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INTRODUÇÃO

A Bíblia está repleta de passagens que demonstram a


soberania divina e a responsabilidade humana. As Escrituras
ensinam que Deus é soberano sobre toda a criação, porque
a fez, porque a sustenta; e, por isso, toda a criação a Ele
pertence. As Escrituras também falam bastante sobre o ser
humano. O ser humano é um ser moral com habilidade de
fazer escolhas significantes que impactam a história, de
forma que isso o separa de todos os demais da criação. São
duas verdades bíblicas do cristianismo indisputáveis,
todavia cercadas por muita controvérsia, isto é, a soberania
de Deus e a responsabilidade humana. Como Deus pode ter
o controle total e ainda assim o ser humano ser livre para
escolher seu próprio curso da ação? Como o livre-arbítrio
coexiste com a pré-ordenação divina? Existe uma solução
para a tensão entre a soberania divina e a responsabilidade
humana?
A atitude comum diante da tensão caminha sempre pela
via um ou outro. Ou seja, um ou outro geralmente nega ou
limita o outro em certo grau. A questão sempre se
apresenta assim: ou o homem tem o livre-arbítrio que limita
a soberania de Deus ou Deus é soberano de forma absoluta
e, logo, o homem não é realmente um ser livre.
Tanto a teologia quanto a filosofia têm interesse na
temática e travam batalhas que atravessam séculos. Ora
um grupo se apoia inteiramente na teologia contra os
postulados filosóficos puramente; ora a filosofia, e não a
teologia, é o ponto de partida para o tratamento do assunto.
A razão para a amplitude do debate jaz na própria natureza
de Deus e, a partir daí, impõe-se misteriosamente o que
seria realmente ser livre quando se crê em um Deus que é
absolutamente soberano. Se Deus realmente for
absolutamente soberano, então como poderemos falar de
forma significativa sobre escolha humana ou livre-arbítrio?
Seria necessário, de alguma forma, Deus acomodar sua
soberania para que houvesse lugar para o homem exercer
suas ações de forma livre? O que realmente significa ser
livre? Seria o poder absoluto de fazer o contrário e, neste
caso, Deus se torna contingente?
Compatibilismo e libertarianismo são as duas respostas
possíveis mais desafiadoras da atualidade para os cristãos
que possuem uma visão elevada das Escrituras Sagradas.
Na tentativa de solução, o compatibilismo aqui adotado - a
partir de uma análise indutiva da Bíblia - tem como solução
uma explicação dual para qualquer escolha que o ser
humano faça. Cremos que Deus determinou as escolhas de
cada pessoa; e, ainda assim, cada pessoa livremente faz
suas próprias escolhas. Nossa definição bíblica de
compatibilismo nesta obra segue a definição de dois
pesquisadores bíblicos que trabalham o mesmo assunto: D.
A. Carson e Scott Christensen em três obras, sendo que
somente uma delas foi traduzida para a língua portuguesa.
As duas obras de Carson têm propósitos distintos.
Soberania divina e responsabilidade humana: perspectivas
bíblicas em tensão é uma parte de sua tese de doutorado
em Cambridge e apresenta um estudo indutivo minucioso
da literatura judaico-cristã sobre o tema soberania-
responsabilidade. A única exceção que ele resolveu não
incluir no livro foi a perspectiva paulina do tema, mas traz
uma análise detalhada do Evangelho de João. Carson
também escreveu How Long O Lord?: Reflections on
suffering and vil [Até quando O Senhor?: Reflexões sobre
sofrimento e o mal]. Esse livro apresenta um tratamento
sério sobre a relação entre Deus, seu povo e o mal. A obra
tem valor inestimável para cristãos em situações de
extremo sofrimento.
Scott Christensen publicou em língua inglesa o livro What
about free will? [E o livre-arbítrio?]. Carson escreve o
prefácio, no qual declara que ele planeja escrever um livro
assim. Essa é a mais clara e sucinta obra sobre a tensão
soberania-responsabilidade. Sua definição de
compatibilismo bíblico é que “nossas escolhas procedem
dos motivos mais compelidores e dos desejos que temos, os
quais estão condicionados sobre nossa natureza básica,
quer sejam estes bons ou maus” (CHRISTENSEN, 2016, p.
5). Essa definição - ou a ideia abrangente - é adotada por
toda a nossa obra, conjugada com a ideia de ultimidade
divina em contraste aberto com a liberdade como poder
absoluto do contrário.
Há dois movimentos no livro que são perceptíveis. Como
o próprio título sugere, há uma inversão entre aquilo que
tem relação com a natureza de Deus, parte da identidade
única de Yahweh, único Deus soberano e criador; e há o
homem, por sua vez, tendo seu estado de criatura
visivelmente afetado pelo engano da serpente, seguido pela
busca obcecada por autonomia. Nesse primeiro movimento,
tratamos de forma breve a história da tensão entre
soberania e responsabilidade. Entrelaçado nesse primeiro
movimento, temos o segundo movimento que lida de forma
pastoral com aquilo que denominamos soberania
problemática. Tratamos nesses capítulos o lado negativo da
fé, quando Deus soberanamente nos coloca no meio do
sofrimento. Três passagens específicas foram usadas para
tratar com a noite escura da alma; são elas: Salmo 88 e
Lamentações 3 e 5. É preciso ter fé diante da prosperidade
para que não sejamos tomados de soberba, mas é preciso
muito mais fé para encarar a noite escura da alma, quando
há a sensação de abandono por Deus, quando ele parece
mais absconditus que revelatus.
A proposta desta obra não consiste em resolver o
famigerado debate entre o livre-arbítrio e o determinismo.
Extensas obras já vêm tentando fazê-lo. O cerne do
problema foi bem colocado por J. I. Packer (2002, p. 21):
“estamos diante de um mistério que não devemos esperar
ser capazes de solucionar nesta vida”. Não significa, no
entanto, que não devemos explorar o assunto.
O foco desta obra também não reside no fato de fazer
um extenso apanhado da predestinação e do livre-arbítrio
ao longo da história da igreja. Algumas obras já o fizeram
muito bem. Dentre elas são de grande proveito as
previamente citadas, além de Sola Gratia: a controvérsia
sobre o livre-arbítrio na história, de R.C. Sproul, e A
Soberania banida, de R. K. McGregor Wright. Para uma
abordagem histórico-teológica, podemos incluir: A História
das controvérsias teológicas, de Roger E. Olson, e A História
da doutrinas cristãs, de Louis Berkhof. Para uma coletânea
de ensaios defendendo o arminianismo, confira The grace of
God, the will of man [A graça de Deus, a vontade do
homem], editada por Clarck Pinock. Para uma réplica
calvinista, confira Still Sovereign [Ainda soberano], editado
por Thomas Schreiner e Bruce Ware, entre outros manuais
mais abrangentes de Teologia Sistemática e Teologia
Histórica.
Nosso objetivo é ajudar nossos leitores a entenderem
os conceitos de liberdade sob a ótica das visões sinergistas
em contraste com os monergistas. Queremos esboçar o
conceito de determinismo teológico à medida que tentamos
retirá-lo do estigma fatalista. Nosso alvo também é
identificar as lacunas das sutis tentativas de conciliação
indevidas entre a soberania divina e o livre-arbítrio humano.
Asseveramos, outrossim, que a discussão acerca da
soberania não pode deixar de lado a parte prática da igreja
cristã. Esse é um aspecto difícil de se aceitar quando
encaramos Deus em profundo sofrimento. A intenção é
tanto teológica quanto pastoral; e, para tanto, faremos uma
intercalação entre exposição bíblica e teologia sistemática,
observando amiúde uma tentativa de explicar a relação
entre soberania e liberdade: o molinismo, que apresenta
uma proposta filosoficamente sofisticada. Tal sofisticação
atraiu olhares tanto de sinergistas quanto de monergistas.
No espectro monergista, alguns teólogos tentaram
harmonizar o suporte principal do molinismo (a teoria do
conhecimento médio) com o calvinismo. Assim,
observaremos também a viabilidade ou não dessa
harmonização.
Nossas escolhas são importantes devido à maneira pela
qual elas manifestam a soberania de Deus em nossas vidas.
Desejamos sinceramente que a igreja brasileira seja
profundamente impactada com nossa pesquisa.
PARTE I: O TRONO REIVINDICADO?
Aqui nosso objetivo é lidar com a reivindicação do
homem ao trono divino e como isso se deu de maneira
gradual. É importante entender que não é do nosso
interesse lidar com a questão da Queda (ou a entrada do
pecado) e tópicos relacionados, como a predestinação e o
livre-arbítrio, por exemplo. Essa postura está longe de ser
uma rejeição deliberada da relevância desses tópicos – uma
vez que o problema essencial da humanidade tem início do
Éden. Antes, trata-se de um reconhecimento aberto dos
limites da obra.
Nesta primeira parte, veremos como o homem tentou
reivindicar a soberania sobre a criação. A ideia de
eternidade e a sutil tentação de subverter a punição divina
para a desobediência da lei positiva (comer do fruto
proibido) levaram o primeiro casal não só a sofrer a punição
divina, mas a presenciar o drama do homem pós-Éden num
ambiente amaldiçoado, cheio de intempéries e disputas
entre os seres humanos decaídos.
A busca do nosso representante era por autonomia. Em
outras palavras, por um governo independente, movido
somente pelos interesses do homem, sem qualquer sinal de
interferência do criador; ainda assim, contudo, sem
descartar o gozo providenciado pelas maravilhas da criação.
Gozar da criação, porém sem o criador. O Éden, mas sem as
visitas de YHWH na viração da tarde. Essa era a
reivindicação!
Especificamente, o capítulo 4 de Gênesis será alvo de
nossa análise. Ele revelará a realidade pós-Queda e o
modus operandi do homem em inimizade com Deus – do
“homem autônomo”. Veremos que a vida de Caim e o
surgimento da primeira cidade nos fornecem luz suficiente
(um fundamento epistêmico) para amadurecermos a
concepção de uma reivindicação de livre-arbítrio – a
tentativa triste e tola de destronar o Criador.

A busca primordial era por autonomia, um governo


independente, movido pelos próprios interesses do homem,
sem interferência nenhuma de Deus, mesmo que o homem
quisesse gozar das bênçãos e das maravilhas da criação de
Deus, longe da Queda. É como se quisesse jogar a “queda”
para debaixo do tapete, fugir da presença de Deus e gozar
de um “Éden” onde Deus não visitasse o homem na viração
do dia.
1 A busca do homem por
soberania:
cidade de Deus x cidade dos homens
Essência e identidade. Há uma diferença entre aquilo que
constitui um ser, a sua essência, e aquilo que o identifica,
sua identidade. A consciência da distinção de significado,
principalmente de importância, entre esses conceitos faz-se
necessária. A razão é exegética. O que marca desde o início
a identidade de YHWH são suas ações distintas – único
criador (Is 40.26, 28; 42.5; 45.12, 18; 48.13; 51.16; Ne 9.6;
Os 13.4) e único regente soberano (Dn 4.34-35) – e suas
características pessoais[1] – o nome que ele possui: YHWH.
O relato bíblico está mais preocupado em preencher de
significado o segundo termo, identidade. Não se está
afirmando, entretanto, que nada sobre a essência de YHWH
está sem discussão. É uma questão de reconhecimento de
intensidade, de importância.
Pensando ainda em sua soberania singular, o conceito
de “trono celeste” é fonte enriquecedora. O Salmo 103.19,
por exemplo, estabelece a relação entre trono e soberania:
“Nos céus, estabeleceu o SENHOR o seu trono, e o seu reino
domina sobre tudo”. Em algumas passagens, esse trono é
chamado de “trono de [sua] glória” (e.g., Jr 14.21; 17.12). A
soberania absoluta e singular de YHWH como governante do
cosmos fica clara através da fórmula “todas as coisas”. Em
suma: somente Deus é o criador de todas as coisas (os
demais são criaturas suas), somente Deus é o soberano
regente sobre todas as coisas (todos os demais estão
sujeitos ao seu controle).
Por outro lado, o homem revela sua indiferença,
ignorância e confusão em suas diversas tentativas de tomar
o trono de YHWH. Nosso personagem principal na análise
que se segue – Caim – exemplificará essa postura diante da
soberania de Deus. Veremos, por exemplo, que há uma
relação próxima entre o aparecimento da vida urbana, os
avanços tecnológicos, os problemas decorrentes desses
avanços e o processo de autonomia do homem.
A forma com que viveram revela como a dinastia cainita
interpretava a vida e onde encontrava significado. Veremos
que o problema não era geográfico. Não temos em Gênesis
uma condenação da vida urbana. Aliás, segundo o livro de
Apocalipse, viveremos em uma cidade – a Nova Jerusalém.
O problema, portanto, está na busca do coração humano
por autonomia. Essa autonomia, por sua vez, é revelada na
criação da vida urbana que surge em aberta rebelião contra
Deus e seu enunciado que Caim será errante.

1.1 O aspecto poético da narrativa e a expressão


da autonomia humana
1.1.1 Autonomia Decadente
As primeiras palavras do relato bíblico nos apresentam
um quadro marcado pela harmonia entre as várias
dimensões da criação e pela intimidade entre Deus e o
homem. O Éden é o lugar onde Deus caminha em sua
criação. É o santuário e o lugar onde Deus habita. Éden é o
nosso primeiro templo (cf. Wenham [1986] e Beale [2014]).
Aqui a presença de Deus tem relação direta com a vida; é
onde se encontra a satisfação. Neste lugar mágico,
encontramos a árvore da vida (2.9); o rio da vida (2.10-14)
que flui do pico onde está o jardim para nos lembrar da vida
abundante que emana da presença de Deus. No jardim do
Éden, os primeiros seres criados encontram propósito da
vida (2.15).
Depois de ordenar ao homem que cuidasse do jardim,
Deus emite a primeira instrução para guardar seus
mandamentos. A ordem a ser obedecida chama-nos a
atenção, pois observamos que o homem falhou em guardar
o jardim da serpente. Deus ordena a cuidar do jardim e
libera o homem para desfrutar de qualquer árvore, com
uma exceção apenas: a restrição de comer do fruto da
árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.17). O
homem falhou. Observe que, ao dar instrução sobre essa
árvore, o nome de Deus, aquele revelado a Moisés,
enfatizando sua soberania absoluta (“terei misericórdia de
quem eu quiser ter misericórdia” - Ex 33.19), aparece aqui
em Gênesis 2. O contexto sugere sua identificação por meio
de suas ações distintas – único criador e único regente
soberano.
Desprezando totalmente a pessoa de Deus e sua
palavra, Adão e Eva sucumbiram em seu propósito de
guardar o templo (Éden) por acreditarem na palavra de
alguém estranho, ao mesmo tempo que desprezaram a
palavra do próprio Deus. O sinal claro do desprezo à
presença e soberania de Deus se dá quando o casal toma o
fruto proibido. Quanto à natureza da árvore, não se trata de
um assunto fácil. O que não se pode negar é que a
habilidade de abrir os olhos de Adão e Eva e lhes fornecer o
conhecimento do bem e do mal são elementos inerentes
dela. Enoque chama essa árvore de “árvore da sabedoria”
(1Enoque 33.6). Sabedoria, por sua vez, é uma
característica que os capacitaria a ter domínio e governar
sobre os outros (Pv 8.12-16). Contudo, o efeito desejado não
foi alcançado. Após a queda, o desejo de Eva seria contra o
seu marido, e ele teria que exercer domínio sobre ela (Gn
3.16). O estranho é que, ao criar o homem, Deus o
capacitou para governar e dominar. O que o homem queria
– poder para governar – ele já tinha e perdeu.
É possível que essa árvore fosse também para
alimentar. Nesse caso, o erro do casal não teria sido o de
comer do fruto, mas de o terem tomado precipitadamente.
No entanto, a árvore parece estar mais ligada ao que o ser
humano não poderia ser ou ter uma vez que somente Deus
é “conhecedor do bem e do mal”. É difícil saber exatamente
o significado dessa árvore, mas a melhor hipótese parte de
um recurso retórico chamado merisma, o qual tratamos a
seguir.
Na expressão “... bem e mal”, existe um recurso
retórico chamado merisma, por meio do qual ocorre a
expressão da totalidade, ao mencionar as partes extremas,
como por exemplo: “nem altura nem profundidade”, “nem
coisas do presente, nem coisas do porvir”; “do Oriente ao
Ocidente”, “meu sentar, meu levantar”, etc. Esse conceito é
melhor elucidado por ROSS (2008, p. 381) : “a merisma
(vocábulo derivado de uma palavra grega que significa
‘divisão’) é um dispositivo poético que descreve a totalidade
enumerando as partes, geralmente contrastantes entre si”.
Perceba o contraste apresentado: para englobar a
totalidade, é feito o emparelhamento dos opostos, gerando
um efeito estilístico de grande beleza. A ideia é de um
conhecimento completo e abrangente, adequado para quem
é infinito e perigoso para quem é limitado, portanto, finito.
A relação da árvore da vida com a árvore do
conhecimento do bem e do mal parece acentuada pelo
próprio Deus em Gn 3.22: “Então, disse o SENHOR Deus: Eis
que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do
bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome
também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente”
(Gn 3.22 ARA). Comer da “árvore do conhecimento do bem
e do mal” e da “árvore da vida” é entrar em alguma
condição danosa para o homem. Deus identifica-se como
conhecedor do bem e do mal, e agora o homem se tornou
“conhecedor do bem e do mal”. O resultado de comer dessa
árvore trouxe ao homem a morte certa – marca de sua
finitude (Gn 2.17). Imediatamente Deus cuida para que o
contato com a “árvore da vida” seja interrompido. Na
tentação, a serpente convida o homem a suplantar um
estado que lhe foi atribuído por Deus (finito), a fim de ser
igual a Deus (conhecedor do bem e do mal). A tentativa de
Adão e Eva de serem iguais a Deus os levou a uma
separação eterna entre eles e o seu criador. Ao invés de
suplantarem o estado ao qual eles pertenciam, eles agora
terão que viver sem a presença de Deus, agindo à parte
dele, procurando o que é bom de acordo com sua vontade,
sem Deus.
Em uma linguagem poética, o significado dessa
expressão representada pela árvore do conhecimento do
bem e do mal se relaciona com uma separação ou
autonomia do homem e da mulher. A amplitude dessa
árvore expressa a violação do mandamento de Deus por
Adão e Eva em busca de autonomia moral e epistemológica
(DEMPSTER, 2006, p. 63). A partir da Queda, o homem e a
mulher terão que agir sozinhos e independentes, fora da
presença imediata do Éden, o templo, o lugar da habitação
de Deus. Eles terão que viver em total desespero, porque as
decisões são deles e estarão em total alienação de Deus,
uma vez que decretaram a sua autonomia.
A autonomia almejada trouxe como resultado a
vergonha. Evidentemente essa vergonha não diz respeito à
estética. Não se trata de algum defeito anatômico ou de
alguma desproporcionalidade estética imediata à Queda. A
ideia é que eles tinham uma aliança, estavam conectados
com Deus e conectados entre si. Quando eles pecam, sua
primeira atitude é cobrirem-se, porque têm vergonha um do
outro – o pacto do casamento fora quebrado; e, agora há
medo de rejeição, cada um busca sua autonomia. Após ser
questionado sobre sua presença, a resposta de Adão revela
a ruptura pactual. O que se destaca não é mais o
relacionamento; antes, a estranheza e a diferença. O
conhecimento do bem e do mal para seres finitos os levará
às trevas, e eles sucumbirão na sua busca audaz por
soberania.
1.2 A “bênção” da morte física
Se do lado do homem encontramos uma busca por
autonomia, do lado de YHWH temos a concessão de
bênçãos. A morte física, por exemplo, é uma dessas
bênçãos. Entendemos melhor essa realidade quando
olhamos com mais atenção a relação entre as duas árvores.
Elas não podiam, por exemplo, ser comidas ao mesmo
tempo. Se assim fosse, a árvore da vida lhes daria algo que
eles não poderiam ter após terem comido da árvore do
conhecimento do bem e do mal. São duas as consequências
conectadas: a morte física e a morte espiritual. A morte
física se constitui uma bênção de alguma forma se eles não
alcançarem a árvore da vida, pois ali mesmo cessarão sua
existência, deixando esperança para os seus descendentes.
Em outras palavras, eles sofreram a morte espiritual e não
terão uma vivência eterna de separação nesta esfera por
causa da morte física.
É a quebra de uma maldição que poderia durar
eternamente, sem arrependimento, sem possibilidade de
volta, numa vivência eterna deformada pelo pecado,
separada de Deus – alienada. É nesse sentido que a morte
física é tomada como uma bênção. Agora, afastados e
alienados de Deus e do Éden, eles estão à porta do Paraíso,
onde se encontram os guardiões. A expressão textual
aponta para o fato de que ali, a qualquer instante, eles
poderiam (era possível) retornar à presença de Deus. A
presença dos guardiões, contudo, impondo medo com suas
espadas flamejantes, retira qualquer possibilidade de
retorno para desfrutar da árvore da vida.

1.3 Do lado de fora da cidade de Deus


Na entrada da porta para o jardim do Éden, estava o
altar do sacrifício. Ali eles estavam sempre alimentando a
esperança do retorno. O homem continuou no seu anseio de
voltar à presença imediata de Deus. É importante lembrar
que eles ainda tinham o privilégio de prestar contas ao
único criador e único regente soberano. Mesmo vivendo do
lado de fora, encontramos Deus aceitando sacrifícios que
concediam acesso mediado a ele (e.g., a oferta de Abel). Na
busca pela aceitação de Deus, veremos uma das mais
frustrantes respostas do homem ao próprio Deus. Aquilo
que definitivamente sela a autonomia do homem em sua
busca por soluções independentes.

1.4 As duas ofertas como possibilidade de acesso


ao Paraíso Perdido.
Em Gênesis 4.1, nasce um filho para Eva, cujo nome é
Caim. A palavra Caim (‫ )ַ֔קִין‬possui em sua raiz o sentido de
aquisição; por isso, Eva afirma “alcancei [adquiri] um varão
do Senhor”. Eva está bastante otimista. Ela está
empolgada, porque recebeu uma promessa de redenção
que poderia ser cumprida por meio de sua descendência
direta. Talvez ela tenha entendido que Caim fosse o
descendente prometido.
O tom otimista e toda a empolgação de Eva se
desvaneceram com o nascimento do segundo filho. A
imagem revelada é de decepção (4.2). O nome deste filho é
Abel. A palavra “Abel” (‫ )ָ֑הֶבל‬significa “vapor, vaidade,
sopro”. A possibilidade de retornar ao Paraíso perde força.
Sua fraseologia aponta diretamente para este
entendimento: “tudo é vaidade”. É possível que ela tenha
chegado à mesma percepção do apóstolo João (a de que
Caim era do maligno – cf. 1Jo 3.12), antes mesmo de Caim
assassinar seu irmão.
A narrativa continua e já os apresenta adultos
oferecendo ofertas a Deus. Abel e Caim estão se
preparando para realizar um sacrifício na porta Oriental
visando à aceitação de YHWH. Na presença do seu criador,
eles poderão servir e, quem sabe, em algum momento,
entrar no Paraíso do qual foram expulsos os seus pais. É
provável que Adão e Eva passaram para os seus filhos a
forma como eles viram Deus fazer por eles no altar, na
entrada da porta, quando matou os animais para poder
vesti-los, após a quebra da aliança que ambos tinham com
Deus.
Sobre as ofertas, a grande questão é: por que uma
oferta foi aceita e a outra rejeitada? São várias as
interpretações. A argumentação mais comum é esta: a
oferta de Abel foi aceita por se tratar de um sacrifício
animal, enquanto a de Caim foi rejeitada por ser oriunda da
lavoura. Se considerarmos os critérios aplicados no sistema
sacrificial levítico, essa não seria a melhor explicação, uma
vez que a oferta de manjares era uma modalidade de oferta
tão viável quanto a oferta de um cordeiro.
Outra possível razão para a rejeição seria porque se
tratava de sobras de uma colheita – o sobejo como oferta a
Deus. A expressão “no fim de uns tempos” (3.3) reforça tal
proposta de entendimento. Em uma comunidade de base
agrícola, a linguagem “fim de uns tempos” pode dizer
muito. Em 4.3a, temos: “aconteceu que no fim de uns
tempos trouxe Caim...”. Quanto à oferta de Abel, é revelado
que ele “trouxe das primícias...” (Gn 4.4a), ou seja, o
melhor. Deuteronômio 26.1-11 posteriormente estabeleceu
tal comportamento como padrão.
No entanto, não faz sentido ter um olhar somente
para as ofertas como se elas explicassem tudo. Elas
revelam as atitudes dos ofertantes. Não é possível separar o
ofertante da oferta. As primícias da nação de Israel em
Deuteronômio 26.1-11, por exemplo, são oferecidas quando
a terra prometida é alcançada; já em Gênesis 4, Abel
oferece as primícias num momento em que sua família fora
expulsa do Paraíso – em uma terra amaldiçoada. Em Caim,
por outro lado, sua atitude é realçada (e por isso melhor
apreciada) após a declaração de rejeição. Nesse paralelo, é
possível perceber a fé de Abel tão bem destacada pelo
autor aos Hebreus (Hb 11.4), enquanto Caim reflete um
pouco de quem ele é pela qualidade da oferta que ofereceu.
Assim, os dois elementos (oferta-atitude) explicam a
rejeição/aceitação.

1.5. Desejo e domínio


A realidade pós-queda é trágica. A principal tarefa do
primogênito Caim era representar Deus na execução do
domínio, numa relação harmônica com o seu criador.
Contudo, ao invés de subjugar o mundo, o homem foi
subjugado por ele. Desde o jardim do Éden, vemos Deus
reestabelecendo os relacionamentos; e aqui não será
diferente. Deus tenta resgatar Caim (Gn 4.5,6). O chamado
a Caim para confissão através da oferta lhe daria a chance
de corrigir o seu erro. No entanto, não há disposição de sua
parte em fazer as coisas da forma que YHWH deseja.
Mesmo diante da rejeição da oferta do primogênito da
segunda geração da humanidade, no verso 7, temos uma
indicação de que a rejeição do sacrifício não implicava
necessariamente na perda de sua primogenitura. A primazia
continuaria com quem de direito, enquanto o erro na forma
da oferta poderia ser corrigido oferecendo outra com
qualidade.
A ambiguidade do verso 7 é comprovada pelas
divergências ao longo da história. A LXX, por exemplo,
traduziu para o grego bem próximo do que temos em
nossas versões, ainda que destacando nuanças distintas:
“Porventura, não pecaste ao trazer a oferta correta, mas do
modo inapropriado?”. Essa primeira parte do verso não é
tão problemática quanto a última. No entanto, se nossa
interpretação estiver correta, o texto fará mais sentido tanto
gramaticalmente quanto contextualmente.
As versões modernas são próximas em proposta na
segunda parte do verso. Temos na ARA: “Se, todavia,
procederes mal, eis que o pecado jaz à porta”. Observando
meramente a ARA, a ideia é que o pecado está à porta do
coração de Caim – batendo, convidando. Nesse caso,
teríamos uma exortação a algo do tipo: “olha o pecado”; “o
pecado quer entrar no seu coração”; “o pecado está
chegando”. É uma possibilidade, apesar das dificuldades,
principalmente no que diz respeito às relações internas da
oração e o discurso amplo, como veremos a seguir:
(1) O “pecado” nesta porção da Bíblia hebraica parece
estático e não dinâmico, como expresso nas traduções.
Observe que, diferentemente do movimento indicado, o
pecado está imóvel, parado; não há uma característica de
personificação batendo para entrar no coração de Caim. (2)
o texto massorético apresenta uma dificuldade na
concordância na continuidade do texto – “o seu desejo será
contra ti”. A pergunta aqui é: desejo de quem? A tendência
natural - já condicionada por nossas versões - é entender o
desejo como sendo do pecado. Este, por sua vez, está em
posição contrária a Caim. Cumpre ao primogênito dominá-lo
(o desejo pecaminoso). Entretanto, na Bíblia Hebraica, a
expressão “pecado” está no gênero feminino, e o pronome
da expressão “o seu desejo” está no masculino. A
explicação para a leitura convencional cristalizada nas
traduções pode se encontrar em nossa consciência
introspectiva ocidental.
Existe uma explicação possível que segue a LXX e
resolve a aparente aporia da relação entre o pronome e seu
antecedente. Na primeira parte de Gn 4.7, é possível que os
copistas tenham percebido este problema ao longo da
transmissão do texto bíblico e que os tradutores da LXX
possivelmente tinham um Vorlage e perceberam por meio
dela que a leitura provável deve ser a seguinte:
“porventura, não pecaste trazendo a oferta correta, mas de
modo inapropriado?”. Parece que Caim tinha a oferta
correta, isto é, oferta da lavoura, mas alguma coisa na
qualidade da oferta (“fim de uns tempos”) ou em Caim não
estava bem (sua atitude), e isto não agradou a Deus. Caim
parecia ter sido intimidado com a aceitação da oferta de
Abel e a não aceitação de sua oferta. Ele estava abatido, e
Deus tenta resgatá-lo ao perguntar por que sua face está
caída. Após a pergunta, a LXX traz uma ordem de Deus
(ἡσύχασον - imperativo aoristo), ordenando-lhe a “manter-
se calmo”, “aquietar-se”. As ameaças que Caim temia
parecem ser reais. Abel poderia, por causa da aceitação de
sua adoração, rejeitar o domínio de Caim sobre ele e
começar a querer impor seu desejo e domínio.
O livre-arbítrio de Deus, sua liberdade absoluta para
agir em misericórdia com quem ele desejar ter misericórdia,
contínua visível na segunda parte do versículo 7. Deus
apresenta a solução para o problema de Caim. É como se
fosse uma segunda chance para ele corrigir o problema e
não se sentir ameaçado na sua primazia. O texto da LXX
diz: (πρὸς σὲ ἡ ἀποστροφὴ αὐτοῦ καὶ σὺ ἄρξεις αὐτοῦ) “o
desejo dele será contra ti, mas a ti cumpre governá-lo
[dominá-lo]”. “Governar”, “dominar” quem? A solução que
propomos abaixo parece lidar melhor com os dados
cotextuais e contextuais.
A expressão “o seu desejo será contra” está presente
também em 3.16. Segue o texto: “E à mulher disse:
multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em
meio de dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o
teu marido, e ele te governará”. A última sentença pode ser
traduzida como “o teu desejo será contra (πρός) o teu
marido”.
As semelhanças são tamanhas que deve ser exigido
de todos que lidam com essas passagens uma excelente
explicação caso tais relações sejam ignoradas. Caso
contrário, a acusação de negligência torna-se inevitável. Lá
são revelados ao primeiro casal os distúrbios decorrentes de
sua busca por autonomia: desejo e domínio. Palavras que
revelam uma problemática tanto na relação homem-Deus
quanto na relação homem-homem. O desejo de Eva seria
contra o governo do seu marido. Apesar de não
encontramos na LXX repetição da palavra “governar”, o
vocábulo escolhido se encontra no mesmo campo
semântico. O texto hebraico, por outro lado, repete o verbo
nas duas passagens (‫)ָמַׁשל‬, ratificando, assim, o paralelo.
Aliás, a expressão “e ele te governará” é exatamente a
mesma em 4.7 e 3.16[2].
Um dos grandes problemas interpretativos se dá pela
ambiguidade do pronome “seu”. A questão a ser
solucionada aqui é a seguinte: que nome nosso pronome
substitui? De quem é o desejo contra Caim? São duas as
possibilidades: o pecado e Abel.
No hebraico (SWANSON, 1997), a palavra para
“pecado” (‫ )ַחָּטאת‬pode ser tanto uma referência ao ato de
pecar quanto uma referência à “oferta pelo pecado” (cf. Ex
29.14, 36; 30.10; Lv 4.3–16.27 passim; 23.19; Nm 6.11–
29.38 passim; Ez 40.39–46.20 passim), “oferta de
purificação (Nm 19.17) e purificação (Nm 8.7). Caso
entendamos no segundo sentido, Deus estaria usando de
misericórdia para com Caim. Ele estaria apelando por meio
de uma pergunta dramática: “Por que você anda irado?
Aquieta-te, se você fez algo errado, ali na porta do Éden, na
banda do Oriente existe um altar (oferta) para o pecado,
tem um sacrifício disponível. Aproprie-se”. Quem estaria à
porta seria a oferta e não o pecado.
Essa proposta é reforçada pelo fato de que o pronome
é masculino, e seu antecedente é Abel. Assim, o desejo de
Abel seria contra a função de liderança que deveria ser
exercida pelo primogênito. Caim teria direito à porção
dobrada da herança e à liderança e ao governo sobre o seu
irmão. Contudo, como Deus aceitou a oferta de Abel, Caim
temeu e se sentiu ameaçado por seu irmão. De fato, Abel
terá seu desejo voltado contra seu irmão, visando inverter
os papéis e, assim, dominando o mais velho. Ameaça
semelhante à vivenciada por Adão.
Parafraseando: “Caim, é verdade que o desejo de seu
irmão Abel será contra você. Mas erga esta cabeça, você é o
líder; o desejo dele não deve prevalecer, você pode
continuar a exercer a primazia e o governo. Cumpre a você
exercer a sua liderança. Não deixe Abel tomar a tua função
somente porque foi aceito; resolva seu problema ali no altar
do pecado”.
O vigor poderoso por domínio revelando um desejo de
inversão das funções que testemunhamos na primeira
família da raça humana aparece com constância, à guisa de
exemplo, no relato dos irmãos Esaú e Jacó. Lá encontramos
ecos da relação entre Caim e Abel, e são evidenciadas, de
maneira muito mais nítida, a tensão e a disputa pela
primogenitura entre os irmãos – desejo e domínio.

1.6. Desejo, domínio e morte.


A progressão descendente desejo-domínio-morte se
torna um paradigma para a raça humana caída. Essa busca
trágica da vontade “soberana do homem” por autonomia
não ofusca o livre-arbítrio de Deus. Ele está pronto para
resgatar. Infelizmente, o primogênito de Adão não escutou.
O Novo Testamento o descreve como sendo do maligno (1Jo
3.12) e que seus caminhos resultam em destruição. Caim é
amante do prazer, não se rende à ordem de Deus e,
traiçoeiramente, tira a vida de seu irmão. Age com malícia e
com mentira. Diante de um convite inofensivo, oferece em
troca uma morte inesperada.
Diante do questionamento de YHWH, a resposta de Caim
é sarcástica: “Não sei; acaso, sou tutor de meu irmão?” (Gn
4.9). Seu desejo e domínio são desprezados. A despeito de
sua responsabilidade de tutoria, ele recebe o
questionamento com ironia, indiferença, hesitação e
distanciamento. A forma de resolver a problemática foi a
morte de quem o ameaçava. Sua negligência cínica em
nada diminuirá sua decadência à medida que se distanciará
de Deus e fará de tudo para se livrar dele.
Em um tom de lamento, Deus pergunta: “Que
fizeste?”. E, então, vem a maldição: “És agora, pois, maldito
por sobre a terra, cuja boca se abriu para receber de tuas
mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo, não te
dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra” (Gn
4.11-12). É nessa atmosfera de rebeldia, fuga e autonomia
(Caim quer mudar seu próprio destino) que surge a primeira
cidade, a origem da vida urbana – desejo, domínio e morte.
[3]

1.7. Passos para a cidade de Caim


Tendo observado o movimento decadente desejo-
domínio-morte, agora nossa atenção será dirigida para o
relato de Gênesis referente à fundação da primeira cidade
humana. Devemos ler a fundação da cidade de Enoque por
Caim à luz da declaração amaldiçoadora de YHWH de que
ele seria fugitivo e errante. Ou seja, ele não teria um lugar
fixo para se instalar. A vida de transeunte deveria fazer
parte de sua identidade. O estabelecimento, então, de uma
cidade para se fixar ocorre em uma situação de rebeldia
contra a maldição referida acima. O movimento desejo-
domínio-morte continua presente. Esse contexto em
especial culminará na destruição de toda a raça humana
pelo dilúvio.
Quatro “movimentos” marcaram as tentativas de
Caim, não simplesmente de sobreviver, mas de viver e
formar a primeira comunidade de pessoas sem incluir Deus
em qualquer aspecto. Uma autêntica sociedade secular;
sem qualquer sinal de dependência de Deus. Mais uma vez
Deus se revela como aquele que é absoluto no exercício de
seu livre-arbítrio, quando - por pura misericórdia - coloca um
sinal, uma bênção que poupará Caim de ser morto por
quem o encontrar.

1.7.1. Primeiro passo: AUTODETERMINAÇÃO.


Chamamos de autodeterminação, por um lado, o desejo
da ausência de controle divino; por outro lado, uma vida
regida única e exclusivamente por determinação do eu
autônomo. O surgimento da cidade de Enoque anuncia um
colapso na vida vivida na presença de Deus, tendo no
sacrifício seu meio de conexão com ele e a aceitação na sua
presença. Caim e seus descendentes foram entregues em
suas próprias mãos e agora terão de exercer o
conhecimento do bem e do mal que eles adquiriram com a
Queda. Enquanto Adão e Eva, mesmo caídos, ainda podiam
contar com a presença de Deus mediada pelo sacrifício na
execução de exercício do conhecimento do bem e do mal,
Caim terá que realizá-lo na solidão de uma vida autônoma.
Desejo e domínio em Caim terão que ser executados sem
qualquer participação de Deus. Caim está totalmente
relegado a si mesmo.
A obstinação de Caim é ferrenha. Ele se esforça para
reverter os efeitos do pecado fundamentando cada
movimento e escolha em sua própria determinação. Toda
orientação externa (e, por conseguinte, divina) é
desprezada. Antes mesmo de cometer o ato hediondo
contra seu próprio irmão, em nenhum momento
encontramos Caim lamentando por algo que fez de errado.
Deus lhe deu oportunidade para resolver o seu problema
mediante a oferta, mas não encontramos um Caim disposto
a isso. A explicação para tal postura é que ele deseja
estabelecer suas próprias regras. Ele está irado com Deus.
Em sua mente, Deus foi injusto por não se agradar de suas
obras.
Ele se enxerga autônomo e acredita que pode driblar
o Deus onisciente. Como bem disse Jonas Madureira (2017,
p. 201), “quando o homem está cheio de confiança em si
mesmo, ele se imagina autônomo e, por isso, se vê capaz
de questionar até o conhecimento de Deus”. Ele está pronto
para exercer sua ilusória autoridade e fazer exatamente
aquilo que bem deseja seu coração. Seu silêncio revela
ausência de arrependimento. Diante do desafio divino sobre
uma mudança de postura antes do assassinato, Caim
simplesmente silencia.
Sem manifestação de esforço algum em conter aquilo
que estava germinando em seu coração, ele comete o
primeiro assassinato da história. Ele não está disposto a
correr o risco de perder o domínio como primogênito. Diante
da maldição de Deus, Caim lamenta e se autocomisera
numa verdadeira expressão de um discípulo anacrônico de
Freud: “É tamanho o meu castigo que já não posso suportá-
lo”. Além de sua postura de autocomiseração, podemos
perceber claramente uma preocupação com sua morte. Em
4.14, ele declara: “quem comigo se encontrar me matará”.
Talvez ele acreditasse que sua morte seria uma maneira de
expiar seu pecado. Daí o lamento: “quem me encontrar me
matará”.
Incapaz de lidar com a rejeição e indisposto a corrigir
seus erros, ele segue obstinado na busca pelo controle da
situação. Contudo, mais uma vez, Deus em seu livre-arbítrio
lhe concede uma bênção que lhe garante a vida. É
concedido um sinal em sua testa que poupa sua vida.
Quanto ao sinal, ficamos com a lúcida observação de
Wenham (1998, p. 110): “a precisa natureza do sinal
permanece incerta, mas sua função é clara”. Trata-se de
uma salvaguarda diante de seus inimigos. Mas a autonomia
e a autodeterminação de seu coração o impedem de pedir
perdão a Deus. Caim continua irado. Não há manifestação
de nenhuma submissão à vontade de Deus. Sua
autopiedade não é capaz de resolver o problema seríssimo,
profundo e radical do seu pecado. Nele é revelado o
tamanho da tolice de toda e qualquer postura autônoma.

1.7.2. Segundo passo: LIVRE-ARBÍTRIO.


O segundo aspecto do movimento desejo-domínio-morte em
Caim diz respeito à sua responsabilidade ou livre-arbítrio.
Essa discussão será melhor desenvolvida posteriormente.
Neste ponto, é suficiente reconhecer que, desde o primeiro
mandamento de Deus no Éden (Gn 2.16ss) até as
prescrições impostas nas alianças do povo de Deus, a
responsabilidade humana é sempre pressuposta. Livre-
arbítrio aqui fala das suas escolhas independentes; quando
Deus não é levado em conta. O homem não é responsável
perante uma força abstrata, mas perante alguém, um ser
pessoal – YHWH.
Depois de todas as “tentativas” por parte de Deus,
finalmente o momento da separação definitiva ocorre entre
Caim e seu criador. Em Gênesis 4.16, temos: “Retirou-se
Caim da presença do Senhor e habitou na terra de Node, ao
oriente do Éden”. Não sabemos ao certo se Caim nutria
esperanças de voltar ao jardim do Éden. Contudo, há um
detalhe que nos chama atenção e pode trazer luz a essa
questão: a porta de entrada para o Paraíso ficava no
Oriente. Exatamente onde estava o altar que foi rejeitado
pelo primeiro homicida.
Compare Gênesis 3.24 com Gênesis 4.16 e perceba
que o lugar da habitação de Caim (Node, terra do fugitivo)
era o mesmo lugar em que querubins foram colocados para
guardar o caminho da árvore da vida. Caim ainda está ali
com sua esperança de voltar ao Paraíso, mas por sua
autodeterminação. A maldição de Deus prevalece até o dia
no qual ele cansa e desafia a Deus prontamente. Ele não se
humilha diante de Deus, não se arrepende; antes é cheio de
autopiedade. Qualquer que seja o sentido da maldição, ele
está disposto a romper com essa maldição não pelo
caminho da submissão e do arrependimento, mas
desafiando a Deus. Com esta resignação interior e em
revolta contra Deus, Caim começa a tomar suas primeiras
decisões na solidão da autonomia, deseja manifestar suas
escolhas livres e começa a tentar excluir o soberano Deus.

1.7.3. Terceiro passo: EXCLUSÃO DE DEUS.


Filósofo do século 19, Fustel de Coulanges afirma, no seu
estudo clássico The Ancient City, ver a fundação da cidade
(polis) como um ato religioso. Não se trata de um passo na
adoção de uma religião, mas, nas palavras de Peursen, é a
libertação do homem do controle da religião e então do
controle metafísico (apud COX, 2015, p. 34). O que veremos
a seguir é o surgimento da primeira cidade humana de
acordo com o livro de Gênesis. Como já mencionado acima,
ela surge em um ambiente de clara exclusão de Deus.
Caim parte da presença de Deus, não aceitando
nenhuma das soluções apresentadas pelo Senhor. Gerações
passam, e Caim se casa. A necessidade humana de formar
uma família fez Caim tomar a decisão de parar de ser
fugitivo (Gn 4.17). Sua mulher engravida e dá à luz um filho
chamado Enoque. Aqui vemos o homem autodeterminado
na busca de reconfigurar suas tarefas. Caim edifica uma
cidade e lhe dá o nome de seu filho. É provável que a
nomeou por causa do seu filho, mas o significado do próprio
nome de seu filho indica algo mais. A raiz da palavra
“Enoque” é “inauguração”. Caim está ecoando um brado de
rebeldia a Deus, como se dissesse: – Não! Eu não vou ser
errante! Eu não vou ser fugitivo! Não é o Senhor que decide
sobre a minha vida. Eu tenho livre-arbítrio, eu escolho! Eu
vou ficar aqui no Oriente! Saiba de uma coisa: mesmo tendo
sido rejeitado no Paraíso, eu vou construir (inaugurar) o meu
próprio Paraíso. Vou contrariar e anular os efeitos da tua
maldição.
Em certo sentido, a cidade de Caim é uma imitação
“barata” do Éden; uma imitação superficial dos arredores do
jardim que ele conheceu. Ele não teve a oportunidade de
seus pais de viver dentro do jardim, mas viveu ao redor
dele. Em sua cidade, Caim deseja desfrutar das belezas
daquele lugar. Contudo, na cidade de Enoque, tudo é
artificial. A fundação dessa cidade foi um protesto contra a
soberania divina. Caim se sente autodeterminado, livre; e,
aos seus próprios olhos, nem mesmo Deus pode deter seus
planos. Mesmo que seus benefícios tenham sido desejados,
porém o que se consegue é só um anteparo, com a bênção
revertida e a artificialidade como realidade última de um
paraíso que Caim nunca poderá tocar. Assim, sua soberania
é pura ilusão. Sua autonomia só lhe afasta da presença
imediata do seu criador. Sua exclusão de Deus o entrega à
sua finitude desorientada.
A representação de Caim e daqueles que refletem o
seu caráter, na frustrante tentativa de negar e excluir Deus
de suas vidas, é bem elaborada na obra de José Saramago
(2009) intitulada Caim. Nessa obra, Caim é a verdadeira
representação da humanidade. Esta, por sua vez, deseja
matar e aniquilar o Deus Todo-Poderoso. Razão:
simplesmente porque este Deus é soberano e faz o que bem
entende. Saramago, que era ateu, pelo menos até a escrita
dessa obra, deixa transparecer, por meio de seu
personagem Caim, todo o ódio que possui contra o Deus
Todo-Poderoso revelado nas Escrituras. Na verdade,
Saramago deturpa Deus e, à semelhança de Marcião,
interpreta o genocídio cananeu e a morte de criancinhas na
destruição de Sodoma e Gomorra como a manifestação de
um deus sádico e tão incoerente quanto Caim.
Seu personagem Caim tem essas lentes sobre a
divindade, porque o interpreta por meio de uma cosmovisão
ateísta, que nada mais é que a busca plena de soberania
pela humanidade. Lá encontramos um Caim resignado
contra o Deus que ordena e regula (p. 37); um Caim
autossuficiente, que arroga para si ares de eternidade (p.
65); alguém que não reconhece sua culpa e busca anulá-la
(p. 69); um Caim que tenta justificar seus atos maldosos e
pecaminosos por meio de uma interpretação mal feita da
destruição de Sodoma e Gomorra (p. 97); um Caim que
acredita que o Deus do cristianismo é mal por permitir
mortes de crianças; um Caim que vê em Lúcifer um
estereótipo de libertação, pois o deus que ele vê na Bíblia
(que não é o Deus verdadeiro) é mal, chato e insano (p.
101).
Saramago capta bem o que o desejo e domínio que
Caim tanto ansiava faria com ele. Diferente da narrativa
bíblica, Saramago leva Caim à sua conclusão lógica. O
próprio Caim fica insano e assassina os oito habitantes da
arca (em uma viagem ao futuro), destruindo assim toda a
humanidade. Segundo o autor português, isso ocorreu por
causa da religião cristã, mas a própria descrição de
Saramago mostra que Caim se autodestruiu por se colocar
em desobediência a Deus, na tentativa de destroná-lo e
matá-lo (p. 166).
Voltando à narrativa bíblica, Caim edifica (inaugura)
uma cidade. É a inauguração de uma civilização alienada de
Deus. É a inauguração da cidade do homem, de uma
humanidade que não seguirá a linhagem dos filhos de Deus.
Cox (2015, p. 41) afirma que “quando o homem muda os
seus instrumentos e as suas técnicas, os seus modos de
produção e distribuição dos bens da vida, também muda os
seus deuses”. O deus de Caim é ele mesmo. Sua
descendência está tão autodeterminada que começará a se
desenvolver, com técnicas propícias para caracterizar a
cidade com os atributos de um “paraíso” – mesmo que tal
“paraíso” seja totalmente deturpado. Os filhos de Caim
criam tendas (4.20) para não serem errantes; eles também
criam a música. A ideia é que pela autodeterminação e
liberdade, sem Deus para subverter a vontade dos homens,
a descendência de Caim aprecia o “belo” ao seu modo,
numa tentativa leviana de desfrutar de um Éden artificial.

1.7.4. Quarto passo: OBSTINAÇÃO.


O movimento desejo-domínio-morte da raça humana
chega a seu ápice com a corrupção do gênero humano (Gn
6), e o seu fim acontece em um cataclisma universal. A
obstinação de Caim contamina seus descendentes.
Podemos ver uma réplica do espírito de Caim na vida de
Ninrode durante a edificação da torre de Babel (Gn 11). Em
Babel os homens disseram: “Vinde, edifiquemos para nós
uma cidade e uma torre cujo topo chegue até aos céus e
tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos
espalhados por toda a terra” (Gn 11.4).
O homem estima a glória própria. Ele ama ser uma
celebridade. Sua soberania artificial o enche de nada – de
vaidade. O objetivo do homem em Babel (agrupar os
homens) vai de encontro ao que havia sido estabelecido por
Deus em seu mandamento (multiplicação e encher a terra).
Esta revolta contra a ordem de Deus de se espalhar por
toda a terra reflete o espírito de Caim. Ironicamente eles
desejam um nome para si. Porém, sem sucesso. O que
temos é uma grande confusão que força o homem a seguir
o mandamento de Deus – a dispersão. O contraste é
reforçado com o surgimento de um personagem que,
diferente dos rebeldes de Babel, recebe um nome de Deus –
Abraão. Enquanto os homens da cidade de Caim buscam
um nome para si, os homens da cidade de Deus recebem o
nome dele. Ironicamente, Deus mostra quem está no
controle, e sua graça não está nem poderá ser constrangida
por qualquer criatura finita.
Este é o ambiente da cidade dos homens. Ela começa em
uma rebeldia direta a Deus, é marcada por
autodeterminação, por busca de livre-arbítrio, por rejeição a
Deus e obstinação na rebeldia. A soberania do homem é o
retrato da frustração. Por mais que o homem queira ser
autônomo, suas tentativas são exercícios fúteis de uma
soberania mirrada, caída e irreal – artificial. Em contraste,
temos o exercício incontestável da soberania de YHWH.

1.8. Aplicações
O desejo por autonomia é uma das mais altas expressões
da tolice humana. Toda tentativa de autodeterminação,
pois, deve ser resistida com vigor. Ela é marcada por ira,
frustração e vê na morte a expiação autêntica. Caim
pensava que sua morte poderia expiar o seu pecado. Ele
mesmo diz a Deus: quem comigo se encontrar me matará
(Gn 4.14). Por mais soberano que se queira ser nesse
exercício fútil de autonomia (soberania humana), a morte, o
suicídio, só levará um ser “livre” inútil à cova. Esse é o mais
tolo dos exercícios da soberania humana.
Precisamos de alguém que seja absolutamente livre
no seu exercício de soberania, alguém cuja identidade é
exclusiva com o único criador e o único regente do universo.
Esse ser livre voluntariamente se entregou por nós. No
controle inteiro de cada circunstância, Cristo morre em
nosso lugar. É preciso crer na morte e ressurreição de Jesus.
Devemos nos render à soberania de Deus. Nós não somos o
centro. Deus é autônomo, não nós. Sabemos que, por mais
que falemos e alertemos, a obstinação está arraigada no
coração do homem. Nós, os filhos de Deus, voltados para
Ele, tributamos sua glória e soberania absoluta. Há sempre
uma oportunidade de se ajoelhar, pedir perdão, submeter-se
e humilhar-se diante desse Deus.
A banda Palavrantiga tem uma composição denominada
Rookmaaker, que capta bem o sentido de tensão entre a
cidade de Deus e a cidade dos homens:
Eu leio Rookmaaker, você Jean Paul Sartre
A cidade foi tomada pelos homens.
Na cidade dos homens tem gente que consegue ler,
Mas os outros estão néscios pra Ti.

Eu canto Keith Green, você canta o quê?


A cidade está cheia de sons.
Na cidade dos homens tem gente que consegue ouvir,
Mas os outros estão surdos pra Ti.

Vem jogando tudo para fora,


A verdade apressa minha hora.
Vem, revela a vida que é nova.
Abre os meus olhos agora.

Eu fico com a Escola de Rembrandt, você no dadaísmo de Berlim.


A cidade está cheia de tinta.
Na cidade dos homens tem gente que consegue ver,
Mas os outros estão cegos pra Ti.

Eu monto o paradoxo no palco. Você anda zombando da cruz.


A cidade está cheia de atores.
Na cidade dos homens tem gente que consegue dizer,
Mas outros estão mudos pra Ti.

Vem jogando tudo para fora,


A verdade apressa minha hora.
Vem, revela a vida que é nova.
Abre os meus olhos agora.

Toda vez que procuro para mim algo para ler, ouvir, olhar e dizer,
Senhor, sabe o que eu quero.
Não me furto a certeza: és a vida que eu quero.
Deus, eu sei.[4]
1.9. Cidade de Deus: Soberania, vontade,
submissão!
A cidade dos homens esforça-se em nos iludir com artifícios
que tentam imitar o paraíso: celular, iPhone, iPad, aviões,
carros blindados, condomínios, resorts, viagens,
apartamentos e coberturas de luxo. Entretanto, tudo isso vai
se esvanecer. Os instrumentos são muitos e diversos.
Os verdadeiros eleitos e amados de Deus estão
destinados para a cidade do próprio Deus. Como afirma o
autor aos Hebreus a respeito destes: “Mas, agora, aspiram a
uma pátria superior, isto é, celestial. Por isso, Deus não se
envergonha deles, de ser chamado o seu Deus, porquanto
lhes preparou uma cidade” (Hb 11.16). Este é o verdadeiro
Paraíso! Não há medo de rejeição como houve por parte de
Adão e Eva e por parte de Caim. Como é belo! Deus não
tem vergonha de ser chamado nosso Deus. Geralmente nos
envergonhamos de sermos chamados filhos de Deus, mas
Deus nunca se envergonha de ser chamado de nosso Pai, de
ser chamado o nosso Deus.
A cidade que Deus preparou para nós fala de
soberania, vontade e submissão. Soberania da parte de
Deus, vontade expressa da parte de Deus e submissão de
nossa parte.

1.10. O trono em foco.


Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e o
colocou como vice-regente da criação. Esse enorme
privilégio deveria ser exercido em submissão e júbilo. Do
seu trono, soberano, Deus governava sua criação, a partir
do jardim do Éden, tendo em Adão seu representante. No
entanto, o homem cai de seu estado original por
desobedecer a ordem do soberano. Por maior que seja a
liderança ocupada pelo ser humano, ele sempre possui um
superior a quem prestar contas; e mesmo o homem com
maior poder sobre a terra não pode fugir do domínio e
ordenação divinas.
Adão e Eva caíram em vil pecado e, ao invés de se
tornarem soberanos, ao invés de criarem um reino próprio,
onde Deus estivesse ausente, só conseguiram ser expulsos
do reino original; ao invés de autonomia, escravidão; ao
invés de melhorias e aumento do prestígio, queda e
maldição; ao invés de um trono próprio, o domínio total
chamado pecado; ao invés de um estado eterno, de uma
ciência ampla, passaram a um estado de morte e de uma
mente corrompida pelos efeitos do pecado. A promessa do
trono deu lugar à triste realidade da prisão e da morte.
O movimento desejo-domíno-morte foi terrível para
Caim. Ele - em sua busca por aceitação, cheio de orgulho e
de empáfia - não admitiu o favor divino para com Abel e sua
preterição. Era algo inaceitável. Ao invés de obedecer a
Deus, que lhe concedeu oportunidade para arrependimento,
Caim buscou o caminho da autonomia, pensando ser o mais
sábio e o melhor a fazer. Resultado: matou seu irmão,
acumulou para si mais maldição, habitou em um local
distante, experimentou a decadência moral em meio ao
avanço tecnológico; tentou ser livre, sem ninguém a quem
prestar contas, mas ganhou um coração obstinado, cheio de
pecado, fugaz e decadente. O caminho da busca por
autodeterminação e por autonomia não gera a tão sonhada
soberania humana vindicada pelo pecado e pela fuga. Todo
fugitivo é só alguém que troca de cadeias.
O caminho do pecado e da ausência do
arrependimento pode gerar a maior metrópole e as
melhores conquistas tecnológicas e digitais, mas não dará a
satisfação de liberdade que só YHWH pode dar. A
emancipação do homem e a origem da cidade andam de
mãos dadas. A busca por libertação de qualquer influência
metafísica pela exclusão de Deus nada mais é que uma
escravidão terrível. É o exercício solitário do homem
entregue a seus devaneios do conhecimento do bem e do
mal. O pecado gera cada vez mais culpa, prisão, medo,
obstinação, fuga e infelicidade. As edificações de Enoque
nunca se transformarão num “Novo Éden”. Trata-se de uma
construção desprovida de fundamento, fadada à destruição
futura que o dilúvio haveria de trazer. Ser um cidadão da
cidade de Enoque talvez fosse ser membro de um novo
culto, centralizado não em YHWH, mas certamente
centralizado em alguma coisa divinizada, alguém divinizado,
ou o EU.
PARTE II: QUEM ESTÁ NO TRONO?
Talvez você ainda esteja intrigado com alguns detalhes
exegéticos e conclusões do capítulo anterior, mas uma coisa
é certa: a busca pela liberdade incondicional e a
possibilidade de exercer e deliberar o próprio destino
levaram Caim a uma busca incessante pelos benefícios reais
e eternos da cidade de Deus, mas este só pôde construir
sua própria cidade, a cidade dos homens, uma quimera, um
devaneio artificial de prazeres e determinações perecíveis,
que - ao invés de produzir real poder e soberania humanos -
trouxe escravidão, devaneios e curas artificiais para uma
ferida mortal chamada pecado.
Vimos até aqui como o pecado de Adão afetou toda
humanidade, alienando-a de Deus, tornando-a maldita e
gerando conflito espiritual, social e cultural. Fizemos um
estudo de caso, a partir de uma breve exposição de Gênesis
4, que tipifica o drama e a tensão constante entre a cidade
de Deus e a cidade dos homens. O homem buscou
autonomia desde o início de sua revolta contra Deus.
Nesta segunda parte, veremos como, ao longo da
história da igreja, a busca pela autonomia e o desejo dos
homens de manterem suas escolhas livres foram sutilmente
incorporados por alguns teólogos (capítulo 2) e veremos
como a visão monergista da salvação (aquela em que
somente Deus opera para salvar o homem) foi sintetizada
de maneira primorosa pelo sistema que foi denominado
calvinismo, com ênfase na soberania divina (capítulo 3). No
capítulo 2, perceberemos como este “inofensivo” desejo por
liberdade esconde uma realidade muito mais “ofensiva” (a
busca por autonomia), a qual - afinal - é uma luta pela
“morte de Deus”, conforme aprendemos ao estudar a vida
de Caim. Vejamos como este espírito caimita gradualmente
foi absorvido por algumas teologias, culminando na
desdivinização de Deus e entronização do homem. Nem
todos os teólogos descritos neste capítulo, contudo,
perceberam as implicações de seu sistema e de suas ideias.
Nossa tarefa, portanto, é expor em síntese o
pensamento desses autores, de forma honesta,
reconhecendo-lhes o mérito de muitas de suas ideias, a fim
de entender como o que se chama de “livre-arbítrio”
apresenta definições variáveis, mas em suma se revelarão
opostas à soberania divina. No capítulo 3, estudaremos
melhor qual a ênfase do calvinismo ao abordarmos seus
fundamentos, sua fundamentação na glória de Deus e sua
ligação com uma visão compatibilista, na qual Deus
determina todas as coisas e o homem é responsável por
suas ações.
2 O LIVRE-ARBÍTRIO COM FOCO
NO HOMEM:
de Pelágio a Clark Pinnock.

O problema do livre-arbítrio e necessidade (ou


determinismo) é talvez o mais volumosamente debatido
dentre todos os problemas filosóficos.
Robert Kane
A definição de “livre-arbítrio” que acho ser a mais
proveitosa nos debates teológicos é “autodeterminação
suprema (ou decisiva) do homem”. [...] A maioria dos
arminianos e teístas abertos aceitarão esta definição,
contanto que eu deixe claro que a autodeterminação é
um dom de Deus.
John Piper

A riqueza de escritos sobre o livre-arbítrio pode nos levar


a tantas minúcias que podemos perder a visão da floresta
como um todo e nossa missão ao vislumbrá-la. Procurando
manter o foco e buscando entender como alguns homens
penderam para uma defesa da liberdade do homem no
sentido libertário do termo, então tomaremos o cuidado de
expor a opinião destes vultos sinergistas da história da
igreja.
A expressão “livre-arbítrio” não é algo de fácil definição
como se imagina; dependendo do autor e da ênfase
expressa em seus escritos, tal expressão pode designar
coisas totalmente distintas, de modo que antes de
procurarmos elencar o que entendemos ser o conceito de
livre-arbítrio, procuraremos pincelar com cores bem vivas o
que homens que enfatizaram a posse humana do livre-
arbítrio escreveram a respeito.

2.1. Pelágio

O homem, por meio da leitura das Escrituras, tem


a capacidade de chegar a Deus sem auxílio da graça
divina.

O nome de Pelágio chega até os estudantes de teologia


sempre em associação com o de Agostinho de Hipona, de
maneira que lembramos mais de Pelágio a partir do
confronto Pelágio versus Agostinho. Sabe-se que as
divergências filosóficas sobre livre-arbítrio e determinismo
já estavam bem estabelecidas nos escritos dos filósofos,
mas, na história da igreja, essa foi a primeira vez em que
isso ocorreu a partir da perspectiva da predestinação e do
livre-arbítrio, de uma maneira bem documentada e
específica.[5] Alguns desvios doutrinários prévios levaram a
considerações sobre essa temática, mas teologicamente
esse tema veio primeiramente à tona por causa do
confronto de ideias entre Agostinho e Pelágio.
Pelágio foi um monge britânico que viveu entre os
séculos 4 e 5 da era cristã. Era homem muito devotado a
práticas ascéticas e tinha um rigor moral extremamente
aplicado às atividades diárias da vida cristã. Essa ênfase o
empurrou para o pêndulo dos méritos humanos. Segundo
Warfield (1887, p. xiii), as raízes do pelagianismo são bem
delimitadas em seus escritos: “geneticamente falando, o
pelagianismo foi a filha do legalismo; mas, quando
concebido em si mesmo, gera um deísmo essencial”. Esse
legalismo é bem evidenciado na origem destes monges:
eram ascetas, cheios de práticas e exercícios, debaixo dos
quais entregavam seus cuidados espirituais a Deus. O
deísmo incipiente está contido no fato de que o homem
possui um poder, uma capacidade inerente que lhe é
entregue; e Deus fica assistindo de longe aguardando as
decisões que o homem tomará.
A controvérsia entre Pelágio e Agostinho foi
desencadeada por uma oração realizada por Agostinho:
“concede o que tu ordenaste, e ordena o que tu desejas”.
Pelágio cria na segunda parte da oração de Agostinho, em
que realmente Deus tem o direito de ordenar o que bem lhe
aprouver; mas, uma vez que Deus ordenou, então é porque
o homem tem capacidade para cumprir suas ordens. Dessa
forma, para Pelágio, não há necessidade de uma graça
especial divina que capacite o homem a obedecer (SPROUL,
2002, p. 30).
Pelágio acreditava que o homem era capaz de não
pecar e de cumprir os mandamentos de Deus. “Pelágio
negou a necessidade e a realidade da graça divina no
sentido de ajuda interna para a fraqueza humana” (negou o
pecado original) (WARFIELD, 1887, p. xv). Havia uma
inocência natural no homem e uma capacidade interior para
desenvolver virtudes.

A definição de livre-arbítrio de Pelágio é a seguinte: “o


homem é apto para pecar e para não pecar, por isso
podemos confessar que temos livre-arbítrio”. A culpa de
Adão não recai sobre nós; isto é inconcebível. Nós
respondemos por nossos pecados e não pelos de Adão
(WARFIELD, 1887, p. xv).

Muito do que temos dos escritos de Pelágio é a partir de


citações de Agostinho. Observe o que Pelágio pensava sobre
o pecado:

Que antes de qualquer outra coisa nós devemos


perguntar o que o pecado é – alguma substância ou um
nome completamente sem substância, pelo qual é
expresso não uma coisa, não uma existência, não algum
tipo de corpo, mas a ação de um feito errado. […] Eu
suponho que este é o caso; e como pode a partir disto
tornar vazio toda substância tendo possivelmente
enfraquecido ou mudado a natureza humana?
(AUGUSTINE E HOLMES, 1887, p. 127)

Harnack esboçou os ensinamentos de Pelágio em 18


premissas, que foram muito bem resumidas por R. C. Sproul
(2002). Essas 18 premissas incluem basicamente três
doutrinas que sintetizam a teologia pelagiana: antropologia,
hamartiologia e soteriologia. O arminiano Roger Olson
define bem a antropologia pelagiana:

Ela ocorre sempre que as pessoas creem que os


seres humanos nascem sem mácula ou falha e negam
que o pecado seja a condição na qual todas as pessoas
nascem. Essa doutrina surge sempre que as pessoas
afirmam que um simples ato de vontade, sem a graça
especial, sobrenatural, de Deus, é capaz de realizar algo
verdadeiramente bom em termos espirituais. Também
ocorre toda vez que se propaga, ainda que sutilmente, a
mensagem de que os humanos conseguem por si
mesmos iniciar um relacionamento correto com Deus
(OLSON, 2004, p. 303).

Sua teoria da expiação parece prenunciar a ideia de que


a expiação de Cristo nos serviu como exemplo a ser
seguido, mesmo antes de sermos regenerados.
Não devemos criar um espantalho de Pelágio. Ele não
afirmou que o homem pode ser salvo à parte da Palavra de
Deus e sem a pessoa de Jesus. Mas ele chegou a afirmar
que o homem pode ser salvo ao ter contato com as
Escrituras, sem a necessidade da graça de Deus atuar em
sua vida.

1). Sua antropologia negou a depravação total;


2). Sua hamartiologia negou o pecado original;[6]
3). Sua soteriologia negou a necessidade da graça divina
à parte da Palavra de Deus para salvar. Para ele, a graça era
simplesmente o livre-arbítrio. (McDERMOTT, 2013)

Um relato da suma pelagiana: Jesus fornece perdão para


os pecados e nos serve de exemplo, mas ele não pode
mover nossas vontades; o homem é autônomo em sua
escolha, em sua vontade entre escolher ou não a Deus.
Deus não pode agir na vontade do homem. A crença
pelagiana manifesta o movimento “desejo, domínio” que
claramente se vê na vida do homem pós-jardim do Éden. O
movimento indica uma libertação do homem da “metafísica
divina”, porém uma nova forma de culto implicitamente
aponta para um novo deus: o eu ou outro deus qualquer,
menos o único criador e único regente soberano das
Escrituras. Talvez seja essa uma das razões porque este
ensino de Pelágio foi considerado herético e foi
devidamente condenado pelo Concílio de Cartago (418 d.C.)
e pelo Concílio de Éfeso, em 431 d.C. (FERREIRA; MYATT,
2007). No entanto, o foco teológico voltado para o livre-
arbítrio não foi extinto com a sua morte nem com a
anatematização de seus ensinos. Vários seguidores seus
continuaram espalhando sua doutrina, e outros tantos
aproveitaram suas ideias para harmonizá-las com a
soberania de Deus. Foi o que tentou fazer João Cassiano.
Ao lermos os manuais de história da igreja e de história
do dogma, tendemos a crer que a vitória de Agostinho na
controvérsia pelagiana corroborou para um avanço de sua
soteriologia no meio católico. No entanto, o que se percebe
é que a busca por autonomia, nos bastidores do catolicismo,
colocou em segundo plano as doutrinas da graça tão bem
esposadas por Agostinho. Em suma, se houve um homem
que saiu vencedor na Idade Medieval, no que tange ao
quesito soteriologia (especificamente em termos de
abrangência), este não foi Agostinho sobre Pelágio, mas
Cassiano sobre os dois.

2.2. João Cassiano: uma “boa” harmonia gera


espaço para a autonomia.
A querela teológica entre Agostinho e Pelágio,
nitidamente vencida por Agostinho em termos de
argumentação bíblico-teológica, não foi plenamente aceita
pelos teólogos que os sucederam. A diferença aguda ficou
clarividente: Pelágio enfatizou o mérito humano; e
Agostinho, a obra única de Deus na salvação do homem.
Porém as doutrinas da graça, esposadas por Agostinho,
eram impopulares (e o são até hoje); por isso, a maior parte
dos pensadores da época “certamente, pensavam, há muito
espaço entre os dois para lavrar uma doutrina de salvação
que faça justiça tanto à soberania da graça quanto à livre
decisão e atuação do homem” (OLSON, 2001, p. 285). Aqui
surge João Cassiano, considerado o pai do
semipelagianismo, nascido por volta de 350-360 d.C..
Semipelagianismo é uma forma sinergista de
salvação, que era quase equiparada à heresia pelagiana.
Também se atribui a João Cassiano a busca de uma
comunidade reclusa que buscava um ideal de santidade
entre os monges orientais e os aplicou na Europa (SMITH;
WACE, 1877, p. 414). A base para seus futuros escritos veio
das observações que fez a respeito da fé e da prática dos
monges egípcios. É interessante que o mesmo ascetismo e
o rigor moral encontrados em Pelágio também se repetem
na vida e na teologia de João Cassiano. A ênfase no rigor e
na responsabilidade humana direcionou a teologia de João
Cassiano a tal ponto que, mesmo não negando o pecado
original, findou asseverando que o homem “tem a
habilidade, mesmo em seu estado caído, de iniciar a
salvação ao exercer uma boa vontade para com Deus”
(apud OLSON, 2013, p. 24).
Por volta de 403 d.C., juntamente com Germano,
Cassiano foi para Constantinopla, possivelmente atraído
pela figura de João Crisóstomo; este ordenou Cassiano como
diácono. É possível que, após este período, pouco antes da
queda de Roma, em 410, Cassiano tenha passado por Roma
e até mesmo encontrado Pelágio; e, por intermédio deste, é
provável que tenha ouvido falar da controvérsia havida com
Agostinho (SMITH; WACE, 1877, p. 415).
O método hermenêutico de Cassiano, em alguns
momentos, parecia aplicar a quadriga.[7] Após análise das
Escrituras, ele, porém, achou insustentável aplicar esse
método a todos os textos bíblicos. Em sua obra
Conferências, ele cita um exemplo da quadriga, a partir do
sentido da cidade de Jerusalém: literalmente, representava
a cidade dos judeus; alegoricamente, representava a igreja;
tropologicamente, Jerusalém representa a alma;
anagogicamente Jerusalém é o lar celestial (KAISER; SILVA,
2002).
Um sistema intermediário entre o agostinianismo e o
pelagianismo foi criado por João Cassiano e implantado em
sua comunidade religiosa em Marselha. Por ter uma
inclinação maior para o livre-arbítrio humano, as ideias
soteriológicas de Cassiano foram rotuladas de
semipelagianismo. Olson (2004, p. 389) explica bem o
significado do semipelagianismo:

O semipelagianismo é associado na história da igreja


com um grupo de monges do Sul da Gália -
particularmente em redor da cidade de Marselha (...) –
que fizeram campanha contra a fé vigorosa de
Agostinho no pecado original e na predestinação, e que,
nesse processo, caíram na enganação da necessidade
absoluta da graça para o começo do processo de
salvação. Romperam com o paradoxo da graça, dando
prioridade à iniciativa humana e ao livre-arbítrio em
detrimento da graça auxiliadora de Deus.

Após múltiplas passagens pelo Oriente e possivelmente


até mesmo por Roma, João Cassiano fundou seu próprio
mosteiro em Marselha (410 d.C.). A ênfase monástica de
Cassiano só foi ofuscada pelo grande Bento de Núrsia.
Cassiano pode não ter sido o fundador do monasticismo
ocidental, mas certamente foi seu “primeiro organizador e
sistematizador” (OLSON, 2001, p. 286). Na verdade, o
próprio Bento de Núrsia foi muito influenciado por João
Cassiano.
Rapidamente, o mosteiro de Marselha tornou-se um
grande centro teológico atrativo para novos alunos que se
esforçaram em combater o monergismo agostiniano.[8] Os
três principais teólogos que se aliaram a João Cassiano
foram Vicente de Lérins, Fausto de Riez e Genádio de
Marselha (BERKHOF, 1992, p. 125). Os três posteriormente
foram chamados de semipelagianos devido a sua ênfase na
manutenção da autonomia humana. O erro crasso de
Pelágio foi contestado por todos os teólogos católicos, mas
o homem sempre busca espaço para “autonomia”, mesmo
que seja uma “autonomia pequena”. O que se torna num
paradoxo (para não dizer que se entra numa espécie de
argumentação autodestrutiva), uma vez que não existe
“pequena autonomia”; ou você a possui e ninguém pode
interferir externamente a ela (nem mesmo Deus) ou você
não a possui. Nas entrelinhas, qualquer linha teológica
sinergista visa à manutenção da autonomia, nem que seja
no âmbito do intelecto. O movimento “desejo e domínio” de
Caim é mais presente no pensamento do homem que se
pode admitir. A árvore do conhecimento do bem e do mal
não só desconectou o homem de seu criador, mas também
criou nele um exercício tolo de soberania a qualquer custo.
Sendo assim, a posição confortável em que se depende da
graça de Deus ao mesmo tempo em que a vontade continua
livre para escolher certamente é preferida pela maioria dos
teólogos em detrimento do monergismo.
Dentre as obras de Cassiano, como Da Instituição do
Monasticismo, Discursos Espirituais, Da Encarnação do
Senhor contra Nestório, certamente as Conferências se
destacam como principal escrito antiagostiniano (ou
antimonergista). Assim, Cassiano “procurou elaborar uma
alternativa, tanto para o monergismo como para o
pelagianismo, ao desenvolver um sinergismo católico
ortodoxo” (OLSON, 2001, p. 287).
Não se trata aqui de fazer dos semipelagianos
espantalhos; por isso, seguiremos Gibson (apud Olson,
2001, p 287), erudito que escreve os prolegômenos às obras
de João Cassiano, que apresenta uma síntese de algumas
das ideias semipelagianas:

Podemos dizer que Cassiano afirmava que a salvação


é dada por Deus, mas que somente é adquirida por aqueles
que primeiramente a desejam, antes da graça se manifestar
(isto beira o pelagianismo realmente!). Mesmo que
afirmassem a necessidade da graça divina, tal ênfase na
responsabilidade e na autonomia da vontade humana em
escolher levou os marselheses (“semipelagianos”) a serem
reprovados posteriormente. É verdade que as Conferências
de Cassiano são ambíguas em algumas de suas
declarações. Tal ambiguidade se estabelece por causa do
formato em que são escritas. Em um determinado trecho, a
obra se estabelece em forma de diálogo entre dois abades:
Caeremon e Cermano. Há indícios na leitura de que a
posição de Cassiano seja a esposada pelo abade Caeremon.
A harmonia entre a graça e o livre-arbítrio é assim colocada
por Cassiano (apud Olson 2001, p. 288):
Porque, quando Deus nos vê desejosos de praticar o
bem, ele vem ao nosso encontro, nos orienta e nos
fortalece. [...] Por outro lado, se descobre que não
estamos dispostos ou que ficamos indiferentes, ele
aquece nosso coração com exortações saudáveis, de tal
forma que a boa vontade é renovada ou despertada em
nós. [...] E quando ele [Deus] vê em nós o princípio da
boa vontade, imediatamente a amplia e fortalece e a
incita à salvação, aumentando aquilo que ele mesmo
implantou ou que percebeu ter nascido de nossos
próprios esforços.
Por mais que declarações posteriores tentassem atenuar
o tom dessas asseverações, João Cassiano ficou realmente
conhecido como o fundador do semipelagianismo. Por quê?
Porque, apesar de reconhecer a heresia pelagiana, não
aceitou a ênfase monergística de Agostinho. A conciliação
entre a graça de Deus e o livre-arbítrio levou Cassiano a
abrir as portas para a manutenção da autonomia humana,
mesmo com a presença da graça divina. A psicologia de
Cassiano, alimentada por uma forte ênfase no esforço, no
ascetismo e nas boas obras que os homens podem fazer por
meio de uma vida disciplinada, abriu margem para defender
o livre-arbítrio autônomo. A autonomia da vontade e do
intelecto, mesmo entorpecidos por causa da queda, não
estava inativa. E nessa situação, o homem continuava
autônomo para aceitar ou não o tratamento de Deus.
O homem pode até clamar por meio de sua vontade em
receber o tratamento e, dessa maneira, Deus certamente
responderia oferecendo-lhe o tratamento. Ou mesmo que
não tivesse a disposição para querer ser tratado, a presença
de Deus em sua vida, oferecendo-lhe o remédio, poderia ser
assentida ou não. Nessa analogia, Deus nunca poderia
impor a salvação ao homem, no afã de preservar a
autonomia da vontade. Assim, ao abrir as portas para a
autonomia, o semipelagianismo incorreu em um puro
pelagianismo na prática, em que, afinal, o que determina a
salvação é a decisão autônoma do homem.
João Cassiano morreu em 432 d.C.; o semipelagianismo
foi rejeitado em 529, durante o segundo Concílio de Orange,
porque afirmava que “ao menos o início da fé, o primeiro
voltar-se para Deus era resultado do livre-arbítrio”
(GEORGE, 1993, p. 75). Em outras palavras, João Cassiano
afirmou que “pelo menos em alguns casos a boa vontade de
um ser humano precede a misericórdia e graça divinas”
(apud OLSON, 2004, p. 386). Por isso, Cassiano nunca foi
canonizado pela igreja ocidental (Católica Romana), mas “é
considerado santo no Oriente (na Igreja Ortodoxa Oriental)”
(OLSON, 2001, p. 286).
A condenação do semipelagianismo não significa
extinção de sua posição; ao contrário, mesmo condenado
durante o Sínodo de Orange (529), a igreja adotou uma
posição intermediária entre o agostinianismo e o
pelagianismo. Na prática, muitos teólogos católicos
medievais fizeram prevalecer o sinergismo e, em alguns
casos, até mesmo o semipelagianismo sutil. As visões
monergistas mais radicais da ala agostiniana ficaram
restritas a pequenos grupos e eram vistas com maus olhos
pela ala teológica dominante da Igreja Católica. Mesmo com
suas ideias condenadas posteriormente, João Cassiano
contribuiu para a adoção de uma soteriologia “moderada”
entre o livre-arbítrio e a predestinação, entre a graça de
Deus e a responsabilidade humana. E isso dominou a
soteriologia católica romana de toda Idade Média. Por isso,
mesmo tendo seu ensino condenado, foi o sinergismo de
João Cassiano que prevaleceu contra o pelagianismo
(anatematizado) e o agostinianismo. O movimento de
“desejo e domínio”, que parece ser parte do nervo central
do homem “conhecedor do bem e do mal” desde a época
de Caim, jamais dará as boas-vindas ao monergismo, pois
este, afinal, é um “assassino da autonomia humana” (ou da
soberania do homem, conforme defendemos), enquanto
entende que Deus é o único regente soberano (leia-se livre-
arbítrio de Deus).
A situação ganha primazia tal que o semipelagianismo
acabou sendo introduzido no próprio Catecismo da Igreja
Católica (1994):

A liberdade é o poder, arraigado na razão e na vontade, de agir ou não


agir, fazer isto ou aquilo, e assim realizar ações deliberadas sob a própria
responsabilidade da pessoa. A pessoa modela sua própria vida pelo livre-
arbítrio. A liberdade humana é uma força para o crescimento e a
maturidade na verdade e na bondade; ela alcança a sua perfeição quando
dirigida a Deus... Enquanto a liberdade não se vincular definitivamente ao
seu bem final que é Deus, há a possibilidade de se escolher entre o bem e
o mal e, consequentemente, crescer na perfeição ou falhar e pecar. Essa
liberdade caracteriza propriamente os atos humanos. É a base para o
louvor ou culpa, mérito ou reprovação (apud Sproul, p. 87)

A distinção entre o começo e o crescimento da fé faz


parte do pensamento soteriológico do semipelagianismo,
pois este ensina que a parte do crescimento da fé é uma
obra de Deus, enquanto o início desta fé é um ato do livre-
arbítrio, com a graça sendo supervisora somente depois que
a pessoa fez algo voluntário, um movimento sem a graça na
direção de Deus. Ironicamente, a igreja que crê que a
iniciativa deve vir de Deus, mas precisa de uma colaboração
da parte do homem, também crê que o papa é, em última
análise, o intérprete e propagador da mensagem de Deus, e
visto que Deus sempre é soberano, então a igreja pode
reivindicar ser eternamente infalível (GARBER, 2016).
“Domínio” não somente continua forçando a “autonomia”
da humanidade, mas agora um único homem, conjugado
com a soberania de Deus, reivindica para si a infalibilidade
(a soberania do homem).

2.3. Erasmo de Roterdã – a luta para não perder o


livre-arbítrio (1469-1536)
Erasmo foi um grande estudioso da era da Reforma e foi
um dos envolvidos diretamente com as reformas dentro do
catolicismo romano. Além de ser conhecido pela publicação
do Novo Testamento em Grego (1516), ele também se
notabilizou em sua batalha contra Lutero, pela defesa do
livre-arbítrio em 1524 (LACOSTE, 2005).
Erasmo nasceu em Roterdã e teve a oportunidade de
estudar humanidades e ter a influência de comunidades
monásticas em sua vida. Ele enfatizou a busca por um
relacionamento pessoal com Deus e, pelas experiências que
teve, abominava “as regras severas da vida monástica e os
seus teólogos intolerantes” (GALLI; OLSEN, 2000, pp. 342,
343). É interessante notar que Erasmo, ao contrário de
Pelágio e Cassiano, não tinha apego às regras monásticas.
Perceberemos mais adiante que são outras as raízes de sua
inclinação para o sinergismo.
Erasmo se notifica como “o mais famoso dos
humanistas” (GONZALEZ, 2011, p. 51), e ele mesmo não
era dado a controvérsias. Ele ansiava por uma reforma no
seio da Igreja Católica, principalmente no meio dos clérigos.
Schaff chega a afirmar que “ele [Erasmo] era o homem mais
culto de sua época, e o líder admirado da escolástica
europeia da Alemanha à Itália e Espanha, da Inglaterra à
Hungria” (SCHAFF, 1910, pp. 401-402).
Sua personalidade, seu tom criativo e sua preparação
acadêmica deram novos ares à Reforma, principalmente
pela publicação de seu Novo Testamento em Grego e por
suas críticas mordazes às extravagâncias clericais. No
entanto, segundo Schaff, ele parou por aí e, após certa
hesitação, capitulou em favor do catolicismo, ao comprar
uma briga com Lutero na querela pelo livre-arbítrio
(SCHAFF, 1910, p. 402).
Naquela época, a difusão do humanismo foi altamente
apoiada pelo Papa Júlio II (1443-1513). Ele apoiou artistas
como Rafael, Michelangelo e Bramante. Notabilizou-se como
amante da guerra e cometeu excessos na tentativa de
aumentar o poder e a influência de seu pontificado. Suas
peripécias foram tão grandes que ficou conhecido como
terribilita (o homem terrível) e foi motivo de críticas e
insatisfações por parte de muitos leigos. Erasmo aproveitou
para satirizá-lo de forma implacável em três escritos
magistrais, que demonstram porque era considerado o mais
famoso dos humanistas; os escritos foram: O elogio da
loucura (1511); A querela da paz (1517) e Julius Exclusus
(1517). Veja a forma como Erasmo (apud LINDBERG, 2001,
pp. 70,71) trata Júlio II nesta última obra:
Vejo que o homem que quer ser considerado quase
como Cristo e, de fato, igual a ele, afundou-se na mais
imunda de todas as coisas: dinheiro, poder, exércitos,
guerras, alianças – e isso para não falar aqui de seus
vícios. Mas, embora estejas tão longe quanto é possível
estar de Cristo, ainda assim abusas do nome de Cristo
para teus próprios fins arrogantes; e sob o pretexto
daquele que desprezou o mundo, fazes a parte de um
tirano do mundo; e embora sejas um verdadeiro inimigo
de Cristo, tomas a honra que lhe é devida. Abençoas a
outros, ao passo que tu mesmo és maldito; aos outros
abres o céu, ao passo que tu mesmo estás excluído dele
e dele ficas mantido a grande distância: tu consagras,
mas és execrado; tu excomungas, embora não tenhas
comunhão com os santos.

Segundo Justo L. Gonzaléz (2011), Erasmo, mesmo


diante da ignorância e da corrupção dentro da Igreja
Católica, decidiu-se pela religião tradicional. De maneira
que, como humanista, não atacou Lutero em temáticas
diretamente relacionadas à Reforma Protestante, mas
naquilo que o atingiu profundamente: a negação do livre-
arbítrio humano por parte de Lutero. Ele respondeu
escrevendo um tratado sobre o livre-arbítrio.
Erasmo (apud LINDBERG, 2001, p. 104) tinha ojeriza
pela corrupção, pelos desmandos e pelo cinismo do papado.
Certa vez, quando Lutero ainda não tinha rompido
totalmente com a Igreja Católica, Frederico da Saxônia
questionou Erasmo sobre o que ele achava do caso Lutero,
e sua resposta foi a seguinte: “Ele cometeu um grande
pecado – atingiu os monges em sua barriga e o papa em
sua coroa!”.

2.3.1. O debate com Lutero sobre o livre-arbítrio

Em seu tratado Livre-arbítrio, Erasmo criticou o


monergismo proveniente da pena de Lutero. Seu escrito foi
refutado por Lutero através da obra Sobre a servidão do
arbítrio. Segundo Roger Olson (2004), Erasmo evitou o
pelagianismo e o semipelagianismo, por meio da ideia de
graça resistível e auxiliadora de Deus, a qual libera a
vontade humana da servidão do pecado, capacitando-o a
aceitar ou rejeitar a salvação. Olson (2004, p. 400) afirma
que Erasmo “insistiu em que a salvação é toda pela graça
de Deus, mas que os humanos têm de aceitar livremente a
graça. [...] Até mesmo a livre aceitação da graça é tornada
possível pela graça. A iniciativa é de Deus. A decisão é da
pessoa humana”.
O entendimento do que ele quis dizer por livre-arbítrio
foi esclarecido pelo próprio Erasmo (2014, p. 25):

Livre-arbítrio é “um poder da vontade humana,


mediante o qual um ser humano pode se dedicar às coisas
que levam à salvação eterna ou afastar-se delas".

2.3.2. Queda e livre-arbítrio

Erasmo, em sua visão conciliatória sobre liberdade


humana e soberania divina, tenta afirmar o livre-arbítrio e
os efeitos da Queda sobre a mente. Δύσκωφοι δυσκῶφοις!
Sem querer ofender os surdos, mas usando uma expressão
comum de Melanchthon (“um surdo falando para outro
surdo”), essa ideia descreve bem a tentativa de Erasmo de
defender o livre-arbítrio, quase se igualando a Pelágio.
Primeiro, porque atribui ao ser humano poder próprio para
se dedicar ou não às coisas que podem levar à salvação de
sua alma. No entanto, ele ameniza a sua defesa do
libertismo, quando diz que, com a Queda, as capacidades
humanas naturais ficaram “consideravelmente
prejudicadas”. No entanto, a razão e o arbítrio não foram
destruídos. O homem se tornou vítima “constante da
carnalidade”, mas ele não é totalmente carnal (ERASMO,
2014, p. 32).

Por causa dessa visão diminuta dos efeitos da Queda


sobre a mente humana, Lutero considerou a posição de
Erasmo, a princípio, não digna de resposta, apesar que este
último prometia uma resposta bíblica para o assunto (veja
WENGERT, 1998, p. 68). Ele chega a cometer tais
afirmações para salvaguardar, para não perder o conceito
de livre-arbítrio. Dessa maneira, o conceito de depravação
total ou depravação radical, amplamente verificado em
Romanos 3, não é ensinado por Erasmo. Aliás, ele crê que “o
ser humano caído, por conseguinte, ainda possui alguma
capacidade de conhecimento e obediência a Deus”. O
homem possui um papel para assegurar sua própria
salvação.

2.3.3. Presciência e salvação


A obra Livre-arbítrio e salvação, de Erasmo, é dividida
em três partes. A primeira trata das supostas passagens
que apoiam o livre-arbítrio (Eclesiástico 15.14-17[9] e
Mateus 23.37, por exemplo). Na segunda parte, Erasmo
tenta explicar as passagens que aparentam se opor ao livre-
arbítrio. Ao explicar Êxodo 9.12 e Romanos 9.17, Erasmo
(2014, p. 109) apresenta uma declaração truncada que soa
autocontraditória. Referindo-se a Deus, ele afirma:
É como se um senhor, conhecendo a mente
depravada de um servo, o incumbisse de uma tarefa em
que estivesse dada a oportunidade de pecar, na qual ele
fosse flagrado e punido como exemplo para outros. Ele
sabe de antemão que o servo seguirá suas inclinações e
pecará e quer que ele pereça e até quer de alguma
maneira que ele peque. No entanto, isso não serve de
desculpa para o servo, visto que ele peca por sua
própria perversidade.
Se Deus deseja que todos sejam salvos, sem exceção,
conforme a premissa sinergista, então a declaração do
sinergista Erasmo é, no mínimo, esquisita, para não dizer
ilógica. Mas o fato de um servo que tem tendência para
pecar ser flagrado e punido como exemplo para outros é
aceitável; no entanto, o problema é Deus desejar que isto
ocorra. Mesmo que pela presciência Deus tenha percebido
que aquela pessoa não iria obedecê-lo, pela lógica
sinergista, isso não necessariamente implicaria que Deus se
agrada ou deseja o mal daquela pessoa.[10]

2.3.4. O homem e o livre-arbítrio

Erasmo está muito envolvido com a necessidade de


mostrar o valor do livre-arbítrio, bem como sua
necessidade. Na terceira e última parte de sua obra, ele
passa a apresentar algumas objeções a Lutero. Erasmo
vindica a necessidade de que o ser humano possui de
mérito como indivíduo moral. E este mérito só é viável por
meio do livre-arbítrio. Isto fica claro na seguinte afirmação:

Para aqueles que sustentam que o ser humano nada


pode fazer sem o auxílio da graça de Deus, e concluem
que, por conseguinte, nenhuma obra humana é boa –
devemos contrapor a estes a tese, a meu ver muito
mais provável, de que não há nada que o ser humano
não possa fazer com o auxílio da graça de Deus e que,
por conseguinte, todas as obras humanas podem ser
boas. Daí que todas as passagens nas Divinas Escrituras
que falam de auxílio também servem para estabelecer a
livre escolha, e estas são inumeráveis (ERASMO, 2014,
p. 136).

O humanismo de Erasmo fica clarividente na citação


acima. Este excerto de sua obra resume muito bem a raiz
de sua argumentação do livre-arbítrio. Por resguardar o
livre-arbítrio, ele compromete os efeitos reais do pecado
sobre a criação caída e potencializa a ontologia humana,
expressando isso pela necessidade de provar que o homem
possui mérito inerente. O auxílio da graça sempre vem ao
homem nas Escrituras por meio da ação direta do Espírito
Santo, sem a intervenção humana em escolha. A
regeneração reativa a espiritualidade humana e o faz
desejar Deus. Esta ação eficaz da graça leva o homem a
fazer o bem. Erasmo crê que a graça é dada previamente a
todos e que todos, mesmo não regenerados, podem fazer
coisas boas, inclusive escolher serem regenerados.

Erasmo via o mérito humano destacado tanto nas


escolhas que refletem o caráter divino quanto na escolha da
salvação. Ele crê no ser humano; ele aposta no valor
inerente ao homem, mesmo prévio, para a escolha da
salvação, mediante a ação da graça de Deus. O problema é
que, para ele, essa graça pode ser rejeitada.

Sproul (2009, pp. 93, 94) faria o seguinte


questionamento a este conceito de graça preveniente
implícito nos escritos de Erasmo:

Assim, se a graça preveniente refere-se a algo que


Deus faz dentro do coração do homem decaído, então
precisamos perguntar por que não é sempre eficaz. Por
que é que algumas criaturas decaídas escolhem
cooperar com a graça preveniente e outras escolhem
não fazê-lo? Não recebem todos a mesma medida? [...]
Se você é cristão, com certeza tem consciência de
outras pessoas que não são cristãs. Por que é que você
escolheu Cristo e elas não? Seria porque você é mais
justo do que elas? Se foi por isso, certamente tem
alguma coisa do que se vangloriar. Essa maior justiça foi
algo que você alcançou por si próprio ou foi o dom de
Deus? Se foi alguma coisa que você alcançou, então, no
fundo, sua salvação depende de sua justiça. Se justiça
foi um dom, então por que Deus não deu o mesmo dom
a todos?

As indagações de Sproul evidenciam que a busca pelo


mérito sempre implicará numa vanglória humana, ou então
o conceito de graça preveniente é desnecessário.
Perceptivelmente, Erasmo deseja assegurar o mérito
humano e, ao mesmo tempo, a bondade de Deus e sua
soberania por meio da graça preveniente. Isso é totalmente
incompatível.
Na tentativa de salvaguardar o valor humano, Erasmo
parece atribuir ao homem o status de amálgama entre o
Éden e o mundo caído. A obstinação por autonomia e o livre
acesso à presença de Deus parecem ser amigos
irreconciliáveis, e isto é o que Erasmo parece afirmar (2014,
p. 123):
há certas sementes de virtude implantadas nas
mentes dos seres humanos, mediante as quais eles de
certo modo veem e buscam a virtude, embora mesclada
com emoções mais rudes que os incitam a outras
coisas. É essa vontade flexível que é chamada de livre
escolha e, embora por conta de propensão ao pecado
que permanece em nós, nossa vontade talvez seja mais
inclinada para o mal do que para o bem, mas ninguém
de fato é forçado a fazer o mal, mas o faz com seu
próprio consentimento.
Uma ilustração de Erasmo (2014, p. 145) demonstra a
fragilidade de suas explicações. Ao falar da possibilidade de
um cego que é curado recusar-se a enxergar, ele diz:
Assim como antes do pecado nosso olho estava
saudável, assim também agora ele foi arruinado pelo
pecado; de que um ser humano que vê pode vangloriar-
se? E, no entanto, ele tem algum mérito a reclamar se
prudentemente fecha ou desvia seus olhos.
Esta ilustração apresenta um pequeno problema: um
cego é totalmente incapaz de enxergar, a não ser com a
ação totalmente externa do cirurgião. Se fosse para seguir a
ilustração à risca, ela assume a depravação total. Além
disso, por essa ilustração, é possível que alguém em quem
Deus operou a obra de salvação (a cirurgia que possibilitou
a visão) mantenha-se afastado da luz. Ou seja, Deus
escolheu, regenerou e colocou em suas mãos alguém que
insiste em não ser salvo? Há uma aporia visível neste
raciocínio de Erasmo! A obra de Lutero, Da escravidão do
arbítrio, foi escrita em total refutação a essa obra de
Erasmo. Embora Lutero tenha apresentado sua
argumentação contra a posição de Erasmo de forma forte,
mas muito convincente, Erasmo não foi nada suave na sua
contrarresposta (Hyperaspistes I). Sua reação mais
veemente contra Lutero ocorreu, porque este disse: “livre-
arbítrio é de fato uma ficção, ou um nome sem realidade”
(Assertion omnium articulorum). A questão de vital
importância para Lutero é saber “se a vontade realmente
faz alguma coisa ou não faz nada nas questões pertinentes
à salvação eterna” (RUPP, WATSON, 2006, p. 13).
Erasmo precisava estar ciente, argumentava Lutero, de
que “este é o ponto cardinal entre nós, o ponto sobre o qual
toda esta controvérsia gira. Porque o que estamos fazendo é
perguntar o que o livre-arbítrio pode fazer, o que ele tem
feito e qual a sua relação com a graça de Deus” (LUTERO,
apud Rupp, 2006, p. 13). Na verdade, Timothy George
(1993, p. 78) captou bem o cerne da argumentação entre
Erasmo e Lutero: "'Deixem Deus ser bom', clamava Erasmo,
o moralista. 'Deixem Deus ser Deus', replicava Lutero, o
teólogo".
Por fim, um paralelo entre Erasmo e Lutero resume
bem as qualidades e a obra destes dois grandes vultos do
século 16:
Ele [Erasmo] diferia deste [Lutero] como Jerônimo
diferia de Agostinho, ou Eusébio de Atanásio. Erasmo
era essencialmente um acadêmico, Lutero um
reformador; Erasmo era aficionado por literatura, Lutero
por religião. Erasmo intencionava a iluminação, Lutero a
reconstrução; o primeiro tocava o intelecto dos
educados, o último tocava o coração do povo. Erasmo
lutou por liberdade de pensamento, Lutero por liberdade
de consciência. Ambos tinham sido monges, Erasmo
contra sua vontade, Lutero por livre escolha e por
motivos, e ambos odiavam e se opunham aos monges,
mas o primeiro pela ignorância e intolerância deles, o
último por sua [dos monges] autojustiça e obstrução do
verdadeiro caminho para a justificação e paz. Erasmo
seguiu máximas de sabedoria mundial; Lutero seguia
princípios sagrados e convicções. O primeiro desejava,
como ele confessou, sacrificar “uma parte da verdade
pela paz da igreja”, e o seu conforto pessoal; o outro
estava pronto a morrer pelo evangelho a qualquer
momento (SCHAFF, 1910, p. 422).

Liberdade no sentido pleno e próprio pertence somente a


Deus. Deus é livre de forma a não estar sujeito a nenhum
outro poder; e à medida que opera, o faz somente de
acordo com sua própria vontade. A vontade de Deus de
forma alguma é arbitrária no sentido transcendente ou
mesmo caprichosa, mas consistentemente justa e boa. No
contexto de sua doutrina da graça, o conceito de liberdade
de Deus para Lutero tornou-se uma doutrina da graça livre
(IWAND, 1954, p. 259).
2.4. Socinianismo: uma heresia da autonomia e do
liberalismo

Os socinianos não somente buscaram a sinergia, como


também chegaram a cometer algumas heresias, ao ponto
de negar a onisciência divina. Bavinck (2012, p. 203)
esclarece este falso ensino proposto pelos socinianos:

Deus conhece todas as coisas, diziam eles [os


socinianos], mas todas as coisas de acordo com sua
natureza. Portanto, ele conhece eventos futuros
contingentes (acidentais), não com absoluta certeza
(caso contrário, e deixariam de ser acidentais), mas
como contingentes e acidentais, isto é, ele sabe o que o
futuro reserva na medida em que depende dos seres
humanos, mas não com conhecimento infalível. Se esse
fosse o caso, a liberdade da vontade seria perdida, Deus
se tornaria o autor do pecado e ele mesmo estaria
sujeito à necessidade.
Os postulados socinianos acima têm uma relação direta
com a teologia relacional ou o teísmo aberto. Eles criam na
limitação da onisciência divina, tal como os teístas abertos.
Pode-se perguntar por que colocar Socino neste debate. Foi
o próprio Olson (2001, p. 473) quem nos despertou para
isso quando afirmou que “Gomaro acusou Armínio de
socinianismo, que era uma negação da trindade e de quase
todas as demais doutrinas cristãs clássicas”. Será que essa
acusação feita por Gomaro é válida? Com base em que ele
fez essa correlação?
Lelio Francesco Maria Sozini (1525-1562) era italiano,
nativo de Siena. Recebeu influências místicas e liberais de
Camilo da Sicília e influenciou seu sobrinho quanto aos seus
pensamentos liberais, com um foco antitrinitário. O nome do
sobrinho era Fausto Paolo Socino (1539-1604), e este
produziu mais escritos, como, por exemplo, uma obra sobre
o Evangelho de João, na qual negou a divindade de Cristo;
também negou a imortalidade do homem, sendo que seus
escritos são de grande importância para o unitarianismo
atual (CROSS; LIVINGSTONE, 2007).
O pensamento de Fausto Paolo Socino foi reunido por
seus discípulos (os socinianos) num documento intitulado
Catecismo Racoviano, em 1608 (CROSS; LIVINGSTONE,
2007), pelo qual reafirmaram a negação da trindade e a
natureza divina de Jesus, apesar de que afirmava a crença
no tríplice ofício de Cristo e na igreja. A data da publicação
desse documento e a época em que Fausto Socino viveu
coincidem com o período de intensa atividade intelectual de
Armínio.
A associação que Gomaro fez entre Armínio e o
socinianismo talvez tenha reflexos na herança sociniana do
unitarianismo, que cria na bondade essencial da natureza
humana e, por tal motivo, terminou por negar a Queda, a
expiação e a punição eterna (CROSS; LIVINGSTONE, 2007).
A ênfase no livre-arbítrio humano o colocou em associação
com as doutrinas de Armínio. É lógico que isso não quer
dizer que Armínio fosse unitariano ou sociniano. No entanto,
nesta ênfase sobre a liberdade humana, há uma
aproximação e afinidade conceitual (HORTON, 2011).
Os socinianos também têm uma forma diferente de
crença quanto à doutrina da expiação. É fato que Socino e
Hugo Grotius foram antagonistas diretos neste quesito
(HAGUE, 2005). Na verdade, eles negaram a expiação
substitutiva e, ao fazer isso, mostraram novamente que o
homem em sua rebelião baseia-se em seu próprio senso de
justiça e acredita ser injusta a substituição de Jesus em
nosso lugar (à semelhança da mentalidade ateísta). Os
socinianos creem ser a expiação substitutiva um ato de
ofensa contra Deus, pois a crença deles é na expiação como
exemplo (BERKOWER, 1965). Parece um eco do evento
Caim. Deus aponta para ele que a solução está no alto,
basta arrepender-se, mas a obstinação dele não o permite
aceitar a solução divina. Ele prefere expiar os seus próprios
pecados ao seu próprio modo. O homem em sua busca por
autonomia sempre tentar resolver seus problemas de todos
os modos e por todos os meios, menos da forma como Deus
revela.
Todos os desvios teológicos do socinianismo têm como
fundamentação a crença na autonomia humana. Quando
esta é tomada da perspectiva do racionalismo ainda não
totalmente secularizado, culmina nos postulados socinianos
como descritos por Erickson (2015, p. 752) abaixo:
Diversos conceitos orientam o pensamento sociniano
acerca da expiação. Um deles é a concepção pelagiana
da condição humana como espiritual e moralmente
capaz de cumprir as expectativas de Deus. Outro
conceito é o de que Deus não é um Deus de justiça
retributiva e, portanto, não exige nenhuma forma de
satisfação dos que pecam contra ele ou de alguém em
favor deles. Por fim, temos o conceito de Jesus como um
mero ser humano. Sua morte foi simplesmente a morte
de um ser humano comum.
Em certo sentido, eles foram os predecessores do
unitarianismo norte-americano. A visão racionalista e a
tentativa de perscrutar Deus da perspectiva de um
anatomista, como autônomos, em suas pesquisas os
levaram a deixar de lado a soberania divina. Ao explicar
com detalhes “racionais” as doutrinas cristãs, partindo de
um pressuposto da autonomia do homem e do banimento
da soberania divina, eles findaram modelando um ídolo, por
meio das distorções do Deus das Escrituras. Preso na sua
finitude, o homem autônomo deseja se livrar de qualquer
coisa que o controle, mas ao fazê-lo acaba se colocando
debaixo de outra escravidão, porque o deus ou os deuses
serão instituídos no lugar do Deus criador. Isto é o que a
árvore do conhecimento do bem e do mal faz: concede a
você autonomia sem Deus, o que no final é escravidão a
algo, nem que seja o eu. Os unitarianos trilharam o mesmo
caminho de seus antecessores dobrando os joelhos sobre o
ídolo da autonomia humana para adorar um deus falso, uma
triste deturpação dos atributos divinos.

2.5. Luís De Molina (1535-1600): a chave está


numa redefinição da presciência divina
Nesta obra, nós teremos um capítulo específico para
tratar exclusivamente de Luís de Molina e seu sistema
filosófico-teológico, o molinismo.[12] Por ora, no entanto,
importa dizer que ele elaborou uma tentativa radical de
compatibilizar determinação divina e liberdade humana.
Para tanto, elaborou o conceito de conhecimento médio de
Deus, um conhecimento de contrafactuais, no qual Deus
tem ciência do que ocorreria se um indivíduo fosse colocado
em diversas circunstâncias em vários mundos possíveis. A
partir desse conhecimento, é que Deus determina e decreta
o que ocorrerá, resguardando assim, ao ver de Molina, a
soberania de Deus e a liberdade do homem.
Filosoficamente, a ideia de Molina é extremamente
sofisticada e atrativa, porém não foi bem recebida por
calvinistas, a exemplo de Herman Bavinck. Para Bavinck
(2012), não se pode falar em pré-conhecimento (ou
presciência divina), uma vez que Deus não está restrito a
categorias temporais, mas em termos de categorias
eternas; por isso, devemos falar meramente em
conhecimento divino.
Bavinck (2012, p. 204) faz uma crítica mordaz ao
conceito de conhecimento médio, chegando a associá-lo
com o semipelagianismo:
mas os jesuítas, entrando na discussão, fizeram
mudança. Com o intuito de articular a onisciência de
Deus com a liberdade humana, seguindo a linha
semipelagiana, eles introduziram o chamado
conhecimento médio (media scientia) entre o
conhecimento necessário e o conhecimento livre de
Deus.
Apesar de ser um crítico contumaz do molinismo,
Bavinck dá uma definição de conhecimento médio
condizente com a de Luís de Molina. Por questões didáticas,
apresentaremos o molinismo à luz do conhecimento médio,
por meio das palavras elucidativas e didáticas de Bavinck
(2012, p. 204):
Com este conhecimento médio eles se referem a um
conhecimento divino de eventos contingentes que é
logicamente antecedente aos seus decretos. O objeto
desse conhecimento não é o meramente possível que
nunca será realizado, nem aquilo que, em virtude de um
decreto divino, é certo de acontecer, mas as
possibilidades que dependem, para sua realização, de
uma outra condição. Ao governar o mundo, Deus faz
que muitos resultados possíveis dependam de
condições e sabe, com antecedência, o que fará, caso
essas condições sejam ou não cumpridas pelos seres
humanos.
No capítulo 8, trataremos acerca do molinismo com mais
detalhes; decidimos somente antecipá-lo aqui devido à
sofisticação filosófica que ele apresenta. É dito com certa
frequência que o molinismo é o único modo de traçar um
caminho do meio entre dois extremos: as concepções
opostamente “radicais” de presciência, providência e a
graça associadas ao teísmo aberto e calvinismo. Por essa
razão, julgamos necessário incluir um capítulo inteiro
lidando com essa abordagem.

2.6. Armínio (1560-1609): pelo livre-arbítrio do


homem
Tiago Armínio foi um teólogo holandês, cujo nome de
nascimento era Jacob Harmensz. Ele foi um escritor prolífico,
cujos trabalhos escritos acumularam três volumes densos
de linha sinergista que criam na cooperação divino-humana
quanto à salvação. Quando começou a defender seus
pressupostos sinergistas, dentro das Igrejas Reformadas
Holandesas, Armínio sofreu forte oposição de Francisco
Gomaro, que era monergista. Armínio, ao contrário do que
muitos pensam, era um admirador e estudioso das obras de
Agostinho e tinha muita ligação com o calvinismo histórico,
apesar de gradualmente divergir em aspectos quanto à
eleição divina. Armínio nutria uma grande admiração por
João Calvino.
O ponto que o levou a divergir do calvinismo foi a crença
de que a graça preveniente é resistível.[13] As ideias de
Armínio são bem resumidas por Sproul (2001, p. 145):
A graça preveniente (...) capacita o homem a
submeter-se a Cristo mas não necessariamente a
desejar. O pecador é agora capaz de desejar, mas ele
ainda não deseja fazer isso. A capacidade de desejar é o
resultado de uma obra monergista, irresistível, do
Espírito Santo, mas o desejar real é obra sinergista do
pecador, cooperando com a graça preveniente de Deus;
consentir com ela é obra do homem, que agora tem o
poder de cooperar ou não com ela.
Foi a partir desta ruptura com a visão fortemente
predestinacionista de Agostinho, Lutero e Calvino que
Armínio começou a entrar em conflitos com os teólogos
calvinistas, culminando no debate com Gomaro. Mas, até
pouco antes de tal conflito com Gomaro e de expressar suas
ideias sobre a graça preveniente, Armínio era um forte
defensor do calvinismo em uma de suas vertentes mais
radicais (o supralapsarianismo). Observe a consideração
que ele tinha pelo calvinismo pouco antes de se tornar um
sinergista:
Junto ao estudo das Escrituras que seriamente
aponto, exorto os meus pupilos a lerem com atenção os
Comentários de Calvino, os quais exalto em termos
mais sublimes do que o próprio Helmich [um teólogo
holandês, 1551-1608]; pois afirmo que ele excede acima
de comparação (incomparabilem esse) na interpretação
da Escritura e que seus comentários devem ser mais
altamente valorizados do que tudo o que passou para a
nossa geração por meio da biblioteca dos antepassados;
assim é que reconheço ter ele possuído, acima de
muitos outros ou preferivelmente acima de todos os
outros homens, o que pode ser chamado de eminente
espírito de profecia (spiritum aliquem prophetiae
eximium). Suas Institutas devem ser estudadas à moda
do Catecismo [Heidelberg] como uma explicação
completa, mas com discriminação (cum delectu), como
os escritos de todos os homens (SPROUL, 2001, p. 143).
De forma um tanto cômica, ao se preparar para defender
o supralapsarianismo, Armínio rompeu com o calvinismo.
Enquanto se intensificava o clima de debates e disputas
com Francisco Gomaro, Armínio morreu repentinamente em
1609. Com sua morte súbita, seus discípulos receberam a
incumbência de levar adiante os ensinos do grande mestre
holandês. As implicações de seus ensinos parecem de forma
lógica conduzi-lo ao teísmo aberto, seguindo aqui a orelha
da edição em língua portuguesa da obra Contra o
calvinismo, na qual Roger Olson declara: “os arminianos
entendem que existe uma relação de cooperação entre
Deus e o ser humano e interpretam como possível uma
autolimitação divina em detrimento do livre-arbítrio
humano”.
É lógico que, debaixo do guarda-chuva do verbete
arminianismo existe muita coisa que vai além do que o
próprio Tiago Armínio ensinou. Sabemos que muitos de seus
discípulos penderam para o liberalismo teológico
(arminianos de mente), enquanto outros foram mais fiéis
aos ensinos de Armínio (arminianos de coração). Na
verdade, boa parte do sistema sinergista delineado por
arminianismo diz respeito às formulações doutrinárias de
seus seguidores, conhecidos como remonstrantes.
Segundo Olson, um dos mitos levantados contra o
arminianismo é o de que sua teologia é centrada no
homem. Sobre a depravação total, Armínio escreveu quase
como um calvinista:
Em seu estado pecaminoso e caído, o homem não é
capaz, de e por si mesmo, quer seja pensar, querer ou
fazer o que é, de fato, bom; mas é necessário que seja
regenerado e renovado em seu intelecto, afeições ou
vontade e em todas as suas atribuições, por Deus em
Cristo através do Espírito Santo, para que seja capaz de
corretamente compreender, estimar, considerar, desejar
e realizar o que quer que seja verdadeiramente bom.
Quando ele é feito um participante dessa regeneração
ou renovação, eu considero que, uma vez que é liberado
do pecado, ele é capaz de pensar, desejar e fazer o que
é bom, mas mesmo assim, não sem a contínua ajuda da
graça divina (OLSON, 2013, p. 185).
A declaração acima pode ser comprovada nas Escrituras
Sagradas, mas sua declaração é enfraquecida quando
argumenta que as pessoas podem resistir ao Espírito Santo
(OLSON, 2013, p. 186). O problema começa quando alguns
desejam rejeitar e outros não. Os que não rejeitam a livre
graça de Deus oferecida ao homem, então, logicamente,
escolheram não rejeitar. O ponto problemático é que se
todos estão totalmente depravados, como afirma Armínio,
consequentemente, ninguém teria poder para aceitar. Por
que alguns aceitam a livre graça? Armínio coloca este
mérito na graça preveniente. Sendo assim, esta graça
preveniente deve ser dada de uma maneira diferenciada
aos que aceitam o chamado salvífico. Do contrário, o mérito
não estará na graça oferecida, mas na capacidade de
escolha do homem.
Perceba que o argumento último de Armínio levará a
rejeitar por fim o conceito tão bem articulado de
depravação total por ele exposto! Ou então, devemos levar
em conta que existe uma graça preveniente especial para
os que aceitam! Penso não ser este um ponto realmente
arminiano, apesar de que, se tomarmos o arminianismo no
que diz respeito às suas últimas consequências, então
certamente teremos tais implicações lógicas, mas que na
base de seu ensino foi negada (a existência do pecado
original) por Tiago Armínio.

2.6.1. Os remonstrantes
O intenso debate entre Francisco Gomaro e Tiago Armínio
sobre a predestinação foi interrompido pela morte precoce
de Armínio em 1609. No entanto, Armínio tinha muitos
discípulos, sendo que cerca de aproximadamente 45
ministros e teólogos protestantes das Províncias Unidas
deram continuidade à teologia de Armínio e a
sistematizaram num documento que ficou conhecido como
Remonstrância (OLSON, 2013). Em parte, foi em oposição a
esse documento que os calvinistas formularam os cinco
pontos do calvinismo, no Sínodo de Dort.[14]

2.7. John Wesley (1703-1791): não à


predestinação!
Wesley se considerava um arminiano e foi um apologeta
desse sistema, defendendo-o da popular ideia de que o
arminianismo era uma heresia ou que inexoravelmente
conduzia a heresia. Uma das influências arminianas de John
Wesley foi sua mãe. Ela mesma lhe ensinou as premissas
arminianas concernentes à salvação (DALLIMORE, 2005, p.
76).
Nos seus escritos, defendeu o princípio da graça
preveniente (OLSON, 2013). O que é curioso em Wesley é
sua ênfase no perfeccionismo (a possibilidade de alguém
chegar a um estado de não cometer pecados). Curioso que
esse ensinamento possui raízes no Holy Club, o qual foi
presidido por Wesley durante algum tempo e que se
pautava pelo excessivo rigor moral.
O fato é que John Wesley foi um grande servo de
Deus, exercendo suas atividades como teólogo, evangelista
e líder na Inglaterra. Digna de nota é sua amizade com
George Whitefield. Eles possuíam sólidos laços de amizade.
George Whitefield, o grande evangelista e possivelmente
um dos maiores pregadores de fala inglesa de todos os
tempos, iniciou os trabalhos de pregação ao ar livre e, aos
poucos, o próprio Whitefield foi cedendo espaço para John
Wesley pregar ao ar livre, além de trabalharem na formação
do metodismo. A ênfase de Whitefield no calvinismo, aos
poucos, foi causando desconforto em John Wesley, que,
apesar das advertências para evitar contendas, acabou
tendo uma séria discussão com George Whitefield por conta
da doutrina da predestinação. Sua definição de
predestinação é vista em seu sermão Livre Graça:
É uma doutrina cheia de blasfêmia; de tal blasfêmia
que temo mencioná-la, porém que a honra do nosso
gracioso Deus e a causa da verdade não tolerarão que
eu silencie... Vou mencionar algumas das horríveis
blasfêmias contidas nesta horrível doutrina. Essa
doutrina apresenta o nosso bendito Senhor, “Jesus
Cristo, o justo”, como um hipócrita, um enganador do
povo, um homem vazio da comum sinceridade... Essa é
a blasfêmia claramente contida no horrível decreto da
predestinação! E aqui finco o pé. Sobre isso eu
questiono todo aquele que a assevera. Você apresenta
Deus como pior do que o diabo; mais falso, mais cruel,
mais injusto (WESLEY apud DALLIMORE, 2005, pp.
78,79).
É lógico que tal excerto dos escritos de Wesley não é
capaz de diminuir a envergadura deste herói da fé cristã,
porém revela que sua luta por não aceitar algo expresso
pelas Escrituras, a predestinação, certamente evidencia que
ele não estava disposto a ceder um centímetro sequer da
liberdade que o homem tem de rejeitar ou não a graça
preveniente manifesta aos filhos de Deus. É difícil conciliá-lo
quanto a isso, uma vez que ele tinha um senso da
humanidade caída muito parecido com o calvinismo. Wesley
afirma:
Eu creio que Adão, antes de sua Queda, possuía
liberdade de vontade, pela qual podia escolher entre o
bem e o mal; mas, uma vez debaixo da Queda, nenhum
ser humano possui um poder natural para escolher
qualquer coisa que seja verdadeiramente boa. Ainda
que eu saiba que o homem possui liberdade em coisas
de natureza indiferente (apud SCHREINER, WARE, 2000,
232).
Sua crença na graça preveniente, fortemente
influenciada pelo sinergismo, findou tentando explicar a
predestinação divina de uma maneira conflitante com o
calvinismo, em concordância com o arminianismo

2.8. Charles Finney (1792-1875): O decisionismo e


o sistema de apelo
Horton vê Charles Finney como um pelagiano, com a
ênfase voltada para o esforço humano, o
autoaperfeiçoamento e o progresso moral da humanidade
(HORTON, 2014, p. 68). As sementes deste “pelagianismo
incipiente” no reavivamento do século 19, nos Estados
Unidos da América, geraram alguns frutos nos séculos 20 e
21: pragmatismo, consumismo, moralismo de autoajuda e
narcisismo (HORTON, 2014, p. 69).
O próprio Olson afirma que a teologia de Finney se
aproximava do semipelagianismo, tendo em vista que ele
negava a necessidade da graça preveniente (OLSON, 2014,
p. 35). Por focar tanto no livre-arbítrio humano, Finney
findou negando a necessidade de graça preveniente, pois a
suficiência e o poder de escolha do homem, no que tange a
coisas boas, estavam preservados, mesmo depois da
Queda.
David Martyn Lloyd-Jones é mais incisivo ao afirmar que
“Finney não era arminiano; era pelagiano. Não acreditava no
pecado original, e acreditava que o homem natural, por um
processo da razão, é capaz de captar a verdade e de pô-la
em operação” (LLOYD-JONES, 1993, p. 321). Ele ainda
acusa Finney de nunca ter deixado de advogar e de sempre
se valer de um sistema lógico-racionalista, incorrendo
sempre em violência ao texto bíblico. Finney cria na eficácia
de seu método, a ponto de por meio de algumas atividades
pragmaticamente executadas de recursos de oratória,
sistema de apelo, seriam suficientes para causar
conversões e gerar um avivamento.
Seu sistema era confuso e admitia que a justificação
do homem não era forense; ele cria na teoria
governamental da expiação, pela qual a expiação de Cristo
aplicada aos pecadores se dá não por um ato concreto de
substituição, mas por meio de um exemplo e influência
moral a serem seguidos (SPROUL, 2001, 193). Dessa forma,
podemos perceber o quanto Finney se aproxima bastante do
socinianismo, como já apresentamos.
Seu sistema teológico se opõe à doutrina da
justificação a ponto de se tornar um mero sistema
moralista, conforme suas próprias palavras a respeito da
precedência da santificação em relação à justificação:
Alguns teólogos têm feito com que a justificação seja
uma condição para a santificação em vez da
santificação como uma condição da justificação. [...]
Mas isso... é uma visão errônea do assunto... Que a
consagração presente, completa e plena do coração e
da vida a Deus e a seu serviço, é uma condição
inalterável do perdão presente ao pecado passado e da
presente aceitação aos olhos de Deus (SPROUL, 2001,
197,198).
Esta é uma das razões porque Finney é tão severamente
contrariado pela maioria dos teólogos conservadores. O seu
foco estava na decisão do homem; a salvação, em seu
sistema, tinha mais a ver com o que o homem decidia do
que com o que Deus efetuava.

2.9. Lewis S. Chafer (1871-1952)


A soteriologia de Lewis S. Chafer foi duramente criticada
por John Gerstner e R. C. Sproul e, em parte, devido a
alguns de seus ensinos, em especial, o dispensacionalismo.
Chafer tentou expor uma visão robusta da condição
do homem caído e chega a argumentar que os homens
nascem espiritualmente mortos e incapazes de fazer
“qualquer bem espiritual com relação à salvação” (SPROUL,
2001, p. 212).
O problema começa quando ele expressa sua ênfase
no livre-arbítrio humano. Ele diz:
A escolha humana do que é bom, assim como a
escolha do que é mal, origina-se interiormente, como a
volição do indivíduo e é livre no sentido em que o
indivíduo não é consciente de qualquer necessidade
imposta sobre ele. Toda ação humana está incluída
nessa concepção. Desde que a ação humana não parece
ser reprimida por nada além da persuasão moral ou das
emoções, a interrogação a se fazer é em que grau a
vontade humana é livre (SPROUL, 2011, p. 213).
No sistema teológico de Chafer, a fé precede a
regeneração. A fé ocorre antes que Deus responda com a
regeneração. Tal asserção, uma vez assumida, coloca o foco
na escolha do homem e não na ação divina, por maior que
seja o zelo de Chafer em retratar a morte espiritual do
homem sem Deus. Além disso, sua visão da regeneração
abre precedentes para a existência de um crente carnal,
tido como alguém que recebeu Jesus como Senhor, mas que
não o recebeu como Salvador.[15] Na verdade, Chafer criou
um “grande abismo entre a graça e a lei” (MACARTHUR,
2011. p. 294).

2.10. Billy Graham (1918 - 2018)


Billy Graham foi um dos maiores evangelistas do século
20, juntando multidões em estádios, ginásios, teatros e
demais lugares por onde passava mundo afora, com suas
cruzadas evangelísticas, além de ser conselheiro pessoal de
vários presidentes norte-americanos. Em sua morte, foi
honrado pela presidência dos Estados Unidos, e sua
influência é sentida e presenciada em nosso meio. Não se
notabilizou como teólogo acadêmico, mas seu testemunho e
impacto ministerial ajudaram diversos evangelistas e
teólogos. Só para citar um grande teólogo que esteve em
contato direto com Billy Graham, podemos falar de Carl F. H.
Henry.
O objetivo de abordarmos o impacto dos ensinos de
Graham diz respeito à forte influência que teve sobre
diversos teólogos e que, em parte, recebeu de homens
como Dwight Moody, do próprio Finney e de Wesley.
A polêmica reside em uma frase de Billy Graham, em
seu livro How To Be Born Again [Como nascer de novo]: “o
novo nascimento é algo que Deus faz pelo homem quando o
homem deseja render-se a Deus”. Gerstner faz um
apanhado de algumas frases de Graham nesta obra, para
fazer algumas considerações sobre a soteriologia de
Graham:
ver que Graham é arminiano[16] e não pelagiano. Isso
poderia também ser dito da maioria dos
dispensacionalistas,[17] isto é, a “ajuda” divina
necessária, mas não a regeneração divina. Um homem
não pode crer sem ajuda, mas também não pode ser
regenerado sem crer. Esta é precisamente a ordem
arminiana evangélica – ajuda divina, então fé humana,
seguida pela regeneração (apud SPROUL, 2001, p. 223).
De fato, não precisamos do suporte de outros teólogos
para identificar traços do arminianismo nos escritos de Billy
Graham, conforme arremata Gerstner:
“O Espírito Santo fará tudo o que for possível para
incomodá-lo, atrai-lo, amá-lo – mas finalmente, é a sua
decisão pessoal... Faça com que aconteça agora.”
[Palavras de Graham]. Billy Graham não é um teólogo
profissional, mas os teólogos profissionais a quem ele
segue são exatamente tão explícitos quanto ele [refere-
se a Lewis Chafer e John Walvoord (apud SPROUL, 2011,
p. 223).
Colocamos Graham nesta lista sem desmerecer o grande
trabalho evangelístico efetuado por este grande cristão do
século 20, mas deixando clara sua ligação com o
arminianismo, em total consonância com o peso maior da
salvação residindo na responsabilidade humana em aceitar
quando quiser ou não.[18] Não sabemos se tal ênfase levou
a posturas mais abertas de Graham em suas cruzadas, em
muitas ocasiões adotando um tom mais irenista, em diálogo
com católicos e descrentes. Em certa ocasião, Graham quis
realizar uma cruzada em parceria com o grande pregador
galês David Martyn Lloyd-Jones, mas este se negou a fazê-
lo. Quem nos conta este episódio é Steve Lawson:
Em 1963, Graham pediu que Lloyd-Jones presidisse o
Congresso Mundial de Evangelismo que iria ocorrer na
Europa. Reunido na antessala da capela de
Westminster, em julho de 1963, Lloyd-Jones expressou a
Graham que ficaria muito feliz em presidir o Congresso
Mundial de Evangelismo, se Graham deixasse o apoio
geral de suas campanhas, abrindo mão do seu
envolvimento com liberais e católicos romanos, e
deixasse o sistema de apelos no final do sermão. O
evangelista norte-americano não podia cumprir essas
condições e, em vez disso, pediu um “novo dia de
entendimento e diálogo”. Graham, mais tarde,
participaria do movimento ministerial com aqueles que
dirigiam o movimento ecumênico na Europa. Isto foi
inaceitável para Lloyd-Jones, e ele recusou o convite de
Graham (LAWSON, 2016, p. 34).
Mais uma vez, afirmamos que colocamos aqui o exemplo
de Graham pelo fato de que ele tem influenciado muitos
evangelistas e pastores no chamado “sistema de apelo”, em
que muitos são chamados a entregar suas vidas a Jesus, por
meio de muita insistência, muitas vezes com forte pressão
psicológica, visando sensibilizar alguns a fim de que estes
sirvam de motivação para que muitos outros também
levantem suas mãos e façam sua “decisão por Jesus”.

2.11. Millard J. Erickson[19] (1932) - resolução por


meio de sínteses
Millard J. Erickson é um teólogo de altíssimo prestígio
internacional e respeitado dentre aliancistas, teólogos da
Nova Aliança e dispensacionalistas. Seus livros são
utilizados como livro-texto em muitos seminários brasileiros;
e sua abordagem sintética de muitos temas, em franco
diálogo com abordagens não ortodoxas, torna seu texto
muito mais atraente, sem perder o caráter plenamente
ortodoxo de seus escritos. Tomando, no entanto, uma
definição soteriológica calvinista restrita, o posicionamento
de Erickson não se enquadraria quando ele, por exemplo,
afirma:
Se Deus está, de alguma forma, presente e ativo no
mundo criado como um todo, ele está presente e ativo
em seres humanos que não fizeram uma entrega
pessoal de sua vida a ele. Portanto, há pontos em que
eles estarão sensíveis à verdade da mensagem do
evangelho, lugares em que estão em contato com a
atuação de Deus. O evangelismo tem como alvo
descobrir esses pontos e direcionar a mensagem a eles
(ERICKSON, 2015, p. 305).
Uma leitura atenta da frase acima, especialmente a
expressão “ponto de contato”, de Erickson, parece romper
com a ideia de depravação total, inclusive pressupondo uma
ruptura com os efeitos noéticos da Queda. Basta achar uma
chave que abra a porta do coração do pecador.[20] Ele,
contudo, rejeita a graça preveniente, demonstrando que
não há “base clara e adequada nas Escrituras para esse
conceito de capacitação universal” (ERICKSON, 2015, p.
897). Erickson também usa de um artifício linguístico para
fugir das dificuldades com a ideia de graça irresistível.
Observe este mecanismo linguístico para dizer com
palavras polidas e convenientes a dura verdade da graça
irresistível:
Se como argumentamos [...] os seres humanos no
estado não regenerado são totalmente depravados e
incapazes de responder à graça de Deus, não há
dúvidas sobre se eles estão livres para aceitar a oferta
da salvação – ninguém está! Em vez disso, a pergunta a
ser feita é: será que qualquer pessoa que é
especificamente chamada está livre para rejeitar a
oferta da graça? A posição adotada aqui não é a de que
os que são chamados devem obrigatoriamente
responder, mas a de que Deus torna a sua oferta tão
atraente que eles responderão de forma afirmativa.
Apesar dessa declaração fortemente equiparada com o
calvinismo, a sutil negação do termo graça irresistível e a
possibilidade de um ponto de contato capaz de abrir uma
chave no coração do pecador (subvertendo a depravação
total defendida na citação acima) nos levam a crer que a
posição de Erickson não é calvinista. Uma de suas marcas é
fazer sínteses entre sistemas teológicos divergentes. À
guisa de exemplo, a extensão da expiação de Jesus, o ponto
mais periclitante de sua teologia. Afinal, ela foi universal ou
particular? Jesus morreu para pagar o preço dos pecados de
todos os homens ou somente de alguns, a saber, os eleitos?
Ele tenta fazer uma conciliação entre a expiação
limitada e a ilimitada, valendo-se da fórmula medieval:
“suficiente para todos, mas eficiente somente para os
eleitos”. Ele se vale de uma argumentação que tenta avaliar
a questão de múltiplas perspectivas e facetas em que a
expiação pode ser levada em consideração. Porém logo se
verifica que tal abordagem rompe com os parâmetros
convencionais da TULIP (acrônimo no inglês para os cinco
pontos do calvinismo) e, apesar de não assumir uma
postura considerada universalista quanto à expiação, o
autor também não constrói o argumento para prover que
crê na expiação definida e restrita aos eleitos, tendo em
vista que um conceito hibridizado entre expiação universal e
particular seria inviável.[21]

2.12. William Lane Craig (1949): mundos possíveis


como solução
William Lane Craig é um filósofo e teólogo respeitado na
comunidade erudita internacional. Tem dedicado boa parte
de sua vida ao estudo e ensino da apologética, de viés
clássico, participando de debates com grandes acadêmicos
ateus e liberais nos Estados Unidos e na Europa.
Sendo filósofo, ele se dedicou aos estudos das
filosofias de Molina e de Suarez, encontrando no molinismo
um sistema viável. Valeu-se das pesquisas de Alvin
Plantinga, mas seus livros têm substância própria no que
concerne a defender uma soteriologia molinista baseada
numa visão modificada da presciência divina.[22] Seu livro
principal sobre o molinismo foi publicado no Brasil pela
editora Sal e Cultura, de orientação wesleyana, com título O
único Deus sábio. Apesar de ser um livro com um pouco
mais de 157 páginas, trata com propriedade da temática do
molinismo. A obra é claramente uma tentativa de refutação
do calvinismo, seja em sua versão radical ou compatibilista,
equiparando-o ao conceito de fatalismo. Os capítulos oito e
nove trarão mais detalhes sobre o trabalho de Craig, dentro
da abordagem molinista.
2.13. Roger Olson (1952): um Passo Em Falso E
“Eis O Teísmo Aberto”
O professor arminiano Roger Olson é, provavelmente, o
maior defensor do arminianismo na atualidade. O tom
irenista de seus escritos soa muito agradável e receptivo.
Ele firma que não é muito dado a livros de tom polemista e
ressalta a importância e o respeito que direciona aos
calvinistas.
Olson (2013, pp. 23, 35, 36) critica o movimento
chamado neocalvinista, no qual muitos jovens cristãos
reformados têm sido despertados para a teologia calvinista,
principalmente por meio de homens como John Piper. Ele
não aceita a crítica de alguns desses neocalvinistas que
enfatizam a TULIP, a qual afirma que qualquer um que não
professe o calvinismo não pode ser chamado cristão;
também não admite o fato de que os arminianos são
antropocêntricos. No entanto, Olson é hábil para
demonstrar que o Deus calvinista é muito parecido com o
diabo. Não seria esta uma forma cortês de dizer que os
calvinistas não são cristãos?
A proposta de sua apologia ao arminianismo é levar
calvinistas a serem sinceros e honestos com o
arminianismo. Na obra Teologia arminiana (2013, pp. 54,
55), ele afirma que Henry C. Thiessen, mesmo esboçando
uma forma de arminianismo implícito (que, segundo Olson,
é determinada pela sua crença na eleição pela presciência e
no fato de que Deus produz salvação naqueles que
respondem positivamente à graça preveniente), não se
apresenta como arminiano. Na verdade, quando passa a
falar do pecado original, Thiessen compara os arminianos
com os semipelagianos. Para Olson, a teologia de Thiessen
certamente é arminiana (mesmo que o autor não se
declare); ainda assim cria esta confusão e este espantalho
do arminianismo. Seu trabalho visa livrar o arminianismo
destes sutis “mitos”.
Olson (2013, p. 177) chega a afirmar que o verdadeiro
arminianismo é plenamente centrado em Deus, ao contrário
das acusações calvinistas. Ele afirma que o verdadeiro
arminianismo também crê na escravidão da vontade. No
entanto, o conceito de graça preveniente parece ferir esta
ideia que Olson afirma de uma crença consistente do
arminianismo na depravação total.
Quanto ao molinismo, Olson afirma que o
conhecimento médio é incompatível com o livre-arbítrio
libertário, pois “o molinismo leva ao determinismo e é,
portanto, incompatível com o arminianismo. [...] O próprio
Armínio recuou na utilização do conhecimento médio”
(OLSON, 2013, p. 255).
Olson também trata das implicações últimas do
arminianismo e, no afã de negar o determinismo, ele finda
restringindo em algum aspecto a soberania divina,
parecendo esboçar um aspecto proto-teísta aberto de sua
teologia. Por exemplo, “na narrativa bíblica Deus se
entristece, abranda, promete e reage, e todas estas são
expressões de condicionalidade, o que sugere limitação
voluntária” (OLSON, 2013, p. 207). Deus, portanto, decide
voluntariamente se limitar para poder corresponder aos
anseios e vontades do homem. Para fugir do determinismo,
Olson declara que Deus está no comando, mas não no
controle de tudo.
Então, com base nessas informações, Olson afirma o
que entende por livre-arbítrio:
O livre-arbítrio é libertário, ou seja, a vontade não é
totalmente governada por motivos externos e é capaz de
agir de maneira contrária à que age.
Ao assumir a liberdade libertária, ele amplia em seu
sistema o poder e a liberdade humanas em detrimento da
soberania divina, encaminhando-se para algo parecido com
as ideias do teísta aberto Clark Pinnock.
2.15. Clark Pinnock (1937 – 2010): mudando todos
os paradigmas para garantir a autonomia humana
Clark H. Pinnock nasceu em 1937, na cidade de Toronto,
e foi educado em uma congregação batista liberal (ELWELL,
1993). Converteu-se em 1949 e foi muito influenciado por
literatura reformada a partir dos anos 1950. Para Pinnock, o
predomínio do calvinismo como sistema induz os teólogos
noviços a aceitarem-no sem muita crítica (PINNOCK, 1989).
Depois de um certo período de estudos, após uma análise
do livro de Hebreus, Pinnock questionou a perseverança dos
santos, que considera ser o mais fraco dos pontos do
calvinismo. Em seguida, ele passou a aceitar a expiação
universal (PINNOCK, 1989). Assim, gradualmente foi se
afastando do calvinismo, pois, para ele, a lógica calvinista
acaba por tornar Deus autor do mal, até romper com todos
os pontos do calvinismo (PINNOCK, 1989). É notável aqui
haver certas similaridades com o pensamento de Olson.
Ele lutou em seu sistema para gerar autonomia ao
homem, mas percebeu que isso só seria possível
modificando alguns atributos de Deus, a ponto de limitá-lo.
O movimento é semelhante ao que temos usado no título
deste livro. O homem paulatinamente se torna “soberano”,
enquanto é preciso limitar Deus, tornando-o finito. A
implicação lógica é que, para o homem ter liberdade de
escolha, então, Deus deve limitar seu conhecimento das
coisas futuras, uma vez que, se soubesse do futuro eterno
de suas criaturas, Deus impossibilitaria que o indivíduo
tomasse uma posição contrária àquele destino eterno que
Deus sabia ter o indivíduo em questão. Foi este tipo de
raciocínio que o levou a limitar a presciência divina.
Para Pinnock, temos o direito da escolha contrária,
uma vez que não faz sentido afirmar que agimos livremente
se, de fato, estamos fazendo aquilo que Deus, desde a
eternidade, nos predestinou para fazer. Ele tece críticas a
Agostinho por ter limitado Deus a um molde grego de
imutabilidade, que impossibilita Deus de aprender algo ou
de mudar. Então, ele redefine seu sistema em quatro pontos
básicos: rejeição do modelo grego de imutabilidade divina;
crença de que Deus não é impassível; Deus não se abstrai
do tempo, pois - ao lidar com a história - ele não pode ser
atemporal; e reformulação da onisciência de Deus. Com
base nisso, ele faz declarações totalmente heterodoxas:
Alta porcentagem dos crentes acredita que Deus
sabe todas as coisas, até mesmo o futuro,
exaustivamente, em minúcias. Isto significa que tudo
quanto você e eu fizermos já foi registrado no livro das
coisas que certamente haverão de acontecer. Assim
sendo, a ideia de que de fato estamos fazendo escolhas,
ponderando ações alternativas, é um erro, uma ilusão.
[...] Atos livres não são entidades que podem ser
conhecidas antecipadamente. Não existem,
literalmente, e por isso não podem ser conhecidos. Deus
pode conjecturar sobre o que você fará na próxima
sexta-feira, mas não saberá com certeza, porque você
ainda não agiu (PINNOCK, 1989, pp. 190-91).

Para aumentar sua liberdade, poder e autonomia,


Pinnock limitou a presciência divina. Eis a consequência
lógica última do arminianismo.

2.16. Trono em foco


Ao longo desta história do livre-arbítrio, apresentando os
posicionamentos de teólogos mais voltados para o espectro
sinergista, mostramos como uma tentativa de ampliar o
poder e a autonomia humana sempre implica em diminuir
Deus em qualquer sistema que seja. Desde o pelagianismo
até o teísmo aberto, abordamos escolas e teólogos com
características mais liberais (como o socinianismo, que se
constitui em heresia) e mais ortodoxos (como Wesley, por
exemplo).
Toda vez que o homem pretensamente ambiciona se
assentar no trono da autonomia e da liberdade libertária,
ele pode até mascarar sua intenção por meio de
declarações amenas, mas suas proposições sinergistas
findam subtraindo características essenciais do Deus de
Israel.
O homem tem lutado por autonomia desde a época de
Adão e Eva, passando por Caim, Ninrode, Nabucodonosor,
Herodes, César; e, no período pós-apostólico, esta busca por
controle tem sido exposta e assimilada por muitos teólogos
importantes.
Que Deus nos ajude a não incorrermos no engodo da
liberdade “imperial” e da subtração “real” (ao verdadeiro
Rei). Entendamos que ninguém pode subtrair nada de Deus
e, por mais que se queira estar no trono e diminuir o raio de
ação divina sobre nossas vidas, todos nós somos acusados
e, por isso, devemos refletir se de fato vale a pena lutar por
autonomia, isto é, querer tirar o domínio real de Deus e
transferir para nós.
No próximo capítulo, iremos explorar a submissão de
nossa vontade à vontade do Deus que decreta todas as
coisas.
3 CALVINISMO

É muito difícil ser calvinista nos dias atuais. É como se


a gente tivesse que discordar de todo mundo. [...] Apesar
disso, porém, é evidente que o calvinismo é um sistema
perfeito, com ensino sobre todos os aspectos da verdade.
D. Martyn Lloyd-Jones

Não é a liberdade que é cancelada pela soberania; é a


autonomia que não pode coexistir com a soberania.
R. C. SPROUL

3.1. Origens do Ccalvinismo


As raízes históricas do calvinismo como sistema teológico
remontam à Reforma Protestante do século 16. Com o
retorno aos pais da igreja, especialmente Agostinho, e o
retorno da leitura das Escrituras pelo povo, estabelecida a
partir da publicação de versões bíblicas nas línguas
vernáculas, muitos paradigmas e dogmas católicos
passaram a ser evidenciados e contestados com maior
precisão.
Em oposição aos principais ensinos da Igreja Católica,
o protestantismo sistematizou cinco lemas, sintetizados na
palavra latina solus. As divergências entre o protestantismo
e o catolicismo podem facilmente ser notados, como aponta
a tabela abaixo:
Tabela 1

Os cinco solas da Reforma em oposição ao Catolicismo Romano (fonte: Beeke, 2010, p. 23)

Em certo sentido, a Reforma, especialmente em seu


aspecto soteriológico, foi um retorno a Paulo e a um de seus
principais intérpretes, a saber, Agostinho. Wright (1998, p.
27) resume bem a ligação dos reformadores com a teologia
agostiniana em sua fase mais madura, da qual eles
assimilaram fortemente todos os pressupostos do
monergismo e das doutrinas da graça, quando afirma:
Os reformadores foram todos agostinianos. De fato,
Martinho Lutero começou sua carreira como um monge
agostiniano. John Wyclife (e seu discípulo Jan Hus),
Ulrich Zwínglio, Martinho Lutero e João Calvino, todos
negaram o livre-arbítrio em qualquer sentido que
poderia ser aceito pelos arminianos, considerando-o
como totalmente incompatível com a graça gratuita.
Vários autores destacam o fato de que, mesmo antes da
Reforma, a influência de Agostinho já se destacava entre
várias gerações de teólogos proeminentes, tais como
Anselmo, Gregório de Rimini, o arcebispo Bradwardine e
Johann von Stauptiz, o mentor de Lutero (veja Horton (2014,
p. 24). O encontro de Lutero com Agostinho ocorreu através
de suas palestras e da preparação de sua tese de doutorado
usando os Quatro livros de Sentenças de Pedro Lombardo
(1158 d.C). A leitura desses livros o conduziu a Agostinho e,
através deste, encontraria Paulo (Nichols, 2016). A extensão
de sua influência é tal que Paul Helm (2008, pp. 8-19),
fazendo amplas citações, defende a tese de que Agostinho,
Anselmo e Aquino eram predestinacionistas, tanto em seu
aspecto eletivo quanto reprovativo. Diante dessa influência
massiva, Calvino não ficaria de fora, e não é difícil perceber
que Agostinho teve uma enorme influência no pensamento
do reformador de Genebra.

3.2. Calvino e calvinismo


Os termos calvinismo e calvinista têm um amplo
referencial. O termo calvinista, às vezes, refere-se aos que
seguem os ensinos de João Calvino; e calvinismo, ao
sistema teológico; outras vezes, calvinismo se refere à
teologia reformada, que é um pouco mais ampla. Muitos
usam a expressão calvinismo para se referir somente aos
cinco pontos, outros usam para se referir ao monergismo
em contraste com o sinergismo.
O nome calvinismo é derivado de João Calvino (1509-
1564), que é considerado o maior representante da fé
reformada.[23] O termo em si foi atribuído aos seguidores de
Calvino pelos luteranos na controvérsia sobre o batismo e a
ceia. Por meio de seus ensinos em Genebra e a partir de
seus alunos oriundos de diversas partes da Europa, ele
exerceu influência teológica sobre milhares de pessoas nos
séculos 16 e 17. Além de seus estudos exegéticos e
teológicos muito rigorosos, ele se notabilizou pela
sistematização doutrinária que fez em sua célebre obra As
Institutas da Religião Cristã e também através de seus
comentários, sermões e liderança. Sua influência marcante
tem sido a razão porque os termos calvinismo e reformado
são quase equivalentes, apesar de que o próprio Calvino
preferia o termo reformado, pois ele se opunha à ideia de
que sua igreja recebesse o sufixo “ismo” seguindo o seu
nome.
O desejo de Calvino não pôde evitar a relação de sua
teologia com seu nome, pois o título “calvinista” foi adotado
em grande escala por seus seguidores. É necessário lembrar
que definir um esquema conceitual não é a mesma coisa
que definir uma palavra. Se for adotada essa distinção,
pode-se concordar facilmente com o que Horton (2014, p.
35), de maneira anacrônica, diz: “Calvino não foi o primeiro
calvinista”. A definição de um esquema conceitual exige
uma delineação das qualidades que são essenciais que
fazem daquilo que é. É neste sentido que Horton qualifica o
sentido em que o calvinismo precede Calvino: as chamadas
doutrinas da graça sistematizadas pelo Sínodo de Dort
(1618-1619), no que veio a ser rotulado de cinco pontos do
calvinismo. O fato é que esses conceitos, incluindo a
predestinação, não são dogmas exclusivos do calvinismo,
mas já existiam nos períodos antigo e medieval da igreja
cristã, nos escritos de muitos teólogos como mencionados
acima. Em outras palavras, se tomarmos a estrutura
conceitual sob discussão, seguiríamos Charles Spurgeon ao
afirmar que a doutrina calvinista:
Não se originou em Calvino; cremos que ela fluiu do
grande fundador de toda a verdade. Talvez o próprio
Calvino a derivou principalmente dos escritos de
Agostinho. E Agostinho obteve seus pontos de vista,
sem dúvida guiado pelo Espírito Santo, enquanto
estudava diligentemente os escritos do apóstolo Paulo,
e Paulo os recebeu do Espírito Santo e de Jesus Cristo, o
grande fundador da igreja cristã (apud SELPH; 2005, p.
58).
A designação “calvinismo” surgiu por volta de 1558 nas
controvérsias sobre a ceia, em que a visão reformada,
popularmente defendida por Calvino, cria que a ceia do
senhor transmitia graça ao participante (HORTON, 2014, p.
29). Aqueles que aceitaram tal ensino ficaram conhecidos
como calvinistas. Muitas pessoas, ao ouvirem o termo
calvinismo, associaram imediatamente com a doutrina da
predestinação, mas - ao contrário das explicações de alguns
sinergistas - a doutrina da predestinação não é o dogma
central do calvinismo, tampouco foi criada por ele. É certo
que o calvinismo crê no monergismo, a saber, que somente
Deus efetua a obra de salvação, diferente dos molinistas e
arminianos, conhecidos por suas abordagens sinergistas
(TIESSEN, 2000, p. 67).
É óbvio que não faltarão pessoas ao extremo de
querer dissociar Calvino do calvinismo. Críticas recentes
têm afirmado que o movimento que ficou conhecido como
calvinismo, tal como exposto em Dort, não representava a
posição soteriológica de Calvino. R. T. Kendall,[24] sucessor
de D. M. Lloyd-Jones na capela de Westminster, afirma que o
calvinismo foi além das ideias de Calvino e procura
demonstrar que ele não cria na expiação limitada (LIMA,
2004, p. 77).[25] O fato de Calvino não ter sistematizado os
cinco pontos não significa dizer que ele não lhes creditava
autenticidade bíblica.
As ideias de dupla imputação e de eficácia da
expiação estão presentes nos escritos de Calvino de
maneira contínua. Trata-se de uma imprecisão exigir
terminologias cunhadas no século 17 para os escritos de
Calvino, no século 16. De fato, Calvino não usou o termo
expiação particular, mas afirmou: “esta é a nossa
absolvição: que a culpa que nos mantinha sujeitos à pena
foi transferida para a cabeça do Filho de Deus” (apud LIMA
2004, p. 86).
Mas, ainda referindo-se à obra de Cristo, numa
passagem utilizada por teólogos que creem na expiação
universal (Tito 2.14), Calvino (apud LIMA 2004, p. 86)
explica melhor sua compreensão de expiação: “Eis aqui
outra fonte de exortação baseada no propósito ou efeito da
morte de Cristo. Ele se ofereceu em nosso lugar para que
fôssemos redimidos da escravidão do pecado, e adquiriu-
nos para si mesmo a fim de sermos sua possessão”.
Lima (2004, p. 97), em sua refutação à tese de
Kendall, conclui a questão nos seguintes termos:
Calvino não se preocupou em formular
expressamente uma doutrina sobre a extensão da
expiação, pelo motivo de não ser algo que estivesse em
evidência durante seus dias. Por essa razão, a fim de
evitar o anacronismo, não é possível dizer que Calvino
tenha defendido ou deixado de defender a doutrina da
expiação limitada tal qual é conhecida hoje. Mas o fato
é que Calvino fala sobre a extensão da expiação em
seus escritos, ainda que não para formular
expressamente a doutrina, pelo menos em
conformidade e em resposta às necessidades teológicas
e pastorais de sua época.
Devido a essas polêmicas e acusações ao calvinismo e
levando-se em conta a abrangência desse termo, faremos
uma tentativa de apresentar as várias posições sobre o que
venha a ser a constituição essencial do calvinismo. Nossa
limitação e a variedade das diversas variantes do
tratamento do que vem a ser sine qua non não nos
permitirão tratar exaustivamente, mas fazer somente um
breve apanhado a fim de situar o contexto desse debate.

3.3. Definindo o calvinismo


Warfield (apud MARTIN, 2001, p. 9) define calvinismo
como “a visão da majestade de Deus que permeia a vida e
a experiência como um todo”. Sua definição se concentra
na soberania de Deus, não apenas com relação à liberdade
humana, mas em sua extensão e aplicabilidade para todos
os aspectos da vida. Tal definição demonstra que calvinismo
não é só teoria, mas também prática, e tem relação com
uma cosmovisão centrada na majestade de Deus.
A visão de Kuyper (2002, pp. 20-23) se expande um
pouco mais, a ponto de reconhecer que existem vários
aspectos em que o calvinismo pode ser definido. Nesse
sentido, pode-se usar até mesmo a terminologia
“calvinismos”. Em primeiro lugar, existe o calvinismo como
um nome sectário. Em alguns países de predominância
católica, como Hungria e França, é um cognome
estigmatizante. Em segundo lugar, há o calvinismo como
identificação confessional, que também se tornou uma
terminologia pejorativa, uma vez que os seus detratores os
consideravam vítimas do dogmatismo e mais
especificamente do dogma da predestinação. Por isso, o
próprio Charles Hodge preferia ser chamado de agostiniano
ao invés de calvinista.
Em terceiro lugar, existe o calvinismo como
identificação denominacional. É o caso de algumas igrejas
em Gales, chamadas de Metodistas calvinistas e outras
igrejas na Inglaterra chamadas de batistas calvinistas, das
quais Charles Spurgeon fazia parte. Por fim, Kuyper fala de
um calvinismo científico,[26] ou seja, o calvinismo analisado
com o rigor do método científico em parâmetros históricos,
filosóficos ou políticos.
A abrangência e a complexidade da terminologia
“calvinismo” não devem impedir o pesquisador de
identificar os aspectos essenciais. Inserido no quarto tipo de
calvinismo descrito por Kuyper e indo além, está o
posicionamento de Hesselink (apud SANTOS, 2010, p. 89):
Em contraste com a busca do luteranismo por um
Deus gracioso, ou com o interesse do pietismo pelo
bem-estar da alma do indivíduo, ou com o alvo
wesleyano da santificação pessoal, o interesse último da
tradição reformada transcende o indivíduo e sua
salvação. Este interesse também vai além da igreja, o
corpo de Cristo. É uma preocupação com o
cumprimento da vontade de Deus também nos campos
mais amplos do estado, da cultura, da natureza e do
cosmos.
O que faz de alguém um calvinista? O que poderia
realmente ser chamado de sine qua non do calvinismo? Se
seguirmos Richard Muller em seu livro Post-Reformation
Reformed Dogmatics com suas cinco observações que
marcam a amplitude da tradição reformada que tem
impactado o Brasil nos últimos vinte anos, diríamos:
primeiro, Calvino não é um sine qua non do calvinismo;
segundo, TULIP seria ainda um sumário inadequado para a
doutrina reformada; terceiro, a predestinação não pode ser
central a ponto de definir o todo da doutrina reformada;
quarto, o calvinismo confessional possui uma diversidade de
opiniões que dificultaria encontrar sua substância e
formulação de doutrinas-chave; por último, o escolasticismo
reformado é um desenvolvimento da tradição reformada
magisterial e não uma ruptura deste.
Diante de tal apresentação, percebe-se que o
calvinismo não é uma temática fácil de ser abordada. Como
já foi expresso, é preciso se ater com mais detalhes e
acurácia sobre a essência do calvinismo. No entanto, vemos
tal atividade com um espectro mais amplo que poderíamos
resolver ou definir completamente aqui. Nas palavras de
Crisp, “Teologia reformada como geralmente é chamada
hoje não é a história completa” (2014, p. 3). De acordo com
Crisp, o calvinismo “ainda continua sendo tratado de forma
limitada, mesmo entre figuras da reavaliação histórico-
teológica recente” (2014, p. 236). O que faremos abaixo é
uma breve descrição do grande evento que deu origem à
sistematização dos cinco pontos do calvinismo (Sínodo de
Dort), seguida pelas tentativas de diversos autores
reformados de identificar o ponto ou pontos centrais no
calvinismo.

3.4. O Sínodo de Dort (1618-1619)


A influência de Calvino e de seus ensinos atingiu os
Países Baixos, tanto no Sul (atual Bélgica) quanto no Norte
(atual Holanda). Lá as igrejas de linha calvinista também
foram chamadas de igreja reformada, que passou a
predominar a partir de 1580; pode-se afirmar que a
República dos Sete Países Baixos (Norte) se tornou
reformada, e isso gerou certos conflitos de interesses
(MARRA, s/d, p. 7).
No início do século 17, mais especificamente em
1603, Tiago Armínio era pastor da Igreja Reformada em
Amsterdã e, a partir desta data, passou a ensinar teologia
na Universidade de Leiden; notabilizou-se como professor e
ganhou destaque e muita influência. Ele passou a defender
a eleição pela presciência; e, em contrapartida, Francisco
Gomaro, seu colega, falou da eleição pela soberana vontade
de Deus (MARRA, s/d, p. 8).
Em 1609, Armínio faleceu, mas a controvérsia não
cessou. Em 1610, os seus discípulos, que ficaram
conhecidos como arminianos, publicaram um documento
intitulado Remonstrância,[27] que consistia num pedido aos
líderes do governo para reformular as duas confissões
reformadas em vigência no país: a Confissão Belga e o
Catecismo de Heidelberg. Na Remonstrância, os arminianos
subscrevem cinco pontos: 1) Eleição baseada numa fé
prevista; 2) A universalidade da expiação de Cristo; 3) O
livre-arbítrio e a depravação parcial do homem; 4) A
resistência à graça; e 5) A possibilidade de apartar-se da
graça (BEEKE, 2010, p. 42).
Tanto os seguidores de Gomaro quanto os arminianos
tinham influência junto aos “Estados Gerais” dos Países
Baixos. Diante de tal impasse, um sínodo foi convocado
para resolver a questão; o local escolhido foi a cidade de
Dort. O relacionamento direto do Estado neste Sínodo é
descrito por Berkhof (1992, p. 137):
Esse sínodo foi convocado pelos Estados Gerais da
Holanda, no ano de 1618; foi realmente uma augusta
assembleia, constituída por 84 membros e 18 delegados
políticos.[28] Desses, quarenta e oito eram holandeses, e
os demais estrangeiros que representavam a Inglaterra,
a Escócia, o Palatinado, Hesse, Nassau, Bremem, Endem
e a Suíça. Os delegados da França e de Brandenburgo
não compareceram. Os arminianos não participaram
como membros, apenas como acusados. Houve cento e
quarenta e quatro sessões[29] e grande número de
conferências. Foi o grupo mais representativo que já se
reunira [...] Rejeitou os cinco artigos do Protesto
[Remonstrância] e adotou cinco cânones decididamente
calvinistas.
Havia interesses políticos no Sínodo de Dort. Segundo
González (1984, pp. 117, 118), os franceses não
compareceram por proibição do rei Luís XIII, que era
católico; e o propósito principal do Sínodo era condenar o
arminianismo a fim de acabar com disputas internas que
dividiam a Holanda. Ao final do Sínodo, o arminianismo
realmente foi condenado e obrigado a deixar a Igreja
Reformada (BETTENSON, 1998, p. 372). Nas palavras de
Muller, os remonstrantes ou arminianos foram considerados
pelos reformadores de caráter “heterodoxo, de fato
herético, enquanto o amiraldianismo, com a teoria do
universalismo hipotético universal, foi considerado por um
grande número de escritores reformados como útil, e para
outros, talvez a maioria, como inaceitável, mas não
herético” (MULLER, 2003, vol 4, p. 1370).
O Sínodo teve seu encerramento em 9 de maio de 1619,
e a suma da réplica calvinista aos cinco artigos da
Remonstrância foi elaborada no que ficou conhecido como
Cânones de Dort. Na verdade, esta não foi uma síntese do
pensamento calvinista, apenas demonstrou o que estava
subjacente ao calvinismo, à medida que se refutou a
Remonstrância. Como corretamente apontado por Piper
(2014, p. 12): “assim, os chamados cinco pontos não foram
escolhidos pelos calvinistas como um sumário de seu
ensino. Eles emergiram como uma resposta aos arminianos,
que escolheram estes cinco pontos para discordarem
deles”.
De fato, os cinco pontos do calvinismo colocavam uma
forte ênfase na soberania de Deus e no “ato central de Deus
em salvar pecadores” (PIPER, 2014, p. 14), demonstrando a
incapacidade do homem de chegar a Deus, a eleição
soberana de Deus, a expiação eficaz de Cristo, a graça
irresistível e a perseverança dos santos. São estes pontos
reunidos que deram origem ao conhecido acrônimo TULIP
que foi “desenvolvido no século 19 para ajudar os alunos a
se lembrarem dos então chamados ‘cinco pontos do
calvinismo’ conforme eles foram afirmados nos Cânones do
Sínodo de Dort, em 1618/1619” (OLSON, 2013, p. 65). Esta
direção também é seguida por Kenneth Stewart, o qual
atentou para o fato de que “não há evidência deste
acróstico sendo utilizado antes do século 20” (apud
HORTON, 2014, p. 32).
Os Cânones de Dort não foram meros artigos sumariados
dos cinco pontos do calvinismo. Pelo contrário, apresentou
declarações que representavam a fé reformada, mas que,
de maneira elaborada, refutava com atenção cada um dos
cinco pontos do arminianismo (BERKHOF, 2001, pp. 403,
407, 408, 692). Vale ressaltar que a ordem original dos
pontos do calvinismo nos Cânones de Dort era eleição
incondicional, expiação limitada, depravação total, chamada
eficaz ou graça irresistível e perseverança dos santos
(MARRA, s/d, pp. 17, 29, 35, 47). Ela foi reorganizada para
se adequar ao acrônimo TULIP.[30]

3.5. A essência do calvinismo - uma breve


discussão
Vimos até aqui que a teologia reformada não é
monolítica em vários aspectos, mas também não é
heterodoxa. A fim de considerar os pontos centrais da
doutrina calvinista, incluímos abaixo uma série de autores
com suas definições do calvinismo. Achar um sine qua non
pressupõe muito para nosso propósito aqui; por isso, não
tentaremos tal aventura. Esta busca é desafiadora, uma vez
que muitos calvinistas vão propor listas diferentes de
componentes essenciais do calvinismo, e os não calvinistas
geralmente cometem distorções ao apresentar o calvinismo.
No caso das caricaturas, temos o rabino John Duncan
(apud BEEKE 2010, p. 54), que segue a tendência de não
atribuir nenhum crédito a Calvino, uma vez que sua
doutrina é derivada de Lutero, Anselmo, Agostinho e
Atanásio. Porém, para os calvinistas, a contribuição de
Calvino vai muito além de uma síntese de teólogos
predecessores. Sua genialidade é demonstrada no seu
poder de sistematização; nos novos desenvolvimentos que
fez nos estudos da doutrina da filiação divina, da
humanidade e do tríplice ofício de Cristo; na sua liderança e
no preparo de outros obreiros a partir de Genebra para
grande parte da Europa; no seu método exegético, entre
outras notáveis qualidades do reformador de Genebra
(BEEKE, 2010, p. 54).
O oposto disso seriam os excessos de elogios ao sistema
calvinista. Valentijn Hepp (apud BEEKE, 2010, p. 55) afirmou
que “o calvinismo é o mais amplo e o mais profundo
cristianismo; ou, se você preferir, o mais puro cristianismo;
ou, como eu prefiro qualificá-lo, o mais consistente e,
igualmente, o mais harmonioso cristianismo”.
O calvinista alemão Herman Bauke (apud BEEKE 2010, p.
55) apresentou um tripé que aponta para a essência do
calvinismo: a predestinação, o pacto e a soberania de Deus.
Joel Beeke (2010, p. 57), entretanto, resume a essência do
calvinismo, à semelhança de B. B. Warfield, no
teocentrismo. E a expressão do teocentrismo envolve
basicamente os cinco pontos do calvinismo e os cinco solas
da Reforma Protestante. Essa mesma abordagem pode ser
vista em Sproul (2009, pp. 5-15), que aponta para os
fundamentos da teologia reformada, que ele praticamente
iguala ao calvinismo, pelo menos de maneira concreta na
soteriologia, e também utiliza os cinco Solas e os cinco
pontos do calvinismo, e coloca a ênfase na expressão
“centrada em Deus”.
Sproul vai além de Bauke quando ele parece colocar um
peso muito grande sobre a teologia da aliança ou do pacto,
chegando até mesmo ao ponto de equipará-la à teologia
reformada, afirmando que esta foi “apelidada de teologia da
aliança” (SPROUL, 2009, p. 84). Enquanto Sproul, ainda que
de forma um tanto cômica, inclui como essencial do
calvinismo a teologia da aliança ou do pacto, vendo assim
como um princípio fundante do calvinismo, Michael Horton
encara-a mais como uma aplicação de algum princípio
fundante quando diz que mesmo a teologia da aliança não é
um dogma central do calvinismo, mas serve mais como
“uma estrutura arquitetônica” (Horton, 2014, p. 38).
Horton parece querer evitar a ideia de que rejeitar
uma aplicação particular de um dos princípios fundamentais
(dogmas centrais) não desqualifica alguém como calvinista.
Horton (2014, p. 32) é enfático em afirmar que não existe
um dogma central e acredita ser maléfico alguns
reducionismos dentro do que vem a ser a essência do
calvinismo proposta por muitos. Um reducionismo consiste
em restringir o conceito de calvinismo mera e
exclusivamente aos cinco pontos do calvinismo (TULIP). É
evidente que ele (2014, p. 29) não está abrindo margem
para haver um calvinismo sem os cinco pontos, pois
também afirma: “Se o calvinismo é mais do que ‘cinco
pontos’ certamente não é menos”. Para ele, tal
reducionismo é motivado por “orgulho e isolamento
sectário” (HORTON, 2014, p. 32). Ele insere no calvinismo os
conceitos de catolicidade[31] e evangelicalismo. Quanto a
ser evangelical, Horton (2014, p. 34) explica que é “não no
sentido de um rótulo partidário ou movimento social, mas
como aqueles que creem, confessam e anunciam as boas-
novas da obra salvífica de Deus em Jesus Cristo”.
Augustus Nicodemus Lopes parece apresentar uma
definição um tanto oposta de Horton, pois - enquanto o
primeiro parece conectar a adoção de um conjunto de itens
para ser considerado reformado - este último evita apontar
um dogma central. Se, por um lado, Lopes (2013)
emparelha os conceitos de teologia reformada e calvinismo,
estendendo-o para além das fronteiras do presbiterianismo,
como diz:
Reformado é aquele que adere a uma das grandes
confissões reformadas produzidas logo após a Reforma
Protestante no século 16, aos cinco grandes pontos
dessa Reforma, que são Sola Scriptura, Sola gratia, Sola
fide, Solus Christus e Soli Deo gloria, e aos chamados
cinco pontos do calvinismo, resumidos no acrônimo
TULIP (Depravação total, eleição incondicional, expiação
limitada, graça irresistível e perseverança final). Muito
embora alguns não gostem do nome, quem adere a
tudo isso acima não deixa de ser um calvinista.
Por outro lado, alguém não seria um calvinista ou
reformado só por adotar os cinco pontos (TULIP). Enquanto
ele parece flexível no que diz respeito às confissões de fé do
século (uma ou outra precisa ser adotada), tal flexibilidade
não se apresenta na adoção dos cinco solas e dos cinco
pontos do calvinismo.
A expressão fintium non capax infiniti nunca impediu
os eruditos reformados de buscarem refinamento para os
diversos conceitos da epistemologia reformada. Devido à
acusação de que os cinco pontos (TULIP) apresentam Deus
como injusto, alguns calvinistas têm reformulado os
conceitos pertencentes ao TULIP. Sproul (2009, p. 101), por
exemplo, troca o termo “depravação total” por “corrupção
radical”, a fim de evitar que alguém pense nisto em termos
de ser tão mal quanto se possa ser; muda-se o foco para a
ideia de que o pecado penetra a raiz ou o cerne do ser
humano. Permutou “eleição incondicional” por “opção
soberana de Deus”, “expiação limitada” por “expiação
propositada de Cristo”, “graça irresistível” pelo “chamado
eficaz do Espírito”, “perseverança dos santos” por
“preservação dos santos”. Tudo isso para evitar
ambiguidades e dificuldades meramente por conta de um
acrônimo.
Michael Horton (2014, p. 109) prefere a expressão
“redenção particular” ao invés de “expiação limitada”. Este
termo não é encontrado em nenhuma confissão reformada,
apenas no acrônimo TULIP. Como a expiação é tanto
limitada em propósito quanto ilimitada em natureza, Horton
migrou para o termo “redenção particular”. Ele também
deixou de lado a expressão “graça irresistível” por causa de
uma caricatura criada pelos arminianos que apresentam o
Deus calvinista levando as pessoas para o céu contra sua
vontade. Para evitar tal conotação, ele prefere a expressão
“vocação eficaz” (HORTON, 2014, p. 142).
Piper (2014, p. 14) fala sobre outros acrônimos que
foram criados a fim de substituir a TULIP. Um deles é ROSES,
exceto pela vogal O que não deu para encaixar na tradução
para o português, preserva a ideia da flor (rosas ao invés de
tulipa), significando: depravação Radical, Graça vitoriosa
(Overcoming grace), eleição Soberana, vida Eterna e
redenção Singular. Esse acrônimo foi adaptado para o
molinismo por Kenneth Keathley (2010, p. 1). Já Roger
Nicole sugeriu o acrônimo de 6 pontos GOSPEL: graça, graça
obrigatória, graça soberana, graça que faz provisão, graça
eficaz, graça duradoura (lasting grace).
Joel Beeke (2010, p. 107) modifica “expiação limitada”
por “expiação definida”,[32] mas não vê problemas com os
termos, assumindo, até certo ponto, uma intercambialidade.
Ele refuta três outras visões sobre a expiação de Cristo:
redenção ilimitada e universal, redenção limitada e
universal, universalismo hipotético. Com efeito, a maior
parte do predestinacionismo reformado repousa sobre uma
base exegética e não filosófica.
O ponto em comum de todos eles é a visão consistente
da soberania de Deus, que é colocada em destaque por
todos os calvinistas aqui descritos, sendo que todos aceitam
os cinco pontos do calvinismo, apesar de tentarem
esclarecer alguns detalhes acerca do TULIP, muitas vezes
modificando a expressão original. Ademais, para a
discussão aqui levantada, é preciso destacar um último
aspecto do calvinismo: seria o calvinismo necessariamente
determinista, aventando a possibilidade de um
indeterminismo entre os calvinistas? Muitos teólogos,
mesmo não abraçando o sistema por inteiro, ainda assim
querem continuar nos círculos calvinistas, mesmo que se
autodenominem “calvinista moderado”, enquanto negam
pontos essenciais do sistema. Essa problemática tangencia
algumas relações de entendimento entre presciência divina,
liberdade e responsabilidade, e por último, determinismo.
Tratamos a seguir deste último ponto.

3.6. Liberdade humana e determinismo no sistema


calvinista
G. W. Hegel via a Reforma como um passo fundamental
na história do Geist na direção da liberdade humana: “A
essência da Reforma: o homem, por sua natureza, está
destinado a ser livre” (1956, p. 415). O contrário disso seria
o determinismo que crê na ideia de que Deus preordenou
todas as coisas (cf. Apêndice) e não somente isso, mas
também que “para cada evento dado, existem condições
tais que, no caso de elas ocorrerem, nada mais poderia ter
acontecido” (MORELAND, J. P.; CRAIG, W. L., 2005, p. 334). A
reforma à qual Hegel se refere não parece se relacionar com
João Calvino, que trata diretamente da ordenação divina de
todas as coisas e, a partir daí, entra no campo da
predestinação, explicando também sua posição sobre a
liberdade humana.
A doutrina da predestinação é vista por muitos como
sendo o dogma central da teologia reformada. No entanto,
não faltam críticas aos que veem a predestinação como um
dos dogmas centrais. Muller critica as tentativas de fazer da
predestinação um principium da teologia reformada,
afirmando ser um abuso da história, pois nenhuma fonte
primária cuidadosamente analisada mostra tal ideia
(MULLER, 2003, vol 1, p. 387). Enquanto tentam ampliar o
calvinismo para se encaixar também nele, mesmo tentando
banir o determinismo moderado por uma posição
intermediária, é bom lembrar aqui que tentar descrever o
desenvolvimento de dogmas centrais ou princípios
controladores, identificando a predestinação com os
reformados e a justificação com os luteranos, está
conectado mais com os esforços de escritores dos séculos
18 e 19 que os reformadores dos séculos 16 e 17 (MULLER,
2003, vol 1, p. 386).
Sobre o determinismo, Calvino (1985, p. 223) afirmou:
[...] Deus, que por sua sabedoria, decretou desde a
extrema eternidade [o] que haveria de fazer e, agora,
por Seu poder, executa [o] que decretou. Daí,
afirmamos serem de tal modo governados, por sua
providência não somente o céu e a terra, e as criaturas
inanimadas, mas até os desígnios e intenções dos
homens, que ao destinado escopo são dela
retilineamente conduzidos.
A abrangência do conceito de providência em Calvino é
tal que envolve todos os aspectos do Universo, até mesmo
as intenções dos homens, de maneira que uma vez Deus
tendo decretado, tal decreto se torna uma condição prévia a
todos os eventos que de antemão determina como cada
evento ocorrerá, de modo que não há a possibilidade de que
não venham a ocorrer. Essas palavras certamente fazem jus
ao conceito de determinismo.
Calvino (1985, p. 226) deixa claro que “a Escritura ensina
serem todas [as coisas] divinamente ordenadas”. Apesar
disso, o fato de Deus ter determinado todas as coisas não
implica dizer que o homem seja meramente um ventríloquo.
Calvino afirma sua crença em que a providência não anula a
responsabilidade humana nem que a providência divina nos
escusa da iniquidade (CALVINO, 1985, pp. 230-233).
Tendo em vista tais descrições feitas pelo reformador de
Genebra, percebe-se a similaridade de suas ideias com o
compatibilismo; apesar de que, ao tratar da liberdade
humana no segundo livro das Institutas, Calvino aponta
para a ideia de que o conceito de livre-arbítrio é inadequado
(1985, volume II, p. 23):
Dir-se-á [dotado] o homem de livre-arbítrio: não
porque tenha livre escolha do bem, igualmente; ao
contrário, porque age mal por vontade, não por [efeito
de] coação. Por certo que isto [soa] muito bem. Mas, a
que servia etiquetar com título tão pomposo coisa de
tão reduzida monta?
Por isso, Calvino prefere não utilizar o termo, a fim de
não ter que encadear uma série de asserções a guisa de
qualificar livre-arbítrio. Ele reconhece a validade do conceito
de livre-arbítrio esboçado por Agostinho e até afirma não
molestar ou criticar o uso que Agostinho fez do termo;
entretanto, para evitar ser mal compreendido, ele se
abstém do seu uso (CALVINO, 1985, volume II, p. 23). No
entanto, deve-se entender que Calvino não está negando a
responsabilidade humana, tampouco sua liberdade nos
moldes da descrição feita por Agostinho.
Como o conceito de graça, que em Lutero parece mais
relacionado com a justificação do pecador, passou a ser
identificado com a soberania de Deus, pela perspectiva da
doutrina da predestinação? Graça e ontologia não estão
separadas na Bíblia, como alguns podem pressupor.
Somente depois de lidar com os temas da doutrina da graça
é que Calvino se volta para considerar o mistério da
predestinação. Ele não tenta resolver a tensão entre o
determinismo e a responsabilidade humana. Ele não tece
extensos silogismos para comprovar o compatibilismo, mas
encerra tal temática no campo do mistério:
Impõe-se, porém, comedimento, para que não
arrastemos Deus a prestar[-nos] conta; ao contrário, os
secretos juízos de tal modo lh[os] reverenciemos que
sua mui justa vontade nos seja a causa de todas as
coisas. [...] Monstruoso é neste aspecto o desvario de
muitos que ousam, com petulância maior do que acerca
de atos de homens mortais, chamar a seu escrutínio as
obras de Deus e esquadrinhar seus secretos desígnios,
até mesmo apressado julgamento passar sobre [coisas]
desconhecidas. Pois, quê mais prepóstero que usarmos
desta moderação para com os nossos iguais, que
prefiramos suspender o julgamento a incorrermos na
pecha de temeridade, mas insolentemente insultarmos
aos absconsos juízos de Deus? (CALVINO, 1985, pp. 227,
228).
Apelar ao mistério não é uma fuga de Calvino sobre o
assunto, mas uma opção de calar exatamente em pontos
que as Escrituras silenciam. McGrath confirma a declaração
anterior quando diz que predestinação, para Calvino, “não é
produto de especulação humana, mas um mistério da
revelação divina” (MCGRATH, 2012, p. 200). Como disserta
Goldsworthy: “o princípio de ‘sola gratia” nos aponta para a
prioridade ontológica de Deus” (2006, p. 47). Nesse
sentido, estes dois princípios foram declarados no
escolasticismo reformado: principium cognoscendi (o
alicerce do conhecimento) e o pricipium essendi (o alicerce
do ser). A autorrevelação de Deus (Escritura) e o próprio
Deus são a base autoexistente de toda existência finita
(MULLER, 2003, p. 389). Noutras palavras, a doutrina da
predestinação não pode ser dissociada da doutrina de Deus,
pois ao Pai pertence a ontologia da graça (Vanhoozer, 2017,
p. 62). Deus precisa ser absolutamente livre para agir com
graça, nada pode compeli-lo ou obrigá-lo a tal, mas mesmo
assim existem coisas que as Escrituras não nos revelam,
simplesmente calam.
Michael Horton (2014, pp. 80, 81) salienta o fato de
que os teólogos reformados são deterministas, uma vez que
sua presciência implica em preordenação, e preordenação é
um tipo de determinação. Dessa maneira, Horton estende o
conceito de determinismo a todos os calvinistas,[33] com a
ressalva de que - em certos casos - sua determinação
envolve ação direta e outras, permissão (quando permite
que as criaturas pequem). Entretanto, alguns calvinistas vão
um pouco além das demarcações do conceito de
determinismo proposto por Horton. É o caso de Helm (2008,
p. 47), o qual afirma que Deus não é meramente passivo em
sua permissão, ou seja, “ele também deseja o que ele
permite. O que ele permite, ele decreta”.
Calvino via a “predestinação meramente como um
exemplo a mais do mistério geral da existência humana, na
qual alguns são inexplicavelmente favorecidos com dons
materiais e intelectuais que são negados a outros”
(McGrath, 2012, p. 201). Da mesma forma, Helm (2008, p.
48) afirma que, no final das contas, a predestinação é
misteriosa, inefável e incompreensível, mas isso não
significa que a predestinação é logicamente
incompreensível. Isso implica dizer que os cristãos devem
“seguir não apenas tudo o que a Bíblia ensina sobre a
matéria, mas também somente o que a Bíblia ensina”
(HELM, 2008, p. 49).
Sua forte inclinação predestinacionista não vai além
de Romanos 9 para explicar a eleição de indivíduos,
colocando isso na base da soberana vontade de Deus e não
numa suposta liberdade libertária. Em Romanos 9, Paulo
usará a predestinação para explicar o fato de que Deus não
falhou com suas promessas; pelo contrário, ele é fiel. Por
isso, Helm é contra qualquer tentativa teológica de clarificar
o mistério ao invés de mantê-lo. Qualquer compatibilização
feita à guisa de resolver a tensão elimina a responsabilidade
humana ou compromete o controle soberano de Deus.
Quando falamos sobre Deus e o seu relacionamento
com os seres humanos, cedo ou tarde a questão se o
homem é livre ou não entra na discussão. Falar sobre
predestinação conduzirá o pensamento à questão do
determinismo divino. Mas como falar de determinismo
divino sem lidar com a questão da liberdade do homem?
Como então definir liberdade? Seria a essência da liberdade
o poder absoluto de fazer o contrário? Sobre um conceito de
liberdade, no filme “Eu, Robô” (2004), o detetive Spooner
expressa o que entende por liberdade ao robô Sonny: “Acho
que você vai ter de descobrir seu caminho como todos nós,
Sonny... Isso é o que significa ser livre”.
As definições de liberdade entre teólogos reformados
certamente não caminham na direção dada pelo detetive do
filme. Timothy Keller, por exemplo, esclarece a visão
apresentada a Sonny. Liberdade seria “a inexistência de um
propósito supremo para o qual fomos criados. Se ele
existisse, seríamos obrigados a adotá-lo e cumpri-lo, o que
seria equivalente a uma limitação. A genuína liberdade é a
liberdade de criar seu próprio sentido e propósito” (KELLER,
2015, p. 62). Noutras palavras, se Deus impusesse sua
vontade sobre o homem, ele estaria violando seu livre-
arbítrio.
A liberdade de criar seu próprio destino e propósito não
parece ter grande serventia para o pecador sofrendo no
inferno. Sproul menciona isso quando fala que “o pecador
no inferno pode estar perguntando: ‘Deus, se o senhor
realmente me amou, por que não me coagiu a crer? Eu
preferiria ter meu livre-arbítrio violentado do que estar aqui
neste eterno lugar de tormento” (2009, p. 27). O senso
comum é que ser livre é não possuir nenhuma limitação ou
restrição. A verdade é que liberdade “não significa ausência
de limitações e restrições, mas a descoberta das limitações
e restrições certas, aquelas que se encaixam em nossa
natureza e nos libertam” (KELLER, 2015, p. 76).
É possível que a ideia de livre-arbítrio esteja entrelaçada com a ideia de

perfeição. É como se perfeição e limitação fossem conceitos autocontraditórios.

A imagem criada é que ser dotado de limitações é, de certo modo, ser


imperfeito. Usando o contraste finito e infinito, nesse caso ser finito seria por

definição ser limitado, mas se o spectrum comparativo for somente finitude,

limite e perfeição são condições conciliáveis. Naturalmente essa é uma questão

que deve ser direcionada ao estado de Adão antes da Queda; no entanto, seja

qual for a resposta, a pressuposição segue na linha da


finitude humana que entende que Adão era perfeito, mas,
como um ser finito, era limitado em diversos aspectos.
Depois da Queda, visivelmente suas limitações foram
ampliadas, e certamente, seu exercício da vontade,
escravizado pelo pecado. Whitefield é severo quando diz:
“eu sei que Cristo é tudo em todos. O homem é nada; ele
tem livre-arbítrio para ir ao inferno, mas não para ir ao céu,
enquanto Deus não opera nele o querer e o fazer segundo a
sua boa vontade” (apud PIPER, 2014, p. 114).
Muller rejeita a ideia de que o calvinismo é determinista,
enquanto este se refere ao determinismo filosófico dos
séculos 18 e 19, pois para ele esse tipo de determinismo é
ligado aos reformados posteriores e não aos reformados
ortodoxos. Ele afirma que “a teologia reformada mais antiga
dificilmente foi construída com base em metafísica e de
modo algum pode ser classificada como determinista”
(MULLER, 2009). No entanto, o próprio Muller reconhece que
Calvino ensinou a predestinação, alternando às vezes entre
infra e supralapsarianismo (MULLER, 2003, p. 391), o que
está relacionado com determinismo de qualquer forma.
Como já mencionado, Muller faz parte de um grupo de
historiadores e filósofos que buscam achar um meio termo
entre determinismo e indeterminismo, tentando professar a
liberdade libertária (cf. Apêndice) como apontado por
Terrance Tiessen (2004, p. 19).
Neste livro, nós assumimos a definição de determinismo
como a ideia de que todos os eventos e escolhas humanas
são causados e necessariamente determinados por
condições anteriores a estas escolhas. É importante não
confundir a definição acima com o determinismo radical que
pensa que as escolhas humanas são incompatíveis com
livre-arbítrio e responsabilidade. Compatibilismo é a ideia de
que determinismo é compatível com a liberdade e a
responsabilidade humanas (CHRISTENSEN, 2016, p. 14).

Figura 1 Teoria Compatibilista

Uma ação é livre à medida que tenha condições


antecedentes que, de forma decisiva, inclinem a vontade do
agente de um modo ou de outro sem constrangimento.
Nesse caso, agir sem constrangimento é agir de acordo com
aquilo que o agente deseja (FEINBERG, 2001, p. 397). Na
visão compatibilista, Deus determina as escolhas humanas,
mas ainda assim cada pessoa livremente faz suas escolhas.
Como é possível haver duas explicações separadas,
determinação divina e escolhas humanas, para o mesmo
ato? Como pode Faraó endurecer seu próprio coração e, ao
mesmo tempo, ainda assim ter sido Deus quem o
endureceu?
Scott Christensen, no seu livro What About Free Will:
Reconciling Our Choices With God’s Sovereighty (Sobre o
livre-arbítrio: reconciliando nossas escolhas com a soberania
de Deus), traz um capítulo sobre o mapa para o
libertarianismo. O compatibilista concorda com o
libertariano sobre a necessidade de se manter a liberdade
humana, mas eles diferem fundamentalmente sobre que
tipo de liberdade é necessário para que haja
responsabilidade. O autor apresenta várias definições
importantes para o entendimento tanto do determinismo
moderado quando do determinismo radical. O determinismo
radical é tão incompatibilista quanto o libertarianismo.
Christensen apresenta uma figura que esclarece bastante as
várias relações das teorias do livre-arbítrio que serão
reproduzidas aqui.

Figura 2 Teorias incompatibilista e compatibilista do livre-arbítrio (Fonte:


Christensen, 2016, p. 14)

Na figura acima, percebem-se as diversas relações entre


as posições; o compatibilismo, no entanto, combina o
determinismo moderado com liberdade e responsabilidade.
Por um lado, tanto o determinismo radical como o moderado
são teorias deterministas. Por outro, o compatibilista tanto
é determinista quanto abraça a liberdade e
responsabilidade humana. Sendo assim, seria o calvinismo
realmente determinista ou não?
A resposta a essa pergunta não pode ser simplista.
Existem calvinistas que são deterministas radicais, e
recentemente surgiu um grupo de pessoas que não abrem
mão de serem chamadas calvinistas, mas negam ou tentam
negar de forma geral que o calvinismo é determinista.
Considerando o calvinismo compatibilista, Manata (2011, p.
8) relaciona não apenas toda a tradição reformada clássica,
mas teólogos calvinistas da atualidade como John Feinberg,
D. A. Carson, John Frame, entre outros que subscrevem ao
fato de que o calvinismo é determinista compatibilista (cf.
Apêndice).
Carson (1994, p. 207) demonstra que o
posicionamento dos libertarianos (cf. Apêndice), cuja ideia
básica é que as pessoas podem sempre escolher o
contrário, a despeito de qualquer influência anterior tentar
dirigir suas escolhas é incoerente. Ele explica:
Mas por que o poder da escolha contrária deveria ser
tomado como a essência do livre-arbítrio? Não teríamos
que deduzir com base nisto que Deus em si mesmo não
é livre porque o seu caráter santo exclui a possibilidade
dele pecar? Ou o pecado não seria pecado se Deus o
cometesse?
Consideremos a admoestação de Paulo em 1Coríntios
4.5: “Portanto, nada julgueis antes do tempo, até que venha
o Senhor, o qual não somente trará à plena luz as coisas
ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios
dos corações; e, então, cada um receberá o seu louvor da
parte de Deus”. A recompensa ou a punição nesse texto
está diretamente conectada com a motivação do coração de
cada um e não com o poder de fazer o contrário ou com a
habilidade moral. A incapacidade de alguém de agir
contrariamente à sua natureza pecaminosa não o livra da
culpa, pois ele também age intencionalmente. Por exemplo,
suponhamos que Pedro deve 150 reais e não tem condições
de pagar; só porque ele não tem a condição de pagar, não o
isenta da obrigação de fazê-lo.
O compatibilismo tem sido chamado por alguns de
fatalismo, o qual é uma forma extrema de determinismo
que defende que os eventos futuros são fixos de tal forma
que as escolhas humanas são irrelevantes (CHRISTENSEN,
2016, p. 52). Carson (2007, p. 54) é compatibilista e possui
uma vasta argumentação em que evidencia que o
compatibilismo não é fatalista:
A linha central da tradição cristã não sacrifica a
completa soberania de Deus, nem reduz a
responsabilidade daqueles que levam a sua imagem. No
reino da teologia filosófica, esta posição às vezes é
chamada de compatibilismo. Isto simplesmente significa
que a soberania incondicional de Deus e a
responsabilidade dos seres humanos são mutuamente
compatíveis. Esse conceito afirma apenas que podemos
ir longe o bastante nas evidências e nos argumentos
para mostrar como eles não são necessariamente
incompatíveis, e que é, portanto, inteiramente razoável
pensar que são compatíveis se houver boas evidências
para tanto.
Horton (2014, p. 64) também crê no determinismo
compatibilista e afirma que nem na glória entenderemos a
tensão entre o determinismo e a liberdade:

A teologia confessional reformada é obrigada a


manter juntas duas teses aparentemente conflitantes:
Deus decretou tudo o que vai acontecer, embora isso,
de modo algum, infrinja na liberdade de suas criaturas.
Seria mais fácil, é claro, para intelectos finitos resolver
esse dilema na direção ou da autonomia humana ou do
fatalismo, mas a Bíblia não dá essas opções. É um
paradoxo para a mente humana, e assim permanecerá
até mesmo na glória.
Manata (2011, p. 20) também defende que o calvinista é
determinista e toma tal declaração como pressuposta nas
doutrinas reformadas dos decretos, providência e
onisciência. Ele também apresenta o fato de que alguns
teólogos que se intitulam reformados são libertaristas (ou
algo próximo o suficiente); dentre esses, podem ser
nomeados: Andreas Beck, Richard Muller, Willem van Asselt
e Antonie Vos (MANATA, 2011, pp. 48, 50). Em uma palestra
na Trinity Evangelical Divinity School, ele expôs essa
posição, e suas considerações foram bem recebidas por
alguns teólogos calvinistas. A ideia de Muller é baseada nos
escritos de Duns Scoto e é considerada um meio termo
entre determinismo e indeterminismo, nomeada de
“contingência sincrônica”.
Um agente livre tem poder da vontade de desejar o
contrário no exato momento que ele está fazendo uma
escolha particular? Quando uma pessoa está fazendo
livremente alguma escolha em um tempo X, essa pessoa
teria o poder de restringir assim essa escolha no mesmo
tempo X? Como Suarez (1994, p. 319-320) coloca: “Este
poder duplo existe uma vez por todas em um mesmo
instante, embora não a fim de exercer os dois atos juntos,
mas a fim de exercê-los separadamente, isto é, a fim de
exercer um ou o outro, dependendo da escolha da
faculdade”. Isso é o que seria a definição de “contingência
sincrônica”, nas palavras de um dos principais proponentes
dessa tese: “fatos tais como o conhecimento presente de
Deus que eu ajo em um tempo X, ou o conhecimento eterno
de Deus que eu ajo no tempo X, ou mesmo a presciência de
Deus que eu ajo no tempo X, não deve retirar de mim o
poder de fazer o contrário” (ROTA, 2015, p. 19)
A posição acima é a de Richard Muller, que a advoga em
sua tentativa de reconciliar presciência com liberdade
humana. Quanto a isso, Manata (2011, p. 53-55) faz uma
réplica sintetizada nas seguintes asserções: 1) Não se pode
confundir teologia histórica com teologia normativa, ou seja,
aquilo que foi crido por teólogos renomados com aquilo que
realmente deve ser crido à luz das Escrituras; 2) A ideia
esposada por Muller de que a teologia reformada nunca foi
determinista é vaga e ambígua (cf. a relação do calvinismo
com o determinismo acima); 3) A negação do determinismo
por Muller se dá por uma falta de entendimento adequado
do termo à luz das doutrinas do decreto divino, onisciência
e onipotência.
Muller entendeu que o determinismo implica em
ausência de contingências, mas a própria Confissão de Fé
de Westminster assente à crença em contingências, mesmo
sendo determinista (MANATA, 2011, p. 55). Tal ideia de
contingência sincrônica não acrescenta nada à teologia
reformada. Manata (2011) escreveu sua obra no afã de
demonstrar que o determinismo não é um sistema filosófico
inviável, conforme criticam os opositores do calvinismo, mas
que possuem fundamentação filosófica e teológica para ser
tomado como um sistema determinista.
PARTE III O TRONO VULNERÁVEL
SOBERANIA PROBLEMÁTICA
Temos observado até o presente momento que Deus é
soberano. Nos manuais de teologia sistemática e em
declarações confessionais, essa verdade tem sido expressa
e assentida por muitos. Declara-se a soberania de Deus em
um exame doutrinário e até mesmo em um concílio de
ordenação; em alguns casos, meramente para se conformar
a uma declaração de fé calvinista. Porém, no íntimo, muitos
“confessores” negam no recôndito de suas mentes o que
com a boca afirmaram. Assumir a soberania de Deus (e suas
implicações) é algo extremamente difícil e problemático.
Um dos motivos é a dificuldade em aceitar a realidade
da presença do mal no mundo. Por causa disso, alguns
tenderam ao maniqueísmo numa tentativa de resolver o
problema do mal jogando a tensão para a eternidade;
outros tentam explicar o mal como fazendo parte da
determinação de Deus de uma forma radical, chegando ao
ponto de dizer que Deus é o autor do mal, para se
conformarem a uma teia lógica de racionalismo. Outros, por
causa do mal, negaram a soberania divina, e alguns
concluíram negando o próprio Deus; outros, no entanto,
mantiveram a tensão reconhecendo a soberania divina e a
responsabilidade do homem. É debaixo desta última
perspectiva que iremos desenvolver este capítulo,
explicando paulatinamente qual é a “problemática” da
soberania divina e dando indicações para uma possível
resolução.
Faremos isso estudando três porções das Escrituras:
Gênesis 50 (a providência divina na preservação de José e
seus irmãos), Salmo 88 (quando Deus se faz ausente – pelo
menos aparentemente[34]) e uma breve exposição de
excertos de Lamentações (onde identificaremos o fenômeno
da soberania problemática).
4 GÊNESIS 50.15-21:
soberania problemática na vida de José

Ele [Deus] não precisava da túnica de José para


realizar a obra. Nosso jogo de “O que aconteceria?” é
exatamente isto: um jogo. Ele serve para se fazer uma
especulação interessante, mas só para isso. Deus não
faz tais jogos com a história da humanidade. Seu
governo providencial é uma obra séria. O que
permanece é que os eventos da vida de José
aconteceram como foram escritos. Eles aconteceram,
no final, por causa da intencionalidade perfeita de Deus.
R. C. SPROUL, R.C

Sê forte, pois; pelejemos varonilmente pelo nosso


povo e pelas cidades de nosso Deus; e faça o Senhor o
que bem lhe parecer.
1Crônicas 19.13

A igreja do século 21, e neste caso identificamos por


igreja o aspecto meramente institucional, está formando
uma geração de pessoas decepcionadas com Deus. Em
parte, isso ocorre porque foram acostumadas a lidar apenas
com o lado positivo da fé cristã, numa esfera triunfalista,
com resquícios da Confissão Positiva, de Keneth Hagin. Mas,
quando chega o dia ruim em que inesperadamente as
coisas não dão certo ou quando ocorre uma tragédia
familiar, então, muitos sucumbem e abandonam as
congregações. Este desencanto leva a um cristianismo
dessacralizado, vivenciado no cotidiano nu e cru da
existência pura e simples da caminhada pela vida, sem a
burocracia eclesiástica formal.
Milhares de desigrejados surgem com grande força,
pensando eles que a forma como Deus se relaciona com sua
criação é sempre simétrica. No entanto, se a relação de
Deus com seu povo fosse simétrica, o salmista não
precisaria escrever que um dia na casa de Deus vale mais
que mil. As relações de Deus com a criação são
assimétricas, isto é, ele não se relaciona sempre da mesma
forma e com a mesma intensidade com suas criaturas. O
seu envolvimento com a comunidade dos santos é muito
mais intenso e profundo que sua relação com o indivíduo.
Não queremos transmitir uma mensagem pessimista,
o que alguns chamam de teologia da miséria. Apenas
fundamentamos uma visão em que o cristão pode
manifestar fé em Deus, seja passando por vitórias ou por
derrotas. Diante das vitórias, a fé é necessária para evitar a
soberba, para afastar de nós a sutil tentação de atribuir o
mérito e a garantia do poder e do triunfo da igreja a nós
mesmos. Quando isso ocorre, o indivíduo pensa estar
sentado no trono eclesiástico, mas na verdade tal atitude
somente revela que ele está alheio e à deriva da verdadeira
liberdade cristã.
Precisamos de mais fé para não ficarmos
decepcionados com Deus quando não alcançamos aquilo
que pedimos com tanta insistência do que quando somos
privados de algo pelo qual oramos com bastante vigor para
não perder, quando o diagnóstico que paira sobre nós é o
pior possível ou até mesmo quando somos surpreendidos
pela morte repentina da pessoa a quem mais amamos.
Como dizer em horas tão difíceis que Deus é soberano?
Você consegue captar a dimensão da problemática com a
soberania de Deus diante dessas mazelas? Não que ela seja
problemática para Deus, pois ser soberano é inerente a ele.
É problemática para nós, seres finitos corrompidos pelo
pecado, encarando a sensação de que somos autônomos e
de que os céus estão calados diante da nossa aflição. De
fato, em geral, as pessoas não estão prontas para
experimentar este lado negativo da fé, o lado de
experimentar o sofrimento, e muitas vezes um sofrimento
terrível e excruciante, prolongado, com requintes de tortura.
Isso ocorre porque a igreja tem sido coberta com um
manto de otimismo, cuja base pode ser expressa por uma
frase muito comum na fachada de certas igrejas: “pare de
sofrer”. Podemos dizer que a Bíblia carrega tal
ensinamento? É lógico que não. A dependência e o cativeiro
nas mãos de um líder “carismático” fazem com que muitos
desprezem os princípios mais básicos da fé cristã,
encontrados nas páginas das Escrituras. Dessa forma,
alguém que começou bem empolgado subitamente
desaparece com raiva de Deus, porque sua mãe não foi
curada de um câncer, pela morte de uma sobrinha, pela
separação conjugal, somente para citar alguns exemplos
aleatórios. É aí que você deve entender que lamentação
precisa ser parte do credo e da confissão da igreja.
Nestas horas sombrias, como fazer coro a Habacuque
3.17 e 18, quando diz: “Ainda que a figueira não floresça,
nem haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os
campos não produzam mantimento; as ovelhas sejam
arrebatadas do aprisco, e nos currais não haja gado,
todavia, eu me alegro no Senhor, exulto no Deus da minha
salvação”? É preciso disposição para recorrer à Palavra de
Deus e nela encontrar direcionamento e esperança.
Um texto que pode nos ajudar diante deste grande
dilema da soberania problemática é Gênesis 45.5-8. Esse
texto faz parte de um conjunto com outros onze textos que
servem como fundamento em relação à tensão entre a
responsabilidade humana e a soberania de Deus (Lv 20.7ss;
2Sm 24 [cf. 1Cr 21.1-7]; 1Rs 8.57-60; 11.11-13, 29-39 [cf.
2Cr 10.15; 11.4]; Is 10.5ss; Jr 29.10-14; 52.3 [cf. 2Rs
24.19ss]; Jl 2.32; Ag 1.12-14; Sl 105.24ss). Não trataremos
de todos esses textos, mas mesmo uma análise simples
mostrará que a tensão soberania x responsabilidade não
pode ser evitada. Algumas dessas passagens mostram
inegavelmente o homem como responsável e Deus como
contingente. Essas mesmas passagens, com o mesmo olhar
simples apresentam Deus como absolutamente soberano e
que nenhuma contingência pode ser apontada a ele. Nossa
intenção aqui é mostrar que essas duas verdades devem
ser mantidas e convictamente abraçadas, mesmo que
nossos esforços para entender tenham limites.
Diferentemente do deísmo que desconecta o mundo
do seu criador, essas passagens mostram o Criador de
todas coisas atuando soberanamente no mundo por ele
criado. A solução proposta pelo dualismo cósmico não
funciona com esses versículos, pois tenta dividir o controle
soberano do mundo entre Deus e outros. Essas passagens
não serviriam para apoiar o determinismo radical, que é
incompatibilista, acreditando que o controle de Deus é tão
rígido e impessoal que a responsabilidade humana é
destruída ou desnecessária. Tampouco os libertarianos
indeterministas podem ignorar essas passagens, seja
negando a soberania de Deus para defender a soberania do
homem ou procurando tentativas racionalistas fora do texto
e estranhas ao mundo descrito pelo texto. Por fim, a solução
panteísta de identificar Deus com o mundo torna-se fútil
diante da Bíblia (Carson, 2004).

Soberania do homem e livre-arbítrio de Deus: o


“soberano” José e o soberano Deus

Ao meditarmos nas Escrituras, é notório que desde a


primeira proibição no Éden as ordens a indivíduos como Noé
e Abraão, até mesmo o último detalhe de Apocalipse, a
responsabilidade do homem é pressuposta. Aqueles que
enfatizam a responsabilidade humana logo fazem uma
pergunta sintomática aos irmãos inclinados ao monergismo:
Como o homem pode ser responsável e livre se Deus já
determinou todas as coisas?
Nossa atitude com relação aos dados bíblicos é essencial,
a fim de compreendermos que o monergismo não é um
conceito meramente soteriológico, mas também
epistemológico. Nossa mente é limitada e insuficiente para
captar toda a realidade, e isso ainda é piorado por meio da
presença do pecado. Quem deseja ser suficiente para
resolver a pergunta corre o risco de simplificar demais a
realidade, tornando-a banal. Aqueles, no entanto, que
negam a existência da soberania de Deus na Bíblia por
causa de uma das tentativas mencionadas acima caem em
gravíssimos malabarismos hermenêuticos; outros, contudo,
indispostos à vida intelectual, negam a resolução em nome
de um fideísmo da soberania. Mas não soberania da Palavra
e sim da “humildade do irmão”, que, soberano, não precisa
de ferramenta alguma para interpretar o texto bíblico.[35]
Veremos como José veementemente nega-se a estar no
lugar de Deus, mesmo sendo soberano como vice-rei do
Egito.

Sonhos soberanos: o plano por trás do cotidiano

Todos os nossos leitores conhecem bem a história de


José. Grande parte de nós costumamos chorar todas as
vezes que chegamos ao final de Gênesis. No entanto, para
situá-los no contexto, contaremos de forma breve como
tudo começou. Nesta breve história, veremos como
responsabilidade humana aparece lado a lado com
soberania divina vistos no mesmíssimo evento, ou seja, um
evento e duas intenções.
Aos dezessete anos, José era o filho preferido de seu
pai. Recebeu de presente uma túnica talar de mangas. Era
uma túnica de pessoas ricas, produzida com tecido de
altíssima qualidade, que recobria as mãos e os pés.[36] Isso
provocou a ira de seus irmãos. Não bastasse a túnica, José
ainda resolveu revelar seus sonhos aos irmãos. Num deles,
os feixes dos irmãos se inclinavam diante de seu feixe;
noutro, os astros se inclinavam diante dele. Isso causou
ciúmes e discórdia (Gn 37.11).
Certo dia, José foi ao encontro de seus irmãos, vestido
com a sua túnica talar de mangas. Foi identificado como o
sonhador; e, movidos de inveja, seus irmãos decidiram
matá-lo. Resolvem, por fim, vendê-lo a uma caravana de
ismaelitas e ficam com sua túnica. Apresentam-na
manchada de sangue ao pai, a fim de que este acreditasse
que José havia sido assassinado por uma fera.
Seus irmãos o afastaram para longe de si e pensaram
ter destruído seus sonhos extravagantes e sua túnica: os
dois elementos que perturbaram a consciência dos irmãos.
José foi vendido a Potifar, foi ultrajado e caluniado e
lançado na masmorra egípcia. Mas Alguém estava
orquestrando tudo isso em seus mínimos detalhes. Da
perspectiva humana, José tinha tudo para ser amargurado e
cheio de ódio. Eis aqui uma prova de que o homem não é
produto do meio. Essa máxima é mentirosa! José
permaneceu fiel a seu Deus em meio às condições mais
adversas possíveis. Ele não negou o Senhor nem mesmo na
prisão. O Deus soberano estava por trás de cada detalhe na
vida de José. Seus feitos, seu testemunho, suas
interpretações vinham de Deus. Eram fruto da manifestação
do Deus que se revela aos homens. Era fruto do amor
daquele que se identificou com José e planejou os detalhes
de sua trajetória, fazendo-o não em um “conto de fadas
deísta”, mas por meio de sua intervenção na história, sendo
com José e revelando a ele sua vontade (Gn 39.21; 40.8).
Mesmo em meio à responsabilidade do homem, a
soberania de Deus é manifesta. É Deus quem dirige a
história de José e, apesar do caos aparente, em certos
momentos da narrativa, a presença divina na vida dele e
sua ação iluminadora, dando-lhe sabedoria e revelando-lhe
sonhos, são determinantes para o sucesso de José.[37]
José se torna governador do Egito, revela-se a seus
irmãos, traz sua família para o Egito e os conduz a lugares
férteis, presenteia-os e lhes dá bonança. Toda esta
harmonia tinha em Jacó um elemento estabilizador. Depois
da morte de Jacó, os irmãos temeram que José finalmente
executasse sua vingança. Então, arquitetam um plano: “já
que a possibilidade de José nos matar é grande, anunciemos
a ele que nosso pai antes de morrer clamou que ele nos
perdoasse”.
Diante disso, José chorou. Não é a primeira vez que
vemos José chorando na narrativa. As reminiscências do
passado - atreladas à consciência de que, diante de todos
os desdobramentos históricos, Deus estava agindo para o
seu bem - fazem José prorromper em choro. Uma
inteligência descomunal, que poderia exercer sua suposta
liberdade para fazer justiça com as próprias mãos, não se
dissocia das manifestações de afeições como o pranto e o
choro.
José estava munido de grandes riquezas e poder, com
túnicas e vestimentas muito mais portentosas que aquela
primeira túnica talar de mangas; os seus sonhos foram
realizados de maneira cabal, de maneira que todos os seus
irmãos se prostraram diante dele, no período em que a
identidade de José estava oculta, e agora, após a morte de
seu pai. Ali estava José, ciente de todos esses detalhes,
chorando efusivamente.
Irmãos que antes agiam livremente para se livrar
daquele que os incomodava agora estavam diante dele,
tendo que se submeter ao seu domínio, pedindo por
clemência, entregando-se por escravos.
Nas mãos de José está o poder da morte e da vida de
seus irmãos!
Somente um ato soberano poderia encaixar cada um
dos detalhes dessa história com suas promessas e com os
sonhos de José.
Diante da apreensão e da angústia de seus irmãos,
José os conforta por meio da expressão “Não temais” e
aponta para o senso da presença divina que perpassa todos
os detalhes, inclusive os forenses. Dessa maneira, José não
se colocaria no lugar de Deus (Gênesis 50.19).
O trono do Universo pertence a Deus. Ele é quem
dirige a história, quem exerce juízo, quem levanta reis,
quem abate e levanta homens. Não cabe ao homem
arbitrariamente exercer um juízo baseado em circunstâncias
temporais. Deus é o Justo Juiz!

Soberania de Deus e o livre-arbítrio de Deus

José não usurpou o trono de Deus. José reconheceu a


soberania de Deus em sua vida. Ele sofreu malefícios da
mulher de Potifar, caiu no esquecimento do copeiro do rei,
mas a primeira referência de maldade cometida contra a
sua pessoa foi o atentado de seus irmãos. Aqui está o
soberano José, investido de autoridade por Faraó, homem
que tinha a liderança do Egito, homem que enriqueceu
ainda mais o povo. Tinha poder, riquezas, prestígio, posição,
uma guarda à sua disposição, os quais poderiam prender e
matar os seus irmãos diante de uma simples ordem sua.
Suas palavras e suas escolhas não escapam a um fato
absoluto: Deus é absolutamente livre no exercício de seu
poder e seu plano. “José encontrou na boa intenção de
Yahweh motivo suficiente para benevolência imitativa”
(CARSON, 2004, p. 13).
Foi isso que o fez recuar de se vingar. Não foi o
sofisma de seus irmãos, utilizando a figura do pai para
persuadir José, nem mesmo foi sua bondade interior. Foi a
ciência de que Deus está no trono, que ele é o autor da
história, que governa cada detalhe, que estabelece cada
átomo e fixa o DNA humano, executando tudo conforme o
seu querer. Os servos do Senhor, por maior que seja seu
poder, submetem-se como servos de Deus. Não tentam
usurpar o trono e se deixam dirigir pela regência divina. Foi
essa consciência que levou José a não se vingar de seus
irmãos, oferecendo-lhes perdão.

Poder do contrário ou intenção: libertarianos vs


compatibilistas

Compatibilistas defendem que cada escolha tem razões


que são absolutamente determinantes. Você pode escolher
jiló em lugar de uma lasanha somente se você tiver uma
razão diferente e que o compila para tal. O significado fica
inviável se removermos das nossas escolhas as razões
(causas suficientes), ou, em outras palavras, dizer que as
escolhas são autocausadas não responde à questão sobre o
que causa nossas escolhas. Esse é um grande contraste
entre as categorias teológicas compatibilistas e
libertarianas. Para os libertarianos, ser livre é ter condições
de ser um tanto indiferente sobre as escolhas que fazemos.
A pessoa por natureza precisa ter o poder de escolher uma
ação ou outra sem qualquer preferência compelidora que a
mova a tal, do contrário ela não é livre. O problema com
essa visão é que, se ela for verdadeira, então nenhuma
consequência importa. Uma escolha boa não precisaria de
qualquer reconhecimento ou uma escolha má não
necessitaria ser imputada a quem a cometeu.
A forma como Sam Storms (2004, p. 205) ilustra é muito
esclarecedora:
Como uma pessoa poderia ser elogiada por preferir a
caridade ou miserabilidade, por exemplo, se as duas
ações forem igualmente preferidas dele, ou de forma
mais acurada, faltando qualquer preferência?
Porventura não louvamos uma pessoa por dar com
generosidade ao pobre porque assumimos que ele seja
alguém com um caráter antecedente que esse tipo de
ato lhe parece ser preferível que ser pão duro? Se nada
houver sobre esse homem que o incline para preferir
generosidade, se o ato de dar dinheiro não lhe for mais
preferível que o ato de reter, essa pessoa seria digna de
louvor por dar?

Se o amor fosse uma expressão indiferente de nosso


dever, qual seria o significado das relações e afeições? Mas
exatamente porque o amor tem como sua expressão a
inclinação intencional das afeiçoes é que faz o nosso
coração transbordar. Se as nossas escolhas não tivessem
nenhuma causa suficiente anterior a ela, podemos dizer que
essas escolhas seriam reais? Se ser livre para o
libertarianismo é expressar um certo grau de indiferença
quanto às escolhas que fazemos, sem nenhuma preferência
compelidora, teríamos base real para dizer que alguém, por
exemplo, cometeu um crime culposo ou doloso? Seguindo
essa linha de argumentação, é necessário entendermos que
existe algo que faz uma grande diferença nas escolhas das
pessoas: intencionalidade. É isso que vemos na vida de
José.
O reconhecimento da providência soberana de Deus
na vida de José é revelado em Gênesis 50.20: Vós, na verdade,
intentastes o mal contra mim; porém Deus intentou o bem, para fazer,
como vedes agora, que se conserve muita gente em vida.
A maioria das versões traduz esse versículo como um
senso transformador post factum. A ideia cronológica é que
os irmãos de José praticaram intencionalmente o mal contra
ele, mas Deus agiu posteriormente ao evento e
“transformou”, “tornou” o mal em uma coisa boa. Essa
tradução torna-se atraente, porque, se fosse Deus quem
tivesse tal intenção, ele seria culpado por causar o mal. Isso
é o que os libertarianos afirmam, que se Deus for o
determinante último das ações humanas, então ele pode
ser culpado pelo pecado e pelo mal, o que o torna também
mal. A explicação para tal posicionamento não é algo
simples para o compatibilista, que é, mesmo que moderado,
um determinista. No entanto, continuemos olhando para o
texto, pois ele é o melhor caminho para lidar com essa
aparente tensão.
Observe, no texto acima, que há duas intenções atuando
no mesmo evento. As palavras de José: “vós... intentastes
(‫ ֲחַׁשְבֶּ֥תם‬- hashavtem) o mal contra mim, porém Deus
intentou (‫ ֲחָׁשָ֣בּה‬- hashavah) o bem”. O mesmo verbo é
usado para marcar que tudo que estava sendo feito tinha
propósito claro. De alguma forma assimétrica, o mesmo
evento estava imbuído de dois intentos simultâneos.
Noutras palavras, tanto Deus quanto os irmãos de José
tinham intenções específicas nos seus respectivos papéis
nesse mesmo evento. Esse texto escancara a soberania de
Deus por trás das cortinas das ações más dos irmãos de
José. Essa soberania é clara pela maneira como José tenta
trazer alívio para as consciências aflitas de seus irmãos ao
apontar tacitamente o governo de Deus em um evento mal.
Nas palavras de Von Rad (apud Wenham, 1998, p. 490),
“mesmo onde nenhuma pessoa poderia imaginar, Deus tem
todos os fios controladores em sua mão”.
Não é possível ignorar a soberania de Deus em uma
tentativa fútil de se livrar do problema apresentado entre a
tensão soberania divina x responsabilidade humana. A
suposta ideia do poder de fazer o contrário não serve como
arguição para resolver o problema. Há dois pontos de
destaque que aparentemente comprometem o caráter e a
bondade de Deus inteiramente. Primeiro, José deixa bem
claro que “não fostes vós que me enviastes para cá, e sim
Deus, que me pôs por pai de Faraó, e senhor de toda a sua
casa, e como governador em toda a terra do Egito” (Gn
45.8). Segundo, Deus não é apresentado aqui como um
Deus post eventum corrigindo e transformando a ação
maligna dos seus irmãos. José é claro quanto às duas
intenções no desenrolar do evento. Deus mesmo dirigiu
tudo para o bem, como nos fala CARSON (2004, p. 14): “em
ocultação profunda ele [Deus] usou todas as coisas das
trevas na natureza humana para executar seu plano, isto é,
‘preservar muitos em vida’” (Gn 45.5).
Em nenhum momento, José se esquiva dizendo: “quem
sou eu para julgar se vocês fizeram certo ou errado?”. Ele é
claro: “vocês intentaram o mal”. Os irmãos dele, por outro
lado, tinham aqui a chance perfeita para se desculparem
colocando em Deus a culpa, dizendo: “Está explicado, tudo
o que aconteceu foi culpa de Deus”. Eles sabiam da sua
malignidade, e é por essa intenção maligna que eles são
culpados. As Escrituras mostram que Deus responsabiliza o
pecador por causa de sua intenção de praticar o mal, não
por sua capacidade de ter escolhido fazer o contrário.
“Todos os caminhos do homem parecem certos aos seus
olhos, mas o SENHOR julga as verdadeiras motivações do
coração”. (Pv 16.2 AKJ - itálico nosso); “Porquanto o homem
julga e toma em elevada consideração a aparência, mas o
SENHOR sonda o coração” (1Sm 16.7 AKJ). “Eu, Yahweh, o
SENHOR, sondo profundamente o coração e examino a
mente dos homens, a fim de entender cada pessoa de
acordo com a sua atitude, conforme as suas obras!” (Jr
17.10).
Jesus coloca grande ênfase na intenção do coração como
peso para responsabilidade quando destaca o adultério no
coração, “Eu, porém, vos digo que qualquer que olhar para
uma mulher com intenção impura, em seu coração, já
cometeu adultério com ela” (Mt 5.28 AKJ). Em suma, o
homem não é pecador, porque ele escolheu pecar; ele
escolheu pecar, porque é pecador. Seu coração pecaminoso
é a razão que explica suas escolhas pecaminosas e não sua
liberdade irrestrita da vontade (CHRISTENSEN, 2016, p. 41).
A maior diferença entre a ação dos irmãos de José e as
ações de Deus tem relação com a intenção de cada um.
Reconhecendo que Deus é perfeitamente benigno, ele
jamais pensaria ou agiria de qualquer forma má. Os irmãos
de José, ao contrário, agiram exatamente de acordo com
sua natureza caída. A diferença é que um, misteriosamente,
em profunda ocultação, agiu com a intenção de fazer o
bem, enquanto os outros agiram com a intenção de fazer o
mal. Assim, não podemos ignorar o fato de que Deus nunca
tem qualquer motivação ou mesmo intenção maligna (1Jo
1.5). No entanto, não podemos negar que Deus pode
ordenar o mal sem, no entanto, ter intenções malignas.
A culpa pode ser atribuída aos irmãos de José por causa
de suas intenções más. Aquelas coisas que estavam em
seus intentos visando prejudicar José, as suas atitudes que
intentavam aniquilar a presença daquele irmão incômodo,
intentadas para o mal, essas mesmas atitudes não estavam
alheias a Deus. Deus não pode aqui ser acusado de culpa,
porque - se assumirmos como verdade o que falamos até
aqui sobre culpabilidade - sua intenção consciente e
voluntária no mesmo evento era boa.[38]

4.2 A soberania de Deus é terapêutica e não


iatrogênica
A preservação última de Deus foi exemplificada na vida
de José, que sustentou e preservou seus irmãos de maneira
graciosa. E o conhecimento disso não gerou celeuma
teológica ou indisposição contra a soberania. Pelo contrário,
o conhecimento dessas verdades trouxe consolo e atingiu os
corações dos irmãos de José.
A soberania de Deus é doce ao paladar daqueles que
renasceram e tiveram suas papilas gustativas modificadas
para experimentar a bondade de Deus; é magnífica e
assentida por aqueles que reconhecem os seus feitos
salvíficos em favor da humanidade. A doutrina da soberania
de Deus não confunde, não gera debates intermináveis. Seu
efeito é terapêutico: traz consolo e fala ao coração. É um
remédio amargo na boca, quando encarado apenas neste
prisma, mas doce na alma, quando encarado da perspectiva
da providência divina e de sua livre concorrência em nossos
atos. Ela é curativa e não iatrogênica.
Tomamos até aqui o exemplo de José para retratar a
soberania problemática pelo prisma humano, que se torna
terapêutica pelo prisma divino. É necessário reconhecer que
a soberania divina absoluta e a realidade da
responsabilidade humana se encontram na obrigação
humana de reconhecer a soberania divina com grande
humildade. A liberdade libertária aparece intuitivamente,
uma vez que algumas pessoas não estão cientes do fato de
que Deus está agindo e determinando nossas ações. É difícil
aceitar, mas Deus determina nossas ações e, ao mesmo
tempo, nós realizamos essas mesmas ações. Isso é
intrigante e misterioso, mas há amplo respaldo bíblico para
tal compatibilidade entre dois conceitos que parecem ser
antitéticos.
A posição defendida neste livro é compatibilista, e nossa
pressuposição é que, para se ter um bom entendimento
bíblico sobre esse tópico, temos que lidar com a
profundidade de seu alicerce - a absoluta soberania de
Deus. Aqui é onde trataremos como a Bíblia apresenta o
Deus soberano, o compatibilismo e a relação de Deus com o
mal. Por grande parte do que será tratado aqui, devemos
agradecer a D. A. Carson (2002) e Scott Christensen (2016).
Apresentaremos primeiro alguns conceitos básicos
encontrados nas Escrituras sobre soberania, seguiremos
com a exposição de alguns versículos que mostram uma
relação direta entre Deus e o mal; então, veremos que as
relações de Deus entre o bem e o mal não são assimétricas.
A relação de Deus com o que é bom é sempre pessoal e
direta, enquanto a relação com o mal se mostra
transcendente, por meio da qual Deus é desvelado em sua
ultimidade, como veremos abaixo.

4.3 O Deus soberano


Por soberania de Deus, queremos falar de seu poder
determinador absoluto. Noutras palavras, Deus tem o direito
de fazer tudo o que desejar de acordo com sua vontade.
Suas escolhas são determinadas somente por sua própria
natureza e propósito. Esta vontade soberana de Deus é
absolutamente livre, pois ninguém pode forçá-lo ou
constrangê-lo a agir com base em qualquer coisa fora dele
mesmo. A própria revelação de seu nome já define o
alicerce de suas ações: “terei misericórdia de quem eu
quiser ter misericórdia” (Ex 33.19).
Uma honesta avaliação das páginas das Escrituras
demonstra um Deus soberano sendo apresentado desde
Gênesis até Apocalipse. Ele não está alheio ao mundo; nada
foge do seu controle. Reinos são levantados e sofrem
derrocada pela intervenção divina; homens têm suas
vontades inclinadas por meio de Deus; toda a criação em
seu aspecto histórico-geográfico é regida por Deus. Ele cria,
dirige após a queda, exerce seu plano redentivo centrado na
morte de Cristo e restaura sua criação, culminando em
novos céus e nova terra. Ele decreta e executa; age
conforme o seu querer; não é passivo, mas imprime sua
vontade em cada detalhe, centímetro e segundo da criação
e no mais íntimo de cada consciência.
A soberania divina absoluta é uma verdade bíblica na
qual Deus é apresentado como a causa primária da ação
humana. Isso significa que Deus é a fonte ulterior de todos
os atos da escolha humana. Ou seja, Ele usa causas
secundárias que são o lado da equação humana - as
escolhas reais das pessoas mesmas (CHRISTENSEN, 2016,
p. 79). Essa relação causal não é simétrica e nem sempre
ocorre na mesma ordem e intensidade (FEINBERG, 2001, p.
652). A ação de Deus com o que é bom é pessoal, e muitas
vezes direta. A ação de Deus com o que é mal é
assimétrica, distante, escondida por meio de sua
transcendência, sem envolvimento direto com o mal, mas,
mesmo assim pré-ordenada.
O homem em sua criaturidade não aceita de pronto
essa realidade. Há um abismo entre o Deus infinito e o
homem finito, entre o Deus santo e o homem pecador. Tal
abismo gera a negação, em certo sentido, da soberania de
Deus na mente dos homens. A Bíblia nos apresenta o Deus
transcendente, que está além da sua criação, que não pode
ser definido em categorias humanas nem abrangido pela
ciência teológica. Este Deus transcendente é
incompreensível em sua essência integral e foi enfatizado,
por exemplo, na literatura intertestamentária, na filosofia
grega e em alguns pais da igreja. Alguns enfatizaram tanto
essa transcendência que findaram negligenciando aspectos
de sua personalidade. Essa personalidade sendo negada e a
transcendência sendo enfatizada implicaram na subversão
da divindade, através de um deus impessoal estendido à
criação (panteísmo) e de um Deus totalmente
transcendental que deixou a criação entregue ao livre-
arbítrio humano (deísmo).
Na teologia, tal polarização entre transcendência e
pessoalidade divinas resultou em um Deus que não
corresponde ao Deus da Bíblia, pois o Deus apresentado por
muitos teólogos escolásticos é um Deus que só possui
intelecto e vontade, mas está desprovido de emoções. É um
Deus que não se deixa afetar. Mas o que dizer dos relatos
em que Deus manifesta sua ira contra o povo de Israel no
episódio do bezerro de ouro (Ex 32-34), um Deus que
manifesta ciúme e zelo, mas ao mesmo tempo apresenta
compaixão pelo seu povo (Os 11.1-9)? Deus é um ser
pessoal e possui inteligência, vontade (Salmo 115.3) e
emoções. A ênfase na impassibilidade findou apresentando
um Deus despersonalizado, que depois foi caricaturado
como alguém que trata os seres de maneira
despersonalizada também e, por esse motivo, vê na ênfase
da transcendência divina e da sua imutabilidade em
essência e decretos uma antítese com relação à liberdade e
personalidade humanas.
O Deus despersonalizado despersonaliza os homens,
transformando-os em robôs, sem vontade, emoções,
semelhantes à imagem do deus criado por uma
interpretação equivocada do conceito de impassibilidade.[39]
Por outro lado, a ênfase na personalidade de Deus e na sua
relação com as criaturas, findou negando seus atributos de
grandeza, limitando sua ciência quanto ao futuro,
culminando no que tem se chamado de teísmo aberto (a
negação da onisciência divina quanto aos eventos futuros).
[40]

As declarações das Escrituras quanto à soberania divina


são consensuais para a maioria dos teólogos cristãos. O
relato claro da soberania de Deus é visto sobre a natureza
(Mt 10.29): “Não se vendem dois pardais por um asse? E
nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso
Pai”. Ele é soberano sobre as ações humanas (Is 14.24):
“Jurou o Senhor dos Exércitos, dizendo: Como pensei, assim
sucederá, e, como determinei, assim se efetuará”. Isaías
46.9-11: “Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade:
que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há
outro semelhante a mim; que desde o princípio anuncio o
que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que
ainda não sucederam; que digo: o meu conselho
permanecerá de pé [propósito], farei toda a minha
vontade; [...] Eu o disse, eu também o cumprirei; tomei este
propósito, também o executarei”. Daniel 4.35: “Todos os
moradores da terra são por ele reputados em nada; e,
segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e
os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão,
nem lhe dizer: Que fazes?”. Provérbios 21.1: “Como ribeiros
de águas assim é o coração do rei na mão do Senhor; este,
segundo o seu querer, o inclina”.
Sua soberania é absoluta, porém suas relações com os
eventos nunca são iguais ou idênticas, mas em geral
apresentam uma relação de assimetria. Feinberg destaca
isso quando nos fala que “Deus pode ser a causa remota em
algum sentido, mas junto com a criatura, ele é também a
causa próxima do ato. O que Deus faz como parte da causa
próxima é diferente do que suas criaturas fazem, mas seus
esforços conjuntos produzem o final pretendido” (FEINBERG,
2001, p. 652). É por isso que o compatibilismo é uma
posição razoável nesta questão.

4.3 Nossa posição é compatibilista


O conceito filosófico de compatibilismo está expresso no
glossário de apoio ao final deste livro. Gostaríamos apenas
de simplificar o conceito afirmando que o compatibilismo
bíblico tem como seu alvo principal demonstrar que os
eventos e as ações nos atos históricos são acompanhados
de uma explicação dupla; uma é divina e a outra é humana,
isto é, dupla agência simultânea (PETERSON, 2007, p. 151).
O lado da explicação humana é mais palpável, visível e é
encarado pelo ângulo da familiaridade; enquanto o lado
divino é invisível, e somos muito menos acostumados com
ele (CHRISTENSEN, 2016, p. 76). As incertezas só existem
no lado da perspectiva humana, pois, na perspectiva divina,
ainda que invisível para nós, pelo menos temporariamente,
está tudo planejado.
Para o compatibilismo, uma ação é livre desde que ela
tenha condições antecedentes que, de forma decisiva,
inclinem a vontade do agente de uma forma ou de outra
sem nenhum constrangimento para tal. Agir sem
constrangimento é agir de acordo com o desejo da pessoa.
Feinberg (2001, p. 397) nos fala que “se alguém adota esta
posição de livre vontade, então Deus pode ter o poder para
determinar as ações (compatibilisticamente) livres de
outros. Assim, a onipotência divina não é comprometida se
o compatibilismo for adotado”. Reconhecemos que
responsabilidade certamente está conectada com livre-
arbítrio de alguma forma; agora, como o livre-arbítrio deve
ser definido?
Carson responde essa questão afirmando que se a
essência do livre-arbítrio for “o poder absoluto de fazer o
contrário, uma contradição lógica está implicada quando
este poder absoluto do contrário é casado com uma
providência divina que em certo sentido pré-ordena todas
as coisas como certas” (CARSON, 2002, p. 206). Ele
continua afirmando que aceitar juntamente com a “teologia
molinista uma definição metafísica de livre-arbítrio, o qual
está conectado com poder do contrário, é sacrificar a
certeza da soberania divina em favor da contingência da
decisão humana” (CARSON, 2002, p. 206).
Se o poder de fazer o contrário for a essência do livre-
arbítrio, não seria possível afirmar então que Deus não é
livre, pois seu atributo de santidade que o impede de pecar
o impede assim de ser livre, isto é, ter o poder de fazer o
contrário? Poderíamos dizer que um pecado não seria
pecado se Deus o cometesse? Enquanto diversas tentativas
filosóficas buscam respostas que sustentem a definição de
livre-arbítrio como o poder de fazer o contrário, a narrativa
geral das Escrituras parece mais compatibilista. Nicole
argumenta de maneira prática para mostrar a contradição
lógica do libertarianismo e suas vertentes metafísicas:
quase todos concordam que no céu não haverá mais
risco de apostasia. Isto significa que na glória os
homens serão privados dessa liberdade que faz parte do
caráter distinto da humanidade, o dom que ocupa uma
alta posição que até mesmo o propósito soberano de
Deus tem que ser visto como subordinado a ele? É certo
que não. Mas se na glória a perseverança não é
inconsistente com liberdade, porque haveria de ser
pensando como incompatível na terra?

Não nutrimos aqui a busca por uma unanimidade entre


os cristãos, mas percebemos que a perspectiva bíblica
parece se encaixar melhor com o compatibilismo. Uma
tensão claramente existe entre as duas realidades; elas
podem chegar até nós como um paradoxo, mas não como
uma contradição. Vejamos outro exemplo bíblico para
ilustrar.

4.3.1 Compatibilismo em Jó
Ilustremos esta questão com o caso de Jó. Tudo está
correndo bem na vida de Jó. Ele é um homem próspero,
justo e temente a Deus. Enquanto ele, em sua devoção e
prosperidade, serve a Deus na terra, no céu, Deus abre um
diálogo com Satanás. Deus apresenta o seu servo Jó e, por
fim, permite Satanás mexer nas riquezas, nos filhos e, até
mesmo, na saúde de Jó. Deus deu poder a Satanás, mas
quem tem a ULTIMIDADE é Deus. Satanás só tocou em Jó
quando Deus permitiu. Satanás estava por trás das
catástrofes e da ação dos sabeus e dos caldeus, mas a
ultimidade nessas ações pertence a Deus. Deus não está
alheio a tudo o que ocorre na vida de Jó.

Satanás está agindo na vida de Jó com a permissão de


Deus, mas, diante do sofrimento e das aflições, perceba a
quem Jó atribui as perdas: “Nu saí do ventre de minha mãe
e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito
seja o nome do Senhor!” (Jó 1.21). Quem tem a ultimidade
em todas essas situações? Deus. Deus é quem, em última
instância, permite e preordena cada uma das catástrofes
ocorridas na vida de Jó. Satanás tem intenções malignas
para destruir a vida de Jó; os sabeus e caldeus têm
intenções malignas para roubar e destruir. Todos eles são
culpados e são agentes morais livres. O texto não furta a
verdade de que até mesmo o próprio Satanás é um
instrumento de Deus, pois só pode operar circunscrito à
esfera da soberania divina.
Ao longo do livro, a preocupação de Jó não é de
justificar a Deus. Deus já está justificado diante dos amigos
“piedosos” de Jó. Quem não está é Jó. Pois, para eles, Jó
certamente cometeu algum pecado para receber tamanho
sofrimento e perda em sua vida. Jó tenta se justificar. Aqui
não é uma teodiceia travada por Jó no diálogo com seus
irmãos, mas uma antropodiceia ou autodiceia, numa
tentativa de se autojustificar.
As Escrituras, e isto inclui o livro de Jó, não estão
preocupadas em resolver a tensão. Ao final do livro, o Deus
soberano, criador e sustentador do universo, revela-se
pessoalmente a Jó e o faz emudecer diante de seus
questionamentos: “onde estavas tu?”. As perguntas de Deus
para Jó parecem fazer parte de uma categoria não
alcançada por Jó por causa de sua criaturidade. A
manifestação dos atributos divinos por meio de suas obras e
de sua essência revela que o Deus soberano não precisa se
justificar ao homem nem resolveu se justificar nesse
quesito. Sendo assim, diante da soberania divina
evidenciada no discurso do próprio Deus, Jó se arrepende e
demonstra que antes ele conhecia a Deus só de ouvir, mas
agora tinha conhecimento revelacional da soberania de
Deus, e isso o fez ter mais intimidade com o seu criador e
redentor. A resposta de Deus foi assimilada por
acomodação, não porque Jó entendeu. Afinal, Deus não
respondeu nenhuma das perguntas de Jó e nunca disse a
ele o que realmente estava acontecendo. Mas nem por isso
a soberania de Deus é negada, tampouco a
responsabilidade humana é suprimida.
Observe que as perguntas de Deus têm relação direta
com sua onipotência e transcendência. Nenhuma das
categorias apontadas parece dar condições a Jó para se
colocar no lugar de Deus. Ao invés de perguntar a Deus algo
do tipo: “Senhor, mas como tua grandeza sobre a criação e
tua transcendência podem se relacionar com o mal e com a
vontade do homem?”. No final, Jó parece reconhecer sua
criaturidade e simplesmente; ele simplesmente se cala.
Piper expressa bem o foco aqui quando diz que “Satanás
pode desempenhar seu papel ímpio no drama e tirar os
filhos de Jó e feri-lo de tumores malignos, da planta dos pés
ao alto da cabeça, mas Jó não dará a Satanás a eminência
da causalidade última. Esta pertence somente a Deus,
mesmo que não possamos compreendê-la completamente”
(PIPER, 2002, p. 21). A atitude de Jó diante da soberania
divina nos ensina que, mais do que procurar resolver a
tensão entre livre-arbítrio e soberania divina, devemos
tomar a soberania divina como um fator que gera
conhecimento relacional entre Deus e o homem. A
ultimidade de Deus na vida de Jó o levou a adorar, mesmo
antes de obter respostas; e quando finalmente as perguntas
chegaram, ele se conformou com sua criaturidade.
Por sua vez, Carson (2006, p. 182) nos dá uma cuidadosa
explicação do compatibilismo:

1. Deus é absolutamente soberano, mas sua


soberania nunca funciona de uma forma que a
responsabilidade humana [e liberdade] é bloqueada,
minimizada ou malignizada.
2. Os seres humanos são criaturas moralmente
responsáveis, eles de forma significante escolhem,
se rebelam, obedecem, creem, desafiam, decidem,
e assim por diante, e eles são corretamente
cobrados por tais ações; mas estas características
nunca funcionam de forma a fazer Deus
absolutamente contingente.
Quando, no entanto, a questão passa para ações
humanas más, ainda assim Deus está envolvido? A resposta
é absolutamente sim, mas nunca com o mesmo tipo de
relação quando ele se relaciona com o que é bom.

4.6 A ultimidade de Deus


O ponto crucial é que a atividade de Deus é tão soberana
e detalhada que nada pode ocorrer no mundo do homem
sem, pelo menos, sua permissão; e por outro lado, se ele se
colocar contra algum curso, então esse curso não pode se
desenrolar (CARSON, 2002, p.28). Nossa preferência por
ultimidade e não concorrência é por causa da tendência de
relacionar concorrência, um termo tipicamente monergista,
com o sinergismo. Sproul (2006, p. 94) faz uso do termo
concorrência e nele resume o conceito que liga a ação
soberana de Deus e a livre agência humana. Por causa da
necessidade de esclarecimento constante e a possibilidade
de sermos confundidos com sinergistas, optamos por usar o
termo ultimidade.
Quando falamos de ultimidade, deve ficar claro que
estamos nos referindo ao conceito de causalidade
secundária. Não se trata aqui de um conceito temporal tal
como a frase em latim: effectus sequitur causam proximam
(o efeito segue a causa que o produz), pois aqui o efeito é
quase deístico. Também não estamos usando o conceito
aqui como uma ideia atemporal, como se fosse uma ação
entre iguais. Não se trata de um abandono da ideia de
causalidade, do contrário, cairíamos no panteísmo, no qual
Deus se torna parte do sistema de causas. Nossa ideia do
termo, por fim, não traz uma concepção mecânica na qual
não passamos de marionetes nas mãos de Deus.
Na nossa perspectiva, não é sempre claro como Deus
opera, e a Bíblia não nos diz exatamente, mas nossa
dificuldade aparece por conta de nossa falta de habilidade
para formular como Deus pode governar com certeza sem
destruir alguma porção considerável da liberdade de suas
criaturas. Somo criaturas distintas do nosso criador, mas o
compatibilismo mostra que nossas escolhas são
dependentes de Deus. Jonathan Edwards expressa essa
perspectiva quando declara:
Na graça eficaz nós não somos meramente passivos,
nem mesmo Deus faz sua parte e nós o resto. No
entanto, Deus faz tudo e nós fazemos tudo. Deus produz
tudo e nós agimos em tudo. Pois isto é o que ele produz,
viz, nossos atos. Deus é o único autor e fonte
apropriados; nós somos apenas os atores apropriados.
Somos em diferente modo completamente passivos e
completamente ativos (EDWARDS, apud Lloyd-Jones,
1987, p. 356).

Deus determina as escolhas de cada pessoa, no entanto,


as pessoas livremente fazem suas escolhas. A fonte
imediata da escolha humana é chamada de causa próxima,
isto é, as pessoas são a causa secundária de suas próprias
ações, mas eles também são a causa imediata, agindo em
resposta a tudo que o motivou à ação. Deus é a causa
remota, mas causa primária, pois ele é o orquestrador de
todas as ações humanas. Nossa definição de liberdade tem
relação com a natureza da liberdade humana sob discussão.
Essa é uma distinção que Feinberg aponta muito bem, como
já escrevemos acima, mas vamos repetir aqui: “uma ação é
livre somente ao ponto que haja condições antecedentes, as
quais decisivamente inclinam a vontade de uma forma ou
de outra sem nenhum constrangimento” (FEINBERG, 2001,
p. 290).
Seria desnecessário responder a pergunta quanto à
abrangência da relação de Deus na sua ultimidade quando
as ações dos homens são más. No compatibilismo, a
liberdade moral ou espiritual do ser humano tem de ser
encarada como sujeita à sua natureza pecaminosa, da qual
ele precisa ser liberto através da regeneração. Os dados
bíblicos não precisam ser seletivos para concordarem
somente com aquilo que uma pessoa concorda; basta ser
honesto com o fato de que, assim como aconteceu com
Sansão em Juízes 14.4, também ocorreu com os irmãos de
José em Gênesis 45.5-8; de alguma forma misteriosa, Deus
está por trás dos motivos indignos dos irmãos de José e do
próprio Sansão (quando este se apega a uma mulher pagã).
O texto é claro, tudo para promover o bem daqueles que ele
ama, ou mesmo para punir aqueles que precisam de
punição.

Figura 3 - A ação de Deus e a ação do homem

As duas figuras acima mostram separadamente as duas


ações não como causa prima inter pares, mas o assunto é
muito mais complexo nessa relação no que concerne ao
modo como as ações são postas simultaneamente,
conforme descrito na figura 4 abaixo. Por exemplo, como
combinar o que o texto da Bíblia diz sobre os irmãos de José
conscientemente terem admitido o mal que fizeram com a
declaração de José de que Deus tinha no mesmo evento
interesse distinto, não de mal, mas de bem (Gn 50.15, 20)?
Como as ações livres de Sansão para se casar com uma
mulher de Timna, expressando seu desvio de caráter, se
correlacionam com o fato de Deus usar este episódio para
punir os filisteus, conforme a nota de Juízes 14.4?
Em nenhum momento, o texto bíblico foge dessa
declaração compatibilista. A Bíblia não inocenta os irmãos
de José transferindo a culpa para Deus; mas também não
lhes tira a responsabilidade de suas ações más, mesmo
Deus estando providencialmente por trás dessas ações más.
Da mesma forma, ocorre com Sansão. Deus está agindo
soberanamente na vida de Sansão, mas, em nenhum
momento, ele está agindo constrangido pela ação de Deus.
O que podemos notar é que, mesmo na mais vil de todas as
ações humanas, é impossível quebrar a esfera da ação
soberana de Deus.

Figura 4 Relação assimétrica entre soberania e livre-arbítrio

Christensen (2016, p. 45) capta bem o cerne dessa


questão quando afirma: “Deus deseja o bem simplesmente
por causa do bem. No entanto, quando ele ordena o mal, ele
nunca o faz por causa do mal, mas porque é necessário
para algum propósito bom”. A esfera menor da figura acima
descreve a ação do homem com toda sua livre agência. Não
confunda a figura acima com sinergismo, pois as linhas
paralelas da ação humana continuam na sua direção
própria. Observe também que as ações de Deus
simultaneamente perpassam inteiramente cruzando as
linhas do homem. A relação de Deus com o mal ou a forma
como ele se coloca por trás do mal não ocorre da mesma
forma como ele se relaciona com boas ações.
As ações de Deus estão presentes em todas as
esferas do Universo, mesmo a vontade do homem, sendo
pecaminosa e em oposição à obra divina, de uma maneira
última, está conectada com as obras divinas, de forma que
a providência de Deus perpassa todas as escolhas e ações
humanas. A área de conexão entre as obras de Deus e as
obras humanas representa com exatidão o que entendemos
por ultimidade: Deus está agindo até mesmo nas obras mais
vis, em concorrência com as ações humanas, operando um
propósito assimétrico em relação ao mal. Ele se relaciona
com o mal em sua transcendência, enquanto com o bem ele
se relaciona a partir de sua pessoalidade.
Este padrão da ação divina em assimetria com o mal
garante que até mesmo nossos atos mais pecaminosos não
podem escapar da soberania de Deus e que eu não posso
transferir honestamente minha culpa para Deus. O espectro
positivo da conexão de Deus, em simetria com meus atos
bons, revela que os nossos atos bons estão debaixo da
graça e providência divina e não são méritos independentes
de nossa parte. A ação de Deus permanece suficientemente
indireta de forma a preservar a responsabilidade genuína no
homem.
Além disso, nenhum pecado, por mais hediondo que
seja, escapa do controle de Deus, mesmo que de forma
assimétrica. Esta realidade é bem expressa na obra Pecados
Espetaculares: o seu propósito global na glória de Cristo
(PIPER, 2015). Nessa obra, o autor mostra que o pecado
mais brutal da história, por exemplo, o assassinato de Jesus
Cristo, não foi algo aleatório e alheio à soberana vontade de
Deus. E de fato não foi. Deus em sua concorrência,
ultimamente, estava agindo em cada um dos detalhes
desse pecado para cumprir o seu propósito redentivo.
Percebe-se, por meio de Atos 2.23 e 4.27, que a
crucificação não poderia ter ocorrido sem pecado, pois ele
nada fez para merecer a cruz. Sendo assim, para decretar a
crucificação, Deus tinha que ordenar ações pecaminosas
que haveriam de conduzir à crucificação. As pessoas
envolvidas na crucificação (Herodes, Pilatos, gentios e
israelitas) são todas culpadas do assassinato horrível de
Jesus Cristo (que morreu inocentemente). Eles fizeram isso
livremente por causa de quem eles eram (homens maus).
No entanto, a ação de Deus ao entregar Jesus ocorreu para
produzir sua finalidade redentiva.
É preciso reconhecer que a graça de Deus por trás de
qualquer coisa pode nos alcançar, mas é impossível ignorar
que mesmo meus atos pecaminosos não podem escapar à
soberania de Deus. Sendo assim, a soberania nos humilha,
dobra os nossos joelhos. Por meio dela, nós sabemos quem
está no controle. Chamamos essa soberania de
problemática, porque nem sempre as coisas ocorrem como
planejamos ou pensamos. Como dissemos, é preciso ter fé
para alcançar sucesso e prosperidade, mas muito mais fé
ainda na hora em que o céu fica cerrado sem nos
apresentar nenhum vislumbre ou resposta. O evangelho que
nos capacita só para vencer é incompleto também. O
evangelho deve nos capacitar para perder também. De fato,
mesmo que você tenha uma derrota temporal hoje, Deus já
disse o resultado: “tende bom ânimo: eu venci o mundo!”.
No capítulo a seguir, falaremos mais sobre esse tipo de
soberania problemática.
5 SOBERANIA PROBLEMÁTICA NO
SALMO 88

Ó Senhor, Deus da minha salvação, dia e noite clamo diante de ti.


Chegue à tua presença a minha oração, inclina os ouvidos ao meu clamor.
Pois a minha alma está farta de males, e a minha vida já se abeira da morte.
Sou contado com os que baixam à cova; sou como um homem sem força,
atirado entre os mortos; como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos
quais já não te lembras; são desamparados de tuas mãos.
Puseste-me na mais profunda cova, nos lugares tenebrosos, nos abismos.
Sobre mim pesa a tua ira; tu me abates com todas as tuas ondas.
Apartaste de mim os meus conhecidos e me fizeste objeto de abominação para
com eles; estou preso e não vejo como sair.
Os meus olhos desfalecem de aflição; dia após dia, venho clamando a ti, Senhor,
e te levanto as minhas mãos.
Mostrarás tu prodígios aos mortos ou os finados se levantarão para te louvar?
Será referida a tua bondade na sepultura? A tua fidelidade, nos abismos?
Acaso, nas trevas se manifestam as tuas maravilhas? E a tua justiça, na terra do
esquecimento?
Mas eu, Senhor, clamo a ti por socorro, e antemanhã já se antecipa diante de ti
a minha oração.
Por que rejeitas, Senhor, a minha alma e ocultas de mim o rosto?
Ando aflito e prestes a expirar desde moço; sob o peso dos teus terrores, estou
desorientado.
Por sobre mim passaram as tuas iras, os teus terrores deram cabo de mim.
Eles me rodeiam como água, de contínuo; a um tempo me circundam.
Para longe de mim afastaste amigo e companheiro; os meus conhecidos são
trevas.
Perdas ignoradas se tornam paralisantes. Israel sabia
bem disso. O salmista sabia dessa verdade. Ele não pode
encarar a perda sem o lamento, porque perda sem lamento
produz fadiga e nos transforma em pessoas embrutecidas.
Sofrimento ignorado e não articulado adormece nossa alma
e conduz à irracionalidade de alguma forma. O sofrimento,
por outro lado, que é reconhecido e admitido, esse sim,
produz em nós uma esperança ímpar. Observe que não é
qualquer sofrimento que produz esperança (Rm 5.3-5), mas
o sofrimento trabalhado pela expressão da fé em um outro
mundo que é diferente desse. Isso mesmo! A tribulação
desperta em nós um anseio por um mundo melhor. Se isso
for verdade, precisamos então incluir na nossa liturgia
aquilo que nos incomoda, mas que expressa a mais pura
verdade: a soberania problemática de Deus.
Usamos a expressão soberania problemática com a
intenção de abordar o lado difícil da vida; quando não
podemos escapar do diagnóstico terrível daquela doença
incurável, quando as perdas batem a nossa porta, quando
coisas preciosas somem da vida, quando nos deparamos
com questões nas quais não existem palavras para explicá-
las ou articulá-las, quando nos encontramos no mais
profundo dos abismos sem qualquer sinal explícito de
resgate. Assim, depois de ouvirmos que os caminhos de
Deus são inescrutáveis; seu conhecimento, sem limites; seu
poder, efetivo; quem pode dizer que ele está errado (Jó
26.14; 37.5, 15, 23; 36.22-26; 38.2; 40.8-10)? Na vida nua e
crua, não existem respostas prontas ou soluções possíveis,
pois o homem com seu conhecimento limitado não pode
julgar a providência de Deus. Todavia, a paz do homem
precisa vir de um conhecimento e confiança nesse Deus,
mas como fazê-lo diante de um dilema epistêmico? Eu sei
que ele governa todas as coisas, mas se é assim, o que
fazer quando ele soberanamente me ignora?
Já falamos sobre a ultimidade de Deus que é tão
soberana e detalhada que nada pode ocorrer no mundo do
homem sem, pelo menos, sua permissão; por outro lado, se
ele se colocar contra algum curso, então esse curso
definitivamente não pode se desenrolar. Notamos que nem
mesmos nossos atos pecaminosos escapam à sua
soberania; vimos ainda que, em nenhum momento,
podemos corretamente transferir nossa culpa para ele e que
temos que reconhecer sua graça por trás de qualquer
bondade que façamos. Por isso, não podemos passar por
cima de algumas implicações e decidimos incluir a
discussão do Salmo 88 e, no capítulo seguinte, o texto de
Lamentações 3. A razão é que essas passagens trazem
questões teológicas que afrontam a fé convencional. O
Salmo 88 não traz consigo uma solução articulada para os
problemas existenciais do homem e nos deixa oscilando de
um lado para o outro na beira de um precipício sem uma
resposta comum por nós esperada.
Por grande parte do que veremos nesse salmo,
agradecemos a Walter Brueggemann (1984). Ele trabalha
dois salmos de lamento (88 e 109), mas nossa atenção
estará somente no Salmo 88. Esse salmo parece colocar
Deus entre a cruz e a espada, porque traz consigo a ideia de
afronta à fé convencional, ou, nas palavras de
Brueggemann (1884, p. 78): “é um constrangimento à fé
convencional”. Trata-se de um salmo preocupado com a
ausência e o silêncio de Deus e, como deve-se saber, é
difícil amar um Deus que não está presente, pelo menos é o
que parece acontecer. Admitida essa realidade da vida, “a
noite sombria da alma”, o que fazer? Como reagir ou como
não reagir? Esse salmo tem muito a nos ensinar acerca da
soberania problemática.
Este é um salmo de lamento. Mais de 60 salmos do
saltério hebraico são salmos de lamento. Boa parte da igreja
tem evitado inserir em sua liturgia os salmos de lamento.
Acreditam que seu autor possui uma visão muito pessimista
e que os lamentos não foram deixados para a igreja, mas
somente para Israel. Abrir os lábios em lamento é
considerado um sacrilégio pelos adeptos da teologia de
confissão positiva e da prosperidade. Aliás, muitas igrejas
conservadoras possuem uma teologia da prosperidade
enrustida. Eles não apontam um triunfalismo eclesiástico,
mas vivem de maneira triunfalista, evitando a qualquer
custo tratar de temas “negativos” demais.
Um exemplo disso é que, em muitas composições,
temos alusões diretas ao Salmo 42.1, 2a: “Como suspira a
corça pelas correntes das águas, assim por ti, ó Deus,
suspira a minha alma. A minha alma tem sede de Deus, do
Deus vivo”. Mas, em quantos de nossos cânticos temos uma
mínima menção sequer do versículo 3 do mesmo salmo? “As
minhas lágrimas têm sido o meu alimento dia e noite”?
Pouquíssimas! A seleção de cânticos para o culto público -
com exceções, é claro - revela muito de nossa teologia
seletiva, que em geral também é triunfalista e não vê lugar
para o lamento.
Nós exultamos com a majestade de Deus expressa no
Salmo 139. Mas certamente nos esquivamos de colocar em
nossos cânticos os versos 19 a 23 do mesmo salmo:
Tomara, ó Deus, desses cabo do perverso; apartai-
vos, pois, de mim, homens de sangue. Eles se rebelam
insidiosamente contra ti e como teus inimigos falam
malícia. Não aborreço eu, Senhor, os que te aborrecem?
E não abomino os que contra ti se levantam? Aborreço-
os com ódio consumado; para mim são inimigos de fato.

Em geral, selecionamos nossas canções despindo-as de


toda tristeza, amargura, estresse, dor, sofrimento e gemido.
Na verdade, tendemos a crer que tais manifestações são
temas inadequados para a adoração. Talvez, por acharmos
que essas coisas expressam a pequenez da nossa fé. No
entanto, não cabe a nós ignorar ou extirpar o lamento de
nossa adoração. Se fizéssemos isso, estaríamos ignorando
um dos componentes principais da história do Antigo
Testamento e despiríamos o evangelho de um dos seus
componentes nucleares – a manifestação das afeições na
vivência da fé cristã e a fé em um Deus soberano, mesmo
quando sua soberania nos empurra para baixo.
Se nos tornamos seletivos com aquilo que Deus nos
deixou nas Escrituras, corremos o sério risco de perder
elementos essenciais à nossa vida cristã, à realidade
humana na qual vivemos. Nós não temos a opção de
desconsiderar o lamento na nossa adoração, pois fazê-lo
seria desconsiderar um componente fundamental da
história do Antigo Testamento e mesmo extirpar do
evangelho seu núcleo emotivo. O que seria da mensagem
do Antigo Testamento e da história redentiva de Israel se a
história do Êxodo fosse removida? Nada! O que sobraria da
história do Êxodo se o lamento fosse removido?
Deuteronômio 26.5-11, que funciona como um credo
histórico, desdobra o evento do Êxodo em cinco partes:
angústia, lamento, resposta, libertação e louvor.[41] A
história da salvação inteira inclui essas cinco partes. A
angústia é expressa num profundo senso de desespero e
falta de esperança (v. 6); o lamento é expresso numa
oração de confissão, clamando por misericórdia e por
perdão (v. 7a); a resposta envolve a promessa de salvação
aos que creem; a libertação da culpa, trazendo libertação do
opróbrio e o louvor vem como agradecimento à ação divina.
A soberania se torna problemática no Salmo 88, pois,
em seu lamento, o salmista apresenta apenas as duas
primeiras porções: angústia e lamento. Não há resposta,
não há livramento, não há louvor. Aqui só encontramos um
clamor de um crente (que se parece com Jó) cuja vida tem
sido tão carregada que desesperadamente ele busca
contato com Yahweh. Trata-se de alguém que se encontra
submerso na noite escura da alma. Esse salmo é difícil,
porque sua composição se encontra no meio do caminho...
antes da resposta, libertação e louvor. Cabe-nos uma
pergunta, então; por que este salmo foi incluído dentre os
salmos de lamento? Que valor existe em uma sinfonia
inacabada?

LAMENTO É ADORAÇÃO, PORQUE EXPRESSA FÉ


PERSEVERANTE, MESMO QUANDO DEUS PARECE
DISTANTE, OPRESSOR E SILENCIOSO.

O Salmo 88, por sua composição, é um salmo de fé


perseverante. Essa fé perseverante é expressa nos
versículos 1, 9 e 13 do Salmo 88. O salmista não abre mão
de sua fé em Yahweh, mesmo quando ele se cala. Na
estrutura do salmo, encontramos uma repetição do verbo
“clamar” nestes versos clamo diante de ti..., venho
clamando a ti, Senhor.... clamo a ti por socorro. Perceba
que, mesmo diante do problema, cada um de seus atos de
adoração é contínuo. Ele está aflito, ele está sofrendo, mas
não cessou de orar. Ele ora incessantemente!
Observemos mais atentamente como este clamor entra
em conexão com a fé perseverante. Em primeiro lugar, é
necessário entender que a fé reside no domínio da verdade.
Não existe fé à parte da verdade. O relativismo moral e
confessional de muitos cristãos só demonstra que eles
ainda não entenderam a verdade, uma vez que a expressão
da fé envolve coisas e fatos, verdades essenciais para que o
objeto da fé corresponda à realidade. Uma fé centralizada
na subjetividade do coração do indivíduo não é fé
verdadeira. A fé perseverante se localiza, portanto, no
domínio da verdade.
Hemã está clamando com todas as suas forças, mas o
céu parece estar mudo. Ele fala com todas as suas forças,
mas não ouve resposta alguma. Talvez Deus esteja em
silêncio por causa da culpa do falante, mas o salmo não fala
nada sobre isso. É possível que se trate de uma declaração
da liberdade transcendente de Deus, de modo que ele nem
sempre está à disposição do chamado (Jr 23.23). Mesmo
assim a verdade é que, mesmo na mais vil das ações
humanas, o homem não pode romper a esfera da ação
soberana. Sem ter conhecimento de qualquer razão, ainda
assim, ele se apega a duas verdades inamovíveis: a
primeira, Deus é o Deus da minha salvação (v. 1).
Independentemente das circunstâncias, eu posso confiar
nele. A segunda, ele nutriu de alguma forma a esperança
em meio à desesperança de que Deus está presente –
“clamo diante de ti” (v. 1b).
O salmo não está interessado em qualquer razão
teológica que Yahweh possa ter e, por isso, nenhuma
pergunta está em jogo aqui. Nas palavras de Brueggemann
(1984, p. 78): “ele simplesmente relata como é ter Yahweh
como companheiro nas inexplicáveis ausências de Yahweh”.
A verdade é que um apelo não respondido não silencia o
apelante. A aparente falha de Deus em responder não o
leva para o ateísmo ou mesmo o enche de dúvidas sobre
Deus ou sobre a rejeição de Deus. Os versículos 3-4 trazem
as queixas comuns para quem está descendo ao Sheol. A
voz que escutamos aqui é a voz de alguém que está
morrendo e clama pela única fonte de vida.
Chamamos de soberania problemática, mas o leitor
discordante de nossa tese facilmente buscará em Hemã
algum senso jurídico punitivo para explicar o que está
acontecendo aqui. O que quer que seja argumentado
precisa considerar os versos 6-9a, nos quais vemos não
somente que a morte chegou, mas também que Deus a
causou. “...puseste-me na mais profunda cova, nos lugares
tenebrosos...sobre mim pesa a tua ira; ...tu me abates...
apartaste de mim... tu me fizeste objeto de abominação. O
salmista até se mostra com esperança que tal situação
evoque uma resposta, mas a continuação só traz consigo
uma imagem do silêncio.
Depois do clamor desesperado do versículo 9b, os
versos 10-12 nos apresentam quatro perguntas retóricas,
sendo que duas destas quatro trazem uma pergunta dupla.
Todas essas perguntas são dirigidas à capacidade de
Yahweh de operar sua soberania em meio à morte.
Embutidas nessas perguntas retóricas, encontram-se seis
palavras que descrevem exatamente o modo comum que o
ser humano deseja que Deus haja: prodígios, louvor,
bondade, fidelidade, maravilhas e justiça. Você entende por
que é uma soberania problemática? Ela nem sempre opera
do modo comum que nós esperamos. Às vezes, a soberania
não traz nenhuma resposta, somente precisamos esperar.
Por vezes, até um pouco de impaciência pode ser sentida,
como acontece no verso 12.
Precisamos entender que a fé perseverante envolve
abraçar a soberania problemática (Sl 88. 3-8; 14-18). Essa
soberania é problemática, porque o autor reconhece que
Deus está no controle de todas as situações; no entanto,
suas afeições e sua alma clamam: “pois a minha alma está
farta de males, e a minha vida já se abeira da morte” (88.3).
Deus é soberano, mas, diante do seu silêncio, parece que
sua soberania não é de grande ajuda na hora do sofrimento
ou, no mínimo, parece não ser uma soberania que se
configura válida para seres humanos de carne e osso.
Temos que entender quão intenso era o sofrimento e severa
a angústia desse homem. O Salmo 88 é um salmo de
lamento singular. Todos os demais lamentos terminam com
louvor ou com um coração esperançoso diante das
promessas do livramento que está por chegar. Este salmo é
uma composição de escuridão e trevas.[42]
O estado tenebroso expresso por Hemã é descrito das
perspectivas externa e interna. Ele enxerga todos ao seu
redor como entenebrecidos e o seu estado ontológico, o seu
ser, como envolto por trevas, à beira da morte. É este
homem que professa fé em um Deus salvador, mas que
enfatiza ao longo do salmo sua intensa angústia, melhor
representada pelo verbete “trevas”. As trevas externas são
demonstradas na vida dos amigos, que, diante da
circunstância atual do salmista, abandonaram-no
completamente, deixando-o à beira da morte (vv. 8 e 18).
Internamente as trevas se expressam neste homem que
sabe que Deus é soberano, mas só consegue expressar
sentimentos de ira, raiva, angústia, abandono e opressão. A
última palavra nesse salmo é trevas (v. 18). Tudo ao redor
lhe nega a vida. O pior de tudo é o seu abandono.
Coloque-se no lugar de Hemã e perceba quão
aterradora parece ser sua condição. Difere da condição de
Paulo em 2Coríntios 12, que estava sofrendo, que clamou no
intuito de ser livrado do espinho na carne e não o foi.
Todavia, Paulo recebeu uma resposta confortante de Deus:
“A minha graça te basta”. Ele tinha um espinho, mas a
graça de Deus o ajudou a suportá-lo. Ele teve a resposta
divina, e isso o fez mais humilde e resolveu a situação de
conflito para aquele problema aparentemente insolúvel.
O que se pode fazer em uma situação em que a
soberania problemática nos coloca à beira do precipício? A
resposta de Hemã no salmo é: espere! Você terá uma de
duas opções: ou você espera em silêncio ou você rompe o
silêncio falando para quem de direito, Yahweh. O que quer
que seja dito, diga ao SENHOR. O que você não deve fazer é
correr apressadamente para outro salmo, aquele mais fácil
de se aceitar, ou, o pior de tudo, desistir da fé em um Deus
absolutamente soberano. O salmo 88 nos ensina a fé e a
fidelidade em cenas de completo abandono, pelo menos
aparente.

5.1 Trono em foco


Por que um salmo deste tipo está presente em nossas
Bíblias? Duas sugestões: primeiro, a vida é assim; esse
salmo tem a intenção de falar tudo que encaramos na vida,
e não somente as partes agradáveis. Segundo, pode até
parecer que Deus não está nem aí para nós, mas o salmista
nos ensina que mesmo assim o melhor é continuar falando
com ele, pois se vamos lamentar, é melhor falar com a
pessoa certa, Yahweh. O ponto crucial é que o salmista não
desistirá de clamar a quem realmente pode salvá-lo.
Algumas pessoas não abraçarão uma soberania assim,
mas se levantarão em revolta. A revolta contra Deus e a
atitude resignada em contínuo sentimento de amargura
nada mais são que o desejo humano de suplantar Deus, não
se deixando dominar pelo Deus que é soberano até mesmo
no meio de muitas dificuldades e sofrimentos. Aqui a
tentação é acreditar que gotas de maldade fluem
diretamente do trono do Senhor. Não! Ele é todo-bondoso,
mas também é totalmente soberano, e mesmo suas
intervenções mais dolorosas para a humanidade não
deixam de expressar o seu amor.
Neste caso, a submissão vem pelo lamento, que joga
para fora as sutis tentativas de liberdade absoluta; o
homem submisso a Deus lamenta, mas não resmunga e
entende que a dor é um grande incômodo. A ausência de
respostas é uma tentação para acharmos que Deus não
está no trono. Muitos diante disso criam seu próprio
“troninho” e passam seu tempo a brincar de soberania.
Não! Não façamos isso. Deus está no trono, mesmo que não
ouçamos as respostas, mesmo que a situação pareça ser
uma “crueldade” divina. Há situações em que aquelas
frases prontas e fáceis ou soluções baratas devem ser
evitadas. Eis aqui um bom exercício que Hemã nos ensina:
ainda que tudo conspire para pensarmos que Deus nos
abandonou, nós insistiremos em buscar nele a fonte da vida
de que precisamos.
6 SOBERANIA PROBLEMÁTICA EM
LAMENTAÇÕES 3

As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos


consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim;
renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade.
Lamentações 3.22, 23.

Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando o


Senhor o não mande? Acaso não procede do Altíssimo tanto
o mal como o bem?
Lamentações 3.37, 38.

No capítulo anterior, apresentamos uma situação de


teste para nossa fé; e quando isso acontece, precisamos
nos posicionar com nossas certezas - Deus é... Deus é
bom... Deus é soberano ... Deus é nosso salvador. Vimos
que Hemã permaneceu sobre a verdade relacional e,
durante toda a escuridão da alma, sabia que tinha um
clamor para entrar na intimidade com Deus; ele não via
nenhuma razão para crer em qualquer outra pessoa ou
coisa, ou nele mesmo. Destacamos que palavras baratas
não podem confortar uma alma em sua noite de trevas. O
poeta de Lamentações parece ter experimentado algo muito
parecido com Hemã; sua aflição é tamanha, e novamente
ele se recusa a ficar em silêncio, mesmo diante do “silêncio”
de Deus.
A soberania aqui é problemática, pois o poeta de
Lamentações crê na doutrina da ação providencial de Deus
no mundo no qual ele é a causa primária das ações
humanas, mas - ao mesmo tempo - a causa remota de
todas as ações humanas. A razão de ser a causa remota
deixa o homem com plena responsabilidade nas suas
escolhas. A causa humana é secundária, mas tem relação
com a causa próxima. O poeta não hesitará em dizer:
“Converte-nos a ti, Yahweh, e seremos convertidos; renova
os nossos dias como dantes” (Lm 5.21). Por todo o capítulo
três, ele manterá a causa primária em foco. “Ele me levou e
me fez andar em trevas” (v. 2), “...fez envelhecer minha
carne... despedaçou os meus ossos” (v. 3), “...me cercou
com veneno” (v. 5), “...fez-me habitar em trevas” (v. 6).
O poeta escancara sua fé na soberania de Deus até o
ponto que ele a declara de forma problemática, quando diz:
“Quem é aquele que diz e assim acontece, quando o Senhor
o não mande?” (3.37). A pergunta retórica espera uma
resposta enfática: ninguém! Deus é soberano.
A ultimidade de Deus é apontada no versículo 38:
“Acaso, não procede do Altíssimo tanto o mal como o
bem?”. Nesse versículo o poeta, compatibilisticamente,
reconhece Deus como causa primária, na qual Deus é o
orquestrador último de todas as ações humanas. Seus
decretos eternos determinam tudo que acontece na história
humana. No entanto, ao mesmo tempo, o poeta sabe qual é
a causa próxima, a fonte imediata da escolha humana: “Por
que, pois, se queixa o homem vivente? Queixe-se cada um
dos seus próprios pecados” (3.39). Com base na causa
próxima, a causa secundária age, isto é, o ser humano
torna-se orquestrador de todas as suas ações. “Deus é a
causa primária de todas as ações humanas, mas ele cumpre
seu propósito através dos meios dos agentes humanos
secundários” (CHRISTENSEN, 2016, p. 90).
Figura 5 - Compatibilismo e a relação de causas

A relação de Deus com o mundo é de transcendência e


imanência. Transcendência divina significa que Deus é
separado e independente da ordem natural e dos seres
humanos (FEINBERG, 2001, p. 73). Embora a
transcendência trate da relação remota de Deus com sua
criação, sua relação pessoal é, portanto, dinâmica e ativa na
ordem natural e com os seres humanos. O movimento
lógico é que, sendo transcendente tanto em tempo quanto
em espaço e desfrutando do exercício de toda a sua
autoridade, existem aspectos de sua natureza e atividade
que nós não temos como conhecer, pois somos finitos,
limitados por tempo e espaço. Assim, na figura acima, a
descrição da causa remota é muito mais complexa e difícil
de se descrever, por melhor que seja a ilustração ou
exemplificação. Como causa remota, Deus é o iniciador
distante das ações humanas, operando através de meios
secundários. O núcleo do círculo tem relação direta com o
homem e suas ações; ali o homem é o orquestrador de
todas as suas ações. Observe que as linhas que marcam as
ações humanas são assimétricas em relação às linhas da
ação de Deus; esta, por sua vez, como causa primária,
perpassa assimetricamente todas as esferas da ação
humana.
Esse Deus infinito também se revela a nós como sendo
um ser pessoal. Assim, quando Deus é descrito em
relacionamento com os seres humanos, é sua personalidade
que fica pressuposta; enquanto, quando se coloca ênfase
em sua soberania e transcendência, é óbvio que nada
acontecerá fora do seu controle. Por isso, a linha pontilhada
que o coloca como causa primária e remota perpassa todas
as esferas da história humana. O que queremos apontar é
que, na combinação de transcendência com personalidade
em um único ser, Deus, reside o nervo central da tensão
soberania-responsabilidade em todas as formas de
monoteísmo (CARSON, 2002).
Como causa remota das ações do homem, Deus, de
alguma forma, é removido do homem quando este peca.
Este padrão que preserva Deus distante do pecado, ao invés
de mostrar Deus como possuindo qualquer contingência,
destaca a certeza de seu julgamento santo (Is 29.15ss; Jr
16.16ss). Aqui em Lamentações, Deus manifesta seu rigor
judicial conjugado com sua soberania por trás de eventos da
história da salvação. Abaixo, notaremos algumas
observações exegéticas e pastorais sobre Lamentações,
capítulo 3, destacando o senso judicial soberano de Deus e
como ele se relaciona com a maior de todas as catástrofes
da história de Israel.

Soberania problemática na tragédia: resumo


histórico

A soberania divina, como já referida, possui dois


aspectos: existe o lado da soberania legal, positiva (o lado
bom), e possui o aspecto ruim, o que denominamos de
soberania problemática. Observe, por exemplo,
Lamentações 3.37, quando afirma: “Quem é aquele que diz
e assim acontece quando o Senhor não mande?”. É
somente o Senhor que tem autoridade (soberania boa). Os
autores do Antigo Testamento não somente pressupõem a
responsabilidade da humanidade, vista na ação soberana
judicial de Deus, mas vão além disso, destacando essa
soberania mesmo quando as devastações de fenômenos
observáveis parecem saltar aos nossos rostos. A soberania
problemática é encontrada no versículo subsequente (Lm
3.38): “acaso não procede do Altíssimo tanto o mal quanto o
bem?”
Rapidamente, pessoas partem para defender a Deus e
apelam às análises de vocabulário como se a presença de
um vocabulário, ou mesmo a ausência dele, fosse fator
determinante do significado. Mesmo que um léxico esteja
ausente, um conceito profundo pode estar embutido no
contexto, cobrindo um grande espectro de significado. O
autor de Lamentações constantemente discerne a mão de
Deus por trás da percepção de eventos históricos. O caso da
destruição de Jerusalém é um exemplo disso, a respeito do
qual apresentaremos um breve panorama.
Lamentações tem seu contexto histórico situado em
aproximadamente julho de 588 a.C. Israel não acreditava
mais que qualquer inimigo pudesse transpor os seus muros
e incomodar o status quo. Ezequias havia resistido, e eles
achavam que foi por intermédio de suas próprias forças que
saíram vitoriosos contra Senaqueribe - o leopardo devorador
da Assíria. Este leopardo já havia devorado o Iraque
(Babilônia). Ele destruiu o Norte, sitiou, dominou e destruiu
Samaria (a capital do Reino do Norte). Entretanto, Ezequias
conseguiu fortalecer Judá. Ele teve em seu reinado quase
um período de prata, saindo-se vitorioso contra a investida
de Senaqueribe; também obteve avanços na agricultura e
tecnologia do Reino do Sul (Judá). Esta suposta
prosperidade levou o povo a se esquecer de seu Deus. As
vitórias e os avanços econômicos da nação não foram
méritos dele, mas de Deus, ainda que o povo não tenha
reconhecido.
Em 588 a.C., Zedequias, um rei vassalo, subordinado
à Babilônia, teve a audácia de se rebelar contra
Nabucodonosor. A passagem correlata de 2Crônicas
evidencia que foi Deus quem assentou no coração de
Zedequias para que ele salvasse muitas vidas, porém
Zedequias se rebelou contra Deus e, no ano 588 a.C, teve
início uma guerra (cerco) que durou 18 meses. No primeiro
ano, o desastre já estava feito, porque Nabucodonosor
enforcou os príncipes e matou os anciãos. Ele ordenou o
estupro de virgens, subjugou e assassinou crianças (Lm 5).
A situação ficou insuportável a tal ponto que alguns
sobreviventes tentaram escapar. Esta é uma parte dolorosa
da história de Israel, porque muitos conseguiram escapar;
enquanto isso, os edomitas, grandes inimigos de Judá,
estavam lá entregando e delatando os judeus para a grande
nação da Babilônia (cf. Isaías 62, 63, 64).
O autor de Lamentações observa o cerco e o desastre
feito depois de 18 meses: não tem água e comida na cidade
de Jerusalém; famintas, algumas mães começam a, num ato
sôfrego de sobrevivência, praticando o canibalismo, comer
os seus próprios filhos (4.10). Crianças padecendo de fome
(4.4), corpos estirados, um odor insuportável. É nesse
contexto que Lamentações reside. É aqui que o clamor
genuíno do profeta vai reverberar diante da destruição de
sua cidade querida. O fato é que as Escrituras não se
propõem a negar cadeias de causalidade, mas igualmente
não estão acostumadas a se encherem de raciocínios que
dão a essas ideias de causalidade uma prominência
indevida. Como nos mostra o poeta de Lamentações, ele se
volta diretamente para o agente divino (4.11). O autor não
se queixa da causa secundária, os babilônios liderados por
Nabucodonosor, o orquestrador dessas ações, agindo em
resposta ao seus desejos e motivos compelidores.
Em 586 a.C., no final de julho e começo de agosto,
Jerusalém desapareceu do mapa, e a história de Israel
entrou em colapso. Os que não morreram foram enviados
para o exílio, em levas nos anos 605 a.C. e 596 a.C.
Zedequias se rebelou contra Deus, e a situação era
aterradora. Jerusalém se transformara numa cidade horrível
de se viver: gente empalada, pendurada, enforcada, com as
vísceras expostas, canibalismo, fome extrema, desnutrição
e doenças infecciosas são um triste retrato dos moradores
daquela cidade. Há clamor, há grito abusivo, não dá para
morar naquele local e ainda manifestar alguma sanidade
física e mental. É um ambiente totalmente insalubre e
inóspito.
Essa nação desfigurada em Lamentações 1 e 2 ganha
ares de povo totalmente esmagado e despedaçado. A frase
chave é “não há quem nos conforte” (1.2, 9, 16, 17, 21). A
quantidade de verbos expressa bem isso: precipitou, não se
lembrou, devorou, não se apiedou, derribou, cortou, retirou,
ardeu, entesou, destruí, derramou, tornou-se inimigo,
demoliu, rejeitou, intentou, quebrou. Esses e outros verbos
em nenhum momento são usados para se referir a
Nabucodonosor ou aos babilônios. Deus é o sujeito, e a
acusação de toda essa calamidade é atribuída a ele. O
poeta vê Deus como orquestrador de todas as ações
humanas que estão destruindo o seu povo. Não obstante ele
deixar claro a distância de Deus em tudo que está
acontecendo: “...até que o SENHOR atenda e veja lá do céu”
(Jr 3.50; veja v. 55). Deus é o iniciador distante das ações
dos babilônios, porque a causa próxima e, portanto,
responsável por tudo que está acontecendo são os
babilônios (3.59-66). Todas essas expressões pressupõem a
ultimidade ou concorrência de Deus, por isso, o lamento
está sendo dirigido a ele; como o autor do Salmo 88, o
poeta de Lamentações está se queixando a quem de direito
(3.56).
O cerne da soberania problemática pode ser notado em
Lamentações 3.8, pois o poeta encara a adversidade como
suportável, mas observe qual é a maior dor que ele
enfrenta: “ainda quando clamo e grito, ele não admite a
minha oração”. O problema não é encarar a adversidade, o
problema é encará-la sem esperança. Ele não tem ninguém
a quem recorrer dentre os homens, porque sabe da
corrupção dos sacerdotes, dos políticos e dos demais
cidadãos (Jr 8.4-22). Na verdade, o que mais o incomoda é o
fato de Deus estar em silêncio. Se cremos que ele é
soberano e responde o nosso clamor, então desejamos que
ele venha em nosso auxílio. Mas, aqui em 3.8, o profeta só
encontra o silêncio de Deus.
Uma das estratégias dos alemães para chocar os judeus
era matar as crianças judias na frente dos seus pais. Eles
enforcavam as crianças dos judeus perguntando aos pais:
“Onde está Deus?”; enquanto isso, as crianças se debatiam
na corda. O eco dessa pergunta ressoava incessantemente
na pergunta refeita pelos pais que perdiam seus filhos:
“Deus, onde estás?”. Esta é a soberania que incomoda
(soberania problemática), pois não é isto que esperamos de
Deus. Pode ser difícil de aceitar, mas o capítulo três de
Lamentações nos apresenta uma visão muito elevada de
Deus. O propósito fica bem claro: no meio do caos, Deus
continua soberano sobre todas as circunstâncias e detalhes
da criação. A lição aqui é que o poeta persevera na fé em
Yahweh, mesmo quando Yahweh está distante dele. Ele não
escorrega para um ateísmo ou uma revolta contra Deus,
pois ele sabe muito bem quem é o único que pode mudar as
circunstâncias da sua vida (Lm 3.55-56).
Lamentações capítulo 3 é estruturado de tal forma que
entendamos que, na visão elevada de um Deus soberano,
nada escapa. Nada, nem mesmo uma doença terminal. Tal
doença pode nos pegar de surpresa, mas não pode
surpreender um Deus soberano que tudo faz como lhe
agrada. Ele só não está obrigado a dizer que propósito
possui em fazer alguém prostrar-se com um câncer. Ele é
soberano; não deve satisfações nem justificativas a
ninguém. As palavras de Sproul (2009, p. 118) encaixam
bem:
Nem sempre estamos inteiramente satisfeitos com o
que Deus está fazendo em nossa vida. Algumas vezes
experimentamos um conflito entre o propósito de Deus
e o nosso propósito. Eu nunca escolho sofrer de
propósito. Ainda assim, pode estar dentro do soberano
propósito de Deus que eu sofra.
Lamento é adoração, porque expressa uma fé
perseverante mesmo quando Deus parece distante,
opressor e silencioso. Observemos a passagem de 3.17,18:
“Afastou a paz de minha alma; esqueci-me do bem. Então,
disse eu: já pereceu a minha glória, como também a minha
esperança no Senhor”. Em 3.17, o poeta manifesta seu
interior: “afastou a paz de minha alma; esqueci-me do
bem”. Em outras palavras, o autor não faz mais ideia se
existe algo realmente bom, porque suas lembranças estão
obnubiladas. Quando chegamos ao verso 18, parece que as
esperanças do poeta se esvaíram: “já pereceu a minha
glória, como também a minha esperança no Senhor”.
É nesse contexto que o capítulo três se torna o pêndulo
que vai sustentar os outros dois capítulos. Ele começa com
franca honestidade. Quando se vê mães comendo e
devorando seus próprios filhos por causa da fome, quando
se vê príncipes sendo enforcados, sacerdotes e profetas
decapitados, crianças rastejando no chão de fome,
desnutridas, os homens não ficam calados. O poeta afirma:
“perdi a minha esperança” (3.18). Nossa primeira atitude é
interpretar esta asserção como falta de fé por parte do
profeta. No entanto, uma lição que aprendemos desse
gênero literário é que qualquer coisa que seja dita tem de
ser dita ao Senhor. Então, ele se dirige a quem pode tirá-lo
do poço de aflição em 3.19: “Lembra-te da minha aflição e
do meu pranto, do absinto e do veneno”.
Ele apela à memória divina: “Lembra-te”. Esta é uma
expressão comum do Antigo Testamento; nestas ocasiões
Deus procura o seu povo e o resgata. Aqui memória é
motivação para ação. Deus faz isto, ele remove tudo ao
nosso redor. Quando pensamos que o poeta está revoltado,
é como se repentinamente ele caísse de joelhos dobrados e
dissesse: “eu apelo a ti, Senhor! Lembra-te de mim e muda
o meu estado, pois as minhas lembranças consistem
meramente em aflição e pranto”. Em seu abatimento e
fraqueza, o poeta estava tomando fôlego para fazer uma
das declarações mais sublimes de toda a Escritura,
constante em 3.21: “Quero trazer à memória o que me pode
dar esperança”.
“Senhor, lembra-te de mim!”. É o que ele pede. Isso
manifesta o desespero de seu coração, uma vez que as
lembranças do poeta consistiam apenas em choro e aflição.
Mesmo aflito, suas esperanças não desvaneceram. Ele
queria mudar o cenário de sua memória, e somente a
intervenção de Deus poderia mudar o quadro do momento.
A LXX fez uma tradução interessante, dizendo: “quero trazer
para o meu coração e é por causa disto que eu
perseverarei” (Ταύτην τάξω εἰς τὴν καρδίαν μου, διατοῦτο
ὑπομενῶ). A maioria das traduções para o português
(inclusive a Almeida Revista e Atualizada) traduziu como
“esperança”, mas o léxico grego (ὑπομενῶ) traz a ideia de
“perseverar”, “permanecer”. A ideia não é trazer para a
memória, mas para o coração. E como o coração é o centro
das nossas afeições, o significado seria “eu quero trazer
para o meu coração e é por causa disto que eu persevero”.
É lógico que esperança está relacionada com o contexto de
perseverar, mas é interessante observar a fluência da
passagem, a fim de entendermos melhor a argumentação
do profeta-poeta (3.22, 23: “As misericórdias do Senhor são
a causa de não sermos consumidos, porque as suas
misericórdias não têm fim; renovam-se cada manhã.
Grande é a tua fidelidade”).
Sem esperanças, aparentemente o lamentador
precisa clamar a quem de direito, Deus. Ele começou
dizendo: “pereceu minha esperança”, mas aqui, diante do
Senhor, ele afirma: “minha esperança está no SENHOR
(Yahweh)!”. O que aprendemos do poeta de Lamentações é
que a soberania de Deus, em nenhum momento, devora a
responsabilidade humana, mas não deixa margem nenhuma
para qualquer ideia metafísica de contingência divina. Que
fique claro que há mais em Deus no Antigo Testamento do
que soberania, mas a soberania se destaca mais em
passagens como esta de Lamentações. Uma grande lição
aqui pode ser extraída de J. A. Motyer (1974, p. 156): “A ira
de Deus é perpétua: a reação automática de uma natureza
santa em face de rebelião e impureza. Todavia, igualmente
eterna é sua determinação de tomar, salvar e guardar um
povo para si”. É importante lembrar que existe mais que
soberania em Deus, por maior que seja a contemplação da
soberania. O poeta coloca o seu foco nela, e podemos
aprender deles três lições.

6.3 Três lições sobre a soberania problemática em


Lamentações 3
A primeira lição é que a fé repousa sobre uma verdade
sólida: Yahweh é cheio de misericórdia e cheio de
compaixão. Ele não nos trata segundo os nossos pecados.
Por maior que seja o sofrimento, o escárnio, a dor, a
tristeza, o abandono, devemos perseverar, tendo em vista a
realidade eterna pela qual vivemos aqui e agora. Isto é o
que nos fala Agostinho em suas Confissões:
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde
demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e
eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-
me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas
comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe
de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não
existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a
minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou
a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e,
respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora
tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou
ardendo no desejo de tua paz! (X, 27.38).[43]
A segunda lição nos ensina que, ao abraçarmos a
soberania problemática, nós sempre veremos que a nossa
vida é difícil, mas - diferentemente dos ateus - nós temos
sempre alguém a quem clamar. Aqui está a base de nossa
esperança. Nós temos alguém para pedir socorro. Eis uma
grande motivação para orar, clamar e interceder. Riquezas,
reconhecimento, fama, viagens e conforto não são capazes
de tirar o homem da escravidão. Se temos algo a lamentar,
temos que fazer a quem de direito.
A terceira lição é que nossa fé deve se fortalecer e
aumentar diante do sofrimento. Problemas e tribulações
prolongados podem nos levar a um desencorajamento que
testa nossa confiança no controle soberano de Deus. O
crente pode se iludir nestes momentos e querer trocar a
confiança em um Deus sábio, amoroso e soberano por um
fim frio e impessoal importante para socorrer nas noites
escuras da alma. A tentação de parar de orar, de obedecer
e buscar por sabedoria é sempre constante, mas o poeta,
como Jó, não abre mão da sua fé em quem realmente pode
transformar o quadro de vida.
7 SOBERANIA PROBLEMÁTICA EM
LAMENTAÇÕES 5

Tu, Senhor, reinas eternamente, o teu trono subsiste de


geração em geração. Por que te esquecerias de nós para
sempre? Por que nos desampararias por tanto tempo?
Converte-nos a ti, Senhor, e seremos convertidos; renova os
nossos dias como dantes. Por que nos rejeitarias
totalmente? Por que te enfurecerias sobremaneira contra
nós outros?

Lamentações 5.19-22

Diversas passagens de teor compatibilista descrevem


Deus como usando governantes maus para executarem
julgamento sobre outros (Is 10.5-19, por exemplo). O livro
de Jeremias é um outro exemplo disso, cujo contexto parece
ser o mesmo do livro de Lamentações. O momento histórico
de Lamentações é considerado o maior na história de Israel,
maior até mesmo que a destruição do ano 70 d.C. O caos é
generalizado, e a soberania de Deus e a responsabilidade
humana se fazem presentes de maneira nítida.
Por mais que tentemos compreender exaustivamente a
soberania de Deus (o que por si já é impossível), ela se
apresentará problemática por muitas vezes. Se formos bem
honestos, sempre que contemplarmos as páginas de
Lamentações ficaremos surpresos com a situação da nação
ali descrita. Quando falamos de Lamentações, devemos agir
com sinceridade. No mundo de hoje, não há muito lugar
para pessimismo, pelo menos nos ideais vislumbrados pela
maioria dos líderes religiosos de nossa nação. A igreja, de
um modo geral, gosta do otimismo, pois está influenciada
pela cultura pop em múltiplos aspectos. As muitas
conquistas e os sonhos vendidos pela mídia e pelo comércio
nos fazem querer distância de pessimismos e conspirações
contra nossos sonhos, resquícios de um positivismo,
exemplificado de maneira singular na frase “Ordem e
Progresso”, presente na bandeira nacional brasileira. Tudo o
que é negativo nós tendemos a repreender! Essa cultura
olha as coisas e exige que tudo sempre esteja certinho, no
seu lugar, especialmente no mundo da fé em Deus, no
mundo do Deus da Bíblia. Nós gostamos disso e estamos
mais dominados pela teologia da prosperidade do que
imaginamos.[44]
O livro de Lamentações, portanto, tem sido altamente
rejeitado. Quando sua estrutura não é devidamente levada
em conta, a maioria de seus leitores entra em desespero ao
se deparar com a soberania problemática. Todos gostam de
Lamentações 3.22: “As misericórdias do Senhor são a causa
de não sermos consumidos”. Porém os leitores usuais de
Lamentações voltam a se deparar com queixas e a
possibilidade da ausência de Deus em 3.42: “Nós
prevaricamos e fomos rebeldes, e tu não nos perdoaste”. Se
não interpretada corretamente, a leitura de Lamentações se
torna muito cruel. Isso pode ser rapidamente depreendido a
partir de uma das porções mais dolorosas do livro,
encontrada em 4.10: “As mãos das mulheres outrora
compassivas cozeram seus próprios filhos”.
A realidade é a do cerco, um cerco que durou 18
meses. Jeremias havia dito a Jerusalém: “Obedeçam a
Nabucodonosor. Façam um acordo com ele, não sejam
rebeldes. É o Senhor quem quer assim”. Jeremias chega a
declarar que quem está pelejando contra Israel não são os
babilônicos; mas, em um sentido último, o próprio SENHOR
(Jr 21.2-5). Se os babilônicos tivessem a possibilidade da
escolha contrária, como Deus poderia possivelmente
afirmar isso? O fato é que eles não eram livres no sentido
libertário; eles iriam fazer precisamente como Deus
secretamente ordenou.
O povo de Israel se rebelou contra Jeremias e, por
isso, foi cercado por um ano e seis meses, sem água, sem
alimentação, sem estrutura de higiene, com príncipes
enforcados e pessoas famintas. Mas o ponto que gera maior
surto de antipatia é o canibalismo infantil efetuado pelas
próprias mães (Lm 4.10). Não se escandalize com este
verso. Apenas crie esta imagem por um instante. A fome
era tão grande e chegou a tal ponto que as próprias mães
colocaram seus filhos na panela para comer. O profeta sabia
que eles tinham prevaricado, mas e as crianças? Que culpa
tinham elas? Em que elas prevaricaram? Um agravante para
a interpretação encontra-se em Jeremias 19.9: “Fá-los-ei
comer as carnes de seus filhos e as carnes de suas filhas, e
cada um comerá a carne do seu próximo, no cerco e na
angústia e que os apertarão os seus inimigos e os que
buscam tirar-lhe a vida”.
Usamos o termo soberania problemática também para
nos referirmos ao mais complicado de todos os problemas
entre os teólogos que desejam formular alguma declaração
clara da ultimidade de Deus, o problema do mal. Nenhuma
pessoa inteligente ousaria atribuir o mal a Deus, mas como
afirma Carson (2002, p. 211): “não é fácil usar a linguagem
de causalidade sem assim aparentemente fazê-lo”. Não
seríamos justos com as Escrituras se negássemos que elas
afirmam tanto o determinismo divino quanto a
responsabilidade humana. Como Berkouwer afirma de forma
contundente:
é impressionante nesta conexão que as Escrituras
nunca apresentam a Providência em sua relação com o
pecado por meio de argumento teórico, mas sempre
dentro da realidade histórica do poder invisível de Deus
e nossa responsabilidade contínua (BERKOUWER, 1952,
p. 153).

A maneira como essa relação acontece é sempre


assimétrica, e já ilustramos com uma figura que expressa
de forma limitada - reconhecemos - o compatibilismo. A
maneira como Deus se relaciona com o mal é totalmente
diferente da forma como ele se relaciona com o bem. Como
bem declarado por Tada e Estes (1997, p. 84): “Deus
permite aquilo que odeia para alcançar aquilo que ama”.
Nossa noção é limitada do quanto Deus impede o mal de se
alastrar. Há ocasiões, no entanto, quando Deus remove sua
restrição e o mal corre desenfreado.
Quando falamos de soberania problemática, queremos
dizer exatamente isto: tudo que ocorre no contexto de
Lamentações é fruto do governo soberano de Deus sobre a
criação. A nota do capítulo 5 deixa isto bem claro: “Tu,
Senhor, reinas eternamente!” (5.19). Isso quer dizer que,
como rei, Deus controla todas as esferas do seu reino; ele
ordena todas as coisas, e o seu plano não pode ser
contrariado. É isso que está no verso 19. Eis uma verdade
tácita! A afirmação do poeta é tão forte que ele
abertamente, no imperativo, sabendo da ultimidade de
Deus, declara: “converte-nos a ti, Yahweh, e seremos
convertidos” (5.21).
Se Deus é soberano, o trono dele é aquilo que
subsiste. Mas, mesmo depois de reconhecer isso, Deus
ordena todas as coisas que vão acontecer. Não há um único
item que esteja fora de seu controle e dos seus decretos.
Assim, quando nos deparamos com as Escrituras, não
adianta apelarmos para o livre-arbítrio. Na verdade, o livre-
arbítrio, conforme postulado convencionalmente, é um
mecanismo de escape para trazer alívio à nossa
consciência. Deus, de forma pessoal, nem sequer encostou
um dedo no massacre desse evento, mas observe como o
poeta não atribui nada do que acontece aos babilônios: “Vê,
SENHOR, e considera a quem fizeste assim! Hão de as
mulheres comer o fruto de si mesmas, as crianças do seu
carinho?... As minhas virgens e os meus jovens vieram a
cair à espada; tu os mataste no dia da tua ira, fizeste
matança e não te apiedaste” (Lm 5.20-21).
O fato é que a natureza pecaminosa na raça humana
está sempre envenenada, pronta para irromper causando o
máximo de estrago. Quando isso acontece, Deus permite
que pessoas más nessa situação se precipitem em seu
curso natural até que colham o que semearam. Isto é
verdade tanto para o povo de Israel na época como para os
babilônios. O senso judicial de punição pelos pecados pode
facilmente ser evocado, mas o que dizer das crianças? Elas
estão sendo punidas pelo quê? Queremos um Deus que
sempre evita o sofrimento de crianças; um Deus que nunca
lida com o mal. Por isso, muitos se tornaram céticos diante
dos sofrimentos, catástrofes e mortes inesperadas. A
pergunta “onde está o teu Deus?” nem sempre vem dos
lábios de zombadores. Mudando o possessivo para a
primeira pessoa do singular, muitos cristãos têm sua fé
abalada diante do sofrimento ao perguntarem para si:
“Onde está o meu Deus”?
Uma grande dificuldade gnosiológica para todos nós é
conciliar um Deus transcendente com um Deus que se
envolve, imanente. Aqui devemos reconhecer os limites de
nossa mente e de nossa compreensão, ao ponto de
expressarmos que nunca entenderemos todos os detalhes
de uma determinada questão. Jonas Madureira (2017, 181 –
itálico nosso) segue a mesma “estrada misteriosa”: “Fato é
que nem a apologética nem a teodiceia são capazes de
oferecer qualquer explicação específica sobre a razão de
Deus permitir o mal”. Romulo Monteiro (2018), ao falar
sobre a “tagarelice arminiana”, afirma o seguinte: “O
‘silêncio calvinista’ não é uma fuga da problemática, nem
fruto da indiferença e do obscurantismo – é obediência à
revelação. É convicção exegética”. O que encontramos
neste capítulo de Lamentações é a perseverança do poeta e
sua resignação de continuar na fé em Yahweh, mesmo
quando ele está em silêncio.

7.1 O problema da soberania


Simplifiquemos o argumento: o profeta sabe que Deus é
soberano (v. 19), mas esta soberania o atribula (v. 20), ou
seja, a vida é nua, crua e cruel. O profeta, então, clama, só
que agora com um forte senso da soberania de Deus:
“converte-nos (...) e seremos convertidos”. Ele utiliza a
mesma linguagem em Jeremias 20.7: “Persuadiste-me, ó
Senhor, e persuadido fiquei”. Ele conclui, então, no verso
22, apresentando duas perguntas que revelam bastante de
sua fé e de sua crença no Deus soberano, amoroso e fiel:
“Por que nos rejeitarias totalmente? Por que te enfurecerias
sobremaneira contra nós outros?”.
O seu desespero é tamanho que ele ora a Deus para o
livrar de Deus. Ele admite mais uma vez: “...ai de nós,
porque pecamos!” (5.16). A vida não é só sombra e água
fresca. Como lidar quando as coisas parecem estar fora do
meu controle? Como lidar quando, de alguma forma, Deus
nos coloca na beira do precipício, quando clamamos e ele
não responde? Pistas para esta resposta podem ser
extraídas da análise dos últimos versos de Lamentações 5.
O autor inicia o clímax da obra utilizando alguns
verbos expressivos (5.1): Lembra-te! De alguma forma, ele
quer trazer esperança; está no imperativo. Esse verbo já
apareceu outras vezes no livro, e aqui ele quer nos levar ao
clímax: Considera – pondera, Olha – observa, vê. Ele apela
para a condição sofrida e vergonhosa do seu povo; apela à
compaixão divina no meio de tanto sofrimento. O grande
problema é que Lamentações não apresenta o final que
gostaríamos de ver em um livro. Nós gostamos do final do
livro de Jó. Apesar dele ter perdido tudo no início do livro e
ter sofrido a presença acusadora de seus amigos, apesar da
doença, ao final, ele é restaurado; terminamos de ler o livro
clamando extremamente afeiçoados a Deus, fazendo coro
ao solo de Jó: “eu te conhecia só de ouvir, mas agora os
meus olhos te veem” (Jó 42.5).
Semelhante a Lamentações, nós não gostamos do
Salmo 88, porque possui um desfecho que não nos agrada.
E nós que vivemos numa cultura da confissão positiva não
levamos Lamentações a sério, porque achamos que a fé não
leva em conta situações negativas. Uma das provas de que
a confissão positiva impera em nosso meio é a frequência
com que se fala o famoso bordão “está repreendido”. Agora,
por que tendemos a repreender? É porque nós não
gostamos de coisas negativas. Por sinal, a igreja gosta sim
de cantar canções felizes que elevam a autoestima. E
quando a vida não está um mar de rosas e o céu se encerra
como um céu de bronze? É neste momento que podemos
olhar para o livro de Lamentações e nos apropriarmos de
sua rica mensagem. Porque lamento é adoração e expressa
louvor perseverante mesmo quando Deus está em
“silêncio”. Seu aparente silêncio não impede o poeta de se
referir àquele que é a referência de tudo na vida.

7.2 Deus em Lamentações é a referência de tudo


na vida (teorreferência)
Tudo o que ocorre em nossas vidas está debaixo do
controle e da vontade de Deus. Não existe contradição entre
o Deus absconditus e o Deus revelatus, isto é, a revelação e
o distanciamento de Deus. A expressão de Paulo em
1Timóteo 6.16: “[Deus] habita em luz inacessível”
apresenta este Deus absconditus. Entretanto, não
necessitamos ver essa relação como contrastiva e
autoexcludente. As coisas encobertas pertencem a Deus (Dt
29.29), e o próprio Salomão ouviu Deus enfaticamente falar-
lhe: “O SENHOR declarou que habitaria em trevas espessas”
(1Rs 8.12). Podemos notar que Deus parece querer se
revelar de uma forma escondida, a fim de deixar claro como
o homem deve abordá-lo. Berkouwer deve ser elogiado pela
qualidade de sua obra sobre a providência de Deus. Ele
declara que “a glória de Deus e sua santidade tornam-se
visíveis neste molde de revelação” (BERKOUWER, 1960, p.
119).
O ponto de interesse da nossa parte é que o homem
jamais penetra até onde Deus se esconde, mas ele precisa
dar ouvidos com toda a humildade, respeito e fé. O que
encontramos em Lamentações é que ninguém pode falar de
Deus de forma abstrata, mas na sua relação como criador e
redentor que tem historicamente com seu povo; no caso de
Jerusalém, uma relação punitiva. O desespero do poeta é
tamanho que ele reconheceu que há uma nuvem que
encobre o Deus de Israel que chega a toldar-lhe a glória
(2.1). A ação de Deus, por vezes, cobre o próprio pecador,
impedindo-o do acesso à sua presença (3.2). Outras vezes,
como nos fala Isaías: “Com certeza, tu és um Deus que te
escondes, ó Deus de Israel, o Salvador” (Is 45.15 AKJ).
O distanciamento de Deus aqui em Lamentações não se
apresenta como um atributo do Deus absconditus, mas uma
ocasião que parece empurrar o poeta e a nação de Israel a
buscar a presença de Deus. Os justos sabem a experiência
dolorosa quando Deus esconde sua face ou os seus ouvidos
deles (Lm 3.56). A oração do poeta é para que tal não
aconteça; e como percebemos às vezes sua oração é
respondida, mas somente como uma demonstração clara da
graça (Lm 3.32-33). O fato é que a ocultação de Deus soa
tão insuportável que é como se o próprio Deus guiasse seu
povo para dentro de lugares tenebrosos (3.6). Essa
ocultação e distanciamento de Deus são tão fortes e difíceis
de serem suportados que, neste ponto, o poeta de
Lamentações permite-nos respirar aliviados antes que
desistamos de continuar lendo o livro: “as misericórdias do
Senhor não têm fim; renovam-se cada manhã” (3.22-23).
Albrecht Oepke afirma em seus estudos de vocabulários no
Antigo Testamento: “Assim foge o homem que ora, foge do
Deus oculto para o Deus revelado” (OEPKE, 1964, p. 970).
Como achar o deus revelatus quando ele se esconde
por causa dos nossos pecados? Qual a saída para a ameaça
de Deus e sua ocultação judicial reta? Várias vezes Israel
teve que sentir na pele e aprender a seriedade da ocultação
de Deus, seu distanciamento do seu povo. Nestes casos,
eles precisavam encontrar uma forma para romper com as
trevas e trazer à luz o que os alivia. O poeta de
Lamentações sabe muito bem que a saída é quando o
homem está preparado para confessar sua culpa e se voltar
para Deus em fé (3.39, 40, 42; 5.16). O poeta está muito
consciente de que não existe uma experiência da vida em
que Yawheh não esteja envolvido. Somente sua revelação e
nova misericórdia podem mudar a situação, e isso só vem
por meio da confissão da culpa e por meio da fé. Observe
abaixo algo que consideramos importante. O hebraico
aparecerá, porque ele é de suma importância para
captarmos a mensagem que o autor nos traz.

Lamentações 5.19-20

Lamentações é um grande poema, que revela traços de


beleza e intencionalidade em sua estrutura. A ordenação
estrutural (sempre começando cada verso com uma letra do
alfabeto hebraico, em ordem crescente) é sublime, pois
cada capítulo possui vinte e dois versos, e cada verso
começa com uma letra do alfabeto hebraico. Os capítulos 1
e 2 têm 22 versos cada, mas, no capítulo 3, ele apresenta
de forma tripla o acróstico trazendo assim 66 versos. No
capítulo 4, o autor volta aos 22 versos, dispostos em
acróstico. Nossa surpresa é forte quando encontramos 22
versos no capítulo 5, mas nenhum acróstico. Talvez essa
seja a razão de Lamentações não é tão apreciado, com
exceção de Lamentações 3.22. Aparentemente, não
apresenta o final feliz. Quando chegamos no capítulo 5, a
ordem acróstica se desmancha. As explicações podem ser
diversas, quem sabe não seja porque a vida é cruel, porque
não temos como fazer uma oração de A a Z, posto que a
realidade fica embaçada.
Berkouwer, na análise sobre o Deus absconditus e o
Deus revelatus, em seu livro sobre eleição divina, conclui:
“O que o AT deixa bem claro é que através da fé a revelação
de Deus não é ameaça pela sua ocultação e sua luz
inacessível” (BERKOUWER, 1960, pp. 122-123). Parece que
o poeta sabe que, uma vez que ele encontrar novamente
Deus, Deus revelatus, ele reconhecerá a justiça de sua
ocultação e distanciamento por causa dos pecados de
Israel. Sendo assim, a mudança estrutural do livro, em seu
último capítulo, parece estar relacionada com o grande
sofrimento que ele estava passando, e a maior de todas as
dores é essa nuvem que esconde Deus dele. O capítulo 5,
então, termina de forma tal que gera uma certa inquietação
no leitor. Esse término parece ser uma forma de forçar o
leitor a prestar mais atenção, talvez ler por várias vezes o
mesmo capítulo, pois a resposta pode estar bem aí na sua
frente, absconditus ad revelatus.
Lina Long (2013), em sua tese de doutorado publicada
posteriormente pela Wipf & Stock, lançou bastante luz
nesse texto. Se observarmos cuidadosamente o texto
hebraico, perceberemos - somente em dois lugares, no
começo e no fim do capítulo - um mini acróstico, em 5.1-3 e
5.19-22 respectivamente.
Vejamos primeiramente Lamentações 5.1-3:

O poeta não fez um acróstico naquela mesma ordem e


estrutura. O que temos nas primeiras linhas não segue o
acróstico de estrutura a partir do alfabeto hebraico. Depois
desses versos, não aparece nenhuma outra estrutura
acróstica, a não ser nos últimos quatro versículos do
capítulo, mas, de novo, não segue o alfabeto hebraico. Se
assumirmos esse acróstico como intencional, o que parece,
o poeta está fazendo um jogo de palavras que, juntando
todas essas letras para formar uma nova frase, teríamos:
‫[ ְזֹ֤כר ְיהָו֙ה ַהַנָּבְיִא‬Zacarias, o profeta]. Literalmente, em uma
leitura normal, seguindo o hebraico da direita para a
esquerda, teríamos: “Lembra-te Yahweh...” (5.1). Não
podemos precisar se o autor original percebeu e
conscientemente planejou esse acróstico, mas fez bom
sentido uma vez que ele vem fazendo isso em todos os
demais capítulos.
Após uma breve revisão do que ele já havia mencionado
nos demais capítulos, ele escancara sua dor: “Cessou o
júbilo de nosso coração, converteu-se em lamentações a
nossa dança” (5.15). Para nossa surpresa, o poeta de
Lamentações novamente apresenta outro acróstico, desta
vez na maior declaração de soberania de Deus (5.19). Ele
apela ao próprio Deus para agir soberanamente e convertê-
lo a si (5.21).
Então, em Lamentações 5.19-22, o outro acróstico
aparece:

As primeiras letras das quatro linhas de Lamentações


5.19-22 formam a palavra (‫[ )ֱאֹלִהים‬Deus], mas flexionada
com o sufixo possessivo da segunda pessoa do singular
“teu”, ‫[ אלהך‬teu Deus]. A letra da última palavra tem um
‫ּכ‬ no início da palavra, da direita para esquerda temos a
mesma letra, só que quando escrita no final, ela tem a
forma a seguir, ‫ך‬. Só observamos atentamente, nestes
versículos, o poeta trazer uma mensagem abscôndita
usando um artifício chamado de acróstico mesótico
teléstico. Este tipo de acróstico não usa somente as
primeiras letras de cada linha, mas também as últimas
letras de cada estrofe, daí o nome teléstico, para formar
uma mensagem poética estrutural. As letras finais formam
duas palavras distintas de cima para baixo no acróstico ‫רם‬
‫מא‬. As palavras geração e dia têm sua última letra
formando a palavra ‫[ רם‬sobremaneira], a última palavra do
livro encerrando o acróstico.
Se assumirmos então como válida a descoberta desse
tipo de acróstico, o poeta está fazendo um caminho inverso
do Deus absconditus e o Deus revelatus. Como
encontramos nos Cânones de Dort V, artigo 15, as trevas
vêm sobre a alma humana, “até quando eles mudam de
curso por meio de um arrependimento sério, a luz paterna
de Deus resplandeça novamente sobre eles”. Por isso, a
mensagem escondida do final do livro marca a persistência
do poeta; diante da realidade dura da vida, ele não se move
para o ateísmo nem abre mão da fé teísta em Yahweh.
Mesmo que Deus esteja em silêncio, ele se recusa a ficar
em silêncio, mas lamenta a quem pode mudar o quadro de
sua vida, atendendo seu clamor: ‫זכר ה׳וה הנבויא אלהך‬
‫רם מאד‬ [Zacarias, o profeta (diz): o teu Deus é exaltado
sobremaneira].

7.4 Perguntas fáceis em circunstâncias difíceis!


Coloque-se no lugar dos moradores de Jerusalém sitiada,
na época do profeta Jeremias. Vislumbre o cenário e a
derrocada total da nação. É diante dessas calamidades que
desejamos fazer algumas perguntas ao caro leitor.

1) Você adoraria a Deus mesmo perdendo todas as


posses materiais?
O autor termina o livro com uma pergunta: “Por que te
enfurecerias sobremaneira contra nós outros?”. Mas
digamos que sua situação seja semelhante à situação dos
moradores de Jerusalém, em que perderam totalmente os
seus bens, você adoraria ainda assim?

2) Você adoraria a Deus se perdesse os seus


filhos?
No caso daqueles moradores, alguns não somente
perderam os seus filhos, mas os mataram para lhes servir
de alimento. Você seria capaz de cantar uma canção feliz
para espantar os males diante da morte de seu próprio filho,
segundo o ditado: “quem canta seus males espanta”? Ou
você lamentaria? Lembre-se de que lamentação é adoração!
Quando reconhecemos quem Deus é, rei, eterno e
soberano, nos submetemos a ele em adoração. Você
adoraria?

3) Você adoraria a Deus se perdesse sua saúde?


Se aquele diagnóstico triste chegasse para você ou
aquela notícia inesperada de uma doença degenerativa lhe
fosse dada, você adoraria a Deus?

4) Você adoraria a Deus se perdesse seus amigos?


Falar em morte de amigos nos faz pensar em Agostinho,
que ainda bem jovem perdeu um grande amigo. Tal morte
abalou tanto Agostinho que o fez desgostar-se da vida. Ele
chegou a afirmar o seguinte:
minha alma era oprimida ao peso de grande
angústia. Senhor, eu sabia que a ti deveria erguê-la,
para que ficasse curada, mas não o queria nem podia”
(IV, 7.12). Observe a fúria de seu coração diante do
falecimento de seu amigo: “meus olhos o procuravam
por toda parte sem encontrá-lo; eu odiava o mundo
inteiro, aborrecia-me porque o amigo não mais existia, e
ninguém podia dizer-me: ‘aí vem ele’” (Confissões.
IV.4.9).
Na ocasião da morte de seu amigo, Agostinho ainda não
tinha sido regenerado, mas, depois de convertido, Agostinho
reconhece que a única pessoa que nunca o desampararia
seria Deus, uma vez que Deus nunca morre. Porém,
imagine-se no lugar de Agostinho, perdendo um amigo mui
querido para si, você adoraria a Deus?

5) Se Deus ficasse em silêncio, você o adoraria?


Às vezes, esperamos uma intervenção divina em prol de
uma casa pela qual tanto clamamos a ele, mas não ouvimos
resposta alguma nem sequer um murmúrio. Diante disso,
você tem adorado a Deus?

7.5 Por que Deus é a referência de tudo na vida


(teorreferência)?
A Bíblia está cheia de menções à soberania de Deus
sobre todas as coisas e circunstâncias, inclusive sobre o
mal! Lamentações está nos mostrando que nada foge à
direção de Yahweh. E, ainda por cima, reforçamos que o
autor de Lamentações não afirma que o fato de Deus
determinar todas as coisas o torna culpado pelo mal que
existe no mundo.
O que mais nos causa admiração é a atitude do poeta
ao final do livro: no meio do caos das experiências
humanas, mesmo lá, Deus dirige todas as coisas. É como se
diante das reclamações e queixas da nação, Deus dissesse:
“cala-te, verme! Você não sabe o plano que eu estou
traçando”. É como se diante das reclamações que fazemos
a Deus, ele nos dissesse: “Você não sabe de nada. Um
atraso que você teve por causa de um retorno que teve que
fazer para buscar a carteira que havia esquecido foi o
suficiente para livrá-lo da morte”. Isto, só para citar um
exemplo ameno a fim de nos fazer compreender que as
coisas que ocorrem no tempo e no espaço não conseguem
ser explicadas em seus detalhes, causas e consequências
de maneira exaustiva, nem mesmo pela maior equipe de
cientistas do mundo. Quanto mais as coisas que estão além
do tempo e do espaço!
Duas verdades precisam até aqui serem colocadas sem
exclusão mútua na nossa análise de Lamentações: a Bíblia
nunca questiona a soberania de Deus e nunca diminui a
responsabilidade humana. Lamentações não ignora a
responsabilidade do homem. É nesse sentido que a vigência
da responsabilidade humana não existe para diminuir a
responsabilidade divina, pelo contrário as Escrituras
pressupõem estas duas realidades, conforme as premissas
acima. A responsabilidade, entretanto, não torna o homem
autônomo, uma vez que a soberania pertence a Deus.
PARTE IV O TRONO
COMPARTILHADO?
No âmbito da teologia, a soteriologia é uma das áreas
que mais tem despertado a atenção dos acadêmicos e da
comunidade cristã como um todo. Ao longo da história da
igreja, essa temática é recorrente, remontando às disputas
entre Agostinho e Pelágio, como já vimos no capítulo 2.
Desenvolveu-se com mais precisão entre os reformadores,
com destaques para Lutero e Calvino, e foi sistematizada
com maior clareza pelos teólogos do século 17, conforme
estudado no capítulo 3. Desde então, os escritos que
versam a respeito da doutrina da salvação têm se
proliferado aos milhares.
Um dos principais fatores para tanta repercussão é a
aparente tensão entre a soberania de Deus e a liberdade
humana. Esta tem sido focalizada pelos discípulos de
Armínio e aquela pelos seguidores de Calvino. Posições
intermediárias tentaram harmonizar os dois polos em
questão, e isso gerou outras escolas, dentre as quais podem
ser destacadas o amiraldianismo e o molinismo.
O capítulo 8 concentrará seu foco em analisar um dos
aspectos do sistema soteriológico do molinismo, a saber, o
conhecimento médio de Deus. No capítulo 9, veremos a
tentativa de compatibilização do conhecimento médio com
o calvinismo, verificando se isto é viável à luz do que foi
apreendido dos dois sistemas.
A justificativa para essa análise reside no fato de que
alguns proponentes do calvinismo têm inserido a teoria
mestra do molinismo no sistema soteriológico calvinista.
Isso tem gerado instabilidade no meio da comunidade
acadêmica, uma vez que, de maneira inédita, uma teoria
molinista, denominada conhecimento médio, é adaptada e
conectada com os pressupostos do sistema calvinista.
A compatibilidade ou incompatibilidade do
conhecimento médio com a soteriologia calvinista será
colocada em análise, a partir da metodologia proposta a
seguir. Primeiramente, faremos uma apresentação do
molinismo de forma resumida, focalizando a teoria do
conhecimento médio, conforme proposta por Molina e
reproduzida por William L. Craig, com a devida
apresentação do suporte bíblico utilizado por esses autores,
e as devidas réplicas ao molinismo. Em seguida, será
apresentada a tentativa de compatibilização do calvinismo
com a teoria do conhecimento médio do molinismo. Bruce
Ware e Terrance Tiessen são os principais proponentes desta
abordagem que ficou conhecida como conhecimento médio
compatibilista (Ware) ou calvinismo do conhecimento médio
(Tiessen). Conectado a isso, observaremos se o conceito de
conhecimento médio de Molina é o mesmo utilizado por
Ware e Tiessen.
Por fim, uma análise da viabilidade do calvinismo do
conhecimento médio será feita, considerando-se os
pressupostos molinistas e calvinistas, análise das passagens
bíblicas em questão e da literatura teológica que têm
abordado este conceito, a fim de se observar se há ou não
uma compatibilidade entre o calvinismo e o conhecimento
médio ou se, nos termos como essa harmonização foi
elaborada, o conceito de conhecimento médio foi
modificado a tal ponto de não corresponder nem ao que
Molina propôs nem ao que o calvinismo tem proposto.
Admitimos os limites de nossa abordagem, especialmente
em relação à linguagem acadêmica e ao necessário
aprofundamento em algumas discussões filosóficas. Para os
leitores com interesse mais acadêmico do que prático,
dispomos as notas de rodapé com referências bibliográficas
sobre o assunto.
8 O MOLINISMO
Principalmente, com relação ao atributo da onisciência,
nós temos visto que a Bíblia ensina que Deus conhece
completamente não apenas o passado e o presente, mas
também o futuro, incluindo os atos livres dos indivíduos.
Nem a tentativa de negar a presciência divina nem a
tentativa de negar a liberdade humana podem interagir
pacificamente com o texto bíblico.
William Lane Craig

Um dos grandes problemas na discussão das teorias


indeterministas é a relação entre a liberdade do homem e a
presciência de Deus, especialmente o conceito de liberdade
libertária. A ideia subjacente é que, se existir um ser que
pode antever infalivelmente todas as coisas que
acontecerão e esse ser não pode errar na sua presciência,
então o ser humano não pode mudar aquilo que foi
antevisto, do contrário ele seria errante. Portanto, não é
possível compatibilizar esses pontos “antagônicos”, sendo
logicamente concluído que o homem não é livre com o
poder de fazer o contrário. Noutras palavras, se os eventos
futuros podem ser conhecidos, então eles já estão
previamente determinados.
Os indeterministas têm proposto três possíveis
soluções para o problema na tentativa de resolver essa
tensão. São elas: a solução boeciana, presciência simples, a
solução ockhamista, conhecimento presente e, por último, o
conhecimento médio ou a solução molinista. Nesta parte
nos deteremos somente à solução molinista, por se tratar
de uma das mais bem representadas na atualidade por
figuras como Alvin Plantinga e William Lane Craig. Nossa
proposta aqui não entrará em questões filosóficas
profundas, dado o espaço e o propósito desta obra. As
objeções aqui estão limitadas aos que possuem uma alta
visão das Escrituras judaico-cristãs, mas rejeitam a
premissa máxima da nossa pesquisa: os escritores bíblicos
são compatibilistas.
Nossa asserção aqui parte do pressuposto de que o
molinismo define termos cruciais da tensão entre liberdade
humana e presciência divina não com base em um estudo
bíblico indutivo exaustivo, mas com base em definições a
priori, geralmente cercadas de pressuposições filosóficas,
que - em sua maioria - buscam no texto não a resposta que
ele apresenta, mas somente aquilo que convém. E, sem
dúvida nenhuma, o abuso mais frequente aqui reside na
definição de livre-arbítrio pelos indeterministas. A
unanimidade desses sistemas, diferente do compatibilismo,
é a crença de que o livre-arbítrio implica no poder absoluto
do contrário (cf. Peterson, 1982). Em seu livro Evil and the
Christian God [O mal e o Deus cristão], ele chega a
argumentar que, de forma lógica, é impossível para um
Deus todo-poderoso controlar um ser livre; se ele é livre, ele
não poderá ser controlado. No entanto, ao longo de todo o
livro, ele desenvolve a ideia que é logicamente impossível
somente se a definição de liberdade adotar o poder
absoluto de fazer o contrário.
De fato, caso a definição de liberdade seja libertária,
isto é, o poder absoluto de fazer o contrário, então isso
conduzirá tal conceito a um conflito irreconciliável com a
evidência bíblica que tacitamente rejeita a ideia de um Deus
absolutamente contingente (CARSON, 2006, p. 194). As
questões mais frequentes contra esse tipo de definição a
priori são: se liberdade significa o poder absoluto de fazer o
contrário, nós teremos esse tipo de liberdade no céu?
Assumindo respostas como, “Deus nos guardará de fazer o
contrário da sua vontade no céu”, isso não significaria que o
livre-arbítrio será sacrificado no céu? Na glória, os seres
humanos serão privados daquilo que os torna criaturas
morais, só porque não terão o poder de fazer o contrário
nos céus? Essas e outras perguntas, juntamente com
definições básicas, mostrarão que as abordagens
indeterministas a essa tensão não encontram o suporte
bíblico honestamente analisado como um todo.

Breve histórico do molinismo


O termo molinismo é atribuído àqueles que comungam
das ideias filosóficas, teontológicas e soteriológicas do
jesuíta espanhol Luís de Molina, que viveu entre 1535 e
1600 d.C. Em 1553, ele entrou para a Companhia de Jesus.
Suas aptidões para o ensino logo foram notadas, e ele
passou a ensinar em Coimbra (1563-1567) e Evora (1568-
1583). Em seguida, foi para Lisboa, de onde escreveu sua
magnum opus:[45] Liberi Arbitrii cum Gratiae Donis, Divina
praescientia, Providentia, Praedestinatione et Reprobatione
Concordia (CROSS, LIVINGSTONE, 2007, p. 1100).
Como o próprio nome sugere, a principal obra de Luís
de Molina buscava uma visão equilibrada da soberania de
Deus e da liberdade humana. Apesar do contexto de
disputas entre católicos e protestantes, os escritos de
Molina alocam-se primariamente numa disputa interna do
catolicismo entre os jesuítas e os dominicanos. Estes
enfatizaram a soberania divina e, no século 16, foram bem
representados por Francisco Zumel e Domingos Bañez;
aqueles enfatizaram a liberdade humana e tiveram como
principais representantes Molina e Francisco Suarez
(MOLINA, 2004, viii).[46]
Entretanto, é necessário frisar que a Concordia é
construída a partir do alicerce teológico da Suma Teológica,
de Tomás de Aquino. Para se ter uma noção da amplitude do
tomismo nos escritos de Molina, basta dizer que a edição
revisada de Concordia teve como suporte uma obra de
Molina dedicada exclusivamente a Aquino: Commentaries
on the first part of St. Thomas´s Summa Theologiae
[Comentários à primeira parte da Suma Teológica de São
Tomás de Aquino], publicada em 1592 (MOLINA, 2004, ix).
Em outras palavras, o debate entre dominicanos e jesuítas
no século 16 tem suas raízes nos escritos de Aquino.
Inclusive, a teoria do conhecimento médio, de caráter
fundamental para o molinismo, decorre de uma modificação
das categorias epistemológicas descritas por Aquino.
Percebe-se que, para tratar de uma questão
soteriológica, Molina recorreu ao ser de Deus, na
epistemologia divina, a fim de saber como Deus conhece as
coisas para, a partir daí, compreender como Deus elege
todas as coisas. Como seu arcabouço remonta a Tomás de
Aquino, é de grande utilidade observar como este autor via
o conhecimento de Deus.
8.1 O conhecimento de Deus em Tomas de
Aquino[47]
Aquino, no primeiro volume da Suma Teológica, faz uma
ampla consideração sobre a ciência de Deus na questão 14.
[48] Quando discutiu se Deus tem conhecimento das coisas

que não são, ou do não-ser (questão 14, artigo IX), Aquino


propõe dois tipos de conhecimento em Deus:
Deus conhece todas as coisas de qualquer modo que
existam. [...] Logo, pode dizer-se, que tem ciência,
mesmo do não-ser. Mas, há uma certa diversidade a que
devemos atender, nas coisas não existentes em ato.
Pois, certas coisas, embora não existam atualmente,
contudo, existiram ou hão de existir; e de todas essas
se diz que Deus as conhece pela ciência de visão
(scientia visionis). Porque, medindo-se o conhecimento
de Deus, que é o seu ser, pela eternidade que, existindo
sem sucessão, compreende a totalidade dos tempos, a
intuição presente de Deus abarca essa totalidade
temporal e todas as coisas existentes em qualquer
tempo, como seres que lhe estão presentes. Há outras
coisas, porém, que estão no poder de Deus, ou da
criatura, e que, contudo, nem existem, nem existirão,
nem existiram e, em relação a essas, não se diz que
Deus tem a ciência de visão, mas, a de simples
inteligência (simplicis intelligentiae) (AQUINO, 1980, p.
146, grifos do autor).
O que Aquino chama de ciência de visão diz respeito ao
conhecimento que Deus possui de coisas passadas e
futuras. Tal declaração aponta para o fato de que o presente
representa o estado de ser. O texto já pressupõe que Deus
possui conhecimento de todas as coisas, sejam as que são e
as que não são. Porém alguns dos detratores da onisciência
de Deus negam que ele conheça coisas que não são atuais.
Observa-se que aqui Aquino está fazendo uma defesa da
onisciência de Deus.
Craig (2000, pp. 24-30), molinista que também crê na
onisciência de Deus, cita algumas passagens bíblicas as
quais apontam para o conhecimento que Deus possui
acerca do passado[49] e do futuro.[50] Tais coisas conhecidas
por Deus, mesmo que façam parte do não-ser, dizem
respeito a algo que, em algum momento, é atualizado na
História. Assim, o conhecimento de Deus do tipo ciência de
visão diz respeito a algo que ocorreu, ocorre ou ocorrerá, ou
seja, coisas que têm uma execução na história factual, seja
no passado, presente ou futuro. Não se trata de
conhecimento contingencial ou hipotético; é um
conhecimento de coisas reais, como, se num contínuo
presente, Deus tivesse a visão de tudo o que decretou.
Já o conhecimento do tipo simples inteligência diz
respeito a coisas que nunca serão atualizadas. Estas coisas
potenciais, mas nunca atuais, que estão no poder de Deus
ou das criaturas, são contingenciais. Pode-se observar que,
no plano eterno de Deus, existem estes dois conjuntos que
não possuem intersecção: o conjunto das coisas que
certamente serão atualizadas, com ocorrência no passado,
presente ou futuro; e o conjunto das coisas que nunca serão
atualizadas. Eis a diferença entre o conhecimento de visão e
a simples inteligência na epistemologia divina tomista.
Outro aspecto tratado por Aquino (1980, pp. 152, 153)
diz respeito ao conhecimento que Deus possui de
contingências futuras. Apesar das objeções de alguns,
Aquino afirma enfaticamente que:
Deus conhece todos os contingentes, não só
enquanto existentes nas suas causas, mas também
enquanto cada um deles existe em si mesmo. Embora,
porém, os contingentes se atualizem sucessivamente,
Deus não os conhece, como nós sucessivamente, tais
como são, mas simultaneamente. Porque o seu
conhecimento, como o seu ser, mede-se pela
eternidade; e a eternidade, existindo toda
simultaneamente, abrange o tempo todo (...) Por onde,
é manifesto que os contingentes infalivelmente são
conhecidos por Deus, enquanto objetos do divino olhar,
que os tem como na sua presença. E, contudo, são
futuros contingentes, referidos às suas causas próximas.
Novamente Aquino reitera a abrangência e a magnitude
do conhecimento de Deus, ao ponto de não haver
necessidade de sucessões, quer sejam lógicas ou
cronológicas, mas tais contingências são objetos da ciência
divina simultaneamente. Indícios claros apontam para a não
estratificação ou divisão do conhecimento contingencial de
Deus. À semelhança da ciência de visão, sua eternidade o
faz conhecer todas as contingências ao mesmo tempo como
num eterno presente, sem uma categorização ou
subdivisões acerca de tal conhecimento. Tomando estes
elementos como plano de fundo, pode-se abordar o
molinismo de maneira mais apropriada.

8.2 O molinismo e a teoria do conhecimento médio


O molinismo, enquanto sistema, pode ser abordado a
partir de várias perspectivas. Como já delimitado
previamente, o objetivo deste capítulo não é considerar de
maneira genérica todas as facetas do molinismo, pois isso
requer uma abordagem que foge ao escopo deste trabalho.
[51] Nossa abordagem visa entender como Molina esboçou a
teoria do conhecimento médio. A análise da solução
molinista não pode ser desconectada do seu conceito de
liberdade como o poder absoluto do contrário.
Na parte IV da Concórdia, disputa 52, Molina (2004, p.
168) esboça sua teoria do conhecimento médio, na qual se
compatibiliza a liberdade de escolha e a contingência das
coisas com a presciência divina. Para tanto, Molina faz
distinção entre três tipos de conhecimento em Deus.
O primeiro tipo de conhecimento é chamado de
conhecimento natural, pelo qual Deus “conheceu todas
as coisas pelas quais o poder divino se estendeu, seja
imediatamente, seja pela mediação de causas secundárias,
incluindo não apenas a natureza dos indivíduos e o estado
de causas necessárias dela decorrentes, mas também o
estado de causas contingentes” (MOLINA, 2004, idem). Esse
conhecimento inclui todas as possibilidades, incluindo
pessoas possíveis que Deus poderia criar, possíveis
situações em que ele poderia colocá-las e todas as suas
possíveis ações.
Por meio desse conhecimento, Deus conhece todas as
coisas que poderiam ocorrer, desde que metafisicamente
necessárias. É assim chamado, porque se refere ao
conhecimento relativo à natureza ou essência divina. Como
a essência divina é necessária, tal conhecimento inclui
todas as verdades metafisicamente necessárias. Por ser
necessário, Deus não poderia ter um conhecimento
diferente deste conhecimento natural que possui. Pela
lógica, então, ele deve ocorrer independente da vontade
divina e, por isso, é chamado de pré-volicional (LAING,
2004, p. 456). No entanto, Laing equipara o conhecimento
natural em Molina com o conceito de simples inteligência
em Aquino. É importante frisar que tais conceitos são
levemente diferentes, uma vez que a simples inteligência
nunca é atualizada, enquanto o conhecimento natural pode
ser atualizado.
O segundo tipo de conhecimento é o que Molina
(2004, p. 168) denomina de conhecimento livre, pelo qual
“através de livre ato de sua vontade, Deus conheceu
absoluta e determinativamente, sem nenhuma condição
ou hipótese, o que alguém, dentre todos os estados de
causas contingentes, de fato fará e igualmente o que
alguém não fará”. Noutras palavras, Deus conhece mais que
simplesmente todas as coisas possíveis. Antes de criar, ele
decidiu criar um de muitos mundos possíveis. Ele não era
obrigado a criar e, tendo decidido criar, poderia ter
escolhido um mundo diferente daquele que ele criou. No
entanto, após ter criado, Deus tem um conhecimento prévio
exaustivo de tudo que ocorrerá. Porque a decisão de criar
um mundo particular foi uma decisão livre, o conhecimento
que se enraíza daí é chamado de conhecimento livre
(FEINBERG, 2001, p. 1042).
Laing (2004, p. 456) também equipara o conhecimento
livre em Molina com a ciência de visão em Aquino. No
entanto, há uma distinção mais tênue ainda, posto que o
conhecimento livre, o qual é pós-volicional, ou seja, tem a
ver com aquilo que de fato ocorrerá; e como tudo o que
ocorre está em concordância com a vontade de Deus, logo
esse conhecimento logicamente é posterior ao que Deus
quis que acontecesse por sua livre vontade, correspondente
ao seu decreto. Já em Aquino, a ciência de visão, conforme
definida acima, leva em conta o tempo atual. Sendo assim,
diz respeito unicamente aos eventos passados e futuros.
Por fim, Molina (2004, p. 168) define o terceiro tipo de
conhecimento, denominado conhecimento médio de Deus:
Pelo conhecimento médio, em virtude da mais
profunda e inescrutável compreensão de cada faculdade
da livre escolha, ele [Deus] viu em sua própria essência
o que cada uma das faculdades faria com sua liberdade
inata, se tivesse sido colocada nesta ou naquela
situação, ou, certamente, ou em muitas ordens infinitas
de coisas – igual, apesar de que realmente estaria apto
para, se quisesse, fazer o contrário. (grifo do autor)
Comentando a definição acima, Freddoso aponta as
características principais do conhecimento médio: 1) Um
conhecimento que antecede qualquer ato livre da vontade
de Deus; 2) Deus não tem controle sobre o que ele conhece
através do conhecimento médio; e 3) Tanto faz se Deus
conhece o que é metafisicamente possível como o seu
contrário (MOLINA, 2004, p. 168). Se observarmos com
atenção a análise de Freddoso, perceberemos o conceito de
liberdade libertária (cf. Apêndice) atrelado ao de
conhecimento médio.
William Lane Craig,[52] em sua obra The Only Wise
God, assente à teoria do conhecimento médio e a esboça
como a solução para o “compatibilismo” entre a presciência
divina e a liberdade humana (CRAIG, 2000, p. 15). Observa-
se, contudo, que Craig também tem outra finalidade, que é
a de refutar o conceito amplo de fatalismo. De maneira mais
específica ainda, o conceito de fatalismo teológico é alvo de
sua refutação, a ponto de inserir qualquer tipo de
determinismo no campo do fatalismo.
Para Craig, os escritos de Calvino, Lutero e Paul Helm
dizem respeito ao fatalismo teológico, porque admitir a
presciência divina e a liberdade humana (determinismo
compatibilista), lançando-os no conceito de mistério, torna-
se um erro. Com uma forte dose de evidencialismo, Craig
afirma que é necessário demonstrar tal compatibilismo e
acredita que somente o conhecimento médio realiza tal
demonstração (CRAIG, 2000, p. 16). Não podemos, no
entanto, ignorar o alerta de Monteiro (2017) sobre o
mistério ao qual os calvinistas apelam:
Dort (e muitos calvinistas e o próprio Calvino)
pressupõe a tensão e o inescrutável. Ele não tem
preocupação alguma em apresentar qualquer solução. O
que se vê, por exemplo, em textos como Romanos 9.19-
20 e a tese do livro de Jó é que tal postura não somente
é indicada nas Escrituras, mas é essencial para a
apreciação das ações graciosas de Deus; que existe,
sim, uma “fronteira epistemológica” que, uma vez
atravessada, gera a cegueira da graça enquanto nos faz
perder-nos em abstrações arrogantes e destruidoras;
que o silêncio não é fruto da fadiga, da desistência
frustrante, mas decorre da obediência à revelação.
O silêncio doxológico é a resposta devida diante
do inacessível e da tensão.

Craig, juntamente com outros defensores do molinismo,


não concorda com tal pensamento. Buscando preencher um
vácuo na revelação bíblica, os defensores do conhecimento
médio tentam resolver a tensão. Sobre o conhecimento de
Deus, Craig (2000, pp. 121, 123, 125) crê que Deus possui
conhecimento inato, e isso indica que seu conhecimento
não é derivado de suas percepções ou sensações, que Deus
não aprende nem adquire conhecimento, uma vez que já
possui o conhecimento em si mesmo.
A partir disso, Craig explica a teoria molinista do
conhecimento médio e a coloca em termos de prioridade
lógica, porque algumas pessoas tentaram refutar os três
tipos de conhecimento propostos por Molina a partir de uma
abordagem cronológica. Por prioridade lógica, Craig (2000,
p. 127) afirma que ela serve de base para explicar outra
coisa, mesmo que ocorra simultaneamente ao objeto de sua
explicação. Ele ilustra da seguinte maneira:
Enquanto a presciência divina é cronologicamente
anterior aos eventos futuros, contudo os eventos futuros
são logicamente anteriores à presciência divina [...]
Logicamente, no primeiro momento, certos eventos
ocorrem; no segundo momento, sentenças sobre eles
são verdadeiras ou falsas; e no terceiro momento, Deus
conhece somente e todas as sentenças verdadeiras [...]
Agora, claramente, isto não significa que houve um
tempo no qual certos eventos ocorrem sem o
conhecimento de Deus sobre eles. A prioridade aqui é
puramente lógica, não temporal (CRAIG, 2000, p. 128).
Em seguida, Craig afirma que os três tipos de
conhecimento de Deus descritos por Molina representam
três momentos lógicos no seu conhecimento, não havendo
distinção cronológica, uma vez que todo conhecimento de
Deus é simultâneo.
O primeiro momento lógico é o conhecimento natural
de Deus, que inclui o conhecimento de todas as
possibilidades. Segundo Keathley (2010, p. 39), pelo
conhecimento natural, Deus “conhece qual seria a realidade
em um mundo que não tivesse criado nem eu nem você;
não tivesse criado ninguém ou nada. Esses cenários
possivelmente formados são chamados de mundos
possíveis”.
O segundo momento lógico equivale ao conhecimento
médio, por meio do qual “Deus conhece o que cada criatura
faria (não apenas poderia fazer) em algum conjunto de
circunstâncias possível” (CRAIG, 2000, p. 130). Tal
conhecimento é logicamente anterior ao decreto criativo
divino e ao seu conhecimento livre.
O terceiro momento lógico diz respeito ao
conhecimento livre, pelo qual Deus conhece o mundo atual
que por ele foi criado. E representa o seu conhecimento de
tudo o que ocorrerá (CRAIG, 2000, p. 129).
Keathley (2010, p. 17) apresenta uma tabela que
elucida bem os três momentos lógicos:
Tabela 3 Os três momentos no molinismo (fonte: Keathley (2010, p. 17)

Craig (2010, p. 130) faz uma ilustração de sua teoria do


conhecimento médio a partir das três vezes que o apóstolo
Pedro negou a Cristo. Ele destaca que isso é meramente
lógico e nunca cronológico. Assim, primeiramente, pelo seu
conhecimento natural, Deus conheceu tudo o que Pedro
poderia fazer se fosse colocado em certas circunstâncias.
Num segundo momento, pelo seu conhecimento
médio, Deus conhece o que Pedro livremente faria, se
colocado em determinadas circunstâncias. Craig faz questão
de afirmar que não crê no determinismo, mas, à
semelhança de Molina, subscreve à liberdade libertária, por
meio da qual, se Pedro quisesse, ele poderia ter feito a
opção contrária. Como Pedro é um agente livre, sua
liberdade seria expressa em cada um dos mundos possíveis.
Deus, por sua vez, resolve atualizar um destes mundos
onde Pedro é livre. Neste caso, não seria um tipo de deísmo
em que, depois que Deus resolveu atualizar um desses
mundos, o ser humano estará entregue a si mesmo?
Quando objetado se Deus não poderia prevenir que
Pedro pecasse, Craig afirma que isso seria interferir na
liberdade de Pedro, pois caso fosse exposto a tais
circunstâncias em qualquer dos mundos pecaria. Portanto,
para expressar sua soberana vontade e a liberdade de
Pedro, Deus resolve decretar criar um mundo em que Pedro
negará a Cristo três vezes; e, logicamente posterior a esse
decreto, Deus tem o conhecimento livre desta atitude
pecaminosa de Pedro.
Diante do que foi exposto, pode-se dizer que o
molinismo é mais um sistema filosófico do que uma opção
soteriológica. Essa percepção depreende-se a partir dos
escritos do próprio Keathley (2010, p. 4):
O molinismo defende que Deus cumpre
perfeitamente sua vontade em criaturas livres através
de sua onisciência. Ele reconcilia duas verdades bíblicas
cruciais: (1) Deus exerce controle soberano sobre toda
sua criação e (2) seres humanos fazem livres escolhas e
decisões pelas quais devem prestar contas.

O molinismo apresenta uma visão calvinista da soberania


divina e uma visão arminiana da liberdade humana
(KEATHLEY, 2010, p. 5). Mas tal visão é expressa num
sistema filosófico cujas premissas são:
(1) Deus pode e criou seres com significante e
genuína liberdade; (2) Deus pode e exaustivamente
conhece o que criaturas livres fariam em todos os
cenários possíveis; e (3) Deus pode e soberana e
meticulosamente faz cumprir sua vontade através de
sua onisciência – este aspecto de seu conhecimento nós
chamamos de conhecimento médio (KEATHLEY, 2010, p.
18).

Como já foi destacado, tal sistema tem sua tese principal


na teoria do conhecimento médio que, para Craig (2000, p.
133-138), é a melhor explicação para a presciência divina e
que também possui a chave para a doutrina da providência
divina, pois - a partir do conhecimento médio - pode haver
uma justificável reconciliação entre a soberania divina e a
liberdade humana; além disso, o conhecimento médio traz
os melhores argumentos teológicos para a predestinação.
Sobre a predestinação à luz do conhecimento médio, Craig
(p. 137) chega a afirmar:
Deus não predestina pessoas porque ele sabe que
elas receberiam Cristo e perseverariam [...] Deus
simplesmente escolhe o mundo que ele deseja, e quem
quer que seja neste mundo que escolhesse a Cristo,
pelo mesmo ato de seleção de Deus deste mundo,
também seria predestinado a fazer isto. Todas as
pessoas deste mundo recebem graça suficiente para
estar entre os predestinados. Seu destino, assim, reside
em suas próprias mãos. Tudo depende se eles
livremente recebem ou rejeitam a Cristo.

Na tentativa de resolver esse problema, fica claramente


expresso que o sistema molinista é indeterminista e
sinergista. Note nitidamente que a ênfase da predestinação
recai sobre o homem e não sobre Deus. O que deveríamos
dizer sobre estas coisas? Deus tem o conhecimento médio?
Se ele tem, isso o ajuda na sua providência ao lidar com o
mundo? Esta proposta realmente resolve a tensão sobre
liberdade e presciência? É realmente possível reconciliar, de
alguma forma, a soberania de Deus com a liberdade
humana?
Carson (2006) nos alerta para termos cuidado quando
lidamos com um texto. Todos nós criamos uma peneira ou
modelo a partir daquilo que temos entendido do texto.
Enquanto elas são úteis e até necessárias, é preciso termos
cuidado para não construir essa peneira ou modelo
precipitadamente no processo indutivo; eles precisam estar
sempre abertos para revisão quando uma nova descoberta
for feita no texto. “Se esse filtro foi construído muito cedo
ou mesmo for muito rígido, então, em lugar de ser um guia
útil para o texto e útil organizador de material recém-
descoberto, torna-se uma forma de filtrar do texto o que
não passa pela peneira” (CARSON, 2006, p. 196). O texto
passa às vezes a ser usado por conveniência e somente os
textos que apoiam aquilo que já crê dentro do sistema.
Passemos à análise de alguns textos bíblicos utilizados pelo
molinismo para defender sua proposta.

8.3 O uso das Escrituras feito pelos molinistas

No sistema molinista, é necessário entender que alguns


teólogos priorizam a filosofia ao invés da exegese. Ou seja,
a validação das ideias molinistas tem como base os
pressupostos filosóficos mais do que um estudo indutivo dos
textos com um critério exegético rigoroso.
Por exemplo, William Lane Craig admite a falta de
suporte bíblico para a teoria do conhecimento médio de
Deus, porém, infelizmente, tenta tirá-la do campo exegético
para colocá-la no campo filosófico. Utilizando-se deste
subterfúgio, nenhum exegeta à parte da filosofia poderá
contestar o conhecimento médio. Dessa forma, Craig (2001,
p. 125) joga para fora das Escrituras o embasamento da
tese molinista:
Desde que as Escrituras não refletem sobre esta
questão, nenhum amontoado de textos-prova pode
provar que o conhecimento de Deus dos contrafactuais
é logicamente anterior ao seu decreto criativo, isto é
uma matéria para reflexão filosófico-teológica,
não para exegese bíblica. (grifo do autor)
A evidência de que William Lane Craig prioriza a filosofia,
ao invés da análise exegética e teológica do texto bíblico,
ecoa em suas próprias palavras: “eu creio que hoje os
cristãos que procuram a verdade provavelmente
aprenderão mais sobre os atributos e natureza de Deus das
obras de filósofos cristãos do que de teólogos cristãos”
(CRAIG, 2000, p. 11). Esse tipo de argumentação incorre em
uma espécie de aniquilação da argumentação bíblico-
exegética, conduzindo a discussão quase que completa para
o âmbito da metafísica e não da revelação divina nas
Escrituras.

O texto de 1Samuel 23.6-13


6 Sucedeu que, quando Abiatar, filho de Aimeleque,
fugiu para Davi, a Queila, desceu com a estola
sacerdotal na mão. 7 Foi anunciado a Saul que Davi
tinha ido a Queila. Disse Saul: Deus o entregou nas
minhas mãos; está encerrado, pois entrou numa cidade
de portas e ferrolhos. 8 Então, Saul mandou chamar
todo o povo à peleja, para que descessem a Queila e
cercassem Davi e os seus homens. 9 Sabedor, porém,
Davi de que Saul maquinava o mal contra ele, disse a
Abiatar, sacerdote: Traze aqui a estola sacerdotal. 10
Orou Davi: Ó Senhor, Deus de Israel, teu servo ouviu
que Saul, de fato, procura vir a Queila, para destruir a
cidade por causa de mim. 11 Entregar-me-ão os homens
de Queila nas mãos dele? Descerá Saul, como o teu
servo ouviu? Ah! Senhor, Deus de Israel, faze-o saber ao
teu servo. E disse o Senhor: Descerá. 12 Perguntou-lhe
Davi: Entregar-me-ão os homens de Queila, a mim e aos
meus servos, nas mãos de Saul? Respondeu o Senhor:
Entregarão. 13 Então, se dispôs Davi com os seus
homens, uns seiscentos, saíram de Queila e se foram
sem rumo certo. Sendo anunciado a Saul que Davi
fugira de Queila, cessou de persegui-lo.
Quanto aos textos utilizados pelos molinistas, os dois que
mais se destacam são 1Samuel 23.6-13 e Mateus 11.20-24.
Na primeira passagem, Davi está em Queila no período em
que estava sendo perseguido por Saul. Ao consultar o
Senhor, Davi pergunta se Saul desceria a Queila, e Deus
responde que sim; então, Davi pergunta ao Senhor se os
moradores de Queila o entregariam a Saul, e novamente
Deus afirma que sim. Por fim, Davi foge de Queila, e Saul
cessa de segui-lo.
Diante desse texto, Craig (2000, p. 132) argumenta
que Deus não faz tais declarações com base em sua
presciência simples, uma vez que não ocorrem, mas suas
respostas devem ser entendidas com base no que
aconteceria sob as circunstâncias propostas por Davi e,
nesse sentido, são verdadeiras e “servem como prova do
conhecimento médio de Deus”.
A tradição hermenêutica começa com o
reconhecimento de que o texto está condicionado pelo
contexto histórico em que se encontra; e o papel da
exegese é descobrir o significado do texto baseado na
intenção e no alvo do autor original. O alvo clássico da
exegese é articular o significado da passagem como o autor
original intencionou para ser entendido pela sua audiência
contemporânea (PORTER, 1997, p. 7). O contexto retórico-
narrativo preocupa-se com os efeitos que o discurso produz,
e como ele os produz (STAMPS, 1997, p. 219). O contexto
histórico dessa passagem capta a nossa atenção mostrando
que a viagem de Davi é acompanhada de oráculos divinos
(1Sm 23.2, 4, 11 e 12).
Partindo do contexto histórico dessa passagem e do
conteúdo dos versículos seis a treze, essa passagem fala da
providência divina. O ensino sobre o conhecimento médio
ou mesmo sobre o conhecimento de Deus não parece, em
nenhum momento, surgir dos versículos dez a treze. A
resposta de Yahweh à pergunta de Davi sobre a estola nos
versos seis a treze mostra que o Senhor é quem não
entregou Davi nas mãos de Saul. O que notamos é que a
função narratológica aqui é mostrar que o mesmo Yahweh
que entregou os filisteus nas mãos de Davi (v. 4) não
entregou Davi nas mãos de Saul (v. 14). Assim, a
providência divina, não o conhecimento médio, é o ponto
central dessa passagem.
O que dizer então dos contrafactuais dos versículos 11
e 12? Se Davi permanecer em Queila, Saul destruirá a
cidade? O molinismo reivindica que tal contracfactual é
verdade e que a ação de Saul deve ser livre no sentido
libertariano e que Deus tem esse conhecimento com
certeza. Nossa resposta aqui segue, em linhas gerais, o
argumento de Adams (1973) e Christensen (2016).
Primeiramente, é difícil poder aceitar tal declaração
partindo do próprio conceito de liberdade como o poder
absoluto do contrário defendido pelo molinismo. A ideia
libertariana é que a liberdade de escolhas ocorre quando
uma pessoa tem a habilidade para escolher o contrário a
despeito de qualquer fator anterior que influencia a escolha,
incluindo circunstâncias externas, motivos pessoais, desejos
pessoais, caráter, natureza, e naturalmente até o próprio
Deus (CHRISTENSEN, 2016, p. 9). Observe que, enquanto o
ponto do texto é a providência controladora do Deus
soberano (1Sm 23.2, 4, 11, 12 e 14), o molinismo ignora
isso para defender uma posição indeterminista. Na verdade,
seguindo essa lógica, não foi Yahweh que não entregou Davi
nas mãos de Saul, mas Saul que fez essa livre escolha sem
nenhuma influência de qualquer forma.
Em segundo lugar, esse contrafactual não pode ser
usado como prova do conhecimento médio, em virtude de
uma conexão causada lógica ou necessariamente entre
seus antecedentes e consequentes. Para a teoria
libertariana, se esses antecedentes influenciarem
decisivamente determinando a escolha, então a liberdade e
a responsabilidade dessas escolhas são minadas. Jamais
eles afirmariam que poderia acontecer devido a uma
intenção de Deus em causar Saul cercar Queila se Davi
permanecesse lá. Enquanto o autor de 1Samuel a todo
custo inclui uma providência e controle divino da situação, a
interpretação molinista desse texto se preocupa com o
conhecimento médio. O homem jamais poderá saber
qualquer coisa da vontade real de Deus, exceto por aquilo
que realmente aconteceu.
Em terceiro lugar, é um equívoco linguístico achar que
todas as semelhanças entre os mundos possíveis são
relevantes para a verdade de tais condicionais, até porque
esse tipo de construção não faz nenhuma declaração
necessária sobre fatos, se algo é verdade na realidade. O
que é relevante são as semelhanças nestas questões como
as influências que cercam as pessoas em suas decisões.
É importante admitirmos o seguinte: esse texto
realmente fala em contrafactuais, mas não é capaz de
provar o conhecimento médio, uma vez que é necessário
provar que tal texto evidencia liberdade libertária.
Conhecimento de possibilidades não implica
necessariamente no conhecimento médio. Este exige a
liberdade libertária, enquanto aquele pode estar aplicado
dentro deste conceito, mas não necessariamente (CAMPOS,
2002, p. 225). Podemos afirmar que essa passagem nada
afirma sobre liberdade humana ou sobre a relação entre o
conhecimento de Deus e o livre-arbítrio, pois é improvável
que haja texto bíblico para garantir o conhecimento médio.
Vejamos uma breve exegese do texto.
Em 1Samuel 23.10, Davi ouve que Saul está vindo –
‫[ ָל֣בֹוא‬lavō]. Este verbo no infinitivo construto representa
um infinitivo verdadeiro associado com a preposição ‫ָל‬
(WALTKE; O´CONNOR., 2006, p. 600). O verbo antecedente
é ‫ְמַבֵּ֥קש‬ [mevaqesh] (buscar) e contextualmente
apresenta um desejo de Saul em vir à procura de Davi.
Em 1Samuel 23.11, diante de tais rumores, Davi faz
duas perguntas: se seria entregue pelos cidadãos
(literalmente os Lordes) de Queila e se Saul desceria de
fato. A primeira pergunta de Davi representa algo que ele
deseja saber e, em seguida, questiona se os rumores que se
têm ouvido correspondem à verdade. Deus responde que
sim. No verso 12, interessantemente, Davi repete a primeira
pergunta feita no verso 11, a saber, se os homens de Queila
o entregariam nas mãos de Saul. E a resposta de Deus é
sim.
A repetição da pergunta quanto aos moradores de
Queila mostra que o foco de Davi não está em Saul, mas na
confiabilidade dos moradores de Queila, onde ele estava. A
prova é tanta que, após descobrir que os moradores de
Queila o entregariam, Davi não faz mais perguntas a Deus.
Ele trata de fugir de Queila com seus homens (verso 13).
Como já afirmamos, esse texto não demonstra que
Deus possui conhecimento médio. Davi está preocupado
com sua segurança, e a real pergunta que deseja saber é
se, diante da instabilidade, os filisteus cederiam à pressão
de Saul, por medo de terem sua cidade destruída. O foco
não é tanto no conhecimento divino, mas na confiabilidade
dos filisteus.
Davi vinha sendo perseguido por Saul há muito
tempo e, nesta batalha, novamente conseguiu escapar. Mas
a chave para a interpretação dessa passagem e do próprio
oráculo de Davi está na nota do autor de 1Samuel em
23.14: “Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o
entregou nas suas mãos”. Com base nesta nota, é de
grande valia a declaração de Brueggeman (1990, p. 163):
O narrador nos diz o significado deste jogo de gato-e-
rato. Não significa que Davi é mais rápido ou mais
esperto que Saul. Não, o escape foi possível porque Javé
interviu: “Deus não o entregou nas mãos de Saul” (v.
14). Esta é uma interpretação teológica ousada. Muitas
outras leituras da matéria poderiam ter sido possíveis; o
narrador, entretanto quer destacar o que é singular, o
ponto crucial. O futuro de Davi deve ser entendido
teologicamente. A vida de Davi pode ser retratada
somente com referência a Javé. Javé tem escolhido e
Javé tem rejeitado. Os vários episódios no conflito entre
Davi e Saul simplesmente têm representado esta
verdade predominante de Javé, a qual nem Saul nem
Davi podem mudar.
A abordagem teológica não se foca no tipo de
conhecimento que Deus possui, mas no seu decreto, o qual,
conforme sugerido por Brueggeman, em nenhum momento
é determinado por Saul ou por Davi, mas pela soberana
escolha de Deus. Desta feita, afasta-se a ideia de que o que
está em foco neste texto é o conhecimento médio.
O texto de Mateus 11.20-24
20 Passou, então, Jesus a increpar as cidades nas
quais ele operara numerosos milagres, pelo fato de não
se terem arrependido: 21 Ai de ti, Corazim! Ai de ti,
Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom se tivessem
operado os milagres que em vós se fizeram, há muito
que elas se teriam arrependido com pano de saco e
cinza. 22 E, contudo, vos digo: no Dia do Juízo, haverá
menos rigor para Tiro e Sidom do que para vós outras.
23 Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até ao céu?
Descerás até ao inferno; porque, se em Sodoma se
tivessem operado os milagres que em ti se fizeram,
teria ela permanecido até ao dia de hoje. 24 Digo-vos,
porém, que menos rigor haverá, no Dia do Juízo, para
com a terra de Sodoma do que para contigo.
Craig (2000, p. 133) se utiliza dessa passagem para
afirmar que, debaixo de certas circunstâncias, certos
indivíduos teriam agido de maneira particular e novamente
toma esse texto como “prova positiva do conhecimento
médio de Deus”.
Contudo, o significado das sentenças decorre de uma
correta interpretação gramatical. Craig afirma que os dois
textos, com base em explicações prévias, podem ser
considerados texto-prova. Isso dá ensejo a uma análise
exegética, mesmo que sucinta, de Mateus 11.21.[53] Essa
passagem envolve uma condicional de segunda classe,
apresentando a partícula εἰ seguida do indicativo na prótase
e a partícula ἂν também seguida do indicativo na apódase
(WALLACE, 2009, p. 694,696).
Essa condicional se caracteriza por ser contrária ao
fato. Por força argumentativa, sugere-se uma inverdade, a
fim de melhor estabelecer o ponto do comunicador. Trata-se
aqui de uma atividade passada contrária ao fato, a saber, a
execução dos milagres feitos por Cristo em Tiro e em Sidom.
Isso pode ser observado à luz do uso do aoristo tanto na
prótase quanto na apódase (WALLACE, op. cit., p. 695).
Com base no conhecimento das condicionais, pode-se
afirmar que o foco de Jesus nessa passagem não é
estabelecer um estudo acerca do conhecimento de Deus
sobre mundos possíveis. O contexto aponta para o fato de
que Jesus está se dirigindo à incredulidade de uma geração
que teve acesso à revelação de Deus visível e patente em
sua pessoa e obras e ainda assim não creram. É com base
nisso que ele passa a falar de cidades que sofreram severos
juízos da parte de Deus no passado por força de seu
argumento para deixar claro um ponto: o rigor do juízo é
proporcional à quantidade de revelação recebida (Mt 11.22,
24). É nesse sentido, portanto, que Anthony Kenny captou
bem o fluxo de argumentação dessa passagem ao afirmar
que ela “é claramente retórica” (MOLINA, 2004, p. 62).
Um suporte para tal explicação se encontra na análise
da passagem subsequente de Mateus 11.25-27, na qual
Jesus dá a explicação teológica porque aquelas pessoas não
creram nele: é porque o Filho não quis se revelar a tais
pessoas. Não é questão de apontar para uma predisposição
maior nos habitantes de Tiro e Sidom de receber o
evangelho em relação aos de Corazim e Betsaida. Porque,
se assim o fosse, um dos questionamentos a ser feito seria:
por que Deus não colocou Tiro e Sidom nas mesmas
circunstâncias que Corazim e Betsaida? E a resposta
decorrente do texto é: porque não quis. A base é sua
soberana vontade e não uma predisposição volitiva interior
do homem para receber Deus.
A explicação com base na condicional de segunda
classe reforça ainda mais a eleição divina e a
responsabilidade humana. Deus não escolheu Tiro nem
Sidom, tampouco Corazim e Betsaida, com base em sua
soberana vontade. Mas Deus os julgará com base em suas
obras. Diante da quantidade de revelação que receberam,
os habitantes de Corazim e Betsaida se mostraram tão
insensíveis ou mais que os de Tiro e Sidom e, por isso,
receberão maior juízo. Jesus usa a retórica para estabelecer
a severidade do juízo para com aqueles que receberam
maior revelação e ainda assim não a aceitaram. Ou seja,
Mateus 11.20-24 não está tecendo comentários teológicos
sobre o conhecimento de Deus, mas sobre a severidade de
seu juízo diante daqueles que receberam maior revelação
(cf. Lc 12.48).

8.4 Réplicas ao molinismo[54]


Este trabalho não objetiva uma refutação ao molinismo
como sistema filosófico ou até mesmo refutar
exaustivamente a teoria do conhecimento médio.
Apresentaremos aqui somente as principais réplicas ao
molinismo e as devidas tréplicas molinistas, na medida do
possível, observando-se que o debate é muito extenso,
sendo que, na atual conjuntura, existem argumentos e
contra-argumentos bem desenvolvidos no campo filosófico
e na Ciência da Religião. Pedimos atenção especial à relação
direta do conceito de liberdade libertária com o molinismo.
Assim, mesmo asseverando uma forte defesa da soberania
divina e uma forte argumentação sobre a liberdade
humana, o molinismo subscreve ao conceito indeterminista.
Esta pressuposição deve ser avaliada com relação aos
pressupostos do calvinismo e dos proponentes do
calvinismo do conhecimento médio. Aqui apontamos as
principais réplicas e tréplicas ao molinismo mais em tom
informativo, porém reasseguramos que o aspecto central
que os monergistas devem avaliar no molinismo é o seu
caráter indeterminista.
8.4.1 Passividade divina
Segundo alguns críticos, o Deus do molinismo é um Deus
passivo, porque logicamente o decreto soberano de Deus é
condicionado à vontade do homem, pois Deus só decretará
um mundo em que a liberdade libertária do homem será
satisfeita. Em última instância, é a vontade do homem que
determinará qual mundo Deus escolherá para a
humanidade e não o Deus soberano em si. O molinismo
tenta provar que Deus decreta a partir de uma combinação
de sua vontade com a do homem, mas percebe-se que a
vontade do homem é que se torna determinante para que o
decreto divino seja realizado.

Isso é o que Garrigou-Lagrange chama de passividade


divina, ao afirmar:
O conhecimento de Deus não pode ser determinado
por nada que seja extrínseco a ele e que não seja
causado por ele. Mas é isto que afirma a scientia media,
a qual depende da determinação de condicionais
futuras livres; assim, a determinação não vem de Deus
mas da liberdade humana [...] Desta forma, Deus seria
dependente de outro, seria passivo em seu
conhecimento e, além disso, não seria Puro Ato
(MOLINA, 2004, p. 66).

Nesse mesmo sentido, J. T. Campbell (p. 24) afirma que


“o conteúdo do conhecimento médio de Deus é
determinado pela criatura”. Isso, no mínimo, produz
potencialidade passiva ao conhecimento de Deus e, como
tal atributo se relaciona ao seu ser, tal potencialidade no
atributo pode gerar potencialidade em todo o ser de Deus,
comprometendo sua absoluta independência. Avaliando
esse raciocínio sob a ótica tomista, “se Deus tivesse
potencial, ele precisaria de uma causa. Como é a Causa
Suprema de todas as coisas, Deus não tem potencial”
(GEISLER, 2002, p. 610).
8.4.2 Sentenças contrafactuais sobre o que uma
pessoa faria em outras circunstâncias são falsas
Esta objeção filosófica afirma que não existem
contrafactuais (consultar Apêndice) no mundo real (CRAIG,
2010, p. 139). Porém Craig aponta que o discurso
quotidiano das pessoas nega essa ideia, como por exemplo:
“se eu soubesse que você viria, eu teria feito um bolo”. Eis
um belo exemplo de uma contrafactual. Aqui entendemos
que Craig está correto ao apresentar a existência de
contrafactuais. Mas isso não implica necessariamente na
existência de um conhecimento médio divino.

8.4.3 Logicamente, o conhecimento livre exige um


conhecimento posterior ao decreto divino, o que
nega a existência de um conhecimento médio
Também é uma objeção filosófica feita por aqueles que
apontam para a simplicidade do conhecimento de Deus e
que percebem no conhecimento médio um perigo para a
manutenção de sua autossuficiência (CRAIG, 2010, p. 141-
142). Tal objeção é respondida por Craig (2010, p. 144) da
seguinte forma:
Aspectos do mundo atual já existiam [no momento
lógico do conhecimento médio de Deus], incluindo
estados de causas expressos por certos contrafactuais.
Uma vez que estes contrafactuais correspondem à
realidade, eles são neste ponto verdadeiros e o seu
oposto falso. Uma vez que estes relevantes estados de
causas são atuais, alguém pode ficar com ambos, a
doutrina do conhecimento médio e a explicação do que
significa uma contrafactual ser verdadeira: nestes
mundos possíveis os quais são mais similares ao mundo
atual (na medida em que existe neste momento) e no
qual o antecedente é verdadeiro, a consequência
também é verdadeira (CRAIG, 2010, p. 144).
8.4.4 O uso das Sagradas Escrituras é inconclusivo
para provar o conhecimento médio
Como já foi visto no tópico 8.3 de maneira mais
abrangente, as duas principais passagens utilizadas pelo
molinismo não podem servir de texto-prova para o
conhecimento médio. Anthonny Kenny acredita que as
palavras de Jesus em Mateus 11.20-24 são meramente
retóricas. Freddoso responde a Kenny afirmando que “a
clara mensagem é que aqueles que Jesus tem favorecido
com milagres são menos receptivos a suas demandas para
arrependimento do que seus vizinhos pagãos teriam sido se
eles também tivessem sido favorecidos”. Quanto a isso, a
consulta ao tópico 8.3 apresenta uma abordagem que
parece favorecer as ideias de Kenny.

8.4.5 A tese da assimetria


Esta objeção ao molinismo é feita pelos seus oponentes,
os seguidores de Bañez, principalmente por Garrigou-
Lagrange. Segundo os banezianos, “a tese molinista de que
a concorrência divina e a graça atual são intrinsecamente
neutras implica que Deus se relaciona exatamente do
mesmo modo tanto com o bem quanto com o mal”
(MOLINA, 2004, p. 64).
Se Deus não é a causa total das ações livres no
sistema indeterminista do molinismo, então, sua atitude em
relação ao bem ou ao mal deve ser indiferente. No entanto,
pelo indeterminismo, se Deus não é a causa do mal, então
ele também não deve ser a causa do bem. Mas isso viola a
tese molinista da assimetria pela qual “Deus é a causa da
bondade dos efeitos bons, mas não da maldade dos efeitos
maus” (MOLINA, 2004, p. 64).
Freddoso, em sua tréplica molinista a esta réplica da
teoria da assimetria, afirma que a graça atual é particular e
não geral. A sua neutralidade reside apenas no fato de não
ser determinística, “isto é, somente no sentido em que sua
presença é compatível com o fato de o agente fazer uma
escolha má” (MOLINA, 2004, p. 64-65). Sendo assim, a
graça de Deus é concedida aos homens. Aqueles que fazem
escolhas boas o fazem porque a graça de Deus os inclinou a
fazerem. Quando o agente faz escolhas más, é porque agiu
contra e a despeito da graça de Deus. Aqui não há
causalidade, porque houve apenas concorrência da graça e
da escolha má, uma vez que a escolha má não decorreu da
graça, mas a despeito dela. É nesse sentido que, para os
molinistas, se explica a neutralidade intrínseca.

8.4.6 O princípio da predileção


Esta também é uma objeção dos seguidores de Bañez. A
réplica consiste no seguinte argumento: “ninguém seria
melhor que o outro a menos que fosse mais amado e mais
ajudado por Deus” (MOLINA, 2004, p. 65). Molina responde
que a concorrência divina e a graça comum podem ser
dadas igualmente, por exemplo, a Judas e a Pedro; e, ainda
assim, Judas escolherá o mal e Pedro, o bem, porque a
liberdade de escolha do indivíduo diante da graça deve ser
levada em conta. Mas os seguidores de Bañez insistem:
mesmo diante da liberdade, o que leva Pedro a escolher o
bem e não Judas? Há algo intrínseco em Pedro que o faz
escolher o bem? Molina diria: não. Então, segue-se a
conclusão baneziana: neste caso, Deus deve oferecer maior
amor ou ajuda a Pedro, do contrário Pedro possui mais
méritos que Judas. Os molinistas resolvem não responder a
este argumento com base meramente na lógica, mas
apelam para a teoria do conhecimento médio.

8.4.7 Determinismo de circunstância


T. J. Campbell (p. 28) afirma que:
os proponentes do conhecimento médio insistirão
que Deus, conhecendo aquelas circunstâncias nas quais
Pedro (uma vez submetido às mesmas) escolheria negar
a Cristo, colocou Pedro sujeito exatamente a tais
circunstâncias. Mas nós (os calvinistas) poderíamos
perguntar: “e quanto às circunstâncias que
influenciaram Pedro a fazer sua escolha?” Se a resposta
for “nenhuma das circunstâncias influenciou Pedro”,
então nós poderíamos perguntar acerca da relevância
de dizer: “Deus conheceu sobre quais circunstâncias
Pedro escolheria negar a Cristo”. Se a resposta (dos
molinistas) for: “existe algo nas circunstâncias que
influenciou Pedro a fazer sua escolha”, então, a
circunstância torna-se o fator determinante na decisão e
não Pedro em si mesmo. (grifo do autor)

A partir daí pode ser construído o seguinte silogismo:


Premissa 1: Deus decreta com base no seu
conhecimento de circunstâncias.
Premissa 2: Nenhuma das circunstâncias influencia a
decisão humana.
Conclusão: O conhecimento médio é irrelevante.

Essa conclusão é estabelecida, porque, se as


circunstâncias não alteram em nada a decisão humana,
então Deus não precisaria ter o conhecimento médio de
circunstâncias diferentes para decretar em que mundo
possível alguém tomaria certa decisão.
Outro silogismo possível:
Premissa 1: Deus decreta com base no seu
conhecimento das circunstâncias.
Premissa 2: As circunstâncias influenciam a decisão
humana.
Conclusão: Existe determinismo de circunstância.

Seja qual for a variação na segunda premissa, sempre


haverá um elemento de choque com a tese molinista: na
primeira, o conhecimento médio é desnecessário; na
segunda, os molinistas terão que aceitar um determinismo
circunstancial, coisa que negam, por absoluto. Geisler
(2001, p. 610) arremata a questão da seguinte maneira:

Os molinistas dizem que o conhecimento de Deus é


determinado por futuros atos livres. Isso sacrifica Deus
como causa suprema. Ele é determinado pelos eventos,
não o determinador. Isso é contrário à natureza de
Deus, pois ele se tornaria espectador epistemológico.

8.5 Uma síntese molinista


Diante da pesquisa até aqui apresentada, observa-se que
o molinismo é um sistema que tenta conciliar de maneira
consistente a presciência divina e a liberdade humana,
colocando na teoria do conhecimento médio a base para
toda a sua argumentação, partindo da premissa da
liberdade libertária. Com esses pressupostos em mente,
continuamos a discussão proposta neste livro.[55]
9 O CONHECIMENTO MÉDIO
COMPATIBILISTA
Todo escritor tem o direito de ter opiniões próprias e não
se pode esperar que ele as esconda, quando as considerar
bíblicas, relevantes e (estritamente) edificantes
J. I. PACKER

Diante das acusações que pesam sobre o calvinismo de


que o seu Deus é o autor do mal e de que o homem, sob tal
perspectiva, não é livre, houve um movimento dentro do
calvinismo que se levantou contra o conceito de
determinismo, até mesmo contra a posição compatibilista.
Foi apresentado no capítulo anterior um movimento
chamado “contingência sincrônica” que esposa uma ideia
“quase-libertista” e, certamente não-determinista. Neste
capítulo, será apresentada a visão de alguns teólogos
calvinistas, pela qual tentaram incorporar o conhecimento
médio ao calvinismo. Isso gerou grande discussão nas alas
calvinistas, uma vez que até então o calvinismo ainda não
havia sido harmonizado com o molinismo ou mesmo com o
conhecimento médio.
Os calvinistas que tentam compatibilizar o
conhecimento médio com o calvinismo, por sua vez,
advogam que não estão colocando em associação
molinismo e calvinismo, mas apenas extraindo o
conhecimento médio de Deus do sistema molinista e
aplicando-o ao calvinismo no afã de melhor explicar o
determinismo compatibilista.
No entanto, por conta das guerras terminológicas e da
imprecisão nas definições, alguns teólogos são mal
interpretados. Já mencionamos, por exemplo, D. A. Carson
(2007, p. 52) no capítulo anterior, mas vamos repetir aqui o
que ele afirma sobre Deus possuir conhecimento médio:
O Senhor desfruta de todo conhecimento. Deus não
só conhece todas as coisas. Ele sabe até o que poderia
ter acontecido sob circunstâncias diferentes (mais ou
menos o que os filósofos chamam de “conhecimento
médio”), e leva isso em consideração quando julga (Mt
11.20-24). Há muitos exemplos onde Deus sabe o que
nós agora rotulamos como decisões futuras livres e
contingentes (por exemplo, 1Sm 23.11-13).
No entanto, antes de ser rápido para fazer qualquer
argumentação sobre a teologia de Carson, perceba que ele
utiliza o termo “o que poderia ter acontecido sob
circunstâncias diferentes”; isso indica conhecimento de
contrafactuais. Ele crê que Deus leva em conta este
conhecimento quando julga e quando atua,[56] mas ele não
diz que crê na teoria do conhecimento médio. Aliás, ele até
deixa esse termo dentro do domínio da teologia filosófica e
o utiliza com imprecisão “mais ou menos”. Ou seja, ele finda
deixando a discussão acerca da natureza do conhecimento
médio sobre a mesa do debate filosófico, mas termina suas
palavras por aí. Carson definitivamente não se identifica
com a liberdade libertariana, nem o seu conceito de
conhecimento médio se enquadra nos moldes molinistas.
Os principais proponentes do calvinismo do
conhecimento médio são Bruce Ware e Terrance L.
Tiessen[57]. Bruce Ware (2008, p. 109) nomeou sua posição
de conhecimento médio compatibilista, uma terminologia
que será analisada posteriormente. Terrance Tiessen (2000,
p. 289) chama o seu modelo de providência de
conhecimento médio calvinista. A abordagem desse modelo
compatibilista entre conhecimento médio e calvinismo
merece uma apresentação dos modelos de Ware e Tiessen,
os quais serão submetidos ao crivo de outros teólogos a fim
de observar sua viabilidade.

9.1 O conhecimento médio compatibilista de Bruce


Ware
Bruce Ware é um renomado teólogo e professor de
teologia cristã no Southern Baptist Theological Seminary. É
um calvinista, mas tem contestado alguns conceitos básicos
do calvinismo clássico no que tange à teontologia. Seu
posicionamento é expresso na obra Perspectives on the
Doctrine of God, na qual defende um calvinismo modificado.
Para evitar mal entendidos, Bruce Ware (2008, p. 77)
expressa que não modificou o conceito de calvinismo
quanto à centralidade e preeminência da soberania de Deus
sobre todas as criaturas. Ele afirma que a soberania divina
“manifesta em sua ordenação de todas as coisas que
ocorrem e seu controle sobre todas as ações e eventos no
cosmos, sejam bons ou maus, está no coração do que
distingue a tradição reformada da maioria das demais”.
Diga-se, no entanto, que Ware rompe com a tradição
reformada clássica em seu entendimento básico de três
atributos divinos: eternidade, imutabilidade e onisciência.
A eternidade tem sido estudada classicamente como
atemporal, ou seja, Deus em seu estado eterno não possui
uma relação com a ordem criada no sentido de tempo. John
Feinberg, entretanto, afirma que o tempo em si é uma
realidade eterna, e Deus existe no tempo eternamente
(WARE, 2008, p. 86). A proposta de Ware é uma síntese dos
conceitos de eternidade atemporal e eternidade temporal.
Mas, para entender melhor a relação de Deus com o tempo,
ele apresenta primeiramente a relação de Deus com o
espaço: “Deus é não-espacial em si mesmo (in se) à parte
de sua criação, e Deus está presente espacialmente em
todos os lugares em relação à criação (in re) – e sem
conflito ou contradição.” (WARE, 2008, p. 87).
Ware entende o relacionamento de Deus com o tempo
compreendendo tanto sua existência atemporal em si (in
se) à parte da criação quanto sua existência “onitemporal”
em relação à ordem criada que ele fez (in re). Sendo assim,
Deus é transcendente “mas uma vez que Deus escolheu se
tornar imanente com a criação que ele fez, ele escolhe,
então, ‘entrar’ plenamente dentro das dimensões espaciais
e temporais da criação” (WARE, 2008, p. 89). Isso não exclui
o fato de que Deus continua essencialmente sendo
transcendente atemporal e aespacial.
A imutabilidade foi o atributo divino estudado por
Bruce Ware (2008, pp. 91,92) em sua tese de doutorado no
Fuller Theological Seminary. Ele apresenta uma visão
modificada da imutabilidade divina. Em concordância com a
tradição reformada, Ware crê que Deus não muda
ontologicamente. Seu ser é sempre o mesmo, independente
das circunstâncias (Sl 102.25-27; Ml 3.6; Tg 1.17).
Ware também crê na imutabilidade ética, a saber, que
Deus não muda em sua palavra, promessa e pacto. No
entanto, sua divergência com a tradição reformada consiste
na crença de que a Bíblia mostra Deus mudando em alguns
aspectos. A disposição de Deus contra o pecador não
arrependido é de ira e de condenação (Rm 1.18), mas em
Cristo esta disposição muda para uma de paz, aceitação e
amor paternal (Rm 5.1). A isso Ware chama de mutabilidade
relacional (p. 91). À medida que vai apresentando essa
argumentação de aspectos modificados nos conceitos
básicos reformados de alguns atributos divinos, Bruce Ware
prepara seus leitores para uma apreciação de sua teoria do
conhecimento médio compatibilista.
Como compatibilista, Ware crê que a Bíblia ensina tanto a
liberdade humana quanto a soberania divina. Existe uma
controvérsia quanto a isso, uma vez que filosoficamente o
compatibilismo assume que “o determinismo e a liberdade
são verdadeiros” (MORELAND, J.P.; CRAIG, W.L., 2005, p.
335). O determinismo aplicado à teologia indica que Deus
decreta todas as coisas, sendo a base para tal decreto sua
soberania.[58] Nesse sentido, uma boa explicação do
compatibilismo é expressa por Feinberg (1989, p. 41):
Deus pode decretar todas as coisas e, ao mesmo
tempo, nós estaremos agindo livremente, de acordo
com o sentido compatibilista de liberdade. Deus pode
garantir que seus objetivos serão atingidos livremente,
mesmo quando alguém não deseja praticar um ato,
visto que o decreto inclui não apenas os fins escolhidos
por Deus, mas também os meios para a consecução
desses fins. Tais meios incluem todas e quaisquer
circunstâncias e fatores necessários para convencer a
pessoa (sem constrangimento) de que a ação que Deus
decretou é a ação que essa pessoa deseja praticar. E
assim, propiciadas as condições suficientes, a pessoa
praticará a ação.
Bruce Ware (2008, p. 99,100), à semelhança de Jonathan
Edwards, qualifica seu conceito de liberdade como liberdade
de inclinação, pela qual o homem faz suas escolhas e ações
a partir do que deseja em seu coração. A vontade funciona
como agente do coração humano. Nota-se, porém, neste
ponto, uma forte ênfase calvinista em Bruce Ware, quando
nega com veemência a posição arminiana, a qual afirma
que o homem possui o poder de fazer a escolha contrária.
[59] Portanto, este conceito arminiano está em oposição aos

ensinos de Jesus de que uma boa árvore não pode dar mau
fruto e uma má árvore não pode dar bom fruto.
Ware não nega a liberdade humana como o fazem
alguns calvinistas, mas aponta que o homem é livre para
fazer algo quando escolhe fazer o que deseja. Liberdade,
então, não é a possibilidade da escolha contrária, mas
liberdade para escolher e agir em acordo com o que se deve
querer. Os homens são livres quando agem de acordo com o
que são mais fortemente inclinados a fazer.
Em seguida, Ware (2008, p. 103) passa a tratar de
uma das dificuldades que o fez revisar e modificar o atributo
da onisciência divina: o problema do mal. Se Deus
determina todas as coisas, como não incorrer no erro de que
Deus é mal por determinar o mal também? A saída de Ware
para tal dificuldade é a crença no controle assimétrico de
Deus do bem e do mal. Assim, quando Deus controla o bem,
ele controla o que se estende de sua própria natureza e
quando controla o mal, o que é oposto à sua natureza.
Outro questionamento levantado pelos arminianos se
dá na relação de Deus com o mal. Assume-se, a partir das
Escrituras, que Deus não faz o mal e nunca deseja
diretamente causá-lo. Mas se ele pode prevenir que o mal
ocorra, por que ele o permite? Ware (2008, pp. 105,106)
responde salientando que aqui a forma é a agência divina
pela permissão indireta. Neste caso, o caráter e a natureza
de Deus são separados do mal que ele permite acontecer,
conforme as evidências bíblicas de Gênesis 31.7; Marcos
5.12, 13; Atos 14.16; 16.7; 1Coríntios 16.7; e Hebreus 6.3.
Os arminianos não estão convencidos por essas
respostas. Ware (2008, p. 108), então, passa a mostrar que
o problema do mal ainda é mais difícil para o arminiano,
pois, se este crê na liberdade libertária, também deve crer
que Deus não é capaz de impedir boa parte dos males que
ocorrem no mundo, porque, se Deus o impedisse, teria que
desrespeitar a liberdade libertária dos homens. No modelo
arminiano, Deus não controla os casos específicos de mal,
como, por exemplo, o mal moral, porque este diz respeito
exclusivamente ao homem.
A pergunta mestra que levou Ware a modificar sua
posição calvinista clássica foi: se Deus decreta todas as
coisas, como distinguir sua agência causativa-direta da
permissiva-indireta? Noutras palavras, se o decreto é uma
ação causativa, como é que o mal não é causado por Deus?
Esta pergunta inquietante levou Ware a buscar uma
resposta numa versão modificada do conhecimento médio
de Molina dentro de um modelo reformado de providência e
oração.
O próprio Ware reconhece que o conhecimento médio
inclui a liberdade libertária no sistema molinista, porém não
vê dificuldades em transportar a teoria do conhecimento
médio para um modelo de liberdade compatibilista; a seu
ver, isso se torna uma ferramenta útil para entender o
controle de Deus sobre o mal. Do conhecimento médio,
Ware (2008, p. 112) preserva o sentido de que Deus pode
conhecer as circunstâncias que moldam nossos maiores
desejos, e assim ele conhece as escolhas que faríamos caso
estas circunstâncias ocorressem.
No modelo do conhecimento médio compatibilista,
Deus leva em conta outras possibilidades de estados de
causas antes de decretar. Ware cita alguns exemplos do uso
do conhecimento médio divino: além de mencionar as
passagens de 1Samuel 23.8-14 e Mateus 11.21-24, já
comentadas anteriormente, ele faz menção a Êxodo 13.17,
em que Deus tinha conhecimento que, se o povo de Israel
fosse pela terra dos filisteus, teria se arrependido ao ver a
guerra; em Jeremias 23.21,22, Deus sabe que, se tivesse
enviado os profetas, eles teriam falado as suas palavras ao
povo; em 1Coríntios 2.8, quando Deus tinha conhecimento
que, se os homens tivessem conhecido a sabedoria, jamais
teriam crucificado Jesus.
A definição de conhecimento médio de Ware (2008, p.
115) é a seguinte: conhecimento do que teria ocorrido,
contrário ao que de fato ocorreu. Explicando a referência de
1Coríntios 2.8, em comparação com Atos 4.27,28, em que a
cruz foi determinada e os homens foram responsáveis, Ware
(2008, p. 116) afirma melhor como o decreto divino tem
relação com o conhecimento médio:
Então, parece que o conhecimento médio figurado no
cumprimento do que Deus “predestinou” ocorrer
através destes governantes (e outros, certamente).
Aqui, então, o conhecimento médio de Deus auxilia na
formação do decreto predestinado por Deus, por
garantir a ele o conhecimento do que seria verdade em
uma situação ou em outra; então, o fato de Deus ser
apto a selecionar pelo seu decreto a situação particular
(de que os governantes da época de Paulo não
entendiam a sabedoria de Deus em Cristo), isto
avançará para o cumprimento do plano.
Ware (2008, p. 117) conclui seu pensamento sobre o
conhecimento médio compatibilista mostrando sua
resolução para o problema do mal; ele afirma que o
conhecimento médio de Deus parece ter uma importância
no controle de Deus sobre o mal. Como alguém sempre age
pela inclinação de sua natureza, a causa do mal não é Deus
nem as circunstâncias, mas a própria pessoa que o pratica.
Assim, a causa do mal é a natureza da pessoa em resposta
às circunstâncias apresentadas; o que explica as escolhas
feitas por cada pessoa é como sua natureza responde aos
fatores a ela apresentados.
Quando se trata de mal, pode-se pensar sobre Deus
regulando os fatores de uma situação, assim como
ocasionando uma particular escolha a ser feita ao invés de
causá-la. Dessa forma, Deus mantém um controle
meticuloso sobre o mal; e, ao mesmo tempo, suas criaturas
morais sozinhas são os agentes que fazem o mal, e eles
sozinhos possuem responsabilidade moral para com o mal
que eles livremente fazem (WARE, 2008, p. 119).
Ware retorna ao exemplo de Êxodo 13.17,
demonstrando que Deus usou seu conhecimento médio do
que Israel faria sob outras circunstâncias a fim de regular,
de fato, o que eles escolheram fazer. Deus sabia que o povo
de Israel agiria de acordo com suas inclinações mais fortes
e também sabia quais os fatores e as condições que
estimulariam as inclinações mais fortes; entretanto, ele
respeita as inclinações de cada um, mas regula suas
escolhas ao apresentar uma situação em que as suas livres
escolhas serão feitas de acordo com a vontade de Deus
para eles.

9.2 O conhecimento médio calvinista de Terrance


Tiessen[60]
À semelhança de Bruce Ware, o escritor Terrance Tiessen
(2000, p. 289) também subscreve uma versão modificada
do calvinismo, pela qual nega a ideia de atemporalidade
divina do calvinismo clássico, por não fazer justiça ao ser de
Deus altamente pessoal e relacional; para ele, Deus não
está apenas determinando a história humana, mas também
respondendo a suas criaturas dentro dela.
Tiessen (2000, p. 290) também aplica o conceito de
conhecimento médio ao seu sistema. Não, porém, sem
relutância, uma vez que reconhece as implicações disto:
Eu sou um tanto quanto relutante em usar o termo
que descreve a minha posição [conhecimento médio]
porque é usualmente associado com um
comprometimento à liberdade libertária humana.
Entretanto, é um modo simples de referir-se ao conceito
de conhecimento divino de contrafactuais da liberdade
humana, e eu o usarei em meu próprio modelo, apesar
de eu não acreditar que a liberdade humana seja
libertária.
O conceito de Tiessen afirma que o termo conhecimento
médio usualmente se associa com a liberdade libertária.
Mas, ao observar a definição de Molina, observa-se que esta
associação não é usual, mas intrínseca ao conceito de
conhecimento médio (cf. capítulo 1). Por outro lado, Tiessen
qualifica o que entende por conhecimento médio como
sendo um conhecimento de contrafactuais sem liberdade
libertária.
A aplicação do conceito de conhecimento médio feita
por Tiessen (2000, pp. 330-331) se aplica mais
especificamente à providência divina. O controle
providencial de Deus sobre sua criação inclui cada detalhe e
está em concordância com os decretos divinos. Às vezes,
Deus age de maneira não usual, atraindo nossa atenção
para ele em admiração, e a isso Tiessen chama de milagre.
No entanto, mesmo os milagres estão debaixo dos decretos
divinos.
O propósito eterno de Deus é a base do seu
conhecimento compreensivo, e isso envolve conhecimento
de cada detalhe do presente, passado e futuro. Como a
ordem existente está debaixo dos decretos divinos, então o
conhecimento de Deus acerca dela leva em conta o seu
decreto. Para estabelecer o seu decreto, Tiessen afirma que
Deus levou em conta o seu conhecimento médio. E ele
enfatiza novamente que o conhecimento médio é
“conhecimento de possibilidades de contingências futuras
ou contrafactuais” (TIESSEN, 2000, p. 331), reassumindo
que a liberdade libertária não é possível nem mesmo para
Deus.
Tiessen também crê no controle assimétrico de Deus
sobre o bem e sobre o mal, num viés compatibilista. As boas
coisas que os homens fazem são resultado da influência
graciosa de Deus sobre suas vidas, e as coisas más ocorrem
por permissão divina, por responsabilidade e culpa humana.
No que tange à liberdade humana, a presciência
divina das ações espontâneas dos homens não torna a
liberdade humana meramente ilusória. Ele explica que, se o
homem tivesse decidido diferentemente suas ações, então
o eterno conhecimento que Deus tem do futuro também
seria diferente do que é.
Mesmo negando a liberdade libertária, a explicação da
liberdade compatibilista coloca o conhecimento de Deus em
dependência direta das escolhas humanas. Isso parece se
inclinar em direção à liberdade libertária. No afã de remover
a dificuldade do problema do mal e da providência, Tiessen
não esclarece com maior precisão em que sentido o seu
conceito de liberdade difere do conceito de liberdade
libertária. Sua tentativa de explicar o compatibilismo em
termos do conhecimento médio aponta que:
Tomando nossa criação como criaturas moralmente
responsáveis, a direção de Deus sobre nossas vidas
ocorre através de mandamentos e ocorre através de
persuasão (ambos externa e internamente). O
conhecimento perfeito que Deus possui a nosso respeito
e sobre todas as circunstâncias de nossas vidas
(incluindo seu conhecimento médio), capacita-o a
cumprir o seu propósito sem coerção e com um mínimo
de “intervenção” (TIESSEN, 2000, p. 331).
Tiessen (2000, p. 332) leva seu leitor a observar que
Deus está no controle de todas as coisas; os homens são
livres, mas isso nunca coloca Deus em risco. No entanto, o
pecado entristece e causa dor em Deus. Nesse sentido,
Deus é um sofredor associado com suas criaturas viventes
que vivem em um mundo pecaminoso, mas nunca é forçado
neste sofrimento.

9.3 Uma análise do conhecimento médio


compatibilista
A atração que a teoria do conhecimento médio tem
despertado em alguns calvinistas tem em vista a resolução
de certos paradoxos gerados pelo calvinismo como o
problema do mal e a tensão entre a soberania divina e a
liberdade humana. A mera adesão ao compatibilismo
apenas coloca o paradoxo em questão, não o resolve.
O grande pregador inglês Charles Spurgeon (apud
PACKER 2012, p. 31) certa vez foi perguntado sobre como
reconciliaria a responsabilidade humana e a soberania
divina. Sua resposta foi categórica: “Eu nem ousaria tentá-
lo, eu nunca reconcilio amigos”. Certamente os dois
conceitos se encontram na Bíblia, mas a tensão entre eles
permanece.
A questão a ser respondida é se o conhecimento médio
compatibilista consegue realmente resolver o paradoxo
aparente entre a liberdade de escolha dos homens e o fato
de Deus determinar todas as coisas. Além disso, é
necessário verificar se tal tentativa de resolução não acaba
caindo numa real contradição, de maior dificuldade ainda.
Ao observarmos as visões de Terrance Tiessen e Bruce
Ware, verifica-se que o fator motivador que levou Ware a
aderir ao conhecimento médio compatibilista foi o problema
do mal e o controle providencial de Deus sobre todas as
coisas. Os textos bíblicos por ele apresentados abordam
estas duas temáticas, mas não se inclinam para a questão
da predestinação. Tiessen segue na mesma direção, quando
procura explicar a relação de Deus com o mal. Ambos
assumem a teoria do conhecimento médio, deixando de
lado a liberdade libertária, assentindo em seu lugar uma
liberdade compatibilista. Isso ocorre porque “o caráter
prevolicional de contrafactuais da liberdade de criaturas
leva à crença de que o poder de Deus no sistema molinista
é de certa forma limitado pelo conteúdo de seu
conhecimento médio” (LAING, 2004, p. 458).
O caráter prevolicional do conhecimento médio
molinista indica que Deus não possui controle sobre quais
mundos possíveis são atualizáveis. Por isso, o teólogo David
Basinger (apud LAING, 2004, p. 458) defende que:
o Deus do compatibilismo é mais poderoso que o
Deus do molinismo porque o Deus do compatibilismo é
limitado apenas pelas possibilidades lógicas, enquanto o
Deus do conhecimento médio é coagido pela
possibilidade lógica e pelos verdadeiros contrafactuais
da liberdade.

Basinger percebe que, no conhecimento médio, Deus em


sua opção criativa é limitado por aquilo que vê; num mundo
em que Deus tem conhecimento médio e os indivíduos são
livres, então as ações criativas de Deus estão sujeitas a algo
que está acima de seu controle, a saber, a liberdade
libertária. As implicações disso levam à ideia de que Deus
não pode ser surpreendido, mas pode ser desapontado.
Tratando sobre isso, Basinger (apud LAING, 2004, p. 459)
afirma:
Mas uma vez que um Deus com conhecimento médio
não pode controlar o que nós escolheremos fazer em
alguma situação na qual nós possuímos liberdade
significante, dificilmente pode ser dito que
conhecimento médio permite Deus “planejar” o mundo
que ele quer no sentido que ele pode assegurar que os
mais desejáveis “fins e propósitos” dos quais ele pode
conceber que sempre serão alcançados. Bem, é possível
para um Deus com conhecimento médio se encontrar
desapontado no sentido de que ele pode
frequentemente ter que contentar-se com menos que o
ideal.
O conhecimento médio, ao invés de resolver a tensão
entre a soberania de Deus e a liberdade humana, finda
gerando um problema maior: o Deus do conhecimento
médio é limitado e dependente em seus decretos das
escolhas que suas criaturas livres fazem. Na tentativa de
compatibilizar antinômios, ocorre uma incompatibilização
entre o Deus Todo-Poderoso e o Deus que é limitado em seu
poder pela liberdade de suas criaturas.
Mesmo diante desse quadro, Bruce Ware e Terrance
Tiessen creem ser possível conciliar o compatibilismo com o
conhecimento médio. Eles excluem a liberdade libertária e
definem conhecimento médio como conhecimento de
contrafactuais, conforme descrito acima, mas alguns
pensadores calvinistas creem que Deus não conhece
contrafactuais, porque tal terminologia em si já pressupõe
liberdade libertária.[61] Um destes teólogos é J. A. Crabtree,
que, a partir de um exemplo, explica sua posição:
Se a vontade de Pedro é o que Molina diz que é –
totalmente autônoma – então nada naquele tempo da
predição de Jesus necessita que Pedro negue a Jesus. De
fato, a visão de Molina requer que Pedro possa ter feito
diferente [...] As escolhas de Pedro não foram
determinadas antes do tempo. Então, se elas [as
escolhas de Pedro] ainda não tinham sido decididas,
como Deus poderia conhecer o resultado daquelas
decisões? Ninguém, nem mesmo Deus, pode conhecer o
resultado de uma decisão autônoma que ainda não
tenha sido feita, ou pode? (apud, LAING, 2004, p. 460).

A severidade da argumentação de Crabtree é maior que


a de Basinger ao molinismo, pois este nega apenas o
conhecimento médio com base na liberdade libertária,
enquanto aquele nega qualquer conhecimento de
contrafactuais em Deus. Feinberg (apud LAING, 2004, p.
461) aprofunda ainda mais a discussão ao apontar que
mesmo um conhecimento médio tem um objeto a ser
conhecido ou um conteúdo, e até este conteúdo necessita
ser determinado por algo. Quem determina o conteúdo do
conhecimento médio de Deus? Tanto no sistema molinista
quanto no sistema compatibilista, o conteúdo é
determinado pela liberdade do homem, porque, se for a
vontade de Deus ou sua determinação o fator causador do
conteúdo do conhecimento médio, então a liberdade do
homem se esvai.
Cabe aos adeptos do conhecimento médio compatibilista
uma resposta. E o próprio Feinberg, que posteriormente
aderiu ao conhecimento médio compatibilista, responde em
sua obra No One Like Him: The Doctrine of God [Ninguém
como ele: a doutrina de Deus] (2001, p. 1047) com as
seguintes palavras:
Eu não acho o apelo ao conhecimento médio uma
solução adequada para o problema da liberdade e
presciência. Além disso, eu não acredito que Deus
possui conhecimento médio, se conhecimento médio
inclui conhecimento do que os homens livremente
fariam no sentido libertário. Por outro lado, se alguém
crê em alguma forma de determinismo, assim como eu,
então não há razão para negar que Deus possui
conhecimento médio do que os homens fariam
livremente (compatibilisticamente). A única questão é
se as condicionais seriam verdadeiras ou falsas.
Considerando o conhecimento que Deus possui de todos
os mundos possíveis, eu penso que Deus sabe quais
condicionais seriam verdadeiras em cada mundo
possível. Ele poderia conhecer então porque ele veria
em cada caso os antecedentes causais que
ocasionariam ações das quais as condicionais tratam.
Então, enquanto eu duvido que um indeterminista
poderia consistentemente crer que Deus tem
conhecimento médio, eu não vejo razão para um
determinista negá-lo.
O conhecimento de Deus não é arbitrário, conforme
Feinberg, uma vez que respeita a liberdade de escolha dos
homens em cada mundo possível, porém todas essas
liberdades são determinadas por fatores externos e
internos. Enquanto não está claro acerca da posição de
Feinberg (veja abaixo), Tissen e Ware não veem problema
em crer num conhecimento médio da perspectiva da
liberdade compatibilista.
Para fugir da dificuldade com o fator determinante do
conteúdo do conhecimento médio, Feinberg (apud LAING,
2004, p. 463) afirma que a base para a decisão soberana de
Deus é seu bom prazer e propósito e não o que ele prevê,
incluindo o seu conhecimento médio. Estrategicamente,
Feinberg coloca a sua definição de conhecimento médio
como sendo não prevolicional. Nesses termos,
descaracteriza-se de maneira muito acentuada o próprio
conceito de conhecimento médio, uma vez que ele é
intrinsecamente libertário e pré-volicional. Nos termos de
Molina, o que Feinberg sugere é uma espécie de
conhecimento livre de Deus. E aí já deixou de ser
conhecimento médio; por isso, é seguro não incluir
Feinberg, assim como Carson, no grupo que adota esse tipo
de compatibilismo.
Foge ao escopo deste trabalho determinar se o
calvinismo crê ou não que Deus possui conhecimento de
contrafactuais, mas boa parte dos calvinistas clássicos não
crê nesta possibilidade (cf. Apêndice). Laing (2004, p. 467)
crê no determinismo moderado ou compatibilista e afirma
que Deus possui conhecimento de contrafactuais, mas
afirma que o calvinismo é incompatível com o conhecimento
médio pelas razões supracitadas.
Outro teólogo que tem estudado o conhecimento
médio compatibilista é Matthew A. Postiff (2010, pp. 51-56),
o qual - em sua dissertação de mestrado intitulada How God
Knows Contrafactuals [Como Deus conhece contrafactuais] -
apresentou a tese de que o conhecimento médio
compatibilista é indefensável, a partir de três linhas de
argumentação: 1) A liberdade compatibilista impossibilita
um terceiro tipo de conhecimento em Deus (o conhecimento
médio);[62] 2) A objeção do embasamento;[63] 3) O
conhecimento médio compatibilista renuncia seu distintivo
calvinista.[64]

Outro detalhe a ser apontado na avaliação do


conhecimento médio compatibilista é o forte engajamento
de Paul Helm no seu combate à posição molinista e ao
conhecimento médio compatibilista. Mediante a
argumentação de Helm, arraigada em argumentos
filosóficos e teológicos, Terrance Tiessen acabou recuando
em seu modelo de conhecimento médio calvinista. Sendo
este um dos proponentes principais do conhecimento médio
compatibilista, é razoável observar os motivos que o
levaram a declinar de sua posição.

9.4 O abandono do conhecimento médio


compatibilista por Terrance Tiessen
Não estamos supondo que esta mudança no pensamento
de Tiessen configure um argumento anti conhecimento
médio compatibilista (anti-CMC), mas, pelo menos nesta
experiência, podemos entender como um indivíduo que
mudou seu posicionamento teológico pode nos ensinar um
pouco sobre o mundo acadêmico e sobre humildade.
O professor Terrance Tiessen expôs sua posição em
favor do conhecimento médio calvinista na obra Providence
& Prayer [Providência & oração] (2000). Posteriormente, ele
publicou uma suma de sua posição no Westminster
Theological Journal (WTJ), sob o título Why Calvinists Should
Believe in Divine Middle Knowledge, Although They Reject
Molinism [Por que calvinistas devem crer no conhecimento
médio divino, embora eles rejeitem o molinismo] (2007). Por
isso, Paul Helm passou a escrever em oposição ao
conhecimento médio compatibilista. Em 2008, Helm
participou de um debate sobre a doutrina de Deus, em que
questionou a visão modificada do calvinismo proposta por
Ware na obra Four Views: Perspectives on Doctrine of God
[Quatro visões: perspectivas sobre a doutrina de Deus]. Por
fim, em 2009, Helm e Tiessen publicaram conjuntamente
um artigo no WTJ, denominado Does Calvinism Have Room
for Middle Knowledge? A conversation [O calvinismo tem
espaço para o conhecimento médio? Um diálogo]. Nesse
artigo, Tiessen declara seu abandono da crença no
conhecimento médio compatibilista diante da linha de
argumentação de Paul Helm. É interessante observar alguns
detalhes nesse artigo que apontam as fraquezas do
conhecimento médio compatibilista expostas por Helm, que
levaram Tiessen a declinar de sua posição.
Primeiramente, Paul Helm (2009, p. 437) apresenta
o plano de fundo em que os termos conhecimento natural e
conhecimento livre foram utilizados pelo calvinista Francisco
Turretin. Para ele, o conhecimento natural diz respeito às
coisas possíveis; e o conhecimento livre, às coisas futuras.
O fundamento para o conhecimento natural é a onipotência
divina, enquanto que, para o conhecimento livre, são a
vontade e o decreto divinos.
Turretin vê esses dois tipos de conhecimento como
exclusivos e exaustivos que não deixam espaço para um
terceiro tipo de conhecimento, como o conhecimento médio.
Ele frisa que a distinção entre conhecimento natural e livre
não é temporal ou cronológica, mas de ordem ou racional
(HELM, 2009, p. 438). O que Helm quer indicar com isso é
que o calvinismo, desde o início, negava a possibilidade de
um conhecimento médio. A citação de Turretin é oportuna
no sentido de que utiliza os termos de Molina para a
onisciência divina, mas restringe-se a dois tipos de
conhecimento, tal qual Aquino.
Em segundo lugar, Helm (2009, p. 440) apresenta
algumas características do conhecimento médio
compatibilista. Como ele já foi descrito acima, é válido
apontar uma característica ainda não apresentada, a saber,
que no conhecimento médio compatibilista os momentos
em cada conhecimento não são meramente lógicos, mas
também são temporais. Isso parece contraditório, conforme
a descrição do conhecimento médio feita por William Lane
Craig. No entanto, as palavras de Tiessen (2009, p. 440) são
bastante claras ao propor tanto a temporalidade do
momento quanto a necessidade de cálculo e análise no
conhecimento médio compatibilista:
Não seria simplesmente intuitivo, ele [o
conhecimento médio compatibilista] seria um
conhecimento do tipo que delibera, analisa e calcula
“quais cenários incluem a ação da criatura e a sua
própria [de Deus] [...] Eu julgo que este processo
deliberativo de avaliação e de esgotar cenários move-se
para além do que Deus conhece simplesmente porque
ele conhece a si próprio e tudo o que ele poderia fazer
consistentemente com sua própria natureza. Este
processo deliberativo faz uso de seu conhecimento
natural, mas move-se para além dele, e ainda é anterior
a sua decisão de escolher um mundo particular.
Em terceiro lugar, Helm apresenta os argumentos anti-
CMC, os quais já foram expostos na argumentação de
Postiff.[65] Com base nesses argumentos e após uma
extensa e meticulosa refutação do conhecimento médio
compatibilista, Helm (2009, p. 446) demonstra os
pressupostos implícitos na tentativa de Tiessen em resolver
o problema do mal por meio do conhecimento médio
compatibilista: “é um instinto humano natural querer ter o
mistério diminuído ou aliviado. Mas nós estamos vendo que
a esperança de brilhar mais luz nestas áreas opacas pelo
conhecimento médio calvinista é ilusória”. Helm crê que o
conhecimento médio compatibilista, na verdade, não passa
de conhecimento natural.
As palavras de Terrance Tiessen expressam melhor as
motivações que o levaram a declinar do conhecimento
médio compatibilista. Ele expressa sua gratidão a Paul Helm
por seus comentários úteis que o ajudaram a reformular e a
rever alguns pontos de sua posição. Na verdade, a resposta
que dá a pergunta que intitula o artigo demonstra que ele
não abdicou totalmente de sua posição original. A questão
é: “Há espaço para o conhecimento médio no calvinismo?”;
a resposta de Tiessen (2009, p. 447), mediante os
comentários de Helm, é: “Não, mas...”
Tiessen explica que, a partir de 2005, ele começou a
observar que o conhecimento médio compatibilista não era
essencial para sua posição. Um dos fatores que pesou para
seu declínio do conhecimento médio compatibilista foi sua
correspondência pessoal com John Frame. Sobre isso,
Tiessen (2009, p. 448) escreveu a Frame:
Eu tenho visto que o conceito de conhecimento
médio, como tal, não é essencial para meu modelo
como o é para o modelo molinista por causa de minha
rejeição de liberdade libertária [...] Eu ainda vejo o
conhecimento de Deus de contrafactuais como
importante nesta construção. Mas, agora, eu estou
menos certo de que há importância se Deus conhece
isto como parte de seu conhecimento essencial ou,
distintamente, como logicamente (e talvez não
completamente não-cronologicamente) parte de um
“momento” ou “ato de conhecimento” separado.
Partindo desse pressuposto, a posição de Tiessen, de
2007 em diante, buscou mais entrar em concordância com
calvinistas que creem no conhecimento divino de
contrafactuais do que saber quando logicamente Deus
estabelece seu conhecimento. Diga-se, no entanto, que
foram as análises de Paul Helm que levaram Tiessen a
declinar definitivamente do conhecimento médio
compatibilista. Tiessen observou, à semelhança de Helm,
que o conhecimento médio compatibilista não passa de
conhecimento de possibilidades, ou seja, trata-se de
conhecimento natural ou necessário. Para Tiessen, os
contrafactuais são levados em conta nos sábios decretos de
Deus, mas isso não implica em conhecimento médio.
Tiessen confessa que confundiu as diferenças entre o
conhecimento divino e o conhecimento humano, tendo em
vista que muitos de seus exemplos apontam uma situação
humana para ilustrar como ocorre o conhecimento divino.
Todavia, percebeu que é inválido argumentar nestes termos,
tendo em vista que Deus é onisciente, ao contrário do
homem (TIESSEN, 2009, pp. 448, 449). Tiessen reconhece
que o conhecimento humano é imperfeito e limitado; e a
questão não se resolve ao categorizar vários tipos de
conhecimento no ser divino, pelo menos aquelas categorias
que não são clarificadas pelas Escrituras.
Um aspecto central, entretanto, para rejeitar a
diferença entre conhecimento natural e conhecimento
médio é a aplicação do conhecimento do que “poderia ser”
e do que “seria” com relação a Deus e com relação aos
homens. É observável que as cogitações humanas tendem a
ver diferentes possibilidades e a possibilidade que alguém
escolheria, por conta de sua limitação epistemológica. No
entanto, em Deus, essa distinção entre conhecimento do
tipo “poderia ser” e “seria” é irrelevante e inexistente,
porque - já que as criaturas não possuem liberdade
libertária - consequentemente não se tem a opção da
escolha contrária, logo Deus não precisaria observar um
conjunto de possibilidades, tendo em vista que sua
onisciência o levaria diretamente a saber o que “seria”.
Tiessen (2009, p. 450) reconhece seu erro anterior
quando aderiu ao conhecimento médio compatibilista e
esclarece o motivo de sua mudança:
O que eu falhava em ver era que [...] o conhecimento
médio dava lugar a criaturas com liberdade libertária
como um fato do mundo que Deus escolhe atualizar. Eu
agora creio que a rejeição da construção molinista por
causa de sua falta de entendimento da liberdade
também envolve rejeição do conceito de conhecimento
médio divino. Se (como eu creio) criaturas não possuem
liberdade libertária, não pode haver diferença entre o
conhecimento de Deus do que criaturas poderiam fazer
e o que eles fariam.
O movimento de Bruce Ware chama a atenção. Em
correspondência pessoal com John Piper, Bruce Ware
declarou que “os que estão no inferno, os quais nunca
depositaram sua fé em Cristo, por isso nunca foram salvos,
estão sob o juízo de Deus em razão de seu pecado, mesmo
que Cristo tenha pagado a penalidade de seu pecado” (Cf.
GIBSON; GIBSON, 2017, p. 782). Ou seja, não somente sua
aproximação com o conhecimento médio compatibilista,
mas sua ruptura com o modo convencional de entender a
expiação limitada demonstra que gradativamente Ware se
afasta do calvinismo histórico.
Tiessen nutre esperança com respeito a Ware, pois,
após demonstrar que Bruce Ware também poderia declinar
de sua posição de conhecimento médio compatibilista, sem
prejuízos para a ideia de conhecimento de contrafactuais,
como suporte para melhor entender o problema do mal, ele
conclui sua argumentação ao afirmar que:
Claramente, a crítica do professor Helm tem sido de
grande ajuda para mim. Tem me levado, finalmente, a
abandonar a tentativa de incorporar conhecimento
médio divino dentro do meu entendimento calvinista do
eterno propósito de Deus quanto à história do universo,
em todos os seus detalhes. Uma vez que eu não
compartilho o desejo molinista de fazer as decisões de
seres humanos com liberdade libertária uma matéria do
conhecimento de Deus distinta de seu conhecimento de
si mesmo, eu não tenho necessidade de afirmar o
conhecimento médio divino. Não obstante, eu continuo
a crer que o conhecimento de Deus de contrafactuais é
útil para ele em seu sábio decreto concernente ao futuro
de tudo o que acontece no universo que Deus cria e
governa por sua própria glória (TIESSEN, 2009, p. 454).
É apreciável a humildade de Tiessen em declinar de sua
posição, mediante o reconhecimento da inconsistência do
conhecimento médio compatibilista em pressupor liberdade
compatibilista num sistema que essencialmente é libertário,
mas é perceptível sua insistência em continuar crendo no
conhecimento divino de contrafactuais. Ainda assim,
Tiessen percebe a incompatibilidade entre calvinismo e
conhecimento médio, bem como entre calvinismo e
conhecimento médio compatibilista.

9.5 O trono em foco


Esta parte final do capítulo se ateve a analisar a
possibilidade de compatibilismo entre calvinismo e
conhecimento médio. Observa-se que essas tentativas são
produtos da busca humana em resolver aparentes conflitos
e situações paradoxais descritas na Bíblia. Com relação aos
calvinistas, a adesão de alguns ao conhecimento médio
compatibilista deu-se pela atraente opção de explicar a
tensão entre o determinismo e a liberdade humana.
A temática é complexa e aponta para a necessidade
de estudos mais acurados tanto no campo teológico quanto
filosófico. No entanto, pode-se observar que geralmente se
incorre em dificuldades quando se toma de empréstimo
termos e conceitos de sistemas com pressupostos
antagônicos aos daqueles que os aplicam ao seu sistema.
Este é o caso de Molina, por exemplo, que - ao se apropriar
dos conceitos de conhecimento de Deus estabelecidos por
Aquino - finda redefinindo o que Aquino chamou de
inteligência simples como “conhecimento natural”.
Observamos, contudo, que a inteligência simples de Deus
nunca é atualizada; enquanto o “conhecimento natural” de
Molina pode ser atualizado.
Molina também modifica o entendimento da “ciência
de visão” de Aquino quando a equipara ao “conhecimento
livre”. Dessa maneira, a criação de uma terceira categoria
efetuada por Molina foi com base numa concepção irregular
das categorias epistemológico-divinas utilizadas por Aquino.
A questão se torna ainda mais complexa quando se
toma de empréstimo do molinismo o conceito de
conhecimento médio para aplicá-lo num sistema calvinista
compatibilista. O problema é que, nessa migração, o
calvinista precisa modificar a liberdade libertária da
definição original do conhecimento médio para uma
liberdade compatibilista.
Além das dificuldades conceituais, outras dificuldades
aparecem para o conhecimento médio compatibilista,
mediante os arranjos e rearranjos utilizados pelos seus
proponentes. O Deus do conhecimento médio compatibilista
é limitado em sua onipotência pelas escolhas que os
homens fariam em certos mundos possíveis. Nesse sentido,
o conhecimento médio compatibilista transforma-se numa
espécie de cálculo e de arranjos a fim de escolher atualizar
um mundo possível. Entretanto, pelo caráter pré-volicional
do conhecimento médio compatibilista, Deus não possui
domínio ou exerce vontade sobre os homens nos mundos
possíveis. Pelo contrário, as criaturas livres em suas
escolhas é que determinam o conteúdo do conhecimento de
Deus. Dessa maneira, se Deus determina todas as coisas e,
para determinar, precisa calcular o que vai decretar com
base nas escolhas que os homens fariam, então, em última
instância, quem tem predominância sobre as determinações
futuras acaba sendo os seres que possuem liberdade, seja
ela compatibilista ou libertária.
Para fugir das dificuldades que surgem por causa das
implicações do conhecimento médio compatibilista, a opção
que coube a Feinberg foi redefinir conhecimento médio
como sendo não pré-volicional e não compatível com
liberdade libertária. Ele termina descaracterizando de tal
forma o conceito original de conhecimento médio que a sua
tentativa de compatibilização entre conhecimento médio e
calvinismo por meio do conhecimento médio compatibilista
é outra coisa, menos conhecimento médio.
O conhecimento médio compatibilista não é a mesma
coisa que o conhecimento médio do molinismo. Portanto, a
modificação foi tão vultuosa que termina por gerar mal
entendidos. Se não é a mesma coisa, é razoável que o
calvinista não se reporte ao termo de Molina. Primeiro,
porque não estará se reportando ao termo honestamente e,
segundo, que o uso efetuado por meio do conhecimento
médio compatibilista demonstra-se difícil de ser assumido
pelo calvinismo, tomando-se o calvinismo como um sistema
determinista. Nossa conclusão até aqui é que o calvinismo e
conhecimento médio são sistemas incompatíveis.
A argumentação de Paul Helm e de Postiff aponta para
as inconsistências do conhecimento médio compatibilista, à
medida que este não faz distinção entre o conhecimento de
Deus e o de suas criaturas. Parte do problema surge de
analogias tiradas do contexto de criaturas finitas em seu
conhecimento para posteriormente aplicar tal conhecimento
a um Deus onisciente, ou seja, o mesmo uso do termo
conhecimento médio compatibilista parece desconsiderar
que o conhecimento divino sobre o que “poderia acontecer”
e o que “aconteceria” não possui distinção, tendo em vista
que tudo é determinado por ele e já se sabe previamente o
que o homem escolheria. Nesse sentido, é inválido até
mesmo pensar em termos do que se poderia escolher, posto
que Deus já sabe o que o homem escolheria.
O reconhecimento de tais inconsistências por Tiessen
e sua declinação do conhecimento médio compatibilista
tornam pertinentes algumas observações importantes
acerca do compatibilismo entre conhecimento médio e
calvinismo. Quando não se puder evitar empréstimo de
terminologias, pelo menos, deve-se tomar cuidado com seu
uso, ainda mais quando são oriundas de sistemas
incompatíveis com aquele que se quer defender. Esta é uma
das fraquezas primárias do conhecimento médio
compatibilista: tentar pensar em termos compatibilistas
aquilo que no seu cerne se pensa de forma libertária. Se um
calvinista crê em contrafactuais, diante do que foi exposto,
é preferível que declare sua crença nestes termos ao invés
de categorizar o conhecimento de Deus em termos que não
estão claros nas Escrituras e que acabam causando
dificuldades maiores ainda.
Por fim, é necessário um tom humilde para
reconhecer que os paradoxos do compatibilismo não são
resolvidos tão facilmente quanto se espera. Os recursos
filosóficos não podem sobrepujar uma análise exegética e
teológica dos termos que apontam para a onisciência
divina. Nesse sentido, o conhecimento médio compatibilista
- ao invés de trazer contribuições para a teologia - acaba
ocasionando mais problemas e, por este motivo, deve ser
rejeitado, como bem percebeu Terrance Tiessen. O exemplo
de humildade de Tiessen aponta para uma grande lição a
ser seguida: um sistema teológico precisa sempre estar
aberto a escrutínio e avaliação.
CONCLUSÃO: PENSANDO EM
DEUS DE FORMA DEVOCIONAL
Devemos respeito aos irmãos arminianos e aos que
possuem uma postura conciliatória entre calvinismo e
arminianismo. A pecha que reside sobre eles no sentido de
não serem cristãos é injusta; e a insatisfação de Roger
Olson (2013, p. 19) quanto a alguns calvinistas é plausível:
Admito que fico ofendido com alguns calvinistas.
Estes são os que consideram sua teologia o único
cristianismo (ou evangelicalismo) autêntico e que
interpretam erroneamente outras teologias que não a
sua – principalmente o arminianismo. Infelizmente,
especialmente nos últimos anos, eu tenho encontrado
estas características com muita facilidade entre os
“novos calvinistas”.
A noção de respeito mútuo é sempre importante, mas
não à semelhança de Roger Olson, que justamente se
queixa quando um calvinista afirma: “o arminianismo
tomado em suas últimas consequências é antropocêntrico”,
mas não respeita igualmente o calvinismo ao dizer que o
calvinismo tomado em suas últimas consequências possui
um "Deus" muito parecido com o diabo (cf. OLSON, R.
Contra o calvinismo, pp. 35,36).[66]
A crítica dele ao calvinismo soa mais desrespeitosa e
ofensiva não pelo conteúdo que representa, mas pela falta
de honestidade com os dados bíblicos. Não observar as
fartas evidências bíblicas da soberana providência de Deus
sobre todos os detalhes da criação, todos os
acontecimentos, inclusive sobre o mal, e partir para a crítica
oposta ao ponto de chamar o Deus calvinista de “diabólico”,
isso sim se trata de uma grande inconsistência.
O arminianismo, tomado em suas últimas consequências
lógicas, é realmente antropocêntrico, pois coloca o foco da
salvação totalmente na responsabilidade humana e não na
graça divina. Se há um espantalho na frase “o arminiano é
antropocêntrico”, tudo bem (pois conhecemos arminianos
que colocam Deus no centro de suas vidas), mas, na lógica
de seu sistema soteriológico, Deus está preso no seu poder
criador, enquanto o homem é livre, chegando até a
possibilidade de liberdade autônoma.
Nosso Deus não é mal, ele tem o controle sobre o mal;
nosso Deus não é mal, ele tem o domínio e a determinação
de tudo; nosso Deus não é o diabo, ele baniu o diabo de sua
presença abençoadora; nosso Deus não é mal, ele usa o
próprio mal para fazer cumprir o seu propósito. Nosso Deus
não é mal, um dia ele punirá todos os delitos cabalmente,
inclusive Satanás.

Por uma teologia irênica

Antes de dizer “eu discordo”, devemos ser capazes de


verdadeiramente dizer “eu entendo”
Roger Olson

Para exemplificar a possibilidade de tratamento


respeitoso entre calvinistas e arminianos, observe este
diálogo entre Charles Simeon, um calvinista, e Wesley,
considerado por ele um arminiano, em 20 de dezembro de
1784 que, por causa de sua importância, será reproduzido
na íntegra:
Meu caro, eu entendo que você é o que chamam de
arminiano; e certas pessoas me chamam de calvinista;
e por isso mesmo, suponho que as pessoas esperam
ver-nos prontos para brigar um contra o outro. Mas,
antes de eu consentir em que se dê início ao combate,
com sua licença, gostaria de lhe fazer algumas
perguntas [...] Diga-me, por favor: você sente que é
uma criatura tão depravada, mas tão depravada que
nunca teria pensado em voltar para Deus, se Deus já
não tivesse posto isto em seu coração antes? É verdade,
“diz o veterano”, é isso mesmo. E você também se
sentiria totalmente perdido, se tivesse que recomendar-
se a Deus, baseado em alguma coisa que você pudesse
fazer; e considera a salvação como algo que se deu
exclusivamente pelo sangue e justiça de Cristo? Sim,
exclusivamente por Cristo. Mas então, meu caro,
partindo do pressuposto de que você foi inicialmente
salvo por Cristo, será que ainda assim você não teria
que subsequentemente, de uma forma ou de outra,
salvar-se a si mesmo por suas próprias obras? É claro
que não, pois eu devo ser salvo por Cristo do princípio
ao fim. Admitindo, então, que foi inicialmente
convertido pela graça de Deus, você, de um modo ou de
outro, deve manter-se salvo por seu próprio poder? Não.
Quer dizer, então, que você deve ser sustentado a cada
hora e momento por Deus, tal como uma criança nos
braços de sua mãe? Sim, absolutamente! E quer dizer
que toda sua esperança está depositada na graça e
misericórdia de Deus para sustentá-lo, até que venha o
seu reino celestial? Certamente, eu estaria
completamente desesperado, se não fosse ele. Então,
meu caro, com sua permissão vou levantar novamente
a minha espada; pois isto não é nada mais nada menos
do que o meu calvinismo; eis aí as minhas teses da
eleição, da justificação pela fé, da perseverança final:
eis aí, em essência, tudo o que eu defendo, e como o
defendo; portanto, se lhe parecer bem, ao invés de ficar
tentando descobrir termos ou expressões que sejam
bom motivo de briga entre nós, unamo-nos
cordialmente naquelas coisas em que concordamos
(PACKER, 2002, p. 11-12)
A sábia abordagem de Charles Simeon evitou um conflito
que demorasse um período indeterminado. Mesmo que
tenhamos ideias e opiniões soteriológicas divergentes entre
molinistas, arminianos, amiraldianos, dentre outros grupos
sinergistas, devemos respeitá-los e convidá-los a viver em
unidade diante das questões essenciais da fé cristã, mesmo
que vez por outra tendamos a ter conflitos. Observe o
relacionamento respeitoso que foi travado entre Lloyd-Jones
e seu colega de ministério Campbell Morgan:

Na IVF, tanto aqui na Grã-Bretanha como na esfera


internacional, arminianos e calvinistas trabalham alegre
e harmoniosamente juntos, e é meu privilégio cooperar
com todos eles. [...] Além disso, eu trabalhei durante
cinco anos da maneira mais feliz possível com o finado
Dr. G. Campbell Morgan, conquanto eu e ele tivéssemos
conceitos antagônicos sobre esses assuntos. Ademais,
fui severamente criticado mais de uma vez por pedir a
certos arminianos que ocupassem o meu púlpito
durante as minhas férias de verão. Para ser “mais vil
ainda”, será do seu interesse saber que tenho sido
denunciado como um perigoso arminiano por uma
sociedade de hipercalvinistas em Londres porque [...] eu
ensino que o livre oferecimento da salvação deve ser
feito a todos na pregação (LLOYD-JONES, 1996, p. 233-
234).

Quanto ao homem que vive contendendo por motivos


soteriológicos e filosóficos, tem como moto [referimo-nos
aos sinergistas]: “Dá-me o livre-arbítrio ou então a morte!”
(SPROUL, 2009, p. 7). Este, certamente morrerá, mas nunca
conseguirá o livre-arbítrio, este pertence absolutamente a
Deus. A satisfação e o contentamento em Deus são pontos-
chave para podermos evitar querelas desnecessárias,
enquanto continuamos nossa carreira cristã, sem deixarmos
de nos posicionar, como fizemos aqui, mas exercitando
nossas mentes, muitas vezes com críticas mordazes a
certos sistemas, feitas, contudo, de maneira respeitosa e
honesta. Que este exemplo de Agostinho nos impulsione a
estarmos cada vez mais perto de nosso redentor, que está
assentado no trono: “E precisamos dele [Agostinho]
urgentemente para nos ajudar a recuperar a raiz de todo
viver cristão na alegria triunfante em Deus, que derriba do
trono a soberania da ociosidade e luxúria e ganância”
(PIPER, 2005). Em uma atitude de criaturidade, abracemos
aquele que é tão soberano que sua identidade proclama sua
liberdade absoluta para ter misericórdia de quem ele quiser
ter misericórdia. E nós juntos clamamos: SENHOR, tenha
misericórdia de nós! Amém!
UMA TABELA COMPARATIVA DE ONZE MODELOS
SUPORTE FILOSÓFICO
É certo que todos os sistemas soteriológicos possuem
fundamentação não apenas teológica, tendo em vista que,
em se tratando de termos que concernem ao destino e
liberdade do homem, muitas sentenças e vocábulos
filosóficos precisam ser assimilados para que se
compreenda, por exemplo, o que de fato é o calvinismo,
arminianismo, molinismo, pelagianismo e o universalismo,
só para citar alguns sistemas que tentam explicar como
ocorre a salvação humana.[67] Entre os principais conceitos
filosóficos envolvidos nesta trama, encontra-se o
determinismo.

Determinismo: Levando-se em conta a soberania de


Deus, a saber, o seu domínio, poder e controle absoluto
sobre a criação, o conceito determinista é defendido pela
maioria dos calvinistas. É definido como: “A concepção que
entende que, para cada evento dado, existem condições
tais que, no caso de elas ocorrerem, nada mais poderia ter
acontecido”.[68] É a partir do determinismo que os
calvinistas creem que Deus decreta todas as coisas.[69]
Existem dois tipos de determinismo:

1. Determinismo radical: nega o livre-arbítrio.


2. Determinismo moderado ou
compatibilista: a verdade do determinismo não anula
a liberdade do homem. Na verdade, para os
compatibilistas, uma livre escolha deve ser
determinada, pois, se tal escolha não for motivada por
um evento anterior, torna-se aleatória. Dessa forma,
causas anteriores levarão o indivíduo a tomar certa
decisão (determinismo) sem que aja contrariamente à
sua vontade (liberdade). Nesse sentido, o decreto divino
de eleger alguns é a causa eficiente que leva o homem
a crer em Jesus (ele crê livremente, mas sua crença já
havia sido determinada de tal forma que não poderia
sê-lo de outro jeito, mesmo ele tendo possibilidades
reais de ter escolhido não crer).

Fatalismo: Crença de que nem mesmo Deus teve outra


opção senão criar o mundo da maneira como ele o fez;
devido a esta necessidade absoluta de as coisas serem
como são, havia uma única opção criativa.[70] Wright (1998,
p. 253) procura evitar comparações entre determinismo e
fatalismo ao afirmar que:

O fatalismo é uma conclusão pagã comum, mas


ilógica, de que, porque todas as coisas são causadas
(determinismo), as escolhas humanas não possuem
qualquer sentido ou são irrelevantes para os resultados.
Normalmente desencoraja a ação moral ou desculpa a
ação imoral. É falsamente equiparado ao determinismo
e à predestinação.

Libertarismo ou liberdade libertária ou


indeterminismo:[71] trata-se da crença de que, para o
homem ser livre, deve ter o poder da escolha contrária.[72] A
liberdade libertária anula o determinismo, pois o poder real
da escolha contrária implica que Deus não a teria
determinado previamente.
Moreland e Craig (2005, p. 337) explicam a liberdade
libertária com minúcias:
[...] o próprio agente deve simplesmente exercitar
seus poderes causais. [...] Quando um agente age
livremente, ele é um primeiro motor ou motor não-
movido: nenhum evento ou causa eficiente o faz agir.
Seus desejos ou crenças podem influenciar sua escolha
ou podem desempenhar um papel importante nas
deliberações que tomar, mas ações livres não são
determinadas ou causadas por eventos ou condições
prévias ao agente; antes, elas são feitas
espontaneamente pelo próprio agente que atua como
um primeiro motor (grifo do autor).
Assim, “a liberdade libertária é autodenominada e não
causada por eventos fora do controle do agente” (LAING,
2004, p. 455). Em síntese, para o compatibilista, o livre-
arbítrio é agir conforme a sua vontade (não forçadamente);
enquanto que, para o libertista, livre-arbítrio consiste na
possibilidade real de fazer a escolha contrária.

Contrafactuais: este conceito é imprescindível à


compreensão do conhecimento médio. “Contrafactuais são
declarações condicionais no modo subjuntivo [...] são assim
chamados porque o antecedente e o consequente do
condicional são contrários ao fato” (MORELAND, J.P.; CRAIG,
W.L., 2005, p. 76). Um exemplo de um contrafactual é o
seguinte: “Se você não estivesse lendo este artigo, então
certamente estaria fazendo algo menos monótono”. O fato é
que você está lendo o artigo e tal atividade está sendo
monótona. O condicional antecedente é: “que você não
estivesse lendo este artigo” e o condicional consequente é
“que estaria fazendo algo menos monótono”.
Os contrafactuais criam possibilidades diferentes dos
fatos (KEATHLEY, 2010, p. 35), caso outra opção tivesse sido
tomada, e findam criando uma verdade que seria real
naquele “mundo” em que se tomou a decisão de, por
exemplo, “não ler este apêndice”; que verdade seria esta?
Você estaria fazendo algo bem menos monótono!

Necessidade: diz-se que alguém ou algo é necessário


quando não pode ser diferente daquilo que é; trata-se
daquilo que deve ser (GEISLER; FEINBERG, 2003, p. 344). É
o conceito oposto ao de contingência. Deus é necessário,
tendo em vista que, em nenhuma circunstância haveria a
possibilidade de Deus não existir ou deixar de ser divino.

Contingência: determinado ser ou coisa é contingente


quando apesar de existir no espaço e no tempo, surge e
perece e, em geral, poderia absolutamente não ter existido
(MORELAND, J.P.; CRAIG, W.L., 2005, p. 282). A contingência
é oposta ao conceito de necessidade. Por exemplo: Luís de
Molina é um ser contingente, pois – apesar de ter existido
no espaço e no tempo em determinado momento da história
– o Universo poderia muito bem ter continuado seu curso
sem que Molina nunca tivesse existido (e teria evitado o
debate molinista). Aqui temos expressos conceitos
contrafactuais (a não existência de Molina e do debate
molinista) a partir da contingência de Molina. A mesma
contingência também pode ser aplicada a Agostinho, Lutero
e Calvino e todos os teólogos de linha monergista.
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[1] Para maiores esclarecimentos sobre a Identidade de YHWH, veja

BAUCKHAM, Richard. Jesus and the God of Israel: God crucified and other studies
on the New Testament’s christology of divine identity. Grand Rapids: Eerdmans,
2008. Bauckham explica que o ponto chave de identificação da divindade está
fundamentado em ambas as características numa absoluta distinção entre Deus
e toda a realidade existente. Em outra obra, Bauckham (1998) argumenta que
duas categorias podem ser definidas quanto à identidade de Deus. A primeira
tem relação com como Deus se relaciona com Israel e isto se extrapola para o
relacionamento de Deus com toda a realidade. Deus se revelou a Israel pelo seu
nome – ‫– ְיהָ֙וה‬, o que no período do Segundo Templo foi de grande importância,
uma vez que a identidade de Deus, quem Deus era, estava ligada ao nome
‫ְיהָ֙וה‬. A segunda categoria está ligada aos atos de Deus na história e o revelar
do seu caráter a Israel. O autor cita que, em todo o AT, Deus é revelado como
aquele que libertou Israel do Egito e realizou muitos e marcantes eventos no
Êxodo, criando um povo para si mesmo (cf. Êxodo 20.2; Deuteronômio 4.32-39;
Isaías 43.15-17), revelando ser o único regente soberano existente. Veja
BAUCKHAM, Richard. God Crucified: monotheism and christology in the New
Testament. Carlisle: Paternoster Press, 1998.
[2] A maioria dos comentaristas não segue esta interpretação. Encontramos

apoio, entretanto, em Calvino, que apresenta exegese similar à nossa em


Gênesis 4. CALVINO, J. Institutas 2.5.16; Calvin, J., & King, J. (2010). Commentary
on the First Book of Moses Called Genesis (Vol. 1, p. 203). Bellingham, WA: Logos
Bible Software.
[3] Para um estudo maravilhoso sobre a analogia entre as duas cidades: a

cidade de Deus e a cidade dos homens, cf. Agostinho. A cidade de Deus (Partes I
e II) Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. A descrição da origem das cidades, na
perspectiva da história de Caim encontra-se na parte II, livro 15.
[4] https://ouvirmusica.com.br/palavrantiga/1690615/. Acesso em
23/10/2015.
[5] Os pais da igreja abordaram a temática, porém de uma forma genérica.

Além disto, não houve um debate entre os pais da igreja pré-niceno. As cartas
de I e II Clemente possuem uma inclinação fortemente monergística e as
Similitudes de Hermas possui um caráter sinergista (para mais detalhes, cf.
Wright, R. K. In: A Soberania Banida. São Paulo: Cultura Cristã, 1998, pp. 20, 21).
Contudo, o marco que inicia a discussão de maneira mais acurada é o confronto
entre Agostinho e Pelágio.
[6] Como afirmou John Piper, a visão de Pelágio “significa o conceito de que

o homem tem a habilidade autodeterminante final e última para superar sua


própria escravidão ao pecado”. Cf. PIPER, John. O legado da alegria
soberana. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, pp. 76, 77.
[7] Método de interpretação utilizado por Agostinho, segundo o qual os

textos das Escrituras possuíam quatro sentidos: literal, alegórico, tropológico


(moral) e anagógico (escatológico).

[8] Observe que Cassiano é contemporâneo de Agostinho e, mesmo não

tendo se envolvido numa controvérsia direta contra ele, preocupou-se em


refutar o monergismo.

[9] Sabe-se que Eclesiástico não é um livro canônico, mas lembre-se de que

Erasmo era católico. Uma boa refutação, tanto do texto de Eclesiástico quanto à
defesa do livre-arbítrio e ao fato de este não ser canônico é dada por Calvino em
As Institutas. Edição Clássica. Volume 2. Capítulo V.18. São Paulo: Cultura Cristã,
2006, p. 102.

[10] Até aqui a ideia de vontade decretiva e vontade preceptiva está sendo
aplicada inconscientemente por um sinergista. Porém, o monergista não pode
apelar a este subterfúgio sem ser criticado com veemência por sinergistas.

[12] Cf. Capítulo 8.


[13] Para um breve apanhado sobre a graça preveniente, consulte o tópico

2.3.4 do presente capítulo.

[14] Para mais detalhes sobre a Remonstrância, consultar o tópico 3.4 do

capítulo 3.

[15] Esse tipo de ensino abriu precedente para a controvérsia da salvação

pelo senhorio. Para mais detalhes, leia a obra “O evangelho segundo Jesus
Cristo”, de John MaCarthur, Jr. 2ª. Ed. São José dos Campos, SP: Editora Fiel,
2008.

[16] A Society of Evangelical Arminians o considera um arminiano. Cf.:


http://evangelicalarminians.org . Acesso em: 31/10/2017;
http://evangelicalarminians.org/an-arminian-and-a-calvinist-share-the-gospel-
together/ . Acesso em: 31/10/2017. Além disso, o conceituado teólogo o coloca
no rol de famosos arminianos da atualidade. Cf.:
https://www.thegospelcoalition.org/article/youre-a-calvinist-right. Acesso em:
31/10/2017.

[17] Hoje existem muitos dispensacionalistas de inclinação calvinista, como


boa parte do corpo docente do The Master´s Seminary, presidido pelo
dispensacionalista calvinista John MaCarthur. Para conferir este posicionamento
de John MaCarthur, leia o livro de autoria dele “O evangelho segundo os
apóstolos”. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2011, pp. 284-303.

[18] Apesar de que, em certa ocasião, ouvimos certo pregador afirmar que a

salvação consiste em 99% da ação do Espírito Santo em convencer o pecador e


1% na obra do pecador em aceitar Jesus. Somente proferir algo desta natureza,
mesmo com estes porcentuais tentando localizar a salvação com foco na ação
divina, na verdade possui uma lógica em que 99% do que se tem a fazer é fruto
da ação humana, pois no final quem decide e concretiza a salvação é a ação do
homem em aceitar a Jesus. Reconhecemos que Graham não crê nesto tipo
específico de salvação (99 para 1).

[19] Utilizamos aqui o exemplo de Erickson por ser um teólogo sistemático

proeminente entre os batistas, mas poderíamos muito bem fazer menção de


tantos outros que aderem uma visão calvinista moderada ou calvinista de
quatro pontos: Augustus H. Strong, Robert A. Peterson, Laurence M. Vance,
Holmes Rolston III, Zane C. Hodges, Norman Geisler, Lewis A. Drumond, Alan
Clifford, Walter F. Bense, só para citar alguns. Mais detalhes no capítulo 3 desta
obra.

[20] Abordagem similar à de Alister McGrath em: Apologética cristã no

século XXI. São Paulo: Editora Vida, 2008.


[21] Para mais detalhes sobre a expiação limitada (chamada
preferencialmente por alguns calvinistas de expiação definida), consulte a
excelente obra editada por David Gibson & Jonathan Gibson: Do céu Cristo veio
buscá-la: a expiação definida na perspectiva histórica, bíblica, teológica e
pastoral. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2017.
[22] Confira seção 2.5 do presente capítulo e o capítulo 8 desta obra.
[23] Para uma boa introdução sobre a vida e o pensamento de Calvino, são

de grande utilidade as seguintes obras: COSTA, Hermisten Maia P. Raízes da


teologia contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, pp. 109-117;
McGRATH, Alister. A Vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004;
BEEKE, Joel R. Vivendo para a glória de Deus: uma introdução à Fé
Reformada. São José dos Campos, SP: Fiel, 2010, pp. 17-49; McDERMOTT, Gerald
R. Grandes Teólogos: uma síntese do pensamento teológico em 21 séculos de
igreja. São Paulo: Vida Nova, 2013, pp. 105-121; SPROUL, R.C. Sola Gratia: a
controvérsia sobre o livre-arbítrio na História. São Paulo: Cultura Cristã, 2001,
pp. 113-133.
[24] Além de Kendall, Charles Bell e Brian Armstrong também advogam a

tese de que Calvino não cria na expiação limitada, mas trata-se de um


argumento com base no silêncio ou a pouco informação que Calvino traz sobre o
assunto.
[25] Leandro A. Lima cita outros teólogos que representam a posição de

Kendall: Augustus H. Strong, Robert A. Peterson, Laurence M. Vance, Holmes


Rolston III, Zane C. Hodges, Norman Geisler, Lewis A. Drumond, Alan Clifford,
Walter F. Bense.
[26] Uma bela análise do calvinismo científico, onde os aspectos políticos

são tratados como culturais e os filosóficos dentro do contexto teológico,


encontra-se em: SANTOS, Valdeci da Silva. Quem é realmente reformado? In:
FERREIRA, Franklin (Ed). Ensaios em hora a J. Richard Denham Jr por
ocasião dos 58 anos de ministério no Brasil sobre história, teologia, igreja e
sociedade. São José dos Campos: Fiel, 2010, pp. 67-91.

[27] Para uma leitura do documento que aponta os cinco artigos dos

remonstrantes, cf.: BETTENSON, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo:


ASTE, 1998, pp. 372-374.
[28] Outros autores trazem o número de 27 delegados. Cf. GONZALEZ, J. A
Era dos dogmas e das dúvidas. Uma História Ilustrada do Cristianismo Vol. 8.
São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 117; outros falam de 26 delegados estrangeiros.
Cf. MARRA, C. (Ed.). Os Cânones de Dort. São Paulo: Cultura Cristã, s/d, p. 12.
Um detalhe a ser observado, entretanto, pode explicar tais divergências
numéricas. Os números de Berkhof fazem distinções meramente entre membros
e delegados políticos. Os números de Gonzalez e Marra dizem respeitos a
delegados de outros países, mas isto não implica dizer necessariamente que
eram delegados políticos. Isto parece ser confirmado por John Piper, que utiliza
os mesmos números de Berkhof com a seguinte designação: “84 membros e 18
delegados seculares”. Cf. PIPER, John. Cinco Pontos: em direção a uma
experiência mais profunda da graça de Deus. São José dos Campos: Fiel, 2014. A
questão é melhor explicada por Ferreira & Myatt, os quais afirmam: “estiveram
presentes no concílio 56 ministros e presbíteros das igrejas holandesas, além de
cinco professores de teologia e 26 teólogos estrangeiros, além de 18
comissários políticos, que não eram membros do sínodo, mas que
supervisionaram o processo, noticiando o mesmo ao governo holandês”. Cf.
FERREIRA, F.; MYATT, A. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e
apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 720.

[29] Apesar de que tal número é colocado como 154. Cf. BEEKE, op. cit., p.
42.
[30] Como este livro não trata diretamente acerca dos cinco pontos do

calvinismo, eles não serão explicados em detalhes. Apenas mencionados à


medida que uma possível dificuldade terminológica ocorra. Adiante, o fator a ser
considerado no calvinismo será o determinismo divino e a liberdade humana.
[31] Catolicidade envolve a crença ecumênica com base nas Escrituras, no

Deus triúno, na morte expiatória de Cristo, na igreja e no retorno de Cristo,


conforme disposto no Credo Apostólico.
[32] Para uma discussão recente acerca da expiação limitada, é necessária a

leitura de uma obra que reúne vários eruditos que tratam da temática, inclusive
sob o tema “expiação limitada”. Cf. GIBSON, David; GIBSON, Jonathan (Editors).
From Heaven He came and sought her: Definite atonement in historical,
biblical, theological and pastoral perspective. Wheaton: Crossway, 2013. Já
traduzida para o português. Cf. nota de rodapé número 119. Entretanto, a obra
clássica continua sendo: OWEN, John. The death of death in the death of
Christ: A Treatise in wich the whole controversy about universal redemption is
fully discussed. Edimburgh: The Banner of Truth Trust, 1959.
[33] Para uma abordagem mais detalhada do determinismo, cf. FEINBERG,

John. Deus decreta todas as coisas. In: BASINGER, D; BASINGER; R.


Predestinação e livre-arbítrio. Quatro perspectivas sobre a soberania de
Deus e a liberdade humana. São Paulo: Mundo Cristão, 1989, p. 41 e ss.
[34] Título de uma pregação de Augustus Nicodemus Lopes, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=paLDyq4L1no. Acesso em 07/08/2017.


[35] Um livro excelente que nos alerta quanto a estes riscos e nos direciona

a uma vida intelectual dependente do Senhor é a obra Inteligência Humilhada


(São Paulo: Vida Nova, 2017), escrita pelo Pr. Jonas Madureira.

[36] Sailhamer, J. H. (1990). Genesis. In F. E. Gaebelein (Org.), The

Expositor’s Bible Commentary: Genesis, Exodus, Leviticus, Numbers (Vol. 2, p.


227). Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing House.

[37] Sucesso que ocorreu, da perspectiva histórica, por ter “caído em um

buraco”, como bem percebido pelo escritor Thomas Mann na obra José e seus
irmãos. Neste sentido, ele faz uma ilustração cristológica, apontando para a
necessidade de cair em um buraco para poder ressuscitar. O detalhe curioso é
que a soberania divina só pode ser vislumbrada ao final da história (como
percebemos nos capítulos 45 e 50 de Gênesis), mas nem por isto deve-se
pensar que o movimento histórico possui um deus ausente e silencioso ou que
sejamos entregues à nossa própria “liberdade”.
[38] Para uma exegese detalhada deste texto, cf., o excelente artigo de

Mauro Meister, intitulado: Deus transformou o mal em bem? Uma


avaliação da tradução de Gênesis 50:20, publicado pela revista Fides
Reformata XVII, N° 1 (2012): 79-87, disponível em:
http://mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/FidesReformata/17/171artigo5.
pdf . Acesso em 07/08/2017.
[39] Para uma apreciação desta temática, confira o artigo The Suffering of

God as an aspect of the divine omniscience, escrito por Handal Bush, In;
JETS 51/4 (December 2008) 769-84. Disponível em:
http://www.etsjets.org/files/JETS-PDFs/51/51-4/JETS%2051-4%20769-
784%20Bush.pdf . Acesso em: 07/08/2017.

[40] Teologia desenvolvida por Clark Pinnock nos Estados Unidos. No Brasil,

temos a teologia relacional que possui pontos de contato com o teísmo aberto.
O teísmo relacional é proposto por Ricardo Gondim. Cf.:
http://www.ricardogondim.com.br/estudos/teologia-relacional-que-bicho-e-esse/ .
Acesso em: 07/08/2017. A tendência é realizar um tratamento da divindade de
baixo para cima, visando manter a liberdade do homem, Ed Renê, que nega
abertamente sua ligação com o teísmo aberto, chega a afirmar em seu blog o
seguinte: “Os cristãos não cremos em destino. Os cristãos acreditamos que
Deus tem propósitos para a história humana, mas não tem tudo decidido, como
se a humanidade fosse um conjunto de bonecos iludidos, acreditando que são
responsáveis por suas histórias, mas na verdade são manipulados pelos dedos
de Deus que determinam suas decisões”. Veja sua ênfase em afirmar que nem
tudo está decidido para Deus. No mínimo, há uma identificação com a teologia
relacional. Disponível em:
http://outraespiritualidade.blogspot.com.br/2007/03/as-vontades-de-deus.html .
Acesso em: 07/08/2017.
[41] Para mais detalhes, consulte o excelente trabalho de Claus
Westermann: The Role of the Lament in the Teology of Old Testament.
Disponível em: https://korycapps.files.wordpress.com/2012/11/c-
westermann_role-of-lament-in-ot-theology.pdf . Acesso em 07/08/2017.
[42] A raiz da palavra trevas aparece três vezes ao longo do Salmo 88 (vv. 6,

12 e 18). Esta palavra que se encontra no final do salmo resume bem o


sentimento de Hemã.
[43] AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997 (Coleção Patrística,
Vol. 10).
[44] Para uma excelente abordagem crítica do movimento de Confissão

Positiva, consultar: ROMEIRO, Paulo. Supercrentes: o evangelho segundo


Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os profetas da prosperidade. 2ª Ed.
Revisada. São Paulo: Mundo Cristão, 2007.
[45] Originalmente publicada em 1588, a obra Concordia, de Molina, ainda

não foi traduzida para o português; em inglês há disponível a tradução do latim


da parte IV deste livro que versa sobre a presciência divina. Cf.: MOLINA, L. On
Divine Foreknowledge: (Part IV of the Concordia). Translation: Alfred J.
Freddoso. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1988. Este livro servirá de
suporte neste trabalho para a apresentação do molinismo como obra seminal.
Outros textos serão utilizados como materiais auxiliares: cf. CRAIG, W.L. The
Only Wise God: God: the Compatibility of Divine Foreknowledge and Human
Freedom. Eugene, OR: Wipf and Stock, 2000; KEATHLEY, K. Salvation and the
Sovereignty: A molinist approach. Nashville: B & H, 2010.
[46] Por ocasião da primeira edição de Concórdia, Zumel fez muitas críticas

à obra, principalmente no que concerne ao conhecimento de Deus e à


predestinação. O livro, que originalmente é dividido em seis partes, aborda as
quatro primeiras a partir de 52 controvérsias ou disputas com base em uma
declaração da Suma Teológica: “Se Deus tem conhecimento de contingências
futuras”. A parte IV (Presciência) envolve as questões 47 a 52. Na segunda
edição revisada (1595), Molina acrescentou a disputa 53, a fim de responder as
muitas objeções de Zummel à primeira edição. Estas disputas estavam
causando transtornos e desestabilizando internamente a Igreja Católica. O Papa
Clemente VIII, em 1597, instalou a chamada Comissão sobre a Graça, a fim de
analisar os escritos de Molina. Finalmente, em 1607, o papa Paulo V proibiu a
troca de farpas entre jesuítas e dominicanos.
[47] Para melhor lidar com Tomás de Aquino e Luis de Molina, faz-se

necessário uma conexão com uma fundamentação filosófica adequada. No


Apêndice deste trabalho, o leitor encontrará o arcabouço filosófico sintético
apropriado para isso.
[48] A tradução em português é dividida em dez volumes, sendo que os

temas teológicos são considerados a partir de questões ou controvérsias, as


quais se subdividem em artigos que especificam melhor a questão e dão
respostas amiúdes, expondo as objeções a determinados aspectos doutrinários,
demonstrando a antítese de tais objeções nas declarações das Escrituras ou de
Agostinho. A partir de então, Aquino, por meio do método aristotélico, propõe
uma solução para o problema.
[49] Jó 31.4; Sl 56.8; Ml 3.16; Lc 12.6.
[50] Dt 18.22; Sl 139.1-6; Is 41.21-24; Is 44.6-8; Ef 1.10; 1Pe 1.20.
[51] Para uma abordagem molinista acerca da Providência de Deus, cf.

FLINT, T. P. Divine Providence: the molinist account. New York: Cornell


University Press, 1998; CRAIG, W.L. God directs all things on behalf of a
molinist view of providence. In: JOWERS, D.W. Four views on divine
providence. Grand Rapids, MI: Zondervan, 2011. Para uma abordagem
molinista recente acerca da teoria do Conhecimento Médio e uma defesa da
liberdade libertária, cf. CRAIG, W.L. The Only Wise God: God: the
Compatibility of Divine Foreknowledge and Human Freedom. Eugene, OR: Wipf
and Stock, 2000. Para uma abordagem soteriológica do Molinismo, cf.
KEATHLEY, K. Salvation and the Sovereignty: A molinist approach. Nashville:
B & H, 2010. Para uma introdução geral a Molina e ao entendimento de seus
escritos, é de grande valia observar o apanágio introdutório à obra de Molina
feita por Alfredo J. Freddoso, que também é molinista, bem como suas notas
explicativas em: MOLINA, L. On Divine Foreknowledge: (Part IV of the
Concordia). Translation: Alfred J. Freddoso. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press,
1988.

[52] William Lane Craig, a partir de abordagens anteriores de Alvin

Plantinga, popularizou o molinismo e o aplicou ao debate soteriológico contra os


calvinistas no início do século XXI.
[53] Para acompanhar a discussão, segue-se o texto grego deste versículo:

οὐαί σοι, Χοραζίν, οὐαί σοι, Βηθσαϊδά· ὅτι εἰ ἐν Τύρῳ καὶ Σιδῶνι ἐγένοντο αἱ
δυνάμεις αἱ γενόμεναι ἐν ὑμῖν, πάλαι ἂν ἐν σάκκῳ καὶ σποδῷ μετενόησαν.
[54] Para uma réplica mais sofisticada, consultar o excelente artigo de Dean

Zimmerman: Yet another anti-molinist Argument. Samuel Newlands and


Larry M. Jorgensen run02.tex V1 - August 2, 2008, pp. 33-34.

[55] Como já afirmado, o objetivo deste capítulo não foi elaborar uma réplica

definitiva ou um conjunto de inconsistências pertencentes ao sistema molinista,


uma vez que isto seria um tema que requereria outra pesquisa. Entenda-se até
que fomos condescendentes e respeitosos com os molinistas, uma vez que
apresentamos suas tréplicas às réplicas em questão. Como panorâmica, os
principais argumentos pró e anti-molinismo foram aqui elencados a fim de
colocar o leitor a par do debate.
[56] E aqui os versículos utilizados são os mesmos utilizados pelos

molinistas para defender o “conhecimento médio” (Mt. 11.20-24 e 1Sm 23.11-


13).
[57] John Frame e John Feinberg são relacionados por alguns autores como

aderentes do conhecimento médio compatibilista. John Feinberg fica um pouco


duvidoso com base na sua teologia (vj. Feinberg, 2001, p. 1041-104, mas alguns
veem uma certa aproximação com a posição de Ware. Quanto a John Frame, não
há evidências convincentes para tal associação. Cf. POSTIFF, M. A. How God
knows counterfactuals. Dissertação de Mestrado. Detroit: Detroit Baptist
Theological Seminary, 2010, pp. 47, 48. Material não publicado. Além deles,
poderíamos pensar também no nome de Millard J. Erickson, que crê no fato de
Deus possuir conhecimento de contrafactuais; ele afirma: “no nosso esquema
[...] Deus tem presciência das possibilidades. Ele prevê o que seres possíveis
farão se colocados em situações particulares, com todas as influências que
estarão presentes naquele tempo e espaço.” Até aqui é possível admitir que isto
não fere o calvinismo. Erickson até explica melhor o termo, associando-o com o
conhecimento médio: “o conhecimento de todas as possibilidades. Embora isso
seja, algumas vezes, visto como uma alternativa para o calvinismo, e algumas
formas de calvinismo não dependam dessa visão, esta perspectiva pode muito
bem ser incorporada no calvinismo moderado. A nossa perspectiva se distingue
de uma visão pura do conhecimento médio na questão da obra ‘persuasiva’ que
Deus realiza sobre os seres humanos, após a criação.” (Erickson, 2015, p. 357).
No entanto, a grande pergunta é saber se é possível usar o termo conhecimento
médio sem pressupor liberdade libertária. Neste capítulo investigaremos esta
resposta.
[58] O próprio título de uma obra que trata sobre a questão do

determinismo e do libertismo demonstra que a soberania de Deus, da


perspectiva teológica, é um dos polos a ser discutido: BASINGER, D.; BASINGER,
R. Predestinação e livre-arbítrio: quatro perspectivas sobre a soberania de
Deus e a liberdade humana. São Paulo: Mundo Cristão, 1989.
[59] E aqui se observa que, no âmago do arminianismo, está o conceito de

liberdade libertária.
[60] A visão de Ware, acima descrita, é o paradigma para aqueles que

compatibilizam calvinismo com o conhecimento médio. A posição de Tiessen


será explorada apenas naquilo que apresenta alguma contribuição à visão de
Tiessen.
[61] Ao final do livro, dispomos um quadro didático que apresenta as

principais posições que lidam com a temática determinismo e liberdade


humana.
[62] Conforme apresentado no primeiro capítulo, uma diferença básica entre

o conhecimento natural e o conhecimento médio é, respectivamente,


conhecimento do que poderia ser e do que seria. Exemplificando: Deus sabe que
um agente A colocado em determinada circunstância C poderia escolher entre
as opções 1, 2 e 3 – este é o conhecimento natural; entretanto, mesmo assim,
Deus sabe que, uma vez exposto a circunstância C, o agente A escolheria 2 –
este é o conhecimento médio. A alegação de Postiff é que se existe liberdade
compatibilista esta distinção entre conhecimento do tipo “poderia” e “seria” é
desnecessária. Porque se Deus conhece as circunstâncias em questão, ele não
precisa calcular qual escolha o agente A faria, Deus saberia que sua escolha
seria a opção 2 e por isto, as opções 1 e 3 nem seriam opções viáveis, porque
dada a circunstância C, pelo compatibilismo, o agente A só escolheria a opção 2.
Sendo assim em qualquer mundo possível as opções “poderia” e “seria” seriam
igualadas, de maneira que mesmo que Deus conheça todas as possibilidades,
ele não precisa de um conhecimento médio. E aqui percebe-se a tensão entre
Postiff, que iguala o conhecimento médio ao conhecimento natural, e Laing, o
qual praticamente afirma que o conhecimento médio é um tipo de
conhecimento livre. Mesmo assim, percebe-se que o espaço reservado a um
conhecimento médio finda negligenciando o compatibilismo.
[63] A objeção do embasamento afirma que não há meio de embasar a

verdade dos contrafactuais no conhecimento médio; então, ele deve ser falso e
não pode ser conhecido por Deus, uma vez que Deus só conhece coisas
verdadeiras. Postiff exemplifica com outra hipótese: se um agente A fosse
colocado em circunstâncias C, ele pela liberdade compatibilista escolheria fazer
X. No mínimo, a base para tal fórmula é a vontade de Deus, porque neste caso
A, C e X são contemplados como existindo, o que requer que Deus tenha
desejado que A, C e X tenham existido. Isto implica dizer que Deus já tinha
desejado que o agente A tivesse a liberdade para escolher X. Portanto, se a
verdade de contrafactuais está embasada na vontade de Deus ou na vontade de
Deus de como as criaturas seriam, então este tipo de conhecimento médio não
é pré-volicional, e como já visto acima isto descaracteriza o conhecimento
médio – pois nestas circunstâncias não está no meio de nada. Por outro lado, se
o conhecimento médio se baseia na vontade humana, também como já visto, a
determinação divina é dependente da liberdade humana.
[64] Isto ocorre porque o objetivo da criação do conhecimento médio de

Deus era provar que o homem possuía liberdade libertária, conforme a definição
de Molina estabelecida no capítulo 1. Também é perceptível, em certo sentido,
que o conhecimento médio embasa o decreto divino na liberdade humana e tal
pensamento se coaduna mais com a posição arminiana.
[65] Boa parte dos argumentos de Postiff nas notas 31 a 33 deste trabalho

são extraídos dos comentários de Paul Helm no artigo ora analisado.


[66] Sem contar que o próprio Olson afirma: “o teísmo aberto é uma opção
evangélica legítima e arminiana, mesmo que eu ainda não a tenha adotado
como minha própria perspectiva” (OLSON, 2013, pp. 256,257). Quanto à
simpatia ao teísmo aberto, Olson afirma: “Por sentir o peso da crítica do teísmo
aberto feita ao arminianismo clássico, eu permaneço aberto ao teísmo aberto
enquanto permaneço um arminiano clássico esperando ajudar a aliviar o
paradoxo da filosofia” (OLSON, 2013, P. 258). Tal paradoxo arminiano consiste na
relação entre a presciência exaustiva e infalível de Deus e o livre-arbítrio
libertário.
[67] Para uma apresentação sob a ótica calvinista de alguns destes

sistemas, é de grande ajuda a obra de: WARFIELD, B.B. O Plano da Salvação.


Lisboa: Edições Vida Nova, 1958.
[68] MORELAND, J.P.; CRAIG, W.L., 2005, p. 334. Este mesmo conceito de

determinismo é postulado por Richard Taylor. Cf. BASINGER, D; BASINGER, R.


Predestinação e Livre-Arbítrio. Quatro perspectivas sobre a soberania de
Deus e a liberdade humana. São Paulo: Mundo Cristão, 1989, p. 35.
[69] BASINGER, D; BASINGER, R. Op. Cit. p. 41. Esta posição é assumida pelo

teólogo calvinista John Feinberg.


[70] Cf. BASINGER, Op. cit., p. 38. Para Feinberg, o determinismo radical

chega perto de ser fatalista.


[71] Este último termo é mais genérico e se aplica a qualquer esquema que

não seja determinista. Cf. BASINGER, Op. cit., p. 34.


[72] http://sollox.blogspot.com.br/2012/03/conhecendo-os-calvinistas.html.

Aces so me 13/07/2012.

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