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INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NITERÓI
2023
2
Orientadora:
Profª Drª Tatiana Silva Poggi de Figueiredo
Niterói, RJ
2023
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor
CDD - XXX
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Profª Drª Tatiana Silva Poggi de Figueiredo – UFF
Orientadora
___________________________________________________________________________
Profª Drª Juniele Rabêlo de Almeida – UFF
___________________________________________________________________________
Profº Dr. Gilberto Grassi Calil – Unioeste
___________________________________________________________________________
Profº Dr. Demian Bezerra de Melo – UFF
Niterói
2023
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos que me guiam e às forças dentro de mim que insistem em
r(existir) a cada dia. Escolher a trilha da educação e da pesquisa científica em tempos de
pandemia e de neofascismo negacionista não foi fácil. Sobrevivemos.
À Marcilene, Lara e Deijair, que me dedicam as bases de tudo. À Elzani e à Sérgio (in
memoriam), que desde bem pequeno já me cobriam de cuidado e carinho no caminho até a
pré-escola. À Dinizia, Ronei e Shirley, que sempre me abraçaram na descida da serra.
À família que construí e me acolheu nas minhas falhas e acertos, nos piores e nos
melhores momentos dessa quase década de jornada em terras de Araribóia. Ao meu irmão
João Victor, companheiro de longa data. Ao Rogério e Olavo, amigos do “Cururu” e de
Sossego. À Tabata e Tayrine, amigas que me fortaleceram no período mais difícil da
pós-graduação. Ao Bruno, Jordano, Caique, Victor, Júlio, Dialéstica, Juliano, Nicolly,
Rodrigo e a todos demais amigos, colegas e camaradas que, se chegaram até aqui, fazem jus a
tais qualitativos.
Agradeço à Tatiana, orientadora cuja argúcia me acompanha desde a graduação. À
Juniele, cuja paixão pela história e pela educação inspiram minha prática acadêmica e docente
desde os tempos de Brasil III. Aos professores Demian e Gilberto, pelo aceite em compor a
banca e pelas contribuições tão ricas ao trabalho. À CAPES, por tornar possível a execução
deste trabalho.
À todos os demais professores e trabalhadores da educação pública, do nível básico ao
superior, que possibilitaram o caminho para que hoje o filho da classe trabalhadora possa se
tornar mestre em História por um programa de qualidade ilibada como o da UFF.
5
RESUMO
ABSTRACT
This dissertation aims to undertake an investigative analysis of the activities of the film and
video production company 'Brasil Paralelo,' with a focus on its productions that address
themes of history and politics. The study seeks to examine how this education and
entertainment company, associated with new right and Bolsonarist groups, employs specific
uses of the past and history within a strategic project of ideological contestation in the realm
of the internet and digital media. It investigates the characteristics of the production company
and its intellectuals, their formation and trajectory within the current context, their discourses,
their major projects, and how they interact within civil society based on certain political and
social interests. In the interim, the influence exerted by author Olavo de Carvalho on the
production company is analyzed, as he is considered the intellectual mentor of the Brasil
Paralelo project. Concurrently, the research seeks to analyze the theoretical and
methodological issues related to the content found in their revisionist/negationist narratives
presented as educational historical materials. The study also addresses the challenges that
arise in terms of writing, education, and the dissemination of this content. Drawing from these
elements, the research presents a case study on how anti-communist discourse is promoted in
Brasil Paralelo's productions, representing a fundamental ideological device that extends
beyond the scope of the company's content through the propagation of the conspiracy theory
of 'cultural Marxism.' Using the Gramscian theoretical framework, the study identifies and
analyzes the relationships established between the company, its organic intellectuals, new
right organizations, and the State – broadly understood – in representing and articulating the
interests of dominant groups. These actors work towards the reproduction and legitimation of
their values and worldviews within Brazilian capitalist society. To achieve this, the study
examines the ultra-liberal, conservative, and anti-communist ideological foundations of the
production company, as well as its key methods for generating consensus in the current
context. In these terms, the subject fits within the broader framework of the ongoing update of
mechanisms of domination and strategies of bourgeois hegemony in Brazil. New
organizational forms and political-ideological apparatuses are emerging in the trenches of a
“culture war”.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO………………………………………………………………………..…….10
CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………….……………..271
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………………………292
FONTES…………………………………………………………………………………….305
ANEXOS……………………………………………………………………………………324
10
INTRODUÇÃO
Tem sido observado nos últimos anos um grande aumento na repercussão que certas
temáticas históricas vêm alcançando na internet e no debate público brasileiro. Uma demanda
sobre a história que se encontra diretamente associada à busca pela compreensão de
fenômenos políticos que eclodiram na conjuntura, carregando consigo referências
significativas a eventos do passado. No seio das disputas de memória e de narrativas sobre
esses eventos pelos grupos da sociedade civil fez-se evidente, contudo, um predomínio da
ação de atores da chamada nova direita, sobretudo por meio da produção e difusão de
conteúdos audiovisuais diversos nas mídias digitais. Isto vem ocorrendo de modo associado
ao crescimento de sua influência nas instituições, em canais da grande mídia nacional, nas
esferas de poder e em diversos espaços da vida cotidiana a partir da ofensiva de grupos
conservadores e da emergência do bolsonarismo.
No âmbito dessas batalhas pelo passado, se coloca em evidência a iniciativa da
produtora de entretenimento Brasil Paralelo (BP). Caso você também faça parte do grande
número de usuários assíduos da internet e das redes sociais, dificilmente terá navegado pelo
YouTube ou pelo Facebook nos últimos anos sem se deparar com algum anúncio da empresa,
que afirma ter como missão “resgatar bons valores, ideias e sentimentos no coração de todos
os brasileiros”1. A produtora vem desde 2016 produzindo "séries, documentários, filmes,
programas e cursos, que tratam de política, história, filosofia, economia, educação, arte e
atualidade", cuja orientação seria "a busca pela verdade histórica, ancorada na realidade dos
fatos"2. Contando com mais de 3 milhões de inscritos em seu canal e 250 milhões de
visualizações em seus vídeos, com boa parte de seu conteúdo voltado para temáticas da
história, a produtora vem investindo na disseminação junto ao público de posições, narrativas
e discursos condizentes aos valores e ideias ultraliberais, conservadoras e anticomunistas que
conformam o campo ideológico da aliança olavista-bolsonarista que esteve à frente do
governo federal nos últimos anos.
Passados pouco mais de seis anos desde a criação daquela pequena produtora de
vídeos por três jovens empresários de Porto Alegre, hoje a Brasil Paralelo é responsável pela
realização de produções milionárias que contam com investimento maciço em propaganda, e
1
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
2
Ibidem.
11
que inclusive chegaram a ser veiculadas em salas de cinema e pela TV Escola, canal de
televisão que era financiado pelo Ministério da Educação3. No Facebook Brasil, desde 2020 a
empresa é recordista de gastos com propaganda política4. A empresa, que fechou o seu
primeiro ano com um rendimento de pouco mais de R$1 milhão, terminou 2022 com uma
receita de R$150 milhões, tendo um crescimento exponencial a partir do governo Bolsonaro e
do contexto de pandemia. O sucesso do projeto é creditado ao modelo de “autofinanciamento
independente”, no qual o público interessado no conteúdo investe no projeto se tornando
membro assinante da plataforma de conteúdos exclusivos da Brasil Paralelo.
Ao lado de outros canais, grupos e influencers do ecossistema da nova direita no país,
a Brasil Paralelo vem então investindo na promoção de uma série de conteúdos pretensamente
educativos de história e política nas redes, disponibilizados principalmente no YouTube,
contando com importantes recursos financeiros e digitais que tornam seu discurso atrativo.
Suas produções abordam temáticas que vão do Brasil colonial à nossa história republicana
recente, passando pela história medieval europeia até temas candentes da conjuntura política
brasileira e internacional a partir de uma série de formatos do audiovisual.
A problemática principal deste uso público e mercadológico da história se estabelece
com a observação de que as narrativas veiculadas indicam uma releitura do passado
informada por propósitos político-ideológicos apriorísticos, permeada de distorções históricas
e de ordem teórico-metodológicas, além de manipulações de dados e fontes documentais,
incorrendo em revisionismos negacionistas e em abusos dos significados dos processos e dos
eventos do passado. Tudo isso é vendido na forma de um produto de mídia educativa que
promete oferecer o acesso à “verdadeira história” negada aos brasileiros, apresentado na
forma de um discurso que procura descredibilizar a ciência, a pesquisa e a escrita acadêmica e
especializada da história, além do próprio ensino da disciplina nas escolas.
Agregando em seu entorno o clã Bolsonaro e o falecido “guru” da nova direita Olavo
de Carvalho, bem como figuras vinculadas à notáveis think tanks da causa ultraliberal no
Brasil, como o Instituto Liberal, o Instituto Von Mises Brasil e o Movimento Brasil Livre, a
Brasil Paralelo procura incidir no campo das chamadas “guerras culturais” através da
3
SALDAÑA, Paulo. TV ligada ao MEC vai exibir série sobre história com visão de direita. Folha de S. Paulo.
9 dez. 2019. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/12/tv-ligada-ao-mec-vai-exibir-serie-sobre-de-historia-com-visa
o-de-direita.shtml>. Acesso em: 10 mar. 2022.
4
MAZZA, Luigi. No Facebook, Brasil Paralelo é recordista de gastos com propaganda política. Piauí, 27 maio
2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/no-facebook-brasil-paralelo-e-recordista-de-gastos-com-propaganda-politica/>.
Acesso em: 10 mar. 2022.
12
5
NAPOLITANO, Marcos; JUNQUEIRA, Mary Anne. Negacionismos e Revisionismos: o conhecimento
histórico sob ameaça. Síntese dos debates e posicionamentos surgidos no evento promovido pelo Departamento
de História da FFLCH / USP – Universidade de São Paulo. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5207773/mod_folder/content/0/NAPOLITANO%2C%20Marcos%3B
%20JUNQUEIRA%2C%20Mary%20Anne.%20Como%20historiadores%20e%20professores%20devem%20lid
ar%20com%20negacionismos%20e%20revisionismos..pdf?forcedownload=1>. Acesso em: 5 mai. 2022.
6
ROCHA, Igor; PRATES, Thiago. Revisionismos, negacionismos e usos políticos do passado: uma
apresentação. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, v. 34, n.1, jan./jun. 2021, p. 8.
13
do conteúdo apresentado e do uso público que se faz da história, ou seja, à luz debate
historiográfico, verificando seus equívocos e distorções tanto de ordem teórica e
metodológica, quanto aqueles relativos à interpretação dos conceitos, dos eventos e dos
processos históricos. Tal inquirição não pode estar desvinculada do exame dos significados e
dos sentidos políticos, ideológicos e sociais subjacentes que essa produção sobre a história
carrega no presente contexto. Tratam-se de narrativas que não se encontram mais restringidas
a certos grupos de intelectuais e militantes, ou em nichos restritos da internet. Elas aparecem
agora no ambiente de trabalho, nas conversas em família e entre amigos, em discursos
religiosos, sendo trazidas para a própria sala de aula, reproduzidas por estudantes e mesmo
por alguns docentes imprudentes, resultando em sérias implicações para o ensino e
aprendizagem da disciplina.
Convém então aos pesquisadores acadêmicos e a outros espaços de produção do
conhecimento histórico, como a própria escola, analisar, problematizar e elaborar formas de
combater esse uso revisionista e ideológico da história no meio digital, publicizando e
ampliando o debate crítico a partir dos variados recursos e canais disponíveis. Superar o
contexto de ataques e de desmonte da ciência e da educação que nos foi legado nos últimos
anos à golpes de barbárie social, passa antes pela necessidade de compreendermos a lógica
dos discursos e as estratégias político-ideológicas empreendidas por grupos negacionistas,
antiprogressistas e antidemocráticos nesse âmbito. De tal modo, poderemos elaborar
conjuntamente formas de reabilitação de ambas enquanto ferramentas efetivas de
compreensão e transformação da realidade social.
Que fique claro: não se trata aqui de ratificar narrativas que se utilizam do passado de
modo a desfigurar o método histórico e a condenar a própria pesquisa e o ensino da história
no mesmo nível do debate historiográfico qualificado. De outra parte, também não cabe vetar
de antemão a discussão acadêmica sobre tais narrativas sob pretexto de sua pouca qualificação
científica. Como nos alerta Pierre Vidal-Naquet, podemos e devemos discutir sobre os
revisionistas, mas nunca discutir com os revisionistas7. Assim, mais do que simplesmente
“desmentir”, pretende-se, antes, analisar que tipo de narrativa se produz aqui sobre o nosso
passado e como, a partir de determinados agentes e objetivos políticos e ideológicos, ela
funciona em nossa sociedade no tempo presente. Trata-se de uma produção sobre a história
ofertada socialmente na forma de um conteúdo informativo e educativo, que incide sobre a
consciência e o “senso comum histórico” de amplas parcelas da população, e enquanto tal,
7
VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória. Um “Eichmann de papel” e outros ensaios sobre o
revisionismo. Campinas: Papirus, 1988, p. 11.
14
precisa ser analisada como objeto de estudo acadêmico. Podemos associar tal diligência à
noção de
8
BONSANTO, André. Narrativas “historiográfico-midiáticas” na era da pós-verdade: Brasil Paralelo e o
revisionismo histórico para além das fake news. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, maio 2021, p. 9.
15
10
Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/>. Acesso em: 6 de jun. 2023.
11
Plataforma Brasil Paralelo. Disponível em: <https://plataforma.brasilparalelo.com.br/>. Acesso em: 6 jun.
2023.
12
SALLES, Ricardo. Gramsci para historiadores. História da historiografia, Ouro Preto, n. 10., dez., 2012, p.
219.
13
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25.
14
SALLES, op. cit., p. 224.
17
A explicação histórica não pode tratar de absolutos e não pode apresentar causas
suficientes [...] A explicação histórica não revela como a história deveria ter se
processado, mas porque se processou dessa maneira, e não de outra; que o processo
não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos tipos
de acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionaram-se, não de
qualquer maneira que nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de
determinados campos de possibilidades; que certas formações sociais não obedecem
a uma "lei", nem são os "efeitos" de um teorema estrutural estático, mas se
caracterizam por determinadas relações e por uma lógica particular de processo17.
21
BEZERRA, Holien Gonçalves. E. P. Thompson e a teoria na história. Proj. História, São Paulo, 12, out. 1995.
p. 124.
22
Ibidem.
23
THOMPSON, op. cit., p. 48.
24
Ibidem, p. 48-49.
25
Ibidem, p. 37.
26
Ibidem, p. 54.
19
mental, cultural – âmbito em que se localiza prioritariamente nosso objeto de análise – é que
se trata da matéria-prima do trabalho intelectual do historiador27. Em nosso caso, as
evidências que balizam nossa investigação são perscrutadas nas fontes textuais e audiovisuais
que informam não só o modus operandi da Brasil Paralelo na conjuntura, como carregam sua
própria construção discursiva sobre temáticas históricas e políticas.
Na medida em que as categorias e os conceitos manejados no teste das hipóteses sejam
endossados pelas evidências, mostrando-se, assim, serem operacionais, podemos dizer que
elas existem "lá fora", na história real; que se tratam de uma "representação adequada de uma
propriedade real" dos acontecimentos28. De acordo com Thompson, ao apresentar os
resultados obtidos pela sua pesquisa, o historiador formula
juízos de valor quanto a processos passados, seja de maneira clara e incisiva, seja na
forma de ironias e apartes. Isto é adequado, em parte porque o historiador examina
vidas e escolhas individuais, e não apenas acontecimentos históricos (processos). E
embora possamos não fazer atribuições de valor aos processos, as mesmas objeções
não surgem com a mesma força quando examinamos as opções dos indivíduos, cujos
atos e intenções podem certamente ser julgados (como foram julgados pelos seus
contemporâneos) dentro do devido e relevante contexto histórico29.
27
Ibidem, p. 49.
28
Ibidem, p. 54.
29
Ibidem, p. 52.
30
Ibidem.
31
BEZERRA, op. cit., p. 124-125.
20
Aquelas proposições do materialismo histórico que influem sobre a relação entre ser
social e consciência social, sobre as relações de produção e suas determinações,
sobre modos de exploração, luta de classes, ideologia, ou sobre formações
capitalistas sociais e econômicas, são (num pólo de seu "diálogo") derivadas da
observação do suceder histórico no tempo. Não se trata da observação de fatos
isolados em série, mas de conjuntos de fatos com suas regularidades próprias; da
repetição de certos tipos de acontecimento; da congruência de certos tipos de
comportamento em diferentes contextos - em suma, das evidências de formações
sociais sistemáticas e de uma lógica comum do processo35.
período mais recente em que se escreve a própria pesquisa, acabamos por inseri-lo não só no
âmbito de uma “História do Tempo Presente” ou da “História Próxima”, mas no campo da
chamada “História Imediata”. Diferente da História do Tempo Presente com seu estatuto já
consolidado na historiografia – ainda que seus critérios de definição variem entre toda aquela
história que abarca o período pós-1945, ou que seja marcada “pela presença do historiador em
seu tema”, ou ainda, pela indicação arbitrária de um marco cronológico –, a História Imediata
ainda se trata de um campo historiográfico incipiente37.
Apesar de no geral compartilharem o olhar sobre os mesmos objetos, a História
Imediata não se confunde à escrita jornalística na medida em que não encerra os fatos em si
mesmos, mas propõe analisar e reinserir os eventos sociais em curso no seu devido contexto e
no seio do processo histórico mais amplo, levando em conta suas múltiplas temporalidades aí
inscritas38. De tal forma, se oferece uma contraposição à história midiática, tornando
“compreensível o emaranhado de informações que é despejado pela mídia, conferindo
racionalidade histórica ao imprevisível e desnaturalizando o naturalizado”39.
Entrementes, o historiador Gilberto Calil observa que ao tratar de processos em curso
onde não se conhece ainda o seu desfecho, alguns cuidados metodológicos se colocam ao
historiador: “Torna necessário que se produza uma interpretação em aberto, que trabalhe com
cenários possíveis, sempre correndo conscientemente o risco de ser rapidamente superada
pelos eventos que se sucedam”40. Assim, toda análise em História Imediata é parcial,
aproximativa e transitória – como ocorre em outros campos. Uma história em aberto num
processo passível de transformação, visto que seus elementos são características tendenciais e
não resultados acabados41.
Deve-se ainda não se perder de vista a reflexão metodológica sobre o caráter das
fontes históricas mobilizadas pelos historiadores do imediato, que em geral são provenientes
do meio digital e circulam num fluxo hiper acelerado de informações que demanda
mecanismos de seleção daqueles fatos e eventos que são de fato relevantes42. Le Goff indica
ao menos quatro atitudes indispensáveis ao historiador que pratica essa modalidade da
história:
37
CALIL, Gilberto. História imediata e marxismo. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH, 23,
2005, Londrina. Anais…São Paulo: Associação Nacional de História, 2005, p. 1.
38
Ibidem p. 2-3.
39
Ibidem, p. 4.
40
Ibidem, p. 2.
41
Ibidem, p. 6.
42
Ibidem, p. 5.
22
Neutralidade é uma coisa, isenção é outra. O historiador não precisa ser neutro (até
porque isto já manifesta uma tomada de posição). Ele deve ser, rigorosamente,
isento; assumir posições não desqualifica seu trabalho nem sua reflexão, muito
menos falseia resultados. Enquanto ser político, o historiador, deixando de lado todo
e qualquer dogmatismo, tem todo o direito de posicionar-se; mais, deve publicitar os
valores que norteiam sua linha de pensamento sem afastar-se do rigor científico
necessário para atingir seu objetivo maior, que é o elucidamento da verdade que
perpassa seu objeto de pesquisa e de reflexão45.
A própria opção pela pesquisa em História Imediata significaria, de acordo com Calil,
uma tomada de posição que busca refletir e problematizar o processo histórico em curso, na
medida em que se procura desnaturalizar as opções políticas e sociais hegemônicas e os
mecanismos de exploração e de exclusão que se mantêm no tempo46.
No que concerne às fontes utilizadas, o trabalho se inscreve ainda no âmbito das
pesquisas que conformam o campo da chamada História Digital, que pode ser caracterizada
como
43
LE GOFF, 1999 apud CALIL, op. cit., p. 6.
44
Ibidem.
45
PADRÓS, 1999 apud CALIL, op. cit, p. 5-6.
46
CALIL, op. cit., p. 4.
23
Assim, mais do que procurar estabelecer um método único, importa mais “[...] adequar
os métodos e técnicas de análise aos objetivos de cada pesquisa histórica e às especificidades
de seu corpus documental”51. Os desafios colocados pelo digital estariam relacionados à três
características que, ainda que não tenham surgido com a internet, foram em muito
47
MONINA, 2013 apud NOIRET. Serge. História Pública Digital. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v.11, n.1,
maio 2015, p. 33.
48
ALMEIDA, Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet como fonte
primária para pesquisas históricas. Aedos, Porto Alegre, n. 8, v.3, jan./jun. 2011, p. 16-19.
49
Ibidem, p. 20-24.
50
PRADO, Giliard da Silva. Por uma história digital: o ofício de historiador na era da internet. Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 13, n. 34,, set./dez. 2021, p. 6.
51
Ibidem, p. 13.
24
52
Ibidem, p. 14.
53
Ibidem, p. 10.
54
MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 74, 2017, p. 142-143.
55
PRADO, op. cit., p. 19.
25
pessoas negras, menos escolarizadas e advindas das classes mais baixas56 –, o Brasil é o
segundo país do mundo a passar mais tempo na internet57 e o terceiro em uso de redes
sociais58. Dentre esses usuários, destacam-se aqueles de faixa etária entre 16 e 24 anos e
residentes da região sudeste; e entre as redes mais acessadas, estão respectivamente o
YouTube, o Whatsapp e o Facebook59.
Essa popularização do uso da internet tampouco pode ser confundido com uma
democratização da informação e da comunicação logo que se considera a lógica algorítmica
que modula as redes sociais – monopolizadas por megacorporações do mercado de tecnologia
conhecidas como big techs –, atuando como meio e como filtro de conteúdo para a
experiência dos usuários no espaço digital. Uma lógica que atua no sentido de modelar
comportamentos nas redes a partir de um sistema que mapeia e explora as emoções dos
usuários60. É nesse ambiente que os grupos da nova direita encontraram um importante lócus
para a sua articulação e crescimento nas redes.
Não se trata apenas de um circuito de comunicação e informações, mas de um espaço
de construção de sentidos que conforma a realidade simbólica dos sujeitos, e que, no contexto
da lógica algorítmica e da pós-verdade, acaba por reafirmar as visões de mundo e a “verdade
pessoal” dos indivíduos. Assim, o advento da “Era Digital” não se traduziu em
democratização do conhecimento. Antes, favoreceu relativismos diversos e a desinformação,
sobretudo através da crescente difusão de informações e notícias falsas. No lugar da busca por
evidências empíricas e deduções embasadas no pensamento lógico e racional, utiliza-se a
internet como fonte para seleção de dados e materiais que possam fortalecer e legitimar
opiniões e teorias condizentes às perspectivas individuais dos sujeitos. Com isso, a
sociabilidade por meio da internet e das novas mídias digitais passa a ocorrer principalmente
através do reforçamento de “bolhas sociais”, rompendo a noção de realidade compartilhada61.
56
MAIS de 33 milhões de brasileiros não têm acesso à internet, diz pesquisa. G1, 21 mar. 2022. Disponível
em:<https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/03/21/mais-de-33-milhoes-de-brasileiros-nao-tem-acesso-a-in
ternet-diz-pesquisa.ghtml>. Acesso em: 7 mai. 2022.
57
SILVA, Rafael Rodrigues. Canaltech, 1 fev. 2019. Disponível em:
<https://canaltech.com.br/internet/brasil-e-o-segundo-pais-do-mundo-a-passar-mais-tempo-na-internet-131925/>
. Acesso em: 7 mai. 2022.
58
BRASIL é o terceiro país do mundo que mais usa rede sociais, diz pesquisa. Estado de Minas, Belo Horizonte,
28 nov. 2021. Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2021/09/28/interna_tecnologia,1309670/brasil-e-o-terceiro-pais-
do-mundo-que-mais-usa-rede-sociais-diz-pesquisa.shtml>. Acesso em: 7 maio 2022.
59
Ibidem.
60
MACHADO, 2020 apud FIRMINO, Karine Rodrigues. Brasil Paralelo: um empreendimento de disputa
política e simbólica da(s) direita(s) recente(s). In: SANTOS, Mayara Balestro; MIRANDA, João Elter (Orgs.).
Nova direita, bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo [livro eletrônico]. Ponta Grossa:
Texto e Contexto, 2020, p. 168-169.
61
KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade: notas sobre a mentira na Era Trump. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2018.
26
Tomado enquanto aparelho privado de hegemonia a serviço dos interesses das classes
dominantes, tendo por foco a trincheira ideológica e cultural, é preciso investigar a Brasil
Paralelo em diversas instâncias: seu processo constituição e de articulação, o quadro de
dirigentes e de intelectuais associados, suas formas de organização e seu funcionamento
institucional, as formas de financiamento, suas bases sociais, etc. De outra parte, cabe
examinar o âmbito dos próprios materiais, projetos e ações desenvolvidas pelo aparelho em
suas disputas de narrativas e embates pela história.
Nessa incumbência, o primeiro capítulo da pesquisa, dedicado ao contexto histórico e
social do objeto, inicia com a apreciação teórica das noções de aparelho privado de
hegemonia, intelectuais orgânicos e de Estado ampliado, junto da análise do processo
concreto de atualização dos mecanismos de dominação e das formas organizativas da
burguesia por meio da organização de aparelhos da chamada nova direita no país. A partir daí,
se realiza o debate teórico sobre o próprio conceito de “nova direita”, retomando antes a
clássica discussão sobre as definições e os significados da díade “direita e esquerda”.
Em seguida apresenta-se uma análise mais minuciosa sobre as principais bases
ideológicas que conformam o pensamento e a ação da nova direita e da Brasil Paralelo, e seus
principais eixos de produção de consenso na sociedade civil. A tradição liberal é abordada
desde o seu nascedouro em suas diversas correntes até a conformação do neoliberalismo
enquanto padrão vigente do capital, e o conservadorismo é investigado em seus múltiplos
aspectos: político, filosófico, moral, religioso e social. Neste ínterim, ao lado da análise dos
sentidos históricos e ideológicos do anticomunismo, realiza-se a apreensão conceitual de
noções importantes no léxico da nova direita como “guerras culturais” e “marxismo cultural”.
67
MENDONÇA, Sonia Regina de. O Estado ampliado como ferramenta metodológica. Revista Marx e o
Marxismo, v.2, n.2, jan./jul. 2014, p. 38.
28
O capítulo ainda coloca o debate sobre a validade do uso da noção de neofascismo para
análise do contexto brasileiro sob o bolsonarismo, resgatando, para tanto, o balanço
historiográfico crítico sobre o fascismo. Ao fim do capítulo, é proposta uma análise de
conjuntura do contexto brasileiro aberto a partir de 2013 por meio da noção de crise de
hegemonia, resgatando, antes, considerações sobre o curso histórico da autocracia burguesa
no Brasil e sobre o processo de construção da Nova República, posto conter os elementos
genéticos para a ascensão das direitas e emergência do bolsonarismo no cenário recente.
O segundo capítulo é dedicado ao exame do objeto de pesquisa propriamente: a
produtora Brasil Paralelo e seus agentes; numa diligência que se inicia pela investigação sobre
a formação, o percurso, os projetos desenvolvidos e o modus operandi da produtora na
conjuntura a partir das redes. Em seguida se investiga o formato empresarial e o modelo
institucional responsáveis pelo sucesso da empresa, para então se analisar o quadro de
intelectuais e de organizações da nova direita associadas à produtora. Aborda-se em seguida
não só o papel que o falecido Olavo de Carvalho exerceu – e exerce – na produtora, como se
analisa as relações mantidas entre a Brasil Paralelo e o bolsonarismo nos últimos anos.
Por fim, o último capítulo da dissertação traz a análise dos conteúdos promovidos pela
Brasil Paralelo, com foco nas narrativas históricas e no discurso anticomunista promovidos
nas suas produções. Realiza-se de início o debate teórico sobre os usos do revisionismo e do
negacionismo histórico, refletindo sobre suas implicações na escrita, ensino e na publicização
da história. Em seguida, partimos pro terreno da análise propriamente dos valores, das
narrativas e dos (ab)usos da história presentes nas principais produções audiovisuais da Brasil
Paralelo. Ao fim, procuramos verificar a maneira que a produtora promove o anticomunismo
não apenas naqueles conteúdos de história e de política que abordam diretamente o
movimento comunista, o marxismo e as experiências socialistas, operando a tese do
totalitarismo, como difunde o “fantasma do comunismo” pela extensão dos seus conteúdos.
Examinemos, pois, as histórias e os “mitos” da Brasil Paralelo no seio da “guerra cultural”
empreendida pela nova direita no país.
29
CAPÍTULO I:
[...] dois grandes “planos” superestruturais: o que pode ser chamado de “sociedade
civil” (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como “privados”) e
o da “sociedade política ou Estado”, planos que correspondem, respectivamente, à
função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela
de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo
“jurídico”69.
68
MENDONÇA, Sonia Regina de. O Estado ampliado como ferramenta metodológica. Marx e o Marxismo,
Niterói, v. 2, n. 2, jan./jul., 2014, p. 29-34.
69
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 2: Os intelectuais, o princípio educativo, jornalismo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 20-21.
31
de processos históricos concretos70. “Na realidade concreta, ambas as esferas não existem em
separado e toda distinção que se faça é meramente metodológica”71. É a partir dessas esferas
que são exercidas as funções coercitivas e a construção do consenso no exercício da
hegemonia (direção + domínio) de uma classe sobre o conjunto da sociedade.
Na noção ampliada do Estado, este aparece enquanto “hegemonia couraçada de
coerção”72. O Estado significa “uma forma de materialização institucional e veículo
fundamental nesse processo de construção de hegemonia”73. Ressalta-se que a hegemonia de
classe não se trata de um fim, mas um processo permanente e dinâmico de reconfiguração e
atualização, que se materializa e se conforma de acordo com as condições das lutas de classes.
É no seio do Estado que se processa a unidade política e econômica da classe dominante74.
Sua supremacia sobre os demais grupos sociais ocorre na medida em que tal classe exerce não
só o “domínio”, como a “direção intelectual e moral”75. Nas palavras de Gramsci, “Estado é
todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só
justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados”76. Não
obstante, o Estado “[...] deve representar uma expressão universal de toda a sociedade,
incorporando até mesmo as demandas e interesses dos grupos subalternos, mesmo que deles
extirpando sua lógica própria”77.
No que tange à noção de sociedade civil, Virginia Fontes discorre que, em Gramsci, o
conceito
[...] procura dar conta dos fundamentos da produção social, da organização das
vontades coletivas e de sua conversão em aceitação da dominação, através do
Estado. O fulcro do conceito gramsciano de sociedade civil – e dos aparelhos
privados de hegemonia – remete para a organização e, portanto, para a produção
coletiva, de visões de mundo, da consciência social, de formas de ser adequadas aos
interesses do mundo burguês (a hegemonia) ou, ao contrário, capazes de opor-se
resolutamente a este terreno dos interesses (corporativo), em direção a uma
70
CASIMIRO, Flávio Henrique. A nova direita no Brasil: aparelhos de ação político-ideológica e a atualização
das estratégias de dominação burguesa (1980 - 2014). Niterói, 2016. 479 f. Tese (Doutorado em História) -
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016, p. 26-27.
71
SILVA, Carla Luciana; CALIL, Gilberto. Hegemonia, aparelhos privados e pesquisas na linha de pesquisa
Estado e Poder. In: SILVA, Carla Luciana et al. (orgs.). Estado e poder: lutas de classes e hegemonia.
Uberlândia: Navegando Publicações, 2021, p. 19.
72
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 3: Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 244.
73
CASIMIRO, 2016, op. cit., p. 28.
74
MENDONÇA, op. cit., p. 33-34.
75
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 5: O Risiorgimento, Notas sobre a história da Itália. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002a, p. 62-63.
76
Idem, 2001, op. cit., p. 331.
77
MENDONÇA, op. cit., p. 34.
32
Ressalta-se que, para Gramsci, a sociedade civil é parte integrante do Estado e só pode
ser destacada deste por razões analíticas. Ela corresponde
[...] a uma extensão da socialização do processo produtivo, mas não atua apenas nos
espaços produtivos. Compõe-se de aparelhos privados de hegemonia que, ao mesmo
tempo em que procuram diluir as lutas de classes, expressam e evidenciam sua
difusão e generalização no conjunto da vida social79.
86
FONTES, op. cit., p. 133-134.
87
LIGUORI, Guido. “Aparelho hegemônico” (Verbete). In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale (orgs.).
Dicionário gramsciano, 1ª ed., São Paulo: Boitempo, 2017. [Livro eletrônico]. p. 77.
88
Ibidem, p. 76.
89
HAUG et al., 2009 apud HOEVELER, Rejane Carolina. O conceito de aparelho privado de hegemonia e seus
usos para a pesquisa histórica. Revista Práxis e Hegemonia Popular, Marília, ano 4, n. 5, ago./dez., 2019, p. 150.
34
classe social particular fazerem a “tradução” entre diferentes práticas hegemônicas entre
diferentes campos da sociedade”90.
Na construção de um determinado projeto hegemônico dos grupos dominantes, é por
meio dos APHs que se conquista o consentimento das grandes massas pouco organizadas91.
Gramsci assinala que
90
THOMAS, 2009 apud HOEVELER, op. cit., p. 153.
91
MENDONÇA, op. cit., p. 35.
92
GRAMSCI, 2007, op.cit., p. 253.
93
Idem. Cadernos do cárcere, v. 1: Introdução ao estudo da filosofia, a filosofia de Benedetto Croce. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 320.
94
FONTES, op. cit., p. 133.
95
BUCI-GLUCKSMANN, 1980 apud HOEVELER, op. cit., p. 153.
96
LIGUORI, 2007 apud SILVA; CALIL, op. cit., p. 20.
97
FONTES, op. cit., p. 134.
35
98
MENDONÇA, op. cit., p. 36.
99
Ibidem, p. 40.
100
CASIMIRO, Flávio Henrique. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São
Paulo: Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2020, p. 23.
101
GRAMSCI, 2001, op. cit., p. 20-21.
102
Idem, 2002, op. cit., p. 37.
36
descolada das determinações do mundo real e das relações de produção da vida material. A
partir da categoria de intelectual orgânico, o autor aborda as camadas intelectuais que
resultam do próprio terreno das relações de produção, relacionadas de modo orgânico a um
determinado grupo social principal – classe social – aí inscrito. Dotados de capacidade
dirigente e técnica, esses intelectuais fornecem coesão e consciência da própria função que as
classes precisam exercer não apenas no mundo da produção econômica, mas também no
campo do político, da cultura e do social em geral103.
No âmbito do Estado ampliado, os intelectuais exercem funções precisamente
organizativas e conectivas que são materializadas tanto na esfera da sociedade política quanto
na sociedade civil. Relacionados ao grupo dominante, eles atuam como “prepostos” seus para
as funções subalternas da hegemonia social e do governo político, ou seja:
103
Idem, 2001, op. cit., p.15.
104
Ibidem, p. 21.
105
Ibidem, p. 16.
106
CASIMIRO, 2020, op. cit., p. 157.
37
107
GRAMSCI, 2001, op. cit., p. 18.
108
Ibidem. p. 18.
109
Ibidem, p. 22.
110
Ibidem, p. 20.
38
não só compartilham das mesmas concepções de mundo e dos mesmos projetos hegemônicos
que os grupos empresariais e políticos dominantes, como se associam intimamente a estes na
conjuntura por meio de recebimento de apoio organizacional e de recursos diversos para suas
estratégias de ação político-ideológica.
111
CASIMIRO, 2020, op. cit., p. 13.
112
Ibidem, p. 20.
39
na defesa de seus pressupostos113. Segundo Casimiro, trata-se de um processo que “[...] vem
ganhando projeção tanto de forma deliberada, como inconscientemente, pela
instrumentalização e objetivação de seus projetos, assim como pela reprodução social de seus
valores nos mais variados meios”114. Essa “nova direita” “[...] busca sua posição de evidência
no conjunto das frações da burguesia brasileira. Mas o que a caracteriza seria muito mais seu
modus operandi, em função de seus partidos da ordem e de seu discurso truculento, do que
um corpo de doutrina teórico-política específico ou consolidado”115.
Nesses termos, o fenômeno da nova direita significa antes de tudo um novo modo de
organização política e ideológica das classes dominantes no Brasil e de determinados círculos
de intelectuais, processo gestado nas últimas décadas incidindo em transformações na gestão
da política institucional, no discurso ideológico e no próprio sistema produtivo por meio da
difusão de novos padrões de sociabilidade do capital116. É durante o processo de
redemocratização nos anos 1970/80 que podemos localizar os genes para essa nova forma de
atuação dos aparelhos hegemônicos da burguesia brasileira. Edificados a partir da sociedade
civil e reagindo em múltiplos níveis às formas organizativas da classe trabalhadora e às lutas
sociais que despontavam no período, esses organismos passaram a integrar progressivamente
a estrutura institucional do próprio Estado, ampliando-o a partir de seus interesses de classe.
Esse contexto expressa um processo tardio de complexificação – “ocidentalização” em termos
gramscianos – da sociedade civil brasileira, onde se verifica um aumento exponencial de
novas instituições em seu seio, tanto as de caráter burguês, como as de contestação do modelo
hegemônico117.
Na medida em que a sociedade civil brasileira se complexifica, multiplicam-se
também os aparelhos representantes de diversas frações das classes dominantes, que passam
não só a se misturar na própria institucionalidade do Estado, ampliando-o ao abarcar
progressivamente suas funções, como ainda abrigam os conflitos interburgueses nos marcos
do circuito internacional do capital118. Não obstante, Casimiro destaca que “[...] as diferenças
de ordem teórico-política no campo dos valores entre essas distintas frações vêm sendo
suprimidas ou subjugadas pela ascensão do reacionarismo que aparece como alternativa
113
CASIMIRO, 2016, op. cit., p. 24-25.
114
Ibidem, p. 25.
115
Idem, 2020, op. cit., p. 151-152.
116
Idem, 2016, op. cit., p. 34-35.
117
“Analisando a série histórica de expansão da sociedade civil brasileira, partindo de 1996 até o ano de 2017,
constata-se um aumento em torno de 715 mil novas instituições, o que representa um crescimento de
aproximadamente 680%”. CASIMIRO, 2020, op. cit., p. 29.
118
Ibidem, p. 90-91.
40
Em sua pesquisa sobre a formação e articulação dos aparelhos da nova direita a partir
do processo de construção da Nova República, Flávio Casimiro categoriza as organizações e
os intelectuais representantes dos interesses dos grupos dominantes em três frentes principais
de ação121. Trata-se de uma distinção puramente teórica e didática, visto que na prática essas
organizações desenvolvem um pouco de cada estratégia.
Haveria um primeiro conjunto de aparelhos voltados sobretudo para uma ação mais
pragmática e conjuntural em determinados espaços de poder, interferindo diretamente, por
exemplo, em políticas públicas e em tomadas de decisões institucionais. Nesse escopo,
Casimiro analisa um conjunto de APHs que se organizaram no seio da Assembleia Nacional
Constituinte como forma dos grupos dominantes influenciarem nos rumos do processo,
financiando campanhas, lançando candidatos próprios e mobilizando quadros de
intelectuais-empresários urbanos e rurais. Os aparelhos de “ação pragmática” analisados são:
Câmara de Estudos e Debates Econômicos e Sociais (CEDES), Grupo de Mobilização
Permanente (GMP), Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), Associação
Brasileira de Defesa da Democracia (ABDD), União Democrática Ruralista (UDR), União
Brasileira de Empresários (UB), Movimento Cívico de Recuperação Nacional (MCRN),
Movimento Democrático Urbano (MDU), Pensamento Nacional das Bases Empresariais
(PNBE), Frente Nacional pela Livre Iniciativa (FNLI)122.
119
Ibidem, p. 157.
120
Ibidem, p. 91.
121
Idem, 2016, op. cit., p. 25.
122
Ibidem, p. 47-122.
41
Por último, Casimiro destaca um conjunto de organizações que carregariam uma clara
orientação "doutrinária", empenhadas na formação/educação de intelectuais orgânicos e na
difusão da ideologia liberal-conservadora no seio da sociedade civil, desenvolvendo uma
estratégia não só intraclasse, organizando o consenso das diferentes frações burguesas, como
em direção à cooptação e convencimento dos demais estratos sociais. Articulados junto a uma
ampla rede internacional de think tanks – “centros de pensamento” –, são esses aparelhos “[...]
que articulam, capilarizam e ampliam o raio de alcance de determinada concepção de
mundo”127. Neste grupo estariam localizadas organizações da nova direita que vem
desempenhando papel fundamental no processo político-social brasileiro recente, como o
Instituto Liberal (IL), Instituto de Estudos Empresariais (IEE), Instituto Millenium (IMIL),
123
Ibidem, p. 25.
124
Ibidem, p. 151-236.
125
Ibidem, p. 36.
126
Idem, 2020, op. cit., p. 42.
127
Ibidem, p. 32.
42
Instituto Mises Brasil (IMB), Estudantes Pela Liberdade (EPL) e o Movimento Brasil Livre
(MBL)128. Seria nesta última frente de ação que também se situaria a Brasil Paralelo (BP)129.
O papel desempenhado na sociedade civil pelos intelectuais e organizações
liberais-conservadoras voltadas mais propriamente para uma estratégia de educação e
convencimento ideológico conheceu uma expansão com o processo de remodelação dos
aparelhos privados de hegemonia burgueses durante a redemocratização. Mas é sobretudo a
partir da crise de hegemonia escancarada no pós-2013 e da ofensiva ultraliberal-conservadora
das direitas que esses aparelhos de ação político-ideológica apresentarão maiores investidas
no seio do Estado e da sociedade civil e serão efetivos em angariar consenso em amplos
segmentos sociais.
Ao se imiscuir junto ao Estado, a nova direita atua no sentido de promover e legitimar
a coerção violenta contra organizações populares e movimentos sociais, além de processos
sucessivos de expropriações sociais e de retirada de direitos. Tudo isso é legitimado através de
sucessivas estratégias simbólicas de produção de consenso, com uma atuação conjunta aos
meios de comunicação – tanto os da grande mídia nacional como as novas mídias digitais –,
intelectuais coletivos e notáveis espaços de socialização como instituições religiosas
conservadoras130. Esses veículos atuam tanto no sentido da difusão de pressupostos
neoliberais – defesa incondicional da propriedade privada, da economia de mercado e da
redefinição do papel do Estado, associada a valores calcados no individualismo e na
meritocracia –, como na promoção de pautas conservadoras e moralistas131. Trata-se de
universalizar determinadas concepções de mundo funcionais a sociabilidade capitalista.
Desde o processo de reconfiguração de suas estratégias de ação a partir dos anos 1980,
a ação dos aparelhos de hegemonia da burguesia brasileira é viabilizada pelo apoio material e
organizacional de alguns dos principais think tanks de alcance internacional como o Liberty
Fund, a Tinker Foundation, a Atlas Economic Research Foundation – meta-think tank que
atua no fomento e financiamento de outros think tanks em mais de 80 países – e o Center for
International Private Enterprise. Estes aparelhos também contam com uma extensa gama de
financiadores nacionais e internacionais, com destaque para grandes grupos econômicos
como: Banco Itaú, Bradesco, Unibanco, Citibank, Texaco, Shell, Ipiranga, Grupo Ultra,
Grupo Eike Batista, Samarco Mineração, Odebrecht, Grupo Votorantim, Grupo Gerdau,
VARIG, TAM, Localiza, RBS, Organizações Globo, Grupo Abril, Sharp, Siemens, Gradiente,
128
Ibidem, p. 237-345.
129
Idem, 2020, op. cit., p. 76.
130
Ibidem, p. 24-25.
131
Ibidem, p. 36.
43
Arno, Grupo Pão de Açúcar, Grupo Carrefour, Nestlé, Antártica, Quaker, Bombril, dentre
inúmeros outros132. Estamos diante, portanto, de uma poderosa rede de aparelhos privados de
hegemonia articulada em nível internacional e voltada para a representação, articulação e
promoção dos interesses dominantes, de imensa capilaridade no mercado e na vida social
brasileira.
Parcela significativa dos intelectuais e empresários que passaram a preencher o quadro
dos novos think tanks pró-mercado a partir da década de 1980 forneceram apoio ou atuaram
diretamente enquanto articuladores do golpe civil-militar em 1964. Aberto o processo de
redemocratização e da nova Assembleia Nacional Constituinte, esses setores, acostumados
com os velhos acordos diretos e a livre circulação nos espaços restritos do alto escalão do
poder militar, bem como insatisfeitos com a atuação estritamente “sindical” das associações e
federações empresariais, passaram a apostar em estratégias de ação política mais complexas e
orgânicas a partir do circuito formado pelos think tanks liberais como forma de influenciar o
processo133.
Para a pesquisadora Camila Rocha, a articulação de tais agentes e organizações ao
longo dos anos 1980/90 foi fundamental para que o ideário pró-mercado “[...] penetrasse mais
em públicos dominantes formados por acadêmicos, jornalistas, empresários, políticos e
burocratas em comparação com a circulação mais restrita de tais ideias durante as décadas de
1950, 1960 e 1970”, bem como contribuiu para a formação de quadros e para a
institucionalização de “[...] uma rede estável e formalizada constituída por indivíduos,
organizações e fóruns brasileiros e estrangeiros, na qual trafegam apoio material e
organizacional para as atividades de difusão de tais ideias”134. Tal estrutura organizacional e
material teria fornecido as bases para a atuação da nova direita no Brasil.
Os intelectuais vinculados aos aparelhos da nova direita possuem uma ampla inserção
em veículos alternativos e da grande mídia, entidades de representação classista e patronal e
em partidos políticos diversos, além de se fazerem presentes em importantes universidades
públicas e privadas do país135. Representando “[...] uma trincheira fundamental para a
produção de consenso na sociedade e [dispondo] de forte capital simbólico para a
naturalização de determinadas concepções como verdades socialmente aceitas”136, a
132
CASIMIRO, 2016, passim.
133
ROCHA, Camila. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo,
2018. 232 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018, p. 81-82.
134
Ibidem, p. 109.
135
CASIMIRO, 2016, passim.
136
Idem, 2020, op. cit., p. 40.
44
universidade ocupa lugar especial nas estratégias empreendidas por essas organizações,
buscando cooptar o público jovem e acadêmico para o seu projeto de sociedade. Seus agentes
atuam nesses espaços por meio da organização de cursos, eventos, grupos de estudo,
publicação de pesquisas em jornais e revistas, dentre outras ações.
De acordo com o historiador João Elter Miranda, o critério de origem social nos
permitiria caracterizar os aparelhos da nova direita quanto a sua composição. Haveria aquele
conjunto de organizações criadas e protagonizadas pela burguesia, enquanto um segundo
conjunto diria respeito aos aparelhos de ação político-ideológica criados e protagonizados por
sujeitos não advindos dos setores burgueses, mas que agem a serviço do capital e de seus
interesses137, cepa em que se localizaria a Brasil Paralelo. Interessante observar que se opera
uma mutação nos APHs da burguesia a partir desse segundo grupo, funcionando agora como
instrumento de profissionalização e fonte de rendimento para os segmentos não-burgueses138.
Como destacado por Casimiro, ainda que seus intelectuais também participem da sociedade
política e sejam determinantes para a disseminação de certos projetos, não parte desses grupos
as diretrizes principais da articulação, visto que é “o movimento no interior das frações
burguesas define as diretrizes da dominação de classe e, na esteira disso, o projeto político no
qual essas frações se arranjam para a garantia da manutenção de seus interesses”139.
Se nas décadas de 1980 e 1990 as organizações difusoras da ideologia de mercado
como o Instituto Liberal e o Instituto de Estudos Empresariais procuravam externar um
discurso mais “técnico” e “teórico”, a partir do século XXI os chamados think tanks
brasileiros passaram a apresentar um perfil mais abertamente ideológico e militante. Essa
mudança de posicionamento foi impulsionada tanto por fatores endógenos, como as
conquistas da “Onda Rosa” na América Latina e a chegada do Partido dos Trabalhadores ao
governo brasileiro, quanto por condições externas, relacionadas a inflexão da política e da
direita norte-americana após os atentados do 11 de setembro. De tal sorte, houve uma maior
identificação dos think tanks nacionais com o discurso liberal-conservador endurecido da
direita estadunidense, viabilizando uma “nova direita” brasileira subordinada aos padrões
ideológicos dos países centrais, passando a se posicionar de modo mais aberto e agressivo na
conjuntura política do país140.
137
MIRANDA João Elter Borges. Existe uma nova direita no Brasil contemporâneo? In: SANTOS, Mayara;
MIRANDA, João Elter (org.). Nova direita, bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo
[livro eletrônico]. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020, p. 40-41.
138
Ibidem, p. 42.
139
CASIMIRO, 2020, op. cit., p. 157.
140
Idem, 2016, op. cit., p. 408-409.
45
Esse novo modus operandi das direitas brasileiras foi notoriamente potencializado
pelos novos meios de comunicação da era digital e pelas redes sociais. De acordo com Rocha,
a formação e o crescimento de uma nova direita no Brasil está intimamente associada à
organização de grupos de discussão e militância na internet ainda durante o auge do lulismo,
entre os anos de 2006 e 2010141. Apoiados sobretudo em teses popularizadas pelo jornalista e
escritor Olavo de Carvalho, setores de profissionais liberais de classe média e estudantes
universitários passaram a circular em espaços intelectuais anteriormente restritos a
empresários e acadêmicos, formando contra-públicos digitais que se constituíram em torno do
antipetismo e do antiesquerdismo. As organizações pró-mercado mais antigas viram aí uma
oportunidade e passaram a facilitar e financiar as novas estratégias de ação política e
ideológica desses grupos, onde “[...] os militantes vindos da internet traziam consigo um
inédito repertório de ação composto pela circulação de memes, criação de comunidades em
redes sociais e páginas na internet, vídeos divulgados por youtubers e organização e/ou
participação em diversos protestos de rua [...]”142.
Nesse escopo, se destaca a promoção de uma espécie de “memetização” e
superficialização da realidade por meio da promoção de memes, vídeos, notícias falsas (fake
news) e informações descontextualizadas que carregam um forte tom sensacionalista,
reduzindo o debate público a uma reprodução automática e irrefletida de certos discursos do
senso comum. A circulação massificada desse tipo de conteúdo nas mídias digitais junto a
matérias jornalísticas, informações oficiais e pesquisas científicas dificulta ainda mais sua
verificação por parte da população. De acordo com Casimiro, sendo financiada por grupos
empresariais, “a partir de 2016, essa estratégia de difusão de conteúdos e informações rasas
tem sido sistematizada e estruturada cada vez mais profissionalmente, em uma espécie de
produção industrial”143.
É importante destacar que o avanço e a complexificação do aparato hegemônico das
classes dominantes no seio da sociedade civil, a partir do desenvolvimento de inúmeras
estratégias simbólicas de produção de consenso, não implicou numa contração da coerção
advinda do aparelho de Estado restrito. O enrijecimento das políticas afirmadas como sendo
de "segurança pública" nas últimas décadas no país talvez seja a melhor expressão dessa
situação, onde o truculento aparato policial-penal é direcionado para uma política de
extermínio e encarceramento que atinge sobretudo a população jovem, negra e periférica. De
141
ROCHA, op. cit., p. 17.
142
Ibidem, p. 21.
143
CASIMIRO, 2020, op. cit., p. 25.
46
modo análogo, tem-se uma forte repressão exercida contra militantes e movimentos sociais
contestatórios. Essa violência coercitiva sobre as frações mais precarizadas e/ou organizadas
da classe trabalhadora é justificada e naturalizada justamente por intermédio de uma
permanente elaboração de consenso a partir dos meios de comunicação de massa144.
Dispondo não só do poder econômico e político das frações da burguesia que
representam, como de forte capital cultural e simbólico, os aparelhos da nova direita no Brasil
demonstram ampla capilaridade nos mais diversos e específicos espaços econômicos,
políticos, educacionais e culturais que integram a sociedade civil. Instrumentalizando e
funcionalizando outras práticas e espaços de produção de consenso para além do seu escopo
de atuação, esse conjunto de aparelhos privados de hegemonia não corresponde a um bloco
homogêneo, porém compartilham de um “[...] determinado nexo articulador, que produz
determinados padrões de comportamento e significação das relações sociais [...]”145. Ao
mesmo tempo em que constroem articulações e mediam os conflitos interburgueses, seus
intelectuais atuam no sentido do convencimento e educação de amplos segmentos societários
para os valores e a concepção de mundo das classes dominantes, além de incidirem
diretamente na conjuntura política e no próprio aparelho de Estado. Por sua vez, ao se
articular em torno do grande empresariado e de importantes organizações internacionais, essa
preponderante rede de APHs ultrapassa os limites do próprio Estado nacional – porém, sem
nunca se descolar de seu aparato – e se incorpora nas frentes móveis de ação internacional do
capital. Nas palavras de Casimiro:
144
MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, São Paulo:
Usina Editorial, 2020, p. 120.
145
CASIMIRO, 2020, op. cit., p. 156.
146
Ibidem, p. 89-90.
47
147
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: UNESP,
1995, p. 91.
148
ANDRADA, Leonardo Silva. Direita, Esquerda, Nova Direita e o Neofascismo Brasileiro. Revista Estudos
Políticos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, 2022, p. 4.
48
152
CEPÊDA, 2021, op. cit., p. 77.
153
ANDRADA, op. cit., p. 4.
154
BOBBIO, op. cit., p. 33.
50
155
Ibidem, p. 93-95, 107.
156
Ibidem, p. 99-100.
157
Ibidem, p. 115.
158
Ibidem, p. 111-113.
159
Ibidem, p. 51-52.
160
Ibidem, p. 118.
51
[...] a típica crítica liberal, que afirma que a igualdade propugnada se faz às custas da
liberdade, sem levar em consideração a crítica a essa abstração que não leva em
conta as preocupações materialistas. Da perspectiva dos que supostamente
favorecem a igualdade em detrimento da liberdade, a questão é identificar,
objetivamente, liberdade para quem, em relação a que, pois em uma sociedade
dividida em classes, com dominados submetidos ao reino da necessidade, não é
possível falar em liberdade. Resulta problemática a chave proposta por Bobbio, à
medida em que associada ao par liberdade/igualdade, tomados a partir de uma
perspectiva ideológica em que um serve como subterfúgio para a eliminação do
outro. Historicamente, o uso de liberdade nesses termos cumpriu papel de justificar
escravidão, sonegação de impostos, tráfico e invasão territorial, entre outras formas
de defesa da propriedade (LOSURDO, 2006), operando como legitimadora da
desigualdade162.
Outra concepção corrente nos circuitos liberais e mesmo no senso comum sobre o par
esquerda e direita encontra sustentação na Escola Austríaca de Economia a partir dos escritos
do economista Murray Rothbard, que, em síntese, procura definir os termos a partir do eixo
liberdade individual versus coletivismo, mercado/indivíduo versus Estado. Sua análise se dá
sobre o contexto norte-americano nos anos 1970, onde o liberalismo aparecia como
alternativa à esquerda do campo conservador163. Com variações, é sobretudo essa concepção
simplificadora da díade que vigora nos círculos liberais/libertarianos, principalmente na
internet, onde a adesão a um dos polos é resumida à defesa ou não da intervenção do Estado
na economia e na esfera privada.
De outra parte do debate, intelectuais vinculados ao pensamento pós-moderno e
anteriormente identificados com a direita, demasiadamente entusiasmados com a queda do
muro de Berlim e com a tese do “fim da história”, anunciavam o “fim das ideologias”
161
Ibidem, p. 118-119.
162
ANDRADA, op. cit., p. 5.
163
ROTHBARD, 2007 apud ANDRADA, op. cit., p. 5.
52
enquanto procuravam extinguir a validade das categorias direita/esquerda ante o que seria o
triunfo definitivo do capitalismo164.
A divisão do par conceitual a partir de critérios que contrapõem o conservadorismo ao
liberalismo, segundo Andrada, seria mais própria do contexto anglo-saxão, cujas origens da
divisão entre esquerda e direita remontaria à disputa teórico-ideológica entre Thomas Paine e
Edmund Burke “a respeito da independência norte-americana e da Revolução Francesa, seus
desdobramentos jurídicos e institucionais, e que caminhos deveriam ser trilhados para a boa
vida em sociedade”165. Ainda que tal oposição entre direita/conservadorismo x
esquerda/liberalismo tenha sentido no universo político inglês e norte-americano, a mesma
referência não valeria para outros contextos históricos, que sofreriam maior influência da
matriz francesa.
O que Andrada destaca de comum a essas concepções a respeito da divisão
direita/esquerda presentes no pensamento liberal é uma perspectiva analítica de uso elástico
que abandona a concretude histórica em favor de abstrações conceituais e ideais sobre o que
deveria ser a liberdade, a democracia, etc166. O autor então recorre a Lenin a fim de elaborar
definições de esquerda e direita que partam de uma análise baseada em termos materiais e
históricos, recuperando um artigo do líder bolchevique a respeito da questão agrária publicado
imediatamente após a Revolução Russa de 1905. O debate principal se dava em torno das
diferentes posições a respeito da legitimidade da propriedade privada/comunal e do conteúdo
democrático da estrutura burocrática que teria responsabilidade político-administrativa sobre a
nacionalização das terras. A partir da contribuição de Lenin – que analisava não uma questão
teórico-abstrata, mas uma situação concreta – e de outros autores críticos ao liberalismo,
Andrada procura estabelecer outros critérios para a divisão da díade”:
[...] a linha que pode congregar os distintos grupos no campo da direita envolve dois
traços característicos: a preocupação com a defesa da propriedade, e a elaboração de
formatos políticos restritivos à participação popular como forma de preservá-la; por
contraposição, a ação política que busca alterar as relações de propriedade, no
sentido de sua socialização, paralelamente a uma ampliação da comunidade política
através da equalização entre os indivíduos, caracteriza a esquerda. É marcante, desde
os primórdios da modernidade e sua forma típica de Estado, que há uma relação
próxima entre leis de propriedade e composição social das instituições políticas
(MACPHERSON, 1979; LOSURDO, 2004). Em cada momento histórico, essa
164
GENTILE, Fábio. Uma direita “plural”: configurações ideológicas e organizações políticas da direita
brasileira contemporânea. In: FARIA, Fabiano; MARQUES, Mauro Luiz (orgs.). Giros à direita: Análises e
perspectivas sobre o campo líbero-conservador. Sobral: Sertão Cult, 2020, p. 224.
165
ANDRADA, op. cit., p. 6.
166
Ibidem, p. 8.
53
167
Ibidem, p. 10.
168
Ibidem, p. 13-14, 20.
169
Ibidem, p. 14.
54
acordo com o verbete “Nova Direita” de Robert Grant no Dicionário do Pensamento Social
do Século XX, a nomenclatura seria enganadora, principalmente na falsa simetria que
estabeleceria com a “Nova Esquerda”:
Em primeiro lugar, a “Nova Direita” é ainda mais diversa que o socialismo como um
todo. Em segundo lugar, embora com uma inclinação ideológica (característica a que
deve o seu êxito intelectual), não é um “movimento” autoconsciente e está unido por
poucos artigos de fé para além de uma antipatia comum pelo socialismo. Em terceiro
lugar, poucos neodireitistas aceitariam esse título ou o considerariam útil (em
contraste com a “Nova Esquerda”, termo autoatribuído por seus adeptos).
Finalmente, a maior parte do pensamento da Nova Direita não é nova nem
particularmente “direitista”170.
Para Grant, a nova direita seria em essência uma simbiose dos rivais históricos do
socialismo: o liberalismo e o conservadorismo. Não obstante, o autor destaca o neoliberalismo
– ou “liberal-conservadorismo” – enquanto a doutrina mais influente neste campo e nos
governos compostos pela nova direita, que ainda seria influenciada pelo neoconservadorismo
de origem anglo-saxã, pelo chamado libertarianismo – ou “anarco-capitalismo” –, e pelo
anticomunismo francês e europeu oriental171. Tendo esses elementos em vista, a ideia de
“nova direita” é mais complexa que a simples aliança entre neoliberais e conservadores, algo
que é genético do próprio neoliberalismo. Veremos no próximo tópico como essas correntes
de pensamento confluem na configuração das bases ideológicas da direita contemporânea.
Entrementes, Demian Melo observa que o verbete de Grant prioriza o contexto
originário europeu e estadunidense em que surgiu a ideia de nova direita, sendo “[...]
necessário ampliar tal noção, incorporando outras dinâmicas político-ideológicas das últimas
décadas que, em certo sentido, se ligam à própria exportação, do centro para a periferia, do
ideário da nova direita”172. Analisado a partir da particularidade brasileira periférica, o
fenômeno apresenta origem mais recente que aquele da década de 1970/80 surgido na
Inglaterra e nos Estados Unidos. No contexto latino-americano, a ideia de nova direita está
intimamente associada aos movimentos e governos conservadores, ultraliberais e autoritários
que emergem na cena política após a onda de governos progressistas que marcaram o início
do século XXI na região.
170
GRANT, Robert. Nova Direita (Verbete). In: BOTTOMORE, Tom; OUTHWAITE, William (orgs.).
Dicionário do pensamento social no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 526.
171
Ibidem, p. 526-528.
172
MELO, Demian Bezerra de. As reflexões de Gramsci sobre o fascismo e o estudo da direita contemporânea:
notas de pesquisa. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E O MARXISMO, 2017, Niterói. Anais...
Niterói: Universidade Federal Fluminense, NIEP-Marx, 2017, p. 15.
55
Mas é preciso tomar cuidado com as balizas temporais aqui mobilizadas. Existe uma
determinada leitura sobre o fenômeno da nova direita no Brasil corrente tanto entre setores
progressistas quanto no seio da direita que associa a erupção desses agentes ao contexto
aberto com as manifestações de junho de 2013. Entretanto, como abordado anteriormente,
essa direita teve seu preâmbulo no processo de redemocratização ainda na década de 1980 a
partir da estruturação de uma série de aparelhos privados de hegemonia, tendo ganhado maior
força e amplitude no cenário nacional a partir da crise representação aberta nos últimos anos.
Como nos lembra Gilberto Calil, “a edificação da nova direita no caso brasileiro não foi
repentina, tampouco se deu na penumbra”, mas diz respeito à própria dinâmica da luta de
classes onde uma “[...] profusão de ideias e programas neoliberais, emplacados como
‘modernizantes’ pelos dominantes, operou numa simbiose com (e através de) setores
conservadores e reacionários, sedimentando uma sociabilidade liberal de cunho
devastadoramente imperialista, antidemocrático e antipopular”173.
Nos termos de um de seus próprios expoentes, Lucas Berlanza, atual presidente do
Instituto Liberal, “direita e nova direita” seriam apenas rótulos que fazem referência a um
“movimento profundamente plural” que no caso brasileiro envolveria:
entusiastas do regime militar, que desejariam uma ação pela força para destroçar o
atual estado de coisas; há conservadores que se moldam a um viés mais
“continental” europeu, preferindo roupagem mais “religiosa”; há os que defendem o
retorno da monarquia; os que defendem mais e menos Estado (...) os “libertários”,
que pregam a privatização de tudo quanto possam e, em um ponto extremo, chegam
ao anarco-capitalismo (sic)174.
173
CALIL, Gilberto et. al. “Apresentação”, Revista História & Luta de Classes, v. 14, n. 26, set. 2018, p. 5.
174
BERLANZA, Lucas. Guia bibliográfico da nova direita: 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro.
São Paulo: Resistência Cultural, 2017, p. 243.
56
novidade reside justamente que essas correntes não se tratavam das forças mais importantes
em termos de organizar a direita175.
É preciso considerar, contudo, que mais do que representante de uma única vertente,
Olavo de Carvalho ocupa lugar de peça-chave da nova direita brasileira, na medida em que
fornece um polo de aglutinação ideológica e intelectual entre suas diversas correntes,
influenciando desde ultraliberais, conservadores e fundamentalistas até grupos militaristas,
monarquistas e neofascistas.
Buscando melhor delimitar o conceito de nova direita, na intenção de evitar
abordagens reducionistas ou que desconsiderem sua análise enquanto processo histórico mais
complexo, Casimiro procura indicar algumas problemáticas que envolvem as abordagens
predominantes sobre o fenômeno. Uma primeira tentativa de explicação colocaria o enfoque
na esfera discursiva, diferenciando a nova direita de sua antecessora pelo seu discurso de
ódio, racismo, intolerância, lgbtfobia e pela postura anti-ciência. Este elemento, entretanto,
não seria novidade no seio da direita conservadora, mas característica histórica sua: “As
retóricas pautadas em ‘ameaças’ à ‘família’ e aos ‘bons costumes’, o ‘perigo vermelho’,
dentre outras, já motivaram discursos extremamente excludentes, violentos e discriminatórios
ao longo da história republicana no Brasil”176.
Apesar de significar um elemento fundamental para a sua ascensão no cenário atual,
caracterizar a nova direita como fruto do desenvolvimento das novas tecnologias de
comunicação e informação, principalmente do uso estratégico das redes sociais e dos
aplicativos de comunicação, também seria insuficiente para definir uma nova expressão
político-ideológica advinda do campo da direita. Ademais, isso implicaria no problema de que
“[...] a cada inovação tecnológica pretérita ou futura, que revolucionou ou vier a revolucionar
o campo de atuação política e ideológica, [...] teríamos de considerar como uma nova
expressão das direitas”177.
Outra abordagem reducionista seria aquela que compreende a ascensão das direitas no
contexto recente como mero movimento reativo aos governos do PT, se associando àquelas
análises que leem o avanço desses agentes como consequência direta das chamadas Jornadas
de Junho de 2013. A principal falha nessa leitura estaria em negligenciar as pŕóprias
iniciativas e as estruturas organizativas dos grupos dominantes – já presentes em momento
175
BIANCHI, Alvaro. Olavo de Carvalho e a guerra cultural das novas direitas; uma entrevista com Alvaro
Bianchi. Em Tese, Florianópolis, v. 18, n. 2, set./dez., 2021. p. 71-72.
176
CASIMIRO, Flávio Henrique. Nova direita, bolsonarismo e a urgência da luta social contra o atual
movimento reacionário no Brasil. In: BUZETTO, Marcelo (org.) Democracia e direitos humanos no Brasil: a
ofensiva das direitas (2016/2020). São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2021, p. 42.
177
Ibidem, p. 45.
57
anterior – que possibilitaram o avanço das direitas nessa conjuntura. Ademais, parte desses
mesmos grupos que passaram a engrossar as fileiras do impeachment, se tratando de velhos
atores da cena política nacional, vinham conciliando ou mesmo dando base aos governos
petistas nos anos anteriores178.
Estes elementos priorizados nestas abordagens, a despeito de comporem o repertório e
as estratégias que auxiliam na compreensão da ascensão das direitas, tomados de modo
isolado são insuficientes para a caracterização do fenômeno. Reiteramos o pressuposto de
Casimiro de que o principal elemento definidor da nova direita reside no novo modus
operandi adotado no seio de suas estratégias de atuação e estruturas organizativas. Gestado
pelo menos nas últimas três décadas,
Chaloub e Perlatto sintetizam pelo menos seis pontos principais que nos ajudam a
compreender o avanço da chamada nova direita e de seus intelectuais sobre a cena política e
cultural do país nos últimos anos. Em primeiro lugar, como já pontuado, a ascensão da nova
direita no Brasil está associada ao avanço internacional de movimentos vinculados a
diferentes vertentes do pensamento direitista, verificado nos últimos anos em diversos países
do globo. Tal fenômeno se nutriu da crise do Estado de Bem-estar social no campo político e
do marxismo no campo intelectual, obtendo maior força com a queda dos países soviéticos.
Uma segunda hipótese seria que o distanciamento temporal da ditadura militar, associada ao
espectro político da direita, teria tornando mais confortável a identificação pública com esse
campo passadas mais de duas décadas do processo de redemocratização. O terceiro ponto diz
respeito às profundas transformações sofridas na indústria cultural do país, atravessada pela
expansão e popularização da internet e das mídias digitais, que acabou por ampliar o alcance
dos discursos de intelectuais da nova direita180.
178
Ibidem, p. 47-48.
179
Ibidem, p. 48.
180
CHALOUB, Jorge.; PERLATTO, Fernando. A Nova Direita Brasileira: ideias, retórica e prática política.
Insight Inteligência, Rio de Janeiro, n. 72, ano 19, jan./mar., 2016.
58
A articulação desses intelectuais por meio de uma vasta rede de think tanks voltados
para a propagação da ideologia liberal-conservadora, com forte vínculo no meio empresarial e
midiático, seria um outro ponto já examinado. A quinta hipótese, por sua vez, versa sobre os
fracassos – e mesmo sobre os pequenos avanços sociais – somados pela esquerda hegemônica
nos últimos anos – representada institucionalmente pelos governos do Partido dos
Trabalhadores – terem suscitado uma forte reação da oposição. Por último, o fortalecimento
da nova direita no debate público estaria relacionado à crise do sistema político exposta a
partir de junho de 2013, que aponta para uma mais profunda crise de representação181. Os dois
últimos pontos serão abordados na parte final do capítulo.
A partir de um balanço bibliográfico do campo, Silva, Di Carlo e Mick elencam uma
série de aspectos político-ideológicos que permitiriam diferenciar a “nova” da “velha” direita:
Para além de ser uma tipologia assumida pelos próprios atores e intelectuais
vinculados ao campo (BERLANZA, 2017), há, pelo menos, cinco características que
fundamentam a distinção desses novos grupos políticos em relação a seus
congêneres anteriores (SILVA, 2021): a adoção de um framework metapolítico –
compreendido, segundo definição de Teitelbaum (2019), como a identificação da
arena cultural como o lócus prioritário de disputa política (e como pré-condição para
a conquista de espaços institucionais); o antiintelectualismo, compreendido enquanto
a negação epistemológica das instâncias consolidadas de produção, reprodução e
legitimação dos regimes de verdade no mundo contemporâneo – em especial, as
universidades e centros de pesquisa nacionais e internacionais – e, por sua vez, a
busca pela construção de regimes alternativos (ALONSO, 2019; DI CARLO, 2029a,
2019b; PINHEIRO-MACHADO, 2019; TEITELBAUM, 2020; SILVA, 2021); o
antielitismo, na chave de uma valorização ética, estética e epistemológica do homem
médio e do senso comum (ALONSO, 2019); a instrumentalização do discurso
“politicamente incorreto” como uma retórica de resistência anti-sistema (DI
CARLO, KAMRADT, 2018; ROCHA, 2018); e a síntese ideológica entre o
conservadorismo moral e a defesa do livre-mercado, materializada no slogan “liberal
na economia e conservador nos costumes” (CHALOUB, PERLATTO, 2015;
ROCHA, 2018; NETTO ET AL., 2019; SILVA, 2021)182.
181
Ibidem.
182
SILVA, Ivan; DI CARLO, Josnei; MICK, Jacques. Nova Direita no Brasil: matrizes teóricas, intelectuais e
discursivas. Em Tese, Florianópolis, v. 18, n. 2, set./dez., 2021, p. 10-11.
59
nacional e socialmente como fonte de referência moral”183. Na nova direita, o que prevalece
não é apenas uma aliança política tática, mas um verdadeiro amálgama ideológico entre
posições economicamente liberais – ultraliberais, para ser mais preciso – e socialmente
conservadoras. A ala conservadora historicamente associada à direita militar, de base
tradicionalista e defensora do regime instaurado em 1964, que tem em Jair Bolsonaro sua
principal figura pública, acabou por incorporar a retórica do Estado mínimo em virtude da
hegemonia estabelecida pelo programa neoliberal184.
Elemento importante já mencionado e que marca o modus operandi dessa nova direita,
ainda que insuficiente para explicar sua emergência, estaria no uso especial da internet e das
plataformas digitais enquanto ferramenta de propaganda ideológica e de difusão de projetos
políticos. Essa estratégia é compartilhada em nível internacional, onde a despeito da
diversidade dos contextos políticos e históricos, verifica-se uma rede interligada de
agrupamentos da nova direita com formas similares de atuação: “disparos em massa por
aplicativos de mensagem, intervenção coordenada em redes sociais, apoio de inteligência
artificial para multiplicação de respostas, veiculação de notícias falsas, montagens de imagens
e vídeos”185 etc. Apesar desse conteúdo ser compartilhado e disseminado por grande parcela
da população, é preciso evidenciar que “[...] existem estruturas muito bem organizadas e
financiadas para criar os mecanismos necessários para sua difusão, assim como aparelhos
produtores de tais discursos e recursos variados de atuação política e ideológica”186.
Destaca-se que diferentemente da direita que vigorou no período de quase duas
décadas entre a redemocratização e a chegada do PT ao governo, que preferia se apresentar
publicamente enquanto “Centro” em decorrência da associação negativa que a ditadura militar
havia legado à alcunha de “Direita”, a nova direita ostenta de forma orgulhosa sua identidade
direitista em oposição a tudo de ruim que é identificado no campo da esquerda187. A alcunha
de “direita” e “nova direita”, assim, vem sendo reivindicada publicamente por uma série de
intelectuais, empresários e políticos nos últimos anos. Ou seja, estamos diante de uma direita
que não mais teme dizer seu nome.
Resta-nos a discussão conceitual que abrange a ala extremada das direitas. Salienta-se
de início que a extrema direita não se define necessariamente por suas correntes, mas pela
postura adotada e os métodos empregados na defesa dos seus pressupostos. Compartilhando
183
ANDRADA, op. cit., p. 16.
184
Ibidem, p. 18-19.
185
Ibidem, p. 16.
186
CASIMIRO, 2021, op. cit., p. 44.
187
ANDRADA, op. cit., p. 16.
60
seu núcleo ideológico com as pautas fundamentais da direita, a extrema direita – alguns a
demarcam como “direita radical”, “direita autoritária”, ou ainda, “ultradireita” – se
distanciaria da sua ala moderada sobretudo em razão da violência e da intolerância dirigida ao
campo que se coloca na oposição de seus interesses e valores primordiais. Trata-se de um
campo político caracterizado por ideologias ultraconservadoras, reacionárias,
antidemocráticas, anti-igualitárias.
Apesar das mudanças ocorridas na extrema direita desde a derrota do nazismo e do
fascismo clássico – suas manifestações históricas mais emblemáticas – algumas
características originais se preservam nas suas expressões atuais: irracionalismo,
nacionalismo, defesa de valores e instituições tradicionais, intolerância à diversidade –
cultural, étnica, sexual – anticomunismo, machismo, violência em nome da defesa da
comunidade ou raça considerada superior188. A extrema direita, assim, não se resume à sua
expressão nazifascista, mas abarca desde fundamentalistas religiosos e de mercado – os
ultraliberais –, até reacionários, monarquistas, militaristas/armamentistas e grupos neonazis. O
fascismo/neofascismo enquanto principal fenômeno histórico do campo da extrema direita
será melhor analisado em suas particularidades políticas e ideológicas no tópico seguinte
junto das demais bases ideológicas das direitas.
De acordo com Michael Löwy, observa-se nos últimos anos um alarmante ascenso da
extrema direita – reacionária, autoritária e/ou neofascista – em nível planetário, fenômeno
sem precedentes desde o período do entreguerras. Os exemplos mais notáveis seriam: Trump
(USA), Modi (Índia), Urban (Hungria), Erdogan (Turquia), ISIS (o Estado Islâmico), Duterte
(Filipinas), e Bolsonaro (Brasil). Mesmo sem uma definição tão explícita, governos de vários
outros países apresentariam tendências próximas: Rússia (Putin), Israel (Netanyahu), Japão
(Shinzo Abe), Áustria, Polônia, Birmânia, Colômbia etc. Nem todas essas experiências,
entretanto, apresentariam uma caracterização neofascista. Bolsonaro pode ser enquadrado
aqui, enquanto Trump apresentaria alguns aspectos neofascistas, sendo atravessado em maior
grau por um “reacionarismo tradicional”189.
A despeito das particularidades assumidas em cada contexto nacional, alguns
elementos comuns se sobressaem à maioria dos casos, senão todos: o autoritarismo, o
ultranacionalismo, a intolerância religiosa ou étnica (racista) contra o “Outro” e a intolerância
contra minorias sexuais, a violência policial/militar como única resposta aos problemas
188
SILVA et al., 2014, op. cit., p. 413-414.
189
LÖWY, Michael. Extrema direita e neofascismo: um fenômeno planetário: o caso Bolsonaro. In: FARIA,
Fabiano; MARQUES, Mauro Luiz (orgs.). Giros à direita: Análises e perspectivas sobre o campo
líbero-conservador. Sobral: Sertão Cult, 2020, p. 13-14.
61
sociais e à criminalidade190. Löwy ainda tece dura crítica ao termo “populismo”, corrente no
seio da grande mídia e da ciência política acadêmica na designação do fenômeno enquanto
“populismo de direita”, termo tomado como inoperante e mistificador:
- sua definição é tão vaga e imprecisa – “populistas são líderes que se dirigem
diretamente ao povo, pretendendo lutar contra as elites” - que pode se aplicar
praticamente a qualquer líder político;
- nada tem a ver como o que habitualmente se designa como “populismo”, em
particular na América Latina: Vargas, Perón, Cardenas, João Goulart etc. - isto é,
lideres com um discurso e, até certo ponto, uma prática nacionalista,
anti-imperialista e um programa de reformas sociais moderadas
- funciona como um eufemismo, ocultando a realidade destes líderes e regimes de
extrema direita, profundamente antipopulares, intolerantes, com traços fascizantes; e
- serve para confundir o público, colocando no mesmo saco como “populistas de
direita e de esquerda” todos os críticos da globalização neoliberal191.
Apesar do forte avanço que vivenciou na sociedade brasileira nos últimos anos, a
extrema direita e sua expressão neofascista não se tratam de uma novidade recente no país.
Basta-nos recordar que o integralismo, organizado em solo brasileiro desde os anos 1930 e
remanescente ainda na atualidade por meio dos neointegralistas, representou a maior
organização fascista da América Latina e principal movimento fascista fora do continente
europeu192. Outra organização relevante do campo da extrema direita no Brasil diz respeito à
Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), surgida no contexto
do golpe civil-militar193. Todavia, desde o fim da ditadura – regime encabeçado por forças da
direita extremada – e o processo de redemocratização, a extrema direita se encontrava
fragmentada e limitada à organização de alguns grupelhos e à direita militar194.
Isso muda a partir da ofensiva conservadora no cenário político, que através do
discurso de ódio e da intolerância dirigida aos seus opositores, tratou de abrir brechas para
uma reaglutinação da extrema direita a partir da emergência do fenômeno bolsonarista. O
bolsonarismo, aliás, representa o fenômeno que melhor sintetiza a confluência entre ambas as
categorias no contexto brasileiro: se trata de uma ideologia e de um movimento político de
extrema direita – marcado por elementos proto ou neofascistas –, cujas bases organizativas
foram propiciadas por organizações e agentes da nova direita que vinham há pelo menos três
190
Ibidem, p. 13.
191
Ibidem, p. 14.
192
NETO, Odilon Caldeira. Neointegralismo e as direitas brasileiras: entre aproximações e distanciamentos.
Locus, Juiz de Fora, v.18, n.1, 2012, p. 149.
193
SILVA et. al., op. cit., p. 424.
194
NETO, Odilon Caldeira. Neofascismo, “Nova República” e a ascensão das direitas no Brasil. Conhecer:
debate entre o público e o privado, Fortaleza, v. 10, n. 24, 2020, p. 126-127.
62
décadas disseminando seus valores e concepções de mundo pelo tecido social e cultural do
país.
Ainda que nem toda expressão do que definimos aqui como sendo a nova direita esteja
localizada no pólo extremo da direita, pode-se dizer que na atualidade, mesmo em termos de
dimensão internacional, o ideário da extrema direita hegemoniza isso que convencionou a se
denominar nova direita. Posto isto, não se trata de entender extrema direita e nova direita
como campos inteiramente distintos, sendo preciso ainda abarcar as dimensões neofascistas
dessa direita em sua análise. Antes, boa parcela da direita ainda se preocupava com o discurso
de defesa da democracia representativa liberal e do Estado democrático de direito. Agora, ela
vem se deslocando continuamente para uma postura intolerante e antidemocrática explícita.
Resgatando Cepêda ao debate, “o que se quer destacar é que na nova direita brasileira
coabitam “famílias” políticas diferentes, em que convive uma aliança entre liberais e
conservadores com segmentos de direita radical e neofascistas”195. Aprofundando a análise,
Casimiro destaca
[...] que a referida Nova Direita não se configura como um bloco homogêneo e
tampouco se define pelo bolsonarismo e o projeto de extrema direita que assumiu o
poder no Brasil. O projeto reacionário da extrema direita bolsonarista é uma
expressão no conjunto heterogêneo que constitui o que chamamos de Nova Direita.
Nesse sentido, a análise da atualização da hegemonia burguesa no Brasil, tendo
como nexo articulador um projeto da extrema direita, precisa considerar a
compatibilização histórica de uma complexa trama de elementos e condicionantes196.
Enfim, Cepêda nos traz uma síntese arguta sobre a definição desse campo político com
uma reflexão sobre os sentidos políticos, ideológicos e sociais mais profundos que carrega a
direita:
195
CEPÊDA, Vera Alves. A nova direita no Brasil: contexto e matrizes conceituais. Mediações, Londrina, v. 23,
n. 2, p. 75-122, mai./ago. 2018, p. 56.
196
CASIMIRO, 2021, op. cit., p. 48.
63
Em Gramsci, a luta entre ideologias está associada, assim, à luta pela hegemonia, que
se articula, como vimos, através de uma estrutura material de aparelhos privados de
hegemonia e do aparelho de Estado. Desta forma, as ideias e os valores que sustentam a
ordem e as relações sociais vigentes são promovidas e disseminadas pelas classes dominantes
como expediente para manutenção da hegemonia. Examinemos então as principais ideologias
que constituem tal hegemonia.
1.3.1. Liberalismo(s)
201
GRAMSCI, 2002a, p. 15. ROIO, Marcos Del. “Liberais/liberalismo” (Verbete). In: LIGUORI, Guido; VOZA,
Pasquale (orgs.). Dicionário gramsciano, 1ª ed., São Paulo: Boitempo, 2017. [Livro eletrônico]., p. 910.
202
POGGI, op. cit., p. 71.
65
exercício da livre troca e para o regime de trabalho assalariado, se tratam de elementos com os
quais o conservadorismo não se compromete203.
Entrementes, o que nasce como uma filosofia progressista em seu combate contra as
forças do Antigo Regime, sendo considerada radical e perigosa ao fim do século XVIII e
início do XIX, gradualmente foi se aproximando de posições mais conservadoras tão logo a
nova ordem burguesa foi estabelecida, terminando por se alojar no campo das direitas204. Se
houveram vertentes mais democráticas e progressistas do liberalismo ao longo da história, que
defendiam a ampliação da participação política e a inclusão social, seriam as correntes mais
conservadoras que se fariam predominantes no seio desta tradição. Recorda-se que teóricos do
liberalismo clássico – a exemplo do próprio “pai do liberalismo” John Locke – legitimavam a
escravidão em suas obras, bem como o colonialismo europeu em África e Ásia. E quando os
estratos populares irromperam nas sociedades burguesas e aristocráticas do século XIX
enquanto sujeito político, os liberal-conservadores demonstraram a mais profunda aversão à
participação das “classes perigosas” na arena política. Já no século XX, intelectuais liberais
ofereceriam apoio ao fascismo contra a “ameaça comunista”, e então, vestidos com roupagem
neoliberal, integraram governos ditatoriais e autoritários sem maiores hesitações205.
Em sua matriz econômica, o liberalismo clássico toma corpo ainda no século XVIII,
sendo balizado pelas obras de Adam Smith indo até David Ricardo no seio do que se
denominou a Escola de Economia Política. Sua crítica é estabelecida posteriormente pelas
posições socialistas, em especial, pelo chamado socialismo científico e a obra marxiana. Na
transição do XIX ao XX, o liberalismo sofrera uma profunda crise, não somente no terreno
teórico, mas fundamentalmente no âmbito da própria materialidade social que se
engendrava206. Repetidas crises econômicas, fenômenos especulativos e profundos problemas
sociais e políticos expunham a fragilidade das democracias liberais e colocavam à prova a
confiança nos mecanismos autorreguladores do mercado207. Frente aos novos dados e
necessidades colocadas por um capitalismo cada vez mais industrializado e urbanizado, “o
203
Ibidem, p. 72-73.
204
SALLES, Leonardo. Nova direita ou velha direita com wi-fi? Uma interpretação das articulações da “direita”
na internet brasileira. Florianópolis, 2017. 167 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia Política) – Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017, p. 66.
205
cf. LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de
Janeiro: UFRJ / São Paulo: Unesp, 2004. Idem. Contra-história do liberalismo. Aparecida: Ideias & Letras,
2006.
206
PUELLO-SOCARRÁS, José Francisco. Nueva gramática del neo-liberalismo: itinerarios teóricos,
trayectorias intelectuales, claves ideológicas. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2008, p. 27.
207
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São
Paulo: Boitempo, 2016, p. 57.
66
que no século XVIII constituía uma crítica às diferentes formas possíveis do ‘despotismo’
tornara-se progressivamente uma defesa conservadora dos direitos de propriedade”208.
Ainda que este primeiro liberalismo estivesse centrado na questão dos limites da ação
governamental frente às leis “naturais” da sociedade e do mercado e carregasse certa
concepção comum do homem, da sociedade e da história, os caminhos divergentes que os
liberais seguirão no século XIX, pendendo entre o dogmatismo do laissez-faire e certo
reformismo social, já evidenciavam uma fissura em sua unidade209. Uma primeira vertente,
embasada no utilitarismo de Jeremy Bentham e que culmina em John Stuart Mill – tido como
um dos primeiros democratas liberais –, procurava combinar as noções de livre mercado com
a reforma social e a democracia. Sua continuidade se expressaria no século XX sobretudo por
meio de John Maynard Keynes. Já uma segunda vertente apresentaria forte oposição à
reforma política e social, se opondo tanto à ampliação do sufrágio universal quanto às leis
fabris que estabeleciam limites para as condições de exploração da força de trabalho. Calcada
na obra de Herbert Spencer, que no lugar da ideia smithiana de que a busca pelas satisfação
das necessidades privadas culminaria no bem-estar geral propõe a noção de “sobrevivência
dos mais aptos”, essa vertente encontraria seu prolongamento posteriormente em autores
neoliberais como Mises e Hayek210.
No contexto da grande crise do entreguerras ocorre então uma “refundação” neoliberal
da doutrina, introduzindo uma maior distância ou mesmo rompendo com a velha dogmática
liberal, sem que também se apresentasse como uma doutrina completamente unificada211. O
neo-liberalismo – o “liberalismo contemporâneo” – não só procura estabelecer uma relação de
continuidade e uma atualização do pensamento liberal clássico frente às condições do
capitalismo contemporâneo, como comporta uma decidida renovação/restauração dessa
tradição212. Mesmo tomado enquanto corrente de pensamento, o neoliberalismo não pode ser
resumido a uma doutrina econômica, visto que compreende uma concepção global de mundo,
envolvendo um corpo teórico-metodológico, uma concepção do homem e da ordem social e
política213.
Ao contrário do velho liberalismo laissez-faire, os neoliberais acreditam que o Estado
deve atuar ativamente no sentido de criar e regular um aparato jurídico-legal que garanta o
208
Ibidem, p. 41-42.
209
Ibidem, p. 33.
210
MELO, 2017, p. 15-16.
211
DARDOT; LAVAL, op. cit., p. 33.
212
PUELLO-SOCARRÁS, 2008, op. cit., p. 23.
213
LOPEZ, 1988 apud GROS, Denise Barbosa. Institutos Liberais e neoliberalismo no Brasil da nova república.
Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser, 2003, p. 68.
67
universal é vista com maus olhos, uma fraqueza congênita das democracias contemporâneas,
que estariam baseadas no mito da soberania popular e da justiça social. Os governantes
deveriam governar sem sofrer pressão da opinião pública ou da maioria, enquanto o poder
decisório do povo deveria se limitar à nomeação dos governantes. A democracia não seria um
fim em si, mas apenas um meio, um método de seleção dos dirigentes. O que está em jogo
aqui é um questionamento das próprias bases da democracia liberal, pondo em marcha um
processo de “desdemocratização”, que consiste em esvaziar a democracia de sua substância
sem extingui-la formalmente221. De acordo com Dardot e Laval, “essa crítica à ‘soberania
popular’ e à ‘democracia ilimitada’' está ligada a uma preocupação fundamental: trata-se, em
última análise, de isentar as regras do direito privado (o da propriedade e da troca comercial)
de qualquer espécie de controle exercido por uma ‘vontade coletiva’”'222.
Este ponto se relaciona com outra questão de fundo do neoliberalismo. No seio desse
pensamento econômico, a esfera econômica é tomada enquanto espaço dos mecanismos
gerenciais e tecnocráticos eficientes ao “livre mercado”, que nada teria a ver com elementos
de disputa política e democrática223. As empresas e as instituições econômicas são tidas como
expressão de uma racionalidade econômica neutra, promotora do desenvolvimento. Faz-se,
portanto, uma separação idealista entre política e economia – um ponto cego da tradição
liberal desde sua origem, derivada da separação artificial feita entre sociedade civil e
sociedade política –, tomando o liberalismo como expressão espontânea da esfera econômica
quando, na verdade, como nos lembra Gramsci, este representa sobretudo um programa
implementado via regulamentação estatal, introduzido e mantido por via legislativa e
coercitiva224.
Não se tratando de uma doutrina homogênea, mas comportando diversas perspectivas
teóricas, fontes econômicas, práticas históricas e filiações políticas e ideológicas conforme o
contexto em que se apresenta, o pensamento e a teoria econômica neoliberal beberiam de
cinco fontes/motivações principais de acordo com o cientista político Puello-Socarrás: a)
Escola Neoclássica Anglo-Americana: representada pela Escola de Cambridge e de Londres,
mas principalmente, pelas gerações da Escola de Chicago, encabeçada por Milton Friedman;
b) Escola Austríaca (ou “de Viena”): em suas sucessivas gerações, especialmente, a terceira e
221
DARDOT; LAVAL, op. cit., p. 20, 99, 137, 183-184.
222
Ibidem, p. 184.
223
FERNANDES, Sabrina. Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira. São Paulo: Autonomia
Literária, 2019, p. 217-218.
224
Gramsci, na verdade, se utiliza aqui do termo “liberismo” para se referir às doutrinas econômicas centradas na
livre concorrência e no livre-cambismo, visto que liberalismo, como sinalizamos antes, é empregado pelo autor
de maneira mais ampla, indicando uma concepção geral de vida. cf. GRAMSCI, 2007, op. cit., p. 47.
69
quarta, lideradas respectivamente pelas suas principais referências: Ludwig von Mises e
Friedrich Hayek; c) O chamado neoliberalismo alemão: representado pelo “Ordoliberalismo”
e pela Escola da Economia Social de Mercado (ESM). Essa corrente defende um liberalismo
de “novo cunho”, descartando qualquer tipo de restabelecimento do “laissez-faire”, admitindo
que o funcionamento do mercado é imperfeito e que o Estado deve corrigir suas falhas a partir
da construção de uma ordem econômica regulada, mas nunca “dirigida” ou “planificada”; d)
As “sínteses neoclássico-keynesianas”; e e) As sínteses “austro-americana” e
“americano-austríaca”, menos difundidas225.
Existem, portanto, “[...] profundas discrepâncias a nível teórico, epistemológico,
metodológico, etc. que se traduzem em interpretações distintas frente a diferentes tópicos: em
matéria de políticas, medidas econômicas, planejamento e resolução de problemas
socioeconômicos”226, mas que compartilham uma unidade ideológica com os princípios gerais
do neoliberalismo. Apesar dos dissensos no seio do movimento, as disputas teóricas e
abstratas representadas nas diferentes correntes se submetem a um consenso decisivo no plano
político-ideológico e social em prol da construção da Sociedade de Mercado – não apenas
uma “economia de mercado”: “Para todos os neoliberais, os problemas da sociedade, as
dinâmicas públicas e as tensões e conflitos sociais devem ser resolvidos e considerados
univocamente sobre uma ótica individualista de mercado”227.
Segundo Puello-Socarrás, as análises correntes do neoliberalismo incorrem em erro ao
estabelecerem uma oposição dicotômica entre de um lado o intervencionismo estatal, e de
outro as liberdades de mercado, posições que serviriam ainda para marcar a divergência
fundamental entre keynesianos e neoliberais. O keynesianismo, na realidade, também
correspondeu a uma proposta de renovação do liberalismo econômico clássico. Essa aparente
oposição, na verdade, – em que pese seus contrastes inegáveis – se dá no seio de uma
discussão entre liberalismos e ofusca o núcleo ideológico eminentemente liberal que vinculam
ambas as correntes. Trata-se, antes de tudo, de formas distintas de pensar a obrigação política
e a atividade governamental do Estado capitalista, unidas pela manutenção da ordem social
capitalista frente às suas crises228.
Assim, o neoliberalismo não seria inimigo do Estado capitalista como se subentende
na retórica ideológica que mobiliza, mas de certas funções e instituições suas que vão de
225
PUELLO-SOCARRÁS, José Francisco. Ocho tesis sobre el Neoliberalismo (1973-2013). In: RAMÍREZ,
Hernán (org.). O neoliberalismo sul-americano em clave transnacional: enraizamento, apogeu e crise. São
Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2013, p. 23-24.
226
Ibidem, p. 26. [tradução livre]
227
Ibidem. [tradução livre]
228
Idem, 2008, op. cit., p. 24-26.
70
229
RESTREPO, 2003, apud PUELLO-SOCARRÁS, 2008, p. 25-26.
230
PUELLO-SOCARRÁS, 2013, op. cit., p. 49.
231
DARDOT; LAVAL, 2016, p. 69.
232
Ibidem, p. 133.
233
Ibidem, p. 133, 136-137, 158.
234
PUELLO-SOCARRÁS, 2013, op. cit., p. 16.
235
DARDOT; LAVAL, op. cit., p. 71-72.
236
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São
Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019, p. 28.
71
De outra parte, o surgimento in vivo do neoliberalismo pode ser balizado pelo ano de
1973, data não só do choque do petróleo que traz à tona mais uma crise cíclica do capital,
como do golpe de Estado que marca o início da ditadura no Chile, laboratório para o primeiro
regime econômico-político neoliberal na região. A ditadura de Pinochet receberia assessoria
em termos de reformas econômicas e sociais dos chamados Chicago’s Boy’s e dos pais do
neoliberalismo, como das elites neoliberais globais237. Nas décadas posteriores, o ocidente
viveu a ascensão de uma política qualificada ao mesmo tempo como “conservadora” e
“neoliberal”, com os governos Reagan e Thatcher simbolizando uma frente política de ataque
ao “Estado de bem-estar social”, às sociais-democracias e ao socialismo de Estado no bojo da
crise capitalista. Em concomitância a esse processo, as economias erigidas da dissolução do
bloco soviético passariam por uma acelerada onda de neoliberalização238. No bojo dessas
transformações no final do século, o célebre “Consenso de Washington” de 1989, ao lado dos
chamados organismos multilaterais de crédito como o Fundo Monetário Internacional (FMI),
o Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) consolidavam o
neoliberalismo à nível global239. Pode-se dizer que, na prática, o neoliberalismo se
desenvolveu como uma resposta a última crise estrutural do capitalismo240. Segundo Dardot e
Laval,
237
PUELLO-SOCARRÁS, 2013, p. 16-17.
238
DARDOT; LAVAL, 2016, p. 189. BROWN, 2019, p. 29.
239
PUELLO-SOCARRÁS, 2013, op. cit., p. 17.
240
MELO, 2017, op. cit., p. 21.
241
DARDOT; LAVAL, 2016, op. cit., p. 189.
242
Ibidem, p. 209.
72
243
PUELLO-SOCARRÁS, 2008, op. cit., p. 16.
244
Idem, 2013, p. 18. [tradução livre].
245
Ibidem, p. 18-19.
246
DARDOT; LAVAL, 2016, op. cit., p. 7.
247
Ibidem, p. 17.
248
Ibidem, passim.
73
produzir uma relação do sujeito individual com ele mesmo que seja homóloga à
relação do capital com ele mesmo ou, mais precisamente, uma relação do sujeito
com ele mesmo como um "capital humano" que deve crescer indefinidamente, isto é,
um valor que deve valorizar-se cada vez mais249.
249
Ibidem, p. 31.
250
Ibidem.
251
BROWN, op. cit., p. 31.
252
DARDOT; LAVAL, op. cit., p. 24.
253
Ibidem, p. 26.
254
SAAD FILHO, op. cit., p. 67.
74
255
PUELLO-SOCARRÁS, 2013, p. 14 [tradução livre].
256
Ibidem, p. 15.
257
Ibidem, p. 20-21.
258
SAAD FILHO, op. cit., p. 68.
259
PUELLO-SOCARRÁS, 2013, op. cit., p. 38-40.
260
“Nos referimos a ‘colonialismo’ em sentido completo e plural, em termos análogos aos de Raúl Prada e o
conceito de colonialidade múltipla: colonialidades do poder, corpo, gênero, sobretudo, colonialidades do saber e
econômica (Prada, 2013), assim como também ao colonialismo externo e interno”. [tradução livre] Ibidem, 2013,
p. 41.
75
cariz neocolonial. Seu projeto se coloca como uma fatalidade incontornável nos marcos do
processo de modernização e desenvolvimento capitalistas261. Através da operação de
mecanismos de exploração econômica – precarização, desindustrialização, manutenção e
aumento dos exércitos de reserva de mão de obra – e de exploração ilimitada da natureza –
extrativismos em suas diferentes versões –,
O autor ainda defende que, longe da hegemonia neoliberal entrar em declive mesmo
com a crítica renitente às consequências de suas políticas e com a crise global que atravessa o
capitalismo desde 2008, o neoliberalismo vem se reafirmando a partir de sua própria
reconfiguração. Assim, a partir do início do século XXI teria ocorrido uma recomposição do
projeto neoliberal, suas ideologias e suas práticas, onde as perspectivas heterodoxas no
interior do neoliberalismo passaram a ganhar maior relevo em detrimento das posições
ortodoxas263. Poderíamos falar, assim, num “novo neoliberalismo” a partir da consolidação da
globalização neoliberal no novo milênio. Seu objetivo residiria em redimir o capitalismo
neoliberal de sua crise a partir dos seus próprios termos264.
Enquanto na fase precedente do neoliberalismo – fase das chamadas reformas de
primeira geração, com ímpeto particular nas periferias (América Latina e Caribe) –, ele se
encontraria mais imbricado no aprofundamento dos argumentos neoclássicos
angloamericanos, principalmente nos da variante estadunidense com a Escola de Chicago, no
“novo neoliberalismo”, por sua vez – erigido no seio das contrarreformas de segunda e
terceira gerações e que responde a uma crise global –, vem ganhando maior relevância as
correntes neoliberais austríacas e alemãs. Entrementes, destaca-se que nas manifestações
concretas e contemporâneas do neoliberalismo, ambas as visões se fazem presente. Ainda
assim, verificam-se significativas reformulações em seu interior, observadas, por exemplo, no
abandono relativo de categorias antes centrais para o neoliberalismo como o homem
econômico, a engenharia social, “o equilíbrio geral”, substituídas por noções mais funcionais
261
Ibidem, p. 41-42.
262
Ibidem, p. 47.
263
Ibidem, p. 13.
264
Ibidem, p. 29-31.
76
272
DOHERTY, 2007 apud ROCHA, 2018, p. 46-47.
273
MELO, 2017, p. 14.
274
MARQUES, Victor Ximenes. Entrevista com Victor Ximenes Marques: Guerras culturais, uma nova forma de
fazer política. ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, 2021, p. 467.
275
DARDOT; LAVAL, op. cit., p. 391.
276
MARQUES, op. cit., p. 467.
78
e mesmo uma ameaça imanente àquela. A partir daí, definem a esquerda como defensora da
igualdade e a direita como promotora da liberdade. De acordo com Luiz Felipe Miguel,
“Estado, esquerda, coerção e igualdade compõem um universo de sentido, enquanto liberdade,
mercado e direita formam outro”277.
O discurso apresentado em defesa das “liberdades individuais” – que em tese levaria a
formulações avançadas sobre consumo de drogas, direitos reprodutivos e liberdade sexual – é
contrapesado logo que se observa a prática política desses grupos, que aponta na maioria das
vezes para alianças com conservadores e grupos fundamentalistas religiosos. O Estado é tido
aqui como o inimigo em comum, seja por regular a economia, seja por intervir na autoridade
patriarcal regulamentando os direitos dos integrantes submetidos no núcleo familiar ou dos
que vivem à margem desse modelo. Nesse sentido, para ambos, é a família tradicional que
deve funcionar como célula base da organização social no lugar do Estado278.
Fora dos debates teóricos sobre as liberdades individuais e a função econômica do
Estado, de acesso mais restrito aos círculos de militantes e intelectuais liberais, o discurso da
limitação do Estado tem que se fazer valer entre o grande público como estratégia de
convencimento político-ideológico para o projeto neoliberal. Nesse âmbito, a retórica liberal
apresentará seu projeto de redução dos atributos administrativos, econômicos e sociais do
Estado como se fosse o único caminho viável para a modernização e o bem-estar material das
massas. O Estado, confundido com o governo e tomado como antro da corrupção e ineficácia,
é identificado então como principal responsável pela desigualdade econômica e pelo entrave
do desenvolvimento279. Segundo Leonardo Salles,
Esta concepção, a dos libertários pelo menos, oferece a visão de uma nova direita
como uma oponente do status quo – considerando que nunca houve de fato
liberalismo no Brasil –, adotando a narrativa de que as mazelas do país provêm da
ineficiente e corrupta máquina estatal, a qual impede a operação adequada da livre
iniciativa, lócus das virtudes da eficiência, do empreendedorismo e do mérito280.
sociais. Até mesmo a retirada de seus direitos trabalhistas passa a ser justificada frente a
promessas de maior empregabilidade. Esses consensos em torno do ultraliberalismo vem
sendo construídos e apoiados materialmente nas últimas décadas por uma série de think tanks
liberais articulados em torno de uma rede de aparelhos privados de hegemonia, como vimos.
Observa-se que a retórica ideológica do “Estado mínimo” manejada pelos prepostos do
ultraliberalismo serve, na verdade, à burguesia na reconfiguração do papel do Estado, visto
que este exerce papel fundamental para a atualização da dominação de classe. Altera-se sua
ossatura material por meio da privatização de suas funções e da reformulação da legislação
nacional, realizando as “reformas” necessárias a reestruturação produtiva do mercado
enquanto estratégia de expropriação dos extratos trabalhadores e ampliação das taxas de
lucro281. O que se observa na prática é a operacionalização de um “Estado mínimo” na
garantia de seguridade social para a maioria da população, mas extremamente inchado no
favorecimento dos interesses das classes dominantes e em suas atribuições coercitivas e
consensuais que visam a desregulamentação das relações de trabalho e a desarticulação dos
movimentos populares.
As premissas do direito à liberdade e à salvaguarda da vida que conformam o
liberalismo clássico entram num terreno nebuloso quando afixadas por essas correntes mais
conservadoras e radicais do neoliberalismo, dado que historicamente seus prepostos vem
fornecendo anuência a projetos de poder de cunho excludente e hierarquizante, e mesmo a
governos ditatoriais e neofascistas. Ao mesmo tempo, quando empregadas a defesa das
liberdades individuais e políticas, da igualdade jurídica, dos direitos civis e do regime
democrático, estas aparecem aqui como condicionadas fundamentalmente ao liberalismo
econômico e à propriedade privada, não podendo ser exercidas plenamente fora da alçada de
uma organização social regulada pelo mercado.
Nesses termos, é a propriedade privada e os processos de mercado, tomados enquanto
fundamentos primordiais da vida humana, que devem ser garantidos fundamentalmente, ainda
que aquelas outras liberdades e direitos precisem ser suprimidos. A própria concepção de
Estado de Direito aqui empregado concebe a primazia das ditas liberdades econômicas sobre
os mecanismos legais e administrativos do Estado. Isso confere aos setores ultraliberais uma
anuência a projetos antidemocráticos quando necessário salvaguardar os interesses do
mercado. O fundamental para o mercado aqui não é a liberdade política ou a igualdade
jurídica, mas a liberdade econômica.
281
CASIMIRO, 2016, op. cit., p. 256.
80
condição natural e unívoca do ser humano, daí emergindo a “lei do mais forte” nos marcos
dessa concepção darwinista da sociedade – que, recorda-se, também se integra à visão de
mundo do fascismo. Ou seja, aquilo que são formas sociais e históricas da sociedade erigida a
partir do modo de produção capitalista aparecem aqui como formas a-históricas e naturais.
Segundo Casimiro,
Por trás dessa visão mundialista e cosmopolita dos dominantes, há uma filosofia da
incompetência, segundo a qual são os mais competentes que vencem ou governam, o
que implica que aqueles que não têm trabalho, ou acesso à saúde ou educação de
qualidade, por exemplo, são vítimas de sua própria incapacidade, de sua
incompetência. Ou seja, tudo é uma questão de mérito pessoal, numa perspectiva em
que todas as posições sociais estariam alicerçadas fundamentalmente no mérito,
negligenciando outros condicionantes sociais e históricos288.
O que está em jogo aqui é a captura dos sentidos de liberdade e de cidadania a partir
de uma noção do ser humano como sendo utilitarista e individualista por “natureza”. A
liberdade efetiva só poderia ocorrer nos marcos da economia de mercado, onde o cidadão é
tomado enquanto mero consumidor que age a partir de suas vontades e seu mérito individual,
convertendo seus direitos e mesmo sua vida numa mercadoria negociável. No
fundamentalismo de mercado, este seria o “reino” da liberdade humana mediado pela livre
fruição das “trocas voluntárias” em oposição ao Estado, o reino da coerção, ignorando as
relações de dominação e as formas de expropriação que atravessam o mercado289. Todas as
relações culturais, políticas e sociais passam a estar submetidas à lógica e à lei do mercado,
tomado como uma realidade espontânea e condição para a realização das liberdades humanas.
Trata-se de tornar o mercado o poder absoluto, a mesma forma de exercício de poder que, por
ironia, fez nascer o liberalismo clássico enquanto sua crítica mordaz. De acordo com a autora
Denise Gross,
288
CASIMIRO, 2020, p. 60
289
Idem, 2016, p. 323.
290
GROS, op. cit., p. 87-88.
82
Fato é que o discurso neoliberal por si só “[...] não é capaz de amparar enquanto
ideologia a necessidade de uma prática política brutal de extermínio e de rebaixamento das
condições de vida”. Só intelectuais “[...] capazes de articular um discurso de violência contra
minorias, de intolerância e hiperindividualismo podem dar conta de justificar o estágio atual
da economia capitalista”291, construindo consenso entre a população no seio de uma profunda
crise econômico-social. É nesse sentido que, ao lado do ultraliberalismo, o conservadorismo
aparece enquanto base ideológica que conforma a concepção de mundo da nova direita e da
Brasil Paralelo.
1.3.2. Conservadorismo
291
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Neoconservadorismo e liberalismo. In: GALLEGO, Esther Solano (org.). O ódio
como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 32.
292
HIRSCHMAN, 1992 apud CEPÊDA, 2018, p. 47-48.
293
POGGI, 2019, op. cit., p. 70.
294
SOUZA, Jamerson Murillo. Tendências ideológicas do conservadorismo. Recife, 2016. 304 f. Tese
(Doutorado em Serviço Social) - Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2016, p. 179.
295
POGGI, op. cit., p. 70-71.
83
própria obra burkeana, que tem como tema central a crítica à Revolução Francesa, de tipo
insurrecional, em oposição ao elogio feito à “Revolução Gloriosa” inglesa, uma “revolução
sem sangue” que estabeleceu novos interesses políticos e econômicos no seio do Estado,
enquanto preservava a tradição e o ordenamento social constituído296.
O conservadorismo clássico projeta sobre o ser social concepções teológicas e
repousadas sobre o idealismo, propondo que o Estado, a sociedade e a propriedade privada
“constituem uma ordem natural eterna e divinamente estabelecida”297. De tal forma,
296
SOUZA, op. cit., p. 115-118.
297
Ibidem, p. 122.
298
Ibidem, p. 42.
299
POGGI, op. cit., p. 71.
300
Ibidem, p. 72.
301
CEPÊDA, 2018, op. cit., p. 61-62.
302
SOUZA, op. cit., p. 167.
84
Este raciocínio que positiva a desigualdade pela ação meritocrática pode ser a chave
de aproximação entre o ideário conservador contemporâneo, o liberalismo e o
neoliberalismo. Embora o pressuposto fundador da liberdade e da condição de
aristoi do liberalismo seja a dinâmica econômica e não a ordem dos costumes ou da
tradição, permanece a perspectiva da assimetria (distinção). As concepções
conservadoras modernas foram capturadas na órbita da filosofia liberal, aceitando a
mudança que nunca será para todos. O que o conservadorismo e boa parte da direita
contemporânea fizeram foi naturalizar como fundamento da desigualdade o
sacrossanto Mercado, combinado com forma de conservadorismo moral e de
crença303.
303
CEPÊDA, 2018, op. cit., p. 62.
304
VIANNA, Alexander Martins. “Conservadorismo” (Verbete). In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira et. al.
(orgs.). Dicionário crítico do pensamento da direita: ideias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ,
1999. [livro eletrônico], p. 134.
305
SOUZA, op. cit., p. 121-122.
306
Ibidem, p. 132.
85
307
Ibidem, p. 213-214.
308
Ibidem, p. 32-33.
309
Ibidem, p. 41-42.
86
310
Ibidem, p. 42.
311
Ibidem, p. 226.
312
Ibidem, p. 132.
313
Ibidem, p. 29.
314
Ibidem, p. 152, 176-177.
315
Ibidem,, p. 150.
316
Ibidem, p. 154.
87
subjetivas [...]”317. Uma ideologia que faz a crítica das “ideologias” a fim de se apresentar
enquanto uma “forma de ser” não ideológica.
Com a derrota do nazifascismo e o estabelecimento da nova ordem mundial no
pós-guerra, os conservadores passaram a procurar se apresentar enquanto defensores da
democracia política. Para tanto, recorreram à tese do “totalitarismo” no contexto da Guerra
Fria, equalizando social-democratas, comunistas e fascistas como faces de um mesmo inimigo
a ser combatido. Caberia, assim, aos conservadores junto dos liberais resguardar as liberdades
individuais ameaçadas318. Segundo Souza, o conservadorismo contemporâneo
317
Ibidem.
318
Ibidem, p. 45.
319
Ibidem, p. 158.
320
Ibidem, p. 158-159.
321
Ibidem, p. 161.
88
[...] demonstra, num âmbito mais geral, a articulação entre liberalismo econômico e
conservadorismo cultural nas representações político-ideológicas, contemplando
convenientemente cisões e divergências interburguesas. Além disso, a burguesia, em
meio a seus conflitos e cisões intraclasse, sempre oscilará entre os seus partidos da
ordem; essa posição característica da extrema-direita pode até não ser
necessariamente a concepção que a burguesia gostaria de ver concretizada [...].
Todavia, se em determinada conjuntura esse for o partido de que a burguesia precisa,
ou que é obrigada a acatar, então essas posições mais extremadas, e mesmo
322
ALMEIDA, op. cit., p. 28.
323
SOUZA, op. cit., p. 165.
324
CHALOUB; PERLATO, 2016, op. cit.
325
SOUZA, op. cit., p. 210.
89
326
CASIMIRO, 2020, p. 37.
327
SOUZA, op. cit.,, p. 215-217.
328
CALIL, Gilberto. Estado, capitalismo e democracia no Brasil recente. In: SILVA, Carla Luciana et. al. (orgs.).
Ditadura, transição e democracia: estudos sobre a dominação burguesa no Brasil contemporâneo, Porto Alegre:
FCM, 2016, p. 211-212.
329
ROCHA, op. cit., p. 177-178.
330
FERNANDES, 2019, op. cit., p. 112.
90
sociedade contra inimigos externos e internos. Na conjuntura nacional, ele aparece geralmente
de modo associado ao discurso anticorrupção e antiesquerda, representando um elemento
despolitizador que foi essencial na articulação da nova direita no seio das manifestações pelo
impeachment, e depois, na vitória da extrema direita nas eleições de 2018. Expresso no lema
chauvinista importado da Alemanha nazista “Brasil acima de tudo”, esse ultranacionalismo
propalado pelo bolsonarismo enquanto “patriotismo” corresponde a um componente
fundamental de sua base de mobilização ideológica, identificado na própria estética verde e
amarela assumida pelo movimento.
Se tratando de um dos principais afetos mobilizados pelos conservadores e pela nova
direita, o patriotismo é responsável por vincular os sujeitos a uma comunidade nacional
tomada em abstrato, submetendo-os a uma devoção de qualidades que seriam intrínsecas à
nação brasileira. O ufanismo apaga os antagonismos estruturais das classes e a existência de
opressões de grupos sobre outros ao mesmo tempo em que cristaliza no imaginário popular a
oposição como traidora da pátria. Ao cabo, esse ultranacionalismo impede a constatação de
que a corrupção, o sistema representativo corrompido e a infraestrutura precária do aparato
público nacional são sintomas da estrutura capitalista maior que serve aos interesses
burgueses331.
Além do nacionalismo ufanista, o conservadorismo se avultou amplamente nas classes
populares e na periferia principalmente por meio de pautas de valores morais e do
fundamentalismo religioso promovido por igrejas pentecostais e neopentecostais, com suas
lideranças associando os tradicionais “inimigos da sociedade” designados pelos conservadores
à imoralidade, à degeneração e ao próprio “Mal”. O fundamentalismo religioso se trata de um
elemento peculiar que confluiu na ofensiva conservadora, representado através da força
política de uma direita cristã que se unificou em 2018 e foi decisiva para eleger Bolsonaro e a
extrema direita.
Já presentes na constituinte, esses setores passaram a representar uma força política no
Brasil a partir dos anos 1990 com a difusão de igrejas neopentecostais no país, ganhando
inserção em espaços midiáticos e elegendo suas lideranças para cargos políticos. Os
parlamentares fundamentalistas da “bancada da bíblia” – muitos dos quais também compõem
a “bancada da bala” – aumentam de projeção em meados de 2010 – dentre eles, Bolsonaro –
ao se unirem a outros setores conservadores do congresso para imbricar as pautas que iam de
331
Ibidem, p. 242-244.
91
encontro a sua agenda moral, como o direito ao aborto seguro e legal, definições mais
inclusivas de entidade familiar e políticas de combate a lgbtfobia332.
Mas se trata de um equívoco reduzir o fenômeno à “bancada evangélica”, um termo
que ainda oculta a existência de diferenciação entre as denominações protestantes, além de
invisibilizar o setor minoritário de evangélicos progressistas, e não aludir a presença dos
setores mais conservadores da igreja católica que compõem o bloco fundamentalista cristão.
Mais do que uma ação parlamentar coesa, o fundamentalismo se trata de um fenômeno social
e ideológico, que se baseia numa cosmovisão de mundo em que se compreende os escritos
sagrados como a verdade revelada, absoluta e supra-histórica. A partir daí, as escrituras
sagradas e as doutrinas religiosas são transformadas em fonte de toda autoridade política,
cultural e moral, e isso acaba por incorrer numa regra de conduta moral que anula as
possibilidades de debate e diversidade de posições e de modos de existência. Nas palavras de
Luis Felipe Miguel, o fundamentalismo
A ordem política e social é ligada através da religião a uma verdade absoluta, dando
coesão a uma comunidade. Por meio desse fenômeno o indivíduo passa a se reconhecer e
estabelecer sua identidade a partir do seu papel no âmbito familiar e de sua ligação com a
comunidade de fé, cortando vínculos coletivos enquanto trabalhadores ou integrantes de lutas
coletivas334.
Boa parte das vezes o fundamentalismo cristão se apresenta de modo associado à
chamada “teologia da prosperidade”, que certamente corroborou para a naturalização da
racionalidade neoliberal, sobretudo nos estratos mais precarizados da classe trabalhadora
brasileira. No lugar de uma pregação cristã voltada para o senso de comunidade, caridade e
justiça social, a fé é mercantilizada como um investimento individual a ser permutado com
Deus em troca da concessão de bens materiais335. Essas instituições neopentecostais e seus
canais de comunicação foram fortemente fomentados durante os governos petistas, como o
332
LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk,
2019.
333
MIGUEL, op. cit., p. 21.
334
LACERDA, op. cit., p. 53-55.
335
MIGUEL, op. cit., p. 23.
92
caso da Igreja Universal, que passou a receber incentivos para sua emissora de televisão, a
Record, e a ocupar espaços institucionais no governo336. Anos mais tarde, a Igreja Universal,
ao lado dos setores fundamentalistas que sempre se mantiveram na oposição ao PT, se
mostrariam grandes apoiadores do golpe sofrido por Dilma Rousseff e um dos principais
pilares para promoção do bolsonarismo nos setores populares. Levando em conta esse
aumento da audiência da “teologia da prosperidade” e do discurso de intolerância religiosa,
Mattos avalia que
redução da maioridade penal e a pautas sexuais. A partir do governo Dilma pode se observar
uma inflexão progressiva no discurso de Bolsonaro e seus pares conservadores, passando a
tomar como carro chefe seu o tema do “kit gay” em ataque ao PT. Suas polêmicas começaram
a lhe proporcionar aparições constantes em programas da TV aberta, e junto a isso, o uso
precoce das redes sociais como canal de comunicação política acabou por lhe garantir uma
expressiva votação em 2014, se elegendo como deputado federal mais votado do Rio de
Janeiro. Em 2016, o deputado católico se aproxima mais dos evangélicos ao ser batizado em
Israel pelo Pastor Everardo, líder do Partido Social Cristão (PSC). Além disso, Bolsonaro
também passou a dar destaque à religiosidade protestante da esposa Michele Bolsonaro,
estabelecendo um diálogo mais enfático em relação aos grupos pentecostais338.
A crítica aos materiais educativos de combate à homofobia junto da denúncia da
“doutrinação esquerdista” e da “sexualização precoce” nas escolas foi um dos motes de
campanha de Bolsonaro em 2018. O pânico moral criado em torno de políticas de educação
sexual e de qualquer mínimo esforço para se prevenir sexismo e lgbtfobia foi decisivo na
ascensão da extrema direita ao poder, vinculando o PT e a esquerda a “ideologia de gênero” e
ao execrável projeto de aplicar o tal “kit gay” nas escolas junto da distribuição de
“mamadeiras de piroca”, informações falsas altamente disseminadas durante a campanha
presidencial. Como se sabe, esses ataques ao PT em forma de fake news foram impulsionados
ainda por meio de uma rede de disparo em massa de mensagens através do aplicativo
WhatsApp, financiada por empresários bolsonaristas339. Na campanha fracassada para a
reeleição de Bolsonaro em 2022, o espantalho da vez na pauta moral recaiu sobre a falácia de
um projeto de implementação de “banheiros unissex” nas escolas que a esquerda poria em
prática caso vencesse, junto do “fechamento de igrejas”340. O bolsonarismo aparece como
alternativa política para as massas populares justamente “[...] por ter sido capaz de interpelar
os valores conservadores predominantes no senso comum das classes subalternas, dando uma
338
Ibidem, p. 175-178.
339
MELLO, Patrícia Campos. Empresários bancam campanha contra o PT no WhatsApp, 18 out, 2018.
Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios-bancam-campanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml
>. Acesso em: 20 fev. 2022.
340
ALEIXO, Isabela. Banheiro unissex e fechamento de igrejas: as fakes sobre Lula no 2º turno. UOL, 29 out.
2022. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2022/10/29/checagens-sobre-lula-segundo-turno.htm?>.
Acesso em: 12 fev. 2023.
94
explicação para a natureza da crise brasileira que transcende a velha narrativa de combate à
corrupção mais direcionada às classes médias”341.
Na pauta das mulheres, o discurso contra o aborto ofusca as posições sexistas e
misóginas dos grupos conservadores. Há de fundo aqui uma concepção que toma as
disparidades de gênero como algo natural, cabendo à mulher o papel de portadora do “dom
natural” da reprodução. Não à toa, sob a alcunha de “defesa da vida”, o ataque contra os
direitos reprodutivos das mulheres e à legislação sobre o aborto ocupa lugar fundamental na
agenda dos grupos conservadores, ao lado do ataque às pautas relativas ao respeito à
diversidade e liberdade sexuais. Nessa mesma linha de pensamento, a ausência da figura
paterna levaria à delinquência, à promiscuidade e à gravidez na adolescência, que por sua vez
acarretaria na dependência do Estado assistencialista342.
No lugar do Estado, a família que é alçada a instituição responsável por evitar e
combater esses tipos de problema, ela é a célula da organização social. Nestes termos, o
discurso da família patriarcal autossuficiente fornece justificativa para o corte de serviços
sociais por parte do neoliberalismo343. De tal forma, o conservadorismo e seu discurso sobre
“valores” e “costumes” fornece uma espécie de “moralismo compensatório” ante a
desagregação social provida pelo capital e suas crises, como “[...] forma de canalizar
politicamente frustrações e desviar a atenção das políticas neoliberais em curso”344.
Essa tendência crescente de temas culturais e morais ocupando o centro do debate
político, mobilizando amplas bases sociais, alude a um fenômeno que vêm sendo denominado
como guerras culturais. Propondo uma análise sobre o contexto norte-americano, o conceito
foi popularizado a partir do livro Cultural Wars (1991) do sociólogo James Hunter345,
refletindo sobre como a arena política vinha sendo atravessada por uma batalha entre sistemas
de crença e visões de mundo distintas, contrapondo de um lado os progressistas, de outro, os
conservadores. Este tipo de conflito mobiliza problemas de ordem social e moral,
relacionados a sexualidade, costumes, raça, religiosidade, etc., mas que também transcendem
para além da esfera cultural, incidindo sobre questões políticas e econômicas. Trata-se de um
conflito de caráter socialmente difuso justamente por remeter a aspectos simbólicos e
341
MELO, Demian Bezerra de. O bolsonarismo como fascismo do século XXI. In: REBUÁ, Eduardo et. al.
(orgs.). (Neo)fascismos e educação: reflexões críticas sobre o avanço conservador no Brasil. Rio de Janeiro:
Mórula Editorial, 2020, p. 34.
342
LACERDA, op. cit., p. 39-40.
343
Ibidem.
344
BIROLI, 2017 apud LACERDA, op.cit., p. 197.
345
HUNTER, J. D. Culture wars: the struggle to define America. Nova York: Basic Books, 1991.
95
A temporalidade das guerras culturais parece não incluir a ideia de batalha final,
capaz de decidir o conflito e levar a história à sua conclusão, como no nexo moderno
entre luta de classes e revolução. Agora, uma guerra acaba, talvez com alguma parte
vitoriosa, mas logo em seguida surge uma nova, ou com outra questão moral, ou
com outro evento reativando a questão anterior. [...] As guerras culturais podem ter,
a cada dia, uma questão moral diferente como objeto. Mas a variedade é superficial,
pois os protagonistas tendem a ser os mesmos. Com o passar dos anos, os temas que
valem uma disputa moral se avolumam e se entrelaçam, ampliando a consistência
interna de cada lado. Ser contra o uso de máscaras pode levar a ser contra o aborto,
contra as ações afirmativas, contra o casamento gay, contra a intervenção do Estado
na economia e a favor de valorizar o papel da ditadura militar na história brasileira.
O ponto de entrada parece não importar; a tendência é a conexão entre temas, pois os
indivíduos cada vez mais restringem sua atenção a argumentos das mesmas fontes
radicalizadas. A repetição aparentemente interminável das guerras culturais reforça a
polarização, o que suscita a própria repetição347.
de “guerras culturais” dentro do quadro social e intelectual brasileiro, tendo pouco a explicar
sobre os problemas de uma sociedade como a nossa, construída ao redor da visão de um país
supostamente pacífico, harmônico e cordial. O termo também seria uma tentativa de evitar se
falar em conflitos ideológicos352. Em posição divergente de Silva, optamos pelo uso do termo
na pesquisa, contudo, tomado-o menos enquanto conceito teórico que explicaria o atual
contexto político e social, do que o uso de “guerra cultural” justamente para aludir a uma
noção operacional mobilizada no jargão de uma direita dotada de um pensamento e de
estratégias de ação ideológica cada vez mais compartilhadas em nível internacional.
De acordo com o pesquisador Victor Ximenes Marques, a emergência do fenômeno
que passou a ser associado a ideia das “guerras culturais” e suas dinâmicas na atualidade
remeteria ao “Maio de 1968” e os eventos heterogêneos que se derivaram nos anos seguintes,
acentuando a escalada das lutas de classes:
consequências socioeconômicas junto das crises derivadas das políticas neoliberais incidem
numa crise de representação do sistema político, fazendo emergir novamente a extrema direita
que se apresenta como antissistema355.
Do ponto de vista desses grupos, entretanto, o que os movimentos que despontaram a
partir de 1968 e conformaram a chamada Nova Esquerda estavam fazendo era erodir com as
bases da cultura ocidental e da civilização cristã. Derrotados no terreno político, econômico e
na luta armada, os subversivos teriam migrado desde então para a estratégia “gramscista” de
conquista da “hegemonia cultural”, “se infiltrando no mundo das artes e das letras,
estabelecendo uma base de poder nas universidades, e se dedicando a uma ‘longa caminhada
no interior das instituições’, preferencialmente em ONG’s ou em organismos multilaterais
‘globalistas’”356. Nos deteremos de forma mais detalhada sobre a tese do “marxismo cultural”
no item seguinte.
A tese da “guerra cultural” como apropriada pelos conservadores pode ser associada
ainda ao conceito de “metapolítica”, cunhado por grupos da nova direita europeia. Se
referindo a uma “estratégia de atuação cultural como fundamento da dominação política no
longo prazo”, o termo beberia de duas fontes principais de acordo com Francisco
Vasconcelos: “1) do pensamento marxista de Antonio Gramsci a respeito da conquista da
hegemonia e do poder político; 2) da escola Tradicionalista, significando uma interpretação
do sentido último da política na história (BUELA, 2013)”357. Veremos no capítulo seguinte
como essa escola reflete no pensamento ultraconservador professado pela Brasil Paralelo por
meio da influência de Olavo de Carvalho.
Por ora, o essencial aqui é que o termo metapolítica alude a uma estratégia de ação
propositiva dirigida contra as esquerdas e os marxistas no seio das “guerras culturais”,
propondo no lugar da ação político-partidária restrita a mudança para o plano cultural e
ideológico como bases de um novo horizonte político. Trata-se da proposta de um
“gramscismo de direita”, incorporando as teses do filósofo marxista mas em sentido político
diferente e oposto358. Segundo Bianchi e Mussi, a proposta concebida por Alain De Benoist,
principal intelectual da Nova Direita francesa, “[...] unificava o ativismo da ‘nova direita’ em
torno da criação de organizações políticas conservadoras com uma abordagem cultural, algo
355
Ibidem, p. 464.
356
Ibidem, p. 465.
357
VASCONCELOS, Francisco Thiago. Alain de Benoist e a Nova Direita europeia: “gramscismo de direita” e
nova “revolução conservadora”. Princípios, São Paulo, n. 163, jan./abr. 2022, p. 211.
358
Ibidem,p. 213-214.
98
359
MUSSI, Daniela; BIANCHI, Alvaro. Os inimigos de Gramsci. Jacobin Brasil, 2020. Disponível em:
<https://jacobin.com.br/2020/04/os-inimigos-de-gramsci/>. Acesso em: 20 fev. 2022.
360
SILVA, 2018, op. cit., p. 121.
361
Ibidem, p. 118.
99
permitem dar sentido a profundas formas de medo: medo do inimigo desconhecido e a criação
de um inimigo contra quem expressar medo”362.
Entrementes, o anticomunismo não pode ser resumido a uma simples oposição ao
projeto e aos princípios representados pelos comunistas, na medida em que corresponde a
“um fenômeno complexo, ideológico e político ao mesmo tempo, explicável, além disso à luz
do momento histórico, das condições de cada um dos países e das diversas origens ideais e
políticas em que se inspira”363. Empunhado por grupos de diferentes vertentes – de militares,
conservadores e fascistas até liberais e esquerdistas anticomunistas –, o anticomunismo
apresenta bases ideológicas diversas, sejam elas conservadoras/reacionárias, liberais, clericais
ou fascistas364. De acordo com Rodrigo Patto Sá Motta, o fenômeno anticomunista se
apresenta por duas vias distintas e interligadas
[...] que podem ser denominadas pelos pares: política e ideologia, ação e discurso ou
prática e representação. Independente da terminologia, o fundamental é compreender
a ocorrência dos dois distintos níveis ou facetas. O anticomunismo deve ser
entendido, por um lado, como um corpo doutrinário ou uma corrente de pensamento
que possui um discurso e um imaginário próprios e, por outro, como um movimento
político que engendra a ação e a militância de grupos organizados365.
362
Ibidem, p. 111.
363
BONET, Luciano. “Anticomunismo” (Verbete). In: BOBBIO, Norberto et. al. (orgs.). Dicionário de política.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 34.
364
Ibidem.
365
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “Anticomunismo” (Verbete). In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira et. al. (orgs.).
Dicionário crítico do pensamento da direita: ideias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ, 1999.
[livro eletrônico], p. 49.
366
Idem. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo, 2002. Tese
(Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2002, p. 12.
100
367
SILVA, 2018, op. cit., p. 111-114.
368
CUEVA, 1989 apud SILVA, 2018, p. 114-115.
369
FERNANDES, 2019, p. 118-121.
370
SILVA, 2018, op. cit., p. 111.
101
371
FERNANDES, 2019, op. cit., p. 262.
372
COSTA, Iná Camargo. O marxismo cultural e a paranoia americana. Outras Palavras, 2019b. Disponível em:
<https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/o-marxismo-cultural-e-a-paranoia-americana/#_ftn2>. Acesso em
10 mar. 2019.
102
Nessa visão da direita, isso tudo está junto: a teoria crítica, que quer minar os pilares
da civilização judaico-cristã; os marxistas que adotaram o campo da cultura como
seu principal objeto e campo de estratégia política – uma estratégia que seria
“gramsciana”, pois seria um escalada gradual, uma guerra de posição, ocupando as
instituições da sociedade civil e transformando a cultura por dentro380.
O “marxismo cultural” seria, assim, a nova estratégia dos comunistas para sua
infiltração não só na institucionalidade do Estado, como em amplos setores da vida social, na
mídia, nas escolas, nas universidades, nas igrejas, na indústria cultural; uma espécie de poder
invisível onipresente que a tudo permeia e subverte. A nova estratégia visaria não mais o
ataque direto à propriedade privada – base do capitalismo –, mas a “destruição da família
tradicional”381. É o sucesso dessa estratégia “[...] que explica nossa atual decadência, a
doutrinação pós-moderna nas universidades enfraqueceu a fibra moral da civilização,
perverteu a juventude, minou o sentimento patriótico e criou um Estado regulador inchado de
tecnocratas parasitas”382.
Apesar do uso do termo estar associado originalmente à extrema direita
norte-americana, a filósofa Iná Camargo localiza a genealogia da ideia do “marxismo
cultural” já presente em Mein Kampf. Na obra, Hitler declara guerra contra o marxismo, visto
como arma da conspiração judaica internacional, e contra o bolchevismo, que seria sua
expressão cultural máxima através das artes383. Assim, falava-se num “bolchevismo cultural”,
propaganda largamente difundida pelos nazistas que denunciava as vanguardas artísticas
modernistas enquanto parte de uma suposta “conspiração judaico-bolchevique” para minar a
379
COSTA, 2019b, op. cit.
380
MARQUES, 2021, p. 466.
381
MELO, 2020, p. 30.
382
MARQUES, op. cit., p. 465.
383
COSTA, Iná Camargo. Marxismo cultural, um fantasma que ronda a história. Outras Palavras, 2019a.
Disponível em:
<https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/marxismo-cultural-um-fantasma-que-ronda-a-historia/>. Acesso
em 10 mar. 2019.
104
384
CARAPANÃ. A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo. GALLEGO, Esther Solano (org.).
O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 38-39.
385
MATTOS, 2020, p. 174.
386
COSTA, 2019b, op. cit.
387
MARQUES, 2021, p. 467-468.
388
Ibidem, p. 467.
105
visando a derrubada do capitalismo à nível global por meio do solapamento dos valores e da
cultura da civilização ocidental. Nessa incumbência, a célula essencial da organização social,
a família tradicional patriarcal, estaria sendo atacada através da dissolução da moral sexual
convencional pregada pelos comunistas, colocando sob risco toda estrutura social daí
derivada389. Nesse ponto, o “marxismo cultural” funciona como pólo de atração para amplos
segmentos sociais que comungam da moralidade característica do senso comum conservador.
A teoria da conspiração cria, assim, um clima de pânico moral e de animosidade contra
determinados setores da sociedade e instituições, requentando o ideário anticomunista para os
tempos atuais. Trata-se de um constructo ideológico extremamente funcional na medida em
que representa uma ideia plástica e moldável a diferentes espantalhos e situações.
Contra um inimigo que representaria uma moralidade tão abjeta frente a valores
transcendentes e absolutos, um inimigo identificado ao “mal” dentro de uma concepção de
mundo que facilmente desliza do político para o espiritual, não cabe o diálogo democrático,
mas a guerra. Se tratando de uma doença, a “patologia ideológica” da esquerda – lembremos
do termo “esquerdopata” utilizado por esses grupos – não deve ser tolerada. Sob o risco de se
proliferar, deve ser eliminada390. Neste sentido, o principal expoente do "marxismo cultural”
em solo nacional é enfático ao afirmar que o erro de muitos conservadores seria o de “[...]
imaginar que existe uma luta de ideias e que temos de derrotar o marxismo. Temos de derrotar
é os marxistas”. [...] “Nós não discutimos para provar que o adversário está errado.
Discutimos para destruí-lo socialmente, psicologicamente, economicamente (sic).”391.
Essa concepção subjacente ao discurso anticomunista atual promove uma postura
reativa e intolerante que, por sua vez, decorre em violência simbólica ou mesmo física,
servindo ainda de justificativa para movimentos neofascistas e de extrema direita. E nesse
quesito, a ideia do “marxismo cultural” inclusive possui em seu histórico um exemplo
concreto de uma situação extrema que uma teoria da conspiração como esta pode provocar.
No ano de 2011 na Noruega, após detonar um carro-bomba em um prédio governamental na
cidade de Oslo, o militante de extrema direita Anders Breivik se dirigiu até uma ilha onde
ficava a sede do Partido Trabalhista do país e atirou contra dezenas de jovens no local,
389
CARAPANÃ. op. cit., p. 36.
390
CHALOUB; PERLATTO, 2019, op. cit.
391
BARBOSA, Gustavo. Minha “filosofia” é o insulto. Outras Mídias, 28 mar. 2019. Disponível em:
<https://outraspalavras.net/outrasmidias/minha-filosofia-e-o-insulto/>. Acesso em 15 mar. 2022. [grifo nosso]
106
deixando o saldo de 69 mortes. Breivik declarou ao juiz que sua motivação teria sido “salvar a
Europa ocidental do islamismo” e do “marxismo cultural”392.
Como dito, o principal propagador da teoria conspiratória do “marxismo cultural” na
sociedade brasileira se tratou da figura do “guru” intelectual da nova direita e do
bolsonarismo Olavo de Carvalho. O autor, que desde o final da década de 1980 já vinha
falando da influência gramscista no programa petista, em 1994 publica seu livro A nova era e
a revolução cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci (1994) denunciando o "gramscismo".
De acordo com o pesquisador José Luciano Queiroz, a obra é bastante superficial e
inconsistente em sua pretensa análise da teoria gramsciana, negligenciando o uso de citações
diretas e reduzindo-se a poucas 41 páginas de discussão da teoria da "revolução cultural"393. A
noção de hegemonia aparece deturpada na leitura de Carvalho como uma estratégia que opera
num nível pré-político, como uma negação da política. Bianchi e Mussi ainda chamam
atenção para os erros biográficos e os anacronismos que se amontoam na obra394.
Mas Olavo, na verdade, traduziu para o contexto nacional um anti-gramscismo já
desenvolvido por intelectuais conservadores da Europa e da América do Sul desde os anos
1980 e, em especial, leituras menos sofisticadas sobre Gramsci que vinham circulando em
solo estadunidense a partir de autores como Rush H. Limbaugh e William S. Lind395. O
principal nome a influenciar a leitura olavista do “marxismo cultural” se trata do autor
paleoconservador norte-americano Patrick Buchanan, ex-assessor dos presidentes Nixon e
Reagan, filho do ganhador do Nobel da Economia e referência intelectual liberal James
Buchanan. Autor de A morte do Ocidente (2000) e do aclamado Discurso sobre a guerra
cultural (1992), Buchanan propõe uma “revolução conservadora” bem próxima aos moldes da
extrema direita europeia do entreguerras396.
De acordo com a tese adaptada ao contexto nacional por Olavo de Carvalho, a
construção da “hegemonia esquerdista” no Brasil remonta ao período da ditadura militar. A
parcela dos comunistas que não foram para a luta armada teriam se refugiado no “gueto
cultural e universitário”, impondo a partir desses espaços uma hegemonia que alcançaria a
amplitude da vida cultural do país, direcionando os seus valores. Para tanto, teriam
encontrado na obra de Gramsci o principal referencial para a mudança na estratégia
392
ATENTADO de fundamentalista político chocou Noruega em 2011. Veja, 12 dez. 2011.
https://veja.abril.com.br/mundo/atentado-de-fundamentalista-politico-chocou-noruega-em-2011/. Acesso em: 15
mar. 2022.
393
QUEIROZ, 2020, p. 231 apud CALIL, 2021, p. 68.
394
MUSSI; BIANCHI, 2020, op. cit.
395
Ibidem.
396
MARQUES, op. cit., p. 466-467.
107
revolucionária397. O regime militar teria falhado justamente por não combater a esquerda no
âmbito cultural, intelectual e moral, preocupados em organizar um governo tecnocrático e
extirpar a esquerda armada. De acordo com tal tese, os comunistas já teriam conseguido obter
o controle da totalidade da mídia e da imprensa ainda na ditadura. Como resultado, a própria
esquerda teria distorcido e hegemonizado a narrativa do período militar a seu favor,
escrevendo uma história que colocava os militares como vilões, quando estes, na verdade,
teriam salvado o país da implantação de uma ditadura comunista398. Como aponta Demian
Melo, essa narrativa trata de combinar “[...] a normalização do Terror de Estado com o
propósito de empreender uma guerra cultural capaz de eliminar a possibilidade da existência
da esquerda”399. Garantido o controle sobre a esfera cultural, a hegemonia da esquerda sobre
as instituições teria sido consolidada já durante o processo de redemocratização. Como reação
à “hegemonia esquerdista”, Olavo e seus seguidores empreendem a estratégia de minar a
credibilidade desses espaços e do próprio regime democrático.
No contexto da emergência do PT como alternativa eleitoral de esquerda a caminho do
governo federal, a tese da ameaça “gramscista” adentrou nos meios militares com mais vigor.
No livro A Revolução Gramscista no Ocidente: a Concepção Revolucionária de Antonio
Gramsci em os Cadernos do Cárcere (2002), o general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho,
aluno e amigo de Olavo de Carvalho, alertava para a “via pacífica” de tomada do poder
almejada pelos terroristas que outrora lutaram contra o avanço da “revolução de 1964”.
Realizando uma análise do processo histórico de desenvolvimento da estratégia desde os anos
1970, que passa pela transição democrática e pela Constituinte culminando no “novo
socialismo” do PT, Coutinho falava da existência de uma “guerra psicológica” “[...] com
vistas a enfraquecer, esvaziar e constranger instituições capitalistas, as forças armadas e a
Igreja”400. O general inclusive já aludia à possibilidade de “intervenção político-militar” caso
a estratégia fosse vitoriosa sob a “máscara constitucional”401. Certamente o livro exerceu
influência intelectual sobre o militarismo das Forças Armadas – característico do
bolsonarismo –, visto que foi divulgado pela própria Biblioteca do Exército. De acordo com
Melo, “isso abre caminho para uma importante particularidade da tradução brasileira de tal
397
CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras. Rio de Janeiro: Faculdade
Cidade, 1997, p. 288.
398
PUGLIA, op. cit., p. 42
399
MELO, 2020, p. 33.
400
COUTINHO, 2002 apud MUSSI; BIANCHI, 2020, op. cit.
401
Idem apud SECCO, Lincoln. Gramscismo: uma ideologia da extrema-direita. Blog da Boitempo, 2019.
Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/05/08/gramscismo-uma-ideologia-da-extrema-direita/.
Acesso em 20 mar. 2022.
108
402
MELO, 2020, p. 31.
403
CALIL, 2021, p. 69
404
CARVALHO, Olavo de. A nova era e a revolução cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci. Rio de Janeiro:
Faculdade da Cidade, 1998.
405
PENNA, Fernando. O escola sem partido como chave de leitura do fenômeno educacional. In: FRIGOTTO,
Gaudêncio (org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro:
UERJ, LPP, 2017, p. 42-43.
109
[...] que no campo dos costumes, dos valores e da cultura, têm posições abertas e
avançadas, mas no eixo da economia participam do status quo neoliberal, na prática
sustentando políticas plutocráticas, que alimentam a concentração de renda e a
desigualdade. Em outras palavras, o que uma posição marxista apresentaria como
neoliberalismo progressista e, portanto, encararia como um sintoma da derrota
histórica do movimento operário, do enfraquecimento do projeto socialista, a direita
encararia como uma reinvenção (vitoriosa, por sinal) do projeto socialista: marxistas
culturais que estão adotando uma estratégia gramsciana para ocupar os espaços de
poder e avançar seu programa revolucionário – que continua subversivo, só que
agora focado no campo da cultura410.
406
FRIGOTTO, Gaudêncio. A gênese das teses do escola sem partido: esfinge e ovo da serpente que ameaçam a
sociedade e a educação. In: FRIGOTTO, Gaudêncio (org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a
educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017, p. 30-31.
407
HOEVELER, Rejane. A direita transnacional em perspectiva histórica: o sentido da “nova direita” brasileira.
In: DEMIER, Felipe; HOEVELER, Rejane (orgs.). A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos
sombrios no Brasil, Rio de Janeiro: Mauad, 2016, p. 82.
408
CHALOUB; PERLATTO, 2019, op.cit.
409
PROPOSTA de Plano de Governo Bolsonaro 2018. Disponível em:
<https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517/proposta_15
34284632231.pdf>. Acesso em 22 mar. 2022.
410
MARQUES, 2021, p. 469.
110
[...] está [articulado] à principal tendência de longa duração no que se refere à luta de
classes no âmbito do sistema capitalista mundial desde, pelo menos, a Revolução
Russa de 1917. O caráter historicamente irreconciliável da contradição entre o
capital e o trabalho, generalizada no mundo capitalista, determina que “a
preservação dos privilégios do capital passe a depender ‘da fraqueza relativa da
força progressiva antagonista’ (isto é, a classe operária); conservar esta fraqueza é,
para os capitalistas, conservar as condições de sua dominação de classe”415.
1.3.4. (Neo)fascismo?
415
LEMOS, op. cit., p. 127.
416
KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 25.
417
MATTOS, 2020, p. 47.
112
autor, que valoriza uma análise relacionada à dinâmica das classes sociais e seus conflitos,
propomos uma abordagem do debate do (neo)fascismo em dois sentidos principais: a fim de
entender elementos da ideologia, do movimento e a base social agregada pelo bolsonarismo e
pela extrema direita, e para compreender as continuidades e especificidades do fenômeno na
atualidade em relação às formas do fascismo clássico418. Nesse sentido, é importante valorizar
a historicidade na análise do fascismo enquanto “[...] produto de um determinado contexto
histórico e como processo histórico em si, o que deriva em uma crítica às abordagens que
procuram defini-lo a partir de um grau de ‘adequação’ de cada situação tratada como fascista
a uma taxonomia de características pré-definidas [...]”419.
Mattos recupera elementos da análise desenvolvida por notórios intelectuais e
dirigentes comunistas no contexto do entreguerras – onde destaca os escritos combatentes de
Trotsky, Clara Zetkin e Gramsci – a fim de compreender as condições mais gerais para a
eclosão do fascismo no seio de um momento específico da história da sociedade capitalista.
Essas formulações críticas elaboradas no contexto de ascensão do nazifascismo nos anos 1920
e 1930 – no geral ignoradas pela historiografia acadêmica hegemônica – relacionam a
emergência do fenômeno a conjuntura de crise social aguda aberta ao fim da Primeira Guerra,
onde uma crise econômica de dimensões internacionais se justapõe a uma crise de
representação política das classes dominantes, expressando, assim, uma crise da dominação
de classe. O fascismo nasce, então, como resposta à crise do capitalismo no entreguerras.
Imprimindo uma violência de cunho terrorista contra as forças organizadas da classe
trabalhadora e se aliando aos interesses políticos e econômicos das oligarquias e dos setores
burgueses no poder, o fascismo se conforma enquanto um fenômeno contrarrevolucionário,
carregando um sentido de romper com qualquer amarra democrática ao exercício da
dominação de classe do grande capital420. No seio da sociedade capitalista, o fascismo surge
como possibilidade de superação da crise de hegemonia aberta e de restauração das condições
de acumulação de capital421.
Precursor nas análises do fascismo antes mesmo de sua tomada do poder na Itália com
Mussolini, Gramsci destacou como a emergência do fenômeno se encontra intimamente
associada à abertura de uma crise orgânica na sociedade, associada à crise de hegemonia,
418
Ibidem, p. 13. Na medida em que a categoria é mobilizada para a compreensão do bolsonarismo na
conjuntura, daremos menor atenção aqui à dimensão do fascismo em sua evolução para a forma de regime
político no seio do Estado capitalista, que caracterizou o fenômeno no entreguerras. Para tal, cf. POULANTZAS,
Nicos. Fascismo e ditaduras: a III Internacional face ao fascismo. Porto: Portucalense Editora, 1972.
419
MATTOS, 2020, op. cit., p. 43.
420
Ibidem, p. 23 et. seq.
421
MELO, 2017, p. 10.
113
vinculando-se a uma determinada base social que lhe dá um sentido de movimento de massas.
Essa base é encontrada sobretudo na pequena burguesia e em estratos médios da população,
temerosos do declínio social, ao mesmo tempo em que arrasta setores do proletariado para sua
solução “messiânica” e moralista aos efeitos disruptivos da crise422.
Num cenário de relativa fragilidade dos revolucionários no seio do movimento
operário, Gramsci destaca a responsabilidade da social-democracia e dos reformistas em
menosprezar as forças fascistas, permitindo-lhes uma progressiva conquista de espaços. Por
outro lado, aponta como a conivência – quando não, a cumplicidade direta – de setores do
judiciário, das forças policiais e da burocracia estatal foi responsável pela conquista de
espaços pelos fascistas a partir das próprias formas regulares do Estado burguês. Entretanto,
enquanto estudioso das formas de complexificação da dominação burguesa a partir da
sociedade civil, o filósofo compreende que a emergência do fenômeno não se limita à
utilização dos mecanismos coercitivos do aparelho de Estado restrito. Antes, o fascismo
demanda a construção de consensos na sociedade por meio da mobilização de desejos,
ressentimentos e elementos regressivos do senso comum423.
Demian Melo destaca como o fascismo se afirmou enquanto fenômeno político
contrarrevolucionário no seio da crise do liberalismo clássico, anteriormente abordada. Neste
contexto, “[...] a colaboração que as elites políticas tradicionais, liberais e conservadoras
tiveram com a ascensão dos regimes fascistas na Itália na década de 1920 e na Alemanha nos
anos 1930 é um fato histórico comprovado”424. Ainda que os regimes fascistas – em acordo
com a tendência geral dos países capitalistas após a crise de 1929 – tenham sidos marcados
por uma política econômica distinta da ortodoxia liberal, incorporando noções como a de
planejamento econômico e intervencionismo estatal, não só capitalistas como intelectuais
liberais – incluindo aí “libertarianos” da Escola Austríaca – deram apoio, quando não se
converteram diretamente ao fascismo. Na Itália, o livre-cambista Alberto Se Stefani daria uma
orientação liberal à política econômica de Mussolini até o fechamento do regime em 1925. Já
na Alemanha, “[...] tendo Hitler chegado ao poder em 1933 não houve qualquer ambiguidade
em relação à rejeição do liberalismo econômico”425.
Na esteira dos estudos de Nicos Poulantzas, Palmiro Togliatti e Gramsci, para o
cientista político Armando Boito Jr. o fascismo se configurou originalmente, antes de tudo,
422
MATTOS, 2020, op. cit., p. 35.
423
Ibidem p. 37-38.
424
MELO, Demian. Bolsonaro, fascismo e neofascismo. In: In: COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E O
MARXISMO, 2019, Niterói. Anais... Niterói: Universidade Federal Fluminense, NIEP-Marx, 2019, p. 5.
425
Ibidem, p. 7.
114
enquanto uma forma de regime do Estado capitalista, ao lado de outras como a democracia
burguesa e a ditadura militar. Em específico, significou um tipo particular de ditadura. Essas
formas compreendem diferentes possibilidades de composições e hierarquias quanto às
classes e frações de classe que integram o bloco no poder, além de variações quanto ao tipo de
política econômica aplicada. Esse ponto esclarece porque, diferente do que algumas
perspectivas propõem, fascismo e neoliberalismo não correspondem a fenômenos excludentes
na conjuntura atual426.
Sendo confiscado politicamente pela burguesia em seu trajeto até o poder, um governo
ou ditadura fascista atenderá aos interesses econômicos e sociais desta classe, e não da base
de apoio do movimento encontrada naqueles segmentos intermediários da população, que, nos
termos de Poulantzas, também são prejudicados e passam a “viver de ideologia”427. Segundo
Boito Jr.,
Contudo, diferentemente da ditadura militar clássica, que coloca num segundo plano o
momento do consenso social, o regime fascista e o movimento que lhe dá sustentação se
embasam numa mobilização e organização permanente de setores populares, conformando um
regime político reacionário de massa429. Hobsbawm apresenta uma análise interessante que
nos ajuda a diferenciar essa característica mobilizadora do fascismo das demais correntes da
direita. Segundo o autor:
A grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia
mobilizando as massas de baixo para cima. Pertencia essencialmente à era da
política democrática e popular que os reacionários tradicionais deploravam, e que os
defensores do “Estado Orgânico” tentavam contornar. O fascismo rejubilava-se na
mobilização das massas, e mantinha-a simbolicamente na forma do teatro público
[...]. Os fascistas eram os revolucionários da contrarrevolução [...]430.
426
BOITO JR., Armando. Neofascismo e neoliberalismo no Brasil do governo Bolsonaro. Observatorio
Latinoamericano y Caribeño, Buenos Aires, v. 4, n. 2, jul./dez. 2020, p. 13-14.
427
POULANTZAS, 1970 apud BOITO JR., 2020, p. 17.
428
BOITO JR., 2020, op. cit., p. 16.
429
Idem. O caminho brasileiro para o fascismo. Caderno CRH, Salvador, v. 34, 2021, p. 4-7.
430
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras,
2001, p. 121.
115
431
BOITO JR., 2021, p. 4-7.
432
MATTOS, 2020, op. cit., p. 63.
433
ROSAS, 2019 apud MATTOS, op. cit., p. 44 et. seq.
434
ROSAS, 2019, apud MATTOS, op. cit., p. 61.
116
435
MATTOS, 2020, op. cit., p. 61.
436
ROSAS, 2019 apud MATTOS, op. cit., p. 43-44.
437
MATTOS, op. cit., p. 48-49.
438
POGGI, 2019, p. 75.
439
GENTILE, 2019 apud MATTOS, op. cit., p. 49-50.
117
grupo”; e “o direito do povo eleito de dominar os demais”, elemento que seria mais
característico do nazismo440. Nas palavras de Paxton,
O fascismo tem que ser definido como uma forma de comportamento político
marcada por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da
comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia
e da pureza, nas quais um partido de base popular formado por militantes
nacionalistas engajados, operando em cooperação desconfortável, mas eficaz com as
elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e passa a perseguir objetivos
de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora e sem
estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza441.
440
PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 360.
441
Ibidem, p. 358-359.
442
POGGI, op. cit., p. 74.
118
Daniel Guérin, por seu turno, destaca a política de sedução e do espetáculo que
caracteriza a “mística fascista”. Um estilo de fazer política dotado de mitos, ritos e símbolos
que fazem alusão ao uso da força, à honra, à grandiosidade, à disciplina e à ordem; símbolos
que já estariam “naturalmente” presentes no povo444. Fatores associados à figura do líder
fascista que encarna o ethos da nação, e que são potencializados por meio de forte uso da
propaganda através dos meios de comunicação de massa.
A partir destas contribuições, entende-se que o fascismo representa uma ideologia e
um movimento social com capacidade de mobilização de massas de cunho antidemocrático,
ultranacionalista, militarista, anticomunista/marxista, anti-intelectualista e antiliberal, com
níveis variados de racismo, sexismo, xenofobia e homofobia. Além do culto da violência, do
nacionalismo autoritário e conservador e da designação da esquerda enquanto inimigo a ser
destruído, a ideologia fascista é marcada pelo irracionalismo e pelo negacionismo da
realidade, que serve enquanto mecanismo para ocultar aos próprios olhos a inviabilidade de
suas aspirações restauradoras reacionárias utópicas. Decorreria daí a atitude
predominantemente não propositiva, negativa e destrutiva da ideologia fascista445. Seu
discurso apresenta uma crítica conservadora e superficial da economia capitalista e da
democracia burguesa, que se associa ao apego aos valores tradicionais ante o sentimento de
erosão da ordem social promovida por valores dissolventes446.
Entrementes, se ainda consideramos esta uma categoria válida para a análise da
atualidade, é preciso considerar que o contexto internacional atual em que emergem
ideologias, movimentos, lideranças e governos que podemos associar ao neofascismo difere
muito daquela “época dos fascismos”. Apresentando mudanças/continuidades e
semelhanças/diferenças, o novo fascismo do século XXI não expressará as mesmas
características históricas daquelas manifestadas no passado, sendo preciso também delimitar
suas especificidades ideológicas, organizativas e àquelas relacionadas às suas práticas
políticas447. Afinal, como ressalta Tatiana Poggi, o fascismo de hoje se vê obrigado a dialogar
“[...] com essas realidades, com a falência dos projetos desenvolvimentistas, com as acusações
de um Estado ‘inchado’, com o impacto social das políticas de austeridade, da perda de
443
MELO, 2020, p. 24-25.
444
GUERIN, Daniel. Fascismo y gran capital. Madrid: Editorial Fundamentos, 1973.
445
BOITO JR., 2020, p. 17.
446
Idem, 2021, p. 7.
447
MATTOS, 2020, op. cit., p. 66 et. seq.
119
448
POGGI, op. cit., p. 76.
449
Ibidem, p. 75-76.
450
MATTOS, 2020, op. cit., p. 79-80.
451
STANLEY, 2019 apud MATTOS, 2020, p. 81.
452
LAZZARATO, 2019 apud MATTOS, 2020, p. 86. BOITO JR., 2020, p. 14.
120
453
POGGI, op. cit., p. 93-94.
454
MATTOS, 2020, op. cit., p. 83.
455
Ibidem, p. 83 et. seq.
456
POGGI, op. cit., p. 78-79.
121
457
Ibidem, p. 79.
458
Ibidem, p. 79 et. seq.
459
SÁNCHEZ, Mariano. Nem fascismo nem neofascismo: considerações sobre os elementos estruturantes do
“processo de fascistização”. SIMPÓSIO NACIONAL DE PESQUISA ESTADO E PODER, 7, Marechal
Cândido Rondon, 2019. Anais… Marechal Cândido Rondon: Unioeste, 2019, p. 223-224.
122
460
CARONE, 2012 apud SÁNCHEZ, op. cit., p. 225-226.
461
ADORNO, Theodor W. The Authoritarian personality. New York: Harper & Brothers, 1950.
462
POULANTZAS, 1974 apud POGGI, op. cit., p. 74-75.
463
LOFF, Manuel. O bolsonarismo é o neofascismo adaptado ao Brasil do século 21. Agência Pública, 29 jul.
2019. Disponível em:
<https://apublica.org/2019/07/o-bolsonarismo-e-o-neofacismo-adaptado-ao-brasil-do-seculo-21/>. Acesso em:
11 jun. 2022.
464
BOITO JR., 2021, p. 17
465
FONTES, Virginia. O protofascismo: arranjo institucional e policialização da existência. Marxismo 21.
Disponível em:
<https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2017/05/Virg%C3%ADnia-Fontes-O-protofascismo-%E2%80%93
-arranjo-institucional-e-policializa%C3%A7%C3%A3o-da-exist%C3%AAncia.pdf>. Acesso em 11 jun. 2022.
123
466
MELO, 2019, p. 7-8 [grifos no original].
467
Idem, 2020, p. 15-16.
468
MATTOS, 2020, op. cit., p. 167-168.
469
BOITO JR., 2020, p. 15.
470
Idem. O neofascismo no Brasil. Boletim LIERI, Rio de Janeiro, UFRRJ, n.1, mai. 2019. Disponível em:
<https://laboratorios.ufrrj.br/lieri/wp-content/uploads/sites/7/2019/05/Boletim-1-O-Neofascismo-no-Brasil.pdf>.
Acesso em 20 jun. 2022, p. 3-4.
124
exemplo do fascismo original, o neofascismo teria se instaurado no poder no Brasil após uma
crise econômica e uma sequência de governos conservadores que acabaram por sedimentar o
caminho para a sua ascensão471.
Tal como no passado, o movimento fascista encontra sua base social em setores
intermediários da população, emergindo numa situação de derrota do campo operário e
popular e de crise política marcada pela polarização do conflito de classe, pela crise no seio
dos partidos tradicionais da burguesia e instabilidades no seio das instituições do Estado.
Deve ser lembrado que foi na base social de apoio ao golpe de 2016 que o bolsonarismo
encontrou os segmentos que iriam compor as fileiras do seu projeto de sociedade, como
apontam os dados que cruzam o perfil dos manifestantes pró-impeachment com o do
eleitorado de Bolsonaro472. Mas enquanto em sua manifestação clássica “o grande capital
nacional [...] confiscou o movimento pequeno-burguês, apoiou-se nele, para implantar a sua
hegemonia; no neofascismo brasileiro, foi o capital internacional [...] que confiscou, em
aliança com segmentos da grande burguesia brasileira, o movimento da alta classe média”473.
Neste ínterim, Boito observa a capacidade do discurso fascista em “extrapolar a sua
base social de origem e impactar outros segmentos populares, mesmo que [seus] elementos
ideológicos superficialmente críticos sejam percebidos de modos distintos de acordo com o
segmento social concernido”, posto que “um movimento de massa contém, obrigatoriamente,
elementos ideológicos não burgueses, que interessam às massas e que podem mobilizá-las”474.
O neofascismo bolsonarista foi capaz de ampliar suas audiências nos segmentos populares
sobretudo em razão do conservadorismo moral associado ao fundamentalismo religioso, do
patriotismo ufanista e do discurso punitivista, conquistando o consenso mais ou menos
passivo ou ativo das classes subalternas. Mas se é verdadeiro que o fascismo contemporâneo
ampliou muito sua base original, os estratos médios da população seguem sendo sua base
precursora e principal de acordo com o autor:
Os números mostram que foi o voto evangélico que possibilitou a vitória eleitoral do
candidato da extrema direita (Almeida, 2019); [aliado] à insegurança das populações
que habitam os bairros periféricos e são vítimas do crime organizado; à prolongada e
intensa manipulação política conservadora da corrupção existente no Estado
brasileiro; à exploração pela extrema direita do discurso antissistema que é um
discurso que foi abandonado pela maioria da esquerda brasileira. Porém, tratou-se de
uma adesão eleitoral e moderada. O núcleo duro do bolsonarismo manteve-se na
471
BOITO JR., 2020, p. 21.
472
MATTOS, 2020, op. cit., p. 160, 182.
473
BOITO JR., 2019, p. 4-5.
474
Ibidem, p. 7.
125
classe média e entre pequenos proprietários (Prandi, 2019; Cavalcante, 2020) que é
o que caracteriza o movimento de massa fascista475.
[...] por uma rede de aparelhos presentes na sociedade civil que difundem de forma
permanente o programa do bolsonarismo nas redes sociais e mobilizam
continuamente suas bases. Dos youtubers e ativistas digitais bolsonaristas, passando
por organizações no meio empresarial (como o grupo Brasil 200), os setores
bolsonarizados nas polícias, Forças Armadas, na base de massas de igrejas
neopentecostais até chegar aos seus quadros políticos stricto sensu, o partido de
Bolsonaro é uma realidade objetiva478.
475
Idem, 2020, p. 15
476
Ibidem, p. 17.
477
Ibidem, p. 18.
478
MELO, 2020, p. 38. Recorda-se ainda da tentativa frustrada de criação de um partido neofascista orgânico,
denominado “Aliança pelo Brasil”.
126
479
Ibidem, p. 26-27.
480
Ibidem, p. 28-29.
481
Ibidem, 2020, p. 29.
127
sistemática da ditadura militar, em particular, a exaltação de sua face terrorista no que diz
respeito à tortura e eliminação da oposição política, junto da apologia da violência punitiva
contra os chamados “bandidos” e “vagabundos”482. O gesto da “arminha” com as mãos, não à
toa, se tornaria símbolo característico dos bolsonaristas. Apresentando-se como solução para o
crescimento da violência urbana cotidiana, esse discurso facilitara a ampliação do
bolsonarismo nas populações de bairros periféricos e de favelas e nas camadas mais
precarizadas da classe trabalhadora483.
O punitivismo mobilizado pelo bolsonarismo circula ao redor de pautas como defesa
da redução da maioridade penal, alteração na lei de drogas, garantia do excludente de ilicitude
e dos autos de resistência para policiais, incentivo ao armamento – do “cidadão de bem” –
como expediente para proteção pessoal e da propriedade, pena de morte para os criminosos e
privatização do sistema penitenciário – parcial ou total484. No congresso, essas pautas são
sustentadas há anos pela Frente Parlamentar da Segurança Pública, comumente conhecida por
“bancada da bala”, e pela “bancada do boi”, no sentido de mobilização do uso de forças
milicianas e paramilitares nas periferias e no campo. Melo ressalta que a violência de que se
alimenta o bolsonarismo e esses grupos
[...] transcende o mero culto e está ligado organicamente aos grupos de extermínio
com grande poder de controle territorial, de exploração de atividades econômicas em
bairros populares, sob a coerção terrorista de grupos formados por agentes ou
ex-agentes do aparelho de segurança pública que possuem projeto de poder político:
as milícias. [...] essa forma mafiosa de crime organizado com fortes vínculos com a
família Bolsonaro, têm origem no tipo de socialização promovida pelo regime
militar para combater os grupos de resistência armada, trazendo os policiais
envolvidos nos grupos de extermínio para montar o aparelho de repressão junto aos
militares, processo cujo protótipo foi a Operação Bandeirantes em São Paulo485.
487
MELO, 2020, op. cit., p. 39.
488
'MARICAS', 'histeria', 'não sou coveiro': relembre frases de Bolsonaro sobre a covid-19. Estadão, 11 nov.
2020. Disponível em:
<https://www.estadao.com.br/saude/maricas-histeria-nao-sou-coveiro-relembre-frases-de-bolsonaro-sobre-a-covi
d-19/>. Acesso em: 22 jun. 2022.
489
BOITO, 2020, p. 18-19.
129
490
MATTOS, 2020, op. cit., p. 14-15.
491
FONTES, 2010, p. 15.
492
Ibidem.
493
Ibidem, p. 222.
130
494
Ibidem, p. 218.
495
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo:
Globo, 2006.
496
Ibidem, p. 387.
497
Ibidem, p. 251.
498
Ibidem, p. 416.
499
Ibidem, p. 243.
500
Ibidem, p. 244, 371.
501
Ibidem, p. 418.
131
502
Ibidem, p. 249.
503
Ibidem, p. 406.
504
Ibidem, p. 341 et seq.
505
LEMOS, 2014, op. cit., p. 129.
132
de Estado, sendo consumada com a Constituição de 1988, que tratou de combinar dispositivos
liberal-democráticos e democrático-autoritários. Sob pano de fundo da ausência de uma
justiça de transição, esse sistema conservador, alheio à uma efetiva participação popular, com
forte peso do papel político das Forças Armadas, e cujo poder decisório se concentra nas
mãos de uma elite tecnocrática e tecnoempresarial, se mostrou como a forma
político-partidária ideal para a manutenção dos interesses do grande capital multinacional e
associado no momento da virada neoliberal506.
No bojo dessas transformações no seio da sociedade política, observa-se a partir das
décadas de 1970-1980 uma maior profusão na sociedade civil de inúmeras entidades de cariz
liberal-conservador representantes de distintas frações de classe – do agronegócio, do
empresariado industrial e financeiro – e dos setores militares. Essas entidades, de caráter
corporativo ou associativo, atuariam de modo especialmente agressivo no decorrer do
processo da constituinte, procurando brecar as conquistas de cunho universalizante em seu
interior. É preciso salientar que esse significativo crescimento dos aparelhos hegemônicos da
burguesia a partir do regime democrático, passando cada vez mais a investir para além de suas
fronteiras de classe, se dá num contexto de ascenso das organizações das classes subalternas e
das lutas populares – com destaque para as forças então representadas pelo polo PT, CUT e
MST –, significando simultaneamente um movimento reativo e invasivo do conjunto da
burguesia507.
De modo subordinado aos países capitalistas centrais e ao poder econômico mundial, a
construção da Nova República significou ainda um momento de reorganização do padrão de
hegemonia burguesa e do modelo de acumulação de capital a partir do estabelecimento do
neoliberalismo, engendrando novos formatos de organização e atuação econômica, política e
ideológica do capital. No contexto da crise generalizada da economia capitalista nos anos
1970, a perspectiva neoliberal apareceria não mais restringida ao campo doutrinário, mas
enquanto possibilidade e necessidade histórica à burguesia para manutenção de sua
dominação de classe no esteio do Estado capitalista.
Ainda que a hegemonia do neoliberalismo na sociedade brasileira só tenha se
consolidado na década de 1990, a execução das ditas "reformas" neoliberais já vinha
avançando desde a crise da ditadura. Sua implementação promoveu o desmonte do modelo
desenvolvimentista vigente anteriormente por meio de dispositivos típicos da agenda
neoliberal: “desregulamentação” da economia e do mercado de trabalho, ampla abertura dos
506
Ibidem, p. 129, 135.
507
FONTES, op. cit., p. 232 et. seq.
133
508
MACIEL, David. Neoliberalismo e autocracia burguesa no Brasil. In: Cadernos Cemarx, Campinas, n. 5, p.
195-210, 2008.
509
FONTES, op. cit., p. 265.
510
DARDOT; LAVAL, 2016, p. 201.
511
SAAD FILHO, op. cit., p. 65-66.
512
SAES, 2001, p. 82.
513
FONTES, op. cit., p. 154.
134
514
FONTES, 2010, p. 261 et. seq.
515
MACIEL, op. cit., passim.
516
Ibidem, p. 196.
135
A conjuntura recente em que emerge ao centro do poder político no Brasil uma direita
ultraliberal e conservadora, associada a um movimento social de caráter neofascista, se
assenta a partir da derrocada do primeiro ciclo dos governos de conciliação de classes do PT.
Em termos gramscianos, é razoável propormos a análise de tal conjuntura pelo prisma da
chamada crise de hegemonia, que designa um período marcado pelo declínio de uma forma de
autoridade hegemônica, sem que uma nova hegemonia ainda seja capaz de se consolidar de
forma permanente517. Esse interregno é então atravessado por uma série de instabilidades nas
forças políticas e ideológicas tradicionais, nos arranjos internos do grupo dominante e na
própria forma e instituições do Estado burguês. De acordo com Gramsci, o exercício de
hegemonia pelos governos se torna mais difícil e aleatório, formando situações de contraste
entre representantes e representados – crise de autoridade – no terreno dos partidos
tradicionais e se refletindo num reforço do poder da burocracia (civil e militar), da alta
finança, da Igreja e dos organismos que formam a opinião pública518. Ao irromper tal situação
“[...] abre-se o campo às soluções de força, à atividade de potências ocultas representadas
pelos homens providenciais ou carismáticos”519. Intérprete renomado de Gramsci no Brasil,
Alvaro Bianchi desenvolve o seguinte sobre a noção utilizada pelo filósofo marxista:
517
cf. FILIPPINI, Michele. “Crise de autoridade” (Verbete). In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale (orgs.).
Dicionário gramsciano, 1ª ed., São Paulo: Boitempo, 2017. [Livro eletrônico].
518
GRAMSCI, 2007, op. cit., p. 60.
519
Ibidem.
520
BIANCHI, Álvaro. Arqueomarxismo: comentários sobre o pensamento socialista. São Paulo: Alameda, 2013,
p. 143-145.
136
de partido de modo a oferecer, rapidamente, uma saída para a crise. Não raro,
constroem a unidade que até então parecia impossível que atingissem, perfilando-se
sob a direção do partido que melhor encarna as necessidades de toda a classe
naquele momento. E as necessidades, nessas ocasiões, não são outras que a
superação da própria crise. [...]521.
Tais considerações trazem elementos que nos permitem assimilar não só a emergência
do bolsonarismo, mas também a corrosão das instituições e do sistema político estabelecido
com a redemocratização, e do próprio pacto social representado na ideia da Nova República,
enquanto expressões da crise de hegemonia. Tal crise incidiu na perda de consentimento não
só dos projetos políticos representados pelos governos de conciliação de classe da esquerda
moderada e da centro-esquerda, como também aqueles defendidos pela direita tradicional,
abrindo espaço para o ascenso da extrema direita. Nesse sentido, não só o projeto bolsonarista
postulante à hegemonia, mas também Junho de 2013, o golpe parlamentar de 2016, bem como
a ofensiva conservadora e o processo de desdemocratização e fascistização que se seguiu
aparecem enquanto “sintomas mórbidos” dessa crise522.
Gramsci ainda diz que a morte das velhas ideologias no interregno abre caminho para
um amplo ceticismo na população, podendo resultar na promoção de políticas cínicas e
propostas que seriam tidas como absurdas em outros tempos523. No Brasil, esses sintomas são
percebidos através de um conjunto de discursos e de práticas anticientíficas, autoritárias,
antipopulares, negacionistas, fundamentalistas, racistas e sexistas que avançaram sobre a
arena política e cultural a partir da ofensiva conservadora das direitas, e que conformaram o
governo brasileiro nos últimos anos.
Sem dúvida, um fator determinante para a abertura da crise de hegemonia diz respeito
às contradições e limitações da estratégia dos governos petistas em acomodar os interesses das
elites políticas e econômicas em um projeto que representaria os interesses dos trabalhadores.
Essa estratégia decorreu antes daquilo que em termos gramscianos podemos conceituar como
transformismo, um fenômeno de hegemonia que cumpre a função de absorver intelectuais e
organizações das classes subalternas para a concepção de mundo das classes dominantes,
convertendo-os em prepostos de seus interesses524. Pode-se considerar que o PT é atravessado
por esse fenômeno desde antes de assumir a presidência em 2003, onde paulatinamente após a
redemocratização o partido passou a ceder cada vez mais à estratégia de gestão da
521
Ibidem, p. 147-148.
522
FERNANDES, 2019, p. 102-106.
523
GRAMSCI, 2007, op. cit., p. 118.
524
COELHO Neto, Eurelino. Uma esquerda para o capital: crise do marxismo e mudança nos projetos políticos
dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Niterói, 2005, 549 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005, p. 465.
137
Esse período de mais de uma década de governos do PT, com uma relação pautada
em uma espécie de equilíbrio instável com os movimentos sociais, sindicatos e
outros aparelhos de atuação política das classes trabalhadoras e grupos progressistas,
de certa forma criou uma condição de passividade ou letargia que, sem dúvida,
constitui um dos elementos importantes nessa conquista de espaço dos segmentos
das direitas527.
A preservação dos interesses das classes dominantes nos governos petistas seria
denunciada não só pelo maciço financiamento de campanha operado por agentes do grande
capital e pela presença direta de representantes do agronegócio e dos setores financeiro e
industrial em seu alto escalão desde o primeiro mandato de Lula. Pautas fundamentais desses
setores foram assumidas de prontidão: (contra)reforma da presidência em 2003; medidas em
direção à (contra)reforma trabalhista nos anos seguintes; privilegiamento do agronegócio por
meio de políticas fiscais e financiamentos; manutenção do ajuste fiscal nos primeiros anos;
isenções fiscais e financiamentos massivos do BNDES no auge da crise capitalista global em
2008/2009; dentre tantas outras políticas deliberadas a partir de representações diretas da
burguesia. Esses governos ainda continuaram a operar o dispositivo coercitivo do Estado sem
nenhuma contração, aplicando alto investimento de recursos nas estratégias de controle
525
Ibidem.
526
FERNANDES, 2019, op. cit., p. 26.
527
CASIMIRO, 2020, p. 158.
138
armado do território das favelas e periferias sob situações justificadas como de “violência
urbana”, provocando ainda o aumento da população carcerária528.
A despeito dos resultados importantes numa ordem capitalista profundamente
desigual, as políticas sociais compensatórias e de mitigação da pobreza dos governos do PT
carregavam uma série de contradições devido ao seu comprometimento em alavancar a
acumulação capitalista. Programas de assistência social – com destaque para o Bolsa Família
– e de construção/financiamento de moradias populares subsidiado por empreiteiras e por
setores monopolistas do capital financeiro (Minha Casa, Minha Vida); implementação de
cotas sociais e raciais e expansão do ensino superior (FIES, PROUNI, REUNI), tanto dos
institutos públicos, mas principalmente do setor privado através da ampliação do crédito – e
do endividamento – estudantil; aumento real, com lenta progressão, do salário mínimo; queda
do desemprego associadas ao aumento da informalização, da terceirização e desmembramento
dos direitos trabalhistas; ampliação do mercado consumidor interno; e o baixíssimo
investimento nos "serviços públicos essenciais" ao lado do fomento do setor privado de
serviços sociais básicos são algumas das expressões dessas contradições. Essas políticas
estavam afinadas com os interesses de setores do grande empresariado e com diretrizes do
próprio Banco Mundial para a América Latina529.
Ademais, o tripé privatizações, desregulamentação financeira e abertura comercial ao
capital multinacional prosseguiu, demonstrando o comprometimento do PT com uma política
econômica social-liberal, nos marcos de um "neoliberalismo progressista". Mesmo aqueles
avanços sociais, não se tratando de direitos universais solidificados, viriam a ser desmontados
com a crise econômica e o golpe de 2016, evidenciando que "o quadro social de fundo da
economia capitalista dependente e periférica não pode ser realmente alterado por políticas
sociais compensatórias e focalizadas"530. Mattos traz uma profícua digressão sobre os
impactos sociais da última crise capitalista global no contexto brasileiro:
528
MATTOS, 2020, op. cit., p. 132 et seq.
529
Ibidem, p. 140 et seq.
530
Ibidem, p. 142.
139
Mesmo com toda moderação do programa petista, havia aqueles setores que nunca
aceitaram a acomodação de interesses. De um lado, havia a oposição institucional
representada principalmente pelos tucanos do PSDB, que no decorrer dos anos 1990 e dos
governos petistas sofreram um deslocamento contínuo para a direita. A outra parte da
oposição comportava uma direita mais extremada: anticomunistas renitentes, grupos militares
e saudosos da ditadura, fundamentalistas religiosos alarmados com a “agenda de costumes” da
esquerda e ultraliberais defensores do Estado mínimo para os quais as políticas sociais
petistas representavam um perigoso “intervencionismo socialista”532. Aberta a crise de
hegemonia, são esses setores que vão avançar sobre a arena política nacional, passando
progressivamente a preencher espaços que usualmente eram ocupados pela direita tradicional.
As chamadas Jornadas de Junho de 2013 representaram um complexo marco
conjuntural na história recente do país e no processo das lutas de classes, escancarando a
existência de uma profunda crise de representação política. As manifestações multitudinárias
e fragmentadas que tomaram as ruas após os primeiros protestos conclamados pelo
Movimento Passe Livre carregavam um tom progressista e popular na medida em que
demandavam a ampliação de direitos sociais universais como saúde, educação e transporte.
Mas os protestos conclamados por meio das redes sociais e de forte denúncia à repressão
policial progressivamente perderiam seu lugar nas ruas para a nova forma de atuação política
da direita brasileira, cujos segmentos sociais que conseguiu aglutinar em torno de si
ofereceriam a base de sustentação para o golpe de 2016 e em seguida, para o bolsonarismo533.
De acordo com Gilberto Calil,
531
Ibidem, p. 147-148.
532
MIGUEL, 2018, op. cit., p. 18.
533
MATTOS, Marcelo Badaró. Mais que uma analogia: análises clássicas sobre o fascismo histórico e o Brasil de
Bolsonaro. In: CISLAGHI, Juliana Fiuza; DEMIER; Felipe (Orgs.). O neofascismo no poder (ano I): análises
críticas sobre o governo Bolsonaro. Rio de Janeiro: Consequência, 2019, p. 38-39.
534
CALIL, 2016, p. 211-212.
140
A investida da nova direita no pós-2013 criou “[...] o lastro necessário para a tomada
das instâncias de poder, primeiro com o golpe (seu ensaio em 2015 e 2016), e depois com o
bolsonarismo e o neofascismo (de 2017 em diante)”535. Isso não implica dizer, dentro de uma
narrativa linear e simplista adotada por intelectuais e dirigentes ligados ao PT, que em Junho
de 2013 se abriu o processo terminante que nos levaria ao golpe e ao cenário reacionário e
fascistizante que se seguiu. Nas palavras de Marcelo Badaró Mattos:
535
FERNANDES, 2019, p. 261.
536
MATTOS, 2020, op. cit. p. 158.
537
Ibidem, p. 151-157.
141
538
FERNANDES, 2019, op. cit., p. 93.
539
Ibidem, p. 260 et seq.
540
MATTOS, 2020, op. cit., p. 160.
541
Ibidem, p. 191.
542
MELO, Demian. A direita ganha as ruas: elementos para um estudo das raízes ideológicas da direita
brasileira. In: DEMIER, Felipe; HOEVELER, Rejane (orgs.). A onda conservadora: ensaios sobre os atuais
tempos sombrios no Brasil, Rio de Janeiro: Mauad, 2016, p. 67.
142
543
CALIL, 2016, p. 214.
544
MATTOS, Marcelo Badaró. De junho de 2013 a junho de 2015: elementos para uma análise da (crítica)
conjuntura brasileira. In: DEMIER, Felipe; HOEVELER, Rejane (orgs.). A onda conservadora: ensaios sobre os
atuais tempos sombrios no Brasil, Rio de Janeiro: Mauad, 2016., p. 95.
545
BOITO JR., 2021, p. 1.
546
MATTOS, 2016, op. cit., p. 98.
547
Idem, 2020, op. cit., p. 161.
143
governo Temer lograria grande êxito neste sentido: aprovou uma nova contrarreforma
trabalhista, avançou nas privatizações, promoveu a ampliação da terceirização e aprovou a
Emenda Constitucional 95, que congelava gastos públicos em saúde e educação em 20 anos.
É o golpe de Estado de 2016 que abre precedente para o avanço da extrema direita ao
centro do poder político. Tal como o golpe de 1964 – com a diferença evidente do papel
ocupado pelas forças militares na articulação golpista vitoriosa –, representou uma ruptura
institucional articulada por setores civis, empresariais e grupos políticos conservadores,
legitimado por mobilizações de setores populares, mas agora, de novo tipo, é levado a cabo
por vias mais sofisticadas e dissimuladas. De acordo com Boito Jr.,
548
BOITO JR., 2020, p. 10.
549
Ibidem.
550
MATTOS, 2020, op. cit., p. 160-161.
144
551
Ibidem, p. 163
552
CRUZ, Sebastião C. Velasco. Direita-direitas no Brasil de hoje: reflexões a partir de uma situação. In:
BUZETTO, Marcelo (org.) Democracia e direitos humanos no Brasil: a ofensiva das direitas (2016/2020). São
Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2021, p. 71.
553
ROCHA, 2018, p. 16.
145
destacado por Boito Jr., “[...] o grande empresariado foi paulatinamente adotando a
candidatura de Bolsonaro que [...] até 2017 era uma candidatura da alta classe média e que
contava com o apoio de proprietários rurais”554. Ao mesmo tempo, tal opção derrotava a
possibilidade de uma reabilitação do programa social-liberal representado no segundo turno
pelo PT. Nas palavras do autor,
554
BOITO JR., 2021, p. 19-20.
555
Idem, 2020, p. 22.
556
MATTOS, 2020, p. 236.
146
557
Idem, 2019, op. cit., p. 37-39.
147
CAPÍTULO II:
Criada em 2016 na cidade de Porto Alegre, a Brasil Paralelo se define como uma
empresa de entretenimento e educação cuja missão principal seria “resgatar bons valores,
ideias e sentimentos no coração de todos os brasileiros”, orientando-se pela “busca da verdade
histórica, ancorada na realidade dos fatos, e sem qualquer tipo de ideologização na produção
do conteúdo”558. Com mais de 90 cursos e 100 produções originais disponibilizadas nas
principais plataformas de mídia da internet – entre as quais documentários, programas, cursos,
e-books, podcasts e séries que tratam desde história, política, filosofia e economia até
educação, arte e atualidades –, a produtora já contava no ano de 2022 com mais de 500 mil
membros assinantes e em torno de 200 funcionários559. De acordo com a BP, “toda a produção
é feita de forma independente, apartidária e isenta, cujo objetivo principal é oferecer ao
público um conteúdo baseado em um grande acervo informativo analisado por dezenas de
especialistas”560. Sua intenção com a produção desses materiais é bastante clara: “causar o
558
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
559
Ibidem.
560
A Brasil Paralelo é uma farsa? A descrição na Wikipédia diz que sim. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
148
maior impacto cultural que o Brasil já presenciou [e...] reverter as mazelas que a nossa cultura
sofreu nos últimos anos”561. Os números mais recentes do seu canal no YouTube, plataforma
onde a empresa apresenta maior atuação e visibilidade pública, informam mais de 3,4 milhões
de inscritos e aproximadamente 260 milhões de visualizações em seus vídeos562.
Se formando e se desenvolvendo no seio das plataformas digitais, a Brasil Paralelo se
insere no amplo grupo de canais da direita que explodiram no país na segunda década do
século XXI. Mas quais são as origens, o modus operandi e o percurso trilhado na conjuntura
pela produtora que em poucos anos obteve tamanho sucesso nas redes enquanto um canal de
“mídia alternativa” capaz de reunir figuras de diferentes matizes do pensamento
liberal-conservador do país, ambicionando se tornar “o ecossistema de maior influência
cultural do Brasil”563? De acordo com Filipe Valerim, um dos sócio-fundadores da empresa, a
idealização da iniciativa remonta ao cenário de crise política na conjuntura pós-2013
561
Brasil Paralelo. O que DE FATO é o Brasil Paralelo? YouTube, 2 out. 2018. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=9RDrKmAvsik>. Acesso em: 10 fev. 2022.
562
Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.youtube.com/@brasilparalelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
563
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
564
BRASIL Paralelo: em entrevista exclusiva, conheça a origem dos documentários que fazem sucesso na
Internet. Boletim da Liberdade, 19 jul. 2018. Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2018/07/19/brasil-paralelo-em-entrevista-exclusiva-conheca-a-origem-
dos-documentarios-que-fazem-sucesso-na-internet/>. Acesso em: 12 fev. 2022.
149
565
A Brasil Paralelo é uma farsa? A descrição na Wikipédia diz que sim. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
566
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
567
A Brasil Paralelo é bolsonarista? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/a-brasil-paralelo-e-bolsonarista>. Acesso em: 11 fev. 2022.
568
BRASIL Paralelo: em entrevista exclusiva, conheça a origem dos documentários que fazem sucesso na
Internet. Boletim da Liberdade, 19 jul. 2018. Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2018/07/19/brasil-paralelo-em-entrevista-exclusiva-conheca-a-origem-
dos-documentarios-que-fazem-sucesso-na-internet/>. Acesso em: 12 fev. 2022.
569
O que significa o símbolo da Brasil Paralelo? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/significado-logomarca-brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
150
serviço de assinatura e material exclusivo na internet. Segundo a BP, todo o seu faturamento
“[...] provém da venda de cursos e conteúdos exclusivos para assinantes. A monetização de
vídeos no YouTube nunca foi uma fonte de recursos570 e não há qualquer financiamento de
órgãos públicos ou subsídios fiscais”571. Nas palavras de Filipe Valerim: “Ficar dependente de
grandes patrocinadores, doadores, incentivos de lei, não era uma alternativa. O conflito de
interesses nesses casos é iminente e é por isso que a empresa precisava ser financiada pelas
milhares de pessoas que nos assistiriam”572.
O lucro advindo da venda de conteúdo exclusivo teria permitido à produtora já no ano
de 2017 ter possuído condições de lançar o filme sobre o impeachment de Dilma Rousseff em
salas de uma grande rede de cinemas em São Paulo e Porto Alegre, contando com a
participação de intelectuais e políticos da direita573. Outro lançamento de sucesso no mesmo
ano se tratou da série Brasil: A Última Cruzada, uma de suas principais produções anunciada
como “o maior resgate histórico já produzido no Brasil”574. Em 2017 a produtora também
organizou dois “Encontros Fundadores – Brasil Paralelo” na cidade de São Paulo575, e ainda
teve seu lançamento no 30º Fórum da Liberdade, principal evento de articulação da agenda
das direitas no Brasil, cujo tema naquele ano foi “O Futuro da Democracia”576.
No ano de 2018 a produtora lançou sua plataforma de conteúdo própria contando com
a “maior iniciativa educacional da BP”, seu “Núcleo de Formação”577. A plataforma seria uma
alternativa ao ensino deficitário ofertado pelas escolas e universidades brasileiras. Com a
vitória eleitoral da extrema direita naquele ano, a Brasil Paralelo conseguiria se alçar a novos
570
Em texto de 2020 publicado no Le Monde Diplomatique Brasil sob abrigo de direito de resposta a um artigo
veiculado pelo jornal, a Brasil Paralelo contradiz o afirmado, indicando que a monetização dos vídeos no
YouTube representa uma de suas fontes de recursos. Cf.: PAULO, Diego Martins Dória. Brasil Paralelo tenta
censurar o debate. Le Monde Diplomatique Brasil, 21 jul. 2020. Disponível em:
<https://diplomatique.org.br/brasil-paralelo-tenta-censurar-debate/#_ftn5>. Acesso em: 20 abr. 2022.
571
Sobre. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.linkedin.com/company/brasil-paralelo/about/>. Acesso
em: 12 fev. 2022.
572
BRASIL Paralelo: em entrevista exclusiva, conheça a origem dos documentários que fazem sucesso na
Internet. Boletim da Liberdade, 19 jul. 2018. Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2018/07/19/brasil-paralelo-em-entrevista-exclusiva-conheca-a-origem-
dos-documentarios-que-fazem-sucesso-na-internet/>. Acesso em: 12 fev. 2022.
573
BRASIL Paralelo fará pré-estréia de novo documentário nos cinemas. Boletim da Liberdade. 14 mar. 2017.
Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2017/03/14/brasil-paralelo-fara-pre-estreia-de-novo-documentario-nos-
cinemas/>. Acesso em: 14 fev. 2022.
574
Brasil Paralelo. Capítulo 1 - A Cruz e a Espada | Brasil - A Última Cruzada. YouTube, 20 set. 2017.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TkOlAKE7xqY&t=2s>. Acesso em: 13 jan. 2022.
575
SANTOS, Mayara Balestro. "Brasil Paralelo" a plataforma à serviço da "nova direita" no Brasil recente. In:
SIMPÓSIO DE PESQUISA ESTADO E PODER, 7, 2019, Marechal Cândido Rondon. Anais… Marechal
Cândido Rondon: UNIOESTE, 2019, p. 233.
576
Edições anteriores. Fórum da Liberdade. Disponível em: <https://www.forumdaliberdade.com.br/edicoes>.
Acesso em: 12 fev. 2022.
577
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
151
patamares. Suas produções ainda serviram à época de material de campanha para políticos da
extrema direita, incluindo o próprio presidente eleito, como veremos em mais detalhes
adiante.
Em 2019 a BP lança uma campanha de crowdfunding para transformar a série
documental Brasil: A Última Cruzada em filme e vender sua distribuição à escolas do país,
tendo alcançado ao fim da campanha pouco mais de R$400 mil arrecadados578. Apesar de não
terem cumprido seu objetivo final com a campanha, a profusão das suas ideias na forma de
conteúdo pedagógico seria alcançada em fins do mesmo ano, quando a TV Escola, canal até
então financiado pelo Ministério da Educação, fechou contrato de três anos com a produtora
para exibição da série em sua grade. De acordo com a BP, foi a própria emissora que teria
procurado a produtora, que autorizou a cessão gratuita e não exclusiva do conteúdo579. À
época, a Associação Nacional de História de São Paulo (ANPUH-SP) emitiu nota conjunta
com docentes e estudantes da Universidade de São Paulo (USP) caracterizando o conteúdo
como “peça de propaganda ideológica de um grupo extremista”, com uma “narrativa
negacionista, sem lastro em pesquisas historiográficas reconhecidas pela comunidade
científica”580.
Também em 2019 foi lançada aquela que seria a produção da BP a alcançar maior
público, o documentário 1964: O Brasil Entre Armas e Livros – que também teve lançamento
em cinemas envolto de polêmicas e críticas581 –, e teve início a produção da série documental
Pátria Educadora, orçada em R$2 milhões, que se propõe a realizar um diagnóstico da crise
da educação brasileira582. Em parceria com a produtora, o Instituto Liberdade lançou naquele
ano um projeto de livros infantis inspirados em autores liberais, abordando temáticas como
“lei”, “liberdade”, “governo limitado” e “livre mercado”583.
578
PAULO, Diego Martins. Os mitos da Brasil Paralelo: uma face da extrema-direita brasileira. REBELA,
Florianópolis, v. 10, n. 1, jan./abr. 2020, p. 104.
579
SILVA, Cedê. Exclusivo: contrato da TV Escola com Brasil Paralelo é de três anos. O antagonista, 9 dez.
2019. Disponível em:
<https://oantagonista.uol.com.br/brasil/contrato-da-brasil-paralelo-com-tv-escola-e-de-tres-anos/>. Acesso em:
12 fev. 2022.
580
ANPUH-SP apoia nota de alerta. ANPUH. Disponível em:
<https://anpuh.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=5585:nota-de-alerta-2019>. Acesso em 14 fev.
2022.
581
CINEMARK emite nota de esclarecimento após exibição de filme sobre 1964. Correio Braziliense, 2 abr.
2019. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/04/02/interna-brasil,746968/cinemark-emite-not
a-de-esclarecimento-apos-exibicao-de-filme-sobre-196.shtml>. Acesso em: 20 fev. 2022.
582
Brasil Paralelo. O FIM DA HISTÓRIA | PÁTRIA EDUCADORA - CAPÍTULO 1 | FILME COMPLETO.
YouTube, 31 mar. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EU5sAWPKgMc&t>. Acesso em
25 jan. 2022.
583
Parceiro do Instituto Liberal publica livros infantis sobre autores liberais. Instituto Liberal, 23 mai. 2019.
Disponível em:
152
<https://www.institutoliberal.org.br/blog/parceiro-do-instituto-liberal-publica-livros-infantis-sobre-autores-libera
is/>. Acesso em: 20 fev. 2022.
584
SANTOS, 2019, op. cit., p. 233-234.
585
CPAC Brasil. Disponível em: <https://www.cpacbr.com.br/>. Acesso em 22 fev. 2022.
586
PEREIRA, Eduardo; SANTOS, Mayara Balestro. Brasil Paralelo: atuação, dinâmica e operação: a serviço da
extrema-direita (2016-2020). In: SANTOS, Mayara Balestro; MIRANDA, João Elter (Orgs.). Nova direita,
bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo [livro eletrônico]. Ponta Grossa: Texto e
Contexto, 2020, p. 334.
587
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
588
Ibidem.
153
aquele que era o plano de membresia mais básico e de maior divulgação dentre os ofertados
pela produtora em sua plataforma, funcionando mais como uma espécie de plano de apoio.
Inicialmente, a BP apresentava a nomenclatura de “membro fundador” como
categoria para os primeiros apoiadores do projeto, abarcando cerca de 10 a 12 mil
assinantes589. Não obstante, sob o custeio de R$10 mensais, é possível deduzir que a criação
do “Plano Patriota” foi o que possibilitou a obtenção de um maior apoio financeiro entre
setores mais populares, garantindo um aumento dos recursos da empresa nos últimos anos.
A plataforma de assinantes da Brasil Paralelo590 oferece o acesso ao seu “Núcleo de
Formação” por R$49 mensais, com mais de 40 cursos exclusivos sobre Filosofia, Educação,
Ciência Política, História, Economia, Bioética e Arte ministrados por “professores
especialistas”. Outros cursos avulsos também são ofertados na plataforma: a “Sociedade do
Livro”, um curso que pretende abarcar os “grandes temas da humanidade” através do método
de leitura sintópica; a “Escola da Família”, onde o aluno “aprenderá a cultivar os bons hábitos
e virtudes para manter uma família feliz e superar os principais desafios da vida domiciliar”; o
“Clube da Música”, onde o membro poderá “amadurecer e evoluir culturalmente” a partir do
estudo da primeira arte. A assinatura da plataforma também dá acesso à apostilas digitais de
apoio, à loja digital, ao grupo de membros no Telegram, convites para encontros presenciais
com a equipe da produtora, versões estendidas dos documentários da BP e acesso às
entrevistas originais na íntegra591. Na página de propaganda da plataforma lê-se o seguinte:
Passamos por um sistema de ensino precário que ocupa os últimos lugares nos
rankings mundiais de educação. O Núcleo de Formação Brasil Paralelo tem por
objetivo recuperar os danos causados por esse método e resgatar a paixão pelo
aprendizado na vida dos nossos Membros [...] Não seja massa de manobra! A partir
do momento em que se tornar um Membro do Núcleo de Formação, você estará
assumindo o protagonismo de sua vida intelectual, usufruindo de um conteúdo
jamais produzido em toda internet592.
589
Cf. Café Brasil 775 – LíderCast Henrique Viana – Brasil Paralelo. Café Brasil. Disponível em:
<https://portalcafebrasil.com.br/cafe-brasil-775-lidercast-henrique-viana-brasil-paralelo/>. Acesso em 24 fev.
2022.
590
Cf. https://plataforma.brasilparalelo.com.br. Acesso em 12 jan. 2022.
591
Seja membro. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://site.brasilparalelo.com.br/seja-membro/>. Acesso em:
26 fev. 2022.
592
Seja membro premium. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://site.brasilparalelo.com.br/seja-membro-premium/>. Acesso em 26 fev. 2022.
154
Assim, ao assinante é relegado não um papel de mero financiador, mas lhe é oferecido,
além da vantagem do acesso complementar à uma formação intelectual consoante aos seus
valores, o privilégio de ser um “membro” da Brasil Paralelo e o sentimento de pertencer a
uma causa maior: a transformação do país através das ideias e da cultura594.
Durante a pandemia a produtora teve seu contrato encerrado com a Hotmart,
plataforma de pagamento até então utilizada pela empresa, após denúncia do Sleeping Giants,
movimento que cobra anunciantes que veiculam propaganda em sites acusados de veicular
fake news e discurso de ódio595.
Em 2021 a BP apresentou uma reformulação da empresa – anunciada como a “Nova
Brasil Paralelo” –, expandindo sua atuação através de uma plataforma de streaming própria –
a BP Select – que oferece um catálogo de filmes, desenhos infantis e programas alinhados
com os valores da produtora pelo custo mínimo mensal de R$19, além do lançamento de
aplicativo para smartphones e TVs e um novo site596. Em menos de um ano após o
lançamento da plataforma, as assinaturas provenientes da BP Select já haviam chegado à
marca dos 100 mil, representando um terço do total de planos vendidos pela empresa à
época597.
Os filmes da BP Select são selecionados por uma curadoria da produtora a fim de
oferecer um “[...] conteúdo de qualidade, sem valores contrários à família e que permitem
bons aprendizados junto com entretenimento”598, e ainda trazem análises feitas por um
593
BRASIL Paralelo: em entrevista exclusiva, conheça a origem dos documentários que fazem sucesso na
Internet. Boletim da Liberdade, 19 jul. 2018. Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2018/07/19/brasil-paralelo-em-entrevista-exclusiva-conheca-a-origem-
dos-documentarios-que-fazem-sucesso-na-internet/>. Acesso em: 12 fev. 2022.
594
FIRMINO, Karine Rodrigues. Brasil Paralelo: um empreendimento de disputa política e simbólica da(s)
direita(s) recente(s). In: SANTOS, Mayara Balestro; MIRANDA, João Elter (Orgs.). Nova direita, bolsonarismo
e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo [livro eletrônico]. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020, p.
177.
595
BAZZAN, Alexandre.’Netflix’ dos bolsonaristas gastou R$328 mil em anúncios de Facebook e Instagram. O
Estado de S. Paulo, 28 set. 2020. Disponível em:
<https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,netflix-dos-bolsonaristas-gastou-r-328-mil-em-anuncios-de-facebo
ok-e-instagram,70003455670>. Acesso em: 25 fev. 2022.
596
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
597
BP SELECT, serviço de streaming da Brasil Paralelo, alcança 100 mil assinantes. Exame, São Paulo, 25 jun.
2022. Disponível em:
<https://exame.com/bussola/bp-select-servico-de-streaming-da-brasil-paralelo-alcanca-100-mil-assinantes/>.
Acesso em 25 jul. 2022.
598
O que é a BP Select? Conheça os detalhes do streaming de filmes da Brasil Paralelo. Brasil Paralelo.
Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/o-que-e-a-bp-select>. Acesso em 22 set. 2022.
155
599
BP Select. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/bp-select>. Acesso em: 22 set.
2022.
600
BRASIL Paralelo lança nova etapa com filmes, programação infantil e aplicativo. Revista Oeste, 28 set. 2021.
Disponível em:
<https://revistaoeste.com/tecnologia/brasil-paralelo-lanca-nova-etapa-com-filmes-programacao-infantil-e-aplicat
ivo/>. Acesso em 22 set. 2022.
601
COSTA, Ana Clara. Distanciamento social. Revista Piauí, Rio de Janeiro, set. 2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/distanciamento-social/>. Acesso em: 22 set. 2022.
602
Cf. Anexo 1 – Produções e séries originais Brasil Paralelo.
603
O Histórico Primeiro Lançamento de um Livro pela Brasil Paralelo. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/lancamento-livro>. Acesso em: 2 out. 2022.
604
Heróis brasileiros invadem escola para contar suas histórias! Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/herois-invadem-escola>. Acesso em: 2 out. 2022.
156
605
Brasil Paralelo incentiva o esporte nas favelas para ajudar na formação dos valores de jovens atletas. Brasil
Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/brasil-paralelo-incentiva-o-esporte-nas-favelas-para-ajudar-na-form
acao-dos-valores-de-jovens-atletas>. Acesso em 2 fev. 2023.
606
Ibidem.
607
Fernando já morou na rua e pedia esmola. Hoje é pai de 6 e educa seus filhos com a Brasil Paralelo. Brasil
Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/fernando-bolsista>. Acesso em 10 out.
2022.
608
Vila rural conservadora e cristã se beneficia com bolsas da Brasil Paralelo. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/vila-barrolo-beneficiada-pela-brasil-paralelo>. Acesso em 10 out.
2022
609
KANNER, Gabriel. Parceria entre Brasil Paralelo e G10 Favelas une propósitos e desperta esperança. Folha
de S. Paulo, 13 out. 2021. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gabriel-kanner/2021/10/parceria-entre-brasil-paralelo-e-g10-favelas-un
e-propositos-e-desperta-esperanca.shtml>. Acesso em 22 set. 2022.
157
que seria uma das 150 instituições beneficiadas pela empresa610. De acordo com o site do
instituto, o RECEBS tem como missão
610
A mãe de José Miguel achou que ele nunca falaria, por causa do autismo, mas se surpreendeu com a força da
educação. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/a-mae-de-jose-miguel-achou-que-ele-nunca-falaria-por-causa-do-aut
ismo-mas-se-surpreendeu-com-a-forca-da-educacao?utm_medium=noticias>. Acesso em: 2 jun. 2023.
611
Quem Somos e Nossa Missão. Instituto RECEBS. Disponível em: <https://recebs.org.br/?page_id=347>.
Acesso em 2 jun. 2023. [grifos no original]
612
I Conferência Internacional da Liberdade com apoio da Brasil Paralelo. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/conferencia-internacional-liberdade>. Acesso em 2 jun. 2023.
613
Brasil Paralelo. A Brasil Paralelo voltou para o campo de batalha da educação. YouTube, 18 abr. 2023.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HsVO4Gk6pyE>. Acesso em 2 jun. 2023.
614
Cf. https://loja.brasilparalelo.com.br/. Acesso em 2 jun. 2023.
615
O que é a LibertyTech? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/libertytech>. Acesso em: 2 jun. 2023.
158
616
MONTEIRO, Renan. Brasil Paralelo surfa na polarização e tem crescimento exponencial. Veja, 8 jul. 2022.
Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/economia/brasil-paralelo-surfa-na-polarizacao-e-tem-crescimento-exponencial>.
Acesso em 30 jul. 2022.
617
Ibidem.
618
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
619
MAZZA, Luigi. No Facebook, Brasil Paralelo é recordista de gastos com propaganda política. Piauí, 27 maio
2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/no-facebook-brasil-paralelo-e-recordista-de-gastos-com-propaganda-politica/>.
Acesso em: 10 mar. 2022.
159
620
GHIROTTO, Eduardo. Produtora bolsonarista usou R$ 9 mi para impulsionar posts no Facebook. Metrópoles,
1 jul. 2022. Disponível em:
<https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/produtora-bolsonarista-usou-rs-9-mi-para-impulsionar-
posts-no-facebook>. Acesso em 20 jul. 2022.
621
MORAES, Carolina; PORTO, Walter. Produtora Brasil Paralelo é quem mais paga anúncios políticos do
Google. Folha de S. Paulo, 23 jun. 2022. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/06/produtora-brasil-paralelo-e-quem-mais-paga-anuncios-politic
os-do-google.shtml>. Acesso em: 30 jun. 2022.
622
MONTEIRO, Renan. Brasil Paralelo surfa na polarização e tem crescimento exponencial. Veja, 8 jul. 2022.
Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/economia/brasil-paralelo-surfa-na-polarizacao-e-tem-crescimento-exponencial>.
Acesso em 30 jul. 2022.
623
AMORIM, Lucas. Com 500 mil assinantes, Brasil Paralelo quer evitar polêmicas e sonha ser "a Disney
brasileira". Exame, 17 fev. 2023. Disponível em:
160
para a Folha de S. Paulo, Henrique Viana afirma que se cogita abrir a empresa para o mercado
de ações numa expansão futura: “Evidentemente, queremos ser um unicórnio [empresa de
valor de mercado de US$ 1 bilhão], mas não há pressa”624, afirma. A plataforma ainda cogita
uma expansão internacional625.
Em entrevista para o Boletim da Liberdade ainda no ano de 2018, Filipe Valerim
creditava o sucesso da Brasil Paralelo à adoção do modelo empresarial:
Um dia, uma pessoa que assistiu a palestra, Leandro Ruschel, ficou tão encantado
com a nossa exposição que veio conversar conosco pessoalmente. Ele disse que
estudava aqueles assuntos há anos, mas nunca tinha visto eles condensados e
expostos de maneira tão clara e acessível. O Leandro, então, recomendou a criação
de uma mídia independente. Ele expôs o quanto o mercado de mídia estava
necessitado de uma empresa com a nossa qualidade didática e artística. [...] Eu não
sabia como escalar o projeto, pois não era meu emprego, não era meu sustento. O
Leandro demonstrou que o nosso empreendimento poderia se tornar o nosso foco
profissional. Começamos a encarar o projeto como uma empresa. Adaptamos nosso
formato de apresentação para mídia televisiva627.
A partir desse formato, os produtores da BP teriam descoberto sua “galinha dos ovos
de ouro”, com sua primeira produção faturando R$1,3 milhões logo nos 15 primeiros dias de
<https://exame.com/negocios/com-500-mil-assinantes-brasil-paralelo-quer-evitar-polemicas-e-sonha-ser-a-disne
y-brasileira/>. Acesso em 22 fev. 2023.
Cf. Anexos 2 e 3.
624
ZANINI, Fábio. Produtora Brasil Paralelo vive crescimento meteórico e quer ser 'Netflix da direita'. Folha de
S. Paulo, 29 mai. 2021. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/05/produtora-brasil-paralelo-vive-crescimento-meteorico-e-quer-
ser-netflix-da-direita.shtml>. Acesso em 22 fev. 2022.
625
"NETFLIX da direita" atrai milhares de assinantes no Brasil e visa mercado internacional. UOL, 31 dez.
2021. Disponível em
<https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2021/12/31/netflix-da-direita-atrai-milhares-de-assinantes-no-bra
sil-e-visa-mercado-internacional.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 22 fev. 2022.
626
BRASIL Paralelo: em entrevista exclusiva, conheça a origem dos documentários que fazem sucesso na
Internet. Boletim da Liberdade, 19 jul. 2018. Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2018/07/19/brasil-paralelo-em-entrevista-exclusiva-conheca-a-origem-
dos-documentarios-que-fazem-sucesso-na-internet/>. Acesso em: 12 fev. 2022.
627
Novidades! Brasil Paralelo terá novo formato, diz o CEO. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/novidades-brasil-paralelo-tera-novo-formato>. Acesso em 12 ago.
2022.
161
628
“EM 15 dias faturamos R$ 1,3 milhões", relembra CEO da Brasil Paralelo”. RedeTV, 6 jul. 2022. Disponível
em:
<https://www.redetv.uol.com.br/jornalismo/agoracomlacombe/videos/todos-os-videos/em-15-dias-faturamos-r-1
3-milhoes-relembra-ceo-da-brasil-paralelo>. Acesso em: 10 jul. 2022.
629
BAZZAN, Alexandre.’Netflix’ dos bolsonaristas gastou R$328 mil em anúncios de Facebook e Instagram. O
Estado de S. Paulo, 28 set. 2020. Disponível em:
<https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,netflix-dos-bolsonaristas-gastou-r-328-mil-em-anuncios-de-facebo
ok-e-instagram,70003455670>. Acesso em: 25 fev. 2022.
630
MONTEIRO, Renan. Brasil Paralelo surfa na polarização e tem crescimento exponencial. Veja, 8 jul. 2022.
Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/economia/brasil-paralelo-surfa-na-polarizacao-e-tem-crescimento-exponencial>.
Acesso em 30 jul. 2022.
631
Novidades! Brasil Paralelo terá novo formato, diz o CEO. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/novidades-brasil-paralelo-tera-novo-formato>. Acesso em 12 ago.
2022.
632
Vagas na Brasil Paralelo. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://brasilparalelo.freshteam.com/jobs>. Acesso
em 12 abr. 2022.
633
ZANINI, Fábio. Produtora Brasil Paralelo vive crescimento meteórico e quer ser 'Netflix da direita'. Folha de
S. Paulo, 29 mai. 2021. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/05/produtora-brasil-paralelo-vive-crescimento-meteorico-e-quer-
ser-netflix-da-direita.shtml>. Acesso em 22 fev. 2022
162
634
Buscar CNPJ. Disponível em:
<https://www.buscarcnpj.com/brasil-paralelo-entretenimento-e-educacao-sa/25446930000102>. Acesso em 12
abr. 2022.
635
Ibidem.
636
SAYURI, Juliana. Justiça paralela. The Intercept Brasil, 9 dez. 2021. Disponível em:
<https://theintercept.com/2021/12/09/brasil-paralelo-lanca-ofensiva-judicial-para-calar-criticos-e-reescrever-a-pr
opria-historia/>. Acesso em: 14 abr. 2022.
637
Pessoas. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.linkedin.com/company/brasil-paralelo/people/>.
Acesso em: 10 abr. 2022.
163
(14); Design e Comunicação Visual (11); Administração e Negócios (11); Comunicação (10);
Tecnologia da Informação (9); Cinema, TV e Vídeo (9); Direito (8); Tecnologias da
Comunicação Audiovisual (6); Engenharia de Computação (6); Economia (6); Engenharia
Elétrica e Eletrônica (5); Filosofia (5)638. Nota-se que junto das áreas associadas ao design, à
comunicação e ao audiovisual, há um predomínio de currículos voltados para o ramo de
negócios e empreendedorismo.
O alinhamento com os valores da BP é requisito primordial para se trabalhar na
empresa. Em reportagem, a Agência Pública aferiu que no processo seletivo da empresa há
um teste do posicionamento dos candidatos sobre afirmações como “cientificamente falando,
é impossível nascer homossexual” ou “Jesus é a verdade revelada e sobre isso não há
discussão”639. Entre os depoimentos de “colaboradores” da empresa disponíveis na página de
“Carreiras” da BP, destacam-se narrativas que relatam a opção pelo abandono de carreiras
acadêmicas em prol da oportunidade de trabalho oferecida na produtora:
638
Ibidem.
639
RUDNITZKI, Ethel; SCOFIELD, Laura; OLIVEIRA, Rafael. A boiada invade a tela. Agência Pública, 29
jul. 2021. Disponível em: <https://apublica.org/2021/07/a-boiada-invade-a-tela/>. Acesso em: 10 mai. 2022.
640
Disponível em:
<https://www.linkedin.com/pulse/abandonei-carreira-acad%25C3%25AAmica-para-virar-vendedora-na-bp-/?tra
ckingId=y%2BQg97lgS3%2BcTq86xyMA5Q%3D%3D>. Acesso em: 20 abr. 2022.
641
Disponível em:
<https://www.linkedin.com/pulse/fa%C3%A7a-todos-os-dias-aquilo-que-te-d%C3%A1-medo-conhe%C3%A7a-
thalita-/>. Acesso em: 20 abr. 2022.
164
vitimismo” de Elias Medeiros, jovem advindo da favela que hoje é responsável pelo
treinamento do setor comercial da empresa e diz o seguinte:
Nossa iniciativa é independente. Isso quer dizer que não aceitamos nenhum real do
Estado, nada de dinheiro público. Tudo que produzimos e disponibilizamos
gratuitamente só é possível graças aos nosso Membros, pessoas comuns que torcem
pela continuidade e expansão do nosso projeto645.
642
As dificuldades na favela não impediram Elias de se desenvolver. Veja uma história de superação sem
vitimismo. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/elias-medeiros>. Acesso
em 22 abr. 2022.
643
O ritmo de crescimento continua elevado. Brasil Paralelo ultrapassa 200 colaboradores. Brasil Paralelo.
Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/brasil-paralelo-200-colaboradores>. Acesso em 20
abr. 2022.
644
Mais de 50 vagas de trabalho na Brasil Paralelo logo no início de 2022. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/vagas-de-trabalho-brasil-paralelo>. Acesso em 20 abr. 2022.
645
Quem financia a Brasil Paralelo? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://brasilparalelo.zendesk.com/hc/pt-br/articles/360049725573-Quem-financia-a-Brasil-Paralelo->. Acesso
em 20 abr. 2022.
165
646
PAULO, 2020, p. 105. [grifos no original].
647
BRASIL Paralelo: em entrevista exclusiva, conheça a origem dos documentários que fazem sucesso na
Internet. Boletim da Liberdade, 19 jul. 2018. Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2018/07/19/brasil-paralelo-em-entrevista-exclusiva-conheca-a-origem-
dos-documentarios-que-fazem-sucesso-na-internet/>. Acesso em: 12 fev. 2022.
648
PAULO, op. cit., p. 105.
649
Vila rural conservadora e cristã se beneficia com bolsas da Brasil Paralelo. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/vila-barrolo-beneficiada-pela-brasil-paralelo>. Acesso em 10 out.
2022.
166
Tal qual o “Plano Patriota”, a nomenclatura traz uma forte carga simbólica. Mas a
intenção aqui seria a de se dirigir ao “Mecenato”, um grupo restrito de indivíduos providos de
maiores recursos que estariam dispostos a patrocinarem as “obras” da Brasil Paralelo para que
elas cheguem à massa dos “carentes”. O próprio modo de aquisição do plano reforça essa
lógica, na medida em que ele não se encontra listado entre os demais disponíveis ao grande
público. Para adquiri-lo é necessário entrar em contato diretamente com a equipe da
produtora.
Além do “Plano Mecenas”, a BP oferece planos de assinatura corporativos onde
empresas adquirem o conteúdo da produtora a fim de transmiti-lo para seus empregados. No
site da BP, há o relato de uma empresa do Paraná, a Águia Sistemas, que chegou a construir
uma sala de vídeo para que seus funcionários assistissem as produções da BP durante os
intervalos, conseguindo adquirir outras 50 assinaturas na empresa650. Também há uma parceria
com rádios, canais de TV e outras mídias que permite a transmissão do conteúdo
disponibilizado no canal da produtora651.
Evidencia-se a partir dessas articulações a propiciação a setores do empresariado de
diferentes modalidades de apoio e financiamento – mesmo que indireto – junto à produtora. A
Brasil Paralelo, assim, se distingue enquanto um aparelho privado de hegemonia que atua à
serviço dos interesses de grupos empresariais, funcionando, no entanto, a partir de um modelo
empresarial que lhe rende alta lucratividade no mercado de mídia e entretenimento.
2.3. Intelectuais, relações com agentes da nova direita e o papel de Olavo de Carvalho na
produtora
Desde seu início, a produtora demonstrava através de suas produções possuir uma
grande capacidade em acessar figuras notáveis dos círculos liberais e conservadores do país,
incluindo não só intelectuais, empresários, figuras da grande mídia e influencers da direita,
como deputados, senadores e mesmo ministros. Sua primeira produção, Congresso Brasil
Paralelo já trazia personalidades de renome desse meio como Olavo de Carvalho, Jair
Bolsonaro, Hélio Beltrão, Janaina Paschoal, Eduardo Bolsonaro, Luiz Philippe de Orleans e
Bragança, Joice Hasselmann, Luiz Felipe Pondé, Rodrigo Constantino e Lobão.
650
B2B | Empresa do Paraná cria sala de vídeo para transmitir filmes da BP Select. Brasil Paralelo. Disponível
em: <https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/parceria-brasil-paralelo-empresas>. Acesso em 20 abr. 2022.
651
Conteúdo da BP gratuito em TVs e Rádios. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/conteudo-bp-gratuito-tvs-radios>. Acesso em 20 abr. 2022.
167
652
Disponível em <https://www.linkedin.com/in/henrique-viana-95173129/ >. Acesso em: 10 mai. 2022.
653
Sobre nós. JA Brasil. Disponível em: <https://www.jabrasil.org.br/sobre-nos>. Acesso em 13 mai. 2022.
654
Quem somos. JA Rio de Janeiro. Disponível em: <https://www.jarj.org.br/quem-somos/>. Acesso em 13 mai.
2022.
655
Ibidem.
168
servindo como narrador e apresentador da maioria das produções do selo. Antes da iniciativa,
Valerim já trabalhou como fotógrafo e manteve em sociedade com Henrique Viana uma
empresa voltada para o ramo de produção musical e consultoria publicitária, a Trive Art -
Produções Artísticas LTDA. O sócio-fundador também já atuou como diretor de expansão na
empresa IBN - Instituto Brasileiro de Neurolinguística e Coaching656.
O terceiro sócio-fundador da Brasil Paralelo se trata do gaúcho Lucas Ferrugem de
Souza, e como os outros dois colegas, também é advindo da ESPM657. Além de ministrar
conteúdos de história e de política no “Núcleo de Formação” da Brasil Paralelo, Ferrugem é
responsável pela linha editorial e pelo conteúdo de marketing e de arte da empresa.
De acordo com apuração da Revista Piauí, a BP mantém um grupo de conselheiros
composto por pessoas que possuem participação simbólica no capital da empresa. Fariam
parte desse grupo o empresário Jorge Gerdau, dono de uma das maiores siderúrgicas do
mundo; Pedro Englert, sócio da startup de educação StartSe, Roberto Dagnoni, sócio da
Mercado Bitcoin, uma bolsa de ativos digitais,658 e o já mencionado Leandro Ruschel659,
fundador do Grupo Liberta Investimentos.
Em entrevista de 2020 para a Revista Esmeril, Henrique Viana indica as duas bases
que conformam as referências para o pensamento dos fundadores da Brasil Paralelo: o
Instituto Mises Brasil (IMB), através do qual tiveram contato e se aprofundaram nas ideias
liberais austríacas, e o Curso Online de Filosofia (COF) do escritor Olavo de Carvalho:
Figura carimbada nas produções da Brasil Paralelo, Olavo de Carvalho é tido como
“guru” intelectual da nova direita e do bolsonarismo. O “professor Olavo” – como era
656
Disponível em: <https://www.linkedin.com/in/filipe-valerim-221105104/>. Acesso em: 10 mai. 2022.
657
Disponível em: <https://www.linkedin.com/in/lucas-ferrugem-88b57b143/> . Acesso em: 10 mai. 2022.
658
COSTA, Ana Clara. Distanciamento social. Piauí, Rio de Janeiro, set. 2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/distanciamento-social/>. Acesso em: 22 set. 2022.
659
LOPES, Débora. A Brasil Paralelo não quer que você leia esta entrevista. The Intercept Brasil, 19 mai. 2022.
Disponível em: <https://theintercept.com/2022/05/19/brasil-paralelo-entrevista-historiadora-leandro-ruschel/>.
Acesso em: 6 jun. 2022.
660
DIRANI, Claudio. PERFIL | Henrique Viana abre as portas da Brasil Paralelo. Revista Esmeril, 21 jan. 2020.
Disponível em:
<https://revistaesmeril.com.br/perfil-%E2%94%82-henrique-viana-abre-as-portas-da-brasil-paralelo/>. Acesso
em: 20 mai. 2022.
169
referenciado entre os seus adeptos – morreu em janeiro de 2022 após ser diagnosticado com a
COVID-19, vírus frente ao qual demonstrava uma postura negacionista e conspiratória661. Seu
papel ascendente na dinâmica política nos anos recentes é fruto de anos de trabalho de
articulação intelectual à sombra da grande mídia e do circuito acadêmico conservador. Nesse
caminho, foi de suma importância seu uso vanguardista de “mídias alternativas” e das novas
tecnologias como ferramenta de comunicação política, servindo como instrumento para
conectar sua visão de mundo reacionária ao senso comum conservador brasileiro por meio de
uma linguagem verborrágica. Com Bolsonaro, Olavo passou a exercer forte influência nas
instituições e nas diretrizes do governo, indicando ministros, secretários e assessores em
pastas fundamentais como Educação, Economia e Relações Exteriores – muitos dos quais
fazem parte do seu quadro de ex-alunos –, além de contar com a presença de seus discípulos
no congresso nacional662. Cabe realizarmos uma incursão mais meticulosa sobre a biografia e
o pensamento do autor que, além de influenciar nas bases ideológicas do bolsonarismo e do
governo Bolsonaro, desponta como principal referência e mentor da iniciativa da Brasil
Paralelo.
Nascido em Campinas, São Paulo, no ano de 1947, filho de advogado junto de uma
operária, Olavo Luiz Pimentel de Carvalho teria abandonado a educação formal ainda na
adolescência, iniciando seus estudos de filosofia, psicologia e religiões comparadas de forma
autodidata, buscando professores particulares e conselheiros que lhe instruíssem. A despeito
de não possuir formação universitária ou titulação acadêmica formal, Carvalho se auto
intitulava como “filósofo”, possuindo aproximadamente duas dezenas de livros publicados,
além de vasta produção de artigos, ensaios, cursos e palestras, versando desde filosofia e
política até astrologia. Carvalho chegou a cursar na década de 1990 o curso de Filosofia do
conjunto de Pesquisa Filosófica (Conpefil) da PUC do Rio de Janeiro ao longo de três anos,
não concluindo devido ao encerramento de suas atividades por motivo da morte de seu
diretor663. Ao longo de sua carreira, o autor trabalhou principalmente como jornalista, atuando
em inúmeras revistas e jornais, alguns de grande circulação como Folha de S. Paulo, Jornal do
Brasil, O Estado de S. Paulo, Diário do Comércio, Zero Hora, Época e O Globo664. Principal
661
FELLET, João. Morre Olavo de Carvalho: guru do bolsonarismo disse que covid era ‘historinha de terror’.
BBC News, 25 jan. 2022. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60124170>. Acesso em: 15
mai. 2022.
662
Idem. Quem são os discípulos de Olavo de Carvalho que chegaram ao governo e Congresso. BBC News, São
Paulo, 10 jan. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46802265>. Acesso em: 15 mai.
2022.
663
Curriculum Vitae de Olavo de Carvalho. Disponível em:
<https://olavodecarvalhofb.wordpress.com/2016/01/22/curriculum-vitae-de-olavo-de-carvalho/>. Acesso em: 15
mai. 2022.
664
Ibidem.
170
665
FELLET, João. Olavo de Carvalho, o 'parteiro' da nova direita que diz ter dado à luz flores e lacraias. BBC
News, 15 dez. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-38282897>. Acesso em: 20
mai.2022.
666
MARQUES, Hugo. As mil faces de Olavo de Carvalho, guru do bolsonarismo. Veja, 29 jan. 2022. Disponível
em: <https://veja.abril.com.br/politica/as-mil-faces-de-olavo-de-carvalho-guru-do-bolsonarismo/>. Acesso em:
16 mai. 2022.
667
SEGALLA, Vinicius. Olavo de Carvalho criou filhos fora da escola e em comunidade islâmica. Carta
Capital, 4 dez. 2018. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/politica/olavo-de-carvalho-criou-filhos-fora-da-escola-e-em-comunidade-islam
ica/>. Acesso em: 20 mai. 2022.
668
PATSCHIKI, Lucas. Os litores da nossa burguesia: O Mídia sem Máscara em atuação partidária (2002-2011).
Marechal Cândido Rondon, 2012, 419 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, Marechal Cândido Rondon, 2012, p. 144-148.
171
669
CARVALHO, Olavo de. O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras. Rio de Janeiro: Faculdade
Cidade, 1997.
670
PATSCHIKI, op. cit., p. 152-153.
671
Ibidem, p. 158-159.
672
JARDIM, Lauro. Olavo de Carvalho editou livro em homenagem ao Exército financiado pela Odebrecht. O
Globo, 2020. Disponível em:
<https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/olavo-de-carvalho-editou-livro-em-homenagem-ao-exercito-f
inanciado-pela-odebrecht.html>. Acesso em 16 mai. 2022.
673
Boletim do Exército 32/99. Disponível em: <https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/1/2501/1/be32-99.pdf>.
Acesso em 16 mai. 2022.
674
FERNANDES, Maria Cristina. Como Olavo passou de ideólogo militar a rival. Valor Econômico, 25 abr.
2019. Disponível em:
<https://valor.globo.com/politica/coluna/como-olavo-passou-de-ideologo-militar-a-rival.ghtml>. Acesso em 17
mai. 2022.
172
do Brasil, no início dos anos 2000 Olavo já dava palestras para cursos de pós-graduação e
garantia uma audiência no debate público para uma crítica conservadora-reacionária675.
No ano de 2002, no contexto da chegada do PT ao governo brasileiro, Olavo e outros
pares fundam o portal Mídia Sem Máscara (MSM) com o intuito de funcionar como um
“observatório da imprensa”, a fim de denunciar suas mentiras e o “domínio comunista”
exercido sobre esta676. O site chegou a ser patrocinado pela publicidade da Livraria Cultura,
por doações através da ONG Instituto Brasileiro de Humanidades – criada por Carvalho a fim
de captar recursos para suas atividades –, e pela Associação Comercial de São Paulo
(ACSP)”,677 além de possuir relações com o Instituto Millenium e o Instituto Liberal678.
Aglutinando uma série de intelectuais e articulistas de direita ao seu redor, enquanto principal
fundador e editor-chefe do portal, Olavo cria ainda no início dos anos 2000 “[...] um
instrumento poderoso para unificar organizativamente e ideologicamente a direita
fascistizante”679, de acordo com o pesquisador Lucas Patschiki. A despeito da considerável
influência alcançada, o site foi removido das redes em 2017 por um ex-colaborador a partir de
uma acusação contra Olavo de não pagamento por serviços prestados, sendo apoiado por
outros ativistas importantes do MSM680.
Projetando o autor como referência intelectual da extrema direita, O MSM tinha como
um dos focos principais a crítica ao Foro de São Paulo, tomado como espaço estratégico para
o movimento comunista na América Latina. Em resposta, Carvalho chegou a organizar o Foro
do Brasil, uma coalizão de 28 organizações que promovia o anticomunismo, a defesa da
propriedade, os valores da moral judaico-cristã e a educação clássica, com a presença de
entidades que possuíam laços com grupos de extrema direita ligados ao meio militar681.
Em meados da mesma época, Olavo começava a investir em debates através de fóruns
da internet, e se popularizaria mais tarde em comunidades da rede social Orkut, angariando
um público mais jovem junto ao seu círculo de seguidores682. Seu canal no Youtube, criado
ainda em 2007, acumula atualmente mais de 1 milhão de inscritos e 60 milhões de
visualizações683, para não falar na replicação de seu conteúdo por inúmeros outros canais e
675
PATSCHIKI, op. cit., p. 156.
676
CALIL, Gilberto. O astrólogo que inspira Jair Bolsonaro. Le Monde Diplomatique, 31 jan. 2020. Disponível
em: <https://diplomatique.org.br/o-astrologo-que-inspira-jair-bolsonaro/>. Acesso em: 17 mai. 2022.
677
PATSCHIKI, op. cit., p. 160.
678
Ibidem, p. 316.
679
Ibidem, p. 160.
680
CALIL, 2021, p. 71.
681
PATSCHIKI, op. cit., p. 294.
682
ROCHA, 2018, p. 121.
683
Olavo de Carvalho. YouTube. Disponível em: < https://www.youtube.com/user/olavodeca/about>. Acesso em:
18 mai. 2022.
173
publicação de blogs dos autores citados e no suporte material para a realização do Seminário
de filosofia em sua versão traduzida”692.
Em 2009 seus discípulos fundaram o Instituto Olavo de Carvalho, tendo funcionado
por dois anos em um espaço físico na cidade de Curitiba. A instituição ofertava uma série de
atividades pagas, entre grupos de estudo, cursos, atendimentos individuais, palestras e
eventos. Entre os temas aos quais os grupos de estudos se dedicavam estavam: filosofia,
latim, música, poesia, autores clássicos da literatura, estudos luso-brasileiros, história antiga e
medieval, história da Igreja e dos Estados modernos, história do século XX, dentre outros693.
Ainda que tenha tido uma breve duração, podemos deduzir que o instituto exerceu papel
importante na formação de quadros e de intelectuais em torno da “filosofia” professada por
Olavo de Carvalho.
Data do mesmo ano de 2009 a criação do que seria a maior plataforma de formação
intelectual e política fomentada por Olavo de Carvalho, o consolidando como intelectual
conservador de significativo alcance nas redes: seu Curso Online de Filosofia (COF), pelo
qual passariam cerca de 5 mil alunos ao ano, alguns dos quais hoje colaboram com a Brasil
Paralelo. Creditado por Henrique Viana como base referencial para a Brasil Paralelo, o curso
faz parte do mais amplo Seminário de Filosofia, uma espécie de escola do olavismo que
promete oferecer um sistema de educação filosófica integral, um caminho para uma “ascese
espiritual fundada na autoconsciência e desenvolvimento da inteligência humana”694. O COF,
que continua sendo ofertado mesmo após a morte de seu fundador, ocorria no formato de
aulas semanais que seguiam uma sequência ininterrupta de mais de 500 aulas realizadas por
Olavo desde 2009. A mensalidade do curso custa R$60 e garante aos alunos não só o acesso
ao conteúdo de todo o site, como ao fórum de discussões onde são organizados grupos de
estudos, encontros, etc.695.
Além do COF, a plataforma oferece cursos avulsos do autor pelo valor de R$400 nas
seguintes temáticas: Conceitos fundamentais da Psicologia; A formação da personalidade;
Filosofia da Ciência; Esoterismo; Simbolismo e ordem cósmica; Guerra cultural; Política e
cultura no Brasil, dentre outras696. Objetivando formar uma “nova elite intelectual” no país
contra a “hegemonia esquerdista”, segundo Olavo, se dos milhares de alunos que passaram
692
PATSCHIKI, op. cit., p. 168.
693
Ibidem, p. 168-170.
694
Olavo de Carvalho | Seminário. Disponível em: <https://olavodecarvalho.org/o-seminario-de-filosofia/>.
Acesso em 20 mai. 2022.
695
Seminário de Filosofia | Assinatura. Disponível em: <https://sl.seminariodefilosofia.org/assinatura-cof/>.
Acesso em 20 mai. 2022.
696
Seminário de Filosofia | Catálogo. Disponível em: <https://lp.seminariodefilosofia.org/catalogo/>. Acesso em
20 mai. 2022.
175
pelo curso ao longo desses anos “[...] aparecerem cem capacitados para produzir bons livros,
bons espetáculos de teatro, renovamos a cultura brasileira, está feito o serviço”697.
Mais do que produzir espetáculos teatrais e livros, os discípulos do “Professor Olavo”
foram além, ocupando postos-chave em instituições culturais e educacionais do Estado e
alavancando uma produtora audiovisual de rentabilidade milionária. Balestro chama a atenção
para as semelhanças entre a plataforma da Brasil Paralelo e o Instituto Olavo de Carvalho/
COF, não só em relação aos conteúdos e cursos oferecidos, como semelhanças organizativas e
na estrutura do formato adotado698.
Mas para além do combate ao “gramscismo” e à “hegemonia cultural da esquerda”,
quais seriam os demais pilares teóricos e ideológicos professados pelo mentor da “nova
intelectualidade” brasileira? Um levantamento textual do site de Carvalho feito pela Folha de
S. Paulo nos traz dados interessantes a esse respeito, visto que indica os autores mais citados
pelo portal, a partir do qual podemos traçar um quadro das principais referências intelectuais
do autor. Os dois pensadores mais citados por Olavo se tratam dos seus principais adversários
intelectuais: Karl Marx e Antonio Gramsci. Em seguida, estão o francês René Guénon e o
alemão Eric Voegelin699.
Se opondo ao liberalismo nos costumes e ao marxismo, a obra de Voegelin exerceu
forte influência sobre o conservadorismo americano ao denunciar o que chamava de “religião
política”. Já a aderência de Olavo ao pensamento de René Guénon se relaciona a sua filiação à
escola “tradicionalista” ou “filosofia perene”, ligada a uma espécie de “conservadorismo
místico”. Negando os valores do Iluminismo e da Revolução Francesa, o pensamento
tradicionalista advoga a existência de verdades religiosas primordiais, eternas e universais que
seriam a base espiritual das principais religiões mais antigas do mundo e da própria ordem
social, estando sob corrosão no ocidente moderno700. O contato de Olavo com esse
pensamento remonta à sua passagem pelo esoterismo islâmico na década de 1980, quando
estudou diretamente com um dos discípulos de Guénon, o suíço Frithjof Schuon, participando
697
FELLET, João. Olavo de Carvalho, o 'parteiro' da nova direita que diz ter dado à luz flores e lacraias. BBC
News, 15 dez. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-38282897>. Acesso em: 20
mai.2022.
698
SANTOS, Mayara Balestro. Agenda conservadora, ultraliberalismo e “guerra cultural”: “Brasil paralelo” e a
hegemonia das direitas no Brasil contemporâneo (2016-2020). Marechal Cândido Rondon, 2021. 147 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon,
2021, p. 87.
699
DUCROQUET, Simon; MERLO, Marina. Sobre o que fala Olavo de Carvalho? Folha de S. Paulo, 14 dez.
2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/sobre-o-que-fala-olavo-de-carvalho.shtml>. Acesso em: 20
mai. 2022.
700
VASCONCELOS, Francisco. Alain de Benoist e a Nova Direita europeia: “gramscismo de direita” e nova
“revolução conservadora”. Princípios, n. 163, jan./abr. 2022. p. 226-227.
176
de sua comunidade, uma “tariqa”. Contando com discípulos e simpatizantes entre a alta
burguesia global, a seita de Schuon se viu envolvida em graves escândalos sexuais no começo
dos anos 1990701.
Para Guénon e seus seguidores, as sociedades seriam divididas num sistema de
“castas”, uma ordem derivada da ordem espiritual e que estaria sob regressão no ocidente
moderno. Seria preciso implodir o mundo moderno e inaugurar um novo tempo por meio de
uma “reconstrução mística” guiada por uma elite de “homens espirituais”, que restaurariam a
ordem, os valores e as hierarquias tradicionais702. A obra de Guénon bebe na fonte de outros
autores que professam deliberadamente um ideário antidemocrático, como Oswald Spengler,
além de ter influenciado Julius Evola, ambos servindo de inspiração teórica ao nazifascismo e
à extrema direita contemporânea. O próprio Guénon colaborou com 25 artigos para a revista Il
Regime Fascista, editada por Evola703. De acordo com Francisco Vasconcelos, Evola teria
sido responsável por conduzir o tradicionalismo de Guénon para a direita política, tornando-se
principal referência dessa corrente na atualidade com
seu sistema de valores [baseado] em uma hierarquia que situa o espírito acima da
matéria; o Norte acima do Sul; o branco acima do negro; a masculinidade acima da
feminilidade. A modernidade, a democracia e o comunismo significavam, para ele, o
período da decadência, de predominância de valores materialistas, voltados à
economia, à miscigenação, ao secularismo, ao feminismo e ao hedonismo sexual704.
individualismo é a consequência, porque o ‘eu’ foi tudo que restou a ele, quando acabou o
império e a autoridade da Igreja”706. Olavo também demonstra simpatia pela ideia da
restauração da monarquia707.
Ao rechaçar as bases da modernidade, o que Olavo tem em vista é a negação de
valores como a democracia liberal, a noção de igualdade civil, a laicidade do Estado, a
liberdade de pensamento e o respeito à dignidade humana. E é nesse aspecto que seu
tradicionalismo de cariz obscurantista se associa com as correntes fascistas, propondo a
regeneração da nação e da hierarquia social decadentes a partir de uma unidade ética e moral
buscada num passado mitificado, onde a religião ocupa centralidade na ordem estabelecida
divinamente. O grande mérito de Olavo foi o de traduzir para o ambiente político e cultural
brasileiro tal filosofia num contexto de ascensão da extrema direita. É preciso salientar, aliás,
que o tradicionalismo olavista, longe de propor um simples retorno a um estado de coisas
pretérito a partir da negação da modernidade, pretende colaborar no sentido da construção de
uma nova ordem social futura. Isso ocorre justamente através da síntese entre fascismo e
tradicionalismo no pensamento olavista, outorgando um novo sentido ao último.
Todavia, Olavo de Carvalho abre notórias concessões ao pensamento moderno e
liberal através de dois elementos fundamentais que coincidem em seu pensamento: a defesa
veemente do anticomunismo – fundamentado na teoria conspiratória do “marxismo cultural”
junto à tese do “globalismo” – e da economia de livre mercado. A despeito de sua
animosidade para com a modernidade, no âmbito do pensamento econômico Olavo – tal qual
seus discípulos da Brasil Paralelo – adere ao “libertarianismo” da Escola Austríaca de
Economia, cujo principal expoente, Ludwig von Mises, se trata do quinto autor mais citado
por Olavo em seu site708.
Do pensamento obscurantista apresentado por Olavo decorre todo um ideário marcado
por um forte veio anti-intelectualista, anticientífico e negacionista que se expressa numa série
de teorias conspiratórias sem qualquer compromisso com a realidade dos fatos. Nos últimos
anos, muitos de seus disparates alcançaram ampla repercussão nas redes e na grande mídia.
Olavo acreditava que os combustíveis fósseis são uma farsa709 e que a Pepsi-Cola estaria
706
BURGIEMAN, Denis Russo. O que aprendi com Olavo. O Globo. 14 mar. 2019. Disponível em:
<https://epoca.globo.com/o-que-aprendi-com-olavo-23521309>. Acesso em 22 mai. 2022.
707
Olavo de Carvalho. Twitter. Disponível em: <https://twitter.com/odecarvalho/status/777979022512971776>.
Acesso em: 28 mai. 2022.
708
DUCROQUET, Simon; MERLO, Marina. Sobre o que fala Olavo de Carvalho? Folha de S. Paulo, 14 dez.
2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/12/sobre-o-que-fala-olavo-de-carvalho.shtml>. Acesso em: 20
mai. 2022.
709
Frases “filosóficas” do astrólogo Olavo de Carvalho. Combustíveis Fósseis - por Olavo de Carvalho.
YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_cwYl07OO1U>. Acesso em 25 mai. 2022.
178
adoçando seus refrigerantes com células de fetos abortados710. Também já acusou o governo
dos Estados Unidos e a família real inglesa de trabalharem em prol da islamização mundial711.
Barack Obama seria um produto da antiga União Soviética e da KGB712. No campo da
história, Olavo difundia uma série de revisionismos e falsificações, afirmando que os negros
teriam escravizados os brancos por séculos713; que a Inquisição seria “uma invenção ficcional
de protestantes”714; definindo o nazismo como um derivativo do comunismo715; imputando à
Stalin o planejamento da Segunda Guerra Mundial com vinte anos de antecedência716; e
relativizando a prática de tortura e a perseguição durante a ditadura militar717.
No escopo das ciências naturais, Olavo advogava que a teoria da evolução derivaria do
esoterismo e seria genocida por essência, sendo o darwinismo “uma ideia escorregadia e
proteiforme, com a qual não se pode discutir seriamente”718. Duvidava dos termos da lei da
gravidade de Isaac Newton719, segundo Olavo, um “islamista cristão”720. Questionava o
heliocentrismo721 enquanto taxa Einstein de “maior plagiário do século XX”722. Precursor das
vozes bolsonaristas que ecoaram o movimento antivacina no auge da maior pandemia dos
últimos anos, Olavo em rede social chegou a disseminar a crença segundo a qual “Vacinas
matam ou endoidam. Nunca dê uma a um filho seu”723. Fumante há meio século, acreditava
que o uso de cigarro está ligado a longevidade e que a campanha antitabagista se trata de uma
710
Luz, Câmera, Revolução! Coletânea de pérolas do Olavo de Carvalho. YouTube. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=U0mXFAWw6KE&ab_channel=Luz%2CC%C3%A2mera%2CRevolu%C
3%A7%C3%A3o%21&app=desktop>. Acesso em 25 mai. 2022.
711
Ibidem.
712
30/12/2016. Olavo de Carvalho. Disponível em :
<https://olavodecarvalhofb.wordpress.com/2016/12/31/30122016/>. Acesso em 25 mai. 2022.
713
Julio Severo. Olavo de Carvalho fala sobre escravidão. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=zkcVkmzeJ4U>. Acesso em 25 mai. 2022.
714
Olavo de Carvalho. Twitter. Disponível em :
<https://twitter.com/OdeCarvalho/status/653556884209827840?s=20>. Acesso em 25 mai. 2022.
715
Tempos Modernos. Nazismo e Comunismo, suas diferenças e semelhanças (Olavo de Carvalho). YouTube.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Rjd0sxAoRfU>. Acesso em 25 mai. 2022.
716
Locus. Afinal, o nazismo é de esquerda ou de direita? Olavo responde. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=qYqJC_Pw7nk&t=231s>. Acesso em: 25 mai. 2022.
717
Nada pra ver aqui. Olavo de Carvalho sobre a tortura e a intervenção americana durante o regime militar.
YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sLYi0Zv7dh4>. Acesso em 25 mai. 2022.
718
Por que não sou um fã de Charles Darwin. Olavo de Carvalho. Disponível em:
<https://olavodecarvalho.org/por-que-nao-sou-um-fa-de-charles-darwin/>. Acesso em 25 mai. 2022.
719
Olavo de Carvalho. Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/olavo.decarvalho/posts/10157375718027192>. Acesso em 25 mai. 2022.
720
Canal Guerra de Mundos. Isaac Newton, ciência moderna e o pedantismo brasileiro - Olavo de Carvalho.
YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XJ652yZOlno>. Acesso em 25 mai. 2022.
721
Roberto Souza. Olavo de Carvalho: A terra não se move e Einstein é fanfarrão. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=cV48LjgPXFk>. Acesso em 25 mai. 2022.
722
SOumaDUVIDA. Filósofo Olavo de Carvalho - O plagio de Albert Einstein - Parte 2. YouTube. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=1QvjtMeGMTw> Acesso em 25 mai. 2022.
723
Olavo de Carvalho. Twitter. Disponível em:
<https://twitter.com/OdeCarvalho/status/756945768808865792?s=20. Acesso em 25 mai. 2022.
179
invenção da indústria farmacêutica para vender remédios, estes sim, fatais à população724. Seu
anticientificismo, que beira um discurso criminoso na medida em que incentiva um
comportamento de risco, é bem sintetizado através da seguinte afirmação: “O método
científico é o pior método para se descobrir qualquer coisa, a humanidade está bestificada pela
Ciência [...]”725. Nos últimos anos, Olavo andou flertando com a “teoria” do
“terraplanismo”726.
Mas nenhuma dessas sandices seria mais emblemática que um dos seus últimos
disparates negacionistas, dirigido contra a doença que, ao que tudo indica, o levou a óbito.
Desde a incidência do coronavírus, Olavo colecionava uma série de postagens em suas redes
sociais – fazendo coro à horda bolsonarista – onde questionava a letalidade do vírus, criticava
medidas de isolamento social, duvidava das vacinas e defendia remédios sem eficácia
comprovada cientificamente. “O medo de um suposto vírus mortífero não passa de historinha
de terror para acovardar a população e fazê-la aceitar a escravidão como um presente de Papai
Noel”727, escrevia Olavo em sua conta no Twitter em maio de 2020, meses antes de sua morte.
Olavo também coleciona uma série de afirmações preconceituosas, destilando
homofobia e racismo, como da vez em que depreciou as religiões de matriz africana,
relacionando-as à causa de tragédias ambientais e ao satanismo728. Se referindo aos negros,
diz que “[...] se foram escravos por três séculos após terem sido senhores de escravos por mais
de um milênio, devem agradecer a Deus pela clemência do seu destino”729. Mas nenhuma
passagem expressa melhor o racismo repugnante de Carvalho quanto a seguinte afirmação
presente em O Imbecil Coletivo:
724
Cubomagicow. Olavo de Carvalho fala sobre movimento antitabagismo. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=H1TLrhvFzQ4> Acesso em 25 mai. 2022.
725
26/11/2018. Olavo de Carvalho. Disponível em:
<https://olavodecarvalhofb.wordpress.com/2018/11/27/26-11-2018/> Acesso em 25 mai. 2022.
726
Olavo de Carvalho. Twitter. Disponível em:
<https://twitter.com/opropriolavo/status/1133838337570217984?s=20>. Acesso em 25 mai. 2022.
727
FELLET, João. Morre Olavo de Carvalho: guru do bolsonarismo disse que covid era ‘historinha de terror’.
BBC News, 25 jan. 2022. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60124170>. Acesso em: 15
mai. 2022.
728
Edpaiva. Olavo de Carvalho A Macumba e a Decência Humana.wmv. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=_myPI6KLHTo>. Acesso em 25 mai. 2022.
729
CARVALHO, 1997, p. 93.
730
Ibidem, p. 92.
180
731
Ibidem, p. 239.
732
Ibidem, p. 236.
733
Ibidem, p. 235.
734
COSTA, Ana Clara; GHIROTTO, Edoardo. “Eu sou o segundo governo”. Veja, 30 nov. 2018. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/politica/eu-sou-o-segundo-governo/>. Acesso em: 22 mai. 2022.
735
BORGES, Rodolfo. A direita brasileira que saiu do armário não para de vender livros. El País Brasil, 1 ago.
2015. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/22/politica/1437521284_073825.html>. Acesso
em 22 mai. 2022.
736
BRASIL, Felipe Moura. 15 de março: Olavo tem razão. Veja, São Paulo, 15 mar. 2015. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/coluna/felipe-moura-brasil/15-de-marco-olavo-tem-razao/>. Acesso em: 22 mai. 2022.
737
FELLET, João. Olavo de Carvalho, o 'parteiro' da nova direita que diz ter dado à luz flores e lacraias. BBC
News, 15 dez. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-38282897>. Acesso em: 20
mai.2022.
738
COSTA, Ana Clara; GHIROTTO, Edoardo. “Eu sou o segundo governo”. Veja, 30 nov. 2018. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/politica/eu-sou-o-segundo-governo/>. Acesso em: 22 mai. 2022.
181
Carvalho estava “entre os pouquíssimos autores brasileiros que poderiam viver de direitos
autorais"739.
Foi através da articulação evolutiva ao longo dos anos de seu arcabouço ideológico e
de seu discurso de ódio contra o PT, intelectuais, setores da mídia nacional e contra tudo que
associasse ao “progressismo” e à esquerda que Olavo de Carvalho
afirmou seu status de intelectual perante seus pares de direita – embora mantenha
detratores entre estes, suas proposições afirmativas gerais “pegaram”, tornaram-se
referência, especialmente sua hipótese maior (que para ele é confirmada): a
existência de um movimento revolucionário de cunho gramsciano, o permitiu tomar
posição de destaque nas formulações anticomunistas brasileiras, tornando-se parte
integrante do imaginário da direita nacional, assim como a percepção de uma
suposta hegemonia que a esquerda brasileira manteria sob a Universidade e a vida
cultural740.
do mercado editorial brasileiro investia fortemente naquilo que seria uma “quebra com a
hegemonia de ideologias progressistas e intervencionistas”, abrindo uma grande seara a esses
intelectuais, ao lado da recuperação de obras de autores clássicos como Hayek, Mises e
Edmund Burke744.
A postura bélica e a linguagem ofensiva de Olavo criou uma tendência entre os
intelectuais alinhados à direita, passando a ser reproduzida largamente em espaços da grande
mídia e nas redes. Olavo soube usar a internet para se projetar, sendo a “porta de entrada para
boa parte da militância da direita”745. Segundo o próprio, seus livros foram os grandes
responsáveis por encorajar outros conservadores a sair do armário746. A respeito do seu estilo
de linguagem e discurso, Gilberto Calil discorre:
744
BORGES, Rodolfo. A direita brasileira que saiu do armário não para de vender livros. El País Brasil, 1 ago.
2015. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/22/politica/1437521284_073825.html>. Acesso
em 22 mai. 2022
745
FELLET, João. Olavo de Carvalho, o 'parteiro' da nova direita que diz ter dado à luz flores e lacraias. BBC
News, 15 dez. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-38282897>. Acesso em: 20
mai.2022.
746
Ibidem.
747
CALIL, 2021. p. 71.
748
RedeTV. Eduardo Bolsonaro sobre Olavo de Carvalho: "É nossa referência filosófica". YouTube. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=ITdPd-P9TBs>. Acesso em 22 mai. 2022.
749
Projeto de resolução nº 536/2011. Disponível em:
<http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1115.nsf/02ac6f279b568e24832566ec0018d839/b2939c5c6734a18b8325795
3004b81f7>. Acesso em 22 mai. 2022.
183
de seus filhos, passando a citar Olavo em seus discursos no congresso e nas redes. Em seu
primeiro ano na presidência, Bolsonaro condecora Olavo com o grau de Grã-Cruz, o mais alto
da Ordem de Rio Branco, junto a dois de seus filhos750. No mesmo ano, em sua primeira visita
aos Estados Unidos, o então presidente apresentou Olavo como “inspirador de muitos jovens
no Brasil”, e que em grande parte o país devia a ele “a revolução que estamos vivendo”751.
Olavo também teve influência em colocar Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump,
em contato com a campanha de Bolsonaro em 2018752.
Antes mesmo do resultado das eleições de 2018, o nome de Olavo, que apoiou
amplamente Bolsonaro nas redes, estava sendo sugerido pelos bolsonaristas para ocupar a
pasta da Educação ou da Cultura do novo governo. O convite se concretizou, mas foi rejeitado
pelo “professor”, que se contentou em apenas indicar os nomes para os ministérios. Olavo
disse que estava satisfeito apenas em ocupar o posto de influência intelectual, que seria algo
“que transcende e engloba a política”. Citando o escritor russo Alexander Soljenítsin, Olavo
diz que: “‘O grande escritor é como se fosse um segundo governo’. Entende por que eu não
quero nenhum cargo público? Porque eu já sou esse segundo governo [...]”753.
Mais do que lugar de referência intelectual, o “olavismo” se faria presente no governo
Bolsonaro através dos discípulos e ex-alunos de Olavo, alguns destes, indicação direta do
“professor”. Os dois primeiros ministros da Educação, Ricardo Vélez e Abraham Weintraub,
subiram ao cargo por indicação de Olavo sob promessa de combaterem o “marxismo cultural”
nas universidades e escolas. A gestão de Weintraub visou uma política de inviabilização dos
institutos e universidades federais, operando cortes subsequentes em seu orçamento e nos
programas de bolsas de pesquisa. O segundo ministério em mãos olavistas foi o das Relações
Exteriores, sob comando de Ernesto Araújo, negacionista climático e defensor ferrenho da
tese do “globalismo”, tendo feito uma gestão marcada pela subordinação incondicional aos
EUA sob governo Trump e pelas provocações e ataques contra a China no contexto da
pandemia da COVID-19. Roberto Alvim, ex-Secretário Especial de Cultura que fora afastado
do cargo após discurso parafraseando o ministro da Propaganda da Alemanha nazista Joseph
750
BOLSONARO concede Ordem de Rio Branco a dois dos filhos e ao escritor Olavo de Carvalho. Gazeta do
Povo, 1 mai. 2019. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/republica/bolsonaro-concede-ordem-de-rio-branco-a-olavo-de-carvalho-e-do
is-dos-filhos/> . Acesso em: 22 mai. 2022.
751
MENDONÇA, Ricardo. Antes de construir é preciso 'desconstruir muita coisa' no Brasil, diz Bolsonaro nos
EUA. O Globo, 18 mar. 2019. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/mundo/antes-de-construir-preciso-desconstruir-muita-coisa-no-brasil-diz-bolsonaro-n
os-eua-23530792>. Acesso em: 22 mai. 2022.
752
COSTA, Ana Clara; GHIROTTO, Edoardo. “Eu sou o segundo governo”. Veja, 30 nov. 2018. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/politica/eu-sou-o-segundo-governo/>. Acesso em: 22 mai. 2022.
753
Ibidem.
184
Goebbles, foi outro seguidor de Olavo com cargo de destaque no governo. Além de outros
discípulos no MEC, olavistas se fizeram presentes no Ministério da Economia, na câmara dos
deputados e na própria assessoria da presidência754.
De figura “folclórica” e caricatural na internet, Olavo passou a ser tido como ideólogo
e principal influência intelectual do governo, instrutor de assessores próximos do presidente e
responsável pela indicação de figuras em postos-chave do aparelho de Estado. De acordo com
Pereira e Santos, “o olavismo se espalhou por diferentes espaços e, com a ascensão de
Bolsonaro à presidência, foi tornado política de Estado em setores da educação, cultura, do
meio ambiente e da política externa”755. Apesar de ser menor do que o poder de interferência
da ala militar, a influência de Olavo na montagem do governo Bolsonaro foi considerada
maior do que a da ala evangélica756; ainda que no decorrer do governo os quadros olavistas
tenham perdido certo espaço frente ao avanço do governo Bolsonaro em direção aos partidos
do “Centrão”. Neste contexto, Olavo direcionava duras críticas ao governo no sentido de
disputar as forças em seu interior e forçá-lo a uma perspectiva de radicalização, sem romper
com o apoio essencial.
Olavo procurava demarcar uma auto-imagem de autonomia de atuação política e
intelectual em relação ao bolsonarismo e ao restante da direita brasileira, se colocando como o
responsável pela ascensão de ambos, mas não sendo representante de nenhum: “Fui o parteiro
[da direita], mas o parteiro não nasce com o bebê”, afirmava já em 2016757. Carvalho estaria
apenas “lutando contra o comunismo” e abrindo o espaço para a direita, que em sua narrativa
não existiria no país no momento anterior, e com isso, possibilitando que o Brasil tivesse uma
“democracia representativa efetiva”758. Tal discurso mal parece advir de uma figura que
advoga um pensamento tradicionalista antidemocrático e que flerta com um ideal fascista de
sociedade.
Todavia, ainda que Olavo imputasse a si mesmo a razão do surgimento da “nova
direita”, Alvaro Bianchi ressalta o fato do “ideólogo” na verdade ser seu efeito, não sua causa,
dado que “as direitas radicais são um movimento muito heterogêneo com raízes profundas na
história do pensamento político brasileiro”759, afirma o cientista político. De acordo com
754
CALIL, 2021, p. 75-76.
755
PEREIRA; SANTOS, 2020, p. 337.
756
FELLET, João. Quem são os discípulos de Olavo de Carvalho que chegaram ao governo e Congresso. BBC
News, São Paulo, 10 jan. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46802265>. Acesso
em: 15 mai. 2022.
757
Idem. Olavo de Carvalho, o 'parteiro' da nova direita que diz ter dado à luz flores e lacraias. BBC News, 15
dez. 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-38282897>. Acesso em: 20 mai.2022.
758
Ibidem.
759
BIANCHI, Alvaro. Olavo de Carvalho é um efeito da nova direita e não a sua causa. Instituto Humanitas
Unisinos. 19 dez. 2018. Disponível em:
185
[...] uma narrativa coerente que dá sentido aos medos alimentados pela low upper
class, um exército de pequenos e médios empresários, profissionais liberais e
trabalhadores autônomos profundamente afetados pela crise econômica e pelas
transformações recentes na sociedade brasileira”. [...] Olavo de Carvalho apresenta
uma explicação simples para a queda: marxistas, feministas e gays teriam provocado
a crise da civilização cristã e empurrado a sociedade para o abismo. É obviamente
uma teoria conspiratória à qual pessoas comuns podem se agarrar quando não
conseguem uma explicação razoável para seus medos. E o medo é aquilo que
caracteriza a pequena-burguesia. É uma classe assustada com sua própria
irrelevância social763.
Ao que tudo indica, o vínculo mantido entre Olavo de Carvalho e a Brasil Paralelo não
se tratava de uma relação meramente ocasional. Enquanto vivo, Olavo participou de quase
todas as produções da BP. A relação remonta aos primórdios da produtora, com o “guru” já se
fazendo presente na primeira produção do selo. Em evento na câmara municipal da cidade de
São Paulo no ano de 2017, Henrique Viana evidenciava em sua exposição a influência que
Carvalho exerceu sobre a própria concepção do formato do projeto, instruindo os
sócio-fundadores da BP à não limitarem a iniciativa à uma simples plataforma de venda de
<http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/585547-olavo-de-carvalho-e-um-efeito-da-nova-direita-e-n
ao-sua-causa-entrevista-especial-com-alvaro-bianchi>. Acesso em 22 mai. 2022.
760
Ibidem.
761
CALIL, 2021, p. 74.
762
MATTOS, 2020, p. 172.
763
BIANCHI, 2018, op. cit.
186
produtos: “A gente teve uma conversa com o professor Olavo, e ele falou: ‘Vocês não podem
perder a questão da militância. Vocês estão cumprindo um papel para o país, vocês estão
prestando um serviço para a causa'”764.
Em artigo redigido pela redação da BP dedicado à biografia e ao pensamento do autor,
Olavo é apresentado enquanto cânone da filosofia brasileira, “um dos maiores nomes da
política, cultura e ensino em filosofia”, e “[...] filósofo no sentido genuíno da palavra”,
movido pela busca da verdade maior e a verdade dos fatos765. Sua primeira obra de maior
sucesso, O Imbecil Coletivo, é tida como paradigmática para o início da “[...] derrocada da
hegemonia gramsciana implantada no Brasil desde os anos 60, tal qual ele a denunciou”766. O
texto, além do tom laudatório ao seu pensamento e “filosofia”, também procura fazer uma
defesa da reputação de Olavo frente às acusações e polêmicas que envolvem sua trajetória,
bem como desassociá-lo da figura de Bolsonaro. Segundo a BP, Olavo não possuía viés
político ou ideológico, se tratava de um democrata que teria exercido influência indireta sobre
a direita por acreditar na necessidade de haver rodízio de poder, retirando-o da hegemonia da
esquerda767.
À época de sua morte, a produtora também lançou um vídeo especial em sua
homenagem, narrando em tom comovente e traços míticos a biografia de Olavo, que seria
autor de “[...] uma obra que sempre se pautou pela defesa da alta cultura, do combate ao
comunismo e do incentivo à busca da verdade. [...] Não somente preservar, mas ampliar sua
obra, é o compromisso hoje defendido por seus alunos”768. Este último trecho traz uma
declaração praticamente manifesta da filiação da Brasil Paralelo como legatária do
pensamento do “professor Olavo”. A produtora segue publicando diversos conteúdos
relacionados ao autor e suas obras são usadas como referência bibliográfica nos cursos
ofertados em seu “Núcleo de Formação”.
De acordo com Gilberto Calil, ainda que tenha se empenhado na desqualificação de
Gramsci e assimilado seu pensamento de modo superficial e deturpado em suas obras, Olavo
de Carvalho
764
Parlatório Livre. Parlatório Livre - Jornalismo e Liberdade - Henrique Viana. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=6BF83wbervI&t=857s>. Acesso em 26 mai. 2022.
765
Quem é Olavo de Carvalho? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/quem-e-olavo-de-carvalho>. Acesso em 26 mai. 2022.
766
Ibidem.
767
Ibidem.
768
Brasil Paralelo. O mínimo que você precisa saber sobre Olavo de Carvalho. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Q4HddgJ_NYY>. Acesso em: 26 mai. 2022.
187
funcionem como casamatas na guerra de posições. Foi operando esta rede que
Carvalho atuou ao longo dos últimos anos e com base nela incidiu efetivamente
reforçando o avanço ideológico e político da extrema-direita769.
769
CALIL, 2021, p. 77.
770
CASIMIRO, 2016, p. 331-332.
771
Quem somos. Mises Brasil. Disponível em: <https://mises.org.br/quem-somos>. Acesso em 30 mai. 2022.
772
CASIMIRO, 2016, op. cit., p. 331-345.
773
CASIMIRO, 2020, p. 52.
188
774
Instituto Mises Brasil. YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/c/InstitutoMisesBrasil/about >.
Acesso em 30 mai. 2022.
775
Loja Mises. Disponível em: < https://www.lojamises.com.br/. Acesso em 25/05/2022>. Acesso em 30 mai.
2022.
776
Clube Mises. Disponível em: <https://www.clube.mises.org.br/>. Acesso em 30 mai. 2022.
777
VI Conferência de Escola Austríaca. Universidade Presbiteriana Mackenzie. Disponível em:
<https://www.mackenzie.br/liberdade-economica/extensao/eventos/artigo/n/a/i/vi-conferencia-de-escola-austriac
a>. Acesso em 30 mai. 2022.
778
Summer School. Mises Brasil. Disponível em: < https://summer.mises.org.br/>. Acesso em: 30 mai. 2022.
779
Mises Academy. Disponível em: < https://misesacademy.com/>. Acesso em: 30 mai. 2022.
780
CASIMIRO, 2016, p. 342-343.
189
enquanto “libertário”, não acha que seus praticantes devam ser criminalizados pelo Estado781.
Trata-se, assim, de legitimar formas de discriminação, preconceito e violência contra
determinados grupos marginalizados a partir de um discurso reacionário e moralista associado
ao fundamentalismo de livre mercado782.
No site do IMB é possível encontrar artigos que atestam a posição antidemocrática e
elitista de seus prepostos como: “A tragédia social gerada pela democracia”; “Como a
democracia destrói a riqueza e a liberdade’; “Por que a democracia precisa de Aristocracia”;
“Por que a Monarquia é superior à democracia”; “Democracia: o deus que falhou”783. Outros
artigos publicados no site evidenciam seu extremismo liberal: “Uma teoria geral (e libertária)
sobre o controle de armas”; “Sobre a diferença salarial entre homens e mulheres”; “A
privatização dos rios”784. Fica evidente que entre os correligionários do Mises Brasil, o
libertarianismo de mercado – próximo aqui da corrente “anarcocapitalista” – se mescla a um
conservadorismo cultural ensejando um tipo de pensamento que “[...] defende as relações
desse mercado em todas as manifestações da vida social, na mercantilização do meio natural e
todos os seus recursos, assim como na própria dignidade humana”785.
Casimiro destaca: “É muito importante que consideremos que essas concepções, por
mais espantoso que possa parecer, alcançaram agora a estrutura institucional do Estado”786,
através inclusive da presença direta de intelectuais “libertários” e “anarcocapitalistas” do IMB
e de outros aparelhos da nova direita no governo Bolsonaro. Entre esses agentes, destacam-se
dois que ocuparam cargos estratégicos no Ministério da Economia: Geanluca Lorenzon,
advogado e chefe de operações do Instituto Mises Brasil, e José Salim Mattar, presidente da
empresa de aluguel de carros Localiza, tendo já integrado o Instituto Liberdade e o Instituto
Millenium787. Isso significa que “[...] o plano de reconfiguração da estrutura estatal [...] para a
suposta ampliação da viabilidade da atividade econômica do país, [estava] sendo conduzido
por pessoas que, segundo suas vinculações ideológicas, defendem a perspectiva mais radical
entre as concepções ultraliberais”788.
O IMB tem como principal idealizador e fundador o empresário Hélio Beltrão Filho –
herdeiro do ex-ministro da ditadura militar Hélio Beltrão –, cujas ideias, segundo Henrique
781
BLOCK, 2010 apud CASIMIRO, 2020, p. 53-55.
782
Ibidem, p. 54.
783
Artigos. Mises Brasil. Disponível em: <https://mises.org.br/artigos>. Acesso em 30 mai. 2022.
784
CASIMIRO, 2016, p. 336.
785
Ibidem, p. 337.
786
Idem, 2020, p. 60.
787
Ibidem, p. 60-61.
788
Ibidem, p. 61.
190
O Brasil Paralelo é um parceiro oficial do Instituto Mises Brasil, estou muito feliz
com a história que o Felipe contou, o Mises teve um papel inspirador dessa iniciativa
maravilhosa. Na minha época não se ensinava história, e me dizem que hoje é ainda
pior. Então, a gente não fala dos nossos heróis, a gente esquece dos nossos heróis, e o
Brasil Paralelo tenta resgatar793.
além da atuação dentro do B.P., perpassam os Institutos, a mídia, redes sociais e os espaços
acadêmicos, isso permite o B.P. avançar em sua difusão”795. Se tratam de personalidades do
empresariado, da política, da grande imprensa, do judiciário e acadêmicos, muitos dos quais
atuam como articulistas e compõem os grupos dirigentes de diversas instituições e
organizações das direitas no Brasil.
No grupo dos “membros convidados” encontram-se figuras de diferentes espectros dos
círculos liberais e conservadores do país, entre as quais: Luiz Felipe Pondé, filósofo
conservador e colunista da Folha de S. Paulo; Lucas Berlanza, ex-redator do jornal Gazeta do
Povo, atualmente editor e sócio do Boletim da Liberdade além de colunista e
diretor-presidente do Instituto Liberal; Leandro Narloch, autor da série Guia Politicamente
Incorreto da História que já colaborou com veículos da grande imprensa como a Revista Veja
e a Folha de S. Paulo; Felipe Moura Brasil, escritor, blogueiro e comentarista ex-redator da
Revista Veja e ex-diretor de jornalismo da Rádio Jovem Pan, organizador do livro O mínimo
que você precisa saber para não ser um idiota de Olavo de Carvalho; William Waack,
jornalista e escritor brasileiro que já passou por algumas das principais redações do Brasil e
hoje atua como âncora na CNN Brasil; Cláudio Manoel, redator e humorista brasileiro,
ex-integrante do grupo Casseta & Planeta; Paulo Cruz, professor e palestrante nas áreas de
filosofia e educação, atualmente colunista na Gazeta do Povo; Josias Teófilo, cineasta,
jornalista e fotógrafo brasileiro responsável pelo filme biográfico de Olavo de Carvalho;
Hélio Bicudo, jurista e ativista pelos direitos humanos, participou da fundação do PT e foi um
dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff; Miguel Reale, foi um professor,
advogado, escritor, filósofo e jurista brasileiro, ex-reitor da USP e um dos ideólogos da Ação
Integralista Brasileira; o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes; Bruno
Araújo, advogado, ex-deputado federal e ministro no governo Temer, atual presidente do
PSDB; Luiz Felipe D’ávila, cientista político e filantropo fundador do Centro de Liderança
Pública (CLP), candidato à presidência da República pelo Partido Novo nas eleições de 2022;
Miguel Nagib, advogado conhecido por ser fundador e líder do movimento Escola sem
Partido, fundado em 2003, e idealizador do texto que originou diversos projetos de lei
homônimos; Fernando Francischini, delegado de polícia e deputado estadual do Paraná pelo
PSL, teve seu mandato cassado pelo TSE em 2021 em razão de disseminação de informações
falsas sobre o processo eleitoral de 2018796; Rogério Chequer, empresário, ex-colunista da
795
Ibidem, p. 85.
796
DEPUTADO Francischini é cassado por propagar desinformação contra a urna eletrônica. Tribunal Superior
Eleitoral. Disponível em:
192
Folha de S. Paulo e cofundador do Movimento Vem Pra Rua; Fernando Holiday, youtuber e
ex-vereador da cidade de São Paulo, membro do Movimento Brasil Livre (MBL); Arthur
Moledo do Val, também youtuber e integrante do MBL, teve seu mandato de deputado
estadual cassado em 2022 após episódio misógino envolvendo refugiadas de guerra
ucranianas797; Joice Hasselmann, jornalista, radialista e ex-deputada federal de São Paulo
eleita pelo PSL; Janaína Paschoal, jurista e professora da USP que foi autora do pedido de
impeachment de Dilma Rousseff, ex-deputada estadual de São Paulo eleita pelo PSL; Beatriz
Kicis, advogada, youtuber e deputada federal pelo Distrito Federal; Damares Alves,
advogada, pastora evangélica e ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no
governo Bolsonaro, atual senadora da república pelo Distrito Federal; Jair Bolsonaro, militar
da reserva e deputado federal por sete mandatos entre 1991 e 2018, ex-presidente da república
não reeleito; Eduardo Bolsonaro, policial federal e deputado federal pelo estado de São Paulo;
o cantor e compositor Lobão; dentre outros convidados798.
Além dos já citados Olavo de Carvalho e Hélio Beltrão Filho, mentores do projeto,
fariam parte do quadro de “membros permanentes” da BP os seguintes nomes identificados
por Balestro: Rafael Nogueira, palestrante e professor de História e Filosofia em escolas
públicas, técnicas, privadas e cursos preparatórios, pesquisador em História do Império do
Brasil e defensor da monarquia, aluno de Olavo de Carvalho, esteve a frente da Fundação
Biblioteca Nacional durante o governo Bolsonaro, contribuiu em diversas produções da BP
além de ministrar aulas semanais no “Núcleo de Formação” e em outros institutos de cariz
conservador; Alexandre Borges, empresário fundador do Instituto Liberal, mantém ligações
com outros importantes think tanks como o Instituto Mises Brasil e o Movimento Brasil Livre
(MBL), já publicou em canais da imprensa como a Revista Veja e Gazeta do Povo, além do
portal Mídia Sem Máscara, criado por Olavo de Carvalho; Percival Puggina, arquiteto,
jornalista e escritor brasileiro, já atuou na coordenação de partidos da direita; Flávio Gordon,
doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, colabora para as
editoras Record e Vozes e é colunista na Gazeta do Povo, ministra diversos cursos
relacionados à “teoria marxista cultural” e ao “globalismo” na BP e em outras instituições
liberais-conservadoras; Thomas Giulliano, historiador autor do livro Desconstruindo Paulo
<https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Outubro/plenario-cassa-deputado-francischini-por-propagar-
desinformacao-contra-o-sistema-eletronico-de-votacao>. Acesso em 30 mai. 2022.
797
CRUZ, Elaine Patrícia. Arthur do Val tem mandato cassado e fica inelegível por oito anos. Agência Brasil, 17
mai. 2022. Disponível em:
<https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2022-05/arthur-do-val-tem-mandato-cassado-e-fica-inelegivel-
por-oito-anos>. Acesso em: 30 mai. 2022.
798
Cf. lista de membros convidados da Brasil Paralelo entre 2016 e 2019 em SANTOS, 2021, p. 142-146.
193
Freire, atuou como consultor historiográfico das séries Brasil: A Última Cruzada e Pátria
Educadora da BP; Luiz Phillipe de Orleans e Bragança, empresário e acadêmico descendente
da família imperial brasileira, eleito deputado federal de São Paulo em 2018 e reeleito em
2022, possui carreira em grandes bancos internacionais e atuou na direção de multinacionais,
foi cofundador do Movimento Acorda Brasil no contexto das manifestações contra o governo
Dilma, e na BP, serviu como principal inspiração para a produção Brasil: A Última Cruzada;
Adriano Gianturco, coordenador do Curso de Relações Internacionais e professor de Ciência
Política do IBMEC-MG, membro do Laboratório de Análise Política (LAP) da Universidade
LUISS de Roma, fellow do Competere Institute e do Centro Tocqueville-Acton, membro do
Comitê Científico da Revista Acadêmica Mises e do Conselho do Ranking dos Políticos, já
colaborou para espaços midiáticos do grande empresariado e canais da grande imprensa do
país, além de ter participado da produção do Congresso Brasil Paralelo e de Teatro das
Tesouras; Ícaro de Carvalho, empresário e redator publicitário, atuou na criação da Brasil
Paralelo e outras empresas líderes de mercado como Liberta Global, Grupo Estratégia,
We-Audit, dentre outras; Marcus Boeira, professor adjunto de Direito na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul; Rodrigo Gurgel, ensaísta, professor de Literatura e crítico
literário do jornal Rascunho e da Folha de S. Paulo; Rodrigo Constantino, jornalista e
economista libertariano conhecido por seu trabalho como colunista em canais da grande mídia
como a Revista Veja e o jornal O Globo, atuando presentemente no jornal conservador A
Gazeta do Povo, além de presidente do Conselho do Instituto Liberal e membro-fundador do
Instituto Millenium, já tendo participado de diversas produções da BP e publicado artigos
elogiando a atuação da produtora; Flávio Morgenstern, também ex-aluno de Olavo de
Carvalho e professor no “Núcleo de Formação” da BP, é escritor, analista político, palestrante
e colunista do Instituto Liberal, criador do portal e canal “Senso Incomum”; Guilherme
Macalossi, jornalista articulista no Instituto Liberal, atualmente trabalha como colunista na
Gazeta do Povo e como apresentador e comentarista no Grupo Bandeirantes e na Rádio
Sonora FM; Leandro Ruschel, empresário com um perfil influente no Twitter e um dos
principais responsáveis pela concepção e criação da BP, sócio-fundador do Grupo L&S, que
abarca uma série de empresas que atuam no mercado financeiro799.
A partir do mapeamento desses quadros é possível estabelecer conexões entre a BP e
um conjunto de sujeitos e entidades representativas da nova direita que vem contribuindo –
direta ou indiretamente, por meio de seus intelectuais orgânicos – para a viabilização e o
799
Cf. lista de membros permanentes da Brasil Paralelo entre 2016 e 2019 em SANTOS, 2021, p. 82-84.
194
800
BRASIL Paralelo: em entrevista exclusiva, conheça a origem dos documentários que fazem sucesso na
Internet. Boletim da Liberdade, 19 jul. 2018. Disponível em:
<https://www.boletimdaliberdade.com.br/2018/07/19/brasil-paralelo-em-entrevista-exclusiva-conheca-a-origem-
dos-documentarios-que-fazem-sucesso-na-internet/>. Acesso em: 12 fev. 2022.
801
SANTOS, 2021, p. 82 e 85.
802
CASIMIRO, 2020, p. 81.
195
803
Idem, 2016, passim.
804
Ibidem.
805
Ibidem, p. 349.
196
quase todos os estados do país, utilizam como estratégia de consenso diversas ações táticas,
como organização de eventos e cursos, financiamento de grupos de estudo, distribuição de
materiais panfletários e educativos, atuando ainda na disputa pelo controle de diretórios
acadêmicos806.
O EPL se organiza institucionalmente por meio de um Programa de Coordenadores,
cujo objetivo reside em recrutar estudantes do ensino médio e superior para organizá-los
enquanto lideranças do movimento estudantil. Há uma espécie de programa de carreira nesta
organização, onde Flávio Casimiro sugere que há algum tipo de remuneração, mesmo que na
forma de custeios de viagens e cursos ou premiações; sem mencionar a rede de contato
propiciada com o empresariado, acadêmicos e entidades diversas e as oportunidades daí
decorrentes807. O EPL também é o responsável pela organização da versão nacional da
“LibertyCon”, congresso para os “amantes da liberdade” que ocorre em vários continentes. O
EPL descreve o evento como aberto “do social-liberal até o anarquista de mercado, passando
pelos objetivistas e voluntaristas”808, demonstrando funcionar como um grande polo para
articulação e formação de consenso entre intelectuais de diversas matizes do liberalismo.
A partir desse vasto campo de atuação, o EPL consegue engajar jovens estudantes
tanto para as disputas internas em escolas e universidades quanto para o ativismo político na
internet, além de mobilizar para protestos organizados pelas direitas no Brasil, recrutando,
financiando e estabelecendo as diretrizes de ação sobretudo por meio do Movimento Brasil
Livre (MBL), sua célula de mobilização política e ideológica. O MBL ganhou relevância
enquanto um dos principais convocadores dos protestos de rua da direita a partir de 2015 ao
lado do “Vem Pra Rua” e do “Revoltados Online”, insuflando o antipetismo e apoiando o
processo de impeachment de Dilma Rousseff a partir de um discurso belicoso. Em reportagem
para a Agência Pública, Marina Amaral aferiu que o MBL surge como uma marca criada pelo
EPL para poder participar das manifestações sem comprometer fiscalmente as organizações
norte-americanas financiadoras da organização809. Para Casimiro,
806
Ibidem, p. 346.
807
Ibidem, p. 351-352.
808
Liberty Con. Disponível em: <http://libertycon.com.br/>. Acesso em 30 mai. 2022.
809
AMARAL, Marina. A nova roupa da direita. Agência Pública, 23 jun. 2015. Disponível em:
<http://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita/>. Acesso em 31 mai. 2022.
197
políticos da direita, produção do consenso por meio de vídeos e memes, assim como
a projeção de candidatos para a composição da sociedade política810.
810
CASIMIRO, 2020, p. 69.
811
Fórum da Liberdade. Disponível em: <https://www.forumdaliberdade.com.br/forum/>. Acesso em 31 mai.
2022.
812
SANTOS, 2021, p. 70.
813
CASIMIRO, 2020, op. cit., p. 78.
198
Para se compreender a reinvenção das direitas no Brasil, é preciso ter em vista essa
articulação de organizações, produzindo conteúdos compartilhados direta e
indiretamente. Defendem pressupostos comuns, mesmo possuindo determinadas
divergências intraclasse, capilarizando seus discursos em um movimento de
reiteração e validação que produz uma aparência de verdade e que acaba sendo
socialmente aceita. Assim, municiam seus ativistas políticos com uma rede
interligada e sofisticada de produção de consenso815.
814
CASIMIRO, 2016, p. 285 et seq.
815
Idem, 2020, p. 67-68.
816
Ibidem, p. 74-75.
817
FIRMINO, Karine Rodrigues. Brasil Paralelo: um empreendimento de disputa política e simbólica da(s)
direita(s) recente(s). In: SANTOS, Mayara Balestro; MIRANDA, João Elter (Orgs.). Nova direita, bolsonarismo
e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo [livro eletrônico]. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020, p.
171.
818
ANDRADE, Rafael Herculano. Negacionismo no YouTube: um “Brasil Paralelo” a serviço das novas direitas.
Guarulhos, 2022, 224f. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em História). Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2022, p. 79.
199
Quando a Brasil Paralelo foi criada, o Bolsonaro era um deputado qualquer, meio
polêmico, meio estranho. Quando ele surgiu como fenômeno político, já faturávamos
6 milhões por ano. Nós atendemos a um anseio do brasileiro conservador na área de
mídia. O Bolsonaro também, na área política820.
819
A Brasil Paralelo é bolsonarista? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/a-brasil-paralelo-e-bolsonarista>. Acesso em: 11 fev. 2022.
820
COSTA, Ana Clara. Distanciamento social. Piauí, Rio de Janeiro, set. 2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/distanciamento-social/>. Acesso em: 22 set. 2022.
821
MAZZA, Luigi. No Facebook, Brasil Paralelo é recordista de gastos com propaganda política. Piauí, 27 maio
2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/no-facebook-brasil-paralelo-e-recordista-de-gastos-com-propaganda-politica/>.
Acesso em: 10 mar. 2022.
200
825
BAZZAN, 2020, op. cit.
826
VÍDEO com suspeitas sobre eleições de 2014 usou lei matemática que não prova fraude. Estado de S. Paulo,
10 out. 2018. Disponível em:
<https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/video-com-suspeitas-sobre-eleicoes-de-2014-usou-lei-mat
ematica-que-nao-prova-fraude/>. Acesso em: 12 mai. 2022.
827
Eduardo Bolsonaro. Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/bolsonaro.enb/videos/206915617400591>. Acesso em 5 jun. 2022.
828
BAZZAN, 2020, op. cit.
829
ROMANO, Giovanna. Eduardo Bolsonaro estuda história em canal acusado de ‘fake news’ . Veja, 27 ago.
2019. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/politica/eduardo-bolsonaro-estuda-historia-em-canal-acusado-de-fake-news>. Acesso
em 12 jun. 2022.
830
BENITES, Afonso. Cerimonial da posse de Bolsonaro impõe série de restrições a jornalistas. El País, , 1 jan.
2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/31/politica/1546277389_982663.html>. Acesso
em: 10 jun. 2022.
831
FILHO, João. Todos nessa foto prometeram jamais receber dinheiro do governo. A maioria recebeu. The
Intercept Brasil, 1 mar. 2020. Disponível em:
<https://theintercept.com/2020/03/01/allan-terca-livre-governo-bolsonaro/>. Acesso em: 10 jun. 2022.
202
contrato com a TV Escola para exibição do seu conteúdo, emissora estatal financiada à época
pelo Ministério da Educação832.
Em inquérito que investiga a organização de atos antidemocráticos contra o STF que
pediam intervenção das Forças Armadas nos poderes, a Polícia Federal encontrou anotações
do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos – atualmente foragido da justiça brasileira –
contendo diretrizes e estratégias prescritas por Olavo de Carvalho para políticos e
influenciadores bolsonaristas. Nas notas, havia a indicação de “documentários da Brasil
Paralelo” como uma das demandas a serem feitas para a Secretaria de Comunicação do
Governo (Secom). As investigações sobre as possíveis relações da produtora com Allan dos
Santos e a Secom não avançaram833.
A Brasil Paralelo entrou para os holofotes da política nacional em 2021 ao virar
matéria da CPI da Pandemia ao lado de outros sites e portais de direita. A comissão solicitou a
quebra de sigilo bancário, telefônico e fiscal da empresa sob suspeita de recebimento de
recursos públicos para veicular posicionamentos favoráveis às orientações e omissões do
governo Bolsonaro no controle da pandemia, a partir de informações falsas sobre a covid834. O
requerimento acusava o grupo de ter influenciado “[...] fortemente na radicalização política
adotada pelo Palácio do Planalto, interferindo e influenciando ações políticas por meio da
divulgação de informações falsas em redes sociais”835. Ainda em 2020, a BP havia lançado o
documentário 7 denúncias: as Consequências do Caso Covid-19, que propõe uma discussão
sobre os usos que políticos estariam fazendo da ciência e questiona o papel de legitimidade
dos especialistas na proposição de medidas de enfrentamento à pandemia, que estariam
prejudicando a economia e cerceando a liberdade dos indivíduos. O documentário chega a
criticar recomendações da OMS como o isolamento social e o uso de máscaras. À época do
lançamento do filme, quando o país registrava a marca de mais de mil mortos por dia pela
covid, Eduardo Bolsonaro fez questão de registrar em suas redes o presidente assistindo à
produção, conclamando seus seguidores a também assistirem836.
832
SILVA, Cedê. Exclusivo: contrato da TV Escola com Brasil Paralelo é de três anos. O antagonista, 9 dez.
2019. Disponível em:
<https://oantagonista.uol.com.br/brasil/contrato-da-brasil-paralelo-com-tv-escola-e-de-tres-anos/>. Acesso em:
12 fev. 2022.
833
RUDNITZKI, Ethel; SCOFIELD, Laura; OLIVEIRA, Rafael. A boiada invade a tela. Agência Pública, 29 jul.
2021. Disponível em: <https://apublica.org/2021/07/a-boiada-invade-a-tela/>. Acesso em: 10 mai. 2022.
834
CPI pede quebras de sigilo de Allan dos Santos e mais 6 donos de sites bolsonaristas. O antagonista, 31 jul.
2021. Disponível em:
<https://oantagonista.uol.com.br/brasil/cpi-pede-quebras-de-sigilo-de-allan-dos-santos-e-mais-6-donos-de-sites-b
olsonaristas/>. Acesso em: 20 jun. 2022.
835
Ibidem.
836
BAZZAN, 2020, op. cit.
203
A BP procurou se defender das acusações da CPI por meio de uma série de lives em
seu canal, apresentando as contas da empresa e afirmando que a política de não receber
dinheiro público faz parte do programa de compliance implementado pela Grant Thornton837.
A produtora também tentou reverter a situação enviando emissários seus para Brasília a fim
de negociar com senadores838. O requerimento de quebra de sigilos da empresa – denunciada
pela produtora e seus pares como um ataque à liberdade de expressão e imprensa – foi
suspenso posteriormente pelo ministro do STF Gilmar Mendes839, que já participou de
produções da Brasil Paralelo.
De acordo com a BP, a polêmica pública colaborou para o crescimento de sua base de
assinantes, que aumentou em 16 mil membros em menos de duas semanas após a decisão da
quebra de sigilo840. Segundo apuração da Revista Piauí, o empresário Jorge Gerdau, membro
do grupo de conselheiros da BP, é quem teria orientado o trio de sócio-fundadores a como
reagir frente à CPI. A mesma matéria traz depoimentos de ex-funcionários que alegam que a
produtora não aderiu ao trabalho remoto durante a pandemia, tendo disponibilizado máscaras
e álcool em gel em suas dependências apenas a partir de março de 2021, a despeito de nunca
ter incentivado seu uso. De acordo com a matéria:
837
BRASIL Paralelo se posiciona sobre pedido de quebra de sigilo bancário na CPI da Covid. Gazeta do Povo, 1
ago. 2021. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/republica/brasil-paralelo-quebra-sigilo-bancario-cpi/>. Acesso em: 20 jun.
2022.
838
CPI da Covid: Brasil Paralelo tenta reverter quebra de sigilo. O antagonista, 7 ago. 2021. Disponível em:
<https://oantagonista.uol.com.br/brasil/cpi-da-covid-brasil-paralelo-tenta-reverter-quebra-de-sigilo/>. Acesso
em: 20 jun. 2022.
839
GILMAR suspende quebra de sigilos de produtora bolsonarista. O antagonista, 3 set. 2021. Disponível em:
<https://oantagonista.uol.com.br/brasil/gilmar-suspende-quebra-de-sigilos-da-produtora-bolsonarista/>. Acesso
em: 20 jun. 2022.
840
DESIDERI, Leonardo. Polêmica da CPI fez crescer base de assinantes, diz Brasil Paralelo. Gazeta do Povo,
11 ago. 2021. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/polemica-da-cpi-fez-crescer-base-de-assinantes-diz-brasil-
paralelo/>. Acesso em: 20 jun. 2022.
841
COSTA, Ana Clara. Distanciamento social. Piauí, Rio de Janeiro, set. 2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/distanciamento-social/>. Acesso em: 22 set. 2022.
204
842
AUMENTO do desmatamento é marca incontestável do governo Bolsonaro. O Globo, 19 jul. 2022.
Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/coluna/2022/07/aumento-do-desmatamento-e-marca-incontestavel-d
o-governo-bolsonaro.ghtml>. Acesso em 20 jun. 2022.
843
RUDNITZKI, Ethel; SCOFIELD, Laura; OLIVEIRA, Rafael. A boiada invade a tela. Agência Pública, 29 jul.
2021. Disponível em: <https://apublica.org/2021/07/a-boiada-invade-a-tela/>. Acesso em: 10 mai. 2022.
844
Ministro da Justiça marca presença na premiere de Entre Lobos no Rio de Janeiro e demonstra preocupação.
Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/estreia-entre-lobos-rio-de-janeiro>.
Acesso em 18 jun. 2022.
845
GOBBI, Nelson. Rafael Nogueira deixa a presidência da Biblioteca Nacional e vai para a Secretaria Especial
da Cultura. O Globo, 8 fev. 2022. Disponível em:
205
2019, quando era então diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte. Os produtores o
haviam procurado a fim de receber indicações de atores e diretores que aceitassem trabalhar
em suas produções846.
Em reportagem publicada em maio de 2021, o jornal Folha de S. Paulo apresentou
números que evidenciam o crescimento da Brasil Paralelo durante o governo Bolsonaro, indo
de 15 mil assinantes em 2018 para a casa de 180 mil logo em 2020, registrando um
crescimento de mais de 400% de sua receita nesse mesmo período847. A matéria da Revista
Piauí sobre a estratégia publicitária da produtora traz dados interessantes a respeito do público
consumidor da BP e sua relação com a base bolsonarista:
<https://oglobo.globo.com/cultura/rafael-nogueira-deixa-presidencia-da-biblioteca-nacional-vai-para-secretaria-e
special-da-cultura-25386030>. Acesso em: 20 jun. 2022.
846
ZANINI, Fábio. Produtora Brasil Paralelo vive crescimento meteórico e quer ser 'Netflix da direita'. Folha de
S. Paulo, 29 mai. 2021. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/05/produtora-brasil-paralelo-vive-crescimento-meteorico-e-quer-
ser-netflix-da-direita.shtml>. Acesso em 22 fev. 2022.
847
Ibidem.
848
MAZZA, Luigi. No Facebook, Brasil Paralelo é recordista de gastos com propaganda política. Piauí, 27 maio
2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/no-facebook-brasil-paralelo-e-recordista-de-gastos-com-propaganda-politica/>.
Acesso em: 10 mar. 2022.
849
Ibidem.
850
FIRMINO, 2020, p. 175.
851
BARBOSA, Bernardo; FÁVERO, Bruno; ELY, Débora; BARBOSA, João. Pressionados por redes sociais,
bolsonaristas levam desinformação ao Telegram e quintuplicam audiência no app em um mês. Aos Fatos, 4 fev.
2021. Disponível em:
206
<https://www.aosfatos.org/noticias/pressionados-por-redes-sociais-bolsonaristas-levam-desinformacao-ao-telegr
am-e-quintuplicam-audiencia-no-app-em-um-mes/>. Acesso em: 12 jun. 2022.
852
LOPES, Débora. A Brasil Paralelo não quer que você leia esta entrevista. The Intercept Brasil, 19 mai. 2022.
Disponível em: <https://theintercept.com/2022/05/19/brasil-paralelo-entrevista-historiadora-leandro-ruschel/>.
Acesso em: 6 jun. 2022.
853
COSTA, Ana Clara. Distanciamento social. Piauí, Rio de Janeiro, set. 2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/distanciamento-social/>. Acesso em: 22 set. 2022.
854
Ibidem.
855
ZANINI, 2021, op. cit.
856
SAYURI, Juliana. Justiça paralela. The Intercept Brasil, 9 dez. 2021. Disponível em:
<https://theintercept.com/2021/12/09/brasil-paralelo-lanca-ofensiva-judicial-para-calar-criticos-e-reescrever-a-pr
opria-historia/>. Acesso em: 14 abr. 2022.
207
Não sou o único a sofrer uma tentativa de intimidação da parte da Brasil Paralelo.
Tenho, próximo de mim, jovens estudantes que vêm sendo alvo de investidas da
produtora que deve dispor de muito dinheiro para mobilizar escritórios de advocacia
para tentar impedir que pós-graduandos desenvolvam pesquisas e publiquem suas
conclusões sobre o assunto pelas pós-graduações do Brasil [...]858.
857
Carlos Zacarias. 20 ago. 2021. Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/carloszacarias.senajunior/posts/6315037401840017>. Acesso em 22 jun. 2022.
858
Ibidem.
859
LOPES, 2022, op. cit.
860
NASCIMENTO, Raul Holderf. Deputados da Alerj votam hoje proposta que concede Medalha Tiradentes à
empresa Brasil Paralelo. Conexão Política, 17 mai. 2022. Disponível em:
<https://www.conexaopolitica.com.br/politica/deputados-da-alerj-votam-hoje-proposta-que-concede-medalha-tir
adentes-a-empresa-brasil-paralelo/>. Acesso em: 20 jun. 2022.
208
corrupção que não foram imputados ao presidente861. Logo em seguida o TSE também
determinou a suspensão da monetização da Brasil Paralelo e de outros três canais do
YouTube, além de vetar até o fim das eleições a divulgação do documentário “Quem mandou
matar Jair Bolsonaro?” pela produtora, que seria lançado a seis dias do segundo turno eleitoral
abordando o ataque sofrido por Bolsonaro em 2018. De acordo com a decisão do ministro
Benedito Gonçalves, os canais vinham adotando um “comportamento simbiótico” junto à
campanha de Bolsonaro, se valendo de notícias falsas que alcançam “significativa repercussão
e efeitos persistentes” mesmo após a remoção dos conteúdos das redes862.
Fato curioso é que semanas antes, os sócios-fundadores da Brasil Paralelo estiveram
em um jantar organizado para grupos do grande empresariado que contou com a participação
do então candidato Lula. O evento foi promovido pelo grupo Esfera Brasil, um think tank que
promove diálogos entre empresários, governos e instituições863. Na ocasião, a Brasil Paralelo
esclareceu sua participação no evento dizendo que participava de diversos espaços como este
a fim de observar como os políticos e as figuras do “establishment” discursam, reiterando que
são anticomunistas ferrenhos e que consideram Lula um “ladrão ex-presidiário”: "Foi uma
palestra. Serviu para alguma coisa estar lá. [...] A gente aprendeu um pouco também como é
que performa o cara ali na frente, o que ele mente, desvia, como ele desvia, quais são os
argumentos. [...]”864, afirmou Lucas Ferrugem.
Poucos meses após a derrota de Bolsonaro e do presidente Lula ter assumido seu novo
mandato, a BP lançou o documentário A Direita no Brasil, propondo uma análise dos
principais “erros e acertos” da direita desde o que seria a sua emergência em 2013 até a
derrota eleitoral sofrida em 2022. A produção conta com entrevistas de expoentes do campo
como Nikolas Ferreira, Bia Kicis, Luiz Felipe D'ávila, Aldo Rebelo, Sérgio Moro, Janaina
Paschoal e membros do MBL, numa narrativa que tende à aprovação do governo Bolsonaro
enquanto período de crescimento econômico, combate à corrupção e ao comunismo.
861
MESTRE, Gabriela. TSE determina remoção de vídeo do Brasil Paralelo contra Lula. Poder 360, 13 out.
2022. Disponível em:
<https://www.poder360.com.br/eleicoes/tse-determina-remocao-de-video-do-brasil-paralelo-contra-lula/>.
Acesso em 2 fev. 2023.
862
NETTO, Paulo Roberto. TSE mantém Brasil Paralelo desmonetizado e veta vídeo da facada até eleição. UOL,
20 out. 2022. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/10/20/tse-mantem-brasil-paralelo-desmonetizado-e-veda-video-da-fac
ada-ate-eleicao.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 2 fev. 2023.
863
BRASIL Paralelo esclarece participação em evento com Lula. Gazeta do Povo, 29 set. 2022. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2022/brasil-paralelo-esclarece-participacao-em-evento-com-lula/>.
Acesso em 2 fev. 2023.
864
BRASIL Paralelo justifica ida a jantar com Lula: 'Aprendemos um pouco'. UOL, 28 set. 2022. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/09/28/brasil-paralelo-ida-jantar-lula-aprender-como-mente.htm>.
Acesso em 2 fev. 2023.
209
Fato é que, para além do alinhamento político e ideológico evidenciado nos conteúdos
da produtora, a crescente imiscuidade que a Brasil Paralelo e seus associados vieram
apresentando com as instituições do governo Bolsonaro põe em xeque seu discurso de não
associação ao poder público e ao Estado. Ainda que de forma indireta, evidencia-se que houve
o recebimento de investimento por parte do governo Bolsonaro, seja este de caráter
político-institucional, através da ocupação de cargos públicos por figuras associadas à
produtora, seja de valor simbólico, ao ter suas produções exibidas por uma emissora estatal,
além de serem veiculadas e indicadas pela própria figura do então presidente.
Ressalta-se que a parceria firmada com a TV Escola – emissora que até então
Bolsonaro afirmava que pretendia fechar – consistiu não só num meio de fornecer propaganda
gratuita para a produtora, mas, na medida em que se trata de uma emissora voltada para a
disponibilização de conteúdos didáticos para professores e alunos, significou a validação e a
oferta das produções da BP pelo governo federal enquanto material educativo passível de ser
utilizado em sala de aula. Ademais, Balestro destaca como o modelo empresarial que a BP
apresenta é utilizado como prerrogativa para a sua inserção “descompromissada” nas
instituições públicas: “Desde 2019, eles realizam algumas palestras em escolas e tentam fazer
essa articulação em espaços públicos para poder se legitimar e se dizer apenas uma empresa
de entretenimento e educação”865.
Salgado e Jorge chamam a atenção para como o “paralelismo” ao qual alude o nome
da produtora também incorpora um elemento amplamente mobilizado pelo bolsonarismo
através das instituições e do próprio campo cultural. Os canais “não oficiais” de emissão de
informações e notícias; o “gabinete paralelo” ao Ministério da Saúde influenciando nas
decisões do governo durante o enfrentamento da pandemia da covid-19; a ação das milícias
enquanto um poder militar “paralelo”, porém intimamente entrelaçado com o Estado; o caso
do “orçamento paralelo” bilionário da União, que destinou verbas à parlamentares aliados do
governo Bolsonaro em troca de apoio político, são algumas das expressões do uso desses
“paralelismos” pelo bolsonarismo866. A Brasil Paralelo forneceria mais uma componente
desse paralelismo bolsonarista, colaborando no seu front cultural.
865
LOPES, 2022, op. cit.
866
SALGADO, Julia; JORGE, Marianna. Paralelismos em disputa: o papel da Brasil Paralelo na atual guerra
cultural. ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, 2021, p. 726-727.
210
CAPÍTULO III:
867
VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória. Um “Eichmann de papel” e outros ensaios sobre o
revisionismo. Campinas: Papirus, 1988, p. 11.
868
TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar: história, memória e política. Lisboa: Unipop, 2012, p. 149.
869
Ibidem, p. 151-153.
870
Ibidem, p. 156-157.
871
MELO, Demian Bezerra de. A miséria da historiografia. Outubro, n. 14, jul/dez 2006, p. 116.
212
872
TRAVERSO, 2012, p. 157. [grifos no original]
873
Ibidem, p. 157-161.
874
KALLÁS, Ana Lima. Usos públicos da história: origens do debate e desdobramentos no ensino de história.
Revista História Hoje, v. 6, n. 12, 2017, p. 144.
875
TRAVERSO, op. cit., p. 150.
213
876
NAPOLITANO, Marcos; JUNQUEIRA, Mary Anne. Negacionismos e Revisionismos: o conhecimento
histórico sob ameaça. Síntese dos debates e posicionamentos surgidos no evento promovido pelo Departamento
de História da FFLCH / USP – Universidade de São Paulo, p. 2. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5207773/mod_folder/content/0/NAPOLITANO%2C%20Marcos%3B
%20JUNQUEIRA%2C%20Mary%20Anne.%20Como%20historiadores%20e%20professores%20devem%20lid
ar%20com%20negacionismos%20e%20revisionismos..pdf?forcedownload=1>. Acesso em: 5 mai. 2022.
877
NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo e revisionismo histórico no século XXI. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla (Orgs.) Novos combates pela história: desafios, ensino. São Paulo: Editora Contexto, 2021, p.
96-97.
878
Ibidem, p. 98.
879
Ibidem, p. 99-100.
880
Ibidem, p. 102.
214
881
SOUTELO, 2009 apud MELO, Demian Bezerra de.Revisão e revisionismo historiográfico: os embates sobre
o passado e as disputas políticas contemporâneas. Marx e o Marxismo v.1, n.1, jul/dez 2013. p. 58.
882
VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre; BEVERNAGE, Berber. Apresentação. Negacionismo: história,
historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 41, n. 87, 2021, p. 17-18.
883
SOUTELO, 2009 apud SENA JR., Carlos Zacarias. MELO, Demian Bezerra de; CALIL, Gilberto.
Introdução. In: Contribuição à crítica da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequência, 2017, p. 21.
215
884
SENA JR., Carlos Zacarias. A “boa” memória: algumas questões sobre revisionismo na historiografia
brasileira contemporânea. In: SENA JR., Carlos Zacarias. MELO, Demian Bezerra de; CALIL, Gilberto.
Contribuição à crítica da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequência, 2017, p. 62.
885
Ibidem, p. 62-63.
886
MELO, 2013, p. 50.
887
Ibidem, p. 62-68.
888
DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes,
1981.
889
MELO, 2013, op. cit., p. 61-69.
216
890
LOFF, Manuel; SOUTELO, Luciana. A suspensão da ideia de Revolução na contemporaneidade: o caso
português. In: SENA JR., Carlos Zacarias. MELO, Demian Bezerra de; CALIL, Gilberto. Contribuição à crítica
da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequência, 2017, p. 146-150.
891
Ibidem, p. 150.
892
Ibidem, p. 147.
893
Ibidem, p. 150.
217
científica passa a concorrer como igual ao lado de discursos embasados em opiniões, sistemas
de crença e impressões pessoais ou de grupo. Como observado por André Bonsanto, o cenário
de pós-verdade não se resume à profusão das chamadas fake news, mas corresponde a um
fenômeno maior da “desordem informativa” contemporânea, um problema não só de caráter
epistemológico, mas político e social894. Já Kakutani observa como o fenômeno da
pós-verdade em voga se alimenta de um relativismo que
[...] está em ascensão desde o início das guerras culturais, na década de 1960.
Naquela época, ele foi abraçado pela Nova Esquerda, ansiosa para expor os
preconceitos do pensamento ocidental, burguês e primordialmente masculino; e por
acadêmicos que pregavam o evangelho do Pós-Modernismo, que argumentava que
não existiam verdades universais, apenas pequenas verdades pessoais – percepções
moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo. Desde então, o discurso
relativista tem sido usurpado pela direita populista, incluindo os criacionistas e os
negacionistas climáticos, que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as
teorias “baseadas na ciência”895.
Uma relação corrosiva que mistura as reflexões do saber histórico com o conjunto de
preconceitos e interesses políticos que se apresentam como se fossem a verdade
desse passado, na qual os produtores dessa historiografia midiática se colocam como
intérpretes e tradutores de competência assentada na produção historiográfica e
projetada para o grande público896.
894
BONSANTO, André. Narrativas “historiográfico-midiáticas” na era da pós-verdade: Brasil Paralelo e o
revisionismo histórico para além das fake news. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, maio 2021, p. 3.
895
KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade: notas sobre a mentira na Era Trump. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2018, p. 17.
896
MENESES, Sônia. Uma história ensinada para Homer Simpson: negacionismos e os usos abusivos do
passado em tempos de pós-verdade. Revista História Hoje, v. 8, no 15, 2019, p. 74.
218
897
CASIMIRO, 2020, p. 77.
898
ROCHA, Igor; PRATES, Thiago. Revisionismos, negacionismos e usos políticos do passado: uma
apresentação. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, Uberlândia, v. 34, n.1, jan./jun. 2021, p. 6.
899
Ibidem, p. 5.
900
VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 19-20.
219
Elemento importante destacado pelo historiador Arthur Avila, esses usos da história
operam a falsificação do passado não só por meio de distorções no âmbito do método
histórico e do trabalho com dados empíricos, mas principalmente “[...] através de silêncios,
mistificações, ocultamentos e minimizações que se dão no âmbito narrativo, [...] que visam
subtrair determinados passados de nossos presentes, tornando-os insubstanciais, e impor
significados unívocos à nossa história”901, no geral, associados à manutenção dos interesses de
grupos dominantes. Nestes termos, a análise crítica dessas narrativas deve envolver de modo
concomitante a atestação da veracidade de determinados eventos e processos junto do
destrinchamento de suas operações intelectuais e da problematização dos seus sentidos e
interesses políticos e ideológicos subjacentes, que ainda refletem em questões éticas e
políticas do saber histórico902. Nas palavras do autor, que interpreta o que estamos aqui
chamando de “revisionismo ideológico” enquanto “negacionismo histórico”:
901
AVILA, Arthur Lima. Qual passado escolher? Uma discussão sobre o negacionismo histórico e o pluralismo
historiográfico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 41, n. 87, 2021, p. 164.
902
Ibidem, p. 165.
903
Ibidem, p. 168.
904
VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 21.
220
905
ROCHA; PRATES, 2021, p. 6-7.
906
NAPOLITANO; JUNQUEIRA. op. cit., p. 3.
907
SENA JR., 2017, p. 51-52.
908
MELO, 2006, op. cit.
221
909
ROCHA; PRATES, 2021, p. 6.
910
VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021, p. 24-25.
911
QUERO, Caio. Bolsonaro defende discurso sobre Ustra e 'nazismo de esquerda' no último dia em Israel. BBC
News Brasil, 2 abr. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47794953>. Acesso em: 20
set. 2022.
912
GONÇALVES, Géssica Brandino. Portugueses nem pisaram na África, diz Bolsonaro sobre escravidão.
Folha de S. Paulo, 31 jul. 2018. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/portugueses-nem-pisaram-na-africa-diz-bolsonaro.shtml>.
Acesso em 20 set. 2022.
222
Passemos agora para a investigação sobre como a Brasil Paralelo, tomada enquanto
aparelho de ação político-ideológica das novas direitas, uma trincheira no seio da “guerra
cultural” atuando no âmbito das disputas de narrativa, se alimenta desses fenômenos ao
mobilizar determinados usos da história e do passado por meio da difusão de suas produções
midiáticas.
913
ROCHA; PRATES, op. cit., p. 8.
914
ALMEIDA, Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet como fonte
primária para pesquisas históricas. Aedos, Porto Alegre, n. 8, v.3, jan./jun. 2011, p. 28.
223
Brasil Paralelo na plataforma enquanto uma produtora de documentários com “viés de direita
política”, transmissora de “notícias falsas” e produtora de conteúdo “anti-intelectualista”915.
A despeito de seu explícito envolvimento com as organizações, políticos, intelectuais e
com as ideias das direitas brasileiras – estando próxima de sua ala extremada em particular –,
a Brasil Paralelo insiste em reiterar amiúde uma suposta isenção de “viés político”, dizendo
não declarar apoio a políticos em particular, não se vincular a partidos, ou à pautas identitárias
e ideológicas916. Seus conteúdos seriam produzidos de forma “imparcial”, com o propósito de
serem meramente informativos. De acordo com artigo publicado em seu site:
A Brasil Paralelo não é de extrema direita, nem conservadora, nem liberal, nem
progressista. Preocupa-se com a busca da verdade; portanto, não faz parte de um
grupo fixo. Há liberdade na busca da verdade. A Brasil Paralelo não define seu
conteúdo com base em nenhuma corrente, em nenhum grupo. Não é possível ser de
extrema direita porque não se sabe o que isso é e porque não tem como significar
algo para todos. A empresa é guiada apenas por fontes e valores917.
915
SAYURI, Juliana. Brasil Paralelo faz 'guerra de edições' e disputa narrativas na Wikipédia. TAB UOL, 9 set.
2020. Disponível em:
<https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/09/guerra-de-edicoes-a-disputa-politica-de-narrativas-na-wikip
edia.htm>. Acesso em: 07 jul. 2022.
916
A Brasil Paralelo é bolsonarista? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/a-brasil-paralelo-e-bolsonarista>. Acesso em: 11 fev. 2022.
917
A Brasil Paralelo é uma farsa? A descrição na Wikipédia diz que sim. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
918
DIRANI, Claudio. PERFIL | Henrique Viana abre as portas da Brasil Paralelo. Revista Esmeril, 21 jan. 2020.
Disponível em:
<https://revistaesmeril.com.br/perfil-%E2%94%82-henrique-viana-abre-as-portas-da-brasil-paralelo/>. Acesso
em: 20 mai. 2022.
224
Somente o que é bom é resgatado porque a empresa não adere ao relativismo. Todos
os sócios e colaboradores acreditam que é possível encontrar e perseguir o que é
bom, seja conhecimento, padrões morais ou o sentimento pelo país em que se vive.
Finalmente, tudo é guardado no coração, porque não basta conhecer
intelectualmente, é preciso mudar as próprias práticas. [...] O conteúdo é entregue
com a colaboração de grandes especialistas, com verdade e transparência. O
entretenimento é o meio de difundir e resgatar os valores e a cultura919.
Mas afinal, quais seriam esses “bons valores” que a produtora se empenha em
difundir? Em seu site, a BP os detalha:
Esses valores são concebidos como parte da cultura interna da empresa, aparecendo
como critério de seleção dos “colaboradores” da produtora, se tratem dos funcionários ou dos
“especialistas” convidados para suas produções. São esses valores que também orientarão
suas produções midiáticas.
A concepção de mundo assumida pela Brasil Paralelo a partir desses “valores” se
baseia fortemente na noção olavista de "guerra cultural", a fim de obter, além da hegemonia
política, a hegemonia cultural, que estaria sob o poder da esquerda munida pelo “marxismo
cultural”. A partir dessa noção de “guerra cultural”, “[...] se constitui uma espécie de
‘contracampo’ intelectual, com epistemologia e enunciados próprios, que se contrapõe ao
‘establishment do politicamente correto’ [...]”921. Os focos de confronto são direcionados para
919
O que é a Brasil Paralelo? Conheça a história completa da empresa. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/o-que-e-a-brasil-paralelo>. Acesso em 22 out. 2022.
920
A Brasil Paralelo é uma farsa? A descrição na Wikipédia diz que sim. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
921
FIRMINO, 2020, op. cit., p. 161.
225
922
Brasil Paralelo. 7 denúncias: as consequências do caso covid-19. Plataforma de Membros Brasil Paralelo, jun.
2020. Disponível em:
<https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/7-denuncias-as-consequencias-do-caso-covid-19>. Acesso em
10 jun. 2022.
923
DESIDERI, Leonardo. Brasil Paralelo quer 1 milhão de membros até 2022 e mira ramo do entretenimento.
Gazeta do Povo, 18 set. 2020. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/brasil-paralelo-1-milhao-membros-2022/>. Acesso em: 10
abr. 2022.
924
NICOLAZZI, Fernando In: Historiar-Se. O BRASIL PARALELO PRODUZ HISTÓRIA? | Historiar-se.
YouTube, 23 mar. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=R71LxS5FhD8&t>. Acesso em 10
jul. 2022.
226
Seja na forma do apelo direto ao espectador pela assinatura dos planos de membresia,
que garantiriam a produção de conteúdos livres de financiamento – e portanto, da influência –
estatal, seja em seu discurso sobre as raízes da crise brasileira e nas propostas para a sua
superação, o que se investe aqui é na desmoralização do público frente ao privado. No lugar
do público, é a família que seria por excelência a responsável por oferecer um espaço
formativo aos indivíduos929. A situação crítica na qual se encontra a educação brasileira seria
925
MORAES, Luiz de. Após protestos e críticas, documentário da Brasil Paralelo é exibido na UFPR. Gazeta do
Povo, 4 mar. 2022. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/apos-protestos-e-criticas-documentario-da-brasil-paralelo-e
-exibido-na-ufpr/>. Acesso em 12 jun. 2022.
926
NICOLAZZI, Fernando. In: Historiar-Se. BRASIL PARALELO PRODUZ HISTÓRIA? (PARTE II) | c/ Prof.
Dr. Fernando Nicolazzi) | Historiar-Se. YouTube, 26 jun. 2022. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=RRKsNj1MT-4>. Acesso em 2 abr. 2023.
927
Idem 2019, op. cit.
928
PEREIRA, Eduardo; SANTOS, Mayara Balestro Brasil Paralelo: atuação, dinâmica e operação: a serviço da
extrema-direita (2016-2020). In: SANTOS, Mayara Balestro; MIRANDA, João Elter (Orgs.). Nova direita,
bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo [livro eletrônico]. Ponta Grossa: Texto e
Contexto, 2020, p. 342.
929
NICOLAZZI, 2019, op. cit.
227
930
PAULO, Diego Martins. Os mitos da Brasil Paralelo: uma face da extrema-direita brasileira. REBELA,
Florianópolis, v. 10, n. 1, jan./abr. 2020, p. 108.
931
A Brasil Paralelo é uma farsa? A descrição na Wikipédia diz que sim. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
228
932
SALGADO, Julia; JORGE, Marianna. Paralelismos em disputa: o papel da Brasil Paralelo na atual guerra
cultural. ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, 2021, p. 733.
933
ROSA, Pablo Ornelas et. al. Estratégias de constituição de um novo regime de verdade a partir das produções
audiovisuais da Brasil Paralelo: uma análise sobre o negacionismo. n: SANTOS, Mayara Balestro; MIRANDA,
João Elter (Orgs.). Nova direita, bolsonarismo e fascismo: reflexões sobre o Brasil contemporâneo [livro
eletrônico]. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020, p. 323.
934
SALGADO; JORGE, op. cit., p. 730-731.
935
CASTRO, Gabriel de Arruda. História sem “amarras ideológicas”: Brasil Paralelo é destaque em congresso
internacional. Gazeta do Povo, 24 jun. 2021. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/historia-sem-amarras-ideologicas-brasil-paralelo-destaque-
congresso-internacional/>. Acesso em 20 jun. 2022.
229
escravidão é descrita em seus filmes como uma “mancha na história brasileira”936. Tais
acusações à produtora seriam feitas em razão das fontes e da bibliografia utilizadas, que
divergiriam da historiografia hegemônica nos cursos universitários, que seria de viés
ideológico e marxista. Assim, o que a BP faria seria apenas provocar um rompimento com a
“visão tradicional da história”, que estaria baseada na interpretação da história através de
ciclos econômicos e de acordo com a lógica de dominantes versus dominados. Nos termos da
BP:
936
A Brasil Paralelo é uma farsa? A descrição na Wikipédia diz que sim. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
937
Ibidem.
938
Ibidem.
230
mas sim “antiacademicista”: “[...] contra o pensamento de que o conhecimento está preso na
Universidade, limitado por um único tipo de bibliografia, com um único tipo de linguagem e
apenas com aprovação de um grupo ideológico e partidário”939.
Vimos como esse tipo de argumento conforma, na verdade, uma estratégia de
desqualificação do conhecimento histórico praticado nas universidades e no âmbito da
educação formal, que, por sua vez, passa pela deslegitimação da figura do historiador e do
professor de história a fim de se colocarem como seus legítimos substitutos. É importante
observar que esse antagonismo produzido contra professores de história e a historiografia
acadêmica é usado ainda como recurso publicitário para se vender a “verdadeira história” que
estaria sendo ocultada por esses agentes. Como contrapartida, essa estratégia trata de ampliar
no seu público uma animosidade e um discurso de ódio contra professores de história, dado
que, como bem observa Nicolazzi, pode ser evidenciado através das interações e comentários
da audiência dos conteúdos da Brasil Paralelo nas plataformas e redes sociais940. De outra
parte, quando parece perder no campo da reflexão teórica, a produtora apela então para
medidas jurídicas e para a intimidação de pesquisadores, professores e jornalistas que
abordam seus conteúdos e estratégias de modo crítico, atentando contra a liberdade de ensino
e de pesquisa941. Assim, de modo contraditório a Brasil Paralelo
A partir daí, considera-se “lógico e racional somente aquilo que se encaixa nos
padrões por eles estabelecidos, atribuindo aos demais discursos divergentes a condição de
irracionalidade, névoa, emoção, barbárie etc., reforçando certo nível de hierarquia por meio da
desqualificação e depreciação do outro”943. Vejamos como esses usos da história aparecem
articulados em suas principais produções944.
939
Ibidem.
940
NICOLAZZI, 2022, op. cit.
941
Ibidem.
942
BONSANTO, 2021, p. 12.
943
ROSA, 2020, p. 320.
944
A despeito das produções da Brasil Paralelo apresentarem uma estrutura narrativa – revelada nos pontos de
narração presentes ao longo dos filmes-documentários, que em sua maioria são narrados por Filipe Valerim –,
elas são maiormente produzidas a partir das falas concedidas pelos “especialistas” entrevistados. Contudo,
optou-se neste trabalho pela referência aos discursos e narrativas veiculadas enquanto sendo de autoria coletiva
231
Lançada entre 2016 e 2017, a série Congresso Brasil Paralelo se trata da primeira
produção documentária da empresa disponibilizada no YouTube. Produzida a partir das
entrevistas concedidas aos sócio-fundadores no início do projeto, a série conta com seis
episódios que prometem um “diagnóstico” da crise brasileira bem como busca indicar
“propostas” para a sua solução, passando por temas como educação, economia e segurança
pública. Logo no segundo capítulo, Terra de Santa Cruz – A História não contada945, a BP
inicia sua empreitada no âmbito da ressignificação de temas da história, fazendo um “resgate
histórico” do período colonial até a redemocratização em 1985, tudo isso num filme de 30
minutos.
Os outros episódios do Congresso Brasil Paralelo são dedicados a uma análise das
“matrizes ideológicas” que conformariam o cenário político e cultural brasileiro em
decadência, e à crítica de grupos sociais que estariam dividindo o país por meio de pautas
identitárias. Além da moralidade cristã conservadora, a racionalidade neoliberal atravessa
toda a produção, associando a crise brasileira atual à falta de “liberdade econômica” e ao
"gigantismo do Estado”. O último capítulo da série, Impeachment – Do Apogeu à Queda946,
dedicado a narrar o processo de afastamento de Dilma Rousseff da presidência, foi aquele que
alcançou maior sucesso à época e garantiu a continuidade do projeto.
Mas seria por meio da produção da série Brasil: A Última Cruzada, vendida como "o
maior resgate histórico já produzido sobre o nosso país"947, que o projeto de revisionismo do
passado nacional empreendido pela Brasil Paralelo alcançaria um novo patamar. Comentando
sobre o processo de produção da série em entrevista para o podcast do Mises Brasil, Filipe
Valerim dizia que “havia uma insegurança na produção de documentários sobre história do
Brasil, se haveria uma boa recepção do público. No final, a série ‘Brasil: A Última Cruzada’
alcançou maior sucesso que o ‘Congresso Brasil Paralelo’, que propunha um diagnóstico do
cenário atual”948.
Dividida em seis capítulos, a produção exalta “as origens europeias” do Brasil,
narrando a “beleza” do processo do “descobrimento” e da colonização, passando pela
da Brasil Paralelo – indicando em alguns momentos a autoria pessoal das falas dos entrevistados – posto
formarem um nexo discursivo e ideológico próprio compartilhado e construído pelas figuras entrevistadas.
945
Brasil Paralelo. Capítulo 2: Terra de Santa Cruz | Congresso Brasil Paralelo | [Oficial]. YouTube, 15 dez. 2016
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8CYt95y5fUU&t=1s>. Acesso em 11 jan. 2022.
946
Brasil Paralelo. Capítulo 6: Impeachment: do Apogeu à Queda | Congresso Brasil Paralelo | [Oficial].
YouTube, 5 abr. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PZtwu0IWWHY&t=2852s>. Acesso
em 12 jan. 2022
947
Brasil Paralelo. Capítulo 1 - A Cruz e a Espada | Brasil - A Última Cruzada. YouTube, 20 set. 2017.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TkOlAKE7xqY&t=2s>. Acesso em: 13 jan. 2022.
948
Mises Brasil. Podcast 368 - Brasil Paralelo (Filipe Valerim). [Podcast]. Disponível em:
<https://mises.org.br/podcasts/379/podcast-368-brasil-paralelo-filipe-valerim>. Acesso em 10 abr. 2022.
232
independência e pelo período imperial até chegar à República. A narrativa propõe “desfazer”
a ideia de que os portugueses eram “bandidos que matavam e estupravam os índios”, quando
teriam, na verdade, se sacrificado vindo a uma terra desconhecida “desbravando” o território e
trazendo “cultura” e “civilização” aos indígenas. Ao Império é relegado todas as virtudes,
enquanto a República é tomada como “o maior erro da história do Brasil”. Há ainda um
episódio dedicado à Revolução Francesa, trazendo um rechaço às ideias iluministas de
igualdade, que teriam necessariamente levado à “violência da guilhotina”. O último capítulo,
Era Vargas: o Crepúsculo de um Ídolo949, articula a história republicana à centralização e ao
“crescimento do Estado” a partir de Getúlio Vargas.
A série se baseia, assim, na construção de uma narrativa mítica sobre a formação da
nação e da identidade brasileira, pretendendo articulá-la a um “resgate do patriotismo” e a
exposição dos “verdadeiros heróis e vilões” da nossa história. Narrada em tom épico e
nostálgico como “uma história de virtudes, sacrifício e coragem”, a série exalta as raízes
europeias do Brasil estabelecidas a partir dos portugueses, herdeiros da tradição presente na
filosofia grega, no direito romano e na moral judaico-cristã, tomadas como base da
“civilização ocidental”. Em contrapartida, tem-se a minimização da contribuição dos povos
indígena e africano para a constituição do país e da população. O papel da Igreja e dos jesuítas
na conquista do “Novo Mundo” também é enaltecido enquanto o islamismo e os povos
mulçumanos são representados como inimigos do povo e da fé cristã, exaltando-se o
movimento das Cruzadas que conseguiu reconquistar a “Terra Santa” dos mouros. As guerras
de invasão e o genocídio indígena são justificáveis na medida em que os indígenas são
retratados na narrativa enquanto seres de cultura inferior que viviam em estado de barbárie, a
ser combatida através da fé cristã e da empresa mercantilista. Neste mesmo sentido exalta-se
as ações dos bandeirantes no “desbravamento” do território nacional.
Neste ínterim, opera-se um grande apagamento e relativização da escravidão africana,
negando sua origem étnico-racial e resumindo-a a uma análise moralista enquanto uma
"mancha" na história da humanidade, e não enquanto um processo de dimensão política,
econômica e social, parte estruturante da sociedade capitalista brasileira. Enquanto o fim da
escravidão aparece como obra de monarcas e de figuras específicas no poder, sem grandes
menções às revoltas e aos grupos de resistência, o quadro social ao qual os ex-escravizados se
viram submetidos no pós-abolição é ignorado na série. Neste sentido, a narrativa da série trata
de reproduzir o mito fundador do homem branco cristão europeu, fornecendo um ideal de
949
Brasil Paralelo. Era Vargas: o Crepúsculo de um Ídolo. YouTube, 9 abr. 2018. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=FRzjxqqZgr4>. Acesso em 15 jan. 2022.
233
cidadão a ser seguido e cultuado950. Não é à toa que os entrevistados nas produções da Brasil
Paralelo compartilham dessa mesma imagem em sua grande maioria. O único homem negro
com algum destaque nas produções, como observado por Salgado e Jorge, trata-se do
professor Paulo Cruz, que propõe uma leitura revisionista de resgate do papel da família real
portuguesa e da Princesa Isabel para o abolicionismo no país, em detrimento do apagamento
do legado de Zumbi e de figuras abolicionistas históricas. Já as poucas mulheres chamadas à
cena – todas mulheres brancas, por sinal – se tratam de figuras conhecidas do
conservadorismo brasileiro como Joice Hasselmann, Janaína Paschoal e Ana Caroline
Campagnolo, que tratam de reproduzir o discurso patriarcal e sexista de seus pares
masculinos951.
Brasil: A Última Cruzada mostra ainda uma nítida indignação contra o fim da
monarquia, com um discurso carregado de saudosismo das instituições do Império, tomado
como momento de maior estabilidade política e ordem social. A vinda da família real
portuguesa para o Brasil em 1808 é enaltecida como momento de consolidação da herança
cultural portuguesa iniciada em 1500. A proclamação da República, por seu turno, é resumida
a um golpe militar mal feito, e o sistema republicano e suas instituições aparecem como
responsáveis pela situação política do Brasil hoje. Com isso, a narrativa da Brasil Paralelo
fornece munição ao movimento neomonarquista, que “propõe uma monarquia
parlamentarista, sob o argumento de que só no período do Império, houve estabilidade e
democracia ‘de verdade’”952. A própria presença dos descendentes e pretensos herdeiros do
trono da extinta casa imperial atesta a influência desses grupos na construção narrativa da
produção.
Já o episódio dedicado à era Vargas traz a associação do governo a Alemanha nazista,
enquanto relega o nazifascismo ao mesmo campo do comunismo. O Estado Novo aparece
como a “ditadura mais implacável que o Brasil conheceu na sua história”, enquanto o regime
militar chega a ser referido como “uma brincadeira de criança” perto da ditadura varguista. O
problema do “gigantismo do Estado” é associado às críticas às leis trabalhistas criadas no
período e vigentes até hoje, que oneram em excesso os empresários e à longo prazo apenas
prejudicaria os trabalhadores, levando à inflação, à queda do valor dos salários e ao
“empobrecimento geral do povo”.
950
SALGADO; JORGE, 2021, p. 732.
951
Ibidem, p. 733.
952
FIRMINO, 2021, p. 184.
234
953
Ibidem, p. 181.
954
Como Firmino afere em sua pesquisa: “Em uma entrevista dos fundadores da Brasil Paralelo, ao programa
‘Brasil cristão’, ao anunciar a produtora e sua atuação, os apresentadores falam sobre como ‘Deus tem levantado
filhas e filhos em diferentes frentes para tornar o Brasil cristão’”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=a4zkZ0tDnGc>. Acesso em 10 jul. 2022.
955
FIRMINO, op. cit., p. 181-182.
956
Ibidem, p. 182.
957
Ibidem, p. 183-185.
235
[...] a gente percebeu ali que grande parte dos problemas que a gente estava vivendo,
era como, digamos assim, produto, resultado de um longo processo de desconstrução
histórica e cultural, e que a gente tinha uma desconexão com as nossas tradições, e
com o legado da nossa tradição, de um modo geral, que era uma coisa que, digamos
assim, era um dos principais causadores de tudo que estávamos vivendo960.
Para Fernando Nicolazzi, essa produção de história realizada pela Brasil Paralelo se
baseia numa forma de atualização de princípios e postulados de uma historiografia do
oitocentos já superada, vendida aqui na forma de uma espécie de “nostalgia restaurativa”
associada à idealização da própria sociedade monárquica, patriarcal e escravista daquele
período961.
Pode se considerar então que esse grande “resgaste” das tradições, da cultura, dos
heróis e dos povos que que formam a nação brasileira na concepção da Brasil Paralelo,
cumpre também a função de mito palingenético962, onde a restauração da nação está associada
à recuperação de seu passado mítico, que aqui é buscado na Europa medieval passando pela
colonização e a formação do Império. A renovação cultural almejada passa primeiro pela
retomada da “verdadeira história nacional”. Esse uso do passado parece se relacionar com o
que Hobsbawm caracteriza como “a invenção da tradição”, a qual Traverso interpreta como
sendo
958
Ibidem, p. 184-185.
959
Brasil Paralelo. O que DE FATO é o Brasil Paralelo? YouTube, 2 out. 2018. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=9RDrKmAvsik>. Acesso em: 10 fev. 2022.
960
Mises Brasil. Podcast 368 - Brasil Paralelo (Filipe Valerim). [Podcast]. Disponível em:
<https://mises.org.br/podcasts/379/podcast-368-brasil-paralelo-filipe-valerim>. Acesso em 10 abr. 2022.
961
NICOLAZZI, 2022, op. cit.
962
MELO, 2020, p. 24-25.
963
TRAVERSO, 2012, p. 11-12.
236
964
Cf. Arte Piedosa – Estudo Católico de Animação. Disponível em: < https://www.artepiedosa.com/>. Acesso
em 20 jul. 2022.
965
O Retorno da série mais amada da Brasil Paralelo! Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/retorno-da-serie>. Acesso em 20 jun. 2022.
966
Uma História de Amor e Fúria. Direção: Luiz Bolognesi, Jean de Moura. [Filme] Rio de Janeiro: Globo
Filmes, 2013. 75 min.
967
Brasil Paralelo. Reconquista: A animação inédita da nova edição de Brasil: A Última Cruzada. YouTube, 9
set. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=T6ewsQZhVuU>. Acesso em 12 fev. 2023.
237
Fúria” são evidentes, porém, utilizando-se dela em prol de uma história “vista de cima”.
Reconquista foi posteriormente removido das plataformas da Brasil Paralelo sem maiores
explicações.
A despeito de Brasil: A Última Cruzada ter consolidado a Brasil Paralelo enquanto
principal projeto de revisionismo histórico do campo da nova direita no país, o lugar da
produção de maior alcance da produtora seria ocupado pelo filme 1964: O Brasil entre Armas
e Livros968, descrito como “maior documentário já feito sobre o período” da ditadura e o
“documentário brasileiro mais visto da história”969. Lançado em 2019 no dia que os grupos
militares celebram o aniversário do golpe, a propaganda do filme amplamente disseminada
nas redes anunciava: “Os fatos que as escolas e as faculdades esconderam sobre o regime
militar foram revelados”970.
O documentário propõe uma releitura dos eventos e processos que desencadearam na
instauração do regime militar e das condições que levaram à sua queda. A narrativa se inicia
com a abordagem do cenário internacional bipolar no período da Guerra Fria, regressando à
Revolução Russa de 1917 e à formação do “Reino do terror vermelho”, e então chega ao
contexto nacional a partir da criação do Partido Comunista Brasileiro nos anos 1920 para
desembocar na conjuntura política e ideológica da década de 1960. A partir daí, a
argumentação do documentário é praticamente toda construída em torno do que seria a
descoberta inédita de um acervo documental secreto do serviço de inteligência da antiga
Tchecoslováquia (StB), submetido à KGB, que demonstraria a existência de uma conspiração
“para transformar o Brasil em um país comunista”. Tal tese se baseia no livro “1964 – O elo
perdido: o Brasil nos arquivos do serviço secreto comunista”971, lançado em 2017 por Mauro
Abranches e Vladimir Petrilak e prefaciado por Olavo de Carvalho.
O golpe militar teria sido efetivado então como última opção a fim de prevenir o golpe
iminente que viria da esquerda. Nestes termos, seria mais justo se falar numa
“contrarrevolução” executada em 1964. A narrativa do filme também procura desconstruir o
fato largamente baseado em evidências de que o golpe ocorreu sob influência da CIA e do
governo estadunidense, uma ficção que, de acordo com a BP, teria sido construída em cima de
968
Brasil Paralelo. 1964 - O Brasil entre armas e livros (FILME COMPLETO). YouTube, 2 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg&t>. Acesso em: 22 jan. 2022.
969
Sobre Nós. Brasil Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/sobre>. Acesso em: 10 fev.
2022.
970
MAZZA, Luigi. No Facebook, Brasil Paralelo é recordista de gastos com propaganda política. Piauí, 27 maio
2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/no-facebook-brasil-paralelo-e-recordista-de-gastos-com-propaganda-politica/>.
Acesso em: 10 mar. 2022.
971
KRAENSKI, Mauro Abranches; PETRILAK, Vladimir. 1964. O Elo Perdido. O Brasil nos arquivos do
serviço secreto comunista. Campinas: Vide, 2017.
238
972
Brasil Paralelo. 1964 - O Brasil entre armas e livros (FILME COMPLETO). YouTube, 2 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg&t>. Acesso em: 22 jan. 2022.
239
973
Ibidem.
974
SERVA, Leão. Filme '1964' faz uso indevido de foto de Sebastião Salgado. Folha de S. Paulo, 7 mai. 2019.
Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/filme-1964-faz-uso-indevido-de-foto-de-sebastiao-salgado.sht
ml>. Acesso em 20 jun. 2022.
240
975
A Brasil Paralelo é uma farsa? A descrição na Wikipédia diz que sim. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/brasil-paralelo>. Acesso em: 10 fev. 2022.
976
NICOLAZZI, 2019, op. cit.
977
Por que é importante estudar história? A ampliação do imaginário é apenas uma das respostas. Brasil
Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/por-que-e-importante-estudar-historia>.
Acesso em 2 fev. 2023.
978
SALGADO; JORGE, 2021, p. 735.
241
apelo à dramaticidade nas produções que servem como expediente para a mobilização dos
afetos do público. Os autores observam também um uso irresponsável do recurso de
comparações históricas, conduzindo a anacronismos e incoerências teóricas e factuais979.
Outra constante em seu discurso é o uso do argumentum ad hominem
[...] através do qual se procura negar uma proposição com uma crítica ao seu autor (e
não ao seu conteúdo), [...] utilizado em praticamente todos os vídeos e contra todos
os inimigos: a esquerda seria formada por comunistas totalitários que querem roubar
nossa propriedade privada e tirar nossa liberdade; as feministas e os adeptos o
movimento LGBTQI+ seriam reacionárias e depravados que querem destruir a
família e os bons valores; os ativistas climáticos seriam anticapitalistas contrários ao
progresso econômico; os globalistas e multiculturalistas teriam interesses escusos de
destruição da pátria e imposição de um império supranacional totalitário, e assim por
diante980.
[...] a Brasil Paralelo molda a realidade a partir dos seus interesses ideológicos,
balizados por revisionismos que visam forjar o "lado certo da história" e pela
racionalidade instrumental neoliberal. Atua, assim, como um modelador dos
comportamentos e das emoções, prescrevendo ideais de conduta, criando sentidos
próprios para os acontecimentos, produzindo visibilidades, deturpações e
simplificações, priorizando certos enunciados e silenciando outros. E, ainda, opera
fornecendo ferramentas retóricas que não visam a complexificar o debate público,
tampouco a enriquecê-lo, mas sim miná-lo, cerceá-lo e reduzi-lo à sua própria
interpretação da realidade. Sob a defesa inalienável da liberdade individual e da
moralidade conservadora, estabelecem verdades incondicionais, com pouca
legitimação científica, enquanto fomentam a polarização social através da
personificação do inimigo comum a ser liquidado, ocupada por qualquer alteridade
que fuja do padrão identitário concebido por eles como o correto983.
979
Ibidem, p. 736.
980
Ibidem, p. 737.
981
Ibidem, p. 731.
982
Ibidem, p. 729-731.
983
Ibidem, p. 737-738.
242
984
Brasil Paralelo. O método que distorce a história do Brasil | Rafael Nogueira. YouTube, 22 mar. 2019.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9AusF45Sjr0> Acesso em 10 jul. 2022.
985
PAULO, 2020, op. cit, p. 108.
986
ALESSI, Gil. Secretário da Cultura de Bolsonaro imita fala de nazista Goebbels e é demitido. El País, 17 jan.
2020. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-17/secretario-da-cultura-de-bolsonaro-imita-discurso-de-nazista-goebbe
ls-e-revolta-presidentes-da-camara-e-do-stf.html>. Acesso em 20 jun. 2022.
987
PAULO, op. cit., p. 103.
988
BARTHES, Roland, 1989 apud PAULO, op. cit., p. 102.
989
MALINOWSKI, 1988; ELIADE, 1972. apud PAULO, op. cit., p. 102.
990
SOREL, 1992. apud PAULO, op. cit., p. 102.
243
história. Enquanto sistema de crenças que encontra em si mesma a sua fundamentação, essa
mitologia legitima a si mesma como fundamento de um determinado imaginário social, que
aqui está associado a uma concepção de mundo de extrema direita991. A BP encarna então em
si mesma o mito da revolta contra o sistema, representado pela república, pelo Estado
burocrático e pelas instituições que estariam hegemonizadas pela esquerda.
Neste sentido, as histórias e os mitos produzidos e difundidos pela Brasil Paralelo
funcionam no presente mobilizando em direção aos objetivos a serem atingidos rumo a “nova
cultura” em construção, definindo os valores e os alvos a serem perseguidos no caminho. E
isso tudo aparece embalado na forma de um produto educativo-midiático atrativo e rentável.
Em entrevista para a revista Piauí, um ex-funcionário admitia a estratégia da empresa onde
“todo filme precisa ter um inimigo, pois, sem inimigo, não há venda”992. Entre estes, um
assume o lugar de principal inimigo a ser combatido na – e pela – história.
Resta, por fim, investigar como esses usos revisionistas e negacionistas da história
aparecem associados nas narrativas da Brasil Paralelo à promoção do anticomunismo
enquanto ideologia de consenso da nova direita. A hipótese trabalhada é a de que esse recurso
se faz presente não só naqueles conteúdos que abordam diretamente o movimento comunista,
o pensamento marxista, as experiências socialistas e as esquerdas no geral, mas aparece
presente nos mais diversos materiais de política e de história produzidos pela Brasil Paralelo a
partir de múltiplas pautas. Assim, cabe examinar tanto as representações a respeito dos
comunistas e do pensamento/movimento comunista ao longo da história, quanto os elementos
do discurso anticomunista e antimarxista que atravessa o discurso da Brasil Paralelo como um
todo.
De acordo com artigo disponibilizado no site da Brasil Paralelo sobre “O que é
Socialismo?”, este representaria “[...] uma ideologia política e socioeconômica que orienta de
forma prática como instaurar a revolução materialista e igualitarista. A finalidade é alcançar
991
NICOLAZZI, 2022, op. cit.
992
COSTA, Ana Clara. Distanciamento social. Piauí, Rio de Janeiro, set. 2021. Disponível em:
<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/distanciamento-social/>. Acesso em: 22 set. 2022.
244
uma sociedade igualitária, sem classes e apátrida, sem nacionalidade”993. O socialismo ainda
é rebaixado a um regime onde “tudo será do Estado, que terá a responsabilidade de distribuir
tudo igualmente. Na prática, o governo passa a ser o único detentor de propriedades”994. Seu
cerne estaria na abolição da propriedade privada e na luta de classes. Esta última, longe de
significar uma categoria de análise histórica e social, é distorcida e reduzida aqui à promoção
da
[...] guerra armada entre operários e patrões, isto é, entre proletariado e burguesia.
[Marx e Engels] entendiam que era necessário criar o caos na sociedade para
derrubar a ordem vigente. Assim, acreditavam que do terror a ordem surgiria, bem
como a igualdade. Tudo isto por meio de um governo socialista que seria
implementado995.
[...] nega a ideia de pessoa, como uma natureza intelectual dotada de vontade e
liberdade. Nega a liberdade e a dignidade, uma vez que o princípio moral é
considerado inexistente. Consequentemente, não existem direitos naturais para os
indivíduos de uma sociedade comunista, pois o bem é pensado coletivamente e não
individualmente. Inclusive, para o bem da coletividade, os indivíduos não têm
importância em si mesmos. Por isso, se alguns morrerem não será um problema.
Mortes sempre acontecem quando se tenta implementar o socialismo ou o
comunismo. [...] as consequências das ideias socialistas são que os laços familiares,
religiosos, fraternos, etc, são desfeitos e a única fonte que se sustenta é a do próprio
Estado. Os laços com o partido são os mais fortalecidos. No socialismo, o Estado
decide tudo sobre a vida das pessoas, como o que comer, o que estudar, o que fazer,
aonde ir, em que acreditar e todas as demais possibilidades da vida. A promessa é
que no comunismo não exista um Estado, mas com um Estado tão forte e
abrangente, o que se viu na história foi sempre a formação de ditaduras socialistas997.
998
O Que É Socialismo? Descubra as origens históricas, suas diferentes correntes e influência no Brasil. Brasil
Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/socialismo>. Acesso em 2 fev. 2023.
999
Brasil Paralelo. O FIM DA HISTÓRIA | PÁTRIA EDUCADORA - CAPÍTULO 1 | FILME COMPLETO.
YouTube, 31 mar. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EU5sAWPKgMc&t>. Acesso em
25 jan. 2022.
1000
O Que É Socialismo? Descubra as origens históricas, suas diferentes correntes e influência no Brasil. Brasil
Paralelo. Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/socialismo>. Acesso em 2 fev. 2023.
1001
Qual é a diferença entre esquerda e direita? Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/diferenca-entre-esquerda-e-direita>. Acesso em 10 out. 2022.
1002
Brasil Paralelo. Congresso Brasil Paralelo | Capítulo 3: As Raízes do Problema - Como chegamos aqui?
[Oficial]. YouTube, 17 jul. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_u2lGJhrU14>. Acesso
em 11 jan. 2022.
1003
SOUZA, 2016, p. 112-113.
246
[...] uma vertente da teoria marxista que entende que a transformação da sociedade e
da política é feita com base em esforços acadêmicos e intelectuais contínuos para
subverter a cultura ocidental. A revolução tomará o poder não pelas armas, mas pela
destruição de valores e crenças tradicionais que serão substituídos pelos valores
revolucionários1004.
[...] quanto mais as pessoas fossem alienadas, mais facilmente poderiam ser
manipuladas. Com o aumento da fragilidade social, das divisões entre grupos, mais
fácil seria algum tipo de revolução. Antonio Gramsci estudou o ser humano e suas
fraquezas. Assim ele aprendeu que deveria dominar a linguagem, as artes, o
imaginário. Para implantar um regime socialista, a revolução deveria ser
internalizada nas instituições e pessoas, por vias culturais e educacionais. Sua guerra
é silenciosa, não armada. Não possui força física, mas antes é baseada na força
intelectual. Para uma sociedade se tornar socialista gradativamente, seria preciso
mudar os valores culturais e morais, até finalmente chegar nos valores políticos. Em
outras palavras, Gramsci pensou que subvertendo a cultura, conseguiria implementar
os ideais revolucionários do marxismo. Modificar a linguagem, o sentido das
palavras, enfraquecer personagens heróicos, deturpar a história, contaminar
narrativas já aceitas… todos esses exemplos podem ser vistos como a prática do que
ele pensou. A finalidade é fazer morrer o que se conhece como bom, belo e
verdadeiro. [...] Quem influencia a opinião pública tem o poder de manter os ideais
de Gramsci vivos1005.
1004
Marxismo Cultural - a tomada do poder a partir da destruição da cultura. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/marxismo-cultural>. Acesso em 2 fev. 2023.
1005
A estratégia ‘invisível’ de Antonio Gramsci. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/a-estrategia-invisivel-de-antonio-gramsci>. Acesso em 2 fev. 2023.
1006
O que foi a Escola de Frankfurt? Entenda o papel da indústria cultural e da teoria crítica. Brasil Paralelo.
Disponível em: <https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/o-que-foi-escola-de-frankfurt>. Acesso em 4 fev.
2023.
247
1007
Ibidem.
1008
Ibidem.
1009
Brasil Paralelo. Capítulo 3 - A Guilhotina da Igualdade | Brasil - A Última Cruzada. YouTube, 14 nov. 2017.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2k7gKPjMzpE&t=21s>. Acesso em: 13 jan. 2022.
1010
Ibidem.
248
Russa, por sua vez, vai aparecer no discurso da Brasil Paralelo como uma “revolução contra o
ocidente” que contava com “forças ocultas que operavam nas sombras”1011.
A BP inclusive produziu em 2022 Invasão Bolchevique1012, documentário dedicado à
narrativa sobre o processo da Revolução Russa que meses depois foi excluído das plataformas
oficiais da produtora sem maiores informações. O documentário pretendera explicar como os
comunistas tiveram êxito em dominar o maior território do planeta, ruindo com a unidade
nacional do Império Russo e instaurando uma nova forma de governo baseada em “crenças
pelo desejo de acabar com as desigualdades”. A história do comunismo na Rússia teria tido
início ainda no reinado de Catarina II, imperatriz que, recorda-se, falecera bem antes do
nascimento de Karl Marx ou do espraiamento das ideias socialistas e comunistas pela Europa
em meados do século XIX. Sob influência da alta cúpula da filosofia inglesa e alemã,
Catarina, a Grande, teria fundado escolas e universidades por toda a Rússia a fim de “espalhar
o iluminismo e seu ideal de liberdade e teor revolucionário”. Os intentos de modernizar o
império a partir das ideias progressistas e iluministas teria levado à consequências
imprevistas, com uma nova visão de mundo adentrando no interior da Rússia e colapsando
progressivamente com as estruturas do regime.
Neste contexto, ocorre a formação da intelligentsia russa, classe intelectual que trazia
um forte anseio por reformas políticas e sociais e passava a se opor aos desígnios do czar.
Herança do jacobinismo, o socialismo toma forma primeiramente em sua vertente utópica,
contaminando sobretudo as ideias da classe artística que a política educacional alçara a um
novo patamar na Rússia. Em seguida, avançaram os marxistas, trazendo anseios por uma
transformação completa da sociedade que poria fim à hierarquia e à propriedade privada. O
grande mérito do marxismo seria o de ter estabelecido uma “ciência da revolução”, uma
técnica de como produzir revoluções que criara uma maneira de transformar a sociedade para
se chegar na utopia pretendida. Com isso, cria-se uma nova mentalidade revolucionária no
seio da intelligentsia russa.
A resistência do czar às mudanças demandadas por esses grupos teria corroborado
para um crítico quadro social que passava a colocar a própria monarquia sob ameaça, com a
organização de grupos clandestinos e tentativas de golpe. Neste contexto é criado o Partido
Operário Social-Democrata Russo, sob a liderança de Lênin. Ao líder revolucionário é
imputada a exitosa aplicação da “estratégia das tesouras”, dividindo um mesmo grupo político
1011
Brasil Paralelo. 1964 - O Brasil entre armas e livros (FILME COMPLETO). YouTube, 2 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg&t>. Acesso em: 22 jan. 2022.
1012
Invasão Bolchevique - Brasil Paralelo - Filme Completo. YouTube. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=yuznVnoOq7w>. Acesso em 10 fev. 2023.
249
em dois partidos dando a falsa ideia de que seriam inimigos, quando, na verdade, se
articulariam e trabalhariam em conjunto. Assim, os mencheviques apresentavam uma visão
etapista do caminho que a Rússia ainda devia trilhar rumo ao socialismo, enquanto os
bolcheviques supostamente incorporavam três princípios básicos: a revolução deveria ser
armada, não se deveria esperar pelo seu amadurecimento, e ela deveria acontecer a todo custo.
Trotsky e Stalin também são apresentados na narrativa de modo personalista e
caricatural, como figuras que conseguiram romper com a hegemonia de Lenin no seio do
movimento comunista e que disputavam entre si quem lideraria os rumos da revolução. No
contexto da revolução de fevereiro de 1917, que tratou de derrubar o czar, essas três
lideranças teriam então conquistado o controle do soviete de São Petersburgo, significando a
vitória da opção de depor o governo provisório formado por liberais e socialistas e finalmente
submeter a Rússia aos bolcheviques. A revolução na narrativa da BP aparece, assim, como um
plano pré-orquestrado pela estratégia dessas lideranças que manipulavam as massas. Para tal,
os revolucionários teriam contado com uma fonte de financiamento milionária vindo da
Europa Ocidental e dos EUA por parte de banqueiros e empresários como John Rockefeller,
informação inusitada que é trazida sem nenhuma preocupação com a indicação da dados que a
comprovem.
Ao fim, a maior conquista dos comunistas teria sido a de dominar o maior país do
mundo e governá-lo por décadas, sendo incapaz de alcançar a utopia pretendida ao final. Os
meios utilizados pelos comunistas para estabelecer esse domínio nefasto teriam sido
preconizados anos antes da revolução por Dostoiévski na passagem recuperada da obra “Os
demônios”, que encerra a produção da Brasil Paralelo:
Nosso clube não consiste apenas daqueles que cometem assassinatos e incêndios
criminosos. Gente assim só atrapalha. Eu não suporto essa falta de disciplina. Ora,
somos vigaristas, e não socialistas. Ouçam: Seremos apoiados por todos eles! O
professor que ri de Deus às crianças, já a seu berço, ele está conosco. O advogado
que defende o assassino, rico e convicto, já é dos nossos. Os colegiais que matam o
mujique para experimentar a sensação, são dos nossos. Os jurados que absolvem
criminosos à torto e direito, são dos nossos. O promotor que treme ao tribunal por
não ser suficiente liberal, é dos nossos. Administradores, escritores, um assombroso
número dos nossos. E eles nem sabem disso ainda. Hoje em dia ninguém tem ideias
próprias. O Deus russo foi derrotado pela vodka barata. As camponesas estão
bêbadas. As mães estão bêbadas. E as igrejas estão vazias. Apenas esperem essa
geração crescer. Apenas esperem que cresçam. Uma ou duas gerações e o crime
deixará de ser uma loucura. Mas o bom senso, justamente o bom senso da Rússia, o
transformará em dever1013.
1013
Ibidem.
250
1014
Brasil Paralelo. OS ANTIFASCISTAS | AS GRANDES MINORIAS (EPISÓDIO 1). YouTube, 23 nov. 2020.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sPjDv2y_f9M&t=576s>. Acesso em: 20 jan. 2022.
1015
LOSURDO, 2006 apud LOFF; SOUTELO, 2017, p. 145.
1016
LOFF; SOUTELO, 2017, p. 146.
1017
Ibidem, p. 147-149.
251
pela cultura midiática e no próprio senso comum conservador. Loff e Soutelo observam os
sentidos políticos e ideológicos mais mais profundos implicados nessa “anatemização” da
ideia da Revolução:
1021
Ibidem.
1022
Ibidem.
1023
TRAVERSO, Enzo. El totalitarismo: historia de un debate. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires,
2001, p. 11. [tradução pessoal]
1024
LOSURDO, Domenico. Para uma crítica da categoria de totalitarismo. Crítica Marxista, n. 17, 2003, p.
51-53.
253
Soviética. Naquele contexto, o grande inimigo do ocidente liberal passa a ser encarnado no
totalitarismo, caracterizado como resultante inevitável e necessário da ideologia e do
programa comunista1025. Para o historiador italiano Domenico Losurdo
A ideia do que seria uma essência comum compartilhada pelos regimes fascistas e
comunistas representa, de acordo com Loff e Soutelo, uma das faces do fenômeno
revisionista, que se apoiou largamente no simbolismo conceitual evocado pela noção de
totalitarismo1027. Por meio dessa tese, observam os autores, opera-se a tentativa de
criminalização da experiência soviética sob o stalinismo, a partir de uma ótica de combate
político-ideológico que se alastra daí para uma condenação dos movimentos revolucionários e
do conjunto das esquerdas1028. Esse alargamento das comparações em direção à
desvalorização da tradição política e cultural de esquerda como um todo sofreu uma forte
inflexão a partir da queda do Muro de Berlim e do fim do chamado socialismo real no fim do
século passado, sendo usado como expediente de legitimação do neoliberalismo enquanto
modelo político hegemônico. Assim, enquanto
nos anos 1950 o liberalismo ocidental era legitimado através de sua comparação
com os totalitarismos nazifascista e comunista soviético, na década de 1990 os
exemplos totalitários do século multiplicaram-se, como forma de reiterar a
superioridade moral da democracia liberal triunfante. No entanto, raramente foram
acrescentados à lista totalitária autoritarismos de direita para além dos “clássicos”
nazismo e fascismo italiano1029.
1025
Ibidem, p. 55-56.
1026
Ibidem, p. 76.
1027
LOFF; SOUTELO, 2017, p. 143.
1028
Ibidem, p. 148.
1029
Ibidem, p. 145.
1030
Ibidem, p. 144.
254
1031
ROUSSO, 1999 apud LOFF; SOUTELO, 2017, p. 144.
1032
ROSAS, 2019 apud MATTOS, 2020, p. 58.
1033
Brasil Paralelo. Era Vargas: o Crepúsculo de um Ídolo. YouTube, 9 abr. 2018. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=FRzjxqqZgr4>. Acesso em 15 jan. 2022.
1034
Ibidem.
255
de Lula, já que ambos encarnam o mito do “pai dos pobres”1035. Trata-se aqui de
instrumentalizar a história nacional para promoção do antipetismo e do pensamento elitista no
presente.
Antes mesmo de se aprofundar no âmbito do desenvolvimento de conteúdos
propriamente de história, o discurso anticomunista e antipetista será extensamente explorado
logo na primeira produção lançada pela Brasil Paralelo em 2016, a série Congresso Brasil
Paralelo. Após trazer um pretenso diagnóstico da atual crise brasileira e apresentar a narrativa
mítica do processo de colonização e formação da nação, o episódio As raízes do problema1036
se dedica a apontar o que seriam as causas principais do quadro crítico em que se encontra o
país: as ideias marxistas e comunistas, uma herança maldita de uma tradição filosófica que
remonta à dialética hegeliana e o materialismo ateísta de Feuerbach que vão influenciar a obra
de Marx e Engels.
A imagem que se constrói é a do socialismo/comunismo – noções empregadas aqui de
modo indistinto – como um sistema opressor, sanguinário e arcaico que tolhe dos sujeitos o
que seriam os direitos básicos da humanidade: a vida e a liberdade. Segundo um dos
entrevistados, a revolução proletária nunca teria ocorrido de fato em qualquer país na história.
O que houve, de acordo com esse discurso, foram ditaduras conduzidas por elites intelectuais
comunistas apartadas das grandes massas. Olavo de Carvalho ainda advoga na produção a
tese de que a queda do Muro de Berlim e da URSS não significaram uma derrota, mas sim a
revigoração do movimento comunista. Mais do que uma ideologia, o comunismo seria uma
cultura, que teria inclusive a capacidade de mudar de posição ideológica conforme a situação.
“As raízes do problema” apresenta ainda o que seriam as principais vertentes do
comunismo correntes no mundo ocidental a partir do pós-guerra. O socialismo fabiano e a
social-democracia visariam a implementação do socialismo de forma progressiva e menos
radical, a partir da promoção da saúde e da educação de caráter público e universal e dos
princípios de justiça social. Suas principais vias de atuação se encontram no fortalecimento do
sindicalismo e do Estado, minando de forma progressiva a propriedade privada.
De outra parte, o movimento comunista aparece revigorado a partir da confluência do
gramscismo e do pensamento frankfurtiano, cujo principal produto teria sido a criação da New
Left nos Estados Unidos. Seu objetivo seria o de desassociar o comunismo da imagem
1035
Brasil Paralelo. O FIM DA HISTÓRIA | PÁTRIA EDUCADORA - CAPÍTULO 1 | FILME COMPLETO.
YouTube, 31 mar. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EU5sAWPKgMc&t>. Acesso em
25 jan. 2022.
1036
Brasil Paralelo. Congresso Brasil Paralelo | Capítulo 3: As Raízes do Problema - Como chegamos aqui?
[Oficial]. YouTube, 17 jul. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_u2lGJhrU14>. Acesso
em 11 jan. 2022.
256
1037
Brasil Paralelo. Capítulo 4: Dividindo pessoas, centralizando o Poder | Congresso Brasil Paralelo | [Oficial].
YouTube, 16 dez. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JYu8vpDTqIE&t=23s>. Acesso
em 11 jan. 2022.
1038
Ibidem.
257
1039
Brasil Paralelo. Capítulo 6: Impeachment: do Apogeu à Queda | Congresso Brasil Paralelo | [Oficial].
YouTube, 5 abr. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PZtwu0IWWHY&t=2852s>. Acesso
em 12 jan. 2022.
1040
Ibidem.
1041
Ibidem.
1042
Olavo de Carvalho. Olavo de Carvalho - O aviso mais importante que já dei aos brasileiros. YouTube, 24 set.
2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Px52qSmdQs8&t=16s>. Acesso em 10 set. 2022.
258
1043
O Teatro das Tesouras - a política brasileira nua e crua. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/teatro-das-tesouras>. Acesso em 30 set. 2022.
1044
Brasil Paralelo. Capítulo 6: Impeachment: do Apogeu à Queda | Congresso Brasil Paralelo | [Oficial].
YouTube, 5 abr. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PZtwu0IWWHY&t=2852s>. Acesso
em 12 jan. 2022.
1045
Ibidem.
1046
Brasil Paralelo. 1964 - O Brasil entre armas e livros (FILME COMPLETO). YouTube, 2 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg&t>. Acesso em: 22 jan. 2022.
259
1047
MARIN, Pedro. As “verdades” paralelas do Brasil Paralelo. Revista Ópera, 5 abr. 2019. Disponível em:
<https://revistaopera.com.br/2019/04/05/as-verdades-paralelas-do-brasil-paralelo/>. Acesso em 20 set. 2022.
260
população – e que 42% da população considerava o governo Jango “bom ou ótimo” e 30%
“regular”1048.
No momento em que é narrado o golpe no documentário, com a reprodução da
conhecida fala de Moura Andrade no congresso que institui a “vacância na presidência”,
chama a atenção a montagem visual da sequência pela edição do filme, onde exibem-se em
frames algumas figuras tingidas sob filtro de cor vermelha: a imagem de Marechal Deodoro é
seguida pelo brasão da República, que se segue à Vargas e ao emblema do PTB, substituído
pelo símbolo do PCURSS e depois pela figura de Jango, culminando na bandeira do MST –
uma organização que, recordemos, surge apenas em 1984. A mensagem a ser transmitida aqui
ao telespectador – que pela velocidade da exibição das imagens poderia ser associada ao estilo
das “mensagens subliminares” – parece ser clara: a República e o seu sistema são as raízes do
problema e das crises políticas que o país vivencia em sua história, e foram responsáveis por
sedimentar o terreno para o perigo maior representado pela esquerda e pelos comunistas, os
verdadeiros culpados por aquele quadro político e social. Isso tudo, recorda-se, enquanto se
narra um golpe civil-militar que se utilizou da “ameaça comunista” como pretexto para uma
articulação que promoveu uma ruptura com a institucionalidade republicana e se instaurou no
poder por mais de vinte anos.
Boa parte da narrativa de “1964” é destinada a denunciar o “terror revolucionário”
propagado pelos comunistas, que desde antes desse período já estariam organizados em
movimentos armados para tomar o poder. Após o golpe, o terrorismo da esquerda teria se
tornado corriqueiro com assaltos à bancos e estabelecimentos comerciais, explosão de bombas
em lugares públicos, sequestros, fuzilamento, tortura de inocentes e assassinatos de
desertores. O objetivo dos guerrilheiros seria a implementação de uma “outra ditadura”, a do
proletariado, momento em que a infausta entrevista de Fernando Gabeira é trazida como
evidência cabal de tal intento pela esquerda. Portanto, se trataria de uma “falsificação
histórica” o consenso de que pessoas como Carlos Marighella e a ex-presidente Dilma haviam
lutado pela democracia, liberdade e direitos humanos. Curiosamente, os únicos momentos que
o documentário dedicado ao tema da ditadura militar lembra a questão da democracia e dos
direitos humanos é para imputar sua violação aos regimes socialistas e aos guerrilheiros. Já os
“excessos” e prática de crimes pelo regime militar aparecem como desvio pessoal de
“psicopatas” e “perversos”. A prática da tortura sequer teria sido uma política de Estado na
1048
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Revista Tempo, v. 20,
2014, p. 6.
261
1049
Brasil Paralelo. 1964 - O Brasil entre armas e livros (FILME COMPLETO). YouTube, 2 abr. 2019.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg&t>. Acesso em: 22 jan. 2022.
262
1050
Ibidem.
1051
Olavo de Carvalho. Entrevista para a produção Pátria Educadora. Plataforma de Membros Brasil Paralelo.
Disponível em:
<https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/patria-educadora-olavo-de-carvalho/media/5e985a2c98a2ca00
1f648079>. Acesso em 2 fev. 2022.
263
1052
O Movimento Anticomunista: conheça a história da luta contra o marxismo. Brasil Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/anticomunismo>. Acesso em 20 abr. 2023.
1053
Brasil Paralelo. PELAS BARBAS DO PROFETA | PÁTRIA EDUCADORA - CAPÍTULO 2 | FILME
COMPLETO. YouTube, 1 abr. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UPDjFGGN2w0>.
Acesso em 25 jan. 2022
1054
Ibidem.
264
comuns matérias em seu site com relatos de “sobreviventes do comunismo chinês” e que
denunciam uso de mão de obra escrava pelo PCC1055. Campos de trabalho forçado iniciados
na época de Mao ainda seriam comuns na China1056. A potência passa, assim, a ocupar o lugar
outrora preenchido pela União Soviética no imaginário anticomunista internacional.
Sendo mais difícil associar nos dias atuais a imagem da segunda maior economia
mundial à clássica representação do comunismo enquanto sinônimo de fome e pobreza, resta
à BP promover a imagem da Venezuela enquanto país socialista decadente e miserável, um
exemplo nefasto que o Brasil correria o risco de seguir. Trata-se de explorar o tal medo do
“Brasil virar uma Venezuela” tão caro e útil aos bolsonaristas e à nova direita.
Muitas das simbologias e representações sobre o comunismo promovidas nas
produções da Brasil Paralelo fazem parte de um ideário anticomunista secularmente
mobilizado pela direita. Neste escopo, à exemplo, Carla Luciana Silva recupera um folheto
produzido pelos integralistas na década de 1940 intitulado “O que todos os brasileiros têm a
perder com o comunismo” que traz imagens do comunismo como “aberração política e
moral”, “escravização do indivíduo”, “ditadura totalitária”, uma ideologia contrária à religião,
à pátria e à liberdade do indivíduo1057.
Outra imagem recorrente mobilizada no imaginário anticomunista da Brasil Paralelo
trata-se da patologização do pensamento do adversário, associando o socialismo e o
comunismo a uma espécie de doença ou vírus contagioso. Esta última representação ganharia
maior vigor com a pandemia da COVID-19, a partir de teorias conspiratórias que relacionam
o coronavírus a um projeto criado pelo governo comunista chinês.
A narrativa do espraiamento do movimento revolucionário e do marxismo após a
dissolução da União Soviética para o âmbito das chamadas “lutas identitárias” é explorada na
série As Grandes Minorias. Os Antifas1058 aparecem aqui como terroristas revolucionários
articulados globalmente com o objetivo de derrubar o sistema capitalista: black blocks,
neopunks e ativistas climáticos são partes desse grande complô. No caminho, estes
classificariam todos aqueles que defendem os valores tradicionais e a ordem como fascistas,
quando o epíteto, na verdade, se aplicaria a eles próprios.
1055
Professor de Harvard denuncia escravidão moderna em minas controladas pelo Partido Chinês. Brasil
Paralelo. Disponível em:
<https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/professor-de-harvard-denuncia-escravidao-moderna-em-minas-contr
oladas-pelo-partido-chines>. Acesso em 2 fev. 2023.
1056
Brasil Paralelo. PELAS BARBAS DO PROFETA | PÁTRIA EDUCADORA - CAPÍTULO 2 | FILME
COMPLETO. YouTube, 1 abr. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UPDjFGGN2w0>.
Acesso em 25 jan. 2022
1057
SILVA, 2018, p. 118.
1058
Brasil Paralelo. OS ANTIFASCISTAS | AS GRANDES MINORIAS (EPISÓDIO 1). YouTube, 23 nov.
2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sPjDv2y_f9M&t=576s>. Acesso em: 20 jan. 2022.
265
1059
Brasil Paralelo. GERAÇÃO SEM GÊNERO | AS GRANDES MINORIAS (EPISÓDIO 2). YouTube, 25 nov.
2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EOdcJ7JuiXk&t=358s>. Acesso em 20 jan. 2022.
1060
Brasil Paralelo. VIDAS (NEGRAS) IMPORTAM | AS GRANDES MINORIAS (EPISÓDIO 3). YouTube, 27
nov. 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hyAGftWKEh0&t=4s>. Acesso em 20 jan.
2022.
1061
CARAPANÃ, 2018, p. 37.
1062
ROSA, 2020, p. 322.
1063
Brasil Paralelo. A Direita no Brasil. Plataforma de Membros Brasil Paralelo, mar. 2023. Disponível em:
<https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/a-direita-no-brasil>. Acesso em 20 abr. 2023.
266
1064
Brasil Paralelo. A Direita no Brasil. Plataforma de Membros Brasil Paralelo, mar. 2023. Disponível em:
<https://plataforma.brasilparalelo.com.br/playlists/a-direita-no-brasil>. Acesso em 20 abr. 2023.
1065
Ibidem.
267
outra que começa com o golpe que instaurou a república, dando início a uma tradição não
virtuosa baseada na ideia de política autoritária. O conservadorismo brasileiro é tido enquanto
descendente da primeira, ganhando forma política ainda no século XIX com os saquaremas e
o Partido Conservador, defensores da unidade nacional em torno da coroa, do respeito às
tradições, e da promoção do progresso a partir da ordem, cuja maior conquista teria sido a
preservação da monarquia brasileira. Com o fim desta, o conservadorismo brasileiro teria
atravessado o século seguinte por meio de movimentos, atores e partidos com pouca ou
nenhuma articulação entre si: as denúncias de Eduardo Prado contra os desmandos
autoritários da Primeira República, passando pelo anti-varguismo de Carlos Lacerda e da
UDN, pela recuperação da filosofia católica por José Pedro Galvão de Souza, até o
anticomunismo que instaurou o regime militar. Paradoxalmente, como já visto, o discurso
defendido aqui é de que os militares teriam entregado o país nas mãos de uma esquerda
organizada e fortalecida. Enquanto principal corrente da direita ao lado do liberalismo, o
conservadorismo é definido como
O liberalismo tem a sua origem nos esforços para acabar com as monarquias
absolutistas e com o autoritarismo em suas muitas formas. Assim, no lugar da
continuidade da tradição que pauta o conservadorismo e legitima o poder das
monarquias, o liberalismo se baseia na noção de liberdade individual e dos direitos
naturais do indivíduo: direito à vida, à propriedade privada e à liberdade. Direitos
esses que o Estado não pode violar. [...] Uma vez que normalmente a esquerda tem o
Estado como instrumento de transformação, é natural que liberais acabassem se
aproximando dos conservadores para combater o inimigo comum [sic.]1068.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos oferecer nessas linhas o que em termos marxistas se entende como sendo
uma análise concreta de uma situação concreta, a saber, uma interpretação teórica e empírica
rigorosa de um processo real em escala estrutural e conjuntural, em suas múltiplas dimensões
e determinações. Colocado o problema inicial do uso revisionista da história enquanto um
projeto estratégico-ideológico – e mercadológico – de grande alcance na esfera pública
nacional nos últimos anos a partir das mídias digitais, o objeto foi investigado não apenas em
suas condições internas – a formação, os agentes, o modus operandi, a estrutura institucional,
os projetos e as estratégias desenvolvidas pela produtora Brasil Paralelo –, como pôde ser
inserido em seu devido contexto histórico, político, ideológico e social mais amplo.
A partir da categoria de aparelho privado de hegemonia, foi possível identificar e
examinar as relações estabelecidas entre a produtora Brasil Paralelo, os intelectuais orgânicos
e as organizações da nova direita, e o Estado – em sentido ampliado – na representação e na
articulação de interesses de grupos dominantes. Para tanto, investigou-se a trajetória da
produtora e de seu quadro de intelectuais e associados na conjuntura, com foco sobre seu
projeto estratégico de produção e disseminação de conteúdos de história e de política na
internet. Neste ínterim, pôde-se ainda examinar as bases ideológicas que conformam o
pensamento e a prática da Brasil Paralelo e da nova direita brasileira, bem como seus
principais eixos de produção de consenso na conjuntura.
No âmbito da análise propriamente dos materiais e dos projetos desenvolvidos pelo
APH, analisou-se os sentidos e os significados subjacentes dos conteúdos de história de cunho
revisionista e negacionista promovidos pela Brasil Paralelo através de suas produções
audiovisuais e textuais, evidenciando o discurso, os valores e os objetivos políticos e
ideológicos que carregam. De modo associado à realização da crítica teórico-metodológica e
historiográfica pertinente a esse uso político da história e do passado, pôde-se abordar suas
principais implicações no ensino e na publicização da disciplina. Ao fim, pudemos apresentar
um exame sobre o modo como o anticomunismo é promovido enquanto recurso ideológico
nos diversos conteúdos da Brasil Paralelo.
O objeto foi contextualizado no quadro mais amplo de atualização e reorganização da
hegemonia burguesa no país a partir da construção da Nova República e do estabelecimento
do paradigma neoliberal, que compreendeu o desenvolvimento de novas formas organizativas
e estratégias de atuação das classes dominantes e de seus intelectuais orgânicos no seio do
272
Estado ampliado. Neste contexto, gesta-se uma nova direita estruturada por meio de uma série
de aparelhos privados de hegemonia que passam a se capilarizar nos mais diversos espaços
econômicos, políticos, culturais e educacionais da sociedade. Desde o primeiro momento,
esses aparelhos contaram com o apoio político e financeiro de setores do empresariado e de
grandes grupos econômicos multinacionais, além da sua articulação junto ao meio midiático
nacional e a uma rede internacional de think tanks.
Com a multiplicação e a difusão desses organismos na sociedade civil, a partir dos
anos 2000 já surgiriam aparelhos criados e protagonizados por segmentos não-burgueses, mas
que agem a serviço do capital e dos interesses e valores dos grupos dominantes. Nesta seara,
no âmbito daquele conjunto de APHs voltados principalmente para o desenvolvimento de
estratégias de ação ideológica, empenhados na formação de quadros e na difusão da ideologia
ultraliberal-conservadora entre diferentes segmentos sociais, surge no contexto de avanço
dessas forças aquele aparelho que se configuraria como canal de “mídia alternativa” da nova
direita de maior alcance no país. Adotando um modelo empresarial que lhe renderia altos
índices de lucro, a Brasil Paralelo foi criada em Porto Alegre no ano de 2016 como produtora
do audiovisual voltada para o ramo da educação e do entretenimento.
As ideologias, as identidades políticas e as tradições de pensamento reivindicadas no
discurso dos intelectuais da Brasil Paralelo a inscrevem no conjunto heterogêneo das direitas,
campo político que, a despeito das diferentes manifestações conforme o contexto temporal e
espacial, se constituiu na história a partir de dois pilares essenciais: a preocupação com a
defesa incondicional da propriedade privada e a sustentação de um sistema jurídico-político
correspondente que será restritivo quanto à participação dos grupos e das classes subalternas.
A partir da discussão conceitual sobre as noções de esquerda e direita apresentada
procuramos, assim, oferecer uma categoria – concreta e histórica – alternativa à interpretação
canônica de Norberto Bobbio baseada em abstrações de “tipos-ideais”, que essencializa a
direita como pensamento fundamentalmente inigualitário embasado na ideia da desigualdade
entre os homens como dado natural e insuperável.
A noção de “nova direita” se relaciona à atualização do núcleo ideológico fundamental
que conforma a direita para o presente contexto, trazendo aspectos de novidades e de
continuidade em relação às direitas tradicionais. Significando em essência uma simbiose dos
antagonistas históricos do socialismo – o liberalismo e o conservadorismo –, destacam-se no
seio da nova direita as correntes neoliberais, libertarianas, conservadoras e o anticomunismo
enquanto ideologia principal de amálgama desses grupos. Como vimos, o avanço dessas
direitas está associado à crise do Estado de Bem-estar social no campo político e do marxismo
273
no campo intelectual, obtendo maior força com a dissolução do chamado socialismo real. Se
seu momento originário remonta ao contexto europeu e estadunidense da década de 1970/80,
no contexto latino-americano o fenômeno da nova direita vai aparecer de modo mais
consolidado e orgânico somente a partir do início do século XXI, com uma série de
movimentos e governos conservadores, ultraliberais e autoritários que emergem na região
após a chamada “Onda Rosa”. Na presente conjuntura, o avanço de movimentos e lideranças
vinculados a diferentes vertentes das direitas – mas em especial, à extrema direita –
conforma-se enquanto fenômeno internacional.
A emergência das novas tecnologias de comunicação da era digital e das redes sociais
potencializou de forma evidente o modus operandi desses agentes, que passam a compartilhar
de estratégias comuns de propaganda política e ideológica à nível internacional como:
intervenção coordenada nas redes, disparos em massa de informações falsas ou
descontextualizadas, montagens de imagens e vídeos de forma cada vez mais
profissionalizada, uso de inteligência artificial e de bots para multiplicação infinita de
conteúdos, dentre outros mecanismos mobilizados cada vez mais em escala de produção
industrial.
Há um consenso no seio das pesquisas dedicadas ao fenômeno de que as direitas
avançam no cenário nacional a partir da conjuntura aberta no pós-2013. Mas poucas são as
análises que a investigam a partir de fatores históricos, políticos e sociais que remetem a
processos mais amplos e longevos no tempo. Vimos como esses processos recentes decorrem,
antes, de fatores de ordem estrutural e conjuntural inscritos no âmbito na sociedade capitalista
brasileira que forneceram as condições sociais e históricas para a emergência da nova direita e
do bolsonarismo enquanto projetos de hegemonia das classes dominantes no atual cenário.
A temporalidade de longa duração do objeto remete, assim, ao longevo processo de
consolidação do capitalismo periférico e dependente brasileiro e ao quadro da dominação de
classes e das relações sociais correspondentes, engendrados por meio da autocracia burguesa.
A partir das contribuições de Florestan Fernandes, vimos como esta se consagra no controle
absoluto das relações de produção, das superestruturas correspondentes e do aparato
ideológico, esgarçando os limites do livre mercado e da democracia representativa liberal, que
se conforma numa verdadeira democracia restrita. Relega-se então às classes subalternas
mecanismos de violência, repressão, exclusão e manipulação política desses setores ao longo
da história. Pode-se considerar que o Estado autocrático oscila entre formas democráticas de
caráter restrito, formas autoritárias-ditatoriais e formas fascistas. Quando se vê sob risco e em
dificuldade de garantir o consenso, a autocracia burguesa abre o aparelho de Estado para
274
grupos respaldados pelas forças militares estabelecerem à força a ordem, recorrendo a golpes
de Estado, estabelecimento de ditaduras e permissividade para projetos autoritários e
antipopulares. Se a face autoritária da autocracia foi colocada em evidência novamente no
golpe jurídico-parlamentar de 2016, a anuência ao projeto bolsonarista exibiria à olhos nus
sua forma fascista.
No âmbito da média duração, o objeto se insere na dinâmica e no processo
político-social abertos a partir da redemocratização e da formação da Nova República, nos
marcos do estabelecimento do neoliberalismo como padrão de reprodução ampliada do
capital. É justamente aqui que as classes dominantes operam a atualização dos mecanismos da
hegemonia burguesa e de suas estratégias de ação política e ideológica no seio do Estado
ampliado. No âmbito do aparelho de Estado restrito, os mecanismos de coerção da face
ditatorial da autocracia se acomodavam ao modelo democrático através de uma transição
política pactuada pelo alto, onde as Forças Armadas e os herdeiros políticos da ditadura
teriam seu papel político cristalizado no novo sistema junto da tecnocracia empresarial. O
papel do “Partido Fardado” no regime democrático restrito conheceria uma escalada a partir
do golpe de 2016, atingindo seu apogeu no governo Bolsonaro que superou mesmo a ditadura
em número de militares ocupando cargos civis no governo.
Nesse mesmo contexto de transição para a Nova República se disseminava no seio da
sociedade civil diversos aparelhos privados de hegemonia de cariz liberal-conservador,
representantes dos interesses de diferentes frações da classe dominante, enquanto no outro
polo da luta de classes se tinha um ascenso de lutas populares, movimentos sociais e
organizações da classe trabalhadora, com destaque para as forças organizadas ao redor do eixo
PT, CUT e MST. A partir das contribuições de Casimiro, identificamos aqui, portanto, os
elementos genéticos das novas formas organizativas e estratégias de atuação dos intelectuais
representantes dos interesses dominantes que resultariam mais tarde na Brasil Paralelo e nos
demais aparelhos da nova direita.
Finalmente, o quadro da conjuntura mais recente aberta em 2013 pôde ser analisado a
partir da noção gramsciana de crise de hegemonia, onde não só as bases do sistema político
entraram em desequilíbrio profundo, como se colocou em xeque o próprio pacto
político-social sob o qual se fundou a Nova República. A crise de hegemonia é uma crise do
Estado e das formas de organização política, ideológica e cultural e dos projetos tradicionais
das classes dirigentes. Consideramos, aliás, que tal crise ainda se arrasta até os dias atuais. Ela
foi evidenciada na presente conjuntura pela crise de representação que atingiu não só os
governos de conciliação de classes do PT, que, como visto, foi submetido a um longo
275
Mas não é só ao “andar de cima” que a produtora dirige suas estratégias de produção
consenso. Pudemos identificar que a Brasil Paralelo vem desenvolvendo projetos na periferia
e junto a setores populares, patrocinando ações sociais em favelas e oferecendo “bolsas de
estudo”, que nada mais que são do que o acesso aos seus cursos do “Núcleo de Formação” e à
sua plataforma de streaming.
A Brasil Paralelo não funciona apenas como um canal de “mídia alternativa” à
imprensa e aos meios de informação tradicionais. Por meio de suas produções audiovisuais e
dos cursos ofertados, a produtora procura oferecer uma plataforma de conteúdos educativos
que seja alternativo ao que seria o ensino defasado e de caráter doutrinário ofertado no âmbito
da educação formal. No lugar da educação de caráter público, gratuito e regulada pelo Estado,
defende-se um modelo conservador de ensino baseado em métodos de tutoria que, no fim,
serve ao modelo neoliberal de educação em seu desmonte da esfera pública. Uma empresa
que não só vende a educação como uma mercadoria do ramo do entretenimento, mas promove
o esvaziamento do espaço escolar em seu discurso. Para tanto, conta não só com seus projetos
próprios, como fortalece bandeiras tradicionais da direita nesse campo como o homeschooling
e o Escola sem Partido. Há de se observar, entretanto, que nesse âmbito a Brasil Paralelo
conforma um empreendimento muito mais orgânico e sofisticado que o Escola sem Partido.
Enquanto o ESP se limita à denúncia e à perseguição dos “marxistas culturais”, a Brasil
Paralelo, inspirada nas teses de Olavo de Carvalho, vai além e oferece uma alternativa
concreta através de um programa afirmativo de uma educação e uma cultura conservadora.
Ao mesmo tempo que a BP ataca e deslegitima as instituições de ensino
convencionais, ela procura ocupar e disputar espaços em seu interior, desenvolvendo projetos
em escolas – “Brasil Paralelo nas Escolas” –, e organizando seminários e exibições dos seus
filmes no interior das universidades. Enquanto trincheira fundamental para a produção de
consenso na sociedade, a universidade ocupa lugar especial no seio das estratégias e táticas
empreendidas pelos grupos da nova direita e pela Brasil Paralelo, no intento de cooptar o
público jovem e setores intelectuais para o seu projeto de sociedade. Dado interessante é que a
BP vem investindo cada vez mais no desenvolvimento de projetos e produtos direcionados
para o público infanto-juvenil – “BP Kids” e “BP Comics” – com conteúdos de revisionismo
histórico e temáticas liberais para segmentos em idade escolar. Assim, a Brasil Paralelo
oferece no seu produto a solução para o problema que ela própria denuncia.
Vem chamando a atenção a diversificação cada vez maior do material e dos conteúdos
desenvolvidos pela Brasil Paralelo, oferecendo informação – e formação – em infinitos
assuntos e temáticas da vida: política, história, filosofia, atualidades, economia, educação,
278
certamente considerar que seu discurso religioso encontra eco na base social fundamentalista,
fornecendo elementos intelectuais que justificam sua concepção de mundo.
O nacionalismo ufanista, do “cidadão de bem”, representa outra importante trincheira
da nova direita e dos grupos conservadores na conjuntura, mobilizado contra os “inimigos da
nação”, os “traidores” da pátria: o PT, os comunistas, os políticos corruptos. Nessa seara, além
da própria estética e do nome assumidos pela iniciativa, as produções e os projetos da BP tem
sido de grande contribuição, seja através de apelos aos "membros patriotas”, seja através dos
conteúdos que prometem um “resgate” dos heróis e da história nacional renegada aos
brasileiros. Recorda-se que a Brasil Paralelo surge no próprio seio das manifestações
“patrióticas” anti-Dilma.
Um ponto fundamental para o estabelecimento do contato da BP junto a esses grupos
se encontra na promoção da agenda moral de defesa do modelo familiar patriarcal tradicional
e contrária às dissidências de gênero e sexualidade que fogem à cisheteronormatividade, logo,
oferecendo oposição ao movimento LGBTQIA+ e aos movimentos feministas. Os opositores
do projeto de sociedade defendido por esses grupos passam então a ser associados à sujeitos
imorais, degenerados e relacionados ao mal e ao demônio. Incute-se o pânico moral
generalizado contra os inimigos da família que objetivam tomar a inocência das crianças e
deturpar os jovens, liberar as drogas, a pedofilia, a sexualidade e o aborto.
Ao mobilizar esses conflitos de ordem moral, relacionados à sexualidade, costumes,
raça, religiosidade, etc. a BP se posiciona no âmbito das “guerras culturais” ao lado dos
conservadores contra o “marxismo cultural”, cujo foco residiria em minar as bases da cultura
ocidental e da fé cristã, atacando a família enquanto célula da organização social. Pela ótica
conspiracionista, esses sujeitos estão certos que a estratégia da esquerda e dos comunistas se
direciona agora para a conquista das instituições e da hegemonia cultural, infiltrando-se nas
universidades, nas escolas, na imprensa, nas igrejas, na indústria de entretenimento, se
fazendo presente no movimento feminista, ambientalista, ńo “globalismo”, na “ideologia de
gênero”, nas lutas identitárias, etc. Um poder oculto e onipresente que a tudo permeia e
subverte. A solução estaria então em adotar as armas denunciadas no inimigo a seu favor.
Assim, se propõe através da noção de metapolítica um “gramscismo de direita”, propondo no
lugar da simples ação política, o desenvolvimento de toda uma estraégia no terreno cultural e
ideológico a fim de construir um novo horizonte rumo a uma nova era.
“Guru” intelectual da nova direita e mentor da Brasil Paralelo, Olavo de Carvalho foi
o principal tradutor do “marxismo cultural” para o contexto nacional. No Brasil, a “estratégia
gramscista” teria sido posta em marcha ainda sob a ditadura, quando os comunistas
281
perceberam que não venceriam na luta armada e teriam rumado para a estratégia subterrânea
da conquista da hegemonia cultural. A proposição é de que a ditadura militar fora insuficiente
na repressão contra os comunistas, brecando a revolução armada mas não sendo capaz de
derrotar a esquerda no âmbito cultural, intelectual e moral. Assim, a teoria conspiratória do
“marxismo cultural” no contexto nacional tem a particularidade de estar intimamente
associada à promoção do revisionismo e do negacionismo histórico em relação ao período
militar, onde a BP ofereceu sua obra de maior alcance público.
1964: O Brasil entre Armas e Livros faz coro – e impulsiona – a narrativa dos
legatários da ditadura num discurso alinhado ao udenismo e à chamada “linha branda” do
regime, cristalizando no imaginário social a representação da ditadura como um período de
ordem social, de crescimento econômico e patriotismo. Relativiza-se a tortura e o terror de
Estado praticado à época, onde só os “bandidos” e os “terroristas vermelhos” estariam
preocupados em ser atingidos pela repressão. “1964” não só revisiona a história do período,
como localiza nele o momento da virada para a estratégia atual adotada pelo inimigo a ser
combatido em nome dos mesmos valores e interesses da articulação civil-militar golpista
vitoriosa em 1964. Diferente do que a produção se propõe a entregar, não se trata de uma
história do golpe ou do período militar, mas da história da esquerda e do comunismo no Brasil
subordinada a uma narrativa anticomunista e antiesquerdista do início ao fim.
O anticomunismo promovido pela Brasil Paralelo lhe confere um polo de atração
ideológica ao qual se dirigem múltiplas vertentes das direitas em direção ao seu projeto:
liberais de diferentes matizes, conservadores, grupos religiosos e fundamentalistas,
militaristas, monarquistas, neofascistas. Ele opera não só contra o legado histórico dos
comunistas e contra a esquerda radical, mas aparece como discurso anti esquerda e
antiprogressista em geral, fundido ao antipetismo no contexto nacional. Associando-se ao
fundamentalismo, o anticomunismo cristaliza no imaginário social um inimigo não só de
ordem política, mas também de ordem moral e espiritual.
No âmbito da política internacional, o papel que a URSS representava enquanto
ameaça comunista concreta passa a ser ocupado pelos países reminiscentes do projeto
socialista: a China, o bolivarianismo na Venezuela, a “ditadura cubana”, a Coreia do Norte, e
o próprio Foro de São Paulo enquanto organização que articularia a estratégia revolucionária
internacionalista.
Assim, a BP trata de atualizar os elementos de consenso do anticomunismo enquanto
dispositivo contrarrevolucionário preventivo historicamente mobilizado pelas classes
dominantes e pelas Forças Armadas brasileiras no seio da democracia restrita. E faz isso
282
justamente por meio sobretudo do “marxismo cultural”, ideologia que melhor recicla o ideário
anticomunista para a atualidade, através de uma teoria da conspiração que espaira o espectro
do comunismo para infinitas situações, grupos e sujeitos.
Além de se estender na dimensão espacial, o anticomunismo e o anti esquerdismo
promovidos nas produções da BP se estendem temporalmente operando retrospectiva e
prospectivamente na história. Além do marxismo cultural, eles encontram forte esteio na tese
do totalitarismo e na anatemização da revolução ao longo da história, intimamente associados
ao fenômeno do revisionismo, como vimos. Entretando, indo muito além dos conteúdos de
história e de política que abordam diretamente o tema do comunismo, das experiências
socialistas e do marxismo, a partir da investigação das produções, dos programas e dos cursos
ofertados pela Brasil Paralelo, verificou-se que o discurso anticomunista encontra-se
difundido pela extensão de seus conteúdos: educação, atualidades, cinema, literatura, cultura
pop, religiosidade, dentre outras diversas temáticas.
Este é apresentado de modo caricatural e reducionista como uma teoria economicista e
determinista, além de aparecer contraditoriamente como um pensamento que hora é
demasiado materialista, hora é demasiado idealista e utópico. A história e a teoria liberal, por
outro lado, são desideologizados e naturalizados. Os “ideológicos” são a esquerda e os
comunistas, os “outros”, não eles. De certo, Terry Eagleton foi feliz ao ironizar esse tipo de
alegação na passagem onde diz que “a ideologia, como mau hálito, é, nesse sentido, algo que
a outra pessoa tem”1070.
Entrementes, pôde ser identificado todo um léxico e simbologias que procuram
cristalizar determinadas representações sobre a esquerda e os comunistas no imaginário
social. De tal sorte, o movimento comunista e revolucionário em linhas gerais é associado à
imagem do terror, da destruição, da miséria e da fome, uma ideologia contrária à liberdade
que ao longo da história leva centenas de milhões à guerra civil, à ditadura e ao genocídeo. Já
os seus agentes, os comunistas, são representados enquanto criminosos, terroristas e imorais,
hora todo-poderosos hora inofensivos e ridicularizados. São inimigos – ou pelo menos
desvirtuados – dos valores da família, da nação e de Deus, doutrinadores que aliciam os
jovens e atacam a inocência das crianças. Nesse caminho, os antifascistas também são
deslegitimados e atacados. A hostilidade apresentada aos comunistas se encontra intimamente
associada à dimensão religiosa na narrativa, mobilizando simbologias que os associam à
forças malignas e desumanas.
1070
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução, São Paulo: Boitempo, 2019, p. 18.
283
1071
PATSCHIKI, Lucas. Os litores da nossa burguesia: O Mídia sem Máscara em atuação partidária
(2002-2011). Marechal Cândido Rondon, 2012, 419 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, 2012.
284
1072
NICOLAZZI, Fernando. Brasil Paralelo, uma empresa colaboracionista. Sul 21, 17 jan. 2020. Disponível
em:
<https://sul21.com.br/opiniao/2020/01/brasil-paralelo-uma-empresa-colaboracionista-por-fernando-nicolazzi/>.
Acesso em 2 mar. 2023.
285
legitimação das fake news sob o discurso de liberdade de expressão (7 Denúncias), até aquelas
produções que endossaram o discurso de ataque às instituições republicanas no momento em
que o núcleo do movimento bolsonarista se manifestava em favor da intervenção militar (Os
11 Supremos).
Mais grave, durante a pandemia da COVID-19, o documentário 7 denúncias, indicado
por Bolsonaro em suas redes sociais, tratou de oferecer uma narrativa e um discurso
justificatório para o negacionismo do ex-presidente e sua gestão prevaricadora da pandemia,
contrária às medidas sanitárias preventivas e ao isolamento social recomendados pelos órgãos
internacionais de saúde em nome de uma suposta salvação da “economia”. O resultado desse
discurso somado às políticas de desmonte progressivo da saúde pública pelo neoliberalismo e
a sanha incessante de lucro do capital extraído da exploração do trabalho à qualquer custo e
condições no cenário de crise global, deixou o legado de ter elevado o país à epicentro da
pandemia no mundo junto de 700 mil brasileiros mortos.
Mas, como vimos, as relações estabelecidas entre a Brasil Paralelo e a família e o
governo Bolsonaro não se limitavam à associação com os mesmos valores ideológicos e
posições políticas na conjuntura, mas ocorreu de modo direto. Jair e Eduardo participaram de
algumas produções da produtora, além de terem compartilhado seu conteúdo em diversas
ocasiões em suas redes. A parceria com a TV Escola, até então subordinada ao MEC que
tinha à frente figuras olavistas, foi realizada ainda no primeiro ano do governo. Intelectuais e
membros associados à empresa ocuparam cargos nas pastas da Cultura, da Educação e da
Economia. Na campanha de 2022, a BP auxiliou indiretamente na campanha fazendo
propaganda contra o PT, impugnada pelo TSE, para não falar do documentário “Quem
mandou matar Jair Bolsonaro?”, produção que seria veiculada a uma semana do segundo
turno presidencial.
Vimos que o fascismo contemporâneo não apresenta mais a necessidade de se
mobilizar num partido centralizado de massa como no passado, se apoiando numa estrutura
material oferecida por APHs da sociedade civil, muitos dos quais já constituídos num
momento anterior, e pelos meios de comunicação digital e redes sociais. Entrementes, essas
vinculações demonstram como os grupos da nova direita flertam, de forma consciente ou não,
com elementos da ideologia fascista, fornecendo anuência ao seu projeto de sociedade.
Evidencia-se que a Brasil Paralelo não só representa em suas produções as posições
dos membros da família Bolsonaro – que veiculam e participam de seus filmes – e a
mentalidade de figuras do governo e da própria base bolsonarista, como manteve relações de
influência junto ao governo Bolsonaro que lhe rendeu benefícios. Se estabeleceu, assim, uma
286
1073
SANTOS, 2021, p. 93.
287
O Brasil Paralelo dentro da sua plataforma abarca, portanto, vários APHs, através da
participação de intelectuais de diferentes frações de classe e relacionados
diretamente com o Estado. Os critérios analisados a partir desses aparelhos nos
permitiram perceber que esse APH se localiza no interior de um projeto maior de
formação pedagógica e ideológica – e que não se esgota a possibilidade de análise de
refletir o Brasil Paralelo como um partido"1075.
1074
Ibidem, p. 128.
1075
Idem, 2019, p. 38.
291
1076
CASIMIRO, 2020, p. 76-77.
1077
GRAMSCI, 1999, p. 320.
1078
Ainda que não contem com o aporte material/digital e a capacidade de influência que a Brasil Paralelo
possui, cabe mencionar iniciativas elaboradas no próprio meio digital que apresentam proposta de resistência ao
projeto. Este é o caso da página “Brasil para lerdos” no Twitter, perfil que funciona como uma espécie de
observatório crítico que desvela as estratégias e os conteúdos da produtora, fornecendo ainda uma rede de apoio
para os pesquisadores que sofrem perseguição jurídica da empresa. O perfil possui atualmente cerca de 60 mil
seguidores.
292
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SILVA, Rafael Rodrigues. Brasil é o segundo país do mundo a passar mais tempo na internet.
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VÍDEO com suspeitas sobre eleições de 2014 usou lei matemática que não prova fraude.
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ZANINI, Fábio. Produtora Brasil Paralelo vive crescimento meteórico e quer ser 'Netflix da
direita'. Folha de S. Paulo, 29 mai. 2021. Disponível em:
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-meteorico-e-quer-ser-netflix-da-direita.shtml>. Acesso em 22 fev. 2022.
324
ANEXO 1
1. O que sobrou do
O Dia Depois da 2018 Lucas Ferrugem, Poucas pessoas possuem a Brasil (Parte 1)
Eleição: Henrique Viana, capacidade de antever os riscos 2. O que sobrou do
Antecipando Filipe Valerim, e aproveitar as oportunidades Brasil (Parte 2)
Ameaças e Rodolfo Tayler que os movimentos políticos 3. Minha primeira
Oportunidades causam na economia. Nestes 5 grande operação
episódios, aprenda como. 4. Os ciclos de poder
5. Proteja-se
independente do
resultado
1. 1989
O Teatro das 2018 Não Informado Descubra os bastidores das 2. 1994
Tesouras eleições presidenciais 3. 1998
brasileiras, como estes 4. 2002
personagens seguem o mesmo 5. 2006
roteiro e fingem antagonismo 6. 2010
nesta websérie produzida pelo 7. 2014
Brasil Paralelo. 8. 2018 (episódio
lançado em 2022)
Pátria Educadora 2020 Lucas Ferrugem, Para entendermos o motivo de 1. O Fim da História
Filipe Valerim chegarmos às últimas posições 2. Pelas Barbas do
em todos os rankings Profeta
educacionais internacionais, é 3. Guerra Contra a
necessário darmos um passo Inteligência
para trás. Nesta jornada pela
educação, trazemos conceitos,
análises e denúncias sobre as
diferentes ideologias e
personagens que pensaram o
sistema de ensino brasileiro.
1. Dias Toffoli
Os 11 Supremos 2020 Não informado O documentário Os donos da 2. Luiz Fux
[RP] verdade apresentou o risco que 3. Marco Aurélio
a liberdade de expressão corre 4. Rosa Weber
no Brasil, a série Os 11 5. Carmen Lúcia
supremos coloca tudo que foi 6. Luís Roberto
dito em xeque. A verdade pode Barroso
ser dita até que ponto? 7. Ricardo
Lewandowski
8. Edson Fachin
9. Celso de Mello
10. Gilmar Mendes
11. Alexandre de
Moraes
As minorias ganharam as
As Grandes 2020 Henrique capas dos jornais e moldaram a 1. Os Antifascistas
326
1. Gênesis [O impacto
A Sétima Arte 2021 Lucas Ferrugem O último século restabeleceu a do Cinema]
relação do homem com a arte. 2. A Queda [A função
O cinema surgiu como a mais política do Cinema]
presente e disseminada forma 3. A teoria do Parasita
de entreter, inspirar e educar Pós-Moderno no
informalmente as pessoas. Cinema
Com o aumento do consumo 4. O Poderoso Chefão
de filmes e séries, será que 5. A Felicidade Não se
estamos cientes do impacto da Compra
Sétima Arte em nossas vidas? 6. Star Wars
7. O Senhor dos Anéis
327
O conceito e as formas da
O Fim da Beleza 2022 Marco Aslan Beleza mudaram durante a 1. Nos Olhos de Quem
história, mas nada foi tão Vê
impactante e drástico como a 2. A Sociedade dos
modernidade. Se a Beleza está Engenheiros
nos olhos de quem vê, como 3. O chamado da
estamos vendo o mundo? Tradição
O feminismo é um movimento
A Face Oculta do 2022 Guilherme Freire político popular. Suas
Feminismo concepções pautam a política,
[EA] os debates públicos, as
interações sociais. Mas por trás
dessa feição conhecida,
esconde-se outra, oculta até de
seus apoiadores, e que agora
será revelada.
Trouxemos a realidade da
Infiltrados: 2023 Não informado Venezuela contada por quem
Venezuela mais sabe sobre ela: o próprio
[EA] povo venezuelano. É hora de
descobrir qual o real tamanho
da crise do país, com imagens
inéditas feitas pela câmera de
um celular. De moradores da
maior favela da América
Latina ao líder da oposição ao
governo, todos foram vistos e
ouvidos — e o que vimos e
ouvimos não pode ser
esquecido. Você está pronto
para descobrir a verdade?
ANEXO 2
332
ANEXO 3