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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Desfazer laços e obrigações:


Sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS.

Cauê Fraga Machado

2013
Desfazer laços e obrigações:
Sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS.

Cauê Fraga Machado

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Marcio Goldman

Rio de Janeiro, fevereiro de 2013.

ii
Desfazer laços e obrigações:

Sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS.

Cauê Fraga Machado

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Aprovada por:

_____________________________________
Marcio Goldman, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN)
(Orientador).

_____________________________________
Miriam Rabelo, Doutora, Universidade Federal da Bahia (UFBA).

_____________________________________
Marina Vanzolini, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN).

_____________________________________
Eduardo Batalha Viveiros de Castro, Doutor, Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGAS/MN) (Suplente).

_____________________________________
Edgar Rodrigues Barbosa Neto, Doutor, Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) (Suplente).

Rio de Janeiro, fevereiro de 2013.

iii
Machado, Cauê Fraga.
Desfazer laços e obrigações: sobre a morte e a transformação das relações no
batuque de Oyó/RS./ Cauê Fraga Machado. - Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS-
MN, 2013.
xi, 111f.
Orientador: Marcio Goldman
Dissertação (mestrado) UFRJ/ PPGAS-MN/ Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, Rio de Janeiro,
2013.
Referências Bibliográficas: 95-98f.
1. Religiões de matriz africana. 2. Batuque. 3. Morte. 4. Desfazer. 5.
Transformação. 6. Etnografia. I.
Machado, Cauê Fraga. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social – Museu Nacional.
III. Título.

iv
Resumo: Esta dissertação consiste fundamentalmente em uma etnografia que descreve
analiticamente os acontecimentos, rituais e eventos envolvidos na morte de batuqueiros da
Nação Oyó, que parte das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul. Para isso,
busca ressaltar a importância da família de santo e das pessoas e orixás mais antigos no
contexto dessa religião e em suas relações com a morte. Pois esta é o acontecimento que
marca uma ruptura dramática em todos os laços construídos ao longo da vida religiosa. É a
partir dela que o grupo de parentes de santo deverá se engajar em um processo curto e
violento de destruição de tudo que fora construído, ligado, "aprontado". No ritual
chamado eru (desligamento), objetos sagrados, roupas rituais e obrigações serão destruídas
desfazendo definitivamente o vínculo do egum (morto) com os vivos. A morte também
mudará as relações entre aquele que morreu, os vivos e os orixás: a pessoa se transforma
em egum, e, com a ajuda dos que não se foram, torna a viver. Agora, porém, no Orum (a
terra dos orixás), onde viverá com seu orixá de cabeça, mantendo uma relação mais estreita
com a divindade. A partir disso, a dissertação sugere que o desfazer de laços e obrigações
consistem, simultaneamente, em feituras e vínculos que acontecem paralelamente em outro
mundo. Morte e vida, fazer e desfazer são, portanto, tratados como constituintes
homorgânicos da pessoa batuqueira no Oyó, i.e., elementos que compartilham o mesmo
substrato, o que exclui a noção de pares opositivos, mantendo, no entanto, a propriedade
diferencial que estabelece a relação entre eles.
Palavras-chave: Religiões de matriz africana, Batuque, morte, desfazer, transformação,
etnografia.

v
Abstract: This thesis consists basically of an ethnography that describes and
analyses the events, rituals and events involved in the death of members of Oyo
Nation that belongs to religions of African origin in Rio Grande do Sul. In order to
do this, it seeks to emphasize the importance of the religious family and of the
oldest members and orishas in the context of this religious and its relations with
death once it is the event that marks a dramatic break of all ties built throughout
the religious life. It is from death that the group of religious relatives should engage
in a short and violent destruction process of everything that had been constructed,
connected, “made”. In a ritual called “eru” (disconnection), sacred objects, ritual
clothes and obligations will be destroyed, action that undoes permanently the bond
of egum (the dead person) with the living ones. The death will also change the
relation between the one who died, the living ones and the orishas: the person
becomes egum, and, with the help of those who have not gone, comes back to life.
Now, however, in Orum (the land of orishas), where he/she will live with his/her
orisha, keeping a closer relationship with the divinity. From this, the thesis suggests
that the undoing of ties and obligations consist simultaneously in some initiation
rituals feituras and ties that occur in a parallel world. Death and life, doing and
undoing are therefore treated as constituents of homorganics of batuqueira person
in Oyo, ie, elements that share the same substrate, which excludes the notion of
oppositional pairs, keeping, however, the differential property establishing the
relationship between them.
Keywords: Religions of African origin, Batuque, death, disrupt, transformation,
ethnography.

vi
Para Evandro,
aquele que deixa tudo mais bonito quando está por perto,
com amor.

&

Para o povo de Oyó,


sobre quem esse trabalho trata.

vii
Agradecimentos

O batuque é uma religião encantadora, com sua gente de todo tipo, suas cores, cheiros,
músicas, histórias, milagres e orixás. Essa dissertação não teria acontecido sem a ajuda dos
“filhos do Oyó”, especialmente Odacir Marinho (Pai Odacir do Ogum) que escancarou as
portas de sua casa para mim. Foi ele quem mais me ensinou as coisas da religião, para que
eu escrevesse, registrasse. Foi ele quem, com fidalguia admirável, teve a paciência de contar
histórias, esclarecer dúvidas, orientar meus olhos e ouvidos para o que era importante no
Oyó. Seus filhos e filhas de santo, todos sem exceção, tiveram curiosidade e imensa
bondade ao me acolher e falarem sobre sua religião, sobre suas vidas, demonstrando
grande respeito e admiração por seu pai de santo. Sempre há o risco de se esquecer de
algum nome importante, o melhor seria não nomear um a um os filhos da casa que estudei,
entretanto alguns foram figuras fundamentais para que essa dissertação acontecesse.
Ricardinho, Carla Silva (in memoriam) e Carla Pacheco, Camile, Claudinha, Cleusa e seus
filhos (entre eles Marlene), Tiago e Vanessa, Manu, Preta, Maninha, Batista, Robson,
Tatinha, Dona Tânia, Tamires, Nika, Regina, Rejane. Além deles, Tia Neneca, Tia
Erondina, Dona Eloci e Sergio do Oxalá (in memoriam).

Da família de sangue, meu pai, Newton Machado, pelos diferentes suportes (psicológico e
financeiro), pelas leituras que sempre faz e retorna com comentários orgulhosos, pela vida
que me dá... Não há palavras que possam prestar as homenagens merecidas ao homem que
me deu a vida e que me ensinou muito do que sei. Minha mãe, Carmen Fraga, nada faria jus
a tudo que representa para mim e ao quanto me fez ser quem sou. Filha de mãe costureira e
de pai operário da construção civil, ambos analfabetos, irmã de cinco irmãos e três irmãs,
sempre lutou para poder estudar. Em universidade pequena, pois como sempre diz “a
UFRGS é para os privilegiados”, licenciou-se em história. O valor que sempre deu para
educação e o envolvimento em lutas sociais influenciou, de modo que não saberia
mensurar, minha escolha pelo curso de ciências sociais e, depois, pela escolha da
antropologia, onde centrei meus estudos.

Ao longo da vida tive outras mães a quem também sou grato, minha Tia Inês (a Dada) que
ajudou a me criar. Minha madrinha, Iara (a Dinda), que até hoje cuida do afilhado, mesmo
de longe. Tia Denize, minha mãe baiana, que me acolheu no Rio de Janeiro como um
verdadeiro filho. Minha madrinha Neli e sua mãe Oxum, presentes que a vida me deu e que
me ajudam sempre que preciso, com carinho e amizade verdadeira. Finalmente, a minha

viii
mãe de santo, Rosinha do Bará (a Dona Rosa), primeiro grande amiga, da fala mansa e da
fala grossa (quando necessário), do abraço sincero, do sorriso de orelha a orelha,
conselheira e confidente, meu amor, respeito e admiração ao ser mais humilde lindo que o
lado de Oyó possui.

Ainda na família, meu Tio Paulinho, meu pai aqui no Rio de Janeiro. Meu irmão Marcos,
Wiliam, Drika e Tomas, essa grande família que me recebeu de braços abertos e que não
posso mais viver sem. Com eles vieram a Cleo e a Vero, o Negão, a Jô, a Michele e a
Janete.

Minhas amigas e irmãs, Ana Popp e Patrícia Dias (a Patê). À Ana que com a sensibilidade, a
doçura e a violência de Iemanjá tomou meu coração. Além disso, não cansou em ler minha
dissertação e me ajudar nas mais diferentes ocasiões. À Patê, como nossa mãe, a figura mais
doce e especial, que me acompanha desde o inicio da graduação, discutindo política,
antropologia, religião e tudo sobre a vida. Amo vocês duas.

Ao Marcelo e à Marcela, que foram e são minha família aqui no Rio de Janeiro. Aos amigos
e amigas, Marieta, Anna, Milena, Leonardo, Alexandre, Melissa e Eleana. Aos colegas,
Mariana Renou, Natalia Quiceno, Marcos Carvalho, Anna Massoz, Floriberto Vásques,
Angela Kali, Luiz Felipe e Simone, Handerson e Francine, Luis Meza e Angela.

À Rita Lee e ao Toquinho, pelas músicas, pelo carinho caloroso e pela companhia.

Ao pessoal do Iacoreq, Ubirajara, Itarajara, Eva, Rita, Paulo, Laiz, Luanda, Adri (nunca me
esqueço de ti), Marina e José Carlos.

Da UFRGS agradeço aos professores José Carlos Gomes dos Anjos, com enorme
admiração, e Sergio Baptista e às professoras Maria Eunice Maciel, Ceres Víctora e Cornelia
Eckert. Do NER ao Prof. Ario Oro e ao Rodrigo Toniol, do PPGAS-MN à Profa. Olivia
Maria Gomes da Cunha e da UFF ao Prof. Ovidio de Abreu Filho. No PPGAS-MN
agradeço também à Carla e à Alessandra, pela gentileza, delicadeza e amizade com que
sempre me trataram. Sem elas a biblioteca não funcionaria. E à Profa. Renata Menezes
pelos comentários na RBA.

Agradeço à Profa. Miriam Rabelo e à Marina Vanzolini pela gentileza de participarem de


minha banca, além delas ao Prof. Eduardo Viveiros de Castro e ao Edgar Barbosa Neto
por participarem como suplentes.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa


concedida durante os 24 meses do mestrado, sem a qual não poderia ter cursado. Ao

ix
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ
(PPGAS-MN/UFRJ) pelo suporte acadêmico e financiamento de idas a campo.

Finalmente, ao meu Orientador, Marcio Goldman, pelo interesse e dedicação, pelas


correções e paciência, pelos textos e aulas inspiradoras. Sem sua “mão” essa dissertação
não teria tomado forma.

E ao Evandro Bonfim, pela companhia nas horas mais difíceis dessa minha curta vida
acadêmica. Pelo amor, pela dedicação, pelas ideias, conceitos, correções, carinhos, pela
nova vida que me deu. Por essas e por outras que ainda virão meu amor e meu muito
obrigado! “And Fate has just handed it to me – whoopee”!

x
Convenções

Devido a grande quantidade de conceitos, termos e categorias nativas optei por grafá-las
sem ênfases, explicando-as na primeira menção, através de notas de rodapé, parênteses, ou
no corpo do texto. O ‘y’ deve ser lido como ‘i’, o ‘k’ como ‘c’ e o ‘w’ como ‘u’. Os nomes
dos orixás estão escritos de modo abrasileirado, a grafia concordando com a pronúncia,
exceto ‘Oyá’ e ‘Ewá’. O uso do ‘y’, do ‘w’ e do ‘k’ segue orientação dos nativos. Palavras ou
expressões em latim virão em itálico. Palavras em Ioruba e nomes de orixás em citações
serão transcritos tal como no original.

xi
Sumário
Lista de Figuras ............................................................................................................................... 1
Introdução ......................................................................................................................................... 2
“Oyó Puro” .................................................................................................................................10
Religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul, dados e estudos .................................15

Cap. 1 “Começar pelo começo”: a família e os antigos ............................................................25


1.1 No Santo .................................................................................................................................27
1.2 De Sangue ...............................................................................................................................30
1.3 Compadrio no santo .............................................................................................................36
1.4 Os Antigos ..............................................................................................................................37

Cap. 2 Uma troca, um eru e a imortalidade dos orixás..............................................................44


2.1 Troca de Vida .........................................................................................................................44
2.2 Do enterro ao eru de Tia Lourdinha ..................................................................................46
2.2.1 Antes do eru: a missa e as refeições.................................................................................48
2.2.2 Eru de Lourdes do Ogum .................................................................................................56
2.3 A Morte e seus Rituais Finais ..............................................................................................59
2.4 Pessoa Morre Orixá Não ......................................................................................................60

Cap. 3 Sobre pessoas, assentamentos, casas e imagens ............................................................65


3.1 Velório e enterro do Sergio do Oxalá.................................................................................65
3.2 Matança ...................................................................................................................................67
3.3 Eru do Sergio .........................................................................................................................73
3.4 Assentamentos e Imagens ....................................................................................................77
3.4.1 Um assentamento sob suspeita ........................................................................................79
3.4.2 Imagens Cruas e Imagens Preparadas .............................................................................80
3.5 Continuidade, ruptura e a condição homorgânica da pessoa batuqueira ......................81
Conclusão: fazer, desfazer e refazer .........................................................................................85
Fazer .................................................................................................................................87
Desfazer e refazer ........................................................................................................................93
Referências ......................................................................................................................................96
Lista de Figuras:

Figura 1: Genealogia Oyó.

Figura 2: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul.

Figura 3: mapa Viamão.

Figura 4: planta baixa Casa Mãe Neneca do Xangô.

Figura 5: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul.

Figura 6: mapa de Gravataí e do bairro Morada do Vale I.

Figura 7: Casa Pai Odacir do Ogum.

Figura 8: planta baixa Casa Pai Odacir do Ogum.

1
Introdução

É justamente nos sete dias que sucedem a morte de um batuqueiro que as


Nanãs aparecem. Orixá dona da vida, da morte e dos espíritos. Acontece que, como se
morre de várias formas, quando a morte vem, pode-se perder um membro, um braço ou
perna. É Nanã Burukê quem juntará. Nanã Anarauim está sempre correndo, passa e não
para. Nanã Anansurê passa, para e olha, mas vê que aquilo não é para ela. Já Nanã Burukê é
a que para, recolhe as partes do corpo e leva para algum lugarzinho na praia – pedras, mata,
beira de mar ou rio – e fica esperando o que a “lei manda”. Se nesse tempo “tudo” (rituais
e oferendas) for feito direitinho, ela irá juntar os pedaços para reconstruir e levar o egum
(morto) para perto do seu orixá de cabeça. Diz-se que, a cada ritual realizado, a pessoa,
agora egum, vai aproximando-se mais e mais de seu orixá. Nanã vai levando o egum – ou
alma1 – para perto dele. Pois o final de todos aqueles que são de religião é “aos pés de seu
orixá”.

***

Esta dissertação, eminentemente etnográfica, dedica-se ao estudo das relações


dos batuqueiros de Oyó com a morte e a necessidade que tal acontecimento impõe de
serem desfeitos laços e obrigações2, para se refazê-los noutro plano, transformando as
relações entre todos e tudo envolvido. Ela nasce de meu duplo envolvimento com o

1 Em meu campo, alma é equivalente à pessoa sem a sua parte corpo. O corpo é algo a ser ocupado, seja por

essa parcela da pessoa, seja por um orixá inteiro, ou pela metade orixá/metade pessoa – os axeres, o que é
explicado mais adiante. Pessoa é o resultado da soma das parcelas alma e corpo, e também seu orixá – esse
não como parcela. Aqui, talvez, a evidência seja de que as operações de adição e subtração talvez sejam
metáforas deficientes. Contudo, são capazes de, por meio de simplificações, dar inteligibilidade a conceitos e
categorias formulados com tamanha complexidade pelos batuqueiros. Alma, corpo e orixá tornam-se espécies
de partes da soma total, que se separam. Orixá fica em Orum (mundo dos orixás), a alma – agora egum –
deve ir para Orum também. E o corpo fica debaixo da terra, vazio. O egum, alma sem corpo, é, portanto,
perigoso, pois desejoso de outros (novos) corpos para ocupar. Por isso, o eru não apenas desligará os vivos
daquele que morreu, mas ensinará o egum que ele não pertence mais a esse mundo, como já mencionado.
Sobre os perigos dos eguns, ver Corrêa (2006: 174).
2 Obrigação engloba tanto o que traduzimos por objetos rituais, quanto por algumas ações e pelos próprios

orixás em seus assentamentos. Obrigação designa o fazer, o cuidar, mas também aquilo que fica guardado,
atrás das cortinas em sopeiras e manteigueiras, os assentamentos. São as ferramentas, armas dos orixás; como
a chave e a foice do Bará. São, também, os próprios ocutás. E, ainda, momentos como os cortes (matanças),
festas e outros eventos. Ouvimos falarem do tempo em que fizeram sua obrigação, ou “na obrigação da
minha mãe vai ori”. O que traduzimos por material e por imaterial, também, pode ser unido sob a palavra
obrigação, que não confunde ingenuamente o que tendemos dividir, mas coloca numa mesma movimentação
diferentes séries de acontecimentos. Acontecimentos que precisam ser feitos ou desfeitos para acontecer.
Além disso, obrigação é um compromisso com a religião e com o orixá.

2
batuque: como iniciado e como pesquisador. Duas posições que meus amigos trataram de
conectar e separar sempre que adequado, como fica claro adiante. Optei por realizar meu
trabalho de campo na casa de Pai Odacir do Ogum e não faço uso de pseudônimos nesta
dissertação; utilizo nomes reais, recorrendo à referência indireta somente por ocasião de
situações que envolvam o segredo religioso. Não foi nessa casa que me iniciei, mas Pai
Odacir mantém laços familiares e emocionais estreitos com minha casa (família). Penso que
as posições de filiado e a de antropólogo estejam imbricadas. Contudo, como demonstro,
os dados de campo extraídos da relação que mantive com Odacir recaem sobre a posição
de pesquisador, sendo a de iniciado um pano de fundo. Já os dados advindos de minha
relação com Dona Rosa e com Neli (mãe e madrinha), fundam-se no exato oposto da
relação com pai Odacir. Penso que meu duplo envolvimento com a religião produziu está
dupla posição, que não pode ser ocupada sem que pese ora para relação de filiado, ora para
relação de pesquisador.

Datam de 2007 minhas primeiras idas ao Quilombo da Casca (lugar que em


outros momentos aparece no texto), em Mostardas, região litorânea do Rio Grande do Sul.
Através do Projeto de Extensão do DEDS (Departamento de Educação e
Desenvolvimento Social, da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS), tive a oportunidade de
passar uma semana naquela comunidade. Foi então que tive minha primeira experiência
real de trabalho de campo. Já havia visitado outros quilombos e até produzido alguns
textos para disciplinas; no entanto, não havia convivido por dias seguidos, participando do
convívio mais cotidiano, nas casas das pessoas. Não tivera até então a oportunidade de
dormir nas casas onde pesquisava, de ir, aos poucos, pegando o ritmo do dia, tão diferente
do de minha vida, sempre corrido.

Depois dessa semana, retornei ao Quilombo com certa regularidade;


primeiramente, pousando na casa de seu Quincas, depois na de Dona Carmem, na de Dona
Nana e Seu Toninho e, por último, na de Dona Rosa. Já na primeira manhã em que acordei
em Casca, durante a roda de chimarrão que, geralmente, precede ou sucede refeições, o
assunto mais comentado, antes do almoço, era o modo correto de lidar com o “bicho da
cera do ouvido”. Diziam que não se deveria colocar álcool no ouvido, pois “embebeda o
bicho”. O correto era o leite de teta de uma mulher.

A partir de então, pude observar (e ouvir sobre) uma série de procedimentos


para curar enfermidades, desde os óleos animais, até a benzedura, passando pelos chás,
rezas e remédios alopáticos. Meus amigos de Casca foram, aos poucos, sugerindo
benzedeiras para eu procurar e aprender, o que seria “bom para minha faculdade”. Das
3
benzedeiras com quem conversei, três eram “de religião3”, Sarai, Dona Carmem e Dona
Rosa. E de diferentes nações4 (Jêje, Ijexá, Cabinda e Oyó) e religiões (batuque, umbanda,
quimbanda, linha cruzada, entre outras). Porém, foi por meio de Dona Rosa que o universo
dos batuques me foi apresentado de modo mais intenso.

Benzedeira desde os quatro anos de idade, cavalo5 de Pai José de Angola desde
os nove e pronta pelo lado de Oyó há 31 anos, tem na cabeça Bará e no corpo Obá. Ser
pronto no batuque de Oyó significa ter assentado seus orixás, dando animais quadrúpedes
e permanecendo recolhido por tempo específico, que pode chegar a 21 dias, deitado sob
uma esteira no chão do quarto de santo. Os orixás obrigatórios são o dono da cabeça, o do
corpo e Bará, sem o qual nada existe na religião. Orixás de cabeça e de corpo formam um
casal, ou adjuntó. No Oyó, um orixá masculino sempre casará com um feminino, seguindo
sempre o que a história dos orixás conta.

A primeira vez que fui à casa de Dona Rosa para visitá-la, além dela encontrei
também sua filha de ventre, a Neli da Oxum. Depois de termos conversado muito sobre
benzedura, falamos sobre seu preto velho e um pouco sobre Oyó – “religião africana
mesmo”, disse ela. Fui convidado a voltar mais vezes, o que fiz.

Pouco antes de defender meu Trabalho de Conclusão de Curso, procurei todos


com quem conversei na Casca, para que lessem o trabalho e o aprovassem ou não (a
“banca” mais importante por que passara até então), o que adotei como procedimento para
todo trabalho etnográfico que faço. Foi então que Dona Rosa pediu para eu ir à sua outra
casa, no bairro Stella Maris, em Alvorada/RS, pois lá estão assentados seu pai e sua mãe
(orixás). Era próximo ao dia 11 de junho, data do “aniversário de vasilha” (comemoração
anual que tem como referência a data do assentamento do orixá de cabeça. Vasilha
corresponde ao recipiente onde o assentamento é depositado para que possa comer o que
lhe for ofertado) do Bará e da Obá. Disse para eu, antes de entregar meu trabalho a
qualquer pessoa, que o entregasse para o Bará. Nesse dia, aprendi a bater cabeça6 e conheci
um pouco sobre o Orixá dono da casa. Em uma casinha vermelha, estava seu sento (nome

3 Ser de religião é uma categoria nativa, é o modo mais usual para designar quem é adepto das religiões de

matriz africana.
4 Nação é o nome da religião que se divide em diferentes lados, também chamados de nação. É sinônimo de

batuque; quando este significa a religião, pode-se dizer que alguém é batuqueiro, de batuque, de nação ou de
religião.
5 Cavalo, cavalo de santo ou aparelho é o nome para designar a pessoa que passa pela possessão na umbanda,

segundo meus informantes. Cavalo de santo é utilizado para possessão por orixás também.
6 Bater cabeça é o ato de se deitar no chão com pernas e braços esticados para trás, encostando a cabeça no

chão, quando a pessoa tem cabeça de orixá masculino; deitar de lado abraçando o corpo ou esfregando as
palmas das mãos, fazer o mesmo movimento para o outro lado e ao final realizar o mesmo movimento que
uma pessoa de cabeça de homem (como chamam) faz, quando a pessoa tiver um orixá feminino na cabeça.

4
mais utilizado para falar dos assentamentos de orixá, feitos em ocutás (pedras), vultos ou
metal), que não pode ser visto por qualquer um e nem em qualquer época. Em frente à
casinha, Santo Onofre e Santo Antônio (Barás), balas de mel em um recipiente de vidro,
uma faca, dois carrinhos de plástico, um copo de martelinho e uma garrafa de “velho
barreiro” (cachaça). Era ali mesmo que eu deveria deixar a primeira cópia de meu trabalho.

Meus laços com Dona Rosa, Neli e Marcos (marido de Neli e filho de santo de
Dona Rosa) foram se estreitando a ponto de eu entrar para religião. Já preocupada com o
fato de eu estudar (“trabalhar com a cabeça”), Dona Rosa achou por bem que eu fizesse
um sanapismo de ebis7. Assim, ela pôs sua mão sobre minha cabeça e me fez seu filho de
santo. Ao mesmo tempo, tornei-me afilhado de santo de Neli. Antes mesmo de ter me
deitado8 para meu orixá, já era considerado filho da casa e, por isso, participei de diversos
rituais e festejos. Fui, aos poucos, ganhando uma mãe, uma madrinha e irmãos de santo.
Além deles, orixás que cuidam de mim, que também são pais, mães, irmãos, irmãs e
madrinha.

Entre o final de minha graduação em janeiro de 2010 e o início de meu


mestrado em março de 2011, não tive maiores preocupações em manter alguma relação de
pesquisa e segui como filho da casa. Foi apenas com o advento do curso de mestrado que
conversei com Dona Rosa, com Neli e com Odacir (pai de santo de Neli e irmão de santo
de Dona Rosa) sobre a possibilidade de estudar o batuque de Oyó. Essa condição de
pesquisador propiciou ver e ouvir aquilo que, como filho de santo, não seria possível, pois
como filho ainda me falta muito “chão9” para poder ver e ouvir o que vi e ouvi.
10
Exemplo disso foi o “axé de búzios” de Marlene da Oxum, no qual apenas
os prontos poderiam participar. Aqueles em grau de iniciação mais baixo foram convidados
a se retirar do salão, quando Odacir disse: “agora no salão só os prontos e esse menino que
tá pesquisando” e completou, “isso não é para tu contar pros teus amigos, é pra por no teu
7 Sanapismo é a obrigação mais leve, ou a que inclui menos obrigações do filho para com seu orixá. Ebi é o

caramujo de Oxalá. O sanapismo pode ser feito com pombos também.


8 Deitar para o orixá é ir para o chão, com reclusão no quarto de santo sobre esteira de palha, com sacrifício

para o orixá de cabeça e por tempo correspondente a obrigação em questão. Sanapismo, 24 horas, borido
quatro dias, por exemplo.
9 No sentido duplo de ter pouco tempo de religião e, por isso mesmo, não ter quase tempo nenhum de chão

– de obrigação para com os orixás. Além disso, poderia dizer que tenho pouco tempo de campo também.
10 Quando o filho já pronto recebe o direito de jogar os búzios. Tal ritual envolve o sacrifício de uma galinha

preta para Orumilaia, que não é cortada, mas tem sua cabeça arrancada, sempre por um homem e com a
ajuda de um alá (pano branco de Oxalá). O sangue é vertido sobre os búzios, uma sineta (para chamada de
orixá), as guias (que delimitam o espaço do jogo) e nos olhos do filho/a de santo. O pescoço da galinha é
passado nos olhos ao invés de ser chupado, como no caso do corte para outros orixás. Penas da galinha de
Orumilaia são passadas nos olhos abertos de todos os presentes. Tanto o sangue, como as penas servem para
dar visão. A carne da galinha é assada e distribuída aos homens. As mulheres não podem ingerir, nem
temperar, cozinhar ou matar tal ave. Apenas podem receber o sangue ou as penas nos olhos.

5
livro”. Tal evento fez com que alguns mal-entendidos ocorressem, como o fato de pessoas
mais antigas (os antigos são tema do primeiro capítulo) solicitassem que eu deixasse o
salão; Odacir tratava de explicar o porquê de eu estar ali. O acontecimento mais explicito
de eu não poder participar de uma série de rituais nem de muitas festas (batuques), como
filho de santo foi a pergunta de uma axere11, indagando se eu tinha permissão para estar
participando de uma festa em uma casa de Cabinda (outro lado do batuque): “o xinhore
anda muito solto. O menino [forma como chamam Bará] sabe que o xinhore tá tão solto”.
Tive de explicar que recebera autorização de minha mãe de santo para participar dos
batuques como pesquisador, desde que acompanhado de Odacir ou de Neli.

O efeito da dupla participação na religião produziu entradas e barreiras


específicas. Ao mesmo tempo em que pude participar de cerimônias nas quais apenas os
prontos poderiam participar, era preciso tomar certo cuidado para não se perder o controle,
pois minha posição de sobrinho de santo era afetada pelas forças da inveja, da fofoca e do
feitiço. Além disso, era preciso tomar certos cuidados para que meu orixá de cabeça não
desejasse comer mais do que deveria12. O carinho, o acolhimento caloroso e o interesse em
me ajudar a escrever, foram, contudo, as forças que mais afetaram esse trabalho. Odacir
tomou para si o controle das condições em que meu trabalho de campo se desenrolou,
decidindo a que eu poderia ou não assistir, chegar ou não perto, tornar ou não público na
futura escrita.

Desde então, sigo participando dos batuques do povo de oyó como filho-de-
santo-também-pesquisador. Dediquei meu olhar ao cotidiano, mas também dediquei a
escuta ao que meus “nativos e parentes” gostariam que fosse dito sobre eles; ou melhor, “o
que era importante para meu trabalho”. Houve um limite para o que eu poderia
saber/aprender, pois saber é, neste caso, ganhar um tipo de poder que envolve o
conhecimento sobre os feitiços e segredos da religião. Ainda que conhecer seja diferente de
poder fazer, uma posição não apenas discursiva me fora exigida em diversos momentos.
Odacir muitas vezes, quando eu estava cansado após horas de trabalhos, perguntava: “Ué
tu não tá aqui para observar antropólogo? Se é para dormir, volta para casa!”13.

11 Axere é o estado em que se está metade humano, metade orixá, no corpo. Dizem que é o meio orixá. Agem
como crianças, são os orixás crianças. Lembram as descrições sobre os eres, mas não são outra entidade,
senão o próprio orixá. Não recebem outro nome, são tratados pelo nome específico do orixá. Para uma
descrição mais detalhada, ver Corrêa (2006: 217-8).
12 O perigo é de o orixá de cabeça ver sua comida favorita, a cabeça de seu animal de quatro-pés, e passar a

exigir que se lhe ofereça tal sacrifício. Barbosa Neto (2012: 17) também notou tal risco.
13 Poderia tomar, quase ao pé da letra, o que Favret-Saada (1980) escreveu sobre sua experiência com a

feitiçaria no Bocage: “[...] so it was my interlocutors who decides what my position was ('caught' or not,
bewitched or unwitcher)” (: 17). Com a diferença que tal decisão e mudança de posição não dependiam de

6
A ideia foi permitir ser afetado pelas mesmas forças que afetam os nativos,
não para fazer religião – é claro –, mas para produzir uma dissertação. Assim, fui colocado
no lugar de “o observador”, “o antropólogo”, “o historiador”, o que implicava adotar
algumas posturas como a de deixar o trabalho ser conduzido por aquilo que o Pai de Santo
pensava ser mais pertinente para “meu livro”. Resta tecer comentário sobre o lugar de
religioso que permitiu leitura diferenciada dos dados “acessados” como pesquisador. Além
disso, mas não menos importante foi a colaboração na escrita, com correções que Odacir,
Neli e Carla Silva (in memoriam) me enviavam, fazendo da unidade da autoria algo diluído e
compartilhado na constante troca de ideias que tive com meus amigos religiosos. Não farei
digressão maior sobre a relação entre pesquisar um universo do qual se faz parte14, no caso
ser adepto de uma religião afro-brasileira.

Enfatizo o engajamento dos religiosos na tentativa de estabilizar para mim o


lugar de quem está estudando, não praticando a religião – ainda que se possa considerar
estudar uma forma de praticar, não era isso que falavam sobre o que seria a prática
religiosa. Os levei a sério, ocupando o lugar “imaginado/imaginário/desejado” de “puro”
antropólogo. Não obstante, minha filiação religiosa foi enriquecida com essa experiência,
assim como a pesquisa gerou expectativa nos religiosos de modo ainda não mensurável.
Grosso modo, o lugar de onde escrevo é sui generis, o de alguém que deu os primeiros passo na
iniciação religiosa e passos maiores na incursão etnográfica. Somado a isso, o conceito de
pureza expresso na forma “oyó puro” utilizada ao longo da dissertação não se insere na
discussão própria aos estudos de candomblé nos quais o rito nagô foi por muito tempo
considerado o modelo mais africano de culto. Refere-se, antes, a formas próprias utilizadas
por meus amigos para se referir à nação de Oyó, como será discutido melhor adiante.
Pureza que problematizarei utilizando as próprias categorias nativas, não fazendo de minha
pertença religiosa a medida de graus de pureza no qual a nação estudada estaria no topo.

Voltando, parece também que para elaborar qualquer noção que extrapole a
própria etnografia carecemos de comparações com outros trabalhos do que se considera
uma mesma região etnográfica. Na contramão disso, passando por algumas ideias
apresentadas por Strathern (1991), poder-se-ia depreender que, para se falar de batuque de

uma interpretação de meu discurso, mas de situações nas quais era importante que eu passasse de um lugar a
outro.
14 A discussão sobre essa temática mereceria um trabalho à parte. Entre ser um simples filiado e ser pronto na

religião existe “um mundo”, assim como o envolvimento do antropólogo com seus nativos pode variar em
muitas possibilidades. De modo que temos afirmações que vão desde a tão requerida “neutralidade
axiológica”, até às de Santos (1984) para quem o etnólogo só poderá realizar interpretação completa e
competente se for um iniciado. Para uma discussão sobre algumas dessas possibilidades ver Cruz (1995).

7
um modo geral, não é necessário um amontoado de comparações, pois o detalhe
etnográfico pode/deve ser capaz de responder questões gerais, grandes questões.
Importam, como frisa a autora, as perguntas que fazemos para nossos “dados”. “Quanto
mais complexas as questões, mais complexas as respostas”, e acrescenta: “fazendo ‘grandes’
perguntas a dados ‘pequenos’ a distinção pequeno/grande some, dá lugar a perspectivas e
níveis, e o senso de que a natureza da descrição é parcial” (Strathern 1991: xiv-xxii). São
esses dados “pequenos” (também grandes) e a evidente parcialidade do material de campo,
que compõem a dissertação.

Meu incômodo com a ideia de que a etnografia aparece em muitos textos


acadêmicos para exemplificar ideias fechadas, antes mesmo da realização de um trabalho de
campo, e minha experiência etnográfica – talvez não por acaso (e quem acreditaria em
acaso?) – levam-me a escrever de modo a valorizar o detalhe etnográfico e, ao menos,
tentar extrair alguma questão relevante para os batuqueiros de Oyó e para a antropologia.
Deixo clara, assim, a opção etnográfica adotada, que se deve não apenas ao curto tempo
para realização de uma dissertação de mestrado e os limites de tamanho, mas também a
uma escolha pessoal, que envolve pensar o conhecimento antropológico como fruto da
experiência de trabalho de campo. Dessa forma, uma atenção maior à vasta bibliografia
sobre religiões afro-brasileiras e um estudo comparativo ficarão para outra oportunidade.

***

Em novembro 2009, tive a oportunidade de ir a um batuque na casa de Odacir


do Ogum. Era aniversário dos 25 anos de vasilha do Ogum. Festa especial, pois vestiriam
os santos, o que não se fazia há muito tempo. Somente os orixás antigos e com fala têm o
direito de utilizar suas vestes especiais, os axós. Atualmente, chamam de axó as roupas que
se utilizam para ir a um batuque. Para os mais antigos, o certo é chamar de uniforme, axó é
a roupa do santo. Ao contrário da hipótese de Bastide (1959; 1985) de que os santos no
batuque não utilizavam suas vestimentas específicas pela pobreza do negro em Porto
Alegre, o que me contam é que o enriquecimento acabou com esse ritual. Antes, usavam-se
roupas simples, muitas vezes de chita, nada de saia de armação (“ala de baianas” como
alguns dizem) ou brilho nas roupas. Assim, vestidos com pompa, os humanos brilham
como se fossem orixás. Alguns, como Tia Erondina da Iemanjá, dizem ser essa uma das
causas do ritual perder seu sentido. Quem deve brilhar são os orixás. O certo é que o ritual

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de “saída de orixá” (vestir o orixá) perdeu seu caráter ordinário, passou a ser extraordinário,
para festas como essa de comemoração de uma longa data de assentamento.

Com o fim dos rituais que envolvem a comemoração do aniversário do santo,


e seu respectivo chão, iniciam-se os passeios15. Odacir e seus filhos foram à casa de Dona
Rosa, onde foram recebidos com pétalas de flores, com suas comidas preferidas, bebidas e
saudações ao orixá dono da casa. Foi nesse dia, durante o almoço, que fui apresentado a
Odacir, que me contou várias histórias “para eu colocar em meu livro”.

O tempo passou e depois de ter participado de vários batuques em sua casa,


em 2010 tive uma conversa para oficializar o que, de certa forma, já acontecia: uma
pesquisa em sua casa. É, principalmente – mas não somente –, sobre esse período de
trabalho de campo que esta dissertação se ocupa.

Durante o curso de mestrado, realizei três idas a campo. A primeira, mais


exploratória, ocorreu entre os meses de julho e agosto de 2011, nos quais permaneci 15
dias em campo. Na segunda, o campo foi cortado por diversos imponderáveis, pois realizei
idas a campo em dezembro de 2011, retornando em fevereiro de 2012 para o toque para
Iemanjá, para, depois, permanecer de abril a junho, do mesmo ano, em campo. A última
etapa que seria realizada entre os meses de setembro e outubro foi antecipada para agosto
por motivo da morte de Sergio do Oxalá, ocasião em que pude acompanhar os rituais de
desligamento, sendo o principal deles o eru (ritual que é o tema central dos capítulos II e
III). Contando minha experiência específica como estudante com o batuque, que se dá
desde 2009, estive em campo por 180 dias. Assim, minha experiência prévia, desde a
etnografia na Casca até o trabalho com o batuque, foi fundamental para que o curto
período de campo pudesse ser mais intenso, sem a necessidade de um trabalho que exigisse
maior dedicação para inserção e aceitação durante o tempo exíguo do mestrado.

A exposição de meu trabalho de campo anterior e de como ele desembocou no


mais recente fala um pouco sobre a natureza da construção dessa etnografia. Algumas
motivações foram teóricas, outras de ordem mais pessoal, e a força do acaso. Hoje, vejo
que não poderia estar estudando algo diferente. Foi esse encadeamento de acontecimentos
mais ou menos não planejados que resultou nesta dissertação. De início, tive um projeto de

15Após o final de uma grande obrigação de quatro-pés, é realizado o passeio na Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, no Mercado Público Municipal e no Cais do Porto – todos em Porto Alegre. Depois disso, os filhos
estão liberados para atividades consideradas mundanas, já podem ir “para o mundo”. Além desse passeio, é
realizada uma festa chamada de brasileira, na qual se comem comidas não religiosas, bebe-se bebida de álcool,
cantam e dançam músicas brasileiras (em oposição aos batuques, no qual tudo é africano). Os outros passeios
consistem em ir visitar aqueles que possuem casa, ou os santos em casa, que ajudaram ou estiveram nos
batuques para prestigiar.

9
pesquisa, os axeres me interessavam. Queria estudar esse estado no qual o corpo está
dividido entre pessoa e orixá e, ao mesmo tempo, é um orixá. Já na conversa inicial que tive
com Odacir para expor os planos para o mestrado, outras questões foram postas. Era
preciso iniciar pelo começo: as raízes, a genealogia. Precisava, também, acompanhar o
cotidiano de uma casa de religião. Nesse dia mesmo, saí de sua casa com parte da
genealogia da família de santo de Mãe Emília da Oyá Ladjá (matriarca do Oyó) e com o
calendário de atividades da casa. Era desses pontos que deveria partir. Não reformulei meu
projeto. Antes, abandonei a ideia de fazer algum. Meu orientador, Marcio Goldman, disse
algo que ia ao encontro do que Odacir dizia, deveria fazer campo e ver quais questões eram
importantes para meus nativos. Não deveria ter um projeto, mas um planejamento, um
cronograma mais ou menos estruturado. E foi assim que a pesquisa de mestrado teve seu
início.

“Oyó Puro”

Tia Denise do Ogum (neta de santo do Tio Paulinho do Lôde) diz que é de
Oyó puro. “Mas se o Odacir vai na casa do Paulo, ele vai ver coisas que vai dizer que não é
certo pelo lado de Oyó”. Essa foi a melhor frase que encontrei para apresentar o campo.
Ainda que tenha me dedicado a acompanhar Odacir do Ogum em suas atividades em suas
casas de religião (em Gravataí e São Luis Gonzaga, ambas cidades gaúchas), passei por
outras casas, as de seus parentes de santo. Devido ao modo como esse coletivo vive, com a
circulação intensa pela rede de parentesco, meu universo de pesquisa acabou por extrapolar
o espaço de uma única casa religiosa, espraiando-se por mais de um templo, quando segui
Odacir pelas casas dos parentes. A morfologia social fez meu campo tomar um rumo que
englobasse diversas casas e pessoas. Deter-me-ei, contudo, na descrição das casas de
Odacir e a de Tia Neneca do Xangô, tendo mapas com a localização geográfica e as plantas
baixas incluídas no texto para fins de compreender melhor os espaços destinados ao eru,
aos orixás e às pessoas. Nas duas casas, acompanhei os erus de Tia Lourdinha do Ogum e
de Sergio do Oxalá, descritos nos Capítulos II e III, respectivamente, juntamente com os
dados sobre as casas. A família de santo é apresentada no Capítulo I.

Oyó puro ou Oyó é o nome dado pelos adeptos com quem convivi para sua
religião. Com isso, quero dizer que descrevo o lado de Oyó que conheci que compreende
rígidos ideais de pureza. Que, além disso, como Tia Denise disse, é o mesmo (um único

10
lado), mas é diferente em cada casa, seguindo apenas uma estrutura mínima de ordem de
rezas, cores e comidas dos orixás, além do princípio de senioridade e respeito à hierarquia
no santo. É preciso também mencionar que existem outras casas de Oyó, ou outra facção
como dizem meus amigos, que vêm de outra raiz, não participando da mesma família de
Mãe Emília da Oyá Ladjá. Meus amigos afirmam que existem “oyós e oyós”, é sobre o Oyó
deles que escrevo.

O nome Oyó ou Oyó Puro é utilizado pelos batuqueiros da nação para se


localizarem e diferirem no universo dos batuques. Utilizo a mesma nomenclatura para
delimitar o universo pesquisado para o leitor. Tal nome vem de uma experiência concreta,
porque baseada em suas realidades e naquilo que definem como sendo a nação. Mas
também abstrata, pois fazem dessa base concreta um conceito em plano passível de
abstração. Designo Oyó ou Oyó puro em sentido próximo, na medida em que é concreto
para meus amigos e ao, mesmo tempo, transformado numa abstração antropológica para
dar conta de um conjunto heterogêneo de casas da família de santo, como bem notou Tia
Denise do Ogum. Tal cruzamento entre concreto e abstrato, é necessário mencionar, é
influenciado pela postura teórica de Strathern (1991), que propõem uma relação entre o
concreto e o abstrato sob um prisma diferente, no qual abstrações de antropólogos são
seus dados concretos, assim como dados de campo tornam-se abstrações que possibilitam
não a comparabilidade, mas as “conexões parciais”. Ainda, na chave teórica proposta pela
autora, podemos depreender que concreto e abstrato não devem ser lidos como um par de
oposições, mas que o concreto é abstrato e vice-versa, o que coloca, assim, dados e teorias
em um plano de continuidade epistêmica. Dessa forma, abstrações como matriz africana, e
os vários outras que se replicam, como africano > batuque > nação > Oyó > Mãe Emília,
tratam-se de abstrações ou dados concretos desse tipo, no qual abstrato e concreto não
podem existir como um par.

A mistura com outros lados e com outras religiões não é bem vista. A
tendência é que pessoas que vieram de outros lados, ou que tenham outras entidades –
como o caso do preto velho de Dona Rosa –, deixem, aos poucos, de cultuá-las. Alguns
pais e mães de santo do Oyó fizeram seus filhos com as linhas de umbanda e com o povo
da rua; porém, essa não é a regra. O envolvimento maior com a Nação implica um
distanciamento em relação a outros cultos, que não aos orixás.

A Nação, como exposto no Capítulo I, tem sua origem com a chegada de Mãe
Emília da Oyá Ladjá, princesa africana. É devido à matriarca da nação que Iansã é

11
considerada a Rainha do lado e tem, por isso, lugar de destaque no culto. Xangô, por ser o
Rei de Oyó já na Nigéria, é considerado o rei da nação no Rio Grande do Sul também.

Como conta Odacir, tratava-se no início de uma religião de negros pobres,


cenário que vem mudando, não só com a entrada de brancos, mas também com o aumento
do poder aquisitivo de alguns pais e mães de santo. O Pai de Santo lembra que,
antigamente, os batuques aconteciam em casas de madeira bem pobres e pequenas, mas é
agora que as casas de alvenaria, com grandes salões, vêm surgindo. Disse-me que o lado de
Oyó é o mais antigo no estado e difere dos outros na ordem das rezas, cantando-se
primeiro para os santos masculinos, depois para os femininos. Canta-se para Bará, Ogum,
Xapanã, Odé, Ossanha, Oxalá de Orumilaia, O Bokum Oka, Xangô, Ibêjis, Iemanjá, Ewá,
Obá e Nanã Burukê (para a qual somente os prontos – pessoas e orixás – dançam), Ótim,
Oxum, Iansã e Oxalá (o velho e o moço), que não é considerado feminino, mas o pai de
todos, por isso aquele que encerra todos rituais, exceto o eru. O número de rezas e sua
ordem interna, sua pronúncia e versos em cada um dos orixás, também é diferente. Para
Obá, por exemplo, tira-se apenas uma reza, na qual só dançam os prontos junto com os
orixás prontos, também. Sua reza é muito séria, trata-se de uma orixá de grande
importância, pois ela determina quem é “rei” (pronto) e quem não é. É a dona dos prontos.
Orixá da roda, do moinho, do corte, da nhãnhã (fofoca), do feitiço. No aré (dança com
ritmo acelerado) que acontece após a roda de Obá os orixás vão para o meio da roda e
fazem sua “apresentação”. Por exemplo, em um aré para Oyá/Iansã irão para o meio da
roda apenas os “cavalos” ocupados por esta orixá. No aré para Ogum saem as Iansãs e
ficam somente os Oguns, e assim por diante. No final do aré se “tira reza” para Bará,
quando todos os orixás passam a dançar no meio da roda e apenas os humanos a dançar na
roda.

Rezas cantadas para alguns orixás no lado de Oyó são cantadas para outros em
nações diferentes. Como rezas de Iemanjá, que tiram para Oxum, para Oxalá; rezas de Odé
que nos outros lados cantam para Xangô. Além dessas, a importante reza de Oxalá que
finaliza um batuque de Oyó em outros lados é tirada para Xapanã.

Além das diferenças nas rezas, as práticas rituais divergem não apenas entre os
lados, mas entre as casas: os cortes, a preparação das cabeças, a feitura das comidas dos
orixás (considerado um grande segredo da religião e a base para àquele que deseja ser um
religioso). As cores das guias e das vestimentas dos orixás e de seus filhos também são
distintas em alguns casos. Por exemplo, Ogum, que utiliza azul anil e vermelho no Oyó, e
verde e vermelho nos outros lados; Iemanjá, que veste verde-mar, e não azul-claro – cor
12
que no Oyó é dada par Oxum Dôco, a oxum velha (nota sobre mito); Aganjú, que veste
rosa, não vermelho e branco como os outros xangôs. Ademais, todos os lados do batuque
diferem muito entre si, a distinção ponto a ponto tornar-se-ia exaustiva, além de não
contribuir para o desenvolvimento da dissertação e de seus argumentos. Em que pese, é
sobre as diferentes concepções sobre a morte e os eguns e as diferenças rituais ligadas a
eles que trato ao longo dos três capítulos.

Minha experiência de campo demonstrou que no lado de oyó (acredito que em


qualquer campo de estudos) generalizações são raras; ou melhor, qualquer conceito é
apresentado através do relato de situações bastante concretas, particulares (o que não
significa que, às vezes, não se utilize uma forma generalizante para dar alguma explicação
sobre um assunto qualquer). Ao lembrar-se de algo que ocorrera no passado com alguém,
ao fazer determinada ação e assinalar, “viu? Isso significa tal coisa”, é que conceitos
aparecem. Deste prisma, pode-se notar que entrevistas e perguntas não se mostram muito
profícuas. E que falar sobre qualquer assunto só faz sentido quando se fala de algo que
aconteceu e que se presenciou ou que se ouviu falar da boca de alguém que vivenciou tal
situação. Parece que estamos diante do que alguns antropólogos chamam atenção há
bastante tempo: o conhecimento da bibliografia sobre alguma “realidade” não nos faz
conhecer mais que essa bibliografia, o trabalho de campo está no cerne do conhecimento
antropológico. Assim como um batuqueiro só aprende participando, o pesquisador que se
dedicar ao estudo do batuque tem de ver e ouvir, aprendendo aos poucos16.

O lado de Oyó, com exceção da dissertação de Jacqueline Pólvora (1994)


versando sobre a sociabilidade dos adeptos na casa religiosa e no carnaval, não foi tema de
outros estudos. Ari Oro chega a descrever a nação como a mais antiga do estado, sendo
hoje muito pequena e com poucos divulgadores e sobre a qual pouco se sabe (2002: 352).
A dissertação insere-se aqui na lacuna de descrições etnográficas sobre o lado mais antigo
do RS e sobre a diferente forma de se lidar com a morte, tema clássico dos estudos de
religião de matriz africana. A originalidade não pousa apenas no fato de esta se tratar de
uma nação pouco conhecida, mas, principalmente, por trazer o tema da morte sob outra
perspectiva: não apenas a da relação dos vivos com os mortos, mas dos orixás com esses, e
a necessidade de se desfazerem laços e obrigações aqui em Aiyê (terra ou nosso mundo)
para que a vida do morto siga em Orum (mundo dos orixás). O tema deve-se, também, ao

16Ver em Goldman (2003: 445) a interessante alegoria do catar folha, na forma ritual de aprendizagem no
candomblé, e o modo pelo qual o antropólogo aprende em seu trabalho de campo, sempre aos poucos,
participando, sem perguntar. Certa vez, quando fiz uma pergunta a Odacir, obtive a seguinte resposta: “Sabe
por que Exu é grande, porque ele é o maior, porque ele soube escutar tudo e nunca perguntar nada”.

13
fato das mortes que ocorreram durante meu trabalho de campo e da importância do
assunto na produção antropológica sobre as religiões de matriz africana.

O ritual do eru, que ocorre sete dias após a morte de um filho de santo pronto
na religião, tratará de desligar o egum do nosso mundo e os vivos do egum. Além dele, ao
se passarem um, três, seis, nove meses e, finalmente, um ano, homenagens são feitas para
afastar, aos poucos, e ensinar o egum que ele não faz mais parte desse mundo17. Tal
assunto é aprofundado nos Capítulos II e III.

É preciso desfazer os nós, as obrigações. Mas, além disso, é preciso que o


morto encaminhe-se, com ajuda de Nanã Burukê, para Orum, onde viverá com seu orixá
de cabeça. O desfazer, como já anunciado logo no início do texto, é o tema central desta
dissertação. É a partir dele, que agruparei um conjunto de práticas rituais ligadas ao
acontecimento da morte, que os laços, as obrigações, a morte e a transformação de relações
– palavras que compõem o título – são descritas. Ainda que não seja um conceito
propriamente nativo, desfazer evoca uma série de outros conceitos e categorias que
emergem quando da morte de um membro da religião, como desligar, destruir, quebrar,
Orum, nosso mundo, axexés, saudade, lembrança. Nesse sentido, falar em desfazer tem
relevância por acionar diretamente noções ligadas ao fazer (santo, pessoa, obrigações), à
morte, aos eguns, à família de santo e aos fundamentos do batuque. Dizem que é
justamente no eru que o fundamento da religião se apresenta de forma mais forte. Nesse
ritual, apenas os afiliados, os íntimos participam, apenas orixás prontos dançam, e só pais e
mães de santo com muitos anos de aprontamento possuem o saber ritual para presidir o
eru, lidar com eguns com a seriedade e precisão indispensáveis para que o morto deixe
nosso mundo e prossiga sua jornada, (re)fazendo sua pessoa, obrigações, sua vida, em
Orum. Ao longo desta dissertação, defendo o caráter de duplo acontecimento da morte e
sua natureza intrinsecamente transformativa das relações.

Antes de passar aos capítulos, apresento de forma breve dados mais gerais
sobre as religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul e a produção acadêmica sobre o
assunto. Infelizmente, o tempo exíguo de mestrado não permite a realização de
comparações com outros universos de pesquisa, que não apenas o batuque e outras
religiões de matriz africana, através do levantamento bibliográfico. Por esse fato, cotejar o

17 O que está próximo da descrição de Bastide em seu texto “O mundo dos candomblés”, de que a pessoa

africana, assim como a dos candomblés, não nasce de uma vez só, tampouco morre assim. “Pela iniciação
fez-se o espírito passar para um corpo vivo; trata-se agora de desfazer o que foi feito, recuando aos poucos, o
que é um procedimento habitual na magia, o processo de inversão, refazer em sentido contrário o que já foi
feito, desfazer o nó dado” (1983: 288). A não ser pelo “aos poucos”, o desfazer no eru é rápido e violento.

14
sentido dos rituais fúnebres no batuque de Oyó com os estudos sobre a morte em
diferentes culturas, o que seria interessante, ficará para outra oportunidade.

Religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul, dados e estudos

No Rio Grande do Sul, as chamadas religiões de matriz africana são, de acordo


com Corrêa (1994; 1998) e Oro (1994; 2002; 2012) basicamente três: umbanda, quimbanda
(ou linha cruzada) e batuque. A segunda pode formar junto com as outras a linha cruzada.
Esses autores trabalham com a noção de continuum afro-religioso que vai da umbanda
branca – mais próxima do kardecismo – ao batuque, religião que cultua orixás, passando
pela quimbanda ou linha cruzada, nas quais é o povo da rua (exus e pomba-giras) que
recebem lugar de destaque. Nesse continuum, é levado em consideração aquilo que os
autores chamam de do “mais leve” ao “mais pesado”, o que inclui principalmente o
sacrifício de animais, que não ocorre na umbanda, e que é mais importante e em maior
quantidade no batuque. Em meu campo só se poderia falar num continuum que iria do mais
fraco ao mais forte, sendo os orixás as divindades mais fortes de todas. Barbosa Neto
(2012) apresenta religiões que não aparecem nos modelos do continuum, como a magia
(pura) ou o culto à Pantera, entidade de seu interlocutor Pai Mano, por exemplo. Além
disso, novas religiões têm surgido vindas da Bahia ou por meio de transformação das
consideradas mais clássicas desse modelo. Podemos vislumbrar, assim, que o modelo do
continnum exclui uma das mais ricas expressões das religiões de matriz africana, sua
pluralidade feita tanto de continuidade quanto de descontinuidade.

Todavia, para fins de simplificar a apresentação dessas religiões no Rio Grande


do Sul, as apresentarei a partir desse modelo. As três principais religiões do chamado
continuum afro-religioso podem ser resumidas da seguinte forma: i) a umbanda com culto
aos caboclos e caboclas, pretos e pretas velhas, linha do oriente, além dos cosminhos; ii) a
quimbanda cultuando, principalmente, exus e pomba-giras, nos quais se encontram
algumas linhas do oriente, como o povo cigano; e, iii) o batuque (puro), que dedica seu
culto apenas aos orixás. A linha cruzada seria uma quarta vertente, que estaria logo atrás do
batuque nesse continuum que mediria negritude e africanidade, nela a quimbanda (também
chamada de magia, magia negra, trabalho pro mal, lado do mal) se juntaria a uma ou as
outras duas formas de culto, cultuando, assim, em uma mesma casa, os seres da umbanda,
o povo da rua e os orixás, por exemplo. Anjos (2006; 2008), ao aproximar a noção de

15
território à linha cruzada, mostra o nomadismo inerente a essa expressão religiosa e
filosófica, na qual a casa abriga diferentes entidades, mas não as cultua ao mesmo tempo,
nem no mesmo exato ponto da casa. É o salão e o corpo humano que cruzam em
diferentes momentos as diferentes deidades. Sob o nome de Ogum, por exemplo, teremos
orixá, caboclo e exu, sem que estes nunca se confundam18 (cf. Anjos 2008: 82).

Em Herskovits (1943), encontramos levantamento estatístico das casas de


culto em Porto Alegre, havendo 30 casas em 1937, 33 em 1938 e 37 em 1952. Krebs (1988)
fala de 211 templos. De acordo com Oro (1996; 2012), existem 30 mil casas. O Ministério
de Desenvolvimento Social (MDS), com os projetos19 “Mapeando o Axé” e “Alimento:
direito sagrado” e o texto de Oro são, atualmente, as melhores referências para contabilizar
as diferentes religiões de matriz africana no estado, em contraposição à metodologia do
censo oficial.

Os dados do último censo realizado em 2010 pelo IBGE apontam para uma
realidade distante da apresentada pelo MDS e pelas 30 mil casas de que Ari Oro fala, a
começar pela coleta realizada por indivíduos, não por casas, e pela ausência de algumas
religiões no questionário. Tal fato indica o caráter individualista do questionário, que se
distancia do ideal de família religiosa, no qual o que importa são as casas e os pais e mães
de santo, além de ferir a prática de manter segredo sobre a religiosidade (devido o
preconceito no local de trabalho, por exemplo), tão importante para sua eficácia.

De acordo com os dados do último censo do IBGE, 1,47% da população


gaúcha declarou-se como “seguidora de religiões afro”20, dados que sobem para 2,52% para
Região Metropolitana e para 3,35% para a Capital. De acordo com Oro (2012), o Rio
Grande do Sul é “o estado da federação em que houve maior explicitação de pertencimento
identitário ao campo afro-religioso” (: 562). Penso que pela proposta do projeto, sua
realização em parceria com o povo de santo, e sua recente finalização, a contabilização do
MDS é a que mais se aproxima do que podemos chamar de realidade. Na Região
Metropolitana de Porto Alegre, foram mapeadas 1342 casas divididas entre terreiros e

18 No terreiro de Mãe Dorsa onde Anjos (2006) desenvolve a parte etnográfica dedicada ao estudo da linha
cruzada, na qual a figura do exu é central. Ele pode servir para o bem e para o mal, ele é quem que dá início
aos rituais no terreiro e faz a intermediação entre as divindades e os homens. Os rituais de possessão
conferem a cada corpo participante mais de uma consciência, assim um indivíduo é ele próprio (Ego), é seu
orixá de cabeça, e pode ser também um exu, ou caboclo também; tendo, desse modo, seu corpo percorrido
por várias intensidades em uma única festa, por exemplo. Os orixás também não são únicos, cada um confere
a um sujeito uma personalidade e também se diferencia nela. Em outras palavras, Oxum é uma, mas em cada
terreiro, em cada pessoa, ela é uma Oxum diferente, ao mesmo tempo uma e várias.
19Ver <http://www.mds.gov.br/sesan/terreiros/paginas/terreiros_portoalegre.html
http://www.mds.gov.br/sesan/terreiros/paginas/cd-interativo.html)>.
20 Cf. <http://www.ibge.gov.br/home/>.

16
sociedades, sendo que no lado de Oyó são listadas 111 casas, dentre as quais 20 ficam em
Gravataí, município no qual se encontra a casa de Odacir, lugar onde centrei minha
pesquisa. Ambos os dados colocam estado e a Grande Porto Alegre no topo dos que mais
praticam a religiosidade de matriz africana no Brasil, “contrariando a ideia bastante
difundida de que o estado se caracterizaria pela quase ausência dos negros e de sua
contribuição filosófica, cultural e religiosa” (ver Corrêa 2006; 1998).

A produção acadêmica sobre as religiões de matriz africana no Rio Grande do


Sul pode ser resumida, grosso modo, em quatro tipos, que são expostos esquematicamente a
fim de estruturar um quadro para o leitor: i) folclóricos e psicológicos; ii) históricos; iii)
sociológicos; e, iv) etnográficos e antropológicos. É importante mencionar que a divisão
entre o primeiro e o segundo tipo são divisões já operadas por outros autores. No último
tipo, detenho-me com acuidade, dedicando maior espaço aos trabalhos de Corrêa (2006;
1998) – por ser a obra de referência sobre o batuque –, Anjos (2006) e Anjos e Oro (2009)
– por serem trabalhos que já podem ser tomados como textos clássicos sobre a
religiosidade afro-gaúcha –, e Pólvora (1994) por ter sido o único estudo a dedicar-se ao
lado de Oyó. Os demais estudos aparecerão de modo mais resumido, Bastide (1959; 1985;
1983), Herskovits (1943) e Barbosa Neto (2012) referências importantes, aparecem ao
longo da dissertação.

O primeiro e o segundo tipo estão imbricados, servem, mais tarde, de


referência aos primeiros antropólogos. Dante de Laytano (s/d; 1955; 1961; 1995) e Carlos
Galvão Krebs (1988) foram os primeiros pesquisadores a abordar as religiões de matriz
africana no Sul do País. Os estudos do primeiro centraram-se no linguajar do negro
gaúcho, na festa de Nossa Senhora dos Navegantes e na formação do estado a partir da
contribuição dos europeus e dos negros escravizados, com seus cultos aos orixás. O
segundo reuniu em seu livro “Estudos de batuque” matérias de jornais e artigos científicos
sobre rituais como a “axé de varas” e o então em voga “estado de santo”, enfatizando seu
caráter psicológico, ao estilo Nina Rodrigues.

No terceiro tipo, encontramos estudos importantes, que podemos chamar de


uma sociologia das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul e nos Países do Plata.
Deparamo-nos com a preocupação em construir quadros sinópticos, tipologias e
estatísticas. Além disso, há explicações exteriores à prática religiosa para dar conta de
fenômenos dos quais a religião é objeto. Podemos citar como exemplo, principalmente, as
considerações de Oro (1988; 1994; 1997; 1999; 2002; 2008) sobre o capitalismo, fronteiras,
etnicidade e política – principalmente no que tange as eleições no estado. Além disso,
17
temos as observações sobre a ordem cultural, econômica e da saúde que, relacionadas aos
problemas sentimentais (amor) e ao trabalho, levariam um número cada vez maior de
pessoas a busca do auxílio das religiões de matriz africana. Assim, política,
transnacionalização, crescimento do número de adeptos da linha cruzada e a relação entre
modernidade e tradição são os principais eixos desses estudos. Como os trabalhos de De
Bem (2007) e de Meirelles (2011), também. O primeiro estudo versa sobre questões ligadas
a fronteiras estatais e à circulação religiosa na Região Platina. O segundo vislumbra uma
desorganização no campo afro-religioso, que é reproduzida no campo político.

No que diz respeito ao terceiro tipo de abordagem, os primeiros etnógrafos a


se dedicarem ao estudo do batuque foram Herskovits (1943) e Bastide (1959; 1985), ambos
realizaram visita curta a Porto Alegre, onde puderam observar alguns rituais e conversar
com informantes. De caráter etnográfico, seus textos sobre o batuque gaúcho tratam de dar
conta da religião em todas suas expressões e rituais, desde a feitura até a morte, passando
pelas festas, descrição do número de orixás cultuados, cores das vestimentas, tamanho das
casas e número de adeptos. É importante ressaltar que ambos leem o batuque à sombra do
candomblé baiano, o que levará, anos mais tarde, Corrêa (2006 [1992]21) a chamar Bastide
de candomblecentrista. O último verá com melhores olhos o trabalho de Herskovits, pela
contextualização do Rio Grande do Sul e da chegada dos negros ao estado, o que discordo,
pois o trabalho de Bastide (1959) tem seu início com levantamentos sobre as origens e
estatísticas sobre os negros no estado; é deste a ideia de uma ilhota de resistência africana.

A religião africana, mais ou menos mestiçada de cristianismo, sobreviveu no


Brasil, sobretudo na região do litoral nordestino. Mas existe no extremo sul do
país, numa região de população essencialmente branca, com forte densidade de
descendentes de alemães, uma ilhota de resistência africana sobre a qual convém
dar algumas indicações (: 236).

O estudo pioneiro de Corrêa (2006), que fornecerá a base para os estudos


sobre religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul, ainda hoje é, sem sombra de
dúvida, o trabalho etnográfico de maior fôlego, contando com vinte anos de observação.
Nele, o autor, descreverá as principais características e rituais do batuque puro (religião que
cultua apenas orixás e, em algumas nações, os eguns). Pais e mães de santo conhecidos
aparecem em seu texto. Da nação que estudo, Oyó, Donga da Iemanjá, seguidamente
lembrado como Vô Donga por meus amigos, aparece como figura que presa pela tradição,
pelo aprendizado da língua ioruba e o aprendizado das rezas (: 52).

21
É importante notar que o livro de Norton Corrêa trata-se da publicação na íntegra de sua dissertação de
mestrado, defendida em 1989 e publicada pela primeira vez em 1992.

18
Desde a dissertação de mestrado de Norton Corrêa, publicada integralmente
em seu livro de 2006, os alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
UFRGS vêm produzindo uma série de etnografias sobre as religiões de matriz africana.
Apresento, aqui, algumas delas e o assunto sobre o qual tratam.

A dissertação de mestrado de Pólvora (1994) é dedicada ao estudo da


sociabilidade dos batuqueiros de Oyó, em Porto Alegre. A ênfase recai principalmente no
cotidiano “não religioso” da casa de Mãe Laudelina do Bará e de sua participação no
carnaval da cidade. A quadra de samba, assim como os altares, possuem fortes referências
religiosas. Rodolpho (1994), em sua dissertação de mestrado sobre o sacrifício na
quimbanda, parte da acepção de Goldman (1987 apud Rodolpho 1994) de que o transe
possessivo e o sacrifício são os pilares nos quais a estrutura religiosa se assenta.

Corrêa (1998), em sua tese de doutoramento, propõe a chave do conflito a


partir da teoria de Simmel para pensar a sociação e a socialidade nas religiões afro-
brasileiras, além da revisão da vasta bibliografia sobre o tema. Focando na descrição de
conflitos, o autor volta a seus dados de campo já apresentados em Corrêa (2006 [1992]).

Assis (2002) aborda a temática da transmissão/reinvenção da tradição


batuqueira através do apronte. Tomando como valores essenciais da religião a hierarquia e
a reciprocidade, discute a construção da pessoa batuqueira (novamente a ênfase recai sobre
o construir, o fazer) a partir de sua feitura na religião. Teixeira (2005) dedica-se ao estudo
do ethos quimbandeiro a partir da confecção do vestuário, em um terreiro em Canoas/RS.
O “mérito evolutivo” de exus e pomba-giras apresentar-se-á através do “merecimento” em
ter o próprio vestuário (: 12; 59). Para a autora, o vestuário “caracteriza a dádiva em todos
os seus momentos: confecção, utilização, oferta” (: 18). Ainda, “o aspecto mais importante
na construção do vestuário [é] agradar às entidades e receber suas bênçãos” (: 119).

Silveira (2008) estuda a trajetória de três tamboreiras, tendo como objetivo


analisar relações de gênero no “acesso à tradição percussiva”, no universo “sonoro-
musical” do batuque gaúcho. Assim como em Braga (1998), atenta para o fato de que os
tambores também tem de ser feitos, de comer e de receber reverência. Para o segundo
autor é, senão, depois do pai de santo, o tamboreiro a figura de maior respeito e prestígio
em uma casa de santo. Em Ávila (2009), encontramos uma interessante reflexão etnográfica
sobre a política feita pelos religiosos, seu trabalho de campo acompanha os movimentos da
CEDRAB/RS (Congregação em defesa das Religiões Afro-Brasileiras), presidida por Mãe
Norinha do Oxalá e por Baba Diba da Iemanjá, dos quais depreende que a política afro-

19
brasileira – desse grupo – volta suas preocupações para as temáticas da ecologia, da
etnicidade/reafricanização e o chamado trabalho social nas comunidades onde as lideranças
religiosas possuem suas casas de culto, principalmente.

Barbosa Neto (2012) realiza percurso distinto, assim como Anjos (2006; 2008)
e Anjos e Oro (2009), das noções de ethos e visão de mundo presentes na quase totalidade
da produção acadêmica sobre as religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul: é o
politeísmo (“intensivo”) e os desdobramentos num sem número de lados nas religiões que
o autor nos apresenta. É esta sua ideia de politeísmo: “um mundo repleto de lados
simultâneos e heterogêneos” (: 11). Não se trata exatamente de uma descrição detalhada de
rituais e experiências de campo, mas sim de um cruzamento entre os dados de campo do
autor e outras etnografias, principalmente a de Corrêa (2006), “uma linha que corta
transversalmente” todo seu trabalho (: 4). Diferente do meu campo, e da descrição de
Corrêa (1998), em Barbosa Neto (2012) encontramos a noção de que cada casa é um caso,
não havendo um princípio hierárquico que seja superior ao Dono da casa – como vemos
no Capítulo I, no lado de Oyó isso seria impossível, pois os mais antigos e a família de
santo fazem com que as casas estejam implicadas uma na outra, a ponto de uma possível
autonomia ser apenas relativa. Outra novidade de seu trabalho – que podemos incluir no
“campo de estudos das religiões afro-brasileiras no RS” – são as modalidades rituais que
encontrou em campo, que são impossíveis de serem agrupadas sob um nome, como
batuque ou magia, por exemplo. O mais surpreendente, para o leitor acostumado com a
bibliografia mais clássica, é o caso de Pai Luis, com casa em Pelotas/RS, que recebe
Pantera – “egum ou odu” (: 29) –, uma mulher “estranha”, que se alimentava do próprio
sangue de Pai Luis, acrescentando, assim, maior riqueza à “realidade” afro-religiosa no
estado. A noção de “máquina ritual”, inspirada em Deleuze e Guattari, agrupa outras
máquinas, que são os próprios rituais, que não são detalhados monograficamente,
preferindo, Barbosa Neto, demonstrar “como se pode passar entre eles [iniciação, rito
fúnebre, feitiçaria] por dentro de cada um” (: 36). Feitiçaria dentro da iniciação e do rito
fúnebre, por exemplo. É essa “máquina ritual” e o “politeísmo intensivo” que são
descritos.

Em que pese a diferença do lado de Oyó para com os dados de Barbosa Neto
(2012), importa ressaltar, principalmente, a noção de feitiçaria. As diferenças de culto não
cabem ser discutidas aqui, pois se tratam de universo de pesquisa distantes; neste trabalho,
cabe ressaltar a heterogeneidade e a riqueza das diferentes formas rituais nas religiões de
matriz africana, que só podem ser tomadas em bloco na forma de uma “abstração

20
concreta”. Feitiço, de acordo com Odacir (meu principal informante), é uma questão de
graus de conhecimento, pois feitiço é tanto para o bem, quanto para o mal, assim como os
chamados serviços ou trabalhos. Como comenta o “pai-de-santo com quem o autor
conversava”, feitiço é para o bem e para o mal, é para tudo (: 348-9). Como bem nota
Barbosa Neto, “feitiçaria bem poderia ser o nome dessa religião se não fosse o sincretismo,
mas o fato é que esse termo, não obstante a sua aplicação mais geral, é preferencialmente
usado para designar as situações em que se vai atacar ritualmente alguém, e, nesses casos,
pode também ser referido como ‘demanda’ ou, ainda, como axexé burukum” (2012: 349).
Todavia, como me ensinou Odacir, feiticeiro bom é quem consegue fazer coisas para o
bem; por exemplo, conseguir um emprego para alguém, de forma rápida, porém com
permanência instável; e para o mal, é claro. Já um bom pai de santo é aquele que sabe falar
o ioruba, cantar todas as rezas e fazer serviços com maior durabilidade ou para sempre;
geralmente acionando o orixá de cabeça e outros orixás para a demanda específica.

De qualquer forma, certa aproximação entre as definições dos dois pais de


santo pode ser feita. Foi a moral ocidental (com toda generalização empobrecedora que a
expressão possa ter) que aproximou feitiço daquilo considerado mal. Seguindo meus
nativos, para os quais a noção de bem e mal é um tanto diferente – vingança, por exemplo,
pode significar fazer o bem –, utilizo ao longo do trabalho feitiço tanto para o que seria,
por nós, considerado bem, quanto para o mal, à exceção daquilo que me foi descrito como
sendo serviço ou trabalho. Outro nome utilizado é axé. A regra é seguir a lógica nativa, na
qual os diferentes conceitos podem ser tanto sinônimos, quanto antônimos. Uma
padronização faria esse jogo sumir.

Em Anjos (1993), a remoção de uma vila em Porto Alegre (a Vila Mirim) é


discutida a partir do conceito nativo de linha cruzada (e encruzilhada), que o autor
aproxima ao conceito deleuzo-guattariano de rizoma. Mais tarde, em 2006, é publicado em
livro, quase que integralmente. A obra ‘No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-
brasileira’ tem como foco a “narração de situações concretas de disputa” e os “aspectos
cerimoniosos ou até ritualísticos” (2006: 14) envolvidos no processo de remoção da Vila
Mirim, em Porto Alegre, para o bairro Rubem Berta.

No livro “Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: Sincretismo entre
Maria e Iemanjá’ de Anjos e Oro (2009), os autores debruçam-se sobre dados etnográficos
sobre a procissão realizada anualmente para a santa. No que chamam de regimes de
diplomacia se produz, em Porto Alegre, a impossibilidade de dissociar a Santa e Iemanjá (:
131). Fundamento e sua manutenção aparecem como chave da conexão entre mundos,
21
como modo de encadeamento de imagens e textos, o mundo da religiosidade africanista
acontece por contágio iconográfico.

Em cada texto referido, aquilo que estiver relacionado com a morte e os ritos
fúnebres, o apronte e os rituais iniciáticos, a noção de pessoa e a transformação dos vivos
em eguns e a bibliografia sobre morte em religiões de matriz africana fora do Rio Grande
do Sul será discutido ao longo da dissertação, em momento oportuno. Além desses, outras
obras como as de Santos (1976), Goldman (1984; 2009), Halloy (2005), Rabelo (2008) e
Rabelo & Brito (2011) aparecem na dissertação por se conectarem a partes específicas.

Existe, ainda, outro tipo de produção literária sobre essas religiões: são os
livros e jornais escritos pelo povo de santo para o povo de santo. Os jornais e as revistas
são encontrados nas floras e em algumas bancas de revista. Um número expressivo de pais
e/ou mães de santo vem escrevendo sobre a religião, produzindo descrições e discussões
alternativas às da antropologia. Apresentam textos que contam histórias dos batuques e
descrevem certos rituais. Discutem, sem dúvida, problemas de maior interesse para o povo
de santo. Dentre os jornais, temos “O Bom Axé” e “A Hora grande” como os mais
populares. Escritos por religiosos, apresentam mitos, fofocas no formato de causos
anônimos, fotos de festas, discussão sobre a vida de algum orixá, além de apresentar um
sem número de anúncios de pais e mães de santo, com a finalidade de divulgar seu jogo de
búzios e a eficácia de seus serviços.

***

No primeiro capítulo, apresento a não existência do culto aos eguns no lado


Oyó como outra estrutura ritual que chega e se desenvolve no Rio Grande do Sul com Mãe
Emília da Oyá Ladjá. O respeito para com os antigos, que se dividem em vivos e mortos,
será tomado como uma forma de culto e não um “quase-culto” como sugere Corrêa
(1998), ancorado em José Jorge de Carvalho. O princípio de senioridade e a hierarquia
estruturam um sistema de prestações de homenagens que envolve desde o bater cabeça
para aqueles chamados de titios e titias, até os presentes que devem ser entregues aos orixás
dos pais e mães de santo importantes que já morreram. Por isso, o adepto deve aprender
sua linhagem no santo, saber, como no caso de Odacir do Ogum Oníra, até a Oyá Ladjá de
Mãe Emília, quais orixás devem ser presenteados em momentos específicos, como nas

22
festas grandes. E quais pessoas devem ter suas almas rezadas em Igrejas Católicas, para que
toda homenagem para Ogum Oníra e seus filhos aconteça sem surpresas desagradáveis.

Ao falar dos antigos, fala-se sobre parentesco no santo. A imbricação das


famílias de santo e de sangue (nomenclatura nativa) promove relações que não se
classificam em nenhum dos dois casos. Exemplo disso é Neli da Oxum, filha de santo de
Odacir que é irmão de santo de sua mãe de sangue. Por isso, Neli sempre chamou e, ainda,
chama Odacir de tio, muito raramente de pai. Além disso, seus filhos de sangue chamam
Odacir de vô, ainda que agora tenham se tornando seus filhos de santo. Além disso, as
regras ideais da família de santo colocam restrições sobre as possibilidades de matrimônio.
No parentesco no santo, pode-se dizer, por analogia, que a afinidade está submetida ao
parentesco por consanguinidade. Pais e filhos e irmãos e irmãs não podem se casar. Além
desse, outro tabu: ninguém pode ser pai ou mãe duas vezes – no sangue e no santo.

No Oyó, fica difícil distinguir parentesco no santo do parentesco no sangue, a


não ser no caso daqueles que entram para religião por motivos de doença, dinheiro ou
amor, basicamente. Ou seja, aqueles que não se “criam” na religião. Ademais, é a família
afetiva que promove o parentesco no santo a partir do parentesco no sangue.

Como transição do primeiro para o segundo capítulo, inicio com a descrição de


uma troca de vida, feita em Carla da Iansã – mais conhecida como Carla Pacheco – por
motivo de um câncer de mama. Aqui, a ideia de que a morte é algo inevitável, mas adiável e
negociável. Algo que se pode trocar, dando uma ave por uma pessoa, por exemplo. Dentro
da troca estão, também, os casos dos Abikus – espíritos fujões de crianças, como Dona
Rosa me ensinou, ou “aqueles que nascem para morrer”, como aparecem na belíssima
descrição de Verger (1983). Em seguida, passo para os rituais que sucederam a morte de
Tia Lourdes do Ogum, realizados na casa de Tia Neneca, de seu enterro, até seu eru,
passando pela missa católica. Desde já, a ideia de morte e de egum e das transformações
nas relações entre os vivos e aquele que morreu começam a ser esboçadas, abrindo espaço
para que, no capítulo seguinte, afirmações sobre alguns categorias nativas ganhem
intensidade suficiente para que sejam feitas. Ao final, a quase morte de um pai de santo do
Oyó faz a transição para o Capítulo III. Tal evento revela distinções entre pessoa e orixá,
que auxiliam a distinção que descrevo no último capítulo entre pessoa (corpo, alma, orixá),
egum (pessoa, alma e egum de orixá) e orixá (deuses imortais).

No capítulo final, descrevo os rituais pós-morte de Sergio do Oxalá, ocorridos


na casa de Odacir. Ainda que as semelhanças entre os erus de Sergio e de Tia Lourdinha

23
confiram ao capítulo uma aparente redundância, diferenças importantes o marcam. Além
da descrição da matança que antecede a missa católica, não descrita no Capítulo II, o
detalhamento etnográfico explicita a especificidade crucial, para os batuqueiros, da morte
de um filho/a de Oxalá, orixá que não participa de erus, a não ser quando um filho seu
morre. Na última parte do capítulo, descrevo a suspeita de morte de um assentamento de
Bará, por motivos do incêndio da casa de Odacir em São Luis Gonzaga/RS. Aqui, a
diferença entre o sento (ocutá) e os demais objetos de um orixá e o próprio orixá
acentuam-se, como no caso do eru, ao investigar se um assentamento está vivo ou morto
após pegar fogo. A partir das situações da quebra ritual dos objetos sagrados de quem
morreu, descritas nos Capítulos II e III, e da morte (ou não) de um ocutá, a noção de
desfazer e uma iconoclastia própria ao batuque de Oyó devem ficar evidentes.

24
Cap. 1 “Começar pelo começo”: a família e os antigos

“Tu tem que começar pelo começo”. Assim me disse Odacir quando
conversávamos sobre minha pesquisa. Antes de falar de festas ou outros rituais, deveria
começar pelas raízes do “povo de Oyó”. Mas afinal, o que as raízes teriam a ver com a
morte, tema desta dissertação? Hoje consigo ver o que Odacir já antevia: como falar da
morte, seus rituais e relações no lado de Oyó sem “começar pelo começo?” Sem iniciar por
aqueles que, vivos ou mortos, são cultuados e lembrados a todo o momento, seja em fotos
ou certificados da AFROBRAS (Federação das Religiões Afro-Brasileiras) penduradas nos
quartos de santo, seja nas histórias que ensinam a religião? Colocar Odacir do Ogum Onira
e seus filhos na genealogia de Oyó, que tem seu início com Emília da Oyá Ladjá, é
imprescindível para os propósitos desta dissertação.

Portanto, é através das relações familiais e de parentesco no santo e no sangue


(nomenclatura nativa) que o mundo dos batuques de Oyó é melhor apresentado. Além
disso, trato as histórias, a lembrança e a importância da presença dos mais antigos no santo
(vivos ou mortos) como uma forma de culto. As pessoas do lado de Oyó prezam pela
manutenção de uma memória viva de suas raízes no santo. Ademais, os orixás de babalaus
e babalaoas importantes não podem deixar de ser homenageados antes de qualquer ritual
maior, sejam nas quinzenas ou nas festas grandes. Diferentemente do culto aos eguns e
ancestrais em outros lados do batuque – realizados, geralmente, uma vez ao ano, com
matança no balé – encontramos relações distintas em relação ao lugar atribuído aos mortos
na religião. Esses são perigosos, deve-se manter uma “boa distância” deles.

***

Mãe Emília da Oyá Ladjá foi uma princesa africana que iniciou o lado de Oyó
no Rio Grande do Sul, chegou no estado pelo porto de Pelotas há cerca de 150 anos, assim
conta Odacir. As pessoas com quem convivi dizem que ela chegou como escrava e não
deixam de falar com orgulho e reverência dessa história22. É uma diferente definição de
história que os batuqueiros nos ensinam, na qual o que chamamos de mito e de história se
imbricam; ou, melhor, não são diferentes, não há mitos, existem histórias e histórias. O

22 Lima (2003) fala dos antigos que são lembrados “já acrescidos da aura mítica da memória coletiva” (: 138).

25
melhor seria dizer que eles falam de algo que não é nem o que chamamos de história, nem
o que chamamos de mito. Os pais ou mães de santo com quem conversei sabem contar a
história da vinda dos negros da Costa da África, por exemplo. Contar a história do Rio Obá
– rio sem nascente que, aliás, nem mesmo os “historiadores, geólogos e geógrafos sabem
explicar a existência”23, como Odacir e Dona Rosa falam. Mãe Emília aprontou muitos
filhos de santo e Odacir encontra-se na terceira geração da genealogia do Oyó. Oyá/Iansã,
por ser a orixá de Mãe Emília, é a rainha do lado e assim como Xangô, que foi rei do antigo
Reino de Oyó, tem papel de destaque nos batuques dessa Nação. O culto, a genealogia e
história se fundem nos rituais da nação.

A genealogia no santo foi um dos temas de maior interesse das pessoas com
quem convivi. Brincavam com o “ENEM batuquerístico”, no qual os pais ou mães de
santo indagam seus filhos acerca dos nomes dos antigos (pessoas e orixás), para que todos
saibam qual sua raiz no santo, até chegar a Mãe Emília. Além disso, os antigos pais e mães
de santo são sempre saudados e chamados nas festas e nos diversos rituais. Quando se faz
algum feitiço demandando determinado orixá, logo é lembrado o nome de algum santo
antigo, que ajudará dando eficácia maior ao pedido. Por exemplo, ao fazer algum serviço
para Oxalá, pode-se lembrar de chamar Oxalá Omi, do Pai Januário ou o Oxalá Olobomi
da Sinhá Rola.

Para fins de melhor compreender a importância da linhagem no santo e


entender o parentesco de santo das pessoas que são evocadas no decorrer da dissertação,
apresento a genealogia da família de santo que pesquisei, indo de Mãe Emília até os filhos
de Odacir. Registro apenas os prontos na religião, já que esses são aqueles que têm seu
orixá assentado e, por isso, um nome religioso. Além disso, discuto as implicações do
parentesco no santo no parentesco no sangue, e vice-versa, regras matrimoniais e tabus24.
Para além do sistema de parentesco, o compadrio é tratado também, pois não apenas

23 De acordo com Odacir e Neli, o Rio Obá, na atual Nigéria, nasceu da única vez em que as três esposas de

Xangô (Obá, Oxum e Iansã) se uniram. Quando o Rei Xangô viajou deixando o reino na mão de suas
rainhas, houve uma seca que devastaria Oyó. Não vendo saída, as três rainhas ficaram consternadas: Obá,
cravando sua faca no solo seco, abriu uma fenda gigantesca; Oxum, chorando, encheu de lágrimas o buraco;
Iansã, de desespero, pôs-se a ventar, fazendo com que o rio de lágrimas corresse. Dessa forma, o Reino de
Oyó tornou a ter seu solo fértil e assim se diz que, na hora da necessidade, as rainhas inimigas uniram-se pelo
bem maior de seu povo.
24 Bastide (1959) chama atenção para ausência de tabus nos casamentos entre batuqueiros no Rio Grande do

Sul. O Incesto entre pessoas com o mesmo orixá de cabeça não sendo verificado por ele (: 248-9). Este tema,
como demonstro ao longo do capítulo, é alvo de controvérsias e de regras muito rígidas, que, no entanto, não
excluem a existência do tabu no plano ideal. Diz-se, inclusive, que cabeça de santo masculino como outro
santo masculino “não dá bom casamento”.

26
complementa o primeiro, fortalecendo laços, como direciona filhos que rompem com os
pais para uma nova mão25.

Momentos de festas e de cortes/matanças, além da descrição de quartos de


santo, evidenciam a importância dos “antigos” na religião. Proponho que o caso específico
do lado de Oyó, que não cultua eguns, mas cultua seus ancestrais a partir da lembrança dos
antepassados presentificada em objetos e no tratamento especial aos mais velhos, seja
entendido como uma estrutura ritual que vem com Mãe Emília e desenvolve-se no estado
a partir da linhagem – ou parentesco, quase sinônimos nesse caso – no santo.

É importante frisar que, no Oyó, o culto aos antepassados não se confunde


com culto aos eguns. Mesmo o egum de um antepassado é perigoso, o que se cultua é o
orixá individual de um antepassado importante. A própria pessoa que morreu é cultuada
apenas através da lembrança geralmente presentificada em objetos rituais ou não. Fora isso,
como vemos a seguir, apenas missas católicas são rezadas por suas almas e um último
presente para o egum será preparado ao final do luto.

1.1 No Santo

Na genealogia abaixo apresento Mãe Emília e sua linhagem, até os filhos de


Odacir. Registrei apenas os filhos prontos, pois é no apronte que o laço definitivo é criado,
o nome do orixá passará a acompanhar o nome do filho serão os prontos que serão
lembrados.

Figura 1: Genealogia Oyó.

25 A mão não é completamente nova, como veremos a seguir, ela já tocou a cabeça do afilhado/filho
juntamente com a do primeiro pai de santo. Alguns dizem, ainda, que nunca se muda realmente a
paternidade/maternidade no santo.

27
Emília
Oyá
Ládja

Vó Rola ou Mãe Mãe Pai Pai Donga Pai Dirceu Mãe Mãe Mãe
Sinhá Rola do Mãe Negrinha Margarida
Matilde Araci Ramirez Iemanjá Oxum Odé Onitunde Joaquina Ricarda
Oxalá Olobomi Ogum Bi Odé Ogum Tubuá Loba Iansã Oxalá

Nicola
Aganjú
Pai Babuxê
Januário Pai Olguinha
Oxalá Omi Dico Xapanã
Pai Odilon Mãe Bidú Ercília Diva
Iemanjá
Jorge Ogum Iemanjá Bará d'Odé
Diobocum Omituá

Mãe Valdemar Adão Pai Paulinho Mãe Aida


Mãe Neuza Sirlei Mãe Valdeci
Bará Lanã Pai Paulinho Oxalá Bará do Aganjú da Ia Dôco
Xangô (Tia Neneca) (Xangô) (Oxum)
(Deí) Bará
Ejemum do Xangô Tolá

Mãe Mãe Neide Pai Nelson Pai Iara (Tia)


Leonor do Aganjú Deleon Oxum Sergio Oxalá Lourdinha
Mãe Rosinha Daniel Roberta Paulo Tania Luiza Olobomi Xangô Oxalá Ogum
Ogum
Pai Bará Lanã Iemanjá Iansã Xangô Xangô Helena
Sidnei (Motim) Ogum
Xangô

Pai Odacir Careca Wladimir Luis Ana Isabel Denise Mana


Ogum do (Gordo) do Pai
do do Tuatan Ogum Erondina Ivone Neuza Sinhazinha Oxalá
Diobí Xapanã do Xangô Bará Ogum Oxalá Ossanha Iemanjá Oxalá Bará da
Omitola Omi Lôde Bi Iansã

Iara Iarinha Regina Dida Rejane Wagner Carla Batista Ronaldinho Carla Claudinha Dona Fernando Maninha Marina Neli Robson Preta Jair do Jaira Tânia da Jairo Cleusa Luana Denise Camile Tati da
do da Oxum do do da Oxum (Negão) Silva da do do Aganjú Pacheco da Rosa do do Aganjú da Oxum da Oxum do do Bará do Oxum de do da do da Oxum
Oxalá Pandá Oxalá Xapanã Pandá do Oxalá Iansã Ogum (Xangô) da Iansã Iansã Ogum (Xangô) Pandá Pandá Oxalá Oxalá Bará Pandá Ossanha Ogum Iemanjá Ogum Iemanjá Doco

Simbolos do
Genograma

Masculino Feminino Falecimento

Legenda de relacionamento de família Legenda de relacionamento emocional


18 1 Normal

28
80
O matrimônio é endogâmico, tendo como referência a família de santo extensa
(a linhagem de Mãe Emília), sendo exogâmico para fora do grupo de referência. Como
ideal, atualmente, e obrigatoriedade no tempo dos antigos, o tabu do incesto refere-se a
regras semelhantes ao parentesco por consanguinidade na sociedade brasileira. Filhos(as)
não podem, em princípio, casar-se com pai ou mãe de santo. Irmãos de santo também não.
Regra que não vale para quem já chega casado a alguma casa, ou para alguém que seja
casado e que seu/sua companheiro(a) deseje/precise se aprontar, sendo esse último caso
raro e bastante repreendido. Os mais antigos na religião não aceitavam que irmãos de santo
se casassem, “mesmo que já chegassem casados”. Davam um dos membros do casal para
algum irmão de santo fazer. Contam, também, que antigamente não se escolhia o pai ou
mãe de santo, os “velhos” se reuniam e decidiam quem assumiria a cabeça. Além disso,
cônjuges, independentemente da hierarquia26 no santo, não devem bater cabeça um para o
outro; quando se ocupam, os orixás cumprimentam-se de forma mais distante, com beija-
mãos apenas, ou curvatura recíproca dos corpos; quando apenas um dos membros do casal
recebe seu santo, o outro não deve bater cabeça, apenas deve se curvar e beijar as mãos.
Não pode haver hierarquia no santo influenciando um casal, de modo a fazer com que uma
das partes seja submissa à outra devido à sua relação no santo. Ainda, cônjuges não devem
fazer feitiços/serviços para um para/pelo outro (como serviços de saúde, de emprego,
etc.); não podem, tampouco, tocar nas obrigações um do outro.

Quando casais entram juntos para religião, as regras podem ser relativizadas.
Quando alguém entra para religião, geralmente, leva os cônjuges e os parentes de sangue.
Maridos e esposas, filhos e filhas, irmãos e irmãs. Mas também, amigos e colegas de
serviço. Nestes casos, cônjuges podem se tornar irmãos de santo, quando o pai ou mãe de
santo assim aceitar. Pais e filhos de sangue podem se tornar irmãos, primos, tios e
sobrinhos no santo um do outro. Ainda que a maior ocorrência seja a de parentes de
sangue e amigos tornarem-se irmãos no santo.

26 A afirmação de Bastide (1959) vai de encontro com o que pude observar. Ainda que não haja nomes

específicos, como equédi ou ogãn para os cargos, existem as mães pequenas, os tamboreiros, e o tempo na
religião que complica o esquema de relação pai/filho do autor, que vê na Bahia o melhor dos modelos de
presença de traços africanos: “Enquanto no norte a hierarquia sacerdotal é relativamente rica, aqui [Porto
Alegre], ao contrário, existe apenas a oposição entre, de um lado, os pais e as mães, e, do outro, os filhos e
filhas. Por exemplo, não se encontra sacrificador especializado, até a própria Mãe pode matar os animais. Não
existem protetores da seita ou ogãns, nem equédi encarregados de ajudar os filhos e as filhas durante a dança.
Sem dúvida, há auxiliares femininas que, no curso das cerimônias, enxugam com um pano branco os rostos
suados dos dançarinos. Ao que parece ela não constituem um corpo especializado; dá-se lhes o nome de yaba
(que parece designar todas as candidatas à iniciação ou passíveis de entrar na seita)” (: 244). Resta, ainda,
concordar com a afirmação de que não há cargo de sacrificador, sendo este ritual realizado sempre pelo pai
ou mãe, padrinho ou madrinha e os mais antigos no santo presentes.

29
Outro tabu deve ser observado, esse sem possíveis relativizações. O pai/mãe
de sangue deve, obrigatoriamente, ser diferente do pai/mãe de santo; ninguém pode ser
duas vezes filho/a ou pai/mãe de alguém. A partir dessa regra, sentenças como “eu não
podia ser mãe duas vezes da Neli” (Dona Rosa)27 revela a perspectiva na qual “aprontar um
filho é como dar à luz”. E não se dá a luz duas vezes a uma mesma pessoa. Além disso,
pode-se dizer que os filhos de santo, feitos com sangue animal, ligam-se a seus pais por um
laço que é de sangue também. O que reforça a ideia, bastante difundida nas casas que
conheci, de que o sangue é o mais importante dos vínculos. Para ser filho de santo, é
preciso se ligar a um pai que cortará o animal do orixá de cabeça, derramando o sangue
sobre a cabeça do filho, assentamento e obrigações, unindo-os para sempre.

No batuque de Oyó, os filhos de sangue de adeptos provavelmente serão de


religião, como se diz “nascer na religião”. As crianças, desde tenra idade e mesmo na
barriga das mães, já participam das mesas de Ibêjis28, das festas e, por vezes, de cortes. Ser
criado na religião não garante a futura iniciação, mas, como dizem, a proximidade com o
orixá vai chamando-o para perto da cabeça e fazendo com que comece a ter fome.

Desde então, estes iniciam sua relação com seu orixá de cabeça e com seu
futuro pai ou mãe de santo, relação que pode, é claro, ser quebrada ou transformada
durante o longo percurso que leva até o apronte. Existem, ainda, os casos de mulheres
grávidas que vão para o chão; mulheres que parem seus filhos durante esse período; e as
lactantes, que cuidam e amamentam seus filhos com a ajuda dos parentes de santo e de
sangue durante o período de reclusão. Dizem que essas crianças já fizeram o chão.

1.2 De Sangue

Desde pequena, Maria Neli, mais conhecida como Neli, ou Neli da Oxum,
tinha como missão diária de ir até um canteiro de flores colocar uma colher de mel sobre
uma pedra amarelada. Aos nove anos de idade, fez seu primeiro borido, pelas mãos de Mãe
Bidú, esposa de Pai Januário, que era pai de santo de sua mãe de ventre, Rosinha do Bará (a
Dona Rosa). Só então descobriu que aquela pedra era a sua mãe (Oxum). Morando todos

27Ver Lima (2003) e a proibição de “colocar a mão na cabeça de filha de sangue” (: 144).
28 A mesa de Ibêjis ocorre no segundo batuque (toda obrigação de quatro-pés compreende duas festas
grandes em sábados consecutivos), antes da festa propriamente dita, por volta das 18 horas. Nela, são
homenageadas as deidades gêmeas Oxum e Xangô, os Ibêjis, que são cultuados juntos. Crianças e mulheres
grávidas participam da mesa, na qual são servidos doces e a carne de pombos que foram sacrificados no dia
anterior para os Ibêjis.

30
juntos, Mãe Bidú era sua avó de coração (o que estou chamando de família afetiva) e, mais
tarde, sua mãe de santo. Antes de Neli se aprontar, a Vó Bidú faleceu, o que causou muitas
turbulências na vida sua vida e na de sua mãe de sangue. Dona Rosa pediu a seu irmão
(afetivo)29 de santo, Odacir, que tomasse conta de Neli. Além dela própria, era ele o único
parente de santo a quem confiaria sua filha, mas como não podia ser mãe duas vezes,
conforme a prescrição, Odacir teve de cuidar de Neli e de sua Oxum – já assentada por
ocasião do borido.

Hoje, Neli é pronta pelas mãos de Odacir, mas nunca deixa de prestar
homenagens a Iemanjá, a orixá de Mãe Bidú. Filhos de santo, Neli, ainda não aprontou
nenhum, mas já possui nove. O ocutá de Oxum (ou a própria Oxum) teve três filhos, três
pedras pequeninas. Neli teve Drika, Willian e Tomas, seus três filhos de sangue (de ventre
ou de barriga são outros termos para nomear tal relação). Dizem que as mães (orixás em
sua forma de sento) têm o mesmo número de filhos que sua filha humana terá. A Obá de
Dona Rosa teve um filhinho, conta-se que foi Obá quem deu Neli para ela.

Drika com 13 e Willian com 16 anos já sabem desde muito cedo que são filhos
de Iansã com Xangô e de Ogum com Oxum, respectivamente. O pequeno Tomas, em seus
quase dois anos de vida, ainda não tem orixá certo. Dizem, brincando, que é do Legba ou
do Lôde, por ser “um terror”; outros dizem que é filho de orixá mulher, pois desde
pequeninho bate cabeça de lado – como os filhos de orixá feminino. Neli e seus filhos de
sangue, desde tenra idade, são criados na religião. Isso não é exceção, pois contempla a
larga maioria dos adeptos do Oyó.

A família de sangue, assim como a de santo, transmite tanto coisas boas, como
ruins. Dona Rosa, alvo de feitiçaria, nada sofrera. Mas, seus netos de sangue Drika e
William, estiveram diante da morte quando quase morreram afogados na praia da Solidão
(Mostardas/RS) no verão de 2012. Em Porto Alegre, tiveram de passar longo período de
recuperação no Hospital Nossa Senhora da Conceição. De acordo com Neli, o que
acontecera foi culpa de “uma velha” lá da Casca, que “anda fazendo feitiço” para sua mãe

29 Trato Odacir e Dona Rosa como irmãos ao longo do trabalho, pois é essa a nomenclatura que utilizam para

se referir um ao outro. Essa relação de parentesco pode ser definida como afetiva. Odacir conheceu Dona
Rosa quando ainda era menino. Na escola onde estudava, Dona Rosa era auxiliar de serviços gerais. Ao ver
que o menino passava fome, passou a dividir sua marmita com ele, e ali uma grande amizade iniciou-se. Ela
levou seu amigo para casa onde era filha de santo. Seu pai era Januário do Oxalá, que era casado com sua
prima no santo Mãe Bidú da Iemanjá, que viria ser a mãe de Odacir. Por uma série de motivos, Odacir foi ser
aprontado pelas mãos de Neuza do Legba (irmã de santo de Pai Januário e prima de santo de Mãe Bidú).
Mais tarde, ele voltou para casa de Mãe Bidú, mas sem nunca deixar de ser filho de Mãe Neuza e do Exu
Lonã (orixá de cabeça da mãe de santo). Assim, o grau de parentesco no santo entre Odacir e Dona Rosa é de
primos. Porém, além da amizade, Dona Rosa considerava a esposa de seu pai de santo como sua mãe de
santo. Assim, afetivamente, são irmãos de santo.

31
de sangue. Odacir confirmou no jogo. Assim, além dos cuidados médicos, uma série de
feitiços, além de presentes para Iemanjá – que devolveu as crianças –, foram realizados.

Willian nunca quis saber de religião; já Drika sempre gostou de participar dos
batuques, fazer novos axós e “dançar na roda”. É claro aos olhos dos sábios da religião que
se trata de uma futura grande mãe de santo. Dizem que todo mundo tem santo, e que a
proximidade excessiva com ele é perigosa, pois uma boa distância deve ser mantida com o
orixá (ver, também, Rabelo & Brito 2011: 192-4). Por isso, sempre cuidaram de Drika para
que Iansã soubesse que ainda era cedo para pedir para comer na cabeça de sua filha. Os
acontecimentos na praia resultaram em uma mudança drástica nesse cuidado, quando
inversamente não era mais apropriado manter distância, mas sim aproximar os orixás.
Assim, Willian e Drika fizeram um aribibó, e Tomas um banho de Ebis.

Em uma quinta-feira de abril, as crianças foram para o chão. Neli já tinha, no


dia anterior, preparado o mieró onde ficaram banhadas as guias e as quartinhas de seus
filhos. A família de sangue, que também é família de santo, estava presente. Alguns irmãos
de santo vieram para ajudar também. Primeiro foi a vez de Willian, por ser filho de Ogum,
seguido de Drika (filha de Iansã), terminando-se com Tomas (pois o banho de Ebis é feito
para Oxalá). Odacir iniciou com um discurso, no qual dizia:

Quem deveria estar fazendo essa obrigação era a mana Rosa, mas por causa do
luto [pela recente morte de sua irmã de sangue], ela não estava fazendo, mas ela
está fazendo comigo. Vocês [Willian e Drika] tem que obedecer em primeiro lugar
a vó de vocês [Dona Rosa], em segundo lugar eu. [...] Esse serviço é só para
aproximar os pais de vocês [os orixás].

O discurso emocionado seguiu com lembranças do passado comum. Disse que


eles [as crianças] não tinham obrigação como os outros filhos, eles tinham obrigação de se
formar. Falou de Neli, a qual viu dentro da barriga de Dona Rosa e que, agora, tudo se
repetia. Porém, a obrigação maior deles era a de trazer um diploma e o botar na mão da
avó e da mãe.

Então, começaram com o William, e assim que um dos ritos terminava, foi a
vez de Drika passar pelo mesmo ritual. Primeiramente, deram os banhos; depois, passaram
nos corpos das crianças um feitiço de Xapanã, para limpeza, que logo teve de ser
despachado. O corte, então, iniciou. Dona Rosa, por motivo de luto, apenas segurou as
aves, não as cortando. Um responsável por limpar o axorô e a água do chão e outro por
tirar as penas que se unem às obrigações (guias e quartinha) foram escolhidos. Ao final,
após terem as trunfas amarradas em suas cabeças, abraçados em Dona Rosa e Odacir,

32
agora com a primeira obrigação na cabeça, William e Drika foram apresentados à rua, ao
quarto de santo e aos presentes. Após isso, ficaram sentados em esteiras enquanto o banho
de Tomas era realizado. Ao contrário do que geralmente ocorre, Tomas não se deitou, não
quis dormir, ficou andando e brincando pela casa, com sua trunfa sempre caindo, até que
se resolveu tirar o pano de sua cabeça.

No dia seguinte, as obrigações e as crianças seriam levantadas do chão – a


levantação. Porém, Odacir sentiu algo e disse: “não, não vou levantar”. Jogou os búzios ali
no quarto de santo, na frente de todo mundo, e viu que a Iansã de Drika não queria
levantar. “Se o Ogum quisesse, que levantasse”. Então, ele aliviou a cabeça das crianças,
desamarrando a trunfa, lavando a cabeça, as mãos e os pés, com o auxílio de Dona Rosa.
Disse que eles poderiam ir para casa, mas deveriam se portar como se ainda estivessem no
chão: sem assistir televisão, sem sair pra rua, sem comer de faca e garfo, nem dormir em
cama ou sentar em sofá ou cadeira, mexer com água ou fogo. Somente domingo, após
meio-dia, poderiam voltar à vida normal. Por companheirismo, Ogum não se levantaria
sozinho para não deixar Iansã.

Com o auxílio de sua irmã de Santo, Dona Rosa, Odacir fez a obrigação. A avó
de sangue passou a ser madrinha de santo, mas com o status – definido pelo discurso de
Odacir – de mãe de santo. Ele, o avô afetivo, passou a ser pai de santo, dando, pelo
respeito à senioridade, autoridade primeira a sua irmã de santo. Sangue, santo e afeto se
mesclam, aqui, ao compadrio. Contudo, Dona Rosa e Odacir continuam sendo chamados
de vó e de vô pelas crianças.

O parentesco no santo segue lógica semelhante ao parentesco por


consanguinidade, utilizando-se da mesma terminologia acrescida do adjetivo “de santo”.
Filhos(as) da mesma mãe ou pai são irmãos. Os filhos(as) de irmãos são primos e
sobrinhos do irmão ou irmã de seu pai ou mãe de santo. Existem também os netos,
bisnetos, tataranetos no santo. Há também os primos ou parentes distantes. Quando
parentes de qualquer grau se casam, mantém seu grau de parentesco no santo.

Anjos (1993) chama atenção para quando uma relação de cliente transforma-se
em relação familial:

É certo que a relação de clientelismo tende com frequência a se corporificar na


medida em que, os clientes vão se tornando cada vez mais assíduos
frequentadores da casa. No limite, o cliente se transforma num “filho da casa”,
acaba fazendo parte desse corpo, onde as “obrigações” estão definidas e o
indivíduo é inserido em relações de parentesco fictício entre “irmãos de santo”.
Porém, a aliança diádica entre o filho de santo e o seu pai continua sendo mantida
por uma troca de bens simbólicos (religiosos) e por bens materiais. A passagem

33
do contrato implícito ao contrato explícito e institucionalizado pelos rituais não
garante por si só a abertura para uma relação coorporativa. Os papéis do pai e do
filho de santo não estão rigidamente definidos, o caráter implícito de um leque de
trocas se mantém (Anjos 1993: 208-9).

O que não é tão diferente do que pude observar, ainda que o parentesco no
santo institua relações mais rígidas do que o estabelecido na linha cruzada, como nota o
autor. Anjos (1993), ainda, chama atenção para como uma relação com filho de santo pode
se tornar mais forte do que a com filhos carnais. As relações entre irmãos de santo são mais
fracas, não formam “um corpo solidamente estabelecido por regras coletivas” (: 209).
Assim como na descrição de Lima (2003), é a relação pai/filho a mais forte. No Oyó, as
relações conturbadas entre diversos irmãos poderiam levar a um pensamento que
concordasse com os autores. Contudo, nos rituais, o aparentamento no santo deve
prevalecer e, sob os olhos do pai de santo, desavenças e conflitos de interesses não devem
transparecer. Essa questão se relaciona a importância dada à criação das crianças na
religião, fazendo com que laços de sangue e de santo fortaleçam-se e que se perpetue uma
linhagem.

Ainda, além da sobreposição entre parentesco de santo e de sangue,


predominante no Oyó – que faz com que pessoas sejam duplamente parentes –, por
afetividade pessoas tornam-se avós, tios. E, além disso, o compadrio fora do santo é
impulsionado pelas relações no santo, na qual casais (ou mães solteiras) estabelecem ou
fortalecem relações ao dar um filho para um casal ou pessoa solteira apadrinhar. O que, é
importante ressaltar, difere do compadrio no santo, que não proverá ou fortalecerá uma
relação entre casais, mas sim, uma relação entre o padrinho, o afilhado e seu pai ou mãe de
santo, e os orixás dos três.

Para finalizar a discussão sobre família e parentesco, é necessário ressaltar o


caráter mediador das pessoas e de seus orixás e vice-versa. Ainda que esse não seja o foco
deste trabalho, é importante para a discussão deste capítulo. Tomo observações de Anjos
(1993) que descreve as relações entre o filho e seu orixá como sendo mediadas pelo pai de
santo (: 207) e as de Rabelo (2008) em seu texto em que o santo aparece como mediador
das relações, para, concordando com eles, apresentar etnograficamente duas situações em
que essas mediações ficaram em evidência.

O quarto de santo e o acesso às obrigações e aos assentamentos é de


responsabilidade do pai de santo dono da casa; assim, quem decidirá o modo e a velocidade
com que se dará a relação entre o filho e seu orixá é o pai de santo. Além disso, é o pai de

34
santo quem conversa com o orixá quando ele está no mundo, ensinando-o a dançar e
dando ordens, recados, para que ele deixe a mensagem na cabeça de seu filho. Por outro
lado, os orixás desempenham papel importante na mediação de toda sorte de relações,
inclusive a de parentesco. Odacir, falando certa vez de uma filha que saiu da casa, disse que,
no tempo antigo, os orixás chegavam no mundo para pedir desculpas ao pai e continuar na
casa, o que hoje parece estar mudando. Pude presenciar, também, uma festa em que um
orixá disse para seu filho, também orixá, que “o seu” (modo como os orixás chamam seu
cavalo) podia ter mandado ele embora, mas ele [orixá] não botava filhos fora. De modo
que assim como a instauração de uma nova relação de parentesco é duplamente
promovida, tanto pelo pai ou mãe como pelos orixás (o orixá mostra no jogo quem ele
quer como filho, o pai de santo é quem joga), o final de uma relação passará pela mediação
direta do orixá e do pai de santo, sendo para dar o final decisivo, ou para aplicar “multas”
(categoria nativa) que o filho humano não teria coragem, ou para barrar alguma atitude do
filho de santo, que, ocupado pelo seu orixá, mudará de opinião. Poderá, ainda, defender seu
filho contra o pai de santo, rompendo de vez o vínculo.

Resta tecer um breve comentário sobre como se dá o parentesco com o santo:


quando se é pai, filho, afilhado, padrinho, sobrinho ou tio de um orixá, ou quando um
orixá (de outra pessoa) é pai, filho, padrinho, afilhado, tio ou sobrinho de uma pessoa.
Além disso, há o parentesco entre os próprios orixás, como Iemanjá, que é mãe de Odé,
ou, ainda, no caso do adjuntó (ou família dos orixás, semelhante ao carrego de santo no
candomblé, no batuque também se diz que se carrega determinado número de orixás)
quando o dono da cabeça se casa com um dono do corpo, sempre de sexo opostos e a eles
se juntam Bará e por vezes uma passagem (quando o orixá de cabeça ou do corpo tem
relação forte com outro orixá, que precisará ser assentado, como no caso das filhas de
Oxum, que tendo como corpo Bará ou Ogum, terão Xangô de passagem, pois esse é seu
par ideal) e/ou uma escravidão (quando dois orixás guerrearam pela cabeça de um filho, o
orixá que fará do filho do vencedor seu escravo). Passagem e escravidão são relações
familiais no santo que nem todos possuem. Além disso, outros fatores podem tornar a
trama mais complexa: questões de saúde, para exemplificar, podem exigir que um orixá que
não faça parte do adjuntó, como Ossanha (o médico da nação), entre para a família.
Cabeça, corpo e Bará, esses sim são obrigatórios para todos afiliados da nação.

Parentesco de sangue (ou de ventre), afinidade e sua relação com o parentesco no santo:
Vó Rola do Oxalá - Mãe de ventre de Erondina da Iemanjá Omitolá
35
Olobomi: - Avó de ventre de Mãe Neuza do Bará Lanã Deí
- Mãe de ventre de Valdeci do Xangô (Tia Neneca)
- Irmã de ventre de Mãe Ricarda do Oxalá
- Avó de ventre de Odilon Jorge do Ogum (filho de Valdeci do
Mãe Matilde do
Xangô)
ogum Bi:
- Avó de ventre de Mana do Oxalá (filha de ventre de Valdeci do
Xangô e filha de santo de Lourdes do Ogum)
- Sogra de Pai Dico de Iemanjá
- Esposa de Pai Januário do Oxalá
Mãe Bidú da Iemanjá:
- “Mãe de Criação” de Maria Neli da Oxum Pandá
- Foi companheiro de Denise do Ogum Tuele (sua neta de santo e
filha de santo de Luiza Helena do Ogum)
Pai Paulinho do Bará: - Pai de ventre (com Denise do ogum) de Ituatã do Ossanha (neto
de santo)
- Pai de criação e de santo de Roberta da Iansã
- Mãe de ventre de Ituatã do Ossanha
Mãe Denise do
- Mãe de ventre de Roberta da Iansã
Ogum Tuele:
- Irmã de ventre de Tania do Xangô
Pai Donga da - Casado com Mãe Neide do Aganjú.
Iemanjá Tubuá:
- Mãe de ventre de Maria Neli da Oxum Pandá
- Avó de ventre de Drika da Iansã
Mãe Rosinha do Bará
- Avó de ventre de William do Ogum
Lanã:
- Avó de ventre de Thomas
- Irmã de ventre de Tia Lourdes do Ogum

1.3 Compadrio no santo

Um complexo sistema de compadrio também faz parte do parentesco no


santo, a fim de cumprir as prescrições religiosas. É com duas mãos, a do pai ou mãe e a do
padrinho ou madrinha que se faz quase tudo na religião. Algumas pessoas e seus orixás não
são apadrinhados, isso sempre se dará por escolha do orixá de cabeça, que indicará sua
vontade no jogo de búzios. Ao longo da vida religiosa, acumula-se, por vezes, mais de um
padrinho ou madrinha, desde aquele que auxilia no sanapismo, até o que dará os axés de
búzios e de faca. Por vezes, um mesmo padrinho colocará sua mão em todas essas etapas.
Independentemente disso, a madrinha ou padrinho de apronte será sempre a segunda mãe
ou pai. São esses quem cumprem o papel de pai ou mãe quando os mesmos faltam, por
motivo de morte ou de ruptura. Em situações em que um filho ou filha sai da casa, caberá
ao padrinho cuidá-lo – principalmente se essa pessoa “não se governar”. Esses momentos
impõem tensões difíceis de lidar. Como, por exemplo, continuar madrinha do filho de um
irmão de santo com quem se mantém fortes laços e que sai da casa do último. Haverá
36
“jogo de cintura”, ou o abandono do afilhado, não se tomando suas dores em casos de
brigas. A regra diz que os mais velhos sempre terão razão. Por isso, aqui, mais do que
mediação, estamos diante de um rígido sistema calcado na hierarquia no santo e no
princípio de senioridade.

Como já pincelado na sessão anterior, o compadrio no santo trata-se de uma


relação que envolve três pessoas (pai de santo, filho e padrinho) e seus orixás. Não se
comporta como o compadrio clássico que formará, além de afilhado e padrinho, os
compadres e as comadres, não sendo utilizada essa terminologia na relação entre pai e
padrinho; a relação prévia no santo é a que se mantém e a que nominará o laço. O
compadrio desempenha papel fundamental na manutenção de relações com os antigos
(muitas vezes escolhidos por seu prestígio e por vontade dos orixás) e para favorecer
aquele que tiver um número maior de afilhados, o que fora as relações emocionais
envolvidos fará o padrinho ou madrinha ascender na religião. Ademais, os padrinhos são
importantes para, nos casos de desavenças, mediarem as relações entre pais e filhos, ou
mesmo tomar o lugar de segundo pai ou mãe, fazendo com que o filho continue fazendo
parte da linhagem, ou, no limite, não ficando do lado dos afilhados e rompendo os vínculos
religiosos. Haverá, assim, uma segmentação com esse corte – ainda que Mãe Emília siga
como ancestral mor.

Podem-se destacar três acontecimentos principais que sucedem uma ruptura


entre pai e filho de santo: i) adoção pelo padrinho ou madrinha, com manutenção de alguns
laços; ii) adoção pelo padrinho ou madrinha, com quebra quase completa dos vínculos com
os antigos; iii) corte completo dos vínculos, que faz com que essa pessoa não seja mais
considerada de Oyó puro pelos que permanecem na casa. Em todos os casos, as relações
de parentesco no sangue terão forte influência, podendo, inclusive, sobrepor-se às
hierarquias religiosas. Ainda, a ruptura com o pai e padrinho não ocasiona necessariamente
o fim dos vínculos com os irmãos e titios, que podem seguir frequentando a casa daquele
que saiu de seu templo de origem.

1.4 Os Antigos

De acordo com Pai Odacir, o lado de Oyó é uma das mais antigas e, ao mesmo
tempo, menores nações do Batuque. Conta que o pequeno número de casas deve-se ao
fato de terem mantido a tradição de não frequentar batuques dos outros lados – à exceção

37
dos de amigos, mas em companhia de pessoas mais antigas no santo. Pais e mães de santo
proíbem seus filhos de participarem de festas ou outros rituais em qualquer casa que não
seja da família. Já as festas dos parentes de santo são obrigatórias, sobretudo quando nas
casas dos titios e titias mais antigos – o coletivo de seniores da nação. São essas figuras que
asseguram a tão primada pureza que evocam constantemente: “somos de Oyó puro”; “são
os titios [os mais antigos] que fazem com que a coisa não se perca”.

Podemos notar a importância dos antigos, logo ao entrarmos na casa30 de


Odacir, na qual nos deparamos com um salão logo à esquerda, um corredor à frente e a sala
de búzios31 do lado direito. É no salão que as festas ocorrem. Já nele, e no corredor, em
prateleiras no alto das paredes, orixás em imagens “católicas” e suas ferramentas estão por
todos os cantos das paredes, exceto Iemanjá, que fica na parede esquerda do salão, de
Xangô, que fica em uma parede que dá de frente para a porta de entrada, e de Obá, que fica
na parede do corredor (ver planta baixa no Capítulo III).

Seguindo-se em frente pelo salão, logo após um arco – no qual cortinas com as
cores do orixá homenageado são colocadas –, encontramos o quarto de santo, parte mais
importante de uma casa de religião. É o local onde moram todos os orixás da casa –
exceto Lôde (Bará de Rua), que é assentado em uma casinha separada, geralmente
vermelha, no quintal em frente à casa principal. Após o arco, na parede esquerda, do alto
até aproximadamente 1 metro do chão, estão dispostas em fotografias emolduradas, por
ordem de tempo e importância no santo, babalaus e babalaoas.

No topo, a foto de Mãe Emília, em retrato preto e branco esmaecido pelo


tempo. Abaixo, Tio Paulinho do Aganjú, Mãe Bidú e Pai Januário, Mãe Neuza do Bará
Lanã e Tia Erondina da Iemanjá, em quatro molduras diferentes. Abaixo, Tia Neneca do

30 Bastide (1959) constata fraqueza econômica no batuque de Porto Alegre, principalmente pelo fato de o

espaço destinado ao culto aos orixás (as casas) ser de pequeno porte, não havendo casas separadas na rua para
Omulu, Ossang e Oxossi (: 241), salvo Bará. Aqui não podemos saber se, de fato, é a pobreza ou outras
maneiras de cultuar que estão em jogo. No mesmo texto, por exemplo, o autor se espanta com o número de
casas e cabeças consagradas a Bará, o que demonstra a importância que esse orixá tem para o batuque
gaúcho, não como mensageiro ou escravo de outros orixás, mas como dono de casas e cabeças, como dizem:
“cabeça grande”. “Em todas as casas visitadas, o pegi [quarto de santo] é contíguo à sala de festas e,
curiosamente, a porta que lhe dá acesso é aberta no curso das cerimônias, de modo que a participação do
divino e do humano possa fazer-se facilmente” (Ibidem: 242-3). As casas que conheci apresentam
características semelhantes, sendo, contudo, possível fechar o quarto de santo com uma cortina, ou porta de
tela. Importa a ideia que o autor chama atenção para a facilidade com que o princípio de participação entre os
filhos terrenos e seus orixás se dá, como é o caso de se ir diretamente ao quarto de santo bater cabeça quando
se chega a uma casa religiosa, para somente então poder cumprimentar outras pessoas ou orixás.
31 Na casa de Odacir, trata-se de uma pequena sala com uma estante, armários aéreos, prateleiras com

imagens e uma mesa com duas cadeiras em lados opostos, na qual, sobre uma toalha especial, estão dispostas
as guias do babalaô, formando um círculo, dentro do qual estão os búzios, moedas e uma pedra de Bará, além
da sineta para a chamar os orixás.

38
Xangô e uma fotografia com Odacir e Odilon do Ogum. Essa é uma fotografia de apronte
que segue o padrão: pai ou padrinho em pé com os filhos ou afilhados ajoelhados em sua
frente. Na parte inferior, fotografias emolduradas com os primeiros filhos que Odacir
aprontou. No salão, sobre uma estante, porta-retratos com filhos de santo de Odacir, fotos
com Tia Neneca e a avó de sangue dele. Depois de passar pelas fotos dos mais velhos, o
quarto de santo. Nele, orixás em imagens tridimensionais “católicas”, em bonecas (Iemanjá,
Oxum, Iansã e Obá) vestidas como mães de santo, com suas cores respectivas, um boneco
(Bará) vestido de vermelho e uma Iansã na estátua de Joana d’Arc. Atrás deles, prateleiras
que vão do chão até o teto, cobertas por cortinas, onde ficam guardadas as obrigações
(quartinhas, assentamentos, ferramentas, vultos, imagens, etc.).

Em outras casas da nação, pode-se observar semelhante estilo de se organizar


o espaço: quadros espalhados pelas salas ou quartos de santo com fotos dos antigos. Além
disso, álbuns de fotografia circulam com grande frequência, para que sejam lembradas as
festas, pessoas e orixás do “tempo antigo”. Certificados da AFROBRAS dos pais ou mães
de santo também são guardados como relíquias, muitas vezes emoldurados para que
possam ser expostos. Móveis, louças, castiçais, alguidares, imagens e diversos utensílios,
herdados, ganhados ou comprados, também proporcionam lembranças, orgulho e axé.
Como diz Odacir, “elas [imagens] já comem há tanto tempo”, em referência à quantidade
de anos e obrigações que tais objetos já receberam desde os tempos em que moravam
noutras casas.

Quando Odacir solicita a algum filho que traga alguma louça antiga, por
exemplo, uma história sobre o objeto que inclui a de quem ele pertencera é contada: “Isso
era de uma titia da Obá32”. Logo ficamos sabendo como eram os batuques na casa dela,
como era sua orixá. O mesmo acontece com os álbuns e com os outros objetos. Aquilo que
pode ficar “no nosso mundo” torna-se relíquia33. A cada foto, prato, taça etc., histórias da
religião e histórias dos antigos são contadas. Muitas delas vividas por aquele que conta,
outras ouvidas de alguém que viveu, “que viu com os próprios olhos” e as passa para que
aquele que não viveu possa as contar no futuro. São histórias, e não estórias, como Odacir
enfatiza, o que ele viu ou ouviu de quem viu é a história do Oyó. E assim seus filhos

32 Objetos dos que já morreram são heranças, dadas muitas vezes em vida por aqueles; outras vezes, ficam
com a família de sangue que se desfaz dos mesmos, oferecendo-os aos parentes de religião como presente ou
como mercadoria.
33 O destino final desses objetos nos fala não somente da importância da transmissão daquilo que não precisa

ser destruído, mas também de seu valor simbólico e familial, dando a quem os pertence não apenas objetos
que não são mais fabricados, mas histórias e, principalmente, axé.

39
também contam. Nessa mesma classificação do que é história está o que a bibliografia
chama de mitos dos orixás.

Durante meu trabalho de campo, foi possível observar a importância de se


tomar como história o que aconteceu com os orixás, pois é isso, aliado ao que já aconteceu
com os antigos, que é a verdade da vida. Pois “a história já foi contada desde muito antes
de pisarmos na terra, o problema é que os brancos colocaram vírgulas nela”, adverte
Odacir do Ogum.

Odacir fala de uma história que já aconteceu e que nós dividimos em passado,
presente e futuro. Noções de tempo que, assim como a de história e a de mito, como
usualmente chamamos os diferentes tempos, não dão conta do universo dos batuqueiros e
suas divindades. Na religião africana, como diz Odacir, existe apenas tempo e movimento,
ou o movimento do tempo, o destino. Conceitos que se traduzem na deidade Oludumaré
(Dono do Movimento do Destino) e Oroko (Tempo). É por isso, dizem, que um pai ou
mãe de santo que promete resultados de um feitiço em número de dias – do tipo “trago seu
amor em três dias” – revela o desconhecimento da religião. Como vários pais e mães de
santo me ensinaram, “o tempo dos orixás é outro”, é a partir dessa temporalidade outra
que história tem sentido aqui. Minha pele branca e meu pertencimento a uma universidade
por diversas vezes foram assunto de conversas. As dificuldades pelas quais os negros
passaram eram lembradas para se colocar uma diferença que, penso eu, mais do que criava
distâncias, expressava o racismo cotidiano pelo qual meus amigos passavam. Sobre a
universidade, Odacir dizia que não eram necessários livros ou estar numa faculdade, a vida
lhe ensinou o que eu nunca aprenderia. Menos do que um desdém pela universidade e o
conhecimento produzido nela, penso que estava em jogo fazer valer seu saber para além da
religião. De certa forma, talvez Odacir estivesse propondo diretamente uma
desestabilização do conhecimento acadêmico a partir de um saber ancestral. O que, sabe-
se, é uma das razões da ciência antropológica.

Odacir disse também que os brancos nem sempre dividiram tudo, o problema
foi quando deixaram de acreditar. A imagem do livro “As Brumas de Avalon”, de Marion
Zimmer Bradley, figura entre suas leituras preferidas, sobretudo a passagem na qual aqueles
que acreditam chegam a Avalon, ao passo que os que não acreditam enxergam o Mosteiro,
nunca chegando à terra mágica. É ao descer do barco e olhar para as brumas com os
diferentes olhares que uma cisão (vírgula) se realiza no mundo dos brancos. Cisão que
insiste em acabar com uma história na qual se chega a Orum após a morte e os deuses
chegam na terra para dançar; assim como se chega em Avalon no romance.
40
Contar as histórias dos antigos e dos orixás é, portanto, uma das formas rituais
de aprendizado não apenas religioso34 – que se complementa com outros rituais –, mas,
principalmente, sobre o mundo. Por isso que não apenas divindades e pessoas já existem
antes de serem feitas, mas toda e qualquer situação, a própria história do mundo. A
história, nesse sentido, trata dos orixás e dos antigos, é formada por essas duas classes de
existentes que devem ser cultuadas, cada qual a seu modo. Orixás são vivos, a vida em sua
forma mais expressiva, pois nunca morrem, apenas deixam de ocupar objetos rituais e os
corpos de seus filhos quando esses morrem. Já os antigos, dividem-se entre os vivos e os
mortos. Diferentes formas de cultuá-los acompanham suas duas classificações. Suas
histórias e cultos contam a história dos humanos e influem no movimento de seus destinos.

Entre aqueles titios e titias vivos, o culto não está apenas em imagens
fotográficas, ou mesmo em telas nas quais estão representados, mas no respeito a um
princípio de senioridade, de hierarquia no santo35 e de validação das práticas que estrutura
posições dentro do culto. A participação dos mais velhos no santo – geralmente em idade
cronológica também – nos cortes, festas e erus confere legitimidade ao ritual. Dona Eloci
da Oxum vem do Jêje, lado no qual se aprontou, mas atualmente acompanha o calendário
de festas do Oyó36, pois sua filha de sangue é pronta por esse lado. Conta que:

Só no Oyó os mais velhos são respeitados desse jeito. Não importa a casa que a gente vai, o
pai de santo faz os filhos baterem cabeça pra gente. No Tio Paulinho, lá na Cleusa...
Porque eu sou mais velha né. Tem muita casa que se diz de Oyó por aí, mas não respeita
isso. A gente vai nos batuques e os mais novos passam como se a gente não fosse ninguém
(Dona Eloci da Oxum).

Quando se prepara uma festa, entre as despesas previstas, inclui-se convidar


pessoalmente esses pais e mães de santo, além de se cuidar do seu transporte e
acomodações. Quando há necessidade de dormirem na casa de religião de quem oferece a

34 Para o aprendizado em religiões afro-brasileiras, ver Halloy (2005: 203-217), para o qual, no Xangô do
Recife, a ação ritual engendra dimensões afetivas, sensitivas e intelectuais (: 203). Os iniciados aprendem
passando por rituais, principalmente o da iniciação, e também assistindo repetidas vezes os rituais do culto,
no qual saberes são mobilizados e transmitidos sobre um fundo de referências ontológicas e mitológicas (:
209-210). Rabelo & Brito (2011), estudando o candomblé angola na Bahia, descreve o aprendizado a partir da
noção de skills de Tim Ingold. Critica a noção de transmissão, pois “um praticante experiente não transmite
ao noviço ou principiante um corpo de conhecimentos; seu papel é, antes, o de prover os contextos em que
ele possa desenvolver sua proficiência” (: 189). O aprendizado é, portanto, o treino da atenção (: 189). Além
disso, enfatiza o aprendizado corporal, através da possessão, em relação à memória, que pode ser falha (: 190-
191).
35 Ver os trabalhos de Bastide (1985; 1978); Lima (2003); e Rabelo & Brito (2011) sobre a senioridade e a

hierarquia em religiões afro-brasileiras.


36 As festas são feitas de modo que não haja colisão, os antigos da nação e os pais de santo é que dão a data

em que se realizaram as festas nas casas novas.

41
festa, as melhores acomodações lhes devem ser oferecidas; além disso, cadeiras especiais
são colocadas no salão para que eles sentem durante as festas; são servidos em bandejas
com a melhor louça da casa e suas bebidas devem ser servidas em taças, nunca em copos.
Ante os mais antigos, a postura corporal deve ser diferenciada: a cabeça baixa e o ato de
bater cabeça em qualquer lugar da casa são sinais de respeito e submissão esperados. Para
aqueles que são prontos há mais tempo, mas não se enquadram na categoria dos antigos, os
adeptos batem cabeça apenas no salão ou no quarto de santo e em determinadas ocasiões
apenas beijam-lhes as mãos. Com os titios é diferente, na rua, na cozinha, onde for, devem-
se prostrar, ainda que muitas vezes os primeiros tentem impedir os mais novos de fazê-lo.
Ser antigo não é algo fácil, são necessários muitos anos de religião, muitas alianças com os
outros antigos para se angariar a respeitabilidade necessária. Além disso, o apadrinhamento
ajuda a obter o respeito de quem não é seu próprio filho de santo.

Para com os antigos mortos, as homenagens passam por lembrar-se dos nomes
de seus orixás de cabeça, quando da chamada37. Quando se faz uma festa grande, devem-se
entregar no mato ou na praia38 presentes para seus orixás. Além disso, uma missa por suas
almas deve ser encomendada antes de qualquer homenagem aos orixás. Aqui, a diferença
entre orixá e pessoa é necessária, pois presentes e homenagens somente os orixás podem
receber. A evocação dos nomes das pessoas serve para se direcionar ao orixá (“que o Oxalá
da Vovó Rola nos ajude” etc.),e às almas (eguns), também, referendadas pela evocação dos
nomes, são entregues a Igreja Católica, para que por elas se reze em missas encomendadas,
devendo essa ser a forma máxima de se cultuarem os eguns dos antigos, transferindo o
culto aos eguns para o ritual católico, não se tratando aqui de sincretismo, mas de uma
situação colocada pelas regras do grupo. Caso contrário, evocaria-se algo perigoso, do qual
o ritual do eru (tema dos próximos capítulos) trata de afastar. Como diz Odacir, “eu tenho
que homenagear o Exu Lonã, não a minha mãe. Não sou louco nem nada pra tá chamando
gente morta”. Afora a transformação de objetos em relíquias, das missas e das histórias,
outra forma de prestar homenagens aos antigos – aqui como antepassados não
singularizados – é, por ocasião dos passeios, a de se ir ao cais do porto jogar flores no Rio
Guaíba, não apenas como homenagem a Oxum e a Iemanjá (mães das águas), mas como
lembrança dos negros que chegaram ao estado, por motivo da escravidão, via porto.

37 Quando, no início dos batuques, ou antes de começar a jogar os búzios, o pai de santo toca a sineta e
chama todos os orixás, saudando-os.
38 Os orixás de praia são Oxalá, Iemanjá e Oxum; também chamados de povo do mel.

42
Saber se localizar na genealogia no santo e cultivar relações amistosas com os
antigos – os vivos diretamente, os mortos através dos orixás – é mister para que o “Oyó
puro”, como o chamam, aconteça. Assim, as cisões causadas por qualquer tipo de conflito
afastam aqueles de menor grau hierárquico desse ideal de religião pura, que cultiva a
obediência e o respeito aos antigos e a manutenção da família de santo.

***

Nesse capítulo busquei, “começando pelo começo”, apresentar a linhagem (ou


raiz) de Mãe Emília da Oyá Ladjá da qual descendem meus amigos interlocutores. A partir
das relações de parentesco e compadrio, o ideal de religião pura (que envolve tabus e
preceitos) na qual os antigos na religião e seus orixás devem ser cultuados de modo especial
foi descrito. Ao tratar do culto aos antigos na religião, a temática da morte e dos eguns foi
introduzida para ser desenvolvida nos próximos capítulos.

43
Cap. 2 Uma troca, um eru e a imortalidade dos orixás

No capítulo anterior, abordei o parentesco e o compadrio entre os batuqueiros


do lado de Oyó. Além disso, discorri sobre a importância dos mais antigos na religião
(fossem vivos ou mortos) e os cultos destinados a eles, introduzindo, desta forma, a
temática da morte nessa nação. Neste capítulo, o tema da morte é tratado através da
descrição de um ritual de troca de vida, um eru (ritual de desligamento) e a quase-morte de
um pai de santo. A ideia é mostrar como, para os batuqueiros de Oyó: i) a morte é
inevitável, mas negociável; ii) a morte concentra nos rituais correlatos fundamento e
aprendizado ritual; e, iii) exceto os orixás (deuses imortais), tudo e todos estão sujeitos à
morte.

2.1 Troca de Vida

Troca é o nome do ritual realizado para se afastar a morte39; ou melhor, trocar


a vida de alguma pessoa pela de uma ave. A troca mais conhecida na literatura
antropológica seja, talvez, a dos Abikus, as “crianças que nascem para morrer”, como
descreve Pierre Verger (1983). No batuque do lado de Oyó também encontramos essas
crianças que chegam às casas de religião com doenças que a medicina não alcança cura: são
os Abikus. Consultam-se os orixás através do jogo de búzios para saber como proceder.
Geralmente, tais crianças são dadas para Oxalá cuidar. Ele é o grande pai, dono da vida.
Obá pode participar da troca, como dona da roda da vida. Pede-se para que ela faça sua
roda girar para que a criança escape da morte. Iemanjá, mãe de todos os orixás e humanos,
pode ser convocada junto com Oxalá. A troca, aqui, consiste em matar um casal de
pombos brancos, aves de Oxalá, sobre a cabeça da criança e sobre uma quartinha, já
preparada com ervas, para que a mesma seja a sua segurança.

Não menos comum é a troca realizada em adultos; porém, nesse tipo de


serviço, a gama de orixás e seus respectivos animais envolvidos é maior. No caso que
descrevo, Carla Pacheco (Filha de Iansã), por motivo de um câncer de mama, teve de fazer
uma troca envolvendo Ossanha e Xapanã – orixás relacionados à saúde e à doença–, Iansã
– a dona de sua cabeça –, e um banho com ebis para Oxalá.

39 Sobre saúde e batuque, ver Oro (1994), saúde e candomblé, ver Reis (2012); Rabelo (1993; 2007 ;2008).

44
No quarto de santo da casa que Odacir possui em São Luiz Gonzaga/RS, Carla
ficou em pé, de costas para a porta e de frente para o altar com imagens, flores e castiçais.
Além destes objetos, havia a casinha vermelha de Bará, com Lôde e Bará em São Pedro e
Santo Antônio, respectivamente. No canto direito de quem entra, fica uma mesa de ferro
branca, com mel, azeite de dendê, velas de diversas cores, ori (banha ovina utilizada em
diversos rituais), colheres, alas e guardanapos de tecido.

Por volta das 23 horas, Ricardinho (filho de santo de Odacir) traz as frentes
(comidas dos orixás)40: milho, feijão e pipoca torrados, além do morim branco e do verde
(cores de Ossanha) para que o ritual iniciasse. Ao lado das comidas, folhas de mamoneiro
(Ricinus communis L.) que vão ser usadas como bandejas para servir aos orixás. Com o início
do ritual, os orixás são saudados. Odacir pede para Ewá (orixá dona do buraco, lugar onde
ficam os mortos) cuidar de Carla, enquanto passa pacotes com as comidas dos orixás no
corpo dela. Além das saudações, rezas são cantadas e pedidos são feitos. O pai de santo
pede para que os orixás tirem a doença do ‘lombo’ dela. Passa os morins sobre o corpo da
filha, também. Depois, as comidas quebradas e os morins rasgados são acomodados em
cima das folhas de mamoneiro e temperados com mel e dendê.

O próximo passo é passar um pedaço de carne em Carla. Depois, a carne é


colocada em cima das outras coisas e cortada com faca, três vezes seguidas, Odacir diz: “eu
corto a doença”. Após isso, os opetés (bolo de batata doce [de Iansã] ou inglesa [de Bará,
Xapanã e Ossanha] em diferentes formatos) são passados no corpo dela e depositados em
cima do bife. Depois, Odacir rasgou o vestido de Carla com o obé (faca). Sobre o vestido,
agora em fiapos, Odacir também colocou dendê e mel.

Odacir cortou um galo nas costas de Carla, enquanto dizia: “isso é para tirar a
doença do ‘lombo’ dela”. O axorô foi passado nas costas, nos seios, no rosto, nos pés e
mãos dela. O galo foi, em seguida, depositado em cima dos fiapos do vestido. A ave teve
seu estômago aberto e foi temperada com dendê. Odacir enrolou o morim, que estava por
baixo de tudo e fez uma trouxa para “despachar” no mato, para levar a doença que estava
ali para bem longe, no mato, que é domínio de Ossanha e Xapanã. Pediu para que eu
pusesse um banquinho no quarto de santo para Carla descansar até a volta deles
[Ricardinho e Odacir]. Enquanto isso, ela não deveria ser chamada pelo nome.

40A cozinha e a culinária são elementos sem os quais as religiões de matriz africanas não existem. Meus
amigos e parentes batuqueiros afirmam que batuque se aprende é na cozinha. Para o caso específico do
batuque gaúcho, ver Corrêa (2005).

45
No dia seguinte pela manhã, fui avisado para fazer o desjejum logo, pois não se
faz nenhum tipo de serviço/feitiço com o estômago vazio. Nesse dia, o serviço era para
Oxalá e envolvia os ebis, o ori e a canjica branca. Sentada numa cadeirinha, Carla ficou
esperando no quarto de santo. Num prato, a canjica branca foi passada sobre a cabeça, nos
seios e nas costas dela. Odacir pedia a Oxalá que tirasse isso [a doença] do seu ‘lombo’,
pois “isso [a doença] não nasceu com ela”. Os ebis foram cortados/quebrados em seus
seios, um a um, sendo passados em seu corpo e tendo as súplicas a Oxalá repetidas. Por
último, o ori foi passado em sua cabeça, seios, mãos, costas e pés. Nesse momento, além de
Oxalá, Iansã foi chamada, pois além de dona da cabeça de Carla, ela é a “menina dos olhos
de Oxalá”. Ao final, Odacir pediu que fosse colocado um travesseiro para Carla ficar mais
confortável na cadeirinha. Depois de algumas horas em que ficou ali por algumas horas, o
pai de santo a liberou para tomar banho – apenas com água, sem o uso de sabonete, xampu
ou outro produto químico.

Podemos depreender a partir da descrição acima, a morte possui caráter


inevitável, mas negociável. Pode ser transferida ritualmente de uma pessoa para um animal,
através da troca. Passo agora à descrição daquilo que deve ser feito quando o inevitável não
pode mais ser negociado: desligar-se o egum, desfazendo seus laços terrenos
proporcionando a feitura de novos vínculos em Orum.

2.2 Do enterro ao eru de Tia Lourdinha

No dia 25 de julho de 2011, Tia Lourdinha faleceu. “Macaca velha” na religião,


como se diz. Acumulava 36 anos de vasilha na época. Já no dia da morte, é preciso
despachar o assentamento e obrigações de Bará41, pois esse orixá é quem encaminha e abre
as portas necessária antes mesmo do enterro. Deve-se, também, tirar da prateleira os outros
orixás dos quais a pessoa tinha sento. Os ocutás devem ir para os fundos da casa, onde
ficam no “tempo”, por sete dias na natureza.

Na data do velório, tive como incumbência buscar Dona Rosa (irmã de sangue
e prima de santo de Tia Lourdinha) no Quilombo da Casca, em Mostardas/RS. Durante o
trajeto, fui recebendo orientações de como proceder durante o velório e o enterro. Os
batuqueiros utilizam suas guias nessas ocasiões mesmo quando as pessoas falecidas não são

41
Corrêa (2006) apresenta a constância desse procedimento; contudo, há divergências e diferenças sobre o
modo de se lidar com cada qualidade de bará (ver especialmente a página 136).

46
da religião, pois sempre há eguns em locais como cemitérios. Nessas ocasiões, nunca se
utiliza a guia do orixá dono da cabeça, geralmente é dada preferência para a do dono do
corpo. Dizem que “a cabeça [orixá]” não deve se expor a essas situações.

Devido a alguns desencontros, quando estávamos a cerca de 1 hora de


distância do cemitério, na companhia de Dona Rosa, recebemos a ligação de Carla Silva (da
Iansã) com a ordem de Odacir para que não fossemos mais ao enterro, pois chegaríamos
atrasados. Além disso, ele não queria que sua irmã de santo sofresse em demasia. Contudo,
Dona Rosa deveria ficar na casa de sua filha, no bairro Stella Maris, em Alvorada/RS,
aguardando a missa de sétimo dia e o eru. Haja vista o ocorrido, o relato sobre o velório e o
enterro no lado de Oyó está baseado no que me foi contado posteriormente e no que
aprendi durante o trajeto de carro.

Além de ir com a guia do orixá de corpo, leva-se cinza – para afastar os eguns
– e um pedaço de morim branco para abanar o que há de ruim e se despedir do morto42. O
caixão deve ser embalado, rezas43 são cantadas. Contam com a simpatia ou antipatia do
padre responsável pela paróquia do cemitério. No enterro de Tia Lourdinha, contaram com
a boa vontade do padre. A descrição foi a de um ritual triste e belo ao mesmo tempo. Após
o sermão do padre, colocaram a música “Jorge de Capadócia”, de Jorge Ben, para
homenagear a filha de Ogum que estava deixando a terra44.

Durante os sete dias que sucedem a morte, o quarto de santo fica sem luz
alguma. Por causa do luto, os serviços/feitiços devem cessar. Apenas após o ritual de
desligamento, aos poucos, as atividades da casa voltam ao seu normal. No oitavo dia,
apenas velas. Aos poucos, pode-se começar a trabalhar, mas com serviços leves45. Após três

42 Para uma descrição alternativa dos velórios entre os batuqueiros, ver Corrêa (2006). Note-se que o autor
realizou etnografia no tempo em que se velavam os mortos no salão das casas de religião, daí uma serie de
diferentes rituais. É ao redor do corpo velado que a roda-de-eguns acontece. Ver Barbosa Neto (2012)
também.
43 De acordo com Corrêa (2006), “[A]tualmente ninguém mais sabe, no Rio Grande do Sul, o significado

exato das palavras dos cânticos rituais. Sabe-se qual orixá que está sendo homenageado, o sentido geral do
canto, ou se são cantos de egum” (: 157). Gostaria de registrar que tal constatação não se aplica às pessoas
com quem convivi. Palavra a palavra, sentido geral, pronúncia, para que finalidade cantar, tudo isso é bastante
discutido. É ensinado aos filhos/as pelos pais de santo, e, por vezes, os próprios orixás ensinam palavras e
rezas. Na casa de Odacir, assim como na casa dos “antigos”, aprendem-se as palavras, as rezas e as histórias
dos orixás.
44 Sem entrar em controvérsias sobre a existência ou não de sincretismo, ou sobre suas muitas formas, posso

afirmar que nas casas de Oyó por onde passei São Jorge é Ogum em formato de imagem. O contrário não é
válido, Ogum não é São Jorge. Os chamados santos africanos, ou as imagens tridimensionais de orixás, são
novidades nem sempre bem-vindas. Além disso, não se cogita uma eliminação das estatuetas “católicas”
(utilizo aspas, pois nem bem africanas são consideradas as primeiras, menos ainda católicas as segundas), pois
grande parte delas já come há tanto tempo...
45 Pesado tem principalmente, mas não somente, a ver com serviços/feitiços envolvendo matança de animais

ou os chamados serviços de dano. A distinção entre serviço e feitiço é apresentada alhures.

47
meses, mata-se para Bará pedindo-se autorização para se fizer serviços mais pesados, o que
pode ou não ser aceito.

O tempo de luto varia conforme a hierarquia na religião: aos babalaus, com


casa aberta, guarda-se um ano; aos prontos, mas sem os santos em casa, seis meses; àqueles
com borido, três meses; aos outros, sete dias. Essa conta pode variar de acordo com os
laços sanguíneos, com a afetividade e com o tempo de religião daquele que morreu. Assim,
por exemplo, alguém que é pronto e não tem os santos em casa pode acarretar o luto de
um ano, por conta de seu tempo de religião. Como descrevi no início do trabalho, essa é a
semana em que Nanã toma conta do egum, que me foi traduzido como sendo algo análogo
à alma, ou a própria alma. Não é Anarauim, nem Anansurê, mas sim, como já visto, é Nanã
Burukê quem tomará conta do egum.

Na noite que antecede a missa de sétimo dia, é realizado o corte para o egum –
ritual que é descrito no próximo capítulo. Antigamente, era feito num buraco nos fundos
da casa, sendo o mesmo depois coberto, pois no Oyó não existe balé46 ou culto aos eguns.
Atualmente, com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas possuem pouco
espaço nos fundos, local onde são plantadas as obrigações de cabeça. Mata-se para o egum
em uma talha, quando da cabeça de orixás masculinos, e num alguidar, quando da cabeça
de orixás femininos. Esses objetos são despachados posteriormente junto com toda a
obrigação do sétimo dia, na Kalunga (ou praia). Quando o espaço era maior, podia-se abrir
buraco nos fundos da casa, sem que ele ficasse próximo das obrigações de cabeça.

2.2.1 Antes do eru: a missa e as refeições

No dia 31 de julho de 2011, acompanhei a família de santo na missa de sétimo


dia realizada na capela de Nossa Senhora da Saúde, localizada na parada (ponto de ônibus)
45 da RS-040 em Viamão/RS. Chegamos por volta das 8 horas da manhã e a igreja já

46 Interessante notar que balé no Xangô de Recife, segundo Halloy (2005), como no batuque gaúcho, é o

quarto ou casa dos eguns, onde ficam seus assentamentos. Ainda, o autor refere-se ao perigo desse lugar e da
obrigatoriedade em se cultuar os eguns antes de qualquer ritual. Corrêa (2006) chama atenção para o perigo
do buraco, por isso de ele ser geralmente cercado: “[M]uitas casas de batuque possuem o balé ou buraco, local
especialmente dedicado aos eguns e onde os ancestrais de religião do chefe do templo “moram”. Sempre fica
nos fundos do terreiro e em local pouco acessível ou até cercado, especialmente se há crianças na casa. [...]
este [o balé] pode ter conotações e formas diferentes de acordo com o tipo de compromisso que o chefe
resolveu assumir com os mortos, além dos objetivos que tem em relação a eles” (: 147-8). Corrêa (1998)
descreve a não necessidade de se arrumar a casa que é o balé (casa, geralmente, do tamanho de uma casinha
de cachorro ou espécie de caixão), onde se prestam os cultos anuais e que pode ser utilizada para realização
de feitiços (: 129-130). No Oyó, trata-se de um buraco que será coberto com terra após os rituais.

48
estava lotada de conhecidos da religião. Um sobrevoo de olhar apontava para a presença de
cento e sessenta pessoas.

A construção feita em pedra avermelhada portava uma grande imagem de


Cristo Crucificado e de São João Vianney. Nas paredes internas, a via crucis, contada através
de quadros como nos mais diversos templos católicos. Ao lado direito de quem entra, uma
mesinha com diversas imagens de santos católicos – São João, São Cristóvão, São José,
Santa Bárbara, Santa Catarina e Nossa Senhora Aparecida –, com muitas velas acesas. Além
disso, água benta disposta em bacias de madeira. Além do padre, do sacristão e de um
coroinha, um animador litúrgico tocava no violão alguns hinos. Após a missa, por volta das
dez horas, nos dirigimos a pé até a casa de Tia Neneca do Xangô – mãe de santo de Tia
Lourdinha, localizada próxima da parada 45.

Na entrada da casa uma filha de santo, de Tia Neneca dá as instruções do que


fazer, de que modo se deve entrar. A porta fica entreaberta, nunca escancarada e, se
possível, fechada, diferentemente de outras situações em que as portas ficam sempre
abertas. Em frente a essa porta, por onde entramos, havia um banquinho com uma tábua
em cima, formando uma pequena mesa. Em cima dessa mesinha, seis cascas de coco
quebradas formando pequenos pratos com pemba branca, pemba azul, pemba vermelha,
pemba amarela e pemba preta (nesta ordem). Também havia sabão da costa e muitos
palitos de dente. Ao lado esquerdo, no chão, uma bacia com água e erva-mate, cheia de
palitos de dente quebrados. As instruções eram para que passássemos na palma da mão
esquerda com os dedos da mão direita cada uma das substâncias contidas nas cascas de
coco na direção que ia da esquerda para direita, fazendo-se um círculo até se chegar nos
palitos, movimentação que ia da pemba branca à pemba preta47. Depois, deviam-se lavar as
mãos com o sabão, dentro da bacia, escolher o número de palitos de acordo com o número
de pessoas que morassem em nossas casas e quebrá-los, para só então entrar na casa.
Dizem que é assim que quebramos os laços do morto conosco, nossa casa e com as
pessoas que vivem nela. Dessa forma, não corremos o risco de receber alguma visita
inesperada do egum.

Assim que entramos, nos deparamos com o salão onde ocorrem os batuques
(festas) daquela casa. Ao lado direito de quem entra, o quarto de santo; nos fundos uma
porta para rua, onde o egum era velado e os ocutás estavam depositados. Além disso, uma

47 Corrêa (2006 [1992]) apresenta descrição semelhante sobre as substâncias utilizadas antes de se entrar para

o café da manhã no dia do desligamento. Fala que o movimento é o de passar na palma das mãos aquilo que
vai do branco ao preto. A diferença parece consistir no fato de que no local onde realizou trabalho de campo
a porta de entrada da casa deve ficar bem aberta.

49
churrasqueira, onde as obrigações são assadas, e antes da porta que dá para os fundos da
casa, à direita, uma cozinha. No salão, uma enorme mesa retangular com quatorze lugares,
além de muitos sofás, cadeiras, bancos e poltronas espalhados. Na ponta da mesa, de costas
para a porta, está Tia Neneca. Em ambos os lados, há pessoas que preenchem todos os
assentos. Na outra ponta, há uma cadeira reclinada de modo a deixar o encosto fixado à
mesa. Em frente a este lugar, estava servido o café da manhã do egum, com pratos, xícaras
e taças para que ele participasse48. A fartura da mesa não deixa a desejar para nenhuma festa
de batuque.

Figura 1: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul

Figura 2: mapa Viamão.

48Bastide (1959) fala da participação do morto por ocasião da refeição realizada para o axexê num batuque de
Porto Alegre: “[...] na última noite, a mesa está posta, servem-se os pratos consagrados e o café, põe-se talher
para o morto também, e a sua sombra vem participar dessa refeição” (: 248).

50
Figura 3: planta baixa da Casa de Mãe Neneca do Xangô.

Ao entrarmos, tivemos de dar uma volta ao redor da mesa a partir da esquerda


até a ponta onde está sentada Tia Neneca para somente então cumprimentá-la. Ritual
obrigatório a todos que vão chegando. Como habitual em casas de religião, deve-se abraçar
51
o dono da casa, prostrar-se e beijar-lhe as mãos. Quando alguém termina o café e se
levanta, outras pessoas são chamadas, para não ficarem lugares vagos49. Depois de comer, é
preciso dar outra volta ao redor mesa.

Na mesa, havia pão industrializado e caseiro, frios, queijo, Romeu e Julieta,


diversos tipos de bolos, doce de leite caseiro, suco de uva e de laranja, diferentes biscoitos
doces e salgados, olelé (bolo feito de feijão miúdo, comida de Iemanjá e de Oxum), acarajé
(bolo de feijão miúdo feito para Iansã), pipoca, chá de abacaxi, café preto e leite. Tudo
servido em coberta de mesa “fina”. O café, o leite e o chá são servidos em jarras de prata.
A assistência, na cozinha, era composta por filhos e filhas da casa, que não paravam de
limpar a mesa (retirando pratos, talheres, copos e xícaras utilizados) e trazer mais comida.

O ritual do café da manhã tem seu término ao meio-dia. Nesse horário, Tia
Neneca levanta, agradece a todos e serve o café de Tia Lourdinha: café com leite e açúcar,
com pedaços de biscoito quebrados dentro da xícara (o que ela gostava de comer), uma
taça com cachaça e outra com vermute, todos cobertos com um alá (pano branco) e logo
em seguida retirados da mesa; No capítulo seguinte, o fechamento desse ritual é mais bem
descrito.

Maninha do Oxalá, única filha de santo pronta de Tia Lourdinha (filha de


sangue e neta de santo de Tia Neneca), serve cachaça e vermute, em copinhos de
martelinho. Primeiro são servidos aqueles que são prontos (como em todo tipo de ritual no
batuque). Deve-se beber a cachaça em primeiro lugar, depois o vermute, sem deixar sobras.
Nesse mesmo tempo, nos fundos da casa, começa a movimentação para se assar o
churrasco; na cozinha, já estão limpando e temperando as galinhas que mataram para o
egum. Umas serão assadas e outras irão para a panela, onde serão cozidas, ou comporão o
arroz com galinha, a comida de egum50. Além disso, já começam a cozinhar o arroz branco
e fazer diversas saladas, os acompanhamentos do churrasco. Entre o café da manhã e o
almoço é servida cerveja aos convidados. Por se tratar do eru de uma filha de Ogum, todos
devem beber ao menos alguns goles de cerveja, bebida ligada a esse orixá. Depois se pode
beber chá, refrigerante, sucos ou o que se desejar.

Podemos notar que as bebidas alcoólicas não são escolhidas aleatoriamente. O


borido leva vermute e cachaça, a cerveja é axé de Ogum. Além disso, Tia Lourdinha

49 Esse vazio representa perigo. O perigo de alguém que não seja uma pessoa ocupe o lugar (ver Barbosa

Neto 2012: 308; Corrêa 2006: 156).


50 Essa é a única ocasião em que se faz e se come tal prato na casa dos batuqueiros de Oyó. Dizem que

preparar, ou mesmo comer tal prato em casa de não batuqueiros, pode atrair eguns, pois essa comida lhes
pertence.

52
gostava de cerveja, vermute e vinho doce. Dona Rosa contou histórias sobre Tia
Lourdinha, disse que ela gostava de tomar uma cerveja gelada. Tia Neneca também
comentava que, devido ao seu estado de saúde, Tia Lourdinha não deveria beber, mas
estava sempre falando em beber um vinho ou uma “gelada”.

Na parte de trás da casa, onde a churrasqueira estava localizada, um grupo de


homens concentrou-se. Conversava-se sobre tipos de carne e sobre como assá-las
corretamente. Comentaram sobre as homenagens a O Bokum Oka, quando se mata
quatro-pés e aves. Essa tem seu início no dia 25 de dezembro e fim no dia seis de janeiro,
Dia de Reis.

Antes de ir para os fundos da casa, perguntei a Dona Rosa o que as pessoas


tanto faziam lá atrás. Ela disse: “É o buraco, meu filho”. Surpreso, retruquei, “mas Oyó
não é o único lado que não tem buraco?” Ela disse: “tem buraco no Oyó, mas depois de
matar, se fecha o buraco”. O buraco, em outras nações do batuque, chama-se de balé, é
onde ficam os eguns. Quando cheguei aos fundos da casa, não vi buraco algum, até porque
eu não saberia identificar já que este poderia já estar fechado. Havia uma grande talha de
barro, fechada com tampa de barro. Era possível notar o sangue escorrido e coagulado ao
redor da talha e algumas penas de aves, além de, uma vela branca acesa. A talha estava ao
lado da churrasqueira, a vela branca acesa na frente. Ao lado, pacotes de vela branca e de
sebo, para que, com a proximidade do fim de uma vela, acenda-se outra.

Mais tarde, perguntei a Odacir o que era aquela talha. Disse-me que se tratava
do buraco. Como estava muito úmido, muito chuvoso, não deu para fazer buraco no chão,
então a talha faz as vezes de buraco. E ali estava o egum da Tia Lourdinha. Era a própria
Tia Lourdinha quem estava sendo velada, durante a noite anterior e todo esse dia.
Atualmente, comenta Odacir, com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas
possuem pouco espaço nos fundos, então se mata para o egum em uma talha, quando
quem morreu tem cabeça de orixá masculino (Bará, Ogum, Xapanã, Odé, Ossanha, Xangô
e Oxalá), e num alguidar, quando a cabeça pertence a orixás femininos (Iemanjá, Oxum,
Ótim, Obá, Iansã)51. As talhas e alguidares são, posteriormente, despachados junto com
toda a obrigação do morto, ao final do eru, na Kalunga.

51 Nanã Burukê e Ewá são orixás cultuados no lado de Oyó, porém não se dá cabeça para elas. Ambas estão

ligadas à morte. Ewá é a dona do buraco, diferente de Iansã, que é a dona dos eguns e do buraco. Note-se
que Ótim normalmente não é dona de cabeça, aparece mais como dona do corpo dos filhos de Odé, com o
qual forma o “casal perfeito”. Contam, contudo, que antigamente se dava cabeça para essas orixás, a feitura
de Ótim e de Ewá foi perdida (com os mais velhos que não ensinaram e faleceram); já Nanã Burukê é dona
de muitas cabeças, mas suas filhas são dadas para Iemanjá ou para Oxum Dôco. Odacir diz que tal fato se

53
Na noite do sexto para o sétimo dia, mata-se para o egum, o que é tratado no
capítulo seguinte. No eru de Tia Lourdinha, apenas aves, pois não havia nenhuma casa
aberta. Quando de Babalaus ou Babalaoas com casa aberta, mata-se quatro pés também. As
diferenças no ritual de desligamento devem-se não somente à hierarquia, mas também ao
orixá de cabeça, e por vezes ao “cargo” ocupado na casa – em especial o de tamboreiros/a.

Nos fundos da casa de Tia Neneca, em terreno anexo, um cachorro vinha


comer a carne que os assadores lhe serviam, enquanto comentavam que se tratava da
presença de Ogum, pois o cachorro é justamente o animal deste orixá. Foi um momento
descontraído, a impassibilidade que perdurara o café da manhã foi, aos poucos, sendo
quebrada com a feitura do churrasco, com a cerveja, com as conversas.

O churrasco e seus acompanhamentos – como a salada de maionese, o arroz e


salada de tomate – é servido. Bebe-se cerveja, refrigerante, sucos. No almoço, não é preciso
dar a volta ao redor da mesa, mas os lugares vazios não são bem-vindos. Apenas se senta e
se almoça. Dessa vez, já não se serve Tia Lourdinha na mesa, como no café da manhã.
Guarda-se um prato com o almoço para hora do eru.

Após o almoço, tudo é retirado, incluindo-se a mesa que estava no meio do


salão. Dona Rosa havia me instruído para que não deixasse sobras nos pratos ou copos,
uma vez que tudo que resta vai junto para a praia. E, como certa vez comentou Neli, com a
Kalunga não se brinca. Disse que não tem medo de feitiços de cemitério, pois lá [no
cemitério] se pode ir e desmanchar o que fizeram, mas “quem consegue ir ao fundo do mar
desfazer algo?”

Entre o almoço e o café da tarde, a cerveja é servida em abundância. É hora de


se conhecer quem não se conhece, de colocar o assunto em dia com velhos conhecidos e,
claro, aprender mais sobre a religião. Por não se tratar de ritual corriqueiro e no qual se
possa ficar ensinando e lembrando fora do contexto adequado, seu acontecimento é
momento propício para a aprendizagem ritual do ritual. Poucas explicações são dadas, a
observação segue como modelo principal de transmissão dos saberes religiosos. Contam
que antigamente nunca um pai ou mãe de santo explicava coisa alguma a seus filhos(as).
Hoje, já é possível um sistema de perguntas e respostas, ou de explicações dadas sem que

deve a grande responsabilidade que uma filha de Nanã carrega, que hoje em dia não haveria mais pessoas à
altura dessa orixá. Existem outras explicações para tal troca de orixás de cabeça, como o mito sobre a briga de
Nanã com Ogum (dono do aço), que faria com que os sacrifícios tivessem de ser feitos com os dentes. Além
dessa e de outras muitas explicações, o fato é que Nanã não fica com a cabeça de suas filhas.

54
se pergunte. O que nunca substitui a observação, a participação e principalmente o “por a
mão na massa”, pois é ouvindo, olhando e fazendo que se aprende.

***

O café da tarde é servido por volta das 16 horas. Diferente da cerimônia do


café da manhã, no café da tarde a mesa serve apenas de suporte aos alimentos e bebidas –
profanas, pois dessa vez as comidas de egum e dos orixás não são servidas. Além disso, não
se come à mesa, não se dá a volta ao redor dela, nem se colocam cadeiras no entorno. Não
é preciso mais preencher lugares. Come-se onde se desejar: em sofás, em pé, em cadeiras
espalhadas pela casa. Diferentemente do café da manhã, o da tarde não é tratado como um
ritual, serve para que ninguém fique com o estômago vazio até a hora do eru.

Tia Neneca marca para as 17 horas o ritual mais importante do dia, o eru – o
momento de se quebrarem os objetos rituais, esmagarem comidas e rasgarem roupas do
egum para empacotá-las e levá-las até a Kalunga. A maior parte dos rituais não inicia na
hora marcada. Como notou Pólvora (1994), esperar faz parte do ritual. Por volta das 19
horas é que tia Neneca pede atenção de todos e dá início ao momento mais aguardado.

A dona da casa manda servir as comidas do ritual: é preciso comer um


pouquinho de tudo. Segundo Odacir, esse é o único dia em que todos comem e se come a
comida de todos, a dos vivos, dos orixás e dos eguns. Todas as sobras são depositadas num
panelão que será despachado junto com as coisas do morto na Kalunga.

Odacir entrega o axé ou comidas dos orixás de cada orixá a um filho do santo
ao qual tal comida pertence. Essa já vem da cozinha nos recipientes adequados e precisa ser
servida, pessoa a pessoa: ninguém se levanta para se servir. Depois de um dia comendo a
comida dos humanos, as comidas dos orixás são servidas: pipoca, amendoim, acarajé,
frango assado (da obrigação), churrasco, tudo em alguidares, gamelas ou bacias. A galinha,
o acarajé e o churrasco são cobertos por nham-nham (farofa à base de farinha de mandioca
e azeite de dendê). Come-se com as mãos, sem uso de talheres. Depois disso, é servido
amalá (comida de Xangô à base de pirão de farinha de mandioca, folhas de mostarda e
carne de peito de gado bovino), galinha com molho, galinha ensopada. Essas últimas são
servidas em pratos individuais, mas ingeridas com a ajuda apenas das mãos, sem o uso de
talheres.

55
Por fim, a galinha com arroz ou galinhada (comida dos eguns), servida em
pratos, mas utilizando apenas as mãos para comer. E a canjica branca com coco, de Oxalá,
essa ingerida com o auxílio de colheres.

2.2.2 Eru de Lourdes do Ogum

Após todos comerem um pouco (o que no batuque é muito) de cada axé, Tia
Neneca conclamou: “vamos começar”! Coloca-se uma grande toalha branca de mesa no
chão, em torno da qual (xirê). Maninha do Oxalá ficou na porta do quarto de santo em pé,
não participando da roda por ser filha de santo de Tia Lourdinha, assim como Dona Rosa,
por seu laço consanguíneo52 com a falecida, o que se estendeu a Marcos e a mim – filhos de
santo de Dona Rosa.

Apenas com o adejá (sineta) e o agê (instrumento feito com uma


cabaça/porongo inteira trançada com cordão e miçangas de diferentes cores) as rezas para
Bará começam a ser tiradas. De maneira diferente do dançar na roda em festas, todos
dançavam balançando bastante os braços, para frente e para trás. Além disso, algumas rezas
eram danças no sentido anti-horário (usual) e outras em sentido horário. Faço aqui uma
breve digressão para ressaltar a importância do estudo pioneiro de Corrêa (2006) no qual
relata o aressum, dentro do qual está o ritual de desligamento. O autor toma o cerimonial
do aressum como ritual de inversão no sentido de Turner, mas chama atenção para o fato
de que a inversão nunca é total (ver especialmente página 173). Retomando o assunto do
ritual de inversão, discordando, pois no Oyó há alternância o tempo todo: as músicas de
orixá são dançadas em sentido anti-horário, as de egum (ou os axexés) em sentido
contrário. São intercaladas, sendo compartilhado, contudo, o modo de dançar com o
balanço ininterrupto dos braços. Barbosa Neto (2012) apresenta o Arissum como dois
rituais distintos em seu efeito, porém praticamente idênticos em seu funcionamento (: 299).
O autor oferece uma descrição geral, na qual utiliza dados de Corrêa também. Interessante

52 O parentesco no santo e no sangue se imbricam. Além disso, os laços sanguíneos dos pais ou mãe de santo
são estendidos a seus filhos de santo com maior intensidade que a seus filhos de sangue. Exemplo disso foi o
caso de Neli, sobrinha de sangue de Tia Lourdinha, mas filha de santo de Odacir (primo de segundo grau da
falecida), que seguiu o tempo de luto determinado por seu pai de santo e não o mesmo tempo que sua mãe de
ventre, Dona Rosa. Aqui, o parentesco de sangue afeta o parentesco de santo, aproximando-se de um
parentesco classificatório no qual Marcos e eu, filhos de santo de Dona Rosa, somos como partes dela e,
portanto, passamos a ter o mesmo parentesco de sangue, o que provoca um tempo maior de luto. É sempre a
relação que o pai o mãe de santo tem com o falecido que conta para seus filhos, exceto quando existe
parentesco consanguíneo, excluídos deste os colaterais.

56
a síntese que Barbosa Neto apresenta, na qual “[Q]uanto maior a conexão, maior também é
o corte” (: 300) – aqui se refere ao parentesco no santo e ao grau de iniciação. Podemos
pensar, também, nos vários níveis e qualidades de relações e parentesco de sangue e de
santo e de afeto, conforme apresentados no trabalho.

Já nas rezas de Bará, orixás foram chegando no mundo. Cantou-se para Bará,
Odé, Ogum, Xangô, Iansã e Xapanã. Além das rezas mais conhecidas, cantadas nas festas,
cantaram-se os axexés, que somente são cantados nessa ocasião, não podendo nem mesmo
ser ensinadas fora desse contexto. Os orixás velhos não chegam nessas cerimônias. São
considerados velhos os oxalás, as iemanjás e algumas oxuns, em especial a velha, a Oxum
Dôco. Esses são, também, considerados povo do mel. As particularidades de um eru de um
filho de orixá velho, no caso Oxalá, são tratadas no capítulo seguinte. Todos os outros, ou
seja, o povo do azeite, podem chegar. Note-se que Oxum é um orixá que transita entre mel
e dendê. Algumas oxuns jovens chegam a trabalhar no cruzeiro com os barás.

A chegada de cada orixá em festas e outros rituais é festejada, saudada com os


cumprimentos específicos de cada um. No eru, eles chegam gritando de maneira mais
intensa, chorando, contorcendo-se, de modo que fica visível a dor e o sofrimento devido
ao motivo que estão ali: despedir-se de vez de um orixá conhecido53. Na roda do eru, não
se dança descalço, como nas festas. Por isso, quando os orixás chegam no mundo, os
assistentes correm para quebrá-los e tirar seus calçados e meias porque eles ficam agitados e
impacientes já que não querem aquilo nos pés. Depois de serem descalços, eles vão até rua
(nos fundos da casa) cumprimentar o egum e as obrigações. Ninguém vai cumprimentar o
quarto de santo nem a rua na parte da frente da casa como acontece nas festas e outros
rituais.

Depois de cumprimentar o egum, a mesa é posta no chão (a toalha branca).


Serviam-na com comidas para os orixás e para Tia Lourdes. Junto daquilo que os orixás
gostam, havia o que Tia Lourdinha gostava: cachaça, vinho, cerveja, refrigerante e alguns
alimentos, como batatas, cenouras e outros legumes cozidos (comidas de egum). Esses
alimentos servem para ela junto com Nanã juntar os cacos daquilo que tinha na terra e não
passar fome durante esse processo. E para que houvesse um pouco de tudo do que mais
gostava. A comida vai para o Orum quebrada/amassada, para lá ser também reconstituída.

53 É importante deixar claro que os orixás não morrem, apenas deixam de vir ao nosso mundo, pois sua

ligação maior, a pessoa e o ocutá, deixam de existir em Aiyê. Contudo, os orixás de pessoas que já morreram
são sempre lembrados e podem-se fazer pedidos a eles independentemente do tempo que seus filhos
humanos já tenham morrido. Além do mais, os orixás vivem concomitantemente em Orum, nos ocutás, nas
cabeças de seus filhos e nas demais obrigações.

57
Os orixás trazem dos fundos da casa os ocutás, as quartinhas, os pratos, as
manteigueiras, as guias e os depositam em sacos de tecido branco. As comidas que estavam
sobre a toalha foram depositadas nos mesmos sacos. Depois de tudo arranjado nos sacos,
um orixá os fecha com as mãos e com um porrete quebra tudo que está ali dentro. Esse é o
momento de que tanto me falaram. “Aquela coisa horrível”, quando se dá o verdadeiro
adeus à pessoa e a seu orixá – ou ao orixá e à sua pessoa.

O sofrimento para quem conhece o orixá e a pessoa é enorme. Assim como os


orixás choram, as pessoas presentes estão muito emocionadas; as mais íntimas, por vezes,
passam mal. Contudo, o ritual é esteticamente muito bonito. Há aqueles, como Tio
Paulinho do Aganjú, que prefira um eru a uma festa. Dizem, também, que os maiores
segredos e fundamentos da religião estão no eru.

As rezas e a roda seguem, quando então são escolhidos cinco orixás para
realizarem a limpeza, sendo cada um deles responsável por um axé. De modo que eru é
feito em etapas simultâneas: um grupo de pessoas, tomadas pelos seus orixás limpam as
pessoas presentes e outro grupo dança, outros ocupados por seus orixás montam o saco do
egum. A parte da limpeza é feita com o casal de aves que pertence aos orixás de Tia
Lourdinha: 1 galo para Ogum (orixá de cabeça) e 1 galinha para Oxum (orixá de corpo),
além de comida para Bará, varas de marmelo para Ogum, velas brancas e vassoura de
morim em várias cores. A roda continua ao mesmo tempo em que se forma uma fila na
qual todos entram para serem limpos, inclusive os orixás. A única diferença é que ao invés
de passarem pelo ossagéu, tomam um gole d’água. Ao final da limpeza, o material utilizado
é quebrado e depositado nos sacos – inclusive o galo e a galinha.

Após tudo quebrado e todos serem limpos, distribuem-se uma flor branca
(crisântemo ou rosa) e balas para cada pessoa e orixá presente. Fecha-se o saco que contém
o galo e a galinha. Os dois outros permanecem com a parte de cima aberta, como se
formassem um grande recipiente, um vaso de flores. Cada pessoa vai até eles e dá as balas
(desempacotadas) que tiver nas mãos, presta a sua homenagem e coloca a flor que recebeu.
Depois disso, os prontos, que além das balas e flores recebem velas, prestam sua última
homenagem. As velas são acesas dentro dos sacos, de modo a formar uma grande
oferenda.

Com a proximidade do fim, um orixá vem com um espanador feito de morim


nas cores azulão, amarelo, branco e vermelho e vai limpando todos os presentes, utilizando
esse espanador para apagar as velas também. Os sacos são fechados, as comidas que

58
restaram nos pratos das pessoas ao longo do dia e foram armazenadas em panelas são
trazidas. A toalha é enrolada, as vestes do Ogum e algumas roupas de Tia Lourdinha são
rasgadas. Tudo partirá para a Kalunga.

Todos os orixás e mais algumas pessoas – que dirigem os carros – partem


rumo à praia. Os que permanecem na casa só podem ir embora depois que os outros
voltarem. Quando os que saíram voltam, todos ficam em pé e forma-se uma roda que
permanece parada. Apenas os orixás dançam, abraçando o próprio peito, com os braços
cruzados. A reza de finalização do eru é, então, cantada; os orixás que até então não haviam
cumprimentado ninguém, cumprimentam-se uns aos outros e depois fazem o mesmo com
os humanos.

Por fim, trazem um alá grande, que cobrirá todos os orixás, dão uma jarra de
água para um orixá que asperge o conteúdo no chão. Todos os orixás posicionam-se sob o
pano e sobre a água e, então, vão embora, sem passar pelo estado de axere. A assistência
corre para calçar sapatos e meias naqueles que se ocuparam, para que não descubram esse
segredo. O orixá vai embora deixando seus filhos aparvalhados por um tempo – o que
acontece sempre após a deidade sair do corpo de seu filho.

2.3 A Morte e seus Rituais Finais

É preciso lembrar que cada ritual desses varia de acordo com o orixá, o tempo
de religião e o que se tem na cabeça (sanapismo, aribibó, borido, angolistas, quatro-pés até
a confirmação, o se governar, possuir filhos e filhas de santo e, finalmente, ter casa aberta).
Assim, o sétimo dia de quem possui apenas uma quartinha consistirá em apagarem-se as
luzes do quarto de santo e entregar-se na Kalunga o que esse egum tinha de obrigação.
Além disso, como já mencionado, o carinho que se tinha por determinada pessoa faz com
que esse esquema mais ou menos estruturado sofra modificações. Como quase tudo no
Oyó, não existem receitas prontas, existe jogo de búzios e orixá... E, é claro, existe o que “a
lei manda”...

Como já mencionado, o período “dos três meses” pós-morte é de suma


importância. Nele, acontece o primeiro corte após o eru. Na ocasião, mata-se para Bará,
pedindo-se licença ao dono dos caminhos para que se possa voltar a realizar feitiços que
envolvam a matança de animais ou para os serviços pesados. Quando um pronto morre,

59
sua família de santo mais próxima – mãe/pai, irmãos, filhos –, assim como os parentes de
sangue que são de religião (que são, pelo período de luto, como a parentela mais próxima
de santo), não podem/devem cortar até que se complete o ciclo determinado para o luto.
Ademais, o ritual dos três meses (não há nome em “africano” para ele) é realizado com
“tudo que a lei manda”. Esse, assim como o de seis e o de nove meses – realizado apenas
quando da morte de um pronto – e o de um ano – realizado apenas quando da morte de
babalau ou de uma babalaoa. Não possuem uma cerimônia com caráter público como
aquela do sétimo dia. Note-se que, apesar de apenas os mais íntimos frequentarem o eru,
ele não é vetado a pessoas mais distantes. Contudo, ele não possui as características de uma
festa grande em que qualquer pessoa pode entrar.

Assim como o sétimo dia, “o um, o três, o seis e o nove meses e o um ano”
marcam tempos de se prestar mais homenagens, e se fazer com que o egum se aproxime
cada vez mais de seu orixá. Como Oyó não cultua seus antepassados em balés, nem em
cemitérios, cada um desses rituais trata de afastar o morto dos vivos. É importante manter
a maior distância possível dos eguns.

Descrevo de forma sucinta cada um desses rituais no lado de oyó. O luto,


basicamente, reside em não participar de batuques ou obrigações que envolvem rezas,
danças ou matanças. O ritual de 1 mês envolve missa católica, ir a casa religiosa, lavar-se
com mieró na entrada da casa, passando o preparado pelo corpo e pedindo que a alma do
morto se desligue. Entra-se no salão, lá se dá uma volta completa, cumprimenta-se o dono
ou dona da casa e bebe-se um axé de vermute e de cachaça. No terceiro mês o ritual é
semelhante, porém, dessa vez, leva-se um presente (oferenda) no mato para o egum. Caso
seja autorizado pelos búzios, mata-se aves para os Barás pedindo a liberdade para voltar a
trabalhar. No sexto mês o ritual é o mesmo do terceiro. No nono mês apenas reza-se a
missa católica. Ao completar um ano se realiza ritual semelhante ao do sexto e nono mês,
fazendo-se o último saco e o último presente para o egum, para que assim o luto termine e
a vida volte ao seu normal. Durante todo esse período e em todos esses rituais os orixás
não descem nos corpos de seus filhos.

2.4 Pessoa Morre Orixá Não

Orixá é inexplicável e inquestionável, é para ser vivido e pronto. Não se sabe de onde
vem só se sabe que vem! (Vovô Mário e Vovô Donga da Iemanjá, citados por Odacir

60
do Ogum quando dizia o que considerava importante que eu escrevesse para meus
professores).

Um antigo babalau do Oyó deu o corte e a festa que segue durante a quaresma,
período no qual não se corta na cabeça e não se dá toque (de tambor). Serviços/feitiços
com axorô são realizado apenas em caso de doença e mesmo assim não se derrama o
sangue sobre a cabeça, apenas no corpo, testa e têmporas. Como certa vez Odacir
comentou: “não somos africanos da gema, somos afro-brasileiros. Se as nega velhas
guardavam a quaresma, quem sou eu para questionar, para mudar, ou pensar que
africanizarei qualquer coisa. Nossa tradição é a do batuque de Oyó já no Brasil”. É por isso
que esse e tantos outros preceitos, assim como os orixás, são inquestionáveis: são assim e
pronto. Não se deve questionar muito, muito menos tentar modificar qualquer ritual, pois
como se diz, a “volta vem a galope”.

O mesmo babalau não guardou o luto de um ano pela morte de um filho de


santo – outra quebra perigosa de preceito. Pois bem, o batuque aconteceu, Odacir e seus
filhos não foram, mas ficaram sabendo do ocorrido. Como de costume nas festas dessa
casa, o Xangô, quando chega no mundo, dança por um tempo junto com os outros orixás e
depois para a festa por alguns instantes; depois, vai até o quarto de santo buscar o oxê
(machado de dois gumes de xangô), para voltar e fazer sua dança sozinho. Quando o Orixá
abaixou-se para pegar sua arma, não se levantou mais. Os outros orixás e as pessoas, sem
entender o que acontecia, foram ver o que se passava, ele estava curvado, com os olhos
fechados, a boca entreaberta torta para um lado por onde escorria saliva. O pai de santo
quase morreu.

Além de ser motivo de tristeza, tal fato foi alvo de comentários jocosos. Houve
preocupação com a possível morte de parente de santo e lembrança de algumas histórias.
Um eru estragaria o batuque de outubro (festa grande que ocorre sempre no mês de
outubro na casa de Odacir), pois o tempo de religião do babalau exigiria pelo menos seis
meses de luto para família de santo de Odacir dado ao parentesco que possuem.

Divertido como sempre, Odacir, encenou o ocorrido para cada conhecido que
chegava a sua casa, e acrescentava: “no meu tempo, a pessoa morria e o santo não parava
de dançar”. Assim, lembrou-se das histórias de um Bará do tempo antigo e da Tia
Francisca da Oxum. Ele dançou um batuque inteiro, ficou em axere e disse: “agora eu vou,
porque o meu já foi há muito tempo”... Quando fizeram a autópsia, apareceu que o cavalo

61
de santo já enfartara havia mais de cinco horas. No outro caso, a Oxum dançou a noite
toda, foi para o meio do salão e pediu uma reza de oxalá. Solicitou que os presentes
arrumassem todas as coisas para levar para praia, e morreu em seguida. Disseram que a
filha já estava morta há mais de três horas.

Histórias como essas são comuns e falam não apenas do que é um corpo, do
que é a morte, mas, principalmente, do que é um orixá “bem feito”. Como diz Odacir
“orixá bem feito tem que dançar no seu cavalo a festa inteira, dar consulta, ficar em axere,
fazer tudo normal, se a pessoa morreu não importa. Pessoa é pessoa e orixá é orixá, pelo
menos deveria ser assim...”.

“Orixá é inexplicável, só se sabe que ele vem”. A morte, pelo contrário, possui
muitas explicações, desde as mais ligadas ao mundo profano – como por doenças,
acidentes, assassinatos, velhice – até as mais ligadas ao mundo sagrado – como por
feitiçaria ou desrespeito aos tabus religiosos. A feitiçaria não é uma explicação muito
acionada para dar conta do acontecimento da morte. Na contramão, os feitiços ou serviços,
como as trocas de vida, por exemplo, são bastante recorrentes para “segurar” a vida e adiar
a morte. As explicações mais dadas para ocorrência da morte são as do tipo: “já tinha
chegado a hora”, “ele/a não se cuidava mesmo”, “não é porque tem santo que não se vai
ao médico”, sendo a união destas três explicações a mais comum. Pais e mães de santo e
mesmo orixás, quando estão no mundo, costumam prescrever para seus filhos que
consultem médicos, ou “os burro da terra” como chamam. Contudo, a feitiçaria braba,
aquela feita por ocasião de velórios, enterros e até mesmo na praia, pode ser considerada
uma das causas primeiras da morte, principalmente se quem morreu não tiver “nada” que
explique sua morte além disso.

O orixá continuar dançando no corpo de seu cavalo já morto parece ser


fundamental para um pensamento no qual pessoas morrem, mas orixás nunca. O que
acontece é que devido ao fato de seu filho humano não estar mais no nosso mundo, não o
vemos mais em sua forma “encarnada”. Mas eles continuam vivos. Como descrevi no
Capítulo I, os orixás dos grandes babalaus e babalaoas não podem ser esquecidos e, em
certa medida, os humanos que já partiram também não. É por isso que quando se realiza
uma festa grande com matança de quatro-pés, manda-se rezar uma missa para todos os pais
e mães de santo que fizeram história. Além disso, é preciso entregar presentes para os
orixás dos ancestrais desde Mãe Emília da Oyá Ladjá, princesa africana que trouxe a nação
para o Rio Grande do Sul, da qual Odacir é bisneto de santo.

62
***

Nesse capítulo, procurei descrever, através da troca de vida, do eru e da quase-


morte de um babalau, a natureza intrinsecamente mutável e negociável da morte. A morte
que não é inevitável, mas pode ser trocada, prolongando-se assim a vida. O morto precisa,
assim como os vivos, aprender que o estatuto da sua relação com os entes queridos e as
divindades transforma-se radicalmente com a quebra ritual de toda sua obrigação. Resta aos
vivos não cultuar mais o orixá daquele que se foi, a não ser quando esse se torna um grande
homem ou mulher e um grande orixá, devendo ser cultuado com um antigo morto. Tal
mudança de estatuto deve ser aprendida ritualmente. Os saberes e segredos envolvidos no
eru mobilizam os fundamentos da religião. Além disso, a morte, ou melhor, a quase-morte
evidencia que corpo, pessoa, orixá e objetos rituais são unidos sim, mas nunca perdem sua
capacidade de separabilidade. Morte/vida e pessoa/orixá/objetos rituais são
potencialmente muito diferentes e, ao mesmo tempo, tão próximas, que possam se
confundir, isso é o que chamo de condição homorgânica. Tomo, pois, morte e vida como
constituintes homorgânicos da pessoa batuqueira no Oyó, i.e., elementos que compartilham
o mesmo substrato, o que exclui a noção de pares opositivos, mantendo, no entanto, a
propriedade diferencial que estabelece a relação entre eles54.

O uso do adjetivo homorgânico tem a ver com a ideia de oposições não


contrastivas que podem ser ligadas a uma continuidade ou a uma descontinuidade. É nesse
sentido que homorgânica, ou melhor, o ponto de articulação que conecta diferenças
homogêneas e heterogêneas na experiência religiosa é a pessoa. É a pessoa que articula de
modo semelhante (mas não igual) nascer e ser feito; e de modo diferencial vida e morte.
Esta variação contínua é a própria condição homorgânica da pessoa. Assim podemos
colocar continuidade e ruptura sob um mesmo articulador, a própria pessoa batuqueira.
Homorgânico, como utilizado aqui, fala daquilo que está em “participação” ou é
“simpático”55 entre si, mas também do que não compartilha substrato ou substância alguma
– pelo menos à primeira vista. A pessoa batuqueira é, ao mesmo tempo, articuladora dos

54 O adjetivo homorgânico vem da linguística; de acordo com Crystal (2000), é um “termo geral na
classificação fonética dos sons da fala, com referência aos sons produzidos no mesmo ponto de articulação,
como [p], [b], e [m]. Os sons que envolvem articulações independentes podem ser chamados de
‘heterorgâmicos’. Os sons que envolvem articulações adjacentes (e, por isso, de certa forma mutuamente
dependentes) são chamados algumas vezes de ‘contíguos’” (: 141).
55 Participação é pensada aqui no sentido que Bastide (1983) dá ao conceito; “simpático” no famoso sentido

de Frazer.

63
“homorgânicos” e tem como condição de existência as articulações que a precedem e a
fazem um tipo especial de pessoa56.

56Uma discussão mais atenta à “noção de pessoa” em antropologia seria um caminho interessante a percorrer
na dissertação, contudo optei pelo estilo monográfico da descrição detalhada, não havendo espaço para tal
debate. Desde Marcel Mauss até etnografias mais recentes como as de Joel Robbins e Marilyn Strathern,
passando por Roger Bastide e Marcio Goldman na literatura sobre religiões afro-brasileiras, é importante
ressaltar a preocupação antropológica dedicada ao tema. De acordo com Goldman (1999), “Se desejarmos
permanecer fiéis à tradição antropológica, deveríamos reconhecer que após toda essa discussão, é ainda
Marcel Mauss quem nos aguarda no final do caminho. Para admiti-lo basta reunir ao texto sobre a pessoa
suas análises a respeito da “expressão obrigatória dos sentimentos” e das “técnicas corporais”.
Recuperaríamos, assim, o plano do “fato social total”, onde físico, psíquico e social não podem mais ser
distinguidos, e onde representações e processos empíricos não constituem mais que dimensões ou expressões
sempre articuladas das práticas humanas que pretendemos investigar” (: 37). O texto de Mauss (2003) realiza
fenomenal genealogia da noção, oferece: “um catálogo das formas que a noção adquiriu em diversos pontos,
e mostrar de que maneira ela acabou por ganhar corpo, matéria, forma, arestas, e isto até nossos tempos,
quando ela tornou-se clara, nítida, em nossas civilizações (nas ocidentais, muito recentemente) e não ainda em
todas. [...] O que quero mostrar é a série de formas que esse conceito assumiu na vida dos homens, das
sociedades, com base em seus direitos, suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas
mentalidades” (:370-1). Tendo tal ideia no horizonte, busco oferecer uma leitura possível da pessoa
batuqueira, articulada, feita e desfeita sob o que chamei de “condição homorgânica”.

64
Cap. 3 Sobre pessoas, assentamentos, casas e imagens

Este capítulo dedica-se a descrição do eru de Sergio do Oxalá e da


reconstrução da casa de Odacir em São Luís Gonzaga/RS (doravante SL). Como no
capítulo precedente busco expor detalhadamente os acontecimentos, desse modo, além de
demonstrar as diferenças e semelhanças intrínsecas ao ritual de desligamento, o
detalhamento etnográfico fornece, aqui, ideias que justapostas às já apresentadas nos
capítulos anteriores compõem um olhar mais geral (também-abstrato) sobre a morte, os
eguns e a importância dos parentes de santo.

Por ser o último capítulo, já possui ares de fechamento do argumento central.


Os mais velhos, os eguns, o eru reaparecem conectando o já antes apresentado com outros
dados que iluminam àqueles. Portanto, pontos que se repetem são repetições e, ao mesmo
tempo, dados novos. Ao apresentar dados diferentes que versam sobre o mesmo tema,
busco oferecer um quadro em que pela diferença o mesmo se faça mais compreensível para
quem não está familiarizado com rituais do lado de Oyó. Além disso, esse modo de
reapresentar um tema com outros dados dá ênfase ao que em campo é a todo momento
reforçado: a diferença intrínseca a rituais da mesma natureza. Ao descrever o ocorrido em
SL, procuro mostrar como situações inesperadas exigem ações calcadas num certo tipo de
improviso.

Além disso, a possível morte de um ocutá, a destruição de imagens e de uma


casa num incêndio serão descritas para comporem com o eru um quadro que explicite o
modo negociável em que as coisas de religião acontecem. O que já aparece na comparação
entre os diferentes erus deve ficar mais claro com o auxílio de outro assunto. Às vezes,
como no caso que é descrito, quando uma pedra morre, existe um período de suspeita
sobre a condição de viva ou não, sendo o jogo de búzios o melhor dos oráculos para se
certificar do ocorrido.

3.1 Velório e enterro do Sergio do Oxalá

Já não era de hoje que Sergio dava sinais de despedida de nosso mundo. Os
AVCs, a trombose e tantos outros problemas só se agravaram. Como dizem, já era sabido.

65
Contudo, não deixa de surpreender. É que de tantas idas e vindas do hospital, parecia que
nunca iria chegar a hora. A isso se ligam as expectativas em relação à ocorrência ou não do
próximo batuque, seja na casa de Odacir ou na de outros parentes de santo. Uma morte
interrompe planejamentos, preparativos e os rituais ligados à vida; em suma, a morte
tratará, pois, de paralisar, por períodos determinados, a lida com os orixás.

Lembro-me de, em abril, em visita a casa de Tio Paulinho do Aganjú, esse


dizer: “Odacir pode cancelar o batuque e se preparar para embalar”. Ele e sua esposa riram
e comentaram sobre a importância do eru. É nele que, segundo Tia Aída da Oxum Dôco,
aprende-se a religião: “é ali que participam só os parentes e amigos, diferente de uma festa.
Quem tá num eru, tá por amor”. Tio Paulinho comentou que esse é seu ritual favorito. Tia
Aída o completou: “mas é importante saber tudo, todas as rezas. E só participando mesmo,
pois não dá para cantar pra eles [mortos], porque chama”.

A situação de Sergio continuou a mesma até o momento em que baixou


hospital pela última vez. Odacir recorreu aos mais velhos, foi no Tio Paulinho e na Tia
Neneca. Era preciso saber o futuro, saber qual era a situação do Sergio.

***

No sábado dia 18 de agosto de 2012, Sergio Demétrius, o Serginho do Oxalá,


faleceu. No dia seguinte à morte, após velarem o corpo por toda madrugada, ocorreu o
enterro. Aproximadamente uma hora antes de o caixão sair da capela do cemitério,
começaram a chegar os parentes de santo. Velando o corpo, estavam Odacir, Manu e Lúcia
do Ogum, mãe e filha, ambas filhas de santo do primeiro. Além delas, uma tia de sangue
de Sergio.

Após a missa na capela do cemitério, foi hora de levar o caixão até a sepultura.
Batuqueiro tem de ser enterrado, nunca cremado. O caixão deve ser embalado. Só prontos
podem segurar as alças, de preferência filhos de Xangô e de Iansã – orixás donos dos
eguns. Com o agê, Tio Paulinho puxou os axexés, as rezas de egum. Dizem que o que já
estava triste ficou pior. Sua entonação foi linda, contam que ele sabe puxar axexé como
ninguém no Oyó. Tio Paulinho chama atenção dos homens para que embalem, dancem e
cantem melhor. Todo o trajeto até o sepulcro deve ser dançado, embalado e cantado. Mas,
como já descrito no capítulo anterior, o enterro é apenas uma parte da despedida. O

66
principal ritual é o eru. No enterro, quem se vai é o corpo; que deve ser enterrado. É
importante chamar atenção para o fato de um pai ou mãe de santo não poder segurar as
alças do caixão de seu filho/a, pois pai ou mãe não embala filho. Aqui podemos destacar a
ligação com o parentesco de sangue e o tabu fundamental que proíbe o fato de se ser pai
ou mãe duas vezes, aqui parentesco no sangue, no santo e o eru se conectam, vida e morte,
portanto. O pai ou mãe de sangue, aquele que dá a luz não pode desfazer seu filho/a, não
pode terminar, caberá ao pai ou mãe de santo presidir o eru, presidir a destruição de todos
os laços de quem morreu com os vivos. Tarefa que pais e mães de sangue não podem
realizar, eles não podem quebrar/destruir/desligar seus filhos.

Voltando ao ritual, para saber como proceder um ritual dessa importância, é


preciso consultar os búzios, perguntar para o egum o que ele quer comer e o que mais
deseja. No caso de Sergio, o egum exigiu matança de quatro-pés e tamboreiros para a roda
do eru. A morte, por mais anunciada que seja, pega de surpresa. Impinge tristeza e gastos
dos mais diversos. Como acontecera no eru de Tia Lourdinha, deve-se ao egum
homenagens que incluem as matanças e um dia inteiro de refeições para os humanos que
passam pela casa, além das frentes de todos os orixás, as comidas de egum e as brasileiras
(as que não são nem de orixá, nem de egum, aquelas que se comem no dia a dia). Tal fato
fez com que Odacir tivesse de negociar com o morto os rituais pós-morte. Em troca dos
quatro-pés e do tambor, o egum exigiu que lhe fossem prestadas homenagens (rituais) de
um, três, seis, nove e doze meses. Como já mencionado, os rituais pós-morte tem função
de desligar o morto do nosso mundo. Não apenas os vivos devem aprender a seguir com
suas vidas sem aquele que partiu, mas quem morreu deve aprender que não faz mais parte
desse mundo.

3.2 Matança

No sexto dia pós-morte, matou-se para o egum. O início dos trabalhos estava
marcado para às 19 horas. Como de costume, aconteceu mais tarde, por volta das 22 horas.
Desde muito antes do horário marcado, a movimentação na casa já é grande. Os filhos de
santo vão chegando aos poucos e já tomam conhecimento com o pai de santo das
atividades que deverão realizar. No sexto dia, não há ritual a ser realizado antes de se entrar
na casa, o que só ocorre depois da missa de sétimo dia.

67
Após cumprimentar quem estava na casa, fui até a cozinha dos fundos para ter
com Neli. À direita, uma porta leva ao pequeno espaço de terreno que não é ocupado por
construção, justamente para ser utilizado em determinados rituais. Toda casa deve ter
fundos. Lá já estava a talha, velas brancas e as obrigações de Sergio cobertas por um de
seus alás, diferente do caso de Tia Lourdinha, em que as obrigações estavam descobertas. É
que devido ao fato de ser filho de Oxalá, o dono do alá, as obrigações são deixadas no
“tempo” de modo distinto das dos demais orixás.

Figura 4: mapa Brasil e mapa Rio Grande do Sul.

Figura 5: mapa de Gravataí e do bairro Morada do Vale I.

68
Figura 6: Casa Pai Odacir do Ogum.

69
Figura 7: planta baixa Casa Pai Odacir do Ogum.

70
Em uma gaiola, que serviria de morada ao peru (animal de Xapanã) de nome
Crô – que, como um prenúncio57, morreu pouco antes de Sergio–, ajudei a colocar as aves
que foram trazidas para a obrigação. Havia aves para Oxalá, Iemanjá, Oxum, Bará e Odé.
Tia Neneca veio para presidir o eru. É ela quem organiza todo o ritual; vale lembrar que no
lado de Oyó o dono de uma casa deve passar o poder para a mão do mais velho que está
presente, conforme a lei da nação.

Para o início da matança, pede-se silêncio e que os prontos se aproximem, da


ordem do mais antigo na religião ao mais novo. Os não prontos assistem de longe, o que é
possível por entre os braços e pernas daqueles que estão mais próximos. A maior parte dos
presentes se amontoa. Muitos participam pela primeira vez, outros já não lembram do
último eru do qual participaram.

Aglomerados no pátio dos fundos da casa estavam os prontos, ao passo que


dentro da cozinha estavam os outros espectadores que, como eu, não deveriam ficar muito
próximos ao buraco. A talha que faz as vezes de buraco é batizada. Como de costume,
batiza-se com farinha de mandioca e coloca-se folha de mamoneira, para que só então o
axorô possa ser ali depositado, juntamente com ele a cabeça das aves. O restante do animal
vai diretamente para bacias, separadas por orixá, para que depois as inhálas (miúdos, patas e
testículos para os orixás masculinos, exceto Oxalá, pois esse recebe animais fêmeos) sejam
separadas e as aves depenadas e preparadas para o tempero. É com elas que se fará o arroz
com galinha, a comida de egum. É importante mencionar que diferentemente das inhálas
de obrigação, que são fritas, refogadas na banha com coloral e outros temperos, as de egum
ficam cruas, só têm de ser lavadas para que não estraguem até o dia seguinte.

Como em qualquer obrigação, inicia-se por Bará. Tia Neneca é quem primeiro
mata, depois Odacir, e esses vão chamando, sucessivamente, os mais antigos na religião. Na
hora de matar para Oxalá, Odacir chama Regina do Oxalá, filha desse orixá que estava
presente, pronta há mais tempo. Filhos de Oxalá não devem se aproximar muito do
buraco, mas por se tratar da morte de um filho desse santo, outras regras se aplicam. No

57
Peru é uma das aves de Xapanã, orixá ligado à morte, à doença e à saúde. Xapanã utiliza sua vassoura para
varrer os males da terra, outrora perfeita, hoje cheia de imperfeições que os humanos criaram. Odacir ganhou
Crô de sua amiga Jane, em SL. Pude acompanhar todo desenrolar dessa história, que culminou na morte do
animal. O peru, como explicou-me Odacir, criado no quintal de casa, varre tudo de ruim, bloqueia o olho
grande e a inveja, também. A primeira ideia foi deixar Crô solto no pátio de sua casa em Gravataí, o que
aconteceu por alguns meses. Devido à sujeira gerada pelo animal, com excrementos e restos de plantas que
ele comia, Odacir achou por bem construir uma gaiola, grande e bonita, pois Crô era de estimação. Uma das
baixas de Sergio no hospital coincidiu com o dia da construção da gaiola, dia em que Crô pulou para o
terreno do vizinho dos fundos da casa (o que nunca havia acontecido) e foi morto por um cão. Quando
perguntei por Sergio para Neli, ela me disse: “a coisa não tá muito boa e o tio [Odacir] ainda ficou mais
preocupado porque o Crô, que é do Xapanã, morreu. Isso não é bom sinal”.

71
entanto, é com parcimônia que a filha de Oxalá deve se aproximar da talha. Após cada ave
cortada, tempera-se a obrigação com mel e dendê. Tia Neneca profere, em voz baixa,
algumas palavras. Odacir também. Pedem pela alma de Sergio, “que ele tenha um caminho
doce”; “uma ida doce”.

Não há rezas. No dia seguinte, Odacir explicou o motivo: Tia Neneca era filha
de egum, assunto que trato mais à frente. Tal condição lhe impôs as rezas de axexé como
tabu. Mas tampouco cantou as rezas de Nanã, que deveriam ser cantadas também. Ela não
podia cantar e ele não sabe cantar. Disse que não dá para fazer como se faz para orixás:
cantar respondendo errado ou errar a pronúncia58, abrasileirar como tantos fazem. A lida
com egum é coisa muito séria. Quando não se sabe, não se faz. Assim é melhor.

A matança é rápida. Diferentemente das feitas por motivo de homenagens,


quinzenas ou quatro-pés, essa é cercada pela tristeza. Com lágrimas nos olhos, Odacir pede
aos filhos e filhas de santo que depenem as aves. “Agora vocês trabalhem um pouco pro
Sergio, que ele trabalhou a vida toda para vocês”. Após a matança, é acesa uma vela branca
atrás da talha, com um protetor contra o vento. Ao lado da vela acesa, pacotes de vela
branca para que ao final de cada vela já se acenda a seguinte. Tamires fica responsável por
cuidar da vela, repor para que o egum não fique no escuro. Assim deve ser até a hora do
eru.

Durante a matança, a cozinha não para. O jantar é preparado para que todos
possam comer assim que as aves fiquem prontas. Logo após o jantar se começa a preparar
aquilo que pode ser preparado véspera, como deixar canjica de molho, cozinhar algumas
coisas, cortar outras, separar as que serão refogadas. Contudo, nada pode ser aprontado

58
A pronúncia correta de todas as palavras em todas as rezas de todos os orixás é obrigatoriedade para que se
possam cantar as rezas. Não pode ser feito um ritual, ainda mais um eru, sem que sejam pronunciadas todas
as palavras que compõem os versos das rezas. O verso de uma reza de Iansã é exemplo do que falo, é motivo
de piadas quando, em vez de cantarem “loqué loqué loquéce”, cantam “eu quero eu quero esse”. Para as
pessoas que conheço de Oyó, tal erro é absurdo. Dizem que, quem se diz de Oyó e canta errado, não é do
“Oyó verdadeiro”. Para ser alguém que puxa rezas, é necessário um longo investimento, geralmente se dedica
uma vida a aprender as rezas completas. Junto com o aprendizado de ouvido, busca-se, paralelamente, em
cursos de ioruba, aprimorar a pronúncia e saber as traduções e histórias correlatas. A tradução não conta toda
a história ou passagem que uma reza comporta, por isso que outras formas de aprendizado não substituem a
passada pelos pais ou mães de santo. São eles que escolhem quando os filhos têm o direito de saber o que
significa cada reza, principalmente quando se trata da reza do orixá de cabeça. Contam que, antigamente, o
Vô Donga da Iemanjá parava os batuques caso ouvisse alguém cantando errado. Já pude presenciar cenas
semelhantes a essa, quando um pai de santo ou orixá para uma festa para corrigir a reza, ou canta mais alto e
lentamente, demonstrando assim o modo correto de cantar. Corrêa (2006) relata conversas sobre o assunto
que teve com Donga da Iemanjá: “Ninguém mais tem fundamento (conhecimento), misturam uma coisa com
a outra, ficam dizendo ‘Xangô baía’, ‘aliança é de loiá’, ‘Ogum macaca’, tudo que é bobagem que aparece na
cabeça! [...] Por exemplo, a versão correta, conforme o Donga, seria: ‘Xangô baín’ e ‘ariansã édi loiá’” (: 52).
O autor chama atenção que esse modo diferente de cantar as rezas foi tomado por Roger Bastide como uma
deturpação de um “modelo original”, o que será interpretado como “mudanças naturais que o grupo do
batuque experimenta [...]” (Ibidem.).

72
antes da missa e do ritual do café da manhã. Só então começa a correria para fazer todas as
frentes a tempo para o eru.

3.3 Eru do Sergio

Como no eru de Tia Lourdes, a preparação para o ritual começa na entrada da


casa, onde, em uma mesinha baixa, oito cascas de coco serviam de pratinhos, dispostas em
duas fileiras paralelas quatro a quatro. Da frente para trás e da esquerda para direita, eram
preenchidos com pemba vermelha, amarela, azul, branca, preta, sabão da costa e,
finalmente, os palitos de dente. Uma bacia de louça ágata branca sob a cadeira continha o
mieró de egum, que leva erva mate. Tudo preparado por aqueles que ficaram na casa desde
a matança. Tal qual realizado na ocasião do eru de Tia Lourdes, essas substâncias deveriam
ser passadas na palma da mão esquerda, com auxílio da mão direita. Ainda que os
conteúdos difiram de um eru para o outro, o modo de se limpar para entrar na casa se
assemelha e marca a necessidade de se limpar o corpo para se participar de um ritual desse
porte. A maior diferença está relacionada aos palitos que, ao invés de contados pelo
número de pessoas que residem com quem está se limpando, devem ser apenas dois, que
são passados sobre o corpo e depois quebrados, dando fim a limpeza.

Após esse ritual, pode-se adentrar a casa. Logo na entrada, o salão já espera
com a mesa do café da manhã posta. Odacir foi o primeiro, Tia Neneca já estava à mesa.
Ele dá uma volta em torno da mesa em sentido anti-horário, no mesmo sentido em que se
dança uma roda para os orixás, mas no sentido contrário ao realizado na entrada do eru da
Tia Lourdes.

Na ponta da mesa que dá de frente para a porta, Tia Neneca tomava seu café,
era ela quem deveria ser cumprimentada em primeiro lugar. Odacir toma a outra ponta, a
do egum. Somente após o término do café da Tia, é servido o café para o egum, com duas
xícaras de café com leite e as outras guloseimas que estavam postas. Além disso, havia um
martelinho com cachaça e outro com vinho doce. A cadeira fica com seu encosto tocando
a borda da mesa.

Regina do Oxalá (antiga filha de santo de Odacir), Neli da Oxum e Mana da


Iansã (antiga filha de santo de Sergio) ficaram responsáveis por todas as miudezas e todas
as frentes, de Bará a Oxalá. Fizeram as comidas de egum e as comidas de santo. As

73
brasileiras, aquelas preferidas de Sérgio, foram preparadas na cozinha da frente. A cozinha
funciona o dia todo, concomitantemente com o ritual do café da manhã e o almoço que
segue. O ritual do café da manhã encerra ao meio-dia. Tia Neneca vai até as duas xícaras
servidas para o egum, pega as comidas que estão servidas para ele, esmaga tudo e coloca
dentro das xícaras de café com leite. Dá uma para Regina, que vai com Odacir despachar o
conteúdo na frente da casa. A outra caneca ela dá para Mana, que vai para os fundos da
casa, para despachar o conteúdo também. O martelinho de vinho doce vai para os fundos,
quem o despacha é Ronaldinho do Aganjú (filho de santo de Odacir). A cachaça vai para a
frente e quem a despacha é Batista do Ogum (filho de santo de Odacir)59.

A mesa é recolhida, tirada do salão e levada até a sala dos fundos. Tudo o que
sobra do café é colocado em uma mesinha em um canto, nos fundos da casa, para aqueles
que chegam mais tarde. Enquanto a mesa para o almoço está sendo arrumada, um grupo de
mulheres trabalha na finalização dos pratos que serão servidos. Um grupo de homens se
ocupa de assar carnes para o churrasco. Assim como no café da manhã, durante o almoço,
também não deve haver lugares vagos.

Logo após o almoço, Odacir começa a falar sobre as rezas de egum, os axexés.
É um daqueles momentos que os filhos de santo mais prezam, quando o pai ou mãe senta
para contar histórias. Odacir relata que não conhece bem as rezas de egum, que para eles
não dá para cantar errado. Diz que quer se dedicar a aprender os axexés. O que é difícil,
pois como certa vez lembrou Tia Aída, são rezas que enrolam a língua. Além disso, não dá
para ficar ensinando, cantando fora de um eru, pois elas chamam os eguns. Odacir comenta
que tudo estava sendo feito certinho, menos os axexés, pois não havia ninguém para puxá-
los. Quando lhe perguntaram da sabedoria de Tia Neneca, contou que ela canta algumas
rezas, mas não todas. Na matança, teria que ser cantado para egum e para as três Nanãs
(Anansurê, Anarauim e Burukê), o que não ocorrera. Conta que ela sabe cantar, mas não
gosta, mesmo quando é obrigada, pois tem uma proibição de sangue. Um tabu, por ser
filha de egum. Aqui, um tabu influenciado pelo parentesco no sangue que acarreta
proibições no santo. Seu pai de sangue era o que se chama de Egum Letí: morto vivo, vivo
morto, pois “nasceu para morrer”, para ser um abiku. Por esse fato, as antigas babalaoas
reuniram-se, enterraram o cadáver num balé, cobriram com areia, ali rezaram por dois dias,
fizeram toda a cantoria de egum para depois desenterrá-lo “vivinho da silva” e não se

59
Assim como as noções de frente e de trás [ou fundos] – o ‘lombo’, como referido no capítulo anterior –
são fundamentais para a noção de corpo e de pessoa no batuque, elas são cruciais para se entender o espaço
da casa e como desenvolver-se-á cada obrigação. A rua, a mata, a praia, os cruzeiros não são senão extensões
do espaço sagrado.

74
tornar um abiku. Ela é filha de um egum, por isso tem a proibição de cantar reza de egum.
Contudo, como estava lá para presidir o eru, teve de falar com o egum durante a matança.
Esse fato é responsável, também, por todo um “facção”, como diz Odacir, do Oyó não
cultuar eguns de modo nenhum.

***

O eru propriamente dito teve seu inicio por volta das 22 horas. Preta do Oxalá
foi quem puxou as rezas e tocou o agê. Pelo lado de Oyó, a primeira reza é “Bará Bô”.
Todos devem dançar na roda com os pés calçados, devem cantar (respondendo) também.
Logo nas rezas de Bará, alguns orixás começam a chegar no mundo. Chegam gritando e se
contorcendo, uma chegada dolorida, triste, de despedida, como me disseram. O
procedimento pós-chegada é ir aos fundos da casa, ainda calçados, até a talha e as
obrigações, onde cumprimentam o egum. Não se cumprimenta o quarto de santo. Alguém
é encarregado de acompanhar cada orixá que chega. Quando os orixás voltam para o salão
são quebrados e o encarregado lhes tirara os calçados (como na descrição do eru, no
Capítulo anterior).

Em determinado momento, um dos orixás mais antigos coloca o dedo


indicador da mão direita sobre a orelha direita, olha para as pessoas que fazem santo60 e
ainda não se ocuparam, e sopra de modo bastante suave, olhando-as nos olhos. A cena é
uma das mais lindas que já presenciei: como num efeito dominó, os santos vão chegando,
estendendo cabeça e tronco para trás, um em seguida do outro até que quase todos os
orixás da casa chegam no mundo. Aqui, além de uma diferença com o outro eru, encontra-
se uma prática bastante comum no batuque: chamar um orixá. Com sopros, frutas, flores,
doces, palavras ou gestos, orixás podem ser chamados. Eles não chegam apenas quando
desejam, mas há momentos em que o pai de santo, ou alguém mais antigo, pode lhes
invocar. Outra diferença foi de que, por se tratar do eru de um filho de Oxalá, Oxalás,
Iemanjás e Oxuns chegaram e dançaram. De modo mais lento, com participação menos
ativa na hora de arrumar as obrigações e quebrá-las, mas presentes. À exceção de oxalás
(por ser uma despedida de um Oxalá), os outros santos velhos não irão até a praia, a
Kalunga, finalizar o eru. Ficam em casa, à espera dos que foram. Nesse caso, o eru, ritual
do qual os orixás velhos, ou povo do mel, não participaria, impregna-se da presença dos

60
“Fazer santo” é sinônimo de “se ocupar”.

75
orixás da praia, da doçura e da leveza. Orixás que chegam com suas características
atenuadas pela natureza do ritual, que é influenciado pelas mesmas, sendo tomado pela
natureza do mel, não sendo marcado pela força do dendê, como noutros erus. Deve ficar
claro, aqui, que ao menos duas naturezas de substâncias dividem os orixás e todos os rituais
a eles ligados: o mel e o dendê.

Os orixás que já estavam no mundo foram colocando a toalha branca e


levando as comidas brasileiras – os pratos favoritos do Sérgio (bife, ovos fritos, arroz,
salada de tomate e alface, pudim, flã (industrializado) e refrigerantes). As bebidas são
agrupadas: refrigerante, cerveja branca e preta e o atã (bebida de Ogum, feita à base de
frutas). Em uma das pontas da toalha, as comidas brasileiras; no meio, as frentes dos orixás;
logo após, as comidas de egum – os cozidos (legumes e carne) e o arroz com galinha.

E as rezas seguiram, como nas festas: primeiro os orixás masculinos, menos


para Xangô, orixá para o qual se cantou apenas na hora da quebra das obrigações. Após a
reza de Ossanha, pediram para que iniciassem as rezas de Bokum (qualidade de Oxalá). Foi
durante essa reza que a limpeza foi passada no corpo dos presentes. Diferentemente do eru
de Tia Lourdinha, havia a frente do Bará, varas de marmelo do Ogum, uma galinha amarela
da Oxum e dois pombos brancos de Oxalá, fechando o ritual com este orixá.

Simultaneamente, na mesa posta em toalha branca estendida no chão, três


sacos brancos forrados com folhas de mamoneira servem como depósito para tudo que
fora servido. É durante a reza de Bokum que os orixás mais antigos vão até os fundos da
casa buscar as obrigações de Sergio. Tudo será quebrado, rasgado ou arrebentado: seus
axós, alás, guardanapos, toalhinhas, guias, manteigueiras, sopeiras. Quando as obrigações
chegam, é a reza do Oxalá Talabô, o santo de Sergio, que é cantada. Na hora da primeira
paulada para quebrar a sopeira de Oxalá, um Xangô pede que cantem o Aludjá. Assim que
o barulho da louça sendo quebrada toma conta do ambiente, orixás que não haviam
chegado vêm ao mundo, e quem ainda não estava emocionado cai em choro, em
desespero. Mas é preciso que a reza prossiga. Como dizem, “até na hora da morte
batuqueiro faz festa”. Com muita dificuldade, aos poucos, as rezas voltam a ser cantadas
por todos.

Como descrito no capítulo anterior, tudo deve ser destruído, os pombos, as


galinhas, as comidas. Matam-se as aves com seus pescoços virados para trás, sem sangrar.
Os orixás passam a obrigação em toda casa, para que só então os pacotes possam ir para os

76
sacos também. Balas e flores são distribuídas, para que cada um enfeite os sacos e peça uma
ida doce para o egum.

Depois de se colocarem todas as obrigações nos sacos, ascender velas e apaga-


las com o ossagéu, é hora de pegar os sacos pelas pontas e embalá-los. Além disso, nada do
que foi feito em casa nesse dia fica em casa, vai tudo para praia. Até mesmo coisas que
estavam na geladeira e que não foram usadas devem ser descartadas. Cada um dos sacos é
segurado por uma Iansã (Rainha dos eguns) acompanhada de outro orixá. É o único
momento em que um axexé é tirado. Três carros já esperam para levar tudo à Kalunga.
Durante o axexé, embalam-se os braços, num movimento de trás para frente, que se
assemelha ao tocar/empurrar para fora. Os braços não param de balançar, nem a reza para
de ser cantada, até que os carros saiam.

O eru ainda não terminou. É preciso que na Kalunga – que em Porto Alegre é
feita (se utiliza o verbo fazer, “fazer a praia”) no Rio Guaíba – tudo seja entregue para
Nanã Burukê. Quem fica na casa não pode sair até que os que saíram voltem. Ao sinal de
que os carros chegaram, todos ficam em pé e os orixás se cumprimentam. Alguns deles
cumprimentam algumas pessoas também. Por fim, colocam os calçados nos orixás, trazem
um grande alá onde todos os orixás se agrupam. Com um gole d’água, o encarregado
asperge o chão, despachando o orixá por inteiro, sem passar pelo estado de axere.

Ao final do eru, Odacir escolhe algumas pessoas para ficarem ajudando na


arrumação da casa e do quarto de santo. As quartinhas devem ser esvaziadas e depois
receber água nova. Além disso, todas as cortinas, todas as toalhinhas, todas as roupinhas de
imagens e das bonecas, tudo o que estava no quarto de santo e no salão deve ser trocado,
para não ficar igual ao que estava antes de ser feito o eru. Tudo deve ser renovado. Assim,
ao mesmo tempo em que há uma continuidade da pessoa batuqueira na passagem da vida e
morte, há um rompimento forte que deve ser feito para que esta continuidade se realize.

3.4 Assentamentos e Imagens

Passo agora a outro acontecimento, que se liga à descrição acima por relacionar
diferentes tipos de morte e modos de morrer, pois objetos e imagens têm vida e o
prolongamento dela, através de momentos críticos, assemelha-se ao que ocorre com a
pessoa batuqueira em uma troca. Em fevereiro de 2012, a casa de religião que Pai Odacir

77
mantém em SL incendiou devido a um curto circuito na rede elétrica, o que destruiu por
completo o quarto de santo e a cozinha que também é uma das partes mais importantes de
uma casa de religião – é nela que se fazem as comidas para os orixás que trabalham à base
de alimentos preparados e posicionados de diversas formas nos feitiços (também chamados
de oferendas, serviços ou trabalhos). A sala de estar, o banheiro, o quarto de dormir e a sala
de búzios foram atingidos por fumaça forte, o que destruiu, também, parte dos objetos
desses outros cômodos. Inatingida apenas Oxum, na imagem de Nossa Senhora Aparecida.
À sua volta, os restos daquilo que fora um local sagrado.

Os jornais noticiaram o milagre da santa que guardou a casa. A foto de Nossa


Senhora Aparecida chamuscada sobre os escombros era prova cabal de que a casa estava
sob sua proteção. Contudo, comentários de leitores oscilavam entre o sentimento de pena e
as observações mais raivosas. “Casa de feiticeiro tem que queimar”. “Tanto fez, que teve o
que mereceu”. Na contramão das agressões publicadas e dos comentários que “se ouviu”,
um número significativo de clientes e amigos fez um mutirão para alugar uma nova casa,
salvar o que era possível – como roupas, móveis e demais utensílios domésticos – comprar
o que faltava e levantar o ânimo de Pai Odacir. O babalau pensou em abandonar sua casa
em SL, pois seus assentamentos e o de seus filhos ficam na casa de Gravataí. Além disso,
ele possui outra casa em Laguna/SC. Foi a força da gente amiga que não o deixou desistir
de tudo aquilo que construiu em SL.

Na cidade pertencente ao chamado Sete Povos das Missões61, Odacir cuidou de


imagens centenárias – que continham o axé de antigos pais e mães de santo e de seus orixás
–, assentou um Bará de trabalho (orixá não pessoal, mas da casa), fez e cultivou muitas
amizades. Filhas de Santo fez duas. Fez quartinhas para segurança de crianças também.
Perder, no fogo, imagens, quartinhas e outros objetos religiosos tão antigos foi o que mais
lhe doeu. Preferia que a parte não propriamente religiosa da casa tivesse queimado por
completa: perder a cama, as roupas e tudo. Essa dor ainda não superada serviu como
motor para que trabalhasse mais. Foram as clientes que compraram objetos novos – tanto
rituais, quanto profanos – e cuidaram de arrumar aquilo que podiam. Além disso, recebeu
muitas doações de objetos antigos: imagens, móveis, eletrodomésticos. A algumas quadras
da casa queimada, uma nova casa religiosa ganhou vida, foi feita. (A antiga em ruínas

61Conjunto de aldeamentos Guarani fundados por jesuítas entre os séculos XV e XVI, compostos pelos hoje
municípios de São Luiz Gonzaga, São Francisco, São Nicolau, São Miguel, São Lourenço, São João Batista e
Santo Ângelo.

78
aguarda pelo destino que a proprietária do imóvel lhe dará). O que, como deverá ficar
claro, relaciona diretamente a morte à vida e o desfazer (ou destruir nesse caso) ao fazer.

3.4.1 Um assentamento sob suspeita

Bará, orixá de frente, dono dos caminhos, das portas, das chaves, dos cruzeiros
abertos, dos mercados, da fartura, do movimento e da sexualidade é o primeiro a receber
tudo no batuque. É o orixá que se homenageia, em primeiro lugar, com presentes e rezas,
tudo é dado primeiro a ele. Caso contrário não se chega aos outros orixás, nem a lugar
algum. Protege a casa e a rua. Por isso, mesmo tendo Bará e Lôde (Cf. planta baixa, neste
capítulo) em Gravataí, Pai Odacir assentou um Bará de trabalho para proteger a casa em
SL.

Lôde tem sua casa vermelha na frente das casas de religião, Ogum Avagã pode
morar com ele, são os chamados orixás da rua. Os outros barás são assentados dentro do
quarto de santo onde estão os demais orixás; contudo, ficam em uma pequena casa de
madeira pintada de vermelho, no chão, nunca em prateleiras. Em SL, o Bará morava dentro
de casa, no quarto de santo, em sua casinha vermelha.

Com o incêndio, a casinha foi queimada, seu alguidar e suas ferramentas


também; o ocutá ficou chamuscado. O fato é que ainda não se sabe se aquela pedra (o
ocutá) está viva. Na casa nova, ele (Bará) está sob uma árvore nos fundos da casa62,
encostado na raiz, tomando sol e chuva, em contato com a natureza e seu movimento
(maré), no “tempo”. As cinzas da antiga casinha, o alguidar, a quartinha e as ferramentas
foram despachadas no mato. Já tinham perdido sua vida, seu axé. O ocutá não. É preciso ir
aos mais velhos na religião e pedir para que joguem e vejam o destino (odú) dessa pedra: o
mato ou a uma nova casinha. No caso da segunda hipótese, Bará necessitará de uma série
de cuidados e ofertas. Carinho, suas folhas sagradas, ori, dendê, sangue de cabrito e de
galos vermelhos. Tudo isso transmite axé. O axorô é a forma mais concentrada de vida;
mas as mãos de um pai de santo, ao tocarem uma pedra, a envolvem de axé forte também.
Caso seja necessária outra pedra, essa também deverá passar por diversos rituais.

62Como já descrito, os fundos de uma casa de religião é local destinado a obrigações para os eguns (mortos);
mas também é onde se plantam outras obrigações, como seguranças de vida. É, portanto, um lugar que
atende às demandas de vida e de morte, e, no caso de suspeitas, do estado em que não se está nem vivo, nem
morto.

79
Os ocutás são encontrados na natureza ou em casas de religião de conhecidos,
como o Ossanha de Pai Odacir, encontrado na casa de sua irmã de santo. A pedra do orixá
dono das folhas e médico dos orixás se assemelha a um pé, símbolo do santo que não tem
a perna esquerda. Como quase tudo na religião, é através do jogo de búzios que se
confirmam as coisas, neste caso, se o assentamento será aceito ou não pelo orixá.

3.4.2 Imagens Cruas e Imagens Preparadas

Semelhante à noção de “viva” ou “morta” utilizada ao se falar das pedras


(ocutás) está a noção de “crua” ou “preparada” aplicada às imagens de santos. Quando se
vai a uma flora (loja especializada em artigos religiosos),encontram-se imagens cruas; assim,
não adianta acender velas, dar comida ou rezar para elas. É preciso fazer um mieró para a
imagem que deve permanecer imersa nesse preparado por alguns dias. O correto é que tal
ritual seja realizado dentro do quarto de santo. Quando das matanças, derrama-se o sangue
do animal correspondente ao orixá na imagem.

Na nova casa, um novo quarto de santo, novas prateleiras, novas imagens,


tudo em processo de transformação do “cru” para o “preparado”, de “talvez-morto” para
o “vivo”. Assim como no novo quarto de jogar búzios, mesa e cadeira novas, porém com
búzios antigos. No quarto de santo, prateleiras novas, toalhas e castiçais antigos. Além
disso, as ervas e o axorô.

A partir dessa breve descrição sobre a destruição e reconstrução da casa de Pai


Odacir do Ogum, podemos depreender uma série de obrigações, o encadeamento de ações
que fizeram com que uma casa queimada desse lugar a um novo templo, com o antigo axé
(refeito e renovado – ou axé sobre axé, pois, como dizem, nunca se perde o antigo axé ao
se fazer um novo). Além disso, fica em evidência a aplicabilidade das noções de vida e
morte aos assentamentos e às imagens (traduzidas nas noções de cru e preparado). Além
disso, a morte de um ocutá é de outra natureza que a morte de uma pessoa, pois um
assentamento necessita, por vezes, ficar no “tempo”, sob suspeita de morte, para que então
se afirme se ele está vivo ou morto. Diferentemente do caráter negociável da morte
envolvido em uma troca de vida, o que a suspeita demonstra é que existe algo, um estado,
no qual a espera, ou o curso do tempo, é crucial para se saber se estamos diante de algo
morto. Não há negociação, mas espera.

80
3.5 Continuidade, ruptura e a condição homorgânica da pessoa
batuqueira

No início, sugeri que ares de conclusão estariam difusos ao longo deste


capítulo. Isso se deve principalmente ao fato de que ao justapor a descrição de uma
suspeita de morte logo após a descrição de um ritual que desliga aquele que morreu dos
vivos, e vice-versa, a noção de morte estende-se mais uma vez, passando pelo negociável,
pelo inevitável, pelo perigo e, agora, pela sua qualidade de dúvida. Ainda que se trate de
diferentes tipos de morte (pessoa, assentamento), o uso do mesmo termo para se referir a
tal fenômeno sugere que deuses, pessoas e “objetos” compartilham dessa qualidade que,
em princípio, sugere a ideia de fim – ainda que um fim fabricado e ritualizado. Sugiro,
agora, que, ao dialogar com autores clássicos da literatura sobre a morte no batuque e ao
falar sobre esse tema tão recorrente nos estudos sobre religiões de matriz africana, os dados
de campo apresentados fazem outro tema recorrente, o fazer, dialogar com o desfazer.
Imbricando vida e morte e fazer e desfazer, não como dualidades, mas como mesmo e
diferente a um só tempo, um participando do outro. É, portanto, mais de uma
continuidade transformadora, propiciada por uma ruptura violenta, do que séries de
rupturas e cortes ou de simples continuuns existenciais.

Busco, agora, conectar meu argumento, eminentemente etnográfico, ao que


importantes etnógrafos escreveram sobre a morte no batuque gaúcho. Bastide (1985) toma
quase termo a termo a descrição de Herskovits (1943) sobre a relação dos negros gaúchos
com a morte e com os mortos. Os dois falam do axexê em Porto Alegre, levantando
pontos como a crença na reencarnação, na continuidade do culto aos antepassados na
forma de eguns e na perda de africanidade pela não existência das sociedades de eguns,
como a da Ilha de Itaparica/BA.

A series of rituals called acheché, which endure for seven nights after death and separate the
dead cult-initiate from his cult-group and his family, is held when a member of one of the
Porto Alegre cult-groups dies. At one house where this cult was discussed, it was described
how a "four-footed animal'- an important sacrifice in terms of what is given in this cult-is
offered to the spirits of the dead on the last night of the acheché, in the manner customary in
other parts of Brazil. As in the North, the spirit of the dead is interrogated, and through
divination the wishes of the deceased are determined regarding the disposition of the ritual
paraphernalia he used during his lifetime. If the god so wills it, these objects, and the stone
sacred to his god, are made up into a bundle, the carrego, which is taken to a beach to be
carried away by current or tide. In addition to the sacrifices offered when a cult-initiate
dies, the egum are "fed" annually. The important offerings for the soul of any cult-member
are made on the first, third, fifth, and seventh anniversaries of his death. Of these, the
seventh year offering has the greatest significance, since the spirit of the dead is then
definitively "sent away." After this time, the surviving members of the family have no
further obligations toward the spirit of the dead relative which participates casually in

81
offerings given in connection with the observances decreed by the cult of the dead
(Ibidem: 507-8).

De acordo com Bastide, “Não é senão depois de sete anos que o espírito do
morto é finalmente despachado. Porém ele pode voltar à terra; os negros de Porto Alegre
creem na reencarnação como seus ancestrais africanos e explicam a continuação de suas
tradições pelo retorno dos orixás através dessas reencarnações dos antigos nos corpos dos
recém-nascidos” (Bastide 1985: 293). De modo diferente ao que o autor relata, a partir de
minha experiência de campo com o povo de Oyó, penso que alguns pontos merecem
melhor exame. Em primeiro lugar, a reencarnação não é algo evidente como sugere
Bastide; é, antes disso, um ponto controverso, tema de debates. Ainda que alguns
batuqueiros concordem com a ideia de reencarnação, o eru explicita uma relação que se
transforma de forma distinta. Não a transformação da alma (porção do morto) do morto
por ligação a novos corpos, formando uma nova pessoa. Mas uma transformação que faz
do morto ou egum, uma pessoa que viverá em Orum junto a seu orixá, não havendo como,
nem porque, de sua volta.

Outro ponto é que, apesar das diferenças temporais e de nação, existe certa
estrutura nas diferentes descrições dos ritos fúnebres, com a importante exceção da
continuidade de culto aos antepassados que não encontramos – pelo menos através de
rituais específicos. O que Odacir, meu principal informante, disse-me certa vez é que: “um
orixá que já se foi pode até voltar, mas nunca como orixá novamente”. O que ele pode vir a
ser, o pai de santo prefere deixar em suspenso.

Além de Herskovits e Bastide, Norton Corrêa (2006) foi o único antropólogo a


dedicar uma parte de seu livro “O batuque no Rio Grande do Sul” à relação entre vivos e
mortos. É em seu estudo que se encontra a melhor e mais completa descrição do aressum,
o rito fúnebre nos batuques. O aressum, assim como o axexê no candomblé (ou o sirrum
no candomblé angola), é realizado quando da morte de algum membro da casa de religião
e, também, todo ano, quando se mata para os eguns, nos fundos da casa, em um buraco
chamado Balé. Podemos ver em sua obra que os mortos, no batuque, também se
transformam, não do mesmo modo como descrevi para o lado de Oyó. Para falar do
assunto, o autor utiliza-se da noção de rito de passagem de Van Gennep, na qual o egum,
durante o aressum, está em estado de liminaridade, até sua passagem, por meio da
enganação feita pelos vivos (os vivos enganariam os eguns com o eru, dando-lhes

82
oferendas, fazendo-os pensar que ainda são bem quistos, para depois afastá-los e doutrina-
los no balé), para a categoria de morto.

Além disso, para o autor, os ritos fúnebres seriam anti-rituais, nos quais tudo é
feito de forma contrária ao realizado nos rituais para os deuses (orixás). Minha experiência
de campo vem demonstrando que os batuqueiros do oyó tomam o eru como um dos
rituais mais sérios da religião. É óbvio que os batuqueiros não utilizam o conceito de anti-
ritual, nem mesmo é isso que Corrêa afirma. Ainda assim, não é de anti-ritual que se trata, e
tomo aqui a crítica feita por Barbosa Neto (2012) à descontinuidade contida no “modelo
do rito de passagem”, apostando na continuidade e repetição:

Se, no caso descrito por Verger [dos Abikus], o que acontece imediatamente após o rito é
uma espécie de retorno a um momento inicial da vida, anterior à codificação social que a
organiza, no caso daquele jovem, e todos os outros análogos a ele, o que sucede depois é
uma repetição do próprio rito, cujo propósito é impedir que aquela doença retorne. É aqui
que se mostra como particularmente complexa a descontinuidade entre o “antes” e o
“depois” muitas vezes pressuposta pelo modelo do rito de passagem. Se a iniciação muitas
vezes ocorre em função de eventos que começaram antes dela, isso nos permite pensar que
a pessoa que irá se iniciar já se encontra, de algum modo, no interior da religião. Iniciar-se,
nesse caso, não é simplesmente, ou não é apenas, fazer a pessoa entrar, e sim redefinir a sua
maneira de já estar dentro. Existe um ‘antes’ antes do ‘antes’ da iniciação. A ruptura,
contudo, não se complica apenas para trás, no momento de definir onde passa o corte, mas
também, e talvez sobretudo, para frente, naquilo que acontece depois do corte. Ocorre que
a iniciação sempre põe a delicada questão de sua própria continuidade. Se ela, como disse
antes, é uma prática que visa a pôr termo a uma série de eventos negativos na vida de
alguém, não se pode achar que uma vez alcançado esse resultado tudo então estará
resolvido, tendo-se a partir daí a segurança de que a tal série não poderá voltar. Até o fim
da vida essa pessoa deverá repetir periodicamente o chão, submetendo-se a ritos cuja
estrutura é em tudo semelhante à do primeiro. [...] o ritual não é invulnerável ao seu
próprio efeito, e assim, como se pode notar, ele não pode interromper definitivamente a
circunstância que o gerou, mas sim inseri-la em uma série de transformações contínuas cuja
interrupção pode provocar o retorno à situação anterior. O ritual, portanto, não introduz a
solução por uma ruptura definitiva, mas pela repetição contínua de si mesmo, isto é, pela
repetição da transformação que é o seu efeito. O depois seria assim como a continuação da
ruptura entre o “antes” e o “depois”. A descontinuidade que ele produz é inseparável da
sua continuidade (: 295-6).

Corrêa, influenciado pelas noções de Van Gennep, para tratar do ritual,


identifica no batuque todas as fazes descritas pelo último. A inversão dos “ritos fúnebres”
em relação às festas (batuques) nunca é completa, como busquei descrever. O
detalhamento etnográfico demonstra as alternâncias, os diferentes ritmos. Meus amigos e
parentes contam, por exemplo, que o eru é o único ritual do qual todos participam: mortos,
vivos e deuses, s Sendo o ritual em que a comunicação, no mínimo, entre esses três
mundos acontece.

A morte e o ritual a ela destinado não pode ser compreendida como o inverso
perfeito (ou simétrico) da vida, como já vimos no capítulo anterior. Está, antes, mais

83
próxima de algo que por momentos (o tempo e seus ritmos) comunga com os deuses e
com os vivos dos mesmos acontecimentos. Os rituais de desligamento não são anti-rituais,
mas complexos rituais de transformação das relações e de provocação de mudanças de
tempo e espaço, como o morto na terra que é vivo em Orum. No batuque, existe apenas
tempo e seu movimento, a morte trata de quebrar um tempo de vida para promover um
tempo de morte. Tempos que se contraem num só, dividindo-se em espaços ou dimensões:
morte aqui (na terra), vida lá (em Orum). Lembro-me de Odacir falando de Nanã Burukê
que “é início e fim, é vida e morte. E início é fim e vida é morte”. É, portanto, o eru que
garante a condição homorgânica do batuqueiro, é isso que impede uma clivagem na
duração da pessoa, o que a tornaria linear.

***

Neste capítulo, através da descrição do eru de Sergio do Oxalá e dos


acontecimentos que sucederam o incêndio na casa de Pai Odacir do Ogum, tratei, com
base na etnografia, de vida e morte e seus correlatos (início e fim, cru e preparado) como
experiências homorgânicas. Além disso, o diálogo com outras etnografias levou à leitura
dos rituais fúnebres para uma chave diferente da dos ritos de passagem, como Barbosa
Neto (2012: 295) já notou, apostando na implicação mútua entre continuidade e
descontinuidade. Somada a essa proposta, o ritual do eru trata de impor a ruptura violenta
como propiciadora do fazer, implicando mutuamente o fazer no desfazer e vice-versa. O
que chamei de condição homorgânica.

84
Conclusão: fazer, desfazer e refazer

Quando estava terminando a dissertação, comentei com Odacir os rumos que


o texto tinha tomado, no que ele me brindou com a história que em minha opinião conecta
todo meu argumento. Odacir deu mais detalhes da vida daquela que foi o início da nação,
Mãe Emília, que jaz no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, mas
encontra-se em Orum, ao lado de Oyá Ladjá, orixá que reina absoluta sobre a nação de
Oyó.

Odacir contou que Mãe Emília da Oyá Ladjá foi uma princesa africana que
chegou ao Rio Grande do Sul pelo Porto de Pelotas e lá aprontou seus primeiros filhos e
filhas de santo. É, pois, em Pelotas, que a “bacia” de Oyó tem seu início. Mais tarde, Mãe
Emília se muda para o bairro Menino Deus, conhecido na época como Areal da Baronesa,
em Porto Alegre. É lá que abre sua casa e se consagra como uma grande babalaoa, fazendo
história e grandes babalaus e babalaoas, seus filhos. Manteve boas relações com políticos e
policiais, por isso, mesmo na época em que os batuques eram proibidos, deu uma das
primeiras festas religiosas abertas. Sua personalidade austera e matriarcal fez com que
impusesse regras de família e respeito à senioridade de modo rígido – o que não era
incomum a quase todos os lados do batuque. Suas regras, porém, obrigavam os filhos e
filhas de santo a dar a cabeça de seus filhos de sangue para ela assim que nascessem. Assim,
a família de sangue era criada dentro da mesma casa de santo e as crianças tinham suas
cabeças lavadas por Mãe Emília. O que fazia parentesco de santo e de sangue andarem
juntos.

Acabou aprontando muitos filhos em Porto Alegre, desses, o que Odacir


chamou de “uma turma nova” que deixou de seguir à risca as regras da matriarca. Tal
comportamento causou-lhe desgosto pela vida e pela religião. Triste com tal situação
colocou sua mãe (Iansã) e suas demais obrigações em um balaio, foi até a beira do Rio
Guaíba (Lago Guaíba), chamou um barqueiro e pediu que a levasse até o meio do Rio,
onde despachou sua orixá. Quando voltou, reuniu seus filhos para conversar. Oyá Ladjá
chegou no mundo e contou da decepção com a família de santo, disse que seus filhos
procurariam uma mãe e nunca mais a encontrariam e que, além disso, uma Iansã no lado de
Oyó nunca mais poderia rir. Logo após, Mãe Emília viria a falecer, e foi somente quando
os filhos procuraram o assentamento e as obrigações de Iansã, para prestar a última
homenagem no eru e não a encontraram é que entenderam o que sua mãe de santo dizia.

85
Com sua morte, os filhos que seguiram na religião tornaram-se mais apegados aos preceitos
da matriarca e, até hoje, procuram manter aquilo que Mãe Emília e sua Oyá Ladjá
ensinaram.

***

Conclusão talvez não seja o mais apropriado para as pretensões deste trabalho.
Não se trata nem de fechar um pensamento, que na natureza própria do tema descrito ao
longo dessas páginas, mostrou-se permanente (a ruptura abrupta existe para a continuidade
necessária). Tampouco, trata-se de elencar uma série de considerações sobre o que foi
exposto até agora. Para fazer jus à riqueza do que meus amigos me ensinaram sobre os
batuques de Oyó, acho interessante voltar o texto para o ainda não descrito, o que está para
fazer. Procuro, assim, elucidar alguns pontos levantados ao longo dos capítulos.

Bastide (1983) aponta uma importante distinção entre a noção kantiana de Ser,
na qual se existe ou não (sem a possibilidade de intermediários entre esses dois estados) e
aproxima a concepção africana de pessoa (personalidades) à medieval. Para os afro-
religiosos “existe-se mais ou existe-se menos, de acordo com a participação63” (: 371).
Participação trata da consubstancialidade entre o que traduzimos como pessoas, coisas e
deuses, e o ritual da lavagem de contas demonstra bem esse conceito: “Numa palavra, é
preciso que exista no colar um certo poder de atração da força divina, uma simpatia
preestabelecida; é preciso que as contas sejam um chamado, uma vontade de atração, sem o
que a participação não poderá se estabelecer. [...] Um observação do mesmo gênero cabe à
pessoa que vai usar o colar” (: 367). Ainda, “os afro-brasileiros exprimem para melhor
compreensão dos profanos, por estes termos católicos: “Todos nós temos nosso anjo da

63 Conceito extraído do pensamento de Levy-Brühl. De acordo com Goldman (1994), para Levy-Brühl:
“existiria pelo menos um elemento comum a todas as representações coletivas primitivas, que poderia
permitir a descoberta dessa lei geral [lei da participação]” [...]. ‘Eu diria que, nas representações coletivas da
mentalidade primitiva, os objetos, seres, fenômenos, podem ser, de modo incompreensível para nós, ao
mesmo tempo eles mesmos e outra coisa que eles mesmos. De modo não menos incompreensível, emitem e
recebem forças, virtudes, qualidades, ações místicas, que se fazem sentir fora deles, sem que deixem de estar
onde estão’” (Levy-Brühl 1910: 77 apud Goldman 1994: 198). Ainda é importante lembrar que Goldman
(1984: 185-6) avança na discussão ao sugerir que o único Ser que atinge a plenitude é o orixá geral,
mitológico, não o individualizado feito ritualmente. Além disso, Goldman (2009: 134) vai tratar da iniciação
como uma questão de “participação mútua”, o que, segundo Mãe Ilza, seria uma questão de “lapidação”, não
de “produção”. É que as coisas no candomblé não seriam feitas a partir do nada, mas já existiriam, esperando
para serem feitas. Os trabalhos de Goldman (1984 e 2009) tratam de complexificar o uso do conceito de
participação em Bastide e de sua noção de pessoa no candomblé, sugerindo que não existem nem um ser
completo e uno (Goldman 1984: 185), nem um não ser, pois nada é criado a partir do nada (Goldman 2009:
134).

86
guarda”. Por conseguinte, nossa “cabeça”, assim como o colar, são um convite à
participação” (: 368). Trata-se da ideia de que as coisas, pessoas e deuses serão postos em
participação, porque já compartilham uma mesma natureza, se posso dizer assim. É por
isso que a feitura não deixa, em última instância de ser um refazer ou fazer o que já está
pronto para ser feito. Fórmula essa melhor resumida na ideia de lapidação apresentada por
Goldman (2009),

Dona Ilza, a mãe-de-santo do Tombenci, diz, como vimos, que a iniciação no candomblé é
um problema de “lapidação”, mais que de produção. Diz também que a relação entre filha-
de-santo e orixá é de participação mútua, não de propriedade — e isso ainda que ela se
refira ao seu santo como “minha Iansã” e que também diga que ela própria “é de Iansã”.
Nessa direcção, já deve ter ficado claro que a expressão “santo bruto”, utilizada para
designar o orixá antes da iniciação, não deve ser inteiramente compreendida no sentido de
que se trata de um santo “violento”, manifestando-se numa pessoa passiva, mas no sentido
em que ambos, santo e pessoa, constituem uma espécie de pedra preciosa à espera de ser
descoberta e lapidada (: 134).

Passo, agora, à descrição do fazer, aonde elementos ainda não apresentados no


desfazer surgem elucidando alguns aspectos de tudo que envolve os ritos fúnebres e a
posterior feitura da pessoa em Orum. Penso as duas feituras (na terra e em Orum) como
homólogas, mas diferindo-se no percurso até o apronte na terra e a reconstrução total em
Orum. Pessoa, objetos e o orixá de cabeça que, como Bastide já observou, desde sempre
compartilham algo que os “convida” a participarem uns dos outros, manterão sua ligação
feita na terra no pós-morte. A natureza da relação é que sofre modificação, passando de
uma participação que se funde em momentos rituais, para uma convivência ordinária, na
qual não se é ocupado pelo orixá, mas se vive com ele, lado a lado. Contudo, não é apenas
essa tríplice relação que se transforma, mas a relação do morto (egum) e de seu orixá com
os vivos e os outros orixás da família de santo.

Fazer

Como bem notou Bastide (1983), no candomblé, fazer uma pessoa é um


processo lento, assim como o de desfazê-la. No batuque gaúcho não é diferente. Contudo,
esses rituais não são etapas que devem ser percorridas na ordem de
compromisso/obrigação envolvidos.

87
Pode-se, por exemplo, chegar a uma casa de religião como um freguês, para
jogar búzios e receber de resposta dos orixás a necessidade do apronte, ou de um borido.
Em outras palavras, a necessidade de se engajar numa relação familial com adeptos e os
deuses do batuque. Também é possível estar a muito tempo na religião e o orixá de cabeça
não exigir maiores obrigações. Como Dona Rosa sempre comenta “não se dá coisa demais
pros pais [orixás]”, isso, segundo ela, prejudica a vida de um filiado tanto quanto não dar o
que o orixá pede. Como se diz, “tudo [na religião] a seu tempo”.

Existe uma qualidade de pessoa que nasceu para a religião. Outras apenas farão
uso como fregueses ou como filhos com menores obrigações. No caso das primeiras, o
orixá tratará de levar aquele que não é criado no ambiente da casa de religião para iniciar
sua entrada para o batuque. Por motivos de saúde, falta de dinheiro, problemas
relacionados à vida amorosa, ou até distúrbios aparentemente psíquicos ou de ordem
moral, o orixá fará seu filho chegar a um pai ou mãe de santo. Ser um pesquisador
(antropólogos, historiadores, biólogos, folcloristas, psicólogos, etc.) também pode ser o
meio encontrado pela divindade para se aproximar de seu filho. Tais acontecimentos não
deixam de ser pensados como problemas em si ou como carreiras (pesquisadores) que
devem ser levadas a sério, apenas se acrescenta a causa mais profunda ao já sabido. Dizem
que se entra na religião “por amor ou dor”64. Neli tem uma perspectiva interessante sobre
religião e orixás, na qual orixá e religião são coisas diferentes para cada pessoa, “para uns é
amor, para outros a cura de uma doença, para outros um emprego”.

É a partir da ordem do orixá que se fará uma pessoa religiosa, suas obrigações
e os vínculos que essa dupla feitura implica. Nessa espécie de retrospecção do fazer para se
chegar ao desfazer, que estou apresentando, não cabe um maior detalhamento da feitura,
ou melhor, do apronte no batuque de Oyó, mas apenas elencar relacionamentos e
aquisições que compõem o adepto, seu orixá e seus objetos rituais. Apronte, como Neli me
explicou, é utilizado ao invés de feitura, pois a ideia é a de que não se faz um orixá, ele já
existe desde sempre, o que se faz é aprontar a pessoa e doutrinar um orixá quando ele
ocupa seu filho, o que está próximo ao já descrito sobre a lapidação no candomblé
(Goldman 2009: 134).

Descrevo, portanto, a confirmação (ritual que repete o apronte, confirmando-


o) de Marlene da Oxum, na qual impasses sobre o sento de Iemanjá estiveram envolvidos.

64 Bastide (1959) chama atenção já no primeiro ponto do que levaria uma pessoa à iniciação no batuque

gaúcho: “1) Apêlo do orixá que, sob uma outra forma, manifesta a sua vontade de possuir um indivíduo
dado. Tal indivíduo pode se surpreender com o apêlo, mas não a Mãe, pois ela sabe antecipadamente quem
será designado pelos deuses” (: 247).

88
Assim, elucida-se o caráter negociável que envolve quase tudo no batuque de Oyó, desde
os primeiros passos rituais, até os últimos sacrifícios para o egum.

***

A partir da primeira vez que um pai ou mãe de santo olha alguém, já é possível
imaginar se essa pessoa tem futuro dentro da religião ou não. O jogo de búzios
acrescentará maiores informações, ou esclarecerá dúvidas. Por vezes, é necessário ir às
casas dos titios e titias para confirmar algo que aparece nebuloso na mesa de búzios, ou
aquilo que é deveras importante, como situações que envolvam as trocas de vida. Odacir
conta que já tinha casa aberta e já sabia confirmar quando um sento era para determinado
orixá, mesmo assim tomava mais de um ônibus para ir a mais de uma casa dos antigos
confirmar. A religião é mesmo cheia de detalhes, ou “está no detalhe” (Barbosa Neto
2012: 79-279), não pode haver erro algum, especialmente na hora de aprontar um filho.
Entretanto, não encontramos tal detalhamento nas descrições etnográficas sobre o batuque
desse longo percurso de fixar relações que envolvem os diferentes rituais iniciáticos.

Depois de confirmada a necessidade de se ir para o chão, é hora de começar a


comprar tudo que será utilizado durante o período de reclusão. Há todo um mercado de
aviários e criadouros de animais de quatro-pés especializados, as floras (lojas de artigos
religiosos), as lojas de tecidos, as costureiras, os armarinhos, os artistas que fazem
quartinhas, aqueles que fazem guias especiais (como a guia de bronze de Ossanha e as guias
imperiais), os que fazem vultos, os locais para se comprarem flores e frutas, os presentes
que os antigos dão aos que estão iniciando sua jornada religiosa (guias, correntes, imagens,
tudo do “tempo antigo”), os locais para comprar as louças, o mercado para se comprarem
alimentos e produtos de limpeza que manterão os parentes de santo e a casa durante o
chão, os tamboreiros profissionais, além de cozinheiras que podem ser contratadas para
aliviar o trabalho dos filhos da casa (cozinhando apenas as comidas para os humanos, as
comidas de orixás devem ser preparadas pelos filhos).

Quando Marlene da Oxum (neta e afilhada de santo de Odacir, filha de santo


de Cleusa do Ogum) foi para o chão com três irmãos que são, ao mesmo tempo, seus
afilhados de santo (Paula da Iansã, Paulo do Ogum e Michele do Oxalá) não foi diferente.
A festa para sua mãe já era aguardada, pois, por motivo da morte de parentes de santo e o
luto que segue, a festa já tinha sido adiada por duas vezes. Marlene já chegou pronta nas
mãos de Mãe Cleusa. Por isso, era preciso dar um novo quatro-pés, o que é chamado de

89
confirmação, além de ser uma mudança de axé, uma mudança de mão sobre sua cabeça se
confirma com a nova mãe. Além disso, a Oxum de Marlene estava completando 18 anos de
vasilha,

Em uma quarta-feira de abril, fui até a casa de Cleusa do Ogum para encontrar
Odacir. Ele estava com os ebós (os filhos que estão de obrigação na casa à espera do início
do chão). Os objetos rituais estavam dentro de grandes bacias com mieró e eram
manipulados por Odacir, Cleusa e Marlene, os mais antigos presentes naquele momento.
Era o momento de se lavarem as quartinhas, manteigueiras, saias (os pratos de louça que
protegem os assentamentos), e os ocutás, escolhendo-se o adequado para cada orixá e
colocando-se dentro de seus pratos suas respectivas ferramentas.

Quando Odacir manuseou a Iemanjá (sento) de Marlene, ficou com a testa


franzida, preocupado, com ares de uma certeza que precisava ser confirmada. A Iemanjá
era toda furadinha e a parte debaixo era diferente; e ele olhava e olhava, quando resolveu
pedir a sua filha Cleusa que trouxesse outras Iemanjás (ocutás ainda em estado de pedra)
que estivessem pelo terreno da casa. Além disso, pediu oito grãos de milho cru.

Ele chamou a filha e a neta de santo e disse que aquilo era um caso raro no
Oyó, que era como a Iemanjá da Camile (filha de santo de Odacir), uma Iemanjá que tem
passagem com Xapanã, e isso fazia com que ela [Marlene] estivesse sempre doente nas
“partes de baixo” (região do baixo-ventre e genital). Então, ele decidiu trocar o antigo
assentamento, mas não sem antes jogar. Na falta de seus búzios, utilizou os grãos de milho
e jogou-os no chão mesmo, não sobre mesa (somente búzios são jogados sobre a mesa).
Pôs ao lado do ocutá de Iemanjá outros três possíveis ocutás, para que o milho em torno
das quatro Iemanjás respondesse onde seria a nova morada da deidade das águas. O ocutá
antigo disse, através do jogo, que não queria sair da casa. Odacir então perguntou para
Marlene: “tu gosta da tua mãe de santo?”. A resposta afirmativa o autorizou a dar o
assentamento para Cleusa. Disse para ela colocar numa vasilha de vidro transparente e, no
último dia do chão, quando se mata para levantação, fazer uma Iemanjá da casa. Depois
disso, ele arrumou todas as vasilhas, deixando-as prontas para o corte do dia seguinte.

Toda a obrigação começa por Bará. Quando a casa religiosa tem um Bará de
rua assentado (o Lôde) é por ele que se inicia. O corte para esse orixá é feito, geralmente,
por volta das 6 horas, horário em que o movimento na rua está começando, quando os
primeiros trabalhadores estão saindo de casa. Nesse corte, apenas os homens e a dona da

90
casa podem participar, pois se trata de um orixá com o qual as mulheres não devem lidar e,
que, ao mesmo tempo, toma conta de toda a rua para todos os filhos de uma casa.

O corte para Lôde tem seu término por volta das 10 horas, quando se passa
para o salão onde estão as mulheres que não puderam participar. Após tomarem um banho
de chuveiro e vestirem uma roupa velha, que será rasgada, os ebós estão prontos para o
banho ritual.

A mãe de santo toma a frente, Marlene vem atrás com suas mãos nas costas
dela. Rezas são tiradas para Bará, Ogum, Xapanã, Odé, Ossanha, Obá, Iemanjá, Oxum,
Oxalá, Xangô, Iansã. Marlene caminha até a bacia com o mieró e entra nela. A mãe e o avô
de santo começam a dar o banho com sabão da costa e folhas, rasgam toda a roupa com as
mãos, cortam algumas partes com obé (faca). O sabão da costa é passado no corpo em seu
corpo por todos os prontos presentes, além disso passam um pacote de pipoca (estourada),
varas de marmelo e velas, que são quebrados em seguida. Após isso, a filha de Oxum dá
um passo à frente, saindo da bacia e recebendo uma roupa nova que será utilizada durante
todo o corte. Contam que antigamente era esse o momento em que um santo deveria gritar
pela primeira vez no mundo, pois esse banho simboliza o fim de uma vida antes da entrega
total da vida ao orixá.

O primeiro quatro-pés a ser oferecido deve ser o da dona da cabeça de


Marlene, Oxum. A cabrita de Oxum deve vestir uma capinha amarela enfeitada com rosas e
crisântemos amarelos. Todos os animais de quatro-pés, exceto o cabrito de Bará, são
enfeitados com capinhas com suas cores e flores correspondentes. Uma corda de sisal é
amarrada à cintura da filha de santo e ao animal; como Claudinha da Iansã me disse, isso
“representa o cordão umbilical”. Um ramo de folhas deve ser separado para cada quatro-
pés. O animal é trazido pelos prontos até a porta do salão, em frente ao quarto de santo (a
aproximadamente três metros da entrada do salão); Marlene já espera com as obrigações de
sua mãe e o sento a sua frente. Odacir e Cleusa estão em pé com os ramos de folhas,
cantando a reza de Oxum, enquanto sua cabrita é embalada pelos prontos, puxada pela
corda até que comece a dançar, dando o primeiro sinal de que é de Oxum. Logo em
seguida, com a reza sendo cantada, acompanhada pela animação crescente dos que
assistem, a cabrita come as folhas, colocam sobre ela a capinha e chamam Marlene para
amarrar a corda em sua cintura. Isso tudo acontece em segundos, então o cordão é
desamarrado, a capinha é retirada – pois enfeitará a obrigação após o corte – e o pescoço
do animal é cortado por Odacir com Cleusa segurando o animal, com o auxílio de Dona
Eloci – a mais antiga presente – e de alguns homens prontos. Cleusa, mesmo sendo mãe de
91
Marlene, não é quem faz o primeiro corte, pois seu pai de santo está presente, sendo
reservada a ele esta tarefa. Assim manda a lei, quando o pai de santo está presente, a casa
“passa a ser dele”.

O axorô é derramado sobre a cabeça, ocutá e demais obrigações. A cabeça do


animal é separada do corpo e depositada em um prato onde permanecerá até a primeira
levantação, antes do borido que segue o quatro-pés. Fatias de pão são colocadas entre as
patas e o corpo do animal que é levado para o meio do salão, onde ficará até que todos os
quatro-pés sejam cortados. Apenas depois disso serão levado pelos homens que irão
courear, separar as inhálas e colocar a carne no tempero para ser assada para primeira festa.

Após cada animal de quatro-pés, suas aves correspondentes são cortadas sobre
o corpo, o assentamento, e as demais obrigações. Na cabeça, apenas o sangue dos animais
do orixá dono da cabeça e dos pombos brancos de Oxalá, que fecham toda obrigação no
lado de Oyó. As aves têm algumas penas retiradas logo após serem cortadas, depois são
levadas para ser depenadas, ter as inhálas separadas e ir para o tempero. As penas são
colocadas sobre as obrigações, formando uma espécie de coroa, sendo finalizada com a
plumagem das aves, que cobrirá por completo a obrigação.

No lado de Oyó, sob cada obrigação contendo assentamento, ferramentas e


joias, um alguidar serve de base para vasilha onde o orixá está. Iansã, rainha da nação, é
dona do barro, o alguidar feito de barro é a base de toda feitura de orixá nesta nação.

Após cortados os animais para todos os orixás de Marlene (Bará, Ogum,


Xapanã, Ossanha, Obá, Iemanjá, Oxum, Iansã, Xangô e Oxalá), a filha de Oxum, banhada
em axorô, tem sua cabeça amarrada com uma trunfa feita em tecido amarelo, bate cabeça
para todos os mais velhos que ela na religião, iniciando pela mãe e pelo avô de santo, para
só então ir para esteira onde passará deitada pelas próximas duas semanas. Essas cortadas
por duas festas, duas levantações, o borido, o corte final (no lado de Oyó, para levantar,
corta-se para todos os orixás), os axés de faca e de búzios (no caso da confirmação, pois
raramente esses axés são dados no primeiro quatro-pés).

Podemos notar, a partir dessa breve descrição, que fazer e desfazer


compartilham processos, como o ligar e o desligar. Como vimos, o apronte, ou a
confirmação (rituais homólogos, o segundo sendo uma repetição do primeiro,
confirmando-o, assim) em primeiro lugar deve desligar o adepto de uma vida anterior à
entrega total ao orixá, quando dá sua cabeça no quatro-pés. O banho e a destruição das
roupas antes do corte marca o fim de uma vida, para o início de outra, dada com o passo

92
seguinte em direção ao quarto de santo. A vida antes de ser do santo participa da nova, é
claro, as lembranças não se apagam, porém preceitos, posturas e substâncias outras
participam do filho de santo pronto. O apronte tem seu inicio pelo desligar, seguido da
ligação mais profunda na religião, a participação da cabeça, ocutá, orixá e obrigações a
partir do derramamento de axorô (sangue) de quadrúpedes.

Desfazer e Refazer

Um eru, obviamente, nunca é igual ao outro, e isso não diz respeito apenas à
sua particularidade, mas também ao próprio ritual em questão. Sabe-se que do barro de
Nanã Burukê todos nós “humanos/pecadores” fomos feitos. E nosso destino são as
profundas águas lodosas do mar, pertencentes à Nanã Burukê. É a Kalunga – significando
a praia e o fundo do mar – o destino de todos (pelo lado de Oyó, ao menos). É a Kalunga,
mas também uma nova vida ao lado do orixá dono de cabeça, lá em Orum. Questionado
sobre se o fundo do mar seria feito de barro como os mangues e outras formações lodosas,
Odacir rebate: “quem conhece mesmo o fundo do mar? Ninguém! Para nós o fundo é
Nanã”.

Santos (1976) já havia notado que se deve “insistir no fato de que para o Nàgô,
a morte não significa absolutamente a extinção total, ou aniquilamento [...]. Morrer é uma
mudança de estado, de plano de existência e de status. [...] A imortalidade, ou seja, o eterno
renascimento, de um plano da existência a outro, deve ser assegurado (: 221-2). Halloy
(2005) que “Le rituel funéraire d’oxexe est un rituel destiné à aider le mort à se défaire
totalement de ses attaches terrestres et à rejoindre le monde des egun (: 773). A primeira fala
de sua experiência com candomblés de origem nagô na Bahia, o segundo com o xangô
recifense. Barbosa Neto (2012) conclui sua tese com a interessante possibilidade de
pensarmos a nós mesmos (humanos) como o outro lado dos espíritos. Fecho a dissertação
como uma reflexão nativa e outra minha, não como contraponto a qualquer uma das
afirmações – até mesmo porque se tratam de contextos etnográficos bastante distintos –,
nem de simplesmente com elas concordar, mas usar as duas ideias (estritamente
conectadas) para explorar e ampliar essas conclusões.

Gostaria aqui de voltar ao orixá Nanã Burukê e tratá-la como um conceito,


para assim tocar no ponto crucial para este trabalho: a de que início é fim, portanto morte é
vida – e vice-versa. Ou como chamei no último capítulo, a natureza homorgânica da pessoa
93
batuqueira. Nas palavras de Odacir, essa é a lei do povo de Oyó: “do princípio ao fim”,
tudo que se começa, se termina. Isso inclui tudo na vida. Desliga-se o morto do nosso
mundo, mas constantemente eles pairam por aí. Depois da Kalunga, no lado de Oyó, os
rituais continuam, pois vida e morte sempre hão de continuar e com elas temos que lidar.
Se somos o outro lado dos espíritos e dos mortos (por que não?), é que disjunções,
desligamentos, mudanças de status não funcionam bem assim, como se houvesse de
antemão o vivo e o morto que se conectam e que se desligam – ainda que haja toda a
intensidade da ruptura provocada pelo eru. Mas, antes, eles podem ser isso e ao mesmo
tempo uma única coisa (poderíamos até mesmo chamar de axé).

Em Orum, com tudo que fora quebrado na terra, o egum (para os vivos, é
claro) depara-se com um grande trabalho pela frente. Nanã Burukê tratará de ajudá-lo nesse
longo percurso de colar tudo que chegou à terra dos orixás despedaçado, destruído,
desfeito. Com o acontecimento do eru que destrói e desfaz na terra, as obrigações são
entregues na Kalunga, diretamente à Nanã Burukê. O corpo que foi enterrado chegará às
mãos dela também. É preciso que o egum se ocupe com a nova feitura de seu corpo e
obrigações, esquecendo, aos poucos, com o eru e os outros rituais que o seguem até o rito
final (quando completa um ano da morte), de nosso mundo, de querer voltar ao nosso
mundo. Assim, ele poderá chegar até o dono de sua cabeça para viver a eternidade em sua
companhia em Orum. Os rituais de desligamento realizados na terra é que garantem essa
possibilidade. Podem também propiciar a mudança de estatuto de um simples egum, para
um dos antigos, que receberá culto e oferendas para todo o sempre aqui na terra. Mas isso,
só o “tempo” dirá.

***

Ao longo desta dissertação sobre os batuques de Oyó busquei relacionar


acontecimentos e rituais ligados à morte. Através da descrição do eru, propus que, ao invés
de enfatizar a feitura ou apronte, o ritual de desligamento ou o desfazer proporciona um
alargamento da compreensão sobre uma noção batuqueira de pessoa. Isso está
intrinsecamente relacionado ao que chamei de natureza homorgânica do batuqueiro. A
morte precisa, portanto, ser vista como duplo acontecimento, desfazer na terra para
(re)fazer com o auxílio de Nanã Burukê em Orum. Fazer uma pessoa ou desfazê-la são
processos mutuamente implicados; a morte, assim como o nascimento, possui caráter

94
transformativo das relações não apenas entre vivos e mortos, mas entre orixás e mortos,
orixás e orixás, vivos e orixás, e a própria memória e a transformação de objetos de
lembrança em objetos de culto aos antigos. Esses últimos são a melhor expressão da
imbricação de vida, morte e parentesco, outro tema da maior importância para “o povo de
Oyó”. Em uma frase, é o desfazer que garante o fazer e vice-versa: fazer bem um eru,
desfazer bem uma vida que fica para trás do apronte. Fazer e desfazer.

95
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