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Acreditamos que esse “espírito” era sincero na maioria das pessoas que
formaram aquele processo. Neste sentido, as palavras colocadas em nossos documentos
fundacionais sintetizavam um sentimento e uma vontade comum das correntes, dos
coletivos e dos indivíduos que formaram a Insurgência. Entretanto, a despeito disso,
tivemos o desfecho que tivemos, com a inviabilização da Insurgência como organização
a partir, principalmente, de práticas sistemáticas que se distanciavam – e por vezes se
antagonizavam – com nossos marcos fundacionais. Quando cotejamos o sentido do
processo de formação da Insurgência com as razões pela sua divisão, 3 anos depois, um
aprendizado fica nítido: não bastam boas intenções – mesmo que verdadeiras – e belas
palavras para formar uma organização. As práticas cada vez mais distantes do
preconizado em nossos documentos e os seguidos “equívocos” antidemocráticos de
dirigentes e grupos na organização foram, aos poucos, demonstrando que não tínhamos
uma concepção comum de organização. O grande erro da Insurgência foi que, na
prática, adotou uma concepção de organização incompatível com o propósito de
construir uma organização pluralista. A maioria dos membros da sua Executiva adotava
a visão de que “uma organização leninista” tem obrigação de encaminhar posições
comuns sobre todas as questões, como se isso fosse uma espécie de princípio, mais do
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que por uma necessidade de eficácia. Isso, somado ao fato de que uma parte importante
da direção, em sua maioria formada por profissionalizadxs, passou a se compreender
como o núcleo “mais consciente” ou “mais militante” da organização e a adotar uma
atitude conspirativa e fracional, é o grande motivo do fim do projeto da Insurgência.
Assim, por melhores que fossem as intenções e as palavras, elas não foram
capazes de evitar a consolidação de uma concepção incompatível com o que
pretendíamos no início. Essa consideração é importante porque desloca as discussões de
questões morais e pessoais para questões mais propriamente políticas e de concepção de
organização. Nosso desafio, para não repetir os mesmos erros, passa a ser o de encontrar
sínteses sobre pontos organizativos decisivos na criação de condições para efetivamente
termos uma organização democrática e plural, que, potencializando sua diversidade,
possa dar conta de intervir na realidade em coerência com a busca pela transformação
radical que almejamos. Os cinco temas que abordamos a seguir – e que já foram
debatidos em nossos documentos anteriores – parecem fazer parte desses pontos
decisivos.
chamado “A Tirania das Organizações sem Estrutura”. Freeman termina suas reflexões
afirmando que se os princípios discutidos por ela forem aplicados,
Isso não significa que a direção não pode e não deve decidir nada nunca.
Significa que, sempre que possível, a função dela é fazer das decisões as mais coletivas
possíveis, de baixo para cima, e não de cima para baixo. Neste sentido, a dinâmica de
organização dos Organismos de Base, das direções locais, aliada à utilização de meios
de comunicação diversos para consultas e tomadas de decisão é fundamental. Em
situações de emergência ou que porventura não seja possível tomar a decisão coletiva
por questões de tempo – nunca de conteúdo –, a direção decide em suas próprias
instâncias e avança, levando em conta as condições nas quais a decisão foi tomada para
o conjunto da organização assim que possível. Garantida a função primordial de
coordenação política dos debates e as condições de participação da maioria na tomada
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FREEMAN, Jo. La Tiranía de la Falta de Estructuras. Grifo e tradução nossas. Disponível em <
https://gate.iire.org/Ecosocialist%20School%202012/Day%2018/18-ES-ENTERO.pdf>
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Preconizamos uma organização que possa, cada vez mais, ser um pouco daquilo
que desejamos ver no mundo. Neste sentido, se consideramos necessária a existência de
uma direção política, não podemos naturalizar a sutil opressão que muitas vezes
perpassa a relação entre dirigentes, supostamente dotados da capacidade de decidir, e
“dirigidos”, cujas opiniões valem menos. Não acreditamos que a existência de uma
direção política e a composição desta se devam ao melhor preparo de determinados
camaradas e menos ainda a qualquer infalibilidade destes. Justamente por isso,
defendemos que a principal tarefa da direção política em uma organização que se quer
radicalmente democrática é a de incentivar, pautar e organizar os debates no conjunto da
corrente. A tarefa central da direção política é, em outras palavras, fomentar a
construção de posições “de baixo para cima” no conjunto da organização, e não decidir
a linha em suas próprias instâncias e “baixar” para o coletivo.
do que “golpear como um homem só” ou como um bloco monolítico, nossa tarefa é
exercitar cotidianamente a construção de sínteses e o respeito à diferença, sem esmagar
nenhuma das posições existentes, e ao mesmo tempo fortalecendo as posições
majoritárias na organização com elementos das minoritárias. Com a construção de
consensos progressivos para formar posições e, sempre que necessário, com o
reconhecimento de que o “dissenso colaborativo”, inclusive para fora, pode ser também
fundamental durante a construção de posições unitárias no interior do coletivo. Se isso
pode nos tornar menos “afirmativos” e parecer estranho a outras organizações políticas,
que cobram posições monolíticas, rápidas e decididas de uma organização
revolucionária, nossa resposta deve ser muito simples: não é papel de uma organização
revolucionária fazer as afirmações mais incisivas e decididas, e sim transformar
efetivamente a realidade. A tradição da posição monolítica do partido leva a afirmações
muito incisivas, que por inúmeras vezes são desmentidas pela realidade. O passo
seguinte, normalmente, é, ao invés de autocrítica, tentar adequar a realidade às posições
tiradas anteriormente, gerando distorções interpretativas enormes.
As orientações políticas aprovadas pela organização devem ser muito mais uma
referência para a militância do que uma definição estrita a ser obedecida. Com base
numa compreensão deste tipo do sentido de uma resolução, não apenas o debate pode
continuar depois dela, mas a ação individual dxs militantes pode ser diversa. Não
precisa, e não deve, ser homogênea.
abolicionismo penal, entre outros, podem ser ilustrativos. Se o intuito é contribuir com
a construção de sínteses, não podemos almejar ter posição única – e talvez nem sequer
majoritárias – sobre essas questões. Há divergências no campo da esquerda que são
totalmente legítimas, e possivelmente benéficas às discussões e à construção do futuro
que queremos.
2
Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado, 1985. Disponível em
<https://www.marxists.org/portugues/tematica/1985/01/dsdp.pdf>
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Idem
4
Rol y Tareas de la Cuarta Internacional (extracto). Resolución del 15° Congreso de la Cuarta
Internacional. La CI ayer, hoy y mañana. (Grifos nossos).
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fazem parte de nossa corrente revolucionária, são tão importantes quanto as nossas. Para
debater e formular sobre as questões específicas de cada movimento, a contribuição dos
independentes tem tanta importância quanto as nossas formulações. Daí a defesa da
autonomia real inclusive dos instrumentos que animamos.
Profissionalizações da organização
Entretanto, erro talvez ainda maior seria não reconhecer que esses riscos
existem. As profissionalizações, quando não são bem construídas pela organização,
podem gerar pelo menos duas ordens de problemas. A primeira se relaciona com os
próprios indivíduos, xs militantes profissionalizados. Quando essxs camaradas passam
muito tempo nessas funções, sem nenhum período de rodízio, isso tende a gerar uma
dependência dx militante com relação à estrutura da organização. Quanto maior o tempo
afastado do “mercado de trabalho” ou de sua formação profissional, mais difícil será
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retornar para outras funções que não as relacionadas à estrutura da organização. Essa
dependência pode gerar, nx militante em questão, um conflito de interesses: em algum
momento x camarada pode ser ver impelidx (por vezes até de forma pouco premeditada)
a tomar uma decisão tendo como critério primeiro sua manutenção na estrutura da
organização, e não a política correta ou melhor para o momento. É assim que ocorre o
processo de burocratização. Além disso, quanto mais tempo na estrutura da organização,
menos contatos com outras esferas da realidade o militante terá, o que também tende a
gerar lacunas de formação e de capacidade de leitura da realidade.
Não há muitos segredos com relação à forma de buscar evitar esses riscos.
Primeiro, é preciso fortalecer muito a formação política de toda a organização com
relação à nossa estratégia, mas sobretudo com um debate profundo sobre a história da
burocratização no movimento operário e na esquerda, suas consequências, etc. Segundo,
é preciso defender e criar condições para o rodízio de cargos e profissionalizações. Por
fim, criar condições para que haja total transparência com relação a valores, fontes de
financiamento, tarefas e prestação de contas no que diz respeito às profissionalizações
da organização. Essas soluções não são ideias inovadoras, mas em geral elas não
funcionam porque não é simples colocá-las em prática: não são muitas as pessoas
disponíveis para as tarefas de profissionalização, e não é simples construir as condições
para a transparência. De qualquer forma, são desafios que precisamos levar a sério se
não queremos repetir os mesmos erros do passado (longínquo e entre nós, antigo e
recente).