreja, por Jesus Cristo, pelos profetas e
apó stolos, mas apoiado em si mesmo? E, embora a cognoscibilidade dessa
construçã o possa ser corretamente afirmada sem uma revelaçã o, nã o
teríamos de perguntar que autoridade temos a partir da base e essência da
Igreja de chamar a construçã o de “Deus”?
 
Talvez seja impossível seguir Barth em cada linha de sua objeçã o aqui citada. Muito
provavelmente, Pascal expô s a matéria com mais precisã o em seus pará grafos que
contrastam o deus dos filó sofos com o Deus de Abraã o, Isaque e Jacó . Mas, em todo caso, é
enfatizada a lacuna entre o “Motor Imó vel” e o Deus vivo.
Ora, em quarto e ú ltimo lugar, o argumento de Tomá s de Aquino é invá lido porque um de
seus termos principais é usado em dois sentidos. Nã o é ó bvio que um argumento vá lido
requer que seus termos tenham na conclusã o o mesmo significado que tiveram
inicialmente nas premissas ? Infelizmente, Tomá s de Aquino argumentou de forma muito
clara em outros lugares que nenhum termo pode ter, quando aplicado a Deus, precisamente
o mesmo significado que tem quando aplicado a homens ou coisas. Quando dizemos que
Deus é sá bio e que Salomã o é sá bio, o termo sábio nã o é unívoco. Nã o só o termo sábio ,
também o termo existe . Na proposiçã o Deus existe o termo existe tem um significado
diferente daquele usado na proposiçã o O homem existe . Tomá s de Aquino é muito enfá tico
sobre este ponto. Mas, se um termo nã o é usado univocamente ao longo do silogismo, se um
termo nã o carrega precisamente o mesmo significado, o silogismo é invá lido. As regras da
ló gica foram violadas. [9]

Aqueles que hoje aceitam o argumento cosmoló gico irã o imediatamente negar que o
sucesso do argumento está indissoluvelmente ligado à sua formulaçã o por Tomá s de
Aquino. Há outras formas, alegam eles, de se declarar o argumento de modo a evitar algum
erro no qual Tomá s de Aquino possa ter tropeçado. Se isso fosse verdade, esperaríamos
encontrar essa formulaçã o impecá vel em algum lugar nos escritos publicados dos seus
defensores. Mas o fato é que nenhuma tal formulaçã o pode ser encontrada. Há referências
ao argumento cosmoló gico, há discussõ es sobre ele e há resumos dele; mas o argumento
completo, com nenhum dos passos omitido, parece nunca ter sido publicado.
 
 
David Hume e Charles Hodge
 
Portanto, aqueles que defendem um argumento cosmoló gico sem afirmar no que ele
consiste devem ser desafiados a responder a vá rias objeçõ es que parecem se aplicar a
qualquer formulaçã o. Sem dú vida é David Hume, à parte de suas restriçõ es ao princípio da
causalidade, quem melhor expressou essas objeçõ es. Mas, como Hume era um antagonista
tã o feroz do cristianismo, seu nome é aná tema para os crentes e eles sã o irracionalmente
inclinados a assumir a falsidade de tudo o que ele diz. O oposto pode estar mais pró ximo da
verdade. Pode ser que as conclusõ es de Hume sejam validamente extraídas de suas
premissas; ele pode estar perfeitamente certo ao argumentar que a existência de Deus nã o
pode ser demonstrada com base na experiência sensorial. E se isso procede, os cristã os
devem lhe agradecer por chamar a atençã o para um procedimento que só acaba em
constrangimento para eles. Portanto, os argumentos de Hume devem ser examinados sem
qualquer preconceito de que ele nã o poderia ter estado certo.
A rejeiçã o da teologia natural por Hume depende basicamente de dois pontos. O primeiro é
este: se é vá lido concluir a existência de uma causa a partir da observaçã o dos seus efeitos,
é todavia uma violaçã o da razã o atribuir a essa causa quaisquer propriedades além das
necessá rias para justificar o efeito. Por exemplo, se vemos a partitura e ouvimos a mú sica
de Beethoven e se todo o nosso conhecimento de Beethoven depende dessa observaçã o,
podemos talvez concluir que existiu uma pessoa com um grande grau de habilidade
musical; mas seria irracional concluir que esse mú sico era também capitã o e estrela do
time da Universidade de Bonn. Da mesma forma, o argumento cosmoló gico — se de resto
só lido — poderia nos dar um deus suficientemente poderoso como a causa do que
observamos, mas nã o mais do que isso. Apesar da observaçã o de alguns teó logos ortodoxos
de que isso já é um bom negó cio, é preciso responder que ele nã o é o Criador onipotente
descrito na Bíblia.
O que é pior, o argumento nã o é de resto só lido. A famosa analogia de William Paley assume
que o universo é uma má quina, como um reló gio, e precisa portanto de um relojoeiro
divino; mas Hume questiona a analogia. É o universo uma má quina? Em muitos processos
naturais o universo se assemelha mais a um organismo do que a uma má quina. E se o
universo é um organismo em movimento espontâ neo a analogia do relojoeiro divino se
desfaz. A objeçã o pode ser declarada em termos ainda mais gerais. Se o universo é uma
má quina ou se é um organismo vivo, o argumento cosmoló gico assume que ele é um efeito.
Como efeito, precisa de uma causa. Mas como pode ser mostrado que o mundo é um efeito?
Claro, existem causas e efeitos dentro do universo. Uma parte faz outra parte se mover,
assim como uma roda dentada num reló gio faz outra roda dentada se mover. Até vegetais
têm causas e efeitos dentro de si. O argumento cosmoló gico, no entanto, requer que o
universo como um todo seja um efeito. Mas nenhuma observaçã o de partes do universo
pode fornecer esse pressuposto necessá rio. Sendo bastante claro: ninguém nunca viu o
universo como um todo.
Entã o, a seguir, ainda que se pudesse provar que o universo é um efeito, há outra
dificuldade extremamente séria, embora nã o passe de uma aplicaçã o específica do primeiro
ponto de Hume. O primeiro ponto era o princípio de que nenhuma característica pode ser
atribuída à causa além das necessá rias para produzir os efeitos pelos quais a causa é
somente conhecida. Ora, os efeitos observados incluem muitos males, desastres, tragédias e
aquilo que o cristã o chama de pecado. Eles podem ser listados em profusã o apavorante.
Foram muito listados e usados contra o cristianismo por Hume e John Stuart Mill, assim
como por escritores mais cínicos como Voltaire. Esses males manifestos, de crianças
congenitamente deformadas a câ maras de tortura de nazistas e comunistas, impedem a
conclusã o de que a causa do mundo é boa. O argumento cosmoló gico falha totalmente em
provar a existência de um Deus justo e misericordioso. A rigor, ele admite — embora nã o
prove — a existência de um deus bom, mas somente na pressuposiçã o de que ele nã o é nem
onipotente nem a causa de tudo o que acontece. Mas o argumento cosmoló gico deveria
supostamente lidar com a causa universal. Como recurso para o teísmo cristã o, portanto, o
argumento cosmoló gico é pior do que inú til. Na verdade, os cristã os podem ficar contentes
com o fracasso do argumento, porque se fosse vá lido provaria uma conclusã o inconsistente
com o cristianismo .
É lamentá vel que grande parte do protestantismo conservador nã o esteja disposta a
discutir a justiça de Deus e a relaçã o dela com os males do mundo. Há pessoas devotas que
parecem supor que uma discussã o sobre o mal pode colocar ideias erradas na cabeça dos
jovens. Qualquer tentativa de explicar o mal, dizem, é inquietante para a fé. Nisso elas sã o
desobedientes ao seu pró prio padrã o, a Bíblia; e, além do mais, seu ponto de vista implica
que Voltaire, Hume, Mill e outros oponentes do cristianismo sã o, e permanecerã o sendo,
desconhecidos. Essas pessoas bem-intencionadas nã o percebem que os argumentos de
Hume têm sido de propriedade pú blica desde 1776; que milhõ es de pessoas rejeitaram o
cristianismo por causa deles; e que para deter essa perda é dever cristã o lidar com eles
honestamente. Isso, creio eu, pode ser feito. O problema do mal nã o é insolú vel. Mas a
soluçã o nã o depende da reabilitaçã o do argumento cosmoló gico.
Charles Hodge tentou fazer isso. Hodge é um dos príncipes do cristianismo histó rico. Como
teó logo e exegeta, ele teve poucos no mesmo nível desde que partiu para a gló ria. Alguém
poderia até se arriscar a dizer que sem ler seu Comentário à Epístola aos Romanos é
impossível entender Romanos. Embora tal elogio possa ser um pouco exagerado, sua alta
posiçã o como teó logo deve ser todavia reconhecida. Mas sua filosofia é deplorá vel, em
particular seu tratamento do argumento cosmoló gico.
Em sua Teologia Sistemática ele tenta provar que o universo é um efeito. Ele argumenta
que, uma vez que todas as suas partes sã o dependentes e mó veis, o todo deve ser
dependente, pois “Uma totalidade nã o pode ser essencialmente diferente de suas partes
constituintes”. [10]
Isso nã o é verdade. A Ronda Noturna de Rembrandt, por exemplo, é
composta de vá rios pigmentos na tela mas o todo é essencialmente diferente de suas
partes. O todo é essencialmente um objeto estético; as partes nã o. Se ao invés de identificar
as partes como sendo os pigmentos em seus tubos falarmos do todo como feito de
quadrados de duas polegadas de tela pintada, a mesma observaçã o continuará valendo.
Nenhum dos quadrados de duas polegadas é um objeto estético, mas o todo é uma das
grandes pinturas do mundo. Ou, como outro exemplo, podemos escolher o sal de cozinha.
Ele é bom de comer — em ovos, pelo menos; é um conservante de porco e azeitonas; é
também essencialmente um componente químico. Mas suas partes constituintes sã o só dio
e cloro. Estes sã o essencialmente elementos. Sã o também essencialmente venenosos para o
sistema humano. O sal em pretzel [espécie de pã o muito popular entre os germâ nicos] tem
um gosto bom, mas quem colocaria um tablete de só dio na língua? Simplesmente nã o é
verdade que as partes têm individualmente as mesmas características que os todos dos
quais elas sã o componentes.
Hodge segue dizendo: “Um nú mero infinito de efeitos nã o pode ser autoexistente. Se uma
corrente de três elos nã o pode sustentar a si mesma, muito menos pode fazê-lo uma
corrente de um milhã o de elos. Multiplicar nada infinitamente continua igual a nada”. [11]

Analisemos de perto o que Hodge diz. A primeira de suas três sentenças, isto é, um nú mero
infinito de efeitos nã o pode ser autoexistente, é a conclusã o que Hodge deve provar. Ela nã o
oferece nenhuma razã o a seu pró prio favor. A segunda, que presumivelmente tem por
objetivo ser parte da prova, é uma analogia. Hodge supõ e que os acontecimentos da
histó ria e da natureza sã o como elos numa corrente, e se uma corrente de três elos nã o
pode sustentar a si mesma, muito menos pode fazê-lo uma corrente de um milhã o de elos.
Analogias, no entanto, nunca sã o argumentos vá lidos; e essa analogia é particularmente
ruim . Em primeiro lugar, a imagem de uma corrente cujo primeiro elo está pendurado num
gancho está longe de ser uma imagem adequada das conexõ es que existem entre as partes
da natureza. Em segundo, se sã o três elos, um milhã o de elos ou somente um elo, o fato de
que ela nã o pode flutuar sozinha no ar nã o fornece nenhuma base racional para se concluir
que o universo nã o é autoexistente. A autoexistência eterna é um conceito bem diferente do
de uma corrente pendurada num gancho. Por fim, a terceira sentença de Hodge, que parece
ter a forma do argumento principal, nã o se liga claramente ao que vem antes. Ele acabou de
dizer que o que é verdade sobre três elos deve ser verdade sobre um milhã o; e agora
acrescenta que multiplicar nada infinitamente continua igual a nada. À parte da conexã o
duvidosa entre isso e o precedente, pois ele nã o havia falado de zero ou multiplicaçã o, a
sentença é má aritmética. Nã o é verdade que multiplicar nada infinitamente é igual a zero,
como alguém pode facilmente ver ao perceber que a fraçã o dois sobre zero e a fraçã o três
sobre zero sã o ambas infinitas. Que isso baste como um exemplo horrível de uma defesa da
teologia natural.
Que isso também baste para refutar a alegaçã o de que a existência de Deus pode ser
demonstrada com base na observaçã o da natureza. O argumento cosmoló gico é invá lido, e
um tipo diferente de filosofia é necessá rio. Uma possibilidade seria defender o cristianismo
ao custo de ser irracional. Outra possibilidade, a pró xima a ser discutida, é tentar seguir a
razã o, ainda que isso leve a um repú dio do cristianismo e da revelaçã o. Assim, “Razã o e Fé”
dá lugar à nova rubrica “Razã o sem Fé”.
 
 
RAZÃ O SEM FÉ
 
A cosmovisã o medieval, isto é, cató lica-romana, perdeu seu monopó lio sobre a mente dos
homens nos séculos XV e XVI. Dois movimentos poderosos se combinaram, ou pelo menos
competiram, para formar a civilizaçã o moderna. Um deles, o protestantismo, renunciou à
razã o escolá stica e se baseou na revelaçã o; o outro, o renascimento, se entregou totalmente
à razã o e nã o teria nada que ver com a fé. Esta ú ltima alternativa será discutida primeiro; e
seu desenvolvimento pode ser convenientemente organizado ao se prefaciar o relato das
principais teorias filosó ficas com algumas notas sobre a forma como ela existe na cultura
popular.
 
 
Irreligião primitiva
 
O efeito da “razã o” nos aspectos amplos da cultura — uma vez que inclui os
desenvolvimentos multifacetados do renascimento e estende sua influência no decurso de
vá rios séculos, digamos, até a revoluçã o francesa — é no todo um assunto demasiado
extenso para receber um tratamento adequado. Certas evidências da hostilidade ao
cristianismo é tudo o que pode ser pertinente e administrá vel aqui.
A sorte da fé cristã esteve por séculos em baixa. Algumas almas piedosas, como os
valdenses, Jan Hus e John Wycliffe, mal conseguiram manter vivo o Evangelho enquanto a
grande massa de pessoas afundava na superstiçã o. Todavia, nã o teria havido
provavelmente nenhuma revolta crescente contra as formas mortas de cristianismo se nã o
fosse pela invençã o da imprensa em meados do século XV . Foi a imprensa que trouxe ao
alcance do povo tanto o Novo Testamento quanto os clá ssicos gregos e romanos.
Na Itá lia, onde a literatura clá ssica chegou pela primeira vez quando o Império Oriental
desmoronou sob a pressã o dos turcos, o tempo estava maduro para uma revoluçã o
intelectual; porque na Itá lia é que a corrupçã o do papado era mais evidente. Quando,
portanto, as gló rias da Grécia e de Roma se tornaram conhecidas, isto é, quando uma
civilizaçã o que nã o era dominada pela ideia de Deus foi colocada sob os holofotes, a
sociedade rapidamente se despiu de seu cristianismo hipó crita e se tornou abertamente
pagã .
Claro, nem toda a academia se tornou pagã . A ideia de Deus nã o foi universalmente
descartada. Nã o somente os autores clá ssicos foram estudados, também a erudiçã o do
Novo Testamento foi avançada pelo covarde Erasmo e pelos corajosos reformadores. Mas o
renascimento, enquanto distinto da reforma, foi essencialmente pagã o. E se isso era
verdade acerca dos estudiosos, particularmente dos estudiosos italianos (Pico della
Mirandola, c. 1494; Marsílio Ficino, c. 1499; e mais tarde Telésio, c. 1588; Giordano Bruno,
c. 1600), o era ainda mais acerca de Benvenuto Cellini, Nicolau Maquiavel e os Bó rgias. O
brilho artístico, a intensa vaidade, o poder político e as riquezas dissolutas nã o eram
compatíveis com a doutrina e moralidade cristã s. Nã o é preciso afirmar que a ignorâ ncia
medieval dos clá ssicos era uma vantagem nem que a forma de arte medieval era superior
à s novas técnicas. Um conhecimento de Homero e de Virgílio e a descoberta das leis da
perspectiva nã o devem ser em si considerados prejudiciais à fé; mas o conteú do da arte
estava mudando, e os temas religiosos se tornavam menos cristã os enquanto os temas
pagã os se tornavam mais frequentes. Na literatura, Boccaccio, Rabelais e o implacá vel
Villon combinam o desprezo pela hipocrisia eclesiá stica a uma aversã o pela moralidade
pessoal.
Nem todo esse paganismo, entretanto, deve ser atribuído a uma decisã o filosó fica sobre os
méritos da fé e da razã o. Villon e Rabelais sã o apenas resultados comuns da depravaçã o
humana. De fato, circunstâ ncias atenuantes podem ser alegadas para a repulsa ao que era
feito sob o ró tulo de cristianismo. Porém, todos esses homens eram componentes
representativos da nova cultura. Eles eram os porta-vozes e espelhos do seu tempo, tanto
influenciando quanto sendo influenciados. Mas o tipo de escritor mais pensante, que sem
ser um filó sofo sistemá tico exerceria uma influência mais ampla a longo prazo, pode ser
encontrado na pessoa de Michel de Montaigne.
Por estranho que possa parecer, há um notá vel contraste entre Montaigne e os demais
representantes da tradiçã o renascentista, tanto iniciais quanto posteriores. O humanismo
renascentista era otimista. Ele nã o se preocupava com os limites da razã o do homem.
Negando a necessidade da graça de Deus, assumia que os recursos humanos eram
adequados para todas as nossas necessidades . O desenvolvimento filosó fico, a ser ainda
discutido, e os avanços científicos em florescimento nã o prenunciavam nenhum xeque-
mate. Mas Montaigne nã o tinha tanta certeza.
Na verdade, Montaigne nã o tinha certeza de nada. Ele era cético. Isso pode ser visto
inicialmente na sua atitude em relaçã o à moralidade e à religiã o. Longe de se dispor a
morrer por qualquer dogma ou mesmo de se incomodar com qualquer escrú pulo, ele nos
aconselha no ensaio sobre “Costume” a nos conformarmos ao nosso tempo e à nossa
sociedade. Nã o há princípios morais universais que vinculem todos os homens; e tampouco
se pode saber alguma coisa sobre Deus, sobre salvaçã o e sobre uma vida futura. A
sabedoria, portanto, consiste em nã o ter nenhuma convicçã o pessoal e em ceder à opiniã o
comum para se evitar problemas. Estando em Roma, aja como os romanos.
Os romanos, isto é, os romanistas, estavam naquela época ocupados massacrando
protestantes na França. Bem, os calvinistas fizeram por merecê-lo. Eram pessoas
obstinadas que violavam os costumes aceitos. Nem eles nem os romanistas tinham
qualquer razã o no que acreditavam, mas como o romanismo estava no local primeiro, as
pessoas reformadas estavam claramente erradas em criar uma perturbaçã o. Claro, os
romanistas também estavam errados em assassinar os protestantes, pois por nenhuma
crença vale a pena matar ou ser morto.
O ceticismo de Montaigne, todavia, vai mais fundo que essas questõ es morais e religiosas.
Embora o renascimento fosse otimista, embora o século XVII na França exaltasse a razã o e
embora o pró prio Montaigne exercesse alguma influência sobre os escritores do século
XVII, ele ainda assim expressou sérias dú vidas quanto aos poderes da razã o:
 
Se você diz “O tempo está bom” e está falando a verdade, o tempo está bom.
Nã o é esse um modo de se expressar uma certeza? E, todavia, ele nos
enganará . Para ver que isso procede, acompanhe o exemplo. Se você diz “Eu
minto” e está falando a verdade, ainda está mentindo. A arte, a razã o, a força
da conclusã o é neste caso a mesma que no outro caso. Porém, você se vê
atolado. Eu observo os filó sofos pirrô nicos que nã o podem expressar sua
ideia geral por qualquer forma de discurso, pois precisariam ter uma nova
linguagem. Nossa linguagem é inteiramente composta de proposiçõ es
afirmativas, as quais sã o totalmente hostis a esses filó sofos; de sorte que,
quando dizem “Eu duvido”, nó s os teremos imediatamente à nossa mercê se
os forçarmos a admitir que, quando menos, afirmam e sabem isto, que
duvidam.
 
Embora as ú ltimas linhas desse pará grafo apontem o caminho para um dogmatismo
imediatamente utilizado por René Descartes, a tô nica principal é cética e, como tal,
contrasta fortemente com as visõ es dos três séculos seguintes. Com a ú nica exceçã o de
David Hume, o desenvolvimento filosó fico e científico que formou a cultura europeia
moderna nã o mostrou nenhuma inquietaçã o em relaçã o à competência da mente humana.
É ao pensamento desses grandes filó sofos que a maior parte da atençã o deve ser dada. Mas
primeiro é preciso que uma renovaçã o posterior do renascimento, uma renovaçã o ao nível
do ponto de vista popular, receba uma breve mençã o. É a chamada Idade da Razã o,
incluindo tanto o iluminismo francês quanto o deísmo inglês.
O iluminismo francês será condensado numa referência a Voltaire e aos enciclopedistas.
Nã o era nenhum grande movimento filosó fico, mas um movimento totalmente popular.
Voltaire era tã o superficial quanto prolífico. Qualquer um que gaste o tempo escrevendo
tantos volumes e panfletos nã o pode ter gasto muito tempo pensando, embora alguém com
uma sagacidade mais que mediana que tivesse dado um pulo na prisã o, sido honrado,
exilado, insultado e adulado poderia sem dú vida ter escrito bastante. Mas Voltaire nã o
apresenta nenhum sistema coerente de pensamento. Num momento ele favorece o livre-
arbítrio, no outro o determinismo; existem e nã o existem ideias inatas; o mundo teve um
começo e o mundo é eterno. Ou, ainda, o argumento teleoló gico para a existência de Deus é
vá lido, mas narizes foram feitos para ó culos e, portanto, temos ó culos. Coerência e
profundidade, porém, nã o sã o pré-requisitos de popularidade.
O povo francês, com o protestantismo virtualmente extinto, estava gemendo sob o poder
autocrá tico da aristocracia e do clero. Voltaire foi seu porta-voz. Desde o início da sua
atividade literá ria ele fez guerra contra a religiã o cristã , tal como a conhecia. Com o passar
do tempo seus ataques se tornaram mais diretos e mais ousados. Ao escrever Deus e os
Homens e A Bíblia Finalmente Explicada ele nã o ataca as fraquezas e hipocrisias de
sacerdotes e crentes, mas sim o pró prio Evangelho. Sua conclusã o é que onde as Escrituras
nã o sã o apó crifas, fraudulentas ou adulteradas, sã o imorais e absurdas.
Ao contrá rio de Diderot, no entanto, e da maioria dos enciclopedistas, Voltaire nã o era ateu.
Ele acreditava que a moralidade requer um deus finito que recompensa e pune. Contudo, a
ideia de recompensa e puniçã o entra em conflito com o princípio bá sico do deísmo de que
Deus nã o intervém nos assuntos humanos; e se essas recompensas e puniçõ es devem ser
distribuídas numa vida futura, é preciso lembrar que Voltaire ridicularizou a ideia de alma
dizendo: ou admita que pulgas e larvas têm alma, ou diga que o homem é uma má quina.
O deísmo inglês, do qual Voltaire absorveu muitas de suas ideias, foi um fenô meno
relativamente distinguível que pode ser localizado no século XVIII. Naturalmente, suas
raízes estavam no passado, no renascimento, remontando inclusive a Celso e Porfírio. Na
Inglaterra, lorde Herbert de Cherbury (1583-1648) reuniu pela primeira vez o conjunto de
ideias que mais tarde se conheceria como deísmo; mas talvez é Charles Blount (1654-1693)
quem melhor pode ser identificado como um deísta de pleno direito. Apó s ele vêm os
principais representantes do movimento: John Toland (1670-1722), Conde de Shaftesbury
(1671-1713), Anthony Collins (1676-1729), Thomas Woolston (1669-1731), Matthew
Tindal (1656-1733) e, para nã o mencionar figuras menores, o Visconde Bolingbroke (1672-
1751).
Essencialmente, a escrita deísta ataca o cristianismo. A autenticidade e autoridade da Bíblia
sã o negadas e seus relatos de milagres, desacreditados. O anticlericalismo nã o se limita à
variedade romanista, o clero protestante também é descrito como venal e ganancioso; na
verdade o deísmo vai além, pois Shaftesbury e a maioria dos deístas também eram
antissemitas. Há frequentemente uma inclinaçã o à ridicularizaçã o, e até mesmo os
simpá ticos ao deísmo reconhecem que a escrita de Thomas Woolston era grosseira e
vulgar.
A estratégia geralmente negativa, o uso da ridicularizaçã o e até mesmo o foco de atençã o
em detalhes específicos nã o propiciam nem a construçã o positiva, nem a profundidade
filosó fica, nem a abrangência sistemá tica e consistente. O melhor representante do deísmo,
do ponto de vista do temperamento calmo e da amplitude da declaraçã o, é Matthew Tindal.
Sua obra, O cristianismo é tão antigo quanto a criação , sintetiza os principais temas deístas.
Há , antes de mais nada, uma religiã o natural que pode ser descoberta pela razã o. Nenhuma
revelaçã o especial é necessá ria e nada misterioso ou sobrenatural deve ser aceito. A razã o
sustenta a crença num deus que governa o mundo racionalmente. Sendo perfeito e
imutá vel, deus nã o viola as leis da natureza por nenhum milagre; pelo mesmo motivo, a
religiã o que deu ao homem na criaçã o é perfeita e nã o precisa de suplementaçã o. A perfeita
racionalidade de deus é igualmente incompatível com sua escolha e favorecimento de um
povo em particular. A revelaçã o especial também seria um exemplo de parcialidade. Ao
contrá rio, todos os homens têm meios suficientes para saber o que deus requer, pois nã o
poderíamos conceber um Deus justo que exigisse de todos os homens a informaçã o que
houvesse dado somente a alguns. Em todo caso, a Bíblia nã o é uma revelaçã o especial
porque está cheia de superstiçõ es e erros. O Antigo Testamento é imoral, e o pró prio Cristo
deve ser censurado porque faz a salvaçã o depender de crenças de que a maioria dos
homens nunca ouviu falar. Tudo o que deus requer é que promovamos o bem comum.
Tindal também acreditava numa vida futura, embora alguns deístas nã o.
Além de ser a expressã o mais abrangente e digna do deísmo, o livro de Tindal alcançou
outro feito, pois estimulou o Bispo Butler a produzir aquela famosa Analogia , que de forma
tã o bem-sucedida colocou um fim ao deísmo.
Ora, talvez seja exagero dizer que a Analogia de Butler destruiu o deísmo. Os pró prios
deístas começaram a sentir a dificuldade em defender suas negaçõ es diante de respostas
ortodoxas e suas afirmaçõ es diante de argumentos mais radicais. O deísmo, apesar de sua
profissã o de uma religiã o ética, também foi acusado — e com certa mostra de justiça — de
fomentar a imoralidade pú blica generalizada. Quanto a este aspecto, os reavivamentos
metodistas mudaram a opiniã o popular. Talvez, também, acontecimentos políticos e
militares tenham ajudado a afastar o deísmo das primeiras pá ginas.
Por interessante que tudo isso seja, o deísmo inglês e o iluminismo francês sã o
essencialmente resultados populares do renascimento. Esses homens, apesar de terem
escrito volumosamente, eram mais seguidores que líderes na formaçã o da cultura europeia.
Seus argumentos sã o à s vezes incoerentes e seus termos, ambíguos. Em particular, o termo
razão muda de significado se nã o sempre num ú nico autor, certamente de um autor para
outro. Por trá s desses homens estã o os principais filó sofos. É necessá rio, portanto,
examinar a fonte dessa fé na razã o que defende que a razã o nã o precisa de fé.
A direçã o na qual a cultura de uma era se desenvolve é, humanamente falando, escolhida
por alguns homens excepcionalmente inteligentes. Os autores populares selecionam entã o
algumas das ideias principais , geralmente distorcendo e diluindo-as consideravelmente, e
finalmente, cinquenta anos ou um século mais tarde, o ponto de vista geral se terá infiltrado
em toda a massa popular .
As ideias mais claras, portanto, sobre razã o versus fé devem ser estudadas primeiro nos
filó sofos principais: os racionalistas — Descartes, Spinoza e Leibniz; os empiristas —
Locke, Berkeley e Hume; e finalmente Kant e Hegel.
 
 
Racionalismo
 
René Descartes poderia ser apresentado como um pai sá bio que faz “tsc, tsc” para a tolice
do seu filhinho Montaigne. Podemos imaginá -lo dizendo “Nã o seja tã o pessimista; sei que a
filosofia é muito difícil para você; deixe-a comigo”. Ou colocando a questã o na linguagem
mais nobre do pró prio Descartes: “Embora a sensaçã o e a experiência repetidamente nos
enganem e nã o forneçam nenhuma base indubitá vel para uma superestrutura firme, ainda
assim, se um ú nico ponto só lido é encontrado, entã o podemos, como Arquimedes, mover o
universo. Descartes foi ao extremo de dar à dú vida o benefício da dú vida. Por causa das
ilusõ es de ó tica, que sã o mais frequentes do que podemos inicialmente supor, nã o podemos
partir de uma confiança nas sensaçõ es.
Aliá s, nã o podemos ter certeza de que estamos acordados. Em vá rias ocasiõ es já tentei tirar
uma soneca mas aparentemente nã o consegui; e entã o, quando falava que nã o conseguia
dormir, minha esposa sorria dizendo que eu estivera roncando alto. Os sonhos provam o
mesmo ponto, pois frequentemente sã o tã o vívidos quanto a experiência de supostamente
estar acordado; e enquanto estamos sonhando nã o supomos se tratar de um sonho.
Por fim, para levar a dú vida ao extremo: e se há um demô nio onipotente cujo principal
deleite é nos enganar? Ele nos faz acreditar que dois mais dois é igual a quatro, quando na
verdade a resposta é cinco; e como ele ri da nossa confusã o! Sem dú vida isso soa como uma
hipó tese absurda. Como alguém poderia levar isso a sério? Mas, por outro lado, como
alguém pode decidir o que é absurdo e o que nã o é absurdo, a menos que algum
conhecimento garantido forneça base para essa decisã o? Na ausência de qualquer
conhecimento, quando nã o se sabe absolutamente nada, nada pode absolutamente parecer
absurdo. Portanto, tanto quanto sabemos, isto é, nada, poderia existir um enganador
onipotente.
Mas há uma coisa que nem mesmo um demô nio onipotente pode fazer. Ele nã o pode nos
enganar sem permitir que pensemos. Se somos enganados, devemos estar pensando; e se
pensamos, existimos. Eis entã o uma verdade indubitá vel, um fulcro firme a partir do qual
podemos mover o universo da filosofia.
É necessá rio entender como exatamente Descartes derrotou o demô nio onipotente. Se
tivesse dito “Ando, portanto existo”, ele teria falhado. Se nã o estou de fato andando, posso
facilmente negar que estou andando. Basta sentar numa cadeira e dizer “Nã o estou
andando”. Mas é absolutamente impossível negar que estou pensando sem pensar. Como a
dú vida é uma forma de pensamento, nã o posso duvidar de que estou pensando sem pensar
a dú vida. “Penso”, portanto, é uma verdade indubitá vel.
Como Descartes procedeu para construir sua cosmovisã o a partir desse ponto é algo que
aqui nã o nos interessa. O importante é o seu método. Nã o se deve supor que a certeza do
pensamento depende de qualquer vivacidade experimentada do pensamento. Se a certeza
dependesse da vivacidade, o raio e o trovã o serviriam para ludibriar o demô nio.
Obviamente nã o ludibriam. A prova do cogito depende somente da ló gica. “Penso” é uma
proposiçã o tal que, se for negada, é provada verdadeira. Se digo “penso”, segue-se que
penso; mas se igualmente digo “nã o penso”, segue-se que penso. Nã o é uma questã o de
experiência, mas de ló gica somente.
Por causa desse método, Descartes e seus seguidores sã o chamados de racionalistas. Eles
dependem da razã o. Mas note que a razã o da qual eles dependem nã o é em primeiro lugar
uma razã o que é antitética à revelaçã o. Isso nã o quer dizer que o racionalista, ou o
racionalismo como sistema, seja o baluarte da revelaçã o. Spinoza especificamente nã o
nutria nenhum amor pela Bíblia. Mas a razã o do racionalismo é em primeiro lugar uma
razã o que é antitética à experiência sensorial e excludente da experiência sensorial. Aqui,
razão significa ló gica.
Nessa teoria racionalista, todo conhecimento deve ser deduzido da mesma forma que os
teoremas da geometria sã o deduzidos dos seus axiomas. Nenhum apelo à sensaçã o é
permitido. A aplicaçã o consistente das leis da ló gica é ela sozinha suficiente. A razã o,
portanto, carrega o sentido de consistência ló gica. Isso explica por que os racionalistas
adotavam o argumento ontoló gico para a existência de Deus. Eles precisavam da existência
de Deus nã o apenas para se livrar de um demô nio onipotente mas, mais seriamente, para
provar a existência de um mundo. Ora, para se adequar aos seus princípios, o argumento
para a existência de Deus teria de ser interpretado de modo a tornar a negaçã o da
existência de Deus autocontraditó ria. Assim como uma pessoa que nega que os â ngulos
internos de um triâ ngulo equivalem a dois â ngulos retos simplesmente nã o sabe o
significado do conceito de triâ ngulo, quem nega a existência de Deus simplesmente nã o
entende o termo Deus . Portanto, a existência de Deus é provada pela ló gica somente.
Quando esse significado de razã o é acoplado ao princípio de que todo conhecimento pode
ser deduzido pela razã o somente, sucede que a revelaçã o é na melhor das hipó teses
desnecessá ria.
Spinoza, que aplica o princípio do racionalismo de modo mais coerente do que Descartes,
extrai a inferência explicitamente:
 
A verdade de uma narrativa histó rica, por garantida que seja, nã o pode nos
dar o conhecimento de Deus nem consequentemente o amor de Deus, pois o
amor de Deus tem origem no conhecimento dele, e o conhecimento dele deve
ser derivado de ideias gerais, em si mesmas certas e conhecidas, de modo que
a verdade de uma narrativa histó rica está muito longe de ser um requisito
necessá rio para alcançarmos nosso bem maior. [12]

 
A resposta cristã a uma rejeiçã o racionalista da revelaçã o nã o deve se preocupar muito com
a evidência arqueoló gica de que a Bíblia é historicamente precisa. Spinoza foi certamente
um dos primeiros membros da longa série das altas críticas que se deleitava em encontrar
lapsos no Antigo Testamento. E nenhum dano foi causado ao cristianismo pelas
investigaçõ es arqueoló gicas que desconcertaram os críticos mostrando que os escritos
foram inventados nos dias de Moisés, que a naçã o dos hititas realmente existiu e que todas
as outras bobagens da escola de Wellhausen nã o passavam de um pensamento dos
inimigos da Bíblia que era baseado no desejo.
Mas o argumento de Spinoza era que uma narrativa histó rica, ainda que fosse
perfeitamente precisa, nã o tinha valor na religiã o. A resposta cristã , portanto, deve ser
voltada contra a epistemologia que subjaz a declaraçã o de Spinoza. A questã o importante
nã o é se a Bíblia é ou nã o verdadeira, mas se todo conhecimento é ou nã o dedutível pela
razã o, isto é, pela ló gica somente.
Ora, a histó ria da filosofia, isto é, os pró prios estudiosos seculares — pois nã o é necessá rio
consultar escritores cristã os — têm convincentemente respondido na negativa.
Kant deu o seu melhor para explodir o argumento ontoló gico; e uma vez que esse
argumento é a ú nica esperança do racionalismo de fazer contato com a existência real sem
o que a filosofia seria apenas um jogo de palavras, essa refutaçã o, se só lida, aniquilaria
completamente o racionalismo. Mas, ainda que o argumento ontoló gico devesse ser vá lido,
ninguém jamais conseguiu deduzir o nú mero exato de planetas ou as espécies reais de
japonica [tipo de erva perene] a partir da existência de Deus pela ló gica somente. E se a
astronomia e a botâ nica devem progredir à parte do racionalismo, é incoerente exigir que a
religiã o seja confinada dessa forma.
O racionalismo, portanto, no significado do termo no século XVII, é um fracasso. Assim
construída, a razã o sem fé nã o apenas nã o fornece nenhuma religiã o, como nã o dá suporte
a nenhum tipo de conhecimento. Se essa fosse a ú nica possibilidade, o cristã o poderia
oferecer ao mundo uma escolha entre a fé na revelaçã o ou a ignorâ ncia abissal.
 
 
Empirismo
 
A tentativa seguinte na filosofia europeia de construir uma “razã o” sem fé foi o empirismo
britâ nico. É a filosofia que os deístas posteriores, se nã o os anteriores, passaram a adotar.
Mas é preciso observar que o termo razão assume um significado muito diferente. Sem
muita distorçã o se pode dizer que razão significa agora sensaçã o. Isto é, ao passo que o
racionalismo tentava basear todo o conhecimento na ló gica somente, o empirismo depende
da experiência somente. Diz a famosa linha de John Locke: “donde apreende [a mente]
todos os materiais da razã o e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da
experiência; nela está fundado todo o nosso conhecimento e disso deriva em ú ltima aná lise
o pró prio conhecimento”.
A visã o de Locke da revelaçã o pode ser um pouco demasiado complicada, ou possivelmente
muito disfarçada, para ser descrita com precisã o. Embora ele pareça ter admitido o fato da
revelaçã o, alguns intérpretes julgam que foi uma admissã o relutante. Num lugar ele levanta
a questã o de se podemos ou nã o ter certeza de que algo é uma revelaçã o, e ele parece
sugerir que provavelmente nã o podemos.
Mas, como quer que seja com o pró prio Locke — e, mais enfaticamente — como quer que
tenha sido com o devoto Bispo Berkeley, Hume mostrou que o empirismo, se defendido
com coerência, nã o pode dar espaço à revelaçã o. Nã o há necessidade de comparar o cristã o
Berkeley com o secular Locke e enfatizar as deficiências de Locke em favor da atitude mais
aceitá vel de Berkeley com a revelaçã o. O que importa é descobrir o que pode resultar do
princípio de que todo conhecimento é baseado na experiência, mormente na sensaçã o.
De acordo com o empirismo, o conhecimento começa com o que Locke chama de ideias ,
noções ou fantasmas ; com o que Hume chama de impressões ; ou com o que a maioria das
pessoas chama hoje de sensações . Ao combinar, transpor, aumentar ou diminuir esses
materiais sensoriais, desenvolvemos todo o — até mesmo o nosso mais abstruso —
conhecimento. As mais complexas equaçõ es da relatividade de Einstein, embora nã o seja o
exemplo usado por Hume, podem ser resolvidas em imagens de memó ria que foram
copiadas de sensaçõ es anteriores.
Ora, até onde a experiência pode nos levar? Será que essas sensaçõ es internas dã o algum
conhecimento dos corpos externos? Podemos descobrir as causas dessas impressõ es?
Berkeley já havia mostrado que as sensaçõ es de vermelho, duro, amargo, etc. nã o podem
dar nenhuma evidência em favor da existência de um mundo externo material. Hume,
seguindo-o, dá o exemplo de uma mesa. Suponha que vemos uma mesa. Temos a sensaçã o
de uma mesa. Se andarmos para longe dela seguindo por um longo corredor, o que vemos
parece ser menor do que aquilo que vimos quando está vamos mais perto.
Presumivelmente, uma mesa externa mantém sempre o mesmo tamanho. Logo, o que
realmente vimos nã o foi a suposta mesa externa, pois o que vimos mudou de tamanho. O
que realmente vimos foi uma imagem ou fantasma em nossa pró pria mente e, portanto,
nossas sensaçõ es nã o fornecem nenhuma evidência da existência de um mundo externo.
Ainda que devêssemos supor que nossa imagem teve uma causa externa, nã o poderíamos
saber se a imagem se assemelha à causa, pois nã o vimos nada além de imagens. Na verdade,
se a palavra imagem conota uma similaridade com algo externo, nã o temos nenhuma razã o
para acreditar que nossas sensaçõ es sã o imagens. [13]

Hume, entretanto, vai além de Berkeley ao reduzir o conhecimento à experiência. Locke


havia explicado a ideia da matéria pela abstraçã o e Berkeley mostrado que a experiência
nã o fornece nenhuma instâ ncia de ideia abstrata. Ideias de azul, vermelho e verde nó s
temos em abundâ ncia; mas a ideia abstrata de uma cor que nã o seja nem azul, nem
vermelho, nem verde — uma ideia de cor que nã o seja nenhuma cor — simplesmente nã o
existe. Da mesma forma, “matéria” nã o existe; é simplesmente o som da nossa voz, nada
mais que uma palavra vazia. Mas se a ideia abstrata de substâ ncia material nã o é nada,
segue-se também necessariamente que a experiência nã o pode dar nenhuma ideia de
substâ ncia espiritual. Uma é tã o abstrata quanto a outra. Ou seja, a mente ou alma nã o
existe. A experiência dá somente ideias. Há vermelhos, verdes, amargos, doces, á speros,
suaves e seus compostos — rios, á rvores e mesas; mas nã o há nem matéria nem espírito,
porque a percepçã o nunca pode fornecer evidência de qualquer coisa imperceptível. Nó s
mesmos nã o passamos de uma coleçã o de percepçõ es sensoriais.
Em seguida, se é ó bvio que a percepçã o nã o pode fornecer nenhuma evidência de qualquer
entidade imperceptível, é só um pouco menos ó bvio que a percepçã o nã o pode fornecer
nenhuma evidência do que nã o é percebido .
Se eu ofereço uma carta percebida como evidência de que meu amigo nã o percebido está
na França, estou assumindo que há uma conexã o necessá ria entre a carta e meu amigo
ausente. Se nã o houvesse conexã o necessá ria, se meu amigo nã o tivesse escrito a carta, se
ele nã o fosse a causa e ela o efeito, eu nã o poderia saber que ele estava na França. Todas as
questõ es da histó ria, portanto — na verdade todo o alegado conhecimento de fatos além da
sensaçã o atual e dos registros da nossa pró pria memó ria — dependem do princípio da
causalidade.
Uma aná lise da experiência, porém, mostra que um conhecimento de causa e efeito nã o é
possível de ser obtido. Podemos ter a sensaçã o do vermelho e num momento mais tarde
um gosto amargo; ou a sensaçã o de um barulho alto pode ser seguida de um cheiro doce. A
experiência fornece uma sucessã o de ideias, mas nunca vemos, cheiramos, saboreamos ou
ouvimos uma conexã o necessá ria. Nã o há razã o para acreditar que o vermelho causa um
gosto amargo ou que um barulho causa um cheiro. Ao contrá rio, ninguém pode imaginar
como ou por que uma cor causaria um gosto. Isso vale para ideias compostas, assim como
para ideias simples. A combinaçã o de branco, forma cú bica e estrutura cristalina que
chamamos de açú car pode preceder um sabor doce. Mas pode alguém mostrar uma
conexã o necessá ria entre o primeiro conjunto de ideias, isoladamente ou em conjunto, e o
gosto doce ou a sensaçã o de estô mago cheio apó s comer um pouco de açú car?
A experiência nos acostuma a esperar certas consequências. Elas se tornam tã o familiares
que as tomamos como certas. Nó s as chamamos de causas e efeitos. Mas em tudo isso nã o
temos compreensã o da sequência e nenhuma experiência de qualquer conexã o necessá ria.
Um conhecimento da histó ria é, portanto, impossível.
Ora, por fim, se é impossível conhecer o que é imperceptível pela percepçã o e se é
impossível conhecer o que nã o é percebido pela percepçã o, é sequer possível conhecer o
que vemos agora? Considerando-se que nã o há nenhuma evidência da experiência de uma
mesa nã o experimentada cujo tamanho nã o muda, podemos sequer ter a imagem de uma
mesa, a qual é composta de sensaçõ es de cor, forma e dureza?
Aqui está a dificuldade. Em qualquer tempo finito, nã o importa quã o breve, nó s
experimentamos uma multiplicidade de sensaçõ es. Vemos dezenas de cores, podemos
ouvir dois ou três sons, podemos cheirar vá rios odores e, mesmo nã o sentindo gostos no
momento, temos sempre uma série de sensaçõ es tá teis. Dessa variedade de sensaçõ es,
selecionamos algumas e as combinamos para formar a imagem de uma mesa. Mas por que
combinamos a cor marrom, uma forma ligeiramente retangular e a sensaçã o de dureza
para formar uma mesa em vez de selecionar, entre nossas muitas sensaçõ es, a cor verde
pá lida, o som de C sustenido e o cheiro de pã o saído do forno para combiná -los na ideia de
um “jeguetoine”?
Locke tentou justificar a conexã o entre certas ideias sob o fundamento de que eram
qualidades inerentes à mesma substâ ncia material. Mas como a substâ ncia material nã o
existe (mesmo que existisse, nã o poderíamos conhecê-la até que tivéssemos combinado
ideias simples em coisas e entã o formado alguma abstraçã o), essa explicaçã o nã o está
disponível para o empirismo. Berkeley e Hume dã o a impressã o de que nossas seleçõ es
para as combinaçõ es dependem de que as ideias selecionadas ocorram no mesmo lugar e
ao mesmo tempo. O tempo, porém, nã o é importante, pois a todo momento estamos
experimentando muitas ideias que nã o combinamos numa mesa. Deve, entã o, o empirista
dizer que a combinaçã o específica depende do espaço no qual as ideias simples sã o
percebidas?
Se essa resposta é satisfató ria ou nã o, isso depende da explicaçã o empírica de como
podemos reconhecer o espaço.
Vemos o espaço? Ouvimos o espaço? Cheiramos o espaço? Isso nã o apenas é impossível
como, mesmo quando vemos um ú nico objeto no espaço, nã o podemos ver a distâ ncia entre
ele e nó s. Nó s julgamos distâ ncias comparando objetos conhecidos. Uma vez que vimos e
tocamos previamente uma mesa específica e sabemos, portanto, seu tamanho à curta
distâ ncia, nó s podemos julgar quã o longe estamos quando ela parece ter metade do seu
tamanho anterior. Ou podemos julgar que uma casa na estrada está a uma milha de
distâ ncia porque já percorremos a distâ ncia em outras ocasiõ es. Espaço e distâ ncia,
portanto, sã o matérias de julgamento e comparaçã o, nã o de simples sensaçã o.
Mas, se o espaço é aprendido comparando-se casas e mesas, devemos primeiro ser capazes
de perceber a mesa para entã o podermos compará -la a uma casa e aprender sobre o
espaço. Isto é, o espaço é uma ideia de comparaçã o. Mas, se a ideia do espaço nã o pode ser
obtida até que tenhamos comparado mesas e casas, nã o podemos produzir mesas e casas
selecionando ideias simples mediante o uso do espaço.
O empirismo, portanto, erra de maneira fatal. Ele insere furtivamente, no início do processo
de aprendizagem, uma ideia de espaço que nã o existe até o processo estar quase completo .
Mais uma vez, portanto, fracassa a tentativa de encontrar conhecimento com base na
“razã o”, enquanto distinta da revelaçã o. Se esse fosse o final da histó ria, o cristã o poderia
oferecer ao mundo uma escolha entre a fé na revelaçã o ou o ceticismo abissal.
 
 
Immanuel Kant
 
Immanuel Kant, desperto, como diz, de seu sono dogmá tico por David Hume, resolveu
remediar prontamente o defeito do empirismo. Se todo conhecimento é baseado somente
na experiência, nã o pode haver nenhum conhecimento de qualquer verdade necessá ria. A
experiência pode no má ximo revelar que isto e aquilo é assim, nã o que deve ser assim. Por
exemplo, a sensaçã o pode dizer que as portas têm dois lados, mas nã o pode ensinar que as
portas devem ter dois lados. As portas poderiam, em algum lugar, algum dia, ter apenas um
lado. Nenhuma experiência pode refutar essa possibilidade. Assim também, o empirismo
nã o pode confirmar proposiçõ es universais. Poderíamos possivelmente saber que todas as
portas que vimos têm dois lados, mas, sem falar das invençõ es futuras, mesmo no tocante
ao passado nã o podemos saber se todas as portas sempre tiveram dois lados. Ou,
novamente, todas à s vezes que somamos dois com dois a resposta foi quatro; mas, até onde
vai a experiência, nã o podemos dizer que dois mais dois é sempre igual a quatro. A
experiência nã o pode nos dizer quanto é dois mais dois naqueles casos que nã o
experimentamos. Em resumo, sem a necessidade e a universalidade — e elas sã o
insepará veis — nã o pode haver nem matemá tica nem física.
Numa tacada, Kant é capaz de reabilitar a necessidade e a universalidade e explicar a
percepçã o de objetos individuais, como cadeiras e mesas. A mente do homem, ao nascer,
nã o é apenas uma folha de papel em branco, como disse Locke. Ela possui características,
formas ou noçõ es por si só . Espaço e tempo sã o duas dessas formas . O conhecimento do
espaço e do tempo nã o depende da experiência. Em vez disso, o contrá rio é verdadeiro: a
experiência depende de nosso conhecimento do espaço e do tempo. Essas duas formas
tornam a percepçã o das coisas possível.
Na conversa coloquial falamos de trilhos ferroviá rios que convergem à distâ ncia. Eles nã o
convergem de fato. Os trilhos ferroviá rios nã o convergem, mas nó s os vemos convergindo.
Essa perspectiva é a nossa maneira de ver. Os trilhos em si existem independentemente de
os vermos, mas quando entram em nossa visã o, tomam a forma da nossa perspectiva.
Assim, ao olharmos para eles, nó s os fazemos convergir.
Essa ilustraçã o dos trilhos em perspectiva deve ser ampliada para abordar todos os objetos
que existem no espaço. Os trilhos representam qualquer objeto, como uma cadeira ou
mesa; e a perspectiva da ilustraçã o representa as características espaciais de cada objeto
visível. As cadeiras e mesas em si, ou de modo geral as coisas em si, nã o existem no espaço;
nó s é que as vemos dessa maneira. Portanto, assim como sabemos de antemã o, antes da
experiência — ou, para usar o termo de Kant, a priori — que todos os trilhos ferroviá rios
vistos devem convergir, sempre convergiram e sempre convergirã o, sabemos a priori num
nível mais profundo que as portas devem ter, sempre tiveram e sempre terã o dois lados.
Isto é, as portas da experiência, as portas tais como vistas, devem ter dois lados. Mas com o
que as portas se parecem — as portas nã o como aparecem em nossa percepçã o, nã o como
conformadas à forma a priori de espaço da nossa mente — nó s nã o temos a menor ideia.
O conhecimento, porém, nã o se limita à simples percepçã o dos objetos. Além da sensaçã o
há o pensamento. O pensamento combina as sensaçõ es em julgamentos. Nó s podemos
dizer “Essa porta é espessa” ou “Alguns gatos sã o pretos” ou “Toda mudança deve ter uma
causa”. Em julgamentos assim, muitas percepçõ es sã o resumidas e reunidas. Agora,
obviamente, as coisas da experiência nã o fazem elas mesmas a reuniã o. A composiçã o de
julgamentos é feita por seres pensantes. Portanto, longe de ser um recipiente passivo de
conhecimento, a mente é uma fabricante ativa de conhecimento ; como tal, tem métodos
definidos de procedimento. Ela junta ou unifica experiências em um nú mero definido de
maneiras. Esses métodos de unificaçã o nã o sã o aprendidos a partir da experiência; ao
contrá rio, eles tornam a experiência possível. Se nã o possuíssemos esse equipamento nã o
poderíamos começar a pensar, da mesma forma que nã o poderíamos começar a ver objetos
sem ter a forma a priori de espaço. Visto, portanto, que o pensar ou julgar consiste em
organizar as percepçõ es debaixo de conceitos (este filhotinho visível pertence à espécie
gato ou à classe de objetos pretos), sucede que a experiência significativa só pode ser
possível com base em certos conceitos ou categorias a priori .
A identificaçã o das categorias é realizada constatando-se que as formas usadas na
organizaçã o da experiência sã o as formas da ló gica. Uma vez que todo conhecimento
consiste de julgamentos, as formas de conhecimento sã o as formas de julgamentos e as
formas de julgamento sã o as formas da ló gica. As categorias, portanto, sã o os conceitos
bá sicos sem os quais nã o poderíamos de fato pensar. As categorias sã o os modos pelos
quais a mente sintetiza as diversidades da experiência. As categorias produzem
julgamentos. Como, na teoria de Kant, existem doze elementos ló gicos no agregado de
julgamentos, existem doze categorias. Os conceitos de unidade e pluralidade sã o categorias.
Sem o conceito de unidade nã o poderíamos de fato pensar. Uma forma mais complexa de
julgamento é a implicaçã o. Dizemos que, desde que isto é verdade, aquilo deve ser verdade;
ou poderíamos dizer que aquilo deve ser verdade porque isto é verdade. Note o porque . A
implicaçã o, portanto, depende da categoria da causalidade. A causalidade, portanto, é uma
categoria, um conceito a priori , uma forma de conhecimento que, em vez de ser aprendida
da experiência, deve ser conhecida antes da experiência para tornar a experiência possível.
Deste modo, ao tornar o conhecimento da causalidade anterior à experiência, Kant acredita
ter escapado do ceticismo de Hume. Se ele realmente fez isso, estabeleceu o conhecimento
sem um apelo à revelaçã o, e a razã o sem fé é bem-sucedida.
Porém, quem questionou o sucesso de Kant nã o foi nenhum cristã o tentando defender a
revelaçã o. Os cristã os sã o à s vezes acusados de serem tendenciosos e de forçar seus
argumentos para conclusõ es inevitá veis. Mas isso nã o é mais verdade acerca dos cristã os
do que era de Kant ou de qualquer outra pessoa. Kant sabia que queria elaborar uma teoria
de categorias, e fez repetidas tentativas de deduzi-las antes de encontrar sua (Kant)
formulaçã o final. A conclusã o foi decidida antes de o argumento ser elaborado. Isso se
aplica a todos os filó sofos, embora os cristã os sejam com mais frequência castigados por
isso do que os outros escritores. E aqueles que castigam sã o exemplos mais significativos
do que aqueles que eles ridicularizam. Mas, seja como for, como dado da histó ria, o fracasso
de Kant nã o foi exposto por um cristã o que tentava defender a revelaçã o.
Certos defeitos bá sicos no sistema de Kant sã o universalmente reconhecidos. Kant havia
explicado suas categorias como sendo os métodos da mente de unificar a experiência.
Unidade, pluralidade, causalidade e outras eram formas pelas quais a experiência poderia
ser organizada. Mas se nã o houvesse experiência sensorial para inserir nessas formas, as
categorias permaneceriam vazias e nã o seriam elas mesmas conhecimento. Além do mais,
as categorias nã o têm nenhum uso posterior. Elas podem ser aplicadas à experiência, mas
nã o podem ser aplicadas além da experiência. Um conceito sem seu conteú do sensorial é
vazio. Também vazia é a noçã o a priori de espaço. A menos que apareçam sensaçõ es no
espaço, nã o podemos ter nenhum contato com a realidade. O conhecimento requer a
combinaçã o de formas a priori e experiências a posteriori . Qualquer um sem o outro nã o é
conhecimento.
Essa construçã o torna o problema de Kant impossível. Ele buscava as precondiçõ es da
experiência ao mesmo tempo em que negava que essas condiçõ es fossem objetos da
experiência. Se o nosso conhecimento é sempre uma combinaçã o de forma e conteú do, nã o
podemos conhecer a forma sem o conteú do. Entretanto, Kant professava ter deduzido as
categorias.
Essa crítica pode ser expressa em outros termos, talvez mais claros. Kant tinha na verdade
argumentado que, antes de tentarmos estudar física e teologia, devemos determinar se a
mente é ou nã o capaz de investigar coisas físicas e Deus. Mas sendo assim, nã o poderia com
igual plausibilidade ser mantido que, antes de tentarmos estudar as limitaçõ es da mente,
devemos determinar se a mente é ou nã o capaz de investigar suas limitaçõ es? A Crítica da
Razão Pura de Kant deveria, portanto, ter sido precedida por uma Crítica da Crítica da
Razão Pura , etc. para trá s, por bastante tempo.
Outra objeçã o padrã o a Kant, embora talvez simplesmente a mesma objeçã o em forma
diferente, tem a ver com as coisas-em-si. Na teoria de Kant, as coisas-em-si devem estar
atrá s das coisas-como-nos-parecem. Assume-se, para fazer uso da ilustraçã o anterior, que
atrá s dos trilhos ferroviá rios convergentes há trilhos reais que nã o convergem. Esses
trilhos reais nã o convergentes sã o presumivelmente a causa dos trilhos que aparecem e
convergem. A convergência só ocorre na experiência; a nã o convergência nã o ocorre na
experiência. Mas, de forma muito lamentá vel para Kant, as categorias nã o podem ser
usadas fora da experiência. A causalidade é uma relaçã o que existe somente entre dois
objetos da experiência. A categoria da causalidade nã o pode ser aplicada a trilhos nã o
convergentes. Ou, para repetir a observaçã o inteligente de F. H. Jacobi, “Sem a coisa-em-si
nã o se pode entrar no sistema de Kant e com ela nã o se pode permanecer”.
Essas objeçõ es a Kant nã o dependem do fato de ele ter falhado em estabelecer uma
teologia. Deus nã o pode ser a causa do mundo porque Deus nã o é um objeto da sensaçã o, e
as causas devem estar confinadas à experiência sensorial. Mas essa falha em chegar a uma
teologia nã o destruiria a filosofia de Kant. As objeçõ es dependem do fato de que Kant nã o
conseguiu encontrar uma base para a física. Ele nã o conseguiu explicar as sensaçõ es. Nã o
conseguiu dar uma explicaçã o inteligível da relaçã o da forma com o conteú do. Nã o
conseguiu tornar possível o conhecimento. Assim, ainda permanece a questã o de se o
conhecimento pode ser alcançado à parte da revelaçã o.
 
 
Hegel e seus críticos
 
Há na filosofia secular mais uma tentativa final, digamos magnífica, de estabelecer as
alegaçõ es da Razã o escrita com R maiú sculo. Embora o século XVII tenha exibido um
racionalismo num sentido muito definido do termo, ninguém é mais racionalista, ninguém
exalta os poderes da razã o mais do que G. W. F. Hegel.
Para mostrar, portanto, que a tentativa — iniciada pelo renascimento — de demonstrar a
possibilidade do conhecimento à parte da revelaçã o divina é um fracasso, será em ú ltima
aná lise necessá rio mostrar a falha no sistema de Hegel. Isso nã o é fá cil. Uma exposiçã o do
hegelianismo se tornaria intoleravelmente técnica, e sem ela, todavia, o locus da
inadequaçã o de Hegel nã o poderia ser inteligivelmente mostrado. Sem dú vida é quase
universalmente reconhecido que o hegelianismo nã o pode ser defendido com sucesso; e
talvez seja sá bio, como em grande parte será necessá rio, confiar nesse consenso e seguir
adiante. Contudo, é preciso dar algo da linha de argumentaçã o.
Kant, como foi mostrado, compô s o conhecimento de forma e conteú do. A forma é a
contribuiçã o da mente, ao passo que o conteú do vem de uma coisa-em-si externa e
independente. Como, no entanto, as categorias nã o se aplicam além da sensaçã o, a coisa-
em-si permanece incognoscível; mas, sendo incognoscível, sua existência e necessidade nã o
podem ser afirmadas. Hegel chama de fato atençã o para o absurdo de se afirmar algo
incognoscível; ele tenta entã o remover a oposiçã o entre a consciência e seu objeto
mostrando que num nível superior estã o ambos dentro da pró pria consciência. A natureza,
o dado, as contribuiçõ es dos sentidos, sã o unos com a mente ou espírito. Nã o existe uma
disparidade ú ltima. Essa unidade, todavia, deve ser mostrada em detalhe. Hegel se recusa a
confiar em qualquer experiência mística ou transe extá tico para conquistar o Uno; ao
contrá rio, propõ e uma nova ló gica por cujo procedimento dialético a requerida unidade
pode ser desenvolvida passo a passo.
A ló gica aristotélica,
[14]
na sua insistência em distinçõ es claras, é boa até onde vai. Um gato
nã o é um cachorro, e um objeto sensorial nã o é o eu; eles nã o devem ser confundidos. A
menos que o pensamento diferencie uma coisa da outra, nã o pode haver pensamento. Mas
o pensamento nã o somente distingue uma coisa da outra; também as relaciona e conjuga.
Cachorro e gato sã o espécies de mamíferos, e o reconhecimento de uma espécie faz uso do
contraste com a outra. Sem essas relaçõ es seria impossível pensar; como seria impossível
pensar sem distinçõ es. Todo objeto deve ser diferenciado de qualquer outro objeto, mas
nenhum objeto pode ser tã o totalmente diferenciado a ponto de excluir a identidade que
transcende a diferença. As diferenças sã o expressõ es de unidade.
Todo pensamento definido exclui outros pensamentos; exclui especialmente seu
pensamento oposto. Mas todo pensamento tem uma relaçã o necessá ria com o seu oposto
ou negativo; ele nã o pode ser separado do seu negativo sem perder seu pró prio significado.
Seu negativo é uma parte do seu significado e está , portanto, incluído nele. Ver que cada
oposto inclui o outro é ver que ambos estã o incluídos numa unidade superior. Isso é
verdade nã o apenas de gatos e cachorros, mas também da consciência e das coisas. [15]

Apesar de todos os esforços de Kant, sua teoria do eu nã o é um aperfeiçoamento tã o grande


assim da teoria de Hume. A autoconsciência, diz ele, nã o é um conceito, mas uma
consciência que acompanha todos os conceitos. O ego em si permanece desconhecido,
sendo somente conhecido através dos pensamentos que sã o seus predicados. Mas isso
equivale a dizer, conclui Hegel, que nã o podemos ver o Sol porque nã o podemos lançar os
raios de uma vela sobre ele. Kant havia declarado que a inteligência é em si mesma
ininteligível! Isso porque pressupunha que somente a identidade abstrata, sem diferença, é
inteiramente inteligível.
A velha ló gica assumia que cada objeto é uma identidade isolada, um puro isto e nã o aquilo.
As relaçõ es eram consideradas algo externo, algo fora da real natureza das coisas. Pelo
contrá rio: é essencial que um cachorro nã o seja um gato. O significado de cada objeto está
implicado no significado de todo outro objeto. Nada está isolado ou é puramente uno. Em
particular, o procedimento isolacionista tropeça na autoconsciência, pois nela a verdadeira
unidade é essencialmente complexa. A mente e o objeto, o sujeito e a substâ ncia e os eus
particulares formam uma unidade. Nada é exterior ou independente. A natureza e o homem
sã o idênticos. Porém, essa identidade nã o é abstrata ou vazia. Todas as diferenças sã o
preservadas. A unidade e a pluralidade estã o tã o misturadas que nenhuma tem significado
sem a outra.
Em Descartes, e certamente em Locke, o pensamento era considerado a atividade de uma
pessoa individual. Mas, se o ato de pensar é essencial e exclusivamente uma capacidade
individual, parece impossível evitar o solipsismo. Nã o há como fugir da pró pria mente. E,
em qualquer caso, se há muitas mentes ou se há apenas a minha, os objetos da experiência
se tornam milagrosamente reais vez apó s vez em atos casuais e separados da percepçã o.
Kant pensava ter evitado o solipsismo, mas nã o conseguiu dar uma explicaçã o satisfató ria
de como um objeto pode aparecer para muitas pessoas. Sem dú vida ele pretendia que as
categorias fossem iguais em todas as mentes e se aplicassem a um mundo comum de
objetos. Mas nenhuma experiência puramente individual poderia revelar um mundo
comum a outros centros de experiência. Portanto, conclui Hegel, deve haver uma mente
universal na qual todas as pessoas e objetos participam.
Para aplicar esses princípios em detalhe, para mostrar com precisã o as diferenças
unificadas da Mente Absoluta, Hegel elabora um sistema de categorias. Em vez das doze de
Kant, Hegel tem uma centena ou mais. Essas categorias sã o os conceitos que constituem e
se aplicam a tudo. A primeira, a mais simples, a mais abstrata, a mais vazia, é o Ser puro.
Todo objeto é um ser. O ser contém tudo — implicitamente. O implícito deve ser agora
tornado explícito por um processo dialético. Como tudo é determinado pelo seu oposto, o
Ser nã o pode ser pensado à parte do nã o Ser. Quando dissemos que um objeto é um ser, a
pró pria universalidade e vazio do Ser nos deixou na situaçã o de nã o estarmos dizendo
nada. Nó s nã o dissemos que ele é verde ou pesado; nã o o determinamos de nenhuma
forma. O Ser, portanto, é o equivalente de Nada. Mas, visto que por esse processo dialético
de pensamento o Ser se tornou Nada, surgiu a categoria do Tornar-se. Tornar-se é a síntese
de Ser e Nada. Pois, quando está se tornando, uma coisa tanto é quanto nã o é.
Por esse procedimento dialético, Hegel deduziu uma longa lista de categorias. A categoria
final continha explicitamente tudo o que a primeira continha implicitamente.
Hegel sem dú vida era um gênio; e a despeito de seu jargã o frequentemente pesado, há
muita profundidade valiosa em suas obras Fenomenologia e Lógica . Em particular, ele
frequentemente coloca o dedo nos pontos dolorosos dos sistemas anteriores, e assim se
pode dizer, e muito bem, que para entender Kant, Descartes ou os antigos estoicos é preciso
primeiro ler Hegel . Os acidentes da política prussiana, aos quais alguém poderia querer
creditar a popularidade imediata de Hegel na Alemanha, nã o podem explicar sua longa
ascendência na Grã -Bretanha nem sua popularidade nos Estados Unidos. Todavia, desde a
Primeira Guerra Mundial o hegelianismo se tornou quase extinto; e na Alemanha começou
a sofrer eclipse inclusive em meados do século XIX. Essa reversã o deve ser tomada como
evidência de alguma falha ou falhas filosó ficas na construçã o de Hegel, e é preciso descobrir
onde reside o problema.
Um ponto específico de crítica foi logo apontado pelos seguidores imediatos de Hegel. Se o
universo é esse sistema de categorias, argumentaram eles — se o real é o racional e o
racional é o real — entã o claramente toda a realidade pode ser deduzida dialeticamente e
cada item deve encontrar seu lugar claro no sistema. Hegel fizera questã o de preservar
diferenças; ele nã o favorecia abstraçõ es vazias nem a noite do misticismo na qual todas as
vacas sã o pretas [“todos os gatos sã o pardos”]. Para ter sucesso nas suas alegaçõ es,
portanto, Hegel teria de deduzir alguma vaca individual, aquela Holstein preto e branco
muito real ali no pasto.
Mas isso é precisamente o que Hegel nã o fez e nã o poderia fazer. Assim como Platã o, que
nunca conectou satisfatoriamente suas Ideias a objetos sensíveis individuais, também e
tanto mais Hegel nã o podia deduzir racionalmente um objeto individual do Absoluto.
Certamente Hegel nã o estava inconsciente dessa crítica. Quando confrontado com ela,
respondeu, logo no primeiro capítulo de sua Fenomenologia , que havia dissolvido o
individual — o presente, o aqui e agora, e também o ego individual; mas seja qual for a
realidade deles, ele a tinha preservado no processo dialético. Isso, é claro, está em
consonâ ncia com a negaçã o de um incognoscível Ding-an-sich e a remoçã o daquela rígida
separaçã o entre a forma mental e o dado sensorial, a qual atormentava os pó s-kantianos.
Ora, parece impossível defender o Ding-an-sich , mas parece também que a alegaçã o de
Hegel, de preservar as diferenças em sua escalada dialética, nã o pode ser comprovada. Em
relaçã o à zoologia, Hegel admite com louvá vel candura que a deduçã o nã o apenas nã o
consegue alcançar os indivíduos, como inclusive nã o consegue alcançar algumas
subespécies. Talvez o conceito animal pudesse ser deduzido, e até mesmo a espécie vaca ;
mas nã o Holstein-Frísia nem tampouco Pieterje van Rijn III.
A candura de Hegel elimina o aguilhã o da crítica, mas nã o se pode sustentar que a
prontidã o natural de Hegel em se dar o benefício da dú vida tenha diminuído a força da
crítica. É o caso de se perguntar se a espécie vaca ou mesmo o conceito animal podem ser
deduzidos. E no que diz respeito à física, é evidente que nenhuma deduçã o de um
determinado ser ou de uma determinada qualidade ou quantidade pode nos dar um
conhecimento da qualidade do á cido sulfú rico ou do peso atô mico do ouro. Nã o se poderia,
portanto, concluir que Hegel nã o conseguiu encontrar o universal concreto que buscava e
nos ofereceu somente abstraçõ es vazias?
 
 
Ignorância absoluta
 
Há uma segunda crítica, e dessas duas deve depender a presente refutaçã o do
hegelianismo. Foi visto acima que para Hegel a verdade é o todo, que toda determinaçã o é
uma negaçã o e que as relaçõ es de um objeto sã o logicamente internas ao seu significado.
Um gato nã o é um cachorro; faz parte da essência de um gato nã o ser um cachorro. Mas nã o
ser um cachorro é estar relacionado a cachorros, e essa relaçã o é interna ao significado de
gato. Portanto, gato e cachorro, objeto sensível e o eu estã o inclusos num todo maior. O
“Tudo Incluído” é o Absoluto.
Que as relaçõ es sã o internas, e especialmente que a verdade é o todo, sã o temas difíceis de
negar. Mas suas implicaçõ es sã o devastadoras. Enquanto você ou eu nã o soubermos as
relaçõ es que constituem o significado de gato ou do eu, nã o conheceremos o objeto em
questã o. Se dizemos conhecer algumas das relaçõ es — por exemplo, que um gato nã o é um
cachorro — e admitimos nã o conhecer outras relaçõ es — por exemplo, que um gato nã o é
um (animal de que nunca antes ouvimos falar) — nã o podemos saber como essa relaçã o
desconhecida pode alterar nossa visã o da relaçã o que ora dizemos conhecer. A alteraçã o
poderia ser considerá vel. Portanto, sem conhecer todas as relaçõ es nã o podemos sequer
conhecer uma. Obviamente, nã o conhecemos todas. Portanto, nã o conhecemos nada.
Essa crítica é extremamente desconcertante para um hegeliano, pois seu princípio nã o se
aplica meramente a gatos, cachorros e “eus”, mas ao Absoluto em si. A verdade é o todo e o
todo é o Absoluto. Mas obviamente nã o conhecemos o todo; nã o conhecemos o Absoluto.
Na verdade, sem conhecer o Absoluto nã o podemos sequer saber que há um Absoluto. Mas
como o idealismo absoluto poderia estar baseado na ignorâ ncia absoluta? E nossa
ignorâ ncia é a ignorâ ncia absoluta, pois nã o podemos saber uma coisa sem saber todas.
O racionalismo do século XVII, o empirismo britâ nico, a filosofia crítica de Kant e agora o
hegelianismo tentaram e falharam todos em justificar o conhecimento. À parte da
revelaçã o, a razã o fracassa. A ú nica possibilidade que resta agora de escapar da revelaçã o é
abandonar a razã o. Isso é algo difícil de engolir, mas alguns homens preferem chafurdar na
ignorâ ncia abissal do que aceitar informaçõ es pela graça de Deus.
 
 
FÉ SEM RAZÃ O
 
Ao longo da histó ria da igreja cristã tem aparecido, de tempos em tempos, indivíduos e
grupos que olham com desfavor a razã o, o intelecto e o ensino superior. Do período
patrístico, Tertuliano é com frequência citado por ter dito “Creio porque é absurdo”.
Embora nã o seja isso o que Tertuliano exatamente disse, sua oposiçã o à cultura pagã é bem
conhecida. O que, declama ele, tem o cristã o em comum com o filó sofo, a igreja em comum
com a academia, a revelaçã o em comum com a razã o? Mas como ele pró prio realizou um
pouco de filosofia, talvez devamos entender que ele nã o havia depreciado a razã o em geral,
mas somente a razã o pagã . Contudo, resta a suspeita de que sua fé era uma fé sem razã o.
 
 
Tipos de misticismo
 
Há outros casos também em que, embora a frase nã o possa ser aplicada com total rigor
literal, há uma suspeita e mais que uma suspeita de que a fé sem razã o é o ideal. Os místicos
formam um grupo particularmente digno de nota.
Pseudo-Dionísio, o Areopagita, era um neoplatô nico cristã o do século V. Algumas palavras
suas nã o irã o mostrar que ele absolutamente desprezava a razã o, mas que pelo menos
colocava um reino acima da razã o. Um reino no qual as categorias do pensamento e da
linguagem sã o tã o tensionadas que o significado inteligível parece ter escapado. Por
exemplo,
 
A tríade celeste, superDeus e superboa, Guardiã da teosofia dos homens
cristã os, nos direciona corretamente ao superdesconhecido, superbrilhante e
mais alto cume dos orá culos místicos onde os simples, absolutos e imutá veis
mistérios da teologia jazem ocultos na escuridã o superluminosa do silêncio,
revelando coisas ocultas que em sua escuridã o mais profunda brilham acima
do muitíssimo superbrilhante, e no totalmente impalpá vel e invisível enchem
até transbordar a mente cega com gló rias de inigualá vel beleza.
[16]

 
O misticismo neoplatô nico, do qual esse Dionísio toma sua inspiraçã o, falava de transes nos
quais a personalidade se fundia na perfeita simplicidade de um Uno original. Nesse Uno, a
simplicidade é tã o perfeita que nã o há nem mesmo o dualismo de sujeito e predicado. Logo,
neste domínio o conhecimento é impossível, pois todo conhecimento consiste na atribuiçã o
de predicados a sujeitos: o gato é preto, o nú mero quatro é par ou Guilherme era um
conquistador. Mas no transe ou absorçã o nã o há nem mesmo um Eu e Vós . Há somente a
pura simplicidade do Uno. Por esse motivo, nã o apenas nã o há nenhum conhecimento
durante o transe, como mesmo apó s a recuperaçã o um homem nã o pode dizer nada
verdadeiro sobre o mesmo, porque teria de usar a dualidade de sentenças para falar ou
saber.
Embora essa caracterizaçã o seja tomada de Plotino e do misticismo pagã o, ela também se
aplica aos místicos cristã os. Bernardo de Claraval, o oponente devoto da habilidade
dialética do orgulhoso Abelardo, fala de tornar-se penetrado por Deus como o ar é
penetrado pela luz. Mestre Eckhart e Nicolau de Cusa usam muitas expressõ es que fazem
paralelo com as de Plotino. É matéria de comum acordo que a consciência mística nã o é
claramente diferenciada em sujeito e objeto. A experiência nã o é absolutamente focalizada,
se é que é mesmo focalizada. Sujeito e objeto, eu e vó s, sã o fundidos ou confundidos num
uno indiferenciado. Com entusiasmo, mas numa fraseologia ininteligível, o místico fala de
ser inundado por uma irrupçã o dos abismos da vida interior; ou diz que as energias
transcendentais invadem a alma, e o ser como um todo, numa experiência integral e
indivisa, encontra a si pró prio.
Há gradaçõ es de opiniã o mística. O tipo neoplatô nico, seja em Plotino, seja em Nicolau, nã o
renuncia ao uso rigoroso da razã o em problemas filosó ficos e eclesiá sticos comuns. Mas
eles concordam que a uniã o da alma com a Realidade Absoluta nã o é intelectual. Deus só
pode ser conhecido negativamente. Nenhuma qualidade finita, isto é, nenhuma qualidade
definida, pode ser-lhe atribuída. Ele nã o é bom, nã o é justo, nã o é sá bio, nã o é nada. Nó s nos
unimos a ele; nos fundimos nele em comunhã o sem palavras, numa consciência que
transcende as ideias.
Outros místicos, ou, se o termo místico nã o é aqui aplicá vel, outros que falam de uma fé sem
razã o, divergem do padrã o neoplatô nico de duas maneiras. Eles nã o têm simpatia pela
filosofia nem se baseiam em transes sem palavras. Essa descriçã o negativa,
reconhecidamente ampla, inclui grupos que fora isso sã o bastante diferentes. Inclui nã o
somente os profetas anarquistas de Zwickau — que nã o precisavam estudar grego ou
hebraico porque Deus falaria a qualquer camponês entusiasmado — como também os
pietistas devotos, só brios e sérios que vieram depois. E quem pode ser muito severo com os
pietistas? Vivendo uma vida moral e piedosa, eles veem o formalismo frio das classes
letradas e repudiam a teologia sistemá tica em favor de uma devoçã o simples e calorosa.
No século XX os fundamentalistas, em graus variados, advogam uma fé sem razã o. Embora
eles enfatizem o estudo da Bíblia mais do que os pietistas e profetas aná rquicos,
frequentemente invectivam contra a filosofia e a “mera” razã o humana. Mesmo na doutrina
nã o vã o normalmente além de meia dú zia de crenças fundamentais. Qualquer coisa além
disso nã o passa de teologia á rida.
Se é impreciso categorizar as posiçõ es desses grupos como sendo de fé sem razã o, é porque
o menosprezo do intelecto sempre envolve certa dose de inconsistência. É preciso pouco
argumento intelectual para justificar esse menosprezo. E, particularmente no caso dos
fundamentalistas com sua defesa zelosa de algumas doutrinas, a razã o nã o pode ser
totalmente abandonada. Alguns usam e reconhecem mais, alguns menos. Essa variaçã o e
inconsistência tornam difícil classificar com precisã o todos esses grupos sob uma mesma
ó tica. Ainda assim, os místicos (pelo menos no que consideram ser mais importante), os
pietistas e os fundamentalistas, e ainda outro ponto de vista que já será mencionado, têm a
tendência comum de uma fé sem razã o.
Esse outro ponto de vista, tã o popular e poderoso nos dias atuais, é frequentemente
chamado pelo nome de neo-ortodoxia. É ainda mais oposto à razã o ou anti-intelectual do
que o pietismo ou o fundamentalismo. Seu antecedente e sua motivaçã o também sã o
diferentes. Em vez de ser uma diluiçã o do protestantismo original, como é o caso do
fundamentalismo, a neo-ortodoxia descende da filosofia pó s-hegeliana. Para entendê-la,
portanto, e ver aonde o anti-intelectualismo pode levar, será necessá rio traçar brevemente
certas linhas de pensamento do século XIX, embora nã o seja todo ele distintamente
religioso.
No capítulo anterior foi rapidamente examinada a tentativa do renascimento de justificar o
conhecimento sem um apelo à revelaçã o. O racionalismo de Descartes e Spinoza, o
empirismo britâ nico, e Kant e Hegel, foram julgados como fracassos. Embora o
brilhantismo deles evoque nossa admiraçã o, seus resultados nã o podem ser aceitos. O
julgamento de que Hegel fracassou nã o é o julgamento tendencioso de um cristã o cuja
motivaçã o ulterior é defender a revelaçã o; é também o julgamento daqueles que estavam
mais á vidos do que Hegel em destruir o cristianismo.
 
 
Karl Marx
 
A rejeiçã o contemporâ nea do hegelianismo foi iniciada por dois alunos de Hegel, Karl Marx
e Søren Kierkegaard. Como Marx obteve um maior sucesso imediato e porque era menos
radical do que Kierkegaard, Marx será concisamente discutido primeiro.
Em certa medida, Marx (1818-1883) se beneficiou do trabalho de um contemporâ neo
menor, Ludwig Feuerbach (1804-1872). Em oposiçã o ao idealismo de Hegel, Feuerbach
defendia que a realidade consiste de coisas materiais, individuais. Como estudante, ele
havia notado as dificuldades epistemoló gicas do behaviorismo materialista; mas agora
decidiu ignorá -las. A sensaçã o, e somente a sensaçã o, pode revelar-nos a existência real. A
deduçã o da existência a partir da essência é um sonho e, portanto, a operaçã o de Hegel com
os conceitos perdeu o contato com a realidade. Especificamente, a filosofia de Hegel perdeu
o contato com os seres humanos individuais. Os homens eram considerados
essencialmente intelectuais e cognitivos, ao passo que o homem — isto é, o corpo humano
— é fundamentalmente emocional e determinado nã o por fantasias idealistas, mas por
aquilo que ele come. Der Mensch ist was er isst .
Marx continua esse behaviorismo materialista. O pensamento é um produto do cérebro. E
porque o universo é físico, tudo está em constante fluxo — nada é fixo. É deste modo que
Marx transforma a dialética de conceitos de Hegel no processo físico do materialismo
dialético. De fato, o grande mérito de Hegel, em contraste por exemplo com Spinoza, era
reconhecer o fluxo e o processo; embora ao mesmo tempo a grande autocontradiçã o de
Hegel era terminar esse processo em um Absoluto fixo.
A presente discussã o pode nã o ter nada que ver com os aspectos políticos e econô micos da
filosofia de Marx. O ú nico ponto a ser enfatizado é o abandono do intelectualismo por Marx.
Epistemologia, matemá tica e ética sã o bons exemplos. Assim como Feuerbach, ele
praticamente ignora a epistemologia. Na melhor das hipó teses descarta o solipsismo em
razã o de ser uma zombaria dos esforços da classe trabalhadora de se libertar. Os
problemas filosó ficos relativos aos fundamentos da matemá tica sã o rechaçados para a
obscuridade de um passado evolutivo desconhecido. Na ética Marx adota uma teoria
relativista. Os direitos se tornam as demandas de classe que devem ser impostas em vez de
provadas por argumentos racionais. A alegaçã o de uma classe deve dar lugar à de outra, e
só a força decide qual é que vale; o sucesso é o teste da verdade.
Na verdade, ao falar da constituiçã o física da natureza, apesar de sua insistência num fluxo
universal Marx parece admitir a verdade fixa do materialismo. Nã o é necessá rio, para o
presente propó sito, defender que Marx estava livre desse tipo de autocontradiçã o. O ponto
desta breve explicaçã o é que a confiança da filosofia moderna na razã o humana é colocada
em dú vida. Este é um dos dois primeiros ataques ao intelectualismo. O segundo é muito
mais radical e profundo.
 
 
Søren Kierkegaard
 
Embora nã o viesse a ser classificado junto com Karl Marx pelo leitor superficial, Søren
Kierkegaard (1813-1855) é, contudo, em certos aspectos bá sicos um típico representante
de meados do século XIX. Em sua revolta contra o racionalismo sistemá tico de Hegel, em
seu ataque ao cristianismo oficial e no anti-intelectualismo que permeou o movimento
româ ntico, este dinamarquês melancó lico expressava a opiniã o amplamente aceita de que
havia algo de podre no reino da Dinamarca, isto é, na Europa ou cristandade. Também
estava amplamente de acordo com Feuerbach e Marx quanto aos sintomas da podridã o,
mas acerca de sua causa e cura, divergia radicalmente deles.
Marx havia diagnosticado a doença da sociedade como uma enfermidade econô mica; mas,
afirma Kierkegaard, a reforma social que a época demanda é o oposto do que ela precisa. A
enfermidade nã o é econô mica, mas espiritual e religiosa. O Espírito Santo havia sido
substituído pelo espírito da época; o homem havia tomado o lugar de Deus; e o tempo havia
tragado a eternidade. Se Marx, em seu diagnó stico errô neo, havia criticado Hegel por ser
cristã o demais e abstrato demais, Kierkegaard atacou ambos: Hegel, por nã o ser cristã o o
suficiente, e Marx (ou pelo menos o socialismo, pois nã o está claro quã o definitivamente
Kierkegaard tinha Marx em mente), por ser hegeliano demais. A falha comum de ambos —
pois afinal de contas Hegel era socialista de fato, se nã o de nome — era o seu descaso pelo
individual. Qualquer objeto, por exemplo uma caneta, é suficiente para confrontar o
pensamento abstrato com o problema da existência individual; mas as pessoas individuais
sã o mais importantes que as canetas. As pessoas sã o importantes: em particular, sou
extremamente importante para mim; e meu problema, isto é, o problema da pessoa em sua
individualidade, é basicamente religioso. Ora, Hegel tinha perdido a pessoa, e nã o
meramente a caneta, na universalidade do processo do mundo; pois o racionalismo
sistemá tico nã o pode dar uma explicaçã o para a existência individual real.
Nã o é verdade que o real é o racional. A realidade, afirma Kierkegaard, nã o pode ser
apreendida pela razã o. Apesar do argumento na Fenomenologia , o imediato, o agora, o isto
e especialmente o “meu” nã o podem ser aufgehoben ou suprimidos. Hegel tentou explicar o
mundo pelo movimento da ideia; mas nã o existe movimento na ló gica nem ló gica no
movimento. O movimento é iló gico; o tornar-se é aberto, nã o fechado; a realidade é acaso, e
o acaso nã o pode ser colocado na ló gica. Através de sua identificaçã o da essência com a
existência, Hegel só obteve a existência conceitual, enquanto a existência real lhe escapou.
Sua incapacidade de ver a diferença entre o pensar e o ser era resultado da reflexã o como
pensador profissional e nã o como homem. Talvez para a filosofia a existência e a nã o
existência sejam de igual valor. O Sistema (e também o proletariado) nã o está preocupado
com uma simples pessoa. Mas para o indivíduo existente — por exemplo, para mim — eu e
minha existência somos do mais alto valor. Ao contrá rio de todo o abstracionismo — seja
de Platã o (pois ele também era um comunista), seja de Hegel, seja de Marx — o o que nã o é
importante e o que é essencial. Portanto, o dever do homem nã o é exemplificado na
atividade estudiosa do professor Hegel. A realidade nã o pode ser ensinada ou comunicada
racionalmente e academicamente; deve ser apreendida pessoalmente, apaixonadamente e
anti-intelectualmente. O que é necessá rio nã o sã o conclusõ es, mas decisõ es.
Essa mesma crítica também se aplica a Marx e a Feuerbach. Eles sã o um pouco menos
abstratos do que Hegel. Na humanidade, assim como no Espírito Absoluto, o individual nã o
pode ser encontrado. Os movimentos de massa de homens sem rosto indubitavelmente têm
a força dos nú meros, mas esse nivelamento e amalgamaçã o enfraquecem eticamente o
individual. O homem de massa perde a responsabilidade e o poder de tomar decisõ es.
Enfrentar a confusã o dos tempos e estar diante da eternidade nã o requer semelhança
humana, mas individualidade cristã . Na natureza o individual é meramente uma instâ ncia
da espécie; quem melhora uma raça de ovelhas muda cada indivíduo. Mas a religiã o nã o é
uma questã o de espécie, e é tolice supor que pais cristã os produzem automaticamente
filhos cristã os. O desenvolvimento espiritual é radicalmente individual, e a cura para a
sociedade é a cura dos indivíduos. Porque a sociedade receia os individualistas, essa cura
nã o será fá cil. Haverá derramamento de sangue: nã o o derramamento de sangue da batalha
e revoluçã o comunistas, mas o derramamento de sangue de má rtires individuais.
Qualquer pessoa que nã o seja hegeliana ou socialista deve sentir uma dose de simpatia por
esse individualismo vigoroso e pode aplaudir o sarcasmo que Kierkegaard dirigiu contra
um formalismo religioso vazio e insincero. Mas quando alguém passa do negativo para o
positivo, do destrutivo para o construtivo, pode seriamente concluir ou decidir que as
declaraçõ es de Kierkegaard sã o verdadeiras?
Para Kierkegaard, Deus é a verdade; mas a verdade só existe para um crente que
internamente experimente a tensã o entre si e Deus. Se uma pessoa que realmente existe é
incrédula, entã o para ela Deus nã o existe. Deus só existe na subjetividade. Essa ênfase na
subjetividade e o correspondente menosprezo pela objetividade resultam na destruiçã o da
historicidade objetiva do cristianismo. O histó rico nã o é religioso e o religioso nã o é
histó rico. Se Cristo fosse uma figura histó rica que viveu muito tempo atrá s, ele nã o teria
nenhuma significâ ncia religiosa agora. Por outro lado, se Cristo é uma figura religiosa, o
intervalo histó rico deve ser cancelado por uma contemporaneidade interior. A religiã o real
nã o consiste em entender nada. É uma questã o de sentimento, de paixã o anti-intelectual. A
aceitaçã o de qualquer verdade histó rica objetiva depende de métodos histó ricos, e o aluno
de histó ria objetivo é muito modesto para colocar seus pró prios sentimentos em suas
conclusõ es. Os pensadores especulativos nã o estã o pessoalmente interessados no
sofrimento; eles nã o estudam a verdade subjetiva da apropriaçã o.
Mas o cristianismo sempre foi considerado uma religiã o histó rica, nã o só no sentido de que
tem uma histó ria de 1900 anos, mas especificamente no sentido de que está baseado em
eventos histó ricos que aconteceram tanto tempo assim atrá s. Para Hegel, esses eventos e
sua significâ ncia eram partes integrantes da histó ria universal considerada a expressã o em
desenvolvimento do Espírito Absoluto. Mas para Kierkegaard a relaçã o entre o processo da
histó ria e a verdade eterna é um paradoxo. Na linguagem de Kierkegaard e seus seguidores
do século XX, o termo paradoxo indica algo mais embaraçoso do que aqueles estranhos
quebra-cabeças que depois de alguma dificuldade podem ser resolvidos e entendidos
intelectualmente. Um aluno de Física do ensino bá sico fica intrigado quando lhe dizem que
a pressã o da á gua no fundo de um recipiente é o dobro da de outro, embora o primeiro
recipiente tenha apenas metade do peso de á gua. Isso é um paradoxo. Ele é resolvido
aprendendo-se a relaçã o entre altura e pressã o. Mas um paradoxo existencialista é algo
insolú vel. É uma contradiçã o supor que a bem-aventurança eterna pode estar baseada em
informaçõ es histó ricas. Portanto, a subjetividade da apropriaçã o nã o está conectada a uma
disseminaçã o histó rica do ensino cristã o, mas coloca-se em oposiçã o a ela. A apropriaçã o
apaixonada, o momento da decisã o, elimina o intervalo da histó ria e torna a pessoa
internamente contemporâ nea de Cristo. O método nã o é intelectual; é uma experiência de
sofrimento e desespero. A verdade objetiva desapaixonada do cristianismo é algo
inalcançá vel. Partindo da pregaçã o dos apó stolos, todos os séculos de histó ria sã o inú teis
como prova dela. A verdade objetiva do cristianismo é equivalente à sua indiferença
subjetiva, sua indiferença ao sujeito, isto é, a mim.
Esse tipo de pensamento provoca uma pergunta ó bvia. Se nã o existe verdade objetiva, se o
como suplanta o o quê , é possível distinguir a verdade da fantasia? Nã o seria um Sataná s
sofredor tã o “verdadeiro” quanto um Salvador sofredor? Nã o seria uma apropriaçã o
interior, infinita e decisiva do diabo algo tã o louvá vel quanto uma decisã o por Deus? A
filosofia de William James lançará mais tarde a mesma pergunta, embora James nã o pareça
estar ciente da questã o; Kierkegaard percebe o dilema, mas dificilmente se pode dizer que
ele o resolveu. Há um esforço tímido para distinguir entre a interioridade do infinito e a
interioridade do finito; e Kierkegaard parece dizer que o infinito da interioridade cristã
está baseado em Deus, enquanto que a interioridade da finitude se relaciona com algum
outro objeto. Ora, se houvesse um conhecimento objetivo de Deus e de outros objetos, um
indivíduo poderia julgar a qualidade de sua paixã o com base em sua referência objetiva;
mas se Deus e talvez também o diabo estã o ocultos, e se alguém está limitado a uma
apropriaçã o subjetiva e apaixonada, nã o parece haver nenhuma diferença distinguível
entre a verdade de Deus e a verdade de Sataná s. Objetivamente, é indiferente se alguém
adora a Deus ou um ídolo. Se Deus existe ou nã o, isso é algo imaterial. O que conta é a
relaçã o do indivíduo com um Algo desconhecido.
Em seu estilo vívido, Kierkegaard descreve dois homens em oraçã o. Um está numa igreja
luterana e mantém uma concepçã o verdadeira de Deus; mas porque ora em espírito falso,
está na verdade orando a um ídolo. O outro realmente está num templo pagã o orando a
ídolos; mas desde que ora com uma paixã o infinita, está na verdade orando a Deus. Porque
a verdade está no Como interior e nã o no O quê exterior. Ou, novamente, diz Kierkegaard: “a
incerteza objetiva, sustentada na apropriaçã o da mais apaixonada interioridade é a
verdade, a mais alta verdade que há para um ser existente”. [17]

Por fim, outra declaraçã o também encontrada em seu Pós-Escrito Conclusivo Não Científico
às Migalhas Filosóficas — uma declaraçã o tã o definida quanto a anterior — expressa a
subjetividade de Kierkegaard. Apó s comentar que uma busca pela verdade objetiva nã o
leva em conta a relaçã o do indivíduo com essa verdade, Kierkegaard continua: “Quando se
pergunta pela verdade subjetivamente, reflete-se aí subjetivamente sobre a relaçã o do
indivíduo. Desde que o como dessa relaçã o esteja na verdade, o indivíduo está entã o na
verdade, mesmo que, assim, se relacione com a nã o verdade”. [18]

Suponha agora que há sérias falhas no “Sistema” de Hegel; suponha também que o homem
de massa comunista viola as prerrogativas do indivíduo moral; suponha em terceiro lugar
que a Igreja Luterana Dinamarquesa era formal, hipó crita e morta; suponha, portanto, que
Kierkegaard fez algumas críticas reveladoras aos seus contemporâ neos. Implica isso entã o
que a cura pode ser efetuada por um sofrimento ou paixã o, um sentimento subjetivo, para o
qual a verdade e a nã o verdade objetivas sã o igualmente indiferentes? Se isso fosse
verdade, nã o somente seria um ídolo tã o satisfató rio quanto Deus, como também Hegel ou
Marx seriam tã o satisfató rios quanto Kierkegaard.
Ao longo do século XIX e até a Primeira Guerra Mundial, Kierkegaard permaneceu
desconhecido. A revolta contra a razã o, todavia, continuou. Embora muita coisa deva ser
omitida, o avanço feito por Friedrich Nietzsche é particularmente digno de mençã o.
 
 
Friedrich Nietzsche
 
Friedrich Nietzsche (1844-1900), no que se refere à filosofia alemã , foi o clímax do século
XIX . A segunda metade do século havia trazido grandes avanços na ciência. Os físicos
consideravam ter demonstrado completamente a verdade do mecanicismo. Ludwig
Fechner, embora tentasse fundar uma psicologia empírica, rejeitou o mecanicismo sob a
inspiraçã o de grandes ideias româ nticas e povoou seu universo com almas, anjos e deuses.
Rudolph Lö tze fez do intelecto um instrumento nã o para representar as coisas, mas para
transformá -las. O ser está em fluxo, e a realidade é mais rica do que o pensamento. William
Wundt abandonou o monismo e retratou o universo como uma pluralidade de vontades. E
Darwin (embora nã o sendo alemã o) revolucionou nã o apenas a biologia, mas também
todas as fases do pensamento filosó fico. Nietzsche tirou dessas fontes o que lhe interessava
e completou a cosmovisã o ateísta, materialista e anti-hegeliana do século XIX.
A teoria da evoluçã o de Nietzsche, seu Super-Homem, seu Eterno Retorno e sua
transvalorizaçã o de todos os valores precisam ser omitidos. Nossa atençã o se limita à s
opiniõ es dele sobre os poderes da razã o. Na visã o de Nietzsche, nã o existe algo como uma
mente; o ponto de partida adequado é o corpo em sua evoluçã o. O que Descartes e Kant
confundiram com ego, em vez de simples sujeito, é na verdade uma multiplicidade de
desejos ou impulsos conflitantes. Portanto, a ideia de que o mundo procede para que a
razã o humana seja verdadeira é totalmente simpló ria. Tudo que chega à nossa consciência
é simplificado, ajustado e interpretado. Jamais encontramos um fato na natureza; jamais
apreendemos as coisas como elas sã o. O aparato inteiro do conhecimento é um dispositivo
simplificador, voltado nã o à verdade mas à apropriaçã o e utilizaçã o do nosso mundo. Os
filó sofos haviam acreditado que nas formas da razã o tinha sido encontrado um critério da
realidade; ao passo que na verdade o ú nico propó sito dessas formas é dominar a realidade
deixando de compreendê-la de maneira inteligente. Isso significa que o desejo da verdade
ló gica pressupõ e uma falsificaçã o fundamental de todos os fenô menos. O que agora
chamamos de verdade , portanto, é aquele tipo de erro sem o qual uma espécie nã o pode
viver. O objetivo da atividade mental nã o é conhecer em qualquer sentido escolá stico, mas
esquematizar e impor tanta regularidade no caos quanto as necessidades prá ticas o
requerem. Afinal, por que deveríamos estar tã o interessados na verdade? A falsidade nã o é
uma objeçã o a uma opiniã o; a pergunta importante é: essa opiniã o sustenta a vida? Para
entender de fato como um filó sofo chegou à s afirmaçõ es metafísicas mais abstrusas, é
sempre bom e sá bio primeiro se perguntar: que moralidade tem ele em vista? Por trá s de
toda ló gica há demandas fisioló gicas por um modo de vida.
A ló gica depende da lei da contradiçã o, mas em vez de ser necessá ria a lei é apenas um sinal
de incapacidade — nossa incapacidade de afirmar e negar a mesma coisa. Nã o podemos
conversar sem usá -la. Mas por isso mesmo ela deve ser examinada com mais cuidado. A lei
da contradiçã o afirma ser ontoló gica assim como ló gica. Ela assume algo sobre o Ser. Mas
supor que a ló gica é adequada à realidade requer um conhecimento da realidade que seja
anterior à lei e independente dela. Obviamente entã o a lei da contradiçã o vale apenas para
existências pressupostas que nó s criamos.
Essas maneiras de pensar foram geradas em nó s através do longo processo evolutivo e
estã o agora tã o arraigadas que nenhuma quantidade de experiência pode modificá -las. Elas
sã o de fato a priori para o indivíduo, mas para a raça humana sã o produtos finais
evolutivos. A crença na causalidade e na contradiçã o pode ser e é ú til mas isso nã o as torna
verdadeiras. Na realidade elas devem ser falsas, pois conhecimento e evoluçã o sã o coisas
mutuamente exclusivas. O cará ter do mundo em processo de se tornar nã o é suscetível de
formulaçã o intelectual. Parmênides disse: Nã o se pode formar um conceito do nã o
existente; estamos agora no outro extremo e dizemos: Aquilo de que um conceito pode ser
formado é certamente fictício.
 
 
William James
 
Depois de Nietzsche, a escola norte-americana de pragmatismo continuou o ataque à razã o.
William James (1842-1910), inspirado pelos desenvolvimentos franceses bem como por
esses desenvolvimentos alemã es, fez um ataque violento e vigoroso ao absolutismo
hegeliano e à verdade fixa. Assim como antes, só os pontos mais minimamente essenciais e
pertinentes podem ser ajuntados nesta breve explicaçã o.
Durante o domínio do teísmo e absolutismo, James escreve, “você encontrará o rastro da
serpente do racionalismo, do intelectualismo”. [19]
O intelectualismo é uma serpente porque
seus princípios transcendentais sã o inú teis. “Você nã o pode deduzir nem um ú nico
particular real do Absoluto […] E o Deus teísta é quase igualmente estéril […] O teísmo é
mais insípido, mas ambos sã o igualmente remotos e vazios”. James também repete a
acusaçã o de que Hegel confunde fluxo conceitual com fluxo físico, razã o pela qual o
tratamento conceitual do fluxo da realidade é inadequado. Inadequado, isto é, para a
realidade em si. O conhecimento deve vir através da experiência — nã o da experiência que
consista de ideias simples, atomísticas e discretas, mas da experiência como um fluxo
contínuo de consciência. Nã o existem dados discretos; nada é separado ou distinto ; as
coisas estã o constantemente se fundindo umas nas outras; nã o existem distinçõ es como
matéria e forma, substâ ncia e relaçã o. Na verdade, os conceitos têm um valor prá tico;
selecionamos porçõ es da experiência e arbitrariamente as colocamos para funcionar; esse
processo serve bem aos nossos propó sitos, mas esses conceitos estã o longe de satisfazer as
demandas da especulaçã o racionalista; eles sã o puramente prá ticos. Nossos modos
fundamentais de pensar, as categorias e a lei da contradiçã o sã o descobertas feitas por
ancestrais muito remotos. As lagostas e as abelhas têm, sem dú vida, outros modos de
apreender a experiência. As crianças e os cachorros nã o usam nossas categorias adultas;
sua experiência é virtualmente caó tica. Espaço e tempo nã o sã o intuiçõ es kantianas mas
construçõ es obviamente artificiais, pois a maior parte da raça humana usa vá rios tempos e
vá rios espaços. Embora nossas categorias sejam muito ú teis, nã o podemos
dogmaticamente negar que outras categorias que sã o inimaginá veis hoje poderiam ter-se
provado tã o ú teis quanto aquelas que ora usamos.
Se isso procede, e se podemos aplicar os princípios de James a um exemplo definido, o
silogismo chamado Barbara [*]
poderia ter evoluído como uma falá cia. “Todos os
atenienses sã o gregos e todos os gregos sã o humanos” poderia ter implicado em que alguns
atenienses nã o sã o humanos. Da mesma forma, afirmar o consequente poderia ter formado
um argumento vá lido; e nó s teríamos raciocinado que todos os nú meros que terminam em
zero sã o divisíveis por cinco e, portanto, vinte e cinco — sendo divisível por cinco — deve
terminar em zero.
William James nã o pode rejeitar esses exemplos pelo motivo de que sã o iló gicos, porque
segundo ele as formas atuais da ló gica nã o sã o infalíveis. A ló gica é muito banal; nã o pode
apreender a realidade. Tã o grande é o fracasso dela que, quando os racionalistas
reconheceram que o mundo real escapa de suas fó rmulas arrumadas, inventaram mundos
irreais em que esses fatos teimosos seriam barrados. A vontade racional de Kant emigrou
para o mundo dos noumena ; F. H. Bradley fugiu de todas essas contradiçõ es voltando-se de
alguma forma para o Absoluto; e T. H. Green contava com uma Mente transcendente. Mas
isso só pode significar que os conceitos humanos falsificam a realidade.
Ao contrá rio de Nietzsche, porém, James utiliza seu irracionalismo para sustentar um certo
tipo de religiã o e ética. Algo disso deve ser levado em conta, tanto por sua pró pria
importâ ncia quanto em preparaçã o para o que vem a seguir.
O absolutismo e o pragmatismo, diz James, significam duas atitudes religiosas distintas. Um
homem insiste que o mundo deve ser e será salvo; outro crê que ele pode sê-lo. Há também
outra visã o, isto é, que o mundo nã o pode ser salvo. O pragmatismo, portanto, é uma
atitude a meio caminho entre o pessimismo e o otimismo; ela pode ser chamada de
meliorismo. O mundo pode ficar melhor porque podemos torná -lo melhor.
James entã o oferece a seguinte escolha. Suponha que o autor do mundo viesse ao seu
encontro antes da criaçã o e dissesse: “Farei um mundo que nã o é certo que será salvo; só
poderá ser salvo se cada agente fizer o melhor possível [se alguém for menos rigoroso na
tarefa, o resultado será lamentá vel]; entã o, você quer ter a chance de participar desse
mundo, com seus reais perigos, sem garantia de segurança, ou prefere voltar à inércia da
nã o entidade da qual acabei de fazer você surgir?”.
Note que James nã o nos oferece uma escolha entre esse mundo perigoso e outro no qual o
bem seja absolutamente garantido.
Parece que o absolutismo foi esquecido aqui. A escolha é entre o perigo e o nirvana. E James
está pronto a fazer a escolha por nó s. Qualquer pessoa “normalmente constituída” de
“constâ ncia mental saudá vel” consideraria esse universo perfeitamente adequado a seu
gosto. Só algumas “mentes mó rbidas” e “budistas” que estã o com “medo da vida”
recusariam a oportunidade. Estes ú ltimos até podem ser religiosos em certo sentido, mas
nã o sã o morais. “Em ú ltima aná lise, é nossa fé e nã o nossa ló gica que decide essas
questõ es”. É uma fé em nossos semelhantes, que todos eles darã o o seu melhor. É também
uma fé em forças sobre-humanas, pois há um deus — nã o um Deus Todo-Poderoso que
controla o resultado, mas um deus limitado e finito — que nos auxilia na caminhada; de
fato, ele é de tã o grande ajuda que o perigo se torna consideravelmente reduzido. A crença
nesse tipo de deus é verdadeira porque funciona. Claro, nã o sabemos com certeza se esse
deus existe,
 
pois ainda nã o sabemos com certeza que tipo de religiã o funcionará melhor a
longo prazo [isso é matéria de escolha pessoal]. Se você for extremamente
duro, o tumulto dos fatos sensíveis da natureza já lhe será o suficiente e você
nã o precisará de nenhuma religiã o […] Mas se nã o for nem duro nem terno
[…] o tipo de religiã o pluralista e moralista que lhe ofereci será a melhor
síntese religiosa que provavelmente encontrará .
 
Na seçã o sobre Søren Kierkegaard, a questã o da decisã o pessoal também era aguda — uma
decisã o à parte de qualquer conhecimento objetivo. Pessoalmente, Kierkegaard fez uma
escolha que nã o era muito diferente da de James; embora o cristianismo de Kierkegaard
nã o era o que James teria preferido, ainda assim ambos — junto com Nietzsche — dizem
“sim” para o universo. Mas quando James chama a sua escolha de moral e as outras de
mórbidas ele parece implicar que isso é mais do que uma escolha pessoal. Como James pode
distinguir entre uma escolha moral e uma imoral? Se ele diz que a verdade é o que funciona
e o que funciona é o que dá satisfaçã o pessoal, o homem que prefere o nirvana ao perigo
parece ter alcançado maior satisfaçã o do que um pragmatista provavelmente alcançará . É
mesmo prová vel que todos os homens farã o o melhor possível? A fé na humanidade é um
slogan inspirador, mas os fatos duros sugerem que um ou dois homens na histó ria nã o
trabalharam em tempo integral para tornar o mundo melhor. Certamente James é
consistente ao escolher por si mesmo o perigo, já que sua teoria depende de sua decisã o
pessoal; mas precisamente por causa dessa razã o irracional ele nã o pode concluir que
alguém outro deveria fazer a mesma escolha.
Essa objeçã o intelectualista, infelizmente, está baseada na lei da contradiçã o. Ela pressupõ e
que um princípio da filosofia deve ser aplicado consistentemente a todos os homens. Se o
sucesso em satisfazer a preferência pessoal justifica a escolha de um homem, o sucesso em
satisfazer uma preferência diferente deve igualmente justificar a escolha oposta de outro
homem. Mas é uma consistência e uma ló gica que James desaprova.
Nietzsche e James estã o fora da tradiçã o cristã e sã o, portanto, exemplos do colapso da
razã o humana separada do conhecimento dado pela revelaçã o divina ; todavia foi visto no
caso de Kierkegaard que até mesmo o pensamento religioso da era pó s-hegeliana tinha se
voltado para o irracionalismo. Portanto, para concluir a aná lise da fé sem razã o, deve ser
feita uma mençã o à influência de Kierkegaard sobre o século XX, e para esse fim deve-se
colocar a serviço o pensamento de Emil Brunner.
 
 
Emil Brunner
 
É impossível, e felizmente desnecessá rio para os nossos propó sitos, resumir todas as
publicaçõ es de Brunner. Porém, mesmo limitando o assunto ao irracionalismo se precisa
adentrar nas coisas um tanto quanto arbitrariamente. Uma discussã o interessante de algo
errado é um bom começo.
Ao contrá rio daqueles filó sofos que se situam tã o definitivamente fora da tradiçã o cristã ,
Brunner — em comum com a principal posiçã o neo-ortodoxa — reconhece que o pecado é
um poder difuso na vida humana. O pecado nã o apenas irrompe no crime grosseiro, como
também afeta nosso pensamento interior. Visto que o pecado aliena o homem de Deus, os
efeitos mentais do pecado sã o vistos com mais clareza e frequência ao tentarmos pensar
sobre Deus do que ao pensar em matemá tica ou física. Nã o só diz Brunner que o erro
devido ao pecado é mais evidente na teologia do que na física, como acrescenta que a
matemá tica e a ló gica estã o tã o afastadas do centro religioso da vida que nelas nã o há erro
algum.
Essa observaçã o, que à primeira vista pode parecer tã o plausível, é na verdade uma
confusã o entre o objetivo e o subjetivo. Nela, Brunner — seguindo a ênfase de Kierkegaard
na subjetividade — parece ter negado a distinçã o entre a pessoa que conhece e a verdade
conhecida. É uma confusã o entre o como e o quê .
Examinemos com mais cuidado a natureza do erro na matemá tica e na teologia.
Subjetivamente, a deterioraçã o noética causada pelo pecado produz erros na aritmética e
geometria, assim como na teologia. Todos nó s temos problemas com os canhotos em nosso
talã o de cheques. Sem dú vida os lapsos na teologia sã o mais sérios, mas é claramente falso
dizer que em nossa matemá tica nã o existe erro nenhum.
Ora, se Brunner respondesse que, apesar de você e eu cometermos erros na matemá tica, a
matemá tica em si — a matemá tica considerada objetivamente — nã o contém erros, a
resposta seria que a teologia em si — a teologia considerada objetivamente — também nã o
contém erros. Subjetivamente, cometemos erros em ambas; objetivamente, uma é tã o
verdadeira quanto a outra. Portanto, a afirmaçã o de Brunner de que a teologia contém mais
erros, a física menos erros e a matemá tica absolutamente nenhum erro só é plausível
quando se confunde o objetivo com o subjetivo, isto é, quando se apaga a distinçã o entre a
pessoa pensante que pode cometer erros e as proposiçõ es objetivamente verdadeiras. Ou,
melhor, é uma negaçã o da verdade objetiva. Isso é consistente com a apropriaçã o
apaixonada anti-intelectual de Kierkegaard. Deus é a verdade, disse Kierkegaard, mas Deus
e a verdade só existem para alguém que crê; o incrédulo nã o precisa temer penalidades
divinas, pois para o incrédulo Deus nã o existe. A verdade é totalmente subjetiva.
A subjetivaçã o da verdade tem sérias consequências. Para Brunner, as proposiçõ es (ou
verdades abstratas, como ele as chama) sã o meros indicadores de uma verdade dita
pessoal, porém mal definida. Nã o somente têm as palavras e os sons uma funçã o
meramente instrumental, como o pró prio conteú do conceitual é somente uma estrutura ou
receptá culo para outra coisa. As proposiçõ es sã o meros indicadores, e indicadores podem
ser eficazes, quer sejam verdadeiros quer falsos. Brunner afirma de maneira muito clara
que um indicador nã o precisa ser verdadeiro. Até mesmo uma proposiçã o falsa indica algo,
pois Deus está livre das limitaçõ es da verdade abstrata e pode revelar-se tã o facilmente em
declaraçõ es falsas quanto em verdadeiras.
Gott kann , wenn er will, einen Menschen sogar durch falsche Lehre sein Wort sagen . [20]

Ora, se deixarmos de lado as conveniências da expressã o oblíqua e falarmos de maneira


clara e explícita, nã o seremos forçados a concluir que as palavras de Brunner apontam para
um deus que conta mentiras?
Poderia algo demonstrar de maneira mais clara que a neo-ortodoxia é mais neo que
ortodoxa ? Brunner certamente nã o se situa na tradiçã o de Joã o Calvino. Ele usa de fato as
palavras revelação , transcendência , pecado e encarnação ; mas a semelhança intelectual
com os conceitos calvinistas é zero. Alguém poderia hesitar em classificar Brunner com
Nietzsche, mas se eles nã o sã o irmã os, seu irracionalismo em comum pelo menos os torna
primos.
Esse é o ponto onde paramos. Embora Brunner tenha publicado muitos livros, nã o é
proveitoso examinar nenhuma linguagem, a menos que a verdade seja distinta do erro. Um
escritor que dê a estes igual autoridade terá repudiado a lei da contradiçã o, cessando assim
o diá logo significativo .
É hora, portanto, de tirar uma conclusã o. Sob o título “Razã o sem Fé”, vimos que a histó ria
da filosofia moderna falha na sua tentativa de basear o conhecimento em recursos
humanos nã o auxiliados. Até os filó sofos seculares — aqueles sem nenhum interesse na
revelaçã o divina — admitem que Spinoza, Kant e Hegel nã o produziram uma epistemologia
só lida. No presente capítulo foram examinados o irracionalismo secular e o religioso. Nã o
só Nietzsche e James nos deixam na anarquia intelectual; também a neo-ortodoxia conclui
que a razã o humana é um fracasso. Embora estes ú ltimos escritores tenham uma doutrina
de revelaçã o, mesmo nela nã o conseguem distinguir a verdade da falsidade. Ao invés de
dizer “Seja Deus verdadeiro, e mentiroso todo homem”, dizem “Seja Deus falso, e todo
homem também será mentiroso”. Esse tipo de filosofia é autocontraditó rio, autodestrutivo
e intelectualmente estupidificante.
Eu gostaria, portanto, de sugerir que nem abandonemos a razã o, nem a usemos sem auxílio,
mas — sob pena de ceticismo — reconheçamos uma revelaçã o verbal e proposicional da
verdade fixa de Deus. Só aceitando informaçõ es racionalmente compreensíveis baseadas na
autoridade de Deus é que podemos esperar ter uma filosofia só lida e uma religiã o
verdadeira .
 
 
FÉ E RAZÃ O
 
No que veio antes sob o título “Razã o e Fé” foram aduzidos argumentos que levaram ao
repú dio da teologia natural e do tomismo da Igreja Cató lica Romana. Em seguida foi
mostrado que o renascimento e as tentativas modernas de basear o conhecimento na
“Razã o sem Fé” resultam em um ceticismo desastroso. E imediatamente acima foram
mostradas as implicaçõ es religiosas do irracionalismo. Resta, portanto, nos voltarmos da
crítica negativa e fornecer alguma visã o construtiva da “Fé e Razã o”.
Uma construçã o completa teria de sistematizar um nú mero bem grande de fatores.
Infelizmente, mas necessariamente, a presente tentativa deixará muitas questõ es sem
resposta. Espera-se, porém, que a linha de pensamento adotada justifique amplamente
duas conclusõ es principais. Primeiro, em oposiçã o ao deísmo, iluminismo, spinozismo,
cientismo contemporâ neo e a todos os sistemas dogmá ticos que opõ em a razã o à fé, será
mostrado que a razã o e a fé nã o sã o antitéticas mas harmoniosas. É verdade, a harmonia
nã o será da variedade tomista. Em segundo lugar, em oposiçã o ao secular e principalmente
ao irracionalismo religioso, a fé receberá um conteú do intelectual. Essas duas conclusõ es
dependem em larga medida de definiçõ es aceitá veis de fé e razão . Para Tomá s de Aquino e
John Locke, razão significava a base sensorial de todo conhecimento. Descartes e Spinoza
tinham outro significado. Vá rias definiçõ es de fé também ocorrem na histó ria da filosofia e
da teologia. Esta tentativa também deve escolher seus pró prios significados.
Além de definiçõ es formais, um contexto precedente, um pouco de histó ria e de discussã o
também serã o necessá rios. Esse material apresenta duas dificuldades sérias. Primeiro, a
histó ria tem a ver com movimentos religiosos vivos e com a pregaçã o evangelística
popular. Há , portanto, uma confusã o de pontos de vista que desafia a generalizaçã o precisa.
Se, todavia, nenhuma sugestã o de concordâ ncia universal é feita, a imparcialidade requer,
quando menos, que os exemplos escolhidos conspirem para representar tendências reais. A
segunda dificuldade séria é bem diferente da primeira. Ao passo que a histó ria se concentra
em fenô menos populares e, portanto, superficiais, a discussã o revela tecnicismos
excepcionalmente desconcertantes. A razã o e a fé, sendo atividades humanas, devem ser
vistas à luz da personalidade humana como um todo. Algum esquema de psicologia é
necessá rio. E os detalhes nã o têm fim. Em relaçã o a isso, algumas questõ es serã o
levantadas sem serem totalmente respondidas. Servirã o, todavia, como um cená rio em que
duas conclusõ es principais podem ser amplamente estabelecidas.
 
 
Religião popular
 
O contexto histó rico em que essas questõ es se tornam elementos de uma religiã o viva e
encontram espaço na pregaçã o popular pode para os nossos propó sitos ser
convenientemente restringido ao fundamentalismo nos Estados Unidos. Do ponto de vista
da Confissão de Westminster , isto é, do ponto de vista de todo este argumento, o
fundamentalismo nã o pode ser totalmente condenado nem totalmente recomendado. A
maioria dos fundamentalistas aceita seçõ es importantes da Confissão de fé de Westminster e
rejeita outras seçõ es igualmente importantes. Em parte, por essa razã o, o fundamentalismo
nã o se encaixa totalmente em nenhuma das categorias das três seçõ es anteriores. A
referência a ele no início da ú ltima seçã o pode até parecer injusta. Reconhecidamente, sua
classificaçã o como uma forma de misticismo era inadequada. O apego firme do
fundamentalismo a algumas doutrinas o salva dos excessos do irracionalismo, mas ao
mesmo tempo dificilmente se pode dizer que os fundamentalistas abraçam um
intelectualismo de corpo e alma. Eles frequentemente deploram a razã o, o conhecimento e
a erudiçã o; por vezes falam desdenhosamente da “mera ló gica humana”; e uma de suas
queixas contra o romanismo é que ele reduz a fé a mero assentimento intelectual. No
entanto, de que forma se pode defender doutrinas fundamentais partindo de uma
depreciaçã o geral da razã o? Se eles insistem em alguma doutrina, qualquer que seja, como
podem recomendar uma fé que seja desprovida de conteú do intelectual?
Todavia eles recomendam; isto é, alguns recomendam; pelo menos parecem recomendar. Já
admitimos que num movimento popular como o fundamentalismo há uma grande
variedade de opiniõ es. Talvez o exemplo prestes a ser dado da variedade irracionalista no
fundamentalismo seja um dos casos mais extremos. Mesmo assim, um caso extremo pode
ser necessá rio para produzir a impressã o que deveria resultar de uma longa lista de casos
menos extremos. De todo modo, a conversa a seguir realmente aconteceu. Nã o é ficçã o nem
é exagerada.
Um clérigo de convicçã o fundamentalista e zelo evangelista afirmou que há pouca
esperança de se entender a Bíblia. A teologia é obscura e duvidosa. Porém, Deus deu ao seu
povo o poder de discernir o coraçã o dos homens, e com esse poder um clérigo pode decidir
quem deve e quem nã o deve ser admitido na membresia da igreja. Na confusa discussã o
que se seguiu enquanto o ministro tentava em vã o listar os fatores discernidos no coraçã o
dos homens, entrou em cena Romanos 10.9-10. No início, na rá pida troca de ideias, o
ministro estava inclinado a concordar que quem satisfizesse as condiçõ es dessa passagem
seria uma pessoa salva. Mas quando lhe foi chamada a atençã o de que a crença na
ressurreiçã o de Cristo era uma crença sobre histó ria, uma aceitaçã o intelectual de uma
proposiçã o histó rica, ele rapidamente se corrigiu e negou que a crença na ressurreiçã o de
Cristo implicava salvaçã o. A salvaçã o, afirmou ele, nã o é realmente uma questã o de crença.
Essa visã o certamente afeta a exegese que se faz de Romanos 10.9–10. Afinal, se a fé salva e
a crença nã o salva, a visã o obviamente divorcia a fé da crença. Mas ninguém esperaria,
claro, que esse ministro fosse muito consistente nas suas afirmaçõ es. O exemplo pode ser
extremo, mas serve ao propó sito de enfatizar o fato inegá vel de que o fundamentalismo é
um caso inconsistente. E nã o é somente o fundamentalismo das décadas entre as duas
Guerras Mundiais que é inconsistente. A inconsistência específica relativa ao conteú do
intelectual da fé descende das formas mais primitivas de protestantismo. Convém,
portanto, colocar a questã o em termos de uma longa objeçã o protestante ao romanismo.
De acordo com muitos escritores protestantes, o catolicismo romano está seriamente
equivocado em tornar a fé um mero assentimento intelectual a certos dogmas. A fé, a
verdadeira fé em Cristo, dizem esses escritores, é uma confiança pessoal e nã o uma crença
intelectual “fria”. Por outro lado, a Enciclopédia Católica afirma: “Os escritores nã o cató licos
repudiam qualquer ideia da fé como um assentimento intelectual”. [21]

Talvez, entretanto, a verdade da questã o nã o seja colocada com precisã o em nenhuma


dessas breves caracterizaçõ es. A Enciclopédia Católica tem motivos substanciais para
acusar o protestantismo de anti-intelectualismo, mas sua declaraçã o real é ambígua e num
de seus dois sentidos falsa. Por outro lado, a queixa protestante sobre o mero assentimento
intelectual é extremamente confusa. Para mostrar essa confusã o é necessá rio passar de
uma descriçã o de religiã o popular para uma discussã o de complexidades psicoló gicas. Isso
nã o significa que, por causa de um exemplo, o pano de fundo histó rico deva ser descartado;
outros exemplos descritivos serã o citados. Mas a ênfase repousará mais nos méritos
acadêmicos do caso que em exemplos de afirmaçõ es ministeriais precipitadas.
 
 
A análise da personalidade
 
Para definir fé , alguma aná lise da personalidade é necessá ria. Qualquer que seja a definiçã o
de fé, sã o pressupostas distinçõ es entre atividades conscientes. De acordo com uma opiniã o
muito comum, a consciência consiste das seguintes partes: intelecto, voliçã o e emoçã o. A fé
pode ser colocada sob uma delas ou ser descrita como uma combinaçã o de duas delas ou
possivelmente de todas as três. Seja como for, algum esquema analítico é exigido. Ora, uma
das muitas dificuldades nesse procedimento vem da necessidade de expressar a verdade
bíblica em terminologia nã o bíblica. Nã o se pode de forma legítima objetar ao uso em si de
terminologia nã o bíblica. O termo Trindade nã o ocorre na Bíblia, mas todos os trinitá rios
defendem que as ideias e relaçõ es em que o termo se apoia sã o solidamente bíblicas. Assim
também, a palavra emoção nã o ocorre na Bíblia, nã o pelo menos na versã o King James . Mas
certa dose de cautela é necessá ria quando se usa uma nova terminologia. Em primeiro
lugar, é preciso assegurar que os termos sejam inequivocamente definidos.
Lamentavelmente, muitas discussõ es sobre fé nã o conseguem definir intelecto , vontade ou
emoção . Aqueles que usam os termos parecem ter apenas uma ideia nebulosa do seu
significado, e um pouco de questionamento socrá tico logo revela a falta de inteligibilidade.
É preciso ter também outro cuidado. Depois que o novo termo foi adequadamente definido,
sua relaçã o com o material bíblico deve ser esclarecida. O uso de um termo nã o bíblico na
discussã o teoló gica é evidência de uma precisã o técnica e economia que a pró pria Bíblia
nã o possui. Nenhum termo bíblico corresponde de forma precisa ao novo termo, e o novo
termo nã o reproduz nenhum termo da Escritura com exatidã o. Logo, se o novo termo é
sub-repticiamente igualado a algum termo familiar da Bíblia, o resultado é uma total
confusã o. Isso tem acontecido com grande frequência na identificaçã o do termo hebraico
coração com a emoção da psicologia popular. O significado bíblico do termo será discutido
abaixo, mas aqui a ênfase recai sobre o princípio geral. Quando um novo termo é
introduzido na teologia e definido com precisã o, jamais deve ser assumido de forma
descuidada, mas sempre deve ser cuidadosamente verificado se o novo termo e a nova
definiçã o expressam as ideias bíblicas de forma adequada.
Entã o, a Bíblia apoia ou nã o apoia a popular divisã o tripartite da alma? Evidentemente, a
psicologia moderna oferece outras divisõ es além de intelecto, vontade e emoçã o. Sigmund
Freud especificou o id , o ego e o superego , e mais uma libido cuja relaçã o com estes nã o é
muito clara. É verdade que essa divisã o freudiana cheira mal entre os devotos; ainda assim,
o pró prio reconhecimento dela de um mal inerente assemelha-se suficientemente à visã o
cristã da hereditariedade e da depravaçã o total para reclamar a consideraçã o de um
cristã o. Ou talvez alguma terceira aná lise seja melhor que essas duas. Em todo caso, nã o se
pode admitir uma suposiçã o precipitada.
Porque é necessá rio cuidado, porque em princípio a aná lise que será finalmente escolhida
deve se harmonizar com a Bíblia e porque — como foi apontado um instante atrá s — o
coração da Bíblia tem sido amiú de identificado com as emoções da psicologia popular, uma
breve pesquisa dos dados bíblicos deve ser feita.
O termo-chave da psicologia bíblica, especialmente no Antigo Testamento onde sã o
estabelecidos os princípios fundamentais, é o termo coração . Quando cristã os
contemporâ neos, frequentemente na pregaçã o evangelística, contrastam a cabeça e o
coraçã o, eles estã o efetivamente igualando o coraçã o com as emoçõ es. Essa antítese entre a
cabeça e o coraçã o nã o é encontrada em lugar algum na Escritura. Ao contrá rio, esse uso
mostra desde já um afastamento do Antigo Testamento. Nos Salmos e profetas o coraçã o
designa o foco da vida pessoal. É o ó rgã o da consciência, do autoconhecimento, de fato de
todo o conhecimento. Pode-se bem dizer que coração no hebraico é equivalente à palavra
inglesa self [eu].
Para entender o uso feito pelo Antigo Testamento, considere os seguintes exemplos:
 
Gênesis 6.5 (NVI) : toda a inclinaçã o dos pensamentos do seu coraçã o era
sempre e somente para o mal.
Gênesis 8.21 (ARC): disse o SENHOR em seu coraçã o: Nã o tornarei mais […]
Gênesis 17.17 (ARC): caiu Abraã o sobre o seu rosto, e riu-se, e disse no seu
coraçã o: […] há de nascer um filho?
Gênesis 20.6: com sinceridade de coraçã o fizeste isso […]
1 Samuel 2.1: O meu coraçã o se regozija no Senhor […]
1 Samuel 2.35: um sacerdote fiel, que procederá segundo o que tenho no
coraçã o e na mente […]
Salmos 4.4: consultai no travesseiro o coraçã o e sossegai.
Salmos 7.10: Deus é o meu escudo; ele salva os retos de coraçã o.
Salmos 12.2 (ARC): falam com lá bios lisonjeiros e coraçã o dobrado.
Salmos 14.1: Diz o insensato no seu coraçã o: Nã o há Deus.
Salmos 15.2: O que […] de coraçã o, fala a verdade.
Isaías 6.10: para que nã o venha […] a entender com o coraçã o.
Isaías 10.7: seu coraçã o nã o entende assim […]
Isaías 33.18: O teu coraçã o se recordará dos terrores […]
Isaías 44.18, 19 (ARC): se lhe untaram [...] o coraçã o, para que nã o entendam.
E nenhum deles toma isso a peito [considera em seu coraçã o], e já nã o têm
conhecimento nem entendimento [...]
 
Como há pouco mais de 750 ocorrências da palavra coração no Antigo Testamento, essas
citaçõ es sã o uma amostra escassa. Mas elas bastam para mostrar que muitos versículos
fariam um completo absurdo se o termo fosse traduzido como emoção . Por exemplo, se
fosse feita essa identificaçã o de sentido, seria necessá rio dizer “falam com lá bios lisonjeiros
e emoçõ es dobradas”; e “O que […] nas emoçõ es, fala a verdade”; e “para que nã o venha […]
a entender com as emoçõ es”. Obviamente essa substituiçã o resulta em absurdo. Nã o se
nega que o termo bíblico coração possa se referir e ocasionalmente se refira à s emoçõ es,
como em 1 Samuel 2.1, embora mesmo aqui deva haver algum entendimento intelectual.
Mas, embora a referência seja à s vezes à s emoçõ es, o termo coração significa mais
frequentemente o intelecto. É o coraçã o que fala, medita, pensa e entende. Ao mesmo
tempo, ele nã o pode ser uniformemente traduzido como intelecto em distinçã o da vontade
ou das emoçõ es; nã o porque exclua a mente, o entendimento ou o intelecto ou lhes seja
antitético, mas porque inclui todos eles e significa a personalidade total. O termo coração
significa na verdade o eu — ou, com alguma ênfase coloquial, o eu mais profundo. E assim
como o eu age emocional, volitiva e intelectualmente, as três atividades sã o cada qual
representadas nas vá rias ocorrências do termo. Embora o termo coração inclua as emoçõ es
e nã o possa, portanto, ser traduzido como intelecto , a referência intelectual ocorre com
muito mais frequência do que qualquer outra; e esse predomínio das referências ao
intelecto mostra o predomínio do intelecto na personalidade.
É extremamente difícil compreender os motivos, pelo menos no caso daqueles ligados à
Bíblia, que levam a um menosprezo do intelecto. Por que a emoçã o deveria ser o ú nico
caminho ou ainda o melhor caminho para Deus? Por que o pensar, o meditar e o
compreender devem ser condenados? Por que conhecer, conceber ou apreender Deus é
uma maneira pobre, uma maneira impossível ou maneira ímpia de adorá -lo? O que há de
errado com a atividade intelectual?
Entã o também, esse ato de denegrir o intelecto em favor das emoçõ es e possivelmente a
pró pria divisã o tripartite tradicional podem implicar uma suposta psicologia da faculdade
[22]
que contradiga a ênfase bíblica na personalidade unitá ria. Como parêntese, pode-se
notar que isso também se aplica a Freud. Esse tipo de psicologia nã o deve tanto ser
condenado por suas conotaçõ es desagradá veis quanto por sua fragmentaçã o
esquizofrênica da personalidade. A psicologia freudiana é uma psicologia da faculdade com
vingança.
A Bíblia nã o sugere uma psicologia da faculdade. Embora discussõ es assim dificilmente
possam evitar o uso da palavra intelecto , deve ficar claro que nã o existe nenhum “intelecto”
e sim atos intelectuais; nã o existem “emoçõ es” e sim surtos flutuantes de medo, raiva,
desâ nimo e exaltaçã o. Da mesma forma, nã o existe nenhuma “vontade”, nenhum “id”,
nenhum “superego”, mas sim uma pessoa unitá ria.
Portanto, o contraste comum, moderno entre a cabeça e o coraçã o é evidentemente
antibíblico. Existe um contraste bíblico. É o contraste entre o coraçã o e os lá bios , pois
Mateus cita Isaías quando diz: “Este povo honra-me com os lá bios, mas o seu coraçã o está
longe de mim” (Mt 15.8). Quando o contraste bíblico é substituído por uma psicologia da
faculdade alheia, nã o se pode excluir a possibilidade de que outras teses bíblicas estejam
sendo ao mesmo tempo descartadas.
 
 
Confiança e assentimento
 
Serã o descritos dois exemplos dessa psicologia defeituosa, especialmente dessa
depreciaçã o antibíblica da atividade intelectual. Nenhum deles é exatamente trivial; o
segundo realmente afeta a resposta total que se dá ao cristianismo. O primeiro, uma
confusã o comum de pensamento, frequentemente ouvida dos pú lpitos evangélicos, pode
causar menos danos porque suas implicaçõ es nã o sã o tã o ó bvias. Entretanto, também pode
ser sintomá tica de aberraçõ es mais amplas.
Ao descrever a natureza da fé, os fundamentalistas e os evangélicos (e de certo modo até os
modernistas) enfatizam o elemento da confiança. É a isso, claro, que a Enciclopédia
Católica , conforme citado acima, se refere. Um pregador poderia traçar um paralelo entre
confiar em Cristo e confiar numa cadeira. A crença de que a cadeira é só lida e confortá vel, o
mero assentimento intelectual a essa proposiçã o, nã o descansará seus ossos cansados.
Você deve, insiste o pregador, realmente se sentar na cadeira. Ou, como outro ministro
recentemente disse, a mera crença de que um banco é seguro e confiá vel nã o protegerá seu
dinheiro ou lhe dará juros. Você deve de fato depositar seu dinheiro no banco. Da mesma
forma, segue o argumento, você pode crer em tudo o que a Bíblia diz sobre Cristo, e isso
pode nã o lhe fazer bem nenhum. Exemplos assim sã o constantemente usados, nã o obstante
a pró pria Bíblia dizer “Crê no Senhor Jesus e será s salvo”.
Há aqui pelo menos uma falta de aná lise, uma confusã o entre algo que é bíblico e algo que
nã o é, uma falha em equacionar os dois lados de uma analogia. O ponto fraco desses
exemplos é que eles comparam a fé com o ato físico de sentar numa cadeira e a distinguem
da crença. A crença em Cristo nã o descansa seus ossos cansados porque a crença é apenas
um assentimento. Ademais, você deve realmente se sentar ou depositar seu dinheiro no
banco. Mas essa analogia nã o se sustenta. É perfeitamente ó bvia a distinçã o entre crer que
uma cadeira é confortá vel e o ato de sentar nela. Mas no reino espiritual nã o existe açã o
física; só existe açã o mental. Portanto, o ato de sentar, se de fato significa alguma coisa,
deve se referir a algo completamente interno e ainda assim diferente da crença. A crença na
cadeira foi usada para representar a crença em Cristo, e de acordo com o exemplo a crença
em Cristo nã o salva. Algo mais é necessá rio. Mas o que é esse algo mais, que corresponde ao
ato físico de sentar? Esta é a questã o que raramente é respondida. Os evangelistas colocam
toda a ênfase no sentar, mas nunca identificam seu aná logo.
Quando nã o se usam exemplos parciais como esse, frases abstratas que depreciam o
assentimento intelectual se revelam igualmente desconcertantes. Considere as palavras do
Dr. Thomas Manton em seu Commentary on the Epistle of James [Comentá rio à Epístola de
Tiago]. Dr. Manton era um anglicano devoto e piedoso que — embora tivesse favorecido a
restauraçã o de Charles II — foi um daqueles ministros removidos do pú lpito pelo Ato de
Uniformidade de 1662. Seu Comentário a Tiago é uma obra extremamente proveitosa e das
mais admirá veis. Porém, ao discutir o presente assunto ele usa frases que sã o difíceis de
entender. Por exemplo, sobre Tiago 2.19, escreve:
 
Esse exemplo mostra a fé contra a qual ele disputava; a saber, uma fé que
consistia de simples especulaçã o e conhecimento […] Esse assentimento,
embora nã o salvífico, é bom até onde é histó rico, como uma preparaçã o e
obra comum […] O mero assentimento a artigos de religiã o nã o permite
inferir disso uma fé verdadeira […] Nã o se trata apenas de assensus axiomati
[…] Na fé nã o existe apenas assentimento, mas também consentimento […] A
verdadeira crença nã o é apenas um ato do entendimento, mas também uma
obra de todo o coraçã o […]
 
Até onde essas frases e a seçã o de onde sã o citadas apontem à necessidade de uma fé que
produza obras, nenhum bom cristã o pode a isso objetar, por pouco que seja. É uma
qualidade particular do Dr. Manton ter enfatizado esse tema da Epístola . Se por “pura
especulaçã o” e “iluminaçã o despida” alguém se refere a uma profissã o que se descobriu
hipó crita porque desprovida de uma conduta virtuosa, insistamos todos que isso está longe
de ser a fé salvadora. Sobre esse ponto, o Dr. Manton aponta a frase de Tiago 2.14 “se
alguém disser que tem fé” e comenta que o homem pode nã o ter fé nenhuma — sua
profissã o é hipó crita, ele nã o acredita necessariamente em qualquer doutrina cristã . Essa
situaçã o é simplesmente o contraste bíblico entre o coraçã o e os lá bios. A hipocrisia
também é um ato intelectual. É uma intençã o de enganar. Mas, certamente, o fato de que a
hipocrisia é intelectual nã o implica que a fé, como ato intelectual, é uma hipocrisia. Se um
ato intelectual é repreensível, nã o resulta que um ato intelectual diferente também o seja.
Ora, se o Dr. Manton estivesse apenas censurando a hipocrisia e insistindo que a fé
verdadeira é acompanhada de atos manifestos de caridade, nã o haveria discussã o. Porém,
embora essa seja a ênfase principal do Dr. Manton, há pequenas insinuaçõ es de algo mais.
Além da ênfase nas boas obras, mero assentimento é contrastado com consentimento . Ele
disse: “Na fé nã o existe apenas assentimento, mas também consentimento”. Consentimento
se refere, sem dú vida, a alguma açã o interna em vez de manifesta. O que é esse
consentimento? É intelectual? Se nã o, é entã o emocional? Ou o Dr. Manton acha que é um
ato da vontade? Essas perguntas o Dr. Manton nã o responde. Ele nã o define ou explica o
termo consentimento , mas o deixa como uma simples palavra. Assim, ele nã o é de nenhuma
ajuda para nó s.
Novamente vem à tona a questã o anterior: se a crença é representada na convicçã o de que
a cadeira é só lida e isso é tomado como mero assentimento intelectual, o que entã o é
representado pelo ato diferente e separado de realmente se sentar? Ora, num sentido
existe outro fator; mas quando ele é identificado, nã o acaba sendo um ato aná logo diferente
e separado de se sentar. Ainda é o mesmo ato interno e mental de assentimento, embora
visto sob um diferente prisma. A dificuldade em toda essa discussã o deriva do pressuposto
de que um ato de “mero” assentimento intelectual é possível. A esse ato o zeloso
evangelista quer adicionar as emoçõ es. Nã o poderia ser que o que precisa ser adicionado
nã o é emoçã o, mas um ato da vontade? Só que essa “adiçã o” nã o é de fato uma adiçã o, e um
“mero” ato da vontade deve ser reconhecido como algo tã o impossível quando um “mero”
assentimento. Sem dú vida, a fé em Cristo envolve o que é normalmente e confusamente
chamado de um ato de vontade . Se a fé requer ou nã o emoçõ es — e se requer, quais sã o
essas emoçõ es —, sã o questõ es sem importâ ncia. As emoçõ es sã o por definiçã o flutuantes;
um homem emocional é alguém instá vel, e poucas pessoas nutrem uma opiniã o elevada
acerca dele; ao passo que, em meio a nossos estados emocionais em constante mudança,
nossas crenças e as voliçõ es nelas fundadas permanecem comparativamente fixas. E,
voltando ao ponto, a fé certamente envolve a vontade.
Porém, quando é feita uma tentativa de usar a ilustraçã o da cadeira, as dificuldades da
psicologia da faculdade voltam com força total e o todo entra em colapso. Será que a
linguagem que inclui frases como “mero assentimento intelectual” nã o revela seu
fundamento antibíblico numa psicologia da faculdade esquizofrênica? A intelecçã o e a
voliçã o certamente nã o ocorrem de forma isolada. Nã o pode haver voliçã o sem intelecçã o.
Até a ilustraçã o de sentar numa cadeira mostra isso. Uma pessoa nã o pode querer sentar
numa cadeira a menos que creia haver uma cadeira na qual se pode sentar. E,
inversamente, nã o pode haver intelecçã o sem voliçã o, pois o assentimento intelectual é ele
pró prio um ato da vontade.
Se os escolá sticos se opõ em a essa ú ltima proposiçã o e tentam dispensar as conclusõ es de
silogismos demonstrativos partindo da aceitaçã o volitiva, só podem fazê-lo ignorando o
assentimento voluntá rio exigido pelas premissas. Os escolá sticos — e possivelmente ainda
mais os racionalistas do século XVII — podem insistir que a ló gica em si nã o é uma escolha
voluntá ria, pois ninguém pode escolher pensar de outra forma; se alguém pensa de outra
forma, isso é um erro involuntá rio. Ora, no capítulo a seguir, sobre a linguagem, será
vigorosamente defendido que a ló gica nã o é estipulativa, mas necessá ria e insubstituível.
Mas argumentar que o necessá rio nã o pode ser um ato da vontade pressupõ e a teoria do
livre-arbítrio, e o livre-arbítrio será descartado no capítulo final deste volume. Seja como
for, o uso da ló gica requer um ato voluntá rio de atençã o, como é o caso de qualquer outra
crença. Uma pessoa pode escolher simplesmente nã o pensar; ou, antes, se pensa, deve
escolher prestar atençã o.
Além do mais, as formas da ló gica, desprovidas de outro conteú do, nã o resolvem as
questõ es da fé. O sujeito imediato é que tem de fazê-lo — como em breve se tornará ainda
mais claro — com proposiçõ es de teologia e de credos. Elas nã o podem ser deduzidas
involuntariamente das formas da ló gica. Portanto, no â mbito atinente à s questõ es da fé e da
razã o, é possível afirmar que nã o pode haver nenhuma voliçã o sem intelecçã o e nenhuma
intelecçã o sem voliçã o. Elas nã o devem ser consideradas duas faculdades separadas e nem
mesmo dois atos separados. A opiniã o comum de que o ato da voliçã o é diferente do ato da
intelecçã o é uma ilusã o que resulta quando alguém restringe a atençã o a atos físicos como
sentar. Mas quando o ato nã o é físico, quando se trata do ato de crer que uma proposiçã o é
verdadeira, os dois supostos atos se interpenetram num ú nico estado mental, a ponto de se
tornarem indistinguíveis. Pode-se, é claro, distinguir a crença numa cadeira ou na
matemá tica da crença em Cristo; isto é, os objetos particulares pensados ou desejados
podem ser distinguidos; mas o ato mental é igualmente volitivo e intelectual. É isso que
está implícito quando se diz que a pessoa é uma unidade. Para alguns propó sitos
superficiais, sobretudo no tocante à iniciaçã o de movimentos físicos, é feita uma distinçã o
popular de ênfase; mas a comum divisã o tríplice da pessoa em emoçã o, intelecto e vontade
é tã o enganosa quanto o id , o ego e o superego .
Há também uma complicaçã o adicional na ideia de crença ou assentimento que motiva a
antipatia à atividade intelectual. Aqueles que dizem que a crença intelectual em Cristo nã o
tem valor nã o só caem nos erros expostos acima, como também em alguns casos nã o
conseguem distinguir assentimento de entendimento . Quando atacam o “mero
assentimento”, querem provavelmente dizer — embora seja temerá rio supor o que
algumas pessoas querem dizer — que a salvaçã o nã o é obtida por se conhecer as
proposiçõ es da Bíblia e entender seu significado. Obviamente isso é verdade. Muitos
homens inteligentes sabem muito bem o que a Bíblia diz; eles a entendem bem melhor que
muitos cristã os. Mas nã o sã o salvos e nã o sã o cristã os. A razã o é que, embora entendam,
nã o creem. Eles sabem o que a Bíblia diz, mas nã o assentem. Porém, como entendimento e
crença sã o atos intelectuais, aqueles que pensam sem cuidado acabam fazendo uma
identificaçã o entre ambos. A distinçã o entre saber o significado de uma proposiçã o e crer
nela parece ser bastante sutil e, portanto, alguns pregadores concluem que a “mera crença”
nã o tem nenhum valor. Essa conclusã o é extraída de forma falaciosa. Só porque um ato
intelectual — a compreensã o do que as palavras significam — é menos do que fé, nã o
sucede que a fé ou crença nã o seja intelectual.
A exegese revelará que a fé, a fé cristã , nã o deve ser distinguida da crença. Considere
Hebreus 11.1 (ARC): “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova
das coisas que se nã o veem”. Esta pode nã o ser uma definiçã o formal de fé, mas deve ser
aceita como uma declaraçã o verdadeira sobre a fé. A American Revised Version [assim como
a ARA] diz que “a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se nã o
veem”. Certeza e convicçã o sã o crenças, crenças fortes, crenças voluntá rias, e tã o
intelectuais quanto se queira. Sã o intelectuais porque seus objetos sã o proposiçõ es
significativas. Seus objetos sã o verdades. Os heró is da fé, que o capítulo passa a descrever,
acreditavam em algumas verdades intelectuais definidas. Nesses casos, reconhecidamente,
sua fé era seguida de açõ es físicas. Abel ofereceu um sacrifício, e Noé construiu a arca. Mas
as açõ es físicas nã o eram a fé propriamente dita. A fé é algo interno, mental, intelectual;
como diz Hebreus 11.3, “Pela fé, entendemos” algo sobre a criaçã o do mundo. Certamente,
esse é um ato intelectual. E ao explicar por que “sem fé é impossível agradar a Deus” o
versículo 6 diz “que aquele que se aproxima de Deus [deve crer] que ele existe”. Como
resposta para aqueles que menosprezam com a ilustraçã o da cadeira a intelecçã o, as
consideraçõ es apresentadas parecem ser suficientes.
 
 
Anti-intelectualismo
 
As muitas confusõ es relativas a fé, assentimento, voliçã o, entendimento e assim por diante
foram usadas como um primeiro exemplo de uma psicologia defeituosa. Há agora um
segundo exemplo. Subjacente à psicologia defeituosa que dá origem a ilustraçõ es
enganosas sobre cadeiras e bancos está um desgosto por credos. Os credos sã o intelectuais
demais, e o tipo de religiã o que estamos discutindo tem fortes inclinaçõ es para o
emocional. À s vezes, mal reconhece um papel para a voliçã o. Mas, de qualquer modo, exibe
um desgosto por credos. Talvez, entretanto, esse desgosto nã o deva ser citado como um
segundo exemplo da psicologia defeituosa. Quem sabe fosse melhor tomar o desgosto por
credos e a pró pria psicologia defeituosa como dois exemplos de um anti-intelectualismo
subjacente.
Do ponto de vista do calvinismo, o anti-intelectualismo — um menosprezo aos credos, uma
perspectiva essencialmente emocional ou a dependência de alguma experiência mística
inefá vel — é um erro muito mais sério na religiã o do que alguma ilustraçã o infeliz na
pregaçã o popular. Pode parecer piedoso minimizar a crença num credo e exaltar a fé numa
pessoa, mas a implicaçã o disso é que acaba fazendo pouca ou nenhuma diferença no que
um homem acredita. A religiã o — recuso-me a dizer cristianismo — se torna assim nã o
doutriná ria. Esse anti-intelectualismo é claramente uma teoria mais ampla que a psicologia
da faculdade; e se a psicologia da faculdade entra em conflito com o cristianismo num ou
dois pontos, a teoria mais ampla entrará em conflito em muito mais pontos — na verdade
em todos os pontos.
Voltando um instante a Hebreus 11.6, vemos que a fé em Deus é impossível sem um credo.
O primeiro artigo desse credo necessá rio é que Deus existe. Quã o ó bvio! Pode um homem
vir a Deus sem acreditar que Deus existe? Trazendo uma ilustraçã o de volta a seus
criadores, pode você levar seu dinheiro a um banco que acredita nã o existir? Nem é preciso
colocar a questã o em termos tã o fortes. O ateu manifesto que nã o acredita que Deus existe
nã o virá , é claro. Mas o que dizer de um homem, nã o um ateu manifesto, que simplesmente
nã o acredita que Deus existe? Pode ele chegar mais facilmente a Deus? Hebreus diz “nã o”;
aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe.
Esse credo também tem um segundo artigo em que um homem deve crer antes de poder vir
a Deus. Se ele meramente crê que Deus existe, nã o virá : Deus neste caso poderia ser uma
divindade indiferente sem nenhuma preocupaçã o com o homem; poderia até ficar
aborrecido pelo homem vir incomodá -lo; ou esse deus poderia ser uma força impessoal.
Assim, antes de vir a Deus, o homem deve crer que Deus se torna galardoador daqueles que
diligentemente o buscam. Isso naturalmente implica que Deus é pessoal. Em que teologia
extensa estamos entrando! E quã o intelectual já nos tornamos, pois estamos agora usando
a forma ló gica da implicaçã o.
O progresso lento desse argumento pode provocar a réplica impaciente de que apesar disso
a crença intelectual nã o tem valor algum. Já nã o creem e tremem os demô nios? A
interpretaçã o incorreta desse versículo de Tiago tem chegado ao extremo de torná -lo
conclusivo contra qualquer eficá cia salvífica da crença em Cristo. Mas as Escrituras dizem:
“Crê no Senhor Jesus e será s salvo” e “Porque com o coraçã o se crê para justiça”. A Epístola
de Tiago, entã o, nã o deve ser interpretada de modo a produzir uma contradiçã o com a
pregaçã o apostó lica em Atos. A crença que faz os demô nios tremerem é a crença de que
Deus é uno. Nada mais é dito. Certamente nã o a crença de que Cristo morreu por eles.
Mostrar, como faz Tiago, que certo tipo de crença intelectual é inadequado, mostrar que
certo tipo é infrutífero ou até mesmo mostrar que certo tipo de crença é condenató rio nã o
significa mostrar que a verdadeira fé nã o é intelectual. O versículo de Tiago nã o destró i o
argumento deste capítulo, a saber, que a fé requer um credo e deve ter conteú do
intelectual. Também nã o se está dizendo que os pontos do credo até aqui enumerados de
Hebreus sã o suficientes para a salvaçã o. O que se está dizendo é que eles sã o
indispensá veis. Ninguém pode se aproximar de Deus sem esse credo. Apesar da
insuficiência do credo, sua necessidade deve ser enfatizada por causa do menosprezo
contemporâ neo dos fundamentalistas e também dos modernistas aos credos e ao intelecto.
Pelos mesmos motivos, a fé em Cristo, nã o menos que a fé em Deus, requer um
assentimento intelectual a proposiçõ es teoló gicas. A disjunçã o entre a fé numa pessoa e a
crença num credo é uma ilusã o. Nenhum de nó s age sobre um princípio assim nos assuntos
humanos. A confiança numa pessoa é um conhecimento de uma pessoa; é uma questã o de
assentir a certas proposiçõ es. Suponha que eu lhe peça para emprestar certa quantia de
dinheiro e confiar em mim na sua devoluçã o. Na agradá vel suposiçã o de que você tem o
dinheiro e nã o precisa dele imediatamente (essa também é uma crença intelectual), faria
você o empréstimo sem acreditar em certas proposiçõ es sobre mim? Suponha ter ouvido
que sou desonesto. Suponha acreditar que vou fugir. Poderia você, com essas crenças, dizer
que o assentimento intelectual é algo trivial e que vai mesmo assim confiar em mim? Nã o
muitas pessoas sã o tã o estú pidas nos negó cios. Essa estupidez é reservada à religiã o
emocional e nã o intelectual. Na religiã o se diz que o “coraçã o” é importante, mas nã o a
cabeça. Porém, se isso fosse verdade, nó s poderíamos confiar em Cristo para a salvaçã o
sem acreditar que ele é digno de confiança, sem acreditar que ele pode salvar, sem
acreditar que seu sangue purifica de todo pecado. Nã o precisaríamos de nenhum credo,
nenhuma declaraçã o de expiaçã o, nenhuma informaçã o histó rica sobre Jesus; só
precisaríamos de um sentimento confortá vel em torno do “coraçã o” nã o bíblico.
Embora em todas as épocas tenha havido místicos e vá rios tipos de anti-intelectuais,
embora a influência de Kant, Schleiermacher e Ritschl tenha popularizado o anti-
intelectualismo na forma do modernismo e embora nem a neo-ortodoxia nem o movimento
ecumênico tenham voltado aos credos histó ricos (ou a quaisquer credos), a corrente
principal do cristianismo sempre foi intelectualista. Houve variaçõ es de ênfase, é claro; mas
os credos ou declaraçõ es de crença nã o foram abandonados. Sempre houve certo
reconhecimento da primazia do intelecto. Mesmo a primazia da vontade, quando no
agostinianismo medieval se opunha à primazia tomista do intelecto, nã o desvalorizava a
moeda intelectual como o faz o irracionalismo contemporâ neo. E se, como sugerido acima,
o intelecto e a vontade nã o podem ser realmente separados, a controvérsia medieval milita
menos ainda contra o intelecto.
Este longo argumento precisou tratar de muitos detalhes, nem todos tomados da mesma
fonte. Reunindo as complexidades: é preciso lembrar que a Bíblia ensina a unidade da
pessoa; que a psicologia da faculdade é antibíblica; que o termo coração , do Antigo
Testamento, é muito mais intelectual que seu uso na pregaçã o atual; que a fé é um ato
interior ou mental, nã o sendo correto compará -lo ao sentar-se numa cadeira; que Hebreus
mostra a necessidade dos credos; e que a crença num credo é tanto intelectual quanto
voluntá ria. Trançados juntos como um tecido axadrezado, alguns fios menores do
argumento podem ser difíceis de reter na mente; mas o padrã o geral deve estar bastante
ó bvio. Porém, antes que uma conclusã o final possa ser traçada, é preciso dar uma
expressã o mais definida e positiva à posiçã o bíblica sobre a fé e a razã o. Isso é tanto mais
necessá rio porque além das muitas complexidades precedentes existe ainda outro fator dos
mais importantes, até agora quase nã o mencionado.
 
 
A fé reformada
 
As expressõ es mais claras da teologia da Reforma e as mais fiéis aos dados bíblicos sã o
encontradas na tradiçã o reformada. Três escritores reformados, portanto, serã o
inicialmente citados.
Calvino, [23]
tendo resumido algumas aná lises filosó ficas das faculdades da alma e
demonstrado que sã o plausíveis mas longe de certas — particularmente porque os
filó sofos ignoram a depravaçã o da natureza humana devido ao pecado — propõ e uma
divisã o dupla, e nã o tripla, da alma: entendimento [intelecto] e vontade. Nã o há outro
poder na alma além desses dois. O entendimento, diz ele, discrimina entre objetos, e a
vontade escolhe o que o entendimento pronuncia ser bom. O entendimento é o guia e
governador da alma; a vontade sempre respeita a autoridade do entendimento e aguarda
seu julgamento. Charles Hodge também, ao falar do homem antes da Queda, diz: “Sua razã o
estava sujeita a Deus; sua vontade estava sujeita à sua razã o”. [24]
E, por fim, J. Gresham
Machen afirma: “um dos principais propó sitos deste livreto será defender a primazia do
intelecto”. [25]

É significativo que esses escritores digam tã o pouco sobre as emoçõ es. A ênfase está no
intelecto. Machen em seu “livreto” fala do aspecto emocional da fé aparentemente uma
ú nica vez (p. 135); mas a palavra é tudo o que aparece, porque o contexto nã o tem nada a
ver com as emoçõ es.
As citaçõ es recém feitas dos três autores poderiam ser usadas para demonstrar que eles
favorecem a primazia tomista do intelecto em vez da primazia agostiniana da vontade. Eles
parecem dizer que o intelecto invariá vel e automaticamente domina a vontade. Calvino de
fato disse que o ofício da vontade é escolher o que o entendimento ditou como bom e que
sua autoridade é sempre respeitada pela vontade. [26]
Ora, há argumentos aristotélicos
plausíveis de que a vontade automaticamente escolhe o que parece ser bom para o
intelecto. Repudia-se assim uma liberdade que a vontade possa ter do intelecto. E Calvino
possivelmente tinha essa teoria em mente quando escreveu essa seçã o. Mas se enfatizamos
mais que Calvino a unidade da pessoa e insistimos que o assentimento intelectual é um ato
da voliçã o, como Agostinho tã o amplamente sugeriu, a distinçã o radical entre a vontade e o
intelecto, por mais necessá rio que seja um ordenar e outro obedecer, desaparece. Isso
também tem a ver com a simplicidade da natureza divina e será novamente tratado no
ú ltimo capítulo.
A primazia do intelecto, entã o, nã o pode ser um poder automaticamente exercido sobre a
voliçã o, se considerada como uma faculdade separada. Isso seria violar a unidade da
pessoa. Em vez da frase primazia do intelecto , a ideia essencial poderia ser mais bem
expressa como primazia da verdade . E a primazia é de autoridade e nã o de poder
psicoló gico. As formas mais antigas de expressã o geram uma antiga perplexidade que
remonta aos diá logos platô nicos. Da suposiçã o de que o intelecto domina a vontade se
segue que ninguém faz mal intencionalmente. Todo mal se deve à ignorâ ncia, e a educaçã o
garante uma conduta correta. As ambiguidades que se escondem nessa linguagem
aparentemente simples sã o enormes. Mas se falarmos da primazia da verdade, poderemos
evitar essas perplexidades, mesmo que nã o as resolvamos. A primazia da verdade
significará que nossas açõ es voluntá rias devem estar de acordo com a verdade.
Obviamente, à s vezes nã o estã o. Se é verdade que adorar a Deus é bom, devemos adorá -lo.
Talvez escolhamos nã o adorar a Deus, mas a verdade é superior em direito à nossa
vontade. Essa forma de colocar a questã o se estende também à escolha voluntá ria da
crença. Podemos escolher acreditar numa verdade ou podemos escolher acreditar numa
mentira. Os dois tipos de escolha realmente ocorrem. Mas a primazia da verdade significa
que devemos acreditar na verdade e nã o devemos acreditar na mentira.
Foi, sem dú vida, a condiçã o psicoló gica complexa de escolher fazer o mal que levou Hodge a
limitar a primazia do intelecto ao estado original de justiça do homem antes da Queda. As
condiçõ es psicoló gicas de escolher o mal, como até filó sofos seculares têm descoberto, sã o
extremamente intrincadas. Como diz a Escritura, enganoso é o coraçã o do homem, mais do
que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá ? Isso levanta um
ponto importante — o fato do pecado — que até aqui nã o foi introduzido no argumento.
Para ser bíblica, qualquer discussã o sobre a mente e os poderes do homem deve levar em
conta os efeitos do pecado. Calvino, Hodge e Machen estavam profundamente cientes disso.
Todos eles sabiam que a entrada do pecado na vida do homem alterou sua disposiçã o como
alguém imediatamente criado. Falando da abordagem intelectual do cristianismo, Machen
diz que “nã o há nada de errado com o método em si […] o problema está na aplicaçã o do
método […] Se você levar em conta todos os fatos, será convencido da veracidade do
cristianismo; mas nã o pode levar em conta todos os fatos se ignorar o fato do pecado”. [27]

Em outro lugar ele explica com um pouco mais de clareza o que quer dizer:
 
Isso nã o significa que nó s, criaturas finitas, possamos descobrir Deus ao
empreender nossa pró pria busca; mas que Deus nos tornou capazes de
receber a informaçã o que ele escolhe dar […] Assim, nossa razã o é
certamente insuficiente para nos falar sobre Deus a menos que ele se revele;
mas é capaz (ou seria capaz, se nã o fosse obscurecida pelo pecado) de
receber a revelaçã o assim que esta é dada.[28]

 
O efeito do pecado, embora quase nã o mencionado antes dos dois ú ltimos pará grafos, nã o
pode ser excluído como um fator nessa discussã o. Há certos indícios de que aqueles que
menosprezam o intelecto fazem isso por causa de uma visã o superficial do pecado. O
homem como uma personalidade unitá ria, o homem como um todo, é depravado. Se há
uma doutrina ensinada claramente na Escritura, é a doutrina calvinista da depravaçã o total.
O pecado afeta o homem em todas as suas partes. Mas aqueles que fazem da religiã o uma
emoçã o e desconsideram o intelecto negam ou pelo menos diluem as terríveis palavras
bíblicas de condenaçã o. Eles desejam manter uma parte da natureza do homem como pura
e imaculada. Fazem, portanto, da religiã o uma questã o de emoçã o, pois as emoçõ es sã o
supostamente livres do pecado, enquanto que o intelecto é corrupto. O anti-intelectualismo
é assim combinado com uma negaçã o da unidade da pessoa.
Isso nã o quer dizer que todos os fundamentalistas neguem o efeito do pecado nas emoçõ es.
E mesmo quando essas visõ es sã o acolhidas, nã o sã o geralmente expressas numa
linguagem tã o incisiva. O resumo do ú ltimo pará grafo pode ser tomado como um exagero.
Também é preciso reconhecer que amiú de essas implicaçõ es nã o sã o mais que
semiconscientes. Isso poderia explicar por que à s vezes uma declaraçã o explícita deles traz
à tona uma negaçã o acalorada. Entretanto, há casos em que as emoçõ es recebem uma
posiçã o privilegiada. De que outra forma o material a seguir deveria ser entendido?
O rev. John R. W. Stott de Londres publicou um livreto intitulado Fundamentalism and
Evangelism [Fundamentalismo e evangelismo]. Num pará grafo em que defende as emoçõ es,
ele claramente iguala o coraçã o à s emoçõ es quando diz “Jesus nos disse para amar o Senhor
nosso Deus de todo o nosso coraçã o assim como de toda a nossa mente” (p. 28); e na frase
seguinte faz uma distinçã o entre a mente, o coraçã o e a vontade. Das pá ginas 20 a 28 ele
repetidamente diz que a mente é finita, caída, endurecida, cega e está entenebrecida. Ora,
isso é perfeitamente verdade, e há outras verdades afirmadas pelo Sr. Stott. Mas é bastante
significativo descobrir, depois de todas essas condenaçõ es ao intelecto, que ele nã o diz uma
só palavra contra as emoçõ es. Até onde vã o as suas palavras, temos a liberdade de concluir
que todas as emoçõ es sã o puras e santas. Parece, portanto, que o anti-intelectualismo, pelo
menos da forma como expresso por alguns fundamentalistas, tem a tendência de dividir a
personalidade e minimizar a seriedade do pecado.
Mas isso nã o é cristianismo. O cristianismo inclui a primazia do intelecto e as
reivindicaçõ es soberanas de verdade. Nã o existe antítese entre a cabeça e o coraçã o,
nenhum desdém pela crença intelectual. O cristianismo nã o pode existir sem a verdade de
certas proposiçõ es histó ricas definidas. Negar a verdade dessas proposiçõ es ou chamá -las
de símbolos de alguma experiência mística nã o é cristianismo. Ao contrá rio, pela fé
compreendemos que Deus criou o universo; pela fé assentimos a proposiçã o de que Deus é
galardoador dos que diligentemente o buscam; pela fé sabemos que Jesus ressuscitou dos
mortos.
O julgamento da Enciclopédia Católica , como citado quase no início desta seçã o, é ambíguo.
Se ele quer dizer que alguns “escritores nã o cató licos repudiam qualquer ideia da fé como
um assentimento intelectual”, afirma a verdade desagradá vel. Mas se insinua que todos os
“escritores nã o cató licos repudiam qualquer ideia da fé como um assentimento intelectual”,
está equivocado. Pois os teó logos reformados sempre irã o afirmar que se as proposiçõ es
dos credos sã o falsas e se a verdade nã o tem direitos sobre o nosso assentimento o
cristianismo nã o faz valer sua divulgaçã o hipó crita.
 
 
Uma definição de razão
 
Foram agora dadas bases bíblicas suficientes para justificar o cará ter intelectual da fé.
Deste lado da questã o, portanto, nã o se espera mais um antagonismo com a razã o. O que
resta agora é uma definiçã o de razão que remova o antagonismo do outro lado da antítese.
Fez-se um esclarecimento da natureza da fé em alusã o à s distorçõ es do fundamentalismo; o
esclarecimento da razã o prevê as acusaçõ es seculares de que o cristianismo é absurdo ou
irracional. Por exemplo, An Introduction to Modern Philosophy [Introduçã o à filosofia
moderna] de Alburey Castell, ao introduzir os argumentos tomistas, distingue
corretamente a teologia natural da teologia revelada. Mas daí em diante o autor
frequentemente descreve a teologia natural como uma teologia racional, e o estudante fica
com a impressã o de que a teologia revelada é irracional. À s vezes, também, a acusaçã o de
que o cristianismo é irracional vem daqueles que professam ser religiosos. Eles até podem
apelar à revelaçã o, mas, sem repetir a discussã o que fizemos sobre a neo-ortodoxia, em tais
casos a religiã o e a revelaçã o sã o baseadas na experiência comum, de modo que a revelaçã o
sobrenatural continua parecendo irracional.
A filosofia religiosa do falecido Edgar Sheffield Brightman pode servir como um exemplo
disso. A razã o, para Brightman,
 
é o corpo da maior parte dos princípios gerais usados pela mente na
organizaçã o da experiência […] A revelaçã o nã o é o corpo da maior parte dos
princípios gerais usados pela mente. A revelaçã o deve ser testada pela
razoabilidade, nã o a razoabilidade pela revelaçã o […] ela nã o é um critério de
verdade, mas pressupõ e um critério pelo qual é julgada. [29]

 
A razã o — concreta e inclusivamente empírica, nã o meramente abstrata e
formal — é a fonte suprema do discernimento religioso. [30]

 
Em oposiçã o a isso, o cristianismo deve se recusar a definir razão como um corpo de
princípios gerais obtidos empiricamente. A fé de Brightman num corpo empírico concreto
de princípios gerais é uma fé inapropriada. A histó ria do racionalismo e seu resultado em
irracionalismo mostra que nenhum corpo de princípios assim pode ser obtido. Na verdade,
é significativo que o pró prio Brightman foi incapaz de declarar esses princípios. Num lugar
[31]
ele parece tentar isso, oferecendo uma definiçã o de razão em nove normas; mas as
normas que ele especifica, em vez de serem empíricas, assemelham-se de forma bastante
clara à chamada ló gica formal que em outro lugar ele deixa de lado. [32]
Brightman,
portanto, foi incapaz de aplicar sua teoria.
Uma vez que todas as tentativas de se obter conhecimento à parte da revelaçã o têm falhado
, o cristã o só precisa em seguida contradizer a alegaçã o infundada de Brightman de que a
experiência nã o pode ser julgada por princípios derivados da revelaçã o. Os psicó logos de
hoje enfatizam a culpa e o medo; os existencialistas confrontam o homem com a morte. Nã o
poderiam essas experiências ser entendidas à luz da informaçã o que Deus revelou? Essa
revelaçã o nã o precisa ser testada — na verdade nã o pode ser testada — pela razoabilidade
no sentido da palavra dado por Brightman, pois a razoabilidade de Brightman nã o existe.
Por fim, visto que a acusaçã o de irracionalidade falha porque as filosofias que fazem a
acusaçã o colapsam em ceticismo, o cristã o só precisa agora identificar a razã o com aquilo
que Brightman chamou de abstrato e formal. No tocante a isso, os termos de Brightman sã o
um pouco infelizes, e o capítulo a seguir mostrará que a teoria moderna do formalismo
ló gico nã o deve ser adotada. Todavia, razão pode muito bem ser definido como lógica . Ele
nã o deve ser identificado com a experiência. Quando um teó logo cristã o deduz
consequências de premissas bíblicas, está raciocinando — está usando sua razã o. Exigir
dele que, para evitar a acusaçã o de irracionalidade, teste a Escritura pela sensaçã o é em si
mesmo um preconceito irracional.
Com essa concepçã o de razã o, nã o restam mais conflitos entre a razã o e a fé. A futilidade do
racionalismo e a insanidade do irracionalismo sã o igualmente evitadas. A verdade se torna
alcançá vel. E isso, cremos, deve constituir uma forte recomendaçã o da revelaçã o cristã .

INSPIRAÇÃO E LINGUAGEM
 
 
A conclusã o do capítulo anterior foi a tese de que a revelaçã o é necessá ria como base de
uma cosmovisã o racional. No estudo da religiã o e em geral na filosofia moderna, tentativas
de estabelecer a verdade sem uma palavra da parte de Deus resultaram num irracionalismo
frustrado . [33]
Portanto, o pensamento construtivo deve pressupor informaçõ es que
tenham sido dadas divinamente . Isso significa pressupor que a Bíblia é a Palavra de Deus;
e, como Deus nã o pode mentir, sua Palavra deve ser a verdade. Obviamente isso levanta o
problema da inspiraçã o verbal. A primeira parte deste capítulo dará alguns dos
antecedentes mais antigos desse assunto. Mais recentemente, a inspiraçã o e a revelaçã o
têm sido discutidas do ponto de vista das possibilidades da linguagem. É a linguagem um
instrumento adequado para a revelaçã o? Essa questã o requer uma discussã o dupla.
Primeiro, há o estudo da linguagem, sua natureza, sua origem, suas possibilidades e sua
relaçã o com a inspiraçã o. Esse é um tó pico que tem sua pró pria importâ ncia. Entã o, em
segundo, há a questã o do método. É possível defender com êxito que a revelaçã o divina,
como pressuposto de todo conhecimento, oferece uma soluçã o para os problemas da
linguagem?
 
 
As reivindicações bíblicas
 
A inspiraçã o das Escrituras, com toda a relevâ ncia que tem para a verdade e autoridade da
Palavra de Deus, é de importâ ncia tã o ó bvia para o cristianismo que nenhuma justificativa
detalhada se faz necessá ria para debater o assunto. É até perdoá vel, de fato, começar com
algumas coisas bastante elementares (nã o só perdoá vel, como de fato indispensá vel).
Nenhuma discussã o sobre a inspiraçã o pode fazer uma contribuiçã o de grande valor se nã o
levar em conta os dados bíblicos elementares. Esses dados devem ser mantidos em mente.
Porém, lamentavelmente, alguns desses detalhes podem ter-se dissipado de nossa memó ria
envelhecida. Mais lamentavelmente, de um modo geral, a geraçã o mais nova nunca
aprendeu os dados das Escrituras. Nos dois ou três ú ltimos séculos o cristianismo sofreu
um lento mas constante declínio, e no presente os padrõ es teoló gicos da maioria dos
seminá rios sã o tã o baixos que a riqueza de detalhes do presbiterianismo e do puritanismo
nunca é apresentada aos alunos. Portanto, antes de mais nada, é preciso fazer algumas
declaraçõ es simples sobre a doutrina da inspiraçã o da forma como era comumente
explicada cem anos atrá s.
Em 1840, Louis Gaussen publicou seu famoso livreto Theopneustia . Gaussen era um
teó logo suíço, que a exemplo de J. Gresham Machen neste século, nã o foi destituído do
ministério e expulso da igreja por causa da incredulidade, mas por causa de sua adesã o à
verdade das Escrituras. E o livro Theopneustia é uma defesa da inspiraçã o. Gaussen reú ne
nele a quantidade impressionante de material que as Escrituras têm a dizer sobre si
mesmas. E embora isso tenha sido há mais de um século, ninguém deveria abordar a
questã o da inspiraçã o sem um bom conhecimento do trabalho de Gaussen, ou pelo menos
sem um bom conhecimento do que a Bíblia tem a dizer sobre si mesma.
Gaussen abre sua pesquisa dos dados bíblicos citando o bem conhecido versículo “Toda a
Escritura é inspirada por Deus”. Aqui, sua observaçã o pertinente é que “Essa declaraçã o
nã o admite exceçõ es; […] é tudo o que está escrito; significando, desse modo, os
pensamentos apó s terem recebido o selo da linguagem”. Ele passa entã o a sustentar essa
afirmaçã o com um tremendo nú mero de referências.
Por exemplo, Gaussen lista dez casos de frases como “[…] a boca do SENHOR o disse” e "o
SENHOR disse”. E sã o só ligeiramente diferentes outras referências que dizem “[…] e te darei
que fales livremente no meio deles” e “O Espírito do SENHOR fala por meu intermédio, e a
sua palavra está na minha língua”. Ou, mais uma vez, “veio a palavra de Deus a Semaías”,
“veio a palavra do SENHOR a Natã ”, “veio a palavra de Deus a Joã o”, “Palavra que veio a
Jeremias, da parte do SENHOR ”. Além desses, há casos em que se diz “o SENHOR pô s a palavra
na boca de Balaã o”, “eu serei com a tua boca”, “ SENHOR […] que disseste pela boca de Davi,
teu servo” e “convinha que se cumprisse a Escritura que o Espírito Santo proferiu
anteriormente por boca de Davi, acerca de Judas”.
É preciso também salientar que a mensagem dada pelo Espírito nã o é meramente a ideia
geral da passagem, mas as pró prias palavras.
 
Deuteronô mio 18.18-19 Suscitar-lhes-ei um profeta […] em cuja boca porei as
minhas palavras , e […] De todo aquele que nã o ouvir as minhas palavras , que
ele falar em meu nome, disso lhe pedirei contas.
 
Jeremias 1.9 Depois, estendeu o SENHOR a mã o, tocou-me na boca e o SENHOR
me disse: Eis que ponho na tua boca as minhas palavras .
 
Que as pró prias palavras sã o inspiradas é algo que também se pode ver pelo modo como
Jesus Cristo usou a Bíblia. Considere, por exemplo, a resposta do Senhor aos saduceus que
negavam a ressurreiçã o do corpo. Como ele os refuta? Por uma ú nica palavra de uma
passagem histó rica; por um ú nico verbo no tempo presente, em vez do mesmo verbo no
tempo passado. “Vocês estã o enganados”, disse ele, “porque nã o conhecem as Escrituras
[…] vocês nã o leram o que Deus disse: ‘Eu sou o Deus de Abraã o’!”. No Monte Sinai,
quatrocentos anos apó s a morte de Abraã o, Deus nã o disse a Moisés “Eu era ” mas “Eu sou o
Deus de Abraã o’”. Há , portanto, uma ressurreiçã o, porque Deus nã o é o Deus de alguns
punhados de areia, o Deus dos mortos; é o Deus dos vivos. Aqueles homens, portanto, ainda
estã o vivos, e Cristo baseou o argumento numa ú nica palavra.
Alguns versículos depois o Senhor pergunta aos fariseus sobre a natureza divina do
Messias esperado. Aqui também, para provar seu ponto, insiste no emprego de uma ú nica
palavra em Salmos 110. Se o Messias deve ser o filho de Davi, disse Cristo, “Como, pois,
Davi, pelo Espírito, chama-lhe Senhor […]?”. Aqui Cristo enfatiza o fato de Davi ter usado
essa palavra pela orientaçã o do Espírito Santo.
Há espaço para só mais uma referência para mostrar que Cristo afirmou a autoridade
divina das palavras dos profetas e de suas pró prias palavras. É a declaraçã o de nosso
pró prio Senhor: “Porque, se, de fato, crêsseis em Moisés, também creríeis em mim;
porquanto ele escreveu a meu respeito. Se, porém, nã o credes nos seus escritos, como
crereis nas minhas palavras ? (Jo 5.46-47).
O efeito das citaçõ es e argumentos de Gaussen é cumulativo. Pá gina apó s pá gina. Mesmo
para quem supõ e conhecer a Bíblia razoavelmente bem, é uma surpresa ver com que
frequência e com que ênfase a Bíblia fala acerca de si. É preciso ler todas as referências de
Gaussen e considerar atentamente a importâ ncia de cada uma. Só assim será possível ver
quã o difusa é a doutrina da inspiraçã o.
A ú ltima referência também nos leva um passo além nesse material elementar. Na
ignorâ ncia alguém pode objetar que, embora Deus tenha dado suas palavras aos profetas e
os levado a falar, o discurso cessou nesses milhares de anos e só temos agora relatos dos
discursos. É feita assim a alegaçã o de que a Bíblia nã o é tanto uma revelaçã o quanto o
registro de uma revelaçã o. Essa questã o sobre a relaçã o da palavra falada com a palavra
escrita foi respondida por Cristo de forma implícita nas referências anteriores, mas de
forma explícita nesta ú ltima referência. Note cuidadosamente: nosso Senhor diz que Moisés
“ escreveu a meu respeito [e] Se, porém, nã o credes nos seus escritos , como crereis nas
minhas palavras?”.
Quando as palavras que Deus deu aos seus profetas sã o escritas, elas se tornam Os Escritos ,
isto é, as Escrituras. É nas Escrituras, nos Escritos, que Jesus diz que devemos buscar a vida
eterna. Na sua tentaçã o, Jesus repele Sataná s dizendo “está escrito”. Também em Joã o 6.45,
8.17, 12.14, 15.25 a frase “está escrito” resolve os pontos em questã o.
Permita uma ú ltima referência a outra passagem excepcionalmente importante. Em Joã o
10.34-35 Jesus está defendendo sua reivindicaçã o de divindade. Ele cita Salmos 82. Será
que cita o salmo porque Salmos 82 é mais inspirado e tem mais autoridade que qualquer
outra passagem do Antigo Testamento? De maneira alguma. Ele diz “Nã o está escrito na
vossa lei [?] […] e a Escritura nã o pode falhar”. Cristo apelou aqui ao salmo 82 porque ele
faz parte da Escritura; e uma vez que toda a Escritura é dada pela inspiraçã o de Deus, essa
passagem também é inspirada, porque a Escritura nã o pode falhar.
Que se repita: o efeito dessa evidência é cumulativo. É preciso ter em mente as centenas de
casos em que a Bíblia alega inspiraçã o verbal e plená ria. Essa doutrina da inspiraçã o nã o é
algo deduzido de forma tênue de dois ou três versículos isolados. Ao contrá rio, é a
declaraçã o explícita, reiterada, constante e enfá tica da Bíblia em todas as suas partes.
Ora, para concluir esse levantamento de detalhes elementares, uma pergunta incisiva deve
ser feita. Se os profetas que falaram, se os autores que escreveram e se nosso pró prio
Senhor estã o enganados sobre a inspiraçã o verbal — se eles estã o enganados nessas
centenas de vezes — que garantia alguém pode ter no tocante à s demais coisas que
disseram e escreveram? Haveria alguma razã o para se supor que homens que de maneira
tã o uniforme estiveram enganados sobre a fonte da sua mensagem poderiam ter tido uma
percepçã o superior e um conhecimento preciso da relaçã o do homem com Deus? De
maneira ainda mais incisiva: poderia alguém professar uma ligaçã o pessoal com Jesus
Cristo e consistentemente contradizer sua afirmaçã o de que as Escrituras nã o podem
falhar?
 
 
A objeção do ditado
 
Uma vez que esse relato elementar e abreviado da inspiraçã o verbal se baseou num volume
de um século atrá s, o passo seguinte, antes de trazer assuntos completamente atualizados,
será o exame de uma objeçã o centená ria.
A ideia de que Deus deu suas palavras aos profetas parece a muitos liberais uma teoria
mecâ nica e artificial de revelaçã o. Deus, dizem eles, nã o deve ser retratado como um chefe
que dita palavras à sua estenó grafa. E, além do mais, os escritos dos profetas mostram
claramente a liberdade e espontaneidade da individualidade pessoal. O estilo de Jeremias
nã o é o de Isaías, nem Joã o escreve como Paulo. As palavras sã o obviamente as palavras de
Joã o e de Jeremias, nã o de um chefe que dita a vá rias estenó grafas. As estenó grafas de um
chefe irã o produzir cartas de um mesmo estilo literá rio; elas nã o corrigem a gramá tica dele.
Ora, portanto, se Deus tivesse ditado as palavras da Bíblia, as diferenças pessoais nã o
poderiam ser explicadas; do que resulta que a doutrina da inspiraçã o verbal é falsa.
Em resposta a essa objeçã o, é ú til perceber que os liberais deturpam de maneira bastante
uniforme as doutrinas que eles atacam. Isso é verdade nã o apenas no tocante à doutrina da
inspiraçã o verbal e plená ria da Bíblia, mas também no tocante a vá rias outras doutrinas.
Psicologicamente, nã o é de surpreender que ocorram mal-entendidos; é difícil declarar com
precisã o uma posiçã o da qual se discorda vigorosamente. Porém, quando o mal-entendido
é exposto publicamente e mesmo assim nenhuma correçã o é feita, começa a parecer que o
mal-entendido se tornou numa deturpaçã o. Por conseguinte, o primeiro passo
indispensá vel para elaborar uma resposta é mostrar com clareza o que faz e o que nã o faz
parte da doutrina da inspiraçã o verbal. Isso já foi feito com suficiente frequência, mas, para
deixar os oponentes com ainda menos desculpas, será repetido aqui mais uma vez.
Ora, tenhamos com clareza certos fatos em mente. Em primeiro lugar, as diferenças de
estilo — e elas sã o tã o ó bvias que até mesmo uma traduçã o nã o pode obscurecê-las —
mostram decisivamente que a Bíblia nã o foi ditada como um chefe que dita à sua
estenó grafa. Houve de fato vá rios teó logos que usaram o termo ditado , e um nú mero muito
pequeno deles parece ter considerado o processo como sendo parecido com o
procedimento moderno nos escritó rios. Mas nã o foi o caso de outros. Calvino, por exemplo,
fala vá rias vezes de ditado, mas seus comentá rios mostram que ele estava claramente
ciente das diferenças de estilo literá rio. Obviamente, ele queria dizer ditado no sentido
mais geral de uma ordem e imposiçã o de autoridade. O ponto em questã o é sobretudo que
a grande maioria dos teó logos que sustentam e têm sustentado a inspiraçã o verbal jamais
aceitou a teoria do ditado mecâ nico tal como descrita pelos modernistas. B. B. Warfield, em
The Inspiration and Authority of the Bible , escreve: “Deveria ser desnecessá rio ter de
protestar novamente contra o há bito de se representar os defensores da inspiraçã o verbal
como se ensinassem que o modo de inspiraçã o era o ditado”. E depois ele escreve:
[34]

 
De forma alguma deve ser imaginado que se quer proclamar uma teoria
mecâ nica de inspiraçã o. As igrejas reformadas nunca defenderam tal teoria,
embora contestadores desonestos, descuidados, ignorantes ou demasiado
afoitos de sua doutrina tenham com frequência levantado a acusaçã o. Mesmo
aqueles teó logos especiais sobre quem tal acusaçã o tem sido amiú de lançada
(por ex., Gaussen) sã o explícitos ao ensinar que o elemento humano nunca
está ausente. [35]

 
Em vá rias ocasiõ es e em vá rios tó picos, minha experiência tem sido que os teó logos liberais
entendem mal, deturpam e até mesmo citam erroneamente os autores ortodoxos. Ora, um
erro ocasional deve ser relevado; até mesmo uma série de equívocos nã o relacionados nã o
podem ser julgados com demasiada severidade; mas quando a doutrina da inspiraçã o
verbal é deturpada com tanta constâ ncia, fica-se tentado a supor que os incrédulos
acharam mais fá cil ridicularizar o ditado do que entender e discutir a inspiraçã o verbal da
forma como ela é realmente ensinada pelos teó logos reformados.
Como entã o devem as diferenças de estilo ser justificadas, e o que a inspiraçã o verbal
significa? A resposta a essas questõ es, envolvendo a relaçã o entre Deus e os profetas, nos
leva rapidamente para longe da imagem de um chefe e uma estenó grafa.
Quando Deus quis fazer uma revelaçã o na época do êxodo ou do cativeiro, nã o olhou de
sú bito ao redor como se pego desprevenido, perguntando-se que homem poderia usar para
o propó sito. Nã o podemos supor que tenha publicado um anú ncio atrá s de ajuda e que,
quando Moisés e Jeremias se candidataram, Deus os constrangeu a falar as palavras dele. E,
todavia, essa visã o pejorativa subjaz a objeçã o à inspiraçã o verbal. A relaçã o entre Deus e
os profetas é totalmente diferente da que existe entre um chefe e uma estenó grafa.
Se considerarmos a onipotência e sabedoria de Deus, uma representaçã o muito diferente
emerge. O chefe deve usar o que tem à mã o; ele depende de que a escola secundá ria ou
faculdade de negó cios tenha ensinado taquigrafia e digitaçã o à estenó grafa. Mas Deus nã o
depende de nenhuma agência externa. Deus é o Criador. Ele fez Moisés. E quando queria
que Moisés falasse por ele, disse: “Quem fez a boca do homem? […] Nã o sou eu, o SENHOR ?”.
A inspiraçã o verbal, portanto, como todas as demais doutrinas específicas, deve ser
entendida em conexã o com o sistema completo de doutrina cristã ; nã o pode ser
desvinculada dela e nã o pode ser esboçada a fortiori em uma visã o alheia a Deus.
Especificamente, a inspiraçã o verbal pode ser mais claramente entendida — e só pode ser
corretamente entendida — na sua relaçã o com as doutrinas presbiterianas, reformadas e
calvinistas do decreto, providência e predestinaçã o divinos. Quando os liberais negam sub-
repticiamente a predestinaçã o retratando Deus como alguém que dita para estenó grafos,
deturpam a inspiraçã o verbal a tal ponto que suas objeçõ es nã o se aplicam ao ponto de
vista calvinista. O problema nã o é, como pensam os liberais, que o chefe controla cem por
cento a estenó grafa; ao contrá rio, a analogia erra o alvo porque de fato o chefe mal
consegue controlar a estenó grafa.
Ponha isso nestes termos: desde toda a eternidade Deus decretou tirar os judeus da
escravidã o pelas mã os de Moisés. Para esse fim, controlou a histó ria a tal ponto que Moisés
nasceu numa determinada data, foi colocado na á gua para ser salvo de uma morte
prematura, foi encontrado e adotado pela filha do Faraó , recebeu a melhor educaçã o
possível, foi conduzido ao deserto para aprender a paciência e em todos os eventos e
circunstâ ncias a tal ponto preparado que, chegada a hora, a mentalidade e o estilo literá rio
de Moisés eram os instrumentos precisamente adequados para falar as palavras de Deus.
Com o ditado ocorre de forma totalmente diferente. Um chefe tem pouco controle sobre
uma estenó grafa, à exceçã o das palavras que ela digita para ele. Ele nã o controlou a
educaçã o recebida por ela. Nã o pode confiar no estilo literá rio dela. Ela pode estar
totalmente desinteressada nos negó cios dele. Eles podem ter muita pouca coisa em comum.
Mas entre Moisés e Deus havia uma uniã o interior, uma identidade de propó sito, uma
cooperaçã o de vontades, de forma que as palavras escritas por Moisés eram ao mesmo
tempo as palavras de Deus e as palavras de Moisés.
Assim, quando reconhecemos que Deus faz sua vontade no exército do céu e entre os
habitantes da terra, quando entendemos que Deus faz todas as coisas conforme o conselho
da sua vontade, quando vemos a presença e providência penetrantes de Deus na histó ria e
na vida de seus servos, podemos perceber que o ditado do escritó rio de negó cios nã o faz
justiça à s Escrituras. O Espírito Santo habitou nesses homens e lhes ensinou o que escrever.
Deus determinou qual deveria ser a personalidade e o estilo de cada autor, e Deus o
determinou para o propó sito de expressar a mensagem, as palavras dele. As palavras da
Escritura, portanto, sã o as pró prias palavras de Deus.
 
 
TEORIAS CONTEMPORÂ NEAS
 
Essa breve e rá pida avaliaçã o de discussõ es anteriores pretende ser apenas um pano de
fundo histó rico para um exame da situaçã o contemporâ nea. As coisas mudaram, e
mudaram consideravelmente. Com o declínio do liberalismo ritschliano e a ascensã o do
existencialismo, da neo-ortodoxia e do positivismo ló gico, os oponentes da inspiraçã o
verbal mudaram seu ataque. A questã o nã o é mais se as palavras da Bíblia sã o as palavras
de Deus ou meramente as palavras de homens falíveis. Nos dias de hoje uma objeçã o mais
generalizada é feita com base numa teoria geral de linguagem. Os filó sofos se interessaram
em semâ ntica; e algumas de suas visõ es modificariam a tal ponto o significado das palavras
que, mesmo com toda a inspiraçã o verbal imaginá vel, a Bíblia seria esvaziada do seu
significado cristã o. A filosofia da linguagem, conforme desenvolvida por estudiosos que nã o
estã o particularmente interessados em nenhuma religiã o, nã o é especificamente voltada
contra a inspiraçã o da Bíblia; mas, visto que uma teoria geral da linguagem inclui a
linguagem religiosa e afeta toda a filosofia da religiã o, ela varre a inspiraçã o com todo o
resto. O resultado mais saliente dessa influência, embora nã o o mais profundo, é a ideia de
que toda linguagem religiosa é metafó rica ou simbó lica. Nenhuma declaraçã o religiosa deve
ser entendida literalmente. Nas pá ginas a seguir serã o dados alguns exemplos desse tema,
acompanhados de uma mescla de críticas; e a discussã o se voltará entã o para as
implicaçõ es mais profundas da teoria geral da linguagem.
 
 
Linguagem religiosa
 
Como primeiro exemplo, e particularmente para mostrar a popularidade atual dessas
ideias, podem ser selecionados dois artigos da mesma ediçã o de The Christian Scholar ,
publicada pela Comissã o de Ensino Superior Cristã o do Conselho Nacional de Igrejas. Na
ediçã o de setembro de 1955, Geddes MacGregor traz um artigo intitulado “A Natureza da
Declaraçã o Religiosa”, e John A. Hutchinson escreve sobre “O Uso Religioso da Linguagem”.
Seu ponto de vista em comum, e nã o quaisquer diferenças menores que possam manifestar
entre si, é o que interessa ao presente argumento.
MacGregor abre com a afirmaçã o de Benedetto Croce de que “toda linguagem é metafó rica,
ou nenhuma o é” e entã o segue com Wilbur Marshall Urban, na sua rejeiçã o do literalismo e
sua conclusã o de um “cará ter inevitavelmente metafó rico e simbó lico de toda linguagem”.
MacGregor nã o quer ser tido como alguém que abraça a posiçã o de Croce e Urban na
totalidade, mas parece aceitar a tese de que toda linguagem religiosa é metafó rica ou
simbó lica. Em tal caso, as declaraçõ es religiosas devem ser avaliadas de uma maneira muito
diferente da aná lise usual das proposiçõ es ló gicas.
Em suporte à sua posiçã o, MacGregor dá alguns exemplos, e nosso dever será determinar
se esses casos aceitos requerem ou nã o as conclusõ es que ele tira. Primeiro ele se refere a
um coro de faculdade cujos membros judeus, unitaristas e quakers , formados em ciências
políticas ou antropologia, cantavam um hino medieval. Poucos ou nenhum deles entendiam
os conceitos do hino, e suas palavras no entanto transmitiam os conceitos para as pessoas
na plateia que tinham o entendimento adequado. Da mesma forma, uma criança nã o
entende o que é casamento quando lê a ú ltima frase de um conto de fadas.
Esses exemplos, especialmente o segundo, supostamente militam contra um entendimento
literal da linguagem pois nem mesmo todos os adultos têm o mesmo entendimento do que
é casamento. Essa palavra tem “níveis” de significado; algumas palavras têm muitos níveis;
outras, poucos. Mas se todas as palavras têm vá rios níveis, entã o nã o pode haver um
significado literal.
No entanto nã o parece que os exemplos de MacGregor provam o que ele quer. Obviamente,
uma criança sabe pouco sobre casamento e nenhum adulto sabe tudo. Também é verdade
que muitos adultos só sabem alguns dos teoremas que podem ser verdadeiramente
afirmados de um triâ ngulo. Mas a ignorâ ncia desses teoremas nã o requer uma ignorâ ncia
da definiçã o de triâ ngulo nem ignorâ ncia de alguns dos teoremas mais simples. O mesmo
vale para o casamento. Esse exemplo, portanto, nã o prova que nã o existe absolutamente
nenhum significado literal atribuído a essas palavras.
Outra ilustraçã o dada por MacGregor é a de um pregador muito comum que prega um
sermã o muito comum. Mas esse sermã o sem graça ou uma frase dele se torna entã o uma
mensagem vital para alguém na congregaçã o, e sua vida é transformada. Novamente, as
palavras transmitiram mais significado do que o orador pretendia e, portanto, argumenta
MacGregor, o significado nã o poderia ser literal. Mas por que nã o? Nã o poderia o
significado literal de uma ou duas frases fazer recordar temas que estavam adormecidos na
mente do ouvinte? Nã o poderia o significado literal apontar inclusive para um novo modo
de vida? Como um exemplo desses pode mostrar que toda linguagem religiosa é metafó rica
ou simbó lica?
Por fim, o autor afirma que a proposiçã o teoló gica “Deus é onisciente” nunca é tã o
satisfató ria quanto a declaraçã o litú rgica “Ó meu Deus, tu sabes todas as coisas”. Para
MacGregor, a declaraçã o religiosa “está sempre na segunda pessoa do singular”.
Ora, ao que me parece, esta ú ltima ideia é obviamente falsa . Há bibliotecas cheias de livros
religiosos escritos na terceira pessoa. Teologias sistemá ticas, histó rias da igreja e livros
sobre métodos pastorais sã o todos escritos na terceira pessoa e sã o livros religiosos. A
propó sito, a Bíblia está em grande parte na terceira pessoa: “carregando ele mesmo em seu
corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados”. É claro, a frase em terceira pessoa e a frase em
segunda pessoa que MacGregor escolheu nã o sã o exatamente equivalentes. Mas a diferença
nã o tem origem na pessoa do verbo. Se o autor tivesse escrito a primeira frase como “Meu
Deus é onisciente”, teria tido uma frase em terceira pessoa que é o equivalente exato da
frase em segunda pessoa. Ela pode nã o ser um modo “satisfató rio” de tratamento porque
nã o é de fato um modo de tratamento; mas isso nã o quer dizer que nã o seja satisfató ria
como declaraçã o de um credo. Qualquer que seja a diferença entre verbos de segunda e
terceira pessoa, nã o está realmente claro por que verbos de segunda pessoa deveriam ser
metafó ricos e nã o literais. Se, portanto, alguém quer defender que toda linguagem religiosa
é metafó rica, é melhor apelar a uma teoria geral de linguagem do que a exemplos como
esses.
O artigo de Hutchinson, no mesmo perió dico, desenvolve a teoria de maneira um pouco
mais clara e profunda. A tese é que a “religiã o em toda a sua gama e variedade consiste de
símbolos”. Isso significaria que a morte de Cristo na cruz, a atividade de Paulo em escrever
a Epístola aos Romanos e minha leitura de Romanos nã o passam de símbolos. Onde
MacGregor hesitou, Hutchinson fala expressamente que “toda linguagem é metafó rica […]
Todo substantivo comum é um tipo de metá fora morta. Mas as palavras ou termos
religiosos sã o metafó ricos num sentido distinto e adicional”. Para defender sua visã o,
Hutchinson esboça uma epistemologia religiosa que está baseada em imagens — uma
espécie de idolatria mental — e que está incorporada à arte e mitologia. Deus sempre (note
o sempre ) fala ao homem através de imagens, e a “experiência religiosa é o processo de ser
atingido por essas imagens”.
Esse tipo de epistemologia será abordado mais tarde; mas aqui eu gostaria apenas de dizer
que, embora Hutchinson possa estar descrevendo sua pró pria experiência religiosa, ele nã o
está descrevendo a minha. Sua generalizaçã o indiscriminada simplesmente nã o é fiel aos
fatos. [36]

Uma objeçã o, entretanto, Hutchinson se sente obrigado a responder. Se o mito é algo


inevitá vel na religiã o, alguma explicaçã o é necessá ria quanto à escolha dos mitos. Uma
pessoa escolhe a mitologia grega; outra a mitologia cristã . Sem dú vida, essas escolhas sã o
frequentemente feitas de maneira irrefletida, mas Hutchinson acha que é possível fazer
uma escolha racional entre mitos. A base dessa escolha é a adequaçã o do mito para explicar
os fatos da existência à medida que os confrontamos na vida e açã o diá rias.
Parece, contudo, que nem essa nem qualquer outra tentativa de justificar uma escolha
entre mitos pode ser bem-sucedida. Se os mitos fossem verdades literais, um poderia ser
mais adequado do que outro; o mito grego do método de Zeus de produzir chuva poderia
ser considerado mais adequado ou menos adequado do que o mito sobre as janelas do céu,
atribuído aos hebreus. Mas se essas histó rias sã o tanto mitoló gicas quanto simbó licas,
simplesmente simbó licas do fato literal de que chove, é difícil julgar o que a adequaçã o
requer. Uma declaraçã o literal de As Nuvens de Aristó fanes poderia explicar, mas um mito
nã o explica nada.
Além do mais, se toda linguagem é simbó lica, o mito nã o poderia ser símbolo de nenhuma
verdade literal; teria de ser um mito sobre um mito. Por exemplo, do que a cruz poderia ser
um símbolo? A cruz, tal como aparece na tinta de impressoras ou em esculturas, é sem
dú vida o símbolo da crucificaçã o de Cristo; mas pode a pró pria crucificaçã o ser um símbolo
ou metá fora de alguma coisa? O significado prima facie das declaraçõ es sobre a crucificaçã o
é literal. E se alguém diz que a linguagem religiosa nã o pode ser literal, nã o parece haver
nenhum método racional de se determinar do que a crucificaçã o é simbó lica. É ela
simbó lica, de maneira pessimista, de um universo inerentemente injusto, ou é simbó lica do
amor de Deus? Sobre que base pode alguém decidir, se nada no relato pode ser tomado
literalmente?
Mas suponha agora que alguém decida sem fundamentos racionais. Suponha que a
crucificaçã o, embora jamais ocorrida literalmente, seja tida como simbó lica do amor de
Deus. Deveríamos entã o perguntar: É uma verdade literal que Deus ama os homens, ou isso
também é simbó lico? Obviamente, se toda linguagem é simbó lica, isso também deve ser
simbó lico. E do que o amor de Deus é simbó lico? Sem dú vida é simbó lico de outro símbolo,
que é em si simbó lico de ainda outro. Como poderia essa regressã o ter algum valor, a
menos que em algum momento, e quanto antes melhor, nos depará ssemos com um símbolo
que simboliza um significado nã o simbó lico?
Na medida em que a discussã o se refere à chuva e a janelas do céu, pode parecer que nada
importante está envolvido. Mas quando a crucificaçã o entra em cena — e quando palavras
como resgate , justificação , propiciação , expiação e reconciliação sã o tratadas como
metá foras e figuras de linguagem [37]
— a ilusã o de superficialidade é dissolvida. Porque a
partir desse ponto de vista pode ser e tem sido concluído que a revelaçã o divina nã o pode
ser uma comunicaçã o de verdades.
Sem dú vida o leitor cristã o está interessado principalmente numa revelaçã o verdadeira e
no significado literal das declaraçõ es bíblicas. Todavia, seria um erro supor que os cristã os
instruídos nã o devem se preocupar com as vá rias teorias seculares de onde as implicaçõ es
religiosas derivam. A seçã o anterior sobre simbolismo foi dada em conexã o com artigos um
pouco superficiais de um perió dico. Esses relatos populares sã o o modo no qual teorias
mais técnicas gotejam até a populaçã o em geral. Portanto, um exame mais aprofundado de
semâ ntica ou linguística deve ser empreendido. Isso é tanto mais apropriado porque a
maioria dos escritores religiosos que dã o bastante importâ ncia a mitos e simbolismos estã o
cientes da sua dependência de teorias mais gerais da linguagem. Eles podem nã o estar
cientes de uma teoria ainda mais geral, ainda mais profunda e muito mais radical da
linguagem. Essa nova ló gica, como aparece no positivismo ló gico e na filosofia analítica,
será considerada no final deste capítulo. Primeiro, porém, a discussã o prosseguirá com a
linguagem.
 
 
Linguística
 
Para começar, talvez seja conveniente apontar mais ou menos a natureza do assunto
fazendo algumas das perguntas que precisam ser respondidas: Que é uma palavra? Como o
som pode ser significativo? Existe pensamento antes e separadamente da linguagem? Como
a linguagem se originou? É a linguagem adequada para se ter um conhecimento da
realidade, ou sua natureza é tal que ela automaticamente distorce o universo? É toda
linguagem simbó lica e metafó rica, ou é o caso de haver algumas frases estritamente
literais? Essas e outras questõ es semelhantes nos dã o uma ideia preliminar do problema.
Escolhamos como ponto de partida uma fase da origem da linguagem. A Bíblia faz uma
breve mençã o da diversificaçã o das línguas, mas a origem da ú nica linguagem anterior é
omitida em silêncio. Assim também, nã o há fora da Bíblia nenhuma informaçã o histó rica
disponível sobre a primeira ocorrência da fala. Em razã o disso, teorias da origem da
linguagem sã o conclusõ es especulativas baseadas em princípios filosó ficos mais gerais.
 
 
Naturalismo e behaviorismo
 
Uma teoria comum nos dias de hoje defende que as palavras têm origem na experiência
sensorial. Supõ e-se que todas as palavras tiveram originalmente uma referência física. As
palavras que denotam relaçõ es sã o consideradas fundamentalmente espaciais. Se se diz
que uma palavra representa um objeto, a relaçã o “representante de” é derivada de posiçõ es
no espaço; da mesma forma, um pensamento está na minha mente como uma cadeira está
numa sala; e, o que é pior, para a ló gica a inclusão de uma classe em outra — por exemplo,
todos os mamíferos sã o vertebrados — também é uma relaçã o espacial.
Se todas as palavras sã o fundamentalmente físicas ou sensitivas e se as relaçõ es sã o
basicamente espaciais, entã o ou a linguagem nã o pode se aplicar adequadamente a sujeitos
espirituais e nã o espaciais, ou é preciso explicar como o significado físico pode ser
modificado para um significado espiritual. De que modo a experiência sensorial pode dar
origem a palavras para a alma e Deus? Tentativas foram de fato feitas para explicar essa
extensã o da linguagem, e essas tentativas nã o devem ser rejeitadas sem uma aná lise. Ao
mesmo tempo, a origem física da linguagem é hoje muitas vezes expressa de uma forma
que torna essa extensã o algo extremamente difícil e na verdade impossível.
A teoria evolutiva está empenhada em traçar a origem da linguagem humana nos gritos e
grunhidos dos animais. Entã o, por mudanças lentas, graduais e indefinidas esses sons
animais acabaram se tornando, no decurso de vá rios séculos, as palavras da linguagem
humana. Visto que as etapas individuais desse processo nunca foram enumeradas, é difícil
testar a teoria. E tanto mais difícil, em primeiro lugar, porque a condiçã o exata dos sons
animais nã o é muito clara. Pá ssaros dã o gritos de alerta aos filhotes, e isso pode ser
interpretado como um exemplo da funçã o indicativa da linguagem. Mas o grito
provavelmente nã o especifica se o perigo é um falcã o ou um ser humano. Talvez se possa
dizer que o grito significa Perigo! ou Cuidado! e entã o alguma plausibilidade pode ser
obtida para a teoria assimilando-se o grito a uma palavra-frase. Mas qualquer que seja a
funçã o indicativa desse grito, deve ser uma funçã o extremamente vaga. Nada descritivo é
dito do objeto. Note também o importante fato de que os sons animais sã o instintivos; eles
continuam iguais em todos os países onde a espécie é encontrada; permanecem também
inalterados de geraçã o em geraçã o, ao passo que as palavras da linguagem nã o.
Se, todavia, é possível encontrar alguma conexã o entre os sons animais e a fala humana, a
teoria em questã o assume a forma de que, em vez de os sons animais se desenvolverem em
fala significativa, a fala é que é reduzida ao nível dos animais. Ou, pode-se até dizer, a
linguagem humana é que é reduzida abaixo do nível dos gritos e grunhidos, supondo que
eles carreguem algum significado consciente. Ou seja, o behaviorismo evolutivo nã o apenas
faz com que a linguagem seja física e sensorial na sua origem, como a mantém no mesmo
nível.
Leonard Bloomfield [38]
fala de responder a sons “numa espécie de efeito gatilho”. Quatro
pá ginas adiante ele diz: “A descriçã o científica do universo […] nã o requer nenhum dos
termos mentalistas, pois as lacunas que esses termos buscam cobrir só existem na medida
em que a linguagem é deixada de fora da explicaçã o”. Ele entã o oferece a escolha do
behaviorismo, mecanicismo, operacionalismo ou fisicalismo. Na continuaçã o, ainda afirma:
“A linguagem faz a ponte na lacuna entre os sistemas nervosos individuais” ; e “Pensar é
[39]

um discurso interior” [40]


. Aqui, evidentemente, “interior” é algo espacial.
Para evitar todos os termos mentalistas, o naturalismo iguala o significado de uma palavra
à resposta do organismo; e a resposta é uma reaçã o físico-química causada pelo ambiente
total. Nã o apenas a palavra, também seu significado é um efeito físico e por sua vez uma
causa física. A palavra nã o é um símbolo de um conceito, e o significado nã o é uma imagem
mental que se assemelha ao objeto. Nem a palavra nem o significado representam coisa
alguma. A situaçã o toda se esgota numa cadeia de causas e efeitos físico-químicos na qual o
sistema nervoso é um elo. No comportamento animal, quando um pá ssaro pintarroxo vê
uma minhoca, o “símbolo” da minhoca é uma modificaçã o física no pintarroxo produzida
pelos raios de luz refletidos pela minhoca.
Aqui alguém pode se perguntar se o pintarroxo tem um símbolo mais do que o olho
eletrô nico de um supermercado, ao nos aproximarmos dele. E nã o poderia, neste caso, uma
forma primitiva de linguagem ser encontrada no olho eletrô nico — particularmente se a
porta chiou um pouco? O behaviorista sem dú vida concordaria, mas outros teriam um
sentimento desconfortá vel de que há uma diferença entre a causaçã o física e a
interpretaçã o dos símbolos. É uma diferença que nã o pode ser expressa nas categorias
físicas do espaço e do movimento. Uma mente é necessá ria. Para além de qualquer
movimento deve haver uma intelecçã o. Na linguagem, as palavras ou símbolos podem
ocorrer talvez nã o desassociadas de qualquer causaçã o, mas operam desafiando as
regularidades da causaçã o física. Qual é a causa que nos leva a usar a palavra minhoca ?
Podemos falar minhoca quando vemos uma, e neste caso se poderia alegar que os raios de
luz refletidos da minhoca produzem o som assim como levam o pintarroxo a piar. Mas nã o
sã o os raios de luz que produzem o mesmo som quando escolhemos a palavra minhoca
para os propó sitos de uma discussã o linguística. Chamamos um substantivo de minhoca e
comentamos que ele pode ser o sujeito de um verbo. Será que esses comentá rios sã o nada
além de movimentos físicos? É o som minhoca igualmente o efeito químico de raios de luz e
de uma discussã o linguística? É o som substantivo nada mais que um efeito físico de uma
física anterior? Aqui a explicaçã o behaviorista só pode ser aceita na fé cega. Nã o, nem
mesmo na fé cega, porque a fé é um termo mentalista. Deve ser aceita na física cega .
Acontece, no entanto, que minha física me leva a fazer outros sons, como os sons mente e
intelecto . Em particular, a química do meu corpo produz os sons. A química e a física da
minha laringe sã o tã o boas quanto a química e a física suas.
Nã o é o presente propó sito, entretanto, continuar com uma refutaçã o geral do
behaviorismo ou mesmo enumerar todas as objeçõ es à sua teoria da linguagem. No
momento, o ponto importante é que essa teoria da linguagem nã o é obtida por um estudo
empírico da linguagem. Ninguém nunca viu “a linguagem fazendo a ponte na lacuna entre
dois sistemas nervosos”. Ninguém nunca isolou as causas que produzem a palavra minhoca
ao invés da palavra substantivo . Nesse sentido, o behaviorismo nã o satisfaz seu critério de
verificabilidade empírica. Em vez de estar baseada num estudo das palavras, a teoria
behaviorista da linguagem é uma implicaçã o da posiçã o geral do naturalismo. Embora o
naturalismo mereça uma discussã o, o presente capítulo continuará se limitando tanto
quanto possível à s questõ es da linguagem.
Em ú ltima aná lise, é claro, qualquer teoria da linguagem estará baseada em alguma
cosmovisã o mais geral. É preciso apelar a referências para os fenô menos linguísticos e a
uma confirmaçã o parcial dos mesmos, mas parece imprová vel — na verdade quero insistir
que é impossível — que um argumento puramente fenomenoló gico consiga colocar uma
teoria da linguagem acima de qualquer dú vida. Entretanto, alguns estudiosos da linguagem
e muitos teó logos que discutem mitos e símbolos têm pouco a dizer sobre os problemas
mais fundamentais. O que dizem frequentemente mostra de forma clara que eles rejeitam o
behaviorismo. À s vezes eles sugerem uma filosofia alternativa. Assim, o pró ximo passo no
argumento deve ser alguns pará grafos sobre a teoria simbó lica da linguagem separada de
quaisquer pressuposiçõ es behavioristas.
 
 
A teoria simbólica
 
Uma das melhores e certamente uma das mais completas explicaçõ es sobre a filosofia da
linguagem é Language and Reality [Linguagem e realidade] de Wilbur Marshall Urban. A
grande extensã o do seu volume e as modificaçõ es posteriores de visõ es dadas de forma
resumida em pá ginas anteriores tornam impossível se fazer plena justiça à posiçã o exata
do autor. As citaçõ es devem ser tomadas tal como sã o, separadas do contexto completo,
simplesmente como expressõ es razoavelmente fieis de uma teoria amplamente aceita.
Assim também, como a motivaçã o original deste capítulo é a interpretaçã o literal da
Escritura, os detalhes selecionados para consideraçã o devem ter a ver com o uso literal da
linguagem. Ao contrá rio de alguns escritores já citados que hesitam em dizer que toda
linguagem é mitoló gica, Urban definitivamente defende que a linguagem jamais deve ser
entendida literalmente.
 
Nã o existem frases estritamente literais. [41]

 
Ora, estritamente falando, nã o existe em nenhum sentido absoluto algo como
uma verdade literal, pois nã o existe uma correspondência absoluta entre a
expressã o e aquilo que é expressado […] e qualquer expressã o em linguagem
contém algum elemento simbó lico. [42]

 
Ora, em primeiro lugar pode ser feita a observaçã o de que, se nã o existem de fato frases
literais, o significado das declaraçõ es da Bíblia nã o é mais viciado do que o significado das
declaraçõ es de Guerras Gálicas de César. “Davi foi rei de Israel” e “Toda a Gá lia está dividida
em três partes” estã o no mesmo patamar. As duas frases podem ser chamadas de figuradas,
simbó licas ou metafó ricas; mas sã o histó ricas exatamente no mesmo sentido. Se toda
linguagem é simbó lica, a inspiraçã o verbal das Escrituras nã o corre mais perigo do que a
interpretaçã o correta de qualquer outro texto.
Porém, chamar toda linguagem de simbó lica parece esvaziar de todo significado a distinçã o
que é comumente reconhecida entre o literal e o figurado . Pode alguém aprovar uma teoria
da linguagem que negue essa distinçã o? Qual foi entã o a razã o para violar o uso comum?
Urban disse: “nã o existe uma correspondência absoluta entre a expressã o e aquilo que é
expressado”. Por consequência, em segundo lugar, é preciso perguntar se existe
correspondência absoluta e se isso é necessá rio para o significado literal. A noçã o de
correspondência é vaga. Num sentido do termo, uma foto corresponde ao seu objeto ou se
parece com ele, mas ninguém supõ e que uma palavra corresponda a uma coisa dessa
maneira. A linguagem nã o é uma imagem da realidade. As letras g-a-t-o nã o se parecem
com o animal que ronrona. É ainda mais verdade que as palavras nã o podem se parecer
com realidades espirituais, caso existam, pois estas nã o sã o entidades visíveis. Mas num
sentido nã o fotográ fico pode-se dizer que uma fó rmula matemá tica corresponde ao
movimento de um corpo em queda livre. Nã o poderia isso ser uma correspondência
absoluta? Ou se o termo absoluta causa hesitaçã o, nã o poderia a fó rmula ser uma afirmaçã o
literal, ou ser assim entendida? Além disso, se o som gato é essencialmente um sinal
arbitrá rio do animal, que outra correspondência mais poderia ser desejada?
Ao criticar a visã o de que as palavras sã o sinais arbitrá rios ou convencionais de ideias e
coisas, Urban apela vá rias vezes a um conteú do intuitivo usando palavras. Supõ e-se que
palavras primitivas imitem de uma forma ou de outra as coisas a que se referem. A palavra
ache [dor, em inglês] derivada do som ach , soaria como uma sensaçã o de dor. Embora
algumas pessoas de imaginaçã o vívida achem isso plausível, exemplos tomados nã o da
língua materna mas de idiomas desconhecidos removeriam a plausibilidade. Um dos
exemplos de Urban é ouatou e ouatou-ou-ou . Ele primeiro dá o significado em inglês e
entã o pergunta se a palavra nã o soa como a coisa. Se soasse, isto é, se houvesse um
significado intuitivo no som, deveria ser bastante fá cil adivinhar o significado da palavra
antes que a traduçã o inglesa fosse dada. Ora, dentre um milhã o de pessoas alguém poderia
dar um palpite feliz, mas os demais quase certamente iriam falhar. Você tinha percebido o
tempo todo que as duas palavras significam stream [có rrego] e ocean [oceano]?
Por outro lado, se as palavras sã o sinais convencionais, pode haver uma correspondência
absoluta — se alguém assim deseja chamar — por estipulaçã o . Isso é visto mais
claramente nos termos que os cientistas deliberadamente cunham. Volt e ohm
“correspondem” totalmente aos seus referentes. Em todo caso, quando se diz que o circuito
elétrico na casa é de 110 volts, a linguagem é totalmente literal. À parte os termos técnicos
da ciência, isso também é verdade no tocante a muitas frases comuns. As palavras cão ,
chien e Hund nã o têm conteú do intuitivo; sã o meros sinais. Logo, quando uma pessoa diz “o
cã o é preto”, normalmente espera ser entendida literalmente. Nã o há nenhum elemento
simbó lico em frases assim. E isso também é verdade de “Davi escreveu salmos”.
Devemos reconhecer que Urban coloca o dedo numa dificuldade séria que existe na visã o
de que as palavras sã o sinais convencionais. A dificuldade é que uma primeira convençã o
seria ininteligível. A comunicaçã o seria impossível; o Adã o e Eva bíblicos ou os dois
primeiros selvagens evolutivos nã o poderiam ter falado entre si. Adã o teria escolhido um
som para á rvore, sol ou ar, e Eva nã o teria feito ideia do que isso queria dizer.
A dificuldade de explicar a comunicaçã o tem sido há muito reconhecida. O famoso tratado
de Agostinho foi precedido pela percepçã o aguda de Gó rgias. Mas a implausibilidade de um
conteú do intuitivo nas palavras, a plausibilidade de que elas sã o meros sinais, mais o fato
de que, ainda que algumas palavras tivessem um conteú do intuitivo isso nã o seria de muita
ajuda para resolver o enigma da comunicaçã o, sã o razõ es persuasivas para nã o seguir
Urban.
Existe outro fenô meno também que, embora nã o forneça uma explicaçã o para a
comunicaçã o, eficazmente responde a objeçã o que é feita a ela. Ainda que algumas palavras
primitivas tivessem um conteú do intuitivo, as línguas de hoje nã o têm praticamente
nenhum. Nã o deveria o pró prio Urban reconhecer que noventa e cinco por cento de todas
as palavras sã o hoje sinais convencionais? Lembre-se de cão , chien e Hund . Mas as crianças
aprendem a falar, e os pais se comunicam com elas. Nã o apenas isso; adultos também
aprendem as línguas pouco conhecidas de tribos remotas ao viver entre elas. Esses dois
milagres, a criança e o missioná rio, serã o melhor compreendidos pelo ponto de vista de
Agostinho do que numa base naturalista . Mas permanece em todo caso uma
“correspondência absoluta” entre sinais arbitrá rios e referentes, e ocorrem frases literais.
O ataque à possibilidade de frases literais continua agora na suposta descoberta de uma
ambiguidade no termo literal .
 
O termo literal é ambíguo […] Pode significar meramente o oposto de
figurado, e a representaçã o de frases simbó licas em frases literais equivaleria
à expressã o do figurado de modo nã o figurado. Mas literal tem também outro
significado, a saber, um significado primitivo. Interpretar uma frase simbó lica
literalmente seria entã o interpretá -la de acordo com o significado primá rio
ou original das palavras. Se literal é tomado nesta segunda acepçã o, é
totalmente falso dizer que a expansã o de uma frase simbó lica é a substituiçã o
de uma frase literal. Pois o significado simbó lico nã o é exatamente o
significado literal. Interpretadas dessa forma as frases simbó licas, “Napoleã o
era um lobo” […] sã o falsas. [43]

 
Essa citaçã o revela uma grande confusã o, embora a ú ltima metade seja perfeitamente
verdadeira. A fonte e a explicaçã o da confusã o podem se tornar evidentes um pouco mais
tarde, na medida em que seu argumento pela necessidade do simbolismo se desenvolve;
mas o ponto da confusã o é ó bvio aqui. A citaçã o na verdade nã o dá dois significados do
termo literal . Literal no sentido de oposto a figurado nã o difere de literal no sentido de
significado primitivo . Urban confunde como ambiguidade no termo literal dois
procedimentos diferentes de se interpretar frases figuradas. O exemplo é “Napoleã o era um
lobo”. O significado literal, nã o figurado, primitivo, da palavra lobo é evidentemente certa
espécie de animal selvagem. Dizer que Napoleã o tinha quatro patas e pelo desgrenhado é
evidentemente falso. Mas embora nã o se pretendia que o predicado da frase figurada fosse
tomado literalmente, o significado pretendido pode ser declarado em linguagem literal:
Napoleã o era um assassino devasso. E era um assassino devasso no sentido primitivo e nã o
figurado das palavras. É verdade que a interpretaçã o de uma frase figurada de acordo com
os significados primá rios e originais das palavras resulta numa incompreensã o falsa ou
absurda do significado pretendido; mas nã o procede que a expansã o de uma frase
simbó lica pela substituiçã o de uma frase literal é algo necessariamente falso, muito menos
impossível. É uma questã o de quais palavras literais sã o escolhidas. Nã o é uma questã o de
ambiguidade no termo literal . A fonte e motivaçã o dessa confusã o está ligada à visã o de
que
 
o símbolo expressa de forma adequada ao nosso tipo de consciência o que
nã o poderia ser plenamente expresso em frases “literais”. [44]

 
Nã o é verdade que qualquer coisa que é expressa simbolicamente pode ser
melhor expressa literalmente. Pois nã o existe expressã o literal, apenas outro
tipo de símbolo [500]. [45]

 
A consciência simbó lica, como vimos, é uma forma ímpar da consciência
cognitiva.[46]

 
Assim, expandir o símbolo tende a frustrar sua finalidade como símbolo. [47]

 
Outro fator que contribui para a confusã o acima é a opiniã o de que, quando o termo literal
é definido como significado primário , “frase literal é uma frase que se refere a uma
entidade observá vel através dos sentidos […] Ao se aplicar essa noçã o de literal […] à
linguagem da moral e da religiã o […] toda essa linguagem é declarada como sendo sem
sentido”. [48]
Para preservar, portanto, algum sentido na linguagem religiosa contra os
ataques dos positivistas ló gicos, Urban acredita ser forçado a defender sua visã o do
simbolismo.
É reconhecido com satisfaçã o que Urban deseja se opor aos que negariam qualquer
significado nas expressõ es religiosas. Há também um grupo que por conveniência
poderíamos chamar de grupo anglicano, embora nem todos sejam anglicanos; Antony Flew
afirma que ele pró prio nã o é cristã o. Mas a maioria deles parecem ser anglicanos: E. L.
Mascall, Basil Mitchell, Austin Farrer, I. M. Crombie, Ian T. Ramsey e outros. Esses homens
colaboraram na publicaçã o de uma série de livros que defendem a linguagem religiosa da
acusaçã o de nã o ter sentido, e acompanham Urban pelo menos na atribuiçã o de uma
origem sensorial à linguagem, origem essa que define entã o o problema de como, a partir
de seus referentes sensoriais, se pode desenvolver a linguagem para usá -la em assuntos
espirituais. Todavia, alguém pode perguntar por que a ideia de significado primá rio deve
ser equiparada a um referente observá vel através dos sentidos. Com base nos princípios de
uma teoria evolutiva naturalista, que nenhum desses homens deveria aceitar, os gestos da
magia e do encantamento podem ter sido o significado primá rio sensível de termos como
espírito e Deus . Mas a menos que aqueles selvagens tivessem tido alguma noçã o prévia de
um ser que deveria ser invocado, a menos que tivessem tido uma ideia “mentalista” de algo
diferente do ritual em si, é difícil entender por que eles teriam passado pelos gestos. Ou,
inversamente, se apenas passaram por certos gestos por causa da exuberâ ncia física,
continua a ser um mistério como a ideia de Deus poderia ter-se desenvolvido a partir
dessas giná sticas.
Se , ao contrá rio, a ideia de Deus é um dom inato do Criador, se a palavra Deus é um sinal
arbitrá rio desse referente espiritual e se talvez os encantamentos má gicos sã o formas
degeneradas de uma adoraçã o original pura, tanto os gestos quanto a linguagem sã o
facilmente explicá veis. É muito mais fá cil ver como, numa religiã o degenerada, uma palavra
de importâ ncia originalmente espiritual pode acabar sendo transferida para um objeto
físico, como ídolos que substituem Deus, do que entender como palavras de referência
sensível podem vir a adotar unicamente um significado puramente espiritual. Essa visã o
alternativa deve ser agora considerada.
 
 
LINGUÍSTICA TEÍSTA
 
Uma teoria da linguagem, visto que é apenas uma parte da filosofia, deve, como dito acima,
depender de uma cosmovisã o mais geral. No caso dos behavioristas, essa filosofia
fundamental é conscientemente aplicada. Em outros casos, os princípios subjacentes mal
podem ser apreendidos e só podem aparecer como pressupostos que devem ser
descobertos nas entrelinhas. É até mesmo possível que alguns escritores com menos
perspicá cia neguem explicitamente o que suas teorias assumem implicitamente. Em todo
caso, qualquer teoria da linguagem e qualquer outra teoria especial dependem de algum
conjunto de princípios ú ltimos. Escolhamos, portanto, o teísmo cristã o como nossa base.
Devemos supor que o Deus onipotente criou seres racionais, seres que nã o sã o meramente
físicos, mas essencialmente espirituais e intelectuais; seres, portanto, que têm a capacidade
inata de pensar e falar. Quais sã o entã o as implicaçõ es relativas aos problemas da
linguística que podem ser extraídas desse pressuposto teísta?
Por um lado, essa visã o coloca o pensamento por trá s da linguagem e contribui assim para
a explicaçã o da comunicaçã o. Uma mençã o anterior foi feita ao De Magistro de Agostinho.
Cristo é o Logos ou Razã o que dota toda mente de luz intelectual. Teó logos cristã os, mesmo
os mais fracos, geralmente percebem que na esfera moral o homem nã o nasce neutro. “Eu
nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mã e”. Os homens nã o nascem
moralmente bons ou moralmente neutros, mas nascem depravados. Intelectualmente,
também, os homens nã o vêm ao mundo com uma mente vazia . A depravaçã o herdada só
enfatiza a presença de ideias morais inatas. Aqueles gentios ímpios, no entanto, que nã o
queriam reter Deus em seu conhecimento nã o conseguiam bani-lo, pois continuavam a
saber o juízo de Deus de que aqueles que cometem tais coisas sã o dignos de morte. Além de
ideias morais, Agostinho ensina que a presença de Cristo o Logos também dota todos os
homens de certas ideias especulativas ou filosó ficas. A comunicaçã o, portanto, se torna
possível porque todos os homens trazem essas mesmas ideias. A situaçã o é um pouco
parecida com a dos criptó grafos que podem quebrar qualquer có digo. Os símbolos sã o a
princípio desconhecidos, mas como as ideias expressas sã o comuns, a mensagem pode ser
compreendida. Se a linguagem nã o tivesse um pensamento por trá s, como alegam os
behavioristas, e se os símbolos fossem apenas um agregado aleató rio de marcas, nã o
haveria có digo a ser quebrado.
Sucede entã o que nã o se pode atribuir à linguagem uma origem unicamente sensorial e
uma referência primitivamente física. O teísmo, é claro, nã o precisa negar que os nomes de
animais e coisas se referem a objetos físicos espacialmente percebidos, nã o precisa negar
que as relaçõ es espaciais sã o bem representadas na linguagem, nã o precisa negar ou
distorcer quaisquer das nossas experiências brutas comuns. Mas precisa afirmar que a
dotaçã o de racionalidade ao homem, suas ideias inatas e categorias a priori e sua
capacidade de pensar e falar lhe foram dadas por Deus para o propó sito essencial de
receber uma revelaçã o verbal, de se aproximar de Deus em oraçã o e de conversar com
outros homens sobre Deus e as realidades espirituais. Como diz um hino, “Fizeste ouvidos,
mã os e vozes / Para desígnio do teu louvor”. [49]
Em razã o disso, uma teoria teísta de
linguagem nã o trabalharia sob o ô nus de apresentar um desenvolvimento ou deduçã o
precá ria do significado espiritual partindo de uma referência física primitiva. O significado
espiritual é que seria original. Um apelo duvidoso a metá foras, simbolismos ou analogias
para explicar essa transiçã o seria algo desnecessá rio.
Esse ponto requer uma explicaçã o estendida, pois em primeiro lugar é preciso mostrar que
essa teoria teísta de linguagem nã o se esquiva dos problemas negando a utilidade da
metá fora e da analogia; e, em segundo lugar, que os anglicanos mencionados anteriormente
(com outros que adotam a mesma perspectiva) nã o conseguem realizar seu intento de
manter a significabilidade da linguagem religiosa; e que portanto, em terceiro lugar, se as
teorias deles devem ser descartadas, a visã o dos ú ltimos pará grafos é pelo menos um
expediente melhor.
Em primeiro lugar, admite-se que a linguagem religiosa contém analogias, metá foras e
figuras de linguagem. Cristo disse “Eu sou a porta”. Há também as pará bolas que apontam,
à s vezes obscuramente, para similaridades entre a experiência sensorial e princípios
religiosos. Salmos sã o acima de tudo poéticos e pictó ricos. Portanto, a existência de
metá foras e simbolismos é algo que nã o pode ser negado, nem será argumentado que essa
linguagem é, quando menos, inapropriada. Contudo, esses ornamentos literá rios, com seu
apelo estético e impacto psicoló gico, nã o devem ser interpretados como se fossem algo
essencialmente diferente das figuras de linguagem dos livros de histó ria ou mesmo de
ficçã o. Fazê-lo seria criar um pseudoproblema. A linguagem religiosa nã o é essencialmente
diferente da linguagem usada em outros assuntos de interesse. A posiçã o defendida aqui
nã o é que a linguagem religiosa nã o pode utilizar metá foras, mas que o significado dessas
metá foras, quando se tem um conhecimento suficiente de teologia, pode ser afirmado de
forma menos ambígua em frases estritamente literais.
Alguns escritores, como vimos, negam isso. E. L. Mascall, que faz críticas admirá veis ao
positivismo ló gico e busca defender a significabilidade da linguagem religiosa, torna sua
tarefa impossível quando aceita a admissã o de alguns teó logos cristã os de que “há algo
muito peculiar nas afirmaçõ es teoló gicas que as torna nitidamente diferentes das
afirmaçõ es do diá logo comum […] ininteligíveis à pessoa completamente de fora”. [50]
Ele
também cita Farrer com aprovaçã o, segundo quem “nã o é necessá rio ficar nos bastidores
[das imagens]  para termos um entendimento nã o metafó rico dos fatos. As pró prias
imagens nos iluminam”. E “o estudioso metafísico nã o pode se voltar do seu pensamento
analogicamente expresso sobre os mistérios naturais para algum pensamento nã o
analó gico sobre eles que signifique tudo o que os pensamentos analó gicos significam. Ele
nã o obteve nenhum pensamento nã o analó gico”. [51]

Esse é o tema que quero particularmente repudiar. A ideia de uma linguagem teoló gica
especial e peculiar essencialmente diferente da linguagem usada em outros assuntos é,
creio eu, totalmente insustentá vel. Claro, os físicos usam termos técnicos, como próton e
velocidade ; e nesse sentido podemos falar da linguagem da física, assim como da linguagem
do beisebol, que fala de curvas , faltas e árbitros-que-devem-ser-mortos . Mas essas duas
“linguagens” sã o simplesmente partes de uma linguagem — o português — e as mesmas
regras de significado se aplicam na física, no beisebol e também na “linguagem teoló gica”.
 
 
Teologia versus linguagem
 
À s vezes a alegaçã o de que a linguagem religiosa nunca pode ser literal, mas sempre deve
ser analó gica, está baseada em pontos específicos de uma doutrina indevidamente
compreendida. Por exemplo, I. M. Crombie considera a criaçã o aná loga à fabricaçã o, mas
[52]

apenas aná loga, nã o idêntica. No caso de fatos comuns, como a fabricaçã o de uma cadeira
ou mesa, nó s sabemos o seu significado quando entendemos uma situaçã o em que os fatos
nã o seriam verdadeiros. Mas o teísta, afirma Crombie, assegura que nã o existe situaçã o que
esteja fora da criaçã o divina. Portanto, o significado da criaçã o é duvidoso. Jamais
poderíamos apreender o significado de declaraçõ es sobre a criaçã o a menos que as regras
da linguagem teoló gica diferissem na essência das da linguagem comum.
Aqui alguém poderia perguntar o que Crombie diria se tivesse observado que nenhuma
cadeira ou mesa cai fora da categoria da fabricaçã o. Em todo o caso, o teísta pode descrever
uma situaçã o — que, é claro, ele acredita ser falsa — na qual a criaçã o nã o seria verdadeira.
Se a realidade física tivesse existido desde a eternidade, se a histó ria do mundo nã o fosse
finita no tempo, a criaçã o jamais teria ocorrido. Para que uma afirmaçã o seja significativa,
nã o é necessá rio que haja situaçõ es em que ela é verdadeira e situaçõ es em que ela é falsa.
Tal critério de significado impediria a afirmaçã o de que á gua pingada em á cido sulfú rico
produz aumento de temperatura; nem tampouco, a partir dessa teoria, dois mais dois seria
sempre igual a quatro. A significabilidade nã o depende de que uma declaraçã o seja à s vezes
falsa; e a falsidade nã o implica que uma declaraçã o seja sem sentido. O que nã o tem sentido
nã o pode nem ser verdadeiro nem falso.
Nã o apenas o critério de significado de Crombie é duvidoso; também sua ideia de criaçã o
parece ambígua. “O teísta”, diz ele, “nã o alega saber como o mundo começou; só afirma
saber que, como quer que ele tenha começado, Deus o criou”. [53]
Aqui a declaraçã o de
Crombie nã o faz justiça ao teísta. Embora o ponto específico a ser criticado nessa
declaraçã o possa parecer relativamente sem importâ ncia — alguns podem de fato achar
que a crítica “busca pelo em ovo” — a declaraçã o, porém, ilustra uma tendência de se
confundir uma questã o de teologia com uma questã o de linguagem. Na linguagem comum a
palavra como sempre se refere a um processo: Como se dirige um carro? Como se corta um
peru? Como se resolve uma equaçã o? As respostas a todas essas perguntas especificam
vá rias etapas num processo. Portanto, é impreciso dizer que “o teísta nã o alega saber como
o mundo começou”. O teísta alega saber que nã o houve um como . A criaçã o exclui o
processo. A dificuldade de Crombie portanto nã o está no uso da linguagem, mas no
conteú do teoló gico.
Um exemplo ainda menos convincente de uma dificuldade com a linguagem é dado por
Flew e MacKinnon. [54]
Seu artigo argumenta que o primeiro capítulo de Gênesis nã o pode
ser literal porque a palavra dia nã o significa obviamente vinte e quatro horas. Mas por que
alguém deveria supor que o significado literal de dia é vinte e quatro horas? A palavra dia
se refere mais frequentemente a um período de doze horas, mais ou menos, distinto da
noite. Uma palavra é tã o literal quanto a outra. E ainda que os autores insistam que dia no
sentido de período de tempo — por exemplo, no dia do meu avô — é figurado, isso está
longe de provar que tal linguagem nã o pode ser expressa literalmente. Esses autores,
portanto, nã o sã o convincentes quando insistem algumas poucas pá ginas adiante: “Digo
imaginativo de forma deliberada; pois a escrita no Novo Testamento é poesia e nã o prosa”.
[55]
Ora, talvez a palavra dia seja figurada em Gênesis, mas pode alguém ler a epístola de
Paulo aos Romanos e negar que ela é prosa? Esse tipo de expediente desesperado nã o
recomenda a teoria.
À s vezes, porém, em vez de estar baseada em mal-entendidos bastante evidentes, a
alegaçã o de que o conhecimento religioso nunca pode ser literal está baseada em pontos
muito difíceis de doutrina, pontos que constituem sérios enigmas para um teó logo cristã o.
No ú ltimo livro mencionado, Flew traz um capítulo sobre “Onipotência Divina e Liberdade
Humana”. Na essência, é uma tentativa muito bem escrita de mostrar que a afirmaçã o do
livre-arbítrio nã o pode resolver o problema do mal; e à medida que desenvolve seu
argumento ele desnuda suficientemente bem as dificuldades do problema. Há , todavia,
pouca ligaçã o com uma teoria da linguagem. O todo é estritamente teoló gico. E se é
estudado do ponto de vista do conteú do teoló gico, suas deficiências sã o rapidamente vistas.
Pois, embora o capítulo contenha uma boa aná lise do livre-arbítrio, embora outras visõ es
sobre o problema do mal estejam envolvidas, o capítulo se contenta com uma mera
expressã o de desagrado. Por exemplo: “É claro, tudo o que temos a dizer neste artigo é
totalmente irrelevante para quem adota qualquer variante da posiçã o de que o Poder
criativo infinito é sua pró pria justificaçã o suficiente”. [56]
Flew se limita a chamar essa
soluçã o de “desconfortá vel”. Ou, quando muito, diz: “Todas as palavras amargas que já
foram escritas contra a maldade do Deus do predestinacionismo — especialmente quando
também se pensa nele como alguém que preenche o inferno com todos, à exceçã o dos
eleitos — sã o amplamente justificadas”. [57]
Isso nã o é um argumento, é apenas um insulto;
e é indigno da parte de um estudioso que quer ver as coisas logicamente.
Reconhecidamente, a existência do mal cria uma grande dificuldade para o cristã o. E por
isso ela será discutida em detalhes no ú ltimo capítulo deste livro. Aqui, o ú nico ponto a ser
observado é que a soluçã o nã o deve ser buscada em regras da linguagem, mas nos
conceitos da teologia.
O mesmo é verdade no tocante a outro assunto. Novamente, no mesmo volume de Flew e
MacIntyre, Bernard Williams faz uma interessante defesa do famoso paradoxo de
Tertuliano: é certo porque é impossível. Williams argumenta que a linguagem religiosa
deve incluir ao menos uma frase tanto sobre Deus quanto sobre o mundo. Pode ser que
Deus pune os homens ou que Deus se fez carne; mas dificilmente pode haver alguma
religiã o se Deus nã o estiver relacionado com o mundo em pelo menos um aspecto.
Infelizmente, porém, Deus é eterno e o mundo temporal; “entã o, quando chegamos a uma
declaraçã o que é tanto sobre Deus quanto sobre eventos temporais, ela deve ser
insatisfató ria; porque se nã o o fosse, teríamos descrito adequadamente a relaçã o dos
eventos temporais com Deus somente em termos apropriados para eventos temporais”. [58]

Williams desenvolve entã o um excelente ponto. Se uma pessoa religiosa responde a esse
argumento dizendo que as declaraçõ es religiosas devem ser aceitas pela fé e nã o pela
razã o, Williams mostra claramente que a resposta é irrelevante:
 
Se você nã o sabe no que consiste aquilo em que está crendo na fé, como pode
ter certeza de que está crendo em algo? […] Dizer que isso deve ser crido na
fé e nã o pela razã o nã o enfrenta a dificuldade, pois a questã o nã o é como se
deve crer, mas o que se deve crer. [59]

 
Os autores em discussã o nã o parecem levar esse ponto suficientemente a sério. A menos
que a linguagem religiosa seja significativa, literalmente verdadeira e totalmente inteligível,
ela é sem sentido e ininteligível, muito barulho por nada, sem significado algum. O ponto de
William coloca ênfase nisso.
Mas para voltar à relaçã o entre o Deus imutá vel e os eventos temporais mutá veis, talvez
Crombie é quem chega ao fundo da questã o.
 
Precisamos reconhecer desde já que no sentido comum nã o temos nenhuma
concepçã o da natureza divina. Nã o conhecemos Deus, e seria absurdo alegar
que sabemos que tipo de ser ele é. Até onde usamos adjetivos sobre ele
(onisciente, eterno, e assim por diante), eles nã o nos permitem conceber o
que significa ser Deus. Onisciência nã o é erudiçã o infinita, e o significado de
onisciência deve estar além da nossa compreensã o. [60]

 
Crombie está claramente ciente de que tudo isso é mais do que uma questã o de linguagem.
Obviamente é necessá rio, se alguém deseja defender a teologia da acusaçã o da falta de
sentido, fornecer uma epistemologia que permita ao homem ter um conhecimento de Deus.
Mas a citaçã o recém feita parece tornar impossível um conhecimento de Deus. Até mesmo o
conhecimento revelado é impossível, pois é dito que nó s nã o temos nenhuma concepçã o de
Deus ou do tipo de ser que ele é. Onisciência é um atributo que está além da nossa
compreensã o, e os adjetivos que usamos nã o têm nenhum sentido ordiná rio. Todavia, o
autor deseja permitir algum significado para as declaraçõ es teoló gicas. Para esse fim, um
tipo especial de linguagem deve ser usado. A afirmaçã o “Deus nos ama” é explicada por
Crombie como sendo uma pará bola: “nã o existe semelhança literal entre a verdade que é
expressa e a histó ria que a expressa”; mas deve haver alguma “semelhança ou analogia
entre, digamos, amor divino e amor humano”. [61]

 
Embora creiamos na analogia, nã o usamos a analogia para dar um sentido a
“amor” no contexto teoló gico. Postulamos a analogia porque cremos que a
imagem é uma imagem fiel […] Nã o entendemos a relaçã o entre Deus e o
mundo, mas também devemos defender o direito de nomeá -lo “criador” ou
“sustentador”. A escolha do nome nã o é arbitrá ria; apesar de, visto nã o
entendermos a relaçã o mencionada, seu uso ser em certo sentido equívoco.
[62]

 
Isso é altamente insatisfató rio e entra totalmente no â mbito da observaçã o de William, de
que “se você nã o sabe no que consiste aquilo em que está crendo, como pode ter certeza de
que está crendo em algo?”.
Tentando antecipar as críticas à sua teoria da pará bola ou analogia, Crombie observa que
suas conclusõ es só podem ser negadas se “(1) nunca pode haver bons motivos para
cometer uma transgressã o de categoria e (2) que nã o pode haver ‘significados’ que nã o
correspondam a ideias claras e distintas”. [63]

Alguém se pergunta como a mera declaraçã o das duas ú nicas condiçõ es em que a teoria de
Crombie pode ser negada é suficiente para se descartar as condiçõ es. Parece tã o razoá vel
que se deve evitar “transgressõ es de categoria”, isto é, lapsos ló gicos, que uma pessoa nã o
pode se satisfazer em simplesmente varrer o princípio para longe dos olhos. E embora
possa haver algum significado embutido na linguagem de um homem cujas ideias nã o sã o
claras e distintas, o significado certamente provaria ser uma alucinaçã o se se pudesse
mostrar que as palavras nã o poderiam corresponder a algumas ideias claras ou distintas.
Além do mais, como se pode construir uma pará bola que relacione um objeto conhecido a
algo de que nã o temos absolutamente nenhum conceito? Analogias significativas e
comparaçõ es honestas só podem ser feitas se sabemos algo sobre ambos os termos. A
menos que se possa elaborar uma melhor defesa da linguagem e do pensamento religiosos,
os positivistas ló gicos nã o ficarã o muito constrangidos.
 
 
Linguagem literal
 
A teoria teísta da linguagem que foi esboçada algumas pá ginas antes é oferecida aqui como
uma soluçã o melhor para toda a questã o. Como se aplicará ao positivismo ló gico é algo que
será visto um pouco mais tarde; mas como se aplica à teoria das metá foras e pará bolas já
deve estar agora claro. Em primeiro lugar, ela proporciona um conhecimento de Deus sem
o qual o discurso seria um som inú til. O Logos é a luz racional que ilumina todo homem.
Visto que o homem foi criado à imagem de Deus, ele tem uma ideia inata de Deus. Nã o é
necessá rio, na verdade nã o é possível, uma mente vazia abstrair um conceito de Deus a
partir da experiência sensorial ou elevar a linguagem sensorial por seus pró prios meios a
um nível espiritual . As teorias do empirismo, de Aristó teles, de Tomá s de Aquino, de Locke
devem ser rejeitadas.
A proposiçã o de ideias inatas ou de um equipamento a priori nã o implica a ideia absurda de
criancinhas discursando eruditamente sobre Deus e a ló gica. Aparentemente sua mente é
vazia, mas o vazio é semelhante ao de um papel com uma mensagem escrita em tinta
invisível. Quando o calor da experiência é aplicado, a mensagem se torna visível. O que quer
que seja mais acrescentado, as palavras importantes se referem a realidades nã o sensíveis.
A impossibilidade de se converter a linguagem sensorial num uso espiritual através de
pará bolas e metá foras decorre da necessidade de se conhecer ambos os itens de
comparaçã o antes que uma comparaçã o possa ser feita. A metá fora ou pará bola só tem
sentido se existe alguma semelhança que pode ser afirmada em linguagem literal nã o
metafó rica. Quando Crombie diz “Postulamos a analogia porque cremos que a imagem é
uma imagem fiel”, ele contradiz sua declaraçã o anterior de que “Nã o conhecemos Deus, e
seria absurdo alegar que sabemos que tipo de ser ele é”. Parece ó bvio que se nã o
tivéssemos nenhum conhecimento de Deus nã o haveria nenhuma base para escolher a
pará bola “Deus nos ama” em vez da pará bola “Deus nos odeia”.
A teoria da metá fora, pará bola ou simbolismo, visto defender que a linguagem literal é
impossível, naturalmente nega que as verdades expressas em metá fora podem ser
expressas literalmente . À s vezes os autores tentam mostrar que a poesia e o simbolismo
perdem valor quando se fazem tentativas de afirmar seu significado em prosa, e esse
fracasso na traduçã o é tomado como uma evidência a favor da teoria geral do simbolismo.
Se, por outro lado, a linguagem religiosa pode ser literal, entã o nã o somente pode o
simbolismo ser traduzido em prosa comum, como também os símbolos devem ser
considerados expressõ es menos adequadas da verdade — embora talvez mais bonitas no
aspecto literá rio — do que as declaraçõ es literais .
Opondo-se a qualquer sugestã o desse tipo, Urban, cujo grande trabalho foi citado
anteriormente, escreve:
 
Nas palavras de Whitehead, o símbolo é um mero substituto para algo mais, e
o que queremos é esse algo — e nã o o substituto. Em outras palavras, o ideal
seria nos livrarmos do simbolismo ou ter uma verdade totalmente nã o
simbó lica. Isso, parece-me, é uma noçã o fundamentalmente equivocada. Em
primeiro lugar, esse ideal é de fato impossível, tendo em vista a pró pria
natureza da linguagem e da expressã o. Se houvesse algo como uma verdade
totalmente nã o simbó lica, ela nã o poderia ser expressa.
[64]

 
Porém, isso que Urban considera “uma noçã o fundamentalmente equivocada” parece a
outros, além de Whitehead, fundamentalmente correto. Já foram dadas algumas pistas de
que esse ideal nã o é realmente impossível. Mais um exemplo será dado. Ele será usado
como base para um reductio ad absurdum da visã o de Urban, e se decidirá , a partir da
Bíblia, trazer toda a discussã o para mais perto da questã o da inspiraçã o verbal do que pode
ter sido o caso nos ú ltimos pará grafos. Tomemos as palavras de Joã o Batista: “Eis o
Cordeiro de Deus”. Cordeiro é um símbolo. Símbolo é um sinal, mas nem todos os sinais sã o
símbolos. Os sinais de mais e de menos da aritmética, embora possam à s vezes ser
chamados de símbolos matemá ticos, sã o apenas sinais convencionais arbitrá rios; marcas
com outros formatos também serviriam bem a esse propó sito. Crombie mais acima,
podemos nos lembrar, tentou defender que suas palavras, nomes e metá foras nã o eram
arbitrá rios; e no exemplo em questã o, obviamente, um elefante também nã o poderia ter
servido como um símbolo de Cristo; e um peixe só foi usado mais tarde por causa de um
acró stico. A escolha que Joã o Batista fez de um cordeiro nã o foi arbitrá ria; estava enraizada
no ritual mosaico. Um sinal arbitrá rio, quer seja uma palavra, quer seja uma figura
matemá tica, meramente designa o conceito. Normalmente, quando estamos estudando
matemá tica ou lendo um jornal, nã o pensamos na forma dos sinais, mas damos atençã o
exclusiva à coisa significada. No caso do símbolo, entretanto, parte da nossa atençã o está
fixada no símbolo. Se Joã o Batista tivesse dito “Jesus é Senhor”, ninguém teria dado atençã o
ao som em si; e nã o há nada na situaçã o, exceto som e significado. Mas quando ele disse “Eis
o Cordeiro de Deus”, a situaçã o incluía nã o apenas Jesus e o som das palavras, mas também
os cordeiros que a palavra Cordeiro resume. Para entender a mensagem de Joã o Batista
sobre Cristo, portanto, era necessá rio pensar de que modo cordeiros literais poderiam
simbolizar Cristo. Nã o é o caso dos sinais de designaçã o.
Joã o Batista esperava que seus ouvintes se lembrassem dos sacrifícios em que o pecador
devoto estendia as mã os sobre a cabeça do cordeiro, matava o cordeiro, aspergia o sangue
em todas as direçõ es do altar e queimava o cordeiro no altar. Por causa dessas
reminiscências, a linguagem de Joã o Batista era vívida. Ele retratava o ritual de vá rios
séculos. Uma palavra resumia todo um sistema religioso.
Mas é esse um símbolo adequado? Expressa ele o que nã o poderia ser expresso de outra
forma?
Indubitavelmente, esse simbolismo era adequado para atrair a atençã o dos ouvintes. Ao
fazer isso, funcionava de maneira mais eficaz que uma longa explicaçã o literal. O
simbolismo e as expressõ es figuradas mais comuns têm sua utilidade; e a menos que
fossem mais bem adaptados aos seus objetivos do que alguma outra língua, eles deixariam
de ser usados.
Todavia, se o propó sito é a percepçã o e o entendimento, é preciso reconhecer que a
linguagem simbó lica é seriamente inadequada . Se um missioná rio devesse repetir as
palavras de Joã o a pessoas que nunca ouviram falar dos judeus, o significado nã o seria
transmitido. Ainda que a pessoa soubesse que os judeus matavam cordeiros e realizavam
certos gestos, ela dificilmente poderia adivinhar o que Joã o quis dizer. Em primeiro lugar, a
linguagem literal é necessá ria para explicar o significado dos sacrifícios judaicos. A morte
do cordeiro representava a penalidade do pecado em que anteriormente havia incorrido o
agora arrependido judeu. Mas embora o homem tivesse incorrido na penalidade, ela foi
cumprida por um substituto e Deus, satisfeito. Além disso, o sacrifício visível era ele mesmo
simbó lico de um sacrifício maior. Havia um evento futuro profetizado em que alguém cujo
aspecto estava mui desfigurado, mais do que o de outro qualquer, seria levado como
cordeiro ao matadouro, por cujas pisaduras somos sarados. Entã o, séculos mais tarde, Joã o
Batista anunciou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”. O cordeiro é um
símbolo da satisfaçã o vicá ria da justiça.
Sem esse pano de fundo de significado literal, dificilmente se poderia adivinhar o propó sito
do símbolo. Nã o se saberia o que era simbolizado pelo símbolo. O símbolo é meramente um
substituto para algo mais, e o que queremos é a coisa real, nã o o símbolo . Certamente o
cordeiro nã o é simplesmente um sinal arbitrá rio, como a suá stica era para os nazistas; mas,
a menos que alguma informaçã o literal estivesse disponível, a frase simbó lica de Joã o nã o
poderia ter sido entendida. Com essa informaçã o, ela pode. E essas observaçõ es nos
devolvem para a aná lise do artigo de John A. Hutchinson sobre “O uso religioso da
linguagem”, perto do início deste capítulo. O reductio ad absurdum está entã o completo.
Em uma cosmovisã o teísta, portanto, uma visã o que sustenta que Deus criou o homem e se
revelou a ele em palavras, a linguagem é adequada para a teologia. A linguística, a menos
que controlada por pressuposiçõ es naturalistas e ateístas, nã o pode oferecer, portanto,
nenhuma objeçã o à doutrina da inspiraçã o verbal. As Escrituras contêm metá foras, figuras
de linguagem e simbolismos; pois as Escrituras sã o dirigidas para todos os homens em
todas as situaçõ es — situaçõ es em que a atençã o deles precisa ser estimulada e sua
memó ria facilitada, assim como situaçõ es em que é preciso transmitir informaçõ es puras.
Mas, desde que a linguagem simbó lica e a metá fora dependem de um significado literal, as
expressõ es mais inteligíveis e compreensíveis devem ser encontradas nas declaraçõ es
teoló gicas literais , como aquelas em Romanos. E, fora da Bíblia, as expressõ es mais
precisas e satisfató rias de cristianismo sã o aquelas declaraçõ es de credo cuidadosamente
formuladas na Confissã o de Fé de Westminster.
 
 
POSITIVISMO LÓ GICO
 
A maioria dos autores citados até aqui busca defender a linguagem religiosa da acusaçã o
dos positivistas ló gicos de que a religiã o e a metafísica sã o uma tolice. Esses autores
reconhecem que o positivismo ló gico é um inimigo de todas as religiõ es; querem escapar da
sua influência; e têm à s vezes feito críticas afiadas a ele. Se a teoria substituta deles falhou,
é apenas porque nã o enfatizaram o bastante os conceitos literais da ló gica nã o arbitrá ria,
sem os quais nenhuma teoria pode ser defendida e com os quais o positivismo ló gico é
reduzido à ruína.
Embora o grupo anglicano nã o enfatize a ló gica o bastante, há outros que a enfatizam ainda
menos e mostram, portanto, uma afiliaçã o maior, ainda que inconsciente, com os
positivistas ló gicos. Emil Brunner é um bom exemplo disso. Um de seus principais pontos é
que Deus “nã o comunica algo para mim, mas para si mesmo”. Isto é, a revelaçã o nã o é uma
comunicaçã o de verdades. “Todas as palavras têm somente um valor instrumental. Nem as
palavras faladas, nem seu conteú do conceitual sã o a Palavra em si”. E “Deus pode […] falar
sua Palavra aos homens até mesmo por meio de uma doutrina falsa”. [65]
Brunner nã o
apenas esvazia a revelaçã o de todo conteú do conceitual, como também aceita ou rejeita
inferências com base em preferências subjetivas. Jewett traduz Die christliche Lehre von
Gott assim:
 
O elemento puramente racional do pensamento na ló gica tem a tendência de
proceder de qualquer dado ponto em uma linha reta. A fé, porém,
constantemente refreia esse desenvolvimento em linha reta […] O
pensamento teoló gico é um movimento racional de pensamentos, cujas
consequências ló gicas sã o constantemente, em cada ponto, por meio da fé,
contidas, reduzidas ou destruídas […] É somente pela constante quebra de
unidade sistemá tica e consistência ló gica […] que surge o pensamento que se
pode chamar de pensamento crente . [66]

 
Entã o, como Jewett segue a mostrar, Brunner aceita implicaçõ es vá lidas quando convém ao
propó sito de refutar Schleiermacher; mas quando se vê incapaz de refutar o
predestinacionismo de Calvino, decide que fará sua fé refrear a ló gica e que nã o dará
atençã o à s implicaçõ es vá lidas. Mas, se a consistência ló gica pode ser usada dessa forma
num caso e ser descartada em outro, o que impede alguém de escolher algumas ideias do
budismo, um conceito ou dois do islamismo e um pouco de bobagem da Ciência Cristã ?
Afinal de contas, a revelaçã o nã o é uma comunicaçã o de verdades, e o conteú do conceitual
das palavras nã o é a coisa em si. Nã o há nenhuma lei, portanto, que proíba alguém de se
contradizer.
Esse repú dio da ló gica sugere que uma conclusã o adequada para este capítulo pode ser
uma breve discussã o sobre a lei da contradiçã o. Ora, os oponentes mais vigorosos da ló gica
imutá vel sã o hoje os positivistas ló gicos, e é a eles que devemos agora nos voltar.
O positivismo ló gico — ou filosofia da aná lise, como à s vezes chamada — nã o repudia a
revelaçã o divina somente, mas também toda metafísica nã o empírica. Especificamente,
nega quaisquer formas inatas ou a priori da mente, tradicionalmente tomadas como
necessariamente verdadeiras. A ló gica e a matemá tica sã o explicadas como convençõ es
linguísticas que foram escolhidas de forma arbitrá ria; ou, se nã o de todo arbitrariamente,
foram escolhidas como ferramentas ú teis para algum trabalho. A histó ria passada
exemplifica diferentes seleçõ es. A ló gica de A. N. Whitehead e Bertrand Russell é uma, e a
ló gica de Aristó teles é outra. Para citar A. J. Ayer, “É perfeitamente concebível que
deveríamos ter empregado convençõ es linguísticas diferentes daquelas que realmente
empregamos”.
Na sua Lógica , John Dewey objeta à declaraçã o de H. W. B. Joseph de que “é mais em
relaçã o aos problemas a serem respondidos que ao cará ter ló gico do raciocínio […] que as
visõ es de Aristó teles sã o antiquadas”. Dewey defende que as formas ló gicas surgem do
tema que está em discussã o e que quando o tema em discussã o muda bastante, a ló gica
também muda. Ele compara a ló gica a conceitos legais. Os conceitos surgem das condiçõ es
sociais e mudam com elas. As leis de uma época nã o sã o as mesmas de outra. Da mesma
forma, somos levados a crer, as leis da ló gica nã o sã o fixas, mas mudam com a mudança das
condiçõ es. [67]

Por mais positivista, humanista ou ateísta que essa filosofia possa ser, ela aparentemente
atrai tradutores da Bíblia e até mesmo professores de escolas bíblicas norte-americanas.
Recentemente, um professor de uma das respeitadas faculdades bíblicas publicou um
artigo no qual, junto com o que parecia ser uma teoria mecanicista de sensaçã o, rejeitava a
ló gica aristotélica como sendo uma verbalizaçã o injustificada e artificial e aceitava, pelo
menos até certo ponto, o instrumentalismo de Dewey. Esse tipo de coisa também é visto,
embora talvez de forma menos consciente e em graus variados, na depreciaçã o pietista de
uma chamada ló gica humana como oposta a alguma ló gica divina incognoscível.
Em defesa da chamada ló gica humana, em defesa do significado literal das palavras e em
defesa, portanto, da inspiraçã o verbal, eu gostaria de desafiar o ponto de vista oponente a
enfrentar o argumento e responder sem ambiguidades. Gostaria de desafiá -lo a afirmar sua
pró pria teoria sem fazer uso da lei da contradiçã o .
Se os princípios ló gicos sã o arbitrá rios e se é concebível empregar diferentes convençõ es
linguísticas, esses escritores devem ser capazes de inventar e obedecer a alguma
convençã o diferente. Ora, a ló gica aristotélica, e especificamente a lei da contradiçã o, exige
que uma dada palavra nã o apenas signifique alguma coisa, como também nã o signifique
alguma coisa. A palavra cão deve significar cã o, mas também nã o deve significar montanha;
e montanha nã o deve significar metá fora. Cada termo deve se referir a algo definido e ao
mesmo tempo deve haver alguns objetos aos quais ele nã o se refira. O termo metafórico
nã o pode significar “literal” nem pode significar “canino” ou “montanhoso”. Suponha que a
palavra montanha significasse “metá fora”, “cã o”, “Bíblia” e “Estados Unidos”. Claramente, se
uma palavra significasse tudo, ela nã o significaria nada. Se, entã o, a lei da contradiçã o é
uma convençã o arbitrá ria e se nossos teó ricos linguísticos escolhem alguma outra
convençã o, eu os desafio a escrever um livro em conformidade com os seus princípios. Na
verdade, nã o lhes será difícil fazer isso. Nada mais é necessá rio do que escrever a palavra
metáfora sessenta mil vezes: Metá fora metá fora metá fora metá fora.
Isso significa o cão subiu a montanha , pois a palavra metáfora significa “cã o”, “subiu” e
“montanha”. Infelizmente, a frase “Metá fora metá fora metá fora metá fora” também significa
O próximo Natal é Dia de Ação de Graças , pois a palavra metáfora também tem esses
significados.
O ponto deve estar claro: sem usar a lei da contradiçã o uma pessoa nã o pode escrever um
livro ou falar uma frase que signifique alguma coisa. A ló gica é uma necessidade inata e nã o
uma convençã o arbitrá ria que pode ser descartada ao bel prazer. Seja a filosofia ateísta de
A. J. Ayer, seja a depreciaçã o pietista da nossa “ló gica humana” falível, essas teorias tornam
a inspiraçã o verbal impossível. Mas, felizmente, também tornam impossíveis essas mesmas
teorias. Elas sã o autorrefutá veis, porque nã o podem ser expressas senã o em virtude da lei
que repudiam.
Concluo, portanto, que a linguagem literal, a ló gica inata e a inspiraçã o verbal nã o têm nada
acadêmico a temer de teorias assim.

REVELAÇÃO E MORALIDADE
 
 
Da antiguidade até o presente, questõ es de moralidade, de bem e mal, de certo e errado, de
valor, do propó sito da vida humana têm sido frequente e cuidadosamente discutidas.
Platã o e Aristó teles, Spinoza e Kant, Butler, Bentham e Sidgwick sã o alguns dos autores
mais conhecidos. E, assim como esses filó sofos, toda pessoa pensante deve refletir sobre os
princípios ou má ximas que orientam sua conduta. Qual dentre duas linhas incompatíveis de
açã o é certo seguir? Qual dentre dois princípios incompatíveis deve ser reconhecido? Se a
açã o deve estar baseada num princípio, como alguém justifica o princípio? Essas questõ es,
que demandaram a atençã o de Platã o, nã o sã o menos exigentes nos dias de hoje.
 
 
Discordância ética
 
Se as pessoas dos Estados Unidos fossem convidadas a dar exemplos de princípios morais,
a maioria das respostas incluiria o sexto, sétimo e oitavo mandamentos. Nã o matará s, nã o
adulterará s e nã o furtará s sã o geralmente consideradas leis morais importantes. Um
cristã o ortodoxo, ou aliá s um judeu ortodoxo, pode sincera e consistentemente inculcar
essas leis porque acredita serem as leis de Deus. Elas sã o corretas porque Deus as ordenou.
E sã o leis porque Deus impô s penalidades à sua transgressã o. Portanto, as convicçõ es
morais e a educaçã o moral, baseadas na lei e no direito, podem ser consistentemente
baseadas na revelaçã o bíblica.
Por outro lado, o humanismo norte-americano contemporâ neo, assim como a antiguidade
pagã , nã o possui esse fundamento para a moralidade nem tampouco reconhece
universalmente essas leis. O professor Edwin A. Burtt, ele pró prio um humanista, relata em
ambas as ediçõ es de seu Types of Religious Philosophy [Tipos de filosofia religiosa] que os
humanistas mais radicais consideram “o sexo um prazer essencialmente inofensivo que
deve ser unicamente controlado pelo gosto e pela preferência pessoais”. Da mesma forma,
em relaçã o aos outros dois mandamentos, o radicalismo político de muitos naturalistas em
atacar o direito à propriedade privada inclui planos de tributaçã o e outras propostas
econô micas que um conservador chamaria de roubo legalizado. E nã o é também difícil
identificar governos ímpios que fazem uso da tortura e do assassinato. Assim, alguns
humanistas, pelo menos, repudiam nã o apenas a base dos Dez Mandamentos, mas também
seu conteú do.
Sem dú vida, outros humanistas desaprovam a brutalidade e o assassinato que sã o
inerentes ao marxismo. Alguns podem ter até mesmo uma opiniã o generosa sobre a
propriedade privada. E alguns, evidentemente, nã o defenderiam o adultério. Mas o
problema que o naturalismo deve enfrentar é este: pode uma filosofia empírica, uma
filosofia que repudia a revelaçã o, uma filosofia instrumentalista ou descritiva — pode uma
tal filosofia fornecer uma justificativa para qualquer dos Dez Mandamentos? Nã o estariam
aqueles humanistas que ainda se opõ em ao assassinato e ao roubo vivendo sobre o capital
cristã o herdado dos seus ancestrais puritanos? Ou, antes, a questã o mais importante é esta:
pode o humanismo, tendo rejeitado a revelaçã o, fornecer um fundamento ló gico para
qualquer lei moral? Pode o naturalismo fornecer uma base racional para qualquer decisã o
da vida? Ou, a exemplo da escolha pelo sexo feita por Burtt, seriam todas as escolhas meras
questõ es de gosto pessoal e preferência irracional?
Em resposta a essas questõ es, o argumento que segue pretende levar à conclusã o de que a
vida racional é impossível se nã o estiver baseada em uma revelaçã o divina . O método para
se chegar a essa conclusã o será analisar as implicaçõ es da ética nã o-revelacional. Para esse
efeito, forneço alguns argumentos detalhados em outro lugar. Esse material será
[68]

resumido aqui brevemente e se acrescentará a ele uma aná lise adicional.


 
 
UTILITARISMO
 
De acordo com o princípio da utilidade, como popularmente exposto no século XIX, a
escolha entre duas linhas de açã o deve depender de um cá lculo das quantidades, duraçõ es
e intensidades dos prazeres e dores que cada açã o iria produzir. A linha de açã o correta e
que deve ser escolhida é aquela cuja soma total de prazer é a maior. Uma vez, no entanto,
que a açã o de qualquer pessoa afeta outras pessoas, pelo menos até certo grau, o cá lculo
deve incluir os prazeres e dores de todas as pessoas afetadas, e é esse total que indica o que
deve ser feito.
Esse cá lculo nã o deve tampouco se limitar a consequências ó bvias e imediatas. Por
exemplo, ao fazer seu testamento, um homem pode decidir doar uma boa soma de valores
para uma instituiçã o de caridade. Mas na época em que ele morre acabam sendo eleitos
novos diretores que sã o ineficientes ou mesmo corruptos. Seu esbanjamento da doaçã o
parece produzir menos prazer para o pú blico do que poderia ter resultado de alguma outra
prestaçã o. Somos, portanto, tentados a dizer que a partir de princípios utilitá rios a doaçã o é
imoral; nã o é algo que precisa acontecer. Pois, além dessas consequências, também é
preciso calcular o efeito do exemplo beneficente do doador de estimular a filantropia entre
outras pessoas ricas e também de fato de fortalecer o pró prio cará ter dele pelo resto da
vida. Essas consequências, mais algumas outras que se possa imaginar, poderiam talvez
sobrepujar um leve grau de corrupçã o, de modo que a soma total do prazer produzido
justificaria o ato.
As consequências, portanto, pelas quais um ato é determinado como certo ou errado
incluem todas as consequências e todas as pessoas afetadas. As dores devem ser
contrabalançadas com os prazeres. Pode-se dizer assim, em suma, que o utilitarismo visa
ao maior bem do maior nú mero de pessoas, isto é, à maior soma total de prazer.
 
 
O bem maior para o maior número
 
Algumas implicaçõ es surpreendentes podem ser tiradas do princípio do bem maior para o
maior nú mero. Em 1940 a populaçã o da Alemanha era de talvez 90 milhõ es de pessoas, das
quais 6 milhõ es eram judeus. Hitler massacrou 5 milhõ es destes. Digamos que isso tenha
causado 5 milhõ es de unidades de dor. Como, porém, os alemã es eram em grande parte
antissemitas, o massacre e o confisco de propriedades judaicas davam a cada alemã o uma
unidade de prazer. Suponha ainda mais que a morte rá pida na câ mara de gá s tenha causado
duas unidades de dor a cada judeu. Isso ainda resulta num excedente de prazer sobre a dor.
Nã o deveria o utilitarismo, portanto, concluir que o massacre de judeus era algo correto?
Em todo caso, essa é mais ou menos a teoria pela qual os comunistas justificaram seus
massacres de ucranianos, hú ngaros e de cerca de 16 milhõ es de chineses. Quando se
[69]

tem em mente todo o bem que o comunismo irá fazer para todas as futuras geraçõ es,
alguns milhõ es de assassinatos é um valor insignificante.
A infliçã o deliberada de dor mediante o massacre pode, para a consciência do Ocidente
livre, ser mais chocante do que injustiças menores; mas seja o massacre, seja a tributaçã o
injusta, nã o valeria o princípio de que a maioria governa? Nos Estados Unidos, os ricos sã o
fortemente tributados. A maioria mais pobre da populaçã o acredita que pode dar mais
prazer a si mesma infligindo dor à minoria. A defesa que se dá para isso é o bem maior para
o maior nú mero. Mas essa defesa nã o se aplica ao massacre com a mesma força que se
aplica à tributaçã o progressiva do imposto de renda?
Todos os utilitaristas nã o comunistas reprovam o assassinato. Normalmente também
tentam evitar injustiças menores, embora possam argumentar que a tributaçã o progressiva
do imposto de renda nã o é algo injusto. Mas o problema se torna agudo quando um
membro da minoria decide se opor à vontade da maioria. Os letõ es, os hú ngaros e os
tibetanos resistiram ao comunismo. Isto é, se opuseram ao bem maior para o maior
nú mero — assim como um ex-governador de Utah resistiu ao imposto de renda e tentou
assim prejudicar a maioria. Mas é errado se opor ao bem maior para o maior nú mero.
Portanto, a minoria deve cooperar infligindo dor em si mesma para que assim a maior
soma total de prazer possa ser alcançada .
Originalmente, o utilitarismo tomava como ponto de partida a teoria do hedonismo
psicoló gico. Jeremy Bentham assumia como fato científico que todos os homens sã o
totalmente dominados por dois mestres soberanos: o prazer e a dor. Um é a ú nica regra do
homem e o outro nã o pode ser desejado. Quer seja um fato científico, quer nã o, isso tem
pelo menos um grau de plausibilidade. O passo seguinte no utilitarismo foi avançar do
hedonismo psicoló gico para o ético. O bem é um prazer; meu bem é meu prazer; e seria tã o
imoral quanto tolo eu prejudicar a mim mesmo. Isso também, pelo menos, é plausível.
Mas o utilitarismo nã o é um hedonismo individualista. Bentham visava à soma total de
prazer de toda a raça humana; Henry Sidgwick, depois dele, negava que “meu bem é meu
prazer”. Só o bem maior para o maior nú mero é que poderia se qualificar como critério de
uma açã o moral. Se uma dada linha de açã o resulta em dano para mim, mas produz uma
maior soma total de prazer para a humanidade, é imoral eu buscar meu pró prio bem .
Nesse caso, devo buscar meu pró prio dano. E isso nã o é plausível. Certamente nã o é
plausível que letõ es, hú ngaros e tibetanos devam cooperar para sua pró pria destruiçã o. Eis
aqui entã o o problema do conflito entre o bem de um indivíduo e a soma total de prazer
para a raça humana.
Os utilitaristas tentaram evitar esse conflito de duas maneiras. Primeiro, Sidgwick assumiu,
pressupô s ou amplamente insinuou que, em ú ltima aná lise, os prazeres de todas as pessoas
se harmonizam. O aparente conflito depende de um cá lculo equivocado. Na realidade, meu
bem é compatível com o bem de todas as outras pessoas e é em ú ltima aná lise idêntico a
ele. Nenhum conflito real é possível. O prazer de infligir dor a alguém sempre implica dores
futuras que anulam o prazer. Portanto, quer uma pessoa busque o seu pró prio prazer
maior, quer busque o prazer maior de toda a raça, ela fará exatamente a mesma coisa;
todas as açõ es que promovem um também promovem o outro.
Essa visã o evita com sucesso a justificativa do massacre, mas é infelizmente uma visã o que
o utilitarismo nã o pode logicamente aceitar. O utilitarismo defende o cá lculo e a observaçã o
científica. Ele tenta ser uma teoria descritiva. Mas nã o é um fato observado nem observá vel
que os prazeres de todas as pessoas se harmonizam. Pode-se crer nisso baseado na fé, mas
nã o na experiência. Ainda que os cá lculos comunistas que justificam o massacre estejam
equivocados, nã o há nenhuma evidência de que os prazeres de todas as pessoas se
harmonizaram no passado e obviamente nenhuma evidência até agora no tocante ao
futuro. Na verdade, a maior parte da evidência é contrá ria a isso. O conflito das guerras, o
conflito das religiõ es, a contínua divergência entre os indivíduos — tudo parece mostrar
que, se uma pessoa consegue o que é bom para ela, outra pessoa nã o consegue. Daí que
uma teoria que repudie a fé ou a revelaçã o e esteja baseada na observaçã o nã o pode
logicamente se opor aos massacres. Pelo menos nã o pode se opor à busca do meu pró prio
bem à s custas dos demais.
Sidgwick de fato argumentou que, se podemos assumir “um Ser como Deus a partir do
consenso do que supõ em os teó logos”, podemos estabelecer a moralidade numa base
utilitá ria. Mas ele hesitou em afirmar a existência de Deus com base em dados éticos. Nisto
ele foi sá bio. Se fosse possível mostrar empiricamente que todos os prazeres se
harmonizam, talvez a existência de Deus pudesse ser inferida; mas na ausência dessa
evidência a inferência permanece infundada. Ao final de tudo, Sidgwick confessa
cautelosamente uma espécie de ceticismo.
O que torna um apelo utilitá rio a Deus algo ainda mais impró prio é que nã o é qualquer tipo
de deus que servirá . O conflito entre o bem pú blico e o individual nã o pode ser resolvido
pelo Primeiro Motor de Aristó teles ou pelo Espírito Absoluto de Hegel. Ao contrá rio, é
preciso que seja um ser como Deus “a partir do consenso do que supõ em os teó logos”.
Tendo sido escrita na Inglaterra do século XIX, essa frase designa o Deus cristã o. Vale dizer:
se um apelo a Deus deve remover o conflito entre o bem pú blico e o privado e se um
massacre deve produzir dor para seu perpetrador, entã o, para equilibrar as coisas, o Deus
ao qual se apela deve punir Joseph Stá lin numa vida futura e recompensar suas vítimas
agora mortas. Stá lin certamente nã o sofreu nesta vida por seus crimes. Ele parece ter sido
um dos homens mais bem-sucedidos que já viveram . E suas vítimas, obviamente, nã o
obtiveram uma igual quota de prazer. Só se pode defender que Deus harmoniza todos os
prazeres se ele pune Stá lin no inferno. Mas um apelo utilitá rio a céu, a inferno e a uma vida
futura é um apelo ilegítimo que se faz a princípios cristã os. Bentham restringe de forma
bastante explícita suas sançõ es à esta vida. Em geral, o utilitarismo é uma teoria mundana.
O apelo a Deus, portanto, se de fato feito, é ilegítimo; e o conflito continua a ser uma
dificuldade insolú vel.
Há , todavia, uma segunda forma na qual o utilitarismo pode evitar a justificaçã o do
massacre. A sugestã o também é encontrada em Sidgwick; mas é mais interessante notar
que passados 60 anos nos quais o utilitarismo foi amplamente abandonado pelos escritores
de ética um contemporâ neo agora retorne a essa segunda ideia. O bem maior para o maior
nú mero é por si só um princípio incorreto. O critério para distinguir um ato bom de um ato
mau nã o é meramente o total de prazer, mas a igualdade da sua distribuiçã o. O massacre
pode discutivelmente produzir uma maior soma total de prazer; mas o summum bonum é a
igual distribuiçã o de prazer. Cada pessoa no mundo deveria ter uma unidade de prazer
antes que alguém tivesse duas. Ou, se posso assim dizer, nenhum norte-americano deveria
ter uma educaçã o universitá ria antes que cada chinês tivesse uma banheira.
Com exceçã o da ilustraçã o fornecida na ú ltima frase, é essa a alegaçã o do recente volume
Ethical Value [Valor ético] do professor George F. Harouni. Seu ponto principal, ao menos
para o presente propó sito, é que a igual distribuiçã o de bem — que ele prefere identificar
como satisfaçã o em vez de prazer — é um critério de valor independente da quantidade de
felicidade alcançada. Quando se põ e a analisar o conflito entre o bem pú blico e o individual
— ou, como diz, a relaçã o entre a utilidade e a justiça — ele acha o problema insolú vel,
exceto numa premissa. Rejeitando vá rias tentativas de soluçã o, ele conclui: “a ú nica
alternativa clara para mim, entã o, é inserir na minha definição de ‘certo’ tudo o que é exigido
” (itá licos seus). Vale dizer: o professor Harouni define o certo ou bom como a igual
distribuiçã o de satisfaçõ es. Isso, na verdade, pressupõ e o ponto em questã o. Por exemplo,
ele se recusa a discutir a visã o de Kant de que só uma vontade boa pode ser boa sem
ressalvas, em razã o de que nã o é uma aná lise do significado do bem. Essa recusa é
insatisfató ria, pois nem a visã o de Kant nem a do hedonismo egoísta podem ser refutadas
simplesmente fingindo que elas nã o existem.
Para reforçar o ponto de que uma definiçã o nã o resolve o problema em questã o, algumas
observaçõ es sobre igualdade podem ser acrescentadas.
Em primeiro lugar, há a questã o nã o respondida de por que a igualdade de distribuiçã o
deveria ser escolhida em vez da soma maior. É preciso dar uma razã o para isso em vez de
uma definiçã o. Em segundo, a igualdade nã o é um critério racional — certamente nã o no
sentido kantiano do termo. Sua negaçã o nã o produz uma contradiçã o ló gica. Ou, se nã o é
isso o que “racional” quer significar, podemos apenas perguntar: o que é entã o? Quer
simplesmente significar que a igualdade é plausível? Mas, em terceiro lugar, o critério de
Harouni nã o é plausível. Ele implica que estou na obrigaçã o de me prejudicar, pelo menos
até o ponto de nã o desfrutar de prazeres que eu poderia alcançar enquanto todas as demais
pessoas nã o tivessem tanta satisfaçã o quanto agora tenho. Quer isso significar que devo
distribuir minha biblioteca filosó fica aos tibetanos e nepaleses? Se nã o, o que significa
entã o? Esses três pontos sã o questõ es honestas, materiais, e nã o podem ser deixados de
lado simplesmente decidindo definir bem como a igual distribuiçã o de satisfaçã o.
 
 
Cálculo
 
Mas talvez a objeçã o mais esmagadora é que o cá lculo exigido sob todas essas formas de
utilitarismo é impossível . É impossível se considerarmos apenas o bem individual de
alguém e tanto mais se tentarmos somar toda a raça humana. Sem haver feito cá lculo, os
ocidentais têm a forte suspeita de que o assassinato provoca um excedente de dor sobre o
prazer; mas em questõ es menos violentas e mais corriqueiras, no que se pode confiar, além
da pura suposiçã o? Devo comprar açõ es na Bolsa de Valores de Nova Iorque? Se podemos
razoavelmente concluir que uma açã o será mais lucrativa financeiramente do que outra,
algo mais do que suposiçã o está envolvido. Mas será que o dinheiro ganho me dará maior
prazer do que outro curso de açã o? Talvez eu devesse, em vez disso, comprar um carro
novo. Ou deveria investir meu dinheiro em Las Vegas e Reno? De que forma cada uma
dessas coisas afetará os meus netos? O que seria melhor para mim, um jovem: tornar-me
médico, veteriná rio ou engenheiro? Deveria cursar Inglês, Histó ria ou Geologia? Essas sã o
perguntas perfeitamente sérias que muitas pessoas têm precisado se fazer. Mas como
alguém pode estimar as quantidades, duraçõ es e intensidades dos prazeres que serã o
causados por cada uma dessas decisõ es, nã o só os prazeres que a pessoa mesma
experimentará , mas também os prazeres de todos os outros que serã o afetados por sua
açã o? Nã o é o cá lculo utilitá rio, portanto, algo impossível?
O utilitarismo sustenta que a bondade ou cará ter moral de um ato depende da tendência
dele em produzir consequências prazerosas para a raça humana como um todo. É preciso
certamente reconhecer que a impossibilidade de decidir qual dentre duas açõ es conduz ao
bem é uma crítica legítima, pois uma teoria de ética que nã o dá nenhuma orientaçã o
específica nas circunstâ ncias reais da vida dificilmente pode ser chamada de teoria de ética.
 
 
O bem
 
Mas há ainda outra crítica, uma crítica ainda mais importante. Uma teoria aceitá vel de ética
deve pelo menos identificar o fim da açã o, ainda que nã o possa indicar os meios efetivos
para tanto. Ora, o utilitarismo acabou de se mostrar incapaz de fazer o ú ltimo; pode entã o
fazer o primeiro? O bem que devemos almejar é o prazer pessoal, a maior soma total de
prazer para todos, a igual distribuiçã o de prazer ou é algo completamente diferente do
prazer? É possível saber no que consiste o bem? Novamente, se uma teoria de ética nã o
consegue identificar o objetivo da vida, entã o de forma ainda mais evidente nã o é nenhuma
teoria de ética.
No tocante a esse ponto, a linguagem e as discussõ es do século XX sã o mais claras do que as
do século XIX. Embora seja verdade que o utilitarismo fez do prazer a meta de toda a nossa
atividade e deu algumas razõ es para isso, a ambiguidade do termo prazer foi percebida por
quase todos os escritores anti-hedonistas desde Platã o. Tã o grandes sã o os contrastes entre
os prazeres, que John Stuart Mill foi forçado a abandonar o hedonismo bá sico que tornava
essas diferenças imateriais. O problema foi examinado de forma mais explícita em anos
recentes, e o termo prazer foi substituído por valor . Essa substituiçã o, seja para o termo
valor , seja para satisfação , dificilmente pode alterar a natureza do problema; as
dificuldades permanecem iguais, mas talvez pareça mais atual usar a linguagem do século
XX.
Primeiro, porém, declaremos mais uma vez as perguntas. É possível uma teoria descritiva
de ética, uma teoria empírica de ética, uma teoria que nã o faz uso de revelaçã o, dar um
programa racional para a vida? Como é que os naturalistas e humanistas, ou mesmo
aqueles que tentam basear uma religiã o na experiência, chegam à s suas conclusõ es com
respeito ao bem?
 
 
Os valores na experiência
 
O método usual na literatura recente é afirmar que os valores podem ser encontrados na
experiência. O falecido Edgar Sheffield Brightman é um bom exemplo daqueles que tentam
basear a religiã o em valores encontrados na experiência. Ele define valor como “o que quer
que seja realmente apreciado, prezado, estimado, desejado, aprovado ou desfrutado por
qualquer um em qualquer época […] Bem”, diz ele, “é sinô nimo de valor”. Burtt, por outro
lado, falando pelos humanistas, encontra na experiência os valores da amizade, da arte e da
ciência. Dewey também acha que a arte é valiosa, embora muitas vezes use os arranjos
mais comuns do aquecimento, da iluminaçã o e da comunicaçã o rá pida como exemplos de
valores. Mas, sejam quaisquer forem os itens específicos, o fato de que eles sã o valores é
supostamente uma descoberta da experiência.
A definiçã o de Brightman de valor é particularmente ampla. Se chamarmos de valiosa
qualquer coisa de que alguém já tenha gostado ou desfrutado, deveríamos listar nã o só a
amizade, a arte e a ciência, mas também o uísque, a jogatina e o crime. E os três ú ltimos nã o
deveriam ser adicionados como se fossem meramente a crítica hostil de um oponente
hostil. Ao contrá rio, diz Gardner Williams, da Universidade de Toledo, em seu volume
Humanistic Ethics [É tica humanista]: “A ambiçã o egoísta, ou vontade de poder, quando
bem-sucedida é intrinsecamente boa porque é intrinsecamente satisfató ria” (6). Assim, o
assassinato é um valor porque foi descoberto como um valor na experiência. A ambiçã o e o
assassinato bem-sucedidos foram conspicuamente exemplificados no ditador Stá lin .
Admita-se que você e eu nã o temos a habilidade e a determinaçã o de imitá -lo; nossos
esforços para dominar uma naçã o logo falhariam e fracassaríamos; mas podem teorias
empíricas consistentemente desaprovar um eminente sucesso como o de Stá lin? Nã o é o
assassinato um valor tã o verdadeiro quanto a arte, a oraçã o ou os sistemas modernos de
aquecimento?
Acontece que a maioria dos humanistas, e é claro de religiosos como Brightman, quer
produzir uma teoria que condenaria o assassinato e a brutalidade. Como eles procedem,
devemos examinar com cuidado. Mas muito mais importante do que condenar a
brutalidade é a necessidade de evitar o caos da subjetividade que está implícito na
definiçã o de valor como sendo qualquer coisa que alguém goste ou desfrute. Por estranho
que possa parecer, haveria menos objeçã o ló gica a uma teoria que definitivamente
recomendasse o assassinato do que a uma teoria que tornasse todos os desejos igualmente
legítimos. Se a ditadura e a dominaçã o sã o a meta da vida, existe entã o pelo menos uma
norma de conduta que se aplica a toda a humanidade. Pode nã o ser a norma que você ou eu
agora aceitamos, mas é uma norma definitiva. E isso faz dela uma teoria de ética. Mas se
tudo o que podemos dizer é que para Stá lin o assassinato é algo correto, que para
Brightman a oraçã o é algo correto e que para o alcoó latra beber avidamente cachaça é algo
correto, nã o temos nenhuma ética, pois nã o temos nenhuma teoria. Nã o há , neste caso,
nenhuma norma universal.
É essencial, portanto, que aqueles que partem dos valores, como sendo os prazeres
encontrados na experiência de alguém, mostrem de alguma forma que certos valores sã o
valores para todos os homens. Brightman e Dewey tentam cada um a seu modo evitar o
caos do subjetivismo. Uma nota de rodapé anterior mencionou a teoria de valor de
Brightman, e os argumentos nã o serã o reproduzidos aqui. Mas já que Dewey influenciou o
cená rio norte-americano de forma tã o ampla, parece sensato resumir as críticas contidas
nesse livro referido na mesma nota de rodapé.
 
 
DEWEY E O INSTRUMENTALISMO
 
Para Dewey e o instrumentalismo as dificuldades da ética sã o importantes nã o apenas em
si mesmas, nã o apenas para uma teoria de ética, mas muito mais para o escopo inteiro
desse tipo de filosofia. Se há um ponto crucial em que o humanismo tem a obrigaçã o de
apresentar um argumento convincente e de fato irrespondível, é aquele que diz respeito ao
campo da ética. A razã o disso, claro, nã o é que a ética, ao contrá rio da ló gica simbó lica, tem
importâ ncia imediata para a vida diá ria de um indivíduo, seja ele filó sofo ou nã o. E a razã o
também nã o é simplesmente que a ética é essencial para um sistema abrangente de
filosofia. Isso valeria para Aristó teles e Hegel tanto quanto para Dewey. Mas sim, o
instrumentalismo deve sustentar sua alegaçã o na ética porque isso faz do interesse prá tico
ativista o fundamento do seu sistema. Essa é a escola que mais veementemente tem feito
invectivas contra as torres de marfim e a indiferença da contemplaçã o empírea. A
eternidade e a transcendentalidade sã o consideradas alucinaçõ es. O pensar diz respeito a
este mundo, e as ideias sã o planos explícitos de açã o. Os princípios éticos sã o
absolutamente bá sicos no pragmatismo humanista.
Isso nã o é verdade no cristianismo. Reconhecidamente, o cristianismo com sua mensagem
de salvaçã o dos pecados coloca grande ênfase na fome e sede de justiça. Em particular na
tradiçã o calvinista, os Dez Mandamentos sã o enfatizados. Mas a ética nã o é o fundamento
do sistema cristã o. O cristianismo é baseado na teologia, e a ética é um assunto derivado. O
que é certo e o que é errado é determinado pelos mandamentos de Deus. Mas no caso dos
instrumentalistas, a ética é o assunto bá sico.
Que o instrumentalismo reconhece sua necessidade da ética é algo que poderia ser
documentado inú meras vezes. Quase todos os livros de Dewey forneceriam citaçõ es
pertinentes. Aqui somente uma será usada, uma citaçã o de Quest for Certainty [A busca da
certeza]: “A condiçã o efetiva de integraçã o de todos os propó sitos divididos e de todos os
conflitos de crenças é a percepçã o de que a açã o inteligente é o ú nico recurso definitivo da
humanidade em todo e qualquer campo”. [70]

Uma segunda leitura dessa citaçã o mostra a sua aplicaçã o universal. Nã o só alguns, mas
todos os propó sitos divididos devem ser integrados; nã o só alguns assuntos, mas todo e
qualquer campo é abrangido. A açã o inteligente é o ú nico recurso definitivo do homem; nã o
existe outro. Nã o há nenhum Deus de quem o homem possa obter conforto, encorajamento
e força — e tampouco sabedoria, instruçã o e intervençã o. O homem só tem a si mesmo.
É esse ateísmo que põ e em relevo a necessidade desesperada de uma teoria irrefragá vel de
ética. Se o humanismo nã o consegue salvar o homem do drama dos seus conflitos em todo e
qualquer campo, o humanismo de fato falha. Ele pode ter uma teoria admirá vel de ciência,
pode conceber ajudas eficazes na educaçã o, pode estimular professores a participarem na
política; mas, uma vez que a ciência e a política sã o apenas meios para fins e ideais
escolhidos, se o humanismo nã o pode racionalmente justificar um ideal em contraste com
outro, se sua teoria de ética nã o pode dar orientaçõ es bem definidas nas perplexidades da
vida, ele terá falhado no seu principal empreendimento e deve ser abandonado.
O principal tó pico da presente discussã o é a identificaçã o de ideais, normas ou valores. Algo
terá de ser dito no caminho sobre os meios para a consecuçã o desses valores, mas o
principal interesse está no fim a ser alcançado. Na linguagem do Breve Catecismo, estamos
perguntando: Qual é o fim principal do homem? Nã o nos permitamos prejulgar o assunto,
entretanto. Dewey hesitaria diante da ideia de um ú nico fim principal. Ele prefere falar no
plural. Façamos entã o o mesmo. Nosso objetivo é identificar normas, ideais ou valores.
 
 
Moralidade variável
 
Em primeiro lugar, note-se que, quaisquer que sejam os ideais ou padrõ es propostos por
Dewey, eles nã o devem ser considerados normas fixas e finais para todos os seres humanos
.
 
Instituímos padrõ es de justiça, verdade, qualidade estética etc. […]
exatamente como definimos uma barra de platina para ser um medidor
padrã o de comprimentos. Com base nas consequências da sua aplicaçã o
operacional, o padrã o está tã o sujeito a modificaçõ es e revisõ es num caso
como no outro: […] A superioridade de uma concepçã o de justiça sobre outra
é da mesma ordem que a superioridade do sistema métrico […] embora nã o
da mesma qualidade. [71]

 
Essa comparaçã o entre um padrã o de justiça e um padrã o de medida nã o é uma ilustraçã o
adequada para os propó sitos de Dewey. Em linhas de mediçã o o resultado é o mesmo, quer
se use polegadas, quer se use centímetros. Quando dois pesos sã o comparados, gramas e
onças irã o uniformemente concordar sobre qual é o mais pesado. Mas na moralidade
Dewey terá um ato como recomendá vel segundo um padrã o e como mau segundo outro.
Assim, para os propó sitos de Dewey, outra ilustraçã o servirá melhor.
Os padrõ es morais, diz ele, sã o como a linguagem, no sentido de que ambos resultam dos
costumes . As teorias de ética absoluta argumentam que os padrõ es ideais antecedem os
costumes e o julgamento de sua correçã o ou incorreçã o; quaisquer supostos ideais que
sejam meramente o resultado dos costumes nã o podem ser seu juiz. Que esse absolutismo
é, na melhor das hipó teses, desnecessá rio pode ser visto no caso da linguagem. Nã o houve
princípios antecedentes de gramá tica. A linguagem evoluiu a partir de balbucios pouco
inteligentes e gestos instintivos. Entã o vieram as regras da gramá tica e o aparato da
alfabetizaçã o. Mas isso nã o é o fim; a linguagem e sua gramá tica mudam para atender à s
novas situaçõ es e novas necessidades. As palavras mudam suas formas e significados;
novas expressõ es sã o inventadas, e as regras antigas se tornam arcaicas. Todavia, as regras
da linguagem, embora sejam meramente resultados imprevistos e involuntá rios do
costume, exercem sua autoridade sobre nó s. A gramá tica e a moral fazem parte da vida.
Ninguém pode escapar delas, ainda que queira. A escolha do homem está , simplesmente,
entre adotar costumes mais ou menos significativos.
Essa analogia entre as regras da gramá tica e os princípios da moralidade carrega
importantes implicaçõ es. A mais ó bvia é o fato de que diferentes naçõ es usam diferentes
linguagens. Claro, se queremos falar francês devemos nos adequar a seus costumes o
suficiente para sermos compreendidos. E se nascemos franceses, nã o temos a princípio
muitas escolhas. Mas com o tempo acabaria sendo talvez possível emigrar para os Estados
Unidos. Isso envolve a decisã o de falar inglês em vez de francês. A oportunidade de
desaprovar os costumes morais de uma naçã o e, contra a pressã o social, viver um tipo
diferente de vida é algo mais facilmente acessível que a emigraçã o. Os má rtires cristã os dos
primeiros séculos e da Reforma haviam decidido contra os costumes vigentes. Nã o requer
isso uma norma moral que seja superior aos costumes que estã o sendo condenados?
A analogia de Dewey com a linguagem tende a minimizar a importâ ncia dessa questã o.
Afinal, nã o é tã o importante se uma pessoa fala francês, alemã o ou inglês nem se quebra
algumas regras de gramá tica ao fazê-lo. Mas os missioná rios cristã os relatam que em certas
regiõ es da Á frica os costumes sociais sã o tais que as meninas dificilmente chegam à
adolescência sem terem sido antes estupradas uma meia dú zia de vezes. E um século atrá s
ainda havia tribos canibais em vá rias ilhas do Pacífico. Mesmo hoje, com a independência
do Congo, começam a reaparecer o canibalismo e as guerras tribais. Os missioná rios se
opõ em a esses “padrõ es morais”, a esses produtos do costume, a esses resultados de gestos
instintivos. Eles pregam que padrõ es divinamente revelados, fixos e universais condenam
tais prá ticas. Ora, se isso nã o é verdade e se a ética é aná loga à linguagem, pode haver
qualquer justificativa para se impor os costumes de uma sociedade sobre outra? Nã o
requer a condenaçã o de um conjunto de costumes uma norma que seja mais do que o efeito
de outro conjunto de costumes?
Dewey tem uma resposta interessante e talvez perturbadora para essa questã o. Em
primeiro lugar, ele afirma que os defensores de padrõ es fixos, como os missioná rios
cristã os, estã o iludidos. Eles nã o têm de fato nenhuma norma absoluta. Suas ideias morais
sã o apenas o resultado dos costumes de seu pró prio grupo. O costume, portanto, ainda é a
fonte de toda a moralidade. Ora, em segundo lugar, a oposiçã o de um costume a outro mais
amplo é uma forma de guerra de classes, de fato “a forma mais séria de guerra de classes”.
A guerra de classes nã o é excessivamente escrupulosa. Cada lado trata o seu oponente
como um violador intencional de princípios morais absolutos. Temos, assim, o atual
conflito entre a burguesia e o proletariado. Portanto, a ideia de padrõ es morais fixos resulta
numa guerra que só pode ser encerrada pelo uso da força.
Entã o, por essa resposta dupla, Dewey explica consistentemente como os conflitos morais
entre as sociedades podem de fato ocorrer, ainda que a moral nã o envolva nada além de
costumes. Mas, ao fazê-lo, nã o implica Dewey que o canibalismo é tã o bom em seu contexto
quanto a moralidade cristã no contexto dela? Nã o estaria o tom de suas observaçõ es
sugerindo que o estupro continua a ser louvá vel na Á frica e que os missioná rios cristã os
sã o imperialistas desprezíveis? A diferença nos padrõ es morais, portanto, nã o é a diferença
entre polegadas e centímetros, que sempre dã o o mesmo resultado; é uma diferença tal que
nenhuma norma ou ideal se aplica em todos os lugares, a todas as pessoas e o tempo todo.
 
 
Os valores na experiência
 
A negaçã o de padrõ es fixos e universais é algo de grande importâ ncia, mas há também um
problema menor que Dewey precisa enfrentar. Ainda que os valores da Á frica e da
cristandade sejam diferentes, como as pessoas em qualquer das sociedades podem
identificar seus valores no fluxo da experiência? Podem os métodos de Dewey, quando
aplicados nos Estados Unidos, levar inconfundivelmente à conclusã o de que um tipo
particular de açã o é bom e valioso, e outro nã o?
John Dewey acreditava ter visto claramente o problema e descoberto a chave para a
soluçã o. O problema mais profundo da vida moderna, assim sustentava, é a integraçã o das
crenças do homem sobre o mundo físico com suas crenças sobre os valores humanos. Na
Idade Média, a ciência e a religiã o eram harmoniosas porque eram ambas desenvolvidas
sobre um ú nico fundo filosó fico. Todos os problemas eram resolvidos sobre princípios
tomistas. Hoje, porém, a ciência medieval desapareceu, mas as crenças comuns sobre os
valores ainda guardam um sabor medieval. Visto que a conduta moderna é agora motivada
sobretudo pela ciência moderna, o resultado é que a conduta do homem moderno entra em
conflito com suas crenças sobre os valores. Por causa de duas reaçõ es a esse conflito, duas
desvantagens vêm à tona. Alguns homens com forte apego emocional à teoria antiquada do
valor menosprezam e retardam a ciência, ao menos por dissipar suas energias em esforços
infrutíferos. O outro tipo de homens aceita a ciência de todo o coraçã o mas, porque os
valores nos quais foram ensinados nã o podem ser cientificamente comprovados, eles
repudiam completamente o valor. Assim, o problema importante para uma filosofia que
nã o queira se isolar da vida moderna é harmonizar a teoria e a prá tica modernas.
A soluçã o desse problema deve ser buscada numa exploraçã o mais meticulosa do método
científico. Como problema apó s problema a ciência se separou da síntese medieval e seus
sucessos se acumularam até hoje no século XX, há razõ es para se supor que todos os
problemas da humanidade podem ser tratados pelo mesmo método. As crenças sobre
valores, sobre ética e sociologia se encontram hoje quase no mesmo patamar em que as
crenças sobre a física estavam na era pré-científica. O que é necessá rio é a aplicaçã o de
técnicas científicas . Só duas atitudes bloqueiam a aceitaçã o desse ponto de vista. Entre
alguns, há uma desconfiança bá sica na capacidade da experiência de desenvolver padrõ es,
ideais ou normas para a vida. Essa primeira atitude depende de valores eternos e apela a
um Ser Supremo. Nã o se pode alimentar nenhuma expectativa dessa visã o teísta. Os
interesses seculares dominam hoje a mente dos homens; o senso de valores
transcendentais se enfraqueceu; a autoridade da igreja diminuiu; os homens podem
professar a antiga religiã o, mas agem de modo secular. Essa divergência entre o que os
homens fazem e o que dizem é a evidência exterior do conflito que existe no pensamento
moderno. Para resolver o problema e remover o conflito, os pensamentos dos homens
devem ser ajustados para se conformar ao que eles fazem. Para inventar um exemplo,
Dewey nã o usa: Os homens jogam golfe aos domingos e creem na existência de Deus;
enquanto continuam a jogar golfe, devem ser ensinados a repudiar a crença em Deus ao
invés de mudar sua conduta e ir à igreja.
A segunda atitude que bloqueia a aceitaçã o do método científico é o gozo de prazeres, bens
ou valores independentemente do método usado para produzir esse gozo. Essa visã o supõ e
que “gozar e ser um valor sã o dois nomes para o mesmo fato”. Essa atitude ou teoria de
valor é superior à visã o teísta porque os valores sã o experiências concretas de desejo e
satisfaçã o aqui e agora. Sua falha surge de que esses gozos sã o casuais e nã o regulados pela
inteligência. A fuga do absolutismo transcendental nã o deve ser para os prazeres casuais,
mas para a definiçã o de valores pelos prazeres que sejam uma consequência da açã o
inteligente. “Sem a intervençã o do pensamento os prazeres nã o sã o valores, mas bens
problemá ticos, tornando-se valores quando se reapresentam em forma modificada a partir
do comportamento inteligente”. [72]

Os prazeres, portanto, sã o fugazes e precá rios, de modo que é preciso um método de


discriminaçã o entre eles com base nas suas condiçõ es e consequências. Bens sã o apenas
bens com certas qualidades intrínsecas; deles, enquanto bens, nã o há o que dizer — eles
simplesmente sã o o que sã o. O que quer que se diga deles concerne à s suas causas e efeitos.
A razã o por que se aprecia um objeto é amiú de que ele é um meio para ou resultado de algo
mais; a razã o concerne à causa do prazer e nã o tem nada a ver com suas qualidades
intrínsecas.
Antes de continuar o resumo, é preciso atentar para um fator de confusã o nas linhas acima.
É verdade que algumas coisas sã o frequentemente apreciadas ou pelo menos escolhidas
porque sã o causas de algo mais. Esses bens, na perspectiva de alguns autores, sã o
chamados de instrumentais, em oposiçã o a bens intrínsecos; e variam de pegar um tá xi
para o aeroporto a visitar o dentista. Mas o argumento de Dewey realmente requer que isso
nã o apenas ocorra “frequentemente”, mas sempre . Por um instante, podemos parar e
perguntar se todos os bens sã o instrumentais ou se alguns sã o intrínsecos. É verdade que a
razã o para desfrutar de algo nã o tem nada a ver com suas qualidades intrínsecas? É preciso
ter essa questã o em mente à medida que se prossegue com o resumo.
Portanto, segue Dewey, um bem genuíno difere de um bem espú rio por causa da reflexã o
sobre as consequências. Toda crítica se preocupa com as consequências porque nenhuma
propriedade possui referências adequadas em sua superfície.
Em conexã o com isso, dois pontos devem ser levantados. O primeiro, mencionado algumas
linhas antes, diz respeito aos antecedentes dos quais o valor em questã o é uma
consequência. Esse ponto tem a ver com o gozo de prazeres casuais independentemente do
método usado para produzi-los. O segundo ponto, e talvez mais importante, toca nas
consequências que o gozo em si produz.
Para inventar um exemplo, suponha que um homem se candidate a um emprego, realize o
seu trabalho e seja pago; nesse caso o dinheiro nã o é um bem espú rio, mas um valor real
porque obtido pela açã o inteligente. Tivesse o homem encontrado a mesma quantia de
dinheiro na calçada, ela nã o teria sido um valor real. É como argumenta Dewey. Para a
maioria das pessoas, entretanto, o dinheiro encontrado é tã o valioso quanto o dinheiro
ganho. De fato, embora o poder de compra de um dó lar ganho e de um dó lar encontrado
sejam iguais, o trabalho de ganhar pode ser tã o demorado e laborioso que a soma dos
valores de uma vida sã o reduzidos pela prudência inteligente e aumentados por um achado
de sorte. O tempo e o vigor do trabalhador podem estar tã o esgotados que mal se pode
desfrutar daquilo que o dó lar compra. Portanto se poderia dizer — em nítido contraste com
Dewey — que o prazer casual, nã o merecido, é o maior valor.
Claro, se Dewey só quisesse dizer que para a sobrevivência nã o é sá bio depender de
encontrar dinheiro na rua, seu argumento seria suficientemente só lido, mas trivial. Um
teísta das mais considerá veis visõ es sobrenaturais e o epicurista que tenta evitar
problemas cochilando ao sol concordariam que certa dose de planejamento e trabalho é
necessá ria para a maioria das nossas satisfaçõ es comuns. Essa trivialidade nã o pode ser a
base do antagonismo de Dewey aos teístas e epicuristas. As expressõ es e ênfases de Dewey
parecem dizer que os prazeres inesperados simplesmente nã o têm valor, sã o espú rios.
Essa visã o, que parece tã o estranha ao senso comum, aparentemente depende da tese de
que o valor de um objeto depende de este ser um resultado de e meio para algo mais, e
particularmente nã o depende de sua qualidade intrínseca agradá vel. Nada é valioso em si
mesmo. Já se disse agora o suficiente sobre os antecedentes do prazer; o segundo ponto
concerne à s consequências do valor apreciado.
Neste ponto, também, a crítica, continuando a pressionar a questã o do valor intrínseco,
será quase a mesma. Pode ser verdade que atribuímos valor ao dinheiro por causa das
possíveis consequências, isto é, das coisas que podemos comprar com ele; neste sentido,
uma cédula ou cheque, sendo apenas um pedaço de papel, nã o possui referências de valor
na superfície. Mas significa que nada possui? Nã o existe nada que tenha um valor
intrínseco? Seriam todos os valores meramente instrumentais? Nã o existe entã o nenhum
fim definitivo, seja qual for?
À guisa de ilustraçã o, pode ser ú til usar o jogo de xadrez. Será que o prazer do xadrez,
quanto ao seu valor, dependente das consequências? Claro, o xadrez pode ser usado para
cimentar amizades, e sem dú vida outras consequências podem ser engenhosamente
listadas. Mas a razã o normalmente para se jogar xadrez nã o é que o jogo é um meio para ou
resultado de algo mais. Ao contrá rio, ela tem totalmente a ver com sua qualidade de valor
intrínseco. Se suas ó bvias credenciais nã o fossem adequadas, o xadrez nã o seria escolhido.
Dewey, na estranha companhia de Aristó teles, poderia desprezar essa ilustraçã o do xadrez.
Jogar jogos nã o é uma atividade séria o bastante para ser comensurada com os principais
esforços humanos. Além do mais, como disse Aristó teles, a recreaçã o é por amor ao
trabalho; nó s jogamos para trabalhar: nã o trabalhamos para jogar. Embora esses
sentimentos se encaixem muito bem no ponto de vista aristotélico, nã o está tã o claro se
Dewey pode usá -los com bastante consistência. Se nada é intrinsecamente valioso, como
alguém pode insistir que o jogo é um meio para o trabalho e nã o o contrá rio? Se nada
possui suas pró prias referências, como alguém pode distinguir entre o sério e o trivial?
Aristó teles fez da recreaçã o um meio para uma atividade intrinsecamente valiosa, uma
atividade escolhida como um fim em si mesmo e nã o como um meio para outra coisa. Mas
se, como diz Dewey, nã o existe uma causa final e se tudo é escolhido apenas como um meio
para algo mais e nunca por causa das suas qualidades intrínsecas, o que escolhemos faz
alguma diferença?
Homens e mulheres jovens escolhem majoritariamente ir à faculdade. Com base na teoria
de Dewey, muito aceita pelos alunos, a razã o para isso nã o pode ser nenhum valor
intrínseco no conhecimento. Dar essa razã o seria fugir da realidade e se refugiar na
desacreditada torre de marfim aristotélica. Para o jovem, a faculdade é um meio de
conseguir um trabalho melhor; para a jovem, um meio de conseguir um homem melhor.
Mas nem a família que vem com o casamento, nem a comida que o trabalho fornece deve
ser escolhida por qualquer qualidade intrínseca. Esses também sã o só meios para outra
coisa. A faculdade é o meio para um trabalho; o trabalho é o meio para o casamento; o
casamento é o meio para uma família; a família, junto com o trabalho, o meio de enviar um
filho para a faculdade. Mas o xadrez é o meio de limitar os contatos sociais a um pequeno
nú mero de pessoas; limitar os contatos sociais é o meio de evitar o casamento; a solteirice
bem-aventurada poupa o dinheiro que se gastaria na mensalidade escolar de um filho; e
esse dinheiro é o meio para se comprar um conjunto mais bonito de peças de xadrez. Mas
por que seguir uma série causal em vez de outra? Todas as atividades sã o meios sem valor
para outros meios sem valor. Os meios nã o têm fim, e a escolha se torna irracional. Ou, pelo
menos, as escolhas nã o sã o baseadas em nada mais que a preferência pessoal.
Aqui pode parecer que outro humanista enxerga a questã o com mais clareza do que John
Dewey. Gardner Williams escreve: “Nã o importa, do ponto de vista de um indivíduo, como
ele é satisfeito, desde que em ú ltima aná lise esteja satisfeito”.
[73]

Neste contexto, o como parece incluir nã o só a identificaçã o do objeto que dá satisfaçã o,


mas também os meios pelos quais o objeto foi obtido. Neste caso o objeto seria igualmente
valioso ou satisfató rio, quer obtido pela atençã o e previsã o inteligentes quanto aos meios
de produçã o, quer obtido por pura sorte.
Quanto a essas ú ltimas afirmaçõ es, Dewey provavelmente responderia com algumas
expressõ es de desgosto. Ele repudiaria essas opiniõ es, nã o só por corresponderem a uma
falta de entusiasmo pelo método científico, mas também por serem um afastamento da
responsabilidade de reconstruir as instituiçõ es econô micas, políticas e religiosas. Em vá rios
lugares Dewey baseia sua rejeiçã o à s teorias oponentes em preferências socioló gicas. A
epistemologia, por exemplo, desperdiça tempo que poderia ser proveitosamente gasto na
reparaçã o de males sociais. O pensamento nã o deveria ser usado para nenhum bem
privado ; se o pensamento visa a algum resultado especial, nã o é sincero. É estranho dizer
que neste contexto ele até fale de “algo que vale a pena em si mesmo” apesar de acrescentar
com mais consistência na pá gina seguinte que “nã o há nenhum fim específico estabelecido
de antemã o que se encerre nas atividades de observaçã o, de formaçã o de ideias e de
aplicaçã o”. Ao invés de uma
 
satisfaçã o emocional e conforto privado […] a satisfaçã o em questã o significa
uma satisfaçã o das necessidades e condiçõ es do problema do qual a ideia,
propó sito e método de açã o surgem […] Uma concepçã o da verdade que faça
dela uma mera ferramenta de ambiçã o e engrandecimento pessoal é algo tã o
repulsivo que o que surpreende é críticos terem atribuído tal noçã o a homens
sensatos. [74]

 
Mas é o desgosto de Dewey uma resposta suficiente para as objeçõ es? Em que base pode
ele construir uma teoria de sociologia que elimine a epistemologia como uma perda de
tempo? Pode ele distinguir um mal social de um valor social? Por qual argumento ló gico
Dewey pode recomendar a faculdade ao invés do xadrez? Tem ele alguma razã o para sentir
repulsa pelo bem privado? Ele nã o pode alegar corretamente que críticos têm atribuído
erroneamente noçõ es malucas a homens sensatos. O professor Williams é um homem
sensato; como também eram os sofistas e os epicuristas. E muitos outros homens se
recusarã o a abdicar de determinados fins, do conforto privado e de bens intrínsecos só
porque Dewey os acha repulsivos.
 
 
Segurança e ética científica
 
Por trá s do desgosto de Dewey e por trá s da insistência de que os métodos da ciência irã o
resolver os problemas éticos está um contraste que Dewey tinha prazer em enfatizar. É o
contraste entre certeza e segurança. Os religiosos, místicos e platonistas iludidos buscam
segurança e à s vezes alegam que de fato chegaram à posse da verdade absoluta. Mas a
teoria instrumentalista da ciência e a crítica aguçada de Platã o feita por F. C. S. Schiller
mostram que a verdade fixa nã o pode ser encontrada. O tradicional desejo pela certeza
deve, portanto, ser abandonado. Em seu lugar a ciência moderna forneceu algo muito
melhor — a segurança. A química melhora o fornecimento de comida dos povos civilizados.
A física permite a invençã o de telefones, rá dios e aviõ es a jato. Se, portanto, estudarmos
cientificamente os meios e as condiçõ es pelos quais os fins ou valores podem ser tornados
mais seguros, teremos resolvido, no entender de Dewey, os problemas da ética.
Mas qual é o problema da ética? É realmente o problema da segurança? Nã o é, antes, a
escolha do que assegurar? Dewey aponta algumas escolhas políticas bastante definidas. Ele
se opõ e ao laissez-faire , à liberdade e ao individualismo e advoga algum tipo de coletivismo
. Contudo, somos forçados a perguntar se o método científico da sua teoria nos obriga a
escolher um em vez do outro. A ciência fornece meios para qualquer coisa que um homem
possa escolher. Mas pode ela fornecer alguma razã o para se escolher isto em preferência a
aquilo? A questã o principal, portanto, nã o é como assegurar valores, mas como selecioná -
los. Substituir a certeza pela segurança sob essas condiçõ es deve ser um ato de desespero
filosó fico e existencial.
Todavia, a segurança, a reflexã o sobre as condiçõ es e consequências e o menosprezo das
qualidades intrínsecas sã o uma aplicaçã o consistente do paralelismo da ética com a ciência.
Para a ciência formar uma concepçã o, H O, que pudesse produzir experiências mais
2

seguras e mais significativas de umidade, ela deu as costas para a umidade imediatamente
percebida da á gua. As coisas apreciadas devem ser tratadas de maneira similar; sã o
possibilidades de valores a serem alcançados. Dizer que algo é apreciado é equivalente a
dizer que a á gua é molhada. Isso pode ser um fato, mas nã o é um valor. Valor é algo
satisfató rio; e satisfató rio é aquilo que servirá , ou seja, é uma prediçã o sobre o futuro e nã o
uma declaraçã o sobre o presente. Uma declaraçã o sobre o presente — como, por exemplo,
que essa experiência é satisfató ria — apenas faz surgir um problema; admitindo que ela
nos dá prazer, como o prazer deve ser avaliado? É ele um valor ou nã o? É algo a ser
desfrutado? Dizer que o prazer é um valor significa que ele continuará a satisfazer. Ele irá
satisfazer. Uma declaraçã o do fato presente nã o faz nenhuma reivindicaçã o sobre a açã o,
mas um julgamento sobre o que deve ser desejado olha para o futuro e possui uma
qualidade de jure , nã o meramente de facto .
À luz da especulaçã o ética anterior, a distinçã o entre uma mera qualidade de facto e uma
qualidade de jure poderia parecer importante. É possível ver se um prazer nã o irá
satisfazer e outro irá ? Como podemos distinguir o valor que continuará satisfazendo no
futuro daquele que nã o o fará ? E como essa distinçã o pode ser feita sem confortos privados
e razõ es finais?
Dewey observa que, embora os valores devam ser ligados inerentemente a gostos,
preferências ou desejos, eles nã o devem ser ligados a qualquer preferência aleató ria, mas
somente à quelas que forem racionalmente aprovadas apó s uma aná lise. É comum o conflito
entre desejos irrefletidos e esporá dicos e planos escolhidos de forma refletida para fins de
longo prazo. Sobre o primeiro as pessoas costumam dizer “eu gostaria de fazer ou ter isso”,
mas sobre o segundo afirmam com pesar ou determinaçã o “eu deveria fazer isso”. Dewey
precisa levar em conta o “deveria” da moralidade tradicional, e a distinçã o entre de jure e
de facto vai ao ponto. A questã o é se o instrumentalismo pode justificar essa distinçã o. Que
tipo de exame revelará que um gosto deve ser aprovado e outro rejeitado? E na medida em
que Dewey critica a teoria racionalista, sob o argumento de que ela nã o oferece nenhuma
orientaçã o, naturalmente se espera que Dewey forneça a orientaçã o.
Que espécie de exame Dewey tem em mente é algo suficientemente claro — é, pelo menos,
fá cil citar as sentenças pelas quais Dewey acredita ter atendido aos requisitos. De fato,
coloca uma delas em itá lico: “ Julgamentos sobre valores são julgamentos sobre as condições
e resultados dos objetos experimentados; julgamentos sobre o que deveria regular a formação
dos nossos desejos, afetos e prazeres ”. Quando os deveres ou valores entram em conflito, o
dogmatismo tenta construir uma escala de valores. Mas isso, diz Dewey, é uma confissã o de
incapacidade de julgar o concreto. A alternativa a um esquema hierá rquico é o julgamento
por meio das relaçõ es em que os valores ocorrem. É preciso examinar suas causas,
condiçõ es e consequências, suas interaçõ es e conexõ es; quanto mais averiguamos esses
detalhes, mais conhecemos os objetos em questã o e melhor podemos julgar seu valor.
Afirma ele: “Os prazeres que advêm da conduta guiada pela percepçã o sobre as relaçõ es
possuem um significado e uma validade por causa da forma como sã o experimentados.
Esses prazeres nã o devem trazer pesar; nã o geram nenhum sabor residual de amargura”.
Aqui, o argumento de Dewey depende de três suposiçõ es relacionadas: que os prazeres
casuais nã o sã o valores, que os valores sã o meios para fins e que os prazeres escolhidos à
luz das suas relaçõ es nã o devem trazer pesar. Ele dá um exemplo. O aquecimento e a
iluminaçã o e a velocidade dos transportes e da comunicaçã o nã o foram alcançados
enaltecendo-se sua desejabilidade, mas estudando as suas condiçõ es. “Obtido um
conhecimento das relaçõ es, seguiu-se a capacidade de produzir e o prazer resultou ao
natural”.
Se esse exemplo quer mostrar como o método científico pode produzir ideais, ele nã o é
convincente. O método científico indubitavelmente garante a velocidade dos transportes,
mas o prazer e a satisfaçã o nã o decorrem ao natural. A velocidade dos transportes e da
comunicaçã o ajuda a tornar a guerra mais horrível. O conhecimento das relaçõ es e a
capacidade de produzir podem ser dirigidos para fins dolorosos tã o facilmente quanto para
fins agradá veis. Em ambos os casos, os meios sã o valiosos para a produçã o dos fins; e em
ambos os casos o agente pode ter um conhecimento exaustivo das causas, condiçõ es,
consequências, interaçõ es e conexõ es; mas onde é mostrado que o procedimento científico
pode distinguir entre um fim bom e um fim mau? Em outras palavras, nã o deve existir um
valor, um bem, um fim, cuja bondade intrínseca possa motivar uma escolha antes de nosso
conhecimento dos meios, condiçõ es e circunstâ ncias nos levar a assegurá -la? Pode a ciência
justificar ideais?
 
 
Ideais maus
 
É nessa linha de pensamento que a distinçã o entre as qualidades de facto e de jure se torna
claramente necessá ria. Dewey concorda que existem ideais errados. Sem o prazer estético a
humanidade poderia se tornar uma raça de monstros econô micos capazes de usar o lazer
somente em ostentaçõ es e desperdícios extravagantes. Aparentemente, nenhuma
quantidade de conhecimento das interaçõ es e relaçõ es fará dos monstros econô micos um
valor. Mas por que nã o? O acordo de paz da Primeira Guerra Mundial foi feito com a
atençã o mais realista aos detalhes concretos da vantagem econô mica, e Dewey nunca se
cansa de insistir nos detalhes concretos; os objetivos também eram amplamente sociais e
nã o se limitavam ao conforto privado; mas em Versalhes, segundo Dewey, foi a atençã o à
vantagem econô mica distribuída na proporçã o do poder físico que criou os distú rbios
futuros. E presumivelmente isso era ruim. O mal dessa situaçã o nã o surge da ausência de
ideais (tampouco, se diga, de uma ignorâ ncia dos detalhes); ao contrá rio, os maiores males
surgem de ideais errados. Como entã o uma maior atençã o aos detalhes realistas pode
identificar ideais valiosos? Dewey critica duramente a visã o de curto alcance e insiste que
nã o se deve sacrificar o futuro pelo prazer imediato. Mas pode a visã o de longo alcance
resolver o problema se nã o consegue ver longe o bastante para ir além de meios valiosos
para um fim intrinsecamente valioso?
Que os métodos da ciência nã o podem ser aplicados na determinaçã o de princípios éticos
pode ser melhor entendido ao ter-se em mente os resultados específicos que Dewey julga
ter obtido pelos seus métodos. E para tornar a discussã o ainda mais concreta serã o
acrescentados à lista os ideais mencionados por um dos discípulos sinceros e influentes de
Dewey — o professor William Heard Kilpatrick. Em todo o caso, a pergunta deve ser: pode
o método científico mostrar se esse ideal é bom ou mau?
Por um lado, Dewey repudia os objetivos da vantagem privada e unilateral: “uma finalidade
pessoal é algo repulsivo” . A teoria instrumentalista da verdade, reclama ele, tem sido com
demasiada frequência pensada em termos de satisfazer alguma necessidade puramente
pessoal. Isso é um erro. A satisfaçã o que o instrumentalismo fornece, explica Dewey, é “uma
satisfaçã o das necessidades e condiçõ es do problema do qual a ideia, propó sito e método
de açã o surgem. Ela inclui condiçõ es pú blicas e objetivas”.
Superficialmente, pelo menos, isso pode ser admitido. Quer esteja eu desenvolvendo novas
vacinas, quer esteja investindo no mercado de açõ es, há muita objetividade teimosa a levar
em conta. E nesse sentido o problema tem “necessidades e condiçõ es” que devem ser
satisfeitas. Mas o que dizer da escolha prévia entre desenvolver vacinas ou investir no
mercado de açõ es? O primeiro presumivelmente nã o é motivado privada ou pessoalmente
(embora possa sê-lo, é claro) e o segundo é um exemplo tã o bom quanto qualquer
satisfaçã o puramente pessoal. Mas qual procedimento da ciência — seja da ciência
bioló gica, seja da ciência econô mica, para nã o falar da física e da química — demonstra
empiricamente que um fim puramente privado é repulsivo? Há aqui certamente uma
lacuna nã o resolvida entre as premissas de Dewey e a sua conclusã o; e parece que a lacuna
é intransponível. O egoísmo nã o é refutado tã o facilmente.
Se uma rejeiçã o ampla dos objetivos pessoais é algo muito vago, Dewey também possui
ideais mais específicos. Ele menciona saú de, riqueza, amizade, indú stria, temperança,
cortesia, aprendizado e iniciativa, assim como iluminaçã o, aquecimento e transportes. [75]

Essas especificaçõ es sã o de fato suficientemente definidas; e como sã o típicas elas


percorrem um longo caminho para resgatar a ética do pâ ntano dos valores eternos, se nã o
da rigidez das verdades fixas.
Kilpatrick é igualmente específico. A saú de e o vigor físico é um bem que nenhum homem
de mentalidade moderna negaria. Uma personalidade bem ajustada, relacionamentos
pessoais gratificantes, um trabalho significativo em oposiçã o à vida de ó cio, mú sica e vida
social adequadas e uma religiã o nã o sobrenatural sã o exemplos de doze constituintes de
uma boa vida, segundo Kilpatrick. Moralidade é qualquer coisa que faça avançar essa boa
vida. [76]

Outros ideais específicos podem ser inferidos da desaprovaçã o de Kilpatrick do antigo


sistema militar de Esparta e do elogio à Atenas de Péricles. [77]
Ele também se opõ e
explicitamente à discriminaçã o racial; [78]
defende que o laissez-faire é um mal, assim
[79]
como também o americanismo antiquado que acreditava no dever do Governo de proteger
a propriedade privada e salvaguardar os direitos inaliená veis.[80]

Ele se opõ e da forma mais enfá tica à liberdade religiosa; nã o apenas impediria os grupos
religiosos de manterem escolas e faculdades, [81]
como também acredita ser
“antidemocrá tico” permitir que os pais ensinem as doutrinas de sua religiã o aos pró prios
filhos. Aparentemente, a exemplo da Rú ssia, o Governo deveria invadir os lares e forçar a
crença no secularismo humanista.
Duas perguntas, porém: Qual é o método científico que selecionou esses ideais, e qual foi o
procedimento de laborató rio que provou a sua desejabilidade? Ou seriam esses ideais os
ideais maus da intolerâ ncia secular?
 
 
Assassinato
 
Dewey, como se disse antes, reconhece que alguns objetivos sã o maus. Num de seus livros,
afirma que nenhuma pessoa honesta pode se convencer de que o assassinato teria
consequências benéficas, e acrescenta que uma pessoa normal imediatamente se
ressentiria de um ato de crueldade arbitrá ria. Há , no entanto, um grande nú mero de
pessoas, presumivelmente anormais, que apreciam touradas. Mas Dewey aposta nas
pessoas normais, que sã o justas.
Filosoficamente, isso comete uma petiçã o de princípio. Os membros da S. P. C. A. (Sociedade
Para a Prevençã o da Crueldade aos Animais) consideram os fã s de touradas uma raça
inferior da humanidade. Estes, por sua vez, acreditam que aqueles simplesmente nã o têm
um senso normal de diversã o. Sobre que base entã o deve essa discordâ ncia ser resolvida?
Nã o se deve primeiro definir o certo e o bom e só nessa base decidir quem é normal e justo?
Ou podemos simplesmente dizer que essas designaçõ es honoríficas devem ser aplicadas à s
preferências da maioria? A plausibilidade de uma pessoa normal se ressentir da crueldade
arbitrá ria e condenar o assassinato está no fato de que a declaraçã o é hoje verdadeira nos
Estados Unidos por causa de nossa herança cristã . Mas nã o é verdadeira nos países
comunistas. Lá os assassinatos e massacres sã o definitivamente aceitos como tendo
consequências muito benéficas. Ora, se Dewey e Kilpatrick sã o bem-sucedidos em destruir
o cristianismo por terem proibido os pais de dar uma instruçã o religiosa aos filhos, pode
alguém ter certeza de que os massacres ainda serã o considerados errados?
Uma dificuldade aqui é que Dewey assume um acordo moral universal, seja sobre
assassinatos, seja sobre touradas, onde nenhum ou pouco acordo existe; e espera-se que o
leitor aceite a suposiçã o sem questionar. A declaraçã o de Dewey sobre o assassinato e a
crueldade arbitrá ria é nã o apenas factualmente falsa, como também comete uma petiçã o de
princípio, pois em nenhum lugar Dewey produziu evidências científicas de que o
assassinato jamais tem resultados benéficos. Nem podem seus pró prios princípios ser
compatíveis com o que seria uma norma moral fixa, se esta pudesse ser comprovada. A
insistência de Dewey no cará ter experimental de todas as hipó teses prá ticas requer que ele
admita que a crueldade arbitrá ria pode ser um dia o meio mais eficiente para um objetivo
social.
Essa ênfase na discordâ ncia sobre o assassinato, a discordâ ncia entre os toureiros
espanhó is e os puritanos, entre os pais cristã os e Kilpatrick, entre quaisquer dois ideais
incompatíveis, salientam a falha mais séria que existe na filosofia de Dewey. Para resolver
essas discordâ ncias, Dewey deve prometer que a ciência decidirá entre os objetivos dos
pais versus os objetivos dos educadores seculares. Em geral, a suposiçã o de Dewey é que a
ciência pode produzir acordos morais quase universais. Ou, quando menos, a ciência pode
determinar valores. Mas Dewey falhou no teste em seu ponto mais fá cil. Nã o era o
assassinato o exemplo mais claro de mal — um exemplo com o qual toda pessoa justa
concordaria? Mas Dewey nã o conseguiu mostrar como esse julgamento moral pode ser
justificado pelo procedimento científico. De fato, apesar de toda a sua insistência de que a
ciência pode resolver todos os problemas e que os valores só podem surgir ao se relacionar
meios a fins imediatos, Dewey, até onde posso saber, nã o deu um ú nico exemplo dessa
forma de descobrir um valor. Ele parece admitir isso. [82]
Mas nã o é razoá vel pedir apenas
um exemplo?
 
 
Vale a pena viver?
 
Um crítico de Dewey observou que, por mais que o instrumentalismo afirme um fluxo
universal, o sistema tem um absoluto eterno, fixo e imutá vel: o valor da investigaçã o, a
importâ ncia de se resolver problemas. Por trá s dessa verdade fixa está o princípio mais
geral de que vale a pena viver. Certamente, esse ponto nã o deve ser sonegado e ignorado
em silêncio. Ele tem sido matéria de discordâ ncia; demarca uma situaçã o indeterminada.
Ele deveria ser assunto de investigaçã o, exigindo uma soluçã o em termos de alguma ideia
que seja um plano de açã o. Nem tampouco é um problema artificial. Muitos homens o
enfrentam sob vá rias formas.
No século XX, a forma como a morte se torna uma opçã o vívida se materializa para muitos
na opressã o totalitá ria. Milhares arriscaram a vida fugindo pela Cortina de Ferro de arame
farpado e balas de metralhadora. Outros milhares encontraram a morte na declaraçã o
hú ngara pela liberdade. Sem dú vida, todos teriam preferido viver; mas ao arriscar a vida
mostraram que no seu entender nã o valia a pena viver sob o comunismo. Há também um
nú mero menor de pessoas que cometeu suicídio. E assim, também, outros que cometeram
suicídio sem terem sido levados a isso por uma tal opressã o. Muitos estoicos decidiram que
era melhor morrer do que viver. Também nos Estados Unidos a taxa de suicídio aumentou
consideravelmente nos ú ltimos 50 anos. O valor da vida, portanto, nã o é um problema
artificial, e o instrumentalismo é obrigado a defender sua atitude otimista ou pelo menos
meliorista. O cristianismo, com sua base revelacional, afirma que o suicídio é imoral; mas o
que uma filosofia empírica, descritiva, pode dizer?
Essa questã o do suicídio nã o deve ser entendida como apenas um detalhe entre muitos.
Nã o é como se tivéssemos estimado os méritos do roubo, da mentira, do adultério, do
assassinato e — ah! sim, há mais um — do suicídio. Ao contrá rio, a mençã o ao suicídio
busca colocar em evidência o pré-requisito absolutamente indispensá vel de todas as
demais decisõ es éticas. Roubo versus honestidade e crueldade versus bondade só sã o
escolhas possíveis se primeiro decidimos continuar vivendo . Sobre que base, entã o, pode-
se demonstrar que a vida vale o tempo e o esforço?
O valor da vida e, portanto, o modo de vivê-la quando o suicídio está descartado nã o é a
concordâ ncia exuberante que Dewey parece assumir. Tudo o que Dewey tã o
entusiasticamente assume como certo é vigorosamente negado e atacado por pensadores
de renome mundial e porçõ es significativas da raça humana. O budismo, por exemplo,
defende que a dor é um elemento necessá rio no processo universal; o desejo é uma causa
de dor; e a supressã o do desejo, completada na inconsciência do Nirvana, o ú nico remédio
para a dor. Um budista provavelmente diria que esses princípios sã o conclusõ es tã o ó bvias
a partir da observaçã o do mundo que só os deliberadamente cegos poderiam deixar de vê-
los.
No mundo ocidental, essa visã o foi adotada por Arthur Schopenhauer. É verdade, nem os
budistas nem Schopenhauer acreditavam que o suicídio é a soluçã o adequada. Todavia, de
forma clara, é preciso ter em mente que o tipo de vida que resulta de um princípio
pessimista deve ser muito diferente daquele baseado num meliorismo confiante.
Consequentemente, uma primeira conclusã o é inescapá vel. É preciso julgar que aqueles
moralistas que têm procedido como se todos os homens concordassem sobre o que é
desejá vel falharam. Eles devem ser forçados a abrir os olhos e enfrentar os problemas
bá sicos. Nã o apenas devem ser forçados a explicar por que, em vez da brutalidade e do
totalitarismo, preferem certos elementos resgatados da moralidade cristã ; também devem
ser forçados a justificar a vida em si. Isso eles nã o fizeram, e portanto, seus sistemas sã o
fracassos.
 
 
Uma crítica final
 
Voltando à tese principal de Dewey de que a ciência pode resolver o problema da
moralidade, a crítica que tem controlado o argumento até aqui é dupla. Primeiro, o método
científico nã o justifica os ideais de Dewey e Kilpatrick; e, segundo, o método científico nã o
pode justificar nenhum ideal.
Embora o primeiro ponto seja de menor importâ ncia ló gica, nã o deixa de ter um valor ad
hominem e pode, além disso, encontrar talvez uma mais pronta aceitaçã o. Porque os
cientistas, assim como o cidadã o comum, podem claramente ver que nã o existe nada nos
métodos de laborató rio que exija, como ideal, a supressã o governamental da religiã o.
É verdade que há um “cientificismo” adotado pelos comunistas que defende que a religiã o é
um ó pio. Esse ateísmo restringiria todos os objetivos e ideais a este mundo; nã o haveria um
reino sobrenatural, uma vida apó s a morte, um mundo futuro. E como essa seria uma
verdade absoluta e fixa, os comissá rios estariam justificados em impedir os pais de ensinar
religiã o aos filhos. Mas o argumento que leva de uma descriçã o de métodos laboratoriais à
conclusã o de que o secularismo é desejá vel nã o existe.
Ainda que se pudesse mostrar — como de fato nã o pode — que os métodos de laborató rio
validamente implicam um totalitarismo secularista, este ú ltimo nã o se tornaria
automaticamente um ideal. Em tal caso muitas pessoas optariam por mais liberdade e
menos ciência. Os desconfortos físicos de uma sociedade pré-científica sã o menores se
comparados à tortura espiritual de uma burocracia inquisitorial.
A lacuna entre as premissas do método científico e os ideais que Dewey e Kilpatrick
oferecem como conclusõ es nã o é menos real, ainda que um pouquinho menos evidente, no
caso da saú de e dos transportes do que no caso da liberdade religiosa. A saú de boa e o
transporte rá pido nã o se tornaram desejá veis por qualquer aumento da técnica científica;
nã o foram em primeiro lugar escolhidos como ideais por causa de qualquer conhecimento
científico incipiente. Obviamente, a ciência tem feito maravilhas na medicina e aumentado a
velocidade dos transportes além da imaginaçã o até mesmo de Jú lio Verne; mas a ciência
nã o leva os homens a desejarem isso nem torna essas coisas desejá veis. Ao contrá rio, é
porque os homens os escolheram como ideais, que os cientistas começaram a buscar meios
de garanti-los.
De fato, quanto mais se enfatizar que a ciência é instrumental, mais evidente será que ela
nã o pode estabelecer fins ou ideais.
Essa é a segunda parte da crítica final. O método científico nã o pode produzir ideais. A
ciência é instrumental. Se um grupo de educadores quer extinguir a liberdade religiosa,
uma atençã o científica aos detalhes e relaçõ es entre a psicologia, a sociologia e a política irá
ajudá -los nesse fim. A mesma técnica científica poderá ser usada para uma finalidade
oposta. As técnicas da medicina podem curar doenças que eram geralmente fatais um
século atrá s; mas o mesmo conhecimento técnico pode com a mesma facilidade ser usado
para produzir essas doenças. De fato, a pesquisa sobre o câ ncer no presente está
largamente interessada na produçã o do câ ncer. Mas nenhuma técnica instrumental, seja
médica, seja política, pode fornecer qualquer base para decidir como usá -la.
Portanto, a tentativa humanista contemporâ nea de resolver os problemas da ética pela
aplicaçã o de métodos científicos deve, felizmente, ser julgada um fracasso.
Visto também que essa crítica engloba teorias seculares anteriores, como o utilitarismo, o
resultado parece ser que uma consideraçã o mais simpá tica deveria ser dada à revelaçã o
divina do que habitualmente ocorre nas universidades do nosso país. Para uma discussã o
da ética cristã , portanto, nó s agora nos voltamos.
 
 
É TICA CRISTÃ
 
Ao final do primeiro capítulo foi dito que soluçõ es ou conclusõ es só podem ser baseadas em
premissas definidas. Observaçõ es dispersas, percepçõ es místicas e generalizaçõ es mal
definidas nã o fazem nenhum apelo ló gico. O presente volume, portanto, está baseado na
verdade da Bíblia; e, por causa de interpretaçõ es defeituosas e formulaçõ es inconsistentes,
o sentido da Bíblia é determinado pela Confissã o de Fé de Westminster. Nenhum pedido de
desculpas é feito para esse procedimento; é apenas questã o de honestidade declarar as
premissas do argumento.
 
 
O legislador divino
 
É sem dú vida universalmente reconhecido que a Bíblia apresenta Deus como o governador
moral e juiz do mundo. A Bíblia contém ordens, preceitos, leis; advertências, garantias,
exortaçõ es; a ameaça de puniçã o e a promessa do Céu. Para o presente propó sito, todavia,
outra prerrogativa de Deus requer ênfase. Deus nã o é apenas governador e juiz; é antes
disso legislador. É sua vontade que estabelece a distinçã o entre o bem e o mal, o certo e o
errado; é sua vontade que estabelece as normas da conduta reta . Para aqueles que nã o
estã o familiarizados com a histó ria do assunto, esse pensamento deve ser um pouco
desenvolvido.
No Eutífron de Platã o, Só crates pergunta ao jovem o que é piedoso ou reto. Apó s
esclarecida a usual confusã o entre exemplo e definiçã o, Só crates obtém a resposta de que
piedade é aquilo que é caro aos deuses. O politeísmo grego deve se preocupar com a
possibilidade de que os deuses discordem, mas essa parte do diá logo nã o é aqui necessá ria.
De importâ ncia permanente é a pergunta seguinte de Só crates: um ato é santo e piedoso
porque é caro aos deuses, ou um ato é caro aos deuses porque é santo?
Neste ponto o tratamento da dificuldade por Platã o se torna extremamente instrutivo.
Utilizando o método indutivo comum dos primeiros diá logos, Só crates continua: falamos de
ser conduzidos e de conduzir, de ser liderados e de liderar, de ser vistos e de ver; assim
também, concebemos ser amados e amar. Diga-me agora, diz Só crates, uma coisa que é
conduzida é uma coisa conduzida porque alguém a conduz ou alguém a conduz porque é
uma coisa conduzida? Novamente: uma coisa que é vista é uma coisa vista porque alguém a
vê ou alguém a vê porque é uma coisa vista? As respostas, é claro, sã o ó bvias. Assim
também, uma coisa é amada ou querida porque alguém a ama; nã o é amada porque é
querida.
Aqui pode ser melhor fazer a citaçã o exata:
 
     Que diremos entã o do sagrado, Eutífron? Admite você que é algo amado
por todos os deuses, nã o?
     Sim.
     É amado pelos deuses porque é sagrado ou por algum outro motivo?
     Nã o; é por esse motivo.
     Portanto, é amado porque é sagrado; mas nã o é sagrado porque é amado.
     Assim parece.
     Mas o que é caro aos deuses e querido por eles é assim porque eles o
amam.
     Como poderia ser diferente?
     Entã o segue-se que o que é caro aos deuses, meu Eutífron, nã o é a
definiçã o de piedade.
 
O que é notá vel nessa conversa é a completa ausência de argumento sobre o ponto
essencial. Diferente do que ocorre nos outros diá logos, a induçã o aqui nã o tem nenhuma
conexã o com a conclusã o. De fato, se desenvolvida, a induçã o levaria exatamente à
conclusã o oposta. Platã o meramente afirma que os deuses amam a piedade porque é
piedade. Nenhuma razã o é dada. Ele simplesmente nã o conseguiria imaginar alguém
mantendo uma opiniã o diferente .
Evidentemente, a conclusã o é consistente com a cosmovisã o de Platã o. Em Timeu , o
demiurgo — a divindade pessoal que modela este mundo físico do espaço caó tico — recebe
seu plano de operaçã o a partir de um mundo de ideias com existência independente. O
criador do mundo visível nã o é o criador dessas ideias. Naturalmente, Platã o argumentou
longamente para demonstrar a teoria das ideias, mas o relacionamento delas com a
divindade pessoal já parece ter sido decidido por ocasiã o dos primeiros diá logos.
No cristianismo, e até mesmo em Fílon de Alexandria, isso é invertido. Deus é supremo e
quaisquer ideias que possam ser necessá rias dependem do que Deus quer pensar. Deus é o
legislador e a piedade é determinada pelo seu decreto preceptivo.
 
 
Ética e teologia
 
Antes de essa visã o cristã ser elucidada, é preciso dar um exemplo da posiçã o platô nica em
forma moderna para aumentar o contraste. Immanuel Kant, embora nã o aceitasse a teoria
das ideias, deixou muito claro que a teologia nã o pode servir de base para a ética. Com seu
imperativo categó rico, esperava distinguir entre um ato moral e um ato imoral por uma
aná lise puramente ló gica da má xima do ato. Deveria uma pessoa, pergunta ele, fazer uma
promessa com a intençã o secreta de quebrá -la? É permitido fazer uma promessa
unicamente com o propó sito de evitar um dissabor no presente?
Tais questõ es sã o respondidas quando se faz uma tentativa de universalizar a má xima
envolvida. Neste caso a má xima seria: “É certo fazer uma promessa sem a intençã o de
cumpri-la para escapar de um constrangimento no presente”. Pode isso ser universalizado?
Pode ser tornado numa lei universal sem autocontradiçã o? Nã o, diz Kant, nã o pode; porque
se todos fizessem promessas insinceras, essas promessas nã o serviriam mais ao propó sito
de evitar constrangimentos. Ninguém mais seria enganado por elas. Elas só funcionam no
pressuposto de que sã o sinceras. Portanto, a má xima é autocontraditó ria ou autodestrutiva.
Esse, para Kant, é o critério de certo e errado. Ele nã o faz nenhum apelo a ordens,
recompensas ou puniçõ es divinas.
Ao contrá rio, embora a teologia nã o faça nenhuma contribuiçã o para a ética, a ética é uma
pressuposiçã o da teologia. Com que seriedade se deve tomar as afirmaçõ es teoló gicas de
Kant e se ele acreditava ou nã o num Deus pessoal é algo que pode ser debatido; mas
havendo uma teologia, ela teria de usar a ética como base. O conhecimento de Deus deve
ser derivado (se de fato pode sê-lo) de um conhecimento da moralidade.
Kant, evidentemente, nã o era cristã o. Mas, em razã o de certas circunstâ ncias histó ricas,
tem sido possível escritores cristã os adotarem uma forma de kantismo ou platonismo na
defesa do cristianismo.
As circunstâ ncias histó ricas sã o, por breve tempo, o sucesso do cristianismo no mundo
ocidental. Sua influência é difusa e seus ensinos morais foram amplamente aceitos. A tal
ponto foi a moralidade cristã aceita como o ideal, que os escritores argumentaram: visto
que os padrõ es cristã os sã o os mais elevados, a religiã o cristã deve ser verdadeira. A
retidã o da ética prova a verdade da teologia. Essa defesa do cristianismo contra os seus
inimigos se apoia na suposiçã o da sua excelência moral.
Mas se a premissa é negada, o que acontece com a apologética? Pode ter havido momentos
e lugares em que ninguém pensaria em negar a excelência dos padrõ es cristã os. Visto,
porém, que isso nã o aconteceu na China, por exemplo, dificilmente o argumento poderia
parecer convincente aos chineses. Hoje a China está muito mais pró xima de nó s. Nã o há , de
fato, por que insistir em antigas naçõ es pagã s. Filó sofos de fala inglesa contestam
diariamente a excelência da moralidade cristã . Nã o é necessá rio aludir a Nietzsche — ele
escreveu em alemã o; os humanistas que foram discutidos acima sã o exemplos igualmente
bons. Quando esse fato é reconhecido, é preciso admitir que o argumento a partir da ética
cristã está invertido. Nã o se pode argumentar pela verdade do cristianismo com base na
sua ética; sua ética é que deve ser defendida com base na sua verdade teoló gica. A ética nã o
é uma premissa, mas uma conclusã o. A teologia é o seu fundamento.
Ninguém com alguma formaçã o cristã , suponho eu, buscaria menosprezar a moralidade.
Todavia, é bem possível exagerar a tal ponto a importâ ncia dela, a tal ponto entender mal
seu lugar relativo na filosofia, que só pode resultar disso uma confusã o moral e teó rica.
Essa ênfase excessiva na moralidade, assim parece, é uma importante causa contributiva na
ascensã o do modernismo. Insistiu-se na autoridade da consciência; uma consciência moral
foi desenvolvida; instituiçõ es éticas foram buscadas. E à medida que esses aspectos da
natureza humana — por mais indispensá veis que sejam — foram sendo continuamente
trazidos à frente, acabaram usurpando a posiçã o de juiz supremo.
Um exemplo interessante, instrutivo e importante desse tipo de raciocínio — tirado do
auge do seu vigor — é encontrado em Newman Smyth. Apó s citar um teó logo puritano
[83]

que disse “A piedade, portanto, que é a prá tica da Verdade divina, é a medida de todas as
verdades intelectuais”, Smyth continua, talvez além da intençã o do puritano, e diz:
 
A velha teologia está sempre se renovando na influência vitalizadora da ética
[…] Há razõ es suficientes para reexaminar e duvidar de qualquer ensino
tradicional ou palavra recebida de doutrina se sentirmos que perturba ou
confunde a consciência cristã de uma época. Nada pode perdurar como
verdade na teologia se nã o tiver provado sua autenticidade na busca sempre
renovada pelo sentido moral cristã o […] E tampouco podemos permitir na
ética cristã qualquer crença dogmá tica que ponha restriçõ es ao princípio
ético cristã o; como, por exemplo, o pressuposto de que a moralidade depende
da vontade divina […] A ética cristã nã o pode, em razã o de qualquer suposto
interesse da teologia, consentir em cometer suicídio.
 
O apelo de Newman Smyth aos fatos observá veis de uma consciência cristã deixa sem
resposta a dificuldade de distinguir entre uma consciência cristã e uma nã o cristã . Quando
essa questã o é levantada, a teologia deve entrar como o fator decisivo. O procedimento de
Smyth é incapaz de enfrentar essa questã o porque Smyth negligencia a revelaçã o bíblica.
Ele deve assumir que as normas éticas podem ser de alguma forma destiladas a partir da
consciência, mas nã o percebe que essas normas jamais foram aceitas onde a teologia
bíblica nã o tenha sido primeiro pregada. E, por fim, sua recusa em fazer com que o
princípio ético dependa da vontade divina o coloca, neste aspecto pelo menos, ao lado de
Platã o e Kant.
Em oposiçã o a tudo isso, a visã o cristã — isto é, a visã o bíblica — é que Deus é o legislador.
Nã o é a lei que é suprema, e sim o legislador.
 
 
Soberania divina
 
Se, entã o, o Deus pessoal é supremo e todas as leis dependem da sua ordenança, segue-se
que nã o há uma lei superior que possa limitar a soberania de Deus. A maior parte das
pessoas acha fá cil conceber Deus como tendo criado ou estabelecido leis físicas por fiat
divino. Ele poderia ter criado um tipo diferente de mundo, se assim desejasse. Nã o parece
ser um exercício muito grande de imaginaçã o conceber um mundo em que os pontos de
congelamento sã o arranjados de modo a termos de colocar á gua no radiador para impedir
o á lcool de congelar. E por que nã o poderia o chumbo, como a á gua, expandir no
resfriamento? Também nã o incomoda alguns teó logos supor que vá rios detalhes do ritual
mosaico poderiam ter sido diferentes. Ao invés de exigir que os sacerdotes carregassem a
arca sobre os ombros, Deus poderia ter proibido isso e ordenado que ela fosse carregada
numa carroça puxada por bois. Mas, por alguma razã o peculiar, as pessoas encontram
dificuldade para aplicar a mesma consideraçã o na ética. Ao invés de reconhecer Deus como
soberano na esfera moral, elas querem sujeitá -lo a alguma lei platô nica, superior,
independente. Isso é incoerente.
Todavia, neste ponto algumas pessoas muito conscientes levantam uma objeçã o
aparentemente séria à visã o aqui esboçada. Se essa visã o fosse verdadeira, dizem, a
honestidade poderia nã o ser a melhor política. Se, a exemplo das leis da física, a moralidade
depende totalmente da ordenança de Deus, entã o possivelmente roubar seria certo e o
certo seria errado. Porém, o fato de que nos acostumamos a certos padrõ es éticos nã o é
razã o para acreditar que Deus deve necessariamente ter feito o mundo dessa maneira.
Ainda que nossas opiniõ es morais estejam corretas, acreditar que as coisas sã o assim nã o é
mais razoá vel do que acreditar que nosso conhecimento de física justifica colocarmos Deus
sob a coaçã o de leis físicas. Certamente, neste mundo, a honestidade é a melhor coisa. Mas é
a melhor coisa justamente porque Deus fez o mundo dessa maneira. Tudo o que Deus faz é
certo pela razã o de fazê-lo ; e se nã o tivéssemos nenhum conhecimento de Deus, nã o
poderíamos adivinhar que espécie de padrõ es morais ele poderia estabelecer para algum
mundo hipotético que atualmente nã o existe. A razã o por que nos opomos ao roubo ou a
qualquer outro pecado é que aprendemos que isso é contrá rio à ordenança de Deus.
Devemos aprender o plano de Deus primeiro e desenvolver nossa moralidade depois.
Devemos ajustar nossa ética à nossa teologia e nã o vice-versa. Nã o devemos argumentar a
partir de nossos padrõ es morais pela verdade da Bíblia, mas argumentar a partir da
verdade da Bíblia pela moralidade que a Bíblia sustenta.
Uma palavra de cautela é aqui necessá ria. Essa discussã o nã o tem particular relevâ ncia
para a imutabilidade divina. Argumentamos que Deus poderia ter criado um mundo físico
diferente, se assim desejasse. Nada foi dito, de uma forma ou de outra, sobre se Deus
poderia tê-lo desejado. Possivelmente, a imutabilidade de propó sito e a eternidade dos
decretos implicam que este é o ú nico mundo possível — um toque calvinista a uma frase
spinozista. Mas sendo assim, e se nã o faz sentido supor que Deus poderia pensar de uma
forma diferente, permanece o argumento de que a moralidade, tanto quanto a física, é o que
é porque Deus pensa assim. Como costumavam dizer os puritanos, o decreto de Deus é
simplesmente a decretaçã o de Deus.
Antes que o mínimo de evidência bíblica para essa visã o seja apresentado, pode-se
salientar que a discussã o nã o é um eco morto de um antigo passado platô nico. E nã o foi
encerrada por Kant e Newman Smyth. Bem ao contrá rio, está viva hoje e continuará assim
pelo futuro pró ximo.
 
 
Um exemplo contemporâneo
 
Apenas um exemplo será dado. Dr. Edward John Carnell escreve o seguinte:
 
Se nã o podemos prever o cará ter de Deus usando elementos derivados do
ambiente moral e espiritual, entã o nã o podemos também julgar o cará ter dos
representantes de Deus, já que essa decisã o, embora a um passo de distâ ncia,
envolve a mesma dificuldade. A menos que possamos prever
significativamente os padrõ es divinos de retidã o, pode acontecer que o livro,
a igreja ou a casta sacerdotal que é menos moral nos padrõ es humanos seja o
mais moral nos padrõ es divinos; e somos novamente deixados no ceticismo.
[84]

 
Essa é a posiçã o contra a qual o argumento anterior foi dirigido. Em certo sentido, a citaçã o
nã o traz nada essencialmente novo. Mas num outro aspecto, há algo que merece ser
considerado. É a declaraçã o de um evangélico professo do século XX. Ora, a despeito de
como tenha sido com cristã os sinceros de épocas anteriores, se esperaria hoje de um
escrito que ele salientasse como esse ponto de vista tem sido frequentemente usado na
oposiçã o ao cristianismo. Tal era de fato a intençã o de John Stuart Mill, a quem na verdade
o Dr. Carnell elogia algumas pá ginas antes.
Assim também, precisamente por esse método é que Mary Baker Eddy buscou refutar a
doutrina da expiaçã o. A propiciaçã o, que o Dr. Carnell defende, parecia algo impossível para
a senhora Eddy. “Quem acredita que a ira é justa ou que a divindade é apaziguada pelo
sofrimento humano nã o entende Deus”. [85]
Nã o pode isso com justiça ser parafraseado
como “Quem acredita que a ira é justa nã o previu significativamente os padrõ es divinos de
retidã o”?
Da mesma forma, Edwin A. Burtt condena Cristo porque a moral de Cristo é inferior ao
socialismo humanista de Burtt.
A possibilidade de que o livro, a igreja ou a casta sacerdotal que é menos moral nos padrõ es
humanos seja o mais moral nos padrõ es divinos é uma objeçã o sem força. Considere uma
mulher hindu devota do século passado que, com uma consciência tã o limpa de ofensa
quanto a de Paulo ao perseguir a igreja primitiva, estivesse sacrificando seu bebê ao seu
deus pagã o. Segundo seus padrõ es humanos, ela estava fazendo o certo, e omitir-se do
dever lhe pareceria algo irreligioso. Finalmente, um missioná rio cristã o vem a ela e tenta
convencê-la de que o livro, a igreja e a casta sacerdotal que ela considera os mais morais
nã o sã o assim, mas que pelos padrõ es divinos o que ela pensa ser irreligioso é na verdade
certo. O que mais poderia o missioná rio fazer? É isso entã o uma objeçã o ao cristianismo?
Na verdade, é de esperar que a moral cristã difira do que o homem natural prevê .
 
 
Abraão, o pai de todos nós
 
Para fazer um claro contraste entre a objeçã o platô nica e a posiçã o bíblica e dar pelo menos
um mínimo de suporte bíblico direto para a soberania de Deus na ética, nenhum exemplo
melhor pode ser encontrado do que Abraã o. Abraã o se tornou um assunto favorito de
discussã o em tempos recentes. À s vezes ele é usado para se provar a superioridade da
cultura suméria sobre a de Canaã . Supostamente, o sacrifício humano em Ur era algo
superado, mas na Canaã mais rude ele ainda era praticado. Abraã o, portanto, elevou a
cultura de Canaã ao nã o ter sacrificado Isaque. Mas se isso fosse verdade, a vontade inicial
de Abraã o de sacrificar Isaque seria inexplicá vel. Combinado ou nã o combinado com esse
motivo socioló gico pagã o, outros autores, dentre os quais primeiro Kierkegaard, viram um
conflito entre a religiã o e a ética. Diz um escritor:
 
Obviamente, a ordem de Deus para Abraã o sacrificar seu ú nico filho foi
imoral. E ela nã o constrange apenas o homem moderno; também deixou
Abraã o perturbado. E se considerarmos a ordem simplesmente como um
teste que Deus fez a Abraã o, moralizando assim a histó ria, nã o teremos
enfrentado o problema levantado pela ordem imoral de Deus e sua aprovaçã o
da obediência de Abraã o a ela.
 
É verdade que o escritor citado faz na sequência algumas declaraçõ es que modificam em
certo grau a primeira impressã o dessas frases. Mas todas essas interpretaçõ es complicam a
histó ria de Abraã o ao lhe atribuir elementos que nã o estã o nela. Em particular, um conflito
— um falso conflito entre religiã o e ética — é produzido pela pressuposiçã o de que a
ordem de Deus de sacrificar Isaque era imoral. Onde o texto faz essa afirmaçã o? Pode ser
verdade que os sumérios consideravam o sacrifício humano algo imoral, mas a questã o nã o
diz respeito à opiniã o suméria. A questã o é: a ordem de Deus era imoral?
O pró prio texto nos fala que Deus disse a Abraã o “Toma teu filho, teu ú nico filho, Isaque, a
quem amas […] oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes” (Gn 22.2). Ora, se
Abraã o tivesse subscrito aos princípios do professor Carnell, se tivesse tornado a teologia
subsidiá ria à ética, se tivesse julgado a ordem por uma “previsã o” dos padrõ es divinos de
retidã o, ele teria concluído que essa sugestã o nã o estava vindo de Deus, mas de Sataná s. Se
nã o era a voz de Sataná s, se nã o se podia prever a natureza das ordens divinas, entã o a voz
menos moral pelos padrõ es humanos poderia ser a mais moral pelos padrõ es divinos; e
como isso nã o pode ser verdade, a ordem de sacrificar Isaque nã o veio de Deus.
Abraã o, é claro, nã o argumentou nesses termos. Ao contrá rio, reconheceu que a voz era de
Deus e, portanto, estava preparado para obedecer, qualquer que fosse a ordem. Sem
dú vida, Deus havia anteriormente proibido o sacrifício humano; e enquanto essa ordem
permanecesse em vigor, o sacrifício humano seria um pecado. Mas se agora, por algum
período indeterminado, Deus ordena o sacrifício humano, ele se torna obrigató rio e
correto. Nenhum padrã o ético formulado através da observaçã o empírica, nã o, nem mesmo
uma ordem anterior do pró prio Deus, é suficiente para se repudiar a ordem seguinte de
Deus.
Isso, no entanto, nã o significa que ficamos com um ceticismo moral, como afirma o Dr.
Carnell. Ficamos com as ordens definidas de Deus. Temos sua completa vontade preceptiva
nas Escrituras. Claro, se ceticismo significa que o homem nã o pode estabelecer as normas
da moralidade sem uma revelaçã o sobrenatural, que assim seja. Supõ e-se que as aná lises
das seçõ es anteriores tenham confirmado essa conclusã o. Nem o utilitarismo, nem Kant,
nem Dewey podem prever os padrõ es divinos de retidã o. Mas o fracasso da ética nã o-
revelacional nã o deixa o homem sem um conhecimento do certo e do errado . Se ceticismo
significa que o homem nã o pode ter nenhum conhecimento, entã o um apelo à revelaçã o,
com a sua subordinaçã o da ética à teologia, nã o é ceticismo. Mas tudo o mais é.

DEUS E O MAL
 
 
Nos bastidores de toda cosmovisã o religiosa se esconde um espectro assustador. Um autor
pode se abster de mencioná -lo na esperança de que seu pú blico se esqueça de pensar a seu
respeito; mas nenhuma posiçã o estará completa e nenhuma poderá ser aceita sem
hesitaçã o até que faça um pronunciamento claro sobre o problema do mal.
 
A primeira desobediência do homem e o fruto
dessa á rvore proibida, cujo gosto letal
trouxe para o mundo a morte e todos os males…
canta, Musa Celeste! [86]
 
O que precisamos, todavia, nã o sã o os versos altissonantes de um grande poeta nem sequer
a inspiraçã o de uma musa. Pensamento criterioso, definiçõ es cristalinas e consistência até o
fim, estes sã o os pré-requisitos do progresso. O objetivo deste capítulo é encarar a questã o
do mal honestamente, sem evasivas, e mostrar que, embora vá rias outras visõ es se
desintegrem nesse ponto, o sistema conhecido como calvinismo e expresso na Confissão de
fé de Westminster fornece uma resposta satisfató ria e perfeitamente ló gica .
 
 
Exposição histórica
 
Para apresentar a questã o de forma clara e expor as principais dificuldades, será feita uma
seleçã o representativa das discussõ es histó ricas. Na antiguidade, o mal era quase sempre
visto do ponto de vista de alguma espécie de religiã o; no presente, com mais frequência,
Deus é deixado fora do quadro. Embora as pressuposiçõ es deste capítulo sejam totalmente
teístas, algo será dito das visõ es nã o teístas, quando menos para mostrar que o problema
do mal nã o desaparece com a aceitaçã o do secularismo.
O problema, tal como habitualmente considerado, é terrivelmente simples. De que forma a
existência de Deus pode ser harmonizada com a existência do mal? Há muitas espécies de
males. Diz-se que um agente da polícia secreta soviética se vangloriava de ter refinado a
tortura a ponto de conseguir quebrar cada osso do corpo de um homem sem matá -lo. E
será que existe algum Deus que lá do alto baixe os olhos para assistir a esse tipo de coisa?
Para aqueles que sã o inclinados à religiã o, o enigma tem sido encarado com temor e
tremor; os irreligiosos — Voltaire, por exemplo — têm-no cuspido com um brado de
triunfo como o veneno de á spides. Mas qualquer que seja a forma assumida, a pergunta é
inevitá vel: de que forma a existência de Deus pode ser reconciliada com a existência do
mal?
Lactâ ncio relata a prevalência do tema no período inicial do cristianismo. Se Deus é bom e
quer eliminar o pecado, mas nã o pode, nã o é onipotente; mas se Deus é onipotente e pode
eliminar o pecado, mas nã o o elimina, nã o é bom. Deus nã o pode ser onipotente e bom ao
mesmo tempo.
Embora o conceito cristã o de Deus como onipotente agrave a dificuldade, o problema do
homem com o mal — seu problema intelectual com o mal — nã o iniciou com o
cristianismo. Dor, doença, calamidades, injustiça e males têm afetado pessoas de qualquer
religiã o. Algumas religiõ es, dentre elas o zoroastrismo, concluíram que o universo deve ser
obra de duas divindades independentes e conflitantes. Nem o deus bom nem o deus mau é
onipotente, e nenhum conseguiu até agora destruir o outro. Aparentemente, isso parece
explicar a mistura de bem e mal que há no mundo; mas dualismos irredutíveis e definitivos
como esse dã o origem a mais enigmas que muitos filó sofos têm considerado igualmente
insolú veis.
Em A República , Platã o tenta explicar o mal na suposiçã o de que Deus nã o é a causa de
tudo, mas só de algumas poucas coisas — poucas porque os nossos males excedem de
longe o nosso bem. Em Timeu ele nã o foi tã o pessimista, mas ainda sustentava a existência
de um espaço eterno e caó tico que o Demiurgo nã o consegue controlar totalmente. Em
ú ltima aná lise, portanto, é preciso dizer que Platã o defendia um dualismo irreconciliado.
Porque sua filosofia é tã o absolutamente irreligiosa, Aristó teles é de certa forma uma
exceçã o na antiguidade. Ele concebia Deus de uma forma que a relaçã o de Deus com o mal
ou com os esforços morais dos homens nã o tinha quase importâ ncia. O Motor Imó vel é em
certo sentido a causa de todo movimento, mas, em vez de ser uma causa ativa, causa o
movimento por ser o objeto de desejo do mundo. Ele nã o exerce nenhum controle
voluntá rio sobre a histó ria. Embora esteja constantemente pensando, nã o parece pensar a
respeito do mundo ou, quando muito, só conhece uma parte do passado e absolutamente
nada do futuro.
Naturalmente, o grande filó sofo cristã o Agostinho lutou contra essa dificuldade. Sob
influência neoplatô nica, ensinou que tudo o que existe é bom; o mal, portanto, nã o existe —
é metafisicamente irreal. Sendo nã o existente, nã o pode ter uma causa, e Deus, portanto,
nã o é a causa do mal. Quando um homem peca, é porque escolheu um bem inferior, em vez
de um bem mais elevado. Essa escolha também nã o tem uma causa eficiente, embora
Agostinho lhe atribua uma causa deficiente. Desse modo, entende-se que Deus foi
absolvido. Agostinho era reconhecidamente um grande cristã o e um grande filó sofo.
Adiante neste capítulo falaremos mais a seu respeito. Mas aqui ele foi infeliz. Causas
deficientes, se é que isso existe, nã o explicam por que um Deus bom nã o abole o pecado e
assegura que os homens sempre escolham o bem maior .
Essa questã o do mal nã o é uma relíquia antiquada que se dissipou com Zoroastro,
Aristó teles ou Agostinho. O século XX nã o pode se esquivar dela. Serã o, portanto, colhidas
algumas ilustraçõ es de escritores contemporâ neos. Hoje, todavia, grande parte da
discussã o é de natureza secular. Ou a religiã o é ignorada, ou o cristianismo é em alguns
casos enfaticamente atacado.
Lucius Garvin, John L. Mothershead e Charles A. Baylis escreveram, cada qual, um livro
sobre ética. Esses livros sã o razoavelmente bem conhecidos nas faculdades norte-
americanas de hoje. Garvin traz uma seçã o muito breve sobre ética teoló gica, com uma
conclusã o sugerindo que Deus nã o é particularmente importante; no segundo livro, o
índice de nomes nã o traz nem mesmo uma entrada para Deus; e no terceiro parece que
Deus só é mencionado numa pá gina. Todavia, embora nã o dê nenhuma atençã o para a
onipotência, a ética secular ainda deve considerar o determinismo e dizer algo sobre a
responsabilidade. Um exemplo desse tipo de pensamento irá elucidar alguns detalhes do
argumento principal e também servirá como parte de uma seleçã o histó rica.
O professor Baylis da Universidade de Duke dá o que muitos acreditarã o ser um argumento
bastante plausível. Se o determinismo é verdadeiro, diz ele, entã o as decisõ es de um
indivíduo refletem o seu cará ter. O cará ter do homem é a causa e a explicaçã o das suas
açõ es. Entã o, se conhecemos a fraqueza específica no cará ter de um homem, podemos ser
capazes — mediante elogios, promessas, ameaças ou puniçõ es — de modificar seu cará ter,
melhorar o homem e produzir assim decisõ es melhores. A culpa e a puniçã o, portanto,
cujos efeitos reformam o indivíduo, sã o justificá veis; mas a puniçã o retributiva nã o será
justificá vel se o determinismo for verdadeiro. As causas remotas do cará ter de um homem
estã o no passado longínquo e jamais estiveram sob seu controle. Assim, o homem nã o é
responsá vel por elas, e a puniçã o retributiva é, portanto, ilegítima. O Dr. Baylis, além disso,
insiste que o indeterminismo também torna ilegítima a puniçã o retributiva; e o que é pior,
o indeterminismo só pode fornecer uma justificaçã o dú bia para a puniçã o corretiva.
Outro professor na Universidade de Duke é um exemplo daqueles que atacam o
cristianismo de uma maneira enfá tica. O argumento vem de An Introduction to the
Philosophy of Religion [Uma introduçã o à filosofia da religiã o], do Dr. Robert Leet Patterson.
Atribuir o mal a uma natureza humana corrompida transmitida de Adã o é algo condenado
pelo prof. Patterson como “uma doutrina odiosa que Pelá gio, para honra sua, se antecipou
aos liberais modernos em rejeitar”. Há ainda uma questã o anterior. Indaga o autor: “Se é
[87]

tã o fá cil para Deus criar homens bons e homens maus, por que ele nã o criou todos os
homens bons?” . [88]
Supor que Deus criou o bem e o mal para a sua pró pria gló ria, para
conceder seu amor aos bons e sua ira aos maus, é rebaixar Deus ao nível do tirano humano
mais degenerado. Essa ideia deve ser decisivamente rejeitada, pois, insiste o autor, Deus
[89]

nã o pode ser considerado imoral. Ainda que, diante da total falta de provas, creiamos que
toda ocorrência de mal é essencial para a consecuçã o de um bem maior, o fato de que Deus
nã o poderia produzir o bem sem um mal anterior mostra que o poder de Deus é limitado.
[90]

Hoje, entã o, assim como no passado, a existência do mal é uma questã o crucial; e a resposta
frequentemente inclui a ideia de uma divindade limitada. Muitos filó sofos modernos, como
John Stuart Mill, William Pepperell Montague e Georgia Harkness, assim como os antigos
Zoroastro e Platã o, admitem um deus finito. Mas é preciso entender claramente que essa
ideia é incompatível com o cristianismo. A Bíblia apresenta Deus como onipotente, e é
somente nessa base que uma visã o cristã do mal pode ser desenvolvida.
A ideia de um deus finito, embora seja um expediente nã o cristã o, tem, contudo, certa dose
de mérito em razã o da sua honestidade. Os cristã os professos nem sempre sã o tã o francos.
Em certa faculdade cristã , o chefe do Departamento da Bíblia costumava pedir aos alunos
para que nã o debatessem o assunto (na verdade, essa era claramente a política da
instituiçã o) porque era controverso. E também nã o era edificante. E, deveria ter
acrescentado, era embaraçoso. Pois, quando alguns questionamentos contundentes lhe
eram feitos, ele se irritava e retorquia: “Nã o gosto do tipo de pergunta que você faz”. Talvez
essas faculdades suponham que se o mal nunca é mencionado, os alunos jamais ouvirã o a
seu respeito. Elas parecem esquecer que os inimigos seculares do cristianismo logo irã o
lembrar o assunto a eles e fazer perguntas controversas, nã o edificantes e embaraçosas.
Essa atitude de sigilo nã o caracterizava os grandes teó logos cristã os: Agostinho, Tomá s de
Aquino, Calvino. Talvez nã o concordemos com este ou aquele, mas, à semelhança dos
secularistas modernos, eles eram abertos e honestos. Antes, porém, de deixarmos de lado a
ideia de um deus finito, há uma reflexã o interessante a se mencionar. Se a mistura de bem e
mal no mundo exclui a possibilidade de um Deus bom e onipotente, e se a medida de bem
no mundo dificilmente permite a hipó tese de um demô nio mau infinito, ainda assim nã o se
pode concluir que há um Deus bom finito. Um deus mau finito é uma conclusã o igualmente
aceitá vel. Ao invés de dizer que Deus faz o melhor que pode, mas, sendo limitado, nã o pode
eliminar totalmente o mal no mundo, poderíamos igualmente afirmar que Deus faz o pior
que pode, mas, sendo limitado, nã o pode erradicar totalmente as forças do bem que se
opõ em à sua vontade. É evidente, portanto, que os defensores de um deus finito chegam à
sua conclusã o mais pela emoçã o do que pela razã o.
 
 
Livre-arbítrio
 
Muito provavelmente em razã o da onisciência de Deus, Agostinho reconhecia que a
irrealidade metafísica do mal e a suposiçã o das causas deficientes eram inadequadas para
acabar com as dificuldades. Por isso, acrescentou uma teoria de livre-arbítrio. Desde a
antiguidade pagã , passando pela Idade Média até entrar nos tempos modernos, o livre-
arbítrio tem sido indubitavelmente a soluçã o mais popular oferecida para o problema do
mal . Deus é onipotente, muitas pessoas dirã o, mas adotou uma política nã o
intervencionista e deixa que os homens ajam à parte da influência divina. Nó s escolhemos,
e escolhemos o mal, por nosso pró prio livre-arbítrio; Deus nã o nos faz agir assim; portanto
só nó s somos responsá veis, nã o Deus.
Essa teoria de livre-arbítrio deve ser agora cuidadosamente examinada. É ela uma teoria
satisfató ria? Tem seus proponentes um conceito nã o ambíguo do termo principal? É
verdade que o arbítrio é livre? E se é verdade, será que o livre-arbítrio resolve o problema
do mal?
A formulaçã o de Agostinho da teoria do livre-arbítrio, a exemplo de suas muitas outras
concepçõ es, nã o permaneceu inalterada. Em sua vida pagã ele havia sido maniqueísta,
aceitando um dualismo extremo entre o bem e o mal. Apó s sua conversã o, embora tivesse
uma mente brilhante, nã o viu de imediato, com a clareza com que veria mais tarde, as
implicaçõ es das afirmaçõ es bíblicas. Desenvolvimento requer tempo, até mesmo para
Agostinho
Sua primeira concepçã o de livre-arbítrio parece ser que todos os homens estã o totalmente
desimpedidos em suas decisõ es. Todo mundo pode com igual facilidade escolher tanto isto
quanto aquilo. Nem a graça divina nem qualquer outra força determinam um homem a
seguir em qualquer dada direçã o. Na obra O Livre-Arbítrio, ele começa se perguntando
como é possível que todas as almas, vendo-se que cometem pecado, tenham vindo de Deus
sem que se remeta esses pecados de volta a Deus. Em outras palavras, se Deus criou almas
que sã o agora pecadoras, nã o é Deus o responsá vel pelo pecado? E, aprofundando mais a
questã o, “ Mas quanto a esse mesmo livre-arbítrio, o qual estamos convencidos de ter o
poder de nos levar ao pecado, pergunto-me se Aquele que nos criou fez bem de no-lo ter
dado. Na verdade, parece-me que nã o pecaríamos se estivéssemos privados dele, e é para
se temer que, nesse caso, Deus mesmo venha a ser considerado o autor de nossas má s
açõ es” .[91]

Para evitar essa conclusã o, a explicaçã o (ou pelo menos parte dela) é que sem livre-arbítrio
nó s tampouco poderíamos fazer o bem ou o mal. Um ser, como uma pedra ou talvez um
inseto, que nã o possa fazer o mal é igualmente incapaz de fazer o bem. A capacidade de
fazer o bem ou o mal existe, e Deus nã o deve ser culpado se o homem usa sua liberdade de
maneira errada. O livre-arbítrio pode de fato levar ao erro, mas nã o existe açã o correta sem
ele. Até mesmo a existência do pecado nã o justifica a afirmaçã o de que seria melhor se
pecadores nã o existissem. É preciso haver todos os graus de existência no mundo.
Variedade é essencial. Até mesmo uma alma que persevere no pecado é algo melhor que
um corpo inanimado que nã o pode pecar porque nã o tem vontade.
É preciso, porém, fazer uma pausa. A partir da suposiçã o metafísica de que ser é melhor do
que nã o ser, é possível concluir que um pecador é algo melhor do que uma pedra? O que
diria Agostinho se tivesse se lembrado da declaraçã o de Cristo “Bom seria para esse
homem se nã o houvera nascido” (Mt 26.24, ACF)? Essas questõ es vêm à mente, mas a
exposiçã o das opiniõ es de Agostinho deve continuar.
Até aqui pode parecer que o livre-arbítrio é uma propriedade de todos os homens. A
pró pria possibilidade de fazer o bem ou o mal o exige. Mas ao final do livro, Agostinho
introduz um pensamento que ele amplia em seus escritos posteriores. Ao apontar que os
homens agora inevitavelmente pecam e nã o podem evitar o pecado, diz: “Mas quando
falamos da vontade livre para agir bem, evidentemente falamos daquela vontade com a
qual o homem foi criado”. Nestes termos, parece que ninguém agora tem livre-arbítrio.
[92]

Em A cidade de Deus , [93]


Agostinho deixa esse ponto mais claro. Adã o tinha livre-arbítrio
no sentido de que era capaz de nã o pecar. Essa, presumivelmente, é a noçã o popular de
livre-arbítrio. Com ela, a maioria das pessoas parece querer dizer que o homem é capaz de
querer tanto uma coisa quanto o seu oposto. O homem é livre, dizem, porque pode escolher
obedecer ou desobedecer à s ordenanças de Deus. Mas na época em que escreveu A Cidade
de Deus , Agostinho já havia aprendido bastante sobre a Bíblia, e também sobre os homens,
para saber que no presente século é impossível nã o pecar. O pecado é inevitá vel. Portanto,
a capacidade de fazer o bem ou o mal nã o existe. Embora os nã o regenerados façam o mal,
nã o podem fazer o bem. No futuro, quando nossa redençã o tiver sido consumada e formos
glorificados no Céu, outra impossibilidade surgirá . Lá seremos incapazes de pecar. Mais
uma vez, a capacidade de fazer o bem ou o mal nã o existe, pois, embora façamos o bem, nã o
seremos capazes de fazer o mal. Existem portanto três está gios em todo o drama humano:
antes da queda, posse non peccare (é possível nã o pecar), e, no mundo porvir, non posse
peccare (nã o é possível pecar); mas, no mundo atual, non posse non peccare (nã o é possível
nã o pecar). Adã o, portanto, foi o ú nico homem que já teve livre-arbítrio — livre-arbítrio no
sentindo usual da expressã o.
A expressã o livre-arbítrio , entretanto, tem conotaçõ es tã o atraentes que Agostinho nã o
queria restringi-la a Adã o. Assim, segue dizendo: “Porque nã o pode pecar, havemos de
negar livre-arbítrio a Deus?”. Agostinho assume que todos dirã o que Deus é livre. A
[94]

mesma pergunta também poderia ser feita acerca dos anjos santos. Mas se Deus e os anjos
têm livre-arbítrio, o livre-arbítrio deve ser redefinido para que se harmonize com a
negaçã o de que duas açõ es incompatíveis sã o igualmente possíveis. É preciso tornar o
livre-arbítrio consistente com a inevitabilidade, em cujo caso ele nã o assumirá mais seu
significado comum.
Escritores posteriores também argumentaram sobre a felicidade fixa e determinada do
estado futuro; e estaríamos justificados, como pará grafo parentético, em fazer uma pausa
para citar o puritano John Gill. Em The Cause of God and Truth [A razã o de Deus e da
verdade], ele escreve:
 
Deus é o agente mais livre; a liberdade está nele em sua má xima perfeiçã o e,
todavia, nã o reside numa indiferença para o bem e o mal; ele nã o tem
liberdade para o que é mau […] sua vontade é unicamente determinada para
o que é bom; ele nã o pode fazer outra coisa […] e o que faz, faz livremente e
ainda assim necessariamente […] A natureza humana de Cristo, ou o homem
Cristo Jesus, que tendo nascido sem pecado e vivido sem ele todos os dias na
Terra era portanto impecá vel, nã o podia pecar. Ele estava sob algum tipo de
necessidade […] para cumprir toda a justiça; e ainda assim o fez da maneira
mais livre e voluntá ria; o que prova que a liberdade da vontade do homem
[…] é consistente com algum tipo de necessidade […] Os bons anjos, santos e
eleitos, que sã o confirmados no estado em que estã o […] nã o podem pecar ou
cair desse estado de bem-aventurança, mas exercem sua total obediência a
Deus, fazem a vontade dele e trabalham com alegria e solicitude […] No
estado de glorificaçã o os santos serã o impecá veis, nã o podendo pecar mas só
fazer o que é bom; e todavia o que fazem, ou farã o, é e será feito com a
má xima liberdade da sua vontade; sucedendo daí que a liberdade da vontade
do homem […] é consistente com algum tipo de necessidade e com uma
determinaçã o da vontade. [95]

 
Isso efetivamente descarta a contençã o inicial de Agostinho de que uma pessoa deve ser
capaz de pecar para poder fazer algo bom e também deixa o livre-arbítrio numa condiçã o
duvidosa.
Nesse material de Agostinho e John Gill, dois pontos importantes vêm à tona. O primeiro é
que a Bíblia nã o ensina a igual possibilidade de duas escolhas incompatíveis . Ainda que
algum intérprete ruim e perverso alegue que a capacidade de fazer o bem ou o mal existe, o
significado da negaçã o é claro e inequívoco. O segundo ponto que emerge da discussã o
anterior é, porém, uma questã o de ambiguidade. O livre-arbítrio é definido como a igual
capacidade, sob dadas circunstâ ncias, de se escolher entre dois cursos de açã o. Nenhum
poder antecedente determina a escolha. Quaisquer que sejam os motivos ou inclinaçõ es
que um homem possa ter ou quaisquer que sejam os incentivos apresentados diante dele
que possam fazê-lo se voltar a determinada direçã o, ele pode desconsiderá -los de pronto e
fazer o contrá rio. Mas essa definiçã o ou descriçã o é o que o presente escritor acredita ser a
noçã o comum de livre-arbítrio; nã o é a definiçã o encontrada em Agostinho ou John Gill. Na
verdade, estes dois escritores nã o apresentam uma definiçã o formal de livre-arbítrio. Por
mais estranho que possa parecer a um ló gico, muitos escritores nã o definem seus termos
com grande cuidado; e ao leitor é infelizmente deixada a tarefa de adivinhar o significado.
Um arminiano que lesse The Cause of God and Truth poderia se perguntar o que o autor
quer dizer com liberdade . E sua perplexidade nã o seria de todo injustificada. O puritano
fala de uma vontade que é livre e determinada; refere-se a açõ es que sã o realizadas
livremente, mas necessariamente; e conclui que a liberdade da vontade do homem é
consistente com pelo menos algum tipo de necessidade e determinaçã o. Mas o leitor
arminiano se acha quase na obrigaçã o de julgar que isso nã o faz sentido. Nã o sã o a
necessidade e a liberdade incompatíveis? É remotamente possível que ambas sejam
atribuídas à mesma açã o, escolha ou vontade?
A explicaçã o, é claro, está no fato de que o arminiano tem uma noçã o de liberdade que é
diferente da de John Gill. E talvez o arminiano nã o saiba que na histó ria da filosofia a
liberdade de escolha tem sido definida de vá rias formas diferentes. Jamais se deve supor
que uma frase ou termo signifique a mesma coisa em todos os livros em que ocorre. Cada
autor escolhe o significado que deseja, e cada leitor deve tentar determinar esse
significado. Sem dú vida, o autor nã o deveria tentar tornar essa tarefa difícil, e Gill e outros
de sua época deveriam ter sido mais claros no que buscavam dizer. Definiçõ es rigorosas e
uma adesã o rigorosa a elas sã o elementos essenciais para uma discussã o inteligível . Se um
debatedor tem uma ideia em mente — ou talvez nenhuma ideia clara — enquanto a outra
parte do debate nutre uma noçã o diferente — ou igualmente vaga — o resultado da
conversa está fadado à completa confusã o. Essa é a liçã o elementar que Só crates ensinou
no século V antes de Cristo, mas que muitas pessoas ainda nã o aprenderam.
À luz da opiniã o comum, a expressã o livre-arbítrio deve doravante ser usada para designar
a teoria de que um homem perante cursos de açã o incompatíveis é tã o capaz de escolher
um quanto o outro. Pode ser necessá rio, ao citar os autores anteriores, usar a expressã o em
outro sentido, caso eles assim a tenham usado; mas o argumento deste capítulo restringirá
a expressã o livre-arbítrio à definiçã o acima. Isso é feito na confiança de que nenhum
arminiano irá protestar. Ele nã o pode fazer nenhuma acusaçã o de que seu caso é
prejulgado pela introduçã o sub-reptícia de um elemento calvinista no termo principal.
Livre-arbítrio é definido com toda a liberdade que algum arminiano poderia desejar.
Aparentemente, este seria o lugar certo para perguntar: Tem o homem um livre-arbítrio? É
verdade que suas escolhas nã o sã o determinadas por motivos, incentivos ou pela
determinaçã o do seu cará ter? Pode uma pessoa resistir à graça e ao poder de Deus e tomar
uma decisã o nã o-causada? Mas essas perguntas nã o serã o respondidas aqui. Serã o
discutidas mais tarde. O passo seguinte no argumento é um pouco diferente. Admitamos
que a vontade do homem é livre; que essas perguntas foram respondidas na afirmativa.
Ainda precisaria ser demonstrado que o livre-arbítrio resolve o problema do mal. Esta,
entã o, é a indagaçã o imediata. É a teoria do livre-arbítrio, mesmo que verdadeira, uma
explicaçã o satisfató ria do mal que existe num mundo criado por Deus? Razõ es, razõ es
convincentes, serã o agora dadas para uma resposta negativa. Ainda que os homens fossem
tã o capazes de escolher o bem quanto o mal, ainda que um pecador pudesse escolher Cristo
com a mesma facilidade com que pudesse rejeitá -lo, isso seria totalmente irrelevante para o
problema fundamental. O livre-arbítrio foi formulado para livrar Deus da responsabilidade
do pecado. Mas isso é algo que o livre-arbítrio nã o faz .
Suponha que há um salva-vidas de prontidã o numa praia perigosa. Na arrebentaçã o das
ondas, um garoto está sendo arrastado para o mar pela forte contracorrente. Ele nã o
consegue nadar, e se afogará se nã o houver uma ajuda poderosa. Ela precisa ser poderosa,
porque, a exemplo do que fazem pecadores que se afogam, ele lutará contra o seu salvador.
Mas o salva-vidas simplesmente senta em sua cadeira alta e observa o garoto se afogar.
Talvez possa gritar algumas palavras de advertência e dizer-lhe que exercite seu livre-
arbítrio. Afinal, foi pelo seu pró prio livre-arbítrio que o garoto quis surfar. O salva-vidas
nã o o empurrou nem interferiu em nada; apenas permitiu que o garoto entrasse no mar e
permitiu que se afogasse. Concluiria agora o arminiano que o salva-vidas se livrou da
culpabilidade?
Essa ilustraçã o, apesar de suas limitaçõ es finitas, já é suficientemente danosa. Mostra que a
permissã o do mal, em contraste com a causalidade positiva, nã o livra o salva-vidas da
responsabilidade. De modo semelhante, se Deus meramente permite que os homens sejam
tragados pelo pecado de seu pró prio livre-arbítrio, as objeçõ es originais de Voltaire e do
professor Patterson nã o sã o deste modo satisfeitas. É isso o que o arminiano nã o percebe.
E, no entanto, a ilustraçã o nã o faz plena justiça à situaçã o real. Pois, ao contrá rio do garoto
que existe em relativa independência do salva-vidas, Deus na verdade criou o garoto e
também o oceano. Ora, se o salva-vidas — que nã o é de fato um criador — é responsá vel
por permitir que o garoto se afogue, ainda que se suponha ter ido o garoto surfar pelo seu
pró prio livre-arbítrio, Deus — que fez ambos — nã o parece estar numa situaçã o ainda
pior? Certamente, um Deus onipotente poderia ter feito o garoto um nadador melhor ou
tornado o oceano menos violento ou, pelo menos, ter salvado o garoto do afogamento.
Nã o apenas o livre-arbítrio e a permissã o [divina] sã o irrelevantes para o problema do mal,
como também a ideia mesma de permissã o nã o tem nenhum significado inteligível . Está
totalmente no â mbito das possibilidades um salva-vidas permitir que um homem se afogue.
Essa permissã o, contudo, depende do fato de que a contracorrente do oceano está fora do
controle do salva-vidas. Se este tivesse algum dispositivo gigante de sucçã o que operasse
para poder engolir o garoto, isso seria chamado de assassinato, nã o de permissã o. A ideia
de permissã o só é possível onde existe uma força independente — a força do garoto ou a
força do oceano. Mas nã o é esta a situaçã o no caso de Deus e do universo. Nada no universo
pode ser independente do Criador onipotente, pois nele vivemos, nos movemos e
existimos. Portanto, a ideia de permissã o nã o faz sentido quando aplicada a Deus.
É preciso, com toda a honestidade, renunciar a esses subterfú gios. Considere duas citaçõ es
de Calvino:
 
     Alguns recorrem aqui à distinçã o entre vontade e permissã o, dizendo que
os ímpios se perdem porque Deus o permite assim, mas nã o porque Ele o
queira. Mas como diremos que Ele o permite, se nã o for porque assim o quer?
Pois nã o é verossímil que o homem tenha buscado sua perdiçã o só pela
permissã o de Deus, e nã o por sua ordem. Como se Deus nã o tivesse ordenado
em que condiçã o e estado queria que estivesse a mais excelente de todas as
suas criaturas! Nã o duvido, porém, um instante em confessar simplesmente
com Agostinho que a vontade de Deus é a necessidade de todas as coisas, e
que necessariamente há de suceder o que Ele queira, como também
indefectivelmente acontecerá tudo o que Ele previu.
      Com muita frequência se diz que Deus obscureça e endureça aos réprobos,
que verta, incline, impila seu coraçã o, como ensinei insistentemente em outro
lugar. Se se recorre à presciência ou à permissã o, de nenhum modo se explica
como isso vem a ser […] [P]ara que seus juízos sejam executados por Sataná s,
ministro de sua ira, Deus, como se viu, tanto destina suas deliberaçõ es, como
excita as vontades e fortalece o esforço. Desse modo, quando Moisés narra
que o rei Seon nã o teria concedido passagem ao povo porque Deus
endurecera seu espírito e obstinara seu coraçã o, em seguida acrescenta o fim
da deliberaçã o: “Para que o desse em nossas mã os” [Dt 2, 30]. Portanto,
porque Deus o queria perdido, a obstinaçã o do coraçã o foi a preparaçã o
divina para a ruína. [96]

 
Resta demonstrada assim a futilidade do livre-arbítrio. Alguma outra teoria precisa ser
buscada. E na produçã o dessa teoria ficará evidente que o livre-arbítrio nã o apenas é fú til,
como também falso. Certamente se a Bíblia é a Palavra de Deus, o livre-arbítrio é falso, pois
a Bíblia consistentemente nega o livre-arbítrio . Portanto, se fará agora a tentativa de
explicar o mal com base no protestantismo histó rico.
 
 
Teologia reformada
 
Até aqui, o capítulo expô s o paradoxo ou antítese entre um Deus bom onipotente e a
existência do mal. Se o livre-arbítrio nã o consegue resolver a dificuldade, é preciso se voltar
para a teoria oposta do determinismo. A princípio, em vez de aliviar a situaçã o, o
determinismo parece acentuar o problema do mal ao manter a inevitabilidade de cada
evento; e nã o apenas a inevitabilidade, mas também o ponto adicional e mais
constrangedor de que é o pró prio Deus quem determina ou decreta cada açã o.
Alguns calvinistas preferem evitar a palavra determinismo . Por alguma razã o, a palavra
lhes parece carregar conotaçõ es desagradá veis. A Bíblia, porém, nã o só fala de
predestinaçã o, normalmente com referência à vida eterna, como também de preordenação
ou predeterminação dos atos maus. Portanto, evitar deliberadamente a palavra
determinismo pareceria ser talvez algo menos que franco. Mais adiante se discutirá isso
melhor. No momento, porém, há uma questã o preliminar. Será que as visõ es opostas, livre-
arbítrio e determinismo, formam uma disjunçã o absoluta?
A primeira sustenta que nenhuma escolha humana é determinada; a ú ltima, que todas sã o
determinadas. Nã o haveria uma terceira possibilidade? Nã o seria o caso de alguns eventos
ou escolhas serem determinados e outros nã o? Mas essa terceira possibilidade em nada
contribuiria para a discussã o. À parte a peculiaridade de se atribuir a Deus uma
semissoberania e ao homem um livre-arbítrio parcial, o cerne do conflito está em escolhas
que nã o podem ser divididas ao meio. Poderia Judas ter escolhido nã o trair Cristo? Se
pudesse ter escolhido nã o trair Cristo, sua responsabilidade moral estaria demonstrada, diz
o arminiano; porém, diz o calvinista, a profecia neste caso poderia ter-se provado falsa. Ou,
novamente, poderia Pilatos ter decidido libertar Jesus? Estamos preparados para dizer que
Deus nã o poderia garantir os eventos necessá rios para seu plano de redençã o? Além do
mais, é dito explicitamente pela Bíblia: “se ajuntaram, nã o só Herodes, mas Pô ncio Pilatos,
com os gentios e os povos de Israel, para fazerem tudo o que a tua mã o e o teu conselho
tinham anteriormente determinado que se havia de fazer” (At 4.27-28, ARC). Aqui, nestas
escolhas individuais, a responsabilidade moral é contraposta ao sucesso do plano de
redençã o eterno de Deus. Nã o há , portanto, utilidade em supor que algumas escolhas sã o
livres e outras determinadas. As Escrituras dizem que essa escolha foi determinada antes
do tempo, e toda a questã o teoló gica e filosó fica se acha integrada nessa escolha.
Parece desnecessá rio delinear o contraste em termos mais incisivos. Todos os elementos
estã o diante de nó s: livre-arbítrio, determinismo, responsabilidade moral, profecia e
soberania divina versus um deus finito. O que é necessá rio agora consiste de três pontos
que fornecerã o o esboço para o restante do capítulo. Primeiro, é preciso dar uma
explicaçã o e um argumento extensivos em defesa do calvinismo; segundo, é preciso
fornecer uma declaraçã o definitiva e oficial da posiçã o; e, terceiro, algumas poucas
afirmaçõ es histó ricas sã o necessá rias por causa da ignorâ ncia que reina no século XX. Esses
três pontos serã o abordados em ordem inversa.
O baixo nível educacional dos dias de hoje, mesmo dentre os universitá rios, ficou evidente
para este escritor quando foi convidado a dar uma explanaçã o sobre o calvinismo a um
grupo de alunos em uma dita faculdade cristã . A conversa nã o passou da exposiçã o mais
simples e elementar dos célebres cinco pontos. Mas no fim, acerca dos três pontos
intermediá rios — eleiçã o incondicional, expiaçã o limitada e graça irresistível — nã o
apenas ficou claro que os alunos jamais haviam ouvido falar dessas doutrinas, como
também que eles ficaram chocados com a possibilidade de algum cristã o professo acreditar
nesses pontos. Decorridos dois ou três séculos da Reforma, dificilmente havia algum lugar
ou alguma classe de pessoas em qualquer naçã o protestante que nã o tinha um
conhecimento rudimentar do calvinismo. Nem todas elas devem ter acreditado nas
doutrinas, mas devem pelo menos tê-las ouvido ser pregadas. No século XX, porém, o saber
cristã o caiu a um nível muito baixo. O calvinismo nã o está , é claro, totalmente extinto, mas
muitos que se consideram cristã os instruídos jamais ouviram falar dele.
Hoje, portanto, devemos insistir que a graça irresistível e a determinaçã o divina eram
artigos só lidos da fé reformada . E nã o foram os reformadores os primeiros a descobri-los.
Augustus M. Toplady, autor do mais amado de todos os hinos, Rock of Ages [Rocha Eterna],
também escreveu um volume de bom tamanho, Historic Proof of the Doctrinal Calvinism of
the Church of England [Prova histó rica do calvinismo doutrinal da Igreja da Inglaterra].
Algumas pá ginas adiante ele será novamente citado, mais precisamente com o ponto
principal do livro, como afirmado em seu título. Mas aqui é preciso chamar a atençã o para a
longa seçã o introdutó ria de Toplady em que ele mostra que o calvinismo nã o era
desconhecido nem no período patrístico nem na Idade Média.
Toplady acreditava que a epístola de Barnabé realmente fora escrita por Barnabé. Ainda
que esteja equivocado nessa crença, a epístola é um testemunho ainda mais notá vel do
cará ter doutrinal da era subapostó lica. A seguinte citaçã o parece reverberar a ideia da
graça irresistível, sendo, portanto, inconsistente com o livre-arbítrio: “Quando Cristo
escolheu seus pró prios apó stolos para pregarem o evangelho, escolheu-os quando eram
mais ímpios do que toda a impiedade […]”. Segundo o mesmo autor, a morte de Cristo era
necessá ria porque havia sido profetizada. E há uma afirmaçã o bastante clara da expiaçã o
limitada: “Estejamos certos de que o Filho de Deus nã o poderia ter sofrido senã o por nó s”.
No mesmo sentido, ele imagina Cristo respondendo a uma questã o com as palavras “Estou
para oferecer minha carne como sacrifício pelos pecados de um novo povo”. Certo
Menardus, comentando essa passagem, se queixa de que Barnabé estava equivocado aqui,
porque Cristo nã o morreu por um novo povo, mas pelo mundo inteiro. O comentá rio só
deixa mais nítido o que Barnabé realmente queria dizer. Outra nota negativa sobre o livre-
arbítrio é encontrada nas palavras “Nó s […] falamos conforme o Senhor nos ordenou. Para
esse fim ele circuncidou nossos ouvidos e nosso coraçã o, para que pudéssemos
compreender tais coisas”. [97]

Clemente de Roma faz algumas declaraçõ es bem definidas:


 
Sendo da vontade de Deus que todos os seus amados se tornassem participantes do
arrependimento, estabeleceu-os firmemente segundo o seu propó sito Onipotente.
 
Pela palavra de sua Majestade estabeleceu todas as coisas […] Quem lhe indagará “O
que fizeste”? Ou quem resistirá à força do seu poder? Ele fez todas as coisas ao tempo
que lhe aprouve e segundo a sua vontade; e nada do que decretou passará . Todas as
coisas estã o descobertas e patentes aos seus olhos e nada foge da sua vontade e
prazer. [98]

 
Assim começa Iná cio sua Epístola aos Efésios: “Iná cio […] [à igreja] predestinada antes dos
séculos para existir sempre, para a gló ria que é perpétua e imutá vel, unida e escolhida […]
pela vontade do Pai”. Ele introduz sua Epístola aos Romanos com as palavras “[…]
iluminada pela bondade daquele que quis todas as coisas que existem”. E, em oposiçã o ao
livre-arbítrio, diz: “O cristã o nã o é obra de persuasã o, mas de grandeza [poder]”. [99]

Talvez seja mais do conhecimento, pelo menos daqueles que já leram um pouco de histó ria
medieval, que o má rtir Gottschalk era um calvinista vigoroso. Falando dos judeus réprobos,
diz: “Nosso Senhor percebeu que estavam predestinados à destruiçã o eterna e que nã o
haviam sido comprados pelo preço do seu sangue”. [100]
Apó s 21 anos de prisã o e tortura
nas mã os do bispo Hincmar, por causa de sua crença na dupla predestinaçã o, ele morreu
em 870 d.C.
Menos conhecido é um contemporâ neo de Gottschalk e arcebispo de Lyon, Remígio.
Escreve ele:
 
Tampouco é possível que qualquer pessoa eleita pereça ou qualquer dos
réprobos seja salvo, por causa de sua dureza e impenitência do coraçã o […] O
Deus todo-poderoso, desde o princípio, antes da formaçã o do mundo e antes
de haver feito qualquer coisa, predestinou […] com base em seu pró prio favor
gratuito, certas pessoas para a gló ria […] Outras pessoas específicas,
predestinou para a perdiçã o […] e dentre estas, nenhuma pode ser salva. [101]
 
Os valdenses eram um grupo cuja origem Toplady situa no início da Idade Média. A partir
da Confissã o deles de 1508, ele cita: “É ó bvio que somente os eleitos para a gló ria se
tornam participantes da verdadeira fé”.
Cem anos antes da Reforma, Joã o Hus disse: “A predestinaçã o faz com que um homem seja
membro da Igreja universal […] Deus quer que o predestinado tenha uma bem-aventurança
perpétua e o réprobo, o fogo eterno. Os predestinados nã o podem decair da graça”. [102]

Obviamente, nã o há nenhum livre-arbítrio aqui.


Se Joã o Hus foi queimado por causa do Evangelho, Joã o de Wessá lia foi torturado por
defender que “Deus, desde a eternidade, escreveu um livro no qual registrou todos os
eleitos; e todos quantos aí nã o estejam ainda registrados, jamais o serã o. Também, aquele
que está inscrito jamais será dele apagado” .[103]

Depois desses calvinistas continentais, Toplady se volta para os ingleses da pré-Reforma.


Segundo o Venerá vel Beda, “Quando Pelá gio afirma que temos sempre a liberdade de fazer
uma coisa [isto é, fazer o bem], vendo que sempre somos capazes de fazer uma ou outra
coisa [isto é, que temos livre-arbítrio], ele contradiz aqui o profeta que, voltando-se
humildemente a Deus, diz: ‘Eu sei, ó SENHOR , que nã o cabe ao homem determinar o seu
caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos’”. [104]

Tomá s Bradwardine, professor de Joã o Wycliffe, escreve:


 
Que multidõ es, ó Senhor, neste dia, dã o as mã os a Pelá gio em defesa do livre-
arbítrio e na luta contra tua graça absolutamente livre […] Alguns mais
soberbos que Lú cifer […] nã o receiam afirmar que, mesmo numa açã o
comum, a vontade deles vem primeiro, como uma dama independente, e que
tua vontade vem atrá s, como obsequiosa criada […] A vontade de Deus é
universalmente eficaz e invencível, e necessá ria como causa. Nã o pode ser
frustrada, muito menos derrotada e anulada, por quaisquer que sejam os
meios.[105]

 
Seu aluno Joã o Wycliffe (1320?-1384 d.C.) também declarou: “A despeito de como  Deus
declare sua vontade, por sua descoberta posterior no tempo , ainda assim sua
determinaçã o em relaçã o ao evento ocorreu antes que fosse feito o mundo; por
conseguinte, o evento certamente ocorrerá . A necessidade, portanto, do antecedente nã o se
mantém menos irrefragá vel para a necessidade do consequente”.
Dr. Peter Heylin, um historiador arminiano, reconhece que William Tyndal “tem um
repú dio ardoroso ao livre-arbítrio” e ensinou que da predestinaçã o “decorre
absolutamente se havemos de crer ou nã o, se seremos libertados do pecado ou nã o; em
razã o dessa predestinaçã o, nossa justificaçã o e salvaçã o sã o tiradas de nossas mã os e
colocadas exclusivamente nas mã os de Deus”. O arminiano, com seu livre-arbítrio, nã o quer
que sua salvaçã o seja colocada somente nas mã os de Deus.
Na sentença de morte de Patrick Hamilton lê-se: “Nó s, Tiago, pela misericó rdia de Deus,
arcebispo de St. Andrews, primaz da Escó cia, achamos Mestre Patrick Hamilton inflamado
de muitas formas pela heresia […] de que o homem nã o tem livre-arbítrio”. [106]

As lutas desses leais expoentes do evangelho da livre graça culminaram na Reforma


Protestante. No Concílio de Trento, a Igreja Romana repudiou oficialmente as doutrinas
que colocam a salvaçã o somente nas mã os de Deus. Roma escolheu o livre-arbítrio e o
mérito humano. Lutero e Calvino deram continuidade ao ensino apostó lico. Em nosso
presente século de ignorâ ncia, é preciso insistir que Lutero e também Calvino rejeitavam a
visã o do homem pelá gio-romano-arminiana. Erasmo, o homem que recuou da Reforma e
fez as pazes com Roma, defendia o livre-arbítrio. O livro que Lutero escreveu em resposta a
Erasmo é intitulado The Bondage of the Will [A escravidã o da vontade]. Na conclusã o
[107]

consta a seguinte frase: “Pois se acreditamos que é verdade que Deus tem presciência de
tudo e a tudo preordena, e que ele nã o pode enganar-se em sua presciência e predestinaçã o
nem ser impedido; [se cremos] além disso, que nada acontece a nã o ser o que ele quer […]
nã o pode haver livre-arbítrio nem no homem, nem num anjo, nem em qualquer outra
criatura” .[108]

Embora os luteranos posteriores — sob o espírito transigente de Filipe Melanchton, que foi
longe a ponto de buscar a reuniã o com Roma — tenham abandonado muitas das doutrinas
de Lutero, é preciso lembrar que essas questõ es nã o estavam em disputa entre Lutero,
Zuínglio e Calvino nem entre Ridley, Cranmer, Latimer, Bucer, Zanchius e Knox. O mesmo
vale para as vítimas de Maria, a Sanguiná ria. Richard Woodman, que foi queimado na
fogueira com outros nove má rtires em Lewes, condado de Sussex (Inglaterra), respondeu
aos inquisidores: “Se temos livre-arbítrio, nossa salvaçã o advém de nó s mesmos, o que é
uma grande blasfêmia contra Deus e sua Palavra”. O bispo de Londres, ao examinar Richard
Gibson, rogou-lhe que professasse que “o homem tem, pela graça de Deus, livre escolha e
livre vontade em seus atos”. Gibson rejeitou a proposiçã o e morreu queimado com outros
dois em Smithfield. Trinta e quatro pessoas foram perseguidas e expulsas das cidades de
Winston e Mendelsham “porque negavam o livre-arbítrio do homem e sustentavam que a
igreja do papa militava no erro”. Para quem quiser mais comprovaçõ es da existência do
calvinismo da Reforma, há uma abundâ ncia delas nos livros de histó ria e nos escritos
originais desses homens fieis.
No universo nã o luterano, a fé reformada foi adulterada inicialmente por Armínio, que,
influenciado pelo luteranismo melanchtoniano, rejeitou a visã o reformada da livre graça e
recuou para uma posiçã o mais romanista ou semipelagiana. Em 1618, o Sínodo de Dordt
condenou Armínio como corruptor da fé, embora o Sínodo nã o tenha chegado aos
patamares explícitos da Assembleia de Westminster, 30 anos mais tarde. Essa Confissã o
desta é o marco do clímax superior do protestantismo. Nenhum outro credo é tã o
detalhado e tã o fiel à s Escrituras. Portanto se pede ao leitor de hoje que dê uma atençã o
rigorosa a uma citaçã o da Confissã o de Westminster. Embora algumas almas de um círculo
restrito possam se espantar, é nisto que consiste o cristianismo.
 
 
CAPÍTULO III: DOS ETERNOS DECRETOS DE DEUS
 
1. Desde toda a eternidade e pelo mui sá bio e santo conselho de sua pró pria
vontade, Deus ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém
de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da
criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundá rias,
antes estabelecidas .
2. Ainda que sabe tudo quanto pode ou há de acontecer em todas as
circunstâ ncias imaginá veis, Deus nã o decreta coisa alguma por havê-la
previsto como futura, ou como coisa que havia de acontecer em tais
condiçõ es.
3. Pelo decreto de Deus e para a manifestaçã o da sua gló ria, alguns homens e
alguns anjos sã o predestinados para a vida eterna e outros preordenados
para a morte eterna .
4. Esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, sã o
particular e imutavelmente designados; o seu nú mero é tã o certo e definido,
que nã o pode ser nem aumentado nem diminuído.
5. Segundo o seu eterno e imutá vel propó sito, e segundo o santo conselho e
beneplá cito de sua vontade, antes que fosse o mundo criado, Deus escolheu
em Cristo, para a gló ria eterna, os homens que sã o predestinados para a vida;
para o louvor da sua gloriosa graça ele os escolheu de sua mera e livre graça e
amor, e nã o por previsã o de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de
qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condiçã o ou
causa.
6. Assim como Deus destinou os eleitos para a gló ria, assim também, pelo
eterno e mui livre propó sito de sua vontade, preordenou todos os meios
conducentes a esse fim; os que, portanto, sã o eleitos, achando-se caídos em
Adã o, sã o remidos por Cristo, sã o eficazmente chamados para a fé em Cristo,
pelo seu Espírito que opera no tempo devido, sã o justificados, adotados,
santificados e guardados pelo seu poder, por meio da fé salvadora. Além dos
eleitos nã o há nenhum outro que seja remido por Cristo, eficazmente
chamado, justificado, adotado, santificado e salvo .
7. Segundo o inescrutá vel conselho de sua pró pria vontade, pela qual ele
concede ou recusa misericó rdia, como lhe apraz, para a gló ria de seu
soberano poder sobre as suas criaturas, para louvor de sua gloriosa justiça, o
resto dos homens foi Deus servido nã o contemplar e ordená -los para a
desonra e ira por causa de seus pecados.
8. A doutrina deste alto mistério de predestinaçã o deve ser tratada com
especial prudência e cuidado, a fim de que os homens, atendendo à vontade
de Deus, revelada em sua Palavra, e prestando obediência a ela, possam, pela
evidência de sua vocaçã o eficaz, certificar-se de sua eterna eleiçã o. Assim, a
todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho, esta doutrina traz
motivo de louvor, reverência e admiraçã o para com Deus, bem como de
humildade, diligência e abundante consolaçã o.
 
Essa declaraçã o oficial da posiçã o protestante original, da fé apostó lica original, encerra
esta seçã o histó rica. O passo seguinte é apresentar alguns dos argumentos que apoiam o
calvinismo e aplicar essas consideraçõ es ao problema do mal.
 
 
A exegese de Gill
 
Embora seja o mais detalhado de todos os credos, a Confissã o de Westminster nã o é um
tratado filosó fico, nã o é uma teodiceia, nã o responde a objeçõ es, mas é apenas um sumá rio
da posiçã o bíblica. Quanto a isso, e no que diz respeito à exegese, o arminianismo nã o é
capaz de competir com ela. Para evitar a suposiçã o de que os doutos teó logos de
Westminster foram os ú nicos a enxergar esses ensinamentos na Bíblia, podemos consultar
mais uma vez The Cause of God and Truth de John Gill. As duas primeiras partes da obra
examinam com grande cuidado mais de uma centena de passagens que os arminianos têm
usado em oposiçã o ao calvinismo. A exegese de Gill é devastadora.
Visto que as quase 150 pá ginas em coluna dupla e caracteres bastante densos nã o podem
ser aqui reproduzidas, apenas um exemplo será escolhido. É um versículo que, segundo
Gill, os arminianos de sua época quase sempre citavam, mas citavam incorretamente, e que
já foi usado vá rias vezes contra o presente escritor: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os
profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos,
como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vó s nã o o quisestes!” (Mt
23.37).
A respeito do versículo, comenta John Gill:
 
Nada é mais comum na boca e nos escritos dos arminianos do que essa
passagem, que estã o prontos a apresentar em qualquer ocasiã o contra as
doutrinas da eleiçã o e da reprovaçã o, da redençã o particular e do poder
irresistível de Deus na conversã o, e em favor da graça suficiente e do livre-
arbítrio e da capacidade do homem; embora para pouquíssimo proveito,
como parecerá quando as seguintes coisas forem observadas.
     1. Que por Jerusalém nã o devemos entender a cidade nem todos os seus
habitantes, mas os regentes e governantes dela, civis e eclesiá sticos,
especialmente o grande Sinédrio ali sediado, ao qual melhor cabe o cará ter
descritivo de matar profetas e apedrejar os que para ali foram enviados por
Deus e que sã o manifestamente distinguidos de seus filhos ; sendo costume
chamar estes que eram cabeças do povo, quer em sentido civil quer
eclesiá stico, de pais (At 7.2 e 22.1) e, aos sú ditos e discípulos, filhos (Lc 19.44;
Mt 12.27; Is 8.16, 18). Além do mais, o discurso de nosso Senhor, na
totalidade do contexto, é voltado para os escribas e fariseus, os guias
eclesiá sticos do povo e aqueles por quem os governantes civis tinham
especial consideraçã o. Por isso, é evidente que nã o se tratam das mesmas
pessoas que Cristo queria ter reunido mas, segundo diz, não o quisestes . Nã o
é dito Quantas vezes quis eu vos reunir, e vós não o quisestes , como cita mais
de uma vez o Dr. Whitby inadvertidamente o texto; tampouco ele queria ter
reunido Jerusalém, e ela não o quis , como transcreve o mesmo autor noutro
lugar; tampouco ele os queria ter reunido, vossos filhos, e eles não quiseram ,
cuja forma é também por ele à s vezes expressa; mas sim: eu quis reunir os
teus filhos, e vós não o quisestes , cuja observaçã o já basta ela mesma para
destruir o argumento baseado nessa passagem em favor do livre-arbítrio[…]
     5. Para descartar e derrubar as doutrinas da eleiçã o, reprovaçã o e
redençã o particular se deve provar que Cristo, sendo Deus, queria ter
reunido nã o apenas Jerusalém e seus habitantes, mas toda a humanidade ,
mesmo aqueles que em ú ltima aná lise nã o seriam salvos, e isso num modo e
processo de salvaçã o espiritual peculiares a Deus, sendo que disso nã o há a
menor insinuaçã o no texto; e para demonstrar que a graça de Deus pode ser
resistida pela vontade perversa do homem a ponto de se tornar sem efeito se
deve provar que Cristo teria convertido salvificamente essas pessoas, mas
elas nã o queriam ser convertidas, e que lhes concedeu a mesma graça que
concede a outras pessoas convertidas; apesar de a essência da passagem
repousar nessas poucas palavras, que Cristo, enquanto homem, a partir de
uma consideraçã o compassiva pelo povo dos judeus, a quem fora enviado,
queria tê-los reunido sob seu ministério e instruído no conhecimento de si
pró prio como o Messias; conhecimento esse que, se apenas o tivessem
recebido de modo nocional, tê-los-ia, como pintinhos sob as asas da galinha,
protegido dos juízos iminentes que depois recaíram sobre eles; mas seus
governantes, e nã o eles, nã o queriam, isto é, nã o tolerariam que eles fossem
ajuntados dessa maneira, e impediram tanto quanto puderam o dar-lhe
crédito como o Messias; embora tivesse sido dito e eles não quiseram , isso
teria sido apenas um exemplo muito triste da perversidade da vontade do
homem, que com frequência se opõ e ao bem temporal e espiritual do homem.
 
Com base, portanto, na exegese, o calvinismo nada tem a temer; mas o desenvolvimento
adicional da doutrina, a integraçã o de uma fase com outra, a aplicaçã o ao problema do mal
e as respostas à s objeçõ es sã o deixadas nas mã os de teó logos e filó sofos da religiã o e nã o
com exegetas ou assembleias comprometidas com as posiçõ es de fé. E podemos reconhecer
que as elucidaçõ es teoló gicas de John Gill — em razã o de uma expressã o incompleta, falta
de definiçã o, falha em nã o prever teorias científicas posteriores e até mesmo por causa de
idiossincrasias do seu pró prio raciocínio — nem sempre sã o tã o bem-sucedidas quanto sua
exegese da Escritura.
Por exemplo, quando o Dr. Whitby — oponente de John Gill — acusa os calvinistas de
insinuarem que Deus pretende condenar os ímpios (além de outras coisas que o Dr. Whitby
considera ofensivas), nã o basta replicar com Gill que os calvinistas nã o fazem essas
afirmaçõ es. Porque, em primeiro lugar, possivelmente alguns fazem isso; e, em segundo,
ainda que nenhum calvinista fizesse afirmaçõ es como essa, o horror sentido pelo Dr.
Whitby poderia ser por causa de implicaçõ es vá lidas, embora até aqui desconhecidas, dos
princípios calvinistas. O teó logo, portanto, está na obrigaçã o de responder à acusaçã o de
inconsistência neste caso, embora o pró prio Dr. Whitby seja muitas vezes mais
inconsistente. Passaremos entã o da exegese para a discussã o teoló gica.
 
 
Onisciência
 
Nã o apenas o livre-arbítrio é incapaz de livrar Deus da culpabilidade e a permissã o incapaz
de coexistir com a onipotência, como tampouco pode a posiçã o arminiana firmar uma
posiçã o ló gica para a onisciência. Uma ilustraçã o romanista-arminiana é a de um
observador sobre um alto penhasco. Na estrada abaixo, à esquerda do observador, um
carro se dirige para o oeste. À direita do observador, um carro está vindo do sul. O
observador pode ver e saber que haverá uma colisã o no cruzamento logo abaixo. Mas sua
presciência, assim segue o argumento, nã o causa o acidente. Da mesma forma, Deus
supostamente conhece o futuro sem, contudo, causá -lo.
Essa semelhança, no entanto, é enganosa em vá rios pontos. O observador humano nã o
pode realmente saber se haverá uma colisã o. Embora imprová vel, existe a possibilidade de
que os pneus estourem e os carros acabem desviando bruscamente ao chegar no
cruzamento. Também é possível que o observador tenha calculado mal as velocidades, em
cujo caso um carro pode desacelerar e o outro acelerar e acabarem nã o colidindo. O
observador humano, portanto, nã o tem presciência infalível.
Nenhum desses erros pode ser assumido para Deus. O observador humano pode dar um
palpite prová vel de que o acidente ocorrerá , e esse palpite nã o tornará o acidente
inevitá vel; mas se Deus sabe, nã o há possibilidade de evitar o acidente. Cem anos antes de
os motoristas terem nascido, nã o havia possibilidade de evitar o acidente. Nã o havia
possibilidade de um deles escolher ficar em casa nesse dia, seguir uma rota diferente,
dirigir num horá rio diferente, dirigir a uma velocidade diferente. Eles nã o poderiam ter
escolhido de outra forma. Isso significa que ou eles nã o tinham livre-arbítrio, ou Deus nã o
sabia.
Suponha por um momento que, assim como os palpites humanos, a presciência divina nã o
causa o evento conhecido de antemã o. Ainda assim, se existe presciência, em contraste com
palpites falíveis, o livre-arbítrio é impossível. Se o homem tem livre-arbítrio e as coisas
podem ser diferentes, Deus nã o pode ser onisciente. Alguns arminianos reconhecem isso e
negam a onisciência, mas isso os coloca obviamente em conflito com o cristianismo bíblico.
Há também outra dificuldade. Se o arminiano ou romanista quer preservar a onisciência
divina e ao mesmo tempo alega que a presciência nã o tem eficá cia causal, ele deve explicar
como a colisã o foi tornada certa cem anos antes, na eternidade, antes que os motoristas
tivessem nascido. Se Deus nã o organizou o universo dessa forma, quem o organizou?
Se Deus nã o o organizou dessa forma, deve existir um fator independente no universo; e
caso exista, uma e talvez duas consequências irã o resultar disso . Primeiro, a doutrina da
criaçã o deverá ser abandonada. Uma criaçã o ex nihilo estaria totalmente sob o controle de
Deus. Forças independentes nã o podem ser forças criadas, e forças criadas nã o podem ser
independentes. Entã o, em segundo lugar, se o universo nã o é uma criaçã o de Deus, o
conhecimento que ele tem do universo — passado e futuro — nã o pode depender do que
ele pretende fazer, mas da sua observaçã o de como o universo funciona. Neste caso, como
poderíamos ter certeza de que as observaçõ es de Deus sã o precisas? Como poderíamos ter
certeza de que essas forças independentes nã o mostrariam mais tarde uma reviravolta
insuspeita que falsificaria as previsõ es de Deus? E, por fim, nessa perspectiva o
conhecimento de Deus seria empírico e nã o uma parte integral da essência divina, e Deus
seria, portanto, um conhecedor dependente. Essas objeçõ es sã o insuperá veis. Podemos
consistentemente acreditar na criaçã o, onipotência, onisciência e nos decretos divinos, mas
nã o podemos manter a sanidade e combinar qualquer dessas doutrinas com o livre-arbítrio
. [109]

 
 
Responsabilidade e livre-arbítrio
 
O livre-arbítrio, porém, foi introduzido no cená rio por razõ es muito definidas. Uma vez que
ele está em tanta discordâ ncia com as doutrinas cristã s bá sicas, devem ter existido
estímulos excepcionalmente fortes para se buscar refú gio nele. Esses estímulos sã o a
necessidade de manter a responsabilidade humana pelo pecado e de preservar a retidã o de
Deus. O arminiano pode estar disposto a reconhecer que seu ponto de vista enfrenta
dificuldades; mas, pergunta ele, pode o calvinista fornecer uma saída melhor? Tudo bem se
a intençã o é mostrar que existe um conflito entre a criaçã o onipotente e o livre-arbítrio,
mas e quanto ao conflito entre o determinismo e a moralidade? Nã o seria melhor adotar
uma posiçã o firme a favor da moralidade e da responsabilidade — mesmo que com isso
acabá ssemos rebaixando Deus a um plano finito — do que defender a onipotência e minar
assim a moralidade humana e a santidade divina? Em outras palavras, já que Deus nã o
pode ser onipotente e bom ao mesmo tempo, nã o seria melhor admitir um deus finito?
Talvez se permita uma citaçã o para documentar como o livre-arbítrio depende do tema da
responsabilidade; mas antes que isso seja feito, note-se que inexiste outro motivo. Se se
pudesse mostrar que a responsabilidade do homem nã o pressupõ e o livre-arbítrio, a
teologia seria livrada de toda essa confusã o. Já nã o seria necessá rio a pessoa ter um apego
pouco entusiasmado a um conjunto de doutrinas autocontraditó rias em lugar de um
segundo conjunto de doutrinas igualmente contraditó rias. E a pessoa nã o seria obrigada a
disfarçar as contradiçõ es ó bvias mediante a falsa piedade de chamá -las de mistério. O
restante do argumento tentará mostrar que nem a responsabilidade humana, nem a
santidade divina requerem um livre-arbítrio. Mas primeiro, a citaçã o à qual aludimos:
 
     Ao longo de toda a histó ria da filosofia e da teologia as pessoas têm
disputado sobre a questã o do livre-arbítrio. Em geral, as filosofias idealistas
afirmam que o espírito humano deve ser livre num certo sentido, ao passo
que as filosofias materialistas negam essa liberdade. A teologia se apega
tenazmente à crença de que o homem é um “agente moral livre”, embora ao
mesmo tempo afirme muitas vezes uma doutrina de predestinaçã o que,
tomada ao pé da letra, delimitaria rigorosamente as açõ es humanas. O
problema, embora complexo, é demasiado fundamental para ser evitado.
     Vimos que a possibilidade da açã o moral ou imoral depende do poder de
escolha. Se todos os atos de alguém sã o estabelecidos e predeterminados
(quer pela estrutura do mundo material, quer pela vontade de Deus) de uma
forma que é impossível agir diferente de como se age, é bastante ó bvio que a
liberdade desaparece. A responsabilidade moral anda com a capacidade da
escolha voluntá ria. Uma pessoa nã o pode conscientemente escolher ser boa
nem escolher buscar a Deus a menos que tenha a capacidade de escolher nã o
agir assim. Nenhuma qualidade moral se atribui a meu fracasso em roubar o
milhã o de dó lares que está fora do meu alcance, mas roubar se torna uma
questã o moral quando tenho de decidir se devo ou nã o dizer ao caixa do
supermercado que ele me deu troco demais. Da mesma forma, se sou
“preordenado” a ser salvo ou condenado ao inferno, nã o há muito o que fazer
acerca do meu destino. Se nã o tenho liberdade, nã o sou responsá vel pelos
meus atos.
     O determinismo teoló gico, ou predestinaçã o, é uma doutrina cardeal do
maometismo. Islam significa “submissã o” (à vontade de Alá ), e muçulmano é
“alguém que se submete” aos decretos fatalistas de uma deidade arbitrá ria. A
teologia cristã , em suas formas primevas, considerava Deus igualmente
autoritá rio (embora mais ético) nos seus decretos. Pela influência de teó logos
cristã os ilustres — notavelmente Paulo, Agostinho e Calvino — a doutrina da
predestinaçã o influenciou profundamente o pensamento cristã o. Embora a
onipotência de Deus tenha sido assim enfatizada, a liberdade de Deus foi
exaltada à s custas do homem, e os atos mais desumanos maquiados como
oriundos da vontade de Deus. Mas felizmente a doutrina da predestinaçã o
está desaparecendo, pelo menos em sua aplicaçã o a males que sã o
obviamente evitá veis.
     Alguns ainda sustentam que, quando a vítima de febre tifoide morre por
falta de saneamento adequado, isso aconteceu porque “tinha de ser”. Há uma
boa dose de conforto iló gico nesse modo de ver as coisas. Mas nã o muitos
hoje, mesmo entre os calvinistas mais rigorosos, diriam que se um homem se
embriaga e atira na família, era da vontade de Deus que ele assim o fizesse.
[110]

 
 
A vontade de Deus
 
Essa citaçã o mostra claramente a motivaçã o moral por trá s da teoria do livre-arbítrio; mas
ao mesmo tempo mostra tanta confusã o mental, distorçã o dos fatos e insinuaçõ es
falaciosas que, antes de seguirmos com a discussã o, um argumento preliminar deve ser
tirado do caminho. Quero de maneira muito franca e enfá tica afirmar que se um homem se
embriaga e atira na família, foi da vontade de Deus que ele assim o fizesse . As Escrituras
nã o deixam margem para dú vida, como já se esclareceu antes, que foi da vontade de Deus
que Herodes, Pilatos e os judeus crucificassem Cristo. Em Efésios 1.11 Paulo diz que Deus
faz todas as coisas, e nã o somente algumas, conforme o conselho da sua vontade. Isso é
essencial para a doutrina da criaçã o. Antes que o mundo fosse criado, Deus já sabia tudo o
que iria acontecer; e, tendo esse conhecimento, quis que essas coisas acontecessem. Este
mundo ou qualquer outro, em todos os seus detalhes, só seria trazido à existência se Deus
assim o quisesse.
Neste ponto, os oponentes podem alegar que o calvinismo introduz uma autocontradiçã o
na vontade de Deus. Nã o é o assassinato contrá rio à vontade de Deus? Como entã o pode
Deus desejá -lo?
Muito facilmente. O termo vontade é ambíguo. Os Dez Mandamentos sã o a vontade
preceptiva de Deus. Eles ordenam aos homens que façam isto e se abstenham daquilo;
afirmam o que deve ser feito, mas nã o afirmam nem causam o que é feito. A vontade
decretiva de Deus, por outro lado, em contraste com os preceitos de Deus, causa todos os
eventos. É propício esclarecer se o termo vontade nã o se aplicaria aos preceitos. Chame os
requisitos da moralidade de mandamentos , preceitos ou leis ; e reserve o termo vontade
para o decreto divino. Sã o duas coisas diferentes, e o que parece ser uma oposiçã o entre
elas nã o é uma autocontradiçã o. Os judeus nã o deveriam ter exigido a crucificaçã o de
Cristo. Ela era contrá ria à lei moral. Mas Deus havia decretado a morte de Cristo desde a
fundaçã o do mundo. A princípio pode parecer estranho Deus decretar um ato imoral, mas a
Bíblia mostra que ele assim o fez. Esse ponto será discutido em mais detalhes adiante; mas
embora ele possa parecer estranho agora, deve estar pelo menos claro que uma definiçã o
clara dos termos pela qual duas coisas diferentes nã o sã o confundidas sob um ú nico nome
remove a acusaçã o de autocontradiçã o.
Quando o termo vontade é usado de maneira solta, uma segunda distinçã o também deve
ser feita. Pode-se falar da vontade secreta de Deus e pode-se falar da vontade revelada de
Deus. Aqueles que viram uma autocontradiçã o no caso anterior sem dú vida argumentariam
de modo semelhante neste caso. O arminiano diria que a vontade de Deus nã o pode se
contradizer e que, portanto, a vontade secreta de Deus nã o pode contradizer sua vontade
revelada. Ora, o calvinista diria a mesma coisa, mas tem uma noçã o mais clara do que é uma
contradiçã o e do que dizem as Escrituras. Era da vontade secreta de Deus que Abraã o nã o
sacrificasse seu filho Isaque; mas era sua vontade revelada (temporariamente), seu
mandamento, que Abraã o assim o fizesse. Superficialmente isso parece uma contradiçã o.
Mas nã o é. A declaraçã o ou mandamento “Abraã o, sacrifique Isaque” nã o contradiz a
declaraçã o, até entã o conhecida apenas por Deus, “Eu decretei que Abraã o nã o sacrificaria
seu filho”. Se os arminianos tivessem um senso de ló gica mais apurado, nã o seriam
arminianos!
 
 
Marionetes
 
A confusã o beira à s vezes o ridículo. Para chegar um passo mais perto da questã o da
responsabilidade humana, outra frase dos oponentes precisa ser analisada. Entre muitos
outros, o professor Stuart C. Hackett acusa o determinismo calvinista de reduzir os homens
a meras marionetes.
O professor Hackett está empenhado em ressuscitar o teísmo do argumento cosmoló gico.
Nesse esforço, se opõ e a uma teoria chamada de pressuposicionalismo pelo fato de que ele
está baseado numa posiçã o teoló gica adotada de antemã o. É algo, evidentemente, que o
presente livro tem feito; estes capítulos possuem pressuposiçõ es, e se lhes pede uma
atençã o; mas, ao que parece, a inferência do professor Hackett é que esse procedimento
deve ser evitado. No entanto, é estranho que sua razã o final e decisiva para se rejeitar o
pressuposicionalismo é: “Assim, a abordagem pressuposicional desá gua numa atmosfera
extremamente calvinista. Se alguém se sente confortá vel aí, fique entã o com esse Deus que
criou homens racionais como simples marionetes da sua soberania”. [111]

Dois pontos aqui. O menor deles é que, ao argumentar contra o pressuposicionalismo, o


professor Hackett adota suas pró prias pressuposiçõ es . Claro, suas pressuposiçõ es sã o
arminianas, mas ainda assim ele nã o se livra do pressuposicionalismo. O ponto principal,
todavia, é que o calvinismo supostamente reduz os homens a marionetes.
Uma objeçã o como essa só poderia vir de uma ignorâ ncia sobre os escritos puritanos.
Talvez o opositor tenha visto um capítulo da Confissã o de Westminster, “Do Livre-Arbítrio”,
ou lido no Breve Catecismo que nossos primeiros pais foram “deixados à liberdade da sua
pró pria vontade”; e entã o, sem ler a literatura daqueles dias, assumido que o calvinismo
oficial é mais moderado do que a visã o aqui defendida e que a negaçã o do livre-arbítrio é
um hipercalvinismo. Os credos, porém, nã o sã o tratados filosó ficos minuciosos, e suas
frases devem ser entendidas no sentido buscado pelos autores. Se esse significado nã o está
claro no contexto do pró prio credo, deve ser buscado na literatura.
De fato, a Confissão de Westminster fala da liberdade natural da vontade do homem. O
primeiro pará grafo do Capítulo IX é: “Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade
natural, que ela nem é forçada para o bem nem para o mal, nem a isso é determinada por
qualquer necessidade absoluta de sua natureza”.
Essas frases poderiam parecer acomodaçõ es à teoria do livre-arbítrio, mas só podem
parecê-lo porque o significado da frase “necessidade absoluta de sua natureza” foi
entendido erroneamente. Os Princípios Reformados , parte dos padrõ es da Reformed
Presbyterian Church, fazem uma declaraçã o mais esclarecedora quando condenam como
erro a visã o de que o homem “é necessariamente impelido a escolher ou atuar como uma
má quina inconsciente”. Até mesmo as frases do início do século XVII devem ter parecido
inequívocas quando escritas, pois foram escolhidas no contexto de um século de discussã o.
Elas certamente devem ser tomadas num sentido consistente com o capítulo da Confissã o
que fala sobre o decreto divino. Aqui, uma vez mais, Os Princípios Reformados sã o bastantes
claros, pois o erro imediatamente seguinte a ser denunciado é “que ele [o homem] pode
querer ou agir de modo independente do propó sito ou da providência de Deus”. Se o
significado dessas frases foi esquecido por alguns autores da atualidade, o remédio está na
leitura da discussã o dos séculos XVII e XVIII.
Primeiro, traremos novamente em evidência um material de John Gill. Gill é
particularmente escolhido porque nã o era presbiteriano. É necessá rio lembrar que essas
ideias nã o se limitavam aos presbiterianos . Para o contexto mais amplo de Gill, veja The
Cause of God and Truth , Parte III.
As açõ es dos santos glorificados, diz ele, sã o realizadas em obediência à vontade de Deus;
esses atos procedem dos santos livremente, embora suas vontades sejam imutavelmente
determinadas e eles nunca possam agir de outra maneira — o pecado é impossível no céu.
Por essas frases, Gill mostra que o termo livremente é consistente com o determinismo
imutá vel.
Essa açã o, repete ele, que é voluntariamente cometida contra a lei de Deus é condená vel,
embora a vontade possa ser a ela influenciada e determinada pela corrupçã o da natureza;
pois o pecado nã o é menos pecaminoso só porque o homem corrompeu seu caminho de tal
modo que nã o pode agir de outra maneira. Assim, Gill conecta a responsabilidade à voliçã o
ou vontade, mas a vontade nã o é um livre-arbítrio, pois o homem nã o pode agir de outra
maneira.
Opondo-se à filosofia materialista de Thomas Hobbes, John Gill declara que a questã o é se
todos os agentes e eventos sã o predeterminados extrinsecamente sem que eles mesmos
concorram na determinaçã o. A disputa com o sr. Hobbes, continua, nã o é sobre a
capacidade da vontade de fazer isto ou aquilo, mas sobre a liberdade natural da vontade.
Essa linha de argumentaçã o faz com que a liberdade natural da vontade consista na sua
liberdade de causas extrínsecas ou materialistas. Se há alguém que faz do homem uma
marionete, é Hobbes, pois as açõ es do homem sã o completamente determinadas por causas
físico-químicas . Isso, evidentemente, é uma forma de determinismo, mas nunca um
determinismo nos moldes calvinistas; e acusar o calvinismo do que pode, sem dú vida, ser
devidamente acusado contra Hobbes só mostra uma ignorâ ncia da posiçã o calvinista.
Mais extensivamente, John Gill diz que a necessidade pela qual contendemos, sob a qual
reside a vontade humana, é uma necessidade de imutabilidade e infalibilidade no que tange
aos decretos divinos — os quais têm seu evento necessá rio, imutá vel e determinado: tudo o
que é consistente com a liberdade natural da vontade. Dizemos que a vontade é livre de
uma necessidade de coaçã o e força e de uma necessidade física da natureza, como aquela
pela qual o Sol, a Lua e as estrelas se movem em seu trajeto.
Embora essa nã o tenha sido uma citaçã o literal e contínua, o fraseado é de Gill; e como é
muito instrutivo deve ser rigorosamente observado. A liberdade natural da vontade
consiste numa liberdade da necessidade física. A escolha nã o é determinada da mesma
forma que os movimentos planetá rios. O determinismo físico ou mecâ nico, passível de ser
expresso por equaçõ es diferenciais, só é aplicá vel a objetos inanimados; mas existe um
determinismo psicoló gico que nã o é mecâ nico ou matemá tico. O calvinista repudia o
primeiro, mas aceita o ú ltimo. Pode, por isso, sem inconsistência negar o livre-arbítrio e
ainda assim falar de uma liberdade natural.
Mais tarde, ao discutir o estoicismo, Gill observa que Agostinho nã o dava importâ ncia à
conotaçã o do termo destino , mas nã o fazia objeçã o à coisa em si. E, acrescenta Gill, nó s
concordamos com os estoicos quando afirmam que todas as coisas que acontecem sã o
determinadas por Deus desde a eternidade. Assim como nó s, alguns estoicos eram muito
cuidadosos em preservar a liberdade natural da vontade; por exemplo, Crísipo ensinava
que a vontade era livre da necessidade de movimento.
John Gill era batista. Para evitar a dependência de fontes presbiterianas e para mostrar que
se tratam de doutrinas do protestantismo, vamos reproduzir algumas linhas do
entusiá stico anglicano, nosso amigo de antes, Augustus Toplady — agora como teó logo em
vez de historiador. A primeira referência vem ao final da seçã o oito de sua histó ria. À frase
“O calvinismo rejeita toda espécie de compulsã o assim propriamente chamada” ele
acrescenta uma nota de rodapé na qual define compulsão como algo que ocorre “quando o
início ou continuidade de qualquer açã o é contrá rio à preferência da mente […] Na agência
sobrenatural da graça no coraçã o, a compulsã o é algo totalmente excluído, sendo essa
agência sempre bastante eficaz; uma vez que, quã o mais eficazmente se supõ e ela operar,
mais certamente deve envolver ‘a preferência da mente ’”. A nota segue nesse tema por
mais algumas linhas.
O espaço impede a reproduçã o de uma grande quantidade de material, mas podemos tomar
mais uma referência de Toplady. Na obra intitulada The Scheme of Christian and
Philosophical Necessity Asserted [O plano de necessidade cristã e filosó fica defendido], há os
seguintes sentimentos.
Busquemos, diz ele, à medida que prosseguimos, averiguar o que é livre agência (em
oposiçã o a livre-arbítrio). Todos os refinamentos desnecessá rios à parte, livre agência, em
português claro, é nada mais nada menos que agência voluntá ria. Ora, é preciso definir
necessidade como aquilo pelo qual qualquer coisa que vem a ocorrer nã o pode deixar de
ocorrer e nã o pode ocorrer de nenhuma outra maneira. Eu concordo, diz Toplady, com a
antiga distinçã o — adotada por Lutero e pela maioria dos teó logos reformados, para nã o
dizer todos — entre necessidade de compulsã o e necessidade de certeza infalível. A
necessidade de compulsã o é atribuída a corpos inanimados e inclusive a seres racionais
quando forçados a fazer ou sofrer qualquer coisa contrá ria à sua vontade e escolha. A
necessidade de certeza infalível, por outro lado, torna o evento inevitavelmente futuro, sem
qualquer força compulsó ria sobre a vontade do agente. Assim, Judas foi um ator necessá rio,
embora voluntá rio, naquela tremenda empresa.
Seria bom ler todo o tratado, mas já foi indicado o suficiente para nos permitir chegar mais
pró ximo de nossa conclusã o. Na literatura teoló gica, livre agência — ou liberdade natural
— significa que a vontade nã o é determinada por fatores físicos ou fisioló gicos. Mas livre
agência nã o é livre-arbítrio. Livre-arbítrio significa que nã o há nenhum fator determinante
operando sobre a vontade, nem mesmo Deus. Livre-arbítrio significa que qualquer de duas
açõ es incompatíveis é igualmente possível. Livre agência segue a ideia de que todas as
escolhas sã o inevitá veis. A liberdade que a Confissão de Westminster atribui à vontade é
uma liberdade da compulsã o, coaçã o ou força dos objetos inanimados; nã o é uma liberdade
do poder de Deus.
Talvez o assunto fique mais claro se afirmarmos em outras palavras no que consiste
precisamente a questã o. A questã o é: a é vontade livre? A questã o nã o é: Existe uma
vontade? O calvinismo, com toda a certeza, afirma que Judas agiu voluntariamente. Ele
escolheu trair Cristo; fez isso de bom grado. Nã o se questiona se ele tinha ou nã o vontade. O
que o calvinista pergunta é se essa vontade era livre. Existem fatores ou forças que
determinam a escolha da pessoa, ou a escolha é nã o-causada? Poderia Judas ter escolhido
de outra maneira? Nã o, ele poderia ter agido de outra maneira, se assim escolhesse; mas
poderia ter escolhido em oposiçã o à preordenaçã o de Deus? Atos 4.28 mostra que nã o. Os
arminianos frequentemente falam como se vontade e livre-arbítrio fossem sinô nimos; e
entã o, quando o calvinismo nega o livre-arbítrio, denunciam que os homens sã o reduzidos
a marionetes. Marionetes, evidentemente, sã o bonecos inanimados controlados
mecanicamente por cordõ es. Se os oponentes apenas tivessem lido os puritanos, se apenas
soubessem o que é calvinismo, poderiam ter-se poupado do ô nus de falar tamanha
bobagem.
A escolha e a necessidade, portanto, nã o sã o incompatíveis. Ao invés de prejulgar a questã o
confundindo escolha com livre escolha, é preciso dar uma definiçã o explícita de escolha . Só
depois disso, se fosse o caso, o adjetivo poderia se justificar. Escolha entã o pode ser
definido, pelo menos até onde basta para o presente propó sito, como um ato mental que
inicia e determina conscientemente uma açã o posterior. A capacidade de ter escolhido de
outra maneira é uma questã o irrelevante e nã o cabe na definiçã o. A capacidade só poderia
ser discutida depois de feita a definiçã o. Nã o podemos permitir que os arminianos
resolvam toda a questã o simplesmente escolhendo uma definiçã o. A escolha ainda é uma
voliçã o deliberada, ainda que nã o pudesse ter sido diferente.
 
 
Apelo à ignorância
 
Na verdade, nã o é possível saber se poderia ter sido diferente, pois nã o temos consciência
das nossas limitaçõ es. Os oponentes frequentemente baseiam sua defesa do livre-arbítrio
na pró pria consciência de liberdade. Parece-lhes imediata e introspectivamente claro que
suas escolhas nã o sã o causadas. Mas esse modo de ver assume que eles teriam consciência
da causalidade, caso houvesse alguma. Para ver que isso nã o procede, pode-se tentar
especificar as condiçõ es em que um homem poderia saber se tinha livre-arbítrio.
Vemos em crianças e à s vezes em adultos formas atípicas de conduta que atribuímos à
fadiga (a criança está agitada porque perdeu a soneca) ou à tensã o nervosa (o adulto perde
a cabeça ou se entrega ao á lcool). Os indivíduos em questã o estã o agindo voluntariamente e
podem bem acreditar que suas escolhas nã o sã o causadas. Nó sabemos mais do que isso.
Sabemos quais sã o as causas e sabemos que esses indivíduos nã o as reconhecem. Embora
seja fá cil atestar isso em outras pessoas, há uma tendência de ignorar que o mesmo vale
para nó s. Geralmente assumimos que nada está afetando nossa pró pria vontade
simplesmente porque nã o temos consciência da causalidade. Mas como podemos ter
certeza de que nã o há nenhuma causa? Que condiçõ es teriam de ser satisfeitas antes que
pudéssemos saber que nada está determinando nossas escolhas? Teríamos nã o só de
eliminar a possibilidade da fadiga e da tensã o nervosa, mas também outros fatores que
nem sã o tã o facilmente examinados quando neles pensamos, nem em primeiro lugar tã o
facilmente lembrados. Existem condiçõ es fisioló gicas diminutas que estã o além do espectro
usual ou possível da nossa atençã o. Alguma enfermidade incipiente pode estar afetando
nossa mente. Existem também fatores meteoroló gicos externos, pois sabidamente o clima
desagradá vel é algo deprimente. E podemos nó s ter certeza de que alguma mancha solar,
cuja existência nem sequer suspeitamos, nã o nos afetará ? Embora a vontade nã o seja
mecanicamente determinada, essas condiçõ es externas e também nossa fisiologia parecem
modificar nossa conduta em certa medida. Mais importante que a fisiologia e a astronomia
é a psicologia. Nã o poderia algum ciú me subconsciente estar motivando nossas reaçõ es à s
demais pessoas? Por que tomamos sundae de chocolate, sabendo que devemos fazer isso
menos? Estamos livres da influência do ensino dos pais? As Escrituras dizem: “Ensina a
criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, nã o se desviará dele”. O
ensino dos pais e toda a educaçã o partem do princípio de que a vontade nã o é livre, mas
pode ser treinada, motivada e dirigida. Por fim, além da fisiologia e da psicologia, há Deus.
Podemos ter certeza de que ele nã o está dirigindo nossas escolhas? Sabemos que estamos
livres da sua graça? Diz o salmo: “Bem-aventurado aquele a quem escolhes e aproximas de
ti”. Que certeza temos de que Deus nã o nos fez querer aproximar-nos dele? Podemos
estabelecer um limite para o poder de Deus? Podemos dizer até onde vai esse poder e onde
exatamente ele acaba? Estamos fora do controle de Deus?
A conclusã o é evidente, nã o? Para saber se nossas vontades nã o sã o determinadas por
nenhuma causa teríamos de conhecer todas as possíveis causas em todo o universo. Nada
poderia escapar da nossa mente. Estar consciente de um livre-arbítrio, portanto, requer
onisciência. Assim, nã o existe consciência de um livre-arbítrio; o que seus expoentes
tomam como consciência de um livre-arbítrio é simplesmente a inconsciência da
determinaçã o.
Isso descarta aqueles exemplos simpló rios em que nos é dito que a escolha entre uma torta
de cereja e uma de maçã é totalmente nã o-causada. Esses casos nã o fazem justiça à
gravidade do assunto. Se no, entanto, sã o solicitados exemplos, pode-se ficar com a escolha
de Lutero: Aqui eu fico, que Deus me ajude, nã o posso agir diferente. Com a maior
consciência das questõ es envolvidas vem uma menor convicçã o de que uma alternativa a
isso é possível.
 
 
Responsabilidade e determinismo
 
Todavia, Lutero era responsá vel pela sua escolha, por necessá ria que fosse. O livre-arbítrio
nã o é a base da responsabilidade. Em primeiro lugar, e num nível mais superficial, a base da
responsabilidade é o conhecimento. A pecaminosidade dos gentios, como dito no primeiro
capítulo de Romanos, podia ser cobrada deles porque — embora nã o gostassem de reter
Deus em seu conhecimento — eles nã o foram totalmente bem-sucedidos na tentativa de
esquecê-lo; em todo o seu pecado, eles ainda conheciam o juízo de Deus de que todos que
cometem tais coisas merecem a morte. Esse conhecimento é sem dú vida um conhecimento
inato; nã o veio das Escrituras, mas é resquício da imagem original de Deus na qual ele criou
o homem. Nesse mesmo sentido diz Lucas 12.47-48: “Aquele servo, porém, que conheceu a
vontade de seu senhor e nã o se aprontou, nem fez segundo a sua vontade será punido com
muitos açoites. Aquele, porém, que nã o soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas
de reprovaçã o levará poucos açoites”.
A explicaçã o da responsabilidade, no entanto, é mais profunda do que a do conhecimento.
De fato, se entendemos a responsabilidade em toda a sua extensã o e se admitimos que
somos considerados culpados em virtude do primeiro pecado do nosso cabeça federal,
Adã o, segue-se que nossa responsabilidade nã o está em ú ltima aná lise baseada nas nossas
escolhas. Romanos 5.17 diz que “pela ofensa de um e por meio de um só , reinou a morte”, e
a passagem prossegue (v. 19) dizendo: “pela desobediência de um só homem, muitos se
tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só , muitos se tornarã o
justos”. Em conformidade com as Escrituras, a Confissão de Westminster declara: “Sendo
eles o tronco de toda a humanidade, o delito de seus pecados foi imputado a seus filhos; e a
mesma morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida, foram transmitidas a toda
a sua posteridade, que deles procede por geraçã o comum”. A responsabilidade, por
[112]
conseguinte, deve ser definida de modo a dar espaço à imputaçã o e também de modo a
explicar nossas açõ es voluntá rias diá rias.
É estranho que a literatura teoló gica tenha feito tã o poucas tentativas de definir
responsabilidade . Essa é uma carência encontrada igualmente entre deterministas e
indeterministas. É verdade que se podem encontrar algumas declaraçõ es sobre
responsabilidade; mas nem toda declaraçã o verdadeira é uma definiçã o. Novamente, se
soubéssemos precisamente do que estamos falando, nossa confusã o poderia ser evitada.
Ora, a palavra responsabilidade parece ter a ver com dar uma resposta. Ou responsabilidade
máxima é prestar contas. Um homem é responsá vel se deve responder por aquilo que faz.
Definamos entã o o termo dizendo que uma pessoa é responsá vel se pode com justiça ser
recompensada ou punida por seus atos . Isso implica, naturalmente, que ela deve responder
a alguém. Responsabilidade pressupõ e uma autoridade superior que recompensa e pune. A
autoridade má xima é Deus. Logo, em ú ltima aná lise, a responsabilidade depende do poder
e da autoridade de Deus.
É justo entã o que Deus puna um homem por atos que o pró prio Deus tinha “anteriormente
determinado que se havia[m] de fazer”? Ele foi justo ao punir Judas, Herodes, Pô ncio
Pilatos e outros? As Escrituras respondem na afirmativa e explicam por quê. Deus nã o
apenas é o criador do universo físico, nã o apenas é o governador e juiz dos homens; é
também o legislador moral. Sua vontade é que estabelece a distinçã o entre o certo e o
errado, entre a justiça e a injustiça; sua vontade é que define as normas para a conduta
justa. A maioria das pessoas acha fá cil conceber Deus como tendo criado ou estabelecido
leis físicas pelo fiat divino; ele poderia ter criado um universo com um nú mero diferente de
planetas, se assim o quisesse. E também nã o incomoda alguns teó logos supor que Deus
poderia ter feito exigências cerimoniais diferentes. Em vez de ordenar que os sacerdotes
carregassem a arca sobre os ombros, Deus poderia ter proibido isso e ordenado que ela
fosse colocada numa carroça puxada por bois. Mas, por alguma razã o peculiar, as pessoas
hesitam em aplicar o mesmo princípio de soberania na esfera da ética ordiná ria. Em vez de
reconhecerem Deus como soberano na moral, elas querem sujeitá -lo a alguma lei ética
independente e superior — uma lei que satisfaça suas opiniõ es pecaminosas do que é certo
e do que é errado.
Calvino evitou essa posiçã o inconsistente e antibíblica. Diz ele na Instituição :
 
[…] quã o grave mal é investigar os mó veis da vontade de Deus, uma vez que
de tudo quanto sucede, ela é a causa com toda justiça. Porque, se houvesse
algo que fosse causa da vontade de Deus, seria preciso que fosse anterior e
que estivesse como que ligada por isso; só concebê-lo é grave impiedade.
Porque de tal maneira é a vontade de Deus, a suprema e infalível regra da
justiça, que tudo o que ela quer, só pelo fato de querê-lo, deve ser
considerado justo . Por isso, quando se pergunta pela causa de que Deus o fez
assim, devemos responder: porque quis. Pois se se insiste perguntando por
que quis, com isso se busca algo superior e mais excelente que a vontade de
Deus; o que é impossível de achar. [113]

 
Deus é soberano. Tudo o que ele faz é justo exatamente por esta razã o, porque o faz. Se ele
pune um homem, o homem é punido com justiça, e, portanto, o homem é responsá vel. Isso
responde à seguinte forma de argumento: Tudo o que Deus faz é justo; a puniçã o eterna
nã o é justa; logo, Deus nã o pune assim. Se a pessoa que assim argumenta está querendo
dizer que recebeu a revelaçã o especial de que nã o existe puniçã o eterna, nã o podemos lidar
com ela aqui. Se, porém, nã o está recorrendo a uma revelaçã o especial da histó ria futura,
mas a algum princípio filosó fico que visa mostrar que a puniçã o eterna é injusta, a distinçã o
entre nossas posiçõ es se torna imediatamente ó bvia. Calvino rejeita a visã o do universo
que faz de uma lei, quer de justiça, quer de evoluçã o, suprema ao invés do Legislador. Esse
tipo de visã o é semelhante ao dualismo platô nico que postulava um mundo de Ideias
superior ao Artífice divino; nesse sistema Deus é finito ou limitado, obrigado a seguir ou
obedecer a um padrã o independente. Mas aqueles que defendem a soberania de Deus
determinam o que é justiça a partir da observaçã o do que Deus realmente faz. Tudo o que
Deus faz é justo. O que ele ordena que os homens façam ou nã o façam é da mesma forma
justo ou injusto.
 
 
Distorções e cautelas
 
Os argumentos até aqui apresentados sã o mais que suficientes para a soluçã o do problema
principal. Outras consideraçõ es poderiam tornar a exposiçã o mais completa e remover das
mentes inexperientes uma série de distorçõ es e objeçõ es que frequentemente se
apresentam. O calvinismo sem dú vida estimula muitos equívocos, embora a razã o para sua
frequência, como já vimos na discussã o sobre marionetes, nã o seja um ponto do qual os
arminianos possam se orgulhar. Ao mesmo tempo, os calvinistas reconhecem que eles
mesmos têm a responsabilidade de antecipar esses equívocos tanto quanto possível. A
Confissã o de Westminster e outros credos reformados aconselham cautela, nã o tanto na
oposiçã o ao livre-arbítrio — pois os reformadores eram francos na sua defesa da graça em
oposiçã o ao livre-arbítrio —, mas na pregaçã o da doutrina da eleiçã o e do decreto divino.
Isso nã o exime aqueles professores em Departamentos da Bíblia que, supondo saber
melhor do que Deus o que deve ser revelado, exigem que a doutrina do decreto divino seja
suprimida em silêncio. Mas requer uma exegese clara das passagens bíblicas, que a
doutrina seja logicamente integrada ao resto da revelaçã o de Deus e que pelo menos as
principais objeçõ es sejam respondidas de forma direta.
Um volume recente, Divine Election [Eleiçã o divina] de G. C. Berkouwer, é em grande parte
motivado pela preocupaçã o pastoral de proteger a congregaçã o das incertezas e temores
de uma apresentaçã o dura da eleiçã o, da predestinaçã o e de temas correlatos. O professor
Berkouwer é um teó logo de larga erudiçã o. Seu volume, The Triumph of Grace in the
Theology of Karl Barth [O triunfo da graça na teologia de Karl Barth] é um triunfo de
erudiçã o. Semelhantemente, The Conflict with Rome [O conflito com Roma] é uma obra-
prima. O livro em discussã o também evidencia uma riqueza de conhecimento; a doutrina é
inconfundivelmente calvinista; e, no entanto, algumas hesitaçõ es e temores do livro
parecem infundados. Sem dú vida, a maior parte dos perigos que Berkouwer menciona
ocorreu de fato, como aqueles nos escritos de um certo Snethlage que ele menciona. Esses
perigos talvez fossem mais comuns na Holanda que nos Estados Unidos; mas ao que parece,
até onde vai a experiência do presente escritor, os perigos maiores e muito mais comuns
sã o aqueles de uma tendência oposta.
Para começar, Berkouwer acha necessá rio negar que o calvinismo é determinista. No seu
entender, a palavra determinismo aparentemente carrega uma conotaçã o maligna.
Infelizmente, Berkouwer nunca define determinismo com clareza. Nas entrelinhas podemos
entender que para ele o determinismo torna automaticamente todas as diferenças dentro
da predeterminaçã o de Deus relativas e desimportantes, de modo que a pregaçã o se
[114]

torna inú til. Existem, é claro, vá rios tipos de determinismo, tanto ateístas e mecâ nicos
[115]

quanto teístas e teleoló gicos. Isso, porém, é um motivo insuficiente para se evitar a palavra
determinismo . Ao contrá rio, a rejeiçã o uniforme desse termo pode sugerir à congregaçã o
que o pastor nã o acredita realmente que Deus controla todos os eventos; e esse resultado
infeliz seria certamente mais grave do que qualquer erro decorrente da palavra
determinismo . A natureza humana pecaminosa é muito mais propensa a negar ou limitar a
autoridade de Deus em favor da independência humana do que de exagerar o poder de
Deus. A cautela e o cuidado pastorais, portanto, acabam levando para a direçã o oposta.
Berkouwer também adverte a nã o se atribuir um poder absoluto a Deus, nã o afirmar a
superioridade de Deus sobre todas as leis e nã o chamar suas decisõ es de arbitrá rias. Em
cada caso, porém, há um sentido em que esses termos podem ser usados em referência a
Deus e também um sentido em que sã o objetá veis. Talvez a ideia de poder absoluto
postulada por Occam nã o seja correta; mas Berkouwer reconhece que nã o existe lei
superior a Deus e que nesse sentido Deus é de fato “Ex-lex”. Ao discutir a pará bola do
empregador que pagou a seus trabalhadores diaristas o mesmo salá rio a despeito do tempo
que trabalharam, Berkouwer diz que isso nã o foi “arbitrá rio”, mas “bom”. Sem dú vida, mas
a preocupaçã o de Berkouwer parece estar concentrada mais nas palavras do que no seu
significado.
Berkouwer também se mostra desconfiado com o conceito de causalidade, em grande parte
porque a ideia de causa tende a um “determinismo metafísico que nã o deixa espaço para
variaçõ es e diferenças, mas subordina tudo à causalidade ú nica de Deus”. Essa é uma
[116]

objeçã o vazia — se alguma vez houve alguma — e a discussã o deixa muito a desejar, pois
Berkouwer admite que “é inerentemente difícil dar qualquer resposta que seja ó bvia para o
pensamento reflexivo e razoá vel”.
“Por um lado, queremos preservar a liberdade de Deus na eleiçã o, e por outro queremos
evitar qualquer conclusã o que faria de Deus a causa do pecado e da incredulidade”. [117]

Berkouwer, apesar do seu calvinismo e de muitas declaraçõ es realmente excelentes sobre a


posiçã o reformada, está tã o constrangido por suas dificuldades imaginá rias que chegou
certa vez até mesmo a tropeçar no que considero um disparate histó rico. Escreveu ele: “O
que Jacó [Armínio] diz de Calvino — que nas suas pregaçõ es e comentá rios a eleiçã o de
Deus é discutida repetidas vezes, mas a rejeiçã o nã o é mencionada — pode ser dito com
igual validade das confissõ es reformadas”. No seu contexto essa frase parece significar
[118]

que as confissõ es reformadas nem sequer mencionam a reprovaçã o. Isso nã o é verdade; e


esperamos que Berkouwer quis dizer outra coisa, e apenas nã o conseguiu expressá -lo com
clareza. Que o significado ostensivo da frase nã o é verdadeiro, é algo inegá vel. Mais cedo
neste capítulo foi citado um trecho da Confissão de Westminster ; e a atençã o do leitor é
mais uma vez chamada para as seçõ es 3, 4 e 7 do capítulo III.
Nã o é por uma aná lise forçada do conceito de causalidade que Berkouwer pode evitar
chamar Deus de a causa do pecado ou pode contribuir para a prevençã o de mal-entendidos.
Há realmente duas conclusõ es equivocadas que devemos evitar — nã o tanto para o fim de
proteger as congregaçõ es calvinistas da ansiedade e insegurança, como acredita
Berkouwer, como para livrar os arminianos dos disparates que cometem. Em conexã o com
a clá usula Deus é a causa do pecado , algo ainda precisa ser dito sobre causalidade; e, em
segundo lugar, algo precisa ser dito sobre a santidade de Deus.
Berkouwer havia se queixado de que a tentativa de explicar o decreto divino em termos de
causalidade impedia o reconhecimento de diferenças e variaçõ es dentro do decreto divino
e eliminava, portanto, essas distinçõ es no processo histó rico. Embora admita existir dois
tipos de causalidade, Berkouwer ainda assim conclui que “toda discussã o acerca da
causalidade fracassa e deve fracassar”. [119]
A questã o é ligeiramente complexa. Parte dela tem a ver com a necessidade de meios, ou
causas secundá rias ou imediatas. Deus nã o faz todas as coisas — dificilmente faz alguma
coisa — imediatamente. É por esse motivo que a Confissã o de Westminster, à qual
Berkouwer dá insuficiente atençã o, tem uma frase sobre causaçã o secundá ria.
É da natureza humana, natureza humana depravada, tentar evitar a responsabilidade pelo
malfeito. Buscando se desculpar de um ato maligno, um homem pode atribuir a culpa a um
tentador, como o fizeram Adã o e Eva, a circunstâ ncias convincentes e atenuantes ou a algo
mais remoto e fundamental. A falta de sinceridade desse procedimento se evidencia
quando percebemos que os homens nã o tentam evitar o louvor e a honra atribuindo seus
bons atos a causas ú ltimas. Eles querem se livrar da culpa, mas estã o dispostos, muito
dispostos, a aceitar elogios. A visã o cristã , todavia, está claramente expressa na grande
confissã o de Davi. Davi nã o se queixou dizendo: cometi um grande pecado, mas
infelizmente nasci pecador e nã o pude evitá -lo; portanto, nã o me culpe demais. Ao
contrá rio, disse: cometi um grande pecado e, o que é pior, nasci assim; nã o pude evitá -lo,
pois eu mesmo sou mau. O Davi arrependido nã o pô s a culpa em sua mã e nem em Adã o
nem em Deus, apesar de todos eles serem causas na cadeia de causaçã o que leva ao seu
pecado. O Davi arrependido pô s a culpa na causa imediata do ato — ele pró prio. A doutrina
da criaçã o, com sua implicaçã o de que nã o existe poder independente de Deus, nã o nega,
mas demonstra a existência de causas secundá rias. Supor o contrá rio nã o é bíblico, e evitar
a noçã o de causalidade é iló gico.
Também é insustentá vel a alegaçã o de Berkouwer de que um decreto original, totalmente
inclusivo e universal de causaçã o, remove outras distinçõ es. Ele teme que o princípio da
causalidade entre em conflito com a pró pria posiçã o bíblica de que a culpa é a base judicial
da condenaçã o. Ora, este é um fator importante, fator importantíssimo, para a cautela
pastoral. A maioria das pessoas dentro e fora da igreja está imersas em detalhes prá ticos, e
raramente ergue a vista para princípios teoló gicos mais gerais. É indispensá vel chamar sua
atençã o para o fato de que Deus condena as pessoas por causa dos seus pecados. Em
particular, o esforço evangelístico nã o pode omitir o fato do pecado. Mas o calvinismo nã o
faz essa omissã o. Também nã o há qualquer inconsistência. As doutrinas da eleiçã o e da
reprovaçã o nã o conflitam com o fato de que a puniçã o de Deus nã o visita quem nã o é
pecador. O pecador merece sua puniçã o porque é mau e praticou o mal. Nenhuma pessoa
inocente sofre. Sem dú vida, o calvinismo também insiste que nã o existem pessoas
inocentes, à exceçã o de Cristo, é claro. Todos estã o mortos em pecados. A salvaçã o é um
dom gratuito e imerecido. O pecado merece um salá rio, e esse salá rio é a morte. O
calvinismo proclama tudo isso sem contemporizar. Nã o há nada no decreto divino que seja
inconsistente com o reconhecimento do pecado como a base judicial da puniçã o. A alegaçã o
de Berkouwer de que o conceito de causa elimina particularidades do decreto divino é,
portanto, insustentá vel.
Há , reconhecidamente, outros detalhes cuja discussã o poderia evitar vá rios mal-
entendidos. Considerá -los todos, mesmo que nã o fossem repetitivos, demandaria uma
extensã o e detalhamento incompatíveis com o presente plano. Há , todavia, um tó pico
extremamente importante que nã o pode ser omitido. Será que a visã o aqui defendida torna
Deus a causa e o autor do pecado? Berkouwer também faz esta pergunta, e todos
igualmente a fazem.
Seja inequivocamente dito que essa visã o certamente torna Deus a causa do pecado. Deus é
a ú nica causa final de todas as coisas. Nã o há absolutamente nada independente dele. Só ele
é o ser eterno. Só ele é onipotente. Só ele é soberano. Nã o apenas Sataná s é sua criatura;
cada detalhe da histó ria também esteve eternamente em seu plano antes de o mundo
começar; e ele desejou que tudo isso viesse a acontecer. Os homens e os anjos
predestinados à vida eterna e aqueles preordenados à morte eterna sã o particular e
imutavelmente designados; e seu nú mero é tã o certo e definido que nã o pode ser nem
aumentado nem reduzido. A eleiçã o e a reprovaçã o sã o igualmente definitivas. Deus
determinou que Cristo deveria morrer; também determinou que Judas deveria traí-lo.
Nunca houve a mais remota possibilidade de algo diferente vir a acontecer.
 
     Tudo quanto aprouve ao SENHOR , ele o fez, nos céus e na terra (Sl 135.6).
     Todos os moradores da terra sã o por ele reputados em nada; e, segundo a
sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; nã o há
quem lhe possa deter a mã o, nem lhe dizer: Que fazes? (Dn 4.35).
     Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR , faço
todas estas coisas (Is 45.7).
     O SENHOR fez todas as coisas para os seus pró prios fins e até ao ímpio, para
o dia do mal (Pv 16.4, ARC).
     Tu, porém, me dirá s: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu
à sua vontade? Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! […] Ou nã o
tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para
honra e outro, para desonra? (Rm 9.19-21).
     Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus (Rm 11.22).
 
É lícito, porém, perguntar se a frase “causa do pecado” nã o é equivalente à frase “autor do
pecado”. Seria a ú ltima frase usada para se negar a causalidade universal de Deus?
Obviamente nã o, pois as mesmas pessoas que afirmam a causalidade negam a autoria. Elas
devem ter em mente uma distinçã o. Temos uma ilustraçã o à mã o. Deus nã o é o autor deste
livro, como os arminianos seriam os primeiros a reconhecer, mas é sua causa ú ltima, como
ensina a Bíblia. Eu ainda sou o autor. Autoria, portanto, é um tipo de causa, mas existem
outros tipos. O autor de um livro é a causa imediata do livro; Deus é sua causa ú ltima.
Essa distinçã o entre causaçã o primá ria e secundá ria — explicitamente mantida na
Confissã o de Westminster — nem sempre foi apreciada, mesmo por aqueles que estã o, de
modo geral, de acordo. John Gill, por exemplo, excelente em tantas coisas, nã o conseguiu
captar a distinçã o entre autor imediato e causa ú ltima. Por esse motivo há algumas
passagens deficientes no seu trabalho, que no mais é excelente. Tal é a dificuldade do
problema e tã o confusas as discussõ es do tempo da patrística até os dias atuais, que alguns
dos melhores calvinistas nã o conseguiram se desvencilhar completamente dos erros
escolá sticos. Nã o só Berkouwer, mas até mesmo Jonathan Edwards, a despeito de Calvino,
ainda falavam da permissã o do pecado por Deus.
Quando, consequentemente, a discussã o chega ao fato de Deus ser o autor do pecado, é
preciso entender a questã o como: Deus é a causa imediata do pecado? Ou mais claramente:
Deus comete pecado? Essa é uma questã o que diz respeito à santidade de Deus. Ora, deve
estar claro que, a exemplo de escrever estas palavras, Deus nã o comete pecado. Embora a
traiçã o a Cristo tenha sido preordenada desde a eternidade como um meio de efetuar a
expiaçã o, foi Judas e nã o Deus quem traiu Cristo. As causas secundá rias na histó ria nã o sã o
eliminadas pela causalidade divina, mas antes confirmadas. E os atos dessas causas
secundá rias, quer sejam justos, quer sejam pecaminosos, devem ser imediatamente
referidos aos agentes; e esses agentes é que sã o responsá veis.
Deus nã o é nem responsá vel nem pecador, embora seja a ú nica causa ú ltima de tudo. Nã o é
pecador porque, em primeiro lugar, tudo o que Deus faz é justo e reto. É justo e reto
simplesmente porque ele o faz. Justiça ou retidã o nã o é um padrã o externo a Deus ao qual
Deus é obrigado a se submeter. Retidã o é aquilo que Deus faz. Uma vez que Deus levou
Judas a trair Cristo, esse ato causal é reto e nã o pecaminoso. Por definiçã o, Deus nã o pode
pecar. Nesse ponto é preciso particularmente salientar que Deus fazer um homem pecar
nã o é pecado. Nã o existe nenhuma lei superior a Deus que o proíba de decretar atos
pecaminosos. Pecado pressupõ e uma lei, pois pecado é ilegalidade. Pecado é qualquer falta
de conformidade com a lei de Deus ou qualquer transgressã o dela. Mas Deus é “Ex-lex”.
É verdade que se um homem, um ser criado, causasse ou tentasse causar outro homem a
pecar, essa tentativa seria pecaminosa. A razã o é clara. A relaçã o de um homem com outro
é totalmente diferente da relaçã o de Deus com qualquer homem. Deus é o criador; o
homem é uma criatura. E, do mesmo modo, a relaçã o de um homem com a lei é diferente da
relaçã o de Deus com a lei. O que vale numa situaçã o nã o vale na outra. Deus tem direitos
absolutos e ilimitados sobre todas as coisas criadas. Da mesma massa pode fazer um vaso
para honra e outro para desonra. O barro nã o tem direitos sobre o oleiro. Entre os homens,
ao contrá rio, os direitos sã o limitados.
A ideia de que Deus está acima da lei pode ser explicada em outro particular. As leis que
Deus impõ e aos homens nã o se aplicam à natureza divina. Só sã o aplicá veis à s condiçõ es
humanas. Por exemplo, Deus nã o pode roubar, nã o apenas porque tudo o que ele faz é
certo, mas também porque ele é dono de tudo: nã o há de quem roubar. Portanto, a lei que
define o pecado prevê condiçõ es humanas e nã o tem nenhuma relevâ ncia para um Criador
soberano.
Como Deus nã o pode pecar, entã o por conseguinte Deus nã o é responsá vel pelo pecado,
muito embora o decrete. Talvez fosse bom, antes de concluir, dar um pouco mais de
comprovaçã o bíblica de que Deus realmente decreta e causa o pecado. 2 Crô nicas 18.20-22
registra:
 
Entã o, saiu um espírito, e se apresentou diante do SENHOR , e disse: Eu o
enganarei. Perguntou-lhe o SENHOR : Com quê? Respondeu ele: Sairei e serei
espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas. Disse o SENHOR : Tu o
enganará s e ainda prevalecerá s; sai e faze-o assim. Eis que o SENHOR pô s o
espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas e o SENHOR falou o
que é mau contra ti.
 
Essa passagem definitivamente diz que o Senhor levou os profetas a mentir. Outras
passagens semelhantes poderiam facilmente vir à lembrança. Mas que Deus nã o é
responsá vel pelo pecado que ele causa é uma conclusã o intimamente relacionada ao
argumento precedente.
Outro aspecto das condiçõ es humanas pressupostas pelas leis que Deus impõ e ao homem é
que elas trazem consigo uma penalidade que nã o pode ser infligida a Deus. O homem é
responsá vel porque Deus o chama à responsabilidade; o homem é responsá vel porque o
poder supremo pode puni-lo pela desobediência. Deus, ao contrá rio, nã o pode ser
responsá vel, pela razã o ó bvia de que nã o existe nenhum poder superior a ele; nenhum ser
maior pode considerá -lo responsá vel; ninguém pode puni-lo; nã o há ninguém perante
quem Deus seja responsá vel; nã o há leis que ele pudesse desobedecer. O pecador, portanto,
e nã o Deus, é responsá vel; o pecador sozinho é o autor do pecado. O homem nã o tem livre-
arbítrio, pois a salvaçã o é puramente pela graça; e Deus é soberano.
 
 
Deo Soli Gloria
 
Eu sou o SENHOR , e nã o há outro; além de mim nã o há Deus […] Eu formo a
luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR , faço todas estas
coisas […] Ai daquele que contende com o seu Criador! […] Acaso, dirá o
barro ao que lhe dá forma: Que fazes? […] Assim diz o SENHOR , o Santo de
Israel […] Eu fiz a terra e criei nela o homem; as minhas mã os estenderam os
céus, e a todos os seus exércitos dei as minhas ordens […] Ó profundidade [120]

da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quã o


insondá veis sã o os seus juízos, e quã o inescrutá veis, os seus caminhos! […]
Porque dele, e por meio dele, e para ele sã o todas as coisas. A ele, pois, a
gló ria eternamente. Amém! [121]

[1]
William Ernest Hocking, The Coming World Civilization , p. 149. Os itá licos sã o de Hocking.
[2]
L. W. Grensted, The Psychology of Religion , p. 15.
[3]
L. W. Grensted, The Psychology of Religion , p. 3, 5.
[4]
Veja Karl Barth, Church Dogmatics , II 1, p. 449: “É , portanto, algo impensado colocar o islã e o cristianismo lado a lado, como se no monoteísmo eles tivessem pelo

menos algo em comum. Na realidade, nada os separa tã o radicalmente quanto as diferentes formas em que parecem dizer a mesma coisa — que há um só Deus”.

[5]
Strickland, Psychology of Religious Experience , p. 113-115.
[6]
Sã o Paulo: Hagnos, 2003, I, p. 118.
[7]
Burtt, Types of Religious Philosophy , p. 454. Primeira edição.
[8]
David S. Clark, Syllabus of Systematic Theology , p. 62.
[9]
Veja, do autor, Thales to Dewey , The Works of Gordon Haddon Clark , p. 217-21. [Ediçã o em português: De Tales a Dewey (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2012).]
[10]
Charles Hodge, Teologia sistemática (Sã o Paulo: Hagnos, 2001), p. 158.
[11]
Ibid .
[12]
Spinoza, Tractatus Theologico-Politicus , capítulo IV.
[13]
Quem nã o foi convencido por esse breve relato deve ler as primeiras pá ginas da Parte I do livro de Berkeley Principles of Human Knowledge . [Ediçã o em

português: Tratado sobre os princípios do conhecimento humano in “Obras Filosó ficas” (Sã o Paulo: UNESP, 2010), p. 57.]

[14]
Os pará grafos a seguir seguem Edward Caird, Hegel , p. 134 ss.
[15]
Isso é discutido em brilhante detalhe em A fenomenologia da mente , capítulos 1-3.
[16]
Triad supernal, both super-God and super-good, Guardian of the theosophy of Christian men, direct us aright to the super-unknown and super-brilliant and highest

summit of the mystic oracles, where the simple and absolute and changeless mysteries of theology lie hidden within the super-luminous gloom of the silence, revealing hidden

things, which in its deepest darkness shines above the most super-brilliant, and in the altogether impalpable and invisible fills to overflowing the eyeless mind with glories of

surpassing beauty (Mystic Theology, 1:1).

[17]
Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas filosóficas , Vol. 1 (Petrópolis, RJ: Vozes, 2013), p. 215.
[18]
Ibid. , p. 210.
[19]
  Pragmatism , p. 19.
[*]
Silogismo na forma Todo M é P, Todo S é M, logo, todo S é P. Conforme Aristó teles (Primeiros Analíticos 1.4.25b), “Pois,
se A é segundo tudo de B e B segundo tudo de C, é necessá rio que A seja segundo tudo de C”. [N. do R.]
[20]
Brunner, em Wahrheit als Begegnung , p. 88.
[21]
Catholic Encyclopedia (1913, p. 752).
[22]
A psicologia da faculdade vê a mente como uma coleçã o de faculdades ou mó dulos separados encarregados de vá rias tarefas mentais. A visã o é explícita nos

escritos psicoló gicos de teó logos escolá sticos medievais, como Tomá s de Aquino. [N. do T.]

[23]
Joã o Calvino, A instituição da religião cristã , Tomo I (Sã o Paulo: UNESP, 2008), p. 179-83.
[24]
Charles Hodge, Teologia sistemática (Sã o Paulo: Hagnos, 2001), p. 557.
[25]
J. Gresham Machen, What Is Faith? , p. 26. Veja também p. 49, 51.
[26]
Joã o Calvino, op. cit. , p. 181.
[27]
J. Gresham Machen, What Is Faith? , p. 130.
[28]
Ibid ., p. 51.
[29]
Religious Values , p. 21-22.
[30]
A Philosophy of Religion , p. 192.
[31]
Nature and Values , p. 106.
[32]
Para uma discussã o mais completa, veja Uma visão cristã dos homens e do mundo (Brasília, DF: Monergismo, 2013), p. 206-57, 277, 287.
[33]
Veja De Tales a Dewey (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2012), capítulo 11.
[34]
B. B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible , p. 173 n9. [Ediçã o em português: A inspiração e autoridade da Bíblia (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2010).]
[35]
B. B. Warfield, The Inspiration and Authority of the Bible , p. 421.
[36]
Uma discussã o adicional sobre imagens pode ser encontrada em meu livro Thales to Dewey , The Works of Gordon Haddon Clark , p. 299-301.
[37]
John Mackintosh Shaw, Christian Doctrine , p. 207.
[38]
International Encyclopedia of Unified Science , I, 1, p. 227.
[39]
Ibid ., p. 233.
[40]
Ibid ., p. 235.
[41]
Wilbur Marshall Urban, Language and Reality , p. 433.
[42]
Ibid ., p. 382-83.
[43]
Ibid ., p. 433.
[44]
Ibid ., p. 444.
[45]
Ibid ., p. 500.
[46]
Ibid ., p. 435.
[47]
Ibid ., p. 434.
[48]
Ibid ., p. 436.
[49]
Thou didst ears and hands and voices, / For thy praise design .
[50]
E. L. Mascall, Words and Images , viii, p. 12.
[51]
Austin Farrer, como citado por E. L. Mascall, Words and Images , p. 116-17.
[52]
“The Possibility of Theological Statements”, capítulo 2 em Faith and Logic , editado por Basil Mitchell, p. 43, 45.
[53]
Ibid ., p. 45.
[54]
“Creation”, Flew e MacKinnon, em New Essays in Philosophical Theology , Flew e MacIntyre, p. 170 ss.
[55]
Ibid ., p. 175.
[56]
Ibid ., p. 156.
[57]
Ibid ., p. 163.
[58]
Ibid ., p. 203.
[59]
Bernard Williams, em Flew e MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology , p. 209, 211.
[60]
I. M. Crombie, em Flew e MacIntyre, New Essays in Philosophical Theology , p. 55.
[61]
Ibid ., p. 71.
[62]
Ibid ., p. 72, 81.
[63]
Ibid ., p. 61.
[64]
Wilbur Marshall Urban, op. cit. , p. 445-46.
[65]
Brunner, Divine-Human Encounter , p. 85, 110, 117. Veja também a monografia definitiva Emil Brunner's Concept of Revelation de Paul King Jewett.
[66]
Jewett, Emil Brunner’s Concept of Revelation , p. 104.
[67]
John Dewey, Logic, The Theory of Inquiry , p. 82, 101, 328.
[68]
Veja Uma visão cristã dos homens e do mundo (Brasília, DF: Monergismo, 2013) — sobre o utilitarismo de Kant, veja o capítulo IV; sobre a teoria de valores de

Brightman, veja o capítulo VI. Veja também William James e John Dewey (Brasília, DF: Monergismo, 2016).

[69]
A ú ltima estimativa do nú mero de chineses mortos pelo governo comunista chinês é de 60 a 80 milhõ es de pessoas. — Editor.
[70]
John Dewey, The Quest for Certainty , p. 252.
[71]
John Dewey, Logic, The Theory of Inquiry , p. 216.
[72]
John Dewey, The Quest for Certainty , p. 259.
[73]
Gardner Williams, Humanistic Ethics , p. 55.
[74]
John Dewey, Reconstruction in Philosophy , p. 124, 126, 157.
[75]
Ibid ., p. 166-69.
[76]
William Heard Kilpatrick, Philosophy of Education , p. 97-98, 151-61.
[77]
Ibid ., p. 286-89.
[78]
Ibid ., p. 340.
[79]
Ibid ., p. 405.
[80]
Ibid ., p. 403, 54-55.
[81]
Ibid ., p. 254.
[82]
Veja The Philosophy of John Dewey , editado por Paul Arthur Schilpp, p. 592.
[83]
Newman Smyth, Christian Ethics , 1892, republicado em 1922.
[84]
Edward John Carnell, Christian Commitment , p. 142.
[85]
Mary Baker Eddy, Science and Health, capítulo 2.
[86]
John Milton, O paraíso perdido (Rio de Janeiro: Tecnoprint, s. d.), p. 15.
[87]
Robert Leet Patterson, An Introduction to the Philosophy of Religion , p. 218 n3.
[88]
Ibid ., p. 173.
[89]
Ibid ., p. 177.
[90]
Ibid ., p. 179.
[91]
Santo Agostinho, O livre-arbítrio (Sã o Paulo: Paulus, 1995), p. 69 (I, ii, xvi.).
[92]
Ibid. , p. 210 (III, xviii).
[93]
Santo Agostinho, A cidade de Deus , Parte II (Petró polis, RJ: Vozes, 2012), p. 693 (XXII, xxx).
[94]
Ibid .
[95]
John Gill, The Cause of God and Truth , III, v, xiii.
[96]
Joã o Calvino, A instituição da religião cristã (Sã o Paulo: UNESP, 2009), p. 409-10 (Tomo 2, III, xxiii, 8), 293-94 (II, iv, 3).
[97]
The Works of Augustus Toplady. 1794, p. 82-83.
[98]
Ibid ., p. 84.
[99]
Ibid ., p. 87-88.
[100]
Ibid ., p. 93.
[101]
Ibid ., p. 94.
[102]
Ibid ., p. 97.
[103]
Ibid ., p. 98.
[104]
Ibid ., p. 100.
[105]
Ibid ., p. 106-108.
[106]
Dessas citaçõ es de Toplady, consultei as que pude achar com facilidade. Outras sã o relativamente inacessíveis. Como Toplady muitas vezes dá o texto em latim, é

de se esperar que o autor tenha sido exato. Se em algum lugar ele cometeu um equívoco, ainda resta provado que os cinco pontos nã o se originaram com Calvino e

tampouco com o Sínodo de Dordt.


[107]
No Brasil, a Editora Fiel publicou um resumo da obra “A escravidã o da vontade” com o título “Nascido escravo”. A versã o completa desta excelente obra está

disponível em português com o título “Da vontade cativa”, no volume 4 (1993) da coletâ nea “Martinho Lutero: Obras Selecionadas”, publicada pela Editora

Sinodal/Concó rdia. [N. do R.]

[108]
Ibid. , p. 214-15.
[109]
Para uma argumentaçã o mais aprofundada, veja Jonathan Edwards, Miscellaneous Observations , parte II, cap. 3; ed. 1811, vol. VIII, p. 384.
[110]
Georgia Harkness, Conflict in Religious Thought , p. 233-34.
[111]
Stuart Hackett, The Resurrection of Theism , p. 174.
[112]
CFW 6:3. Op. cit. , p. 1011.
[113]
Joã o Calvino, Op. cit. , p. 403 (Tomo 2, III, xxiii, 2).
[114]
G. C. Berkouwer, Divine Election , p. 180.
[115]
Ibid. , p. 220.
[116]
Ibid. , p. 178.
[117]
Ibid. , p. 181.
[118]
Ibid. , p. 194.
[119]
Ibid. , p. 190.
[120]
Is 45.5-12.
[121]
Rm 11.33-36.

Você também pode gostar