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TULLY, UM CONTO MATERNO

Por um século isso foi verdade.


E todo o Povo das mulheres, reconhecendo-se nessa
finada irmã, consagrou a pedra lisa de um túmulo
simbolicamente vazio, além de festas solenes, à memória
da Heroína desconhecida.
CLAUDE CAHUN

O filme poderia ser um conto. Não é extenso, não há muitos desdobramentos ou


grande complexidade narrativa. Exatamente por isso a mensagem parece ser clara. Seria
algo da ordem dos perigos patológicos que cercam uma maternidade quando não é bem
gerida? Seria um alerta denunciante dos riscos das mil idealizações em torno do que deve
ser uma mulher ou, por outro lado, um alerta condenatório de sua incapacidade de cumprir
a tarefa primordial, biológica, num mundo em que conquistaram tantas outras
possibilidades de vida? Uns diriam: ora, por sua própria culpa não são capazes, ninguém
as obrigou a quererem ser mais do que são. Outros diriam: vejam só, no que estamos
deixando as mulheres se transformarem, apiedemo-nos, tomemos consciência, ainda mais
profunda, sobre sua lastimável condição pós-moderna e a necessidade de ajudá-las.

Sem dúvida, o filme mostra uma sobrecarga em torno da maternidade, um excesso


de responsabilidades que competem a mulher, mãe que trabalha, cuida dos filhos e cuida
da casa. O pai, o principal provedor, compreensível com a situação da esposa-mãe-
trabalhadora, a princípio, não é o tipo de pai ausente, que não daria conta de obrigações
corriqueiras: ajudar os filhos na lição de casa, preparar a marmita junto, responsabilizar-
se por dar o melhor do ponto de vista estrutural. Um bom pai, nas palavras da mãe, que
está em ascensão no trabalho e, por isso mesmo, acaba não sendo responsabilizado por
outras tarefas. Uma vez que ambos estão conformados com seus papeis na família, nada
parece fora do normal. Tudo vai bem. São nesses momentos de aparente calmaria que se
gesta a transformação.

Marlo, a protagonista, é o protótipo da supermãe, embora todos de alguma forma


testemunhem o seu sofrimento diário. Rotina que escolhera, talvez. Seria uma escolha?
A exaustão do seu cotidiano leva-a a decidir, a tomar uma resolução – é bom já dizer que
será apenas em sua cabeça, como se ficará sabendo mais tarde – de contratar uma babá
noturna, sugestão de seu irmão bem-sucedido. Parecia-lhe uma ideia muito fora do
normal, fora do alcance de seus valores e orçamento, coisa de mãe burguesa desnaturada,
que não sabe se sacrificar em nome da prole. Entretanto, numa noite, a babá aparece.
Como no Teorema de Pasolini, ela afetará a vida da família inteira, mas principalmente a
de Marlo. A babá dá conta das tarefas que todo ideal de supermãe supõe: manter a casa
limpa e arrumada, cuidar bem de todos e de cada um, fazendo mimos aos filhos, agindo
de maneira cordial com às pessoas a sua volta, satisfazendo os adormecidos desejos
sexuais do casal.

Como todo conto, com suas estratégias, como rápidas peripécias ou finais
abruptos, os poucos dias que encerram o período de transformação guardam algumas
questões. De início, parecem uma defesa das benesses práticas de uma babá, contra os
quais Marlo relutava: é o triunfo da terceirização, um dos privilégios do mundo neoliberal,
no qual toda atividade vira um serviço e aqueles que podem pagá-lo, alcançam o luxo de
ascender a esses bolsões de descanso, ócio e liberdade. De outro modo, a sensibilidade
com a qual a mãe encara toda a transformação que lhe afeta, acolhendo a babá como se
fosse uma pessoa muito próxima, como se conhecessem-se profundamente, pode ser lida
como uma cumplicidade com o espírito da juventude na sociedade, enaltecendo sua
necessidade, o qual nos despertaria, uma vez mais, para o frescor das intensidades,
demonstrando como seria possível dar conta de coisas quando a velhice começasse a
falhar.

Logo, a cumplicidade sensível entre as duas transforma-se numa autoconsciência


aguda da protagonista: percebe-se que está tudo bem ser casada, encontrar-se numa rotina
estabelecida, cada um com suas funções. O que não estava bem era a crença de que
deveria dar conta de tudo. A babá lhe aviso disso. No pico da clarividência (e também de
esgotamento) sobre sua condição, Marlo encontra seu momento de maior ruptura:
abandona suas ocupações, deixando de lado suas responsabilidades por algumas horas.
Sai de carro para beber sozinha e curtir a vida. O distanciamento com a realidade cotidiana
é tamanha que pode ser mortal. Ela sofre um acidente de carro por dormir embriagada ao
volante.

O filme acaba por revelar que Marlo, na verdade, estava doente, passando por uma
espécie de surto devido ao extremo cansaço. Tully, seu nome do meio, concedido à babá
em meio a esse período alucinatório, era o efeito de uma condição de saúde mental
sofrível. Seu marido é aconselhado a cuidar melhor dela – ele mesmo, passando por sua
própria transformação, tomando consciência daquilo que estaria deixando de fazer para
ajudar. Ao final, percebe-se a mensagem evidente, ao menos, tal como a narrativa a
construiu: associada a uma alucinação e, logo, a uma doença, a consciência que ela toma
de si, com os efeitos decorrentes, revelam o grande mal. Foi preciso a enfermidade e a
experiência de quase morte para perceber que um modo de vida adoece as pessoas. O
surto e, agora, a aparente transformação, com o desbundar de suas potências vitais, eram
sinais de um corpo moribundo.

Há uma patologização acompanhada de uma psicologização dos acontecimentos.


A transformação/autoconsciência/ruptura como doença e como o mal, e a tomada de
consciência de todos após o incidente, como um bem. O que parece notável nisso tudo,
mas passa quase desapercebido, é isto: a potencialização de sua vida levada a cabo por
Marlo, menos do que sinal da fraqueza, era um corpo exaurindo-se em nome de uma
necessidade, em direção ao que era preciso: se transformar. A doença consistia no
agravamento do seu estado anterior de vida; a transformação, a loucura da intensidade,
seria mais como uma sabedoria salutar e ancestral. Uma intuição volitiva: inteligência
dos corpos, dos conflitos e das ignorâncias, de tudo aquilo que escapa ao foco e que nos
força em direção ao desconhecido. Seria algo como um instinto maternal em nome de sua
própria sobrevivência para o bem da prole?

Muito diferente de uma glorificação do intenso – e logo, do culto do jovem como


valor –, o período de transformação de Marlo consistiu numa percepção das intensidades
como artifícios, jogados estrategicamente para gerir os ciclos dos processos do viver. Ora
seria preciso desacelerar, ora ir com tudo, sem retorno possível. Essas seriam suas
escolhas. E ela decidiu intensificar, quando talvez fosse hora para desacelerar, quiçá.
Necessidade não mesurável apenas pela consciência, contudo. Às vezes é preciso perdê-
la como resultado de uma operação inexplicável, mas absolutamente imprescindível,
precisa, correta, vital. O mal como o maior bem possível – em relação ao modo como se
vive. Se ela estava doente, doente estavam todos.
O conto de Tully, desta maneira, não nos ensina nada: a mulher não almeja, hoje,
algo mais do que deve; não é a sociedade que precisa se apiedar de sua condição
hipertrofiada para ajudá-la. A alteridade como saúde, como experiência da falibilidade de
ser um eu, não se dá pela dialética do inconsciente, mas pela impostura de um corpo que
não respeita nossa cultura, nossas ciências, nossos mais íntimos valores e ideais (daí,
talvez, toda uma ruptura com a história másculo-dominante da psicanálise, com o
inconsciente como senhor do eu). A dor é indubitável, é preciso confiar nela. O corpo não
se poupa, delira – é pura usura e só. Nem culpa, nem piedade. Talvez desaprendamos algo
sobre nós mesmos, assim.

30-02 out. 2018.

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