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O BANQUETE REAL

Teve lugar, no dia 15 do presente mês de Novembro, nos Paços do Concelho de Estarreja,
ao fim do dia, uma palestra alusiva aos 500 anos de atribuição do foral de Antuã, que se
comemoraram no dia seguinte.
Pela boca do sr Presidente da autarquia, ficou-se a saber que os palestrantes convidados
estão já envolvidos num projecto de edição fac-similada do mencionado foral, a levar a
cabo até às comemorações do próximo ano, período durante o qual os festejos, ora
iniciados, teoricamente se prolongarão...
Queremos acreditar que a sugestão que, a tal respeito, há um ano fizemos, não caiu em
saco roto. A propósito, nunca será demais lembrar pequenas cortesanias a quem delas
anda por natureza alheio, que mais não seja pelo muito que tem de obrar ao leme do seu
município.
Mas, como diria, em desespero de causa, um clínico geral ao seu aflito paciente, para
quem já não enxerga diagnóstico capaz nem potencial cura: o assunto está "em boas
mãos". Estas são as da Prof. Doutora Mª Helena da Cruz Coelho, profunda conhecedora
dos meandros históricos do Mosteiro de Arouca e seus domínios (vd. "O Mosteiro de
Arouca – do séc. X ao séc. XIII"); e as do Prof. Doutor Saul António Gomes, o qual, para
além da sua Leiria natal, tem vindo a estender os seus interesses académicos também à
região de Aveiro (vd. "Ílhavo, Terra Milenar").
Diferente é, porém, ainda que acautelada a sua intervenção em tal iniciativa, o papel que
nela persistem em desempenhar os endireitas e curiosos locais, padecentes de purulentos
treçolhos que lhes turvam as vistas ou de inflamadas meninges que lhes impedem o
normal discernimento.
Pachorrentos quadrúpedes, carregam uma saliente bossa à guisa de baú encoirado, onde
guardam bolorentos pedaços de papel pardo manchados com bagas de sabugueiro,
alardeando pergaminhos antigos, recolhidos no ecoponto mais próximo da Torre do
Tombo.
Bem palpados pelos agentes de segurança, descobre-se afinal a fraude e apenas se salva
um exemplar singelo da "História Concisa de Portugal", do prof. Saraiva... Antigo é o
dito que sentencia que a ignorância é atrevida!
Mas foi a um destes folcloristas de serviço, o sr. Marco Pereira, que a Câmara de Estarreja
encomendou a organização de um "Banquete Real", no dia 16 de Novembro, ao final da
tarde (hora de ceia, pelos cânones medievais; o jantar costumava ser ao meio-dia).
Desconhecemos qual a disposição das mesas, as iguarias escolhidas, os trajes usados...
(Viemos, entretanto, a saber que a personagem do monarca outorgante – D. Manuel I, o
Venturoso – foi desempenhada por um conhecido saltimbanco, que tem tanto de Richard
Burton como de D. Bibas, o Bobo, de Alexandre Herculano.) Supomos que se tratou de
um ensaio antecipado do corso carnavalesco, que todos os anos, para desespero do sr.
Reitor, traz o Diabo à solta pelas ruas de Estarreja.
Para se ficar com uma ideia, ainda que vaga, do sucedido, propomos que se leia
atentamente o que escreveu Garcia de Resende a propósito do casamento do príncipe D.
Afonso, filho de D. João II, com a filha dos reis de Espanha:
"E o estrondo das trombetas, atambores, charamelas e sacabuxas, e de todolos ministreis
era tamanho que se não ouviam, e isto se fazia de cada vez que El-Rei, a Rainha e a
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princesa bebiam, e vinham as primeiras iguarias à mesa; e a copeira era coisa espantosa
de se ver.
» E logo à entrada da mesa veio uma grande carreta dourada, e traziam-na dois grandes
bois assados inteiros, com cornos e mãos e pés dourados, e o carro vinha cheio de muitos
carneiros assados inteiros com os cornos dourados, e vinha tudo posto num cadafalso tão
baixo com roletas por fundo dele, que não se viam, que os bois pareciam vivos e que
andavam.
» E diante vinha um moço fidalgo (o sr. Marco Pereira?) com uma aguilhada nas mãos
picando os bois, que pareciam que andavam e levavam a carreta (...) e assim foi oferecer
os bois e carneiros à Princesa e feito o serviço os tornou a virar com sua aguilhada por
toda a sala até sair fora, e deixou tudo ao povo, que com grande grita e prazer foram
espedaçados, e levava cada um quanto mais podia" (Resende in Marques, 1987:21).
Lembramos que o príncipe D. Afonso teve vida curta e que, na ausência de descendentes,
D. João II foi obrigado a deixar o Reino em herança a seu primo, que viria a ser D. Manuel
I, o mesmo que outorgou o foral de Antuã. Daí que as semelhanças do repasto, pela
proximidade de datas, não tivessem sido muito diferentes.
Curioso é o que, a propósito desta mesma cerimónia, refere Isabel dos Guimarães Sá,
numa recensão a um capítulo da obra "A Mesa dos Reis de Portugal" (Buescu &
Felismino: 2011, com apresentação da já referida Mª Helena da Cruz Coelho): "O jovem
D. Manuel (1469-1521), filho mais novo da infanta D. Beatriz e do infante D. Fernando,
futuro rei, devia dar àgua às mãos ao rei seu primo, D. João II, segundo regras bem
precisas." A higiene já se impunha à real pessoa! Tinha então D. Manuel apenas 14 anos
de idade...
Mais grave teria sido, porém, se ao suposto rei, como nos conta Fernão Lopes, tivesse
sucedido o que aconteceu, uns cem anos antes, com o Mestre de Avis, o futuro rei D. João
I. Campeava ainda Vasco, o ignorado herói que militou na Ala dos Namorados, valentes
estudantes de Coimbra que, para seu desenfado, se meteram a cavaleiros em Aljubarrota.
Após a sua defecção, devida a males de amor, Vasco seria conduzido, pelo referido
Alexandre Herculano, aos portais de Cister. No dizer do próprio, “era mancebo de vinte
e dous a vinte e cinco anos, bem proporcionado e robusto, tez morena e cabelo negro,
basto e crespo, feições talvez não formosas, mas, sem dúvida, atractivas. Os seus olhos
eram portugueses; isto é, reflexo perene dos íntimos pensamentos; tempestuosos com as
procelas do coração, serenos com a calma dele” (Herculano, 1965:14). Que bonito! Bem
podia ser também o alter-ego do sr. Marco Pereira!...
Ora, tendo o Mestre de Avis posto cerco ao castelo de Torres Vedras, o alcaide resolveu
enviar-lhe "em dois bacios, um vergonhoso presente, convém a saber: uma natura de asno
cozida com duas laranjas; e com ela uma trova, cuja conclusão era, que das carnes não
havia tal bocado como aquele que lhe enviava; mas porém que lhe pedia por mercê, que
lhe mandasse alguma.
» O Mestre começou a rir, e mandou-lhe dar carnes, quanto pudesse avondar um dia; e na
parte do desculpamento respondeu que lho não levaria por mal, mas por bem, porque
aquilo era teúdo de fazer todo bom fidalgo" (Lopes in Arnaut, 2000:16).

José Gurgo e Cirne

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PS – Em abono do que dissemos no último número d’ “O Concelho da Murtosa” sobre
toponímia, no caso concreto do lugar das Olas, na freguesia de Veiros, ao contrário do
que afirma o “erudito” sr. Marco Pereira, basta ler “As Farpas”, da inefável dupla de
autores que foram Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, de há quase 150 anos, no seu
número relativo a Setembro de 1871:
“Compreendamo-lo: a Índia não nos serve senão para dar desgostos. / É um pedaço de
terra tão pequeno que se anda a cavalo num dia; as pequenas povoações caem em ruína e
em imundície; não tem movimento, nem iniciativa; a única cultura que há é o arroz,
exportam-no a 5 para o importar a 8! A única indústria é fazer «olas», que são uns
encanastrados de palmeira com que se fazem os pacaris, alpendres coloridos e frescos,
que sombreiam as janelas (…).” (Op. cit., 2004:189-90). Quais águas em remoinho! Não
é Veiros conhecido pelas suas esteiras?

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