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Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
Lições do Esfinge Gorda
Rafael Santana 3
Lições do Esfinge Gorda
RESUMO
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
Rafael Santana 4
Lições do Esfinge Gorda
ABSTRACT
The aim of this work is to read the narratives Princípio, A Confissão de Lúcio and
Céu em Fogo, by Mário de Sá-Carneiro, from the concept of reverse education. In
proclaiming the autonomy of the art work, the Orpheu Generation was rejecting
the nineteenth-century thought that interweaves education and literature, which
features in the projects of both the romantic and the realist aesthetics. By enacting
the autoreferentiality in art, the Portuguese Modernism – running counter the great
nineteenth-century tradition – casts aside the idea of the social mission of the
artist. However, as the Orpheu artists created a literature meant to break with an
engaged perspective by means of rebel, iconoclastic gestures, they eventually
spread a longing for new authentic values, thus contributing in their own way to
the renewal of the consciousness. Heir of the ethical and aesthetic reformulations
of the late nineteenth century, Mário de Sá-Carneiro shapes an abstract, oneiric
world with no place for logic or scientific rationality, and puts forward a new and
perverse concept of education which operates in the reverse of the former model.
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RESUMÉ
Le but de cette thèse est celui de lire les récits Princípio, A Confissão de
Lúcio et Céu em Fogo de Mário de Sá-Carneiro à partir du concept d’éducation à
l’envers. En proclamant l’autonomie de l’art, la génération d’Orpheu refusait la
pensée dominante au XIXe siècle qui mettait en rapport éducation et littérature, ce
qui avait caractérisé aussi bien le projet romantique que le projet réaliste.
Relançant l’idée de l’auto-référentialité de l’art, le Modernisme portugais – dans
le sens opposé à la grande tradition du XIXe siècle – refuse entièrement la notion
d’un artiste voué à une mission à accomplir. Toutefois, en produisant une
littérature qui visait à renier cette tendance manifestement engagée, par le moyen
de gestes rebelles et iconoclastes, les artistes d’Orpheu ont fini par diffuser le
désir d’une nouvelle ordre du jour de valeurs authentiques, contribuant ainsi, à
leur façon, au renouvellement des consciences. Héritier des ces métamorphoses
éthiques et esthétiques du mouvement fin-de-siècle – que son groupe littéraire
avait assimilé de façon évidente –, Mário de Sá-Carneiro fait naître dans son
œuvre tout un monde onirique et abstrait, marqué par le refus de la logique et de la
rationalité scientifiques, proposant ainsi une conception nouvelle et perverse
d’éducation qui s’inscrit dans l’envers du modèle qui le précédait.
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Lições do Esfinge Gorda
AGRADEÇO A:
Theresa Abelha,
pela belíssima leitura do meu texto de Qualificação e pelas preciosas sugestões,
que muito contribuíram para o desenvolvimento desta tese;
Monica Figueiredo,
com quem muito aprendi, gozando a cada encontro do pasmo da criança que
diante de si vê revelado um mundo novo;
Luci Ruas,
pelas sugestões de leitura, pelo incentivo à pesquisa, pelas aulas encantadoras;
Edson Rosa,
pelas lições benjaminianas, pelas leituras de Baudelaire, pela partilha do saber;
Ida Alves,
pelos diálogos sobre poesia, pela força das palavras, pelas atitudes motivadoras;
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SUMÁRIO
ABREVIATURAS..................................................................................................................10
ILUSTRAÇÕES......................................................................................................................11
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................13
PARTE 1 ÉTICA E ESTÉTICA ...........................................................................................28
CAPÍTULO 1 DE VÊNUS A SALOMÉ: OS CAMINHOS DA ARTE .............................29
1.1 O NASCIMENTO DE VÊNUS: A BELEZA CLÁSSICA.....................................42
1.2 O JARDIM DAS DELÍCIAS: A BELEZA SAGRADA .........................................54
1.3 O VIAJANTE SOBRE O MAR DE NÉVOA: A BELEZA SIMPLES .................61
1.4 SALOMÉ: A BELEZA ERRADA ...........................................................................70
CAPÍTULO 2 OS CAMINHOS DE ORPHEU .....................................................................80
2.1 TRÂNSITOS ESTÉTICOS: DA POESIA À PROSA E VICE-VERSA ...........91
2.2 A DENEGAÇÃO DE UM PROJETO PEDAGÓGICO ........................................98
PARTE 2 AS LIÇÕES DA ESFINGE .............................................................................. 106
CAPÍTULO 3 O MISTÉRIO E OS SORTILÉGIOS ......................................................... 107
3.1 O MISTÉRIO EM A CONFISSÃO DE LÚCIO .................................................. 115
3.2 O MISTÉRIO EM A GRANDE SOMBRA ......................................................... 130
3.3 O MISTÉRIO EM A ESTRANHA MORTE DO PROFESSOR ANTENA .... 142
CAPÍTULO 4 A TEATRALIZAÇÃO DA MORTE .......................................................... 156
4.1 A MORTE EM PRINCÍPIO ................................................................................. 158
4.2 A MORTE EM A CONFISSÃO DE LÚCIO ....................................................... 174
4.3 A MORTE EM CÉU EM FOGO ........................................................................... 176
4.4 SOBRE AS FIGURAÇÕES DA MORTE ........................................................... 194
CAPÍTULO 5 O EROTISMO E O HOMOEROTISMO.................................................. 207
5.1 O HOMOEROTISMO EM A CONFISSÃO DE LÚCIO ................................... 211
5.2 O HOMOEROSTIMO EM RESSUREIÇÃO ...................................................... 224
5.3 O EROTISMO CITADINO .................................................................................. 229
5.4 A HERANÇA BAUDELAIRIANA...................................................................... 231
5.5 A SEMIOLOGIA DO ESPAÇO URBANO ........................................................ 237
5.6 A RELAÇÃO ERÓTICA COM PARIS ............................................................... 240
CAPÍTULO 6 O DANDY E A FEMME FATALE ............................................................. 252
6.1 O DANDISMO EM A CONFISSÃO DE LÚCIO ............................................... 262
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 296
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 302
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ABREVIATURAS
PR – Princípio.
CL – A Confissão de Lúcio.
CF – Céu em Fogo.
DI – Dispersão.
IO – Indício de Oiro.
UP – Últimos Poemas.
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ILUSTRAÇÕES
O Nascimento de Vênus 41
Salomé 69
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INTRODUÇÃO
[...] o “fingimento” é, sem dúvida, a mais
alta forma de educação, de libertação e
esclarecimento do espírito enquanto
educador de si próprio e dos outros [... ].
Sena. Ou talvez não. Ao formular o seu entendimento da poesia, Sena parece dar a
entender que é como se tivesse sido necessário ter existido anteriormente uma
exatamente o oposto de uma reflexão crítica ou, noutras palavras, uma escrita
autotélica, com os olhos voltados apenas para si mesma. Com extrema lucidez,
Jorge de Sena ensina-nos que o fingimento foi a “mais alta forma de educação, de
Lourenço, Orpheu foi acima de tudo uma revolução. Melhor dizendo, foi um
poesia – utilizo o termo em sentido etimológico, e por isso mesmo mais amplo, de
criação – como realidade, Orpheu proclamava uma nova educação pela arte.
1 Que fique claro que o mundo às avessas de Orpheu, e especialmente o de Sá-Carneiro, nada
tem a ver com o domínio do herói pícaro. Em Sá-Carneiro, o mundo às avessas é o espaço da
abstração e da quebra da lógica, aproximando-se muitíssimo dos pressupostos surrealistas.
Lições do Esfinge Gorda Introdução
abstração; Almada compõe a sua arte – literatura e artes plásticas – sob o signo da
Orpheu foi portanto uma educação. Mas de que tipo? Como toda
que o artista seria aquele que tem uma missão social a cumprir. Ao dizerem não às
serve à educação humana em geral” (2003, p.50). Neste sentido, lembre-se ainda
que o grande intuito dos de Orpheu era precisamente o de alocar a sua nação na
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
de um Fernando Pessoa, por exemplo, fez com que ele proferisse, via Ricardo
Reis, o verso contundente, “Prefiro rosas, meu amor, à pátria” (2006, p.269), isso
português que sabe arte e a estima, sendo, por conta disso, extremamente
Fogo, Sá-Carneiro pretendia encabeçar esta sua obra com a seguinte epígrafe: “À
gente lúcida”. Ironia extrema, é como ele explica, em carta a Fernando Pessoa,
futuros leitores: “[...] eu penso pôr esta dedicatória no livro: ‘À gente lúcida’ (mas
entretanto que se lhe possa dar outra interpretação: à gente lúcida, inteligente,
porque só ela pode compreender este livro” (COL, p.741, grifos do autor). Não
eleitos – vocábulo tão caro a Orpheu – sejam capazes de entender os seus escritos,
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
Com que linguagem escrever para o leitor lepidóptero? Eis as perguntas que o
Esfinge Gorda parecia fazer a si mesmo. Claro está que esta linguagem só poderia
ser densa e provocativa, e que toda a temática que ela engendra só poderia estar
fingimento será também ele uma educação. Quiçá – diria eu – uma educação às
3A esse respeito, assinala Fernando Cabral Martins: “O Modernismo e a obra de Mário de Sá-
Carneiro confirmam, ou exemplificam, a metamorfose da Literatura em teatro. Não só por
recusarem a confessionalidade romântica, mas também pela posição agónica, de luta cultural
e política, de combate antilepidóptero ou anti-Dantas. É que, desde logo, o Modernismo é
propaganda – não é contemporâneo da Grande Guerra por acaso – e dá ao aspecto
doutrinário o primeiro lugar: o seu gesto social é a bofetada no gosto do público [...]” (1997,
p.174).
4 Ressalte-se que o conceito de fingimento não está circunscrito apenas ao poema
Autopsicografia, escrito por Pessoa em 1931, e ao eixo pensar-sentir, mas a toda a tríade
poética de Orpheu. No caso específico de Sá-Carneiro, o exemplo mais claro disso talvez seja a
descrição que Lúcio, narrador-autor da novela A Confissão de Lúcio, empreende ao descrever
o processo de composição artística do poeta Ricardo de Loureiro. Ao compará-lo com a
personagem de Gervásio, diz ele: “Outras vezes também, Ricardo surgia-me com revelações
estrambóticas que lembravam um pouco os snobismos de Gervásio Vila-Nova. Porém, nele,
eu sabia que tudo isso era verdadeiro, sentido. Quando muito, sentido já como literatura” (CL,
p.368, grifos do autor). Cabe acentuar ainda que a consciência da crise da mimèsis caracteriza
a própria literatura finissecular, reflexão que será retomada pelos artistas de Orpheu.
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algumas das perguntas que ali fazia, suscitando contudo outras reflexões que
agora retomo de forma menos tímida e mais abrangente. Já então apostara na ideia
dandy é ele próprio uma linguagem que se constrói como teatro de palavras.
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
A questão entretanto não para por aí, nem se resolve em simples termos de
oposição. Porque o gesto dos de Orpheu – e a palavra gesto tem o peso do jogo
teatral – é ele próprio paradoxal, já que a revolução com que sonham, menos
política e mais estética, não deixa de ser também ela uma forma de educação,
melhor, é o texto que vem sendo considerado pela crítica como uma espécie de
numa educação de si próprio, o livro que Huysmans lega ao público leitor, e que
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
afins ao seu temperamento. Oscar Wilde, por exemplo, ele próprio dandy e grande
parisiense; Oscar Wilde, por seu turno, cria o modelo do dandy cosmopolita, cujo
têm a mesma raiz. Pedagogo (paidós + agogé = criança mais condução); pederasta
Wilde são não raro personagens que conjugam esses três vocábulos. Educando a si
dandy.
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
referidas obras, eu diria que esses três textos fundamentais da sociologia literária
Georg Lukács, quer nos de Lucien Goldman, quer nos de Ian Watt, se volta
assumindo as rédeas do poder entre fins do século XVIII e início do século XIX,
dos valores que a sociedade burguesa postulava como autênticos, que o romance
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
valores autênticos num universo degradado, marcado pela perda dos ideais.
com um mundo alheio a si, avesso aos seus ideais, e clama não exatamente pela
reforma dos valores sociais do seu tempo histórico – ao menos não do que esse
que a sociedade prega no discurso, mas não concretiza na prática. Deste modo, o
sociedade assinalada pelo descompasso, mais que isso, pelo contrassenso entre
este tipo de personagem como aquele que, em desconformidade com o mundo que
antiburguesa, logo em total desacordo com esses mesmos valores? Com efeito,
haverá aqui uma torção a ser imposta ao conceito, já que o escritor modernista
século XIX, promovendo a seu modo, com essa mesma recusa, outro parâmetro de
autenticidade.
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
oitocentista expõe como uma das suas marcas principais o diálogo entre o autor e
artísticos a partir dos quais Peter Gay situa o início do Modernismo – rompem
com aquele pacto de leitura em que o narrador levaria o seu narratário a absorver
se apresenta com estórias que não interessam tanto pelo seu enunciado, senão, e
sobretudo, pela sua enunciação. Como assinala Peter Gay a respeito da produção
especial atenção para suas técnicas, algo que os romancistas antissistema faziam”
outro? A matéria literária, por mais que o negue, não está sempre vinculada a uma
determinada intencionalidade?
7 Em Estudos Garrettianos (2010, p.103), Ofélia Paiva Monteiro, por exemplo, assinala que
toda a literatura de Garrett pode ser lida como um projeto declarada e vincadamente
pedagógico (o termo é da própria Ofélia), em que pulula uma evidente preocupação de
educar o leitor, não obstante a modernidade (iconoclasta e desconstrutora) em que a mesma
literatura garrettiana se inscreve.
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leitor mediano, que constitui um dos maiores alvos do seu ataque impiedoso.
conservadora e contra o senso comum. Ora, não eram de forma alguma os leitores
com aquilo que lia era precisamente o burguês lepidóptero – para retomar uma vez
mais o termo cunhado por Sá-Carneiro –, sempre rejeitado pelo discurso do artista
próprio. Ora, ser herético implica opor-se ao dogma, em outras palavras, romper
chocar o outro por meio de propostas avessas à moral dominante. Mário de Sá-
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
o centro da sua literatura, seja ela em poesia ou em prosa, uma ampla galeria de
Partindo da lição de Roland Barthes, que nos ensina que não há literatura
sem uma moral da linguagem, esta tese pode ser resumida no seguinte enunciado:
dividirei o texto que apresento em duas partes que buscam dar conta dessa
proposta de leitura.
iniciais, procurarei mostrar que toda arte, por mais que negue uma vinculação
primeiro capítulo desta tese algumas telas já consagradas pela tradição ocidental –
9Para tanto, utilizo como referências teóricas fundamentais os livros Clássico Anticlássico e
Arte Moderna: do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos, ambos de Giulio Argan.
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
olhares entre literatura e pintura. Cabe assinalar que, com este breve percurso
ler essa beleza errada declaradamente perseguida por Sá-Carneiro como uma
educação às avessas 10. É, pois, a partir das estéticas finisseculares que leio parte
uma nova modernidade, lançando sobre ela um outro código ético e simbólico.
estético entre poesia e prosa, diga-se, prosa poética, como um fenômeno típico do
10Com esta excursão pictórico-literária, busco mostrar também as marcas da tradição nos
escritos de Sá-Carneiro, pois a beleza errada nada mais é do que uma metamorfose da
tradição, desde Platão a Baudelaire, passando ainda pelas estéticas finisseculares.
11 Para tanto, apoio-me nas reflexões desenvolvidas por Octavio Paz em O Arco e a Lira,
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Lições do Esfinge Gorda Introdução
Eros e Thanatos. Como a pesquisa que proponho se centra sobretudo nos ecos do
Romanesca de René Girard, livro em que o pesquisador francês lança a sua teoria
desta tese, como, por exemplo, a de Fernando Cabral Martins com o seu
reflexão.
constituem uma espécie de primeiro passo para uma mudança de olhar, uma
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PARTE 1
ÉTICA E ESTÉTICA
CAPÍTULO 1
DE VÊNUS A SALOMÉ:
OS CAMINHOS DA ARTE
Creio profundamente que toda a arte é
didáctica. Creio que só a arte é didáctica.
suposto saber que o objeto literário oferece ao homem. Para ele, a literatura
social” (2006, p.35), para além, é claro, de ser um veículo de deleite, e, diria eu
uma experiência individual, fenômeno que não pressupunha contudo uma ruptura
dialogar com o evento social, espécie de eco de uma cultura vitoriana que tornou a
história de seres individuais num modo efetivo de partir do eu para abarcar todo
genius loci.
12 […] adivinhamos na literatura a presença de um elemento que não é mais que literário; na
pintura a presença de um elemento não pictural [...]. Quando a presença da obra parece
impor-se [...] entra em jogo um elemento que não podemos limitar ao estético. (Trad. minha).
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
Compagnon aponta o quanto a escrita literária foi, ao longo dos séculos, uma
destacando obras cujos personagens procuram pôr em prática aquilo que leem.
sua vez o teórico francês: “se a literatura pode ser vista como contribuição à
suas palavras, tal subversão evidencia-se de forma mais pujante a partir da metade
artístico.
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
fim da arte não é ser compreensível, porque a arte não é a propaganda política ou
imoral” (2005, p.434). Ou ainda: “A arte não tem, para o artista, fim social”
serviam para fazer tabula rasa da tradição bem pensante a que sucediam? Por
histórica, ou política, ou social, ou ainda a que ela manteria com a sua própria
origem?
posicionamento ético e estético que viria propor, na verdade, uma nova pauta de
valores autênticos, contrários aos do modelo instituído pela doxa. Assim sendo,
adestramento do leitor, mas o compromisso com uma nova ética, da qual a arte
nunca escapará, uma vez que ética e estética são conceitos inseparáveis, que
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
material que o leitor manuseará livremente, sem nunca contudo dele sair
proponho sobre o compromisso de toda arte poética, optarei aqui por uma
incursão pictórico-literária que passará pela Antiguidade, pela Era Clássica e pela
das artes possuem certamente vasos comunicantes, e de que por vezes o exemplo
das artes plásticas pode ajudar numa maior evidenciação dos conceitos. Para o
Ora, sabemos que tanto gregos quanto romanos viam a literatura como um
que a Idade Média também compreendia a literatura e a arte – que nem sequer
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
eram tidas como tal – como uma forma de educação vinculada muito
latino, o Renascimento retoma, com as suas devidas diferenças que dão à arte o
literatura na educação ao buscar levá-la das elites à comunidade, ideia que não
deixa de adentrar o século XIX 13. E não será por outra razão que com Diderot e
A pergunta que não quer tardar seria então: qual será, enfim, a função
13 Grosso modo, pode-se dizer que, da Antiguidade Clássica a meados do século XVIII, o
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
literária em tempos em que a arte se quer antes de tudo voltada para os seu próprio
de todos os valores?
como uma espécie de cartilha. Nem creio que Homero, Virgílio ou qualquer dos
fossem tomadas como manuais. Creio, sim, que as suas obras dão conta de uma
reflexão sobre a condição humana, por transitarem por diversas áreas do saber, e
que por isso mesmo foram lidas com diferentes propósitos ao longo dos tempos,
enfim, a noção de mundo que se inscreve no seu texto? A meu ver, a literatura de
Sá-Carneiro e, mais largamente, a da sua geração, também não está alheia a uma
erige como prioridade, a uma outra espécie de pedagogia, ouso dizer, que no seu
caracteriza o conjunto da estética moderna” (2006, p.102), mas tal rejeição não
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
passa de mero mito, uma vez que as artes nunca podem desvencilhar-se do
mundo, o que as faz com ele dialogar quer queiram, quer não.
Bosch, busco acentuar a ética relacionada à arte medieval; com O Viajante sobre
pedagógico propagado pela arte burguesa; por último, com o quadro Salomé de
tela do pintor francês, a minha tese sobre uma educação às avessas na literatura
de Sá-Carneiro, artista que busca ungir os seus escritos com a magia do belo. Ou
com toda uma tradição anterior. Se, para o artista modernista, o belo não tem
exatamente uma face clássica (no sentido de um discurso apolíneo e/ou racional)
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
conceito de beleza em que se inscreve a sua arte não deixa de entrever as marcas
de uma tradição que, embora por vezes negada, lá está, ainda que rasurada. No
(COL, p.894)
15 Toda a ideia deste capítulo é a de uma reflexão sobre o conceito de Belo e das suas
reverberações nos escritos de Sá-Carneiro. Para tanto, elejo as figuras de Vênus e de Salomé
como representantes metafóricas dessa evolução. Vênus, tal como concebida por Botticelli e
pela Renascença italiana, tornou-se corolário do Belo clássico, assentado na ideia da
harmonia, da simetria e da busca da justa medida; Salomé, musa eleita pelos artistas
finisseculares, representa precisamente um desvio do conceito de beleza propagado desde a
Antiguidade Clássica, e por isso mesmo foi eleita como paradigma de transgressão por
Gustave Moreau e por toda uma gama de artistas que, na esteira de Charles Baudelaire,
buscaram recriar o belo pelo viés do perverso e do inusitado.
16Diversos são os estudos críticos que exploram os pontos de convergência entre o
Decadentismo e o Maneirismo. Latuf Isaias Mucci, por exemplo, escreve o seguinte a esse
respeito: “No labirinto maneirista, ressaltam-se como traços principais: a nitidez e relevância
do desenho, o pendor às formas geométricas, o gosto pela linha serpenteada, a tendência
para a deformação das perspectivas, o contraste das cores cruas e a busca de atmosferas
raras. O Esteticismo encontra, no esplendor maneirista, uma prática ainda não contemplada,
na medida em que categorias estruturais dessa prática artística, como a valorização das
formas e das figuras, a busca da expressão, a mobilidade das formas e a estrutura
descentrada, tornam-se referenciais de uma arte absoluta. Não conota, precisamente, o
próprio termo ‘Maneirista’ o primado da maniera sobre a matéria, da forma sobre o
conteúdo?” (1994, p.38).
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
quer sintática, quer temática de poemas como a Ode Triunfal, a Ode Marítima ou
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
ainda a Cena do Ódio de Almada Negreiros, creio que o conceito de beleza que se
veicula na sua obra, seja ela em poesia ou em prosa, poderia ser lido na clave
daquilo que Fernando Pessoa / Álvaro de Campos classificou como uma estética
não aristotélica, ou seja, como uma estética que parte do conceito de beleza
estética não platônica –, Álvaro de Campos ratifica que, se a arte grega é aquela
que agrada pela ideia de beleza, a arte moderna, muito pelo contrário, é aquela que
seduz pela ideia de força, ou melhor, por uma espécie de não beleza, que é tão
somente uma beleza nova. Essa não beleza não significa portanto a ausência do
excelência capaz de legitimar a sobrevida da arte: “Sa survie [diz ele ao discorrer
sobre arte] n’est pas sa conservation: c’est la présence dans la vie, de ce qui
Se, conforme Pessoa, a beleza emitida pela arte grega é capaz de captar
viés outro – subjuga pelo estranhamento, pelo incômodo, pela violência excessiva.
17 Sua sobrevivência não é sua conservação: é a presença na vida daquilo que deveria
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
A meu ver, a educação às avessas dos escritos de Sá-Carneiro poderia ser lida na
mesma esteira dessa violência que subjuga, que rompe com as bases do leitor
sua própria natureza; também do Belo medieval ao ansiar pelo mundo dos sonhos
Platão, ou seja, de tudo aquilo que é bom e verdadeiro, conceito que a pintura de
universal.
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Sandro Botticelli: O Nascimento de Vênus (1483-4).
Florença, Galleria degli Uffizi.
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
Bela, esguia, alva, serena, perfeita nas suas formas, nua e, no entanto,
dos impulsos e dos desejos carnais 19 : eis aí a Vênus representada pelo pintor
18 Vênus é dupla. Uma é aquela inteligência que situamos na mente angélica. A outra é aquela
capacidade de engendrar que se atribui à alma do mundo. E uma e outra têm como
companheiro um amor semelhante a elas. Aquela é arrastada pelo amor inato a compreender
a beleza de Deus. Esta, por seu amor, a criar a mesma beleza nos corpos. Aquela compreende
em si primeiro o fulgor da divindade e depois o transmite à segunda Vênus. Esta irradia as
faíscas deste fulgor na matéria do mundo. Deste modo, pela presença de tais faíscas, cada um
dos corpos do mundo se mostra belo, na medida de sua natureza. A beleza destes corpos é
percebida através dos olhos pelo espírito do homem que possui duas forças, a força de
entender e a potência de engendrar. Estas duas forças são em nós duas Vênus, que vão
acompanhadas de dois amores. Tão logo a beleza do corpo humano se apresenta diante de
nossos olhos, nossa mente, que é em nós a Vênus primeira, a venera e ama como uma
imagem do ornamento divino, e através desta é incitada frequentemente em direção àquele.
Por sua vez, a força para gerar a Vênus segunda deseja engendrar uma forma semelhante a
esta. Em ambas então há amor. Ali desejo de contemplar a beleza, aqui de gerá-la. E estes
dois amores são honestos e merecedores de elogio, pois um e outro seguem a imagem divina.
(Trad. minha).
19 Giulio Argan (Clássico Anticlássico), Erwin Panofsky (Idea: a Evolução do Conceito de Belo)
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
talvez a mais perfeita efígie daquilo que foi ansiado pelo conjunto das artes desde
nos padrões estéticos legados pela cultura greco-latina fizeram da matéria artística
uma tentativa de lograr a plenitude não encontrada na vida ou, noutros termos,
uma procura de tocar com a perfeição tudo aquilo que na sua essência fosse
marcado pela precariedade, pela mutabilidade, pela finitude, pela deficiência, pela
morte, enfim. E seria precisamente na busca da beleza, de uma Beleza com “B”
alcançada. Eis porque toda a literatura clássica rejeita a atividade quotidiana como
conteúdo, eis possivelmente também porque ela nega ao vulgo um lugar no espaço
da escritura, eis porque ela se lança na busca da essência para além da aparência,
eis porque a sua utopia é, nas palavras de George Lukács (2007) – pesquisador
princípio norteador do universo era para os antigos gregos uma força chamada
um tema mitológico. Por outras palavras, Botticelli inovou pintando a nudez ao recuperar um
tema da mitologia. Na arte medieval, por exemplo, a nudez era debuxada como um modo de
reiterar o conceito de pecado. O grande diferencial de Botticelli teria sido, portanto, pintar
uma deusa pagã completamente nua, mas, no entanto, com uma face pudica e algo assexuada
de Madonna cristã.
20 A esse respeito, Escreve Giulio Argan – Clássico Anticlássico – “[...] para Botticelli, a
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
organização, harmonia. Os romanos, por sua vez, consideravam que aquilo que
norteia a existência dos seres é a sua própria conduta no mundo, termo que na sua
(sujo) 21.
ético, a literatura era considerada também ela uma manifestação estética no seu
deveriam estar sempre, e tão somente, a serviço do Belo. Vita brevis, ars longa,
diz o aforismo de Hipócrates traduzido por Sêneca para o latim. E repare-se que
que, mesmo naqueles tempos a que Lukács (2007) chama afortunados, isto é,
uma plena integração entre eu e mundo, mesmo naqueles tempos, repito, um dos
quotidiano não lhes servia nem sequer como matéria de contraste, eis porque,
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
p.31), pois a busca da beleza perpassa as artes gregas tanto no período pré quanto
pautavam-se num conceito que carrega no seu próprio bojo a ideia de plenitude,
utilizava para definir a si própria, uma vez que a expressão Kalos kai agathos
também para a ideia de uma existência pautada nos mais lídimos princípios éticos
ulteriores à filosofia, a ideia do dever, não raras vezes atrelado ao conceito de bela
Platão, a busca da Beleza é também ela uma busca do Bem e da Verdade, uma vez
que o discípulo de Sócrates entende estes vocábulos como três universais que se
argumento de Platão, o que significa dizer que tudo aquilo que é belo é ao mesmo
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
criador de um etéreo mundo das Ideias, espaço que se opõe tutelarmente ao plano
sensibiliza pela força que consegue fazer emergir do caos” (PLATÃO, 1991,
aparência.
num plano suprassensível, isto é, de um belo metafísico, mas sim de um belo que,
de acordo com o seu pensamento, corresponde ao homem que age com a justa
medida (métron), vale dizer, com honra e altivez. Cumpre ressaltar que tanto em
homem com “uma grande alma”, ou seja, àquele que pauta a sua conduta segundo
a noção do métron, conceito tão caro à cultura grega dos tempos filosóficos.
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
Desta forma, Nêmese pode ser lida como metáfora da própria da justiça divina,
pois aqueles que ousassem ultrapassar o limite do que era considerado aceitável
de que para tudo no universo existe uma exata medida. Aqui, interessa-me
Quintus Horatius Flacus espelha o ideal helênico qua talis, na sua plácida e
civilidade: aut prodesse aut delectare, eis o lema aristotélico tornado mote por
Horácio, poeta cuja proposta artística reside na criação de um objeto literário que
tomo o adjetivo no seu sentido lato, sobretudo na sua relação com a retomada dos
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
propiciado pela experiência literária [...], um conhecimento que só (ou quase só) a
filosófico ou científico” (Ibidem, p.35), e cuja arte seria concebida como meio de
Dulce et utile, eis o que Horácio almejava que fosse a sua poesia.
contramão das ideias de Platão, alça a poesia como instrumento válido do ponto
modo para a ideia da expurgação das emoções humanas, como assinala Aristóteles
na sua Poética, claro está que, para o Estagirita, a arte, para além do gozo estético,
neoplatonismo e da escolástica 23. Ousaria mesmo dizer que, a seu modo, todos
23 A escolástica aristotélica está intimamente ligada à arte medieval, mas não foi de todo
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
ambicionavam também que a sua época voltasse àquela mesma grandeza no plano
para a experimentação de uma vida mais plena e mais dotada de sentido humano.
Filosofia:
o ideal humanista e o ideal religioso cristão. Vivendo sob o signo da cultura cristã,
Rafael Santana 49
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
trabalho da citação é mesmo esse que consiste sempre em recuperar para recriar e
nunca para repetir o modelo na sua integridade. Partindo do autor para o mundo,
estética renascentista centrou o foco da sua pintura não mais no rosto de Deus,
mas no rosto e no corpo do próprio homem, para que ele, ao mirar-se a si próprio
condição humana, despertando para aquilo que o diferencia dos outros animais – a
Horácio no terceiro livro das suas Odes: Odi profanum vulgus et arceo. Favete
que o poeta romano, ao mesmo tempo que reafirma uma atitude elitista em relação
à arte, nela também imprime uma espécie de caráter “religioso”, uma vez que, ao
estabelecer o Belo como valor supremo, professa como que uma espécie de
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
uma ética e de uma estética da existência que culminam na busca da beleza, Sá-
Carneiro, na linha dos estetas finisseculares, realiza na sua obra uma série de
escala platônica, é lograda pelo excesso, pela hybris, pelo dispêndio erótico da
arte. Ousaria mesmo dizer que a obra sá-carneiriana apresenta Diotimas e Sócrates
toda uma tradição 25. Ou seja, busca-se o belo, mas a trindade platônica Bem –
o define –, o que significa dizer que a sua obra promove o culto do belo
Rafael Santana 51
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
[...] uma ânsia por atingir o extravagante, o singular, o exótico e tudo quanto
se dissimula para além e no seio da realidade física ‘natural’. Torna-se
igualmente evidente a vontade de conservar uma distância aristocrática em
face da sociedade. Todas essas tendências tornam-se legítimas graças a um
talento ‘engenhoso’, que não pode ser mais considerado como dependente
das normas clássicas. [...] O homem do Maneirismo, que tem medo do
espontâneo e que ama a escuridão, orgulha-se pelo fato de descobrir o
sensível através de metáforas abstrusas e se esforça por captar o fantástico
(meraviglia), graças a uma linguagem sumamente rebuscada. Todavia, nem
histórica nem sociologicamente pode ser encarado como um tipo original. Ele
se destaca todas as vezes que surge um problema no campo político ou
religioso e mais precisamente desde que a cultura ‘alexandrina’ começou a
penetrar nas cortes e nos salões burgueses ou nos conventículos dos boêmios.
um estilo circunscrito apenas à sua época, mas uma tendência ética e estética que
mas de uma troca úbere e benéfica, Sá-Carneiro apropria-se das vozes do passado,
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Hieronymus Bosch: O Jardim das Delícias (1500-5).
Madrid, Museo Nacional del Prado.
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
(Afonso X – Cantiga de
Santa Maria)
Jacques Le Goff assinala que o famoso tríptico O Jardim das Delícias (1500-5),
bíblica com as tintas da arte. Vivendo no mundo humanista, a meio caminho entre
se Adão e Eva ao lado de Jesus Cristo, num espaço que, embora paradisíaco nas
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
condição de inocência, vindo a cair, por conta das suas ações, n’ O Jardim das
Delícias, porque expulso pelo criador das terras do paraíso. Nesse espaço
da procriação, o ser humano entregue à vida dissoluta seria levado, como castigo
post mortem, ao espaço infernal, representado por Bosch na tela à direita. In nuce,
do pecado e da luxúria (ao centro) que se vai parar no inferno (à direita). Eis aí
uma leitura possível, que aponta para uma arte cuja ética e cuja estética
voltada para esfera religiosa, o que permitiu a André Malraux situá-la na esfera do
período, visto que a vasta maioria dos camponeses era iletrada, as Artes Visuais
eram o principal meio de comunicar ideias religiosas aos fiéis. A Igreja Católica
era uma das poucas instituições ricas o suficiente para remunerar a obra dos
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
que sabiam ler e escrever, as artes visuais são um modo efetivo de propagar os
valores cristãos. Composta para encantar e educar o povo através de uma função
ritualística, a arte sacra medieval é ela própria uma narrativa bíblica que se faz por
os vitrais góticos da Baixa Idade Média, por exemplo, cumpriam nas igrejas uma
hagiográficas. Seduzido pelo brilho dessa arte religiosa, inebriado pelo jogo de
se-ia que Deus – e não o homem – é, na Idade Média, a medida de todas as coisas.
como espaço civil e religioso, em torno do qual girava toda a vida social. Jacques
27 Este caráter circular da cidade e do mundo medieval é discutido por Le Goff em O Apogeu
da Cidade Medieval.
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
educação religiosa.
lidas como sinônimo de bruxaria pela cultura cristã, o que significava, por outro
lado, uma presença luxuriante. Misteriosos, enigmáticos, até mesmo fálicos, esses
28Segundo Ian Watt, “a partir do Renascimento o tempo [...] é não só uma força crucial do
mundo físico como ainda a força que molda a histórica individual e coletiva do homem.”
(2007, p.22).
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
forma da mulher, que, por seu turno, direcionava o homem para o caminho da
perdição. Eles estavam assim, como diz bem a cantiga medieval, “entre Ave e
Eva” 29.
do mito de Lilith, pelos ecos que provocará no seio de uma literatura fin-de-siècle.
Conta a lenda que Lilith teria sido a primeira mulher da humanidade, tendo
sido criada antes mesmo de Eva. Ao contrário desta última, Lilith não foi
concebida a partir da costela do homem; ela teria surgido diretamente do barro, tal
qual Adão. Ser independente, Lilith decidira não se submeter ao poder masculino
e, no momento do sexo, quis ficar por cima e não debaixo do homem, assumindo
uma postura ativa e de insubmissão. Sua atitude levou-a a ser banida do paraíso,
transformando-se para sempre num demônio. Ora, o mito de Lilith, como exemplo
me interessa.
29 “Entre Ave e Eva / Gran departiment’á. / Ca Eva nos tolleu / O Parays’ e Deus, / Ave nos y
meteu; / porend’, amigos meus: Entre Ave e Eva... (Cantiga de Santa Maria - Afonso X)
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
Baudelaire, valorizarão as mulheres viris, isto é, não áulicas, que desfrutam da sua
Lilith por conta das suas ações transgressoras. É esse também o perfil feminino
forma de propagar os valores cristãos, mas também servia como uma espécie de
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Caspar David Friedrich: O Viajante sobre o Mar de Névoa (1818).
Hamburgo, Hamburger Kunsthalle.
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
(Bocage – Poemas)
solitário. A paisagem que o cerca é descampada e sem vida, toda ela envolta em
paisagístico distancia-se em muitos aspectos das matrizes clássicas, uma vez que
portanto das luzes tão caras àquele padrão de natureza que se perpetuara desde a
escolhida para este subitem não poderia, pois, ser outra. Manuel Maria Barbosa du
período de transição.
do indivíduo para novos valores, o que no campo das artes viria a exigir a
Rafael Santana 61
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
proposta de uma nova estética. O mundo ocidental assiste, entre fins do século
de novos gêneros que, por sua vez, derrubam matrizes multisseculares. Diante de
um tão distinto quadro social, claro está que o conjunto das artes – incluam-se aí
ratificados ainda pela Era Clássica – a epopeia e a tragédia –, nascem outros, mais
antigos: passa-se do verso, forma fechada na sua totalidade, à prosa, forma que
30A esse respeito, diz Lukács: “Epopeia e romance, ambas objetivações da grande épica, não
diferem pelas intenções configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se
deparam para a configuração. O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade
extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à
vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade. Seria
superficial e algo meramente artístico buscar as características únicas e decisivas da
definição dos gêneros no verso e na prosa” (2007, p.55).
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
Além disso, tanto o romance quanto o drama, como gêneros burgueses que
são ou que, pelo menos, parecem haver sido assim concebidos no momento da sua
visão de mundo do seu tempo. Para a nova sociedade que surge, é o ser humano
como indivíduo, como ser histórico situado no tempo e no espaço, o grande objeto
coletividade, mas sim como um ser concreto e único, que só pode ser entendido
classe (a arte, a caça, a guerra), para a burguesia e, muitas vezes, para os escritores
espécie de pedagogia do belo ideal e aristocrático, a cultura burguesa irá por sua
radicalmente ainda, Octavio Paz chega a afirmar que a poesia não existe para a
romancista do século XIX podia viver das suas obras que, amiúde, atendiam à
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
entregue ao ócio, não lhe é conferida nenhuma espécie de status social. Assim,
Octavio Paz conclui que a burguesia expulsa tudo aquilo que não consegue
assimilar, ou seja, tudo aquilo que não se adéqua ao sistema de valores que
cedendo espaço para a ascensão dos gêneros em prosa – romance, conto, novela –,
parecia não ter mesmo uma inclinação muito acentuada para o verso. Encontrando
pressentir uma contrapartida ao próprio projeto que antes parecia ter encarnado,
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
que a poesia perdera espaço na sociedade do século XIX, diante daquilo que
escritor: [...] “Hoje a moda é prosa e mais prosa, economias políticas, estatísticas,
suas Viagens na Minha Terra (1843), Garrett pergunta-se onde reside o espaço da
poesia na vida social do século XIX: “Pois este é um século para poetas? Ou
temos nós poetas para este século?...” (Ibidem), questiona. E a conclusão a que
de mera utilidade social 34, a poesia perde o seu posto de nobreza na sociedade do
33Claro está que Garrett também entendia a poesia como um discurso inscrito na sociedade,
mesmo que a contrapelo, consciência que já manifestava desde a publicação de Camões
(1925), poema em que recupera a figura tutelar do vate lusitano, para reler um século XIX
indiferente à arte e aos artistas. Na Lírica de João Mínimo (1929), assistimos à consciência do
ofício poético erigir-se de uma simples figura do povo (João Mínimo), poeta humilde, com
quem aprendemos que a poesia deveria ser destinada à educação da sociedade de onde
surge. Esta noção da importância do ato de educar através da palavra é perpetuada por
Garrett – seja em poesia, drama ou narrativa – até ao fim da sua vida. No já clássico prefácio a
Frei Luís de Sousa (1843), Garrett assinala que “Os poetas fizeram-se cidadãos, tomaram
parte na coisa pública”, o que atesta um entendimento da poesia como uma arte que, tal
como a prosa, poderia ser tomada como veículo “pedagógico” de educação de um novo e
mais abrangente público leitor. Desde que se iniciara na senda da poesia, Garrett postulou a
ideia da forte capacidade pedagógica do elemento poético. Contudo, na advertência às Folhas
Caídas (1853), o poeta maduro sinaliza que “Os cantos que formam esta pequena colecção
pertencem todos a uma época de vida íntima e recolhida que nada tem com as minhas outras
colecções”. E acrescenta: “Essas mais ou menos mostram o poeta diante do público. Das
Folhas Caídas ninguém tal dirá, ou bem pouco entende de estilos e modos de cantar” (2008,
p.2). Ora, talvez Garrett não percebesse que, ao expor em poesia a sua vida privada para o
púbico leitor, estava ele a cumprir um gesto eminentemente social, “que rasgava os véus
convencionais em que a tradição clássica envolvia o amor” (SARAIVA, 2002, p.36).
Constituindo-se num exercício de erotismo experimental a dois, as Folhas Caídas trazem toda
uma poesia de alcova, na qual se espreita a intimidade amorosa por meio de versos nada
velados. Numa sociedade que proclamava a sacralidade do privado, ou melhor, a distância
necessária entre a vida pública e a individual, Garrett abria espaço para que o leitor
observasse a sua intimidade, rasgando assim as convenções amorosas da sua época.
34 Neste sentido, Octavio Paz, logo no início do capítulo intitulado El Verbo Descarnado (El
Arco y la Lira), afirma que a poesia lírica canta geralmente paixões e experiências que são
irredutíveis à análise pragmática, e que constituem por isso mesmo um gasto ou um
desperdício.
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
século XIX, quando a arte se devia fazer portadora de uma mensagem social,
retoma, em termos individuais, a crise dos valores sociais. É assim que, embora
gênero textual subserviente à classe que o concebeu, mas antes como uma forma
Cumpre ressaltar aqui que o romance do século XIX, seja ele romântico ou
realista, ao ironizar a sociedade burguesa nas suas diversas esferas, não fazia
senão reafirmar os valores que tinham sido a sua utopia por meio de um processo
concretização daquilo que a sociedade burguesa pregava no discurso, mas que não
efetivava na prática.
descontentamento entre o dizer e o fazer, e fala sobre um mundo traidor dos seus
próprios ideais e cuja utopia da criação de uma sociedade mais justa e igualitária
não passaria de mera falácia. Num mundo desinstalado pela morte de Deus 35, que
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
entre interior e exterior, ou seja, por uma discrepância entre os seus ideais e o
valores autênticos num mundo degradado, marcado pela instabilidade, onde não
e de negação, de tal modo que o herói romanesco só pode ser concebido como um
herói problemático.
uma luta entre o mundo interior e o mundo exterior, o herói romântico eleva a sua
psicológico, e este processo de idealização por ele empreendido deve ser lido não
como alienação ou desistência, mas talvez como o único modo que o herói
claramente nas suas Viagens na Minha Terra uma nostalgia relacionada aos
desvios ideológicos da sociedade liberal, caracterizada por ele como sendo chata,
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
vulgar e sensabor. Daí o fato de o narrador-autor das Viagens, que não é outro
“velha e boa Lisboa das crônicas” (2005, p.13) – em lugar da padronizada Lisboa
2007, p.31), para que o leitor também pudesse aprender com a história desses
concorreria para a reforma social e para o aprimoramento dos costumes. Ora, será
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Gustave Moreau: Salomé (1876).
Los Angeles, Hammer Museum.
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
habitar o centro das suas telas representam a junção da crueldade requintada, vale
quadro que ficaria conhecido como a sua obra-prima: Salomé. Efígie perfeita da
inebria a todos com a sua dança lúbrica, o que no texto decadentista não
corresponderia a outro fenômeno senão ao rodopio dos signos, que explodem nas
somente – a serviço da beleza, contudo nem sequer mais de uma beleza ideal ou
imortal, mas de uma beleza inscrita na autonomia da própria arte, gratuita por ser
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
ela própria a inventar-se a si mesma, aurática sem aura 36, porque imbuída de uma
aura que só existe em seus próprios fins. Cultuando o belo pelo viés da
se a arte decadentista, que clama pelo belo, não simétrico e linear, mas pelo belo
miseria de la historia 38” (2003, p.44). Enxergamos aí, nesse instigante epigrama
O texto de Edson Rosa da Silva sobre o conceito por ele cunhado de aura insubmissa será
36
dos aspectos visíveis da natureza, mas procura na própria natureza, sob ou sobre esses
aspectos ou além deles, um “belo” que se revela apenas às almas belas, aos artistas. Assim se
liga à poética do “sublime”, ao deliberado arbítrio fantástico de Blake e Füssli, à
transfiguração da paisagem de Turner, e se refina através da sensibilidade inquieta, entre o
êxtase e o pesadelo, da poesia de Baudelaire e, por seu intermediário, da prosa poética de
Poe” (2013, p.138).
38 O poema hermético proclama a grandeza da poesia e a miséria da história. (Trad. minha).
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
estética decadentista procura conferir às palavras um sentido outro que não mais o
excessivas da arte.
conforme a sua ótica, somente a arte, através do culto à nova beleza, poderia
conferir algum brilho à opacidade da vida, tomada aqui na sua acepção mais
trivial.
decadência intenta subordinar todos os valores quer sociais, quer morais, à esfera
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
uma elite econômica, mas sobretudo a uma elite cultural, a uma reduzida casta de
Gray (1890), único romance de Oscar Wilde, afirma este mestre do paradoxo:
em si mesma, o que a faz desprezar com veemência tudo aquilo que não é do
restrito domínio do artístico. “Toda arte é demasiado inútil” (Ibidem), diz Oscar
questão de pura sensibilidade, de pura poiesis, num inebriante rodopio dos signos.
39 O Decadentismo entende que os valores estéticos devem estar acima de quaisquer outros
valores. A meu ver, essa estética é também uma ética. Ou seja, o desprezo pelo referente
converte-se num discurso denso e rebuscado, que pretende negar os valores sociais em prol
de um absolutismo da arte. Ora, ao negar a relação entre literatura e sociedade, o Esteticismo
promove, precisamente com essa negação, uma reflexão sobre o social, embora diga não o
fazer.
Rafael Santana 73
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
compromisso algum com algo que lhe é exterior, e por isso mesmo abomina o
pequeno fato verdadeiro, atrelado por demais aos ideais progressistas da sociedade
meio da atitude iconoclasta dos seus artistas, legando aos escritores ulteriores
aquelas bases fundamentais que, nos anos aurorais do século XX, viriam a
Rafael Santana 74
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
arte como modos de poetizar a existência. Eis aí algumas das sendas percorridas
abre a cena moderna de princípios do século XX, que aposta igualmente na ideia
da autorreferencialidade da arte.
pensamento dos estetas da decadência: “Todo o artista que dá à sua arte um fim
“indiferença para com a Pátria, para com a Religião [e] para com as chamadas
arte que se quer autônoma. Produto do intelecto, a literatura de Orpheu, tal qual a
obstáculo que o artista tem a vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem
Rafael Santana 75
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
que a obra de arte seria capaz de poetizar a anódina existência humana através da
criação da beleza:
por meio da complexidade das suas obras, a sua superioridade dentre os demais,
escritor, poetizando a sua própria existência, seria aquele que faz da vida uma
Rafael Santana 76
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
apesar do seu sofrimento e da sua inadequação, um ser mais feliz que os outros,
“para quem as horas de meditação sobre si próprio são horas perdidas” (COL,
p.737).
pensamento a quem, por sua condição social, não pode pensar?” (2005, p.587).
modo àquilo por que a sua sociedade lutava e ansiava – liberdade de expressão,
Rafael Santana 77
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
que a literatura de Orpheu inscreve-se naquilo que aqui chamo uma educação às
avessas, que consiste por sua vez na valorização de tudo o que não poderia ser
como tantos outros nessa mesma linha transgressora – poderiam ser lidos na clave
com a falha de um projeto anterior que, por falhado, precisaria sair de cena e ceder
autor morreu para que um dia ele pudesse vir a ressuscitar em outros parâmetros,
eu diria também que foi preciso que os artistas de Orpheu afirmassem num
Rafael Santana 78
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 1
Afinal, reitero agora a minha pergunta inicial: poderia alguma arte ser
perpetuador dos valores da aristocracia; a Idade Média compôs grande parte das
cristãos; o século XIX apostou no romance e nas suas formas correlatas como
princípio do século XX? Negada foi tal pedagogia, como vimos, mas estaria ela de
responder.
Rafael Santana 79
CAPÍTULO 2
OS CAMINHOS DE ORPHEU
Evocar o advento do Orpheu é escrever o
nosso romance histórico actual com as
personagens autênticas e sem ficção
possível.
milhares de papéis dispersos na sua pletórica arca, obra na qual o artista tece uma
na sociedade. E a conclusão a que não raras vezes chega Fernando Pessoa acerca
suas reflexões sobre a arte a todo o seu círculo literário – negaria toda e qualquer
40 Críticos de renome como Jacinto do Prado Coelho, Cleonice Berardinelli e José Augusto
lugar, porque a referida crítica fundamenta a sua leitura nos próprios escritos
escritor que, embora essencial para o diálogo com a obra do autor de A Confissão
literatura e sociedade, afirmações que, a meu ver, se justificariam por uma adesão
especialmente à ideia de que a obra de arte teria uma função social a cumprir,
Orpheu inscreve as suas obras num projeto de rechaçar as relações entre literatura
de Octavio Paz – Los Hijos del Limo –, as revoluções artísticas se desejavam, até à
sobre Portugal, a não ser quando expõe o seu provincianismo e a sua discrepância
Rafael Santana 82
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
será a minha proposta de leitura – esta literatura não deixa de dialogar com o
que anos mais tarde aborrecerá pensadores da esteira de Roland Barthes, noutras
uma espécie de lâmina com a qual pudesse ferir as normas e os padrões ditados
vulgar. Decerto que literatura sá-carneiriana pode ser lida como um constante
poderia conduzir o leitor a uma conclusão – a meu ver discutível – de que o autor,
em que medida este suposto desprezo pelo referente não esconderia, ao mesmo
época, vale dizer, para com a falha do projeto oitocentista, de que o seu mundo
ainda é herdeiro. Parece difícil, num autor que escreve sobre temas tão
diálogo da sua literatura com o mundo que o circunda, uma vez que todos estes
comum do tempo.
mostrando um total desprezo pela nação na sua literatura, cabe ressaltar também
que este escritor que tanto rejeita o seu país – e que o fez fisicamente na sua opção
Rafael Santana 83
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
e indiferente ao sonho e às grandes ideias, porque todos eles – sem exceção – são
aspiram a qualquer coisa que estivesse muito para além do que a nação – e de
voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau, / Plonger au fond du gouffre, Enfer ou
Em Sá-Carneiro, é realmente curioso notar que este ser tão ávido por Paris
mantido tão ligado a Portugal seja pela correspondência muitas das vezes urdida
nos agitadíssimos cafés da grande capital latina, cartas que trocava quase
constante de personagens portugueses na sua obra, seja, enfim, pelo próprio cotejo
que tantas vezes estabelece entre Lisboa e Paris, lamentando-se sempre pelo fato
o que denunciaria o desejo de operar uma mudança nesse sentido. A meu ver, os
desejo – aos homens comuns da sua pátria, que, ao adentrarem o insólito universo
‘reacionário’ etc.” (2001, p.91), uma vez que a sua poesia caminha na direção do
41 Nós queremos, tanto esse fogo nos queima o pensamento, / Mergulhar no fundo do
abismo, Inferno ou Céu, que importa? / No fundo do Desconhecido para encontrar o novo.
(Trad. minha).
Rafael Santana 84
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
sonho. A arte moderna é arte de sonho” (2005, p.296), diz o poeta. Ressaltando a
ideia de que “os grandes homens antigos eram homens de sonho” (Ibidem) e de
Lendo, com grande acuidade, este pequeno manifesto pessoano, intitulado A Arte
do lugar-comum:
O sonho, para Pessoa, não é a inação. No passado, o sonho era o alto projeto
das maiores ações humanas; no presente, são as circunstâncias infelizes que
impedem essa prática superior, e condenam o sonho à irrealização.
Assumindo o sonho, a poesia moderna não se limita apenas a fugir de um real
adverso, mas afirma uma utopia que, por contraste, é uma permanente
acusação daquilo que, nesse real, impede a plena realização dos mais altos
ideais humanos. A poesia preserva o sonho como a possibilidade de um
projeto, que possa dar um valor às ações, que as salve da cegueira e da
brutalidade.
que manifestara uma certa consciência de si próprio, já não mais quisera fazer
parte? No caso de um cidadão comum, talvez o seu projeto de futuro possa ser
Rafael Santana 85
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
um artista, o que mais especificamente me interessa aqui, outro poderia ser o seu
Sá-Carneiro como um tema que o atraía, inicialmente mais como ficção e como
matéria poética, do que como algo que efetivamente pudesse aplicar na sua vida,
conto composto num período anterior à produção mais significativa do autor (de
sendo, percebe-se claramente que Sá-Carneiro, tal como Pessoa, não concebe o
sonho como a inação, mas como um projeto de futuro, fosse ele a morte, mas
carneiriana, cabe frisar entretanto que o Esfinge Gorda fez do tema da morte um
efetivo projeto de literatura, única vida que tivera afinal. Assim sendo, antes da
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Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
1995, p.20). Como assinala Alexei Bueno na sua Introdução à obra completa do
autor de Páginas dum suicida, “foi entre estes dois signos, a Arte e a Morte –
assim com letra maiúscula – que teve lugar a meteórica trajetória de Mário de Sá-
Carneiro” (Ibidem).
outro modo, uma postura de engajamento que o fim de século desprezara ou que,
na imaginação dos artistas do final do século XIX, não passando, de fato, de uma
artísticos que, a seu ver, trazem no seu bojo certas ideias da escola à qual
Rafael Santana 87
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
organizar uma nova práxis vital. Na esteira de Bürger e de Lukács, eu diria que
meio do choque e do susto que causam todo gesto radical de escândalo e toda
atitude iconoclasta.
considerado desgastado, cedendo espaço para o novo. No entanto, para que o novo
Rafael Santana 88
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
afirma, por exemplo, que todas as artes cumprem inexoravelmente uma função
social, numa postura contrária à que assumira em outros tantos escritos em prosa.
Reconhecendo “que aquilo que se chama uma corrente literária deve de algum
poesia, para ele, o gênero literário que melhor define o Zeitgeist de uma época.
Por outro lado, cabe acentuar que os escritos contraditórios de Pessoa, incluindo
aqueles textos em prosa que assina com o seu próprio nome, só fazem acentuar o
jogo dramático das personae, que põem magistralmente em cena o conflito entre
cultural e política, Fernando Pessoa afirma que a sua poesia e a dos artistas seus
grande corrente literária, das que precedem as grandes épocas criadoras [...]”
(Ibidem, p.367), dirá ele. Assim, caberia à própria arte lograr alcançar a almejada
grandeza que a sociedade decadente não era capaz de oferecer ao artista. Como
assinala Octavio Paz, “casi todas las épocas de crisis o decadencia social son
fértiles en grandes poetas 42” (2003, p.43), uma vez que, recusando a atmosfera de
Quase todas as épocas de crise ou decadência social são férteis em grandes poetas. (Trad.
42
minha).
Rafael Santana 89
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
corrente do seu tempo 43. É na sua correspondência o lugar onde Sá-Carneiro mais
encontramos sobre o que o autor pensava ser o ideário da revista. Nos períodos de
estada em Paris, Sá-Carneiro trocava cartas frequentemente com quase todo o seu
círculo artístico, sendo estas cartas hoje consideradas parte da sua obra ficcional,
postais sobre coisas triviais, como encontro em algum café. Em todo o primeiro
que assolava violentamente a França. Talvez por esse motivo, não haja sequer
uma linha escrita pelo poeta sobre a proposta da revista que dirigia com Fernando
Pessoa, muito provavelmente porque todo o seu ideário sobre Orpheu teria sido
Negreiros, artistas que, tendo publicado na revista, não abriram mão de tecer
concerne à direção da revista, porque “via perfeitamente por onde se estava a abrir
o caminho e aonde iria ter. Via-o mesmo como nenhum outro e ditirambicamente”
43 Sá-Carneiro refere-se muitas vezes a Orpheu na sua correspondência literária, mas muito
mais para tratar de questões burocráticas do que para tecer considerações estéticas.
Rafael Santana 90
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
talvez tenha sido o poeta que melhor tenha resumido o espírito cosmopolita e
vez que buscou integrar todas as artes na escrita, trabalhando com os temas da
poeta e ensaísta mexicano – uma premissa que bem poderia definir um dos
Rafael Santana 91
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
em prosa. Se, a partir do século XIX, a poesia se tornara menos valorizada pelo
público que tinha acesso à arte, justamente porque não facilmente adaptável a uma
função utilitária, e neste sentido dera grande espaço para a ascensão dos gêneros
em prosa, ela (a poesia) viria a converter-se contudo num dos modos de expressão
46 Em relação a isso, lembre-se que, para Fernando Pessoa, o verdadeiro artista seria aquele
Rafael Santana 92
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
divagação, do sonho e da melodia dos ritmos, que não seriam outro caminho
imagética, o romance do início do século XX, para Paz, tende a ser poema
novamente.
nascimento do mundo moderno e afirma que os “poetas malditos” não são apenas
uma criação do Romantismo, mas o fruto de uma sociedade mercantil, onde não
há espaço possível para aqueles que não produzem. Segundo Octavio Paz, a
situação dos poetas piora ainda mais no século XIX, com o declínio do mecenato.
de mendicância, porque, não sendo o seu trabalho “algo que pueda ingresar en el
no tiene existencia real dentro de nuestro mundo 51” (Ibidem, p.243), conclui.
Num veio crítico marxista, Octavio Paz (2003) utilizou o termo menos-
valorização e à ascensão dos gêneros em prosa. Com isso, contudo, não pretende
dizer que o oitocentos seja pobre em poesia, ou que não tenha existido atividade
49 A crise da sociedade moderna – que é crise dos princípios do nosso mundo – manifestou-se
se não é um valor, não tem existência real dentro do nosso mundo. (Trad. minha).
Rafael Santana 93
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
presentear os homens com a luz do conhecimento: “Le poète en des jours impies /
Vient préparer des jours meilleurs 52”. O que Octavio Paz faz é de certa forma
interessada no valor da troca e do lucro não têm grandes interesses pela atividade
poética, porque a poesia, diferentemente da prosa, não é, nem nunca foi vista,
como um objeto de consumo pelo grande público 53. Romances, contos e novelas
leitor preso e à espera, o que fazia com que os editores não manifestassem grande
Cesário Verde que parece resumir perfeitamente a situação dos poetas e o valor
qualquer desfruta fama honrosa / Obtém dinheiro, arranja a sua coterie”. Contudo
ele, poeta a quem muito contraria escrever em prosa, vê com frequência os jornais
popular à sua época, não se agradem com a leitura de uma poesia exigente, ainda
mais, para o caso, em sendo ela uma poesia tão avessa à tradição da lírica
portuguesa.
mas a quem distrai senão a uns quantos extravagantes?” (2003, p.232. Trad. minha).
Rafael Santana 94
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
ao princípio filosófico racional que o seu século ditava como norma, luta a todo o
romântica e a realista funcionaram muitas vezes como meios através dos quais se
exacerbada contra o modelo social está no fato de o século XIX ter sido um tempo
histórico que traiu os seus próprios ideais, solapando a base do ideário iluminista
Rafael Santana 95
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
segunda metade do século, a utopia de aperfeiçoar o mundo por meio das benesses
haviam falhado. Como diz Octavio Paz, o mundo burguês “proclamó los derechos
del hombre, pero al mismo tiempo los pisoteó en nombre de la propiedad privada
estar para todos. Lembremos, por exemplo, que todo o fantástico progresso
deslealmente nesta guerra, que foi a primeira a usar tanques e aviões. Do ponto de
mas que reifica os próprios valores que consagra, os artistas, espécies de antenas
da raça, como os definiu Edzra Pound (In: ABC da Literatura), fizeram das suas
Rafael Santana 96
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
efetivação daqueles valores que a sociedade que lhes deu origem dizia autênticos,
traria não apenas para a literatura, mas para as artes como um todo, o surgimento
ela própria, uma écriture-dandy, isto é, numa escritura narcísica, sempre voltada
Rafael Santana 97
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
mais procede pelo trânsito entre signos práticos: ela se apresenta, antes, como
semelhança do luxo, dos lutos, das guerras, dos cultos, dos jogos e dos
formulado pelos decadentistas, artistas que desconhecem qualquer ética que possa
A proposta finissecular é justamente essa. Penso, no entanto, que essa estética é também
56
uma ética.
57 [...] por sua própria natureza, toda linguagem é comunicação. As palavras do poeta são
Rafael Santana 98
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
proposta de leitura, seja por uma via periférica ou marginal, será impossível negar
obra de Oscar Wilde, Gentil de Faria, escritor de veio decadentista cuja produção
literatura finissecular na instigante obra de João do Rio, escritor que, como Wilde,
58 Almeida Garrett, no paratexto que precede a obra Frei Luís de Sousa (1844), afirma que o
século XIX é um tempo que se quer mais democrático, e que, por isso mesmo, tudo o que a
sociedade constrói – inclusive a literatura – há de ser feito em prol do povo e com o povo, o
que evidencia uma clara preocupação didática do escritor e, em maior escala, da própria
literatura oitocentista. Eça de Queirós, em carta ao amigo Rodrigues de Freitas, afirma que a
proposta do Realismo seria a de “Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele
é mau, ‘seguindo o passado’” (s/d, p.45). Criticando a postura romântica de tentar transmitir
ao público leitor os valores do seu tempo a partir da recuperação do passado histórico, Eça
diz que o Realismo deve expor a ferida aberta do mundo burguês, e denunciar a
mediocridade da vida contemporânea. Para os realistas, essa seria uma forma mais efetiva de
educação.
Rafael Santana 99
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 2
trajetória do dandy nas obras de Oscar Wilde, escritor que, depois de Baudelaire,
revela-se um dos maiores teóricos do dandismo, percebe-se que esta figura típica
enredos faz parte, como mestre que não raramente presta assistência ao herói ou
trágica, sendas que, segundo a sua ótica, representariam toda a beleza e toda a
tutor dandy costuma encantar, pelo poder da magia discursiva, os seus, digamos,
obcecado pela morte e por todo o mistério que ela traz em latência. Encantado
gran finale ao longo da sua brevíssima vida literária, sendo o poema intitulado,
“Quando eu morrer batam em latas, / Rompam aos saltos e aos pinotes – / Façam
princípios do século XX, aristocrática 59 e sem nenhum outro fim que não o da
59 Em relação a isso, diz Fernando Pessoa: “Que Essa Arte não é feita para o povo?
Naturalmente que o não é – nem ela nem nenhuma arte verdadeira. Toda a arte que fica é
feita para as aristocracias, para os escóis, que é o que fica na história das sociedades, porque
o povo passa, e o seu mister é passar” (2005, p.299).
Portugal, não vale a pena lutar, não vale a pena fazer absolutamente nada, pois “a
ação humana sobre o universo é menos que limitadíssima” (2005, p.351). É ainda
este mesmo sintoma que é transposto para um pequeno poema de Alberto Caeiro,
delírios, numa “luta impossível contra a realidade” (CF, p.432), como bem
se transformou para além das luzes do século que preparou a Revolução Francesa,
A nossa arte é supremamente aristocrática, ainda porque uma arte aristocrática se torna
necessária neste outono da civilização europeia, em que a democracia avança a tal ponto que,
para de qualquer maneira reagir, nos incumbe, a nós artistas, pormos entre a elite e o povo
aquela barreira que ele, o povo, nunca poderá transpor – a barreira do requinte emotivo e da
ideação transcendental, da sensação apurada até à sutileza [...]... É pela arte que,
supremamente, essa aristocratização pode ser feita.” (2005, p.299).
que se deve buscar a mensagem, de outro modo também ela social – ainda que de
postura avessa à do artista burguês, que difundia a ideia de que a obra de arte teria
deixar patente a ideia de que “o artista não tem que se importar com o fim social
da arte, ou, antes, com o papel da arte adentro da vida social”, pois essa é uma
a arte destes escritores contudo acabara por tomar um rumo talvez inesperado por
eles mesmos, tornando-se, de certo modo, para o público leitor, sinônimo de luta e
literária acabam por ligar o escritor à sociedade, pois “não há literatura sem uma
Cerdeira:
Consciente, pois, de que toda arte, por mais que negue uma ligação e uma
uma sociedade mais justa e igualitária, mas sim como a construção de um modelo
uma certa filosofia dandy, Mário de Sá-Carneiro acaba por incorporar a pedagogia
às avessas inerente a esta figura finissecular na sua própria escrita literária, urdida
quase sempre sob o signo inebriante da artificialidade. Vazada numa real écriture
raro o trânsito estético entre poesia e prosa, o que confere um acentuado caráter
função produtiva – como diz Octavio Paz (1994) –, como abordar questões
(PAZ, 2003, p.108), promovendo uma ruptura com a tradição aristocrática das
belas letras, se essa prosa vem assinalar o gosto literário de escritores que, na
esteticamente esta aporia ao optar por uma prosa que recusa definitivamente
padrões narrativos mais consensuais. Afinal, como bem lembra Octavio Paz:
“Todo periodo de crisis se inicia o coincide con una crítica del lenguaje 60” (2003,
p.29).
Posto isto, cabe ressaltar que é justamente a partir desta ideia de crítica da
linguagem nos seus âmbitos verbal e não verbal que desejo assinalar esta espécie
60 Todo período de crise se inicia ou coincide com uma crítica da linguagem. (Trad. minha).
processo de aprendizagem.
entrecruzado com alguma poesia da sua “maturidade poética 61” e, nalguns casos,
com a sua correspondência literária, buscando frisar, nesses três gêneros textuais,
levar em conta que todo ato de escrita pressupõe uma mitologia pessoal do artista
mundo que o cerca. Como nos ensina Antonio Candido, todo texto literário, por
mais que não manifeste uma vinculação explícita com o contexto histórico-social
que acabam por tornar-se também eles internos, capazes que são de interferir na
tão simplesmente com isto vincular as escolhas pessoais do escritor à grande crise
61Refiro-me aos poemas de Dispersão, Indícios de Oiro e Últimos Poemas, porque há neles
uma espécie de recorrência dos temas obsessivos da literatura sá-carneiriana. Não lerei a
seção intitulada Primeiros Poemas, pois me parece que a temática ali apresentada ainda está
muito relacionada a um certo romantismo piegas da juventude adolescente do escritor.
AS LIÇÕES DA ESFINGE
CAPÍTULO 3
O MISTÉRIO E OS SORTILÉGIOS
Mistério e “segredo” são palavras-chave
para compreender não apenas a
literatura da segunda metade do século
XIX, mas para penetrar no âmago da
própria modernidade.
epígrafe deste capítulo, funcionam bem como sustentação para a leitura do tema
‘mistério’ não exclui a realidade, mas a reinterpreta” (SISCAR, 2010, p.260). Por
trata de recuperar a aura de uma romântica eleição divina para o lugar do artista,
Carneiro, artista que morreu jovem, mas que já refletia sobre essas questões desde
o que representava para ele a postura científica do seu tempo histórico, cerceadora
dos sonhos e dos grandes projetos da alma. Em Páginas dum Suicida, o narrador
declara:
Afinal, sou simplesmente uma vítima da época, nada mais... O meu espírito é
um espírito aventuroso e investigador por excelência. Se eu tivesse nascido
no século XV descobriria novos mares, novos continentes... No começo do
século XIX teria inventado talvez o caminho de ferro... Há poucos anos
mesmo, ainda teria com que me ocupar: os automóveis, a telegrafia sem
fios... Mas agora... agora que me resta?... A aviação?... Pf... essa já nada me
interessa depois dos últimos resultados dos Wrights e de Farman... Para o
Polo Sul partiu há pouco o Dr. Charcot... Não há dúvida: a única coisa
interessante que existe atualmente na vida é a morte!... Pois bem, serei eu o
primeiro explorador dessa região misteriosa, completamente desconhecida...
(PR, p.263)
relação à ciência:
movida não por critérios racionais, mas pela inquietação interior. Para ambos, o
sonho significa não a alienação, não a recusa de projetos, mas sim a rejeição da
científico era a priori uma força de sonho passível de ser posta em prática, e se o
Com efeito, o lar feliz, o home sweet home, é a mais lídima definição da
ao lucro imediato. Esse ser acomodado e sem ânsia, vale dizer, sem uma febre de
não possui a angústia criadora, aquele em cuja alma não brilha a chama do desejo,
aquele que não é tocado pela beleza do sonho, enfim. Morto em vida, o homem
sem sonhos é o parasita que consome, é a simples planta que suga as energias da
terra.
poderia ser tomado como um terreno a desbravar já não oferece ao homem sequer
dúvidas que, por seu vez, exacerbam ironicamente a lógica do absurdo. Noutros
medida ela ajudou na construção de um mundo mais justo e igualitário, até que
ponto ela fez os homens mais felizes? Ora, tais perguntas pressupõem um balanço
a pátria pelo viés de um sebastianismo crítico, ainda que por vias transcendentes.
“Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (2008, p.108). Ora, seja
Mensagem.
p.93), como ele próprio se autodefiniu, a única verdade presente no seu discurso é
a de que o último rei da Dinastia de Avis está morto e não irá voltar. O
Sebastião) que falhou ao tentar dar asas a um grande sonho. Figura tocada pela
febre de além, o rei torna-se aos olhos de Pessoa num herói não da ação, mas da
que, milagrosamente, restituísse a glória pátria, mas sim um mito nacional que
deveria retomar como exemplo de uma loucura outra, que é a loucura dos
sem rei nem lei, sem paz nem guerra, onde residem resquícios do brilho de um
não arde, como a encerrar um fogo-fátuo 63. Para superar este quadro duvidoso
seria necessário que um forte vento se levantasse, dispersando para bem longe o
denso nevoeiro. Ou seja, era chegada a hora de deixar de esperar pela volta
outra vez conquistemos a Distancia – / Do mar ou outra, mas que seja nossa!”
(2008, p.100), diz Pessoa em Prece. É, pois, através do sonho, no que este
63 Tomo de empréstimo a reflexão que Fernando Pessoa promove no poema Nevoeiro, que
encerra Mensagem.
como vimos, que a sua arte fosse uma espécie de alavanca que os impulsionasse
Sebastião como a metáfora dos sonhos possíveis, não que ele declarasse amor à
pátria – como Pessoa tantas vezes o fizera –, não que ele manifestasse sequer
algum tipo de nacionalismo. Para o autor de Indícios de Oiro, Portugal foi sempre
medianas. Não obstante a rejeição declarada ao seu país, o Esfinge Gorda, apesar
de distante, nunca dele se afastou de fato seja pela literatura que ferinamente
direcionava a esse público lepidóptero, seja pelos projetos artísticos que urdia em
repensavam Portugal através da arte. Tal qual Pessoa, mas por vias diversas, Sá-
Carneiro também lê o sonho como uma via de metamorfose. Como assinala Maria
desta sociedade e dela em certa medida é tributário, até quando se lhe nega, em
no espaço em que se situa, Maria Aliete Galhoz afirma ainda que o autor de Céu
em Fogo é um escritor que, embora negue, “participa da sua época, dos incidentes
arte de então” (Ibidem, p.35). E repare-se que a ensaísta utiliza o termo denegação
superfície, esta literatura que exigia negar quaisquer valores que não fossem os da
própria arte não deixava de dialogar com o espírito do seu tempo referencialmente
histórico, sendo também ela uma educação pela negativa, uma educação às
narrativa com um estranho prólogo, Lúcio, após ter cumprido dez anos de cárcere,
decide fazer uma insólita declaração em que confessa não a sua culpa, mas a sua
confissão que Lúcio decide escrever após ter cumprido integralmente a sua pena
já de nada vale, uma vez que não pode servir nem sequer como atenuante de uma
inviabilidade da defesa.
64 Expressão aparentemente inspirada num verso das Geórgicas, de Virgílio. A frase pode ser
traduzida por O tempo foge como as nuvens, como as naus, como as sombras.
E àqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: “Mas por que não
fez a sua confissão quando era tempo? Por que não demonstrou a sua
inocência ao tribunal”, a esses responderei: – A minha defesa era impossível.
Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me passar por um embusteiro ou
por um doido...
(CL, p.351)
Lúcio configura-se como uma verdade inverossímil, como uma realidade irreal.
da novela não manifesta certeza alguma acerca daquilo que relata, escolhendo
Estranhos caminhos elege aquele que diz querer narrar apenas a veracidade dos
apresenta-se como uma diegese assaz singular, por romper em diversos aspectos
narrador do século XIX, seja ele romântico ou realista, costuma expor uma visão
de mundo clara, coesa e coerente, não raro direcionando o leitor pela palavra, o
sentido, sendo ele lúcido o bastante para apontar uma saída possível por meio da
escrita. Por outras palavras, o que quero frisar é que, mesmo diante do seu mar de
incertezas, o narrador das viagens é capaz de transformar tudo aquilo que vê,
ouve, pensa e sente num discurso útil à nação, a quem cabe, inclusive, o
aconselhamento que encerra o livro: “Que tenha o governo juízo; que as faça [as
estradas] de pedra, que pode; e viajaremos, com muito prazer e com muita
psicológica e em dúvidas que não sabe resolver nem responder, ou melhor, que
herói épico seria a metonímia de uma comunidade, ou melhor, a voz que é capaz
degradado, o que significa dizer que a sua demanda de valores autênticos também
poderia ser lida como a busca de um sentido mais pleno para a sua existência
enquanto indivíduo.
útil. A esse respeito, escreve aliás Fernando Pessoa: “Só a arte é útil. Crenças,
exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-
Simbolismo e aponta como que para uma “descrença nas formas tradicionais de
[...] Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição
clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho – parece-
me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará –
estou certo – a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: durante ela não deixarei escapar um pormenor, por
mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que
tento explanar, a luz só pode nascer de uma grande soma de fatos. E são
apenas fatos que eu relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões
[...].
(CL, p.352)
O alerta está dado: para quem deseja fazer uma exposição clara de fatos,
adequado, o mais estranho. Desde o princípio, Lúcio adverte o leitor arguto de que
que narra se somarão ao longo da narrativa, e caberá àquele que a ler tirar as suas
narrado; o leitor desconfiado, por seu turno, logo perceberá que a soma dos fatos
relatados não leva a um resultado que se encerra, atentando deste modo para a
ironia e para a malícia de um sujeito que urde o seu discurso a partir de dúvidas,
verdade, isto é, de que a sua confissão nada mais é do que um simples documento,
de A Confissão de Lúcio, muito embora proponha uma leitura desta novela de Sá-
como mote a definição de Pierre Janet, que entende que “o ato mnemônico
social” (apud LE GOFF, 1984, p.12). Assim sendo, proponho ler a construção da
progressismo decadentes.
Desviando-se daquilo que diz ser o seu propósito primeiro – relatar a verdade e
que aí contudo se observa é que o narrador-autor parece almejar um fim outro, que
enunciação não só se nega a dar explicações racionalizáveis acerca dos fatos que
relata, mas que antes se afigura uma espécie de exercício de uma erótica verbal
acontecido no passado, Lúcio compõe na verdade uma narrativa que fala sobre
Refiro-me ao conceito de Octavio Paz – A Dupla Chama –, que propõe ler o erotismo como
65
escrevendo uma novela, uma ficção, o seu discurso se nos apresenta como
Lúcio parece ter como eixo motivador não só o gozo das palavras, mas também,
proposta pelo narrador da novela. Ora, ao elidir o “útil” do seu relato em prol da
(Ibidem, p.45) como uma espécie de rito de passagem cujos segredos deveriam ser
mantidos apenas para eles próprios. Em relação a isso, é Lúcio quem diz:
(CL, p.365)
de 1913, diz ele: “Além, mesmo, abrange o livro todo, porque as histórias que ele
encerra são todas vagas, sonhadas, além-realidade” (COL, p.739, grifo do autor).
passada a festa da americana, diz a Lúcio que “tudo aquilo mais lhe parecia hoje
uma visão de onanista do que a simples realidade” (CL, p.365); Lúcio, ao retornar
mundo de sonhos; Marta, por sua vez, afigura-se a Lúcio uma figura fantasmática,
desordenação é condição sine qua non para que este tipo de relato se efetive. Ou
presente, o passado e o futuro se confundem não raro com o tempo vivido pela
personagem. Por outro lado, cabe frisar que o discurso da memória é aquele que
66 Utilizo a expressão relação triangular no sentido empregado por René Girard (2009), que
compreende que todo desejo pressupõe a mediação de um terceiro entre o sujeito desejante
e o objeto desejado.
Morto, sem olhar um instante em redor de mim, logo me afastei para esta
vivenda rural, isolada e perdida, donde nunca mais arredarei pé.
Acho-me tranquilo – sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o
futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro.
Permaneci, mas não me sou. E até à morte real, só me resta contemplar as
horas a esgueirar-se em minha face... A morte real – apenas um sono mais
denso...
(CL, p.415)
Carneiro ser narrada na voz do presente. Ou seja: após o cumprimento de dez anos
levaram a viver tal situação. Em segundo lugar, destaco até que ponto este
instante que focou toda a sua vida” (CL, p.351, grifos do autor) o leitmotiv não
67Ao refletir sobre a narrativa novecentista, escreve Anatol Rosenfeld: “[...] o romance se
passa no íntimo do narrador, as perspectivas se borram, as pessoas se fragmentam, visto que
a cronologia se confunde no tempo vivido; a reminiscência transforma o passado em
atualidade. Como o narrador já não se encontra fora da situação narrada e sim
profundamente envolvido nela não há a distância que produz a visão perspectivística.
Quanto mais o narrador se envolve na situação, através da visão microscópica e da voz do
presente, tanto mais os contornos nítidos se confundem; o mundo narrado se torna opaco e
caótico” (ROSENFELD, 1996, p.92).
relato, Lúcio assinala que os dez anos em que estivera preso esvoaram-se-lhe
como se fossem apenas dez meses. Morto para a vida e tendo já experimentado as
que lhe vêm os fragmentos de memória à cabeça: assim Lúcio diz escrever a sua
confissão. Sem a lógica de uma ordem cartesiana, sem cronologia bem definida,
sem linguagem técnica, este discurso postula limitar-se – ironia imensa – a narrar
dúvidas, Lúcio, que nunca soube descer uma psicologia, manifesta como certeza
a narrativa. Os supostos fatos que relata estão todos eles sujeitos às suas dúvidas,
exemplo, de uma conversa com Ricardo, Lúcio, num primeiro momento, afirma
que o poeta lhe confidenciara haver-se olhado no espelho e não ter visto a sua
imagem refletida. Num segundo momento porém, o próprio Lúcio diz que, ao
pensar melhor, descobrira que o amigo não lhe dissera nada disso, e que apenas
lembrava não que Ricardo lhe tivesse dito algo a respeito de um acidente
especular, mas que lho devera ter dito. Texto que investe no mistério como meio
(CL, p.375)
superior e genial, num segundo momento, ele próprio faz questão de alertar o seu
leitor, dizendo-lhe ser conveniente desconfiar dos retratos dos grandes artistas.
referente, que não pode ser recuperado de forma plena seja na literatura, seja nas
exercício da escrita não é nunca capaz de narrar o mundo na sua integridade, mas
escrito, Lúcio quer narrar uma verdade inverossímil, que rompe com quaisquer
Lisboa, por exemplo, Lúcio descreve o seu primeiro encontro com Marta num
esse encontro entre ambos como uma espécie de regresso a um mundo de sonhos,
memória, sem a saudade sequer de um momento da sua vida, Marta faz com que
Lúcio duvide da realidade da sua existência (de Marta) e da sua própria sanidade
– reiteram precisamente o mistério que paira por sobre ela. Obcecado, Lúcio
pergunta-se: “Aquela mulher, ah! aquela mulher... Quem seria?... quem seria?...
Como sucedera tudo aquilo?” (CL, p.386, grifos do autor). Ciente de que os
sortilégios do mistério são de fato o que doura a sua vida, o que unge a sua
existência, Lúcio, no entanto, movido pelo ciúme e pela curiosidade, buscará dar
autossabotagem.
a” (Ibidem, p.387). Como se pode ver, Lúcio declara-se fascinado pelo mistério e
afirma que aquilo que o impelia para Marta não era tanto a sua beleza física ou a
toma, mas que, qual Orfeu, não consegue suster. Inquieto, perturbado, Lúcio
decide decifrar de uma vez por todas o enigma de Marta, mulher que se lhe
amante lhe escapavam reiteradamente, tal “como nos fogem as dos personagens
dos sonhos” (Ibidem). Figura onírica, Marta é como uma sombra, é como um
vulto que se desfaz e refaz. Ao possuí-la, ou melhor, ao ser por ela possuído,
situação lhe provoca a um só tempo gozo e dor, orgulho e ciúme, o que o faz
em Marta, é o próprio Ricardo quem cai morto no chão, e é Lúcio quem é preso
por um crime que, afinal, afirma não ter cometido, sem ter contudo como se
amado, como o olhar para trás de Orfeu foi a morte de Eurídice. Em O Espaço
escritura, que é sempre o ponto sagrado naquele sentido do que não deve ser
revelado sob pena de perder-se. Lúcio e Orfeu não conseguiram manter a dúvida e
se lançaram para fora do mistério, como que exigindo a sua comprovação, a sua
o lugar não da luz que revela, mas da noite, do escuro, do inefável. Enquanto
morte, porque a arte está no lugar impreciso, lugar interdito por excelência, onde o
fascínio ameaça. Marta tornara-se essa ameaça – prazer e morte –, paradoxo com
o qual Lúcio não soube conviver. Foi essa a sua “fraqueza”, a sua “loucura”.
Por outro lado, seguindo a leitura que Blanchot faz do mito grego, não
perscrutar o abismo e aceitar, para Orfeu, a Eurídice diurna e familiar que ele na
verdade não desejava, já que queria “não fazê-la viver, mas ter vivo nela a
lugar a uma narrativa que apontasse os passos de uma paixão que só conseguiu
sobreviver travestida.
vocábulos de caráter afetivo, incongruências que, lidas stricto sensu, seriam uma
louco, que narra as experiências pessoais a partir da sua mente psicótica? Teria
um romance policial, uma vez que se está diante de uma trama narrativa que
de enigma.
gritando-a absurda. Nesta festa e nesta dança dos loucos, contesta-se uma
autênticos.
(Sá-Carneiro – Ângulo)
antítese entre luz (realidade, vida quotidiana) e sombra (mistério, mundo dos
p.419). Ávido pelo mistério, mas ciente de que a vida é sempre tão certa, de que a
luz (o real) lhe cai como “uma certeza tosca e material” (Ibidem, p.420) da qual
realista do mundo, decide assumir uma postura de sublevação, travando uma “luta
pequenas partes que abarcam uma linha cronológica que vai de 1905 a 1911. O
narrador data o seu relato com dias, meses e anos, e Mário de Sá-Carneiro, o autor
um período de felicidade:
Ah!, a imaginação das crianças... onde achar outra mais bela, mais
inquietadora, que melhor saiba frisar o impossível?... Ela é sem dúvida, pelo
menos, a mais apta a converter pavor, a refugiar vislumbres. Porque nessa
época ondulante da vida é-se apenas fantasia, crédula fantasia. Vem depois o
raciocínio, a lucidez, a desconfiança – e tudo se esvai... Só nos resta a certeza
– a desilusão sem remédio... Eis pelo que a hora mais Além, a hora mais
perturbadora da minha vida, a vivi nos oito anos.
reinterpretar o passado infantil, que ele lê como sendo o período mais belo da
vida, no qual tudo é possível por meio da imaginação, ou melhor, no qual se pode
desconfiança, que podam as asas do sonho tão logo o voo se levanta. Outrora-
agora, a infância surge aos seus olhos como um tempo de fantasia ou, em termos
coloca desde a infância como aquele que rechaça a ordem do mundo, a lógica
postura que aponta, por um lado, para a rejeição ao espírito gregário de uma
(CF, p.420)
Ansiando pela Sombra, mas a todo o tempo perseguido por uma luz
afirma ter intuído, de há muito, que só é possível tornar uma vida verdadeiramente
apenas uma ambiência bem certa, um real sem remédio, espécie de luz tosca, que
sombra. Não obstante todos os obstáculos que empeçam o seu caminho, está ele
decidido a lograr o enigma a qualquer preço. Como quer que a sua busca no
mundo tenha sido frustrada, mergulha agora no seu universo interior, na sua
contudo não quer, aquando do encontro, decifrar o enigma, como Édipo o fizera.
longo dos tempos. A literatura do século XIX, por exemplo, caracteriza-se por
neste último sentido que o monstro grego é relido pelos estetas finisseculares e
(CF, p.419)
tempo marcado pelo medo do escuro, dos monstros e de tudo aquilo que se vai
perdendo à medida que chega a idade adulta. Tal saudade no entanto em nada se
mas que nunca verdadeiramente atravessava: casas às escuras onde nunca entrara
sempre o preferiu à luz: “– As grandes casas escuras... Ainda hoje não sei entrar
de sortilégios ondular ao redor” (Ibidem), este personagem que não revela o seu
nome nunca chega no entanto a ultrapassar os umbrais dos cômodos escuros que
misterioso sótão da casa da quinta onde vivia com a família. Contudo, nunca nele
ousou entrar, dizendo: “e percebo agora que o meu receio era apenas de o ficar
conhecendo realmente, e assim perder aos meus olhos todo o seu encanto”
(CF, p.420-421)
sonho” (2008, p.25-26). Por outras palavras, a casa e os seus cômodos surgem na
passado infantil. Recusando o universo encantado dos belos príncipes, das lindas
desafia um dos mais conhecidos princípios da física – o de que dois corpos não
picarescos, isto é, por criaturas sem beleza e sem caráter, no avesso da moral
com asas, peixes de juba e borboletas que são flores. Ocupando a direção da
fidalgos que, por seu turno, são ratos dourados com asas de prata.
governo viesse a ser algum dia entregue às figuras mais desprovidas, que o
que sonham não são meros nefelibatas, como a lógica utilitária os classificaria,
oferece apenas pequeníssimos indícios. Não por acaso o seu narrador afirma ter
vivenciado o período mais áureo da existência aos oito anos, quando ainda podia
Eis pelo que a hora mais Além, a hora mais perturbadora da minha vida, a
vivi nos oito anos.
Estávamos na nossa quinta.
Eu não me atrevera nunca a passear de noite, sozinho, pelas ruas areadas,
orladas de buxo, tão aprazíveis e campestres, em que de dia, bem afoito,
brincava correndo afogueado. Mas, do grande pátio junto da cozinha, eu
olhava-as, em frente de mim, sonhando descobri-las, noturnamente, numa
viagem maravilhosa. Porque em verdade, de noite, a minha quinta devia ser
mágica... Gnomos a percorriam às cabriolas, e elfos; nos grandes tanques, ao
luar, se banhariam fadas, e pelos assentos de azulejo – oh, sem dúvida! – toda
uma figuração de príncipes e rainhas encantadas se assentaria devaneando...
Depois, que medo não havia de fazer, lá embaixo, sob a nogueira secular,
junto do poço – à borda do qual, talvez, mouras de sortilégio, todas nuas,
assomassem... esquivas.
De olhos fascinados, sim, eu sonhava tudo isto, de olhos perdidos – mas
trêmulo, não ousando nunca afastar-me alguns passos ao pé da cozinha, onde
havia luz e a criadagem falaceava... Sonhava ainda investigando sempre a
noite, sonolento, com um livro de estampas esquecido sobre os joelhos... e o
meu olhar perdia-se mais uma vez no laranjal que se adivinhava perto, numa
penumbra esbatida, e em que eu, à força de ilusão, distinguia, conseguia
realmente distinguir, os frutos rutilantes – volvidos agora, de milagre, áureos
pomos de encantamento...
(CF, p.422-423)
remete sem sombra de dúvida à Quinta da Vitória, em Camarate, para onde Mário
de Sá-Carneiro foi levado a viver com os avós paternos devido à morte precoce da
mãe e à partida repentina do pai, engenheiro militar que cumpria missões ao redor
promove uma espécie de dupla recordação ao fazer com que o seu narrador
Sombra corria e brincava, afogueada, por toda a quinta, mas era a noite sobretudo
o tempo propício ao despertar do artista infantil que, observando o espaço rural tal
como quem olha através de uma luneta mágica, criava nele o seu reino encantado
como gnomos, príncipes e rainhas, figuras tão típicas dos contos de fadas, não
perceber que a sua predileção sempre fora pelas estórias de terror, em princípio
noite, ele soia sonhar outros universos, viajar outros mundos, sempre com um
livro de estampas apoiado sobre os joelhos. Trata-se, claro está, de uma reflexão
infantis lhe apresentam como modelo. Decerto que o seu desprezo pelos bons
valores faz com que ele crie e imagine estórias que estão mais para o terror do que
para o encanto. Todavia, o ponto de partida para novos mundos é sempre o livro,
mediador entre o sujeito desejante e o objeto desejado, tal como o define René
tente fixar toda a sua arte em mistério, o que o artista-adulto logra são apenas
míseros vestígios de sombra, que se desvanecem muito rapidamente. Por isso ele
encerra a primeira parte do seu conto com o seguinte desejo: “Oh!, que ânsia
idade adulta, sabe ele que isso já não é possível. Daí que tente ungir a sua
urbanos. Todavia, o que artista encontra nas metrópoles são tão somente indícios
logo se desvanece, logo se evola, tal qual o ligeiro passar da vida urbana.
será alcançada com um perverso crime erótico, ato que lhe permitirá experimentar
(CF, p.430)
se o mistério como enigma a perpetuar, pois somente a sua sombra seria capaz
decantar – o mínimo que fosse – a luz insuportável e excessiva da vida, que todos
os dias corre humanamente nas suas águas tão certas 71. Como os assassinos, o
qual burguês lepidóptero, vive ele uma existência tão evidente que chega a ter
loucura, o seu suicídio. Todavia, ao viajar ociosamente pelo mundo, conhece uma
mulher – a quem não nomeia – num baile de carnaval em Nice, criatura que
(CF, p.436)
do gume pendente, enigma que o inebria e o perturba ainda mais: “É uma joia de
abertura de Dispersão.
espessa... de maldição eterna... Talvez um dia lha conte...” (CF, p.437), diz ela.
Como se pode ver, toda a situação conflui exatamente para um mergulho profundo
Lord Inglês. Figura enigmática, o Lord o seduz, vindo ele a descobrir, depois de
amizade entre o Lord e o narrador uma atração homoerótica, uma vez que o
anônimo anuncia que irá suicidar-se, atirando-se de uma torre para a qual o Lord o
atraíra.
investigação e mistério, o que poderia levar-nos a crer que se trata mais uma vez
Morte do Professor Antena tem suscitado por parte da crítica uma grande
para com uma ciência cerceadora dos sonhos e dos livres projetos.
Latuf Isaias Mucci, o Decadentismo não deve ser lido como um culto reacionário
fato de alguns estudos críticos apontarem – e com certa razão – para o diálogo de
ano em que Sá-Carneiro parte para Paris – uma ficção científica intitulada Voyage
Carneiro sobre as teorias da quarta dimensão, bem como a sua possível releitura
para nos levar a uma conclusão sobre o lugar ocupado pela ciência na sua obra,
Lembro ainda que este conto que pode parecer à primeira vista tão
no século XX, e que para isso muito contribuiu o avanço da ciência, como vimos
no início deste capítulo. Por outras palavras, diante do esgotamento dos grandes
surgido “na outra vida entre uma Praça pejada de veículos, entre uma oficina
Neste sentido, tal desfecho apontaria antes uma extrema ironia de Sá-
Carneiro para com a ciência pragmática e não uma visão de cumplicidade acrítica
culminaram no epílogo fatal do seu Mestre, mas o que ele efetivamente faz não é
nada mais do que levantar hipóteses estrambóticas sobre os eventos que decide
relatar, o que me parece, uma vez mais, uma sarcástica investida de Sá-Carneiro
Antena para a editora 7 Letras, Maria João Simões afirma o seguinte a favor da
ou mesmo ao pequeno poema onde afirma que “o Binómio de Newton é tão belo
sua época uma espécie de mosaico fluido, no qual pululavam matrizes de todos os
tempos e das mais diversas correntes. Assim, a pluralidade do presente nada mais
José Gil:
assemelha ao culto que a ela promove Charles Baudelaire, poeta que manifesta um
misto de atração e repulsa pelo mundo ultracivilizado e tecnológico, mas que não
abre mão do lugar ocupado pelo sonho, o parâmetro menos científico que se possa
eleger 72. Ou seja, o mundo moderno inebria e fascina, sim, mas o seu excesso
também cansa. A tecnologia avançada, cuja conquista se tornou possível por meio
72 O poema La Voix parece dar conta deste fascínio crítico pela ciência: “Meu verso era
dessa definição me parece ser o conto O Sexto Sentido, que ocupará uma parte do
próximo capítulo.
(CF, p.513)
tal forma misteriosa que acabou por causar uma grande repercussão, mesmo entre
Domingos Antena não choca tanto pelo fato da perda de um grande cientista,
qualquer vestígio.
Depois, a figura do Prof. Antena era entre nós popular. O seu rosto glabro,
pálido e esguio, indefinidamente muito estranho; os olhos sempre ocultos por
óculos azuis, quadrados, e sobretudo negro, eterno de Verão e de Inverno, na
incoerência do feltro enorme de artista; os cabelos longos e a lavallière de
seda, num laço exagerado – tudo isto grifara bem o seu perfil na retina
paspalheira da multidão inferior das esquinas. Entanto jamais um dito
grosseiro, dessa lusa grosseria, provinciana e suada, regionalista, que até
nesta Lisboa – central, em vislumbres – campeia à rédea solta (e mesmo
refina democraticamente), o atingiu nas ruas ou nas praças, pelas quais ele
era silhueta quotidiana. Pois ao invés dos sábios convencionais e artistas
castrados que fogem às multidões, à Europa, ao progresso, num receio gagá
de ruído e agitação – o Prof. Antena era, pelo contrário, onde mais se
aprazia, sobretudo nas horas maravilhosas da criação. Com efeito um
grande sábio cria – imagina tanto ou mais do que o Artista. A Ciência é
talvez a maior das artes – erguendo-se a mais sobrenatural, a mais irreal, a
mais longe em Além. O artista adivinha. Fazer arte é Prever. Eis pelo que
Newton e Shakespeare, se se não excedem, se igualam.
Lisboa regionalista, grosseira e suada, cidade onde lhe apraz transitar nas horas
mais ruidosas, mais agitadas, que lhe propiciam uberemente a criação. No que
esguio, de uns olhos ocultos por uns óculos azuis, de um incoerente feltro enorme
de artista, de uns cabelos longos e de uma lavallière de seda num laço muito
descreve o seu Mestre como um ser que gostava de imiscuir-se na agitação, nos
lembraremos, por outro lado, que Lisboa sempre se afigurou aos seus olhos e aos
olhos dos seus personagens como o avesso de tudo isso. Noutras palavras, a
agitação e de progresso, a não ser pelo viés da ironia. A meu ver, a advertência de
que a Ciência é talvez a maior das artes poderia ser lida como um grande
espécie de tesoura que corta as asas do sonho. Num contexto sociocultural onde
tudo deveria ter um porquê científico e exato, burocrático em certa medida, ao voo
compunham glosas que pareciam almejar o logro do espasmo sexual pela palavra;
prol do que pode haver nela de sedução, isto é, de desvio funcional do elemento
seu posto de liderança, cedendo espaço para uma paradoxal ciência do sonho,
modo que a ilação científica passa a ter um lugar nessa eleição que o diferencia da
massa. Não por acaso ele, antipragmático que é, assinala que o laboratório do
De resto nada há que torne alguém mais lisonjeiro ao povo do que a lenda – e
em volta do Prof. Antena nimbava-se um véu áureo de Mistério. A tradição
sabia que esse homem excêntrico se debruçara mais duma vez sobre qualquer
coisa enorme, alucinante – que o seu laboratório seria melhor, entre aparelhos
bem certos, a gruta dum feiticeiro, do que o atelier dum mero cientista. Os
periódicos heroificavam-no popularmente nas suas manchettes, dia a dia – e,
por último, as curas extraordinárias, laivadas de milagre, que ele fizera pelos
hospitais graças à sua perturbadora aplicação dos raios ultravioleta – tinham
acabado de o sagrar aos inferiores em humanitarismo.
(CF, p.513-514)
considera o povo a massa inferior, o que nos permite inferir, pela tonalidade
nimbava a figura do Mestre, pela qual ele próprio se via seduzido. Em relação a
esse aparente paradoxo, cabe acentuar que o povo envolvera o professor Antena
numa dimensão lendária por conta dos “milagres” que ela fizera em seu benefício:
por exemplo, através da aplicação dos raios ultravioleta; por outro lado, o
insondável. Por outras palavras, a sua admiração pelo professor Antena provinha
não da sua engenhosa ciência, mas sobretudo do mistério artístico que o Mestre
reveladora do mistério, não lhe interessa, pois é apenas a mera ciência. O que de
sonho, enfim. Por isso, passado quase um ano da estranha morte do Mestre, o
passo, e com base científica segura, diz ele, os acontecimentos que culminaram na
irrefutáveis”:
Pois bem, hoje, quase um ano decorrido sobre o desastre, eu venho falar
enfim. E venho agora só, porque só agora possuo nas minhas mãos
documentos que, irrefutavelmente, autenticam a minha narrativa –
documentos que fornecem pelo menos uma hipótese admissível, uma forte
hipótese, ao estranho desfecho que se vai conhecer. No momento da tragédia
ser-me-ia impossível contar a verdade – todos me farão, de resto, essa justiça
após me haverem lido. Um louco, no meu caso, teria falado. Isso mesmo
definiria a sua loucura. Homem sensato, calei-me. A prova maior da sensatez
contudo numa coerência que ambos não logram manter. Disposto a dizer a
que narrará, provar “como logicamente, ainda que distantemente, se pode referir o
Mistério à simples realidade científica” (CF, p.519, negritos meus). Eis, em teoria,
que relatará:
(CF, p.515)
do seu texto, o narrador, como aquele que manipula a linguagem e com ela
relatam. Por isso, diante dos tais documentos do Mestre, o que o personagem-
estranho desenlace da sua morte, isto é, uma leitura interpretativa e não assertiva,
de acordo com a bagagem que tem em mão. Desde o princípio, sabe ele que não
que propõe narrar não são os fatos em si, mas apenas uma hipótese que,
ironicamente, diz ser muito forte. Neste sentido, tudo o que o narrador não faz é
narrativa sem nada provar. Tal como Lúcio, o seu propósito parece ser o de
Estranha Morte do Professor Antena, tal qual Lúcio, jura não estar a compor uma
Se, num primeiro momento, como já foi dito, ele começa por escrever uma
finalmente, num terceiro tempo – este, sim, mais largo –, discorrer sobre as suas
lhe que só o procurasse quando fosse devidamente avisado. Este recado inusitado
rompe o convívio quotidiano entre o lente e o seu discípulo, que só o torna a ver
incoerentemente uma peliça num aprazível dia de maio, portando estranhos óculos
disposto a revelar, e que não seria outro senão a sua própria morte que ele oferecia
(CF, p.518)
começa por dizer que haveria uma ligação intrínseca entre o falecimento do
acordo com a sua própria interpretação. Formulando uma hipótese sobre os fatos
que propõe narrar, cria ele um discurso de fragmentos díspares, que abarca
Aceite esta hipótese tão verossímil, imediatamente nos é lícito concluir que,
antes da nossa vida atual, outra existimos. A fantasia cifrar-se-á nas
lembranças vagas, longínquas, veladas, que dessa outra vida conservamos. E
sendo assim, nada nos repugna também propor que a nossa vida de hoje não
será mais do que a morte, do que o “outro mundo” da nossa existência da
véspera.
– Mas como passaremos duma vida para a outra vida, atendendo que nunca
conservamos longínquas reminiscências da anterior?
Segundo o Mestre, tudo residiria numa simples adaptação a diversos meios.
Os órgãos da nossa vida A, em função do tempo – ou de qualquer outra
grandeza –, ir-se-iam pouco a pouco atrofiando relativamente a essa vida; isto
é: modificando. Até que a mudança seria completa. Então dar-se-ia a morte
para essa vida A. Mas, ao mesmo tempo, esses órgãos haver-se-iam adaptado
a outra existência, tornando-se sensíveis a ela. E quando assim acontecesse,
nasceríamos para uma vida B.
(CF, p.521-522)
afirmando, sem contudo operar nesse sentido, que pretende revelar a estranha
num primeiro momento da vida são larvas adaptadas ao meio aquático e que num
não é ilimitada” (Ibidem, p.521, grifos do autor). Por outras palavras, a fantasia (o
sonho) não seria nada mais do que uma soma finita – e portanto ponderável – de
partir da palavra artística, ele pareceria surgir aqui (se acreditássemos em todas as
postulações do narrador) como uma manifestação não criativa, haja vista que ele
vidas. Portanto, o sonho já não seria mais uma potência criadora, uma reinvenção
da vida, mas apenas uma lembrança estilhaçada de uma outra existência, para a
limitação dos sonhos. Ora, estamos diante de uma imensa ironia, se levarmos em
conta que essa hipótese – lida stricto sensu – não teria coerência alguma com o
humano que conseguisse adaptar os órgãos mortos das vidas anteriores aos desta
vida poderia transitar livremente pelas suas múltiplas existências, logrando ser
uma espécie de Deus. É desta forma que o narrador pseudocientista busca explicar
Tal é a hipótese que pela minha parte proponho. Quem entender que formule
outras – mesmo que retome as suas teorias e praticamente as busque verificar.
Para isso as publiquei. Seria um crime ocultá-las. Elas rasgam sombra,
fazem-nos oscilar de Mistério, como nenhumas outras. Incompletas,
embaraçadas, são entretanto as mais assombrosas...
... E na memória do Prof. Domingos Antena, devemos sempre relembrar,
atônitos, Aquele que, por momentos, foi talvez Deus – Deus, Ele-Próprio:
que realizaria, um instante, o Deus que nós, os homens, criamos eternamente.
(CF, p.529)
foi apenas uma hipótese, dentre tantas possíveis, para a estranha morte do seu
Mestre, e quem quiser está livre para criar a sua própria proposição de leitura. E se
o professor Antena logrou talvez ser Deus por um ínfimo momento, lembre-se que
isto se deve tão somente às teorias que ele, enquanto homem, foi capaz de criar. A
alma, e não o corpo, é o invólucro visível. Eis talvez porque o seu corpo deixara
de ser poroso. Eis talvez a sua conquista, eis talvez o seu triunfo. Como nos ensina
ainda que falhada, “[...] / além dos céus / Que as nossas almas só acumularam / E
douraram” (DI, p.9). Como criador, o artista é uma espécie de Deus, porque capaz
de criar, com as suas próprias mãos, os seus mundos alternativos, porque capaz de
ao cabo, é sempre a criação artística que parece erigir-se como potência absoluta
A TEATRALIZAÇÃO DA MORTE
Com certa espécie de solidariedade
lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,
Poeta-gato-branco à janela de muitos prédios altos. Lembro-me de ti, ora pois, para saudar-
te,
para dizer bravo e bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a laçar um golpe de asa e a estatelar-se todo cá em baixo
(viva, principalmente, o que não chegaste a saber, mas isso é já outra história...)
Carpinteiro sinaliza que os textos dessa série, apesar de ainda não serem aqueles
obsessivamente ao longo da sua obra –, avulta o fascínio pela morte como forma
abarca desde os primeiros textos de Princípio até ao poema Fim 74, de 1916, ano
73 Com exceção de dois textos – Felicidade Perdida e O Sexto Sentido –, em todos os demais
leitura de alguns poemas ao fim deste capítulo, pois eles são de extrema importância para a
compreensão do desenvolvimento do conceito de teatralização da morte nos seus escritos.
Lições do Esfinge Gorda Capítulo 4
anos de 1908 e 1912. O volume intercala alguns contos brevíssimos e outros mais
estrutura de diário 75. A diegese é aberta por um conto de apenas duas páginas –
diário de um suicida. Este breve texto relata a estória de um amigo não nomeado
que convida o seu condiscípulo – o narrador do diário – para passar o dia seguinte
narrador-diarista, em meio a uma numerosa família burguesa pela qual faz questão
rapariga debilitada, marcada pela languidez típica dos tísicos. O estado enfermiço
enferma em si, senão pela ideia de amar o inusitado: amar a morte que nela há. Já
neste texto de abertura, Eros e Thanatos aparecem em íntima relação, mote que
75Os contos Em Pleno Romantismo, Felicidade Perdida, A Profecia e Páginas dum Suicida são,
na verdade, a subdivisão de Diários, que compõe uma das partes da série Princípio. Ainda
sobre a estrutura desse conjunto textos, assinala Fernando Cabral Martins: “Princípio
assenta, porém, numa ideia estrutural clara: dois contos longos enquadrando duas unidades
curtas, uma delas sendo um conto – O Sexto Sentido – que é uma espécie de parêntesis
diferido do conto anterior, e a outra uma série de diários. Logo, uma noção de simetria
preside à organização do livro: quatro unidades, uma delas subdividindo-se em outras
quatro. É uma atenção composicional que o Simbolismo desenvolveu – o Livro sendo o
símbolo último, e fundamental” (1997, p.182).
“sublimados e reduzidos à beleza” (2012, p.68). Ora, Princípio, como diz Maria
para a vida, e o conto é encerrado com as notícias dos jornais que anunciavam o
aparecendo como um adendo daquele que herdou o diário do suicida, e cujo nome
afigura, desde a obra da juventude literária, como um dos leitmotive dos escritos
narrador não nomeado do diário relata uma espécie de morte simbólica, que se dá
protagonista relata já não ser capaz de reconhecer a jovem por quem se apaixonara
em nenhum lugar que a visse, já que não mais se recordava do seu rosto.
desconhecido. Não me importa morrer. Ah! mas como tenho medo da morte (PR,
p.258)”, diz o personagem. Numa escrita fragmentária, típica dos diários, Antônio
muito o atrai. Além disso, também discorre sobre as profecias de Júlia, vidente
que vaticina o seu falecimento para o dia 12 de abril do ano seguinte 76. Perturbado
profecia, Maldorado não suporta esperar que a morte venha buscá-lo e sai
ao medo da morte, Philippe Ariès sinaliza que tal fenômeno acentuou-se de forma
filósofo assinala que, da Idade Média ao século XVIII, o homem manteve uma
certa familiaridade com a morte, uma vez que aceitava a “ideia do destino coletivo
que se buscava olvidar. Mais que isso: o Esfinge Gorda dignifica o ato do suicídio
que o condena por uma justificativa religiosa. Na verdade, a burguesia não tolera
o suicídio por esse ato ser simplesmente incompatível com a ética do trabalho. Ou
princípio da utilidade, o que significa dizer, noutras palavras, que uma vida só se
mundo.
igualitária” (SARAIVA, 2005, p.16), mas esse igualitarismo não é gratuito nem
incomensurável, uma vez que o burguês sempre concebe as relações com próximo
reconhecido em sendo também ele um burguês, que vive de pleno acordo com as
regras do sistema. Assim, todos aqueles que não se adéquam à norma não são –
nem podem ser – reconhecidos como burgueses, o que faz com que a sociedade os
Bataille, teórico que se refere a uma postura de interdito em relação à morte já no homem de
Neandertal, que enterrava os seus mortos como forma de repúdio à putrefação do cadáver,
tal qual o fazemos.
apoteose através do suicídio 78, ato que, nesse breve texto, assinala uma recusa
nos com uma carta confessional, deixada por Lourenço Furtado em cima da sua
havia perdido, uma vez que o positivismo e a ciência teriam destituído toda a aura
haveria mais absolutamente nada por descobrir e onde mais nada seria possível
explorar, Lourenço Furtado, ávido pelo incógnito, decide ser o investigador das
desconhecidas zonas da morte, único campo ainda não desvendado pelo homem, e
por isso mesmo intacto no seu enigma. Levando o seu pensamento até ao extremo,
Lourenço decide suicidar-se para poder conhecer aquilo que aos humanos é
detrás das aparências terrenas, ainda que – bem sabe ele – não mais lhe seja
permitido o retorno à vida. Ao fim e ao cabo, Páginas dum Suicida promove toda
uma reflexão sobre o lugar do sonho e do mistério numa sociedade que se guia tão
passado, como uma projeção utópica, isto é, como uma via de metamorfose, ele se
78 Ao longo deste capítulo, buscarei mostrar como o suicídio se constrói como via artística na
seus mais altos ideais, que este breve conto vem evocar.
com a personagem de Raul Vilar, num percurso existencial que é retratado desde
manifestavam um pelo outro era recíproca – até à íntima amizade que por essa
convicto, Raul Vilar, na primavera dos seus 20 anos, manifesta uma verdadeira
cujas portas só são abertas para o seu amigo de infância – o narrador do conto –, e
Graça Carpinteiro já apontava para isso no seu estudo de 1960, A Novela Poética de Mário de
Sá-Carneiro, e Fernando Cabral Martins, repensando essa mesma questão, retoma as
reflexões da autora: “É, no entanto e desde logo, necessário integrar os aparentes defeitos de
estrutura em Sá-Carneiro. Por exemplo, Maria da Graça Carpinteiro afirma que há uma falha
em Loucura... quanto ao estatuto do narrador, que, sendo personagem secundária da história,
e havendo, portanto, focalização interna da narrativa, se transformaria num dado momento
em narrador omnisciente, passando a focalização a ser externa. Ora tal fluidez de estatuto é
frequente na narrativa – estudada, no que respeita a Proust, por Genette – e é, neste caso,
preparada com minúcia pelo narrador de Loucura...” (MARTINS, 1997, p.184). Páginas
adiante, Fernando Cabral Martins assinala que “o narrador exterior (heterodiegético) surge
para contar os casos extremos, quer de sobrecarga sexual (incesto, homossexualidade) quer
de obsessão psicótica (Loucura...) [....]” (Ibidem, p.236). Contudo, é importante frisar que o
narrador de Loucura é também homodiegético, por relatar uma estória da qual participa
como personagem secundária.
onde ele, abastado, produz, por puro diletantismo, obras de arte em escultura.
“Rico, não fizera de sua arte um ramo do comércio” (PR, p.267), ressalta o
narrador.
rapariga, Marcela. Note-se que Raul Vilar sempre fizera questão de deixar patente
que a narrativa avança, o leitor se dá conta de que, mais do que um ser amado –
que também o é –, Marcela seria para Vilar uma espécie de obra de arte, ou
melhor, um ser cujo corpo leitoso e escultural ocupa por um curto período de
tempo – o da paixão propriamente dita – o lugar da sua arte, não produzindo ele
formas corpóreas do objeto desejado. Com efeito, a união de Raul e Marcela não
burguês. Aliás, o narrador faz questão de frisar que nos matrimônios mais
momento em que os seus corpos se unem num feixe palpitante de carne e nervos”
relações entre Raul e Marcela são de todo permeadas pelo erotismo, e não
envoltos em arte, e o quanto a atividade sexual ali praticada estaria de certa forma
artístico da pedra para a carne, Raul Vilar, dandy, faz do corpo de Marcela uma
[...] Raul e Marcela – dizia-se – não eram dois esposos, eram dois amantes.
Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre marido e
mulher e amante e amante. No primeiro caso, é o amor consentido, o amor
burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no
amplexo que o sacramento consente e ordena – na produção dos filhos:
“Crescei e multiplicai-vos!” Os esposos dignos devem respeitar-se até
mesmo no delicioso momento em que os seus corpos se unem num feixe
palpitante de carne e nervos. Devem ser comedidos no prazer, reservados na
loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros...
O amor dos amantes é, pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a
hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar as bocas, os seios, os
corpos todos... é a liberdade na paixão e, como é liberdade, granjeou o ódio
da “gente honesta”. [...]
Raul e Marcela amavam-se verdadeiramente; quer dizer: não se amavam
como esposos. Raul era um artista. Abandonando por algum tempo a
escultura, dedicava-se à arte do amor, a mais bela de todas.
(PR, p.275)
espaço do atelier, considerando-a Raul Vilar a sua obra-prima, pois, diz ele: “fui
eu que formei, que dei fogo... vida a este corpo!...” (PR, p.276), ao iniciá-lo nos
barro a partir do fogo furtado aos deuses, Raul Vilar, ao iniciar Marcela nas
sendas do amor, transforma o fogo da sua paixão em via erótica por meio da qual
melancolia e à abulia.
O escultor enxergava a sua amada mais como uma obra de arte do que
como um ser humano com quem compartilhava a vida quotidiana de tal modo
a beleza de Marcela. Ciente dessa inexorável degradação futura, Raul Vilar, tal
qual o artista decadentista, decide lutar contra a ordem do natural e busca fixar os
Óscar Lopes afirma que “a ânsia de fixar o instante está até certo ponto ligada ao
pavor do tempo como factor de corrupção de cada ser em que se realiza algo de
belo ou de desejável” (1995, p.569). Assim sendo, Vilar elabora diversas formas –
do corpo amado, bem como a do seu próprio corpo, imaginando, num primeiro
morte por metáfora – ou ainda pelo suicídio recíproco, projetos aos quais Marcela
não adere.
caracteriza a paixão é um halo de morte” (1987, p.20). Por outro lado, a paixão
“um ser pleno, ilimitado, que não limita mais a descontinuidade pessoal”
começa a manifestar a ideia fixa de provar, de forma concreta, o seu amor por
amada, alegando que, desfeita a beleza, só lhe restaria amar a sua alma, modo de
atestar assim a incondicionalidade do seu amor. Marcela reage mais uma vez ao
futuras.
para o tema das ciências ocultas, afirma “que não tardaria muito tempo em que
cientista, “Ao homem falta apenas o órgão de recepção e percepção das ondas
aéreas. Esse é o do ‘sexto sentido’”. Segundo ele, o sexto sentido seria mais
Patrício Cruz, seu amigo, vindo mais tarde a tomar conhecimento de que ele tinha
dor de todos aqueles que perdiam os seus entes queridos, de todos os doentes do
mundo, de todos os pobres etc., vivendo uma tortura sem igual. Não suportando
com a voz do narrador a sugerir que o amigo um dia logrará o seu intento.
desvendou o enigma do mundo, como diz o narrador de Páginas dum Suicida, por
outro lado, Mário de Sá-Carneiro sói ratificar, com extremo sarcasmo, que a
policiais e/ou cientificistas não revela senão o seu intuito de promover uma
irônica ruptura com esses modelos, de tal modo que, em vez de revelar o mistério
com o largo conto O Incesto, que se divide em nove capítulos. A narrativa relata a
quando jovem, se envolvera numa paixão ardente e avassaladora com uma linda
atriz, Júlia Gama, com quem veio a ter uma belíssima filha, Leonor. Tempos mais
tarde, abandonado por aquela que foi o grande amor da sua vida, Luís de
dos homens para Leonor, Luís de Monforte permitia que a filha se expusesse à
tuberculose. Levada para ser tratada num sanatório da Suíça, Leonor vem contudo
que vivera com a filha por meio da recuperação dos trajetos que ela percorrera:
Paris, cidade em que pouco tempo antes haviam passado um dos seus últimos
que conhece a dinamarquesa Magda Ussing, que para ele torna-se uma espécie de
com ela e em seguida a possui voraz e freneticamente, numa volúpia tão intensa
enfim também para o personagem (ao leitor os índices eram mais do que
ao suicídio.
adúltera não é outro senão Monforte. Enfim, ao personagem resta, como na trama
de Os Maias, senão um filho, ao menos uma filha para criar. Alterando vagamente
e Maria Eduarda, é agora o próprio pai que nutre em transposto desejo a paixão
do século XX.
80 A esse respeito, diz Maria da Graça Carpinteiro: “A preocupação de dar aos conflitos o
reinventa-os, enfim, autor consciente que é de que todo processo de colagem “não
outro. Fernando Cabral Martins sinaliza essa leitura ao apontar que “O Incesto é a
libidinal edipiana [...], em que Monforte ama, através de Magda, Leonor, a filha
morta; sendo Magda a imagem viva da filha, é dela uma mediação por metáfora”
(1997, p.250).
Note-se ainda que Magda tem a aparência de Leonor que, por sua vez,
amante que persegue Luís de Monforte nas suas recordações. No desejo de tê-la
em Magda. Todavia, o que mais surpreende neste conto não é tanto o incesto por
mantém, no nível simbólico, relações eróticas com as duas ausentes (Júlia que o
abandonara e Leonor que morrera) através do corpo vivo da nova mulher. Aliás, o
narrador de O Incesto assinala que “Morte e amor andam sempre juntos” (PR,
p.335), postulação que o seu personagem vivencia de uma forma assaz inusitada.
reuniu e publicou sob o título de Princípio não é aleatória nem anódina e tem o
propósito de frisar o quanto este escritor que principiava a sua carreira literária em
sua produção: a morte por suicídio, a loucura, a angústia diante do tempo, o sexo
horror e o fascínio. Se, por um ângulo, o homem dela se afasta devido ao apego à
da postura cristã, lembremos que o suicídio foi uma prática aceita e tolerada pelas
perto das tumbas, atitude que alguns estudiosos costumam associar à proximidade
concreta entre vida e morte. No entanto, se, no paganismo, a morte ocupou todo
um espaço de reflexão, foi a vida que acabou por assumir esse lugar no
preservada.
atenção para o fato de o mundo medieval manter ainda com ela uma grande
para se referir à relação que o homem medieval mantinha com a sua própria
tumular dos poderosos (reis e rainhas, membros da aristocracia real) que naquele
morto era constituído por toda a comunidade: parentes, amigos, vizinhos e até
dos vivos, de tal modo que a morte era considerada um acontecimento público.
Para a aristocracia medieval, cada ser humano seria uma espécie de continuação
de toda uma linhagem anterior, e, neste sentido, os antepassados eram aqueles que
definiam a posição dos mais jovens na sociedade. Eis porque a Idade Média
manifestou certo orgulho pela morte. Morrer em batalha e em defesa dos ideais da
nome da família para todo o sempre, tema que, na literatura da Idade Média, por
de gesta).
Foi com a modernidade dos séculos XVI e XVII que a ideia da sacralidade
vida e morte passaram a ser compreendidas como conceitos díspares que não mais
moderno fez portanto com que o homem se afastasse cada vez mais da antiga
entre vida e morte, tornou esta última num grande espetáculo cristão, a um só
Francisco em Évora, com a sua aterradora inscrição Nós ossos que aqui estamos
ruptura entre vida e morte, associando esta última ao feio, àquilo se deveria
mistérios. Fora dos limites da razão, a morte tornou-se, para o indivíduo social,
num signo da violência, isto é, num princípio oposto à ordenação operada pelo
interdito.
Lúcio, o autor continua a seguir essa mesma via, embora a referida diegese, mais
utilidade, decide escrever o seu discurso de defesa após ter cumprido dez anos de
cárcere. Retirado numa vivenda rural, donde não pretende sair até ao momento em
existência, não podendo, por isso mesmo, ter mais nenhum entusiasmo diante da
vida. Aguardando a “morte real”, esse “sono mais denso” (CL, p.415), e morto
sua vida. Recuperando, via memória, uma série de acontecimentos que o ligam a
artistas cujo percurso existencial é assinalado pelo suicídio ou pela morte por
vindo, após a sua erótica dança lúbrica, a desaparecer misteriosamente para todo o
feminino, Ricardo de Loureiro, num desenlace que não poderia ser outro que não
ao atirar em Marta, seu duplo, suicídio esse altamente controvertido, pois que
diverge sobremaneira daquele que lhe deu origem, não sendo exatamente a sua
com as suas devidas diferenças, nos oito contos que compõem esse conjunto de
revela o seu nome e que inicia a sua escrita pela recuperação das memórias da
estrutura de diário, este conto narra a existência de um ser abúlico, ávido pelo
mistério, que renasce para a vida após cometer uma espécie de assassinato
mulher mascarada que conhecera num baile de carnaval em Nice e com quem se
um rosto que nunca vira. Tal crime, cometido no intuito de eternizar o mistério
81 Não há, nos contos de Céu em Fogo, uma obsessão pelo suicídio, como na série Princípio,
alucinante, me encadeia a esse homem. Não sei bem o quê, ainda...” (Ibidem,
perdida.
Cabral Martins, na linha dos estudos de Bataille, sinaliza que “o tema do duplo,
em todas as suas variantes, transporta consigo a morte, sua outra face” (1997,
imagem da morte desta última. Sempre em busca de ungir a sua vida com a
Princípio, a narrativa Céu em Fogo se abre com um texto que revivifica os temas
Mistério e narra a estória de um personagem cujo nome não é mais uma vez
vida: “A sua alma de hoje era toda vidros partidos e sucata leprosa” (CF, p.462),
barco sem amarras que vai bêbado ao sabor das correntes. Se conseguisse lançar
âncoras... Mas aonde... aonde?...” (Ibidem, p.465, grifos meus). Tal como Álvaro
82 Este verso é de Fernando Pessoa ortônimo, mas tem em comum com os versos de Álvaro
mas não tem coragem o suficiente para efetuar o ato. Na verdade, sendo ele um
realidade, ele nem mesmo sofria. Pois no seu espírito tudo se alterava diluído em
literatura. Das suas dores motivadas e das suas tristezas imateriais, apenas
clássico verso “O poeta é um fingidor” (2006, 164), conceito sobre o qual Mário
Por outro lado, cabe frisar que com tantas referências ao suicídio e com o
tema do duplo a pairar por toda parte, seria ponderável considerar que o narrador
ainda por desvendar. Muito ironicamente, o narrador diz que esse sujeito
complexo sempre desejou, no avesso do seu espírito, ser como a “gente média, a
gente feliz...” (Ibidem, p.269), fascinação que diz bem da dor pungente de ser o
avesso de tudo isso, estrangeiro em toda parte, para fazer eco a Álvaro de
que, estranhamente, diz almejar encontrar uma companheira com quem pudesse
dividir a sua alma, espécie de anseio à moda de Cesário Verde, que sonha com
mergulhar os seus dedos ansiosos” (Ibidem, p.472). Contudo, pouco dura o ledo
da mulher amada gozassem de uma comunhão total: mais uma vez essa ânsia de
encontrados intactos, sem sinal algum de violência. Não estamos longe aqui das
reflexões de Georges Bataille, para quem toda paixão, todo ato extremo de amor é
(CF, p.475)
Por outro lado, no que tange aos aspectos científicos do texto, a única
casal, a quem todos chamam o poeta louco, o que nos coloca novamente diante da
e sem sono, o poeta louco afirma ter visto, durante a madrugada, sair da janela do
quarto do jovem casal “uma grande e estranha chama [...] uma forma luminosa
que galgara o parapeito e que, num espasmo arqueado, numa ondulação difusa,
ascendera, voara perdida” (CF, p.474). Essa é a única informação que consta do
seu nome, nem o do personagem principal. Narrador e personagem mais uma vez
apresenta é o grande objeto da sua sedução, pelo fato de ter descoberto como criar
vivenciar a realidade que bem imaginasse quando e onde desejasse. Deste modo,
cria ele universos onde a lógica binária é abolida e onde as coisas não são
simplesmente o que são, porque pressente um mundo onde não haveria apenas
um outro de si, a relação do saber torna-se muito mais complexa, porque se traduz
falido, o que, por si só, já aponta para a ideia da rejeição ao modelo utilitarista
se sabe qual é – “Nunca soube o seu nome. Julgo que era russo” (CF, p.476) –,
existência daqueles que tudo têm – “saúde, dinheiro, glória e amor” (Ibidem,
lugar medíocre, porque limitado a ínfimas possibilidades: “na terra, o que não for
animal ou vegetal é sem dúvida mineral” (Ibidem), diz ele, artista que suporta
ainda menos a inconcebível ordem binária das coisas, como os sentimentos que se
reduzem a amor e ódio, as sensações a alegria e dor; na vida, tudo “anda aos pares
si, muito limitada: “Eu tive um amigo que se suicidou por lhe ser impossível
conhecer outras cores, outras paisagens, além das que existem. E eu, no seu caso,
teria feito o mesmo” (Ibidem), diz o dominador dos sonhos ao narrador, afirmando
ainda ter alcançado a felicidade justamente por conhecer outras cores, outros
propriamente dito, esse indivíduo sui generis cria toda uma realidade alternativa
homem dos sonhos “o maior vexame que existe é viver a vida”, porque “ a vida
acordo com o artista, “apenas o que não existe é belo” (Ibidem), pois só no mundo
onírico é possível viver de forma plena. Tendo logrado dominar os sonhos, diz
ele: “Sonho o que quero. Vivo o que quero” (Ibidem, p.478), o que aponta para a
Como se vê, viver num mundo de sonhos é, pois, uma forma de ungir a
não tem vez nem lugar. No espaço quimérico, rompe ele com a ordem binária da
existência, experimentando transitar por entre mundos onde não há luz – lembre-
não há apenas dois sexos; onde há outras cores; outros aromas; onde há uma
atmosfera na qual, inusitadamente, se respira música e não ar; onde, enfim, a alma
carnalidade natural do contato dos corpos e os seus fluidos viscosos, forjando uma
nova forma de gozar dos prazeres do sexo, sem que para efetuar tal ato fosse
enxergar –, o homem dos sonhos excita os poderes dos seus olhos eróticos, torna-
se voyeur, fazendo deles instrumentos através dos quais se torna possível alcançar
na sua integridade, num espasmo que não se poderia lograr por meio da
real, lição que o protagonista, dandy, deixa como legado ao seu admirador: “– A
p.480).
Atraído pela superexistência mental que o homem dos sonhos cria no seu
apresentando o sonho como uma grande via de metamorfose. Tal qual Fênix, ave
mitológica que renasce das cinzas, é, pois, através da morte real ou metafórica que
entre vida e morte. Se a vida gerada a partir da reprodução sexuada tem como
seu nome nos anais da História. O sujeito como identidade privada é abolido em
somente através da morte que tal superação se torna possível. Assim, Georges
Thanatos são dois conceitos inseparáveis, uma vez que a pulsão de vida (Eros)
modelo exemplar" (BRANDÃO, 2010, p.67) para aqueles que desejam superar a
Em Asas, texto cujo título sugere algo de tão leve e de tão etéreo como o
não tenha ação. Trata-se de um conto que promove toda uma reflexão sobre a
– Uma arte fluida, meu amigo, uma arte gasosa... Melhor, meu amigo, melhor
– gritava-me Zagoriansky no seu gabinete de trabalho, aonde pela primeira
vez me recebia – uma arte sobre a qual a gravidade não tenha ação!... Os
meus poemas... os meus poemas... Mas ignora ainda! Coisa alguma prenderá
os meus poemas... Quero que oscilem no ar, livres, entregolfados –
transparentes a toda a luz, a todos os corpos – sutis, imponderáveis... E hei-de
vencer!... Não atingi a Perfeição, por enquanto... Bem sei, restam escórias nos
meus versos... Por isso a gravidade ainda atua sobre eles... Mas em breve...
em breve... ah!...
a estética do poema desde 1913, quando de fato começou a escrever poesia mais
seriamente. A busca do ouro absoluto é uma constante da sua obra poética, e não é
por acaso que o escritor pretendia reunir, sob o título de Indícios de Oiro
que as escórias são os resíduos que se formam aquando da fusão dos metais, e
“obter a Perfeição – ‘esse fluido’” (CF, p.490), Zagoriansky quer plasmar uma
ser “vago”, “litúrgico” e ungido pelo mistério. Inebriado por ele, como sói
grande amigo do poeta e da sua família, com quem goza as horas de lazer. Anos
concluído a sua obra, sobre a qual a gravidade já não atuava mais. Para surpresa
do narrador – que almejava ler aquela que seria a escritura mais original e genial
direito à morte, fazendo-nos perceber que o literário “se edifica sobre suas ruínas”
teórico assinala que o nada da escrita é inusitadamente o lugar onde “tudo começa
O escritor que pretende se interessar apenas pela maneira como a obra é feita
vê seu interesse afundar no mundo, perder-se na história inteira; pois a obra
se faz também fora dele, e todo o rigor que depositou na consciência de suas
operações meditadas, de sua retórica refletida, é logo absorvido no jogo de
uma contingência viva que ele não é capaz de dominar ou mesmo perceber.
Todavia, sua experiência não é nula: escrevendo, ele próprio se experimentou
como um nada no trabalho e, depois de ter escrito, faz a experiência de sua
obra como algo que desaparece. A obra desaparece, mas o fato de
desaparecer se mantém, aparece como essencial, como o movimento que
permite à obra realizar-se entrando no curso da história, realizar-se
desaparecendo. Nessa experiência, a real meta do escritor não é mais a obra
efêmera, mas, além da obra, em que parecem se unir o indivíduo que escreve,
poder de negação criador, e a obra em movimento, com a qual se afirma esse
poder de negação e superação.
agarrar o que quero alcançar; nas palavras, ela é a única possibilidade de seus
desaparecendo.
alto e é raro” (DI, p.11) – isto não pressupõe contudo que eles tivessem gozado do
conquista da própria arte, uma vez que, para o Esfinge Gorda, somente os grandes
o triunfo de ungir a sua existência com o belo, que estaria para fora dos limites do
adiado que procria. Por outras palavras, o homem, reduzido à sua animalidade de
devolve como ganho um saldo épico, em Sá-Carneiro, a loucura será antes de tudo
narrativa. Insisto nessa obliteração quase absoluta dos nomes dos personagens
criação de outros de si: “Serei eu uma nação? Ter-me-ia volvido um país?...” (CF,
que almeja ser uma grande personalidade, começa a passar por um lento processo
pessoana a sua radicalização, mas de certa forma incomodado com a perda da sua
matará o ser alheio e autônomo que existe dentro de si, o que poderia ser lido,
trabalha tanto com o tema da morte por metáfora (dispersão identitária = morte do
eu) quanto com o da morte por suicídio, temas absolutamente caros à exploração
à conclusão de que os seres humanos passam por vidas sucessivas, mas que
segundo ele, ocorre sucessivamente, à medida que o ser passa por uma nova
seria capaz de transitar livremente por ela. O ser humano que adaptasse os seus
mas que envereda por temas místicos e ocultistas, e que se constrói, todo ele, a
como aquele em que vivia Mário de Sá-Carneiro. A meu ver, o fim trágico do
intensidade.
Por outro lado, cabe acentuar também que a tragicidade que se abate sobre
professor Antena morre – como acentua o seu discípulo fascinado pela ciência do
sonho – talvez como Deus, diga-se, como artista, como louco, porque logrou tocar
tempo. O conto é aberto pela voz de um narrador autodiegético, que afirma ter
Como seria grande aquele que lograsse realizar a vida!, dar forma,
persistência, a todos os momentos belos fulvos de angústia – em todo o caso
grandes, sensíveis – que alguma hora existisse!... Para tal a vida criaria novas
dimensões; seria altura, vertigem, ela que é só superfície...
Erguer a vida, sim, erguê-la em ameias de ouro e bronze, engrinaldá-la de
mirtos, se quiséssemos, e podê-la enfim tocar... dar resistência às bolhas do
gás fantástico, à espuma loira do champanhe – ter tido e ter! Glória máxima!
Apoteose!
Pois bem – voos de triunfo! –, eis no que reside o meu segredo; é essa a
minha arte, arte perdida que admiravelmente venci!
Sim!, eu acastelo a vida em ânsias eternizadas. Ergo dela aquilo que me
sentiu – ou belo ou doloroso, ou real ou falso!
(CF, p.531)
assaz diferenciada, busca gravar na mente. Assim, percorre ele a grande capital
heterônimo pessoano Álvaro de Campos que lamenta não ter trazido o passado
eu me envaideço, como deliro nas minhas estátuas!, como sou rico ao percorrê-la
que, segundo ele, é capaz de manter viva a chama do orgasmo, esta espécie de
pequena morte. Segundo Bataille, todos os seres humanos, descontínuos que são,
capaz de gerar um impulso de vida (Eros), uma vez que Paulette ressuscita,
horas, no Hotel de Nice. Na grande capital latina, onde Sá-Carneiro diz descobrir-
(DI, p.62)
Petersburgo, por exemplo, que tanto admirava, mas em Paris, cidade na qual,
“grande capital” foi lido em Lisboa, onde se editou o poema Dispersão, como
uma morte artística, na qual o seu ser se evolaria em sombra, tal como feneceram,
(DI, p.72)
Já dizia Bataille que morrer e sair dos limites são a mesma coisa.
além, por um golpe de asa que lhe permitisse, de algum modo, a comunhão com a
totalidade, morrendo de sede em frente ao mar, suplício de Tântalo, ou, como ele
espiritual. Sem domingos em família, sem amanhã nem hoje, vivendo ternuras de
demasiado alto, onde as asas já não eram capazes de sustê-lo, cai Sá-Carneiro no
sempre.
(1981) propõe uma leitura dos escritos sá-carneirianos a partir do mito de Ícaro e
Dédalo. Segundo ele, a relação entre pai e filho – Dédalo e Ícaro – poderia ser
cera para que ele e o filho pudessem de lá escapar quando aprisionados pelo Rei
eufórico, não soube controlar, o que acabou por levá-lo à morte. Chegando
demasiado perto do sol no seu ousado voo artístico, Mário de Sá-Carneiro, tal
qual Ícaro, desaba e morre: “Um pouco de sol – eu era brasa, / Um pouco mais de
azul – eu era além. Para atingir faltou-me um golpe d’asa” (DI, p.22), diz o poeta
em Quasi. E, com efeito, não chega Sá-Carneiro tão perto do sol como para
83 Utilizo a expressão cunhada por Vilma Arêas, no seu Anotações sobre o drama-em-texto de
(DI, p.72)
extrema, Mário de Sá-Carneiro exalta, junto com os personagens que criou e que
arder até ao fim, de dar o grande salto, de mergulhar nas profundezas dos abismos,
até aonde as suas asas não eram capazes de suportar, cai o artista, tal qual Ícaro,
Artística, sua morte torna-se sinônimo de literatura, num processo análogo em que
vida e obra passam a ser lidas indissociavelmente. O suicídio pelo qual muitos dos
como o de Antero, uma vez que o poeta de Indícios de Oiro atentou contra a
própria vida em solo francês, bem longe, portanto, do território pátrio. Contudo, o
poesia, em ficção e em epistolografia, tal como uma espécie de obra teatral que
um dia finalmente se iria estrear, torna o seu suicídio num fenômeno sui generis e
de triunfar, diga-se de desaparecer, sendo o suicídio uma das suas opções, embora
se tivesse repetido, todos os dias, aquelas palavras que o autor de As horas pôs
possible to die. It is possible to die, até que um dia finalmente alcançasse a força
1912, o artista declara: “[...] quando eu medito horas no suicídio, o que trago disso
Dispersão, Céu em Fogo, todas estas obras trabalham, como tentei assinalar, com
lugar onde Sá-Carneiro apresenta de forma mais condensada tudo aquilo que
abulicamente o poeta:
(UP, p.78)
humanos, utilizando ele próprio o termo lepidóptero – insetos que passam por
noutras palavras, aos burgueses. Seria possível, portanto, que Sá-Carneiro tivesse
utilizado o vocábulo caranguejola no seu sentido mais usual, uma vez que o
crustáceo que o representa é um animal gordo e desajeitado, tal como ele muitas
falta de aptidão para com a vida: “Se me doem os pés e não sei andar direito, / Pra
que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?” Ou ainda: “De que me vale sair,
certo modo só efetivando o ato nas construções dramáticas dos seus personagens,
por meio desta cadeia semântica. Não suportando o peso de semelhante bagagem
ou menos assim define o título do seu texto: “Dou-lhe esse título porque o estado
uma poética do excesso” (LOURENÇO, 1990, p.10), diz Eduardo Lourenço, eis aí
notar que Sá-Carneiro aventa para si próprio aquela morte simbólica que tantas
pois estar doido na capital francesa tem lá o seu chic. E é em Paris, cidade pela
qual sempre declarou imenso amor, que o poeta decide dar cabo da sua vida,
mais cedo, pela eterna questão pecuniária, isto tinha que suceder. Não me
lastimo, portanto. E os astros tiveram razão...
Hoje vou viver o meu último dia feliz. Estou muito contente. Mil anos me
separam de amanhã. Só me espanta, em face de mim, a tranquilidade das
coisas... que vejo mais nítidas, em melhor determinados relevos porque as
devo deixar brevemente. Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou
amanhã) registradamente enviarei o meu caderno de verso que você guardará
e de que você pode dispor para todos os fins como se fosse seu. Pode fazer
publicar os versos em volume, em revistas, etc. Deve juntar aquela quadra:
“Quando eu morrer batam em latas” etc. Perdoe-me não lhe dizer mais nada:
mas não só me falta o tempo e a cabeça como acho belo levar comigo alguma
coisa que ninguém sabe ao certo, senão eu. Não me perdi por ninguém:
perdi-me por mim mas fiel ao meus versos:
“Atapetemos a vida
Contra nos e contra o mundo...”
Atapetei-a sobretudo contra mim – mas que me importa se eram tão densos
os tapetes, tão roxos, tão de luxo e festa...
Você e o meu Pai são as únicas duas pessoas a quem escrevo. Mas dê por
mim um grande abraço ao Vitoriano e outro ao José Pacheco. Todo o meu
afeto e a minha gratidão por você, meu querido Fernando Pessoa num longo,
num interminável abraço de Alma.
O seu, seu
Mário de Sá-Carneiro
atormentado, que ora diz que tudo lhe corre psicologicamente às maravilhas, ora
diz não ter cabeça para explicar em mais detalhes a situação em que se encontra.
1916, por graves problemas de ordem financeira, já não mais podendo financiar a
vida dispendiosa do filho em Paris. Nas últimas cartas a Fernando Pessoa, Mário
capital francesa, partindo para Lisboa, onde lhe restavam alguns familiares, ou
para a África, onde se encontrava trabalhando o seu pai, já quase falido. Contando
sempre com a custódia paterna, que muito generosamente financiava o seu ócio
trabalho, não aventava outra forma de vida que não sob a sua tutela, imaginando-
se sempre aos seus cuidados: “Tenham dó de mim. Co’a breca! Levem-me pra
enfermaria / – Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará”, diz ele em
o seu querer deixar a vida, projeto sobre o qual já vinha construindo tantos textos
há vários anos.
como artista, Sá-Carneiro deixa a sua obra literária a cargo do amigo Fernando
sabia-o ele muito bem – essas quadras são uma espécie de continuação do show
que, artificialmente, forjou para a sua morte. Fazendo-se agora, no lugar dos seus
Carneiro enverga, na noite do gran finale, o seu melhor fato, convidando ainda o
(UP, p.84)
Festa do excesso, com muitos ruídos, com muitas cores exóticas e com
grotescas figuras: assim quer Sá-Carneiro que seja o seu funeral. Tal como um
circo que chega a uma nova cidade e por ela percorre a fazer um pequeno
onde há espaço tanto para amadores quanto para profissionais. É esta a sua festa, a
fusões luminosas.
criatura [o palhaço] que na Idade Média presidia a Festa dos Loucos” (1990, p.9).
Com efeito, no mundo medieval, onde disputaram por longo tempo costumes
disciplinada e reservada. Presidida pelo bufão, figura cômica que ironiza a todos e
tanto valorizou em toda a sua obra. Latas, chicotes, palhaços, acrobatas e, até
quer que transcorra o seu velório, sem respeito algum às convenções religiosas e
sociais.
Sá-Carneiro:
[...] Solidariedade antiquíssima, esta entre o palhaço e a morte, mas que a arte
moderna revivificou exatamente no sentido dum atravessamento dos limiares
proibidos que o clown facilita na sua dupla veste de símbolo vital e de
emblema fúnebre, misto de agilidade suprema e de estado embaraço. O que
devemos ler na morte excessiva de Sá-Carneiro é, a meu ver, esta tentativa
lúcida e lúdica de se familiarizar com o excesso, de chegar ao excesso através
dum exceder-se a si próprio. [...] ‘morte por brincadeira’, o avesso da morte
sublime’, acreditada pelos românticos e cujos numes tutelares são,
justamente, palhaços e acrobatas[...].
84 A respeito da Festa dos Loucos e da Festa do Asno, escreve Mikhail Bakhtin: “A festa dos
loucos é uma das expressões mais claras e mais puras do riso festivo associado à Igreja na
Idade Média. Outra dessas manifestações, a ‘festa do asno’, evoca a fuga de Maria levando o
menino Jesus para o Egito. Mas o centro dessa festa não é Maria nem Jesus (embora se vejam
ali uma jovem e um menino), mas o asno e seu ‘hinham!’ Celebravam-se ‘missas do asno’.
Possuímos um ofício desse gênero redigido pelo austero eclesiástico Pierre de Corbeil. Cada
uma das partes acompanhava-se de um cômico ‘Hin Ham!’. No fim da cerimônia, o padre, à
guisa de bênção, zurrava três vezes e os fiéis, em vez de responderem ‘amém, zurravam
outras três. O asno é um dos símbolos mais antigos e mais vivos do ‘baixo’ material e
corporal, comportando ao mesmo tempo um valor degradante (morte) e regenerador. Basta
lembrar Apuleio e seu Asno de ouro, os mimos de asnos que encontramos na Antiguidade e,
finalmente, a figura do asno, símbolo do princípio material e corporal nas lendas de São
Francisco de Assis. A festa do asno é um dos aspectos desse motivo tradicional
extremamente antigo. A festa do asno e a festa dos loucos são festas específicas nas quais o
riso desempenha um papel primordial; nesse sentido, são análogas aos seus parentes
consanguíneos: o carnaval e o charivari” (2008, p.67-68).
longo de toda a sua obra muito se coaduna com a postura que a Idade Média
assumiu em relação à morte 85. Em estudo sobre o mundo medieval, Philippe Ariès
assinala que o desespero diante da morte, isto é, a sua não aceitação, as lágrimas
Antiguidade Clássica e a Idade Média mantinham com a morte. Se, nas palavras
Carneiro teve contudo a capacidade de reinventar a vida num mundo onde tudo
lhe parecia ser desastre, onde tudo lhe soava a fatalidade, fazendo da morte um
acontecimento artístico e não um fato melancólico e, mais que tudo, uma escolha
própria morte, pois sempre soube que só a invenção artística é capaz de salvar das
águas do esquecimento. Ciente de que ser artista da própria vida é também ser um
pouco artista da própria morte, o Esfinge Gorda deixou a invenção tomar conta do
85 Isto, ressalte-se, apenas no que concerne à familiaridade com o tema da morte, já que a
luto que, fatalmente, poderia ter assumido diante de uma existência que
livrar-se do fardo da vida, mas sobretudo num devir, numa força positiva.
Carneiro captou sentidos outros para a morte, sentidos que os indivíduos comuns
evitando, desta forma, que a sua vida se transformasse num depressivo canto do
cisne. Muito pelo contrário, toda a sua obra é uma paradoxal festa do excesso em
Carneiro, artista suicida, morre sem morrer, legando à posteridade a sua literatura,
própria morte como artista e suicida-se artisticamente, numa cena teatral nunca
O EROTISMO E O HOMOEROTISMO
[...] Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo
(Sá-Carneiro – Dispersão)
nunca o sexo foi considerado tão tabu, e por isso mesmo foi tão cuidadosamente
Vitoriana. Circunscrito ao espaço das quatro paredes da alcova do casal, o sexo foi
portanto, com uma visão centrada na ética do trabalho, o mundo burguês fez da
uma sociedade que tinha apostadas na força do labor as suas bases fundamentais.
ao lugar da reprodução, único capaz de lhe conferir uma utilidade e uma função
sociais.
nunca houve tamanha proliferação dos discursos sobre o sexo como no século
XIX, tempo histórico que fez dessa atividade um tema da política, da economia,
uma intensa produção literária sobre o proibido, entendendo por literatura não
alguma afinidade com o sexo –, para que assim se pudesse exercer uma atividade
força de trabalho. Como assinala Foucault, o século das luzes foi o momento
histórico em que pela primeira vez uma sociedade pensou “que seu futuro e sua
fortuna estão ligados não somente ao número e à virtude dos cristãos, não apenas
usa seu sexo” (Ibidem, p.32). Assim, o setecentos assiste a uma proliferação dos
discursiva sobre o sexo ocorrida na Era Vitoriana, período histórico que mais
atividade procriatória.
definiu Roland Barthes na sua Aula, a literatura permite que o indivíduo burle o
escrita literária, não obstante os interditos sociais, não deixou de fora o tema da
barreiras do interdito.
erotismo citadino.
ainda não explorados no seu primeiro volume de contos, Princípio, nem tampouco
na sua poesia, cuja produção mais significativa data de 1913, quando Sá-Carneiro,
descoberto um poeta das horas vagas. Desde então, Pessoa passaria a ser o maior
apreciador e crítico da sua obra quer no que tange à produção em verso, quer no
algumas incursões, ainda muito incipientes, no âmbito da poesia, cujo estilo e cuja
alcançar a exímia qualidade dos grandes poetas desse gênero, uma vez que os seus
sua obra.
Fernando Pessoa, em carta datada de 31 de maio desse mesmo ano, que o eixo
central dos versos que ora se apresentavam – “Não sou amigo de ninguém. Pra o
uma novela que pretendia escrever em breve, e que se deveria chamar A Confissão
saber fixar-se nem sentir afeição alguma por quem quer que fosse, impasse
86 Em 1905, aos 15 anos de idade, Sá-Carneiro escreve, por exemplo, o poema Menina da
Trança de Ouro, cujo tema é o do amor à primeira vista: “Menina da trança de ouro / Idolatro
o seu cabelo, / Amo, adoro este tesouro / Vivo somente de vê-lo [...]” (1995, p.170).
manifestado por uma insólita forma de vivenciar o campo dos afetos, desejando
que apontam para a ideia da frustração: “e não possuo”, “quero sentir”, “não
Estava, pois, lançado o leitmotiv que mais tarde seria recuperado pelo
criador, aos quais acrescenta ainda a ideia de que impossível seria a união carnal
entre duas criaturas do mesmo sexo, a não ser que uma delas mudasse de sexo.
criados pelo Esfinge Gorda, muitos deles com vincadas tendências homossexuais,
gênero e manifestam uma ânsia pelo universo feminino, buscando saciar os seus
segunda narrativa, Paulette Doré, uma jovem atriz de teatro morta precocemente,
ambos.
Obra de Mário de Sá-Carneiro, sinaliza que nos seus escritos “podemos isolar
referências que, mais não seja, evidenciam uma inconformidade do Eu-ideal com
inflexivelmente impõe [...]” (2006, p.35). E repare-se que é nessa mesma clave
poesia.
(DI, p.148)
este poema resume em breves linhas o perfil e a postura das mais significativas
queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios, / Que num homem,
francamente, não se podem desculpar) e mais perversa (Eu queria ser mulher
para mexer nos meus seios / E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar), que
queria ser mulher pra não ter que pensar na vida / E conhecer muitos velhos a
mulher ou, de outro modo, pela interposição imaginária da figura feminina entre
social que em nada se adéqua à sua índole psicossexual. Marcados por uma
pelo universo feminino e desejam tornar-se mulheres, pois só assim lhes caberiam
capaz de tolerar num homem. E repare-se que esses eus masculinos querem
adultério por puro hedonismo, fazer fofoca, contemplar os seios diante do espelho,
excitar, enfim, a todos que lhes dirijam olhares desejosos, pelo mero prazer de ter
crítica como um dos primeiros textos da literatura portuguesa que ousaram tratar o
apresenta uma inusitada relação homoerótica entre dois amigos – Lúcio Vaz e
personagem de Marta.
nessa narrativa “uma leitura feminista da triangulação do desejo, assim como uma
que Ricardo de Loureiro teria criado uma espécie de duplo feminino de si mesmo,
criara um outro feminino de si, de modo a lograr amar plenamente o seu amigo
Lúcio Vaz, companheiro por quem devotava uma grande ternura. Lembre-se que
interior a partir do momento em que ele beijasse, mordesse ou, enfim, possuísse a
pessoa a “quem estimasse”, fosse ela mulher ou homem. “Mas uma criatura do
nosso sexo, não a podemos possuir”, diz o artista, “Logo eu só poderia ser amigo
p.376, grifos do autor). Estava aí, portanto, colocado o impasse que não permitia a
retribuição da amizade que os seus amigos Lúcio Vaz e Sérgio Warginsky lhe
dedicavam, motivo pelo qual, dizia ele, “os afetos não se materializam dentro de
também a partir dele, a ideia de que, num futuro próximo, se daria a criação da
Ricardo, o poeta dirá a Lúcio o que representara para ele a presença da sua
companheira:
– Sim! Marta foi tua amante, e não foi só tua amante... Mas eu não soube
nunca quem eram os seus amantes. Ela é que mo dizia sempre... Eu é que
lhos mostrava sempre!
“Sim! Sim! Triunfei encontrando-a!... Pois não te lembras já, Lúcio, do
martírio da minha vida? Esqueceste-o?... Eu não podia ser amigo de
ninguém... não podia experimentar afetos... Tudo em mim ecoava em
ternura... eu só adivinhava ternuras... E, em face de quem as pressentia, só me
vinham desejos de carícias, desejos de posse – para satisfazer os meus
enternecimentos, sintetizar as minhas amizades...”
Um relâmpago de luz ruiva me cegou a alma.
O artista prosseguiu:
Ai, como eu sofri... como eu sofri!... Dedicavas-me um grande afeto; eu
queria vibrar esse teu afeto – isto é: retribuir-to; e era-me impossível!... Só se
te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse... Ah! Mas como possuir uma
criatura do nosso sexo?...
“Devastação! Devastação! Eu via a tua amizade, nitidamente a via, e não a
lograva sentir!... Era toda de ouro falso...”
“Uma noite, porém, finalmente, uma noite fantástica de branca, triunfei!
Achei-A... sim, criei-A! criei-A... Ela é só minha, entendes?, é só minha!
Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fora a minha própria alma.
Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós dois... Ah!, e
desde essa noite eu soube, em glória soube, vibrar dentro de mim o teu afeto
– retribuir-to: mandei-A ser tua! Mas estreitando-te ela, eu próprio quem te
estreitava... Satisfiz a minha ternura: Venci! E ao possuí-la, eu sentia, tinha
nela, a amizade que te devera dedicar – como os outros sentem na alma as
suas afeições. Na hora em que a achei, tu ouves?, foi como se a minha alma,
sendo sexualizada, se tivesse materializado. E só com o espírito te possuí,
materialmente! [...]”
concluir que Ricardo admite com as suas próprias palavras que a existência de
Marta se deve tão somente a uma criação do seu imaginário. Melhor dizendo,
Marta seria para Ricardo de Loureiro a sua própria arte aplicada à vida, ou seja, o
modo de alcançar a apoteose feminina que ele tanto desejava 87. Seria, enfim, um
modo de viabilizar o contato entre dois corpos do mesmo sexo, porque, como diz
narrativa ela vem acompanhada de duas “inglesas adoráveis” (CL, p.354), ambas
que se formaria num momento posterior da novela, findas as suas lições sobre a
87Segundo Fernando Cabral Martins, “A Confissão de Lúcio pode ser lida, a par de Dispersão,
como uma resposta narrativa ao desejo de encontrar o outro. Por isso reabilita a sexualidade.
Mas uma outra sexualidade desta vez, luminosa: a da alma” (1997, p.220-221).
88Refiro-me à leitura de Teresa Cristina Cerdeira que, em A Confissão de Lúcio: um Ensaio
sobre a Voluptuosidade, afirma o seguinte: “No limite dos sentidos, A Confissão de Lúcio pode
ser lida como um ensaio sobre a voluptuosidade que se desdobra em três tempos: a
teorização, a encenação e a experimentação. Na tradição orgíaca das bacantes, uma figura
feminina transgressora emerge na cena social masculina de uma Paris fin-de-siècle, para
desencadear intelectualmente, contra todas as normas convencionais, o conceito da arte da
voluptuosidade como matéria artística. Não por acaso a americana, ao expor a sua
Pavilhão de Armenonville, defende não o sexo natural, mas sim uma sexualidade
cerebrina e estética, em que o jogo cênico ocuparia o centro das relações eróticas.
pela figura da lésbica, que na sua obra aparece quase sempre excessivamente
efetivação de uma união patente entre dois personagens masculinos na sua obra
revela ao mesmo tempo “uma lógica misógina que torna a mulher indispensável”,
volúpia ou da volúpia como arte, muito antes que do simples exercício da voluptuosidade na
arte. Revertendo até à radicalidade o modelo platônico da escala do amor, essa estranhíssima
figura da ‘americana’ – que surge tão inopinadamente quanto se desvanecerá – adentra, qual
nova Diotima, a comunidade intelectual de uma Paris boêmia para definir a volúpia como o
mais alto grau de uma espiritualidade corpórea [...]” (2005, p.2-3).
seu corpo e com a sua índole psicossexual parecia afigurar-se-lhe uma questão
relação às formas do seu próprio corpo, que o descontentou durante toda a sua
vida.
89A esse respeito, assinala Ana Luísa Amaral: “Não chegando a desenvolver uma clara
desmontagem dos estereótipos, Sá-Carneiro situa o seu olhar a partir do campo de
ambivalências que o tempo do modernismo lhe propôs e o género sexual pressupõe. Por isso
as personagens que criou se situam no “intermédio” – o instante de suspensão, equivalente
da ficcionalização performativa da experiência de criação – o qual, sendo uma zona de
diluição de limites, paradoxalmente abarca os mecanismos punitivos que estão na base da
sua infracção (bastaria pensar no conjunto de textos que compõem Céu em Fogo, onde as
personagens encaram o fim da vida como o último território por mapear e onde o suicídio
não é o fim da vida mas, acima de tudo, um acto heróico – a derradeira coragem estética). A
solução possível residirá, para Sá-Carneiro, na teatralização do lírico” (2008, p.13, grifos da
autora).
não só. O poema é aberto com o sintagma nominal “O dúbio mascarado” (UP,
p.130), o que talvez aponte para as múltiplas máscaras que Sá-Carneiro assumiu
na literatura e na vida.
“conversas de alma” (CL, p.366) que tivera com o amigo ao longo dos dez meses
lhe a seguinte revelação: “– Ah! como eu me trocaria pela mulher linda que ali
vai... Ser belo! ser belo!... ir na vida fulvamente... ser pajem na vida... Haverá
triunfo mais alto?...” (CL, p.374). E prosseguia o artista: “‘Meu Deus! Meu Deus!
Como em vez deste corpo dobrado, este rosto contorcido – eu quisera ser belo,
– Ah! Meu querido Lúcio – tornou ainda o poeta –, como eu sinto a vitória de
uma mulher admirável, estiraçada sobre um leito de rendas, olhando a sua
carne toda nua... esplêndida... loura de álcool! A carne feminina – que
apoteose! Se eu fosse mulher, nunca me deixaria possuir pela carne dos
homens – tristonha, seca, amarela: sem brilho e sem luz... Sim! num
entusiasmo espasmódico, sou todo admiração, todo ternura, pelas grandes
debochadas que só emaranham os corpos de mármore com outros iguais aos
seus – femininos também; arruivados, suntuosos... E lembra-me então um
desejo perdido de ser mulher – ao menos, para isto: para que, num
encantamento, pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito brancas a
escoarem-se, frias, sob um lençol de linho...
sujeito masculino descontente com o seu corpo, e que manifesta por isso mesmo o
referido poema, apresenta o gozo das formas femininas como sendo a verdadeira
autocontemplação.
Paris a Lisboa. Lúcio, que não pudera acompanhar o amigo à gare do Quai
francamente feminilizado.
Mas como o seu aspecto físico mudara nesse ano que estivéramos sem nos
ver!
As suas feições bruscas haviam-se amenizado, acetinado – feminilizado, eis a
verdade – e, detalhe que mais me impressionou, a cor dos seus cabelos
esbatera-se também. Era mesmo talvez desta última alteração que provinha,
fundamentalmente, a diferença que eu notava na fisionomia do meu amigo –
fisionomia que se tinha difundido. Sim, porque fora esta a minha impressão
total: o seus traços fisionômicos haviam-se dispersado – eram hoje menores.
E o tom da sua voz alterara-se identicamente, e os seus gestos: todo ele,
enfim, se esbatera.
Eu sabia já, é claro, que o poeta se casara há pouco durante a minha ausência.
Ele escrevera-mo na sua primeira carta; mas sem juntar pormenores, muito
brumosamente – como se se tratasse de uma irrealidade. Pelo meu lado,
respondera com vagos cumprimentos, sem pedir detalhes, sem estranhar
muito o fato – também como se se tratasse de uma irrealidade; de qualquer
coisa que eu já soubesse, que fosse um desenlace.
sofrido por Ricardo de Loureiro. Para tanto, reparemos nos primeiros traços
primeiro encontro com Lúcio Vaz: “Adivinhava-se naquele rosto árabe de traços
decisivos, bem vincados, uma natureza franca, aberta – luminosa por uns olhos
perfil atribuído ao poeta em dois momentos distintos da diegese, ainda que esse
primeiro momento, são descritas como bruscas, se os seus traços são marcados
como decisivos e bem vincados – fator que parece conferir uma certa virilidade à
franca, aberta e luminosa; num segundo momento, esses mesmos traços acabaram
mais amenos, mais acetinados, o que equivaleria a dizer que se tornavam, enfim,
mais femininos. Na verdade, não apenas os traços físicos de Ricardo são tocados
pela feminilidade, mas também a voz, os gestos e até mesmo o modo de portar-se.
o narrador que esse evento estaria de tal maneira envolto em mistérios que mais se
reuniões em casa de Ricardo, Lúcio destaca que ela sempre dava as suas opiniões
acerca da arte, evidenciando, como Ricardo, uma “larga cultura” e uma “finíssima
Segundo Paul Zumthor (apud. COQUIO), a alegoria decadentista tem por objetivo
relação à união de Ricardo e Marta foi o fato de o seu amigo ter-se submetido ao
não param por aí os enigmas relacionados a essa união. Para além do fato de
incomodava a Lúcio era o fato de ele não poder saber nada a respeito do passado
circundava. Marta, dirá Lúcio, “[...] não tinha recordações; essa mulher nunca se
referira a uma saudade da sua vida”, como se de fato não tivesse um passado,
velado. Mais sonhada do que real, Marta é uma personagem pertencente aos
(Sá-Carneiro – Sugestão)
homoerotismo como uma realidade patente. Maria José de Lancastre afirma que,
então, não tinha encontrado a sua nítida expressão” (1992, p.49). O conto é aberto
desdenhoso: “Onde encontrar beleza nos contatos do cio? Beleza... Mas haverá
ridículo mais torpe?... Ah!, o horror dos sexos – cartilagens imundas, crespas,
das definições da sexualidade que nos dois casos volatizam a fisicalidade através
de sintagmas que apontam para a recusa dos amplexos brutais, para as secreções
são regulados pela fantasia. Na esteira desses paralelos entre A Confissão de Lúcio
Tudo isto enfim, meu querido amigo – dissera-lhe ele por último – todas estas
complicações, estas estranhezas mórbidas – se resumem numa palavra:
onanismo. Eis o que nós somos, ambos: onanistas completos, admiráveis.
Com efeito, mesmo ao possuirmos uma mulher em cópula normal,
praticamos um ato de onanista, visto que a possuímos, não propriamente na
sua carne, mas em alguma coisa mais bela, mais vaga, mais sexualizada, que
imaginamos para o seu corpo. Os nossos espasmos, regula-os sempre a nossa
fantasia. Por mim, esvaio-me apenas no momento que escolhi.
(CF, p.570)
como uma obsessão das suas artes, adquirindo neles forma e conteúdo. Não por
seu criador, diz que a sua arte manifesta-se numa espécie de escrita masturbatória,
o que não seria outro fenômeno senão o da própria loucura aplicada às formas
textuais.
Paulette, indiferente para com as normas que a sociedade ditava para o seu sexo,
duradouros.
Abandonado pela atriz antes mesmo de ter com ela sequer algum tipo de
contato mais íntimo, Inácio de Gouveia perpetua o desejo por aquela com quem
próprio: “Triste amor... triste amor... Mal a conhecera, e no entanto como lhe
uma aventura amorosa com uma dançarina de ópera-cômica, atitude da qual muito
Sofrendo por um amor irrealizado, e tendo como objeto do desejo uma mulher em
comum, Inácio e Etienne aproximam-se cada vez mais, até ao momento em que se
suas próprias ideias, e por conseguinte uma espécie de duplo da própria Paulette,
cada vez mais atraído pelo ator melancólico de quem se aproximava, e com quem
rapariguinha, logo de súbito lhe ocorria a lembrança do ator” (CF, p.579), Etienne
vontade cada vez mais forte de beijar o amigo, e a lembrança viva daquele ser que
p.581) por Paulette, faz com que “os seus corpos nus, masculinos, se entrelacem”
física, lhe surgia como sendo a própria manifestação da arte. Nas palavras do
narrador: “Num instante pela primeira vez total, possuíra! possuíra enfim
luminosidade aureolada são os modos de definição desse novo erotismo que pela
apenas mediados pelo fantasma feminino. Se, para Inácio de Gouveia, o artista é
pratica o onanismo e alcança desta forma não o logro da carne, mas o logro de
algo mais belo, sutil e sexualizado, a sua relação homoerótica com Etienne parece
desejo carnal, isto é, fazendo, numa postura idêntica à do artista decadentista, com
que o sexo, demovido para um outro plano, consiga ocupar o lugar sublime da
representações.
de habitar a metrópole moderna, abrindo caminho para que outros artistas, na sua
dessemelhantes, num convívio social que Roland Barthes (2001) classifica como
Para Barthes, todos “os objetos que fazem parte de uma sociedade têm um
um espaço plural e significante, ou melhor, como uma linguagem que fala aos
vários anos a cidade de Paris – metrópole futurista pela qual manifesta uma
ficção e de epistolografia.
Era Medieval, passando ainda pela chamada Era Clássica, o espaço retratado na
literatura esteve circunscrito muitas vezes, quando exterior, à esfera natureza e/ou
90“Paris mudou! porém minha nostalgia / É sempre igual: torreões, andaimes, lajedos, /
Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria, / Minhas lembranças são mais pesadas que rochedos.”
(BAUDELAIRE, 2004, p.100. Trad. Pietro Nassetti).
91 Ao afirmar que a retratação do espaço foi praticamente a mesma ao longo de séculos de
literatura, quero dizer com isso que as grandes metrópoles, cuja existência data do período
pós-Revolução Industrial, foram transformadas em tema de literatura apenas a partir do
século XIX, estando Charles Baudelaire à frente desse processo. A crítica especializada em
Baudelaire costuma afirmar que, antes do artista maldito, o modelo espacial de referência
era o ambiente campestre. Mesmo o Romantismo, estética do século XIX, manifestou muitas
partir da literatura produzida pela pena dos artistas do século XIX que a retratação
espacial sofreu uma espécie de radicalização, num processo iniciado por Charles
iconoclasta no que se refere aos campos tanto da arte como da vida, o poeta seria
retomada dos seus postulados éticos e estéticos por outros artistas, assim como
instituídos pela sociedade do seu tempo, Baudelaire fizera da sua arte uma espécie
louvor a Deus etc. Dandy por excelência, e defensor heráldico de uma postura
aristocratizante tanto na arte quanto na arte da vida, esse poeta encarnou uma
vezes predileção pela paisagem rural ao optar pela filosofia rousseauniana. Charles
Baudelaire teria sido, deste modo, o primeiro artista a eleger o espaço cosmopolita como
objeto poético.
nas suas dores e nas suas delícias, que fará de Baudelaire o pai da poesia moderna.
poeta, ao unir pela primeira vez na história da literatura dois elementos até então
uma série de outras imagens, até então completamente inusitadas, em que a cidade
92Pode-se perceber estas alusões em alguns poemas, tais como Hino à beleza (BAUDELAIRE,
2004, p.34); o poema “Porias o universo inteiro em teu bordel / Mulher impura! [...]” (Ibidem,
p.38), no qual o sujeito lírico relata a sua perplexidade perante uma mulher despótica; o
poema Sed non satiata – Cansada, mas não saciada – (Ibidem, p.39), em que o eu lírico se
declara impotente para cessar a sede sexual de uma femme fatale, ao mesmo tempo que se
lamenta pelo fato de não poder tornar-de uma mulher (Proserpina) para lograr tal fim,
referindo-se metaforicamente aos atos lésbicos da sua amante. Além disso, nos Escritos
íntimos baudelairianos, se pode perceber igualmente essa repulsa pelas mulheres que se
adéquam ao padrão familiar burguês do casamento e da maternidade, assim como uma
negação de alguns valores cristãos como bondade, honestidade e retidão.
insólito poeta romântico, propõe deitar-se “junto ao céu” para compor os seus
espaço urbano que, apesar das disparidades que apresenta, ofereceria ao poeta
viés da transgressão.
assim com o modelo beletrístico até então associado à poesia lírica e à literatura
como aquele que pratica uma “estranha esgrima”, o que não seria outro exercício
senão o da laboriosa tarefa de domar as palavras ou, noutros termos, a luta entre o
neste espaço até então considerado antipoético – lugar avesso à inspiração –, onde
encontrando as suas frases tombadas nas calçadas da cidade, a flanar por avenidas,
Poeta palpável, mais próximo à esfera terrena, eis aí uma outra imagem
Poeta que canta em todos os termos o tema da perda da aura, da perda do poder
do vate romântico, cuja palavra seria portadora de uma verdade inspirada, e cujas
teoriza em poesia sobre a postura que deveria ser assumida pelo artista da
ainda que
[...] os grandes escritores (os visionários) viram, antes dos demais, para onde
caminhava o mundo: “O mundo vai acabar” – anunciava Baudelaire em
Fusées [Lampejos], no início da idade do progresso – e, realmente, o mundo
não cessou de acabar.
de fim do mundo, de fim dos tempos, sensação que seria reforçada pelos estetas
Repare-se que, no já citado poema Sol, o sujeito lírico encerra o seu discurso
afirmando que o novo poeta, ou seja, o poeta da rua é aquele que “sabe aureolar a
coisa mais abjeta” (BAUDELAIE, 2004, p.96) – aura insubmissa –, o que poderia
se ele é aquele que em teoria abdica dos dons proféticos conferidos ao artista, ele
necessariamente a perda da aura, Baudelaire parece apontar, por outro lado, para a
para encontrar o abismo e o que ele tem de novo. Assim, a perda da aura deve ser
93Utilizo o termo alegoria no seu sentido benjaminiano. Nas páginas subsequentes deste
capítulo, voltarei a tratar deste conceito, discorrendo sobre a significação que o teórico
alemão a ele confere ao opô-lo ao conceito de símbolo.
afirma que “tudo que significa no mundo está sempre, em maior ou menor grau,
Barthes: “Decifrar os signos do mundo sempre quer dizer lutar com certa
inocência dos objetos” (2001, p.178), o que significa dizer que o mundo seria um
partida as ideias legadas por Saussure, e expostas por seus discípulos no famoso
Curso de Linguística Geral (1915), Roland Barthes começava, a partir dos anos
genebrino, restritos tão somente aos fatores internos da língua, e, num projeto
Uma roupa, um carro, uma iguaria, um gesto, um filme, uma música, uma
imagem publicitária, uma mobília, uma manchete de jornal, eis aí,
aparentemente, objetos completamente heterogêneos.
Que podem ter em comum? Pelo menos o seguinte: todos são signos. Quando
me movimento na rua – ou na vida – e encontro esses objetos, aplico a todos,
às vezes sem me dar conta, uma mesma atividade, que é a de certa leitura: o
homem moderno, o homem das cidades, passa o tempo a ler.
[...]
Todas essas “leituras” são importantes demais na nossa vida, implicam
demasiados valores sociais, morais, ideológicos para que uma reflexão
sistemática não tente assumi-las: é essa reflexão que, por enquanto pelo
menos, chamamos de semiologia.
proposta de semiologia:
homens dão sentido às coisas que não são sons” (2001, p.206). Diante disso,
formal, de tudo aquilo que, enfim, fosse signo, visto que “o espaço humano em
geral [...] sempre foi significante” (2001, p.220). No seu célebre livro Aula, o
seguinte a respeito da linguagem: “não se pode [...] haver liberdade senão fora da
que causara espanto, mas que ele justifica imediatamente dentro da lógica do
poder não como aquela que impede de dizer, mas como aquela que, na verdade,
romper com a norma imposta e “trapacear com a língua” ou, diz Barthes mais
um tecido no qual ficam impressas as pegadas desta prática. Mais que isso, a
Mas o “real não é representável” (Ibidem, p.21), dirá Barthes, uma vez que não há
unidimensional da escrita.
num tempo histórico e num movimento artístico que pregam a ideia da crise da
mimèsis –, tal ideia constitui a base do seu pensamento literário. Segundo Antoine
Carneiro e por toda a geração de Orpheu, uma vez que a sua literatura recusa
progressista.
Fogo, coletânea de contos dispersos que, como vimos, formam um todo coerente,
enuncia esta amarga e dolorosa sentença: “Em vão busco ainda acompanhar-me
de fantasmas... Tudo vive esta vida ao meu redor...” (CF, p.435, grifos do autor).
suportar esta luz sem fim – inevitável e obcecante...” (Ibidem, p.434). Atente-se aí
através do logro do mistério, desejo que se faz presente não apenas nas sugestões
simbolistas, das quais o narrador faz uso por meio do acúmulo de reticências,
insuportável dia-a-dia ungindo a sua existência com o mistério. “Na minha atração
pelo Mistério freme densamente qualquer coisa de sexual” (Ibidem, p.424), diz o
interessam ao vulgo apenas pela função que exercem na sociedade, isto é, pela sua
palavra no seu sentido etimológico de desvio da doxa) de uma densa carga erótica.
Dupla Chama – afirma “que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma
erótica verbal” (1994, p.12). E observemos que o ensaísta fala de erotismo e não
literária, Octavio Paz a concebe dentro deste mesmo viés, uma vez que, na
de uma forte carga erótica, constituindo aquilo que a escrita decadentista – da qual
utilitarismo, que os estetas todos combatem até à morte” (MUCCI, 2004, p.15),
e pinta Paris – cidade pela qual manifesta uma verdadeira atração sexual – em alta
tonalidade erótica:
Regaço de namorada,
Meu enleio apetecido –
Meu vinho de Oiro bebido
Por taça logo quebrada...
Milagroso carrossel
Em feira de fantasia –
Meu órgão de Barbaria,
Meu teatro de papel...
Minha cidade-figura,
Minha cidade com rosto...
– Ai, meu acerado gosto,
Minha fruta mal madura...
Mancenilha e bem-me-quer,
Paris – meu lobo e amigo...
– Quisera dormir contigo,
Ser todo a tua mulher!...
cidade, “meu lobo e amigo” –, é um dos quarenta e seis textos que compõem a
eroticamente.
sua sexualidade 94. E repare-se que a cidade de Paris é, no poema Abrigo, cantada
através de vocábulos que formam pares antitéticos – Lua e Cobra, febre e calma,
94
O que Octavio Paz considera erotismo Sá-Carneiro chama de sexo.
díspar, com contradições patentes, que o autor de Dispersão derrama todo o seu
amor, e que os seus personagens romanescos, tal como os eus líricos da sua
poesia, gritam toda a sua paixão. Com efeito, é Paris uma cidade claramente
poeta em Abrigo, encerrando o seu discurso com estes três apoteóticos versos:
“Paris – meu lobo e amigo... / – Quisera dormir contigo, / Ser todo a tua
mulher!...”. No trecho retirado de Céu em Fogo, Paris não é, por sua vez, cantada
assim Paris se lhes apresenta a Mário de Sá-Carneiro e às figuras criadas pelo seu
(CL, p.355).
Vida Moderna (1916?), Fernando Pessoa (2005) afirma que a sua época – à qual
Tal decadência viria, segundo Pessoa, implicar uma quase necessária valorização
dentro de si próprias tudo aquilo que é típico doutras civilizações, resumem no seu
“um índio” – faz com que o narrador termine por afirmar que o ambiente em que
genial” (CL, p.361), espaço da alteridade, ambiente que o artista não raras vezes
lisboeta provinciano e desejoso de negar a sua condição natural que Mário de Sá-
Carneiro descreve e pinta Paris. Fernando Pessoa, na primeira parte do seu artigo
a terra natal, a sua “terra ocidental ao fim da Europa” (CF, p.427), como um local
triste e assolado pela mediocridade. “As ruas tristonhas de Lisboa do Sul, descia-
as às tardes magoadas rezando o seu nome: O meu Paris... o meu Paris” (CL,
p.371), diz Ricardo de Loureiro; “minha terra medíocre, nesta cidade ocidental, ao
sua ojeriza por Portugal e por Lisboa, tomada aqui como metonímia da nação.
“Lisboa era uma casa estreita, amarela – parentes velhos que não deixavam sair as
o atraso cultural e econômico da sua nação, que não tem as luzes nem as cores,
nem os ricos perfumes de Paris. Sonhando com vastos impérios, com grandes
também erótico espaço urbano que a concretização de tal desejo poderia tornar-se
possível.
95
Em Sá-Carneiro, temos, por um lado, o artista que recusa o mercantilismo do burguês
capitalista; por outro, esse mesmo artista que se encanta com o progresso das grandes
metrópoles, que são o resultado do projeto burguês. No entanto, o que interessa a Sá-
Carneiro nos grandes centros urbanos é na verdade a contemplação da vida moderna sem
dela participar ativamente, sem contribuir, de uma forma considerada pragmática, para o
progresso do mundo.
A Grande Sombra manifesta, tal qual o poeta Álvaro de Campos, uma espécie de
português, tal como o seu criador, apaixonado e excitado pela cidade de Paris:
Ah, como por exemplo ele se olhava grande por tão admiravelmente sentir o
seu amor por Paris, a esbater-se em saudade, longe dele – incerto de o oscilar
de novo, tão cedo...
– Paris!
As grandes avenidas, os bulevares tumultuantes, e à noite o Sena, sob as
pontes heráldicas, arfando de mil luzes...
(CF, p.543-544)
A longa citação permite discutir sobre uma estrutura que é cantada a partir
dito, seja pela apresentação dos habitantes de uma cidade atravessada pela cultura
espectador, sem dela participar ativamente, por recusar para si a ideia do trabalho.
Descrito num processo de justaposição, o espaço citadino abriga seres das mais
atrizes, ídolos maquilhados, todos eles marcados pela fragilidade e pela nevrose,
ferindo desta forma o espírito positivista e a sua premissa máxima: “mente sã,
corpo são”. Orgíaca, Paris assinala-se pelo erotismo e pelo dispêndio, e o narrador
faz questão de frisar a sua monumentalidade e a sua futilidade, ou seja, o seu lado
sedutor, não pragmático e não utilitário. É, pois, desta forma que o narrador de Sá-
Carneiro admira a Paris das camadas populares (Paris dos bas-fonds), a qual
Nunca pude crer que fôssemos totais: o meio que nos envolve é também um
pouco de nós, seguramente.
(CF, p.427)
Pessoa – que “no artista o que menos lhe parece importar é a obra. O que acima de
tudo lhe importa são os seus gestos, os seus fatos, as suas atitudes. Assim, não usa
relógio porque os artistas não usam relógio” (COL, p.728). Para Santa-Rita, o
artista valeria tanto mais pelo interessante do seu aspecto físico e pelo genial da
sua conduta – ambos diferenciais numa sociedade estabelecida sob a égide dos
que pode haver de essência nas suas obras. Ora, é justamente esse português sui
generis com quem Mário de Sá-Carneiro travou amizade em Paris aquele que
meu inimigo íntimo. Nem pode perdoar a cena do Montanha nem A Confissão de
Santa-Rita maître do Orpheu acho pior que a morte. ‘Eu, aqui de longe, nada de
positivo posso fazer, nem decidir’ – será o tema, o resumo da minha carta ao
no que concerne à vida propriamente dita, quer no que tange à sua concepção do
verdadeiro desdém aristocrático por tudo aquilo que fosse português, ocidental-
Paris um espaço da alteridade, porque para ele, artista iconoclasta a quem pesava a
(Sá-Carneiro – O Lord)
trabalho e aos chamados "bons valores", o dandy é uma criatura que prima pela
seria uma espécie de último traço de heroísmo dos tempos de decadência. Ou seja,
a filosofia dandy seria um fenômeno que ressurge toda vez que a História se
ruína. Neste sentido, poder-se-ia dizer que o dandy não é apenas uma figura típica
artística da crise. Em termos benjaminianos, dir-se-ia que dandy pode ser lido
comportamental dos eleitos. Propagando uma conduta que se traduz por uma arte
de portar-se, por uma arte de vestir-se e por uma arte da conversa, o artista-dandy
suicídio é num único momento: rejeição categórica do meio social, e não raro ele
modernidade vivenciada sob a égide do choque, acaba muitas vezes por sucumbir
ao final da sua lide, assinalando com tal fim trágico a poesia de uma existência de
artista insurreto que, enquanto tal, não poderia eleger para si próprio outro
mesmo, elegendo a indiferença para com o outro como o princípio básico da sua
filosofia.
culto narcísico de si próprio, por outro lado, ele é também uma espécie de
para o discípulo que decide iniciar nas sendas artísticas, entregando-lhe aos
uma potencial criatura superior, isto é, a um futuro membro da casta dos eleitos, o
processo iniciático a que essa criatura será submetida não é nada simples, e a
relação entre tutor e aluno não raro oscilará numa zona fronteiriça entre a
Retomo aqui, para ler o dandismo, a teoria do desejo triangular que René
uma ilusão romântica pensar que podemos desejar a partir nós mesmos, isto é,
acreditar que os nossos desejos são autônomos e que, portanto, somos donos da
começa a ser propagado com grande força. Se, para o artista romântico, a fonte
sujeito original. Se, como se sabe, a cultura burguesa assenta os seus principais
homem, que, autônomo, poderia alcançar o seu lugar ao sol a partir dos seus
valores pessoais. Desta forma, cada ser humano seria considerado único e, por
ou melhor, uma mentira romântica que muitos autores oitocentistas não fizeram
direta, mas sempre através da mediação de um terceiro, claro está que todo desejo
intermédio do outro. É, pois, a partir dessa consciência que René Girard formula a
estabelecer o acesso entre o sujeito e o objeto. Para René Girard, todo desejo é
mediação: a externa e a interna. Para ele, a mediação externa seria aquela em que
o sujeito desejante não apresenta nenhum tipo de rivalidade para com o seu
mediador. Pelo contrário, ele o venera, desejando reproduzir suas ações. Quanto
maior for a distância entre o sujeito e o mediador – assinala Girard –, tanto menos
rivalidade haverá. Dom Quixote aprecia Amadis de Gaula, e por isso mesmo quer
heroínas românticas, sonhando levar uma vida semelhante à das personagens que
objeto desejado é o livro ou, mais precisamente, a literatura, não podendo haver
seu modelo se julga demasiadamente superior a ele para aceitá-lo como discípulo”
(GIRARD, 2009, p.34), o que, por sua vez, gera paradoxalmente a admiração e o
Julien Sorel faz tudo o que Emma não pode fazer. No começo de O Vermelho
e o Negro, a distância entre herói e mediador não é inferior à de Madame
Bovary. Mas Julien vence essa distância; ele abandona sua província e se
torna o amante da orgulhosa Mathilde; sobe rapidamente a uma posição
brilhante. Essa proximidade do mediador se reproduz nos demais heróis do
romancista. É ela que diferencia essencialmente o universo stendhaliano dos
universos que já enfocamos. Entre Julien e Mathilde, entre Rênal e Valenod,
que toma pedantemente como seu discípulo – e o objeto do seu desejo, noutras
outro para que o tome como modelo tutelar e para que o copie tanto filosófica
ao “industrializar”, de certa forma, o seu acesso, por outro lado, tal capitalização
aponta para qualquer coisa de muito mais perverso e inusitado do que se possa
imaginar. Embora chame a atenção de todos devido à sua conduta teatral, tudo o
que o dandy de fato não quer é que o seu pensamento e as suas atitudes se
a arte se revela por sua exterioridade absoluta –, isso deve ser lido tão somente no
sentido daquele que almeja seduzir e, ao mesmo tempo, ferir o outro pelo viés do
discípulos que ele revelará, nos bastidores a que apenas os eleitos podem ter
arte.
uma escola, ou melhor, uma espécie de sala de aula dirigida por um professor
claro – deste paradigma educativo quer na vida propriamente dita, quer na ficção,
mais jovem. Deste modo, o próprio dandismo wildiano surge como uma espécie
vitorianas, advogou a favor do amor que não ousa dizer seu nome, assinalando:
“The ‘love’ that dare not speak its name in this century is such a great
affection of an older for a younger man as there was between David and
Jonathan, such as Plato made the very base of his philosophy and such as you
find in the sonnets of Michaelangelo and Shakespeare — a deep spiritual
affection that is as pure as it is perfect, and dictates great works of art like
those of Shakespeare and Michaelangelo and those two letters of mine, such
as they are 96 [...]”
na esteira de Platão, se conhece por ascese, o que poderia haver agora de perfeito,
gradativa, à medida que indivíduo experimenta diversos corpos belos, até poder
96O amor que não ousa dizer seu nome neste século é um grande afeto de um homem mais
velho por um jovem, tal como houve entre David e Jônatas, como aquele de que Platão fez a
própria base da sua filosofia, e tal como encontramos nos sonetos de Michelangelo e de
Shakespeare – uma profunda afeição espiritual que é tão pura quanto perfeita, e que dita
grandes obras de arte como aquelas de Shakespeare e Michelangelo, e aquelas duas cartas
minhas, tal qual são [...] (Trad. minha).
97A esse respeito, diz José Américo Pessanha (In: Os Sentidos da Paixão): [...] “a estilização do
comportamento sexual, a estetização do desejo, manifesta-se também na escolha do seu
contrário, isto é, a descida do espírito à carne. Ou, de forma ainda mais perversa, a
confessa ter criado a figura de Marta para lograr experimentar os seus desejos
homoeróticos.
Oscar Wilde, como uma espécie de grande processo iniciático. O que de fato
de1895 é o passado ao qual Lúcio retorna ), onde começa a conviver com todo um
círculo de dandies que lhe dão verdadeiras aulas, verdadeiras lições perversas e
de Loureiro são, todos eles, dandies que despertam a atração e o repúdio de Lúcio.
heréticos e profanadores, Lúcio se põe tal qual um aprendiz que revela, entre
personagem de Sá-Carneiro – tal como Oscar Wilde de fato o fizera na vida – diz
escrever a sua confissão como discurso de defesa (e lembremos que aquilo que o
metaforicamente orgásmica.
objeto. Este deve ser o mais belo e o mais nobre, independentemente de ser ou não do
mesmo sexo. Por isso é que vemos em Platão a passagem do amor aos rapazes (Erótica) ao
amor à verdade (Filosofia). O mais belo e mais nobre objeto de amor é encontrado desde que
os termos iniciais da relação erótica – homem/rapaz, amante/amado, erasta/erômeno – vão
sendo substituídos, numa ascese erótica progressiva, até se transformar afinal na relação
entre sujeito (amante) e objeto (amado) de contemplação” (2009, p.92).
(Sá-Carneiro – Taciturno)
como comumente se lhe chama – Santa-Rita Pintor. A primeira vez que Sá-
Querido amido,
Tenho andado muito com o Guilherme de Santa-Rita.
É um tipo fantástico, não deixando no entanto de ser interessante.
Imagine você que a uma mesa do “Bullier”, em frente duma laranjada e tendo
por horizonte o turbilhão dos pares dançando uma valsa austríaca – de súbito,
a propósito já não dei de quê, me desfechou esta:
“ – porque eu, sabe você, meu caro Sá-Carneiro, não sou filho da minha
mãe...”
Julguei estar sonhando, mas ele continuou:
“– o meu pai, querendo dar-me uma educação máscula e rude, mandou-me
para fora de casa quando era muito pequeno. Fui para uma ama cujo marido
era oleiro. Essa ama tinha um filho. Uma das crianças morreu. Ela disse que
fora o seu filho. Entretanto a instância de minha mãe e devido a eu ter ido
com uma companhia de saltimbancos, tendo sido encontrado em Badajoz (eis
os saltimbancos do Jaime Cortesão, coisa que aliás ele me confessara ser
blague), voltei para a casa dos meus pais. Em 1906, porém, a minha ama
morreu e deixou uma carta para minha mãe em que lhe confessava que quem
morreu fora o filho dela. Logo eu não era filho da minha mãe, mas sim da
minha ama. É este o lamentável segredo, a tragédia da minha vida. Sou um
intruso. Ah! mas hei-de dar uma satisfação à sociedade! É por isso que eu
quero ser alguma coisa nesta vida! E abençoo a minha verdadeira mãe que,
para eu ser mais feliz, não teve hesitação em perder-me, em dar-me a outra
mãe! Eu quando escrevo Augusto assino sempre, humildemente, Guilherme
Pobre. E foi por isto que, quando estive em Lisboa, não quis ir para minha
casa, fiquei num hotel.” (Diga-me você, Pessoa, se isto é verdade.)
Depois desta longa tirada que me deixou boquiaberto, eu sorri e comentei
“que era muito interessante... um verdadeiro romance folhetim...”. Saímos. E
cá fora, ainda falando no caso, ele ria nervosamente, sinistramente,
encostando-se a mim...
Que diz você a isto, Fernando? Peço-lhe que faça comentários e que, em todo
o caso, não divulgue a história, pois ele me pediu o máximo segredo... É
espantoso! E de mais nessa mesma noite ele jurara-me que se deixara por
completo de blagues.
sempre postule as suas opiniões de forma altiva e pedante, este dandy português
drama burguês de folhetim –, dizendo-lhe ser essa a sua própria história de vida.
declara a Pessoa o seu pasmo diante dessa figura performática, que o inebria e o
por fazer mais adiante é trazer esse assunto à tona, aquando da publicação de A
Rita, e cujos aforismos e cujas blagues tanto encantam o narrador da novela, é ele
próprio um quase reflexo de Santa-Rita Pintor, por outras palavras, quase um seu
aquele: “[...] vale muito mais o Artista do que as suas obras; isto é: o aspecto
exterior do artista, os seus cabelos, os seus fatos, a sua conversa, as suas blagues
– o seu eu, em suma, como coisa primordial – a sua obra, como coisa secundária”
(COL, p.784, negrito meu); para este: “[...] o artista não se revela pelas suas obras,
mas sim, unicamente, pela sua personalidade. Queria dizer: ao escultor, no fundo,
genial, no seu aspecto físico, na sua maneira de ser – no seu modo exterior [...]”
(CL, p.357-358). Não obstante diga valorizar um artista pela sua exterioridade
o dandy como uma figura oximórica: artista performático, diga-se, sem conteúdo,
olhos do Esfinge Gorda, que a ele se refere constantemente em diversas cartas que
– Sabe, meu querido Lúcio – uma vez contara-me o escultor –, o Fonseca diz
que é um ofício acompanhar-me. E uma arte difícil, fatigante. É que eu falo
sempre; não deixo o meu interlocutor repousar. Obrigo-o a ser intenso, a
responder-me... Sim, concordo que a minha companhia seja fatigante. Vocês
têm razão.
Vocês – note-se em parênteses – era todo o mundo, menos Gervásio...
(CL, p.355-356)
aos seus interlocutores, exigindo-lhes que sejam intensos, isto é, a que lhe
para tentar dar, supostamente, um fim útil à sua vida. Ora, não deixa de ser isto
transferiu para Paris com a escusa de estudar Direito na Sorbonne. Tal como
Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de
Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter
tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido –
sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital. Logo me
embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu
mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas.
De fato, o narrador deixa claro que, mais do que àquilo que pudesse dar
um fim útil à sua vida, sua mudança para a cidade de Paris estaria relacionada ao
desejo de saciar a sua sede de Europa, isto é, de lograr o exílio cultural pelo qual
tanto ansiava. Atentemos para certas marcas discursivas: o narrador não diz ter
ido estudar Direito em Paris, o que daria à viagem uma finalidade explícita. Ao
Paris”, num discurso modalizador que só faz reiterar a ideia de acaso, de ato
Lisboa, esse sujeito dilacerado parece adentrar a cena da Paris cosmopolita para
receber algumas lições teóricas sobre a concepção decadentista da arte, lições que
lhe seriam advindas inicialmente do contato com os dois grandes mestres que, por
Tal como os dandies wildianos, que, como vimos, têm como uma das suas
Lúcio e Ricardo, figuras centrais da diegese. Ora, essa situação, nos enredos
manifestar-se quase sempre como um exímio conversador ou, por outras palavras,
(CL, p.354)
dandy, alinhava os emaranhados fios do seu discurso em oximoro. Todo fogo, este
entre irritado e admirado, como o seu mediador. Não por acaso, Lúcio entretece o
além disso, de serem sempre vitoriosa e intensamente por ele defendidas, por mais
verdade é que em redor de sua figura havia uma auréola. Gervásio Vila-Nova era
aquele que nós olhamos na rua, dizendo: ali deve ir alguém” (CL, p.353). Ora,
perda da aura, como que a apontar para uma espécie de dessacralização do artista,
aura o acidente que possibilita o logro de uma nova aura insubmissa – para
retomarmos aqui o conceito cunhado por Edson Rosa da Silva –, que não deixa de
ser, ao fim e ao cabo, a aura perversa do dandy. Deste modo, se a perda da aura
pode – e deve – ser lida pelo viés da queda, da caída do poeta-anjo no espaço
opiado” (CL, p.353), exatamente de par com a sua concepção em relação à postura
de um verdadeiro artista. Ou seja: para Vila-Nova, o artista valeria mais pelo seu
essencialismo das suas obras. Daí a sua adoração por aqueles que não só
produzem obras de arte, mas que também vivem a sua Arte; daí a sua afinidade
– Ah, pelo meu lado, confesso que os adoro... Sou todo ternura por eles. Sinto
tantas afinidades com essas criaturas [os artistas]... como também as sinto
com os pederastas... com as prostitutas... Oh! é terrível, meu amigo, terrível...
[...]
– Porque isto, meu amigo, de se chamar artista, de se chamar homem de
génio, a um patusco obeso como o Balzac, corcovado, aborrecido, e que é
vulgar na sua conversa, nas suas opiniões – não está certo; não é justo nem
admissível.
(CL, p.357-358)
tomada pela sociedade do seu tempo como uma espécie de educação inclusiva e
contrário, era tomada pelos dandies – novos artistas malditos – como um modo
social, a exclusão do que já não podia ser considerado o Bem não seria menos
valioso eticamente.
contato sexual entre Gervásio e Lúcio. No entanto, recorde-se que esta narrativa
próprio Lúcio quem assinala que “[...] Ricardo surgia-me com revelações
Ora, seria Ricardo um duplo de Gervásio 98? Ou ainda: seria Marta (com quem
se, velut in speculo, na figura do poeta, como uma espécie de duplo do duplo?
Respostas definitivas para essas perguntas são impossíveis, até porque o maior
98Lélia Parreira Duarte já apontava para uma leitura nesse sentido: “Atente-se, afinal, na
novela, para os seguintes elementos nela presentes, que concorreriam para desmistificá-la
como mimese e representação: a duplicidade de papéis exercidos por algumas personagens e
a constante preocupação com os temas da representação, da criação, do fingimento, a
presença de máscaras, espelhos, duplos (não seria Ricardo de Loureiro um duplo de Gervásio
Vila-Nova, e não seria Marta um duplo de Ricardo de Loureiro?). Atente-se ainda para a já
mencionada evidência de que finalização, leitura, representação ou execução de obras de
arte, na narrativa, coincidem com acontecimentos fundamentais do seu enredo, de forma a
deixar no leitor a impressão de correspondência entre a obra concluída e o episódio narrado
ou, mais ainda, a dúvida quanto à verossimilhança dos fatos, vistos então apenas como
retalhos anexados sem que se forme um todo coerente, ou demonstrações da artificialidade
da obra construída, que procura assim tornar claro o seu caráter de ficção (DUARTE, 1992,
p.171).
qualquer preço.
Wilde, teria sido, nas palavras de Pedro Paula Garcia Ferreira Catharina, “o
de valores. Isto se torna mais que explícito, por exemplo, numa das últimas lições
perante a sociedade:
– Creia, meu querido amigo, você faz muito mal em colaborar nessas
revistecas lá de baixo... em se apressar tanto a imprimir os seus volumes. O
verdadeiro artista deve guardar quanto mais possível o seu inédito. Veja se eu
já expus alguma vez... Só compreendo que se publique um livro numa
tiragem reduzida; e a 100 francos o exemplar, como fez o... (e citava o nome
do russo chefe dos selvagens). Ah! eu abomino a publicidade!...
(CL, p.365-366)
como ele, a arte ocupa o âmbito do sagrado, não devendo cair jamais no
arte deve ser revelado apenas aos eleitos, permanecendo desdenhosamente vedado
que não lhe pareça conter o requinte e a sensibilidade necessários à distinção entre
a elite – aristocracia da cultura – e o povo – aquele que, segundo ele próprio, não é
capaz de sentir a beleza da arte. E foi justamente por esse motivo que, por
(CL, p.357)
99 Este era também um dos chavões de Guilherme de Santa-Rita: “[...] Santa-Rita diz conhecer
toda a literatura, e ler Platão, Homero, Sófocles, Comte, Nietzsche, Darwin, etc., etc... Eu creio,
aliás, muito pouco nos seus largos conhecimentos literários... não creio mesmo nada, meu
amigo [Fernando Pessoa]... Por isso talvez ele não discute... Dos artistas de hoje, a par do
Parreira, apenas tem culto por um literato cubista, Max Jacob, que ninguém conhece, e que
publicou dois livros em tiragens de cem exemplares. A primeira pessoa que não leu esses
livros é ele... aliás cada volume custa sessenta e cinco francos. Mas é genial, porque é cubista”
(COL, p.728).
vício e doença” (CL, p.357). Por outras palavras, Gervásio e a americana podem
divergência de opinião entre ambos, estes dois dandies podem ser considerados
(CL, p.354)
não é o sexo físico, mas sim uma espécie de onanismo mental, de cópula
(CL, p.356)
aula sobre a sua teoria da voluptuosidade como forma de arte ao círculo que a
mistérios artísticos da sexualidade. Com efeito, não poderia ser concedido a outra
remete por demais à natureza, que ele abomina. Na cena finissecular, valoriza-se o
cultural em detrimento do natural, e talvez seja por isso que a americana manifeste
meio dos arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores e dos requintes
viciosos da luz. Todos esses sensualismos novos ainda não explorados traduzir-
coisa que aponta para um desvio do conceito de belo. Se, para Diotima de
despertado pelo fascínio dos belos corpos até à chegada futura a um estágio de
uma gama de artistas malditos que cultuaram o belo pelo viés transgressão, logra
ouro (Ibidem, p.361, grifos meus). Na sua claudicante Orgia do Fogo, como mais
medida, vale frisar, do logro do dispêndio voluntário: Escoava-se por nós uma
a sua insólita confissão, parece por em prática tudo aquilo que aprendera com os
onírica, ritualística e algo mística desse evento parece conferir-lhe uma espécie de
aura herética e teatral, como se todos os convivas ali presentes estivessem diante
mas sim teatral – que ao fim e ao cabo não deixa de ser o culto à própria arte. Em
uma prática que só se poderia concretizar de forma plena entre homens, uma
Confissão de Lúcio, reverter até à radicalidade a escala proposta por Diotima. Se,
femininas.
Repare-se que, mesmo nas relações entre homens, o que está em jogo na
apresentado pelo narrador como uma figura andrógina e tocada por uma histeria
feminina, o que, por si só, já aponta para a retomada de todo um imaginário sobre
100 Sobre isso, recorde-se ainda Fernando Pessoa, que se autoclassifica como um histero-
Para além de tudo isto, repare-se ainda que, por mais de uma vez, o
Queirós parece ser o escritor que aponta com mais insistência para o não trabalho
eróticas com mulheres, não deixam de ser perscrutados – detalhe a detalhe – pelo
refinados, mas não raro frágeis e inaptos ao mundo do trabalho 101. Claro está que,
sejam tocados por uma certa feminilidade, como seria o caso de um Gonçalo
própria nação.
Garrett, no avesso de toda uma tradição épica que privilegiou a partida, decide
uma Idade Média pré-Expansão Ultramarina, isto é, de um país que ainda investia
a sua força laboral no processamento da terra; Camilo, com toda a sua ironia,
ridiculariza tanto o velho quanto o novo Portugal 102, apresentando a vida citadina
civilizada como uma quase extensão torpe e anacrônica dos morgadios medievais,
superficiais, todos incapazes de um único gesto que justificasse o orgulho histórico que não
raras vezes acompanhou o tempo referencial que os fez nascer. Tempo marcado por uma
agressividade viril, responsável pela criação de uma ‘Idade de Ferro’” (2007, p.15-16).
102 Vale citar a arguta reflexão de Eduardo Lourenço: “Num certo sentido, pode dizer-se
mesmo que a história não existe para Camilo senão como uma coleção de anedotas factuais,
sobretudo de destinos que independentemente do tempo representam essencialmente a
mesma cena, em três ou quatro versões: Queda com expiação e redenção, Queda sem
expiação nem redenção, Queda sem expiação e com redenção (irónica)” (2006, p.64, grifos do
autor).
quem viver de rendas era uma prática louvável, à qual até mesmo a classe
p.162, grifos do autor), apostando no trabalho como uma grande força positiva:
dos agricultores que lavram a terra ao cheiro honesto e salutar a pão, o trabalho
parece ser, na poesia de Cesário, uma grande aposta no futuro; por fim, Eça de
Queirós apresenta na sua obra uma aristocracia aburguesada que, mesmo diante de
futura de um mundo mais justo, mais fraterno e mais igualitário, isto é, num
mundo que enfim concretizasse plenamente os valores que ele mesmo traíra.
contas com a memória da sua tradição cultural. Resta saber em que sentido essa
século e no princípio do século XX. Por outras palavras, se o oitocentos não raro
trabalham:
trabalhadores, dos piratas, dos criminosos, dos ladrões, daqueles que, enfim,
tentam dar um fim útil à sua vida, seja por meios lícitos ou ilícitos. Em Campos, o
uma constante da sua obra: Gervásio, Lúcio e Ricardo, por exemplo, são
personagens marcadas pela histeria e pelo ócio que propicia a criação artística:
“Dentro da vida prática também nunca me figurei. Até hoje, aos vinte e sete
anos, não consegui ainda ganhar dinheiro pelo meu trabalho. Felizmente não
preciso... E nem mesmo cheguei a entrar nunca na vida, na simples Vida com
V grande – na vida social, se prefere. É curioso: sou um isolado que conhece
meio mundo, um desclassificado que não tem uma dívida, uma nódoa – que
todos consideram e que entretanto em parte alguma é admitido... Está certo.
Com efeito, nunca me vi “admitido” em parte alguma. Nos próprios meios
onde me tenho embrenhado, não sei por que senti-me sempre um estranho”.
(CL, p.367)
própria sexualidade. Atente-se ainda para o fato de que é Lúcio – personagem que
vive a sua sexualidade em interdito – quem assinala, fascinado, que o olhar que as
mulheres lançavam para Gervásio era como que uma espécie de mirada que
cheia de pedrarias” (CL, p.353). Deste modo, perceba-se que, mesmo naquelas
fealdade, diga-se, com a masculinidade do seu corpo, sonhava ser mulher para
século XX como seres por meio dos quais os artistas insurretos podiam promover
o choque e o escândalo, dando mais uma das suas bofetadas na face do burguês
lepidóptero.
gemas preciosas que cobrem o seu corpo e sobretudo a sua dança misticamente
prosa poética que se inscreve em excesso, que se constrói em desvio, repleta que é
no seu bailado macabro, que seduz e mata a um só tempo. Agindo tal qual uma
seguidores nos domínios do mistério, e não por acaso a orgiástica festa que
que somente aos eleitos é permitida a entrada. Neste sentido, de forma alguma são
diversas vezes se utiliza para descrever tanto os corpos quanto a personalidade das
especularmente complementares.
absolutamente nada a ver com a esfera religiosa ou com a recuperação dos valores
perdera-se a aura, mas essa perda implicava, muito perversamente, a busca de uma
modernidade.
bíblica que exigira como recompensa artística a cabeça de João Batista numa
profanação dos valores canônicos, o que não significa dizer a ausência de uma
próprio dandismo.
cortinas que vedam o acesso ao palco; das bailarinas que dançam seminuas à
não impede que se profanize o próprio sagrado em prol da arte. Deste modo, a
americana – que se coloca desde a sua primeira aparição como uma artista – é
sacerdotisa do fogo.
suas últimas lições. Atente-se para a simbologia do fogo, elemento que caracteriza
reverbera ainda num segundo momento, aquando das relações triádicas entre
Lúcio, Marta e Ricardo. Com efeito, se o fogo é, por um lado, um signo que
aponta para a ideia de extinção, por outro lado, ele pode ser lido como índice de
imaginário mítico, o fogo tem sido pressentido, desde as épocas mais remotas da
caráter divino e, nesta mesma linha, a sua dimensão animista 104. Na mitologia
grega, o fogo já fora apontado como o elemento sagrado responsável por haver
concedido vida aos seres humanos, depois de ter sido furtado aos deuses pelas
mãos do incauto Prometeu que, por sua vez, pagara um terrível preço por tamanha
deusa, porque, segundo a crença da época, tais chamas seriam responsáveis por
mais arcaicas do que a grega e a romana, como a cultura celta, crê-se que durante
doando-se aos deuses por vontade própria. Por fim, no que concerne ao
104 Veja-se sobre isso o inultrapassável texto de Gaston Bachelard – A Psicanálise do Fogo.
Também em relação a isso, diz Junito de Souza Brandão: “Quanto ao fogo propriamente dito,
a maior parte, dos aspectos de seu simbolismo está sintetizada no hinduísmo, que lhe
confere uma importância fundamental. Agni, Indra e Sûrya são as ‘chamas’ do nível telúrico,
do intermediário e celestial, quer dizer, o fogo comum, o raio e o sol. Existem ainda dois
outros: o fogo da penetração ou absorção (Vaishvanara) e o da destruição, que é um outro
aspecto do próprio Agni. Consoante o I Ching, o fogo corresponde ao sul, à cor vermelha, ao
verão, ao coração, uma vez que ele, sob este último aspecto, ora simboliza as paixões,
particularmente o amor e o ódio, ora configura o espírito ou o conhecimento intuitivo. A
significação sobrenatural se estende das almas errantes, o fogo-fátuo, até o Espírito Divino:
Brahma é idêntico ao fogo. O simbolismo das chamas purificadoras e regeneradoras se
desdobra do Ocidente aos confins do Oriente. A liturgia católica do fogo novo é celebrada na
noite de Páscoa. O divino Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos sob a forma de línguas de
fogo. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, o fogo é elemento que purifica e limpa,
tornando-se, destarte, o veículo que separa o puro do impuro, destruindo eventualmente
este último. Por isso mesmo, o fogo é apresentado como instrumento de punição e juízo de
Deus. Cristo fala de um fogo que não se apagará. Deus será como um fogo, distinguindo o
bom do menos bom. Sua força, que tudo penetra, purifica também: nesse sentido é que o
batismo de Jesus havia de agir como fogo” (2004, p.276-277).
das suas obras em prosa, bem como os sujeitos líricos da sua poesia, com
que é caracterizado pelo próprio narrador como sendo um ser superior, submete o
conferido um lugar de menos valia nesse projeto narrativo. Tão dandy quanto
cênico como caminhos inusitados, como sensualismos novos a partir dos quais o
do texto decadentista, um texto dandy, escrito numa prosa poética e erótica, que se
realizada a função que lhes tinha sido conferida neste projeto narrativo – iniciar
modo a poesia da sua própria existência. Gervásio suicida-se; a americana, por sua
vez, desaparece misteriosamente, sem que dela se tenha mais nenhuma notícia.
dos signos mais recorrentes do seu tecido discursivo. Deste modo, Gervásio, uma
destino que evidentemente não poderia ser outro que não o de consumir-se a si
tal qual aos seus mestres – apontada a mesma via de autoconsumição: Ricardo de
Loureiro, o poeta das Brasas, pareceria não poder gozar de outro destino que não
figura de Marta. Lúcio Vaz, escritor de A chama, num gesto de não menos
optando por ser, a partir daquele momento, como o seu amigo Gervásio Vila-
condensar numa obra” (CL, p.354). Como se vê, a Lúcio e a Ricardo é conferido,
ida a Paris num tempo passado e sobre a sua sede de imersão no mundo artístico;
por fim, o terceiro, quando Lúcio, após a festa da americana, abdica do convívio
com Gervásio, vindo a confessar que a amizade com o poeta Ricardo de Loureiro
marca tanto o início como o fim da sua vida. Inicialmente, assistimos a uma
deslocado, a novela de Sá-Carneiro ganha um novo ritmo, muito mais lento, que é
ainda mais profundamente no seu mundo interior, voltando todo o seu pensamento
para a relação que estabelece com Ricardo/Marta. Por outras palavras, a partir do
daqueles anos foram os pintores” (2009, p.113). Destacando nomes como Van
Decididos, para lembrar Peter Gay, “a expor o íntimo do seu ser sem reticências
próprios versos do poeta: “Só de ouro falso os meus olhos se douram / Sou
Esfinge sem mistério no poente / A tristeza das coisas que não foram / Na
minh’alma desceu veladamente” (1996, p.21), que constituem um dos mais belos
num meio de alcançar o ser do seu mediador. Mais que isso: para aquele que se
qualquer custo se evidencia do início ao fim da diegese. Lúcio quer ser igual a
Gervásio (artista dandy); Ricardo quer ser belo como uma mulher (a americana),
Como se pode ver, Lúcio alega sentir um misto de atração e repulsa pelos
artistas-dandies, que cultuam a arte pelo que ela tem de exterior, que se
aplicando-as seja na sua produção artística, seja na sua própria vida. Urdindo o
início ao fim da narrativa que constrói. Se se pode dizer que, numa espécie de
outro lado, que o poeta é descrito, desde o momento em que Lúcio o vê pela
primeira vez, como um dandy que chama a sua atenção: “[...] Brilhantíssima aliás
Gervásio calar-se – ouvir, ele que em todos os grupos era o dominador” (CL,
p.360). Tal como Gervásio e a americana, Ricardo é descrito pelo narrador como
quase que exclusivamente da sua vestimenta. Nada mais errôneo! Nos seus
inéditos sobre imagem e moda, Roland Barthes nos ensina que a vestimenta do
permitiam de certo modo a leitura de uma classe pretensamente eleita pelo próprio
querer divino 105, foram relegados a uma esfera de menos valia, deixando de ser
possíveis na sociedade do Novo Regime. Frente a esta situação, o dandy que, por
um lado, almejava distinguir-se da massa e que, por outro lado, se via cerceado
do vulgo, e, bem o sabemos, isso muitas vezes é feito por meio das suas vestes e
atitudes. Porém, tais vestes e tais atitudes não deveriam, em hipótese alguma, ser
demasiado exóticas, porque, como bem assinala Barthes, o dandy nunca poderá
Como vimos, o dandismo finissecular, que não é outro senão aquele que retoma as
matrizes baudelairianas, consiste não numa conduta exacerbada, mas sim numa
105Segundo Roland Barthes, “Durante séculos, houve tantos trajes quantas classes sociais.
Cada situação social tinha suas vestes, e não havia nenhum constrangimento em fazer do
modo de vestir um verdadeiro signo, pois a própria disparidade dos estados era considerada
natural. Assim, por um lado, o vestuário era submetido a um código inteiramente
convencional, mas, por outro lado, esse código remetia a uma ordem natural, ou melhor,
divina. Mudar de vestes era mudar ao mesmo tempo de ser e de classe, pois ambos se
confundiam” (2005, p.344).
profunda. E é exatamente esta simplicidade assumida não como cópia, mas como
(CL, p.353)
onde quer que passe, o próprio narrador ressalta o fato de não haver motivação
alguma para que isto aconteça, já que o traje da personagem é sempre negro, cor
direito, baixo, fechado”; por uns “cabelos não escandalosos, ainda que longos” e
por um chapéu estranho, mas que “muitos artistas usavam, quase idêntico”.
Acentuando o perfil deste dandy português, há como que uma duplicação da sua
extravagância outra, oximórica, que faz com que o dandy seja visto como um
pedante aos olhos de todos, muito especialmente aos olhos do seu próprio
discípulo.
para isto que o próprio Lúcio parece apontar, quando descreve uma das suas
considerava-o superior aos demais seres com quem convivera até então,
que, embora o poeta assinale que o amigo é uma alma rasgada, diga-se,
apartado da total comunhão espiritual desejada por Ricardo, que não deixa de
Lúcio num momento anterior, o poeta por vezes tinha atitudes que – numa via
respeito, que o escultor, antes mesmo que Lúcio travasse conhecimento com
Ricardo, o classificara como “uma natureza simples” (CL, p.357), por outras
palavras, como um lepidóptero. Como se pode ver, Lúcio pensa que todos os
daí a sua paradoxal admiração e repulsa pela roda de dandies que o cercava; daí
que em princípio os “odiasse”, invejando-os por não poder nem saber ser como
eles.
Quase artista, quase um dandy, Lúcio se põe, entre irritado e seduzido, como
duplicam especularmente ao longo da narrativa. Contudo, last but not least, ele
também acaba, ao final da sua lide, por tornar-se ele próprio um dandy,
106A esse respeito, vale lembrar o brilhante ensaio de Pedro Eiras, em que assinala a respeito
de A Confissão de Lúcio: “Se tudo é escala entre a terra burguesa e o céu inefável da arte, se a
condição intermédia é a mais dolorosa (porque o lepidóptero nem sequer sente a ânsia e o
artista já a venceu), resta a Lúcio fazer explodir, de dentro, a vida que o prende. Lúcio não
pode regressar à boçalidade lepidóptera, está demasiado acordado; nem atingir o céu
inefável, que transcende as palavras de que se serve; mas, dentro da inevitável escala
vertical, talvez possa dinamitar o degrau que ocupa” (2011, p.151).
memória da sua amada, repelia o amor das jovens que dele se acercavam,
passando a conviver apenas com alguns efebos da sua confiança. Conta uma
variante do mito que, após voltar, desolado, do Hades, Orfeu começara a formar
gerar a corrente filosófica que ficaria conhecida por orfismo; muitíssimos séculos
tornou-se também ele corolário de uma educação, como bem acentua Jorge de
inóspita, e o desejo de alcançar o avesso perpassa, não raro, vários dos seus
Contrarreforma.
p.27). Diante disso, comecei a indagar até que ponto essa negação à democracia e
ao senso comum não apontaria, avessamente, para uma outra espécie de fazer
nos ensina Marcos Siscar, “não há democracia sem soberba, sem o voo que
permite vislumbrar os vazios [...]; não há visão sobre o real, ainda que o mais
abjeto, que não envolva um passeio nas nuvens” (Ibidem, p.66, grifo do autor).
ouro absoluto é, como vimos, uma obsessão da sua literatura, deparando-se ele
realidade” (CF, p.432). Indícios de ouro parecem ser o seu máximo logro nessa
Império astral, / O mago sem condão, o Esfinge Gorda...” (UP, p.83). Noutros
errada – que Sá-Carneiro assinala ter sido a mira final da sua obra – como uma
educação às avessas herdada dos artistas finisseculares, que, por sua vez, se
entre literatura e artes plásticas, tentei mostrar o quanto o conceito de belo esteve,
da obra de Sá-Carneiro, o meu intuito final foi o de mostrar o quanto esses temas
Esfinge Gorda.
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