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Sobre a obra:
Sobre nós:
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Sumário
Capa
Folha de rosto
Sumário
Lista de personagens
terra
Chaya
Olga
Caboclo Arrê
Sob cerração, alertas
Cano curto calibre .38 e botas
Preta
água
A cabocla e a forasteira
Capa Preta
Guerra turva
Céu violeta
Ventos, tempestades, segredos
Corpo lavado
fogo
Uma vitória encomendada
Perto demais do problema, longe demais da solução
Sangue de onça
Estragando a vida de alguém
Ferro, fogo e terra
Uma brasa que nunca deveria ter se acendido
Alerta vermelho
Trepeiros
Moedor de ossos
1958 — o fim
Armin e Roscato
Trato de silêncio
Nem céu nem inferno
sangue
Mantenha o inimigo por perto
Toda guerra é um acordo
Ser odiada e suportar
Este olhar cinzento
O tempo passa mais rápido quando não se tem tempo
Os caminhos que levam ao inferno
Uma reza não ouvida
Solo castelhano
Esse inferno que somos nós
Tudo por nada
Recado entregue
Sangue, mulheres e facões
fé
Presentes de dezembro
A realidade do caos
Marca de efeito
Carne podre
O próprio veneno
A felicidade é uma rifa
Colecionadora de armas e arrependimentos
León
Água turva
Yucumã Moconá, o grande roncador que tudo engole
Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos
Para Juraci e Elemar Kretzmann
Em água turva, as substâncias não se veem.
Andréa del Fuego, Os Malaquias
Lista de personagens
Chaya e Preta estão sentadas num tronco caído na lateral da casa verde.
Cada uma com um prato cheio de carreteiro. Mastigam sem pressa. As
crianças e os adultos estão espalhados na frente das outras casas e
comem também. Uma menina de cinco anos tira um pedaço de rim da
boca e joga fora. Dois cachorros correm para pegar o miúdo e, por
causa dele, brigam. Preta se levanta, vai até a criança e lhe dá um tapa
na boca. O prato da menina voa longe. Os cachorros correm e devoram
os restos.
“Diabo! Agora vai passar fome.”
Todos olham para Preta, em seguida abaixam a cabeça, mudos. A
criança engole o choro. Preta volta para o seu lugar.
“Não é fácil manter a ordem, ensinar o valor das coisas.”
“Tu sempre quis isso, né, Preta? A tua vó que ia gostar de te ver
assim, mandando em tudo aqui”, Chaya fala. “Aliás, sinto muito pela
Tédi.”
“Até parece que acabou de acontecer.”
“Faz anos que a gente não se fala.” Chaya dá mais uma colherada na
comida.
“E por mim continuava assim.”
Há uma inquietação entre as duas. Elas analisam uma o rosto da
outra, revirando dentro de si lembranças e sentimentos contraditórios,
uma geografia de acontecimentos separados pelo rio Uruguai.
“Bom, tu sabe por que eu tô aqui, né?!”
“Não vou lá reconhecer o corpo.” Preta cospe no chão.
“Buscar…”
“Nem buscar.” Preta se levanta. “Pode esquecer.”
Preta não confia na polícia brasileira nem na argentina. Ali, naquele
lugar na fronteira, onde as regras são feitas e quebradas por ela e só por
ela, ninguém mexe com sua liberdade nem com a liberdade do seu
grupo. Duas facções, armadas e perigosas, têm tentado invadir o
território argentino por aquele lado, uma paraguaia e outra brasileira.
São os Pies Rubros, sob o comando de Preta, que têm conseguido
guardar aquela área para não iniciarem uma guerra, isso há alguns
anos. Em troca, as pessoas realmente poderosas do lugar, as que
mandam naquele lado fronteiriço, não mexem nem com ela nem com
seus negócios. Sair dali pode ser perigoso.
“Ele era o teu homem, Preta. Não era?”
“Já tive outros.”
“Ninguém vai mexer contigo do lado de lá, te garanto…” Chaya
deposita o prato vazio no tronco e se levanta.
“Pelega. Garante as tuas tetas. Vem com esse papo pra cima de mim?
Depois de tudo o que…” Preta se afasta, sem deixar de encarar Chaya.
No fundo, nenhuma das duas quer enveredar por aquele tipo de
conversa. Porém, sabem que estão adiando: terão que resolver o passado
em algum momento. O tempo não foi suficiente para fechar as feridas.
“E tu nem polícia é”, completa.
Chaya se aproxima de Preta, quase encosta seu rosto no dela. “Sou
tão polícia quanto os polícias que querem te prender.”
Preta gruda a testa na de Chaya e fala baixinho:
“Eu sei o que tu faria. Tu é neta de quem é.”
“Lava essa boca antes de falar do meu vô.” Chaya empurra a chefe
dos Pies Rubros, mas ela, maior e mais forte, pega a policial pelos
braços, imobilizando-a. Chaya tenta se soltar, e Preta a joga para o
lado. Ela cambaleia e quase cai. Ameaça ir para cima de Preta de novo,
mas não sai do lugar. Pensa no seu avô Armin. Surgem as lembranças
de quando tinha seis anos. Sangue. Choro. Então volta a se lembrar do
homem em choque, morrendo dentro do parque no dia anterior. Do
sangue jorrando do pescoço. O menino chorando. Fica tonta. Sente
que vai cair. Com as mãos, tateia um lugar para se apoiar. Preta lhe
estende o braço. Chaya logo volta a si. Ficam paradas uma diante da
outra. As duas se desarmam. Abatidas, têm o mesmo olhar, um olhar de
assolação.
“Sei que o guri que tava no parque não é nada teu, e deve ser mais
um desses bichos soltos que andam sem rumo por essa fronteira. Mas é
o diabo do corpo do pai dele que tá lá no iml apodrecendo.” Chaya
puxa o fôlego.
“O nome dele é León”, Preta responde.
O menino surge na porta da casa verde, desce os degraus de madeira
e caminha para junto de Preta, que segura uma das mãos dele. León e
Chaya se encaram.
“Ele me contou”, Preta diz.
“Contou o quê?”
“Tu atirou no pai dele.”
Chaya sente as costas arderem como se um maçarico passasse por
ela. Volta a suar. Dá um passo na direção de Preta:
“Ele vai ser enterrado como indigente.”
“Essa culpa é tu quem vai carregar!”
“Ele atirou primeiro.”
“Essa é a tua justificativa?”
“Tu sabe que dentro do parque tem regra. Leis! Que merda, prima”,
Chaya fala.
“Prima?”, Preta debocha. “Tu tem coragem mesmo.” Ela empurra
León para o lado. “A gente pode até parecer um bando de bicho, como
tu disse. Mas a nossa carne vale mais que a carne de um porco do mato.
Cuidado, a conta vem, Chaya.”
“Arrê! Eu tô tentando preservar esse parque, como o Sarampião fez.”
“Arrê! Tu segue te achando a senhora da justiça, usando o nome do
nosso bisavô pra legitimar os teus erros.”
Chaya recebe aquela frase como um soco. Não deveria ter vindo,
deveria ter escutado a amiga Dóris. Se arrepende da sua impulsividade.
Da sua ânsia em querer mudar as coisas. Nenhum passado pode ser
mudado.
Preta continua:
“Tu e todos aqueles guardas deviam é me agradecer. O quilo de cada
paca, anta, queixada, dourado, surubim, em peso, em plata, no fim é o
sustento de toda essa gente que tá aqui, pra não precisar se meter com
venda de arma ou de droga. E essa é a minha lei.”
“Ah! Tem dó, Preta. E as bebidas?”
“Vai à merda! Isso é só descaminho, qualquer um faz, até o teu
querido velho Romano.”
“Tu acredita nesse teu mundinho podre aqui”, Chaya se descontrola
e grita. “Nesse território santo, imaculado que tu e a tua vó Tédi
inventaram. Tu te apresenta como salvadora de todos, te acha a rainha
dos excluídos. Mas tu é uma mentira. Tu tem passado, Preta, e só nós
duas aqui sabemos qual é.”
Preta crava as unhas no próprio antebraço até a pele rasgar e sangrar.
“Sai daqui antes que eu…” Bate com os pés no chão, levantando
uma poeira vermelha.
“Quero resolver a questão do corpo. Vim aqui pra isso.”
“Tu acha mesmo que esse truque vai funcionar? Trazer o homem
morto pra cá, com a garganta em pedaços, não vai intimidar a gente.
Não vamos parar de caçar.”
“E eu não vou parar de atirar em quem for até lá.”
“Claro que não vai. Tu virou uma Romano. Já trocou o sobrenome
na tua certidão de nascimento? O Sarampião ia ter vergonha de ti. Tu
não é, nem nunca foi, uma cabocla pé vermelho como eu, como nós.
Pega o teu rumo. Some.”
Chaya sente o coração saltar, o rosto queimar. Saca a arma de trás da
cintura e aponta para a prima. Três mulheres e um homem surgem
armados, mas ela não se intimida.
“Não é só um rio que nos separa, Chaya, é também a realidade.
Olha aqui ao redor. A minha realidade e a tua nunca se encontraram”,
Preta diz.
“Por que não manda atirar?” Chaya não baixa a guarda.
Preta põe as duas mãos na própria nuca. Os ossos doem. Seus olhos
mostram o suplício de quem viu muito passado e é tomado pela
premonição de quem vê o futuro. Com a voz rouca, diz:
“Não é deste lado do Yucumã o teu destino.”
Chaya reconhece aquele olhar, aquela voz. Franze a testa. Guarda a
pistola e caminha mata adentro, na direção do rio. Preta, León e todos
os outros, imóveis, a observam. Antes que ela suma, Preta avisa:
“Nós somos Pies Rubros, saímos todo dia preparados pra matar ou
pra morrer.”
“Nisso somos iguais.”
Preta cospe no chão. Escuta o som do rio Uruguai ao longe e das
moscas e mosquitos revoando. Volta ao tacho onde ainda há um resto
do carreteiro. Passa a colher de pau no fundo, no arroz queimado, e
joga para os cachorros. Os bichos se aproximam devagar,
amedrontados. Comem sem brigar, com os olhos grudados na chefe.
1957
quando tudo começou
A morte, o covarde e o sábio
Homens bêbados, com armas erguidas nas mãos, riem posando para
uma foto. Um deles segura a fuça da onça, que está de cabeça para
baixo, com as patas amarradas e esticadas por uma corda no alto do
galpão nos fundos da mercearia da Gringa Romano. Garganta cortada,
o sangue escorre para dentro de uma vasilha de alumínio. Caco
Romano, de cabelo ruivo e pele rosada queimada do sol, cheia de
sardas, segura com orgulho a enorme língua do animal e ordena:
“Batam logo esse retrato.”
“Espera o teu irmão se ajeitar”, um dos homens fala.
Enrico Romano, onze anos, fisicamente muito parecido com o
irmão mais velho, não consegue se mexer, os olhos estão fixos no
sangue que enche o recipiente. Outro homem se afasta do grupo e
volta com uma caixa de ferramentas e um alicate, que entrega para
Caco. Ele estica a boca do bicho e, apesar da dificuldade, arranca o
canino superior direito.
“Agora vamos tirar essa merda de foto!”
As duas portas de madeira, enormes e pesadas, se abrem, fazendo
ranger as dobradiças enferrujadas. Armin Sarampião aparece segurando
um facão.
“Cadê o pai?”
Caco joga o alicate longe e guarda o canino no bolso.
“Do que que tu tá falando?”
“O pai tava lá em casa hoje cedo quando saiu pra procurar a Boca
Braba.”
“Ganhei os corres, então.” Caco aponta para a onça. Ele e os amigos
riem.
Gringa Romano, por volta dos cinquenta anos, mulher alta, braços e
pernas grossas, cabelos grisalhos amarrados no topo da cabeça, pele
tomada de sardas, surge no recinto. Todos ficam quietos. Ela caminha
até Enrico e a onça, observa o animal com um buraco de bala no peito
e com um corte reto e profundo feito à faca na garganta. Pega o
menino pelo braço, empurra-o para a frente, em direção à porta.
“Te arranca daqui.”
Ele não a contraria e sai.
Gringa se ajoelha na frente da Boca Braba. Se curva. Murmura
alguma coisa que ninguém entende. Caco observa tudo sem piscar.
Ainda ajoelhada, a mulher encara o filho, depois se levanta. Os amigos
dão alguns passos para trás, assustados. Ela se volta para Armin.
“Vou juntar os homens da vila e vamos pra dentro do Turvo. A gente
só sai de lá quando achar o Sarampião. Te prometo.”
O olho de Tédi está escuro e inchado. Ela prepara uma bacia com água
e sabão para lavar a filha. Entra no pequeno quarto e se assusta ao ver
Lenara com um emplastro de folhas verdes e barro no peito, e outro
azulado na testa.
“Quem pôs isso em ti?”, pergunta, mas não obtém resposta.
Sai pela casa.
“Sarampião? Sarampião?” Volta até a filha. Pergunta de novo:
“Quem foi?”.
“O quê?”, Lenara fala com a voz fraca.
“Foi tu ou foi ele? Fala.”
“Me deixa dormir.”
Tédi escuta palmas do lado de fora. Abre um sorriso. Chega ao pátio
e encontra o cunhado. Antes que ela consiga falar, Armin pergunta:
“Ele tá aqui?”
“O Sarampião?”
Armin estranha. Observa ao redor da casa, depois dentro dela.
“O Roscato. Tão atrás dele.”
O carma não esquece meu nome
Por volta das duas da tarde, suada e suja, Olga sai de dentro de uma
oficina mecânica. Fuma um cigarro, com a bolsa pendurada no braço.
Caminha pela rua de calçamento, na lateral da praça do Turvo. Anda
na direção da avenida das Viuvinhas. A intenção é voltar logo para o
hotel, tomar um banho e aguardar o carro consertado ser entregue lá.
Olha de canto para as estátuas de Sarampião e da onça, integradas ao
chafariz que imita as quedas do salto do Yucumã, no meio da praça.
Observa ao redor. Não avista ninguém nas ruas. Vai até a frente da
estátua.
“Sarampião, eu era uma idio… tu sabe que aquilo foi sem…” Hesita.
“Não, Olga. Tu nunca gostou dessa estátua horrorosa e agora tá falando
com ela?” Joga o cigarro longe. Larga a bolsa no chão, tira os calçados,
molha os pés para se refrescar, depois as pernas, até acabar entrando
com todo o corpo embaixo da queda d’água. Sente a pressão bater no
couro cabeludo, nos ombros, nas costas. Sorri pela primeira vez desde
que saiu da casa de Josué. Passa a refletir sobre o significado daquela
cidade, lugar onde nasceu, o único lugar em que chegou a ser livre de
verdade. Lembra da infância, da adolescência, em seguida da dor de
todos os julgamentos, dos erros que não podem ser reparados. Cidade.
Peso. Vazio. Solidão. Tristeza. O reflexo de tudo aquilo ainda paira no
ar. Fecha os olhos. Escuta uma voz:
“Arrê, Sarampião.”
Uma mão segura seu pescoço e lhe joga para fora do chafariz. Já no
gramado, esfrega os olhos molhados e vê Chaya. Olga se pergunta
como aquele corpo pequeno, vinte centímetros mais baixo que o seu, e
aqueles braços finos conseguiram arrancá-la com tanta força de lá.
Olga observa Chaya uniformizada e com uma pistola na cintura
presa ao coldre. Começa a rir.
“Essa cidade, essa estátua, Sarampião, tudo sempre foi uma piada pra
ti”, Chaya fala.
Olga continua rindo, põe as meias e os calçados, pega a bolsa.
“Tu sabe que posso te levar presa por isso”, Chaya continua.
Olga a encara, pega o cabelo molhado e torce, depois faz o mesmo
com a barra da camiseta ainda no corpo.
“Tu não é dona desta cidade, Chaya.”
“E tu não devia ter voltado pra cá, Olga.” Chaya dá dois passos na
direção de Olga e para.
“Ninguém que não idolatre o Sarampião, que não dobre os joelhos
pra essa estátua idiota do teu bisavô, é bem-vindo aqui, né?” Olga se
vira para ir embora.
Chaya vai para cima dela e, por trás, pega seu braço direito e o torce
com fúria. Olga grita. Chaya grita mais alto:
“Fala de novo. Fala se tu tiver coragem.”
Ela se dá conta de que usa muita força, que pode quebrar a mulher,
e a larga. Olga se afasta, segurando o braço dolorido.
“Tu enlouqueceu? Cretina…”
“Chega de briga, Olga. Vai embora daqui de uma vez.”
“Briga? Foi tu que começou isso. O Tales sabe que tu agride pessoas
na rua agora?”
“Deixa o meu irmão de fora. Tu trouxe discórdia faz muitos anos. E
só voltou pra cá pra trazer mais coisa ruim.”
“Do que é que tu tá falando?”, Olga pergunta.
“Da hidrelétrica e desse deputado desgraçado pra quem tu trabalha.”
Olga olha com desdém para Chaya. Pega um cigarro e acende, traga
uma, duas vezes.
“Ninguém em Dourado quer essa hidrelétrica. O teu chefe…”
Olga a interrompe:
“Ninguém?”, debocha. “Tu não conhece tão bem as pessoas daqui.
Pelo visto, nem as mais próximas.”
“E tu conhece? Acha mesmo que as pessoas vão te perdoar? Te
apoiar?”
Olga não consegue esconder o incômodo. Sabe que Chaya está
certa. Continuar aquela conversa é burrice. Desvia dela e caminha
devagar pela avenida. Chaya fala alto:
“Seja mulher. Tenha um mínimo de dignidade. Tu não tem mais
dezessete anos. Vai embora e leva essa ideia da barragem contigo.”
Capa Preta
Passa das vinte horas. Olga está deitada na cama do seu quarto no
Onça-Pintada. As janelas estão abertas e um forte vento entra e derruba
roupas, guardanapos e papéis de cima da mesa. Levanta-se da cama.
Caminha até a janela. Observa o impacto da ventania sobre a cidade:
folhas, galhos de árvores, poeira, sacos plásticos, lixo. Tudo dança em
redemoinhos. Fecha a janela. Escuta batidas na porta.
“Quem é?”
“O Enrico.”
Ela abre.
“Boa noite, Olga.”
“Boa noite, seu Enrico.”
“Quero trocar duas palavras.”
“Pois…”
“Tu sabe que aqui é um hotel de família. Somos uma cidade
pequena, mas séria, não gostamos de problemas. Tu precisa ir embora
ainda hoje.”
“Não tô entendendo.”
“Vou ser bem claro: o deputado Heichma conhece muita gente aqui.
Sabemos que ele é um homem ciumento e que não gosta de ser
contrariado.”
Olga sente o rosto esquentar e os olhos arderem. Não imaginava que
a história inventada e reinventada pelo Heichma lá na Assembleia
Legislativa pudesse ter chegado até Dourado. Quase todos os
parlamentares contam vantagens entre si: inventam relacionamentos
com jovens nascidas no interior do estado, mulheres que consideram
fracas, ingênuas, indefesas. Usam do poder e do emprego que dão a elas
para seguirem com todo tipo de abusos: psicológico, material e, muitas
vezes, sexual, contando com a impunidade que cerca políticos e
homens poderosos. Acabaram com a vida, os sonhos e o futuro de
tantas mulheres que a própria Olga já perdeu a conta. Ela percebe que
ingenuamente achou que as calúnias nunca chegariam tão longe,
muito menos a sua cidade natal. Sente o que sentiu muitas vezes em
Porto Alegre: vergonha. Ela se vê como uma peça de roupa rasgada e
suja. Não adianta dizer a verdade. A verdade é ínfima diante da mentira
saída da boca de um homem poderoso.
“O Heichma ligou? Ligou pro senhor?”, ela pergunta, acuada.
“O que tu faz com o deputado lá na capital não é problema meu.
Não me interessa como vocês vivem lá.”
“O que eu faço? O senhor me conhece desde criança, como pode
achar isso? O Heichma é um ser decrépito, asqueroso… podia ser meu
pai, meu avô… Como ousa falar essas coisas?” Olga não consegue se
controlar e grita.
“Tô nem aí pra ti e pros teus gritos, Olga. Me importo com o meu
filho. Tu fez coisa errada aqui em Dourado uma vez, tentou estragar a
vida do guri e da minha família, só eu sei o trabalho que tive pra cuidar
daquilo.”
Quer confrontá-lo lembrando que ela assumiu toda a culpa, como
ele exigiu na época. Que sofreu todas as consequências para não
envolver Tales. Que aquilo tudo continua doendo e que continua
suportando o que a vida dá e cobra, calada e sozinha. Sozinha, como
sempre. Mas não consegue. Na sua cabeça, giram cenas do passado.
Cenas dela e dos seus pais, arrasados, indo embora de Dourado de
madrugada, fugindo, expulsos da cidade. Volta a si quando escuta a
ordem de Enrico ecoar pelo corredor do hotel.
“Tu é a puta do Heichma, sim. Tem uma hora pra juntar as tuas
coisas e sair, ou eu mesmo te jogo na rua.”
Dez da noite. A ventania está mais intensa. Chaya está em frente à sede
do parque com Cláudio, Nestor e dois guardas-florestais — uma
mulher e um homem. Nestor usa uma tipoia no braço esquerdo. Os
galhos das árvores balançam com fúria. Corujas, grilos, cigarras, sapos,
gritam ao mesmo tempo. Chaya fala para todos escutarem:
“Temos que nos organizar. Sabemos que tem pelo menos dez novos
portos clandestinos só nas imediações do parque. E um número ainda
maior dessas merdas de balsas improvisadas. Vamos tocar fogo em
tudo.”
“Sem esperar a ajuda da brigada, né? Senão, lá vai meio ano.”
Cláudio está irritado. Em poucos dias viu seu parceiro de trabalho,
Nestor, ser ferido; agora é seu chefe, Ângelo, que quase morre. Ele
pode ser o próximo se não fizerem algo.
Um raio surge no horizonte. Alguns segundos depois, o som da
trovoada. No mesmo instante um carro com os faróis altos estaciona no
portão. O vigilante sai da guarita e avisa:
“Os faróis.”
A luz baixa. A porta do motorista se abre.
Os guardas observam um vulto se mover e ir para a frente do carro. É
Olga.
“Posso falar com a Chaya Sarampião, por favor?”
“O parque tá fechado”, o vigia responde.
Olga vê Chaya não muito distante.
“Dois minutos, Chaya”, Olga pede.
Chaya caminha contra o vento. Seus cabelos, que estão soltos, voam
para o alto. Ela manda abrir o portão e se aproxima de Olga. As duas
estão iluminadas apenas pela meia-luz do carro e pela pequena
lâmpada da lateral da guarita.
“Dois minutos. Tenho coisa séria aqui pra resolver.” Chaya cruza os
braços e abre um pouco as pernas, parece mais baixa do que é.
“Eu preciso da tua ajuda, por favor”, Olga diz. Chaya não responde.
“Preciso falar com ele”, Olga continua.
“Ele?”
“Tu sabe… Sarampião.” Olga aponta na direção da cidade. “Ele tem
que me perdoar.”
Chaya fica quieta. Ela poderia matar Olga naquele momento. Seu
corpo inteiro quer saltar sobre a jornalista, que se dá conta.
“Eu sei que parece absurdo. Mas é a única coisa que eu consigo
pensar em fazer agora”, Olga insiste.
“Não sei o que tu tá armando, mas juro que se tu vier aqui de
novo…”
“Eu acho que o Sarampião também iria querer isso. Tô aqui por
causa dele. Por favor.”
Chaya tenta raciocinar por alguns segundos. Se afasta pela lateral, do
lado contrário da guarita. Some no escuro. Volta com um punhado de
terra vermelha e coloca na mão da jornalista.
“Sente isso”, Chaya manda.
Olga observa a terra. Fica confusa. Esfrega na mão.
“Cheira.”
Olga aproxima a terra do nariz.
“Isso é tudo que tu vai ter dele. Agora some da minha frente.”
“Escuta: Sarampião fez eu vir aqui falar contigo”, Olga argumenta.
“Vou quebrar a tua…”
“Deixa eu falar, por favor. Desde que aconteceu o que aconteceu no
passado, desde que eu fiz aquelas coisas horríveis com a estátua dele, a
minha vida tem sido uma sucessão de erros que eu não consigo mais
consertar. Tô enjaulada numa infindável sequência de traumas.
Angústias, desgraças que só aumentam, e eu não consigo ser melhor,
nem maior… Na nossa época do colégio eu queria ser uma jornalista
engajada, que lutaria pela verdade, que denunciaria os crimes dos
poderosos. Mas voltando pra cá, pra essa terra, me dou conta de que
sou o completo oposto do que um dia eu sonhei ser.” Olga contém o
choro para manter o pouco de dignidade que lhe resta.
Chaya permanece fria.
“É preciso coragem pra enxergar a falta de esperança na própria vida
depois que se atravessa esse túnel”, Chaya diz.
“Então vai me ajudar?”
“Tu foi por esse caminho sozinha, vai ter que sair sozinha também.”
“Se não por mim, então pelo Sarampião.”
“Tu ainda te lembra dessa terra vermelha? Desse cheiro?”, Chaya
pergunta.
Olga nega, envergonhada.
“Essa terra é ele, isso aqui tudo é ele.” Chaya aponta para a imensa
floresta do parque do Turvo.
“Deixa eu entrar no parque?”
“Os teus minutos acabaram.” Chaya dá as costas para Olga e
caminha na direção da sede.
“Posso ajudar a salvar esse lugar. Sei de coisas sobre a hidrelétrica
Gran Roncador.” A jornalista faz sua última jogada.
Chaya para de andar.
“Tem muita coisa errada. O Heichma tá envolvido e gente poderosa
aqui dessa cidade também”, Olga continua.
“Tu acha que não sei disso. Quero nomes. Quem daqui tá
envolvido?”
Outro raio surge no horizonte.
“Preciso de provas concretas antes de denunciar. Falar por falar não
vai te ajudar. Nem me ajudar… Eu posso conseguir essas provas.”
“Se isso for verdade, quem sabe o Sarampião tenha te mandado aqui
mesmo.”
Começa a chover, uns pingos grossos e pesados. Ambas os sentem
bater e molhar o rosto e o corpo.
“Por que que eu devo acreditar em ti?”, Chaya pergunta.
“Por tudo que acabei de falar. E porque eu tenho muitos motivos pra
querer acabar com cada um desses filhos da puta que tão envolvidos
nisso.”
Olga corre até a caminhonete e volta com o celular na mão.
“Me dá o teu número? Vou pra capital. O que eu conseguir no
gabinete, ou fora dele, vou trazer pra cá e deixar contigo. Então tu me
mostra como faço pra encontrar com o Sarampião.”
“Tá arriscando mais a perder do que a ganhar, entende isso?”, Chaya
pergunta.
“Não tenho mais nada a perder.”
Corpo lavado
Na barranca do rio, Preta está sozinha sentada sobre uma pedra, com
os pés descalços no barro úmido de cor bordô. Ela sente o gelado da
terra lhe refrescar entre os dedos e a sola dos pés, contrastando com o
bafo que a tarde quente traz. O rosto erguido, observa a mata do parque
do Turvo à sua frente, do outro lado do Uruguai. Fecha os olhos. Se
concentra no som das águas.
“Me dá um sinal?”, pergunta em voz alta.
Estica os braços nas laterais do corpo, abre os dedos das mãos.
“Um sinal. A… Saram… Não posso voltar a falar esses versos se não
sou mais ouvida. O senhor me abandonou, bisa?”
O vento, o tempo, parecem parar. Como se tudo estivesse em
suspensão, esperando o anúncio de que a mesma tragédia vai
recomeçar. O ciclo que não se encerra. A continuação do sangue e da
morte. O tiro e o esturro da onça reverberando novamente por todo
aquele lugar.
Ela se levanta. Se vira para entrar no mato e voltar à localidade dos
Pies Rubros. Escuta um motor de barco. É Enrico que se aproxima
numa pequena embarcação. Ele está sozinho, chega até a beirada do
rio. Não desce.
“Tá resolvido”, ele avisa.
Preta o encara.
“Eu sei.”
“Vão quando?”, Enrico pergunta.
“Não é da tua conta.”
“Preciso da mercadoria. Tem carregamento saindo pelo porto de Rio
Grande no final de semana.”
“Não se caça aquele tipo de animal com afobamento. Até o idiota do
teu irmão saberia disso, se tivesse vivo”, Preta fala.
“Que Deus perdoe tanta crueldade que sai dessa tua boca.”
“Deus não chega desse lado do rio, velho.” Preta dá as costas para
Enrico e desaparece.
Estragando a vida de alguém
As chamas iluminam os corpos nus das mulheres e dos homens dos Pies
Rubros. Eles estão ao redor de uma fogueira alta. Preta surge também
nua, ainda com o pano amarrado na perna ferida. Passa pelas pessoas e
fica no centro junto ao fogo. Em seguida aparecem dois adolescentes,
um veste regata lilás, o outro camiseta marrom, ambos usam bermuda e
chinelos havaianas nos pés. Cada um segura um lado de um tacho
cheio de água e folhas. Preta, concentrada, olha para os presentes. O
menino de regata lilás lhe entrega uma caneca de metal. Ela pega e a
enche com o líquido do tacho. Se dirige até uma das mulheres do
grupo. Derrama a água marrom-esverdeada com folhas na cabeça e no
corpo dela, que solta uma bufada. A água está gelada. Preta repete o
ritual em todos e depois em si mesma. Ergue o braço e mostra uma
cicatriz feita a ferro em brasa, incrustada na pele, em forma de R com
um traço cortando a letra ao meio. Ela está entre as costelas, abaixo da
axila.
“Essa marca me protege, protege a minha alma e o meu corpo, assim
como protegeu a minha vó, Tédi, quando ela fundou os Pies Rubros.”
Todos olham fascinados para Preta.
“A Tédi me deu o seu bem mais precioso”, ela passa a mão na
cicatriz, “e eu vou compartilhar com vocês, pois o que vamos fazer lá
dentro daquela floresta mexerá também com o que a gente não pode
ver. Mas cada uma e cada um que vai comigo pra caçança estará com a
pele e o espírito cerrado, como o meu.”
O magnetismo que a marca de Preta causa em todos é maior que o
medo que estavam sentindo. Confiam na sua líder, mas confiam ainda
mais na lenda da marca feita por Tédi na pele de Preta. Muitos nem
mesmo tinham certeza de que ela existia.
O adolescente de camiseta marrom passa uma garrafa de vinho
aberta para a chefe. Ela bebe.
“Façam uma fila”, Preta ordena e aponta para a frente.
Eles seguem a ordem. Preta olha para o menino de camiseta lilás,
que tira uma faca de uma bainha de couro e entrega a ela. Toma mais
um gole de vinho. Fecha os olhos. Faz um pequeno corte logo abaixo
da cicatriz. A primeira mulher se aproxima, Preta põe os dedos no
sangue que escorre pela lateral do seu corpo e passa no rosto da
mulher, depois lhe entrega a garrafa de vinho.
“Confia! Força, mujer.”
Uma hora depois, no velho galpão que fica na lateral esquerda, não
muito longe das casas e dos contêineres do grupo, lugar utilizado
também como depósito, os Pies Rubros estão reunidos. Eles vestem
camisas, calças compridas e casacos de cor escura ou com estampa
camuflada. Uns estão de botas, outros de tênis.
Um grupo de homens separa caixas de isopor com sacos de gelo
ainda fechados. Dois, dos mais velhos, altos e fortes, com cabelos
longos e grisalhos amarrados por uma tira de couro, pegam sacas de sal
grosso de uma pilha na lateral direita e levam até a parte da frente do
local, junto das lonas que serão utilizadas para barracas, cobertores,
redes de dormir, tábuas de madeiras, espingardas, revólveres, facas,
facões e galões de gasolina e querosene.
León, enfiado no meio dos adultos, não tira os olhos das armas.
Nunca viu tantas delas juntas. Não fazia ideia de que Preta tinha em
seu poder todo aquele arsenal. Ela o observa. Se aproxima do
adolescente e o pega pelo braço, levando-o até a frente da única mesa
onde duas mulheres separam munição para as armas. Chama a atenção
de todas e todos.
“Do lado de lá, vamos nos separar. Um grupo maior vai pra ponta
oeste e depois desce pro sul bem na divisa do parque. Vão pôr fogo no
mato naquele lado.” Preta tira um papel de dentro da blusa, nele há
um mapa desenhado por ela. “Isso vai assustar a onça e os outros
animais pro lado contrário, perto do rio, onde vamos tá com tudo
montado”, Preta determina.
León pega uma pistola. No mesmo segundo Preta segura seu punho,
aperta até que ele solte a arma. Ela percebe nele novamente uma
expressão macabra.
“O León será o único adolescente a ir com vocês, os outros ficarão
em Pies Rubros. Ele irá com o grupo do fogo pois é rápido com as
pernas, o mais rápido daqui. Precisamos dele pra nos avisar se algo der
errado”, Preta ordena.
“¡No!”, ele reage e se solta de Preta. Ela lhe dá um bofetão na
orelha. O menino ainda tenta argumentar:
“Me necesitas para matar al jaguar, al onça.”
Preta pega o menino pela gola do casaco e o arrasta para fora do
galpão.
“Seu filho da puta, quer pegar em arma? Quer matar? Vou te esfolar
vivo. Obedece quem manda aqui. Cheguei a achar que tu podia ser o
líder um dia… Mas como tudo que é homem, as tuas bolas pensam por
ti. Aprende a usar isso.” Preta bate na testa dele com o dedo indicador.
“Sí, señora.”
Os dois voltam para dentro do galpão.
“León, ajuda a carregar os galões de gasolina e querosene”, Preta
ordena. Depois se volta para os outros. “Todos prontos? Pies Rubros!”
“Pies Rubros! Pies Rubros!”, repetem.
Preta pega sua pistola, enfia na cintura, em seguida faz o mesmo
com um rifle .44, confere a munição. Observa o breu, atordoada pela
consciência de que nunca mais será a mesma depois do que irá fazer.
Uma brasa que nunca deveria ter se
acendido
Armin põe o barco a remo na água, que naquela tarde está tranquila.
Atravessa o Uruguai devagar. À medida que se afasta das margens do
Porto Pari é que sente um pouco a correnteza. Do lado argentino,
amarra a embarcação numa árvore e entra na mata.
Meia hora depois chega ao campestre; a vegetação baixa e o rochedo
estão mais visíveis por causa da seca que continua forte nos últimos
meses, acabando com as gramíneas que ainda existem no lugar. Escuta
latidos ao longe, em seguida algumas vozes. Se aproxima de quatro
casebres no meio da mata. Ao fundo há um galpão grande de madeira
com o chão batido. Surgem três crianças, duas meninas e um menino
com os pés descalços, usando apenas bermudas.
“Onde estão os pais de vocês?”
“Ergue as mãos e vira devagar”, uma voz atrás dele dá a ordem.
Armin obedece. Se surpreende ao ver Tédi lhe apontar uma
espingarda. Ao lado dela um homem enorme, ombros largos, queixo
quadrado, sobrancelha grossa, segura um facão. Antes que ele diga
qualquer coisa, o homem se aproxima e o golpeia com o cabo de
madeira do facão.
Armin retoma a consciência. Está escuro e silencioso. Sente a terra
solta e seca entrar na sua boca e nas narinas. Tenta se levantar, mas está
grogue. A pancada na cabeça foi violenta. Põe a mão atrás da nuca. Há
uma gosma no couro cabeludo. Ele cheira. É sangue. Tateia ao seu
redor e encontra uma parede de madeira. Se escora nela e senta-se. Os
minutos passam. O breu é total. Alguém abre a porta e a claridade da
lamparina o cega.
“Tu é corajoso”, uma voz fala.
Os olhos de Armin vão enxergando aos poucos, percebe o vulto de
uma mulher se sentar num cepo de lenha à sua frente.
“Tédi, um pouco d’água, por favor, cunhada?”, Armin pede, ainda
zonzo.
“Que desgraça tu veio trazer pra gente?”
“Vocês duas sumiram há meses, nunca mais soube de ti nem da
Lenara. Como tá a menina?”
“Tá melhor aqui do que lá naquele lugar de merda em que tu nos
largou.”
“Foi pensando no bem dela que…”
Tédi levanta e dá um murro no olho de Armin. Ele cai. Fica deitado.
Não esperava a agressão, muito menos aquela força.
“Tava te devendo essa. E a Gringa? Aquela desgraçada vai ter o dela.”
“Vai me matar, Tédi? Depois vai matar a Gringa? É isso?”
“Hoje não, Armin. Hoje não.”
Ela sai. O tempo passa. Armin adormece até ser acordado por um
chute nas pernas. Vê Roscato com o rosto rente à lamparina. Seus olhos
amuados e amarelos parecem desconhecer qualquer realidade. Está
magro e abatido. A pele enrugada caída sobre os ossos. Há uma barba
rala e alguns fios de cabelos compridos e ensebados presos atrás da
orelha. Parece ter envelhecido anos. Uma tristeza assombrosa toma
conta daquele instante. Larga a lamparina e cospe no chão, faz sinal
para o irmão esperar. Sai e volta minutos depois com um balde cheio
d’água e uma caneca de metal. Serve o irmão, que bebe tudo com
rapidez. Armin devolve a caneca pedindo mais. Roscato lhe entrega o
balde e ele mesmo se serve. Depois derrama o que sobra na cabeça.
Sente o corte arder. Apesar da chama da lamparina, a penumbra do
lugar só deixa parte do rosto deles aparecer.
“Só aceitei falar contigo porque a Tédi mandou”, Roscato fala.
“Que bom que agora tu escuta a tua mulher.”
“Todos aqui escutam. Esse lugar só existe por causa dela.”
O som de um grilo estridulando os surpreende.
“Já faz quase um ano, Roscato. Tu é o meu único irmão.”
“Não devia ter vindo.”
“E tu não devia ter degolado o Caco Romano.”
“Então é sobre isso?”
“Só quero te ajudar. Me conta o que realmente aconteceu?”
“Tu sabe o que aconteceu.”
“Mas por quê? Homem, vocês eram parceiros de copo, de bolicho.
Eram amigos.”
“Nunca fomos amigos. A gente só tinha negócios.”
“Negócios? Que negócio, Roscato? Tu não trabalhava.”
Roscato chuta o cepo de lenha, sua camisa se ergue, mostrando um
revólver preso à cintura.
“Tá falando igual ele”, Roscato caminha de um lado para outro.
“Ele quem?”
“Tu sabe.”
“O nosso pai só queria o teu bem e o bem da tua família.”
“O nosso pai tirou meu sustento. Me tirou a única coisa que eu era
bom fazendo”, Roscato diz.
“Quem te disse essa asneira?”
“Desde que criaram esse parque de merda… tu sabe. Esses políticos
inúteis. Eles mesmos caçavam, e muitos ainda caçam, lá no Turvo.
Caçar nunca foi errado. A gente caçou pra comer, pra vender por anos.
Agora eu, por ser filho do Sarampião, sou um criminoso? Não posso
mais trabalhar com isso?”
“Caçar onça não é um trabalho.”
“Tu e o pai tinham inveja de mim. Inveja porque eu sempre fui o
melhor. Caço como ninguém nesta região.”
“Não vim aqui pra te ouvir desaforar o pai.” Armin perde a paciência.
Roscato continua andando de um lado para outro e soca as paredes
do casebre, fazendo-o tremer.
“A culpa de tudo que aconteceu é dele. Eu botava comida em casa
pra mulher e pra filha. Daí do nada fico sem ganha-pão. A culpa é do
nosso pai. Dele. Dele.”
“Te acalma, homem.”
Os dois se encaram. Dois irmãos, mesmo sangue, mesma criação,
mas tão diferentes. Roscato gosta de matar, de encurralar os bichos, de
ver o desespero no olhar deles, o desespero da morte na sua frente.
Roscato observa a vida do bicho sumir pelo olho, e aquilo o satisfaz, o
alimenta, faz com que se sinta maior do que é, melhor do que é. Armin
não tem essa frieza, essa sede por matar. Mesmo sendo o filho mais
novo, foi o único que cuidou e se preocupou com o pai e a mãe deles
durante toda a vida, e é por causa desse sentimento familiar que ele
está ali naquele lugar, em busca do irmão.
“Senta aqui, irmão. Senta e conversa. Pelo pai. Pela tua filha. Tô te
pedindo”, Armin implora.
Roscato puxa o irmão do chão e eles ficam frente a frente em
silêncio. Um não dito que incomoda.
“Eu matei a Boca Braba”, Roscato fala.
“Como é que é?”
“Eu matei. Eu tava com o Caco na caçança naquele dia.”
Armin vai para cima do irmão e dá um soco no seu peito. Os dois se
engalfinham. Roscato devolve o soco no estômago, fazendo Armin se
afastar.
“Ele me pagou. Pagou pra ir com ele. Só eu podia matar aquela
onça.”
“Tu não merece ter o sobrenome que tem.”
“Tô nem aí pra essa bosta de sobrenome. Um sobrenome inventado
por um bisavô covarde que nem conhecemos e que apareceu aqui na
fronteira fugindo de uma guerra. Pro inferno esse sobrenome:
Sarampião. Pro inferno a Boca Braba, o Caco e o nosso pai também…”
Armin voa de novo para cima de Roscato, que mais se defende do
que ataca. Armin acerta um murro no nariz do irmão, que quebra e
começa a sangrar.
“Chega! Chega!” Roscato passa a mão no rosto ensanguentado,
depois começa a rir, um riso diabólico.
“Tu é um maldito”, Armin responde.
“Sou mesmo. Um maldito. E só tô te falando tudo isso porque a Tédi
mandou te contar. Viva e morra sabendo que o nosso pai…”
“Acabou o teu tempo, Armin”, Tédi interrompe os dois. “Pode levar.”
Roscato se mexe como se estivesse bêbado. Da sua boca sai uma
baba grossa, que fica grudada nos lábios finos. Pega a lamparina com
uma das mãos e tira sua arma da cintura com a outra.
“O que tem o nosso pai? Tu viu o nosso pai naquele dia?”
Roscato não responde.
“Tu sabe onde ele tá, Roscato? Fala, por favor”, Armin grita.
“Cala essa boca, Armin. Aqui no grupo tem criança dormindo. Vai,
antes que eu mude de ideia”, Tédi avisa.
“Fala comigo”, Armin implora para o irmão.
O homem de sobrancelha grossa aparece. Pega Armin pelos dois
braços e o empurra para fora.
“Que seja a última vez que eu te vejo desse lado do rio, Armin. As
minhas regras vão valer se tu entrar no nosso território de novo”, Tédi
avisa.
Armin, Roscato e o homem passam o campestre, a mata, e chegam à
beira do rio. O homem coloca Armin dentro da pequena embarcação.
Desamarra-a da árvore. Roscato está logo atrás. Ele entrega a lamparina
para o irmão. Empurram o barco. Armin treme inteiro. Seu rosto está
em choque.
“Roscato, o pai tá vivo? O nosso pai tá vivo, irmão?”
Roscato some na mata, seguido pelo homem.
Trato de silêncio
Dois meses depois, Lenara, aparentando ter mais do que os seus treze
anos — alta, cresceu muito de 1957 para 1958 —, magra, ombros
largos, cabelos compridos e soltos, usa vestido preto um pouco acima
do joelho e sapatos de couro amarrados por cadarços. Sua mãe, Tédi,
cabelos loiros e curtos com uma mecha grisalha na frente, usa calça de
moletom azul justa ao corpo, que destaca os músculos das suas pernas
grossas, regata branca e um cordão dourado na altura dos seios, e tem
um revólver calibre .38 preso à cintura. Estão de mãos dadas, ao lado
de uma cova aberta, no fundo do cemitério, na parte alta do vilarejo, na
área rural de Corredera Moconá. Dentro dela, um caixão feito de
tábuas velhas e uma cruz, em que está escrito: Roscato Sarampião —
Nascimento 1927 — Morte 1958.
Tédi pega uma pequena garrafa de cachaça. Abre e derrama um
pouco por cima do caixão; por fim, deixa a garrafa cair dentro da cova.
Lenara apenas observa, sentindo o odor da bebida forte misturado ao
cheiro de terra recém-mexida.
“Um dia o Armin vai pagar… todos eles vão pagar”, Tédi fala.
Armin, Idalina e a filha deles, Amara, estão dentro da mata do Turvo,
perto do salto do Yucumã. Cada um segura uma vela.
“Tu devia ter ido ao enterro”, Idalina fala alto, com o intuito de ser
ouvida, já que o som da queda d’água naquele dia é retumbante.
Armin não responde. Fica olhando para suas mãos entrelaçadas na
vela, para os dedos polegares que roçam um no outro, mostrando sua
impaciência.
“A Tédi acha que foi tu que entregou o Roscato pra polícia. Não ter
ido ao enterro do teu irmão só vai dar mais motivo.”
Armin continua mudo. Por dentro a fúria ainda corre, mas ele não
demonstra. Segue decidido: nunca mais falará o nome do irmão nem
falará sobre aquela noite em que foi para o outro lado do rio encontrá-
lo, muito menos sobre o que aconteceu depois. A memória de Roscato
é uma cruz que envergonha, mas que, se depender dele, não será
passada para a frente. Um dia desaparecerá, como se ele nunca tivesse
existido.
“Eu vou acender a minha vela pro tio Roscato”, Amara comunica.
Armin segura firme o pulso da menina. Ela dá um pequeno grito.
Ele grita mais alto:
“Não.” E muda o tom de voz, tenta parecer calmo. “Essas velas são
pro teu vô Sarampião.”
“Foi o vô Sarampião que pediu pra acender pro tio”, Amara fala,
assustada com a reação do pai.
“Deu pra essa menina ficar falando essas bobagens agora. Não é
certo inventar esse tipo de história, ainda mais com o nome do teu vô.”
Contrariada, Amara sai correndo na direção de uma canjerana e se
esconde atrás do seu tronco. Armin faz o movimento de ir atrás dela,
mas Idalina o impede.
Gringa e Enrico estão na mercearia. Quatro pessoas aguardam para
serem atendidas enquanto Gringa entrega uma lata de banha de porco
para uma mulher e Enrico, o troco do valor da compra. Antes de sair, a
mulher põe sua mão sobre a de Gringa e diz:
“A justiça divina foi feita pelo Caco, dona Romano. Só de saber que
o vagabundo do Roscato se enforcou na cadeia, deixou muita gente
aqui da vila aliviada.”
Gringa agarra o braço da mulher, enfiando as unhas na carne.
“E o que de divino tem nisso? Me diz? Sua parasita da desgraça
alheia. Some da minha frente. Aqui tu não compra mais.”
A mulher é pega de surpresa com a reação da dona da mercearia. Dá
alguns passos para trás e sai apressada. Enrico observa a mãe com o
rosto vermelho. Ela começa a tossir. Pega um lenço do bolso da camisa
e escarra. Seus olhos pousam em silêncio sobre o sangue misturado ao
catarro no pedaço de pano.
sangue
Mantenha o inimigo por perto
Chaya bate no vidro do carro de Olga, que acorda assustada. Ela abre a
janela.
“Não me diz que passou a noite aqui?”
“Não tinha pra onde ir.” Olga abre a porta e sai. “Tu não atendeu
minhas ligações.”
“Foi uma longa noite no inferno. Literalmente. Pega as tuas coisas e
vamos entrar.”
“Esse cheiro forte de fumaça”, Olga diz e esfrega o nariz,
incomodada com o odor que está mais intenso do lado de fora do carro.
“Foi muito feio?”, ela pergunta enquanto pega o computador e a bolsa.
“Ver uma floresta queimando nunca é bonito.” Chaya abre o portão
dos fundos e caminha em direção à sua casa.
Olga apanha a bagagem no porta-malas. Pensa em pedir ajuda a
Chaya, suas duas malas estão pesadas, mas ao se dar conta da sujeira e
do estado de esgotamento da ex-colega, desiste. Passam pelo portão,
avançam pelo pátio, pela famosa estufa do avô Armin. Entram na casa
pela cozinha. Olga deixa as malas, o computador e a bolsa ali.
Caminha até a sala, onde Chaya a espera. Ela aponta para o sofá de
quatro lugares.
“Pode descansar aí. Se quiser ligar a tv, pegar um livro pra ler”,
Chaya mostra a estante na lateral, abarrotada de livros. “Preciso de um
banho e de algumas horas de sono. Não tô conseguindo raciocinar
direito.”
“Vai. Descansa. Tenho muita coisa pra te mostrar. Preciso que tu
esteja ligada.”
Chaya some no corredor que dá para os quartos. Fala alto lá de
dentro:
“Não fuma dentro da minha casa. E se alguém bater na porta: me
acorda, não abre.”
No mesmo dia, por volta das quatro da tarde, Olga atravessa o rio
Uruguai em um barco de madeira, não muito grande. O sol arde. O
calor é desproporcional. Um castelhano, mais ou menos de trinta anos,
pernas compridas e finas, usando regata e boné, conduz o motor da
embarcação. À frente de Olga, uma pequena mala que ela trouxe. No
colo, sua mochila com o computador, o celular e documentos. Ela
olha para todos os lados, em todas as direções, confere se ninguém a
seguiu, mesmo com Chaya e o condutor lhe garantindo, mais de uma
vez, que naquele trecho do parque, por onde ela saiu, clandestina, não
apareceria vivalma.
Chegam a solo argentino. O castelhano pega a mala numa das mãos,
na outra um facão. Olga o segue com a mochila nas costas. Sobem um
barranco íngreme, molhado, de difícil acesso. Seguram em raízes e
troncos de árvores para conseguir subir. Alcançam uma mata fechada,
mas com a superfície mais plana. Seguem por ela. O homem, à frente,
abre a trilha com o facão. Andam uns trinta minutos naquela floresta.
Olga tem os braços e as pernas arranhados. Foi um erro ter vindo de
bermuda, pensa.
Escutam um latido, depois a voz de alguém que ordena ao cão que
faça silêncio. O castelhano interrompe a caminhada. Os dois se olham
e entendem que precisam ficar mudos. Devagar, ele larga a mala e,
como quem nasceu no meio daquele lugar, se embrenha e some. Olga
não sabe o que fazer. Se esconde atrás do tronco de uma grápia alta.
Segura a respiração. Tira a mochila das costas e se abraça a ela. Fica
atenta a tudo. Escuta o grito de uma harpia. O som vem do alto. Olha
para cima e localiza o pássaro pousado num galho. Fica vidrada nas
penas brancas e acinzentadas no peito e nas asas, a típica coloração
dessa espécie tão difícil de ser encontrada. Acaba se distraindo com
aquela visão rara, a ponto de relaxar um pouco e sentar-se no chão.
Uma mão cobre sua boca e seu nariz. Ela tenta, mas não consegue
gritar. Pisca uma, duas vezes. Vê o homem que a trouxe à sua frente.
Ele põe o dedo indicador nos lábios pedindo que ela não faça barulho e
fala em portunhol, sussurrando:
“Ellos están perto.”
Gringa Romano foi na frente e Armin logo atrás, com a feição pesada.
Entraram na casa e se posicionaram na sala, um encarou o outro com
cautela. A mulher ofereceu o sofá para Armin, que não aceitou. Gringa
tomou a frente: O Roscato te contou? Como a senhora sabe que encontrei
meu irmão? Sei de muita coisa, homem. Então me diz se o Caco te falou
que ele e o Roscato viram o nosso pai quando mataram aquela onça?
Silêncio. Se tu me entregar o Roscato, te digo o que eu sei. Armin chegou
junto de Gringa, disse em tom ameaçador: Fala o que aconteceu com o
Sarampião. Tu pode estar sofrendo o tanto que for, mas eu te mato se
puser a mão em mim, Gringa advertiu. Armin recuou. Se sabe o que
aconteceu, Gringa, por favor, conta? Nada é de graça, homem, o Roscato
precisa pagar, me promete? Armin concorda. O Sarampião estava na
cola da Boca Braba naquele dia, assim como o Caco e o Roscato. O teu
irmão deu dois tiros pra matar a onça. Um pegou nela. O segundo não.
O teu pai, de alguma maneira que o Caco não conseguiu me explicar,
saiu de trás de um arbusto e se pôs na frente do animal. O que que tu tá
dizendo, mulher? O Roscato e o Caco correram pelo mato até onde o teu
pai e o bicho estavam caídos, mas quando chegaram, só viram a onça
abatida e sangue no chão. O Sarampião tinha sumido. As mãos e os
braços de Armin tremiam feito vara verde. Seu rosto parecia ter
despencado, como se tivesse envelhecido trinta anos naqueles minutos.
Um tempo moroso e incômodo ficou entre eles. Agora me diz: onde tá o
teu irmão? Armin entregou para a Gringa a localização de Roscato. O
combinado entre os dois foi que a tragédia com Sarampião nunca seria
contada. A vergonha daquilo tudo para as duas famílias era algo que eles
não queriam passar para a frente. Numa família, o que oculto está,
oculto deve ficar.
No mesmo dia, início da tarde, o calor que se abate sobre Pies Rubros é
tórrido. A umidade relativa do ar está baixa, o que tem sido cada vez
mais normal nos fins de ano na região nas últimas duas décadas.
Ninguém trabalha nessa hora. Todas fazem a sesta, para voltar à lida
depois das quatro da tarde. Só Preta, que não conseguiu fechar os
olhos. Está embaixo da copa de uma grande árvore, ao fundo do
povoado. Macera folhas de arruda, boldo do mato e alecrim numa
bacia em cima de uma bancada improvisada. Prepara o banho de
folhas para todos se lavarem na celebração antes da véspera do Natal.
Sente o suor escorrer da nuca até o cóccix. Prende os cabelos em forma
de coque no alto da cabeça. Dois araçaris-banana pousam num galho e
ela se distrai por um segundo, observando o colorido dos pássaros.
León surge diante dela.
“Por que não tá fazendo a sesta?”, ela pergunta.
“Yo quiero…”
“Em brasileiro. Já disse.”
“Eu quero saber por quê.”
Preta aponta o dedo molhado com o líquido marrom-esverdeado na
direção dele.
“Porque assim tem que ser de hoje em diante. Não vamos mais matar
bicho. Não vamos mais entrar no parque pra matar nada”, volta a
macerar as folhas.
“Tu mesma ensinou pra nosotros que sempre vivimos assim. É nosso
trabajo.”
“Agora nosso trabalho é outro. Tem coisas que precisam mudar,
León.”
“¿Por qué decidiste, tú y tu prima?”
“Não!” Preta larga as folhas dentro da bacia e o encara. “Algo maior,
o destino decidiu.”
“Pensé que dirigías todo aquí.”
Preta não responde.
“Te humillaste por ella. Nos humilló. Eligió a tu prima, una mujer
policía. Tédi nunca nos habría hecho eso. Cuando yo sea el jefe de Pies
Rubros, volveremos a ser lo que siempre hemos sido: cazadores. Y
escupiré en tu tumba.” León cospe no chão e depois encara Preta, seu
rosto está transformado, como se não fosse mais ele ali.
Preta sente seus pelos arrepiarem. Busca as semelhanças naquele
olhar, naquela fala. Põe uma das mãos sobre a boca, seus olhos se
arregalam.
“Não!”, ela fala.
Pega um punhado das folhas amassadas e molhadas, vai até o
menino, segura seu pescoço e esfrega sua boca, depois seu rosto. O
menino grita e escarra uma baba verde.
“Basta! Basta dessa sede insana por sangue. Sarampião e o resto da
minha família vão descansar, o teu pai vai descansar. E tu, León,
precisa de uma oportunidade de futuro. Tu não pode mais ficar aqui.
Não pode.” Preta volta para a bancada, põe as mãos sobre ela e abaixa a
cabeça, procura pensar numa solução.
“Nunca fuiste valiente como Tédi”, ele diz.
Preta chuta a bancada que voa longe e, num piscar de olhos, está em
cima de León, desferindo uma bofetada no seu rosto. Ele cai no chão.
Seu nariz sangra.
“Não fala do que tu não sabe. Não fala do que tu não viveu. Eu te
criei desde criança. Pra muitos aqui, feito um filho. Mas lembra: tu não
é meu filho. Tu não é nada meu. Tu não é nada de ninguém aqui.”
“Andate a la concha de tu madre.” León sai correndo.
Uma mulher com a cara inchada, cabelo desgrenhado e suado,
chega apressada a tempo de ver León fugir.
“Esse aí tá incomodando faz tempo.”
Outras pessoas da comunidade surgem. Preta faz sinal para voltarem
ao descanso. Eles obedecem.
“Esse boludo tá enfiando coisa ruim na cabeça dos outros
adolescentes”, a mulher avisa sem sair de lá.
“Passou dos limites, eu sei.”
“Ele mudou, parece que não é mais ele. Tem uma cólera, coisa
muito ruim crescendo dentro daquela cabeça. Isso não tem conserto.”
“Quem sabe tenha. Precisamos conseguir um lugar pro León longe
daqui. Pra salvar ele.”
“Se a chefe diz, vamos arrumar.”
A mulher sai. Preta deixa seus braços e ombros pesarem. Pousa o
olhar fixo na grama seca onde pisa.
A felicidade é uma rifa
“Por mi papá.”
Água turva
A Paulo Scott, meu amor, pelo apoio, por ter sido a primeira pessoa a
dizer que eu precisava escrever esta história e pelas inúmeras leituras.
A Stéphanie Roque, minha editora, pela genialidade e dedicação
desde o começo. Por ter construído Água turva comigo. Assim como a
Luiz Schwarcz, pela leitura atenta e pelas sugestões precisas.
A Emanuel Kretzmann, “por ter segurado o facão” para nos proteger.
Por ter ido inúmeras vezes comigo nas saídas de campo dentro do
parque do Turvo.
A Ronaldo Costa, analista ambiental do icmbio/mma, ex-chefe da
Estação Ecológica do Taim, pelas leituras e orientações em relação a
questões técnicas fundamentais para o livro.
A Daniel Kretzmann, zootecnista, pela orientação sobre as espécies
de peixes do rio Uruguai e a alimentação dos animais existentes no
Parque Estadual do Turvo.
A Aline Bei, Carola Saavedra e Jeferson Tenório pelas palavras que
não cabem em mim.
A Marcelino Freire e Valeria Lamego, pelas leituras e pela amizade
incondicional. Também a Andréa del Fuego, Luiz Antonio de Assis
Brasil, Yuri Al’Hanati, Rodrigo Lacerda, Cíntia Moscovich, Eduardo
Nasi e Nicole Witt, pelos apontamentos — minha gratidão sempre. A
Willian Vieira e Silvia Massimini Felix pelo trabalho impecável.
A Anna Lee, pelo apoio nesse processo e pelos aprendizados para
uma vida.
A Douglas Diel Schenkel, guarda-florestal e chefe do Parque
Estadual do Turvo, pelas entrevistas, aulas e saídas de campo; também
a Vilmar Grutzman, guarda-florestal; e a Letícia Sell Reschke,
funcionária do parque, pelo material de pesquisa.
A todos os guardas-florestais e funcionários do Turvo.
A Antonio Carlos Venancio Aniceto, babalorixá e gestor ambiental,
pela orientação e pela proteção.
In memoriam: Bruno Pereira e Dom Phillips.
renato parada
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.
Capa
Tereza Bettinardi
Foto de capa
Jaguari, de Iberê Camargo, 1941, óleo sobre tela, 40 × 30 cm.
Acervo Fundação Iberê. Reprodução de Rômulo Fialdini
Preparação
Silvia Massimini Felix
Revisão
Huendel Viana
Érika Nogueira Vieira
Versão digital
Filipe Alt
Rafael Alt
isbn 978-85-3593-731-2
Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.