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Estações

"O búfalo"
"Eu te odeio" disse a mulher, muito depressa, a um homem que não a amava. Mas a
mulher
só sabia amar e perdoar, e 'se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que
fosse,
sua vida estaria perdida'. Então, numa tarde de primavera, ela visitou o jardim
zoológico em
busca de um animal que lhe ensinasse a odiar.

Em laços de família

Não era Pepe apenas, não era guia apenas. No calor do verão, o rosto
intumescido pela bebida que mal se evaporava era substituída por outra, o homem parou
no meio de uma ruela branca e sombria de Córdoba, olhou-nos e disse bem lento para
que a frase penetrasse a nossa lentidão:
- Ustedes no tienen um guía. Ustedes tienem - Pepe El Guía!

Um homem espanhol, em para não esquecer

Com o leque ela pensa alguma coisa. Ela pensa o leque e com o leque se abana.
E com o leque fecha de súbito o pensamento num estalido, vazia, sorridente, rígida,
ausente. O leque distraído e aberto no peito. “A vida é mesmo engraçada”, concorda ela
como visita que é recebida na sala de visitas. Mas num alvoroço controlado, eis que se
abana de súbito com mil asas de pardal.
Verão na sala, em para não esquecer

Esta primavera é bem seca, e o rádio estala captando sua estática, a roupa se eriça
ao largar a eletricidade do corpo, o pente levanta os cabelos imantados, é uma dura
primavera. E muito vazia. De qualquer ponto em que se está, parte-se para o longe:
nunca se viu tanto caminho. Fala-se pouco; o corpo pesa com o seu sono; em geral os
olhos são grandes e inexpressivos. No terraço está o peixe no aquário, tomamos refresco
olhando para o campo. Com o vento, vem do campo o sonho das cabras. Na outra mesa
do terraço um fauno solitário. Olhamos o copo de refresco e sonhamos estáticos dentro
do copo. "O quê!" "Eu não disse nada." Passam-se dias e mais dias. Mas basta um
instante de sintonização e de novo capta-se a estática farpada da primavera: o sonho
impudente das cabras, o peixe todo vazio, uma súbita tendência ao roubo, o fauno
coroado em saltos solitários. "O quê?" "Nada, eu não disse nada." Mas percebo um
primeiro rumor, como um coração batendo embaixo da terra. Quieta, colo o meu ouvido
na terra e ouço o verão abrir caminho por dentro, e meu coração bate embaixo da terra -
nada, eu não disse nada - e sinto a paciente brutalidade com que a terra fechada se abre
por dentro, e sei com que peso de doçura o verão amadurecerá cem mil laranjas, e sei
que as laranjas são minhas, porque eu quero.

Porque eu quero, em para não esquecer

Não é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um romance.


Depois que se despegam de mim, também eu os estranho. Não se trata de "transe", mas
a concentração no escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o escrever
propriamente dito. Alguma coisa, porém, posso tentar reconstituir, se é que importa, e
se responde ao que me foi perguntado.
O que me lembro do conto "Feliz Aniversário", por exemplo, é da impressão de
uma festa que não foi diferente de outras de aniversário; mas aquele dia era um dia
pesado de verão, e acho até que nem pus a idéia de verão no conto. Tive uma
"impressão", de onde resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e
necessidade de aprofundar o que se sente.

A EXPLICAÇÃO INÚTIL, em para não esquecer

Sei que comi a pera e desperdicei fora a metade - nunca tenho piedade na
primavera. Bebemos depois água na fonte, e não enxuguei a boca. Andávamos calados,
insolentes. Quanto à piscina, sei que fiquei horas na piscina. Olha a piscina - era assim
que eu via a piscina, demonstrando-a com olhos tranquilos. Tranquila, sem nenhuma
piedade.
Primavera não sentimental, em para não esquecer

Outono era a estação de


que mais gostava porque não era preciso sair para vê-lo: atrás dos vidros as folhas caíam
amareladas no pátio, e isso era o outono.

Hoje, dez anos mais velha que seu noivo, com quem dorme,
ela ri sob a grande cabeleira e diz: não sei mesmo por que é que gosto mais do outono
do que das outras estações, acho que é porque no outono as coisas morrem tão
facilmente.

Usava apenas a
maravilha do inverno fora do paraíso: espiava tudo pelas janelas abertas e ninguém diria
se estava contente ou triste. Seu rosto ainda não sabia exprimir. Espiava pela janela
aberta com a minúcia e a atenção de quem reza, com os braços cruzados e as mãos
metidas nas mangas opostas.

Uma italiana na Suíça, em para não esquecer

Quando a
brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo, todo ele estremecia
de frio e calor. E então ela pensava muito rapidamente,
sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova
ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto —
refletia.

Piedade das coisas que acontecem sem


que eu saiba. Mas estou cansada, apesar de minha alegria de
hoje, alegria que não se sabe de onde vem, como a da
manhãzinha de verão. Estou cansada, agora agudamente!
Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar
tão docemente.

E daí em diante ele e toda a família dele foram felizes.


— Pausa — as árvores mexeram no quintal, era um dia de
verão. — Escrevam em resumo essa história para a próxima
aula.

O que não conseguiria pegar


com a mão estava agora glorioso e alto e livre e era inútil
tentar resumir: ar puro, tarde de verão. Porque havia segu 20
ramente mais do que isso. Uma vitória inútil sobre as árvores
folhudas, um sem que fazer de todas as coisas. Oh, Deus.

Continuei a
passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e
pura como um céu de verão. Alisei meus braços, onde ainda
escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma
continuação do meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes
e novos.

Sim, sim. Eu quero a primavera... Ajudai-me. Eu sufoco.


A primavera ridícula era ainda mais primavera e alegria.

Perto do coração selvagem

Elas que, usando


o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam.

A quinta história, em a legião estrangeira

Era começo de primavera, mês de março. Também


não precisaria ser primavera. Precisava ser apenas - terra. E quanto a esta, todos a têm
sob os pés. Era tão estranho sentir-se viver sobre uma coisa viva. Os franceses, quando
estão nervosos, dizem que estão sur le quivive. Nós estamos perpetuamente sobre o que
viver.

Doçura da terra, em a descoberta do mundo

Estou com vontade de rever as preguiças e sentir o cheiro


morno delas. É outubro, mês neutro. Setembro é mês alegre como maio. O cavalo só
volve para dormir e eu também: resolvi que depois do almoço vou dormir. Dormir é
bom - que o digam as preguiças.

Preguiça, em a descoberta do mundo

Enquanto isso era verão. Verão largo como o pátio vazio nas férias da escola.

Calor humano, em a descoberta do mundo

no verão ando em casa descalça e de camisola não transparente de algodão curta.


Outra Maria, essa ingênua, e Carlota, em a descoberta do mundo

Atravessei a rua e apanhei um táxi. A


brisa me arrepiava os cabelos da nuca e era outono, mas parecia prenunciar uma nova
primavera como se o verão estafante merecesse a frescura do nascimento de flores. Era
no entanto outono e as folhas amarelavam nas amendoeiras.

Evolução, em a descoberta do mundo


Quieta, colava meu ouvido na terra e ouvia o verão abrir
caminho por dentro, e meu coração embaixo da terra, oh nada! eu não disse nada! - e
sentia a paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por dentro em parto, e
sabia com que peso de douçura o verão amadureceria 100 mil laranjas, e sabia que as
laranjas eram minhas - só porque eu assim queria.

Lembrança de uma primavera suíça, em a descoberta do mundo

Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi


meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao
chofer: vamos ao Jardim Botânico.

O ato gratuito, em a descoberta do mundo

Sei o que é primavera porque sinto um perfume de pólen no ar, que talvez seja o
meu próprio pólen, sinto estremecimentos à toa quando um passarinho canta, e sinto que
sem saber eu estou reformulando a vida. Porque estou viva. A primavera torturante,
límpida e mortal que o diga, ela que me encontra cada ano tão pronta para recebê-la.
Bem sei que é uma perturbação de sentidos. Mas, por que não ficar tonta? Aceito esta
minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os
outros existam porque é direito deles e porque sem eles eu morreria, aceito a
possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter
sido dado.
Sinto que viver é inevitável. Posso na primavera ficar horas sentada fumando,
apenas sendo. Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar pois é no sangue que
sinto a primavera. Dói. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto que um dia
na primavera é que vou morrer. De amor pungente e coração enfraquecido.

Eu sei o que é primavera, em a descoberta do mundo

Quando se aproxima a primavera, suas folhas morrem e em lugar delas nascem


várias flores fechadas. A cor é roxo-violeta e branco, e mesmo fechadas têm um
perfume feminino e masculino que é extremamente estonteador. O segredo destas flores
fechadas é que exatamente no primeiro dia da primavera
elas se abrem e se dão ao mundo.

Primavera se abrindo, em a descoberta do mundo

Lembro-me daquela primavera: sei que comi a pera e desperdicei fora a metade - nunca
tenho piedade na primavera. Bebemos depois água na fonte, e não enxuguei a boca.
Caminhávamos calados, insolentes.
Tomando para mim o que era meu, em a descoberta do mundo

Impossível, diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera.


Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! repete o coração que parte sua
secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe, que aquilo é
amor.

Como me
inquieta que alguém possa não compreender que morrerei numa ida para uma tonta
felicidade de primavera. Mas não apressarei de um instante a vinda dessa felicidade -
pois esperá-la vivendo é a minha vigília de vestal. Dia e noite não deixo apagar-se a
vela - para prolongá-la na melhor das esperas.

Primavera ao correr da máquina, em a descoberta do mundo

Mas se ponho vestido branco e saio... na luz ficarei perdida - e de


novo perdida - e no salto lento para o outro plano de novo perdida - e como encontrar
nesta minha ausência a primavera?

Suíte da primavera suíça, em a descoberta do mundo

A essa altura, perto do viaduto do Museu de Arte Moderna, eu já não me


sentia feliz, e o outono me pareceu uma ameaça dirigida contra mim.

Evolução, em a descoberta do mundo

Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de
uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso
aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que
sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa
calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.

Ao correr da máquina, em a descoberta do mundo

E às vezes
ficava apenas de cabeça baixa, os olhos entrefechados até que o chão
trêmulo e confuso aproximava-se de seu rosto e se afastava
preguiçosamente
confundindo-se com o calor. No céu de verão um bater de asas
sussurrava rápido. Ela pensava se valeria a pena levantar a cabeça e olhar.
E quando finalmente resolvia, o céu já pairava limpo e azul, sem o pássaro,
sem expressão, olhos apenas abertos.

As pétalas
menores, como cabelos na nuca em verão, dobravam-se emurchecidas,
cegas, porém ainda capazes de viver e de pasmar.

lua apareceu no céu


escuro, um vento morno de verão passava pela cidade, os talheres dos
vizinhos haviam deixado de tilintar. Leve dormência tomou-a aprofundando-
a, uma irrealidade cheia de promessa e cansaço a envolvia amortecendo-
a.
No inverno a vida tornava-se atenta a si mesma, compreensiva e
íntima. O cheiro se amansava, a lama apaziguava o campo. A voz durante
horas silenciosa soava rouca e morna. O ar era úmido, as coisas do quarto
isolavam-se através do frio e só a escuridão fundia os móveis. Lá fora a
chuva caía sem força, sem cessar.

Assim nada perdia do silêncio da noite


de inverno. Os dias eram de uma tristeza perfeita que terminava por se
ultrapassar e deslizar para uma quietude sem além. Os ramos vergavam
nervosos ao vento, a água escorria rápida e brilhante pelas folhas, um
impulso sem direção torturava as árvores e do rumor sem ritmo nascia
como um grande vento fresco a esperança de amar e viver.

Quando veio o inverno e caíam chuvas, a noite no


apartamento era boa a cálida com um homem jovem sentado a beber café.

Ela andava devagar afundando os saltos dos sapatos


na lama, era inverno, o silêncio do jardim vazio, só um ou outro
murmúrio dos animais, o grito fino de uma ave. Seus passos nos largos
vazios rodeados de jaulas, eram cautelosos.

O lustre

E então, quando menos se espera - num instante tão repetidamente comum como o de se
levar um copo de bebida à boca sorridente no meio de um baile - então, ontem, num dia tão
cheio de sol como estes dias do ápice do verão, com os homens trabalhando e as cozinhas
fumegando e a broca britando as pedras e as crianças rindo e um padre lutando por impedir,
mas impedir o quê? - ontem, sem aviso, houve o fragor do sólido que subitamente se torna
friável numa derrocada.

A paixão segundo g.h.

Enquanto isso era verão. Verão largo como o pátio vazio nas férias da escola.
Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura
pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido.

Os primeiros calores da primavera, tão antigos como um


primeiro sopro. E que a fazia não poder deixar de sorrir. Sem se olhar ao espelho, era um
sorriso que tinha a idiotice dos anjos.

Impossível, diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera.


Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! Repete o coração que parte sua
secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe, que aquilo é um
amor. Esse primeiro calor ainda fresco trazia: tudo. Apenas isso, e indiviso: tudo.

Agora, para
a primavera, vou comprar para os meninos, calça e blusa azul, e para as meninas
vestidos azuis. Ou vou mandar fazer, é mais fácil de encontrar. Tenho que tirar a medida
de todos os alunos porque —

Uma aprendizagem

Mas esses dias de alto verão de danação sopram-me a


necessidade de renúncia. Renuncio a ter um significado, e então o
doce e doloroso quebranto me toma. Formas redondas e redondas
se entrecruzam no ar. Navego na minha galera que arrosta os
ventos de um verão enfeitiçado. Folhas esmagadas me lembram o
chão da infância. A mão verde e os seios de ouro - é assim que
pinto a marca de Satã.

Meu grafismo e minhas circunvoluções são potentes e a


liberdade que sopra no verão tem a fatalidade em si mesma. O
erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar,
nas plantas, em nós, espalhado na veemência de minha voz, eu te
escrevo com minha voz.

eu percebia um pequeno rumor como de um coração


batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no
chão e ouvia o verão abrir caminho por dentro e o meu coração
embaixo da terra - "nada! eu não disse nada!" - e sentia a
paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por
dentro em parto, e sabia com que peso de doçura o verão
amadurecia cem mil laranjas e sabia que as laranjas eram minhas.
Porque eu queria.

Vou agora mesmo prestarte


contas daquela primavera que foi bem seca. O rádio estalava ao
captar-lhe a estática. A roupa eriçava-se ao largar a eletricidade
do corpo e o pente erguia os cabelos imantados - esta era uma
dura primavera.

Bastava um instante de
sintonização e de novo captava-se a estática farpada da
primavera ao vento: o sonho impudente das cabras e o peixe
todo vazio e nossa súbita tendência ao roubo de frutas.

naquela mesma primavera ganhei a planta


chamada prímula. É tão misteriosa que no seu mistério está
contido o inexplicável da natureza. Aparentemente nada tem de
singular. Mas no dia exato em que começa a primavera as folhas
morrem e em lugar delas nascem flores fechadas que têm um
perfume masculino e feminino extremamente estonteador. A gente está
sentada perto e olhando distraída. E eis
que elas vagarosamente vão se abrindo e entregando-se à nova
estação sob nosso olhar espantado: é a primavera que então se
instala.

Quero pôr em palavras mas sem nenhuma descrição a


existência da gruta que faz algum tempo pintei - e não sei como.
Só repetindo o seu doce horror, caverna de terror e das
maravilhas, lugar de almas aflitas, inverno e inferno, substrato
imprevisível do mal que está dentro de uma terra que não é
fértil.

No
inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia
a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em
casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor
humana e calor animal - todos alertamente a ouvir o arranhar
das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar.

Mas quando vem o inverno eu dou e dou e dou. Agasalho


muito. Aconchego ninhadas de pessoas no meu peito morno. E
ouve-se barulho de quem toma sopa quente. Estou vivendo agora
dias de chuva: já se aproxima eu dar.

Tem um
lado da vida que é como no inverno tomar café em um terraço
dentro da friagem e aconchegada na lã.

Água viva

Para adormecer nas frígidas noites de


inverno enroscava-se em si mesma, recebendo-se e dando-se o
próprio parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz
entupido, dormia exausta, dormia até o nunca.

A hora da estrela

E mesmo que só viva um dia, essa borboleta, já me


serve: que esvoe suas cores brilhantes sobre o brilho verde das plantas
num jardim de manhã de verão. Quando a manhã ainda é cedo, se parece
igual a uma borboleta leve. O que há de mais leve que uma borboleta.
Borboleta é uma pétala que voa.

Falou assim para o guarda: o senhor


pode me informar, por obséquio, quando começa a primavera?

Deixo-vos por hora debruçados sobre uma Ângela sonhadora que


se pergunta inocente: como será a primeira primavera depois de minha
morte?

Há velhos que morrem na primavera, não agüentam a


arrebentação da terra.

Um sopro de vida

Meses
Noite de fevereiro
Juro, acredita em mim - a sala de visitas estava escura - mas a música chamou
para o centro da sala - a sala se escureceu toda dentro da escuridão - eu estava nas trevas
- senti que por mais escura a sala era clara - agasalhei-me no medo - como já me
agasalhei de ti em ti mesmo - que foi que encontrei? - nada senão que a sala escura
enchia-se da claridade que se adivinha no mais escuro - e que eu tremia no centro dessa
difícil luz - acredita em mim embora eu não possa explicar - houve alguma coisa
perfeita e graciosa - como se eu nunca tivesse visto uma flor - ou como se eu fosse a flor
- e houvesse uma abelha - uma abelha gelada de pavor - diante da irrespirável graça
dessa luz das trevas que é uma flor - e a flor estava gelada de pavor diante da abelha que
era muito doce - acredita em mim que também não creio - que também não sei o que
poderia uma abelha viva de pavor querer na escura vida de uma flor - mas crê em mim -
a sala estava cheia de um sorriso penetrante - um rito fatal se cumpria - e o que se
chama de pavor não é pavor - é a brancura subindo das trevas - não ficou nenhuma
prova - nada te posso garantir - eu sou a única prova de mim.

Em para não esquecer

“A Menor Mulher do Mundo” me lembra domingo, primavera em Washington,


criança adormecendo no colo no meio de um passeio, primeiros calores de maio -
enquanto a menor mulher do mundo (uma notícia lida no jornal) intensificava tudo isso
num lugar que me parece o nascedouro do mundo: África. Creio que também este conto
vem de meu amor pelos bichos; parece-me que sinto os bichos como uma das coisas
ainda muito próximas de Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda
quente do próprio nascimento; e, no entanto, coisa já se pondo imediatamente de pé, e já
vivendo toda, e em cada minuto vivendo de uma vez, nunca aos poucos apenas, nunca
se poupando, nunca se gastando.

A explicação inútil, em para não esquecer

Morri no dia 9 de junho. Domingo. Depois de ter almoçado na preciosa


companhia dos que amo. Comi frango assado. Estou feliz. Mas falta a verdadeira morte.
Estou com pressa de ver Deus. Rezem por mim. Morri com elegância.

Brasília: esplendor, em para não esquecer

...sem nenhum acontecimento me provocando, sem nenhuma expectativa, de


tarde, esta tarde, eu, aplicando-me na caligrafia que tem ocupado as minhas horas, eu,
também eu uma das freiras, em labor de abelha bordo o fio de ouro: Viva 7 de junho.

Por ser hoje, em para não esquecer

Aquela noite de verão em agosto era do mais fino tecido, para sempre
inquebrantável, de se estar esperando. Eu queria que a noite começasse enfim a tremer
em fino espasmo, principiando a sua agonia; para que também eu pudesse dormir.

Lembrança de um verão difícil, em para não esquecer (verão europeu,


berna)

Era começo de primavera, mês de março. Também


não precisaria ser primavera. Precisava ser apenas - terra. E quanto a esta, todos a têm
sob os pés. Era tão estranho sentir-se viver sobre uma coisa viva. Os franceses, quando
estão nervosos, dizem que estão sur le quivive. Nós estamos perpetuamente sobre o que
viver.

Doçura da terra, em a descoberta do mundo

Uma vez no Rio, e depois de abraçar todos os amigos, irei para Cabo Frio por
uma semana, na casa de Pedro e Míriam Bloch. Voltarei depois ao Rio e recomeçarei,
toda renovada, a minha luta diária e inglória e enigmática.
Sim. Tudo isto.
Mas só se fosse de verdade...
O fato é que hoje é 1º de abril e desde criança não engano ninguém nesse dia.
Infelizmente não vejo meio de fazer essa viagem sem dinheiro. O Onassis entrou no 1º
de abril de puro penetra que ele é. Na verdade não tenho muito interesse em conhecê-lo.
Desculpem a brincadeira. Mas é que não resisti.

Minha próxima e excitante viagem pelo mundo, em a descoberta do mundo

Estou com vontade de rever as preguiças e sentir o cheiro


morno delas. É outubro, mês neutro. Setembro é mês alegre como maio. O cavalo só
volve para dormir e eu também: resolvi que depois do almoço vou dormir. Dormir é
bom - que o digam as preguiças.

Preguiça, em a descoberta do mundo

No dia 25 de julho de 1971 fui ver o céu no planetário. Era domingo. E nesse dia
iam mostrar Júpiter em particular. O céu é coisa de louco ou de gênio. Fiquei muito
contente de ver o Sol. E era dia do signo Sagitário, que é meu. Júpiter é o mais poderoso
de todos os planetas. Tem uma série de satélites.

Depois de 15 de agosto vou ver o planeta Marte. Será que algum planeta, além
da Terra, é habitado? Somos uns privilegiados. Sobra tanta matéria-prima aqui conosco
que até animais temos, animais puros como o tigre e um animal horrível cujo nome não
quero escrever.

Mistério: céu, em a descoberta do mundo

em setembro, houve o incêndio em meu quarto, incêndio que


me atingiu tão gravemente que fiquei alguns dias entre vida e morte. Meu quarto foi
inteiramente queimado: o estuque das paredes e do teto caiu, os móveis foram reduzidos
a pó, e os livros também.

Meu Natal, em a descoberta do mundo

Quanto a ela mesma — ciente, apenas ciente. De que aquilo tudo era
intransponível mesmo pela imaginação — essa dura verdade do sol e do
vento, e de um homem andando, e das coisas postas. E uma pessoa nem
sabia limitar-se. Pois ela nem podia deixar de orgulhar-se ao ver o tempo
passar — mas já estamos no mês de fevereiro? — como se este fosse
desenvolvimento seu. E era.

Os dias aliás estavam maravilhosos nessa época. Iniciava-se o


outono e nas janelas brilhavam teias de aranha. As distâncias haviam-se
tornado muito maiores embora fáceis de percorrer. À mulher parecia
mesmo viver na linha do horizonte. Era de lá que via cada pequena coisa
com suas luzes, esse estranho mundo onde em tudo se poderia
inutilmente tocar.

A cidade sitiada

Esta história começa numa noite de março tão escura


quanto é a noite enquanto se dorme. O modo como, tranqüilo,
o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. Até
que mais profundamente tarde também a lua desapareceu.

A maçã no escuro

Era maio. As cortinas se balançavam à brisa dessa noite tão singular.


Singular
por quê? Não sabia.

MISS ALGRAVE, a via crúcis do corpo


Estamos no chamado "veranico de maio": grande calor. Meus dedos doem
de
tanto eu bater à máquina. Com a ponta dos dedos não se brinca. É pela
ponta dos
dedos que se recebem os fluidos.

Por enquanto, em a via crúcis do corpo

O que lhe preocupava é que a criança não nasceria em vinte e cinco de


dezembro.

Via crucis, natal, em a via crúcis do corpo

– Ah mês de maio, não me largues nunca mais! (Explosão) foi a


sua íntima exclamação no dia seguinte, 7 de maio, ela que nunca
exclamava. Provavelmente porque alguma coisa finalmente lhe era
dada. Dada por si mesma, mas dada.
Nesta manhã de dia 7, o êxtase inesperado para o seu tamanho
pequeno corpo. A luz aberta e rebrilhante das ruas atravessava a sua
opacidade. Maio, mês dos véus de noiva flutuando em branco.
[...]Maio, mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus.
Sua exclamação talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer
no final da tarde desse mesmo dia: no meio da chuva abundante
encontrou (explosão) a primeira espécie de namorado de sua vida, o
coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho
esvoaçante e preso. O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se
reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que
se farejam. Ele a olhara enxugando o rosto molhado com as mãos. E
a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua
goiabadacom-
queijo.

A hora das estrela

Uma vida dura é uma vida que parece mais longa. Mas, mesmo
assim, me surpreendo como é que hoje já é maio, se ontem era fevereiro?
Cada minuto que vem é um milagre que não se repete.

E sou setembro também. A


quantidade de frutas que a madame tem. O cachorro à procura do próprio
rabo. Acudam! incêndio! E eu sou música de câmara.

Um sopro de vida

Datas
1/1 Confraternização universal [Reveillon]

25/2 Carnaval

Por quê? Levantou fragilmente a mão, num gesto de recusa.


Não queria saber. Mas agora já lhe surgira a pergunta e como
resposta absurda veio-lhe o corrimão refulgente lançado com
desenvoltura do alto como uma serpentina envernizada em
dia de carnaval. Só que não era carnaval, porque havia
silêncio no salão, podia-se ver tudo através dele.

Perto do coração selvagem

E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me


tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em
mim. Carnaval era meu, meu.

Restos de carnaval, em a descoberta do mundo

8/3 Dia internacional da mulher*

10/4 Sexta feira santa

12/4 Páscoa

Como na Páscoa
nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu. Foi ser a
princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava.

A legião estrangeira, em a legião estrangeira

21/4 Tiradentes

1/5 Dia do trabalhador

10/5 Dia das Mães

11/6 Corpus Christi

12/6 Dia dos Namorados*


9/7 Dia dos Pais

7/9 Independência do Brasil

Vitória-régia - No Jardim Botânico do Rio há enormes, até quase dois metros de


diâmetro. Aquáticas, lindas de morrer. Elas são o Brasil grande. Evoluentes: no
primeiro dia brancas, depois rosadas ou mesmo avermelhadas. Espalham grande
tranquilidade. A um tempo majestosas e simples. Apesar de viverem no nível das águas,
elas dão sombra.

Dicionário, em a descoberta do mundo

12/10 Nossa senhora aparecida

2/11 Finados

Em que pensava? Ah, a morte


a ligaria à infância. A morte a ligaria à infância. Mas agora
seus olhos, voltados para fora, haviam esfriado, agora a morte
era outra, desde que homens faziam a grade do portão e
desde que ela era mulher... A morte... E de súbito a morte era
a cessação apenas... Não! gritou-se assustada, não a morte.

Perto do coração selvagem

15/11 Proclamação da república

20/11 Dia da consciência negra

25/12 Natal
As árvores cristalizadas em domingo —
domingo é qualquer coisa como árvores de Natal —, brilhando
silenciosas, contendo, assim, assim, a respiração.

Perto do coração selvagem

Meu
inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter aparecido em
casa um pinto. Veio trazido por mão que queria ter o gosto de me dar coisa nascida. Ao
desengradarmos o pinto, sua graça pegou-nos em flagrante. Amanhã é Natal, mas o
momento de silêncio que espero o ano inteiro veio um dia antes de Cristo nascer. Coisa
piando por si própria desperta a suavíssima curiosidade que junto de uma manjedoura é
adoração. Ora, disse meu marido, e essa agora. Sentira-se grande demais. Sujos, de boca
aberta, os meninos se aproximaram. Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. O pinto, esse
piava. Mas Natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorríamos
desamparados, curiosos.

A legião estrangeira, em a legião estrangeira

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