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Um livro para ler — e entender

(Apresentação à reedição dos comentários de Francisco de Sales


Lencastre pela Editora Concreta)
Quando eu tinha quinze anos, abri uma edição “com notas” de Os
Lusíadas. Li o poema inteiro — isto é, fiz aquilo que, à época, eu
chamava de “ler” — e, para além de captar o sentido superficial da
maioria das estrofes e algo da entonação épica, não entendi
bulhufas.

Camões é um clássico; é o clássico da língua portuguesa. Nele estão


os sentimentos morais, as virtudes, a dignidade da civilização lusa.
Camões é o fundamento da nossa cultura, é o herói dos nossos
escritores.

Mas como arranhar as intuições poéticas, a elevação moral, os


arroubos sobrenaturais de um poeta, quando não se consegue
juntar sujeito com predicado em seus longos períodos? Quando
suas expressões figuradas parecem enigmáticas e até
incompreensíveis? Quando não se sabe ao menos do que está ele a
falar: quem é Pacheco, em que ponto da Terra os heróis se
encontram, que diabos é um mauritano?

Os abecedários medievais começavam com os dizeres: legere et non


intellegere, neglegere est — ler, e não entender, é negligenciar. Na
raiz etimológica de intellegere, segundo uma tradição antiga,
estavam as palavras intus legere (“ler dentro”); na
de neglegere, nec legere (“nem ler”); e a mesma frase, lida
etimologicamente, assim se traduz: ler, e não ler dentro, não é nem
mesmo ler. Passar os olhos pelas letras, apenas pressentindo seu
significado, não é leitura de forma alguma. Só lê de fato aquele que
domina o campo semântico das palavras, sabe distingui-las de suas
parentas, ligá-las a suas amantes, apreciá-las em sua força
específica.

E como se aprende a ler, senão com o guiamento de um mestre?


Como qualquer arte, a leitura passa pela memorização de alguns
dados, e pela prática disciplinada de certos movimentos mecânicos;
e, como toda arte, ela só se realiza de fato na articulação de
palavras, movimentos e hábitos segundo uma razão complexa, cujo
registro completo em livro seria provavelmente impossível — em
todo caso, certamente nada prático — e que só pode ser
transmitida apropriadamente por um ser humano treinado e
dedicado: um mestre de leitura, o grammaticus.
O grammaticus conhece todos os passos para ler adequadamente o
gênero textual mais exigente de todos — a poesia — e por isso lê
bem tudo o mais. Sabe decodificar os sons sem erro; sabe entonar
e pausar; ler e interpretar. Identifica as figuras, quando aparecem,
e deduz sua função e sentido; estuda as referências e alusões,
reconstrói a sintaxe dos versos, domina-os como a palma de sua
mão. Quanto disso pode ser posto em livro? Muito pouco. Mas já
nos primeiros séculos da nossa era, quando a barbárie ameaçava as
instituições do Império Romano, alguns mestres se puseram a
registrar o que podiam. Fizeram-no da maneira mais apropriada,
mais rica e mais útil: simulando por escrito suas aulas, explicando
um poema verso a verso, e criando assim o único gênero de
material didático aceitável para aquele modelo de ensino. A
tradição de comentários didáticos se estendeu durante mais de mil
anos, até desfalecer subitamente em meados do século XX.

Hoje é segredo e mistério, mas um século atrás ainda se publicavam


edições comentadas de clássicos como Os Lusíadas. Eram belos
livros escolares, com paráfrases em prosa de cada estrofe, para
garantir a compreensão da sintaxe; com notas explicativas que,
diferentemente das atuais, explicavam de verdade as referências do
texto e as figuras de linguagem; com introduções ricas e eruditas
que fundamentavam e aprofundavam a leitura. Não dispensavam o
estudo disciplinado e a presença do mestre, nem procuravam
substituí-lo, como hoje se faz por meio de “métodos” e “livros
didáticos”, pretensas máquinas de educar que convertem os
professores em meros fiscais de sala — negando aos alunos, sob
pretexto de evitar os defeitos humanos, o privilégio de aprender o
que só um ser humano pode ensinar: a apreciação real e vital da
poesia. Separado o domínio técnico da contemplação poética,
perde-se o sentido de todo o estudo, agora tornado mero
formalismo; e o vocabulário da arte, esvaziado da experiência
estética integral, vira palavreado oco.

Os comentários, portanto, não visavam a substituir as aulas, mas a


servir de apoio para o estudo; preenchiam os vãos da ignorância
histórica e lingüística, possibilitando a discussão do poema em
níveis mais altos; dispensavam o professor de literatura de tornar-
se um filólogo ou historiador, o que lhe tiraria, talvez, o tempo e a
disposição de estudar o poema enquanto poema, que é seu aspecto
mais interessante e útil; davam aos alunos os meios de ler e
entender sozinhos, em casa, o que de outro modo exigiria longas
pesquisas, e na prática os tornaria dependentes do professor para
tudo.

Por que pararam de editar esses ótimos instrumentos do estudo?


Por que, num país em que 92% da população geral e 84% dos
profissionais da educação são incapazes de ler, os intelectuais e
eruditos crêem que essas edições se tornaram dispensáveis?

Talvez porque não lhes interesse divulgar Os Lusíadas. Os milhões


de livros didáticos despejados nas escolas públicas todos os anos, à
custa — é bom lembrar — de exorbitantes impostos, preferem
analisar revistas em quadrinhos e obscenas letras de “funk”. As
publicações de divulgação científica, feitas por acadêmicos que se
doutoram na França e nos EUA — mais uma vez, com dinheiro
público — insistem em materiais semelhantes aos sobreditos e, se
mencionam o nome de Camões, é para equipará-lo a algum
sambista pretensioso. Não é exagero dizer que as tirinhas, letras de
música — com o perdão da palavra — popular e crônicas de
jornalistas semiletrados bloqueiam eficazmente qualquer contato
com a cultura tradicional do nosso povo e civilização, para não falar
do uso correto, expressivo e belo da língua portuguesa.

Quem sabe qual é o interesse de toda uma classe letrada — nas


atuais condições seria mais justo chamá-la pseudoletrada — em
tornar inacessível a obra mais importante do nosso idioma? Quem
sabe por que razões se investe tanto tempo e dinheiro em
desensinar a língua portuguesa e privar as crianças de todo contato
com valores morais básicos? Terá sido tudo isto feito
conscientemente, ou será fruto de um longo e paulatino processo
de emburrecimento? Seja qual for a resposta, a prudência
aconselhará a mesma atitude: correr de volta ao passado e
recuperar os instrumentos didáticos que formaram nossos grandes
homens. A edição de Francisco de Sales Lencastre representa muito
honradamente as virtudes da tradição de comentadores escolares
aos quais deveram tanto nossos antepassados. Endividemo-nos
também nós, para nosso bem, e das futuras gerações.

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