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Resumo
Este ensaio contém uma análise documental dos momentos que antecederam a chegada
do Monumento ao Bandeirante em Goiânia, bem como do momento de sua chegada. Essa
análise compreende a descrição dos grupos envolvidos nas campanhas pró-monumento, nas
negociações para definir sua localização e seu escultor. Isso foi observado a partir do acervo
documental Coleção Band - Monumento aos Bandeirantes mantido pelo CIDARQ-UFG e do
relatório urbanístico do planejador da nova capital. A fim de fundamentar a discussão dos
dados, as definições de conceitos centrais à análise são revisitadas: monumento, patrimônio
cultural, documento, memória coletiva, representações sociais e poder simbólico. Ainda, foi
retomado o tratamento garantido ao patrimônio cultural na Constituição Federal de 1988 e no
último Plano Diretor de Goiânia. Por fim, uma análise simbólica do monumento foi realizada,
o que compreende sua descrição enquanto objeto prático-sensível, seu contexto de fixação, seus
usos em manifestações políticas e algumas mudanças que envolveram a estátua e seu entorno
de 1942 até os dias atuais.
Introdução
Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, vinculada à linha de pesquisa Sociologia
Urbana e das Populações e pesquisadora no Centro de Estudos Urbanos – CEURB. Cientista social pela UFG.
Agência de financiamento: FAPEMIG.
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“Goyazes”, outras tribos indígenas de Goiás: Karajás, Avás-canoeiros, Tapuyas, Javaés, xavantes, caiapós.
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aguardente (transparente como água), ameaça queimar os rios com seu poder mágico o
suficiente para pôr fogo em água. Assim foi que recebeu o nome de Anhanguera. De origem
tupi, anhanga, “ser maligno”, e uera, “o velho, o que já foi”: diabo velho.
O filho desse Anhanguera, de igual nome, Bartolomeu, foi responsável por erguer o
Arraial de Sant’Anna, em 1722, que poucos anos depois se tornaria o pequeno aglomerado
administrativo Vila Boas de Goyaz, capital do estado até o final do século XIX, quando as ideias
de uma nova capital começam a surgir. Os custos dessa fundação ultrapassam limites
econômicos. As bandeiras partiam do litoral, paulista em especial, com objetivos definidos de
exploração mineral, escravização e extermínio de grupos indígenas, destruição de quilombos,
entre outras gloriosas conquistas. O rio que corre entre as ruas da atual Cidade de Goiás – Rio
Vermelho, afluente do Rio Araguaia – recebeu esse nome, pois, conta a lenda, muitos foram os
corpos ensanguentados debandados em suas margens.
Quando dizemos que Goiânia foi projetada, naturalmente associamos a ideia de projeto,
planejamento, ao futuro. Isso quer dizer que antes de ela nascer, ela foi pensada, desenhada,
idealizada. Quando pensamos em lembranças, por outro lado, a ideia evocada é a de passado,
de algo que ficou para trás. Ambos os processos envolvem uma reflexividade temporal, e ambos
acontecem no instante presente. O que os difere é bastante óbvio: o passado guarda
acontecimentos que já se realizaram, e o futuro não guarda acontecimento algum, aguarda...
Grosso modo, Goiânia surge com o objetivo de ser o novo centro administrativo do
governo de Goiás, sendo projetada para 50 mil habitantes. Nos nomes das avenidas, ruas,
praças, monumentos, se inscrevem fragmentos da história local, geralmente representada em
figuras políticas consideradas importantes, como é o caso da estátua localizada no cruzamento
de duas grandes avenidas: Anhanguera e Goiás, na praça dos Bandeirantes. Tombada em
patrimônio histórico pela prefeitura de Goiânia em 1991, a estátua homenageia Bartolomeu
Bueno da Silva, filho, bandeirante paulista responsável pela fundação da velha capital. Foi uma
doação da Faculdade de Direito de São Paulo, após uma série de investidas culturais dos
governos paulista e goiano. Nesse contexto, indagamos acerca da dádiva desse presente nada
neutro e analisaremos alguns documentos a fim de refletir sobre este patrimônio local e suas
teias de significados tecidas após sua fixação em território urbano. Antes, porém, faremos uma
recapitulação de conceitos centrais à nossa análise: memória coletiva, documento, poder
simbólico, monumento, patrimônio histórico, mito e representações sociais.
A memória social de uma capital planejada: “Essa história está mal contada...”
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nos documentos que a ideia de construir o monumento surgiu de Antônio Sylvio Cunha Bueno,
acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, numa visita realizada em
1938 pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, a convite do interventor Pedro Ludovico Teixeira.
Nesse contexto, é válido notar que:
No cruzamento dos eixos das Pedro Ludovico, Araguaia, Tocantins, 10, 26, 34 e 35,
deverá ser erigido futuramente um monumento comemorativo das bandeiras,
descobertas, e das riquezas do Estado, figurando como homenagem principal a figura
de Anhanguera (LIMA, 1979: 142, grifos meus).
O objetivo seria perpetuar, rememorando, os laços históricos entre Goiás e São Paulo,
ao registrar os feitos dos bandeirantes numa escultura exposta no centro da capital. Foi em São
Paulo que aconteceu, então, a campanha pró-monumento, financiada pelos governos de Goiás
e São Paulo. Contou com publicidade, propagandas a nível nacional, bem como conferências,
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palestras, discursos que versavam sobre a história dos bandeirantes em território paulista e
goiano. Em 1942, ano do batismo cultural da cidade, o escultor e professor Armando Zago é
contratado para construir a estátua de Bartolomeu, inaugurada no mesmo ano.
O monumento serviu de inspiração para a literatura folclórica regional (LACERDA,
1981), pinturas e peças teatrais, músicas etc., ou seja, para a produção cultural de modo geral.
Além disso, a história oficial de Goiás e sua nova capital ensinada nos livros didáticos, nas
escolas e universidades, cobrada em exames de seleção, tem a figura dos bandeirantes como
pioneiros, como verdadeiros colonos do interior, do sertão, brasileiro. A estátua parece cumprir
ainda um efeito-profecia, como se o destino goiano tivesse de cruzar o paulista, seu espelho de
modernidade, uma vez que sua origem coincide com as bandeiras dos primeiros povoados.
2
Série 3, sub-série 1 – “Viagem a Goiás”, Dossiê 1 – “Anúncios da viagem”, Item 3: Jornal Folha da manhã, SP,
11.1.1938.
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Na série 3 – VEUP 3, há uma reportagem, escrita por Ulysses Silveira Guimarães, com
o seguinte título: “considerações sobre o surto progressista de Goyaz e sobre Hermano Ribeiro
da Silva, o bandeirante do século XX”. Ainda nessa série, há outra reportagem: “prestando uma
homenagem ao bravo sertanista da Bandeira Anhanguera, Hermano Ribeiro da Silva,
recentemente fallecido, a delegação levará consigo uma placa commemorativa.” A delegação
era composta por homens estudantes de direito da USP, na coorte de 1938, além do professor
de Economia Política e Estatística José Romeiro Pereira e do orador Ulysses Guimarães. A
visita foi politicamente orientada, como atesta este outro documento4: “Apresentaram suas
despedidas ao prefeito os universitários paulistas que visitarão o Estado de Goyaz. Pergaminho
a ser entregue ao sr. Pedro Ludovico, interventor federal goyano.”.
Na série CPMB, podemos extrair outras evidências históricas de intenções políticas que
motivaram a construção do monumento. Apesar da pretensão já visualizada no plano
urbanístico de Goiânia (1933-35), de Attilio Correa Lima, foi somente alguns anos depois que
essa ideia tomou a forma de bronze, “perpetuando em pleno coração do Brasil a gloriosa
epopeia dos bandeirantes”, como datado no documento da série IMB5. Outra reportagem6 havia
se referido de maneira semelhante na campanha pró-monumento, que durou de 1938 até o ano
de inauguração 1942: “glorificação aos bandeirantes no coração geographico do Brasil”. Essa
mesma reportagem reitera ainda a colaboração da Prefeitura e do Instituto Histórico e
Geográfico.
A estátua feita em bronze mede cerca de 3,5m de altura, veste Bartolomeu com botas
altas, chapéu largo, calça, gibão e cinto. As vestimentas assemelham-se muito com as fardas
usadas pelo exército. O olhar altivo, como mirando ao horizonte, provoca nele uma investidura
de liderança, de chefia, mais do que um simples aventureiro. As armas são destaques:
bacamarte, segurado na mão direita com firmeza, e espada, pendurada entre os ombros e a
cintura. Por fim, a bateia para o garimpo, na mão esquerda. No momento de sua fixação, outros
detalhes foram considerados: localização e posicionamento. Os olhos da escultura e todo o seu
corpo miram o Oeste, como uma referência à marcha para o Oeste, patrocinada pela Fundação
Brasil Central, nos anos 30, sob o governo desenvolvimentista e nacionalista de Getúlio Vargas.
3
Série 3, sub-série 1 – “Viagem a Goiás”, Dossiê 1 – “Anúncios da viagem”, Item 14: Jornal Diário Popular, SP,
15.1.1938.
4
Série 3, sub-série 1 – “Viagem a Goiás”, Dossiê 1 – “Anúncios da viagem”, Item 19: Jornal Folha da noite, SP,
15.1.1938.
5
Série IMB, sub-série 1 – “Cerimônia de inauguração”, Dossiê 2 – Anúncios da inauguração, Item 1, 1942.
6
Série CPMB, sub-série 1 – Solicitação e concessão de auxílio financeiro, Dossiê 1 – Concessão de auxílio, Item
8: Jornal “O diário”, Santos, 1938.
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acordo com as definições deste autor, o Monumento ao Bandeirante pode ser considerado um
monumento intencional, pois eles se referem a “obras destinadas, pela vontade de seus
criadores, a comemorar um momento preciso ou um evento complexo do passado” (Idem: 52).
A discussão em torno da memória e da história enquanto sistemas de gestão do passado
já foi esboçada anteriormente, cabendo aqui retomá-la para acrescentar algumas contribuições
teóricas não apenas da história ou da filosofia (NORA, 1993; LEGOFF, 1996; RICOUER,
2010), mas também da psicologia social (BOSI, 2003; MOSCOVICI, 2005) e da sociologia
(WEBER, 1971; DURKHEIM, 2006; HALBWACHS, 1990; BERGER, 1996; BOURDIEU,
2001). Aqui insere-se, fundamentalmente, a questão das representações sociais, dos valores e
das disputas simbólicas.
Um símbolo organiza-se através da relação significante e significados e/ou como um
sistema de ideias e valores (GEERTZ, 1997). Nesse sentido, o monumento enquadra-se como
significante, variando os significados a ele atribuídos de acordo com os grupos e contextos
específicos. Os significados são, desse modo, representações, pois, tratam de traduções mentais,
expressões do pensamento, da realidade exterior percebida, resultantes dos processos de
abstração. A fim de definir a realidade, então, o imaginário une-se ao campo da representação,
manifestando-se através de imagens e discursos. (LEGOFF, 1996).
Aparentemente naturais e universais, as representações são sociais em essência
(DURKHEIM, 2006), agindo sobre os indivíduos como coerção, violência, ainda que
simbólica, como já foi mencionado na discussão acerca do poder simbólico. Chartier (1990)
concorda com essa definição ao dizer que:
As representações sociais são compreendidas não apenas como um conceito, mas como
um fenômeno social (MOSCOVICI, 2005). As representações, necessariamente inseridas em
um contexto histórico, possibilitam a orientação no (e o controle do) mundo social e de si
mesmos, ordenando a comunicação e os vínculos entre os membros de uma mesma
comunidade, ao produzir códigos de classificação e nomeação do mundo e da história individual
e do grupo (VALENCIA, 2005).
A identidade, intimamente vinculada à memória, à cultura e, portanto, às questões de
reconhecimento e preservação de patrimônios históricos e culturais, constitui-se como um
campo de disputas. Assim, a memória coletiva possui um caráter de construção, além de
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relações com o poder, a política, e com as formas de gerir o social (HALBWACHS, 1990),
sendo importante pensá-la “como uma dinâmica em tensão contínua, num jogo de conflitos,
seleções, interpretação do passado” (TEDESCO, 2004: 86).
Como observa Chuva (2009: 46), “a noção de patrimônio estava atrelada ao surgimento
dos Estados nacionais e ao processo de formação da nação dele integrante, em que se verificou
um enorme investimento na invenção de um passado nacional”. Ou seja, enquanto as lutas
republicanas e democráticas formavam o Estado-nação, buscava-se moldar uma identidade,
uma memória, uma cultura nacional. No entanto, como testemunho desse mosaico histórico, ao
invés de contemplar a diversidade social e cultural da/na sociedade brasileira, de início
procurou-se preservar, reconhecendo como patrimônio, apenas igrejas, fortes militares,
sobrados coloniais etc., e não senzalas, quilombos, cortiços ou vilas operárias, por exemplo
(ORIÁ, 1998). Em suma:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
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A lei versa ainda sobre a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro. Noutras
palavras, define formas de preservação, que serão feitas via “inventários, registros, vigilância,
tombamento, desapropriação”. Ademais, incentivos para a produção e o conhecimento de bens
e valores culturais são previstos, bem como punições a danos e ameaças ao patrimônio.
A nível local, o Plano Diretor de Goiânia inclui os patrimônios cultural e natural no
patrimônio ambiental, definindo que:
Anhanguera no corredor principal desse transporte coletivo, a praça não perdeu sua força
política. Alguns manifestantes mais radicais, simbolicamente, ateiam fogo, realizam
intervenções ou inscrevem pichações na estátua, ao passo que elites locais e grupos
conservadores defendem sua importância para “recordar a história do meu estado”. Exemplos
como estes, contraditórios entre si, expõem as sutis diferenças encontradas nas representações
sociais, coletivas e históricas, que tecem símbolos identitários a partir da conservação ou do
rompimento de certas tradições. Logo, a transmissão da história, em exaltações ou
silenciamentos, ecoa conflitos de grupos de interesses; em suma, conflitos políticos.
Considerações Finais
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