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ROBERTO BOLAÑO ENTRE A ESCRITA, O ENGAJAMENTO E A

DESERÇÃO: acerca dos modos de endereçamento do pensamento ao presente

Somos livres como pássaros. Só que os pássaros não


são livres. Estamos tão comprometidos como
pássaros, e da mesma forma.
John Cage

Ser menos um espelho do que um relógio que avança.


Gilles Deleuze

O presente trabalho quer versar sobre o problema geral dos modos de


endereçamento do pensamento ao tempo presente. No interior desse problema e ao
longo da pesquisa – a ser levado a cabo num doutorado em curso na Faculdade de
Educação –, queremos apreender alguns gestos e deslocamentos teórico-metodológicos
perpetrados por algumas figuras da cena filosófico-literária do séc. XX. Neste trabalho,
nos propusemos a abordar alguns desses intercessores do pós-Guerra – principalmente
Roberto Bolaño e Gilles Deleuze – com o fito de explorar a seguinte indagação: quais
seriam as atuais condições de possibilidade de se cultivar e investir em um hipotético
gesto crítico, seja ele de cunho literário-artístico, seja ele do campo político, sem
incorrer em uma perspectiva ideológica, metafísica e representativa da
realidade/mundo?
Adotando um aporte metodológico por derivação e afetação das leituras feitas ao
longo do curso FLT5089 – próximo ao disléxico-poético de Bolaño (XXXX) ou a
maquinaria literária de expressão kafkiana-deleuziana-guattariana (DELEUZE;
GUATTARI, 2014) – faremos a leitura e análise dos textos com o fito de não fazê-los
do modo representativo, isto é, falar em nome dos outros e/ou espelhar e exemplificar,
ao seu modo, uma explicação cuja autoridade se apresente indelével. Para nós, será uma
questão de ler para escrever, tão somente; em vez de buscar expandir seu conhecimento
e se edificar moral e epistemologicamente, ler um texto como mola para a extra-
textualidade:
Não se trata de comentar o texto por meio de um método de
desconstrução, ou de um método de prática textual, ou de outros
métodos, trata-se de ver para que isto serve na prática extratextual que
prolonga o texto. (DELEUZE, 2004, p.363)

A intenção aqui é deixar-se ser afetado por aquilo que lê para pensar o seu
próprio problema. Sinto-me como um estranho no ninho, um exilado deste território do
comentário da crítica-literária. Essa sensação de desconforto, por sua vez, talvez possa
evidenciar as relações de poder nas quais estão envolvidos os exercícios de ler e
escrever – fundamentais para toda ato pedagógico.
Desta forma, não me interessará falar ostensivamente da relação entre a obra e o
autor, entre sua vida e seus escritos, ou do tema geral tanto do engajamento como de
outros no interior da obra ou da vida dos autores em questão (daqui, também, o ignorar
estratégico de boa parte da fortuna crítica sobre os autores e os temas). Bolaño e seus
escritos escolhidos me interessam mais pela sua superfície: pelo que eles falam, pelo
que eles podem fazer pensar/falar com respeito a temas mais ou menos correlatos e
corriqueiros aos seus e aos nossos, como a da militância na América Latina ou a
degeneração moral e política da esquerda ou mesmo das virtudes práticas mas pouco
convencionais da direita.
Deste modo, este texto é mais um ensaio na forma de uma excursão por alguns
temas do pensamento bolañescos (em textos mais ou menos aleatórios) a fim de acercar-
se de certo atitude ou ética do artista pós-Segunda Guerra, pós-Maio de 68, pós-Queda
do Muro de Berlim – todos acontecimentos histórico-políticos que viriam a crivar a
experiência ético-política de seus atores de modo muitas vezes dicotômicos, i.e., a
resistência/revolução vs. sistema/poder, engajados/militantes vs. alienados/acomodados,
vanguarda vs. tradição, bem vs. mal e assim por diante, onde cada lado classifica o
outro por oposição e, logo, como risco a sua sobrevivência.
Não me interessa mais pensar por essa correlação, a qual muitas vezes se
conveniou chamar de crítica (FELSKI, 2012), o modo do como deveria ser uma nova
configuração de nossas questões (certo apelo a uma promessa revolucionária); interessa-
me tentar destituir uma autoridade do pensado em favor de fervilhar o que se pensa
agora, levando adiante, avançando com o que já foi feito, o que já é feito, o que ainda
pode ser feito – principalmente, no campo que nos parece mais tocante a tal tema: o da
educação.
Almejando explicitar uma perspectiva outra de ler o seu presente – e por sua vez,
de fazer história e crítica –, encontramos em alguns autores, em diálogo com Bolãno,
pistas de tentativas de superação dessas questões e como plataformas outras de
engajamento e ação (seriam estes os termos ainda?) na sociedade por meio do
pensamento e da arte.
Na primeira parte texto, analisamos algumas falas públicas do escritor chileno
para aventar acerca de temas como a recusa da identidade, a perigosa atividade da
escrita e sua relação com certas demandas da sociedade. Na segunda parte, passamos a
cotejar tais posições de Bolaño em relação ao pensamento da crítica sob uma
perspectiva do que se conveniou chamar de pós-crítica, mas, de todo modo, para se
repensar as condições de possibilidade da crítica e de certo tipo de resposta a uma
exigência vital para, principalmente, no que compete ao pensamento educacional.
Enfim. Como tentativa de trazer à tona essa espécie de exigência ou de delírio,
gostaria de escrever para além de um tipo de crítica e de promessa -- ambos ancorados
no fundamento identitário e valor edificante, revolucionário, redentor, mesmo que
necessários, para a esconjuração da radicalidade do outro.

I. A escrita para além da identidade e aquém do engajamento: acerca de um


método-compromisso

Em sua última entrevista alguns meses antes de falecer, em 2003, Roberto


Bolaño foi conciso em suas respostas aos temas variados. Elencou diversos nomes
próprios, maioria escritores, entre amigos de geração e referências literárias. Falou de
sua relação com o que chamou de pátria. Ironizou sobre o que sente das críticas que
recebe, de seus inimigos – “¿por qué yo, por qué yo, que ningún mal les he hecho?”
(2006, s.p.). Citou rapidamente sobre seu aborrecimento com os discursos vazios da
esquerda. Comentou sobre o inferno como o espelho desassossegado de “nuestras
frustraciones y de nuestra infame interpretación de la libertad y de nuestros deseos”
(s.p.) e o paraíso como lugar onde se usa e se desgastam as coisas, onde nada perdura e
que, ao final, não importa.
Tendo em vista serem suas últimas palavras públicas, os tais temas e os modos
como foram respondidos parecem-nos pouco fortuitos. O tema de sua formação
(literária), de sua relação com a identidade e com as questões da sociedade ao seu redor
parecem nos dizer algo sobre uma atitude-limite de Bolaño com relação os problemas e
aos regimes de verdade que cerceiam o papel do escritor em sua época.
Mesmo tendo nascido no Chile dos 1950, viajado para o México para escapar à
ditadura de Pinochet e depois vivido seus últimos anos em uma pequena e idílica cidade
praiana espanhola, pode-se perceber (e é sabido) que a literatura e a vida de Bolaño não
foram permeadas por algum tipo de ativismo ou militância. Das leituras que fizemos,
aqui e ali encontramos referências ao tema da militância em seus escritos, mas não na
forma de uma tomada de partido em torno de uma causa, seja ela social, política ou
moral. Quase nunca na forma de um possível engajamento, tal como o entendeu Sartre,
por exemplo, como aquela atitude com a qual se fala/escreve de modo não passivo, não
contemplativo ou testemunhal, com a nítida intenção de intervir e modificar diretamente
a realidade à sua volta (SARTRE, 2004).
No entanto, é uma de suas respostas nessa mesma entrevista, concernente às
críticas que recebeu por uma obra específica, que chama-nos a atenção para a relação
que ele pôde estabelecer entre sua escrita e os outros (críticos, sociedade etc.): “Las
malas críticas que ha recibido son mis medallas ganadas en combate, no en escaramuzas
con fuego simulado.” (s.p.). Poderíamos extrair daí a relação possível que Bolãno
estabelece entre sua atividade – sua vida – e o mundo como sendo da ordem do
combate? E que tipo de combate seria esse – contra quem, sob quais regras, por meio de
quais gestos?
A ideia de combate aqui nos faz relembrar o debate que se desenvolveu ao longo
da segunda metade do século XX entre literatura engajada e um conceito um pouco
mais antigo, que é o da arte pela arte. Se por um lado, a primeira vertente fortaleceu-se
sob a sombra das atrocidades acometidas pelos regimes militares nazistas, socialistas e
latino-americanos e a necessidade de manter viva a memória desses eventos por meio de
narrativas para que não se repetissem, a segunda esteve ao seu lado como ode à
independência da arte e às suas preocupações estritamente estéticas e individualistas.
Bolaño parece passar ao largo de ambas as vertentes, recusando a primeira e
ignorando estrategicamente a segunda. O seu desencanto pela esquerda, muitas vezes
patrona das narrativas memoriais e engajadas, também se voltou para a concepção da
arte como tarefa unicamente estilística, do bem-estar e da edificação de si e do outro.
Seu entendimento do ethos do escritor passaria, então, pela acepção do guerreiro:
Em mi cocina literária ideal vive um guerrero, al que algunas veces
(veces sin cuerpo ni sombra) llaman escritor. Este guerrero está
siempre luchando. Sabe que al final, haga lo que haga, será derrotado.
Sin embargo recorre la cocina literaria, que es de cemento, y se
enfrenta a su oponente sin dar ni pedir cuartel.” (BOLAÑO apud
RODRÍGUEZ, 2015, p.36)

Guerreiro em combate perpétuo no interior de um espaço cujo final é sempre a derrota.


Concepção pessimista de combate, mas relutante por meio do esforço e da coragem de
enfrenta-la. Mas, ainda, o que combatia de forma que sempre sairia derrotado?
Na mesma derradeira entrevista, Bolaño deixa claro que não se importava com o
modo como os outros leem sua obra, nem com os efeitos de sua escrita nos seus leitores
– pensando pouquíssimo neles. O que lhe interessava mesmo era a leitura de obras
alheias, de seu atravessamento por outros autores. Observa-se uma espécie de gesto
constante de esquiva frente às identidades forjadas pelo status quo em torno do papel do
escritor. Passando ao largo da responsabilidade pelos seus escritos nos seus leitores e
esnobando as demandas de retratação de seus detratores, o combate a certo regime
identitário enfrenta até as noções de nacionalismo e patriotismo que lhe são oferecidas
quando questionado sobre suas origens. “Soy latinoamericano” (2006, s.p.), responde,
afirmando ser sua única pátria seus filhos e alguns instantes de ruas, rostos e livros
guardados intimamente e que algum dia serão esquecidos, “que es lo mejor que uno
puede hacer con la patria.” (s.p.).
Essa espécie de esquecimento da pátria vai ao encontro das suas reflexões em
Literatura e exílio (s.d.), discurso proferido em Viena em abril de 2000. Inicialmente, o
escritor chileno nega qualquer relação que possa haver entre exílio e literatura; todavia,
gostaria de apresentar certa noção de exílio como “atitude perante a vida” (BOLAÑO,
p.1). Segundo Bolaño, tal relação não estaria pautada por uma nostalgia ou por um
afastamento obrigatório da pátria amada, como muitos escritores de sua geração
preconizaram. Se entendermos o exílio como limbo, terra de ninguém ou, mais
especificamente, tierra de nadie como terra sem nada, nem homens nem nada, a relação
entre literatura e exílio seria a própria condição para uma escrita estranha e
desentranhada da sua mais profunda e ocasional identidade: a terra de onde nasceu.
Claro está que muitos outros escritores conheceram a sua real pátria muito
distante da terra onde nasceram e encontraram na língua estrangeira o lugar de seu
renascimento (me vem à mente, por exemplo, a relação que o filósofo romeno Emil
Cioran estabeleceu com a língua francesa). Mas a questão para Bolaño parece ser a de
desvincular-se de qualquer identificação ou fixação material e, por isso mesmo,
indiscutível. Quando fala de sua pátria como sua escrita ou sua biblioteca no Discurso
de Caracas (1999), fala mais da imaterialidade do exercício do que da letra no papel ou
do livro na estante. Apesar escrever e ler serem práticas que nos mantém afastados, as
vezes, da loucura e ou do mais terrível tédio niilista, o sentido de pátria como local onde
o ser humano se sente em casa, para Bolaño, seria o próprio exercício do pensamento e
a reconstrução perpétua da lógica e da retórica narrativa de si mesmo e dos outros.
Literatura e exílio, como combate à identidade nacionalista – causa de muitos
confrontos e violências em escalas local mundial –, faria da vida um exercício perpétuo
de (re)escritura (forma de viver constantemente rabiscada, esboçada, retraçada), de
errância pela terra de ninguém.
Literatura e exílio seriam, então, duas faces da mesma moeda: quando se escreve
“ainda que não se saia da própria casa o exílio e o desterro se fazem presentes desde o
primeiro momento” (BOLAÑO, s.d., p.3). Ou de outro modo, com Deleuze, “ser como
um estrangeiro em sua própria língua” (1998, p.12). A escrita nos joga para fora de
nossa língua, de nossa própria casa e seu processo de desterro torna-se a única estadia
habitável, mesmo que temporariamente. Mais do que um lugar, a escrita torna-se um
exercício de si sobre si, no qual leitura, a memória e a imaginação de escritor são
trabalhadas de forma a acolhê-lo, a dar-lhe uma paragem para seu interminável
combate.
Nesse sentido é que a linguagem, para além da lógica narrativa linear e coerente,
serve para Bolaño. Nos poemas que elenca no final do seu discurso em Viena para
traçar certa relação entre a não importância das fronteiras, nacionalidades e identidades
e a importância, sim, de vidas que se arriscam e se propõe viver em qualquer lugar, o de
Nicanor Parra parece ser aquele que mais consterna os regimes identitários:

Os quatro grandes poetas do Chile


São três:
Alonso de Ercilla e Rubén Darío

Em resposta a fastidiosa pergunta pela grandeza de uma obra por meio da


identidade, Nicanor embaralha tudo. Anuncia quatro, afirma três e escolhe apenas dois.
Ambos não são poetas nem nasceram no Chile. Contudo, viveram intensamente algo no
país e escreveram sobre o país numa língua comum. O poema de Parra, segundo
Bolaño, é como “um artefato explosivo posto ali para que nós chilenos abramos os
olhos e deixemos de bobagens, é um poema que indaga na quarta dimensão”. Bobagens
com respeito à origem e à identidade, bobagens com respeito a necessidade de
definições sobre o que somos, para onde vamos, de onde viemos. É uma piada ao
mesmo tempo em que é uma declaração de direitos humanos, completa Bolaño, de
conceder dignidade e respeito a uma vida sem qualquer restrição a sua origem ou
afiliação geográfica, política, social etc.
Dizendo não se importar com o que pensam ou sentem do que faz, e se
importando ainda menos pelas fronteiras geopolíticas impostas pelo homem, Bolaño
pouco a pouco vai embaralhando e atravessando as lógicas de pertencimento e exclusão,
de posição e oposição – lógicas que inspiram engajamentos militantes e carnificinas
amedrontadas. Ele encontra nessas oposições traçadas pelos discursos e interpretações
históricas, elos inusitados, fulgurações de união, tentativas de respostas variadas cujas
demandas, por sua vez, são sempre as mesmas: quem você é? A quem você serve? Por
que você faz isso?
Passamos a reconhecer, então, em outro discurso público de Bolaño o que
nomeou como um “método semiótico bastardo o grafológico o metasintáctico o
fonemático” (1999, p.41). Ou de todo modo, um método disléxico-poético,
possivelmente originado de sua alegada enfermidade cognitiva, mas que tampouco lhe
garante qualquer essencialidade ou identificação com alguma vertente literária, teórica,
metodológica ou política.
Mais afeito a lógica patafísica do que metafísica, tal método é uma solução
imaginária que exige uma solução imaginária. Constatar tal método é a solução
imaginária para a solução imaginária de escrever tal como se escreve: a abundância de
referências a nomes próprios, de forma quase pessoal e íntima, a pessoas que conheceu,
que talvez conhece ou que nunca existiu, levando-nos para fora do texto a um contexto a
ser totalmente erigido; ao mesmo tempo, total desidentificação com um solo fixo de
onde emana seus gestos, seja ele geográfico, moral ou político. Viagem para longe de si
sem sair de si mesmo.
Esse método que lhe permite tal viagem sem sair do lugar, contudo, evidencia
certa qualidade da escrita que não se confunde com o bem escrever bem ou
maravilhosamente bem. Mais uma vez, não tem a ver com a conquista de um estilo a ser
reconhecido como bom estilo ou bela escrita. A qualidade da escrita que Bolaño
reclama é o que sempre tem sido, a saber, meter-se a cabeça na escuridão, saltar sobre o
vazio, ter consciência de que a atividade da escrita é perigosa:
Correr por el borde del precipicio: a un lado el abismo sin fondo
y al otro lado las caras que uno quiere, las sonrientes caras que
uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida. Y aceptar esa
evidencia aunque a veces nos pese más que la losa que cubre los
restos de todos los escritores muertos. La literatura, como diría
una folclórica andaluza, es un peligro. (p.42)

A literatura – a escrita, como gostaríamos de pensar – faz-nos percorrer a o


ambíguo limite da vida: de um lado, sua inevitabilidade, de outro, sua brevidade. Não
mais um limite moral, entre opostos, como o bem e o mal; mas um limite, digamos,
ontológico, onde, de um lado, haveria o inevitável e o inadiável que é o viver, se
entregar ao viver até o limite da morte, “el abismo sin fondo”; do outro lado, a doce
ignorância sobre a brevidade da vida, na forma de verdades, convicções, identidades,
valores transitórios e temporários... aquilo que somos, desejamos e acreditamos ser.
Por isso a literatura, a poesia, enfim, a escrita seria como uma carta de amor ou
de despedida de sua própria geração, no caso de Bolãno, daquela que em algum
momento escolheu viver a vida militante, na defesa de um modo de vida, entregando o
que tinham, sua juventude inteira a uma “causa que creímos la más generosa de las
causas del mundo y que en cierta forma lo era, pero que en la realidad no lo era.” E não
era e era ao mesmo tempo exatamente pelas vicissitudes da vida, pela transitoriedade de
nossos regimes de verdade e de valores.
De certa maneira, a escolha pela militância, pelo engajamento restrito a uma
causa, é a escolha pelo menos adverso, pelo menos perigoso, mesmo que fosse a escolha
de lutar. É a escolha por uma parte da vida, em defesa dessa mesma parte. A atitude
limite e mais perigosa, no entanto, seria a de se entregar não necessariamente a uma
causa, mas a atravessar as infinitas possibilidades de modos de vida, mesmo que breves,
e de alguma maneira comprometer-se com a vida de uma forma única, íntegra e sem
concessões. Tal comprometimento, contudo, não é bem uma escolha, é efeito do
desencanto com as polarizações infinitas promulgadas para uma solução definitiva para
o bem viver.
Desencanto e comprometimento com narrar a vida desses jovens esquecidos,
outrora louvados. É passar ao largo do júbilo e da exaltação social para enfim ver
perecer todos seus anseios. Não é covardia, mas o combate perpétuo na tentativa não de
sair vitorioso, mas de rir de si mesmo. No limite, a vida não quer você interfira, mude,
melhore, que você a cultive, que você a aceite ou não. A vida exige somente o
compromisso com ela mesma, com toda sua equivocidade e sua periculosidade.
Sua recusa (e de seus personagens, andarilhos, viajantes) a uma identidade
patriótica (geográfica, política) ou artística (escolar, procedimental) parece fazer
retornar sem cessar, em imprevisíveis e inadvertidas situações, a exigência de uma
escrita que chora e ri com todas as adversidades e dramas daqueles que acreditam
piamente e se levam a sério demais. Parece-nos que nesse mesmo golpe, de recusa dos
identitarismos e de comprometimento a cada instante, Bolaño logra burlar a crítica-
literária de sua obra que quer ver algo além do que escreve, abstendo-se também de
produzir escritos críticos.
II. A educação para além da suspeita e aquém da crítica: maquinarias outras para
o trabalho de si sobre si

Se o problema da literatura e da arte se apresentava para a geração de Bolaños


como a questão de ser ou não engajado, em tomar parte numa milícia em nome de uma
causa e de uma mudança, tal problema encontra seu correlato no campo das ciências
humanas na forma do eu se conveniou chamar de atitude crítica.
Nos anos que seguem pós-Guerra, essa geração pós-utópica se viu
constantemente enredada na necessidade de sempre estar um passo atrás das promessas
e esperanças que lhe eram oferecidas. Atitude de desconfiança e suspeita que se
espraiou como a grande verdade da análise científica (LATOUR, 2004).
No interior dessa postura, a crítica foi exaltada como o único caminho para a
emancipação e a liberdade dos seres humanos, para além do mero engajamento. Nesse
sentido, apesar de ela ter sido tomada como principal instrumento de resistência
daqueles lutam, militam e se engajam em questões pertinentes a sua vida, sua própria
autorreflexividade mantê-la-ia ocupada com a suspeita de si mesma, constantemente
envergonhada do seu possível sucesso, esforçando-se para detectar sinais de sua própria
cumplicidade com o status quo. Algo que beiraria a paranoia.
Assim, o problema moderno e contemporâneo teria se tornado, segundo a
pesquisadora Rita Felski (2012), entre ser crítico ou não ser crítico, donde no primeiro
haveria a garantia de estar sempre do lado certo, isto é, o da busca da verdade e da
justiça, universais humanistas; no segundo, por sua vez, tudo que haveria de vergonhoso
e alienante numa existência servil.
Essa condição da crítica como superioridade analítica e impiedade para consigo
mesmo fez dela um modus operandi cujas características poderiam ser elencadas,
segundo Felski, da seguinte maneira:
 A crítica seria negativa, antagonista, preocupada em encontrar as falhas e
contradições de seu oponente, policiando e judicializando seus atos falhos e
suas incoerências. Mesmo na intenção de problematizar, levantando as
condições de seu aparecimento, estaria imputada o ato de julgar, desde que
crer-se capaz de evidenciar algo que não seria óbvio para outrem é atribuir
para si uma superioridade analítica/intelectual.
 A crítica também seria secundária, simbiótica, dependente de um objeto de
um modo não servil. Por vir depois de seu objeto de análise, ela estaria
também como em superioridade histórica, conotando ao tempo a
característica de progressivo, estando sempre em vantagem em relação
àquilo que quer analisar.
 A crítica seria uma atividade relegada ao mundo intelectual, preocupada em
estabelecer grandes panoramas e esquemas de análise pouco interessadas na
resolução de problemas locais com respostas rápidas. Autoconsciente de seus
limites, ela tenderia a sempre triunfar sobre o senso comum, mesmo quando
seus desdobramentos se tornassem status quo, ganhando ar de superioridade
sobre tudo aquilo que fosse ordinário.
 A crítica, historicamente, também estaria do lado dos oprimidos, à margem
do poder e da injustiça. Pensamento engajado, mas sempre questionador, ela
convocaria à ação, mas guardaria para si a possibilidade de indagar tanto o
opressor quanto o oprimido. Seu comprometimento, nesse sentido, estaria
mais em relação ao questionamento do que à causa político-social a qual
aliou-se.
 Por fim, a crítica não toleraria rivais, crendo-se como única equipada para
diagnosticar os perigos e as armadilhas da representação. Quem não se
engajar em sua prática, torna-se está fadado a heteronomia. Sua aura
exclusivista frustra qualquer outra tentativa de análise, caindo na contradição
de ser uma ortodoxia antiortodoxa. Assim, o que restaria a crítica
constantemente se intensificar, nunca sendo suficiente, sempre em falta
consigo mesma.

A título de tentar salvar o cerne do pensamento crítico em detrimento das


características que a encerram em si mesma, Felski busca na troca de vocabulário o
antídoto para a ortodoxia da crítica. Assim, uma hermenêutica da suspeita, tal como
proposta pelo pensador Paul Ricoeur, guardaria consigo uma postura de sabedoria,
cautela, suspeita e vigilância.
Ora, nessa tentativa de salvaguardar a atitude crítica, a pesquisadora mantém
ainda o próprio cerne de todo mecanismo dos modos de existência atuais regidos pela
noção de identidade: o sujeito cognoscente, autorreflexivo e julgador que Bolaño, por
sua vez, abre mão de exaltar e se vangloriar.
Engajamento e crítica, assim, parecem compor, desde o início do século XX,
uma mesma postura ético-política que, por um lado, demandaria constante análise e
busca da verdade e, por outro, a necessidade de libertar os seres humanos, entregar-lhes
um mundo mais livre, revolucionar sua realidade subjugada por poucos – tudo isso sob
o signo do sujeito que conhece a si mesmo e, por isso, é capaz de mudar a sua realidade.
O esgotamento das teorias críticas, bem como o sujeito moderno como
pressuposto, por outra perspectiva, parecem ser também o principal alvo de indagação
por parte do pensador da educação Tomaz Tadeu da Silva, professor da UFRGS.
Em uma entrevista concedida em 2002, Silva anuncia um problema semelhante
ao de Felski com relação à crítica: “Passado o período de agitação, o novo paradigma se
estabelece e ao virar uma nova ortodoxia, se acomoda” (p.7). O gesto crítico, ao ser
mecanicamente repetido, na forma de mantra redentor, sem o vigor e a criatividade do
momento de confronto e invenção, apenas contribuem para alavancar e sistematizar
ainda mais o status quo.
Em contraposição a análise de Felski, Tadeu da Silva parece identificar no
mecanismo da teoria crítica um chão, um fundamento, a partir do qual, é possível que
ela questione o senso comum. Para o pensador brasileiro, é na existência desse
pressuposto, desse centro que é o sujeito que a crítica alcança sua validade quase
hegemônica.
É nesse sentido também que Michel Foucault dirá que a crítica, apesar de ser
arte da inservidão voluntária (2000), é o componente indispensável nas modalidades de
governamento modernas. Governo e crítica seriam, desta feita, movimentos
complementares e adversários ao mesmo tempo, de retroalimentação e distanciamento,
de sofisticação e falhanço, de levar adiante um ininterrupto jogo de governo de si e dos
outros. Não bastaria a troca do vocabulário, desde que se estaria assegurando o
pressuposto de um sujeito em plena formação, rumo a um processo sem fim de
esclarecimento.
A crítica, desse modo, não garantiria nenhum privilégio sobre o status quo ou o
senso comum. Muito pelo contrário: é por meio da crítica que o poder se sofistica. O
culto moderno a crítica a tornaria, por sua vez, permissível a postura de uma polícia
cultural (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015), assegurada pela vontade pública em torno
da tríade de valores suspeita-vigilância-progresso.
A história ou lógica dos opostos que rege a crítica é a própria lógica da
identidade. Acreditou-se por muito tempo que em oposição à vida, ao bem, ao mais
desejado e valoroso, estaria o deplorável, o mau, a morte. Em oposição ao amigo, o
inimigo. Mas amigo e inimigo estão na mesma barca do temporário, assim como o
amor, a saúde, o bem-estar e todos os demais valores mundanos. Nesse caso, não seria
rechaça-los. Mas tampouco abraça-los de modo a sacrificar sua vida em seu nome. O
comprometimento apresentado pelo método bolañesco estaria mais em acompanhar e
narrar essas vicissitudes, como vimos, em tom amoroso e de despedida.
A pergunta por evitar o caminho da crítica, talvez, não faça sentido aqui. A
lógica segundo a qual uma atividade paralela e guardando certa distância das práticas e
aparatos culturais, observaria e pensaria seus limites, calcularia suas direções e seus
desvios de projeto, fabularia suas projeções futuras não adentra o campo da literatura de
Bolaño, a não ser, como piada e como aceleração afirmativa dos desdobramentos de tal
postura.
Acompanhando a análise de Deleuze sobre Kafka (2014), a máquina literária de
expressão do escritor austríaco (que para Bolaño, seria a mais esclarecedora, terrível e
também a mais humilde do século XX) não faria às vezes de um espelho (de si ou da
sociedade) no qual se poderiam observar, com cálculo e cautela, as incongruências, as
falhas e os limites de um objeto com uma finalidade interventora – tal como faz a crítica
socialmente engajado.
Antes, sua escrita prolonga a acelera as disputas, as questões, os regimes de
verdade e seus efeitos no interior de uma narrativa que não é mais metáfora da
sociedade, mas espaço forjado de experimentação de suas possibilidades. É poder falar,
ainda, sobre temas mesmo não estando engajado ou sendo um expert para tal – falar
como um passarinho, diria Deleuze em outra ocasião (2013).
Em alguns dos seus principais escritos públicos, Bolaño não faz crítica. Não se
engaja em alguma causa a favor de alguma mudança, nem numa contra-leitura de
alguma realidade. Isso não o faz, contudo, alheio ou ausente às coisas que o atravessam.
No discurso para a entrega do prêmio (1999), dialoga com o patrono. No discurso sobre
o exílio, em Viena, afirma que o banimento de certo poeta da Áustria não interferiu em
nada sua vida, que as instâncias reguladoras pouco importam para a experiência de uma
vida que não valoriza a identidade. Discursos arriscados, mas cuja belicosidade efetiva-
se menos por uma afronta à moral do que por uma embaralhação dos sentidos.
Parafraseando Deleuze ainda sobre Kafka, é pela potência de sua não crítica que torna
sua escrita tão perigosa – principalmente para si. A crítica é, enfim, inútil e a revolução
desnecessária.

***

A literatura, ou melhor, a escrita não como lazer ou direito, como garantia de


uma forma de educação de humanização ofertada por uma inteligência empenhada,
como preconizou Antônio Cândido. Entregar-se a prática escritural seria mais responder
a um chamado feito a todos, mas que poucos o contestariam. Um chamado ao combate
inevitável, sem nunca haver possibilidade de vitória – isto é, não chegaremos a lugar
algum antes pensado. Exigência como que universal de expressão que se torna quase
insuportável recusá-la na sua forma mais fundamental e mais sofrida: não é o preferir
não de Bartleby, muito menos o niilismo estético muitas vezes cooptado pelos
fanatismos econômico-sociais momentâneos. Recusar a militância doutrinária de tantos
outros não seria incorrer também em nenhuma deserção da vida pública e política.
Afinal de contas, o que está em questão é menos um ethos, com suas disposições
afetivas e moradas valorativas, e mais um gesto: o de dispersar com sua insistência sem
importância, o de questionar com o seu ladainha silenciosa (de sentido). Não há
interesses pragmáticos imediatos, nenhuma intenção de explicação, de conversão ou
mesmo de intervenção e proposição.
Em vez de escritor, Bolaño gostaria de ser detetive. “Un tira de homicidios,
alguien que puede volver solo, de noche, a la escena del crimen, y no asustarse de los
fantasmas” (2006). Tal escritor-investigador não estaria interessado nos valores, nas
atitudes e nas possíveis exemplaridades para modos de vida virtuais. Ele não
compreende o arquivo do mundo – a experiência compartilhada – como passíveis de
serem apreendidas e compreendidas a fim de serem transmitidas. Não há edificação
possível na leitura e, por sua vez, na escrita. Outra vez, seria o caso mesmo de entender
tal exercício de leitura e escrita – base de toda prática pedagógica moderna – como
processo de reconfiguração e desfiguração constante, entre o que se forma
invariavelmente e pelo que se é afetado.
Por isso que para além da suspeita e aquém da crítica, a experiência intensiva de
escrever – de escrever porque responde a única exigência incontornável – pode nos
relegar uma das experiências mais belas e terríveis de formação: a beleza da estilização
sem fim de uma vida e o horror, sempre a espreita, da perda total da razão, da
identidade, do sentido da vida mesma.

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