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Concursos públicos não podem ser quiz shows: o caso da questão 42 do Concurso

MPMG
Tenho feito uma cruzada para que concursos não sejam corrida de obstáculos ou
pegadinhas. Sei que não é fácil formular questões objetivas. Mas, antes de tudo, como
falei recentemente da questão da XXX Prova da OAB, é necessário fazer sempre uma
“Interpretação Conforme o Bom Senso”. Não se deve dar o drible da vaca no pobre do
concurseiro. Lembram-se do caso da Teoria da Graxa anulada pelo CNMP com minha
colaboração? Parece que há uma algo parecido no ar.
Vejam a questão 42 do MPGO-2019: - Inicialmente o gabarito foi dado como D,
posteriormente alterado para A. Vejamos:
QUESTÃO 42

A Lei nº 10.477, de 9 de maio de 2002, institui o Dia Nacional da Adoção, a ser comemorado
anualmente, no dia 25 de maio.

A respeito da adoção, considera as assertivas e marque a opção correta:

I. O parentesco civil gerado pela adoção constitui-se exclusivamente mediante


sentença judicial.
II. Os efeitos da sentença constitutiva de adoção podem retroagir, na hipótese
prevista na lei.
III. No caso de adoção conjunta, é necessário que os adotantes sejam casados
civilmente ou mantenham união estável, comprovando-se a estabilidade da
família, mesmo na hipótese de par homoafetivo.
IV. A anuência dos pais à colocação de seu filho em família substituta, formulada em
cartório para fins de adoção, torna desnecessária a ação judicial de extinção do
poder familiar, desde que esse consentimento seja ratificado em audiência judicial
na presença do Ministério Público.

A) Somente as assertivas I, II e IV estão corretas.


B) Somente as assertivas I, II e III estão corretas.
C) Somente as assertivas III e IV estão corretas.
D) As I, II, III e IV estão corretas.

Qual é o busílis? A Banca, diante de recursos, alterou o gabarito de D para A, porque,


agora, o item III estava incorreto (o examinador disse que se equivocou).
Sendo mais claro: quem marcou D e acertou, agora ficou prejudicado. E quem marcou A,
agora teve o ponto concedido. Inverteram o gabarito. E não deram qualquer chance aos
candidatos que marcaram D recorrerem (ou argumentarem). Isso é muito grave também.
Gravíssimo!
Tentarei fazer uma breve explicação.
A questão de número 42, do Grupo III continha quatro itens, com temas relacionados ao
instituto da adoção.
Quem marcou D, levou em consideração – e é isso que importa – que o item III estava
correto. Logo, o resultado, conjuminando as demais, levou à resposta D. A banca fez mea
culpa e disse: erramos. A III está incorreta, disseram. Logo, A é o gabarito correto.
Simples? Não. Complexo. E errado.
Vejamos. Seria o enunciado III, de fato, incorreto, a ponto de provocar esse turning point
que prejudica todo e qualquer candidato que tenha marcado D e, com isso, ficou comendo
poeira? Vamos a ele:
III. No caso de adoção conjunta, é necessário que os adotantes sejam casados
civilmente ou mantenham união estável, comprovando-se a estabilidade da
família, mesmo na hipótese de par homoafetivo.
Essa assertiva é falsa? Por quê?
Ao rever a própria correção, o examinador, ao fazer sua mea culpa, máxima culpa, disse
que "deixou de observar com a devida atenção o texto do § 4°, do artigo 42, do ECA".
Sério? E o concurseiro deveria saber desse “não levar em conta”? O dispositivo –
esquecido pelo examinador meaculpante dispõe que "[o]s divorciados, os judicialmente
separados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente, contanto que acordem
sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido
iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de
vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem
a excepcionalidade da concessão".

Ora, vamos lá: primeiro, dizer que o § 4º do artigo 42 torna incorreta a proposição III, que
repete dispositivo de lei, parece-me um salto “triplo carpado hermenêutico”. E mais (e
isso sim é ainda mais grave): a correção exige que os candidatos busquem a intenção...
do examinador! Uma Inquisitor intentione. Isso é pior que o velho "método de
interpretação" [sic] da vontade do legislador. O examinador do MPMG está inventando
“método”. Nunca havia visto em concurso público de prova objetiva que o candidato
devesse adivinhar a intenção do perguntador.
Pior: A intenção do perguntador vale mais que uma assertiva que repete dispositivo de
lei? Sob fundamento de outro parágrafo do artigo em questão -- parágrafo que fala em
"divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros"? Desculpem-me, mas
não posso concordar.
Vamos ao que diz o § 2º, do Art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
§ 2 o Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados
civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.
Por que o constante no item III estaria errado em relação ao dispositivo do ECA? Ao que
se pode ver, para a banca, o fato de o enunciado do item III ter a mais a expressão “mesmo
na hipótese de par homoafetivo” teria o condão de considerá-la errada. Como assim?
Ocorre que uma coisa é o dispositivo legal (ECA) e outra é o enunciado feito (construído)
pelo arguidor. Veja-se: o ponto envolvendo casal homoafetivo é da jurisprudência, ao
que sei ((REsp 889.852/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,
julgado em 27/04/2010, DJe 10/08/2010)). O ECA continua em vigor. A Banca não pode
dizer que o ECA está errado. E nem que o ECA é inconstitucional. Banca de concurso
não faz interpretação conforme à jurisprudência ou à Constituição. Banca não faz controle
difuso de constitucionalidade. Banca não faz exame de legalidade de dispositivo de ECA
ou de qualquer Código.
Logo, mesmo que a jurisprudência – corretamente – tenha dito que casais homoafetivos
possam adotar, o enunciado III está correto. Continua correto. Ou, melhor, ele não é
incorreto. O que dá no mesmo. Aliás, no que o parágrafo “esquecido” fala em “adoção
por casais homoafetivos”? Parece, sim, uma grande confusão retórica que visa a consertar
o inconsertável.
Sendo mais simples: O texto do ECA cabe dentro do enunciado. Ele NÃO CONTRARIA
o enunciado. Trata-se da lógica da não contradição. E também poderíamos falar na lógica
deôntica – porém, considero despiciendo fazer isso. Se um enunciado diz que “O Brasil
é composto por 26 estados”, obviamente que ele não é falso por não ter especificado que
existe também um distrito federal (que não é estado). Assim é o caso do texto do ECA
em comparação com o enunciado III.
Volto a um ponto que me pareceu bizarro e que por si anula a questão:
A intenção primordial do examinador ao elaborar a questão foi a de avaliar o
conhecimento do candidato quanto à possibilidade de adoção conjunta por
pessoas do mesmo sexo, “mesmo na hipótese de par homoafetivo”, segundo a
proposição (vide CAPUA, 2011, p. 42; FARIAS, BRAGA NETTO e
ROSENVALD, 2019, pp. 1949-1951). Grifamos
Ah, bom. Por que não avisou? Coisas de concurso público. Pior: E como o candidato não
sabia – e nem o examinador, porque confessou que errou – acaba por ser prejudicado.
“Azar do candidato?”
Absolutamente nula essa questão, senão pelo seu conteúdo, pela confusão causada.
Tumulto. Não é assim que se deve fazer em concurso para o cargo nobilíssimo de
Promotor de Justiça, instituição a qual pertenci 28 anos (e ainda me considero pertencente,
não fosse por nada, pela vitaliciedade).
A melhor solução é usar mesmo do velho bom senso. Fazer uma “interpretação conforme
ao bom senso”. Ao sano bom senso. Não é possível – no mínimo isso – afirmar, com
certeza, que o enunciado III é incorreto. Logo, a anulação se impõe.

Não se diga que estamos diante de antinomia ou de “construção doutrinária para além do
texto legal”. No caso, não há antinomia e uma construção doutrinária não tem, em prova
objetiva, o condão de derrogar texto legal. Antinomias existem quando há contradição e
esta tem o condão de excluir um dos enunciados. Para que se tenha antinomia, o
enunciado X deve contradizer o enunciado Y. Não foi o que se viu. E o fato de a doutrina
e a jurisprudência dizerem – corretamente – que casais homoafetivos podem adotar, não
quer significar que o texto do ECA seja falso.

Trata-se, pois, de uma questão objetiva. E isso gera compromissos lógicos e da obediência
de não contradições. Lembro-me de uma questão de um concurso do MPRS na década de
90. Conto isso no livro Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. O enunciado dizia: um
indivíduo nascido no México pode ser presidente da república do Brasil. F ou V? Assim,
seco? Eu era professor de hermenêutica e meus alunos ingressaram com ação judicial. E
o TJRS anulou a questão. Por quê? Porque pode e não pode ser presidente. Depende de
outros elementos. Não presentes no enunciado. Nas minhas aulas, mostrava: o enunciado
“a água ferve a 100% é F ou V”? Quem disse V erra; quem diz F, erra. Porque a água
somente ferve a 100% sob determinadas circunstâncias... Simples assim.

Por tudo isso, o bom senso – e deve haver bom senso no MPMG – indica a anulação da
questão.
De minha posição de jurista que procura contribuir com o debate público, sugiro a
anulação. Sob pena de violação à equanimidade (fairness).
Por uma questão de princípio.
Saludos!

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