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Jung e Astrologia

A astrologia e de modo geral as mânticas as assim chamadas "artes divinatórias",


aquelas que praticam a "divinatio" ou adivinhação sofreram uma mudança decisiva em
nosso século.
Basta ler algum manual de jogo divinatório do século 19, como o do Grande Jogo de
Mlle. Lenormand, que tirava a sorte para a imperatriz Eugênia, mulher de Napoleão 3º,
e depois compará-lo ao que diz um texto de nossos dias, como por exemplo os livros de
Alfred Douglas sobre o tarô ou o ''I Ching'': a diferença é brutal. Predições que
falavam de fatos, ou mesmo de fados, prometendo sorte ou afirmando desgraças foram
substituídas por toda uma arte quase psicológica, que usa Jung para tratar da pessoa e
não mais do que lhe sucede.
No caso da astrologia, a mudança se acentua devido ao surgimento dos assim
chamados “planetas modernos" (porque descobertos nos últimos dois séculos) ou
"secretos" (porque invisíveis a olho nu): Urano, Plutão e Netuno. Com eles, os sete
astros (impropriamente chamados "planetas", já que entre eles estão o Sol e a Lua),
que durante quase 3.000 anos haviam constituído a referência astrológica central,
passam a dez. Serão, aliás, associados a suas datas de descoberta.
Urano, identificado perto da Revolução Francesa, será o revolucionário. O caso de
Plutão é ainda mais interessante: uma de suas representações gráficas (as letras PL)
pode tanto remeter ao nome do deus greco-romano como às iniciais de seu descobridor,
Percy Lowell.
E além disso há o rumor de que ele deveria o nome (que evoca o deus dos infernos) a
uma sugestão da filhinha de
Lowell: ela teria proposto o nome Pluto (que em latim ou inglês é Plutão), pensando no
cão que Walt Disney havia criado para Mickey.
Será preciso acrescentar que o decisivo não é tanto a descoberta de um astro, mas a
decisão de incorporá-lo como referência astrológica? São inúmeros os corpos celestes
e, se vale a tese de que há "influência" (termo, aliás, que devemos à astrologia) deles
sobre nosso modo de ser ou de agir, ou pelo menos de que há correspondência entre
eles e nós, o importante será recortar quais astros são realmente significativos e quais
podem ser desconsiderados.
O fato é que é recente a assimilação na astrologia desses três "novos" astros: com eles
se quer entender movimentos de longa duração, a tal ponto que para uma geração
inteira o impacto de um dos planetas lentos (outro nome dado para eles) será
praticamente igual, já que Plutão pode demorar mais de 20 anos numa única casa
astral. A título de comparação, lembre-se que a Lua
fica de dois a três dias em cada casa. A diferença de velocidade no trânsito da Lua e de
Plutão chega assim à ordem de 1 para mais de 3.000.
Se vale o argumento de que o importante não é a descoberta (uma espécie de
gradativa revelação de uma supra-realidade astral), mas a recepção, a incorporação na
doutrina astrológica de novos (ou velhos) corpos celestes, então toda mudança na
astrologia corresponderá em certa medida a mudanças culturais, sociais. E este é o
caso!
Desde os fins do século 18 se difunde uma consciência cada vez maior de nossa
historicidade, isto é, da idéia de que o homem não é sempre o mesmo, mas se modifica
no
correr do tempo. E nosso século, talvez mais que qualquer outro, acrescenta a essa
descoberta iluminista a ansiedade ante a mudança das gerações. A consciência de que
tudo muda, de uma geração para outra, vem bem a calhar com a tese da moderna
astrologia, segundo a qual os astros lentos definem tendências de longo prazo.
Podemos até associar esse ritmo mais lento das análises astrológicas a um interesse
maior, como o dos historiadores formados na Escola dos Annales, pela longa duração e
pelas mentalidades.

O papel de Jung

Mas quem teve realmente maior impacto na moderna mântica só pode ter sido Jung.
Desconheço, aliás, uma bibliografia que tente uma história das artes divinatórias;
infelizmente, ou temos pesquisas feitas pelos próprios envolvidos, que entendem seu
trabalho como descoberta científica e por isso descartam qualquer perspectiva histórica
(às vezes nem chegam a entender uma questão
que se coloque a esse respeito), ou textos de crítica, geralmente inspirados num certo
positivismo que recende a século 19. Aqui gostaria de levantar algumas pistas para
um trabalho de outro perfil.
(Lembremos entre parênteses: Marialice Foracchi, uma professora de sociologia que
morreu jovem, causou irritação no fim dos anos 60 ao tratar, na imprensa, do "fenômeno
Roberto Carlos".
Sei que propor um estudo das mânticas também incomoda tanto a quem acredita nelas
e por isso não aceita uma leitura que inevitavelmente as relativiza, quanto a um
público acadêmico, que às vezes não consegue distinguir o estudo da adesão.)
O ponto de partida é a doutrina junguiana da sincronicidade. Significa que haverá uma
correspondência entre o que sucede em nós e o que nos sucede, o que sucede fora de
nós.
Evidentemente, essa tese rompe com a convicção freudiana do não-sentido. Se Freud
nos faz remontar ao não-sentido primordial (o próprio complexo de Édipo carece de um
sentido que o transcenda: aparece como um dado insuportável), Jung procura sentido.
É por aí que seu
pensamento se faz religioso, já que um dos traços essenciais de toda religião consiste
em tornar aceitável a dor, a frustração, enquanto experiências inescapáveis do
estar-neste-mundo, remetendo-as a um crescimento interno, tornando-as, como bem
mostra o ''Livro de Jó'', testes, provações. Um sentido, e isso quer dizer um sentido
construtivo, assim surge como fio condutor de nossas vidas.
Daí à sincronicidade é só um passo. Se há sentido em minhas experiências de vida; se
minha relação com o "fora" não é da ordem do fortuito como seria para Freud e já para
Aristóteles, mas de um misto de desafio e de apoio, então o que me ocorre tem
paralelos fora de mim. A aceitação dos opostos, em mim, tem a ver com a aceitação dos
conflitos, com o casamento cósmico, com o que está fora de mim. (Não sou especialista
em Jung, Freud ou nas mânticas; por isso alguns termos serão usados fora de seu
sentido corporativo; mas respondo pelas teses que aqui sustento.) Em suma, será
possível articular as várias séries de acontecimentos: minha psique poderá convergir
tanto com a série da realidade que está obviamente fora de mim, como com a dos jogos
divinatórios de cuja natureza pouco sabemos, mas cujos efeitos constatamos.
A astrologia discutiu por muito tempo o que causaria essa suposta influência dos astros
sobre as criaturas da Terra (e Shakespeare contestou tal crença, em especial
no "Rei Lear"). Mas agora o que conta são os resultados. Constata-se que uma leitura
astrológica dá certo. Sua frequência de acerto é tal que, sem podermos saber a que se
deve, supomos que ocorra uma representação externa a nós do que ocorre dentro de
nós. As mânticas passam a ser configurações materiais do inconsciente, seus mapas.
Quer dizer que o adivinho (ou o astrólogo, que repugna a se confundir com os
mânticos, a quem considera meio bruxos, enquanto entende sua prática como ciência)
apenas explicita o que queremos ou dizemos no inconsciente? Não é bem assim.
Acontece que o inconsciente junguiano, ao contrário do freudiano, é luminoso: ele
estabelece um engate forte com o mundo externo. Ele sabe o que sucedeu e o que
sucederá. É, ou anuncia, o divino em nós.
Vemos assim que, se os divinatórios usarão Jung, é porque antes disso ele se valeu da
religião. Pelo inconsciente coletivo e pelos arquétipos, pode Jung supor um elo com o
mundo que o id freudiano jamais estabeleceria.
Assim temos uma leitura divinatória que não precisa mais especular sobre a realidade
da relação entre consulente e objetos materiais (astros, conchas, cartas) que dão base
visível à leitura. Ou, pelo menos, essa especulação, quando ocorre, é irrelevante. O que
se fundamenta é menos a
realidade da relação do que a legitimidade da leitura. E essa se baseia aqui na dívida
de Jung com as velhas religiões é nítida numa teoria renovada das correspondências, a
que ele chama de "sincronicidade".
O fim do fatalismo Finalmente, e aqui está o essencial, o enfoque muda por completo. A
velha mântica tendia ao
fatalismo: lidava com o destino. Expunha aspectos faustos e, outros, nefastos. Em
alguns casos, o destino podia ser inescapável (Carmen vendo sempre, nas cartas, a
inevitável morte violenta); podia também permitir cuidados, um certo livre-arbítrio. Mas a
relação do consulente com o mundo era de exterioridade. Tudo o que ele poderia fazer
seria lidar com sua conduta, entendida
esta de maneira mecânica. Ora, desde que ocorreu esse engate entre parte da
psicologia junguiana e as mânticas, a ruptura dentro/fora é questionada. O que o
divinatório revela é a psique mais profunda do indivíduo mas repetimos: a psique não é
rigorosamente individual, está engatada no cosmos, e é exatamente isso o que legitima
ou faz funcionar os procedimentos de leitura.
Com isso, é claro que a leitura deixa de ser dos acontecimentos, dos fatos, daquilo que
está fora do consulente. Agora trata de sua pessoa psíquica (em sentido renovado,
porque re-ligado ao mundo). Idéias como a de destino ou de aspectos nefastos perdem
por completo o sentido, ainda mais porque o que confere, justamente, sentido à leitura é
uma convicção do possível crescimento do ser humano pelos desafios que enfrenta na
vida. Isso fica visível pelo papel novo atribuído a
Saturno.
Se havia um astro carregado de toda a negatividade, era o velho pai de Júpiter,
castrado e deposto pelo próprio filho, e além disso antigo deus da Terra, pesado como o
chumbo,
melancólico. Sua posição era muitas vezes nefasta. Mas leia-se aquela que é
provavelmente a mais inteligente das astrólogas de nosso tempo, Liz Greene. Seu livro
"Saturno" (Cultrix/Pensamento) é quase um elogio do antigo planeta nefasto: faz quase
lamentarmos não tê-lo em todas as casas, mas numa só. Seu papel se torna o do
"cobrador do carma", que vem exigir que saldemos nosso débito com o aspecto mais
mal resolvido de nossa personalidade. Carma, aliás, aqui se pode ler
sem nenhuma crença nas sucessivas encarnações, e isso mostra bem como é possível
uma frequentação quase completamente não-religiosa dos procedimentos
divinatórios: funcionam, e é o que importa para quem os utiliza.
Daí que toda uma psicologia otimista se tenha constituído em torno das "divinationes",
em nosso século, no lugar das velhas mânticas um tanto assustadoras. Daí, também,
que uma série de tarefas se possa definir, partindo-se da leitura divinatória. Quem
conhece um mínimo de astrologia sabe que a casa onde tenho Júpiter assinala minhas
maiores capacidades de expansão, ao passo que Netuno marca as brumas, as névoas
e, por isso, tanto o maravilhamento quanto o engano. Já Saturno dita as dificuldades, a
lentidão, a frustração. A despeito da enorme variedade de
combinações que ocorrem entre as 12 casas, seus signos e os 10 astros, torna-se
possível determinar que desafios maiores devo enfrentar (talvez na casa em que
está Saturno) e com que ferramentas (talvez as dadas por Júpiter).
Isso é apenas um exemplo, mas que delineia uma via que não se confunde nem com a
mântica tradicional e seu fatalismo, nem com outras psicologias. O freudismo
não pode admitir essa via, porque não crê num sentido preexistente que se encontra, e
por isso mesmo recusa, a postura do psicólogo que dita regras (ou "tarefas", como
dissemos).
Esta breve exposição suscita algumas considerações finais. Primeira, parece-me ser o
forte impacto de Jung que deu nova vida às mânticas. Edgar Morin errou quando,
atacando os novos bruxos, viu nas colunas astrológicas dos jornais uma volta da
superstição: o que temos hoje é uma vertente muito mais sofisticada, que casa uma
vertente da psicologia junguiana respeitada, ainda que controversa e uma série de
mânticas renovadas.
Segundo ponto: há diferentes estatutos sociais e culturais entre os que frequentam as
artes divinatórias. Existe um abismo entre as pessoas que vão a um curandeiro desses
que mandam distribuir folhetos pela rua, prometendo proteção contra mau-olhado, volta
da pessoa amada e retorno da saúde, e aquelas que pedem um mapa astral a um
psicólogo.
Evidentemente, continua havendo leituras divinatórias que seguem uma oposição
fausto/nefasto projetada fora do indivíduo.
Mas há uma mântica de elite, que, em vez de usar as adivinhações como tecnologia
(isto é, para uma eficácia externa), vai delas para a psicologia e, portanto, para o assim
chamado "trabalho interno", uma reelaboração do eu apoiada no mapa da psique.
E, finalmente, parece-me haver aqui uma certa idéia de progresso. Espera-se, pelo
menos, um avanço a partir desse autoconhecimento trabalhado que o mapa astral
termina. Isso a velha astrologia não permitia. Apesar de vários renascentistas dizerem
que "o homem sábio dominará os astros" ao vencer as fatalidades de sua carta natal,
parece que é só com a astrologia junguianizada que surge, finalmente, um uso do mapa
astral que se propõe a fazer crescer as pessoas. Uma tal meta, porém, seria impossível
na psicanálise freudiana. Mas a discussão sobre
esta é outro assunto: por enquanto, basta insistir na mudança entre a astrologia pesada
do século 10 e esta nova, mais animadora, que se destaca desde algumas
décadas.

Para os interessados
Alfred Douglas, "I Ching" ou "Tarot", dois livros publicados em inglês pela Penguin.
Liz Greene: "Saturno", ou "Relacionamentos", ou "Os Astros e o Amor", editados no
Brasil pela Cultrix/Pensamento.
Jung: ''Sincronicidade'' (Vozes)

Renato Janine Ribeiro é professor titular de filosofia política na USP, autor de "A
Fortuna Aristocrática", ensaio publicado em "A Última Razão dos Reis" (Companhia das
Letras), em que trata de tema análogo.

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