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Kelber Silvio Rios Carneiro

Psicanálise como um modo de saber e poder

Kelber Silvio Rios Carneiro*

"Saber é poder".
Francis Bacon

Unitermos: Saber; Poder; INTRODUÇÃO reinventados pela teoria e práti-


Inconsciente; Sujeito do Inconsciente; ca psicanalítica. Esta teoria foi a
Desejo.
O sujeito cartesiano é que mais ressaltou, de modo fun-
paradigma fundante do sujeito damental, a prioridade do sujei-
moderno, na medida em que, to no pensamento ocidental, a
Resumo para qualquer intervenção em partir de Descartes (FOUCAULT,
Este artigo pretende demonstrar que torno de temas que envolvam a 2005, p. 9-10)
a psicanálise, como prática social,
subjetividade, o sujeito, faz-se Com o ato de invenção do
cria domínios de saber, produz novos
objetos, novos conceitos, novas imprescindível o retorno a esse inconsciente e do sujeito do in-
técnicas, bem como faz surgir outro ponto arquimediano. Qualquer consciente, a psicanálise produ-
tipo de sujeito, o sujeito do abordagem em torno da psica- ziu uma torção epistemológica
inconsciente. Assim, seu discurso, nálise vai requerer, de pronto, a no saber, fundando com isto o
como um modo de saber, surge ligado
presença cartesiana e de seu saber do inconsciente e, com este,
aos fenômenos de poder e relações
de poder que emergem do sujeito, mesmo que este retorno a presença determinante do dese-
inconsciente, através do desejo. tenha, intencionalmente, o dese- jo e não mais o da razão, no co-
jo de modificá-lo, visando com mando epistemológico do poder.
isto produzir profundas altera- Assim, o poder torna-se o obje-
ções em seu estatuto de sujeito to de desejo do Outro.
lógico do conhecimento.
Coube a Freud, no início do D ESENVOLVIMENTO
século XX, a invenção do Incons-
ciente. No entanto, a formalização Seguindo essa linha de in-
do sujeito do inconsciente é cria- vestigação, num roteiro que con-
ção de Lacan. Sabe-se que o in- sidera como ponto de partida a
consciente freudiano só foi pos- reelaboração da teoria do sujei-
sível pela existência do sujeito da to do conhecimento, a partir da
ciência, que remonta ao ato de teoria e prática da psicanálise,
Descartes nomeando o cogito. tendo como ponto de emergên-
Em assim sendo, a teoria do cia o desejo e seu objeto, o po-
1
O termo invenção aqui está empregado por sujeito, a sua concepção filoso- der, cabe agora buscar apoio
Nietzsche em oposição à palavra origem. ficamente tradicional, bem como numa referência que valide a
a relação sujeito/objeto e o con- tese de que o saber é inventado.
ceito de saber sofreram uma Nietzsche em um texto póstumo,
reelaboração. Neste processo, afirma que:
a teoria do conhecimento, seu
sujeito, seu objeto e seu saber Em algum ponto deste universo,
*Mestre em Filosofia pela Ufba. filosóficos foram radicalmente cujo clarão se estende a inúme-

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ros sistemas solares, houve uma os instintos; ele não resulta do Desse modo, tem-se, entre
vez, um astro sobre o qual ani- refinamento dos próprios instin- instinto e conhecimento, uma
mais inteligentes inventaram o tos. Mas o conhecimento tem por relação de luta, de dominação,
conhecimento. Foi o instante da fundamento a luta dos instintos de subserviência, de compensa-
maior mentira e da suprema ar- entre si, fazendo surgir um cla- ção, não uma continuidade na-
rogância da história universal rão, uma luz que se irradia, após tural. Não há relação de continui-
(NIETZSCHE apud FOUCAULT, o atrito entre materiais de natu- dade natural entre o
2005, p. 13). reza totalmente diversa (Ibid., p. conhecimento e as coisas que
16). tem a conhecer. Há sim, uma
A invenção 1 surge tanto O conhecimento atua relação de violência, de domina-
como um conceito de ruptura doravante, entre, no meio, dian- ção, de poder e de força, de vio-
como um conceito de desvalor, te dos instintos; os comprime, lação. É possível, então, dizer
significando ao mesmo tempo gera certo estado de tensão ou que entre o conhecimento e as
mesquinho e inconfessável. Mas de apaziguamento entre os ins- coisas a serem conhecidas
tudo isto para se opor a noção tintos. Logo, não é possível apli- ocorre uma violação e não uma
de origem e de história como ori- car a dedução, a analiticidade, percepção, um reconhecimento,
gem dos acontecimentos, pois para inferir uma espécie de deri- uma identidade (Ibid., p. 18).
também a história é uma inven- vação natural do conhecimento Como resultado dessa ope-
ção, com tudo que ela descreve (Ibid., p. 17). ração, ocorre dupla ruptura: a
e narra. Pode-se dizer que a no- O conhecimento não instin- primeira é a ruptura entre o co-
ção de invenção é o ponto tivo, mas contra-instintivo, como nhecimento e as coisas; já não
crucial, onde obscuras relações também não é natural, mas há mais identidade, continuida-
de poder entram em jogo para contranatural, porque resulta do de entre conhecimento e as coi-
construir, fabricar, produzir um desejo. Eis porque o conheci- sas a serem conhecidas, mas
determinado tipo de saber mento é invenção. Portanto, "as uma relação arbitrária, de poder
(FOUCAULT, 2005, p. 15). condições de experiência e as e de violência entre termos es-
Assim sendo, todo tipo de condições do objeto de experiên- tranhos entre si (Ibid., p. 19).
saber é construído, fabricado, cia são totalmente heterogêne- A segunda ruptura ocorre
produzido por obscuras relações as" (Ibid., p. 17). entre a teoria do conhecimento
de poder que entram em conjun- Pelo exposto, não há identi- e a teologia. Deus não mais é o
ção, ou em jogo. Não obstante, dade entre conhecimento e mun- garante do conhecimento evi-
o começo não passa de uma vi- do a conhecer, mas pura diferen- dente, certo e indubitável (Ibid.,
lania (Ibid., p. 16). ça entre conhecimento e p. 19). Com isso, cai por terra a
O conhecimento foi inven- natureza humana. Portanto, têm- unidade do sujeito do conheci-
tado, logo não teve origem. Ou se doravante uma natureza hu- mento que assegurava a conti-
seja, no comportamento huma- mana, um mundo e algo entre os nuidade do desejo ao conhecer,
no, no instinto, no apetite, não há dois que se chama conhecimen- do instinto ao saber, do corpo à
germe do conhecimento. Assim, to. Nenhuma semelhança, ne- verdade (Ibid., p. 19-20).
o conhecimento é produto do nhuma afinidade ou elos de na- Há, agora, os mecanismos do
jogo entre os instintos. O conhe- tureza. Enfim, nenhuma instinto, os jogos do desejo, os
cimento resulta do jogo, do identidade entre os termos em afrontamentos da mecânica do
enfrentamento, da junção, da luta jogo (Ibid., p. 18). corpo e do desejo, de um lado; do
e do compromisso entre os ins- O mundo ignora os homens outro, um nível de natureza dife-
tintos (Ibid., p. 16). É dizer de e as suas leis. Não há leis na rente, o que faz que o conheci-
modo incontornável que conhe- natureza. O conhecimento tem, mento não dependa mais de uni-
cimento não faz parte da natu- exatamente, que lutar "contra um dade do sujeito do conhecimento
reza humana, não constitui ins- mundo sem ordem, sem enca- (Ibid., p. 20). Esse rompimento
tinto do homem. deamento, sem formas, sem atinge a tradição filosófica mais
Entretanto, o conhecimento beleza, sem sabedoria, sem har- antiga do Ocidente.
não é da mesma natureza que monia, sem lei" (Ibid., p.18). Tomado esses lineamentos

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de Nietzsche, Foucault promove poder e o saber psicanalítico. De idéia segundo a qual o inconsci-
o fecho: as relações de força, as que modo situar a posição do ente, conseqüência da repres-
relações sociais, as formas po- Édipo, seja no complexo, seja na são da pulsão pela ordem da lei,
líticas não são um véu ou um estrutura, como correlativa da lei é sexual. Enfim, o Édipo deseja
obstáculo para o sujeito de conhe- simbólica? Na relação de funda- definitivamente encarnar o su-
cimento, e, consequentemente, mento do sujeito no sexual, a porte da verdade para o sujeito.
para as relações de verdade. Mas, saber, a via que se abre para si- Isso levou Freud a fazer uma
pelo contrário, é a partir de condi- tuar o Édipo, na psicanálise, é a crítica à moral sexual cultural e
ções políticas que formam o solo do sujeito do inconsciente que se ao mal-estar da cultura, por
em que se produz o sujeito, os modela segundo a regulação do considerá-las responsáveis pe-
domínios de saber e as relações desejo pela lei simbólica. las dificuldades geradas pela
com a verdade. Desse modo, estão em jogo modernidade nas subjetividades
Foucault mostra como a tra- as relações entre a lei, o desejo como conseqüência da renúncia
gédia de Édipo, em Sófocles, e um sujeito do inconsciente. sexual imposta. Ou seja, a
enquanto problema de fundo po- Essa verdade se constata na in- modernidade se constituiu sobre
lítico é instaurador de certo tipo terpretação psicanalítica formu- a base da repressão das pulsões
de relação entre poder e saber, lada em Totem e Tabu para com sexuais, produzindo, assim, um
entre poder político e conheci- o grupo primário do Pai da horda; crescente mal-estar nos sujei-
mento que ainda impera na so- instala-o aí como figura fundado- tos, que inevitavelmente derivou
ciedade. Pode-se falar de certo ra e representante da Lei simbó- para a neurose.
complexo de Édipo na civiliza- lica, assim como frente a Édipo Essa problemática tem
ção. Portanto, trata-se do in- Rei visando à interdição do in- como pano de fundo o controle
consciente coletivo (Ibid., p. 31) cesto. Somente assim é possí- social e cultural exercido pela
e não individual. vel, no primeiro caso, inventar sociedade sobre a sexualidade
Édipo posto pela psicanáli- uma irmandade e, no segundo, de seus membros, visando com
se, diz Foucault, não passa, na pôr a figura de Édipo permanen- isto a melhor canalização de
visão de Deleuze e Guattari, de temente na posição de se trans- suas forças para o trabalho, ten-
um instrumento de limitação e formar em Pai e Mãe, fazendo do em vista a produção e o lu-
coação, visando conter o desejo que se coincida com o Genitor cro.
e fazê-lo entrar em uma estrutu- arcaico, cruel, narcísico: Édipo Ora, vale ressaltar que a psi-
ra familiar definida pela socieda- antes do complexo de Édipo canálise, enquanto instituição de
de em determinado momento. (KAËS, 1997, p. 22). práticas sociais, de vínculos
Não é, portanto, uma verdade Desse modo, Édipo tomará intersubjetivos, não ficou infensa
atemporal, nem histórica do de- conhecimento de seu próprio a esta problemática: a rivalida-
sejo. Enfim, não é o conteúdo desejo, sabendo-se doravante de, a dominação, como meios
secreto do inconsciente, mas a como sujeito ambíguo (Ibid., p. para evitar a questão sexual,
forma de coação que os analis- 22). Este sujeito ambíguo é o enfrentar o narcisismo.
tas tentam impor na cura ao de- sujeito do inconsciente de um A psicanálise nasceu sob o
sejo e ao inconsciente. Édipo é saber/desejo carregando consi- signo do narcisismo. Em razão
um instrumento de poder, ou go o poder como seu objeto. disto, eclodem os conflitos, as
seja, de poder médico e psica- Freud faz isso emergir da des- crises, as dissidências, as
nalítico de se exercer sobre o crição da mutação do regime agressões, as rupturas, do du-
desejo e o inconsciente (Ibid., p. psíquico e cultural da horda, pas- plo narcísico homossexual, com
29-30). sando por Édipo. Este material Fliess, depois Stekel e os de-
Com efeito, aquilo que está serve de hipótese para o desen- mais que foram chegando. As-
em jogo, nesse contexto funda- volvimento da teoria e da prática sim, desde o início, Freud expe-
mental, é o estatuto do Édipo e psicanalítica. rimentou na formação do grupo
a lei simbólica, que retoma no Assim, os registros da "as tumultuosas descobertas do
campo do poder, uma tensão pulsão e da cultura são Inconsciente, seja nas suas apa-
entre as novas modalidades de intercambiáveis, bem como a rições na solidão e nas vicissi-

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tudes do vínculo intersubjetivo" zendo viva o Outro, para que (Ibid., p. 8-9): controle, seleção,
(Ibid., p. 26). dessa existência possam eles organização e redistribuição a
Isso fica patente, quando da surgir, ouvindo o som melodioso partir de certos procedimentos a
criação do Comitê, visando do tu és inteligente, poderoso. fim de conjurar seus poderes e
constituir o grupo como guarda Com isto, cultuando o saber/po- perigos a cerca do saber por ele
dos Ideais e da ortodoxia, bem der, todos estariam capturados transmitido.
como garantir sua função ideo- no gozo do Outro (Ibid., p. 123). Pode-se dizer que todo dis-
lógica (Ibid., p. 27) de saber/po- Como qualquer instituição, a curso carrega poder através do
der. psicanálise vive sob um gover- saber que expressa. Isto faz com
Após a morte de Freud, a IPA no. A questão é saber que gover- que o discurso se apresente
dá mostra de padecer da neuro- no dirige os grupos psicanalíti- para o seu portador com certa
se narcísica, em razão do que cos. Seria o governo de um só? inquietação no tocante a sua re-
Lacan rompe com ela seus la- Caso seja, faz-se imperioso re- alidade de coisa pronunciada ou
ços sociais, sobrevindo a cordar, elaborar para não repetir escrita, poderes e perigos, do-
excomunhão. Mas, logo depois, quanto à fantasia do um, isto é, minações, servidões (Ibid., p. 8).
é a vez de Lacan dissolver o que qualquer grupo crê em um Deus A exclusão como exercício
fundara, a École Freudiannne, único, pois se encontra na ori- de poder faz-se presente através
uma vez que "o grupo psicanalí- gem de todas as instituições, in- da interdição, negando o direito
tico pôde mais que o discurso e clusive, nas terapêuticas. Aí natural da livre expressão de
tornou-se Igreja, como aconte- ocorre a relação dual, onde cada idéias: não pode dizer tudo em
ceu a Freud" (ALVES, 1999, p. um tenta exercer a fascinação qualquer circunstância. Sabe-se
200). sobre o outro, fazendo-o ser o que a sociedade exerce o domí-
Sabe-se que esta problemá- que possibilita o gozo do nio sóciopolítico mediante o arti-
tica perdura até hoje, na medida fascinador (SOUKI, 1999, p. 49- fício do "tabu do objeto, ritual da
em que "os psicanalistas, como 50). circunstância e o direito privile-
pessoas, também estão sujeitos Em razão disso, a psicaná- giado ou exclusivo do sujeito que
às mesmas paixões, conflitos, lise, como instituição, detentora fala". Assim, se estabelece "o
vaidades e fraquezas que povo- de práticas sociais de ensino, jogo de três tipos de interdições
am os agrupamentos humanos" formação e tratamento analítico, que se cruzam, se reforçam ou
(RODRIGUES, 1999, p. 31). Daí é também detentora desse fas- se compensam formando uma
os conflitos, crises, rupturas, dis- cínio do saber/poder complexa grade" (Ibid., p. 9).
sidências, agressões que ocor- epistemológico. Isto permite que Qualquer modo de controle
rem dentro e entre as diversas se extraia dos indivíduos, a par- e delimitação do discurso se
instituições e os grupos de psi- tir de um saber, saber de obser- exerce de fora como verdadeiro
canalistas. vação, um saber clínico, psica- sistema de exclusão, toda vez
Estaria, nesses casos, a ins- nalítico (FOUCAULT, 2005, p. que está em jogo o poder e o
tituição psicanalítica e seus ele- 121-122). desejo.
mentos, vivendo ao mesmo tem- Desse modo, a psicanálise Há uma relação de pertença
po, uns do fascínio do saber/ é portadora de um discurso so- entre discurso e poder, haja vis-
poder, enquanto outros, da ser- bre o inconsciente, o sujeito do ta ser o discurso o meio pelo
vidão? Isto tudo derivaria do go- inconsciente, o desejo, a sexua- qual o desejo opera mediante in-
verno de um só? Estariam todos, lidade, a neurose, o tratamento vestimento sobre seu objeto, o
fascinados e subservientes cap- desta, como dispositivo poder. Com isto surge a neces-
turados no desejo do desejo do terapêutico. Enfim, a psicanáli- sidade de se buscar, por trás do
Outro? Estariam todos fazendo se como campo de saber/poder próprio discurso, algo que seria
a pergunta ao Outro: Che vuoi? tem um discurso acerca do ero- o desejo e seu objeto, o poder.
Que queres de mim? (FÉRES, tismo, do sexual. Para tanto, busca-se deduzir do
1999, p. 123). Não há engano quanto à re- discurso algo que concerne ao
Então, estariam todos esses alidade posta pela sociedade no sujeito falante: o inconsciente e
sujeitos submissos ao Outro di- tocante a produção do discurso o desejo do grande Outro.

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Vale ressaltar que em as- sujeito de si mesmo: ignorar um ção dos papéis que se inscre-
suntos que formam o calcanhar fragmento do seu passado ou vem no inconsciente da criança.
de Aquiles da dominação, como uma parte do seu corpo. Esse Esse saber/poder psicanalí-
sexualidade e política, onde te- desconhecimento não é total tico é exercido através do meca-
míveis poderes latejam, o dese- pelo sujeito de si mesmo, mas nismo de transmissão de ensi-
jo é caçado e consequentemente sim um desconhecimento de no e formação de analistas, bem
o poder. seu desejo, ou de sua sexuali- como de tratamento da neurose
A psicanálise mostra que o dade. pela análise. Mas este saber/po-
discurso não é só o manifesto, Eis aí o ponto de ancoragem der requer atores sociais para
mas também o oculto, ou seja, da psicanálise, ou seja, o des- pô-lo em execução: os analistas.
o desejo, bem como aquilo que conhecimento do seu desejo Em razão disso, o analista
é o seu objeto do desejo, o po- pelo sujeito. Aqui emerge não deve se descurar da ética do
der (Ibid., p. 10). inventivamente, saber e poder, a desejo que marca a psicanálise
Sabe-se que o saber acer- partir da hipótese do inconscien- enquanto instituição de saber/
ca do inconsciente, desvelando te como produto do desejo de poder, bem como ele, o analista
os sintomas e com eles as neu- Freud. em seu exercício, como prote-
roses, semelhantemente, ao sa- A psicanálise, enquanto dis- ção dos analisandos submetidos
ber médico acerca da doença e ciplina, se define por um domí- ao tratamento psicanalítico, jus-
do psiquiatra acerca da loucura, nio de objetos, um método, um tamente, evitando eventuais abu-
através da cesura que a escuta corpus de proposições conside- sos que venham incorrer, graças
exerce, produz um discurso que radas verdadeiras, um jogo de à sua posição privilegiada em
é investido pelo desejo e que regras e de definições. Assim, função do amor de transferência.
carrega terríveis poderes (Ibid., funciona como um princípio de A relação entre analista e
p. 12-13). controle da produção do discur- analisando é uma relação de
Aqui não se pode recuar fren- so. Assim, fixa os limites do dis- saber/poder que desliza no fio
te ao desejo de saber e de po- curso pelo jogo de uma identida- da navalha da transferência.
der, que o inconsciente, como de que tem a forma de uma Não é por outra razão que o sa-
artefato cultural e cientifico, hi- reatualização permanente. ber deve ser encarado como
pótese fundante da psicanálise, A psicanálise, então, se suposto saber, não diferente-
veicula um discurso dominante apresenta como fundamento ra- mente também dever ser enca-
acerca do sujeito do inconscien- cional de um saber sobre o de- rado o poder, como um suposto
te: "o jogo de uma identidade que sejo e seu objeto de desejo, o poder.
teria a forma da repetição e do poder, fazendo parte dessa gran- Se assim o for, de fato, leva-
mesmo" (Ibid., p.29). de economia da produção de um do em conta, os percalços e pe-
O discurso psicanalítico é saber crítico a respeito da sexu- rigos que emergem no percurso
discurso do sujeito falante, recla- alidade. da análise, saberá o analista se
mando análise acerca dos dife- É factível de verificação a fazer de morto para com a
rentes modos pelos quais o dis- existência de um novo tipo de negatividade que emana do po-
curso desempenha um papel no saber, da presença dos meca- der e do saber frente ao anali-
interior de um sistema estraté- nismos de poder, inventado a sando que vive o drama de amor
gico em que o desejo e o poder partir da investigação empreen- e ódio remanescentes da política
estão implicados e, para o qual, dida pela psicanálise no incons- saber/poder exercida pelos pais jun-
o poder funciona como objeto de ciente do sujeito e na economia to à prole e, consequentemente,
desejo. de seu desejo, tendo como pon- entre ele e seus irmãos na socie-
Não se pode desconhecer to de partida as relações dade familiar.
que o discurso da psicanálise parentais, ou seja, a relação en- Ora, onde mora o perigo? No
reporta-se ao discurso da histé- tre o pai e o filho, a interdição da desejo e em seu objeto, o poder.
rica. A histeria caracteriza-se masturbação, a interdição na re- O perigo ronda para os narcísicos
pelo fenômeno de esquecimen- lação mãe-filho assim como nas que desconhecem que tanto o
to, de desconhecimento pelo relações pai-mãe e na distribui- desejo quanto o seu objeto, o

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Psicanálise como um modo de saber e poder

poder, são inconscientes. dica na sociedade até os dias


O problema do poder e seu que passam, pois, seus efeitos
exercício passam primeiro pelo vincaram o modo de ver e sentir
saber. Advertência nunca é pre- o mundo, de se estabelecer re-
sença indesejável: analista ne- lações pessoais e interpessoais.
nhum detém a priori saber e Com a presença do incons-
menos ainda o poder sobre o in- ciente e do sujeito desejante,
consciente de seu analisando. deflagrou-se outro modo de pen-
Caso acredite nisto, seu fim está sar e sentir, portanto, outro pa-
mais próximo do que possa ima- drão de conduta social.
ginar. Cometerá erros grossei- Nesse contexto, a discursivi-
ros que em pouco tempo o de- dade é determinante para a
nunciarão, fazendo com que o dinamização dos jogos de poder,
analisando tome a iniciativa, por na medida em que se funda num
este ou aquele motivo, até mes- saber que garante aquela. Isto
mo fortuitamente, de interromper porque o exercício do poder im-
a análise. plica no saber e vice-versa, ou
Daí porque Lacan recomen- seja, o saber funda as possibili-
dava que o analista funcionasse dades de poder. Portanto, a psi-
como objeto causa de desejo, canálise legitima, pois, as práti-
objeto a, e não objeto de amor cas de poder. Enfim, o saber
para o analisando. como discursividade e como jo-
gos de fala se articulam com as
estratégias de poder.
C ONSIDERAÇÕES FINAIS A intenção dessa investiga-
ção foi trazer à discussão a
A psicanálise produziu uma questão do saber/poder, pouco
torção na teoria do sujeito discutido e quase nunca estuda-
cartesiano, inventando, assim, do na instituição psicanalítica,
um novo saber/poder, a partir de visando abrir um canal de
um ato transgressor inventivo de interlocução que possibilite me-
um inconsciente, de um sujeito lhor compreensão acerca dos
inconsciente e portador de dese- efeitos que dele emergem.
jo. A pretensão não foi esgotar
De acordo com a trajetória o assunto, mas abrir uma via
produzida neste artigo mostrou- para que outros, que venham a
se que a psicanálise, enquanto se interessar pela temática,
prática social de saber/poder, dêem continuidade com mais
como os demais saberes inven- proficiência às futuras investiga-
tados no século XIX, resultou de ções acerca do saber/poder na
um processo de dominação de psicanálise.
um campo de conhecimento do
inconsciente, visando exercer
controle social, a partir de sua
teoria e método analíticos.
A torção provocada pela te-
oria e prática psicanalítica no
saber/poder vigente tornou-se
uma transgressão à ordem e
segurança político-social e jurí-

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Kelber Silvio Rios Carneiro

REFERÊNCIAS

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PSYCHOANALYSIS AS A MODE OF KNOWLEDGE


AND POWER

Key words: Knowlege; Power;


Unconscient; Subjet of unconscient;
desire.
Abstract
This article argues that
psychoanalysis, as a social practice,
creates areas of knowledge, produces
new objects, new concepts, new
techniques, and gives rise to another
type of subject, the subject of the
unconscious. So his discourse as a
way of knowing appears linked to the
phenomena of power and power
relations that emerge from the
unconscious through desire.

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