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DADOS DE ODINRIGHT

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Lista de personagens

terra
Chaya
Olga
Caboclo Arrê
Sob cerração, alertas
Cano curto calibre .38 e botas
Preta

1957 — quando tudo começou


A morte, o covarde e o sábio
Sarampião e a Boca Braba
Destino traçado pelo sangue
O carma não esquece meu nome

água
A cabocla e a forasteira
Capa Preta
Guerra turva
Céu violeta
Ventos, tempestades, segredos
Corpo lavado

1996 — terra vermelha — pés vermelhos


Reza que não chega
O peso de sobreviver

fogo
Uma vitória encomendada
Perto demais do problema, longe demais da solução
Sangue de onça
Estragando a vida de alguém
Ferro, fogo e terra
Uma brasa que nunca deveria ter se acendido
Alerta vermelho
Trepeiros
Moedor de ossos

1997 — corcel vermelho


Quem conseguir primeiro ganha

1958 — o fim
Armin e Roscato
Trato de silêncio
Nem céu nem inferno

sangue
Mantenha o inimigo por perto
Toda guerra é um acordo
Ser odiada e suportar
Este olhar cinzento
O tempo passa mais rápido quando não se tem tempo
Os caminhos que levam ao inferno
Uma reza não ouvida
Solo castelhano
Esse inferno que somos nós
Tudo por nada
Recado entregue
Sangue, mulheres e facões

numa família, o que oculto está, oculto deve ficar


Os pecados de um pai

2007 — aquilo que não dói no outro


A culpa, a verdade, a mentira


Presentes de dezembro
A realidade do caos
Marca de efeito
Carne podre
O próprio veneno
A felicidade é uma rifa
Colecionadora de armas e arrependimentos
León
Água turva
Yucumã Moconá, o grande roncador que tudo engole

Agradecimentos
Sobre a autora
Créditos
Para Juraci e Elemar Kretzmann
Em água turva, as substâncias não se veem.
Andréa del Fuego, Os Malaquias
Lista de personagens

Amara Sarampião — filha de Armin, mãe de Chaya; neta de‐ ­


Sarampião.
Ana Paula — secretária no gabinete de Heichma.
Ângelo Alves — chefe do parque do Turvo.
Armin Sarampião — avô de Chaya e filho de Sarampião.
Caco Romano — filho de Gringa Romano e irmão de Enrico; tio de
Tales.
Chaya Sarampião — guarda-florestal, neta de Armin e bisneta de
Sarampião.
Cláudio e Nestor — guardas-florestais do parque do Turvo.
Dóris — agente da polícia civil que trabalha no iml da cidade de
Dourado.
Enrico Romano — empresário de Dourado, pai de Tales e filho de
Gringa Romano. Adota Chaya na infância.
Galliana Romano — mãe de Tales, mãe adotiva de Chaya e mulher de
Enrico.
Gringa Romano — viúva, mãe de Enrico e de Caco; avó de ­Tales.
Heichma — deputado estadual, vive em Porto Alegre.
Idalina — casada com Armin e avó de Chaya.
Lenara Sarampião — filha de Roscato, mãe de Preta; neta de‐ ­
Sarampião.
León — adolescente, órfão, vive com Preta em Pies Rubros.
Maurício Ricci — colega de infância de Chaya e Olga; filho do ex-
prefeito de Dourado, Claudenir Ricci; secretário de Infraestrutura do
município.
Olga Befreien — jornalista, colega de infância de Chaya.
Preta Sarampião — chefe dos Pies Rubros, neta de Roscato e bisneta
de Sarampião.
Roscato Sarampião — avô de Preta e filho de Sarampião.
Sarampião — bisavô de Chaya e de Preta, pai de Armin e de ­Roscato.
Senna — chefe de gabinete de Heichma.
Seu Befreien — pai de Olga.
Tales Romano — filho de Enrico Romano, irmão adotivo de Chaya e
colega de infância de Olga.
Tédi — casada com Roscato e avó de Preta.
água turva
terra
Chaya

“Miseráveis. É a última vez que entram aqui pra caçar.” Chaya


Sarampião acelera a caminhonete branca encardida, em cujas portas é
possível ver o brasão da “Guarda-florestal — Sema”. Segura firme o
volante enquanto passa com destreza pelos buracos e pedras da estrada
de terra enlameada.
“Hoje a gente pega eles”, fala para Ângelo Alves, o novo chefe do
parque do Turvo, sentado ao seu lado, e para os outros dois guardas-
florestais, Cláudio e Nestor, no banco de trás. Escutam disparos de
arma de fogo e em seguida o grito agudo de um animal vindo da
cascata do Sarampião, um dos pontos de mata mais fechada do parque.
Chaya puxa o freio de mão, fazendo os pneus derraparem. O carro para
atravessado. Ela desliga o motor. Os quatro descem com as pistolas em
punho. Com um gesto, ela indica a retaguarda para Cláudio e Nestor.
Por conta dos novos cortes no orçamento, os dois tiveram que comprar
seus próprios coletes à prova de balas. Coletes usados, vindos do outro
lado do rio Uruguai, de Moconá, na Argentina. Ouvem o som de um
tiro seco. Avançam mato adentro. Se aproximam da base da cascata. O
barulho da queda d’água retumba. No chão, uma anta de porte médio,
mais ou menos de um ano de idade, sangra ainda viva. Cláudio e
Nestor andam devagar, ao mesmo tempo que olham ao redor, à
procura dos caçadores. Quando chegam perto do animal, tiros são
disparados na direção dos dois. As balas ricocheteiam nas pedras, uma
delas atinge o colete de Nestor. Ele cai. Chaya e Ângelo revidam
enquanto Cláudio ajuda o colega, puxando-o para trás do tronco de um
cedro. Escutam gritos num portunhol típico daquela região de
fronteira:
“¡Por favor, dejen de disparar! ¡Dejen de disparar!”
Ângelo para de atirar. Chaya continua.
“Cessar! Parou, soldada!”, Ângelo ordena.
Ela para, mas segue com a arma apontada para a frente.
“Apareçam com as mãos pra cima.”
Um adolescente com olhos arregalados surge com os braços
levantados.
“Cadê os outros?” Chaya caminha até ele sem baixar a arma. O
menino implora, “¡Ayuda!”, e aponta para o arbusto com bromélias
vermelhas às suas costas. Ângelo faz sinal para Cláudio e Nestor.
Avançam com cautela até enxergar um homem estirado no chão. Ele
geme. Há sangue em seu pescoço, se espalhando pelas folhas secas e
pelo barro vermelho. Ao lado dele, um revólver calibre .38.
“Meliante atingido, capitão”, Cláudio avisa.
“Sinal dos outros jaguaras?”
“Nada, senhor.”
O adolescente, que segue na mira de Chaya, começa a chorar. Um
choro atormentado pelo choque que o assombra.
“¡Ayuda!” Ele engasga com o próprio desespero.
Cláudio e Nestor pegam o homem baleado e o deixam ao lado do
bicho já morto. O corpo inteiro do homem começa a tremer.
“Tá entrando em choque”, Cláudio diz.
Em segundos, o homem para de respirar. O menino, catatônico, cai
ajoelhado e, num orar baixinho, balbucia:
“¿Papá? ¿Papá? Despiértate. Despiértate, hombre.”
Chaya olha para o filho, para o pai, depois para o filho de novo. Se
vê naquele desespero, na brutalidade daquela cena.
“Puta merda! Merda! Merda! Não acredito!” Ela baixa a pistola.
Sem hesitar, Ângelo aponta a arma para o adolescente ajoelhado.
Cláudio pega no pulso do homem em busca de sinais vitais.
“Veio a óbito!”
“Peguem a lona e as pás lá na caminhonete. Vamos enrolar o corpo
dele e depois enterrar o da anta”, Ângelo determina.
Cláudio e Nestor obedecem e somem na mata. O menino continua
de joelhos. Seu rosto está encharcado, uma mistura de suor, lágrimas e
ranho escorre por seus lábios e pelo queixo. Ele olha para Chaya e
pergunta:
“¿Por qué? Era sólo un animal. Sólo comida.”
Chaya não responde.
O menino pega uma pedra do chão. Volta a encarar Chaya e diz:
“¡Tú!”.
Ela saca a arma. O adolescente não larga a pedra. Os segundos
passam, até que Chaya se deixa atingir pelo impacto daquele olhar,
daquela cena, a sensação de recusa em normalizar a barbárie da qual
ela faz parte, o impacto do preço da palavra não dita, da ação já feita.
Guarda a pistola no coldre. Dobra os joelhos, senta-se e põe a cabeça
entre as pernas. Ângelo, que ainda tem o adolescente na mira, observa
Chaya, analisa o corpo miúdo da colega de pele fina, acobreada, que
não tem nem trinta anos, vestindo aquele colete à prova de balas dois
números maiores que seu tamanho. Admira aquela profissional. O
uniforme sempre impecável, os cabelos pretos, compridos e lisos,
amarrados num coque, mostrando que, apesar das condições precárias
de trabalho, leva a sério o dia a dia exaustivo de guarda-florestal naquele
interior extremo e esquecido do Brasil. Uma mulher forte que não
deveria se deixar abater pela fragilidade daquele momento.
Chaya fecha os olhos. Estende uma das mãos sobre o barro — um
barro bordô escuro, típico do parque do Turvo —, pega um punhado,
traz para junto do nariz e cheira. Um grupo de guaxes passa por eles
voando e cantando. Ela ergue a cabeça.
“Arrê”, fala para si mesma, enquanto lhe vem à mente o rosto de seu
avô Armin, sua voz e seu sotaque antigo de quem se criou no meio da
lavoura e do mato, naquela região. “Arrê, Sarampião.” Levanta, ainda
segurando a terra úmida. “Vamos liberar o guri.”
Ângelo fica mudo, como se não entendesse o que Chaya acaba de
dizer. Em seguida, tenta formular uma frase: “Acho que… vamos…”.
“Vamos liberar o guri!”
Ângelo bufa, tira o boné, deixa expostos os cabelos grisalhos. Com as
costas da mão, limpa o suor que escorre pela cara.
“Será que vou ter que te lembrar que sou a porra do chefe nesse
parque?”
Ela dá de ombros. Já escutou isso tantas vezes, de tantos chefes que
passaram por lá, que perdeu a conta. Se posiciona entre a arma do
colega e o adolescente. Ângelo fica com o rosto vermelho.
“Cabocla”, ele grita, “tua insubordinação passou de todos os limites!”
Chaya enrijece os músculos da mandíbula, sente a hostilidade que
sai da voz de Ângelo.
“Depois o senhor faz o que achar que tiver que fazer em termos
disciplinares contra a cabocla aqui”, ela diz e tira a arma do coldre.
“Mas vou liberar esse guri e ninguém vai me impedir, nem o senhor,
muito menos seus seis meses nesse cargo.” Ela se vira para o garoto:
“Corre. Fala com a tua mãe ou com algum parente que tem que vir
pegar o corpo do teu pai no iml de Dourado. Tá me entendendo? Tu tá
me entendendo?”
O menino se levanta, ainda segura a pedra, dá dois passos para trás,
limpa os olhos e o nariz com a barra da camiseta. Sua expressão muda.
Ele observa a policial. Ângelo dá um tiro para cima. Chaya se vira para
o colega. Os dois se encaram. O menino corre na direção da mata e
some entre as árvores.
“Pode guardar a arma, senhor”, fala, e joga no chão a terra que ainda
segurava. “Eu sou desse lugar, sei o que tem que ser feito aqui e como
tem que ser feito.”
Pensamentos desconexos giram na mente de Ângelo. Ele atenta para
o homem e para o animal mortos um ao lado do outro, para o sangue
de um misturado ao sangue do outro, ambos absorvidos pela terra. O
olho seco do bicho e do homem, seus cadáveres sendo cobertos pela
serapilheira mexida pelo forte vento daquela manhã.
Olga

Os telefones tocam sem parar em cima da mesa da secretária, da sala


do chefe de gabinete e da assessoria de imprensa, onde está a jornalista
Olga Befreien.
De dentro do seu escritório, a portas fechadas, o deputado Heichma
grita:
“Tão tudo comendo mosca?”
Olga se levanta da cadeira de forma brusca e acaba batendo a perna
na escrivaninha. Esbraveja. Vai até a recepção e se depara com Ana
Paula mergulhada no celular. Caminha até o cubículo de Senna, o
chefe de gabinete, que fuma tranquilo, virado para a janela e para o sol
atrás dos dois prédios azuis do centro administrativo do estado do Rio
Grande do Sul. Olga bate na parede. Senna se vira e a encara. Ela
aponta para a secretária.
“E por que tu não atende?” Senna dá um trago no cigarro.
Olga ergue as sobrancelhas grossas e pretas, como seus cabelos, anda
até a mesa dele e, sem deixar de encará-lo, tira o telefone do gancho:
“Gabinete do deputado Heichma, boa tarde”. Escuta o que a pessoa do
outro lado da linha fala, solta um muito compenetrado “Sim, pode
deixar” e desliga. Senna pergunta quem era. Ela não responde. Ele
repete a pergunta. Olga sai em direção à porta do escritório do
deputado. Bate e, sem aguardar permissão, gira a maçaneta e abre.
“Licença, deputado, o dr. Elpídio ligou”, fala encostada no batente.
“Disse que tentou falar com o Senna várias vezes, mas ele não atendeu.
Mandou avisar que o senhor tem até dezembro.” O deputado faz sinal
para que ela se aproxime e feche a porta.
Heichma parece cumprir um lento processo de derretimento. O suor
escorre pela testa e pelas bochechas flácidas que saltam do rosto, assim
como salta a barriga, que deixa os botões da camisa quase estourados. O
cheiro na sala é de leite azedo.
“Tá com os faroletes acesos?” Ele ri, estica a mão e belisca um dos
bicos dos seios dela, realçados por baixo da camisa branca e do sutiã
sem bojo.
Ela dá um tapa na mão dele e, vulnerável como uma criança
envergonhada e confusa, sem ter certeza se fez algo errado ou não,
cruza os braços, escondendo o peito.

Na garagem subterrânea da Assembleia Legislativa, Olga tira da bolsa a


chave do carro e aciona o botão para destravar o alarme. Joga a bolsa, o
celular e uma pilha de pastas de arquivo no banco de trás do carro.
Papéis, fotos e planilhas se espalham. Entra no carro. Liga o motor.
Quando já está na rua Riachuelo, alcança o telefone largado no banco
e tenta fixá-lo no suporte preso ao painel. Ele cai sobre suas pernas.
Olga percebe que seus dedos tremem mais que das outras vezes que
passou por situações como essa — que se tornaram cada vez mais
corriqueiras no úl­timo ano. Alonga o pescoço para a direita, depois para
a ­esquerda. Ele estala. Com o veículo em movimento, destrava o
aparelho, abre a agenda de contatos. Faz uma ligação.
“Oi, mãe! O pai tá aí? Preciso falar com ele. […] Tá tudo bem, sim.
[…] Já disse que tá tudo bem. […] Oi, pai, como tá a praia? […] Foi
pescar? […] No Rosa ou na Ibiraquera? […] Seguinte, tô indo pra
Dourado. […] É! Por esse motivo. Quase trinta anos na cara, um
diploma na parede, pra isso. […] Ok! Vou precisar que o senhor peça
praqueles seus dois amigos irem à reunião da hidrelétrica amanhã de
manhã. […] Merda de cidade. […] Se fosse tão boa assim, vocês não
teriam ido pra Santa Catarina. […] Tenho que desligar, o Heichma tá
na outra linha. Beijo.”
Encerra a ligação e o som da outra chamada aumenta pouco a
pouco. Tira do porta-luvas um maço de cigarros. Ainda tremendo, pega
um e acende. Abre a janela e solta uma baforada. Liga o rádio no
volume máximo. O celular continua tocando.

A noite cai sobre a br-386 e o movimento na estrada é fraco, nem


parece que é quinta-feira. Olga dirige a cento e quarenta quilômetros
por hora quando percebe que está quase sem gasolina. Para num posto
de beira de estrada na altura de Montenegro.
“Enche o tanque, por favor”, diz antes de se encaminhar para a
lanchonete e pedir um café. O gosto amargo e rançoso desce pela
garganta, e ela cospe no copo. “Paga a comida e vamos logo”, ela ouve
um sujeito ao lado dizer. “A gente abastece em Santa Rosa.” Um frio
percorre sua espinha. Não é ninguém conhecido, mas o timbre de voz
e o sotaque são os mesmos do deputado. Sente uma ardência no bico
do seio, a sensação de que está sendo beliscado de novo. A mesma
vergonha. Vai até o freezer de bebidas, pega uma água e um Red Bull.
No carro, bebe metade da água da garrafa. Pega uma das pastas de
cima do banco. Pensa que não vai conseguir estudar todos aqueles
documentos antes da reunião da manhã seguinte. Acende a luz do teto
e lê:

hidrelétrica gran roncador — o maior complexo hidrelétrico


binacional do sul do país.
pátria amada brasil.

Ao lado dessa frase, a enorme logomarca do governo federal.


“Por que aqueles colonos de Dourado são contra?” Joga a pasta de
volta. Acende um cigarro. Abre a lata do energético, toma um gole. Dá
partida no carro.
Caboclo Arrê

Dez horas da noite e Chaya está num dos quartos do alojamento do


posto policial do parque do Turvo. A construção de alvenaria, pintada
de bege e com janelas de madeira, é usada pelos guardas-florestais para
passar a noite durante os plantões na unidade de conservação. Senta-se
na beirada da cama de baixo do beliche, passa as mãos nas pernas que
formigam. Em seguida, desliza os dedos pelas sobrancelhas várias vezes.
Fecha os olhos, pensa no céu violeta típico do mês de outubro no
noroeste do Rio ­Grande do Sul. Nada ajuda. O rosto do adolescente
argentino não sai da cabeça, assim como o sangue jorrando do pescoço
do pai dele. E se ela tivesse parado de atirar, se tivesse se controlado?,
pensa. Seus braços coçam. Se esfrega, se arranha. Entrelaça os dedos.
Conta até dez em voz alta. Vinte. Trinta. Não funciona. O corpo inerte
do homem sujo de terra e sangue ainda pesa.
Levanta-se devagar, se desloca até a escrivaninha do alojamento,
onde pega uma vela e um fósforo. Sai de pés descalços, primeiro sobre
o piso frio, depois no gramado, aproveitando a claridade da lua cheia
daquela quinta-feira, até encontrar o pé de jerivá. Olha para cima, para
os galhos grossos, se ajoelha e apoia as mãos no chão. Inclina a cabeça
e fala:
“Arrê, Sarampião
Arrê, Arrê
Caboclo, Arrê
Protege o Turvo
Chão altar de tudo
Homem-fé
Na mata
Cura a terra
Cura a água
Cura Sarampião
Arrê, Arrê.”
Acende a vela. Observa a chama por um tempo, acompanhada pelo
som da noite: grilos, sapos e corujas do parque.
Sob cerração, alertas

Perto da meia-noite, Olga cruza pelo pórtico de entrada de Dourado.


Uma cerração baixa, típica do início da madrugada, deixa o lugar
parecendo uma cidade fantasma. Na avenida das Viuvinhas, a
principal, só as luzes da iluminação pública estão acesas. Na praça do
Turvo, é possível enxergar, esmaecida pela neblina, a estátua de
Sarampião e de uma onça, ao lado de um chafariz que imita parte das
quedas do salto do Yucumã.
Dobra na rua Cauré e para em frente ao Hotel Onça-Pintada, que
está fechado. Nem mesmo a famosa luminária imitando o formato do
bicho está acesa. Liga o farol alto e pisca três vezes. A porta da entrada
se abre. Um homem baixo, de ombros largos, cabelos ruivos e
ondulados, pele com sardas, por volta dos trinta anos, surge.
“Olga Befreien, quanto tempo!”
Ela sai do veículo sorrindo e o abraça.
“Tales Romano! Tu tá diferente. Parece mais alto.” Olga ri e mexe no
cabelo dele.
“E tu parece igual!” Ele segura a cintura dela.
Sete horas da manhã de sexta-feira. Olga está no café colonial do hotel.
Uma caneca na mão direita e uma fatia de pão caseiro com chimia de
abóbora e nata na esquerda. Morde o pão, mastiga devagar. Depois
pega a papelada que já deveria ter analisado. Tales surge pela cozinha e
senta-se diante dela.
“Bom dia”, diz ele, enquanto esfrega as mãos para espantar o frio
matinal que ainda perdura naquele início de primavera.
“Bom dia não, que eu nem dormi”, ela diz.
“Ué, que que tu fez de madrugada?”
“Palhaço.”
Olga faz de conta que está concentrada nos documentos. Ele não
tira os olhos dela.
“Sobre hoje, não precisa te preocupar. Mas o povo que vai estar lá
não quer saber de termos difíceis, viu? Deixa eu ver o que tá escrito
nesses papéis”, e toma o documento da mão dela. Continua: “Não cita
esses negócios de jusante, iap, rla. Tu sabe como é… Acham que falar
difícil é enrolar eles. Na verdade, é só tu falar que tá aqui em nome do
deputado.”
“Eu não tô aqui só em nome do Heichma. Tô aqui em nome de toda
a bancada do pna”, ela diz.
Tales prefere não dizer nada e a encara. Os pensamentos flanam.
Seu pai, Enrico Romano, foi um dos fundadores do Partido Nacional
Ambiental no estado, mas acabou se afastando da política por acreditar
que não seria bom para os negócios. O atual prefeito de Dourado é do
pna, uma sigla antiga e com origens centro-progressistas, mas que
apoiou a candidatura de um homem de extrema direita para a
presidência, sem nenhuma experiência ou conhecimento político,
famoso por estar à frente de um programa de televisão policial
sensacionalista por quase duas décadas. Houve uma histeria social
quando ele se elegeu, uma guinada conservadora de políticos e partidos
de várias vertentes ideológicas, que oportunamente passaram a apoiá-lo
no país inteiro. Não foi diferente com Heichma, não foi diferente com
seu partido. Todas as pautas que eram defendidas pelo pna passaram a
ser distorcidas, distanciadas do programa original, e as concessões para
o desmonte ambiental no Brasil passaram a ser toleradas com o
pretexto de mais empregos e progresso. Uma das prioridades desse
governo é construir a hidrelétrica “Gran Roncador” no pequeno distrito
de Centro Novo, a vinte quilômetros de Dourado. O projeto está
embargado há dez anos, não só porque uma parte do Parque Estadual
do Turvo vai ficar embaixo d’água, assim como as terras de muitos
agricultores locais, mas principalmente pela ameaça de
desaparecimento do último reduto da onça-pintada no extremo sul do
país e do salto do Yucumã, o maior salto longitudinal de queda d’água
do mundo.
Tales encosta nos dedos de Olga. “Acho que tu devia ficar até
domingo. Ir na casa de algumas pessoas, de uns líderes comunitários,
agricultores. Devia ouvir as pessoas daqui, não gente de fora que não
entende desse lugar.”
O telefone dela toca, no visor aparece Deputado Heichma. Ela
atende.
“Bom dia! Tá na estrada ainda?”
“Por quê?”
Tales acena com uma das mãos, se levanta e sai.
Heichma continua:
“Calma, mulher! É que acordei cedo e pensei: minha Olguinha já
esqueceu do deputado dela.”
Olga pega a xícara de café, percebe sua mão tremular. Tenta
articular uma resposta, mas a voz engasga.
“Quero que tu volte hoje pra Porto Alegre e com boas notícias”, ele
ordena. “Confio na tua lábia. Sei que vai convencer os teus conterrâneos
a aceitarem a barragem. Vou te esperar pra jantar.”
Olga desliga o telefone sem se despedir. Observa os papéis na mesa,
pensa em jogá-los longe, junto com o celular. Tenta se concentrar no
futuro, no porquê de continuar no gabinete do Heichma e pensa mais
uma vez na sua liberdade, na estabilidade profissional e financeira que
terá quando for chamada para tomar posse no cargo de repórter na
tve/rs — a televisão do estado do Rio Grande do Sul — por ter
passado no concurso público há dois anos. Uma segurança que só a
carreira na televisão estatal lhe trará. Algo que ela não conseguiria em
nenhum outro lugar, acredita piamente nisso. Mas em função do jogo
político, hoje, Heichma é a única pessoa que pode fazer com que ela
assuma ou não o cargo, já que o presidente da estatal, além de ser do
mesmo partido, deve favores ao deputado e é ele a pessoa com poderes
de liberar o nome de Olga para sair no diário oficial. Por mais que ela
se pergunte, até onde vou conseguir aguentar?, seu objetivo é muito
claro.
“Tu não vai desistir agora.” Bate na mesa, recolhe suas coisas e volta
ao seu quarto.
Cano curto calibre .38 e botas

Duas horas depois, Olga chega sozinha ao centro comunitário da igreja


luterana. De óculos escuros, usa bota preta até o joelho e um casaco
vermelho-cereja com botões dourados, ajustado ao corpo. Segura as
pastas abarrotadas de papéis. Quando o salão lotado de pessoas — a
maioria trabalhadores rurais, usando blusões, casacos de lã, toucas,
chapéus, calças jeans e botinas gastas pelo uso — se volta na sua
direção, sem nenhum sinal de simpatia ou aceitação, ela conclui que
acertou na escolha da roupa. A ideia é tirar o foco do que ela não vai
falar, já que não sabe o que falar, e chamar a atenção para qualquer
outra coisa, inclusive sua roupa extravagante, de gente esnobe da
capital, de gente que não é mais bem-vinda lá.
Além da comunidade, há policiais da brigada militar do estado e
militares do Exército enviados pelo governo federal. O clima está tenso.
Os representantes das escolas locais, do comércio, os conselheiros
municipais do meio ambiente e comunitários estão sentados em
círculo. Os militares estão atrás, em pé.
Olga procura pelos dois amigos do seu pai, Aldo e Irineu. Estão
parados ao lado de uma mesa de madeira com outras pessoas, que ela
acredita serem os funcionários da prefeitura, conforme combinado com
o deputado, e também um homem da associação dos municípios da
região noroeste, para quem ela não consegue disfarçar a cara de
desprezo. Ela vai até eles, larga as pastas em cima da mesa e
cumprimenta cada um com um aperto de mão.
Se juntam a eles o secretário de Infraestrutura do município,
Maurício Ricci, que foi colega de colégio de Olga e é filho do ex-
prefeito, Claudenir. Ela não segura a risada quando percebe o contraste
quase cartunesco entre os músculos desproporcionais dos braços
daquele homem de um metro e sessenta e suas pernas exageradamente
finas, salientadas pela calça jeans justa. Com ele chega Júlio,
engenheiro ambiental, que representa o consórcio da hidrelétrica Gran
Roncador. Todos se cumprimentam. Maurício provoca, com sua velha
pose de figurão mafioso que manda na cidade:
“Não tô vendo o Heichma. Por que ele não veio?”
“Já passou das nove, vamos começar”, Olga anuncia.
Maurício tenta disfarçar o fato de ter sido ignorado e toma a frente,
falando alto para que todos ouçam:
“Atenção, já tá na hora. Se acomodem.”
Há um burburinho. Olga e os homens que vão comandar a reunião
se sentam de frente para a comunidade. Maurício apresenta os
convidados, depois se aproxima das pessoas e fala:
“Todo mundo aqui me conhece e conhece meu pai, o ex-prefeito
Ricci. Eu nasci e fui criado nessa cidade. Uma cidade que tem
potencial pra crescer, pra se desenvolver, pra ter indústrias,
universidades, e com isso mais empregos pra todos. Dourado já tem a
primeira unidade de conservação criada no estado, nosso querido
Parque Estadual do Turvo. Já tem o Yucumã, maior salto de queda
d’água longitudinal do mundo. Mas falta o quê? Falta estrutura, falta
investimento, falta dinheiro pro turismo daqui ser como o de Foz do
Iguaçu, por exemplo. E eles têm tudo isso graças à hidrelétrica de
Itaipu. E nós agora temos a mesma oportunidade: uma obra binacional
que vai trazer inúmeros benefícios pra Dourado e toda a região.”
“Olha aqui, guri, respeito e votei no teu pai, mas tu tem muito chão
ainda pela frente pra poder falar por ele ou por nós. Não tem
comparação uma coisa com a outra. Vão ser dezenove municípios
atingidos por uma barragem de que ninguém aqui sabe quase nada. Se
a Gran Roncador for erguida mesmo, pode gerar uma quantidade
ínfima de energia. Isso tá nos estudos que nós mesmos mandamos
fazer. O projeto tá com um custo de mais de cinco bilhões de dólares.
Por que o governo não investe esse dinheiro em indústria, faculdades e
infraestrutura aqui e na região?”, questiona Orlando, um conhecido
produtor rural de vaca leiteira na região.
Maurício não sabe o que responder. Seu rosto fica vermelho. Olha
para Júlio e Olga em busca de ajuda. Ela não se mexe da cadeira, tira o
celular do bolso e finge ler alguma coisa importante. Júlio levanta.
“Bom dia! Meu nome é Júlio e sou o responsável pelo estudo de
impacto ambiental que vocês receberam. Quero dizer que é um prazer
estar aqui pra responder às perguntas, tentar sanar todas as dúvidas
sobre a construção da barragem de Gran Roncador e falar um pouco
das técnicas de inovação sustentáveis que serão usadas pra não
prejudicar o meio ambiente e a comunidade. Porque a nossa
preocupação é socioambiental.”
O som de passos pesados se faz ouvir. Júlio para de falar, e todos se
viram para Chaya, que surge no salão. Ela usa seu uniforme de guarda-
florestal: calça e casaco de estampa militar, camiseta branca e boné. Os
coturnos têm uma grossa camada de barro colado nas laterais da sola e
no cano de couro. A arma vai presa ao coldre, na cintura.
“Bom dia! Bom dia, comunidade! Desculpem o atraso. Júlio? É Júlio
teu nome, né?” Chaya encara Júlio. “Nós aqui adoramos essa palavra,
‘socioambiental’. Não é, gente? Bom, que tal tu começar explicando a
entrevista que saiu hoje no jornal, onde tu afirma que, pra reparar a
área do parque do Turvo, que vai desaparecer pra sempre, graças a esse
empreendimento tão ‘sustentável’…”, Chaya diz enquanto tira do bolso
de trás da calça o jornal e começa a ler: “o governo federal irá comprar
áreas agrícolas e doará, para compensar a parte do parque atingida.
Depois é tudo muito simples, é só jogar sementes e a vegetação, as
árvores, tudo crescerá por si só. Teremos uma equipe técnica de
militares e profissionais civis escolhidos pelo próprio presidente da
República, que serão os responsáveis.”
A comunidade testemunha indignada, os militares se olham.
“E sobre o desaparecimento do salto do Yucumã, as ameaças às
onças-pintadas e aos outros animais silvestres? Não vai comentar?”,
acrescenta Chaya. “A gente quer ouvir o que tu tem a dizer. Vai lá,
Júlio, solta o verbo sobre o Yucumã e sobre as… sementinhas”, ela diz e
entrega o jornal para um dos líderes da comunidade.
O engenheiro fala com a voz esganiçada:
“Eles tiraram essas frases de contexto. Isso são fake news. Eu jamais
falaria em nome do Exército brasileiro ou do nosso presidente.”
Chaya faz sinal para que a comunidade se levante. Todos caminham
em direção à saída. Ela, de braços cruzados, pernas abertas, encara os
policiais e os militares. Quando o último morador sai, Chaya repara nas
autoridades presentes uma por uma, até chegar a Olga. As duas se
analisam dos pés à cabeça. Olhares que não se desarmam.
“Bem-vinda de volta, Olga”, Chaya provoca.
Olga não responde. Está paralisada vendo aquela mulher à sua
frente. Chaya dá as costas e sai, some na claridade do sol forte que faz
do lado de fora.
Preta

Meio-dia. Depois de sair da audiência pública, Chaya volta ao parque e


entra apressada no escritório. Pega o rádio e liga para Dóris, policial
civil da dp de Dourado e responsável pelo iml.
“Obrigada por ter vindo buscar o corpo no parque.”
“As geladeiras daqui tão lotadas, Chaya. Vai pra cova como
indigente”, Dóris avisa.
“E os trinta dias, como manda a lei?”
“Cara, tu me pediu um troço ilegal e agora quer que eu cumpra prazo
legal?”
“Desculpa, mulher. Mas tu sabe que é complicado. Vou ter que
atravessar o rio Uruguai, ir lá pro lado argentino… Pode segurar mais
um tempo?”
“Tu vai mesmo até lá pra falar com ela?”
“Preciso.”
“Não devia. Mas eu te conheço, ninguém vai te tirar isso da cabeça.
Só resolve hoje, antes da sexta acabar. Tá metendo nós duas numa baita
roubada.”
Chaya entra num velho barco que estava escondido entre galhos e
árvores caídas do antigo porto Pari: uma praia de cascalhos que não
pode mais ser frequentada pela população desde 1954, quando a antiga
reserva florestal foi elevada à categoria de Parque Estadual do Turvo.
Venta muito. O rio Uruguai está furioso. A água bate com força no
casco da pequena embarcação de madeira, molhando parte do corpo
de Chaya. Ela atravessa até chegar à Argentina.
Ao atracar na margem, amarra o barco numa árvore próxima à
barranca do rio, esconde a pistola na parte de trás da cintura, por baixo
do casaco do uniforme, e sobe uma trilha no perau, pela mata fechada,
até chegar a um campestre: um enorme afloramento rochoso no meio
da floresta, com uma beleza cênica que mesmo alguém como Chaya,
crescida naquele lugar, não consegue deixar de reparar. No chão,
talhado numa das rochas presas ao solo, está escrito: Território Pies
Rubros. Anda quinze minutos e começa a escutar o latido dos cachorros
e as risadas das crianças. Um homem de cabelos soltos até os ombros,
bigode e chapéu azul desbotado do tipo pescador surge diante dela. Ele
segura um antigo rifle Bersa. Contempla Chaya de cima a baixo. Ela
ergue as mãos perto do peito:
“Vim falar com a tua chefe. Tô em paz.”

Há quinze casas, algumas de madeira, outras construídas a partir de


contêineres velhos com varandas improvisadas feitas de zinco, todas
próximas umas das outras. No centro, uma casa encardida de madeira
pintada de verde-bandeira; à sua frente, uma fogueira com um grande
tacho quadrado preso por barras de ferro. Preta, quarenta anos, alta,
ombros e braços fortes, pernas musculosas, cabelos castanhos, presos
por uma longa trança, veste bermuda curta, camiseta justa e chinelos
de borracha; ela mexe a comida com uma colher de pau. Cozinha um
carreteiro de miúdos. O cheiro de rim, moela, fígado, tripas e coração
fritos é forte. Sem parar de lidar, e sem se virar para Chaya, ela fala:
“Faz tempo.”

Chaya e Preta estão sentadas num tronco caído na lateral da casa verde.
Cada uma com um prato cheio de carreteiro. Mastigam sem pressa. As
crianças e os adultos estão espalhados na frente das outras casas e
comem também. Uma menina de cinco anos tira um pedaço de rim da
boca e joga fora. Dois cachorros correm para pegar o miúdo e, por
causa dele, brigam. Preta se levanta, vai até a criança e lhe dá um tapa
na boca. O prato da menina voa longe. Os cachorros correm e devoram
os restos.
“Diabo! Agora vai passar fome.”
Todos olham para Preta, em seguida abaixam a cabeça, mudos. A
criança engole o choro. Preta volta para o seu lugar.
“Não é fácil manter a ordem, ensinar o valor das coisas.”
“Tu sempre quis isso, né, Preta? A tua vó que ia gostar de te ver
assim, mandando em tudo aqui”, Chaya fala. “Aliás, sinto muito pela
Tédi.”
“Até parece que acabou de acontecer.”
“Faz anos que a gente não se fala.” Chaya dá mais uma colherada na
comida.
“E por mim continuava assim.”
Há uma inquietação entre as duas. Elas analisam uma o rosto da
outra, revirando dentro de si lembranças e sentimentos contraditórios,
uma geografia de acontecimentos separados pelo rio Uruguai.
“Bom, tu sabe por que eu tô aqui, né?!”
“Não vou lá reconhecer o corpo.” Preta cospe no chão.
“Buscar…”
“Nem buscar.” Preta se levanta. “Pode esquecer.”
Preta não confia na polícia brasileira nem na argentina. Ali, naquele
lugar na fronteira, onde as regras são feitas e quebradas por ela e só por
ela, ninguém mexe com sua liberdade nem com a liberdade do seu
grupo. Duas facções, armadas e perigosas, têm tentado invadir o
território argentino por aquele lado, uma paraguaia e outra brasileira.
São os Pies Rubros, sob o comando de Preta, que têm conseguido
guardar aquela área para não iniciarem uma guerra, isso há alguns
anos. Em troca, as pessoas realmente poderosas do lugar, as que
mandam naquele lado fronteiriço, não mexem nem com ela nem com
seus negócios. Sair dali pode ser perigoso.
“Ele era o teu homem, Preta. Não era?”
“Já tive outros.”
“Ninguém vai mexer contigo do lado de lá, te garanto…” Chaya
deposita o prato vazio no tronco e se levanta.
“Pelega. Garante as tuas tetas. Vem com esse papo pra cima de mim?
Depois de tudo o que…” Preta se afasta, sem deixar de encarar Chaya.
No fundo, nenhuma das duas quer enveredar por aquele tipo de
conversa. Porém, sabem que estão adiando: terão que resolver o passado
em algum momento. O tempo não foi suficiente para fechar as feridas.
“E tu nem polícia é”, completa.
Chaya se aproxima de Preta, quase encosta seu rosto no dela. “Sou
tão polícia quanto os polícias que querem te prender.”
Preta gruda a testa na de Chaya e fala baixinho:
“Eu sei o que tu faria. Tu é neta de quem é.”
“Lava essa boca antes de falar do meu vô.” Chaya empurra a chefe
dos Pies Rubros, mas ela, maior e mais forte, pega a policial pelos
braços, imobilizando-a. Chaya tenta se soltar, e Preta a joga para o
lado. Ela cambaleia e quase cai. Ameaça ir para cima de Preta de novo,
mas não sai do lugar. Pensa no seu avô Armin. Surgem as lembranças
de quando tinha seis anos. Sangue. Choro. Então volta a se lembrar do
homem em choque, morrendo dentro do parque no dia anterior. Do
sangue jorrando do pescoço. O menino chorando. Fica tonta. Sente
que vai cair. Com as mãos, tateia um lugar para se apoiar. Preta lhe
estende o braço. Chaya logo volta a si. Ficam paradas uma diante da
outra. As duas se desarmam. Abatidas, têm o mesmo olhar, um olhar de
assolação.
“Sei que o guri que tava no parque não é nada teu, e deve ser mais
um desses bichos soltos que andam sem rumo por essa fronteira. Mas é
o diabo do corpo do pai dele que tá lá no iml apodrecendo.” Chaya
puxa o fôlego.
“O nome dele é León”, Preta responde.
O menino surge na porta da casa verde, desce os degraus de madeira
e caminha para junto de Preta, que segura uma das mãos dele. León e
Chaya se encaram.
“Ele me contou”, Preta diz.
“Contou o quê?”
“Tu atirou no pai dele.”
Chaya sente as costas arderem como se um maçarico passasse por
ela. Volta a suar. Dá um passo na direção de Preta:
“Ele vai ser enterrado como indigente.”
“Essa culpa é tu quem vai carregar!”
“Ele atirou primeiro.”
“Essa é a tua justificativa?”
“Tu sabe que dentro do parque tem regra. Leis! Que merda, prima”,
Chaya fala.
“Prima?”, Preta debocha. “Tu tem coragem mesmo.” Ela empurra
León para o lado. “A gente pode até parecer um bando de bicho, como
tu disse. Mas a nossa carne vale mais que a carne de um porco do mato.
Cuidado, a conta vem, Chaya.”
“Arrê! Eu tô tentando preservar esse parque, como o Sarampião fez.”
“Arrê! Tu segue te achando a senhora da justiça, usando o nome do
nosso bisavô pra legitimar os teus erros.”
Chaya recebe aquela frase como um soco. Não deveria ter vindo,
deveria ter escutado a amiga Dóris. Se arrepende da sua impulsividade.
Da sua ânsia em querer mudar as coisas. Nenhum passado pode ser
mudado.
Preta continua:
“Tu e todos aqueles guardas deviam é me agradecer. O quilo de cada
paca, anta, queixada, dourado, surubim, em peso, em plata, no fim é o
sustento de toda essa gente que tá aqui, pra não precisar se meter com
venda de arma ou de droga. E essa é a minha lei.”
“Ah! Tem dó, Preta. E as bebidas?”
“Vai à merda! Isso é só descaminho, qualquer um faz, até o teu
querido velho Romano.”
“Tu acredita nesse teu mundinho podre aqui”, Chaya se descontrola
e grita. “Nesse território santo, imaculado que tu e a tua vó Tédi
inventaram. Tu te apresenta como salvadora de todos, te acha a rainha
dos excluídos. Mas tu é uma mentira. Tu tem passado, Preta, e só nós
duas aqui sabemos qual é.”
Preta crava as unhas no próprio antebraço até a pele rasgar e sangrar.
“Sai daqui antes que eu…” Bate com os pés no chão, levantando
uma poeira vermelha.
“Quero resolver a questão do corpo. Vim aqui pra isso.”
“Tu acha mesmo que esse truque vai funcionar? Trazer o homem
morto pra cá, com a garganta em pedaços, não vai intimidar a gente.
Não vamos parar de caçar.”
“E eu não vou parar de atirar em quem for até lá.”
“Claro que não vai. Tu virou uma Romano. Já trocou o sobrenome
na tua certidão de nascimento? O Sarampião ia ter vergonha de ti. Tu
não é, nem nunca foi, uma cabocla pé vermelho como eu, como nós.
Pega o teu rumo. Some.”
Chaya sente o coração saltar, o rosto queimar. Saca a arma de trás da
cintura e aponta para a prima. Três mulheres e um homem surgem
armados, mas ela não se intimida.
“Não é só um rio que nos separa, Chaya, é também a realidade.
Olha aqui ao redor. A minha realidade e a tua nunca se encontraram”,
Preta diz.
“Por que não manda atirar?” Chaya não baixa a guarda.
Preta põe as duas mãos na própria nuca. Os ossos doem. Seus olhos
mostram o suplício de quem viu muito passado e é tomado pela
premonição de quem vê o futuro. Com a voz rouca, diz:
“Não é deste lado do Yucumã o teu destino.”
Chaya reconhece aquele olhar, aquela voz. Franze a testa. Guarda a
pistola e caminha mata adentro, na direção do rio. Preta, León e todos
os outros, imóveis, a observam. Antes que ela suma, Preta avisa:
“Nós somos Pies Rubros, saímos todo dia preparados pra matar ou
pra morrer.”
“Nisso somos iguais.”
Preta cospe no chão. Escuta o som do rio Uruguai ao longe e das
moscas e mosquitos revoando. Volta ao tacho onde ainda há um resto
do carreteiro. Passa a colher de pau no fundo, no arroz queimado, e
joga para os cachorros. Os bichos se aproximam devagar,
amedrontados. Comem sem brigar, com os olhos grudados na chefe.
1957
quando tudo começou
A morte, o covarde e o sábio

Sentado num cepo de lenha, nos fundos da casa de madeira pintada


em tom terroso, na beira da sanga, ao lado do parque do Turvo,
Sarampião olha para o nada. Armin sai de dentro da casa trazendo duas
canecas d’água. Entrega uma para ele e se acomoda ao seu lado.
“Vai ser bom pro senhor assumir como guarda no parque, pai. Mas
não é melhor esperar uns dias? Não faz nem um mês que a mãe
morreu”, Armin diz.
“Não posso mais ficar dentro dessa casa. Passo pelo quarto e falta ela
deitada. Não consigo mais nem lembrar de como a tua mãe era antes
dessa doença. Tudo aqui é lembrança de morte.”
“Foram muitos anos. Mas a mãe também foi feliz aqui. Nós fomos.”
“Então vem com a tua família pra cá.”
“Acabei de arar, começo a plantar agora, pai. Como que eu vou
abandonar as terras?”
“Tá certo. Vamos deixar o teu irmão e a família dele virem.”
“O Roscato não vai cuidar e vai acabar vendendo.”
“Arrê! Dá uma confiança, filho. Ele mudou.”
“O senhor que sabe.”
Os dois ficam em silêncio.
“Morar dentro do parque é um sonho que eu sempre tive”,
Sarampião diz.
“Coragem sua, pai. Lugar cheio de onça, de tudo que é ­bicho.”
“Conheço essa floresta como a palma da minha mão. E os bichos
que tem nela também. Apesar de tudo, foi uma sorte o guarda que tava
aqui pedir pra ir embora.”
“Eu ia fazer o mesmo se desse de frente com uma caninana na
cozinha. O homem ficou horas em cima da mesa”, Armin ri.
“O sujeito não entendia de nada.”
“Ele era devagar, pai.”
“Um ignorante e um covarde. Sabedoria é privilégio de poucos.”
“Por isso o senhor vai ser o melhor guarda-florestal que esse parque já
viu.”
Sarampião e a Boca Braba

Sarampião corre pela trilha recém-feita dentro da mata fechada do


parque do Turvo. Usa botinas gastas, calça dobrada nas canelas, camisa
com os botões abertos. A pele acobreada e o cabelo liso, na altura do
pescoço, reluzem quando os raios de sol o encontram. Nas costas,
amarrada por uma tira grossa de couro, leva uma espingarda cano
simples calibre .36, carregada com chumbo fino.
“Tá mais que na hora de pôr um fim nessa caçança à Boca Braba.
Aqueles brancos azedos”, Sarampião fala para si mesmo enquanto salta
por cima de galhos e arbustos.
Ouve um esturro. Para de correr. Inclina o corpo à frente, gira em
torno de si mesmo. Outro esturro vem das suas costas. Se vira.
“Faz tempo, dona.” Ele encara os olhos amarelados do felino. Ficam
imóveis, ela com os caninos expostos, ele com os lábios cerrados.
Ambos ofegantes.
A tensão daquele momento entre os dois é quebrada por um assobio
comprido e agudo. Sarampião e Boca Braba rompem o contato visual.
A onça corre. Sarampião a segue. O animal desaparece entre as árvores
da floresta. O homem pula por cima de um tronco caído, passa por
lameiros, desvia de teias de aranha, atravessa uma vegetação
espinhenta. Já sem fôlego, suado e arranhado, escuta outra vez o
animal, e em seguida um tiro, depois outro. Sua visão se anuvia. O
corpo perde o equilíbrio e tomba para o lado.
Quando volta a si, está caído no chão, por cima de folhas úmidas.
Sente um bafo quente próximo à cara. Com dificuldade, movimenta o
pescoço para o lado. Vê a onça. Sorri. Põe a mão na barriga. O sangue
quente escorre.
“Arrê…”

Homens bêbados, com armas erguidas nas mãos, riem posando para
uma foto. Um deles segura a fuça da onça, que está de cabeça para
baixo, com as patas amarradas e esticadas por uma corda no alto do
galpão nos fundos da mercearia da Gringa ­Romano. Garganta cortada,
o sangue escorre para dentro de uma vasilha de alumínio. Caco
Romano, de cabelo ruivo e pele rosada queimada do sol, cheia de
sardas, segura com orgulho a enorme língua do animal e ordena:
“Batam logo esse retrato.”
“Espera o teu irmão se ajeitar”, um dos homens fala.
Enrico Romano, onze anos, fisicamente muito parecido com o
irmão mais velho, não consegue se mexer, os olhos estão fixos no
sangue que enche o recipiente. Outro homem se afasta do grupo e
volta com uma caixa de ferramentas e um alicate, que entrega para
Caco. Ele estica a boca do bicho e, apesar da dificuldade, arranca o
canino superior direito.
“Agora vamos tirar essa merda de foto!”
As duas portas de madeira, enormes e pesadas, se abrem, fazendo
ranger as dobradiças enferrujadas. Armin Sarampião aparece segurando
um facão.
“Cadê o pai?”
Caco joga o alicate longe e guarda o canino no bolso.
“Do que que tu tá falando?”
“O pai tava lá em casa hoje cedo quando saiu pra procurar a Boca
Braba.”
“Ganhei os corres, então.” Caco aponta para a onça. Ele e os amigos
riem.
Gringa Romano, por volta dos cinquenta anos, mulher alta, braços e
pernas grossas, cabelos grisalhos amarrados no topo da cabeça, pele
tomada de sardas, surge no recinto. Todos ficam quietos. Ela caminha
até Enrico e a onça, observa o animal com um buraco de bala no peito
e com um corte reto e profundo feito à faca na garganta. Pega o
menino pelo braço, empurra-o para a frente, em direção à porta.
“Te arranca daqui.”
Ele não a contraria e sai.
Gringa se ajoelha na frente da Boca Braba. Se curva. Murmura
alguma coisa que ninguém entende. Caco observa tudo sem piscar.
Ainda ajoelhada, a mulher encara o filho, depois se levanta. Os amigos
dão alguns passos para trás, assustados. Ela se volta para Armin.
“Vou juntar os homens da vila e vamos pra dentro do Turvo. A gente
só sai de lá quando achar o Sarampião. Te prometo.”

Quatro semanas depois, na pequena capela da Igreja luterana da vila do


Turvo, a comunidade está em pé. Conversam baixo em pequenos
grupos. No banco da frente, estão sentados Armin Sarampião, sua
mulher Idalina e a filha deles, Amara, de seis anos, os olhos esverdeados
úmidos de choro. No banco ao lado estão Roscato Sarampião, homem
alto, ombros largos e mãos grandes, e sua mulher Tédi, loira, magra,
rosto definido, abraçada à filha Lenara, de doze anos, os cabelos negros
e lisos, o rosto quadrado que carrega uma tristeza familiar. De todos,
Lenara é a mais parecida com o avô, Sarampião. Enrico, Caco e
Gringa Romano estão juntos, no fundo. O pastor passa pela porta de
entrada, caminha devagar até parar diante do altar.
“Boa tarde!” O pastor pega a bíblia de cima da mesa. “Vamos todos
sentar. Nos encontramos aqui hoje não para celebrar, mas para pedir. Já
faz um mês que o nosso guarda-florestal e, para muitos, respeitado
curandeiro, aqui da comunidade, desapareceu. Vamos rezar pela
sua…”
“Não! O meu vô tá lá!”, Amara interrompe o padre aos gritos,
apontando na direção do parque do Turvo.
Armin pega a criança no colo e vai para o fundo da igreja. Idalina o
segue.
Roscato olha com raiva para o irmão, em seguida se volta para o
pastor e fala para todos escutarem:
“Peço desculpas pela falta de modos do meu irmão e da sua família,
pastor. Seja onde meu pai estiver, ele deve tá muito grato de ver a gente
aqui.”
Armin, com tristeza, encara Roscato. Põe no chão Amara, que se
abraça às suas pernas. Idalina, por sua vez, passa as mãos nos ombros da
filha.
“Tu tá errado, irmão. Esse encontro aqui tá todo errado”, Armin fala.
Ele, Amara e Idalina vão na direção da porta de saída. Caco o
chama:
“Vai largar a cerimônia que a gente orga…”
É interrompido por um beliscão da mãe.
“Cala a boca!”, Gringa fala.
Armin encara Caco.
“O que é teu tá guardado. Espera…”
“Te acalma, homem”, Gringa interrompe.
“Todo mundo aqui sabe que o Sarampião tava no Turvo pra salvar a
Boca Braba desse bosta. Tu tá com as mãos sujas, tenho certeza”,
Armin grita, enfiando o dedo indicador no rosto de Caco.
“Seu caboclo de merda.” Caco tenta ir para cima de Armin, mas é
empurrado pela mãe, incontestavelmente mais forte.
“Some daqui!”, Gringa ordena.
Caco, ainda enfurecido, obedece. Enrico vai atrás dele. Gringa,
mostrando reserva, fala com Armin, Idalina e Amara:
“Perdão pelo meu mais velho. Depois que eu fiquei viúva, acabei
mimando e estragando ele. Armin, meu amigo, entendo o teu luto.”
“Eu não tô de luto!”
“Vamos todos nos acalmar, por favor”, o pastor pede.
“O Sarampião é pé vermelho, criado aqui, ele tá lá em algum lugar.
E vai dar um jeito de voltar”, Armin afirma.

Armin, Idalina e Amara caminham pela floresta. Lenara vem mais


atrás. Andam até escutarem o som da queda d’água do salto do
Yucumã. Passam pelo rochedo que cerca a beira do rio Uruguai e se
dirigem para a frente do canal.
Armin se ajoelha, repousa a cabeça numa das pedras e chora.
“Arrê, Sarampião. Cadê o senhor, pai?”
A mulher e a filha observam a cena e choram juntas.
Lenara se aproxima, fica em pé, sem falar nada. Amara a observa por
um tempo. Dá a mão para a prima. As duas se viram na direção da
mata, pousam os olhos no parque do Turvo e sorriem.

Gringa está sentada numa poltrona, próxima à janela da sala da sua


casa, no centro da vila do Turvo, atrás da mercearia. Caco chega
ressabiado. A mãe não olha para o filho.
“Mandou me chamar?”, ele pergunta.
Gringa não responde. Caco continua:
“Mãe, a senhora me perdoe, mas não vou pedir desculpas praquele
cor de cuia.”
Gringa levanta da poltrona, dá dois passos, ergue os olhos e com a
mão aberta solta um tapa na cara do filho, fazendo um som grave e
oco. Caco tropeça ao sentir o impacto da bofetada e cai no chão.
“Foi a tua espingarda .28, seu desgraçado.” Ela chuta na altura das
costelas dele.
“Para, mãe! Não foi! Não foi a minha!”, Caco grita.
Gringa se irrita e vai na direção dos quartos, pega um cinto de couro,
volta e bate sem parar nas pernas do filho, até que a fivela de metal se
solta e atinge a parte superior dos lábios de Caco. O sangue se espalha
nas lajotas e na camisa dele.
“De quem foi?”, Gringa pergunta com a voz rouca.
Caco fica quieto. Escarra uma baba ensanguentada. Puxa o fôlego e
fala:
“Pergunta pro Roscato!”
Enrico surge na varanda e questiona:
“Por que o Roscato?”
Destino traçado pelo sangue

O inverno chegou. Amara está há três dias acometida de uma forte


febre. Armin atrela à carroça seus dois bois, Zebruno e Branco. Chama
Idalina.
“Vou até a mercearia da Gringa atrás de remédio. Chega de esperar.”
“O Sarampião saberia que erva usar nela.”
“Enquanto o pai não volta, a gente tem que resolver como dá.”
Armin beija o rosto da mulher.
Ele sobe na carroça e pega a estrada de terra paralela à mata do
parque do Turvo.
“Anda! Anda! Vamos!”, ele ordena aos bichos.
Dois quilômetros adiante, na segunda curva, escuta um assobio.
Puxa as rédeas, os bois param. Outro assobio. Seu estômago gela. Sai da
carroça e entra no mato na direção de onde vem o som.
“Pai?”
A única coisa que escuta é o som da floresta.
“Sarampião?”, insiste.
Avança mais alguns metros. Escuta um esturro de onça. Os olhos
saltam, ele volta correndo.
Na estrada, não encontra a carroça nem os bois. Vê os dois animais
em disparada retornarem para a sua propriedade. Armin se volta para a
mata mais uma vez. Vem à tona a dúvida que o acompanha há meses.
Ainda acredita que seu pai tem uma espécie de crédito divino nesta
terra: mais um pouco de tempo.
Puxa o fôlego e corre atrás dos bichos.
“Tou, tou, Zebruno! Tou, Branco!”

Vinte minutos depois, Armin chega em casa, esbaforido. Antes mesmo


de se recuperar, Idalina vem ao seu encontro.
“Ele voltou. Ele voltou”, ela fala.
“Quem, mulher?”
“O Sarampião.”
“Arrê.”
Armin se lança para dentro da casa. Procura por todos os cômodos.
Entra no quarto de Amara. Fica paralisado. A filha, na cama, tem um
emplastro no peito feito com folhas verdes e barro, e outro, de uma cor
azulada, cobre sua testa. Aproxima-se e percebe na mesinha ao lado
uma xícara com um líquido escuro de cheiro forte.
“Filha?”
“Oi, pai.”
“Cadê ele?”
“Quem?”
“O teu vô.”
“Não sei, pai.”
“Amara…”
“Acordei e isso tava aqui.”
Armin se senta ao lado da filha. Tira o emplastro da testa dela, pousa
a mão e percebe que está fria.
A casa de cor terrosa que foi de Sarampião começa a se deteriorar por
falta de manutenção. Algumas tábuas de madeira da parede dos fundos
estão se soltando. No chão da cozinha, ao lado do fogão a lenha, há um
buraco que deixa aparecer a terra escura e úmida. Roscato surge,
cambaleando. O odor de bebida forte se mistura ao de lenha queimada
do lugar. Tédi o observa, aflita. Há dias Lenara segue com febre, dor no
corpo e um chiado forte no pulmão. A expressão da mãe denuncia a
dor de quem já perdeu um filho para a doença.
“Roscato, pelo amor de Deus, vai até a vila, fala com a Gringa, vê se
consegue remédio. E uns ossos com tutano pra fazer uma sopa pra essa
guria.”
“Com que dinheiro, Tédi?”
“Tu pode fazer carvão e entregar pra ela depois.”
“Pra acontecer o que aconteceu da outra vez?”
“Faz alguma coisa. A nossa filha tá doente.”
“Essa praga tá sempre doente.”
“Se a Lenara for pra debaixo da terra como o irmão dela, a culpa vai
ser tua.”
Roscato desfere um soco no olho da mulher. Ela desaba. Ele a pega
pelos cabelos e a arrasta para o quarto onde está a filha.
“Isso tudo é culpa tua. Desse teu sangue ruim. Os nossos filhos
nasceram estragados porque vieram de dentro de ti”, Roscato grita.
Larga a mulher e sai de casa.
Tédi levanta ainda tonta, deita-se ao lado da filha, na cama com
colchão de palha, e a abraça para tentar aquecê-la.
Atravessa a rua de terra que dá para a mercearia na vila do Turvo. Seus
passos estão mais pesados que o habitual. Com chapéu de palha e a
cabeça curvada, Roscato não mostra o rosto. Entra no estabelecimento,
vai direto ao balcão. Põe as mãos em cima da bancada. Bate as pontas
dos dedos nela, fazendo um som irritante com as unhas. Enrico surge
de uma porta de trás do balcão. Sobe num banquinho para ficar na
altura do caixa. Observa os dedos de Roscato ainda percutindo no
tampo de madeira e pergunta:
“O que que tu quer?”
“Chama a tua mãe.”
“Fala o que tu quer, Roscato.”
“É o que o senhor quer. Tu me respeita, que tu é um piá de bosta.
Agora, vai lá dentro chamar a Gringa, que não resolvo nada com
criança. Anda, antes que eu te dê uns tapas”, ele grita e bate forte no
balcão.
Caco aparece por entre uma cortina bege pendurada na porta que dá
para o depósito.
“Que gritaria é essa?”
Ele e Roscato se encaram. Caco tira o irmão de cima do banco.
“Vai lá pra dentro pesar o café e o açúcar”, fala para Enrico.
“Um dia, corto as tuas mãos fora, seu bêbado.” Enrico olha com ódio
para Roscato e sai pelo mesmo lugar que Caco entrou.
“Mais um ano e cuidado que ele corta mesmo”, Caco ri.
“Esse teu irmão não tem modos.”
“Por que tu tá nervoso, homem?”
“Cadê ela?”
“A mãe foi pra cidade.”
“A Lenara tá mal.”
Caco fica em silêncio. Roscato já usou essa história de filha doente
para pegar comida, bebida e dinheiro pelo menos uma dezena de
vezes.
“Preciso de remédio, comida e um pouco de dinheiro. Tenho carvão
esfriando. Mais uns dias eu entrego”, Roscato con­tinua.
Caco pega uma caderneta velha com capa escura. Folheia.
“Tem coisa tua marcada de dois anos atrás.”
“Paguei boa parte. A Gringa deve ter esquecido de descontar.”
“Tá dizendo que a minha mãe tá te passando a perna?”
Roscato cerra os punhos.
“Eu sei de coisas que podem te trazer muitos problemas, seu traste”,
Roscato ameaça.
“Tu tem coragem mesmo. Se eu contar metade do que eu sei, o povo
da vila vai te linchar e vou só assistir.”
Roscato bufa. Cospe no piso do lugar. Volta a bater os dedos na
bancada. Para. Deixa os braços caírem na lateral do corpo e faz uma
última tentativa:
“Só quero comprar remédio e comida, homem.”
“Comprar? Tu veio esmolar. Trabalhar de verdade tu não quer, né?!”
Roscato tira o chapéu. Passa a mão no cabelo, suado e en­sebado.
“A mãe já disse, tu pode limpar os chiqueiros lá do rancho…” Caco
não consegue terminar a frase, começa a rir.
“Tu te acha grande coisa, mas é um Romano de merda que não sabe
fazer nada direito.”
Caco começa a gargalhar.
“Sou filho do Sarampião. E tu, é filho de quem?”, Roscato continua.
“Tu é um caboclo inútil, isso sim. Vagabundo, preguiçoso. Nem da
morada que o teu pai deixou pra ti viver tu tá cuidando. O Sarampião
tinha vergonha de ti quando tava vivo. Vai-te embora. E toma um
banho pra ver se sai essa fedentina e esse encardido do teu lombo”,
Caco fala.
Curiosos entram na mercearia para ver o que está acontecendo.
Roscato enfia o chapéu de volta na cabeça. Sai. Dá a volta por trás do
casarão que abriga o estabelecimento. Vai até um pequeno galpão, nos
fundos, abre a porta. Entra. Dois minutos depois, sai segurando um
facão.
Caco conversa com três homens que entraram um pouco antes de
Roscato sair. Uma mulher idosa passa a entrada, vai até ele e lhe
entrega uma lista de compras num pedaço de papel pardo. Caco
chama Enrico para atendê-la. Ele volta a subir no banquinho e nota a
caderneta com o nome de Roscato em cima da mesa. Roscato surge
correndo mercearia adentro. Os dois irmãos só têm tempo de ver os
olhos gélidos do homem. Olhos sem vida, vidrados no destino traçado:
o pescoço de Caco.
O sangue de Caco jorra em cima do balcão, da caderneta e do rosto
de Enrico. Caco põe uma mão, depois a outra, no talho. Tenta pedir
ajuda para o caçula que está paralisado, mas não consegue. Tomba nos
pés do irmão.

O olho de Tédi está escuro e inchado. Ela prepara uma bacia com água
e sabão para lavar a filha. Entra no pequeno quarto e se assusta ao ver
Lenara com um emplastro de folhas verdes e barro no peito, e outro
azulado na testa.
“Quem pôs isso em ti?”, pergunta, mas não obtém resposta.
Sai pela casa.
“Sarampião? Sarampião?” Volta até a filha. Pergunta de novo:
“Quem foi?”.
“O quê?”, Lenara fala com a voz fraca.
“Foi tu ou foi ele? Fala.”
“Me deixa dormir.”
Tédi escuta palmas do lado de fora. Abre um sorriso. Chega ao pátio
e encontra o cunhado. Antes que ela consiga falar, Armin pergunta:
“Ele tá aqui?”
“O Sarampião?”
Armin estranha. Observa ao redor da casa, depois dentro dela.
“O Roscato. Tão atrás dele.”
O carma não esquece meu nome

Alguns meses depois, Gringa Romano dirige uma caminhonete rural;


ao seu lado está Armin e, atrás, vão Tédi e Lenara. Passam pela rua de
calçamento irregular. As depressões profundas fazem os corpos se
moverem de um lado para outro. Entram num bairro retirado do centro
de Dourado. Chegam a uma rua de chão batido, esgoto a céu aberto,
ladeada por dezenas de casas amontoadas feitas com folhas de zinco,
tábuas, restos de laminado de madeira. Param em frente a uma
pequena casa de alvenaria, com as paredes sem reboco. O sol está forte
e o dia, abafado. Lenara observa tudo ao redor. Seu olhar de raiva pousa
sobre o novo cenário.
Os moradores da rua vão para a frente dos casebres. As crianças
correm até a caminhonete e observam os quatro com curiosidade.
Gringa e Armin descem primeiro, abrem o bagageiro e começam a
tirar a mudança. Lenara e Tédi pegam as sacolas do chão. A
adolescente larga tudo e abraça seu tio Armin.
“Posso voltar com o senhor?”, implora.
“Larga ele, filha.” Tédi puxa Lenara.
Gringa Romano tira do bolso de trás da calça um envelope e entrega
a Tédi.
“Aqui a parte de vocês do que sobrou da venda da morada do
Sarampião. Apesar da dívida grande na mercearia e de todo o resto,
resolvi deixar passar as contas mais antigas. Com isso, vai dar pra ti e
pra ela viverem uns meses sem se preocupar. Só não esquece do nosso
combinado, Tédi.” Nem o rosto nem a voz de Gringa escondem sua
cólera. E, por sua vez, Tédi não esconde seu desprezo.
“Não te preocupa. Não vou voltar praquela vila de merda.”
Gringa encara Tédi sem piscar, então volta para o veículo.
“Foi melhor assim, Tédi”, Armin diz. Ele pega um papel e lhe
entrega.
“O endereço da casa que te falei. Vai lá e conversa com a dona. É
um trabalho digno.”
Tédi não pega o bilhete. Armin insiste. Ela deixa o papel cair no
chão. Armin dá de ombros e volta para a rural. Lenara corre na direção
do tio e, antes que ele bata a porta, segura sua mão.
“Tio, quando posso ir visitar a Amara? Quando a gente vai poder
voltar?”
Armin não diz nada. Lamenta pela sobrinha, que carregará para
sempre o carma do pai.
“E o Sarampião? Ele vai me achar…”
Tédi interrompe a filha:
“Fica quieta, guria. Para de falar bobagem. O teu vô tá morto. Agora
passa pra cá. Deixa essa gente seguir a vida.”
Armin dá um beijo na testa da menina e fecha a porta da
caminhonete. Ele e Gringa partem. Lenara começa a chorar.
“Engole esse choro. Seja forte, mulher. Tenha dignidade, isso é a
única coisa que eles nunca vão conseguir tirar da gente”, Tédi fala.
“Eu não quero ficar aqui.”
“Não vamos ficar. A gente vai atrás do traste do teu pai”, Tédi avisa.

Chegam de volta à vila do Turvo. Gringa dobra numa estrada cercada


por plantações de milho.
“Pode parar aqui”, Armin ordena.
“Que é isso, homem. Vou te deixar em casa.”
“Para!” Armin pega no trinco da porta.
Ela freia. Armin salta. Bate a porta da caminhonete.
“Agora estamos quites?”
Gringa pega outro envelope do porta-luvas e entrega a Armin.
“Aqui a tua parte da casa”, ela fala.
“Não quero nem ver…”
“Isso era do Sarampião. Faz o que quiser com ele.” Gringa joga o
dinheiro pela janela, faz a volta com a rural e parte.
Uma melancolia se abate sobre Gringa. Ela sabe que aquilo não é o
fim. O carma seguirá o tempo, rondando as duas famílias.
água
A cabocla e a forasteira

Sábado, dez da manhã. Dia estranhamente quente em Dourado. Olga


acorda suada, com duas mantas de lã e um cobertor grosso por cima do
corpo. Joga tudo no chão e, nua, senta-se na cama. Põe os pés no piso
de cerâmica. Vai até o banheiro, lava o rosto e escova os dentes. Abre a
janela que dá para a rua e o bafo morno entra no quarto. Pega o celular
e vê que há cinco chamadas e duas mensagens de voz do deputado. Há
também uma mensagem de texto do seu pai. Ela responde:
“Bom dia, pai! Foi tudo bem, sim. Volto amanhã pra Porto Alegre.
Estou no hotel do Tales.”
No mesmo instante, se arrepende do que escreveu. Seleciona para
apagar, mas duas respostas, uma seguida da outra, chegam antes:
“Não aprendeu nada, Olga?”
“Não é possível.”
O celular, já sem bateria, se apaga. Olga vai até a mala, se agacha
para pegar o carregador, levanta-se e sente uma tontura. As duas
garrafas de vinho argentino que bebeu com Tales na noite anterior
ressurgem latejando na parte frontal da sua cabeça. Põe o aparelho para
carregar. Vai até o chuveiro.
Veste uma roupa leve. Passa protetor solar e base no rosto, borrifa
perfume. Pega o telefone com meia carga, a bolsa e sai.
O sol forte queima. Olga entra no carro, liga o ar-condicionado.
Atravessa a avenida das Viuvinhas. Dobra à esquerda, numa rua de
calçamento, e depois numa estrada de chão. Passa por uma placa verde
onde está escrito “Barra Bonita” com uma seta apontando para o lado
direito.
Para em frente a uma casa branca em estilo colonial, sai do carro.
Caminha pelo gramado e bate palmas três vezes.
“Ó de casa!”
Um senhor miúdo, com cabelos finos e grisalhos, pele enrugada e
com manchas de queimaduras do sol, vem até o pátio.
“Bom dia!”, ele fala de longe para a estranha parada no gramado.
“Bom dia! Seu Benedito? É o senhor?”, Olga pergunta.
“Não! Tá meio longe. O Benedito mora lá pra baixo na canhada. Eu
sou o Josué.”
Olga pega a caderneta com capa de couro de dentro da bolsa. Lê as
anotações feitas em garranchos na noite anterior. Ela e Tales, já
bêbados, listaram os nomes dos líderes das comunidades com quem ela
deveria falar, e, mais que falar, escutar o que tinham a dizer sobre a
hidrelétrica e os reais motivos da recusa deles.
“Desculpa. Eu sou a Olga Befreien, jornalista…”
Josué a interrompe:
“Filha do Befreien que tinha a loja de ferragem na cidade?”
“Esse mesmo.” Ela dá um sorriso.
“A moça que fez aquela safadeza na estátua do Sarampião e na
praça.”
Olga sente como se tivesse levado um choque.
“Achou que a gente ia esquecer? Pega as tuas trouxas. O teu lugar
não é aqui”, Josué avisa.
Olga volta para o carro. Lembranças em forma de flashes surgem: a
neblina, o vinho no chão e a roupa manchada, as garrafas quebradas,
risos e mais risos. Olga põe as mãos no rosto, esfrega os olhos. As
memórias continuam: um grito e o fogo. Seu telefone toca. Vê que é o
deputado. Joga o aparelho no chão do carro.

Passa por uma estrada de terra no meio de uma enorme plantação de


soja em alta velocidade. Na sua cabeça, um turbilhão de pensamentos
enquanto se concentra nas curvas e pedras soltas. Derrapa. Perde o
controle, invade a lavoura. Pisa com força no freio. O carro morre.
Tenta religar o motor. Nada. Tenta de novo. Nada. Não tem a quem
pedir ajuda. Não há possibilidade de chamar Tales, ele avisou que
estaria almoçando com o pai e Chaya. Olha para os lados, procura
alguma casa, ou vivalma passando. Já é quase meio-dia. A temperatura
passa dos trinta e oito graus, o que é atípico no Rio Grande do Sul
nessa época. Abre os vidros. Uma caminhonete branca surge ao longe.
Olga desce do veículo e corre até a beira da estrada. Faz sinal com os
braços erguidos. A caminhonete branca diminui a velocidade. Para.
Olga franze a testa ao perceber que é Chaya. Ela veste calça jeans,
camiseta branca com decote V e está com os longos cabelos, pretos e
lisos, soltos.
“Tem previsão de temporal pra hoje.”
Olga fica quieta. Chaya continua:
“Melhor tu pegar o teu rumo logo. O vento forte às vezes levanta até
a sujeira que foi bem escondida.”
As duas seguem se encarando. Antes de sair, Chaya sorri e diz:
“Empurra. Tenta fazer pegar no tranco.”
Chaya deixa Olga debaixo da nuvem de pó da terra vermelha que se
forma ao redor dela depois que o veículo passa.

Por volta das duas da tarde, suada e suja, Olga sai de dentro de uma
oficina mecânica. Fuma um cigarro, com a bolsa pendurada no braço.
Caminha pela rua de calçamento, na lateral da praça do Turvo. Anda
na direção da avenida das Viuvinhas. A intenção é voltar logo para o
hotel, tomar um banho e aguardar o carro consertado ser entregue lá.
Olha de canto para as estátuas de Sarampião e da onça, integradas ao
chafariz que imita as quedas do salto do Yucumã, no meio da praça.
Observa ao redor. Não avista ninguém nas ruas. Vai até a frente da
estátua.
“Sarampião, eu era uma idio… tu sabe que aquilo foi sem…” Hesita.
“Não, Olga. Tu nunca gostou dessa estátua horrorosa e agora tá falando
com ela?” Joga o cigarro longe. Larga a bolsa no chão, tira os calçados,
molha os pés para se refrescar, depois as pernas, até acabar entrando
com todo o corpo embaixo da queda d’água. Sente a pressão bater no
couro cabeludo, nos ombros, nas costas. Sorri pela primeira vez desde
que saiu da casa de Josué. Passa a refletir sobre o significado daquela
cidade, lugar onde nasceu, o único lugar em que chegou a ser livre de
verdade. Lembra da infância, da adolescência, em seguida da dor de
todos os julgamentos, dos erros que não podem ser reparados. Cidade.
Peso. Vazio. Solidão. Tristeza. O reflexo de tudo aquilo ainda paira no
ar. Fecha os olhos. Escuta uma voz:
“Arrê, Sarampião.”
Uma mão segura seu pescoço e lhe joga para fora do chafariz. Já no
gramado, esfrega os olhos molhados e vê Chaya. Olga se pergunta
como aquele corpo pequeno, vinte centímetros mais baixo que o seu, e
aqueles braços finos conseguiram arrancá-la com tanta força de lá.
Olga observa Chaya uniformizada e com uma pistola na cintura
presa ao coldre. Começa a rir.
“Essa cidade, essa estátua, Sarampião, tudo sempre foi uma piada pra
ti”, Chaya fala.
Olga continua rindo, põe as meias e os calçados, pega a bolsa.
“Tu sabe que posso te levar presa por isso”, Chaya continua.
Olga a encara, pega o cabelo molhado e torce, depois faz o mesmo
com a barra da camiseta ainda no corpo.
“Tu não é dona desta cidade, Chaya.”
“E tu não devia ter voltado pra cá, Olga.” Chaya dá dois passos na
direção de Olga e para.
“Ninguém que não idolatre o Sarampião, que não dobre os joelhos
pra essa estátua idiota do teu bisavô, é bem-vindo aqui, né?” Olga se
vira para ir embora.
Chaya vai para cima dela e, por trás, pega seu braço direito e o torce
com fúria. Olga grita. Chaya grita mais alto:
“Fala de novo. Fala se tu tiver coragem.”
Ela se dá conta de que usa muita força, que pode quebrar a mulher,
e a larga. Olga se afasta, segurando o braço dolorido.
“Tu enlouqueceu? Cretina…”
“Chega de briga, Olga. Vai embora daqui de uma vez.”
“Briga? Foi tu que começou isso. O Tales sabe que tu agride pessoas
na rua agora?”
“Deixa o meu irmão de fora. Tu trouxe discórdia faz muitos anos. E
só voltou pra cá pra trazer mais coisa ruim.”
“Do que é que tu tá falando?”, Olga pergunta.
“Da hidrelétrica e desse deputado desgraçado pra quem tu trabalha.”
Olga olha com desdém para Chaya. Pega um cigarro e acende, traga
uma, duas vezes.
“Ninguém em Dourado quer essa hidrelétrica. O teu ­chefe…”
Olga a interrompe:
“Ninguém?”, debocha. “Tu não conhece tão bem as pessoas daqui.
Pelo visto, nem as mais próximas.”
“E tu conhece? Acha mesmo que as pessoas vão te perdoar? Te
apoiar?”
Olga não consegue esconder o incômodo. Sabe que Chaya está
certa. Continuar aquela conversa é burrice. Desvia dela e caminha
devagar pela avenida. Chaya fala alto:
“Seja mulher. Tenha um mínimo de dignidade. Tu não tem mais
dezessete anos. Vai embora e leva essa ideia da barragem contigo.”
Capa Preta

Enrico Romano, setenta e três anos, cabelos brancos, alto e de corpo


robusto, musculoso, mesmo com a idade avançada, está no escritório,
nos fundos do hotel. Abre e fecha gavetas, pastas, mexe em papéis.
Tales bate na porta, não espera o pai autorizar, entra.
“Que cara é essa?” Tales junta uns papéis caídos no chão. “É o
Heichma de novo? Num sábado à tarde? Mais vinhos?”
“Não te mete nos meus assuntos com ele. Me dá isso aqui.” Arranca
os papéis da mão do filho. “Vai lá no porão e vê quantas garrafas
daquele Capa Preta ainda temos.”
“Por favor, pai! Se uma hora a Chaya souber disso, o senhor já sabe o
que vai acontecer.”
“A tua irmã não é burra. Ela sabe que tem um monte de político de
Porto Alegre que manda comprar vinho comigo.”
“Comprar?”
“Cala a boca, piá”, Enrico chuta uma cadeira para longe.
Tales estranha o pai descompensado e nervoso daquele jeito. Sempre
metódico e frio, até mesmo nas intermináveis brigas entre os dois, tem
os negócios em primeiro lugar e os leva com pulso firme, sem que
ninguém da família, ou algum funcionário, perceba qualquer emoção
vinda dele. Tales acredita que a idade está deixando seu pai assim, ele
precisa desacelerar, parar por um tempo antes que adoeça. Vai na
direção da porta. Enrico o chama:
“Por que aquela guria ainda tá aqui?”
“Quem?” Tales não o encara.
“O Heichma me ligou de manhã e perguntou dela. Quanto
problema novo tu quer me trazer?”
“Ele que mandou ela vir.”
“Essa mulher é daquelas… tu sabe. Aquilo lá é bagunça. Ela e o
Heichma vivem lá nos rolos deles… Tu fala em não mentir pra Chaya,
mas a tua memória anda bem seletiva nos últimos tempos.”
Tales segue quieto.
“Tu não é mais adolescente e eu não vou em delegacia nenhuma
limpar a tua barra e esconder os teus podres”, Enrico avisa.
Tales entende o recado. Chaya não o perdoaria, mas também não
perdoaria Enrico se soubesse da verdade. Sabe como foi difícil para o
pai resolver aquilo no passado pelo bem da família, querendo preservar
a boa convivência e o amor entre os irmãos adotivos. Mas há muito
tempo que não quer mais esse jogo com o pai. Não quer mais manter a
sujeira debaixo do tapete.
“Não tô entendendo essa tua raiva gratuita comigo. Nós dois temos
muito a perder se essa conversa não mudar de rumo. Vamos nos
acalmar, pai?”
“Perdeu a noção do perigo? Se tu falasse assim com a tua vó Gringa
já ia ter apanhado, e apanhado muito. Quem sabe seja isso que tenha te
faltado.”
“Pra mim, chega. A Olga só tá aqui pra falar com a comunidade
sobre as maravilhas, os grandes benefícios dessa tal hidrelétrica. Não é
o que o deputado quer? O senhor devia ficar feliz.”
Tales sai e Enrico o segue. Apressados, passam pelo corredor que leva
até a entrada do hotel, cruzam com dois funcionários que os
cumprimentam, nenhum deles responde. O pai pega o filho pelo braço
e fala baixo no seu ouvido:
“Tu tá louco, seu bosta? Quer foder com a minha vida? Com a nossa
vida?”
Tales olha com uma tristeza infinita para Enrico. Admira a força e a
inteligência do pai. Admira sua história, a forma como manteve os
negócios da família depois da morte do irmão, Caco Romano, e da
doença da mãe, Gringa Romano, mesmo sendo tão novo à época;
como soube fazer dinheiro, pondo em prática tudo que aprendeu com
a matriarca, como se tornou poderoso naquela fronteira. Sabe que
nunca será o filho que ele quer. Está sempre se comparando com
Chaya, desde que ela chegou à vida deles, quando os dois ainda eram
crianças. Está sempre sendo comparado pelo pai com o falecido tio
Caco. Nunca recebeu uma palavra de carinho, um elogio como os que
o pai fazia a ­Caco ou a Chaya.
“Me desculpa, pai. Falei com o estômago. O senhor tem razão. Vou
lá separar os Capa Preta pro deputado. Precisa de mais algum vinho?”
Enrico passa a mão na cabeça do filho e volta para a sua sala. Fecha
a porta. Tira o celular do bolso da calça e faz uma ligação.
“Não dá pra esperar até de noite. Manda o que tu conseguir pro lado
de cá.”
Guerra turva

Às quatro da tarde do mesmo sábado, Preta está sozinha no meio de


um campestre cercado de mato entre seu povoado e o rio Uruguai. Ela
para ao lado da rocha talhada com a frase Território Pies Rubros. Segura
uma espingarda apontada para a frente. Duas mulheres e três homens
armados se aproximam dela. As mulheres se posicionam ao seu lado, os
homens atrás. Pela retaguarda, chegam dez pessoas, os mais velhos do
grupo; têm cabelos brancos, braços tatuados e pele manchada pelo sol.
Junto deles, vêm os adolescentes carregando dezenas de caixas com
garrafas de vinho. Outras duas mulheres aparecem na lateral, por entre
a mata. Trazem uma enorme caixa de isopor encardida, com gelo e
peças de carne de anta, queixada e cateto. Do mesmo lado delas, dois
homens com outro isopor contendo peixes como dourado e surubim-
pintado, inteiros. León se posiciona ao lado de Preta.
“Já disse pra ficar com os outros”, ela fala e aponta para o grupo de
adolescentes.
“Soy dos hombres da caçança.” Irritado, León acaba deixando que
ela veja a faca que mantinha escondida.
Preta desengatilha a espingarda e pendura no ombro. Desfere um
tapa no rosto do menino e lhe toma a faca.
“É um bosta, isso sim. Vai acabar igual o teu pai”, diz, esperando
uma reação, que não vem. “Tudo aqui é movido a vinho, carne ou
sangue. O teu lugar agora é no vinho. Se não for assim, vai acabar indo
direto pro sangue.”
León encara Preta e, esbarrando em quem está no seu caminho,
junta-se aos adolescentes. Toma uma caixa de vinho de um, depois
outra de outro. Sente o peso nos braços, mas não reclama. Espera o
comando da chefe.
Preta volta à sua posição, à frente de todos. Engatilha a espingarda
novamente. Avança devagar e os Pies Rubros a acompanham.

Preta está na parte dianteira da balsa. Ainda segura a arma. É uma


embarcação de cinco por cinco metros, feita com restos de madeira
velha e um pequeno barco a motor acoplado na parte lateral. Está
parada no porto improvisado, clandestino, que eles mesmos
construíram na beira do rio, do lado argentino. Há outro do lado
brasileiro.
Escutam as quedas do salto do Yucumã ao longe e a fúria da
correnteza da água. Silêncio; estão concentrados, se comunicam
apenas por sinais. Preta está apreensiva, olha para os lados. Não gosta
de fazer esse trabalho durante o dia. O risco é muito grande, mas o
dinheiro oferecido por Enrico e seus sócios também é. E há pressa.
O grupo está dividido: uma parte dentro da balsa, eles pegam as
mercadorias e as ajeitam no centro, a outra fica do lado de fora.
Terminam de carregar tudo. Preta se vira para os que estão em terra e
faz um sinal. Os adolescentes e os mais velhos correm para dentro da
mata e se escondem. León é o único que fica parado observando Preta,
que não percebe. Ela faz um gesto e o homem que está dentro do
pequeno barco a motor o liga. A balsa começa a andar devagar. Preta
está com os olhos cravados no outro lado do rio, na pequena praia de
cascalhos, onde eles vão atracar para descarregar as mercadorias que os
graxains, como são chamados os homens que entram de moto no
parque do Turvo, vão levar para os receptores; de lá o descaminho e o
contrabando vão para Dourado, em seguida Porto Alegre, São Paulo e,
no caso da maioria das carnes de animais silvestres, para a Ásia.
Eles escutam o som de outro motor de barco. Contra a correnteza,
surgem dois barcos da Marinha. Ângelo, chefe do parque, está à frente
de um deles acompanhado de militares e agentes da brigada ambiental.
Um dos Pies Rubros, que está em cima da balsa, saca o revólver da
cintura e atira, pegando na lataria da embarcação. Um militar revida e
acerta a testa dele, que cai morto dentro d’água. Preta ordena:
“Pro rio!”
As mulheres e os homens que estão com ela se jogam na água e, com
dificuldade, conseguem nadar até a beirada argentina, onde são
socorridos pelos parceiros que estão na barranca. Preta se mantém
sozinha em cima da balsa, que segue andando. Num gesto rápido,
aponta a espingarda na direção dos policiais e atira. Duas mulheres Pies
Rubros que estão em terra firme atiram também. Preta se esconde
dentro do pequeno barco acoplado à balsa. Os militares revidam e
começa um tiroteio. Ângelo é atingido. Uma bala pega no tanque de
gasolina do barco onde Preta está e dá início a um incêndio. Os
guardas aproveitam e atiram também nas mercadorias. As garrafas de
vinhos estouram, a bebida escorre por entre as tábuas. As caixas de
isopor se partem. O gelo e as carnes somem dentro d’água. Um grito
ensurdecedor vem de dentro da mata. Em seguida, a voz de uma
mulher ecoa:
“¡No! ¡No! ¡No!”
Começa um alarido de desespero vindo do mesmo lugar. Preta sai do
esconderijo, se mostra para as autoridades, larga sua arma, ergue os
braços e grita:
“Parem! Parem de atirar. Eu sei que vocês me querem viva.”
O tiroteio cessa. A balsa começa a sacudir, ela vê que está se
aproximando de um redemoinho d’água, cercado de fortes correntezas.
Preta olha para o rio turvo e bravo. Se joga no Uruguai. É engolida por
ele e some.
Céu violeta

Ao entardecer, Chaya entra na casa de Tales. Ele está deitado no chão


da sala, com roupa de corrida e alonga as pernas. Ela, de uniforme, se
acomoda no sofá.
“Achei estranho tu e Enrico não falarem nada sobre a hidrelétrica
hoje no almoço”, Chaya diz.
“Era pra não estragar o nosso momento em família, mana. Já que isso
tem sido cada vez mais raro.”
“Por que ela resolveu ficar aqui esses dias todos?”
“Mal falei com ela.” Tales se levanta, vai até a cozinha.
“Sei… Tu acha mesmo que eu caio nessa.”
Tales volta da cozinha com dois copos d’água na mão. Entrega um
para a irmã.
“A Olga comentou sobre a hidrelétrica?”
“Chaya…”
“Não tô nem aí se vocês treparam, se vão continuar trepando.”
“Esse teu ódio dela, depois de todos esses anos, é bem
desproporcional. Deixa a guria. Ela só veio trabalhar e já tá indo
embora.”
Tales bebe toda a água do copo. Chaya continua:
“Não me importo com a Olga, por mim ela que se foda. Quero saber
quem nessa cidade, tirando os Ricci, tá apoiando aquele verme do
deputado e essa história absurda de hidrelétrica.”
Tales larga o copo na estante e fica de costas para Chaya. Ela se
levanta.
“Vou falar com o Enrico, então. Não queria tocar nesse assunto do
descaminho dos vinhos, mas já que ele ainda vende praqueles políticos
canalhas de Porto Alegre, inclusive pro Heichma, vai poder me ajudar
perguntando pro desgraçado quem tá do lado dele aqui em Dourado.”
“Não faz isso”, ele ergue a voz.
Chaya estranha.
“O nosso pai tá muito estressado, além de velho demais pra uma
briga contigo”, Tales continua.
“O teu pai.”
“Começou… ele te criou como filha.”
“O teu pai.”
“Ele prefere morrer a ter que discutir sobre essas maracutais dos
vinhos contigo. Desde a época da vó Gringa é assim, não vai mudar
agora.”
“Mano, te amo, sou grata ao Enrico e à tua finada mãe por tudo que
fizeram por mim, e é por causa disso que tenho esse pacto de silêncio,
digamos assim, com o teu pai. Posso seguir não falando dos
descaminhos com ele, mas sobre a hidrelétrica eu vou falar.”
“Meu Deus, Chaya. Tu foi o maior presente que eu tive nessa vida,
mas porra, chega. Eu podia viver e morrer por ti, tu sabe, mas nem
tudo gira em torno dos teus assuntos, dos assuntos do parque e do
Sarampião. Tô te avisando que o nosso pai, porque ele é, sim, nosso pai,
não tá bem. Nunca vi ele desse jeito, parece que vai ter um troço. Não
piora as coisas.”
“Desculpa, Tales. Não vou mais te aborrecer. Mas vou te avisar uma
coisa: nunca mais julga nem questiona a minha preocupação com o
Turvo e com o que o Sarampião representa pra mim.”
Tales se arrepende do que disse. Tentou proteger o pai e magoou a
irmã. Antes que ele fale algo, o telefone de Chaya toca. Ela atende. Sua
expressão muda.
“O que houve?”, Tales pergunta.
“O Ângelo foi baleado”, Chaya responde, já saindo da casa.
“Vou contigo.”
“Vai no teu carro.”
Do lado de fora, ela sente um vento quente passar pelo corpo. Sua
pele arrepia. Vislumbra o horizonte, o sol está se pondo no céu cor de
violeta. Vira o rosto para o outro lado e percebe, ao longe, uma enorme
nuvem de chuva se aproximar. Entra na caminhonete. Arranca.
Na calçada, Tales fica parado olhando para o céu, para aquela cor
que hipnotiza até mesmo quem é acostumado a vê-la de quando em
quando. A nuvem carregada que se aproxima o afasta da contemplação.
Corre até a garagem.
Ventos, tempestades, segredos

Passa das vinte horas. Olga está deitada na cama do seu quarto no
Onça-Pintada. As janelas estão abertas e um forte vento entra e derruba
roupas, guardanapos e papéis de cima da mesa. Levanta-se da cama.
Caminha até a janela. Observa o impacto da ventania sobre a cidade:
folhas, galhos de árvores, poeira, sacos plásticos, lixo. Tudo dança em
redemoinhos. Fecha a janela. Escuta batidas na porta.
“Quem é?”
“O Enrico.”
Ela abre.
“Boa noite, Olga.”
“Boa noite, seu Enrico.”
“Quero trocar duas palavras.”
“Pois…”
“Tu sabe que aqui é um hotel de família. Somos uma cidade
pequena, mas séria, não gostamos de problemas. Tu precisa ir embora
ainda hoje.”
“Não tô entendendo.”
“Vou ser bem claro: o deputado Heichma conhece muita gente aqui.
Sabemos que ele é um homem ciumento e que não gosta de ser
contrariado.”
Olga sente o rosto esquentar e os olhos arderem. Não imaginava que
a história inventada e reinventada pelo Heichma lá na Assembleia
Legislativa pudesse ter chegado até Dourado. Quase todos os
parlamentares contam vantagens entre si: inventam relacionamentos
com jovens nascidas no interior do estado, mulheres que consideram
fracas, ingênuas, indefesas. Usam do poder e do emprego que dão a elas
para seguirem com todo tipo de abusos: psicológico, material e, muitas
vezes, sexual, contando com a impunidade que cerca políticos e
homens poderosos. Acabaram com a vida, os sonhos e o futuro de
tantas mulheres que a própria Olga já perdeu a conta. Ela percebe que
ingenuamente achou que as calúnias nunca chegariam tão longe,
muito menos a sua cidade natal. Sente o que sentiu muitas vezes em
Porto Alegre: vergonha. Ela se vê como uma peça de roupa rasgada e
suja. Não adianta dizer a verdade. A verdade é ínfima diante da mentira
saída da boca de um homem poderoso.
“O Heichma ligou? Ligou pro senhor?”, ela pergunta, acuada.
“O que tu faz com o deputado lá na capital não é problema meu.
Não me interessa como vocês vivem lá.”
“O que eu faço? O senhor me conhece desde criança, como pode
achar isso? O Heichma é um ser decrépito, asqueroso… podia ser meu
pai, meu avô… Como ousa falar essas coisas?” Olga não consegue se
controlar e grita.
“Tô nem aí pra ti e pros teus gritos, Olga. Me importo com o meu
filho. Tu fez coisa errada aqui em Dourado uma vez, tentou estragar a
vida do guri e da minha família, só eu sei o trabalho que tive pra cuidar
daquilo.”
Quer confrontá-lo lembrando que ela assumiu toda a culpa, como
ele exigiu na época. Que sofreu todas as consequências para não
envolver Tales. Que aquilo tudo continua doendo e que continua
suportando o que a vida dá e cobra, calada e sozinha. Sozinha, como
sempre. Mas não consegue. Na sua cabeça, giram cenas do passado.
Cenas dela e dos seus pais, arrasados, indo embora de Dourado de
madrugada, fugindo, expulsos da cidade. Volta a si quando escuta a
ordem de Enrico ecoar pelo corredor do hotel.
“Tu é a puta do Heichma, sim. Tem uma hora pra juntar as tuas
coisas e sair, ou eu mesmo te jogo na rua.”

Olga larga as pastas com os papéis da hidrelétrica no porta-malas do


carro. O vento forte faz a poeira bater no seu rosto e entrar nos olhos.
“Merda. Que mais falta…” Não termina a frase, uma mão agarra seu
braço e ela solta um berro.
“Calma, Olga”, a voz fala.
Ela abre um dos olhos com dificuldade. Vê Tales.
“Tu tá indo embora?” Olga não responde. Tales continua: “Por
quê?”.
“Não tenta, Tales. Todo mundo aqui me odeia. Larga o meu braço e
me deixa em paz.”
“Olga, para! Tá fazendo a mesma coisa que fez há doze anos.”
“Tô sentindo a mesma coisa que senti naquele dia, ou melhor, tô
sentindo algo ainda pior”, ela diz.
“Mas aquilo já passou.”
“Tu não entende. Nunca vai passar.”
“Por favor, não faz isso. Vamos conversar. Vamos resolver o que tiver
que resolver como adultos. Agora somos adultos e podemos…”
“Podemos o quê, Tales? Tu vai enfrentar o teu pai? Vai assumir o que
aconteceu quando a gente tinha dezessete anos?”
Tales não responde.
“Foi o que eu imaginei.” Olga sai de trás do carro. Tales a segue e a
abraça. Ela fica imóvel.
“Só não sai essa hora. Tem um temporal feio se armando. Não pega
estrada agora.”
Olga o empurra e entra no carro.
“Tu tá estragando as coisas de novo.”
“Boa sorte com a tua vida perfeita aqui em Dourado, Tales.”

Olga está na avenida das Viuvinhas, passa pela estátua de Sarampião.


Para o carro e desce.
“O que tu quer que eu faça? O que tu quer de mim? Que diga a
saudação idiota que a tua bisneta diz? Eu digo: Arrê, Sarampião.”
Ela se aproxima da estátua. Olha para cima e um relâmpago cruza
rasgando o céu. Encosta a mão no rosto de Sarampião. Uma sequência
de imagens invade sua mente: Enrico, a polícia, Tales, Heichma, seu
pai, sua mãe e, por fim, Chaya. Escuta o estrondo do trovão. A estátua
treme. Tira a mão dela. Corre de volta para o carro.
Na saída da cidade, vê a placa do lado direito: Parque Estadual do
Turvo — Unidade de Conservação de Proteção Integral — 5 Km. Liga a
seta e dobra.

Dez da noite. A ventania está mais intensa. Chaya está em fren­te à sede
do parque com Cláudio, Nestor e dois guardas-florestais — uma
mulher e um homem. Nestor usa uma tipoia no braço esquerdo. Os
galhos das árvores balançam com fúria. Corujas, grilos, cigarras, sapos,
gritam ao mesmo tempo. Chaya fala para todos escutarem:
“Temos que nos organizar. Sabemos que tem pelo menos dez novos
portos clandestinos só nas imediações do parque. E um número ainda
maior dessas merdas de balsas improvisadas. Vamos tocar fogo em
tudo.”
“Sem esperar a ajuda da brigada, né? Senão, lá vai meio ano.”
Cláudio está irritado. Em poucos dias viu seu parceiro de trabalho,
Nestor, ser ferido; agora é seu chefe, Ângelo, que quase morre. Ele
pode ser o próximo se não fizerem algo.
Um raio surge no horizonte. Alguns segundos depois, o som da
trovoada. No mesmo instante um carro com os faróis altos estaciona no
portão. O vigilante sai da guarita e avisa:
“Os faróis.”
A luz baixa. A porta do motorista se abre.
Os guardas observam um vulto se mover e ir para a frente do carro. É
Olga.
“Posso falar com a Chaya Sarampião, por favor?”
“O parque tá fechado”, o vigia responde.
Olga vê Chaya não muito distante.
“Dois minutos, Chaya”, Olga pede.
Chaya caminha contra o vento. Seus cabelos, que estão soltos, voam
para o alto. Ela manda abrir o portão e se aproxima de Olga. As duas
estão iluminadas apenas pela meia-luz do carro e pela pequena
lâmpada da lateral da guarita.
“Dois minutos. Tenho coisa séria aqui pra resolver.” Chaya cruza os
braços e abre um pouco as pernas, parece mais baixa do que é.
“Eu preciso da tua ajuda, por favor”, Olga diz. Chaya não responde.
“Preciso falar com ele”, Olga continua.
“Ele?”
“Tu sabe… Sarampião.” Olga aponta na direção da cidade. “Ele tem
que me perdoar.”
Chaya fica quieta. Ela poderia matar Olga naquele momento. Seu
corpo inteiro quer saltar sobre a jornalista, que se dá conta.
“Eu sei que parece absurdo. Mas é a única coisa que eu consigo
pensar em fazer agora”, Olga insiste.
“Não sei o que tu tá armando, mas juro que se tu vier aqui de
novo…”
“Eu acho que o Sarampião também iria querer isso. Tô aqui por
causa dele. Por favor.”
Chaya tenta raciocinar por alguns segundos. Se afasta pela lateral, do
lado contrário da guarita. Some no escuro. Volta com um punhado de
terra vermelha e coloca na mão da jornalista.
“Sente isso”, Chaya manda.
Olga observa a terra. Fica confusa. Esfrega na mão.
“Cheira.”
Olga aproxima a terra do nariz.
“Isso é tudo que tu vai ter dele. Agora some da minha frente.”
“Escuta: Sarampião fez eu vir aqui falar contigo”, Olga argumenta.
“Vou quebrar a tua…”
“Deixa eu falar, por favor. Desde que aconteceu o que aconteceu no
passado, desde que eu fiz aquelas coisas horríveis com a estátua dele, a
minha vida tem sido uma sucessão de erros que eu não consigo mais
consertar. Tô enjaulada numa infindável sequência de traumas.
Angústias, desgraças que só aumentam, e eu não consigo ser melhor,
nem maior… Na nossa época do colégio eu queria ser uma jornalista
engajada, que lutaria pela verdade, que denunciaria os crimes dos
poderosos. Mas voltando pra cá, pra essa terra, me dou conta de que
sou o completo oposto do que um dia eu sonhei ser.” Olga contém o
choro para manter o pouco de dignidade que lhe resta.
Chaya permanece fria.
“É preciso coragem pra enxergar a falta de esperança na própria vida
depois que se atravessa esse túnel”, Chaya diz.
“Então vai me ajudar?”
“Tu foi por esse caminho sozinha, vai ter que sair sozinha também.”
“Se não por mim, então pelo Sarampião.”
“Tu ainda te lembra dessa terra vermelha? Desse cheiro?”, Chaya
pergunta.
Olga nega, envergonhada.
“Essa terra é ele, isso aqui tudo é ele.” Chaya aponta para a imensa
floresta do parque do Turvo.
“Deixa eu entrar no parque?”
“Os teus minutos acabaram.” Chaya dá as costas para Olga e
caminha na direção da sede.
“Posso ajudar a salvar esse lugar. Sei de coisas sobre a hidrelétrica
Gran Roncador.” A jornalista faz sua última jogada.
Chaya para de andar.
“Tem muita coisa errada. O Heichma tá envolvido e gente poderosa
aqui dessa cidade também”, Olga continua.
“Tu acha que não sei disso. Quero nomes. Quem daqui tá
envolvido?”
Outro raio surge no horizonte.
“Preciso de provas concretas antes de denunciar. Falar por falar não
vai te ajudar. Nem me ajudar… Eu posso conseguir essas provas.”
“Se isso for verdade, quem sabe o Sarampião tenha te mandado aqui
mesmo.”
Começa a chover, uns pingos grossos e pesados. Ambas os sentem
bater e molhar o rosto e o corpo.
“Por que que eu devo acreditar em ti?”, Chaya pergunta.
“Por tudo que acabei de falar. E porque eu tenho muitos motivos pra
querer acabar com cada um desses filhos da puta que tão envolvidos
nisso.”
Olga corre até a caminhonete e volta com o celular na mão.
“Me dá o teu número? Vou pra capital. O que eu conseguir no
gabinete, ou fora dele, vou trazer pra cá e deixar contigo. Então tu me
mostra como faço pra encontrar com o Sarampião.”
“Tá arriscando mais a perder do que a ganhar, entende isso?”, Chaya
pergunta.
“Não tenho mais nada a perder.”
Corpo lavado

Quase meia-noite. Preta está encharcada. Manca andando no escuro


pela beira do rio Uruguai. A chuva fica mais forte. Ela observa o céu e
vê o clarão de um raio e depois o breu. Na perna direita há um corte
grande; ela se chocou contra uma rocha quando tentava sair da
correnteza do rio, horas atrás. Está com dor e começa a sentir frio, mas
não para de caminhar. Passa por arbustos, pedras, cascalhos. Escorrega.
Cai. Se levanta. Sente o corte rasgar sua pele. Morde os lábios para não
gritar. Dobra à esquerda. Atravessa o mato e se aproxima dos Pies
Rubros. Sob a chuva forte, vê as luzes das lamparinas, das velas das
casas e, ao fundo, o grande telheiro antigo, com chão batido, e as
pessoas do grupo reunidas. Caminha até lá. Há uma fogueira na
entrada. Para debaixo do teto de zinco. Duas mulheres se afastam. Ela
enxerga o corpo de um menino de doze anos, estirado em cima das
tábuas. Percebe o buraco aberto no peito do guri. O sangue escorrido
está seco.
Sem que ela note, uma menininha de seis anos se aproxima e pega
sua mão. Ela se assusta. A criança sorri e lhe entrega um balde com
água e um pano branco. Com serenidade, pergunta:
“Vamos, Preta?”
Pega o balde e o pano e vai até o menino morto na mesa. O sábado
ainda não chegou ao fim.
1996
terra vermelha — pés vermelhos
Reza que não chega

Preta, dezessete anos, observa o túmulo de cimento deteriorado,


coberto por uma camada de musgo esverdeada, no fundo do cemitério
— que fica na parte alta de uma comunidade rural em Corredera
Moconá. Usa minissaia de um tecido imitando couro, botas de salto
plataforma, jaqueta de veludo e meia-calça preta. Tem os olhos
fortemente maquiados. Observa as palavras quase apagadas no concreto
da lápide: Roscato Sarampião — *1927 † 1958. Não muito longe de
onde Preta está, o coveiro avisa que terminou. Ao lado dele está sua
avó, Tédi, de sessenta e sete anos. Caminha até os dois. Eles estão
diante de uma cova recém-aberta. Tira três notas de vinte reais do bolso
da saia e entrega para o homem.
“Que en paz descanse tu madre”, ele diz.
Ela não responde. Pega uma caneta preta, do tipo marcador de texto,
e escreve numa cruz de madeira presa ao chão: Lenara Sarampião.
“A senhora disse que não viria”, Preta fala.
“Apesar de tudo, era minha filha”, Tédi responde.
“Já que lembrou que era sua filha, poderia dizer umas pa­lavras?”
“Ela teve escolha. Todas nós temos escolhas, mesmo a mais fodida
das mulheres. Ela escolheu a agulha e aquela bosta de pó em vez dos
Pies Rubros, da sua família.” Tédi lambe a ponta dos dedos indicador e
médio, segura a cabeça da neta e esfrega os olhos dela para tirar a
maquiagem. “Isso aqui não combina com a gente. Quer que te
respeitem no nosso grupo? Não fica andando feito uma palhaça.”
Tédi pega a neta pela mão e saem. Do lado de fora do cemitério,
Preta sente um vento passar pelas suas costas. Ela se vira. Não vê
ninguém.
“Que foi, Preta?”
“O vento.”
“De novo com essa merda. Tu e a tua mãe. O Sarampião morreu faz
décadas, ele não foi tão bom assim pra ter virado santo em forma de
vento. Esquece ele e esse sobrenome de merda. E vê se cresce. Ficar
acreditando em bobagem…” Tédi toma a frente e caminha na direção
do carro que as espera.
Preta estende um dos braços e abre as mãos. Outro vento quente
cruza por entre seus dedos. Ela sorri. Fala baixinho para que sua avó
Tédi não ouça:
“Arrê, Sarampião!”
O peso de sobreviver

Manhã de sábado. Praça do Turvo. A avenida das Viuvinhas está


fechada para o trânsito de carros. Uma multidão ocupa os dois lados da
rua. A banda da cidade toca perto do chafariz que imita o salto do
Yucumã e, junto dele, dois panos vermelhos cobrem algo grande. A
música acaba e a comunidade aplaude.
No palanque improvisado estão Enrico Romano, cinquenta anos, e
Tales, seu filho de seis anos, e mais cinco autoridades e políticos locais.
Armin Sarampião, sessenta e quatro anos, e Chaya Sarampião, seis
anos, estão bem à frente, na plateia. Enrico pega o microfone.
“Como presidente da Associação dos Comerciários de Dourado,
quero dizer que é com muita satisfação que nós, junto com a prefeitura,
depois de anos em completo abandono, entregamos pra vocês,
moradores do município, a nossa tão querida praça do Turvo
revitalizada.” Aplausos. Ele continua: “Também teremos uma
surpresa”. Aponta para os panos vermelhos.
Chaya sorri e acena para Enrico e Tales no palco. Só Enrico acena
de volta. Armin fica mexido ao ver a neta tão feliz e, em silêncio, reza
para que essa felicidade dure, que as tragédias, que se abatem sobre a
família Sarampião há décadas, tenham um fim na geração dela. Há
alguns anos, a mulher de Armin, Idalina, foi levada por uma hepatite
tardiamente diagnosticada. Poucos anos antes, Amara, a mãe de Chaya
e única filha de Armin, veio a falecer por um erro médico durante o
parto da menina.
Enrico volta a falar:
“Seu Armin e a pequena Chaya, o filho e a bisneta do nosso grande
Sarampião. Por favor, se aproximem um pouco mais aqui. Podem
chegar junto. Tenho certeza de que vocês vão se emocionar com o que
preparamos.” Enrico faz sinal para que a banda volte a tocar. Armin não
sai do lugar, Chaya pula e bate as mãozinhas. Enrico puxa o pano
vermelho, mostrando uma estátua. Uma estátua de Sarampião feita de
concreto, em que ele aparece com os cabelos soltos, na altura do
pescoço, com a camisa aberta, um cantil pendurado à cintura e uma
espingarda no ombro.
Chaya corre e abraça a estátua.
“É o bisa? Vovô, é ele mesmo?”, ela pergunta.
Armin confirma com a cabeça.
Enrico puxa o outro pano e mostra uma estátua menor, de madeira,
de uma onça com os dentes à mostra. Da multidão, gritos, burburinho
e em seguida risos. Alguém fala:
“É a Boca Braba.”
Armin olha enfurecido para a estátua da onça. Encara Enrico. Pega
Chaya pela mão.
“Precisamos ir”, Armin avisa.
“Não quero!”
“Prometo que amanhã voltamos e tu fica a tarde toda aqui
brincando.”
“Tá bem.” Ela dá um beijo no joelho da estátua de Sarampião, na
altura que alcança. “Até amanhã, bisa.”
Armin e Chaya se afastam. Enrico, aflito, observa os dois saírem da
cerimônia.
Chaya anda ao lado do avô e reza baixinho:
“Arrê, Sarampião
Arrê, Arrê
Caboclo, Arrê
Protege o Turvo
Chão altar de tudo.”
“Onde tu aprendeu esses versos?”, Armin pergunta, intrigado.
“Lugar nenhum.”
“Chaya… quem te ensinou?”
Ela ri.
“Tá. Foi o bisa. Foi ele.”
Ela ergue as mãos e pede colo. Armin a pega. A menina o abraça e
beija seu rosto. Ele faz o mesmo. A banda segue tocando ao fundo.

No meio da tarde Preta atravessa o Uruguai num pequeno barco a


remo conduzido por um homem.
“Espera aqui. Volto em duas ou três horas”, ela ordena.
Chega ao centro da cidade de Dourado num táxi. Pede para o
motorista entrar no primeiro bairro residencial, à esquerda, depois de
passar a avenida das Viuvinhas. Para no calçamento. Paga o homem e
desce. Anda duas quadras, até uma casa com o terreno grande, que vai
até a esquina da rua lateral. Passa pelo gramado, até os fundos. Entra
numa enorme estufa de madeira e plástico transparente.
Há uma quantidade gigantesca de plantas, algumas penduradas por
ganchos, outras nas mesas, nos armários, nas prateleiras. Anda cautelosa
até uma bancada. Pega dois potes do chão, afasta-os para o lado e se
acomoda, fica escondida atrás das folhas dos arbustos.
Preta ainda insiste em ver Chaya sempre que pode, mesmo que Tédi
a proíba por ódio a Armin, ódio que fez questão de passar para a neta. A
avó sempre deixou muito claro que seu cunhado, Armin, foi o
responsável por tudo de ruim que aconteceu com Roscato, e
consequentemente, com ela e Lenara. Se Tédi não tivesse fundado os
Pies Rubros na época, nem ela nem Preta teriam um futuro. Tédi
sempre repete: “Este é o passado que nos ficou de herança e teremos
que sobreviver, apesar dele”.
Depois do parque do Turvo, a estufa é o lugar favorito de Chaya. No
auge da sua credulidade de menina de seis anos, diz para Preta que
Sarampião só sai do parque se for para ir até lá. Preta nunca duvidou
dela, apesar de saber que Armin foi quem construiu e quem mantém
aquele lugar, com cada planta catalogada com os nomes científicos e
populares e com suas funções medicinais. Preta já decorou muita coisa
e, também por instinto, aprendeu a misturar uma planta com a outra e
a fazer chás e remédios caseiros para os Pies Rubros. Acredita que este é
um dom que Sarampião deixou para ela.
A porta da estufa se abre e bate com violência. Ela se encolhe
debaixo da bancada e põe um dos vasos à sua frente. Escuta passos se
aproximando, até que uma pequena mão puxa as folhas.
“Oi, Preta!” Chaya sorri.
Preta sai de onde está e a abraça. Chaya, fascinada pela prima mais
velha, lhe entrega um prato com uma fatia de pão com chimia de
amora e nata e um copo com suco de uva.
“Fiz pra ti.”
Preta pega o copo de suco e bebe um gole. Dá uma mordida no pão.
“Tá muito bom. Obrigada.”
As duas se observam com carinho.
“Tu chorou?”, Chaya pergunta.
“Já passou, pequena.”
“Eu posso te ensinar, prima.”
“Ensinar o quê?”
“Como é não ter mãe.”
Chaya dá um beijo no rosto de Preta.
“Vai ficar tudo bem”, Chaya afirma.
Elas escutam uma voz:
“De novo?”
Chaya corre para abraçar o avô.
“O que o vovô falou sobre não vir aqui sozinha?”, Armin fala para
Chaya.
“Mas eu não tô sozinha, tô com a prima.”
Ele encara Preta, que tenta, mas não consegue esconder os olhos
aguados.
“Tua mãe descansou, Preta”, Armin diz.
“Ela não descansou. Naquele lugar que ela tá não tem descanso. É
melhor eu ir…”
Armin observa aquela jovem triste e ao mesmo tempo exalando raiva.
“Tu já tá quase fazendo dezoito anos. Podemos arrumar um lugar pra
ti trabalhar aqui na cidade ou na região. Tem muita vaga em casa de
família, em comércio… Não precisa ficar lá com aquela gente.”
“Aquela gente? Aquela gente é a minha família, velho desgraçado. O
que mais tu quer que eu perca nesse mundo?” Preta tenta passar por ele
para ir embora.
Armin a segura pelo braço.
“Tu não tem jeito. Não fala assim na frente dela”, Armin pede.
“Larga o meu braço.”
Chaya, assustada, se posta entre os dois, separando-os.
“Parem!”
“Vai acabar como a tua mãe”, Armin fala.
“A mãe acabou daquele jeito por culpa tua.”
“Não, Preta, ela acabou daquele jeito porque a Tédi e o Roscato
foram pais de merda.”
“Filho da puta! Eu te mato se falar do meu vô e da minha vó de
novo. Te mato com uma bala bem aqui no meio da testa.” Ela crava a
unha na testa de Armin.
Armin desfere um tapa no rosto da sobrinha-neta. Preta perde o
equilíbrio, mas se recompõe e parte para cima dele, que a empurra
com violência. Ela cai sobre uma mesa com vasos de plantas.
“Se chegar perto da Chaya de novo, eu chamo o conselho tutelar pra
ti e a polícia pra Tédi. Juro que faço isso”, Armin avisa.
“Para, vô. Para, Preta”, Chaya implora.
Preta atira um vaso em Armin. Acerta a cabeça, e ele tomba no chão,
atordoado. Impassível, ela se aproxima do tio-avô. Pega outro vaso e o
deixa cair sobre o rosto do homem caído. Chaya grita. O sangue
escorre pelo piso. Preta foge.
Enrico surge no pátio da casa. Quer se desculpar com Armin. Não
imaginou que alguém pudesse ligar aquela onça de madeira à Boca
Braba, muito menos que aquilo pudesse ofendê-lo. Preta cruza com ele
e, antes que Enrico consiga perguntar algo a ela, escuta Chaya. Corre
até a estufa. A menina está ajoelhada em cima da poça de sangue,
agarrada a um dos braços do avô.
“Acorda, vovô. Acorda! Acorda!”
fogo
Uma vitória encomendada

Alguns dias depois do incidente que deixou o chefe baleado, Chaya


entra no hospital para visitá-lo. Passa pela recepção, sobe as escadas e,
no corredor, para diante da porta do quarto número 23, ao lado da
enfermaria. Sente um cheiro peculiar, que lhe traz a sensação de estar
de volta a um lugar desconfortável, imersa num sentimento penoso.
Lembra-se do avô, do choro do homem velho parecendo uma criança,
num sentimento só, sentado na cadeira ao lado da cama. Da cabeça
enfaixada. Da urina escura de sangue empoçada no piso. Ela reprime a
mágoa e a dor familiar que volta a sentir naquele momento. Avança até
o quarto 46. Bate. Abre.
“Bom dia!”
Ângelo está na cama. Dorme. Há um aparelho de oxigênio do lado
direito ligado a tubos introduzidos no seu nariz. Do lado esquerdo, o
soro pinga moroso. Cláudio e Nestor, com o braço ainda suspenso pela
tipoia, estão em pé, perto da janela. A mulher que está sentada na
poltrona, logo na entrada, ao lado de uma pequena mesa, se levanta
para receber Chaya.
“Bom dia, eu sou a Dinorá, esposa do Ângelo.” Estende a mão para
Chaya.
“Chaya. Chaya Sarampião. Colega de trabalho.”
“Obrigada por vir.”
Ângelo acorda e abre os olhos com dificuldade. Cláudio e Nestor
percebem, aproximam-se.
“Vou avisar a enfermeira que ele acordou. Fiquem à vontade.”
Dinorá caminha até a porta, antes de sair olha com preocupação para
Ângelo.
“Dessa vez achei que ia…”, Ângelo fala com esforço e aponta para o
ferimento causado pelo tiro próximo ao peito, abaixo do ombro direito.
“Deu um susto na gente, senhor”, Cláudio diz.
“É. Não tive a sorte do Nestor.”
Nestor mostra um sorriso com os lábios fechados e se vira para a
vidraça que dá para o pátio e o estacionamento do hospital, tentando
não demonstrar o ódio que sente por ver um colega naquele estado.
Chaya não tira os olhos dos tubos de oxigênio presos ao nariz de
Ângelo. Ele, imóvel na cama, com o tronco coberto por um curativo
enorme, olheiras profundas, lábios com feridas. Frágil, ela pensa. Não
se parece com o homem implacável, com o chefe irritado, que nunca
fala brando com ninguém, que não fazia questão de esconder a ira
acumulada durante aqueles meses naquele trabalho, naquele lugar,
que, Chaya sabia, ele detestava. Bateram de frente um com o outro
desde a primeira saída de campo que fizeram no parque. Em nenhum
momento disputaram poder, apenas território, como Chaya dizia. E no
fundo, era isso que ele mais admirava e respeitava nela. Ela entende
aquela unidade de conservação, seus frequentadores, sua fauna e sua
flora, como ninguém. Ângelo precisa dela para que o trabalho dele saia
direito. Na única vez que fez algo sem consultar Chaya, por estar
furioso com a subordinada, que deixara fugir o adolescente castelhano
sem ao menos consultá-lo, o resultado foi aquele tiro.
Ângelo gesticula para que Chaya se aproxime. Ela não reage.
Cláudio toca de leve nas suas costas e a impele com delicadeza para
que vá até o chefe.
“Chamei vocês aqui porque vou levar um bom tempo pra me
recuperar”, Ângelo fala. “Preciso deixar alguém no meu lugar”, passa a
mão na boca seca. Tenta pegar o copo com água e canudo na mesa
auxiliar no pé da cama. Não consegue.
Cláudio entrega o copo para ele, que bebe dois goles com
dificuldade.
“Chaya, tu vai ficar à frente do parque como interina”, Ângelo avisa.
Cláudio olha perplexo para Ângelo, depois para Chaya.
“Não quero que questionem minha decisão”, Ângelo ordena com a
voz mais forte que consegue.
Chaya percebe que há algo no olhar de Ângelo que vai além da dor
que está sentindo por causa do ferimento. Há medo.
“Já mandei comunicar à Sema. Chaya, tu sabe o que fazer, soldada.
Homens, sigam as ordens dela sem contestar.”
Os três ficam parados de pé, braços atrás das costas, pernas abertas,
cabeça erguida.
“Estão dispensados.”
“Sim, senhor”, Nestor e Cláudio falam juntos.
Os dois saem. Chaya encara o assoalho por um par de segundos. Não
diz nada. Então, vira-se para ir embora. Na porta, ela se detém.
“Melhoras, chefe.”
“Não faz nenhuma idiotice muito grande”, Ângelo fala.
“Vou tentar.” Ela fecha a porta.
No corredor, para de novo em frente ao quarto 23. Num impulso,
força a maçaneta da porta. A cama de ferro ainda está do lado direito
do cômodo. Uma pequena pia ao fundo e, ao lado, um armário de
porta única e gavetas. A luz do sol da manhã chega tímida pela
veneziana. Do lado esquerdo, uma cadeira com o assento de madeira.
Ela se senta. Fica em silêncio.
Queria tanto que o senhor estivesse aqui. Estaria orgulhoso agora. Sua
neta, neta de ex-leiteiro, bisneta de Sarampião: chefe do parque do Turvo.
Chefe interina, mas chefe. Desculpa não ter voltado a este lugar, nem ter
voltado ao cemitério. É que a nossa despedida foi tão difícil, vô. Não
queria deixar o senhor partir, coisa de criança, que ainda não entende a
vida, muito menos a morte. Aquele seu choro. Eu não soube lidar. Me
sentia culpada. Uma sensação de fragilidade, de inocência que acabava
se perdendo. Saí do quarto e me escondi. Demorei anos pra entender que
o seu choro não era de dor, era de partida, porque o senhor sabia que
precisava partir e não queria me deixar sozinha. Sozinha neste mundo.
Sozinha como a Preta ficou. Vô Armin, saiba que eu tô fazendo de tudo
pra manter o lugar do Sarampião protegido. Claro que o senhor sabe.
Seja onde estiver, sabe.
Se levanta. Olha para as paredes do quarto. Sente as lágrimas que
chegam, incontroláveis. Respira fundo, segura firme aquela sensação de
incapacidade que sempre acomete seus pensamentos quando passa por
aquele hospital. Limpa o rosto molhado. Sai do quarto. Desce as
escadas. Chega à recepção e esbarra com Enrico Romano.
Ele percebe a melancolia no seu rosto.
“Chaya, minha querida.”
“Bom dia.” Ela tenta disfarçar.
“Como tá o tenente?”
“Acordou.”
“Foi uma tragédia.” Ele a abraça com carinho.
“Por mais que a gente tente, nunca tá preparada de verdade pra uma
situação dessas.”
“Tu tem razão. Tu não precisa passar por isso sozinha. Vai lá pra
casa. Fica lá comigo e com o Tales.”
Ela se solta dele e fala:
“Tenho que ir pro plantão no parque. Não tem outra pessoa.”
“Mas vão mandar mais gente pra ajudar, imagino. Ele deve ficar
afastado por um tempo, né?”
“Sim.”
“Já sabem quem vai ficar no lugar dele?”
“Eu… Eu como interina.”
Enrico abre um sorriso.
“Eu tô muito orgulhoso. Muito”, ele diz. “Não há pessoa melhor,
mais preparada, mais competente do que tu pra esse cargo, filha.”
“Me chama de Chaya. Só de Chaya.”
“Por favor! Pelo menos em momentos como esse me deixa te chamar
de filha. Filha! O teu vô Armin estaria comemorando agora.”
O rosto de Chaya se fecha. Ela se dirige para a saída.
Enrico estranha.
“Chaya?”
“Desculpa. Tenho muita coisa pra fazer lá no parque.”

Enrico sobe as escadas, anda pelos corredores, para em frente ao quarto


46. Bate na porta e entra.
Ângelo não se surpreende com sua chegada.
“Bom dia, homem?”, Enrico diz.
“Tá feito”, Ângelo avisa com a voz baixa.
Enrico se aproxima da cama. Encosta no policial pálido,
machucado, vulnerável. Pela gravidade do acontecido, quem sabe
nunca mais volte a fazer trabalho de campo.
Dinorá surge.
“O que tu tá fazendo aqui?”, ela pergunta.
“Vim desejar melhoras.”
Enrico encara Ângelo, depois Dinorá, e sai.
Perto demais do problema, longe demais
da solução

Vinte e nove de outubro. Noite de terça-feira. Olga e Heichma estão


em um restaurante. Ele não tira os olhos dos peitos dela, e indiferente
às conversas, aos risos, aos sons de talheres contra os pratos, Heichma
mastiga de boca aberta um pedaço de picanha malpassada. Em
seguida, bebe vinho tinto da taça suja da gordura que tem em mãos.
Olga observa o próprio prato servido e ainda intacto.
O garçom se aproxima.
“Meu amigo, agora traz uma garrafa daquele uruguaio”, Heichma
diz.
O garçom concorda e sai.
Com a ponta do sapato, Heichma cutuca a canela de Olga por baixo
da mesa. Ela olha para aquela figura intragável. Sua única reação é
afastar a cadeira.
“Então o presidente da tve não deu data certa?”, ela pergunta.
“Já te disse: te acalma, mulher. Tá sempre querendo dar um passo
maior que as pernas. Não adianta me atropelar. Se tu te esforçasse
mais…”, fala e volta a olhar para os peitos de Olga, deixando-se
reconhecer na perversão por trás da fala. Bebe o resto do vinho. Solta
um arroto. Pega a garrafa com o que resta do líquido e enche a taça
dela. Coloca o casco vazio de lado.
“Bebe”, ele manda.
Ela dá um gole pequeno.
“Faz dois anos que passei no concurso, já chamaram vários outros
cargos pra trabalhar na tve, só falta o meu de repórter, e nada de o cara
liberar meu nome pra sair no diário oficial. Parece que ele tá brincando
com o senhor, tirando com a sua cara, já que o senhor diz que pediu
isso pra ele tantas e tantas vezes. Não concorda que tá meio estranho?”
“Porra!”, ele grita.
As pessoas da mesa ao lado se viram para eles.
“Não precisa gritar.”
Ele abaixa o tom: “Tu tá falando bobagem. Acha que é fácil? Já disse
que ele me deve. Muita gente do partido me deve ­favor, ele ainda mais.
É questão de meses. Confia no taco do teu deputado aqui, Olguinha”,
fala e esfrega o sapato na perna dela, machucando sua canela. Ela o
chuta e se afasta ainda mais.
“Não me foge”, Heichma fala rindo, imitando um sotaque do
interior.
O garçom chega com outra garrafa de vinho. Antes de abri-la, mostra
o rótulo ao deputado, que coloca os óculos e lê concentrado. No
mesmo instante, Olga pega sua taça, discretamente, e joga o líquido
dentro de um vaso de plantas ao lado da mesa. O garçom vê, mas não
esboça nenhuma reação. Ele saca a rolha e serve os dois.
“Vou precisar ficar com o meu salário integral este mês”, Olga diz.
“Não quero falar sobre isso aqui.”
“Na verdade, preciso receber o salário integral até o fim do ano.”
“Tu sabe que não dá.” Ele cerra os dentes pequenos e escuros, depois
solta um bafo quente com cheiro de morrinha.
“São só poucos meses. Estou com as parcelas do carro novo
atrasadas.”
“O teu pai e a tua mãe têm aposentadorias boas. Pede pra eles.”
Olga sente suas mãos e pernas tremerem e as costas e o tórax
queimarem.
“Quer que eu peça dinheiro pros meus pais porque só posso ficar
com metade do meu salário, do salário que tá na minha folha de
pagamento? Já que a outra metade eu tenho que sacar e dar na tua
mão. O Senna fica com o salário todo dele, e isso que aquele homem
tá lá faz menos tempo que eu.”
“Tá maluca? Tu não dá nada na minha mão. Que que deu em ti? Por
que quer falar disso agora? Aqui em público? Tu tá querendo o que
com isso?” Ele vira o rosto para os lados, desconfiado. “Tamo comendo
carne boa, tomando vinho caro. Não estraga.” Heichma pega na mão
de Olga, ela tenta se desvencilhar, mas ele a segura com força.
“Se bobear, é a parte do meu salário que vai pagar essa conta aqui”,
ela o afronta e continua tentando se soltar.
Heichma larga sua mão e bate com o punho fechado na mesa.
“É por isso que tu nunca vai conseguir nada na vida. Nada!”, ele fala.
Ela o encara, mas não responde.
“Tu é pavio curto, impaciente e burra. Três coisas que a maioria das
mulheres por aí são. Algumas têm a sorte de conseguir um bom
homem pra consertar elas. Eu queria te ajudar sendo esse homem, mas
tu não deixa, não quer, porque é burra. Acha que vai ser jovem e bonita
pra sempre?”
Olga sente o coração acelerar. Se tivesse coragem, pegaria uma faca
e enfiaria no pescoço dele ali mesmo. Vê as pessoas das mesas próximas
os observando. Cochichando. Precisa se recompor.
“Vou ao banheiro”, Olga diz.
“Espera”, ele diminui o tom da voz. “Tá bem. Vou falar com o
Senna. Mas tu para com esses assuntos e nós vamos dar umas risadas e
beber vinho bom até fechar esse restaurante. Combinado?”
Heichma serve mais vinho e propõe um brinde.
“Ao santo dinheiro. Que ajuda e atrapalha na mesma proporção.”
Olga espera um pouco, ergue sua taça e bebe.
“Se a Gran Roncador der certo lá na região de Dourado, vai dar
tanto dinheiro, mas tanto dinheiro, que eu pago todas as prestações do
teu carro e depois nós vamos juntos viajar por toda a Europa. E não
vem inventar desculpas e dizer que não”, ele fala.
Olga sente o vinho descer ácido. Ela regurgita, mas engole de volta.
“Essa hidrelétrica parece ser um rio de dinheiro mesmo.” Alinha seu
casaco e joga os cabelos para trás.
“Maior que o rio Uruguai. A Gran Roncador vai dar dinheiro pra
mim, pros empresários, praqueles políticos de merda lá de Brasília, da
Argentina e pras nossas próximas gerações”, ele fala enrolando as
palavras, já embriagado.
“Eu me pergunto: como fazem pra uma obra dessas ter tanto
dinheiro sobrando?”
“Agora sim, viu?! A mulher burra tentando aprender. É assim como
os salários de vocês. Uma parte vai pro gabinete, não é?! Uma
contribuição, uma retribuição, por tudo que fiz e faço por cada um de
vocês. A mesma coisa acontece com quem vai construir a hidrelétrica”,
ele fala.
“Mas licitação não é a mesma coisa que os salários dos cargos de
confiança”, Olga dá corda, quer que ele continue.
“Não. É muito maior. E eles vão me dar uma parte, um pagamento
por ter aberto a torneira do dinheiro público pra eles.”
“Parabéns, deputado Heichma. O senhor é muito esperto.”
Ele tenta passar a mão no cabelo de Olga, que joga o corpo para trás,
impedindo que ele chegue perto. Heichma ri, acha graça, segue vendo
aquilo como um jogo. Olga pega sua bolsa que está na cadeira ao lado.
“Eu preciso realmente ir ao banheiro.”
“Pra que levar a bolsa?”
Olga tira uma embalagem de absorvente do tipo interno de dentro
da bolsa.
“Menstruada, deputado”, fala alto.
“Não fala alto sobre essas coisas. Parece minha mulher. Pelo amor de
Deus, mantém a compostura.”
Olga sente os dedos apertarem o absorvente. Caminha na direção do
banheiro. Entra. Tranca a porta e pega o celular do bolso interno do
casaco. No visor aparece o gravador ainda ligado. Aperta em pause e
depois em salvar. Liga o play e escuta alguns segundos para ter certeza
de que gravou e de que a qualidade do som está boa. Abre a porta do
banheiro e, antes de sair, se certifica de que Heichma está distraído,
que não perceberá quando ela caminhar para o lado oposto ao dele. De
cabeça baixa, passa por entre a parede e as mesas do fundo. Atravessa a
porta da cozinha. Os funcionários estranham. Ela pergunta onde fica a
saída. A única mulher entre eles aponta para uma porta cinza. Olga
agradece. Passa pela porta, que já estava entreaberta. Então corre o
mais rápido que pode. Some na escuridão da rua deserta.
No dia seguinte, às sete e meia da manhã, Olga é a primeira a chegar
ao gabinete parlamentar. Tranca a porta, deixa a chave a meia-volta, o
que dificulta a abertura para quem vem de fora, porque só forçando é
que a fechadura destrava. Larga a bolsa e o casaco sobre a mesa.
Acende um cigarro. Vai até a saleta de Senna, abre o armário, mexe em
caixas, pastas e papéis, procura o caderno do controle contábil que ele
guarda lá. Com o cigarro preso nos lábios, senta-se na cadeira, olha
com atenção a escrivaninha, tenta abrir as gavetas da lateral esquerda.
Fechadas. Tenta as da direita. Fechadas. Escuta a fechadura da porta da
frente sendo forçada até a porta se abrir. Levanta. Mesmo com a
estratégia que lhe garantiu um par de segundos de vantagem, está
assustada. Tira o cigarro da boca. Senna surge.
“Bom dia!”, ele diz, desconfiado.
“Bom dia. Caiu da cama?” Olga traga novamente o cigarro.
Ela vai até a janela e abre. Um vento gelado invade o recinto.
“O que tu tá fazendo aqui?”, ele pergunta.
“Vim no fumódromo, ué!”
Senna não gosta da resposta, mesmo sendo ele a pessoa que apelidou
a sala dele assim.
“O que tu tá fazendo aqui na Assembleia tão cedo?”
“Só adiantar umas coisas. Quero sair antes das quatro hoje.”
Ela apaga o resto do cigarro no cinzeiro que está na mesa à sua
frente.
“Tu ainda não repassou o dinheiro do mês passado”, Senna avisa.
“Falei com o deputado ontem.”
“E eu falei com o deputado hoje.”
Olga se detém. Fica em silêncio.
“Ok. Vou fazer a transferência.”
“Tá querendo inventar moda? Tu sabe que é em dinheiro vivo e
dentro de um envelope.”
“Puta que pariu, não facilita mesmo. Na hora do almoço vou lá pra
fila do banco fazer essa merda.” Olga sai da sala.

Meio-dia. Só estão no gabinete Olga, Senna e Ana Paula. Senna sai da


sua sala e passa pela mesa da secretária avisando que está indo almoçar.
“O deputado não vem hoje?”, Olga pergunta.
“Audiência fora”, Senna responde.
Olga sabe que é mentira. Ela tem acesso à agenda de Heich­ma. Sabe
que o fato de ele não aparecer é por outro motivo. Deve ter bebido até
dormir sentado na mesa do restaurante, como já fez tantas vezes. Ela
entra na sala de Senna e encosta a porta. No ímpeto de quem não está
mais medindo nenhuma das consequências, pega uma chave de fenda
de dentro de uma caixa de ferramentas dada de presente ao deputado
por um atacadista famoso no estado, e que o chefe de gabinete guarda
dentro do armário para alguma emergência. Usa toda a sua força e
arromba uma das gavetas da escrivaninha. Percebe que destruiu o
móvel. Não terá como esconder aquilo. Melhor ser rápida, antes que
Senna volte. Encontra o caderno com todas as rachadinhas, os repasses
de salários dos funcionários, nos últimos quatro anos. Há nomes de
gente que ela não tem ideia de quem seja. Funcionários fantasmas.
Pega o celular. Tira fotos. Nas últimas páginas do caderno: nomes de
empresários, datas, locais e valores. Uma lista à parte que se segue à
página onde está escrito: “Brasília — Ministérios”, e as siglas de
partidos que compõem o atual governo federal.
Ela fotografa tudo. Sai rapidamente de lá e se depara com Ana Paula.
“Tu não tá vendo nada.”
Vai para a sala de Heichma e, antes de fechar a porta, paralisa. Se
pergunta o que está fazendo e o que fará se alguém aparecer e
surpreendê-la pegando, não, roubando, aquelas provas? Volta para a
secretária:
“Ana Paula, preciso da tua ajuda. Por favor. Me avisa se alguém tiver
chegando? Qualquer um deles.”
Ana Paula não se mexe.
“Ana Paula”, Olga grita, “eles vão me matar se me pegarem aqui
dentro. Não no sentido figurado. Tu entende?”
A secretária move os lábios e diz baixinho: “Sim”.
Olga fecha a porta e repete para si mesma: “Eles vão me matar. O
que que eu tô fazendo? Eles vão me matar”. Uma sirene imaginária
ecoa dentro dela. Não pode entrar em pânico. Não pode mais recuar.
Precisa pensar rápido. Vai direto para o cofre. Tenta uma senha. Nada.
Tenta de novo. Nada. Vai até o notebook particular, que Heichma
esqueceu em cima da mesa na noite anterior, apressado, antes de sair
para encontrá-la no restaurante. Liga. Digita a mesma senha. Erro.
Tenta o número dele como candidato. A tela abre. Ela busca por
arquivos que o incriminem, mas não acha nada. Suas mãos tremem.
Suas pernas tremem. Naquele momento, seu corpo inteiro está tomado
de ansiedade e medo.
“Calma, Olga. Calma”, diz para si mesma.
Volta para o cofre. Última tentativa. Usa a mesma senha do
notebook. Funciona.
“Como é que esse asno virou deputado?”
Dentro do cofre, ela encontra pré-contratos com a logo e o nome do
Consórcio Binacional Gran Roncador e de uma construtora chamada
samdd, com sede em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre.
Escrito a lápis, ao lado de cada etapa da futura construção, estão os
nomes de políticos e empresários de Dourado, incluindo Enrico
Romano, Maurício e Claudenir Ricci, também de Heichma e outros
políticos do Rio Grande do Sul e de Brasília, além de ministros do atual
governo federal, assim como números com valores em reais. Pega todos
eles para fotografar. É então que ela vê, ao fundo, um saco plástico com
um pen drive. Abre-o no computador do deputado. São diversas pastas
com arquivos e planilhas no Excel nomeadas “Gran Roncador”; nelas
estão os valores reais e os valores superfaturados de cada etapa da obra
e, ao lado, as porcentagens e os nomes dos beneficiários envolvidos.
Novamente os nomes de empresários e empresas nacionais, nomes de
políticos e assessores ligados ao governo federal e ao atual presidente da
República. Uma verdadeira bomba, Olga diz para si mesma. Ana Paula
surge.
“O Senna tá no corredor falando com o assessor de imprensa do
deputado Camargo”, avisa.
“Tô fodida! E ainda não consegui tirar fotos de tudo.”
“Vou dar um jeito.” Ela sai apressada.
Olga ainda precisa fotografar aqueles documentos. Não vai ter tempo
de enviar para si mesma os arquivos do pen drive, são muitos. Guarda-o
no bolso da calça. Tira fotos de toda a papelada e em seguida devolve
tudo ao mesmo lugar de onde tirou. Percebe, na lateral do cofre, um
envelope preto camuflado, escrito: EXTRATOS. Nele há vários extratos
bancários de duas contas-poupança de Senna e uma conta, de um
banco virtual, em nome de Alaíse Maria Heichma, esposa do deputado.
São os comprovantes de centenas de depósitos de até dois mil reais
feitos em dinheiro vivo nos últimos quatro anos.
Ana Paula reaparece. Fica num estranho silêncio, enquanto
mordisca o lábio inferior sem parar.
“Que foi? Cadê ele?”, Olga sussurra.
“Desceu na presidência. Eu disse que alguém de lá tinha ligado
avisando que uma pessoa de Brasília tava esperando o deputado. Ele foi
correndo pro elevador.”
Olga sorri para ela em cumplicidade.
“Obrigada. Falta pouco. Vou ser rápida aqui.”
A secretária volta para sua mesa. Pega uns papéis dobrados, sujos e
amassados da gaveta.
Olga fecha o cofre. Corre até sua mesa, pega a bolsa e o casaco.
Antes de sair, Ana Paula põe na mão dela os papéis.
“O que é isso?”, Olga estranha.
“São as faturas das contas telefônicas do deputado com os
demonstrativos das ligações realizadas e recebidas do celular particular
dele nos últimos meses.”
“Como tu tem isso?”
“Sabe…”
“Não sei, desembucha.”
“Ele pediu pra desabilitar a caixa-postal do telefone dele e os idiotas
da operadora habilitaram as faturas impressas.”
“O Heichma já viu?”
“Não mostrei, não sou louca de mostrar. Se for te ajudar nisso aí que
tu tá fazendo, usa. Também quero ver esse tarado nojento na cadeia”,
ela diz, como quem expele algo repugnante preso dentro de si.
Olga reconhece aquele olhar de asco e ira. Ela abraça Ana Paula.
“Eu vou acabar com o filho da puta. Te demite. Sai desse lugar
enquanto é tempo”, Olga fala andando apressada em direção à saída.
“Vou assistir de camarote, Olga. Só não me decepciona.”
Olga passa pelo corredor, pelos banheiros, dobra à direita, chega na
porta corta-chamas em frente aos elevadores de serviço, desce correndo
os nove andares de escadas.
Sangue de onça

Trinta de outubro. Início da tarde. Preta está em pé no centro do


gramado seco e ralo rodeado pelas casas e pelos contêineres que
formam o pequeno povoado dos Pies Rubros. Usa shorts, blusa regata
justa ao corpo, sem sutiã, e sandália rasteira de couro. Seus longos
cabelos pretos estão soltos, batendo no quadril. Na perna direita,
amarrado, o emplastro sobre o corte feito durante a batida policial no
Uruguai. Ao seu redor estão todas as pessoas do grupo: mulheres,
homens, idosos, adolescentes e crianças. León é o único que está mais
retirado, ao fundo, de cabeça baixa e braços cruzados.
“Matam a gente como se matassem porcos, como pragas que
incomodam, agora se a gente ataca, tenta se defender, somos chamados
de quê? De animais”, Preta vocifera. Caminha até uma mulher de
meia-idade, com o rosto abatido, os cabelos sujos amarrados por um
barbante, sentada num cepo de lenha debaixo de uma árvore, fugindo
do sol forte. Preta a ajuda a se levantar.
“Kerenne, já teve o seu tempo de luto. Mataram o menino dela e
tiraram o nosso sustento. O dinheiro virou sangue. E por quê?”, Preta
pergunta encarando os demais.
Um homem se aproxima das duas.
“Porque querem nos controlar, Preta. Controlar o povo através da
miséria. Vim do outro lado do rio como tu. Eles sabem que a pobreza
dá ainda mais lucro pra eles”, José fala.
“Pois é, amigo. Querem que a gente viva e siga as leis inventadas por
eles, para depois quebrarem a maior de todas as leis: não matar
crianças. No matar los niños. Não vamos aceitar isso. Se acham com a
razão, mas a razão sempre vai tá com quem luta pra comer e ficar
vivo.”
Preta abraça Kerenne com força e fala alto, para todos escutarem:
“Não deixaremos passar.”
Há gritos e assobios. As pessoas erguem os punhos fechados.
“Pies Rubros! Pies Rubros!”
León, ainda distanciado de todos, é o único que não se manifesta.
Preta faz um gesto e as pessoas ficam em silêncio.
“A nossa perda foi muito grande. Eles tiram de nós, nós tiramos
deles. Preparem as armas, as lonas, o sal grosso e o gelo. E também a
querosene e a gasolina”, Preta ordena.
“Vai todo mundo?”, José pergunta.
“Só os adultos.”
José encara Preta e, com respeito, toma coragem para perguntar:
“O que exatamente tu tá querendo que a gente faça, chefe?”
“Essa noite vamos entrar e acampar no Turvo. Só vamos sair de lá
com uma onça-pintada.”
Todos os olhares vão na direção de Preta, descrentes e assustados. Ela
nunca autorizou matar esse tipo de animal. Sempre foi o único bicho
proibido. Todos sabem que os caçadores que fizeram isso no Turvo
foram jurados de morte por ela. Há alguns anos, um deles sumiu no
Uruguai e teve o corpo encontrado meses depois, comido por
palometas. Ela observa seu grupo, sabe o que eles estão sentindo. É o
medo que nenhuma palavra pode atenuar. Precisa ir além do que é
falado, além do que eles conseguem ver. Ela sabe o que precisa ser
feito. Preta percebe León se aproximar. Ela não gosta do que vê: um
sorriso seco, paralisado, um semblante perturbador.

Na barranca do rio, Preta está sozinha sentada sobre uma pedra, com
os pés descalços no barro úmido de cor bordô. Ela sente o gelado da
terra lhe refrescar entre os dedos e a sola dos pés, contrastando com o
bafo que a tarde quente traz. O rosto erguido, observa a mata do parque
do Turvo à sua frente, do outro lado do Uruguai. Fecha os olhos. Se
concentra no som das águas.
“Me dá um sinal?”, pergunta em voz alta.
Estica os braços nas laterais do corpo, abre os dedos das mãos.
“Um sinal. A… Saram… Não posso voltar a falar esses versos se não
sou mais ouvida. O senhor me abandonou, bisa?”
O vento, o tempo, parecem parar. Como se tudo estivesse em
suspensão, esperando o anúncio de que a mesma tragédia vai
recomeçar. O ciclo que não se encerra. A continuação do sangue e da
morte. O tiro e o esturro da onça reverberando novamente por todo
aquele lugar.
Ela se levanta. Se vira para entrar no mato e voltar à localidade dos
Pies Rubros. Escuta um motor de barco. É Enrico que se aproxima
numa pequena embarcação. Ele está sozinho, chega até a beirada do
rio. Não desce.
“Tá resolvido”, ele avisa.
Preta o encara.
“Eu sei.”
“Vão quando?”, Enrico pergunta.
“Não é da tua conta.”
“Preciso da mercadoria. Tem carregamento saindo pelo porto de Rio
Grande no final de semana.”
“Não se caça aquele tipo de animal com afobamento. Até o idiota do
teu irmão saberia disso, se tivesse vivo”, Preta fala.
“Que Deus perdoe tanta crueldade que sai dessa tua boca.”
“Deus não chega desse lado do rio, velho.” Preta dá as costas para
Enrico e desaparece.
Estragando a vida de alguém

Na mesma tarde, Olga, dentro do seu carro, trafega na direção oeste


pela br-386. O sol forte bate no para-brisa e ela põe os óculos escuros.
Passa pela cidade de Estrela quando o telefone toca. É seu pai.
“Não conheço ninguém que se esforce tanto pra destruir a própria vida
como tu, Olga”, ele fala do outro lado da linha.
“Oi, pai. Eu tô bem. E vocês?”
“O Heichma já me ligou três vezes. O Senna já me ligou dez, quem
sabe quinze vezes. Onde tu tá?”
“Tô correndo atrás da minha liberdade.”
“Tá te perdendo. Busca tanto essa pseudoliberdade, que vai chegar um
momento que não vai mais saber onde buscar um futuro, minha filha.”
“Valeu, pai! Com essa torcida, eu me sinto até melhor. Quer um
conselho? Não atende mais as ligações deles. E seria bom vocês
pegarem o carro e irem pra Goiás na casa da tia Cristina por um
tempo.”
“Não! Nós vamos atrás de ti. Me diz: onde tu tá?”
“Escuta: sei o que eu tô fazendo, vou acabar com a vida de todos
esses homens que tentaram destruir a minha. Então fica longe disso.
Não atende mais o telefone.”
“Vou te buscar e nós vamos falar com o Heichma juntos. Devolver
essas merdas que tu roubou. Salvar esse teu emprego e a tua pele.”
“Tu não entendeu nada mesmo. É incrível…”
“É incrível o quê?”, ele a interrompe.
“Quando o assunto é o melhor pra mim, a gente tá sempre em lados
opostos.”
Olga escuta um suspiro do outro lado do telefone; depois vem o
silêncio, já tão comum entre ela e o pai.
“Não tem volta, pai. Vou resolver umas coisas em Dourado e de lá tô
indo pra Argentina. Já que ligou me cobrando, é melhor tu e a mãe
saberem que as coisas podem ficar meio perigosas pra mim por um
tempo. Por isso tenho que sair do Brasil. Não posso dar detalhes por
telefone.”
“Por que não pode falar por telefone?”
“Grampeado… quer dizer, se ainda não tá, vai estar até o final do
dia.”
“Isso tudo é absurdo. Vamos pra Dourado te encontrar.”
“Já disse que tô indo me esconder.”
“Então vamos ficar escondidos juntos.”
“Não. Não quero.”
“A culpa é minha”, ele solta um soluço, em seguida começa a
chorar.
Olga tira o telefone do ouvido. Deixa-o afastado do rosto. Com a
outra mão, a que segura o volante, desfere um, dois socos contra o
painel do carro, depois volta a segurar o volante. Por um segundo, a
vida toda passa na sua mente. É demais para ela lidar com remorso
agora. Mesmo sendo o remorso do pai, pelo qual ela esperou tanto
tempo. Um pai e uma mãe inertes a qualquer sofrimento dela. Ausentes
com consciência. Volta a pôr o telefone na orelha.
“Eu ceguei de propósito, filha. Não quis entender nada do que tu tava
passando desde que a gente saiu de Dourado, nem o que tava
acontecendo contigo em Porto Alegre. Uma punição idiota pra nós e
cruel pra ti depois do que tu fez na adolescência. Todos nós perdemos”,
ele continua.
Olga segue muda, pensa em pedir para que ele e a mãe fiquem onde
estão, onde sempre estiveram, alienados do inferno que se tornou a vida
dela nas mãos daquele político amigo da família, um sujeito em quem
os pais ingenuamente, até agora, depositaram a máxima confiança.
Pedir que fiquem longe, no lugar que é deles, lugar de não saber, não
estar, não lutar.
“Todos nós perdemos”, ela repete, para em seguida falar, decidida:
“mas podemos recomeçar. Escuta, vai pra região das Misiones na
Argentina, é mais perto pra vocês que estão aí em Santa Catarina. Me
esperem em algum hotel de lá. Quando estiver em território argentino,
aviso a cidade em que vamos nos encontrar. Já tô com outro aparelho e
outro número. Depois passo pra vocês”, ela desliga sem se despedir.

Olga estaciona na lateral de um posto de gasolina na beira da ­estrada.


Sem árvores por perto, com chão de terra seca de um marrom-claro, o
lugar não tem nenhum cliente, parecendo um deserto no oeste do Rio
Grande do Sul. Há um único frentista sentado num banco de madeira
entre uma bomba e outra. A jornalista tira da bolsa um celular
smartphone preto de um modelo antigo, e verifica se o backup foi
concluído. Analisa foto por foto, arquivo por arquivo que fotografou no
gabinete do deputado naquela manhã. Está tudo lá. Dá play na
gravação que fez na noite anterior. Está salva. Pega seu próprio celular,
prateado, mais fino e moderno que o outro. Com uma pequena chave
para retirar o chip, ela abre o compartimento da lateral do aparelho. Sai
do carro com o chip numa mão e o celular prata na outra. Olga se
aproxima do homem, que continua sentado.
“Vocês têm tonel pra despejar óleo velho?”
“Pode me dar que eu mesmo levo”, o frentista fala, mas não sai do
lugar.
“Não se dê ao trabalho, amigo. É só me dizer onde tá.”
“Dá a volta. Lá nos fundos.”
Ela caminha pelo calçamento quente. O cheiro de diesel, gasolina e
pneu queimado chega às suas narinas junto com um vento abafado. Ela
vê o tanque de metal enferrujado, tapado por um plástico azul, ao lado
de uma construção de alvenaria com dois banheiros. Na porta de um
deles a letra M, na do outro a letra F, pintadas de amarelo. Olga afasta
o plástico do tanque. Joga o chip dentro, espera alguns segundos e joga
o telefone. Ele some no líquido escuro e espesso.
Ferro, fogo e terra

As chamas iluminam os corpos nus das mulheres e dos homens dos Pies
Rubros. Eles estão ao redor de uma fogueira alta. Preta surge também
nua, ainda com o pano amarrado na perna ferida. Passa pelas pessoas e
fica no centro junto ao fogo. Em seguida aparecem dois adolescentes,
um veste regata lilás, o outro camiseta marrom, ambos usam bermuda e
chinelos havaianas nos pés. Cada um segura um lado de um tacho
cheio de água e folhas. Preta, concentrada, olha para os presentes. O
menino de regata lilás lhe entrega uma caneca de metal. Ela pega e a
enche com o líquido do tacho. Se dirige até uma das mulheres do
grupo. Derrama a água marrom-esverdeada com folhas na cabeça e no
corpo dela, que solta uma bufada. A água está gelada. Preta repete o
ritual em todos e depois em si mesma. Ergue o braço e mostra uma
cicatriz feita a ferro em brasa, incrustada na pele, em forma de R com
um traço cortando a letra ao meio. Ela está entre as costelas, abaixo da
axila.
“Essa marca me protege, protege a minha alma e o meu corpo, assim
como protegeu a minha vó, Tédi, quando ela fundou os Pies Rubros.”
Todos olham fascinados para Preta.
“A Tédi me deu o seu bem mais precioso”, ela passa a mão na
cicatriz, “e eu vou compartilhar com vocês, pois o que vamos fazer lá
dentro daquela floresta mexerá também com o que a gente não pode
ver. Mas cada uma e cada um que vai comigo pra caçança estará com a
pele e o espírito cerrado, como o meu.”
O magnetismo que a marca de Preta causa em todos é maior que o
medo que estavam sentindo. Confiam na sua líder, mas confiam ainda
mais na lenda da marca feita por Tédi na pele de Preta. Muitos nem
mesmo tinham certeza de que ela existia.
O adolescente de camiseta marrom passa uma garrafa de vinho
aberta para a chefe. Ela bebe.
“Façam uma fila”, Preta ordena e aponta para a frente.
Eles seguem a ordem. Preta olha para o menino de camiseta lilás,
que tira uma faca de uma bainha de couro e entrega a ela. Toma mais
um gole de vinho. Fecha os olhos. Faz um pequeno corte logo abaixo
da cicatriz. A primeira mulher se aproxima, Preta põe os dedos no
sangue que escorre pela lateral do seu corpo e passa no rosto da
mulher, depois lhe entrega a garrafa de vinho.
“Confia! Força, mujer.”

Uma hora depois, no velho galpão que fica na lateral esquerda, não
muito longe das casas e dos contêineres do grupo, lugar utilizado
também como depósito, os Pies Rubros estão reunidos. Eles vestem
camisas, calças compridas e casacos de cor escura ou com estampa
camuflada. Uns estão de botas, outros de tênis.
Um grupo de homens separa caixas de isopor com sacos de gelo
ainda fechados. Dois, dos mais velhos, altos e fortes, com cabelos
longos e grisalhos amarrados por uma tira de couro, pegam sacas de sal
grosso de uma pilha na lateral direita e levam até a parte da frente do
local, junto das lonas que serão utilizadas para barracas, cobertores,
redes de dormir, tábuas de madeiras, espingardas, revólveres, facas,
facões e galões de gasolina e querosene.
León, enfiado no meio dos adultos, não tira os olhos das armas.
Nunca viu tantas delas juntas. Não fazia ideia de que Preta tinha em
seu poder todo aquele arsenal. Ela o observa. Se aproxima do
adolescente e o pega pelo braço, levando-o até a frente da única mesa
onde duas mulheres separam munição para as armas. Chama a atenção
de todas e todos.
“Do lado de lá, vamos nos separar. Um grupo maior vai pra ponta
oeste e depois desce pro sul bem na divisa do parque. Vão pôr fogo no
mato naquele lado.” Preta tira um papel de dentro da blusa, nele há
um mapa desenhado por ela. “Isso vai assustar a onça e os outros
animais pro lado contrário, perto do rio, onde vamos tá com tudo
montado”, Preta determina.
León pega uma pistola. No mesmo segundo Preta segura seu punho,
aperta até que ele solte a arma. Ela percebe nele novamente uma
expressão macabra.
“O León será o único adolescente a ir com vocês, os outros ficarão
em Pies Rubros. Ele irá com o grupo do fogo pois é rápido com as
pernas, o mais rápido daqui. Precisamos dele pra nos avisar se algo der
errado”, Preta ordena.
“¡No!”, ele reage e se solta de Preta. Ela lhe dá um bofetão na
orelha. O menino ainda tenta argumentar:
“Me necesitas para matar al jaguar, al onça.”
Preta pega o menino pela gola do casaco e o arrasta para fora do
galpão.
“Seu filho da puta, quer pegar em arma? Quer matar? Vou te esfolar
vivo. Obedece quem manda aqui. Cheguei a achar que tu podia ser o
líder um dia… Mas como tudo que é homem, as tuas bolas pensam por
ti. Aprende a usar isso.” Preta bate na testa dele com o dedo indicador.
“Sí, señora.”
Os dois voltam para dentro do galpão.
“León, ajuda a carregar os galões de gasolina e querosene”, Preta
ordena. Depois se volta para os outros. “Todos prontos? Pies Rubros!”
“Pies Rubros! Pies Rubros!”, repetem.
Preta pega sua pistola, enfia na cintura, em seguida faz o mesmo
com um rifle .44, confere a munição. Observa o breu, atordoada pela
consciência de que nunca mais será a mesma depois do que irá fazer.
Uma brasa que nunca deveria ter se
acendido

Ainda na noite de 30 de outubro. Passa das vinte e duas horas. Chaya e


Tales estão na calçada em frente à casa dele. Ela, vestida com seu
uniforme sujo e úmido e seus coturnos embarrados, sente um cansaço
que não se lembra de ter sentido desde que começou a trabalhar como
guarda-florestal. Foi mais um dia inteiro procurando os portos e balsas
clandestinos dos Pies Rubros. Está irritada e frustrada. Desde que
assumiu como chefe interina, e justo por ser interina, não conseguiu a
ajuda de que precisava. Nem mesmo uma patrulha da brigada
ambiental para colaborar no trabalho de buscas lhe foi cedida. Sua
cabeça está girando com tanta coisa para fazer, com as papeladas que
tem para preencher antes de poder dormir. Mas está lá, na casa de
Tales, que a chamou para uma conversa urgente sobre Enrico.
“Tô indo, Tales. Tu fez um alarido no telefone, achei que o assunto
era sobre o Enrico, mas até agora tu só falou dela.” Chaya volta para a
caminhonete, que está do outro lado da rua, Tales vai atrás.
“Mas é sobre o pai… e sobre ela… e sobre ti. Não quero que tu fique
puta comigo de novo, mana.”
“Tales, tu sabe a minha opinião, então por que me pergunta?”
“Tu podia tentar se pôr no meu lugar?”
“Não tô ouvindo isso”, Chaya fala grosso. “Não. Não podia.”
“Claro que não. Tu não entende o que é sentir o que eu tô sentindo.
Foi uma péssima ideia mesmo. Boa noite, Chaya.” Ele caminha na
direção da sua casa.
“Pode parar aí. O que que tu quis dizer?”, Chaya pergunta.
“Só queria que tu me ajudasse.”
“O que tu quis dizer?”
“Tu sabe… Tu nunca teve um relacionamento. Nunca amou alguém
por anos como eu amo a Olga.”
Apesar de ter sido criada pelo pai e pela mãe de Tales desde os sete
anos, ela precisou guardar dentro de si seu pertencimento à família
Sarampião. Chaya não era uma Romano, era uma Sarampião, falava
isso para si mesma todos os dias, quase como um mantra, quando
pequena. Tales era o único da família que a tratava sem pena, sem dó
da menina órfã, como um irmão trata uma irmã. Sem lembrá-la o
tempo todo de que sua família de sangue foi uma família fadada a
tragédias e que ela estava, na verdade, sozinha no mundo. Eles
brigavam como irmãos brigam. Se ajudavam como irmãos se ajudam.
Tinham segredos como irmãos têm, como as paixonites na
adolescência ou as desilusões na vida adulta. Mas Chaya nunca
assumiu uma relação com ninguém. Não se deixava envolver. Suas
prioridades sempre foram o parque e o legado da família Sarampião. E
Tales sempre entendeu isso mais que qualquer um. Por isso Chaya não
gosta do rumo que aquela conversa está seguindo. Ela abre a porta da
caminhonete. Tales corre e a segura.
“Perdão. Perdão. Não vai embora.” Tales se abraça a Chaya. “Tenho
a boca maior que o cérebro. Não é o que tu sempre me diz? Me
desculpa, mana.” Tales fica abraçado nela.
“Para de drama e para de falar merda.”
“É que eu tô desesperado. Preciso da tua ajuda.”
“Não vou falar com o Enrico. Desde criança tu tem medo dele,
sempre a tua mãe resolveu tudo pra ti. Ela morreu e tu tenta transferir
essa bucha pra mim. Não vai rolar.”
“Não é medo, só não sei como falar com ele sobre a Olga. Ele fica
furioso só de ouvir o nome dela.”
“Quem nessa cidade não fica… Cresce, Tales. É tu quem tem que
fazer isso.”
“Vai ficar do meu lado?”
“Tu sabe o que eu acho da Olga. Ela não é pra ti. Mas se tu não
consegue ver…”
Chaya ouve o rádio de comunicação da guarda-florestal apitar de
dentro do carro. Pega o aparelho:
“Chaya na escuta. Câmbio.”
“Chefe, aqui é o soldado Nestor. Precisamos de ti no parque. Câmbio.”
“Qual a urgência? Câmbio.”
“Índia 01. Câmbio.”
“O que houve?”, Tales pergunta.
“Que lado? Câmbio”, Chaya pergunta ainda no rádio.
“Sudoeste. Câmbio.”
“Grande?”
“Tudo indica que pode ficar.”
“Puta merda, Nestor. Não tem um Índia 01 faz anos no parque.
Merda. Merda. Tô a caminho. Câmbio. Desligo.” Ela liga o motor do
carro, depois os faróis.
Tales, aflito, pergunta mais uma vez:
“Fala comigo. O que houve?”
“Fogo no parque. Precisamos dos bombeiros, da polícia militar, da
civil, do icmbio de Passo Fundo. Avisa o teu pai e quem mais tu puder.”
Alerta vermelho

Olga fuma dentro do carro estacionado na rua deserta, nos fundos do


terreno da casa de Chaya, formado por um grande lote acessado pelos
dois lados da quadra. Na rua oposta, onde há maior circulação de
carros e pessoas, fica a entrada da casa de Chaya. Na parte de trás, onde
Olga está, fica a estufa construída há mais de trinta anos pelo avô de
Chaya. De onde estacionou, Olga consegue acompanhar a
movimentação dentro da casa, cujas luzes estão todas apagadas. Por isso
presta atenção em cada pessoa, cada carro que passa, qualquer
movimentação, qualquer sinal de que Chaya possa ter chegado à sua
residência. Não combinaram horário para se encontrar. Numa troca de
mensagens, no meio do caminho, antes de chegar a Dourado, Chaya
disse apenas que estaria em casa à noite.
O smartphone preto está em cima do painel do carro. Ela tira o
notebook da bolsa e deixa aberto no seu colo. Segura o cigarro nos
dedos da mão esquerda e, com a direita, digita: “Quem está por trás da
Binacional Gran Roncador — a hidrelétrica que ameaça o parque do
Turvo e o salto do Yucumã, na fronteira entre Brasil e Argentina?”.
Escuta o som de sirenes e carros se aproximarem. Joga o cigarro pela
janela. Fecha o computador e se encolhe no banco. Vê um caminhão
do corpo de bombeiros ­passar. O som é altíssimo. Logo em seguida,
uma sequência de automóveis, com faróis altos e carros de polícia,
passa em comboio, na mesma direção. Ela solta o computador no
banco ao lado. Desce do carro. Mesmo estando na rua perpendicular,
as luzes dos giroflex rodando em cima dos carros de polícia refletem no
seu rosto.
Caminha até a esquina. Olha para o horizonte, para o lado direito,
na direção em que estão indo os carros. Vê ao longe a claridade nada
usual das chamas que, neste momento, se espalham pela extremidade
sudoeste do parque do Turvo.
Trepeiros

Passa da meia-noite. O incêndio já consome parte de todo o lado


sudoeste do parque do Turvo. Os Pies Rubros que estavam designados
para a tarefa de iniciar o fogo atravessam o rio a barco e voltam para o
lado argentino. Menos León.
León corre por dentro da mata, na direção oposta às chamas. A cada
instante, vira o rosto para trás e vê a claridade de cor amarelada ao
longe. Sorri orgulhoso. Sente suas pernas cansadas doerem bem na
altura das coxas, mas não para nem diminui o ritmo. Naquela
madrugada mesmo, chegará aonde Preta armou o acampamento.

Preta está sentada em cima de um trepeiro: uma estrutura de madeira


pregada no alto de uma árvore. Está camuflada, não só pela roupa, mas
também pelos galhos, folhas e pelo breu da noite. Segura sua
espingarda apontada para baixo. Amarrada à lateral da árvore, há uma
ceva, com milho, restos de comida e de carne crua. Um chiqueiro feito
de bambu e placas de madeira velha está um pouco mais distante. No
alto de outras três árvores, próximas a Preta, também em cima de
trepeiros, estão outras duas mulheres e um homem, cada um com sua
arma em punho. Todos em silêncio. Concentrados. Escutam a
respiração ofegante e rouca de um animal se aproximando. O bicho
chega junto da ceva da árvore em que Preta está e começa a comer.
Um tiro seco de rifle .44 da chefe dos Pies Rubros acerta a cotia no
lombo. Ela dá um único grito estridente e curto. Tomba para o lado,
morta.
“Abram a barriga e joguem as vísceras por perto, e a carne deixem
aqui embaixo. Isso vai trazer a onça pra cá.”
Moedor de ossos

Por volta das quatro da manhã, centenas de moradores de Dourado


estão numa lavoura de soja, na fronteira do parque, próximos ao fogo
que toma conta da mata. Falam ao mesmo tempo, alguns berram,
outros choram. Há dois caminhões do corpo de bombeiros
estacionados. Brigadistas e policiais trabalham juntos na tentativa de
conter o incêndio. Moradores locais pegam terra seca com baldes e
jogam em cima dos focos menores, outros seguram grandes galhos,
batem nos focos um pouco maiores. Um terceiro grupo, organizado por
Dóris, policial civil amiga de Chaya, e por Tales, pega bacias e até
panelas, e enchem com água de um caminhão-pipa. Há os que, num
ato de desespero, tentam usar os próprios extintores de incêndio dos
seus carros.
Ao lado de um dos brigadistas, Chaya ajuda a segurar a mangueira de
água do caminhão dos bombeiros. Ao mesmo tempo, pede para os civis
que estão ao seu redor:
“Tomem cuidado!”
Nada parece fazer diferença. O fogo aumenta. Duas senhoras
começam a rezar:
“Deus nos ajude! Pai nosso que estais no céu…”
Pássaros gritam. Alguns saem voando da mata, mas logo ­caem no
chão, se debatendo. Uma família de quatis surge do meio das chamas.
Eles estão com as patas e pelos queimados. Um cateto aparece em
seguida. Ele desmaia. Está com metade da barriga e toda a fuça
queimada. Outros bichos surgem feridos. A comunidade tenta salvá-los,
mas suas condições são gravíssimas.
A água de um dos tanques do carro dos bombeiros termina. Chaya
olha ao redor, procura algum tipo de salvação, de milagre. O homem
que a estava ajudando desiste de segurar a mangueira. A água acabou,
ela hesita, mas larga também. Afasta-se. Vê as pessoas atormentadas. Os
bichos queimados, agonizando, outros mortos. Os bombeiros e os
policiais se mostram derrotados. O fogo que fica mais alto, mais forte.
Começa a perceber tudo em câmera lenta: os gestos das pessoas, as
vozes que vão ficando morosas, arrastadas. Sente uma dor disforme,
como se seus ossos estivessem sendo moídos naquele instante. Chaya
Sarampião, chefe do parque do Turvo, não consegue apagar o fogo que
irá terminar para sempre com aquela unidade de conservação, ela
pensa. Um som forte e grave de motor lhe traz de volta para a
realidade, ele vem do alto. Olha para cima e vê as luzes de um avião
bimotor passarem sobre ela. Ele abre os compartimentos do tanque de
gasolina. A água cai sobre as chamas da floresta. Em seguida, outro
avião passa. Chaya sente suas pernas dobrarem. Ela se ajoelha.
“Arrê.”
As pessoas aplaudem, sorriem e comemoram. Enrico se aproxima de
Chaya e estende a mão para ela, que não se mexe, continua olhando na
direção das aeronaves.
“Filha! Foi difícil, foi caro e foi muito arriscado por ser de noite, mas
consegui que eles viessem o mais rápido possível.”
Chaya se volta para Enrico e enxerga uma expressão peculiar, como
se ele tentasse disfarçar um sentimento de obrigação, de dever. Ela se
levanta e o abraça.
“Vão fazer quantas viagens for preciso pra acabar totalmente com
esse incêndio”, Enrico garante.
Chaya fica pendurada no seu pescoço sem dizer uma ­pa­lavra.
1997
corcel vermelho
Quem conseguir primeiro ganha

Chaya, sete anos, está no escritório de Enrico, em frente a uma casa de


bonecas feita de madeira e pintada de branco, com todo um cenário
montado dentro dela. Segura um pequeno bebê de plástico rosado nas
mãos. Larga-o no chão e pega uma boneca loira, cabelos longos e lisos,
olhos azuis e cílios grandes. Tira toda a roupa dela. Observa suas
pernas, seus braços e sua barriga. Grita e joga o brinquedo contra o
vidro da estante. O som do impacto é alto.
Enrico e Galliana, sua esposa, surgem correndo.
“Que foi, criança?”, Galliana pergunta, mas Chaya não responde. A
cara emburrada aumenta.
“Quando tu grita assim, a gente acha que tu te machucou, Chaya.
Uma hora vai ter te machucado de verdade e aí ninguém vem te
acudir”, Enrico intervém.
Galliana lança um olhar de repreensão para o marido.
“Que foi?”, ele continua.
“Tu não quer ir lá fora brincar com o Tales e com as outras
crianças?” A mulher pega nas mãozinhas contraídas de Chaya, prontas
para brigar.
“Não gostou dessa casinha que te deram de aniversário? Podemos dar
ela pra outra criança”, Enrico fala e outra vez é repreendido pela
mulher.
“Não gosto delas”, Chaya aponta para a boneca jogada no chão e
para as outras dentro da casinha.
“Por quê?”
“Nenhuma é parecida comigo.”
Enrico pega do chão a boneca loira, o bebê e todas as outras e joga
dentro de uma gaveta.
“Amanhã mesmo nós quatro vamos pra Porto Alegre comprar
brinquedos novos”, ele avisa.
Chaya muda a expressão do rosto. Não sorri, mas seus olhos brilham.
Enrico continua:
“Agora vamos lá fora cantar os parabéns pra ti, filha.”
“Eu não sou tua filha.” Chaya fecha a cara novamente, cruza os
braços e se escora numa parede, mostrando que não sairá do lugar.
“Tudo bem. Tem razão. O Enrico só falou isso querendo dizer que te
amamos como se tu fosse da família, como se fosse a nossa filha.
Entende?”, Galliana argumenta.
Chaya começa a chorar. Um choro que vem baixinho e logo vira um
berro:
“Quero o meu vô. Vozinho.”
Tales aparece correndo e abraça Chaya.
“Por que ela tá chorando? O que vocês disseram?” Ele a segura. Aos
poucos a menina começa a se acalmar, mas o soluço continua. “Eu vou
ficar aqui contigo, mana.” Tales enxuga as lágrimas que ainda escorrem
pelas bochechas dela.
Enrico e Galliana observam os dois pequenos, grudados, protegendo
um ao outro, como se fossem irmãos desde que nasceram. Um amor
que nunca tinham testemunhado.
“Vamos lá falar com os convidados. Não precisamos cantar parabéns
hoje. Tá certo?” Enrico pega a esposa. Os dois saem.
“Quer ir pro teu quarto?”, Tales pergunta.
“Quero ir pro teu.”
Eles dão as mãos e vão para o quarto. Chaya se senta no chão, Tales
na cama.
“Quer brincar?”, ele pergunta.
“Quero.”
Tales pega uma caixa de bonecos de super-heróis.
“Não gostou dos presentes que tu ganhou?” Ele entrega um boneco
do Batman para ela.
“Não! Eu queria ganhar um corcel vermelho igual esse teu.” Aponta
para a prateleira com dezenas de carrinhos em miniaturas.
“Esse?” Ele pega o carrinho vermelho com uma listra preta pintada
por cima.
“É.”
“Não é um corcel.”
“É sim. O meu vô Armin me ensinou tudo sobre carros. Tudinho.”
Os dois riem. Tales entrega o carrinho para ela.
“Então toma. Esse corcel é teu. O meu presente de aniversário pra
ti.”
Ela segura o brinquedo fascinada. Brinca por alguns segundos, vai
até a caixa com os bonecos do irmão, mexe nela até encontrar uma
boneca azul. É a Mística do X-Men. Coloca-a sobre o carro e faz de
conta que voam.
“Vamos pegar os bandidos.”
Tales pega um carrinho conversível dentre os tantos carrinhos a
controle remoto que tem, coloca o boneco do Batman nele, liga o
motor e o faz correr no chão do quarto.
“Deixe que eu vou por terra, assim eles não vão conseguir escapar,
Mística.”
“Boa ideia, Batman.”
Os dois brincam até que o carro de Tales entra embaixo da cama e
bate na parede.
“Me pegaram. Socorro.”
Os dois riem.
“Tu sabia que eu estaria passando o meu aniversário com o meu vô
Armin se a Preta não tivesse matado ele?”
“Mas não foi uma ferida dentro da cabeça?”
“Ela que fez.”
“Já sei, ela enfiou um câncer na cabeça do teu vô com um
superpoder que ela tem e daí o teu vô morreu.”
Chaya começa a chorar de novo, mas dessa vez baixinho.
“Desculpa. Desculpa. Era brincadeira.”
Ela volta a se sentar no chão e larga o corcel.
“Quer que eu vá roubar docinhos pra gente comer aqui no quarto?”,
ele pergunta e Chaya assente.
Tales vai até a porta e, antes de abri-la, anuncia:
“Tive uma grande ideia. Vamos fazer uma estrada cheia de
obstáculos com todos os super-heróis? A gente tem que passar por ela
com o teu corcel sem derrubar nenhum. Quem conseguir primeiro,
ganha.”
“Vamos.” Chaya se levanta animada e dá um pulinho de ­vitória.
“Vai montando a estrada. Já volto, mana.”
1958
o fim
Armin e Roscato

Armin põe o barco a remo na água, que naquela tarde está tranquila.
Atravessa o Uruguai devagar. À medida que se afasta das margens do
Porto Pari é que sente um pouco a correnteza. Do lado argentino,
amarra a embarcação numa árvore e entra na mata.
Meia hora depois chega ao campestre; a vegetação baixa e o rochedo
estão mais visíveis por causa da seca que continua forte nos últimos
meses, acabando com as gramíneas que ainda existem no lugar. Escuta
latidos ao longe, em seguida algumas vozes. Se aproxima de quatro
casebres no meio da mata. Ao fundo há um galpão grande de madeira
com o chão batido. Surgem três crianças, duas meninas e um menino
com os pés descalços, usando apenas bermudas.
“Onde estão os pais de vocês?”
“Ergue as mãos e vira devagar”, uma voz atrás dele dá a ­ordem.
Armin obedece. Se surpreende ao ver Tédi lhe apontar uma
espingarda. Ao lado dela um homem enorme, ombros largos, queixo
quadrado, sobrancelha grossa, segura um facão. Antes que ele diga
qualquer coisa, o homem se aproxima e o golpeia com o cabo de
madeira do facão.
Armin retoma a consciência. Está escuro e silencioso. Sente a terra
solta e seca entrar na sua boca e nas narinas. Tenta se levantar, mas está
grogue. A pancada na cabeça foi violenta. Põe a mão atrás da nuca. Há
uma gosma no couro cabeludo. Ele cheira. É sangue. Tateia ao seu
redor e encontra uma parede de madeira. Se escora nela e senta-se. Os
minutos passam. O breu é total. Alguém abre a porta e a claridade da
lamparina o cega.
“Tu é corajoso”, uma voz fala.
Os olhos de Armin vão enxergando aos poucos, percebe o vulto de
uma mulher se sentar num cepo de lenha à sua frente.
“Tédi, um pouco d’água, por favor, cunhada?”, Armin pede, ainda
zonzo.
“Que desgraça tu veio trazer pra gente?”
“Vocês duas sumiram há meses, nunca mais soube de ti nem da
Lenara. Como tá a menina?”
“Tá melhor aqui do que lá naquele lugar de merda em que tu nos
largou.”
“Foi pensando no bem dela que…”
Tédi levanta e dá um murro no olho de Armin. Ele cai. Fica deitado.
Não esperava a agressão, muito menos aquela força.
“Tava te devendo essa. E a Gringa? Aquela desgraçada vai ter o dela.”
“Vai me matar, Tédi? Depois vai matar a Gringa? É isso?”
“Hoje não, Armin. Hoje não.”
Ela sai. O tempo passa. Armin adormece até ser acordado por um
chute nas pernas. Vê Roscato com o rosto rente à lamparina. Seus olhos
amuados e amarelos parecem desconhecer qualquer realidade. Está
magro e abatido. A pele enrugada caída sobre os ossos. Há uma barba
rala e alguns fios de cabelos compridos e ensebados presos atrás da
orelha. Parece ter envelhecido anos. Uma tristeza assombrosa toma
conta daquele instante. Larga a lamparina e cospe no chão, faz sinal
para o irmão esperar. Sai e volta minutos depois com um balde cheio
d’água e uma caneca de metal. Serve o irmão, que bebe tudo com
rapidez. Armin devolve a caneca pedindo mais. Roscato lhe entrega o
balde e ele mesmo se serve. Depois derrama o que sobra na cabeça.
Sente o corte arder. Apesar da chama da lamparina, a penumbra do
lugar só deixa parte do rosto deles aparecer.
“Só aceitei falar contigo porque a Tédi mandou”, Roscato fala.
“Que bom que agora tu escuta a tua mulher.”
“Todos aqui escutam. Esse lugar só existe por causa dela.”
O som de um grilo estridulando os surpreende.
“Já faz quase um ano, Roscato. Tu é o meu único irmão.”
“Não devia ter vindo.”
“E tu não devia ter degolado o Caco Romano.”
“Então é sobre isso?”
“Só quero te ajudar. Me conta o que realmente aconteceu?”
“Tu sabe o que aconteceu.”
“Mas por quê? Homem, vocês eram parceiros de copo, de bolicho.
Eram amigos.”
“Nunca fomos amigos. A gente só tinha negócios.”
“Negócios? Que negócio, Roscato? Tu não trabalhava.”
Roscato chuta o cepo de lenha, sua camisa se ergue, mostrando um
revólver preso à cintura.
“Tá falando igual ele”, Roscato caminha de um lado para outro.
“Ele quem?”
“Tu sabe.”
“O nosso pai só queria o teu bem e o bem da tua família.”
“O nosso pai tirou meu sustento. Me tirou a única coisa que eu era
bom fazendo”, Roscato diz.
“Quem te disse essa asneira?”
“Desde que criaram esse parque de merda… tu sabe. Esses políticos
inúteis. Eles mesmos caçavam, e muitos ainda caçam, lá no Turvo.
Caçar nunca foi errado. A gente caçou pra comer, pra vender por anos.
Agora eu, por ser filho do Sarampião, sou um criminoso? Não posso
mais trabalhar com isso?”
“Caçar onça não é um trabalho.”
“Tu e o pai tinham inveja de mim. Inveja porque eu sempre fui o
melhor. Caço como ninguém nesta região.”
“Não vim aqui pra te ouvir desaforar o pai.” Armin perde a paciência.
Roscato continua andando de um lado para outro e soca as paredes
do casebre, fazendo-o tremer.
“A culpa de tudo que aconteceu é dele. Eu botava comida em casa
pra mulher e pra filha. Daí do nada fico sem ganha-pão. A culpa é do
nosso pai. Dele. Dele.”
“Te acalma, homem.”
Os dois se encaram. Dois irmãos, mesmo sangue, mesma criação,
mas tão diferentes. Roscato gosta de matar, de encurralar os bichos, de
ver o desespero no olhar deles, o desespero da morte na sua frente.
Roscato observa a vida do bicho sumir pelo olho, e aquilo o satisfaz, o
alimenta, faz com que se sinta maior do que é, melhor do que é. Armin
não tem essa frieza, essa sede por matar. Mesmo sendo o filho mais
novo, foi o único que cuidou e se preocupou com o pai e a mãe deles
durante toda a vida, e é por causa desse sentimento familiar que ele
está ali naquele lugar, em busca do irmão.
“Senta aqui, irmão. Senta e conversa. Pelo pai. Pela tua filha. Tô te
pedindo”, Armin implora.
Roscato puxa o irmão do chão e eles ficam frente a frente em
silêncio. Um não dito que incomoda.
“Eu matei a Boca Braba”, Roscato fala.
“Como é que é?”
“Eu matei. Eu tava com o Caco na caçança naquele dia.”
Armin vai para cima do irmão e dá um soco no seu peito. Os dois se
engalfinham. Roscato devolve o soco no estômago, fazendo Armin se
afastar.
“Ele me pagou. Pagou pra ir com ele. Só eu podia matar aquela
onça.”
“Tu não merece ter o sobrenome que tem.”
“Tô nem aí pra essa bosta de sobrenome. Um sobrenome inventado
por um bisavô covarde que nem conhecemos e que apareceu aqui na
fronteira fugindo de uma guerra. Pro inferno esse sobrenome:
Sarampião. Pro inferno a Boca Braba, o Caco e o nosso pai também…”
Armin voa de novo para cima de Roscato, que mais se defende do
que ataca. Armin acerta um murro no nariz do irmão, que quebra e
começa a sangrar.
“Chega! Chega!” Roscato passa a mão no rosto ensanguentado,
depois começa a rir, um riso diabólico.
“Tu é um maldito”, Armin responde.
“Sou mesmo. Um maldito. E só tô te falando tudo isso porque a Tédi
mandou te contar. Viva e morra sabendo que o nosso pai…”
“Acabou o teu tempo, Armin”, Tédi interrompe os dois. “Pode levar.”
Roscato se mexe como se estivesse bêbado. Da sua boca sai uma
baba grossa, que fica grudada nos lábios finos. Pega a lamparina com
uma das mãos e tira sua arma da cintura com a outra.
“O que tem o nosso pai? Tu viu o nosso pai naquele dia?”
Roscato não responde.
“Tu sabe onde ele tá, Roscato? Fala, por favor”, Armin grita.
“Cala essa boca, Armin. Aqui no grupo tem criança dormindo. Vai,
antes que eu mude de ideia”, Tédi avisa.
“Fala comigo”, Armin implora para o irmão.
O homem de sobrancelha grossa aparece. Pega Armin pelos dois
braços e o empurra para fora.
“Que seja a última vez que eu te vejo desse lado do rio, Armin. As
minhas regras vão valer se tu entrar no nosso território de novo”, Tédi
avisa.
Armin, Roscato e o homem passam o campestre, a mata, e chegam à
beira do rio. O homem coloca Armin dentro da pequena embarcação.
Desamarra-a da árvore. Roscato está logo atrás. Ele entrega a lamparina
para o irmão. Empurram o barco. Armin treme inteiro. Seu rosto está
em choque.
“Roscato, o pai tá vivo? O nosso pai tá vivo, irmão?”
Roscato some na mata, seguido pelo homem.
Trato de silêncio

Na primeira hora da manhã do dia seguinte, Armin chega à mercearia


da Gringa. Enrico está de joelhos em cima do banco de madeira, atrás
do caixa. Ele tira dinheiro de dentro de uma gaveta, conta e anota os
valores num caderno.
“Guri, avisa a tua mãe que eu tô aqui”, Armin pede.
“Bom dia!” Enrico não sai do lugar.
Armin pula por cima do balcão e entra pela cortina que dá para os
fundos do estabelecimento. Enrico corre para tentar ­segurá-lo, mas
Armin o empurra. Avança pelo corredor até avistar Gringa. Ela está
suada, com o rosto vermelho, tirando uma pesada saca de farinha de
milho de uma pilha e levando até a porta que dá para os fundos, onde
um caminhão está parado. Dois funcionários, homens jovens, a
observam.
“Entenderam? Se eu consigo, as duas princesas aí também
conseguem.” Ela percebe Armin no local, logo atrás dele vem Enrico,
furioso.
“Vai lá pra frente cuidar do negócio, filho”, Gringa ordena. “Vamos
lá pra casa, amigo. Tá na hora da gente ter essa conversa”, fala para
Armin.
Na sala da casa dos Romano, Armin está em pé, próximo à porta.
Gringa está numa poltrona, embaixo de uma grande janela na sala;
solta uma tosse rouca, pigarreia num lenço. Armin olha para fora. Seus
olhos ardem, uma queimação do dia seco e da baixa umidade do ar,
misturada à certeza de que o que ele antes considerava uma desgraça
familiar agora passava a ser algo muito pior. Uma maldição que se abate
sobre as famílias Sarampião e Romano.
“Que esse assunto não saia daqui. Nunca. Agora a senhora faz o que
tiver que ser feito e não quero saber como vai ser feito”, Armin fala,
querendo encerrar logo a conversa para ir embora daquele lugar
desconfortável.
“E botamos uma pedra nesse assunto, Armin? Pelos que restaram das
nossas famílias, o melhor que podemos fazer é não contarmos isso pra
ninguém e seguirmos nossa vida. E o que tu, Idalina e Amara
precisarem, contem comigo”, Gringa diz.
“Acabamos por aqui. Vou embora pra Dourado. Sei que nós dois
perdemos muito, mas não posso viver te encontrando diariamente,
fingindo que não sei o que aconteceu e nem a senhora. Fica longe da
minha família que eu fico longe da sua. Adeus.”
Gringa observa Armin ir embora. Os dois sabem que esse não é o fim
da dor causada por aquelas tragédias que lhes foram trazidas, tragédias
que nunca serão esquecidas.
Armin passa pelo pátio da casa, atravessa o terreno de brita da
mercearia. Chega à rua. Desvia de uma família de três pessoas,
conhecidos dele, que, no seu caminho, tentam, mas não conseguem
cumprimentá-lo. Sobe na carroça que está parada no acostamento.
“Vamô, Zebruno. Vamô, Branco.” Bate as cordas com fúria no lombo
dos bois.
A carroça anda. A estrada de terra seca e vermelha levanta uma
poeira grossa, cobrindo não só ele, mas também o que, a partir de
agora, é passado e será velado, mas nunca esquecido.
Nem céu nem inferno

Dois meses depois, Lenara, aparentando ter mais do que os seus treze
anos — alta, cresceu muito de 1957 para 1958 —, magra, ombros
largos, cabelos compridos e soltos, usa vestido preto um pouco acima
do joelho e sapatos de couro amarrados por cadarços. Sua mãe, Tédi,
cabelos loiros e curtos com uma mecha grisalha na frente, usa calça de
moletom azul justa ao corpo, que destaca os músculos das suas pernas
grossas, regata branca e um cordão dourado na altura dos seios, e tem
um revólver calibre .38 preso à cintura. Estão de mãos dadas, ao lado
de uma cova aberta, no fundo do cemitério, na parte alta do vilarejo, na
área rural de Corredera Moconá. Dentro dela, um caixão feito de
tábuas velhas e uma cruz, em que está escrito: Roscato Sarampião —
Nascimento 1927 — Morte 1958.
Tédi pega uma pequena garrafa de cachaça. Abre e derrama um
pouco por cima do caixão; por fim, deixa a garrafa cair dentro da cova.
Lenara apenas observa, sentindo o odor da bebida forte misturado ao
cheiro de terra recém-mexida.
“Um dia o Armin vai pagar… todos eles vão pagar”, Tédi fala.
Armin, Idalina e a filha deles, Amara, estão dentro da mata do Turvo,
perto do salto do Yucumã. Cada um segura uma vela.
“Tu devia ter ido ao enterro”, Idalina fala alto, com o intuito de ser
ouvida, já que o som da queda d’água naquele dia é retumbante.
Armin não responde. Fica olhando para suas mãos entrelaçadas na
vela, para os dedos polegares que roçam um no outro, mostrando sua
impaciência.
“A Tédi acha que foi tu que entregou o Roscato pra polícia. Não ter
ido ao enterro do teu irmão só vai dar mais motivo.”
Armin continua mudo. Por dentro a fúria ainda corre, mas ele não
demonstra. Segue decidido: nunca mais falará o nome do irmão nem
falará sobre aquela noite em que foi para o outro lado do rio encontrá-
lo, muito menos sobre o que aconteceu depois. A memória de Roscato
é uma cruz que envergonha, mas que, se depender dele, não será
passada para a frente. Um dia desaparecerá, como se ele nunca tivesse
existido.
“Eu vou acender a minha vela pro tio Roscato”, Amara comunica.
Armin segura firme o pulso da menina. Ela dá um pequeno grito.
Ele grita mais alto:
“Não.” E muda o tom de voz, tenta parecer calmo. “Essas velas são
pro teu vô Sarampião.”
“Foi o vô Sarampião que pediu pra acender pro tio”, Amara fala,
assustada com a reação do pai.
“Deu pra essa menina ficar falando essas bobagens agora. Não é
certo inventar esse tipo de história, ainda mais com o nome do teu vô.”
Contrariada, Amara sai correndo na direção de uma canjerana e se
esconde atrás do seu tronco. Armin faz o movimento de ir atrás dela,
mas Idalina o impede.
Gringa e Enrico estão na mercearia. Quatro pessoas aguardam para
serem atendidas enquanto Gringa entrega uma lata de banha de porco
para uma mulher e Enrico, o troco do valor da compra. Antes de sair, a
mulher põe sua mão sobre a de Gringa e diz:
“A justiça divina foi feita pelo Caco, dona Romano. Só de saber que
o vagabundo do Roscato se enforcou na cadeia, deixou muita gente
aqui da vila aliviada.”
Gringa agarra o braço da mulher, enfiando as unhas na carne.
“E o que de divino tem nisso? Me diz? Sua parasita da desgraça
alheia. Some da minha frente. Aqui tu não compra mais.”
A mulher é pega de surpresa com a reação da dona da mercearia. Dá
alguns passos para trás e sai apressada. Enrico observa a mãe com o
rosto vermelho. Ela começa a tossir. Pega um lenço do bolso da camisa
e escarra. Seus olhos pousam em silêncio sobre o sangue misturado ao
catarro no pedaço de pano.
sangue
Mantenha o inimigo por perto

É 31 de outubro, o sol já nasceu. A fumaça alta e escura continua


saindo da floresta. O cheiro forte da queimada ainda está no ar.
Dezenas de pessoas seguem nos arredores do lado sudoeste do parque.
Sobraram pequenos focos do incêndio que estão sendo apagados pela
brigada militar com a ajuda de voluntários. Os caminhões do corpo de
bombeiros regressam para a sua sede na cidade. Chaya tem o rosto, os
braços e as pernas cobertos de cinza e terra. Ela está absorta, olhando
os troncos e galhos em brasa das árvores que restaram naquele local.
Cláudio, de cabelo molhado e penteado, rosto limpo, usa um uniforme
de guarda-florestal bem passado e alinhado, surge ao lado dela e
estende o braço oferecendo a garrafa d’água que traz na mão.
“Ó, chefe.”
Ela pega. Tenta sorrir, mas o sorriso não sai.
“A senhora devia ir pra casa descansar.”
Chaya sente o peso da palavra, chefe.
Ele continua:
“Já tomei banho, descansei, posso ficar aqui o resto da manhã ou do
dia. Se a senhora quiser, claro.”
Ela bebe um pouco da água, depois joga o que restou nas mãos e no
rosto.
“Tem razão. Preciso me recompor. Fica aqui, Cláudio. Orienta os
biólogos e veterinários que tão chegando pra ajudar. Qualquer coisa
que não souber, passa um rádio pra sede ou pede pra eles me ligarem.”
“O seu trabalho foi impecável”, Cláudio fala.
“Vocês rastrearam os colares das onças e do puma?”
“Sim, senhora. Duas onças seguem do lado argentino. O puma e a
outra onça se movimentaram de madrugada pro lado contrário do
fogo.”
“Arrê!” Ela respira fundo. “Quando conseguirmos entrar aí, vai dar
pra saber quantos e quais animais perdemos.”
Cláudio fala, desolado:
“Acho que as nossas armadilhas fotográficas se foram.”
Chaya toca de leve no ombro do colega e em seguida caminha a
passos lentos até a caminhonete. Se surpreende ao ver Tales e Dóris
sentados na caçamba de madeira do caminhão. Ele e ela estão
igualmente sujos e exaustos.
“Vocês ainda estão aqui?”
“A gente só vai embora quando tu for”, Tales fala.
“E eu apostei com ele uma caixa de cerveja que vai ser agora”, Dóris
fala sorrindo.
“Vamos beber essa cerveja juntas.”

Chaya bate no vidro do carro de Olga, que acorda assustada. Ela abre a
janela.
“Não me diz que passou a noite aqui?”
“Não tinha pra onde ir.” Olga abre a porta e sai. “Tu não atendeu
minhas ligações.”
“Foi uma longa noite no inferno. Literalmente. Pega as ­tuas coisas e
vamos entrar.”
“Esse cheiro forte de fumaça”, Olga diz e esfrega o nariz,
incomodada com o odor que está mais intenso do lado de fora do carro.
“Foi muito feio?”, ela pergunta enquanto pega o computador e a bolsa.
“Ver uma floresta queimando nunca é bonito.” Chaya abre o portão
dos fundos e caminha em direção à sua casa.
Olga apanha a bagagem no porta-malas. Pensa em pedir ajuda a
Chaya, suas duas malas estão pesadas, mas ao se dar conta da sujeira e
do estado de esgotamento da ex-colega, desiste. Passam pelo portão,
avançam pelo pátio, pela famosa estufa do avô Armin. Entram na casa
pela cozinha. Olga deixa as malas, o computador e a bolsa ali.
Caminha até a sala, onde Chaya a espera. Ela aponta para o sofá de
quatro lugares.
“Pode descansar aí. Se quiser ligar a tv, pegar um livro pra ler”,
Chaya mostra a estante na lateral, abarrotada de livros. “Preciso de um
banho e de algumas horas de sono. Não tô conseguindo raciocinar
direito.”
“Vai. Descansa. Tenho muita coisa pra te mostrar. Preciso que tu
esteja ligada.”
Chaya some no corredor que dá para os quartos. Fala alto lá de
dentro:
“Não fuma dentro da minha casa. E se alguém bater na porta: me
acorda, não abre.”

Passa do meio-dia quando Chaya levanta. Se veste. Vai até a cozinha.


Olga fez café, preparou ovos mexidos, bife frito e colocou na mesa pão,
nata, chimia e um pote com bolachas.
“Foi o que deu pra fazer por ti”, Olga tem um sorriso envergonhado
no rosto.
“Por mim? Não. Tu fez foi pra ti, Olga. Como tudo que tu faz.”
Chaya senta, coloca um bife mal passado no prato, corta um pedaço e
começa a comer. “Acertou o ponto da carne. Pelo menos isso.”
“Delicada como sempre. Come bastante agora, porque o que eu
tenho pra te mostrar depois vai tirar o teu apetite.”

As duas estão de frente uma para a outra à mesa de jantar na sala, a


maior peça da casa. Numa bancada de vidro, contra uma das paredes,
há porta-retratos com fotos antigas de Sarampião, do seu avô Armin
com sua avó Idalina e também da sua mãe, Amara, grávida.
“Tua mãe?” Olga pega a foto.
“Sim.”
“Tu nunca disse o que aconteceu com ela.”
“Qual é, Olga? Viramos melhores amigas agora?” Chaya olha para os
papéis distribuídos sobre a mesa. “Isso aqui tem chance de ser alguma
montagem, de não ser real?”
“Aqui o timbre da operadora, a data, os códigos. É real. Esse monte
de ligações pro número dele. Sem falar nesses valores com o nome do
Enrico anotado ao lado. Não há dúvida.” Olga é taxativa.
“Como eu posso ter sido tão cega?” Sente um peso no peito. Tenta
disfarçar, mas seus lábios vão ficando pálidos. Olga percebe.
“Quer parar um pouco? Deixamos pra ver o resto depois.”
“Preciso pensar.” Chaya encara Olga. “Tu pode ter armado tudo isso
pra incriminar o Enrico.”
“Sei que deve ser difícil pra ti acreditar, mas tenho os contratos, os
documentos, números de contas, depósitos. Chaya, lamento. Ele foi
um pai pra ti, foi a tua família por…”
“Cala essa boca. Tu não sabe de nada.” Chaya empurra os papéis
para longe.
“Tá com raiva de mim que te trouxe essas informações? Que tô te
falando a verdade, abrindo os teus olhos, e não do Enrico? Aquele
miserável.”
“Viu? Tá fazendo tudo isso por ti. Tu odeia ele.”
“Tô fazendo porque disse que ia te ajudar a descobrir quem em
Dourado tá envolvido com a Gran Roncador. Tô fazendo isso porque
essa gente não pode continuar se safando de tudo.”
São tantos os pensamentos, as lembranças, conversas que teve com
Enrico que passam pela cabeça de Chaya. Ela fica zonza. Puxa uma
cadeira e se senta. Pessoas culpadas mentem, simulam com uma
verdade inquestionável. Ele enganou a todos. Ela sente remorso por ter
se deixado permanecer naquela bolha invisível de segurança e
interesses em comum, em que acreditava viver, em que todos
acreditavam viver naquela cidade. Traiu seus instintos, quando chegou
a desconfiar de Enrico e nada fez.
“O Tales…”, Chaya diz.
“Não. Ele não tá metido nisso. Ele é o oposto do pai e tu sabe disso
melhor que ninguém.”
“Óbvio que eu sei. Mas também sei que ele idolatra e ama o Enrico.
Presta atenção, o Tales não pode saber de nada. Ouviu? Ele tem aquela
boca enorme, pode dar com a língua nos dentes, mesmo não querendo
fazer isso”, Chaya adverte e em seguida se levanta. “É sério, Olga. A
gente tem que ser racional agora.” Pega seu celular do bolso da calça e
começa a fotografar os documentos.
“O Tales te contou?”
“Nós não viramos confidentes, Olga. Eu não vou conversar contigo
sobre a tua vida afetiva, muito menos se ela tiver alguma coisa a ver
com o Tales.”
“Não acha que já passou tempo demais? Que tu podia tentar me
perdoar?”
“E tu alguma vez me pediu perdão?”
“Bem, eu tô aqui…”
“Chega de conversa. Precisamos tratar do Enrico, do Heich­ma e
dessa hidrelétrica. Mais nada além disso.”
“Tu vai conseguir mentir?”, Olga pergunta.
“Como assim?”
“Ele é teu irmão e tá na cara que tu te importa com o que ele vai
pensar, como ele vai reagir.”
“Não vou mentir. Vou omitir, e vou fazer isso por amor. Tu tem
razão, o Tales é a única pessoa viva com quem me importo nesse
mundo, e vou fazer o que puder pra protegê-lo. É por isso que não vou
contar nada, e também é por isso que desejo alguém totalmente
diferente de ti pra ele. Não acho que tu tenha mudado, mesmo me
trazendo tudo isso aqui.”
Olga se levanta, sai da sala de jantar, vai até a cozinha, pega água,
bebe. Pela janela, observa a estufa de Armin. Pensa na adolescente que
foi quando morou em Dourado, nos erros que cometeu, nos
arrependimentos que carrega. Sua mão treme. Aguentou coisas demais
até agora. Não fará mais concessões. Ela volta ao encontro de Chaya.
“Eu sei que fui uma filha da puta… sei que tu tem todos os motivos
pra não acreditar que eu tô tentando fazer as coisas de maneira
diferente, tentando ser uma pessoa diferente. Mas eu também sei que
essa não é a única verdade que existe sobre mim. Tem outra, e eu vou
achar ela. Por isso pedi tua ajuda pra encontrar ele…”
“De novo isso”
“Preciso encontrar o Sarampião.”
“Não é porque tu tá dentro da minha casa que eu não vou te encher
de tapa.”
“Eu disse que ia te trazer todas as provas e só te pedi uma coisa. Uma
única coisa”, Olga insiste.
“Depois do que tu fez, desgraçada?”
Olga fica confusa, não sabe o que responder. Chaya con­tinua:
“Tu desrespeitou, desprezou a memória da minha família, fazendo o
que fez naquela praça. Menosprezou a importância do Sarampião pra
cidade, pra mim. Brincou com a memória de um lugar sagrado pra
todos que amavam Sarampião. E antes disso, ainda tentou me
ridicularizar dentro da sala de aula, no colégio. Pra quê, Olga? Pra
quê?”
“Eu errei. Tava cega, queria me vingar. Tu tentou acabar com o meu
namoro e do Tales várias vezes, até conseguir. Era sempre escrota
comigo de graça. Eu tava no meu limite naquele dia, Chaya. Não fui
santa, mas tu… essa conversa não vai levar a nada.”
“Não vai levar a nada mesmo. Pode esquecer Sarampião.”
Olga começa a recolher os papéis da mesa.
“Não vou pra Argentina, não vou terminar de escrever artigo de
denúncia pra jornal nenhum. Nada disso tem sentido se não puder pelo
menos tentar pedir perdão pro Sarampião. É isso ou eu jogo toda essa
merda no Uruguai.” Olga amassa os papéis.
“Para. Tu é um pé no saco, Olga. Tá bem. Mas tu não faz ideia do
que te espera”, Chaya avisa.
“Vou descobrir.”
“Te prepara: vai ter que ser esta noite. Tu não pode mais ficar em
Dourado.” Passa os dedos sobre os olhos, depois sobre as sobrancelhas.
Olga sorri. Chaya percebe, o que a deixa ainda mais brava. “Guarda
esses dentes. Preciso que tu me mande todas as fotos que tu tirou lá
naquele gabinete, a gravação da tua conversa com o Heichma, os
documentos do pen drive. Vou deixar tudo salvo em mais de uma
nuvem.”
“Já tenho na minha.”
“E se te pegarem? E se te matarem? Precisamos salvar em outros
lugares, por garantia.”
Olga volta a sentir a mesma coisa que sentiu no dia anterior, quando
pegava a documentação no gabinete, mas agora elevada ao quadrado.
Suas pernas e seu queixo tremem. Ela busca uma cadeira e se senta.
Chaya já viu aquela expressão outras vezes. Entende o sentimento que
é ter um vulcão em erupção dentro do corpo. Olga não pode desistir,
Chaya pensa.
“Olga, olha pra mim. Olha nos meus olhos. Calma. Respira pela
boca. Isso. Vamos contar juntas até dez.”
Elas contam. Olga pega nas mãos de Chaya, que tenta se soltar, mas
acaba deixando. Olga começa a se acalmar. Chaya continua falando:
“Como tu mesma disse, tu tá fazendo a coisa certa. Só um dos lados
vai fazer história e ser lembrado pra sempre, e não é o deles, é o lado da
jornalista que vai denunciar essa gente. Na Argentina tu estará segura.
Continua escrevendo esse artigo. Não te deixa intimidar. Tu não é
fraca. Tu não é medrosa. Se tem coisa que tu não é, nem nunca foi, é
medrosa e fraca. Isso eu invejava em ti na época do colégio.”
“Nunca pensei que ia te ouvir dizer algo assim.”
“Pois é verdade.”
“Obrigada.”
Chaya vai na direção da porta de entrada da casa. Antes de sair,
pergunta:
“Tem certeza de que eles vão publicar nesse jornal? Que não vão
vazar nada antes? Tu confia mesmo neles?”
“É a nossa melhor chance. Eu confio… Eu preciso confiar.”
Toda guerra é um acordo

No meio da tarde do mesmo dia 31 de outubro, Heichma e Senna


estão em pé, na garagem subterrânea da Assembleia Legislativa do Rio
Grande do Sul, ao lado de um carro preto com a porta do motorista
aberta. Senna joga no chão o resto do cigarro e pisa nele.
“Não conseguiram localizar o celular dela?”, Heichma pergunta.
Senna nega com a cabeça. Está nervoso.
“A gente não sabe tudo que ela tem na mão. Duvido que vá até o
Ministério Público. Falta coragem e até inteligência praquela lá. Quem
levaria a sério?”, ele fala.
“Puta que pariu, Senna, se ela teve peito pra fazer o que fez, é claro
que ela vai tentar mostrar isso. Só o que tem no teu caderno e no meu
cofre já fode com tudo”, Heichma sussurra no ouvido de Senna.
“Ninguém de Brasília pode saber por enquanto.”
Senna sai de perto do político.
“Eu vou pra Dourado. Ela deve tá lá”, ele diz.
“Já falei com o filho do ex-prefeito Ricci. Ele vai tentar achar ela.”
Uma gota de suor grossa e ensebada escorre pela testa e desce até o
maxilar e o pescoço de Heichma. “A Olga tá puta. Eu sei porque essa
desgraçada tá fazendo isso. Mulher quando tira pra ser louca, só
matando. Matando”, fala cuspindo, soltando perdigotos.
“Se pelo menos o pai conseguisse domar. Mas agora nem ele me
atende mais.”
“Vou dar uma última chance. Tenta ligar de novo. Esse homem me
deve. Ele me pediu pra empregar a filha. Fiz tudo por ela: trabalho dos
sonhos, bom salário, férias muito bem pagas, folga a toda hora,
conselhos, ajudei o que nem eles ajudaram.”
Senna pega o celular do bolso do paletó e liga.
“Caixa-postal.”
“Liga pro Romano. Eu que vou falar.”
Senna obedece. Passa o telefone para o chefe.
“Seu porco inútil, quero saber se a Olga tá aí no hotel ou na casa do
teu filho? […] Não te faz de louco. Fala com o teu guri, descobre onde
ela tá e me liga de volta ainda hoje. Ela me roubou coisas. Coisas que
vão meter nós todos na cadeia. […] É isso mesmo: na cadeia. Mas
prometo que tu vai ser o primeiro.” Heichma desliga.
Alguns funcionários de outros gabinetes passam por eles e os
cumprimentam. Nenhum dos dois retribui.
“Isso pode virar uma guerra, Senna. Mas uma guerra que eu venço.
Vamos pra Dourado amanhã”, o deputado avisa.
Ser odiada e suportar

Cinco horas da tarde, Olga está só, sentada à mesa da cozinha de


Chaya com o computador aberto. Digita:
Nem só de rachadinhas vive o gabinete do deputado Heichma
Este artigo prova que um esquema de caça e pesca ilegais, camuflados
com o descaminho de vinhos argentinos, dentro da Unidade de
Conservação do Parque Estadual do Turvo, na fronteira entre Brasil e
Argentina, envolve não só empresários, mas também políticos do Rio
Grande do Sul, de São Paulo e de Brasília.
Escuta três batidas na porta da frente da casa. Se assusta. Fecha o
computador. Pega-o no colo e se encolhe no chão, contra a parede,
entre um armário e a geladeira, embaixo da janela. Escuta passos
rondando a casa, em seguida vozes de dois homens:
“Parece que tá tapera”, um dos homens diz.
“Tudo quieto mesmo. Vamos pelos fundos?”
De onde Olga está, ela vê refletidas na vidraça da ­cristaleira, à sua
frente, as sombras dos homens, que param diante da janela. Seu
coração acelera. Um deles força a porta dos fundos. Uma, duas, três
vezes. Olga se dá conta de que esqueceu o celular em cima da mesa.
“Quebramos o vidro da janela?”, o segundo homem pergunta.
“O senhor que manda.”
Olga, ainda segurando o computador, engatinha para o lado da área
de serviço. Eles quebram o vidro. Olga estremece e se esconde embaixo
do tanque.
Um carro estaciona dentro do pátio da casa, pelos fundos. Os
homens se assustam. Olga escuta passos apressados, em seguida uma
terceira voz grita:
“Da próxima vez eu chamo a polícia, seus babacas.”
Olga reconhece aquela voz. É Tales. Ele agora fala, deixando um
recado de áudio:
“Chaya, onde tu tá? Me liga. É urgente. O Ricci e um outro cara
estranho estavam aqui no pátio da tua casa. Disseram que tinham
marcado contigo e estavam te esperando. Vi uma vidraça da janela
quebrada. Por pouco não chamei a polícia.”
Olga corre para abrir a porta. Tales se surpreende quando a vê. Ela o
abraça e diz:
“Obrigada.”

O sol começa a se pôr. A caminhonete do parque dobra a esquina da


rua a toda a velocidade, para sobre a calçada na frente da casa de
Chaya. A porta do motorista se abre, Chaya desce, saca a arma do
coldre e com ela em punho entra no terreno, dá a volta pela casa, abre
a porta da cozinha devagar. Vê Olga e Tales sentados à mesa tomando
café.
“Ei! Calma, Chaya. Abaixa essa arma”, Tales pede.
Ela guarda a arma.
“Eles te viram aqui, Olga?”, ela pergunta.
“Não. Me escondi embaixo do tanque.”
Chaya percebe o vidro da janela quebrado.
“Foram eles?”
Olga confirma.
“Eu levo a Olga pra Argentina. É mais seguro”, Tales fala.
“Tu contou pra ele?”
“Que vou pra Argentina.” Olga ergue o dedo indicador, numa
tentativa de alertar Chaya a não falar mais nada.
“Tales, não te mete. Obrigada por me avisar, mas já pode ir.”
“Tá sendo grossa desse jeito por quê?”, ele pergunta.
“Não tô sendo grossa… Tá. Desculpa. Como tu sabe, tô cheia de
problemas lá no parque. Mas não preciso mais de ti aqui. Volta lá pro
hotel.”
“A Chaya tem razão. É melhor tu ir”, Olga pede.
“Não tô reconhecendo vocês duas. Vão me explicar o que tá
acontecendo? Vão me explicar essa amizade repentina?”
“Não tem nada demais acontecendo, e não tem amizade nenhuma”,
Chaya fala.
“Aqueles caras não estavam de brincadeira. Não vou deixar a minha
irmã e a minha… e a Olga aqui sozinhas.”
Chaya começa a rir. Pega a arma e coloca em cima da mesa.
“Acho que a gente consegue se virar sem ti, mano.”
“Tu já ajudou muito”, Olga fala.
“Tales, preciso que tu prometa que não vai falar pra ninguém que viu
a Olga aqui. Nem pro teu pai.”
“O pai? Mas por que ele faria alguma coisa com a Olga? Mana, tem
coisa estranha aí. Me fala.”
“Tu confia em mim, não confia? Então, é melhor ninguém na
cidade saber que a Olga tá aqui. Ela já tá indo embora e vai ficar tudo
bem.” Chaya pega Tales pela mão e o leva até a porta.
“Se tu diz…” Antes de sair, Tales olha para Olga. Chaya nota e se dá
conta de que talvez seja a última vez que os dois se vejam na vida. Ela
engole todo o orgulho e deixa seu amor pelo irmão adotivo falar mais
alto. Sem pensar muito nas consequências que virão, fala:
“Já que tu tá parado feito um poste, vou lá fora estacionar a
caminhonete direito e depois ligar pro Maurício Ricci. Tentar descobrir
o que aquele camundongo tava querendo. Quando eu voltar pra essa
cozinha, espero não te encontrar mais aqui”, ela fala e aperta a mão de
Tales, depois beija seu rosto e sai.
Olga e Tales não se mexem.
“Tu vai me ligar, ou mandar mensagens dando notícias?”, ele
pergunta.
“Melhor a gente ficar um tempo sem se falar.”
Tales não consegue esconder a cara de desespero. Olga continua:
“Mas quem sabe, quando eu voltar, a gente acerta os caminhos e
começa a andar junto de novo.”
Ela se aproxima dele e o abraça. Um abraço longo. Os dois se
beijam. Tales aperta o corpo de Olga contra o dele. Ela tenta se soltar,
mas ele não deixa.
“Nós dois precisamos recomeçar de outro lugar, como outras pessoas.
Essa Olga e esse Tales não são bons um pro outro”, ela fala.
“E quem garante que vamos ser pessoas diferentes no futuro?”
“Ninguém. Mas eu vou tentar.” Olga se solta dos braços de Tales e se
afasta.
“Se tu demorar muito pra encontrar essa nova Olga, eu vou atrás de
ti, não importa onde tu esteja.” Tales sai.
Olga fica abatida. Não sabe o quanto Tales vai odiá-la quando
descobrir que ela será a responsável por colocar Enrico na cadeia.
Este olhar cinzento

Tales chega ao hotel. Caminha pelo corredor a passos rápidos. Para em


frente à porta do escritório do pai. Entra. Não há ninguém. Senta-se na
cadeira e tenta abrir as gavetas da mesa de trabalho dele, mas estão
trancadas. Tateia com a mão por baixo, buscando a chave. O pai surge.
Tales se levanta sem esconder o susto. Percebe o pai com os olhos
acinzentados e o semblante mais pesado do que o habitual.
“Te assustei?”
“Não. Tava procurando um orçamento. Aquele, sabe? Das cerâmicas
pros banheiros da ala leste.” Desconversa.
“Tu ficou sabendo da Olga?”
Tales olha para o pai com decepção. Uma decepção que logo vira
tristeza. Mexe a cabeça negativamente e se afasta. Enrico percebe o
filho estranho.
“Tales, tá na hora de tu me escutar sobre essa guria. É pro teu bem.
Tu sabe se ela tá aqui na cidade?”
“Por que eu saberia?”
“Filho, parece que ela roubou umas coisas lá do gabinete do
Heichma e sumiu. Coisas importantes. Até dinheiro. Melhor que
aquela puta não venha pra cá pra trazer mais problemas pra ti nem pra
mim.” Tira uma chave do bolso da camisa e abre uma das gavetas da
mesa.
Tales o observa e pergunta:
“Que coisa estranha isso tudo, o senhor não acha?”
“O que é estranho?”
“O senhor se envolvendo nisso. Num assunto do gabinete do
deputado.”
“Eu sei o que eu tô fazendo.”
“Manda entregar uns vinhos. Não é assim que amansa ele?”
Tales sai.
O tempo passa mais rápido quando não se
tem tempo

A noite é quente, atípica para o fim de outubro. Chaya vai à frente,


segura a lanterna que ilumina a trilha no meio da mata do Turvo, pelo
norte, na extremidade contrária de onde aconteceu a queimada. Apesar
de distante, o cheiro de fumaça ainda está no ar. Olga a segue em
silêncio. Não disseram nada uma para a outra durante os cinquenta
minutos de caminhada. Suadas e cansadas, sentem-se melhor quando
finalmente começam a escutar, mesmo que baixinho, o som da cascata
ao longe. Quando finalmente chegam ao campestre, com muita laje e
pouca vegetação, Chaya tira uma colcha velha da sua mochila e joga
sobre um local com gramíneas.
“É aqui”, ela diz.
“Ok. Vou ligar a lanterna do celular, me sentar e esperar.”
“Tá certa disso?”
“Sim.”
“São mais de dezessete mil hectares de parque; se tu correr, te afastar
deste ponto, tu te perde. Entendeu?”
“Pra onde eu ia correr nesse breu?”
“Vão ser as horas mais longas da tua vida, Olga.”
“Eu aguento.”
“Volto quando o sol estiver nascendo.”
“Vou estar aqui.”
Sem dizer mais nada, Chaya se retira.
A escuridão é completa. Olga liga a lanterna do telefone com a
tranquilidade de quem tem não um, mas dois carregadores portáteis de
bateria na mochila, mesmo Chaya lhe dizendo, de maneira ríspida, que
lanternas não iam ajudar em nada naquele lugar. Ela se senta sobre a
colcha, acomoda a própria mochila para que sirva de travesseiro e se
deita. Observa o céu. Nunca viu uma noite com tantas estrelas. Fica
naquele estado de contemplação, com aquela sensação inédita de
liberdade por dez, quinze minutos. A sensação de que sua existência
parece suspensa no ar naquele momento. Até que um mosquito pica
seu rosto. Bate de leve contra a bochecha. Pega o repelente no bolso da
mochila e passa na pele. Escuta o estalo de um galho se quebrando.
Seu coração dispara. Ela se vira com a luz nada potente do celular na
direção do som. Não vê nada. Uma coruja chirria no alto de uma
árvore. Procura por ela, mas também não enxerga. Um grilo estridula
do seu lado direito, em seguida uma cigarra. Então ouve o som de
pisadas ao redor. Não consegue precisar de onde vêm. Projeta o facho
de luz em todas as direções.
“Quem tá aí? Eu tô armada.”
Silêncio completo. Ela respira fundo repetidas vezes. Tira da
mochila a faca que trouxe. Fica agachada, até que começa a se
acalmar. Senta-se de novo. Passam-se alguns minutos. Escuta um som
agudo. Parecido com o de um gato, um gato grande e selvagem.
“Deus do céu, o que é isso?”
Escuta o mesmo som de novo. Dessa vez mais próximo dela.
“Sarampião? Sarampião?”, ela chama.
Tem a impressão de que um vulto está parado à sua frente, não
muito longe, próximo à mata. Tenta forçar a visão, mas não consegue
distinguir o que é. O vulto se movimenta. Primeiro corre para o lado
direito, depois para o esquerdo, até que ela não o vê mais. Então sente
um bafo quente de uma respiração às suas costas. Se vira. Não há nada
nem ninguém. Algo começa a correr em círculo ao seu redor. Olga
sente seu corpo inteiro tremer, como se estivesse entrando em choque.
Seus braços e pernas estão gelados, o frio toma conta do seu peito e vai
até os pulmões, baixando sua temperatura. Levanta e dá um passo para
um lado. Muda de ideia, dá um passo para o outro. Suas pernas travam.
Ela fica estática. Quer fugir. Quer muito fugir. Mas não consegue sair
do lugar. Surge à sua frente um enorme e esguio puma marrom. Ele
não olha para ela. Passa lentamente como se Olga não estivesse lá, até
sumir no meio da escuridão. Ela olha para o chão e enxerga um círculo
perfeito ao seu redor feito com folhas, galhos e gravetos. A coruja volta
a chirriar. Os grilos e as cigarras voltam a se manifestar. Ela senta-se
sobre os pés. Inclina a cabeça sobre os joelhos e chora.
“Me perdoa, Sarampião. Me perdoa por tudo.”

O dia amanhece no parque. Um casal de corruíras canta animado.


Olga dorme tranquila, enrolada na colcha.
“Achei que não ia te encontrar.” Chaya debocha ao mesmo tempo
que cutuca as costas de Olga para que ela acorde.
Olga abre os olhos e, num sobressalto, sem que Chaya tenha tempo
de esboçar reação, se abraça na guarda-florestal.
“Calma aí.”
Olga, sem se soltar dela, diz:
“Tu não sabe o que aconteceu…”
“Agora pode me deixar respirar?”
Olga se afasta.
“Precisamos ir.” Chaya avisa.
Olga concorda e em seguida junta a colcha, dobra, entrega para ela.
Pega a mochila, coloca nas costas. Chaya lhe passa um copo térmico.
Olga bebe um gole e fala:
“Café com leite.”
Chaya caminha à sua frente.
“Trouxe café pra mim de lá até aqui? Quase uma hora de caminhada
e ainda tá quentinho? Que milagre é esse?”
“Tem uma estrada que ninguém usa, só os guardas. Ela fica a dez
minutos de onde a gente tá. Minha caminhonete tá estacionada lá.”
“Mas ontem tu disse…”
“Ontem foi ontem. Hoje tu é outra pessoa. Agora vamos.”
“Ele veio… Quer dizer… eu acho que ele veio”, Olga diz.
“Não importa se ele veio. Importa que tu veio.”
Os caminhos que levam ao inferno

Primeiro de novembro, a manhã é tranquila no território dos Pies


Rubros. Duas mulheres, uma jovem e outra idosa, põem água para
ferver em chaleiras de alumínio penduradas por um ferro em cima do
fogo feito no chão, no centro do povoado, em meio às casas e
contêineres. Ao lado há também uma panelada de mandioca sendo
cozida. Mulheres e homens saem de dentro das moradas, vão até a
pinguela de água e lavam o rosto. Crianças e adolescentes começam a
surgir nas portas e nas janelas, todos com a cara inchada de quem
acabou de acordar. O orvalho da manhã paira sobre a grama, os
arbustos e as poucas flores ao redor.
Preta surge ao longe. Ela anda devagar. Seu semblante é pesado.
Está suja de terra e sangue, espalhados pelo corpo e pelas roupas. Uma
mulher do grupo abre um sorriso:
“¡Volvió! A chefe voltou”, ela diz.
Atrás de Preta, vem uma das caçadoras, em seguida outras duas. Elas
carregam um tronco de pitangueira; nele está amarrada, pelas patas,
uma onça morta. É a Velha, como era ­conhecida. León e outros dois
homens do grupo, que estavam com a chefe na caçada, surgem mais
atrás, carregam uma caixa de isopor ­pesada. Todos parecem exaustos e
tristes, menos León, que não tenta disfarçar uma felicidade que é
desconfortável para os ­demais.
O grupo dos Pies Rubros olha fixo para a Velha morta. Alguns
colocam as mãos na boca. Outros chegam a dar um passo para trás à
medida que as caçadoras se aproximam com o animal. Soltam o corpo
da onça no chão, em frente à casa verde de Preta. Em seguida, sentam-
se ao lado da bicha. Preta percebe o clima de preocupação e comoção
no ar. Toma a frente:
“Atenção todo mundo ao que temos que fazer agora.” Mantém a
firmeza na voz. “Fiquem fortes. Entenderam? Peguem as tábuas
maiores e os cavaletes. Montem a mesa aqui. Fervam a água nos
tachos.” Ela solta o ar, depois engole a saliva grossa e ácida. “Comecem
a tirar a pele e a desossar”, Preta termina a frase com voz baixa, abatida.
Por um instante ela pousa os olhos na terra vermelha, nos pés
descalços, machucados e sujos. León se aproxima. Pousa a mão no seu
braço, fazendo-a voltar para aquele lugar, para aquele instante, para o
seu povo.
“¿Puedo conservar el diente?”, León pergunta.
Preta o observa. Ele tem o rosto virado na direção da onça, suas
pupilas estão dilatadas, fixas na boca da bicha morta. Os pensamentos
de Preta vão imediatamente para a sua avó Tédi; depois, mesmo não
querendo, para o seu bisavô Sarampião. Ela sabe o que aquilo significa.
Sabe o que deve fazer, o que já deveria ter feito. Mas não tem
disposição para falar com o menino. Não naquele momento. Ela tira a
mão dele e, ao se afastar, diz:
“Fique com ele.”
A pele da onça foi totalmente retirada e está esticada sobre os galhos de
uma árvore. Na mesa armada no centro dos Pies Rubros, o sangue do
animal escorre e se mistura à grama e ao solo seco. As pessoas cortam os
pedaços da carne, enfiam em plásticos grossos e jogam dentro de uma
enorme caixa de isopor encardida, cheia de gelo. Os ossos são separados
dentro de outro recipiente. Assim como o canino que sobrou e os
demais dentes. Tudo será vendido.
León está sentado na escada de madeira, que dá acesso à casa verde
onde vive com Preta. Segura o canino da Velha com satisfação. Usa um
canivete para limpar os restos de cartilagem, pele e sangue que ainda
estão grudados nele. Preta, de banho tomado, cabelos molhados e
soltos, roupa limpa, senta-se ao seu lado. Ela ainda tem a atadura com
emplastro amarrada a uma das pernas, cobrindo o machucado.
“Como tu te sente?”
“Hombre”, ele diz.
“Homem. Tem que aprender a falar brasileiro. Falar como eles, pra
negociar com eles.” Preta bate de leve na orelha do ­menino.
León não lhe dá atenção. Segue na sua ação de limpeza.
“Cada animal que tu mata, tu te torna mais animal e não mais
homem.” Preta dá uma cotovelada na lateral da barriga dele, que dá
um gemido. “Nunca esquece disso.”
Um cachorro se aproxima do isopor com a carne de onça, põe a fuça
para dentro e abocanha um saco. Antes que ele consiga fugir, León
joga seu canivete e acerta a coxa do bicho, que berra. Um grito
estridente e em seguida um latido esganiçado. A navalha fica cravada
na perna, e ele foge, mancando, para o meio do mato, deixando o saco
com a carne para trás.
“Agora termina o que começou”, Preta ordena.
“Como?”
Preta vai pra dentro da casa. Volta com um revólver antigo, calibre
.32.
“Vamos!”, ela ordena.
León fica paralisado, observa a arma na mão de Preta.
“Vamos!” Impaciente, Preta ordena pela última vez e caminha na
direção da mata. León vai atrás.
Uma reza não ouvida

No início da tarde, Heichma e Senna passam pelo portal da cidade de


Dourado. O termômetro do relógio de rua instalado na praça marca
trinta e oito graus. O deputado diminui a velocidade e estaciona. Os
dois descem, caminham até o chafariz e a estátua de Sarampião.
Heichma aponta para uma pequena capela no fim da rua.
“Vamos lá.”
Os dois entram. Só Heichma se ajoelha. O político está com a
camisa suada grudada no corpo. Ele reza um pai-nosso. Senna fica em
silêncio. Voltam para o carro.
“Tu não reza, Senna?”
“Deputado, algo me diz que rezar não vai nos ajudar nesse caso.”
Heichma franze a testa ensebada. Faz o sinal da cruz.
“Credo! Um homem sem Deus é um homem oco por ­dentro.”
Eles se dirigem até o hotel do Romano. Param em frente ao
estabelecimento. Heichma desce do carro e, sabendo do ­impacto da
sua presença ali, fica na calçada do hotel apertando a mão das pessoas
que transitam. Há as que se animam e o cumprimentam, há também as
que desviam e até as que se negam a lhe estender a mão. Mas ele não
se abala.
“Sou o deputado de vocês. Sou eu que trago dinheiro pra essa
cidade”, fala alto.
Enrico aparece na porta de entrada do hotel.
“Deputado? Não sabia que o senhor tava na cidade.”
“Precisei aparecer, Romano.” Heichma fala com austeridade.
“Tu não responde às nossas ligações, Romano.” Senna bate de forma
brusca no ombro de Enrico.
O político termina de cumprimentar um casal de jovens, que parece
não saber exatamente quem ele é, e vai ao encontro dos dois.
“Cheguem. Vamos pro escritório lá no fundo”, Enrico diz.
Passam pelo corredor extenso, entram no escritório. Enrico fecha a
porta. Senta-se à mesa e, com um gesto de mão, oferece as poltronas à
frente para que os dois se acomodem.
“Queremos falar com aquela brasileira, a tal cabocla que manda
naqueles marginais lá do outro lado da fronteira”, Senna diz.
Heichma mexe no celular, faz de conta que não está prestando
atenção.
“Terceirizou conversa importante pra esse teu assessor aí,
Heichma?”, Enrico pergunta.
“Chefe de gabinete!”, Senna é ríspido.
“Não tô aqui nessa sala, não sei dessa conversa de vocês.” Heichma
pega um jornal de cima da mesa e simula ler.
“Descobrimos com uns vizinhos que os pais da Olga foram pra
Argentina, pra esta região aqui do outro lado, as Misiones. Acreditamos
que a Olga deve tá lá também. Queremos falar com a tal cabocla. Ela
tem poder lá. Os Pies Rubros não trabalham por plata? Nós temos
plata”, Senna fala.
“A Preta não manda na região toda. Só nessa parte da fronteira. Ela é
uma líder local. Há outros lá pra dentro”, Enrico explica.
“Não trova, velho. A gente sabe que ela é temida e manda mais que
qualquer um. Dá um jeito dela vir até aqui conversar com a gente”,
Senna ordena.
“Dá pra ver que tu não entende nada de um lugar como esse, nem
de grupos como os Pies Rubros. Se tu quer falar com um chefe, com
uma chefe, tu vai até ela.”
Heichma levanta. Joga o jornal na poltrona em que estava sentado e
fala:
“Vocês dois vão atravessar o rio amanhã de manhã.”
“Não. Peraí, deputado…” Senna não consegue terminar a frase.
“Tu tem muita culpa nisso”, Heichma fala alto com Senna, depois se
dirige para Enrico. “Trata de fazer ela encontrar vocês amanhã,
Romano. É vida ou morte, homem. Tu vai ser o primeiro a ter o
pescoço cortado se a gente não pegar o que a Olga tem com ela e
destruir.”
Senna está de cabeça baixa, com a expressão agoniada. Enrico
coloca uma das mãos na altura do estômago e não esconde a cara de
dor. Heichma caminha até a porta, antes de sair fala:
“Manda arrumar um bom quarto pra eu dormir. E, Senna, te
organiza porque se alguma coisa der errado, prometo que te esfolo vivo.
A gente só vai embora depois que toda essa merda estiver resolvida.”
Tales aparece. Cruza com Heichma.
“Boa tarde”, Heichma o cumprimenta. Tales não responde.
Senna passa por ele também. Tales espera alguns segundos, até os
dois se afastarem pelo corredor. Fecha a porta do escritório.
“O que eles querem aqui? Que que tá acontecendo, pai?”
Enrico está apreensivo.
“Filho, já te falei isso mil vezes: não te mete. Confia em mim. É
melhor que tu não saiba de nada.”
Solo castelhano

No mesmo dia, por volta das quatro da tarde, Olga atravessa o rio
Uruguai em um barco de madeira, não muito grande. O sol arde. O
calor é desproporcional. Um castelhano, mais ou menos de trinta anos,
pernas compridas e finas, usando regata e boné, conduz o motor da
embarcação. À frente de Olga, uma pequena mala que ela trouxe. No
colo, sua mochila com o computador, o celular e documentos. Ela
olha para todos os lados, em todas as direções, confere se ninguém a
seguiu, mesmo com Chaya e o condutor lhe garantindo, mais de uma
vez, que naquele trecho do parque, por onde ela saiu, clandestina, não
apareceria vivalma.
Chegam a solo argentino. O castelhano pega a mala numa das mãos,
na outra um facão. Olga o segue com a mochila nas costas. Sobem um
barranco íngreme, molhado, de difícil acesso. Seguram em raízes e
troncos de árvores para conseguir subir. Alcançam uma mata fechada,
mas com a superfície mais plana. Seguem por ela. O homem, à frente,
abre a trilha com o facão. Andam uns trinta minutos naquela floresta.
Olga tem os braços e as pernas arranhados. Foi um erro ter vindo de
bermuda, pensa.
Escutam um latido, depois a voz de alguém que ordena ao cão que
faça silêncio. O castelhano interrompe a caminhada. Os dois se olham
e entendem que precisam ficar mudos. Devagar, ele larga a mala e,
como quem nasceu no meio daquele lugar, se embrenha e some. Olga
não sabe o que fazer. Se esconde atrás do tronco de uma grápia alta.
Segura a respiração. Tira a mochila das costas e se abraça a ela. Fica
atenta a tudo. Escuta o grito de uma harpia. O som vem do alto. Olha
para cima e localiza o pássaro pousado num galho. Fica vidrada nas
penas brancas e acinzentadas no peito e nas asas, a típica coloração
dessa espécie tão difícil de ser encontrada. Acaba se distraindo com
aquela visão rara, a ponto de relaxar um pouco e sentar-se no chão.
Uma mão cobre sua boca e seu nariz. Ela tenta, mas não consegue
gritar. Pisca uma, duas vezes. Vê o homem que a trouxe à sua frente.
Ele põe o dedo indicador nos lábios pedindo que ela não faça barulho e
fala em portunhol, sussurrando:
“Ellos están perto.”

No banco de trás de um Ford Falcon cupê 1992 tão velho e


malcuidado que está sem a porta do carona, conduzido por um
homem branco de meia-idade, de braços magros e barriga saliente,
usando óculos escuros estilo aviador e uma camisa aberta até o umbigo,
Olga fuma um cigarro enquanto observa o verde intenso da paisagem.
O condutor do barco está no banco do carona, com o braço direito
erguido, segurando a alça de segurança, demonstra naturalidade em
andar num carro sem porta.
Chegam a um vilarejo, na periferia da província de Corredera
Moconá, nas Misiones. Param em frente a um pequeno prédio com a
fachada pintada de azul-claro e branco e, no centro, a bandeira da
Argentina. As grades que protegem as portas e as janelas de madeira do
prédio são de um ferro velho e corroído, com restos de tinta, que
lembra que uma vez aquilo foi pintado de marrom. No segundo andar,
é possível ver as cortinas laranja atrás das vidraças empoeiradas. Acima
da pequena porta de entrada há um letreiro em dourado escrito hotel.
Olga desce do carro pelo lado que não tem a porta. O castelhano
abre o porta-malas e lhe entrega sua bagagem. Ele não diz nada. Olga é
quem fala:
“Obrigada.”
Ele acena com a cabeça e volta para o carro. Os dois vão embora.
Olga olha para aquela paisagem inóspita. Inóspita para a sua realidade.
Não consegue distinguir o que é certo e o que é errado naquela nova
vida em que acabara de entrar. Como tudo aquilo, aquela troca de
mundos, aconteceu tão rápido?, se pergunta.
Entra no quarto do hotel. Acende a luz. Passa duas vezes a chave na
porta, pega uma cadeira e a coloca escorada contra o trinco. Olha para
as paredes brancas manchadas pelo tempo, a cama de casal com uma
colcha laranja, combinando com o cortinado, o banheiro minúsculo,
ao lado uma pequena mesa e uma cadeira de metal cromado com
pontos de ferrugem visíveis, o sofá em frente à televisão antiga, com
antena interna acoplada, o frigobar, sem nada dentro e desligado, ao
lado da cama, cumprindo a função de mesa de cabeceira. Larga a
mochila. Pega o computador. Liga. Testa a internet do lugar. Até que
funciona bem. Suspira aliviada. Um sentimento bom que surge pela
primeira vez naquela tarde desde que se despediu de Chaya, na
barranca do rio. Abre um pouco a cortina para deixar a claridade do dia
que vai terminando entrar no quarto. Pega o celular. Verifica as
chamadas recentes, seleciona o número do pai. Liga.
“Oi, pai. Vocês tão bem?”
“Por que essa demora em dar notícias? Quer nos matar do coração?”
“Não pude ligar antes. Melhor vocês ficarem aí escondidos mais um
tempo. Vou ficar aqui até resolver um assunto.”
“Mas viemos pra cá pra ficar contigo.”
“Só mais uns dias. Quando a poeira baixar a gente se encontra.”
“Não. Nós somos uma família e vamos ficar juntos. Se tu não disser
onde tá, eu vou chamar a polícia.”
“Tá bem. Não grita, pai. Polícia nenhuma iria te ajudar, mas a parte
família me convenceu. Vou amanhã de manhã até aí encontrar vocês e
viremos todos pra cá.”
“Por que ir praí? Aqui onde a gente tá o hotel é ótimo. Tem piscina
térmica.”
“Só tu pra me fazer rir, pai. Mas não dá. Ou ficamos aqui, ou fica
cada um numa cidade. Aqui vive uma fonte, uma pessoa com quem
vou precisar encontrar pessoalmente algumas vezes.”
“Tá bem. Mas aposto que tu tá num muquifo com cheiro de mofo e
sem piscina.”
“Amanhã cedo tô aí. Boa noite, pai. Beijos nos dois.”
Olga volta a olhar para a tela do computador. Abre o artigo. Rola o
documento para baixo, chega aos últimos parágrafos escritos. Observa
cada linha com atenção. O texto está estruturado, nele estão as
informações, a transcrição de parte da gravação e as provas, que
também serão enviadas em anexo. Mas falta algo essencial para dar
mais credibilidade ao trabalho jornalístico dela: uma entrevista com
Preta. Não importa que Chaya tenha lhe proibido de falar com ela. A
visão e as informações de Preta são únicas. Ela é parte daquilo tudo.
Chaya e Preta Sarampião são aquele lugar, e Olga Befreien é quem vai
mostrar para o mundo quem são Heichma, Enrico e outros políticos e
empresários e o que eles podem fazer com a casa delas, a casa do bisavô
delas e de todos os que nasceram e vivem lá. Diz para si mesma: “Não
sei como, mas vou falar com essa mulher”. Começa a sentir o calor
abafado do quarto. Vai até a janela, abre um dos vidros, então repara
num homem do outro lado da calçada, parado, olhando para ela. Ele a
encara por um tempo, depois começa a andar devagar na direção em
que o sol está se pondo.
Esse inferno que somos nós

No fim da manhã do dia seguinte, Senna e Enrico param o barco a


motor na encosta do rio Uruguai, do lado argentino. Sentados em
silêncio, esperam por trinta minutos. Preta surge por entre as árvores.
Está armada, uma pistola automática na cintura e um facão enorme na
mão esquerda. Senna se assusta ao vê-la, tenta se levantar, mas se
desequilibra, tomba para trás do assento de madeira da embarcação.
Enrico, em pé, atento à aproximação dela, repara na atadura que cobre
parte da perna da mulher. Preta observa Senna de cima a baixo.
“É esse o sujeito?”, Preta toma a frente da conversa.
“É. O chefe de gabinete do…”
“Sou o homem que vai te pagar em dólar pra terminar um serviço,
cabocla.” Senna interrompe Enrico, sai do barco e dá dois passos, se
aproximando de Preta.
“Cabocla?”
Preta empunha o facão e avança com uma agilidade nunca vista por
aquele homem da cidade, parando só quando a lâmina já está rente ao
pescoço do chefe de gabinete.
“Calma, Preta”, Enrico pede.
Senna se explica:
“Não tive intenção, dona.”
“Cabocla é palavra sagrada pra mim. Fala de novo e a tua língua vira
comida de palometa aqui nesse rio.” Preta passa o contrafio da lâmina
do facão lentamente pela bochecha dele. “Não pensa que tu tá
tratando com ignorante ou com gente pequena. Sei quem tu é, Senna,
sei o que tu faz, e sei que o serviço que vai me pedir é pro Heichma e
pros cupinchas dele. Tu é a mula que veio entregar o recado e me
trazer o dinheiro. Tu não é ninguém. Posso te matar bem aqui, é só tu
falar mais alguma merda.” Preta desce o facão até o pescoço dele de
novo, agora com a lâmina virada para a pele do homem.
Senna não responde. Seus dentes batem uns nos outros. Seus joelhos
tremem. Ele urina nas calças. Preta ri.
“Frouxo!”
“Preta, por favor. Deixa o homem”, Enrico pede.
“Quero ouvir da boca desse mijão, com todas as letras, o que
exatamente o deputado quer que eu faça.”
Senna tenta, mas não consegue responder. Nenhum som sai da sua
boca.
“Deixa ele se recompor. É gente da cidade, gente desqualificada pra
essas situações”, Enrico fala aquilo com prazer.
Preta afasta o facão do pescoço do homem, que, num impulso, anda
de costas, dispara para dentro do rio, se segura na parte lateral do barco.
Fica com água até a cintura.
“E são uns cagões desses que tão no topo da cadeia de comando do
estado e do Brasil.”
“Senna, fala ou a gente não vai embora daqui tão cedo”, Enrico
avisa.
“Eu… Nós… precisamos que tu suma, dê um fim na jornalista”,
Senna diz.
Enrico, incrédulo, fala:
“Não. Tu disse que era só pra achar a menina e pegar as coisas de…”
“Cala a boca, velho! Que jornalista?”, Preta o interrompe.
“Olga Befreien. Ela nasceu em Dourado, mas trabalhava pro
deputado… trabalhava comigo na Assembleia, em Porto Alegre. Ela tá
escondida aqui desse lado.” A voz de Senna é baixa, sua fala é
claudicante.
“Eu sei quem é. E por que quer dar um fim na mulher?”
“Roubou coisas. Documentos importantes demais. Muita gente
poderosa pode cair se ela mostrar aquilo pra alguém ou se ela falar
daquilo pra alguém. Ela precisa sumir.”
“Vocês disseram que só iam pegar os documentos, as provas”, Enrico
diz assustado.
“Tu sabe o que vai acontecer contigo, com os teus negócios e com
todos nós se ela continuar viva. Até ela”, Senna aponta para Preta,
“pode cair.”
“Isso não vai acontecer. Meu grupo e eu somos invisíveis. Nós nem
existimos, né, Enrico?”
“Vocês tão loucos?” Enrico se desespera e vai até Senna. “Não vou
ser cúmplice de assassinato.” Ele segura a camisa do chefe de gabinete
e empurra seu corpo para dentro do rio. Ele se debate.
Preta dá um tiro para o alto.
“Chega”, ela ordena.
O velho Romano o solta, Senna tosse e fala engasgado.
“A Olga sabe de tudo. Não tem outro jeito. Ela precisa sumir do
mapa. Se ninguém achar o corpo, vai ser dada como desaparecida e
isso se resolve”, Senna olha para Preta. “Não é assim que as coisas
acontecem aqui?”
Enrico leva as duas mãos à cabeça. Fecha os olhos e diz para si
mesmo:
“Não! Não!”
Preta cospe no chão.
“Quanto?”
“Vinte mil dólares.” Senna sai de dentro do rio e tira do bolso da
calça um envelope grosso, dobrado e molhado. “Dez agora, se tu
aceitar. Dez depois do trabalho feito.”
“Não!”, Preta diz.
Senna segura o envelope na mão, fica confuso, não sabe o que fazer.
“Quero os vinte mil agora. Ou não tem conversa”, Preta avisa.
“Preta, não faz isso”, Enrico implora.
“Tu trouxe ele aqui sabendo que não era coisa boa. As tuas mãos já
estão nisso, não adianta tentar dar uma de arrependido agora, velho”,
Preta fala para Enrico, depois se volta para Senna: “Vinte”.
“Tenho mais dois mil aqui”, Senna tira outro envelope da cintura,
por baixo da camisa.
“Imbecil.” Ela arranca o dinheiro da mão dele.
Preta olha com ódio e desprezo para os dois. Ergue a pistola e aponta
para a testa de Senna.
“Vocês não merecem nem usar do oxigênio deste planeta. Seus
vermes”, ela diz.
“Não. Não. Pelo amor de Deus. Não faz isso. Tenho filhos. Filhos
pequenos.” Senna volta para dentro do rio e se esconde atrás do barco.
“Enrico, faz alguma coisa.”
Enrico e Preta se encaram. Sem tirar sua mira de Senna, ela dá
alguns passos para trás, chega junto aos arbustos. Anda por entre as
árvores até sumir na mata.
Tudo por nada

Cinco de novembro, Olga e seus pais, que estão hospedados no mesmo


hotel que ela, almoçam juntos. Ela avisa que precisa comprar cigarros e
pega emprestado o hb20 Sport deles. Atravessa a pequena cidade e para
em frente à loja de conveniência de um posto de gasolina, na
extremidade oeste da província de Corredera Moconá. Acende um
cigarro de um maço quase cheio, que ainda tem na bolsa, e se escora
no capô, certa de que os óculos escuros, o boné preto, a camiseta
branca e larga, a bermuda jeans até os joelhos e os chinelos de dedos
estão impedindo que ela chame atenção ou seja reconhecida por
qualquer pessoa. Está terminando o segundo cigarro quando uma moto
com duas mulheres estaciona em frente a uma das bombas de gasolina.
Só a do carona usa capacete. O frentista corre para atendê-las.
Enquanto enche o tanque, conversa com a condutora. A outra, sem
tirar o capacete, caminha na direção de onde Olga está e, ao passar por
ela, fala baixo:
“Vem comigo.”
Olga joga o que resta do cigarro no chão e a segue.
“Continua andando”, a mulher ordena.
Olga fica um pouco mais atrás.
“Vamos caminhar até o final da rua. É o tempo que te dou.”
“Obrigada, Preta.”
“O que tu quer de mim?” Preta continua a andar.
“Eu tenho isso pra te dar”, Olga tira um pequeno envelope do bolso
da bermuda jeans e, apurando o passo, entrega na mão de Preta. Ela
guarda o envelope dentro do sutiã.
“Agora podemos dar a volta na quadra. Desembucha”, Preta ordena.
Dobram a esquina. Olga acende outro cigarro.
“É sobre as carnes de animais silvestres e os vinhos…” Olga espera
uma reação que não vem, então toma coragem: “Algumas pessoas que
compram isso estão envolvidas em coisa pior. Tenho alguns nomes,
mas preciso confirmar contigo”.
Preta parece indiferente ao que ela diz.
“E por que eu faria isso?”, ela pergunta.
“Porque tu é bisneta do Sarampião e não vai querer parte do parque
debaixo d’água.” Olga arrisca jogar uma das maiores cartas que tem.
Consegue uma reação da chefe dos Pies Rubros, que se mostra irritada:
“Quem é tu pra dizer o que eu vou querer ou não?”
“Isso é só o começo, uma fração de uma rede que envolve algo
maior. Crimes maiores. Tu vai perder território, Preta. Por isso tô
fazendo esse artigo… uma matéria pra um jornal do exterior. Preciso
dessa entrevista contigo. Tu é um dos nomes mais importantes pra essa
história.”
“Isso tá me soando bajulação, e odeio bajulação, mas como tu não
me conhece, vou deixar uma coisa bem clara: foda-se ­essa tua matéria e
foda-se tu.”
Um Fiat 147, verde militar, antigo, se aproxima devagar. Dois
homens de dentro do carro encaram Olga. Preta ergue a blusa,
deixando a pistola automática na cintura à mostra. O motorista acelera
e o carro segue pela rua. Olga observa com o canto do olho a arma de
Preta.
“O que foi aquilo?”
“Aquilo foi a fronteira e no que tu te meteu. Mas fica tranquila, só eu
tenho permissão pra te matar aqui nas Misiones”, Preta avisa.
“Me matar?” Olga disfarça, tentando não demonstrar medo.
Preta para de caminhar.
“Não acredito nessa tua boa vontade aí, jornalistazinha. Não confio
em quem vem largar adubo na desgraça dos outros. Não confio em
quem não tem ideia do que é levar uma vida sem opções, do que é
viver vendo o fundo do poço a toda hora.”
“Não é o meu caso”, Olga diz, incomodada.
Voltam a caminhar em silêncio por mais alguns metros.
“Quero ver os nomes que tu tem. E os documentos.”
“Como tu sabe dos documentos?”, Olga pergunta.
“Eu sei de tudo que se passa aqui. Me mostra ou essa conversa acaba
agora.”
Olga tira o celular do bolso. Desbloqueia, procura as imagens e
entrega a ela.
“De onde saíram essas imagens, tem muitas outras, Preta. E estão
bem guardadas em mais de um lugar, com mais de uma pessoa, do
outro lado da fronteira, inclusive com a Chaya”, avisa.
Preta balança a cabeça e dá a entender que não está gostando nada
daquilo.
“Vai colaborar comigo? Ser minha fonte?”, Olga insiste.
“Então tu sabe quem é o meu cliente mais antigo? Pra quem eu mais
entreguei carne da caça até hoje, né?”
“Sim.”
“Não vi o nome dele nessa lista.”
“O nome do Enrico Romano tá em vários documentos, só não tá
nestes.”
“Então tu vai botar o nome do velho filho da puta na roda?”
Olga não responde.
“Tá com dó do filho dele, né? Tu, Chaya e todo mundo sempre
acobertando os podres dos Romano. Tudo por baixo dos panos”, Preta
diz, e então retira o capacete. Seu rosto e seus cabelos estão suados. As
cicatrizes e manchas aparecem ainda mais destacadas na pele vermelha
e irritada pelo forte calor. Para Olga, tudo naquele rosto é
extraordinário. Ela está fascinada. As semelhanças entre Preta e Chaya
são enormes. Além de todas as mesmas simetrias, o que há de mais forte
é o olhar. O mesmo olhar de Chaya, carregado com a mesma projeção
de raiva e de urgência.
“Vocês são iguais”, Olga diz.
“Quê?”
“Tu e Chaya. Na pré-escola, não acreditava, ou não queria acreditar,
que tu existia mesmo. Ela falava orgulhosa, se gabava da prima mais
velha. Eu tinha até inveja. Agora, vendo o teu rosto pela primeira vez…
vocês são iguais.” Olga fica séria. Se dá conta de que Preta não gostou
daquele comentário.
“A gente não tem nada parecido. Nada. A minha cara é cara de
quem teve uma vida que ela desconhece, que tu desconhece.” Cospe
no chão.
“Desculpa. Não achei que fosse te ofender.”
“Encerramos aqui. Não tenho nada pra te dizer. Nada pra falar sobre
mim nem sobre os Pies Rubros.”
“Não. Peraí. Por favor, Preta. É sobre isso também. Sobre contar a
história de vocês. O que nunca foi contado pra nenhum jornal. Pra que
o nome de vocês nunca seja esquecido. Pra que a história de décadas
dos Pies Rubros seja lembrada pra sempre. Desculpa se te irritei. O
nome do Enrico vai estar lá. Prometo. Deixa eu te…”
“Já teve carnificina demais na história do meu grupo e naquela terra.
Toma teu rumo, Olga”, ela fala, com a voz mais grossa que o normal.
Olga observa Preta se distanciar.
“Faz como tu quiser. Vou escrever sobre tudo que acontece deste
lado, e do lado de lá do Uruguai, com ou sem a tua ajuda. Eu arrumo
outra fonte”, ela fala.
Preta para de caminhar, levanta a camiseta, pega o cabo da arma
sem movê-la da cintura, em seguida agarra o pescoço de Olga.
“Eu tô por um fio pra usar isso aqui.”
Com voz rouca e falando com dificuldade, Olga argumenta:
“Por favor, me escuta, Preta: o parque tá em perigo, esse rio tá em
perigo, essa terra em que vocês vivem tá em perigo. O lugar onde o
Sarampião viveu, as casas de vocês em Pies Rubros, tudo pode ficar
debaixo d’água.”
Preta larga o pescoço dela.
“Essa hidrelétrica não vai produzir quase nada de energia, vai ser um
elefante branco, só pra desviar dinheiro pro bolso desses políticos e
empresários, e ninguém tá fazendo nada pra denunciar esses
desgraçados”, Olga termina de falar.
“A sabichona, estudada lá da cidade, acha que eu sou burra?”
“Não!”
“Estúpida. Eu sou uma caçadora. A melhor que existe aqui. E sei de
tudo que se passa nesse território.”
“E é por esse motivo que eu acredito que tu é a única pessoa
inteligente que sabe o que realmente tá em jogo. A única capaz de me
ajudar a pegar eles.”
“Foi a Chaya quem te pediu pra vir aqui?”
“Pelo contrário. Ela não pode nem saber que falei contigo.”
“Isso tudo não tá fechando na minha cabeça.”
“O que não tá fechando, Preta? Tô aqui na tua frente. Correndo
risco de vida. O que não tá fechando?”
“Porque uma guria que nunca respeitou ninguém, nem a cidade que
nasceu, que meteu fogo na estátua do Sarampião, tá aqui se arriscando
pra salvar a terra em que ele viveu?”
“As pessoas mudam, não mudam?”
“Não vem com esse papo de redenção, que eu conheço a tua laia.
Me fala a verdade. Seja mulher e para de mentir. O que realmente tá te
levando a fazer isso?”, Preta fala segurando a arma, sem tirá-la da
cintura.
“Eu tenho motivos pra querer me vingar. Satisfeita? Quero, sim,
cobrar uma longa conta.”
Preta bate palmas.
“Agora sim, apareceu uma mulher de verdade na minha frente.”
“Então vai me ajudar?”
Preta devolve o envelope com o dinheiro para Olga. Seu semblante
muda, ela fica séria e fala:
“Só vim até aqui por um motivo: pra te avisar que esse lugar tá
ficando perigoso pra ti. Pega o teu pai e a tua mãe naquele hotel barato
e vão pra bem longe. Último e único alerta que te dou.”
A moto que trouxe Preta encosta ao lado delas na rua. Preta sobe na
garupa. Coloca o capacete. Vai embora, deixando Olga para trás.
Recado entregue

Meio da tarde do dia 8 de novembro. Nestor está com os olhos na tela


do laptop enquanto Cláudio dirige a nova Hilux, caminhonete de
serviço cedida pelo governo do estado, por dentro do parque, numa
estrada desativada. Nestor monitora o sinal do colar de rastreamento de
uma das onças. Avançam devagar, seguem o ponto vermelho que pisca
na tela, mostrando que estão próximos.
“Diminui. É por aqui”, Nestor fala.
Seguem lentamente.
“É aqui. Ela tá aqui.”
Param. Descem. Cláudio pega a espingarda e Nestor, a escopeta que
dispara dardos tranquilizantes. Nestor anda com atenção mais alguns
metros. Acima dele, vê os trepeiros presos no alto das árvores e a ceva
amarrada a um dos troncos. Ergue o punho fechado, sinal para Cláudio
parar. Segue sozinho e cauteloso mata adentro. Avista o colar de
rastreamento jogado no chão, aberto. Pega e volta para junto de
Cláudio.
“Tá aqui”, Nestor mostra. “O colar que era da Velha. Tá com sangue
já seco da bicha.”
Cláudio olha para cima, na direção de onde Nestor veio, e avista os
trepeiros.
“Pies Rubros, esses desgraçados”, Cláudio fala desolado.
“Deixaram aqui de propósito. Um aviso. Vamos falar com a Chaya
pelo rádio.”
“Não. Tem que ser pessoalmente. Ela vai ficar furiosa. Tu sabe como
esse assunto pega nela.”
Sangue, mulheres e facões

Na noite do mesmo dia, Chaya, com a pistola automática destravada


em punho e um facão na cintura, entra cautelosa no território dos Pies
Rubros. Não há ninguém no pátio. As casas e os e contêineres estão
com as portas e janelas fechadas e as luzes apagadas.
“Preta!”, Chaya grita.
Não há resposta. O único som é dos grilos e cigarras que estridulam
nas proximidades.
“Aparece, miserável!”
Ouve uma risada vinda de trás de um dos contêineres. Aponta a
arma para aquela direção.
“Quem tá aí?”
Os segundos passam sem que nada aconteça. Até que, empunhando
um facão, Preta surge no breu, por trás de Chaya. Seu caminhar de
caçadora não entrega sua presença. Para a uns vinte metros da guarda-
florestal.
“Demorou por quê?”, Preta pergunta.
Chaya se vira, as duas se encaram, ela pega o facão da cintura.
“Vem!” Preta ergue o facão.
Chaya parte para cima da prima, que flexiona as pernas, encolhe a
barriga, concentrando sua força na pélvis, como aprendeu com sua avó
Tédi: “Espera o animal chegar perto”. Chaya dá um salto. As duas
lâminas se encontram no ar. Os facões se batem mais uma, duas, três
vezes. Elas se afastam e começam a andar em círculo.
“Hoje tu vai apanhar de pranchada, Chaya. Vai aprender de uma vez
a respeitar os Pies Rubros.”
“Monstro! Matou a nossa onça mais antiga.”
“E vocês mataram um menino nosso, um tiro que abriu um buraco
no peito da criança. Tu achou mesmo que eu, logo eu, ia deixar isso
passar?”
Chaya fica desnorteada.
“Eu não sabia que…”
“Pobre órfã, nunca sabe de nada. Nunca tem culpa de nada.”
“Infeliz! Zomba, como tu zomba de toda dor que ajudou a causar…
Depois do que tu fez com o meu vô, eu não devia esperar nada além de
morte vindo de ti.”
“Arrê! A morte do Armin não foi culpa minha, Chaya.”
“Ele podia ter vivido mais alguns anos se tu não tivesse…”
“Se eu não tivesse o quê? Se eu não tivesse me defendido dele?”
“Tu justifica os teus crimes com mentiras?”
“O que é crime pra ti, pra mim é forma de sobreviver.”
Chaya olha para o rosto e o corpo rígidos de Preta, o olhar cheio de
cólera. De repente, como se entendesse o verdadeiro motivo de ter sido
levada até ali, pergunta:
“Então foram vocês?”
“Tu já foi mais rápida, Chaya.”
“Foram vocês que botaram fogo no parque.”
Preta solta uma gargalhada. Chaya desfere uma pranchada com o
facão no ombro da prima. Preta solta um urro e em seguida sorri, gosta,
quer aquela briga, gira o corpo e ataca, dessa vez chuta a barriga da
prima, que cai, mas logo se levanta com uma das mãos no estômago.
“Tu não merece o sangue do Sarampião correndo dentro de ti.”
“Essa merda…” Preta dá um talho no próprio antebraço esquerdo,
deixa o sangue escorrer até chegar na mão e dedos. Esfrega no rosto,
passando pelos olhos e boca. “Essa merda de sangue que mais nos tirou
do que deu.”
“Tu faz o que faz porque a maldade tá dentro de ti, Preta.”
“Tão má quanto o alcaguete do teu vó.”
“Cala essa boca, desgraçada.”
Chaya abre outro corte no braço da chefe dos Pies Rubros. A ação
dela foi tão rápida que Preta se enfurece por não ter conseguido se
defender. Com a dor que dispara a adrenalina, revida, atacando sem
trégua até provocar um ferimento na perna de Chaya, que cai de
joelhos.
“Se vai ser assim, vamos até o fim”, Preta avisa.
“Eu tentei te perdoar. Pelo Sarampião, eu tentei. E me arrependo.”
Chaya se levanta com dificuldade. Preta vai até ela. Os corpos das duas
se encontram. Encostam o peito e a testa uma na outra. O sangue de
uma escorre e se mistura ao sangue da outra na terra seca. Exaustas,
ofegantes, se estudam. Chaya dá um passo para trás e, sem pensar duas
vezes, saca a arma e aponta.
“Fraca.” Preta cospe no chão.
Do escuro, por entre as casas, duas mulheres surgem com rifles .44
apontados para Chaya.
“Podem parar”, Preta ordena. “Isso aqui é entre nós duas.”
Preta e Chaya seguem uma de frente para a outra.
“Como tu pôde? O Sarampião tá lá. Aquela foi e ainda é a casa dele
e tu tentou…”, Chaya fala, mas é interrompida:
“Não existe casa dele.”
“Existe. Tu sabe que existe. As nossas mães viram. Nós duas vimos.”
“Era coisa de criança.”
Uma lufada de vento morno passa pelas duas. Chaya entende o que
aquilo significa. Preta também, apesar de negar.
Olham para o alto, para as copas das árvores, para os galhos que
balançam. Nuvens surgem no céu sem estrelas. Preta estica o braço e
abre uma das mãos, sente o vento quente passar. Joga seu facão na
grama.
Os primeiros pingos de chuva começam a cair sobre elas. Escutam
um gemido vindo da mata. E em seguida um sussurro:
“Socorro. Me…”
Uma mulher ensanguentada surge na chuva, por entre as árvores.
Chaya e Preta não conseguem ver muita coisa na escuridão da noite,
mas, à medida que a mulher se aproxima, percebem que suas mãos
estão amarradas por fita adesiva. Cambaleante, ela vem na direção de
Chaya. Sua cara está coberta de hematomas e os olhos estão inchados.
Os braços e as pernas estão com cortes visíveis.
“Olga?”, Chaya fala. O corpo da jornalista se curva e cai nos braços
da guarda-florestal. “Olga, o que houve?”
Preta se aproxima. Ela e Chaya pegam a jornalista no colo e a
carregam para dentro da casa. Colocam-na no chão, escorada contra
uma parede. A chuva aumenta do lado de fora.
“O que aconteceu?”, Chaya tenta falar com Olga, que não responde.
“Foram vocês? Como ela veio parar aqui?”, pergunta a Preta.
“Não me subestime, Chaya. Se eu quisesse fazer algo, a tua amiga
não estaria viva.” Preta segura o rosto de Olga. “Quem fez isso contigo?
Me diz quem teve coragem de me desobedecer?”
“Te desobedecer? Do que que tu tá falando?” Chaya empurra a
prima.
Olga tenta se comunicar:
“Tinha… um tronco… carro… pauladas… nas costas, cabeça.”
“Tô aqui contigo.” Chaya corta a fita das mãos de Olga.
“Me tira da…”, Olga pede.
“Vou desovar quem fez isso”, Preta vocifera.
“Nós vamos embora”, Chaya fala.
“Não! Ninguém pode sair daqui, muito menos ela”, Preta avisa.

O temporal passou, assim como as horas. Preta sai de um dos quartos


da casa, com um balde de alumínio cheio de água, folhas maceradas e
um pano sujo de sangue nas mãos. Se dirige até a cozinha, onde
Chaya, com um trapo amarrado sobre o corte da perna, permanece
muda. A expressão da chefe dos Pies Rubros é de morte.
“Ela tá…?” Chaya não consegue terminar a pergunta.
“Tá viva… e vai continuar viva”, Preta responde.
As duas escutam o som de passos se aproximando. Chaya saca a
arma. Preta pega uma faca na gaveta da pia ao lado. Tales aparece na
porta da casa. Corre para abraçar Chaya.
“Ainda bem que tu conseguiu me avisar. Onde ela tá?”, ele
pergunta.
Tales, escorado ao lado de uma janela dentro da cozinha de Preta, olha
para o breu da noite. Ele está chorando.
“Sinto muito. Se eu pudesse, nunca teria te trazido toda essa história
macabra. Mas não dava mais pra esconder. Tô preocupada contigo. Tu
precisa ficar longe do Enrico. O cerco tá se fechando pra ele. Vai ficar
perigoso pra ti também. Tu entende isso, Tales?”, Chaya pergunta.
Tales não responde.
“Chega de segredos. Tu é meu irmão e vou seguir do teu lado e te
ajudar no que precisar, mas tu tem que te afastar dele.”
Tales limpa o rosto e olha para a irmã:
“Tu tá certa, mana. E agora não temos nada a perder. Nenhum de
nós. Por isso tá na hora de tu também saber a verdade. Tu e ela.”
Aponta para Preta.
numa família, o que oculto está,
oculto deve ficar

Gringa Romano foi na frente e Armin logo atrás, com a feição pesada.
Entraram na casa e se posicionaram na sala, um encarou o outro com
cautela. A mulher ofereceu o sofá para Armin, que não aceitou. Gringa
tomou a frente: O Roscato te contou? Como a senhora sabe que encontrei
meu irmão? Sei de muita coisa, homem. Então me diz se o Caco te falou
que ele e o Roscato viram o nosso pai quando mataram aquela onça?
Silêncio. Se tu me entregar o Roscato, te digo o que eu sei. Armin chegou
junto de Gringa, disse em tom ameaçador: Fala o que aconteceu com o
Sarampião. Tu pode estar sofrendo o tanto que for, mas eu te mato se
puser a mão em mim, Gringa advertiu. Armin recuou. Se sabe o que
aconteceu, Gringa, por favor, conta? Nada é de graça, homem, o Roscato
precisa pagar, me promete? Armin concorda. O Sarampião estava na
cola da Boca Braba naquele dia, assim como o Caco e o Roscato. O teu
irmão deu dois tiros pra matar a onça. Um pegou nela. O segundo não.
O teu pai, de alguma maneira que o Caco não conseguiu me explicar,
saiu de trás de um arbusto e se pôs na frente do animal. O que que tu tá
dizendo, mulher? O Roscato e o Caco correram pelo mato até onde o teu
pai e o bicho estavam caídos, mas quando chegaram, só viram a onça
abatida e sangue no chão. O Sarampião tinha sumido. As mãos e os
braços de Armin tremiam feito vara verde. Seu rosto parecia ter
despencado, como se tivesse envelhecido trinta anos naqueles minutos.
Um tempo moroso e incômodo ficou entre eles. Agora me diz: onde tá o
teu irmão? Armin entregou para a Gringa a localização de Roscato. O
combinado entre os dois foi que a tragédia com Sarampião nunca seria
contada. A vergonha daquilo tudo para as duas famílias era algo que eles
não queriam passar para a frente. Numa família, o que oculto está,
oculto deve ficar.

Preta pega um copo de cima da mesa e joga contra a parede. Com a


faca vai para cima de Tales.
“Foi aquele velho filho da puta que te contou essa mentira?”
“Acabaram as mentiras, Preta.”
Ela vai perdendo as forças, deixa a faca cair. Sente estar sufocando.
Sai da casa tropeçando e cai.
“Ele matou? Ele matou o Sarampião? O meu vô Roscato matou?
Tédi? A Tédi sabia?”, Preta repete, olhando para o barro vermelho e
ainda molhado do chão.
Sem se aproximar muito, Chaya observa a prima e se dá conta de
que não está sentindo nada, nem tristeza, nem pena, nem raiva. Nada.
Preta se ajoelha na frente dela, deixa a cabeça cair nos seus pés. Chora
até soluçar. Chaya entende que, dessa vez, Preta não tem para onde,
nem contra quem, jogar sua ira, não tem contra quem se vingar. Só
sobrou um passado de erros e de sangue com que as duas não
imaginavam ter de lidar.
Chaya olha para o céu. As estrelas e a lua aparecem.
Preta aos poucos se recompõe e se levanta. Ela e Chaya finalmente
se encontram no mesmo lugar, na tragédia que persegue os Sarampião
há décadas e que as puniu não dando a chance de uma vida juntas,
como as únicas que sobraram da família. Elas carregam as
consequências das escolhas de quem não está mais nesse mundo.
Chaya, com o rosto duro, a expressão de quem tem os pensamentos
em ebulição, determina:
“A Olga vai ficar aqui até estar segura e forte. O Tales vai avisar os
pais dela. Eu vou mandar anunciar o desaparecimento de Olga em
algumas rádios e jornais. Eles vão achar que conseguiram. Que deram
um fim nela. Que venceram. E tu, Preta, vai contar o que tiver que
contar pra ela terminar essa denúncia pro jornal. Se não podemos
pegar quem nos causou mal no passado, vamos pegar quem está nos
causando agora. E vamos pegar todos eles.”

O dia amanhece. Preta, ainda suja de barro e de sangue, está no pátio,


junto de um grupo de mulheres Pies Rubros, em frente a um balde.
Ela tem um pano limpo na mão. Tira as roupas e fica nua. Uma das
mulheres joga um líquido esverdeado por cima da cabeça da chefe.
“Arrê.” Preta fecha os olhos e continua:
“Caboclo, Arrê.”
Com o pano, começa a lavar seus cortes.
“Protege o Turvo
Chão altar de tudo.”
Lava o corpo. Lava a fraqueza que sente.
“Homem-fé
Na mata
Cura a terra
Cura a água
Cura Sarampião.”
Olga surge na porta da casa e a observa de longe. Preta larga o pano
manchado no balde. Olha para a água turva dentro dele.
“Uma de nós vai morrer”, fala para si.
Os pecados de um pai

Tales volta a Dourado, depois de passar o resto da madrugada em


Corredera Moconá, no hotel onde estão os pais de Olga, tentando
acalmar os dois, garantindo que a filha deles está em se­gurança e que
dentro de alguns dias voltará para encontrá-los. Uma das mulheres dos
Pies Rubros, que foi junto, ficou lá de sentinela.
Ele dirige pela avenida das Viuvinhas. Sente uma espécie de
paralisia física e mental que nunca experimentou. Para se manter
alerta, liga o rádio:
“Olga Befreien nasceu na cidade de Dourado. A jornalista
desaparecida foi vista pela última…”
Desliga.
Chega à esquina da quadra do Onça-Pintada e enxerga duas viaturas,
uma da polícia civil e a outra da brigada militar, e a ambulância da
prefeitura paradas em frente à fachada do hotel. Abandona o carro no
meio da rua e corre. É barrado por Dóris, que está uniformizada:
“Tales, preciso que tu espere aqui fora.”
A policial põe as mãos nos ombros dele, mas sem fazer força. Tales se
desvencilha e entra no hotel. Dóris vai atrás. O local está um caos, as
pessoas caminham de um lado para outro, funcionários da recepção,
camareiras e camareiros choram. Ele vai direto ao escritório do pai,
onde outro policial, um militar, bloqueia a passagem. Tales consegue
ver a corda amarrada na viga do teto. Dóris puxa com firmeza um dos
seus braços.
“Não entra, amigo”, ela avisa.

Chaya e Tales estão no iml. Dóris aparece na recepção, onde os dois


estão sentados. Tales está com a mesma roupa suja da noite anterior.
Chaya, de banho tomado, cabelos molhados, usa uma camiseta do
parque do Turvo, bermuda e botinas. Tem um curativo grande na
perna, tapando os pontos que precisou fazer para fechar o corte.
“Antes de qualquer coisa, Tales e Chaya, sinto muito”, Dóris fala.
“Obrigada por tratar disso pessoalmente”, Chaya diz.
“Vou liberar o corpo assim que o perito concluir a autópsia. Estamos
fazendo da forma mais rápida possível.” Dóris olha para Chaya, sabe
que ela segura o que está sentindo para não piorar a dor do irmão. Se
abaixa e pega a mão de Chaya, depois a de Tales.
“Contem comigo, amigos. Até metade da tarde eu mesma vou levar
ele até a Câmara de Vereadores pro velório”, ela avisa.
Tales segue em silêncio, com o olhar caído sobre as lajotas brancas
do lugar.

No fim da tarde, Tales, catatônico, está sentado no banco do carona do


seu próprio carro, usa um terno preto e uma camisa escura por baixo.
Chaya, ao seu lado, dirige. Ela bate de leve na perna dele, fazendo-o
acordar do transe.
“Eu tô aqui contigo. Vamos enfrentar isso.”
Ele tem os olhos perdidos. Chaya percebe seu semblante debilitado.
“Eu quero te contar outra coisa”, Tales fala.
Chaya continua dirigindo.
“Sobre a noite do fogo na estátua do Sarampião”, Tales segue
falando.
“Não.” Ela o interrompe. “Tu não precisa me contar nada. Tudo que
me interessa saber sobre aquela noite, já sei.”
Tales começa a chorar.
“Tem segredos que são piores do que as piores mentiras.
Descobrimos isso ontem. Acabou, Tales. Vamos só velar o Enrico e nos
perdoar.” Chaya vira o carro para a esquerda e segue pelo asfalto que dá
para a rua lateral da Câmara de Vereadores de Dourado. Estaciona. O
local está lotado.
“Não tenho mais ninguém… nós não temos mais ninguém, mana.
Todos se foram”, Tales balbucia baixo.
“Temos um ao outro. Ouviu? Um ao outro.”
2007
aquilo que não dói no outro
A culpa, a verdade, a mentira

Meio da madrugada. Tales dirige a 4 × 4 do pai. “A rodar mi vida”, de


Fito Paez, toca no rádio do carro. Olga segura uma garrafa de vinho,
abre a janela, põe metade do corpo para fora e grita:
“Acorda, Dourado. Olhem pra futura jornalista mais espetacular do
Rio Grande do Sul.”
Tales pega o cós da calça de Olga e a puxa.
“Não quer chamar mais atenção, não? Logo a polícia aparece,
carimba o teu futuro e tu nem jornalista vira.”
“Até parece que aqueles porcos tão acordados.”
“Bom, tu acaba de acordar um vizinho. Olha a luz ali.”
“Foda-se. Daqui a uns meses eu vou estar morando em Porto Alegre
mesmo.”
“Mas eu vou continuar aqui, Olga. E quem tá dirigindo sem carteira
sou eu.”
“Senhor Certinho. Certinho como a irmã. Não conseguem enxergar
além dessa cidade. Caguei pra vocês todos.”
Olga bebe do gargalo até deixar o líquido escorrer pela boca, pelo
pescoço e o colo, e manchar a blusa.
“Merda.”
“Tá bêbada. Vou te levar pra casa.”
Eles passam pela frente da praça.
“Para o carro.”
“Não. Vou te levar embora.”
Olga abre a porta. Tales freia. Ela desce cambaleando, com a garrafa
de vinho na mão. Sente o ar gelado congelar seu peito. Fecha o zíper
da jaqueta de veludo vermelho. Atravessa a rua sob a cerração baixa.
Para na frente da estátua de Sarampião.
“Estátua idiota. Velho idiota.”
Tales toma a garrafa de Olga.
“Esse teu ranço com a Chaya e com a família dela já tá ridículo.
Deixa de ser criança.”
“Ranço? Ela me humilhou, me disse coisas horríveis. Aquela vaca
me odeia.” Olga pega a garrafa de volta e se afasta dele.
“Dessa vez tu que começou. Pode parar com o vitimismo.”
“Ela tava se pegando com aquela garota que veio de fora. Eu vi ela
abrindo a blusa, puxando o sutiã… Só fiz um comentário. Qual o
problema?”
“Dizer que a Chaya beija homem, mas gosta mesmo é de pegar
mulher escondida? Isso é só um comentário?”
Olga não responde.
“O problema pra quem olha sabe qual é? É que parece que a vida
dela é mais interessante pra ti do que a tua própria vida”, Tales
continua.
“Que babaca…”
“Ela é minha irmã. Tu faz cada coisa, Olga. Fica te afundando. Por
que tu tava seguindo a Chaya?”
Olga despeja uma grande quantidade de vinho na boca e cospe na
cara da estátua de Sarampião.
“Tu foi preconceituosa…”
Tales é interrompido por Olga:
“Chega. Não aguento mais. Quando ela é preconceituosa, tudo
bem? Quando ela é agressiva, tudo bem? Todo mundo aqui tem pena
dela. Ninguém ousa criticar. Só eu que vejo que a bisneta desse
Sarampião se acha melhor que todos nós?”
“Tu tá obcecada.”
“Eu tô obcecada? Ela não pode me olhar que… Não aceita o nosso
namoro, já disse que não sou pra ti, não disse? Chaya não consegue ver
a gente feliz porque ela é infeliz. Essa é a verdade.”
“Tu criou essas coisas na tua cabeça.”
“Me fala, Tales, ela torce pela nossa relação? Ou fica buzinando
coisas pra te colocar contra mim?”
Tales não responde.
“Tu me ama mesmo? Ou tá só passando o tempo?”, Olga pergunta.
“Agora isso… Tu sabe que sou louco por ti.”
“Então prova.”
“Já provei, não provei?”
“Prova ficando do meu lado e não do lado da Chaya.”
Olga volta para o carro. Abre o porta-malas e pega uma mangueira,
em seguida uma garrafa vazia. Abre o tanque de gasolina. Coloca a
mangueira dentro e suga. Nada sai. Tenta novamente. Engole um
pouco. Cospe fora. Enche a garrafa com o líquido inflamável. Volta até
a frente da estátua. Pega novamente o vinho, bebe, depois quebra a
garrafa nos pés de Sarampião.
“Para com isso, Olga. Tu vai te machucar.”
Tales tenta impedi-la.
“Ou tu fica do meu lado agora ou a gente nunca mais vai se falar.”
Olga derrama a gasolina na estátua. Pega um cigarro e um isqueiro
de dentro da jaqueta. Acende o cigarro. Traga uma, duas vezes e
entrega ele na mão de Tales.
“Vai. Joga.”
Tales não se mexe. Fica olhando para a brasa. Olga toma o cigarro da
mão dele e larga-o no chão. O fogo começa tímido, até aumentar e
virar uma enorme chama cobrindo toda a estátua de concreto. Em
seguida, tudo ao redor queima.
“Tu enlouqueceu. Meu Deus.” Tales agarra Olga pelo braço e eles
correm em direção ao carro. “Temos que sumir daqui antes que nos
peguem.”
Escutam o som da sirene da viatura da polícia militar. Em segundos,
a luminosidade vermelha do giroflex reflete no rosto deles.

Presentes de dezembro

É início de dezembro e o artigo investigativo de Olga finalmente é


publicado no jornal El País e então replicado em vários sites do Brasil
e, logo, mundo afora. Em questão de horas, ganha as manchetes e
repercute na imprensa e nas redes sociais brasileiras como uma bomba.
Os comentários de internautas são os mais diversos:
“Jornalista dada como morta renasce para fazer justiça.”
“Olga Befreien atinge o alto escalão do governo ao denunciar
corrupção numa pequena cidade do Rio Grande do Sul.”
“Políticos ligados ao Palácio do Planalto dizem que a palavra
impeachment volta a assombrar o presidente da República.”

Compartilham não só os detalhes, mas também as provas reunidas pela


jornalista do envolvimento de pessoas ligadas ao governo federal,
empresários e políticos paulistas, gaúchos e também argentinos.
Olga, no quarto do hotel, sentada em frente ao seu computador,
acende um cigarro, fecha as abas das redes sociais e abre as páginas dos
principais jornais do país.
Segundo a jornalista, tudo começa com a pesca e a caça ilegal, junto
com o descaminho de vinhos argentinos. Por trás: suborno, propina,
desapropriação de terras […].
No Brasil, apenas 12% do bioma de Mata Atlântica ainda está em pé.
Todo o resto foi desmatado. Se esse empreendimento binacional for
aprovado, há risco de boa parte do que sobrou dele no Sul do país
desaparecer. […]
A atual chefe do parque do Turvo, Chaya Sarampião, ressaltou que
aquele é o último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil. Ela
declarou que a comunidade nunca foi a favor da hidrelétrica e tentava
provar as irregularidades da documentação apresentada. […]
Uma fonte anônima de Befreien, que vive do outro lado da fronteira,
chegou a negociar diretamente com alguns dos nomes da lista dos
envolvidos, e corroborou […].
O ministro do stf, Petrus da Silva, que havia autorizado a quebra do
sigilo bancário de Aécio Vilmar Senna, chefe de gabinete do deputado
Afrânio Heichma, do pna (Partido Nacional Ambiental), tornou os
documentos públicos. Foram encontrados centenas de depósitos
mensais no valor de dois mil reais, valores fracionados que passam
imperceptíveis pelo crivo do Banco Central. Era dinheiro das
chamadas “rachadinhas”, parte dos salários dos funcionários do
gabinete em que Olga Befreien trabalhava e que denunciou. A
jornalista foi a responsável por conseguir provas, gravações […].
Empresários e políticos envolvidos na caça, compra e venda de
carnes de animais silvestres são os mesmos que estão implicados na
falsificação de documentação e no superfaturamento da barragem da
Hidrelétrica Binacional Gran Roncador — um projeto que o atual
governo federal insistiu em tirar da gaveta desde que assumiu a
presidência. Por inúmeras irregularidades, entre elas um falso e
enganoso estudo de impacto ambiental (eia) que diz que o salto do
Yucumã, o maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, não
seria atingido. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufrgs),
junto com universidades locais, mostram eias totalmente diferentes,
conforme consta no artigo, provando que um verdadeiro crime
ambiental irá acontecer se a Gran Roncador for construída.
“Se foderam, seus malditos”, Olga fala.
A realidade do caos

Na mesma manhã, Heichma e Senna estão no gabinete e os telefones


não param de tocar.
“Cadela, desgraçada! Ela me gravou. A filha da puta me gravou!”,
Heichma esbraveja.
“Vamos desmentir tudo, deputado”, Senna fala, tentando parecer
sóbrio. Bebeu quatro doses de uísque em casa, no café da manhã, logo
que começou a ler as notícias.
“Tu disse que ela tava morta”, Heichma o empurra. Senna
cambaleia, bate contra a parede.
“Tá doido, homem? Que é isso?”
“Isso não é nada perto do que aquela gente de Brasília vai fazer
contigo.” Heichma pega um dos telefones de cima da mesa e joga no
rosto dele, que se defende com as mãos.
“Não tenho culpa. Eles me garantiram que tava feito.”
“Tu é burro, Senna. Muito burro. Contratar adolescentes pra fazer
trabalho de gente grande.”
“Foi o que restou. Nenhum adulto teve coragem de desobedecer
aquela cabocla.”
Heichma vai até a janela. “Preciso pensar.”
Logo em seguida, volta para junto da mesa e se senta numa cadeira.
Atormentado, procura uma maneira de se salvar e de amenizar o
linchamento político e social que já começou. Pega o celular:
“Doutor, junta os outros advogados e me encontra no apartamento
em meia hora.” Desliga. “Senna, fala pra Ana Paula ir embora e fechar
tudo. Ninguém atende telefone nem fala com a imprensa.”
Senna fica confuso.
“O que eu faço, deputado?”
“Tu? Pega as tuas coisas e não volta mais aqui. E não me liga. Os
advogados vão escrever uma carta pra ti assumir todos esses B.O. Vão
soltar na imprensa amanhã.”
Marca de efeito

No final da manhã, Tales está no escritório do hotel sentado atrás da


mesa que era do seu pai. Analisa papéis antigos e novos da
contabilidade. Recebe uma mensagem de um amigo no celular com
um link. Abre: “Empresários e políticos da cidade de Dourado, na
fronteira noroeste do estado, também estão envolvidos”.
O celular segue recebendo mensagens uma atrás da outra. Ele solta
o aparelho. O som do bip continua. Seu rosto magro, pálido, está
envelhecido.

Início da tarde. Maurício Ricci, dentro do carro estacionado na rua sem


saída que dá para a escola municipal que leva seu sobrenome, no bairro
operário da cidade, segura um exemplar extra, de duas páginas, do
jornal Notícias Noroeste:
“Conforme as provas apresentadas por Olga Befreien, Claudenir Ricci,
ex-prefeito de Dourado e membro fundador do Partido Nacional
Ambiental, assim como seu filho, Maurício Ricci, são dois dos
empresários que estão na lista dos cadernos de pagamentos do chefe de
gabinete […].”
“Vadias”, ele esmurra o teto do veículo.
O dia está acabando. Dentro da sede do parque do Turvo, Cláudio,
Nestor, dois funcionários da área administrativa e uma vigia
comemoram.
“Vai ter gente dormindo no concreto”, Nestor ri.
“Será?”, pergunta a vigia que se prepara para assumir a guarita.
“Agora não tem mais como eles negarem as maracutaias. E esse povo
daqui que tá metido nisso nunca me enganou”, Nestor tem a expressão
séria.
Chaya entra na sala.
“Vamos nos ocupar dos afazeres, soldados. Cada um cuida das suas
tarefas, teremos uma noite longa aqui no parque. E prestem atenção:
ganhamos uma batalha, mas não a guerra. O Turvo segue precisando
de nós.”
“O meu turno acabou, chefe. Vou passar na casa do tenente Ângelo.
Ele deve tá faceiro com as notícias”, Cláudio avisa.
“O tenente Ângelo não tá mais na cidade. Transferido.”
“Como assim, chefe?”
“Saiu no diário oficial. Foi pro administrativo em Porto Alegre”,
Chaya avisa.
“Foi embora? Sem se despedir da gente?” Cláudio fica decepcionado
com a notícia.
“A Secretaria do Meio Ambiente me avisou hoje cedo.”
Cláudio e Chaya se olham, ele amiúda os olhos.
“Nem tudo é o que parece, Cláudio, ainda mais aqui no Turvo.
Agora, circulando. Tenho muito trabalho pra fazer.”
Carne podre

Vinte e três de dezembro de 2019. Sete e trinta da manhã. Olga assiste


a uma edição de um jornal brasileiro pelo computador, de dentro do
seu quarto no hotel, em Corredera Moconá. Vê imagens ao vivo da
polícia federal saindo da casa de Senna. Ele está algemado, usa
camiseta e calça de moletom cinza-claras e um boné branco. Na
legenda, abaixo das imagens, vê-se escrito: “Operação Carne Podre —
Chefe de gabinete do deputado Heich­ma é preso na grande Porto
Alegre”. A âncora narra:
“O chefe de gabinete e um dos articuladores do esquema está sendo
preso agora. Como mostramos mais cedo, estão acontecendo também
prisões em São Paulo e Brasília. Já na cidade de Dourado, local onde fica
a unidade de conservação do Parque Estadual do Turvo, o ex-prefeito,
Ricci, e seu filho, não foram encontrados. Políticos de partidos que
compõem o governo federal não foram presos, assim como o deputado
Heichma, em função das prerrogativas de imunidade parlamentar, mas,
segundo a oposição, serão abertos requerimentos pedindo a cassação de
todos os envolvidos.”
Na mesma matéria, surge um vídeo de Olga, reprise de uma
entrevista on-line de dias antes:
“Quando essa quadrilha começar a ser presa, quando o Turvo e o salto
do Yucumã estiverem seguros, vou me sentir segura pra voltar ao Brasil.
Não me arrependo de nada, mas minha família e eu precisamos
permanecer escondidas.” Na legenda aparece: “Olga Befreien —
jornalista denunciante dos crimes que levaram à operação Carne Podre”.
Olga sabe que ela e sua família não terão paz nem estarão totalmente
em segurança se voltarem agora. Mas nem ela e nem os pais aguentam
mais ficar naquele hotel na Argentina. Tales já havia oferecido quartos
no Onça-Pintada, e Chaya na sua casa, além de uma escolta
improvisada, homens de confiança dela, pelo menos nos primeiros dias.
Os dois usam como argumento o fato de que a cidade inteira é grata à
jornalista e lá ela e sua família estariam mais protegidas.
Ela fecha o computador. Tira o telefone do gancho e liga para o
quarto ao lado.
“Hora de voltar. Vamos sair daqui amanhã.”
O próprio veneno

No mesmo dia, início da tarde, o calor que se abate sobre Pies Rubros é
tórrido. A umidade relativa do ar está baixa, o que tem sido cada vez
mais normal nos fins de ano na região nas últimas duas décadas.
Ninguém trabalha nessa hora. Todas fazem a sesta, para voltar à lida
depois das quatro da tarde. Só Preta, que não conseguiu fechar os
olhos. Está embaixo da copa de uma grande árvore, ao fundo do
povoado. Macera folhas de arruda, boldo do mato e alecrim numa
bacia em cima de uma bancada improvisada. Prepara o banho de
folhas para todos se lavarem na celebração antes da véspera do Natal.
Sente o suor escorrer da nuca até o cóccix. Prende os cabelos em forma
de coque no alto da cabeça. Dois araçaris-banana pousam num galho e
ela se distrai por um segundo, observando o colorido dos pássaros.
León surge diante dela.
“Por que não tá fazendo a sesta?”, ela pergunta.
“Yo quiero…”
“Em brasileiro. Já disse.”
“Eu quero saber por quê.”
Preta aponta o dedo molhado com o líquido marrom-esverdeado na
direção dele.
“Porque assim tem que ser de hoje em diante. Não vamos mais matar
bicho. Não vamos mais entrar no parque pra matar nada”, volta a
macerar as folhas.
“Tu mesma ensinou pra nosotros que sempre vivimos assim. É nosso
trabajo.”
“Agora nosso trabalho é outro. Tem coisas que precisam mudar,
León.”
“¿Por qué decidiste, tú y tu prima?”
“Não!” Preta larga as folhas dentro da bacia e o encara. “Algo maior,
o destino decidiu.”
“Pensé que dirigías todo aquí.”
Preta não responde.
“Te humillaste por ella. Nos humilló. Eligió a tu prima, una mujer
policía. Tédi nunca nos habría hecho eso. Cuando yo sea el jefe de Pies
Rubros, volveremos a ser lo que siempre hemos sido: cazadores. Y
escupiré en tu tumba.” León cospe no chão e depois encara Preta, seu
rosto está transformado, como se não fosse mais ele ali.
Preta sente seus pelos arrepiarem. Busca as semelhanças naquele
olhar, naquela fala. Põe uma das mãos sobre a boca, seus olhos se
arregalam.
“Não!”, ela fala.
Pega um punhado das folhas amassadas e molhadas, vai até o
menino, segura seu pescoço e esfrega sua boca, depois seu rosto. O
menino grita e escarra uma baba verde.
“Basta! Basta dessa sede insana por sangue. Sarampião e o resto da
minha família vão descansar, o teu pai vai descansar. E tu, León,
precisa de uma oportunidade de futuro. Tu não pode mais ficar aqui.
Não pode.” Preta volta para a bancada, põe as mãos sobre ela e abaixa a
cabeça, procura pensar numa solução.
“Nunca fuiste valiente como Tédi”, ele diz.
Preta chuta a bancada que voa longe e, num piscar de olhos, está em
cima de León, desferindo uma bofetada no seu rosto. Ele cai no chão.
Seu nariz sangra.
“Não fala do que tu não sabe. Não fala do que tu não viveu. Eu te
criei desde criança. Pra muitos aqui, feito um filho. Mas lembra: tu não
é meu filho. Tu não é nada meu. Tu não é nada de ninguém aqui.”
“Andate a la concha de tu madre.” León sai correndo.
Uma mulher com a cara inchada, cabelo desgrenhado e suado,
chega apressada a tempo de ver León fugir.
“Esse aí tá incomodando faz tempo.”
Outras pessoas da comunidade surgem. Preta faz sinal para voltarem
ao descanso. Eles obedecem.
“Esse boludo tá enfiando coisa ruim na cabeça dos outros
adolescentes”, a mulher avisa sem sair de lá.
“Passou dos limites, eu sei.”
“Ele mudou, parece que não é mais ele. Tem uma cólera, coisa
muito ruim crescendo dentro daquela cabeça. Isso não tem conserto.”
“Quem sabe tenha. Precisamos conseguir um lugar pro ­León longe
daqui. Pra salvar ele.”
“Se a chefe diz, vamos arrumar.”
A mulher sai. Preta deixa seus braços e ombros pesarem. Pousa o
olhar fixo na grama seca onde pisa.
A felicidade é uma rifa

Vinte e quatro de dezembro. Manhã de céu azul na província de


Corredera Moconá e em toda a região daquela fronteira.
Olga está sozinha no carro dos seus pais, carro que Preta conseguiu
recuperar depois do atentado. No chão, embaixo das suas pernas, um
revólver que seu pai arranjou, ela não sabe como, nem quis saber. Ele a
faz andar com a arma sempre que sai sozinha pelo vilarejo. Seu celular
toca. Atende no viva-voz.
“Olga, a última balsa pra Dourado é ao meio-dia. Não esquece. Não
vou passar o Natal na Argentina”, o pai avisa irritado.
“Também te amo. Volto daqui a pouco. Beijos.” Ela desliga sem
esperar que ele se despeça. Pega um cigarro da bolsa que está no banco
ao lado. Acende. Toca a tela do celular, abre o aplicativo de mensagem
e grava um recado de voz:
“Bom dia, meu amor! Dormiu bem? Só pra avisar que vamos na
última balsa. Vai com o meu carro nos esperar, por favor? Não aguento
mais andar no do seu Befreien, nem com ele. E a gente vai levar
alguma coisa pro Natal na casa da Chaya. Não adianta me dizer que
não precisa, não dá pra chegar de mãos abanando. Quem sabe algo
aqui da Argentina? Uns torrones? Uma carne pra assar. Me diz? Beijo.”
Liga o rádio do carro e deixa a música tocar.
Colecionadora de armas e
arrependimentos

Nove horas da manhã. Um dia bonito e agradável sobre o povoado de


Pies Rubros. Todos cuidam dos seus afazeres. Homens varrem o pátio
com vassouras feitas com galhos de árvores. Um grupo de idosas coloca
enfeites de Natal nas árvores ao redor, outro estica fios de luz com os
pisca-piscas coloridos para serem presos entre as casas. Crianças e
adolescentes descascam mandiocas na lateral de um dos contêineres.
Duas mulheres abrem sacos com gelo e jogam dentro de um tacho de
metal para gelar as garrafas de Fernet e Coca-Cola que já estão
depositadas lá. Mulheres e homens pintam a parte de fora das moradas
com tinta colorida que Preta comprou, coisa que não fazia havia muito
tempo. Eles contam piadas e conversam entre si. Quatro adolescentes,
duas meninas e dois meninos de idades variando entre catorze e quinze
anos, estão um pouco mais afastados dos demais, lavam as mandiocas
descascadas dentro de baldes de plástico. Um cachorro está junto deles.
O bicho começa a rosnar e latir na direção da mata à frente. Olham
para lá. Uma das meninas sorri e corre:
“Olga.”
“Que coisa linda que tá ficando este lugar.” Olga beija a testa da
menina. O cachorro começa a abanar o rabo. Ela deixa que ele lamba
seu rosto.
“Tu não tem jeito mesmo”, Preta surge junto delas. As duas se
abraçam.
“Precisava me despedir de todos”, Olga diz.
“Aquela ligação já era suficiente. Tu sabe que ainda não tá seguro
pra ti andar sozinha por aqui.”
“Tô cagando pro Heichma. Não vão me intimidar. Não mais. De
qualquer maneira, agora posso me defender.” Olga ergue a blusa e
mostra a arma. Preta solta uma gargalhada.
“Tu virou pistoleira? Desde quando, mulher?”
“Não me subestime, Preta.”
“Te subestimar? Nunca mais.”
Os adolescentes abraçam Olga. As pessoas da comunidade param
seus afazeres, se aproximam. Cumprimentam a jornalista com respeito.
“Devo muito a vocês…”
Olga é interrompida por Preta.
“Sem essa coisa de sentimentalismo. Por favor.”
Uma mulher armada, suada e ofegante se aproxima.
“Achou?”, Preta pergunta.
“Fugiu. É muito ligeiro”, ela diz.
Preta volta seu olhar para o grupo de adolescentes, que fica em
silêncio absoluto. Ela encara um por um, se aproximando do rosto
deles. Para diante de um menino e puxa a orelha dele para o alto. Ele
fica com os pés esticados, só com as pontas dos dedos encostadas no
solo, protestando de dor.
“Onde ele tá?”
“No lo ví.”
Os outros três adolescentes olham apavorados para Preta. Ela larga o
menino e vai para cima de outro. Agarra um maço de cabelo da lateral
da cabeça dele, que não demonstra medo nem dor. Ela lhe dá um tapa
na cara. Ele não muda a expressão. Dá outro, ainda mais forte. Ele ri e
faz o sinal de uma arma com dois dedos da mão e o gesto de atirar.
Preta arranca o cabelo dele, que berra. Ela se apressa na direção da sua
casa. Sobe saltando os degraus de madeira. Passa a cozinha e chega ao
quarto. A antiga caixa de madeira em cima da cômoda, a única coisa
que trouxe de Dourado e que conserva como lembrança do tempo que
ainda não tinha ideia da selvageria deste mundo em que foi jogada, está
com o cadeado quebrado. Não há nada dentro. A antiga arma calibre
.32 que ela comprou ainda jovem, sua primeira arma, não está lá. Joga
a caixa contra a parede. Volta para o pátio alucinada pela consciência
de que, além de tudo, sua previsão poderá se concretizar.
Pega o mesmo menino, dessa vez pelo pescoço, e aperta sem medir
sua força.
“Pra onde ele foi?”
Ele não consegue responder, seu rosto vai ficando vermelho.
“Vou arrancar os dedos da mão de cada um de vocês se não falarem.
Juro que vou”, ela diz para os outros adolescentes, que começam a
chorar.
“Pelo amor de Deus. São crianças.” Olga se mete e segura um dos
braços de Preta, que a empurra, depois joga o adolescente no chão.
Olga está perplexa, olha para os adultos dos Pies Rubros, esperando
que façam algo.
“Calem a boca”, Preta ordena.
O mesmo menino que quase foi sufocado por Preta é quem arrisca
uma justificativa:
“Ele vai matar a gente, se a gente contar.”
Preta saca a arma de trás da cintura, pega o cachorro, que está no
meio deles, e aponta para a barriga do bicho, que esganiça enquanto
tenta se soltar.
Uma das meninas implora:
“No. Por favor.”
“Um, dois…”, Preta começa a contar.
“Cruzando el río. Del lado del salto.” A menina fala alto, tenta fazer
sua voz sobressair ao som estridente que o cão faz.
“No parque?”, Preta pergunta, e o menino caído no chão confirma.
Preta larga o bicho, e a menina o pega no colo. Olga olha com
horror para a líder, que tira do bolso da bermuda um celular pequeno e
antigo. Faz uma ligação.
“Merda. Desligado.”
“Preta, que que tá acontecendo?”
“Pega o teu celular. Tenta ligar pra Chaya”, Preta solta um grito
rouco.
“Que houve? Por que ligar pra ela?”
“Precisamos encontrar a Chaya.”
León

“Por mi papá.”
Água turva

Depois que a Preta e eu saímos de Pies Rubros, pegamos o barco,


atravessamos o rio, corremos pela mata até chegar ao rochedo no início
do salto. Então seguimos por aquele mar de pedras basálticas e avistamos
a Chaya ao longe, muito ao longe. Parecia que ela caminhava
cambaleando. Quem sabe estivesse machucada, ou só tava exausta.
Quem sabe insolação, o sol daquele final de manhã era forte. Nós
ouvimos tiros e ela se jogou no chão e se escondeu atrás de uma rocha
mais alta. Foi aí que vimos o León. Ele tava armado. Foi tudo muito
rápido. Segundos. Ele deu outro tiro na direção da Chaya. A Preta
gritou, eu gritei. Chamamos o nome dela várias vezes. Mas o som do
Uruguai, o som do salto do Yucumã… não dava pra ela nos ouvir. A
gente correu o mais rápido que pôde. A Preta atirou na direção do
menino, primeiro só pra assustar, depois não. Mas ele continuou lá. A
Chaya se levantou e saiu de trás da rocha. Ficou em pé na frente do
León. Foi então que o sol refletiu na água e cegou a gente por um
momento. Um momento ínfimo. E escutamos mais um tiro. Quando
conseguimos enxergar algo de novo, a Chaya já não tava mais. Não tava
mais lá. O León correu pra direita, na direção da mata. No instinto, fui
pro lado esquerdo, o lado do rio. A Preta veio atrás. Chegamos à beirada
e vimos a Chaya quase imersa, tentando nadar no meio da forte
correnteza e das violentas quedas d’água do salto. Parecia estar sendo
engolida. Eu gritava enquanto a Preta me segurava. Aquilo estava
errado. Não era real. Não podia ser real. Tu me entende? Como se a reza
da negação fizesse sentido, ela, justo ela, banhada em sangue, imersa na
água do Uruguai. A Chaya continuava batendo os braços. Tentei me
jogar pra ajudar ela. A Chaya me salvou, me salvou da pessoa que eu
era, não podia desistir… mas a Preta me segurou. Se ela não tivesse me
segurado. Tentei me soltar. Arranhei as suas mãos, bati no seu rosto, mas
a Preta agarrou o meu corpo com toda a sua força e não me soltou.
Vimos a água levar a Chaya. “Ela é a melhor nadadora que conheço.
Ela vai conseguir. Ela vai conseguir”, a Preta falava enquanto eu tentava
pensar numa maneira de reverter aquilo. De voltar no tempo.
“Lembra de mais alguma coisa? Sabe pra onde o León foi? Sabe de
quem era a arma que ele portava?”
Ela tá viva, não tá? Sem corpo, sem morte. Foi isso que a senhora
disse, delegada. A senhora disse: Sem corpo, sem morte.
Yucumã Moconá, o grande roncador que
tudo engole

Vinte e quatro de dezembro de 2020. Carregando flores e velas,


mulheres e homens surgem pela trilha, logo depois do fim da estrada
utilizada por visitantes, que passa por dentro da unidade de
conservação. Vão na direção do salto do Yucumã. Por ser um local
aberto, nem todas as pessoas usam máscaras no rosto, item que passou a
ser obrigatório para entrar no parque do Turvo.
Tales e Dóris estão logo atrás; junto deles, Cláudio, Nestor e outros
três guardas-florestais e dois vigias. Eles usam máscaras cobrindo toda a
boca e o nariz.
“Como tu tá, Tales?”, Dóris pergunta.
“Esgotado. Um ano sem ela aqui, mas parecem dez, ou vinte.
Procurei tanto por esse rio, pela mata… Sei que agora preciso buscar
forças pra manter o legado e o nome da Chaya, mas tá difícil demais”,
Tales responde para a policial.
“E vai conseguir. Eu e todos de Dourado estamos aqui pra te
ajudar”, Dóris fala.
“E nós do parque também”, Cláudio complementa.
“Obrigado. Se recuperou bem, Cláudio?”, Tales pergunta.
“Homem, essa doença é a pior que já vi. Dez dias no oxigênio. Mais
vinte em casa só na cama. O ar ainda me falta nas caminhadas mais
longas dentro do mato, mas não podia deixar de vir pra…”, Claudio
para de falar. Percebe que Tales está com os olhos marejados.
“Ainda vejo ela de uniforme, andando por aqui cada vez que venho
nesse lugar.”
“A gente também, Tales. Parece que a qualquer hora ela vai surgir
entre as árvores ou lá dentro da sede. Dá um, dois, olho pro lado e
penso que ela passou feito vento, bem como fazia. Até a voz dela dando
ordem eu escuto”, Nestor comenta.
Chegam junto das outras pessoas na beira do rio. O roncar das
quedas e a violência das águas estão maiores que o normal. Alguns
deixam as flores caírem dentro do Uruguai, outros as colocam no chão,
sobre as rochas. As velas, nas mãos das pessoas, estão todas acesas.
Apesar do vento, nenhuma delas se apaga.

Olga está sozinha dentro de um pequeno barco. Atravessa o rio. Veste


calça jogger verde-musgo, camiseta branca, coturnos, um boné preto.
Com destreza, segura a guia do motor do barco e passa pelas
correntezas como se tivesse feito aquilo a vida toda. Chega do outro
lado e atraca. Amarra a pequena embarcação numa árvore próxima à
barranca. Passa pela terra argilosa. Suas botas afundam no lodo até o
tornozelo. Segue pela trilha, sobe o perau, segura nas raízes e nos
galhos das árvores. No topo, vê um gavião-pato no alto de uma árvore.
Ele canta e lança voo. Ela o acompanha avançando no horizonte até se
perder na imensidão do rio Uruguai. Descansa os olhos sobre o parque
do Turvo.
“Tu tinha que marcar logo nesse lugar?” Preta aparece também com
os pés e parte das pernas enlameadas.
Olga se vira com um sorriso. Tira uma máscara do bolso de trás da
calça, põe no rosto e vai abraçar a amiga.
“Ainda usando isso?”, Preta provoca.
“E tu não tá usando por quê?”
“Essa praga não chegou em nós. Espero que não chegue nunca.”
“Mais um motivo pra eu usar perto de ti. Tava em São Paulo na
semana passada e lá tá tomado.”
“Tava naquele programa de tv, né? A gente conseguiu ver algumas
partes. Tu falando da prisão do Heichma. Fiquei orgulhosa.”
“Demorou, mas pegaram ele. Tu foi essencial pra isso acontecer.”
“Nós três fomos.”
Olga baixa a cabeça. Perde o olhar no chão.
“Mas não engoli essa coisa dele ficar preso em casa”, Preta continua.
“A pandemia vai acabar logo e os recursos dele também. Vai pra
cadeia de Charqueadas.”
As duas observam a correnteza do rio por um tempo.
“Um ano”, Olga fala.
“Um ano.”
“Tu ainda procura por ela?”
“A gente parou as buscas faz um tempo.”
“Eu saí pra procurar a Chaya por esse rio toda semana durante
este…”
“Eu sei”, Preta interrompe. “Não precisa afirmar pra mim que tu não
desistiu dela.”
“Nem uma peça de roupa, ou boné, ou botina, ou arma. Nada. Tu
mesma disse que pode demorar, mas alguma coisa sempre se acha. Pra
ter certeza…”
“Tenha certeza, Olga.”
Uma rajada de vento morno passa por elas. Preta abre os braços.
Olga a observa e repete o movimento.
“Arrê!”, as duas dizem.
Olga se afasta e fica pensativa. Acredita que a vida real não pode ser
só espera. A dor parada em si aumenta e fere.
“Ela se foi? Assim?”, Olga pergunta com a voz baixa, fala para
dentro, como se não quisesse resposta.
“Ela não se foi. A tua visão que ainda tá turva. Clareia. Ela tá aí”,
Preta aponta para o rio, “e tá lá”, aponta para a floresta.
Olga olha ao redor, depois para o trecho da trilha por onde subiu, e
estende a mão para Preta.
“Vem no barco comigo. Vamos procurar por ela. Uma última vez.”
“Esú matou um pássaro ontem, com uma Láròyè Mo jubá
pedra que jogou hoje.” (Ditado Yorùbá) Odò Ìyá
Òóré Yèyè ó
Òké Aro
Ògún Yè
Agradecimentos

A Paulo Scott, meu amor, pelo apoio, por ter sido a primeira pessoa a
dizer que eu precisava escrever esta história e pelas inúmeras leituras.
A Stéphanie Roque, minha editora, pela genialidade e dedicação
desde o começo. Por ter construído Água turva comigo. Assim como a
Luiz Schwarcz, pela leitura atenta e pelas sugestões precisas.
A Emanuel Kretzmann, “por ter segurado o facão” para nos proteger.
Por ter ido inúmeras vezes comigo nas saídas de campo dentro do
parque do Turvo.
A Ronaldo Costa, analista ambiental do icmbio/mma, ex-chefe da
Estação Ecológica do Taim, pelas leituras e orientações em relação a
questões técnicas fundamentais para o livro.
A Daniel Kretzmann, zootecnista, pela orientação sobre as espécies
de peixes do rio Uruguai e a alimentação dos animais existentes no
Parque Estadual do Turvo.
A Aline Bei, Carola Saavedra e Jeferson Tenório pelas palavras que
não cabem em mim.
A Marcelino Freire e Valeria Lamego, pelas leituras e pela amizade
incondicional. Também a Andréa del Fuego, Luiz Antonio de Assis
Brasil, Yuri Al’Hanati, Rodrigo Lacerda, Cíntia Moscovich, Eduardo
Nasi e Nicole Witt, pelos apontamentos — minha gratidão sempre. A
Willian Vieira e Silvia Massimini Felix pelo trabalho impecável.
A Anna Lee, pelo apoio nesse processo e pelos aprendizados para
uma vida.
A Douglas Diel Schenkel, guarda-florestal e chefe do Parque
Estadual do Turvo, pelas entrevistas, aulas e saídas de campo; também
a Vilmar Grutzman, guarda-florestal; e a Letícia Sell Reschke,
funcionária do parque, pelo material de pesquisa.
A todos os guardas-florestais e funcionários do Turvo.
A Antonio Carlos Venancio Aniceto, babalorixá e gestor ambiental,
pela orientação e pela proteção.
In memoriam: Bruno Pereira e Dom Phillips.
renato parada

morgana kretzmann nasceu na região noroeste do Rio Grande do Sul, na


fronteira com a Argentina, e vive em São Paulo. É escritora e roteirista. Em
2021, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura com seu romance de estreia
Ao pó (Patuá, 2020). Também é formada em gestão ambiental.
Copyright © 2024 by Morgana Kretzmann

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em
vigor no Brasil em 2009.

Capa
Tereza Bettinardi

Foto de capa
Jaguari, de Iberê Camargo, 1941, óleo sobre tela, 40 × 30 cm.
Acervo Fundação Iberê. Reprodução de Rômulo Fialdini

Preparação
Silvia Massimini Felix

Revisão
Huendel Viana
Érika Nogueira Vieira

Versão digital
Filipe Alt
Rafael Alt

isbn 978-85-3593-731-2

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a
pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Todos os direitos desta edição reservados à


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