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Vilém Flusser

eb
w# Ensaio sobre a Fotografia
GIlt
Paru uma filosofia da técnrca
Rua Sylvio Rebelo, n." 15
1000 Lisboa Apresentação de Arlindo Machado
Telef .:847 44 50 Fax: 847 O7 75
Internet: http://www.relogiodagua.pt
mail : relogiodagua @ relogiodagua.pt

@ 1983 EUROPEAN PHOTOGRAPHY Andreas Müller-Pohle,


P. O. Box 3043,D-37020 Gottingen, Germany, http://equivalence.com
EDITION FLUSSER, Volume III (1997)

Título: Ensaio sobre a Fotografia Para uma filosofia da técnica


- der Fotografie
Título original: Für eine Philosophie
Autor: Vilém Flusser
Apresentação de Arlindo Machado
Capa: Paulo Scavullo

@ Relógio D'Água Editores, Novembro de 1998

A colecção Mediações é dirigida por José Bragança de Miranda

Composição e paginação: Relógio D'Água Editores Mediações


Impressão: Rolo & Filhos, Artes Gráficas, Lda.
Depósito Legal n.o: 129902198 Comunicação e Cultura
Indice

Apresentação

Prefâcio à edição brasileira 2I


Glossário 23

1 A imagem 27
2 Aimagem técnica JJ
3 O aparelho 39
4 O gesto de fotografar 49
5 A fotografia 57
6 A distribuição da fotografia 65
7 Arecepção da fotografia IJ
8 O universo fotográfico 81
9 A necessidade de uma filosofia da fotografia 9L
APRESENTAÇÃO

O livro que o leítor tem em suas mãos apresenta uma his-


tória bastante singular. Publicado pela primeira vez na Ale-
manha em 19831, a sua versão para português não é sim-
plesmente uma tradução, mas já uma revísão da versão ale-
mã. A começar pelo título: enquanto a primeira versão rece-
beu o nome de Für eine Philosophie der Fotografie (<Por
uma Filosofia da Fotografia>), título que foi mantido em to-
das as traduções para as outras línguas, a versão para por-
tuguês teve o seu título modificado para Filosofia da Caixa
Pret4 permitindo perceber melhor o universo conceptual e o
campo de abrangência do livro. As mudanças foram provi-
dencíadas pelo próprio autoti que aliás escreveu ele mesmo
a versão em português, depois de reconsiderar alguns as-
pectos da sua argumentação. Vílém Flussef é preciso explï
cati apesar de natural de Praga (na actual República Che-
ca) e de ter escrito a maior parte de sua obra em francês e
alemão, viveu 3I anos no Brasil e expressava-se num portu-
guês de fazer inveja à maioria dos nativos de Portugal e do
Brasil.

l. Für eine Philosophie der Fotografie. Grittingen: European Photography, 1983.


t0 Apresentação Ensaio sobre a Fotografia 11

Em1984, data provóvel de redacção desta versão2, Flus- base na sua definição semiótica e tecnológica que se cons-
ser estava envolvido com a concepção de Ins Universum der troem hoje as máquinas contemporâneas de produção sim-
technischen Bilderj, que era, na verdade, um desdobramento bóIica. E ,o* a fotografia que se inicia, portanto, um novo
da Philosophre e uma resposta aos inúmeros comentârios crí- paradigma na cultura do homem, baseado na automatização
ticos que o filósofo recebeu com a edição desta última. Era da produção, distribuição e consumo da informação (de
impossível, portanto, que essa nova discussão não afectasse qualquer ínformação, não só da visual), com consequências
a <tradução>> da Philosophie para português. Eis a razão gigantescas para os processos de percepção individual e pa-
porque a versão em língua portuguesa dessa obra funda- ra os sistemas de organização social. Mas é com as imagens
mental de Flusser é única e difere significativamente de to' electrónicas (difundidas pela televisão) e com as imagens
das as outras traduções conhecidas. Uma simples compora- digitais (difundidas agora no chamado cíberespaço) que es-
ção das versões para alemão e para português iá deixa en- sas mudanças se tornaram mais perceptíveís e suficiente-
trever as diferenças. O prefacio foi inteiramente refeito na mente ostensivas para demandar respostas por parte do
versão brasileira, o glossário acrescenta novos termos, não pensamento crítíco-filosófico. Que ninguém espere, portan-
considerados na versão alemã, e partes inteiras do texto to, encontrar nesta obra de Flusser uma anólise dafotogra-
principal do livro são reescritas para dar maior precisão e fia de tipo clóssico, baseada em orientações da linguística
consistência à argumentação. Nesse sentido, para ser real- ou da sociologia. Afotografra é abordada aqui com base so-
mente fieI ao pensamento de Flusser a versão em língua por- bretudo em conceitos da cibernética e ela comparece na
tuguesa (e não a alemã) é que deveria ser tomadn como o obra apenas como um modelo básico para a análise do mo-
texto definitivo da Philosophie e, por consequência, ela é que do de funcionamento de todo e qualquer aparato tecnológi-
deveria estar a ser utilizada como base para a tradução a ou' co ou mediótico. Daí que Filosofia da Caixa Preta traduza
tras línguas. melhor as ambições da obra do que um lacónico Filosofia
A mudança do título é fundamental. Malgrado a fotogra- da Fotografia.
fia ser realmente o objecto príncipal da reflexão efectuada Porquê caixa preta? Sabemos que o termo vem original-
no livro, ela funciona mais propriamente como um pretexto mente da electrónica, onde é utilizado para designar uma
para que, através dela, Flusser possa veücar o funcíona- parte complexa de um círcuíto electrónico que é omitida in-
mento das nossas sociedades <pós-históricas> (para usar tencíonalmente no desenho de um circuito maíor (geralmen-
um termo caro ao frIósofo), ou seja, das nossas sociedades te para fins de simplfficação) e substituída por uma caíxa
marcadas pelo colapso dos textos e pela hegemonia das (bax) vazia, sobre a qual apenas se escreve o nome do cir-
imagens. Na verdade, afotografia ocupa, entre os médía do cuito omitido. Atentemos ao facto bastante significativo de
nosso tempo, um lugar bastante estratégico, porque é com que Gregory Bateson, no seu Steps to an Ecology of Mind4,
amplia ironicamente o significado de caixa preta, com o pro-
pósito de aplicá.-lo a grande parte dos conceitos problemá-
2. A primeira edição da versão em língua portuguesa foi publicada no Brasil em
1985 pela Editora Hucitec, de São Paulo. Essa edição está esgotada.
3. Ins [Jniversum der technischen Bilder. Gôttingen: European Photography, 1985. 4. New York: Ballantine, 1972.
l2 Apresentação Ensaio sobre a Fotografia 13

licos da.filosofia e da ciência. Como os engenheiros elec- desenho das objectivas, nem as reacções químicas que ocor-
rem nos componentes da emulsão fotogrófica. Em rigor;
lrrinicos
- explica Bateson - também os filósofos e cíen-
tistas utilizam rótulos, nomes, ou ,rcaixas-pretas> para de- pode-se fotografar sem conhecer as leis de distribuição da
signar certos fenómenos, mas diferentemente daqueles, estes luz no espaço, nem as propriedades fotoquímicas da pelícu-
últimos acreditam, muitas vezes, que tais expedientes ímpli- Ia, nem ainda a.s regras da perspectiva monocular que per-
canx uma compreensão do fenómeno. Assim, por exemplo, mitem traduzir o mundo tridimensional em imagem bidimen-
damos a uma certa classe de.fenómenos o nome de instinto sional. As câmaras modernas estão automatizadas a ponto
e acreditamos que isso resolve o problema, mes o que cha- de até mesmo a fotometragem da luz e a determinaçdo do
nl,am,os instinto pode ser (tpenas uma caixa preta que está ali ponto de foco serem realizadas pelo aparelho.
para mascarar o que justamente não conseguimos com- Nesse sentido, a caíxa preta <cibernétíca>> de Flusser
preenden encontra-se com a caixa pretq <electrónica> de Bateson no
No caso específico de Flusser o conceito de caixapreta de- potxto em que ambas exprímem um desconhecimento funda-
riva mais propriamente da cibernética. Nesse campo parti- mental e, mais do que isso, um desconhecimento que se
culan dó-se o nome de caixa preta a um dispositivo fechado transforma em actívidade, força motriz e razão de ser, seja
e lacrado, cujo interior é ínacessível e só pode ser intuído do pensamento (no caso de Bateson), seja da sociedade (no
atrav,és de experiências baseadas na íntrodução de sinais de caso de Flusser). Somos, cada vez mais, operadores de rótu-
onda (input) e na observação da resposta (output) do dispo- los, apertadores de botões, das máquinas,Ii-
"funcíonários>>
sitivo. Em geral, caixa preta traduz um problema de enge- damos com situações programadas sem nos darmos conta
nharia: como deduzir acerca do que há dentro de uma caixa, delas, pensamos que podemos escolher e, como decorrência,
sem, necessariamente abri-la, mas apenas aplicando volta- imaginamo-nos inventivos e livres, mas a nossa liberdade e a
gens, choques ou outras interferências nas suas paredes ex- nossa capacídade de invenção estão restritas a um software,
ternasí? No entender de Flusser, o transporte desse conceito a um conjunto de possibíIidades dadas a priori e que não po-
para a filosofia permite exprimir um problema novo, que a demos dominar inteiramente. Esse é o ponto em que a Filo-
.f'otografia foi justamente o primeiro dispositivo a colocar: o sofia de Flusser quer justamente intervir: ela quer produzir
surgímento de aparatos tecnológicos que se podem utilizar e uma reflexão densa sobre as possibilidades de criação e lï
deles tirar proveito, sem que o utilizador tenha a menor ideía berdade rluma sociedade cada vez mais programada e cen-
do que se passa nas suas entranhas. O fotógrafo, de facto, tralizada pela tecnologia.
sabe que se apontar a sua câmara para um motivo e dispa- Em terrnos bastante esquemáticos, podemos resumir mais
rar o botão de accionamento, o aparelho lhe dará uma íma- ou menos assim o percurso do pensamento de Flusser naFi-
gem nornxalmente interpretada como uma réplica bidimen- losofia; a imagem fotográfica não tem nenhuma <objectivi-
sional do motivo que posou para a câmara. Mas o fotógrafo, d"ade> preliminar; não corresponde a qualquer duplicação
enl geral, não conhece todas as equações utilizadas para o automática do mundo; ela é constítuída de signos abstractos
forjados pelo aparato (câmara, objectiva, película), pois a
5, tV. Ross Ashby. Intodução ò Cibernética. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 100. sua função fundamental é materialízar conceitos cíentíftcos.
T4 Apresentação Ensaio sobre a Fotografia t5

Por outras palavras, o que vemos realmente ao contemplar as corresponder a qualquer duplicação inocente do mundo,
imagens produzidas por aparelhos não é o r<mLtndo>>, mas de- porque entre elas e o mundo se interpõem os conceitos da
terminados conceitos relativos ao mundo, a despeito da apa- fo rmalizaç ão c ie nt ífi c a.
rente automaticidade da impressão do mundo na película. O aparelho fotogrófico é, portanto, uma máquina progra-
Talvez tenha sido necessário esperar até ao surgimento mada para ímprimir nas superfícies simbóIicas que produz
do computador e das imagens digitaís para que as imagens modelos previamente ínscritos. Nesse sentido, as fotogrüfios
técnicas se revelassem maís abertamente como resultado de são actualizações de algumas dessas potencialidades inscri-
um processo de codificação icónica de determinados con- tas no aparelho. O fotógrafo <<escolhe>>, dentre as categorias
ceitos cientfficos. O computador permite hoje forjar ima- disponíveis, as que lhe parecem mais conveníentes, mas essa
gens tão próximas dafotografia, que muita gente nã.o é mais <<escolha> é limitada pelo número de categorias programa-
capaz de distinguir entre uma imagem sintetizada com re- das na construção do aparelho. O universo fotogrófico íntei-
cursos da informática e outra <registada)> por uma câmara. ro é realízação causal, por "funcionários da transmissão>>,
Só que, no computador tanto a <<câmara>> que se utiliza pa- de algumas dessas virtualidades, mas não cabe em seu hori-
ra descrever complexas trajectórias no espaço, como as zonte a instauração de novas categorias.
<objectívas> de que se lança mão para dispor difurentes Em circunstâncias habituais, o fotógrafo vive o totalitaris-
campos focais, como ainda os focos de <Iuz>> distribuídos na mo dos aparelhos. Os seus gestos são programados, a sua
cena para iluminar a paisagem são todos eles operações consciência e sensibilidade têm carácter robotizado. Alguns
matemáticas e algoritmos baseados em alguma lei dafísica. fotógrafos mais inquietos lutam contra essa automação estú-
A <objectíva>> com que se constrói um campo perspectivo pída, tentam <<enganar>> o aparelho introduzindo nele ele-
(grande-angula4 teleobjectiva) não é mais, no computador, mentos não previstos, restabelecendo a questão da liberdade
um objecto físico, mas determinados cálculos de óptica; a num contexto de domfuação das máquinas. Muítos desses es-
<<luz>> é um algoritmo de iluminação baseado em leis da óp- forços acabam por ser novamente recuperados pelos apare-
tíca (escolhido dentre as vórias opções que se tem hoje: lhos, como revelação de possibilidades até então desconhe-
Lambert, Gouraud, Phong, ray-tracing, radíosídade); a cidas, mas ímediatamente catalogadas no reportórío de suas
<película> é um programa de visualização (rendering), que categorias. Uma filosofia da fotografia deve ter por função
permite expor num ecrã de monitor o objecto (ou partes de- intervir nesse jogo, aprofundando as suos contradições e
le) definido matematicamente na memóría do computador; desmascarando os seus limites.
o <<enquadramento>> é uma operação de clipping (recorte Do lado do recepto4 a proliferação ímensa de imagens
aritmético das partes do objecto que <<vazam> parafora da técnicas resulta na predisposição da sociedade para um com-
janela de visualizaçõo); o <<ponto de vísta> é um determina- portamento mágico programado. Os homens já não decifram
do posícionamento de um ponto imaginário de visualização as ímagens como signfficados do mundo, mas o próprio mun-
em relação a um sistema de coordenadas x, y e z; e assim do vai sendo vivenciado como um conjunto de imagens. Não
por diante. Eis porque as imagens técnicas, ou seja, as re- sabendo mais servír-se das imagens em função do mundo,
presentações icónicas medíadas por aparelhos, não podem eles passam a viver em função de imagens, de modo que es-
Apresentação Ensaio sobre a Fotografia T7
l6

pensamento tão anórquico, tão genuinamente subversivo, tão


tas últimas, tradicionalmente encaradas como mapas' se
livre de todos os clichés>. No Brasil, Flusser jamais conse-
transformam gradativamente aos seus olhos embiombos, cu-
guiu leccionar nos cursos regulares de fiIosofia, pois o seu
ja função ja iao é mais representar, mas m(tscarar o mundo'
"Nora*enie pensamento era demasiado universal e independente para se
aqui, a função de uma filosofia da fotografia é
dobrar às perspectivas provincianas e subdesenvolvidas dos
denunciar a iãolatria moderna como uma forma de alucina-
para o <branquea- departamentos uníversitários da época. Teve de sobreviver
ção, contribuindo para o desvelamento, ensinandofilosofia da ciência aos engenheiros da Escola Po-
mento>> da caixa Preta.
litécnica e teoria da comunicação numa pequena faculdade
Flusser morreu em 1991, aos 7l anos de idade, num aci-
a privada de São Paulo. A experiência brasileíra de Flusser es-
dente de automóvel, quando vinha de Praga em direcção
tá magistralmente reconstituída numa obra editada postuma-
sua casa em Robion, no sul da França. Apesar de ter leccio-
mente na AlemanhaT e numa colectânea de artigos seus pu-
nad,ofiIosofiaemalgumasdasmaisimportantesinstituições
blicados em jornais brasileiros, que está (t ser compilada pe-
domundoedetercolaboradoemrevistascientíficasefilo-
la Editora da Universidade de São Paulo e que deverá ser
sóficasdeprestígiointenlacional,eleeraumautodidacta:
lançada brevemente.
-algum ari*rloi títulos
jimais académicos e nunca teve diploma
Mas as coisas mudaram muito depois de sua morte. FIus-
para exibir. Pode-se compreender essa sítuação
de ser foi, de repente, descoberto em quase todo o mundo. Sim-
levando-se em consideração a sua história pessoal: iudeu
país pósios e congressos destinados ao exame exclusívo de sua
nascimento, Flusser teve de viver fugindo de país para
justamente no período mais importaúe da sua vida em ter- obra ocorrem todos os anos em lugares tão díferentes como
"mos França (1992), República Checa (1992), Holanda (1993),
de escolaìidade. Em 1939, quando conseguiu refugiar'
pe- Austría (1994), Alemanha (1995/96), Hungria (1997) e Bra-
-se na Inglaterra, toda a suafamília hovia sido liquidada
paí, sil (a realizar-se em 1998). Em Munique, aviúva Edith FIus-
los nazis na então chamada checoslováquia, inclusive
o
ser coordena um centro de referências relacionado cont ofi-
reitor da Universidade de Praga. Cansado de ver a Europa
lósofo checo e conta com colaboradores de várias partes do
submergir nas trevas, com os seus mitos arcaicos de raça'
planeta. A Bolmann Verlag, de Bensheim (Alemanha), estó a
ideologia e nação, ele migra com a sua mulher Edith Barth
lançar as obras completas de Flusse4 previstas para 14 vo-
poro i Brosil, acreditando encontrar aí uma civíIização des-
'comprometida lumes, dos quais jâforam editados cinco. Á Filosofia já está
com os valores do velho mundo' Não foi bem
traduzida para 12 línguas diftrentes.
essi o caso. Embora Flusser tenha conseguido tornar'se um
Toda essa notoriedade post mortem se explica, entre ou-
pólodeatracçãoentreosintelectuaismaisindependentesdo
'país, tras coisas, pelo facto do pensamento de Flusser ser absolu-
'o foi hostitizado tanto pela ditadura militat que dominou tamente certeiro na análise das mutações culturais e antro-
poít entre 1964 e 1984, quanto pela esquerda local' que' no
pológícas que estão a ocorrer no mundo contemporâneo e
rtiZer de Sérgio Paulo Rouaneq, <não podia entender um
também o mais convincente na adverÍência dos ríscos que

6'oFlusseremPrago.InJornaldoBrasil,RiodeJaneiro,ll.0l'97,Cademode 7. Brasilien, ode4 die Suche nach dem neuen Menschen. Bensheim: Bolmann, 1994.
ldéias, p. 5,
t8 Apresentação

corremos. Na verdade, o grande fiIósofo de Praga só reco'


nhece uma época comparável com anossa: aquela que ocor-
reu na Antiguidade, quando o homem passou de um estágio
pré-históríco e mítico parct uma fase histórica, lógica e ba-
'seada
na escrita alfanumérica. No actual estágio, chamado
por
-ou
Flusser de pós-histórico, a <<escritura>> é construída com
por máquinas e ela consiste essencialmente numa articu-
nçao de imagens
plicáveis ao infinito, manipuláveis ò vontade e passíveis de Ensaio sobre a Fotografra
distribuição instantânea a todo o planeta. caracteres
tonxam-se bytes, sequências de texto convertem-se em se- Para uma filosofia da técnica
quências de pixels, os fins e os meios são substituídos pelo
acaso, as leis pelas probabilidades e a razão pela programa-
de
çãoa. É certo que muitos pensadores contemporâneos -
McLuhan a Kerckhove, de Debord a Baudríllard, de Ong a
Lévy buscaram ou continuam a buscar exprimir algo se-
-
melhante por outras vias e com outros argumentos, mas
Flusser fó-lo com uma clareza, com uma precisão, com uma
radicalidade e sobretudo com uma força íncendiária' que
tornT torlos os outros caminhos mais tortuosos, mais áridos,
mais retóricos e estrategicamente menos eficazes.

Arlindo Machado*

8. Vilém Flusser. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo:


Duas Cidades, 1978.
* Professor da universidade de São Paulo, Brasil, nas áreas da comunicação vi-
Sual. Especialista de renome intemacional em alte vídeo, imagem e artes
electró-
nicas, tendo sido comissiário de algumas importantes exposições de arte electró-
nica. Realizador de curtas-metragens de cinema e de diversos trabalhos de multi-
média e de cD-RoM. Dos seus livros destacamos apenas: A llusão Espectacular,
A Arte do Vídeo, Móquina e Imaginório.
PREFACIO A EDIçAO BRASILEIRA

O presente ensaio é resumo de algumas conferências e au-


las que pronunciei sobretudo na França e na Alemanha. A pe-
dido da European Photography, Gõttingen, foram reunidas
neste pequeno livro publicado em alemão em 1983. A reac-
ção do público (não apenas dos fotógrafos, mas sobretudo do
interessado em filosofia) foi dividida, poróm intensa. Em
consequência à polémica criada, escrevi outro ensaio Ins
Universum der technischen Bilder (Adentrando o universo
das imagens técnicas), publicado em 85, onde procuro am-
pliar e aprofundar as reflexões aqui apresentadas.
Estas partem da hipótese segundo a qual seria possível ob-
servar duas revoluções fundamentais na estrutura cultural, tal
como se apresenta, de sua origem até hoje. A primeira, que
ocoffeu aproximadamente em meados do segundo milénio
a.C., pode ser captada sob o rótulo <<invenção da escrita li-
nean> e inaugura a História propriamente dita; a segunda, que
ocoÍïe actualmente, pode ser captada sob o rótulo <<invenção
das imagens técnicas>> e inaugura um modo de ser ainda difi-
cilmente definível. A hipótese admite que outras revoluções
podem ter ocorrido em passado mais remoto, mas sugere que
elas nos escapam.
22 Vilém Flusser

Para que se preserve seu caráter hipotético, o ensaio não ct-


tará trabalhos precedentes sobre temas vizinhos, nem conterá
bibliografia. Espera assim criar atmosfera de aberlura para
campo virgem. Não obstante, incorporará um breve glossário
de termos explícitos e implícitos no argumento, no intuito de
clarear o pensamento e provocar contra-argumentos. As defi-
nições no glossário não se querem teses para defesas, mas hi-
póteses para debates.
A intenção que move este ensaio é contribuir para um diá-
logo filosófico sobre o aparelho em função do qual vive a ac-
tualidade, tomando por pretexto o tema fotografia. Submeto-
GLOSSARIO PARA UMA
FTJ"TURA FILOSOFIA DA FOTOGRAFIA
-o, pois, à apreciação do público brasileiro. Faço-o com es-
perança e com receio. Esperança, porque, ao contrário dos
demais públicos que me lêem, sinto saber para quem estou
falando; receio, por desconfiar da possibilidade de não en- Aparelho: brinquedo que simula um dado tipo de pensa-
contrar reacçáo crítrca. Este prefácio se quer, pois, aceno aos mento.
amigos do outro lado do Atlântico e aos críticos da imprensa.
Aparelho fotográfico: brinquedo que traduz pensamento
conceptual em fotografias.
Que me leiam e não me poupem.
Percebo que editar este ensaio no contexto brasileiro é em-
Autómato: aparelho que obedece a um programa que se de-
presa aventurosa. Quero agradecer aos que nela mergulha- senvolve ao acaso.
ram, sobretudo Maria LíliaLeáo, por sua coragem e amiza- Brinquedo: objecto para jogar.
de. Que sua iniciativa contribua para o diálogo brasileiro. Código: sistema de signos ordenado por regras.
Conceito: elemento constitutivo de texto.
V. F. Conceptualização: capacidade para compor e decifrar textos.
São Paulo, outubro 85 Consciência histórica: consciência da linearidade (por
exemplo, a causalidade).
Decifrar: revelar o significado convencionado de símbolos.
Entropia: tendência para situações cada vez mais prováveis.
Fotografia: imagem tipo-folheto produzida e distribuída
por aparelho.
Fotógrafo: pessoa que procura inserir na imagem informa-
ções imprevistas pelo aparelho fotográfico.
Funcionário: pessoa que brinca com um aparelho e age em
função dele.
24 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 25

História: tradução linearmente progressiva de ideias em Re dundância: inf ormação repetida, portanto, situação pro-
conceitos, ou de imagens em textos. vável.
Ideia: elemento constitutivo da imagem. Rito: comportamento próprio da forma existencial má,gica.
Idolatria: incapacidade de decifrar os significados da ideia, Scaruüng: movimento de <<varrer>> que decifra uma situação.
não obstante a capacidade de a ler, portanto, adoração da Sectores primário e secundório: campos de actividades on-
imagem. de objectos são produzidos e informados.
Imagem: superfície significativa na qual as ideias se inter- Sector tercíário: campo de actividade onde são produzidas
-relacionam magicamente. informações.
Imagem técnica: imagem produzida por aparelho. Significado: meta do signo.
Imaginação'. capacidade para compor e decifrar ima- Signo: fenómeno cuja meta é outro fenómeno.
gens. Símbolo: signo convencionado consciente ou inconsciente-
Info rmaç ão: situação pouco-provável. mente.
Informar: produzir situações pouco-prováveis e imprimi- Sintoma; signo causado pelo seu significado.
-las em objectos. Situação: cena onde são significativas as relações-entre-as-
Instrumento: simulação de um órgáo do corpo humano que -coisas e não as coisas-mesmas.
serve para o trabalho. Sociedade industrial: sociedade onde a maioria das pes-
Jogo: actividade que tem o seu fim em si mesma. soas trabalha com máquinas.
Magia: existência no espaço-tempo do eterno retorno. Sociedade pós-industrial: socredade onde a maioria das
Máquina: instrumento no qual a simulação passou pelo cri- pessoas trabalha no sector terciário.
vo da teoria. Texto: signos da escrita em linhas.
Memória: celeiro de informações. Textolatria: incapacidade de decifrar conceitos nos signos
Objecto: algo contra o qual esbarramos. de um texto, não obstante a capacidade de os ler, portanto,
Objecto cultural: objecto portador de informação impressa adoração do texto.
pelo homem. Trabalho: actividade que produz e informa objectos.
Pós-histórid: processo circular que retraduz textos em ima- Traduzir: mudar de um código para outro, portanto, saltar
gens. de um universo para outro.
Pré-história: domínio de ideias, ausôncia de conceitos; ou Universo; conjunto das combinações de um código, ou dos
domínio de imagens, ausência de textos. significados de um código.
Produção: actividade que transporta o objecto da natureza Valor; dever-se.
paru a cultura. Vólido: algo que é como deve ser.
Programa: jogo de combinação com elementos claros e
distintos.
Realidade; tudo contra o que esbarramos no caminho para
a morte, portanto, aquilo que nos interessa.
1. A IMAGEM

As imagens são superfícies que pretendem representar al-


go. Na maioria dos casos, algo que se encontra lâforu no es-
paço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do es-
forço de se abstrair duas das quatro dimensões espácio-
-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do
plano. Devem a sua origem à capacidade de abstracção espe-
cífica a que podemos chamar imaginaçdo. No entanto, a ima-
ginação tem dois aspectos: se, por um lado, permite abstrair
de duas dimensões dos fenómenos, por outro, permite re-
constituir as duas dimensões abstraídas na imagem. Noutros
termos: a imaginação é a capacidade de codificar fenómenos
de quatro dimensões em símbolos planos e descodificar as
mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de
fazer e decifrar imagens.
O factor decisivo no deciframento de imagens é tratar-se
de planos. O significado da imagem encontra-se na superfí-
cie e pode ser captada por um golpe de vista. No entanto, tal
método de deciframento produzirâ apenas o significado su-
perficial da imagem. Quem quiser <<aprofundar> o significa-
do e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua ïis-
ta vaguear pela superfície da imagem. Este vaguear pela su-
28 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 29

perfície é chamado scanning. O traçado do scanning segue a todas as mediações e que nelas se manifesta de forma in-
estrutura da imagem, mas também os impulsos no íntimo do comparável.
observador. O significado decifrado por este método será, As imagens são mediações entre o homem e o mundo. O
pois, o resultado de síntese entre duas <<intencionalidades>: a homem <<existe>, isto é, o mundo não lhe é acessível imedia-
do emissor e a do receptor. As imagens não são conjuntos de tamente. As imagens têm o propósito de the representar o
símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras: mundo. Mas ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem.
não são <<denotativas>>. As imagens oferecem aos seus recep- O seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser
tores um espaço interpretativo: são símbolos <<conotativos>>. biombos. b homem, ao invés de se servir das imagens em
Ao vaguear pela superfície, o olhar vai estabelecendo rela- função do mundo, passa a viver o mundo em função de ima-
gensl'Cessa de decifrar as cenas da imagem como significa-
ções temporais entre os elementos da imagem: um elemento
é visto após o outro. O olhar reconstitui a dimensão do tem- dos do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado
po. O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para con- como um conjunto de cenas. Esta inversão da função das
templar elementos já vistos. Assim, o <<antes>> torna-se <<de- imagens é a idolatria. Paru o idólatra o homem que vive
pois>>, e o <<depois>> torna-se <<antes>>. O tempo projectado pe- magicamente -
a realidade reflecte imagens. Podemos ob-
lo olhar sobre a imagem é o do eterno retorno. O olhar dia- servar hoje, de-,que forma se processa a magicização da vida:
croniza a sincronicidade ímagética por ciclos. Ao circular pe- as imagens técnicas, actualmente omnipresentes, ilustram a
la superfície, o olhar tende a voltar sempre para os elementos inversão da função imagética e remagicizam a vida.
preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portado- Trata-se de alienação do homem em relação aos seus pró-
res preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai es- prios instrumentos. O homem esquece-se do motivo pelo
tabelecendo relações significativas. O tempo que circula e es- qual as imagens são produzidas: servirem de instrumentos
tabelece relações significativas é muito específico: tempo de para orientá-lo no mundo. A imaginaçã.o torna-se alucinação
magia. Tempo diferente do linear, o qual estabelece relações e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de re-
causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a constituir as dimensões abstraídas. No segundo milénio a.C.,
causa do canto do galo; no circular, o canto do galo dá signi- esta alucinação alcançou o seu apogeu. Surgiram pessoas
ficado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do ga- empenhadas na <<rememoração>> da função originária das
lo. Noutros termos: no tempo da magia, um elemento expli- imagens, que passaram a rasgá-las a fim de abrir a visão pa-
ca o outro, e este explica o primeiro. O significado das ima- ra o mundo concreto escondido pelas imagens. O método do
gens é o contexto mágico das relações reversíveis. rasgamento consistia em desfiar as superfícies das imagens
O carâcter mágico das imagens é essencial para a com- em linhas e alinhar os elementos imagéticos. Eis como foi in-
preensão das suas mensagens. As imagens são códigos que ventada a escrita linear. Tratava-se de transcodificar o tempo
traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que circular em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim
as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por a consciência histórica, consciência dirigida contra as ima-
cenas. E tal poder mágico, inerente à estruturação plana da gens. Facto nitidamente observável entre os filósofos pró-
imagem, domina a dialéctica interna da imagem, própria de -socráticos e sobretudo entre os profetas judeus.
30 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia

A luta da escrita contra a imagem, da consciência histórica em determinados textos da ciência exacta. Deste modo, a hie-
contra a consciência mâgrca caractenza a História toda. E te- rarquia dos códigos vai ser perturbada: embora os textos se-
rá consequências imprevistas. A escrita funda-se sobre a no- jam um metacódigo de imagens, determinadas imagens pas-
va capacidade de codificar planos em rectas e abstrair todas sam a ser um metacódigo de textos.
as dimensões, com excepção de uma: a da conceptualização, No entanto, a situação complica-se ainda mais devido à
que permite codificar textos e decifrá-los. Isto mostra que o contradição interna dos textos. Eles são mediações tanto
pensamento conceptual é mais abstracto que o pensamento quanto o são as imagens. O seu propósito é mediar entre o
imaginativo, pois preserva apenas uma das dimensões do homem e as imagens. Ocorre, porém, que os textos podem ta-
espaço-tempo. Ao inventar a escrita, o homem afastou-se ain- par as imagens que pretendem representar algo para o ho-
da mais do mundo concreto quando, efectivamente, pretendia mem. Este passa a ser incapaz de deçifrar os textos, não con-
aproximar-se dele. A escrita surge de um passo para aquém seguindo reconstituir as imagens abstraídas. Passa a viver já
das imagens e não de um passo em direcção ao mundo. Os não para se servir dos textos, mas em função destes. Surge a
textos não significam o mundo directamente, mas através de textolatria, tão alucinatória como a idolatria. Exemplo im-
imagens rasgadas. Os conceitos não significam fenómenos, pressionante de textolatnaé a <fidelidade ao texto>>, tanto nas
significam ideias. Decifrar textos é descobrir as imagens sig- ideologias (cristã, marxista, etc.), quanto nas ciências exac-
nificadas pelos conceitos. A função dos textos é explicar ima- tas. Tais textos passam a ser inimagináveis, como o é o uni-
gens, a dos conceitos é analisar cenas. Noutros termos: a es- verso das ciências exactas: não pode e não deve ser imagina-
cnta é o metacódigo da imagem. do. No entanto, como o derradeiro significado dos conceitos
A relação texto-imagem é fundamental para a compreen- são imagens, o discurso científico passa a ser composto de
são da história do Ocidente. Na Idade Média, assume a for- conceitos vazios; o universo da ciência torna-se um universo
ma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo imagó- vazio. A textolatria assumiu proporções críticas no percurso
tico; na Idade Modema, luta entre a ciência textual e as ideo- do século passado.
logias imagéticas. A luta, porém, é dialéctica. À medida que A crise dos textos implica o naufrágio da História toda, que
o cristianismo vai combatendo o paganismo, ele próprio vai é, estritamente, o processo de recodificação de imagens em
absorvendo as imagens e pagantzando-se; à medida que a conceitos. A História é a explicação progressiva de imagens,
ciência vai combatendo as ideologias, vai ela própria absor- desmagicização, conceptualízação. Lá, onde os textos jânão
vendo imagens e ideologizando-se. Porque ocoÍre isto? Em* significam imagens, nada resta a explicar, e a história pára.
bora os textos expliquem as imagens a fim de rasgá-las, as Em tal mundo, as explicações passam a ser supérÍIuas: um
imagens sáo capazes de ilustrar textos, a fim de remagicízá- mundo absurdo, o mundo da actualidade.
-Ios. Graças a esta dialéctica imaginação e conceptualização, Pois é precisamente num tal mundo que estão a ser inven-
que mutuamente se negam, vão-se mutuamente reforçando. tadas as imagens técnicas. E em primeiro lugar, as fotogra-
As imagens tornam-se cadavez mais conceptuais e os textos fias, a fim de ultrapassar a crise dos textos.
cada vez mais imagéticos. Actualmente, o maior poder con-
ceptual reside em certas imagens e o maior poder imagético
2. A IMAGEM TÉCNICA

Trata-se da imagem produzida por aparelhos. Os aparelhos


são produtos da técnica que, por sua vez, é um texto científi-
co aplicado. As imagens técnicas são, portanto, produtos in-
directos de textos, o que lhes confere uma posição histórica e
ontológica diferente da das imagens tradicionais. Historica-
mente, as imagens tradicionais precedem os textos em milha-
res de anos, e as imagens técnicas sucedem aos textos alta-
mente evoluídos. Ontologicamente, a imagem tradicional é
uma abstracção de prrqteiro grau: abstrai duas dimensões do
fenómeno concreto; a imagem técnica é uma abstracção de
terceiro grau, abstrai uma das dimensões da imagem tradi-
cional para resultar em textos (abstracção de segundo grau);
depois, reconstituem a dimensão abstraída, a fim de resultar
novamente em imagem. Historicamente, as imagens tradicio-
nais são pré-históricas; as imagens técnicas são pós-
-históricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais <<ima-
ginam> o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que
concebem imagens que imaginam o mundo. Essa posição das
imagens técnicas é decisiva para o seu deciframento.
Elas são dificilmente decifráveis pela razáo curiosa de que
aparentemente não necessitam de ser decifradas. Aparente-
34 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 35

mente, o significado das imagens técnicas imprime-se de for- vemos ao contemplar as imagens técnicas náo é <<o mundo>>,
ma automática sobre as suas superfícies, como se fossem im- mas determinados conceitos relativos ao mundo, a despeito
pressões digitais onde o significado (o dedo) é a causa, e a da automaticidade da impressão do mundo sobre a superfície
imagem (o impresso) é o efeito. O mundo representado pare- da imagem.
ce ser a causa das imagens técnicas, e elas próprias parecem No caso das imagens tradicionais, é fâcll verificar que se
ser o último efeito de uma complexa cadeia causal que parte trata de símbolos: há um agente humano (pintor, desenhador)
do mundo. O mundo a ser representado reflecte raios que vão que se coloca entre elas e o seu significado. Este agente hu-
sendo fixados sobre superfícies sensíveis, graças a processos mano elabora símbolos <<na sua cabeça>>, transfere-os para a
ópticos, químicos e mecânicos, assim surgindo a imagem. mão munida de pincel, e de lâ, para a superfície da imagem.
Aparentemente, pois, imagem e mundo encontram-se no mes- A codificação processa-se <<na cabeça> do agente humano, e
mo nível do real: são unidos por uma cadeia inintemrpta de quem se propõe decifrar a imagem deve saber o que se pas-
causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ser um sou em tal <<cabeça>>. No caso das imagens técnicas, a situa-
símbolo e não precisar de deciframento. Quem vê a imagem ção é menos evidente. Por certo, há também um factor que se
técnica parece ver o seu significado, embora indirectamente. interpõe (entre elas e o seu significado): um aparelho e um
;
O carâcÍer aparentemente não-simbólico, objectivo, das agente humano que o manipula (fotógrafo, cineasta). Mas tal
imagens técnicas faz com que o seu observador as olhe como complexo <<aparelho-operador>> parece não interromper o elo
se fossem janelas e não imagens.'lO obseruador confia nas entre a imagem e o seu significado. Pelo contrário, parece ser
imagens técnicas tanto quanto confia nos seus próprios olhos. o canal que liga imagem e significado. Isto porque o comple-
Quando critica as imagens técnicas (se é que as critica), não xo <<aparelho-operador>> é demasiadamente complicado para
o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo. Es- que possa ser penetrado: é uma caixa negra e o que se vê é
sa atitude do observador face às imagens técnicas caracteiza apenas o input e o output Quem vê, o input e o output vê o
a situação actual, onde tais imagens se preparam para elimi- canal e não o processo codificador que se passa no interior da
nar os textos. Algo que apresenta consequências altamente caixa negra. Qualquer crítrca da imagem técnica deve visar o
perigosas. branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa,
A aparente objectividade das imagens técnicas é ilusória, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens téc-
pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as nicas. Não sabemos como decifrá-las.
imagens.'Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes Contudo, podemos afirmar algumas coisas a seu respeito,
o significado)'Com efeito, elas são símbolos extremamente sobretudo o seguinte: as imagens técnicas,longe de serem ja-
abstractos: codificam textos em imagens, são metacódigos de nelas, são imagens superfícies que transcodificam processos
textos. A imaginação, à qual devem a sua origem, é a capaci- em cenas. Como todas as imagens, é também mágica e o seu
dade de codificar textos em imagens. Decifrá-las é reconsti- observador tende a projectar essa magia sobre o mundo. O
tuir os textos que tais imagens significam. Quando as ima- fascínio mágico que emana das imagens técnicas é palpável,
gens técnicas são correctamente decifradas, surge o mundo a qualquer instante, naquilo que nos envolve. Vivemos, cada
conceptual, como sendo o seu universo de significado. O que vez mais obviamente, em função de uma tal magia imagétï
36 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia JI

ca: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos, cada se tenham dado conta disto). As fotografias foram inventa_
vez mais, em função de tais imagens. Urge analisar que tipo das, no século XIX, a fim de remagicizarem os textos (em-
de magia é esta. bora os seus inventores não se tenham dado conta disto). A
Claro está que a magia das imagens técnicas não pode ser invenção das imagens técnicas é, comparátvel, quanto à sua
idêntica à magia das imagens tradicionais: o fascínio da tele- importância histórica, à invenção da escrita./Os textos foram
visão e do ecrã de cinema não pode rivahzar com o que ema- inventados num momento de crise das imagens, a fim de ul_
na das paredes de cavema ou de um túmulo etrusco. Isto por- trapassar o perigo da idolatriaÌnAs imagens técnicas foram in-
que a televisão e o cinema não se colocam ao mesmo nível ventadas no momento de crise dos textos, a fim de ultrapas_
histórico e ontológico do homem da caverna ou dos etruscos. sar o perigo da textolatria. Esta intenção implícita das ima_
A nova magia não precede, mas sucede à consciência históri- gens técnicas precisa de ser explicitada.
ca, conceptual, desmagícizante. A nova magia não visa mo- A invenção da imprensa e a introdução da escola obrigató_
dificar o mundo lá. fora, como o faz a pré-história, mas os ria generalìzaram a consciência histórica; todos sabiamler e
nossos conceitos em relação ao mundo. É uma magia de se- escrever, passando a viver <<historicamente>>, inclusive cama_
gunda ordem: feitiço abstracto. Tal diferença pode ser for- das até então sujeitas à vida mâgica: o campesinato proleta_
mulada da seguinte maneira: a magia pré-histórica t'rtualiza rizou-se. Tal consciencializaçáo deu-se graças a textos bara_
determinados modelos, mitos. A magia actual ritualiza outro tos: livros', jomais, panfletos. Simultaneamente todos os tex_
tipo de modelo: programa* O mito não é elaborado no inte- tos se tornaram mais baratos (inclusive o que está a ser escri-
rior da transmissão, já que é elaborado por um <<deus>>. O to). O pensamento conceptual barato venceu o pensamento
programa é o modelo elaborado no próprio interior da trans- mágico-imagético com dois efeitos inesperados. por um lado,
missão, por <funcionários>. A nova magia é aritualização de as imagens protegiam-se dos textos baratos, refugiando-se
programas, visando programar os seus receptores para um em ghettos chamados <<museus>) e <<exposições>>, deixando de
comportamento mágico programado. Os conceitos <<progra- influir na vida quotidiana. Por outro lado, surgiram textos
ma>) e <funcionário>> serão considerados nos capítulos se- herméticos (sobretudo os científicos), inacessíveis ao pensa-
guintes deste ensaio. Neste ponto do argumento, trata-se de mento conceptual barato, a fim de se salvarem da inflação
captar afunção da magia. textual galopante. Deste modo, a cultura ocidental dividiu-se
A função das imagens técnicas é a de emancipar a socie- em três ramos: a imaginação marginalizadapela sociedade, o
dade da necessidade de pensar conceptualmente. As imagens pensamento conceptual herméticci e o pensamento concep_
técnicas devem substituir a consciência histórica por uma tual barato. uma cultura assim dividida não pode sobrevivèr,
consciência mágica de segunda ordem. Substituir a capacida- a não ser que seja reunificada. A tarefa das imagens técnicas
de conceptual por capacidade imaginativa de segunda ordem. é restabelecer o código geral para reunificar a cultura.
E é neste sentido que as imagens técnicas tendem a eliminar Mais exactamente: o propósito das imagens técnicas era
os textos. Foi com esta finalidade que foram inventadas. Os reintroduzir as imagens na vida quotidiana, tornar <imaginá-
textos foram inventados, no segundo milénio a.C., a fim de veis>> os textos herméticos, e tornar visível a magia sublimi-
desmagicizarem as imagens (embora os seus inventores não nar que se escondia nos textos baratos. Ou seja, as imagens
38 Vilém Flusser

técnicas (e, em primeiro lugar, a fotografia) deviam constituir


o denominador comum entre o conhecimento científico, a ex-
periência artística e a vivência política de todos os dias. To-
das as imagens técnicas deviam ser, simultaneamente, conhe-
cimento (verdade), vivência (beleza) e modelo de comporta-
mento (bondade). Na realidade, porém, a revolução das ima-
gens técnicas tomou um rumo diferente: não totnam visível o
conhecimento científico, mas falseiam-no; não reintroduzem
as imagens tradicionais, mas substituem-nas; não tornam vi-
sível a magia subliminar, mas substituem-na por outra. Nes-
te sentido, as imagens técnicas passam a ser <<falsas>>, <<feias>> 3. O APARELHO
e <<ruins>>; além de não terem sido capazes de reunificar a cul-
tura, mas apenas de fundir a sociedade numa massa amorfa.
Por que sucedeu isto? Porque as imagens técnicas se esta- As imagens técnicas são produzidas por aparelhos. Como
beleceram em barragens. Os textos científicos desembocam primeira delas, foi inventada a fotografia. O aparelho foto-
nas imagens técnicas, deixam de fluir e passam a circular ne- grâfico pode servir de modelo para todos os aparelhos carac-
las. As imagens tradicionais desembocam nas técnicas e pas- tedsticos da actualidade e do futuro imediato. Analisá-lo é
sam a ser reproduzidas em eterrìo retomo. E os textos baratos um método eficaz para captar o essencial de todos os apare-
desembocam nas imagens técnicas para aí se transformarem lhos, desde os gigantescos (como os administrativos) até aos
em magia programada. Tudo, actualmente, tende para as ima- minúsculos (como os chips), que se instalam por toda parte.
gens técnicas: elas são a memória eterna de todo o empenho. Pode-se perfeitamente supor que todos os traços possíveis
Qualquer acto científico, artístico e político visa eternizar-se dos aparelhos já estão prefigurados no aparelho fotográfico,
em imagem técnica, visa ser fotografado, filmado, vídeogra- aparentemente tão inócuo e <<primitivo>.
vado. Como a imagem técnica é ameta de qualquer acto, es- Antes de mais nada, é preciso haver acordo sobre o signi-
te deixa de ser histórico, passando a ser um ritual de magia. ficado do aparelho, já que não há consenso para este termo.
Um gesto eternamente reconstituível segundo o programa. Etimologicamente, a palavra latina apparatus deriva dos ver-
Com efeito, o universo das imagens técnicas vai-se estabele- bos adparare e praeparare. O primeiro indica <<a prontidão
cendo como a plenitude dos tempos. E, apenas se considera- para algo>; o segundo, <<disponibilidade em prol de algo>. O
da sob tal ângulo apocalíptico, é que a fotografia adquire os primeiro verbo implica o <<estar à espreita para saltar por ci-
seus devidos contornos. ma de algo>; o segundo, o <<estar à espera de algo>. Esse ca-
râcter de animal feroz prestes a lançar-se, implícito na raiz do
termo, deve ser mantido ao tratar-se de aparelhos.
Obviamente, a etimologia não basta para definirmos os
aparelhos. Deve-se perguntar, antes de mais nada, pela sua
40 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 4l

posição ontológica. Sem dúvida, trata-se de objectos produ- produzir, já que as fotografias parecem ser informação quase
zidos, isto é, objectos trazidos da natureza para o homem. O pura?
conjunto de objectos produzidos perfaz a cultura. Os apare- Os instrumentos são prolongamentos de órgãos do corpo:
lhos fazem parte de determinadas culturas, conferindo a estas dentes, dedos, mãos, braços prolongados. Por serem prolon-
ceftas características. Não há dúvida que o termo aparelho é gamentos, alcançam mais extensa e profundamente a nature-
utilizado às vezes, para denominar fenómenos da natuÍezai za, sáo mais poderosos e eficientes. Os instrumentos simulam
por exemplo, <<aparelho digestivo>>, por se tratar de órgãos o órgão que prolongam: a enxada, o dente; a flecha, o dedo;
complexos que estão à espreita de alimentos para enfim o martelo, o punho. São <empíricos>. Graças à revolução in-
digeri-los. Sugiro, porém, que se trata de um uso metafórico, dustrial, passam a recoffer a teorias científicas no curso da
transporte de um termo cultural para o domínio da natureza. sua simulação de órgãos. Passam a ser <<técnicos>>. Tornam-
Se não fosse a existência de aparelhos na nossa cultura, não -se, deste modo, ainda mais poderosos, mas também maiores
poderíamos falar em <<aparelho digestivo>. e mais caros, produzindo obras mais baratas e mais numero-
Grosso modo, há dois tipos de objectos culturais: os que sas. Passam a chamar-se <<máquinas>>. Será então, o aparelho
são bons para serem consumidos (bens de consumo) e os que fotográfico uma <<máquino> por simular o olho e recoffer a
são bons para produzirem bens de consumo (instrumentos). teorias ópticas e químicas, ao fazê-lo?
Todos os objectos culturais são bons, isto é: são como devem Quando os instrumentos se transformaram em máquinas, a
ser, contêm valores. Obedecem a determinadas intenções hu- sua relação com o homem invefteu-se. Antes da revolução in-
manas. É esta a diferença entre as ciências danattrezae as da dustrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as má-
cultura: as ciências culturais procuram a intenção que se es- quinas eram por eles cercadas. Antes, o homem era a cons-
conde nos fenómenos, por exemplo, no aparelho fotográfico, tante da relação e o instrumento era avanâvel; depois, amâ-
poftanto, segundo um tal critério, o aparelho fotográfico pa- quina passou a ser relativamente constante. Antes, os instru-
rece ser instrumento. A sua intenção é produzir fotografias. mentos funcionavam em função do homem; depois, grande
Aqui surge a dúvida: as fotografias serão bens de consumo parte da humanidade passou a funcionar em função das má-
como bananas ou sapatos? O aparelho fotográfico será um quinas. Será isto válido para os aparelhos? Podemos afirmar
instrumento como é o facáo produtor de bananas, ou a agulha que os óculos (tomados como proto-aparelhos fotográficos)
produtora de sapatos? funcionavam em função do homem, e hoje, o fotógrafo, em
Os instrumentos têm a intenção de arrancar objectos da na- função do aparelho?
tureza para aproximá-los do homem. Ao fazê-lo, modificam O tamanho e o preço das máquinas faz com que apenas
a forma desses objectos. Este produzir e informar chama-se poucos homens as possuam: os capitalistas. A maioria fun-
<trabalho>>. O resultado chama-se <<obrâ>. No caso da bana- ciona em função delas: o proletariado. Deste modo, a socie-
na, a produção é, mais acentuada que a informação; no caso dade divide-se em duas classes: os que usam as máquinas em
do sapato, é a informação que prevalece. Os facões produzem seu próprio proveito e os que funcionam em função de tal
sem informarem muito, as agulhas informam muito mais. Se- proveito. Isto vale para os aparelhos? O fotógrafo será o pro-
rão os aparelhos agulhas exageradas que informam sem nada letário e haverá vm foto-capitalista?
42 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 43

Nestas perguntas, sente-se que, embora razoâveis, não fe- trabalho no sentido tradicional) está a ser exercida por apare-
rem ainda o problema do aparelho. Os aparelhos por certo in- lhos. E esta actividade vai dominando, programando e contro-
formam, simulam órgãos, recoffem a teorias, são manipula- lando todo o trabalho, no sentido tradicional do termo. Amaio-
dos por homens e servem interesses ocultos. Mas não é isto ria da sociedade está empenhada nos aparelhos dominadores,
que os caractenza. As perguntas acima não são nada interes- programadores e controladores. Outrora, antes de os aparelhos
santes, quando se trata de aparelhos. Provêm, todas elas do serem inventados, este tipo de actividade chamava-se <<terciá-
terreno industrial, quando os aparelhos, embora produtos in- na>>, jâ que não dominava" Actualmente, ocupa o centro da ce-
dustriais, já apontam para além do industrial: são objectos na. Querer definir os aparelhos é querer elaborar categorias
pós-industriais. Daí que as <<perguntas industriais>> (por apropriadas à cultura pós-industrial que está a surgir.
exemplo, as marxistas) já não sejam competentes para os Se considerannos o aparelho fotográfico sob tal prisma,
aparelhos. Daí a nossa dificuldade em defini-los: os apare- constataremos que o <<estar programado>> é que o catactenza.
lhos são objectos do mundo pós-industrial, para o qual ainda As superfícies simbólicas que produz estão, de alguma for-
não dispomos de categorias adequadas. ma, inscritas previamente (<<programadas>>, <<pré-escritas>)
A categoria fundamental do terreno industrial (e também por aqueles que o produziram. As fotografias são realizações
do pré-industrial) é o trabalho. Os instrumentos trabalham. de algumas das potencialidades inscritas no aparelho. O nú-
Arrancam objectos da natureza e enformam-nos. Os apare- mero de potencialidades é grande, mas limitado: é a soma de
lhos não trabalham. A sua intenção não é a de <<modificar o todas as fotografias fotografáveis por este aparelho. A cada
mundo>>. Visam modificar a vida dos homens. Deste modo, fotografia reahzada, diminui o número de potencialidades,
os aparelhos não são instrumentos no significado tradicional aumentando o número de reahzações: o programa vai-se es-
do termo. O fotógrafo não trabalha e faz pouco sentido gotando e o universo fotográfico vai-se realizando. O fotó-
chamar-lhe <<proletário>>. Já que, actualmente, a maioria dos grafo age em prol do esgotamento do programa e em prol da
homens está empenhada nos aparelhos, não faz sentido falar- realização do universo fotográfico. Já que o programa é mui-
-se em <<proletariado>>. Devemos repensar as nossas catego- to <<rico>>, o fotógrafo esforça-se por descobrir potencialida-
rias, se quisermos analisar a nossa cultura. des ignoradas. O fotógrafo manipula o aparelho, apalpa-o,
Embora os fotógrafos não trabalhem, agem. Este tipo de ac- olha para dentro e através dele, a fim de descobrir sempre no-
tividadè sempre existiu. O fotógrafo produz símbolos, vas potencialidades. O seu interesse está concentrado no apa-
manipula-os e arïnazena-os. Escritores, pintores, contabilistas, relho e o mundo láfora só interessa em função do programa.
administradores sempre fizeram o mesmo. O resultado deste Não está empenhado em modificar o mundo, mas em obrigar
tipo de actividade são as mensagens: livros, quadros, contas, o aparelho a revelar as suas potencialidades. O fotógrafo não
projectos. Não servem para serem consumidos, mas para in- trabalha com o aparelho, mas brinca com ele. A sua activida-
formar: serem lidos, contemplados, analisados e levados em de evoca a do xadrezista: este também procura um'lance <<no-
conta nas decisões futuras. Estas pessoas não são trabalhado- vo>>, a fim de realizar uma das virtualidades ocultas no pro-
rcs mas informadores. Pois actualmente, a actividade de pro- grama do jogo. Esta comparaçáo facilita a definição que ten-
dnzir, manipular e aÍmazenaÍ símbolos (actividade que não é tamos formular.
44 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 45

O aparelho ó um brinquedo e não um instrumento, no sen- zet para que ela cuspa fotografias. Domina o aparelho sem,
tido tradicional. O homem que o manipula náo é um traba- no entanto, saber o que se passa no interior da caixa. Pelo do-
lhador, mas um jogador: jâ náo homo faber, mas homo Iu- mínio do input e do output, o fotógrafo domina o aparelho,
dens.Este homem não brinca com o seu brinquedo, mas con- mas pela ignorância dos processos no interior da caixa, é por
tra ele. Procura esgotar-lhe o programa. Por assim dizer: pe- ele dominado. Esta amâlgama de dominações funcionário
netra no aparelho, a fim de descobrir-lhe as manhas. Deste a dominar o aparelho que o domina -
caractenzatodo o fun-
modo, o <<funcionário> não se encontra cercado de instru- cionamento dos aparelhos. Noutras -palavras: os funcionários
mentos (como o artesão pré-industrial), nem está submisso à dominam jogos para os quais não podem ser totalmente com-
máquina (como o proletário industrial), mas encontra-se no petentes.
interior do aparelho. Trata-se de uma função nova, na qual o Os programas dos aparelhos são compostos de símbolos
homem não é a constante nem a variável, mas está indelevel- permutáveis. Funcionar é permutar símbolos programados.
mente amalgamado ao aparelho. Em todas as funções do apa- Um exemplo anacrónico pode ilustrar este jogo: 6 escritor
relho, funcionário e aparelho confundem-se. pode ser considerado um funcionário do aparelho <<língua>>.
Para funcionar, o aparelho precisa de um programa <<rico>>. Brinca com os símbolos contidos no programa linguístico,
Se fosse <<pobre>>, o funcionário esgotá-lo-ia e isto seria o fim com <<palavras>, permutando-or r"gunão ã, ,"g.urìo pro-
do jogo. As potencialidades contidas no programa devem ex- grama. Deste modo, vai esgotando as potencialidades do pro-
ceder a capacidade do funcionário para esgotá-las. A compe- grama linguístico e enriquecendo o universo linguístico, a
tência do aparelho deve ser superior à competência do fun- <<literatura>>. O exemplo é anacrónico porque a língua não é
cionário. A competência do aparelho fotográfico deve ser su- um verdadeiro aparelho. Não foi produzida deliberadamente,
perior em número de fotografias à competência do fotógrafo nem recoffeu a teorias científicas para a sua produção, como
que o manipula. Noutros termos: a competência do fotógrafo no caso dos aparelhos verdadeiros.'Mas serve de exemplo ao
deve ser apenas parte da competência do aparelho. Deste mo- funcionamento dos aparelhos.
do, o programa do aparelho deve ser impenetrável, na sua to- O escritor enforma objectos durante o seu jogo: coloca le-
talidade, para o fotógrafo. Na procura de potencialidades es- tras sobre páginas brancas. Estas letras são símbolos deci-
condidas no programa do aparelho, o fotógrafo perde-se nele. fráveis. Os aparelhos fazem o mesmo. Há aparelhos, porém,
Um sistema assim tão complexo jamais é penetrado total- que o fazem <<melhon> que os escritores, pois podem enfor-
mente e pode chamar-se caixa negra. Se o aparelho fotográ- mar objectos com símbolos que não significam fenómenos,
fico não fosse uma caixa negra, de nada serviria ao jogo do como no caso das letras, mas que significam movimentos
fotógrafo: seria um jogo infantil, monótono. O negrume da dos próprios objectos. Estes objectos assim enformados vão
caixa é o seu desafio, porque, embora o fotógrafo se perca na decifrar os símbolos e passam a movimentar-se. Por exem-
sua barriga negra, consegue, curiosamente, dominá-la. O plo: podem executar os movimentos do trabalho. São instru-
aparelho funciona, efectiva e curiosamente, em função da in- mentos inteligentes. Podem, portanto, substituir o trabalho
tenção do fotógrafo. Isto porque o fotógrafo domina o input humano. Emancipam o homem do trabalho, libertando-o pa-
e o output da caixa: sabe com que <<alimentá-lu e como fa- ra o jogo.
46 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia

O aparelho fotográfico ilustra o facto: enquanto objecto, resses, como no caso das máquinas. O aparelho fotográfico
está programado para produzir, automaticamente, fotogra- funciona em função dos interesses da fátbrica, e esta, em fun-
fias. Neste aspecto, é um instrumento inteligente. E o fotó- ção dos interesses do parque industrial. E assim ad ffinitum.
grafo, emancipado do trabalho, é libertado para brincar com Perdeu-se o sentido da pergunta: quem é o proprietário dos
o aparelho. O aspecto instrumental do aparelho passa a ser aparelhos? O decisivo em relação aos aparelhos não é quem
desprezível, e o que interessa é apenas o seu aspecÍo brin- os possui, mas quem esgota o seu programa.
quedo. Quem quiser captaÍ a essência do aparelho, deve pro- O aparelho fotográfico é, por certo, um objecto duro, feito
curar distinguir o aspecto instrumental do seu aspecto brin- de plástico e aço. Mas não é isso que o torna um brinquedo.
quedo, coisa nem sempre fácil, porque implica o problema da Não é a madeira do tabuleiro e das pedras que torna o xadrez
hierarquia de programas, problema central paraa captação do dogo". São as virtualidades contidas nas regras: o sof-tware.
funcionamento. O aspecto duro dos aparelhos náo é o que lhes confere valor.
Uma distinção deve ser feita: hardware e sofnuare. E;n- Ao comprar um aparelho fotográfico, não pago pelo plástico
quanto objecto duro, o aparelho fotográfico foi programado e aço, mas pelas virtualidades de realizar fotografias. De res-
para produzir automaticamente fotografias; enquanto coisa to, o aspecto duro dos aparelhos vai-se tornando cada vez
mole, impalpável, foi programado para permitir ao fotógrafo mais barato e já existem aparelhos praticamente gratuitos. É
fazer com que as fotografias deliberadas sejam produzidas o aspecto mole, impalpável e simbólico o verdadeiro porta-
automaticamente. São dois programas que se co-implicam. dor de valor no mundo pós-industrial dos aparelhos. Trans-
Por trás destes, há outros. O da fábrica de aparelhos fotográ- valonzaçáo dos valores; não é o objecto, mas o símbolo que
ficos: um aparelho programado para programar aparelhos. O vale.
do parque industrial: um aparelho programado para progra- Por conseguinte, jânáo vale a pena possuir objectos. O po-
mar indústrias de aparelhos fotográficos e outros. O der passou do proprietátrio paru o programador de sistemas.
económico-social: um aparelho programado para programar Quem possui o aparelho não exerce o poder, mas quem o pro-
o aparelho industrial, comercial e administrativo. O político- grama e quem realiza o programa. O jogo com os símbolos
-cultural: um aparelho programado para programar aparelhos passa a ser um jogo de poder. Trata-se, porém, de um jogo
económicos, culturais, ideológicos e outros. Não pode haver hierarquicamente estruturado. O fotógrafo exerce poder so-
um <<último>> aparelho, nem um <<programa de todos os pro- bre quem vê as suas fotografias, programando os receptores.
gramas)>. Isto porque qualquer programa exige um metapro- O aparelho fotográfico exerce poder sobre o fotógrafo. A in-
gtama para ser programado. A hierarquia dos programas está dústria fotográfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad
aberta para cima. infinitum. No jogo simbólico do poder, este dilui-se e
lsto implica o seguinte: os programadores de determinado desumaniza-se. Eis o que são a <<sociedade informáticu e o
programa são funcionários de um metaprograma, e não pro- <imperiali smo pós-industrial>>.
gramam em função de uma decisão sua, mas em função do Estas considerações permitem ensaiar a definição do termo
metaprograma. Deste modo, os aparelhos não podem ter pro- aparelho. Trata-se de um brinquedo complexo; tão complexo
prietários que os utilizem em função dos seus próprios inte- que jamais poderá ser inteiramente esclarecido. O seu jogo
48 Vilém Flusser

consiste na permutação de símbolos já contidos no programa.


Este programa deve-se a meta-aparelhos. O resultado do jo-
go são outros programas. O jogo do aparelho implica agentes
humanos, <<funcionários>, salvo em casos de automação total
dos aparelhos. Historicamente, os primeiros aparelhos (foto-
grafia e telegrafia) foram produzidos como simulações do
pensamento, humano, tendo, para tanto, recorrido a teorias
científicas. Flq s_Uma: os aparelhos sáo caixas negras que si-
mulam o pensamento humano, graças a teorias científicas, as
quais, como o pensamento humano, permutam símbolos con-
tidos na sua <<memória>>, no seu programa. Caixas negras que 4. O GESTO DE FOTOGRAFAR
brincam ao pensamento.
O aparelho fotográfico é o primeiro, o mais simples e rela-
tivamente mais transparente de todos os aparelhos. O fotó- Quem observar os movimentos de um fotógrafo munido de
grafo é, o primeiro <<funcionário>>, o mais ingénuo e o mais aparelho (ou de um aparelho munido de fotógrafo) estará a
passível de ser analisado. No entanto, no aparelho fotográfi- observar um movimento de caça. O antiquíssimo gesto do ca-
co e no fotógrafo já estão, como gerïnes, contidas todas as çador paleolítico que persegue a caça na tundra, com a dife-
virtualidades do mundo pós-industrial. Sobretudo, torna-se rença de que o fotógrafo não se movimenta na pradaria aber-
observável na actividade fotográfica, a desvalonzaçáo do ob- ta, mas na floresta densa da cultura. O seu gesto é, pois, es-
jecto e avalonzação da informação como sede do poder. Por- truturado por essa taiga artificial, qualquer fenomenologia do
tanto, a análise do gesto de fotografar, este movimento do gesto fotogrâfico deve levar em consideração os obstáculos
complexo <<aparelho-fotógrafo>, pode ser um exercício para contra os quais o gesto choca: reconstituir a condição cultu-
a análise da existência humana em situação pós-industrial, ral do gesto.
aparelhizada. A selva consiste em objectos culturais, portanto objectos
que contêm intenções determinadas. Estes objectos intencio-
nalmente produzidos vedam ao fotógrafo a visão da caça. E
cada fotógrafo é vedado à sua maneira. Os caminhos tortuo-
sos do fotógrafo visam driblar as intenções escondidas nos
objectos. Ao fotografar, avança contra as intenções da sua
cultura. Por isso, fotografar é um gesto diferente, conforme
ocoffa na selva de uma cidade ocidental ou de uma cidade
subdesenvolvida, numa sala de estar ou num campo cultiva-
do. Decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o de-
ciframento das condições culturais dribladas.
50 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 51

A tarefa é difícil. Isto porque as condições culturais não de output do aparelho, de forma, a que, por exemplo, este
transparecem, directamente, na imagem fotográfica, mas capte a caça como um relâmpago lateral vindo de baixo. O
através da triagem das categorias do aparelho. A fotografia fotógrafo <<escolhe>>, por entre as categorias disponíveis, as
não permite ver a condição cultural, mas apenas as categorias que lhe parecem mais convenientes. Neste sentido, o apare-
do aparelho, por intermédio das quais aquela condição foi lho funciona em função da intenção do fotógrafo. Mas a sua
<<tomado>. Em fenomenologia fotogrâfica, Kant é inevitável. <<escolho> é limitada pelo número de categorias inscritas no
As categorias fotográficas inscrevem-se no lado de output aparelho: uma escolha programada. O fotógrafo não pode in-
do aparelho. São categorias de um espaço-tempo fotográfico, ventar novas categorias, a não ser que deixe de fotografar e
que não é nem newtoniano nem einsteiniano. Trata-se de um passe a funcionar nafâbnca que programa os aparelhos. Nes-
espaço-tempo nitidamente dividido em regiões, que são, to- te sentido, aprópna escolha do fotógrafo funciona em função
das elas, pontos de vista sobre a caça. Um espaço-tempo cu- do programa do aparelho.
jo centro é o <<objecto fotografável>>, cercado de regiões de A mesma involução engrenada das intenções do fotógrafo
pontos de vista. Por exemplo: há uma região espacial para vi- e o aparelho pode ser constatada na escolha da caça. O fotó-
sões muito próximas, outra para visões intermediárias, outra grafo regista tudo: um rosto humano, uma pulga, um traço de
ainda para visões amplas e distanciadas. Há regiões espaciais uma parlícula atómica na càmara Wilson, o interior do seu
para perspectivas de pássaro, outras para perspectivas de sa- próprio estômago, uma nebulosa espiral, o seu próprio gesto
po, outras para perspectivas de criança. Há regiões espaciais de fotografar ao espelho. O fotógrafo crê que está a escolher
para visões directas com olhos arcaicamente abertos, e re- livremente. Na realidade, porém, o fotógrafo só pode foto-
giões para visões laterais com olhos ironicamente semifecha- grafar o fotografável, isto é, o que está inscrito no aparelho.
dos. Há regiões temporais para um olhar-relâmpago, outras E para que algo seja fotografâvel, deve ser transcodificado
para um olhar sorrateiro, outras para um olhar contemplativo. em cena. O fotógrafo não pode fotografar processos. O apa-
Estas regiões formam uma rede, por cujas malhas, a condição relho <<programa>> o fotógrafo para transcodificar tudo em ce-
cultural vai aparecer para ser registada. na, para magicizar tudo. Neste sentido, o fotógrafo funciona,
Ao fotografar, o fotógrafo salta de região para região, por ao escolher a sua caça, em função do aparelho. É .rm
cima de barreiras. Muda de um tipo de espaço e um tipo de aparelho-fera.
tempo para outros tipos. As categorias de tempo e espaço são Aparentemente, ao escolher a sua caça e as categorias
sincronizadas de forma a poderem ser permutadas. O gesto apropriadas a ela, o fotógrafo pode recorrer a critérios alheios
fotográfico é um jogo de permutação com as categorias do ao aparelho. Por exemplo: ao recoÍrer a critérios estéticos,
aparelho. A fotografia revela os lances dessejogo, lances es- políticos, epistemológicos, a sua intenção serâ a de produzir
tes que são, precisamente, o método fotográfico para driblar imagens belas ou politicamente comprometidas ou que tra-
as condições da cultura. O fotógrafo emancipa-se da sua con- gam conhecimentos. Na realidade, tais critérios estão, eles
dição cultural graças ao seujogo com as categorias. também, programados no aparelho. Da seguinte maneira: pa-
As categorias estão inscritas no programa do aparelho e ra fotografar, o fotógrafo precisa, antes de mais nada, de con-
podem ser manipuladas. O fotógrafo pode manipular o lado ceber a sua intenção estética, política, etc.; porque necessita
52 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 53

de saber o que está a fazer ao manipular o lado de output do quando aparecerem na fotografia. Antes não passam de vir-
aparelho. A manipulação do aparelho é um gesto técnico, is- tualidades. O fotógrafo-e-o-aparelho é que as realiza.Inver-
to é, um gesto que articula conceitos. O aparelho obriga o fo- são do vector da significação: não é o significado, mas o sig-
tógrafo a transcodificar a sua intenção em conceitos, antes de nificante que é a realidade. A fotografia é a realidade; não o
poder transcodificá-la em imagens. Em fotografia, não pode que se passa lâfora, nem o que está inscrito no aparelho. Es-
haver ingenuidade. Nem mesmo os turistas ou as crianças fo- ta inversão do vector da significaçáo caractenza o mundo
tografam ingenuamente. Agem conceptualmente, porque tec- pós-industrial e todo o seu funcionamento.
nicamente. Qualquer intenção estética, política ou epistemo- O gesto fotográfico é uma série de saltos. O fotógrafo sal-
lógica deve, necessariamente, passar pelo crivo da concep- ta por cima das_ barreiras que separam as várias regiões do
tualização antes de resultar em imagem. O aparelho foi pro- espaço-tempo. É um gesto quântiõo, uma procura termodinâ-
gramado para isto. As fotografias são imagens de conceitos, mica. Cada vez que o fotógrafo esbarra contra barreiras,
são conceitos transcodificados em cenas. detém-se, para depois decidir para que região do tempo e do
As possibilidades fotográficas são praticamente inesgotá- espaço vai saltar a partir deste ponto. Esta paragem e a sub-
veis. Tudo o que é fotografárvel pode ser fotografado. A ima- sequente decisão manifestam-se através da manipulação de-
ginação do aparelho é praticamente infinita. A imaginação do terminada do aparelho. Este tipo de procura tem um nome:
fotógrafo, por maior que seja, está inscrita nessa enorme ima- dúvida. Não se trata de dúvida científica, nem existencial,
ginação do aparelho. Aqui está, precisamente, o desafio. Há nem religiosa. É uma dúvida de tipo novo, que mói a hesita-
regiões na imaginação do aparelho que são relativamente
ção e as decisões em grãos de areia. Sendo tal dúvida a ca-
bem exploradas. Nestas regiões, é sempre possível fazer no- racterística de toda a existência pós-industrial, merece ser
vas fotografias: porém, embora novas, são redundantes. Ou- examinada mais de perto.
tras regiões são quase inexploradas. O fotógrafo nelas nave- Cada vez que o fotógrafo esbarra contra um limite de de-
ga, regiões nunca dantes navegadas, para produzir imagens terrninada categoria fotográfica hesita, porque está a desco-
jamais vistas. Imagens <<informativas>>. O fotógrafo caça, a
brir a limitação inerente a qualquer ponto de vista, porque es-
fim de descobrir visões até entáo jamais percebidas. E quer tá a descobrir que há outros pontos de vista disponíveis no
descobri-las no interior do aparelho. programa. Está a descobrir a equivalência de todos os pontos
Na realidade, o fotógrafo procura estabelecer situações de vista programados, em relação à cena a ser produzida.É a
inéditas. Quando caçalâ fora na taiga, não significa que es- descoberta do facto de que qualquer situação está cercada de
teja à procura de novas situações: mas a sua busca é pretexto numerosos pontos de vista equivalentes. E que todos estes
para encontrar novas situações no interior do aparelho. Situa- pontos de vista são acessíveis. Com efeito, o fotógrafo hesi-
ções que estão programadas sem terem ainda sido realizadas. ta, porque está a descobrir que o seu gesto de caçar é um mo-
Pouco vale a pergunta metafísica: as situações, antes de se- vimento de escolha entre pontos de vista equivalentes, e o
rem fotografadas, encontram-se lá fora, no mundo, ou cá den- que tem de resgatar não é determinado ponto de vista, mas
tro, no aparelho? O gesto fotográfico desmente qualquer rea- um número máximo de pontos de vista. Uma escolha quanti-
lismo e idealismo. As novas situações tornar-se-ão reais tativa e não-qualitativa.
54 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 55

O novo tipo de dúvida pode ser chamado fenomenológico, memória do fotógrafo e do aparelho. A realização dá-se gra-
porque cerca o fenómeno (a cena a ser realizada) a partir de ças a um jogo de permutação com os conceitos, e graças a
um máximo de aspectos. Mas amathesis (estrutura fundante) uma transcodificação automática de tais conceitos permuta-
dessa dúvida fenomenológica é, no caso da fotografia, o pro- dos em imagens. A estrutura do gesto é quântica: uma série
grama do aparelho. Duas coisas devem ser, portanto, retidas: de hesitações e decisões claras e distintas. Estas hesitações e
I. a praxis fotográfica é contrâia a qualquer ideologia; a decisões são saltos de pontos de vista para pontos de vista. O
ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, tido por pre- motivo do fotógrafo, em tudo isto, é realizar cenas jamais vis-
ferencial, recusando todos os demais; o fotógrafo age pós- tas, <<informativas>>. O seu interesse está concentrado no apa-
-ideologicamente; 2. a praxis fotográfica é programada; o fo- relho. Esta descrição não se aplica, nas suas linhas gerais,
tógrafo só pode agir dentro das categorias programadas no apenas ao fotógrafo, mas a qualquer funcionário, desde o em-
aparelho. Esta acção pós-ideológica e programada, que se pregado de banco ao presidente americano.
funda sobre a dúvida fenomenológtca, sem preconceitos, ca- O resultado do gesto fotográfico são fotografias, esse tipo
ractenza a existência de qualquer funcionário e tecnocrata. de superfícies que nos cerca actualmente por todos os lados.
Finalmente, no gesto fotográfico, uma decisão última é to- Deste modo, a consideração do gesto fotogrâfico pode ser a
mada: apertar o gatilho (assim como o presidente americano avenida de acesso a tais superfícies omnipresentes.
finalmente aperta o botão vermelho). De facto, o gesto do fo-
tógrafo é menos catastrófico do que o do presidente. Mas é
decisivo. Na realidade, estas decisões não são senão as últi-
mas de uma série de decisões parciais. O último grão de uma
série de grãos, que, no caso do presidente, pode ser a gota
d'água. Uma decisão quantitativa. No caso do fotógrafo, re-
sulta apenas numa fotografia. Isto explica por que nenhuma
fotografia individual pode efectivamente ficar isolada: ape-
nas séries de fotografias podem revelar a intenção do fotó-
grafo. Porque nenhuma decisão é realmente decisiva, nem se-
quer a do presidente ou do secretário-geral do partido. Todas
as decisões fazem parte de séries <<claras>> e <<distintas>>. Nou-
tros termos: são decisões programadas.
Estas considerações permitem resumir as características do
gesto de fotografar: é um gesto caçador no qual o aparelho e
o fotógrafo se confundem, para formar uma unidade funcio-
nal inseparável. O propósito desse gesto unificado é, produzir
fotografias, isto é, superfícies nas quais se realizam simboli-
camente cenas. Estas significam conceitos programados na
5. A FOTOGRAFIA

As fotografias são omnipresentes: coladas em álbuns, re-


produzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de es-
critórios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, im-
pressas em livros, latas de conservas, t-shirts. Que significam
estas fotografias? Segundo as considerações precedentes,
significam conceitos programados, visando programar magi-
camente o comportamento dos seus receptores. Mas não é o
que se vê quando para elas se olha. Vstas ingenuamente, sig-
nificam cenas que se imprimiram automaticamente sobre su-
perfícies. Mesmo um observador ingénuo admitiria que as
cenas se imprimiram a paftir de um determinado ponto de
vista. Mas o argumento não lhe convém. O facto relevante
para ele é que as fotografias abrem ao observador visões do
mundo. Qualquer filosofia da fotografia não passa, para ele,
de ginástica mental para alienados.
No entanto, se o observador ingénuo percoffer o universo
fotográfico que o cefca, não poderá deixar de ficar perturba-
do. Era de esperar: o universo fotográfico representa o mun-
do lá fora através deste universo, o mundo. A vantagem é per-
mitir que se vejam as cenas inacessíveis e preservar as passa-
geiras (o que, afinal de contas, seja admitido, já é uma filoso-
58 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 59

fia da fotografia rudimentar). Mas será verdade? Se assim for, 1. Abstraiam-se do universo dos juízos os verdadeiros e os
como explicar que existam fotografias a preto-e-branco e fo- falsos. Graças a tal abstracção, pode ser construída alógica
tografias a cores? Haverá, láfora no mundo, cenas a preto-e- aristotélica, com a sua identidade, diferença e o terceiro ex-
-branco e cenas coloridas? Se não, qual a relação entre o uni- cluído. Esta lógica, por sua vez, vai contribuir para a cons-
verso das fotografias e o universolâfora? Inadvertidamente, trução da ciência moderna. Ora, a ciência funciona de facto,
o observador ingénuo encontra-se mergulhado em plena filo- embora não existam juízos inteiramente verdadeiros ou intei-
sofia da fotografia, a qual pretendeu evitar. ramente falsos, e embora qualquer análise lógica de juízos os
Não pode haver, no mundo lâfora, cenas a preto-e-branco. reduza a zero;2. abstraiam-se do universo das acções as boas
Isto porque o preto e o branco são situações <<ideais>>, e as más. Graças a tal abstracção, podem ser construídas
situações-limite. O branco é presença total de todas as vibra- ideologias (religiosas, políticas, etc.). Essas ideologias, por
ções luminosas; o preto é a ausência total. O preto e o bran- sua vez, vão contribuir para a construção de sociedades siste-
co são conceitos que fazem parte de uma determinada teoria matizadas. Ora, os sistemas funcionam de facto, embora não
da Optica. Deste modo, as cenas a preto-e-branco não exis- existam acções inteiramente boas ou inteiramente más, e em-
tem. Mas as fotografias a preto-e-branco, essas sim, existem. bora qualquer acção se reduza, sob análise ideológica, a mo-
Elas <<imaginam>> determinados conceitos de determinada vimentos de marioneta. As fotografias a preto-e-branco são
teoria, graças à qual são produzidas automaticamente. Aqui, resultados desse tipo de maniqueísmo munido de aparelho.
porém, o termo automaticamente já não pode satisfazer o ob- Funcionam.
servador ingénuo do universo da fotografia. Quanto ao pro- E funcionam da seguinte forma: transcodificam determina-
blema da crítica da fotografia, eis o ponto crítico: ao contrá- das teorias (em primeiro lugar, teorias da óptica) em ima-
rio da pintura, onde se procura decifrar ideias, o crítico de fo- gem. Ao fazê-lo, magicízam tais teorias. Transformam os
tografia deve decifrar, além disso, conceítos. seus conceitos em cenas. As fotografias a preto-e-branco são
O preto e o branco não existem no mundo, o que é uma a magia do pensamento teórico, conceptual, e é precisamen-
grande pena. Caso existissem, se o mundo lâfora pudesse ser te nisto que reside o seu fascínio. Revelam abeleza do pen-
captado a preto-e-branco, tudo passaria a ser logicamente ex- samento conceptual abstracto. Muitos fotógrafos preferem
plicável. Tudo no mundo seria então ou preto ou branco, ou fotografar a preto-e-branco, porque tais fotografias mostram
intermediário entre os flois extremos. O desagradável é que o verdadeiro significado dos símbolos fotográficos: o univer-
um tal intermediário não seria a cores, mas cinzento... a cor so dos conceitos.
da teoria. Eis como a análise lógica do mundo, seguida de As primeiras fotografias eram, todas, a preto-e-branco, de-
síntese, não resulta na sua reconstituição. As fotografias a monstrando que tinham a sua origem numa determinada teo-
preto-e-branco provam-no, são cinzentas: imagens de teorias ria da Optica. A partir do progresso da Química, tornou-se
(ópticas e outras) a respeito do mundo. possível a produção de fotografias a cores. Aparentemente,
A tentativa de imaginar o mundo a preto-e-branco é an- pois, as fotografias começaram por abstrair as cores do mun-
tiga. Faltavam apenas os aparelhos adequados a tal imagi- do, para depois as reconstituírem. Na realidade, porém, as co-
nação. Dois exemplos desse maniqueísmo pré-fotográfico: res são tão teóricas como o preto e o branco. O verde do bos-
60 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 61

que fotografado é imagem do conceito de <<verde>>, tal como tor e o contexto cultural no qual o texto foi codificado? para
foi elaborado por determinada teoria química. O aparelho foi decifrar o significado da fotografia do bosque verde, bastaria
programado para transcodificar um tal conceito em imagem. ter decifrado os conceitos científicos que codificaram a foto-
Há, por certo, uma ligação indirecta entre o verde do bosque grafia, ou devo ir mais longe? Assim colocada, a questão do
fotografado e o verde do bosque lâfora: o conceito científico deciframento não terá resposta satisfatória, jâ que qualquer
de <<verde>> apoia-se, de algum modo, sobre o verde percebi- nível de deciframento assentará sobre mais um a ser decifra-
do. Mas entre os dois verdes interpõe-se toda uma série de do. Mas podemos, no caso da fotografia, evitar este regresso
codificações complexas. Mais complexas ainda do que as que ao infinito. Para decifrar fotografias, não preciso de mergu-
se interpõem entre o cinzento do bosque fotografado a preto- lhar até ao fundo da intenção codificadora, no fundo da cul-
-e-branco e o verde do bosque lâ fora. Deste modo, a foto- tura, da qual as fotografias, como qualquer símbolo, são pon-
grafra a cores é mais abstracta que a fotografia a preto-e- tas de icebergs. Basta-me decifrar o processo codificador que
-branco. Mas as fotografias a cores escondem, para o igno- se passa durante o gesto fotográfico, no movimento do com-
rante em Química, o grau de abstração que lhes deu origem. plexo <fotógrafo-aparelho>. Se conseguíssemos captar a in-
As brancas e pretas são, pois, mais <<verdadeiras>>. E quanto volução inseparável das intenções codificadoras do fotógrafo
mais <fiéis>> se tornarem as cores das fotografias, mais estas e do aparelho, teríamos decifrado, satisfatoriamente, a foto-
serão mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade grafra resultante. Uma tarefa aparentemente reduzida, mas na
teónca que lhes deu origem. (Exemplo: o <<verde Kodak> realidade gigantesca: precisamente por tais intenções serem
contra o <<verde Fuji>.) inseparáveis e por se articularem de forma específica em to-
O que vale para as cores vale, igualmente, para todos os da e quaÌquer fotografia a ser criticada.
elementos da imagem. São, todos eles, conceitos transcodifi- No entanto, o deciframento de fotografias é possível, por-
cados que pretendem ser impressões automáticas do mundo que, embora inseparáveis, as intenções do fotógrafo e do apa-
lâfora. Esta pretensão precisa de ser decifrada por quem qui- relho podem ser distinguidas. Esquematicamente, a intenção
ser compreender a verdadeira mensagem das fotografias: do fotógrafo ó esta: 1. codificar, em forma de imagens, os
conceitos programados. Assim, o observador ingénuo vê-se conceitos que tem na memória; 2. servir-se do aparelho para
obrigado, malgré lui, a mergulhar no torvelhinho das refle- tanto; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para
xões filosóficas que procurou eliminar, por considerá-las gi- outros homens; 4. fixar tais imagens para sempre. Resuqin-
nástica mental alienada. do: a intençáo é a de eternizar os seus conceitos em forma de
Concordemos quanto ao que pretendemos dizer por deci- imagens acessíveis a outros, a fim de se eternizar nos outros.
Esquematicamente, a intenção programada no aparelho é es-
framento. Que faço ao decifrar um texto em alfabeto latino?
Decifro o significado das letras, esses determinados sons de ta: l. codificar os conceitos inscritos no seu programa, em
uma língua falada? Decifro o significado das palavras com- forma de imagens; 2. servir-se de um fotógrafo, a menos que
postas por tais letras? Decifro o significado das frases com- esteja programado para fotografar automaticamente; 3. fazer
postas por tais palavras? Ou devo procurar, por trás do signi- com que tais imagens sirvam de modelos para os homens; 4.
ficado das frases, outros significados, como a intenção do au- fazer imagens cada vez mais aperfeiçoadas. Resumindo: a in-
62 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografìa 63

tenção programada no aparelho é a de reahzar o seu progra- das intenções humanas em prol dos aparelhos. Não dispomos
ma, ou seja, programar os homens para que lhe sirvam de ainda de uma tal crítica da fotografia, por razões que serão
feed-back para o seu contínuo aperfeiçoamento. discutidas nos próximos capítulos.
Mas por trás da intenção do aparelho fotográfico há inten- Confesso que o presente capítulo, embora se chame <A fo-
ções de outros aparelhos. O aparelho fotográfico é produto do tografia>>, não considerou algumas das mais importantes ca-
aparelho da indústria fotográfica, que é produto do aparelho racterísticas da fotografia. A minha desculpa é que o seu pro-
do parque industrial, que é produto do aparelho sócio- pósito era outro: abrir caminho para o deciframento de foto-
-económico e assim por diante. Através de toda esta hierar- grafias. Resumo, pois, o que pretendi dizer: fotografias são
quia de aparelhos, coÍïe uma única e gigantesca intenção, que imagens técnicas que transcodificam conceitos em superfí-
se manifesta no output do aparelho fotográfico: fazer com cies. Decifrâ-las é descobrir o que os conceitos significam.
que os aparelhos programem a sociedade para um comporta- Isto é complicado porque na fotografia amalgamam-se duas
mento propício ao constante aperfeiçoamento dos aparelhos. intenções codificadoras: a do fotógrafo e a do aparelho. O fo-
Se comparaÍïnos as intenções do fotógrafo e do aparelho, tógrafo visa etemizar-se nos outros por intermédio da foto-
constataremos pontos de convergência e divergência. Nos grafia. O aparelho visa programar a sociedade através das fo-
pontos convergentes, aparelho e fotógrafo colaboram; nos di- tografias para um comportamento que lhe permita
vergentes, combatem-se. Qualquer fotografia é o resultado de aperfeiçoar-se. A fotografra é, pois, uma mensagem que arti-
tal colaboração e combate. Ora, colaboração e combate cula ambas as intenções codificadoras. Enquanto não existir
confundem-se. Determinada fotografia só é decifrada, quan- crítrcafotogrâfica que revele essa ambiguidade do código fo-
do tivermos analisado como a colaboração e o combate nela tográfico, a intenção do aparelho prevalecerá sobre a inten-
se relacionam. ção humana.
No confronto com determinada fotografia, eis o que o crí-
tico deve perguntar: até que ponto conseguiu o fotógrafo
apropriar-se da intenção do aparelho e submetê-la à sua pró-
pria? Que métodos utilizou: astúcia, violência, truques? Até
,que ponto conseguiu o aparelho apropriar-se da intenção do
fotógrafo e desviá-la para os propósitos nele programados?
Responder a tais perguntas é ter os critérios para julgá-la. As
fotografias <<melhores>> seriam aquelas que evidenciam a vi-
tórra da intenção do fotógrafo sobre o aparelho: a vitória do
homem sobre o aparelho. Forçoso é constatar que, muito em-
bora existam tais fotografias, o universo fotográfico demons-
tra até que ponto o aparelho já consegue desviar os propósi-
tos dos fotógrafos para os fins programados. A função de to-
da a crítica fotográfica seria, precisamente, revelar o desvio
6. A DISTRIBUIÇÃO DA FOTOGRAFIA

As características que distinguem a fotografia das demais


imagens técnicas revelam-se ao considerarmos como são dis-
tribuídas. As fotografias são superfícies imóveis e mudas que
esperam, pacientemente, serem distribuídas, pelo processo de
multiplicação ao infinito. São folhas. Podem passar de mão
em mão, não precisam de aparelhos técnicos para serem dis-
tribuídas. Podem ser guardadas em gavetas, não exigem me-
mórias sofisticadas para o seu arrnazenamento. No entanto,
antes de considerarmos a sua característi ca de folha de papel,
reflectiremos, por pouco que seja, sobre o problema da dis-
tribuição de informações.
O homem é capaz de produzir informações, transmiti-las e
guardá-las. Tal capacidade humana ó antinatural, jâ que a na-
ítreza como um todo é um sistema que tende, conforme o se-
gundo princípio da termodinâmica, a des-informar-se. Há fe-
nómenos, por cefto, nanatureza (sobretudo os organismos vi-
vos) que são igualmente capazes de produzir informações e
de transmiti-las e de guardá-las. O homem não é o único epi-
ciclo negativamente entrópico, na linha geral da natureza, ru-
mo à entropia. Mas o homem parece ser o único fenómeno
capaz de produzir informações com propósito deliberado de
66 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 67

se opor à entropia. Capaz de transmitir e guardar informações assim programadas, salvo o vídeo, que permite interacção
não apenas herdadas, mas adquiridas. Podemos chamar a tal dialógica.
capacidade especificamente humana, espíríto e ao seu resul- Mas o que distingue as fotografias das demais imagens téc-
tado, cultura. nicas é que são folhas. Assemelham-se a folhetos. Os filmes,
O processo dessa manipulação de informações é a comu- para serem distribuídos, necessitam de aparelhos de projec-
nicação que consiste em duas fases: na primeira, são produ- ção; as cassetes de vídeo, de aparelhos televisores. As foto-
zidas informações; na segunda, as informações são distribuí- grafias não precisam de nada. É verdade que existem diapo-
das para serem guardadas. O método da primeira fase é o diá- sitivos e que recentemente foram inventadas fotografias ele-
logo, pelo qual informações jâ guardadas na memória são trónicas, que exigem distribuição por aparelhos. Porém, o
sintetizadas para resultarem em novas (há também diálogo que conta nas fotografias é a possibilidade de serem distri-
interno que ocorre na memória isolada). O método da segun- buídas arcaicamente.
da fase é o discurso,pelo qual informações adquiridas no diá- Por serem relativamente arcaicas, as fotografias relembram
logo são transmitidas a outras memórias, a fim de serem ar- um passado pré-industrial, o das pinturas imóveis e caladas,
mazenadas. como em paredes de caverrta, vitrais, telas. Ao contrário do
Há quatro estruturas fundamentais de discurso: 1. os re- cinema, as fotografias não se movem, nem falam. O seu ar-
ceptores cercam o emissor em forma de semicírculo, como caísmo provém da subordinação aum supofie material: papel
no teatro; 2. o emissor distribui a informação entre rc- ou uma coisa parecida. Mas essa <<objectividade> residual en-
-transmissores, que a purificam de ruídos, para retransmiti-la gana. Um quadro tradicional é, um original: ínico e não mul-
a receptores, como no exército ou no feudalismo; 3. o emis- tiplicável. Para distribuir quadros, é preciso transportá-los de
sor distribui a informação entre círculos dialógicos, que a in- proprietário a proprietário. Os quadros devem ser apropria-
serem em sínteses de informação nova, como na ciência; 4. o dos para serem distribuídos: comprados, roubados, ofereci-
emissor emite a informação rumo ao espaço vazio, para ser dos. São objectos que têm valor enquanto objectos. Prova
captada por quem nele se encontra, como no rádio. A qual- disto é que os quadros atestam o seu produtor: traços do pin-
quer método discursivo, corresponde determinada situação cel, por exemplo. A fotografia, por sua vez, é multiplicável.
cultural: o primeiro método exige uma situação <<responsá- Distribuí-la é multiplicá-la. O aparelho produz protótipos cu-
vel>>; o segundo, <<autoritária>; o terceiro, <<progressista>; o jo destino é serem estereotipados. O termo <<original>> perdeu
quarto, <<massificado>. A distribuição das fotografias dá-se sentido, por mais que certos fotógrafos se esforcem para
pelo quarto método discursivo. transportá-lo da situação artesanal à situação pós-industrial,
As fotografias podem ser manipuladas dialogicamente. onde as fotografias funcionam. Ademais, não são tão arcaicas
Por exemplo: é possível desenhar-se em caftazes fotográfi- quanto parecem.
cos bigodes ou outros símbolos obscenos, criando, assim, in- A fotografia enquanto objecto tem um valor desprezível.
formação nova. Mas o aparelho fotográfico é programado Não faz muito sentido querer possuí-la. O seu valor está na
para a distribuição discursiva rumo ao espaço vazio, como o informagão que transmite. Com efeito, a fotografi a é o pt'r-
fazem a televisão e o rádio. Todas as imagens técnicas são meiro objecto pós-industrial: o valor transferiu-se do objecto
(r8 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 69

para a informação. A pós-indústria é precisamente isso: de- entre fotografia e folheto não deve ser exagerado. Ambos são
sejar a informação e jânão os objectos . Jânáo se trata de pos- objectos desprezíveis por cefto. Mas a intenção da fotografia
suir e distribuir propriedades (capitalismo ou socialismo). é oposta à do folheto: transcodifica a mensagem linear do fo-
Trata-se de dispor de informações (sociedade informática). lheto em imagem. Quer magícizá-Ia. A fotografia é antifo-
Não: mais um par de sapatos, mais um móvel, porém, mais lheto. Para prová-lo, basta considerar como as fotografias são
uma viagem, mais uma escola, eis a meta. Transvaloração de distribuídas.
valores, tornada palpável nas fotografias. Embora não necessitem de aparelhos técnicos para a sua
Os objectos caffegam certamente informações, e é o que distribuição, as fotografias provocaram a construção de apa-
lhes confere valores. O sapato e o móvel são informações ar- relhos de distribuição gigantescos e sofisticados. Aparelhos
mazenadas. Mas nestes objectos, a informação está impreg- que se colam sobre o burado de output do aparelho fotográfi-
nada, não se pode descolar, apenas pode ser gasta. Na foto- co, a fim de sugarem as fotografias por ele cuspidas,
grafia, a informação está na superfície e pode ser reproduzi- multiplicá-las e deramá-las sobre a sociedade, por milhares
da noutras superfícies, de tão pouco valor como as primeiras. de canais. O aparelho de distribuição passa afazer parle inte-
A distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do grante do aparelho fotográfico, e o fotógrafo age em função
conceito de propriedade. Iâ náo tem o poder quem possui, dele. Tais aparelhos, assim como os demais, são programados
mas sim quem programa informações e as distribui. Neo- para programar os seus receptores em prol de um comporta-
-imperialismo. Se determinado catÍaz se rasgar com o vento, mento propício ao seu funcionamento, cada vez mais aper-
nem por isso o poder da agência publicitária, programadora feiçoado. A sua distinção dos demais aparelhos é o facto de
do cartaz, frcarâ diminuído. O çartaz não vale nada e não tem dividirem as fotografias em vários braços, antes de distribuí-
sentido querer possuí-lo. Pode ser substituído por outro. A -las. Esta divisão distribuidora caracteriza as fotografias.
comparação da fotografia com quadros impõe repensar valo- Todas as informações podem ser subdivididas em classes.
res económicos, políticos, éticos, estéticos e epistemológicos Por exemplo, informações indicativas (<<Aé A")t imperativas
do passado. (<A deve ser A>); optativas (..que A seja A"). O ideal clássi-
A decadência do objecto e a emergência da informação co dos indicativos é a verdade; dos imperativos, a bondade;
evidenciam-se melhor nas fotografias do que nas demais dos optativos, a beleza. Na realidade, porém, é classificação
imagens tócnicas que nos cercam. O receptor do filme ou do insustentável. Qualquer indicativo científico tem aspectos
programa de TV não segura nada na sua mão, mas o receptor políticos e estéticos; qualquer imperativo político tem aspec-
da fotografia ainda tem um objecto entre os dedos, e tos científicos e estéticos; qualquer gesto optativo (obra de
despreza-o. Vivencia concretamente o quanto ficaram des- arte) tem aspectos científicos e políticos. De maneira que
prezíveis os objectos. Ao segurar a fotografia entre os dedos, qualquer classificação de informações é meru teoria.
o receptor aplica-se contra o objecto e em favor da informa- Os aparelhos distribuidores de fotografias transformam-
ção, símbolo na superfície da fotografia. Exactamente como -nas em proxis.Hâ canais para as fotografias indicativas, por
faz o receptor do folheto. Após decifrada a mensagem sim- exemplo, livros científicos e jornais diários. Há canais para
bólica, a folha pode ser descartada. No entanto, o paralelismo fotografias imperatívas, por exemplo, cartazes de propagan-
70 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia

da comercial e política.Ehâ canais para fotografias artísti- em função do seu programa. Do ponto de vista do jornal,
cas, por exemplo, revistas, exposições e museus. No entanto, quando a fotografia recodifica os artigos lineares em ima-
estes canais dispõem de dispositivos que permitem a deter- gens, <<ilustrando-os>>, está a permitir a programaçáo mâgrca
minadas fotografias deslizarem de um canal a outro. As foto- dos compradores do jornal num comportamento adequado.
grafias do homem na Lua podem transitar da revista de as- o fotografar, o fotografo sabe que a sua fotografia só será
tronomia para a parede do consulado americano, daí para aceite pelo jornal se esta se enquadrar no seu programa. De
uma exposição artística e daí para o álbum de um liceal. De maneira que vai procurar driblar a censura, ao contrabandear
cada vez que troca de canal, a fotografia muda de significa- na fotografia elementos estéticos, políticos e epistemológicos
do: de científica passa a ser política, artística, privada. A di- não previstos no programa. Vai procurar submeter a intenção
visão das fotografias em canais de distribuição não é opera- do jornal à sua. Este, por sua vez, embora possa descobrir tal
ção meramente mecânica: trata-se de uma operação de trans- I tentativa astuciosa, pode vir aaceiÍar a fotografia com o pro-
codificação. Algo a ser levado em consideragão por qualquer I pósito de enriquecer o seu programa. Vai procurar recuperar
crítica da fotografia. i a intenção subversiva. Pois bem, o que vale para os jornais,
O fotógrafo colabora nessa transcodificação da fotografia I vale para os demais canais de distribuição de fotografias,
pelos aparelhos de distribuição e fá-lo de maneira sui gene- jl uma vez que todos revelarão, sob análise crítica, a luta dra-
1.
ris. Ao fotografar, visa determinado canal para distribuir a ,l mática entre a intenção do fotógrafo e a do aparelho distri-
sua fotografia. Fotografa em função de determinada publica- i .buidor de fotografias.
ção científica, determinado jornal, determinada exposição, C- Esta crítica é rara. Os cúticos não reconhecem, via de re-
ou simplesmente em função de seu álbum. Do ponto de vista -gfa, afunção codificadora do canal distribuidor na fotografia
do fotógrafo, movem-no duas razões: primeira, o canal criticada. Assumem, como um dado não-criticável, que ca-
permitir-lhe-â alcançar um grande número de receptores, pois nais científicos distribuem fotografias científicas; que agên-
o seu empenho é precisamente etemizar-se num máximo de cias de propaganda distribuem fotografias publicitárias; que
pessoas; segunda, o canal vai sustentá-lo economicamente, galerias de arte distribuem fotografias de arte. Desta manei-
pois a fotografia, enquanto objecto desprezível, não tem va- ra, os críticos tornam invisíveis os canais de distribuição das
lor de troca. Em suma: o canal é para o fotógrafo um método fotografias. Funcionam em função da intenção de tais canais,
para torná-lo imortal e não moÍrer de fome (quanto ao álbum os quais, precisamente, se querem invisíveis. Para isto os crí-
por ser um canal sui generis, aparentemente <<privado>>, será ticos são pagos: eis a sua função no interior dos aparelhos. Os
discutido no capítulo seguinte). críticos ao omitirem a luta entre o fotógrafo e o canal, cola-
No canal, a intenção do fotógrafo e do aparelho co- boram com os aparelhos na sua intenção de absorver a inten-
-implicam-se pela mesma involução já discutida: o fotógrafo ção do fotógrafo contra o aparelho. Trata-se, por parte desses
fotografa em função de um jornal determinado, porque este críticos, de <<colaboraçáo>>, no significado pejorattvo de tra-
lhe permite alcançar centenas de milhares de receptores e hison des clercsr e ilustra a função dos intelectuais numa si-
porque lhe paga. O fotógrafo crô estar a utllizar o jornal co-
mo medium. enquanto o jornal crê estar a utllizar o fotógrafo I Livro de Julien Benda.
72 Vilém Flusser

tuação onde os aparelhos dominam. Ao formularem pergun-


tas do tipo < a fotografia é arte?>>, ou <<o que é fotografia po-
liticamente comprometida?>>, sem admitirem que tais pergun-
tas vão sendo respondidas automaticamente pelos canais, os
críticos contribuem para o ocultamento dos aparelhos pro-
gramadores.
Ao considerarmos a distribuição das fotografias, esbarra-
mos naquilo que as distingue das demais imagens técnicas:
são imagens imóveis e mudas do tipo <<folhu e podem ser in-
finitamente reproduzidas; poderiam ser distribuídas como fo-
lhetos, no entanto, são distribuídas por aparelhos gigantescos 7. A RECEPÇAO DA FOTOGRAFIA
que as irradiam por um discurso massificante; enquanto ob-
jectos, as fotografias não têm valor: este reside na informa-
ção que guardam superficialmente; são, portanto, objectos De modo geral, toda a gente possui um aparelho fotográfico
pós-industriais: o interesse desvia-se parâ a informação e não e fotografa, assim como, praticamente, toda a gente está alfa-
para o objecto, que se abandona; antes de serem distribuídas, betizada e produz textos. Quem sabe escrever, sabe ler; logo,
as fotografias são transcodificadas pelo aparelho de distribui- quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias. Engano. Para
ção, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; só captarmos arazáo pela qual quem fotografa pode ser analfabe-
dentro do canal, do medium, adquirem o seu último signifi- to fotográfico, é preciso considerar a democratizaçáo do acto
cado; nesta transcodificaçáo, cooperam tanto o fotógrafo fotográfico. Tal considerração poderá contribuir, de passagem, à
quanto o aparelho. Este facto é silenciado pela maior parte da nossa compreensão da democracia no seu sentido mais amplo.
crítica, o que torna os aparelhos de distribuição invisíveis pa- O aparelho fotográfico é comprado por quem foi progra-
ra os receptores das fotografias. Graças a uma tal crítrca mado para tal. Os aparelhos de publicidade programam essa
<funcional>, o receptor da fotografia vai recebê-la de modo compra. O aparelho fotográfico assim comprado será de <<úl-
não-crítico. E será assim que os aparelhos de distribuição po- timo modelo>>: menor, mais barato, mais automático e efi-
derão programar o receptor para um comportamento mágico ciente que o anterior. O aparelho deve o aperfeiçoamento
que sirva defeed-backpara os seus aparelhos. constante dos modelos ao feed-back dos que fotografam. O
aparelho da indústria fotográfica vai assim aprendendo, pelo
comportamento dos que fotografam, como programar cada
vez melhor os aparelhos fotográficos que produzirá. Neste
sentido, os compradores de aparelhos fotográficos são.fun-
cionários do aparelho da indústria fotográfica.
Uma vez adquirido, o aparelho fotográfico vai revelar-se
um brinquedo curioso. Embora repouse sobre teorias cientí-
74 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 75

ficas complexas e sobre técnicas sofisticadas, é muito fácil Quem escreve precisa de dominar as regras da gramática e
manipulá-lo. O aparelho propõe um jogo estruturalmente da ortografia. O fotógrafo amador apenas obedece a modos
complexo, mas funcionalmente simples. Um jogo oposto ao de usari cadavez mais simples, inscritos no lado externo do
xadrez, que é estruturalmente simples, mas funcionalmente aparelho. Democracia é isto. Deste modo, quem fotografa co-
complexo: é fácll apreender as suas regras, mas difícil jogá- mo amador não pode decifrar fotografias. A sua praxís
-lo bem. Quem possui aparelho fotográfico de <<último mo- impede-o de fazê-lo, pois o fotógrafo amador, crê que o foto-
delo>>, pode fotografar <<bem>> sem saber o que se passa no in- grafar é o gesto automático graças ao qual o mundo vai apa-
terior do aparelho. Caixa negra. recendo. Impôe-se uma conclusão paradoxal: quanto mais
O aparelho é um brinquedo sedento por fazer sempre mais gente houver a fotografar, tanto mais difícil se tornará o de-
fotografias. Exige do seu possuidor (quem por ele está pos- ciframento de fotografias, já que todos acreditam saber fazê-
sesso) que aperte constantemente o gatilho. E um aparelho- -las.
-arma. Fotografar pode converter-se numa mania, o que evo- Mas ainda não é tudo. As fotografias que sobre nós se der-
ca o uso de drogas. Na curva desse jogo maníaco, pode sur- ramam são recebidas como se fossem trapos desprezíveis.
gir um ponto a partir do qual o homem-desprovido-de- Podemos recortá-las de jornais, rasgá-las, deitá-las fora. A
-aparelho se sente cego. Iâ não sabe olhar, a não set através nossa praxis com a maré fotográfica que nos inunda, faz crer
do aparelho. Deste modo, não está face ao aparelho (como o que podemos fazer delas e com elas o que bem entenderïnos.
artesão está frente ao instrumento), nem está a rodar em tor- Este desprezo pela fotografia individual distingue a sua re-
no do aparelho (como o proletário em redor da máquina).Es- cepção das demais imagens técnicas. Exemplo: ao contem-
tá dentro do aparelho, engolido pela sua gula. Passa a ser o plarmos uma cena da guerra no Líbano, no cinema ou na te-
prolongamento automático do seu gatilho. Fotografa automa- levisão, sabemos que nada podemos fazer a náo ser
ticamente. contemplá-la. Ao contemplarmos uma cena idêntica no jor-
A mania fotográfica resulta numa torrente de fotografias. nal, podemos recortá-la e guardá-la, ou simplesmente rasgá-
Uma torrente-memória que a fixa. Eterniza a automaticidade -la para embrulhar uma sanduíche. Isso leva a crer que pode-
inconsciente de quem fotografa. Quem contemplar um álbum mos agir ao recebermos a imagem de tal guerra, que podemos
de um fotógrafo amador, estará a ver a memória de um apa- assumir um ponto de vista <histórico > face à guerra. Anali-
relho, não a de,um homem. Uma viagem aItália, documen- semos essa falsa atitude histórica face à fotografia.
tada fotograficamente, não regista as vivências, os conheci- A fotografia da guerra no Líbano num jornal mostra uma
mentos, os valores do viajante. Regista os lugares onde o apa- cena. Exige que o nosso olhar a escrutine pelo método já dis-
relho o seduziu para apertar o gatilho. Os álbuns são memó- cutido anteriormente. O olhar vai estabelecendo relações es-
rias <privadas>> apenas no sentido de serem memórias de apa- pecíficas entre os elementos da fotografia. Não serão relações
relhos. Quanto mais eficientes se tornarem os modelos dos históricas de causa e efeito, mas relações mágicas, imagens
aparelhos, tanto melhor atestarão os álbuns, a vitória do apa- do eterno retorno. Por certo, o artigo que a fotografia ilustra
relho sobre o homem. É a .,privacidade> no sentido pós- no jomal consiste em conceitos que significam as causas e os
-industrial do termo. efeitos de tal guera. Porém, o artigo é lido em função da fo-
76 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 77

togriú'ia, como que através dela. Não é o artigo que <<explico> Beirute em chamas é <<infernal>>, os médicos de uniforme
a fotografia, mas é a fotografia que <ilustro o arligo. Este só branco são <<anjos>. A fotografia é, uma hierofania: o sacro
ó texto no curioso sentido de ser um pré-texto da fotografia. transparece nela, manifesta-se. E o que vale para esta foto-
Esta inversáo da relação <<texto-imagem>> caracteriza a pós- grafia relativa ao Líbano, vale para todas as demais. São, to-
-indústria, fim de todo o historicismo. das elas, imagens de forças inefáveis que giram em tomo da
No curso da História, os textos explicavam as imagens, imagem, conferindo-lhe um sabor indefinível. Imagens de
desmitificavam-nas. Doravante, as imagens ilustram os tex- forças ocultas que giram magicamente. Fascinam o seu re-
tos, remitfficando-os. Os capitéis românticos serviam aos tex- ceptor, sem que este saiba dizer o que o fascina.
tos bíblicos com o fim de desmagicizá-Ios. Os artigos de jor- O receptor pode recorrer ao artigo de jornal que acompa-
nal servem às fotografias para os remagicizarem. No curso da nha a fotografia para dar nome ao que vê. Mas, ao ler o arti-
História, as imagens eram subservientes, podia-se dispensá- go, está sob a influência do fascínio mágico da fotografia.
-las. Actualmente, os textos são subservientes e podem ser Não quer explicação sobre o que viu, apenas confirmação.
dispensados. Os países chamados subdesenvolvidos come- Está far'to de explicações de todo tipo. As explicações nada
çam a descobrir este facto. No decorrer da História, o iletra- adiantam comparadas com o que se vê. Não quer saber sobre
do era um aleijado da cultura dominada por textos. Actual- as causas ou efeitos da cena, porque é esta e não o artigo que
mente, o iletrado participa na cultura dominada por imagens. transmite a realidade. E como tal a realidade é mâgica, a fo-
Lutar contra o analfabetismo revela-se uma luta quixotesca. tografia não a transmite; ela é a própria realidade.
Contudo, não são apenas os países subdesenvolvidos que co- A realidade da guerra no Líbano, a realidade em si, está na
meçam a percebê-lo, <<Johnny can't spell>> nos Estados Uni- fotografia. Não pode estar alhures. Se o receptor da fotografia
dos. O analfabetismo fotográfico está a levar ao analfabetis- for ao Líbano ver a guena com os seus próprios olhos, estará
mo textual. a ver a mesma cena, jâ que olha tudo pelas categorias da foto-
Não é, pois, historicamente, que agimos face à fotografia grafra. Está programado para ver magicamente. E para quê fa-
da guerra no Líbano; agimos ritualmente. Recortar a fotogra- zer tal viagem, se a fotografia lhe taz a gueÍïa para sua casa?
fia do jornal ou rasgá-la é agrc ritualmente. A fotografia está O vector de significação inverteu-se: o símbolo é o real e o sig-
a ser manipulada como num ritual de magia. No fundo, não nificado é o pretexto. O universo dos símbolos (entre os quais,
somos nós que a manipulamos, é ela que nos manipula. E da o universo fotográfico é dos mais importantes) é o universo
seguinte forma: a cena fotogrâfica da guerra no Líbano con- mágico da realidade. Não adianta perguntar o que a fotografia
siste em elementos que se relacionam significativamente. No da cena libanesa significa na realidade. Os olhos vêem o que
sentido temporal, um elemento precede outro e pode suceder ela significa, o resto é metafísica de má qualidade.
ao precedente. No sentido de superfície, um elemento dá sig- E assim, a fotografia vai modelando os seus receptores. Es-
nificado a outro e recebe significado de outro. Deste modo, a tes reconhecem nela forças ocultas inefáveis, vivenciam con-
superfície da imagem passa a ser significativa, carregada de cretamente o efeito de tais forças e agem ritualmente para
valores. Estâ plena de deuses. Mostra o que é <<bom>> e o que propiciar tais forças. Exemplo: numa fotografia de carlaz que
ó <<mau>>: os tanques são <<maus>>; as crianças são <<boas>>; mostra uma escova de dentes, o receptor reconhece o poder
78 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 79

da cárie. Sabe que é uma força nefasta e compra a escova a rorismo>> etc., constam de tais programas. A fotografia da es-
í'im de passá-la ritualmente sobre os dentes, conjurando o pe- cova de dentes deixará de revelar forças ocultas do tipo <cá-
rigo (uma espécie de sacrifício ao <<deus Círie>>, ao Destino). rie>>, mas mostrará o programa das agências de publicidade e
Pode certamente recorrer ao léxico sobre o verbete <<cárie>>. o programa do governo. Ficará evidente que <cárie>) consta
Isto apenas confirma o mito; não importa o que diz o texto, o de tais programas.
leitor comprará a escova. Está programado para isso. Até Acrítica pode ainda desmagicizar aimagem.
com i nformaç ão <hi s tóri c a>>, agir â magicamente. Obvi amen- No entanto, algo de verdadeiramente monstruoso pode
te, isto náo é uma descrição da vida na tribo de um índio; é acontecer no decurso do esforço para desmagicizá-Ia: o cúti-
uma descrição da vida de um funcionário numa situação pro- co está actualmente programado para uma visão mágica do
gramada por aparelhos. O índio não dispõe de <<verbete>>. mundo. O próprio crítico vê forças ocultas em toda parte. Sob
Ambos, índio e funcionário, crêem na realidade das ima- tal visão, os próprios aparelhos tomam-se forças ocultas: o
gens. No entanto, a crença do funcionârÌo é, de má fé. Natu- jornal, o partido, a agência de publicidade, o parque indus-
ralmente: o funcionário pensa saber <<melhon>, tem o verbe- trial são deuses a serem exorcizados pela fotografia. Uma
te, aprendeu a ler, a ter <<consciência históricu das causas e hierofania de segundo grau, onde o jornal vai tomar o lugar
efeitos. Sabe que no Líbano não se chocam o Bem e o Mal, do terrorismo desmitificado. Os aparelhos jâ náo são perce-
mas que uma cadeia de causas produz uma cadeia de efeitos. bidos enquanto brinquedos automáticos, mas como possuí-
Sabe que a escova de dentes náo é objecto ritual, mas produ- dos por forças inefáveis. A crítica da cultura da Escola de
to da história do Ocidente. Este <<saber melhoo> deve ser re- Frankfurt é um bom exemplo desse paganismo de segundo
primido, quando se trata de agir segundo o programa. Se o grau, exorcismo do exorcismo.
funcionário estiver consciente das causas e efeitos do seu Resumindo, eis como as fotografias são recebidas: en-
funcionamento, j amais funcionarâ conectamente. Se tivesse quanto objectos, não têm valor, pois todos sabem fazê,-las e
consciência histórica, como poderia comprar escovas de den- delas fazem o que bem entendem. Na realidade, são elas que
tes, formar uma opinião sobre o Líbano ou simplesmente ir manipulam o receptor para o comportamento ritual, em pro-
ao escritório, arquivar papeladas, participar em reuniões, go- veito dos aparelhos. Reprimem a sua consciência histórica e
zar féias, aposentar-se? A repressão da consciência histórica desviam a sua faculdade cítica para que a estupidez absurda
é indispens án el para o funcionamento. As fotografias servem do funcionamento não seja consciencializada. Assim, as fo-
para reprimi-la. tografias vão formando um círculo mágico em torno da so-
No entanto, a consciência crítica pode ainda ser mobiliza- ciedade, o universo das fotografias. Contemplar este univer-
da. Nela, amagia programada nas fotografias torna-se trans- so visando quebrar o círculo seria emancipar a sociedade do
parente. A fotografia da cena libanesa no jornal jâ não reve- absurdo.
lará forças ocultas do tipo <judaísmo>> ou <<terrorismo>>, mas
mostrará os programas do jomal e do partido político que o
programa, assim como o programa do aparelho político que
programa o partido. Ficaút evidente que <judaísmo>> e <<ter-
,ilr-

8. O UNIVERSO FOTOGRAFICO

As fotografias cercam-nos. São tão omnipresentes, no es-


paço público e no privado, que a sua presença não é notada. O
facto de passarem despercebidas poderia ser explicado, nor-
malmente, pela sua circunstancialidade: estamos habituados à
nossa circunstância, o hábito encobre-a, só nos apercebemos
das alterações no nosso quotidiano. Esta explicação não fun-
ciona no caso das fotografias. O universo fotográfico está em
constante flutuação e uma fotografia é constantemente substi-
tuída por outra. Aparecem semanalmente novos caÍtazes sobre
os muros, novas fotografias publicitrárias nas vitrines, novos
jornais ilustrados, diariamente nas bancas. Não é a <<determi-
nadas>> fotografias, mas justamente à alteração constante de
fotografias que estamos habituados. Trata-se de um novo há-
bito: o universo fotográfico habitua-nos ao (<progresso>>. Já
não nos apercebemos dele. Se, de repente, os mesmos jomais
aparecessem diariamente nas nossas salas ou os mesmos car-
tazes semanalmente sobre os muros, aí sim, ficaríamos como-
vidos. O <progresso>> tornou-se ordinário e costumeiro; a in-
formação e a aventura seriam a paralisação e o repouso.
Estamos igualmente habituados à coloração de tal univer-
so. Não nos damos conta de quão surpreendente teria sido um
82 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 83

qLrotidiano colorido para as gerações precedentes . No século quebra-cabeças, como jogo de permutação entre elementos
XIX , o mundo lá fora era cinzento: muros, jorrrais, livros, claros e distintos.
roupas, instrumentos, tudo isso oscilava entre o branco e o A estrutura quântica do universo fotográfico não é sur-
preto, dando no seu conjunto, a impressão do cinza: impres- preendente. E um produto do gesto de fotografar, o qual se re-
são de textos, teorias, dinheiro. Actualmente tudo isto grita velou um gesto composto de pequenos saltos. Se analisarmos
alto em todas as tonalidades do arco-íris. Nós, porém, esta- a estrutura quântica no universo fotográfico, encontraremos
tnos <<surdos> opticamente diante de tal poluição. As cores uma explicação mais profunda para o carâcter de <<saltitante>>
penetram nos nossos olhos e na nossa consciência sem serem de tudo que se refere à fotografia. Descobriremos que uma tal
percebidas alcançando regiões subliminares, onde então fun- estrutura étípica de qualquer movimento do aparelho. Até em
cionam. Algo a ser considerado por qualquer filosofia da fo- aparelhos que parecem deslizar (como nas imagens do cine-
tografia. ma ou da televisão), podemos descobrir os pequenos saltos.
Se compararïnos a nossa coloração com a medieval ou Arazáo é que os aparelhos foram construídos segundo o mo-
com a de outras civllizações não-ocidentais, constataremos o delo cartesiano. Isto toma-se ainda mais evidente se conside-
seguinte: na Idade Média, como noutras culturas exóticas, as rarmos como funcionam os computadores.
cores são símbolos mágicos que se enquadram nos mitos. As- Trata-se de aparelhos para <<pensar>> cartesianamente. Se-
sim, o <<vermelho> pode significar perigo de sermos engoli- gundo o modelo cartesiano, o pensamento é um <<colar de pé-
dos pelo inferno. No nosso universo, o significado mágico foi rolas>> claras e distintas. Estas pérolas são os conceitos e pen-
recodificado paÍa e em função de programas, sem contudo, sar é perrnutar conceitos segundo as regras do fio. Pensar é
perder seu poder mágico. <<Vermelho>> num sinal de trânsito manipular um ábaco de conceitos. Qualquer conceito claro e
continua a significar <<perigo>>, mas o seu significado atraves- distinto significa um ponto láfora, no mundo das coisas ex-
sa os olhos e a consciência para que caÍïeguemos automati- tensas (res extensa). Se conseguíssemos adequar a cada pon-
camente no travão. A coloração do universo das fotografias to lá fora um conceito da coisa pensante, seríamos omnis-
funciona da maneira descrita: vai programando magicamente cientes. E também omnipotentes, porque, ao permutarmos os
o nosso comportamento. conceitos, poderíamos simbolicamente permutar os pontos.
No entanto, o carâcter de <<camaleão>> do universo fotográ- Infelizmente, essa omnisciência e omnipotência não são pos-
fico, a sua coloração cambiante, não passa de um fenómeno síveis, porque a estrutura da coisa pensante não se adequa à
da opeler. Quanto à sua estrutura profunda, o universo foto- da coisa extensa. Nesta, os pontos confundem-se uns com os
gráfico é um mosaico. Muda constantemente de aspecto e outros, con-crescem, fazendo com que a coisa extensa seja
coÍ, como mudaria um mosaico onde as pedrinhas seriam concreta. Na coisa pensante, há intervalos entre os conceitos
constantemente substituídas por outras. Qualquer fotografia claros e distintos. A maioria dos pontos escapa por estes in-
individual é uma pedrinha de mosaico: uma superfície clara tervalos. Descartes esperava superar esta dificuldade graças à
c diferente das outras. Trata-se, pois, de um universo quânti- geometria analítica e à ajuda divina. Não conseguiu fazô-lo.
co, calculável (cálculp = pedrinhas), atomizado, democritia- Os computadores, estes sim, conseguem o feito, graças a
no, composto de grãos, não de ondas, funcionando como duas estratégias: reduzem os conceitos caftesianos a dois:
84 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 85

<<zero>> e <<um>> e em bits, binariamente; depois,


<(pensam>> Estejogo obedece ao acaso, que vai tornar-se necessidade.
programam universos adequados a esse tipo de pensamento. Um exemplo extremamente simples de programa é um jogo
Nestes universos, os computadores passaram a ser, de facto, de dados: permuta os elementos <<1>> a <<6>> ao acaso. Qual-
omniscientes e omnipotentes. O universo fotográfico é um quer lance individual é imprevisível. Mas a longo prazo, o
exemplo. A cada fotografia individual, corresponde um con- <<1>> será realizado em cada sexto lance. Necessariamente.Is-

ceito claro e distinto no programa do aparelho produtor des- to é: todas as virtualidades inscritas no programa, embora se
se universo. Aparelho produtor que não é necessariamente realizem ao acaso, acabarão por realizar necessariamente. Se
um computador, mas que funciona segundo a mesma estrutu- a gueÍra atómica estiver inscrita em determinados programas
ra lógica. de determinados aparelhos, será real ida de, ne c ess ari ame nt e,
Eis como se produz o universo fotográfico: os homens embora aconteça por acaso. E neste sentido sub-
constroem aparelhos segundo modelos cartesianos; em se- -humanamente cretino que os aparelhos são omniscientes e
guida, alimentam-nos com conceitos claros e distintos (ac- omnipotentes nos seus universos.
tualmente existem aparelhos de <<segunda geração> que po- O universo fotográfico, no estádio actual, é arealizaçáo ca.
dem ser construídos e alimentados por outros aparelhos e os sual de algumas das virtualidades programadas nos apare-
homens vão desaparecendo do horizonte); os aparelhos pas- thos. Outras virtualidades se realizaráo ao acaso, no futuro. E
sam a pemutar os conceitos claros e distintos inscritos no seu tudo se darâ necessariamente. O universo fotográfico muda
programa; fazem-no ao acaso, automaticamente, <<pensam>> constantemente, porque cada uma das suas situações corres-
idioticamente; as permutações que assim se formam são ponde a determinado lance de um jogo cego. Cada situação
transcodificadas em imagens e fotografias; a cada fotografia do universo fotográfico significa determinada permutação
conesponderá uma determinada permutação de conceitos no dos elementos inscritos no programa dos aparelhos, o que
programa do aparelho e a cada permutação corresponderá permite definirmos o universo das fotografias: 1. surgiu de
uma determinada fotografia; haverâ uma relação biunívoca um jogo programático e significa um lance desse jogo; 2. o
entre o programa do aparelho e o universo da fotografia; o jogo não obedece a nenhuma estratégia deliberada; 3. o uni-
aparelho será omnisciente e omnipotente num tal universo. verso é composto de imagens claras e distintas, as quais não
Mas terá pago um preço: os vectores de significação significam, como se pretende, <<situações 1á fora no mundo>>,
invefteram-se. Já náo é o pensamento que significará a coisa mas determinadas permutações de elementos do programa;4.
extensa; é a fotografia que significa um <<pensamento>>. Res- estas imagens programam magicamente a sociedade para um
ta a pergunta: que significa <<pensamento> programado? comportamento em função do jogo dos aparelhos. Resumin-
A descrição da produção do universo fotográfico, actma do: o universo fotográfico é um dos meios do aparelho para
esboçada, ignora o factor humano. Não considerou a involu- transformar homens em funcionários, em pedras do seu jogo
ção das intenções do aparelho com as humanas. A simplifica- absurdo.
ção proposital do processo de produção do universo fotográ- Neste ponto da discussão, o argumento deve necessaria-
fico permite definir o conceito fundamental de programa: jo- mente bifurcar-se. Uma das direcções do argumento conduz
go de permutação entre elementos claros e distintos" à sociedade programada, cercada pelo universo das fotogra-
86 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 87

l'ias; outra ruma aos aparelhos programadores, <<lugares da enquanto protótipo, é o patnarca de todos os aparelhos. Por-
dccisão>>, como se dizia antigamente. A primeiralevarâà crí- tanto, o aparelho fotográfico é a fonte da robotização da vida
tica da sociedade pós-industnal; a segunda será uma tentati- em todos os seus aspectos, desde os gestos exteriorizados ao
vapara transcender tal sociedade. Se não distinguirmos as di- mais íntimo dos pensamentos, desejos e sentimentos.
recções divergentes, jamais nos conseguiremos orientar na si- O universo fotográfico é produto do aparelho fotográfico,
tuação emergente. que por sua vez, é produto de outros aparelhos. Estes apare-
Estar no universo fotogrófico ímplica viver, conhecer, va- lhos são multiformes: industriais, publicitários, económicos,
lorar e agir em função de fotografias. Isto é: existir num políticos, administrativos. Cada um destes funciona automa-
mundo-mosaico. Vivenciar passa a ser recombinar constante- ticamente. E as suas funções estão ciberneticamente coorde-
mente experiências vividas através de imagens. Conhecer nadas a todas as demais. O input de cada um deles é alimen-
passa a ser elaborar colagens fotográficas para se ter uma <<vi- tado por outro aparelho; o ouíput de qualquer aparelho ali-
são de mundo>>. Valorar passa a ser escolher determinadas fo- menta outro. Os aparelhos programam-se mutuamente numa
tografias como modelos de comportamento, recusando ou- hierarquia envolvente. Trata-se, nesse complexo de apare-
tras. Agir passa a ser comportar-se de acordo com a escolha. lhos, de uma caixa negra composta de caixas negras. Um su-
Esta forma de existência passa a ser quanticamente analisá- percomplexo de produção humana. Produzido, no decorrer
vel. Toda a experiência, todo o conhecimento, todo o valor, dos séculos XIX e XX, pelo homem. E os homens continuam
toda a acção consiste em bits definíveis. Trata-se de uma a produzi-lo. Deste modo, parece óbvio como criticar tudo is-
existência robotizada, cuja liberdade de opinião, de escolha e to: basta descobrir as intenções humanas que levaram à pro-
de acção se torna observável, confrontada com os robots mais dução dos aparelhos.
aperfeiçoados. Trata-se de um método de crítica sedutor, por duas razões
A robotização dos gestos humanos jâ é facllmente consta- diferentes. Em primeiro lugar, dispensa o crítico de mergu-
tável. Nos guichets de bancos, nas fábricas, em viagens turís- lhar no interior das caixas negras. Basta concentrar-se sobre
ticas, nas escolas, nos desportos, na dança. Menos facilmen- o input que é a decisão humana. Em segundo lugar, o méto-
te, mas ainda possível, ela é constatável nos produtos inte- do pode recoffer a critérios já bem elaborados, por exemplo,
lectuais da actualidade. Nos textos científicos, poéticos e po- os marxistas. Eis o resultado de uma tal cútica: os aparelhos
líticos, nas composições musicais, na arquitectura. Tudo está foram inventados para emancipar o homem da necessidade
a robotizar-se, isto é, obedece a um ritmo staccato. A crítica do trabalho; trabalham automaticamente para ele. O aparelho
da cultura começa a descobri-lo. A sua tarefa será a de inda- fotográfico produz imagens automaticamente, e o homem já
gar até que ponto o universo da fotografia é responsável pe- não precisa de movimentar pincéis esforçando-se para vencer
lo que está a acontecer. Ahipótese aqui defendida é esta: a in- a resistência do mundo objectivo. Simultaneamente, os apa-
venção do aparelho fotográfico é o ponto a partt do qual a relhos emancipam o homem para o jogo. Ao invés de movi-
existência humana vai abandonando a estrutura do desliza- mentar o pincel, o fotógrafo pode <brincaD) com o aparelho.
mento linear, próprio dos textos, para assumir a estrutura do No entanto, certos homens apoderaram-se dos aparelhos,
salto quântico, próprio dos aparelhos. O aparelho fotográfico, desviando a intenção dos seus inventores para o seu próprio
88 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia 89

proveito. Actualmente os aparelhos obedecem a decisões dos homens. Estes, sem excepção, funcionam em função dos apa-
seus proprietários e alienam a sociedade. Quem afirmar que relhos.
não há uma tal intenção dos proprietários, por trás dos apare- Não pode haver um <<proprietátrio de aparelhos>>. Como os
lhos, está a ser vítima dessa alienação e colabora objectiva- aparelhos jâ náo obedecem ao controle humano, não perten-
mente com os proprietários dos aparelhos. cem a ninguém. Quem crê ser possuidor de um aparelho é, na
Segundo esta análise, nada de muito novo aconteceu com realidade, possuído por ele. Doravante, nenhuma decisão hu-
a invenção dos aparelhos, porque os conceitos neles progra- mana funciona. Todas as decisões passam aser funcíonais,is-
mados significam os interesses dos seus proprietários. Qual- to é, tomadas ao acaso, sem propósito deliberado. Os concei-
quer fotografia individual será decifrada quando nela desco- tos programados nos aparelhos, que originalmente significa-
brirmos os interesses do proprietário, da fábrica Kodak, do vam intenções humanas, deixaram de as significar. Passaram
proprietário da agência de publicidade, dos poderes humanos a ser auto-significantes. São vazios os símbolos com os quais
que dominam a indústria americana, e finalmente, os interes- joga o aparelho. Este não funciona em função de uma inten-
ses humanos que se escondem por trás do aparelho da ideo- ção deliberada, mas automaticamente, girando em ponto
logia americana. Quanto ao universo fotográfico como um morto. E todas as virtualidades inscritas no seu programa, in-
todo, só estará decifrado quando descobrirmos que interesses clusive a de produzir outros aparelhos ou a de se autodestruir,
inconfessos serve. realizar-se- áo ne c e s s aríament e.
Infelizmente, essa críttca <<clássica> jamais fenrâ o essen- A crítica <<clássica> dos aparelhos objectará que tudo não
cial: a automaticidade dos aparelhos. Justamente, o ponto que passa de uma mitificação que os transforma em gigantes
merece ser criticado. Não há dúvida de que os aparelhos fo- super-humanos, a fim de esconder a intenção humana que os
ram originalmente produzidos por homens. Revelaram por- move. A objecção é falha. Os aparelhos são de facto gigan-
tanto, sob análise, intenções humanas e interesses humanos, tescos, pois foram produzidos para sê-lo. E de forma nenhu-
como acontece com todos os produtos da cultura. Que inten- ma são super-humanos. Pelo contrário, são pálidas simula-
ção humana e que interesse humano são esses? Precisamente ções do pensamento humano. O dever de qualquer crítica dos
chegar a algo que dispensa futuras intenções humanas e futu- aparelhos é mostrar a cretinice infra-humana dos aparelhos.
ras intervenções humanas. O propósito por trós dos aparelhos Mostrar que se trata de vassouras invocadas por um aprendiz
é torná-los independentes do homem. Essa autonomia resulta, de feiticeiro que traz, automaticamente, âgua até afogar a hu-
segundo a própria intenção, numa situação onde o homem é manidade, e que se multiplicam automaticamente. O seu in-
eliminado. Mas eliminado por um método que não foi previs- tuito deve ser exorcizar essas vassouras, recolocando-as na-
to pelos inventores dos aparelhos. Os programas dos apare- quele canto ao qual pertencem, conforme a intenção inicial
lhos, esse jogo casual com elementos, passou a ser de tal for- humana. Graças a críticas deste tipo é que podemos esperar
ma rico e rápido que ultrapassa a competência humana. transcender o totalitarismo robotizante dos aparelhos que es-
Já nenhum homem pode controlar o jogo. E quem nele par- táem vias de se preparar. Não será negando a automaticida-
ticipar, longe de o controlar, será por ele controlado. A auto- de dos aparelhos, mas encarando-a, que podemos esperar a
nomia dos aparelhos levou à inversão da sua relação com os retoma do poder sobre os aparelhos.
90 Vilém Flusser

Depois dessa dupla excursão pelo universo fotográfico, po-


demos resumir o argumento: o universo fotográfico é um jo-
go de permutação cambiante e colorido com superfícies cla-
ras e distintas, chamadas fotografias. Estas são imagens de
conceitos programados em aparelhos e esses conceitos são
símbolos vazios. Sob análise, o universo fotográfico é um
universo vazio e absurdo. No entanto, como as fotografias
são cenas simbólicas, elas programam a sociedade para um
comportamento mágico em função do jogo. Conferem um
significado mágico à vida da sociedade. Tudo se passa auto- 9. A URGÊNCIA DE UMA FILOSOFIA
maticamente e náo serve a nenhum interesse humano. Contra DA FOTOGRAFIA
essa automação estúpida, lutam determinados fotógrafos, ao
procurarem inserir intenções humanas no jogo. Os aparelhos,
por sua vez, recuperaram automatícamente tais esforços em No decorrer deste ensaio, vieram à tona alguns conceitos-
proveito do seu funcionamento. O dever de uma fiIosofia da -chave.' imagem, aparelho, programa, informação. Estes
fotografia seria o de desmascarar esse jogo. conceitos formam as pedras angulares de qualquer filosofia
Quem lê este resumo, terâ a impressão de que a importân- da fotografia, baseando-se na seguinte definição de fotogra-
cia da fotografia sobre a vida pós-industrial está a ser exage- fia: imagem produzida e distribuída por aparelhos segundo
rada. Porque o resumo não descreve apenas o universo foto- um programa, a fim de informar receptores. Qualquer
gráfico, mas todo o universo dos aparelhos. Não seria o uni- conceito-chave, por sua vez, implica conceitos subsequentes.
verso fotográfico apenas um entre os múltiplos universos do Imagem implica magia. Aparelho implica automação e jogo.
mesmo tipo, longe de ser o mais significativo? Não haverát Programa implica acaso e necessidade. Informação implica
universos muito mais angustiantes? O próximo e último ca- símbolo. Os conceitos implícitos permitem ampliar a defini-
pítulo deste ensaio esforçar-se-á por mostrar que o universo ção da fotografia da seguinte maneira:'imagem produzida e
fotográfico náo é apenas um evento relativamente inócuo do distribuídn'afromaticamente no decorrer de um jogo progra-
funcionamento, mas pelo contrário, é o modelo de toda vida mado, que se dá ao acaso mas que se torna necessídade, cu-
futura. E que a filosofia da fotografia pode vir a ser o ponto ja ínformação simbólica, na sua superfície, programa o re-
de partida para qualquer disciplina, que tenha como objecto a ceptor para um comportamento mógico.\\
vida do homem futuro. A definição tem uma curiosa vantagem: exclui o homem
enquanto factor activo e livre. Portanto, é uma definição ina-
ceitável. Deve ser contestada, porque a contestação é a mola
propulsora de todo o pensar filosófico. Deste modo, a defini-
ção proposta pode servir de ponto de partida para a filosofia
da fotografia.
92 Vilém Flusser Ensaio sobre a Fotografia

Os conceitos imagem, aparelho, programa, informação, plicação causal e recoÍïer a explicações formais, funcionais.
considerados mais de perlo, revelam o terreno comum do Os quatro conceitos-chave da fotografia são também os da
qual brotam. Terreno da circularidade. As imagens são super- cosmologia.
fícies sobre as quais circula o olhar. Os aparelhos são brin- A estrutura pós-histórica do nosso pensamento pode ser
quedos que funcionam com movimentos eternamente repeti- encontrada em vários outros terrenos: biologia, psicologia,
dos. Os programas são sistemas que recombinam constante- lin guísti c a, informáti c a, c ibernéti c a, par a citar apenas al gun s.
mente os mesmos elementos. A informação é o epiciclo ne- Em todos, estamos jâ, de forma espontânea, a pensar ínfor-
gativamente entrópico que deverá voltar à entropia da qual maticamente, p ro g ramaticamente, aparelhistic amente, ima-
surgiu. Quando reflectimos sobre os quatro conceitos-chave, geticamente. Estamos a pensar do modo como <<pensam>> os
estamos no teÍïeno do eterno retorno. Abandonamos a recta, computadores. Penso que estamos a pensar dessa maneira
onde nada se repete, terreno da história, da causa e efeito. Na porque a fotografia é o nosso modelo, foi ela que nos progra-
região do eterno retomo, sobre a qual nos coloca a fotografia, mou para pensar assim.
as explicações causais devem calar-se. <<Rest, rest, dear spi- A tese não é muito nova. Sempre se supôs que os instru-
rit>> como dizia Cassirer referindo-se à causalidade. As cate- mentos são modelos do pensamento. O homem inventa-os,
gorias não-históricas devem ser aplicadas à filosofia da foto- tendo por modelo o seu próprio corpo. Esquece-se depois do
grafia, sob pena de não se adequarem ao seu assunto. modelo, <<aliena-se>> e vai tomar o instrumento como modelo
No entanto, o abandono do pensamento causal e linear dá- do mundo, de si próprio e da sociedade. Exemplo clássico
-se espontaneamente, não é preciso deliberá-lo. Pensamos já dessa alienação é o século XVI[. O homem inventou as má-
pós-historicamente. Os conceitos-chave sustentadores da fo- quinas, tendo por modelo o seu próprio corpo, depois tomou
tografia já,estão espontaneamente encrustados no nosso pen- as máquinas como modelo do mundo, de si próprio e da so-
sar. Darei, como único exemplo, a cosmologia actual. ciedade Mecanicismo. No século XVI[, portanto, uma filo-
Reconhecemos no cosmos um sistema que tende para si- sofia da máquina teria sido a crítica de toda a ciência, toda a
tuações cadavez mais prováveis. Situações improváveis sur- política, toda a psicologia, toda a arte. Actualmente, uma fi-
gem ao acaso, de vez em quando. Mas retornarão, necessa- losofia da fotografia deve ser outro tanto. Crítica do funcio-
riamente, para a tendência rumo à probabilidade. Reformu- nalismo.
lando: reconhecemos no cosmos um sistema que contém um A coisa não é tão simples. A fotografia não é instrumento,
programa inicial, no big bang, que se vai realizando por aca- como a máquina, mas <<brinquedo>> como as cartas do baralho.
so, automaticamente. No decurso da realização, surgirão in- No momento em que a fotografia passa a ser um modelo de
formações que se vão, pouco a pouco, desinformando. A ca- pensamento, muda a própria estrutura da existência, do mun-
da instante, o universo é uma situação surgida ao acaso, que do e da sociedade. Não se trata, nesta revolução fundamental,
levarâ necessariamente à <<morte térmica>>, de forma que o de substituir um modelo por outro. Trata-se de saltar de um ti-
universo é um aparelho produtor do caos. A nossa própria po de modelo para outro (de paradigma em paradigma). Sem
cosmologia não passa de uma imagem desse aparelho. Em circunlocuções: a filosofia da fotografiaffata de recolocar o
consequência, esta cosmovisão deve descartar qualquer ex- problema da liberdade em parâmetros inteiramente novos.
94 Vilém Flusser Fotografia
Ensaio sobre a Fotografia 95

Qualquer filosofia trata, em última análise, do problema da um carácter robotizado; alimentam aparelhos e são por eles
liberdade. Mas, no decorrer da história, o problema colocava- alimentados. Não obstante, os fotógrafos afirmam que tudo
-se da seguinte maneira; se tudo tem causa e se tudo é causa isto não é absurdo. Afirmam serem livres, e nisto, são protó-
de efeitos, se tudo é <<determinado>>, onde há espaço para a li- tipos do novo homem.
berdade? Reduziremos as múltiplas respostas a uma única: as Atarefa da filosofia da fotografia é dirigir a questão da li-
causas são tão impenetravelmente complexas e os efeitos tão berdade aos fotógrafos, a fim de captar a sua resposta. Con-
imprevisíveis, que o homem, ente limitado, pode agir como sultar a sua praxis. Eis o que tentaram fazer os capítulos an-
se não estivesse determinado. Actualmente, o problema teriores. Várias respostas apareceram: 1. o aparelho é infra-
coloca-se de outro modo: se tudo é produto do acaso cego, e -humanamente estúpido e pode ser enganado; 2. os progra-
se tudo leva necessariamente a nada, onde há espaço para a mas dos aparelhos permitem introdução de elementos huma-
liberdade? Eis como a filosofia da fotografia deve colocar o nos não previstos; 3. as informações produzidas e distribuí-
problema da liberdade. Por isto e para isto é necessária. das pelos aparelhos podem ser desviadas da intenção dos
Reformulemos o problema: constata-se no nosso ambien- aparelhos e submetidas a intenções humanas; 4. os aparelhos
te, como os aparelhos se preparam para programar, numa au- são desprezíveis. Estas respostas, e outras possíveis, são re-
tomação estúpida, as nossas vidas; como o trabalho está a ser dutíveis a uma: a liberdade é jogar coníra o aparelho. E isto
assumido por máquinas automáticas e como os homens vão é possível.
sendo empurrados rumo ao sector terciârÌo, onde brincam No entanto, esta resposta não é dada pelos fotógrafos es-
com símbolos vazios; como o interesse dos homens se vai pontaneamente. Só aparece como escrutínio filosófico da sua
transferindo do mundo objectivo para o mundo simbólico das praxis. Os fotógrafos, quando não provocados, dão respostas
informações: sociedade informártica programada; como o diferentes. Quem lê textos escritos por fotógrafos, verifica
pensamento, o desejo e o sentimento vão adquirindo um ca- crerem eles que fazem outra coisa. Crêem fazer, <<obras de ar-
râcter de jogo em mosaico, um caúrcter robotizado; como o te>>, ou que se comprometem politicamente ou que contri-
viver passa a alimentar os aparelhos e a ser por eles alimen- buem para o aumento do conhecimento. E quem lê uma his-
tado. O clima de absurdo torna-se palpável. Onde, pois, o es- tóna da fotografia (escrita por um fotógrafo ou por um críti-
paço para a liberdade? co), verifica que os fotógrafos crêem dispor de um novo ins-
Eis que descobrimos, à nossa volta, gente capaz de res- trumento para continuar a agir historicamente. Crêem que, ao
ponder à pergunta: fotógrafos. Gente que já vive o totalitaris- lado da história da arte, da ciência e da política, há mais uma
mo dos aparelhos em miniatura: o aparelho fotográfico pro- história: a da fotografia. Os fotógrafos são inconscientes da
grama os seus gestos, automaticamente, trabalhando automa- sua praxis. A revolução pós-industrial, tal como se manifes-
ticamente no seu lugar; age no <<sector terciário>>, brincando ta, pela primeira vez no aparelho fotográfico, passou desper-
com símbolos, com imagens; o seu interesse concentra-se so- cebida aos fotógrafos e à maioria dos críticos da fotografia.
bre a informação na superfície das imagens, sendo que o ob- Eles nadam na pós-indústria, inconscientemente.
jecto <<fotografia> é desprezível; o seu pensamento, desejo e Há, porém, uma excepção: os chamados fotógrafos experi-
sentimento têm um carâcter fotográfico, isto é, de mosaico, mentais; estes sabem do que se trata. Sabem que os proble-
96 Vilém Flusser

mas a resolver são os da imagem, do aparelho, do programa


e da informação. Tentam, conscientemente, obrigar o apare-
lho a produzir uma imagem informativa que não está no seu
programa. Eles sabem que a sua praxis é uma estratégia diri-
gida contra o aparelho. Mesmo sabendo, não se dão conta do
alcance da sua prctxis. Não sabem que estão a tentar dar res-
posta, através da sua praxis, ao problema da liberdade num
contexto dominado por aparelhos, problema que é, precisa-
mente tentar opôr-se.
Urge uma filosofia da fotografi a para que a praxls fotográ-
fica seja consciencializada. A consciencializaçáo dessa pra-
xis é necessária porque sem ela, jamais captaremos as aber-
turas para a liberdade na vida do funcionário dos aparelhos.
Noutros termos: a filosofia da fotografia é necessária porque
é uma reflexão sobre as possibilidades de se viver livremen-
te num mundo programado por aparelhos. Uma reflexão so-
bre o significado que o homem pode dar à vida, onde tudo é
um acaso estúpido, rumo à morte absurda. Assim vejo a tare-
fa da filosofia da fotografia: apontar o caminho da liberdade.
Filosofia urgente por ser ela, talvez, a única revolução ainda
possível.

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